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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CADFAEL 12 / Terror nos Claustros ou Mistério...
CADFAEL 12 / Terror nos Claustros ou Mistério...

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Agosto chegou, naquele Verão de 1141, castanho-amarelado como um leão e sonolento e ronronante como um gato ao borralho. Depois das chuvas abundantes da Primavera, o tempo tinha assentado numa calma angélica e ensolarada para a festa da Santa Winifred, preservando a mesma agradável face durante as colheitas do milho. A comemoração da festa da colheita foi no dia certo, os campos de trigo já estavam respigados e brancos, prontos para receber os rebanhos e as manadas que seriam levados para lá para aproveitar o restolho que a estação dava. A missa do pão tinha sido celebrada com grande contentamento e as primeiras ameixas no pomar à beira do rio estavam a começar a escurecer de maduras. Os celeiros do mosteiro estavam cheios, a palha bem seca amarrada em feixes e empilhada, e se não havia ainda chuva para fazer nascer os pastos verdes nos campos ceifados para as ovelhas, o orvalho da manhã era intenso. Quando este tempo dourado finalmente terminasse, poderia bem dar lugar a violentas tempestades, mas por enquanto os céus continuavam brancos e límpidos, do azul mais pálido imaginável.

- Grandes sorrisos no rosto dos agricultores - disse Hugh Beringar, recém-chegado da sua própria colheita no norte do condado, muito queimado pelo sol do seu trabalho nos campos -, e caos entre os reis. Se tivessem que cultivar o seu próprio milho, moer a sua própria farinha e fazer o seu próprio pão, talvez não lhes sobrasse tempo para disputas e matanças. Bom, agradeço a Deus as bênçãos do presente e Deus mantenha longe daqui as matanças. Não que eu as considere menos más por serem no sul, mas este condado é a minha terra e é meu dever defender a minha gente. Já me chega tratar dos meus, e quando os vejo castanhos, rosados e gordos, com os estábulos e os celeiros cheios, e um bom rendimento em lã de boa qualidade, fico satisfeito.

 

 

 

 

 

 

Tinham-se encontrado por acaso à esquina do muro do mosteiro, onde o Foregate virava para a direita em direcção a S. Giles e junto a ele se abria o grande triângulo de erva da feira de gado. pálido e manchado ao sol. A feira anual de S. Pedro, que durava três dias, já se tinha realizado há mais de uma semana, as barracas tinham sido desmontadas e os feirantes tinham partido. Hugh estava montado no seu cavalo cinzento, esguio e temperamental, suficientemente alto para levar um peso pesado em vez daquele jovem leve e magro, cujo domínio tolerava, embora pouco amor tivesse por qualquer outra criatura humana. Não constituía responsabilidade do xerife de Shropshire verificar se o local da feira estava devidamente vago depois da ocupação de três dias, mas Hugh gostava de se assegurar disso pessoalmente. Eram os seus guardas que tinham que manter ali a ordem e garantir que os encarregados do mosteiro não eram nem enganados nem roubados no aluguer, ou de qualquer forma molestados durante a sua cobrança. Isso agora terminara durante mais um ano. E ali estavam todos os vestígios da feira, os buracos dos postes, os rectângulos mais claros do sítio das barracas, as franjas verdes e os caminhos pisados e carecas por entre as barracas. Do branco privado de sol passavam a um verde luxuriante e de novo para um tom pálido, com manchas de trevos resistentes e achatados que sobreviviam nos caminhos pisados como verdes pegadas redondas de algum estranho animal.

- Uma boa chuvada poria tudo bem - disse o irmão Cadfael, olhando para o curioso tabuleiro de xadrez de branco e verde com olho de jardineiro. - Não há nada no mundo tão resistente como a erva.

Vinha do mosteiro de S. Pedro e S. Paulo para a sua capela e hospital de S. Giles, a menos de um quilómetro da orla da cidade. Era um dos seus deveres manter o armário dos medicamentos abastecido com todos os remédios de que os internados poderiam precisar, e fazia a sua viagem de duas em duas semanas, com mais frequência em tempo de maior ocupação e necessidade. Naquela determinada manhã de Agosto tinha consigo o irmão Oswin, que trabalhava com ele nas suas ervas há mais de um ano e que ia agora pôr em prática os seus conhecimentos nos mais necessitados. Oswin era forte, bem constituído e irradiava entusiasmo. Tempo houvera em que tinha dado bastante prejuízo com o que partira, em recipientes queimados ao ponto de ficarem irrecuperáveis, e ervas apanhadas por engano, confundidas com outras demasiado parecidas. Esse tempo tinha terminado. A única coisa de que precisava para ser um tesouro para

o hospital era de um superior com cabeça fria que soubesse quando travar o seu zelo. O mosteiro tinha o direito de nomeação e o chefe laico que tinha sido nomeado seria mais do que prova contra a energia demasiado exuberante do irmão Oswin.

- Afinal tiveram uma boa feira - disse Hugh.

- Melhor do que eu estava à espera, com metade do sul cortado com os problemas em Winchester. Vieram para cá pela Flandres - disse Cadfael apreciativamente. A Ânglia de este não era naquela altura uma região pacífica, mas os comerciantes de lã eram uma raça dura e não deixariam que algum derramamento de sangue e perigo os impedisse de obter um bom lucro.

- Foi uma boa produção de lã. - Hugh tinha rebanhos seus na sua casa senhorial de Maesbury. no norte, e sabia a qualidade da lã desse ano. Também tinham sido feitas boas vendas no País de Gales, e ao longo da fronteira. Shrewsbury tinha laços de sangue, simpatia e ganho mútuo com os galeses de Powys e Gwynedd, independentemente das ocasionais explosões de exuberância racial que pudessem quebrar a paz cautelosa. Naquele Verão, a paz com Gwynedd tinha-se mantido firme sob a mão capaz de Owain Gwynedd, dado que tinham o interesse mútuo em conter as ambições do conde Ranulf de Chester. Powys era menos previsível, mas ultimamente tinha encolhido as garras, depois de as ter partido dolorosamente por várias vezes contra as precauções de Hugh.

- E a colheita de milho foi a melhor desde há anos. Quanto à fruta... parece boa - disse Cadfael cautelosamente - se tivermos umas boas chuvadas em breve para a fazer crescer e se não houver tempestades antes de ser apanhada. Bom, o milho está no celeiro e a palha guardada e não tenho memória de alguma vez ter havido tanto feno. Não me ouvirás queixar.

Mas, apesar disso, pensou, recordando com ligeira surpresa, tinha sido um ano azarento. com o derrube de reis e imperatrizes, não uma vez, mas duas, enquanto sorrira benignamente às festividades da igreja e ao trabalho esperançado dos homens vulgares, pelo menos ali nos Midlands. Fevereiro tinha visto o rei Stephen ser feito prisioneiro na desastrosa batalha de Lincoln e levado para o castelo de Bristol pela sua arqui-inimiga, prima e pretendente rival ao trono de Inglaterra, a imperatriz Maud. Muitas “casacas” se viraram apressadamente depois dessa derrota, não sendo de somenos a do irmão de Stephen e primo de Maud, Henry de Blois, bispo de Winchester e núncio papal, que, tendo habilmente dado a volta e aderido ao lado vencedor, veio a descobrir que teria sido melhor se tivesse arrastado os pés durante um pouco mais de tempo. Pois a idiota da mulher, com a mesa posta para a receber em Westminster e a nobreza à sua volta, tinha decidido ter uma atitude tão arrogante e prepotente para com os cidadãos de Londres que estes se tinham erguido em fúria para a expulsar numa fuga ignominiosa, deixando entrar na cidade a valente rainha do rei Stephen no seu lugar.

Não que esta última volta da roda pudesse libertar o rei Stephen. Pelo contrário, os relatos diziam que fizera com que fosse carregado de correntes para maior segurança, pois ele era uma arma formidável que a imperatriz ainda tinha na mão. Mas tinha sem dúvida arrancado a coroa da cabeça de Maud, muito provavelmente para sempre, e custou-lhe o apoio do bispo Henry, que não era de desprezar nem de ser excessivamente apressado nas suas alianças duas vezes no mesmo ano. Corriam boatos de que a senhora tinha mandado o seu meio irmão e melhor paladino, o conde Robert de Gloucester. a Winchester, para se justificar perante o bispo e atraí-lo novamente para o seu lado, mas que não tinha obtido uma resposta clara. Corria também o boato, e provavelmente fundado, de que a rainha de Stephen se lhe tinha antecipado, num encontro privado com Henry em Guildford, e que tinha obtido dele mais simpatia do que a imperatriz conseguira obter. E certamente que Maud tinha sabido disso, pois as últimas notícias, trazidas por recém-chegados ao mosteiro, vindos do sul, era de que a imperatriz, com um exército reunido à pressa, tinha marchado sobre Winchester e ali constituído residência no castelo real. O seu próximo passo devia ser questão para ansiosa especulação para o bispo, mesmo na sua própria cidade.

E, entretanto, ali em Shrewsbury, o sol brilhava, o mosteiro celebrava a sua santa com alegre solenidade, os rebanhos floresciam, as searas alouravam e eram colhidas com um tempo esplêndido, a feira anual seguira serenamente o seu curso durante os primeiros três dias de Agosto e os comerciantes vieram de longe, fizeram rapidamente os seus negócios, recolheram os seus ganhos, fizeram hábeis compras e voltaram a dispersar em paz para regressar às suas casas, como se nem rei nem imperatriz existissem, ou tivessem qualquer poder para impedir os movimentos ou ameaçar a vida dos homens vulgares e sensatos.

- Não soubeste mais nada desde que os comerciantes se foram embora? - perguntou Cadfàel, olhando atentamente para as manchas esbranquiçadas deixadas pelas barracas.

- Ainda nada. Parece que se estão a observar um ao outro, um de cada lado da cidade, cada um deles à espera de que o outro faça um movimento. Winchester deve estar a suster a respiração. A última notícia foi que a imperatriz mandou o bispo Henry ter com ela ao castelo e que ele lhe enviou uma resposta evasiva, dizendo que se está a preparar para o encontro. Mas até agora não deu um único passo para se colocar ao alcance dela. Mas, apesar de tudo isso - disse Hugh pensativamente -, atrevo-me a apostar que ele está de facto a preparar-se. Ela reuniu as suas forcas e ele irá reunir as dele antes de ir ter com ela... se é que o vai fazer!

- E enquanto eles sustém a respiração, tu podes respirar mais à vontade - disse Cadfael perspicazmente.

Hugh riu-se.

- Enquanto os meus inimigos se desentendem, pelo menos não se lembram de mim e dos meus. Mesmo que voltem a entender-se, e ela recupere o seu apoio, pelo menos ganhar-se-ão algumas semanas para o lado do rei. Se não... ora, mais vale que eles se degladiem entre si do que poupem as suas setas para nós.

- Achas que ele lhe vai fazer frente?

- Ela tratou-o tão arrogantemente como trata todos os homens, quando ele lhe prestava bons serviços subalternos. Agora que ele a semidesafiou, poderá bem estar a reflectir no facto de que ela aceita muito mal ser contrariada e que um bispo pode ver-se a ferros tão facilmente como um rei assim que ela lhe deite a mão. Não, acho que sua senhoria está a abastecer o seu castelo de Wolvesey para aguentar um cerco, se chegar a isso, e a chamar à pressa os seus homens. Quem negociar com a imperatriz, é melhor que negoceie por detrás de um exército.

- O exército da rainha? - perguntou Cadfael, perspicazmente. Hugh tinha começado a virar o cavalo em direcção à cidade, mas

olhou por cima do ombro com um faiscar dos seus olhos negros.

- Veremos! Eu diria que o primeiro mensageiro que ele mandou para pedir auxílio foi à rainha Matilda.

- Irmão Cadfael... - começou Oswin, trotando lepidamente ao seu lado enquanto se dirigiam para a orla da cidade, onde o hospital e a sua capela se erguiam, simples e cinzentos por detrás da sua comprida cerca de canas.

- Sim, meu filho?

- A imperatriz ousaria mesmo deitar a mão ao bispo de Winchester? O núncio do Santo Papa?

- Quem sabe? Mas não existem muitas coisas que ela não ouse fazer.

- Mas... Isso significaria lutas entre eles...

Oswin encheu as suas jovens faces redondas num grande sopro de espanto e reprovação. Tal coisa parecia-lhe inimaginável. - Irmão, já andou pelo mundo e tem experiência de guerras e batalhas. E sei que houve bispos e grandes homens da igreja que lutaram pelo Santo Sepulcro, como o Irmão, mas deverão integrar exércitos por causas menores?

“Se devem ou não”, pensou Cadfael, “é uma questão que terão que pôr ao seu juiz no julgamento, mas que na realidade o fazem, e que fizeram antes e farão no futuro, está além de qualquer dúvida.”

- Para ser caritativo - disse ele cautelosamente -. neste caso sua senhoria poderá considerar que a sua própria liberdade, segurança e vida são uma causa muito meritória. Alguns foram chamados a aceitar o martírio mansamente, mas isso deveu-se certamente a nada menos do que a sua fé. E um bispo morto de pouca utilidade seria à sua igreja e um núncio a apodrecer na prisão poucos benefícios traria ao Santo Papa.

O irmão Oswin caminhou ao seu lado. durante alguns momentos judiciosamente calado, digerindo aquela alegação e, aparentemente, achando-a um tanto ou quanto dúbia, ou suspeitando de que não tinha compreendido totalmente o argumento. Depois, perguntou ingenuamente:

- Irmão, contra quem é que o irmão empunharia armas? Já depois de ter renunciado a elas? Por qualquer causa?

- Meu filho - disse Cadfael -, tens a habilidade de fazer perguntas que não podem ser respondidas. Como é que posso saber o que faria, em extrema necessidade? Como irmão da Ordem, desejaria manter as minhas mãos afastadas de violência contra todos, mas. apesar disso, espero que não virasse costas se visse abusarem da inocência ou do desamparo. Lembra-te de que até os bispos andam com um bordão, destinado a proteger o rebanho, além de o guiar. Os príncipes, as imperatrizes e os guerreiros que cuidem dos seus deveres, tu empenha-te nos teus e sair-te-ás bem.

Estavam a aproximar-se do caminho de terra batida que seguia por uma encosta verdejante até ao portão aberto na cerca de canas. O torreão modesto da capela olhava-os por cima do telhado do

hospício. O irmão Oswin subiu a encosta entusiasmado, com o seu rosto querúbico a brilhar de confiança, a caminho de um novo campo de trabalho e seguro de que o dominaria. Provavelmente, não haveria aqui nenhuma armadilha que ele evitaria, mas nenhuma o deteria durante muito tempo ou enfraqueceria o seu insaciável ardor.

- Agora lembra-te de tudo o que te ensinei - disse Cadfael. - Obedece ao irmão Simon. Trabalharás sob as ordens dele durante muito tempo, como ele trabalhou sob as ordens do irmão Mark. O superior é um laico de Foregate. Terás pouco contacto com ele entre as suas ocasionais visitas e inspecções, mas é uma boa alma e ouve os conselhos. E eu virei cá de vez em quando, se alguma vez precisares de mim. Vem, vou-te mostrar onde está tudo.

O irmão Simon era um homem tranquilo e franco, de quarenta e tal anos. Foi ao seu encontro no alpendre, com um rapaz esguio com uns 12 anos pela mão. Os olhos da criança eram brancos, com o âmnio da cegueira, mas de contrário era são e escorreito e não era de forma alguma a visão mais triste que ali se podia encontrar, onde os infectados e os doentes podiam encontrar simultaneamente um refúgio e uma prisão para o seu contágio, dado que não lhes era permitido levá-lo para as ruas da cidade, para o meio dos incorruptos. Havia aleijados a apanhar sol no pequeno pomar por detrás do hospício, homens velhos, cheios de marcas de bexigas e mulheres gastas no celeiro a entrançar palha para amarrar os feixes. Aqueles que podiam trabalhar faziam-no de bom grado para ganhar o seu sustento, aqueles que não podiam ficavam passivamente ao sol, a menos que tivessem problemas de pele que o sol agravava. Esses ficavam à sombra das árvores de fruto, ou, os que tinham mais febre, no fresco da capela.

- Neste momento - disse o irmão Simon -, temos dezoito, o que não é muito mau para uma estação tão quente. Três estão fisicamente bem, a convalescer da sua doença, que não era contagiosa, e partirão daqui a dias. Mas mais virão, meu jovem, virão sempre mais. Vêm e vão. Alguns pelas estradas, outros para fora da perdição deste mundo. Nenhum pior, espero, por ter passado por aquela porta.

Tinha um certo estilo de pregador que fez com que Cadfael sorrisse por dentro, lembrando-se da adorável simplicidade de Mark, mas ele era um bom homem, trabalhador infatigável, compassivo e muito hábil com aquelas suas grandes mãos. Oswin beberia as suas solenes homilias com reverência e admiração, e faria o seu trabalho reanimado e sem questionar.

- Se me deixares, eu próprio mostro isto ao rapaz - disse Cadfael, soerguendo a sacola carregada que tinha à cinta. - Trouxe-te todos os medicamentos que me pediste e mais alguns que achei que poderias precisar. Iremos ter contigo quando acabarmos.

- E notícias do irmão Mark? - perguntou Simon.

- Mark já é diácono. Apenas terei que guardar a minha mais terrível confissão durante mais alguns anos, e depois, se assim tiver que ser, partirei em paz.

- De acordo com a palavra de Mark? - perguntou Simon, revelanto uma insuspeitada profundidade e sorrindo para se desculpar. Não era frequente falar com tanto à-vontade.

- Bom - disse Cadfael, muito pensativo -, sempre considerei a palavra de Mark suficientemente boa para mim. Podes bem ter razão.

- E virou-se para Oswin, que tinha seguido esta troca de palavras com uma expressão de conscienciosa atenção, e sorriu confundido, ansioso por perceber aquilo que lhe escapava como lanugem de cardo.

- Vamos, rapaz, primeiro vamos livrar-nos deste peso e depois mostrar-te-ei tudo o que se passa aqui em S. Giles.

Passaram pelo hall, onde se comia e dormia, excepto aqueles que estavam demasiado doentes para estar entre os seus companheiros mais saudáveis. Havia um grande armário fechado à chave, do qual Cadfael tinha a sua própria chave, e cujas prateleiras estavam cheias de boiões, frascos, garrafas, caixas de madeira com comprimidos, unguentos, xaropes, loções, tudo isto produto da oficina de Cadfael. Esvaziaram as sacolas e preencheram os espaços vazios nas prateleiras. Oswin inchou com a importância daquele mistério no qual tinha sido iniciado e que agora ia exercer entusiasticamente.

Havia uma pequena horta nas traseiras do hospício, e um pomar, e celeiros para armazenagem. Cadfael conduziu o seu pupilo por todo o enclave, e no final do circuito três dos internados acompanharam-nos de perto e com curiosidade; o velho que cuidava das couves e exibiu os seus produtos com orgulho, um jovem coxo que saltitava agilmente com duas muletas, e a criança cega, que tinha deixado o irmão Simon para se agarrar à cinta de Cadfael, reconhecendo a voz familiar.

- Este é Warin - disse Cadfael, dando a mão ao rapaz enquanto se dirigiam para a pequena secretária do irmão Simon, no alpendre.

- Canta bem na igreja e sabe de cor toda a missa. Mas não tardarás a conhecer todos pelo nome.

O irmão Simon deixou as suas contas assim que os viu regressar.

- Ele mostrou-te tudo? Não é uma grande casa, mas faz um grande trabalho. Depressa te habituarás a nós.

Oswin sorriu de orelha a orelha, e corou, e disse que faria o melhor que pudesse. Era provável que estivesse à espera, impaciente, que o seu mentor se fosse embora, para poder começar a exercer a sua nova responsabilidade sem o desconforto de um aluno a trabalhar à frente do professor. Alegremente, Cadfael deu-lhe uma palmada no ombro, disse-lhe que se portasse bem, num tom de quem não tem qualquer dúvida sobre essa questão, e virou-se para o portão. Tinham saído para o sol, deixando a sombra do alpendre.

- Não tens novidades frescas do sul? - Os residentes de Saint Giles, encontrando-se na orla da cidade, estavam normalmente atrasados em relação às notícias.

- Nada de importante. E, no entanto, uma pessoa tem que se interrogar e especular. Houve um pedinte, são de corpo mas velho, que chegou há três dias e passou cá a noite para descansar. Era de Stacey, perto de Andover, um tipo estranho, talvez com o juízo um pouco afectado. Ao que parece, tem ideias que o fazem ir para lugares novos, e quando isso acontece tem que ir. Disse que ouviu palavras na sua cabeça que lhe disseram que era melhor ir para norte enquanto tinha tempo.

- Um homem desta região, sem propriedades que o prendam, pode muito bem ter agora essa ideia - disse Cadfael, num tom contrafeito -, sem ter necessariamente o juízo afectado. Na realidade, poderá ser o seu juízo a aconselhá-lo a partir.

- De facto pode. Mas este tipo disse... se é que não o sonhou... que no dia em que partiu olhou para trás, do cimo de um monte, e viu fumo nas nuvens sobre Winchester, e que, na noite seguinte, havia um clarão vermelho sobre toda a cidade, que tremeluzia como chamas vivas.

- Pode ser verdade - disse Cadfael, mordendo pensativamente o lábio. - Não seria grande surpresa. As últimas notícias concretas que tivemos foi que a imperatriz e o bispo estavam a observar-se um ao outro cautelosamente e a procurar uma melhor posição. Um pouco de paciência... Mas ela nunca foi, ao que parece, uma mulher paciente. Será que ela lhe montou um cerco? Há quanto tempo é que o teu homem andava na estrada?

- Suponho que caminhou o mais depressa que pôde - disse Simon -, mas decerto pelo menos quatro dias. Isso faz com que a história tenha uma semana, e ainda não tivemos qualquer notícia que a confirme.

- Se for verdade, tê-la-emos - disse Cadfael num tom sombrio -, tê-la-emos. De todos os relatos que circulam pelo mundo, as más notícias são as mais certas de chegar!

Ia ainda a reflectir nesta terrível sombra enquanto caminhava ao longo do Foregate, e a sua preocupação era tal que as suas saudações aos conhecidos que ia encontrando eram feitas tardia e distraida-mente. Estava-se a meio da manhã e a estrada poeirenta tinha muito movimento e havia poucos habitantes daquela paróquia de Holy Cross, no exterior das muralhas da cidade, que ele não conhecesse. Tinha tratado muitos deles, ou os seus filhos, em determinada altura nos seus anos de mosteiro, ou até mesmo, ocasionalmente, os seus animais, pois aquele que aprende sobre as doenças dos homens não pode deixar de apanhar, aqui e ali, algum conhecimento sobre as doenças dos animais, criaturas com tanta capacidade para sofrer como os seus donos, e com muito menos capacidade para se queixarem, acrescida de muito menos inclinação para o fazerem. Cadfael desejara muitas vezes que os homens utilizassem melhor os seus animais, e tentava mostrar-lhes que isso seria economicamente prudente. Os cavalos de guerra tinham feito parte desse curioso e lento processo dentro de si, que acabara por o levar a abandonar a carreira das armas e entrar para o mosteiro.

Não que todos os abades e priores utilizassem bem as suas mulas e o seu gado. Mas pelo menos os melhores e os mais sensatos reconheciam que isso era uma boa política, assim como uma atitude de bom cristão.

Mas agora o que é que estaria realmente a acontecer em Winchester que tornava o céu sobre a cidade negro de dia e vermelho à noite? Como os pilares de nuvens e fogo que assinalavam a passagem dos eleitos pelo deserto, estas tinham assinalado e guiado a fuga do mendigo do perigo. Não viu qualquer razão para duvidar do relato. O mesmo presságio deve ter passado por espíritos mais elevados durante aquelas últimas semanas, enquanto o Verão quente e seco, parente próximo do fogo, aguardava com um archote a postos. Mas que idiota que aquela mulher devia ser para tentar montar um cerco ao bispo no seu próprio castelo, na sua própria cidade, com a rainha, uma adversária à sua altura, a pouca distância dali, à frente de um forte exército, e os habitantes de Londres implacavelmente hostis. E como o bispo devia agora estar inexoravelmente contra ela, para arriscar

tudo desafiando-a. E aquelas duas altas personagens continuariam fortemente protegidas e sobreviveriam. E as criaturas inferiores que eles punham em perigo? Pobres comerciantes e artífices e trabalhadores, que não tinham tais fortalezas onde se abrigar!

Ele tinha passado de tratar cavalos e gado para as tribulações dos homens e sobressaltou-se ao ouvir atrás de si, num momento em que o trânsito do Foregate era menos intenso, os cascos leves e ritmados de mulas a aproximarem-se dele num passo estugado. Parou à esquina do terreno da feira de cavalos e olhou para trás. e não teve que olhar para longe, pois elas estavam perto.

Duas delas, um magnífico animal, alto e quase branco puro, digno de um abade, e uma criatura mais pequena e mais leve. castanho-dourada, pisando decorosamente um ou dois passos atrás. Mas o que fez Cadfael parar e virar-se de frente para elas, esperando, numa atitude de boas-vindas surpreendidas, que elas chegassem junto dele, foi o facto de ambos os cavaleiros usarem o hábito negro dos Beneditinos, irmãos entre si e seus. Era evidente que tinham reparado no hábito dele à sua frente e que se tinham apressado a ultrapassá-lo, pois assim que ele parou, e os reconheceu como tal, eles abrandaram e pararam ao lado dele.

- Deus esteja convosco, irmãos - disse Cadfael, olhando-os com interesse. - Vêm para a nossa casa aqui em Shrewsbury?

- E contigo, irmão - disse o cavaleiro da frente, numa voz profunda e que no entanto tinha uma crepitação áspera, como se a caverna do seu peito criasse um eco dissonante. Os ouvidos de Cadfael arrepiaram-se com o som. Já ouvira a respiração de muitos homens velhos, há muito expostos a uma vida dura ao ar livre, assim áspera e cava, mas aquele homem não era velho. - Pertences a esta casa de S. Pedro e S. Paulo? Sim, é para lá que nos dirigimos, com cartas para o senhor abade. Presumo que esta muralha junto de nós seja o seu limite? Então já não fica longe.

- Estamos muito perto - disse Cadfael. - Caminharei convosco, pois estou de regresso a essa mesma casa. Vêm de longe?

Estava a olhar para o rosto magro e pálido, mas com feições finas e dominadoras, com uns olhos profundos, muito escuros e serenos. O capuz estava lançado para trás sobre os ombros do estranho, e a longa cabeça ossuda ostentava o seu rondel de cabelo preto e liso como uma coroa. Um homem alto, rijo mas emaciado. Tinha um ténue bronzeado de terras mais quentes que a Inglaterra, um tom de bronze adquirido ao longo de mais de um ano, mas agora com um aspecto um tanto

macilento e doentio, e, embora o seu porte na sela fosse como se lá tivesse nascido, havia também um langor nos seus movimentos e um cansaço sem queixume no seu rosto, uma serena resignação que se adequaria melhor a um homem velho. Aquele homem teria talvez quarenta e poucos anos, decerto não muito mais.

- Bastante - disse ele, com um sorriso breve e sombrio -, mas hoje apenas viemos de Brigge.

- E vão para mais longe? Ou ficarão connosco durante algum tempo? Serão ambos visitantes muito bem-vindos, tu e este jovem irmão.

O jovem cavaleiro estava ligeiramente afastado, em silêncio, como um criado faria, respeitosamente ao serviço do seu amo. Tinha certamente pouco mais de 20 anos, era ágil e alto, embora o seu companheiro ficasse mais alto que ele um bom palmo se estivessem lado a lado. Tinha o rosto oval e liso de um rapaz da sua idade, mas formado e firme, apesar dos seus contornos suaves. O seu capuz estava puxado sobre o rosto, talvez devido ao clarão do sol. Uns olhos grandes e ensombrados olhavam de dentro do capuz, fixos no homem mais velho. O único olhar que lançou a Cadfael foi rapidamente desviado.

-Tencionamos ficar aqui durante algum tempo, se o senhor abade nos der guarida - disse o homem mais velho -, pois perdemos um tecto e temos de pedir abrigo noutro.

Tinham recomeçado a andar, devagar, com a terra fina como pó do Foregate sob os cascos das mulas. O jovem seguiu humildemente atrás, deixando-os tomar a dianteira. Às saudações educadas que lhes foram feitas ao longo do caminho, onde Cadfael era muito conhecido, e aqueles seus companheiros alvo de amistosa curiosidade, o homem mais velho dava uma resposta discreta e cortês. O mais novo não proferiu uma única palavra.

A casa do portão e a igreja surgiram à sua frente, à esquerda, o muro alto junto deles reflectindo o calor das suas pedras. O cavaleiro deixou as rédeas soltas sobre o pescoço da mula, cruzou as mãos riscadas de veias, com compridos dedos castanhos, e deu um longo suspiro. Cadfael guardou silêncio.

- Perdoa-me por eu responder quase rudemente, Irmão, mas não é minha intenção. Depois do hábito e da companhia diária do silêncio, torna-se difícil falar. E depois de um holocausto, e do fogo da destruição, a garganta fica demasiado seca para conseguir dizer muitas palavras. Perguntaste se vimos de longe. Já estamos na estrada há alguns dias, pois hoje em dia não consigo andar muito a cavalo. Viemos como pedintes do sul...

- De Winchester! - disse Cadfael, com certeza, recordando o presságio, a nuvem e o fogo.

- Daquilo que resta de Winchester. - As mãos gastas mas musculosas estavam imóveis, deixando que fosse Cadfael a guiar a mula pela parte traseira oeste da igreja e sob o arco da casa do portão. Não era dor nem paixão que tornava difícil ao homem falar, pois decerto tinha visto coisas piores na sua vida do que aquilo que agora recordava. As cordas da sua voz rangiam por falta de uso e abrandavam no eco áspero. Devia ter sido uma bela voz no seu auge, antes de o veludo esfarrapar. - É possível - disse ele com surpresa - que sejamos os primeiros? Pensei que as notícias já tivessem chegado até aqui ao norte há quase uma semana, mas é verdade que a fuga por este caminho não seria coisa simples. Então somos nós que temos de trazer as notícias? Os grandes desentenderam-se. Quem sou eu para me queixar, que tive a minha parte em actos semelhantes noutros lugares? A imperatriz montou cerco ao bispo no seu castelo de Wolvesey, na cidade, e o bispo fez chover setas de fogo sobre os telhados e não sobre os seus inimigos. A cidade ficou destruída. Um convento arrasado pelo fogo, igrejas destruídas, e o meu mosteiro de Hyde Mead, que o bispo Henry tanto queria dominar, desapareceu para sempre em chamas. Estamos aqui, nós dois, sem casa e a pedir abrigo. Os irmãos estão espalhados por todas as casas Beneditinas da terra, onde quer que tenham laços de sangue ou de amizade. Não há regresso possível a Hyde.

Então era verdade. O dedo de Deus apontara para um pobre diabo, livrando-o da armadilha e deixara que ele olhasse para trás do cimo de uma colina para ver o escarlate e o negro do fogo e do fumo devorar uma cidade. A cidade do próprio bispo Henry. à qual a sua própria mão lançara fogo.

- Deus ponha ordem em tudo! - disse Cadfael.

- Sem dúvida que porá! - A voz com o seu calor doce e eco abrasivo, soou sob o arco da casa do portão. O irmão porteiro saiu, com um sorriso de boas-vindas, e um moço de estrebaria veio a correr buscar os cavalos, ao ver visitantes irmãos. O grande pátio abria-se sereno ao sol, atravessado em todos os sentidos por pessoas atarefadas e preocupadas, irmãos, irmãos laicos, criados, todos eles a tratar das suas tarefas normais. As crianças, oblatas e estudantes, libertos dos seus estudos, estavam a jogar à bola, as suas vozes agudas alegres e penetrantes na meia hora calma antes do meio-dia. Aqui, fazia-se ouvir, sentir e ver, tão constante como as estações.

Eles pararam dentro do portão. Cadfael segurou no estribo para o estranho desmontar, embora não houvesse qualquer necessidade pois ele desmontou com tanta naturalidade como um pássaro a abrir e a fechar as asas: mas fê-lo lentamente, com uma graciosidade lânguida, e pôs-se de pé, endireitando um corpo comprido e elegante mas enfraquecido, com bastante mais de um metro e oitenta e direito e fino como uma lança. O jovem tinha saltado da sela num instante e ficou ali, frustrado, às voltas, inseguro, com ciúmes da mão amiga de Cadfael. E continuava sem fazer qualquer som, nem de gratidão nem de protesto.

- Serei vosso arauto perante o abade Radulfus - disse Cadfael se me permitirem. Que é que lhe hei-de dizer?

- Diz que o irmão Humilis e o irmão Fidelis, do antigo mosteiro de Hyde Mead, que foi destruído, pedem uma audiência e a protecção de sua bondade, com toda a submissão e em nome da Ordem.

Aquele homem decerto que pouca humildade conhecera no passado, e pouca submissão, embora agora tivesse abraçado ambas com todo o coração.

- Assim direi - disse Cadfael, virando-se por instantes para o irmão mais novo, à espera do seu ámen. A cabeça encapuçada inclinou-se modestamente, o rosto oval escondido na sombra, mas não se ouviu nenhuma voz.

- Desculpa o meu jovem amigo - disse o irmão Humilis, muito direito junto à cabeça branca da sua mula - por ele não poder proferir a sua saudação. O irmão Fidelis é mudo.

 

- Traz-me os nossos irmãos - disse o abade Radulfus, levantando-se da secretária, surpreendido e preocupado, depois de Cadfael lhe contar quem chegara e o essencial da sua história. Afastou os pergaminhos e a pena e ficou de pé, escuro e alto, contra o sol cintilante que entrava pela janela da sala. - O que aconteceu! A cidade e a igreja ambas destruídas! Claro que são bem-vindos para toda a vida, se for preciso. Traz-mos cá, Cadfael. E fica connosco. Depois poderás ser seu guia e levá-los ao irmão Robert. Temos que lhes arranjar um lugar apropriado no dormitório.

Cadfael foi cumprir a sua tarefa, satisfeito por não ter sido dispensado, e conduziu os recém-chegados pelo grande pátio até à esquina onde se encontravam os aposentos do abade, abrigados no seu pequeno jardim. Estava ansioso por saber, pelos viajantes, notícias dos acontecimentos no sul, e Hugh também ficaria quando soubesse da sua chegada. Desta vez, as notícias tinham sido invulgarmente lentas na estrada, e os acontecimentos podiam estar a desenrolar-se com uma velocidade consideravelmente maior em Winchester desde que os desafortunados irmãos de Hyde se tinham dispersado para procurar refúgio noutro lugar.

- Sr. Abade, aqui estão o irmão Humilis e o irmão Fidelis. Parecia estar escuro na pequena sala apainelada a madeira, comparado com a claridade do exterior, e os dois homens altos e dominadores observaram-se um ao outro intensamente na quietude quente e ensombrada. O próprio Radulfus tinha puxado dois bancos para os recém-chegados e, com um gesto de uma mão comprida, convidou-os a sentarem-se, mas o jovem recuou deferentemente para as sombras e permaneceu de pé. Nunca poderia ser ele o porta-voz; podia bem ser essa a razão do seu recato. Mas Radulfus, que ainda não sabia da incapacidade do jovem, não deixou de notar esta atitude e observou-a sem aprovação ou desaprovação.

- Meus irmãos, sois bem-vindos à nossa casa, e tudo o que pudermos dar é vosso. Soube que fizeram uma longa viagem, e que foi uma triste perda que vos fez partir. Sofro pelos nossos irmãos de Hyde. Mas aqui esperamos pelo menos oferecer-lhes tranquilidade de espírito e um abrigo seguro. Temos tido sorte nestas lamentáveis guerras. Tu, o mais velho, és o irmão Humilis?

- Sim, Padre. Apresento-lhe a carta do nosso prior, confiando-nos a ambos à sua bondade. - Tinha-a trazido no peito, sob o hábito, e tirou-a e pô-la em cima da secretária do abade. - Sabe decerto, Padre, que o mosteiro de Hyde é, há dois anos, um mosteiro sem abade. É voz corrente que o bispo Henry tencionava recuperá-lo para si como convento episcopal, situação a que os irmãos resistiram fortemente, e negar-nos um responsável pode bem ter sido uma acção destinada a enfraquecer-nos e a reduzir a nossa voz. Agora isso já não tem importância, pois a casa de Hyde desapareceu, deitada por terra e enegrecida pelo fogo.

- A destruição foi assim total? - perguntou Radulfus, franzindo a testa sobre as mãos entrelaçadas.

- Destruição absoluta. No futuro, uma nova casa poderá vir a ser erguida naquele local, quem sabe? Mas da antiga nada resta.

- É melhor contares-me tudo o que puderes - disse Radulfus pesadamente. - Aqui vivemos longe destes acontecimentos, quase em paz. Como é que se deu este holocausto?

O irmão Humilis... qual teria sido o seu orgulhoso nome antes de ter calmamente reclamado para si humildade?... cruzou as mãos sobre o hábito e fixou os seus olhos escuros e encovados no rosto do abade. Tinha uma cicatriz funda, há muito sarada e pálida, que lhe marcava o lado esquerdo da tonsura, reparou Cadfael, distinguindo a forma em crescente de um golpe oblíquo de um guerreiro dextro. Não o surpreendeu. Não era uma espada direita ocidental, mas sim uma cimitarra Seljuk. Então tinha sido aí que ele tinha ficado com aquele tom de bronze que agora quase desaparecera e ficara amarelado.

- A imperatriz entrou em Winchester em finais de Julho, não me lembro da data, e fixou residência no castelo real, junto do portão ocidental. Mandou chamar o bispo Henry ao seu castelo, e dizem que ele deu a resposta que iria, mas com um pequeno atraso, com que desculpa nunca cheguei a saber. Atrasou-se demasiado, mas por aquilo que se seguiu utilizou bem os dias de graça que teve, pois quando a paciência da imperatriz se esgotou e ela mandou avançar as suas forças contra ele, o bispo Henry estava fechado no seu novo castelo de Wolvesey, no canto sudeste da cidade, encostado às muralhas, em segurança. E a rainha, ou pelo menos era o que se dizia na cidade, estava a fazer avançar apressadamente os seus flamengos em seu auxílio. Quer fosse ou não assim, ele tinha uma grande guarnição lá dentro, e bem equipada. Peço perdão a Deus e também a si, Padre - disse o irmão Humilis delicadamente -, por ter feito um esforço tão grande em seguir estes relatos de guerra, mas a minha formação foi em armas, e um homem não consegue esquecer por completo.

- Deus nos livre - disse Radulfus - que um homem sinta necessidade de esquecer alguma coisa que foi feita de boa-fé e em leal serviço. Em armas ou nos claustros, todos nós temos uma dívida a pagar a este país e a esta gente. Fechar os olhos não ajuda nem um nem outro. Continua! Quem atacou primeiro?

Pois eles tinham sido aliados apenas algumas semanas antes!

- A imperatriz. Avançou para cercar Wolvesey assim que soube que ele se tinha fechado lá dentro. Utilizaram contra o castelo tudo o que tinham, até máquinas que conseguiram arranjar. E destruíram todas as construções, lojas, casas, tudo o que estava demasiado perto, para limpar o terreno. Mas o bispo tinha uma forte guarnição e os seus muros eram novos. Segundo ouvi dizer, começou a construir apenas há uns dez anos. Foram os seus homens que utilizaram primeiro setas incendiárias. Grande parte da cidade dentro das muralhas ardeu, igrejas, um convento, lojas... podia não ter sido tão terrível se não fosse o pino do Verão, com um tempo tão seco.

- E Hyde Mead?

- Não há forma de saber de que lado vieram as setas que nos incendiaram. Nessa altura os combates já se tinham estendido para lá das muralhas da cidade, e houve pilhagens, como sempre - disse o irmão Humilis. - Combatemos o fogo enquanto pudemos, mas não havia ninguém para nos ajudar, e o fogo era tão violento que não o conseguimos dominar. O nosso prior ordenou-nos que fôssemos para o campo, e assim fizemos. Já em menor número - disse ele. - Houve mortes.

Havia sempre mortes, e normalmente de inocentes e indefesos. Radulfus olhou-o fixamente, com as sobrancelhas franzidas para o cálice das suas mãos entrelaçadas, e reflectiu.

- O prior viveu para escrever cartas. Onde é que ele está agora?

- Em segurança, na casa senhorial de um parente, a alguns quilómetros da cidade. Ordenou a nossa retirada, dispersando os irmãos para onde quer que melhor pudessem encontrar abrigo. Eu perguntei se podia pedir asilo aqui em Shrewsbury. trazendo comigo o irmão Fidelis. E aqui estamos, e estamos nas vossas mãos.

- Porquê? - perguntou o abade. - São bem-vindos, sem dúvida, pergunto apenas, porquê?

- Padre, eu nasci a um ou dois quilómetros a montante do rio, numa casa chamada Salton. Tive desejo de voltar a vê-la, ou pelo menos estar perto dela, antes de morrer. - Sorriu, fitando os olhos penetrantes sob as sobrancelhas franzidas. - Era a única propriedade que o meu pai tinha neste condado. Acontece que foi aí que nasci. Um homem desalojado do seu último lar pode bem voltar para o primeiro.

- Dizes bem. No que nos for possível, dar-te-emos esse lar. E o teu irmão mais novo? - Fidelis puxou o capuz para trás, inclinou reverentemente a cabeça e fez um pequeno gesto com mãos submissas, mas nenhum som.

- Padre, ele não consegue falar por si. Agradeço eu por ambos. Não estive de boa saúde em Hyde, e o irmão Fidelis, por pura bondade, tornou-se meu fiel amigo e servidor. Não tem parentes para onde possa ir, decidiu ficar comigo e cuidar de mim como tem feito. Se assim o permitir. - Esperou pelo aceno de cabeça afirmativo, acompanhado de um sorriso, antes de acrescentar: - O irmão Fidelis servirá a Deus com todas as faculdades que tem. Conheço-o e respondo por ele. Mas uma delas, a sua voz, ele não pode utilizar. O irmão Fidelis é mudo.

- Não é menos bem-vindo por isso - disse Radulfus -, pois as nossas orações têm de ser silenciosas. O seu silêncio pode ser mais eloquente que as nossas palavras faladas. - Se tinha sido apanhado desprevenido, tinha dominado a surpresa tão rapidamente que não se tinha percebido. - Depois de tal viagem - disse ele -, devem estar ambos cansados e ainda com o espírito perturbado até terem de novo uma cama, um lugar e trabalho para fazer. Vão agora com o irmão Cadfael; ele levá-los-á ao prior Robert e mostrar-vos-á tudo o que há dentro do enclave, o dormitório e o refeitório e os jardins e o herbário, onde ele reina. Arranjar-vos-á alimento e sítio onde descansarem, que são as vossas primeiras necessidades. E nas Vésperas juntar-se-ão a nós para o culto.

A notícia dos recém-chegados do sul levou Hugh a vir a correr da cidade para conferenciar primeiro com o abade, e depois com o irmão Humilis, que repetiu livremente aquilo que já tinha relatado. Depois de obter todas as informações possíveis. Hugh foi ter com Cadfael ao herbário. onde ele estava atarefado a regar. Ainda faltava uma hora para as Vésperas, a altura do dia em que todo o trabalho necessário já tinha sido feito, e até um jardineiro podia descontrair-se e sentar-se um pouco à sombra. Cadfael guardou o seu regador, deixando os canteiros abertos e ao sol até ao fresco da tarde, sentando-se ao lado do seu amigo no banco encostado à alta muralha sul.

- Bom, pelo menos tens espaço para respirar - disse ele. - Eles estão a atacar-se um ao outro, não a ti. É pena, no entanto, que sejam os habitantes da cidade e os monges e as pobres freiras a sofrer. Mas é assim que o mundo anda. E a rainha e os seus flamengos já devem estar na cidade, ou muito perto. Que é que acontece a seguir? Os sitiantes podem muito bem dar por si sitiados.

- Já aconteceu antes - concordou Hugh. - E o bispo foi avisado de que poderia precisar de encher a despensa, mas ela pode ter assumido como certos os seus abastecimentos. Se eu fosse general da rainha, primeiro gastaria algum tempo a cortar todas as estradas para Winchester, para garantir que não entrava nenhuma comida. Bom. veremos. Ouvi dizer que foste o primeiro a falar com estes dois irmãos de Hyde.

- Ultrapassaram-me no Foregate. Que é que achas deles depois de teres estado fechado com eles durante tanto tempo?

- Que é que posso achar deles assim à primeira vista? Um homem doente e um homem mudo. Mais objectivamente, que é que os teus irmãos acham deles? - Hugh olhava atentamente para o rosto do seu velho amigo, que estava embotado e sonolento e fechado no calor do fim de tarde, mas nunca totalmente fechado para si. - O mais velho é nobre, claramente. E está doente. Diria que teve um passado militar, pois creio que tem feridas antigas. Reparaste que ele anda um pouco de lado, para a esquerda? Qualquer coisa não sarou por completo. E o jovem... compreendo bem que tenha ficado enfeitiçado por um homem assim, e idolatra-o. Uma sorte para ambos! Ele tem um poderoso protector e o seu amo um enfermeiro dedicado. Então? - disse Hugh, desafiando outra opinião com um sorriso confiante.

- Ainda não adivinhaste quem é o nosso novo irmão mais velho? Eles podem não te ter contado tudo - admitiu Cadfael tolerantemente -. pois a informação saiu quase por acaso. Um passado militar, sim, ele garantiu-o, embora isso se pudesse perceber mesmo que não o tivesse dito. O homem tem mais de 40 anos, diria eu, e tem cicatrizes visíveis. Também disse que nasceu aqui em Salton, na altura propriedade do seu pai. E tem uma cicatriz na cabeça, revelada pela tonsura, que foi feita por uma cimitarra Seliuk há alguns anos. Um mero golpe, que sarou rapidamente, mas que deixou a sua marca. Salton era originalmente propriedade do bispo de Chester e atribuída à igreja de S. Chad, aqui dentro das muralhas. Arrendaram-na há muitos anos a uma família nobre, os Marescots. A casa está entregue a um inquilino local. -Abriu um olho castanho sob uma sobrancelha basta e ruiva como o Outono. - O irmão Humilis é um Marescot. Conheço apenas um Marescot da idade deste homem que foi para a Cruzada. Há uns dezasseis ou dezassete anos. Eu tornara-me monge recentemente, e parte de mim ainda tinha saudades da vida laica e estava sempre atento às histórias daqueles que iam defender a Cruz. Inexperientes e entusiastas como eu era, certamente, e destinados a uma amarga decepção, mas puros na sua decisão. Houve um certo Godfrid Marescot que levou três vintenas de homens consigo, das suas próprias terras. Ganhou grande nome pela sua valentia.

- E achas que este é ele? Assim tão caído?

- Por que não? Os grandes estão tão sujeitos a serem feridos como os pequenos. Mais ainda - disse Cadfael -, se os conduzirem pela dianteira e não pela retaguarda. Dizem que este nunca estava senão na dianteira.

Ainda tinha sangue de cruzado vivo dentro de si, e não podia deixar de acordar e responder, por mais que a verdade se tivesse afundado sob os seus sonhos e esperanças de há tantos anos. Outros tinham igualmente acreditado e confiado, igualmente estremecido e virado costas a muito do que era feito em nome da Fé.

- O prior Robert estará neste momento a rever a história dos senhores de Salton - disse Cadfael - e não deixará de encontrar este homem. Conhece a genealogia de todos os senhores feudais deste condado dos últimos trinta anos e mais. O irmão Humilis não terá dificuldade em radicar-se aqui, pois prestigia-nos com a sua presença e não precisará de fazer mais nada.

-Ainda bem - disse Hugh, num tom contrafeito -, pois creio que ele não poderá fazer mais nada, a menos que seja morrer aqui e aqui ser enterrado. Olha, tu tens melhor olho que eu para as doenças mortais. O homem está a caminho para fora deste mundo. Sem pressa, mas o fim é certo.

- O mesmo acontece a ti e a mim - disse Cadfael rispidamente. - E quanto à pressa, não és tu nem eu que sabemos qual será. Virá

quando vier. Até lá, todos os dias são importantes, o último não menos que o primeiro.

- Assim seja! - disse Hugh, sorrindo, sem se ofender. - Mas ele irá parar às tuas mãos antes que passem muitos dias. E o seu jovem... o rapaz mudo?

- Nada! Nada senão silêncio e refúgio nas sombras. Dá-nos tempo - disse Cadfael -, e aprenderemos a conhecê-lo melhor.

Um homem que renunciou aos bens materiais pode deslocar-se livremente de um asilo para outro, e contudo sentir-se em casa, vivendo sem ter nada tão bem em Shrewsbury como em Hyde Mead. Um homem que veste o mesmo que todos os outros homens na mesma disciplina vestem não precisa de se destacar por mais de um dia. O irmão Humilis e o irmão Fidelis retomaram ali nas midlands a mesma rotina que tinham no sul e as horas do dia desenrolavam-se não menos firme e serenamente. No entanto, o prior Robert tinha chegado a um final satisfatório nas suas cogitações relativamente às propriedades feudais e às genealogias familiares do condado, e não tardou que todos viessem a saber, através do seu eco de confiança, o irmão Jerome, que o mosteiro tinha adquirido um filho muito distinto, um cruzado de reconhecido valor, que tinha ganho nome na recente luta contra o Atabeg Zenghi de Mosul, a última ameaça ao Reino de Jerusalém. As ambições pessoais do prior Robert residiam todas dentro do claustro, mas, apesar disso, nunca perdia uma volta na sorte do mundo lá fora. Há quatro anos, Jerusalém tinha sido abalada até às suas fundações pela derrota do rei às mãos deste tal Zenghi, mas o reino tinha sobrevivido através da sua aliança com o emirato de Damasco. Nessa triste batalha, segundo Robert revelara discretamente, Godfrid Marescot tinha desempenhado um papel heróico.

- Tem observado todos os ofícios e trabalhado arduamente durante todas as horas destinadas ao trabalho - disse o irmão Edmund, o enfermeiro, olhando para o novo irmão, do outro lado do pátio, enquanto este se dirigia lentamente para a igreja, para as Completas. - E não pediu nenhuma ajuda, nem a ti nem a mim. Mas gostava de que ele tivesse melhor cor e um pouco mais de carne naqueles compridos ossos. Aquele tom de bronze macilento, sem sangue por detrás...

E lá ia a fiel sombra atrás dele, jovem, esguio, com um passo forte

e harmonioso, a mão sempre pronta para sustentar um cotovelo no caso de este falhar, ou para apoiar um corpo magro no caso de este tropeçar ou cair.

- Lá vai um que sabe tudo - disse Cadfael -, e não pode falar. Mas, se pudesse, não o faria sem autorização do seu senhor. Filho de um dos seus rendeiros, não achas? Decerto que algo do género. O rapaz é bem nascido e instruído. Sabe latim quase tão bem como o seu amo.

Pensando bem. parecia uma liberdade falar de um homem como sendo amo de alguém que se chamava a si próprio Humilis e renunciara ao mundo.

- Tinha-me ocorrido - disse Edmund, mas hesitante e com reverência - um filho natural. Posso estar completamente errado, mas foi o que me ocorreu. Tomo-o por um homem que amaria e protegeria a sua semente, e o jovem pode bem amá-lo e admirá-lo por isso, assim como por tudo o mais.

E podia bem ser verdade. O homem alto e o jovem alto tinham uma certa semelhança, até nas feições distintas... pelo menos, pensou Cadfael, alguém tinha olhado directamente para as feições do jovem irmão Fideiis, que andava tão silenciosa e despercebidamente pelo enclave, descobrindo pacientemente o caminho naquele lugar desconhecido. Sofria talvez mais que o seu companheiro mais velho com a mudança, tendo menos confiança e experiência e toda a ansiedade da juventude. Agarrava-se à sua estrela-guia e todos os movimentos que fazia eram orientados pela sua luz. Compartilhavam um recanto isolado no escritório do mosteiro, pois o irmão Humilis necessitava, isso era claramente evidente, de uma ocupação sedentária, e provara ter uma mão delicada a copiar e dotes artísticos para a iluminatura. E, dado que tinha um controlo limitado após um período de trabalho, e a sua mão tinha tendência a tremer nos pormenores mais elaborados, o abade Radulfus tinha ordenado que o irmão Fideiis estivesse presente para o ajudar sempre que ele precisasse de descansar. Uma mão assemelhava-se à outra, como se uma tivesse ensinado a outra, embora isso pudesse dever-se apenas a emulação e amor. Juntos, faziam um trabalho lento mas admirável.

- Nunca tinha pensado - disse Edmund, pensando em voz alta - como podia ser remoto e estranho um homem que não tem voz. e como é difícil chegar a ele e tocar-lhe. Já dei por mim a falar dele ao irmão Humilis, por cima da cabeça do rapaz, tendo ficado envergonhado... como se ele não tivesse nem ouvido nem inteligência. Corei à sua frente. No entanto, como é que se toca na mão de uma pessoa assim? Nunca passei por essa experiência até agora e estou completamente perdido.

- Quem não está? - disse Cadfael.

