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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CAMINHANDO NAS CHAMAS Stephanie Grace Whitson
CAMINHANDO NAS CHAMAS Stephanie Grace Whitson

 

 

                                                                                                                                   

 

 

 

 

Livro 01 / CAMINHANDO NAS CHAMAS

 

O índio bateu no peito com a mão fechada e repetiu: — Conhecer Deus aqui. — Abrindo a mão, tocou a têmpora: — Precisar Deus aqui. Missionário fala esse livro ensinar Deus, Você ensinar.

Capturada por um sioux lakota, numa campina do Nebraska, Jesse King se perguntava como iria adaptar-se à vida entre os índios: Mas como ela ora por uma fé sustentadora, descobre a misericórdia compassiva de Deus em sua amizade com uma índia e em seu amor pelo valente sioux, Cavalga o Vento.

Encontrando uma paz inesperada e um senso de pertencer à tribo, Jesse aprende que os sioux lakotas têm uma linda cultura. E ao aprender a amar essa cultura, torna-se para sempre dividida entre dois mundos.

Este livro é uma narrativa extraordinária de uma pioneira que ama, sofre e triunfa em sua fé. Caminhando nas Chamas leva você de um carroção na campina a uma tenda, de um forte na fronteira a uma nova capital do estado em crescimento.

Primeiro de uma série, Caminhando nas Chamas é uma linda e sensível história de amor, bem como uma aventura emocionante.

 

 

 

 

Lisbeth olhou fixamente, com dúvida, a colcha de retalhos que caiu ao chão, do colo de sua mãe. Estudou as mãos que a seguravam, percebendo pela primeira vez como o tempo as tinha envelhecido. Rugas profundas aumentavam ainda mais cada junta inchada. O que um dia tinha sido uma pequena quantidade de sardas tornara-se manchas escuras. — Manchas da idade — mamãe as chamava. As mãos que haviam sempre trabalhado com deliberada calma agora contorciam-se nervosamente ao apertar a colcha. Finalmente, Lisbeth olhou nos olhos da mulher que a havia gerado.

Jesse já não era mais apenas mamãe. Com a história da colcha ela tinha-se tornado uma mulher que havia amado e sofrido, mantido sua fé, crescido e triunfado em seu próprio e silencioso caminho.

O silêncio tornou-se muito pesado. Jesse o quebrou:

— Então, Lisbeth, é assim que você veio ao mundo— Enquanto falava, os olhos de Jesse procuravam ansiosamente a face de sua filha.

Como poderei um dia casar-me com Mackenzie? Lisbeth pensou. Agora que sei, como poderei algum dia desposar um homem respeitável...

 

O bom desejo do meu coração e a oração a Deus... é para sua salvação.

Romanos 10:1

 

Ele tinha visto a cólera dizimar o povo da caravana do comércio de peles em Bellevue, e tinha resistido à zombaria dos homens rudes da montanha. Tinha lutado para ficar em cima de sua mula, quando a doença o fizera tão fraco que não mais podia montar sem ajuda. Sua pulsação tinha disparado ao sinal dos galopes de índios aproximando-se da caravana do oeste — e, em seguida, voltado ao normal novamente quando eles atiraram para o ar a fim de mostrarem suas intenções amigáveis.

Eleja havia-se medicado, sofrido, passado fome e orado. Mas nada disso havia preparado Marcus Whitman para a cena de um campo indígena com dois mil habitantes. A vila estendia-se por milhas ao longo do Rio Laramie, bem acima do lugar onde ele desaguava no Platte. O encontro dos dois rios era uma esquina natural onde comerciantes de peles tinham construído o Forte Laramie. A caravana de peles deveria parar ali, em sua viagem ao grande lugar do encontro no Rio Green.

Whitman e seu colega missionário, o reverendo Samuel Parker, tinham-se juntado à caravana de peles em Bellevue, Nebraska, e viajariam com ela até seu destino em Oregon. Eles tinham ouvido que os índios naquela terra desejavam saber sobre o Deus do homem branco. No local do encontro, eles teriam oportunidade de investigar a veracidade de tais rumores. Então eles viajariam ao Oeste para levar o evangelho — Até aos confins da terra.

A chegada da caravana de peles causou uma grande comoção na tribo lakota. As crianças saíam pulando das tendas, saudando com gritos estridentes e fazendo muitas perguntas. Os cachorros juntavam-se ao desfile tumultuado, ganindo nos cascos da mula teimosa de Whitman até que o animal escoiceasse com fúria. Ao alcançar o forte, Whitman desmontou cuidadosamente, grato pela recuperação de suas forças.

Ele sorvia famintamente cada detalhe da cena à sua frente, cheio de compaixão pela vasta nação de almas não alcançadas. Porém, mais tarde, quando os barris de uísque foram trazidos e a bebedeira prevaleceu, à compaixão do missionário misturou-se o desgosto. Ao chegar a noite, os lakotas divertiram seus visitantes brancos com a dança do búfalo, saltando alto na fogueira, cambaleando num êxtase bêbado.

Quando Whitman se retirava para a privacidade de sua tenda, sua atenção voltou-se para um belo guerreiro pele-vermelha, parado à beira da fogueira. Brincos grandes de metal pendiam das orelhas do guerreiro e penas de águia enfeitavam suas tranças grossas e escuras. Um colar de garras de urso decorava o pescoço musculoso.

Whitman ficou pensando por que o índio não se juntava aos seus amigos naquela celebração selvagem. Ele estudou sua face. Olhos escuros e inteligentes observavam de soslaio, examinando cada movimento dos dançarinos. Descansando uma mão no ombro de uma linda e jovem índia ao seu lado, ele gesticulava e cochichava. Os cantos de sua boca bem formada moveram-se num meio sorriso. Algumas rugas na testa alta e no canto dos olhos faziam-no parecer mais velho que a mulher. Ela continuava a olhar para ele com expectativa e com certeza divertindo-se com suas atenções.

Enquanto Whitman olhava, o índio virou para o lado e deu um passo em direção à sua mulher. As sombras da fogueira acentuaram seu maxilar quadrado e o buraco do queixo. De repente o meio sorriso desapareceu. O guerreiro apertou o maxilar e sacudiu a cabeça para os lados, desviando o olhar da fogueira. Sua mão caiu do ombro da mulher para o seu lado. Apertou a franja no lado de uma perneira.

Então, o doutor viu: a perneira direita tinha sido rasgada até o joelho, revelando uma perna amarrada fortemente com tiras de couro do tornozelo ao joelho. Enquanto Whitman olhava com curiosidade, o índio se afastava do fogo, pressionando seus lábios e maxilar, com a dor que sentia a cada passo que dava. Ele mancava na escuridão e Whitman virou-se saindo também, pensando no índio machucado.

Os comerciantes de pele e também os nativos gemeram e reclamaram, madrugada adentro, dos efeitos da celebração noturna. Arrumaram-se para continuar até o lugar de encontro no Rio Green, censurando uns aos outros pelo comportamento na noite passada e contando piadas sobre o encontro do ano anterior, para se encorajarem a viajar rapidamente. As perguntas de Whitman sobre o guerreiro machucado e sua graciosa companheira foram deixadas sem respostas.

Após doze dias, a caravana de peles e os missionários chegaram ao Rio Green. Os comerciantes armaram barracas para mostrar os tecidos, os galões, as contas para colares, as facas e os machados que haviam transportado de tão longe para trocar pelas peles.

Whitman sentia repugnância pelo espetáculo dos bêbados em Fort Laramie, mas a devassidão neste local de encontro deixou-o sem fala. índios, homens da montanha e comerciantes bebiam e deleitavam-se, gritavam e brigavam até desmaiarem. Eles dormiam apenas para recomeçar o ciclo novamente, tão logo acordavam.

Numa noite, já tarde, enquanto Whitman, assentado, esforçava-se para ler, com sua fogueira já quase se apagando, um menino acenou-lhe para segui-lo pelo acampamento até outra fogueira. Lá, esperando pelo doutor, estava um homem da montanha assentado e alguns outros comerciantes. O homem não se levantou, mas falou arrastado e grosseiramente:

— O menino aqui diz que tem médico neste lugar.

Whitman concordou com a cabeça:

— Eu sou médico, senhor.

Levantando sua camisa com franjas e virando suas costas p aia a fogueira, o homem disse:

— Vê este caroço no ombro? Carrego isto há quase três anos. Cabeça da flecha de Blackfoot. Dói que nem o inferno. Será que você arranca?

O médico examinou o local.

— Eu posso tirar, mas não tenho anestésico.

O homem tirou um frasco de seus pertences e tomou um longo gole.

— Estou com meu anestésico bem aqui, doutor. Arranca.

Whitman voltou para sua barraca para pegar seus instrumentos cirúrgicos. Voltando para a fogueira do comerciante, começou a cirurgia. A cabeça da flecha estava coberta com uma grossa camada de gaze e Whitman desculpou-se por cortar a ferida, concentrando-se para ser bem-sucedido. Finalmente, puxou a ponta para fora. O comerciante suspirou apenas uma vez. Também ficou sentado imóvel enquanto o médico desempenhava sua cirurgia grosseira. Acabada a operação, Whitman deu um passo atrás e limpou o suor de sua testa.

— Tudo certo comigo, doutor. O que posso lhe dar pelo serviço?

— Estou feliz por ter sido útil, senhor — foi tudo o que o missionário pôde dizer. Ele olhava espantado, enquanto o comerciante, vestindo sua camisa, estremeceu um pouquinho, levantou-se e virou sua cabeça de um lado para o outro vagarosamente, então meneou seus ombros como se nada tivesse acontecido.

O comerciante entrou em sua barraca e saiu novamente com duas peles de castor, as quais deu para Whitman.

— Ouvi dizer que o senhor tem esposa. Isto dará para ela fazer uma bonita manta... Diga para ela que sou grato ao marido dela.

Falou de um modo grosseiro, mas a sinceridade brilhava em seus olhos. Com umas poucas instruções sobre a limpeza da ferida, Whitman pegou as peles e retornou à sua fogueira, ignorando o fato de que suas capacidades para operar já estavam sendo rapidamente comentadas pelo acampamento. Logo ele se tornou o centro das atenções e uma fila formou-se do lado de fora de sua barraca, esperando que o médico tratasse de vários ferimentos e enfermidades.

Já era tarde quando Whitman pôde descansar. Enquanto se deitava, fatigado, em seu couro de dormir, a porta de sua barraca foi puxada silenciosamente. Quase antes de ele poder olhar, a figura imponente de um índio encheu a entrada. O valente usava um colar de garras de urso e perneiras de pele de veado.

Silenciosamente, ele se assentou em frente a Whitman e começou a desembrulhar uma perna que estava toda envolta em apertadas tiras de couro do tornozelo ao joelho. Whitman reconheceu o índio do Forte Laramie.

Ele fez um movimento para ajudar a desembrulhar sua perna, mas o guerreiro acenou-lhe para afastar-se. Sua testa transpirou. Ele resmungou, e suas mãos tremeram, mas ele persistiu. As peles encostadas na perna estavam encrustradas com sangue seco. Por fim, ele as tirou e Whitman deu um suspiro seco com o cheiro pútrido do ferimento, que se espalhou pela barraca. Ofegando com o esforço, o índio estirou a perna na frente do médico e inclinou-se para trás, apoiando-se nas mãos, esperando. Os olhos negros encontraram os de Whitman numa súplica silenciosa.

O médico viu que havia uma infecção. Ele se movimentou rápido para limpar o ferimento. Seu paciente gemeu, mas, de alguma forma, controlou a vontade de gritar.

— A luz do dia posso fazer isso melhor — Whitman explicou, desesperado com a barreira da linguagem. Tinha feito tudo o que podia com a luz do fogo. Mas palavras não eram necessárias para manter o índio em sua barraca. Com os últimos cuidados do médico, ele deu um pequeno grito agonizante e dormiu.

De manhã, o índio foi carregado para fora, onde Whitman começou o processo de retirada do tecido morto. O homem recusou o uísque oferecido como anestésico, apertando os lábios e virando a face rígida para longe do vidro.

— Diga-lhe que tenho de quebrar a perna dele novamente — , disse Whitman. O comerciante convocado para ser o intérprete contou-lhe a má notícia. O índio olhou prolongadamente a face de Whitman. O olhar firme do missionário não vacilou.

Fazendo uma pergunta, esperou enquanto o comerciante interpretava:

— Por que você tem de quebrar o que já foi quebrado e curado?

Whitman explicou:

— A quebradura não se consertou corretamente. O osso ainda está muito saliente e isto tem causado o inchaço e a infecção. Preciso quebrá-lo, consertá-lo e então juntar a pele com pontos para sarar corretamente".

O intérprete repetiu a informação para o índio, que interrompeu com uma pergunta: — Ele quer saber se o senhor vai deixá-lo em condições de andar bem novamente. Ele diz que anda como um búfalo machucado agora". O comerciante voltou-se abruptamente para Whitman e deu a sua própria opinião: — O nome deste companheiro é Cavalga o Vento. Eu o vi no último encontro. Ele dança muito bem quando está em forma. Conquistou sua esposa, dançando para impressioná-la. Ele não estará pronto a deixá-lo quebrar sua perna outra vez, a não ser que isto o ajude a dançar novamente".

O comerciante piscou para o médico:

— Até os peles-vermelhas gostam de impressionar as moças, doutor".

Whitman limpou sua garganta e umedeceu os lábios secos antes de responder. — Cavalga o Vento— disse ele olhando diretamente o guerreiro, — Sou o Dr. Marcus Whitman. Vim para esta terra para contar a seu povo sobre o Deus que criou todos nós. Eu lhe digo por Ele que não sei se você poderá dançar de novo. Mas eu sei que, se não fizer isto, você perderá esta perna. Poderá mesmo morrer".

O olhar honesto de Whitman não se desviou dos olhos do índio enquanto falava. Sua voz era suave, cheia de compaixão.

O comerciante interpretou e, quando terminou, houve um longo silêncio. Cavalga o Vento ponderou o conselho do médico. Ele olhou para o outro lado por um momento, então voltou-se novamente para Whitman e, gravemente, concordou.

Muitos dos homens lakotas foram convocados para segurar o guerreiro enquanto Whitman apertava e torcia a perna machucada. O barulho nauseante do osso estralando causou um murmúrio entre o grupo de homens. Cavalga o Vento quebrou em dois pedaços a vara que apertava com os dentes e desmaiou. Whitman aproveitou a chance para limpar bem, retirar o tecido infectado e dar pontos na perna.

Um dos comerciantes contribuiu com o tecido limpo que Whitman usou para prender a perna. Trabalhou rápido e eficientemente e, quando voltou a si, Cavalga o Vento viu que sua perna, que doía mais que antes, estava envolta num tecido limpo e entre dois galhos retos de árvore. Foi carregado para sua tenda, onde sua esposa e o curandeiro da tribo cuidaram dele.

No dia em que Whitman começou a arrumar a bagagem para ir para o Oeste, o comerciante que tinha servido de intérprete o chamou para a tenda de Cavalga o Vento. Inclinando-se, o médico entrou na tenda onde Cavalga o Vento estava sozinho, deitado sobre uma manta de pele de búfalo. Enquanto o médico assentava-se sobre outra manta de búfalo, o índio olhou firme em seu rosto e disse vagarosamente:

— Você tem remédio".

Whitman espantou-se emudecendo, enquanto as palavras em inglês eram pronunciadas.

O comerciante arreganhou os dentes:

— Ele tem vindo aos encontros há muito tempo. Entende mais do que parece. Bem esperto para o seu próprio bem, provavelmente. Por alguma razão ele decidiu que não há problema deixar o senhor saber que ele fala um pouco a língua do homem branco".

Whitman sorriu calorosamente e, voltando-se para Cavalga o Vento, disse:

— Sim, eu tenho remédio".

O índio apontou para sua perna:

— Faça forte".

— Vai levar bastante tempo, mas ficará forte novamente. No entanto, temo que você ande sempre mancando.— O índio franziu a testa e voltou-se para o comerciante, que interpretou o que Cavalga o Vento não podia decifrar.

Impaciente com a fala primária, Cavalga o Vento retornou à sua própria língua, falando rapidamente. Finalmente o comerciante levantou suas mãos, interrompendo a fala comprida.

— É , doutor — começou. — Parece que o senhor impressionou bem este índio. Ele está dizendo que o senhor tem remédio bom. Ele quer que o senhor se assegure de que sua perna será bem curada. Diz que vai viajar com o senhor até ter certeza de que ela vai ficar boa.

Whitman interrompeu:

— Mas ele não pode andar a cavalo".

Compreendendo, Cavalga o Vento interpôs-se, bravo. O comerciante arreganhou os dentes e balançou a cabeça:

— Ele diz que, mesmo com uma perna quebrada, sempre pode montar melhor que homem branco. Ele veio a cavalo de Forte Laramie".

Whitman virou-se, olhando o valente, e viu o desafio em seus olhos escuros. O índio apertou o braço de Whitman, sua mão grande deu volta no antebraço fino do médico, enquanto dizia:

— Eu cavalgo, você fala — Então Cavalga o Vento falou de novo ao comerciante, rapidamente, e gesticulou para ele traduzir.

— Ele quer que o senhor cuide de sua perna, doutor.— Enquanto Cavalga o Vento falava, o comerciante parou e colocou de volta seu chapéu. — Bem, eu estarei..."

— Que é isso?— Whitman apressou-se.

— Ele diz que quer aprender melhor a fala de homem branco. E diz que quer ouvir mais sobre aquele Deus de quem o senhor falou, na noite em que consertou sua perna. Aquele que o senhor disse que criou todas as coisas."

O comerciante deu uma gargalhada.

— Parece que o senhor conseguiu um provável convertido, doutor.— Sua voz saiu sarcástica. — Só tenha a certeza de que ele não o escalpe, quando descobrir que o seu Deus diz que ele deve amar o pawnee que assassinou seu pai no último inverno."

Whitman mostrou-se à altura do desafio. — O meu Deus morreu até pelos inimigos dele, senhor."

O comerciante não se impressionou.

— Economize isto, doutor. Eu não estou comprando. De qualquer forma, este índio diz que está indo junto. Assim, o senhor pode treinar seus sermões com ele.— O comerciante abruptamente deixou Whitman sozinho com Cavalga o Vento.

Com uma oração por sabedoria, Whitman falou devagar:

— Você vem. Cuidarei de sua perna". Cavalga o Vento concordou com um movimento de cabeça. Whitman acrescentou: — Falarei de Deus". De novo o índio concordou. Como Cavalga o Vento se esforçasse para levantar-se, Whitman tentou ajudar, mas o bravo lakota meneou a cabeça e empurrou o médico. Com grande esforço, conseguiu levantar-se, pondo todo seu peso sobre a perna esquerda sã.

Enquanto Whitman olhava, ele pegou a faca e a bainha da flecha, dependuradas num mastro próximo. Amarrando-as juntas, ele apanhou uma vara, cortada há pouco, que estava apoiada no mastro. Usando-a como bengala, Cavalga o Vento mancou até a entrada da tenda. Gesticulando para Whitman ir à frente, ele abaixou-se incomodamente e investiu para fora, quase caindo e ofegando com o esforço para permanecer firme. Sua esposa aproximou-se. Cavalga o Vento falou rapidamente com ela, que, em obediência, correu a cumprir suas ordens.

— Vá. Eu vou— foi tudo o que disse para Whitman. O missionário foi em direção à sua própria fogueira para arrumar as malas, olhando sobre os ombros para ver Cavalga o Vento entrar em sua tenda novamente.

Quando a caravana de peles saiu do acampamento naquela manhã, a mula de Whitman era seguida por um potro indígena, carregando um caçador sioux ferido.

Cavalga o Vento permaneceu com a caravana até que sua perna quebrada ficasse completamente curada. A caravana tinha há tempo entrado no território habitado pelos inimigos dos sioux. Cavalga o Vento parecia indiferente. Com determinação ardente ele aprendera a falar a — Língua do homem branco". Com a mesma determinação, ele ouvira e perguntara, quando Whitman contara, noite após noite, sobre o Deus que o tinha enviado para os índios.

Quando, por fim eles partiram, Whitman colocou uma Bíblia nas mãos do guerreiro.

— Este livro fala sobre Deus, Cavalga o Vento. Eu lhe dou pela nossa amizade.— Era um presente excêntrico, Whitman sabia. Cavalga o Vento não sabia ler. Mesmo assim o missionário sentira-se impulsionado a dá-lo.

Cavalga o Vento tirou o colar de garras de urso de seu pescoço e deu-o ao missionário. Ele segurou a Bíblia no peito e ficou olhando Whitman afastar-se. Quando finalmente perdeu de vista o missionário, Cavalga o Vento embrulhou a Bíblia cuidadosamente numa pele de veado.

Após seu retorno ao grupo, ele guardou — O livro sobre o Deus que criou todas as coisas em sua bolsa de couro. Ele sempre a desembrulhava, virando as páginas de beiras douradas, cuidadosamente, admirando os desenhos estranhos em cada página, desejando poder saber seus significados.

Sua perna estava curada, mas ainda torta. Cavalga o Vento não podia dançar mais era volta da fogueira. Sua amável esposa insistia que isso não era problema para ela. Mas Cavalga o Vento via que, dentro da alma dela, o fogo que houvera queimado por ele agora se ofuscava.

Quando Águas Dançantes atreveu-se a caçoar das coisas estranhas que ele ouvira do missionário e lhe contara, Cavalga o Vento reagiu com uma raiva imprópria e lhe ordenou que tivesse mais respeito. Ele sempre meditava nas imagens que Whitman havia-lhe contado — um homem e uma mulher em um lindo lugar... o fruto proibido comido — o Deus-homem morrendo em um tipo de árvore... o mesmo homem vivendo novamente. Ele ansiava por alguém que pudesse contar-lhe o mistério do presente do missionário, mas não falava sobre isso.

A centenas de milhas dali, um fervoroso missionário orava: De alguma forma, Senhor, envie alguém para que algum dia Cavalga o Vento vossa conhecê-lo.

 

A soberba precede a ruína, e a altivez do espírito precede a queda.

Provérbios 16:18

 

Jesse King estava no balcão da venda na cidade Independence, no Missouri, esperando para pedir as provisões para a jornada para o Oeste. Ela esperava pacientemente atrás de uma mulher alta e magra, na fila comprida. O cabelo escuro e grosso da mulher estava preso no alto da cabeça. Um chapéu grande amarelo pendurado em seus ombros balançava enquanto a mulher fazia seu pedido energicamente e em voz alta. Ela examinava cada item cuidadosamente e então instruía um menino a levar suas coisas para o carroção estacionado bem em frente ao da família King, à porta da loja.

Jesse ficou atrás até que a mulher terminasse. Virando-se rapidamente, a mulher deu um encontrão em Jesse e exclamou:

— Minha nossa, me desculpe! Ó, espero não ter acordado o querido nenê! Meu nome é Lavínia Wood. Você faz parte da caravana também? — As palavras saíram aos trambolhões, enquanto Jesse arrumava o nenê dormindo e tirava sua própria lista do bolso. Jesse respondeu: — Não, não, você não perturbou o Jacob . Ele dorme até debaixo d'água, graças a Deus — Enquanto desdobrava sua lista cuidadosamente escrita, respondeu ao restante das perguntas de Lavínia. — Sim, estamos indo para o Oeste. Sou Jesse King."

"King— Lavínia repetiu. — É sua carroça lá fora? Cavalos bons..." Quando Jesse concordou, ela acrescentou: — Bem, nossa junta de bois e o carroção estão bem à sua frente. Talvez nos vejamos na viagem... a não ser que você tenha escolhido outro carroção para acompanhá-la".

Jesse balançou a cabeça:

— Não, acabamos de entrar na cidade e Homer não é de muita conversa. Ele estava ocupado ajudando-me a fazer a lista de compras...".

A atenção da mulher foi desviada por vozes irritadas lá fora.

Todos que conheciam Homer King em Illinois sabiam que, quando ele metia uma idéia na cabeça, ninguém podia tirá-la. E era o que havia acontecido.

— Eu suei sangue fazendo o melhor carroção para atravessar o território. E eu não terei esses bichos sarnentos atrelados em minha carruagem! Dê-os para outra pessoa, é isto que digo! — Ele permaneceu em pé na rua poeirenta e encarou o chefe da caravana. — Nossos cavalos farão bem o serviço. Por que eles ganharam o primeiro lugar no ano passado no carroção que retornou?" Homer dava tapas na anca larga de Gabe para enfatizar seu ponto de vista. O cavalo, pacientemente, balançava a cabeça, meio dormindo, apesar da algazarra ao seu redor.

De dentro da venda Jesse ouvia ansiosamente. A voz de Homer tinha uns tons agudos que ela aprendera a conhecer. As palavras saíam bruscamente. Cada frase terminava numa explosão baixa, as palavras prolongavam-se para dar ênfase. Jesse nem precisava olhar para saber que seu queixo estava rígido, sua cabeça inclinada para um lado. Os olhos cinza estariam parcialmente fechados num olhar apertado.

Marshall Applegate, no entanto, não cederia como Jesse sempre fizera. Sua voz veio forçada, mas firme, descompromissada:

— Sr. King, se os seus cavalos fugirem não vou gastar o tempo precioso dos outros para ajudar o senhor a recolhê-los. Se eles mancarem o senhor terá de dar lugar a outro carroção. Bem, senhor, tenho mais coisas para fazer. Eu o aconselho, esta caravana não é lugar para cavalos. Compre alguns bois". Dado o último aviso, Applegate saiu.

Jesse inconscientemente apertou o nenê dormindo e virou-se para o funcionário, pedindo as últimas mercadorias. Lavínia apressou-se a mudar de assunto:

— Bem, então, não vai ser uma aventura? Quando meu George perguntou o que eu achava de ir para o Oregon, respondi na hora: 'George Wood, não consigo pensar em nada mais excitante para fazer!'".

Jesse respondeu:

— Homer nunca conversou muito comigo sobre seus planos. Por mim, ficaríamos perto de casa. Mas depois que o Sr. Whitman falou em nossa igreja, a cabeça de Homer não pensou em outra coisa. Não havia mais nada além disso. Ele fez o carroção, vendeu a criação e aqui estamos nós...— A criança levantou a cabeça de seu ombro e então aconchegou-se de novo. Lágrimas de saudade começaram a sair dos olhos de Jesse, mas ela as segurou, levantando seu queixo tenazmente e sorrindo um sorriso apertado, forçado, que quase nem levantava o canto da boca. "...e o pequeno Jacob terá a chance de fazer seu caminho num mundo totalmente novo. Para isto é que vale cruzar as planícies — imagino eu."

Lavínia deu um tapinha em seu ombro, ao passar. — Bem, querida, fique perto de mim e dançaremos o tempo todo até Oregon! — Ela apressou-se para a porta gritando por cima do ombro para Jesse: — Meu nome é Lavínia, mas, para os amigos, Vinnie. Portanto, chame-me de Vinnie e vamos agradecer a Deus por ficarmos amigas tão no começo da viagem!".

Jesse concordou, balançando a cabeça agradecida.

E Homer King firmou o queixo e deixou os cavalos nos arreios.

 

Não estejais inquietos por coisa alguma... as vossas petições sejam em tudo conhecidas diante de Deus.

Filipenses 4:6

 

Jesse e Homer estavam em Independence há poucos dias quando Homer começou a resmungar sobre o que denominava — Atrasos desnecessários".

— Eles dizem que temos de esperar — a grama está bem baixa para alimentar o gado. Se eles não tivessem de levar o amaldiçoado rebanho junto, haveria muita grama.

Ele reclamou com amargura sobre a organização da caravana: — Quinze pelotões de quatro carroções cada... como se estivéssemos novamente no exército. E a forma como elegeram os líderes dos pelotões, então! Todos amontoados como um bando — os 'capitães' em fila, marchando à frente. Então o resto dos tontos saem correndo em fila atrás de uma chance para serem capitães... Hum!! Um monte de homens barbados parecendo escolares brincando de 'marcha-soldado'!".

— E que fila você escolheu, Homer?— A voz de Jesse estava calma, delicada. — O George Wood ganhou um lugar?"

Homer não se acalmava. — Escolher? Eu? Hum! Deixe eles escolherem! Eu não sou moleque de escola! Tenho quarenta e dois anos e não me importo com tamanha besteira. Nós vamos fazer do nosso jeito!"

Marshall Applegate não ganhara nem o respeito nem a confiança de Homer. Sua insistência para que Homer trocasse Beau e Gabe por bois não fora o último desacordo. Quando Applegate percebeu que Homer estava determinado a manter seus cavalos, ignorando a organização da caravana, voltou insistindo que Homer comprasse ração. Homer resistiu e Applegate perdeu o controle.

— O homem que não aceita o conselho dos que estão à sua frente é um tonto! Estou-lhe dizendo, pela última vez, King, a grama da campina comum é muito seca para animais que precisam de muito alimento. Eles ficarão pesteados com insetos e também pegarão monquilho nas águas do Rio Platte. Se você não transportar grãos para ajudá-los, eles jamais terminarão a viagem. É melhor você levar ferraduras, preguinhos e muitos grampos também...e, se eles não conseguirem, nós deixaremos vocês! — Applegate, agitado, decidiu ficar o mais longe possível deste emigrante rabugento.

Jesse não estava desatenta à lógica de Applegate. Ela arriscou uma opinião: — Hoje ouvi dizer que o gado não está caro, Homer — só $50 a cabeça. O Gabe e o Beau não poderiam ir juntos, puxados pelo nosso carroção?— Acrescentou convincentemente: — Assim eles estarão em forma para lavrar a terra no Oregon!".

— Nós não vamos comprar bois!" Homer respondeu brusca¬mente. — E ficarei agradecido se você se lembrar que tem apenas vinte e um anos e não conhece nada, absolutamente nada fora de Illinois. Só cuide do seu trabalho de mulher, e não se meta no que não é da sua conta! — Ele despejou sua frustração com Applegate em cima dela, inspecionando cada coisa que ela havia arrumado para a viagem. Implicou com os supérfluos que ela comprara. — Pão, bacon e café é tudo do que um homem precisa para atravessar uma planície, mulher! Não sei por que você tem de levar pêssegos e maçãs desidratados. Não haverá festas durante a viagem."

— Eu só achei que uma torta de pêssego ou de maçã é muito saborosa, Homer— Jesse replicou. — E será como uma lembrança de casa quando nos sentirmos saudosos."

Homer replicou que ele planejava estar ocupado demais para sentir-se saudoso e que era melhor ela ter uma idéia mais realística da vida na caravana.

A medida que a hora da partida aproximava-se, o humor de Homer piorava. Jesse o evitava o máximo possível e orava por paciência para lidar com seu humor instável. Jacob enfrentava a aventura rindo à toa e tagarelando diante de tudo o que via. A família estava acampada logo do lado de fora de Independência, esperando a hora de partir.

Finalmente, após uma reunião com o Dr. Whitman, ficou decidido que partiriam no dia vinte e dois de maio.

— Até que enfim! — disse Homer, — Também já era hora!".

— Até que enfim— Jesse cochichou, com temor no coração e uma oração em seus lábios.

O sol nasceu, os chicotes estalaram, os homens gritaram e a poeira levantou enquanto a caravana de carroções pôs-se em direção ao Oeste. Acabrunhada diante da grande multidão de emigrantes, Jesse apertou Jacob e inclinou-se para trás no banco do carroção. Passaram por uma mocinha vestida com roupa de domingo, passeando devagar na estrada poeirenta, com um livro aberto à sua frente. Jesse ficou imaginando se ela estaria realmente lendo. A moça percebia os olhares de admiração de muitos rapazes, um do quais gritou: "Ó ninfa, nas vossas preces, sejam lembrados todos os meus pecados!".

Jesse corou com o atrevimento dele e encostou-se um pouco mais em Homer que o usual.

Eles estavam viajando na grande trilha de Santa Fé. Eles sempre passavam por caravanas de mercadores com carroções cheios de mercadorias, em direção ao México. Em poucas horas haviam atravessado a fronteira Oeste do estado e entrado no território dos índios shawnee. A terra era linda e fértil e muitos dos shawnees tinham fazendas boas e casas confortáveis. Alguns até mesmo falavam inglês, mas isto em nada confortava Jesse, que via os índios como criaturas sem Deus, que deviam ser temidas e evitadas a todo custo.

Jesse logo desistiu da idéia de viajar dentro do carroção para o Oregon. Os solavancos e pulos dele tornavam isso impossível. Tão logo cuidara de Jacob, Jesse pulou do carroção e andou ao lado, durante a manhã. Ao meio-dia, quando a caravana parou para "descansar — ela estava mais cansada do que jamais estivera em sua vida. Beau e Gabe foram desatrelados e levados até a água e grama fresca para almoço. Homer averiguou o arreio, engraxou os eixos do carroção e se assentou para ver Jesse fazer o fogo e preparar o almoço. O tempo passou rápido e logo eles estavam indo aos solavancos novamente.

Jesse carregou Jacob um pouco, mas ele parecia nem se importar com os solavancos da carruagem e gritava com alegria a maior parte do dia, espiando Jesse de trás da carruagem, mostrando os pássaros e coelhos que apareciam subitamente, saindo por trás dos arbustos e pedras.

Eles viajaram quase vinte milhas naquele dia. Ao entardecer, quatro pelotões ficaram em círculo, formando um curral. Os animais foram desatrelados e o varal de cada carroção foi amarrado nas rodas traseiras do carroção vizinho. Os bois e cavalos puderam pastar até o pôr-do-sol, quando foram levados para o curral.

Jesse pensara que estivesse cansada ao meio-dia, mas ao anoitecer estava quase chorando de tanta exaustão. Homer parecia estar mais bem-humorado. Beau e Gabe tiveram um belo desempenho naquele dia, galopando levemente à frente dos outros carroções. Comparados aos passos dos bois, os cavalos se moviam com elegância, e muitos olhares de admiração eram lançados a eles. Homer via os olhares e sua severidade e austeridade abrandavam-se um pouco. Ao anoitecer, ele sentiu que sua decisão em manter Gabe e Beau fora reconhecida. Homer falou alegremente com Jesse e até aceitou o convite de George Wood para ficar ao lado deles pelo resto da viagem.

Lavínia assegurou-se de que Homer não visse sua piscada para Jesse, quando o convite fora feito e aceito. Jesse sorriu em retorno, envergonhada.

Finalmente as tarefas da noite terminaram. Jesse afundou no colchão de pena, dentro do carroção, agradecida. Jacob estava dormindo há horas. Quando Jesse tentou acordá-lo para alimentá-lo, ele mamou, meio dormindo, só por uns segundos. Jesse sentiu-se sonolenta mesmo enquanto abotoava seu corpete. Homer continuou a olhar de debaixo do carroção/ para que seus cavalos não fossem machucados por algum boi briguento.

Com o passar dos dias, a terra tornou-se mais árida. As faixas de bosques ainda preenchiam as margens dos ribeiros e riachos, mas havia no lugar um silêncio que enchia o coração de Jesse com saudade de casa. O pavor do desconhecido aumentava. Homer estava decidido sobre Oregon. Parecia não ter saudade do que haviam deixado. Toda manhã, quando acordava, Jesse ouvia o grasnar familiar dos gansos de sua mãe ou o grito alegre do cardeal. Ali, na campina não havia nada disso. A luz do nascente trazia apenas o silêncio quebrado pelo som dos carroções e seus animais.

Somente Jacob enchia o grande vazio ao redor e dentro dela. Jesse caminhava sozinha grande parte do dia. Ela cuidava de Jacob, preparava as refeições para Homer, remendava suas roupas e dormia exausta, quando, então, sonhava apenas com o que estava atrás dela. Acordava para se lembrar de que sua casa estava muito longe, para andar em colinas áridas e desconhecidas e para sentir saudade das matas profundas que costeavam a fazenda de seu pai.

Junto à solidão da campina estava o terror de índios. Jesse ouvira muitas lendas em volta das fogueiras noturnas. Eles tinham então deixado a terra dos pacíficos shawnees e estavam no território dos kansaz, que viviam em cabanas feitas de troncos e cascas de árvores. De alguma forma eles curvavam o telhado e Jesse achava que suas moradias pareciam panelas de ferro viradas de cabeça para baixo. Ela viu, com horror, que estes índios ficavam quase totalmente nus.

— Eles são ladrões— George Wood expôs, acrescentando: — E eles adoram crianças, especialmente crianças loiras". Lavínia o fez calar-se, mas, depois disto, sempre que os kansaz aproximavam-se, Jesse entrava no carroção cheio e empurrava Jacob para baixo, ao seu lado.

— Não estejais inquietos por coisa alguma— ela lia, — Antes as vossas petições sejam em tudo conhecidas diante de Deus pela oração e súplicas, com ação de graças. E a paz de Deus, que excede todo o entendimento, guardará os vossos corações e os vossos sentimentos em Cristo Jesus". Jesse lia e relia a passagem bíblica à luz da fogueira, cada noite. Isto a confortava o suficiente para poder dormir. De fato, cada novo dia trazia medos renovados.

Jesse estava quase no desespero no dia em que sua amizade com Lavínia foi firmada. Lavínia estivera muito envolvida com. sua ninhada para pensar em Jesse. Os carroções tinham estado um ao lado do outro e de fato Lavínia pouco tinha feito para contactar Jesse, exceto por alguns gritos de encorajamento a ela, uma risada de vez em quando para Jacob e, freqüentemente, um olhar carrancudo para Homer.

Finalmente Lavínia tinha organizado sua família num pelotão. Emily, a mais velha, ficou responsável por Esther, o bebê.

— Mantenha a menina longe das rodas da carruagem e de cobras, e eu tentarei não pedir muito mais— Lavínia ordenou.

Amanda, a próxima da fila, cuidava da vaca, enquanto a mãe fazia o almoço. Eles haviam trazido só uma vaca, mas ordenhando-a pela manhã e pendurando o balde de leite atrás da carruagem, eles tinham manteiga para o jantar.

Amélia e Ophélia eram as gêmeas de quatro anos. Elas ajudavam a recolher lenha, estendiam a roupa de cama para arejar e cumpriam tarefas que deixavam Jesse admirada, enquanto ela assistia a tudo de sua própria fogueira.

Todos os dias os Woods acendiam o fogo e almoçavam antes dos outros. À noite, quando todos os outros na caravana pareciam estar da cor do pó, um marrom que cobria tudo e todos, Lavínia tinha uma energia sem fim. Ela limpava, e remendava, e cozinhava, e ainda tinha tempo para rir e brincar com suas meninas.

