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CADFAEL 6 / O Mistério de Lázaro
CADFAEL 6 / O Mistério de Lázaro

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Naquela segunda-feira à tarde, em Outubro, no ano de 1139, o irmão Cadfael saiu pela porta principal com a sombria convicção de que, apesar de não ter razões para supor que estaria ausente mais de uma hora, algo agourento iria acontecer antes do seu regresso.

O seu destino era o hospital de Saint Giles, no lado mais longínquo do Monk's Foregate, quase a uma milha da abadia de Shrewsbury. A sua tarefa tinha por intuito reabastecer de óleos, loções e unguentos o seu armário de medicamentos do hospital.

Em Saint Giles utilizavam muitos destes remédios. Mesmo quando tinham poucos leprosos, para cujo controlo e assistência o albergue existia, havia lá sempre algumas almas necessitadas e doentes em recuperação, e a aplicação dessas ervas medicinais de Cadfael acalmavam e aliviavam não só a pele, mas também o espírito. Ele fazia esta peregrinação mais ou menos de três em três semanas para repor o que tinha sido usado na abadia. Nestes últimos tempos, ele fazia esta viagem com ainda mais agrado por causa do irmão Mark, o seu muito estimado e saudoso assistente na ervanária, que tinha pensado ser o seu destino ajudar aqueles infortunados durante um ano. E uma visita a Saint Giles era, assim, uma lembrança abençoada dos calmos dias do passado.

Para clarificar o assunto, os pressentimentos de Cadfael não se prendiam com os importantes eventos prestes a acontecer na abadia de São Pedro e São Paulo de Shrewsbury, nada tinham a ver com casar e dar em casamento, com presságios de morte súbita e violenta. Na realidade, ele estava à espera de que, na sua ausência, um recipiente cheio dum líquido precioso se quebrasse, ou mesmo que o braseiro aquecesse em excesso e pegasse fogo às ervas secas que por cima dele farfalhavam. Numa palavra, ele temia que toda a sua oficina ardesse.

 

 

 

 

 

 

Mark tinha sido gentil, cumpridor e habilidoso. Para o substituir, e para mal dos seus pecados, Cadfael tinha recebido o mais alegre, ingénuo, negligente e desajeitado dos querubins, eternamente esperançado, nunca casto, um noviço inexperiente de 19 anos com a mentalidade de uma feliz criança de doze. Apesar da sua pouca destreza, a sua vitalidade e confiança eram absolutas. Ele sabia que podia fazer tudo, pois vontade não lhe faltava, mas atrapalhava-se com o primeiro obstáculo, eternamente admirado e horrorizado com os resultados produzidos. Para completar o quadro apresentado, ele era a mais bem humorada e carinhosa alma do mundo. Mas, também, infelizmente, a mais inacessível, já que a esperança era eterna para ele. Quando repreendido por ter partido, arruinado, desarranjado ou queimado algo, ele enfrentava a crise serenamente, com penitência, seguro da graça a receber, confiante de que não repetiria os seus erros. Cadfael gostava dele, na mesma medida em que este o enfurecia, e tristemente contava já com os estragos que o rapaz quase certamente faria na sua ausência. No entanto, ele possuía virtudes para além da doçura da sua natureza. Para os trabalhos pesados, como cavar a terra, a mais árdua tarefa do Outono, ele entregava-se com o vigor que os outros devotavam à oração, e revirava a lama com um amor e dedicação que Cadfael só podia agradecer. Mas plantar é que não podia! O irmão Oswin tinha dedos mortíferos!

Por isso, o irmão Cadfael não tinha tempo para pensar no grande casamento que deveria ter lugar na abadia dentro de dois dias. Ele nunca mais tinha pensado no assunto até ao momento em que notou como, ao longo do portão principal, as pessoas se juntavam em grupos barulhentos do lado de fora das suas casas, alçando olhares expectantes para longe da cidade, para a estrada de Londres. O dia estava enevoado e frio, com aspecto chuvoso, mas tal não seria razão para as matronas de Shrewsbury perderem tal espectáculo. Por esta estrada chegariam os grupos para o casamento, e tinha-se espalhado o boato de que eles já se aproximavam da cidade. Uma vez que eles não podiam transpor as muralhas, um bom número de cidadãos tinha-se juntado ao povo da paróquia de Foregate. A agitação e o barulho quase se assemalhavam aos de um dia normal de feira. Mesmo os pedintes que se tinham agrupado junto ao portão principal tinham ar de animação própria de um feriado. Quando o barão, sua honra espalhada por quatro condados, chegava para casar com uma herdeira de terras tão numerosas como as dele, só se podia esperar que houvesse abastança nas celebrações.

Cadfael contornou a esquina do limite da muralha, através do amplo campo da feira dos cavalos, e continuou ao longo da estrada principal, onde as casas rareavam, e os campos e bosques invadiam as bermas da estrada que os atravessava. Também aqui as mulheres estavam à porta de casa, à espera de entrever os noivos quando estes chegassem, e em frente da grande casa, a meio caminho de Saint Giles, um grupo de espectadores interessados tinham-se reunido para observar a intensa azáfama através dos portões abertos do pátio. Era aqui que o noivo e a sua comitiva iam ficar hospedados, enquanto a noiva e o seu séquito iam ficar na casa de hóspedes da abadia. Atraído por tão humana curiosidade, Cadfael deambulou uns instantes para observar como os outros. Os criados e os palanfreneiros flutuavam de um lado para outro - da casa para os estábulos e volta, quais lampejos de alegres librés a cruzarem o pátio.

A casa era ampla, murada, com jardim e pomar nas traseiras. Pertencia a Roger de Clinton, bispo de Coventry, apesar de este a utilizar muito pouco. O facto de a ter emprestado a Huon de Domville, dono de solares em Shropshire, Cheshire, Stafford e Leicester, era, em parte, um gesto amigável para com o abade Radulfus e, em parte, uma homenagem política a um poderoso barão cuja amizade e protecção seria favorável cultivar nestes tempos de guerra civil. O rei Stephen poderia controlar muito do país, mas no oeste a facção rival estava firmemente estabelecida. Havia muitos senhores prontos a mudar de posição se tal trouxesse proveito. A imperatriz Maud, acompanhada do seu meio-irmão Robert, duque de Gloucester, e de cento e quarenta cavaleiros, tinham chegado a Arundel há cerca de três semanas. Através da generosidade mal aconselhada do rei ou das recomendações desonestas de falsos amigos, tinha-lhe sido permitido chegar a Bristol, onde a sua causa inconquistavelmente se tinha instalado. Aquí no jovial Outono do campo, tudo poderia parecer estar em paz, mas os homens tinham um ar hostil e sustinham a respiração quando ouviam as últimas notícias, e mesmo os bispos poderiam precisar de amigos poderosos quando tudo chegasse a conflito aberto.

Para lá da casa do bispo, a estrada abria-se por entre as árvores, deixando a cidade bem para trás, e, na encruzilhada, à distância de um tiro de seta, surgia o longo e baixo telhado do albergue, com o seu recinto vedado. Para lá ainda, aparecia o telhado levemente mais alto da igreja, com uma pequena e curta torre no topo. Era uma igreja convenientemente modesta, com uma nave, uma capela-mor e uma ala norte; tinha um cemitério nas traseiras com uma cruz de pedra trabalhada no meio. Os edifícios estavam discretamente colocados fora das duas estradas que convergiam para a cidade, não só porque os leprosos não podiam andar nas ruas mais movimentadas das cidades, mas também porque deviam manter a distância quando estivessem no campo a fazer os seus peditórios. Saint Giles, o seu patrono, tinha deliberadamente escolhido o deserto para sua habitação, mas estes não tinham outra solução senão ficarem de parte.

No entanto, era óbvio que eles tinham a sua quota-parte de curiosidade humana tal como os seus semelhantes, pois eles também estavam a olhar para a estrada. Por que razão não poderiam aqueles infelizes serem ao menos livres para observarem os seus irmãos mais afortunados, quanto mais não fosse para invejá-los, se tal fosse o caso, ou para desejar-lhes felicidades no casamento, se assim o quisessem? Uma linha inconstante de figuras escuras e encapu-çadas guarnecia a vedação de vimes, tão animada se não tão ágil como os seus semelhantes mais saudáveis. Alguns deles eram conhecidos de Cadfael, e tinham-se estabelecido ali para sempre, tentando tirar o maior proveito das suas vidas mutiladas perto dos amigos. Alguns eram novos. Havia sempre novos doentes, aqueles viajantes cujas viagens se ficavam pela distância entre os leprosários ou que se estabeleciam durante algum tempo num eremitério sob a caridade de um benfeitor, antes de continuarem a sua viagem para uma nova solidão. Alguns usavam muletas ou apoiavam-se em bastões, com os pés mutilados pela doença ou doridos com feridas. Um ou dois empurravam-se em pequenos carros de mão. Um deles, disforme, abrigava-se de encontro à vedação, coberto de úlceras, escondendo a face desfigurada dentro do capucho. Alguns, apesar de ainda activos, tinham a cara velada, deixando de fora somente os olhos.

A sua quantidade variava à medida que os mais irrequietos prosseguiam viagem, evitando todas as cidades, para algum outro albergue com vista para outra paisagem. No total, o hospital recebia e tratava entre vinte a trinta doentes de uma só vez. O superior era nomeado pela abadia. Os irmãos religiosos e leigos trabalhavam lá de sua livre vontade. Não era raro o servente tornar-se o servido, mas nunca houve falta de voluntários para substituir e tratar os que ficavam doentes.

Cadfael tinha feito o seis anos (ou mais) de serviço, e não sentiu repulsa, só pena, pois o respeito funciona como um maior encorajamento e apoio. Além disso, ele ia lá tanta vez, que as suas visitas já faziam parte de uma paciente e permanente rotina como a dos serviços da igreja. Ele tinha limpo mais e piores feridas que ele gostaria de recordar, e tinha descoberto que existiam corações bem vivos e mentes bem activas dentro das conchas desfiguradas que ele tinha tratado. Cadfael também tinha visto batalhas aquando do seu tempo no mundo, batalhas tão longínquas como as de Acre, Ascalon e Jerusalém durante a primeira Cruzada, e tinha presenciado mortes mais cruéis que a doença, pagões mais gentis que cristãos. Ele conhecia lerpas do coração e feridas da alma piores, algumas daquelas em que ele tinha posto cataplasmas e tinha lancetado com as suas ervas medicinais. Não o tinha surpreendido saber que o irmão Mark tinha sido eleito para seguir os seus passos. Ele estava bem consciente que havia, no entanto, um passo além dos seus que Mark estava predestinado a tomar. O irmão Cadfael conhecia-se demasiado bem para alguma vez supor que chegaria a padre. Mas sabia reconhecer esta capacidade nos outros.

O irmão Mark viu-o aproximar-se, e depressa veio ter com ele, a sua cara simples iluminada, o seu cabelo espinhudo e cor de palha todo erguido ao redor da tonsura. Ele trazia pela mão uma criança escrofulosa. Tratava-se de um rapaz pequeno e magro, com o louro cabelo coberto de feridas antigas e secas. Mark retirou uns cabelos que pendiam duma ferida, e olhou para a criança cheio de ternura.

- Ainda bem que vieste, Cadfael. Está-se-me a acabar a loção de parietária que tanto bem lhe tem feito. A última ferida está quase curada, e o seu pescoço está mais desinchado. Então, Bran, meu rapaz, mostra lá ao irmão Cadfael! Ele é que faz os remédios que nós usamos aqui, ele é o nosso médico. Pronto, podes ir ter com a tua mãe e ficar perto dela, senão perdes o espectáculo. Eles estão quase a chegar.

A criança retirou a sua mão da de Mark e correu para junto do pequeno e triste grupo que, mesmo assim, se recusava a ser triste. Ali, tagarelavam, havia um pouco de música, mesmo alguns risos. Mark tomava conta do seu protegido mais novo, vigiava os tristes deformados que lutavam com problemas de subnutrição e, visivelmente, preocupava-se. A criança só ali estava há um mês, a sua pele ainda era fina como o papel.

- E, no entanto, ele não é infeliz - disse ele, maravilhado. Quando não está ninguém por perto, ele segue-me e tagarela o dia todo.

- Galês? - perguntou Cadfael, examinando a criança, pensativamente. - Ele deve ter herdado o seu nome de Bran, o Abençoado, que trouxe o Evangelho para o País de Gales.

- O pai era galês. - Mark voltou-se e olhou para o seu amigo de um modo fervoroso e esperançado. - Achas que ele se cura? Que se cura por completo? Ao menos ele agora está bem alimentado. A mãe irá morrer aqui. Bom, de qualquer modo, ela tornou-se indiferente; assaz amável, mas satisfeita por não ter de tomar conta dele. No entanto, eu acredito firmemente que ele poderá voltar são e escorreito para a vida.

"Ou voltar-lhe as costas", pensou Cadfael. "Pois se ele te segue tão assiduamente, apenas pode ser influenciado pela Igreja ou pela clausura... e a abadia está aqui tão perto."

- É uma criança inteligente? - perguntou Cadfael.

- Mais inteligente que muitos dos que são criados conforme a tradição latina, e consegue ler e contar. Mais inteligente que muitos que de fino linho se vestem e nasceram em berço de oiro, com uma ama para os amimar. Vou tentar ensinar-lhe alguma coisa, tanto quanto puder.

Eles caminharam de volta para a porta do hospital. O tom das vozes dos que esperavam tinha subido, e ao longo da estrada outros sons aproximavam-se gradualmente. Sons compostos do tilintar das armaduras, dos gritos dos falcoeiros, bocados de conversas, risos, o bater dos cascos dos animais que preferiam usar a berma relvada em vez da estrada nua. Uma das procissões nupciais estava a aproximar-se.

- Dizem que o noivo vai ser o primeiro a chegar - disse Mark, passando da varanda para a obscuridade da sala, conduzindo o irmão Cadfael até ao armário dos remédios. Fulke Reynard, um dos despenseiros da abadia e superior do hospital, tinha uma chave; o irmão Cadfael possuía a outra. Ele abriu o seu rol, e começou a pôr de parte os preparados que tinha trazido.

- Sabes alguma coisa sobre eles? - perguntou Mark, sucumbindo à curiosidade.

- Eles? - murmurou Cadfael, absorto na revisão que estava a fazer das lacunas do armário.

- Estas pessoas nobres que vêm cá casar. Tudo o que sei são os nomes. Eu não devia ter prestado tanta atenção - disse Mark, envergonhado -, mas as pessoas daqui, que só têm as suas feridas e deformações para pensar, sabem mais que eu sobre o assunto, Deus sabe como, e é como uma centelha de calor para eles. Como se algo radioso brilhasse sobre eles, que lhes dá mais força que eu. E, no entanto, não passa de um casamento!

- Um casamento - disse Cadfael gravemente, empilhando frascos de bálsamos e garrafas de loção feita de alcana, anémona, hortelã, escrofulária e grãos de aveias e cevada, sendo a maior parte delas ervas de Vénus e da Lua. - Um casamento é o entrelaçar de duas vidas e, portanto, um assunto muito sério. - Ele adicionou os frutos da mostarda, que diziam respeito a Marte, mas proporcionavam formidáveis pastas e cataplasmas contra feridas malignas. - Todo o homem e mulher que já enfrentaram uma provação - disse ele, pensativamente -, devem sentir-se preocupados com aqueles que estão prestes a passar pelo mesmo. Mesmo aqueles que nunca tenham passado por tal situação, podem sentir compaixão.

O matrimónio era uma luta que ele nunca tinha tentado, apesar da sua larga experiência anterior à entrada no convento; mas ele tinha estado bem próximo uma vez, e tinha-o logrado mais de uma. Quando se lembrava disso, sentia-se algo surpreendido.

- Este barão é um homem com um nome famoso, mas nada sei dele, a não ser que está, diz-se, em bons termos com o rei. Creio que uma vez conheci um velho parente da noiva. Mas se ela descende da mesma linha de parentesco, isto já não sei.

- Espero que ela seja bonita - disse Mark.

- O prior Robert estaria interessado em ouvir-te dizer isso - disse Cadfael secamente, e fechou a porta do armário.

- A beleza é uma coisa muito saudável - disse o irmão Mark, de um modo determinado e desembaraçado. - Se ela é jovem e graciosa, se ela sorrir para eles e inclinar a cabeça ao passar por eles, se ela não se retrair com a visão deles, ela fará mais por eles que eu alguma vez conseguirei fazer com sondas e cataplasmas. Aqui, começo a aprender que a bem-aventurança, é o que se pode retirar do dia que passou e guardar para recordar mais tarde. -Ele acrescentou, recorrendo à súplica: - claro que não tem de ser necessariamente uma festa de casamento. Mas como se pode desperdiçar tal oportunidade?

Cadfael pôs um braço à roda dos ombros ainda magros e desamparados de Mark, e levou-o para fora da obscuridade da sala até à crescente excitação e luz brilhante lá de fora.

- Vamos esperar e rezar - disse Cadfael cordialmente - que este casamento seja fonte de bem-aventurança para o par envolvido. Pelos barulhos que ouço, um deles está a chegar neste momento. Anda, vamos ver! ...

O nobre noivo e o seu séquito aproximaram-se num vislumbre de cores vivas, com sons de trombeta e contínuos clamores de campainhas de arreios, um cortejo que media cinquenta passos, ladeado por criados conduzindo os cavalos de carga, e dois pares de cães de caça presos a trelas. O pequeno e errante grupo de rejeitados atreveu-se a avançar avidamente uns poucos passos para ver melhor aqueles finos tecidos e esplêndidas tintas que nunca poderiam possuir, e formaram um mudo e reverente murmúrio de admiração à medida que a procissão se punha a par da vedação de vimes.

A frente, num cavalo negro e alto, com as suas próprias vestes e as da montada todas em escarlate e dourado, ia um homem bem constituído, corpulento e pesado, deselegante mas seguro de si na sela, e num lugar bem à frente do seu séquito, para que a sua proeminência fosse vista até ao absoluto. Atrás dele, vinham três jovens escudeiros par a par, mantendo uma vigilância atenta e hostil ao seu senhor, como se ele pudesse a qualquer momento virar-se e sujeitá-los a algum teste arriscado. A mesma tensão, sem medo, passava igualmente para as hierarquias seguintes, desde o pajem, camareiro, criado, falcoeiro, até aos rapazes que eram arrastados pelos cães. Só os animais, tanto o cavalo como o cão, e os falcões na armação do falcoeiro, se sentiam calmos e complacentes, sem medo do seu senhor.

O irmão Cadfael ficou com Mark junto ao portão da vedação de vimes, e observou com acentuada atenção. Qualquer um dos três jovens escudeiros teria dado um óptimo noivo, mas era óbvio que nenhum deles era Huon de Domville. Só agora Cadfael se apercebera que este barão já tinha passado há muito a juventude, que já não era um jovem apaixonado envolvido no casamento. Os seus cabelos eram mais cinzentos que pretos na sua barba curta e cheia, o cabelo, à frente, era só uma franja grisalha e encaracolada, e o brilho duma coroa careca despontava na têmpora, onde o seu elaborado capuz pendia dissolutamente para o lado. Tinha ainda um corpo muscu-lado, poderoso e grosso, mas já passava dos cinquenta; na realidade, estava mais próximo dos sessenta. Cadfael aventurou que até agora este homem já devia ter esgotado pelo menos uma mulher, provavelmente duas. Dizia-se que a noiva tinha acabado de fazer dezoito anos, ainda mal saída da infância. Bom, estas coisas acontecem, estas coisas fazem-se.

Então, à medida que o cavaleiro se aproximava, Cadfael não pôde desviar os olhos da sua cara. Uma testa larga e plana, tornada alta pelo cabelo que retocedia, lançava quase nenhuma sombra sobre os olhos pequenos, negros e perpiscazes, pouco doados com pestanas e órbitas, mas malevolamente inteligentes. A barba aparada deixava à vista uma boca estreita e impecável. Tinha uma cara maciça e bruta, musculada como a de um lutador, por esculpir, inacabada. Uma cara que não devia ter uma mente subtil por detrás, para tornar o homem ainda mais formidável, que, na verdade, já era. E este era Huon de Domville.

Ele tinha-se aproximado o suficiente para ver que tipo de criaturas eram aquelas que se agitavam e espreitavam e apontavam excitadamente junto à igreja e ao longo do muro do cemitério. A visão não lhe agradou. Os olhos pretos, como pequenas ameixas embutidas da dura massa do seu rosto, ficaram de um vermelho-fosco, como carvões incandescentes. Deliberadamente, ele guiou o seu cavalo para o outro lado da estrada, deixando a orla contrária, que era mais larga, e cavalgou sobre a relva mais próxima. E isto tudo para somente mandar aquela miserável turba de volta para os seus casebres. E a sua maneira de acenar foi com a chibata do chicote de montaria, que ele levava consigo. Quase de certeza que nunca a teria utilizado no seu cavalo, que era de raça pura e valioso, muito apreciado pela sua qualidade; mas para afastar os leprosos do seu caminho servia. A boca cerrada abriu-se amplamente para ordenar imperiosamente:

- Saiam do meu caminho, vermes! Levem a vossa doença para longe de mim!

Eles encolheram-se e afastaram-se numa pressa humilde para longe do seu alcance, se não da sua vista. Todos menos um. Meia cabeça mais alto que os seus companheiros, uma figura magra e en-capuçada ficou no mesmo lugar, quer por incapacidade para se mover depressa, ou por não ter compreendido, ou num desafio mudo. Ele manteve-se erecto, atentamente vigiando pela abertura do véu que cobria a sua cara. Quando ele recuou um passo, sem voltar a cabeça, descansou toda a sua força sobre um pé, e foi demasiado lento para evitar a chicotada, se é que na realidade ele queria mesmo evitá-la. O golpe atingiu-o no ombro e no peito. O seu pé deformado não aguentou com o seu peso e ele caiu pesadamente na relva.

Cadfael tinha começado a andar, mas Mark antecipou-se, arremessando-se para o chão com um grito indignado. Pôs-se de joelhos e passou um braço em volta da esquelética figura, colocando o seu próprio corpo entre o homem caído no chão e o próximo golpe. Mas Domville já tinha passado, desdenhoso das desgraças do mundo. Não apressou nem atrasou o seu passo, e continuou sem olhar para o lado, com todo o seu séquito atrás de si, que, no entanto, se manteve na estrada, tendo mesmo alguns virado a cara. Os três jovens escudeiros passaram com um ar atrapalhado e comprometido. O jovem escudeiro do meio, forte e louro, voltou-se totalmente para os dois, leproso e frade, e lançou-lhes um triste olhar de olhos tão azuis como centáureas, e cavalgou um bom bocado com o queixo enfiado no peito, até que os seus colegas o chamaram à razão e de volta para o seu dever, com uma cotovelada.

O cortejo continuou a passar enquanto Mark ajudava o desvalido homem a pôr-se de pé. Os criados seguiram com ar de enfado, protegidos contra o mundo pelo seu servilismo. Algumas outras figuras nobres, convidados ou parentes afastados, passaram com um ar gentil, como se nada tivesse acontecido. Juntamente, um clérigo de ar reservado enrolava as suas contas, sorrindo levemente, ignorando tudo. Dizia-se que um tal Eudo de Domville, cónego de Salisbury, ia realizar a cerimónia do casamento; era um homem em bons termos com a igreja e o legado papal, em vias de ser promovido, e provavelmente desejoso de assim continuar. Ele passou com os outros. Os pajens, os camareiros, os cães seguiram-se, e todas as pequenas campainhas dos freios e dos pios tiniram à medida que passavam, e continuaram com o seu tilintar lento até ao limite do Foregate.

O irmão Mark levantou-se da relva, apoiando o velho leproso com o braço. Cadfael tinha-se retirado e deixado os dois sozinhos. Mark não temia o contágio, porque ele nunca pensava no perigo e entregava-se totalmente ao seu trabalho. Nem ele se teria surpreendido ou queixado se, por fim, a doença o contagiasse e o aproximasse ainda mais das pessoas que ele servia. Ele estava a falar com o seu companheiro num tom suave e animado, pois estavam ambos habituados a serem rejeitados e não se importavam muito. Cadfael viu quando eles se aproximaram e fixou o andar manco mas firme do velho, e o breve gesto com que a sua mão esquerda, emerginmdo momentaneamente da longa manga, afastou o braço de Mark e colocou um passo de distância entre os dois. Mark aceitou a sua recusa com simplicidade e respeito, e deixou-o sozinho. Cadfael tinha também visto que na mão esquerda, em tempos longa e bem formada, faltavam o indicador e os dedos do meio, e tinha somente duas falanges do terceiro. A textura das partes mutiladas era branca, enrugada e seca.

- Um procedimento muito pouco nobre - disse Mark com resignação sentida, sacudindo os bocados de relva das suas saias. -Mas o medo faz os homens cruéis.

O irmão Cadfael tinha as suas dúvidas se o medo teria tido algo a ver com o acontecimento. Huon de Domville não parecia ser o tipo de homem que tivesse medo de algo menos que o fogo do Inferno, apesar de ser verdade que a doença daqueles ostracizados era muito parecida com o fogo do Inferno.

- Um novo doente? - perguntou ele, observando o alto leproso, que se tinha aproximado da berma para tornar a ver a estrada. - Acho que nunca o vi aqui antes.

- Não, ele chegou há cerca de uma semana. Ele é um caminhante, está em perpétua peregrinação de santuário em santuário tanto quanto a sua condição o permite. Diz que tem setenta anos, e eu acredito nele. Não vai ficar muito tempo aqui, creio eu. Ele fez uma paragem aqui por causa dos ossos de Santa Winifred terem estado aqui na igreja antes de terem ido para a abadia. Ali, tão perto da cidade, ele não pode ir. Aqui, sim.

Cadfael, que conhecia a história do paradeiro daquela conhecida virgem, história que nunca poderia contar ao seu inocente amigo, esfregou pensativamente o seu moreno nariz, e reflectiu tranquilamente que até da sua longínqua sepultura em Gwytherin, Santa Winifred se poria em movimento para ouvir as orações do pobre e aflito homem.

Os seus olhos seguiram a alta e direita figura. Na amortalhada anonimidade do capuz e da capa escuros, e do véu de fazenda que escondia as feições dos mais desfigurados, homens e mulheres, velhos e novos pareciam ir, secreta e isoladamente, vivendo o resto de vida que lhes era permitido. Não tinham género, idade, cor, país ou credo: eram todos fantasmas vivos, conhecidos apenas pelo seu fazedor. Mas não, não era assim. Pelo andar, pela voz, pela estatura, por mil defeitos infinitesimais, por diferenças de carácter e tipo que furavam o disfarce, eles tornavam-se únicos. Este homem dominava através do seu silêncio e duma rara e impressionante dignidade que se manifestava mesmo debaixo de ameaça.

- Já falaste com ele?

- Sim, mas ele fala pouco. Pelo seu modo de falar - disse Mark

- penso que os seus lábios ou a sua língua devem estar corrompidos. As palavras saem-lhe com dificuldade, mal pronunciadas, e ele cansa-se facilmente. Mas a sua voz é calma e profunda.

- Que remédios é que lhe estás a dar?

- Nenhuns, pois ele diz que não precisa deles, usa o seu próprio bálsamo. Ninguém aqui viu a sua cara. Por isso é que eu julgo que ele deve estar muito mutilado. Já deves ter notado que um pé está estropiado? Ele perdeu todos os dedos daquele pé, salvo o toco do dedo grande. Ele possui um sapato construído especialmente para o apoiar, uma sola estável para o ajudar a andar. Penso que o outro pé pode também estar afectado, mas está, com certeza menos mutilado.

- Eu vi a sua mão esquerda - disse Cadfael. Ele tinha já visto tais mãos com os dedos corrompidos até caírem como folhas mortas, a corrosão da carne roendo lentamente até o pulso perder os seus ossos. No entanto, parecia-lhe que este demónio devorador tinha sucumbido devido à sua própria gula. Não tinha quaisquer crostas; a carne branca e cicatrizada onde os dedos perdidos tinham um dia estado, estava seca e curada, apesar de feia. Músculos firmes tinham-se movido nas costas da mão quando ele gesticulou.

- Ele disse-te o seu nome?

- Diz que o seu nome é Lázaro. - O irmão Mark sorriu. - Penso que é um nome que ele deu a si próprio num baptismo tardio... talvez quando ele cortou laços com a família e casa, tal como diz a lei. É um segundo nascimento, apesar de lamentável. Ele foi padrinho do seu segundo baptismo. Eu não faço perguntas. Mas desejo que ele pedisse a nossa ajuda em vez de contar só consigo. Ele deve ter, de certeza, algumas feridas ou úlceras que poderiam beneficiar das tuas loções antes de partir como chegou.

Cadfael cismou enquanto comtemplava a afastada figura, parada no topo da rampa da selva.

- No entanto, ele não está insensível! Ele tem ainda força no corpo, nos membros que lhe ficaram? Ele sente frio e calor? E dor? Se ele espetar a sua mão num prego ou numa lasca da vedação, ele apercebe-se disso?

Mark sentia-se perdido; ele conhecia a doença só de a ver nos doentes que tratava, feia de se ver, ulcerada, cheia de feridas.

- Ele sentiu a dor do chicote, eu sei, mesmo através da protecção do seu capote. Sim, tenho a certeza de que ele sente como os outros homens.

"Mas aqueles que têm a verdadeira lepra", pensou Cadfael, recordando-se do muito que ele tinha visto nos seus dias de Cruzadas há muito tempo, "aqueles que embranquecem como a cinza, aqueles cuja pele se pulveriza em pedaços cinzentos, não sentem como os outros homens no extremo da sua doença. Eles magoam-se a si próprios, sangram, e não se apercebem da dor. Eles deixam um pé aproximar-se do fogo quando estão a dormir e só acordam com o cheiro da sua própria carne a queimar. Eles tocam e não têm a certeza de tocarem, agarram mas não conseguem levantar o que seguram. Sem sensação, sem propósito, pés, mãos caem e apodrecem. Tal como Lázaro tinha perdido os dedos. Mas tais vítimas não andam, mesmo de modo imperfeito, como Lázaro andou, não se levantam do chão com energia tão viva ou se agarram a um apoio como Lázaro tinha-se agarrado ao braço que Mark ofereceu para ajudar, apesar da sua mão mutilada. Pelo menos, não até o demónio que os devorou ter morrido devido à sua própria corrupção."

- Estás a pensar - perguntou Mark cheio de esperança - que ele afinal não é um leproso?

- Oh, sim! - Cadfael acenou com a cabeça rapidamente. - Sim, não restam dúvidas, aquilo é mesmo lepra.

Ele não acrescentou que, na sua opinião, muitas das doenças ali tratadas, apesar de sofrerem a mesma punição e de serem chamadas pelo mesmo nome, não eram verdadeira lepra. Qualquer homem cuja pele apresentasse nódulos que se transformassem em feridas, erupções escameadas ou feridas em pústula, era denominado um leproso. No entanto, Cadfael suspeitava que muitos destes casos resultavam da falta de limpeza, e muitas outras de pouca ou má alimentação. Ele sentiu pena de ver o irmão Mark perder as esperanças. Sem dúvida que ele sonhava curar todos os que ali iam parar.

Do lado da estrada chegou o primeiro e distante murmúrio de outro grupo a aproximar-se da cidade. Os sussurros dos mirones, subjugados pela inauspícia passagem de Domville, cresceu até atingir os tons alegres do chilreio dos pardais, e eles desceram um pouco da elevação de relva, espreitando e estendendo os pescoços para verem um pouco do cortejo da noiva. O noivo tinha trazido só tristeza. Talvez a noiva fosse melhor.

O irmão Mark fez por esquecer o seu pequeno desapontamento e Puxou o irmão Cadfael pela manga.

- Vem, já agora vem ver o resto. Eu sei que tens tudo em ordem na ervanária, mesmo sem a minha ajuda. Por que hás-de ter pressa em voltar?

Lembrando-se das especiais habilidades do irmão Oswin, Cad-fael poderia dar-lhe muitas razões para que não abandonasse a sua oficina durante tanto tempo, mas também havia uma boa razão para ficar.

- Julgo que mais uma meia hora não fará mal - concordou ele. - Vamo-nos colocar junto deste teu Lázaro onde eu possa observá-lo sem o incomodar.

O velho homem nem se mexeu quando os ouviu aproximarem-se e se postaram um pouco ao lado, para não interromperem a sua remota contemplação. Ele tinha, pensou Cadfael, a tranquilidade auto-suficiente dum eremita do deserto; tal como os primeiros antepassados tinham procurado uma solidão austera, este homem tinha criado a sua, mesmo entre os outros homens. Ele ultrapassava os dois na altura de uma cabeça, e mantinha-se direito como uma lança, e quase tão magro como uma, excepto pelos largos ombros debaixo do manto. Somente quando o barulho do grupo que se aproximava subitamente estoirou trazido por uma brisa, e ele voltou a sua cabeça para olhar para onde o som tinha vindo, Cadfael viu de relance a face que o véu escondia. O capuz tapava a fronte que, pela forma da cabeça, devia ser larga e imponente, e o véu de cru pano azul subia até aos ossos da face. Na abertura do meio só os olhos apareciam, mas eram interessantes o suficiente, grandes, limpos, de um azul-cinza-pálido, mas claro e brilhante. Quaisquer que fossem as suas deformidades que escondia, os seus olhos viam claro e distante, e estavam habituados a ver longe. Ele não prestou qualquer atenção aos dois que estavam perto dele. O seu olhar passou para além deles, para onde o grupo que se aproximava se mostrava num vislumbre de cores e num alterar de luz.

Havia aqui menos pompa que com o séquito de Huon de Domvil-le, e muito menos gente. Nem sequer havia uma figura dominante a conduzir o cortejo, mas sim um alvoroço de pajens no papel de batedores, e dentro do círculo formado por eles, como se se tratasse duma guarda armada, vinham três pessoas lado alado. Num lado, um homem forte, escuro e de rosto comprido, com aspecto de ter quarenta e cinco anos, esplendidamente vestido de cores sombrias e brilhantes e bem montado num cavalo cinzento e esguio, certamente traçado de árabe, pensou Cadfael. O homem tinha cabelo preto muito abundante que se enrolava debaixo de uma boina emplumada, e uma barba negra e aparada a emoldurar uma boca de lábios compridos. Tinha uma cara comprida e fechada, subtil e desconfiada. No outro lado ia uma senhora da mesma idade, magra e bem arranjada e visivelmente bonita, escura como o seu senhor, e montada numa égua ruça. Ela tinha uma boca franzida e calculista, e olhos perspicazes debaixo de sobrancelhas também franzidas, mesmo quando a boca sorria. O seu penteado estava conforme a última moda, o seu traje de montar tinha o talhe de Londres, ela montava com graça e estilo; no entanto, o seu aspecto impressionava pela sua frieza.

E, no meio destes dois, acanhada e eclipsada, ia uma pequena e acriançada figura, montada num palafrém demasiado grande para ela. O seu toque na rédea era leve e o seu modo de montar indiferente mas gracioso. Estava sumptuosamente vestida de sedas douradas e azuis, mas a sua forma parecia estar apertada pelo peso das fazendas, como um corpo dentro dum caixão. A sua cara, sob uma rede dourada carregada com cabelo dourado-escuro, fitavaVvazio em frente. Era uma cara suave e redonda, com traços delicados, grandes olhos cinzentos, mas tão pálida e subjugada que mais parecia ser uma boneca bonita que uma mulher de carne e osso. Cadfael sentiu Mark prender a respiração com a surpresa. Era uma pena ver a beleza e mocidade tão silenciosa e despojada de alegria.

Este senhor também se tinha apercebido da natureza deste lugar e dos que tinham saído dele para ver a sua sobrinha passar. Ao contrário de Domville, ele não esporeou o cavalo quando os viu, mas desviou a montada para o outro lado de maneira a dar aos doentes um maior espaço, e voltou a cara para o outro lado para evitar vê-los. A rapariga poderia ter passado sem os notar, tão embebida estava na sua tristeza submissa, se Bran, com os olhos brilhantes, não se tivesse esquecido da sua condição e corrido pelo outeirinho de modo a obter uma melhor vista. A rapidez de movimento despertou-a e fez que ela olhasse em volta. Ao vê-lo, ela voltou ávida pela comovente contemplação de um inocente ainda mais infeliz que ela. Por um instante, ela olhou para ele com nada mais que com compaixão e horror, mas depois, vendo que ele olhava para ela com um grande sorriso, ela sorriu também. Durou somente um instante, mas durante aquele instante ela brilhou com uma amabilidade quente e grave. E antes do céu se tornar novamente sombrio, ela tinha esticado o braço para a sela da tia e atirado uma mão-cheia de moedas para onde a criança estava. Bran estava tão enfeitiçado que nem se baixou para as recolher, e seguiu-a de olhos e boca abertos.

Ninguém mais tinha sido caridoso aqui. Certamente, que estavam a reservar-se para o portão da abadia, onde encontrariam uma multidão de pedintes esperançados aguardando.

Por nenhuma razão especial, Cadfael deixou de olhar para a criança para observar o velho Lázaro. Bran podia deliciar-se inocentemente com as cores vivas e as fazendas bonitas daqueles mais afortunados que ele, sem sentir inveja ou ganância, mas os mais velhos e experimentados poderiam sentir um certo gosto amargo em ver o fruto proibido. O velho homem não se tinha mexido, à excepção da sua cabeça que se tinha movido para seguir com a vista aqueles três cavaleiros, sem sequer olhar para as mulheres e criados que os seguiam. Os olhos que viam por entre o capuz e o véu resplandeceram palidamente, de um azul de gelo, sem pestanejarem, enquanto a noiva não desapareceu de vista. Mesmo quando o último cavalo tinha desaparecido, depois da curva do Foregate, ele não se mexeu, como se a presteza do seu olhar pudesse segui-los até ao portão e perfurar as paredes de maneira a manter uma constante vigilância neles.

O irmão Mark inalou longa e tristemente e voltou-se com um olhar divagador para o irmão Cadfael.

- E aquilo é a noiva? E vão casá-la com aquele homem? Ele podia ser seu avô... e é um bom antipático. Como podem acontecer tais coisas? - Ele olhou para a estrada tal como o velho. - Tão pequena e tão nova! E viste a sua cara: tão triste! Isto não é de sua vontade!

Cadfael nada disse; nada havia de consolador e tranquilizador para dizer. Tais coisas eram um lugar-comum num casamento, onde havia terras e riqueza em jogo, e poderosas alianças a fazer, e pouca importância tinha a opinião das noivas - e muitas vezes de jovens noivos - para tal acontecimento. Poderia até haver noivas que astuciosamente vislumbravam vantagens em casar com homens velhos o suficiente para serem seus avós, onde havia bem material a ganhar, já que a morte poderia muito em breve aliviá-las dos seus maridos, mas deixá-las com a sua riqueza e o estatuto de suas viúvas, e com alguma sorte e muita esperteza poderiam conseguir realizar um segundo casamento mais ao seu gosto. Mas pelo seu aspecto, Iveta de Massard via o futuro que a esperava como a sua morte em vez da morte do seu noivo.

- Espero que Deus a ajude! - disse Mark fervorosamente.

- Pode ser - disse Cadfael, mais para si que para o seu amigo - que ele tenha intenções de fazer isso. Mas pode também ser que ele espere um pouco de ajuda dos homens para o fazer.

 

No pátio da casa do bispo, no Foregate, os criados de Huon de Domville estavam a descarregar os cavalos de carga, correndo de um lado para o outro com roupa de cama e cortinados, e os atavios que iam honrar o serviço da igreja e a cama nupcial. O mordomo de Domville já tinha decantado vinho para o seu senhor e o cónego Eudo, que era um primo afastado. O camareiro tinha tratado que houvesse calor e conforto no melhor quarto, um robe largo e quente para depois do rigor dos trajes de montar, chinelos forrados de pele para depois das altas e elegantes botas terem sido retiradas. O barão sentou-se na sua cadeira almofadada, esticou as suas grossas pernas e pegou cuidadosamente no seu vinho aquecido, bem contente. Para ele nada significava que o cortejo da sua noiva se aproximasse de Saint Giles. Ele não tinha nem necessidade nem desejo de perder o seu tempo a ver a sua aquisição passar; ele já a tinha segura, e ia vê-la o suficiente depois do casamento. Ele estava aqui para realizar um negócio altamente satisfatório para ele e para o tio, guardião da rapariga. Apesar de ser um agradável bónus que a noiva fosse nova, bonita e desejável, não era muito importante.

Joscelin Lucy passou as rédeas do seu cavalo para um dos pajens, chutou para longe um fardo de roupa de mesa, e estava a dirigir-se para o portão que dava para estrada quando o seu companheiro, Simon Aguilon, o mais velho dos três escudeiros ao serviço de Domville, o agarrou por um braço.

- Para onde vais tão depressa? Ele vai começar a berrar por ti assim que despejar o primeiro copo. Tu sabes disso. É a tua vez de os servir! A eles, os nobres!

Joscelin deu um puxão no seu louro cabelo e soltou uma gargalhada ríspida:

- Que nobreza? Viste tão bem quanto eu. Bater num pobre diabo que não se atreve a responder do mesmo modo, e quase o matou, por nada, por nenhuma ofensa digna desse nome. O diabo que leve tal nobreza! E o diabo que o leve mais à sua sede até eu ter visto Iveta passar.

- Joss, seu tolo - avisou Simon depressa -, qualquer dia a tua língua vai falar alto e de mais. Atraiçoa-o agora, e ele manda-te de volta sem nada para o teu pai, e como é que vais explicar tudo isto e ajudar Iveta? Ou a ti próprio, também? - Ele sacudiu a sua cabeça, de bom humor, e continuou a segurá-lo pelo braço. - É melhor ires ter com ele. Ou então ele arranca-te a pele!

O mais novo dos três parou de tirar a sela do seu cavalo e sorriu-lhes maliciosamente.

- Oh, deixa-o dar uma espreitadela, sabe-se lá quantas mais poderá ter? - Ele deu uma pancada amigável no ombro de Joscelin.

Eu faço o teu trabalho por esta vez. Dir-lhe-ei que estás muito ocupado a vigiar se todas as pipas de vinho estão a ser bem tratadas. Isso há-de agradar. Vai e vê... apesar de não fazer bem nenhum a vós os dois...

- A sério, Guy? És um óptimo amigo! Substituo-te assim que o quiseres! - E lá se foi ele em direcção ao portão, mas Simon agarrou-o pelos ombros e acompanhou-o.

- Irei contigo. Ele não precisará de mim por agora. Mas escuta-me, Joss - disse ele muito sério -, tu arriscas-te demasiado. Tu sabes que ele pode promover-te se tu lhe agradares, é o que teu pai quer e espera, e tu és um tolo em pôr o teu futuro em perigo. E tu podes agradá-lo se assim o quiseres, ele não é assim tão exigente connosco.

Eles passaram pelo portão e pararam na esquina do muro, encostados ombro a ombro contra o pilar de pedra do portão a olhar para o Foregate, dois rapazes altos e fortes. Simon é o mais velho, com a diferença de três anos, e o mais baixo por um palmo. O louro e silencioso rapaz a seu lado mordeu um lábio e carregou o sobrolho sem levantar a cabeça.

- O meu futuro! Que pode ele fazer pelo meu futuro que mandar-me de volta para o meu pai em desgraça, e por que diabo haveria eu de me preocupar com isso? Dois bons solares serão meus, isto não pode ele tirar-me, e existem outros senhores que eu posso servir. Sou senhor das minhas mãos, sou capaz de...

Simon riu-se, sacudindo-o com o braço que tinha posto em roda dos seus ombros.

- Claro que podes! Eu sei, eu já experimentei a tua força!

- Existem bastantes senhores a querer homens fortes, agora que a imperatriz voltou para Inglaterra, e a luta está renhida. Eu podia sustentar-me. E tu podias também começar a pensar no teu caso, pois tens tanto a perder como eu. Tu podes ser o filho da sua irmã, e o seu herdeiro agora, mas... e se... - Ele apertou os dentes; era-lhe difícil dizer aquilo, mas ele estava perversamente determinado em enterrar a faca na sua própria carne e revirá-la para aumentar a dor. - ...E se as coisas mudam? Uma esposa jovem... E se ele tem um filho deste casamento? Perdes tudo.

Simon encostou a sua cabeça de cabelos castanhos e encaracolados ao muro e riu alto:

- O quê, depois de trinta anos de casamento com a minha tia Isabel, e Deus sabe quantos casos com tantas senhoras fora do casamento, e nunca um fedelho para amostra? Rapaz, se ele tem alguma semente em si, apesar de todos os seus apetites, muito me surpreenderia! A minha herança está segura, não estou em perigo. Tenho vinte e cinco anos e ele está perto dos sessenta. Eu posso esperar! - Ele endireitou-se alerta. - Olha, vêm aí!

Mas Joscelin já tinha visto o primeiro brilho e movimento na estrada, e endureceu o corpo de modo a ver melhor. Eles vinham depressa, Godfrid Picar e o seu grupo, com pressa em chegar ao abrigo hospitaleiro da abadia. Simon relaxou o seu braço ao sentir que Joscelin se afastava.

- Pelo amor de Deus, rapaz, de que é que serve? Ela não é para ti - Mas ele disse isso num suspiro de desespero, e Joscelin nem o ouviu.

Eles vieram e passaram. Os ogres que a ladeavam tinham um ar magro, subtil e avarento, as cabeças arrogantemente erguidas, mas com as sobrancelhas franzidas e as caras comprimidas, como se já se tivesse passado algo que os desagradasse. E entre eles estava ela, uma pálida figura de desespero numa concha dourada de aparato, a sua cara pequena toda olhos, mas olhos cegos, que olhavam para o nada, vendo nada. Até ela se aproximar, e alguma coisa - ele queria acreditar que seria a sua proximidade e necessidade dela-a ter inquietado, causando-lhe arrepios, e fazendo que olhasse para onde mal se atrevia a voltar a cabeça toda, para o sítio onde ele estava. Ele não tinha a certeza se ela o viu, mas tinha a certeza que ela sabia que ele estava ali, que ela tinha sentido, cheirado, respirado a sua presença quando passou por entre os seus guardas. Ela não cometeu o erro de olhar em seu redor, ou de sequer modificar a expressão fixa e submissa da sua cara; mas, à medida que avançava, levou a sua mão direita ao rosto, e manteve-a aí por um momento, deixando-a depois cair.

- Eu acredito firmemente - suspirou Simon Aguilon, trazendo o seu amigo por um braço de volta para o pátio - que tu ainda não desististe. Por amor de Deus, que esperanças tens tu? Dentro de dois dias ela vai ser a Srª Domville.

Joscelin atrasou o passo e pensou na mão dela erguida, sabendo no seu coração que os seus dedos tinham roçado pelos lábios dele; e aquilo era mais do que tinham combinado.

Toda a ala dos hóspedes da abadia, à excepção dos quartos normais, tinha sido dadas a Sir Godfrid Picard e à sua comitiva nupcial. Na privacidade dos seus quartos, Agnes Picard voltou-se para o marido com uma expressão ansiosa no rosto. - Não gosto desta passividade dela. Não confio nela. Ele encolheu os ombros desdenhosamente.

- Ora, tu preocupas-te demasiado. Ela perdeu a batalha. Está totalmente submissa. Que é que pode fazer? Daniel tem ordens para não a deixar passar do portão e Walter vigiará a porta de entrada da igreja. Não existe outra saída, a não ser que ela encontre um meio de voar por cima da parede ou de saltar por cima do ribeiro de Meole. Não há mal em vigiá-la de perto aqui dentro, mas não tão de perto que chame as atenções. Mas tenho a certeza que tu te enganas a respeito dela. Aquele rato tímido não tem coragem de se levantar no altar e declarar estar ali contrariada.

- Além disso - disse a senhora severamente -, eu ouvi que este abade Radulfus tem um conceito muito próprio dos seus poderes e direitos, e não respeita um barão se sente que as suas ordens foram infringidas. Mas quem me dera estar tão certa da sua passividade como tu.

- Já te disse que te preocupas de mais, mulher. Desde que ela vá ao altar, ela dirá as palavras ensinadas, e não te preocuparás mais.

Agnes mordeu um lábio, não estava ainda convencida.

- Bem, pode ser que seja assim... No entanto, só desejo que tudo esteja acabado. Respirarei mais à vontade quando estes próximos dois dias passarem.

Na ervanária do irmão Cadfael, o irmão Oswin arrastava os pés, dobrava as suas grandes, mas desastradas mãos, e tinha um ar humilde como um carneiro. Cadfael olhou de roda apreensivamente, consciente de que viriam más notícias, apesar de já ser um avanço se o rapaz chegasse a compreender que tinha feito algum disparate sem ter de o apontar. A maioria das coisas pareciam estar ainda nos seus lugares. O braseiro estava baixo, não havia cheiros ruins, e os vinhos nos seus frascos grandes borbulhavam como costume.

O irmão Oswin contou-lhe tudo quanto se tinha passado de um modo muito conciencioso, tentando ganhar crédito antes de dar o golpe final.

- O irmão enfermeiro veio buscar os eletuários e os pós. Eu levei ao irmão prior o medicamento para o estômago que fez para ele. Creio que as pastilhas que deixou a secar já estão prontas, e reduzi a pó as ervas secas para a decocção de que falou para amanhã.

Mas... Agora vinham as más notícias. Aquele olhar de censura admirada por uma coisa bem intencionada e feita com confiança, traía-o assim.

- Mas... uma coisa tão estranha... Não compreendo como pode ter acontecido, a caçarola já devia estar rachada, apesar de eu não ter conseguido ver nenhuma falha nela. O xarope que deixou ao lume... vigiei-o com o maior cuidado, e tenho a certeza de que o retirei do lume quando atingiu o ponto certo e agitei-o como me disse. Recorda-se que disse que precisava dele com urgência para o velho irmão Francis, que tem o peito em tão mau estado... eu pensei que podia arrefecê-lo depressa de modo a poder engarrafá-lo logo, por isso tirei a caçarola do lume e pu-la numa tigela de água fria...

- E a caçarola rebentou - disse Cadfael com resignação.

- Partiu-se ao meio - admitiu Oswin, confuso e aflito - em dois grandes bocados e derramou todo o mel e ervas dentro da água. Uma coisa extraordinária! Sabia que a caçarola estava fendida?

- Filho, a caçarola estava sólida como um sino, e era uma das minhas melhores. Mas nenhuma caçarola deve sair do fogo directamente para água fria. O barro não gosta de mudanças tão bruscas, encolhe e desfaz-se. E enquanto falamos nisto, toma atenção que o vidro e as garrafas têm as mesmas objecções - acrescentou Cadfael rapidamente. - Se as coisas quentes vão ser postas dentro delas, as garrafas devem ser aquecidas primeiro. Nunca forces nada a passar directamente do calor para o frio ou do frio para o calor.

- Eu já limpei tudo - disse Oswin apologeticamente. - Deitei a caçarola para o lixo. Mas, de qualquer maneira, tenho a certeza que devia ter uma falha em qualquer lado... Sinto muito que o xarope se tenha perdido, e depois do jantar eu volto e faço outro.

"Deus nos livre!", pensou Cadfael, mas absteve-se de o dizer em voz alta.