Era verdade, e ele tinha reparado nisso. O silêncio, ou antes, a moderação da fala praticada na Ordem tinha uma qualidade, a quietude que pairava sobre o irmão Fidelis era outra completamente diferente. Aqueles que tinham de comunicar com ele tinham tendência a usar muitos gestos e poucas palavras, ou nenhumas, reflectindo o seu silêncio.

Como se na realidade ele não tivesse nem ouvido, nem inteligência. Mas tinha manifestamente ambas, sentidos rápidos e delicados e um ouvido apurado, atento ao menor som. E isso era também estranho. Muitas vezes os mudos eram mudos porque nunca tinham ouvido sons, logo, não faziam nenhuns. E aquele jovem tinha sido bem ensinado em relação às letras e sabia algum latim, o que indicava um espírito mais ágil que a maioria. A menos, pensou Cadfael duvidosamente, que a sua mudez fosse uma coisa de anos recentes, devido a alguma constrição das cordas, da língua ou da garganta? Ou, mesmo que fosse de nascença, não poderia ser causada por algumas cordas demasiado repuxadas sob a língua, que pudessem ser soltas através de exercício ou de uma faca?

- Intrometo-me demasiado - disse Cadfael a si próprio irritadamente, sacudindo as especulações que não levariam a lado nenhum. E foi para as Completas com uma disposição invulgarmente penitente, e como forma de disciplina observou silêncio durante o resto da tarde.

No dia seguinte apanharam as ameixas roxo-escuras, pois estavam no grau certo de maturação. Algumas seriam comidas de imediato, frescas como estavam, outras seriam cozidas pelo irmão Petrus até ficarem numa compota espessa e escura, como bolos de sementes de papoila, e outras seriam deixadas a secar em prateleiras na casa de secagem, até ficarem enrugadas e cristalizadas, peganhentas e doces. Cadfael tinha algumas árvores num pequeno pomar dentro do enclave, embora a maioria das árvores de fruto estivesse no jardim principal do Gaye, um verdejante prado junto ao rio. Os noviços e os irmãos mais novos apanhavam a fruta e os oblatos e os alunos eram autorizados a ajudar; e se toda a gente sabia que algumas mãos-cheias iam para dentro das túnicas e não para os cestos, desde que a pilhagem fosse razoável, Cadfael fingia que não via.

Era de mais esperar silêncio com um tempo tão bom e numa ocupação de férias como aquela. As vozes dos rapazes soavam alegremente aos ouvidos de Cadfael enquanto ele decantava vinho na sua oficina de trabalho e andava de um lado para o outro no meio das suas plantas ao longo do muro ensombrado, a mondar e a regar. Um som agradável! Conhecia as diversas vozes, as vozes agudas e leves das crianças, as dos mais velhos com uma vasta gama de tons. Aquele chamamento quente e nítido era o irmão Rhun, o mais novo dos noviços, de 16 anos, aceite para o noviciado há apenas dois meses e ainda não tonsurado, não fosse arrepender-se da sua impulsiva decisão de abandonar um mundo que mal conhecera. Mas Rhun não se arrependeria da sua opção. Tinha ido ao mosteiro para a festa de Santa Winifred, aleijado e cheio de dores, e pela sua graça era agora alto e ágil, irradiando alegria sobre todos que se chegavam a ele. E agora, certamente, sobre quem quer que fosse o seu companheiro na ameixeira mais próxima. Cadfael foi à orla do pomar ver, e lá estava o rapaz outrora coxo no meio dos ramos, seguro e alegre, a agarrar a fruta com mãos hábeis e tão delicadamente que os seus dedos mal afloravam o seu veludo, inclinando-se para os pôr no cesto que lhe estendia um irmão alto, que estava de costas e cuja figura não era imediatamente reconhecível até ele se virar, para melhor acompanhar os movimentos de Rhun, revelando o rosto do irmão Fidelis.

Era a primeira vez que Cadfael via aquele rosto tão claramente, à luz do sol, com o capuz atirado para trás. Rhun, ao que parecia, era uma das pessoas que não tinha qualquer dificuldade em aproximar-se do irmão mudo, falando alegremente com ele e sem achar qualquer estranheza no seu silêncio. Rhun inclinava-se para baixo a rir e Fidelis olhava para cima, a sorrir, um rosto reflectindo o outro. As suas mãos tocaram-se na pega do cesto enquanto Rhun o estendia a toda a extensão do seu braço e Fidelis apanhava um cacho de frutos que lhe era apontado cá de baixo.

Afinal, pensou Cadfael, era de esperar que a valorosa inocência avançasse ousadamente onde a maioria de nós hesitariam em pôr pé. Além disso, Rhun tinha passado a maior parte da sua vida com um cruel defeito que o diferenciava dos outros, sem por isso sentir amargura, e era natural que avançasse sem medo pelo isolamento de um outro homem. E graças a Deus por ele e pela coragem das crianças!

Voltou pensativamente à sua monda, recordando aquele vislumbre fácil e iluminado pelo sol daquele que habitualmente procurava as sombras. Um rosto oval, de feições firmes e por natureza graves,

com uma testa alta e maçãs do rosto fortes, uma pele cor de marfim claro, lisa e jovem. Ali no pomar não parecia mais velho que Rhun, embora devesse haver certamente alguns anos entre eles. A aura de cabelo encaracolado em volta da sua tonsura era de um castanho outonal, quase avermelhado, no entanto não ruivo, e os seus olhos, sob sobrancelhas fortes e direitas, eram de um cinzento luminoso, pelo menos à luz do sol. Um jovem muito bem parecido, como um reflexo velado da beleza ensolarada de Rhun. O encontro do meio-dia e do lusco-fusco.

Os apanhadores de fruta ainda estavam a trabalhar, embora a maior parte da colheita já estivesse feita quando Cadfael arrumou a sachola e o regador e se foi preparar para as Vésperas. No grande pátio havia o habitual movimento de fim de tarde, irmãos a regressar do seu trabalho ao longo do Gaye, a agitação de recém-chegados na sala comum e nas estrebarias, e nos claustros o som do pequeno órgão portatório do irmão Anselm e experimentar um novo cântico. Os iluminadores e os copistas estariam a dar os retoques finais ao seu trabalho da tarde e a limpar as suas penas e pincéis. O irmão Humilis devia estar sozinho no seu pequeno compartimento, tendo mandado Fidelis para a alegre tarefa no jardim, pois nada menos teria levado o rapaz a deixá-lo. Cadfael tencionava atravessar o pátio aberto e ir à oficina do seu chantre, sentar-se confortavelmente com Anselmo durante um quarto de hora, até ao toque das Vésperas, e falar, talvez mesmo discutir, sobre música. Mas a recordação do jovem mudo, tão bondosamente mandado para o seu breve prazer no pomar entre os seus pares, agitou-se dentro dele ao entrar no claustro, e o rosto magro do irmão Humilis ergueu-se à sua frente, reservado, sem queixume, orgulhosamente solitário. Ou seria, antes, humildemente solitário? Era essa a qualidade que reclamara para si próprio e pela qual desejava ser aceite. Uma reivindicação de peso para uma pessoa tão afamada. Não havia ali uma única alma que não conhecesse a sua reputação. Se ele ansiava por escapar a ela, e ser mudo como o seu servidor, tinha sido cruelmente contrariado.

Cadfael desviou-se do seu destino, virando para o caminho norte do claustro, onde se encontravam os compartimentos do escritório do mosteiro, banhados pelo sol, mesmo àquela hora. Tinha sido dado a Humilis um espaço a meio, onde havia luz mais cedo e até mais tarde. Reinava ali o silêncio; os sons suaves do pequeno órgão de Anselm pareciam muito distantes e abafados. A relva do pátio estava queimada e seca, apesar de ser regada todos os dias.

- Irmão Humilis... - disse Cadfael baixinho, à porta do compartimento.

A folha de pergaminho estava torta sobre a secretária, um pequeno boião de ouro tinha entornado gotas ao longo do pavimento ao rolar. O irmão Humilis estava caído sobre a secretária, com o braço direito estendido para se agarrar à madeira, enquanto a mão esquerda estava cravada na parte inferior da barriga. Tinha a face esquerda assente no seu trabalho, manchada de azul e escarlate, os olhos estavam fechados, fechados com força perante a consciência controlada da dor. Não tinha feito um único som. Se tivesse, aqueles que estavam mais perto teriam ouvido. O que quer que tivesse tido, tinha-o controlado. E assim continuaria.

Cadfael amparou-lhe suavemente o corpo, mantendo o braço que o sustinha onde estava. As pálpebras com veias azuladas abriram-se, e uns olhos brilhantes e inteligentes por detrás dos seus véus de dor fitaram o seu rosto.

- Irmão Cadfael...?

- Deixa-te estar quieto um instante - disse Cadfael. - Vou buscar Edmund... o irmão enfermeiro ...

- Não! Irmão, leva-me para além... para a minha cama... Isto passa... não é novo. Ajuda-me apenas, devagarinho, devagarinho! Não quero dar espectáculo...

Era mais rápido e mais discreto ajudá-lo a subir as escadas da igreja até à sua cela no dormitório em vez de atravessar o grande pátio até à enfermaria, e era isso que ele desejava ardentemente, para que não houvesse alarme geral e preocupação por sua causa. Levantou-se mais devido a força de vontade do que a força física, e com o braço robusto de Cadfael à sua volta, e com o seu próprio braço fortemente apoiado nos ombros de Cadfael, passaram despercebidos na penumbra fresca da igreja e subiram lentamente as escadas da noite. Já deitado na sua cama, Humilis submeteu-se com um sorriso desolado e paciente aos cuidados de Cadfael e não protestou quando Cadfael lhe tirou o hábito e deixou à vista a mancha oblíqua de sangue e pus que lhe marcava a anca esquerda das suas ceroulas até à virilha.

- Rebenta - disse um fio de voz calmo da almofada. - De vez em quando supura... eu sei. A longa viagem a cavalo... Desculpa, irmão! Sei que o cheiro é ofensivo...

- Tenho que trazer cá Edmund - disse Cadfael, alargando o cordão e soltando o tecido. Ainda não tinha destapado o que estava por baixo. - O irmão enfermeiro tem de ter conhecimento disto.

- Sim... Mas mais ninguém! É preciso mais alguém saber?

- Excepto o irmão Fidelis? Ele sabe tudo?

- Sim. tudo! - disse Humilis, com um sorriso ténue mas terno. - Não temos que ter medo dele; mesmo que pudesse falar, nada diria, mas não há nada que me aflija que ele não saiba. Deixa-o descansar até as Vésperas terminarem.

Cadfael deixou-o ali deitado de olhos fechados, um pouco mais aliviado, pois as rugas do seu rosto tinham deixado de estar vincadas numa apertada careta de dor, e foi à procura do irmão Edmund, encontrando-o a tempo de ele não entrar para as Vésperas. Os cestos cheios de ameixas estavam junto à sebe do jardim, à espera de ser arrumados depois da missa, e decerto que os jardineiros já estavam dentro da igreja, depois de apressadas abluções. Ainda bem! O irmão Fidelis podia à partida ficar incomodado ao ponto de ressentir que outros cuidassem do seu amo. Se o fosse encontrar melhor e bem tratado, aceitaria o que tinha sido feito. Era uma maneira tão boa como qualquer outra de ganhar a sua confiança.

- Eu sabia que seríamos necessários dentro em breve - disse Edmund, subindo vigorosamente as escadas de dia. - Feridas antigas, achas? Os teus conhecimentos serão mais úteis que os meus, pois tu próprio já passaste por isso.

O sino tinha-se calado. Ouviram as primeiras notas da missa da tarde erguerem-se ténues no interior da igreja ao entrarem na cela do homem doente. Ele abriu lenta e pesadamente as pálpebras e sorriu-lhes.

- Irmãos, lamento dar-lhes este incómodo...

Os olhos velaram-se de novo, mas ele estava consciente de tudo e submeteu-se mansamente a tudo.

Eles afastaram o tecido que o tapava desde a cintura e puseram à mostra a ruína do seu corpo. Um grande mapa de tecidos cicatrizados estendia-se ao longo da sua anca esquerda, onde o osso sobrevivera por milagre, atravessando-lhe a barriga em diagonal e indo até mesmo à virilha. A sua coloração era pálida como a cal e tinha estrias abaixo, onde estava meio esventrado mas com cicatrizes duras como pedra. A parte superior estava avermelhada e arroxeada, a barriga inflamada abria-se numa ferida de bordos húmidos que deitavam um líquido gelatinoso com laivos de sangue, com um cheiro putrefacto.

A cruzada de Godfrid Marsecot tinha-o deixado aleijado para além de toda a cura, no entanto não além da sobrevivência. Os leprosos sem rosto e sem dedos que vinham a rastejar para S. Giles, pensou Cadfael, não sofriam mais. Aqui termina a sua linhagem, numa nobre planta incapaz de dar semente. Mas de que vale a virilidade, se isto não é um homem?

 

Edmund correu a buscar panos macios e água quente e Cadfael poções e unguentos e decocções da sua oficina. No dia seguinte apanharia betónica carnuda e fresca e gualtéria e erva-de-feridas, mais eficazes que os cremes e ceras que fazia com elas para ter de reserva. Mas por ora teriam de servir. Sanícula, tasna, mumu-lária, ofioglosso, todas elas lavantes e adstringentes, boas para feridas antigas e ulceradas, encontravam-se junto às sebes e nos prados próximos, e ao longo das margens do Ribeiro Meole.

Limparam a ferida aberta das suas exsudações com uma loção de erva-de-feridas e sanícula e fizeram um penso com uma pasta das mesmas ervas, com betónica e gualtéria, cobrindo-o com um pano limpo e ligaram o corpo do doente com ligaduras para fixar o penso sobre a ferida. Cadfael tinha também trazido uma poção para aliviar a dor, um xarope de erva-de-feridas e erva de S. João em vinho, com um pouco de xarope de papoila. O irmão Humilis aceitou passivamente os seus cuidados e deixou-os fazer o que queriam.

- Amanhã - disse Cadfael - vou apanhar estas ervas frescas e macero-as para fazer um emplastro verde. Actua melhor e puxa o mal. Isto já te aconteceu muitas vezes desde que foste ferido?

- Não muitas vezes. Mas se me canso muito, sim... acontece - disseram os lábios azulados, sem qualquer queixa.

- Então não te podes cansar demasiado. Mas sarou dessas vezes e voltará a sarar. Esta erva-de-feridas ganhou o seu nome por direito próprio. Sê criterioso e fica aqui deitado durante dois dias, ou três, até ela fechar limpa, pois se te levantares demorará mais a sarar.

- Ele devia ir para a enfermaria - disse Edmund, preocupado -, onde não seria incomodado enquanto fosse necessário.

- Devia, de facto - concordou Cadfael -, mas está bem instalado aqui, e quanto menos se mexer, melhor. Como é que te sentes agora, Irmão?

- Descansado - disse o irmão Humilis, sorrindo ligeiramente.

- Com menos dores?

- Mal sinto dores. As Vésperas já devem ter terminado - disse a voz fraca, e as pálpebras abriram-se nos olhos fixos. - Não deixem que Fidelis se preocupe comigo... Ele já viu pior... deixem-no vir.

- Vou buscá-lo - disse Cadfael, saindo de imediato para o fazer, pois naquela concessão ao espírito estóico havia mais valor que qualquer outra coisa que ele pudesse fazer por aquele corpo destroçado. O irmão Edmund seguiu-o escadas abaixo, indo ansiosamente atrás dele.

- Achas que vai sarar? É espantoso ele ter sobrevivido ao ponto de sarar. Já viste algum homem tão destroçado sobreviver?

- Acontece - disse Cadfael -, embora raramente. Sim, voltará a fechar. E a abrir, ao menor esforço. - Não foi trocada qualquer palavra entre eles para impor ou prometer segredo. A capa que Godfrid Marescot tinha escolhido para a sua ruína era sagrada e seria respeitada.

Fidelis estava sob os arcos do claustro a olhar para os irmãos que iam saindo e à procura, com crescente preocupação, de um que não aparecia.

Tendo chegado tarde do pomar, os apanhadores de fruta tinham ido apressadamente para a missa da tarde, e ele não tinha procurado Humilis, supondo que ele estava já na igreja. Mas agora estava à procura dele. As suas sobrancelhas direitas e fortes estavam franzidas, os lábios compridos distendidos de ansiedade. Cadfael aproximou-se dele quando os últimos irmãos passaram, enquanto o jovem se virava para os ver, quase sem acreditar.

- Fidelis... -A cabeça encapuçada do rapaz virou-se para ele com rápida esperança e compreensão. Não estava à espera de boas notícias, mas qualquer notícia era melhor que nenhuma. Via-se na sua expressão. Tinha passado por tudo aquilo mais do que uma vez.

- Fidelis, o irmão Humilis está na sua cama no dormitório. Já não há razão para alarme, ele está a descansar, o seu mal foi tratado. Chamou por ti. Vai ter com ele.

O rapaz olhou rapidamente de Cadfael para Edmund. e de novo para o primeiro, sem saber bem onde residia a autoridade, mas pronto para partir. Embora não pudesse perguntar nada com a língua, os seus olhos eram suficientemente eloquentes e Edmund compreendeu-os.

- Está calmo e sarará. Podes ir e vir quando quiseres ao seu

serviço e farei com que sejas libertado de outras tarefas até termos a certeza de que ele está bem e pode ficar sozinho. Falarei nisso ao padre Robert. Vai buscar, levar, pedir o que ele precisar... se ele tiver algum desejo, escreve e este será cumprido. Quanto aos pensos, o irmão Cadfael tratará disso.

Houve uma pergunta, mais verdadeiramente uma exigência, nos seus olhos ardentes. Cadfael respondeu a ela com uma rápida tranquilização.

- Mais ninguém viu. Não é necessário que mais ninguém saiba, a não ser o irmão abade, que tem o direito de saber tudo o que aflige os seus filhos. Podes ficar satisfeito com isso, como o irmão Humilis está satisfeito.

Fidelis corou e animou-se por instantes, baixou a cabeça e fez um pequeno gesto de submissão e aceitação com as mãos, afastando-se rápida e silenciosamente, subindo as escadas de dia. Quantas vezes é que ele tinha discretamente dado assistência ao mesmo doente, sozinho e sem ajuda? Pois, embora não tivesse mostrado ressentimento por desta vez eles terem chegado primeiro, decerto o lamentava e não tinha tido a certeza da sua discrição.

- Voltarei lá antes das Completas - disse Cadfael -. para ver se ele adormeceu ou se precisa de outra poção. E se o jovem se lembrou de arranjar comida para ele. além de para Humilis. Onde é que o rapaz terá aprendido medicina, se é que tem sido ele a tratar o irmão Humilis sozinho, lá em Hyde? - Tinha sido evidente que a responsabilidade não o tinha assustado e tão-pouco teria falhado a sua incumbência. Manter a vida naquele corajoso destroço era um feito.

Se o rapaz estudasse a arte de curar talvez se tornasse um bom auxiliar no herbário e gostasse de aprender mais. Seria algo em comum, uma entrada através da norta selada do seu silêncio.

O irmão Fidelis foi buscar e levar, alimentou, lavou e barbeou o seu doente, cuidou de todas as suas necessidades físicas, aparentemente satisfeito por o servir dia e noite se Humilis não o mandasse por vezes apanhar ar fresco, ou descansar na sua cela, ou assistir às missas da igreja em nome de ambos, quando, passados dois dias de lenta recuperação. Humilis começou a ordenar e era obedecido. A ferida rebentada estava a sarar, os bordos deixando de estar húmidos e moles, unindo gradualmente sob os emplastros de folhas maceradas. Fidelis testemunhou a lenta melhoria e ficou contente e grato.

ajudando sem repulsa a mudar os pensos. Aquele corpo doente não tinha segredos para ele.

Um criado de família preferido? Um filho natural, como Edmund sugerira? Ou simplesmente um jovem devoto, irmão da Ordem, que tinha ficado enfeitiçado por um encanto e nobreza, ainda mais irresistível por estar a morrer? Cadfael não conseguia escolher, apenas especular. Os jovens podem ser loucamente generosos, dando os seus anos e a sua juventude por amor, sem pensar em benefícios.

- Interrogas-te sobre ele - disse Humilis da almofada enquanto Cadfael lhe mudava o penso de manhã cedo e Fidelis tinha sido mandado com os irmãos à Primeira.

- Sim - disse Cadfael, honestamente.

- Mas não perguntas. Tão pouco eu perguntei. O meu futuro - disse Humilis pensativamente -, deixei-o na Palestina. O que restava de mim dei-o a Deus e confio que a oferta não tenha sido de todo desprovida de valor. O meu noviciado, encurtado devido ao meu estado, ainda mal tinha terminado quando ele entrou em Hyde. Tenho tido boas razões para agradecer a Deus por ele.

-Não é coisa fácil - disse Cadfael, pensativamente - um homem mudo dar garantias sobre si próprio e dar a conhecer a sua vocação. Ele teve algum ancião que falasse por ele?

- Tinha escrito o seu pedido, dizendo que o seu pai era velho e que gostaria de ver os filhos com a vida resolvida, e enquanto o seu irmão mais velho tinha as terras, ele, o mais novo, desejava escolher o mosteiro. Levou consigo um dote, mas foi a sua bela mão e a sua instrução que constituíram a sua melhor recomendação. Nada mais sei acerca dele - disse Humilis -, excepto o que aprendi acerca dele em silêncio, e isso basta-me. Ele tem sido para mim todos os filhos que eu nunca terei.

- Tenho pensado - disse Cadfael. colocando cuidadosamente um pano limpo sobre a ferida recém-fechada - na sua mudez. É possível que se deva apenas a alguma malformação na língua? Pois é evidente que ele não é surdo para que tal lhe impeça a fala. Ouve muito bem. Tenho verificado que, normalmente, as duas coisas estão associadas, mas não nele. Ele aprende de ouvido e é rápido a aprender. Foi ensinado, como disseste, a ter uma bela mão. Se eu o tivesse comigo no meio das minhas ervas, podia ensinar-lhe tudo o que os anos me ensinaram a mim.

- Eu não lhe faço perguntas, e ele não mas faz a mim - disse Humilis. - Deus sabe que o devia afastar de mim, para fazer um trabalho melhor do que tratar e confortar a minha precoce corrupção. Ele é jovem, devia andar ao sol. Mas custa-me demasiado fazê-lo. Se ele se for embora, não o deterei, mas não tenho coragem para o mandar. E enquanto ele estiver, nunca deixarei de agradecer a Deus por ele.

Agosto seguiu o seu curso, sem sombras, sem uma nuvem, e as colheitas encheram os celeiros. O irmão Rhun sentia a falta do seu novo companheiro nos jardins e no pátio, onde todos os dias, com o calor, as rosas abriam ao meio-dia e murchavam à noite. As uvas das parreiras ao longo do muro norte do jardim fechado amadureciam e mudavam de cor. E lá longe, a sul, na cidade destruída de Winchester, o exército da rainha cercava os outrora sitiadores. cortava as estradas por onde pudessem chegar mantimentos e submeteu a cidade à fome. Mas as notícias do sul eram escassas e ali a fruta espontânea estava a amadurecer cedo.

De todos os alegres trabalhadores dessas colheitas, Rhun era o mais feliz. Há menos de três meses era aleijado e tinha dores e agora andava com jubiloso vigor, não se cansando do seu corpo feliz, nem de o submeter a suficientes trabalhos para testemunhar a sua gratidão. Ainda não tinha conhecimentos para trabalhar como copista ou para estudar ou colorir os manuscritos, tinha uma voz agradável, mas pouca formação musical; as tarefas que lhe eram atribuídas eram subalternas e cansativas, mas ele deleitava-se com elas. Não havia ninguém que não reflectisse o mesmo prazer ao vê-lo carregar, cavar e transportar, ele que ainda recentemente arrastara o peso leve do seu corpo com um esforço de aleijado e com constantes dores. Os mais velhos olhavam para a sua beleza e vigor com admiração e ternura e davam graças ao santo que o tinha curado.

A beleza é um dom perigoso, mas Rhun nunca tinha pensado no seu rosto, e teria ficado espantado se lhe dissessem que tinha tão raro atributo. Ajuventude não é menos vulnerável, pela própria qualidade que tem em fazer doer o coração que a contempla e a perdeu.

O irmão Urien tinha perdido mais do que a sua beleza, e não tinha perdido a sua juventude há tempo suficiente para se ter já resignado à sua perda. Tinha 37 anos e entrara para o mosteiro há um ano, depois de um casamento desastroso que o tinha deixado contorcido de espírito e alma. A mulher tinha-o destruído e abandonado e ele não era um homem brando, mas com desejos fortes e apaixonados e uma vontade imperiosa. O desespero tinha-o impelido para o mosteiro, não tendo aí encontrado remédio. A privação e a raiva mordiam-no tão profundamente lá dentro como cá fora.

Estavam a trabalhar lado a lado, a arrumar as primeiras maçãs do Verão, no final de Agosto, na penumbra do sótão por cima do celeiro, estendendo a fruta em tabuleiros de madeira para a conservar. O tempo quente tinha antecipado a maturação em pelo menos uns dez dias. A luz no sótão era ligeiramente dourada e carregada de grãos de poeira, e eles moviam-se como se numa neblina cintilante. A cabeça loura de Rhun, ainda sem tonsura, podia ser a de uma bela rapariga, a curva da sua face, enquanto ele se curvava sobre os tabuleiros, era suave como uma pétala de rosa e as pestanas curvas que ensombravam os seus olhos eram compridas e brilhantes. O irmão Urien observou-o pelo canto do olho e o seu coração virou-se para ele, mirrado e contorcido de dor.

Rhun tinha estado a pensar em Fidelis, como ele teria gostado do passeio ao Gaye, e não viu mal nenhum quando a mão do seu companheiro tocou na dele enquanto punham as maçãs, ou quando os seus ombros por acaso se tocavam por breves instantes. Mas não foi por acaso que a mão estendida, em vez de tocar nele e se afastar, deslizou os longos dedos sobre a sua mão e a agarrou, acariciando-a desde as pontas dos dedos até ao pulso e aí permanecendo numa carícia palpável.

Através de todos os símbolos da sua inocência ele não devia ter compreendido, não desde logo, não até muito mais se ter passado. Mas ele compreendeu. A sua própria candura e pureza tornavam-no sábio. Não afastou bruscamente a mão, retirando-a suave e bondosamente, virando a cabeça para olhar e fitar Urien com os seus olhos do mais claro azul-cinza, com uma tal compreensão e pena por a ferida arder tão profundamente, tão corrosivamente, de raiva e vergonha. Urien retirou a mão e virou-lhe a cara.

A repulsa e o choque podiam ter deixado uma réstia de esperança de que uma emoção pudesse, com cuidado, transformar-se gradualmente numa outra, pois pelo menos teria sabido que tinha causado uma forte impressão. Mas aquela clara compreensão e pena repeliram-no para além de qualquer esperança. Como é que um simples virgem sem experiência, que nunca tinha tido consciência do seu corpo a não ser através do seu aleijão e da sua dor física, ousava reconhecer o fogo que o queimava e responder-lhe apenas com compaixão? Sem medo, sem o culpar e sem incerteza. Tão pouco se

queixaria ao confessor ou ao superior. O irmão Urien afastou-se com dor e desejo a incendiar-lhe as entranhas, e com o rosto recordado da mulher, claro e cruel, no seu espírito. A oração não era cura para a memória dela.

Rhun levou desse encontro, com a duração de apenas um instante e realizado em silêncio, a sua primeira consciência da tirania do corpo. Problemas dos quais ele estava livre podiam torturar um outro homem. Doía-lhe um pouco o coração pelo irmão Urien, lembrá-lo-ia nas suas orações nas Vésperas. E assim fez, e, enquanto Urien ainda via o rosto hostil da mulher perdida, também Rhun continuou a ver o rosto escuro, tenso e bem parecido que se esquivara ao seu olhar com afronte ardente e olhos velados, amargamente envergonhado, quando ele, Rhun, nenhuma culpa sentira, nem amargura. Aquele era de facto um assunto escuro e secreto.

Não disse palavra a ninguém sobre o que acontecera. Que é que tinha acontecido? Nada! Mas olhou para os seus companheiros com olhos diferentes, alargados numa dimensão de forma a entender as suas angústias e a abrir o seu próprio ser às suas necessidades.

Isto aconteceu a Rhun dois dias antes de ser finalmente reconhecido como estando firme na sua vocação e receber a tonsura, para se tornar um noviço, o irmão Rhun.

- Então o nosso pequeno santo tomou a sua decisão - disse Hugh, ao encontrar Cadfael à saída da cerimónia. - E a sua cura não vacila! Digo-te francamente, sinto admiração por ele. Achas que Wmifred levou em conta a beleza dele quando o escolheu como um dos seus? As mulheres galesas não se esquivam quando vêem um jovem belo.

- És um pagão incorrigível - disse Cadfael, bem humorado -. mas a senhora já deve estar habituada. Nunca penses que a chocarás, pois não há nada que ela não tenha visto durante a sua existência. E se eu estivesse no seu relicário, teria chamado aquela criança a mim, exactamente como ela o fez. Ela sabe reconhecer o valor quando o vê. Ora. até quase que adoçou o irmão Jerome!

- Isso não vai durar! - disse Hugh, rindo-se. - Ele manteve o seu próprio nome... o rapaz?

- Nem sequer lhe passou pela cabeça mudá-lo.

- Nem todos fazem isso - disse Hugh, agora num tom sério. - Aquele par que veio de Hyde... Humilis e Fidelis. Assumiram uma grande pretensão, não assumiram? O irmão Humilde conhecemo-lo pelo seu nome anterior e não precisa de nenhum outro. E que é que sabemos acerca do irmão Fiel? Que nome terá tido antes?

- O rapaz é um filho mais novo - disse Cadfael. - O mais velho tem terras e este escolheu o hábito. Com esse fardo, quem é que o pode censurar? Humilis diz que o seu próprio noviciado ainda não tinha terminado quando o jovem apareceu e que se aproximaram e se tornaram bons amigos. Podem bem ter sido admitidos juntos, e os nomes... Quem sabe qual deles o escolheu primeiro?

Tinham parado junto à casa do portão para olhar para trás. para a igreja. Rhun e Fidelis tinham saído juntos, duas criaturas muito belas, com o passo certo, sem se tocarem, mas íntimos e contentes. Rhun ia a falar com animação. Fidelis estava com uma expressão muito atenta e ansiosa, mas com um brilho de resposta. A nova tonsura de Rhun estava exposta ao sol e o cabelo louro à sua volta parecia uma auréola.

- Ele priva com eles - disse Cadfael, enquanto observava. - É um espanto, chega a todas as almas que perderam uma parte do seu ser, tal como a voz. -Nada disse sobre o que o mais velho daquele par tinha perdido. - Ele fala por ambos. É pena ainda ter pouca instrução. Nenhum daqueles dois consegue ler para Humilis, um por falta de voz e o outro por falta de letras. Mas estuda e há-de aprender. O irmão Paul tem boa opinião acerca dele.

Os dois jovens tinham desaparecido através do arco das escadas de dia, dirigindo-se claramente para a cela do dormitório onde o irmão Humilis ainda estava de cama. Quem não ficaria animado ao ver o irmão Rhun, radiante com a sua admissão no desejo do seu coração? E era adequado, aquela amizade reticente entre dois corpos estéreis, um virgem, por despertar, o outro oco e despojado no seu auje. Dois cuja semente não era deste mundo.

Foi nessa mesma tarde que um jovem com fato de montar de soldado, com a capa enrolada no arção anterior da sela, entrou na cidade pela estrada principal de Londres para Saint Giles e aí perguntou qual o caminho para o mosteiro de S. Pedro e S. Paulo. Ia de cabeça descoberta, em mangas de camisa, com o peito à mostra e o seu rosto, peito e braços nus estavam castanhos de um sol mais quente do que aquele, onde o Verão conferia um tom de cobre ainda mais escuro a uma peleja dourada. Um jovem bem constituído, num bom cavalo, à vontade na sela e com mão leve na rédea e uma cabeleira espessa, encaracolada e escura por cima de um rosto de feições ousadas e rudes.

O irmão Oswin deu-lhe as indicações e, com viva curiosidade, ficou a vê-lo afastar-se, pensando quem é que ele iria lá procurar. Era evidente que era um soldado, mas de que exército, e de que tropas, para se estar a dirigir tão especificamente para o mosteiro de Shrewsbury? Não tinha perguntado pela cidade nem pelo xerife. A sua missão não se relacionava com a guerra no sul. Oswin voltou ao seu trabalho com alguma pena por não saber mais, mas fê-lo zelosamente.

O cavaleiro, seguro de que estava perto do seu objectivo, abrandou, seguindo a passo ao longo do Foregate, olhando com interesse para tudo o que via, a erva queimada do terreno da feira de cavalos, ainda sedenta de chuva, a passagem pachorrenta do carregador com carroça e cavalo na rua, os vizinhos a tagarelar ao portão, ao sol, o muro alto e comprido do enclave do mosteiro à sua esquerda e o telhado alto e a torre da igreja que se erguiam sobre ele. Agora sabia que estava a chegar. Deu a volta à extremidade oeste da igreja, com a sua grande porta entreaberta do lado de fora do recinto, para uso da paróquia, e entrou pelo arco da casa do portão.

O porteiro foi saudá-lo amistosamente e perguntou-lhe ao que vinha. O irmão Cadfael e Hugh Beringar, que ainda se estavam a despedir ali perto, viraram-se para examinar o recém-chegado, repararam no seu ar expedito, nos arreios, no casaco de cabedal com bastante uso pendurado na sela atrás dele, na espada que ele usava, e classificaram-no correctamente num instante. Hugh endireitou-se, atento, pois um homem com equipamento de soldado vindo do sul podia bem ter notícias. Mais, um soldado que vinha sozinho, mostrando à-vontade, naquele condado leal ao rei Stephen, seria provavelmente da mesma facção. Hugh avançou para participar na conversa, olhando para o aspecto do cavaleiro com reservada aprovação.

- Não estará, por acaso, à minha procura, amigo? Hugh Beringar, ao seu serviço.

- Este é o lorde xerife - disse o irmão porteiro à laia de apresentação; e a Hugh: - O viajante procura o irmão Humilis... embora pelo seu anterior nome.

- Estive durante alguns anos ao serviço de Godfrid Marescot - disse o cavaleiro, soltando as rédeas e desmontando para se pôr ao lado deles. Era meia cabeça mais alto que Hugh, de constituição forte, e o seu rosto bronzeado era aberto e alegre, iluminado por uns belos olhos azuis. - Procurei-o entre os irmãos dispersos por Winchester, depois de Hyde ter ardido. Disseram-me que ele tinha escolhido vir para aqui. Tenho uns assuntos a tratar no norte do condado e preciso da sua aprovação para o que tenciono fazer. Para dizer a verdade - disse ele com um sorriso contrafeito -, tinha-me esquecido por completo do nome que ele assumiu quando entrou para Hyde. Para mim. continua a ser o meu senhor Godfrid.

- E deve sê-lo para muitos - disse Hugh - que o conheceram no passado. Sim, ele está aqui. Vem agora de Winchester?

- De Andover. Onde queimámos a cidade - disse o jovem, sem rodeios, observando Hugh tão atentamente quanto ele próprio estava a ser observado. Era evidente que eram da mesma facção.

- Pertence ao exército da rainha?

- Sim. Sob FitzRobert.

- Então, cortaram as estradas para norte. Defendo este condado para o rei Stephen, como deve saber. Não o quero afastar do seu senhor, mas quer ir comigo até Shrewsbury e jantar em minha casa antes de seguir viagem? Esperarei o tempo que for preciso. Pode dar-me aquilo por que anseio, notícias do que se passa no sul. Posso saber o seu nome? Já lhe disse o meu.

- Chamo-me Nicholas Harnage. E dir-lhe-ei com todo o gosto tudo o que sei, meu senhor, depois de resolver o assunto que me traz aqui. Como é que está Godfrid? - perguntou ansiosamente, olhando de Hugh para Cadfael, que estava a observar e a escutar e, até ali, em silêncio.

- A sua saúde não é das melhores - disse Cadfael -, mas também não devia ser quando se separou dele. Uma ferida antiga abriu, mas isso deveu-se, creio, à longa viagem até aqui. Está a sarar bem. e dentro de um ou dois dias poderá voltar às tarefas que escolheu. É muito querido e bem tratado por um irmão mais novo. que veio para cá com ele de Hyde e que tem sido seu acompanhante aqui. Se esperar um minuto, direi ao nosso prior que o irmão Humilis tem uma visita e levá-lo-ei junto dele.

Desempenhou essa incumbência muito rapidamente, para deixar os dois sozinhos por alguns minutos. Hugh precisava de notícias, de todas as informações em primeira mão que pudesse obter desse campo de batalha distante e confuso, onde duas facções dos seus inimigos, através de ataques mútuos, tinham agora atraído uma formidável falange dos seus amigos para um dos lados. Para um lado pouco seguro, pois o bispo tinha agora mudado de aliança pela terceira vez. Mas, pelo menos, mantinha as forças da imperatriz fortemente cercadas na cidade de Winchester e estava a apertar o cerco de forma a esgotá-las pela fome. O sangue de guerreiro de Cadfael, há muito abjurado, tinha tendência para ferver quando ouvia aço ao longe. A sua principal inquietação devia-se ao facto de não se sentir verdadeiramente penitente em relação a isso. O seu rei não era deste mundo, mas neste mundo não conseguia deixar de ter uma preferência.

O prior Robert estava a fazer a sesta, que era conhecida dos outros como sendo a sua hora de estudo e oração. Uma boa altura, dado que não estava na disposição de se levantar e ir ver o visitante, nem de se cansar para ser cerimoniosamente hospitaleiro. Cadfael conseguiu o que esperava, autorização para levar o convidado ao irmão Humilis, na sua cela, e acompanhá-lo e dar-lhe toda a assistência de que ele precisasse. Além, evidentemente, das saudações e da bênção do prior, enviadas do seu retiro diário para meditação.

Eles tinham tido tempo para se familiarizar e se animar durante a sua ausência; ele viu-o nos seus rostos, e a forma como ambos viraram a cabeça ao ouvir os seus passos de regresso. Iriam ambos para a cidade já mais do que camaradas de armas, potenciais amigos.

- Venha comigo - disse Cadfael - e levá-lo-ei ao irmão Humilis.

Nas escadas de dia, a voz jovem e sincera ao seu ombro disse baixinho:

- Irmão, tem tratado do meu amo desde que esta crise ocorreu. Assim me disse o senhor xerife. Ele diz que tem grandes conhecimentos de ervas, medicina e tratamentos.

- O senhor xerife - disse Cadfael - é meu amigo há alguns anos e tem-me em melhor conta do que mereço. Mas, sim, trato do seu amo e até aqui temo-nos dado os dois bem. Não precisa de recear que ele não seja devidamente considerado, pois conhecemos a sua valentia. Veja-o e julgue-o por si mesmo. Pois deve saber o que ele sofreu no leste. Esteve lá com ele?

- Sim. Sou das suas próprias terras, parti por mar quando ele mandou ir mais tropas e mandou soldados mais velhos e feridos para casa. E regressei com ele, quando ele percebeu que a sua utilidade lá terminara.

- Aqui - disse Cadfael, com o pé no último degrau - a sua utilidade está longe de ter terminado. Há aqui jovens homens que vivem mais animados com a sua luz... sob a luz em que todos nós vivemos, entenda-se. Poderá encontrar dois deles com ele agora. Se um deles se deixar ficar, deixe-o, pois tem esse direito. É o seu companheiro de Hyde.

Entraram num corredor que acompanhava toda a extensão do dormitório, entre as divisórias das celas, e pararam na abertura do espaço sombrio e estreito atribuído a Humilis.

- Entre - disse Cadfael. - Não precisa de um arauto para ser bem-vindo.

 

Na cela, o pequeno candeeiro de leitura não estava aceso, dado que um dos jovens assistentes não sabia ler e o outro não podia falar, enquanto o próprio incumbente continuava deitado na sua cama, recostado em almofadas, demasiado fraco para segurar num pesado livro. Mas se Rhun não sabia ler, podia aprender de cor, e recitar aquilo que aprendera com calor e entusiasmo, e estava a meio de uma oração de São Agostinho que o irmão Paul lhe tinha ensinado, quando subitamente sentiu que tinha uma audiência maior do que contava, gaguejou e acabou por se calar, virando-se para a abertura da cela.

Nicholas Harnage parou, hesitante, à porta, até os seus olhos se habituarem à penumbra. O irmão Humilis tinha aberto os olhos de espanto quando Rhun gaguejou. Viu o seu antigo escudeiro, mais amado e de mais confiança, ali, quase timidamente, aos pés da sua cama.

- Nicholas? - aventurou dizer, num tom de dúvida e espanto, soerguendo-se para olhar mais atentamente.

O irmão Fidelis inclinou-se imediatamente para o apoiar, erguendo e arranjando as almofadas; depois, silenciosamente, afastou-se para o canto escuro da cela para deixar o campo livre ao visitante.

- Nicholas! És mesmo tu?

O jovem avançou e pôs um joelho por terra para agarrar a mão fina que lhe era estendida.

- Nicholas, que é que estás a fazer aqui? És tão bem-vindo como a manhã, mas nunca pensei ver-te neste lugar. Foi muita bondade tua procurares-me num refúgio tão distante. Vem, senta-te junto de mim. Deixa-me ver-te de mais perto!

Rhun tinha saído silenciosamente. À saída fez uma pequena reverência, antes de desaparecer. Fidelis deu um passo para o seguir, mas Humilis pôs-lhe a mão no braço para o deter.

- Não, fica! Não nos deixes! Nicholas, a este jovem irmão devo mais do que alguma vez poderei pagar. Serve-me tão fielmente neste campo como tu me serviste em armas.

- Todos os que fomos seus soldados, como eu, ficar-lhe-emos gratos - disse Nicholas fervorosamente, olhando para um rosto obscurecido pelo capuz e tão desprovido de feições como de voz naquela semiescuridão. Ficou admirado por não receber resposta, mas apenas uma inclinação de cabeça como reconhecimento, mas não pensou mais nisso, pois não era importante que travasse um conhecimento mais profundo com alguém que, provavelmente, nunca mais veria. Aproximou o banco da cama e sentou-se a observar o rosto emaciado do seu senhor com profunda preocupação.

- Dizem-me que está a recuperar bem. Mas vejo que está mais magro e mais caído que quando o deixei, daquela vez em Hyde, para tratar da sua incumbência. Tive de procurar muito em Winchester para encontrar o seu prior e lhe perguntar para onde é que o senhor tinha ido. Foi preciso vir para tão longe? O bispo tê-lo-ia aceite de bom grado no Old Minster.

- Duvido que eu aceitasse o bispo de tão bom grado - disse o irmão Humilis com um sorriso contrafeito. - Não, tive as minhas razões para vir tão para norte. Conheci este condado e esta cidade em criança. Apenas durante alguns anos, mas são anos que um homem recorda mais tarde na vida. Não te preocupes comigo, Nick, pois estou muito bem aqui, tão bem como em qualquer outro lugar, e melhor que em muitos. Falemos antes de ti. Como é que te estás a dar no teu novo posto e que é que te trouxe aqui?

- Prosperei, graças à sua recomendação. William de Ypres falou de mim à rainha e queria que eu fosse seu oficial, mas preferi ficar com os ingleses de FitzRobert a ir para os flamengos. Tenho um comando. Foi o senhor que me ensinou tudo o que sei - disse ele, simultaneamente orgulhoso e triste -, o senhor e os muçulmanos de Mosul.

- Não foram os assuntos do Atabeg Zenghi - disse o irmão Humilis, sorrindo - que te fizeram vir tão longe à minha procura. Deixa-o para o rei de Jerusalém, pois é seu tão nobre e perigoso encargo. E Winchester, que aconteceu desde que eu de lá fugi?

- Os exércitos da rainha cercaram-na. Poucos homens de lá saem e não entra nenhuma comida. Os homens da imperatriz estão bem fechados no seu castelo e as suas provisões devem estar quase esgotadas. Viemos para norte para enforquilhar a estrada por Andover. Como ainda não acontecia nada, obtive licença para ir ao norte tratar dos meus assuntos. Mas eles devem tentar sair em breve, se não morrerão à fome onde estão.

- Tentarão reabrir uma das estradas para trazer mantimentos antes de abandonarem Winchester definitivamente - disse Humilis, franzindo a testa enquanto reflectia nas possibilidades. - Se e quando o fizerem, fá-lo-ão primeiro para Oxford. Bom. se este impasse te fez vir para junto de mim. teve como resultado uma coisa boa. E qual foi o assunto que te trouxe a Shrewsbury?

- Meu senhor - disse Nicholas, inclinando-se para a frente muito ansioso -. lembra-se de que me mandou cá, à casa senhorial de Lai, há três anos. para informar Humphrey Cruce e a sua filha de que não podia manter o seu trato e casar com ela?... que ia entrar para o mosteiro de Hyde Mead?

- Não é uma coisa que se esqueça - concordou Humilis. secamente.

- Meu senhor, tão pouco eu consigo esquecer a rapariga! Só a viu quando ela era uma criança de 5 anos. antes de ir para a Cruzada. Mas eu vi-a uma senhora adulta, com quase 19 anos. Entreguei a sua mensagem ao pai e a ela e vim-me embora satisfeito por ter resolvido o assunto. Mas agora não consigo parar de pensar nela. Era de tal forma graciosa e suportou a provação com tanta dignidade e cortesia. Meu senhor, se ela ainda não tiver casado nem estiver prometida, quero pedir a sua mão para mim próprio. Mas não podia fazê-lo sem primeiro lhe pedir a sua bênção e consentimento.

- Meu filho - disse Humilis, irradiando prazer e espanto -. não há nada que me encantasse mais do que vê-la feliz contigo, tendo eu tido que a deixar. A rapariga é livre de se casar com quem quiser e eu não podia desejar para ela ninguém melhor que tu. E, se fores bem sucedido, ficarei liberto de toda a minha culpa para com ela, pois saberei que teve melhor sorte do que alguma vez teria comigo. Pensa, meu rapaz, nós que entramos para o mosteiro abjuramos todos os bens, como é que então podemos ousar reclamar direito de posse sobre uma outra criatura de Deus? Vai, e que consigas tê-la, e a minha bênção para ambos. Mas volta para me dizeres como te saíste.

- Meu senhor, de todo o coração! Como é que posso fracassar se me manda para ela?

Inclinou-se para beijar a mão que o agarrava calorosamente e levantou-se do banco para se despedir. Só então se apercebeu da figura silenciosa que estava nas sombras; era como se tivesse estado sozinho com o seu amo durante todo aquele tempo, e contudo ali estava aquela testemunha muda. Nicholas virou-se para ele num impulso caloroso.

- Irmão, quero agradecer-lhe por ter cuidado do meu amo. Por agora, adeus. Decerto que o verei de novo quando regressar.

Era desconcertante receber à laia de resposta apenas silêncio e uma inclinação cortês da cabeça encapuçada.

- O irmão Fidelis - disse Humilis suavemente - é mudo. Apenas a sua vida e as suas obras falam por ele. Mas ouso jurar que os seus votos de felicidade te acompanham nesta missão, assim como os meus.

Reinava o silêncio na cela quando o último eco leve desapareceu nas escadas de dia. O irmão Humilis estava deitado, imóvel, a pensar, ao que parecia, pensamentos tranquilos e felizes, pois estava a sorrir.

- Há partes de mim próprio que nunca te dei - disse ele finalmente -, coisas que aconteceram antes de te ter conhecido. Não há nada de mim que não deseje compartilhar contigo. Pobre rapariga! Que é que ela podia esperar de mim, tão mais velho que ela, mesmo antes de estar destruído? E apenas a vi uma vez, uma rapariguinha de cabelo castanho e um rosto redondo e solene. Nunca senti desejo de ter mulher ou filhos até ter 30 anos, tendo um irmão mais velho para continuar a linha do meu pai quando o velho homem morreu. Fiz-me Cruzado e estava a formar uma companhia para ir comigo para oriente, livre como o vento, quando o meu irmão também morreu e tive que equacionar os meus votos para com Deus e o meu dever para com a minha família. Devia a Deus fazer o que tinha jurado, e ir durante dez anos para a Terra Santa, mas também devia à minha família casar e ter filhos varões. Assim, procurei uma rapariga forte e adequada que pudesse esperar todos esses anos por mim e ainda assim estar em pleno tempo para procriar quando eu regressasse. Tinha acabado de fazer 6 anos... Julian Cruce, de uma família com casas no norte deste condado, e também em Stafford.

Mexeu-se e suspirou ao pensar na loucura dos homens e na arrogante solenidade das combinações que faziam para vidas que nunca viveriam. A presença ao seu lado aproximou-se mais, puxou o capuz para trás e sentou-se no banco que Nicholas deixara vago. Olharam-se nos olhos, gravemente e sem palavras, durante mais tempo do que a maioria dos homens consegue aguentar um outro olhar sem desviar os olhos.

- Deus sabia mais, meu filho! - disse Humilis. - Os seus planos para mim não eram como os meus. Sou o que sou agora. Ela é o que é. Julian Cruce... estou contente por ela poder escapar e ir para um homem melhor. Peço a Deus que ela ainda não se tenha dado a nenhum, pois este meu Nicholas seria um par adequado para ela, um homem que deixaria a minha alma tranquila. Só a ela me sinto em dívida e abjurado.

O irmão Fidelis abanou a cabeça, sorrindo com uma expressão de censura, inclinando-se e pousando por instantes um dedo sobre a boca que dizia heresias.

Cadfael tinha deixado Hugh à espera na casa do portão e estava a atravessar o pátio para regressar às suas tarefas no herbário quando Nicholas Harnage saiu pelo arco das escadas e, reconhecendo-o, chamou-o em voz bem alta e correu para lhe puxar a manga com urgência.

- Irmão, uma palavra! Cadfael parou e virou-se para ele.

- Como é que o achou? A longa viagem foi demasiado cansativa e ele só pediu ajuda quando a ferida abriu e ficou com pus, mas isso já passou. Agora está limpa e a sarar. Não tenha receio, pois não o deixaremos piorar desta forma uma segunda vez.

- Acredito. Irmão - disse o homem mais novo, com sinceridade. - Mas vi-o pela primeira vez desde há três anos e muito mais caído do que estava depois de ser ferido. Eu sabia que os seus ferimentos eram graves, os médicos aguentaram-no entre a vida e a morte durante muito tempo, mas quando ele voltou para junto de nós parecia o homem que nós conhecíamos e seguimos. Nessa altura fez planos para regressar a casa, eu sei, mas já tinha servido durante mais anos do que prometera, era altura de cuidar das suas terras e da sua vida. Fiz essa viagem com ele, e ele aguentou-a bem. Agora perdeu carne e há nele um langor quando mexe uma mão. Diga-me a verdade, qual é a gravidade do seu estado?

- Onde é que ele foi ferido daquela maneira? - perguntou Cadfael, interrogando-se escrupulosamente sobre o que podia dizer, calculando o que aquele rapaz já saberia ou pelo menos adivinhava.

- Naquela última batalha com Zenghi e com os homens de Mosul. Foi assistido por médicos sírios depois da batalha.

Podia ser essa a razão pela qual tinha sobrevivido a ferimentos tão

graves, pensou Cadfael, que aprendera muito do seu ofício com médicos sarracenos e sírios. Perguntou cautelosamente:

- Não viu as feridas dele? Não conhece toda a sua extensão?

Surpreendentemente, o cruzado veterano ficou calado por instantes e uma lenta onda de sangue formou-se sob o bronzeado dourado da sua pele, mas não baixou os olhos, uns olhos muito abertos e directos, de um profundo azul.

- Nunca vi o seu corpo mais do que quando o ajudava a equipar-se. Mas não pude deixar de compreender aquilo que não posso afirmar que sei. Não podia ser outra coisa, senão ele nunca teria abandonado a rapariga de quem estava noivo. Por que o faria? Um homem da sua palavra! Já não tinha nada a dar-lhe, a não ser uma posição e terras como dote. Preferiu dar-lhe a liberdade, e o que restava de si a Deus.

- Havia uma rapariga? - disse Cadfael.

- Há uma rapariga. E eu vou ter com ela - disse Nicholas, num tal tom de desafio como se o seu direito tivesse sido posto em causa. - Fui eu que levei a notícia a ela e ao seu pai quando ele entrou para o mosteiro de Hyde Mead. Agora vou a Lai pedir a mão dela para mim próprio, e ele deu-me o seu consentimento e a sua bênção. Ela era ainda criança quando ficou noiva dele e nunca mais o viu. Não há nenhuma razão para que não ouça a minha pretensão, e ninguém da sua família me deverá rejeitar.

- Ninguém no mundo! - concordou Cadfael calorosamente. - Tivesse eu uma filha em tal situação, gostaria de ver o escudeiro seguir os passos do amo. E se tem que lhe dar notícias do seu bem-estar, poderá dizer com verdade que ele está a fazer o que deseja e que desfruta de paz de espírito. E o seu corpo está a ser tratado tão bem quanto pode ser. Não deixaremos que lhe falte nada que o possa ajudar ou confortar.

- Mas isso não responde ao que preciso de saber - insistiu o jovem. - Prometi regressar para lhe contar o desfecho. Três ou quatro dias. não mais, talvez nem tanto. Mas ainda o encontrarei nessa altura?