Jesse ficava pensando em sua coragem. Homer a chamava de — Aquela mulher intrometida e arrogante — Ao observar Lavínia e George, Jesse não podia evitar admirá-los. Eles pareciam ser amigos. Jesse ficava imaginando como seria estar casada com o melhor amigo.

Tarde da noite, na segunda semana, houve uma tempestade. O céu tornou-se preto e a chuva caiu em torrentes a noite toda. A densa escuridão só era interrompida pelos clarões de relâmpagos estonteantes. Os trovões continuaram num barulho constante e nem mesmo Jacob podia dormir, agarrando-se à sua mãe, aterrorizado. Jesse foi incapaz de confortá-lo. Seu coração batia forte e ela ficava pensando se os animais não iriam abrir caminho no curral feito de carroções. Num momento, num intervalo entre trovões, ela ouviu a voz de Homer chamando sua parelha de cavalos, mas o vento soprava tão forte que era impossível saber exatamente onde ele estava. Jesse temeu que o carroção pudesse tombar.

Pela manhã o solo começou a inundar com água. Jesse viu que vários carroções tinham, de fato, perdido suas coberturas com o vento. O Rio Big Blue, que deveriam atravessar naquele dia, tinha suas margens inundadas. Ele se revolvia e rugia, mas Homer e os outros homens não seriam barrados. Eles sentiram a urgência de continuar e acharam que poderiam flutuar os carroções e famílias para o outro lado a salvo.

Applegate não estava tão certo:

— Mas se alguém pudesse atravessar e amarrar uma corda naquele grande choupo do outro lado, nós conseguiríamos montar uma balsa".

Os choupos estavam cortados, caídos e amarrados juntos. Vigas cruzadas eram colocadas de forma que as rodas dos carroções podiam ser escoradas nelas. Os objetos de cada carroção foram descarregados para serem atravessados separadamente.

Jesse ficou horrorizada, quando Homer anunciou-se como voluntário para atravessar a violenta correnteza com Beau.

— Nós amarraremos uma corda naquele choupo distante e daí atravessaremos os objetos — ele explicou. Então acrescentou: — Beau consegue fazer isso, Jesse. Ele é forte. Ele consegue".

Jesse sabia que não seria bom contestar. Ela queria encorajá-lo, mas a água lhe inspirava tamanho medo que ela não podia encarar a idéia de Homer nessa correnteza. Ela chorou e implorou que ele não fosse. Ele ficou bravo e saiu a passos largos.

Lavínia tinha presenciado essa discussão de uma certa distância. Tão logo Homer saiu, ela chegou:

— Querida Jesse, você faria a bondade de ajudar-me a descarregar meu carroção? Eu não conseguirei fazê-lo rápido o suficiente de forma que agrade o George".

Jesse sabia que Lavínia estava inventando uma necessidade de ajuda, mas ela estava grata por ficar no meio de outras pessoas. Emily, a de dez anos, correu pegar Jacob e levou-o para procurar minhocas na lama deixada pela tempestade da noite.

Jesse ajudou Lavínia a descarregar, ouviu-a tagarelar sobre as maravilhas do Oregon e a excitação da viagem e tentou relaxar. Mas o aperto em seu estômago não parava. Suas mãos tremiam e, finalmente, ela ficou mal fisicamente e curvou-se soluçando.

Lavínia a enlaçou, num grande abraço maternal. Ela conduziu Jesse para o outro lado do carroção, de forma que a visão do rio ficasse bloqueada. Homer montado em Beau, corda na mão, apressava-o nas águas agitadas. Então Lavínia fez a única coisa que poderia para aliviar o medo de Jesse. Lavínia orou.

— Querido Senhor — ela cochichou, de forma que Jesse pudesse escutá-la, — Ajude-nos. O Senhor sabe que eu estou com medo também. Eu apenas reajo diferentemente. Mas, aqui está a Jesse, e ela precisa de uma graça especial. Seu marido está na água e sabemos que o senhor prometeu estar conosco. Por isso, por favor Senhor, mantenha o Homer seguro. O Senhor sabe que a Jesse precisa do marido dela. Salve-o, Senhor".

Jesse não ouviu exatamente cada palavra, tão submersa estava em seus pensamentos. Mas nos braços de Lavínia pôde sentir o cuidado dela. Como sua atenção se voltasse para o céu, para Aquele que dominava o fluxo da correnteza, ela sentiu-se confortada. Suas mãos tremeram menos e o nó de seu estômago relaxou.

Jacob veio cambaleando, gritando alto, alegre. Ele trouxe uma minhoca comprida e grossa para Jesse olhar. Ela ajoelhou-se e o abraçou, admirou a minhoca e louvou ao Senhor quando ouviu vozes gritando:

— Ele atravessou! Ele conseguiu!".

De fato Homer tinha conseguido. Enquanto Jesse espiava de trás do carroção, viu Homer e Beau chacoalhando a água do rio Big Blue do corpo.

A caravana ficou três semanas nas margens inundadas do Big Blue. Passar horas e horas trabalhando com animais amedrontados, desatolando carruagens, tentando manter as roupas secas e colocando comida na boca de todos esgotava a paciência de qualquer um. Faziam-se inimigos, mas boas amizades também; ao final de três semanas, Jesse King e Vinnie Wood eram grandes amigas.

Lavínia era impetuosa e corajosa. A timidez de Jesse acalmava-a e tornava-a mais delicada. Jesse era tímida e solitária. A personalidade expansiva de Lavínia conquistou-a e ela começou a rir novamente. Ela até se convenceu a participar da reunião de louvores com hinos da família Wood. Homer recusava-se a cantar uma nota sequer, mas em seu interior sentia-se orgulhoso da bela voz de sua esposa, assim ele ia junto e segurava Jacob enquanto todos os outros cantavam.

Jesse e Lavínia descobriram duas coisas em comum. Ambas amavam o Senhor e ambas adoravam fazer colchas de retalhos. Todas as mulheres haviam feito colchas para a viagem, mas Lavínia e Jesse particularmente amavam a tarefa. Elas conversavam sobre modelos e seus planos de novas colchas horas a fio.

— Não sei em que eu estava pensando quando empacotei os retalhos para esse aqui — Lavínia disse um dia, mostrando a Jesse uma pilha de chita e musselina. — Imagina que eu achei que pudesse emendar um pouco... mas a terra, o carroção sacudindo assim, e à noite estamos todos tão quebrados..."

— Eu entendo— Jesse concordou. — Tenho retalhos também, para a Arvore da Vida, mas são tão pequenos..."

— Jesse King!— Lavínia exclamou, — Você me disse que o Homer inspecionou cada centímetro do carroção e tirou a maior parte do que você queria trazer. Então como você conseguiu trazer seus retalhos da Arvore da Vida? Ele nunca aprovaria, minha querida!".

Jesse piscou e sorriu com recato: " Homer não inspecionou o saco de farinha. Ele achou que estivesse completamente cheio., .de farinha".

George Wood e Homer King mantinham respeitosamente uma distância. Homer não era inclinado a cultivar nenhuma aproximação. Suas razões para ir para o Oregon incluíam a independência total, e ele não via necessidade de criar vínculos que pudessem, em qualquer momento, incorrer em obrigações de sua parte.

Quando chegou a vez de as famílias Kinge Wood atravessarem o Rio Big Blue, Deus tinha graciosamente acalmado as águas. Os carroções deslizaram sem nenhum problema, e Jesse louvou a Deus, do fundo do coração, quando seus pés tocaram a margem oposta.

Após a travessia do Big Blue,a paisagem mudou rapidamente. As colinas pareciam apenas grandes pilhas de areia. Havia boa relva para a criação, mas também abundância de cactos espinhosos. Homer dirigia com cuidado, temendo que os espinhos machucassem as patas dos cavalos.

Em abril e maio o frio fora desagradável. Agora o clima estava moderado e Jesse se desesperava tentando espantar os pernilongos de Jacob. Apesar de seus esforços, ele parecia o tempo todo estar com sarampo. A poeira, às vezes, era tão grossa que Jesse tinha dificuldade em ver o primeiro carroção. Nos dias de vento, o pó atingia fortemente seu rosto e mãos. Quando ela não suportava mais essa aflição, abrigava-se dentro do carroção, até que os solavancos e sacudidelas se tornassem insuportáveis. Então ela pulava para fora e carregava Jacob até que a poeira a fizesse voltar novamente.

Levaram apenas um dia para atravessarem a charneca entre o Big Blue e o Rio Platte, onde então se dirigiram para o Oeste. Era noite e a visão panorâmica do Platte deixava até os viajantes mais acostumados estupefatos.

— Eu vi isto pela primeira vez em 35 — o Dr. Whitman compartilhou — mas eu ainda fico fascinado".

O vale grande e reluzente do Platte se estendia para além deles, numa planície vasta que parecia totalmente nivelada.

— Eu afirmo— Observou Homer — parece que a água está flutuando sobre a terra... parece uma fita amarelada esticada no vale".

O rio parecia mais largo que o Mississipi, mas não havia mata em suas margens. Era diferente de qualquer rio que já tinham visto antes. Enganoso em sua aparência, tinha apenas três ou quatro pés de profundidade e puderam atravessá-lo facilmente. Eles tinham que começar a juntar estéreo para as fogueiras. Jesse estava surpresa ao aprender que estrume seco de búfalo dava uma fogueira boa, quente. Ela preparou sua torta de pêssego naquela noite. Homer parecia ter-se esquecido de suas reclamações anteriores sobre as “Besteiras" dela e comeu três pedaços.

 

No dia seguinte, viram um grande número de animais de caça. Mas o Dr. Whitman explicou que, sendo a terra tão plana, eles teriam dificuldade de se aproximarem de qualquer um o suficiente para atirarem. Homer falou dos que tentavam, como idiotas, e disse para George Wood:

— Eu penso muito em meus cavalos para sair caçando animais, depois de eles terem puxado o carroção o dia todo. Eles ganham a noite de descanso e não vou fazê-los correr como bobos atrás de caça que não conseguimos pegar".

Groselha, cerejas silvestres e frutos de sorveira eram abundantes ao longo das margens do Rio Platte, e Jesse se alegrava acrescentando-os às suas comidas rotineiras. Lavínia colheu as verdes e ensinou a Jesse como prepará-las para Jacob, para prevenir o escorbuto. A criança fez careta quando viu a substância verde, mas bebeu-a de boa vontade após o encorajamento da — Tia Vinnie.

A viagem tornou-se monótona. Andando milhas por dia, Jesse caía na cama exausta e acordava tão dolorida que se lamentava ao descer do carroção cada manhã. Lavínia estava desesperada com suas mãos, que, segundo ela, estavam — Mais ásperas do que uma folha de cicuta".

— Como vou fazer colchas de novo, Jesse?— ela perguntou. — Minhas mãos estão tão doloridas que eu mal posso manter as roupas remendadas... e pensar— ela observou — que eu me orgulhava de dar doze pontos por polegada!".

— Nós vamos ter uma festa das colchas de verdade, assim que chegarmos no Oregon!— Jesse falou. — Não vai ser bacana?"

Foi no final de um dia terrivelmente quente e empoeirado que Lavínia ouviu, por acaso, Homer reclamando das refeições serem sempre iguais.

— Bacon, café e bolachas, é só o que nós comemos! — disse ele. — Já que eu luto e me desgasto com rodas de carroções quebradas e cavalos o dia todo, seria muito bom ter algo especial para comer de vez em quando. Agora tenho de engraxar o arreio e não dá para eu ficar olhando o Jacozinho o tempo inteiro, também. Você me chama assim que tiver algo comestível pronto."

Lavínia se apressou:

— Veja lá, Jesse, tome uma atitude com esse homem! Se o George tentasse falar umas besteiras dessas para mim, ele teria bolachas e carne seca para o jantar até que endireitasse".

Jesse riu só de pensar na Lavínia servindo — O George dela — Com esse tipo de jantar. — A coisa não é tão ruim assim, Vinnie. O Homer tem boa intenção. Ele está é cansado. E também preocupado com o Gabe e o Beau.— Aparelha tinha começado amostrar-se extenuada com a viagem, bem como Applegate tinha previsto. Homer se recusara a comprar grãos, apesar do conselho de Applegate. A forragem era, de fato, insuficiente. As costelas dos cavalos estavam começando a aparecer um pouco, e seus pêlos haviam perdido aquele brilho d o qual Homer tanto se orgulhava. De nada adiantava perceber que seus animais estavam-se desgastando. Ele até mesmo mencionou a possibilidade de deixar o fogão do lado da trilha.

Lavínia se recusou a ser compassiva.

— Cansado! Acorda, mulher! Você também não está cansada?— explodiu. — Puxa vida, nós não estamos todos cansados!? Caramba, estou tão dolorida que mal posso me mexer. — Então, animando-se acrescentou: — Bem, queridinha, as meninas colheram groselhas hoje e assim teremos torta de groselha esta noite. Vocês estão convidados".

Apressou-se, para começar o jantar, acrescentando por sobre os ombros: — E eu suponho que você possa trazer aquele verme do seu marido, como você mesma diz. Quem sabe a groselha com bastante açúcar possa adoçá-lo um pouco!".

 

O Senhor é o meu pastor: nada me faltará.

Salmo 23:1

 

No dia seguinte, Jesse e Lavínia andaram juntas após o café da manhã. Não conversaram muito, compartilhando um silêncio gostoso durante toda a manhã. Como o meio-dia chegava, começaram a recolher estéreo de búfalo para o fogo. Após quase uma hora, as mulheres perceberam que dois dos carroções estavam parados. A poeira baixou e elas notaram, com um nó na garganta, que eram seus próprios carroções que haviam saído da trilha. Então viram que toda a caravana começara a parar. Um agrupamento se formara em volta de um carroção. Jesse jogou o monte de estéreo que tinha em seu avental e começou a correr. Enquanto corria, carrapichos grudavam na barra de seu vestido. O vento e o pó queimavam sua garganta, mas continuou a correr, até que, chegando ao ajuntamento, ela o viu.

No chão estava Jacob, com um braço sobre sua cabeça. Ao seu lado ajoelhado, Dr. Whitman. Ao ver Jesse chegar, levantou-se e aproximou-se dela.

— Senhora King, sinto muito. Não podemos fazer nada. Ele está com Deus agora. — O rosto fechado do missionário encheu-se de lágrimas. Jesse olhou ao redor, descontroladamente, e seu olhar parou em Homer. Curvado, sem o chapéu, a aba da camisa caída, aproximou-se dela. — Meu Deus, Jesse, meu Deus. Ele acordou e veio sentar-se comigo... e antes de eu perceber o que acontecia, ele caiu. Tentei pegá-lo... eu rasguei sua roupinha tentando pegá-lo... eu o peguei, mas então...— Sua voz sumiu — ..então o carroção deu uma guinada, eu o soltei... as rodas... — Ele não conseguiu continuar, somente parado à sua frente, virando o chapéu sem parar, pelas abas.

Jesse queria gritar, mas os sons paravam em sua garganta. Todas essas pessoas, todos esses estranhos olhando... Sua dor era profunda, muito grande para dividir com eles. Deu uma respirada e levantou o queixo. Apertou a mão de Homer. Ele derrubou o seu chapéu e apertou as mãos dela. Ele apertou tanto que doeu.

— A caravana precisa mover-se, Dr. Whitman— Jesse ouviu-se falando. — Quantas vezes eu o ouvi dizer: 'À frente... precisamos sempre nos mover para a frente'. E começamos tarde. Por favor, diga a essas pessoas para nos deixarem com nossa dor. Podemos segui-los mais tarde."

O Dr. Whitman colocou a mão sobre seus ombros.

— Mas minha querida senhora King, a senhora não quer que fiquemos para oferecer nossas orações nesta hora?"

Jesse respondeu melancolicamente:

— Nenhuma oração vai trazê-lo de volta... vocês todos podem orar por nós, nos carroções, enquanto continuam— Então, abaixando um pouco a voz, ela suplicou: — Por favor, Homer... faça todos irem embora. Podemos despedir-nos do Jacob sozinhos. Homer, estes estranhos olhando...— Sua voz falhou, mas o tom de súplica trouxe resultado. A caravana partiria.

As pessoas começaram a se dispersar em grupinhos, cochichando, enquanto se afastavam. Apenas Lavínia ficou.

— Jesse querida— cochichou, — venha olhar o Jacob. Parece que ele está só dormindo".

Durante o tempo interminável em que a multidão se dispersou, Jesse e Homer permaneceram estáticos, cabeças baixas, esperando. De alguma forma Lavínia tinha arrumado uma bata limpa para o nenê. Jesse se permitiu olhar e um grito fraco escapou de sua garganta. Ajoelhada ao lado do corpinho sem vida, ela o pegou em seus braços e delicadamente embalou o bebê. As lágrimas deixavam o rasto na face empoeirada. Lavínia se ajoelhou ao lado de Jesse, na poeira, com os braços ao redor de seus ombros encurvados.

Homer deixou Jesse às suas lágrimas, parando perto do carroção e esperando-a acabar. Nervosamente, torcia o chapéu em suas mãos. Finalmente, Jesse agarrou-se à criança perdida.

Lavínia afastou-se, enquanto Jesse levantava-se entorpecida, foi para o lado de Homer e esperou-o falar.

Finalmente, ele colocou um braço no ombro de Jesse e repetiu:

— Eu o tinha pego...e então...".

Jesse interrompeu-o:

— Não foi sua culpa, Homer. Isto poderia acontecer com qualquer um".

Parecia que as palavras aliviavam algo dentro do homem. Enquanto seu corpo balançava com uma onda de alívio, ele suspirou. Afastou-se de Jesse, encolhendo os ombros, e pegou uma pá no carroção. Ele falou quase com um resmungo:

— Posso não tê-lo agarrado para salvá-lo... mas quero ter a certeza de que os coiotes perigosos vão deixá-lo em paz agora".

Furiosamente começou a cavar uma pequena sepultura. A pá cavou fundo, bem fundo a campina dura, até que, exausto, ele sentou-se à beira da sepultura. Olhou para Jesse de novo e encontrou-a ainda parada ao lado do carroção, onde a deixara. Quando os olhos dela encontraram seu olhar, rapidamente ele falou, olhando o horizonte distante:

— Acho que é melhor acabar com isso logo".

— Espere um pouco, por favor.— Jesse relutou, com o corpo de Jacob, nos braços, mas conseguindo entrar no carroção. Homer ouviu o barulho das coisas sendo mexidas lá dentro. Parecia um tempo grande, mas ele não conseguia juntar-se a ela no carroção. De alguma forma, seria muito intimidador fechar-se com ela agora, bem quando ela tinha perdido seu filho.

Jesse saiu de dentro, carregando Jacob enrolado no acolchoado de bebê azul e branco, o qual Homer não tinha mais visto desde que Jacob havia começado a andar. Ele nem tinha percebido que ela o havia trazido na viagem.

Jesse tentou limpar a poeira do rosto de Jacob, enquanto o passava para Homer. Ele colocou o corpo na sepultura e hesitou, não sabendo bem o que fazer. — Parece que é necessário dizer algo..."

Jesse entrou mais uma vez no carroção e voltou com sua Bíblia. Desta vez, Homer não fechou a cara com a aparição do livro. No passado, ele havia acusado Jesse de negligenciar seu trabalho para ler esse livro velho.

— Querido Homer — ela falara suavemente: — Eu posso trabalhar muito melhor e ser muito mais útil a você, após gastar tempo com o Senhor— Era a única área de sua vida na qual ela parecia segura de ter seu próprio caminho. Homer, com relutância, cedeu à sua "fraqueza feminina" e deixou-a ler a Bíblia. Mas hoje parecia certo ela ler o livro. Ele estava grato por ela ter o livro e saber o que ler.

Jesse sabia mesmo o que queria ler. Não que fosse ajudar de alguma forma seu precioso Jacob, mas seu próprio coração dolorido precisava do conforto de palavras conhecidas. E, assim, ela abriu na passagem querida e começou a ler: — O Senhor é o meu pastor: nada me faltará— Ela leu baixo, com dignidade, sua voz falhando um pouco quando leu a parte: — Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte, não temeria mal algum— mas o restante leu firme. Ao final do salmo, ela curvou a cabeça. Homer a imitou e ouviu enquanto Jesse conversava com o Deus dela.

— Senhor— ela disse delicadamente, — Não sabemos por que o Senhor levou nosso único filho, mas sabemos que o Senhor nos ama e que o Senhor reverterá isto a nosso favor... Senhor, ajuda-nos a confiar mesmo agora quando nossos corações estão quebrados— Ela queria dizer mais, mas sentiu que não podia. Nem falou baixo — Amém— mas virou-se e fugiu para a carruagem. Arremessou-se então no colchão, onde, longe de qualquer olhar, podia demonstrar seu desespero.

Quando Jesse mais tarde olhou para fora, viu que Homer tinha enchido a pequena cova e coberto com muitas camadas de pedras grandes. Ele estava sentado ao lado da sepultura, enxugando sua testa. Vagarosamente, levantou-se e caminhou em direção ao carroção. Seu passo, antes forte, estava agora transformado no passo arrastado de um homem velho. Foi então que Jesse percebeu que, a seu próprio modo, Homer estava sofrendo também. Talvez mais, ela pensou, ele não tem o conforto do Senhor.

O sol estava-se pondo e Homer mexeu-se, acendendo uma fogueira. Jesse juntou-se a ele e preparou o jantar. Comeram em silêncio e dormiram um sono quebrado, Jesse dentro do carroção e Homer esticado fora dele, com o rifle ao seu lado.

 

Seja para correção... ou para beneficência, que a faça vir.

Jó 37:13

 

Á primeira luz da aurora, Homer apressou-se a arrear Gabe e Beau. Segurando no lado do carroção, ele subiu, agarrou as rédeas e gritou para os cavalos: — Eia!". O arranque do carroção tirou Jesse de um sono artificialmente profundo. Ela sentou-se e fitou confusamente a pequena pilha de pedras, que começava a sair da sombra do carroção. À medida que os cavalos moviam-se pesadamente para a frente, as pedras misturavam-se à paisagem, até que finalmente elas desapareceram, e ela podia apenas fitar o lugar no horizonte onde elas tinham estado. O rangido das rodas que ontem mesmo parecia uma música ritmada de promessa assumiu tons agourentos.

Quando seu corpo demandava a alimentação da criança que partira, Jesse orava. Senhor, eu não entendo... mas com a sua ajuda vou crer que isto de alguma forma nos trará bem. Sua voz cortava-se enquanto cochichava mais alto: "Ô Senhor, mas ele era tão... — ela soluçava — pequenininho...".

Quando eles pararam para o descanso do meio-dia, Homer apareceu ao fundo do carroção. Ele não falou logo, mas alcançou e apertou suas mãos fechadas. Os calos nas mãos dele eram grossos, mas ele envolveu as mãos de Jesse delicadamente, traçando as veias finas e azuis,que passavam embaixo de sua pele.

Jesse olhou atentamente aquelas mãos, então fitou dos antebraços fortes à camisa xadrez e finalmente a cabeça abaixada. Seriam lágrimas umedecendo os cílios? A possibilidade de Homer sentir tal emoção tirou o pensamento da pequena sepultura.

— Preciso começar a acender o fogo— ela falou, mas suas palavras não importavam, pois continuou sentada, agarrada às mãos fortes em seu colo.

— Tudo bem, Jesse— Homer quase cochichou. Então, limpando a garganta acrescentou: — Você sabe, eu não queria deixá-lo lá...".

Jesse interrompeu:

— Mas Homer, nós não tínhamos escolha". O abismo de dor que os tinha separado parecia fechar-se.

Jesse moveu-se, pegando o saco de farinha. Homer a tirou para fora do carroção. Era um gesto que muitos teriam como gratidão, mas Homer King não era um homem de tais gestos. Jesse tinha sempre entrado e saído do carroção sozinha. Ela tinha feito amigos sozinha na caravana e adaptado sua vida o melhor que pudera. Essa demonstração pequena de carinho confortou-a.

— Nós os alcançaremos à noite— Homer assegurou a Jesse, — Eu não vou desatrelar a parelha hoje... mas só dar-lhes um descanso rápido".

Acabado o almoço, Homer, com os olhos semicerrados, fitou o horizonte.

— Parece que vem uma tempestade. Vamos continuar."

Os dois trabalharam rápido, Jesse tentando escutar o barulho do trovão ao longe. Num vislumbre, descobriu uma nuvem escura no horizonte.

"Ó meu...— sua voz parou na garganta. Ela colocou a mão no ombro de Homer, e, à medida que levantava, apagado já o fogo, ela apontou a nuvem com desânimo.

O estrondo do estouro dos búfalos alcançou seus ouvidos e Homer instantaneamente voou para o carroção. Saltando para o assento, arrumou os arreios. Gritando para Gabe: — Eia!— ele fez um sinal brusco para que Jesse subisse. O tom desesperado de sua voz e o movimento das rédeas comunicou o perigo aos cavalos. Irrequietos já com o som longínquo do estouro, Gabe e Beau resfolegaram e arfaram para a frente.

Jesse derrubou seu xale na grama, agarrou-se no lado do carroção e pulou para o lado de Homer. Seu chapéu foi para as costas e, enquanto o carroção aos trancos atravessava a pradaria, seu cabelo soltou-se, balançando-se como uma correnteza vermelha, tingindo suas costas. Homer gritou:

— Vá para dentro, é mais seguro— enquanto apressava os cavalos. Seus olhos procuravam na paisagem uma pedra grande ou algumas árvores juntas — qualquer coisa que pudesse servir de abrigo contra essa correnteza de animais.

Jesse rolou sobre o assento para a cama no carroção. Estava uma bagunça de barris e sacos. A cada soco do carroção, ela sentia uma pancada de algum objeto fora do lugar. Numa olhadela para fora viu, com um grito de horror, o perigo se aproximando.

Homer dirigia com perspicácia, mas os búfalos vinham vindo, ganhando terreno. Ele procurou em vão por um abrigo próximo. Ele teria de manter seus cavalos correndo e esperar que a manada corresse na mesma direção e que não batessem na carruagem. Beau e Gabe saltavam para a frente, puxando com todas as suas forças. Suas ancas estavam molhadas. Dos freios voava espuma. Gabe tropeçou, então investiu para a frente, respondendo aos gritos desesperados de Homer. A terra tremia com o aproximar dos búfalos.

Jesse assistia, como numa versão de câmara lenta da realidade. Através da poeira ela viu a mão de Homer levantar o chicote — o que ele havia sempre recusado a usar em sua parelha. Sua mente gravou a imagem do chicote parado no ar, numa silhueta contra o céu. Então o chicote desceu, de novo e de novo contra o lombo da parelha tão laboriosa.

O ruído dos búfalos estava diminuindo agora, [esse tentava agarrar em alguma coisa para se segurar dentro do carroção, que dava guinadas contínuas. Rastejando para o fundo, ela deu com o olhar de uma fera grande. O animal olhava firme para a frente, as narinas dilatadas, a língua balançando para fora de um lado da boca. Viram-se num mar retumbante de cascos estrondantes, e corpos, e pêlos marrom-escuros eriçados.

O som daqueles cascos batendo pesadamente abafou os gritos de Homer para sua parelha esgotada. Gabe e Beau vacilaram e caíram. Jesse, instintivamente, saltou para trás, para mais longe da correria que se aproximava. Sua mão bateu em algo duro. Escuridão e trovão e o som de madeira lascando se misturaram para dentro de um silêncio não natural.

 

...Não temas, crê somente.

Marcos 5:36

 

Estava quente. E silencioso. Tão silencioso que Jesse podia ouvir o zumbido fino de uma mosca ao redor de sua cabeça. Mas não, ela pensou, eu ouvi Gabe e Beau perambulando em volta também. E... uma sombra caiu em sua face. O calor do sol a fez abrir os olhos. Alguém estava em pé, à sua frente, mas o brilho do sol vindo por trás tornava impossível enxergar o rosto. Homer? Não, Homer não. Seu cabelo não é tão comprido.

Então, de uma vez só Jesse lembrou-se. O estouro dos búfalos. Recordou-se daqueles últimos e terríveis segundos e com esta lembrança veio a certeza de que aquele homem não era Homer. Ela estava olhando o rosto de um guerreiro Sioux.

Onde está Homer? Jesse permanecia deitada, silenciosa em seu terror. Ó, ser salva por isto? Nas mãos destes selvagens, que será de mim?

— Não temas,... pois o SENHOR Deus está contigo, por onde quer que andares.— As palavras vieram sem parar: — Não temas... Não temas...Não temas".

Jesse entregou-se aos cuidados de seu Pai e, sem articular qualquer palavra conscientemente, Jesse orou.

Enquanto seus pensamentos se dirigiam ao céu, o índio abaixou-se para investigar o brilho do ouro em seu pescoço. Jesse agarrou a cruz da corrente de sua mãe. O índio insistiu. Ele arrancou a cruz de sua mão, mas, para surpresa de Jesse, não tirou de seu pescoço. Ao contrário, ele examinou-a cuidadosamente, largou-a e deu um passo para trás.

Jesse sentou-se. Cada músculo doía. Ela estava tensa, dolorida e com sede. Mas nem um osso parecia quebrado. Olhou ao seu redor para o que havia restado do carroção. E então, em direção à frente do carroção, seus olhos pegaram um lance de uma flanela vermelha balançando com a brisa. Homer? Não, não era mais o Homer, de fato tinha sido o Homer somente uns momentos atrás. Gabe e Beau estavam lá também. Seus esforços valiosos para fugirem dos búfalos foram sua última luta penosa.

Jesse percebeu que estava sozinha e aos cuidados dos índios que estavam parados ao redor, olhando os destroços, enquanto seus potros pastavam aqui e ali numa grama ruim. Era um bando de índios silenciosos, fazendo um ou outro comentário sobre o que encontravam nos destroços e examinando, com curiosidade, o fogão de ferro. A farinha, os grãos e toda a reserva de comida estava espalhada, misturada no pó e perdida. Somente uma roda do carroção estava inteira. O restante estava estraçalhado de tal forma que o carroção retorcido no chão parecia um potro recém-nascido com suas pernas compridas esticadas.

— Não temas... Não temas...— As palavras continuavam retumbando na mente de Jesse, enquanto ela olhava os índios andando em volta. Eles a ignoraram um bom tempo e, então, aquele que tinha visto sua cruz voltou-se para ela. Ela percebeu pela primeira vez que ele era mais alto que seus companheiros — ou teria sido, não fosse uma perna ruim. Aparentemente ele quebrara aquela perna no passado e ela tinha sido mal consertada, pois agora ele mancava, e a cada passo suas tranças balançavam. Tinha o rosto pintado de vermelho, cada bochecha com três riscos pretos e círculos amarelos brilhantes ao redor dos olhos.

Seu rosto estava carrancudo quando se aproximou de Jesse e ela se encolheu, afastando-se de suas mãos. Mas ele a empurrou para baixo e, com isso, a dor nas costas e pernas a fez gritar. Ela vacilou, tentou levantar-se, mas não conseguiu. O guerreiro pegou-a rudemente pela cintura e, meio carregando, meio empurrando, levou-a para seu potro branquíssimo. Ele era forte e colocou-a no potro em pêlo, sem esforço. Jesse agarrou-se, amedrontada com o meneio do potro, e preparou-se para ser levada embora.

Mas o índio corajoso saltou para a garupa dela. Ele cheirava suor e tinta da pintura feita para batalha. O estômago de Jesse embrulhou. Ela respirou fundo, orando: Deus, me segure neste potro. Com certeza não era para eu morrer aqui, assim — sozinha — Deus, me ajudei.

Jesse tentou olhar os destroços. Surpreendeu-se quando o índio virou o potro para que ela pudesse olhar. Como sobrevivi a isto?, Pensou admirada enquanto via a cena. Algo branco chamou sua atenção e viu que sua melhor colcha estava agora na garupa de outro potro. Era uma colcha toda branca, na qual tinha trabalhado firme por alguns meses antes de seu casamento com Homer. Ela a tinha emendado meticulosamente, enchendo as aplicações, de forma que as flores e festões saltavam do fundo pontilhado. Homer tinha reclamado, mas Jesse insistira em trazê-la.

— Não interessa onde possamos viver, Homer — ela disse com respeito, mas firmemente, — Se eu puder pôr esta colcha em minha cama aos domingos, sentirei que estou em casa". Desta vez tinha sido Jesse que insistira e Homer aquiescera.

Agora a colcha brilhava com o sol quente. Estava empoeirada, mas parecia ter sobrevivido à tragédia, sem dano. Jesse sorriu sinistramente, pensando se ela teria tal sorte quando os selvagens a levassem para seu acampamento — ou onde quer que eles a levassem.

— Não temas... Não temas... Não temas...— As palavras estavam retumbando em seu coração no ritmo do galopar dos potros sobre a campina. Pareciam estar cavalgando há horas, saindo das planícies e subindo os penhascos distantes. As pernas de Jesse doíam e seu coração saltava a cada movimento brusco do potro.

Eles vadearam um pequeno riacho e os índios desceram para tomar água. O capturador de Jesse tirou-a do potro e empurrou-a em direção à água. Ela sorveu a água, espirrando em seu rosto quente e lavou suas mãos trêmulas na água clara. Seus olhos procuraram sinais, na distância, de algum grupo de pessoas. Será que os da caravana viriam?

O índio puxou-a do riacho, pelo braço. Ele gesticulou, parecendo acenar com a mão, e então apontou para ela. Colocou a palma direita para cima enquanto mexia de um lado para o outro na altura do abdômen. Jesse olhou sem entender e ficou imóvel com medo de se mexer. O índio repetiu os três movimentos com mais força. Então ela entendeu. Era a língua de sinais que tinha visto Dr. Whitman usar com outros índios durante a viagem. Mas os movimentos nada significavam para ela. Ela balançou a cabeça, com nervosismo, temendo a reação. O índio pouco reagiu, exceto para pegar, numa bolsa ao seu lado, um pedaço duro de carne seca, que ele lhe ofereceu a seguir. Jesse pegou obedientemente e forçou-se a morder um pedaço. Mas seu estômago recusou a oferta.

Lavando de novo a boca no riacho, deu uma olhada com medo. O índio colocou-a no potro de novo e trotaram, agora à frente do bando de guerreiros. Foi uma caminhada longa, torturante. Jesse agarrava-se à crina branca do potro, entorpecida demais para orar, cansada demais para ficar com medo de novo. Finalmente, o bando parou, à noite, deixou os potros pastarem e fez uma fogueira. Várias galinhas da campina que eles haviam matado durante o dia foram assadas. Seu capturador repetiu os gestos do início do dia e então ofereceu uma porção a Jesse. Desta vez ela pegou avidamente. Abaixou-se devagar, exausta, no chão e adormeceu tão logo acabou de comer.

Um trovão fraco e uma brisa fria súbita acordou-a num momento, durante a noite. Rolando na pradaria vasta, uma tempestade violenta chegou. Os índios pegaram os cavalos e os seguraram fortemente, enquanto se esticavam no chão, sem defesa contra o ataque furioso da chuva torrencial.

Raios rasgavam o céu, iluminando os arredores com uma luz grotesca. Uma grande quantidade de água caía sobre eles e ainda assim os índios ficaram deitados na campina, simplesmente esperando a tempestade passar. O potro branco, o qual ela havia sido forçada a montar, ficou parado perto de seu dono, com o focinho no chão, agüentando calmamente o aguaceiro.

Jesse tremia de medo e agachou-se com a cabeça nos joelhos. Abraçando as pernas, balançava-se para a frente e para trás. Ela lembrou-se das tempestades em casa, em Illinois, quando, ainda criança, corria para dentro e trepava na cama de corda dos pais, escondendo-se debaixo da pilha de acolchoados, até que a tempestade passasse. Ela quase conseguira imaginar-se lá, quando uma luz brilhante de um raio golpeou algum lugar próximo.

O riacho tinha crescido e ela ouviu suas águas apressadas chegarem perto. Então ela sentiu a barra de sua saia encharcada sendo puxada. Mais um raio e ela gritou alto. Uma mão forte puxou-a fora da água. Um antebraço encharcado esticou-a na terra. Ela foi apertada na terra por aquele braço e ficou deitada lá, rosto para baixo, por um tempo que pareceu horas.

Finalmente a tempestade começou a acalmar. Estava indo para o Leste. O braço atravessado em suas costas levantou-se e ela empurrou-o, levantando a cabeça para ver que as nuvens estavam separando-se. Estrelas piscavam nas partes visíveis do céu. Por fim, a lua trouxe uma luz brilhante sobre a paisagem encharcada. A luz lúgubre, o potro branco parecia um fantasma quando se mexia pastando.

Quando o dia raiou, somente o volume maior do riacho podia provar que a noite havia sido violenta. Os índios montaram cedo e Jesse mais uma vez foi forçada a montar o potro branco dançante. Com surpresa percebeu que a tempestade havia limpado todos os resquícios da viagem deles. Nenhum grupo de busca poderia encontrá-la.

No segundo dia de viagem, ao entardecer, o bando de índios subiu uma elevação e Jesse viu um acampamento de tendas de índios na campina abaixo. O ritmo das batidas de seu coração ficou tão veloz quanto o barulho das patas do potro e ela agarrou sua crina pensando: O que vai acontecer agora?.

Todos no acampamento vieram encontrar os caçadores e as crianças gritavam saudações. Enquanto passavam pelas tendas que davam para o lado leste, mulheres curiosas encaravam Jesse com admiração. Entorpecida pelo cansaço e medo, Jesse encarava o vazio no alto. Logo isto acabará, ela pensou. Vou morrer aqui e isto acabará. A morte traria o alívio esperado da tortura de cavalgar e cavalgar, com todos os músculos agonizando a cada passada mais larga que balançava seu corpo fraco.

Finalmente, o potro parou diante de uma tenda grande/ e o bravo índio pulou para o chão. Ele agarrou Jesse rudemente, como se fosse jogá-la ao solo. Mas seu braço forte, na verdade, impediu-a de cair, fazendo Jesse chegar suavemente à porta de sua tenda. A voz dele estava brava ao acenar para que ela entrasse. As mulheres e crianças olhavam em silêncio. Uma índia cochichou alguma coisa à sua companheira e elas concordaram e riram uma para a outra. Jesse segurou sua saia e se apressou para dentro.