- Não, filho! - disse ele firmemente. - O teu dever é ir às leituras e fazer a ronda da tua ordem. Eu faço o xarope. - A sua colecção de caçarolas tinha de ser defendida das futuras boas intenções do irmão Oswin. - Agora vai e prepara-te para as Vésperas.

- Assim, a última façanha do irmão Oswin na ervanária foi a razão para Cadfael regressar à sua oficina naquela noite depois da ceia e para o seu envolvimento em tudo o que depois aconteceu.

 

Sir Godfrid Picard e a sua esposa vieram às Vésperas em pompa, com Iveta de Massard confrangida entre os dois, como um cordeiro a ser conduzido ao sacrifício. Uma velha criada, de rosto fechado, transportava o livro de orações de Lady Picard e um valete estava à disposição de Sir Godfrid. A rapariga tinha tirado as suas ricas roupas e vinha simplesmente vestida de escuro, com um véu sobre o seu grande feixe de cabelo dourado. Ela levantou-se e ajoelhou-se através do serviço com os olhos baixos e uma cara muda e pálida. Cadfael observou-a com curiosidade e simpatia do seu lugar, junto dos irmãos, e quanto mais observava mais se admirava. Que parentesco poderia ter com o cruzado cujo nome se tinha tornado uma lenda entre os seus contemporâneos, por mais esquecido que estivesse desta geração? Morto há quase quarenta anos, um homem está realmente morto.

No fim das Vésperas, à medida que os irmãos se alinhavam para o jantar, Iveta levantou-se e dirigiu-se ligeiramente, mãos cruzadas, para a capela da Senhora, e aí caiu de joelhos perante o altar. Pareceu a Cadfael que Agnes Picard a teria seguido se o seu marido não a tivesse segurado por um braço. O prior Robert, sempre atento à nobreza normanda, aproximava-se deles em toda a sua grandeza com algum convite civil que não podia ser recusado. A senhora lançou um agudo olhar à figura devota da sua sobrinha, que Parecia estar totalmente absorvida na sua oração, e capitulou graciosamente, andando pelo braço do marido ao lado do prior.

Cadfael jantou muito depressa com os seus irmãos, ainda perturbado pelos acontecimentos do dia para os quais, infelizmente, nem todas as suas ervas poderiam remediar. Graças ao incansável optimismo do irmão Oswin, tinha agora uma tarefa específica para ocupá-lo durante todo o serão.

Iveta permaneceu de joelhos até tudo em seu redor estar completamente silencioso, a voz do prior desaparecendo ao longe num tom assiduamente atencioso. Depois, levantou-se do seu lugar e foi, cautelosamente, vigiar a porta sul para o claustro. Robert tinha levado os convidados consigo até ao pátio para admirarem o resto das bem cuidadas rosas. As suas costas estavam voltadas para ela, e a ala oeste do claustro oferecia-se vazia perante ela. Iveta apanhou as suas saias e a sua coragem, só ela sabia com quanto heroísmo e pouca esperança, e fugiu como um rato assustado com os gatos, para dentro do grande pátio. Aí, olhou à sua volta, desesperadamente.

Não conhecia este enclave, era a primeira vez que ali entrava; mas viu por entre os edifícios da casa dos convidados e dos aposentos do abade o verde de sebes entrelaçadas emoldurando uma estreita ala e os topos das árvores balançando mais adiante. Os jardins a esta hora devem estar desertos. Ali perto ele disse que esperaria por ela, e quando passou por ela enviou-lhe o sinal que não faltaria ao encontro. Por que tinha ele feito isto? Não podia passar duma despedida. No entanto, correu ao seu encontro com uma coragem desesperada que já devia ter utilizado há mais tempo, antes que fosse tarde de mais. Ela já estava oficialmente comprometida, e um compromisso tão forte como o do casamento. Seria mais fácil deixar de viver que desistir dum tal acordo.

As grossas paredes verdes encobriram-na, sombra após sombra. Ela recuperou o fôlego e abrandou o passo, sem saber para onde dirigir-se. O caminho da direita levou-a às traseiras da casa dos convidados e ao lago de peixes da abadia, e depois da segunda lagoa-zinha, uma pequena ponte atravessava a calha do moinho mesmo perto da queda de água, e trouxe-a até um portão embutido numa parede de pedra suave. Sentiu-se muito mais segura com um muro de permeio entre ela e a clausura, e havia um curioso conforto e calma na onda de doçura que se ergueu perto dela, à medida que as suas saias roçavam os arbustos. Toda a espécie de plantas, rosmaninho e alfazema, hortelã e tomilho, enchiam o jardim murado com odores suaves, agora mais maduros devido ao Outono, prontos para voltarem à sua hibernação do Inverno. O melhor do seu Verão já tinha sido ceifado.

Uma mão saiu de uma árvore no muro para agarrar a sua mão, e uma voz murmurou depressa:

- Por aqui, depressa! Existe uma cabana ali num canto... uma ervanária. Vem! Ninguém nos procurará ali.

Todas as vezes que tinha tido a oportunidade de se aproximar dele e tinham sido bem poucas e breves -, tinha-se sentido assustada e segura pelo tamanho dele, com a cabeça e os ombros bem acima dos dela, largo no peito e nos membros, comprido de braços, estreito e esguio de anca, como se a sua sombra avassaladora pudesse protegê-la de todas as ameaças como uma torre. Mas ela sabia que não era assim, e que ele estava tão desprotegido e vulnerável como ela. Só este pensamento fê-la mais timorata que alguma vez tinha estado por si. Se confrontados, os grandes senhores podiam destruir os jovens escudeiros, mesmo os mais fortes, altos e hábeis com as armas.

- Alguém pode ir ali - murmurou ela, agarrando-se à sua mão.

- A esta hora da noite? Ninguém virá. Estão agora a cear, e vão depois para a capela. - Ele puxou-a pelo braço, debaixo do beiral cheio de ervas sussurrantes, para dentro do aquecido interior onde o vidro brilhava nas prateleiras e o braseiro, queimando baixinho até ser necessário, produzia um pequeno olho de fogo na escuridão. Deixou a porta aberta, tal como estava. Seria melhor não mexer em nada, de modo a não atrair a presença de ninguém.

- Iveta! Sempre vieste! Estava com medo...

- Tu sabias que eu viria!

- ...com medo que estivesses a ser vigiada de muito perto e a todo o momento. Escuta, pois podemos não ter muito tempo. Tu não serás... tu não serás entregue àquele velho bruto. Amanhã, se confiares em mim, se quiseres ir comigo, volta aqui a esta hora...

- Oh, meu Deus! - disse ela num lamento baixo. - Por que acreditamos que pode haver uma solução?

- Mas pode, tem de haver! - insistiu ele com fúria. - Se tu realmente o queres... se me amas...

- Se te amo...!

Ela estava nos seus braços, com os seus próprios braços abraçando-o com toda a força o seu corpo jovem e forte, quando o irmão Cadfael, em toda a sua inocência, as suas sandálias silenciosas nas alamedas de erva bem cuidada, apareceu na entrada da porta e os espantou. Ele estava um bocado mais surpreendido que eles e, a julgar pelas suas expressões, muito menos assustador que eles julgavam que fosse. Iveta recuou até os seus ombros tocarem na parede de madeira da ervanária. Joscelin ficou perto do braseiro com os pés bem abertos e assentes no chão. Ambos recuperaram a compostura com uma galanteria que era mais que o desespero.

- Peço perdão - disse Cadfael calmamente -, não sabia que tinha doentes à espera. Presumo que foi o irmão enfermeiro quem vos recomendou a mim. Ele sabia que eu estaria a trabalhar aqui todo o serão.

Ele podia estar a falar em galês com eles, mas com sorte eles conseguiriam perceber os palpites que ele tão prontamente ofereceu. O desespero costuma aguçar um pouco a inteligência. E ele tinha ouvido, ao contrário deles, o arrastar de vestidos no caminho, o rápido e irado pisar dos pés de uma mulher. Ele estava perto do braseiro, esfregando pedra de modo a acender a sua lamparina, quando Agnes Picard apareceu na entrada da porta, alta e fria, as sobrancelhas franzidas a formar uma linha contínua.

Depois de ter acendido o pavio, o irmão Cadfael voltou-se para pegar na caixa de pastilhas que o irmão Oswin tinha deixado a secar, pastilhas estas que formavam pequenos bolos brancos de pó carminativo ligado com resina. A acção permitiu-lhe manter-se de costas para a mulher que estava à porta, apesar de estar bem consciente da sua presença. Já que era óbvio que nenhum dos jovens estava em condições de dizer algo de sensato, ele continuou a falar por todos.

- Deve ter sido o cansaço da viagem - disse ele confortadamente, fechando a caixa das pastilhas -, que vos causou esta dor de cabeça. Foram muito sensatos em ter consultado o irmão Edmund, pois uma dor de cabeça não deve ser negligenciada porque pode criar-vos insónias. Far-vos-ei uma bebida. O jovem rapaz não se importa de esperar uns momentos para satisfazer as necessidades da sua senhora...

Joscelin, recuperando e resolutamente mantendo um ombro voltado para a maligna presença na porta, disse ferventemente que teria o maior prazer em esperar até a Lady Iveta ter o que desejava. Cadfael foi buscar uma pequena taça duma prateleira e escolheu uma garrafa de entre várias. Estava a deitar o líquido na taça, quando uma voz, fria e cortante como aço, disse por detrás deles com determinação:

- Iveta!

Todos os três se voltaram numa óptima demonstração de estarem genuinamente surpreendidos. Agnes avançou, apertando os seus já desconfiados olhos.

- Que faz aqui? Tenho estado à sua procura. Está a atrasar o jantar.

- A sua sobrinha, minha senhora - disse Cadfael, adiantando-se ao que a rapariga poderia dizer -, está a sofrer dum problema comum próprio do cansaço da viagem, e o irmão enfermeiro, muito correctamente, recomendou-a a vir ter comigo para tomar algum remédio. - Ele deu a taça a Iveta, que a agarrou como se estivesse debaixo do efeito de um sonho. Estava branca e parada, e o seu medo e frustração eram visíveis somente nos olhos. - Beba tudo agora de uma vez, antes de ir cear. Tenha confiança, só lhe fará bem.

E de facto faria, quer a cabeça lhe doesse quer não. Era um dos seus melhores vinhos, um que ele guardava para os seus favoritos especiais, já que produzia muito pouco todos os anos. Apesar de ter durado pouco, ele teve a satisfação de ver o assombro e prazer brilharem-lhe nos olhos através do desespero. Ela devolveu-lhe a taça agora vazia e sorriu-lhe palidamente. Não se atreveu a olhar para Joscelin.

Com uma voz fraca, disse:

- Obrigado, irmão. É muito bom. E para a figura que a vigiava sombriamente: - Peço desculpa por tê-la atrasado, tia. Agora estou pronta.

Agnes Picard não proferiu nem mais uma palavra, mas afastou-se da entrada da porta num frio convite à rapariga para segui-la para fora do quarto, olhou-a firmemente e com grande brilho nos olhos quando ela passou e, então, antes de a seguir, lançou um olhar longo e cheio de significado ao rapaz, que afastava qualquer hipótese que ele tivesse de fazer algo para ajudar a sobrinha. As aparências podem ter sido mantidas, mas Agnes não tinha sido enganada nem por um segundo.

Elas partiram, a noiva e a sua guardiã, o último roçar de saias silenciado. Houve um grande momento de silêncio enquanto os outros dois se fitavam desamparadamente. Então, Joscelin suspirou com um grande gemido e deixou-se cair no banco que estava encostado à parede.

- Neste momento, que a bruxa está a atravessar a ponte, devia cair e afogar-se! Irmão, não pense que não agradeço a boa vontade e presença de espírito que dispendeu connosco, mas acho que foi em vão. Imagino que ela já desconfia de mim há algum tempo. Há-de descobrir alguma maneira de me fazer pagar por isto.

- Quanto a isso, talvez ela tenha razão - disse Cadfael honestamente. - E Deus me perdoe pelas mentiras!

- Não disse nenhuma. Se ela não tem uma dor de cabeça, tem dor no coração, que é bem pior. - Ele passou os dedos raivosamente pelo cabelo louro e encostou a cabeça à parede. - Que era aquilo que lhe deu?

Debaixo de um impulso, Cadfael tornou a encher a taça e passou-lha:

- Tome! A mesma poção também não lhe fará mal. Deus sabe se a merece, mas nós poremos este juízo de parte até eu o conhecer melhor.

As sobrancelhas de Joscelin, arqueadas e expressivas, e mais escuras que o seu cabelo, ergueram-se em sinal apreciativo ao provar o vinho. A sua testa e faces tinham a rica cor dourada dos que passam muito tempo ao ar puro, uma cor rara para pessoas de cabelo tão louro. Os olhos, que agora estudavam Cadfael com muita atenção sobre a borda da taça, eram tão radiantemente azuis como Cadfael tinha visto em Saint Giles, como centáureas num campo de milho. Não tinha o aspecto de ser nem um sedutor nem um impostor, mais um crescido rapaz de escola, honesto, impaciente, esperto mas provavelmente insensato. A esperteza e a sensatez não são inevitáveis companheiros.

- É o melhor remédio que já provei. E foi invulgarmente generoso connosco, tal como foi invulgarmente rápido no entendimento - disse o rapaz, aquecido e desarmado.-No entanto, nada sabe de nós e nunca nos tinha visto!

- Já vos tinha visto - corrigiu Cadfael. Começou a medir as suas várias ervas expectorais numa mortalha e pegou num pequeno fole para reavivar o braseiro. - Tenho de fazer um xarope antes que a noite acabe. Não se importa se começar a trabalhar já.

- Estou a atrapalhar. Peço perdão! Já o incomodei o suficiente.

- Mas ele não queria ir-se embora, pois o seu coração estava demasiado pesado, mas não podia desabafar com qualquer pessoa, só um conhecimento de passagem, daqueles que não se espera tornar a encontrar. - Ou... será que posso ficar?

- Por quem sois, se não tem nada para fazer. Serve Huon de Domville e eu imagino que ele seja muito exigente. Vi-o passar por Saint Giles. E a jovem noiva, também.

- Estava lá? O velho... não ficou ferido? - Abençoado seja o rapaz, a sua ânsia de saber era genuína. No meio de todos os seus problemas, que lhe davam água pela barba, ele ainda sentia indignação perante uma afronta à dignidade de outra pessoa.

- Nem no corpo, nem na mente, já que ele vive com uma humildade que transcende qualquer humilhação. Ele nem se dignou a dispensar um só pensamento ao golpe do barão.

Joscelin emergiu da sua preocupação o suficiente para sentir curiosidade:

- E estava no meio deles, dessa gente? Você... perdoe-me se o ofendo, não é por mal! Você não sente medo de se misturar com eles? De ficar contagiado? Muitas vezes tenho pensado: alguém tem de tomar conta deles. Eu sei que eles são forçados a viver à parte, no entanto, não podem ser eliminados da humanidade.

- O medo - disse Cadfael, ponderando seriamente - não faz sentido. Quando a necessidade surge, o medo é esquecido. Recusaria tocar na mão de um leproso se ele precisasse de si, ou você dele, para ser salvo de perigo? Duvido. Alguns homens recusariam, talvez... mas não acredito que você o fizesse. Agarraria a mão primeiro e pensaria no assunto depois, e o medo seria obviamente uma perda de tempo. Está livre de se sentar à mesa do seu senhor hoje à noite, não está? Então fique e fale-me de si, se assim lhe apetecer. Deve-me uma desculpa, no máximo uma explicação por ter entrado sem ser convidado.

Mas ele não estava aborrecido com este intruso indisciplinado. Quase distraidamente, Joscelin tinha pegado no fole e estava a reavivar o lume do braseiro.

- Ele tem três escudeiros - disse o rapaz pensativamente. - Si-mon serve-o à mesa, hoje. Simon Aguilon é filho da irmã dele, e Guy Fitz John é o terceiro, e está a servi-lo hoje também. Não preciso de voltar já. Você sabe nada sobre mim; além disso, creio que está na dúvida se fez bem em nos ajudar. Gostaria que pensasse bem de mim. Tenha a certeza que só pode pensar bem de Iveta. - Ao pronunciar o nome, o seu rosto toldou-se novamente e olhou pesarosamente para o fogo satisfatório que estava a produzir. - Ela é... - lutou com o sentimento e explodiu rebeldemente: - Não, ela não é a perfeição, como poderia ser? Desde os dez anos que está sob a tutela daqueles dois! Se estava em Saint Giles, viu-os. Um de cada lado como dragões. A sua perfeição tem sido reprimida durante muito tempo. Mas se ela fosse livre, tornaria à sua verdadeira personalidade, seria nobre e corajosa, como os seus antepassados. E então eu não me importaria - disse ele, voltando os olhos ofuscantemente azuis e brilhantes para Cadfael - se ela se desse a outra pessoa, e não a mim. Não, eu minto... importava-me terrivelmente, mas suportaria e ainda me sentiria feliz. Mas este... este perverso negócio, este aviltamento, isto não suporto!

Tome atenção ao fole! Pronto, pode retirá-lo, já me deu todo o fogo de que eu precisava. Ponha-o perto daquela pedra. Bom, rapaz!

Um nome por um nome é uma boa troca. O meu nome é Cadfael, sou galês, irmão desta casa, nascido em Trefriw. - Cadfael estava a pôr mel e um pouco de vinagre nas suas ervas em pó, e aquecia o seu pote perto do fogo. - Quem é você?

- O meu nome é Joscelin Lucy. O meu pai é Sir Alan Lucy, e tem dois solares no limite de Hereford. Mandou-me como pajem para Domville quando eu tinha quatorze anos, como manda o costume, para aprender o meu ofício de escudeiro numa casa importante. Não posso dizer que o meu senhor tem sido muito difícil de servir. Por mim, não me posso queixar. Mas pelos seus inquilinos e vilãos, e todos os que caem sob a sua justiça... - Ele hesitou. - Eu conheço as letras, sei ler latim. Estive na escola com monges, e um homem não esquece. Não digo que o meu senhor seja pior que os da sua espécie, mas Deus sabe que também não é melhor. Eu teria pedido a meu pai para me pôr a cargo de outro senhor, se...

Se este namoro, para dignificá-lo pelo seu nome, não tivesse começado entre Domville e a herdeira Massard. Se o rapaz não a tivesse visto, maravilhado, e sido cativado por aquela pequena, frágil e virginal criatura, entre os seus dois dragões... Mas a entrada do seu senhor, onde quer que ela estivesse, tinha sido, numa distância desesperante, a entrada dos escudeiros também.

- Ao ficar com ele - disse o jovem, desesperando-se com a complicação insolúvel do seu problema -, posso ao menos vê-la. Se eu o deixasse, como me poderia aproximar dela? Por isso fiquei. E tento servi-lo honestamente, já que assim o prometi. Mas, irmão Cadfael, será isto justo? Será correcto? Pelo amor de Deus, ela tem dezoito anos, e tem medo dele; no entanto, pelo que vejo, ele é melhor do que ela tem agora. Ela não é feliz, e não o poderá ser no seu casamento. E eu amo-a! Mas isso é um pormenor de pouca importância, se ela pudesse ser feliz.

- Hum! - disse Cadfael com um pouco de cepticismo, e agitou a panela que já fervia e que começou a encher a oficina com um doce aroma à medida que levantava fervura. - Muitos amantes já fizeram juras, mas com uma vantagem em mente. Suponho que agora vai dizer-me que era capaz de morrer por ela.

Joscelin subitamente fez uma careta travessa: -Bem, não com grande vontade. Preferia viver por ela, se pudesse ser. Mas se quer dizer se eu faria tudo o que estivesse ao meu alcance para a libertar e poder escolher por si própria, então, sim, eu morreria. Pois este casamento não é da sua escolha, ela teme-o e detesta-o, ela está a ser forçada a realizá-lo.

Não era preciso dizer mais; a primeira vista de olhos do seu rosto e aspecto tinham dito tudo por ele.

- E aqueles que deviam guardá-la e fazer o seu bem estão a usá- la para os seus próprios fins e nada mais. Sua mãe, era irmã de Picard, morreu quando Iveta nasceu, e seu pai, também morreu quando ela tinha dez anos. Assim, ela foi entregue à tutela do seu tio, por ser o seu parente mais chegado, o que é natural, se o seu parente tivesse mostrado ser bom com ela! Õh, não sou tão cego ao ponto de não saber que não é novidade um guardião aproveitar-se da situação para beneficiar com a tutela, em vez de utilizar os seus bens em seu favor, e pilhar as suas terras em vez de as alimentar e tratar para seu futuro. Digo-lhe uma coisa, irmão Cadfael, Iveta está sendo vendida ao meu senhor pela sua interferência e graça junto do rei, e melhoramento sob a sua guarda, e por ainda mais que isso. Ela tem muitas terras. É a última das Massard, e toda a grande honra da família lhe pertence. Eu suspeito que o negócio que fizeram com ela significa o desbastar do que já foi em tempos o quinhão dum herói. Um grande bocado das terras ficará certamente com Picard, e parte do que vai com ela para Domville terá sido explorado durante anos antes de mudar de mãos. Um óptimo acordo para os dois, mas uma injustiça clamorosa para Iveta.

Lucy podia estar a dizer a verdade. Tais coisas acontecem quando uma criança é órfã e herdeira de grandes riquezas. Mesmo se a criança for um rapaz, e muito novo, pensou Cadfael, sem ninguém para o proteger, pode ser obrigado a casar, de modo a conseguir uma boa aliança para o seu guardião, ou para ganhar terras boas para cultivo, ou mesmo para magoar um rival, e tal também pode acontecer com uma rapariga; mas com uma rapariga é mais usual e menos questionado. Não, ninguém com a autoridade de um barão ou de um rei levantará um dedo para interferir no destino de Iveta. Só, talvez, algum jovem impetuoso e de sangue quente como este, por sua conta e risco.

Cadfael não perguntou o que tinham estado a conversar na altura em que os surpreendeu na oficina abraçados. Apesar de irritado e zangado, o jovem Lucy tinha ainda qualquer coisa, uma leve e escondida esperança dentro de si. Tal era óbvio. Seria melhor não perguntar, não permitir que falasse no assunto, mesmo que ele assim o quisesse. Mas havia uma coisa que Cadfael precisava de saber. Ela er a última Massard, tinha ele dito.

- Qual era o nome do seu pai? - perguntou ele, mexendo o xarope que já engrossava. Antes de a noite terminar, ele poderia deixá-lo arrefecer.

- Hamon FitzGuimar de Massard.

Ele enfatizou o patronímico com respeito e orgulho. Parecia que havia ainda, entre os jovens, alguns que tinham sido ensinados a respeitar os grandes nomes dos mortos.

- O seu avô foi aquele Guimar de Massard, que esteve na tomada de Jerusalém, e foi capturado depois da batalha de Ascalon. Morreu devido aos ferimentos que tinha. Ela tem o seu capacete e espada. Ela estima-os muito. Os Fatimidas enviaram-nos depois da sua morte.

Sim, eles tinham, um sinal de respeito por um corajoso inimigo. Tinha-lhes sido pedido que enviassem também o corpo da sua capa temporária, e o pedido tinha sido recebido com agrado, mas as escaramuças intermitentes entre os cruzados tinha-lhes custado a hipótese de assegurar o porto de Ascalon, e as negociações para o retorno do corpo do paladino tinha sido negligenciada e esquecida. Inimigos respeitadores enterraram-no com honra, e aí repousava ele. Foi há muito tempo, anos antes destes dois jovens terem nascido.

- Recordo-me - disse Cadfael.

- E é uma pena que, agora, a última descendente desta nobre casa, seja privada da sua felicidade e enganada.

- É verdade - disse Cadfael, retirando a caçarola do lume e pondo-a no chão de terra batida.

- Isto não pode continuar - disse Joscelin, enfaticamente. - Não continuará. - Ergueu-se com um longo suspiro. - Tenho de voltar, não tenho outro remédio. - Olhou para a fila de garrafas e frascos, e para os vacilantes punhados de ervas que guarneciam a oficina, enchendo-a de infinitas possibilidades. - Não terá qualquer coisa de entre estas maravilhas que eu possa pôr no seu copo? No dele ou no de Picard, que interessa! Se algum deles deixasse este mundo, Iveta ficaria livre. E o mundo mais limpo!

- Se isto é a sério - disse Cadfael firmemente -, está a pôr a sua alma em perigo, rapaz. E se é uma leviandade, merece um puxão de orelhas por isso. Se não fosse tão grande, tentaria.

Sorriu momentaneamente com mais tristeza que calor:

- Posso baixar-me - ofereceu ele.

- Sabe tão bem quanto eu, meu filho, que não usaria tão vis métodos como o crime, e faz muito mal em empregar tais palavras.

- Não usaria? - disse Joscelin suavemente, o sorriso desaparecido. - Irmão, não sabe quão longe eu seria capaz de ir e pôr a minha alma em perigo de modo a pôr Iveta em segurança.

Cadfael inqueetou-se com os últimos acontecimentos durante o serão, e durante a última meia hora antes de se deitar. Claro que podia ter chamado o rapaz à razão, dizer-lhe com firmeza e verdade que devia abjurar tão negros pensamentos, que não poderão causar bem nenhum. Só poderia agir como um cavalheiro, já que estava destinado a ser um, e ele devia, forçosamente, esquecer outro tipo de comportamento. A questão é que o rapaz tinha mostrado sensatez ao replicar que seria um tolo se enfrentasse o seu senhor num duelo honesto, como é da obrigação de todos os cavalheiros, já que Domville nem sequer levaria a sério tal impertinência, e simplesmente o expulsaria de sua casa. Como é que então poderia ajudar Iveta?

Mas significaria isto que ele seria capaz de recorrer ao assassínio? Lembrando-se do seu sincero rosto bronzeado, pouco dado a dissimulação, e do seu modo impetuoso, certamente pouco adaptado a premeditações, Cadfael não podia acreditar que sim. No entanto, havia aquela miniatura dourada e frágil, aquela rapariga com a sua cara triste e olhar resignado, a dois dias do seu casamento, e o seu destino era razão suficiente para exigir, se calhar justificar, uma ou duas mortes.

A premência afectou Cadfael, não menos que a Lucy. Pois aqui estava a neta de Guimar de Massard, desprovida de todos os seus parentes, à excepção daqueles dois que a ladeavam como dragões. E como poderia a última dos Massards ser entregue ao seu destino sem se levantar um dedo para a ajudar, sem receber o apoio daqueles que tinham conhecido o seu avô e reverenciado a sua memória? Seria como abandonar um companheiro ferido e vencido em batalha.

Na antecâmara, o irmão Oswin insinuou-se timidamente junto do irmão Cadfael.

- O xarope já está pronto, irmão? A culpa é minha, deixe-me reparar a minha falta. Amanhã levanto-me cedo e ponho-o na garrafa. Causei-lhe tanto trabalho extraordinário que devia compensá-lo de alguma maneira.

- Ele tinha causado mais trabalho que calculava, e mais complicação, mas ao menos tinha chamado Cadfael à lembrança do seu dever Primeiro, claro, depois da observância da regra.

- Não, não - disse Cadfael rapidamente. - A fervura saiu bem, a arrefecerá hoje à noite. Terei tempo suficiente para engarrafar o xarope depois de Primeiras. Amanhã você vai ser o leitor, deve ser fiel aos ofícios e pensar só na leitura.

"E deixar em paz o meu xarope", pensou ele, no caminho para a sua cela e orações. Subitamente, apercebeu-se quão parecidas eram as grandes mãos do irmão Oswin com as de Joscelin Lucy; e, no entanto, as primeiras destruíam tudo em que tocavam e as segundas, apesar do seu tamanho, moviam-se com delicada agilidade, quer fosse nas rédeas de um cavalo cinzento, ou com a lança e a espada, ou abraçando o tenro corpo de uma rapariga cheia de preocupações.

Teriam elas a mesma destreza no que concerne ao homicídio?

Cadfael levantou-se antes de Primeiras e foi engarrafar o seu xarope, e levar um pouco dele ao irmão Edmund na enfermaria. O dia tinha amanhecido enevoado e moderadamente quente, sem vento. No calmo ar os sons eram silenciados e os movimentos suavizados, e o grande pátio apresentava o usual quadro das actividades diárias que vão de Primeiras até ao pequeno-almoço, desde a primeira missa para os criados leigos e trabalhadores, a segunda missa e o capítulo que se seguia, agora abreviado e dito com pressa, por causa do excesso de trabalho para a preparação para o casamento no dia seguinte. Havia, assim, um longo intervalo para descansar antes da missa cantada das dez horas, e Cadfael aproveitou a oportunidade para voltar ao jardim e lembrar ao irmão Oswin as tarefas para a tarde, tarefas estas que deviam ser as apropriadas à sua bem-intencionada mas fatal tendência para a devastação. O Outono era uma boa altura, já que havia muito para cavar, limpar a terra e prepará-la para as geadas a vir.

Cadfael voltou ao pátio antes das dez horas, quando irmãos, alunos, convidados e cidadãos começavam a juntar-se para a missa cantada. Os Picards estavam mesmo a sair da casa dos convidados, Iveta desesperadamente pequena e calada entre o tio e a tia, mas com aspecto, assim pensou Cadfael, de estar resolutamente recomposta, como se um vento leve e reanimador tivesse soprado através do pesado silêncio do seu desespero, e dado ao seu coração uma ténue esperança por um milagre. A velha criada, tão desagradável de expressão quanto Agnes, vinha atrás dela. A criança estava cercada por todos os lados.

Em passo de passeio, dirigiam-se para o claustro e para a porta sul, com a assistência do irmão Denis, o hospitaleiro, quando a decorosa calmaria foi rudemente quebrada por um furioso fragor de cascos no portão principal. Para dentro do átrio galopou um cavaleiro montado num cavalo malhado de cinzento, e a tal velocidade que quase atropelou o porteiro e espantou os criados como galinhas perante uma raposa. Puxando as rédeas abruptamente com grande deslizar de cascos nas pedras húmidas, ele atirou os freios para o pescoço do cavalo e saltou para o chão com o louro cabelo todo levantado e os olhos azuis brilhando como fogo. Plantou-se solidamente no caminho de Godfrid Picard, pés afastados e queixo espetado, uma imagem de um jovem tomado por grande e formidável raiva.

- Senhor, vós sois o culpado! Fui despedido do meu serviço, rejeitado sem razão, sem culpa, com nada mais que o cavalo e os alforjes, e com ordem para deixar esta cidade antes do anoitecer. Isto num só instante, sem poder falar a meu favor! Sei bem a quem devo isto! Vós... vós haveis feito queixa de mim ao meu senhor, que me escorraçou como a um cão. Por isto, hei-de obter uma satisfação de vós, de homem para homem, antes de voltar as costas a Shrewsbury!

 

Como uma pedra atirada a um charco calmo, esta invasão lançou uma lufada de agitação que se espalhou pela casa dos convidados, portão principal e claustro. O irmão Denis, alvoroçado, olhou incertamente, inconsciente mesmo da identidade deste jovem grande e muito zangado. Estava desejoso de trazer de novo a paz ao pátio, mas não sabia como consegui-lo.

Picard, frente ao sólido e jovem corpo e rígido rosto, enrubesceu vivamente, e, depois, ficou pálido de fúria. Não podia avançar, não queria desviar-se, e mesmo se o molho assustado de criados não estivesse atrás de si, não teria recuado um centímetro. Agnes resplandecia de indignação, e rapidamente agarrou Iveta pelo braço, pois a rapariga tinha dado um passo em frente com um pequeno e desolado grito, a calma subjugada da sua cara desfeita, e por um momento brilhando com emoção frenética, tal como o gelo fragmentado brilha à luz. Só por aquele momento, ela teria esquecido tudo menos aquele rapaz, saltando para o seu lado sem dissimulação, posto os seus braços à volta do seu corpo, se o paertão da sua tia não a tivesse puxado para trás sem qualquer delicadeza, forçando-a a ficar de lado numa atitude rígida, e segurado-a aí com dedos de aço. Se por causa da longa submissão ou por uma nova e alerta perspicácia, ela encolheu-se e ficou quieta, e a luz, mas não a dor, desapareceu do seu rosto. Cadfael reparou, e ficou extremamente surpreendido. Ninguém tão novo, quase recentemente saído da infância, devia sofrer tanto.

Ele recordou-se daquele olhar mais tarde. Por agora, ele estava preso pelo impacte da juventude insensata e rebelde de Joscelin Lucy e pela maturidade experimentada e subtil de Godfrid Picard. Não era um combate tão desigual como seria de esperar. O rapaz estava fora de si, mas inquestionavelmente senhor das suas mãos e cheio de um confiante, se menor, privilégio.

- Não posso pedir-lhe para empunhar a espada aqui - disse ele em voz alta e clara. A ira levantava-se na sua voz, como para alcançar um marechal na disputa. - Desafio-o a nomear o local e a hora onde poderemos combater. Ofendeu-me, fui despedido por persuasão sua, faça-me justiça e faça frente ao que ocasionou.

- Velhaco insolente! - cuspiu Picard desdenhosamente. - Sou mais capaz de acirrar os meus cães contra si que cruzar espadas consigo. Se foi despedido por ser um patife sem proveito, traiçoeiro, intrometido e agressivo, foi bem feito, e esteja agradecido que o seu senhor não o tenha chicoteado. Safou-se bem. Tome atenção e não provoque mais estragos que já provocou. Agora saia do meu caminho e vá para casa tal como lhe foi ordenado.

- Nunca! -jurou Joscelin por entre dentes. - Não até ter dito tudo quanto tenho para dizer, aqui perante todas estas testemunhas. Nem irei embora por ter sido assim mandado. Ou será que Huon de Domville possui o chão que piso e o ar que respiro? Ele pode ficar sem o meu serviço, existem outras casas tão nobres como a dele onde eu posso servir. Mas andar a contar-lhe histórias ignóbeis sobre mim e manchar o meu nome... Foi justo fazer isto?

Picard deu vazão a um urro de raiva impaciente e voltou-se para estalar os dedos imperiosamente aos seus criados, meia dúzia dos quais, homens sólidos com idade suficiente para saberem jogar duro, avançaram com um ar alegre, três de cada lado, formando um semicírculo.

- Tirem-me este vadio da minha vista. O rio está perto. Deitem-no lá para ele arrefecer!

As mulheres fugiram num frufru de saias, Agnes e a criada arrastaram Iveta pelos dois pulsos. Os soldados avançaram, arreganhando os dentes mas com ar belicoso, e Joscelin viu-se obrigado a recuar uns passos de modo a não ficar cercado.

- Afastem-se! - avisou ele, berrando. - Deixem o cobarde cumprir a sua missão, pois se me tocarem com um dedo vai haver sangue derramado.

Ele tinha perdido a cabeça de tal modo que chegou a pegar no punho da espada e retirar a lâmina da bainha alguns centímetros.

Cadfael pensou ser melhor interferir antes que o jovem se pusesse de vez numa situação perigosa. Tanto ele como o irmão Denis estavam a avançar para se colocarem entre os antagonistas, quando do claustro surgiu a alta figura do prior Robert, monumentalmente desagradado, e da direcção dos aposentos do abade, rápido e silencioso e até aí despercebido, a figura igualmente alta e, de longe, mais ameaçadora, a do abade Radulfus, com cara de falcão e olhos perspicazes, com uma expressão fria mas sobriamente zangado.

- Senhores, senhores! - Robert colocou as suas longas e elegantes mãos entre eles. - Estão a desonrar não só a vós como a nossa casa. Tenham vergonha de pegar na espada ou cometer violência dentro destas paredes.

Os soldados voltaram, gratos, à multidão. Picard manteve-se com um ar irado mas controlado, Joscelin repôs muito rapidamente a sua espada na bainha, mas ficou a respirar pesadamente e a alimentar a sua fúria. Não era fácil de acalmar, e ainda mais difícil de silenciar. Fez uma meia volta que o pôs de frente para o abade, que tinha chegado ao sítio da disputa e ficado, com um ar calmo, zangado e imponente, observando os oponentes. Fez-se silêncio.

- Dentro dos limites desta abadia - disse Radulfus finalmente, sem levantar a voz -, os homens não brigam. Não posso dizer que nunca se tenha ouvido uma palavra de zanga. Nós também somos homens. Sir Godfrid, mantenha os seus homens controlados segundo estes princípios. E você, jovem rapaz, se tornar a tocar no punho da espada, passará a noite numa cela de penitentes.

Joscelin dobrou a cabeça e o joelho, apesar de o abade poder ter considerado o gesto algo superficial.

- Meu senhor e abade, peço o vosso perdão! Ameaçado ou não, a culpa foi minha. - Reconheceu a culpa, mas manteve a sua raiva. Um observador esperto poderia até pensar se ele não estaria a considerar a hipótese e possíveis vantagens de tornar a ofender, e ser fechado, como prometido, numa cela dentro destas paredes. As fechaduras podem ser abertas, os irmãos leigos subornados ou enganados. Sim, havia muitas possibilidades! No entanto, ele estava em desvantagem devido à consciência de não cometer ofensa contra quem não o tinha ofendido. - Estou à sua mercê - disse ele.

- Óptimo, compreendemo-nos mutuamente. Muito bem, que briga é esta que perturba a nossa paz?

Tanto Joscelin como Picard começaram a falar ao mesmo tempo, mas Joscelin, sensato por uma vez, deixou o homem mais velho falar. Ficou a morder um lábio e a olhar para o abade, à medida que Picard o afastava desdenhosamente nos termos esperados.

Padre, este escudeiro impertinente foi despedido pelo seu senhor por ser uma criatura negligente e de mau feitio, e julga que fui eu quem aconselhou Domville a fazê-lo, tal como senti ser meu dever. Pois acho-o presunçoso, impondo a sua presença junto da minha sobrinha, e de todas as maneiras um perturbador da paz. Veio aqui para brigar comigo, ressentindo-se da sua bem merecida expulsão. Ele não tem mais do que lhe é devido, mas não quer ser ensinado. E é tudo quanto se passa - disse ele com desprezo.

O irmão Cadfael ficou surpreendido pela maneira como Joscelin se manteve calado durante o discurso de acusação, os seus olhos respeitosamente postos no abade Radulfus até ser convidado a falar. Nestes breves momentos, ele deve ter adquirido um respeito saudável pela imparcialidade do abade e sentido de perspicácia, para se conter. Confiava que não seria julgado sem ser ouvido, e valia a pena um esforço de controlo pessoal de maneira a manejar devidamente a sua defesa.

- Bem, jovem senhor? - disse Radulfus. Não se pode dizer que ele estivesse a sorrir, pois a sua expressão mantinha-se judicialmente remota e calma; mas pode ter havido a sugestão de indulgência na sua voz.

- Padre abade - disse Joscelin -, todos nós destas duas casas viemos aqui para assistir a um casamento. Já viu a noiva? - Ela tinha sido empurrada para fora do campo de visão deles, para dentro da casa dos convidados, muito antes disto. - Ela tem dezoito anos. O meu senhor... aquele que era o meu senhor, está próximo dos sessenta. Nestes últimos oito anos ela ficou órfã e ao cuidado do seu tio, e possui grandes terras, há muito administradas pelo tio.-Uma indicação da sua inesperada intenção tinha-se imiscuído então, e Picard estava em ebulição e instável. Mas Radulfus carregou o sobrolho e levantou uma mão para o silenciar, e este diminuiu a premência. - Padre abade, peço a sua ajuda para Iveta de Massard! - Joscelin tinha ganho balanço e já não podia parar. - Padre, a sua honra espalha-se por quatro condados e cinquenta solares, é o quinhão de um conde. Eles dividiram-no entre eles, tio e noivo, parcelaram-no, ela é comprada e vendida sem se ouvir a sua vontade. Oh, Deus, ela já não tem vontade, ela está domada! A minha ofensa é eu amá-la, e querer levá-la para longe desta prisão...

A última parte do seu discurso, e, apesar de Cadfael se ter aproximado o suficiente para ouvir tudo, não foi ouvido pela maior parte dos outros ouvintes, por causa de um agudo clamor de refutação, no qual Agnes cumpriu com a parte mais barulhenta. Ela tinha uma voz que ultrapassava a oposição, Joscelin não conseguiu fazer-se ouvir. E no meio do barulho, subitamente, ouviu-se o bater de cascos no portão principal, e entraram no pátio cavaleiros munidos de autoridade, e num número calculado para chamar a atenção dos olhos e dos ouvidos. O fio do apelo de Joscelin e da refutação de Picard foi abruptamente cortado; todos os olhos se voltaram para o portão.

Primeiro entrou Huon de Domville, os músculos da sua cara retesados como os bícepes de um lutador, os seus olhos pequenos, negros e malévolos alertamente brilhantes. Perto dele estava Gilbert Prestcote, xerife de Shropshire debaixo do mandado do rei Stephen, um homem de meia-idade, magro e duro, com cara e nariz de falcão, barba em bico entremeada de cinzento. Levava consigo um sargento e sete ou oito ajudantes atrás de si: uma exibição impressionante. Ele mandou-os parar junto do portão e desmontaram todos.

- Ei-lo! - proclamou Domville, os olhos a brilhar na direcção de Joscelin, que ficou surpreendido e pasmado. - O grande velhaco! Não disse que ele estaria a provocar problemas onde pudesse antes de se ir embora? Apanhe-o, xerife! Agarre o patife e amarre-o!

Ele tinha estado tão concentrado na sua caça que não tinha reparado logo que o abade estava entre os presentes. Os seus olhos acenderam-se perante a austera e silenciosa figura tardiamente, e ele desmontou e tirou o chapéu numa vénia brusca.

- Com sua licença, padre abade! Temos uma missão difícil a cumprir aqui, e tenho muita pena que este jovem patife tenha trazido o problema para dentro destas paredes.

- Os distúrbios que ele causou até agora - disse Radulfus calmamente - não parecem requerer a presença do xerife e do sargento. Deduzo que se ele o ofendeu, também já foi chamado à atenção por isto. Despedi-lo do seu serviço é um direito que vos cabe. Persegui-lo mais parece-me algo excessivo. A não ser que tenha mais queixas a apresentar? - Ele olhou para Prestcote há espera de uma resposta.

- Na verdade existem mais - disse o xerife. - Fui instruído pelo meu senhor Domville a comunicar que desde que este escudeiro foi ordenado a arrumar as suas coisas e partir, uma coisa de grande valor desapareceu, e foi procurada em vão por toda a casa. Existem suspeitas que este homem a possa ter roubado por despeito com o seu senhor, e por vingança por ter sido despedido. Esta é a acusação que tenho contra ele.

Joscelin fitava-os com escárnio surpreso, ainda sem estar zangado e muito menos com medo.

- Eu... roubar? - ofegou ele com grande desprezo. - Eu não seria capaz de tocar na mais pequena coisa que lhe pertença. Não retiraria voluntariamente o pó do seu pátio dos meus sapatos. "Vai!", pediu-me ele, e assim fiz eu, da sua casa, e nem sequer parei para juntar tudo quanto me pertence. Tudo quanto trouxe está comigo e nestes alforjes.

O abade levantou uma mão pacificadora.

- Senhor, que coisa é essa tão valiosa e que está perdida? Qual a sua forma? Quando desapareceu?

- É o presente de casamento que queria dar à minha noiva - disse o barão -, um colar de ouro e pérolas. Fora da sua caixa, cabe na palma da mão de um homem. Tinha em mente trazê-lo hoje, depois da missa, mas quando fui buscá-lo, e o procurei dentro do estojo, estava vazio. Foi há quase uma hora, suponho, pois perdemos tempo procurando-o, apesar de que o facto de o estojo estar vazio devia ter-nos indicado que foi roubado, e não perdido. E só este rapaz, que foi despedido com razão e tomou uma posição de rebeldia, mais ninguém deixou a minha casa. Acuso-o do roubo e hei-de pôr a lei em prática até à última vírgula.

- Mas tinha este rapaz conhecimento da existência e do lugar onde estava guardado este colar? - perguntou o abade.

- Sim, padre - aquiesceu Joscelin rapidamente. - Tal como tinham os outros dois escudeiros ao seu serviço.

Mais cavaleiros tinham surgido junto ao portão, alguns pertencentes ao cortejo de Domville, e entre eles Simone e Guy, que pela expressão das suas caras, não tinham qualquer desejo de serem reconhecidos ou tomarem parte neste encontro. Como seria normal, eles estavam ali como meros espectadores e tinham um ar incerto e infeliz.

- Mas eu não lhe toquei - continuou Joscelin com firmeza. - E aqui estou eu, tal como deixei a casa, levem-me e dispam-me se quiserem, não encontrarão um fio que não seja meu. E ali está o meu cavalo e alforjes, tirem tudo para fora e deixem que o Sr. Abade sirva de testemunha. Mas não - disse ele veementemente, ao reparar que Domville tinha avançado para o cavalo -, não vós, meu senhor! Não quero as mãos do meu acusador a mexerem nos meus pertences. Que seja um juiz imparcial a fazer a busca. Padre, apelo para a vossa justiça!

- É justo que assim seja - disse o abade. -Robert, importa-se de fazer o necessário?

O prior Robert recebeu o pedido com uma digna inclinação de cabeça e iniciou a sua procissão em direcção ao dever que lhe foi designado. Dois dos soldados de Prestcot desapertaram os alforjes do seu lugar e quando o cavalo, nervoso pelo toque deles, se espantou, Simon, impulsivamente, saltou da sua montaria e correu para agarrar as rédeas e acalmar a sua agitação. Os alforjes estavam abertos no chão do pátio. O prior Robert mergulhou as mãos no primeiro e começou a mostrar simples artigos de vestuário e equipamento que o seu dono enraivecido tinha enfiado sem cerimónia havia quase uma hora. O sargento recebia-os solenemente, com Prestcote junto dele. Camisas de linho, todas amarrotadas por uma mão curiosa, túnicas, sapatos, alguns artigos soltos duma armadura, luvas...

O prior Robert andou com a sua longa mão de um lado para o outro do alforje para mostrar que estava vazio. Inclinou-se para o segundo. Joscelin mantinha-se no seu lugar com as pernas firmes, mal atento, a sua corajosa e bronzeada cara ostentando um sorriso arrogante. Cadfael pensou que se a mãe dele estivesse a ver esta cena teria algo de enérgico para lhe dizer sobre a maneira como as camisas estavam sendo tratadas, quando ele chegasse a casa. Se ele chegasse a casa...

E se chegasse? Que aconteceria à rapariga que tinha sido empurrada e fechada nalgum sítio com a velha criada por carcereira? Em tudo isto ela era a testemunha ausente. Ninguém lhe perguntou o que ela sabia ou pensava. Ela não era uma pessoa, simplesmente uma peça de mercadoria valiosa.

O segundo saco mostrou um bonito casaco para ocasiões especiais terrivelmente amachucado, vários cintos e cinturões, um chapéu azul, mais camisas, um par de sapatos suaves, entre outros. A mãe que tinha confeccionado tudo isto, tinha tido gosto para combinar a roupa com a cor do cabelo e os olhos azuis da sua criança. E, espanto, tinha também um livro com capas de madeira trabalhada, o livro de orações do jovem rapaz. Ele tinha dito que sabia ler.

Finalmente, o prior Robert retirou um pequeno rolo de fino linho e começou a abri-lo na sua palma da mão. Ergueu um rosto ques-tionador mas aprovador.

- E uma medalha de prata em forma de concha. Quem quer que fosse que a possuísse esteve presente na romaria a Compostela, no santuário de Saint James.

- Pertence ao meu pai - disse Joscelin.

- E é tudo. Este alforje também está vazio. Domville avançou subitamente com um grito de triunfo.

- Ah, mas que é aquilo? Existe mais alguma coisa no rolo de linho, vi de relance... - Agarrou no canto solto da fazenda, quase o arrancando da mão do prior. O medalhão de prata caiu no chão, mais alguns centímetros do seu invólucro desenrolaram-se, e algo brilhou e caiu a seguir, mostrando-se como uma pequena serpente dourada, para se revelar num pequeno monte de finos elos amarelos e pérolas cremes, entre as pedras aos pés de Joscelin.

Ele ficou tão perplexo que não conseguia encontrar palavras para dizer, e ficou a fitar a pequena e preciosa coisa que o condenava. Quando finalmente levantou os olhos e apanhou o olhar atento de todos os outros, Domville muito alegre, e o xerife sorridentemente satisfeito, o abade ausente e triste, e em toda a parte uma acusação muda, ele estremeceu violentamente, sacudindo-se do seu silêncio chocado. Ele gritou apaixonadamente que não tinha tirado o colar, que não tinha sido ele quem o colocara lá. Mas fez esta negação uma só vez, reconhecendo imediatamente a sua inevitibilidade e despropósito. Teve a louca ideia de lutar, mas encontrou os olhos firmes e desiludidos do abade, e deliberadamente pôs de parte o pensamento. Não aqui! Ele tinha jurado não cometer ofensa contra este lugar. Por isso, não havia nada a fazer a não ser submeter-se. Uma vez fora dos portões a coisa seria diferente, e quanto mais certos estivessem da sua submissão, menos precauções provavelmente tomariam. Manteve-se mudo e não resistiu quando o sargento e os seus homens se aproximaram.

Tiraram-lhe a espada e o punhal, e seguraram-no pelos dois braços, mas porque eles eram muitos e ele só um, e parecia estar completamente subjugado, não se deram ao trabalho de o atar. Domville ficou perto dele, sorrindo com ar de vingança, e não se dignou a pegar na sua possessão, deixando este trabalho para Simon, que se apressou a fazê-lo, abandonando o cavalo cinzento e suas rédeas, apanhando o colar e entregando-o a Domville. Ele lançou um olhar duvidoso e ansioso na direcção de Joscelin à medida que apanhava o colar, mas não disse uma só palavra. Os Picards olhavam-no com evidente e maliciosa satisfação. Um empecilho fora do seu caminho e, se Domville quisesse, fora do caminho de toda a gente, para sempre. Tal roubo, com a pequena traição que se adivinhava, mesmo se ele já tivesse sido escusado do serviço do seu senhor, podiam custar a vida a um homem.

- Quero a penalidade total da lei para ele - disse Domville, comandando o xerife com o olhar.

- Será o tribunal a decidir - disse Prestcote secamente, e voltou-se para o seu sargento. - Levem-no para o castelo. Tenho de conversar com Sir Godfrid Picard e o abade sobre o assunto; depois vou lá ter.

O prisioneiro seguiu com submissão de cordeiro, o seu cabelo louro caído, os seus braços frouxos e submissos no aperto dos dois mus-culados soldados. Irmãos, convidados e criados afastaram-se para lhe dar passagem, e um silêncio horrorizado caiu após a sua passagem.

O irmão Cadfael ficou a olhar para o vazio como os outros. Era realmente duro reconhecer o beligerante jovem que tinha galopado para dentro do pátio há tão pouco tempo, ou o apaixonado audacioso que tinha penetrado em território inimigo para conjurar algo de desesperado, com uma rapariga assustada de mais para poder fazer o que o seu coração desejava. Cadfael não podia acreditar em tão súbitas transformações. Debaixo de um impulso, ele avançou em direcção ao portão de modo a manter a pequena e triste procissão dentro do seu campo de visão. Atrás dele, fez-se ouvir a voz de Simon Aguilon a perguntar:

- Posso levar o cavalo de volta para o nosso estábulo, senhor? Não podemos abandonar o pobre animal, ele não fez mal nenhum.