- Meu filho - disse Cadfael pacientemente -, qual de nós pode responder a isso relativamente a si próprio ou a qualquer outro homem? Quer a verdade e merece-a. Sim, o irmão Humilis está a morrer. Recebeu o seu ferimento de morte há muito tempo, nessa última batalha. O que quer que tenha sido feito por ele, o que quer que possa ser feito, está apenas a adiar o fim. Mas a morte não está com tanta pressa em tê-lo como tem, e ele não tem medo dela. Vá

encontrar a sua rapariga e traga de volta boas notícias e ele estará cá para se alegrar com elas.

- E assim será - disse Cadfael a Edmund enquanto apanhavam os dois ar no jardim antes das Completas dessa tarde -, se aquele jovem fizer uma corte rápida; e imagino que ele é do género de ir direito ao que pretende. Mas quanto mais tempo conseguiremos aguentar Humilis, isso não me atrevo a calcular. Podemos evitar esta forma de colapso, mas o antigo mal acabará por o devorar. E ele sabe-o melhor que ninguém.

- É espantoso ele ter sobrevivido - concordou Edmund -, quanto mais aguentar a viagem de regresso e ainda ter vivido três anos ou mais.

Estavam sozinhos junto das margens do Ribeiro Meole, se não não teriam podido discutir o assunto. Sem dúvida que àquela hora Nicholas Harnage já ia a caminho do nordeste do condado, se é que não tinha chegado já ao seu destino. O tempo estava bom para viajar e encontraria abrigo em Lai antes de anoitecer. Um jovem bem apessoado como Harnage, com uma bela carreira no exército através dos seus próprios esforços, não era uma oferta que se desprezasse. Tinha a bênção do seu amo e não precisava mais do que do agrado da rapariga, a aprovação da sua família e a sanção da igreja.

- Já ouvi defender - disse o irmão Edmund - que quando um homem comprometido entra para uma ordem monástica, a senhora comprometida não fica necessariamente livre do pacto. Mas parece-me uma coisa egoísta e gananciosa tentar ter as duas coisas, escolher a vida que se quer e impedir a senhora de fazer o mesmo. Mas creio que a questão raramente se põe, a não ser quando o homem não suporta largar aquilo a que outrora chamava seu e ele próprio luta para a manter acorrentada. E neste caso não é assim, o irmão Humilis está contente por haver uma solução tão feliz. Embora, é claro, ela já possa ter casado.

- A casa de Lai - disse Cadfael, pensativamente. - Que é que sabes sobre ela. Edmund? De que família é que é?

- Era o Cruce que a tinha. Humphrey Cruce, se bem me lembro; pode bem ser ele o pai da rapariga. Eles têm várias casas no norte, Ighfeld e Harpecote... e Prees, do bispo de Vhester. E também algumas terras em Staffordshire. Tornaram Lai o seu principal motivo de orgulho.

- É para lá que ele vai. Se ele regressar triunfante - disse Cadfael com satisfação - terá feito um bom trabalho para Humilis. Ele já lhe deu um grande empurrão para cima ao mostrar-lhe o seu honesto rosto moreno, mas se resolver o futuro da rapariga poderá simultaneamente acrescentar um ano ou mais à vida do seu amo.

Foram para as Completas ao primeiro toque do sino. O visitante tinha de facto dado um forte empurrão a Humilis em termos de melhoras, ao que parecia, pois ali ia ele, de hábito e muito direito pelo braço de Fidelis, não tendo pedido autorização aos seus médicos, empenhado em participar no culto da noite com os outros. “Mas vou mandá-lo para a cama assim que a missa terminar”, pensou Cadfael, preocupado com o seu penso. “Ele que empunhe a sua bandeira desta vez. abona a favor do seu espírito, muito embora a sua carne se ressinta do esforço. E quem sou eu para dizer o que um irmão, meu igual, pode ou não pode fazer para a sua própria salvação?”

As tardes já começavam a ser mais curtas, o auge do Verão passara, embora o seu calor continuasse como se nunca mais abrandasse. Na penumbra do coro a luz que ainda havia tinha a cor de íris e estava ligeiramente fragrante com os aromas quentes das searas e da fruta. No seu lugar, o homem alto, bem parecido e emaciado, velho com os seus quarenta e tal anos, erguia-se orgulhosamente. Fidelis estava à sua esquerda e, ao lado de Fidelis, Rhun. A sua juventude e beleza parecia aglomerar-se na pouca luz que havia, de tal forma que eles brilhavam com um fulgor próprio, como velas acesas.

Do outro lado do coro estava o irmão Urien, ajoelhando-se, fazendo genuflexões, cantando com a voz cheia e segura da maturidade, nunca tirando os olhos daquelas duas cabeças jovens e brilhantes, a loura e a castanha. Dia a dia, aqueles dois aproximavam-se cada vez mais, o mudo e o eloquente, combinando-se desigualmente, injustamente, para sua absoluta exclusão, um tão desejável e inviolável como o outro, enquanto a necessidade lhe queimava as entranhas dia e noite e a oração não a arrefecia, nem a música a embalava e adormecia, comendo-o por dentro como lobos a roer-lo.

Tinham ambos começado... terrível pecado!... a parecer-lhe a mulher. Quando olhava para qualquer dos dois, as feições de rapaz dissolviam-se e transformavam-se subtilmente, e o rosto dela aparecia, sem reconhecimento, sem desprezo, a olhar através dele como se para ver outra pessoa. O seu coração doía-lhe de uma forma insuportável enquanto ele cantava docemente o salmo das Completas.

No lusco-fusco da região mais suave e mais aberta do nordeste da província, onde o dia era mais longo que entre os montes da fronteira ocidental, Nicholas Harnage seguia por entre campos planos e ricos, queimados pelo sol, até ao muro da casa senhorial de Lai. Rodeada por todos os lados pelos campos da planície, com esparsas árvores para dar lugar a um vasto cultivo, a casa erguia-se, comprida e baixa, com um salão e aposentos de pedra sobre uma larga galeria subterrânea, com estábulos e celeiros junto da cerca. Terra fértil, boa para cereais e raízes, com grandes pastagens para qualquer quantidade de gado. Havia ruído nos estábulos quando Nicholas passou o portão, o mugido suave e satisfeito de animais bem alimentados, ordenhados e sonolentos.

Um moço de estrebaria ouviu os cascos do cavalo que chegava e saiu do estábulo, de tronco nu na noite cálida. Ao ver um cavaleiro sozinho, ficou completamente à vontade. Tinham tido relativa paz ali, enquanto Winchester ardia e sangrava.

- Quem procura, jovem senhor?

- Procuro o dono da casa, Humphrey Cruce - disse Nicholas, parando a montada e sacudindo as rédeas. - Ele ainda vive aqui?

- Ora, o meu senhor Humphrey morreu há três anos. O seu filho Reginald é agora o amo. O seu assunto pode ser tratado com ele?

- Se ele me receber, sim, sem dúvida - disse Nicholas, desmontando. - Diga-lhe que eu estive aqui há uns três anos para falar em nome de Godfrid Marescot. Foi com o pai dele que falei nessa altura, mas o filho terá conhecimento disso.

- Entre - disse o moço de estrebaria placidamente, aceitando as credenciais sem as questionar. - Tratarei do seu animal.

No grande salão a cheirar a madeira e a fumo estavam a jantar, ou ainda sentados à mesa depois de terem acabado de comer, mas tinham ouvido os seus passos nas escadas de pedra que davam para a grande porta aberta e Reginald Cruce levantou-se, alerta e curioso, quando o visitante entrou. Era um homem grande, de cabelos pretos, feições austeras e modos imperiosos, mas bem disposto, ao que parecia, para com viajantes que apareciam. A sua mulher estava sentada, distante e calada, uma mulher pálida vestida de verde, com um rapaz com cerca de 15 anos ao seu lado e um rapaz e uma rapariga mais novos, com uns 9 ou 10 anos, os quais, pela sua parecença, podiam bem ser gémeos. Era evidente que Reginald Cruce tinha garantido a sua sucessão com uma família numerosa, pois, pela cintura inchada da mulher quando ela se levantou para confirmar a hospitalidade da casa, um outro filho vinha a caminho.

Nicholas fez a sua vénia e ofereceu o seu nome, um pouco confuso por ver que o irmão de Julian Cruce era um homem com mais de 40 anos. com mulher e filhos grandes, quando ele esperava um tipo mais novo, na casa dos 20, talvez recém-casado desde que herdara. Mas lembrou-se de que Humphrey Cruce era um homem demasiado velho para ter uma filha tão nova. Dois casamentos, decerto, o primeiro abençoado com um herdeiro, o segundo realizado tarde, quando Reginald era já homem feito, ele próprio pronto para o casamento, ou até mesmo já casado com a sua mulher pálida e prolífica.

- Ah, isso! - disse Reginald acerca da anterior missão do seu convidado àquela mesma casa. - Lembro-me disso, embora na altura não estivesse cá. A minha mulher trouxe-me uma casa em Staffords-hire e estávamos lá a viver. Mas sei o que se passou. Um caso estranho. Mas acontece! Os homens mudam de ideias. E o senhor foi o mensageiro? Bom, mas deixe lá isso agora e coma qualquer coisa. Venha para a mesa! Haverá tempo para conversarmos sobre tudo isso mais tarde.

Sentou-se e fez companhia ao visitante enquanto um criado trazia carne e cerveja, e a senhora, dando boas noites num tom grave, levou as crianças mais novas para a cama e o herdeiro ficou sentado, solene e em silêncio, a observar os mais velhos. Finalmente, já tarde, os dois homens ficaram sozinhos para conversarem.

- Então é o escudeiro que trouxe a mensagem de Marescot. Reparou decerto que há uma geração, ou quase, entre a minha irmã e eu... dezassete anos. A minha mãe morreu quando eu tinha 9 anos e só passados oito anos é que o meu pai voltou a casar. Uma tolice de um velho, ela não trouxe nada e morreu quando a rapariga nasceu, portanto pouca alegria teve com ela.

“Pelo menos”, pensou Nicholas, estudando o seu anfitrião friamente, “não houve nenhum segundo filho, para ameaçar a divisão das terras." Isso era uma fonte de satisfação para aquele homem, pois era verdadeiramente da sua classe e estirpe e a terra era a sua vida.

- No entanto, pode bem ter tido grande alegria com a sua filha - disse ele, firmemente -, pois ela é uma rapariga muito graciosa e bela, se bem me lembro.

- Está mais bem informado que eu - disse Reginald, secamente -, se a viu há apenas três anos. Já há uns dezoito anos ou mais que não a vejo. Nessa altura era uma criança, com 2 anos. ou 3, talvez. Casei por volta dessa altura e fui viver para as terras que Cecilia me trouxe. Trocámos notícias ocasionalmente, mas só voltei cá quando o meu pai estava a morrer e me mandaram chamar.

- Não sabia da morte dele quando parti para tratar deste meu assunto - disse Nicholas. - Só soube pelo seu moço de estrebaria, ao portão. Mas posso falar tão livremente consigo como teria feito com ele. Fiquei tão impressionado com a graciosidade e a dignidade da sua irmã que não deixei de pensar nela desde então, e falei com o meu senhor Godfrid e tenho o seu pleno consentimento para fazer o que estou a pedir. Quanto a mim próprio - disse, inclinando-se para a frente por cima da mesa -, sou herdeiro de duas boas casas senhoriais do meu pai e terei também algumas terras da minha mãe. Tenho uma boa posição no exército da rainha e o meu amo responderá por mim. de que sou sincero neste assunto e que cuidarei de Julian tão bem quanto qualquer outro homem, se assim quiser...

O seu anfitrião ficou a olhar, espantado e a sorrir, com o seu fervor, e erguera a mão num aviso, para o acalmar.

- Veio de tão longe para me pedir para lhe dar a minha irmã?

- Vim! É assim tão estranho? Admirei-a e venho pedi-la. Ela podia ter ofertas piores - acrescentou, corando e ficando tenso com tal recepção.

- Não duvido, mas homem, você devia ter dito alguma coisa para a alertar nessa altura. Veio três anos tarde de mais!

- Demasiado tarde? - Nicholas recostou-se na cadeira e baixou as mãos lentamente, abalado. - Então ela já casou?

- Pode chamar-lhe isso! - Reginald encolheu os seus grandes ombros num gesto de impotência. - Mas não com um homem qualquer. E. se se tivesse apressado, podia bem ter tido sorte, não sei. Não, esta é uma história absolutamente diferente. Houve mesmo alguma discussão sobre se ela ainda estava prometida a Marescot... uma grande idiotice, e o capelão do meu pai era rígido como uma virgem... embora suspeite, apesar de tudo isso, de que em privado não era nada disso!... e agarrou-se a todos os pontos da lei canónica que lhe dava poder, assumiu a linha dura, defendendo que ela era legalmente sua mulher, enquanto o padre da paróquia defendia o contrário, e o meu pai, como era um homem sensato, ficou do seu lado e insistiu que ela era livre. Soube tudo isto por fases, pois nunca tomei parte em nada nem me meti ao barulho.

Nicholas, com a cabeça apoiada nas mãos, com uma expressão carrancuda, sentia o peso frio da decepção cravado no coração. Mas aquela não era uma resposta completa. Olhou para cima com uma expressão contrafeita.

- Então como é que tudo acabou? Por que é que ela não está aqui para exercer a sua liberdade se ela ainda não se deu a um marido?

- Ah, mas deu! Levou a dela por diante. Disse que, se era livre, então podia fazer a sua própria opção. E escolheu fazer o mesmo que Marescot tinha feito e tomou um marido não deste mundo. Tomou votos como freira Beneditina.

- E eles deixaram-na? - perguntou Nicholas, torturado pela raiva e dor. - Então ela foi levada a isso pelo casamento desfeito, e eles deixaram-na ir tão facilmente, desperdiçar a sua juventude tão insensatamente?

- Deixaram-na, sim. Como é que eu sei se ela foi sensata ou não? Era o que ela queria, por que é que não o havia de ter? Desde que ela foi. nunca mais tive notícias dela, ela nunca se queixou nem pediu nada. Deve ser feliz na sua escolha. Deve procurar mulher noutro lado, meu amigo!

Nicholas ficou sentado durante algum tempo, engolindo uma amargura que lhe ardia nas entranhas como fogo. Depois perguntou, com deliberada calma:

- Como é que foi? Como é que ela saiu de casa? Acompanhada por quem?

- Pouco depois da sua visita, creio eu. Eles podem ter levado um mês a discutir o assunto e ela nunca disse uma palavra. Mas foi tudo feito correctamente. O nosso pai deu-lhe uma escolta de três homens armados e um caçador que tinha sido sempre seu favorito e a mimava, e um bom dote em dinheiro e também alguns ornamentos para o convento, candelabros de prata, um crucifixo e coisas assim. Ficou triste por ela partir. Sei por aquilo que ele disse mais tarde, mas ela assim o queria e os seus desejos foram sempre ordens para ele. - Uma sugestão de frio na sua voz enérgica e decisiva assinalou um ciúme antigo. A criança da velhice de Humphrey tinha usurpado todo o seu coração, muito embora o seu filho herdasse tudo, quando esse coração deixasse de bater. - Não chegou a viver mais um mês - disse Reginald. - Apenas o suficiente para assistir ao regresso da escolta e saber que ela tinha chegado sã e salva onde queria. Ele estava velho e fraco, nós sabíamo-lo. Mas não que viesse a definhar tão rapidamente.

- Podia sentir a falta dela - disse Nicholas, muito baixinho e hesitantemente - em casa. Ela tinha uma vivacidade... E não a mandou vir quando o pai morreu?

- Para quê? Que é que ela podia fazer por ele, ou ele por ela? Não, deixámo-la estar. Se ela estava feliz lá, porquê incomodá-la?

Nicholas apertou as mãos debaixo da mesa, com força, fazendo a sua última pergunta:

- Para onde é que ela escolheu ir? - A sua própria voz soou-lhe oca e distante.

- Está no convento Beneditino de Wherwell, perto de Andover.

Era o fim de tudo! Durante todo aquele tempo ela tinha estado tão perto dele, e agora a casa do seu refúgio estava cercada por exércitos, facções e lutas. Se ao menos ele tivesse dito o que lhe ia no coração ao vê-la pela primeira vez. mesmo embaraçado pela consciência do golpe que lhe ia desferir, e gago por essa consciência quando podia ter sido eloquente. Ela podia tê-lo escutado e pelo menos atrasado a sua decisão, mesmo que nessa altura não sentisse nada por ele. Podia ter reflectido e esperado e até lembrado-se dele. Agora era demasiado tarde, ela era noiva pela segunda vez, e ainda mais indissoluvelmente.

Desta vez não havia caso para discussão. Os votos de noivado feitos por ou em nome de uma rapariguinha podiam justificadamente ser dissolvidos, mas os votos vocacionais de uma mulher adulta, feitos com pleno conhecimento do seu significado, e por sua própria vontade, nunca podiam ser desfeitos. Ele tinha-a perdido.

Nicholas passou a noite toda no pequeno quarto de hóspedes que foi preparado para ele a atormentar-se com o nó, sabendo que não o podia desfazer. Dormiu pouco e mal e, de manhã, despediu-se e meteu-se à estrada de regresso a Shrewsbury.

 

Aconteceu que o irmão Cadfael estava a sós com Humilis na sua cela no dormitório quando Nicholas se dirigiu novamente à casa do portão e pediu licença para visitar o seu antigo amo, como prometera. Nessa manhã, Humilis tinha-se levantado com os outros, assistira à Primeira e à missa, desempenhara escrupulosamente todos os deveres do horário, embora ainda não estivesse autorizado a esforçar-se com qualquer tipo de trabalho. Fidelis acompanhava-o sempre, pronto a ampará-lo caso necessário, ou a ir buscar o que ele precisasse, e tinha passado a tarde a completar, sob a supervisão do olhar aprovador do mais velho, a letra inicial que tinha ficado esborratada e suja com o seu colapso. Ele tinha lá deixado o rapaz a acabar a cuidadosa elaboração a ouro e regressado ao dormitório, médico e doente juntos.

- Bem fechada - disse Cadfael, satisfeito com o seu trabalho - , limpa e a cicatrizar bem. Praticamente, já não precisas de ligaduras, mas é melhor mantê-las mais um ou dois dias, para impedir a fricção enquanto a pele nova ainda está frágil.

Davam-se bem, aqueles dois, e apesar de ambos saberem que a mera cicatrização de uma ferida aberta e infectada não era cura suficiente para aquilo que atormentava Humilis, ambos mantinham um silêncio cortês sobre o assunto e tinham um prazer moderado no grau de bem-estar que tinham alcançado.

Ouviram passos nos degraus de pedra das escadas de dia e reconheceram o ruído de botas, não sandálias. Agora os passos não eram leves, nem ansiosamente apressados, e foi um jovem macambúzio que apareceu à entrada da cela. Tão pouco tivera pressa no caminho de regresso de Lai, pois não tinha se não desapontamento a relatar. Mas prometera e ali estava.

- Nick! - Humilis saudou-o com evidente prazer e afecto. - Regressaste tão depressa! És bem-vindo como o dia... mas pensei... -

Parou de falar, pois mesmo à luz fraca da cela apercebeu-se de que a alegria desaparecera do rosto do jovem. - Uma cara tão triste? Vejo que as coisas não correram como desejavas.

- Não, meu senhor. - Nicholas entrou devagar e ajoelhou-se perante os dois homens mais velhos. - Não tive sorte.

- Lamento, mas nenhum homem pode ter sempre êxito. Conheces o irmão Cadfael? Devo-lhe os melhores cuidados.

- Falámos da última vez - disse Nicholas, encontrando ânimo para lhe dar um meio sorriso em jeito de reconhecimento. - Considero-me igualmente em dívida para com ele.

- Falaram de mim, sem dúvida - disse Humilis, sorrindo e suspirando. - Preocupam-se demasiado comigo, pois estou bem e satisfeito aqui. Encontrei o meu caminho. Agora, senta-te um pouco e conta-nos o que correu mal para ti.

Nicholas deixou-se cair no banco ao lado da cama onde Humilis estava sentado e disse o que tinha para dizer elogiosamente, em poucas palavras:

- Hesitei durante três anos. Um escasso mês depois de o meu senhor ter tomado o hábito em Hyde, Julian Cruce tomou o véu em Whenvell.

- Ah, sim! - exclamou Humilis, com uma longa inspiração, ficando em silêncio para reflectir sobre todo o significado daquela notícia. - Ora, pergunto a mim próprio... Não, por que é que ela havia de fazer tal coisa, a menos que isso fosse verdadeiramente seu desejo? Não pode ter sido por minha causa! Não, ela nada sabia de mim, só me tinha visto uma vez e deve-me ter esquecido assim que virei costas. Podia mesmo ter ficado satisfeita... Pode ter sido isso aquilo que ela sempre desejou, se pudesse fazer o que queria... - Pensou por alguns instantes, franzindo a testa, talvez a tentar lembrar-se do aspecto da rapariguinha. - Tu contaste-me, Nick, disso lembro-me, como ela reagiu à minha mensagem. Não ficou perturbada, antes calma e cortês, e teve a gentileza de me conceder o seu perdão. Disseste-o!

- A verdade, meu senhor - disse Nicholas, com sinceridade -, embora ela não possa ter ficado contente.

- Ah, mas pode ter ficado... pode muito bem ter ficado. Sem a podermos culpar! Embora pudesse estar disposta a aceitar o casamento acordado para ela, este tê-la-ia ligado a um homem vinte anos mais velho, e um estranho. Por que é que não havia de ficar contente quando lhe ofereci a liberdade... não, lha impus? Decerto que ela lhe deve ter dado o uso que preferia, ou talvez mesmo ansiasse dar.

- Ela não foi forçada - reconheceu Nicholas, com uma certeza um tanto ou quanto relutante. - O irmão dela diz que foi escolha da própria rapariga, que o pai estava contra isso e que só cedeu porque ela assim queria.

- Ainda bem - concordou Humilis com um suspiro de alívio. - Então não podemos senão esperar que ela possa ser feliz na sua escolha.

- Mas um tal desperdício! - declarou Nicholas intempestivamente, sofrendo. - Se a tivesse visto, meu senhor, como eu a vi! Cortar um cabelo como aquele e esconder tais formas sob um hábito preto! Eles nunca a deviam ter deixado ir, não tão rapidamente. E se ela já se arrependeu desde então?

Humilis sorriu, mas muito ternamente, olhando para o rosto descorçoado e olhos velados.

- Conforme ma descreveste, tão graciosa e sensível, com um discurso tão medido e pensado, não creio que tivesse agido irreflectidamente. Não, decerto ela fez o que é certo para ela. Mas lamento a tua perda, Nick. Tens de a suportar tão galantemente como ela o fez... se é que eu alguma vez fui considerado uma perda!

O sino das Vésperas tinha começado a tocar. Humilis levantou-se para descer para a igreja e Nicholas ergueu-se com ele, assumindo o toque como indicação de que se devia ir embora.

- É demasiado tarde para partir - sugeriu Cadfael, emergindo do silêncio e da retracção que observara enquanto os dois conversavam. - E parece-me não haver grande pressa, para que tenha que nos deixar esta noite. Uma cama no salão de visitas e poderá partir de manhã, descansado e tendo todo o dia à sua frente. E assim poderá aproveitar para passar uma hora ou duas com o irmão Humilis esta noite.

Disseram ambos sim a esta ideia sensata e Nicholas recuperou um pouco do seu ânimo, embora nada pudesse fazê-lo recuperar o ardor com que se metera a caminho para norte até Winchester.

O que de certa forma surpreendeu Cadfael foi a forma atenciosa com que Fidelis, confrontado uma vez mais com aquele visitante de um tempo anterior a ele ter conhecido Humilis e estabelecido a sua própria intimidade com ele, desapareceu da sua vista por estar impedido da possibilidade de conversa, deixando-os com as suas recordações de viagens compartilhadas, da Cruzada e de batalhas, coisas estranhas à sua própria experiência. Um afecto que conseguia tão discretamente ceder o seu lugar a um afecto rival e anterior era na realidade generoso.

 

Havia um comerciante em Shrewsbury que negociava em lã ao longo das fronteiras, não só do País de Gales como de outras regiões de criação de ovelhas como as Cotswolds, que tinha feito, a pedido de Hugh, um interessante negócio de informações, naqueles tempos conturbados. A sua utilidade activa estava naturalmente restrita àquele período de Verão, quando a lã estava à venda e muitos comerciantes tinham restringido os seus movimentos naquela perigosa época, mas ele era um homem determinado, suficientemente intrépido para se aventurar bem sul junto da fronteira, na direcção de território detido pela imperatriz. Os seus fornecedores vendiam-lhe lã há alguns anos e tinham confiança suficiente nele para não venderem a sua produção até ele os contactar. Tinha boas relações comerciais tão longe como Bruges, na Flandres, e não era de todo avesso a correr um grande risco quando contava com um lucro ainda maior. Mais, corria os seus próprios riscos em vez de delegar aquelas viagens arriscadas nos seus subordinados. Possivelmente, gostava do desafio, pois era um homem obstinado e valente.

Agora, no princípio de Setembro, ia a caminho de casa com as suas compras, um comboio de três carroças que seguiam para Bucking-ham, que era o mais perto de Oxford que conseguiam razoavelmente chegar. Pois Oxford tinha-se tornado atenta e nervosa como uma cidade sob cerco, todos os dias à espera que a imperatriz fosse forçada pela fome a bater em retirada de Winchester. O comerciante tinha deixado os seus homens em segurança, numa estrada relativamente pacífica, para levarem calmamente as suas carroças, indo ele próprio à frente, a uma boa velocidade, para relatar as suas novidades a Hugh Beringar em Shrewsbury, mesmo antes de ir para casa, para junto da mulher e da família.

- Meu senhor, as coisas estão finalmente a andar. Soube isto através de um homem que viu o fim daquilo e se apressou a fugir para um lugar mais seguro. Sabe como estavam emparedados nos seus castelos em Winchester, o bispo e a imperatriz, com os exércitos da rainha a cercar a cidade e a cortar as estradas. Haja quatro semanas que nenhuma comida penetrava o bloqueio e dizem que há fome na cidade, embora duvide de que a imperatriz ou o bispo estejam a passar mal. - Era um homem que dizia o que pensava e que não tinha grande respeito pelas altas personagens. - Para a gente pobre da cidade a história é muito diferente! Mas está a afectar até as tropas dentro do castelo real, pois a rainha tem abastecido Wolvesey enquanto mata à fome o lado oposto. Bom, chegaram ao ponto em que tinham que tentar conquistar uma saída.

- Já estava à espera disso - disse Hugh, muito atento. - Que é que fizeram? Só podiam esperar avançar para norte ou oeste, pois a rainha detém todo o sudeste.

- Mandaram uma força, trezentos ou quatrocentos, segundo ouvi dizer, para norte, para conquistar a cidade de Wherwell e tentar formar ali uma base para abrir a estrada para Andover. Quer o seu movimento tenha sido detectado ou quer alguém da cidade os tenha traído... pois não são queridos em Winchester... fosse como fosse. William de Ypres e os homens da rainha atacaram-nos mal eles chegaram à orla da cidade e fizeram-nos em pedaços. Uma grande matança! O fulano que me contou fugiu quando as casas começaram a arder, mas viu os homens da imperatriz que sobreviveram fugir desesperados e chegar ao grande convento que lá existe. E não tiveram escrúpulos em utilizá-lo, diz ele. Invadiram a própria igreja e transformaram-na numa fortaleza, embora as pobres irmãs se tivessem lá trancado para estarem em segurança. Os flamengos lançaram setas incendiadas contra eles. Deve ter sido um verdadeiro inferno. Ele ouvia-as ao longe enquanto fugia, as mulheres a gritar, as chamas a crepitar e o barulho do combate lá dentro, até que os sobreviventes foram forçados a sair e a render-se, semiqueimados como estavam. Nem um homem deve ter conseguido escapar à morte ou à captura.

- E as mulheres? - perguntou Hugh, horrorizado. - Dizes-me que o convento de Wherwell foi queimado, como o convento da cidade, como depois aconteceu a Hyde Mead?

- O meu homem não ficou para ver o que ficou - disse o mensageiro secamente. - Mas não há dúvida de que a igreja foi destruída pelo fogo, com homens e mulheres lá dentro... as irmãs não podem ter saído todas com vida. E, quanto às que saíram, só Deus sabe onde é que terão encontrado refúgio. É difícil encontrar locais seguros naquele sítio. Quanto às tropas da imperatriz, eu diria que não têm outra solução senão reunirem todos os homens que têm, tentar romper o cerco pela força dos números e fugir. E mesmo assim poucas hipóteses terão.

De facto, poucas hipóteses tinham, depois daquela última perda de trezentos ou quatrocentos soldados, provavelmente escolhidos a dedo para a missão, que à partida devia ter sido uma aposta desesperada. O ano ia apenas no princípio de Setembro e os acasos da guerra tinham mudado e voltado a mudar, desde a desastrosa batalha de Lincoln, que tinha tornado o rei prisioneiro e posto a imperatriz ao alcance da própria coroa, até àquele golpe agora montado à mesma orgulhosa senhora. “Dêem-nos agora a própria imperatriz prisioneira”, pensou Hugh, “e teremos um impasse, recuperaremos cada um o seu soberano e recomeçaremos de novo toda esta luta sem sentido! E à custa dos irmãos de Hyde Mead e das freiras de Wherwell. Entre muitos outros ainda mais indefesos, como os pobres de Winchester.”

O nome de Wherwell por enquanto não significava mais para ele do que qualquer outro convento que tinha tido o infortúnio de cair no campo de batalha.

- Mesmo assim foi um bom ano para mim - disse o comerciante de lã, levantando-se para se dirigir para casa. - A produção foi boa e valeu a viagem.

Hugh levou as últimas notícias ao mosteiro na manhã seguinte, logo após a Primeira, pois tudo o que lhe chegava aos ouvidos era imediatamente transmitido ao abade Radulfus, um serviço que o abade apreciava e retribuía. As autoridades clerical e secular trabalhavam bem juntas em Shropshire e, além disso, naquele caso uma casa Beneditina tinha sido profanada e destruída e os membros da Ordem uniam-se e ajudavam-se uns aos outros no que podiam. Mesmo em tempo de paz, era normal os conventos de freiras terem menos terras e recursos mais restritos que as casas dos monges, e tinham muitas vezes que depender das almas fraternais, mesmo sob um governo bom e hábil. Agora, dava-se a devastação total. Bispos e abades seriam chamados a ajudar.

Ele tinha saído do seu colóquio com Radulfus na sala do abade quando ainda faltava meia hora para a Missa Solene e, decidindo ficar para a celebração, já que ali estava, fez o que habitualmente fazia quando tinha tempo para ficar no mosteiro e foi à procura do irmão Cadfael na sua oficina no herbário.

Cadfael tinha-se levantado muito antes da Primeira, inspeccionara os vinhos e destilações em que tinha estado a trabalhar e regara enquanto a terra estava na sombra e fresca da noite. Naquela altura do ano, feitas as colheitas, havia pouco que fazer com as ervas medicinais e ele ainda não tinha precisado de pedir um ajudante para substituir o irmão Oswin.

Quando Hugh foi à procura de Cadfael, encontrou-o sentado no banco sob o muro norte, que naquela altura do dia estava agradavelmente quente, sem um calor excessivo, a contemplar com um misto de admiração e pena as rosas que floriam com tal extravagante esplendor e murchavam tão depressa. Hugh sentou-se ao seu lado, interpretando correctamente o seu silêncio como boas-vindas.

- Aline diz que já é altura de ires ver como o teu afilhado está crescido.

- Sei bem como ele deve ter crescido - disse o padrinho de Giles Beringar, entre a complacência e o temor de tão formidável responsabilidade. - Só faz 2 anos no Natal e já está demasiado pesado para um velho.

Hugh fez um ruído de troça. Quando Cadfael afirmava que era velho, ou estava a tramar qualquer coisa ou sentia-se preguiçoso e dava assim um justo aviso.

- Cada vez que me vê, trepa por cima de mim como se eu fosse uma árvore - disse Cadfael num tom sonhador. - A ti não se atreve a tratar-te assim, pois és uma árvore nova. Dá-lhe mais quinze anos e ele fará dois de ti.

- É verdade - concordou o pai extremoso, esticando agradavelmente o seu corpo ágil e leve ao sol que aquecia. - Um rapaz comprido desde que nasceu... lembras-te? Mas que Natal aquele, com o meu filho... e o teu... onde é que estará agora Oliver? Sabes?

- Como é que podia saber? Com d'Angers em Gloucester, espero. Ela não pode ter atraído todos a Winchester, tinha que deixar forças no oeste para defender a sua base. Que é que te fez pensar nele?

- Passou-me pela cabeça que ele pudesse ter feito parte das forças da imperatriz em Wherwell. - Deteve-se na sombria recordação e não reparou de imediato como Cadfael ficou tenso e se virou para olhar para ele. - Rezo para que tenhas razão e que ele esteja longe de tudo isso.

- Em Wherwell? Que é que tem Wherwell?

- Esqueci-me - disse Hugh, sobressaltado - de que ainda não sabes as últimas notícias, pois eu próprio acabei de as trazer para cá e apenas as soube ontem à noite. Não te disse que eles teriam que tentar romper o cerco... os homens da imperatriz? Tentaram fazê-lo. Cadfael, e com resultados desastrosos para eles próprios. Mandaram uma força de assalto tentar conquistar Wherwell, sem dúvida na esperança de desimpedir a estrada e o rio, abrindo um caminho para trazer mantimentos. William de Ypres fê-los em pedaços às portas da cidade, e os sobreviventes fugiram para o convento e fecharam-se na igreja. O edifício ardeu com eles lá dentro... Deus lhes perdoe por o

terem violado, mas foram os homens de Maud que o fizeram primeiro, não os nossos. As freiras, Deus as ajude, tinham-se lá refugiado quando o combate começou...

Cadfael ficou sentado imóvel ao sol.

- Queres dizer que Wherwell levou o mesmo caminho de Hyde?

- Ardeu por completo. Pelo menos a igreja. Quanto ao resto... Mas numa estação tão quente e seca...

Cadfael, que lhe tinha, subitamente, agarrado com força o braço, largou-o de forma igualmente abrupta, levantou-se do banco de um salto e começou a correr, verdadeiramente a correr, como nunca mais fizera desde que fugira do alcance do castelo em Titterstone Clee, há dois anos. Ainda tinha uma velocidade muito respeitável quando instigado, mas o seu passo era maravilhoso, sem pernas sob o hábito, como uma bola preta a rolar, com uma ligeira oscilação de um lado para o outro, como o andar de um marinheiro transformado numa corrida desenfreada. E Hugh, que era seu amigo, levantou-se para ir atrás dele, apercebendo-se muito nitidamente da urgência por detrás daquela correria, mas não pôde deixar de se rir enquanto corria. Visto por detrás, um Beneditino apressado, e um Beneditino com mais de 60 anos e com a forma de um barril, pode ser terrivelmente impressionante para quem o conhece, mas também cómico.

A corrida de Cadfael foi travada com alívio quando ele entrou no grande pátio, pois eles ainda ali estavam, a despedirem-se sem pressa, embora o cavalo estivesse arreado e seguro por um moço de estrebaria, e o irmão Fidelis estivesse a amarrar as correias que prendiam a trouxa de Nicholas Harnage e a capa enrolada atrás da sela. Ainda não sabiam de nenhuma necessidade para se apressarem. Havia todo um dia cheio de sol à frente do cavaleiro.

Fidelis usava sempre o capuz ao ar livre, como se para cobrir uma timidez pessoal que certamente derivava da sua língua muda. Ele que não abria o seu espírito aos outros retraía-se em exigir deles qualquer avanço privilegiado. Só Humilis tinha alguma forma de discurso eloquente e silencioso com ele que não precisava de voz. Depois de prender a trouxa, o jovem afastou-se um pouco e esperou.

Cadfael chegou mais circunspecto do que tinha saído do jardim. Hugh não o tinha seguido de perto e parou nas sombras junto à parede do hall.

- Há notícias - disse Cadfael, sem rodeios. - Deve ouvi-las antes de nos deixar. A imperatriz atacou a cidade de Wherwell. um ataque desastroso. As suas forças foram derrotadas pelo exército da rainha.

Mas, durante o combate, o convento de Wherwell foi incendiado e a igreja ardeu por completo. Não sei mais pormenores, mas isto é certo. Aqui o xerife recebeu a notícia ontem à noite.

- Através de um homem de confiança - disse Hugh, aproximando-se. - É verdade.

Nicholas ficou a olhar, com os olhos e a boca abertos, a sua tez dourada transformando-se num cinzento baço enquanto o sangue lhe fugia do rosto. Conseguiu dizer, num murmúrio rouco:

- Wherwell? Ousaram...?

-Não foi ousadia - disse Hugh, num tom contrafeito -, mas puro terror. Havia homens presos lá dentro; decerto, as forças de ataque procuraram qualquer refúgio que conseguissem encontrar, e fecharam a porta. Mas o fim foi o mesmo, fosse quem fosse que atirasse os archotes. O convento ficou destruído. Lamento dizê-lo.

- E as mulheres...? Oh, meu Deus... Julian está lá... Há alguma notícia das mulheres?

- Tinham procurado refúgio na igreja - disse Hugh. Numa altura daquelas não havia santuários, nem sequer para mulheres e crianças. - Os atacantes sobreviventes renderam-se... a maioria pode ter escapado com vida. Todos, duvido.

Nicholas virou-se, procurando às cegas a rédea, puxando a manga da mão trémula que Humilis tinha pousado no seu braço.

- Deixe-me ir! Tenho que ir... tenho que a encontrar. - Virou-se para agarrar por breves instantes a mão do homem mais velho, apertando-a. - Encontrá-la-ei! Se ela estiver viva, encontrá-la-ei e pô-la-ei a salvo. - Agarrou o estribo e içou-se para a sela.

- Se Deus estiver contigo, manda-me notícias - disse Humilis. - Manda-me dizer se ela está viva e em segurança.

- Assim farei, meu senhor.

- Não a perturbes, não lhe fales de mim. Não lhe faças perguntas! A única coisa de que preciso, a única coisa que deves perguntar, é saber que Deus a preservou e que ela tem a vida que queria. Haverá lugar para ela noutro sítio, com outras irmãs. Se ao menos ela ainda estiver viva!

Nicholas assentiu em silêncio, sacudiu o torpor com um pesado suspiro, incitou o cavalo e desapareceu através da casa do portão sem qualquer outra palavra e sem olhar para trás. Eles ficaram a olhar, enquanto o pó leve que ele levantara ao passar cintilava e caía sob o arco do portão, onde o empedrado terminava e a terra batida do Foregate começava.

Durante todo esse dia, pareceu a Cadfael, Humilis forçou as suas próprias capacidades ao limite, como se a pressão que impelia Nicholas para sul exercesse o seu peso ali no silêncio imposto e no isolamento, onde o coração teria preferido partir a cavalo com o rapaz, a qualquer preço. E durante todo esse dia, Fidelis, virando as costas até a Rhun, seguiu Humilis com uma solicitude especial e sofrida, com ternura e ansiedade, como se só então se tivesse apercebido de que a morte não estava a grande distância e avançava passo a passo a cada hora que passava.

Humilis foi para a cama imediatamente após as Completas, e Cadfael, quando o foi ver passados dez minutos, encontrou-o já a dormir e não o incomodou. Não era uma ferida infectada e um corpo estropiado que agora perturbavam Humilis, mas sim um obscuro sentimento de culpa em relação à rapariga que, se tivesse casado com ele. podia estar em segurança numa casa bem longe de Winchester e Wherwell e do choque de armas, em vez de ser expulsa pelo fogo e pela carnificina do convento que escolhera. O sono não faria mais pelo seu espírito em sofrimento do que a mudança do penso podia fazer pelo seu corpo. A dormir ele tinha a calma hierática de uma figura já esculpida num túmulo. Cadfael foi-se embora silenciosamente, deixando-o, como Fidelis o devia ter deixado para ele melhor descansar sozinho.

No lusco-fusco fragrante, Cadfael foi fazer a sua habitual visita nocturna à sua oficina, para se assegurar de que estava tudo bem e mexer uma infusão que ficaria a arrefecer durante a noite. Por vezes, quando as noites eram tão frescas depois do calor do dia, os céus tão cravados de estrelas e tão infinitamente majestosos, e cada flor e folha subitamente tão imbuídas da sua própria cor e luz tremeluzente, apesar de já não haver luz, ele sentia ser um grande desperdício das dádivas de Deus ir para a cama e fechar-lhes os olhos. No passado tinha havido noites ilícitas de se aventurar para longe... ele confiava que por boas razões, mas não as aprofundara demasiado. Hugh tinha tido a sua parte nelas, também. Ah, bom!

Ao regressar, com alguma relutância, entrou pela igreja e dirigiu-se às escadas de noite. Todas as formas dentro da vasta zona de pedra eram visíveis à luz das pequenas luzes do altar. Cadfael nunca passava sem entrar no coro por alguns momentos, para lançar um olhar e um pensamento para o altar da Santa Winifred, numa recordação afectuosa do seu primeiro encontro e com gratidão pela sua clemência. Fê-lo naquela altura e parou abruptamente, antes de

se aproximar mais. Um dos irmãos estava ajoelhado junto ao altar e o fulgor avermelhado da luz mostra-lhe o rosto erguido, os olhos fechados e as mãos postas em oração de Fidelis. Mostrou-lhe não menos claramente, quando se aproximou silenciosamente, as lágrimas a cintilar nas faces do jovem. Um rosto absolutamente imóvel, à excepção dos lábios mudos a moverem-se silenciosamente nas suas orações, e as lágrimas a escorrer lentamente das pálpebras cerradas e a caírem-lhe no peito. Os choques do dia podiam bem levá-lo para ali, agora que o seu encargo estava a dormir, para erguer fervorosas orações por um melhor fim para a história. Mas por que é que o seu rosto parecia mais o de um penitente do que o de um inocente apelante? E de um penitente inseguro quanto à absolvição!

Cadfael afastou-se silenciosamente em direcção às escadas da noite e deixou ao rapaz todo o espaço acolhedor da igreja para a sua inexplicável dor.

A outra figura, imóvel no canto mais escuro do coro, só se mexeu depois de Cadfael ter saído e, mesmo assim, esperou longos momentos antes de avançar muito lentamente, retendo a respiração, sobre o chão frio.

Um pé nu tocou na orla do hábito de Fidelis e, tão delicada e rapidamente, recuou do contacto. Uma mão foi estendida e pairou sobre a cabeça distraída, ansiando por tocar e contudo não ousando fazê-lo até que o silêncio contínuo e a imobilidade lhe deu coragem. Uns dedos tensos mergulharam no castanho-avermelhado que cercava a tonsura, o toque leve fez tremer a mão, como o crepitar do raio iminente no ar antes da tempestade. Se Fidelis também o sentiu não deu qualquer sinal. Mesmo quando os dedos se mexeram amorosamente no seu cabelo e acariciaram a nuca dentro do capuz, ele não se mexeu, antes ficou ali ajoelhado, gelado, a reter a respiração.

- Fidelis - murmurou uma voz abafada e dorida junto ao seu ombro. - Irmão, nunca sofras sozinho! Vira-te para mim... posso confortar-te, de tudo, de tudo... seja qual for a tua necessidade...

A palma da mão acariciou-lhe o pescoço, mas, antes de lhe chegar à face, Fidelis tinha-se já posto de pé, num único movimento suave, resoluto e calmo, fora do seu alcance. Sem pressa, ou talvez não querendo mostrar o seu rosto, nem àquela luz ténue, até o ter dominado, virou-se para olhar para o intruso na sua solidão, pois os murmúrios não têm identidade e ele nunca tinha reparado especialmente no irmão Urien. Fê-lo agora, com olhos cinzentos, grandes e prudentes. Um homem escuro, apaixonado e bem parecido, um

homem que nunca se devia ter fechado dentro daquelas paredes, um homem que ardia e podia fazer arder outros antes de ele poder finalmente arrefecer. Ele fitou Fidelis com o rosto atormentado e a sua mão estendida tremeu, anelante, na direcção da manga de Fidelis, que se afastara dela austeramente antes de ele a poder agarrar.

- Tenho-te observado - sussurrou a voz rouca -, conheço todos os teus movimentos e graciosidade. Desperdício, desperdício de juventude, desperdício de beleza... Não vás! Ninguém nos está a ver agora...

Fidelis virou-lhe resolutamente as costas e saiu do coro em direcção às escadas da noite. Silenciosos no chão de pedra, os pés nus de Urien seguiram-no, o murmúrio atormentado seguiu-o.

- Por que é que viras as costas à bondade terna? Nem sempre o farás. Pensa em mim! Esperarei...

Fidelis começou a subir as escadas. O seu perseguidor parou ao fundo das escadas, demasiado doente de angústia para ir para onde outros homens podiam ainda estar acordados.

- Cruel, cruel... - chorou um leve fio de voz, recuando, e depois, com uma quase inaudível mas extrema amargura: - Se não aqui, noutro lugar... Se não agora, numa outra altura!

 

Nicholas requisitou uma muda de cavalos por duas vezes durante a sua viagem para sul, deixando aqueles que montara até à exaustão à espera do breve regresso que previa, com as notícias que prometera fielmente levar, quer fossem boas ou más. O cheiro a queimado, antigo e acre agora, chegou-lhe trazido pelo vento alguns quilómetros antes de Wherwell, e quando ele entrou no que restava da pequena cidade foi para deparar com uma desolação quase deserta. Os poucos cujas casas tinham sobrevivido sem serem pilhadas e quase sem danos estavam a revistá-las e a salvar os seus bens, mas aqueles que tinham perdido as suas habitações no fogo estavam a refrear-se cautelosamente de regressar para as reconstruir. Pois embora a força atacante de Winchester tivesse sido dizimada ou aprisionada, e William de Ypres tivesse retirado os flamengos da rainha para as suas antigas posições em volta da cidade e da região, aquele sítio ainda estava dentro do círculo e podia voltar a ser sujeito a mais violência.

Com o coração apertado e ansioso, Nicholas dirigiu-se para o enclave do convento, um dos três maiores do condado, até aquela desgraça se ter abatido sobre os seus edifícios, arrasado metade e deixado o resto inabitável. O esqueleto da igreja erguia-se, esguio e enegrecido, contra o céu sem nuvens, as paredes irregulares e descoloridas como dentes apodrecidos. Havia sepulturas novas no cemitério das freiras. Quanto às sobreviventes, tinham desaparecido, pois ali não havia um lar para elas. Ele olhou para a terra recém-mexida com o coração pesado e pensou de quem seriam as filhas ali por baixo. Ainda não tinha havido tempo para mais do que enterrá-las, e as sepulturas não tinham nomes.

Ele não se podia sequer permitir pensar que ela podia ali estar. Dirigiu-se à igreja paroquial e procurou o padre, que tinha acolhido duas famílias sem casa sob o seu tecto e no seu celeiro. Um homem cansado e preocupado, envelhecido, numa sotaina coçada que precisava de ser arranjada.

- As freiras? - disse ele, saindo da penumbra da porta. - Estão espalhadas por aí, pobres almas, nem nós sabemos bem onde. Três morreram no incêndio. Três, segundo sabemos, mas podem ter sido mais, pois podem ainda estar sob os escombros. Houve luta no pátio e os flamengos arrastaram os seus prisioneiros para fora da igreja, mas nenhum dos lados se ralou com as mulheres. Dizem que algumas fugiram para Winchester, embora pouca segurança lá haja, mas o senhor bispo decerto que tentará fazer algo por elas, a sua casa era aliada do Old Minster. Outras... não sei! Ouvi dizer que a madre superiora fugiu para uma casa senhorial perto de Reading, onde tem parentes, e pode ter levado alguma das freiras com ela. Mas a confusão é enorme... quem é que pode saber?

- Onde é essa casa senhorial? - perguntou Nicholas febrilmente, recebendo um aceno de cabeça carregado de cansaço.

- Foi apenas uma coisa que ouvi dizer... ninguém disse onde era. Pode nem sequer ser verdade.

- E o padre não sabe o nome das irmãs que morreram? - Nicholas tremia ao perguntar isto.

- Meu filho - disse o padre com infinita resignação -, aquilo que encontrámos não podia ter nome. E ainda temos que procurar as outras, depois de encontrarmos comida suficiente para manter vivos aqueles que ainda estão vivos. Primeiro, os homens da imperatriz pilharam as nossas casas, e depois deles os flamengos. Aqui. aqueles que têm terão que compartilhar com aqueles que nada têm. E quem de nós tem muito? Deus sabe que não eu!

Na verdade não tinha, em coisas materiais, apenas uma compaixão cansada e obstinada. Nicholas tinha pão e carne no seu alforge, que arranjara para se alimentar na estrada quando parara da última vez para mudar de cavalo. Tirou-os e meteu-os nas mãos do velho, uma mera gota num oceano de fome, mas o dinheiro que tinha na sua bolsa não podia comprar nada ali. pois não havia nada para comprar. Eles teriam que procurar nos campos comida para alimentar a sua gente. Deixou-os entregues ao seu obstinado trabalho e atravessou lentamente os escombros de Wherwell, perguntando aqui e ali se alguém tinha informações mais precisas que lhe pudesse dar. Todos sabiam que as irmãs se tinham dispersado, mas ninguém sabia dizer para onde. Quanto ao nome de uma mulher, nada significava, podia nem sequer ser o nome com o qual ela fizera os seus votos. Não obstante, ele continuou a proferi-lo sempre que indagava, proclamando obstinadamente a insubstituível raridade de Julian Cruce, separada de todas as outras mulheres.

Deixando Wherwell, dirigiu-se para Winchester. Um soldado da rainha podia passar através do anel de ferro sem dificuldade, e na cidade era evidente que a facção da imperatriz estava encurralada e não ousava aventurar-se para longe do seu reduto no castelo. Mas as freiras de Winchester, elas próprias recentemente em perigo e agora a respirar mais livremente, não lhe puderam dizer nada acerca de Julian Cruce. Algumas irmãs de Wherwell tinham sido recolhidas e acarinhadas, mas ela não se encontrava neste grupo. Nicholas falou com um dos seus membros mais idosos, que foi bondosa e solícita, mas que não o pôde ajudar.

- Senhor, esse é um nome que eu não conheço. Mas pense, não há nenhuma razão para que eu o conhecesse, pois essa senhora pode ter assumido um nome completamente diferente quando tomou os seus votos e não perguntamos às nossas irmãs donde vieram, nem quem eram anteriormente, a menos que decidam contar-nos livremente. E eu não tinha nenhum cargo que me trouxesse conhecimento dessas coisas. A nossa madre superiora poderia certamente responder-lhe, mas não sabemos onde ela está. A nossa prioresa também. Estamos tão perdidas como o senhor. Mas Deus há-de encontrar-nos e voltar a unir-nos. Como encontrará para si aquela que o senhor procura.

Ela era uma mulher esperta, ágil e mirrada, magra mas indestrutível como espadela. Olhou-o com uma expressão de simpatia ligeiramente divertida e perguntou-lhe afavelmente:

- Ela é sua parente, essa Julian?

- Não - disse Nicholas secamente -, mas queria-a para minha parente, e parente muito próxima.

- E agora?

- Quero saber se ela está em segurança, viva, satisfeita. Não há mais do que isso. Se estiver, Deus a conserve assim e eu fico satisfeito.

- Se eu fosse a si - disse a senhora, depois de o olhar atentamente durante alguns momentos em silêncio -, iria a Romsey. Fica suficientemente longe para ser um lugar mais seguro que este, e é a maior casa beneditina nas redondezas. Deus sabe quais das nossas irmãs lá irá encontrar, mas decerto encontrará algumas, e talvez mesmo a superiora.

Ele ainda era suficientemente jovem e inocente, apesar de todas as suas viagens, para se comover com qualquer prova de confiança ou

bondade e agarrou e beijou-lhe a mão ao despedir-se, como se ela fosse sua anfitriã. Ela, pelo seu lado, era demasiado velha e experiente para corar ou se empertigar, mas quando ele se foi embora ficou sentada a sorrir em silêncio durante bastante tempo antes de se ir juntar às suas irmãs. Ele era um jovem muito bem apessoado.

Nicholas percorreu os cerca de vinte quilómetros até Romsey com gravidade, consciente de que podia estar a aproximar-se de uma resposta que provavelmente não lhe agradaria. Assim que saiu de Winchester, dirigindo-se para sudoeste, ficou a salvo de qualquer ameaça, pois atravessou uma região onde as forças da rainha dominavam sem oposição. Era uma região agradável, suavemente ondulada e bem arborizada mesmo antes de ele chegar à orla da grande floresta. Chegou à casa do portão do convento, no coração da grande cidade, ao fím da tarde, e tocou o sino ao portão. A porteira espreitou através do ralo e perguntou-lhe ao que vinha. Ele inclinou-se para olhar pelo ralo e deparou com uns olhos vivos e idosos rodeados por rugas.

- Irmã, deram abrigo aqui a algumas das freiras de Wherwell? Procuro notícias de uma delas, e lá não consegui obter resposta.

A porteira olhou-o atentamente e viu um rosto jovem sujo e cansado da viagem, um jovem sozinho, muito ansioso, que não constituía qualquer ameaça. Mesmo ali em Ronsey tinham aprendido a ser cautelosas a abrir os seus portões, mas a estrada atrás dele estava vazia e em silêncio e o lusco-fusco caía pacificamente sobre a pequena cidade.