O índio entrou mancando após ela e abaixou a aba na entrada da tenda. Instantaneamente, seu comportamento mudou. Jesse olhou-o tirando suas armas. Ele voltou-se para ela, que se afastou. Ele esperou até que ela olhasse dentro de seus olhos. Seu cenho relaxou. Seria possível que ele não planejasse matar-me depois de tudo isso? Mas então... não, a morte seria preferível a outras coisas.

O índio virou-se abruptamente, resmungando para uma velha que se acocorava ao lado da fogueira balançando alguma coisa dentro de um tipo de sacola pendurada em um tripé feito de galhos. Ela cacarejou alguma resposta e o homem saiu, deixando a porta aberta. A luz do sol entrou na tenda e, com a claridade, Jesse pôde entender a razão de ter sido trazida para ali.

De cima de uma prancha que era um suporte de bebê, dois olhos escuros cintilavam enquanto olhavam a velha se mexer. Jesse ouviu um chorinho que logo cresceu até um grito de dor intenso/ e a velha arrastou-se até a prancha. Gentilmente ela apertou as narinas da criança e um suspiro para respirar interrompeu o grito. A velha começou a trabalhar rapidamente, amassando grãos e acrescentando líquido para fazer um mingau ralo. Cada vez que o nenê começava a gritar, ela apressava-se a repetir os apertos nas narinas até que o suspiro parasse o choro novamente. Por fim, a mulher começou a molhar os dedos no mingau e levá-los à boca do nenê. Ele chupou avidamente os dedos dela, mas logo começou a berrar de novo, frustrado.

Jesse sentiu seu corpo responder ao choro do nenê e olhou para baixo, embaraçada com a umidade começando a aparecer no corpete do seu vestido. Ela cruzou os braços e os apertou sobre os seios, mas a velha tinha visto. Ela não hesitou em desembrulhar o nenê e carregá-lo, cruzando a tenda, até Jesse.

Jesse olhou de lado, fingindo não entender, mas o choro persistia e ela olhou de novo a criança. Momentaneamente o choro parou, quando os olhos da criança encontraram os dela. Jesse cochichou:

— Eu não sou quem você quer— mas, mesmo enquanto falava, ela instintivamente acariciou sua bochecha aveludada. A cabecinha virou, procurando seus dedos para sugar.

O instinto ganhou. Jesse pegou o nenê, embalou-o em seu colo enquanto abria o corpete. Colocada no seio, a criança procurou-o e começou a mamar avidamente. Ele ficou quase imóvel, sua mãozinha escura contra a pele clara dela. Então ele parou, olhando para cima. Enquanto seus olhos fitavam o rosto dela, o leite escorria de sua boca. Ele arrotou alto e começou a mamar novamente.

A fraqueza tomou conta de Jesse e ela sentou-se, olhando ao redor abobalhada. Através da entrada da tenda, ela percebeu olhares de índios se movimentando enquanto o crepúsculo se aproximava. O fogo no centro da fogueira estava baixo. Uma fumaça preguiçosa subia em círculos e saía pelo buraco, no alto da tenda. Os olhos de Jesse seguiram a fumaça até em cima e ela viu uma estrela brilhando no céu que, rapidamente, escurecia.

A velha veio novamente e tirou o nenê dos braços de Jesse. Carregando-o para perto do fogo, ela desembrulhou-o e o colocou numa manta de pele de búfalo, perto do fogo. As pernas e os braços balançavam-se no ar. Jesse olhou a mulher cuidando do bebê, murmurando suavemente enquanto massageava seu corpinho com algum tipo de loção.

Então a velha deixou o recém-nascido e foi para o lado da tenda oposto a Jesse. Resmungando alto, ela arrastou um couro de dormir até onde Jesse se assentava. Voltando ao outro lado de novo, ela desenrolou mais duas peles, obviamente preparando camas para os habitantes da tenda.

Quando a escuridão chegou, o índio voltou. Ele deu uma olhada para o lado de Jesse e virou-se abruptamente para falar macio com a velha. Inclinou um odre pendurado em um mastro perto do centro da tenda. Água fresca foi derramada, ele lavou suas mãos, então bebeu bastante. Jesse olhou timidamente quando a cabeça dele se levantou para beber. O pescoço volumoso saía de uns ombros largos e fortes. As mãos que seguravam os odres eram grandes. Na escuridão crescente, o brilho do fogo tornava a pele do índio de um vermelho extraordinário. Jesse estremeceu quando ele acabou de beber e virou-se em sua direção.

Mas era o nenê que chamava sua atenção. Ajoelhando-se ao lado da criança, ele alisou o cabelo escuro, cantando delicadamente:

a wa wa wa Inila istinma ma a wa wa wa wablenica.

Ele encheu uma pele com alguma coisa branca e fofa, tirada de uma sacola de couro. Então embrulhou o nenê no cueiro de pele e o devolveu a Jesse. Ele gesticulou a ela que se deitasse no couro de búfalo que a velha havia desenrolado. Jesse deitou-se, agradecida, com o nenê ao seu lado. Apesar de seus temores, o sono veio. O nenê dormiu em seus braços, acordando para mamar avidamente muitas vezes naquela primeira noite.

De manhã, quando a velha tentou acordá-la, Jesse estava vagamente consciente de ter sido chamada para acordar, mas sem conseguir responder. As feridas e os músculos doloridos, o medo e a noite da tempestade sem dormir deixaram-na prostrada. O nenê adormecido foi levado delicadamente e seu cueiro, trocado. Jesse King dormiu quase o primeiro dia inteiro como cativa na aldeia lakota.

 

...faze-me saber o caminho que devo seguir, porque a ti levanto a minha alma.

Salmo 143:8

 

Desde que podia lembrar-se, a vida tinha sido dura para Lobo Uivante. Seu pai fora morto em um ataque à tribo Brule. O novo marido de sua mãe tinha instantaneamente desgostado de Lobo Uivante, perseguindo-o até que o jovem desistisse de voltar e vivesse sua própria vida. Ele conseguiu sobreviver, mas sempre sem sorte alguma. Uma vez, ele tinha conseguido adquirir uma égua boa, mas ela ficou manca logo na manhã seguinte ao dia em que ele a roubara do Pawnee. Montado em potros ruins e velhos, Lobo Uivante raras vezes saía-se bem numa caçada de búfalos. Sua tenda era pequena e pouco equipada. Ele tinha só dois potros. Mas era um bonito guerreiro pele-vermelha. Arrojado e violento nas batalhas ganhara o respeito e a admiração de muitos de seus companheiros.

Lobo Uivante geralmente escondia a amargura em seu coração. Mas os mais velhos da tribo viam suas fúrias rápidas e balançavam suas cabeças em desagrado. Quatro Céus apostava no comportamento de Lobo Uivante.

— Tenho certeza de que o tempo acalmará seu coração — e aqui Quatro Céus parava e piscava para aqueles ao se redor, — O tempo e uma boa mulher". Os outros mais velhos encolhiam os ombros e esperavam que Quatro Céus estivesse certo.

Conforme ia ficando mais velho, a sorte de Lobo Uivante não mudou muito. Parecia que ele tinha sempre apenas o suficiente para atravessar cada inverno, mas nunca abundância. Ele permanecia descontente e violento, ansiando alcançar o sucesso do vento e tornar-se o líder de seu povo. Quando Flor do Campo lançou seu primeiro olhar de mulher na direção dele, Lobo Uivante ficou estarrecido. Ela era a filha de um ancião bem respeitado.

O pai de Flor do Campo preveniu-a sobre o temperamento inconstante de Lobo Uivante, mas ela tornou-se ainda mais determinada em cortejá-lo. Ela fora conquistada tanto por sua beleza quanto por sua natureza rebelde e arrojada. O encanto dela aumentou a grosseria de Lobo Uivante o suficiente para que ele a envolvesse em sua manta de búfalo, do lado de fora da tenda do pai dela, e a reivindicasse como sua noiva.

A exuberância jovem deles logo desgastou-se. Flor do Campo tornou-se a desculpa para a má sorte de Lobo Uivante. Ele a ridicularizava e a culpava, destruindo sua afeição jovem, antes mesmo de amadurecer e transformar-se em amor, o que a faria agüentar seus ataques de temperamento. Quando ele voltava de alguma caçada só com uma pobre caça, ela a pegava sem uma palavra de reclamação. Ele interpretava seu silêncio como uma acusação e punha a culpa de sua caçada fraca no potro manco — ou em qualquer outra coisa em que pudesse pensar. O fato de ele ter levantado tarde ou ter sido impaciente e espantado a caça nunca vinha à tona,e Lobo Uivante entrou pela vida afora culpando outros por seus próprios infortúnios.

Flor do Campo tentara ser uma mulher zelosa por muito tempo, mesmo depois de sua afeição pelo marido ter acabado. Sua mãe era um grande conforto, encorajando-a a continuar firme em seus deveres, pois Lobo Uivante um dia iria acalmar-se e apreciá-la. Mas dia após dia ele continuava a falhar. A falha transformou-se em amargura, e a grande beleza de sua esposa tornou-se uma lembrança de suas próprias falhas. Lobo Uivante foi pego em um espiral descendente, do qual Flor do Campo recusou-se a compartilhar. E ele a odiou por isto.

Foi no final de seu primeiro ano de casados que Flor do Campo finalmente percebeu que tinha cometido um engano terrível. Seu pai, Fala Muito, concordou, mas deu-lhe o mesmo conselho de sua mãe — fique com o Lobo Uivante e dê-lhe tempo para crescer. Fala Muito também acrescentou a versão lakota do discurso

— Não te falei?— ao seu conselho. Flor do Campo determinou-se a não mais levar desapontamentos para os pais.

No outono daquele primeiro ano, algo que iria mudar a vida de Flor do Campo para sempre aconteceu. A mulher de Cavalga o Vento morreu, deixando-o com um filho recém-nascido para ser criado. Uma semana mais tarde, Flor do Campo viu, juntamente com suas amigas, quando ele chegou à aldeia trazendo uma mulher branca em seu potro. Lobo Uivante trouxe à sua mulher uma estranha coberta branca que, segundo dissera, havia encontrado no meio dos destroços de uma carroça de um homem branco. Flor do Campo não disse nada, mas Lobo Uivante viu-a dando uma olhadela para a tenda de Cavalga o Vento enquanto ela recebia a coberta. Ela pensou:Cavalga o Vento traz uma mulher... Lobo Uivante traz um pedaço de pano branco sujo. E vai ser sempre assim. Lobo Uivante sempre trará o que ninguém quer.

Lobo Uivante olhou com ciúmes quando Cavalga o Vento mandou a mulher branca entrar na tenda. Quando ela rastejou para dentro da tenda, ele sorriu, divertindo-se ao imaginar o que iria acontecer.

Mas Cavalga o Vento voltou para fora e saiu da tenda tão logo deixou a mulher lá dentro. Lobo Uivante assistiu a isso quase não acreditando, e então empurrou a própria esposa para dentro de sua pequena tenda para ordenar o pagamento de seu presente.

Na manhã seguinte, Flor do Campo riu,com as outras mulheres, enquanto falavam a respeito da nova mulher.

— Como ela é?— alguém perguntou quando Velha juntou-se a elas na colheita de frutos silvestres.

Velha encolheu os ombros.

— Você viu. Ela é branca.

— Ela vai ficar?— perguntaram.

— Meu filho diz que é uma mulher para alimentar seu filho.— A velha acrescentou: — Ela foi encontrada em uma das carroças esquisitas dos brancos. Cavalga o Vento diz que eles encontraram coisas de um bebê. O grupo de caçadores viu quando essa mulher e seu marido colocaram o bebê na terra".

— Eles o pusera na terra?— As mulheres estavam horrorizadas.

— Ele foi pisado pela própria carroça esquisita. Eles põem seus mortos na terra.

As mulheres murmuravam incrédulas. Tinham, ouvido falar dessas coisas, mas, até então, nenhuma delas havia jamais presenciado tal fato.

Flor do Campo falou:

— Então, se o bebê dela foi para a outra terra, ela deve ter leite para a criança de Cavalga o Vento".

A velha concordou e tagarelou:

— Ela tem muito leite. Ela não queria, mas eu a fiz dar de mamar. Os olhos da velha se enterneceram. Eu acho que ela gosta da criança. Cavalga o Vento deu-lhe o nome de Duas Mães. Ela vai ficar— Então, a velha acrescentou: — Chega! Vocês mesmas a verão. Então decidam o que pensam dela. Eu já falei muito e meu filho não vai ter comida se eu não trabalhar".

Foi no começo da tarde que a velha finalmente conseguiu acordar Jesse. Gesticulando para que a seguisse, ela pegou o nenê e saiu da tenda. Jesse seguiu a velha até um riacho perto dali, onde viu a mulher desembrulhar o nenê e dar-lhe banho. Após o banho, o corpinho firme foi massageado com folhas. A velha apontou para uma planta, ali perto. Jesse apanhou uma folha. Instantaneamente sentiu um perfume doce, acre.

Quando a mulher acabou de cuidar do nenê, ela renovou o enchimento do cueiro de pele de carga com tufos de felpas de algodãozinho do campo, embrulhou-o novamente nele e deu-o para Jesse. A fragrância da planta silvestre ficou no ar. Jesse aconchegou o nenê em seus braços, com saudade dos olhos azuis sorridentes de Jacob e de sua saudação feliz.

A velha olhava interessada. Ela viu o sorriso de Jesse, enquanto lágrimas saíam ao piscar dos olhos cinza. Deu um tapinha delicado no braço de Jesse.

O nenê procurava mamar e Jesse aquiesceu, sentando-se à beira da água, desatenta às idas e vindas de Velha. Quando a fome da criança acabou, Jesse ouviu passos atrás. Olhou e viu Velha abrindo uma roupa de pele de alce sobre um arbusto de sorveira ali perto. Mocassins foram colocados abaixo da roupa.

Jesse curvou-se olhando seu reflexo na água e ficou horrorizada com o que viu. Seu rosto estava imundo, os cabelos empastados de poeira.

Velha pegou o nenê e Jesse ajoelhou-se à beira da água, afundando suas mãos na corrente e espirrando a água fria na face.

Forçando uns passos na água, ela foi até um Lugar onde galhos pendentes permitiam alguma privacidade e olhou, enquanto tateava desajeitada mente para abrir os botões e os espartilhos molhados. A água molhou sua pele. Ela massageou com força o cabelo e voltou para perto da margem, para rapidamente vestir a roupa limpa.

Vadeando de volta, para restaurar suas próprias roupas, ela lavou-as o melhor que pode e espalhou todas as anáguas para secarem ao sol.

Bem, Pai, ela pensou, aqui estou eu, a pequenina Jesse King... empregada de índios. Ela sorriu com a figura ridícula que devia ser, com o vestido de pele de alce trazido pela Velha. Ainda assim, estava grata por qualquer coisa limpa e contente com o conforto da roupa. Sem espartilhos apertando sua cintura e anáguas enroscando na grama enquanto andavam de volta para a tenda, Jesse sentiu-se quilos mais leve.

De volta à tenda, Velha fez um tipo de pente esquisito, com espinhos de ouriço. Ficou olhando Jesse esforçar-se para usá-lo por alguns momentos e então tirou-o das mãos inexperientes e, pacientemente, penteou o cabelo comprido e grosso até deixá-lo liso e sedoso.

Velha disse algo novamente e gesticulou para Jesse trançar seu cabelo. Com a tarefa acabada, Jesse rapidamente saiu da tenda e correu para a beira do riacho para olhar-se de novo. Ela deu uma risadinha com a mulher estranha que apareceu na água. Sua pele era branca, seus olhos ainda cinza, mas o cabelo ruivo estava trançado elegantemente e caído nos ombros. O castanho-amarelado do vestido que usava fazia seu cabelo brilhar.

Bem, então Senhor, sabes o número de fios de cabelo em minha cabeça... então o Senhor deve ser capaz de me reconhecer, mesmo nesta vestimenta inacreditável. O vestido de chita e as anáguas ainda estavam espalhados nos arbustos. As mulheres começaram a se juntar e a exclamar, em volta das anáguas. Jesse ficou horrorizada ao vê-las ajudando-se a vestir qualquer uma que as encantasse. Ela pretendia ficar com as suas roupas, mas, incapaz de comunicar-se e com medo de defender suas posses, assistiu ao desaparecimento de cada peça, uma a uma, para dentro das tendas das outras mulheres.

O jantar — cozido feito no fogo da tenda — foi preparado em silêncio pelas duas mulheres. O pai do nenê não apareceu. — Não temas "parecia ser cochichado pelo vento enquanto Jesse se arrumava na cama de pele de búfalo, naquela noite. O nenê, que não era Jacob, aconchegou-se e Jesse dormiu profundamente.

Na manhã seguinte, após o café, Velha prendeu o suporte de bebê às costas de Jesse. Esta a seguiu obediente mente para fora da tenda, com o coração disparado. Elas se juntaram a um grupo de mulheres numa expedição à procura de alimentos. Desacostumada ao peso de um suporte de bebê nas costas, Jesse tropeçava pelo caminho, fascinada com o conhecimento das mulheres sobre as plantas da campina. Elas desenterravam raízes e colhiam frutos até suas sacolas de pele ficarem cheias. Jesse começou a enxergar a campina sob uma nova luz. Na caravana ela tinha admirado as flores, mas a grandeza da paisagem logo se tornara uma mesmice. De fato, uma ou duas vezes até Homer tinha dormido enquanto dirigia, por causa da monotonia do cenário.

— Olha só isto, Jesse. Vê alguma coisa para a qual valha a pena olhar? Não há madeira para construirmos — com que um homem pode construir uma casa aqui? Nada para construir uma cerca decente, nada — nem mesmo pedras suficientes para isso. Não há rios por onde transportar cereais para o mercado. Não há como estabelecer o comércio. É deserto, Jesse — um deserto sem serventia. Deixem os índios possuírem isto, é o que acho!"

Homer, Jesse pensou. Ela se questionava sobre sua falta de emoção ao pensar nele. Ele tinha sido seu marido, mas tinha partido agora, e ela se encontrava em tal situação inacreditável que todas as suas forças eram guardadas para enfrentá-la. O índio obviamente queria que ela ficasse e alimentasse sua criança. É claro que os outros nos procurarão, ela pensou. Mas talvez não. Exceto por George e Lavínia, não tínhamos amigos lá... e a tempestade... Seus pensamentos rodavam e rodavam até que a criança, no suporte, chorava para ser alimentada e ela parava para amamentá-lo.

As mulheres pararam ao seu redor em um círculo dando risadinhas. Uma menina insolente cutucou o braço de Jesse, apertando cada pinta de sua pele, manchada pelo sol. Velha finalmente chegou expulsando, repreendendo e enxotando todas elas, protegendo Jesse de seus olhos curiosos, com o suporte do nenê. Jesse olhou a face enrugada.

— Obrigada — disse ela. Velha não podia entender a língua, mas o tom de apreciação significava muito. Velha apontou a criança e disse: "Wablenica". Jesse repetiu a palavra. Ela apontou com um dedo para si mesma e disse: "Wakanka". Jesse repetiu a palavra.

Flor do Campo assistiu a essa cena e algo agitou-se dentro dela. A mulher branca estava tentando. Estaria solitária? Com certeza parecia desnorteada. De fato, ela não tinha-se esquivado quando elas cutucaram e apertaram sua pele branca, estranha, com manchas marrons. Ela tinha olhado para elas com seus olhos frios, cinza.

Quando a criança acabou de mamar, Velha ajudou Jesse a prender a criança de novo e pegar o carregador mais uma vez. Flor do Campo deixou o grupo de mulheres que ria da mulher branca desajeitada e aproximou-se de Jesse para oferecer-lhe sua cavadeira. Jesse pegou-a, mas olhou ao redor, confusa. Não tinha idéia do que cavar. Flor do Campo andou, mostrando as plantas, ensinando-lhe onde e qual arrancar. Logo Jesse começou a encontrar suas próprias plantas e raízes. Flor do Campo a encorajava.

— Tinpsila— disse ela, apontando uma raiz em sua sacola. Jesse tentou falar a palavra, mas os sons novos eram difíceis. Flor do Campo continuou, pacientemente. Arrancando outra raiz, ela disse: — Fangi". Jesse encontrou uma e gritou: — Powgayl— As mulheres olharam e riram dela, mas Flor do Campo a corrigiu e sorriu, encorajando-a.

Jesse lembrou-se de apenas uma coisa naquele primeiro dia entre as mulheres. Elas podiam ser incrivelmente cruéis, rindo e caçoando dela. Mas Wakanka — a Velha — era boa. E a outra, bonita, de olhos bondosos, parecia gostar dela.

Naquela noite Velha ensinou Jesse a cozinhar o que haviam, colhido. Cavalga o Vento chegou, comeu e saiu, sem nenhuma palavra para elas. Parecia que ele nem via Jesse, exceto por seus grunhidos de satisfação ao vê-la amamentar seu filho.

Era tarde quando a porta-aba da tenda se abriu e ele entrou. Jesse, que estivera dormindo, acordou quando ele tocou em seu ombro. Sentou-se, com o coração disparando; mas o índio apenas caminhou para o outro lado da tenda, abriu uma caixa feita de peles e voltou para seu lado, colocando um pacote em seu colo. Gesticulou para que abrisse e ela obedeceu, ficando boquiaberta com o que viu. As bordas douradas de suas páginas brilhavam à luz da fogueira. Era uma Bíblia pequena.

Jesse pegou-a com um grito abafado de alegria e apertou-a contra o corpo. Abaixou sua cabeça e uma lágrima rolou em sua face. Ó Senhor, ela orou, como poderei agradecer-lhe por este milagre?

Parecia, porém, que esta seria uma noite de milagres, pois o índio abruptamente sentou-se à sua frente e disse em voz baixa: — Você contar palavras no livro?".

Jesse estava atônita. Será que tinha mesmo ouvido sua própria língua? Não, ela pensou, era apenas o vento... ou um sonho meu... ou...

— Você contar palavras no livro?— ele repetiu, dando ênfase nas palavras diferentes, pois pensou que ela não o tivesse entendido.

Jesse olhou o índio com espanto. Ela não respondeu à sua pergunta, mas gaguejou: — Você fala inglês?".

O índio concordou com um rápido balanço de cabeça.

— Muitas luas atrás. Eu esqueci muito." Deu uma pausa antes de dizer: — Em sua língua eu sou Cavalga o Vento— Ele apontou para Jesse.

"King— ela gaguejou, — Eu sou Jesse King".

O índio alcançou e segurou a cruz dourada ainda no pescoço de Jesse.

— Jess-e-king conhecer livro?"

Jesse afirmou com a cabeça.

— Jess-e-king conhecer Jesus?"

Novamente afirmou com a cabeça.

Ele pegou a Bíblia e abriu, apontando a página:

— Você contar livro".

Jesse só conseguia ficar sentada, olhando estarrecida a mão que cobria metade do livro aberto. As veias apareciam bem saltadas nas costas da mão. Os dedos eram compridos e as unhas, quebradas e grossas.

Enquanto ela permanecia em silêncio, Cavalga o Vento fechou a mão e a colocou no coração. Falou vagarosamente. Sua voz era calma e baixa. Jesse lembrou-se da forma como seu pai havia falado certa vez, quando eles encontraram um veado numa clareira. Sua voz, geralmente ríspida, tinha-se tornado suave, pois ele tentava não assustar o veado desconfiado.

O índio bateu no peito com a mão fechada e repetiu:

— Conhecer Deus aqui— Abrindo a mão, tocou a têmpora: — Precisar Deus aqui. Missionário fala esse livro ensinar Deus. Você ensinar".

Jesse manuseou as páginas da Bíblia usada, orando por direção. Cavalga o Vento esperou pacientemente. As páginas se abriram no Salmo 1. Jesse finalmente começou a ler com a voz trêmula:

Bem-aventurado o varão que não anda segundo o conselho dos ímpios, nem se detém no caminho dos pecadores, nem se assenta na roda dos escarnecedores. Antes tem o seu prazer na lei do Senhor, e na sua lei medita de dia e de noite. Pois será como a árvore plantada junto a ribeiros de águas, a qual dá o seu fruto na estação própria, e cujas folhas não caem, e tudo quanto fizer prosperará.

Parou de ler e ficou folheando as páginas do livro.

Cavalga o Vento também ficou quieto por um momento. Então disse:

— Arvore ao lado do ribeiro cresce forte".

Jesse concordou com um movimento da cabeça.

Ele pegou a Bíblia dela, embrulhou-a cuidadosamente nas peles e devolveu para Jesse. — Quando as estrelas vêm de novo, você contar livro para Cavalga o Vento?"

Jesse concordou.

Depois de um tempo, ele perguntou: — Jess-e-kingter irmãos?".

— Não."

— Irmãs?"

— Sim, tenho uma irmã."

Ele começou a falar e então parou abruptamente, esforçando-se para encontrar as palavras certas. Finalmente, perguntou:

— Irmã de Jess-e-king sentir ela estar com lakota?".

Jesse pensou na pergunta. Betsy lamentaria? Passariam anos até que Betsy percebesse que algo estava faltando. Além dos Woods, ela e Homer não tinham tido amigos na caravana. Homer não tinha família. Não, ninguém sentiria falta dela. A verdade machucou-a muito, mas ela disse a Cavalga o Vento a verdade:

— Não, ela não sentirá. Ela não saberá".

Ele ficou em silêncio por um bom momento, então disse: "Wicatokapa precisa leite. Jess-e-king tem leite. Cavalga o Vento precisa mais Deus. Jess-e-king conhece livro-Deus. Você dar leite para meu filho? Você ensinar livro?".

— Como crianças recém-nascidas desejam o leite genuíno da palavra.— As palavras do apóstolo vieram em seu pensamento, enquanto ponderava a questão. Na escuridão, ela sorriu da forma singular como poderia obedecer ao mandado, caso ficasse. Se eu ficar, ela pensou, Senhor, estou realmente tendo uma escolha?

Como se fosse uma resposta aos seus pensamentos, Cavalga o Vento disse:

— Jess-e-king querer ir, Cavalga o Vento levar para o povo dela.

Senhor, como posso tomar tal decisão quando tantas coisas aconteceram? Ela estava desanimada pela impossibilidade de decidir naquela noite. Então ficou contente de perceber que estava realmente considerando ficar, em vez de instantaneamente pedir para ser levada de volta para seu povo.

Como posso estar considerando a idéia de ficar com estes selvagens? ela pensou. Mas, se eu voltar, para onde irei? Lembranças dolorosas vieram-lhe à mente de como seus pais tinham ficado aliviados quando ela finalmente se casara.

Cavalga o Vento esperou.

Jesse evitou responder diretamente.

— Você é Cavalga o Vento. A criança tem um nome?"

— Lakotas o chamam Wablenica — 'Mãe se Foi'. Eu o chamo Wicatokapa — 'Primeiro Filho'. Ele terá um novo nome se Jess-e-king ficar."

— Um novo nome?— Jesse perguntou suavemente.

— Se Jess-e-king ficar, Wicatokapa será chamado Duas Mães."

A criança mexeu-se dormindo e, quando Jesse começou a amamentá-la, o barulho feito pela boca faminta encheu a tenda. Ele aconchegou-se na pele quente de Jesse. Ao pegar a mãozinha dele, Jesse sentiu cinco dedos apertarem forte o seu polegar. O nenê não largou. Jesse cochichou:

— O nome dele será Duas Mães".

Cavalga o Vento sorriu e se retirou para a sua cama, do outro lado da tenda.

Você deveria sorrir mais vezes, Jesse pensou,eu não fico com tanto medo quando você sorri.

 

Na manhã seguinte, Jesse acordou quando Cavalga o Vento saía da tenda. Levantando-se imediatamente, ela atiçou o fogo. Velha acordou de repente, sorrindo em aprovação a Jesse. Juntou-se a Jesse nos deveres matinais, corrigindo suas tentativas desajeitadas para fazer a refeição da manhã. Vendo o fogo saindo pelo buraco no alto da tenda, Cavalga o Vento retornou a sua casa, cumprimentou com a cabeça as mulheres, comeu sem nenhuma palavra e saiu.

Quando as mulheres da aldeia encontraram-se novamente para colher raízes e frutos, uma delas usava a anágua que Jesse tinha gastado horas adornando com laços feitos à mão. As outras mulheres caçoavam e riam entre si, e a da anágua logo tirou-a desgostosa, pois ela ficava grudando nas plantas enquanto elas colhiam.

Mais uma vez a índia jovem e bela desempenhou o papel da professora. Ensinou Jesse a falar Flor do Campo em lakota e ficou, com certeza, contente ao ver que Jesse tinha-se lembrado da aparência de algumas plantas e raízes. Pacientemente repetiu o nome das plantas até que Jesse pudesse decorar os nomes de algumas plantas novas. Uma vez, quando Jesse foi cavar para arrancar uma planta, a jovem deteve-a, agarrando sua mão e fazendo uma careta. Jesse encontrou outro tipo diferente do que ela pensava que estivesse desenterrando e a nova amiga cuidadosamente mostrou as diferenças nas folhas das duas plantas. A que era comestível tinha o talo mais comprido do que a outra. Jesse entendeu e balançou a cabeça.

Velha não tinha vindo nesta expedição e, quando Jesse voltou à tenda, orgulhosamente presenteou-a com sua pequena contribuição para a próxima refeição. Tirou as plantas, uma a uma, tentando lembrar seus nomes lakota se cuidadosamente corrigindo sua pronúncia quando Velha a corrigia. Naquela noite comeram sozinhas, pois Cavalga o Vento tinha saído novamente com um grupo de caçada e ficaria fora por vários dias. Ele tinha falado para Jesse na língua dela, mas com o mínimo de palavras possível:

— Jess-e-king, eu vou caçar. Vou muitos dias. Velha, Flor do Campo ensina você".

Jesse esperava sua volta, tentando o tempo todo encaixar-se em seu novo papel. Para cada gesto bondoso de Velha e Flor do Campo, havia centenas de chacotas e gozações cruéis das outras mulheres. Incapaz de se comunicar, a não ser por gestos, com suas duas amigas, Jesse ansiava pelo retorno de Cavalga o Vento. Em sua ausência, ela lia a pequena Bíblia, hora após hora, procurando passagens que tivessem significado para ele. Ela se perguntava sobre a capacidade dele em compreender a linguagem tradicional da Bíblia e se desesperançava com suas próprias habilidades para explicar qualquer coisa.

Ela orava, pedindo a Deus direção por palavras certas, pedindo paciência para com as mulheres ruins da aldeia e,por favor, Senhor, acrescentava a cada oração, ajude-me a não ser tão tola e lerda com as coisas novas que preciso aprender. Ajude-me a entender o que elas dizem e a imitar o que elas fazem, deforma que eu possa servir enquanto estiver aqui. Ela sabia que iria embora tão logo Duas Mães não mais precisasse dela, mas estava desejosa de encaixar-se bem até esse tempo.

O quanto ela tinha de aprender tornou-se visível dois dias mais tarde, quando a aldeia de repente tornou-se uma colméia em atividade. As mulheres gritavam, as crianças berravam, os cachorros latiam, e todos se movimentavam apressados enquanto as tendas eram derrubadas, os fogos, apagados e as coisas, empacotadas. Velha, de alguma forma, fez Jesse entender que toda essa correria tinha a ver com alimentação, mas Jesse continuou ignorante, andando às tontas, atrapalhando, até que Velha, frustrada, forçou-a a sentar-se em um suporte puxado pelo potro e segurar Duas Mães.

 

já aprendi a contentar-me com o que tenho.

Filipenses 4:11

 

As mulheres e as crianças correram para fora do acampamento. Tão logo Velha terminou de empacotar, gesticulou para Jesse segurar a corda e puxar o cavalo. Jesse recuou com medo. Velha insistiu, prendendo o suporte do bebê ao lado do animal, de forma que a criança pudesse ver todo o movimento ao seu redor.

Jesse ainda hesitou. Finalmente, Velha prendeu a corda do cavalo em si mesma e, desgostosa, começou a cruzar a campina. Jesse seguiu, humilhada, mas incapaz de dominar o medo que sempre tivera de cavalos.

Elas tinham andado apenas umas poucas milhas quando chegaram ao lugar de caçada de búfalos. Velha carregou o suporte do potro e começou a reerguer a tenda. Primeiro ela pegou os quatro mastros mais compridos, colocou-os no chão e prendeu-os com uma tira de couro. Com a ajuda de Jesse, ela levantou os quatro mastros e separou as extremidades. A base da armação da tenda ficou pronta e as duas mulheres acrescentaram outros mastros, completando uma armação circular. Velha mostrou a Jesse como era o processo, de tal forma que os mastros se encaixaram um no outro. Quando os mastros foram colocados, Velha trouxe a cobertura da tenda. Ela havia sido dobrada de tal forma que era fácil jogar a parte do meio para o último mastro pelas tiras costuradas no comprimento da cobertura. Feito isto, Jesse e Velha levantaram o último mastro e o colocaram no lugar. Cada uma delas pegou uma dobra de cobertura e andou em volta da armação dos mastros, encontrando-se onde a abertura da porta seria. Acima da abertura, as beiradas da cobertura eram colocadas juntas. Finalmente, uma estaca foi enfiada numa alça na extremidade de cada lado da abertura da porta e no chão.

Jesse afastou-se para examinar seu trabalho manual. Velha deu uns tapinhas em seu ombro e sorriu, encorajando-a. Ambas levaram as peles de búfalo, que lhes serviam de cama, para dentro, prepararam um buraco para a fogueira, arrumaram a bolsa de Cavalga o Vento e seus outros poucos pertences e logo estavam preparadas para se juntar a ele, ao lado de seu búfalo morto e fresco.

Jesse ficou parada, sem saber o que fazer para ajudar. Num momento, Velha gesticulou para ela e riu. Cavalga o Vento virou seu rosto para o outro lado, mas Jesse pegou uma expressão de descrédito em sua face.

Cavalga o Vento tirou a pele do búfalo; antes, porém, cortou-lhe o lado e, abrindo e enfiando a mão dentro, removeu o fígado do animal que para o horror de Jesse, mordeu com gosto. Ele lhe ofereceu um pedaço, mas ela meneou a cabeça e virou-se. Ele deu de ombros e continuou sua refeição antes de acabar de talhar o búfalo, colocando cada pedaço de carne no couro. Quando o trabalho acabou, ele pegou os quatro cantos do couro, usando-o como um saco no qual carregou sua presa de volta ao acampamento.

Correndo à frente para a aldeia, Jesse se apressou para dentro da tenda. Ansiosa para ajudar, havia decidido que ia começar o primeiro fogo. Ela tinha visto a Velha fazê-lo muitas vezes e, apesar de Velha usar gravetos em vez de pedra-de-fogo e ferro, como ela usara na caravana, ela ainda se sentia confiante em poder cumprir essa tarefa simples.

Procurou a bainha comprida que guardava os gravetos de fazer fogo e esvaziou-a. Colocando a palha de cedro estreita no chão, segurou-a bem firme com um pé. Pegando o arco pequeno ela raspou o graveto no tendão forte e colocou uma ponta do graveto na palha de cedro. Com a mão esquerda colocou uma pedra oca em cima do graveto e começou a esfregar com o arco, pretendendo rodar o graveto como tinha visto Velha fazer. No primeiro movimento do arco, sua mão balançou, o graveto escapuliu da reentrância da pedra e foi para o ar.

Jesse repetiu de novo a seqüência, mudando a direção do graveto ao esfregá-lo no tendão. Ele ficou no lugar — até sua mão balançar e o graveto novamente escapar da pedra.

Pacientemente, ela arrumou toda a parafernália novamente. Desta vez, como ela esfregasse com o arco, tudo ficou no lugar, mas a franja da barra de seu vestido ficou enroscada no tendão. Ela ofegou com impaciência. Algo a fez virar-se. Muitas mulheres da aldeia estavam espiando pela abertura da tenda. Elas davam risadinhas abafadas apontando para ela e conversando entre si.

Jesse ficou vermelha de raiva e vergonha. Jogou os gravetos e virou-se para encará-las, mas elas se foram em disparada quando Cavalga o Vento colocou sua carga de carne de búfalo fora da porta. Jesse sentou-se na poeira, os gravetos do lado, fazendo força para segurar as lágrimas. Ela olhou para cima brava, pegou os gravetos e os entregou.

— Queria ajudar, mas não consigo— falou derrotada.

Cavalga o Vento pegou os gravetos e, com paciência, ensinou-lhe a arte de acender o fogo. Enquanto isso, ela perguntou o que elas estavam falando.

Cavalga o Vento deu de ombros e ignorou-a.

— Eu quero saber. — Ela estava ajoelhada próxima a ele, tentando fazer o que ele havia ensinado com os gravetos.

Pegando a mão que segurava a pedra, Cavalga o Vento disse devagar:

— As mulheres lhe deram um nome".

— Eu tenho um nome. Meu nome é Jesse King."

— Este não é lakota. Não tem significado."

— Então, que nome elas me deram?"

— Mulher Que Não Faz Fogo. — Jesse encolheu-se e virou-se para esconder as lágrimas que teimavam em rolar.

Cavalga o Vento não a consolou. Ele continuou a demonstrar o começo do fogo. Jesse esfregou o arco rápido, com raiva, e a força de sua raiva trouxe sucesso. Uma chama pequena, brilhante, finalmente criou-se na base da palha de cedro. Cavalga o Vento habilmente sacudiu-a no pavio na cova e assoprou firme, fazendo a chama crescer. Em poucos momentos, a fumaça saía pela abertura da tenda.

As mulheres viram a fumaça, mas não mudaram o nome de Jesse . Algumas das jovens mais qualificadas ficavam imaginando quanto tempo ainda demoraria até que Cavalga o Vento percebesse o erro e levasse de volta para seu povo a mulher desajeitada.

Pássaro Amarelo falou alto:

— A criança não precisa dela. Eu a alimentaria com sopa de búfalo e geléia de cereja. Ela cresceria forte. Ela precisa de uma mãe do povo, não dessa mulher que lhe ensinará coisas estranhas".