Não era bem claro o tom que empregou, se acreditava que o dono do pobre animal tivesse feito algum mal, mas Cadfael duvidava. Ele não podia ser o único que tinha reservas em relação ao roubo.

Joscelin e os seus guardas estavam próximos dos arredores da ponte, quando Cadfael emergiu do Foregate e se apressou atrás deles. A colina de Shrewsbury, com as suas torres e casas coroando a longa linha da muralha, brilhava vacilantemente ao sol fraco e húmido para lá da corrente cheia do Severn, e para a direita a alta massa do castelo aparecia, a prisão para a qual o prisioneiro e guardas agora se dirigiam. Desde o pino do Verão tinha havido chuvas fortes, e a enchente que vinha de Gales tinha aumentado a corrente, transformando-a numa água rápida que engolia as margens baixas das ilhas. A secção mais próxima da ponte, a ponte levadiça que cortava o acesso à cidade quando necessário, estava em baixo e cheia de gente, pois estava próximo o fim das colheitas, frutos e raízes para forragem, e os sensatos estavam fazendo as provisões para o Inverno. Três cavaleiros cavalgavam à frente do prisioneiro e da sua escolta, outros três à retaguarda, mas Joscelin e aqueles que o guardavam de perto iam a pé, vagarosamente, pois nenhum prisioneiro no seu perfeito juízo teria pressa em ver a porta da sua cela fechar-se na sua frente; mas não iam demasiado devagar, também, pois ele era rudemente incitado quando se atrasava. Carroças e gente da cidade, a pé, afastavam-se para o lado, e ficavam a olhar, alguns tão interessados que se esqueciam de si próprios e aproximavam-se de novo, fitando, e barravam o caminho aos cavaleiros da retaguarda.

Tinha havido frequentemente escaramuças entre a cidade e o xerife do condado a mando do rei, e o sargento de Prestcote era agressivo com o chicote ou ameaça em relação aos habitantes cujas ferroadas retaliatórias se tinham mostrado agudas de mais. Assim, aconteceu que quando o prisioneiro já tinha passado o portão estreito da ponte levadiça, e os observadores se voltaram para olhar e bloquearam o caminho, os cavaleiros da retaguarda contentaram-se em pedir, civilmente, passagem, e um abismo maior abriu-se entre eles e a sua obrigação. Cadfael, deslizando agilmente por entre os cavalos, de modo a se juntar aos curiosos que estavam no portão, teve uma visão parcial do que se seguiu.

Ainda andando triste e cabisbaixo, Joscelin tinha chegado ao centro do suporte principal da ponte, onde o parapeito não ultrapassava a altura da cintura. Deu a impressão que ele tropeçou, permitindo aos três depois dele, que eram arqueiros, continuarem durante cerca de uma jarda antes de se aperceberem do que se tinha passado. Uma carroça tinha-se desviado para a esquerda, por isso o grupo teve de passar pelo lado direito. A medida que se aproximaram da muralha, Joscelin, subitamente, pôs em movimento a enganadora e flexível energia do seu grande e elegante corpo, atirou os dois guardas que o seguravam num movimento desconcertante para a direita, levantando-os do chão antes que conseguissem compreender o que se passava, libertou os seus braços, e saltou por cima de um adversário desajeitado para alcançar a muralha. Um dos que o seguiam agarrou-se desesperadamente ao seu pé quando ele saltou para o parapeito, mas ele deu-lhe um vigoroso pontapé e o homem cambaleou fortemente. Antes que mais alguém conseguisse pôr-lhe a mão em cima, ele tinha saltado velozmente para dentro da correnteza e mergulhado de pés e imaculadamente no centro do rio, desaparecendo de vista.

Foi maravilhosamente bem feito, e Cadfael, que tinha presenciado tudo, não pôde senão ficar contente. Por nenhuma razão especial, ele ficou com a certeza que Joscelin Lucy não tinha tocado no ouro de Domville, e que a conversa de Agnes com o marido acerca do encontro no jardim, e a queixa de Picard e consequente aviso ao noivo, tinham causado o despedimento do rapaz, e o despedimento não tinha outro fim senão tornar possível perseguir o jovem rapaz e acusá-lo falsamente de roubo, e mandá-lo para uma prisão, para longe dos seus planos para o futuro. Não podiam deixá-lo à solta. Ele tinha de se ir embora.

E ele tinha-se ido embora, magnificamente, de sua própria vontade. Cadfael, sem fôlego, tinha-se debruçado no parapeito tal como dezenas de outros espectadores interessados. Vozes clamaram, algumas iniciais, outras facciosas. Haveria sempre bastantes cidadãos respeitadores da lei aqui para encorajar qualquer prisioneiro que conseguisse escapar à garra do xerife.

O sargento, que certamente seria o responsável pela perda, tinha entrado em acção com um urro de raiva, e estava a rugir ordens de um lado para o outro aos seus homens. Os dois cavaleiros da frente foram mandados galopar à frente, para irem até à beira-rio por debaixo das muralhas da cidade, os três, na retaguarda, foram fazer o mesmo mas junto da margem da abadia, para apanharem o fugitivo em qualquer das margens que ele tentasse usar para fugir. Mas qualquer dos dois grupos tinha de dar a volta, enquanto que o rio Severn, mais rápido que qualquer um deles, seguia em frente serenamente, levando consigo a caça invisível. Os peões que tinham ficado para trás, tinham entre si dois arqueiros, e perante a ordem do sargento eles colocaram os seus arcos em posição junto ao parapeito, afastando a multidão que aumentava e que poderia estorvar o movimento dos seus braços.

- Assim que ele aparecer à superfície - gritou o sargento -, atirem nele! Firam-no se puderem! Matem-no se tiver de ser!

Os minutos passaram, enquanto os cavaleiros alcançaram a margem e começaram a correr desastradamente para junto da água, e ainda não havia sinal da loura cabeça quebrar a lisa e calma superfície do rio.

- Ele morreu! - lamentou alguém, e algumas das mulheres suspiraram com pena.

- Nunca ele! - gritou um garoto de barriga espalmada no parapeito. - Vêm além? Ágil como uma lontra!

A pálida cabeça de Joscelin apareceu por um momento, lustrosa e deslizante, mais em baixo na corrente. Uma seta atingiu a água e arrancou gotas brilhantes cerca de um pé ao lado, mas por essa altura ele tinha tornado a mergulhar, e quando voltou à superfície para respirar já estava fora do alcance das setas. Um segundo tiro quase o atingiu, e ele permaneceu no meio da corrente, bem visível; deixando que o rio o levasse, aparentemente tão à vontade na água como em terra. Os arqueiros foram vaiados pelos seus esforços pelas crianças da cidade, ou, pelo menos, por aqueles que estavam cuidadosamente fora de alcance, enquanto que a visão de um longo braço impudentemente a acenar adeus do rio criou um grande ataque de riso semi-suprimido.

Em ambas as margens, os cavaleiros progrediam, irremediavelmente ultrapassados, dois abrindo o seu caminho ao longo do caminho debaixo da muralha da cidade e da vinha do abade, três, agora longe, no outro lado, onde as principais plantações de vegetais da abadia e pomares alongavam o tamanho dos campos chamados Gaye. Eles tinham tanta esperança de agarrar Joscelin Lucy como de apanhar as folhas que se lançavam na corrente principal. O Severn corria silenciosamente e sem espalhafato, mas mortalmente rápido. Presentemente, eles estavam a correr e esforçar-se atrás de uma loura cabeça pouco maior que um pequeno punhado de espuma empurrado por um turbilhão inesperado. Agora pouco visível, no próximo momento completamente invisível. Ele tinha mergulhado novamente, para se certificar, pensou Cadfael que o vigiava atentamente, que ninguém via de que margem ele se aproximava, ou onde ele sairia da água. Já tinha passado a vinha, tinha a vasta massa das paredes do castelo à sua esquerda, arbustos e árvores baixas a enfaixarem o chão em baixo, e à sua direita, para além dos pomares, bosques que se estendiam até junto da água. Havia pouca dúvida de qual ele escolheria, mas absteve-se de se mostrar até ter desembarcado e entrado pelos bosques. Cadfael, escolhendo cuidadosamente o que parecia ser o melhor esconderijo, pensou ter visto não tanto um instantâneo do rapaz, mas uma momentânea convulsão dos ramos pendurados, e um breve brilho na água, à medida que Joscelin se içou para a margem e desapareceu dentro dos bosques.

Nada mais a ver ou a fazer havia ali. Cadfael lembrou-se do dever negligenciado, e partiu em direcção ao portão da abadia, voltando as costas às contentes crianças e zangados guardas. Havia agora pouco proveito em especular como o rapaz se iria desenvence-lhar, sem armas, sem cavalo, sem dinheiro ou roupas secas, e com a perseguição que ia ser iniciada a partir deste momento. Seria melhor que ele se tornasse o menos conspícuo possível, a pé ou de outra maneira, e pusesse o maior espaço possível entre si e Shrews-bury, antes do anoitecer. Mesmo assim, Cadfael acabou por duvidar que ele fizesse algo tão sensato.

Não foi uma grande surpresa saber que as notícias tinham chegado antes dele. Quando ele estava a aproximar-se da portaria, Gil-bert Prestcote saiu a meio galope, com cara ameaçadora e os seus restantes cavaleiros seguindo-o de muito perto. Ele nada tinha contra Joscelin Lucy e, pelo seu comportamento, nenhuma obrigação especial para com Huon de Domville, mas a incompetência do seu sargento seria como uma espinha atravessada na sua garganta, e, a não ser que o prisioneiro fosse encontrado dentro de pouco tempo, certamente haveria um tempo muito tempestuoso para todos os infelizes guardas.

O porteiro emergiu cuidadosamente, à medida que a poeira assentava, para ficar a olhar para eles e sacudiu a cabeça de modo pesaroso quando Cadfael se aproximou.

- Então o ladrão conseguiu escapar-se-lhes, apesar de tudo! Vai ser o diabo agora, ele vai pôr toda a guarnição atrás do rapaz. E ele a pé é capaz de ultrapassar os seus cavalos! Os seus bens foram levados para a casa do bispo pelo outro escudeiro.

Tinham partido, Huon de Domville, Simon Aguilon, Guy Fitz-John, criados e todos, e se as notícias da fuga só tinham chegado à portaria da abadia, eles tinham partido com a firme convicção de que o ladrão estava seguramente preso.

- Quem trouxe a notícia? - perguntou Cadfael. - Ele foi muito rápido. Ele não pode ter ficado para ver tudo.

- Dois irmãos leigos estavam a chegar dos Gayes com o resto das maçãs atrasadas. Viram-no saltar, e vieram numa pressa terrível para contar. Mas não chegou muito depois deles.

Então não tinha passado daqui. Havia muita gente, irmãos, criados e convidados, correndo de um lado para o outro do grande pátio de um modo excitado e especulativo, e alguns dirigindo-se para a margem do rio para ver o que se passava. Quando se soubesse a notícia, o descontentamento de Huon de Domville seria ventilado noutro sítio qualquer. Aqui, Cadfael viu Godfrid e Agnes Picard à porta da casa dos hóspedes, absorvidos num colóquio atento e segredado, e as suas expressões faciais mostravam tensão e cautela, e o modo como se olhavam era só cálculo e alarme. Este acontecimento não lhes convinha nada; preferiam que o rapaz estivesse seguramente fechado a sete chaves no castelo, que com o pescoço em perigo, se Domville resolvesse levar o caso até ao fim.

Não havia sinal de Iveta. Sem dúvida estava fechada lá dentro, com o dragão de Agnes a guardá-la. E também não apareceu durante algumas horas, apesar do seu tio e tia terem sido vistos propositadamente a atravessar o pátio da casa do abade para a portaria ou para casa dos hóspedes variadas vezes. Uma vez, Picard ausentou-se durante quase uma hora, certamente a casa do bispo para conferenciar com Domville. Cadfael afligiu-se toda a tarde com a sua responsabilidade, negligenciando a costumeira vigia às actividades de Oswin, e ficou algo surpreendido ao reparar que, uma vez não vigiado, o seu assistente nada queimou, derramou, quebrou e nem deitou fora nenhuma planta preciosa. Poderia, claro, ser uma especial dádiva da providência, uma cortesia para com a evidente preocupação de Cadfael, mas também poderia ser uma reprovação a si próprio por manter o seu pupilo debaixo de uma vigilância tão enervante.

O seu problema era fácil de dizer mas difícil de resolver. Deveria ele ir ter com o abade Radulfus e contar-lhe o que tinha testemunhado e participado na noite anterior? Apesar de bem intencionado, interferir nos assuntos de estranhos com tão pequena e suspeita evidência podia ser perigoso. Tanto quanto ele sabia, o razoável rapaz poderia ser um caçador de fortunas que tinha tentado seduzir Iveta e convencê-la a fugir com ele para o seu próprio proveito; e ele exercia atracção suficiente para conseguir conquistá-la. No entanto, apesar de Cadfael tentar ver as pessoas envolvidas de todos os ângulos, sem se deixar influenciar por preconceitos, não conseguia encontrar nos Picards qualquer vestígio de calor humano ou carinho para com a jovem.

O assunto ficou resolvido quando o abade Radulfus o mandou chamar a meio da tarde. Ele obedeceu ao chamamento debaixo de uma ligeira especulação, e ainda mais ligeira apreensão, pensando filosoficamente que as mentiras nem sempre podem ser facilmente esquecidas, mesmo quando bem intencionadas. Além de que seria insensato subestimar Agnes Picard, mesmo se ele não se tivesse atravessado no seu caminho só para deitar água na fervura.

- Recebi uma queixa de si, irmão Cadfael - disse o abade, desviando-se propositadamente da sua secretária. Como sempre, a sua voz estava calma, incisiva e cortês, o seu rosto impenetravelmente calmo. -Oh, o seu nome não foi mencionado, mas creio que o irmão que estava ainda a trabalhar no jardim ontem à noite depois do jantar não pode ser outro senão você.

- Estava lá- disse Cadfael prontamente. Havia só uma maneira de lidar com Radulfus, e esta era agir de modo directo e aberto.

- Na companhia da menina Iveta e daquele jovem que agora está a ser perseguido nas margens do rio? E conivente com eles num encontro tão irregular?

- Nem uma coisa nem outra - disse Qadfael. - Encontrei-os na minha oficina, para meu desconforto e deles. E assim nos encontrou Lady Picard uns momentos depois. Que tentei remediar a situação, não nego. Havia tempestade no ar. Digamos que disparei uma seta ou duas para furar as nuvens.

- Uma versão - disse o abade serenamente -, eu ouvi de Sir Godfrid, que certamente a obteve da sua esposa. Deixe-me ouvir a sua.

Cadfael contou-lhe tudo, tão fielmente quanto conseguia recordar, apesar de quase ter mencionado a imprudente afirmação de Joscelin, de que não se coibiria de cometer um crime. Jovens de sangue quente dizem tais coisas, enquanto que as suas caras e atitudes as desmentem. No fim do relato, Radulfus olhou-o longamente com o cenho franzido e disse-lhe:

- Deixou para o seu confessor as suas evasivas em relação à verdade, irmão Cadfael. Mas acredita de verdade que esta rapariga tem medo dos seus parentes? Que está a ser obrigada a cometer actos que lhe são odiosos? Ouvi o que disse o acusado. Mas ele ganharia imenso se conseguisse afastá-la do casamento planeado, e o seu motivo pode ser tão podre como o é sempre a ganância. Uma pessoa agradável não é um certificado de um espírito agradável. Até pode ser que o tio dela tenha feito bem em planear este casamento, e seria um pecado perturbar os seus planos.

- Existe um pormenor - disse Cadfael cuidadosamente - que me preocupa muito. Esta jovem nunca é vista sozinha, mas sempre com o tio e a tia a ladearem-na. Eu ficaria com o espírito em paz, padre, se pudesse falar com ela livremente e a sós uma única vez, sem testemunhas a escutar ou a interromper.

O abade considerou e admitiu gravemente:

- Existe muita verdade no que diz. Pode ser somente preocupação a mais o que a oprime tanto, mas, pelo menos, teria a oportunidade de fazer ouvir livremente a sua voz. Que tal se eu fosse fazer uma visita à ala dos hóspedes e ver se consigo uma ocasião a sós com ela? Também sossegaria a minha mente. Pois digo-lhe com franqueza, Sir Goldrid assegura-me que este escudeiro abusou dos favores que tinha por estar ao serviço do seu senhor para prestar uma corte furtiva à rapariga, que mostrava estar contente o bastante antes, e voltar-lhe a cabeça com as suas atenções e lisonjas. Se esta é a verdade, os acontecimentos desta manhã podem ter servido para lhe abrir os olhos e fazê-la reconsiderar.

Não se conseguia dizer do seu modo ou palavras se ele aceitava ou não, inquestionavelmente, a verdade da acusação de roubo, ou a evidência dos seus olhos. Ele era por de mais subtil para não ter examinado todas as alternativas.

- Tenciono - disse ele - convidar o noivo, o sobrinho e Sir Godfrid Picard para jantar comigo hoje à noite. Dá-me ocasião para fazer o convite pessoalmente. Por que não agora?

Por que não deveras? Cadfael acompanhou-o até à enevoada tarde de Outono cuidadosamente contente com a entrevista. Radulfus era um aristocrata e o equivalente a um barão, e possuía austeras ideias do dever que os jovens tinham de ser conduzidos por aqueles com autoridade sobre eles; mas não era cego às frequentes falhas dos mais velhos, assim privilegiados, para impor uma benevolente ordem nas vidas das suas crianças. Se ele estivesse alguns momentos a sós com Iveta, não poderia deixar de ganhar a sua confiança. Ela não deixaria passar tal oportunidade. Nesta casa, ele era senhor, ele podia pô-la debaixo da sua alçada e protegê-la mesmo de reis.

Passaram pelo jardim do abade e chegaram ao grande átrio, dirigindo-se para a casa de hóspedes. Cadfael teria pedido licença e voltado para os jardins, mas, em vez disso, ambos pararam admirados. Pois, sentada no banco de pedra perto do muro do refeitório, estava Iveta, os seus olhos diligentemente baixos sobre o livro de orações que estava no seu regaço, a velada luz do sol lançando um brilho sobre o seu cabelo louro-escuro. A refutação de tudo quanto tinha sido dito dela - estava sozinha, sentada ao ar livre, lendo calmamente, sem ninguém da parte do seu tio à vista.

Radulfus parou e fitou-a, e, voltando-se, dirigiu-se para o lugar onde ela estava sentada. Provavelmente, ela ouviu o arrastar do seu hábito; o seu modo de andar não era silencioso. Ela olhou para cima, e o seu rosto estava quase glacialmente calmo e parado. Tão branca estava a sua pele que era difícil dizer se estava mais pálida que o normal, mas quando viu o abade aproximar-se dela sorriu, pelo menos com os lábios, e levantou-se para fazer-lhe uma delicada reverência. Cadfael tinha-se aproximado, sem acreditar, sem compreender o que via.

- Filha - disse Radulfus gentilmente -, folgo em vê-la assim em paz. Temia que os acontecimentos desta manhã a tivessem perturbado gravemente, quando uma tal mudança no seu estado está para acontecer e precisa de calma e consideração. Tinha, penso eu, uma melhor opinião daquele jovem do que ele merecia, e não podia estar preparada para tal descoberta. Tenho a certeza de que a afligiu muito.

Ela olhou-o com calma, o rosto firme, os olhos seguros mas vazios de expressão, e disse:

- Sim, padre. Nunca pensei mal dele. Mas agora tenho as minhas dúvidas. Conheço o meu dever. - A sua voz estava baixa, mas bastante firme e decidida.

- E o seu espírito está em paz com o sacramento de amanhã? Eu também tenho um dever, minha filha, para com todos que vêm para aqui. Sou acessível a todos. Se existe alguma coisa que deseja dizer-me, faça-o livremente e ninguém tentará calá-la ou persuadi-la... eu estou disposto a ouvi-la fielmente. A sua paz, a sua felicidade são uma preocupação minha enquanto estiver dentro destas paredes, e terá as minhas orações depois de ir embora.

- Acredito em si - disse Iveta - e agradeço-lhe. Mas a minha mente está decidida e satisfeita, padre. Vejo claramente qual é o meu caminho, e não quero mais ser influenciada.

O abade olhou-a longa e gravemente, e ela sustentou o seu olhar sem pestanejar, mantendo o seu pálido e resoluto sorriso. Radulfus preferiu que tudo fosse posto em pratos limpos, pois esta poderia ser a única oportunidade.

- Sei bem que este casamento que fará amanhã foi escolhido por vossa tia e tio, e conveniente em grau social e fortuna. Mas é de sua escolha também, filha? Fá-lo de sua livre vontade?

Abriu ainda mais os já grandes olhos, púrpuros como íris, e afastou os lábios de um modo inocente; disse simplesmente:

- Claro que sim, padre. Certamente que é de minha vontade. Estou a fazer o que sei que está certo e é bom para mim, e faço-o de todo o coração.

 

Simon Aguilon aproveitou a hora em que o seu senhor dormia, descansando do jantar e esquecendo a sua raiva, e escapou-se, só e apressado, pelo jardim traseiro à casa do bispo, pelos celeiros e pomares, e, saindo pela cancela, encontrou-se na faixa de mata que corria ao longo do Foregate. Lá mais em baixo, tinham dito as testemunhas, Joscelin tinha desaparecido da vista, e muito perto do sítio onde ele tinha sido visto pela última vez, deve ter saído do rio. Certamente na margem direita, longe do castelo. Por que haveria alguém de se meter na boca do lobo, mesmo se houvesse alguma protecção? Seria melhor na margem da abadia, mais para baixo dos Gaye.

Eles andavam à sua procura, claro, mas metodicamente, sem pressa. O primeiro passo tinha sido plantar guardas em todas as estradas que irradiavam da cidade, e patrulhas nos espaços livres de modo a formar um anel que seria quase impossível romper. Uma vez que isto estivesse feito, eles podiam ser lentos e meticulosos em peneirar todo o espaço contido dentro do anel. Ele não tinha nem cavalo nem arma, nem meios de conseguir um deles. Domville, uma vez informado da sua fuga, tinha mandado retirar o cavalo cinzento do estábulo onde Simon o tinha guardado, e tinha-o fechado num sítio seguro, por medo que o seu dono se aventurasse a meio da noite para se assenhorar dele e tentar escapar. Era só uma questão de horas até o apanharem.

Simon infiltrou-se ainda mais nos bosques, até pensar que tinha chegado ao sítio aproximado onde Joscelin tinha desembarcado.

Aqui, longe das margens, a vegetação era densa, com muitos arbustos, e ele encontrou dois pequenos ribeiros a dirigirem-se para o rio. Molhado como devia estar, Joscelin podia perfeitamente usar o leito de um deles como seu caminho, no caso de trazerem cães de caça para o seguirem. Simon seguiu o segundo ribeiro que o levou ainda mais para dentro da floresta. Quando ele parou para escutar, não havia nenhum barulho de roda dele a não ser a ocasional nota de um pássaro. Ele permaneceu com os ouvidos à escuta e começou a assobiar uma música de dança que eles tinham aprendido juntos com o capelão de Domville, que tinha jeito para música, e participava tanto em músicas seculares como na liturgia.

Simon tinha-se afastado gradualmente cerca de um quarto de milha do rio, sempre assobiando a sua melodia em intervalos, antes que conseguisse uma resposta. Os densos arbustos à sua direita sussurraram, uma mão dividiu-os ao meio e ele viu de relance um olho cauteloso a espreitar.

- Joss? - murmurou ele. Mesmo se a caçada ainda não tivesse chegado aqui, um camponês curioso podia dar o alarme e estragar tudo. Mas o silêncio da floresta continuou imperturbável.

- Simon? - Ele era lento em ganhar confiança. - Eles estão a fazer de ti isca? Nunca toquei no maldito ouro dele.

- Nunca pensei que o tivesses feito. Cala-te, mantém-te abrigado! - Simon aproximou-se mais, para ouvir e ser ouvido murmurar: - Estou sozinho, vim à tua procura. Não podes passar a noite ao relento, todo molhado do rio. Não posso trazer-te o cavalo ainda, ele foi fechado noutro lugar. E todas as estradas estão bloqueadas. Terás de te esconder mais um dia ou dois, até eles perderem o interesse e afrouxarem a vigilância. Ele há-de desistir de te querer apanhar depois do dia de amanhã.

Os arbustos agitaram-se com o tremor de protesto e ódio de Joscelin, pois amanhã tudo estaria perdido, e tudo ganho.

- Deus é minha testemunha - ele disse entredentes - que eu não vou desistir disto. Se eles a casarem, eu posso sempre enviuvá-la.

- Cala-te, tolo, nunca digas tais coisas! E se outros te ouvem? Estás seguro comigo, eu ajudar-te-ei o mais que puder, mas... Está quieto e deixa-me pensar!

- Eu posso defender-me sozinho - disse Joscelin, erguendo-se cuidadosamente do seu esconderijo, sujo e enlameado, o seu cabelo louro emplastrado à cabeça, mas já a secar em fios amarelos nas têmporas.

- És um bom rapaz, Simon, mas advirto-te a não correr riscos disparatados por minha causa.

- Que é que tu queres que eu faça? - Simon estava exasperado. - Ficar de braços cruzados e deixar que eles te apanhem? Vê bem, o lugar mais seguro para ti agora, o único lugar que eles nunca se lembrarão de procurar, é dentro das propriedades do bispo. Oh, não na casa, estábulos ou pátio, naturalmente. Mas esta é a única casa e jardim que não vão ser revistados. Todos os celeiros e estábulos das redondezas vão ser rebuscados. Existe uma cabana no fim da propriedade, junto da porta por onde saí, onde eles guardam o feno do campo. Podias ficar lá a secar, eu levava-te comida, e a cancela podia ser barricada do interior, ninguém poderia entrar. Depois, se eu conseguir trazer o Briar até junto de ti... Que é que achas?

Era sensato suficiente, e Joscelin disse que sim com fervor e gratidão. O que ele não disse, foi que nem queria saber do cavalo, pois ele não tencionava ir a lugar nenhum até encontrar uma maneira de salvar Iveta, ou então perder a esperança e o coração e provavelmente, a vida na tentativa.

- És um bom amigo, e eu nunca esquecerei isso. Mas tem cuidado contigo, basta um de nós numa situação destas. Ouve!

Ele agarrou Simon pelo pulso e abanou-o com seriedade.

- Se tudo correr mal e eu for apanhado e levado daqui, tu não sabias de nada, eu fiz tudo sozinho. Nega-me, com toda a minha vontade. Se me pedirem contas de carne ou outra coisa qualquer, direi que roubei, e deixas as coisas ficarem assim. Promete-me! Teria vergonha de mim mesmo se te arrastasse para esta questão.

- Tu não serás apanhado - disse Simon com firmeza.

- Não, mas promete!

- Oh, está bem, já que assim o queres, eu deixo-te ficar, ou, pelo menos, tento salvar-me. Como a maioria dos homens, não quero perder um bocadinho de escalpe. Terei cuidado, de uma maneira ou de outra. Então, vem lá! Enquanto tudo está quieto e ainda não deram pela minha falta.

A volta foi mais curta, já que eles podiam dirigir-se directamente para a parede traseira do jardim do bispo, e estiveram protegidos todo o caminho. Por uma ou duas vezes, Simon, que ia à frente, assobiou devagar e Joscelin escondeu-se nos arbustos, mas cada alarme passava logo, os pequenos sons que causavam barulho eram pássaros a levantar voo, ou criaturas selvagens a arrastarem-se por entre os arbustos secos. A cancela do muro permanecia aberta como Simon a tinha deixado. Ele entrou primeiro para acabar de a abrir cautelosamente e olhar em volta, depois acenou-lhe, e Joscelin mergulhou através dela com gratidão. Ouviu-a depois a ser fechada e barricada atrás de si. Havia uma pequena pilha de forragem junto à parede. Dentro cheirava a erva seca, e o fino pó levantado pelos seus pés fez-lhe cócegas no nariz, cheirava mal.

- Ninguém virá aqui - disse Simon em voz baixa. - Os estábulos no pátio estão bem cheios. E é confortável o bastante para te deitares. Fica quieto e calado. Vou jantar com o meu tio e com o abade hoje à noite, mas trazer-te-ei de comer e beber antes de ir. Secarás bem aqui no meio do feno.

- É um palácio - disse Joscelin com convicção, e apertou os braços do seu amigo com gratidão e calor. - Nunca esquecerei isto. O que quer que aconteça agora, Deus seja louvado, eu saberei que existe uma pessoa que se recusa a acreditar que sou um ladrão, um amigo em quem posso confiar. Mas lembra-te, se acontecer alguma coisa, prefiro afundar-me sozinho que te arrastar para o esterco comigo.

- Deixa o bem-estar de Simon - disse o jovem homem com uma careta de quem confia - para uma pessoa que o ama muito. Tem é cuidado contigo. Eu tomarei conta de mim. Agora tenho de ir! Ele estará a berrar por mim para o ajudar a vestir para as Vésperas. Este é o preço que ele paga por jantar com o abade!

O irmão Cadfael reparou na sua presença nas Vésperas, Huon de Domville, sombriamente esplêndido para a mesa do abade, vestido em ricos tons de carmesim e negro, o cónego Eudo, imperturbavelmente sério e ascético, como um prior Robert muito mais novo a estudar para ser santo, mas mantendo um olho aberto para as possibilidades seculares à sua volta. E a atendê-los, o jovem escudeiro Simon Aguilon, cabelo encaracolado, atlético e discreto, com uma cara morena e aberta, hoje tornada desusadamente grave pelos acontecimentos do dia.

Os Picards também lá estavam, mas a noiva não, notou Cadfael, e também a velha criada. Ele tinha visto Iveta de relance por duas vezes naquela tarde, mas novamente com um guardião de cada lado. Ela manteve o semblante calmo e composto, tinha a mesma expressão pálida, mas orgulhosa e confiante, o leve sorriso pronto a voltar aos seus lábios; mas só aquela vez, pensou Cadfael, tinha estado inquestionavelmente sozinha, sem vigilância, com liberdade para dar a sua opinião sem ser interrompida. E tinha falado, confundindo todas as expectativas. Não havia maneira de contornar o problema. Ela tinha acreditado o pior de Joscelin Lucy, e tinha-o posto fora da sua graça com uma resolução que parecia estar fora do seu alcance. Ela reconciliou-se com o seu casamento e estava determinada a ir para a frente com ele, talvez em sinal de um recuo amargo em relação a um sonho muito mais agradável que se tinha mostrado ser uma desilusão ao acordar.

Então ela era muito ingénua, decidiu Cadfael, e muito fácil de convencer. Não tinha sido escondida uma taça no saco de Benjamim, naquela história da Bíblia, de modo a que fosse detido? E não tinha o mesmo estratagema sido usado tantas vezes? Mas ela era muito nova, e talvez estivesse apaixonada com tão pouca arte que só foi preciso um pouco de arte para modificar a sua afeição demasiado simples. No entanto, o problema com as coisas tão obviamente suspeitadas, é que estas se podem tornar realidade.

Ficou a observar os convidados a dirigirem-se para o aposento do abade depois de Vésperas, e viu o regresso de Agnes Picard para a ala dos hóspedes. Era impossível agir, nada podia ser feito. Cadfael foi para o seu jantar no refeitório, e depois das leituras na capela, tinha perdido não só o apetite como a concentração.

Os convidados do abade sem dúvida que jantaram bem, mas, depois, não ficaram até muito tarde. Cadfael tinha ido fechar a sua oficina antes de se recolher, bem depois de noite escura, e estava a voltar para o dormitório quando viu, perto da lanterna junto do portão, Domville e o seu escudeiro a montarem para voltarem à casa do bispo e Picard a despedir-se deles. O cónego Eudo, evidentemente, ia passar a noite em casa do abade, para preparar tudo para o dia seguinte.

Tinham bebido bastante pelo som jovial das suas vozes, mas, certamente, não em excesso, já que Radulfus era abstémio e oferecia como achava que era certo e suficiente, mas não mais. À crua luz amarela distinguia-se escrupulosamente o barão gordo, comodista, mas ainda poderoso, em dinheiro, propriedadess, corpo e mente, de modo algum um homem pequeno e inconsiderado. Picard era mais magro visto de qualquer ângulo, um homem escuro, pouco franco e capaz, cuja subtileza podia perfeitamente completar a força brutal de Domville. Estes dois juntos podiam ser formidáveis para qualquer inimigo. O jovem rapaz permaneceu à espera pacientemente, assíduo, mas desinteressado, o seu pensamento longe, mas o seu temperamento equilibrado. Ele não teria pena de voltar para a cama.

Cadfael viu-os partir, viu o mais novo aguentar o estribo do seu senhor, quase o ouviu bocejar. Ele montou depois, leve e alegre, e colocou-se junto ao cotovelo de Domville, mantendo o passo com uma mão na rédea. Ele estava certamente sóbrio como uma pedra, provavelmente consciente da sua situação vulnerável como responsável de fazer chegar o seu senhor a casa e à cama. Picard afastou-se deles, levantando uma mão em sinal de adeus. Os dois cavalos andaram devagar para fora do portão, e o bater ritmado dos seus cascos nas pedras do Foregate foi desaparecendo gradualmente até deixar mesmo de se ouvir.

Junto do Foregate estava escuro, somente se vislumbrava uma pequena claridade através do céu estrelado mas sem luar, brilhando após vários dias de nevoeiro, o ar claro quase como geada. Uma vela alumiava uma ou duas janelas. Fora da casa do bispo, onde os pilares do portão se afastavam da estrada, as árvores davam uma sombra verde-escura aos dois lados da estrada.

Os dois cavaleiros aproximaram-se devagar, e pararam por instantes na estrada em frente ao portão. As suas vozes, embora baixas, eram perfeitamente ouvidas no grande silêncio.

- Vai para dentro, Simon - disse Domville. - Apetece-me tomar ainda um pouco de ar. Manda os rapazes para a cama.

- E os seus criados de quarto, senhor?

- Manda-os deitar também. Diz que não preciso do serviço deles hoje à noite, nem até ter às primeiras horas de amanhã, a não ser que eu os chame. Torna bem claro que estas são as minhas ordens.

O jovem fez uma vénia com aquiescência sem dizer uma palavra. O movimento foi perceptível apenas no silêncio que o rodeava. O homem que estava nas sombras, escondendo com uma quietude disciplinada uma presença ilícita tão próxima da cidade, ouviu o leve sussurro duma capa e o tinido dos arreios quando o cavalo se mexeu. Depois, Simon voltou-se obedientemente e dirigiu-se para o pátio, e Domville sacudiu as rédeas do seu cavalo e dirigiu-se para Saint Giles, primeiro a passo, depois passando para um galope rápido e com destino.

Uma sombra de entre as sombras moveu-se ao longo da orla graminosa da estrada atrás dele, com passos silenciosos. Pois para um homem coxo que caminha sobre um pé deformado pela doença, ele movia-se com surpreendente velocidade, mas não podia manter o esforço durante muito tempo. Enquanto conseguiu manter o bater dos cascos dentro do alcance do seu ouvido, ele seguiu-o - ao longo do Foregate agora vazio, para lá do hospital e da igreja, ao longo da estrada ao longe. Ele reconheceu o momento, quando o barulho, que tinha estado a progredir firmemente, se silenciou abruptamente, e calculou em qual lado da estrada o cavaleiro tinha voltado para um caminho coberto de relva. Para aquele lugar ele continuou, já sem pressa.

No lado direito, a estrada corria para o vale do riacho de Meole, onde a água do moinho era retirada dele. Aqui, pequenos bosques e matas espalhadas cobriam o declive, lá em baixo no vale, as árvores cresciam mais densas. Através desta floresta corria um caminho relvado, largo e macio o suficiente para ser utilizado à noite por um cavaleiro, com a luz das estrelas por cima e metade das folhas já caídas. Por aquele caminho tinha descido Huon de Domville; aqui a noite não guardava som ou imagem dele.

O velho homem voltou-se e dirigiu-se de volta a Saint Giles, onde todos os seus companheiros estavam dentro de portas e a dormir, e só ele se encontrava inquieto e acordado. Não entrou, apesar de a porta de fora nunca estar trancada, no caso de algum desgraçado chegar a meio duma noite fria. Antes do amanhecer, esta noite podia tornar-se fria, mas agora estava limpa e perfumada, e tinha a quietude própria para quem gosta de meditar sozinho, e ele não era sensível ao frio. Fora da vedação, no ângulo do muro do cemitério, havia um grande monte de ervas secas da última apanha de erva do declive entre o hospital e a estrada. Dentro de um dia ou dois seria levado para dentro, para o celeiro, para ser armazenado como forragem e palha para os animais. O velho enrolou-se na sua capa, e sentou-se na relva, bem acomodado na meda de feno, de modo a sentir a sua suavidade e calor. O sino que estava pendurado no seu cinto, foi colocado no chão junto de si. Não havia nenhuma criatura humana perto dele que precisasse de ser avisada da presença de um leproso.

Não dormiu. Permaneceu sentado com a cabeça levantada e as costas direitas, as mãos cruzadas pousadas no colo, a esquerda mutilada dentro da direita escorreita. Nada mais na noite estava tão quieto.

Joscelin tinha dormido um pouco na cama de feno. Simon tinha-lhe trazido pão, carne e vinho como prometido, e as sua roupas tinham-lhe secado no corpo; ele já tinha passado por maiores desconfortos. Só a sua mente estava desconfortável. Realmente, era muito bom que Simon fosse capaz de dizer tão calmamente que era capaz de dar a desculpa que o cavalo cinzento precisava de exercício, dentro de um dia ou dois, e assim ajudar o seu amigo a escapar quando a caça abrandasse, como devia. De que servia? Dentro de um dia, muito menos dois, Iveta teria sido sacrificada, e escapar sem ela não fazia parte dos planos de Joscelin. Tinha sido bom e sensato, sem dúvida, Simon ter-lhe conseguido este refúgio e aconselhá-lo a ficar lá até ser possível fugir. Um conselho muito bem intencionado, e Joscelin estava grato, mas não tinha a menor intenção de o seguir. Um intervalo era bem-vindo, mas de nada serviria se não levasse a uma acção antes das dez horas de amanhã.

Aqui estava ele, só, condenado a ser perseguido, se não morto, sem uma arma, sem uma ideia clara na sua cabeça e só com umas poucas horas de graça para ele.

Foi simples concluir que nada podia fazer ali e que devia tentar ir para outro lugar, devia fazê-lo à noite. Mesmo se ele tivesse arranjado um punhal e conseguisse entrar na casa sem ser visto, nunca poderia tirar vantagem, nem mesmo que Domville estivesse a dormir. Estava tudo muito bem quando falava desenfreadamente em matar, mas o irmão Cadfael tinha razão, ele nunca o poderia fazer, não à socapa. E Domville riria na sua cara antes de o mandar de volta para o xerife se ele tentasse uma luta honesta. Não por cobardia, concedeu Joscelin. Havia muitas poucas coisas neste mundo que metessem medo a Domville, e muitos poucos antagonistas que o amedrontassem. "Não sou um mau espadachim", disse Joscelin para si mesmo, judicialmente, "mas com todos os anos de experiência que ele tem, podia trinchar-me e comer-me para o seu jantar. Não, seria o desdém e não o medo que fariam que ele me rejeitasse. A não ser... a não ser que eu o conseguisse arrastar até junto do abade e de todos os convidados e o esbofeteasse, qualquer coisa que a sua dignidade não pudesse tolerar, qualquer coisa feita publicamente que necessitasse de ser publicamente castigada, a honra limpa com sangue. Por isso, ele podia até desrespeitar o xerife e a lei, por isso, até podia renunciar a destruir-me devagar e não querer mais nada que arrancar-me o coração com a sua lança. Por isso, esqueceria Iveta, o casamento e tudo, até ter limpo o insulto. E mais, se eu conseguisse levá-lo até esse ponto, ele seria meticuloso até ao último cabelo, dar-me-ia tempo para respirar, providenciar-me uma espada do tamanho da sua, e matar-me escrupulosamente, honradamente. Faço-lhe esta justiça, com armas ele luta justamente, mesmo se não tiver razões para estender este escrúpulo a assuntos como acusações de mentiras baseadas em evidências forjadas.

"E, quem sabe... Quem sabe? Com as orações de Iveta a ajudarem-me, e com todo o peso do meu ódio, pois ele cometeu uma infâmia comigo, quem sabe se não ganharei? Então, mesmo que eles me enforquem por causa das outras acusações, ela ficará livre."

Para dizer a verdade, não achou que esta fosse uma grande conclusão, nem sequer era a seu favor. Pois Iveta necessitava de ser libertada não só deste casamento horrível, mas também do guardião que a vigiava e à sua herança, como hera daninha em carvalho, e seria capaz de a vender ao próximo interessado tão agilmente como desta vez. Mas mesmo a demora já significava salvação. As coisas podiam mudar. Picard podia morrer. Uma questão de manter o amanhã afastado!

Se tinha de fazer alguma coisa, o melhor era sair dali, e tentar chegar à abadia, onde tudo se deveria passar. Não podia ter esperanças quanto ao Foregate, a estrada devia estar patrulhada, a portaria e a paróquia guardadas, de certeza absoluta. De todos os lados menos um, a abadia estava rodeada por uma grande e alta muralha. O outro lado era limitado pelo ribeiro Meole que, apesar de não ser assim tão fraco, permitia que aí se nadasse. A água não representava uma ameaça para Joscelin. Se conseguisse passar pelo Foregate, ele iria até ao vale e daí até ao ribeiro dentro dos limites da abadia. Havia lá matagais e esconderijos onde se podia abrigar. E seria lá em baixo no rio que o xerife estaria à procura dele em primeiro lugar.

Ele voltou-se na sua cama de palha, fazendo que as folhas secas sussurrassem, espirrou com as cócegas que o pó lhe fazia no nariz, e rapidamente abafou o espirro. Confrontar um barão do reino era a única esperança que ele tinha, e para que ela se mantivesse, tinha de sair dali, atravessar o Foregate e chegar ao vale enquanto ainda era noite. E isto com uma sentida e arrependida reverência a Simon, que o tinha ajudado e queria que ele ficasse ali como um coelho na toca até o perigo ter passado.

Não sabia que horas eram, mas quando abriu a porta da cabana e olhou para o jardim, a escuridão era ainda profunda. O pesado silêncio era menos agradável; uma brisa a soprar nos arbustos teria disfarçado um pé menos silencioso. E uma vez fora do abrigo das altas paredes, até escuridão seria menor. Mas era agora ou nunca, e tudo parecia estar calado e quieto. Ele levantou a barra da cancela e escapuliu-se. Começou a andar rente à parede do jardim do bispo. Uma fina cinta de árvores e um caminho separavam a casa do seu vizinho, e levou-o até ao limite do Foregate. Parou para escutar, mas tudo estava quieto. Mas pelo grau de luminosidade que ele encontrou na estrada, devia ser mais perto da madrugada que ele calculava. Tinha de se apressar.

Correu imediatamente através do campo aberto, leve apesar de todo o seu tamanho, e estava quase a atingir o mato no outro lado quando uma pedra rolou debaixo do seu pé com um rangido curto. Para os lados do Foregate, perto da cidade, uma voz exclamou alto, outra respondeu com um grito mudo, e pés começaram a correr na sua direcção. Ainda havia guardas a patrulharem as estradas fora da cidade. Joscelin arremessou-se para a frente, desceu a encosta que levava ao moinho, estacou e mergulhou para dentro de um maciço de arbustos conforme ouviu o eco de um grito lá de baixo. Aquela via também estava impedida. Dois dos errantes guardas que estavam entre as duas estradas estavam agora à sua frente, e dirigiam-se para ele muito depressa.

Ainda não tinha sido visto por nenhum deles, e a única possibilidade que tinha era pôr tanto espaço quanto possível entre si e os seus perseguidores o mais depressa possível, e isso significava ir pela estrada, onde ele esperava poder mostrar-se mais veloz que eles. Subiu novamente a encosta e fugiu pela borda da estrada, correndo como um veado em direcção a Saint Giles. Atrás de si ouviu os gritos de uns soldados para os outros e as respostas: "O ladrão anda por aí! Venham para cima!"

Os dois que estavam na estrada começaram a correr pesadamente atrás dele, mas ele tinha um bom avanço e estava confiante que conseguiria correr mais que eles e encontrar um lugar para se esconder, longe do posto da guarda que certamente estaria instalado em cada estrada. Mas ouviu um som que lhe gelou o sangue nas veias, o súbito bater dos cascos a passarem de um caminho relvado para uma estrada. As duas patrulhas do vale estavam montadas.

- Atrás dele! Ele dirigiu-se para campo aberto, vão atrás dele! - gritou um dos que vinham a correr.

E lá vinham eles, a meio galope, e este ele não podia ultrapassar, nem escapar dos quatro durante muito tempo se saísse da estrada aqui. Alcançou Saint Giles, correndo freneticamente, e olhando à sua volta loucamente à procura de um lugar para se esconder e encontrando nenhum. À sua esquerda, o declive da relva subia até encontrar a vedação de vimes e o muro do cemitério. Atrás de si, a caça prosseguia triunfantemente, apesar de ainda estar longe. A curva da estrada tinha cortado o campo da visão deles.

Vinda da escuridão, perto do muro, uma voz, inesperadamente, chamou, num tom baixo mas peremptório:

- Venha! Depressa!

Joscelin dirigiu-se para a voz instintivamente, resfolegando, subiu o declive e quase caiu quando encontrou o braço que se estendia para ele. Uma figura alta e magra dentro de uma volumosa capa tinha-se levantado do chão e estava a fazer um túnel no monte de feno e ervas secas no canto da parede.

- Aqui! - disse a voz, sem contornos como o rosto. - Esconda-se aqui!

Joscelin mergulhou de cabeça no monte de feno e cobriu-se com ele. Sentiu o velho voltar à sua posição no chão, endireitar a capa novamente, e encostar-se com força ao monte de feno; sentiu a longa espinha dura e ossuda através da capa e do feno. Certamente velho, certamente um homem. A voz baixa, abafada como estava, podia pertencer tanto a um homem como a uma mulher, mas os ombros que estavam agora encostados contra si eram tão largos quanto os seus. Uma mão agarrou-lhe o joelho através das sussurrantes folhas para lhe pedir silêncio, e ele obedeceu instantaneamente. O homem que o estava a esconder tinha uma calma própria, uma calma que sossegou o coração e a mente de Joscelin através de um benevolente contágio.

Eles aproximavam-se. Ele ouviu o barulho dos cascos dos cavalos a soar mais próximo, ouviu o cavalo da frente parar abruptamente puxado pelos arreios, pés a escorregarem no cascalho. Pensou que o homem perto do muro tinha sido visto; havia luz suficiente para isso, e eles tinham uma faixa direita de estrada pela frente, que estava certamente vazia. Ouviu um homem desmontar, e parou de respirar com a ideia de que ele iria subir o declive.

- Impuro! - avisou o velho, e bateu com o prato fortemente contra a cerca de madeira. Fez-se um silêncio cuidadoso. O que subia acautelou-se.

Lá em baixo, na estrada, o segundo homem riu-se.

- Só um louco trocaria a prisão por um leprosário! - Subiu o tom de voz; os velhos e os doentes também devem ser duros de ouvido. - Escute! Estamos a perseguir um patife acusado de roubo. Ele veio para aqui. Viu-o passar?

- Não - disse o velho. A sua voz, para além de estar abafada pelo véu, era articulada devagar, como se falar lhe desse muito trabalho; mas com labor e paciência as palavras emergiram claras. - Não vi nenhum ladrão.

- Há quanto tempo está aí sentado? Viu passar algum homem?

- A noite inteira - disse a laboriosa voz. - E ninguém passou.

Pelo barulho que faziam, os dois que estavam apeados tinham chegado agora, completamente sem fôlego. Os quatro conversaram em voz baixa.

- Deve ter escapado por entre as árvores e voltado para trás - disse um. - Voltem e vão pelo lado direito da estrada. Nós vamos até à barreira verificar se ele não se escondeu em algum lugar, e depois voltamos e fazemos o lado esquerdo.

Os cavalos agitaram-se novamente e trotaram dali para fora. Os dois que iam a pé voltaram para trás, para junto das árvores, batendo nos arbustos na sua caça que prosseguia. Caiu um longo silêncio que Joscelin teve medo de quebrar.

- Estique-se e ponha-se à-vontade - disse o velho finalmente, sem voltar a cabeça. - Ainda não nos podemos mover daqui.

- Existe algo que eu preciso de fazer - disse Joscelin, encostando-se à orelha encapuçada de modo a fazer-se ouvir. - Por tudo isto, sabe Deus que lhe agradeço de todo o coração, mas tenho de chegar de algum modo à abadia antes do dia romper, ou esta liberdade que você protegeu, não significará nada. Existe uma coisa que tenho de fazer lá, pelo bem de alguém.

- Que coisa é essa? - perguntou o velho sem alterar o tom de voz.

- Impedir, se puder, este casamento que vão realizar hoje.

- Ah! - disse a paciente e ponderada voz. - Para quê? E como? Ainda não pode sair daí, eles voltarão, e vão olhar para aqui, e devem encontrar tudo como antes. Um velho leproso que preferiu passar a noite debaixo das estrelas que de um tecto, nada mais. - A erva sussurrou; podia ter sido o leve mexer de um suspiro. - Percebeu o que aconteceu aqui? Tem medo da lepra, rapaz?

- Não - disse Joscelin, mas vacilou e reconsiderou. - Sim! Tinha, ou pensei que tinha. Já nem sei. Só sei que tenho mais medo de falhar na minha missão.

- Temos tempo - disse o velho. - Se tiver vontade de falar, estou a ouvi-lo.

Só a tal pessoa, conhecida há tão pouco tempo e que inspirava confiança instantaneamente, poderia Joscelin ter contado, despejado o fardo que lhe pesava no coração. De repente, pareceu ser a coisa mais natural do mundo que ele confiasse sem limites, não escondesse nada da indignação do seu amor, o mal feito a ele, e o mal maior feito a Iveta. No meio da narração, a mão pressionou o seu joelho pedindo silêncio, à medida que os dois cavaleiros passavam em direcção à cidade. E quando eles acabaram de passar, o último eco dos cascos perdido na estrada, ele retomou o fio da história como se nunca tivesse sido interrompido.

- E planeou esconder-se em algum lugar do claustro - cismou o velho homem no fim da narração -, irromper por ali adentro e desafiar o seu antigo senhor para um combate único, e de tal modo afrontá-lo que ele não poderia negar-se ao combate para manter a sua honra?

- É a única maneira de fazer as coisas - disse Joscelin, apesar de pensar que, posto em termos tão claros, não parecia ser uma grande ideia.

- Então não tenha pressa-disse Lázaro-até o dia chegar, pois um sino de leproso, um capuz e um véu podem tornar-lo sem cara e sem nome como outro qualquer. Uma coisa posso dizer-lhe, Huon de Domville não dormiu na sua cama hoje à noite. Ele foi para além, para a direita desta estrada, e eu tenho estado aqui desde então, e, a não ser que conheça outro caminho de volta, ele ainda não voltou. Deve voltar pelo mesmo caminho que tomou, e até passar por aqui, nenhum noivo se apresentará no altar. Podemos fazer turnos para vigiar o seu regresso. Se ele vier! E se ele nunca vier...