- A prioresa e três irmãs conseguiram cá chegar - disse ela -, mas duvido que alguma delas lhe consiga dizer mais que as outras, pelo menos por agora. Mas entre, e perguntarei se ela está disposta a falar consigo.

O portão abriu-se ruidosamente, liberto de cadeado e corrente, e ele entrou para o pátio.

- Quem sabe? - disse a porteira bondosamente, voltando a fechar o portão. - Uma das nossas três poderá ser aquela que procura. Pelo menos pode tentar.

Ela conduziu-o ao longo de corredores sombrios até uma pequena sala apainelada, iluminada por um minúsculo candeeiro, deixando-o ali. A refeição da noite já tinha terminado há muito; até já teria terminado as Completas e era quase hora de dormir. Elas quereriam satisfazê-lo, se é que era possível a satisfação, e vê-lo fora do seu recinto antes de anoitecer.

Ele não conseguia descansar ou sentar-se, e andava de um lado para o outro, como um urso enjaulado, quando uma outra porta se abriu e a prioresa de Wherwell entrou silenciosamente. Uma mulher baixa, redonda e rosada, mas com um rosto formidavelmente forte e uns olhos extremamente directos que estudaram o visitante da cabeça aos pés num olhar penetrante enquanto ele lhe fazia uma vénia.

- Disseram-me que pediu para falar comigo. Aqui estou. Em que é que o posso ajudar?

- Minha senhora - disse Nicholas, a tremer com medo do que poderia vir -, eu estava no norte, em Shropshire, quando soube do ataque a Wherwell. Estava lá uma irmã de cuja vocação eu acabara de ter conhecimento, e agora a única coisa que quero saber é se ela está viva e em segurança depois daquela infâmia. Talvez falar com ela e ver com os meus próprios olhos que está bem, se isso puder ser permitido. Indaguei em Wherwell, mas não consegui saber nada sobre ela... só sei o nome que ela tinha no mundo.

A prioresa fez um gesto para ele se sentar e sentou-se ela própria um pouco afastada, de onde podia observar o rosto dele.

- Posso saber o seu nome, senhor?

- Chamo-me Nicholas Harnage. Fui escudeiro de Godfrid Marescot até ele tomar o hábito em Hyde Mead. Ele esteve noivo desta senhora e está ansioso por saber se ela está bem e em segurança.

Ela assentiu face àquele desejo tão natural, mas, no entanto, as suas sobrancelhas franziram-se numa expressão pensativa e algo intrigada.

- Esse nome conheço, Hyde orgulhou-se de o ter ganho. Mas não me lembro de ter ouvido... Qual é o nome dessa irmã que procura?

- No mundo ela era Julian Cruce, de uma família de Shropshire. A irmã com quem falei em Wherwell nunca tinha ouvido esse nome, mas pode bem dar-se que ela tenha escolhido um nome muito diferente quando professou. Mas a senhora té-la-á conhecido antes e depois.

- Julian Cruce - repetiu ela, agora muito direita e atenta, semicerrando os olhos vivos. - Meu jovem senhor, não está enganado? Tem a certeza de que foi para Wherwell que ela entrou? Não foi para outra casa qualquer?

- Não. minha senhora, tenho a certeza de que foi para Wherwell - disse ele ansiosamente. - Foi o próprio irmão que me disse, e ele não podia estar enganado.

Houve um momento de silêncio tenso enquanto ela reflectia e abanava a cabeça, franzindo a testa.

- Quando é que ela entrou para a Ordem? Não pode ter sido há muito tempo.

- Há três anos, minha senhora. A data não lhe posso dizer, mas foi cerca de um mês depois de o meu amo tomar o hábito, e isso foi em meados de Julho. - Estava agora assustado com aquela estranha recepção. Ela estava a abanar a cabeça dubiamente e a olhar para ele com um misto de simpatia e espanto. - Pode ser que isso tenha sido antes de a senhora deter o seu cargo...

- Meu filho - disse ela num tom contrafeito -, sou prioresa há mais de sete anos e não há um único nome entre as nossas irmãs que eu não conheça, quer seja o nome do mundo ou do convento, não há uma única entrada que eu não tenha presenciado. E. por mais que lamente, não compreendendo bem eu própria, não posso senão dizer que, sem qualquer sombra de dúvida, nunca nenhuma Julian Cruce pediu ou recebeu o véu em Wherwell. É um nome que eu nunca ouvi e pertence a uma mulher sobre a qual nada sei.

Ele não conseguia acreditar. Ficou a olhar fixamente para ela, passando várias vezes a mão pela testa.

- Mas... isso é impossível! Ela partiu de casa com uma escolta e um dote destinado ao seu convento. Declarou a sua intenção de ir para Wherwell, toda a gente da sua casa sabia, o seu pai sabia e sancionou-a. Acerca disso, juro-lhe, minha senhora, não há engano possível. Ela partiu para Wherwell.

- Então - disse a prioresa gravemente -, receio que tenha de fazer perguntas noutro lado, e perguntas muito sérias. Pois, acredite, se tem a certeza de que ela partiu para se juntar a nós, estou igualmente certa de que ela nunca lá chegou.

- Mas que é que a pode ter impedido? - perguntou ele num tom urgente, agarrando-se às impossibilidades. - Entre a sua casa e Wherwell...

- Entre a sua casa e Wherwell eram muitos quilómetros - disse a prioresa. - E muitas coisas podem impedir o cumprimento dos planos de homens e mulheres neste mundo. Os problemas da guerra, os acidentes das viagens, a malícia dos outros homens.

- Mas ela tinha uma escolta para a acompanhar até ao fim da sua viagem!

- Então é junto deles que deve indagar - disse ela brandamente -, pois é evidente que eles falharam.

Não fazia sentido pressioná-la mais. Ficou sentado em silêncio, atordoado, completamente perdido. Ela sabia o que estava a dizer e pelo menos indicara-lhe a única pista que lhe restava. Que é que adiantava procurar mais naquela região até ele agarrar a pista que ela lhe oferecera e tentar seguir o rasto de Julian desde que saíra de Lai, onde tudo começara. Três homens armados, dissera Reginald, tinham ido com ela, chefiados por um caçador que nutria afecto por ela desde a infância. Eles ainda deviam estar ao serviço de Reginald, podiam ser interrogados, podiam ser levados a dar conta da missão que não tinham concluído.

A prioresa tinha ainda mais uma afirmação a fazer enquanto se levantava para indicar que a entrevista terminara e o visitante tardio tinha de partir.

- Disse que ela levava consigo o dote que tencionava entregar a Wherwell? Não sei qual o seu valor, é claro, mas... as estradas não estão completamente livres de maus costumes...

- Ela tinha quatro homens para a defender-exclamou Nicholas, num último rompante de desespero.

- E eles sabiam o que ela levava consigo? Deus sabe - disse a prioresa - que não quero lançar a suspeita sobre qualquer homem sério, mas infelizmente vivemos num mundo onde, em quatro homens, pelo menos um pode ser corrupto.

Ele abandonou a cidade ainda atordoado, incapaz de pensar ou raciocinar, incapaz de apreender e compreender aquilo em que acreditava com o seu coração pesado. Estava a anoitecer e ele estava demasiado cansado para continuar viagem sem dormir, além de ter que tratar do cavalo. Descobriu uma taberna onde lhe dariam uma cama e um estábulo e comida para o seu animal, e ficou acordado na cama durante muito tempo antes de a sua própria exaustão de corpo e espírito o vencer.

Tinha uma resposta, mas como a interpretar ele não sabia. Era certo que ela nunca tinha passado pelos portões de Wherwell e portanto não tinha morrido no incêndio. Mas... três anos e nem uma palavra ou sinal! O irmão dela não se tinha incomodado com uma meia-irmã que mal conhecia, crendo que ela estava arrumada na vida de acordo com a sua própria opção. E nunca tinha recebido notícias

dela. Quem é que se admiraria ou questionaria esse facto? As religiosas estão seguras nas suas comunidades, têm as irmãs à sua volta, portanto que necessidade têm do mundo e que é que o mundo pode esperar delas? Três anos de silêncio por parte daquelas votadas ao cultivo do silêncio é mais que natural; mas três anos sem notícias tinham-se transformado agora num abismo, no qual Julian Cruce tinha caído como no oceano, afundando-se sem deixar rasto.

Agora não havia nada a fazer senão regressar a Shrewsbury, confessar aquele tremendo fracasso na sua missão e seguir para Lai, para contar a mesma terrível história a Reginald Cruce. Só aí podia esperar encontrar um fio da meada que pudesse seguir. Partiu de manhã cedo para Winchester.

Chegou perto da cidade a meio da manhã. Quanto partira, tinha saído, prudentemente, não pela estrada directa através do portão oeste, pois o castelo real, com as suas forças hostis e nesta altura decerto que desesperadas, estavam muito perto e detinham total controlo do portão. Mas, um pouco antes de chegar ao local em que devia, por uma questão de cautela, virar para este e sair da estrada de Romsey e dar a volta à parte sul da cidade para fazer uma abordagem mais segura, começou a aperceber-se de um murmúrio de som caótico e constante em frente, que se transformou de murmúrio num clamor pulsante e num barulho de golpes de metal e de gritos que não podia significar outra coisa senão uma batalha, e uma batalha muito próxima e desesperada. Parecia centrar-se à esquerda, à sua frente, a certa distância da cidade, e o ar nessa direcção estava turvo com o pó cintilante da luta.

Nicholas abandonou qualquer ideia de se afastar na direcção do hospital do bispo de Saint Cross ou do portão este e galopou a toda a velocidade para o portão oeste. E ali à sua frente deparou com os habitantes de Winchester a ferver de entusiasmo, aos gritos, e as ruas cheias de gente, exultante e sem medo, todos a clamar por notícias e a dá-las aos gritos, libertas da cautela angustiante que as tinha acorrentado durante tanto tempo.

Nicholas agarrou um tipo alto pelo ombro e berrou a sua própria pergunta:

- Que é? Que é que aconteceu?

- Foram-se embora! Marcharam ao amanhecer, aquela mulher e o seu tio da Escócia e todos os seus lordes! Pouco se ralaram connosco, aqui a morrer à fome, pois, quando se viram aflitos, a história foi outra. Puseram-se todos a andar, todos eles... em boa ordem! Ouça-os agora! Os flamengos deixaram-nos sair da cidade antes de os atacar e deixaram-nos a nós em paz. Vai haver despojos a recolher além!

Estavam apenas à espera, aqueles comerciantes e artífices vingativos de Winchester, que o barulho da batalha se afastasse. Haveria pilhagens antes do cair da noite. Nenhum homem pode fugir depressa carregado com elmo e cota de armas. Até as suas espadas podiam largar para aliviar o peso que os seus cavalos tinham que suportar E se tinham mantido algum optimismo e acreditassem que podiam levar os seus bens consigo, haveria na realidade ricas pilhagens antes do final do dia.

Então já acontecera, a esperada tentativa de romper o círculo de ferro do exército da rainha, e tinha acontecido demasiado tarde para haver qualquer esperança de êxito. Depois do holocausto de Wherwell, até a imperatriz devia saber que não podia aguentar a sua posição durante muito mais tempo.

Para noroeste, ao longo da estrada de Stockbridge e ondulando sobre os campos ondulantes, a auréola de pó dançava e rolava, espalhando-se à medida que recuava. Nicholas seguiu-a, como os mais ousados habitantes da cidade, ou os mais ávidos, ou os mais vingativos estavam a fazer. Tinha-os deixado para trás e estava sozinho no meio do campo quando viu os primeiros sinais do ataque que derrotara o exército da imperatriz. Um único corpo caído, um cavalo coxo e abandonado, um pesado escudo atirado para o lado, o primeiro de muitos. Um quilómetro mais adiante e o chão estava pejado de braços, pedaços de armaduras arrancadas e atiradas durante a fuga, elmos, cotas de malha, alforges, peças de vestuário, moedas e ornamentos de prata, belos vestidos, baixelas, tudo dispensável quando a mera vida era a única coisa a que era dado valor. Nem todos a tinham conservado, mesmo àquele preço. Havia corpos, atirados e amachucados por entre as ervas, cavalos assustados a correr em círculos, alguns quase mortos de exaustão e a arfar no solo. Não uma batalha, mas uma debandada, uma fuga desesperada num terror contagiante.

Ele tinha parado, ficando a olhar, nauseado, para tal espectáculo, enquanto a fuga e a perseguição continuavam à distância sob a sua nuvem brilhante, em direcção a Test em Stockbridge. Não a seguiu; virou costas e voltou para a cidade, não querendo tomar parte no trabalho daquele dia. Pelo caminho encontrou os primeiros pilhadores, esfomeados e ansiosos, a apanhar os despojos da vitória.

Passados três dias, ao princípio da tarde, Nicholas voltou a entrar no grande pátio do mosteiro de Shrewsbury, para cumprir a promessa que tinha feito. O irmão Humilis estava no herbário com Cadfael, sentado à sombra, enquanto Fidelis escolhia, de entre uma vasta gama de plantas, alguns raminhos e folhas que queria para uma cercadura iluminada, briónia e centáurea e buglossa e os fios enrolados de ervilhaca, infinitamente adaptáveis a cercaduras de letras iniciais. O jovem tinha-se interessado pelas plantas e pela sua utilização e por vezes ajudava a fazer os remédios que Cadfael utilizava nos tratamentos de Humilis, tratando delas com uma devoção apaixonada e silenciosa, como se o seu amor pudesse acrescentar o ingrediente final que as tornaria soberanas.

O porteiro, que já conhecia Nicholas bem, disse-lhe, sem que ele precisasse de fazer qualquer pergunta, onde encontraria o seu amo. Deixou o cavalo amarrado à casa do portão, tencionando seguir imediatamente para Lai. e deu a volta à grande sebe aparada, seguindo pelo caminho coberto de gravilha até onde Humilis estava sentado no banco de pedra junto à parede sul. Tão atento a Humilis estava Nicholas que passou por Fidelis sem olhar para ele e o jovem irmão, sobressaltado por aquela súbita e silenciosa chegada, virou-se para ele com a cabeça descoberta e com o rosto ao sol, mas afastou-se rapidamente para o lado, no seu habitual modo reticente, mantendo-se distante, com deferência por uma anterior lealdade. Puxou o capuz para cobrir a cabeça e mergulhou silenciosamente na sua sombra.

- Meu senhor - disse Nicholas. dobrando o joelho a Humilis e agarrando as duas mãos que se estendiam para o abraçar -, o seu pesaroso criado!

- Não, isso nunca! - disse Humilis calorosamente, libertando as mãos para puxar o rapaz para junto dele e observar-lhe o rosto atentamente. - Bom - disse ele com um suspiro e um breve sorriso contrafeito -, não vejo em ti sinais de sucesso. Mas não por culpa tua, juraria eu, mas nenhum homem pode dominar o sucesso. Não terias voltado tão depressa se não tivesses conseguido saber alguma coisa, mas vejo que não era aquilo que esperavas. Não encontraste Julian. Pelo menos - disse ele, olhando mais atentamente e numa voz baixa e cautelosa -. viva...

- Nem viva nem morta - disse Nicholas rapidamente, afastando a pior conclusão. - Não, não é o que pensa... não é o que nenhum de nós podia sonhar. - Agora que tinha de contar a história, só conseguiu dizer tudo tão mal e tão honestamente possível e acabar com aquilo de vez. - Procurei em Wherwell, e em Winchester, até que encontrei a prioresa de Wherwell refugiada no convento de Romsey. Ela é madre superiora há sete anos, conhece todas as irmãs que entraram para o convento desde essa altura e nenhuma delas é Julian Cruce. O que quer que tenha acontecido a Julian, a Wherwell ela nunca chegou, nunca fez aí os seus votos, nunca aí viveu... e não pode aí ter morrido. Um beco sem saída!

- Ela nunca lá chegou? - repetiu Humilis num murmúrio espantado, franzindo a testa e olhando para o fundo do jardim ensolarado.

- Nunca! - disse Nicholas amargamente. - Cheguei três anos demasiado tarde. Três anos! E onde é que ela pode ter estado todo esse tempo, sem nunca ter havido qualquer notícia dela, aqui onde deixou a sua casa e família, ou ali, onde devia estar em sossego? Que é que lhe pode ter acontecido entre aqui e Wherwell? Nessa altura a região não estava em tumulto, as estradas deviam ser seguras. E ela levou consigo quatro homens, bem armados.

- E eles regressaram a casa - disse Humilis, perspicaz. - Decerto que eles regressaram a casa, de contrário há muito que Cruce teria indagado e averiguado. Em nome de Deus, que é que eles terão relatado aquando do seu regresso? Nenhum mal! Nenhum mal feito por outros homens, senão teria havido imediato rebuliço, nenhum mal entre eles, senão não teriam sequer regressado. Isto complica-se cada vez mais.

- Vou seguir para Lai - disse Nicholas, erguendo-se -, para dar a notícia a Cruce e fazer com que ele procure e questione os homens que a escoltaram. Os homens do pai serão agora os seus homens, quer em Lai, quer em qualquer outra das suas casas. Podem-nos dizer, pelo menos, onde é que se separaram dela, se ela, insensatamente, os mandou embora e fez sozinha os últimos quilómetros. Não descansarei enquanto não a encontrar. Se ela estiver viva, encontrá-la-ei!

Humilis deteve-o, agarrando-lhe a manga, franzindo as sobrancelhas numa expressão de dúvida.

- Mas o teu comando... Decerto que não podes abandonar os teus deveres por tanto tempo?

- O meu comando - disse Nicholas - pode muito bem passar sem mim durante uns tempos. Deixei os meus homens bem instalados, acampados perto de Andover, com os meus sargentos a comandá-los, soldados experientes que poderão bem desempenhar as minhas funções da forma como as coisas estão actualmente. Pois não lhe contei senão metade. Estou tão cheio dos meus próprios problemas que não tenho tempo para reis. Não dissemos da última vez que a imperatriz teria de tentar sair de Winchester em breve, senão morreria lá à fome? Pois já tentou. Depois do desastre de Wherwell, ela devia saber que não podiam aguentar durante muito mais tempo. Há três dias, marcharam para oeste, em direcção a Stockbridge, William de Warenne e os flamengos caíram sobre eles e deram cabo deles. Não foi uma retirada, foi uma fuga desesperada. Tudo o que levavam de pesado atiraram fora. Se conseguirem chegar a Glouces-ter a salvo, será seminus. Pararei na cidade para fazer chegar a notícia a Hugh Beringar.

O irmão Cadfael, que tinha continuado a arrancar ervas daninhas no meio dos seus canteiros de plantas medicinais, a alguma distância, tinha contudo ouvido tudo isto com ouvidos atentos e o sangue a ferver e endireitou-se então para olhar.

- E ela... a imperatriz? Não a apanharam?

Uma imperatriz por um rei seria uma troca justa, e quase inevitável, mesmo que não significasse o fim das hostilidades e apenas um impasse, e um novo começo sobre o mesmo terreno exausto e exaustivo. Se tivesse sido Stephen a capturar a implacável senhora, com o seu louco e cativante cavalheirismo, provavelmente ter-lhe-ia dado um cavalo e uma escolta, mandando-a em segurança para Gloucester, para a sua própria fortaleza, mas a rainha não tão magnanimamente idiota e daria melhor uso a um inimigo cativo.

- Não, não Maud, ela está em segurança longe daqui. O seu irmão mandou-a sob a protecção de Brian Fitzcount e ficou para organizar a retaguarda e a aguentar a perseguição. Não, é melhor que Maud! Ele podia ter continuado a combater sem ela, mas ela terá dificuldade em continuar sem ele. Os flamengos apanharam-nos em Stockbridge a tentar passar o rio, e capturaram todos os sobreviventes. Quem apanhámos foi o antagonista à altura do próprio rei, o próprio homem, Robert de Gloucester!

 

Reginald Cruce, quer tivesse, ou na realidade se pudesse esperar que tivesse algum profundo afecto por uma meia-irmã tantos anos mais nova do que ele, e que raras vezes vira, não era homem para tolerar qualquer afronta ou dano para com ninguém da sua casa. O que quer que afectasse um Cruce reflectia-se em si próprio e fazia-lhe eriçar o pêlo como a um cão de caça. Ouviu toda a história num silêncio estóico, mas com crescente ressentimento e raiva, tanto mais formidáveis quanto contidas por um autodomínio férreo.

- E tudo isto é certo? - perguntou ele finalmente. - Sim, a mulher decerto que sabia o que estava a dizer. A rapariga nunca lá chegou. Eu não estive de todo ligado a esse assunto, não estava aqui e não testemunhei nem a partida nem o regresso, mas agora veremos o que aconteceu! Pelo menos sei os nomes dos homens que a acompanharam, pois o meu pai falou dessa viagem quando estava a morrer. Mandou os seus homens de maior confiança... quem não o faria, com a sua filha? E ele adorava-a. Espere!

Gritou da porta do salão, chamando o seu aio, e da luz do dia, que desaparecia já, transformando-se num fresco lusco-fusco, veio um velho, mirrado e curtido como couro, mas muito ágil e ligeiro. Podia ser mais velho que o amo que perdera e não tinha receio nem do pai nem do filho, sendo claramente dono das suas acções e consciente do seu valor. Falou como um igual, revelando naturalidade nessa relação.

- Arnulf, tu hás-de lembrar-te - disse Reginald, fazendo um gesto para ele se sentar à mesa com eles, tão consciente da relação como o próprio homem - quando a minha irmã partiu para o convento, os rapazes que o meu pai mandou com ela... os irmãos saxões. Wulfric e Renfred e John Bonde, e o outro, quem era? Sei que ele se alistou, pouco depois de eu vir para cá...

- Adam Heriet - disse o aio, prontamente, tirando de cima da

mesa a taça que o seu amo enchera para ele. - Sim, que pretende

deles?

- Quero-os, Arnulf. todos eles... aqui.

- Agora, meu senhor? - Se estava surpreendido, mostrou aceitar bem as surpresas.

- Agora ou o mais depressa possível. Mas primeiro, todos eles eram da casa do meu pai e tu conhecia-los melhor do que eu. Dirias que são de confiança?

- Sem sombra de dúvida - disse o aio sem hesitação, com uma voz tão seca e dura como a sua pele. - Bonde é um simplório, ou talvez um pouco mais do que isso, mas trabalhador e claro como o dia. Os dois saxões são mais espertos e subtis, mas suficientemente espertos para saberem que têm um bom amo e suficientemente leais para estarem gratos. Porquê?

- E o outro, Heriet? A ele mal o conheci. Foi quando o conde Waleran me pediu homens para lutar e eu mandei-lhe todos os que se ofereceram, e esse Heriet foi um deles. Disseram-me que estava inquieto porque a minha irmã deixara a casa. Era-lhe muito afeiçoado, segundo me disseram, e andava preocupado com ela.

- Isso pode ser verdade - disse Arnulf, o aio. - De facto, ele nunca mais foi o mesmo quando regressou dessa viagem. Uma criança rapariga como ela pode insinuar-se no coração de um homem. Portanto, ela pode ter feito isso com ele. Quando as conhecemos desde o berço, elas podem-nos entrar na medula.

Reginald assentiu sombriamente.

- Bom, ele partiu. O meu senhor pediu-me vinte homens e vinte homens foram-lhe mandados. Foi por volta dessa altura que ele teve aquele desentendimento com os bispos e precisou de reforços. Bom, onde quer que possa estar agora, Heriet está fora do nosso alcance. Mas os outros estão todos aqui?

- Os dois saxões estão nos estábulos neste preciso momento. Bonde deve estar a chegar dos campos.

- Trá-los - disse Reginald. E, virando-se para Nicholas, disse, depois de o aio ter esvaziado a taça e descido as escadas de pedra em direcção ao pátio, tão ágil e rapidamente como um jovem de vinte anos: - Por mais que pense nesses quatro, não vejo qualquer traição. Por que é que haviam de regressar se a tivessem traído de alguma forma? E por que é que o haviam de fazer, qualquer um deles? Arnulf tem razão, eles aqui têm camas macias, o meu pai era um velho senhor paternal, com um trato bastante mais fácil que eu. e eu não sou

odiado. - Tinha plena consciência, a avaliar pelo sorriso sarcástico e pelo trejeito dos seus lábios, acentuados pela luz fraca, de todas as tensões que ainda existiam entre saxões e normandos, e era demasiado inteligente para as acentuar demasiado. No campo, as memórias eram muito compridas e com elas as lealdades, difíceis de eliminar, lentas de substituir.

- O seu aio é saxão - disse Nicholas secamente.

- É, na verdade! E um homem satisfeito! Ou, se não satisfeito - disse Reginald, num tom simultaneamente severo e vivo à luz intimista -, pelo menos consciente de que há pior, muito pior. Beneficiei do exemplo do meu pai. Sei quando devo vergar. Mas, relativamente à minha irmã, digo-lhe, sinto a minha espinha endurecer.

Nicholas sentia o mesmo, a espinha tão dura como se a medula tivesse petrificado. E ao olhar para os três servos, quando foram trazidos, marchando envergonhados para o salão, com os mesmos olhos inexpressivos e opacos como os do seu amo. Os dois jovens altos e louros, certamente com não mais de 30 anos, com toda a graciosidade esguia dos seus parentes nórdicos e uns olhos que capturavam a luz em clarões de um azul pálido e encadeante, e um homem mais brando, atarracado, de rosto redondo e talvez um pouco mais velho, de barba e cabelos castanhos.

Podia bem ser verdade, pensou Nicholas, observando-os, que eles não tivessem qualquer ódio pelo seu amo, considerando-se antes afortunados por comparação com muitos da sua raça, agora pela terceira geração sujeitos a amos normandos. Mas, apesar de tudo isso, tinham temor de Reginald, e serem chamados daquela forma, fora da ordem habitual do seu dia de trabalho, fez com que se apresentassem ao interrogatório desconfiados e atentos, com o rosto fechado, como uma tampa colocada sobre uma caixa de pensamentos que podia não ser de todo aceitável à autoridade. Mas foi diferente quando perceberam o objectivo das perguntas do seu amo. Os rostos fechados abriram-se e descontraíram-se. Foi evidente para Nicholas que nenhum dos três tinha qualquer razão para inquietações relativamente àquela viagem, antes recordando-a com prazer, como realmente podiam fazer, a única peregrinação despreocupada, as únicas férias das suas vidas, quando tinham ido a cavalo em vez de irem a pé, e bem abastecidos e armados.

Sim, é claro que se lembravam. Não, não tinham tido problemas durante a viagem. Uma senhora acompanhada por dois bons arqueiros

e dois espadachins não tinha nada a temer. O mais alto dos dois saxões usava o arco ao ombro, enquanto John Bonde levava o arco galês, mais pequeno, ao peito, um arco com menos alcance e penetração que o arco grande, mas maravilhosamente rápido de utilizar a menor distância. O outro irmão era espadachim, bem como o quarto membro, o ausente Adam Heriet. Uma boa escolta para viajar rapidamente e em segurança, a uma velocidade que a senhora podia acompanhar sem fadiga.

- Três dias de caminho, meu senhor - disse o arqueiro saxão, porta-voz dos três, encorajado com veementes acenos de cabeça -, e chegámos a Andover; como já estava a anoitecer, passámos lá a noite, tencionando terminar a viagem na manhã seguinte. Adam arranjou alojamento para a senhora na casa de um comerciante e nós ficámos nos estábulos. Só tínhamos que fazer mais uns quatro ou cinco quilómetros, segundo nos disseram.

- E nessa altura a minha irmã estava de boa saúde e disposição? Não tinha acontecido nada de mal?

- Não, meu senhor, fizemos boa viagem. Ela estava contente por estar tão perto daquilo que queria. Disse-nos isso mesmo e agradeceu-nos.

- E de manhã? Fizeram os quilómetros que faltavam?

- Nós não, meu senhor, pois ela quis fazer o resto do caminho apenas com Adam Heriet e mandou que esperássemos pelo regresso dele em Andover, e nós fizemos o que ela nos mandou. E, quando ele voltou, regressámos.

Os outros dois homens assentiram firmemente, satisfeitos por a sua incumbência ter sido levada a cabo de acordo com os desejos da senhora. Então, tinha sido apenas um, apenas o seu criado dedicado, segundo se dizia, que tinha acompanhado Julian Cruce o resto do caminho.

- Viram-nos dirigir-se para Wherwell? - perguntou Reginald, franzindo a testa perante todas as complexidades que surgiam para o aborrecer. - Ela foi com ele de livre vontade e satisfeita?

- Sim, meu senhor, partiram logo de manhã cedo. Uma bela manhã. Ela despediu-se de nós e nós vimo-los afastarem-se.

Não era preciso duvidar. Só faltavam uns cinco quilómetros para ela atingir o seu objectivo e, contudo, nunca lá chegou. E apenas um homem podia saber o que lhe tinha acontecido nessa curta distância.

Reginald mandou-os embora, irritado. Que mais é que lhe podiam dizer? Tanto quanto sabiam, ela tinha ido para onde tencionava ir e

estava tudo bem com ela. Mas enquanto os três se dirigiam para a porta, satisfeitos por poderem ir para a cama, Nicholas disse subitamente:

- Esperem! - E ao seu anfitrião: - Mais duas perguntas, se é que lhas posso fazer?

- Faça-as à sua vontade.

- Foi a própria senhora que vos disse que era seu desejo continuar a viagem apenas com Heriet e que vos mandou ficar em Andover à espera dele?

- Não - disse o porta-voz, depois de pensar durante alguns instantes -, foi Adam que nos disse.

- E eles partiram de manhã cedo, disseste. A que horas é que Heriet regressou?

- Só ao fim da tarde, senhor. Já estava a escurecer quando ele chegou. Foi por isso que passámos lá a noite, para partirmos para casa no dia seguinte.

- Havia mais uma pergunta que eu podia ter acrescentado - disse Nicholas quando ficou sozinho com o seu anfitrião, com a porta do salão aberta para a noite que caía no pátio silencioso -, mas duvido que ele tivesse tratado do seu cavalo e depois de uma noite de descanso não haveria forma de saber que distância teria percorrido. Mas veja o que o tempo indica... quatro ou cinco quilómetros até Wherwell, onde ele não teria qualquer razão para se demorar assim que a tivesse feito lá chegar. No entanto, esteve ausente durante todo o dia, doze horas ou mais. Que é que ele esteve a fazer durante todo esse tempo? No entanto, é sabido que ele foi seu escravo dedicado desde a infância.

- Deu-lhe crédito junto do meu pai, que também a adorava - disse Reginald, com amargura. - Eu mal o conhecia. Mas é ele que está no fundo de tudo isto, pois quem mais há? Apenas ele a acompanhou nesse último dia. E regressou para junto dos outros homens, mostrando que estava tudo bem e que a sua incumbência terminara. Mas entre Andover e Wherwell a minha irmã desaparece. E um mês mais tarde, quando o nosso senhor feudal, o conde Waleram, em nome de quem detemos três casas senhoriais, manda pedir homens, quem é o primeiro a oferecer-se se não esse mesmo homem? Por medo de que um dia lhe fossem feitas perguntas? De que qualquer coisa se viesse a saber e originasse uma perseguição?

- Será que ele teria regressado de todo - disse Nicholas num tom pensativo - se lhe tivesse feito mal ou traído de alguma forma?

- Se fosse suficientemente inteligente, sim, e certamente que ele era inteligente, pois veja como foi bem sucedido! Se ele não tivesse regressado com os outros, teria sido imediatamente dado o alerta. Tê-lo-iam perseguido mesmo antes de deixarem Andover. Desta forma, passaram-se três anos sem uma palavra ou qualquer sombra de dúvida, e onde é que está Heriet agora?

Ele tinha-se agarrado àquela ideia, rasgando-a com os dentes, saboreando a raiva íntima que sentia por terem ousado fazer uma coisa destas contra a sua casa. Era por isso que se queria vingar, se alguma vez obtivesse provas, não pelo mal causado a Julian. E, no entanto, Nicholas não podia senão seguir o mesmo caminho que ele. Quem mais havia que tivesse apagado a própria imagem e memória dessa rapariga que lhe fora confiada? Dois tinham saído a cavalo de Andover, um tinha regressado. O outro desaparecera da face da terra, desaparecera por completo. Era difícil continuar a acreditar que ela voltaria a aparecer.

Um criado trouxe um candeeiro e encheu de novo o jarro de cerveja que estava em cima da mesa. A senhora continuou nos seus aposentos com os filhos, deixando os homens a conferenciar sem interrupção. A noite caiu quase de repente, com a habitual brisa que surgia àquela hora.

- Ela está morta! - disse Reginald abruptamente, abrindo a sua grande mão sobre a mesa.

-Não, não temos a certeza disso! Epor que é que ele faria tal coisa? Perdeu a sua segurança aqui, pois não se atreveu a ficar assim que se lhe ofereceu a oportunidade de partir. Que é que tinha a ganhar que valeria mais que isso? Um soldado ao serviço de Waleran de Meulan está melhor que os seus homens de confiança aqui? Creio que não!

- Serviço durante meio ano? Se ele ficou durante mais tempo foi por escolha sua, pois meio ano era o tempo exigido. Quanto ao que ele podia ganhar... e, por Deus, ele era o único dos quatro que podia saber o seu valor... a minha irmã levava consigo trezentas moedas de prata nos seus alforges, além de uma lista de peças valiosas destinadas ao seu convento. Não lhe posso dizer de cor tudo, mas tenho a lista algures nos livros da casa, e o escrivão poderá encontrar esse registo. E também incluiu as jóias que herdou da mãe no dote, pois não tinha utilidade para elas neste mundo. O suficiente para tentar um homem... mesmo que tivesse que contratar um cúmplice para se sair melhor.

E podia bem ser assim! Uma mulher que leva consigo o seu dote, com um pai e família em casa convictos do seu bem-estar, e ninguém que questionasse o seu silêncio... Mas não, isso não podia ter acontecido, pensou Nicholas esperançosamente, não se ela já tinha avisado Wherwell da sua chegada. Decerto que uma rapariga que tenciona tomar o véu tem de apresentar a sua pretensão e ter a certeza de ser aceite antes de se aventurar numa viagem para sul. Mas se ela o tinha feito, então teria havido estranheza por ela não chegar e teriam sido feitas investigações, e a prioresa, se tivesse havido cartas ou um correio de Julian Cruce, teria sabido e lembrar-se-ia do nome. Não, ela não podia ter combinado a sua entrada antecipadamente. Tinha pegado no seu dote e simplesmente ido bater à porta, pedindo que a acolhessem. Ele não tinha experiência de tais assuntos para saber se isto era invulgar, nem o cinismo para reflectir que a sua entrada não seria certamente recusada se a soma fosse suficientemente grande.

- Esse homem Heriet terá de ser encontrado - disse Nicholas, tomando uma decisão. - Se ele ainda estiver ao serviço de Waleran de Meulan, então talvez eu o consiga encontrar. Se não, talvez esteja demasiado longe para o podermos encontrar, mas que outra alternativa temos? Ele é natural deste condado, não é? Se tiver parentes, estarão cá?

- É segundo filho de um rendeiro livre de Harpecote. Porquê, que é que está a pensar?

- Que é melhor mandar o seu escrivão fazer duas cópias da lista daquilo que a sua irmã levou com ela quando partiu. O dinheiro não pode ser identificado, mas talvez as peças possam. Ele que as descreva o mais fielmente possível. Pratas destinadas à igreja podem aparecer à venda ou ter sido vistas algures, o mesmo acontecendo com as jóias. Farei circular a lista em Winchester... se o bispo se livrou da sua imperatriz poderá saber agora o que é de seu interesse!... e tentar encontrar Adam Heriet nas companhias de Meulan, ou tentar saber quando e como é que as deixou. Faça o mesmo aqui, onde ele tem parentes que poderá um dia visitar. Tem alguma ideia melhor? Mais alguma coisa que possamos fazer?

Reginald ergueu-se pesadamente da mesa, fazendo tremeluzir a chama do candeeiro. Um homem grande, afrontado, com o semblante irado.

- Isso é bem pensado e fá-lo-emos. Amanhã mandá-lo-ei copiar a lista... é um tipo miudinho, que tem tudo na ponta dos dedos... e irei consigo a Shrewsbury falar com Hugh Beringar para pôr este assunto

rapidamente em andamento. Se este ou qualquer outro vilão cometeu assassínio e roubo contra a minha casa, quero justiça e restituição.

Nicholas levantou-se com o seu anfitrião e foi para a cama que lhe fora preparada, tão cansado que não pôde deixar de adormecer. Também ele queria justiça. Mas o que era a justiça naquele caso? Tinha planeado e pensado como quem segue uma pista. Tinha de a seguir com todas as suas forças, não lhe restando mais nada a tentar, mas não podia nem queria acreditar nisso. O que ele queria acima de tudo era uma lufada de ar fresco, vinda de outra direcção, sugerindo que ela não estava morta, que aquele rolo de suspeita, cupidez e traição era falso, uma mera aparência que desapareceria quando amanhecesse. Mas amanheceu e não houve nada de novo e nada mudou.

Assim, os dois, que apenas tinham em comum aquela missão, e mais nada para os tornar aliados, partiram juntos para Shrewsbury, armados com duas cópias bem escritas das peças e do dinheiro que Julian Cruce levara consigo como seu dote para entrar para o convento.

Hugh tinha vindo da cidade jantar com o abade Radulfus para lhe dar as últimas notícias sobre a embrulhada política de Inglaterra. A fuga da imperatriz para a sua fortaleza ocidental, a dispersão de grande parte das suas tropas e a captura do conde Robert de Gloucester, sem o qual ela ficava impotente, tinham que transformar o padrão dos acontecimentos, embora o seu primeiro efeito fosse imobilizá-los e travar qualquer acção. O abade podia não ter qualquer interesse nas lutas entre as facções, mas tinha direito à mitra e a um lugar no grande conselho do país, e o bem-estar do povo e da igreja diziam-lhe sem dúvida respeito. Tinham conferenciado durante bastante tempo à mesa bem fornecida do abade e só a meio da tarde é que Hugh foi à procura de Cadfael no herbário.

- Já sabes? As notícias que Nicholas Harnage me trouxe ontem? Disse que tinha vindo cá primeiro, ao seu amo. Robert de Gloucester está preso em Rochester e está tudo parado enquanto os dois lados pensam no que vão fazer a seguir... nós, como o utilizar da melhor forma, eles, como sobreviver sem ele. - Hugh sentou-se no banco de pedra à sombra e estendeu confortavelmente os pés calçados com botas. - Agora vem a discussão! E é melhor que ela mande soltar o rei, senão Robert também poderá ver-se acorrentado.

- Duvido que ela encare a questão dessa maneira - disse Cadfael, parando para se encostar ao ancinho e arrancar uma pequena erva do seu canteiro bem cuidado e aromático. - Mais do que nunca, Stephen é agora a sua única arma. Irá tentar obter o maior preço possível por ele e o seu irmão não valerá o suficiente para a satisfazer.

Hugh riu-se.

- O próprio Robert segue essa mesma linha, pelo relato do jovem Harnage. Recusa-se a aceitar uma troca pelo rei, diz que não é um equivalente justo, e para equilibrar as coisas temos de soltar toda a retaguarda que foi aprisionada com ele para fazer o peso de Stephen na balança. Mas espera um pouco! Se a imperatriz argumentar da mesma forma, dentro de um mês homens mais sensatos ter-lhe-ão demonstrado que ela não pode fazer nada, absolutamente nada, sem Robert. Londres nunca mais a deixará lá entrar, muito menos obter a coroa, pois, apesar de ela ter Stephen numa masmorra, ele continua a ser rei.

- É Robert que eles terão dificuldade em convencer - respondeu Cadfael.

- Até ele terá de acabar por ver a verdade. Se ela quiser continuar a lutar, só o poderá fazer com Robert a seu lado. Eles convencê-lo-ão. Por maior relutância que tenham em perder o domínio sobre ele, teremos Stephen de volta antes do final do ano.

Ainda estavam no jardim quando Nicholas e Reginald Cruce, tendo procurado Hugh em vão no castelo, ao chegarem à cidade, e novamente em casa de Hugh junto à igreja de Saint Mary, ao passarem por lá, seguiram as indicações dadas pelo seu porteiro e procuraram-no no mosteiro. Ao ouvirem o ruído das suas botas na gravilha, e ao vê-los contornar a sebe, Hugh levantou-se para ir ao seu encontro.

- Vieram em boa altura. Que novidades trazem? - E ao segundo homem disse, olhando-o com interesse: - Não tive o prazer de o conhecer até aqui, mas é sem dúvida o senhor de Lai. Nicholas contou-me como as coisas estão em Wherwell. Estou às suas ordens para qualquer serviço que lhe possa oferecer. Então?

- Meu senhor xerife - disse Cruce numa voz alta e firme, como quem está habituado a marcar o ritmo para outros seguirem -, relativamente ao caso da minha irmã há fundamentos para suspeita de roubo e assassínio e eu quero justiça.

- Como todos os homens decentes, e como eu também. Sente-se aqui e diga-me quais os fundamentos que tem para tais suspeitas e

para onde aponta o dedo. Reconheço que o caso parece estar bastante feio. Diga-me o que descobriu em casa para acrescentar ao que sabemos.

Estava muito calor ao sol da tarde, e mesmo em mangas de camisa Cruce estava a suar muito. Puseram-se à sombra e sentaram-se, e Cadfael. hospitaleiro no seu próprio domínio, e não querendo de forma alguma ser afastado dele a meio do seu trabalho, foi buscar um jarro de vinho à sua oficina e malgas para beberem. Serviu-os e afastou-se, mas não tanto que não conseguisse ouvir o que se passava. Tudo o que se passara até ali ele já sabia, e em certos pontos a sua curiosidade já estava bem espicaçada, prevendo circunstâncias nas quais ainda viesse a ser preciso. O seu doente estava preocupado com a rapariga e não podia esfrangalhar a pouca carne que tinha no corpo. Cadfael dividia-se entre ele e o seu companheiro de cruzada numa solidariedade de experiência compartilhada e respeito mútuo. Um dos poucos, como Guimar de Massard, que tinha saído limpo e nobre de uma guerra santa muito deformada e desfigurada. E, contudo, morrendo gradualmente dela. Fosse qual fosse a sua preocupação, de corpo ou alma, Cadfael queria saber.

- Meu senhor - disse Nicholas, ansioso -, lembra-se de tudo o que lhe contei sobre os homens da casa do meu senhor Cruce que escoltaram a sua irmã até Wherwell. Três dos quatro foram interrogados em Lai e tenho a certeza de que falaram verdade. Mas o quarto... e ele foi o único que a acompanhou no último dia da sua viagem, os últimos quilómetros... já não está lá e temos que o encontrar.

Contaram toda a história entre ambos, por vezes fazendo coro, muito veementemente.

- Ele partiu com ela de Andover de manhã cedo e os outros três. que tinham ordens para lá ficarem, viram-nos partir.

- E ele só regressou ao fim da tarde, demasiado tarde para fazerem a viagem de regresso a casa. Contudo, Wherwell fica apenas a cinco ou seis quilómetros de Andover.

- E dos quatro, apenas ele - disse Cruce ferozmente - desfrutava de tal confiança por parte dela, de um conhecimento antigo, que poderia saber, devia saber, do dote que ela levava consigo.

- Que era qual? - perguntou Hugh imediatamente. A sua memória era excelente. Não era preciso dizer-lhe nada duas vezes.

- Trezentas moedas de prata e certas peças para uso da igreja. Meu senhor, mandámos o meu escriba, que é bom em contas, fazer

uma lista de tudo o que ela levou e temos aqui duas cópias. Achamos que uma deve ser posta a circular nesta região, donde o homem é natural, bem como a minha irmã, e a outra Harnage levará consigo para a dar a conhecer em Winchester, Wherwell e Andover, onde ela desapareceu.

- Óptimo! - exclamou Hugh, entusiasticamente. - Decerto que as moedas não poderão ser localizadas, mas os ornamentos de igreja podem. - Pegou no pergaminho que Nicholas lhe estendia e leu-o com uma expressão sombria: - Item, um par de candelabros de prata, em forma de castiçais altos entrelaçados com videiras, com abafadores presos com correntes de prata, também entrelaçados com folhas de videira. Item, um crucifixo de pé com um palmo de altura, num pedestal de prata com três degraus e cravado com pedras semipreciosas amarelas, ametistas e ágatas, juntamente com um crucifixo semelhante do mesmo metal e pedras, com a dimensão de um dedo mínimo, num fio de prata para uso de um padre. Item, um píxide de prata, pequeno, gravado com fetos. Também certas jóias de sua pertença, tais como um colar de pedras polidas dos montes acima de Pontesbury, uma pulseira de prata gravada com raminhos de ervilha-ca, e um curioso anel de prata com esmaltado à volta, na forma de flores amarelas e azuis. - Olhou para cima. - Quase todas elas coisas decerto identificáveis, se forem encontradas. O seu escrivão fez bom trabalho. Sim, darei a conhecer esta lista a todos os meus funcionários e rendeiros neste condado, mas parece-me mais provável poderem ser encontradas no sul. Quanto ao homem, se ele é natural daqui, terá parentes e poderá bem entrar em contacto com eles. Diz que se alistou como combatente?

- Poucas semanas depois de regressar a casa do meu pai, sim. O meu pai tinha falecido recentemente, e o conde de Worcester, meu senhor feudal, pediu um grupo de homens e este Adam Heriet ofereceu-se.

- Que idade tem? - perguntou Hugh.

- Passa um ano dos cinquenta. Um homem forte com a espada ou o arco. Foi lenhador e caçador do meu pai e Waleran considerar-se-ia um homem de sorte por o ter. Os outros eram mais novos, mas inexperientes.

- E donde é que este Hariet apareceu? O homem do seu pai devia pertencer a uma das vossas casas.

- Nasceu em Harpecote, filho mais novo de um homem livre que aí cultivava uma terra. O seu irmão mais velho cultivou-a a seguir a

ele. Agora é de um sobrinho. Não se davam bem, pelo menos era o que o meu pai dizia. Mas, apesar disso, talvez possamos lá encontrar alguma pista.

- Ele tinha parentes? E o tipo nunca arranjou nenhuma mulher?

- Não, nunca. Não tenho conhecimento de quaisquer parentes, mas pode ser que existam em Harpecote.

- Deixem-nos estar - disse Hugh, num tom decidido. - É melhor que seja eu a fazer essas investigações. Embora duvide de que um homem sem laços aqui tenha voltado para o condado depois de ter ido combater. O mais provável é encontrar-se para onde Nicholas vai. Faça o melhor que puder!

- Assim farei - disse Nicholas num tom sombrio, levantando-se para iniciar de imediato o seu trabalho. Enrolou o pergaminho dos bens de Julian e meteu-o dentro do casaco. - Primeiro tenho de dar uma palavra ao meu senhor Godfrid e dizer-lhe que não abandonarei esta busca enquanto houver um grão de esperança. Depois, meto-me à estrada! - E afastou-se com passos rápidos que se tornaram em passadas de corrida leves e compridas antes de desaparecer da vista. Por sua vez, Cruce levantou-se, olhou para Hugh com alguma reserva, como se duvidasse de que existisse nele suficiente força de raiva vingativa para a sua missão.

- Então posso deixar isto consigo, meu senhor? E tratará vigorosamente desta questão?

- Assim farei - disse Hugh secamente. - E o senhor irá estar em Lai? Para eu saber onde o posso encontrar, se precisar?

Cruce afastou-se, temporariamente silenciado, mas não absolutamente satisfeito, e ao chegar à sebe olhou para trás com uma expressão dúbia, como se sentisse que o lorde xerife já devesse estar montado no seu cavalo, ou pelo menos em vias disso, pela causa da vingança Cruce. Hugh fitou-o friamente e viu-o dar a volta à sebe espessa e desaparecer.

- É melhor que eu me ponha a andar depressa - disse então, com um sorriso contrafeito -, pois se for aquele tipo a encontrar o homem primeiro, acho que não escaparia facilmente a alguns ossos partidos, senão mesmo a ser enforcado. E, mesmo que no fim se chegue a isso, não será às mãos de Reginald Cruce, pelo menos sem um julgamento justo. - Deu uma vigorosa palmada nas costas de Cadfael e virou-se para se ir embora. - Bom, como é época de defeso para reis e imperatrizes, isso dá-nos tempo para caçar as criaturas mais pequenas.

 

Cadfael foi às Vésperas com o espírito inquieto, perturbado com imagens de uma rapariga a cavalo, com prata e jóias e moedas nos seus alforges, despedindo-se dos seus últimos companheiros conhecidos apenas a alguns quilómetros do seu objectivo e depois desaparecendo como a neblina matinal sob o sol de Verão, como se nunca tivesse existido. Um fragmento de vapor sobre o prado, desaparecendo em seguida. Se aqueles que sofriam por ela, o velho e o novo, a soubessem morta e com Deus, também eles poderiam ficar em paz. Mas não podia haver paz para nenhum homem preso naquela elaborada teia de incerteza.

Entre os noviços e alunos e crianças oblatas, os últimos da sua espécie, pois o abade Radulfus não aceitava mais crianças para uma vida monástica decretada para eles por outros, Rhun estava extasiado e radiante, sorrindo enquanto cantava. Virgem por natureza e aptidão, assim como pelos seus anos, não perturbado pelas agonias físicas que dilaceravam os outros homens, mas milagrosamente consciente delas e compreensivo para com elas, como poucos o são para com dores que deixam a sua carne incólume.

Naquela altura do ano, as Vésperas cintilavam com a luz de Verão que revelava a beleza loura de Rhun numa palidez cristalina e incidia nas filas dos irmãos para arder na escuridão soturna e reprimida do irmão Urien, e no brilho dilatado dos seus olhos negros, e arrefecer na sombra discreta onde o irmão Fidelis se encontrava, nas sombras da parede, alerta ao lado do seu amo, sem olhos nem atenção para o que se passava à sua volta, da mesma forma que não tinha voz para juntar aos cânticos. Os seus olhos reservados não olhavam senão para Humilis, o seu corpo esguio estava pronto a receber e a apoiar a qualquer momento a forma ainda mais frágil que se erguia, direita como uma lança, ao seu lado.

Bom, o culto tem as suas próprias prioridades, e um dever assumido é um dever até ao fim. Deus e São Benedict compreenderiam e respeitariam isso.

Cadfael, cujo pensamento também devia estar centrado em coisas mais elevadas, deu por si a pensar: “Ele definha perante os nossos olhos. Vai ser ainda mais depressa do que eu pensei. Já não há nada que o possa impedir ou sequer atrasar.”

 

Se Robert de Gloucester não tivesse sido encurralado e capturado nas águas do rio Test, e a imperatriz Maud não estivesse em fuga com o que restava do seu exército para Gloucester, via Ludgershall e Devizes, a caça a Adam Heriet poderia ter continuado durante muito mais tempo. Mas o gelo do impasse entre os dois exércitos, cada um deles com um rei em cheque, tinha provocado o abandono de muitos soldados, maçados com a inacção e com vontade de uma mudança, para esticarem as pernas e levar a sua ociosidade para outras bandas, enquanto a calmaria durava e os políticos discutiam e negociavam. E entre eles um homem já entrado em anos, experiente com a espada e o arco, pertencente às forças do conde de Worcester.

Hugh era um homem da parte norte do condado, mas junto à fronteira com o País de Gales; e as casas senhoriais do nordeste, que se estendiam até à planície de Cheshire, não lhe eram menos familiares e menos agradáveis. No país menos selvagem de Hodnet o solo era rico e bem cultivado e os campos de trigo ceifados estavam cheios de gado a pastar, simultaneamente aproveitando os restos na estação seca e deixando os seus excrementos para alimentar a colheita do ano seguinte. Naquele sítio havia, aqui e ali, rendeiros do mosteiro, e o gado do mosteiro era levado para os campos agora que a colheita tinha sido ceifada. As suas pisadas e o seu estrume no solo eram quase tão valiosos como a sua lã.

A casa senhorial de Harpecote ficava na planície aberta, com uma pequena mata a barlavento e uma pequena elevação a sul. A casa era pequena e de madeira, mas os campos eram extensos e os celeiros e estábulos no interior da cerca estavam bem conservados e provavelmente repletos. O aio de Cruce saiu para o pátio para saudar o xerife e os seus dois sargentos, e para os dirigir para a casa de Edric Heriet. Esta era uma das casas mais substanciais da pequena aldeia, com

uma horta à frente e um pequeno pomar atrás, onde uma rapariga despenteada, com saia de tartan, estava a pendurar roupa na sebe. Andavam galinhas na erva do pomar e estava lá uma cabra amarrada a pastar. Um homem livre dizia-se ser o tal Edric, cultivando uma terra como rendeiro a pagar renda ao seu senhor, um fenómeno que já rareava num país onde um agricultor estava cada vez mais preso a ele por serviços habituais. Aqueles Heriets deviam ser bons agricultores e trabalhadores árduos para continuarem a ter a sua terra e fazer com que esta os sustentasse. Estas famílias podiam aproveitar bem os filhos mais novos, pois precisavam de todos os braços possíveis. Adam era claramente a ovelha ronhosa independente que tinha ido servir por dinheiro e tinha cultivado a perícia das armas, do trabalho de lenhador e da caça em vez da terra.