Flor do Campo surpreendeu-se ao defender Jesse:

— Se Cavalga o Vento quisesse uma mulher da aldeia, ele poderia ter tido uma. Muitas esperavam que ele embrulhasse sua manta de couro de búfalo nelas. Mas ele não o fez. É nosso costume sermos bons para os fracos. Nós deveríamos ajudá-la se ela quer aprender nossos costumes. Vocês têm visto que ela tenta. Ela cuida bem do nenê de Águas Dançantes e Cavalga o Vento. Eu tenho visto o choro dela por sua própria criança. Flor do Campo respirou e olhou para Pássaro Amarelo, enquanto acrescentava: — Pense em como seria se você estivesse no meio dos brancos, Pássaro Amarelo".

Pássaro Amarelo replicou:

— Cavalga o Vento não a embrulhou em sua manta. Não houve festa. Ela não é sua esposa! Ela é apenas uma escrava. E Flor do Campo— ela acrescentou veemente, — Eu preferiria morrer a ter de ficar com um povo estranho!".

Flor do Campo respondeu:

— Eu não sei por que ela fica. Talvez Cavalga o Vento não a deixe ir. Talvez ela não tenha para onde ir. Ela não parece ligar para ele. Mas ela fica. Se ela quer aprender nossos costumes, eu a ajudarei!".

Pássaro Amarelo e suas amigas já estavam saindo de perto de Flor do Campo, apressando-se para suas próprias tendas para começar o trabalho de corte e cozimento de suas caças. A defesa de Flor do Campo acabou abruptamente quando Lobo Uivante puxou-a, repreendendo-a por não ter levantado o suporte sobre o fogo para cozinhar a carne de búfalo. Ele mesmo tinha levantado o suporte e posto para dentro a pequena pança de búfalo. Cheia de água, a pança estava dependurada no suporte sobre o fogo. Logo acrescentou-se carne, que foi colocada para cozinhar.

Enquanto uma parte de sua carne cozinhava, Velha mostrou a Jesse como cortar tiras fininhas, que eram dependuradas num grande suporte para secarem ao sol. Apontando para a carne secando, ela disse — Papa — e Jesse repetiu a palavra. Mais tarde, naquele dia, elas moeram tiras de carne com tutano e frutinhas de arônea: "Wakapapi— foi o nome dado por Velha. Jesse surpreendeu-se ao perceber que gostara daquilo.

Naquela noite houve uma grande festa. Dançaram e cantaram noite adentro. Jesse observou como Cavalga o Vento se assentava no meio dos amigos, contando alguma história do dia da caçada, suas mãos balançando no ar, enquanto recriava uma cena para todos eles.

Lobo Uivante estava assentado à beira do grupo, ouvindo num silêncio sepulcral. Quando o grupo brincou, comparando o tamanho da caça de Cavalga o Vento com a de Lobo Uivante, este levantou-se rigidamente e saiu a passos largos sem uma palavra sequer. Quando Cavalga o Vento protestou e foi atrás dele, Lobo Uivante recusou a mão amigável.

Ainda assim havia grande alegria na aldeia, e todos comeram até não agüentar mais. Jesse assistia à dança com vivido interesse. Em seus melhores vestidos, as mulheres ficavam à beira da fogueira pulando da esquerda para a direita e da direita para a esquerda. Cada dançarina dava um passo com o pé esquerdo e então arrastava o direito até o outro, então revertia-se a direção. Os homens, assentados em círculo no meio dos que dançavam, tocavam tambores, dando o ritmo para a dança.

Ela viu Velha com um bando de velhas encarquilhadas e Flor do Campo sorrindo suavemente com o segredo de um cochicho de uma amiga. Em silêncio, ela saiu de perto da fogueira para a tenda de Cavalga o Vento. Duas Mães dormia, mas ela o aconchegou de qualquer forma. Quando Cavalga o Vento sentiu sua falta e largou a celebração para procurá-la, ele a encontrou, dormindo quieta, com a cabecinha de Duas Mães aninhada no seu braço.

No dia seguinte Jesse aprendeu que quase o búfalo inteiro era aproveitado pelos lakotas. Dos chifres faziam-se conchas e xícaras, o pêlo do couro raspado era recolhido e usado para encher travesseiros. As costelas eram guardadas como brinquedos para crianças e Velha pediu a bexiga para uma bolsa para guardar as ervas preciosas.

A curtição do couro acabou com as forças de Jesse. Primeiro a pele era esticada numa armação grande para secar ao sol. Quando os pêlos estavam secos, as mulheres começavam a descarnar o couro, raspando a gordura e o tecido com um raspador de chifre de alce. Jesse trabalhou muito, ignorando a dor nos músculos do ombro por causa do novo serviço. Feita a primeira raspagem, a pele era colocada para secar novamente, e em poucas horas transformava-se num couro cru seco, duro. Mais raspagem era necessária para remover todos os pêlos do couro.

Jesse interiormente recusou o processo seguinte de curtição, mas tentou não demonstrar. O miolo do búfalo foi cozinhado e, quando frio, espalhado sobre a pele até ela ficar totalmente coberta com a pasta. Então, pedras redondas, lisas, eram usadas para trabalhar a mistura dentro da pele. Finalmente, tudo era coberto com o caldo no qual os miolos haviam sido cozidos e deixado para curtir o resto do dia. As peles, então, eram mergulhadas numa mistura de água com raízes de iúca. Elas ficavam com um cheiro adocicado. Recolocadas nas armações, as peles eram esticadas de novo e a água se evaporava.

Com as instruções de Velha, Jesse esticou e secou o couro várias vezes. Seus ombros e braços doíam e ela ofegava com o esforço, mas ainda assim Velha a instruiu a continuar trabalhando o couro. Finalmente, as duas mulheres puxaram e esticaram o couro seco sobre um cordão forte de búfalo trançado que tinha sido atado a um galho alto de árvore e esticado em uma estaca fincada fundo no solo. As duas mulheres puxaram e esticaram fortemente o máximo que puderam, pois o couro estava secando. Para a admiração de Jesse, quando finalmente secou, a pele estava tão macia quanto veludo.

Finalmente, Cavalga o Vento pegou o couro macio e pôs na estaca sobre um fogo fraquinho. Quando ficou defumado; o couro tornou-se marrom-claro. Ele explicou a Jesse que a fumaça o manteria macio se ele ficasse úmido.

Jesse ajudou Flor do Campo a costurar muitas peles juntas, usando os tendões compridos das costas do búfalo como linha. Lobo Uivante sorriu com a possibilidade de uma tenda nova e começou a decorar a parte externa com pictogramas desenhados. Jesse estava tão encantada com tal habilidade artística que sua opinião sobre ele abrandava-se à medida que aumentava a beleza da tenda. Certamente um homem com tamanho talento artístico deve ter algo bom.

Jesse via e aprendia com as mulheres da aldeia a transformar seus couros de búfalo em coberturas de tendas, mocassins, blusas, vestidos, perneiras e suportes de bebês. Penas, espinhos de porco-espinho, tinturas feitas de frutos ou raízes estavam sempre à vista, pois as mulheres trabalhavam para criar coisas bonitas para suas famílias. Couro cru servia para sola de sapatos e bolsas para guardar coisas. Enquanto trabalhavam, algumas vezes assavam um osso grande de búfalo em um fogo de casca de choupo. De minutos em minutos, alguém virava o osso de forma que ele assasse inteiro e por igual. Quando ficava pronto, as mulheres o quebravam e comiam o tutano marrom, saboroso.

Certa manhã, Flor do Campo deu a Jesse a tarefa de começar um par de mocassins. Jesse concordou, mexendo a cabeça, e tornou-se uma aluna disposta. No entanto, quando chegou a hora de decorar os mocassins, ela rapidamente exibiu seus dotes artísticos, manejando o sovela facilmente e criando um desenho com contas, intrincado, para Flor do Campo admirar.

Quando os mocassins ficaram prontos, Flor do Campo sorriu recatadamente e sugeriu que Jesse os desse à Velha. Ela aceitou o presente com um sorriso caloroso e palavras boas. Apontando p ar a Jesse naquela noite, quando Cavalga o Vento juntou-se a elas, Velha mostrou-lhe os mocassins e gesticulou para que ele traduzisse o que ela dizia.

— Entre nosso povo, é costume que uma esposa nova faça mocassins para a mãe do marido. Quando a mãe aceita o presente/ ela dá as boas-vindas à nova esposa para entrar na família.

Jesse ficou vermelha com a mensagem transmitida por seu presente inocente à velha senhora. Cavalga o Vento olhou Jesse cuidadosamente, enquanto concluía:

— Minha mãe aceita o presente que você lhe deu, diz que você é bem-vinda como minha esposa".

Seus olhos escuros encontraram os dela rapidamente, mas então ele pegou Duas Mães e disse:

— Meu filho e eu vamos dar boa-noite para o sol agora". Jesse foi deixada atrás, olhando Velha calçar seus mocassins novos, cacarejando sua apreciação.

Com o passar dos dias, tornou-se um hábito Cavalga o Vento assentar-se perto de Jesse, fora da tenda, bem ao pôr-do-sol. Segurando Duas Mães, ele pedia a ela que lesse o — Livro de Deus".

Jesse lutava para saber o que ler, até que Cavalga o Vento solucionou o problema. Certa noite, como as mulheres da aldeia percebessem e rissem entre elas, quando Jesse manuseava as páginas da Bíblia, Cavalga o Vento cobriu a mão dela com a sua.

— Não é tudo isso de Deus?"

Jesse respondeu:

— Sim, tudo é de Deus".

— Então, você fala isso tudo."

Assim, Jesse começou lendo: — No princípio criou Deus os céus e a terra".

Cavalga o Vento ouvia atentamente. Jesse não tinha como saber o que ele entendia ou não, pois ele nunca a interrompia. Obedientemente, ela lia até que ele se levantasse abruptamente e dissesse: — É suficiente".

Então ele lhe passava Duas Mães, punha a Bíblia na bolsa e saía para olhar os cavalos. Ele geralmente retornava à tenda bem depois de Jesse dormir.

 

Escarva a terra, e folga na sua força... Ri-se do temor...

Jó 39:21-22

 

Algumas semanas mais tarde, certa noite, Jesse estava quase dormindo quando Cavalga o Vento entrou na tenda, sentou-se ao seu lado e perguntou-lhe de repente:

— Por que é que você tem medo de cavalo?".

Como ela não respondesse, ele disse:

— O cavalo de Velha é um potro manso e bom. Velha disse que você tem medo dele. Por que você tem medo?".

Jesse lembrou-se da risada de Velha, quando ela e seu filho tinham retalhado o búfalo. Ela lembrava-se do olhar de descrédito no rosto de Cavalga o Vento.

— Algum cavalo já machucou você?"

— Não."

— Sua família?"

Jesse balançou a cabeça e disse:

— Eu sempre tive medo — sem razão — Ela encolheu os ombros, sentindo-se tola por seus medos infundados.

O índio examinava sua face, tentando entender. Seja o que for que tenha visto, não disse nada mais e recolheu-se para sua própria manta de búfalo. Virando-se de costas para ela, pareceu ter caído no sono na hora.

Na manhã seguinte, Jesse tinha acabado de alimentai Duas Mães quando Cavalga o Vento entrou, pegou em sua mão e levou-a para fora. Andaram rápido pela beira do acampamento. Parecia que Cavalga o Vento estava tentando evitar que o vissem. Jesse o seguiu, sem perguntas, sua curiosidade excitada pelo comportamento incomum dele. Foram para fora do acampamento. A relva alta balançava-se ao sol da manhã.

Cavalga o Vento abaixou-se rapidamente, puxando Jesse para baixo ao seu lado. Ele apontou para uma colina longe, chamando sua atenção para muitos alces, pastando tranqüilos. Ele cochichou:

— Logo trarei para você peles de alce bonitas".

Mas Cavalga o Vento não tencionava caçar nesse dia. Umas poucas jardas cruzando a planície no seu lado oposto estava o objetivo de seu interesse. Seu próprio cavalo pastava mansamente e não longe dele estava uma linda egüinha. Jesse não sabia admirar a amplitude de seu peito, o ângulo de seus jarretes ou a pequenez de suas patas, tudo isso que, combinados, faziam deste potro uma montaria segura, veloz. Ela, no entanto, notou a crina vermelha caindo e o rabo deixando tudo mais brilhante pelo contraste das manchas brancas espalhadas no pescoço forte e, atrás, num desenho intrincado. Uma estrela escura quase escondida pelo topete explicava o nome do potro.

Cavalga o Vento assobiou, num tom baixo que crescia gradualmente, até que os cavalos levantaram suas cabeças e foram em sua direção. Vendo Jesse, os dois potros pararam uns poucos metros longe e olharam Cavalga o Vento. Como ele não se mexeu, eles abaixaram suas cabeças para pastar de novo. Segurando a mão de Jesse, aproximou-se dos dois cavalos. Ele sentiu Jesse enrijecer-se nervosamente.

— Você tem medo porque não entende como o cavalo pensa. Eu ensinarei você. Seu medo vai acabar. — Ele acrescentou solenemente: — As mulheres da aldeia não vão rir".

Pegando duas rédeas da bolsa de couro ao seu lado, Cavalga o Vento deu uma a Jesse, demonstrando como deveria ser segurada. Em silêncio, andou para o lado de seu próprio cavalo, levantando a cabeça do potro, e pôs a rédea. O potro dançou um pouco, em antecipação à corrida da manhã. Jesse ficou mais tensa.

— Vento é um cavalo de caça— Cavalga o Vento explicou. — Ele é ligeiro e pronto a fazer o que seu cavaleiro desejar. Ele dança pela alegria da corrida, não porque queira machucar você. Nós somos amigos, ele e eu. Logo Estrela Vermelha será sua amiga também."

Jesse tentou acalmar seus medos e aproximou-se da égua. Para sua surpresa, Estrela Vermelha logo, de bom grado, levantou sua cabeça e ficou quieta, enquanto Jesse desajeitadamente tentava colocar a rédea. Cavalga o Vento tinha posto a rédea em Vento, num movimento rápido. Jesse tentou várias vezes até conseguir passar o laço sobre o focinho de Estrela Vermelha e sobre o seu pescoço. Mesmo assim, com toda a falta de jeito, Estrela Vermelha permaneceu parada.

Jesse relaxou. Estrela Vermelha virou a cabeça para Vento, olhando-o enquanto ele resfolegava e batia com as patas no chão. Jesse ficava imaginando-a dizer:

— Calma, sua boba. Não vê que esta mulher está nervosa?".

Jesse deu um tapinha no pescoço de Estrela Vermelha. Para seu prazer, a mula curvou sua cabeça em volta do braço de Jesse. Jesse sorriu radiante, com prazer, e Cavalga o Vento disse:

— Ela é uma égua inteligente. Disse para você não ter medo. Ela diz: — Vamos ser amigas".

Cavalga o Vento demonstrou como montar em pêlo. Estrela Vermelha ficou parada enquanto Jesse tentava pular em seu lombo. Depois de várias tentativas, ela conseguiu.

As lições de montaria começaram. Montando Vento, Cavalga o Vento pegou a rédea de Jesse, explicando:

— Eu a guiarei. Você precisa aprender a sentir o seu movimento. Senti-la virar". Jesse concentrou-se no movimento de Estrela Vermelha, enquanto Cavalga o Vento as guiava num círculo grande.

— Veja como ela se move neste caminho— ele disse, e fizeram um segundo círculo grande na direção oposta. Por quase uma hora, Cavalga o Vento guiou Estrela Vermelha, instruindo Jesse a apertar seu potro com os joelhos, explicando como pressionar os lados da égua para dar-lhe sinal para virar.

Finalmente, Cavalga o Vento desmontou, dando a rédea para Jesse e ordenando que ela se afastasse dele, guiando a égua somente com a pressão da perna. Para desânimo de Jesse, Estrela Vermelha parecia não entender nada. Por mais que tentasse, Jesse não conseguia fazer a égua ir para onde ela queria. Sinalizando uma virada para uma direção, ela desanimou ao ver a cabeça virar para o lado oposto.

Ordenando uma parada, Jesse começou de novo. Mais uma vez a égua virou na direção oposta. A frustração de Jesse aumentou, pois Estrela Vermelha continuava a revelar o que parecia ser um temperamento obstinado. Tentando fazer a égua parar, ela conseguiu apenas fazê-la afastar-se. Ao tentar fazer a égua girar à esquerda, nada pôde fazer quando ela começou um círculo largo à direita. Finalmente, a raiva explodiu.

— Vire à direita, seu cavalo tonto, direita. — Jesse gritava, chutando os flancos da égua.

Estrela Vermelha obedeceu ao chute e deu um galope. Jesse foi jogada na poeira. No momento em que sentiu que Jesse saíra de suas costas, Estrela Vermelha parou, abaixou a cabeça e começou a pastar.

Cavalga o Vento correu para Jesse. Ela sentou-se, a testa no joelho.

— Você está machucada?— ele perguntou, com preocupação na voz.

Ela levantou a cabeça e ele viu lágrimas em suas faces.

— Não!— ela exclamou.

— Então você precisa tentar de novo."

Com os ombros tensos, Jesse levantou-se vagarosamente, os olhos fuzilando de raiva.

— Eu odeio cavalos!— ela gritou, — Eu odeio cavalos e não consigo aprender a montar!". Virou-e, afastando-se a passos largos. Ele colocou uma mão em seus ombros e insistiu.

— Você precisa tentar de novo. — Então, com mais bondade, acrescentou: — Você pode aprender. Tente de novo".

Jesse começou a chorar. Cavalga o Vento cruzou os braços e esperou que ela parasse. Finalmente ela levantou a cabeça. Olhando o horizonte, deu vazão às frustrações das últimas semanas.

— Estou tão impotente— ela reclamou. — Não posso cozinhar sem a ajuda da Velha. Não consigo achar comida sem Flor do Campo. Não consigo montar a tenda. Tudo é difícil. Tudo é novo. Sou tratada como uma criança, e elas estão certas. Eu sou uma criança. Não sei nada de seus costumes. Nem mesmo posso conversar, porque não sei sua língua. Velha precisa ensinar-me a cozinhar. E você precisa ensinar-me a andar a cavalo para eu não envergonhá-lo. Estou cansada de ser tola! — Sua voz tremia enquanto lágrimas ameaçavam correr novamente.

Cavalga o Vento apertou seus ombros fortemente e falou devagar:

— É verdade, você tem muito para aprender. Mas, se você quiser, você aprenderá. Aprenderá a andar a cavalo, a cozinhar e a falar minha língua. Eu aprenderei sobre Deus, enquanto você lê o livro para mim— E acrescentou: — Duas Mães vai chamar você de Ina — 'mãe', em sua língua. Se você quiser ser parte do meu povo, volte para Estrela Vermelha e aprenda a montar".

Jesse olhou dentro dos olhos negros, severos. As penas dependuradas em sua trança balançavam com a brisa. Ele baixou suas mãos de seus braços sem tirar os olhos dela.

Jesse voltou para Estrela Vermelha. Por fim, algumas viradas foram executadas com sucesso. Quando suas pernas doeram até ela pensar que não agüentaria mais, Cavalga o Vento veio para o seu lado.

— É suficiente. — Ele ordenou que ela descesse e voltasse para a aldeia a pé. — Nós não precisamos de olhos nos espreitando enquanto você aprende."

Jesse assentiu com a cabeça obedientemente e voltou para a aldeia. Ela colheu algumas flores no caminho, esperando que o buquê explicasse a razão de sua caminhada tão de manhã. Algumas mulheres fizeram comentários enquanto ela andava e, desta vez, Jesse estava contente por não entender.

Quando ela entrou na tenda, Velha deu uma risadinha e convidou Jesse para descansar suas pernas cansadas, sentando-se perto dela.

Jesse pensou: Como pode ser, Velha, que a senhora sempre sabe meus segredos? Ela gesticulou até Velha entender. Velha arreganhou os dentes, revelando os espaços pela falta de dois deles. Franzindo o nariz, ela fez Jesse entender que ela cheirava a cavalos. As duas mulheres riram juntas e compartilharam o primeiro de muitos segredos.

Durante os dias seguintes, Jesse e Cavalga o Vento saíam do acampamento cedo, todas as manhãs. Jesse aprendeu a montar, descobriu que seus músculos adaptaram-se rapidamente, e a dor logo desapareceu. Ela não percebeu quando a mudança aconteceu, mas numa manhã descobriu, de repente, que o conhecimento de animais grandes não mais inspiravam dificuldade a ela. Ao contrário, desejava antecipadamente as lições matinais. Se era a companhia do homem ou do animal que a agradava,... ela não pensava a respeito.

Numa manhã especial, Estrela Vermelha levantou sua cabeça e relinchou uma saudação. Foi um ronco baixo, delicado, que mal a alcançou do outro lado da campina, pois a manhã estava diferente, com vento. Mas, pelo barulho, Cavalga o Vento disse:

— Agora vocês são amigas. Estrela Vermelha saúda você — Ao som de sua voz, Vento levantou sua cabeça do gramado, balançou-a e trompeteou uma saudação animada.

Naquele dia, enquanto Jesse, a meio galope leve, fazia o círculo grande ao redor de Cavalga o Vento, este disse:

— Você conseguiu a amizade de sua égua. — Olha as orelhas dela. Ela vai lhe dizer o que ela vê, escuta ou cheira. Você precisa montar todos os dias até saber o que ela está-lhe dizendo. Preste atenção, sempre, às coisas que podem assustá-la. Ela tem uma forma de se proteger — fugir correndo. Não tenha medo. Entenda".

Cavalga o Vento estava em pé no gramado, enquanto falava. De repente, ele deu um assobio agudo. Vento correu para ele, com a crina e a cauda voando. Jesse assistia a tudo, admirada, enquanto Cavalga o Vento correu uns poucos passos, agarrou a crina de Vento e lançou-se no ar. Suspenso pelo movimento do cavalo correndo, Cavalga o Vento foi carregado para as costas de seu potro. O potro correu para longe de Jesse e Estrela Vermelha, com seu corpo esticando-se quando as patas marcavam o solo.

Cavaleiro e potro trabalharam juntos, suavemente, até que Vento deu um giro rápido e Cavalga o Vento desapareceu de vista. Vento virou, rapidamente de novo, mostrando seu cavaleiro grudado ao seu lado, com uma das mãos enroscada na crina pendente e a ponta de um pé enganchada nas costas do potro.

Quando os dois corredores passaram por Jesse, Cavalga o Vento voltou à posição normal de novo, somente para escorregar para o outro lado. Vento rodopiou abruptamente e correu em direção a Jesse, detendo-se a apenas alguns pés de onde ela se assentava com uma perna de cada lado de Estrela Vermelha.

Cavalga o Vento deu uma respirada e segurou Vento com a rédea apertada, enquanto prevenia Jesse:

— Saiba o que você pode fazer. Saiba o que não pode. Então você fará o que é melhor para você e sua potranca".

Eles voltaram a cavalo para o acampamento naquela manhã, Jesse trotando com Estrela Vermelha, ao lado de Vento. Enquanto desfilavam pelo meio do acampamento, ela se divertia muito com os olhares das mulheres, que não podiam acreditar. Deu uma olhada para Cavalga o Vento. Ele percebeu seu olhar. Ela achou ter visto um rápido vislumbre de sorriso.

Será que está orgulhoso de mim?, pensou. Ela recusou o pensamento, lembrando a si mesma que ela era ali no acampamento apenas uma conveniência para alimentar seu bebê e ler o livro pelo qual estava curioso.

Pararam fora da tenda de Cavalga o Vento. Quando desceram, Flor do Campo correu e deu tapinhas no seu braço, falando e sorrindo encorajadoramente. Ela pediu que Cavalga o Vento traduzisse.

Sem nenhuma expressão, ele disse:

— A mulher disse que você ganhou minha égua preferida".

Jesse olhou para ele:

— É verdade?".

Cavalga o Vento deu de ombros:

— Estrela Vermelha é uma boa égua. Se é minha preferida, não posso dizer— Antes que Jesse pudesse agradecer-lhe, ele pegou a rédea da Estrela Vermelha das mãos dela e saiu, virando sua enorme silhueta para o grupo de mulheres, que davam risadinhas inoportunas e apontavam para eles.

 

Eis que o nosso Deus, a quem nós servimos, é que nos pode livrar; ele nos livrará do forno de fogo ardente.

Daniel 3:17

 

Com o passar do tempo, Jesse cresceu no conhecimento do modo de vida do povo. Aprendeu a pensar mais neles como lakotas do que como índios. A língua apresentava uma cadência familiar, e ela se descobria imitando os sons quando estava sozinha. Em obediência repetia tudo o que a Velha ensinava, e lembrava-se de muitas palavras, mas sua timidez inata a impedia de tentar dizer do seu jeito. Aprendeu muito mais a entender do que a falar.

Se eles soubessem o quanto eu entendo — ela pensou —não seriam tão cruéis. Queria acreditar nisso e, de fato, era o que imaginava. Aquela zombaria aberta tinha diminuído desde que ela ganhara Estrela Vermelha de Cavalga o Vento. No entanto, nas primeiras tentativas de conversar com elas, começavam a rir. Somente Flor do Campo e Velha eram boas de verdade. Seu amor por elas aumentou e a amizade crescente delas consolava Jesse.

Duas Mães começou a fazer barulhinhos e a sorrir com satisfação quando a via. Ela continuava a ler a Bíblia para Cavalga o Vento. Ele era paciente e bondoso para ela. Nos dias em que não caçava, com muita boa vontade cuidava de Duas Mães, carregando-o orgulhosamente pelo acampamento. Jesse via que Cavalga o Vento era respeitado por seu povo. Ela também percebia os olhares irritados de algumas jovens solteiras, quando ele lhes dava as costas e saía mancando. Se não fosse pela perna torta, Cavalga o Vento seria muito desejado pelas jovens de sua tribo.

O calor e a secura do verão aumentaram e o acampamento mudou de novo, procurando água fresca e pastagem para a manada considerável de potros que tinham. Jesse ficava grata pela sombra da tenda. Sua pele fina queimava e descascava, e descascava e queimava outra vez, até deixá-la desesperada com a aspereza. Velha colheu uma planta e ensinou Jesse a mascá-la, formando uma pasta para espalhar na pele áspera, inflamada. Isto ajudava, mas Jesse continuava à procura do abrigo da tenda sempre que possível. Ansiosa por não aparentar preguiça, ela trabalhava duramente para amaciar os couros dos búfalos que Cavalga o Vento matava. Ela trabalhava nisso hora após hora, até que Velha mandava parar, antes que ela gastasse a pele de tanto raspar.

— Mas Velha, eu não sei nada. Eu não faço nada. As pessoas me chamam de wagluhe. — Jesse recuou ao pensar em como a língua estava mal falada e como devia soar infantil.

Velha entendeu e, dando uma agulha a mostrou como emendar as peles.

Certa manhã, Jesse estava trabalhando em seu projeto de costura, quando ouviu vozes preocupadas fora da tenda. Flor do Campo correu para dentro e puxou-a para fora para ver o horizonte. O que ela viu a fez apertar a mão de Flor do Campo com as suas e gritar de medo.

Uma onda de fumaça preta saltava para o céu e aproximava-se rapidamente deles. Foi dado o alarme. Os meninos mais velhos cercaram os potros que estavam pastando para os levarem ao outro lado do riacho. Os potros, assustados pelo cheiro da grama queimada, obedeceram, indo rapidamente, e os garotos voltaram depressa para ajudar no acampamento.

Apressadamente as mulheres ajuntaram os pertences que conseguiram antes de se dirigirem ao riacho. Jesse agarrou Duas Mães, deu-o à Velha, gesticulando em direção à água, e correu de volta à tenda. Pegou a bolsa de Cavalga o Vento, saiu correndo. De fato, eles podiam ver labaredas atravessando o gramado em direção a eles.

À frente as mulheres estavam cruzando o riacho, algumas carregando couro de búfalo, outras de mãos vazias. Jesse olhou e localizou , do outro lado, Velha e Duas Mães salvos na margem oposta. Segurando alto a bolsa, ela foi saltando na água e caiu na terra do lado de Velha, arfando para respirar e abraçando Duas Mães. O cheiro forte do campo queimado entrava por suas narinas, fazendo sua garganta arder.

Então, do amontoado de mulheres veio um grito agudo. Uma jovem índia, que Jesse sabia chamar-se Chuva, levantou-se e ergueu suas mãos para os céus em espanto. Desatento ao inferno atrás de si, seu filho estava sentado, no outro lado, escolhendo pedrinhas de uma pilha bem arrumadinha.

Era Não Escuta. Ele estava separado do grupo e Chuva, ocupada com seus gêmeos pequenos, não percebeu que este, já aprendendo a andar, tinha saído do lado dela. Agora ele estava assentado, sem consciência das chamas que já haviam começado a queimar o outeiro acima dele.

De repente, o vento soprou, levando uma rajada de fumaça e calor que rodopiou sobre ele. Ele olhou ao redor e, em um só movimento, estava em pé. Em seu rostinho percebia-se a força que fazia ao tentar controlar o impulso de gritar com terror. De fato, o valor da coragem havia sido firmado em sua mente. Olhos bem abertos, foi em direção à margem do riacho, procurando um caminho para atravessar. Sua mãe, dominada pelo medo, só conseguia ficar parada, com as mãos levantadas para o céu, gritando seu nome num gemido, sem parar.

Jesse nunca se lembrou de ter jogado Duas Mães na grama, nem se recordou de ter saltado o riacho, mas de repente ela estava subindo a colina, correndo em direção a Não Escuta. Uma fumaça grossa queimava sua garganta. O mau cheiro de cabelo queimado enchia suas narinas, mas ainda assim corria. Finalmente ela alcançou Não Escuta e, apanhando-o num lance em seus braços, ela debruçou-se sobre ele, para protegê-lo o máximo possível. As chamas estavam. neles, enquanto ela corria para o riacho. Estava sentindo a dor da queimadura em seus ombros.

Mãos alcançaram Não Escuta e Jesse despencou na grama, sem perceber a pele de búfalo sendo atirada em seu corpo para apagar as chamas que tinham consumido a parte de trás de seu vestido.

E agora Jesse vivia em um novo mundo. Ouvia seus próprios gritos ecoando no túnel longo e escuro da dor. Ela foi engolida nesse túnel e carregada nele até sentir-se afogando. Então, quando se sentiu afogando, pela misericórdia, desmaiou. Mas na agonia havia algo mais — vozes baixas e mãos macias, música e o som de chocalhos, então a dor novamente, quando alguma coisa fétida lambuzou seu ombro queimado.

Vezes e mais vezes ela ouviu a voz do Falcão Curandeiro, cantando em tom monótono a canção do sol:

Wanka tan han he ya u we Io

Wanka tan han he ya u we Io

Müa wi cohan topa wan Ia

Ka nu we he ya u we Io

Anpe wi kin he ya u we Io

A ye ye ye yo.

Ela agonizou por dias enquanto batalhava para sair do túnel da dor. Velha carinhosamente cuidou dela. O Falcão Curandeiro vinha invocar seus deuses para curar a mulher corajosa que tinha salvado a criança. As mulheres da aldeia cuidavam de Duas Mães. Cavalga o Vento caçava com uma energia selvagem, matando búfalos para uma tenda nova. Retornando tarde à aldeia, cada dia, ele se curvava ao lado de Jesse, retorcida, e ficava olhando Velha curar as feridas. Ele trazia água fresca aos lábios de Jesse e punha a cabeça dela em suas mãos enquanto ela bebia. E ele orava, pedindo a seu Deus que curasse essa mulher.

Quando finalmente chegou esse dia, Cavalga o Vento cavalgou, na alvorada, para agradecer ao seu Deus. Levantando suas mãos aos céus, ele gritou sua alegria e cantou as primeiras palavras que ela havia lido para ele do livro santo. Ele chamou o mensageiro da aldeia para que anunciasse a festa de celebração. Quando retornou, Jesse estava sentada, com as mãos dedilhando o bordado com contas, primoroso, em um par de mocassins em seu colo. Ela olhou para cima e sorriu, fraca, explicando:

— Da Chuva".

Cavalga o Vento assentiu e disse:

— Você dançou com a morte por Não Escuta".

— Eu só me lembro de seus olhos aterrorizados. Então, estávamos no fogo.— Jesse esquivou-se enquanto alcançava a bebida que ele oferecia. — Onde está Duas Mães?... Quanto tempo?"

— O sol escondeu-se dez vezes desde o fogo. Duas Mães está bem. Outra tenda será a casa dele até que você possa acender o fogo."

Cavalga o Vento abruptamente acabou a conversa, levantando-se para sair. Ele estava na porta da tenda, quando ouviu um choro baixo. Virando-se, viu que Jesse estava triste com o cabelo chamuscado em seu couro cabeludo. Seus olhos se encheram de lágrimas, enquanto murmurava:

— Meu cabelo...".

Cavalga o Vento atravessou a tenda de volta. Ajoelhando-se à sua frente, ele segurou seu queixo, com a mão em concha, e levantou seu rosto de forma que seus olhos se encontrassem.

— Ele vai crescer de novo. Até então, mantenha a cabeça alta, para todos verem que Caminhando nas Chamas deu muito de si para tornar-se uma de nós."

— Caminhando nas Chamas?"

— Você ganhou um novo nome entre as pessoas ."

As palavras foram ditas com ternura, e o coração de Jesse até mudou de ritmo ao ver aquele corpo poderoso avançando para a abertura da tenda. Ele se abaixou para sair, mas então virou-se um momento. A luz do sol atravessou seu rosto, iluminando a face bronzeada e a trança negra. Uma brisa suave balançou as penas de águia que pendiam de seu cabelo. Mas Cavalga o Vento não disse nada e, num movimento silencioso, saiu.

 

Não me instes para que te deixe, e me afaste de ao pé de ti.

Rute 1:16

 

Flor do Campo era a anunciadora das notícias. Quando ela disse aquilo, Jesse a encarou, não acreditando. Flor do Campo repetiu, sem ter certeza de que Jesse havia entendido.

Jesse negou:

— Ele não gosta de mim. Ele me trouxe para a aldeia para alimentar o filho dele".

— Ele deu Estrela Vermelha para você."

Jesse rejeitou tal significado:

— Era só assim que eu não o envergonharia".

— Ele trouxe um monte de peles para uma tenda nova. Trouxe peles de alce para um vestido novo para você."

Jesse explicou:

— Nós precisamos destas coisas por causa do fogo. Todos precisaram de tendas novas, de roupas novas".

— Ele se assenta com você todas as noites fora da tenda.

— Isso é para eu poder ler o livro."

Flor do Campo foi ficando impaciente: — Caminhando nas Chamas, eu lhe digo a verdade! Cavalga o Vento quer que você seja sua esposa. Você não sabe nada dos costumes lakotas. Eu vou lhe contar!".

Jesse começou a protestar, mas Flor do Campo interrompeu.

— Não! Você escuta! Quando um homem quer mostrar que ele deseja uma mulher, ele se veste com sua melhor roupa e vai até ela, fora de sua tenda. Eles se assentam e conversam. Ele dá um presente p ara os pais dela. Como você não é uma jovem lakota, nem todos os costumes são seguidos. Mas vou-lhe dizer; Cavalga o Vento gosta de você.

— Depois do fogo, quando o Falcão Curandeiro veio — quando você estava como morta — você não o viu. Eu o vi. Cavalga o Vento não comia. Ele não dormia. Ele só pensava em Caminhando nas Chamas. Ele procurava ervas medicinais. Ele caçou alce para o seu vestido. Ele levou Duas Mães para a tenda da Pássaro Amarelo para que seu choro não atrapalhasse seu descanso. Ele não confiava em ninguém, exceto em Velha, nele mesmo e em mim para cuidar de você."

Jesse escondeu seu rosto, dobrando suas pernas e abaixando a cabeça, encostando a testa nos joelhos.

Finalmente ela cochichou, tão baixo, que Flor do Campo quase não conseguiu ouvir as palavras:

— Você é minha amiga, Flor do Campo. Se eu lhe contar o que tenho em meu coração, você promete não dizer a ninguém?".

Flor do Campo colocou a mão no ombro de Jesse, tirando-a rapidamente quando a amiga encolheu-se de dor.

— Eu não vou trair minha amiga.

Respirando fundo, Jesse levantou a cabeça:

— Quando Cavalga o Vento está perto de mim, meu coração canta. Mas eu não acredito que ele goste de mim. Eu sou desajeitada em todas as coisas que uma mulher lakota precisa saber. Eu não consigo falar a língua dele sem cometer erros como de criança. E...— Jesse colocou a mão em seu cabelo curto, — Eu não sou nada, para ser olhada. Eu não sou...".

Flor do Campo ficou zangada:

— Eu já disse que ele gosta de você. Você não percebe?".

Jesse balançou a cabeça negativamente.

Flor do Campo falou o que não se fala:

— Então, se você não pode ver que ele gosta de você naquilo que ele faz, você precisa ver o que ele não fez. Você tem estado na tenda dele. Águas Dançantes foi-se há muitas luas".

— Pare!— Jesse exigiu. — Pare com isso! Eu... não fale mais nada! — Ela levantou-se e correu para fora da tenda — e entrou na de Cavalga o Vento, que estava voltando do rio, onde tinha ido buscar água.

Jesse arrancou os odres das mãos dele. A água espirrou e ela gaguejou um pedido de desculpas, e então abaixou-se meio travada para pegar os odres, estremecendo com o esforço.

— Eu faço isso, Caminhando nas Chamas." Com a voz macia, falou e dobrou-se para pegar os odres dela.

Jesse protestou:

— Isto é o trabalho da esposa". Ficou vermelha ao perceber que tinha usado a palavra errada — a palavra para esposa em vez da palavra para mulher.

Cavalga o Vento interrompeu-a antes que ela pudesse corrigir-se:

— Caminhando nas Chamas não é a esposa de Cavalga o Vento".

Jesse enrubesceu e ficou quieta. Uma mão tomou as mãos dela e Cavalga o Vento disse:

— Venha, sente-se— Ele ajudou-a a sentar-se do lado de fora, perto da porta da tenda. As mulheres da aldeia perceberam que ele entrou e saiu com uma manta de pele de búfalo. Assentando-se perto de Jesse, ele colocou a manta no chão e começou a falar.

— Eu vou lhe dizer como funciona entre os lakotas. Quando um homem deseja uma esposa... — Ele descreveu como os lakotas faziam a corte. Enquanto falava, Jesse viu que tudo que Flor do Campo tinha dito parecia ser verdade. Ele tinha, de fato, feito quase tudo o que envolvia o ritual de uma corte.

Mesmo assim, ela falou a si mesma, há uma explicação boa e perfeita para tudo o que ele fez.