Foi a noite mais estranha que Joscelin passou, e a mais estranha madrugada. Um leve nevoeiro misturou-se à luz, e o sol-nascente apareceu por cima da neblina, enquanto envolvia o vale, lá em baixo, em luz. Mas nenhum Huon de Domville apareceu trotando de volta para a casa do bispo.

- Fique escondido - disse Lázaro finalmente - até eu estar de volta. - E levantou-se e entrou no hospital, para voltar pouco depois com uma capa com capuz como a sua, e um pedaço de linho azul como véu. - Pode sair e colocar isto. Se não tiver medo de usar o hábito de um morto? Ele está aqui no cemitério. Quando eles morrem aqui, deixam as roupas cá, existe espaço suficiente para guardar estas coisas. Queima-se o linho, e limpam-se os hábitos da melhor maneira possível. Deve ter sido um homem grande de estatura, será amplo suficiente para si.

Joscelin fez tudo quanto Lázaro lhe tinha sido pedido, como uma criança, ou um homem em tal estado de sonho que tinha de confiar no seu guia. Em tal estado já não parecia estranho que ele abrisse o seu coração a um leproso, aceitasse a protecção da capa dum leproso e se deixasse conduzir para o hospital onde os infelizes habitam, e isto tudo sem sentir medo ou repulsa. Esta era a mão que lhe tinha sido estendida, e ele agarrou-a com calor e gratidão. Nem se preocupou como devia portar-se diante dos outros doentes. De certeza que se sabia quantos eles eram, e ele era demasiado grande para passar despercebido. Se Lázaro já tinha falado com alguns, ou se os pobres conhecem por instinto quando um amigo necessita de ajuda, todos eles se movimentarem de modo a poderem inclui-lo entre si e encobri-lo, todos aqueles homens e mulheres se reuniram em volta dele e o esconderam quando se juntaram para a missa da manhã.

À sua volta ele viu toda a espécie de mutilações e desfigura-mentos, e encontrou-se possuído por um sentimento esmagador e pouco usual de humildade. Há muito tempo que não prestava tão devota atenção às palavras do ofício, ou se sentia tão próximo de outros na hora da oração.

Quanto à vigília lá fora, Lázaro tinha-a confiado ao pequeno Bran, que conhecia muito bem a aparência do homem que devia vigiar. Tudo estava a ser feito para Joscelin por outros, e neste momento ele não podia oferecer resistência, e não podia pagar-lhes de modo nenhum, a não ser abaixar a cabeça ferventemente como os outros e agradecer profundamente pelas presentes mercês. E assim fez.

 

Tinham acordado Iveta bem cedo, pois ela tinha uma elaborada toillete para preparar. Agnes e Madlen banharam-na, vestiram-na e enfeitaram-na, apanhando as várias tranças da sua cabeleira loura numa rede de filigrana, presa com um diadema de ouro cravejado de pedrarias. Dele fizeram partir um véu de fio dourado que caía de volta do pescoço e ombros, por cima do apertado bordado dourado do vestido. Ela submeteu-se a tudo sem proferir palavra e com uma expressão gelada, tão pálida que os seus ornamentos de marfim pareciam pardos por comparação. Ela voltou-se obedientemente nas mãos delas, baixou a cabeça como tinha sido instruída, fez tudo quanto lhe pediram. Quando ficou pronta, plantaram-na no meio do quarto, posando como uma estátua vestida para o nicho de um santo, cada prega do seu vestido dobrada até à perfeição, e ordenaram-lhe que não se mexesse com medo de diminuírem o seu esplendor. Ela permaneceu onde a tinham posto e não se queixou durante o tempo em que elas se adornavam com não menos esplendor.

O seu tio chegou, andou de roda dela com os olhos apertados e uma careta crítica, puxou as dobras do seu véu até atingirem uma simetria mais severa, e mostrou-se satisfeito. O cónego Eudo chegou, comprimentou-a não tanto pela sua beleza ou grandeza mas pela fortuna em realizar tal casamento, e a gratidão que devia aos seus guardiãos por terem-lhe possibilitado tal oportunidade. Os convidados chegaram, admiraram, invejaram e tomaram os seus lugares na igreja.

Às dez horas, noutros dias a hora destinada a ser rezada a missa principal, os criados postaram-se atrás de Iveta, e ela foi levada até à porta principal da casa de hóspedes pelo braço de Picard, pronta a encontrar-se com o noivo quando este chegasse.

Somente uma coisa não foi prevista pelos escrupulosos arranjos que, até este momento, tinham resultado até à perfeição. O noivo não chegou.

Ninguém, nem sequer Picard, se atreveu a murmurar ou a olhar de esguelha nos primeiros dez minutos. Huon de Domville era a sua própria lei e, apesar de este casamento ser certamente proveitoso, ele tinha-o como uma condescendência da sua parte. Não era bem educado chegar atrasado, mas ninguém duvidou de que ele viesse. Mas quando mais dez minutos passaram e ainda nenhuma procissão nupcial tinha passado pelos portões, e nenhum barulho de cascos se tinha feito ouvir ao longo do Foregate, começou um movimento, um borburinho, um arrastar incómodo de pés e então um murmúrio. Iveta estava à frente, e acordou da sua gelada letargia para o clima de dúvida que a envolvia, e tomou fôlego completamente espantada. Não deu nenhum sinal disto, só o sangue recomeçou a correr no seu rosto, e enrubesceu os seus lábios firmes, suavizando-os e transformando-os em pétalas de rosas.

O cónego Eudo apareceu a vaguear elegantemente na igreja, mas nem todas as suas graças serviam para esconder a sua agitação. Falou em voz baixa com Picard, cuja fronte se enrugava e escurecia com a ansiedade. Cadfael, chegando atrasado e com pressa do jardim para tomar o seu lugar entre os outros irmãos, olhou somente para a noiva e não conseguiu desviar os olhos da pequena e dourada boneca em que ela tinha sido transformada, nem só um fio daquilo tudo era verdadeiro, a não ser o pequeno e frio rosto que se comovia dentro do ouro, e a centelha viva e profunda dos seus olhos cor de iris púrpura, nascendo para a luz do dia.

Ela estava entre os que primeiro ouviram o bater de cascos no Foregate. Virou os olhos sem se atrever a virar a cabeça, à medida que Simon Aguilon, todo vestido para o casamento, entrou pelo portão, deixou a rédea na mão do porteiro e desmontou rapidamente para atravessar o grande pátio e dirigir-se para a porta da casa de hóspedes em evidente agitação.

- Senhor, peço-lhe desculpa! Alguma coisa está a correr mal, nós não sabemos como.

Aproximou-se do cónego Eudo, as três cabeças juntaram-se, e Agnes pôs-se a andar à volta deles com as orelhas espetadas e as sobrancelhas cerradas. Tanto o abade como o prior tinham emergido da igreja e permaneceram à distância em sinal de desprazer contido e digno. Eles não podiam ser ignorados por mais tempo.

- Ontem à noite, quando saímos daqui para voltar para casa... eu só cumpro as suas ordens, não as questiono, como poderia eu? Ele disse-me que lhe apetecia andar a cavalo um pouco e que eu devia entrar e dizer aos criados para se deitarem, pois ele não queria os seus serviços naquela noite, nem até ele os chamar hoje de manhã. E assim fiz! Que mais fazer? Eu pensei que ele estaria a dormir lá hoje de manhã quando o seu valete o procurasse. Eu dormi até tarde. Acordaram-me uma boa meia hora depois de amanhecer e disseram-me que ele não estava na sua cama, nem tinha estado toda a noite, a cama não tinha sido usada.

- O jovem tinha erguido a voz, todos aqueles que estavam próximos puderam ouvir. Mantiveram um silêncio respeitável, todos atentos ao centro da consternação no meio.

- Padre abade - Simon voltou-se para ele com uma reverência apressada -, nós tememos que algo tenha acontecido ao meu senhor. Ele não passou a noite em casa desde o momento em que me mandou entrar e repudiou todos os criados. Tenho a certeza que ele não estaria nem ausente nem atrasado se tivesse a liberdade e saúde para manter este encontro. Temo que tenha sofrido um ferimento, talvez uma queda... Cavalgar de noite é perigoso, mas ele gosta muito. É só preciso que uma pedra se meta no casco do cavalo ou uma toca de raposa...

- Ele deixou-o à porta de casa? - perguntou Radulfus. - E depois continuou?

- Sim, na direcção de Saint Giles. Mas não sei que caminho tomou depois disso, ou para onde se dirigiu, se na realidade tinha algum destino em mente. Ele nada me disse.

- Seria já qualquer coisa - disse Radulfus secamente - mandar alguém por aquela estrada para encontrar algum sinal dele.

- E assim fizemos, padre, mas em vão. O superior do hospital não o tinha visto, e chegámos a ir mais longe na estrada, mas sem resultado. Antes de continuar as buscas, eu tinha, por cortesia, de vos avisar. Mas já falei com um dos homens do xerife, que estava a patrulhar os bosques à procura do prisioneiro foragido, e os seus homens manter-se-ão atentos a qualquer sinal do meu senhor Domville. Este sargento mandou um homem ir contar o sucedido ao xerife. Padre, há-de compreender que não me atrevi a ser rápido a levantar o alarme ou uma dúvida acerca do que o meu senhor faz, mas penso agora que se devia fazer uma busca completa. Ele pode estar em algum lado ferido e incapaz de se levantar.

- Penso que tem razão - disse o abade com súbita decisão, e voltou-se cortesmente para Agnes Picard, que permanecia atenta e alerta ao lado do marido, uma mão possessivamente a agarrar a dourada manga de Iveta. -Minha senhora, acredito que esta situação não durará muito, e que encontraremos o Sr. Domville são e salvo, somente atrasado por algum pormenor trivial. Mas seria melhor se levasse a sua sobrinha para dentro e a fizesse descansar na sua privacidade, enquanto estes senhores, e os irmãos desta abadia também, se assim o quiserem, vão e procuram o noivo.

Agnes concordou breve e ansiosamente e arrastou a rapariga com ela para fora do campo de visão de todos. As portas dos seus aposentos fecharam-se atrás delas. Iveta não tinha proferido uma só palavra.

Eles aparelharam os cavalos, montara e partiram, todos os homens convidados, todos os criados e pajens da casa do bispo, um esquadrão de soldados do castelo, muitos dos irmãos mais jovens e noviços a pé, e um dos alunos, cujas longas orelhas tinham apanhado a novidade e que se tinha escondido antes de ser levado para a escola. Apesar de saber que iria pagar por ter cabulado, achava que valia a pena correr o risco.

Aqueles a cavalo escolheram ir ao longo do Foregate onde Domville se tinha separado do seu escudeiro e onde tinha sido visto dirigir-se para os lados de Saint Giles. Aí, eles separaram-se em dois grupos, já que havia uma bifurcação na estrada, e espalharam-se pelas margens de cada lado das duas estradas. Aqueles a pé dirigiram-se logo para os caminhos secundários, alguns andando por entre os bosques perto do rio, outros rodeando o moinho até ao vale do ribeiro Meole e rio acima através dos prados.

Cadfael juntou-se a estes últimos. Eles espalharam-se por uma longa linha para cobrir uma faixa tão ampla quanto possível e andaram rio acima nos dois lados do ribeiro a partir do limite das propriedades da abadia. Um homem a cavalo usaria somente terreno aberto ou caminhos bem conhecidos no piso, e procurar por ele pelos primeiros campos estava fora de questão, se ele realmente tinha saído do seu próprio portão. Assim, continuaram vivamente até terem deixado o recinto da abadia bem para trás, e enfileiraram-se através do vale logo abaixo do hospital. Podiam ver a pequena torre da igreja logo acima dos arbustos do cimo, onde a estrada corria.

A partir deste ponto prosseguiram mais devagar e de um modo mais preciso, alargando o seu campo de acção para abrangerem mais terreno. Conheciam todos os caminhos e percorreram cada um durante um bocado quando estes apareciam. Sem dúvida, os outros no lado oposto do Foregate tinham chegado ao mesmo ponto, e estavam a proceder do mesmo modo, mas até agora não se tinha feito ouvir nenhuma voz a chamar os outros ou a pôr fim à caçada.

Provavelmente, já tinham andado mais de meia milha para lá de Saint Giles, e os campos e matagais tinham-se transformado em bosques. A subida para a estrada neste ponto era árdua e, durante algum tempo, até a inclinação suavizar, nenhuns caminhos desciam para se cruzarem com o seu rumo. Depois eles chegaram, como saberiam que chegariam, a um verde e amplo campo, um bom e suave plano de turfa que descia da estrada e se estreitava ligeiramente à medida que entrava nos densos bosques. Corria a sueste da estrada, por duas vezes vadeando as curvas do riacho, que aqui era estreito e cheio de pedras, e se dirigia, lembrou-se Cadfael, para a orla da Long Forest, umas quantas milhas distante.

Tinham acabado de emergir neste caminho verde quando o travesso estudante, que tinha andado a correr em círculos à frente deles cheio de zelo, apareceu a correr pelo atalho debaixo de grande excitação, acenando um braço para o arvoredo atrás dele.

- Está um cavalo a pastar numa clareira lá atrás! Está todo arreado mas não tem cavaleiro!

E ele rodopiou e voltou para lá com todos no seu encalce. O atalho continuava aberto e bem utilizado, ladeado por árvores, e então tornava-se num pequeno e luxuriante prado; e lá, placidamente tosquiando a erva que crescia debaixo das árvores mais próximas, o cavalo preto de Huon de Domville caminhava serenamente, e mostrou-se levemente surpreendido quando tantos homens se aproximaram dele. Os seus arreios estavam em ordem, em nenhuma parte um aspecto de desarranjo, mas do cavaleiro não havia nem sinal.

- Se ele estivesse perto do seu estábulo - disse o excitado rapaz, aguentando orgulhosamente as rédeas -, ele teria regressado por si, e eles teriam sido avisados. Mas ele estava em terreno estranho, por isso quando ultrapassou o medo, pôs-se a vaguear.

Fazia sentido e ele estava ansioso para avançar. Mas poderia muito bem acontecer que mais lá diante houvesse qualquer coisa que uma criança não deveria ver. Cadfael olhou para o irmão Edmund, o enfermeiro, que estava perto dele, e viu o mesmo pensamento reflectido na sua expressão. Se cavalo e cavaleiro se tinham separado por algum caso de choque ou alarme, e eles tinham encontrado primeiro o cavalo, então, Huon de Domville estava provavelmente a voltar quando o azar o encontrou; e se ele tinha passado toda a noite ao ar livre, significava que o caso não estava mesmo nada bem. Um homem tão duro e determinado como ele não teria permitido que um sofrimento menor o fizesse parar.

- Um cavalo assustado corre para a frente e não para trás - prosseguiu o volúvel miúdo, resplandecente de razão-, não é? Continuamos ou não?

- Tu - disse Cadfael - podes merecer o louvor de levar este animal de volta para a casa do bispo e dizer-lhes onde o encontraste. Depois volta para as tuas lições. Se contares uma boa história, talvez possas escapar ao castigo por teres fugido.

O rapaz fez cara de desânimo, depois de revolta e começou a refilar.

- Pára! - ordenou Cadfael rapidamente, cortando as suas objec-ções. - Podes montá-lo. Vai, põe aqui um pé... assim! - Ele dobrou uma mão e levantou o rapaz para a sela antes de ele ter tempo de decidir se queria ser agravado ou lisonjeado. Mas sentir o belo animal debaixo dele foi o suficiente para o convencer. A sua cara tornou-se um raio de complacência, apanhou as rédeas com ar muito importante, ignorou os estribos que estavam demasiado longe, enterrou os calcanhares nos flancos acetinados e estimulou a sua montada tão normalmente como se cavalgasse tais animais todos os dias.

Depois de eles terem ficado a observar o modo como ele montava, de forma a terem a certeza de que ele era competente, continuaram a busca. A clareira acabava aqui, as árvores tornavam a fechar-se sobre o caminho. Aqui e ali, onde a relva era escassa e o chão mole, viam-se marcas de cascos. Eles andaram cerca de um quarto de milha mais, antes de o irmão Edmund, que estava à frente, parar subitamente.

- Ele está aqui.

O forte e poderoso corpo estava deitado de costas, a cabeça de encontro às raízes de um enorme pinheiro, os braços abertos. O bosque aqui tornava-se mais denso, e as sombras engoliam as ricas cores do seu vestuário, de maneira que o seu rosto emergia de um todo verde, inundado de sangue, os olhos esbugalhados e avermelhados. A característica de brutalidade e músculo parecia ter-se derretido como cera de vela. Tinham feito bem em mandar a criança embora antes que pudesse encontrar isto de uma forma inesperada e inocente, e aprendesse demasiado precocemente conhecimentos sobre o bem e o mal.

Cadfael afastou Edmund e avançou, pondo-se de joelhos junto ao corpo imóvel, e, por momentos, Edmund acompanhou-o e agachou-se no outro lado. Ele estava acostumado a acompanhar o sofrimento de morte de velhos, mas mortes suaves que podiam ser aliviadas pelo cuidado e afeição dos amigos; este corte abrupto com uma vida tão vigorosa assustava-o. Os dois noviços e o irmão leigo que os tinham acompanhado aproximaram-se e permaneceram em silêncio.

- Está morto? - perguntou o irmão Edmund, temeroso, e compreendeu que era uma pergunta estúpida.

- Há já algumas horas. Pela madrugada, talvez. Ele está a arrefecer mas não está ainda totalmente frio. - Cadfael ergueu a pesada cabeça com uma mão, e sentiu a pegajosa massa de sangue coagulado escorrer pelos seus dedos. Na parte de trás da cabeça, em cima, atrás e em cima da orelha esquerda, a coroa já careca mostrava uma ferida dilacerada, composta de uma dezena de arranhões, agora a secarem. No sítio onde a sua cabeça tinha estado pousada, e de roda também, o tronco da árvore ostentava traços profundos do impacte. Cadfael apalpou a ferida e pareceu-lhe que o crânio estava intacto, não se fazia sentir nenhuma depressão debaixo do seu toque.

- Ele foi violentamente atirado do cavalo - adiantou Edmund, que observava - e caiu sob o tronco da árvore, batendo com a cabeça. Poderia tal queda matá-lo?

- Sim, poderia - disse Cadfael distraidamente, mas achava ser melhor não dizer já que não tinha sido assim.

- Ou então ficar aqui toda a noite, com o frio que fez, sem sentidos...

- Ele não esteve aqui toda a noite - disse Cadfael. O orvalho da madrugada está na relva debaixo dele. E se ele foi atirado, vês que foi atirado de costas, não de frente. Não foi o cavalo que tropeçou.

O corpo estava na diagonal, a cabeça contra a parte direita da árvore, os pés na direcção do riacho. - Foi de manhã bem cedo, e foi arremessado de costas. Certamente, estava de volta a casa. O caminho é bom, pelo menos para um conhecedor, mas creio que já havia alguma luz, pois ele estava com pressa, para cair com tanta força.

- O seu cavalo empinou-se - sugeriu Edmund. - Alguma pequena criatura nocturna meteu-se debaixo das patas e assustou-o...

- Talvez. - Cadfael pousou a cabeça de Domville cuidadosamente no sítio da queda contra o sangue já coagulado. - Ele não se moveu desde que caiu - disse ele com firmeza. - Só os calcanhares das suas botas fizeram um sulco profundo na relva como se tivesse tido uma convulsão.

Pôs-se de pé, deixando o corpo como estava, e começou a andar de um lado para o outro do atalho, vendo-o de todos os ângulos. Um dos noviços, sensatamente, tinha ido à procura dos homens do xerife, que certamente deixaria a casa do bispo mal ouvisse as notícias que o rapaz tinha para contar. Iriam precisar de uma liteira, ou de uma porta, para carregarem o corpo do morto de volta. Cadfael retrocedeu nos seus próprios passos uma dúzia de jardas e começou a caminhar de volta para o sítio onde o corpo estava, observando todas as árvores dos dois lados a um nível acima da sua altura de corpo, como Edmund notou sem compreender.

- Que procuras, Cadfael?

O que quer que fosse, ele encontrou. Parou a cerca de quatro passos dos pés do morto, fixando o olhar no tronco de árvore à sua direita, bem acima da sua cabeça, e depois transferindo o olhar com o mesmo interesse para a árvore oposta.

- Venham ver. Venham todos e sirvam de testemunhas para o que eu vou dizer.

Em cada tronco, ao mesmo nível, havia uma linha fina marcada na casca da árvore.

- Foi esticada uma corda entre estas árvores, pela altura da garganta de um homem de estatura média e bem montado, apesar de eu pensar que se estivesse à altura do peito teria resultado também e atirado ao chão qualquer cavaleiro. Havia luz suficiente para andar a trote largo, pois creio que ele vinha depressa. Vejam quão longe ele foi atirado. Encontraremos a marca da corda na garganta.

Eles ficaram horrorizados e não encontraram nada para dizer à medida que o seguiram em silêncio de volta para o corpo. Cadfael abriu a gola do casaco e pôs a descoberto o pescoço de Domville. Mas a marca vermelho-escura da corda não foi tudo quanto encontraram debaixo da barba. Lá, com grande evidência, estavam as marcas retorcidas e machucadas de duas mãos humanas, e os dois polegares tinham deixado uma grande mancha na maçã-de-adão, e possivelmente esmagado a cartilagem.

Eles estavam ainda petrificados pelo terror quando ouviram vozes impregnadas de urgência a aproximarem-se pelo atalho, sendo a voz do xerife a que se ouvia melhor. A notícia da desgraça já lhes tinha chegado aos ouvidos, mas a sua magnitude era ainda desconhecida.

Cadfael tornou a tapar as marcas com a gola do casaco e voltou-se com os seus companheiros para ir ao encontro de Gilbert Prestcote e dos seus homens.

Quando o xerife acabou de ver tudo quanto Cadfael tinha para lhe mostrar, trouxeram uma liteira e puseram em cima o corpo de Huon de Domville, tapando-lhe o rosto com a própria capa. No local de onde o retiraram, colocaram uma cruz feita de dois paus, de modo a possibilitar-lhes encontrar e explorar o lugar de novo, se assim fosse necessário. Então levaram-no, não para a casa do bispo, mas para a abadia, para ser colocado em câmara ardente e preparado pelos monges de Saint Peter, que deviam ter servido de testemunhas ao casamento.

Bran, a criança de Saint Giles, que podia perfeitamente passar por uma criança do Foregate, se usasse de discrição e retirasse o manto de leproso, voltou de uma cuidadosa busca à estrada, para fazer o reportório aos dois homens altos e velados que estavam juntos, perto do muro do cemitério:

- Encontraram-no, vi quando o levavam de volta, foram para lá da casa. Não me atrevi a ir mais longe.

- Vivo ou morto? - perguntou a calma e vagarosa voz de Lázaro de detrás do véu azul-desmaiado. O rapaz já conhecia a morte, não precisava de ser protegido dela.

- A sua cara estava coberta - disse Bran, e sentou-se perto deles. Sentiu o silêncio e a tensão do outro, o novo ali, aquele que era conhecido por ser muito novo e saudável, e perguntou-se por que tremeria ele.

- Nada de palavras - disse Lázaro tranquilamente. - Tem a sua pausa para retomar fôlego e ela também.

Dentro do grande pátio da abadia, os soldados pousaram a liteira que carregavam e, de todos os lados, cheios de pressa e de ansiedade e de um clamor que morria abruptamente, chegaram todos os que estavam envolvidos no caso, e formaram uma audiência muda e de olhos arregalados. Pararam a uma distância respeitosa, todos menos o xerife, os seus homens e o abade Radulfus, que avançou cheio de autoridade. Da ala dos convidados, Picard saiu a correr, obstinadamente optimista, para parar de repente com a visão da figura coberta pela capa. As mulheres seguiram-se, cheias de medo.

A pequena imagem dourada moveu-se como se mal pudesse sustentar o peso do seu luxo; no entanto, chegou e não desviou os olhos do corpo. Não havia dúvidas agora. Apesar do choque que significava, esta morte era a vida dela. Porquê, por que tinha ela mentido tanto a si própria ontem?

- Sr. Abade - disse Prestcote -, trazemos notícias muito más, pois o Sr. Domville foi realmente encontrado, mas no estado em que o vê. Estes irmãos desta sua casa encontraram-no, atirado do cavalo e deitado no atalho que leva a Beistan. O cavalo estava a pastar incólume, e agora está de volta ao estábulo. Huon de Domville foi atirado de encontro a um carvalho e está morto. Parece que isto aconteceu quando ele voltava para casa. Padre, podereis vós recebê-lo e tratar do seu corpo e alma, até outros planos serem feitos? O sobrinho está aqui, e o cónego pertence à família...

Simon ficou indeciso, sem palavras. Inclinou a cabeça e engoliu em seco, observando o corpo que estava na liteira.

- Este é um acontecimento muito mau para um dia como o de hoje - disse Radulfus gravemente -, e nós damos as nossas mais profundas condolências a todos os atingidos. E, naturalmente, a nossa hospitalidade por quanto tempo for necessário, os serviços da nossa ordem, e a privacidade da nossa casa. A morte está presente todos os dias da nossa vida, chama a atenção para a sua proximidade, não como uma ameaça, mas como uma experiência comum a todos no caminho para a salvação. Não é preciso dizer mais nada. É melhor aceitar a vontade de Deus e manter o silêncio.

- Padre, com todo o respeito - Picard falou numa voz tão fina quanto o aço, no entanto de modo civilizado e respeitador. Cadfael tinha estado a tentar ler a cara do homem, e pouco conseguiu; havia desalento, com certeza, ira e frustração, mas calculismo também. - Com respeito, pergunto-vos se devemos aceitar tão passivamente que esta seja a vontade de Deus? Huon de Domville conhece esta região, ele tem um pavilhão de caça não muito longe daqui, perto de Long Forest. Ele sempre montou sem errar, de dia ou de noite, e temos de acreditar que se torna um pior cavaleiro na véspera do seu casamento, quando nós dois sabemos que ontem ele saiu daqui sóbrio e fresco? Ele disse ao seu escudeiro que queria apanhar um pouco de ar antes de ir dormir. Certamente, era tudo quanto tinha em mente. Agora, de um momento para o outro, trazem-no morto, um homem com a sua força e vitalidade! Não, não acredito nisto! Aqui existe algo de mau, e tenho de descobrir o quê, para poder ficar satisfeito com a explicação da sua morte.

Parecia que Prestcote tinha atrasado deliberadamente dizer todo o conteúdo das notícias, para ver se alguém de entre os seus ouvintes mostrava sinais de satisfação por a morte passar como um acidente. Se conseguiu, e se descobriu alguma coisa com os olhares observadores ao círculo de caras em estado de choque, teve mais sucesso que Cadfael, que fazia a mesma busca. Em algum lugar conseguiu ele descobrir sinais de medo ou culpa, só os obrigatórios, desalento e sofrimento.

- Eu não disse que a sua morte era acidental - disse o xerife prontamente. - Nem mesmo que a sua queda foi um acaso. Ele foi atirado da sela por uma corda que estava atravessada no caminho entre duas árvores a um nível que o apanhou na garganta. Mas não foi a queda que o matou. Quem quer que pôs a armadilha estava presente para completar o trabalho, enquanto Domville permanecia sem sentidos. As mãos de um homem estrangularam-no até à morte.

O círculo moveu-se como se um vento forte tivesse soprado e susteve a respiração. O abade levantou a cara para olhar para ele.

- Está a dizer que isto foi um assassínio?

- Tão premeditado e perfeito como nenhum outro.

- E sabemos por quem! - Picard avançou, ardendo em malevolente triunfo como uma fogueira. - Não vos disse? Isto é obra daquele ladrão que foi despedido do serviço do Sr. Domville. Quem mais? Quem lhe tinha mais raiva? Joscelin Lucy é o autor disto!

Uma luz dourada de repente brilhou nas suas costas, e ali estava Iveta, confrontando-o, o cordeiro de ontem transformado numa leoa. Os olhos muito abertos brilhavam como ametistas. A sua voz ergueu-se desafiadora, mesmo triunfante, zombeteira, quando disse:

- Não é verdade! Você sabe, todos sabem, que não pode ser verdade! Já se esqueceram? Ele, entre todos, tem de estar inocente disto, ele tem estado preso no castelo de Shrewsbury estes últimos dois dias, e esta queixa é tão falsa quanto a outra! Dou graças a Deus por ele estar preso, o próprio carcereiro do xerife é testemunha de que não foi ele quem cometeu o crime.

Uma luz fez-se no cérebro do irmão Cadfael, como se se tratasse duma grande pancada, e deixou-o estonteado, incapaz de apreender todas as implicações do que ela tinha dito. Agora não era tão difícil compreender o significado da sua resolução em casar aquando da conversa com o abade. Eles tinham-na guardado bem e evitado que ela soubesse da fuga de Joscelin, que teria significado tanto conforto para ela, eles dir-lhe-iam toda a verdade. Na realidade, eles já estavam a fazer isso, os dois Picard, sendo Agnes a menos piedosa dos dois.

- Tola rapariga, ele não está prisioneiro. Ele fugiu antes de conseguirem passar a ponte, ele está à solta, mais o seu rancor...

- Era um ladrão, e é agora um lobo perseguido pela floresta, e assassinou o teu noivo! Vai ser enforcado pelo que fez!

Toda a luz, toda a coragem fugiram do seu rosto. Por momentos, ela permaneceu quieta e por só uma vez os seus lábios formaram um "Não!" de protesto que não chegou a ser ouvido. Então o seu rosto tornou-se mais branco que a neve. Levou uma mão ao coração, e caiu como um pássaro ferido, formando um pequeno e amarrotado monte de ouro.

Madlen, a criada, veio a correr fielmente, todas as mulheres formaram um círculo à volta do pequeno corpo caído, Picard deu um grito que era mais de exasperação que de preocupação, e baixou-se para a agarrar por um pulso e pô-la de pé. Ela era um embaraço, eles queriam-na fora de vista e fora do pensamento. Cadfael não pôde impedir-se de interferir antes que elas a sufocassem com as suas saias, ou lhe torcessem um pulso. Ele mergulhou e abriu os seus braços para os afastar dela.

- Calma, deixem-na respirar! Ela desfaleceu, não a levantem ainda.

O irmão Edmund, versado em tais colapsos, secundou-o valentemente do outro lado, e com o abade Radulfus a olhar, os convidados não puderam recusar a ajuda e a autoridade daqueles que tratavam dos doentes dentro destas paredes. Mesmo Agnes se afastou, apesar de manter uma expressão fria e cuidadosa, quando Cadfael se ajoelhou perto da jovem e lhe endireitou as pernas amarfanhadas para que ela descansasse à vontade, a cabeça erguida no seu braço:

- Uma capa para colocar debaixo da sua cabeça! Onde está o irmão Oswin?

Simon tirou a sua capa e dobrou-a como se fosse uma almofada. Oswin veio a correr de entre os noviços que olhavam espantados.

- Vai e traz-me o frasco de mentol e vinagre de azeda da prateleira junto à porta, e uma garrafa do preparado de ervas azedas. E sê rápido!

Pousou a cabeça dela gentilmente na almofada que Simon tinha preparado, pegou nos pulsos dela e começou a esfregá-los ritmadamente. O rosto tinha um tom azulado, próprio do gelo. Oswin voltou no mesmo e devotado passo e, além disso, tinha trazido os remédios certos. Ainda havia esperança para ele. O irmão Edmund ajoelhou do outro lado e segurou a pequena garrafa de vinagre, quente e picante, com o mentol e as azedas, chegando-a às suas narinas, e viu-as dilatarem-se e palpitarem. Uma pequena convulsão, como uma tosse, levantou o seu menineiro colo, e as linhas endurecidas das faces e do queixo, gradualmente, suavizaram-se. Sobre a sua cabeça, o seu tio, tendo-a abandonado aos médicos, voltou à sua vingança com redobrado veneno.

- Poderão haver dúvidas? Ele fugiu sem armas e sem meios de as conseguir. Somente um homem despojado de outros meios mata com as próprias mãos. Só um velhaco grande e forte seria capaz de tal acto. Ninguém mais queria mal a Huon. Mas ele tinha-lhe ódio, e grande, e levou a sua vingança a extremos. Agora tornou-se-lhe mortal! Deve ser perseguido como um animal, abatido mal for visto, se necessário, pois é perigoso para qualquer pessoa que dele se aproxime. Isto é caso para enforcamento!

- Os meus homens estão a percorrer os bosques e pomares à procura dele neste preciso momento - disse, Prestcote brevemente-, ou por outra, desde que uma patrulha relatou ter feito um homem sair dum esconderijo para o Foregate, hoje, de manhã cedo. Apesar de ainda não ser dia, e de eles o terem visto só de relance, duvido que tenha sido Lucy. Provavelmente, algum malfeitor, que tenha cometido pequenos roubos aos galinheiros e jardins durante a noite. A caçada continua, e continuará até o apanharmos. Todos os meus homens estão lá fora à procura dele.

- Faça uso dos meus homens também - ofereceu Picard, avidamente -, e os de Huon. Todos nós estamos ligados nesta caçada ao assassino. Certamente, que não existem dúvidas para si que Joscelin Lucy é o assassino de Domville?

- Parece-me bem óbvio. Esta morte tem todos os indícios de ser um acto de ódio levado ao desespero. Não conhecemos aqui outro inimigo dele.

Cadfael continuou a tratar de Iveta, mas escutou tudo quanto se falava, as poucas palavras do abade e os seus silêncios reservados, as instigações vingativas de Picard, as disposições do xerife para a continuação da já extensa caçada, todo o funcionamento da lei a fechar-se por sobre Joscelin Lucy. No meio de tudo isto, ele reparou que a cor, embora pálida, estava a voltar às faces de Iveta, e viu quando ela pestanejou levemente, a sombra das longas pestanas dourado-escuras a tremer nas suas bochechas. Uns espantados olhos cor de púrpura abriram-se para ele e olharam com terror incompreensível. Os seus lábios abriram-se. Como se por acaso, ele pôs um dedo sobre eles, e brevemente os olhos dela voltaram a fechar-se. O perigo que Joscelin corria, mais que o seu, fizeram que ela recobrasse efectivamente a lucidez. As pálpebras, marmoreadas como jacintos, fecharam-se novamente, e assim permaneceram. Cadfael continuou ao lado dela, como se ainda não tivesse recobrado os sentidos, mas já estivesse a dar sinais de si.

- Ela está a começar a mexer-se. Podemos agora levá-la para dentro.

Ele pôs-se de pé e levantou-a nos braços, antes de Picard ou Simon o fazerem.

- Ela deve descansar por algumas horas, depois de acordar. Foi um desmaio muito feio. - Ficou maravilhado com a leveza dela, e ficou convencido que as suas indumentárias pesavam mais que ela; no entanto, esta frágil criatura tinha desafiado heroicamente o tio para defender Joscelin, ela que era tão passiva e resignada consigo própria. Mesmo a acusação de roubo e uma cela no castelo tinham sido um conforto e alegria para ela quando serviam para evitar a ainda pior acusação de crime. Agora, quando reganhou a lucidez e recordou, ela ficaria dividida em duas por horror ao que lhe poderia acontecer, já que este assassínio, realmente, era um caso de enforcamento, e a única esperança era de que ele fugisse, já que a distância significava liberdade. A esperança oferecia-se e fugia de Iveta de Massard.

- Minha senhora, se for tão gentil para mostrar o caminho...

Agnes agarrou arrogantemente nas suas esplêndidas saias e caminhou à frente dele em direcção à casa dos hóspedes, para os seus próprios aposentos. Não podia dizer-se, reflectiu Cadfael, que ela não se preocupava com a sobrinha, já que a sobrinha representava a parte maior da fortuna, e por esta, ela sentia um grande e protector carinho. Mas a emoção principal em relação a Iveta era de impaciência e desagrado. Por esta altura, já deveria estar seguramente casada, como um bem de que se dispõe. No entanto, ainda era iminentemente rendível, ainda tinha todas as terras e títulos do pai, até a espada e capacete do paladino Guimar de Massard, cavalheirescamente devolvidos pelos Fatimidas do Egipto - os únicos objectos da sua herança que, possivelmente, Picard não cobiçava.

- Pode pô-la aqui. - Pelo modo como ela o olhou, Agnes não tinha esquecido de que ele era o irmão de cujas prevaricações ela tinha feito queixa ao abade; mas agora isso não importava, pois Joselin Lucy era caça para ser apanhada até à morte, e não representaria mais uma ameaça à sua paz de consciência.

- E preciso fazer alguma coisa?

Iveta foi deitada na cama, suspirou e ficou quieta. Todo aquele ouro, como se ela tivesse sido transformada numa moeda.

- Se for gentil suficiente para me trazer uma pequena chávena para que ela possa beber um pouco deste preparado de ervas quando voltar a si. É um restaurador de forças muito bom, apesar de amargo, e afasta futuros desmaios. Creio que seria melhor aquecer o quarto. Basta um pequeno fogo de carvão.

Ela levou estas recomendações a peito. Ele tinha-lhe dado tarefas suficientes para afastá-la do quarto pelo menos por cinco minutos. As criadas tinham ficado na entrada. Ela foi fazer que elas tratassem do pedido.

Iveta abriu os olhos. O mesmo irmão! Ela tinha reconhecido a sua voz, e aberto os olhos só um bocadinho para se certificar de que era ele. Mas quando tentou falar, as lágrimas dificultaram-lhe a fala. Mas ele estava a escutá-la; ele ouviu-a.

- Eles nunca me disseram nada! Some disseram que podiam condená-lo à morte pelo roubo...

- Eu sei - disse Cadfael, e esperou.

- Eles disseram que, a não ser que eu fizesse tudo bem, dissesse as palavras certas, agisse acima de toda a suspeita... Huon matá-lo-ia...

- Sim... Descanse agora, devagar! Sim, sei!

- Mas se fizesse tudo bem, ele seria libertado...

Sim, ela tinha estado pronta a se vender, corpo, vontade e esperança... e tudo para libertar Joscelin. Também era muito corajosa.

- Ajude-o! - exclamou ela, os olhos grandes como flores cor de púrpura totalmente floridas, e fechou a sua pequena mão, fina como um pequeno pássaro, mas com firmeza e força de vontade, na mão de Cadfael. - Ele não matou nem roubou... Tenho a certeza disso!

- Se eu puder! - disse Cadfael entredentes, e baixou-se para esconder Iveta de Agnes que aparecera à porta. Ela era muito rápida em compreender, pois deitou-se em muda aceitação, os olhos fechados; a mão ficou tão mole como antes. Durante alguns minutos, permaneceu assim, e então tornou a abrir os olhos, para responder à pergunta de Agnes com um ar fraco e confuso quando esta quis saber, com genuína ansiedade mas pouca amabilidade, como ela estava, e bebeu a amarga e aromática bebida que Cadfael lhe apresentou.

- Ela devia ficar sozinha e quieta - aconselhou ele quando saiu, preocupado em poder oferecer-lhe a solidão que ela necessitava, a libertação da companhia de pessoas cuja presença significava opressão. - Vai dormir. Tais desmaios são tão cansativos como um grande trabalho. Se o padre abade permitir, virei vê-la antes de Vésperas, e trazer-lhe um xarope que lhe proporcionará uma noite tranquila.

Isto, pelo menos, podiam permitir-lhe. Ela estava segura, não podia escapar, mas agora nada mais (podia ser feito com ou a ela. Domville estava morto, devia haver agora uma reconsideração, o caminho estava aberto a novos compradores. Não era uma libertação, mas um repouso. Tempo para pensar um pouco sobre as circunstâncias desta morte violenta, e o destino do infeliz jovem, a cuja porta se estavam a colocar todas as culpas. Havia ainda muitas perguntas a fazer, e aquelas que já tinham sido feitas, ainda nenhuma fora respondida.

Era perto do meio-dia quando um dos soldados, que tinha estado a passar revista aos campos e jardins atrás das casas do Foregate, no lado norte, veio ter com o sargento e disse com ar inteligente:

- Existe um só jardim que ainda não foi examinado, e penso que será boa ideia fazê-lo. A casa do bispo de Clinton!

E quando o chamaram de louco, devido ao absurdo de alguém se esconder na toca do leão, ele defendeu avidamente o seu ponto de vista:

- Não é loucura! Imaginem que ele está a ouvir-vos agora a fazerem pouco da ideia! Seria o último a rir se estivesse ali dentro, e vocês a continuarem a não acreditar. O único lugar que vocês põem de parte é o único lugar que ele procuraria se fosse inteligente. E não se esqueçam que o cavalo está guardado aqui, e com toda esta correria, quem se importa se a porta do estábulo está aberta?

O sargento considerou o argumento e achou-o importante; autorizou a busca ao jardim do bispo, campos e estábulos, o pomar, toda a propriedade. Finalmente, chegaram ao palheiro perto da parede traseira. Não encontraram Joscelin Lucy, mas encontraram evidências claras que alguém tinha estado deitado na palha e deixado atrás um resto de pão e um caroço de maçã, além da impressão de um longo e jovem corpo gravado na palha. Joscelin Lucy conhecia este lugar e a cancela estava aberta. Ninguém tinha dúvidas acerca da personalidade do hóspede intruso.

O soldado que tinha insistido na busca, apesar de não ter encontrado quem procurava, ganhou bastante com a sua sugestão, a ponto de ser recomendado pelo seu oficial, e não ficou nada aborrecido com isso.

 

Huon de Domville estava deitado, nu, coberto por uma mortalha de linho, na capela mortuária, e de roda dele estavam o abade, o prior, o xerife do condado, o sobrinho e escudeiro do morto, Sir Godfrid Picard, que por esta altura devia já ser seu tio por casamento, e o irmão Cadfael.

Simon Aguilon estava ainda vestido e com as luvas que tinha usado para a busca da manhã, e tinha um ar desfigurado e preocupado, pois a responsabilidade toda tinha caído em cima dos seus ombros, sendo ele o parente mais próximo do falecido presente na ocasião. Picard estava a mastigar a negra e aparada franja da sua barba, a meditar nas suas perdas e nas oportunidades que agora teria. Radulfus prestava uma calma e escrupulosa atenção ao que Cadfael estava a expor.

O abade era um homem do mundo e da igreja, com grande experiência, mas esta não era tão grande que incluísse este tipo de manifestações de violência que eram um livro aberto para Cadfael, que já tinha sido marinheiro e soldado. No entanto, e como era raro encontrar em homens de vasta experiência, Radulfus sabia precisamente quais as suas falhas e queria aprender. A honra e a integridade da sua casa eram a sua primeira preocupação, e neste critério estava sempre implicada a justiça. Quanto ao prior Robert, a sua lealdade normanda sentia-se ultrajada, pois um senhor normando tinha sido assassinado. A seu modo, ele desejava vingança tanto quanto Picard.

- As feridas da cabeça-disse o irmão Cadfael, a sua palma debaixo da recentemente lavada e penteada cabeça -, não representariam qualquer perigo se tivessem sido as únicas. Mas o golpe atordoou-o e deixou-o indefeso a qualquer ataque. Vejam... - Ele afastou o pano de linho que cobria o peito e os fortes braços. - Ele caiu desamparado de costas, a cabeça bateu na árvore, os braços e as pernas abertos. O meu senhor Prestcote viu-o, assim com o irmão Ed-mund e alguns noviços desta casa. Não pude ver tudo quanto vejo agora por causa da roupa. Olhem para o lado de dentro dos braços, estas marcas negras e redondas no sítio do músculo. Imaginem estes braços abertos e pensem no que terá caído em cima dele, que estava sem sentidos. O seu inimigo ajoelhou-se em cima dos braços dele e agarrou-lhe o pescoço.

- E isso não o teria acordado? - perguntou o abade gravemente, seguindo o dedo moreno de Cadfael quando este mostrava os indícios do assassínio.

- Ele fez algum esforço. - Cadfael recordou-se do fosso cavado pelas botas de Domville. - Mas somente o corpo reagiu, tal como os homens se contorcem com certas feridas quando não têm mais força para lhe resistirem. Ele estava sem sentidos, não podia lutar contra o seu malfeitor. Este tinha mãos fortes e resolutas. Vejam aqui o lugar onde os dois polegares, um em cima do outro, carregaram. A maçã-de-adão está esmagada.

Até agora Cadfael ainda não tinha tido oportunidade de ver bem de perto esta selvática ferida. Debaixo da barba, o vergão da corda traçava uma linha vermelho-escura de onde o sangue tinha sido lavado. As nódoas pretas deixadas pelas mãos do estrangulador notavam-se agora visivelmente.

- Aqui estão todos os indícios de um ataque de loucura vingativa - disse Prestcote sombriamente.

- Ou de uma loucura cheia de medo - disse Cadfael suavemente. -Desesperado pelo próprio acto, um acto pouco normal na pessoa, subitamente levado a cabo e monstruosamente exagerado.

- Podíamos estar a falar do mesmo homem - disse Radulfus. - Será que este corpo tem mais alguma coisa para nos dizer?

Parecia que sim. No lado esquerdo do pescoço de Domville, mais ou menos no local onde os dedos do meio deviam ter feito pressão, e onde tinham deixado uma forma sombreada, a ferida cruzava-se com um pequeno corte, como se uma pedra tivesse sido pressionada contra a carne. Cadfael meditou em silêncio sobre esta pequena e insignificante coisa e concluiu que não podia ser, de modo algum, insignificante.

- Um pequeno e incisivo corte - cismou ele, olhando de perto - e esta ferida oca ao lado... O homem que fez isto usava um anel, no dedo do meio ou no terceiro da mão direita. Um anel com uma pedra grande, de modo a ter marcado tanto a carne. E deve-lhe ficar largo, pois moveu-se parcialmente para dentro à medida que ele foi apertando o pescoço de Huon. No dedo do meio, certamente... se lhe ficasse largo no anelar, teria mudado para o do meio. Não consigo imaginar outra maneira de esta ferida ter sido feita. - Ele levantou os olhos para o círculo de caras atentas. - Usará o jovem Lucy tal anel?

Picard não tinha qualquer conhecimento sob tais assuntos. Depois de pensar um instante, Simon disse:

- Não me recordo nunca de ter visto um anel em Joscelin. Mas não posso assegurar-vos de que nunca usou nenhum. Posso perguntar a Guy, se assim o desejarem.

- Será inquirido - disse o xerife. - Existe mais alguma coisa?

- Não me consigo lembrar de mais nada. A não ser que valha a pena saber onde este homem esteve e por que razão, para descobrirmos os vestígios dele no caminho àquela hora.

- Não sabemos a hora - disse Prestcote.

- Sim, é verdade. Não é possível descobrir há quanto tempo um homem está morto, nem mesmo numa questão de horas. No entanto, a turfa debaixo dele estava húmida. Mas existe outra coisa. Tudo indica... bom, para sermos mais cautelosos, parece indicar, que ele estava de volta a casa quando foi atacado. E a armadilha estava à sua espera. Portanto, quem quer que seja que a montou, e, consequentemente, o matou, sabia para onde ele tinha ido e a estrada por onde regressava.

- Ou seguiu-o à noite e fez os seus planos de acordo com o que viu - disse o xerife. - Agora sabemos que Lucy esteve escondido no palheiro do bispo, mas que saiu depois do anoitecer, e pode ter espreitado os movimentos do seu senhor já com a intenção de o matar. Ele sabia que Domville iria jantar aqui na abadia, pois toda a gente o sabia. Não seria muito difícil esperar, escondido, pelo seu regresso e vê-lo cavalgar sozinho, proporcionando-lhe a oportunidade de vingança que ele queria. Existem poucas dúvidas sobre Lucy ser o nosso homem.

Assim, não havia mais nada a dizer. O xerife retomou a sua caçada, convencido de que estava certo; e, tendo em conta as circunstâncias, Cadfael permitiu-o, sem poder fazer nada, pois o caso estava feio. Huon de Domville foi entregue aos cuidados do irmão Edmund e dos seus ajudantes, e o seu caixão encomendado a Martin Belle-cote, o mestre carpinteiro da cidade, pois quer ele fosse enterrado aqui ou noutro lugar qualquer, devia ser enterrado decentemente e com a grandeza que lhe é devida. O seu corpo nada mais tinha a dizer.

Ou assim pensou o irmão Cadfael, até que se permitiu contar as circunstâncias da morte e do inquérito ao irmão Oswin na oficina, enquanto escolhiam feijões para a plantação do próximo ano. Oswin prestou muita atenção a tudo. No fim, disse com aparente inconsequência:

- Admira-me que ele tenha ido andar a cavalo sem chapéu numa noite de fim de Outubro, sendo ele calvo!

Cadfael ficou imobilizado, olhando-o com espanto e com a mão-cheia de sementes.

- Que é que disseste?

- Bem, um homem de idade andar de cabeça destapada à noite... Tinha posto o dedo na ferida, naquilo que tinha escapado a Cadfael. Domville não tinha saído do portão da abadia com a cabeça destapada, com certeza. O próprio Cadfael tinha-o visto sair, o elegante chapéu carmesim elaboradamente colocado, a franja dourada a baloiçar, e, no entanto, não se tinha lembrado de o procurar no sítio onde o corpo tinha caído, ou questionar a sua ausência.

- Meu filho - disse Cadfael cordialmente -, estou sempre a subestimar-te. Lembra-me de te ter dito isto, a próxima vez que te aborrecer por causa do trabalho, pois mereço-o. Huon tinha na verdade um chapéu, e é melhor que eu descubra onde ele está.

Não pediu permissão, preferindo considerar que a licença da manhã para a busca podia ser esticada um bocadinho para cobrir o segundo estágio da mesma busca. Ainda havia tempo antes de Vésperas (se ele se apressasse) e o local estava marcado com a cruz improvisada.

A turfa por debaixo do carvalho ainda retinha a vaga forma do corpo de Domville, mas a erva já estava a crescer. Cadfael zanzou pelo atalho com os olhos no chão, penetrou mais para dentro dos bosques e nada encontrou. Foi um breve raio de luz do sol através dos ramos, filtrado por espessos arbustos, que finalmente possibilitou localizar o que ele procurava, devido a ter feito brilhar a franja dourada que debruava o chapéu. Tinha sido atirado da cabeça do seu dono quando este caiu e acabou por ficar num maciço de verduras a três jardas do atalho, o seu elaborado arranjo tornando possível que se perdesse facilmente. As dobras à moda de um turbante tinham sido bem enroladas, ainda estava inteiro. E nas dobras de carmesim-escuro brilhava uma mão-cheia de azul. Em dada altura do seu passeio nocturno, Huon de Domville tinha adicionado aos seus or-namentos um pequeno ramo de frágeis e longas flores de um azul-celestial, ainda agora, quando tinham permanecido ali todo o dia. Cadfael retirou o ramalhete de dentro do chapéu e ficou maravilhado, pois apesar de ser parecida com tantas outras, esta flor era uma raridade. Ele conhecia-a bem, apesar de ser difícil de encontrar, mesmo nas partes húmidas de Gales, onde ele a tinha visto ocasionalmente. Que ele soubesse, não havia lugar nenhum em Inglaterra onde tivesse sido descoberta. Quando queria sementes para fazer um pó ou infusões contra cólicas ou pedras nos rins, tinha de se contentar com os parentes pobres desta raridade. Então, pensou ele, olhando para as flores, agora já um pouco murchas, que estava uma aljofareira trepadora a fazer por estas paragens? Certamente, que Domville ainda não as tinha quando deixou a abadia.