Um tipo grande e louro, com um casaco de couro coçado, saiu do estábulo baixo enquanto Hugh e os seus oficiais paravam ao portão. Fitou-os, retraiu-se e enfrentou-os com uma expressão desconfiada, reconhecendo a autoridade, embora não conhecesse o homem que a detinha.

- Pretendem alguma coisa daqui, meus senhores? - Educado mas não servil, olhou-os com reserva, colocando-se à frente do seu portão como um guarda.

Hugh deu-lhe os bons dias com a amabilidade especial que usava para com homens pobre inquietos, amargamente consciente das suas desvantagens.

- És Edric Heriet, segundo me disseram. Estamos à procura de notícias quanto ao paradeiro de um Adam com esse nome, que deve ser teu tio. És o único parente dele de que temos conhecimento e talvez nos possas dizer onde o podemos encontrar. É tudo, meu amigo.

O homem grande e jovem, decerto não tendo mais de 30 anos, e muito provavelmente marido da rapariga despenteada que estava no pomar, e pai do bebé que estava a berrar algures dentro da casa, mudou o peso do corpo de um pé para o outro, inquieto, decidiu-se quanto ao que dizer e endireitou-se com uma expressão que parecia desanuviar-se.

- Sou Edric Heriet. Que querem do meu tio? Que é que ele fez? Hugh não ficou desagradado com isso. Podia haver pouca amizade

naquele parentesco, mas aquele homem não ia abrir a boca até saber o que se passava. O sangue tornava-se mais espesso perante a sugestão de ofensa e perigo.

- Tanto quanto eu sei, nada de mal. Mas precisamos que ele

testemunhe sobre o que sabe acerca de um caso passado há alguns anos, no qual ele foi mandado pelo seu senhor numa missão de Lai. Sei que ele está... ou estava... ao serviço do conde de Worcester desde essa altura, razão pela qual é difícil encontrá-lo nos tempos que correm. Se tens notícias dele, ou se nos podes dizer onde o podemos encontrar, ficar-te-emos muito gratos.

Ele estava curioso agora, mas ainda desconfiado.

- Só tenho um tio e chama-se Adam. Sim, ele foi caçador em Lai, mas ouvi dizer ao meu pai que se alistou com o senhor feudal do seu amo, embora nunca soubesse quem ele era. Mas, desde que me lembro, nunca veio cá. Não me lembro dele, a não ser em criança a matar pássaros nos campos. Nunca se deram bem, aqueles dois irmãos. Lamento, meu senhor! - disse ele e, embora fosse duvidoso que sentisse muita pena, falava verdade quanto à sua ignorância. - Não faço ideia onde possa estar agora, nem onde esteve durante estes anos.

Hugh aceitou isso, por força, e reflectiu durante alguns instantes.

- Dois irmãos, disseste? Mais nenhum? Não tinham nenhuma irmã? Nenhum laço que o fizesse regressar ao condado?

- Tenho uma tia, senhor, apenas uma. A nossa família era pequena, o meu pai teve que trabalhar muito para cultivar a terra depois de o irmão se ter ido embora, até eu crescer, e os meus dois irmãos depois de mim. Agora damos todos bem conta do recado. A tia Elfrid era a mais nova dos três, casou com um tanoeiro, um bastardo normando, um homenzinho escuro de Brigge, chamado Walter. - Olhou para cima, sem se aperceber da indiscrição, para o pequeno lorde normando no cavalo alto malhado, e ficou admirado com o sorriso aberto de Hugh. - Vivem em Brigge e creio que ela tem filhos. Talvez ela saiba. Eram mais íntimos.

- Mais ninguém?

- Não, meu senhor, eram só estes. Creio - disse ele, hesitante mas abrandando - que ele foi padrinho da primeira criança. Pode ter levado isso a peito.

- Pode, de facto - disse Hugh num tom brando, pensando no seu herdeiro dominador, de quem Cadfael era padrinho -, pode de facto. Agradeço-te muito, amigo. Pelo menos procuraremos lá. - Fez o cavalo virar, sem pressa, em direcção a casa. - Uma boa colheita para ti! - gritou por cima do ombro e, incitando o cavalo cinzento, partiu com os sargentos no seu encalce.

 

Walter, o tanoeiro, tinha uma loja na cidade no cimo da colina de Brigge, num beco estreito a pouca distância da sombra dos muros do castelo. A sua loja era numa cave de frente estreita mas bastante funda e dava para um pátio aberto, bem iluminado, que cheirava a madeira cortada, onde estavam empilhados os seus barris acabados e semiacabados, as pipas, os baldes e as ferramentas e materiais do seu ofício. Do outro lado do muro baixo o terreno formava socalcos íngremes e cobertos de erva até ao sítio por onde o Severn passava, quase serpenteante em Shrewsbury, perto do sopé da cidade, largo e plácido agora com a escassa água de Verão, com bancos de areia a romper a sua superfície, mas pronto a acordar e a enfurecer-se se viessem chuvas repentinas.

Hugh deixou os seus sargentos no beco, desmontando ele próprio e entrando pela loja escura até ao pátio. Um rapaz sardento com uns 12 anos estava dobrado sobre a sua junteira, atarefado a esguelhar a aduela de um barril, e um outro, um ou dois anos mais novo, estava a separar cuidadosamente compridas tiras de salgueiro para amarrar as aduelas quando o barril fosse montado no aro. Um terceiro rapaz, talvez com uns 10 anos, estava a varrer energicamente as aparas e a metê-las em sacos para o lume. Parecia que Walter tinha uma legião de ajudantes para o seu trabalho, pois eram todos parecidos, e claramente todos filhos do mesmo pai, e ele um homem escuro, pequeno e vivo, que se endireitou com a sua faca de tanoeiro na mão.

- Em que o posso servir, senhor?

- Mestre tanoeiro - disse Hugh -, procuro um tal Adam Heriet, que me disseram ser irmão da sua mulher. Na terra do sobrinho, em Harpecote, não sabem do seu paradeiro, mas pensam que você poderá ter mais contacto com ele. Se me puder dizer onde o posso encontrar ficar-lhe-ei muito grato.

Fez-se um silêncio súbito e profundo. Walter ficou a olhar para ele com uma expressão grave e a mão que empunhava a faca de tanoeiro com a sua lâmina curva caiu lentamente junto ao corpo enquanto ele pensava. A destreza manual era-lhe natural, mas o pensamento vinha-lhe com deliberação e lentamente. Os três rapazes ficaram igualmente mudos e especados como o pai. O mais velho, Hugh supunha, devia ser o afilhado de Adam, se Edric estivesse correctamente informado.

- Senhor - disse finalmente Walter -, não o conheço. Que pretende do parente da minha mulher?

- Vai conhecer-me - disse Hugh descontraidamente. - Chamo-me Hugh Beringar, sou xerife deste condado, e o assunto que tenho a tratar com Adam Heriet é fazer-lhe algumas perguntas sobre um caso que se passou há três anos, relativamente ao qual confio que ele me ajude a esclarecer. Se mo puder trazer para conversar comigo, estará a ajudá-lo tanto a ele quanto a mim.

Naquelas circunstâncias, até um homem respeitador da lei poderia ter as suas dúvidas quanto a isso, mas um homem respeitador da lei, com um negócio respeitável e uma mulher e filhos para sustentar, também reflectiria cuidadosamente antes de negar ao xerife uma resposta justa. Walter não era nenhum idiota. Mexeu os pés pensativamente sobre a serradura e as aparas que o filho mais novo não varrera e disse, com aparente candura e boa vontade:

- Ora, meu senhor, Adam serviu como soldado durante alguns anos, mas agora parece que as coisas estão quase calmas lá no sul e ele teve autorização para passar alguns dias a seu bel prazer. Chegou na altura certa, senhor, pois acontece que ele está em minha casa neste preciso momento.

Ao ouvir isto, o rapaz mais velho tinha começado a andar devagarinho em direcção à porta da casa, mas o pai puxou-o discretamente para trás pela manga e lançou-lhe um breve olhar que fez com que ele se imobilizasse imediatamente.

- Este rapaz aqui é afilhado de Adam e é seu homónimo - disse Walter inocentemente, empurrando-o para a frente com a mesma mão que o detivera. - Leva o lorde xerife para a sala, rapaz, que eu vou vestir o meu casaco e já lá vou ter.

Não era aquilo que o jovem Adam tencionava fazer, mas obedeceu, quer por temor do pai ou por confiar que ele sabia o que estava a fazer. Mas o seu rosto sardento estava taciturno enquanto o conduzia através da porta para a única sala, que servia de sala e de quarto dos mais velhos. Uma janela sem cortinas, aberta para a descida do rio, deixava entrar ampla luz para o centro da sala. mas os cantos permaneciam numa penumbra com aroma a madeira. A uma grande mesa corrida estava sentado um homem grande, de barba castanha, já a ficar calvo, com os cotovelos confortavelmente apoiados na madeira e com uma caneca de cerveja à sua frente. Tinha o ar envelhecido de um homem que vive ao ar livre em todas as estações, à excepção das mais gélidas, e um ar de força tranquila na sua imobilidade descontraída. A mulher que tinha acabado de entrar vinda da minúscula cozinha, com uma concha na mão, tinha a mesma

constituição generosa e os mesmos cabelos castanhos. Era do pai que os rapazes tinham herdado a sua estrutura vigorosa e cabelo escuro, e a pele clara que ficava sardenta ao sol.

- Mãe - disse o rapaz -, está aqui o lorde xerife à procura do tio Adam.

A sua voz era inexpressiva e sonora, e parou por instantes, a bloquear a entrada, antes de entrar e deixar Hugh passar por ele. Era o mais que podia fazer. A janela aberta era suficientemente grande para um homem activo, se tivesse qualquer peso na consciência, saltar por ela e descer a encosta até ao rio, que podia atravessar a pé sem molhar os joelhos. Hugh ficou cativado pelo leal afilhado e não deixou que ele visse o mais leve vislumbre de um sorriso. Uma alma sonhadora, evidentemente, que não via qualquer utilidade num xerife a não ser a de arranjar problemas aos homens abaixo de si. Mas o Adam mais velho ficou sentado, atento e interessado, durante um momento razoável antes de se pôr de pé e fazer uma amistosa saudação.

- Meu senhor, encontrou quem queria. Esse nome e esse título pertencem-me.

Um dos sargentos de Hugh estaria agora a contornar a encosta debaixo da janela, enquanto o outro ficava com os cavalos. Mas nem o homem nem o rapaz podiam saber isso. Era evidente que Adam já tinha visto suficiente acção para não se sobressaltar ou assustar facilmente, e naquele caso não vira, até ali, razão para uma coisa ou outra.

- Esteja à vontade - disse ele. - Se é por alguns dos homens do rei Stephen abandonarem o seu serviço, não precisa de procurar aqui. Tenho autorização para visitar a minha irmã. Tanto quanto sei, pode haver alguns fugidos, mas eu não sou um deles.

A mulher foi para junto dele lentamente e com uma expressão espantada, confusa, mas não assustada. Tinha um rosto redondo, rosado e um olhar franco.

- Meu senhor, o meu bom irmão veio de tão longe para me ver. Decerto que não há mal algum nisso?

- Nenhum no mundo - disse Hugh, continuando sem qualquer preâmbulo e no mesmo tom brando. - Procuro notícias de uma senhora que desapareceu há três anos. Que sabes de Julian Cruce?

Um olhar espantado foi trocado entre mãe e filho e entre Walter, que tinha acabado de entrar na sala nas costas de Hugh. Ficou imóvel na posição em que estava, semilevantado do banco, inclinado sobre a

mesa corrida, ficando ali a olhar fixamente para o rosto de Hugh, com uma expressão desconfiada. Conhecia o nome, fê-lo recuar uns anos, recordar cada pormenor daquela viagem, desfiando-os freneticamente através do seu espírito como as contas de um terço nas mãos de um homem aterrorizado. Mas não estava aterrorizado, apenas alertado para o perigo, para as recordações dolorosas, para a necessidade de pensar rapidamente e talvez seleccionar, entre a verdade, parte da verdade e a mentira. Por detrás daquele rosto firme e impenetrável podia estar a pensar qualquer coisa.

- Meu senhor - disse Adam, saindo lentamente da sua imobilidade -, sim, conheço-a, sem dúvida. Viajei com ela, eu e mais três da casa do seu pai, quando ela foi tomar o véu em Wherwell. E sei, dado que servi nessa região, que esse convento ardeu. Mas diz que desapareceu há três anos? Como é que isso é possível, dado que os seus parentes sabiam muito bem onde ela estava a viver? Desapareceu agora... sim, de certeza, pois tenho procurado em vão desde o incêndio. Se tem alguma notícia da minha senhora Julian depois disso, peço-lhe que me diga. Não consegui saber se está viva ou morta.

Parecia verdade, se ele não se tivesse contido tanto durante aqueles escassos momentos de silêncio. Podia ser mais que a meia-verdade. Se ele fosse honesto, tê-la-ia procurado lá, depois do holocausto. Se fosse desonesto... bom, sabia e podia usar as recentes circunstâncias.

- Foste com ela até Wherwell - disse Hugh, não respondendo a nada e não dando qualquer informação. - Acompanhaste-a até ela estar em segurança dentro dos portões do convento?

Aquele silêncio foi na realidade breve, mas carregado. Se ele dissesse sim, ousadamente, mentia. Se não, pelo menos podia estar a dizer a verdade.

- Não, meu senhor, não acompanhei - disse Adam pesadamente. - Gostava de o ter feito, mas ela não o quis. Passámos a última noite em Andover e depois eu fiz com ela os últimos quilómetros. Quando chegámos a um quilómetro do convento... embora ainda não o avistássemos e houvesse uma pequena mata pelo meio... ela mandou-me embora, dizendo que iria sozinha o resto do caminho. Fiz o que ela desejava. Fiz sempre o que ela queria, desde o tempo em que andava com ela ao colo, com menos de 1 ano de idade - disse ele, com o primeiro clarão de emoção no seu rosto sombrio, com um breve relâmpago no meio de nuvens carregadas.

- E os outros três? - perguntou Hugh, afavelmente.

- Deixámo-los em Andover. Quando voltei, regressámos juntos a casa.

Hugh não disse nada acerca da discrepância de horas. Era melhor guardar isso para lhe lançar quando ele estivesse longe da solidariedade daquela família e menos seguro de si próprio.

- E nunca mais soubeste nada de Julian Cruce desde esse dia? -• Não, meu senhor, nada. E se o senhor sabe, por amor de Deus

diga-me, para pior ou para melhor!

- Eras dedicado a essa senhora?

- Teria morrido por ela. Morreria por ela agora.

“Bom, talvez ainda venhas a morrer”, pensou Hugh, “se se verificar que és o melhor jogador de um papel que alguma vez teve um rosto falso.” Tinha uma opinião contraditória acerca daquele homem, cujos breves clarões de paixão tinham toda a força da verdade e que contudo contornava as palavras com uma rara subtileza.

“Ora, e se ele não tiver nada a esconder?”

- Tens um cavalo aqui, Adam?

O homem lançou-lhe um longo olhar avaliador dos seus olhos encovados sob espessas sobrancelhas.

- Tenho sim, meu senhor.

- Então tenho que te pedir que o seles e que me acompanhes. Era um pedido que não podia ser recusado e Adam Heriet sabia-o

bem, mas pelo menos era feito de uma forma tal que lhe permitia levantar-se e partir com dignidade. Empurrou o banco para trás e pôs-se de pé.

- Acompanhá-lo para onde, meu senhor? - E ao rapaz sardento, que observava desconfiado das sombras, disse: - Vai selar-me o cavalo, rapaz, torna-te útil.

O Adam mais novo foi, embora não de bom grado, lançando-lhe um demorado olhar por cima do ombro; daí a instantes ouviu-se o ruído de cascos na terra batida do pátio.

- Deves saber - disse Hugh - todas as circunstâncias da decisão da senhora de entrar para um convento. Sabes que fora prometida como noiva quando era ainda criança a Godfrid Marescot e que ele rompeu o compromisso para se tornar monge em Hyde Mead.

- Sim, sei.

- Quando Hyde Mead foi incendiado, Godfrid Marescot foi para Shrewsbury durante a fuga que se seguiu. Desde o saque de Wherwell que se atormenta por notícias da rapariga e tu. Adam, quer lhas possas dar ou não, quero que venhas comigo visitá-lo. - Não disse

uma única palavra acerca do pormenor de ela nunca ter chegado ao refúgio que escolhera. Tão pouco havia forma de saber por aquele rosto experiente e controlado se Adam sabia ou não disso. - Se não puderes esclarecer o assunto - disse Hugh amistosamente -, pelo menos podes falar-lhe dela, compartilhar uma recordação demasiado pesada, conforme as coisas estão actualmente, para carregar sozinho.

Adam inspirou lenta e cautelosamente.

- Assim farei, meu senhor. Ele era um belo homem, diz toda a gente. Velho para ela, mas um belo homem. Foi uma grande pena. Ela costumava falar dele e orgulhava-se como se ele fosse fazer dela rainha. Foi pena uma rapariga como ela entrar para um convento. Teria sido boa companheira para ele. Eu conhecia-a. Irei consigo de boa vontade. - E ao marido e mulher que estavam muito juntos ao lado um do outro, intrigados e desconfiados, ele disse calmamente: - Shrewsbury não fica longe. Estarei de volta mais depressa do que pensam.

O regresso a Shrewsbury foi estranho e contudo rotineiro. Durante todo o caminho, aquele soldado endurecido e resistente comportou-se como se não soubesse que era prisioneiro, suspeito de algo ainda não revelado, enquanto sabia muito bem que os dois sargentos iam um de cada lado atrás dele para o caso de ele tentar fugir. Montava bem e tinha um bom cavalo, e devia ser um homem com boa reputação e em quem o seu comandante confiava para andar tão à vontade e bem equipado. Relativamente à sua própria situação nada perguntou, não revelando nenhuma ansiedade; mas pelo menos três vezes antes de avistarem São Giles, perguntou:

- Meu senhor, teve alguma notícia dela depois dos problemas que houve em Winchester?

- Senhor, se procurou à volta de Wherwell, descobriu algum rasto dela? Deve haver muitas freiras espalhadas por lá.

E finalmente, numa imploração abrupta:

- Meu senhor, sabe se ela está viva ou morta?

A nenhuma destas perguntas conseguiu obter uma resposta directa, dado que não havia nenhuma resposta a dar-lhe. Finalmente, quando passavam pelo pequeno outeiro de São Giles. com os seus telhados baixos e modesto torreão, disse pensativamente:

- Deve ter sido uma viagem difícil para um homem doente e velho, de tão longe de Hyde sozinho. Espanta-me que lorde Godfrid tenha aguentado.

- Ele não veio sozinho - disse Hugh quase distraidamente. - Foram dois que vieram para cá de Hyde Mead.

- Ainda bem - disse Adam, assentindo num gesto de aprovação -, pois disseram que ele era um homem gravemente ferido. Podia ter perecido pelo caminho, sem ajuda. - E inspirou lenta e cautelosamente.

Depois disso seguiu em silêncio, talvez devido à sombra da parede do mosteiro que se erguia à sua esquerda que tapou o sol da tarde com um golpe afiado ao longo da estrada poeirenta.

Passaram a cavalo sob o arco da casa do portão, entrando no habitual bulício de fim de tarde que se seguia à meia hora em que os irmãos mais novos tinham autorização para brincar e os mais velhos para dormir depois do jantar. Agora estavam acordados e dirigiam-se para as suas várias ocupações, para as suas secretárias no escritório, ou para as suas tarefas nos jardins ao longo do Gaye, para o moinho ou para os viveiros. O irmão porteiro saiu do seu abrigo ao ver o cavalo cinzento de Hugh, observou os sargentos que o acompanhavam e olhou com natural curiosidade para o desconhecido que vinha com eles.

- O irmão Humilis? Não, não o encontrarão no escritório, nem tão pouco no dormitório. Esta manhã, depois da missa, desmaiou ao atravessar o pátio e, embora a queda não lhe tenha causado grande mal, pois o irmão mais novo apanhou-o nos seus braços e deitou-o suavemente, demorou algum tempo a recuperar os sentidos. Levaram-no para a enfermaria. O irmão Cadfael está lá com ele agora.

- Lamento saber isso - disse Hugh, ocultando a sua preocupação e consternação. - Então não o posso incomodar... - Contudo, se aquele fosse mais um passo em direcção ao fim que Cadfael dizia ser inevitável e diariamente mais próximo, Hugh não se podia dar ao luxo de atrasar qualquer investigação que pudesse lançar luz sobre o destino de Julian Cruce. O próprio Humilis desejava urgentemente este conhecimento.

- Oh, ele já voltou a si - disse o porteiro -, e senhor de si próprio... sob Deus, que é senhor de todos nós! Quer voltar para a sua cela no dormitório e diz que ainda conseguirá cumprir todos os seus deveres durante mais algum tempo, mas eles vão mantê-lo onde está. Está na posse de todas as suas faculdades mentais e da sua vontade. Se tem alguma mensagem para ele, se eu fosse a si iria pelo menos ver se eles o deixam falar com ele.

“Eles”, no que respeitava à autoridade na enfermaria, significava o irmão Edmund e o irmão Cadfael, e a sua opinião seria decisiva.

- Espera aqui! - disse Hugh, tomando uma decisão, saltando da sela e atravessando o pátio para o seu canto noroeste onde ficava a enfermaria, abrigada no ângulo do muro exterior. Os dois sargentos também desmontaram e vigiaram atentamente o homem à sua guarda, embora parecesse que Adam estava disposto a esclarecer o que houvesse a esclarecer, pois ficou montado no seu cavalo durante alguns minutos e depois desmontou e entregou as rédeas ao moço de estrebaria que tinha vindo tratar da montada de Hugh. Esperaram em silêncio, enquanto Adam olhava para os edifícios em volta do pátio com um interesse desconfiado.

Hugh encontrou o irmão Edmund a sair da enfermaria e fez-lhe a pergunta sem rodeios.

- Sei que o irmão Humilis está lá dentro. Está capaz de ter visitas? Tenho o homem desaparecido à minha guarda, e com sorte talvez entre nós consigamos arrancar-lhe alguma coisa antes de ele ter demasiado tempo para pensar numa justificação e torná-la impregnável.

Edmund piscou os olhos durante alguns momentos, sentindo dificuldade em deixar as suas próprias preocupações pelas de outro homem. Depois disse, após alguma hesitação:

- Ele está a enfraquecer de dia para dia, mas agora está a. descansar e tem estado preocupado com a questão da rapariga, achando que foram os seus próprios actos que levaram a isto. Tem o espírito forte e determinado. Creio que ele desejaria certamente vê-lo. Cadfael está lá com ele... a ferida voltou a abrir quando ele caiu, na parte recém-fechada, mas está limpa. Sim, vá falar com ele. - O seu rosto disse, embora os seus lábios não o tivessem proferido: - Quem sabe quanto tempo ainda terá? Um espírito tranquilo poderá prolongar esse tempo.

Hugh voltou para junto dos seus homens.

- Vamos, podemos entrar. - E aos dois sargentos disse: - Esperem cá fora, à porta.

Ouviu o tom familiar da voz de Cadfael assim que entrou na enfermaria com Adam a segui-lo docilmente. Não tinham levado o irmão Humilis para a enfermaria geral, mas sim para uma das pequenas celas sossegadas à parte, e a porta estava aberta. Uma cama, um banco e uma pequena secretária para pôr um livro ou uma vela era o único mobiliário, além da porta aberta e uma janela sem portada para deixar entrar a luz e o ar. O irmão Fidelis estava de joelhos junto à cama, a segurar no doente enquanto Cadfael acabava de lhe enfaixar a anca e a virilha onde os frágeis tecidos recém-cica-trizados tinham aberto ligeiramente quando Humilis caíra. Tinham-no despido por completo e o lençol estava puxado para trás, mas o corpo sólido de Cadfael impedia que se visse a cama da porta e, ao ouvir passos, Fidelis tinha puxado rapidamente o lençol até à cintura do doente. O corpo esguio estava tão emaciado que o jovem conseguia levantá-lo por instantes com um só braço, mas o rosto magro estava desanuviado e firme como sempre e os olhos encovados cintilavam. Deixava-se tratar com um sorriso contrafeito mas paciente, como se se submetesse a uma salutar disciplina. Foi o rapaz que tão zelosamente tapou o corpo destruído dos olhos de estranhos. Depois de puxar o lençol, virou-se para pegar na camisa de linho lavada já à mão, passou-a por cima da cabeça de Humilis e depois ajudou-o a enfiar os braços nas mangas com um gesto hábil e soergueu-o para alisar o tecido debaixo dele. Só depois é que se virou e olhou para a porta.

Hugh era conhecido e aceite, até mesmo bem-vindo. Humilis e Fidelis olharam em simultâneo para ver quem vinha atrás dele.

Atrás do ombro de Hugh, o estranho mais alto olhou rapidamente de um rosto para o outro, um mero tremeluzir de um olhar atento que tocou e fugiu, uma avaliação fugaz para ter ideia do que tinha que enfrentar. Era evidente que o irmão Cadfael pertencia ali e não constituía ameaça, o homem doente na cama era conhecido pela sua reputação, mas o terceiro irmão, que estava tão perto da cama absolutamente imóvel, com os olhos a brilhar na sombra do seu capuz, não era tão facilmente identificável. Adam Heriet olhou para Fidelis em último lugar e durante mais tempo antes de baixar os olhos e compor a sua expressão num livro fechado.

- O irmão Edmund disse que podíamos entrar - disse Hugh -, mas se o cansarmos mande-nos embora. Lamento saber que não está bem.

- O meu melhor remédio - disse Humilis - será se tiverem melhores notícias para mim. O irmão Cadfael não levará a mal a intervenção de outro médico. Não estou assim tão doente, foi apenas uma fraqueza... o calor está cada vez mais opressivo. - A sua voz estava um pouco menos firme que habitualmente e a sua fala era mais lenta, mas respirava serenamente e os seus olhos estavam límpidos e calmos. - Quem é aquele que trouxe consigo?

- Nicholas ter-lhe-á dito, antes de se ir embora - disse Hugh -, que já interrogámos três dos quatro homens que escoltaram a

Srª Julian quando ela partiu para Wherwell. Este é o quarto... Adam Heriet, que foi com ela durante a última parte do caminho, deixando os seus companheiros em Andover à espera do seu regresso.

O irmão Humilis contraiu o seu corpo frágil e sentou-se muito direito para olhar, e o irmão Fidelis ajoelhou-se e pôs-lhe um braço por detrás da almofada onde estava recostado, escondendo o rosto na sombra atrás do ombro magro do seu amo.

- Ah, sim? Então já conhecemos todos os que a escoltaram. Então tu - disse Humilis, estudando urgentemente a figura robusta e rude, com um rosto baixado que lhe mostrava uma testa queimada pelo sol, como um touro desafiado - deves ser aquele que dizem que a amava desde criança.

- É verdade - disse Adam, firmemente.

- Conta-lhe - disse Hugh - como e quando te separaste da senhora. Fala, homem, a história é tua.

Heriet respirou fundo, mas sem qualquer indício de medo ou tensão, e voltou a contar a história como a tinha contado a Hugh em Brigge.

- Ela mandou-me ir embora e deixá-la. E assim fiz. Ela era a minha senhora e dava-me as ordens que queria. O que me pedia eu fazia.

- E voltaste para Andover? - perguntou Hugh afavelmente.

- Sim, meu senhor.

- Não te apressaste muito - disse Hugh com a mesma enganadora amabilidade. - De Andover a Wherwell são apenas alguns quilómetros e tu disseste que ela te mandou embora a um quilómetro de lá. No entanto, só voltaste para Andover ao cair da noite, muitas horas depois. Onde é que estiveste durante esse tempo todo?

Não houve qualquer dúvida do choque gelado que trespassou Adam, cortando-lhe a respiração por instantes. Os seus olhos cautelosamente velados lançaram um olhar alarmado a Hugh e foram de novo baixados. Teve de fazer um breve mas perceptível esforço para controlar a sua voz e pensamentos, mas fê-lo com heróica calma e até a pausa pareceu demasiado breve para a invenção inspirada de mentiras.

- Meu senhor, eu nunca tinha estado tão a sul, e naquela altura achei que nunca mais lá iria. Ela mandou-me embora e a cidade de Winchester ficava ali perto. Tinha ouvido falar dela. mas nunca pensei vê-la. Sei que não tinha o direito de roubar esse tempo, mas foi o que fiz. Fui até à cidade e passei lá todo o dia. Estávamos em paz nessa altura, um homem podia andar pela cidade, ver a grande igreja, comer numa taberna, tudo isto sem medo. E foi o que fiz, e só regressei a Andover ao fim da tarde. Se lhe disseram isso, falaram verdade. Só partimos para casa na manhã seguinte.

Foi Humilis, que conhecia a cidade de Winchester como a palma da sua mão, que continuou o interrogatório a partir dali, num tom seco e calmo, com os olhos e a voz alerta e vigorosos.

- Quem é que te pode censurar de ter aproveitado algumas horas para ti próprio, depois de teres cumprido a tua missão? E que é que viste e fizeste em Winchester?

A respiração inquieta de Adam acalmou-se de imediato. Aquilo não era problema para ele. Lançou-se numa descrição muito completa e pormenorizada da cidade do bispo Henry, desde o portão norte, por onde tinha entrado, até aos prados de St. Cross, e da catedral e do castelo de Wolvesey aos campos de Hyde Mead, a noroeste. Conseguia descrever em pormenor as fachadas da íngreme High Street, o sepulcro dourado de S. Swithun e a magnífica cruz oferecida pelo bispo Henry à catedral do seu antecessor, o bispo Walkelin. Não havia dúvida de que ele tinha visto tudo o que afirmava ter visto. Humilis trocou um olhar com Hugh e garantiu-lhe isso. Nem Hugh, nem Cadfael, que estava um pouco afastado, a anotar tudo isso, tinham alguma vez estado em Winchester.

- Então isso é tudo quanto sabes acerca do destino de Julian Cruce - disse finalmente Hugh.

- Nunca mais tive notícias dela, meu senhor, desde que nos separámos naquele dia - disse Adam, com toda a aparência de estar a falar verdade. - A menos que haja alguma coisa que me possas dizer agora, conforme sabes que tenho perguntado e perguntado. - Mas ele já não perguntava, e até aquela repetição tinha perdido toda a sua anterior urgência.

- Uma coisa posso dizer e direi - disse Hugh, abrupta e asperamente. - Julian Cruce nunca chegou a entrar em Wherwell. A prioresa de Wherwell nunca ouviu falar dela. Desapareceu desde esse dia e tu foste o último a vê-la. Qual é a tua resposta a isso?

Adam ficou mudo, a olhar fixamente para ele, durante longos instantes.

- Está a dizer que isso é verdade? - disse lentamente.

- Digo-te que é verdade, embora pense que não havia nenhuma necessidade de te dizer, pois tu sabia-lo bem. Só restas tu, apenas tu tens que saber para onde ela foi, dado que nunca chegou a Wherwell.

Para onde ela foi e o que lhe aconteceu, e se ela está hoje nesta terra ou debaixo dela.

- Juro por Deus - disse Adam lentamente - que quando me separei da minha senhora, por desejo dela, deixei-a com vida e rezo que assim continue onde quer que esteja.

- Sabias, não é verdade, as coisas valiosas que ela levava consigo? Isso bastou para te tentar? Pergunto-te agora claramente, roubaste a tua senhora e exerceste violência sobre ela quando ela ficou sozinha contigo e sem mais testemunhas?

Fidelis deitou Humilis suavemente na almofada e ergueu-se, alto e muito direito, junto dele. O seu movimento atraiu o olhar de Adam e manteve-o por instantes. Disse claramente e em voz alta:

- Muito longe disso, teria morrido por ela nessa altura, como agora morreria de bom grado para impedir que ela sofresse um momento de dor que fosse.

- Muito bem! - disse Hugh secamente. - É essa a tua posição. Mas eu tenho que te deter até saber mais. Pois saberei mais, Adam, antes de largar este nó. - Dirigiu-se para a porta, onde os seus sargentos aguardavam ordens, e chamou-os. - Levem este homem e alojem-no no castelo, em segurança!

Adam acompanhou-os sem uma palavra de surpresa ou protesto. Não estava à espera de outra coisa, os acontecimentos tinham-no cercado para que não lhe fechassem agora a porta. Parecia não estar grandemente incomodado ou alarmado, embora fosse um homem robusto e experiente que não revelaria os seus pensamentos. Olhou-os ao chegar à porta, um olhar que os abarcou a todos, mas que nada disse e nada transmitiu a Hugh e bastante pouco a Cadfael. Uma mera centelha, ainda demasiado pequena para dar alguma luz.

 

O irmão Humilis observou a saída do prisioneiro e dos guardas com um olhar demorado e firme e. quando eles desapareceram, deixou-se cair na almofada com um profundo suspiro, ficando a olhar para o tecto de pedra por cima dele.

- Cansámo-lo - disse Hugh. - Vamos deixá-lo descansar.

- Não, espere! - A sua testa alta estava perlada de um fino suor. Fidelis inclinou-se e limpou-o, e um sorriso preocupado foi-lhe dirigido por um momento, transformando-se depois numa expressão sombria.

- Meu filho, sai daqui, vai para o sol e para o ar livre, passas demasiado tempo a tratar de mim e vês que agora não preciso de nada. Não é certo que faças de mim o teu único trabalho aqui. Daqui a pouco dormirei. - Não foi claro, dada a serenidade da sua voz, embora fraca, se falava de um mero sono reparador numa tarde quente, ou do último sono do corpo aquando do despertar da alma. Pousou a mão na mão do jovem por um instante, no mais delicado toque possível, austeramente aquém de uma carícia. - Sim, vai, desejo-o. Acaba o meu trabalho por mim, o teu traço é mais firme que o meu, e o pormenor... já é demasiado elaborado para mim.

Fidelis olhou para ele com uma expressão composta, olhou durante breves instantes para os dois que os observavam, e voltou a baixar submissamente aqueles límpidos olhos cinzentos que formavam um contraste tão grande com o anel encaracolado cor de bronze da sua tonsura. Saiu conforme lhe tinha sido ordenado, talvez satisfeito, com passos rápidos e leves.

- Nicholas nunca me chegou a dizer - disse Humilis - quais eram as coisas valiosas que a minha noiva levou com ela. Eram tão distintas ao ponto de ser reconhecíveis se viessem a ser encontradas?

- Duvido que houvesse duas iguais - disse Hugh. - Os ourives

e os prateiros geralmente criam os seus próprios desenhos, e mesmo quando fazem pares penso se as peças serão alguma vez iguais. Aquelas eram bastante singulares. Uma vez vistas, nunca mais seriam esquecidas.

- Posso saber o que eram? Ela levava moedas, segundo me disseram... que estão à disposição de quem as tiver. Mas o resto?

Hugh. cuja memória para palavras era tão exacta como um espelho, descreveu-as de bom grado:

- Um par de candelabros de prata, feitos sob a forma de castiçais altos entrelaçados com videiras, com abafadores presos com fios de prata, também ornamentados com folhas de videira. Um crucifixo de pé com um palmo de altura, num pedestal de prata com três degraus e cravado de pedras semipreciosas de quartzo amarelo, ametistas e ágatas, juntamente com uma cruz semelhante do mesmo metal e pedras, com a dimensão de um dedo mindinho. num fio de prata para uso de um padre. Também algumas jóias, um colar de pedras partidas das colinas acima de Pontesbury, uma pulseira de prata gravada com raminhos de ervilhaca. um curioso anel de prata encastrado com esmalte sob a forma de flores amarelas e azuis. É esse o rol. Devem ter certamente saído deste condado. Serão encontradas, se é que alguma vez o forem, algures no sul. onde elas e ela desapareceram.

Humilis ficou imóvel, com as pálpebras fechadas, os seus lábios movendo-se sem som sobre os pormenores daqueles bens.

- Uma pequena fortuna - disse num murmúrio. - Mas não pequena para algumas almas pobres e desgraçadas. Acredita verdadeiramente que ela possa ter morrido por aquela meia dúzia de coisas?

- Homens e mulheres - disse Hugh rigidamente -já morreram por muito menos.

- Sim, é verdade! Um pequeno crucifixo - disse Humilis. voltando a mexer os lábios enquanto recordava as frases - do tamanho de um dedo mindinho, encastrado com pedras amarelas, ágatas verdes e ametistas... Igual a um crucifixo de altar, mas feito para ser usado... Sim. um homem saberia isso.

O leve orvalho de fraqueza estava novamente a despontar na sua testa, uma grande gota escorreu até à prega de uma pálpebra fechada. Cadfael limpou as gotas debilitantes e a sua expressão indicou a Hugh que deveria sair.

- Dormirei... - disse Humilis, sorrindo breve e fugazmente.

Na grande sala do outro lado do corredor de pedra, onde uma dúzia de camas se encontravam dispostas em duas filas de ambos os lados e uma passagem central, o irmão Edmund e um outro irmão, de costas viradas e a sua figura forte e erecta não identificável por detrás, estavam a pegar numa cama, com o irmão laico lá deitado, desviando-a um pouco para junto da parede, para dar espaço a um novo catre e um novo doente. O ajudante pousou a extremidade da cama quando Cadfael e Hugh passaram pela porta aberta. Depois endireitou-se e virou-se, esfregando as mãos para apagar as marcas deixadas pelo peso e mostrou-lhes as sobrancelhas escuras e direitas e os olhos ardentes do irmão Urien. Com uma satisfação invulgar consigo próprio e com as paredes e as pessoas à sua volta, tinha um leve sorriso tenso que lhe distendia os lábios mas que não diminuía o fogo nos seus olhos. Observou-os enquanto passavam, como se uma sombra tivesse passado, e atravessou o corredor assim que eles se afastaram para arrumar uma pilha de lençóis no armário que estava no corredor.

Por hábito, na enfermaria todas as portas ficavam abertas, para que um pedido de ajuda pudesse ser ouvido por ouvidos atentos que se apressariam a acudir. Vozes, os cânticos das missas, até o chilrear de pássaros, circulavam livremente. Só em alturas de tempestades ou chuvas fortes, ou do frio do Inverno, é que as portas eram fechadas e as portadas cerradas, mas nunca então, no calor do Verão.

- O homem mente - disse Hugh, caminhando ao lado de Cadfael no grande pátio, e muito preocupado com a textura da verdade e da mentira. - Mas, também, durante metade do tempo fala verdade, e qual é a metade que contém as mentiras? Diz-me.

- Se eu pudesse dizer-te - disse Cadfael brandamente - seria mais que mortal.

- Ele tinha a confiança dela, sabia quanto ela valia, percorreu os últimos quilómetros sozinho com ela e desde então nunca mais houve rasto dela - disse Hugh, roendo selvaticamente este facto. - E, no entanto, no caminho para cá, perguntou-me várias vezes se eu sabia se ela estava viva ou morta, e eu podia jurar que ele estava a ser honesto ao perguntar. Mas vê como está agora! A meio de toda a história mostra-se insensível como uma rocha, não faz o menor protesto por o mantermos preso nem revela qualquer preocupação sobre o destino dela. Qual a interpretação a dar a isto?

- Ou a tudo isto - concordou Cadfael num tom contrafeito. - Sou da tua opinião, ele está certamente a mentir. Sabe aquilo que não

afirmou. No entanto, se se apossou de tudo o que ela tinha, que é que lhe fez? Pode não ser uma grande fortuna, mas vale mais para um homem do que o baixo vencimento, o perigo e o suor de um simples soldado. No entanto, ele continua a ser um simples soldado e nada mais.

- Ele pode ser um soldado - disse Hugh taciturnamente -, mas simples é que ele não é. As suas voltas e reviravoltas confundem-me. Conhece bem Winchester... sim, talvez, mas seja onde for que ele serviu durante a maior parte destes três anos, neste Inverno todas as forças centraram-se em Winchester. Como é que podia não conhecer? E, no entanto, eu podia jurar, a princípio, que ele não sabia e ansiava por saber o que tinha acontecido à rapariga. De contrário, é o truão mais astuto que alguma vez representou para enganar.

- Não me pareceu excessivamente inquieto - disse Cadfael, pensativamente - quando o trouxeste. Desconfiado, sim, escolhendo cuidadosamente as suas palavras... e isso confere-lhes ainda mais significado - acrescentou, animando-se. - Isso dá que pensar. Mas temeroso ou ansioso, não, isso eu não diria.

Tinham chegado à casa do portão, onde o moço de estrebaria aguardava com o cavalo de Hugh. Hugh pegou nas rédeas e pôs um pé no estribo, mas parou para se virar para o amigo.

- Digo-te uma coisa, Cadfael, a única saída para esta embrulhada é a rapariga aparecer algures, viva e de saúde. Assim poderemos todos sossegar. Mas este ano já tiveste mais do que a tua conta de milagres e nem sequer tu te atreves a pedir mais.

- E contudo - disse Cadfael, incomodado com a confusão desordenada de fragmentos que não se encaixavam uns nos outros - há qualquer coisa que me pisca o olho num canto do meu espírito, mas que desaparece quando olho para lá. Um mero fogo fátuo... nem sequer uma centelha...

- Deixa-a - disse Hugh, virando o cavalo na direcção do portão. - Não lhe sopres, senão poderá apagar-se de vez. Se respirares para o outro lado, quem sabe? Pode transformar-se na chama de uma vela e atrair as borboletas para lhes chamuscar as asas.

O irmão Urien demorou-se bastante a arrumar os lençóis lavados no armário na enfermaria. Tinha deixado Fidelis passar sem dar qualquer sinal, ainda a pensar nos três que estavam na enfermaria, e as paredes de pedra deixavam passar o eco dos sons do outro lado do corredor, através das portas abertas. Os sentidos do irmão Urien estavam aguçados numa intensa sensibilidade provocada pela sua

angústia interior, ao ponto de ficar com pele de galinha e com os pêlos em pé com a tortura de sons que a um outro ouvido poderiam parecer suaves.

Deslocava-se com precisão e obediência para fazer tudo o que Edmund queria dele: transferir uma cama. sem incomodar o seu ocupante, que estava semiparalisado e era muito velho, uma nova cama a ser instalada e preparada para um novo doente. Virou-se abertamente para ver a partida do xerife e do irmão herbalista, com o espírito às voltas com palavras vividamente recordadas. Todas aquelas peças de metal precioso e de pedras semipreciosas, desaparecidas com uma mulher desaparecida. Um crucifixo de altar... não, isso não tinha a menor importância. Mas um crucifixo igual, num fio de prata... os irmãos Beneditinos não podiam conservar bens pessoais, fruto do mundo, por mais insignificantes, sem uma autorização especial, raramente concedida. No entanto, havia irmãos que usavam um fio ao pescoço... um, pelo menos. Tinha tocado num, uma vez, para sua amarga humilhação, e sabia.

Também a altura era denunciadora, a altura e o local. Aqueles que já mataram com riscos desesperados, por ganho, e se vêem fortemente pressionados, podem procurar refúgio onde quer que este se apresente. Os ganhos podem ser escondidos até a fuga ser de novo possível e sensata. Mas então, porquê seguir aquele cruzado destroçado até aqui, Shrewsbury? A fuga teria sido fácil depois de Hyde ter sido incendiado, pois naquele inferno quem é que contaria as pessoas?

No entanto, ninguém sabia melhor que ele como o amor. ou fosse qual fosse o nome daquele verdadeiro tormento, pode ser gerado, acalentado, assumir uma posse tirânica da alma de um homem, com muito mais fúria e intensidade ali no convento do que lá fora no mundo. Se ele era levado a sofrer daquela maneira, ficando cego e louco, por que é que um outro homem não seria? E como é que duas tais vítimas não teriam algo a uni-las, ainda que apenas isso. a sua inevitável culpa e dor? E Humilis era um homem doente e não viveria muito mais tempo. Haveria lugar para outro quando ele deixasse o seu lugar vago, quando o vazio começasse a doer intoleravelmente. O coração de Urien amoleceu dentro de si como cera. pensando no que Fidelis estaria a suportar no seu impenetrável silêncio.

Acabou o trabalho para o qual tinha sido chamado na enfermaria, fechou o armário, olhou em volta da enfermaria aberta e saiu para o pátio. Ele tinha sido criado e moço de estrebaria no mundo e não tinha nenhum ofício, mal sabendo ler até entrar para a Ordem. Disponibilizava os seus músculos e a sua força para o que era preciso, ao ar livre ou dentro do convento, para qualquer trabalho. Não ressentia o esforço que tal trabalho lhe custava, nem sentia que a sua ajuda fosse indigna, pois aquilo que ardia dentro de si exigia um meio de se gastar, senão o sono não viria quando se deitasse nem o bem-estar quando acordasse. Mas, fizesse o que fizesse, não se conseguia livrar do rosto recordado com excessiva vividez da mulher que o tinha recusado e deixado com a sua insaciável fome e sede. Tinha voltado a ver o seu rosto jovem e liso. a imagem da inocência, e os seus grandes e lúcidos olhos cinzentos no rapaz Rhun, até aqueles olhos o fitarem e o dilacerarem com a sua doçura e piedade. Mas o seu cabelo castanho-arruivado, apenas encontrara no irmão Fidelis, a coroar e a corroborar aqueles mesmos grandes olhos cinzentos, puros cristais da memória. A voz da mulher era clara, aguda e ousada. Aquela imagem de espelho não tinha voz e, portanto, nunca poderia ser áspera ou má, nunca condenaria, nunca sacrificaria. E era masculina, graças a Deus, não do clã cruel e traiçoeiro da mulher. Outrora Fidelis podia ter fugido dele, sobressaltado e assustado. Mas ele dissera e acreditara que não seria sempre assim.

Tinha adquirido o monástico passo medido, mas não pela tranquilidade de espírito que o devia acompanhar. Baixando os olhos e enfiando as mãos nas mangas acolhedoras, podia ir para qualquer lado dentro daquelas paredes e passar por um entre muitos. Foi para onde sabia que Fidelis tinha sido mandado e para onde decerto iria, valorizando o banco onde se sentava pelo verdadeiro inquilino que devia estar ali sentado, com a folha de pergaminho na secretária à sua frente, e os pequenos boiões de cores utilizadas pelo trabalho que Humilis começara e o mandara acabar.

Ao fundo da área do escritório, no claustro sob a parede sul da igreja, o irmão Anselm, o chantre, estava a ensaiar um cântico no seu pequeno órgão manual, uma sequência de meia dúzia de notas repetidas vezes sem conta, como o canto inspirado de uma ave, doce e triste. Um dos seus alunos estava lá com ele, erguendo despreocupa-damente a sua voz infantil, como as crianças dotadas fazem, pensando por que é que os mais velhos faziam tanta confusão com algo que é natural e não provoca dor. Urien não sabia música, mas sentia-a vividamente, como tudo o que sentia, como setas a cravarem-se-lhe na carne. O rapaz cantava de uma forma mais pura e verdadeira do que qualquer instrumento e não sabia que podia atormentar um coração. Preferiria estar a brincar com os seus companheiros no Gaye.

Os compartimentos do escritório eram compridos e as divisórias de pedra isolavam o ruído. Fidelis tinha mudado a secretária de forma a poder ficar sentado na sombra, enquanto a luz incidia no pergaminho. O seu lado esquerdo estava virado para o sol, para que a sua mão não fizesse sombra enquanto trabalhava, embora a gavinha enrolada que era o seu modelo para a decoração da letra maiúscula M estivesse a murchar ao calor. Trabalhava com uma mão firme e um pincel muito fino, delineando os delicados filamentos e estrelaçando-os de flores pálidas e brilhantes, frágeis como teias de aranha. Quando o rapaz que cantava, liberto da sua aprendizagem, passou por ele a correr, Fidelis não levantou a cabeça. Quando Urien lançou uma comprida sombra que se imobilizou ali, a mão que segurava no pincel parou por um instante e depois continuou os seus gestos suaves e longos, mas Fidelis continuou sem levantar a cabeça. E por esta razão o irmão Urien percebeu que a sua presença tinha sido notada. Outro qualquer que não aquele pintor mudo teria olhado por breves instantes e muitos dos irmãos teriam sorrido. E, sem olhar, como é que ele sabia? Por um silêncio tão pesado como o seu próprio, ou por algum frémito que percorresse a sua carne e fizesse com que os cabelos da nuca se lhe eriçassem quando aquele homem se aproximava, entre todos os outros homens?

Urien entrou no compartimento e parou junto ao ombro de Fidelis. a olhar para o elaborado M que ainda não tinha os retoques finais a ouro. E olhou também, com uma percepção mais intensa, para o centímetro do fino fio de prata que aparecia entre as dobras do colarinho e do capuz, passando por cima dos pequenos cabelos castanho-arruivados do pescoço inclinado. Uma cruz com o tamanho de um dedo mindinho, num fio de prata, e cravada de pedras amarelas, verdes e roxas... Ele podia meter um dedo debaixo do fio e arrancá-lo, mas não lhe tocou. Tinha aprendido que o toque era feitiçaria, separação instantânea, provocando uma distância fria entre ambos.

- Fidelis - disse ele na mais suave e cativante das vozes junto do ombro de Fidelis -, tu afastaste-te de mim. Por que o fazes? Posso ser o amigo mais verdadeiro que alguma vez tiveste, se me deixares. Que é que eu não farei por ti? E tu precisas de um amigo. Um amigo que guarde segredos e seja tão silencioso como tu és. Deixa-me entrar em ti, Fidelis... - Não disse “irmão”. “Irmão” é um título para lá do desejo, não abala o cérebro ou o espírito. - Deixa-me entrar e eu posso ser para ti tudo o que precisas em amor e lealdade. Até à morte!

Fidelis pousou o pincel muito lentamente e apoiou ambas as mãos na secretária, como se estivesse a preparar-se para se levantar, tudo isto com o corpo rígido e a respiração sustida. Urien continuou num murmúrio apressado.

- Não deves ter medo de mim. Só quero o teu bem. Não te mexas, não te afastes! Sei o que fizeste, sei o que tens de esconder... Nunca ninguém o virá a saber por mim, se cumprires a tua parte. O silêncio merece uma recompensa... o amor merece amor!

Fidelis deslizou sobre a madeira polida do banco e recuou, ficando a secretária entre ambos. O seu rosto estava pálido e imóvel, os olhos cinzentos dilatados, enormes. Abanou a cabeça veementemente, deu a volta para passar por Urien e sair do compartimento, mas Urien abriu os braços e bloqueou-lhe a passagem.

- Oh, não desta vez! Não agora! Isso acabou. Pedi, implorei, agora dou-te a saber que nunca mais voltarei a pedir. - O seu autodomínio tinha-se transformado numa raiva abrupta e selvagem, os seus olhos faiscavam intempestivamente. - Tenho ouvidos e podia ser a tua desgraça, se quisesse. É melhor seres bom para mim. - A sua voz continuava a ser muito baixa, ninguém ouviria, e ninguém passou pelas lajes do claustro para ver e se espantar. Aproximou-se, fazendo Fidelis recuar ainda mais para as sombras do compartimento. - Que é que tens ao pescoço, debaixo do teu hábito, Fidelis? Mostras-me? Ou queres que te diga o que é? E o que significa! Há quem desse muito para saber. À tua custa, Fidelis, a menos que te tornes bom para mim.

Ele tinha feito a sua presa recuar até ao canto mais escondido do compartimento, aberto os braços, com as palmas das mãos contra as paredes de cada lado, prendendo-o ali, impedindo-o de escapar. O rosto pálido e oval enfrentou-o friamente, até mesmo com desprezo, e os olhos cinzentos tinham-se incendiado num lento clarão de ira, rejeitando-o por completo.

Urien atacou como uma cobra, metendo a mão pela frente do hábito de Fidelis, pelo meio das amplas dobras, e arrancando o fio de prata e o trofeu que lá estava escondido, aquecido pela carne e pelo coração. Fidelis emitiu um estranho som e encostou-se à parede, e Urien deu um passo inseguro para trás, ele próprio horrorizado, ecoando a exclamação abafada de Fidelis. Por instantes fez-se um silêncio tão profundo que pareceu que ambos se tinham afogado nele, depois Fidelis pegou na extremidade do fio e voltou a guardar o seu tesouro no seu esconderijo. Tinha fechado os olhos por instantes, mas abriu-os imediatamente e olhou para o seu perseguidor com um olhar fixo e inflexível.

- Agora mais do que nunca - disse Urien num murmúrio -. agora baixarás esses teus olhos orgulhosos e inclinarás esse teu pescoço hirto e virás até mim docilmente, senão terás o destino que uma ofensa como a tua recai no ofensor. Mas não é preciso ameaçar-te se me ouvires. Declaro-te meu ajudante, oh, sim. fielmente, de todo o coração... e tu só tens de me deixar entrar no teu. Por que não? E que alternativa tens tu agora? Precisas de mim. Fidelis, tão cruelmente como eu preciso de ti. Mas nós dois juntos... e não há necessidade de haver crueldade, apenas ternura, apenas amor...

Fidelis incendiou-se abruptamente, como a chama de uma vela, e com a mão que não estava a segurar no seu tesouro profanado junto ao peito bateu na boca de Urien e silenciou-o.