Cavalga o Vento continuou a descrever a festa de casamento. Jesse continuou a ponderar consigo mesma, enquanto ele falava. Então percebeu que a voz havia parado e ele tinha repetido a pergunta.

— Como é isso entre os brancos? Como um homem conquista uma esposa?"

Embaraçada, Jesse descreveu uma corte e um casamento simples. Cavalga o Vento ouvia com atenção. Quando ela acabou, ele disse:

— Há uma coisa que um bravo lakota que deseja uma esposa faz, que eu não descrevi". Puxando Jesse a seus pés, ele continuou: — Numa noite, quando ele anda com sua mulher...— Ele pegou a manta de búfalo. Estava consciente de que as mulheres da aldeia estavam olhando com atenção.

— Ele abre seus braços...— Cavalga o Vento abriu seus braços, abrindo a manta de búfalo totalmente, — E envolve sua mulher com ela". Cavalga o Vento virou-se para Jesse e a envolveu — de forma que ambos ficam dentro da manta de búfalo— Ele abaixou os olhos para Jesse, tentando ler sua expressão. Quando viu que nada havia em seus olhos cinza, abruptamente derrubou os braços.

— Mas não é hoje e suas feridas não estão curadas. Eu já disse o suficiente. Você já viu como acontece com os lakotas."

Como Jesse ainda não dizia nada, ele continuou:

— Você falou de uma celebração com um mi-nis-tro. É uma palavra que eu não conheço. O que é um mi-nis-tro?".

— Um homem que crê na Bíblia.

— E se não houver um ministro e um homem e uma mulher desejam casar-se?"

Jesse sentiu-se mais desconfortável.

— Suponho que eles esperariam até vir um ministro."

Cavalga o Vento insistiu:

— E se um ministro não vier?".

— Eu não sei. Nunca pensei sobre isto."

Cavalga o Vento entrou na tenda e trouxe a Bíblia.

— Leia o que Deus diz sobre o homem e a mulher."

Eles sentaram-se novamente e Jesse leu cada passagem que podia encontrar enquanto ele escutava.

— Não ouvi nada de minis-tro."

Ela pôs-se na defensiva:

— Não, mas Deus diz para obedecer ao costume do povo. Entre os brancos, o costume das pessoas é com um ministro".

Cavalga o Vento pegou a Bíblia da mão de Jesse e segurou-a enquanto disse, honestamente:

— Você vive entre os lakotas, agora. Será que Deus diria que você não pode ser uma esposa sem um ministro?— Ele respondeu a sua própria pergunta: — Acho que Deus diria que um homem e uma mulher foram feitos para serem um. Acho que Deus encontraria um caminho sem um ministro".

Cavalga o Vento, de repente, jogou a Bíblia e a manta de búfalo dentro da tenda, pegou os odres de água e, a passos largos, dirigiu-se ao riacho.

Pássaro Amarelo viu e sorriu para si mesma, esperanço¬samente.

Velha ouviu e cacarejou com pesar.

Flor do Campo viu e suspirou, exasperada.

Jesse ficou olhando Cavalga o Vento sair andando, com uma canção no coração.

Ele gosta de mim... ele gosta de mim... Flor do Campo estava certa... Ele gosta!

Várias noites depois, quando o fogo já estava baixo, Jesse, deitada e acordada, tentava arranjar suas emoções confusas. Duas Mães tinha voltado para a tenda e dormia ao seu lado, respirando com um assobio ritmado. Pelo buraco, no alto da tenda, Jesse podia ver as estrelas. Um salmo veio à sua mente: Quando vejo os teus céus, obra dos teus dedos,...Que é o homem mortal para que te lembres dele?.

De fato, Senhor, ela pensou, o que sou eu para que o Senhor pensasse em mim? Na verdade, tens sido sempre por mim. Quando o pequenino Jacob morreu, deste-me conforto através de Homer. E quando senti que perderia tudo, colocaste-me na tenda de Cavalga o Vento. De verdade o Senhor tem-se preocupado comigo, mas por caminhos tão inesperados! E agora, Senhor, o que eu devo fazer? Não há ministro, nunca haverá. Há algum caminho?

Jesse levantou-se em um cotovelo para olhar a criança inteira, dormindo. Era diferente da criança que ela tinha, mas de fato a existência desta criança de muitas formas tinha-lhe trazido a sanidade de volta e sua fé num Deus de amor. Certamente, Senhor, há um caminho.

Ela sentia a presença de Cavalga o Vento do outro lado da tenda. Suas ações comprovaram que ele gostava dela. Agora, enquanto ela estava deitada na tenda dele, percebeu que se sentia em casa. Adão e Eva não tiveram ministro, Senhor. Se eu seguir sua Palavra— se nós fizermos os votos— o Senhor não poderia nos abençoar?

Em silêncio, ela cruzou a tenda escura compassadamente em direção a Cavalga o Vento. Os tições de fogo projetaram sua sombra nas paredes de couro. Sem querer, chutou a bolsa dele. Cavalga o Vento ficou em pé instantaneamente, a faca na mão, um grito de aviso em sua garganta, que morreu lá mesmo ao fitar os olhos de Jesse. Ela sorriu bobamente e encolheu os ombros com embaraço.

Do outro lado da tenda, Duas Mães mexeu-se e então aquietou-se. Chamas saíram da fogueira iluminando o interior. Cavalga o Vento ainda fitava Jesse.

Num repente, ela percebeu que a chance para uma felicidade inexplicável estava à sua frente. Palavras de inspiração vieram à sua mente:

E disse o Senhor Deus. Não é bom que o homem esteja só; far-lhe-ei uma adjutora que esteja como diante dele. E o Senhor Deus... formou... uma mulher: e trouxe-a a Adão... Portanto deixará o varão o seu pai e a sua mãe, e apegar-se á à sua mulher, e serão ambos uma só carne.

Quando as palavras soaram no coração de Jesse, a incerteza se foi. Ela cochichou para Cavalga o Vento:

— Eu acho que, se não há ministro, Deus entenderia, tão logo Ele faça parte da celebração. Sabendo todos que o homem e a mulher prometeram para a vida toda estarem juntos — em seu nome".

Achegando-se mais perto dele, ela encostou-se em seu peito. O coração dele bateu rápido enquanto ficaram juntos. A pele dele estava quente. Ele colocou um braço em volta da cintura dela e afagou seu cabelo curto. Abaixando-se para pegar sua própria manta de búfalo, Cavalga o Vento a embrulhou nela e a segurou perto, cochichando:

— Nós encontraremos uma forma de agradar a Deus, Caminhando nas Chamas".

De repente, ele derrubou a manta de búfalo e afastou-se.

— Eu não posso ficar aqui na tenda esta noite. — Agarrou suas armas e fugiu.

Na manhã seguinte, a aldeia inteira acordou para ver Cavalga o Vento levando Estrela Vermelha para sua tenda. A crina e a cauda da égua estavam trançadas e em seu pescoço havia uma guirlanda de girassóis.

Flor do Campo cruzou rapidamente o lugar, com uma trouxa debaixo do braço.Ela pulou em frente à porta da tenda.

— Cavalga o Vento, você espera aqui!— ordenou enquanto desaparecia lá dentro. Jesse ouviu as palavras bem quando acabava de alimentar Duas Mães.

Flor do Campo deu uma risadinha e anunciou:

— Há um bravo lakota lá fora com um potro. Ele pretende levar você, mas eu lhe disse que não pode, pois você não está pronta. Você precisa usar estas coisas— Ela hesitou e se desculpou: — Não foram feitos para você — como é nosso costume —, mas, mesmo assim, são lindos".

Jesse perdeu o fôlego, quando Flor do Campo desenrolou a trouxa e apareceu um lindo vestido de noiva e perneiras, decorados com esmero. Do outro lado da tenda, Velha chamou:

— Eu estava preparando seu vestido, Caminhando nas Chamas, mas meu filho é impaciente. Acordou-me nesta manhã e disse que ia haver uma festa hoje... pois ele a tomaria como esposa".

Flor do Campo exclamou:

— Então, viu só, Caminhando nas Chamas? Seu coração canta quando ele está perto e o coração dele responde à canção. Você não acreditou em mim, mas é verdade".

As mulheres ajudaram Jesse a vestir-se e a conduziram para fora da porta da tenda. Cavalga o Vento colocou-a em Estrela Vermelha e preparou-se para conduzi-la pela aldeia. De repente ela escorregou para o chão de novo e pôs seu rosto no ombro dele, cochichando:

— Eu não posso".

Ele não entendeu. O povo tinha-se juntado em antecipação e agora ele estava vermelho de vergonha. Jesse puxou-o para dentro da tenda.

— Você não quer ser minha esposa?— perguntou bruscamente.

— Eu quero. Mas ser levada na frente da aldeia toda... todo mundo assistindo...— Jesse abraçou os ombros largos. — Eu lhe dei meu coração. Mas não posso dizer à aldeia toda como me sinto. Está aqui dentro. — Ela pôs a palma da mão dele sobre seu coração. — É para você saber. Não para eles. — Ela fitou-o, seus olhos implorando.

Cavalga o Vento foi para fora e ela ouviu-o dizer: — Vocês viram quando Caminhando nas Chamas veio para a aldeia. Eu a trouxe em meu potro como um guerreiro traz o que ele toma do inimigo. Eu a trouxe para cuidar do filho de Águas Dançantes. Eu a trouxe para me ensinar sobre o Deus que criou todas as coisas. Ela fez isso. Ela salvou Não Escuta. Ela ganhou um lugar entre nosso povo. Hoje eu lhes digo que ela não é mais apenas a mulher que cuida do fogo na tenda. Mitawicu. Eu tomo esta mulher como esposa".

Houve murmúrios de aprovação.

Cavalga o Vento continuou:

— Eu vou caçar por muitos dias. Haverá uma festa".

Ele entrou e chegou-se a Jesse:

— Agora as pessoas estão satisfeitas. Nós seguimos o costume. O que podemos fazer para agradar a Deus?".

Jesse buscou a Bíblia. Abrindo em Gênesis, leu sobre a criação do homem e da mulher. Virando para Efésios, leu os deveres do homem e da mulher.

Por último abriu em Rute, lendo o texto querido:

— Não me instes para que te deixe, e me afaste de ao pé de ti: porque aonde quer que tu fores irei eu, e onde quer que pousares à noite ali pousarei eu; o teu povo é o meu povo, o teu Deus é o meu Deus. Onde quer que morreres morrerei eu, e ali serei sepultada."

Quando ela acabou, Cavalga o Vento pediu que ela repetisse. Pediu que ela repetisse o texto três vezes. Então, pondo a Bíblia do lado, pegou as mãos dela nas suas e, sem tirar os olhos dela nenhuma vez, falou:

Onde Caminhando nas Chamas for, eu irei. Onde Caminhando nas Chamas pousar, ali pousarei. O povo dela será meu povo. O Deus dela será meu Deus.

Olhando para cima, ele disse:

— Deus criador de todas as coisas, agradeço por mandar Caminhando nas Chamas. Eu a tomo como minha esposa. Peço que o Senhor se agrade. O Senhor fez todas as coisas. Fez o coração dela cantar por mim. Fez meu coração responder. Deu o Seu Filho para morrer por nós. Não temos mi-nis-tro, mas o Senhor conhece. Somos lakota. Somos marido e mulher. Somos do Senhor".

Assim, Cavalga o Vento e Caminhando nas Chamas se juntaram no santo matrimônio. E não havia ministro, mas Deus estava lá. E se agradava. E os dois tornaram-se um.

Poucos dias após a celebração do casamento, Jesse caminhou passo a passo pela tenda para atender aos resmungos de Duas Mães. Retornando à cama de Cavalga o Vento, ela se cobriu com a manta de búfalo dele. Duas Mães deitou-se entre eles, fazendo barulhinho ao mamar até cair no sono. Jesse, deitada e acordada, ficou ouvindo a alva. Apoiada em um cotovelo, ela contemplou a face cor-de-canela ao seu lado, acariciando a bochecha macia. Num ímpeto de emoção, baixou-se para beijar a testa lisa, sentindo o cheirinho da criança.

— Que toque estranho é este?"

Com um sobressalto, Jesse percebeu que Cavalga o Vento tinha acordado. Ele ficara deitado olhando-a bem de perto. Com vergonha, ela puxou a manta de búfalo até bem embaixo do queixo, respondendo delicadamente:

— Meu povo diz 'beijo'".

— E quem dá este 'beijo'?"

— Pais nos filhos, marido na mulher."

— Mostre-me. — Enquanto disse isso, debruçou-se sobre Jesse que, obedientemente, deu um beijo na face áspera embrutecida pelo vento.

Ele manteve o rosto perto dela e seus olhos negros procuraram os dela. Então, um sorriso conhecido curvou os cantos de sua boca.

— Quando Marcus Whitman encontrava Urso Corredor e os comerciantes, Cavalga o Vento estava lá. Eu vi muita coisa. Eu vi este toque que você chama 'beijo' entre homem e mulher. Não era aqui— tocou sua face — mas aqui". Com o dedo mostrou sua boca.

Jesse sentiu seu rosto enrubescer e ficou pensando se a claridade da manhã revelaria seu embaraço. Ela assentiu:

— Sim, para alguns é assim".

— Jesse King e Homer tocavam-se desse jeito?"

Jesse olhou firme nos olhos que escrutavam. Eles se entreolharam, com sinceridade.

— O meu povo não fala dessas coisas."

Cavalga o Vento ficou quieto por um momento, ponderando a resposta dela:

— Se o homem branco não fala do que está aqui— ele pôs uma mão aberta no peito dourado, — Ele deve ser muito triste". Cavalga o Vento vestiu-se e saiu.

A luz estava entrando pela porta e Velha tinha acordado para atiçar o fogo e preparar a refeição matinal antes de ele voltar. Jesse vestiu-se e saiu. Debruçando-se sobre o riacho, ela lavava o rosto. Não ouviu Cavalga o Vento aproximar-se, mas, com as ondulações na água, ela começou a ver o rosto dele olhando para baixo dentro da água, ao lado do seu.

Ele sentou-se para trás, na terra, incomodamente, em cima da perna quebrada, que ele dobrou. Jesse percebeu uma bolsa em sua mão. Estava ornamentada com contas, obviamente o serviço de uma mulher hábil. Vendo os olhos dela sobre a bolsa, Cavalga o Vento abriu-a, tirando o conteúdo e espalhando na grama.

Primeiro, ele pegou duas agulhas de osso. "Águas Dançantes usou isto para decorar o suporte do bebê que iria nascer. — Ele colocou-as de volta e segurou uma ferramenta de cavar.

— Enquanto Cavalga o Vento caçava, ela usava isto para juntar comida.

Jesse perguntou:

— O que aconteceu a ela?— Ela olhou seu rosto atentamente enquanto ele preparava a resposta. Não revelava nada de seus sentimentos.

Ele respondeu:

— Quando a criança veio, ela estava silenciosa. Não sabemos como isso a machucou. Velha cuidou bem dela, mas ela não se levantou mais".

Após um momento Jesse mexeu-se para retornar à tenda, mas Cavalga o Vento a deteve. Tirando o último item da bolsa, ele parou atrás dela e começou a pentear seu cabelo curto. Então, de outra bolsa presa ao cinto, em sua cintura, ele tirou um tipo estranho de faixa para a cabeça, decorada com penas e contas. Ele colocou-a ao redor da cabeça dela.

Jesse se entregava às suas manifestações de carinho, grata por qualquer coisa que escondesse seu cabelo chamuscado. Quando Cavalga o Vento terminou, colocou as ferramentas de volta na bolsa e entregou a ela. Tirou uma faca pequena, pendurada perto do pescoço, e colocou-a sobre a cabeça dela.

— Quando Águas Dançantes era a mulher de Cavalga o Vento, estas coisas pertenciam a ela. Agora são de Caminhando nas Chamas."

Jesse debruçou-se sobre a água de novo para ver seu cabelo arrumado. Deu uma risadinha, embaraçada com o reflexo estranho.

Cavalga o Vento perguntou asperamente:

— É isso que Caminhando nas Chamas acha de meu presente?".

Ela virou-se e viu dor em seus olhos negros, embora seu maxilar estivesse tenso com uma raiva aparente. Uma sombra aparecera sob cada osso maxilar.

— Não— ela protestou. Colocando a mão em seu braço, ela sentiu os músculos relaxarem.

Olhando para o outro lado do riacho, para as colinas distantes, Jesse respirou fundo e começou a falar coisas que nunca havia compartilhado com nenhuma outra pessoa.

— É que Cavalga o Vento fez-me sentir como jamais me senti no meio de meu povo. Eu... — tremeu os lábios e não pôde continuar. Vendo a fumaça sair pelo buraco em cima da tenda, ela disse: — Velha está cozinhando. Duas Mães pode precisar de mim".

— Velha não vai esperar você tão cedo." Como Jesse começasse a protestar, falando sobre Duas Mães, ele acrescentou: — Ele espera. Agora você fala sobre como é isto com seu povo".

Seu pedido gentil abriu uma correnteza de lembranças e Jesse lutou para organizar seus pensamentos. Então, começou de novo.

— Eu não sou o tipo de falar sobre estas coisas, é difícil para mim. Eu ri porque você me fez sentir bonita. E de fato eu sei que não sou. Quando chegou a hora de me casar, os homens não me procuravam. — Seu rosto corou ao admitir isso e sua voz tremeu de vergonha ao deixar escapar seu segredo. — Homer King somente me pediu em casamento porque minha irmã o recusou. Ele precisava de uma mulher para ajudá-lo no caminho para o Oeste. Quando Betsy disse não, ele me pediu. Meu pai ficou feliz com a chance de me entregar em casamento. Foi assim que me tornei a Senhora Homer King."

Uma vez terminado, ela olhou para ele desafiadoramente:

— Eu sei que não sou bonita. Eu ri de mim mesma por pensar nessa coisa impossível".

Cavalga o Vento ficou quieto por tanto tempo que ela ficou pensando se seu despencar de palavras tinha ido além das capacidades dele no inglês. Mas bem quando ela começou a questioná-lo, ele virou seu próprio rosto para o horizonte, de forma que ela só via o perfil dele.

— Quando Cavalga o Vento era jovem, ele dançava em volta da fogueira como nenhum outro bravo. Foi então que Águas Dançantes tornou-se sua mulher. Ela assistia e seus olhos dançavam com as chamas. Mas um dia Cavalga o Vento foi caçar. Seu potro caiu e quebrou sua perna. Marcus Whitman consertou a perna, mas ela nunca mais endireitou. Cavalga o Vento não podia dançar mais. O fogo morreu nos olhos de Águas Dançantes. — Ele a envolveu em seus braços antes de continuar. — Caminhando nas Chamas vê quando Cavalga o Vento anda como um búfalo machucado. Ela vê, mas o fogo em seus olhos não morre. A beleza está aqui — ele colocou a mão dele sobre o coração dela — por isso não ria quando pensar que é bonita. Cavalga o Vento vê o fogo em seus olhos. E, para ele você é linda".

Jesse pegou a mão dele e, segurando com a palma para cima, deu um beijo nela.

Ele resmungou: "...e então, dê-me mais dos costumes dos brancos".

Num momento de abandono atípico, Jesse ficou na ponta dos pés e deu um beijo menos casto na boca de seu marido. Ela sorriu, apesar do rubor em sua bochecha, pegando o cabelo dele e dando um puxão como em uma criança.

Então, para encanto e espanto dele, ela falou em lakota:

— Mihigna — meu marido — Caminhando nas Chamas é uma esposa obediente. Se ele quiser que ela pare com seus toques estranhos, deve dizer-lhe. Caminhando nas Chamas obedecerá".

Cavalga o Vento pegou sua mão e eles começaram a voltar para a tenda. Ao subirem a colina juntos, ele falou:

— Muitos dos costumes de homem branco devem ser esquecidos para se viver entre meu povo... mas não todos".

 

Não te aflijas por causa dos malfeitores... Porque o maligno não terá galardão algum, e a lâmpada dos ímpios se apagará.

Provérbios 24:19-20

 

E na primavera de novo. Jesse estava com Cavalga o Vento há dois anos. Finalmente ela falava lakota bem o suficiente para traduzir a Bíblia enquanto lia, esperando que Velha mostrasse interesse pela mensagem também.

Duas Mães andava por perto, tagarelando enquanto misturava pedras na areia. Certa vez ele chegou muito perto do fogo e Jesse rapidamente quis tirá-lo para evitar que se queimasse. Velha aproximou-se e deteve-a:

— É preciso aprender, a partir de uma queimada no fogo, a ficar longe dele".

Jesse ficou olhando Duas Mães andar cada vez mais perto do fogo. Finalmente, um dedo chegou bem perto e ele fez uma choradeira, com dor. Jesse lavou a queimadura e espalhou uma pasta para curar, tomando cuidado em não chamar mais atenção para a ferida do que o necessário. Duas Mães precisava aprender a ser corajoso, a agüentar a dor com a mínima reclamação possível. Algum dia a salvação de seu povo poderia depender de sua capacidade de ficar em silêncio na chegada de um perigo ou desconforto.

A amizade entre Jesse e Flor do Campo crescia. O ressentimento de Lobo Uivante por Cavalga o Vento continuava. A amizade de sua esposa com Caminhando nas Chamas o irritava. As duas mulheres dividiam cada tarefa possível, desde limpar pele nova de búfalo a procurar alimentos. Quase todos os dias alguma coisa acontecia que enfatizava a diferença entre os dois maridos e, portanto, a diferença entre suas vidas. Flor do Campo era estóica quanto à sua infeliz escolha de um marido. Ela fazia tudo o que podia para tornar Lobo Uivante feliz. Sofria seus abusos sem reclamação e trabalhava arduamente. Lobo Uivante não valorizava isso. Infelizmente, os filhos não chegaram. Como era impossível chamar sua esposa de preguiçosa e atribuir ao fato sua baixa estima na aldeia, ele a culpava por não terem filhos.

— Sem filhos— ele dizia, — Somos desgraçados no meio do povo."

Todos sabiam que a própria preguiça de Lobo Uivante e sua pouca disposição tinham-lhe dado esta má posição na tribo. Ainda assim, recusava-se a aceitar como sua a responsabilidade. Cavalga o Vento tentou ajudar, caçando com ele. Os dois, junto com o pequeno grupo de bravos, cavalgaram pelo Desfiladeiro do Búfalo e logo encontraram uma trilha de um bando grande de alces. Seguiram a trilha por muitos dias e Lobo Uivante aprendeu, olhando Cavalga o Vento, a interpretar as trilhas.

— O líder está machucado— ele disse, mostrando a Lobo Uivante como uma perna estava-se arrastando levemente enquanto a fera caminhava.

— Ele foi confrontado por um gamo novo aqui. Olha como a neve mostra uma grande batalha.

— Você pensa que eu não sei nada?, falou asperamente Lobo Uivante.

Cavalga o Vento recusou-se a entrar numa briga.

— Lobo Uivante, eu sei que você não teve pai para ensiná-lo. Não é culpa sua. Se você não sabe, eu gostaria de ajudá-lo. Você é um guerreiro impetuoso — muito melhor do que eu. Você pode ensinar-me na guerra. Eu posso ensiná-lo na caçada.

Lobo Uivante apaziguou-se, mas, quando se aproximaram do bando de alces, ele cutucou seu potro para correr à frente, ávido para matar o alce maior e receber a honra para si mesmo. Ele já enxergava o retorno triunfante à aldeia, as mulheres cantando em volta da fogueira. Elas cantarão uma música para mim, ele pensou, assim:

Venham ver o Lobo Uivante

Venham ver, escutem todos,

O grande caçador retoma

Ele capturou seu irmão, o alce,

E todos nós festejaremos

Lobo Uivante retorna Venham ver, venham ver.

Lobo Uivante deu um sorriso largo para si mesmo ao pensar nas mulheres da aldeia honrando-o com suas canções. Ele afundou seus calcanhares no potro e subiu a colina galopando avidamente à frente de seus companheiros. Cavalga o Vento olhou, com desagrado, e virou-se de volta ao Desfiladeiro do Búfalo.

Quando os outros do grupo o chamaram, ele gesticulou, bravo, mostrando Lobo Uivante:

— Aquele corre como um tonto. Ele vai assustar o alce e hoje não se matará nada. Deixe-o ir, eu volto para a aldeia. Voltaremos com mãos vazias e nossas crianças e mulheres ficarão com fome". Cavalga o Vento apressou Vento em direção à aldeia.

Sua predição cumpriu-se. Perdido em sua visão de grandeza, Lobo Uivante ordenou ao potro que subisse a colina e chegou ao bando de alces. Surpreso por estar tão próximo, despreparado para atirar... Os alces fugiram soltando espumas pelas narinas. Nenhum foi morto naquele dia, ainda que os outros caçadores tentassem cercá-los numa segunda tentativa. A ameaça de uma tempestade de neve forçou-os todos a desistirem da caçada, e voltaram para a aldeia de mãos vazias e bocas fechadas.

As mulheres ficaram imaginando o que havia acontecido. Somente Flor do Campo sabia a resposta, pois Lobo Uivante não estava entre os que chegaram à luz do dia. Ele esperou escurecer para esgueirar-separa dentro da aldeia e para a cama. Ele reclamou mais uma vez da falta de filhos, da falta de sorte e da mulher irresponsável.

Certa manhã bem cedo, não muito tempo após a caçada frustrada, Flor do Campo estava fora da tenda trançando seu cabelo. Lobo Uivante ainda dormia e ela estava ansiosa por juntar-se a Jesse e às demais mulheres. Hoje elas iriam começar a decorar suas roupas novas com contas, cascas de nozes e espinhos de porco-espinho. Jesse prometera mostrar a Flor do Campo um desenho de seus dias no mundo dos brancos. Flor do Campo há tempo admirava a habilidade de Jesse com a agulha. Por seu lado, Jesse agradeceu a oportunidade de retribuir a Flor do Campo por sua grande bondade. Ensinar a Flor do Campo um desenho novo para o bordado com contas, o que a agradaria, era algo tão simples! As duas mulheres haviam planejado encontrar-se o mais cedo possível, de forma que a manhã fosse dedicada a esse projeto.

Ao olhar o sol nascendo enquanto fazia as tranças, Flor do Campo viu Águia Branca perambulando. Ele lhe lançava muitos olhares. Nesse dia ele parou.

— Lobo Uivante não foi verificar os potros dele esta manhã."

— Está dormindo."

Águia Branca deu um sorriso significativo. Estendeu as mãos, alcançando uma das tranças dela.

— Se eu tivesse uma mulher tão linda em minha tenda, não dormiria enquanto ela trançasse seus cabelos." Continuou seu caminho sem nenhum outro olhar. Mas Flor do Campo pensou nele o dia inteiro. Cada vez que o rosto dele aparecia em sua mente, ela tentava expulsá-lo, mas o sorriso insolente de Lobo Uivante era sempre sobreposto pelo lindo rosto de Águia Branca.

Flor do Campo fez um bordado feio naquele dia. As mulheres da aldeia perceberam que sua mente não estava no trabalho. Jesse temeu que ela estivesse doente, mas Flor do Campo balançou a cabeça quando Jesse a pressionou para dividir seus pensamentos.

Era noite da Lua em que as cerejas silvestres amadurecem— quando Cavalga o Vento acordou Jesse. Colocando os dedos nos lábios dela, ele a conduziu para fora da tenda e para a campina. Enquanto andavam em silêncio, para longe do brilho fraco das fogueiras da aldeia, ele cochichou:

— Você precisa ver o céu... está em fogo".

Ele puxou Jesse para baixo, ao seu lado, e ficaram deitados de costas, com toda atenção voltada para cima. O céu da noite estava num brilho intenso de estrelas e tão claro que até mesmo o lado mais escuro da via láctea estava visível. Colocando a mão da esposa na dele, Cavalga o Vento cochichou:

— Conte mais uma vez as palavras do Livro de Deus sobre os céus".

Jesse falou de cor:

— Quando vejo os teus céus, obra dos teus dedos, a lua e as estrelas... Que é o homem mortal para que te lembres dele?. Enquanto ela citava o salmo familiar a Cavalga o Vento, uma luz cruzou o céu. Apenas alguns segundos após, outras luzes apareceram e o casal ficou perplexo.

Os dois já estavam ali há quase uma hora quando Cavalga o Vento sentou-se, virou a cabeça para um lado e pôs-se a escutar. Jesse ouviu também; vinha de perto do rio. Levantaram-se com cautela, e moveram-se furtivamente pela grama alta em direção ao som.

Quando viram o bando de potros pastando tranqüilamente, os dois relaxaram um pouco. Os potros não sossegariam se um inimigo estivesse por perto.

Ao se aproximarem do rio, o barulho parou. Então, vindo de trás de uma macega grossa que cresce ao longo das margens, eles viram a fonte do barulho. Águia Branca e uma índia jovem foram rapidamente para a aldeia.

Cavalga o Vento não se esforçou para alcançar os dois amantes. Colocou seu braço em volta da mulher e levou-a para a tenda deles numa caminhada lenta.

Jesse relaxou em seu braço, louvando a Deus por enviá-la a um homem que se encaixasse tanto à sua própria natureza. Ele é tão solene em público, ela pensou. Flor do Campo tinha um pouco de medo dele. Jesse dava risada ao ver sua amiga, sempre tão expansiva e amigável, ficar quieta e reticente perto de Cavalga o Vento. Na verdade, ela, no íntimo, gostava de saber que parte de Cavalga o Vento pertencia somente a ela — e a Duas Mães e a Velha. O restante do povo via apenas o caçador hábil, dedicado à provisão de comida para a tribo, acordando bem cedo cada manhã, incapaz de participar das danças de celebração, que não procurava amizade profunda com nenhum outro valente.

Eles sabiam que ele adorava contar histórias, mas se o tivessem visto recontando suas expedições para a família ficariam admirados. O rosto duro se abrandava, o contorno dos olhos enrugava-se, com sorrisos largos. Ele se divertia entretendo seu filho com histórias de caçadas. Engatinhando, ele raspava o chão e bufava como um búfalo, investindo em Duas Mães e fazendo-o virar cambalhotas. O pai e o filho lutavam em cima do couro de búfalo até Duas Mães perder o fôlego e implorar ao pai para parar. Então Cavalga o Vento virava para Velha, pedindo respeitosamente seu conselho sobre algum projeto novo. Para Jesse ele reservava toda sua ternura. O amor de Deus encontrara um vaso desejoso em Cavalga o Vento, de onde fluía para Jesse.

Na manhã seguinte à do meteoro, Flor do Campo e Jesse tinham acabado de começar o trabalho com os espinhos de porco-espinho, na parte da frente de um novo vestido de pele de alce, quando Lobo Uivante irrompeu no meio do círculo de mulheres. Gritando e xingando, agarrou Flor do Campo pelo braço e puxou-a. O rosto dela ficou pálido e ela tentou livrar-se. Irado, Lobo Uivante dava bofetadas em seu rosto, gritando acusações sobre Águia Branca.

As mulheres se dispersaram imediatamente. Jesse correu para Cavalga o Vento. Ela o encontrou trabalhando com o novo potro. Ele tinha levado o potro para o riacho e, com a água na altura do peito, estava preparando-se para montá-lo pela primeira vez.

Puxando o ar para respirar, Jesse gritou:

— Precisamos fazer alguma coisa! Lobo Uivante...". Deu os detalhes, terminando com uma súplica para que Cavalga o Vento interviesse. Ele continuou a acalmar o potro nervoso e não se moveu em direção à aldeia.

Após um silêncio longo, Cavalga o Vento disse:

— É um problema entre Lobo Uivante e Flor do Campo".

Jesse protestou:

— Mas ele está muito bravo... ele pode matá-la!".

— Acho que nem mesmo Lobo Uivante seria tão bobo. Flor do Campo é uma mulher bonita. É a única coisa boa que ele tem. Ele não vai matá-la.

— Mais ele deu tantos tapas nela, tão fortes!"

— Sim, e isto é seu direito. Este é o costume do povo."

Ele montou no lombo do potro. Este refugou, como louco na água, virando os olhos e tentando empinar, mas a água funda o impedia de derrubar Cavalga o Vento. A espirração doida durou uns poucos momentos, mas não muito. O potro era inteligente e logo percebeu que seu cavaleiro era determinado e capaz de permanecer em suas costas. Por fim, ele parou de refugar e ficou tremendo na água. Cavalga o Vento escorregou de seu lombo, deu uns tapinhas no seu pescoço. Cochichou na orelha dele e ficou dando tapinhas no seu lado até que o tremor acalmasse e o potro ficasse quieto, cabeça baixa.

Cavalga o Vento virou-se para Jesse:

— Flor do Campo precisa decidir o que fará. Lobo Uivante precisa decidir o que fará. Eu não posso fazer nada. Eles é que têm de decidir".

Ele acabou a conversa abruptamente, levando o potro pardo para a margem do rio e de volta para a tropa. Jesse apressou-se de volta à tenda, zangada.

Bem quando Velha começara a explicar a visão do lakota, Flor do Campo entrou correndo na tenda. Ela estava gritando de dor, as mãos no rosto, o sangue saindo entre os dedos. Jesse agarrou-a e puxou-a para um couro de búfalo. A mulher sacudiu-se violentamente e gritou de dor.

Velha instruiu Jesse a segurar Flor do Campo no chão. Jesse escarrapachou-se sobre a amiga, no chão, segurando um pulso em cada mão, forçando o corpo que saltava, com todo o seu peso. Finalmente, Flor do Campo ficou imóvel, tremendo e chorando de dor.

Velha limpou o sangue, aparecendo assim um corte profundo no cavalete do nariz. Limpando a ferida, pressionou até quase o sangue parar. Então, sem nenhuma palavra para Flor do Campo, pegou seu estojo de costura e fez o melhor que pôde para fechar o corte. Apesar do maior esforço de Velha, isso foi feito de maneira rústica, e deixaria uma cicatriz horrível no rosto antes lindo da jovem.

Jesse perguntou: — Lobo Uivante fez isso em você?".

Flor do Campo não respondeu. Gemendo, virou seu rosto para a parede da tenda e Velha interveio.

— O marido tem o direito de vingar-se se a mulher for infiel. A aldeia sabia há muitas luas já que Águia Branca pretendia roubar Flor do Campo de Lobo Uivante. Lobo Uivante soube disto e puniu sua mulher. — Velha falou as palavras sem emoção.

Jesse recusou-se acreditar nisso. Repetia para Flor do Campo:

— Lobo Uivante fez isso em você?".

Com o rosto ainda virado, Flor do Campo cochichou:

— Sim.".

— Então ele precisa ser punido."

Jesse correu para fora, montou na Estrela Vermelha e saiu, pensando sem parar na selvageria de Lobo Uivante. Ele deveria ser punido. Ele não podia livrar-se, tendo tratado assim sua amiga.

Naquela noite, Flor do Campo retornou à sua tenda. Jesse viu quando ela atirou todos os pertences de Lobo Uivante para fora.

— A tenda é minha— ela gritou para toda a aldeia ouvir, — E eu digo que Lobo Uivante se vá!". Não demorou muito para limpar o interior de qualquer traço de Lobo Uivante. A última coisa que Flor do Campo agarrou para jogar foi a colcha de retalhos branca que ele havia trazido no dia em que Jesse fora arrastada para a aldeia.

Flor do Campo ia jogando, mas alguma coisa chamou sua atenção. Ela reconheceu, na colcha, o desenho que Jesse tinha ajudado a bordar no vestido novo. Flor do Campo olhou e disse:

— Caminhando nas Chamas fez isto?".

Jesse assentiu. Flor do Campo dobrou a colcha e falou baixinho:

— Então Flor do Campo guardará— Ela esvaziou a maior bolsa de roupas de Lobo Uivante, que foram jogadas para fora, e guardou a colcha dentro dela. Satisfeita por ter-se livrado do marido cruel, Flor do Campo começou a preparar a refeição.

— Você deve ir agora, Caminhando nas Chamas. Nunca esquecerei Lobo Uivante, mas eu fui louca ao achar que ele iria mudar. Meu pai me aconselhou a não me casar com ele— disse com tristeza. Jesse desejou muito confortá-la, mas não havia palavras. Finalmente, voltou para casa, onde exigiu, de novo, que Lobo Uivante fosse punido.

Cavalga o Vento ficou inacessível às suas exigências.

— É o costume do povo— ele respondia mais e mais vezes. — Eu não vou interferir. Lobo Uivante fez o que achou que devia para conservar a esposa.

Jesse estava inconformada:

— E se eu olhasse para outro guerreiro bonito, Cavalga o Vento iria cortar meu nariz?.

Cavalga o Vento fitou-a solenemente:

— O livro de Deus diz que você deve ser fiel a mim. Nós não vivemos como Lobo Uivante e Flor do Campo". Depois de um momento, acrescentou: — E se você fosse infiel a mim, eu cortaria o seu cabelo vermelho lindo, não o seu nariz. É o seu cabelo que a deixa linda".

Jesse recusou-se a desviar a conversa. Finalmente, Cavalga o Vento exasperou-se com a insistência dela.

— Caminhando nas Chamas, chega— ele quase gritou. — Você diz que Lobo Uivante deve ser punido. Ele será punido. Todos os dias de sua vida terá de olhar para a cicatriz que deixou em sua mulher. Todos os dias de sua vida terá de sofrer com a tristeza que causou. E todos os dias de sua vida Flor do Campo vai-se lembrar de quando era jovem e bela. Águia Branca foi embora. Acabou. Nós temos de orar por eles, pois eles não têm Deus para ajudá-los. Mas eu não vou punir Lobo Uivante por ter feito o que é certo entre os lakotas. Ele vai responder para Deus pelo que fez. Ele não tem de responder para mim."

Cavalga o Vento levantou-se da beira da fogueira e saiu, voltando só quando tinha certeza de que todos estavam dormindo. Mas Jesse não estava. Ela ficou acordada por horas, orando para que pudesse entender a decisão de seu marido. Por fim, dormiu, sem resposta para suas questões.

 

...o Pai das misericórdias... que nos consola em toda a nossa tribulação, para que também possamos consolar os que estiverem em alguma tribulação,...

2 Coríntios 1:3-4

 

Na tenda de Lobo Uivante, Hepzibah Miller sentou-se tremendo. Era um dia lindo de primavera, mas, para Hepzibah, o mundo havia-se tornado um lugar escuro e terrível. Ela apenas havia pretendido colher algumas flores naquela manhã. Levantando-se antes de sua família, tinha-se vestido e saído furtivamente do acampamento, empolgada pela aventura de uma jornada na campina selvagem.