Era uma pena que não pudesse ir mais para a frente, já que devia voltar para tratar Iveta e atender a Vésperas. Estava a começar a ficar muito curioso sobre as deambulações nocturnas de Domville. Não tinha Picard mencionado ao acaso que o barão possuía um pavilhão de caça perto de Long Forest? Provavelmente, este atalho era o caminho mais curto do Foregate para a cabana. Bom, a casa podia ficar em qualquer sítio dentro de umas quantas milhas da orla da floresta, mas valeria a pena seguir o mesmo caminho feito por ele naquela noite. Mas não hoje, hoje estava fora de questão.

Cadfael guardou o pequeno ramalhete azul e o chapéu no seu hábito, e pôs-se a caminho, de volta para a abadia. Sem dúvida que era seu dever entregar os dois, com as devidas explicações ao xerife, mas ele não tinha a certeza se iria realmente fazer isso. O chapéu certamente não adiantaria nada ao que já se sabia. Mas este pequeno nó de beleza já a morrer era muito eloquente. Domville tinha estado onde elas crescem, e de certeza que não podia haver dois sítios como esse no condado. Conhecia três em Gwynedd, de onde era natural, aqui ficaria muito surpreendido se encontrasse um que fosse. Prest-cot era um homem justo e honesto, mas arbitrário nas suas decisões e convencido da culpa de Joscelin. Quem mais nutria tanto ódio pelo barão? Cadfael não estava convencido. Conversa fiada sobre matar não o iludia. Existem pessoas capazes de matar em segredo e pessoas que não são capazes; e nada o iria persuadir do contrário.

Qualquer homem pode sentir vontade de matar, mas nem todos os homens são capazes de o fazer com astúcia, com uma faca nas costas, com uma corda estendida num caminho.

Ele voltou obedientemente para a abadia, entregou o chapéu ao sargento que Prestcot tinha deixado na portaria, e foi buscar o xarope de dedaleira para Iveta, que estava na sua oficina.

Desta vez eles não o deixaram a sós com ela por um minuto sequer. A criada, Madlen, uma cópia de Agnes, permaneceu junto deles de olhos abertos e orelhas espetadas, e tudo quanto ele pôde dar à rapariga foi a contínua cumplicidade no caso, testemunhada pela sua presença ali e os remédios que lhe ofereceu. Ao menos podiam trocar alguns olhares e interpretá-los. Assegurou-se de que ela iria dormir, e dormir bastante, enquanto ele ponderava a melhor maneira de a ajudar. E ajudar também Joscelin Lucy? Ela não quereria uma cumplicidade que não se estendesse ao seu amado por cuja vida tinha querido permutar toda a futura felicidade.

Cadfael foi para Vésperas com o pequeno bouquet azul ainda no seu hábito.

Durante todo o dia, o irmão Mark tinha andado vaga mas persistentemente preocupado com o pressentimento de que o controlo do seu rebanho do hospital tinha sido, de alguma maneira, interrompido. Tinha começado em Primeiras, quando toda a casa, à excepção de uma ou duas das crianças mais novas, veio junta para a igreja. Nunca os tinha contado. Se alguém se sentia mais doente ou sem vontade, podia ficar a descansar, ninguém os obrigava a nada, e por isso, o número nunca era o mesmo. Além disso, mesmo durante este curto serviço, havia alguns que, por se sentirem desconfortáveis, mexiam-se um pouco de um lado para o outro e toda a massa de pessoas parecia ondular. Ele sentia-se perseguido por um sentimento de falta de luz na igreja, que era sempre escura e limitativa. À sua conta, ele tinha seis ou sete homens de porte grande, mas que ele conhecia bem, todos os tiques e modos de andar, os pequenos defeitos que os identificavam mesmo debaixo de um rosto velado.

Por uma ou duas vezes durante Primeiras, parecia-lhe que tinha detectado uma cabeça encoberta e imponente, uma cara velada que tinha um aspecto estranho, mas nunca conseguiu fixá-la. Só no fim, se apercebeu que a razão por que ele não conseguia ver bem esta cara, era que toda a gente se estava a comportar de modo a encobrir o intruso.

Intruso parecia uma palavra forte de mais para um sítio onde as portas estavam sempre abertas; no entanto, se o recém-chegado fosse um verdadeiro leproso aqui chegado para fazer mais uma paragem da sua peregrinação, teria ido apresentar-se, e assim não haveria necessidade para este misterioso comportamento de todos. Mas que homem no seu juízo todo escolheria esconder-se aqui? Teria de estar desesperado.

Mark tinha praticamente de ser persuadido de que estava a sonhar. Mas quando distribuiu o pão e a aveia e um pouco de cerveja para o pequeno-almoço, apesar de não ter contado, novamente - pois quem conta o que é dado aos pobres? -, no fim da distribuição sabia que as suas rações estavam gastas para além do que ele esperava. Alguém de entre os seus doentes tinha tirado comida para outra pessoa.

Sabia, claro, que os homens do xerife estavam a passar a pen-te-fino os bosques entre Saint Giles e a cidade, e antes do meio-dia as notícias da morte de Huon de Dombille já lhe tinham chegado aos ouvidos. O isolamento destes infelizes nunca impedia as notícias de entrarem. O que quer que fosse que acontecesse na cidade ou na abadia era logo conhecido no hospital, até o modo como o barão tinha morrido e a consequente acusação do escudeiro em fuga ser o seu assassino. Mas o irmão tinha trabalho para fazer, e não tinha pensado muito nos rumores que corriam. Primeiro, eram os deveres de médico todas as manhãs, e até o último penso ser renovado e a última ferida untada, não deu importância à discrepância que o preocupava. Mesmo assim, havia outros assuntos a tratar, assentar ofertas feitas ao hospital, organizar um grupo para ir buscar lenha à quinta em Sutton, um direito que lhes tinha sido concedido pelo falecido lorde, e continuado pelo seu filho, ajudar a preparar o almoço, verificar as contas das despesas, e mais uma dúzia de coisas. Somente à tarde teve tempo de realizar alguns dos deveres que tinha escolhido fazer, como ir dizer a missa a um velho que estava demasiado doente para deixar a cama e dar lições ao pequeno Bran. Por vezes, eram lições muito fáceis, mais brincadeira que estudo, mas a criança estava inquieta para aprender a escrever e possuía uma grande facilidade, que lhe era tão natural quanto o ar que respirava.

Mark tinha-lhe feito uma pequena secretária, do tamanho apropriado aos seus delgados oito anos, e hoje tinha-lhe aparado uma velha folha de pergaminho, deixando as tiras inutilizadas na sua secretária, junto da do rapaz. A sala de aula ficava num estreito canto do saguão, perto de uma pequena janela, de modo a terem luz. Às vezes acabavam por utilizar o resto da folha com desenhos infantis e jogos, aos quais Bran costumava ganhar. A folha podia ser sempre e usada de novo e uma vez mais ainda, até ficar tão fina que se rompia.

Mark saiu para procurar o seu aluno. O dia estava claro, mas à luz do Sol estava húmido e moderado. Muitos dos leprosos estariam ao longo das bordas das estradas com os seus sinos, mantendo a distância conveniente do tráfego, mas apelando para os que passavam. Perto do seu sítio costumeiro, junto ao muro do cemitério, Lázaro estava sentado, alto, costas direitas, cabeça levantada coberta com o seu véu e capuz. Perto dele, confortavelmente apoiado nas suas coxas, estava Bran, ambas as mãos erguidas no ar com os dedos abertos segurando um cordel, com um lado preso nos dentes. As mãos do homem seguravam a outra ponta. Estavam a jogar ao antigo jogo de fazer figuras com um pedaço de cordel, e o rapaz estava radiante de alegria com os desenhos que ele fazia.

Era agradável e animador ver a velhice e a infância em harmonia e o irmão Mark hesitou se havia de os interromper ou não. Quando estava prestes a retirar-se e a deixá-los brincar em paz, Bran viu-o e deixou cair a corda para o chamar, apressado:

- Já vou, irmão Mark! Espere por mim!

Desenrolou os dedos daquela teia, disse um adeus alegre ao seu companheiro de brincadeiras, que desamarrou o cordel sem proferir palavra, e correu para junto de Mark, a quem deu de imediato a mão, para irem para o saguão ter a aula.

- Estávamos só a preencher o tempo até estar pronto para a aula - disse o rapaz.

- Tens a certeza que não preferes ficar lá fora a brincar enquanto o tempo está bom? Se quiseres, claro que podes. Podemos trabalhar nas longas e escuras noites de Inverno, junto a um bom fogo.

- Oh, não, quero mostrar-lhe quão bem sei fazer as cartas que me ensinou.

Ele tinha arrastado o irmão Mark para dentro, e agora estava sentado à sua secretária, alisando orgulhosamente a nova folha de pergaminho à sua frente, ainda Mark não tinha compreendido o que tinha acabado de ver. Foi a visão da fina e cuidadosa mão a agarrar a pena que finalmente trouxe a explicação.

Respirou tão depressa que Bran ergueu o olhar, convencido de que estava a fazer qualquer coisa mal, ou tão inesperadamente bem, que Mark tinha-se apressado em elogiá-lo.

Mas como podia ele ter deixado de reconhecer o que estava a ver? A altura era a mesma, o porte o mesmo, a largura de ombros igual, tudo estava como devia ser. Excepto as mãos que tinham estado a brincar com o cordel e que tinham todos os dedos, tinham um aspecto suave, macias e bem formadas, as mãos de um homem jovem. No entanto, o irmão Mark não disse nem uma palavra ao superior do hospital, ou qualquer outra pessoa, do que tinha descoberto, nem fez nada que o pusesse em confronto com o intruso. O que o impressionou mais, e fez que se contivesse, foi a unanimidade com que o seu aflito rebanho se tinha aberto para receber o fugitivo, certamente sem proferirem uma só palavra, e sem pedirem explicações, e tinham formado um círculo de solidariedade silenciosa à volta dele, um companheiro no infortúnio. Não seria com o coração leve que ele ira destruir aquele sentimento ou disputar a justiça de tal julgamento.

Os caçadores voltaram da sua busca infrutífera com o cair da noite. Guy, um ajudante muito relutante, entrou para o quarto que partilhava com Simon, atirou as botas para longe, e deitou-se na cama com um grande suspiro de desespero.

- Tiveste sorte em escapar a tal castigo! Horas seguidas a correr todos os arbustos, a espreitar para dentro de chiqueiros e a assustar galinhas na muda da pena. Juro... que cheiro a estrume! O cónego Eudo apressou-se a sair da igreja e a incitar-nos a partir, mas o seu zelo não o levou a apresentar-se como voluntário para o trabalho sujo. Voltou para as suas orações, espero que façam algum bem à alma do pobre velho!

- Não sabes nada dele? De Joss? - perguntou Simon, ansiosamente, firmando o braço na manga da sua melhor cota.

- Se por acaso o descobrisse, teria olhado para o outro lado e ficado quieto. - Guy abafou um enorme bocejo e esticou as suas compridas pernas. - Mas não, nem de relance. O xerife armou um cordão de roda da cidade que deverá ser capaz de evitar qualquer entrada ou saída, e estão a pensar fazer uma outra batida para o norte, amanhã, e se isto falhar, irão para o lado de lá do ribeiro. Digo-te uma coisa, Simon, eles não pretendem deixá-lo escapar. Deves ter ouvido que até vasculharam esta propriedade! Descobriram que ele, ou outro sujeito qualquer, tinha estado escondido num dos celeiros perto do muro.

Simon acabou de vestir o casaco, e disse com ar carrancudo:

- Sim, ouvi. Mas parece que já tinha partido há muito. Se, na verdade, era ele.

- Achas que pode estar bem longe daqui? Podíamos deixar a porta do estábulo no trinco hoje à noite. Ou então mudar Briar para o estábulo aberto do pátio. Uma pequena ajuda é melhor que nada.

- Se ao menos soubéssemos onde ele pode estar... Mas tenho estado a pensar - concordou Simon - que, pelo menos, podíamos trazer o pobre animal até à luz do dia e proporcionar-lhe algum exercício. Quem sabe, se eu for visto a montar o cavalo e se Joss souber disto, talvez entre em contacto connosco.

- Vejo que não acreditas na sua culpa mais que eu - observou Guy, levantando a sua desgrenhada cabeça para fitar o amigo. - Nem naquele maldito caso do colar metido nos alforjes. Pergunto-me que bastardo dos criados recebeu ordens para o esconder ali! Ou achas que o velho fez tudo sozinho? Ele nunca fugiu de fazer o trabalho sujo, pelo menos enquanto o conheci. - Guy estava ao serviço do barão desde os doze anos, tendo começado por ser um pagem saído de fresco da casa de seu pai, e tinha mesmo adquirido uma espécie de afeição afastada pelo seu senhor, que nunca tinha no entanto admirado. - Mas, de qualquer maneira, foi uma maneira indecente de acabar com ele - disse ele. - E ainda me pergunto... Se Joss estava louco de raiva, e tinha todas as razões para o estar, não poria as minhas mãos no fogo por ele. Mesmo assim!

- Eu sim - disse Simon com firmeza.

- Ah, tu! - Guy ergueu-se indulgentemente e deu uma palmada no ombro do amigo. - Quando os outros têm opiniões, tu tens certezas! Tem cuidado, não te magoes um dia devido a esse excesso de confiança. E agora deixa-me olhar para ti - disse, endireitando a gola do seu casaco, imaculadamente vestido -, estás muito bem vestido hoje à noite. Para onde vais?

- Somente visitar Picard na abadia. Uma simples gentileza, agora que o pior já passou, e tudo está a voltar ao lugar. Eles quase que foram seus parentes, terão de fazer parte do cortejo fúnebre. Não custa nada fazer esta deferência a um homem mais velho e bom conselheiro, até o meu tio estar enterrado. Serão enviadas mensagens a minha tia no convento de Wroxall, e a um ou dois primos distantes. Eudo pode encarregar-se das partes escritas, tem a letra com floreados suficientes para isso.

- Aviso-te - disse Guy, levantando-se preguiçosamente para ir buscar água quente para as suas abluções -, o xerife e Eudo tentarão convencer-te a participar da busca de amanhã. Querem mesmo enforcá-lo.

- Posso sempre olhar para o outro lado como tu - disse Simon, e partiu para cumprir o seu dever para com alguém que quase tinha sido seu parente e que tinha esperado ter, por esta altura, os privilégios de ser seu parente.

Iveta permaneceu na cama, com a mistela preparada pelo irmão Cadfael ao seu alcance, e a sua promessa de que lhe traria o sono de uma maneira confortável. Mas ainda não queria dormir. Havia uma espécie de prazer passivo em estar sozinha no quarto, apesar de saber que Madlen estava bem perto de si. Tinham-na deixado sozinha tão poucas vezes nestas últimas semanas, que a opressão da sua presença tinha sido como uma sombra a tapar-lhe o sol. Somente ontem, e por escassos minutos, e mesmo com um olho sempre voltado para ela, tinham-na mandado ir para um lugar onde ela podia ser vista e questionada, de modo a que desse as respostas certas e mostrasse a calma de quem entrega o seu destino com confiança. Durante esse tempo todo, sabiam que Joscelin não estava preso, mas algures em liberdade, mesmo se essa liberdade fosse a de um homem procurado por toda a parte.

Acabou-se. Não a podiam enganar assim outra vez. Podia agarrar-se a duas coisas pelo menos: ele estava em liberdade e ela não estava casada.

Ouviu o som de uma mão a abrir a porta e encolheu-se, cuidadosa e quieta. Mas quando a porta se abriu e Agnes apareceu, foi com uma expressão quase benigna e uma voz praticamente solícita, certamente para benefício do visitante que a acompanhava. Iveta estava estupefacta com a transformação.

- Ainda acordada, filha? Está aqui um bom amigo a perguntar por si. Será que ele pode entrar por uns minutos? Não está cansada?

Simon já tinha entrado, com o seu melhor aspecto e com o melhor dos comportamentos para com a sua tia e tio; e o seu melhor comportamento deve ter causado impressão, pois ele estava realmente sozinho com ela. Agnes estava a retirar-se, sorridente, mostrando a sua benevolência pública.

- Só por uns minutos. Ela não deve esforçar-se mais hoje à noite. Agnes foi-se embora e fechou a porta atrás de si. A cara arrapazada e simpática de Simon deixou a expressão cautelosa e, aproximando-se de Iveta, puxou de um banco, sentando-se ao seu lado. Ela ergueu-se nas almofadas com um ar radiante, o seu cabelo dourado espalhando-se sobre os ombros e sob a camisa de linho.

- Devagar - avisou ele, levando um dedo aos lábios. – Fala baixo, o teu dragão pode estar à escuta. Deixaram-me entrar para apresentar os meus respeitos e perguntar pela tua saúde. Deus sabe quão triste fiquei por verificar o choque que sofreste. Nunca te disseram que ele tinha escapado?

Ela abanou a cabeça, demasiado emocionada para falar.

- Oh, Simon, tens algumas novidades? Não...

- Nem más nem boas - disse ele rapidamente, no mesmo sussurro breve e baixo. - Não há novidades. Continua à solta, e queira Deus que continue. Estão à procura dele, eu sei, mas eu também vou amanhã - disse ele, e pegou na pequena mão que tacteava à sua procura. - Tem coragem! Procuraram o dia todo, e ninguém o viu ou apanhou, quem sabe ele se já está bem longe do círculo das buscas. É forte e audaz...

- Demasiado audaz! - disse ela, pesarosamente.

- Mas ainda tem amigos, apesar de tudo de quanto o acusaram. Amigos que não acreditam na sua culpa!

- Oh, Simon, faz-me tanto bem ouvir-te falar assim!

- Quem me dera poder ajudar-te mais, por ti e por ele. Mas tem paciência, tens de saber esperar. Uma ameaça já não existe. Agora, se ele continuar livre, não há pressa, tu podes esperar.

- E não acreditas que ele roubou? Nem que matou? - disse ela, avidamente.

- Eu sei que não o fez - disse Simon firmemente, com toda a segurança que Guy tinha, tão bem disposto, elogiado. - O único mal que fez foi amar onde o amor não era permitido. Oh, eu sei! - disse ele rapidamente, vendo que ela desviava o olhar. - Perdoa-me se sou presunçoso, mas ele é meu amigo e falou comigo como tal. Sei a verdade toda! - Olhou por cima do ombro de uma maneira desconfiada, e sorriu-lhe de um modo confiante. -A tua tia deve estar a começar a franzir o nariz. É melhor ir-me embora. Mas lembra-te, Joss não está desamparado.

- Lembrar-me-ei - disse ela, ferventemente -, e dou graças a Deus por isso. Simon, voltarás, se puderes? Não podes imaginar o quanto me confortas.

- Voltarei - prometeu ele, e baixou-se depressa para beijar a mão dela. - Boa noite! Dorme bem, e não temas nada.

Estava a encaminhar-se para a porta quando Agnes a abriu, com um ar ainda benevolente, mas sempre cuidadosa. Este jovem era o sobrinho de Huon de Domville, e a ele pertencia-lhe parte da deferência a que o tio tinha tido direito durante a vida. Mas vigiar Iveta nunca podia ser de mais enquanto podia trazer algum lucro para eles.

A porta fechou-se. Agora, Iveta estava pronta para dormir, o fardo do seu coração um pouco aliviado. Bebeu a poção do irmão Cadfael, doce como mel e pesada, e apagou a vela.

Quando Madlen veio espiá-la, já estava a dormir.

Depois da última missa, o irmão Cadfael foi pedir uma audiência ao abade Radulfus, no próprio escritório do abade. A hora era boa para uma conversa séria, tinha sido um dia de grande movimento e emoções que chegava ao fim, com a calma da noite a aproximar-se.

- Padre, já lhe contei tudo quanto sabia sobre este assunto, menos uma coisa. Sabe que eu tenho um certo conhecimento de ervas. No chapéu que trouxe e entreguei ao xerife esta tarde, encontrei uma erva que sei ser tremendamente rara, mesmo em Gales, que existe só em alguns locais. Aqui nunca a tinha encontrado. No entanto, Huon de Domville, na sua última noite neste mundo, foi ao sítio onde esta erva cresce. Padre, acho que esta circunstância é da máxima importância, e é meu desejo encontrar este lugar, e descobrir o que o morto tinha ido fazer aí na véspera do seu casamento. Creio que pode ter algo a ver com a sua morte, o modo como morreu, e a pessoa que a provocou.

Ele tinha o pequeno ramalhete na mão, um ramo seco de finas flores, de folhas verdes já murchas, flores em forma de estrelas, de um azul ainda surpreendentemente vivo.

- Mostre-me - disse o abade e fitou-as com muita atenção. - E pode saber onde tal coisa cresce e onde não cresce?

- Cresce num pequeno, muito pequeno número de sítios, onde a pedra calcária vem à superfície. Nunca a tinha visto em Inglaterra.

- E através disto julga que pode saber onde o nosso homem passou a noite?

- Conhecemos o caminho que ele utilizou para a volta. Provavelmente, tinha usado o mesmo caminho para ida, quando deixou o seu escudeiro no portão. Desejo, se mo permitir, seguir aquele caminho e encontrar esta flor. Acredito que vidas, inocentes de tudo menos da sua juventude, loucura e zanga, dependem de muito pouca coisa.

- Tais coisas já aconteceram vezes sem conta - disse o abade Radulfus. - O nosso objectivo é a justiça, e só a Deus cabe o perdão. Tem licença, irmão Cadfael, para seguir esta pista quanto tempo for necessário. Tem a minha confiança.

- Sabe Deus quanto a estimo - disse Cadfael com sinceridade. - E tem, e terá, a minha. O que quer que seja que eu encontre, eu lhe direi tudo ao xerife? - perguntou Radulfus, sorrindo.

- Claro, mas através de si, padre.

O irmão Cadfael foi para a sua cama no dormitório, e dormiu como um inocente bebé no seu berço, até a campainha tocar para Matinas.

 

Quando o irmão Cadfael se levantou para Primeiras na manhã seguinte, Prestcote já estava a comandar a sua nova caçada na parte norte do Foregate. Desta vez, fariam uma busca lenta durante três milhas, tão exaustiva que dificilmente uma doninha ou uma lebre escapariam à sua rede.

O xerife estava determinado a apanhar o fugitivo, e razoavelmente seguro de que ele não tinha conseguido passar pelo cordão que tinha sido montado durante a noite. Picard também tinha saído com todos os homens da sua casa, e o cónego Eudo estava provavelmente a exultar as pessoas de Domville, que estavam em casa do bispo, a realizarem o mesmo serviço forçado. E embora alguns, sem dúvida, fossem relutantemente juntar-se à busca, existia como que uma infecção de zelo por uma caçada que poria estes homens em total alerta se por acaso cheirassem a caça.

O irmão Cadfael desejou de todo o coração, e não pela primeira vez, que Hugh Beringar estivesse ali para acalmar Prestcote. O delegado do xerife tinha espaço na sua consciência para dúvidas sãs acerca da sua própria omnisciência, e suspeitava sempre do que era uma conclusão óbvia para todos. Mas Hugh Beringar estava no canto norte do condado, na sua própria quinta de Mesbury, e, provavelmente, não quereria sair de lá nas próximas semanas, pois a sua mulher estava para ter o primeiro filho, e isto é um acontecimento muito importante na vida de um homem jovem. Não, nada se poderia fazer, este assunto teria de ser resolvido por Gilbert Prestcote. E mesmo assim, pensou Cadfael, temos mais sorte que a maior parte dos condados. É um homem honesto e justo, apesar de querer resoluções rápidas e uma justiça sumária, e não procurar para lá do óbvio. No entanto, se lhe mostrarem uma verdade provável, é capaz de a aceitar. Verdades prováveis é do que precisamos.

Por enquanto, ia limitar-se a dar as instruções para o dia ao irmão Oswin. Uma semana atrás, ele preferiria que ele ficasse a cavar o jardim para o manter ocupado e rezaria para que o grande desastrado nem pusesse o pé na oficina. Hoje, deu-lhe como tarefa uma poda de Inverno, mas também cuidar de um lote de vinho que estava a começar a fermentar e fazer um óleo para a enfermaria. Eles já tinham feito o mesmo óleo juntos uma vez, ele já conhecia o processo. Cadfael absteve-se, nobremente, de repetir e enfatizar cada passo, e deixou Oswin com a mais modesta e confiante recapitulação.

- Deixo a oficina nas tuas mãos - disse ele firmemente. - Deposito inteira confiança em ti.

"E Deus que me perdoe a mentira", murmurou para si próprio, quando estava fora do alcance do ouvido do outro, "e faça que se torne verdade. Ou pelo menos conte isto como um mérito e não como um pecado. Se eu tenho andado a apertar contigo, Oswin, meu rapaz, agora é a tua oportunidade para mostrares o que vales. Tira o maior proveito!"

Tinha o dia todo para si, e o seu ponto de partida tinha de ser onde Domville tinha morrido. Tomou o caminho mais curto, um rumo arriscado e pouco ortodoxo que ele tinha por vezes utilizado em negócios mais obscuros da sua conta. O ribeiro Meole, no sítio onde bordejava os jardins e campos da abadia, era vadeável, excepto no tempo das cheias, se um homem o conhecesse bem, e Cadfael conhecia-o perfeitamente. Assim, evitou ir pelas estradas com o simples gesto de levantar o seu hábito até aos joelhos e as sandálias deixarem a água entrar e sair à vontade. Pela altura que o capítulo acabou na abadia, ele já estava no atalho onde o barão tinha sido apanhado e a andar para a frente a toda a força.

Conhecia bem esta parte do caminho, ficava perto de uma grande curva do ribeiro, e ele estava a aproximar-se do segundo vau que o levaria para lá do atalho e através dos bosques e campos, perto de áutton e Beistan, esparsamente povoados e juntos da Long Forest. Não acreditava que Domville tivesse tido de andar muito, nem que tivesse passado a noite ao relento. Era homem suficientemente forte para isso e mais, mas amigo do seu conforto quando podia utilizá-lo.

Em Sutton Strange, os bosques davam lugar aos campos. Cadfael cumprimentou um aldeão de origem escocesa, cujas crianças já tinha tratado de um problema de pele, e perguntou se as notícias da morte de Domville tinham chegado à aldeia. Tinham e era o tema principal de conversa num raio de muitas milhas, e os habitantes esperavam que a caçada ao assassino chegasse perto das suas casas e campos no próximo dia.

- Ouvi dizer que ele tinha um pavilhão de caça por estes lados - disse Cadfael. - Que era na orla da floresta, mas isto podia ser em qualquer lado num raio de dez milhas. Que é que sabe sobre este lugar?

- Ah, deve ser a casa para lá de Beistan - disse o colono, con-fortavelmente encostado ao muro do seu jardim. - Ele tem direito de coutada na floresta, mas vinha muito raramente, e mantém apenas um rapaz das vizinhanças como couteiro, e a sua velha mãe para tomar conta da casa quando ninguém a habita. Na verdade, a maior parte do tempo. Ele tem melhores terrenos de caça noutros lados. Ah! Parece que alguém o andou a enganar.

- E fez um trabalho bem feito - disse Cadfael seriamente. - Qual é o melhor caminho para esse lugar? Através da aldeia em Beistan?

- Sim, atravesse a estrada velha e vá pelos campos. Descobrirá que esse atalho corre a direito. Aí, estará na orla da floresta antes de ver a casa.

Cadfael continuou o seu caminho o mais rápido possível, acabando por vir a dar a uma estrada que levava a Beistan, onde o atalho que ele seguia tinha um cruzamento e continuava, sempre a direito, depois de umas casas espalhadas e depois de dois pedaços de terra metidas entre declives. Depois de mais uma milha, voltou a ser um atalho pertencente à floresta. Tinha muitas e brancas pedras à mostra, e nas clareiras a urze, que despontava muito dura, arranhava-lhe as canelas. Já havia algum tempo que não andava tanto a pé, e se não tivesse sido por uma razão tão séria, o seu passeio teria sido bem divertido.

Chegou abruptamente junto ao pavilhão de caça, as árvores a afastarem-se nos dois lados de modo a mostrar-lhe um baixo muro de pedra, e uma construção de madeira de forma quadrada e baixa, em cima de uma cave, com alpendres na parede das traseiras. Entre as pedras ásperas do muro cresciam todo o tipo de ervas selvagens, conhecidas agora pelas suas folhas terem poucas flores. Havia árvores de fruto, mas poucas e já velhas e retorcidas, como se alguém feito um jardim aqui, mas o tivesse esquecido e negligenciado. Talvez algum antepassado de Domville, com uma família grande, que gostasse de passar ali algum tempo, e que um homem sem filhos não usava a não ser na época da caça, e que mesmo assim muito raramente.

Cadfael atravessou o portão e entrou. O seu olhar foi instantaneamente atraído por arbusto de giesta no lado de dentro, num canto perto do portão. Nesta estação do Outono ainda estava em flor, e as suas flores, poucas e em forma de estrela, eram de um azul-lím-pido e vivo. Aproximou-se e viu que as três filas mais baixas do muro e o chão perto estavam atapetados de hastes finas e direitas, cheias de folhas estreitas. O tapete do chão chegava até à giesteira, e trepava por ela acima, atirando para a luz estes tardios e radiantes ramalhetes de azul-celeste.

Tinha encontrado a sua aljofareira trepadora, e tinha encontrado o lugar onde Domville tinha passado a última noite da sua vida.

- Procura alguém, irmão?

A voz atrás de si era respeitosa ao ponto de ser obsequiosa, e, no entanto, era cortante como uma faca bem afiada. Virou-se, alerta, para ver quem falava e encontrou as mesmas características de ambiguidade. Deve ter vindo dos alpendres, das traseiras, um homem fino e bem-parecido, com cerca de trinta e cinco anos, vestido com um tecido grosseiro mas com uma dignidade muito perto da basófia. Tinha olhos que se assemelhavam a calhaus numa ribeira iluminada pela luz do Sol, duros e claros, e tão fluidos e indefiníveis na maneira de olharem. Era moreno e bonito e agradável à vista, mas não estava à vontade no seu papel de autoridade, e não muito amigável na sua cortesia.

- É o couteiro da casa de Huon de Domville? - perguntou o irmão Cadfael com uma delicadeza cuidadosa.

- Sim, sou - disse o jovem.

- Então, a missão que trago é vossa - disse Cadfael amigavelmente -, apesar de pensar que é desnecessária. Talvez já tenha sabido, pois sei que aqui já é do conhecimento geral, que o seu senhor morreu, assassinado, e agora está na abadia de Saint Peter e Saint Paul de Shrewsbury, de onde venho.

- Assim nos foi dito ontem - disse o couteiro, o seu modo mais relaxado agora que tinha uma explicação razoável para a visita, apesar de ainda não estar tão à-vontade como seria de esperar. A sua expressão permaneceu cautelosa e a sua voz reservada. - Um primo meu trouxe a notícia, vinha do mercado da cidade.

- Mas não apareceu ninguém da casa do seu senhor? Não recebeu qualquer tipo de ordens? Pensei que o cónego Eudo tivesse enviado alguém aqui. Mas deve compreender, eles estão muito confusos e ainda debaixo de choque. Sem dúvida que entrarão em contacto consigo e com todas as propriedades dele quando tiverem tudo preparado.

- Eles quererão primeiro apanhar o assassino, sem dúvida - disse o homem, e passou a língua pelos lábios, os enganadores olhos virados de soslaio para Cadfael. - Terei notícias quando os parentes dele acharem melhor. Por enquanto, continuo ao seu serviço, até me confirmarem a minha permanência ou me mandarem embora. Continuarei a manter a propriedade como sempre fiz até agora, e vou entregá-la em ordem ao seu herdeiro. Leve esta minha mensagem, irmão, e ninguém precisará de se preocupar com este lugar. Que fiquem descansados. - Fechou os olhos por um momento, a pensar. - Disse assassinado? Têm a certeza?

- Sim, temos - disse Cadfael. - Parece que ele saiu a cavalo depois do jantar, e foi atirado da garupa do cavalo, caindo de costas. Encontrámo-lo num atalho que conduz nesta direcção. Pensei que talvez tivesse estado aqui, já que esta propriedade lhe pertence.

- Ele não esteve aqui - disse o couteiro firmemente.

- Não esteve mesmo? Veio para Shrewsbury há três dias...

- Não, não esteve mesmo.

- Nem nenhum dos seus escudeiros ou criados?

- Ninguém.

- Então não hospedou aqui nenhum convidado para a festa do casamento? Toma conta desta cabana sozinho?

- Tomo conta da terra, dos animais e da quinta, a minha mãe toma conta da casa. As poucas vezes em que aqui caçou, trouxe os seus criados pessoais, cozinheiros e tudo. Mas a última vez foi há quatro anos.

Estava a mentir tão à vontade quanto respirava. Pois havia as flores azuis que aqui cresciam, e que dificilmente seriam de encontrar noutro lugar do condado. Mas por que estava ele tão determinado a negar que Domville tinha estado ali? Qualquer homem sensato pode assustar-se quando existe uma caçada de morte, mas este homem não parecia ser daqueles que se assustam facilmente. No entanto, parecia claramente determinado a negar qualquer ligação entre a ameaça de culpa do assassinato do seu senhor a este lugar ou a qualquer pessoa.

- Ainda não encontraram o assassino? - Não havia mais lugar para dúvidas, ele bem gostaria de ver a caça apanhada, a busca terminada, o malfeitor seguro na prisão, e todo o inquérito acabado.

- Ainda não. Estão à procura dele com todos os homens disponíveis. Ah, bem - disse Cadfael -, é melhor ir andando, então, apesar de não ter pressa nenhuma. O dia está bonito, e uma longa caminhada é sempre um prazer. Mas seria possível arranjar-me um copo de cerveja e um banco onde possa descansar um pouco antes de partir?

Tinha esperado uma certa relutância, se não mesmo uma recusa engenhosa para o deixar entrar na casa; mas o jovem mudou de ideias, quase visivelmente, e decidiu que seria melhor convidar o monge a entrar. Porquê? Para que ele visse por si mesmo que não havia nada a esconder? Qualquer que fosse o motivo, Cadfael aceitou com espontaneidade e seguiu o seu hospedeiro pela porta aberta.

A entrada era escura e silenciosa, o cheiro de madeira rico e pesado. Uma pequena e velha mulher, muito bem arranjada e simples, apareceu do quarto do fundo e parou surpreendida, se não alarmada, ao ver o estranho, até o seu filho, com uma ligeira e suspeita pressa e uma certa ênfase, responsabilizar-se pelo convidado.

- Entre, irmão, podemo-nos sentar no maior conforto. Muito raramente temos visitas. Mãe, é capaz de nos trazer uma pia? O bom irmão ainda tem uma longa caminhada a fazer de regresso.

A cabana era luminosa e mobilada com conforto considerável. Sentaram-se juntos com a cerveja e os bolos de aveia, que a velha governanta trouxe, e falaram do tempo e da estação, e o que seria o Inverno, e mesmo o triste estado do país, dividido entre o rei Ste-phen e a imperatriz. Shropshire poderia estar em paz agora, mas a paz era uma coisa precária em qualquer lado desta terra. À imperatriz tinha-lhe sido permitido juntar-se ao seu meio-irmão Robert de Gloucester, em Bristol, e outros estavam-se ajuntar a ela, Brian FitzCount, o castelão de Wallingford, Miles, o condestável de Gloucester, e outros mais. Corriam rumores que a cidade de Worcester estava a ser ameaçada pela de Gloucester. Devotamente, eles concordaram em ter esperança de que a maré de guerra não se aproximaria, talvez ainda poupasse Worcester.

Apesar de toda esta conversa inofensiva, os sentidos de Cadfael estavam alerta; e pode ser que tivesse sido um erro de cálculo da parte do couteiro convidá-lo a entrar, para que ele pudesse ver com os próprios olhos com tudo estava vazio, limpo e inocente. Pois certamente que não tinha sido a velha mulher quem tinha trazido aquele leve e indefinível perfume para o quarto. Nem a pessoa que o tinha deixado aí ficar havia saído há muito tempo, pois tal tipo de fragrância teria desaparecido numa questão de dias. Cadfael tinha faro para essências de flores e reconheceu o de jasmim.

Nada mais havia a descobrir aqui dentro. Levantou-se para se despedir e agradecer o entretenimento, e o couteiro acompanhou-o, sem dúvida para se certificar de que ele seguia de volta para a abadia sem mais truques. Foi pura sorte que a velha estivesse a sair dos estábulos quando eles emergiram da porta, e que tivesse deixado a porta abrir-se totalmente diante deles, antes que se apercebesse da sua presença. O seu filho foi ágil e rápido para a ir fechar logo de seguida, trancando-a. Mas não tinha sido rápido o bastante.

Cadfael não deu qualquer sinal de ter visto mais que devia, e despediu-se alegremente junto do portão, perto da giesteira que tinha flores azuis em vez de douradas, e pôs-se a caminho com um passo balançante pelo caminho que tinha tomado anteriormente.

Naquele estábulo havia um cavalo que certamente não tinha estrutura para carregar com Huon de Domville ou para aguentar um dia inteiro de caça. Cadfael tinha visto de relance a pequena e delicada cabeça branca e o focinho curioso a espreitar, o pescoço arqueado e a crina entrançada, e o leve e ornamentado arreio pendurado do lado de dentro da porta. Um pequeno e bonito ginete, com os ornamentos próprios para uma dama. No entanto, o criado estava pronto a jurar que não havia nenhuma senhora ali no pavilhão de caça. Não tinha havido aviso de que ele se aproximava, não tinha havido tempo para a esconder. Ele tinha sido convidado a entrar expressamente para ver por si próprio que ela não estava ali, que não havia mais ninguém para além dos hóspedes costumeiros.

"Porquê, então, por mais aborrecida que ela estivesse por estar a ser incomodada na sua privacidade, que parecia ter alguma ligação com a morte de Domville, talvez até suspeita de estar de conluio, por que escolheria ela partir a pé, e deixar a sua montada para trás? E onde, a pé, em tal remoto lugar, podia uma senhora ir?"

Não voltou directamente para a abadia, mas continuou ao longo do caminho verde até chegar ao Foregate, e dirigiu-se para a casa do bispo. O grande pátio, usualmente muito barulhento, estava bastante quieto esta tarde, pois até os criados tinham sido recrutados para a busca como batedores, e estavam algures nos bosques. Só os homens mais velhos ficaram para trás, o que convinha a Cadfael, pois os criados mais velhos eram os mais prováveis de conhecer todos os casos do seu senhor, mesmo se eles o reconhecessem ou não, e a ausência dos mais novos e astutos tornava mais fáceis as confidências.

Procurou o mordomo de Domville, que estava, parecia, ao serviço do seu senhor há muitos anos, e que tinha o bom senso de reconhecer a força da verdade, uma vez que Domville já não existia. Não havia mais ninguém a recear, seria melhor usar de total franqueza com o xerife. Haveria um interregno inevitável, e depois um novo senhor. Os criados não eram suspeitos de nada, e nada tinham a temer, porquê esconder factos que tivessem algum significado?

O mordomo era um homem com mais de sessenta anos, de cabelo grisalho e aspecto calmo, com o olhar de quem já não tem ilusões e a reservada e resignada dignidade da maior parte dos criados antigos. O seu nome era Arnulf, e respondeu a todas as perguntas do xerife sem hesitar. Estava pronto a responder de boa-fé a quaisquer outras que Cadfael ou outras pessoas lhe pusessem. Uma época tinha chegado ao fim com a morte do seu senhor, e ele teria de regular o seu serviço por outras regras agora, ou reformar-se.

No entanto, a primeira pergunta que Cadfael lhe pôs, era uma que Arnulf não esperava.

- O teu senhor era conhecido por ser um mulherengo. Diga-me, tinha ele agora uma amante de tanta importância, ou talvez uma nova namorada tão absorvente, que não poderia passar sem ela estes poucos dias, enquanto se casava com a herdeira Massard? Alguém que pudesse trazer e instalar longe da comitiva, mas ao seu alcance?

O velho mordomo ficou embasbacado, como se tais palavras tão directas fossem curiosas na boca de alguém com um hábito beneditino, mas depois de um escrutínio intenso não pareceu encontrar razões para surpresa. Ficou logo mais à vontade. Eles tinham uma linguagem e uma experiência de vida comuns.

- Irmão, qualquer que seja a maneira como descobriu, sim, existe tal mulher. Elas aparecem de todos os feitios, as mulheres. Nunca fui muito bem com elas, tenho problemas que me chegam sem ter de andar a fazer-lhes a corte. Mas ele não podia ir muito longe sem elas. Com ele, elas vinham e iam. Que conta! Mas havia esta que era diferente. Esta ficava sempre. Estável como uma esposa. Como um robe antigo ou um par de sapatos, fáceis e confortáveis, alguém para quem ele não precisa de representar, elogiar ou agradar em demasia. Sempre pressenti que - disse Arnulf com um ar pensativo, esfregando a sua barba com dedos magros - onde quer que ele fosse, ela não estaria muito longe. Mas não estou a par de quaisquer planos para a trazer para aqui. Ele nunca precisou de mim para tais assuntos. Ajudava-o a vestir-se ou despir-se depois de uma caçada, e dormia perto dele para poder ir buscar vinho quando ele chamava à noite. Não para as suas mulheres. Este é outro serviço. Que lhe aconteceu? Não soube dela por aqui. Fiquei admirado.

- Nem sequer de um palafrém - perguntou Cadfael -, branco, puro, crina e tudo? Um bonito ginete para senhora saído duma manada espanhola, diria eu, pelo aspecto dele. Com uma rédea dourada pendurada na porta do estábulo.

- Conheço-disse Arnulf admirado.-Ele comprou-o para ela. Não era suposto saber estas coisas. Onde o viu?

Cadfael contou-lhe.

- O cavalo, mas não a mulher. Ela deixou o seu palafrém e o seu perfume para trás, mas partiu.

- Bem - disse Arnulf razoavelmente -, suponho que ela quer evitar envolver-se num caso de assassínio, e, certamente, se ela estava lá, e ele foi encontrado nesse caminho, como dizem, pareceria que ele foi ter com ela quando mandou o jovem Simon para casa e partiu sozinho. Deve ter-se assustado e pensado que seria melhor desaparecer.

- Ela também tem criados muito leais-disse Cadfael secamente -, que se estão a esforçar para me convencerem e a toda a gente que ela nunca esteve lá. Por esta altura, calculo que o couteiro tenha mudado o ginete para um lugar mais seguro.

Tinha-lhe ocorrido, algo tardiamente, que o couteiro poderia ter boas razões para se proteger a si próprio e à senhora. Se ela realmente esteve ali à disposição, esperando uma visita do seu senhor e protector, ela poderia ter passado o tempo de uma maneira muito mais agradável com um homem mais novo, atraente e simpático, que estava ali à mão de semear. E ele, por sua parte, podia ter medo que se descobrisse a ligação, no caso de poderem suspeitar ser ele o assassino, para se ver livre de Huon para bem dela, por ciúme e despeito. Perguntar se ele realmente tinha feito isso, era só mais um passo à frente. Digamos que Domville apareceu naquela noite, depois do jovem ter sido abençoado com os favores da senhora, ao ponto de pensar que ela lhe pertencia. Digamos que teve de se retirar, enquanto eles estavam juntos, e nada tinha para fazer a não ser meditar e aborrecer-se, até se ter apercebido que o caminho de regresso do seu senhor estava à vista, e se removesse o acto criminoso para longe da cabana, e perto bastante de Shrewsbury, deixava o campo aberto para qualquer homem ser considerado o assassino. Era bem possível! Poderia ter acontecido. Muita coisa dependia da mulher. Cadfael desejou saber mais sobre ela.

- A questão agora é, já que ela não levou a sua montada, onde poderia ela ir a pé, daquele lugar tão remoto? - A questão era também por que escolheria ela ir a pé, mas isto ele não disse, este era um problema mais obscuro.

O solar onde ela fica geralmente, a sua casa, poder-se-ia dizer, é bem longe, no Cheshire. - Arnulf pensou e estremeceu com o pensamento de coisas há muito esquecidas. - Mas foi por lá que ele a encontrou. Alguma beldade rústica, uma jovem rapariga, na altura, há mais de vinte anos, sim, deve ter sido. Mais ainda. Ela costumava ser conhecida como A vice de Thornbury, dizem que o pai era o construtor de carroças de lá. Eram gente livre, lembro-me bem, não eram vilãos. - Assim eram a maior parte dos artesãos de aldeias, ligados aos seus lares como os vilãos à terra. - Se calhar, ainda tem parentes lá - disse Arnulf. - Será muito longe daqui? Não conheço estas paragens.

- Não - disse Cadfael, subitamente animado -, não é longe. Conheço Thornbury. Para aí, ela podia ir a pé.

Afastou-se da casa do bispo com a cabeça cheia de ideias. A senhora desaparecida tornava-se cada vez mais interessante. Já que havia mais de vinte anos que ela era a amante paciente e persistente de Domville, tão firmemente estabelecida a ponto de ter a respeitabilidade e calma subserviência duma esposa, deve ter agora quarenta anos, alguns anos mais velha que o jovem couteiro do pavilhão de caça, mas sem dúvida, ainda deve ter charme para o conquistar. Sim, ele podia ter-se tornado vítima do desejo e do ciúme, e julgar ser melhor ver-se livre do velho e duro homem que era o seu dono e se interpunha entre eles. Mas a revelação da sua provável idade tinha outras complicações. Tão perto da meia-idade, uma mulher não era tão capaz de arranjar outra ligação segura como esta, agora que Domville estava morto. Esta condição pode ter causado da parte dela a reflexão que o seu povo estava a menos de uma milha, e que com eles, podia fazer-se desaparecer e esconder-se por quanto tempo necessitasse.

Mas porquê, por que deixaria ela atrás um cavalo tão valioso, de sua propriedade, uma oferta do seu senhor? Podia ter cavalgado para Thornbury em vez de ter andado.

O dia de hoje já estava a chegar ao fim, tinha de se apressar para Vésperas, e ver que prodígios de destruição ou génio o irmão Oswin tinha realizado na sua ausência.

Mas amanhã ele iria encontrá-la!

Em Saint Giles, dois jovens estavam a meditar nos seus problemas. O irmão Mark há muito que tinha decidido que o leproso alto que se assemelhava a Lázaro em tudo menos nas mãos era de facto o fugitivo, o escudeiro, que o xerife procurava com tantos homens e com tanta ferocidade. Encontrava-se, assim, num dilema de alguma complexidade.

Ele sabia da história do suposto roubo do colar da noiva, mas parecia-lhe tudo tão suspeito quanto ao irmão Cadfael. Demasiados homens, em todo o tipo de circunstâncias, tinham sido conduzidos à ruína e à morte por lhe terem sido postos bens de valor na bagagem. Era uma maneira muito fácil de destruir um inimigo. Ele simplesmente não acreditava na sua culpabilidade. Nem sequer, depois de ter visto Huon de Domville, teria o gosto de entregar um homem à sua vingança, que era capaz de ser mortal.

Mas o crime, o crime era outro assunto. Achava credível que um jovem rapaz tão enganado, se aquela acusação era realmente falsa, fosse levado a pensar em vingança, mesmo que esta fosse contra a sua natureza e a extremos. Onde estava, então, a verdade? E, no entanto, a armadilha, e o acabar de um homem atordoado, pareciam-lhe acções horrorosas. Tal vingança, um homem não podia aprovar. Sentia-se no limite, e não podia descarregar o seu fardo em cima de outros ombros. Sentia-se sozinho com a sua descoberta.

Pensou em fazer uma aproximação directa ao intruso e pedir a sua confiança, mas tal acto exigia uma privacidade muito difícil de encontrar numa comunidade tão fechada. Até ter a certeza da culpa, poderia agir de modo a chamar a atenção para o fugitivo. Todos os homens devem ser considerados inocentes até prova em contrário, e tudo o resto eram acusações muito suspeitas e maliciosas que lhe tinham sido atiradas para cima e que soavam a falso como uma moeda de chumbo.

"Se conseguisse uma oportunidade a sós com ele, sem ser visto pelos outros", decidiu o Irmão Mark, "falaria abertamente e julgaria por mim. Se não conseguir, ou até o conseguir, hei-de vigiá-lo o melhor que puder, marcar tudo quanto ele faz, desafiá-lo, se ele fizer algum mal, prontificar-me a falar em sua defesa se ele não fizer nada de errado. E queira Deus que eu sirva para revelar a verdade, de uma maneira ou de outra."

O objecto de toda esta preocupação estava sentado com Lázaro a distância discreta da estrada, mas dentro do alcance do olhar, um quarto de milha da estrada que conduzia à passagem do rio em Atcham. Uma das malgas de esmolas que eles seguravam era, pelo menos, legítima, mas eles não apelavam para aqueles que passavam e usavam as sinetas de aviso somente se uma alma mais caridosa mostrava sinais de se querer aproximar demasiado. Estavam sentados de pernas cruzadas, protegidos pela branqueada relva de Outono que crescia debaixo das árvores. Às atitudes eram fáceis de aprender.

- Da maneira como está - disse Lázaro, - podia passar pelo cordão que eles montaram e sair livre. Eles nunca acreditariam que haveria um homem tão bravo ou tão louco para andar vestido com o fato de um leproso já morto. E não serão tão corajosos ou tão loucos para lhe despirem o fato. - Era um longo discurso para ele, no fim gaguejou, como se a sua mutilada língua tivesse feito um esforço demasiado.

- O quê, fugir para salvar a minha pele e deixá-la ainda presa? Não me mexerei daqui - disse Joscelin, veementemente -, enquanto ela estiver a ser guardada por um tio que a rouba e que a venderá para seu próprio proveito. Provavelmente, para um animal maior que Huon de Domville, se o preço for bom! De que me serve a liberdade, se voltar as costas a Iveta exactamente quando ela precisa mais de ajuda?

- Acho - disse a lenta língua ao seu lado -, que se a verdade vier ao de cima, quererá esta senhora para si. Tenho razão?

- Sim, toda! - disse Joscelin com paixão. - Quero esta senhora para mim como nunca quis e nunca quererei mais nada neste mundo. Havia de a querer à mesma se ela não tivesse tantas terras, somente os sapatos que servem para palmilhar estas terras, ainda havia de a querer se ela fosse o que eu finjo ser agora e se você, Deus tenha mercê!, realmente o é. Mas, por tudo isto, eu ficaria contente, não, grato, de a saber segura ao cuidado de um tutor honesto, com todas as suas honras, e livre de escolher o que fazer. Claro que farei o meu melhor para a conquistar! Mas perdê-la para um homem melhor, sim, aceitaria sem me queixar. Oh, sim, tem razão! Eu sofro de tanto a querer!

- Mas queNpode fazer por ela, procurado como é? Existe um amigo entre eles em quem possa confiar?

- Existe Simon - disse Joscelin, mais apaziguado. - Ele não pensa mal de mim. Escondeu-me com boa vontade, magoa-me que tenha deixado o esconderijo sem lhe dizer nada. Se conseguisse levar uma mensagem até ele, talvez pudesse até falar com ela e fazer que nos encontrássemos, como já o fizemos uma vez. Agora que o velho morreu, como pode tal ter acontecido! - talvez não a vigiem de tão perto. Simon até podia conseguir-me o meu cavalo...