Por instantes ambos se fitaram, olhos nos olhos, sem um único som ou inspiração entre ambos. Depois Urien disse numa voz carregada, num murmúrio áspero que mal se ouvia:

- Basta! Agora virás ter comigo! Agora serás tu o pedinte. Virás por necessidade própria e por vontade própria e implorar-me-ás aquilo que agora recusas. Senão contarei tudo o que sei. e o que eu sei chega para te condenar. Virás ter comigo e implorarás, seguir-me-ás como um cão, senão destruir-te-ei como agora sabes que te posso destruir. Dou-te três dias, Fidelis! Se não me procurares e te entregares a mim até às Vésperas do terceiro dia a contar de hoje, irmão, deixarei que o inferno te engula e sorrirei enquanto ardes!

Deu meia volta e saiu rapidamente do compartimento. A longa sombra negra desapareceu, a luz da tarde voltou a entrar placidamente. Fidelis encostou-se na escuridão do seu canto durante longos momentos, de olhos fechados e a respirar ofegantemente. Depois dirigiu-se aos apalpões para o seu banco e sentou-se, pegando no pincel com uma mão demasiado insegura para o conseguir usar. O facto de o ter na mão dava-lhe uma aparência de normalidade, e apresentava uma imagem fugaz de um iluminador a trabalhar, se alguém aparecesse para a testemunhar. Dentro dele havia um desespero entorpecido para além do qual ele não conseguia ver qualquer luz ou salvação.

Foi Rhun que lá foi como testemunha. Tinha encontrado o irmão Urien no pátio e vira o rosto irado, os olhos flamejantes e feridos. Não tinha visto de que compartimento Urien tinha saído, mas sentiu, cheirou, sentiu a sua própria pele arrepiada onde Urien. na sua raiva e dor cega, tinha estado.

Não falou disso a Fidelis, nem comentou a palidez do rosto do seu amigo, nem a estranha rigidez dos seus movimentos quando este o cumprimentou. Sentou-se ao seu lado no banco e falou das questões simples do dia e do padrão da letra maiúscula ainda inacabada e pegou no pincel fino de dourar e preencheu cuidadosamente as orlas de duas ou três folhas, com a ponta da língua ao canto da boca, como uma criança a escrever.

Quando o sino tocou para as Vésperas, foram os dois juntos, ambos com o rosto calmo, mas nenhum deles com o coração tranquilo.

Rhun não esteve presente no jantar, tendo ido à enfermaria, ao pequeno quarto onde Humilis estava a dormir. Sentou-se pacientemente junto da cama, durante muito tempo, mas o homem doente continuou a dormir. Agora, naquele silêncio e solidão, Rhun podia perscrutar todas as rugas do rosto gasto e envelhecido e ver como os olhos se afundavam no seu crânio, como as faces estavam encovadas e a carne flácida e acinzentada. Ele próprio estava tão cheio de vida que reconheceu com extraordinária clareza a proximidade da morte de um outro homem. Abandonou a sua intenção inicial. Pois mesmo que Humilis acordasse, e por mais ardentemente que utilizasse a vida que lhe restava para defender Fidelis, Rhun não podia agora lançar qualquer parte daquele fardo sobre um homem já tão sobrecarregado com o peso espiritual da sua própria partida. Mas ficou ali sentado, e esperou, e depois do jantar o irmão Edmund foi fazer a ronda dos seus doentes antes do anoitecer.

Rhun abordou-o no corredor com chão de lajes.

- Irmão Edmund, estou preocupado com Humilis. Tenho estado sentado ao pé dele e decerto que ele está a enfraquecer à vista dos nossos olhos. Sei que trata sempre bem dele, mas pensei... será que não se pode pôr uma cama junto dele para o Fidelis? Aumentaria o conforto de ambos. No dormitório, com todos nós, Fidelis estará inquieto e não dormirá. E se Humilis acordar durante a noite, seria uma bênção para ele ver Fidelis ao seu lado. pronto a servi-lo como sempre está. Sofreram juntos o incêndio de Hyde... - Respirou fundo, a observar o rosto do irmão Edmund. - São mais afeiçoados - disse num tom muito sério - que se fossem pai e filho.

O irmão Edmund foi ver o homem que dormia. A sua respiração era fraca e rápida. O lençol leve cobria, liso e fino, o longo corpo.

- Talvez seja melhor - disse Edmund. - Há uma cama vazia na antecâmara da capela e cabe lá, embora o espaço não seja muito. Vem ajudar-me a trazê-la, e depois podes dizer ao irmão Fidelis que pode dormir aqui esta noite, se for esse o seu desejo.

- Ele ficará contente - disse Rhun, com segurança.

A mensagem foi transmitida a Fidelis simplesmente como se tivesse sido decisão do irmão Edmund, tomada para paz de espírito e melhor cuidado do seu doente, e que parecia ser bastante sensata. E sem dúvida que Fidelis ficou contente. Se suspeitou de que Rhun tinha tido alguma responsabilidade nesta autorização, isso foi reconhecido apenas com um breve sorriso que lhe iluminou o rosto e que desapareceu na sua expressão grave com demasiada rapidez para ser notado. Pegou no seu breviário e atravessou o pátio, entrando no quarto onde Humilis ainda dormia o seu sono leve de velho, ele que apenas tinha 47 anos e vivera a galope a vida encurtada que agora deslizava tão suave e resignadamente para a morte. Fidelis ajoelhou-se junto da cama para formar as orações nocturnas com os seus lábios mudos.

Era a noite mais abafada daquele Verão quente e opressivo, e um lençol de nuvens baixas ocultava as estrelas. Até dentro das paredes de pedra o calor era demasiado pesado de suportar. E ali, finalmente, havia verdadeira privacidade, à parte das necessidades e deveres da irmandade, não as divisórias baixas, de madeira, que o separava dos seus companheiros, mas paredes de pedra, e a largura do grande pátio e o peso sufocante da noite. Fidelis tirou o seu hábito e deitou-se para dormir apenas com a roupa de baixo. Entre as duas camas estreitas, na mesinha, junto ao breviário, a pequena lamparina ardeu durante toda a noite com a sua pequena chama dourada.

 

No seu sono leve, em parte sono, em parte desmaio, o irmão Humilis sonhou que ouvia alguém chorar, muito baixinho, quase sem som senão uma interrupção na respiração, o choro controlado mas profundo de um ser forte levado a um desespero do qual não havia fuga. Esse choro tocou-o e perturbou-o tanto que foi gradualmente saindo do seu sonho para uma realidade desperta, mas nessa altura já só havia silêncio. Ele sabia que não estava sozinho no quarto, embora não tivesse ouvido o barulho da segunda cama a ser levada para lá, nem a entrada daquele que iria deitar-se ao seu lado. Mas mesmo antes de virar a cabeça, vendo à luz fraca da lamparina a forma branca estendida no catre, soube quem era. A presença ou ausência daquela criatura era agora a pulsação da sua vida. Se Fidelis estava por perto, o pulsar do seu sangue era forte e reconfortante, sem ele fraquejava e enfraquecia.

E portanto tinha de ter sido Fidelis que chorara sozinho na noite, suportando aquilo que não podia mudar, fosse qual fosse o fardo de pecado ou dor que se avolumava mudo dentro dele e não encontrava consolo.

Humilis afastou o lençol para trás e sentou-se, pondo os pés no chão de pedra entre as duas camas. Não precisava de se levantar, apenas erguer cuidadosamente a pequena lamparina e incliná-la na direcção da figura adormecida, tapando a luz para esta não incidir demasiado no rosto do jovem.

Visto daquela forma, altivo e impenetrável, era um rosto intimidante. Sob o anel de cabelo encaracolado, da cor de castanhas maduras, a testa era simultaneamente altiva e alta, lisa e cor de marfim, com sobrancelhas fortes e mais escuras que o cabelo. Umas pálpebras grandes e arqueadas, raiadas de leves veias como pétalas de uma flor, escondiam os límpidos olhos cinzentos. Um rosto austero, o maxilar fortemente delineado e decidido, uma boca exigente, as maçãs do rosto altas e orgulhosas. Se tinha de facto vertido lágrimas, estas tinham desaparecido. Havia apenas um fino orvalho de suor no lábio superior. Humilis ficou ali sentado a observá-lo durante muito tempo.

O rapaz tinha despido o seu hábito para dormir mais confortavelmente. Estava deitado de lado, com a face sobre a almofada, a camisa de linho aberta no pescoço e o fio que usava tinha deslizado e formado um rolo de prata na depressão do pescoço, deixando à vista a recordação que nele estava pendurada.

Não uma cruz cravada de pedras semipreciosas, mas um anel. um fino anel de ouro feito na espiral de uma cobra enroscada, com dois fragmentos vermelhos a fazer de olhos. Um anel antigo, muito antigo, pois as marcas da cabeça e das escamas tinham sido alisadas pelo tempo.

Humilis ficou a olhar para aquela coisa pequena e insignificante e não conseguiu desviar o olhar. A lamparina tremeu-lhe na mão e ele voltou a colocá-la na mesinha apressadamente, com medo de entornar uma gota de óleo quente no pescoço nu ou num braço estendido e sobressaltar Fidelis daquilo que constituía esquecimento, senão mesmo verdadeiro descanso.

Agora sabia tudo, o melhor e o pior, tudo o que havia para saber, excepto como encontrar uma saída daquela teia. Não para si próprio... a sua própria saída abria-se claramente à sua frente e não era uma longa viagem. Mas para aquele que dormia...

Humilis voltou a deitar-se na cama, a tremer com o conhecimento de uma grande maravilha e de um grande perigo, e esperou pela manhã.

O irmão Cadfael levantou-se ao raiar do sol, muito antes da Primeira, e foi ao jardim, mas até ali havia pouco ar para respirar. Uma quietude plúmbea pairava sobre o mundo, sob um fino tecto de nuvens, através do qual o sol a nascer parecia arder sem obstáculos. Foi até ao ribeiro Meole, através das encostas queimadas dos campos de ervilhas, dos quais o colmo já há muito que fora ceifado e levado para servir de cama nos estábulos, deixando o restolho para ser misturado na terra pelo arado para a sementeira do ano seguinte. Cadfael tirou as sandálias e entrou na água pouco funda que ainda havia e sentiu-a quente, quando esperava alguma frescura. Aquele tempo, pensou, não podia continuar muito mais, tinha de mudar.

“Alguém vai apanhar com a tempestade em cheio, e se houver trovoada, como parece pelo cheiro no ar e pela minha pele de galinha, Shrewsbury terá a sua quota parte.” A trovoada, como o comércio, seguia os vales com rios.

Uma vez fora da cama, ele perdera a fina arte de estar ocioso. Ocupou o tempo até à Primeira com algum trabalho com as ervas e a regar enquanto o sol ainda se erguia, redondo e dourado por detrás do seu véu de neblina. Estas tarefas seriam levadas a cabo pelas suas mãos e olhos, deixando o seu espírito livre para se preocupar e especular acerca dos complicados destinos de pessoas pelas quais desenvolvera um forte afecto. Não havia dúvida de que Godfrid Marescot... pensar nele como um homem comprometido para casar era dar-lhe o seu antigo nome... estava atarefado a deixar este mundo com passos firmes e constantes, e todos os dias acelerava o passo como um homem ansioso por partir, e no entanto todos os dias olhava para trás. por cima do ombro, não fosse a sua noiva perdida o seguir de perto em vez de esperar por ele pacientemente na estrada à sua frente. E que é que qualquer homem lhe poderia dizer para o tranquilizar? E que é que podia confortar Nicholas Harnage, que tinha demorado tempo de mais a avaliá-la correctamente e a fazer a oferta a seu favor?

A um quilómetro de Wherwell e nunca mais fora vista. E desaparecidos com ela, tentação bastante para que lhe pudesse vir algum mal, as peças e o dinheiro que ela levava. E apenas um homem como suspeito visível e óbvio. Adam Heriet, com tudo contra si excepto a escrupulosa convicção de Hugh de que ele tinha sido verdadeiro no seu desespero em obter notícias dela. Perguntara e voltara a perguntar e só desistira quando chegaram a Shrewsbury. Ou teria apenas estado a tentar obter, não notícias dela. mas sim um vislumbre, qualquer vislumbre, do espírito de Hugh, qualquer palavra incauta que lhe dissesse o que é que a lei já sabia e que hipóteses ele ainda tinha, através do silêncio ou de mentiras ou de qualquer outro meio. de conseguir sair descaradamente do seu actual perigo?

Outras perguntas inconsequentes salientavam-se na obscuridade como tufos de vegetação não aparada nas sebes de um labirinto desprezado. Por que é que a rapariga tinha escolhido Wherwell? Podia certamente tê-lo preferido por ser longe de casa, o que não era um mau princípio quando se começa uma nova vida. Ou porque era um dos principais conventos de freiras Beneditinas em toda a região sul, onde uma irmã dotada podia subir a um alto cargo com poder. E por que é que tinha dado ordem a três homens da sua escolta para ficarem em Andover em vez de a acompanharem até ao seu destino? Era verdade que conservara consigo aquele que era seu confidente e escravo desde a sua infância. Se isso era de facto verdade em relação a ele? Era sua reputação, sim, mas a verdade e a reputação por vezes separam-se. E se era verdade, por que é que ela o tinha mandado embora antes de chegar ao seu destino? Talvez fosse melhor fazer a pergunta de uma forma mais cautelosa: tê-lo-á ela mandado embora antes de chegar ao seu destino? Então, onde é que ele passou as horas perdidas antes de regressar a Andover? A olhar, boquiaberto, para as maravilhas de Winchester, como ele afirmava? Ou a tratar de um assunto bastante mais sinistro? Que é que tinha acontecido aos tesouros que ela levava consigo? Não era grande fortuna, excepto para um homem que não tinha fortuna alguma e que para ele seria fortuna suficiente. E sempre: Que é que lhe tinha acontecido?

E, através do emaranhado, ele estava a começar a vislumbrar uma possível resposta, e esse indício incerto desanimava-o e aterrorizava-o mais que tudo o resto. Porque, se ele estivesse certo, tanto quanto ele via não podia haver um final feliz para aquilo, pois todas as vias que ele explorava tinham espinhos a bloquear o caminho. Não havia saída sem uma desgraça maior. Ou sem um milagre.

Finalmente, foi à Primeira, assim que o sino tocou, e rezou por uma luz iluminadora. “Os necessitados e os merecedores devem certamente ser conhecidos num sítio melhor que este”, pensou, “e quem sou eu para ter o atrevimento de querer preencher um lugar demasiado grande para mim?”

O irmão Fidelis não foi à Primeira e o seu lugar vazio doía como a dor que fica depois de se arrancar um dente. Rhun brilhava ao lado do banco vazio do seu amigo e não olhou uma única vez para o irmão Urien. Aqueles problemas não podiam distrair a sua atenção extasiada do ofício e da liturgia. Mais tarde teria tempo para pensar em Urien, cuja agressividade não fora absolvida mas apenas temporariamente evitada. Rhun não tinha medo de arcar com a responsabilidade da alma de um outro homem, sendo ainda meio criança, com a certeza e a claridade de uma criança. Procurar o seu confessor e dizer-lhe o que suspeitava e sabia acerca de Urien seria privar Urien de todo o valor do sacramento da confissão e fazer “queixinhas” de um camarada em dificuldades; a primeira hipótese era uma solução arrogante aos olhos de Rhun, uma espécie de roubo espiritual, e a segunda era desprezível, uma traição de rapazinho de escola. No entanto, algo teria de ser feito, algo mais que apenas retirar Fidelis da esfera do tormento e cupidez de Urien. Entretanto, Rhun rezava e cantava e louvava com todo o seu coração feliz e confiava que o seu santo o guiaria.

Cadfael tomou rapidamente o pequeno-almoço, pediu autorização para sair e foi visitar Humilis. Armado com panos de linho lavados e uma pomada verde cicatrizante, foi encontrar o seu doente sentado na cama, já lavado e barbeado, alimentado, se é que na realidade tinha conseguido engolir alguma coisa, com a toilette feita numa dedicada privacidade, e um copo de vinho e de água à mão. Fidelis estava sentado num banco baixo ao lado da cama, pronto a responder até mesmo a uma necessidade adivinhada em qualquer olhar ou expressão. Quando Cadfael entrou Humilis sorriu, embora o sorriso fosse palidamente azul nos lábios e translúcido como gelo nas faces. “É verdade”, pensou Cadfael, ao receber essa saudação, “que está rapidamente a sair deste mundo. Não pode durar muitos dias. A carne desaparece dos seus olhos à nossa vista, transforma-se em fumo no ar. O seu espírito não cabe no seu corpo, em breve terá que sair e tornar-se visível, pois não há espaço para ele naquele frágil invólucro de ossos.

Fidelis olhou para cima e ecoou o sorriso do seu amo e inclinou-se para afastar o fino lençol das pernas magras, levantando-se depois do banco para dar o seu lugar a Cadfael, pronto a dar-lhe ajuda. Aqueles serviços subalternos que ele oferecia com tanto amor deviam ser necessários cada vez com maior frequência. Era espantoso que aquele corpo pudesse funcionar, mas existia uma vontade que não o deixava ceder os seus direitos... sem dúvida por nada menos que amor.

- Dormiste? - perguntou Cadfael enquanto lhe fazia um novo penso.

- Dormi, e bem - disse Humilis. - Ainda melhor por ter Fidelis comigo. Não tenho merecido tal privilégio, mas sou suficientemente humilde para suplicar que possa continuar a tê-lo. Fala com o nosso abade por mim?

- Falaria, se fosse necessário - disse Cadfael calorosamente - , mas ele já sabe e aprova.

- Então, se posso ter esta minha indulgência - disse Humilis - , fala por mim a este meu enfermeiro e confessor e tirano para que ele tenha alguma bondade para consigo próprio. Pelo menos devia ir agora à missa, dado que eu não posso, e deve dar uma volta pelo jardim durante algum tempo antes de se voltar a fechar aqui comigo.

Fidelis ouviu tudo isto a sorrir, mas com um sorriso de inexpressável tristeza. “O rapaz”, pensou Cadfael, “sabe muito bem que o tempo não pode ser muito longo, e conta cada momento, enchendo-o de significado. O amor na ignorância desperdiça aquilo que o amor informado enche e faz transbordar de recordações de eternidade.”

- Ele tem razão no que diz - disse Cadfael. - Podes ir à missa. pois eu ficarei aqui até voltares. Não precisas de te apressar, pois creio que encontrarás o irmão Rhun à tua espera.

Fidelis aceitou aquilo que reconhecia como sendo uma ordem para sair e foi-se embora silenciosamente, deixando-os não menos silenciosos até a leve sombra passar a porta do quarto para o pátio aberto.

Humilis recostou-se nas almofadas e inspirou tão fundo que o ar deveria fazer o seu corpo gasto flutuar no ar, como lanugem de cardo.

- Rhun está mesmo à espera dele?

- Decerto que sim - disse Cadfael.

- Ainda bem! Ele precisa de alguém como ele. Um inocente, mas com tanto poder inato! Oh, Cadfael, tivesse eu a simplicidade e a sabedoria da pomba! Gostava que Fidelis fosse esse, mas é o outro, o complemento, o que está virado para dentro. Tive que o mandar embora, pois preciso de falar contigo. Cadfael, estou preocupado com Fidelis.

Não era novidade. Cadfael assentiu honestamente e não disse nada.

- Cadfael - disse a voz paciente, carregada de tensão agora que estavam sozinhos. - Aprendi a conhecer-te um pouco durante o tempo que trataste de mim. Sabes tão bem como eu que estou a morrer. Por que é que havia de sofrer por isso? Devo uma morte que por pouco não me foi exigida mais de cem vezes. Não é por minha causa que estou preocupado, mas sim por Fidelis. Temo deixá-lo aqui sozinho, preso a esta vida sem mim.

- Ele não estará sozinho - disse Cadfael. - É um irmão desta casa. Terá o serviço e a camaradagem de todos nós. - O sorriso acutilante e contrafeito não o surpreendeu. - E o meu - disse ele - , se isso significa algo mais para ti. O de Rhun, sem dúvida. Tu próprio disseste que a lealdade de Rhun não é de desprezar.

- Não. é verdade. Os santos da simplicidade são feitos desse metal. Mas tu não és simples, irmão Cadfael. És por vezes de uma subtileza assustadora, e isso também tem o seu lugar. Mais. acredito que me compreendes. Compreendes a natureza da necessidade. Cuidarás de Fidelis por mim. serás seu amigo, acreditarás nele e serás espada e escudo para ele. se tal for preciso depois de eu partir?

- Em tudo o que me for possível - disse Cadfael -, sim, fá-lo-ei.

- Inclinou-se para limpar um lento fio de saliva do canto da boca cansada de falar e com os lábios sem energia, e Humilis suspirou e deixou que ele cuidasse de si, dócil sob o breve toque. - Tu sabes - disse Cadfael suavemente - aquilo que eu só posso adivinhar. E, se adivinhei bem. há aqui um problema que ultrapassa a minha inteligência e a tua. Prometo o meu empenhamento. O final não está nas minhas mãos, pertence apenas a Deus. Mas o que puder fazer, fá-lo-ei.

- Morreria feliz - disse Humilis - se a minha morte puder servir para salvar Fidelis. Mas o que temo é que a minha morte, que já não tarda muito, possa apenas agravar os seus problemas e o seu sofrimento. Pudesse eu levá-lo comigo para o juízo final, abraçá-lo-ia feliz e partiria. Deus proíba que ele venha a ser envergonhado e castigado por aquilo que fez.

- Se Deus o proíbe, o homem não lhe pode tocar - disse Cadfael.

- Verei o que precisa de ser feito, mas como realizá-lo, Deus sabe, pois eu não. Bom, a visão de Deus é mais clara que a minha e ele poderá ver uma saída para esta embrulhada e abrir-me os olhos quando for a altura certa. Há um caminho em cada floresta e uma passagem segura através de todos os pântanos; basta encontrá-la.

Um leve sorriso acinzentado iluminou lentamente o rosto do homem doente e deixou-o novamente sério.

- Eu sou o pântano para fora do qual Fidelis tem de encontrar uma passagem segura. Eu devia ter inglesado este meu nome, teria sido mais adequado, dado que mais de metade do meu sangue é saxão... Godfrid de Marsh por Godfrid de Marisco. O meu pai e o meu avô acharam melhor transformá-lo num nome totalmente normando. Agora é tudo igual e partimos todos pelo mesmo portão. - Ficou quieto e calado durante alguns instantes, visivelmente a coordenar as ideias e as forças que tinha. - Tenho um outro anseio antes de morrer. Gostaria de voltar a ver a casa senhorial de Salton, onde nasci. Gostaria de lá levar Fidelis, para estar com ele fora das paredes do mosteiro, no lugar que me viu nascer. Já devia ter pedido autorização, mas ainda há tempo. Fica apenas a alguns quilómetros a montante do rio. Falarás por mim ao nosso abade e pedes-lhe este favor?

Cadfael olhou para ele com hesitação e consternação.

- Não podes montar, isso é certo. Seja qual for o meio que usemos para te levar até lá, seria pedir de mais às forças que ainda te restam.

- Nenhum esforço da minha parte pode agora alterar senão em horas o que resta da minha vida, mas seria uma felicidade trocar uma parte do tempo que me resta por um vislumbre do lugar onde fui criança. Pede isso por mim, Cadfael.

- Há o rio - disse Cadfael, num tom de dúvida -, mas tem tantas curvas que a viagem fica pelo dobro. E a água vai tão baixa que será preciso um barqueiro que conheça todos os bancos de areia e correntes.

- Deves conhecer algum. Lembro-me de como costumávamos nadar e pescar na nossa margem. Os rapazes de Shrewsbury eram nadadores desde a nascença e eu aprendi a nadar antes de aprender a andar. Deve haver muita gente assim ao longo do rio.

Havia, de facto, e Cadfael conhecia os melhores, cujo conhecimento do Severn abarcava todas as ilhotas, curvas e baixios, e que em qualquer estação sabiam dizer com precisão onde alguma coisa lançada à água voltaria a ser atirada para a margem. Madog do Barco dos Mortos tinha ganho o seu título com os numerosos tristes serviços que prestara durante a sua vida a inúmeras famílias desesperadas que tinham perdido filhos ou irmãos nas cheias resultantes do degelo das neves do País de Gales, a montante do rio, ou crianças demasiado aventureiras deixadas sem vigilância por instantes enquanto as mães estendiam a roupa nos arbustos das margens, ou pelos pais pescadores que saíam nos seus pequenos barcos de madeira recobertos de couro com demasiada cerveja sob os cintos. Não lhe desagradava o título, embora a sua actividade preferida fosse pescar e transportar pessoas de uma margem para a outra. O que fazia pelos mortos tinha de ser feito por alguém, e, como ele conseguia fazê-lo melhor que qualquer outro, por que é que não se havia de orgulhar disso? Cadfael já o conhecia há muitos anos, um galês idoso como ele próprio, e por várias vezes tivera ocasião de lhe pedir ajuda, a qual nunca lhe fora dada de má vontade.

- Mesmo com a água tão baixa - disse Cadfael pensativamente - Madog podia levar um barco pelo ribeiro a partir do rio, mas um barquito pequeno não te levará a ti e a Fidelis. Mas o seu esquife leve navega em muito pouca água e creio que ele o poderá levar para o lago da azenha, pois ainda há bastante água no ribeiro devido ao retorno de água da azenha. Nós podemos levar-te numa liteira até à azenha e entregar-te...

- Consigo ir a pé até aí - disse Humilis resolutamente.

- Seria mais sensato guardares as tuas energias para Salton.

Quem sabe? - disse Cadfael, maravilhado, notando o afluxo de sangue que aqueceu o rosto acinzentado perante a perspectiva de regressar ao primeiro lar da sua infância que recordava... talvez para acabar onde começara. - Quem sabe, talvez de faça um imenso bem!

- Pedes autorização ao nosso abade?

- Peço - disse Cadfael. - Quando Fidelis regressar, irei falar com ele.

- Diz-lhe que talvez seja precisa pressa - disse Humilis. sorrindo.

O abade Radulfus escutou com a sua habitual expressão grave e perspicaz e reflectiu, em silêncio, durante algum tempo antes de fazer qualquer comentário. Fora da sala apainelada a madeira da sua casa o sol ia subindo no céu, ainda velado por uma leve neblina que lhe dava uma cor acobreada e dava a ideia de que ardia ainda mais ferozmente. As rosas abriam e caíam no mesmo dia.

- Ele tem forças suficientes para aguentar a viagem? - perguntou finalmente o abade. - E não será um fardo demasiado pesado para o irmão Fidelis, uma responsabilidade excessiva para ele suportar durante todo esse tempo?

- É a sua falta de forças que faz com que ele faça o pedido tão urgentemente - disse Cadfael. - Se o seu desejo lhe for concedido, tem de ser agora, rapidamente. E ele diz, com toda a razão, que não fará grande diferença à história do resto dos seus dias, quer terminem amanhã ou daqui a uma semana. Mas, para a sua paz de espírito, esta visita poderá fazer uma enorme diferença. Quanto ao irmão Fidelis, ele nunca se esquivou a qualquer tarefa que lhe foi cometida por amor e não o fará agora. Se Madog os levar, estarão nas melhores mãos possíveis. Ninguém conhece o rio como ele conhece. E é de total confiança.

- Quanto a isso, aceito a tua palavra - disse Radulfus tranquilamente. - Mas é uma aventura arriscada para um homem tão fraco. É certo que é o desejo do seu coração, e ele tem todo o direito a apresentá-lo. Mas como é que o vão levar até ao barco? Por outro lado, ele tem a certeza de que será bem recebido em Salton? Haverá pessoas dispostas a ajudá-lo?

- Salton faz parte da honra que ele concedeu a um primo que mal conhece, mas o rendeiro e os criados lembrar-se-ão dele. Podemos

arranjar uma cadeira e levá-lo nela até à azenha. A enfermaria fica perto do muro e daí até à represa é muito perto.

- Está bem - disse o abade. - É melhor ele ir muito rapidamente. Se sabes onde encontrar esse tal Madog, dou-te autorização para o procurares hoje mesmo e. se ele estiver nessa disposição, essa viagem deverá ser feita amanhã.

Cadfael agradeceu-lhe e foi-se embora, satisfeito consigo próprio. Já não lhe agradava como outrora ausentar-se sem autorização, a não ser por um caso de vida ou de morte, mas não tinha qualquer objecção a aproveitar ao máximo uma saída autorizada quando esta lhe era concedida. A perspectiva de uma refeição com Hugh e Aline na cidade, em vez de na austeridade silenciosa do refeitório, e depois ir à procura de Madog junto ao rio, ou de notícias dele, e uma conversa agradável quando o encontrasse, tinha todos os atractivos de um dia de festa. Mas voltou a visitar Humilis antes de sair do enclave para lhe dizer como se saíra. Fidelis estava de novo à sua cabeceira, reservado e discreto como sempre.

- O abade Radulfus concede-te o teu desejo - disse Cadfael - e dá-me autorização para ir à procura de Madog já hoje. Se ele concordar, podes ir a Salton amanhã.

A casa de Hugh, junto à igreja de Saint Mary, tinha um jardim fechado nas traseiras, com um herbário no centro e bancos na relva à volta e árvores de fruto para dar sombra. Aline Seringar estava lá sentada no banco junto das ervas fragrantes, com o filho a brincar ao seu lado. Giles, que só faria 2 anos no Natal, era alto e forte e erguia-se firme sobre os seus pés, que eram a uma escala maior que os do seu pai moreno e da sua mãe esbelta e loura. Tinha a tez de um tom intermédio, com cabelo cor de bronze claro e olhos redondos, castanhos, e uma vontade de ferro herdada talvez de ambos, mas ainda não disciplinada. Não tinha qualquer peça de roupa no corpo, que estava castanho como uma avelã dos pés à cabeça.

Tinha um par de cavaleiros de madeira, pintados de cores vivas, articulados por fios que passavam pelo meio, com pesos de chumbo nos pés e os braços que empunhavam as espadas eram articulados de forma a brandirem as espadas quando os fios eram puxados, dançando e atacando-se mutuamente com muito realismo. Constance, a sua escrava voluntária, tinha-o abandonado para ir supervisionar os preparativos para o jantar e ele chamou imperiosamente o seu

padrinho para ocupar o lugar vago. Cadfael ajoelhou-se na relva, queixando-se apenas ligeiramente de ter as articulações perras e manobrou obedientemente os fios. Tinha muita prática daquela arte desde o nascimento de Giles. Mais, tinha que se acautelar para não ser apanhado a dar vantagem ao seu opositor, senão haveria um guincho de nobre indignação. O herdeiro e o orgulho dos Beringar sabia quando estavam a ser condescendentes para com ele e revoltava-se contra isso, convencido de que era igual a qualquer homem. Mas também não ficava nada satisfeito quando era derrotado. Era necessário a habilidade de um equilibrista para evitar o seu desagrado.

- Quer falar com Hugh - disse Aline serenamente por entre os guinchos divertidos do seu filho, encolhendo os pés para lhes dar mais espaço para brincarem. - Chegará daqui a pouco para jantar. Há veado.., já começaram o aparte.

- Assim como alguns outros cidadãos cumpridores da lei da cidade, imagino eu - disse Cadfael, manipulando energicamente os fios para fazer as duas espadas idênticas girarem como moinhos.

- Um aqui, outro ali, que é que isso importa? Hugh sabe até que ponto deve fazer de conta que não vê. Boa carne e bastante... e da forma como as coisas estão, o rei sem a poder aproveitar! Mas talvez já não demore muito - disse Aline, sorrindo por cima do seu bordado, inclinando a cabeça loura e rosto belo sobre o filho nu deitado na relva a puxar os fios com as mãozitas gordas e morenas. - Os seus próprios amigos já estão a começar a tentar convencer Robert de Gloucester, incitando-o a aceitar a troca. Ele sabe que ela não lhe pode fazer nada. Ele tem de ceder.

Cadfael sentou-se sobre os calcanhares, deixando cair os fios. Os dois guerreiros de madeira caíram abraçados, ambos mortos, e Giles, indignado, puxou-os para os trazer de volta à vida, ficando a debater-se em vão durante algum tempo.

- Aline - disse Cadfael num tom ansioso, olhando para o seu rosto meigo -, se eu alguma vez precisar de si subitamente, e a vier buscar, ou mandar recado para que vá... virá? Aonde quer que seja? E trazendo o que quer que eu lhe pedisse?

-A excepção do sol ou da lua - disse Aline, sorrindo -, o que quer que me pedisse eu levaria, aonde quer que quisesse eu iria. Porquê? Em que é que está a pensar? É segredo?

- Por enquanto - disse Cadfael num tom contrafeito - é. Pois estou quase tão às escuras quanto a devo deixar a si às escuras, minha querida, até ver qual é o caminho, se alguma vez vir. Mas na realidade um dia, em breve, talvez precise de si.

O diabrete do Giles, distraído do seu jogo e perdendo interesse na incompreensível conversa dos mais velhos, pegou nos seus cavaleiros caídos e foi esperançosamente atrás do cheiro delicioso do seu jantar.

Hugh chegou esfomeado e apressado do castelo e escutou o relato que Cadfael lhe fez dos acontecimentos no mosteiro com um interesse meditativo enquanto comia o veado que Aline levara para a mesa.

- Lembro-me do que se disse quando eles vieram para cá... foste tu que me contaste? Pode bem teres sido tul... que Marescot nascera em Salton e que tinha desejo de o voltar a ver. E pena que esteja tão mal. Parece que o caso da rapariga não será resolvido antes da sua morte. Por que é que não há-de ter aquilo que mais tornará a sua partida agradável e suportável? Não lhe custará nada, a não ser algumas horas ou dias de uma vida decerto pesada. Mas gostava que nos tivéssemos saído melhor relativamente à rapariga.

- Talvez ainda o façamos - disse Cadfael -, se Deus quiser. Não tiveste mais notícia nenhuma de Nicholas em Winchester?

- Até agora, não. Não admira, numa cidade e numa região dilaceradas pelo fogo e pela guerra. É difícil encontrar seja o que for no meio das cinzas.

- E como estão as coisas com o teu prisioneiro? Ele não se lembrou convenientemente de mais nada acerca da sua viagem para Winchester.

Hugh riu-se.

- Heriet tem o bom senso de saber onde está em segurança e está sentado na sua cela, muito satisfeito, bem alimentado, bem alojado e com uma boa cama. A solidão não é provação para ele. Se o interrogamos, ele volta a dizer o que já disse e nunca se contradiz em nenhum pormenor, por mais que tentemos apanhá-lo. Nem os advogados do rei lhe arrancariam mais alguma coisa. Além disso, tive o cuidado de fazer com que ele soubesse que Cruce já cá veio duas vezes, sedento pelo seu sangue. Poderá ser necessário pôr um guarda na prisão para impedir que Cruce entre, mas não para impedir que Heriet saia. Está sentado calmamente, à espera, certo de que acabaremos por soltá-lo por falta de provas.

- Acreditas que ele fez algum mal à rapariga? - disse Cadfael.

- E tu?

- Não. Mas ele é o único que sabe o que lhe aconteceu, e se ele soubesse seria mais sensato que falasse, mas apenas a ti. Não seria

necessária mais nenhuma testemunha. Achas que consegues que ele fale, dando-lhe a entender que isso ficaria apenas entre vocês dois?

- Não - disse Hugh. simplesmente. - Que razão é que ele tem para confiar em mim agora, se passou três anos sem confiar em mais ninguém e continua de boca calada, mesmo em seu próprio prejuízo? Não. creio que conheço o seu carácter. Levará esse segredo para a sepultura.

“E. na verdade”, pensou Cadfael, “há segredos que deviam ser enterrados onde nunca seriam descobertos, coisas, até mesmo pessoas, perdidas para nunca mais serem encontradas, para seu próprio bem e para o bem de todos nós.”

Despediu-se e atravessou a cidade em direcção ao rio, sob a ponte ocidental que dava para o País de Gales, e ali encontrou Madog do Barco dos Mortos na sua habitual enseada a entretecer o rebordo de um novo barquinho com vimes descascados e postos de molho sob a ponte. Um galês atarracado, peludo, de pernas tortas, de idade desconhecida, embora aparentemente feito para durar uma eternidade, dado que ninguém se lembrava de alguma altura em que ele parecesse mais novo e o passar dos anos parecia que não o envelhecia. Olhou para Cadfael com os olhos semicerrados sob umas sobrancelhas hirsutas que se tinham tornado brancas apesar de o cabelo ainda ser preto, e cumprimentou-o com vagar, continuando a entretecer experientemente os vimes com as mãos morenas.

- Então, meu velho amigo, este Verão tornaste-te quase um estranho. Que é que se passa para me vires procurar... pois imagino que seja esse o propósito que te traz a este lado da cidade. Senta-te e faz-me companhia durante um pouco.

Cadfael sentou-se ao seu lado na erva queimada e mediu as águas baixas do Severn com uma expressão pensativa.

- Vais-me dizer que só te procuro quando quero alguma coisa de ti. Mas na realidade tivemos um ano muito atarefado, com uma coisa e outra. Como é que consegues andar no rio com esta seca? Deve haver baixios traiçoeiros a montante, com tanta falta de chuva.

- Não há nenhum que eu não conheça - disse Madog confiante-mente. - É certo que a pesca não dá nada e eu não diria que se consegue levar uma barcaça carregada até Pool, mas consigo chegar onde quero. Porquê? Tens trabalho para mim? Dava-me jeito ganhar um dia de salário.

- É fácil, se conseguires levar-te a ti próprio e a mais dois até Salton. São ambos leves, pois um está pele e osso e o outro é novo e magro.

Madog parou de trabalhar e inclinou-se para trás, interessado, perguntando simplesmente:

- Quando?

- Amanhã, se nada o impedir.

- A cavalo ficaria perto - comentou Madog, estudando o amigo com crescente curiosidade.

- É tarde de mais para um deles alguma vez voltar a andar a cavalo. Está a morrer e quer voltar a ver o lugar onde nasceu.

- Salton? - Uns olhos escuros e astutos piscaram por detrás das espessas sobrancelhas brancas. - Então é um de Marisco. Ouvimos dizer que vocês têm o último na vossa casa.

- Marescot, é como agora se chama. De Marsh, diz Godfrid que teria sido melhor, sendo a sua linha saxónica. Sim, esse mesmo. A sua hora não tarda e ele quer completar o círculo do nascimento até à morte antes de partir.

- Diz-me - disse Madog com simplicidade, e escutou com estática e serena atenção enquanto Cadfael lhe explicava a natureza da sua carga e tudo o que era exigido dele.

- Agora - disse ele, depois de tudo estar dito - vou-te dizer o que penso. Este tempo não se vai aguentar muito mais, mas, apesar disso, talvez ainda se aguente mais ou menos uma semana. Se o teu paladino está tão determinado a fazer esta peregrinação como dizes, se está disposto a arriscar o que possa acontecer, então levarei o meu barco até à represa da azenha amanhã depois da Primeira. Levarei qualquer coisa a bordo para o abrigar se vier chuva. Tenho um oleado para tapar as mercadorias que também serve para cobrir um cavaleiro ou um irmão dos Beneditinos em necessidade.

- Um tal oleado - disse o irmão Cadfael num tom muito sério - talvez seja mais do que adequado para o irmão Humilis. E ele não o desprezará.

 

Nas ruas de Winchester o entulho malcheiroso e enegrecido do fogo estava a começar a dar lugar às tímidas centelhas de nova esperança, enquanto aqueles que tinham fugido regressavam, para retomar o que restava das suas lojas e casas, e aqueles que tinham ficado começavam a limpar os destroços e a trazer madeira para reconstruir. As classes mercantis de Inglaterra eram uma raça dura e resistente; depois de cada revés regressavam com novo vigor, sombriamente determinados a reconstruir e dispostos a fazer economias até ser novamente possível terem lucro. Os armazéns eram limpos de tudo quanto estava estragado e preparados para receber novas mercadorias. As lojas recolhiam tudo o que ainda podia ser vendido, eram limpos os espaços devastados e instaladas bancas temporárias. A vida recomeçava com espantosa rapidez e energia, com o seu ritmo habitual e com um adicional vigor num desafio ao infortúnio. Por mais vezes que nos arrasem, diziam os comerciantes da cidade, levantar-nos-emos de novo e recomeçaremos onde parámos e vocês cansar-se-ão disso primeiro.

Os exércitos da rainha, em posse segura ali e bem para oeste, assim como em todo o sudeste, tratavam calmamente da sua vida, consolidando o que detinham, seguros, com o conhecimento de que lhes bastava ficar sentados e quietos, à espera de que o rei Stephen lhes fosse devolvido. Devia haver alguns astutos capitães, quer ingleses, quer flamengos, que não viam grande razão para regozijo com a troca de generais, pois, por mais vital que Stephen fosse como testa de ferro a ser prezado e defendido a todo o custo, e por mais valente combatente que fosse, não se equiparava à sua corajosa mulher como estratego na guerra. Mesmo assim, a sua libertação era essencial. Permaneciam impassíveis nas terras conquistadas e esperavam que o inimigo se rendesse, pois mais tarde ou mais cedo teria de o fazer. Tinham que suportar um certo tédio enquanto os negociadores discutiam e regateavam. O fim estava garantido.

Nicholas Harange, com a lista de bens de Julian Cruce na sua bolsa, percorreu a cidade de Winchester, indagando se tais artigos tinham sido vistos, quer tivessem sido roubados, vendidos ou oferecidos. E tinha começado pelo mais importante, o representante do Santo Papa em Inglaterra, o príncipe bispo de Winchester, Henry de Blois, que estava a recuperar a sua dignidade violada e entrara resolutamente no campo de discussão, pois nunca mudara e virara de casaca nem se fechara no seu castelo na sua cidade, em perigo de vida. Foi necessária muita persistência para ser admitido à presença de sua senhoria, mas Nicholas, na defesa da sua causa, tinha persistência suficiente para abrir caminho até através daquelas fortes defesas.

- Para que é que me vem incomodar com tais ninharias? - perguntara o bispo Henry, depois de estudar, de sobrolho franzido, a lista que Nicholas lhe apresentou. - Não sei nada acerca destas bugigangas. Não vi nenhuma delas, e que eu saiba nenhuma pertence à minha igreja. Por que é que me hei-de preocupar com isto?

- Meu senhor, trata-se da vida de uma senhora - disse Nicholas, picado. - O que ela pretendia nunca alcançou, uma vida de dedicação no convento de Wherwell. Antes sequer de lá chegar nunca mais se soube dela, e eu tenciono encontrá-la se estiver viva e vingá-la se estiver morta. E apenas através destas bugigangas, como diz, é que a posso encontrar.

- Quanto a isso - disse o bispo - não o posso ajudar. - Digo-lhe com toda a certeza que tais coisas nunca entraram na posse do Old Minster, nem de qualquer igreja ou convento sob a minha supervisão. Mas poderá indagar em quaisquer das outras casas da cidade e dizer que eu sanccionei a sua investigação. É a única coisa que posso fazer.

E com tal teve Nicholas que se contentar, e na realidade isso deu-lhe considerável autoridade para o caso de ser posto em causa o direito que ele tinha em tal assunto. Por mais afastado que Henry de Blois tivesse estado, voltaria a erguer-se como a fénix, tão formidável como sempre fora, e o fogo que quase o tinha consumido queimaria quem quer que ousasse ser seu inimigo.

De igreja em igreja, e de padre em padre, Nicholas levou a sua lista e não encontrou nada a não ser cabeças a abanar em negativa e sobrolhos franzidos em todo o lado, mesmo quando existia manifesta boa vontade para com ele. Nenhuma casa de religião que tivesse sobrevivido em Winchester sabia do par de candelabros, do crucifixo cravado de pedras ou do píxide de prata que faziam parte do dote de Julian Cruce. Não havia qualquer razão para duvidar da sua palavra, não tinham qualquer razão para mentir, nem sequer para prevaricar.

Restavam as ruas, as lojas de ourives e prateiros e os negociantes de feira que compravam e vendiam o que lhes viesse à mão. Nicholas começou a investigação sistemática de todos e, numa cidade tão rica, com uma clientela tão abastada de altos clérigos e ricas fundações, estes eram muitos.

Assim, na manhã do mesmo dia em que o irmão Humilis pediu autorização para ir ao local do seu nascimento, Nicholas entrou numa pequena loja na High Street, muito perto da igreja de Saint Maurice. A fachada tinha ficado marcada pelo fogo e o ourives tinha colocado uma persiana como a de uma barraca de feira e levado a sua banca de trabalho para junto dela, para poder trabalhar à luz do dia. A persiana protegia o seu rosto do sol, mas deixava incidir a luz da manhã na pregadeira em que ele estava a trabalhar e nas pedras que estava a encastrar. Um homem na flor da idade, provavelmente bem constituído quando os tempos eram bons, agora um tanto mirrado depois das privações do longo cerco, pois a sua pele pendia, flácida e acinzentada, como um casaco demasiado grande num homem em jejum. Ergueu os olhos através de uma madeixa de cabelo a ficar grisalho e perguntou em que é que podia servir o cavalheiro.

- Começo a pensar que as hipóteses são escassas - disse Nicholas num tom contrafeito -, mas façamos uma tentativa. Ando à procura de informações, de qualquer informação, sobre determinadas peças e ornamentos de igreja que se perderam por estas bandas há três anos. Trabalha nesse tipo de coisas?

- Trabalho em qualquer coisa de ouro ou prata. Na minha vida fiz muitas peças de igreja. Mas três anos é muito tempo. Que é que essas peças têm de notável? Foram roubadas, é o que pensa? Não negoceio em bens suspeitos. Se houver algo de dúbio no que me é oferecido, não lhe toco.

- Neste caso pode não ter havido nada que o impedisse. É certo que podiam ser roubadas, mas nada lhe diria que o tinham sido. Não pertenciam a nenhuma igreja ou convento do sul, foram trazidas de Shropshire e muito provavelmente foram fabricadas nessa região e seriam reconhecidas por um homem como você como sendo provenientes do norte. Os crucifixos podiam bem ser antigos e saxões.

- E quais são essas peças? Leia-me a sua lista. A minha memória não é infalível, mas poderei lembrar-me, mesmo passados três anos.

Nicholas leu a lista lentamente, atento a uma expressão de reconhecimento.

- Um par de candelabros de prata, em forma de castiçais altos

entrelaçados com videiras, com abafadores presos com correntes de prata, também entrelaçados com folhas de videira. Dois crucifixos iguais, tendo o maior um palmo de altura, um pedestal de prata com três degraus e o outro uma pequena réplica deste colocado num fio para uso do padre, ambos ornamentados com pedras semipreciosas, quartzo amarelo, ágatas e ametistas...

- Não - disse o ourives, abanando a cabeça decididamente -, não teria esquecido essas peças. Nem os candelabros...

- ... um píxide de prata, pequeno, gravado com fetos...

- Não, senhor, não me recordo de nada disso. Se ainda tivesse os meus livros, podia consultá-los. O escriba que me fazia os registos era sempre exacto e conseguiria encontrar cada peça mesmo passados anos. Mas desapareceram, todos os registos, no fogo. Apenas conseguimos salvar grande parte dos meus materiais, mas os livros ficaram em cinzas.

Aquele tinha sido um destino comum em Winchester naquele Verão, pensou Nicholas resignadamente. O mais meticuloso escriba abandonaria os seus registos quando a sua vida estava em perigo, e se tivesse tempo de levar consigo alguma coisa, além de si próprio, certamente que levaria os seus bens mais preciosos e deixaria os pergaminhos. Parecia não valer a pena continuar a enumerar as pequenas coisas pessoais que tinham pertencido a Julian, pois seriam menos facilmente recordadas. Estava a hesitar se havia ou não de continuar quando uma porta estreita se abriu, deixando entrar a luz de um pátio por detrás da loja, e entrou uma mulher.

Quando a porta se fechou ela voltou a desaparecer por breves instantes na penumbra do interior, mas voltou a emergir na luz ao aproximar-se da bancada de trabalho do marido, ao sol vivo que entrava da rua, e inclinou-se para pousar um jarro de cerveja junto da mão direita do ourives. Ao fazê-lo, ergueu o olhar para Nicholas. com um interesse cândido e composto, uma mulher bem parecida, alguns anos mais nova que o marido. O seu rosto ainda estava na sombra da persiana que protegia os olhos do marido, mas a sua mão foi iluminada pelo sol enquanto pousava o jarro, uma mão pálida e esguia, surpreendentemente cortada no pulso pela manga preta.

Nicholas ficou a olhar fascinado para aquela mão, tão fixamente que ela se imobilizou, espantada, e não a retirou da luz. No dedo mindinho, talvez demasiado pequeno para servir em qualquer um dos outros, estava um anel, mais largo do que era habitual, com o rebordo de prata, mas com a superfície com um padrão tão intrincado de

esmalte de cores que o metal estava escondido. O desenho era de minúsculas flores com quatro pétalas abertas, alternadamente amarelas e azuis, com folhas verdes entre elas. Nicholas ficou a olhar, incrédulo, como se fosse uma aparição milagrosa, mas esta manteve-se clara e inequívoca. Não podia haver dois iguais. O seu valor podia não ser grande, mas o trabalho e a imaginação que o criara distinguia-o de todos os outros.

- Peço-lhe desculpa, minha senhora! - disse ele, gaguejando, enquanto se tentava recompor. - Mas esse anel... Posso saber de onde veio?

O marido e a mulher estavam ambos a olhá-lo atentamente, surpreendidos mas não preocupados.

- Obtivemo-lo honestanente - disse a mulher, sorrindo ligeiramente, divertida face à sua gravidade. - Foi trazido cá para venda há alguns anos e, como gostei dele, o meu marido deu-mo.

- Quando é que foi isso? Acredite que tenho boas razões para perguntar.

- Foi há três anos - disse o ourives prontamente. - No Verão, mas a data... essa não posso ter a certeza.

- Mas eu posso - disse a mulher, rindo-se. - É uma vergonha teres-te esquecido, pois foi no meu aniversário e foi por isso que te convenci a dares-me o anel. E o meu aniversário é no vigésimo dia de Agosto. Há três anos que tenho esta coisa bonita. A mulher do meirinho quis que o meu marido o copiasse, mas eu não deixei. Deve ser uma peça única. Primaveras e pervincas... cores tão suaves! - Virou a mão ao sol para admirar o brilho do esmalte. - As outras peças que foram trazidas juntamente com o anel foram vendidas há muito tempo. Mas não eram tão belas como isto.

- Foram trazidas outras peças com o anel? - perguntou Nicholas.

- Um colar de quartzo polido - disse o ourives. - Agora me lembro. E uma pulseira de prata gravada com folhas de ervilha... ou talvez fosse ervilhaca.

Bastava o anel; as três peças eram uma prova segura. As três pequenas jóias pessoais de Julian Cruce tinham sido levadas para aquela loja para serem vendidas no vigésimo dia de Agosto, há três anos. O primeiro eco claro e o seu tom era profundamente sinistro.

- Mestre ourives - disse Nicholas. - Não acabei de contar a história de tudo o que eu procurava. É de meu conhecimento seguro que estas três coisas vieram para o sul nas mãos de uma senhora que se dirigia para Wherwell, mas que nunca chegou ao seu destino.

- Não me diga! - O ourives tinha empalidecido e estava a olhar

desconfiada e duvidosamente para o seu visitante. - Comprei essas coisas honestamente. Não fiz nada de mal e nada sei, a não ser que um tipo, de aspecto decente, mas trouxe aqui abertamente para as vender...

- Oh, não, não me interprete mal! Não duvido da sua boa-fé, mas você é a primeira pessoa que encontrei que talvez me possa ajudar a descobrir o que aconteceu à senhora. Pense bem e diga-me, quem era esse homem que cá veio? Qual era o seu aspecto? Que idade tinha e que tipo de homem é que era? Não o conhecia?

- Nunca o tinha visto e nunca mais o voltei a ver - disse o ourives, aliviado mas sem ter a certeza de que falar de mais não o iria envolver num assunto perigoso. - Um homem da minha idade, com uns 50 anos. Vulgar, vestido discretamente, e eu acreditei que ele era o que dizia ser, um criado a quem tinham mandado fazer um recado.

A mulher saiu-se melhor. Estava muito interessada e não viu qualquer razão para temer um envolvimento e não ajudar na medida do que lhe era possível uma causa que lhe parecia justa. Tinha observado o homem mais atentamente do que o marido e acreditava em Nicholas e desejava o seu bem.

- Era um homem entroncado, bem constituído - disse ela -. moreno como o seu casaco de couro. Não era um Verão quente como este, a cor da sua pele era do tipo que dura sempre e que só amarelece ligeiramente no Inverno, que resulta de viver ao ar livre todo o ano... guarda-florestal ou caçador, talvez. Tinha barba castanha e cabelo castanho, excepto na parte de cima da cabeça, onde já estava a ficar careca. Tinha um rosto ousado e bronzeado e um olhar arguto. Não me lembraria dele tão bem se não tivesse sido ele a trazer o meu anel. Mas digo-lhe uma coisa, imagino que ele ficou a lembrar-se de mim durante bastante tempo. Olhou bem para mim antes de sair da loja.

Estava habituada a isso, tendo consciência de que era bela, e essa era mais uma razão para se lembrar tão bem do homem. Uma boa razão, também, para prestar muita atenção a tudo o que ela tinha a dizer acerca dele.