— Vocês ficarão uma perto da outra— Elder Smith tinha avisado antes de deixarem o acampamento de inverno. — Uma vez fora dos estados, os índios não são muito pacificadores. Um homem branco sozinho é um alvo fácil. Uma mulher sozinha... — Elder Smith não terminou sua sentença. O olhar ameaçador sob as sobrancelhas grossas bastou.

Hepzibah tinha recebido o aviso como um desafio. O impulso antigo de ser livre de todas as regras agitou-se novamente. Ó, por que, ela pensou, por que não consigo ser dócil como Melinda? Hepzibah deu uma olhada em sua querida irmã, assentada, na reunião, com as mãos recatadamente enlaçadas. Quando Elder Smith terminou seu aviso, Melinda corou e mordeu o lábio inferior. Suas mãos se apertaram fortemente. Melinda era assustada o suficiente por sua imaginação para responder à admoestação — como sempre, ela obedeceria a Elder Smith sem perguntar nada.

Mas Hepzibah encarou o aviso de Elder Smith com o queixo levemente levantado e um olhar sem piscar. Tentando escondei as questões rebeldes de seu coração, Hepzibah sorriu. Elder Smith não se sentiu confortado. Ele fez uma anotação mental para observar essa jovem cuidadosamente e par a prevenir seu pai de um problema espiritual que ele tinha detectado na jovem Hepzibah.

No entanto, o aviso não foi levado tão a sério pelo Irmão Miller. Sempre alegre, não muito devoto, Irmão Miller tinha respondido:

— Bem, bem, Ezra Hepzibah é jovem. Ela ainda não se acalmou de fato. Ela estará bem. Tão logo eu a prometer para seu futuro marido, ela se acalmará". Preocupado com o trabalho de preparar sua família grande para a jornada a Utah, Irmão Miller deixou de lado as preocupações com Hepzibah.

Hepzibah começou os preparativos com toda sua energia de jovem. Ela limpou e separou, emendou e cozinhou. No caminho para o Oeste, ela continuou alvoroçada, ajudando a carregar o irmão Calebe, por horas seguidas, colocando os pequenos para dormir e curando seus arranhões, sem reclamação. Mas o aviso de Helder Smith pairava sobre todas estas atividades, estimulando Hepzibah.

Eles saíram dos estados e entraram na campina vasta. O capim alto e as flores dançavam ao vento e Hepzibah ansiava por dançar. Os animais selvagens corriam ao longo do horizonte e Hepzibah ansiava por correr com eles. A água plana que eles seguiam tornava-se violenta com a chuvarada da primavera e Hepzibah enraivecia-se com as regras estabelecidas para as mulheres em sua comunidade.

Além de tudo, que perigo poderia haver em levantar-se cedo, sair para um passeio e colher flores? Na verdade, a Bíblia não fala sobre a mulher virtuosa que se levanta de madrugada? Assim, Hepzibah levantou-se e saiu furtivamente do acampamento quando as últimas estrelas brilhavam num céu riscado pelo despontar da aurora. Em passos rápidos e largos, subindo uma elevação, Hepzibah ficou enlevada pela visão de milhares de flores azuis vicejando na encosta adiante. Sem consciência da distância verdadeira até aquela montanha, ela andou até a massa azul. O sol estava quase levantando agora — sabia que precisava voltar rápido. Só mais alguns botões brancos, para completar o buquê e...

Uma sombra caiu bem sobre o botão que ela apanhava. Hepzibah olhou para cima, surpresa. Lá estava Lobo Uivante, com as galinhas pegas na manhã pendendo de uma mão. O coração de Hepizbah disparou, mas ela se levantou e olhou nos olhos dele. Seu olhar não vacilou. Uma mão agarrou o buquê, enquanto a outra se levantava para tocar a aba de seu chapéu.

Lobo Uivante segurou e empurrou o chapéu de Hepzibah para fora de sua cabeça. Caindo o chapéu, revelou-se um cabelo preto brilhante desarrumado. Largando as galinhas da campina, Lobo Uivante dobrou-se levemente e em um movimento ergueu Hepzibah e a colocou sobre seu ombro.

Hepzibah ficou furiosa. Gritou, chutou e golpeou as costas do homem. Ele continuou andando. Ela orou, fez juramentos e lutou. As mãos do homem apertaram mais e ele continuou andando. Finalmente, Hepzibah enterrou suas unhas curtas nas costas dele. Ele a jogou na poeira. O vento a deixou fora de combate; ela ficou deitada indefesa enquanto Lobo Uivante amarrava com um couro seus pulsos e tornozelos. Ele a puxou para cima de novo. Hepzibah berrou, gritou e tentou rolar para fora de suas costas.

Lobo Uivante não era um homem paciente e já tinha tido o suficiente. Ele jogou Hepzibah no chão, gritando e esbofeteando seu rosto. As palavras de Elder Smith vieram à sua mente:

— Um homem sozinho é um alvo fácil. Uma mulher sozinha...". Pela primeira vez em sua vida ela ficou chocada. Suas bochechas queimaram com a dor da pancada e a vergonha de sua situação. Mas o choque fez mais. Transformou sua rebelião em terror. Hepzibah concordou com a cabeça ao aviso e submeteu-se com docilidade quando foi de novo levantada e carregada.

Para onde ele está me levando? ela ficou imaginando. Olhou o chão abaixo dela por um momento. Ainda era cedo. O sol mal havia nascido. Estava frio. Sua cabeça começou a latejar. Hepzibah fechou os olhos por um instante, imaginando se seu pai já havia percebido sua ausência. Um novo som chamou sua atenção — crianças rindo!

Lobo Uivante entrou com passadas largas na aldeia, anunciando o sucesso de sua caçada. Ele jogou Hepzibah na sujeira, ao lado de uma tenda, e deu um sorriso largo, fazendo uma piada sobre o pássaro gigante que ele tinha encontrado cantando no campo de flores azuis ali perto.

— Eu tenho uma nova Flor do Campo— ele riu. Ouvindo seu nome, Flor do Campo deixou sua panela e olhou para fora. Uma mulher branca estava caída na sujeira. Ela era bonitinha. Seu cabelo preto, cheio, caía numa massa abaixo do pescoço fino. Seus olhos eram da cor do céu.

Lobo Uivante olhou de cima sua nova mulher. Olhou carrancudo para Flor do Campo:

— Alimente-a. Posso querer conservá-la— Saiu, ainda rindo.

Flor do Campo havia rompido com Lobo Uivante. Ela não tinha de obedecer-lhe. Mas tinha de pensar numa forma de proteger essa menina inocente. Com cuidado, desamarrou Hepzibah e mandou-a entrar. Com Lobo Uivante fora de vista, Hepzibah recusou. Flor do Campo empurrou-a para dentro. A menina virou de costas para a comida oferecida a ela, arrastou-se para longe da fogueira e sentou-se, olhando ao redor como boba.

Examinou Flor do Campo cuidadosamente. A mulher devia ter sido bonita antes, mas uma cicatriz feia rasgava o cavalete de seu nariz e parte de sua bochecha. Seu cabelo era repartido e bem trançado. Cada trança era decorada com contas e penas. Ela era limpa, diferente da descrição que haviam feito a Hepzibah de uma índia. Mesmo assim, tremendo, pôs sua cabeça nos joelhos e começou a chorar.

Eles me encontrarão? pensou. Pelo menos vão tentar? Em seu estado de miséria, questionava se os outros achariam que valia a pena esforçar-se para formar um grupo de busca. Por que preciso sempre desobedecer? O que há dentro de mim que quer sempre seguir o outro caminho?

Enquanto Hepzibah contemplava seriamente seu estado de pecado, Flor do Campo mexia-se na tenda, desenrolando o couro de dormir. Deixou de lado suas outras tarefas planejadas para aquela manhã em função deste novo acontecimento. Lobo Uivante tinha encontrado outra mulher. Ele até a tinha chamado de Nova Flor do Campo.

Flor do Campo amarrou as mãos de Hepzibah de novo. Chamando uma meninazinha do outro lado do acampamento para ficar cuidando da porta, ela correu para fora.

Nenhum sinal de Lobo Uivante. Disseram-lhe que ele tinha saído puxando dois ou três potros. Flor do Campo sabia da intenção dele de comercializar a nova mulher. Ele pretendia mantê-la.

Jesse estava limpando sua própria tenda quando Flor do Campo enfiou a cabeça na porta e sibilou:

— Caminhando nas Chamas — venha ver".

Jesse seguiu a amiga sem perguntar nada. A menininha deixada para cuidar de Hepzibah deslizou para fora, deixando as duas fitando Hepzibah que dormia, exausta por sua experiência penosa.

— Lobo Uivante chamou-a de Nova Flor do Campo— lamentou. Jesse pegou na mão da amiga, sem saber o que dizer. Estava claro que a jovem estava exausta e iria dormir por um tempo.

— Fique aqui — vou falar com Cavalga o Vento— Jesse cochichou. — Mande-a para mim assim que acordar. Preciso ajudá-la a entender que nós não vamos machucá-la.

Jesse saiu correndo, com o coração pulando.

Cavalga o Vento ficou olhando do meio de seu pequeno grupo de potros enquanto Jesse corria para ele. O cabelo dela brilhava, num vermelho-claro, ao sol da manhã. Ela correu ligeiramente até ele e seu coração se agitou ao vê-lo escorregar do lombo de Vento para o chão. O potro dançou em volta, com impaciência.

— Aproxime-se— Cavalga o Vento a chamou. Ao ver Jesse hesitar, ele soltou a rédea de Vento e andou até ela, amarrando a rédea em sua mão. — O que aconteceu?"

— Flor do Campo veio até mim. Lobo Uivante tomou uma nova mulher."

— Este é o caminho para alguns homens— ele respondeu.

— Mas ele escolheu uma menina nova— acrescentou. — Ela é branca. Ele a encontrou perto das Colinas Azuis. Ela está assustada. Precisamos levá-la de volta para o povo dela.— Enquanto falava, Jesse aproximou-se de Cavalga o Vento, colocando a mão em seu antebraço.

— Se Lobo Uivante a encontrou, nós não podemos interferir."

— Mas ele quer mantê-la.

— Flor do Campo foi infiel. Então ele foi expulso da tenda dela. Lobo Uivante está bravo. Ele precisa reconquistar o respeito. Uma nova mulher é uma forma disso acontecer."

Jesse tirou sua mão do braço de Cavalga o Vento.

— Você não acredita nisso. Não você!"

Ele a fitou, sem piscar.

— Não interessa se acredito. Isto é problema de Lobo Uivante.— Ele virou-se para montar de novo em Vento.

Jesse sentiu sua raiva crescer. Será que ele ia ficar parado sem fazer nada? Ela tentou de novo:

— Mas, Cavalga o Vento, a menina está aterrorizada. Ela quer voltar para o povo dela. Ela não deve ser forçada a ficar".

Ele ficou calado um bom tempo. Então, devagar, Cavalga o Vento respondeu:

— Você estava aterrorizada quando eu a trouxe para minha tenda. Mas você ficou. Talvez agora você desejasse ter dito para eu levá-la de volta".

A compreensão acalmou a raiva de Jesse.

— Não é mesma coisa. Eu não era uma menina. Era uma mulher. Minha família havia acabado. Nós não sabemos nada sobre esta jovem. E eu..." , ela pegou a mão de Cavalga o Vento, e ele deixou — fui salva por um homem que amava a Deus e que começou a me amar. Lobo Uivante é...— Jesse hesitou, mas falou. Ela usou uma palavra lakota que Cavalga o Vento nem sabia que ela conhecia.

Ele estudou seu rosto e perguntou:

— O que você quer que eu faça?".

— Troque alguma coisa por ela.— Jesse sabia que precisava planejar com cuidado. — Eu vou salvar o prêmio dele. Diga a ele que preciso de uma escrava. Diga a ele que eu quero alguém do meu próprio povo para me ajudar. Ó... diga a ele qualquer coisa, mas tire mesmo aquela menina de perto dele!"

— Eu vou tentar, Caminhando nas Chamas, mas Lobo Uivante é orgulhoso. E melhor você orar."

Hepzibah acordou de repente e soluçou miseravelmente quando percebeu onde estava. A porta da tenda abriu ao primeiro barulho. Duas mulheres entraram na tenda. O sol brilhando por detrás delas obscurecia suas feições. Hepzibah ficou olhando, sem se sentar, enquanto se aproximavam.

— Você está acordada?— Hepzibah estava muito surpresa para responder. Ela tinha ouvido sua própria língua destes selvagens! Quando seus olhos se acostumaram à nova luz, ela viu duas mulheres. Uma era a da cicatriz no rosto. Mas a outra! Olhos cinza, cabelo vermelho — e pele branca! Ela era branca! Vestida como uma índia, mas branca — e falando inglês! Hepzibah gaguejou uma resposta.

Jesse sorriu:

— Deve ser um grande choque acordar numa tenda de índio e ver alguém como eu". Hepzibah concordou, com a cabeça, e sentou-se.

— Você foi trazida até nós por Lobo Uivante. Ele diz que encontrou você nas Colinas Azuis."

— Eu... fui apanhar flores. Fui passear. Elder Smith nos avisou para ficarmos juntos, mas eu só fui dar um passeio. Eu não pensei— deu uma pausa, — Ai, eu não pensei mesmo".

— Onde está seu povo?"

— Não sei. Não andei muito. Eles devem estar-me procurando. Ah! Você não vai — não vai machucá-los, vai?"

— Com certeza eu não os machucaria— Jesse replicou. — Mas precisamos pensar num modo de levá-la de volta a eles. Lobo Uivante saiu há pouco tempo para encontrar seu povo e comprá-la. Ele quer ficar com você."

Isto fez brotar novo terror em Hepzibah. Ela deu um grito sufocado: — Ai, não! Não posso... Ai, não fala isso... Eu não poderia viver...— A vestimenta de Jesse a confundia. — Mas você..."

Jesse explicou:

— Estou vivendo com esse povo há muitos anos. Não tenho ninguém mais. Minha família está aqui agora. Mas você— sorriu com carinho, — Tem uma história diferente. Vamos tentar fazer com que volte ao lugar a que pertence".

— Ah, obrigada!— Hepzibah balbuciou. Ela virou-se para Flor do Campo e tentou um sorriso. — Obrigada. Não sei o que eu faria..." Hepzibah começou a chorar.

— Apresse-se agora. Vamos limpar você. E você precisa comer. Esta minha amiga é uma das melhores cozinheiras de nossa aldeia e você vai gostar da comida dela.

Hepzibah conseguiu esboçar um sorriso. O nó em seu estômago relaxou um pouco.

Jesse e Flor do Campo deram a ela uma tigela com um ensopado para o café da manhã e Hepzibah ficou surpresa ao perceber que estava com fome. Ela queria fazer mais perguntas à mulher branca, mas, logo que começou a comer, Jesse saiu. Hepzibah ficou sozinha com Flor do Campo, que tentava passar por cima da barreira da língua, sorrindo e motivando Hepzibah a comer mais.

Cavalga o Vento saltou para o lombo de Vento após Jesse ter saído. Com três dos seus melhores potros atrelados, ele se dirigiu às Colinas Azuis. Tomara o cuidado de separar uma mula que Lobo Uivante sempre olhava com inveja. A mula havia cruzado com Vento e estava prenha, portanto seria bem valorizada numa troca.

Andando rapidamente, Cavalga o Vento alcançou Lobo Uivante bem quando ele cruzava as Colinas Azuis. As fumaças das fogueiras do acampamento podiam ser vistas a distância. Lobo Uivante ouviu Cavalga o Vento aproximando-se e virou-se. Quando Cavalga o Vento estava a distância de ser ouvido, gritou:

— Então você também veio comercializar uma nova mulher? ". Lobo Uivante fez uma piada vulgar sobre Jesse não ter filho. O silêncio e o olhar pétreo de Cavalga o Vento silenciou qualquer outro comentário, e Lobo Uivante esperou que ele falasse.

— Você encontrou uma nova mulher nas Colinas Azuis— ele disse.

— Sim, a Nova Flor do Campo para substituir a velha megera que sua esposa acha tão útil."

Cavalga o Vento ignorou o comentário." É em minha mulher que estou pensando agora, Lobo Uivante. Ela é uma mulher boa, mas desajeitada nos costumes do nosso povo. Ela precisa de ajuda em muitas coisas. Eu gostaria de que essa menina fosse a escrava dela.

Lobo Uivante olhou Cavalga o Vento com suspeita.

— Se Caminhando nas Chamas é desajeitada nos costumes do povo, como que outra mulher branca irá ajudá-la? É melhor pegar outra esposa entre nosso povo.— E acrescentou outra piada grosseira.

Cavalga o Vento apressou-se em fechar o negócio.

— Você sempre gostou dessa mula. Ela vai dar cria depois da neve. Uma cria de Vento. E eu lhe darei estes outros dois ainda.Caminhando nas Chamas não me dá descanso, sempre pedindo ajuda. Estou cansado de sua reclamação.— Ele odiava o engano, mas estava cansado do jogo.

Lobo Uivante olhou os cavalos com avidez. Quatro potros a mais em seu bando pobre aumentaria consideravelmente seu status na tribo. Pensou na menina branca e em como ela havia lutado quando ele a carregou para a aldeia. Talvez ela fosse causar mais problemas que compensações. Ele poderia com mais facilidade tomar outra mulher de seu próprio povo e talvez isso fosse mais simples, afinal de contas. Que Cavalga o Vento acrescentasse mais uma mulher branca em sua tenda. O povo poderia não gostar daquilo. Talvez isto até diminuísse o conceito dele aos olhos do povo e fizesse Lobo Uivante parecer mais inteligente.

Lobo Uivante concordou e aceitou a oferta de Cavalga o Vento.

Cavalga o Vento rapidamente passou-lhe seus potros.

— Eu vou ajudá-lo a conduzi-los de volta ao seu bando— ofereceu. Lobo Uivante aceitou e o outro voltou para casa em silêncio. Lobo Uivante estava rejubilante com sua troca inteligente e Cavalga o Vento estava preocupado com o que aconteceria depois.

Quando eles entraram na aldeia, Cavalga o Vento trotou rapidamente para sua tenda. Entrou e apenas disse:

— Ela é sua. Faça o que quiser com ela— Saiu rapidamente, montou de novo Vento e estava quase saindo a meio galope quando Jesse pôs a mão no pescoço do cavalo e perguntou: — Você não deseja encontrá-la?".

Cavalga o Vento balançou a cabeça.

— Fiz o que você desejava. Ela é sua. Eu não quero vê-la.

Jesse ficou pensando na falta de curiosidade, mas não pressionou. Ao contrário, dirigiu-se à tenda de Flor do Campo, percebendo tarde demais que nem havia agradecido a ajuda de seu marido.

Hepzibah sentou-se em expectativa quando Jesse voltou.

— Bem, minha querida— Jesse disse — parece que agora você é propriedade minha".

— Sua?— perguntou Hepzibah.

— Sim, meu marido acertou de você ser minha escrava.— Ao ver o medo nos olhos de Hepzibah, Jesse logo acrescentou: — Assim, posso fazer com você o que eu quiser, agora. E o que me agrada é levá-la de volta para casa. Vamos aprontar-nos antes que sua família siga você até aqui e cause maiores problemas".

Hepzibah estava em pé! "Ó, obrigada! Obrigada. Como posso lhe agradecer?! Você seria muito bem-vinda, sabe... e poderia continuar nossa viagem conosco. Tenho certeza de que Helder Smith daria permissão."

Jesse balançou a cabeça.

— Não, minha única família está aqui. Tenho um marido e um filho. Estou bem contente aqui, minha querida. Agora, rápido, venha comigo! Qual é o seu nome?"

— Hepzibah. Hepzibah Miller.— Jesse repetiu o nome vagarosamente.

— Qual é o seu nome, senhora?— Hepzibah perguntou.— Se não se importar com minha pergunta.

— Em inglês eu seria chamada de Caminhando nas Chamas— respondeu. Ficou surpresa de ouvir-se a si mesma usando seu nome lakota. Acrescentou: — Antes de vir para cá eu era conhecida como Jesse King".

Hepzibah tinha uma porção de perguntas, mas Jesse a silenciou levando-a para fora, ao sol flamejante. Elas cruzaram a aldeia. Todos olhavam e riam bastante ao verem Jesse guiando a nova escrava para sua própria tenda. Algumas crianças correram para pegar no vestido comprido de Hepzibah. Sentindo o algodão pela primeira vez, eles o definiram como fino e sem valor para a vida no campo. Quando elas entraram na tenda dela, Jesse apresentou Velha e Duas Mães e ordenou a Hepzibah que ficasse com eles até que ela retornasse.

— Você consegue montar sem sela, Hepzibah?— ela perguntou.

— Nunca tentei."

— Então vou mostrar-lhe como, mas você deve tentar se mexer rápido, antes que Lobo Uivante volte. Se ele descobrir que nós o trapaceamos com sua Nova Flor do Campo, ele ficará muito bravo, e seremos obrigados a devolver você para ele." Com a possibilidade de ficar sob o poder de Lobo Uivante novamente, a vontade de Hepzibah de montar em pêlo dobrou. Quando Jesse voltou com Estrela Vermelha, Hepzibah trepou com dificuldade e grudou no cavalo com toda sua força.

Jesse seguiu para as Colinas Azuis imediatamente, sem saber que, à distância, um cavaleiro sozinho a seguia.

Enquanto andavam a cavalo, ao sol da manhã, Jesse respondia às perguntas de Hepzibah da forma mais curta possível. Ela achou a efusão da menina um pouco cansativa. Além do mais, ela não podia explicar em pouco tempo tudo o que havia acontecido para transformá-la de uma colonizadora branca em esposa de Cavalga o Vento. Descobriu que ela nem mesmo se importava em defender a si mesma ou aos costumes de sua família adotada, diante desta jovem boba.

Não demorou muito para Jesse ver a poeira de um grande número de cavaleiros à distância.

— Seu povo está vindo encontrá-la— disse para Hepzibah, apontando o horizonte. Hepzibah levantou uma mão para fazer sombra aos olhos. — Desça e espere aqui. Ficarei olhando para ter certeza de que eles a encontrarão. Adeus."

Hepzibah não desceu. Em vez disso, falou:

— Mas você precisa esperar para que todos possamos agradecer-lhe. Por favor, espere".

Jesse balançou a cabeça:

— Saber que você está entre os seus já me deixa bem gratificada. E— acrescentou: — Saber que agora talvez você obedeça a Elder Smith e não saia para colher flores do campo quando deveria estar trabalhando".

Hepzibah corou. Obedientemente desceu de Estrela Vermelha. Jesse virou e foi-se a meio galope para trás da primeira colina. Descendo do cavalo, arrastou-se um pouco, subindo a colina, até poder espiar e ver o encontro que aconteceu uns poucos momentos após ter deixado Hepzibah.

Um grupo de uns doze ou mais cavaleiros precipitou-se em direção à Hepzibah. Seu vestido de chita azul balançava para cima e para baixo, enquanto acenava. Um homem pesado pulou do cavalo e a envolveu num grande abraço de urso. O grupo inteiro olhou na direção de Jesse enquanto Hepzibah gesticulava. Logo ela foi colocada na garupa do homem que a abraçara e foram embora, perdendo-se de vista.

Jesse sorriu a si mesma e virou-se para ir embora. Cavalga o Vento estava parado atrás dela, apeado do seu cavalo.

— Eu não lhe agradeci. O que você teve de prometer a Lobo Uivante para comprar uma escrava à sua pobre mulher?"

Ele meneou os ombros:

— Só três potros...".

Jesse gritou:

— Três potros! Você é bom, Cavalga o Vento. Foi um preço alto a pagar par a ajudar uma menininha que você nem ao menos viu".

Ele baixou os olhos para fitá-la, contente:

— Eu não dei três potros para ajudar uma menina branca tola. Dei três potros para ajudar Caminhando nas Chamas. Ela já foi?".

Jesse disse suavemente:

— Já foi".

Ele trouxe o assunto à tona novamente:

— Você algumas vezes, desejaria retornar ao seu povo?".

Jesse não hesitou em dizer:

— Vivi no meio dos brancos por vinte e um anos do calendário deles. Na contagem de tempo deles, tenho estado entre os lakotas por mais quatro anos. No dia em que você me tomou como esposa nós prometemos 'aonde quer que você for eu irei e onde quer que você pousar eu pousarei. Seu povo será meu povo e seu Deus, o meu Deus'; esta promessa foi eterna. Eu desejo estar com Cavalga o Vento, entre o povo dele, por todo o tempo que Deus der".

Cavalga o Vento e Jesse andaram a pé juntos, de volta ao acampamento. Lobo Uivante afagava seus novos potros e os viu entrar na aldeia, pensando na bobagem de um homem pagar tanto por uma escrava e permitir que sua esposa levasse embora. Se Lobo Uivante pensou que Cavalga o Vento entrara na sua tenda para bater na mulher por sua atitude ingrata, nada foi dito para convencê-lo do contrário.

 

... seu marido... a louva... Muitas filhas obraram virtuosamente; mas tu a todas és superior.

Provérbios 31:28-29

 

Nem um filho veio. Jesse aguardava esperançosa à cada mudança de lua. Mesmo assim, nenhum filho.

Cavalga o Vento adorava contar histórias e se alegrava com as inúmeras perguntas feitas pelo filho crescido. Ele compartilhava as lendas que tinham sido passadas por gerações de lakotas, sabiamente introduzindo nelas Deus, e até Jesse e Velha ouviam, fascinadas. A preferida era a história de um caçador que caiu de um penhasco e escapou amarrando-se em duas águias grandes e voando. Os olhos de Duas Mães se arregalavam quando Cavalga o Vento chegava ao momento dramático quando o caçador livrava-se do penhasco apenas com o poder das águias de salvá-lo.

— Mas não foi o poder das águias que o salvou— Cavalga o Vento lembrava seu filho — foi Deus quem deu força às águias".

Ele contava histórias para ajudar Duas Mães a superar seus medos infantis. — Então, meu filho, por que você tem medo das tempestades? São apenas guerreiros do trovão e do relâmpago. Quando você tiver medo, lembre-se de que Deus diz ao relâmpago onde ele deve ir. Faz de conta que o barulho e a luz são de dois guerreiros chamados Trovão e Relâmpago. Eles cavalgam com beleza, nos potros ligeiros, e carregam luz em suas mãos. Quando correm com o vento, fazem o vento correr, os cascos dos potros batem nas nuvens. Quando eles jogam seus bastões iluminados/ ele brilha forte no céu. Quando Deus diz 'Chega!', os guerreiros vão para a terra, a cavalo, trazendo a chuva para molhar seus potros."

— Você já viu os potros, pai?"

— Uma vez, quando eu estava caçando nas Colinas Pretas, eu achei tê-los vislumbrado. Mas antes que Vento e eu pudéssemos pegá-los, eles subiram de novo para o céu, levando o Trovão e o Relâmpago para outro lugar."

Quando Duas Mães tinha seis anos, Jesse havia, há tempos, começado a falar sua nova língua com fluência. Pensava nela mesma como Caminhando nas Chamas e ficava sempre surpresa quando alguma coisa a lembrava de que tinha vivido a maior parte de sua vida em outra cultura. As lembranças vinham com menos freqüência, à medida que se adaptava aos costumes dos lakotas. Ela já podia começar um fogo rapidamente, qualquer hora em que fosse necessário. Ela montava Estrela Vermelha sem nem pensar nos antigos medos. Curtia couros e decorava roupas para sua família. Mas ela ansiava pela oportunidade de começar um carregador de bebê, enfeitar mocassins pequenos, ter as mulheres da aldeia lhe dando conselhos como faziam com cada grávida entre elas.

Duas Mães era rápido nas corridas a pé com os amigos, atirava pedras em cada alvo disponível e fingia caçar com o arco e a flecha feitos por Cavalga o Vento. No inverno ele escorregava nas encostas das colinas com um trenó feito de costelas de búfalo, — Esquiava" no gelo com seus mocassins de pele e aproximava-se furtivamente de coelhos na campina coberta de neve.

Cavalga o Vento contava histórias de bravuras.

— Nós voltamos vitoriosos, mas eu estava triste, pois tinha sido forçado a deixar Vento no campo de batalha onde ele tinha caído com as flechas dos inimigos. Ele não poderia se levantar novamente."

— Mas, pai, Vento está aqui conosco agora..."

— Ah, sim, mas eu o deixei no campo de batalha naquele dia, pois pensei que ele estivesse morto. E assim, quando entrei na aldeia, na garupa de Águia Branca, fui para minha tenda com o coração pesado. Tinha perdido meu melhor amigo. Eu sabia que as orações seriam cantadas ao redor da fogueira, pelo potro perdido, mas ainda assim meu coração estava triste.

— A festa durou dias e então as outras aldeias começaram a desmontar suas tendas e a retornar a seus próprios lugares. Finalmente, todos haviam ido embora e minha aldeia retornou à vida tranqüila. Estava tudo certo. A noite estava chegando e eu tinha acabado de trabalhar com meu potro mais novo, quando vi a distância algo em que não podia acreditar. Parecia que um fantasma-cavalo estava cruzando a campina em minha direção. Lá estava, a distância, Vento. Andava devagar, com a cabeça curvada. Todas as pessoas saíram das tendas para ver. Ele veio até mim, e vi uma ferida terrível na sua ilharga. Eu não podia acreditar no que via e no entanto eu precisava acreditar mesmo, pois meu cavalo fiel tinha voltado para mim."

— Lembre-se, meu filho, de que, quando você tem um amigo assim, é um presente raro do Pai. Desde aquele dia, Vento tem sido meu melhor amigo." Cavalga o Vento deu uma pausa e olhou para Jesse do outro lado do fogo: — Até que, é claro, encontrei uma certa mulher branca na campina".

Ele fitou Jesse, que respondeu brincando:

— Meu querido marido, que honra é saber que estou acima do seu cavalo, na escala".

Duas Mães olhou de um lado para o outro. Ele tinha sempre ouvido a história de como Caminhando nas Chamas tinha vindo viver entre os lakotas. Algumas vezes caçoavam da pele branca de sua mãe. Mas nas tendas de alguns de seus amigos ele ouvia gritos e palavras feias. Ele era grato pela afeição entre seu pai e sua mãe. Não se importava por ela ser branca. Ela era uma boa mãe e uma boa esposa.

Como Duas Mães crescera, Cavalga o Vento tomou a incum¬bência de ensiná-lo. Ele antigamente segurava seu filho pequeno na frente dele para andarem no Vento e fazia arco e flechas pequenas para ele, de madeiras macias que cresciam ao lado do ribeiro. Quando Duas Mães ficou mais velho, aprendeu a montar sozinho no seu próprio potro. Então começou o trabalho sério de andar a cavalo. Ele caiu tantas vezes que Jesse se desesperou por seu bem-estar, mas Cavalga o Vento recusou a compaixão e insistiu em que ele sempre tentasse de novo. Jesse lembrou-se de sua própria experiência de aprender a andar a cavalo e a reação pétrea de Cavalga o Vento às suas lágrimas. Ela decidiu não interferir no treino de seu filho lakota.

Certa noite Duas Mães entrou com o rosto e braços cobertos de arranhões. Ele admitiu, com relutância, que havia caído de seu potro novo e rolado para baixo, numa ladeira íngreme, cheia de arbustos espinhosos. Jesse amorosamente mostrou-lhe solidariedade, mas Duas Mães não a aceitou. Estava envergonhado por ter caído e Jesse detectou um pouco de medo ante a perspectiva de montar seu potro arisco no dia seguinte, de novo.

Cavalga o Vento examinou com cuidado as feridas do filho, tirou alguns espinhos, então começou a pintar cada arranhão com tinta vermelha.

— Agora Duas Mães parece um guerreiro valente, voltando do inimigo derrotado.— Apertou os ombros do menino. — Amanhã você montará o potro de novo e todos saberão que você é o filho mais valente em nossa aldeia.

Duas Mães acordou cedo na manhã seguinte, tendo dormido pouco, pelo medo antecipado. Mas ele controlou, com sucesso, as arremetidas obstinadas do potro por liberdade e não caiu mais. Naquela noite, o fogo na tenda deles iluminou a face de um menino muito cansado e três adultos muito orgulhosos.

— Você estava certo em insistir que ele tentasse de novo— Jesse cochichou quando Cavalga o Vento esticou-se ao seu lado no escuro. Cavalga o Vento afundou seu rosto no cabelo comprido de Jesse e inalou profundamente.

— Você colheu Sikpe-ta-wote hoje, minha esposa... a doçura dela ficou no seu cabelo. Não vamos mais falar de nosso filho no cavalo— ele cochichou, — Não vamos falar mais".

Quando Duas Mães tinha sete anos, o desejo de Jesse por um filho tinha-se tornado um fardo que ela carregava cada dia. Contava as luas e, quando cada uma passava sem sinal de gravidez, ela ficava mais melancólica. Velha preparava chás de gosto horrível para ajudar e Flor do Campo aconselhava Jesse a procurar a ajuda do curandeiro. Jesse não conseguia seguir este último conselho. Levava sua ansiedade ao Senhor.

— Pai, tenho quase trinta anos — por favor, Pai, um filho para Cavalga o Vento." Quando pareceu que a resposta Dele era não, ela achou que não iria agüentar.

Cavalga o Vento sentia sua ansiedade e interpretava-a mal. Ele esperava que ela lhe falasse de sua dor, e, quando ela nada disse, ele achou que ela desejava deixar a aldeia. A tensão entre eles cresceu até que uma noite, ele a procurou e ela fingiu estar dormindo. Ele, se levantou abruptamente, prendeu seus instrumentos de caça e saiu da tenda. Jesse esperou-o voltar, mas demorou três dias para ela ver Vento na tropa. Mesmo assim, Cavalga o Vento não se juntou à família à beira do fogo.

Na terceira noite, Jesse caminhou para fora da aldeia, no crepúsculo. No Oeste o horizonte tinha um brilho bem rosado que se transformava mais acima em um azul-pálido. O azul escurecia para um tom violeta e lá, no céu, brilhava uma estrela cintilante. Era uma noite tranqüila e não se via a lua.

Senhor, Jesse orou, disseste — Os filhos são herança do Senhor, e o fruto do ventre o seu galardão... Como flechas na mão do valente, assim são os filhos da mocidade... Bem-aventurado o homem que enche deles a sua aljava". Por que, Senhor? Por que o Senhor não nos dá filhos? Eu tento não pedir muito. Tenho tentado estar contente. Mas, Senhor, é muito pedir um filho? Ela ouviu um coiote uivar, o som dos potros mascando a grama e batendo as patas no chão, mas não uma resposta. Ela esperou que um versículo da Bíblia viesse à sua mente, para trazer-lhe conforto, mas nada lhe veio à mente a não ser sua própria ansiedade. O vazio da campina e a vastidão do céu lhe traziam à mente a lembrança de sua esterilidade. Ela chorou mansinho e sentou-se na sujeira, segurando a cabeça inclinada em suas mãos.

Passos atrás dela no escuro a tiraram de sua aflição. Automaticamente buscou sua faca, mas uma voz familiar quebrou o silêncio.

— As estrelas dizem que não é seguro para uma mulher ficar fora sozinha. — Ele não se assentou ao seu lado, mas esperou que ela se levantasse.

Jesse endireitou as costas, limpou as lágrimas e ficou sentada.

— Eu precisava estar sozinha... longe de... Eu precisava orar."

— Então eu a deixarei com suas orações.— Algo havia mudado na voz tão familiar. A solicitude gentil tinha sempre estado lá para ela. Onde estava agora, quando ela tanto precisava?

Ele já tinha-se virado para ir. Ela sabia que ele não ficaria longe. Ele esperaria, fora da vista, cuidando para que ela estivesse segura. Mas ela não o queria fora da vista.

— Não, eu acabei. Eu...— sua voz falhou. — Não há respostas para minhas orações."

— Sempre há uma resposta. Mas a resposta nem sempre é a que queremos ouvir."

A verdade da réplica simples penetrou fundo. A resposta ao seu clamor por um filho era não. Ela não podia entender. Ela não queria aceitar. Mas, durante anos esperando, só agora a resposta tinha vindo. Ela sabia, mas não podia suportar. As lágrimas brotaram em seus olhos. Ele não podia vê-las. A escuridão oferecia proteção e capacitava Cavalga o Vento a expor seus medos.

— Eu tenho orado também. Tenho orado para que você aprenda a ser feliz entre os lakotas. Mas você me fala da contagem de anos dos brancos. Você fala de todo o tempo que tem estado aqui. Eu não queria ouvir a resposta às minhas orações. A resposta é não. Eu tenho orado para saber fazer o sorriso voltar aos seus lábios.— A voz foi ficando tão baixa que ela mal ouvia as palavras. — Agora vejo que não consigo. Você precisa dizer-me qual é o seu desejo. Duas Mães está grande agora. Você se deu bem no meio do povo. Você não precisa ter medo de dizer que é hora de ir embora. Eu não sou como os outros... Eu não vou fazer você ficar. — Ele limpou sua garganta e forçou as palavras a saírem calmamente. — A linha de seu povo cruzando a campina nunca pára. Somos um bando pequeno. Temos tentado ficar longe deles. Agora vou levá-la para eles."

Jesse não conseguia encontrar palavras para transpor a escuridão entre eles. Ele tinha visto sua infelicidade e erroneamente culpara-se a si mesmo. Ela tinha sentido o distanciamento dele para com ela e pensara que era por causa de sua esterilidade. As palavras falharam, mas ela encontrara um caminho para clarear a escuridão. Ele tinha-se virado para sair, mas ela estava lá, envolvendo com seus braços o corpo dele, deitando a cabeça no ombro dele, com seu corpo balançando no esforço de segurar as lágrimas.

Os braços dele a seguraram, mas havia pouco calor neles, até que ela conseguiu as palavras para dizer-lhe o quanto a falta de filhos a atormentava... como ela tinha falhado com ele... quão sem valor ela se sentia. As palavras quebradas jorraram e o abismo foi atravessado. Braços amorosos a envolveram. Ele curvou a cabeça até colocar sua face áspera pelo vento próxima à dela e esperou-a esgotar as causas de sua tristeza.