- E onde - perguntou a paciente voz - iria com esta senhora tão abandonada, se conseguisse fazê-la sair de lá?

- Já pensei nisso. Iria para White Ladies, em Brentwood, e pediria guarida para ela até o inquérito estar acabado. Arranjar-lhe-ia um modo de subsistência. Eles nunca a deixariam ir sem ela querer. Podia ir até ao rei, se necessário. Ele tem bom coração, faria justiça. Poderia levá-la até à minha mãe - disse Joscelin, de rompante -, mas diriam que eu cobiço os seus bens, e isso não suporto. Tenho dois bons solares a receber, não cobiço as terras das outras pessoas, não devo a ninguém, e não gosto de ser acusado de cumplicidade. Se ela ainda me quiser, agradecerei a Deus e a ela, e serei um homem feliz. Mas importo-me mais com a felicidade dela que com a minha.

Lázaro agarrou a sua sineta e começou a tocá-la, pois um cavaleiro com um ar sólido tinha parado o seu pónei e virado para a estrada que conduzia até eles. O cavaleiro, mesmo assim, sorriu do sítio onde estava e atirou uma moeda. Lázaro apanhou-a e abençoou-o, e o bom homem acenou e continuou o seu caminho.

-Ainda existe bondade - disse Lázaro como que para si mesmo.

- Graças a Deus que ainda existe! - disse Joscelin com desacostumada humildade. - Já a conheço. Nunca lhe perguntei - disse ele, hesitantemente - se alguma vez teve mulher e filhos. Seria uma grande perda se tivesse sido sempre um solitário.

Fez-se um silêncio prolongado, apesar de os silêncios perto de Lázaro não serem nem raros nem perturbadores. Por fim, o velho homem disse:

-Tive uma mulher, já morreu há muito tempo. Tive um filho. Ele teve sorte, a minha desgraça nunca caiu em cima dele.

Joscelin ficou surpreendido e indignado.

- Não creio que seja um desgraçado. Nunca fale assim! Qualquer filho seu devia ter orgulho em o ser.

A cabeça do velho voltou-se, os olhos por cima do véu reluziram quando olharam para o seu companheiro.

- Ele nunca soube - disse Lázaro com simplicidade. - Não o culpe, era somente uma criança. A escolha foi minha, não dele.

Apesar de novo, brusco e desajeitado, Joscelin tinha aprendido até onde ir, e a não se admirar com nada. Surpreendia-o, quando olhava para trás, descobrir o quanto tinha aprendido nestes dois dias entre os proscritos.

- E há uma pergunta que nunca me fez - disse ele.

- Nem a faço agora - disse Lázaro. - É uma pergunta que também nunca me fez e já que um homem não pode dizer senão não, para que serve perguntar?

 

Na capela mortuária da abadia, depois de Vésperas, Huon de Domville foi posto no caixão na presença do prior Robert, o cónego Eudo, Godfrid Picard e dois escudeiros do morto. Picard e os dois jovens tinham chegado de mais um dia de buscas infrutíferas, cansados e irritados, ainda com a capa e as luvas, sem ter feito a captura do malfeitor para prova dos seus problemas, apesar de este não ser caso para tristezas de ninguém aqui dentro a não ser de Picard e Eudo.

As velas no altar à cabeça e aos pés do esquife ardiam gentilmente, e as sombras dos presentes tremiam tremendamente nas paredes. A longa e branca mão do prior Robert pegou no aspersório e sacudiu umas poucas gotas de água-benta por cima do morto e a luz da vela apanhou-as no ar e reduziu-as a faíscas que morreram de seguida. Seguiu-se o cónego Eudo que, olhando em volta para o outro único parente presente, entregou o aspersório a Simon, que despiu as suas luvas rapidamente de modo a pegar-lhe. Ficou a olhar para o corpo do seu tio com uma expressão sombria, à medida que mergulhava a pequena vassoura de ervas doces e respingava água-benta, por sua vez.

- Nunca pensei fazer isto tão cedo - disse ele, e voltou-se para entregar o aspersório a Picard, regressando às sombras.

Os ramos verdes deixaram cair algumas gotas nas costas da sua mão, e Picard viu-as cair, viu o jovem sacudi-las como se se surpreendesse pela frieza. Havia algo de fascinante no modo como a luz das velas punha a relevo cada pormenor destas mãos atenciosas, cortados no pulso pelas mangas negras. Tantas mãos fortes movendo-se e vivendo como se tivessem vida própria. Desde os dedos elegantes e pálidos do prior Robert até ao pulso escuro e suave de Guy, o último a aspergir o morto, todas realizavam a sua dança ritual e captavam os seus olhares. Somente quando o acto de reverência terminou, puderam todos os presentes levantar o olhar, e encontraram alívio na palidez mais humana das caras sérias e solenes dos outros. Pareceu que toda a gente respirava fundo, como nadadores que regressam à superfície.

Tinha acabado. Os cinco separaram-se, o prior Robert para uma curta sessão de orações ao morto antes do jantar, o cónego Eudo para os aposentos do abade, os dois jovens escudeiros para voltarem para os seus exaustos cavalos e de volta a casa do bispo, de modo a tomarem conta das montadas, darem-lhes comida e porem-nos nos estábulos antes de irem eles próprios comerem e descansarem. Quanto a Picard, desejou-lhes as boas-noites muito rapidamente, e voltou para a ala dos hóspedes. Aí levou Agnes até ao seu próprio quarto de cama e fechou a porta, isolando-se do resto da casa, mesmo dos de maior confiança. Tinha um assunto da maior importância a confidenciar-lhe, e mais ninguém deveria ouvir.

 

O pequeno Bran tinha pedido e trazido consigo da lição as tiras do pergaminho em que praticava as letras. Conseguiu que o seu professor as confiasse a ele, apesar de o seu propósito não ser o que Mark julgava. No dormitório, onde ele já devia estar a dormir, juntou-se a Joscelin com os seus ganhos e disse-lhe o seu segredo.

- Para a mensagem que queria enviar. Lázaro contou-me. É verdade que sabe ler e escrever? - Ele tinha receio de quem possuía tais mistérios nas pontas dos dedos. Aconchegou-se junto de Joscelin, para poder ouvir e fazer-se ouvir no maior dos segredos. - De manhã, podia usar a pena do irmão Mark, ninguém estará a vigiar a sua secretária. Se pode escrever, posso levar-lhe a mensagem, se me disser aonde. Eles não me prestam atenção. Mas o melhor pedaço da folha não é muito grande, terá de ser uma mensagem muito curta.

Joscelin embrulhou o pequeno e magro corpo nas pregas do seu capote para o proteger do frio da noite, e aconchegou-o a si.

- És um aliado bom e galante, hei-de fazer-te meu escudeiro se um dia chegar a cavaleiro. Hás-de aprender latim, a ler e outros assuntos que desconheço. Ah, sim, posso escrever numa letra que se irá perceber. Onde está o teu pergaminho? - Ele sentiu a fina largura mas o suficiente comprimento da tira que lhe era posta avidamente na mão. - Serve perfeitamente. Vinte palavras dizem muito. Deus te abençoe por seres uma criança tão esperta!

A cabeça de onde o irmão Mark tinha retirado a última ferida devido a subalimentação e porcaria, encostou-se confortavelmente ao ombro, em tempos privilegiado, de Joscelin, e ele sentiu-se emocionado e divertido.

- Posso ir até à ponte - gabou-se ele, sonolentamente -, se for pelas estradas laterais. Se tivesse um chapéu, poderia entrar na cidade. Irei até onde quiser...

- E a tua mãe, não vai dar pela tua falta? - disse Joscelin ao ouvido do rapaz. A mulher, sabia ele, tinha-se desligado de todos os problemas deste mundo e só estava à espera de o deixar. Mesmo o seu filho ela tinha abandonado, com gratidão, nas mãos de Saint Giles, o patrono dos doentes e dos proscritos.

- Não, ela está a dormir... - Assim estava quase o seu activo e alegre filho, para quem a excitação do estudo e as pequenas intrigas da amizade lhe abriam o mundo que se fechava para ela.

- Então, aproxima-te e adormece. Põe-te debaixo dos lençóis e aquece-te contra mim. - Ele virou-se de modo a permitir que a sua cara se aconchegasse melhor no seu ombro, e ficou surpreendido pela alegria que retirou da confiança do pequeno. Muito depois da criança estar a dormir ele ficou acordado, pensando quanto da sua energia e interesse estavam a ser ocupados por outros assuntos, quando o seu próprio pescoço corria graves riscos, e tanto do seu pensamento devotado a excluir de qualquer perigo esta pequena e negligenciada alma, perigo que ele corria devido à sua loucura ou ao seu destino. Sim, escreveria, tentaria encontrar um meio de fazer a sua mensagem chegar a Simon, mas não através deste inocente que dormia no seu ombro tão confiadamente.

Joscelin também dormiu, e com movimentos sonolentos acomodou o seu hóspede durante toda a noite. Algures, Lázaro, permanecia acordado até tarde da noite, muito depois de ter dispensado a sua necessidade de dormir.

 

Joscelin levantou-se antes do amanhecer, com imenso cuidado para não acordar o seu pequeno companheiro, que estava agora com um ar de abandonado, à vontade e quente, os braços abertos como se não lhe pertencessem. O volumoso capote de leproso ficou a cobrir a criança. O ar da madrugada estava frio, e, além disso, não se atrevia a aproximar-se da cidade com ele vestido, apesar de o risco de ir assim tão desprotegido ser certamente muito grande. Teria de ficar fora da vista dos seus caçadores, e pensou com conforto que a caçada do dia anterior deve ter deixado os homens virtualmente exaustos, e exausta a possibilidade de o xerife o apanhar no lado norte do Foregate, e assim, ou pelo menos, ele esperava que a vigia estivesse concentrada noutro lugar.

Saiu à socapa pelo saguão e pegou na pena de escrever do irmão Mark que estava em cima da secretária. Não esperaria pela luz da madrugada. Nada podia fazer aqui, mas a luz constante do altar, apesar de fraca, seria suficiente para os seus olhos novos e bastaria poucas palavras. Já tinha pensado no que ia escrever, e conseguiu fazê-lo de modo legível, se não muito limpo, na sua tira de pergaminho. A pena precisava de ser aparada e tinha tendência a respingar, mas ele não tinha consigo uma faca para a emendar. Tinha chegado à condição dos seus companheiros, a não ser que a sua pele e membros estavam inteiros; além disso, nada possuía, quaisquer possessões de qualquer espécie à sua disposição.

Simon, por amizade - faz-me dois favores, amarra Briar num abrigo do outro lado do ribeiro perto da abadia, e leva Iveta para o jardim depois de Vésperas.

Seria suficiente se ele conseguisse arranjar um modo de o colocar nas mãos certas. Mas se não conseguisse, devia guardá-lo consigo, já que tinha escrito nele o nome de Simon. Arrependia-se agora do impulso natural de pôr um nome na sua missiva, pois no caso de se perder, o amigo seria implicado nos seus problemas. Mas não tinha como subtrair o nome acusador. Tinha de seguir como estava, ou ficar, e destruir o único plano Que lhe restava. Convinha-lhe ser ainda mais audacioso na sua tentativa de alcançar o homem certo.

Saiu da igreja para a ^uz fraca da madrugada ainda por nascer para a quietude semelhante àquela que encontrou no seu esconderijo na propriedade do bispo. Cuidadosamente, foi por detrás do hospital e em direcção à cidade, mantendo-se longe da estrada, onde as árvores e os arbustos lhe forneceriam protecção. Quando chegou aos jardins e quintais de casas, sentiu-se forçado a ficar mais longe ainda da estrada mas tinha tempo suficiente para se movimentar com cautela. Ninguém acordaria na casa do bispo até à primeira luz do dia, ninguém deixaria o pátio até ser dia, e o povo tinha quebrado o seu jejum. Tinha alcançado o estreito e sombreado caminho que levava ao Foregate, perto do muro da propriedade do bispo, e fez uma pausa para escolher o sítio onde punha os pés. Só se trepasse é que poderia ver para lá do muro, e se ia ter de subir árvores, seria melhor escolher um lugar onde podia ver tanto a parte de dentro, como a parte de fora do grande pátio, assim reconheceria as pessoas, e vigiaria toda a actividade dos estábulos.

Escolheu o seu poiso com cuidado, no tronco de um carvalho, ainda bem coberto, de modo à oferecer-lhe protecção, mas proporcionando-lhe vista dos dois lados e uma retirada fácil no caso de ter de sair à pressa. Nada havia a fazer senão esperar, pois a madrugada era ainda somente um palor muito esboçado no horizonte. Faltaria ao pequeno-almoço, hoje ninguém iria roubar comida para ele.

Finalmente veio a madrugada, bem a tempo. A casa, o muro, os estábulos, os campos e celeiros, todos, gradualmente, saíram da escuridão e ganharam vida e cor. Criados sonolentos, padeiros, pagens e leiteiras arrastavam-se, depois alvoroçaram-se, cumprindo as suas tarefas. Carroças carregadas de pão saíram da padaria, carregadas para dentro de casa Por lavadores de pratos. A manhã tardou mais um pouco, e os nobres começaram a aparecer, o cónego Eudo o primeiro deles, com certeza para a segunda missa do dia. Depois Simon e Guy juntos, não demasiado activos e envolvidos em conversa séria. Os pagens estavam a tirar, certamente, a maior parte dos cavalos dos estábulos. Parecia que a caçada da manhã já estava combinada e sendo preparada.

Guy, com ar resignado mas solene entre os homens, preparou-se para ser passado em revista, e partiram em direcção à cidade. Mas Simon não foi com eles. Estava ainda de pé nos degraus da entrada, olhando para ele, e aparentemente à espera de alguma coisa. O próprio estábulo do bispo ficava do outro lado da esquina da casa e fora do campo de visão de Joscelin, mas ele arrebitou as orelhas ao som de cascos, animados e urgentes, que se aproximavam do pátio principal. Viu o seu Briar, de um cinzento-prateado manchado de um cinzento-escuro, indignantemente brincalhão com o ar fresco da manhã, arrastando um suado e magro pagem atrás de si. Simon desceu os degraus para ir ao encontro deles, passou a mão pelo brilhante pescoço do cavalo, e agarrou a prateada cabeça entre as suas mãos por um instante, numa carícia de apreço. Com toda esta trabalheira, ele ainda tinha tido tempo para pensar no pobre animal fechado num estábulo, e levou-o para fazer exercício. As palavras que disse ao pagem quando se virou para tornar a entrar na casa não eram entendíveis a esta distância, mas os seus gestos em relação ao cavalo e ao portão indicavam facilmente: "Sela-o e leva-o até lá fora."

Joscelin esperou o suficiente para se certificar que o pagem ia mesmo cumprir as ordens, e depois deixou-se cair da árvore, e avançou cautelosamente por entre os arbustos até poder ver a parte de fora dos portões. E aí vinham eles, Briar miraculosamente activo, impaciente por exercício. O pagem levou-o para fora, e amarrou-o indiferentemente a uma das argolas da parede, perto do banco de montar, e deixou-o à espera do seu cavaleiro. Não podia ter sido melhor. Logo que o rapaz voltou para o pátio, e estava a caminhar em direcção aos estábulos, Joscelin saiu do esconderijo e pôs-se acorrer ao longo do muro para acariciar e acalmar Briar, que parecia admirado e contente. Não havia tempo para brincadeiras, e a princípio amaldiçoou a pouca sorte de terem aparecido do lado do Foregate um par de cavaleiros. Viu-se forçado a voltar as costas à estrada e a permanecer solidamente a segurar as rédeas até eles terem passado, como se fosse um dos pagens à espera do seu senhor. Mas a demora obrigatória deu tempo a Briar para se sentir mais seguro, e ficar parado, enquanto Joscelin apressadamente amarrava o pergaminho na franja prateada de Briar.

Os cavaleiros tinham passado, naquele momento, o Foregate estava vazio, e não havia ninguém no atalho entre as árvores. Joscelin teve de se afastar da sua actividade favorita, fechando os ouvidos ao relincho de protesto que o perseguiu, e correu como uma lebre até ao esconderijo, não parando até ter percorrido uma boa distância do caminho que levava até Saint Giles.

Estava feito, ele não se atrevia a verificar se tinha tido efeito imediato, pois era agora pleno dia, e as ruas estavam a começar a ficar populosas, seria melhor que ele se escondesse o mais depressa possível nas roupas do leproso, uma defesa mais forte que qualquer arma, já que ninguém se aproximaria de livre vontade para ser contaminado. Só podia rezar para que Simon encontrasse a mensagem - certamente que ele notaria qualquer coisa amarrada na crina, antes de montar Briar - e agisse fielmente. Havia, pelo menos, uma espécie de salvaguarda, pensou Joscelin, pois se ele se dirigisse para os campos opostos aos terrenos da abadia e não encontrasse Briar aí escondido, podia retirar-se, partindo do princípio que o seu pedido se tinha perdido ou nunca tinha sido detectado. Retirar-se-ia e tentaria outra coisa, mas nunca desistiria, nunca até Iveta estar em melhores mãos e ser bem tratada.

Por enquanto, especialmente neste dia, tinha de permanecer calmo e exemplar em Saint Giles até ao anoitecer, sem se arriscar, sem chamar as atenções para si mesmo.

No matagal, na extremidade do terreno do hospital, parou para verificar se podia avançar, subitamente consciente da sua perigosa nudez sem o manto, agora que já estava de dia. De um arbusto saiu uma pequena e buliçosa figura com um tecido escuro entrouxado de baixo do braço e a arrastar pelo chão, que o abraçou pela altura das coxas com o braço livre, repreendendo-o amargamente num tom de voz baixo:

- Não me acordaste! Foste e não me levaste! Porquê? Surpreendido e emocionado, Joscelin pôs-se de cócoras e abraçou também a criança.

- Eu não estava a dormir e tu sim, tão profundamente que teria sido uma pena acordar-te. E já está feito, estou de volta, por isso, perdoa-me. Sei que tu terias feito tão bem ou melhor que eu, não penses que não confio em ti...

Bran atirou-lhe o manto, falando-lhe com rispidez:

- Veste-o! Aqui está o véu para a cara... Como podias ter tornado a entrar no hospital sem isto! - Ele tinha trazido um pedaço de pão também, para compensar o pequeno-almoço perdido. Joscelin partiu-o ao meio e deu-lhe de volta o bocado maior, esquecido agora das suas preocupações por uma ternura irresistível que o preenchia com uma louca vontade de rir.

- Que faria eu sem ti, meu escudeiro? Já vejo que não posso sair sem o meu guardião. Prometo-te que te deixarei conduzir-me durante todo o dia, excepto durante a tua lição com o irmão Mark, claro! Bom, faz como quiseres. Tu mandas!

Vestiu-se obedientemente com o vestuário adoptado, e depois comeram juntos o pão, em silêncio, satisfeitos, antes de ele puxar o véu de linho sobre o rosto. De mão dada, saíram solenemente das árvores e dirigiram-se respeitosamente para Saint Giles.

Simon já tinha trotado com o exuberante Briar até praticamente à portaria da abadia quando notou a franja amarrada, e estendeu a mão para descobrir a causa, descontente com tão mau serviço da parte do pajem, sentindo a enrolada tira de pergaminho sob os seus dedos. Abrandou para passo, o que não agradou à sua montada, enquanto desenrolava o pergaminho cheio de curiosidade.

A letra trapalhona de Joscelin, complicada pela luz fraca com que tinha escrito, e uma pena aparada pela mão de outra pessoa, era, mesmo assim, legível. Simon fechou apressadamente a tira na sua mão, como se alguém pudesse estar a ver, e olhou por cima do ombro e em volta, tardiamente procurando algum sinal de como esta súbita mensagem tinha sido colocada ali para ele, e onde o seu fugidio correspondente podia estar. Demasiado tarde! Podia estar em qualquer lado. Não havia modo de o apanhar ou de lhe enviar uma mensagem, a não ser fazendo o que ele pedia e montando um cenário a que ele certamente responderia.

Simon guardou o pergaminho cuidadosamente na bolsa do seu cinto e continuou a cavalgar pensativamente. Para lá da portaria, próximo da ponte que atravessava o Severn, perto da cidade, as forças do xerife começavam a reunir-se. No grande pátio da abadia, continuavam as costumeiras actividades do dia. Os irmãos leigos vinham rapidamente para os jardins principais do Gaye, cumprindo as tarefas próprias da granja e para com a manada. O irmão Ed-mund atarefava-se-se entre o herbácio e as alas da sua enfermaria, e o irmão Oswald, o esmoler, estava a distribuir doações aos poucos pedintes que estavam ao portão. Simon entrou sobriamente pelo portão e entregou Briar a um pajem. Na ala de hóspedes pediu uma audiência a Godfrid Picard, e foi imediatamente recebido.

Iveta estava sentada com Madlen no seu próprio quarto, desatentamente bordando um tapete decorativo para um coxim. Era verdade que podia sair agora se assim o quisesse, mas não podia passar da portaria. Já tinha tentado uma vez, e tinha sido mandada de volta por um dos homens do seu tio, educadamente, mas com uma careta furtiva que a fez corar. De que servia sair para este recinto fechado, por mais agradável que fosse noutras circunstâncias, quando Joscelin estava Deus sabe onde, e ela não tinha maneira de ir ter com ele? Era melhor sentar-se aqui e eperar, escutar a chegada de um vento de liberdade, uma palavra dele. O irmão que a tinha ajudado uma vez, e a tinha salvo dum mundo sombrio, era um amigo, mesmo ela não tendo falado com ele ultimamente. E havia também Simon. Ele era leal, não acreditava nas acusações feitas contra Joscelin. Se alguma vez tivesse a oportunidade, ele seria homem para os ajudar.

Iveta continuou a coser muito quieta, principalmente depois de ter apanhado o fraco som de vozes no quarto ao lado. As paredes interiores aqui eram sólidas, e impediam o barulho de sair; parecia-lhe que, no entanto, Madlen nada tinha notado que lhe despertasse o interesse. Assim, Iveta também escondeu o seu. Mas não podia haver dúvidas. O seu tio estava a brigar com alguém. Ela notou isso através da viciosa veemência da sua voz mais que por algum som mais alto. Na realidade, ele até estava a falar baixo, e as palavras eram difíceis de distinguir. A outra voz era mais nova, menos cautelosa, furiosamente na defensiva, certamente surpreendida e consternada, como se isto tivesse surgido inesperadamente. Ainda não-se percebiam palavras, só o fio do som, duas vozes a discutirem em conflito aberto. E, de repente, pareceu-lhe ter apanhado uma entoação na segunda voz que lhe fez pensar num nome que só a podia entristecer. Que poderia ter acontecido entre o seu tio e Simon? Pois certamente que aquela era a voz de Simon. Estaria o tio a ficar desconfiado de todos os jovens rapazes que se aproximassem dela? Ela sabia bem que ele tinha um tesouro para defender, ela própria, a grande honra que ela transportava como uma pesada mó pendurada ao pescoço, o uso que se podia fazer dela, o proveito que se podia tirar dela. No entanto, há cerca de um dia atrás, Simon tinha sido bem-vindo, privilegiado, bem recebido com os sorrisos da tia Agnes.

Madlen continuou sentada indiferentemente a costurar uma coifa para si própria, e não prestou qualquer atenção. O seu ouvido era mais velho e duro, se ouviu o zunido da conversa, foi tudo.

E mesmo isso já tinha cessado. Uma porta fechou-se. Iveta pensou ter tornado a ouvir um outro murmúrio no quarto ao lado, urgente e baixo. Então, a porta do seu próprio quarto abriu-se, depois de terem batido de uma maneira confiante, e Simon entrou de cabeça erguida. Iveta sentia-se perdida, só conseguiu ficar de olhos abertos para ele; mas ele sabia o que dizer.

- Bom dia, Iveta! - disse ele facilmente. E para a criada: - Dê-me licença por um minuto, Srª Madlen!

Madlen não se tinha esquecido dos sorrisos e mesuras de Agnes, ele ainda era um privilegiado. Pegou na sua costura, fez a sua reverência complacentemente, indulgente para com a ocasião, e saiu.

Mal a porta se tinha fechado e já Simon estava de joelhos ao lado de Iveta, inclinado para ela. Apesar de toda a sua calma e disciplina, estava corado e a respirar mais depressa, as suas narinas agitando-se apressadamente.

- Ouve, Iveta, pois eles não me deixam voltar... Se ela lhes disser que estou aqui contigo, põem-me fora... Tenho notícias de Joss! - Ela teria perguntado, ansiosa e aflita, mas ele colocou um dedo silenciador em cima dos seus lábios, e continuou, a voz baixa e firme: - Hoje à noite, depois de Vésperas, ele pede-te que vás até ao jardim. Tenho de ter o seu cavalo à espera no outro lado do ribeiro. Não faltes, eu não faltarei. Compreendeste?

Ela acenou com a cabeça, quase sem fala, sufocada pela alegria e o medo.

- Oh, sim! Oh, Simon, eu faria qualquer coisa! Deus te abençoe por seres um amigo tão leal! Mas tu... Que aconteceu? Por que se voltaram contra ti?

- Porque falei a favor de Joss. Disse que ele não era nem um assassino nem um ladrão, e que no fim, seria vingado, e eles teriam de retirar tudo quanto disseram contra ele. Eles não querem saber mais de mim,já não sou aceite por eles. Mas aqui está a mensagem... olha! - Ela conhecia a letra e leu, tremendo. Acariciou a tira de pergaminho como se fosse uma relíquia sagrada, mas fechou a mão de Simon por sobre ela, embora relutante.

- Eles podem encontrá-la... guarda-a tu. Eu cumprirei o seu pedido, e obrigado mil vezes pela tua bondade. Mas, oh, Simon, sinto muito que sofras por nossa causa, também...

- Sofrer, que sofrimento? - sussurrou ele ferozmente. - Não me importo com eles, se tiver a tua amizade e confiança.

- Sempre, sempre... mais que isso! Tu tens sido tão bom comigo, que faria eu sem ti? Se conseguirmos fugir... se conseguirmos... iremos procurar-te. Serás sempre o nosso amigo mais querido!

Ela estava agarrada à mão com que ele a tinha silenciado, tentando mostrar pelo toque a gratidão para a qual as palavras pareciam inadequadas, mas ele fez uma careta de aviso e retirou a mão rapidamente, pondo-se de pé e desviando-se dela num movimento flexível, pois ouviu-se um passo ao pé da porta, uma mão na aldrava.

- O jardim! - murmurou ele, e reparou no clarão de concordância nos seus olhos, resolutos e assustados.

- Alegra-me ver que já está restabelecida - foi dizendo num tom formal, à medida que a porta se abriu. - Não podia ir-me embora sem lhe apresentar os meus respeitosos cumprimentos.

Picard entrou no quarto com um passo lento, a sua cara estreita e subtil fria, a sua voz ainda mais fria, apesar de educada.

- Ainda aqui, Sr. Aguilon? A nossa sobrinha deve ficar no quarto por agora, e não pode ser perturbada. Pensei que estivesse com pressa de voltar para sua casa e preparar-se. Foi-lhe pedido que se juntasse às forças do xerife hoje. Espero que mantenha a sua palavra.

- Farei o que me foi pedido - disse Simon, brevemente. - Mas não no cavalo do meu amigo! Fique descansado, meu senhor, irei juntar-me aos homens do xerife tal como me foi ordenado, e a tempo.

Agnes tinha aparecido por detrás do ombro do seu senhor, os lábios cerrados, os olhos pequenos brilhando com desconfiança. Simon fez uma profunda reverência a Iveta, uma formal e afectada a Agnes, e marchou para fora do quarto. Duas cabeças voltaram-se para o ver sair em silêncio, e quando já tinha partido, voltaram-se com a mesma fria unanimidade para Iveta. Ela inclinou a cabeça humildemente sobre o seu bordado, de modo a esconder a expressão de alegria e desafio que não conseguia disfarçar, e nada disse. O silêncio durou bastante, mas eles acabaram por se ir embora, fechando a porta atrás de si. Nada perguntaram. Ela pensou que eles estavam satisfeitos. Tinha ela alguma vez mostrado espírito de iniciativa? Eles não sabiam, não compreendiam, os prodígios que ela sentia ser agora capaz de fazer por Joscelin.

O irmão Cadfael tinha partido, logo depois de ter rompido com o jejum da noite, numa mula emprestada dos estábulos da abadia. Pela altura em que Iveta recebeu a mensagem de Joscelin, já tinha passado Beistan e estava no campo aberto perto do pavilhão de caça. Para alcançar a aldeia de Thornbury, não se tornava obrigatório seguir o mesmo caminho que levava ao pavilhão, assim, desviou-se mais para a direita, na direcção oeste, para dentro dos limites da Long Forest. Entre a cabana e a aldeia, a distância era menor que uma milha, no entanto, o mistério permanecia: por que haveria uma mulher de abandonar um bom cavalo e preferir ir a pé.

As árvores começaram a escassear à medida que se aproximava da aldeia, e ao sol brilhava uma agradável quantidade de pastos verdes e campos arados, compactos e bem cuidados. Espalhados pelos bosques circundantes, havia tocos de árvores recentemente cortadas por jovens mais empreendedores. No meio, os edifícios baixos e feitos de madeira agrupavam-se, fios de fumo azul e o cheiro das fogueiras pairavam sobre eles como um véu. Pequena, remota e pobre, uma aldeia para gente trabalhadora, mas, apesar de tudo, com óptimos combustíveis em volta e excelente caça furtiva, que Cadfael julgava poder ser uma actividade comunitária aqui. Bastante madeira de todos os tipos, também para o trabalho de carroceiro. O ulmeiro, essencial para o gado, o carvalho, para providenciar os durames para os raios das rodas, e o freixo flexível e macio para fazer os aros, estavam todos ali à mão.

Cadfael parou a sua mula na primeira casa, onde uma mulher estava a dar de comer às galinhas, e perguntou pelo carroceiro.

- Deve querer falar com o Ulger? - disse ela, encostando um braço gordo na sua vedação e observando-o com uma curiosidade amigável. - A casa dele fica lá ao fundo, depois do charco, pode vê-lo pelas pilhas de madeira à sua direita. Tem lá uma carroça para ser arranjada, deve estar a trabalhar nela.

Cadfael agradeceu-lhe e continuou o seu caminho. Depois do charco, onde os patos mergulhavam e grasnavam, viu a madeira empilhada, e chegou logo à cabana, uma larga caverna cheia de ferramentas e materiais, um quarto com um sótão por cima e no pátio defronte, uma carroça sem uma roda. As metades partidas da roda estavam no chão, alguns raios espalhados, o aro de ferro ainda bom para ser usado novamente. Um novo suprimento de ulmeiros, já feito em raios, estava no chão qual estrela, e o homem, com um ar robusto e cerca de quarenta e cinco anos, com barba e músculos, estava a trabalhar intensamente com um enxó na curvatura de uma roda, dando-lhe a forma desejada.

- Deus abençoe o trabalho! - disse Cadfael, parando a sua mula e descendo dela. - Creio que deve ser Ulger? Tenho andado à sua procura. Mas esperava um homem mais velho.

O carroceiro levantou-se e deixou o enxó, movendo-se à vontade no seu reino. Olhou para o visitante com curiosidade amável, uma boa alma, de cara redonda, mas com uma reserva e dignidade acerca de si próprio também.

- O meu pai também se chamava Ulger, e também era carroceiro desta e outras aldeias dos arredores. Se calhar estava a pensar que era ele. Deus o tenha em paz, morreu há alguns anos. A casa e a oficina são minhas. - E acrescentou depois de um rápido olhar de escrutínio: - Deve ser dos beneditinos de Shrewsbury. Recebemos notícias de outros lugares, de vez em quando.

- Temos tido alguns problemas, também souberam? - disse Cadfael. Pôs a rédea da mula em cima da vedação, sacudiu o seu hábito e esticou as costas, doridas da viagem. - Digo-lhe a verdade como gosto que ma digam. Huon de Domville foi assassinado de manhã cedo, no dia do seu casamento, e no seu pavilhão de caça, não muito longe daqui, ele tinha uma mulher. Estava de regresso a casa, quando morreu. Ela já não está no pavilhão. Dizem que o seu nome é Avice de Thornbury, filha daquele Ulger que também deve ser seu pai. Foi por aqui que ele a conheceu e pegou nela. Não creio que esteja a dar-lhe nenhuma novidade.

Esperou e fez-se silêncio. O homem olhou-o com um ar subitamente endurecido e parado e não disse nada.

- Não é o meu propósito nem tenho precisão - disse Cadfael - de trazer qualquer perigo ou ameaça a sua irmã. No entanto, ela pode saber o que a justiça tem de saber, e não só para a entrega do culpado, mas também para a libertação do inocente. Tudo quanto quero é falar com ela. Ela deixou no pavilhão de Domville o cavalo, e creio que mais coisas que lhe pertenciam. Partiu a pé. Creio que ela veio para aqui, para o seu povo.

- Há já muitos anos - disse Ulger, depois de um longo silêncio - que não tenho uma irmã, desde que ela deixou de considerar Avice de Thornbury como nome de família.

- Isto eu compreendo - disse Cadfael. - No entanto, parente é parente. Ela veio ter consigo?

Ulger olhou-o sombriamente e decidiu-se.

- Sim, veio.

- Há dois dias? Depois de terem chegado de Shrewsbury as novas da morte de Huon de Domville?

- Há dois dias, ao fim da tarde. Não, ainda não sabíamos de nada. Mas ela já sabia.

- Se ela está aqui consigo - disse Cadfael -, tenho de lhe falar.

- Olhou para a casa, onde uma mulher atraente e robusta entrava e saía. Num canto do pátio, um rapaz de cerca de catorze anos estava a aparar aros de carvalho para algum veículo mais leve. O filho e a mulher de Ulger. Não viu sinais de outra mulher na casa.

- Ela não está aqui - disse Ulger.-Nem seria bem-vinda a minha casa. Só a vimos uma ou duas vezes depois de ela ter escolhido ir para amante de um barão normando, uma vergonha para a sua família e raça. Eu disse-lhe quando ela chegou que faria por ela tudo quanto um homem faria pela sua irmã, excepto deixá-la entrar na casa que ela abandonou há muito tempo por dinheiro e uma vida fácil e luxuosa. Nem se comoveu. Faça o que quiser com ela, pois eu sinto-me dividido. Ela disse muito calmamente que não queria nada de mim, a não ser três coisas: o empréstimo do meu rocim, um simples vestido de camponesa, em vez das ricas roupas que trazia, e algumas horas do tempo do meu filho para a guiar aonde queria ir, e para trazer o cavalo de volta. Tinha de andar três milhas, e os seus sapatos não se prestavam para o caminho.

- E estes três pedidos foram-lhe concedidos? - disse Cadfael, maravilhado.

- Sim. Ela pôs as suas finas roupas aqui na gruta e vestiu um vestido velho da minha mulher. Também tirou os anéis que tinha nos dedos e a corrente de ouro do seu pescoço e deu-os à minha mulher, pois disse não precisar mais deles, e podiam servir para pagar uma parte da sua dívida aqui. Montou no meu rocim, e o rapaz acompanhou-a a pé; antes da noite ele trouxe o cavalo de volta para nós. E é tudo quanto sei dela, pois nada mais perguntei.

- Nem para onde se dirigia?

- Nem mesmo isso. Mas o meu filho contou-me, quando voltou.

- E para onde foi ela?

- Para um sítio a que chamam o Ford de Godric, a oeste daqui, e um pouco para dentro da floresta.

- Conheço - disse Cadfael, alegremente. Pois no Ford de Godric havia uma pequena quinta de freiras beneditinas, uma parte da abadia de Polesworth. Então Avice tinha-se dirigido para o santuário feminino mais próximo, para se esconder seguramente sob a protecção de uma abadia respeitada e poderosa, até o assassino de Domville ser conhecido e estar preso, a sua morte vingada, a sua amante esquecida. Naquele porto seguro, ela poderia querer falar de algo que soubesse sem conhecer o propósito, desde que permanecesse inviolavelmente salva no seu esconderijo.

Assim pensava ele, quando agradeceu a Ulger a sua ajuda, e montou para ir até o Ford de Godric. Um caminho muito natural para uma mulher discreta tomar, se temesse ser arrastada para a escandalosa teia de um crime.

No entanto... No entanto, ela tinha deixado o seu ginete para trás e ido a pé. Tinha despido as suas riquezas e posto um vestido grosseiro, tirado os anéis dos dedos para pagar uma parte da sua dívida aos parentes que tinha abandonado há tanto tempo...

A quinta no Ford de Godric era uma baixa, longa e sóbria casa, numa vasta clareira, com uma pequena capela de madeira ao lado e um alto muro de pedra rodeando o seu bem tratado jardim e pomar, agora só com metade das suas folhas amareladas. Num pedaço de terra, recentemente revolvida, dentro do muro, uma noviça de meia-idade, confortavelmente redonda de forma e feições, estava a plantar rebentos de couve para a próxima Primavera. Cadfael observou-a quanto se aproximou do portão e desmontou, e com o seu olho para competência e trabalho aprovou a confiança de modos e a economia dos seus movimentos. As freiras beneditinas, tal como os monges beneditinos, gostam do trabalho manual e são incitados a gastarem as suas energias tão generosamente no arranjo da terra como nas orações. Esta mulher, saudavelmente rosada, trabalhava como uma boa e feliz esposa, calcando o solo de volta das suas plantinhas com um pé largo, e sacudindo a terra das suas mãos com um ar de plácida satisfação. Era agradavelmente cheia e não muito alta. A sua cara, apesar de redonda e bem fornecida, tinha, no entanto, uns ossos firmes e uns lábios e queixo notavelmente sólidos.

Quando tomou consciência da presença de Cadfael e da sua mula, ela endireitou as costas com a progressão gradual e cuidadosa de um verdadeiro jardineiro, e voltou para ele uns olhos castanhos e astutos debaixo de sobrancelhas esquisitamente oblíquas, olhos muito conhecedores que o miraram dos pés à cabeça num segundo.

Deixou o seu canteiro e dirigiu-se para ele, sem pressa alguma.

- Deus o abençoe, irmão! - disse alegremente. - Posso ajudá-lo de alguma maneira?

- Deus abençoe a sua casa! - disse Cadfael, cerimoniosamente. - Desejo falar com uma senhora que recentemente procurou santuário aqui. Ou assim me parece, pelo que sei. Chama-se Avice de Thornbury. Pode levar-me até ela?

- Muito rapidamente - disse a noviça. Na sua face ruiva, uma súbita e desconcertante covinha apareceu como uma mesura. A beleza, no seu aspecto mais maduro e tranquilo, apareceu e morreu com a mudança, deixando-a com o mesmo ar simples e modesto de antes. - Se procura Avice de Thornbury, encontrou-a. Esse nome pertence-me.

Na pequena escura sala de visitas da quinta eles sentaram-se frente a frente numa pequena mesa, e o monge beneditino e a aprendiz de freira beneditina olhavam-se com interesse mútuo. A superior tinha-lhes dado licença e fechado a porta atrás de si, apesar do modo da postulante ser de tal autoridade que surpreendia que pedisse permissão a quem quer que fosse para falar com a sua visita, e ainda mais surpreendente que ela o fizesse com tal humildade. Mas Cadfael já tinha chegado à conclusão de que lidar com esta mulher seria um manancial inesgotável de surpresas.

Onde estava agora a esperada imagem da amante do barão normando, mimada, favorecida, com a beleza protegida? Tal criatura devia ter-se esforçado para manter o seu charme, com pinturas, cremes e segredos, passado fome para se manter magra, estudado as artes do movimento e da graça. Esta mulher entregara-se placida-mente à meia-idade, tinha deixado as rugas formarem-se na sua cara e pescoço, e o cabelo ficar grisalho. Ainda era viva e activa, e seria sempre, segura de si, sem necessidade de fingir outra coisa do que era. E tal como era tinha mantido vivo o interesse de Domville por mais de vinte anos.

- Sim - disse ela imediatamente à pergunta de Cadfael -, eu estava no pavilhão de caça de Huon. Ele queria-me sempre por perto, onde quer que fosse. Já viajei por todas as suas terras vezes sem conta. - A sua voz era baixa e agradável, e falava do seu passado como a mais respeitável dona-de-casa, depois de o seu homem estar morto, recordando uma afeição calma e doméstica, costumeira e pouco excitante.

- E quando soube da sua morte - disse Cadfael, - pensou ser melhor retirar-se de cena? Disseram-lhe que foi assassínio?

- Pela tarde daquele dia era já do conhecimento de muitos - disse ela. - Não participei nisso, não tinha como adivinhar quem teria feito tal coisa. Não estava com medo, se é isso que está a pensar, irmão Cadfael. Nunca fiz nada levada pelo medo.

Disse-o de uma maneira simples e prática, e ele acreditou nela. Teria ido mais longe, e jurado que em toda a sua vida ela nunca tinha sentido medo. Ela falou da palavra com uma leve curiosidade, como se estivesse a tocar num velo para avaliar o seu peso e qualidade.

Não, nunca medo... relutância, talvez, em participar em qualquer acto público. Há vinte anos que tenho sido discreta, tornar-me agora um exemplo de desprezo é coisa que não poderia aguentar. E quando algo chega ao fim, para quê protelar? Não podia trazê-lo de volta. Tinha chegado ao fim. Tenho quarenta e quatro anos, com alguma experiência do mundo. Tal como eu penso - disse ela, olhando-o firmemente, e a covinha veio e foi-se da sua bochecha -, também pode dizer o mesmo, irmão. Pois creio que não o surpreendi tanto quanto esperava.

- Acho que... - disse Cadfael. - Não creio que exista um homem que não consiga surpreender. Mas sim, eu corri mundo antes de tomar este hábito. Seria tolo da minha parte supor que foi a sua capacidade para surpreender que primeiro fascinou Huon de Domville?

- Se quiser acreditar em mim - suspirou Avice, sentando-se melhor e cruzando as mãos cheias e rudes sobre um estômago abaulado -, já quase não me lembro. Sei que tinha esperteza e garra suficientes para tirar o melhor partido do que se oferecia a uma rapariga da minha condição, e pagar por isso sem rancores. Ainda tenho a esperteza e a garra, agarro o que posso do que se oferece a uma mulher da minha idade e passado.

Avice disse muito mais do que as palavras continham, e sabia muito bem que ele compreendia tudo. Ela tinha compreendido logo que tinha chegado o fim da sua carreira. Demasiado velha agora para fazer sensação ou outra ligação, demasiado sábia para querer uma, talvez demasiado leal para sequer pensar numa, depois de tantos anos. Demasiado tarde, com o seu passado, para contemplar a ideia de um casamento. Que pode uma tal mulher fazer?

- Tem razão - disse Avice com à-vontade. - Fiz bom uso do tempo em que esperava por Huon, como muito esperei, semanas seguidas. Sei ler e contar, tenho muitas habilitações. Preciso de usar o que sei e fazer uso do que posso fazer. A minha beleza já me deixou, e nunca foi muito grande, ninguém vai querer pagar por ela. Eu servia para Huon, ele estava habituado a mim. Eu era o seu descanso quando outras mulheres o tinham apoquentado ou cansado. - Amava-o? - perguntou Cadfael, pois o seu modo permitia tal pergunta. E ela pensou seriamente antes de responder.

- Não, não se pode dizer que o amasse, não era o que ele queria. Depois de tantos anos, claro que havia uma ternura, um hábito que nos acompanhava bem e que não aborrecia. Às vezes, nem sequer dormíamos juntos - confidenciou pensativamente. - Sentávamo-nos juntos e bebíamos vinho, jogávamos xadrez, que ele me ensinou, ouvíamos os jograis. Cabeceávamos sobre o meu bordado e o seu vinho, de cada lado da fogueira. Por vezes, nem nos tocávamos ou beijávamos, apesar de partilharmos a mesma cama.

Como um velho e casado senhor com a sua simples e agradável esposa. Mas isso tinha acabado, e ela sabia reconhecer a realidade. Ela tinha lamentado sinceramente a morte do seu companheiro, mesmo quando pensava realisticamente e antecipava o prazer de começar outro tipo de vida. Tanta inteligência tinha de se ocupar, encontrar um canal para a sua energia natural. As vias da juventude estavam fechadas, mas havia outras vias.

- No entanto, ele veio ter consigo - disse Cadfael - na véspera do casamento. - "E a noiva", pensou ele, mas não disse, "tem somente dezoito anos, é linda, submissa e muito rica."

Ela inclinou-se por cima da mesa, a sua expressão calma e introspectiva, como se examinasse honestamente as elaborações do espírito humano, tão teimoso e tão dado à conformidade.

- Sim, veio. Era a primeira vez desde que tínhamos chegado a Shrewsbury e acabaria por ser a última. A véspera do seu casamento... Sim, o casamento é uma questão de negócios, não é? Como a concubinagem! O amor... ah, bem, este é outro assunto, nada tem a ver com nenhum dos dois. Sim, eu estava à espera dele. A minha posição em nada mudaria, compreende?

O irmão Cadfael compreendia. A amante de vinte anos não seria destronada por uma herdeira igualmente comprada, vinte e seis anos mais nova. Elas eram dois mundos separados, e a habitante daquele mundo alternativo tinha a sua própria legitimidade.

- Ele veio sozinho?

- Sim, sozinho.

- E a que horas a deixou?-Agora ele estava no âmago do assunto. Pois esta amante honrada certamente nunca tinha conspirado para o fim do seu senhor, nem sequer o tinha traído com o couteiro. Tinha os dois pés bem firmes no chão no modo como lidar com os criados ocasionais, e respeitá-los como eles aprenderam a respeitá-la.

Ela pensou cuidadosamente antes de responder.

- Deviam ser cerca das seis horas da manhã. Não tenho bem a certeza se já passava muito dessa hora, mas havia já a promessa de luz. Fui com ele até ao portão. Lembro-me que já havia alguma cor, deviam ser quase seis e meia. Pois fui até ao canteiro da aljofareira, floriu tão tarde este ano, apanhei algumas flores e pu-las no seu chapéu.

Depois das seis, e mais perto da meia hora que do quarto -, pensou Cadfael em voz alta. - Então ele não pode ter chegado ao sítio onde foi embuscado e morto antes de um quarto da hora de Primeiras, e se calhar mais tarde.

- Tem de me desculpar, irmão, pois não conheço o lugar. Creio que ele saiu perto das seis e vinte minutos.

Um quarto de hora, mesmo numa velocidade demasiada para a luz que havia, para chegar ao sítio onde estava a armadilha. Quanto tempo para acabar de o matar? No mínimo, dez minutos. Não, o assassino não podia ter deixado o lugar antes do quarto para as sete, se calhar mais tarde.

Havia somente mais uma pergunta vital a fazer. Muitas outras, que o tinham confundido antes de a encontrar, já não eram necessárias. Como, por exemplo, a razão por que ela tinha abandonado todas as suas possessões, mesmo os seus anéis, deixado o seu ginete no estábulo, se tinha despido de todos os proveitos de uma carreira. Pressa e medo, tinha ele pensado a princípio, um lugar onde se esconder, fugindo a tudo quanto a ligasse a Huon de Domville. Agora, quando ele a encontrou com um hábito de noviça, pensou mesmo que ela se quisesse penitenciar, e que sentisse necessidade de desistir de tudo antes de se aventurar no claustro para passar o resto da sua vida expiando os seus pecados. Agora é que ele podia apreciar a ironia disso tudo. Avice de Thornbury de nada se arrependia. Tal como nunca tinha sentido medo, tinha ele a certeza também de que nunca se sentiu envergonhada. Tinha feito um negócio e tinha-o mantido, enquanto o seu senhor viveu. Agora pertencia a si própria novamente, podia dispor de si como lhe aprouvesse.

Tinha-se despido de todas as suas riquezas como um soldado que se retira do campo de batalha e depõe as suas armas, que não são de mais uso ou interesse, e voltasse as energias restantes para a agricultura. Que era o que ela se propunha a fazer agora. A sua quinta seria a economia eventual beneditina, e ela seguiria-a correctamente e não falharia. Ele sentiu mesmo uma simpatia leve pela mão-cheia de irmãs, em cujo pombal este falcão de ar inofensivo se tinha albergado. Dêem-lhe dois ou três anos e ela tornar-se-á superiora aqui. Dêem-lhe dez e ela será abadessa em Polesworth, e além disso, iria reiterar a estabilidade e boa reputação daquela casa, assim como as suas finanças. Depois da sua morte, poderia até ser considerada santa.

Por enquanto, apesar de por esta altura ele já estar convencido da sua sinceridade e confiança, ela tinha o direito de saber que, ao cumprir os seus deveres de cidadã, poderia ver a sua privacidade algo invadida.

- Tem de compreender - disse Cadfael escrupulosamente - que o xerife pode requerer a sua presença para testemunhar no julgamento, e que vidas inocentes podem depender da aceitação do que disser. Quererá repetir tudo isto num tribunal da lei, tal como me disse a mim?

- Durante toda a minha vida - disse Avice de Thornbury - tenho evitado um pecado, pelo menos. Não, nunca fui tentada por ele. Não minto, não finjo! Direi a verdade quando for necessário.

- Então, existe mais um assunto, que talvez possa resolver. Huon de Domville, como não deve saber, recusou toda a assistência quando partiu para se encontrar consigo, e ninguém na sua casa admite saber para onde ele ia. No entanto, quem quer que lhe montou a armadilha e o matou naquele atalho, ou o seguiu o suficiente para julgar que ele voltaria pelo mesmo caminho... ou, então, e mais provável, sabia muito bem para onde ele se dirigia. Quem quer que soubesse isso, sabia que estava lá no pavilhão de caça. Disse que usou sempre de grande discrição, mas alguém deve ter sabido.

- Obviamente que eu não podia viajar sem escolta - disse ela com grande pragmatismo. -Julgo que alguém entre os seus velhos criados tinha ideia de que eu nunca estaria muito longe, mas quanto a saber onde... Quem melhor do que me levou até ali, seguindo as ordens de Huon? Dois dias antes de Huon e os seus convidados chegarem a Sherewsbury, eu estava confiada a uma pessoa, e a uma só. Para quê mais? Tem sido sempre o último homem nos últimos três anos.

- Dê-lhe um nome - pediu o irmão Cadfael.

 

O xerife tinha limitado a busca da sua manhã aos bosques mais próximos da margem sul do ribeiro Meole, a sua linha espalhou-se como batedores para uma caçada, cada homem dentro do campo de visão do seu vizinho de cada lado, e todos avançando lenta e metodicamente juntos. Eles nada tinham apanhado apesar de todo o trabalho e tempo perdidos. Ninguém tentou fugir deles, ninguém que eles tenham visto se assemelhava a Joscelin Lucy. Quando se retiraram para repousarem e comerem, tinham estabelecido contacto com todas as patrulhas que vigiavam os limites da cidade. Os leprosos de Saint Giles tinham saído para curiosamente observarem as suas actividades, à distância combinada. Gilbert Prestcote não ficou satisfeito e tornou-se menos acessível. Outros ficaram mais satisfeitos.