Nicholas engoliu uma amargura que queimava. Não era os 50 anos, nem a barba, sem a careca, nem sequer a pele queimada pelo sol que identificava o homem, pois Nicholas nunca vira Adam Heriet. Eram todas as circunstâncias, a posse das jóias, a prova da data, o facto de que os outros três tinham ficado em Andover, e de qualquer forma Nicholas tinha visto esses três e nenhum deles era parecido com aquela descrição. O quarto homem, o criado dedicado, o caçador

de 50 anos, entroncado, um homem que Waleran de Meulan consideraria uma sorte ter do seu lado... sim, todas as palavras que Nicholas tinha ouvido dizer de Adam Heriet correspondiam ao que aquela mulher tinha a dizer acerca do homem que vendera as jóias de Julian.

- Interroguei-o quanto à sua posse - disse o ourives, ainda inquieto -, ao ver que eram claramente jóias de uma senhora. Perguntei-lhe como é que ele as tinha arranjado e por que é que as estava a vender. Ele disse que era apenas um criado a quem tinham mandado fazer um recado e que o seu dever era obedecer e que tinha demasiado senso para se pôr com coisas, pois quem questionava as ordens que esse homem dava podia ver-se sem orelhas ou com as costas marcadas como as de um gato listrado. Acreditei nele, pois há muitos patrões assim. Ele mostrou-se à vontade e por que é que eu não havia também de ficar?

- Sim, sem dúvida! - disse Nicholas. - Então fez a compra e ele foi-se embora. Ele discutiu o preço?

- Não, as suas ordens eram para vender, ele não era avaliador e ninguém esperava que fosse. Aceitou o que lhe dei. Foi um preço justo.

Com margem para um bom lucro, sem dúvida, mas por que não? Os ourives não existiam para fazer caridade a vendedores ocasionais.

- Foi tudo? Ele foi-se embora sem mais nada?

- Ele já se ia embora quando eu o chamei e lhe perguntei o que é que tinha acontecido à senhora que tinha usado aquelas coisas, e ele respondeu que ela já não precisava delas e virou-se e olhou para mim e disse que não, que ela já não precisava delas, pois aquela senhora a quem as jóias tinham pertencido já tinha morrido.

A dureza da resposta, a sua força fria, estavam presentes na voz do ourives quando ele repetiu a frase. A recordação tinha trazido tudo de uma forma muito mais vívida do que ele sonhara e isso abalou-o enquanto a expressava. Apunhalou Nicholas ainda mais ferozmente, um punhal no coração, cortando-lhe a respiração. Soava medonhamente verdade e apontava para Adam Heriet quase além de qualquer dúvida. Ela, que tinha possuído as jóias, estava morta. Os ornamentos já não lhe interessavam.

Por entre a raiva fria que o consumia ouviu a mulher, agora excitada e ansiosa, dizer:

- Não, não é nada tudo! Acontece que segui o homem quando ele saiu, mas silenciosamente, para não ser vista. - Teria ele olhado

para ela com admiração para a atrair? Não, se ele tivesse alguma coisa a esconder, não, preferiria escapulir-se discretamente, satisfeito por ter trocado os seus ganhos por dinheiro. Ora ela era mulher, curiosa e com bastante tempo livre, e saiu para ver o que havia para ver. E que é que ela viu? - Ele foi para a esquerda - disse ela -, e estava lá um outro homem, jovem, encostado à parede, à espera dele. Não tive a certeza se ele lhe deu o dinheiro, todo ou parte, mas deu-lhe qualquer coisa. E depois o mais velho olhou por cima do ombro e viu-me e os dois desapareceram rapidamente, contornando a esquina e seguindo pela rua junto ao mercado, e foi apenas isso que eu vi. E mais do que era suposto ver - reflectiu, ela própria surpreendida por agora ver nisso mais do que era natural.

- Tem a certeza disso? - perguntou Nicholas veementemente. - Havia um segundo homem com ele, um homem mais novo? - Pois os três inocentes de Lai tinham sido deixados à espera em Andover. Se isso não fosse verdade, um ou outro, o atrasado certamente, teria denunciado imediatamente o jogo.

- Tenho a certeza. Um jovem, aprumado mas com roupa feita em casa, como os que se podem ver nas estalagens ou nas feiras ou nos mercados, os melhores na esperança de arranjar emprego, e os piores na esperança de terem uma oportunidade para meter a mão na bolsa alheia.

Na esperança de trabalhar ou na esperança de roubar! Ou ambas, se o trabalho oferecido assumisse essa forma... sim, ao ponto de assassinar.

- Como é que ele era, esse segundo homem?

Ela franziu a testa e reflectiu, mordiscando o lábio. Estava muito empenhada, a pesquisar a memória que se provava ser tenaz e longa.

- Alto, mas não excessivamente alto, praticamente da altura do mais velho quando estavam um ao pé do outro, mas com metade da sua corpulência. Digo que era novo porque era esguio e rápido quando desapareceu, com passos ligeiros. Mas não lhe vi o rosto, pois ele tinha o capuz posto.

- Fiquei a pensar nisso - disse o ourives, na defensiva. - Mas estava feito, eu tinha-lhe pago e tinha as peças. Não podia fazer mais nada.

- Não. Não, não teve culpa alguma. Não podia saber. - Nicholas voltou a olhar para o anel brilhante no dedo da mulher. - Minha senhora, deixa-me comprar-lhe esse anel? Pelo dobro que o seu marido pagou? Ou. se não quiser, empresta-mo mediante um

pagamento, com a minha promessa de que lho devolverei assim que puder? Para si - disse ele, com ansiedade - é-lhe querido como prenda, e preza-o, mas eu preciso dele.

Ela ficou a olhar para ele com os olhos muito abertos e cativada, agarrando e rodando o anel no dedo.

- Por que é que precisa dele? Mais do que eu?

- Preciso dele para confrontar o homem que o trouxe cá, o homem que foi responsável, creio, pela morte da senhora que o usou antes de si. Faça o seu preço e tê-lo-á.

Ela fechou a mão em torno do anel, na defensiva, mas estava corada e com os olhos a brilhar de excitação. Olhou para o marido, que tinha a expressão ausente e calculista dos negociantes, e certamente prestes a fixar um preço que pagaria a reparação da sua loja. Subitamente, ela puxou pelo anel. rodou-o rapidamente e. tirando-o, estendeu-o a Nicholas.

- Empresto-lho sem qualquer pagamento. Mas traga-mo de volta pessoalmente, quando já não precisar dele, para me contar como esta questão acabou. E se verificar que está enganado, e que ela ainda está viva, e quer o seu anel. então dê-lho e pague-me aquilo que achar justo. ^

Nicholas agarrou e beijou a mão que lhe era estendida com aquele tesouro.

- Minha senhora, assim farei! Contem comigo, pois virei! Dou-lhes a minha palavra! - Não tinha mais nada a oferecer-lhe e ela tinha-o superado em tudo. O marido estava a olhar para ela com uma expressão indulgente, como quem já está habituado aos caprichos de uma mulher muito bonita, e não fez qualquer protesto, pelo menos até ao visitante se ir embora. - Sirvo aqui sob FitzRobert - disse Nicholas. - Se eu faltar à minha palavra, ou se acharem que faltei, queixem-se a ele e ele fará justiça. Mas não faltarei!

- Com que então estás pronta a dizer adeus às minhas prendas? - perguntou o ourives quando Nicholas se foi embora. Mas falou num tom mais divertido do que ofendido, e já voltara ao seu trabalho minucioso na pregadeira com absoluta concentração.

- Não lhe disse adeus - disse ela. serenamente. - Confio na minha intuição. Ele voltará e eu terei o meu anel de volta.

- E se ele descobrir que a senhora está viva e leva à letra o que lhe disseste'? Então como é?

- Ora - disse a mulher -. acho que ganharei o suficiente com a sua gratidão de forma a poder comprar todos os anéis que possa querer. E sei que tens habilidade suficiente para me fazeres uma cópia daquele, se eu quiser. Confia em mim, seja para onde for que a sorte dele se vire... e desejo-lhe mais felicidades do que ele espera!... nós não ficaremos a perder.

Nicholas partiu imediatamente de Winchester, numa pressa desenfreada, pela porta norte, em direcção a Hyde, passando perto do terreno enegrecido e das paredes em ruínas do desditoso mosteiro do qual Humilis e Fidelis tinham fugido para Shrewsbury à procura de refúgio. Aquelas testemunhas de tragédia e perda ficaram para trás sem que ele reparasse nelas. O seu espírito estava no que havia à sua frente.

A inércia do desespero durara apenas a extensão da rua e dera lugar à mais implacável fúria de raiva e vingança. Tinha agora uma coisa mais do que certa, um pequeno anel como testemunho, prova da mais baixa traição e ingratidão. Não podia haver qualquer dúvida de que aqueles modestos ornamentos eram os mesmos que Julian levara consigo, não havia acaso possível que juntasse três outras peças iguais. Duas testemunhas podiam contar como aquele saque malevo-lamente adquirido tinha sido transaccionado, uma delas podia descrever o vendedor muitíssimo bem, ainda com mais certeza quando fosse colocada à sua frente como, por Deus, deveria ser antes de tudo aquilo ter o seu termo. Mais, ela tinha-o visto encontrar-se com o assassino contratado na rua, e pagar-lhe os seus serviços. Não havia qualquer possibilidade de encontrar esse homem, sem nome e sem rosto como se apresentara, excepto através do homem que o tinha contratado, e as investigações que Nicholas desencadeara após encontrar Adam Heriet tinham sido infrutíferas quanto a localizar o seu paradeiro. Só uma companhia dos homens de Waleran continuava perto de Winchester e Heriet não pertencia a ela. Mas as buscas deviam continuar até ele ser encontrado e, quando fosse, tinha de explicar mais do que algumas horas roubadas... ter na sua posse as peças da rapariga desaparecida, tê-las vendido a troco de dinheiro, ter compartilhado os seus lucros com um desconhecido furtivo. Por que razão concebível, a não ser pagar-lhe pela sua participação no roubo e no assassínio?

Assim que o principal vilão fosse encontrado, também o seu instrumento o seria. E agora a primeira coisa a fazer era informar Hugh Beringar e acelerar as buscas para encontrar Adam Heriet em Shropshire. assim como no sul, até ser finalmente localizado e confrontado com o anel.

Pouco passava do meio-dia quando Nicholas saiu da cidade. Ao entardecer chegou perto de Oxford, obteve uma nova montada e continuou a uma velocidade mais regular e calma pela noite fora. Era uma noite quente e abafada, e ainda mais à medida que avançava para norte, para os midlands. O céu estava limpo de nuvens, contudo sem lua ou estrelas, muito negro. E em seu redor, nas horas altas da noite, raios rasgavam a negritude e desapareciam instantaneamente, deixando vislumbrar por um mero instante árvores e telhados e montes distantes, obliterando-os de imediato antes de o olhar poder verdadeiramente vê-los. E tudo em silêncio absoluto, sem qualquer murmúrio de um trovão a quebrar o silêncio plúmbeo. Advertências da ira de Deus, ou da sua inescrutável misericórdia.

 

A manhã surgiu clara, velada e imóvel, o sol um pequeno disco acobreado, a represa da azenha lisa e cinzenta como um prato de peltre. A leve ondulação provocada pelos remos de Madog apenas fizeram erguer lentamente a água, que depois voltou a assentar pesadamente como óleo, enquanto ele trazia o barco do rio depois da Primeira.

O irmão Edmund tinha-se agitado e hesitado face àquela iniciativa, desgostoso por permitir aquele risco ao seu doente, mas incapaz de o impedir, dado que o abade tinha dado a sua autorização. Como compromisso para com a sua consciência, assegurou-se de que eram tomadas todas as medidas possíveis para o conforto de Humilis na viagem, mas não ficou na embarcação, indo tratar das suas outras tarefas. Foram Cadfael e Fidelis que transportaram Humilis numa simples liteira pela portinhola na parede do enclave que dava directamente para a azenha e até à beira da água. Apesar dos seus compridos ossos, pouco mais pesava do que um rapaz. Madog. bastante mais baixo que ele, pegou-lhe ao colo sem esforço visível e mandou Fidelis ir para o seu lugar no banco do remador, para que o homem doente pudesse ser instalado encostado aos joelhos do homem mais novo, recostando-se confortavelmente em almofadas. Assim, poderia viajar com o mínimo de fadiga possível. Fidelis puxou suavemente os ombros magros de forma a ficarem encostados a ele, a cabeça tonsurada, descoberta ao ar da manhã, apoiada nos seus joelhos como numa almofada. O anel de cabelo escuro ainda era novo e vigoroso, apesar de tudo o resto estar enfraquecido, esgotado e velho. Só os seus olhos ardiam com um brilho invulgar devido à excitação daquele empreendimento, o cumprimento de um desejo ardente. Todos os grandes esforços, todas as travessias dos oceanos e continentes, todas as batalhas e vitórias e provações, finalmente a aventura era uma viagem de alguns quilómetros por um rio inglês para revisitar uma modesta casa senhorial num pacífico condado inglês.

“A felicidade”, pensou Cadfael, observando-o, “consiste nas pequenas coisas, não nas grandes. São as pequenas coisas aquelas de que nos lembramos quando o tempo e a mortalidade se aproximam do fim. e guiando-nos por pequenos marcos vamos finalmente, humildemente, para outro mundo.”

Puxou Madog para o lado por instantes, antes de os deixar partir. Os dois no barco já estavam absortos, um no dia aberto, no céu por cima dele. no verde e no brilho da terra fora do claustro, o outro no seu amado encargo. Nenhum deles prestava atenção a mais nada.

- Madog - disse Cadfael ansiosamente -, se alguma coisa imprópria te chamar a atenção... se houver qualquer coisa estranha, qualquer coisa que te espante... por amor de Deus não digas nada a ninguém, vem falar apenas comigo.

Madog olhou para ele de esguelha, piscando os olhos através das suas sobrancelhas hirsutas, e disse:

- E tu, imagino, não ficarás espantado! Conheço-te! Consigo ver tão bem na noite mais escura como a maioria dos homens. Se houver alguma coisa a contar, serás tu o primeiro, e de mim o único a ouvi-la.

Deu uma palmada no ombro de Cadfael, soltou a corda que amarrara ao tronco de um salgueiro e saltou para dentro do barco com a agilidade de um rapaz, empurrando-o imediatamente da margem e deslizando para o banco do remador num único movimento. O brilho opaco da água ergueu-se e caiu letargicamente entre o barco e a margem. Madog pegou nos remos e dirigiu o barco para a corrente, mansa e sonolenta ao calor, como uma criatura humana, mas ainda viva e num movimento lânguido.

Cadfael ficou a vê-los partir. A luz da manhã, apesar de nebulosa, incidia no rosto dos dois viajantes enquanto o barco rodava, o rosto jovem e o rosto mais velho, o primeiro ansioso e solícito e grave, o outro virado para cima e sorrindo palidamente de prazer pelo seu dia escolhido. Ambos com os olhos muito abertos, muito atentos, talvez até um pouco intimidados pelo empreendimento a que se tinham proposto. Depois, o barco deu a volta, os remos mergulharam na água e foi na figura atarracada e hábil de Madog que a luz de este incidiu.

Havia um barqueiro chamado Charon, Cadfael lembrava-se das suas poucas pesquisas nos escritos da antiguidade, que tinha como incumbência cuidar das almas que saem deste mundo. Também ele aceitava pagamento dos seus passageiros, na realidade recusava-os se não tinham a passagem. Mas não fornecia mantas e almofadas e oleado para as almas que transportava para a eternidade. Tão pouco alguma vez se dera ao trabalho de recolher os corpos daqueles que o rio tomava como sua presa. Madog do Barco dos Mortos era melhor homem.

Há sempre alguma frescura na água, por mais quente que esteja o ar e baixo o nível do ribeiro. Sobre o brilho imóvel e metálico do Severn havia pelo menos a ilusão de uma brisa e uma aragem por baixo que parecia temperar o clarão no alto, e Humilis conseguia estender um braço magro e mergulhar os dedos nas águas familiares do rio onde nascera. Fidelis cuidava dele ansiosamente, com as mãos prontas a amparar a cabeça sobre a almofada, ficando esta num cálice de mãos em concha, descansada. Mais tarde poderia retirar as mãos, carne contra carne, para ficar mais fresco, mas por enquanto não havia necessidade. Inclinava-se sobre o rosto sonhador, a olhar para cima, mudando delicadamente as mãos enquanto Humilis virava a cabeça de um lado para o outro, tentando fixar e recordar ambas as margens enquanto deslizavam junto delas. Fidelis não sentia qualquer cãibra, qualquer cansaço, quase nenhuma dor. Tinha vivido tanto tempo com uma dor específica que ela se tinha instalado confortavelmente no seu ser, um hóspede bem-vindo e bondoso. Ali no barco, juntos como numa ilha, sentiu uma alegria igualmente profunda e penetrante.

Tinham dado a volta a toda a cidade na sua passagem madrugadora, pois o Severn, a montante do mosteiro, formava um grande fosso junto às muralhas, transformando a cidade quase numa ilha, à excepção da garganta de terra coberta e protegida pelo castelo. Depois de passar sob a ponte ocidental de Madog, que dava passagem para as estradas para o País de Gales, o percurso serpenteante do rio tornava-se tortuoso e virava primeiro uma face, depois a outra, ao sol acobreado que se erguia no céu. Ali ainda havia bastante água, embora abaixo do seu habitual nível de Verão, e os escassos bancos de areia eram junto às margens, e Madog conhecia-os a todos e remou com movimentos fortes e despreocupados, consciente da sua mestria.

- Lembro-me bem de toda esta parte - disse Humilis, sorrindo para a margem de Frankwell, enquanto a grande curva para norte da cidade os levava de novo em direcção a oeste. - Isto para mim é puro prazer, meu amigo, mas receio que para si seja um duro trabalho.

- Não - disse Madog, taciturno ao falar inglês, mas conseguindo fazer-se entender -, não, estas águas são o meu modo de viver e a minha vida. Faço-o com satisfação.

- Mesmo no tempo invernoso?

- Em qualquer tempo - disse Madog, olhando de relance para o céu que continuava uma abóbada incandescente, sem nuvens, mas nebulosa.

Além do subúrbio de Frankwell, fora das muralhas da cidade e da curva do rio, atravessaram grandes extensões de pântanos, ainda húmidos, e logo mais verdes que a erva do terreno mais elevado, e uma leve frescura desprendia-se das margens cobertas de juncos, como se a terra ali respirasse e em todo o resto retivesse a respiração. Durante algum tempo as margens ergueram-se de ambos os lados e árvores altas e antigas inclinavam-se sobre a água. lançando uma sombra plúmbea. Pesados salgueiros inclinavam-se das margens, com metade das suas raízes expostas pela erosão do solo. Depois o terreno tornava-se plano e abria-se à sua direita, enquanto à esquerda a margem se erguia em socalcos arenosos e ensombrados em baixo e em taludes de erva por cima, que davam para outeiros arborizados.

- Já falta pouco - disse Humilis, olhando fixamente para a frente. - Lembro-me bem. Aqui nada mudou.

Tinha ido buscar forças ao seu prazer naquela expedição e a sua voz era límpida e calma, mas havia gotas de suor na sua testa e lábios. Fidelis limpou-as e inclinou-se sobre ele para lhe fazer sombra sem lhe tocar.

- Sou como uma criança num dia de festa - disse Humilis, sorrindo. - É apropriado que o passe onde fui criança. A vida é um círculo, Fidelis. Saímos da nossa origem durante metade do nosso tempo, deixamos os nossos parentes e os sítios que nos são familiares, damos valor a países distantes e a novos amigos. Mas depois, no ponto mais distante, começamos a viagem de regresso, de volta para o lugar de onde viemos. Quando o círculo se fecha, não existe mais nada além dele neste mundo, e é altura de partirmos. Não há nada de triste nisso. É certo e bom que assim seja.

Soergueu-se ligeiramente no barco para olhar em frente e Fidelis amparou-o, segurando-o por debaixo dos braços.

- Além, por detrás das árvores, fica a casa. Chegámos a casa!

Ali o solo era avermelhado e arenoso e formava uma praia comprida e estreita, para lá da qual havia uma colina coberta de erva com um caminho de terra batida que atravessava as árvores. Madog encalhou o barco na areia, recolheu os remos e saltou para terra para puxar o barco e o amarrar.

- Por favor, esperem aqui enquanto eu vou a casa avisá-los.

O inquilino de Salton era um homem de 60 anos e não tinha esquecido o rapaz, uns nove anos mais novo que ele. que nascera ao seu senhor daquela casa e ali vivera os primeiros anos da sua vida. Dirigiu-se ele próprio apressadamente ao rio. com dois criados e uma cadeira improvisada para transportar Godfrid até à casa. Não era ao paladino do Reino de Jerusalém a quem se apressava a dar as boas-vindas. mas ao rapaz que ensinara a pescar e a nadar e que colocara no seu primeiro pónei aos 3 anos de idade. Esse companheirismo de infância não durara muitos anos, e talvez ele não pensasse nele haja uns trinta anos ou mais, tendo entretanto casado e criado a sua própria família, mas as recordações foram prontamente despertas. E, apesar do aviso seco de Madog, estacou, chocado e desolado, ao ver o frágil espectro que o aguardava no barco. Recompôs-se rapidamente e correu a oferecer mão e joelho e serviço, mas Humilis reparara.

- Encontras-me muito mudado. Aelred - disse ele. indo buscar o nome ao poço da sua memória por instinto quando foi preciso. -Já não somos os rapazes que éramos. Não envelheci bem. mas que isso não te preocupe. Estou satisfeito. E contente, muito contente, por te voltar a ver neste mesmo solo onde te deixei há tanto tempo, e com tão bom aspecto.

- Meu senhor Godfrid. faz-me uma grande honra - disse Aelred. - Aqui está tudo ao seu serviço. A minha mulher e os meus filhos ficarão muito orgulhosos.

Pegou no seu convidado em peso para o tirar do barco, sobressaltando-se com a sua leveza, e colocou-o cuidadosamente na cadeira improvisada. Enquanto rapaz de 12 anos. filho do intendente do seu senhor, tinha, há muito tempo, andado mais do que uma vez com o rapazito ao colo. O irmão mais velho, o herdeiro de Marescot. recusava-se, aos 10 anos, a servir de ama-seca a um mero bebé. Agora, os mesmos braços transportaram os últimos resquícios de uma vida e sentiu o seu peso como o de uma criança.

- Não vim para te dar trabalho - disse Humilis -, apenas para me sentar um pouco contigo e ouvir as tuas novidades, e ver como os teus campos prosperam e os teus filhos crescem. Isso será um grande prazer. E este é o meu bom amigo e ajudante, o irmão Fidelis, que tão bem cuida de mim que nada me falta.

Transportaram o seu carrego pela verdejante colina, e através do quebravento das árvores, e ali no meio dos campos da propriedade, pequenos mas bem cuidados, erguia-se a casa senhorial de Salton, com a sua cerca ladeada de estábulos e celeiros. Uma casa baixa e modesta, não mais do que um salão e um pequeno quarto por cima de uma galeria subterrânea de pedra e uma cozinha separada no pátio. Havia um pequeno pomar do outro lado da cerca e um banco de madeira ao fresco, sob as macieiras. Instalaram aí Humilis. com mantas e almofadas para acomodar o corpo ossudo, e correram de trás para diante para o servir, trazendo-lhe cerveja, fruta, pão acabado de cozer, todos os presentes que podiam dar. A mulher apareceu, atrapalhada e envergonhada, dissimulando o melhor que conseguiu o sobressalto e a pena que sentiu. Vieram dois filhos grandes, o mais velho com uns 30 anos, o mais novo decerto conseguido depois de perderem uma ou duas crianças, pois era quinze anos mais novo. O filho mais velho trouxe a sua mulher para o cumprimentar, uma rapariga morena e pequena, já grávida.

Sob as macieiras, Fidelis ficou sentado em silêncio sobre a relva, deixando o banco para o anfitrião e convidado, enquanto Aelred falava com uma súbita e inusitada eloquência de dias há muito passados e contou tudo o que lhe tinha acontecido desde essa altura. Uma vida calma e árdua, enquanto os cruzados viajavam pelo mundo e regressavam sem filhos, sem frutos e estropiados. E Humilis escutou com um leve sorriso satisfeito, usando cada vez menos a sua própria voz, pois estava a ficar cansado e muito do estímulo da excitação estava a desaparecer. O sol estava no zénite, um sol ainda nebuloso e feroz, mas a oeste formavam-se grandes nuvens.

- Deixa-nos agora durante um pouco - disse Humilis -, pois canso-me facilmente e não te quero também esgotar. Talvez durma um pouco. Fidelis ficará a velar por mim.

Quando ficaram sozinhos, ele respirou fundo e ficou em silêncio durante muito tempo, mas de forma alguma a dormir. Estendeu uma mão magra para puxar a manga de Fidelis, para o mandar sentar-se ao seu lado, no lugar que Aelred tinha deixado vago. Chegou-lhes aos ouvidos os mugidos baixos e sonolentos vindos dos estábulos, previamente ocupados com o zumbido de abelhas. As abelhas tinham tido um Verão atarefadíssimo, fazendo freneticamente a colheita das flores que floriam com tanta profusão, mas que morriam tão depressa. Havia três colmeias ao fundo do pomar. Teriam muito mel.

- Fidelis... - A voz que tinha começado a fraquejar e a falhar recuperara a clareza e a calma, soando apenas um pouco distante, como se ele já tivesse começado a partir. - Meu coração, trouxe-te aqui para estar contigo, apenas contigo, entre toda a gente do mundo, aqui onde comecei. Ninguém a não ser tu deve ouvir o que agora digo.

Conheço-te melhor que a minha própria alma. Dou-te tanto valor como dou à minha própria alma e à minha esperança no céu. Amo-te acima de qualquer criatura nesta terra. Oh, silêncio... não digas nada!

O braço no qual a sua mão estava pousada tão suavemente estremeceu e contraiu-se, a garganta muda tinha emitido um pequeno som como um soluço.

- Deus me livre de te causar qualquer dor, nem que seja por falar de uma forma demasiado livre, mas o tempo é curto. Ambos sabemos. E tenho coisas a dizer enquanto há tempo. Fidelis... o teu doce companheirismo tem sido a bênção, a felicidade, a alegria e o conforto destes meus últimos anos. Não tenho forma de te recompensar senão amando-te como tu me tens amado. E eu amo-te. Não pode haver nada além disso. Lembra-te disso, quando eu partir, e lembra-te de que parti exultante, conhecendo-te como tu me conheces a mim e amando-te como tu me tens amado.

Ao lado dele, Fidelis, imóvel e mudo como pedra, mas as pedras não choram, e Fidelis estava a chorar, pois quando Humilis se inclinou e lhe beijou a face sentiu o sabor de lágrimas.

Foi apenas isso que se passou. E pouco depois Madog apareceu junto deles, dizendo num tom prático que possivelmente se avizinhava uma tempestade e que era melhor decidirem-se a ficar ali ou então irem imediatamente para o barco para regressarem rapidamente, aproveitando a corrente que ainda havia nas águas baixas, a Shrewsbury.

O dia pertencia a Humilis, assim como a decisão, e ele olhou para o céu a oeste, que escurecia num crepúsculo ameaçador, olhou para o seu companheiro, que estava sentado como quem se esforça por prolongar um sonho, distante e passivo, e disse, sorrindo, que deviam partir.

Os filhos de Aelred levaram-no até à margem, Aelred colocou-o no seu lugar no fundo do barco, na sua cama de mantas, enquanto Fidelis o ajeitava e mimava. Enquanto a este o céu ainda estava desafiadoramente claro, eles rumaram em direcção à luz. Atrás deles, as nuvens multiplicavam-se a uma velocidade negra e ameaçadora, pairando como tetas excessivamente cheias de leite venenoso. Sob essa escuridão, o País de Gales tinha desaparecido, a distância tornava-se uma questão de três ou quatro quilómetros. Algures a oeste já tinha havido chuva torrencial. O primeiro impulso túrgido das águas da tempestade, avançando insidiosamente, começou a enlamear o Severn sob eles e a empurrá-los com determinação rio abaixo.

Já tinham passado a primeira volta entre os pântanos quando o céu a este escureceu subitamente, quase instantaneamente, para reflectir a ira roxa e negra do oeste, e subitamente a luz transformou-se em penumbra e o ribombar dos trovões começou, vindo de oeste a toda a velocidade, como o rufar de tambores a segui-los, ou o ladrar de cães na sua peugada numa caçada de semideuses. Madog, imperturbável mas preparado, parou de remar para estender o oleado que usava para cobrir as mercadorias, e estendeu-o sobre Humilis, fazendo uma protecção para a sua cabeça, que Fidelis segurou com as mãos abertas para impedir que esta prejudicasse a respiração do homem doente.

Depois a chuva começou a cair, primeiro em gotas grandes, pesadas, isoladas, que atingiam o oleado esticado como se fossem pedras, depois os céus abriram-se e deixaram cair toda a acumulação de água da qual a terra seca era credora, uma bátega de água que pôs o Severn em tumulto, como se estivesse a ferver, e fez jorrar abruptas fontes de areia e terra das margens. Fidelis cobriu a cabeça e inclinou-se para segurar melhor na protecção de Humilis. Madog dirigiu a embarcação para o meio do rio, pois os raios, embora seguissem o curso do rio, atingiriam primeiro e mais rapidamente o que fosse mais alto junto das margens.

Ensopado, sacudiu a água alegremente como um peixe, tão à vontade em casa como no meio dela. Já tinha sido apanhado por tempestades tão súbitas e drásticas como aquela e, por mais furiosa que fosse, ele tinha a certeza de que não duraria muito.

Mas algures a montante do rio já tinha recebido o baptismo há várias horas, pois as águas das cheias estavam a descer numa grande vaga castanha, varrendo tudo à sua frente. Madog aproveitou-a, utilizando os remos apenas para manter o barco bem a meio do rio. E a chuva torrencial continuou a cair, constante e violentamente, e o ribombar dos trovões e o faiscar dos relâmpagos perseguiram-nos em direcção a Shrewsbury, e os raios, acompanhando de perto os trovões, riscavam o céu, a única luz na escuridão. Mal conseguiam ver as margens, excepto quando os raios irrompiam e desapareciam e a

cegueira depois da sua passagem tornava o clarão seguinte ainda mais encadeante.

Molhado e a escorrer água como uma foca, Fidelis sacudiu a água de ambos os lados do oleado, segurando-o por cima da cabeça de Humilis com os braços estendidos e já a doer-lhe. Os seus olhos estavam firmemente fechados contra o dilúvio, e abria-os apenas por fugazes instantes, espreitando por entre a chuva. Não sabia onde estavam, excepto através de visões flamejantes que forçavam a luz através das suas pálpebras e o faziam piscar para afastar aquele tormento. Um destes clarões mostrou-lhe as árvores inclinadas, esguias e sinistras, aumentadas pela luz lúgubre antes de serem engolidas pela escuridão. Então já tinham passado pelos pântanos, certamente agora completamente alagados pela chuva torrencial. O barco estava a ser impelido rapidamente pelo meio das árvores, já não estando muito longe de possível abrigo em Frankwell.

Apesar do oleado, estavam ensopados. A água redemoinhava no fundo do barco, fria e suja, um desconforto, mas não um perigo. Seguiam com a corrente, suja e cheia de folhas e ramos partidos, enlameados e túrgidos e redemoinhando em perversos torvelinhos. Mas dentro em pouco acostariam em Frankwell e abrigar-se-iam na casa mais próxima, pouco tendo sofrido com todo aquele tumulto e violência.

A trovoada intensificou-se, rebentando num estrondo ensurdecedor. O raio irrompeu em simultâneo, um clarão encadeante. Fidelis abriu os olhos molhados com o choque do trovão, a tempo de ver o salgueiro mais velho, mais grosso e mais deformado na margem esquerda saltar, partir-se ao meio, em chamas, arrancar metade das suas raízes da margem escorregadia e ensopada e irromper numa tremeda flor de fogo, lançada para o meio do rio, ardendo enquanto caía.

Madog atirou-se por cima de Humilis no fundo do barco. Como se lançado por uma catapulta, a árvore partida embateu na proa da embarcação, esmagou os lados e partiu-a como um ovo. O tronco e o barco e a carga afundaram-se nas águas lamacentas. O fogo apagou-se com um imenso silvo. Estava tudo escuro, tudo subitamente frio e em movimento, e mais pesado do que chumbo, arrastando corpo e alma para o meio das ervas e dos destroços da tempestade, virando e virando e arrastando-os irresistivelmente para a calma e o langor da morte.

Fidelis lutou e esbracejou em direcção à superfície com o coração a estoirar, contrariando a persuasão confortante do desespero, as cãibras, o peso do seu hábito e o redemoinhar e as pancadas dos ramos à deriva e as ervas emaranhadas. Veio à superfície e respirou fundo, agarrando-se às folhas que deslizavam através dos seus dedos e cravando a mão num ramo que aguentou e o manteve com a cabeça acima da água. Ofegante, sacudiu a água e abriu os olhos na escuridão uivante. Uma jaula de ramos partidos rodeava-o e prendia-o. Raízes arrancadas mas ainda tenazes ancoravam o salgueiro, mergulhando na forte corrente. Uma manta do barco enrolou-se no seu braço como uma serpente e quase o fez largar o ramo. Arrastou-se ao longo do ramo, esforçando-se para ver qualquer vislumbre de uma mão na água. um rosto pálido, como um fantasma, naquela escuridão caótica.

Uma dobra de tecido preto passou por ele. impelida para o meio das folhas. A extremidade de uma manga veio à superfície, uma mão pálida apareceu e voltou a mergulhar. Fidelis largou o ramo e atirou-se à água atrás dela, para longe da árvore, mergulhando sob o emaranhado dos ramos. A bainha do hábito deslizou-lhe por entre os dedos, mas ele conseguiu agarrar as dobras amplas do tecido do capuz e arrastou-o na direcção da margem de Frankwell para fugir aos destroços do salgueiro. Agarrando-o desesperadamente, mudou de posição para o agarrar melhor, segurando no corpo inerte de Humilis por cima de si. Uma vez ficaram ambos submersos. Depois Madog surgiu junto deles, tirando o peso do corpo inconsciente de uns braços que não o teriam podido segurar durante mais tempo.

Fidelis deixou-se ir à deriva durante um instante, à beira da aceitação, num estado de exaustão que tornava a ideia da morte perigosamente atraente. Era muito melhor deixar-se ir, abandonar a luta, ir para onde a corrente o pudesse levar.

E a corrente levou-o e deixou-o suavemente na erva enlameada da margem, de cara para baixo junto ao corpo do irmão Humilis, o qual Madog do Barco dos Mortos tentava em vão reanimar.

A chuva abrandou subitamente, por breves instantes, o vento que tinha o assobio da angústia atenuou-se por momentos, e os demónios da trovoada afastaram-se rio abaixo, deixando um silêncio absoluto e uma quase imobilidade entre rompantes. E. rasgando o silêncio, um grande grito de privação e perda e dor pairou acima do Severn, sobressaltando as aves encolhidas e silenciosas nos arbustos e ecoando rio abaixo numa longa ululação, de margem a margem, chorando uma perda irremediável.

 

Nicholas estava a aproximar-se de Shrewsbury quando o céu começou a escurecer ameaçadoramente e ele estugou o passo na esperança de conseguir abrigo na cidade antes de a tempestade cair. Mas as primeiras gotas de chuva caíram quando ele ia a chegar ao Foregate, e perante os seus olhos a rua estava vazia de vida, tendo todos os seus habitantes ido refugiar-se dentro das suas casas, fechando portas e portadas contra a fúria que se avizinhava. Quando passou pela casa do portão do mosteiro, abandonando a ideia de aí esperar que a tempestade passasse, já que estava tão perto, o céu tinha-se aberto numa chuvada tão opaca e encadeante que ele deu por si a ser fustigado de um lado para o outro enquanto atravessava a ponte, incapaz de manter o cavalo a direito. Parecia ser o único homem que restava numa cidade despovoada num mundo vazio, pois não se via vivalma.

Parou debaixo do arco do portão da cidade para recuperar o fôlego e limpar os olhos, sacudindo o peso da chuva. Entre ele e o castelo havia toda a extensão de Shrewsbury, mas a casa de Hugh junto à igreja de Saint Mary não era longe, tendo apenas que subir a curva de Wyle e a rua plana a seguir. Era tão provável Hugh estar ali como no castelo. Pelo menos podia ir lá perguntar, a caminho de High Cross e da descida para a casa do portão do castelo. Não se podia molhar mais do que já estava. Dirigiu-se para a encosta. Gente mais ajuizada espreitava pelas frestas das janelas de portadas cerradas, observando-o enquanto enfrentava o dilúvio de cabeça baixa. No céu, os trovões ribombavam num céu tão escuro como se fosse meia-noite, os raios faiscavam, arrastando os estrondos cada vez para mais perto deles. O cavalo estava infeliz, mas bem treinado, e continuou obediente, mas a tremer de medo.

Os portões do pátio de Hugh estavam abertos, a casa oferecia algum abrigo e, assim que os cascos do cavalo se ouviram no empedrado,

as portas do salão abriram-se e um moço de estrebaria veio a correr dos estábulos para ir abrigar o cavalo. Aline espreitou ansiosamente para a penumbra e fez sinal ao viajante para entrar.

-Antes que o senhor se afogue - disse ela, preocupada, enquanto Nicholas corria a abrigar-se na porta e deixava cair a sua capa ensopada, para não a levar lá para dentro. Olharam atentamente um para o outro, pois a luz era demasiado fraca para se reconhecerem de imediato. Depois ela inclinou a cabeça, recapturou uma recordação e sorriu. - É Nicholas Harnage! Veio cá com Hugh da primeira vez que veio a Shrewsbury. Já me lembro. Desculpe a lentidão das boas-vindas, mas não estou habituada à meia-noite à tarde. Entre e deixe-me arranjar-lhe umas roupas secas... embora receie bem que as de Hugh lhe vão ficar apertadas.

Ele alegrou-se com o seu candor e bondade, mas isso não o desviou da negra intensidade do seu objectivo. Olhou para lá dela, para onde Constance andava, agarrando o tirano do Giles firmemente pela mão, com medo de que ele confundisse o dilúvio com um novo divertimento e corresse lá para fora.

- O senhor xerife não está cá? Tenho de falar com ele o mais depressa possível. Trago-lhe más notícias.

- Hugh está no castelo, mas virá para cá à noite. Não pode esperar? Pelo menos até esta tempestade passar. Não deve durar muito mais.

Não, ele não podia esperar. Faria o resto do caminho, com bom ou mau tempo. Agradeceu-lhe, quase rudemente dada a sua preocupação, voltou a pôr a capa ensopada, tirou as rédeas do cavalo ao moço de estrebaria e desapareceu a trote em direcção a High Cross. Aline suspirou, encolheu os ombros e foi para dentro, fechando a porta ao caos lá fora. Más notícias! Que é que isso podia significar? Alguma coisa a ver com o rei Stephen e Robert de Gloucester? A tentativa de uma troca teria fracassado? Ou teria a ver com a busca pessoal do jovem? Aline conhecia a história por alto e sentiu um ligeiro interesse... uma rapariga libertada pelo seu prometido marido, o escudeiro preferido mandado para lhe dar essa notícia e demasiado modesto ou demasiado sensitivo para manifestar a atracção que ele próprio sentia por ela. A rapariga estaria viva ou morta? Era melhor saber, de uma vez por todas, que continuar atormentado pela incerteza. Mas era certo que “más notícias” só podia significar o pior.

Nicholas chegou a High Cross, espectral através da violenta chuva, e meteu pela ligeira encosta que dava para o castelo e para a rampa larga até à casa do portão. No pátio exterior havia água que dava pelo tornozelo, pois esta drenava com demasiada lentidão para se manter a par da cheia. Um sargento inclinou-se para fora da casa do guarda e mandou o desconhecido entrar.

- O senhor xerife? Está no salão. Se contornar o pátio interior junto à parede escapa da pior parte da chuva. Vou pôr o seu cavalo na cavalariça. Ou então pode esperar aqui, abrigado da chuva, se quiser, pois isto não pode durar sempre...

Mas não, ele não podia esperar. O anel ardia na sua bolsa e a amargura ácida no seu espírito. Tinha de fazer com que a sua história chegasse aos ouvidos da autoridade e os seus dentes cravarem-se na garganta de Adam Heriet. Não ousava parar de odiar, senão a dor tornar-se-ia insuportável. Avançou para Hugh no enorme salão escuro com a mais breve das saudações e o mais abrupto dos desafios, uma aparição desmazelada, com o cabelo molhado colado à testa e às têmporas e o rosto a escorrer água.

- Meu senhor, regresso de Winchester com provas claras de que Julian está morta e de que os seus bens foram vendidos há muito. E temos de deixar tudo o resto e mandar todos os homens que aqui tem e aqueles que eu conseguir arranjar no sul, à procura de Adam Heriet. Foi ele... Heriet e o seu assassino contratado, algum salteador pago pelo seu trabalho com o preço das jóias de Julian. Assim que lhe deitarmos as mãos, ele não conseguirá negá-lo. Tenho prova, tenho testemunhas de que ele próprio disse que ela estava morta!

- Vamos, calma! - disse Hugh, espantado. - Essa é uma afirmação grave. Estou a ver que andou muito atarefado no sul. mas nós aqui também. Vá. sente-se e conte a história toda. Mas primeiro vamos tirar essas roupas molhadas e encontrar um homem do seu tamanho, antes que apanhe alguma. - Gritou pelos criados e mandou-os buscar toalhas, um casaco e uns calções.

- Não se importe comigo - disse Nicholas, febrilmente, agarrando-lhe o braço. - O que importa é a prova que eu tenho, que aponta para um único homem, na minha opinião, e saber que anda por aí à solta, sabe Deus aonde...

- Ah, mas Nicholas, se é Adam Heriet que procura, não é preciso atormentar-se mais. Adam Heriet está bem seguro atrás de uma porta fechada à chave aqui no castelo, e há vários dias que cá está.

- Tem-no? Encontrou Heriet? Foi preso? - Nicholas respirou fundo e vingativamente e depois deu um grande suspiro.

- Temo-lo e ele não foge. Tem uma irmã casada com um artífice

em Brigge e estava de visita aos seus parentes como qualquer homem honesto. Agora é hóspede do xerife e assim continuará até esclarecermos tudo, portanto não se atormente mais quanto a ele.

- E já conseguiu fazê-lo contar alguma coisa? Que é que ele disse?

- Nada de interesse. Nada que um homem honesto não dissesse no seu lugar.

- Isso vai mudar - disse Nicholas sombriamente, permitindo-se então reparar no seu estado pela primeira vez e aceitar usar o pequeno aposento que lhe fora preparado e as roupas postas à sua disposição. Mas já ia a meio da história e ainda não tinha secado a cara e o cabelo despenteado e vestido a roupa seca.

-... não encontrei qualquer vestígio dos ornamentos de igreja, que seriam mais facilmente notados se fossem vendidos. Estava hesitante se deveria continuar a indagar, quando a mulher do homem apareceu e eu reconheci o anel que ela usava como sendo o de Julian. Não, isso é exagero... direi antes que vi que correspondia demasiado bem à descrição que tínhamos do anel de Julian. Lembra-se? Esmaltado, com flores amarelas e azuis...

- Sei a lista de cor - disse Hugh secamente.

- Então verá por que é que tive tanta certeza. Perguntei-lhe onde é que ela o arranjara e ela disse-me que tinha sido levado à loja para ser vendido, juntamente com duas outras jóias, por um homem de uns 50 anos de idade. Há três anos, no dia 20 de Agosto, pois esse era o dia do seu nascimento e ela pediu o anel como presente ao marido e ele deu-lho. E as duas outras peças, há muito vendidas, eles descreveram-mas como sendo um colar de quartzo e uma pulseira de prata gravada com raminhos de ervilha ou ervilhaca. Três peças assim, e juntas! Só podiam ser de Julian.

Hugh assentiu enfaticamente.

- E o homem?

- A descrição que a mulher me deu corresponde ao pouco que me foi dito acerca de Adam Heriet, pois até agora nunca o vi. Cinquenta anos, com a pele bronzeada de viver ao ar livre como um guarda-florestal ou um caçador... Já o viu, deve saber mais. Barba castanha, disse ela, e já a ficar careca, um rosto marcado... Está em consonância?

- A letra e ao tom.

- E o anel que eu tenho aqui. Olhe, veja! Pedi-o à mulher e ela confiou-mo, embora o estimasse e não quisesse vendê-lo, e eu tenho de lho devolver... depois de resolver a questão! Isto pode ser confundido?

- Não. Cruce e toda a gente da sua casa confirmá-lo-á, mas na verdade quase não precisamos deles. Há mais?

- Há! O ourives em questão, ao ver que eram coisas de mulher, perguntou se a senhora a quem pertenciam já não os queria. E o homem disse que, quanto à senhora a quem tinham pertencido, já não precisava deles, dado que estava morta!

- Ele disse isso? Assim cruamente?

- Disse. Espere, há mais! A mulher ficou com curiosidade e seguiu-o quando ele saiu da loja. E viu-o encontrar-se com um jovem que estava escondido junto à parede e dar-lhe qualquer coisa... uma parte do dinheiro, ou todo, pelo menos foi o que ela pensou. E quando eles se aperceberam de que ela os estava a observar, dobraram a esquina e desapareceram muito rapidamente.

- Ela está na disposição de testemunhar tudo isto?

- Tenho a certeza de que sim. E será uma boa testemunha, cuidadosa e clara.

- Assim parece - disse Hugh, fechando decididamente os dedos em torno do anel. - Nicholas, agora tem de comer alguma coisa e beber vinho enquanto este dilúvio continua... pois por que é que se há-de molhar uma segunda vez quando já temos a nossa presa segura? Mas, assim que a chuva pare, você e eu iremos confrontar o mestre Heriet com esta coisa bonita e ver se desta vez lhe conseguimos arrancar mais do que a história para crianças de ter ficado boquiaberto perante as maravilhas de Winchester.

 

Desde o jantar que o irmão Cadfael tinha dividido o seu tempo entre a azenha e a casa do portão, alertado para possíveis problemas pelas nuvens que se tinham juntado muito antes de a chuva começar. Quando a tempestade caiu, refugiou-se na azenha, de onde podia vigiar quer o lago e a sua saída para o rio, quer a estrada da cidade, para o caso de Madog ter achado aconselhável levar os seus passageiros para um abrigo em terra, em Frankwell, em vez de completar o longo circuito da cidade, caso em que viria a pé comunicar o acontecido.

A estação de muito trabalho do moinho terminara e lá dentro estava escuro e silencioso, sem qualquer som a não ser o bater monótono da chuva. Foi aí que Madog o encontrou, um Madog encharcado, sozinho. Tinha vindo pelo caminho do lado de fora do enclave do mosteiro, usado pelos habitantes da cidade quando levavam

os seus cereais para serem moídos, em vez de passar pela casa do portão. Surgiu como uma sombra na entrada da porta e ficou ali mudo, a abanar os braços compridos e inúteis. Não havia força de nenhum homem que pudesse combater a força do tempo e da tempestade e dos trovões. Até a sua enorme resistência tinha limites.

- Então? - perguntou Cadfael, com um arrepio de premonição.

- Não bem, mas muito mal. - Madog entrou lentamente e a fraca luz revelou a tristeza marcada no seu rosto. - Qualquer coisa que me espantasse, disseste! Tive a minha conta de espanto e trago-ta direita a ti, como querias. Deus sabe - disse ele. torcendo a barba e o cabelo e sacudindo a água dos seus ombros.- Não sei o que fazer. Se tu já sabias alguma coisa, talvez consigas ver para a frente... eu estou cego! Respirou fundo e contou tudo em palavras directas e breves. - A chuva só por si não nos teria feito mal. O raio caiu numa árvore que tombou quando íamos a passar. O barco foi rio abaixo em pedaços e sabe-se lá onde irão dar os destroços. E esses teus dois irmãos...

- Afogados? - disse Cadfael num murmúrio chocado.

- O mais velho, Marescot, sim... Morto, de qualquer forma. Tirei-o da água, com a ajuda do mais novo, embora tivesse de o largar a ele, pois não podia deitar mão aos dois. Mas não consegui fazer com que Marescot voltasse a respirar. Mal teve tempo de se afogar, o mais provável foi o choque ter-lhe parado o coração, fraco como estava... o frio, até o barulho da trovoada. Fosse como fosse, está morto. Existe um fim. Quanto ao outro... que mais é que te posso dizer acerca do outro que tu não saibas já? - Estava a perscrutar o rosto de Cadfael com uma grande atenção e espanto. - Não. a ti nada te espanta, pois não? Sempre soubeste. Agora o que fazemos?

Cadfael saiu do seu imobilismo, mordiscou o lábio e ficou a olhar para a chuva. O pior tinha passado, o céu estava a ficar mais claro. À distância, ao longo do vale do rio, o ribombar dos trovões seguia a corrente de água castanha rio abaixo.

- Onde é que os deixaste?

- Do outro lado de Frankwell, a menos de um quilómetro da ponte; há uma cabana na margem, que os pescadores usam. Estávamos perto e abriguei-os lá. Vamos precisar de uma maca para trazer Marescot para casa mas, e o outro?

- O outro nada! O outro desapareceu, afogou-se, o Severn levou-o. E sem qualquer alarde, sem maca, por enquanto. Aceita o que te digo, Madog, pois este é um caso desesperado, mas se formos com cuidado agora talvez saiamos incólumes. Volta para junto deles e espera lá por

mim. Vou contigo até à cidade, depois tu segues para a cabana e eu irei lá ter assim que puder. E nunca uma palavra sobre isto, nunca, a ninguém, para bem de todos nós.

A chuva já tinha parado quando Cadfael passou o portão da casa de Hugh. Todos os telhados cintilavam, todos os esgotos transbordavam, enquanto os restos cinzentos de nuvens clareavam com um sol agora forte e benevolente, toda a sua malignidade acobreada desaparecida rio abaixo com a tempestade.

- Hugh ainda está no castelo - disse Aline, admirada e contente enquanto se levantava para o cumprimentar. - Tem uma visita com ele... Nicholas Harnage voltou, diz ele com más notícias, mas não mas confidenciou.

- Ele? Voltou? - Cadfael distraiu-se momentaneamente, alarmando-se mesmo. - Que é que ele terá descoberto? E até que ponto é que terá espalhado a sua história? - Sacudiu as suas especulações. - Bom, isso torna a minha questão ainda mais urgente. Minha filha, é a ti que eu quero! Se Hugh cá estivesse, teria implorado ao teu senhor que te emprestasse com modos civilizados, mas da maneira como as coisas estão... preciso de ti durante uma ou duas horas. Acompanhas-me a cavalo por uma boa causa? Precisaremos de cavalos... um para ires e regressares, e um para mim para ir ainda mais longe... um dos cavalos grandes de Hugh que consiga aguentar dois. Serás defensora da minha boa reputação se eu levar emprestado um tal cavalo? Confia em mim, a necessidade é urgente.

- As cavalariças de Hugh estiveram sempre abertas para si - disse Aline - desde que o conhecemos. E eu ofereço-me para essa missão que me diz ser urgente. Até onde temos que ir?

- Não muito longe. Atravessando a ponte, fica do outro lado de Frankwell. Também tenho de te pedir emprestadas algumas coisas tuas - disse Cadfael.

- Diga-me o que quer e depois vá selar os cavalos... Jehan está lá, diga-lhe que tem autorização minha. E pode-me dizer o que tudo isto significa e para que é que sou precisa pelo caminho.

Heriet olhou brusca e atentamente para cima quando a porta da sua prisão se abriu a uma hora inesperada da tarde. Endireitou-se com compostura e cautela quando viu quem entrou. Tinha-se treinado e preparado para todas as perguntas com as quais tinha tido que se confrontar até ali, mas aquilo prometia ou ameaçava algo de novo. O rosto empedernido que a mulher do ourives tinha observado tão atentamente servia-lhe bem. Levantou-se educadamente na presença dos seus superiores, mas com uma rigidez formal e um rosto inexpressivo que sugeria que ele próprio não se sentia em nada inferior. A porta fechou-se atrás deles, embora a chave não tivesse sido rodada. Não havia necessidade, pois estaria um guarda lá fora.

- Senta-te, Adam: Temos mostrado algum interesse nos teus movimentos em Winchester, na altura em que sabes - disse Hugh, num tom brando. - Queres acrescentar alguma coisa àquilo que já nos contaste? Ou alterar alguma coisa?

- Não. meu senhor. Contei-lhe o que fiz e onde fui. Não há mais nada a contar.

-A tua memória pode falhar-te. Todos os homens são falíveis. Não te podemos recordar, por exemplo, a loja de um ourives na High Street? Onde vendeste três pequenas coisas de valor... que não eram propriedade tua?

O rosto de Adam manteve-se estoicamente empedernido, mas os seus olhos olharam de relance de um rosto para o outro.

- Nunca vendi nada em Winchester. Se alguém disser que sim, deve estar a confundir-me com algum outro homem.

- Mentes! - exclamou Nicholas. - Quem mais é que podia ter consigo essas três coisas? Um colar de quartzo, uma pulseira de prata gravada... e isto!