Enquanto ela compartilhava sua tristeza, Cavalga o Vento ficava feliz. Ele interrompeu a torrente de palavras.

— Isto não é nada, Caminhando nas Chamas. Eu fiquei com raiva porque você não falava de sua tristeza. Eu pensei que você sentisse saudade dos brancos, que você não gostasse de nós e que tivesse medo de dizer. Seria maravilhoso termos muitos filhos. Não posso mentir. Mas se ter muitos filhos significa que eu deva ter outra mulher, então eu escolheria não ter filhos e ficar com Caminhando nas Chamas em minha tenda. Seu coração grita por filhos... meu coração grita só por você, meu maior amor."

A vastidão da campina e a imensidade do céu tinham-na lembrado sobre seu vazio, mas ela não estava mais vazia. Deus havia enchido o vazio com Seu amor derramado através de Cavalga o Vento. Nos dias que se seguiram, Deus começou a curar a ferida. Jesse ainda orava por um filho, mas o desespero havia passado. Ela começou a encontrar satisfação em Duas Mães, em seus amigos, em seu marido. Algo próximo do contentamento cresceu dentro dela, e o sorriso de que Cavalga o Vento tinha tanta saudade voltou ao rosto de Caminhando nas Chamas.

 

Os jovens se cansarão e se fatigarão, e os mancebos certamente cairão. Mas os que esperam no Senhor renovarão as suas forças, subirão com asas como águias: correrão, e não se cansarão; caminharão, e não se fatigarão.

Isaías 40: 30-31

 

Quando Duas Mães completou oito anos, Cavalga o Vento o presenteou com um arco de chifre de alce. O menino tinha visto seu pai trabalhar nele, com olhos brilhantes, jamais achando que ele mereceria um arco tão bom como esse. O chifre foi fervido até ficar macio e então moldado, ficando as partes juntadas nas chanfraduras. O cordão molhado foi entalhado perto da junta do arco. Ele tinha uma cola natural que, quando seca, grudava no lugar. Ligados deste jeito, a junta ficava mais forte até que fosse pregada com os pregos usados pelos brancos. Quando Cavalga o Vento terminou o arco, ele amarrou-o com um tendão de búfalo fresco e presenteou seu filho, sem nenhuma cerimônia.

Duas Mães quase não conseguia conter sua excitação. Ele gaguejou seus agradecimentos e preparou-se para correr para fora e mostrar aos seus amigos. Mas Cavalga o Vento o deteve.

— Vai chegar a hora de se orgulhar, quando você trouxer para casa seu primeiro veado... vamos fazer flechas novas antes de caçar. Vamos ver quanto você cresceu desde a última lua.

Cavalga o Vento mediu o braço do filho. A distância da junta do cotovelo até a ponta do dedo mediano e então de volta ao pulso seria o comprimento das flechas de Duas Mães. Juntos procuraram, penas que dessem certo, prendendo-as às flechas com tendão. Duas Mães olhou desejoso as penas de peru que adornavam as flechas do pai, mas penas de peru eram escassas. Ele deveria ficar contente com as ofertas dos patos e galinhas do campo.

Bem de manhã, depois de o arco novo e as flechas estarem acabados, Cavalga o Vento anunciou:

— Meu filho e eu estamos prontos para testar o novo arco". Com grande cerimônia, eles se prepararam para a viagem da caçada, pois, com o arco como presente, Cavalga o Vento tinha anunciado que ele começaria a treinar seu filho diligentemente, contando seus segredos de forma que a tribo ganhasse outro ótimo caçador.

— Deus deu a cada animal um modo de vida, meu filho. Você precisa aprender a observar estes modos e respeitá-los. Olhando os animais, você aprenderá muito, o que o ajudará na caçada." Pararam perto de um rasto e Cavalga o Vento apontou as pegadas de um veado. — Esta pegada é recente ou velha? O veado estava correndo ou andando? Se o veado estava correndo, então precisamos procurar outras pegadas. Talvez haja um inimigo por perto, que esteja caçando. Todas estas coisas nós precisamos aprender para sermos bons caçadores."

Uma voz de animal familiar chamou a atenção deles. Havia duas águias voando alto acima eles. O pai e o filho olharam por muitos minutos antes de Duas Mães dizer:

— Meu pai, o senhor tem as suas penas de águia... eu não poderia preparar-me e caçar para ter as minhas?".

Cavalga o Vento ponderou o pedido antes de responder:

— Pegar uma águia é coisa séria e perigosa, meu filho. Quando eu capturei a águia foi necessário três homens. Hoje há só dois— Ele tomava cuidado para não chamar Duas Mães de criança.

O filho olhou, desejando os pássaros que voavam alto. Ele tentou um argumento:

— Talvez pudéssemos seguir estas duas. Você podia ensinar-me o caminho da águia. Então, quando chegar a hora, estarei preparado".

Era um argumento razoável e Cavalga o Vento concordou, balançando a cabeça.

— Pela forma como fazem o círculo, eu diria que elas têm um ninho e estão tentando fazer o filhote voar com elas. Eu já vi algumas vezes a mãe empurrar o pequeno fora do ninho, na beira do penhasco, para fazê-lo voar. Algumas vezes ele não sabe como voar e bate as asas, mas vai de encontro à terra. A mãe pássaro voa abaixo do filhote, pega-o e leva-o nas costas para o ninho, que é seguro."

Duas Mães ouvia, fascinado.

— E então, o que acontece, meu pai?"

— Novamente o filhote é empurrado para fora do penhasco. Desta vez ele voa melhor, mas, se ainda não conseguir, a mãe pega-o mais e mais vezes, até ele aprender e voar de volta para o ninho por si mesmo."

— Talvez pudéssemos encontrar o ninho das águias!— exclamou o menino. — Só para ver se os filhotes estão cheios de penas.— Seu coração almejava voltar de sua primeira caçada com a presa mais premiada de todas.

Cavalga o Vento sorriu com paciência.

— Nunca em nossa tribo um menino de sua idade conseguiu levar para casa penas de águia em sua primeira caçada.— Ao ver a expressão de decepção no rosto do filho, Cavalga o Vento tentou logo algum conforto: — Mas talvez Deus tenha guardado sua melhor águia para Duas Mães e Cavalga o Vento".

A expressão de decepção mudou instantaneamente e o menino concordou enfaticamente com a cabeça. Ele empinou o peito e falou, de repente:

— Sim, eu serei o primeiro... e as pessoas cantarão louvores a mim".

Cavalga o Vento sorriu e estudou a crina de Vento, pois ele estava totalmente imóvel. Parecendo que tinha a intenção de arrumar cada cabelo da crina até caírem perfeitamente, ele recitou, do livro: — Há três coisas que me maravilham e a quarta não a conheço...".

— Você lembra qual é a primeira, meu filho?"

Duas Mães respondeu: — O caminho da águia no céu".

— É sempre bom, meu filho, lembrar-se de que Deus decide o caminho da águia e os caminhos dos homens. Vamos pedir-lhe para nos ajudar a encontrar a sua águia... se ele concordar. Nós não devemos nunca nos orgulhar daquilo que podemos fazer, pois ele pode não concordar e então vamos parecer tolos."

Os ombros de Duas Mães encolheram um pouco e ele corou.

— Eu só queria dizer..."

— Você queria dizer que o seu coração está arrebentando de vontade de caçar aquelas águias. Eu entendo. Não há erro no desejo." Cavalga o Vento pegou as rédeas de seu potro e o mandou ir avante, enquanto acabava seu pensamento: — Lembre-se somente de que nós precisamos sempre fazer com que nossos desejos sejam um com os do Pai celeste".

Os dois subiram firmemente, com seus potros andando no meio das pedras, seus olhos sempre atentos às águias. Finalmente, depois do que pareceram horas, alcançaram o topo do penhasco onde Cavalga o Vento desceu do cavalo e avançou para a beira, olhando com atenção. Gesticulou para Duas Mães segui-lo.

O ninho das águias estava a cerca de vinte pés abaixo deles. Dentro dele, lado a lado, estavam duas aguiazinhas cheias de penas. A tentação era muito grande. Em pouco tempo ele havia decidido o que fazer.

— Nós mataremos um veado e retornaremos aqui. Podemos cortar a pele em tiras para fazer uma corda. Eu abaixarei você até a saliência e vamos capturar uma das aguiazinhas."

— Mas pai, a tenda, o sacrifício ao Grande Mistério..."

— Durante toda a minha vida servi ao Grande Mistério, meu filho. Muito tempo atrás, quando minha perna foi quebrada e consertada pelo homem de Deus, eu aprendi que o Grande Mistério tinha um nome, que ele se importava com todas as pessoas e que ele veio à terra para mostrar seu cuidado. Desde que Caminhando nas Chamas veio para nossa tenda, temos ouvido as palavras de Deus. Ele não requer sacrifício antes de dar algo para seus filhos, e ele ficará contente se nós lhe agradecermos por sua ajuda quando você ganhar o seu prêmio. Nós vamos orar por sua ajuda. Eu não acho que a cerimônia seja importante."

Duas Mães aceitou a resposta num silêncio respeitoso. Sua mente ainda estava cheia de dúvidas. Não parecia ser sábio mudar assim tão rápido os costumes do povo.

Não muito tempo depois eles acharam pegadas de um alce e Cavalga o Vento voltou ao papel de professor, enquanto ele e Duas Mães seguiam as pegadas. No lado Oeste, nuvens estavam-se formando no céu, e a tarde já era avançada antes de eles conseguirem abater um grande gamo. Trabalharam rápido para tirar a pele do animal e empilhar a carne no potro de Duas Mães. Cavalga o Vento arrancou dois dentes da boca do gamo e enfiou-os na bolsa do seu lado. Ele estava guardando dentes de cervos fazia meses e estes dois completariam exatamente o número de que precisava.

O vento soprava forte enquanto se dirigiam à beira do penhasco e nuvens escuras eram impelidas pelo vento, no céu. Não se viam as águias, mas Cavalga o Vento e Duas Mães olharam com atenção e viram que as duas aguiazinhas tinham-se aconchegado no ninho, preparando-se para a tempestade. Enquanto olhavam, viram uma águia adulta elevando-se sobre suas cabeças e pousando na beira do ninho. Abrindo suas asas sobre os filhotes, a fêmea arrumou-se no ninho para esperar a tempestade.

O coração de Duas Mães apertou-se. Com a vinda da tempestade, eles teriam pouco tempo para capturar sua presa. Cavalga o Vento, no entanto, estava determinado em relação ao sucesso do filho. Rapidamente rasgou a pele do alce em tiras, amarrando-as juntas para formar um cordão comprido o suficiente para alcançar a saliência abaixo.

— Você tem de se mexer muito devagar. Fale com as águias como um amigo. Diga-lhes o que está fazendo. Não vá fazer tolices e assustá-las. Se você fizer isto direito, elas vão olhar você e permitir que se junte a elas na saliência. Então você precisa sentar-se — devagar — e esperar Elas vão olhar você cuidadosamente. Ainda assim, precisa esperar. Se você não se mexer em direção aos filhotes, elas vão ficar quietas. A tempestade virá e ainda é preciso esperar. Acho que não vai demorar tanto. Quando passar, elas irão caçar ou vão empurrar uma das aguiazinhas fora do ninho para ensinarem-na a voar. Em qualquer dos casos você terá sua chance de capturar uma delas. Alcance-a devagar, assim..." Cavalga o Vento demonstrou fazendo os mesmos movimentos de alguns anos atrás, apertando uma perna imaginária bem acima da garra, então amarrando sua corda na perna e escorregando a mão devagar até a linha das penas, na amarra. — Ela não vai lutar. Mas então você precisa elevar a outra mão e quebrar o seu pescoço. Quando tiver feito isso, suba devagar até mim. Se as mais velhas retornarem, eu jogarei pedras para mantê-las longe enquanto você escapa.

Parecia simples, mas, enquanto conversavam, a tempestade se aproximava. Trovões rolavam nas nuvens e relâmpagos brilhavam. No entanto, não havia pingado nenhuma gota das nuvens.

— Talvez ela só passe sobre nós— Cavalga o Vento falou baixo, com esperança. — Se não, você terá de esperar lá embaixo na saliência, durante a tempestade. Tem certeza de quer fazer isto hoje, meu filho?"

Duas Mães arrepiou-se com a idéia de não ser corajoso o suficiente para conseguir suas penas de águia. Sua resposta nem foi dada, pois ele jogou o cordão de pele de alce sobre a borda do penhasco e preparou-se para escorregar para baixo. Cavalga o Vento aprovou com a cabeça, mas deteve o menino para lembrá-lo:

— Isto que você está fazendo é algo perigoso, meu filho. Você é corajoso e isso é bom. Mas não seja tolo. Em poucos anos isto pode ser feito... quando você ficar mais forte e quando não houver tempestade. Ninguém precisa sequer saber que nós pensamos nisto hoje".

Os olhos negros de Duas Mães brilharam quando aceitou o desafio.

— Todos saberão, meu pai, pois estaremos voltando para a aldeia com nossos potros enfeitados com penas de águias!"

Dito isso, ele arremessou-se sobre a borda do penhasco e começou a descida. Cavalga o Vento estava certo sobre o comportamento das águias. Elas abaixaram as cabeças e olharam com cuidado, mas não mostraram sinal de alarme. Duas Mães moveu-se devagar, mas deliberadamente — até que o cordão de pele nova se rompeu e ele caiu com um ruído ao lado do ninho.

Cavalga o Vento olhou, com o coração batendo forte. A tempestade se aproximava rapidamente e as águias atacaram com violência para proteger seus filhotes do intruso. Garras afiadas arrancavam a pele do menino, asas poderosas batiam no ar e os bicos começaram a trabalhar furiosamente, com as duas águias adultas rasgando Duas Mães com fúria.

Cavalga o Vento agiu imediatamente. Ele mesmo foi descendo o mais rápido possível pelo resto que sobrou do cordão e caiu ao lado do filho. Duas Mães tinha feito o melhor que podia, mas duas águias adultas raivosas era demais. Cortes profundos sangravam no pescoço dele. Uma garra tinha rasgado sua face esquerda.

Cavalga o Vento ficou sobre o seu filho abaixado. A tempestade começou, derramando água e soprando fortes rajadas de vento. Relâmpagos iluminavam o lado do rochedo, mas Cavalga o Vento não percebia nada, enquanto atacava as águias com tudo o que podia. Num golpe afundou sua faca no peito do pássaro macho, mas a fêmea parecia estar em todo lugar na mesma hora, atacando e bicando, indiferente à tempestade. As aguiazinhas juntaram-se também na luta, mas menos ágeis em sua própria defesa.

A fêmea acabou a batalha. Um corte grande no pescoço do guerreiro feroz. Preso nas garras dela, Cavalga o Vento viu o peito dela manchado com seu próprio sangue e sentiu que estava gravemente ferido. Agarrou uma das pernas dela com sua mão esquerda, tentando livrar-se com sua faca.

O temporal passou e Cavalga o Vento cambaleou para trás, sem mais condições de proteger seu filho. O fluxo de seu próprio sangue lhe dizia e ele percebeu que estava perdendo a batalha. Então, teve consciência de um grito forte — era seu mesmo? — e a dor terrível em seu pescoço pareceu acabar. Ele pôs a mão novamente onde as garras da águia tinham estado prendendo-o, mas só havia ar. Quando caiu de joelhos, percebeu que Duas Mães tinha desferido um golpe mortal e agora estava batalhando contra as aguiazinhas. A seus pés estavam os corpos das aves adultas. Fora uma luta valente, mas, enquanto caía contra a parede do penhasco, Cavalga o Vento percebeu que fora em vão. Tinha espirrado sangue demais.

O céu de repente ficou de um azul-brilhante. A tempestade tinha deixado um grande arco-íris. O arco ia de um lado da planície ao outro e tudo cintilava. No acampamento, Jesse olhou o arco-íris e sorriu, imaginando onde seus dois homens tinham-se escondido da tempestade. Ela atiçou o fogo e começou os preparativos para o jantar, pensando se eles retornariam naquela noite/ esperando que Duas Mães em sua primeira caçada não ficasse desapontado. Por favor, Pai, se for do seu agrado, faça-o retornar com carne para a família. Isto o deixaria tão feliz!

Mas no mesmo instante em que Caminhando nas Chamas estava orando por seu filho, ele estava lutando por sua vida jovem. As aguiazinhas voltaram-se para ele com toda a fúria e, enquanto batiam nele com suas asas, Duas Mães percebeu que deveria estar bem perto o dia em que elas deixariam o ninho. Uma olhadela para trás mostrou-lhe que estava numa situação desesperado!a. Acima dele estavam Vento e Dia Tempestuoso, o último carregado com a carne. Eles tinham sido amarrados a uma árvore. Sem dúvida alguma eles iriam soltar-se e retornar à aldeia, mas não antes que fosse tarde demais para Cavalga o Vento. A mancha escura no chão estava aumentando a cada momento.

Duas Mães fez uma coisa tola. Isto poderia tê-lo levado à morte. Miraculosamente, não levou.Se o Senhor está verdadeiramente aí, Deus de minha mãe. ..se é verdadeiramente o criador de todas as coisas... então ajude-me agora. Meu pai está caído, morrendo. Ajude-me a descer deste lugar ou deixe-me morrer agora!

De alguma forma ele conseguiu agarrar as pernas de cada pássaro enfurecido e cambaleou até a beira do penhasco. Enquanto iam para a borda, Duas Mães gritou alto:

— Deus de minha mãe, ajude-me!". Parecia que seu coração ia parar de bater. Apertando os olhos fechados, segurou a respiração e esperou mergulhar na sua morte. Uma grande golfada de vento levantou-se da terra. As jovens águias abriram as asas e bateram no ar, tentando escapar. Indo para baixo, para baixo, rodopiando, batendo as asas e gritando para que aquilo que as segurava as deixassem ir... ele não deixaria. Abaixo, abaixo, lá foram eles dentro de um poço fundo de água, formado por uma nascente na base do penhasco. Os pássaros não o tinham levantado como fizeram as águias da lenda que tinha ouvido tantas vezes, mas elas tinham amortecido a sua queda.

Quando afundou na água, Duas Mães sentiu os músculos das pernas dos dois pássaros afrouxarem. Ele os soltou e subiu à tona, buscando ar. Os dois pássaros afogados flutuavam na superfície da água. Duas Mães nadou para a borda e se arrastou na grama. Ele olhou para baixo, nem acreditando nos rasgos profundos em seus braços. Quando tocou o rosto, seus dedos ficaram cobertos de sangue.

Mas Duas Mães não pensava em si naquela hora. Ele precisava buscar socorro para seu pai, e rápido. A mancha escura na terra, ao redor do corpo de seu pai, inconsciente... estaria crescendo ainda?

Duas Mães vacilou ao ficar em pé e começou a corrida de sua vida. Quão longe viemos? Ele sabia em que direção correr, mas não tinha a menor idéia de quanto haviam andado,enquanto olhavam as águias bem de manhã. Subir o penhasco de novo para pegar os potros estava fora de cogitação.Eu sou veloz. Deus de minha mãe,veio o pedido, faça-me mais rápido.

Não houve milagre na resposta à sua oração, mas ainda assim, uma resposta veio. Forte devido às horas incontáveis de corrida com seus amigos, seus mocassins batiam num ritmo forte enquanto corria para a aldeia. Ele olhava com cuidado se não havia cactos e pulava os que encontrava no caminho. Sua respiração tornava-se difícil e suas pernas doíam. Ainda assim, ele corria. O sangue em seu rosto secou e formou uma crosta. Lágrimas de cansaço vieram aos seus olhos. Ainda assim ele corria. Lá atrás, naquela saliência estava seu pai. A imagem do corpo largado, o ninho de águias vazio e os pássaros mortos o assombrava. E ele continuou a correr.

Quanto tempo ele correu não soube, mas, quando pensou que seu coração e suas pernas iriam desequilibrar-se, ele entrou na aldeia, gritando por socorro, apontando o caminho e, finalmente, caindo em uma pilha logo fora da tenda do Falcão Curandeiro. Jesse ouviu a barulheira e saiu. Viu homens montando nos potros e saindo do acampamento.

Então Duas Mães foi carregado a ela. Um talho profundo estava aberto ao longo do maxilar e sangrava muito. As marcas do ataque de algum animal estavam por todo o corpo. Seu coração disparou. Onde estaria Cavalga o Vento? Ele jamais teria permitido isso se estivesse vivo. Não, não posso pensar nisso. Se pensar entrarei em pânico. Não posso pensar nisso. Querido Deus, não me deixe pensar nisso. Preciso ajudar Duas Mães. Ó Deus, faça-os encontrarem-no... traga-o de volta para mim.

— Chame o Falcão Curandeiro— ela berrou para as mulheres que se amontoavam ao redor. Ela segurou a aba da porta aberta para que os homens entrassem carregando seu filho inconsciente. Deitaram-no perto do fogo. Velha corria pela tenda carregando água para lavar as feridas, ajuntando suas ervas medicinais.

Jesse ajoelhou, sem saber o que fazer, ao lado do filho inconsciente. Velha tocou em seu braço.

— Lave as feridas, minha filha.— Jesse se mexeu para obedecer. Ela estava entorpecida pelo medo, mas obedeceu. Os olhos de Duas Mães se abriram. Pelo buraco acima ele podia ver que ainda havia luz do dia. Devagar, ele mexeu a cabeça para olhai em volta. Casa. Estou em casa. Mãos carinhosas estavam lavando suas feridas e ele viu o cabelo vermelho de sua mãe quando ela se dobrou para cuidar de suas feridas. Velha segurou uma compressa em seu rosto, cacarejando com compaixão, cada vez que tirava a compressa para averiguar a ferida. — Teremos de dar pontos nisto, para fechar— falou para si mesma. — E haverá uma cicatriz."

Duas Mães viu lágrimas rolando pelo rosto de sua mãe. Ela trabalhava rápido, mas as mãos tremiam e ela sempre olhava para a porta.

Duas Mães perguntou melancolicamente:

— Meu pai?".

Ela se assustou com a voz dele. Sua voz tremeu.

— Eles foram atrás dele.— Foi tudo o que ela pôde dizer.

Ele se esforçou para explicar:

— As águias... a tempestade...".

Velha o interrompeu:

— Silêncio! Este corte em seu rosto precisa ser fechado antes que você fale demais— Ela já tinha nas mãos o tendão mais fino e a agulha preparados. Enquanto a última palavra era falada, ela já dava o primeiro ponto. Duas Mães encolheu-se, mas pressionou os dois lábios juntos e não gritou. No formato de sua boca, Jesse viu Cavalga o Vento. Ela acabou de limpar as feridas de seu filho pequeno e assentou-se para ver Velha costurando com perícia o corte fundo no rosto do filho.

— Ele vai ficar bom?— perguntou ansiosamente.

Velha assentiu.

— Vamos aplicar um ungüento curativo. Eu vou mostrar-lhe como fazer isso. Ele vai ter uma cicatriz, mas vamos manter o corte sempre limpo e ele ficará bom. — Ela também olhou para a porta.

Não muito depois chegaram, carregando Cavalga o Vento. As pernas de Jesse não se mexeram para ir até ele. Ficou sentada perto de Duas Mães, petrificada de terror. Cavalga o Vento estava pálido, a cabeça caída para trás, mostrando um rasgo horrível ao lado do pescoço. Os músculos estavam visíveis e a ferida ainda sangrava. Os valentes o deitaram à frente dela e saíram correndo. Falcão Curandeiro pressionou com cuidado, fechando o corte do pescoço, dobrando-se para ouvir o coração, que parecia bater. Havia outros cortes horríveis abertos e parecia a Jesse que ele se havia banhado no próprio sangue.

Duas Mães levantou-se num cotovelo para olhar. Ele viu a face branca de sua mãe. Nunca antes ele via tal expressão de desespero. O ar na tenda estava pesado. O barulhinho dos sinos da roupa do Falcão Curandeiro enchia o ar. Velha acabou seu serviço com Duas Mães e foi para Cavalga o Vento.

— Mais água!— ela gritou para Flor do Campo, que olhava da abertura da tenda.

Jesse pulou ao som da ordem, ficou em pé, agarrou o odre de pele no mastro principal e saiu para o ribeiro. Ao correr a curta distância, ela teve consciência de um peso grande que pressionava suas costelas. Ela não conseguia respirar. Sua mente estava tomada com a visão do filho e marido deitados na tenda.

Com o odre cheio de água, ela correu de volta à tenda, sem prestar atenção às mulheres que se juntavam no lado de fora. Conforme passava por elas, era encorajada:

— Ele é forte, Caminhando nas Chamas..."

— Ele é um grande caçador."

— Velha é uma boa enfermeira..."

— Vai ficar bom..."

— Nós vamos celebrar a caçada deles..."

Jesse não ouviu o que elas disseram e abaixou-se rapidamente, entrando na tenda. Mas a visão à sua frente acalmou seus nervos. Duas Mães, sentado ao lado do fogo, examinava suas feridas quase com orgulho. E Cavalga o Vento estava deitado, imóvel, mas respirando. O curandeiro havia parado o sangramento e Velha estava pronta para limpar as feridas com uma pele macia de veado.

Ao ver o peito dele subindo e descendo, Jesse saiu do desespero, ajoelhou-se ao lado do homem inconsciente e começou a limpar seu corpo com suavidade. Parecia que não havia nenhum lugar que não tivesse sido machucado pelos animais.

— O que é que causou isto a vocês?— ela finalmente perguntou.

"Águias... estávamos caçando águias— Duas Mães falou baixinho.

— Você é novo demais para caçar águias!— ela falou áspera e bruscamente.

Duas Mães ficou quieto. Com respeito, respondeu:

— Meu pai não achou". Justamente quando ele começava a tentar explicar, um grupo de valentes entrou na tenda e, em silêncio, colocou as carcaças de quatro águias perto do fogo. Lançaram olhares de admiração a Duas Mães e Cavalga o Vento, sem olhar para Jesse, e saíram sem dizer por que seus olhos brilhavam.

— Eu não quero ouvir isto!— ela quase gritou. — Eu quero...— ela trabalhava com firmeza enquanto começava a chorar baixinho. Toda a raiva tinha saído de sua voz quando ela falou de novo: — Eu só quero que vocês fiquem bem. E quero que seu pai... viva".

Cavalga o Vento tremeu, empurrando-a com seu braço. Falcão Curandeiro falou:

— Ele ainda luta com as águias... — E abaixando-se sobre Cavalga o Vento, disse: — Pare de lutar, meu irmão. Você venceu. Não há mais águias. Duas Mães está salvo. Você voltou para o povo".

O braço de Cavalga o Vento caiu para o lado. Ele respirou fundo, mas não abriu os olhos. Os cortes estavam limpos e costurados e, então, curativos foram colocados. O curandeiro cantou uma música de cura antes de sair da tenda. Duas Mães esforçou-se para ficar em pé.

Cruzando a tenda, ele agarrou dois pássaros pelas pernas antes de Jesse falar qualquer coisa.

— Minha mãe, eu só quero as penas. Eu preciso acabar o que meu pai e eu começamos.— Jesse permaneceu com Cavalga o Vento. Os amigos de Duas Mães — na verdade, todos os homens da aldeia — olhavam com grande admiração o menino arrancando as penas de que ele precisaria dos corpos dos bichos grandes, pintando as cabeças deles de vermelho, colocando um pedaço de carne nos bicos e deixando os corpos numa pele de gamo branca e bonita, do lado de fora da tenda.

"Grande Mistério, Deus de minha mãe, seja qual for o seu nome — eu humildemente agradeço-lhe pelo presente, essas águias. Agora eu as devolvo ao Senhor.— Virou-se para ir, mas então mais uma vez fitou o penhasco e acrescentou: — E eu peço que possa estar no seu plano fazer meu pai ficar bem". Com isso, ele retornou para a tenda onde Cavalga o Vento ainda estava sem se mexer.

Duas Mães estava exausto e deitou-se ao lado do pai em sua própria pele de búfalo, até que o sol estivesse no ponto mais alto. Seu pai não mostrava nenhum sinal de acordar. Caminhando nas Chamas colocou novos curativos, molhou os lábios dele com água fresca e cantarolou baixinho. Ela saía do lado dele só para preparar as refeições.

Vendo o cuidado ansioso dela, Duas Mães era tentado a ter ciúmes, mas justamente quando ele havia decidido que ela o culpava por tudo, ela pareceu despertar.

— Meu filho, tenho estado orando por sabedoria— disse ela. — Eu não entendo por que a águia era tão importante. Você é jovem e tem muitos anos para valorizar-se diante do seu povo. Mas estou orgulhosa do que você fez. Você salvou a vida de seu pai. E— ela olhou com carinho para ele e sorriu, — Sou grata a Deus por você estar bem. Perder qualquer um de vocês me causaria grande dor — acho que meu coração não agüentaria".

Uma voz familiar falou baixo no silêncio entre mãe e filho:

— Meu filho tem suas penas de águia?".

Duas Mães olhou depressa no rosto do pai. Um meio sorriso familiar levantava-lhe os cantos da boca.

— Ele tem, meu pai."

— Então precisamos de uma celebração.— Jesse protestou, mas ele a silenciou colocando uma mão no seu joelho. — Mas a celebração vai esperar uns dias para que Cavalga o Vento possa participar. Precisamos chamar o Falcão Curandeiro para espalhar as novidades. E eu acho que devo dar um cavalo por cada águia.

Cansado pelo esforço da fala, Cavalga o Vento dormiu de novo, mas, ao cochilar, tinha consciência de que sua mão fora levantada para encontrar um rosto macio, molhado por lágrimas de felicidade.

Duas Mães e Cavalga o Vento descansaram por muitos dias. Quando Cavalga o Vento foi capaz de sentar-se e comer, a celebração foi anunciada e os preparativos começaram. Jesse terminou um vestido novo e gastou muitas horas com Velha e as mulheres da aldeia, tomando conhecimento do que seria preciso para preparar uma grande festa.

No dia da celebração, Cavalga o Vento andou com as pernas fracas para fora da sua tenda e subiu com o corpo duro no lombo de Vento para andar até sua manada e selecionai os potros que seriam dados.

Voltando desta tarefa e de uma visita a uma tenda próxima, seus olhos brilharam com orgulho quando ofereceu uma bolsinha de couro cru, cheia de dentes de alces, para Jesse. Só foram guardados dois dentes de cada alce, e ser capaz de decorar um vestido inteiro com dentes a colocaria em posição de ser invejada na tribo.

— Por quanto tempo você guardou estes dentes?— ela perguntou.

— Para um caçador bom como eu... isto não é nada— veio a resposta orgulhosa. — Eu só tive de pegá-los de volta com Urso Corredor. Ele estava guardando para mim."

Jesse trabalhou a tarde toda bordando os dentes de alce em seu vestido novo. Tentou evitar o orgulho, mas, quando ela e Cavalga o Vento foram para a celebração, não podia conter a felicidade com os olhares de admiração que vinham em sua direção. Cavalga o Vento não saberia dizer o que o deixava mais orgulhoso — se a mulher, que ele achava estar linda, ou o filho corajoso, que havia recebido o nome de Águia que Voa Alto.

 

... o Senhor o deu e o Senhor o tomou...

Jô 1:21

 

A aventura de Cavalga o Vento e Águia que Voa Alto deu este último um lugar no grupo dos caçadores. Seus amigos o admiravam e tentavam não ficar com ciúmes. Cavalga o Vento sempre lembrava seu filho de usar o seu nome com dignidade e humildade.

— Nunca se esqueça de que Deus mandou as águias. Foi ele que salvou você. Você gritou para ele e ele ouviu. É pela sua força que nós ainda estamos vivos, não pela nossa.

Os meses se passaram e as rotinas da vida continuaram no círculo familiar. Os lakotas preocupavam-se com as caravanas de carroções, sem fim, que cruzavam sua terras. Mais a Oeste, bandos de pessoas uniam-se para lutar contra os homens brancos e terem uma grande vitória.

Jesse estava pouco impressionada pelos casos políticos momentâneos envolvendo a terra onde ela vivia. O bando de Cavalga o Vento era inclinado a evitar o conflito e tentava ficar mais ao Norte, longe das estradas usadas pelas caravanas. Jesse estava grata, contente por cuidar de sua família.

No entanto, a dependência deles à natureza forçava o bando a se mover mais para o Sul. Uma seca no ano anterior havia arruinado o interior e o medo da fome pairava forte na mente de cada um. A escassez de búfalos forçou-os a ir mais para o Sul.

Cavalga o Vento e Águia que Voa Alto tinham id o num grupo de caçada por muitos dias quando, finalmente, veio a mensagem de que uma pequena manada havia sido encontrada e o acampamento podia mudar. A aldeia ficou vibrando e, enquanto as mulheres começavam a pôr abaixo o acampamento, Jesse olhava o horizonte, esperando o retorno do grupo de caçadores. Ela esperava que Cavalga o Vento e Águia que Voa Alto estivessem entre os primeiros caçadores a voltar, e queria empacotar logo as coisas e estar a caminho para encontrá-los.

Ela sabia que podia colocar os mastros no potro, sem ajuda, mas colocar abaixo a grande tenda era uma preocupação. A idade avançada de Velha começava a afetar sua agilidade e, devido ao seu tamanho, a tenda ficava difícil de ser manejada por uma só mulher. Isto era considerado — Trabalho de mulher— mas Cavalga o Vento não se importava. Ele estava sempre por perto para ajudar. Agora ela estava sozinha, pois as outras estavam ocupadas empacotando suas coisas.

Jesse colocou os mastros compridos no suporte no lombo de Estrela Vermelha. Estava tudo pronto.

— Venha, Velha, assente-se e eu vou fazer o resto— ela mandou. Velha, ofegante pelo trabalho de empacotar, sentou-se agradecida.

A linha da marcha já estava formada e Jesse percebeu, com desânimo, que todas as outras tendas já estavam desmontadas. Ela se movia rápido para empilhar os pacotes na ordem certa, no suporte puxado pelo potro, formando um ninho confortável onde Velha poderia ir.

Foi Flor do Campo quem trouxe a notícia do acidente. Ela veio correndo, cruzando o que tinha sido o centro do acampamento, suas tranças voando para trás. Jesse sentiu um alívio, achando que ela estava vindo para ajudar com a tenda. Então, alguma coisa na expressão de Flor do Campo fez a saudação morrer em sua garganta. Flor do Campo parou, mexendo na poeira com o pé, deixando uma camada clara no bordado dos mocassins.

— Cavalga o Vento...— ela começou, então parou, sem saber como continuar.

O coração de Jesse bateu fortemente. Os barulhos do acampamento sumiram e ela ficou parada olhando os mocassins de Flor do Campo, percebendo que faltava uma conta. Inconscientemente ela pôs as mãos nas suas tranças grossas, as tranças que Cavalga o Vento tinha enfeitado para ela naquela manhã. Jesse então percebeu Fala Muito sentado, mudo, em seu potro, atrás de Flor do Campo.

— Eu levarei você até ele— foi tudo o que disse.

Jesse concordou e virou-se para montar Estrela Vermelha. Mas Velha já estava sentada no suporte preso à mula. Jesse hesitou. Fala Muito fez um gesto para ela e puxou-a para sua garupa.

Flor do Campo lhe disse:

— Você vai, Caminhando nas Chamas. Eu cuido da tenda e de Velha. Ela estará comigo quando você voltar".

Jesse balançou a cabeça, apertando fortemente a blusa de Fala Muito. Ela descobriu-se orando desespera da mente. Nenhum versículo veio à mente para confortá-la, mas uma frase se repetia na cadência do trote do potro: Não temas... Não temas... Não temas... Quando isto acontecera? Jesse lembrava-se de outro cavalo há muito tempo e do mesmo ritmo das palavras, o cheiro da pintura de guerra, o balanço de um corpo desconhecido que ela precisava apertar para não cair.

O potro deu uma empinada. Jesse escorregou para o chão e viu o Vento, com a cabeça torcida para trás e empalado nos chifres do búfalo imenso caído sobre ele. A massa escura, enorme, cobria completamente o corpo do potro, outrora ligeiro. Somente a cabeça nobre e uns poucos fios da cauda podiam ser vistos.

Fala Muito guiou-a por esta cena grotesca, e ela viu que o grupo de caçadores tinha levantado um abrigo provisório para proteger Cavalga o Vento do sol. Lanças de guerra seguravam um lençol esfarrapado. Uma ponta tinha-se soltado e balançava com a brisa.

Um grito de desgosto estancou, quando Jesse viu que o peito de Cavalga o Vento subia e descia. Mas então um espasmo de tosse e um grito de dor horrível acabaram com sua alegria. O sangue escorria pelo canto de sua boca e sua mão esquerda arranhava o ar, como se ele quisesse empurrar para o lado as ondas de dor. Seu braço direito estava caído, imóvel e, quando Jesse ajoelhou-se ao seu lado, viu o lado direito do maxilar esmagado.

Jesse olhou para cima, para Fala Muito. Triste, ele explicou:

— Ele estava embaixo do búfalo. Nós o puxamos para fora..., mas... — Ele encolheu os ombros e olhou para o lado.

— Caminhando nas Chamas— uma voz falou, mas não era a voz tão querida. Era um cochicho do fundo do peito, um balbucio entre dentes travados, acabando como que cortado, não por escolha mas por uma faca que cortava o som na garganta.

— Estou aqui, estou aqui, meu grande amor.— Jesse ouviu a salmódia e percebeu que ela devia ter dito isso, mesmo que não se lembrasse de qualquer esforço para falar. Perdida na cena à sua frente, parecia mais que ela estava assistindo ao que acontecia do que vivendo a situação.

Cavalga o Vento abriu seus olhos e a fitou. Uma luz brilhou dentro deles, mas o rosto machucado ainda estava caído. Seu braço esquerdo levantou e tocou sua trança vermelha, que emoldurava o contorno de sua face, caiu em seu colo e ficou parado.

Jesse apertou a mão, buscando em vão o autocontrole. Lágrimas rolaram de seus olhos, pingando na mão dele. Chorando livremente, ela a levantou para seus lábios e a segurou lá, sentindo o sal de suas próprias lágrimas enquanto beijava a palma aberta.

Sentindo o calor da respiração dela em sua mão, Cavalga o Vento mais uma vez fez um esforço para falar, mas, antes que pudesse produzir qualquer som, ele inspirou fundo e começou a ofegar, buscando ar. Ele fez força para levantar, mas mal levantou a cabeça do chão.