- O rapaz de certeza que já está em casa há muito tempo - disse Guy esperançosamente para Simon quando desmontaram na casa do bispo para comerem um jantar apressado. - Embora preferisse ter a certeza absoluta. Seria capaz de gostar da caçada se tivesse a certeza de não o encontrar! Não custaria nada ver a cara de Picard ficar cada vez mais sombria, e um prazer se o seu cavalo pusesse uma pata numa cova de texugo e o atirasse ao chão. O xerife está a cumprir o seu trabalho, e dele não pode fugir, mas Picard não tem tal dever. Trabalho é uma coisa, veneno é outra.

- Ele acredita a sério que Joss matou o velho - disse Simon, encolhendo os ombros. - Não admira que esteja louco atrás dele. Todos os seus planos foram ao ar, e ele é um homem que quer a sua vingança a todo o custo. Acreditas que se virou contra mim? Abri a boca para defender Joss do roubo e do crime, e ele explodiu como um fogo incontrolável. Já não sou bem-vindo nem para ele nem para a sua mulher.

- Não me digas?! - Guy gaguejou e os olhos brilharam-lhe. - E sabes que vais ficar ao lado dele na linha de caça depois do jantar? Mantém os olhos abertos, meu rapaz, nunca lhe voltes as costas, ou ele pode ser tentado, se está zangado contigo. Eu não confiaria no feitio dele muito mais, e há bons esconderijos por entre os arbustos no lugar para onde vamos.

Guy não estava muito sério, meramente exuberante pelo alívio que encontrava em saber que o seu amigo e companheiro ainda estava livre. A sua atenção nesse instante estava concentrada na refeição, pois o ar de Outono estava cortante e produzia um apetite voraz num jovem e saudável rapaz.

- O olhar que ele me lançou quando me pôs fora do quarto de Iveta... - admitiu Simon com mau humor. - Talvez te dê razão! Manterei os olhos bem abertos e serei mais rápido no puxar da espada que ele. Podemos voltar pelo caminho que quisermos quando a luz do dia se for. Farei que fique bem longe dele para fugir da lâmina da sua espada. De qualquer maneira - disse ele, com um rápido sorriso de significado secretivo -, tenho de fazer uma coisa muito importante antes de Vésperas. Tenho de me certificar que ele não vai estar lá para desmanchar tudo. - Afastou-se da mesa, satisfeito. - Para onde vais desta vez?

- Com os homens do xerife, para mal dos meus pecados! - Guy fez uma careta. - Será possível que alguém tenha desconfiado de que não estou interessado nesta caçada? Bom, se fingir que não vejo e se eles não repararem que estou a descuidar-me, escapo facilmente. O xerife é um homem decente, mas está vexado e frustrado, com um barão assassinado entre mãos, e isto tudo está a despertar a atenção do rei Stephen. Não admira que ande tão furioso. - Desviou o banco em que se tinha sentado, e espreguiçou-se, respirando fundo. - Estás pronto? Vamos? Ficarei muito contente quando chegarmos a casa esta noite sem o termos apanhado.

Saíram juntos, para o vale, para lá de Saint Giles, onde a linha de batedores se estava a desenhar de novo, de modo a continuar em frente, na mesma velocidade através de campos e bosques mais espessos, em direcção ao sul.

De um monte no lado sul da estrada, olhando o vasto vale em baixo, duas altas e encobertas figuras observavam os caçadores a cumprirem o seu papel. Por cima dos prados, a linha esticada mostrava-se claramente, antes de se mover para a frente, metodicamente, e começar a pisar os bosques, cada homem mantendo-se no campo de visão do vizinho da direita, cada homem mantendo a distância combinada. O ar estava levemente húmido, mas o sol continuava a brilhar através da humidade, e à medida que os caçadores se movimentavam por entre as árvores, as suas roupas e arreios piscavam e faiscavam através das folhas como partículas de pó, cintilando e desaparecendo, reaparecendo para tornarem a desaparecerem. A medida que eles avançavam para sul, os observadores lá em cima voltavam-se lentamente para acompanharem com o olhar o desenvolvimento lá em baixo.

- Eles vão continuar assim até ao anoitecer - disse Lázaro. E aos poucos virou-se para ver os campos desertos de onde a caçada tinha começado. Tudo estava quieto e silencioso agora, o movimento, o murmúrio, o jogo de cores desaparecidos. Dois fios prateados faziam os únicos lampejos de luz nos escassos raios de sol, o mais próximo era a calha do moinho, que alimentava os campos, e era o moinho da abadia, o mais longe, o próprio ribeiro Meole, aqui com um leito pedregoso, e parecendo curiosamente pequeno em comparação com o seu largo curso junto ao jardins da abadia. Gansos chapinhavam num braço baixo do ribeiro. Para cima da correnteza, uma criança, que os vigiava, pescava num pequeno charco rodeado de calhaus.

- Foi bem sincronizado - disse Joscelin, e respirou fundo. - O xerife esvaziou o vale de todos os seus homens armados até, certamente, o entardecer. Aí eles voltarão para casa sem vontade de nada e sem energias. Não podia ser melhor.

- E com as suas montadas estafadas - disse Lázaro, secamente, e voltou o seu brilhante olhar para o companheiro. A ausência de uma cara definida tinha deixado de preocupar Joscelin. Os olhos e a voz eram suficientes para identificar o amigo.

- Sim - disse Joscelin -, também já tinha pensado nisso.

- E têm poucas montadas de reserva, já que ele chamou quase todos os homens que tem e requisitou quase todos os cavalos.

- Sim.

Bran apareceu, correndo como uma flecha pelo monte de relva abaixo, mergulhou confiantemente entre os dois e tomou uma mão de cada um. Não o perturbava absolutamente nada que uma das mãos tivesse dois dedos e meio a menos. Todos os dias, Bran engordava um pouco, os nódulos do seu pescoço tinham praticamente desaparecido, e o seu belo cabelo estava a crescer sobre as cicatrizes de velhas feridas, agora curadas.

- Eles já vão longe - disse ele com simplicidade. - Que fazemos agora?

- Nós? - disse Joscelin. - Pensei que estivesse na hora da tua aula com o irmão Mark. Hoje foi decretado feriado?

- O irmão Mark diz que tem trabalho para fazer. - Pela sua voz, Bran não parecia muito impressionado pela desculpa, pois para ele, o irmão Mark, nunca parava de trabalhar, a não ser quando dormia. A criança sentia-se até um pouco magoada por ter sido assim descartado, isto se não tivesse dois outros companheiros a quem recorrer. - Disseste que hoje farias o que eu quisesse - relembrou ele, asperamente.

- E assim farei - concordou Joscelin - até ao anoitecer. Então, também tenho trabalho para fazer. Vamos aproveitar o mais possível. Que queres fazer?

- Tu disseste - observou Bran - que podias esculpir um cavalinho de madeira para o Inverno, se tivesses uma faca.

- Incrédulo, eu posso, e talvez uma pequena oferta para a tua mãe, também, se conseguirmos a madeira certa. Mas quanto à faca, duvido que nos emprestem uma na cozinha, e como me atreveria eu a tirar uma das que o irmão Mark usa para aparar as suas penas? Mais que o valor da minha vida... - disse Joscelin ao de leve, e calou-se ao lembrar-se quão pouco a sua vida ia valer se os caçadores voltassem para trás demasiado cedo. Não interessava, estas poucas horas pertenciam a Bran.

- Eu tenho uma faca-disse a criança, orgulhosamente. - Uma faca afiada que a minha mãe usava para limpar o peixe, quando eu era pequeno. Vamos procurar um pedaço de madeira. - Os respigadores tinham voltado da floresta bem carregados, tinham bastante combustível e podiam dispor de um pequeno e suave pedaço para fazer um brinquedo. Bran puxou ambos pelas mãos, mas o velho leproso libertou a sua mutilada mão muito devagar, e ficou para trás. Os seus olhos correram os topos das árvores em baixo, mesmo onde o estremecer e ondear do barulho dos batedores se tinha transformado em silêncio.

- Só vi Sir Godfrid Picard uma vez - disse ele pensativamente. - Qual deles era ele, na linha que formaram à partida?

Joscelin olhou para trás, surpreendido.

- O quarto a contar do nosso lado. Magro e escuro, vestido de preto e vermelho, um boné vermelho-vivo com uma pluma...

- Ah, esse... - Lázaro manteve a sua vigília dos bosques em baixo, e não voltou a cabeça. - Sim, reparei na cabeça vermelha. Um alvo fácil de tornar a reparar.

Avançou umas poucas jardas para lá da estrada, e sentou-se na relva, com as costas contra uma árvore. Não olhou em volta quando Joscelin gritou para Bran lhe dar a mão, e eles deixaram-no com a sua solidão.

O irmão Mark tinha, na realidade, trabalho para fazer naquele dia, apesar de poder ser feito noutro dia qualquer, se, por exemplo, se tratasse das contas de que ele somava para o Fulke Reynald. Era meticuloso, e os livros nunca estavam atrasados. A verdadeira urgência estava em encontrar alguma coisa para fazer que desse a impressão de que ele estava terrivelmente ocupado, isto no pórtico da entrada, onde a luz era melhor e onde ele podia vigiar os movimentos do seu hóspede misterioso sem dar nas vistas. Sabia que o tal jovem, que não era leproso, se tinha ausentado desde Primeiras até ao pequeno-almoço, e tinha reaparecido, inocentemente, de mãos dadas com Bran um pouco mais tarde. Era óbvio que a criança tinha uma forte afeição por este novo conhecimento. A visão dos dois assim tão ligados, o rapaz a saltitar ao lado das grandes passadas que cuidadosa mas imperfeitamente imitavam o andar mutilado de Lázaro, o homem com a cabeça baixa a prestar atenção à criança, e a grande e meiga mão, tinham levado Mark a acreditar, ilógica mas compreensivelmente, que uma pessoa assim tão amável e generosa do seu tempo e interesse não podia ser nem um ladrão nem um assassino. Desde o princípio que tinha achado difícil acreditar no roubo, e durante muito tempo considerou este refúgio sob a sua alçada - pois agora podia identificá-lo facilmente -, como o refúgio de um homem que se tinha vingado através do crime de morte. Se ele tivesse realmente morto alguém, teria partido com o seu disfarce de leproso, tocando a sineta de aviso, e teria passado pelo cordão montado pelo xerife. Estaria livre há muito tempo. Não, ele tinha qualquer outro assunto importante que o prendia aqui, um assunto que podia significar um grande perigo para a sua própria vida, antes de estar concluído.

No entanto, a consciência de Mark estava pesada. Mais ninguém tinha reparado na sua verdadeira identidade, ninguém podia responder por ele ou escondê-lo e pagar por isso, se tal tivesse de acontecer. Por isso, Mark observava, tinha estado a observá-lo durante todo o dia desde o regresso do vadio madrugador. E até agora o rapaz tinha-se portado bem. Esteve com Bran toda a manhã, e perto do hospital, ajudando a empilhar a madeira e a acartar o resto da ceifa, jogando com a criança com um bocado de barro seco e uma pequena poça de água da chuva - barro bom e macio que seria tornado a usar vezes sem conta quando o jogo acabasse em risos e gargalhadas. Não, um jovem homem metido em maus lençóis que sabia adaptar-se tão bem às necessidades e vontades duma criança pobre, não podia ser mau, e o dever que Mark tinha de o vigiar, rapidamente se transformou num dever de protecção.

Ele tinha visto Joscelin e Lázaro atravessarem a estrada e procurarem um ponto para verem o vale, para verem a caçada da tarde começar, e tinha visto Joscelin regressar com um Bran palrador e alegre e exigente a seu lado. Agora, os dois estavam sentados junto ao muro do pátio da igreja, inocentemente absorvidos no esculpir de um pedaço de madeira, trazido do monte de combustível. Ele tinha apenas de andar uns poucos passos para os ver, a cabeça loura de Bran, com o novo cabelo a crescer, inclinado sobre as grandes e hábeis mãos que aparavam e davam forma com tal devoção laboriosa. De vez em quando, ouvia um riso alegre. Algo estava a aparecer no pedaço de madeira que tanto o divertia. O irmão Mark deu graças a Deus pelo que quer que fosse que causava tanto prazer ao pobre e desprezado miúdo, e sentiu que o seu coração se entregava à causa de quem quer que fosse que trazia tais bênçãos.

Também ele era humano para sentir curiosidade sobre as maravilhas que estavam a ser produzidas ali, junto ao muro, e depois de mais ou menos uma hora, não resistiu mais a tão mortal fraqueza e foi ver. Bran acolheu-o com um grito de alegria e acenou-lhe com o cavalo esculpido, uma estatueta rude, sem pormenores, mas um cavalo, sem margem para dúvidas, com cerca de um palmo e meio. A cabeça velada e tapada do escultor estava debruçada sobre outro trabalho, cinzelado noutro pedaço de madeira, as feições inconfundíveis de uma criança. Olhos azuis e brilhantes, de vez em quando, olhavam para cima para estudarem Bran, e voltavam de novo ao pedaço de madeira que tinha na mão Em duas mãos, sem cicatrizes, suaves, bronzeadas e novas. Ele esquecera-se de ser cuidadoso.

O irmão Mark voltou ao seu lugar com uma dedicação confirmada e para a qual não tinha explicação lógica. A pequena cabeça, já viva antes de ter qualquer forma a. não ser a cara, tinha-o atraído para lá da salvação.

A tarde passou e a luz foi desaparecendo até à altura em que o trabalho artístico já não era possível ser feito. Mark já não conseguia ver os seus números, que de qualquer modo já estavam feitos, e tinha a certeza que Joscelin Lucy - ele tinha nome, porque não reconhecê-lo? - não podia continuar a esculpir, e devia ter abandonado ou terminado o pequeno retrato de Bran. Logo depois de as luzes se alumiarem lá dentro, o rapaz entrou de roldão, mostrando-o ao seu tutor com pequenos e deliciados gritos de alegria.

- Veja! Veja, irmão Mark! Sou eu! Fez o meu amigo.

E era ele, inquestionavelmente rude, com uma falha aqui e ali, causadas por defeito da madeira ou por uma faca inadequada, mas vivo, atrevido e contente. Mas o amigo que tinha feito tal escultura não o tinha acompanhado até ali dentro.

- Corre - disse o irmão Mark -, corre e mostra-o à tua mãe. Ela vai ficar muito contente, dá-lho, ela está hoje muito em baixo, depressa! Vai gostar muito dele. Vai e vê! - E Bran acenou, sorrindo radiante, e foi-se. Mesmo o seu andar estava a tornar-se mais firme e rápido, agora que estava mais gordinho e comia regularmente.

Assim que o rapaz saiu, o irmão Mark levantou-se e deixou a secretária. Lá fora, a luz estava a diminuir, mas ainda era de dia. Faltava quase uma hora para Vésperas; ninguém sentado perto do muro do cemitério. Descendo o pequeno monte relvado junto à estrada, sem pressa, como alguém que passeia, a figura alta e direita de Joscelin Lucy movia-se. Parou na beira da estrada para verificar se estava tudo vazio, atravessou e desceu para o sítio onde o velho Lázaro ainda estava sentado só e com um ar ausente.

O irmão Mark renunciou à sua secretária e seguiu-o a uma distância discreta.

Perto da árvore de Lázaro fez-se silêncio. Dois homens mexeram-se na sombra, palavras foram trocadas, mas poucas; era óbvio que aqueles dois entendiam-se muito bem. Da escuridão, onde uma figura encapuçada tinha desaparecido, outra figura emergiu, contornada pela luminosidade pálida do céu, alta, ágil, nova, sem véus ou capotes, vestida de uma maneira discreta e escura que se misturava com as sombras. Encostou-se novamente à árvore. Mark pensou que ele se tinha abaixado para agarrar uma mão, já que nenhuma cara se lhe ofereceu. O beijo entre parentes de sangue foi certamente dado.

A veste de leproso permaneceu entre as sombras. Evidentemente que ele não ia levar consigo a reputação de Saint Gile para qualquer que fosse o perigo que ia enfrentar. Joscelin Lucy, dono de nada no mundo a não ser do que era e do que vestia, desceu o outeiro com longas e leves passadas em direcção ao vale. Faltava ainda meia hora para Vésperas, e estava ainda perigosamente claro.

O irmão Mark, determinado a cumprir o seu dever, fez um círculo de roda da árvore protectora do velho leproso e seguiu-o. Desceram o outeiro, deram um salto por cima da calha do moinho, um salto leve e fácil para Joscelin, um trapalhão e deselegante para Mark, e dirigiram-se para o ribeiro. Raios de luz saltavam do seu pedregoso leito. Mark molhou as sua sandálias, confuso devido à pouca luz, mas chegou à outra margem sem mais estragos, e seguiu para os vastos prados ao longo do ribeiro com a alta e jovem figura ainda dentro do seu campo de visão.

A meio do caminho, em direcção aos jardins da abadia, Joscelin saiu de perto do ribeiro e meteu-se por entre os bosques que ladeavam os prados. Fielmente, o irmão Mark seguiu-o, escorregando de árvore para árvore, os seus olhos acostumando-se à pouca luz, luz que desaparecia mas que parecia ficar, constante e límpida, livre ainda do nevoeiro da noite. Olhando para a sua direita, Mark podia ver claramente os contornos do mosteiro contra a última luz rosada do pôr do Sol, os tectos, as torres e as muralhas, assomando por cima do ribeiro, o levantar sereno dos campos de ervilhas, e os muros e vedações dos jardins ao fundo.

Chegou o lusco-fusco; mesmo no campo aberto, as cores fizeram o seu espectáculo final antes da escuridão as transformar em sombras cinzentas. Entre as árvores só havia sombras, mas Mark, cautelosamente, passando de arbusto para arbusto, ainda conseguia discernir a única sombra que se movia. A sua audição captou também os sons do movimento que se desenrolava à sua frente, entre as árvores, um mexer irrequieto e escorregadio, e de repente um relincho ansioso, rapidamente sufocado, pensou ele, com uma carícia. Uma voz sussurrou, quase tão baixo como o tremer da folhagem, e a mesma mão bateu de leve num sólido e musculoso ombro. Havia alegria e esperança nos sons, tão obviamente como se tivesse sido dito em palavras.

Do seu esconderijo entre as árvores, a algumas jardas distantes, o irmão Mark viu indistintamente a sombra que era o focinho e o pescoço de um cavalo, prateado, uma cor inconveniente para tal actividade nocturna. Alguém tinha fé no fugitivo e tinha-lhe trazido a sua montada. Que iria acontecer a seguir?

O que aconteceu a seguir foi o som de uma pequena campainha a tocar para Vésperas, som que chegou ao outro lado do ribeiro.

Por esta mesma altura, o irmão Cadfael também foi parado de repente pela aparição de um cavalo cinzento e parou a sua mula para evitar assustá-lo, enquanto considerava as implicações.

Não se tinha apressado a sair do Ford de Godric, sentindo que era sua incumbência explicar à superiora a razão da sua viagem por aqueles lados, e tinha achado que a irmã que ali governava era simpática e hospitaleira. Recebiam poucas visitas, e Cadfael era recomendado pelo seu hábito. Ela não o queria deixar ir embora sem ouvir toda a história do casamento frustrado e dos acontecimentos que se tinham seguido. Nem estava Cadfael disposto a recusar um copo de vinho quando lho ofereciam. Por isso, saiu mais tarde que esperava.

Avice de Thornbury estava ainda a trabalhar no jardim quando ele montou a mula e partiu, pisando o solo firmemente em volta das suas plantas, com tanto vigor e contentamento como antes. Com a mesma energia bem dirigida, ela subiria as escadas da hierarquia, tão honesta e justa quão ambiciosa, mas impiedosa com irmãs mais fracas que se curvassem defronte dela para ganharem a sua compaixão. Acenou alegremente na direcção de Cadfael, e a covinha na sua face tornou a aparecer e a desaparecer. Ele meditou na beleza dela já passada e perguntou-se se não teria de suprimir um tal ardil que podia ser desconcertante para os bispos, ou se, ao contrário, não se tornaria numa arma útil ao seu arsenal. A verdade era que ele não podia senão respeitá-la. Mais ainda, ninguém podia refutar a sua honestidade.

Regressou num passo regular mas sem pressa, deixando a mula escolher o seu próprio ritmo. E perto da hora de Vésperas estava a marchar para dentro da crescente escuridão que se fazia ao longo do verde atalho, não muito longe do sítio onde Huon de Domville tinha morrido. Reconheceu o carvalho quando passou, e foi alguns minutos depois, com os prados já em frente, que ele se apercebeu de movimentos barulhentos à sua direita. Manteve o ritmo da sua montada, mas à distância. A sua precaução natural fez que ele parasse a mula e ficasse silencioso, espetando as orelhas, e os sons continuaram, sem sequer tentarem diminuir. Cadfael continuou o seu caminho mais descansado, mas ainda alerta. Aqui e ali, onde os arbustos rareavam, ele vislumbrava o contorno cinzento do animal que o acompanhava. Um cavalo, elegante e feito para a velocidade, pálido como um fantasma a deslizar por entre as árvores. No Sagrado Testamento, pensou ele, era a Morte quem montava um cavalo pálido. A Morte, no entanto, parecia ter desmontado em qualquer lugar. Ninguém montava este cinzento, a sua rica sela estava vazia, a sua rédea solta no pescoço.

Cadfael desmontou por sua vez, e deixou a sua mula de parte e livre de se aproximar da aparição, mas o cinzento, apesar de ter procurado a sua companhia, assustou-se de se ver tão perto deles, e fugiu espantado para dentro dos bosques mais densos. Cadfael seguiu-o pacientemente, mas todas as vezes que ele se aproximava do cavalo, este fugia, conduzindo-o, assim, ainda mais, pelos bosques adentro. Era evidente que os caçadores tinham passado por estes caminhos à tarde, e por aqui devem ter voltado muito recentemente, pois à medida que a luz desaparecia, cada homem fazia o caminho de regresso. Um deles, ou tinha sido atirado, falhado em recuperar o seu cavalo assustado, e acabando a viagem a pé, ou então...

Subitamente, o cavalo cinzento apareceu à sua frente, por inteiro e cheio de elegância, banhado pela luz de uma pequena clareira e pelas estrelas, baixou a sua cabeça por um instante para mordiscar a turfa, e quando Cadfael se aproximou, agitou os cascos e a crina uma vez mais, e fugiu para dentro das árvores no outro lado. Desta vez Cadfael não o seguiu.

Na pequena arena de relva, um homem estava deitado de costas, a barba negra e encaracolada a apontar para o céu, o longo cabelo preto afastado da sua cabeça, os braços abertos, dobrados, e em forma de garras, um deitado na relva, outro no ar. Um boné de brocado estava caído na relva acima da sua cabeça, visível apenas por causa da sua pluma branca. Ao lado, a algumas jardas da sua mão direita, algo comprido e fino apanhou um pouco de luz e brilhou metalicamente. O irmão Cadfael tacteou cuidadosamente e encontrou um cabo e uma fina lâmina, do comprimento da mão de um homem. Percorreu um dedo por ela, e não lhe encontrando vestígios de sangue, deixou-a onde estava. Esperava vê-la com uma melhor luz. Havia pouco que ele pudesse fazer agora no escuro, para além de sentir o coração e a corrente sanguínea sem os encontrar. De joelhos, junto ao homem morto, olhando de perto e evitando a sua própria sombra, ele concentrou-se na cara, e mesmo no escuro, percebeu que estava congestionada e com a boca aberta, os olhos esbugalhados, a língua esticada e mordida.

Tal como Huon de Domville, Godfrid Picard tinha sido interpelado no caminho para casa e não tinha sobrevivido ao encontro.

O irmão Cadfael deixou tudo como tinha encontrado, abandonou o cinzento meio árabe aos seus devaneios, e continuou para a abadia no passo mais rápido a que a espantada mula podia ser convencida a andar.

 

Iveta teve todo o dia para sossegar e aprender a disfarçar. A necessidade é uma grande professora, e era necessário que pela tarde daquele dia ela fosse tão desprezada, que ninguém pensasse valer a pena vigiar todos os seus movimentos, desde que não passasse do portão.

De qualquer maneira, para onde podia ela ir? O seu amor estava a ser alvo de uma caçada de morte, o seu único amigo tinha sido expulso, e mesmo o monge, que tinha sido tão gentil com ela, não era visto dentro da abadia desde manhã cedo. Para onde podia ela ir, a quem podia apelar? Ela estava irremediavelmente só.

Tinha fingido durante todo o dia, o mais convincentemente que o seu rebelde coração permitia, só de pensar no fim do dia. À tarde, queixou-se de uma dor de cabeça, e pensou que o ar lhe faria bem, se pudesse andar um pouco no jardim. Madlen tinha de trabalhar num vestido de Agnes, em que o bordado de prata se estava a descoser, e precisava de mãos experimentadas. Foi então autorizada a ir sozinha. Quando deu a permissão, Agnes fez uma careta de desdém. Uma criatura tão pacata, que mal podia advir dela?

Iveta dirigiu-se para o jardim com um andar vagaroso e modos lânguidos, e sentou-se mesmo um bocadinho no primeiro banco de pedra no jardim das flores, no caso de alguém estar a espiá-la; mas mal teve a certeza que ninguém a vigiava, escapou depressa através da vedação entrelaçada, chegando assim ao jardim do ervanário. A porta da oficina estava toda aberta, e alguém estava a andar de um lado para o outro lá dentro. Iveta começou a acreditar que conseguiria. Claro que o irmão Cadfael tem de ter um ajudante. Remédios podem ser urgentemente precisados na sua ausência. Alguém tem de saber onde se encontram as coisas, e como as usar, mesmo que não tivesse a experiência e a habilidade do irmão Cadfael.

O irmão Oswin estava no meio de apanhar os cacos de dois dos pires de barro que usavam para escolher sementes, quando se assustou, cheio de sentido de culpa, com o barulho de passos na entrada. Estas miudezas eram as primeiras coisas que ele partia em três dias, e como havia muitas, e os pratos eram fáceis de recolocar, ele esperava ver-se livre dos fragmentos sem ser visto, e omitir o descuido. Voltou-se na defensiva, e ficou parado pela inesperada visão. A sua cara rosada e honesta assumiu uma expressão de espanto, olhos redondos e boca aberta. Era difícil de decidir quem tinha corado mais, se Oswin se a moça.

- Peço perdão de interferir - disse Iveta hesitante. - Eu queria perguntar... Há dois dias, o irmão Cadfael deu-me uma poção para dormir, quando eu estava meia adoentada. Disse-me que era feita de papoilas, de dedaleiras. Conhece?

Oswin engoliu em seco, acenou vigorosamente com a cabeça, e conseguiu, por fim, falar:

- É esta poção, aqui neste frasco. O irmão Cadfael não está aqui hoje, mas ele gostaria... Posso ajudá-la? Ele, com certeza, gostaria que a senhora estivesse à vontade.

- Então posso ter outra dose como a primeira? Pois penso que vou precisar dela hoje à noite. - Não era mentira, mas era um truque propositado, e Iveta corou por isso, quando este jovem de cabelo louro e ar inocente como um pintainho estava a oferecer os seus préstimos tão confiadamente. - Posso levar uma dose dupla? Para duas noites? Lembro-me de quanto ele me pediu para tomar de cada vez.

O irmão Oswin seria capaz de lhe dar tudo quanto estava na oficina, pois estava bastante atordoado. A sua mão tremeu um pouco quando encheu uma garrafinha e a fechou. Quando ela estendeu a sua mão, igualmente com timidez, para pegar na garrafa, ele lembrou-se do seu dever e baixou os olhos perante ela, bastante tarde já para a paz da sua consciência.

Tinha acabado tudo muito depressa. Ela murmurou um agradecimento, olhando nervosamente por cima do ombro, como se pensasse que alguém a estava a vigiar, e escondeu a garrafinha na sua manga, de um jeito bastante mais cuidado que o de Oswin. As mãos e pés pareciam ter regressado ao rapaz desastrado de alguns anos atrás, na sua juventude marcada por bexigas, mas, apesar disso tudo, o olhar que ela lhe lançou à despedida, fê-lo sentir-se alto, confiante e valente. Ficou pensativo na entrada, olhando para ela à medida que ela esvoaçava pela ponte e a meditar se não teria sido precipitado pensar que tinha vocação religiosa. Não era demasiado tarde para mudar de ideias, ainda não tinha tomado os votos finais. Desta vez, não baixou os olhos até ela desaparecer de vista. E mesmo assim, ficou ali por alguns minutos, ainda a pensar. Havia desvantagens em qualquer rumo que tomasse, supôs ele tristemente. Nem dentro, nem fora do claustro podia um homem ter tudo.

Iveta voltou ao seu banco de pedra, abrigado da brisa, e estava lá sentada com as mãos cruzadas e uma cara apática, quando Madlen saiu para a chamar. Iveta levantou-se submissamente e voltou com ela para a ala dos hóspedes, bordando forçadamente o pedaço de pano que era o seu disfarce há semanas, apesar de a agulha não ser tão laboriosa que ela precisasse de desmanchar à noite o que tinha feito de dia, como uma tal Penélope, de quem tinha ouvido falar pela boca de um jogral em casa de seu pai, há muito, muito tempo.

Esperou até serem quase horas para Vésperas, e que a luz lá fora começasse a desaparecer. Agnes tinha posto o vestido que Madlen arranjara, e esta estava agora a pentear-lhe o cabelo para a tarde. Enquanto Sir Godfrid caçava com selvagem determinação um assassino fugitivo, era dever da sua mulher manter a aparência da devoção ritual, tomar atenção a todos os serviços religiosos, e aguentar a boa opinião do abade, do prior e dos irmãos.

- Já é tempo de te despachares, rapariga - disse ela, lançando um olhar à sua sobrinha, por sobre um ombro vestido de brocado.

Iveta deixou as mãos pousadas no regaço, indiferente, apesar de manter o pulso sempre firme em cima da garrafinha escondida na sua manga.

- Creio que não vou hoje. A minha cabeça está tão pesada, e não dormi bem. Se me der licença, senhora, jantarei agora com Madlen e irei cedo para a cama. - Era claro que se ela não fosse à capela, Madlen inevitavelmente ficaria para tomar conta dela, mas já tinha o assunto resolvido.

Agnes encolheu os ombros, o seu fino e duro perfil desdenhoso.

- Andas muito hipocondríaca ultimamente. Bom, fica se quiseres. Madlen far-te-á um leite quente.

Estava feito. A senhora saiu sem olhar para trás. A criada preparou uma pequena mesa junto da cama de Iveta, e trouxe pão, carne, leite com mel e vinho, espesso, doce e quente, ideal para afogar a doçura da poção do irmão Cadfael. Ela entrou e saiu duas ou três vezes antes de se sentar com a sua incumbência, o que lhe deu tempo suficiente para retirar uma parte do inocente vinho e substituí-lo por todo o conteúdo da garrafinha do irmão Oswin. Tempo para misturar e sossegar o coração. Iveta fingiu comer, e recusou mais bebida. Ficou satisfeita quando viu que Madlen tinha acabado de esvaziar a caneca com evidente prazer. Nem sequer tinha comido muito, o que era bom, para a poção fazer efeito.

Madlen levou os pratos para a cozinha dos convidados e não voltou. Iveta esperou quase dez minutos, cheia de uma ansiedade febril, e então foi investigar, e encontrou a criada confortavelmente sentada num banco, num canto da cozinha, ressonando profundamente.

Iveta não esperou para mudar de sapatos ou pôr uma capa, mas correu com os seus leves sapatos de cabedal, tal como estava, lá para fora, através do grande pátio, como se fosse uma lebre perseguida, às cegas, e até ao jardim, pela alameda escura e verde. A veia prateada da calha brilhou quando ela passou. Tacteou o caminho ao longo do corrimão da ponte. Por cima dela, o céu estava estrelado, ainda um pouco enevoado, mas palidamente luminoso para lá do nevoeiro. O ar estava frio, fresco, subindo à cabeça como o vinho. Na igreja ainda estavam a cantar, devagar, graças a Deus! Graças a Deus e graças a Simon! O único amigo leal...

Debaixo dos pesados beirais da oficina, Joscelin esperava, encostado à parede, na sombra escura. Ele estendeu os dois braços para ela e apanhou-a, e ela enrolou os seus delicados braços em volta do pescoço dele cheia de paixão. Abraçaram-se em silêncio durante um longo momento, quase sem respirarem, apertando-se com desespero. Absoluto silêncio e quietude como se a calha, e o ribeiro, e o rio tivessem parado, a brisa cessado de respirar com eles, as próprias plantas parado de crescer.

Então a urgência voltou e engoliu tudo, mesmo as primeiras e hesitantes juras de amor.

- Oh, Joscelin... és mesmo tu...

- Minha querida, minha querida... Cala-te, devagar! Vem, vem depressa! Por aqui... agarra a minha mão!

Ela agarrou-se a ele obedientemente e seguiu-o cegamente. Não pelo mesmo caminho que tinha tomado. Aqui, eles estavam por cima da calha, só faltava atravessar o ribeiro. Passaram do jardim fechado para a franja dos campos de ervilhas, recentemente arados, e que iam dar ao Meole. Ele parou debaixo da sebe por um momento para observar a escuridão e escutar algum som traiçoeiro, mas tudo estava quieto. Perto do seu ouvido, ela murmurou:

- Como atravessaste? Que vais fazer em relação a mim?

- Espera! Briar está lá em baixo. Simon não te disse?

- Mas o xerife fechou todos os caminhos - sussurrou ela, tremendo.

-Na floresta... no escuro? Havemos de passar! - Ele abraçou-a com mais força e começou a descer o campo, mantendo-se colado às sebes que lhe ofereciam protecção.

O silêncio foi abruptamente rasgado por um alto e indignado relincho, que o fez parar a meio de uma passada. Lá em baixo, perto da água, os arbustos estremeceram terrivelmente, cascos bateram no chão, uma voz de homem berrou. Rebentaram gritos confusos, e Briar saiu de roldão para o campo aberto, arrastando consigo um homem. Seguiram-se outras sombras, quatro pelo menos, que pareciam dançar para evitarem serem pisadas, à medida que procuravam acalmar e subjugar o assustado cavalo.

Homens armados, homens do xerife, puseram-se na margem entre eles e a liberdade. Escapar para aquele lado era impossível. Briar estava perdido. Sem uma palavra, Joscelin voltou para trás, arrastando Iveta consigo, e começou a repisar os seus próprios passos, mantendo-se sempre perto dos arbustos.

- A igreja - sussurrou ele, quando procurava, aterrorizado, uma solução -, a porta da paróquia... - Mesmo se eles ainda estivessem em Vésperas, toda a gente estaria no coro, e a grande nave da igreja por iluminar. Talvez conseguissem escapulir sem serem vistos, desde o claustro até à porta oeste que levava para fora do recinto, e que nunca estava fechada a não ser em tempos de grande perigo e desordem. Mas mesmo assim, ele sabia que era uma esperança muito fraca. Mas se tivesse de ser, podiam pedir abrigo e refúgio lá.

Um movimento rápido traiu-os. Perto da água, onde Briar estava a relinchar e muito nervoso, uma voz berrou:

- Ali vai ele, de volta para o jardim! Apanhámo-lo numa armadilha! Venham! - E alguém riu, e dois ou três homens começaram a subir o outeiro, sem grandes pressas. Agora sentiam-se bem seguros do seu prémio.

Joscelin e Iveta correram, mão na mão, de volta para o jardim do ervanário, através da calha, ao longo da alameda entre as negras sebes, e foram parar, perigosamente, no pátio aberto. Não havia outra saída. A escuridão pode esconder identidades, mas não podia esconder a pressa com que corriam. Nunca chegaram ao claustro. Um homem armado tapou-lhes o caminho. Voltaram-se para a portaria, onde as tochas já estavam a arder nas suas arandelas na parede, e mais dois soldados impediam a saída pelo portão. Do jardim, emergiram os seus perseguidores, contentes e sem pressa. O primeiro deles avançou até à luz bruxuleante e mostrou uma cara complacente, a mesma cara daquele sujeito bem informado, que tinha sugerido a busca à casa do bispo, e que tinha sido elogiado por isso. Estava novamente com sorte; o xerife e quase todos estavam fora, batendo os bosques, e os que tinham ficado eram os que corriam agora atrás da sua presa!

Joscelin empurrou Iveta até ao canto da parede da ala dos convidados, onde os degraus levavam a um vão, e pô-la atrás de si. Apesar de não estar armado, eles levaram algum tempo e foram cautelosos em formar um círculo em volta dele. Por cima do seu ombro, sem tirar os olhos dos seus inimigos, ele disse pleno de calma:

- Entra, amor, e deixa-me. Ninguém se atreverá a tocar-te. Instintivamente, ela soprou no seu ouvido:

- Não! Não te deixarei! - E compreendeu rapidamente que o estorvava neste passo desesperado, preparando-se para subir os degraus como ele tinha dito. Nem mais um passo! Só o suficiente para libertar os seus braços e sair do seu caminho, mas perto suficiente para sentir na carne o que quer que fosse que lhe acontecesse. Queria a sua parte no resultado, fosse este qual fosse. Mas mesmo o momento de hesitação tinha-o prejudicado, pois ele tinha voltado a cabeça para ordenar-lhe furiosamente:

- Vai, pelo amor de Deus... - A distracção tinha dado oportunidade aos seus inimigos, que estavam agora em cima dele como cães de caça à solta.

No entanto, a vitória não foi fácil, apesar de estar desarmado. Até ali tudo tinha acontecido debaixo de um silêncio surpreendente, mas, subitamente, gerou-se um barulho caótico, o sargento incitando os seus homens, porteiros, noviços, irmãos leigos, convidados, todos vieram para descobrirem o que estava acontecer, vozes pedindo, outras respondendo, um clamor que podia acordar os mortos. O primeiro homem a atirar-se a Joscelin tinha ou calculado mal o tempo ou a velocidade e agilidade da sua presa, e caiu com toda a força para cima dum punho que o levou de volta ao seu lugar e desequilibrou dois dos seus colegas. Mas, do outro lado, mais dois agarraram Joscelin pela roupa e apesar de ele se contorcer e dar cotoveladas no que o tinha agarrado pelo casaco, o outro conseguiu agarrar o capuz que lhe pendia do pescoço e apertá-lo com a intenção de estrangular o seu oponente e levá-lo à submissão. Joscelin atirou-se para a frente e, apesar de não conseguir libertar-se, rasgou a roupa e recuperou fôlego, e deu pontapés nas canelas do oficial, provocando um rugido de dor. O homem largou-o para esfregar as canelas, e Joscelin aproveitou esta oportunidade e atirou-se para a frente, não ao homem, mas ao cabo da sua adaga. Pegou nela rápida e suavemente, e fez um círculo de roda de si, a lâmina brilhando à luz das tochas.

- Venham agora! Não me apanharão facilmente!

- É sua a escolha! - gritou o sargento. - Aproximem-se dele agora, ele é que quer assim!

Espadas foram desembainhadas, meia dúzia de brilhos a piscarem no escuro. O barulho transformou-se num estranho silêncio. E do silêncio, do claustro, saiu toda a irmandade, espantada, no fim de Vésperas, por encontrar um distúrbio tão ofensivo na sua paz. Uma voz ultrajada, alta e autoritária, trovejou:

- Parem! Que ninguém se mexa!

Toda a gente parou, e só se atreveram a olhar para quem falava, com uma submissão e cuidado vagarosos. O abade Radulfus, aquele austero, seco e sóbrio homem, estava parado à beira do campo de batalha, onde a luz vermelha do archote o apanhava em cheio e o iluminava como um anjo excomungado, olhos ardentes numa cara fria como gelo. O prior Robert, ao pé dele, parecia apagado por comparação, com toda a sua dignidade e altivez normandas. Por detrás deles, os irmãos olhavam e mexiam-se irrequietos, e esperavam pelo golpe.

As pernas de Iveta não puderam aguentar mais o esforço, e sentou-se no degrau de cima, descansando a cabeça nos joelhos, aliviada pela sua fraqueza. O abade estava ali, não haveria mortes, não por enquanto, só a lei, e a matança que a lei permite. "Um passo de cada vez agora, não olhes para trás." Ela rezou fervorosamente por um milagre.

Quando conseguiu parar o tremor que lhe percorria o corpo, e levantou a cabeça para olhar novamente, o grande pátio parecia estar cheio de gente, e mais chegavam à medida que ela os procurava com o olhar. Gilbert Prestcote tinha acabado de entrar e desmontar. Os elementos da caçada, voltando agora à velocidade que lhes aprouvesse, chegavam aos pares, espantados com o que encontravam aqui em casa, depois de estarem todo o dia à procura de uma caça que não aparecia. Por causa da luz bruxuleante, o xerife demorou um pouco o olhar no desgrenhado e enfurecido rapaz, encostado à parede da casa de hóspedes, o suspeito assassino e ladrão que lhe tinha feito perder dois dias inteiros de perseguição através dos bosques.

Avançou cheio de pressa.

- Sr. Abade, que é isto? O nosso homem aqui dentro das suas paredes, protegido? Que está a acontecer?

- Isto é o que quero descobrir - disse Radulfus sombriamente. - Dentro das minhas paredes, na verdade, e dentro da minha jurisdição. Com licença, Sir Gilbert, é meu direito inquirir o que se está a passar. - Lançou um olhar brilhante ao anel de homens armados. - Guardem as espadas, todos vocês. Não quero armas aqui dentro, nem violência. - O mesmo olhar brilhou sobre Joscelin, encostado no seu canto, adaga na mão. - E tu... e tu, jovem, parece-me que tivemos uma conversa parecida, e que te avisei que esta casa também tem uma cela de castigo, e podes ir lá parar se tornares a tocar no punho de uma espada. Que tens a dizer em tua defesa?

Joscelin tinha recuperado o fôlego o suficiente para falar em sua defesa com inteligência. Abriu os braços para mostrar que não tinha mais nenhuma adaga ou espada com ele.

- Não trouxe uma única arma para dentro destas paredes, padre. Veja quantos me rodeiam! Pedi emprestado o que pude, para me manter vivo, não para matar outro homem. A minha vida e a minha liberdade! E por isto tudo, estes podem falar contra mim, eu nunca roubei ou matei, e assim me manterei, dentro ou fora da sua jurisdição, enquanto tiver fôlego para falar. - Estava a ficar sem ele agora, parcialmente pelo seu discurso, parcialmente pela força sufocante da sua ira. - Queria que me entregasse de mão beijada à corda, quando nada fiz de mal?

- Gostaria que baixasse o tom de voz comigo e com estas autoridades seculares - disse o abade rispidamente -, e se submetesse à lei. Dê-me a adaga, bem vê que só irá prejudicá-lo agora.

Joscelin fitou-o por um longo momento, com cara sombria e olhos hostis, e então, abruptamente, entregou a adaga ao seu dono, que pegou nela cuidadosamente, guardando-a de imediato e retirando-se do círculo dos soldados.

- Padre - disse Joscelin, e foi com ar desafiador, não como um apelo -, estou à sua mercê. Posso confiar mais na sua justiça que na lei, e irei para onde quiser, obedecerei àquilo que entender. Examine-me, tudo quanto fiz, antes de me entregar ao xerife, e juro-lhe que direi toda a verdade. - Ele continuou, rápida e firmemente: - Tudo... isto é, que diz respeito aos meus actos. - Pois havia aqueles que o tinham ajudado e sido bons para ele, e quanto a esses ele nada faria para os envolver na questão.

O abade olhou para Gilbert Prestcote, que foi ao encontro do seu olhar com um sorriso de quem considera. Não havia agora muita pressa, o rapaz estava apanhado, e não podia escapar. Nada havia a perder em conceder ao abade a sua autoridade aqui.

- Curvo-me perante os seus desejos no assunto, padre, mas mantenho a minha reinvindicação sobre este rapaz. Ele é acusado de roubo e assassínio, e é meu dever prendê-lo e apresentá-lo em tribunal. Assim farei, a não ser que ele consiga satisfazer-nos, aqui e agora, com a sua inocência. Mas deixemos que tudo se faça de um modo aberto e justo. Interrogue-o, se quiser. Seria uma ajuda para mim, também. Prefiro que se esclareça tudo, e se tiver dúvidas, descanse que tudo se arranjará.

Iveta já se tinha levantado, olhando ansiosamente cada cara que se mostrava à luz do archote. Cavaleiros ainda estavam a entrar um a um na portaria, e a olhar boquiabertos para a cena lá dentro. Ela reparou então em Simon, na retaguarda da multidão, acabado de chegar e admirado como o rosto das pessas, e Guy atrás dele, igualmente aparvalhado. Nem toda as pessoas aqui eram inimigos. Quando ela encontrou os olhos duros e negros de Agnes, ali perto do prior Robert, quando tinham emergido da igreja depois de Vésperas, não baixou o olhar. Desta vez, tinha-se arriscado muito e saído do seu antigo eu, não havia regresso possível. Não foi ela quem se mostrou pouco à vontade, não foi ela quem olhava para a portaria para ver todos que chegavam, e se mostrava pouco satisfeita. Agnes estava à espera que o seu marido chegasse e retomasse o seu papel de autoridade, que na sua ausência tinha deixado escapar por entre os dedos. Agnes estava com medo do que se podia saber aqui, enquanto o seu senhor não chegava para pôr ordem em tudo.

Iveta começou a descer os degraus que tinha subido às cegas para obedecer a Joscelin. Muito devagar e calmamente ela veio, degrau a degrau, para não quebrar a tensão.

- Deves estar consciente - disse Radulfus, olhando para Joscelin com uma cara ainda séria, mas não muito zangada - que estás a ser procurado pela lei desde a tua escapada pelo rio, depois da prisão. Disseste que responderás com a verdade sobre as tuas acções. Onde estiveste escondido este tempo todo?

Joscelin tinha prometido a verdade e tinha de a cumprir.

- Debaixo da capa e do véu de um leproso - disse ele frontal-mente -, no hospital, em Saint Giles.

Um murmúrio fez-se ouvir no pátio. Convidados e irmãos olharam com pavor para tal criatura tão desesperada para escolher tal refúgio. O abade não ofegou nem se mexeu, mas aceitou a resposta com gravidade, os seus olhos atentos à cara de Joscelin.

- Naquele santuário, penso, que não podias ter entrado sem ajuda. Quem foi que te ajudou?

- Eu disse que estava escondido lá - disse Joscelin firmemente. - Não disse que tinha precisado ou recebido qualquer ajuda. Respondo pelas minhas acções, não pelas dos outros.

- Sim - disse o abade pensativamente -, parece que houve outros. Por exemplo, duvido que tenhas pensado em te esconderes nas propriedades do teu senhor, como parece que o fizeste por um bocado, sem teres um amigo que te protegesse. Também, se bem me lembro, aquele cavalo cinzento que vi ser levado para fora do jardim agora, ali está ele a ser vigiado, tal como tu, é o que tu montavas quando nos encontrámos aqui uma vez. Recuperaste o cavalo sem ajuda? Duvido.

Iveta olhou por cima do ombro de Joscelin, para o sítio onde Simon estava, e viu que ele recuava um passo para dentro das sombras. Ele não tinha de ter medo. Joscelin fechou a boca firmemente, medindo o olhar do abade sem pestanejar, e, subitamente, apesar de ainda hesitante, sorriu:

- Pergunte-me sobre o que eu fiz.

- Parece - interrompeu o xerife cortantemente -, que precisamos aqui de alguém com autoridade em Saint Giles. É um assunto muito sério esconder um assassino procurado pela lei.

Da parte de trás da multidão e na direcção dos jardins, uma voz suplicante fez-se ouvir:

- Padre, peço a sua licença, gostaria de falar em nome de Saint Giles, pois sirvo lá.

Todas as cabeças se voltaram, todos os olhos abertos de espanto pela pequena e constrangida figura que avançava tão meigamente para se postar defronte de Radulfus. A cara do irmão Mark estava suja de lama, um molho de ervas do charco adornava a sua tonsura, o seu hábito pingava água das suas saias, e estava pegado no seu magro corpo, em pregas pesadas e molhadas. Ele já era ridículo suficiente, e, no entanto, a sua suja e ansiosa cara e os devotos olhos cinzentos tinham ainda uma certa dignidade, e fizeram-se ouvir

risinhos na multidão quando o avistaram. Radulfus não estava a sorrir.

- Irmão Mark! Que significa isto?

- Levei imenso tempo para encontrar um sítio no rio vadeável - disse Mark, pedindo desculpa. - Sinto muito chegar atrasado. Não tenho cavalo que me trouxesse e não sei nadar. Tive de voltar atrás por duas vezes, mas à terceira encontrei um lugar baixo. Se fosse de dia, não teria demorado tanto.

- Perdoamos o seu atraso - disse Radulfus gravemente, pois apesar de toda a compostura da sua cara, já não se tinha certeza se ele não estaria a sorrir. - Parece-me que tinha razões para sentir que ia ser preciso aqui, pois apresentou-se logo, talvez venha explicar como um homem procurado pela lei encontra refúgio no hospital. Tinha conhecimento da presença deste jovem lá?

- Sim, padre - disse Mark com simplicidade. - Tinha.

- E foi você quem o introduziu e protegeu?

- Não, padre, mas vim a aperceber-me, em Primeiras, daquele dia, que tínhamos mais um homem entre nós.

- E ficou calado? Permitiu a sua presença?

- Sim, padre, isso fiz. A princípio não sabia quem ele era, nem podia distingui-lo dos outros do nosso rebanho, pois usava um véu na cara. E quando suspeitei... Padre, eu não possuo a vida de ninguém para a entregar ao julgamento de ninguém, a não ser o de Deus. Por isso, calei-me. Se estava errado, julgue-me.

- E sabe - perguntou o abade impassivelmente -, quem foi que introduziu o jovem no hospital?

- Não, padre, nem sei se alguém o fez. Posso ter alguma ideia, mas saber não sei. Mas se soubesse - disse Mark com cândida humildade -, não diria o nome. Não me cabe a mim acusar ou trair quem quer que seja a não ser eu próprio.

- São os dois da mesma raça - disse o abade secamente. - Mas ainda tem de nos dizer, irmão Mark, como e porquê atravessou o Meole, a pé, se bem o compreendi, se, na realidade, compreendi algo do que disse!, atrás deste fugitivo, que foi sensato o suficiente para se providenciar com um cavalo para a aventura. Estava a segui-lo?

- Sim, padre. Pois sabia que teria de responder por abrigar um inocente como ele, e para isso, tenho uma explicação. Por isso, estive a vigiá-lo todo o dia. Ele mal saiu da minha vista. E quando despiu a sua capa, a deixou para trás no escuro, e se dirigiu para aqui, eu segui-o. Vi quando ele encontrou o seu cavalo escondido no bosque, perto do ribeiro, e vi quando ele o atravessou. Eu estava ainda dentro de água, quando ouvi o grito dos soldados. Pelo dia de hoje, posso falar por ele, e nada há que o culpe.

- E do dia em que ele veio ter consigo? - perguntou o xerife rudemente. - E de quando apareceu pela primeira vez entre os seus leprosos? A que horas?

O irmão Mark, sozinho na sua devoção, fixou o seu olhar no abade pedindo ajuda, e Radulfus indicou-lhe que ele, também, queria uma resposta.

- Foi há dois dias, em Primeiras, como já disse - disse Mark -, que eu o vi pela primeira vez. Mas por esta altura ele já tinha a roupa de leproso e um véu para lhe esconder a cara, e comportava-se de acordo com os outros. Julgo, assim, que ele estava escondido entre nós há mais ou menos quinze ou trinta minutos, para estar tão bem disfarçado.