O anel. na palma da sua mão, foi levado mesmo junto do nariz de Adam, com o seu esmaltado a brilhar com um lustre delicado, uma pequena obra de arte tão singular que não podia haver outro igual. E ele conhecia a rapariga desde a infância e devia estar familiarizado com as suas jóias muito antes daquela viagem para sul. Se ele negasse isto. se se proclamasse um mentiroso, havia muitos outros que o jurariam.

Ele não negou. Ficou mesmo a olhar fixamente para ele com convincente espanto e surpresa, dizendo imediatamente:

- Isso é de Julian! Onde é que o arranjou?

- Tinha-o a mulher do ourives. Ficou com ele para si e lembra-se muito bem do homem que o levou lá e descreveu-o com todos os pormenores de que a lei necessita para lhe pôr o seu nome. Sim. é de Julian! - disse Nicholas, rouco de paixão. - Foi isto que fizeste com as jóias dela. Que é que lhe fizeste a ela?

- Já lhe disse! Deixei-a a um quilómetro ou mais de Wherwell. por ordem dela, e nunca mais a vi.

- Mentes com todos os dentes que tens na boca! Destruíste-a. Hugh pôs a mão no braço do jovem, que se sobressaltou ao ser tocado, como um cão de caça que é distraído da sua presa.

- Adam, estás a desperdiçar as tuas mentiras, o que é ainda pior. Está aqui um anel que tu próprio reconheces que pertence à tua senhora, e que foi vendido, segundo duas testemunhas fidedignas, no dia 20 de Agosto de há três anos, numa loja de Winchester, por um homem cuja descrição te serve melhor que a tua própria roupa...

- Então serviria a qualquer homem da minha idade - protestou Adam vivamente. - Que é que eu tenho de tão singular? A mulher não me apontou o dedo a mim, ela não me viu...

- Mas verá, Adam. verá. Podemos trazê-la aqui. e ao marido também, para te acusar na tua própria cara. Como eu te acuso - disse Hugh firmemente. - Existem demasiadas coisas para que possam passar como uma história de crianças ou uma curiosa coincidência. Não precisamos de mais provas contra ti senão aquelas que são fornecidas por este anel e aquelas duas testemunhas... provas de roubo, senão mesmo de assassínio. Sim, assassínio! De contrário, como é que obtiveste as suas jóias? E se não foste conivente na sua morte, onde é que está ela agora? Ela nunca chegou a Wherwell, nem era lá esperada, e era seguro pô-la para fora deste mundo, pois a sua família acreditava que ela estava em segurança num convento, o convento não se perturbara por ela nunca lá ter chegado, pois ela não avisou que ia para lá. Então onde é que está ela, Adam? Na terra ou debaixo dela?

- Não sei mais que aquilo que vos contei - disse Adam, cerrando os dentes.

- Ah, mas sabes! Sabes quanto é que recebeste do ourives... e quanto pagaste ao assassino que contrataste, à porta da loja. Quem era ele, Adam? - perguntou Hugh. baixinho. - A mulher viu-te encontrares-te com ele, pagares-lhe, e dobrar rapidamente a esquina quando a viste à porta. Quem era ele?

- Não sei nada acerca de tal homem. Não fui eu que lá fui. digo-vos. - A sua voz continuava firme, mas ligeiramente mais apressada e um tom acima, e ele começara a suar.

- A mulher também o descreveu. Um rapaz novo, de uns 20 anos, esguio, que se manteve encapuçado. Dá-lhe um nome, Adam, e isso talvez alivie a tua pena. Se é que sabes o seu nome. Onde é que o encontraste? No mercado? Ou já estava previamente apalavrado para o trabalho?

- Nunca entrei em tal loja. Se tudo isto aconteceu, aconteceu com outros homens, não comigo. Eu não estava lá.

- Mas as jóias de Julian estavam, Adam! Isso é certo. E foram levadas para lá por alguém que se parecia muito contigo. Quando a mulher te vir em carne e osso, então poderei dizer, levadas por ti. É melhor contares-nos tudo, Adam. Poupa-te a seres desmascarado, faz a tua confissão de tua livre vontade e acaba com isto. Poupa uma longa viagem à mulher do ourives. Pois ela apontar-te-á o seu dedo. Adam. Este, dirá ela quando olhar para ti, este é o homem.

- Não tenho nada a confessar. Não fiz mal nenhum.

- Por que é que escolheste aquela determinada loja, Adam?

- Eu nunca estive na loja. Não tinha nada para vender. Não estive lá...

- Mas o anel estava, Adam. Como é que lá foi parar? E com o colar e a pulseira? Por acaso? Até onde é que o acaso pode ir?

- Deixei-a a um quilómetro de Wherwell...

- Morta, Adam?

- Deixei-a viva, juro-o!

- No entanto, disseste ao ourives que a senhora que tinha sido dona daquelas jóias estava morta. Por que é que o fizeste?

- Já lhes disse, não fui eu, eu nunca estive na loja.

- Então foi outro homem? Um estranho, e, no entanto, ele tinha aqueles ornamentos, os três, e parecia-se contigo, e sabia e disse que a senhora estava morta. Tantos acasos milagrosos, Adam; como é que os explicas?

O prisioneiro encostou a cabeça à parede. O seu rosto estava cinzento.

- Não lhe fiz nenhum mal! Eu gostava muito dela!

- E este anel não é dela?

- O anel é dela. Qualquer pessoa de Lai lhe dirá o mesmo.

- Sim, é verdade, Adam, dirão exactamente isso! Dirão isso ao tribunal, quando a tua hora chegar. Mas só tu nos podes contar como é que as jóias te chegaram às mãos senão por assassínio. Quem era o homem a quem pagaste?

- Não houve nenhum homem. Eu não estava lá. Não fui eu...

O ritmo tinha vindo a aumentar, as perguntas sucediam-se grossas como setas e igualmente mortíferas. Andavam às voltas sobre o mesmo assunto e o homem estava finalmente a ficar cansado. Se era possível quebrá-lo, seria quebrado dentro em breve.

Estavam todos tão concentrados, tão tensos, como instrumentos hiperafmados, que os três se sobressaltaram violentamente quando bateram à porta da cela e um sargento meteu a cabeça lá dentro, visivelmente boquiaberto com notícias sensacionais.

- Meu senhor, peço desculpa, mas eles acharam que devia saber imediatamente... Corre na cidade que um barco se afundou hoje na tempestade. Dois irmãos do mosteiro afogaram-se no Severn, dizem, e o barco de Madog ficou feito em pedaços por uma árvore derrubada por um raio. Andam à procura a jusante de um dos dois...

Hugh pôs-se de pé, horrorizado.

- O barco de Madog? Deve ter sido o aluguer de que Cadfael me falou... Afogados? E têm a certeza desta história? Madog nunca perdeu homem ou carga até hoje.

- Meu senhor, quem é que pode opor-se a um raio? A árvore caiu em cheio sobre eles. Alguém em Frankwell viu o raio cair. Talvez o senhor abade ainda não saiba, mas na cidade toda a gente conta a mesma história.

- Vou imediatamente! - disse Hugh, virando-se apressadamente para Nicholas. - Deus sabe quanto lamento, Nick, se isto for verdade. O irmão Humilis... o seu Godfrid... tinha o desejo de voltar a ver a sua terra natal de Salton e partiu com Madog esta manhã, pelo menos tencionava fazê-lo... ele e Fidelis. Venha comigo! É melhor irmos averiguar a verdade. Peça a Deus que tenham exagerado, como sempre, e que eles apenas tenham sofrido um mergulho... Madog consegue nadar melhor que a maior parte dos peixes. Mas vamos saber ao certo.

Nicholas também se tinha erguido, em sobressalto e lento a entender.

- O meu senhor? E ele assim tão doente? Oh, meu Deus, ele não sobreviveria a tal choque. Sim, irei... tenho de saber!

E ambos saíram, abandonando o seu prisioneiro. A porta fechou-se rapidamente e a chave rodou na fechadura. Ninguém tinha voltado a olhar ou a pensar em Adam Heriet. que se sentou lentamente na cama dura e escondeu o rosto nas mãos. um homem desmoralizado, desgastado e de coração vazio. Gradualmente, lágrimas lentas começaram a escorrer-lhe por entre os dedos entrelaçados e a cair na almofada, mas não havia lá ninguém para ver e se interrogar e ninguém para interpretar.

Montaram apressadamente e dirigiram-se para a cidade, atravessando as ruas espantosamente secas sob o calor suave que se seguiu ao dilúvio. Ainda era dia e estava sol, e os telhados e as paredes e as estradas fumegavam, de forma que os cavalos atravessavam um mar frágil e pouco fundo de vapor. Passaram pela casa de Hugh sem parar, sendo melhor assim, pois não teriam encontrado Aline para os receber.

Por onde quer que passassem, as pessoas estavam a começar a sair para as ruas, juntando-se às duas e às três. de cabeças juntas e a dar à língua. Assim que foi murmurada, a notícia da tragédia tinha-se espalhado rapidamente. Mas desta vez não era um falso alarme. Depois de passarem pelo portão este, e ao atravessarem a ponte na direcção do mosteiro, Hugh e Nicholas pararam ao verem uma pequena e melancólica procissão que seguia à sua frente. Quatro homens transportavam uma maca improvisada, uma porta tirada das dobradiças do pátio de algum habitante de Frankwell, decentemente coberta com mantas para transportar o corpo de uma vítima, pelo menos, da tempestade. Apenas uma. pois era uma porta estreita e os quatro homens transportavam-na como se o peso fosse leve, embora o corpo tapado fosse comprido e de ossos grandes.

Eles seguiram reverentemente o cortejo, como muitos dos habitantes da cidade também faziam, aumentando o progresso solene como um cortejo fúnebre. Nicholas tentou ver melhor, medindo o corpo mudo e imóvel. Tão comprido e no entanto tão leve, envelhecido precocemente. aquele não podia ser senão Godfrid Marescot, cuja carne estropiada e gasta finalmente largara o seu espírito imaculado. Olhou através de uma neblina, tentando impacientemente limpar os olhos.

- Aquele é o tal Madog, o homem que vai à frente?

Hugh assentiu silenciosamente, sim. Sem dúvida que Madog tinha recrutado amigos no subúrbio, em parte galeses, como ele era totalmente galês, para o ajudarem a levar o homem morto para casa. Comandava os seus ajudantes decorosamente, dolorosamente, com grande dignidade.

- E o outro... Fidelis? - perguntou Nicholas, lembrando-se da discreta figura anónima que se refugiava sempre nas sombras, contudo imediatamente ao serviço. Sentiu remorsos por sofrer tanto por Godfrid e tão pouco pelo jovem que voluntariamente se tornara escravo da nobreza de Godfrid.

Hugh abanou a cabeça. Estava ali apenas um.

Tinham atravessado a ponte e aproximavam-se do Foregate, entre o Gaye do lado esquerdo e a azenha e a represa do lado direito, dirigindo-se para a casa do portão do mosteiro. Aí os carregadores viraram à direita com o seu carrego, passando por baixo do arco, entrando no grande pátio, onde uma assembleia silenciosa se tinha reunido para os esperar, e aí depositaram o seu fardo e se mantiveram às ordens, em silêncio.

A notícia tinha chegado ao mosteiro quando os irmãos saíam das Vésperas. Reuniram-se num círculo atordoado, abade, prior, obedienciários, monges e noviços, levados assim abruptamente à contemplação da mortalidade. Os habitantes da cidade que tinham seguido a procissão até ao seu destino ficaram ao portão, um pouco afastados, a olhar num silêncio impressionado.

Madog aproximou-se do abade com a prontidão sem servilismo dos galeses para aceitar todos os homens como seus iguais e contou a sua história com simplicidade. Radulfus reconheceu a vontade de Deus e a impotência do homem fazendo um movimento de absolvição com a cabeça e ficou a olhar para o corpo coberto durante longos momentos, antes de se baixar e destapar o rosto.

Na morte, Humilis tinha perdido tudo excepto a sua verdadeira idade. A morte não podia restituir a carne perdida e caída, mas descontraíra as linhas angulosas e magras e alisara o encovado do sofrimento. Hugh e Nicholas, a cavalo ao canto do pátio, viram por breves instantes Humilis trasladado, transportado para uma serenidade e repouso sobre-humanos, antes de Radulfus voltar a tapá-lo, abençoar a maca e os carregadores e fazer sinal aos obedienciários para pegarem no corpo e levá-lo para a capela mortuária.

Só então, quando o irmão Edmund, recordando velhas reticências que aqueles dois irmãos perdidos tinham compartilhado, e manifestamente privado de Fidelis, olhou em volta à procura do outro único homem que conhecia os segredos íntimos do corpo destruído de Humilis, e não o encontrou... só então é que Hugh se apercebeu de que o irmão Cadfael era o único homem ausente daquela assembleia. Ele, que de todos os homens devia estar a postos para tudo relacionado com Humilis, estava ausente naquele momento! Esta incúria abalou Hugh, até mais tarde entender. Era, afinal, possível que um homem morto tivesse urgentes assuntos inacabados algures, ainda mais queridos para si que as últimas devoções prestadas ao seu corpo.

Expressaram os seus respeitos e condolências ao abade Radulfus, com a promessa de que seriam feitas buscas a jusante do rio para encontrar o corpo do irmão Fidelis enquanto houvesse qualquer esperança de o encontrar, e depois regressaram a passo à cidade, anfitrião e convidado juntos. Caía a noite suavemente, o céu estava limpo, ameno, inocente de todo o mal, o ar subitamente fresco e agradável. Aline estava à espera com a refeição da noite pronta a ser servida e deu as boas-vindas aos dois homens. E se ainda faltava um cavalo na estrebaria, Hugh não se demorou o suficiente para dar por isso, deixando os cavalos aos criados e dedicando a sua atenção a Nicholas.

- Tem de ficar connosco - disse ele durante o jantar - até ao enterro. Vou mandar avisar Cruce, pois ele há-de querer prestar as últimas homenagens àquele que outrora tencionava ser seu cunhado e tem direito de saber o pé em que as coisas estão com Heriet.

Isto fez com que Aline prestasse atenção.

- E em que pé é que as coisas estão com Heriet? Aconteceram tantas coisas hoje que parece que perdi metade. Nicholas disse que trazia más notícias, mas nem sequer a tempestade o deteve tempo suficiente para dizer mais. Que é que aconteceu?

Eles contaram-lhe, falando à vez, tudo o que se tinha passado, desde as obstinadas buscas em Winchester ao ponto em que a notícia da desgraça de Madog tinha interrompido o interrogatório a Adam Heriet, fazendo com que saíssem consternados para verificar a veracidade do relato. Aline escutou com uma expressão ligeiramente preocupada.

- Ele apareceu a dizer que dois irmãos do mosteiro tinham morrido afogados no rio? Referiu nomes? Ali na cela, à frente do vosso prisioneiro?

- Creio que fui eu que referi os nomes - disse Hugh. - Foi no momento certo para Heriet, pois creio que estava no fim da sua resistência. Agora poderá ganhar fôlego para a próxima ronda, embora eu duvide de que isso o salve.

Aline não disse mais nada acerca disso até que Nicholas, com falta de sono depois da sua longa viagem e abalado pelos choques do dia, foi para a cama. Quando ele saiu, ela pousou o bordado em que tinha estado a trabalhar e foi sentar-se ao lado de Hugh. no banco almofadado junto da lareira vazia, e pôs-lhe um braço em volta do pescoço num gesto persuasivo.

- Hugh, meu amor... há uma coisa que tens de saber... e que Nicholas não pode ouvir, por enquanto, pelo menos até tudo estar terminado e calmo. Talvez seja melhor se ele nunca vier a saber, embora talvez acabe por adivinhar pelo menos metade. Mas é de ti que agora nós precisamos.

- Nós? - disse Hugh, não excessivamente surpreendido, viran-do-se para a abraçar e puxar mais contra si.

- Cadfael e eu. Quem mais?

- Foi o que supus - disse Hugh, suspirando e sorrindo. - Interroguei-me por ele ter abandonado o fim. desastroso de um empreendimento que ele próprio ajudou a lançar.

- Mas ele não o abandonou e está neste momento a resolvê-lo. E se ouvires alguém na estrebaria, um pouco mais tarde, não precisas de te alarmar, pois será apenas Cadfael a trazer o teu cavalo de volta e tu sabes que podes confiar que ele se assegurará do conforto do cavalo antes de sequer pensar no dele.

- Prevejo uma longa história - disse Hugh. - É melhor que seja interessante. - Sentia o cabelo dela macio e bem cheiroso contra a sua face. Virou-se para tocar com os seus lábios nos dela muito suave e fugazmente.

- É interessante. Como qualquer caso de vida ou de morte tem que ser. Vais ver! E como foi dito à frente do pobre Adam Heriet que dois irmãos morreram afogados, deves fazer-lhe uma visita assim que puderes, amanhã, dizendo-lhe que ele não se deve atormentar, que as coisas nem sempre são o que parecem.

- Então diz-me - disse Hugh - o que realmente são.

Ela instalou-se confortavelmente no círculo dos braços dele e contou-lhe num tom muito sério.

As buscas pelo corpo do irmão Fidelis foram efectuadas diligentemente em ambas as margens do rio, em todos os locais onde os destroços eram lançados para terra, durante mais de dois dias, mas a única coisa que foi encontrada foi uma das suas sandálias, arrancada ao seu pé pelo rio e atirada para os baixios de areia perto de Atcham. A maioria dos corpos que eram levados pelo Severn eram também lançados para terra pelo Severn. mais cedo ou mais tarde. Aquele nunca o seria. Shrewsbury e o mundo tinham visto o fim do irmão Fidelis.

 

O enterro do irmão Humilis reuniu no salão do mosteiro representantes de toda a pequena nobreza do condado e a maioria das instituições Beneditinas da região. O xerife e o preboste da cidade estariam certamente presentes, bem como muitos dos anciãos e comerciantes de Shrewsbury, mais devido à natureza dramática e trágica do falecimento do morto que ao conhecimento que dele tivessem durante a sua curta estada na cidade. A maioria nunca o tinha visto, mas conhecia a sua reputação antes de tomar os votos e sentia que o seu nascimento e morte ali no seu meio lhes dava algum direito a ele. Seria uma ocasião solene, condizente com um túmulo dentro da própria igreja, o que era uma rara honra.

Reginald Cruce veio de Lai um dia antes da cerimónia, malevolamente gratificado com o que Nicholas tinha para contar e retirando um prazer vingativo em saber que o meliante que ousara exercer violência contra um membro da família Cruce estava preso e tacitamente reconhecido como culpado, ainda que o julgamento tivesse de aguardar as formalidades legais. Hugh nada disse para lançar qualquer dúvida na sua satisfação.

Reginald colocou o anel esmaltado na palma da sua mão e estudou a elaborada decoração com interesse. - Sim, lembro-me dele. É estranho que seja esta pequena coisa que o irá condenar. Ela tinha outro anel. lembro-me, que estimava muito, talvez ainda mais por lhe ter sido dado em criança, quando os seus dedos eram demasiado pequenos para o usar. Marescot mandou-lho quando o contrato de casamento foi estabelecido, era antigo, um anel que tinha passado de noiva para noiva na sua família. Ela costumava usá-lo num fio ao pescoço por ser demasiado grande para os seus dedos. Tenho a certeza de que não deixaria de o levar consigo.

- Este é o único anel que consta da lista das jóias que ela levou consigo - disse Nicholas, pegando na pequena jóia. - Comprometi-me a devolvê-lo à mulher do ourives de Winchester.

- A lista era das coisas destinadas a formar o seu dote. Ela provavelmente tencionava ficar com o anel que Marescot lhe mandou. Era de ouro, uma serpente com olhos vermelhos, formando duas roscas em volta do dedo. Muito antigo, as escamas já estavam lisas do uso. Onde é que agora estará? - disse Reginald. - Já não existem Marescots, pelo menos desse ramo, para o darem às suas noivas.

“Não existem mais Marescots”, pensou Nicholas, “nem Julians.” Uma perda dupla e dolorosa, cuja vingança, agora que parecia tê-la bem segura nas suas mãos, não constituía nenhuma compensação. “Se estiver enganado, e ela ainda estiver viva”, dissera a mulher do ourives, “e ainda quiser o seu anel, devolva-lho e pague-me aquilo que achar justo.” “Se eu tivesse mais ouro que o rei e a imperatriz juntos”, pensou Nicholas, acalentando a dor que tinha dentro de si, “isso não seria o suficiente para pagar uma bênção tão inexpressável.”

O irmão Cadfael tinha-se comportado de uma forma extremamente modesta e circunspecta durante os últimos dias, cumprindo escrupulosamente todas as exigências do horário, pontual para cada serviço, tentando, reconheceu contrafeito a si próprio, merecer o êxito e desarmar qualquer reprovação que os céus pudessem nutrir para com ele. O objectivo final, tinha a certeza, era não só bom como vitalmente necessário, para o bem do mosteiro e da igreja e para a paz de espírito de todos aqueles cujo destino era continuar a viver agora que Humilis ficara livre do corpo e estava em segurança para sempre. Mas os meios... estava menos seguro de que os meios estavam acima de censura. Mas que é que um homem pode fazer, ou uma mulher, se não usar o que tem à mão?

Levantou-se cedo no dia do funeral para ter algum tempo para as suas orações privadas e veementes antes da Primeira. Muito dependia daquele dia, tinha boas razões para estar apreensivo e para se virar para Santa Winifred pedindo indulgência, perdão e ajuda. Ela já lhe tinha perdoado, antes daquilo, ter utilizado meios muito irregulares para fins desejáveis, e tinha tido para com ele uma bondade indulgente quando outros padroeiros mais severos teriam mostrado aborrecimento.

Mas naquela manhã ela tinha um outro suplicante. Alguém estava ajoelhado, quase prostrado, nos três degraus que davam para o altar. As linhas rígidas do corpo e dos membros, o nó convulsivo das mãos entrelaçadas contorcido no último degrau mostravam uma necessidade tão extrema como a sua própria. Cadfael recuou para as sombras e esperou, e, depois daquilo que lhe pareceu ser um longo e angustiante período de tempo, o suplicante ergueu-se hirta e lentamente, como um homem aleijado, e dirigiu-se silenciosamente para a porta sul do claustro. Foi com surpresa e espanto que constatou que era o irmão Urien quem atormentava o coração daquela forma ali sozinho de manhã cedo. Cadfael nunca prestara, talvez, suficiente atenção ao irmão Urien. Quem é que prestava? Quem falava com ele, quem era familiar com ele? O homem tinha-se votado a si próprio à solidão.

Cadfael fez as suas orações. Tinha feito aquilo que lhe parecera melhor, tinha tido ajudantes leais e engenhosos e agora apenas podia colocar confiantemente toda a questão nos tolerantes braços galeses de Santa Winifred, relembrar-lhe que ele era seu parente distante e deixar o resto com ela.

Na manhã de um dia ameno e límpido, com toda a devida cerimónia e todas as honras, o irmão Humilis, Godfrid Marescot, foi sepultado no transepto da igreja do mosteiro de S. Pedro e S. Paulo.

Cadfael tinha procurado em vão uma determinada pessoa enlutada e não a descobrira, mas, dado que já tinha apresentado o seu caso à santa, abandonou a igreja sem grande preocupação. E enquanto os irmãos saíam para o grande pátio, com o abade Radulfus à frente, lá estava ela, aprumada e competente e simples como sempre, à espera junto da casa do portão, pronta a ir ao encontro do grupo, como um cavaleiro solitário que enfrenta inabalavelmente um exército. Ela tinha o dom do sentido de oportunidade e tinha assegurado uma multidão de testemunhas. Que a revelação seja pública e maravilhosa.

A irmã Magdalen. da cela Beneditina de Godric's Ford, a alguns quilómetros na direcção da fronteira com o País de Gales, tinha sido uma mulher simultaneamente bela e mundana na sua juventude, amante de um barão por opção, própria e honesta e leal neste seu compromisso. Fora fiel à sua palavra então como agora era fiel à sua nova vocação. Se tivesse levado consigo uma escolta de alguns homens do seu dedicado exército de conterrâneos das florestas de oeste nesta ocasião, tinha-os mantido discretamente longe da vista naquele momento. Tinha o campo só para si.

Uma senhora gorducha e rosada, de meia-idade, com os olhos vivos e perspicazes, com os últimos traços da sua beleza sabiamente temperados pela brancura austera da sua touca de freira e pela

negritude do seu hábito, davam-lhe um ar simples e confortável, pelo menos até a sua indomável covinha lhe marcar subitamente a face como o mergulho cintilante de um pequeno peixe vermelho, desaparecendo tão rápida e discretamente como a água de um ribeiro que retoma o seu brilho ensolarado. Cadfael já a conhecia há alguns anos e tinha tido oportunidade de mais de uma vez confiar nela relativamente a assuntos complexos. A confiança que tinha nela era absoluta. Ela avançou decorosamente para o abade, olhou para o lado e desviou-se ligeiramente em direcção a Hugh, conseguindo que ambos parassem, obtendo a atenção da autoridade sagrada e secular. O resto da assembleia, monges e leigos, saíram da igreja e ficaram respeitosamente à espera de que a nobreza dispersasse sem entraves.

- Meus senhores - disse a irmã Magdalen, dividindo uma reverência entre Igreja e Estado -, peço desculpa por chegar tão atrasada, mas as recentes chuvas alagaram algumas partes do caminho e não contei com tempo para demoras. Mea culpa! Farei as minhas orações pelos nossos irmãos em privado e espero assistir à missa por eles aqui como desagravo da minha falta de hoje.

-A horas ou atrasada, irmã, é sempre bem-vinda - disse o abade. - Deve cá ficar um ou dois dias, até as estradas estarem desimpedidas. E é claro que será minha convidada para o jantar, já que cá está.

- É muito gentil - disse ela. - Devido ao meu atraso não ousaria incomodá-lo agora se não fosse portadora de uma carta para o senhor xerife. -Virou-se e olhou Hugh nos olhos, com uma expressão muito séria. Tinha o pergaminho enrolado e selado na mão esquerda. - Tenho que explicar como é que isto chegou a Godric's Ford. A madre Mariana recebe regularmente cartas da prioressa da nossa casa mãe em Polesworth. A última carta, que chegou apenas ontem, incluía esta outra carta, de uma senhora que acabara de chegar com um grupo de viajantes e que estava a descansar da viagem. É dirigida ao senhor xerife de Shropshire e está selada com o selo de Polesworth. Trouxe-a comigo ao ver que poderia ser importante. Com sua licença, Sr. Abade, entrego-a.

Como é que aquilo foi feito era segredo seu, mas ela tinha uma forma de reter a atenção das pessoas, fazendo-as sentir que poderiam perder algum prodígio se se afastassem dela. Ninguém se tinha mexido, ninguém começara a conversar, o único movimento que havia no pátio era o daqueles que ainda estavam a sair para se juntar à multidão e deslizavam silenciosamente em volta da periferia para encontrarem um lugar de onde pudessem ver e ouvir melhor. Ouvia-se apenas o rustilhar das roupas e o arrastar de pés enquanto Hugh pegava no pergaminho. O selo seria imaculado, pois era também o selo da cela filha de Polesworth em Godric's Ford.

- Tenho a sua autorização, Sr. Abade? Pode bem ser algo de importante.

- Sem dúvida, leia - disse o abade.

Hugh quebrou o selo e desenrolou o pergaminho. Leu com as sobrancelhas franzidas e com extrema atenção. Em volta do grande pátio os homens retiveram a respiração ou inspiravam silenciosa e cautelosamente. Havia tensão no ar depois de tudo o que se passara.

- Sr. Abade - disse Hugh, erguendo os olhos abruptamente -, existe aqui matéria que diz respeito a outros além de mim. Há outros que têm muito mais a ver com isto do que eu e que merecem e precisam de saber imediatamente o que aqui é dito. É uma maravilha! Tem tal importância que o seu conteúdo deveria ser dado a conhecer como proclamação pública. Com sua licença, fá-lo-ei aqui e agora, perante todos que aqui estão.

Não foi necessário erguer a voz, pois todos os ouvidos estavam atentos a cada palavra enquanto ele lia claramente:

“Meu Senhor Xerife,

Chegou aos meus ouvidos, para meu enorme pesar, que no meu próprio condado corre o boato de que fui morta, roubada e assassinada por lucro. Assim, apresso-me a enviar este meu testemunho de que nenhum mal me foi feito, mas que me declaro viva e bem, tendo chegado aqui e usufruído da hospitalidade da casa das irmãs de Polesworth. Lamento que vidas e honras possam ter sido postas erradamente em perigo por minha causa, algumas, talvez, daqueles que foram para mim bons amigos e criados. E peço desculpa se fui causa de perturbação e angústia para alguém, sem meu conhecimento e apenas devido ao meu silêncio. Serão feitas reparações.

Quanto à minha vida até aqui, confesso com toda a humildade que tive dúvidas se teria verdadeira vocação para freira antes sequer de chegar ao meu destino e portanto tenho vivido recatadamente, mas não fiz quaisquer votos como freira. No Convento de Sopwell, em SaintAlbans, uma mulher devota pode viver uma vida de santidade e serviço sem ter feito votos, por caridade do prior Geoffrey. Agora, ao ser informada de que me deram como morta, desejo mostrar-me a todos os que me conheceram, para que ninguém continue em sofrimento ou perigo por minha causa.

Peço-lhe, meu senhor, que dê isto a conhecer ao meu bom irmão e a toda a minha família e que mande um homem de confiança para me levar em segurança para Shrewsbury, pelo que ficarei grata devedora a vossa senhoria.

Julian Cruce

Muito antes de ele chegar ao fim tinha-se levantado um murmúrio, um sussurrar, um redemoinho que abriu caminho como um vento súbito através dos que escutavam e depois suscitou um zumbido como um enxame de abelhas, e subitamente o silêncio espantado de Reginald irrompeu num urro de surpresa, admiração e encanto, tudo junto.

- A minha irmã está viva? Ela está viva! Por Deus, temos estado completamente enganados...

- Viva! - ecoou Nicholas num murmúrio atordoado. - Julian está viva... viva e bem...

O murmúrio transformou-se num coro pulsante de admiração e excitação, e acima dele a voz do abade Radulfus ergueu-se exultante-mente:

- As bênçãos de Deus são infinitas. Da sombra da morte Ele demonstra a Sua milagrosa bondade.

- Acusámos um homem inocente! - exclamou Reginald, tão veemente na reparação como na acusação. - Ele foi-lhe tão verdadeiramente fiel quanto afirmava! Agora está tudo claro para mim... tudo o que ele vendeu, vendeu para ela, decerto que para ela! Apenas aquelas jóias de mulher que eram dela no mundo... ela tinha o direito ao preço que lhe dessem...

- Eu próprio irei buscá-la a Poleswoth, juntamente consigo - disse Hugh -, e Adam Heriet será tirado da sua prisão como homem livre para ir connosco. Quem terá mais direito?

O enterro do irmão Humilis tinha-se transformado no momento da ressurreição de Julian Cruce, de luto em celebração, de Sexta-Feira Santa em Páscoa.

- Uma vida que nos é levada e uma vida restituída - disse o adabe Radulfus -, é o equilíbrio perfeito para que não temamos nem a vida nem a morte.

O irmão Rhun saiu do refeitório com o espírito cheio de uma estranha mistura de prazer e tristeza e levou-os consigo para a quietude e solidão do pomar do mosteiro ao longo do Gaye. Não estaria lá ninguém àquela hora desta estação se ele saísse pela horta para os campos e fosse até ao limite dos terrenos do mosteiro. Mais adiante, as árvores iam até à beira da água, inclinando-se sobre o rio. Ao chegar aí parou e ficou a olhar rio abaixo, por onde Fidelis desaparecera.

A água ainda estava túrgida e escura, mas o nível tinha descido ligeiramente, embora ainda formasse manchas prateadas sobre as partes mais baixas dos pântanos na outra margem. Rhun pensou no corpo do amigo a ser arrastado para debaixo da superfície opaca, para nunca mais ser encontrado. Nessa manhã, uma mulher julgada morta fora restituída à vida e sentia alegria nisso, mas esta não compensava a dor que sentia pela perda de Fidelis. Sentia a sua falta com uma dolorosa intensidade, embora não tivesse dito uma palavra sobre a sua dor a ninguém nem respondido quando outros encontravam as palavras que ele não conseguia encontrar para dar expressão à dor.

Atravessou o limite dos terrenos do mosteiro e seguiu um caminho que serpenteava por entre a faixa de árvores para avistar a parte seguinte do rio. E aí parou subitamente e deu um passo para trás, pois mais alguém chegara lá antes dele, uma criatura ainda mais infeliz que ele próprio. O irmão Urien estava sentado, encolhido, na erva lamacenta no meio dos arbustos à beira da água, a olhar para os redemoinhos que se enovelavam e passavam. Rio abaixo, os espelhos baços das águas sobre os prados distantes tinham aumentado desde a tempestade com duas noites de uma chuva mais branda e, uma vez cheios, não drenariam, podendo apenas secar lentamente. A sua imobilidade e tranquilidade, reflectindo o azul pálido do céu e as fugazes nuvens brancas, faziam com que a velocidade demoníaca da corrente parecesse mais que um mero aspecto da natureza, antes uma força maligna que engolia homens.

Rhun não tinha feito barulho ao aproximar-se, no entanto Urien apercebeu-se de que não estava sozinho e virou o rosto defensivo, de olhos encovados e hostis.

- Também tu? - disse ele numa voz inexpressiva. - Porquê tu? Fui eu quem destruí Fidelis.

- Não, não fizeste tal coisa! - protestou Rhun, saindo do meio dos arbustos e indo para junto dele. - Não deves dizer nem pensar isso.

- Louco, tu sabes o que eu fiz, porquê negá-lo? Tu sabias, fizeste o que podias para desfazer o que eu fiz - disse Urien desconsoladamente. - Pressionei-o, ameacei-o... destruí Fidelis. Se tivesse coragem iria atrás dele da mesma forma que ele, mas não tenho coragem. Rhun sentou-se na erva ao lado dele, perto mas não lhe tocando, e estudou ansiosamente o rosto angustiado e amargurado.

- Não dormiste - disse ele suavemente.

- Como é que podia dormir sabendo o que sei? Não dormi, não, nem comi, mas demora-se muito tempo a morrer por não comer. Um homem pode sobreviver apenas com água durante muitas semanas. E eu não sou nem paciente nem corajoso. Só existe uma saída para mim, que é uma confissão total. Oh, não para ser absolvido, não... como retribuição. Tenho estado aqui sentado a preparar-me para ela. Daqui a pouco irei e ficará tudo arrumado.

- Não! - disse Rhun com súbita e feroz autoridade. - Não deves fazer isso. - Ele próprio não entendia bem por que é que aquele assunto era tão urgente, mas qualquer coisa espicaçava-lhe o espírito, alguma verdade nas profundezas de si próprio e que ele apenas vislumbrava em clarões oblíquos. Quando se virava para a seguir directamente, desaparecia. A vida e a morte eram ambas mistérios. Uma vida que nos é tirada e uma vida que nos é restituída, dissera o abade Radulfus, é o equilíbrio perfeito. Uma vida tirada e uma vida restituída, quase em simultâneo...

Nessa altura entendeu. A luz abriu-se brilhantemente à sua frente, o peso no seu coração desapareceu. Um equilíbrio perfeito, sim! Ficou sentado, extasiado, tão cheio e a transbordar de iluminação que todos os seus sentidos se viraram para dentro, para a luz, como umas mãos frias estendidas sobre um fogo vivo, e mal ouviu Urien dizer, num tom selvagem:

- E isso que tenho de fazer e que farei. Como é que eu posso continuar a suportar isto sozinho?

Rhun mexeu-se e acordou do seu transe de felicidade.

- Não precisas de estar sozinho - disse. - Agora não estás sozinho. Eu estou aqui. Diz-me a mim o que quiseres, mas nunca a mais ninguém. Talvez até mesmo o confessionário não seja segredo suficiente. E nessa altura destruirias tudo o que Fidelis foi, tudo o que Fidelis fez, difamando e enlameando tudo num objecto de desprezo, um escândalo que lançaria uma sombra sobre todos nós, sobre a Ordem, e sobretudo sobre a sua memória... - Deu por si a sorrir. - Vê como o hábito é forte! Mas eu sei... sei agora aquilo que podia dizer, e em nome de Fidelis isso nunca poderá ser dito. Decerto que vês isso, tão claramente como eu vejo. Não faças mais mal! Aguenta o que tiveres que aguentar, e sê tão silencioso como Fidelis foi.

O rosto empedernido de Urien estremeceu e derreteu-se subitamente como cera. Tapou violentamente os olhos com as mãos e curvou-se sobre a erva comprida e molhada e estremeceu com uma terrível tempestade de soluços secos e silenciosos. Rhun inclinou-se e abraçou confiantemente os ombros que estremeciam. Ao ser tocado, um grande e suave gemido trespassou o corpo de Urien, fluindo para fora dele, deixando-o inerte e imóvel. Outrora era Urien que tocava e Rhun que o olhava suavemente nos olhos e o enchia de raiva e vergonha. Agora Rhun tocava em Urien, punha-lhe um braço em volta dos ombros e deixava-o lá ficar, e toda a raiva e vergonha saíram dele num suspiro e deixaram-no limpo.

- Guarda o segredo. Tens de o guardar se o amavas.

- Sim... sim - disse Urien numa voz entrecortada do refúgio dos seus braços.

- Em nome dele... - Desta vez Rhun voltou atrás, sorrindo, para emendar o que dissera. - Por amor dela!

- Sim, sim... até à minha sepultura. Fica comigo!

- Estou aqui. Quando formos, iremos juntos. Quem sabe? Talvez o mal que foi feito não seja incurável.

- Os mortos podem voltar a viver? - perguntou Urien amargamente.

- Se Deus quiser! - disse Rhun, que tinha as suas razões para acreditar em milagres.

Julian Cruce chegou ao mosteiro de S. Pedro e S. Paulo a tempo de assistir à missa pelas almas do irmão Humilis e do irmão Fidelis, que tinham morrido afogados juntos na grande tempestade. Foi no segundo dia após o funeral de Humilis, um dia fresco e límpido com o céu azul e ameno e a terra macia e verde, ao qual tinha sido fugazmente restituído o brilho do Verão. Nessa altura, todas as almas de Shrewsbury e arredores já tinham ouvido a história da mulher que regressara dos mortos e toda a gente estava ansiosa por testemunhar o seu regresso. Havia uma grande multidão no pátio para a ver chegar a cavalo, com o irmão ao seu lado e Hugh Beringar e Adam Heriet atrás. Depois de passarem os portões desmontaram e os cavalos foram levados. Reginald levou a irmã pela mão e conduziu-a por entre a gente que observava até à porta da igreja.

Cadfael tinha alguns receios quanto àquele momento e colocara-se ao lado de Nicholas Harnage, onde poderia puxar-lhe a manga num aviso rápido se ele se sobressaltasse e proferisse alguma indiscrição.

Talvez tivesse sido melhor avisá-lo antecipadamente e prevenir o perigo. Mas, por outro lado, seria melhor se o jovem nunca estabelecesse a relação, e parecia valer a pena correr o risco. Se ele nunca fosse forçado a pensar no formidável rival que o precedera, e como devia ser indelével a memória de uma dedicação improvável de ser igualável, existiria menos uma barreira à sua própria corte. Se ele a abordasse com inocência, teria fortes vantagens, tendo tido a confiança e afeição de Godfrid Marescot, assim como já tendo provado amplamente a sua própria preocupação pela rapariga. Havia todas as probabilidades de êxito. Se ele a reconhecesse e visse num momento todo o padrão dos acontecimentos, talvez se sentisse demasiado desencorajado para alguma vez a abordar, pois quem se podia seguir a Humilis e não sair diminuído? Mas ele poderia... havia uma pequena hipótese... poderia ser suficientemente grande para aceitar todas as desvantagens. guardar segredo, e mesmo assim arriscar. Ele prometia. Mesmo assim, Cadfael estava atento e ansioso, com a mão perto do cotovelo do jovem.

Ela atravessou a multidão pelo braço do irmão. Não era uma grande beldade, simplesmente uma rapariga alta com uma capa e um vestido escuros, com um rosto oval sério, austeramente emoldurado por uma touca branca e um capuz azul-escuro. A irmã Magdalen e Aline entre si tinham-se saído bem. O luto geral proibia cores vivas, mas Aline tinha cuidadosamente evitado qualquer coisa que pudesse recordar o negro monástico. Elas tinham praticamente a mesma estatura, altas e esguias, e o vestido assentava bem. A tonsura levaria algum tempo a crescer, mas escondendo por completo o anel de cabelo castanho e cobrindo metade da testa alta ajudou muito a alterar a forma do rosto sério. Ela tinha escurecido as pestanas, o que lhe dava uma expressão diferente e uma iridescência ao cinzento-claro dos seus olhos. Ela ia de cabeça erguida e passou lentamente pelos homens que tinham vivido lado a lado com o irmão Fidelis durante muitas semanas, e eles não viram mais ninguém a não ser Julian Cruce, nada que tivesse a ver com o mosteiro de Shrewsbury. simplesmente a sétima maravilha do mundo exterior, interessante agora mas que seria em breve esquecida.

Nicholas viu-a aproximar-se e ficou cheio de uma gratidão profunda e cálida, simplesmente por ela estar viva. A sua vida podia não ter lugar para ele, mas pelo menos era dela, todos os anos que ele pensara terem-lhe sido roubados por um crime cruel, enquanto ali, ao que parecia, não existia nenhum crime. Ele podia fazer, faria, a

tentativa, mas não por enquanto. Ela tinha de ter tempo para o conhecer, pois ainda não sabia nada acerca dele, e ele não tinha qualquer direito sobre ela. a menos, talvez, que Hugh Beringar lhe tivesse contado a parte que ele desempenhara na sua busca. Mas nem isso lhe dava qualquer direito. Teria que o ganhar.

Mas quando ela ficou a par dele, virou a cabeça e olhou-o nos olhos. Um instante apenas, mas bastou.

Cadfael viu-o estremecer, viu-o abrir os lábios, talvez para gritar, devido ao choque de a ter reconhecido. Mas ele não fez qualquer som. Cadfael tinha-lhe agarrado o braço, mas largou-o de imediato, pois não tinha sido necessário. Nicholas virou-se para ele com os olhos cintilantes, estonteado e estonteante, e disse num murmúrio rápido:

- Não se preocupe! Agora sou eu o mudo!

“Um espírito tão rápido e ágil”, pensou Cadfael, com aprovação, “não seria travado pelas dificuldades. E a rapariga tinha apenas 23 anos. Tinham tempo. Por que é que uma rapariga que tinha tido a companhia dedicada de um excelente homem deixaria de apreciar o valor de um segundo? Que é que Humilis lhe teria dito naquele último dia em Salton? Teria sabido, no fim, o quê e quem ela era? Espero que sim. Sem dúvida que reconhecera os candelabros e o crucifixo, a partir do momento em que Hugh os descreveu, pois é claro que ela os levou consigo para Hyde e com Hyde deviam ter-se transformado em pó. Mas nessa altura creio que tinha dúvidas, com algum medo de que Fidelis tivesse estado envolvido na morte de Julian, e interrogava-se... No entanto, no fim fez-se luz, e decerto que ele soube a verdade.”

No seu lugar ao lado do irmão Urien, Rhun inclinou-se para ele para murmurar:

- Olha! Olha para a senhora! Esta é aquela que devia ter sido mulher do irmão Humilis.

Urien olhou, mas com olhos indiferentes que viram apenas o que esperavam ver. Abanou a cabeça.

- Tu conhece-la - disse Rhun. - Olha de novo!

Ele voltou a olhar e então reconheceu-a. O peso da culpa e dor e penitência abandonou-o como uma cotovia que levanta voo. Parou de cantar, pois tinha um nó na garganta e a língua muda. Ficou perdido entre o conhecimento e o espanto, o herdeiro do seu silêncio.

Julian saiu da igreja para o sol ameno com a expressão vaga do espanto, sofrimento e perda ainda no rosto. Observando-a das sombras do clausto, Nicholas abandonou a ideia de a abordar por enquanto. Agora que finalmente compreendia a grandeza do que ela fizera, tornava-se impossível oferecer-lhe um casamento vulgar e um amor habitual. Ainda não, não durante muito tempo. Mas ele podia esperar, manter o contacto com o seu irmão, abrir caminho até ela delicada e gradualmente e abrir-lhe o seu coração apenas quando o dela estivesse reconciliado e em paz.

Ela tinha parado, olhado em volta, retirado a mão da do irmão, como se procurasse alguém a quem devesse reconhecimento. O mais leve dos sorrisos tocou-lhe o rosto. Avançou para Nicholas com a mão estendida. Em torno do dedo do meio, a pequena serpente dourada entrelaçava-se numa rosca dupla e ele viu o minúsculo brilho dos seus olhos de rubi.

- Senhor - disse Julian, numa voz aguda, quase como a de uma criança, mas muito suave e doce -, o senhor xerife contou-me todas as provações que passou por minha causa. Lamento ter-lhe causado a si e a outros tantos problemas e preocupações escusadas. Os meus agradecimentos são uma pobre recompensa para tanta bondade.

A sua mão estava firme e fresca sobre a dele. O seu sorriso era ainda leve e distante, nada reconhecendo de qualquer outra entidade a não ser a de Julian Cruce. Ele poderia achar que ela estava a negar o seu outro eu, se não fosse o olhar límpido e directo dos seus olhos cinzentos, muito abertos para o incluir num conhecimento compartilhado, onde as palavras eram necessárias. Nada precisava alguma vez de ser dito quando tudo era conhecido e compreendido.

- Minha senhora - disse Nicholas -, vê-la aqui viva e bem é a única recompensa de que preciso ou quero.

- Mas espero que nos visite em breve em Lai - disse ela. - Seria muita bondade sua. Gostaria de lhe dar melhores satisfações.

E foi tudo. Ele beijou a mão que segurava e ela virou-se e afastou-se dele. Decerto que aquilo não era mais que pagar uma dívida de gratidão, como ela pagava todas as suas dívidas, até ao último escrúpulo de dor, dedicação e amor. Mas tinha-lhe pedido e ela não era uma daquelas mulheres que pedem sem verdadeiramente quererem. E ele iria a Lai, em breve, sim, muito em breve. Para se contentar com o toque da sua mão e com o seu sorriso pálido e com a indubitável confiança que ela acabara de colocar nele, até ser justo e honrado esperar mais.

Foram sentar-se na oficina de Cadfael, no herbário, no silêncio que se seguia ao jantar, a irmã Magdalen, Hugh Beringar e Cadfael. Terminara tudo, os curiosos tinham ido todos para casa, os irmãos, inocentes de qualquer problema excepto o da perda de dois dos seus irmãos, e dois que tinham estado com eles apenas durante um curto período de tempo, e além disso um tanto afastados da vista de todos. Em breve tornar-se-iam figuras muito difusas, a ser recordados pelo nome nas orações enquanto os seus rostos desapareciam da memória.

- Ainda poderiam vir a ser feitas algumas perguntas incómodas - reconheceu Cadfael -, se alguém se desse ao trabalho de investigar mais a fundo, mas agora ninguém o fará. A Ordem pode voltar a respirar. Não haverá nenhum escândalo, não serão lançadas calúnias, quer sobre Hyde, quer sobre Shrewsbury, não haverá inquéritos ordenados pelo núncio, os baladistas não espalharão rimas obscenas sobre os monges e as suas mulheres pelos mercados, nenhum bispo recairá sobre nós com visitações condenatórias, os críticos monges brancos não invectivarão sobre a frouxidão e devassidão dos Beneditinos... E nenhuma mácula se agarrará ao nome daquela pobre rapariga, sujando-o para toda a vida! Graças a Deus! - concluiu ele fervorosamente.

Depois dirigiu-se a uma das suas melhores garrafas de vinho. Sentia que o mereciam tanto quanto precisavam dele.

- Adam esteve sempre ao corrente - disse Hugh. - Foi ele que lhe arranjou a roupa para a transformar num jovem homem, foi ele que lhe cortou o cabelo e vendeu as poucas coisas que ela considerava suas para pagar o alojamento até ela se apresentar em Hyde. Quando ele disse que ela estava morta, falou com a amargura do seu coração, pois ela estava de facto morta para o mundo, por sua própria decisão. E quando o trouxe de Brigge, estava desesperado por notícias dela. pois tinha-a dado como perdida quando Hyde ardeu, mas quando eu lhe disse que havia um segundo irmão vindo de Hyde com Godfrid, então descansou, pois sabia quem devia ser o segundo. Teria preferido morrer a traí-la. Conhecia a maldade de que os homens são capazes, tão bem como nós.

- E ela, espero e creio - disse Cadfael -, deve saber a lealdade e dedicação de que pelo menos um homem foi capaz. Devia saber, dado que é o espelho da sua própria. Não, não havia nenhuma outra solução possível senão Fidelis morrer e desaparecer sem deixar rasto antes de Julian poder voltar à vida. Mas nunca pensei que a oportunidade surgisse como surgiu.

- Aproveitou-a com grande prontidão - disse Hugh.

- Era então ou nunca. Podia ter tido outro resultado. Madog nunca diria nada, mas ela tinha deixado de se importar quando Humilis morreu. - Ele tinha-a tido nos braços, ela própria semí-morta, naquela viagem a cavalo até Godric's Ford para a entregar à irmã Magdalen, a tonsura arruivada molhada sobre o seu ombro, o rosto pálido e sujo transformado em gelo, os grandes olhos cinzentos muito abertos, nada vendo. - Foi difícil tirá-lo dos braços dela. Sem Aline teríamos ficado perdidos. Quase receei que fôssemos perder a rapariga assim como o homem. Mas a irmã Magdalen é uma médica poderosa.

- A carta que escrevi por ela - disse a irmã Magdalen, recordando-a com um olho crítico mas satisfeito - foi a mais difícil que eu alguma vez tive de escrever. E nem uma mentira do princípio ao fim! Sem uma única mentira em toda ela. Talvez um ligeiro logro, mas nenhuma mentira. Isso era importante, compreenderão. Sabem por que é que ela decidiu passar-se por muda? Bom, há a questão da sua voz, é claro, uma voz claramente de mulher. O rosto... oh, é um bom rosto, definido e forte e delicado, um rosto que podia tão bem pertencer a um rapaz como a uma rapariga, mas não a voz. Mas, além disso - disse a irmã Magdalen -, ela tinha duas boas razões para ser muda. Em primeiro lugar, estava decidida a nunca lhe pedir nada, a nunca lhe fazer nenhum apelo de mulher, pois ela defendia que ele nada lhe devia, nenhum privilégio, nenhuma consideração. O que ela obtivesse dele teria que o ganhar. E, em segundo lugar, jurara nunca lhe mentir. Quem não pode falar não pode implorar ou convencer e não pode mentir.

- Portanto, ele não lhe devia nada e ela devia-lhe tudo - disse Hugh, abanando a cabeça perante a indecifrável singularidade das mulheres.

- Ah, mas ela também teve o que lhe era devido - disse Cadfael.

- Teve o que queria e considerava seu, até ao fim, até ao último momento. A sua companhia, cuidar dele, os segredos do seu corpo, tanta intimidade como no casamento... o amor dele, excedendo em muito os laços vulgares do casamento. Não adiantava nenhum homem dizer-lhe que ela estava livre, quando ela sabia que era uma esposa. Penso se, mesmo agora, ela estará livre.

- Ainda não, mas virá a estar - garantiu-lhes a irmã Magdalen.

- Ela tem demasiada coragem para desistir de viver. E se aquele jovem que gosta dela tiver coragem suficiente para não desistir de

amar, poderá sair-se muito bem. À partida tem uma forte vantagem, pois amou o mesmo ídolo. Além disso - acrescentou, vendo um futuro que continha uma certa promessa mesmo para alguns que agora sentiam que apenas tinham um passado -, duvido que a casa do irmão, com uma mulher à testa e três crianças, para não falar da outra que vem a caminho... não, duvido que o papel de irmã solteira em Lai tenha um atractivo duradouro para uma mulher como Julian Cruce.

A meia hora de descanso que se seguia ao jantar tinha passado, os irmãos voltaram ao seu trabalho e Cadfael fez o mesmo, despedindo-se dos seus amigos à esquina da sebe. A irmã Magdalen e dois dos seus fortes lenhadores regressariam a Godric's Ford pelo caminho de oeste e Hugh dirigia-se para casa. Cadfael atravessou o herbário e foi a um pequeno terreno onde tinha umas macieiras e uma pereira que ele próprio plantara e que já dariam fruto. Olhou para a cena com profunda satisfação. Tudo o que estava seco como palha começava a ficar verdejante. O ribeiro Meole ainda tinha alguns bancos de areia visíveis, mas já não era apenas uma triste rede de fios de água que corriam com esforço sobre seixos e areia. Setembro era de novo Setembro, sazonado e fértil após o calor e a seca do Verão. Muita da abundante fruta tinha caído por amadurecer devido à seca, mas mesmo assim haveria colheitas suficientes para a acção de graças. E todos os extremos das estações tinham-se recomposto e tinha sido ganho pelo menos metade do que se perdera. Assim se recompusessem as estações dos homens, com alguma ajuda sob a forma de chuva vinda dos céus.

Senhor, que consagraste o estado do Matrimónio num excelente mistério... Olhai misericordiosamente para estes teus servos.

 

 

                                                                                                    Ellis Peters

 

 

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