- E tal como eu soube, disse o abade pensativamente, voltando-se para Prestcote -, os seus homens assustaram uma lebre naquela mesma manhã, e perderam-na nas vizinhanças de Saint Giles. A que horas o viram?

- Eles disseram-me - contou o xerife, meditando -, terem visto um fugitivo durante quase uma hora antes de Primeiras, e é certo que o perderam perto de Saint Giles.

Iveta desceu mais um degrau. Sentia-se como que suspensa, num sonho duplo que a enchia de terror por um lado, e de uma esperança louca por outro. Pois estas não eram vozes de inimigos. E ainda, abençoadamente, o seu tio não tinha regressado para desmanchar este equilíbrio com a sua animosidade, a sua maldade. Ela estava dois passos atrás de Joscelin, podia ter esticado a mão e tocado no seu louro cabelo, mas tinha medo de o distrair. Não lhe tocou. Manteve um olho no portão, esperando o regresso do seu maior inimigo. Por isso é que ela foi a primeira a reparar no regresso do irmão Cadfael. Somente ela e Agnes olhavam naquela direcção.

A pequena mula, que tinha tido um dia calmo, estava magoada por ter sido tão apressada no fim do mesmo dia, e manifestou o seu desagrado, parando dentro da portaria e recusando-se a andar mais. O irmão Cadfael, que tinha estado a exigir de si algum esforço até este momento, sentou-se para fitar com uma manifestação de muda surpresa a cena que se desenrolava no grande pátio. Ela viu o seu rápido olhar percorrer todas as caras, quase que podia sentir ele esticar as orelhas para apanhar as palavras que podia. Viu Joscelin de pé, rodeado e alerta no fim das escadas, viu o xerife e o abade olhando-se sombriamente, e a pequena e molhada figura do jovem irmão que, para Iveta, falava a língua dos anjos, o tipo de anjo que desceria dos céus pedindo desculpas e de quem nenhum pecador teria medo.

Depressa mas em silêncio, Cadfael desmontou, entregou a mula ao porteiro e avançou para a multidão, ainda sem se fazer notar. Encorajada assim, Iveta desceu mais um degrau.

- Então parece - disse Radulfus -, que estiveste no hospital, meu rapaz, um quarto de hora antes de Primeiras daquele dia, e talvez até meia hora.

- Eu tinha... adquirido o meu capote - concordou Joscelin, um pouco nervoso agora e menos seguro -, algum tempo antes de ir para a igreja.

- E foi-te dito como te devias comportar?

- Já fui a Primeiras outras vezes, conheço o serviço.

- Talvez, mas levaria alguns minutos de esclarecimento - persistiu Radulfus docemente -, a perceber toda a ordem do dia em Saint Giles.

- Posso observar os outros e fazer como eles - disse Joscelin abertamente -, tão depressa como outra pessoa qualquer.

- Concedamos, padre - disse Gilbert Prestcote, impaciente -, que ele estava lá um bocado antes da sétima hora da manhã. Isto eu aceito. Mas não temos como saber a hora da morte do meu senhor Domville.

O irmão Cadfael já tinha percebido as intenções de tudo aquilo. Percebendo que o seu caminho se encontrava barrado por espectadores tão atentos que se tornavam cegos e surdos a pedidos educados de passagem, usou os cotovelos valentemente e abriu um caminho até à frente. E antes que alguém pudesse falar e pôr a questão de lado, ele ergueu a sua voz e falou o mais alto possível:

- É verdade, meu senhor, mas existe uma maneira de saber a que horas ele foi visto vivo pela última vez.

Continuou a andar, o súbito grito abrindo-lhe caminho, e emergiu, dando de caras com o abade e o xerife, ambos os quais se tinham virado e franzido o sobrolho perante a interrupção.

- Irmão Cadfael! Tem qualquer coisa a dizer sobre o assunto?

- Tenho... - E interrompeu-se para olhar consternado a humilhante figura do irmão Mark. Sacudiu a cabeça em sinal de compaixão. - Mas, padre, não devia o irmão Mark mudar aquele hábito molhado e ingerir algo quente, antes de ficar doente?

Radulfus aceitou a censura com penitência elegante.

- Tem toda a razão, já devia ter tratado disso. Qualquer outro testemunho que ele tenha a dar pode esperar até os seus dentes pararem de tremer. Pronto, irmão, arranje roupas secas, vá até à cozinha e peça ao irmão Petrus para lhe fazer uma bebida quente. Depressa, corra!

- Só uma pergunta primeiro - disse Cadfael cheio de pressa - , antes que ele se vá. É verdade, irmão, que tem andado a seguir este rapaz? Teve-o debaixo de olho este tempo todo?

- Todo o dia, desde manhã - disse o irmão Mark. - Ele não tem estado mais que uns metros fora do meu campo de visão. Deixou o hospital há cerca de uma hora atrás, e segui-o até aqui. É isto importante? - Ele dirigia-se ao irmão Cadfael e qualquer que fosse a razão que ele tinha em mente, o aceno satisfeito de Cadfael confortou-o.

- Vai, corre, antes que fiques doente.

O irmão Mark fez uma reverência ao abade e afastou-se na direcção da cozinha, pingando e tremendo, grato suficiente por se terem lembrado dele. Se tinha ajudado o irmão Cadfael, sentia-se contente.

- E agora - disse Radulfus -, pode explicar o que queria dizer com aquilo de ter maneira de saber a hora em que o Sr. Domville foi visto pela última vez vivo e de saúde.

-Encontrei e falei com uma testemunha-disse Cadfael -, que testemunhará, quando o xerife quiser, que Huon de Domville passou a última noite da sua vida no seu pavilhão de caça e não saiu de lá até um terço da hora depois das seis, na manhã seguinte. Igualmente, nessa altura, ele estava de excelente saúde, e de regresso aos seus aposentos no Foregate. O caminho onde o encontrámos é o caminho que teria de tomar para sair daquele lugar. E a testemunha, atrevo-me a dizer, é de confiança.

- Se o que diz for confirmado - disse Prestcote, depois de um momento de silêncio -, é da máxima importância. Quem é essa testemunha? Diga o nome do homem?

- Não é um homem - disse Cadfael com simplicidade -, mas uma mulher. Huon de Domville passou a sua última noite com a amante de muitos anos, e o seu nome é Avice de Thornbury.

O choque passou entre as filas dos inocentes irmãos como um súbito vento endemoinhado sopra entre trigo no Verão, e um grande e tempestuoso suspiro fez-se ouvir, como se fossem hastes a serem sacudidas. Na véspera do seu casamento, ir ter com outra mulher!

E depois de jantar com o abade e tudo! Para aqueles que sempre tinham mantido o celibato por longos anos, a própria contemplação da noiva, jovem e pura, já era perturbante. Mas ter uma mulher regular e visitá-la na véspera do sagrado sacramento do matrimónio, apesar do celibato e da moralidade marital...!

O xerife pertencia a um mundo menos iludido. Não o escândalo, só o facto o interessava. O abade Radulfus também não tinha ficado muito desconcertado depois das tais palavras terem sido proferidas. Podia ter evitado as experiências da carne, mas não as tinha ignorado através da sua vida de inteligência. Mencionar Avice não o incomodou nada.

- Recorda-se, padre - continuou Cadfael, enquanto tinha a atenção de toda a gente -, que lhe mostrei as flores azuis que ele tinha no seu chapéu quando foi encontrado. A planta cresce no seu pavilhão de caça. Encontrei-a lá, e suporta e confirma a história da mulher. Ela própria pôs as flores no seu chapéu quando ele se foi embora. São quase duas milhas desde o pavilhão ao lugar onde ele foi apanhado e morto. Os seus próprios soldados, Sir Gilbert, testemunham que fizeram o jovem Lucy levantar voo do seu esconderijo aqui no Foregate mais de meia hora antes de Primeiras. Portanto, ele não podia ser o homem que colocou a armadilha para Huon de Domvil-le e o matou. O barão não podia estar a mais de meia milha do seu pavilhão, quando Joscelin Lucy estava a ser perseguido desde Foregate até ao hospital.

Iveta desceu o último degrau que a levava até ao lado de Joscelin e colocou a sua mão entre as dele. Ele apertou-a convulsivãmente, inconsciente que a estava a magoar, e respirou tão fundo que ela sentiu que ele tinha respirado um novo ar para a nova vida deles dois.

Agnes continuava a olhar para o portão, mas continuava também a não encontrar o que procurava. A sua cara estava fria e maldosa, mas não disse palavra. Iveta tinha esperado um olhar de incredulidade, lançando dúvidas sobre o irmão Cadfael e a sua testemunha, mesmo sobre as provas dos homens do xerife. As pessoas podem ser vagas e imprecisas acerca do tempo, não é difícil discutir por questão de diferença de uma meia hora. Mas Agnes manteve-se calada, contendo a sua raiva e desconforto.

O abade Radulfus trocou um longo e profundo olhar com o xerife, e voltou-se de novo para Joscelin.

- Prometeste-me a verdade. Perguntar-te-ei o que ainda não tinha perguntado. Tiveste alguma coisa a ver com a morte de Huon de Domville?

- Não - disse Joscelin sem hesitar.

- Permanece a acusação que ele mesmo te fez. Roubaste o colar?

- Não! - Ele não pôde evitar um tom de ironia na voz. Radulfus voltou-se para o xerife com um leve sorriso.

- Pela acusação de assassínio, o irmão Cadfael levar-vos-á a falar com essa mulher, e julgará por si próprio que confiança depositar nela. Quanto aos seus soldados, não há razão para duvidar da sua honestidade. Parece-me que este homem tem de ser considerado inocente.

- Se isto se confirmar - concordou Prestcote prontamente -, ele não pode ser o assassino. Eu próprio ouvirei o testemunho dessa mulher. - Voltou-se para Cadfael com uma pergunta: - Ela ainda está no pavilhão?

- Não - disse Cadfael, não sem algum gosto pelo murmúrio de excitação que sabia que a sua resposta ia provocar. - Presentemente, está na célula das irmãs beneditinas, no Ford de Godric, onde ingressou como noviça, e onde pretende continuar e tomar os seus votos completos.

Foi uma façanha capaz de fazer o abade Radulfus pestanejar; perturbar a comunidade dos irmãos já era um sucesso rotineiro por comparação.

- E considera-a uma testemunha de confiança? - perguntou o abade brandamente, recuperando o controlo de si próprio num instante, enquanto o nariz patrício do prior Robert ainda parecia azul e inchado do choque, e as filas atrás do seu ombro ainda tremiam.

- Absolutamente, padre. O xerife julgará por si. Estou convencido que, o que quer que ela seja, não mente nem usa disfarces.

Eles obteriam dela, sem rodeios, toda a história da sua vida, da qual ela não se envergonhava. E ela só podia impressioná-los favoravelmente. Não tinha medo. Prestcote era uma pessoa prática, reconheceria a sua qualidade.

- O xerife - disse Cadfael -, e o senhor, padre, podemos agora compreender, que aceitam, sujeito ainda ao questionário a fazer à Srª Avice e a aprovar o seu testemunho, que Joscelin Lucy é completamente inocente da morte criminosa de Huon de Domville?

Prestcote não hesitou.

- Parece-me certo. A acusação não pode manter-se.

- Então, acompanhem-me por favor!, só podem igualmente aceitar que ele esteve a ser constantemente vigiado o dia todo de hoje pelo irmão Mark, tal como ele nos disse, e nada fez para causar suspeita ou acusações.

O abade olhava-o com crescente atenção.

- Também temos de aceitar isso. Penso, irmão, que tem alguma razão especial para chamar a nossa atenção tão vivamente para tal facto. Algo deve ter acontecido!

- Sim, padre. Algo que eu devia ter dito logo, se não tivesse começado a falar nestes igualmente importantes assuntos mal aqui cheguei. Bom, nós tivemos hoje o dia todo alguém de bem a vigiá-lo e a evitar que algo de mal acontecesse. Pois tornou a acontecer violência uma vez mais, nos bosques para lá de Saint Giles. Não há uma hora, quando voltava para casa, aconteceu que encontrei um cavalo sem o seu cavaleiro, mas não o consegui apanhar e segui-o. Assim, cheguei a uma clareira onde está morto outro homem que, penso eu, foi estrangulado como o primeiro; posso mostrar-vos o local.

No silêncio horrificado que caiu, ele voltou-se devagar para Agnes, que estava parada com os olhos loucamente abertos, mas ainda feita de pedra.

- Minha senhora, dói-me trazer-lhe tais notícias, mas tenho a certeza, apesar da pouca luz, pelo cavalo que ele levava...

 

Fez-se um momento de silêncio absoluto, enquanto ela permanecia branca e rígida como se se tivesse transformado em gelo. Então, abruptamente, voltou ávida com um perfurante grito de raiva e dor, e rodopiando num turbilhão de saias, voltou as costas ao xerife, abade, sobrinha e todos.

Abriu caminho por entre os espantados irmãos que rapidamente se desviaram ante a sua fúria. Nem um olhar de raiva para Joscelin.

- Tu... tu! Onde estás, cobarde, assassino, vem e enfrenta-me! Tu, tu, Simon Aguilon, tu mataste o meu senhor!

As filas espalharam-se perante os seus folhos ardentes e o seu braço levantado.

- Avança, maldito assassino, enfrenta-me! Ouve-me!

Todo o Foregate, certamente, podia ouvi-la e estava a benzer-se num assomo de medo supersticioso, imaginando um demónio atrás de um prodigioso pecador. Quanto a Simon, ficou apavorado, demasiado surpreendido, parecia, para sequer recuar perante ela. Ele olhou-a boquiaberto, sem fala, à medida que ela parou na sua frente desafiadoramente, os seus olhos pretos enormes e brilhando vermelhos à luz dos archotes. Ao lado dele, Guy olhava ora para um ora para o outro, sem poder fazer nada, e recuou furtivamente um ou dois passos deste novo e mortífero campo de batalha.

- Tu mataste-o! Mais ninguém o podia ter feito. Tu foste ao seu lado para a caçada, perto dele na linha. Eu sei, ouvi os planos. Tu, FitzJohn, diz, conta-lhes! Em que sítio da linha cavalgou este homem?

- Ele foi perto de Sir Godfrid - admitiu Guy estonteadamente. - Mas...

- Perto dele, sim... e no caminho para casa, naqueles bosques espessos, foi fácil apanhá-lo de surpresa. Tarde e quieto vens tu, Si-mon Aguilon, e certificaste-te que ele jamais voltará!

O xerife e o abade aproximaram-se para testemunharem este encontro, espantados e preocupados como toda a gente, e nada fizeram para o interromper. Ela tinha perdido a razão. Foi o que Simon disse quando conseguiu falar, engolindo em seco e ainda sem fôlego.

- Pelo amor de Deus, que fiz eu para ser assim acusado? Eu estou totalmente inocente da sua morte, nada sabia disso... Vi Sir Godfrid pela última vez, três horas atrás, bem vivo, revistando os bosques como todos nós. A pobre senhora ficou louca com o desgosto, ataca o primeiro que pode...

- Acuso-te a ti - gritou ela -, e continuaria a fazê-lo se houvessem mil homens pelo meio. Pois tu és o homem! Tu sabes isso tão bem quanto eu. Fingir não te vai salvar agora!

Simon apelou para o xerife e o abade, abrindo as mãos enluvadas.

- Porquê, por que havia de matar um homem que era meu amigo? Com quem não tinha razão para brigar? Que motivo podia ter para tal feito? Vêem bem que ela ficou maluca!

- Ah, mas tiveste uma briga com ele - guinchou Agnes cheia de vingança -, como sabes bem. Porquê? Porquê? Atreves-te a perguntar-me porquê? Porque ele suspeitava, praticamente sabia, que tinhas matado o teu tio e senhor!

As acusações tornaram-se cada vez mais graves, e, no entanto, desta vez, Simon resfolegou, e, por um instante, ficou pálido e calado. Saiu do silêncio chocado com um grande grito, para se defender fortemente.

- Como pode ser isso? Toda a gente sabe que o meu tio me mandou para a cama, e partiu sozinho. Eu fui mesmo para a cama, dormi até tarde... eles vieram acordar-me quando viram que ele não tinha voltado...

Ela afastou este argumento com um gesto de desprezo da mão.

- Foste para a cama, sim, não duvido... e saíste outra vez, sorrateiramente, para preparares a armadilha. Era fácil entrar e sair sem ser visto quando o teu malvado trabalho estivesse feito. Existem mais entradas e saídas daquela casa que pela porta principal. E quem mais tinha o privilégio de entrar e sair como tu? Quem mais tinha as chaves necessárias? Quem ganhava com a morte do velho a não seres tu? E não só... tornavas-te o seu herdeiro, oh, não! Nega aqui aos presentes, se te atreves, que na tarde do dia em que Huon foi trazido morto, tu vieste ter com o meu senhor, antes de o teu tio ter arrefecido, para fazer um negócio connosco, que te faria casar com a minha sobrinha... Herdarias a noiva, a honra, e tudo. Nega-oeeuo provarei! A minha criada estava lá!

Simon olhou em volta do círculo de expressões espantadas, e protestou:

- Por que não haveria de pedir a mão de Iveta? A minha riqueza é igual à sua, não é um disparate. Eu estimo-a, honro-a. E Sir Godfrid não me rejeitou. Não me importava de esperar, de ser paciente. Ele concordou comigo...

Iveta agarrou a mão de Joscelin com mais força. A sua mente espantada voltou atrás, para aqueles dois encontros, quando Simon lhe tinha parecido ser o único amigo do mundo, quando ela tinha pedido a sua ajuda e Joscelin a sua lealdade. O primeiro encontro aprovado por uma sorridente e graciosa Agnes, complacentemente recebendo a fortuna de volta. O segundo... sim, tinha sido diferente na verdade, ele tinha dito que era banido da sua presença, e o acontecimento tinha merecido a sua queixa. Que teria acontecido entre os dois para mudar tudo?

- É verdade - gritou Agnes, brilhando de ódio -, pensando que eras um homem honesto que então parecias ser. Mas a garganta de Huon estava cortada e ferida, o monge aqui disse-o, e o meu senhor ouviu-o, e tu também... ferido pelo anel do assassino, o anel que ele usava na sua mão direita. E quando ouviste isto, quem te viu mais sem luvas? Dentro e fora da estação! Mas o meu marido estava presente quando fecharam Huon no caixão ontem, e então foste forçado, não foste, malvado?, a tirar as tuas luvas uma vez para pegares no aspersório. E foi a ele que tu depois o entregaste! Ele viu, oh, não o anel, não, este tu já tinhas tirado mal soubeste que o monge tinha falado, mas a branca tira onde ele estava, e a brancura quadrada debaixo da pedra. E então ele lembrou-se que tu costumavas usar um anel, um anel assim. E foi tolo suficiente para te dizer o que tinha visto, e o que julgava ter acontecido, quando o foste visitar. Ele cortou todas as relações com um homem que ele tinha razões para crer que era um assassino.

Sim, era a verdade. Então essa era a razão para a mudança! Mas não, pensou Iveta, transformada em mulher pela força das circunstâncias, não porque um assassino não fosse aceitável para ele, desde que nunca levantasse suspeitas acerca da sua pessoa. Não, mais porque enquanto a suspeita ainda era possível, ele não se arriscava a ficar contaminado. Dessem-lhe certezas nesse ponto, e ele pouco se importaria com o resto. E Joscelin era a presa da lei, e podia ainda ser apanhado e enforcado... E ela seria deixada a acreditar desesperada que tinha um só amigo no mundo, e que ele era Simon Aguilon! Ele tinha jurado que a razão por que era banido, era por ter declarado a sua fé em Joscelin! E ele teria podido - dessem-lhe o tempo para acalmar a dor -, ele poderia ter vencido! Ela encostou-se mais ao braço de Joscelin e tremeu.

- Eu pedi-lhe, eu roguei-lhe - lamentou-se Agnes -, para cortar todos os laços com tal pessoa. Todos sabem muito bem que ele falaria das suas suspeitas, mesmo sem ter provas. Tu certificaste-te que não o faria. Mas ainda não ajustaste contas comigo!

- Mulher, você está louca! - Simon levantou as suas mãos contra ela, a sua voz num fio. - Como podia eu ter montado uma armadilha ao meu tio, quando não sabia para onde ele ia, ou o que queria, muito menos por que caminho regressava? Não sabia que ele tinha uma amante dentro deste condado, e muito menos que iria passar uma noite com ela.

Cadfael tinha ficado calado durante este duelo. Resolveu agora falar.

- Existe uma testemunha que dirá, Simon Aguilon, que mente, que sabia, que sabia muito bem mesmo. Avice de Thornbury di-lo, e eu creio que haverá duas outras testemunhas para a corroborar, uma vez que saibam que ela não corre riscos e que não pede o seu silêncio. Que você, e mais ninguém, era a escolta de confiança que a conduzia a todo o lado que o seu senhor mandasse. Trouxe-a para este pavilhão de caça. O caminho entre os dois lados era bem conhecido, pois já o tinha feito. E Huon de Domville não admitiu mais que um homem para saber dos seus amores privados. Pois nestes últimos três anos, tem sido esse homem.

Agnes lançou um longo grito de alegria e tristeza juntas, que ondeou até ao fumo dos archotes. Ela levantou uma mão triunfante.

- Dispam-no! Verão! Ele tem o anel consigo agora, ele nunca andaria sem ele, para que outro o visse e compreendesse. Revistem-no, e encontrarão o anel. E por que haveria ele de o tirar, se nunca deixou marca num homem morto?

Os soldados tinham compreendido os sinais do xerife, e aproximaram-se em silêncio, um forte círculo de couro e aço de roda dos dois antagonistas. Simon tinha estado demasiado atento à ameaça à sua frente, para poder reparar na vigilância atrás. Deixou sair um grito de raiva e impaciência e deu uma volta nos calcanhares para se ir embora:

- Não preciso de ficar aqui a ouvir este veneno! - cuspiu ele.

Só então é que viu a sólida e silenciosa linha de soldados, encostados ombro a ombro, entre ele e o portão, e empacada como um fardo de algodão. Olhou em volta como um louco, incapaz de acreditar na sua pouca sorte.

O xerife aproximou-se e falou:

- Tirem-lhe as luvas!

Era uma triste coisa ver uma criatura humana tentar fugir, vê-lo lutar como um gato selvagem quando estava cercado, e rosnar desafiadoramente quando se viu apanhado. Em deferência ao abade, eles levaram-no para fora dos portões e para o Foregate, com o mínimo de violência possível, e lidaram com ele lá. Ele juntou as mãos para impedir que lhe removessem as luvas, e quando as suas mãos estavam nuas, o pálido círculo do dedo do meio da sua mão direita brilhou como neve em campo recentemente arado, a larga mancha da pedra bem visível. Lutou e barafustou quando o revistaram, afundou o queixo de tal maneira no pescoço que eles tiveram de forçar a sua cabeça para trás, de moda a poderem retirar o cordão do seu pescoço, de baixo da sua camisa, e pôr o anel à vista de todos.

Quando o tinham levado, quatro deles segurando-o com toda a força, para uma cela no castelo, caiu um silêncio de cansaço e medo em cima do grande pátio. Joscelin, de olhos esbugalhados, a tremer e desorientado, abraçou Iveta, e estremeceu de alívio, demasiado chocado para falar do demoníaco uso que tinha sido feito da sua pessoa. Agnes permaneceu rígida, esgazeada a olhar para o seu inimigo, e então, aliviada, pôs a cara entre as mãos e chorou, mas em solitária e proibida tristeza. Quem poderia pensar que ela tinha amado o seu pouco simpático marido?

A vertigem tinha acabado. Ela deixou cair as mãos ao longo do corpo e começou a andar devagar, como quem anda a dormir, através dos agitados espectadores, que se afastaram para lhe dar passagem. Olhou em volta para eles, de cima dos degraus da casa dos convidados, tendo passado pela mão estendida de Iveta, como se a rapariga não existisse, e depois entrou, desaparecendo da vista de todos.

- Mais tarde - disse o abade Radulfus, pesada mas calmamente -, ela falará à vontade. O seu testemunho é essencial. Quanto ao seu marido... bom, já está morto. Não precisa de ser questionado, pois não o poderá ser.

- Em nenhum dos meus tribunais, não- disse Gilbert Prestcote, secamente, e voltou-se para os seus homens. - Tu, sargento, antes de irmos buscar este homem morto, como foi que montaste uma guarda tão boa no ribeiro, enquanto nós andávamos nos bosques? Não chegou aos meus ouvidos que se ia fazer qualquer coisa para estes lados.

- Foi depois de terem partido todos, senhor - disse o sargento -, que Jehan aqui veio ter comigo com a ideia de que, já que o escudeiro estava apaixonado pela dama, ele podia aparecer quando houvesse poucos de nós, para tentar levá-la daqui. - Ele empurrou para a frente o esperto sujeito, que já tinha recebido um louvor por uma outra ideia, igualmente corroborada pelos acontecimentos. O homem não estava certo de si, agora que as coisas se tinham voltado ao contrário, e que o seu patrão se tinha tornado o vilão preso na rede. Mas permaneceu firme. - Foi ele quem disse que, se o sujeito fosse inteligente, poderia esconder-se nos jardins do seu senhor. Deve lembrar-se, quando nós procurámos e descobrimos que ele lá tinha estado mesmo, apesar de já ser um pouco tarde para fazer alguma coisa. Desta vez também fazia sentido, por isso, montámos guarda.

- Amigo - disse Prestcote, olhando o soldado com um ar de poucos amigos -, as tuas adivinhas pareciam descer dos céus, mas eu penso que seria mais correcto dizer dos infernos. Quando foi que Aguilon pôs na sua cabeça que devíamos procurar o nosso homem na propriedade do bispo? A que horas?

Jehan teve o bom senso de ser franco, apesar de não estar muito contente.

- Meu senhor, foi depois de o corpo do Sr, Domville ter sido trazido para cá. Quando ele voltou para a casa do bispo, então sugeriu isso. Disse que eu podia ficar com o crédito se apanhássemos o homem, e ele ficaria fora disto.

Joscelin abanou a cabeça em sinal de desespero, ainda lento na compreensão de tudo.

- Mas foi ele quem me ajudou, veio à minha procura, escondeu-me ali de boa vontade...

- De má vontade! - disse o irmão Cadfael. - Filho, tinha-lhe dado não só a oportunidade de apressar a sua herança, como também a de juntar à riqueza esta senhora. Pois tinha-lhe fornecido o bode expiatório perfeito, uma pessoa enganada, zangada e com ódio. O seu seria o primeiro e único nome a ser mencionado, quando Huon de Domville fosse assassinado. Mas com isso em vista, ele tinha de o ter em liberdade, escondido num sítio seguro, até depois da morte, e onde ele pudesse indicar quando tudo tivesse terminado. Foi o facto de deixar o esconderijo que impediu os seus planos e lhe salvou a vida.

- Então, hoje há noite... - continuou Joscelin, arrepiado por tão grande traição, que até lhe doía a cabeça. - Quer dizer que ele armou este laço para eu cair nele, a sangue-frio? Eu pensei que ele era meu amigo, pedi a sua ajuda...

- Como? - perguntou Cadfael rispidamente. - Como comunicou com ele?

Joscelin contou-lhes tudo, apesar de não ter falado em Lázaro ou Bran, ou em qualquer das pessoas que o tinham ajudado de verdade. Isto ele contaria qualquer dia, certamente a Iveta, talvez ao irmão Cadfael, mas não aqui e agora.

- Então ele sabia que estava nas redondezas, mas não o sítio exacto. Ele só podia esperar que viesses ao encontro da lei. Você tinha montado a cena para si próprio. Tudo o que ele tinha de fazer era passar a mensagem para a sua senhora, e fazer que o cavalo estivesse esperando por si como tinha pedido; ou então não teria atravessado até ao jardim para ser apanhado, pois não? Depois, bastava uma palavrinha ao Jehan. Ele não quereria figurar no assunto, certamente - disse Cadfael secamente -Já que a sua atitude de lealdade para consigo era o seu maior mérito perto de Iveta. E uma vez apanhado e enforcado - disse ele, sem rodeios, pois o bom rapaz não estava a acreditar que tal traição tivesse realmente acontecido -, duvido que Godfrid Picard tivesse impedido o casamento entre a sua sobrinha e um assassino... um assassino com êxito. Era o perigo entretanto que ele não podia suportar, no caso de chegar a ele.

- Fala, Jehan - ordenou o xerife, sorrindo com uma careta. - Foi Aguilon quem te disse como chegar a uma promoção?

- Esta manhã - disse Jehan descuidadamente -, pôs a ideia na minha cabeça...

- Esta manhã! Antes de termos partido! E nada disseste, nem a mim nem ao teu oficial, até estarmos fora do caminho do teu feito. Vai ser muito difícil receberes uma promoção, por enquanto. Tens sorte em escapar sem seres chicoteado!

Jehan achava que realmente estava cheio de sorte para ser falado assim tão alegremente, e aproveitou para se retirar.

- Era melhor irmos buscar o morto - disse o xerife, voltando-se bruscamente para os presentes. - Poderá guiar-nos, irmão? Iremos montados, e com um cavalo a mais para trazer Picard.

Partiram, meia dúzia de homens montados, Cadfael bem contente por ter um belo cavalo em vez da pobre mula. O abade viu-os partir, e depois voltou-se para a perturbada irmandade, mandando-a retirar-se.

- Vão, ponham as vossas mentes em paz, lavem as vossas mãos e vão comer. Ainda existem regras para o resto do dia. O contacto com o mundo serve para nos pôr à prova. A graça do Senhor não foi posta em perigo pelas loucuras ou pela maldade dos homens.

Eles foram obedientemente. Depois de olhar para Radulfus, o prior Robert seguiu-os. O abade ficou de frente, nos lábios um leve e contemplativo sorriso, para as duas criaturas ainda de mão na mão, e que o olhavam serenamente, mas ainda com dúvidas. Tinham-lhes acontecido demasiadas coisas, eles eram como crianças semiacordadas. Ainda não estava claro o que era real e o que era sonho das suas recordações. Mas certamente os sonhos tinham sido pesadelos, e a realidade tinha de ser melhor.

- Penso - disse o abade gentilmente -, que não precisa de se preocupar muito, meu filho, com aquela outra acusação que o seu senhor fez contra si. Em qualquer circunstância, nenhum homem justo poderia acreditar seguramente em tal roubo, e Gilberto Prestcote é um homem justo. Só me admiro - disse ele pensativamente - , se foi Aguilon quem também escondeu o colar no seu alforje, juntamente com a medalha de Saint James.

- Duvido, padre. - Joscelin tinha pensamentos justos, mesmo agora, com o companheiro que lhe tinha feito tanto mal. - Pois penso que ele ainda não tinha pensado em assassinar até eu ser acusado e preso, e ter fugido. Foi como o irmão Cadfael diz, ele foi presenteado com uma oportunidade única de arranjar um bode expiatório. Com certeza que foi o Sr. Domville quem fez o trabalho sujo dessa vez. Mas, padre, não são os meus problemas que me preocupam agora. É Iveta.

Ele humedeceu os lábios, procurando as melhores palavras, e o abade permaneceu silencioso e imperturbável, e não o ajudou. Iveta também olhou para ele alarmada, como se temesse que ele pudesse ser tão nobre, o estúpido, que desistisse dela.

- Padre, esta menina tem sido vilmente usada pelos que eram seus guardiões. Agora o seu tio está morto, e a sua tia, mesmo que estivesse em condições de tomar conta dela, não podia ter a permissão de administrar uma honra tão grande. Padre, poderia tornar-se guardião dela a partir de hoje, pois consigo ela estará em segurança e feliz como merece. Se pedir isto ao rei, tenho a certeza de que ele não o negará.

O abade esperou alguns instantes, e os seus austeros lábios sorriram levemente.

- É só? Nenhum pedido para si?

- Nenhum - disse Joscelin com feroz humildade que soava a arrogância de uma alma nobre.

- Mas eu tenho um pedido a fazer - disse Iveta, indignada, agarrando bem a mão que a teria renunciado. - É que perdoe e trate bem Joscelin, e que o veja como o meu seguidor favorito, pois eu amo-o e ele ama-me, e apesar de lhe ser obediente em tudo o resto, se me afastar dele, não casarei nem amarei mais ninguém.

- Venham - disse o abade, sem sorrir abertamente -, penso que é melhor sentarmo-nos nos meus aposentos e comermos algo, para considerarmos como havemos de dispor do futuro. Não há pressa, e há muito em que pensar. Pensar é sempre mais fácil depois de rezar, mas será ainda melhor depois de uma refeição e um copo de vinho.

O xerife e o seu grupo trouxeram de volta Godfrid Picard para a abadia, depois de Completas. Puseram-no na capela mortuária, e trouxeram velas para examinarem as suas feridas. Puseram-lhe a adaga de volta na sua bainha, quando desapertaram o cinto da espada, mas não se pode dizer que tivessem pensado muito no facto de ele ter estado assim nu no campo, quando foi encontrado.

O homem estava morto, o assassino, assassino já de um outro homem, estava no castelo de Shrewsbury, seguro e fechado a sete chaves. Se havia circunstâncias estranhas na morte de Picard, ninguém, a não ser Cadfael, se preocupou. Um homem morre, estrangulado pelas mãos de outro homem, no entanto, tinha uma adaga e tinha tido tempo para se defender. Para se defender, mas não para matar. E os que matam com as mãos fazem isso porque não trazem armas.

A noite estava calma. As velas não tremiam, e a luz que brilhava na cara inchada do morto, na língua mordida e na garganta esmigalhada era boa o suficiente para mostrar os pormenores. Cadfael olhou mais de perto para as marcas dos fortes dedos que tinham tirado a vida deste homem, mas nada disse. Nem sequer lhe perguntaram nada. Todas as perguntas já tinham sido respondidas.

- É melhor amanhã sairmos com uma égua, para trazermos o cavalo da floresta - disse Prestcote, puxando o lençol de linho para cima da cara de Picard. - Um animal valioso, aquele. A viúva pode vendê-lo por um bom preço em Shrewsbury, se ela quiser.

Tendo terminado o seu trabalho ali, Cadfael desculpou-se e saiu para procurar o irmão Mark. Encontrou-o na antecâmara, recuperado depois da canja e de ter mudado as roupas, e prestes a ir-se embora de volta para Saint Giles, e para os seus deveres.

- Espera um pouco por mim - disse Cadfael -, e irei contigo. Tenho assuntos a tratar lá.

Entretanto, o que ele tinha para fazer aqui, era para com dois jovens que tinham, pelo que ele tinha visto, não grande necessidade da sua solicitude, já que tinham arranjado um patrono mais forte e poderoso e pareciam estar de boas relações com ele, o que se devia, talvez, a um bom vinho e a um grande alívio. Por isso, Cadfael, meramente, apresentou os seus respeitos, aceitou a sua gratidão, trocou um olhar oblíquo com Radulfus quando fez a sua reverência, e deixou-os com as suas conversas que prosseguiam muito satisfatoriamente, mas que tinham implicações com outros, ausentes.

Duas crianças de corações quentes, estas, radiantes de boa vontade para quem precisasse deles. Muitos jovens, muito vulneráveis, muito impulsivos, agora que estavam felizes. O abade iria guardá-los num reino fechado durante algum tempo, ela nalguma irmandade ou quinta bem protegida, o rapaz debaixo de uma vigia discreta em qualquer serviço que escolhesse, agora que estava com o nome limpo. Mas Radulfus não os afastaria um do outro; era demasiado sabido para separar o que Deus ou os seus anjos tinham unido.

Por enquanto, havia mais gente em que pensar, e havia precisão da noite que se aproximava, se o que Cadfael adivinhava fosse verdade.

Ele voltou à antecâmara, onde o irmão Mark, contente e na expectativa, o esperava perto do fogo. Há muito que ele não se sentava perto dum fogo por tanto tempo, desde que era noviço na ordem. Tinha sido bom, afinal, ter-se molhado tanto no Meole.

- Está tudo bem? - perguntou ele ansiosamente, quando se puseram a caminho de Saint Giles.

- Muito bem - disse Cadfael, tão contente que Mark respirou de alívio e gratidão e não fez mais perguntas.

- A pequena menina por quem rezaste outro dia - disse Cadfael alegremente -, ficará bem agora. O abade cuidará disso. Tudo quanto eu quero do hospital é falar com o teu viajante Lázaro, no caso de ele prosseguir viagem dentro em breve, antes de eu poder vir aqui, outra vez. Sabes como eles são, cheiram o ar e ficam irrequietos, levantam âncora e navegam para longe.

- Pergunto-me - disse o irmão Mark -, se ele poderia ser persuadido a ficar. É muito amigo de Bran. E a mãe não vai durar muito mais. Voltou costas ao mundo. Não ao seu filho... mas ela sente que ele já ultrapassou tudo e que tem agora a sua própria vida, os seus santos. Explicou um desses santos, sem o reconhecer. Está convencida de que ele é protegido pelo céu.

"Havia aqueles na terra", pensou Cadfael, "que também se interessavam pelo assunto. Duas línguas gratas e soltas tinham contado tudo quanto sabiam do assunto, a sua história sem qualquer reserva, dito nomes confiadamente. Joscelin aprendia depressa e tinha um coração forte nas suas afeições, e Iveta, no seu fervor, queria conhecer e amar toda a gente que tinha ajudado Joscelin."

Na porta aberta da entrada do hospital, estava sentado o velho Lázaro, silencioso, parado, com as costas contra a parede e as pernas cruzadas debaixo de si, à maneira dos asiáticos. Aninhado no braço esquerdo do homem, Bran dormia descansadamente, com o cavalo de madeira feito por Joscelin apertado junto ao coração. A pequena lâmpada por cima da porta da entrada lançava uma fraca luz amarela no seu cabelo desgrenhado e pernas abertas, e mostrava uma cara banhada de lágrimas. Ele acordou quando Cadfael e Mark entraram, levantando-se espantado, e o longo braço retirou-se silenciosamente e deixou-o descer do banco.

- Oh, Bran! - disse Mark, preocupado. - Que fazes fora da cama a esta hora?

Bran abraçou-o com força, meio aliviado e meio ressentido, e acusou-o num tom baixo, de dentro das pregas do novo e enorme hábito:

- Vocês dois foram-se embora! Deixaram-me sozinho. Não sabia onde estavam... Podiam nem sequer voltar! Ele não voltou!

- Ah, mas voltará, verás. - O irmão Mark pegou no rapaz e agarrou-lhe na mão. A outra estava ocupada a aguentar o cavalo de madeira, momentaneamente esquecido. -Vem, vem para a cama, e conto-te tudo. O teu amigo está bem e feliz, e não precisa de se esconder mais. Tudo quanto estava mal foi posto direito. Vem, e vais ouvir tudo de mim, e depois ele tornará a contar-te tudo. Prometo!

- Ele disse que eu seria o seu escudeiro e que aprenderia latim e a contar, se alguma vez se tornasse cavaleiro. - Bran recordava teimosamente tanto o seu amigo ausente como o presente, e deixou-se conduzir para a cama. Mark olhou para trás, para Cadfael, e ao ver o seu aceno, ficou descansado e levou a criança em direcção ao dormitório.

Lázaro não se mexeu nem falou quando Cadfael se sentou ao seu lado. Há já muito tempo que ele tinha deixado de sentir surpresa, medo e desejos, pelo menos em relação a si. Ficou sentado a fitar com os seus olhos azuis e cinzentos um céu agora com nuvens a serem carregadas por uma ligeira brisa, quando aqui na terra nem uma folha bugia.

- Deve ter ouvido - disse Cadfael, encostando-se confortavel-mente contra a parede - o que Mark disse à criança. É verdade, graças a Deus! Tudo quanto estava mal foi corrigido. O assassino de Huon de Domville foi apanhado, considerado culpado sem dúvidas. Isto acabou. Não há compaixão possível. O homem não só matou o seu tio, mas atraiçoou e utilizou o amigo que confiava nele, e sem vergonha alguma, enganou uma rapariga inocente. Isso acabou. Não precisa de se preocupar mais.

O homem ao seu lado nada disse, nada perguntou, mas escutou. Cadfael continuou do mesmo modo:

- Tudo ficará bem agora. O rei certamente que aprovará o abade como guardião dela. Radulfus é um homem austero, mas muito humano. Ela nada mais tem a temer, nem mesmo de um noivo que lhe queiram impor. Os seus desejos, a sua felicidade, nunca mais serão esquecidos.

Lázaro estremeceu dentro do seu grande capote, e voltou a sua cabeça. A profunda voz, formando palavras com um cuidado deliberado, falou de detrás dum véu:

- Fala só de Domville. E o segundo assassínio?

- Que segundo assassínio? - disse Cadfael candidamente.

- Eu vi os archotes entre as árvores, há mais de uma hora, quando vieram procurar Godfríd Picard. Eu sei que ele está morto. É isto também imputado ao mesmo jovem?

- Aguilon será julgado pelo assassínio do seu tio - disse Cadfael -, onde existem provas suficientes. Para quê mais? Se há alguns que erradamente o culpam pela morte de Picard, para quê falar nisso? Ele não será acusado disso. Não teriam provas. Godfrid Picard não foi assassinado.

- Como sabe? - perguntou Lázaro, impertubável, mas querendo saber mais.

- Nenhuma armadilha lhe foi montada, ele estava perfeitamente lúcido quando foi morto, mas isso não foi suficiente para o impedir de morrer. Não foi assassinado, foi desafiado para um combate. Tinha uma adaga, o seu oponente tinha somente as mãos. Sem dúvida que pensou que seria fácil, um homem armado contra um desarmado, um homem na sua maior força contra um de setenta anos. Ainda teve tempo para puxar da arma, mas foi tudo. A adaga foi arrancada e posta de lado, não voltada contra ele. Bastaram as mãos. Ele não tinha pensado no peso de uma luta justa.

- Devia então haver uma zanga muito grande entre eles dois - disse Lázaro, após um longo silêncio.

- A mais antiga e a mais grave. O vergonhoso tratamento de uma senhora. Ela está vingada. O céu não se engana!

O silêncio caiu entre eles novamente, mas de uma maneira leve e gentil, como o véu de uma moça pode flutuar e assentar, ou uma traça pode voar sem fazer o mínimo barulho. Os olhos pararam novamente no correr sereno das nuvens. Havia uma luz difusa de estrelas por detrás, enquanto a terra permanecia na escuridão. Por detrás do rude pano azul que lhe tapava a cara, Cadfael pensou ter visto o mais tranquilo e leve dos sorrisos.

- E se sabe tanto dos acontecimentos de hoje - disse Lázaro devagar -, não saberão outros o mesmo?

- Ninguém mais viu o que eu vi - disse Cadfael com simplicidade. - Mais ninguém saberá. As marcas desaparecerão. Ninguém fará perguntas. Só eu sei. E só eu, e o dono das mãos que fizeram isso, saberão que essas mesmas mãos estavam incompletas, que à mão esquerda faltavam dois dedos e meio.

Dentro do monte de roupas escuras houve um movimento e um brilhar dos olhos azuis. De dentro das pregas do capote emergiram duas mãos que se puseram diante da luz, a direita inteira, longa e bem formada, a esquerda com dois dedos e metade de outro, as superfícies mutiladas com costuras, brancas e secas.

- Sabe tanto a partir de tão pouco, irmão - disse a calma e baixa voz -, diga-me mais uma coisa. Diga-me o nome desse homem, pois eu creio que o conheço.

- Também penso assim - disse o irmão Cadfael. - O seu nome é Guimar de Massard.

A noite pairou sem se mexer por cima do Foregate e do vale do Meole. Os bosques através dos quais o xerife e os seus homens tinham caçado em vão, e que tinham servido para o lugar de espera para a passagem de Picard e do seu chapéu de vivas cores, pelos quais ele tinha depois de regressar. Por cima, em contraste com a quietude da terra, o céu movia-se continuamente, como um homem a flutuar, uma vida frágil a ser assoprada constantemente, para depois desaparecer no desconhecido.

- Devia eu conhecer este nome? - perguntou Lázaro, muito quieto.

- Meu senhor, eu também estive nas batalhas de Jerusalém. Tinha vinte anos quando a cidade sucumbiu. Vi quando escapou pelo portão. Eu estava na batalha de Ascalon, quando os Fatimidas do Egipto nos atacaram. E pela minha parte, depois da matança que se fez em Jerusalém, de tantos que acreditavam no Profeta, acho que mereciam melhor sorte. Mas não se pode dizer que Guimar de Mas-sard tivesse praticado qualquer acto pouco cavalheiresco ou civilizado. Porquê, por que desapareceu depois daquela luta? Por que nos deixou, a nós, que o reverenciávamos, e a seu filho e mulher aqui em Inglaterra, a chorar por si? Merecíamos nós isso?

- Mereciam a minha mulher e filho que eu partilhasse com eles o fardo que me tinha caído nas costas? - perguntou Lázaro, levantando-se e tropeçando por uma vez nas palavras que o sufocavam. - Irmão, penso que já sabe a resposta.

Sim, Cadfael já sabia. Guimar de Massard, ferido e cativo depois de Ascalon, tinha sabido pelos médicos que tinham cuidado dele no cativeiro, que já era um leproso.

- Eles têm óptimos médicos - disse Lázaro, novamente calmo -, mais conhecedores que os de cá. E quem melhor para reconhecer os primeiros sinais? Eles disseram-me a verdade. Fizeram o que lhes pedi, espalharam palavra que tinha morrido das minhas feridas. Fizeram mais. Ajudaram-se a chegar a um ermitério, onde podia viver com o meu inimigo e lutar a batalha da minha vida. O meu capacete e a minha espada mandaram de volta para Jerusalém, como eu tinha pedido.

- Ela tem-nos - disse Cadfael. - Guarda-os como se fossem tesouros. Não foi esquecido. Eu sabia que muitos dos sarracenos podiam ser mais cristãos que os cristãos.

- Os meus captores era cavalheirescos e delicados. Respeitaram e ajudaram-me através do meu calvário.

"Um nobre é parente de outro", pensou Cadfael. "Existem alianças que ultrapassam as famílias, as fronteiras, mesmo as religiões." Era bem possível que Guimar de Massard se sentisse mais próximo dos califas fatimidas que de Bohemond, Baldwin ou Tancred.

- Há quanto tempo - perguntou ele - está a percorrer o caminho de regresso? - Pois era uma longa jornada através da Europa, com pés mutilados e uma sineta por bagagem, nada mais.

- Oito anos. Desde que me trouxeram notícias da morte do meu filho e que havia uma outra criança, uma rapariga, órfã depois da morte de sua mãe, precisando de apoio.

Então ele tinha deixado a sua cela, o seu refúgio de anos, e partido com a sua tigela de esmolas, capote e véu para Inglaterra. Certificar-se por si mesmo, que esta neta gozasse as suas terras e fosse feliz. Em vez disso, tinha sabido que a sua vida era um inferno. Então, com as suas mãos mutiladas, tinha posto ordem nas coisas.

- Ela tem o seu quinhão de felicidade agora - disse Cadfael. - Mas, apesar disso tudo, creio que trocaria todas as suas riquezas e títulos pela alegria de ter um parente vivo.

O silêncio foi longo e frio, como se ele pisasse chão proibido. No entanto, persistiu:

- É um fogo apagado. Já há anos, creio eu. Não o negue. Eu conheço os sinais. O que Deus impôs, sem dúvida, com as suas razões, por boas razões, Ele desfez. Sabe-o bem. Não representa perigo para ninguém. E qualquer que seja o nome que tem usado estes anos, ainda é Guimar de Massard. Se ela acarinha a sua espada, muito mais seria capaz de o amar. Porquê privá-la agora da sua protecção verdadeira? Ou a si da alegria de a ver feliz? De a entregar com a sua própria mão a um marido que aprova?

- Irmão - disse Guimar de Massard, sacudindo a cabeça enca-puchada -, fala do que não compreende. Eu sou um homem morto! Deixe a minha campa, os meus ossos e a minha lenda em paz.

- No entanto, houve um Lázaro - disse Cadfael, aventurando-se mais -, que se ergueu da sua campa, para grande alegria dos seus parentes.

Houve um longo silêncio enquanto os fragmentos das nuvens eram as únicas coisas que se moviam. Então o velho homem esticou a escorreita mão direita e levantou-se para atirar para trás o capuz.

- E foi esta - perguntou Guimar - a cara que fez feliz suas irmãs?

Ele arrancou o véu e descobriu a horrorosa máscara que lhe tinha restado, quase sem lábios, uma bochecha afundada, as narinas grandes buracos coloridos, a cara onde somente os vivos e brilhantes olhos faziam lembrar o paladino de Jerusalém e Ascalon. Cadfael ficou calado.

Lázaro tornou a cobrir a cara arruinada que lhe restava. A calma e o silêncio regressaram, quase às escondidas. - Nunca tente tirar a pedra debaixo de onde me escondo - disse a lenta e paciente voz. - Sinto-me contente assim. Deixo-me ficar.

- Tenho de lhe dizer, então - disse Cadfael, após um longo silêncio -, que o rapaz que salvou não tem feito outra coisa se não elogiá-lo, e vai trazê-la cá, já que não pode ir ter com ela, para que ela possa agradecer pessoalmente a sua bondade para com o seu amor. E já que a ele não pode recusar-lhe nada, creio que estarão aqui amanhã de manhã.

- Eles compreenderão - disse Lázaro calmamente -, que não se pode confiar em nós, leprosos caminhantes, peregrinos. Temos mentes incorrigivelmente vagus. A vontade de partir assalta-nos e o vento sopramos para o longe como pó. Relíquias, andamos quando existem relíquias para nos consolarem. Diga-lhes que estou bem.

Ele desceu do banco, cuidadosamente e devagar por causa da sua condição, e cortesmente sacudiu as saias da sua roupa sobre os seus pés, para esconder as deformidades.

- Pois com os mortos - disse ele -, tudo está muito bem. Começaram os dois a andar.

- Reze por mim, irmão, se quiser.

Ele partiu, sem outro olhar ou palavra. O calcanhar do seu sapato especial bateu ruidosamente no chão. O irmão Cadfael saiu da porta de entrada, debaixo das lentas nuvens que não estavam a andar à deriva, mas prosseguiam com um propósito para algum lugar predestinado, sem pressa e sem obstáculos, como a morte.

"Sim", pensou ele, voltando para a abadia. "Com os mortos tudo está bem. A criança será o receptor da sua gratidão. O seu morto já tinha sido enterrado, deixem-nos agora tratar com os vivos. Quem sabe? Quem sabe se o filho da escrupulosa e pobre mulher pode vir a ser escudeiro de Sir Joscelin Lucy? Coisas mais estranhas já aconteceram neste estranho, angustiante e maravilhoso mundo!"

No outro dia de manhã, depois da missa, Iveta e Joscelin vieram a Saint Giles, com a permissão do abade e os corações cheios de boa vontade para com aqueles lá dentro, mas procurando dois em particular. A criança foi fácil de encontrar. Mas o velho leproso Lázaro tinha partido, silensiosamente, à noite, sem dizer nada nem se despedir de ninguém. Procuraram-no por todas as estradas e perguntaram por ele em todos os locais de peregrinação em três países, mas mesmo com pés defeituosos, ele escapou à procura, através de maneiras desconhecidas de todos. É certo que ele nunca mais voltou a Shrewsbury.

 

 

                                                                                                    Ellis Peters

 

 

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