Jesse colocou o braço sob a cabeça dele e a puxou para ela. O corpo dela começou a balançar, para a frente e para trás, e Cavalga o Vento continuava imóvel ainda. Seu peito cresceu, as narinas se abriram e, com grande esforço, ele falou baixinho, pelos dentes travados:

— Eu voltarei para você". Jesse queria chorar, parar as palavras, impedir sua despedida. Mas ela o apertava para si, balançando. — Vou pedir ao Pai e voltarei para você."

Uma última tentativa de achar o ar, um aperto na mão dela e ele ficou imóvel.

Por um momento Jesse o apertou contra si, gemendo. Então, de algum lugar, veio um cochicho e uma oração: Senhor Deus, Senhor Deus, SOCORRO! Seja a minha vara. Seja o meu cajado. Conforta-me! A dor passou sobre ela. Jesse tremia e chorava. Ela balançava o corpo inerte, delicadamente, o tempo inteiro buscando direção. O que fazer? O que fazer?

A resposta veio das noites à frente do fogo, quando lia o Livro para Cavalga o Vento. Uma após outra, as frases voltavam: — Não vos entristeçais, como os demais que não têm esperança... Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte, não temeria mal algum, porque tu estás comigo... O SENHOR o deu e o SENHOR o tomou... Bendito seja o nome do SENHOR".

Finalmente, Jesse pôs o corpo no chão e fez subir poeira. Ela se levantou e andou até o lugar onde o grupo de caçadores estava, num silêncio respeitoso. Jesse aproximou-se de Fala Muito.

— Precisarei de ajuda para cuidar de Cavalga o Vento."

 

... Deus que me fez, que dá salmos entre a noite.

Jó 35:10

 

Fala Muito gesticulou em direção ao povo da aldeia que se aproximava.

— Nós faremos isto. As pessoas vêm.— Ao se aproximarem, os gritos de lamento podiam ser ouvidos por toda a planície. Os gemidos, que não pareciam humanos, penetravam no ar, até que Jesse não pôde suportar mais. Correndo até eles, ela gritou: — Parem com isso. Parem com isso!".

As mulheres, admiradas com sua explosão, pararam de gemer e olharam Jesse virar-se e se apressar de volta até o bando de caçadores. Eles tinham começado a erigir uma fogueira para a exumação do corpo de Cavalga o Vento. Jesse arrancou as tochas das mãos deles:

— Não... Não! Eu não vou deixar fazerem isso com seu corpo! Tem de ser do meu jeito!

Jesse percebeu que ela deveria parecer uma demente. Os amigos a olhavam sem nenhuma palavra e esperavam que ela se acalmasse antes de continuarem. Dando uma respirada funda, ela sentiu uma calma sobrenatural. Sabia o que queria fazer e, como o plano tinha ficado mais claro, sua respiração foi-se normalizando e ela assumiu sua dignidade.

As mulheres da aldeia, paradas por perto, murmuravam sua desaprovação. Ela não era, afinal, uma delas.

— Por favor, Fala Muito— Jesse falou, persuasiva, — você era amigo dele. Você sabe que ele lia o Livro. Ele cria no único Deus e em Seu Filho Jesus. Por favor... Eu quero sepultá-lo como meu povo sepulta aqueles a quem amam". Lágrimas começaram a escorrer em seu rosto novamente, mas ela as limpava, teimosamente. — Por favor— ela repetiu, — Eu não posso deixá-lo para os pássaros. Não posso".

Fala Muito chegou perto e murmurou:

— Mas o espírito dele precisa receber permissão para pairar nos lugares novos de caçada, Caminhando nas Chamas. As pessoas jamais entenderão".

— Seu espírito já está com o Pai, Fala Muito. É isto que o Livro que lemos juntos ensina. Eu preciso fazer esta última coisa para Cavalga o Vento. — Ela se virou para olhar abaixo, para o corpo. — Eu vou fazer isso! — Seus olhos brilhavam enquanto corria para repetir suas palavras para os anciãos, que se tinham reunido. Então ela correu para seu próprio suporte, onde Velha se assentava.

— Velha— Jesse falou, abaixando-se para olhar acima, nos olhos claros da mulher. — A senhora me ajudará a enterrá-lo? A velha ficou parada por um momento considerando este pedido, contra as tradições de seu povo. Passou-se um momento, mais outro. A aldeia olhava e escutava. Então a mão envelhecida estendeu-se, envolvendo o queixo de Jesse num gesto de ternura: — Eu farei isto, por você, minha filha— As pessoas resmungaram sua desaprovação, mas ninguém se moveu para deter as duas mulheres, enquanto elas cuidadosamente desembrulhavam o corpo de Cavalga o Vento da roupa do cerimonial.

Com mãos amorosas, as duas mulheres vestiram Cavalga o Vento, colocando sua touca de cerimônias e as mãos cruzadas no peito. Elas embrulharam o corpo em couros de búfalo.

Jesse hesitou. Como ela poderia abrir uma cova? O povo não usava pás. Seria um serviço extenuante, mas ela sabia como. Pegando de dentro da bolsa de couro sua ferramenta de cavar, ela se pôs de joelhos, ao lado de Cavalga o Vento, e começou a cavar a terra dura. Velha ajoelhou-se ao lado dela e trabalharam juntas. As ferramentas feitas só para cavar raízes e tubérculos que usavam para cozidos tornavam o trabalho duro, mas as duas continuaram a cavoucar a terra.

As mulheres da aldeia começaram a olhar ao redor, imaginando o que elas fariam. Os líderes agruparam-se silenciosamente. Nenhum deles aprovava as ações de Jesse, mesmo assim não se mexeram para detê-la.

Águia que Voa Alto era jovem, mas saiu do meio do povo e aproximou-se do Conselho. Ele estivera lutando para conter sua própria dor, e agora um novo propósito o ajudava. Com respeito, ele se dirigiu aos anciãos. De forma tranqüila, com dignidade, como seu pai, ele começou:

— Caminhando nas Chamas é uma mulher boa. Ela é branca, mas está entre vocês por muito tempo. Ela era uma boa esposa para Cavalga o Vento. Ela é uma boa mãe para mim. Eu me lembro de suas histórias de como ele caçava depois de ela ter andado no meio do fogo para salvar Não Escuta. Quando ela estava bem, ele fez um banquete em sua honra. Vocês todos estavam lá, para dividir a alegria dele". Vindo da boca de um jovem, o discurso breve ganhava mais peso. Os anciãos murmuraram seu acordo com o que Águia que Voa Alto dissera. Acabado o discurso, o rapaz andou sério até o suporte no seu potro e assentou-se.

Fala Muito disse depois:

— Por muitos anos Cavalga o Vento preocupou-se apenas com Caminhando nas Chamas. Juntos liam esse Livro do qual ela fala. Minha filha me falou disso. Caminhando nas Chamas lia as palavras no Livro. Cavalga o Vento repetia, então ele dizia como as palavras iam ajudá-lo nas caçadas ou no Conselho. Caminhando nas Chamas ouvia quando ele falava. Ela o respeitava. Ela fazia o que ele dizia".

Enquanto Fala Muito discursava, as pessoas lembravam-se dos anos desde que Caminhando nas Chamas tinha vindo até eles. Muitos entre eles lembravam-se da bondade diante do salvamento de Não Escuta. Muitos se arrependeram dos primeiros dias, quando tinham caçoado da mulher branca. Eles se lembraram de Flor do Campo e Velha ensinando-a e muitos podiam lembrar-se das vezes em que um cozido novo era dividido com suas famílias ou uma pele de veado trazida por Cavalga o Vento encontrava seu lugar na tenda deles.

A voz de Flor do Campo acrescentou-se à do homem:

— Mesmo quando não vieram mais filhos ou filhas à sua tenda, mesmo então Cavalga o Vento queria somente Caminhando nas Chamas— Ela se virou para olhar para Urso Corredor, outro ancião. — Mesmo quando você ofereceu sua própria filha, bonita, Cavalga o Vento quis somente Caminhando nas Chamas. Isto é verdade. Meu pai me disse. Quando ele andava na terra, Cavalga o Vento queria somente Caminhando nas Chamas. Agora que ele está deitado na terra, vocês precisam saber que ele diria 'Façam isto por ela'."

Jesse tinha continuado a cavar a terra enquanto ouvia. Quando Flor do Campo disse que o chefe tinha oferecido sua filha, ela parou por um momento. Sua mão estendeu-se num carinho amoroso na cabeça escura, imóvel, sob o céu claro. Cavalga o Vento nunca lhe dissera aquilo. Ela tinha temido que ele desposasse outra mulher, quando ficou evidente que ela não teria filhos. Agora ela sabia que ele tinha escolhido somente ela, mesmo em face da tentação.

Houve um movimento no grupo de mulheres. Flor do Campo andou para a frente, com a ferramenta de cavar nas mãos. Desafiadoramente, ela explodiu:

— Ela é minha amiga...— e andou a passos largos a distância curta até a cova rasa. Caindo de joelhos ao lado de Jesse , começou a atacar a terra. Cavou ferozmente. Jesse imitou-a e Velha também. Elas começaram de novo, três mulheres trabalhando lado a lado. E então eram quatro, e então cinco e seis, até que um círculo de muitas mulheres cavavam juntas.

Os homens nada fizeram para detê-las e Urso Corredor decidiu o que deveria ser feito:

— Nós acamparemos aqui e esperaremos Caminhando nas Chamas fazer o que ela precisa. Esta noite vamos contar a vida de Cavalga o Vento, ao redor da fogueira. Amanhã, quando tudo estiver feito, continuaremos andando".

E assim foi. Horas mais tarde, Cavalga o Vento, o caçador lakota, tornou-se o primeiro em sua aldeia a ser colocado numa cova e pranteado por uma mulher branca. Antes de seu corpo ser baixado à terra, Jesse impulsivamente pegou a faca de caça dele, com a intenção de cortar as duas tranças grossas, vermelhas, penduradas nas suas costas. Parecia tanto tempo, quando Cavalga o Vento tinha trançado as penas e contas junto, escovando as partes separadas... isto tinha mesmo acontecido naquela manhã? Ele tinha dado um beijo nela, também, resmungando sobre os costumes dos homens brancos. Jesse tinha rido e devolvido o beijo.

Uma mão sobre seu ombro trouxe Jesse de volta ao momento terrível. Ela encarou o corpo do marido, e orou baixinho: — Não vos entristeçais, como os demais, que não têm esperança". Jesse deixou cair a trança e pôs a faca de caça de Cavalga o Vento em seu próprio cinto.

As mulheres abaixaram o corpo dele na cova. Os líderes estavam permitindo que isto acontecesse, mas não ajudariam a pôr seu irmão respeitado para descansar como um homem branco.

Jesse jogou a areia sobre o corpo de Cavalga o Vento. Mesmo as mulheres não conseguiam fazer essa coisa horrível. Quando estava pronto, Jesse sentou-se, exausta, olhando ao redor. Mais uma vez as mulheres olhavam com incerteza. Então Jesse levantou-se e começou a juntar pedras, empilhando-as sobre a cova. As mulheres a ajudaram nisto e logo a sepultura estava marcada.

Voltando para o suporte, Jesse pegou a Bíblia. Ela abriu e começou a ler alto. A maioria da tribo nunca tinha ouvido Jesse falar em sua língua. As palavras estrangeiras não tinham sentido para eles. Somente na face da leitora é que eles podiam discernir o conforto que as palavras deviam transmitir. — O Senhor é o meu pastor: nada me faltará..."

Quando Jesse parou de ler, ela baixou a cabeça. Seus lábios moveram-se em uma oração. De anos passados, ela se lembrava de um hino e viu-se cantando:

A graça eterna de Jesus que veio me libertar, a mim, tão grande pecador, a graça singular.

Ela continuou até a última estrofe:

E quando no lar celestial o tempo sem cessar, louvor daremos eternal, a quem nos quis salvar.

Sua voz soou cortada e falhou muitas vezes, mas ela lutou até terminar a música.

Quando a última nota acabou, Jesse virou-se de costas para a sepultura. Os ombros dela curvaram-se, e ela teria caído se Flor do Campo não estivesse lá para segurá-la. Ela a guiou até o suporte, então andou de volta para a sepultura, onde as outras mulheres haviam formado um círculo e começado o lamento profundo. Quando os gritos tinham diminuído, Flor do Campo voltou-se para ver Jesse sentada, com as mãos na cabeça, em seu suporte. Águia que Voa Alto estava ao seu lado. A perda do pai significava que ele era o líder da família, e ele levou a sério sua nova posição, não se permitindo mostrar qualquer dor, ansioso para mostrar sua hombridade.

Flor do Campo ajudou Jesse a subir.

— Você vai dormir em minha tenda esta noite, Caminhando nas Chamas. E Velha também. E Águia que Voa Alto.— Jesse deixou-se levar como uma criança. Com alívio, percebeu que o convite de Flor do Campo significava que ela não teria de montar sua tenda para terem um abrigo para aquela noite.

As pessoas moviam-se ao redor em silêncio, montando as tendas de forma que cada uma se voltasse para o Leste. Águia que Voa Alto vagueava sozinho. O sol estava-se pondo e as fogueiras sendo acesas. O jantar foi preparado e comido de uma forma moderada. Ocasionalmente, um nenê choramingava ou um cachorro latia, mas a maior parte da noite transcorreu num silêncio incomum. As famílias conversavam baixinho sobre as coisas estranhas que tinham visto naquela dia ou compartilhavam uma lembrança de Cavalga o Vento. Muitos ficaram pensando como sua mulher branca iria ficar entre eles, agora que ele já não estava mais vivo.

Quando Jesse finalmente afundou em seu couro de búfalo, na tenda da amiga, os tambores tinham quebrado o silêncio, chamando a aldeia para dançar e cantar e contar a vida de Cavalga o Vento. Jesse ouviu, sozinha, e chorou em silêncio. Sombras dançavam ao seu redor, nas paredes da tenda. O fogo crepitava e Jesse sentiu saudade de Cavalga o Vento achegando-se a ela. Chorou, com o corpo todo, balançando a cada nova onda de dor.

Por fim os sons da aldeia terminaram e Jesse dormiu. Ao adormecer, sua mão descansou em seu abdômen. A criança lá dentro tinha-se mexido.

 

Ouve, ó Deus, o meu clamor; atende à minha oração. Desde o fim da terra clamo a ti, por estar abatido o meu coração; leva-me para a rocha que é mais alta do que eu.

Salmo 61:1-2

 

Então o sofrimento chegou. Ela tinha sepultado um filho e perdido um marido, mas isso era diferente. A tristeza se remoía dentro dela; uma presença escura, pesada, que cobria cada ato, cada palavra. Às vezes ela se sentia sem ar por carregar este peso.

Velha advertia Jesse para não andar tão longe da tenda:

— Você pode ver algo que a assuste, a criança ficará marcada". Quando Águia que Voa Alto caçava e trazia um coelho, Velha se recusava a cozinhá-lo de medo que o nenê nascesse com lábio leporino. Pato era proibido, pois o nenê poderia ter pés com membrana entre os dedos. Jesse acatava as superstições, por estar cansada demais para protestar.

Quando Jesse resmungava, envidando esforços para cozinhar, Velha se intrometia, cuidando do fogo:

— Coma muita carne, cozinhe pouco. Não queremos que a criança volte para as colinas". O dito familiar para descrever a morte de um bebê fazia Jesse recuar. Ela escapava para fora, esperando encontrar algum lugar onde a morte não a assombraria, mas seus pés inchavam com o calor do dia e Flor do Campo a forçava a entrar na tenda, insistindo para que ela descansasse. Ela a encorajava a fazer roupinhas para o nenê e trazia muitos suprimentos.

A bondade de sua amiga trouxe pouco conforto. Toda a atenção delas não encheu seu vazio.

A ausência de Cavalga o Vento imperava a cada momento, em cada dia. Quando Jesse escapava da tenda para andar ao ar livre, lá estava Estrela Vermelha, correndo pela paisagem para cheirar seu ombro. Mas a saudação de Estrela Vermelha ficava no ar, sem a resposta do relincho agudo que sempre a seguia. Vento não estava lá.Quando Jesse voltava para a tenda dela, via as conquistas de Cavalga o Vento, pintadas do lado de fora. Dentro havia sua bolsa de couro, ó, por que ela havia guardado isso? Por que não sepultara com ele?

Jesse pegava a bolsa dele, passando as mãos nas extremidades, sentindo as tiras de couro cru. A bolsa dele... os pontos decorativos dados por ele... a tenda dele... a mãe dele... uma mão caía para o abdômen. Alguma coisa fazia força contra sua mão. Jesse fazia pressão contrária. Algo pressionava de volta. Ela olhava ao redor da tenda. A tenda dele... o estojo dele... o bebê dele.

Ela deveria estar fazendo planos para a chegada do bebê — mas não, hoje não — talvez amanhã. Mas no outro dia a dor estava de volta, cobrindo tudo. Jesse empurrava para o lado, respirava e começava um novo dia. Ela carregava a dor, carregava o bebê, carregava madeira para o fogo. Só carregar, era tudo o que podia fazer. Abaixar com tal peso, para carregar alguma coisa, já tirava toda sua força. Quando o fogo da noite apagava-se e sua força diminuía, a dor avultava e vencia. Ela a carregava noite adentro e enchia seus sonhos. Ela atrapalhava seu descanso. Ela acordava e ouvia a respiração dele. Ela estendia a mão para sentir o vazio ao seu lado. Ela inalava somente a fumaça do fogo. Não havia mais o cheiro da pintura de guerra, de peles de animais, de corpo quente.

Águia que Voa Alto retornava da caçada com os amigos. A morte do pai trouxe-lhe maturidade da noite para o dia. Ele era terno com Jesse, não mais seu menininho, mas um homem jovem que usava o manto da hombridade com muita vontade e se orgulhava de suas habilidades para prover suas duas mulheres com carne. O cuidado dele lhe trazia pouco conforto, pois na linha de seu maxilar Jesse via o rosto de outro. Quando ele falava, a modulação de outro pairava no ar. E a dor vinha, rolando.

Jesse lutava contra isso desesperadamente. Parecia que isso estava determinado a sufocar até a sua própria vontade de respirar. Ainda assim, ela se apegava à vida. Ela marcava cada nascer do sol sem Cavalga o Vento, aplicando uma conta preta no desenho do vestido que estava decorando. Quando trinta contas pretas tinham sido aplicadas, o vestido estava terminado. Mas não o sofrimento.

Lobo Uivante observava Flor do Campo ajudar sua amiga a preparar-se para o nenê. Ele se assentava em sua tenda vazia na beira da aldeia e repassava cenas do passado, até que se convenceu de que todos os seus problemas haviam começado com a chegada da mulher branca ao acampamento.

A seus olhos, quando — Mulher que Não Faz Fogo chegou na aldeia, as atenções de Flor do Campo tinham sido tiradas de sua própria tenda. Ela tinha sido pega ensinando a mulher. Ela se havia esquecido do seu próprio marido.

Não foi por causa de ela estar ajudando a mulher branca que Lobo Uivante teve de começar seu próprio fogo no dia da caçada do búfalo?

Quando — Mulher que Não Faz Fogo tornou-se Caminhando nas Chamas, Flor do Campo deixou-o por muitas noites, para cuidar das feridas dela.

Então, Caminhando nas Chamas enganou-o com a esposa nova e bonita que ele havia trazido para o acampamento.

Sentado sozinho em sua tenda, Lobo Uivante repassou cada incidente, muitas e muitas vezes. E a cada vez seu ressentimento por Jesse crescia. Ele começou a acreditar que livrar a tribo da mulher branca daria a ele condições de ganhar novamente sua posição junto a Flor do Campo. Se ele reconquistasse sua esposa, as pessoas não iam mais chamá-lo de canniyasa, um termo ridículo usado para mostrar que ele se tinha revelado incapaz, como marido.

Um plano teve início. Quando foi completado, ele o guardou para si mesmo, aperfeiçoando sempre os detalhes. Águia que Voa Alto irá caçar tão logo montemos o acampamento de inverno, ele pensou. Então ela vai-me pagar por tudo o que tem feito para mim. Ele olhava Jesse furtivamente, sorrindo para si mesmo.

A aldeia juntou-se a milhares de lakotas movendo-se através do Ptetatiyopa, o — Portal do Búfalo— e para o acampamento de inverno em He Sapa, as Colinas Pretas. Muito arborizadas com pinheiros escuros, as colinas escondiam incontáveis nascentes puras. Madeira abundante, caça e abrigo para as tempestades de inverno tornavam o lugar preferido tanto pelos lakotas quanto pelos búfalos.

Quando Jesse e Velha puseram abaixo sua tenda, Jesse carregou reverentemente a bolsa de Cavalga o Vento para o suporte no potro e tomou muito cuidado para ter certeza de que ela estava bem presa no lugar.

O coração dela doeu, ao andarem ao longo do leito do riacho que marcava a trilha. Foi só no ano passado, ela pensou, que ele me tinha feito olhar para cima, para ver como as árvores quase tocavam o topo dos rochedos. Jesse parou abruptamente, fingindo estar com uma pedra dentro do mocassim, para que suas lágrimas não fossem vistas.

Chegando ao lugar, as pessoas montaram o acampamento de inverno e fixaram-se ali. Jesse movia-se silenciosamente nestes dias e Velha se preocupava. Fala Muito ofereceu um carregador de bebê novo para a criança que ia nascer. Flor do Campo ficava sempre por perto e cuidava bem da amiga. Lobo Uivante olhava de soslaio para elas. Ele via a barriga de Jesse crescendo com um prazer silencioso, planejando e esperando.

O trabalho manual mantinha Jesse sã. Ela abria sua Bíblia toda noite, por hábito, mas Cavalga o Vento não estava lá esperando para absorver as palavras queridas, e elas ficavam lá, sem vida nas páginas, perdidas num mar de lágrimas.

Tinha sido seu hábito saudar cada dia com Cavalga o Vento. Juntos eles saíam para olhar o sol nascente e orar. Ele sempre usava as primeiras palavras que ela tinha lido em volta da primeira noite de fogueira. Agora, as palavras não vinham. A ferida da morte dele estava aberta e ela não tinha palavras para a dor. Levantando suas mãos vazias para o céu, ela esperava o sol nascer, oferecendo, sem palavras, seu vazio para Deus.

Só quando perdeu a conta do número de contas em seu trabalho é que Jesse encontrou palavras para sua dor. Mesmo aí, elas não eram dela mesma, mas de uma anciã que também tinha conhecido o senso de perda.

Ouve ó Deus, o meu clamor; atende à minha oração. Desde o fim da terra clamo a ti, por estar abatido o meu coração; leva-me para a rocha que é mais alta do que eu.

Os Salmos começaram a fluir de sua boca, dando voz ao coração.

Livra-me, ó Deus, pois as águas entraram até a minha alma. Atolei-me em profundo lamaçal, onde se não pode estar em pé; entrei na profundeza das águas, onde a corrente me leva. Estou cansado de clamar; secou-se-me a garganta; os meus olhos desfalecem esperando o meu Deus.

Jesse lia as mesmas palavras mais e mais vezes. Novamente aquela coisa vivida que a tinha segurado no meio da escuridão começou a surgir.

Senhor, a ti clamo, escuta-me; inclina os teus ouvidos à minha voz, quando a ti clamar. Suba a minha oração perante a tua face como incenso, e seja o levantar das minhas mãos como o sacrifício da tarde.

E então, certa manhã a dor aquietou. Ela ficou enroscada no horizonte quando a aurora despontou. Ela ficava à espreita, ao longo dos momentos críticos de seu dia. Mas deixava Jesse respirar e mover-se durante o dia, sem aquele ataque constante. Velha viu o seu sorriso para Águia que Voa Alto. Uma luz suave retornou aos olhos cinza. Lobo Uivante percebeu a mudança também, mas resolveu esperar até a primavera para vingar seu ódio.

Só uma vez, depois disso a dor tomou conta dela — à beira da água. Ela olhou para baixo e sentiu a ausência da face que deveria refletir ao lado da sua. Ela dominou a dor, mexendo na superfície da água, destruindo a imagem. Isto resolveu. A vida continuou.

Na Lua do Frio Intenso, Jesse já estava enorme, com a gravidez. Flor do Campo trouxe-lhe a pele mais macia e branca que ela já tinha visto.

— É a pele de um feto de búfalo— ela explicou, acrescentando timidamente: — Eu estava guardando para meu filho... mas agora...". Lágrimas encheram seus olhos e ela esfregou a mão sobre o rosto marcado pela cicatriz.

Jesse se perguntou por que a bondade de uma amiga deveria trazer a dor rolando de volta das trevas. Conseguindo agradecer com voz baixa, ela apertou a pele e fugiu, pelo acampamento afora, para sua própria tenda, onde Cavalga o Vento não estava; o filho dele, que estava para chegar, puxava toda a respiração de seu corpo, pois ela ofegava com a rápida corrida. O nenê se mexia e chutava. Um pezinho empurrava as costelas de Jesse e ela fazia pressão contrária. O pé chutava de novo, mais forte, e ela cochichava: — Seu filho insiste em seu próprio caminho, meu grande amor".

E então, numa manhã, Jesse levantou suas mãos para o céu e encontrou suas próprias palavras saindo no lugar dos Salmos que ela estivera sempre repetindo.

A dor retornava nos momentos difíceis de seus dias. Ela até surpreendia Jesse, às vezes, pulando em novos ataques, quando ela estava menos preparada. Mas o tempo tinha começado a curar a ferida. Quando a ausência de Cavalga o Vento se avivava, ela preenchia o vazio com as passagens da Escritura preferidas dele, lendo-as e relendo-as até que se tornassem parte dela.

Águia que Voa Alto gastou os meses de inverno amansando um potro novo. Ele tinha assumido o bando de seu pai e amansava os animais com uma mansidão genuína, provando que tinha aprendido bem as lições de seu pai. Jesse observava, enquanto ele firmemente ganhava a confiança do cavalo novo, ensinando-o a correr ligeiro e direto enquanto o cavaleiro escorregava para os lados, até que somente um joelho ficasse visível para um pretenso inimigo. Os dois precipitavam-se pela campina, vezes e mais vezes, até que as narinas dilatadas do potro começavam a soltar grandes nuvens de vapor, devido ao clima frio. Então, Águia que Voa Alto refreava o andar do potro e com cuidado o fazia esfriar, antes de levá-lo de volta aos outros cavalos.

Jesse louvava o filho por sua habilidade e sentia-se grata por ser-lhe possível assistir a suas demonstrações sem perder a batalha para a dor. Uma pontada de tristeza estava lá, pelo pai, que não pudera conhecer os talentos do filho, mas ela era controlável e a dor era mais obscurecida. Jesse tinha aprendido a aceitar isso como parte de sua experiência. Ela guardava tudo a distância e trabalhava o tempo todo em que estava acordada, ajudando outras mulheres na aldeia o máximo possível, tagarelando sempre, enquanto esperava o nascimento da criança.

Ela estava perturbada, no entanto, com algo além da presença da dor. Parecia que, onde quer que ela fosse, Lobo Uivante nunca estava longe. Quando falou disto para Flor do Campo, a mulher encolheu os ombros e disse:

— Lobo Uivante é um homem sem valor. Ele me implora para voltar com ele. As outras mulheres não o querem. Parece que ele só está olhando você porque sempre estamos juntas. Mas eu não o quero. Ele não vai desistir. Na semana passada ele me ofereceu uma manta nova de búfalo, como uma oferta de paz". Flor do Campo fez uma pausa um instante e inconscientemente tocou na cicatriz, feita pela faca dele. Então ela falou baixo: — Como se uma manta de búfalo pudesse curar isto e levar-nos de volta aos dias em que gostávamos um do outro. Eu nunca voltarei para aquele canniyasa!".

Jesse guardou suas preocupações para si mesma depois disto. Ainda assim, parecia que Lobo Uivante olhava para ela, e o ódio nos olhos dele fazia Jesse tremer.

Na Lua Em Que Os Gansos Botam Ovos, os sinais da primavera estavam em todos os lugares e as pessoas iam ficando mais impacientes e prontas para mudar do acampamento de inverno. Jesse foi ficando mais preocupada com a mudança, sabendo que a hora do nascimento de seu filho estava perto. Flor do Campo a encorajava:

— Velha é uma hoksiacu boa. Ela já ajudou muitos nenês a nascer em nossa tribo. Você não precisa ter medo, quando chegar a hora".

Águia que Voa Alto saiu com o grupo de caçada dele, brincando que quando voltasse traria carne para seu novo irmão.

Quando Águia que Voa alto saiu, Lobo Uivante decidiu agir. Jesse e Velha estavam dormindo quando ele ficou à espreita, entrando na tenda delas, deixando Velha inconsciente com uma pancada. Ele pulou sobre a fogueira e agarrou Jesse pela garganta, ameaçando-a com sua faca. Jesse agarrou na mão dele e se esforçou para gritar, mas a fúria de Lobo Uivante com ela deu-lhe tal força que ela não teve chance. Ele cochichou a ela:

— Você, demônio branco, agora eu tenho você! Você fez Flor do Campo ficar contra mim e ensinou a ela seus costumes brancos. Você tramou e roubou a mulher nova que eu trouxe para o acampamento. Agora não há nenhum Cavalga o Vento para proteger você. E Águia que Voa Alto está longe. Grite para seu Deus — ele não vai fazer nada. Os espíritos deram poder a mim...Você me arruinou à vista de meu povo, agora vai pagar por tudo o que fez!".

Jesse arfou, desejando ar, mas ele a amordaçou e amarrou as mãos dela nas costas. Ele a puxou para trás na tenda, rasgando as peles e forçando Jesse a atravessar pelo buraco. Ele começou a arrastá-la e empurrá-la, alternadamente, em direção ao riacho. O pé de Jesse foi ficando congelado, e eles andavam com muita dificuldade na neve derretida. Ela recuava e cambaleava. Lobo Uivante apertava a faca em sua barriga, forçando-a a caminhar. O medo pela criança a manteve quieta. O pânico a manteve andando.

Quando alcançaram o ribeiro, Jesse viu Estrela Vermelha amarrada perto de um potro estranho. Lobo Uivante a empurrou para cima do lombo de Estrela e pulou para o seu, para levá-la embora. Ele foi devagar, no começo, com cuidado para não despertar o acampamento. Jesse apertava as ilhargas de Estrela com seus joelhos o mais forte que podia.

Durante as horas seguintes eles andaram ao longo do ribeiro, de volta pelo Portal do Búfalo. Jesse agarrou-se nos lados de Estrela, agonizando com a dor nos músculos, orando desesperadamente para ficar montada. Sua barriga grande tirava-lhe o equilíbrio, quando desviavam subitamente e ela pulava contra o lombo de Estrela, incapaz de se mover no ritmo familiar do potro, que caminhava com passadas largas.

Lobo Uivante só parou para dar água aos potros. Toda vez ele inspecionava os cordões que amarravam as mãos de Jesse nas costas. Toda vez ele punha a mordaça de volta em sua boca com a mão imunda.

Perto do alvorecer, eles se puseram a caminho pela campina aberta. Finalmente, Jesse viu o destino deles. Saindo da terra de fato, feita de placas de terra e grama, havia uma cabana. De sua única janela saía um tênue brilho de uma lamparina.

Por precaução, Pierre Canard tinha ficado dentro de sua cabana de terra, ao ver dois cavalos desconhecidos aproximando-se. Ele se agachou, olhando com atenção pelo peitoril da janela, rifle nas mãos, e esperou. Os potros moviam-se devagar. O caçador de peles arranhava sua barba grisalha e apertava os olhos para captar tudo o que podia, observando os visitantes. Como o sol saíra e os cavaleiros se aproximassem, ele assobiou sua surpresa, pois um dos cavaleiros era uma mulher branca amarrada e amordaçada e, obviamente, num estágio avançado de gravidez. Ela tinha também recebido um tratamento grosseiro. O cabelo ruivo, emaranhado, escondia a maior parte do rosto, apesar de seu esforço para jogá-lo para trás, sobre os ombros.

Lobo Uivante desceu do cavalo e foi para a porta da cabana, batendo com força, para acordar os habitantes dela. Ele ignorou Jesse.

Canard imediatamente supôs que ali estava uma cativa para ser resgatada e enviada de volta para sua família a qualquer custo. Ele abriu a porta e deu uns passos leves, fora, conversando com Lobo Uivante através de sinais. Amordaçada, Jesse só podia ouvir a conversa. Ela se enfureceu por dentro, sem poder para contradizer as mentiras de Lobo Uivante.

A troca foi feita rapidamente. Canard estava ansioso para resgatar a cativa indefesa e livrar-se do selvagem ganancioso, antes que os amigos dele aparecessem para protestar o mísero pagamento que Canard tinha oferecido. Lobo Uivante, com mesquinhez, aceitou os dois potros magros oferecidos por Canard na troca e pediu o rifle de Canard como parte da barganha. Canard balançou a cabeça desafiadoramente e entrou na cabana para procurar, minucio¬samente, algo que substituísse o rifle. Voltou com uma garrafa de uísque. Lobo Uivante bebeu bastante antes de entregar as rédeas de Estrela Vermelha e cambalear para pôr as rédeas nos potros que eram parte da troca. Em poucos momentos, ele havia partido com dois potros e o uísque, esquecendo-se de levar Estrela Vermelha de volta com ele. Canard riu para si mesmo da estupidez do selvagem, mesmo enquanto descia Jesse de Estrela Vermelha e tirava suas amarras e mordaça.

Jesse inspirou forte o ar fresco e esfregou as mãos uma na outra, sem saber o que dizer. Canard quebrou o silêncio:

— Por favor, madame, entre. Vou fazer um café para a senhora, trazer água para lavar-se. Pierre Canard tentará suprir qualquer necessidade sua. Sou apenas um caçador de peles, sozinho nesta casa, mas a senhora é bem-vinda e eu a ajudarei. A senhora não precisa ter medo.

Quando estiver descansada, nós iremos para o forte e eu a ajudarei a encontrar sua família.

Jesse o interrompeu:

— Minha família está longe, na aldeia lakota: meu filho, minha sogra, meus amigos". Canard olhou espantado para ela, com o cérebro demorando a processar o fato surpreendente de que esta mulher, na verdade, queria retornar aos verdadeiros selvagens que a tinham trazido para cá.

— Eu tenho vivido com este povo há...— Jesse parou. Quantos anos haviam-se passado? Ela tinha perdido a conta. — Tenho vivido com este povo há muitos anos, agora..."

— Mas— Canard interrompeu, — Ele disse que você era uma escrava, que ele precisava mais de cavalos que de uma mulher inútil que não trabalharia por muito tempo... ele disse...".

— Ele é um mentiroso. É meu inimigo. Meu marido morreu e ele estava esperando para me atacar. Meu filho saiu com um grupo de caçadores e eu fui tola. Achei que Lobo Uivante tinha desistido de seus ardis. Eu estava errada. Por favor! Ajude-me a voltar para meu povo.— Jesse foi ficando mais desesperada. — É tudo o que eu tenho, tudo o que eu conheço. Eu não saberia como...— Ela estava chorando agora, com lágrimas correndo por ambas as faces.

Canard pegou as rédeas para o potro que estava parado, esperando pacientemente.

— Por favor, madame, a senhora vai para dentro, assentar-se perto do fogo. Eu vou levar o potro para o curral e trazer-lhe água fresca. Vamos conversar. Eu vou ajudá-la. Por favor, não chore."

Mas Jesse não conseguia parar as lágrimas. Ela disse que sim, com a cabeça, entrou na cabana estranha e sentou-se obedientemente à frente do fogo cintilante, mas as lágrimas de raiva continuaram.

O caçador se afobava lá fora e se apressava para entrar comum balde cheio de água fresca. Jesse lavou as mãos e o rosto e tentou arrumar o cabelo embaraçado, enquanto Canard atiçava o fogo e fervia água para o café. Ele se mexia para lá e para cá, eficientemente, enquanto Jesse ficava sentada no chão, aérea, com a cabeça caindo, apesar de seus esforços para ficar acordada.

Ela não sabia quanto tempo tinha-se passado, quando um aroma familiar de café encheu o ar e Canard tocou sua mão delicadamente.

— Madame, nós temos café, agora, e nós conversaremos. E Pierre Canard vai ajudá-la em tudo o que puder."

Jesse deixou-se ser conduzida para a mesa de madeira, cortada grosseiramente, a qual lhe foi apresentada tendo uma xícara de lata, com um líquido fumegante. Ela ficou olhando admirada as bolachas fresquinhas à sua frente e olhou para Canard. Olhos azuis, bondosos, cintilaram ao dizer:

— Sou um homem sozinho, mas um bom cozinheiro! Coma pelo bebê também, certo?".

A lembrança do bem-estar do nenê encorajou-a a comer. Ela levou uma bolacha aos lábios e o aroma da massa de fermento natural fez sua boca encher-se de água. Comeu com avidez, molhando duas bolachas no café fumegante. Isso a despertou e ela tentou desamassar o vestido de pele de alce, rasgado, enfiando os pés gelados para trás, embaixo da cadeira, o mais longe da vista possível. O calor da lareira aliviou as dores da caminhada noturna. Sua fraqueza diminuiu.

Canard juntou-se a ela, à mesa, consumindo meia dúzia de bolachas e xícaras de café, tentando preencher o silêncio com atividade. Finalmente, ele empurrou sua cadeira para trás e olhou para fora pela janela. O céu estava cinzento e assustador.

— Parece que teremos uma tempestade, madame. Eu vou cuidar dos cavalos. O homem bobo que a trouxe aqui não sabe que os cavalos bons eu guardo dentro, à noite, para protegê-los de pessoas como ele. Então, vou colocar o potro pequeno dentro também."

A menção de Estrela Vermelha, Jesse encontrou sua voz.

— Ela é minha. Seu nome é Estrela Vermelha...— sua voz extinguiu-se aos poucos. — Ela foi um presente de meu marido. Ela é uma boa potranca...— Jesse levantou o olhar para os olhos bondosos e achou que ele não iria rir dela. — Ela é uma boa amiga.

Canard sorriu.

— Bem, então, esta boa amiga precisa também abrigar-se da tempestade, lá dentro. Olha, já está chegando." De fato, flocos de neve haviam começado a cair e o vento a soprar um gemido baixo, assustador.

Canard saiu apressado e dirigiu-se ao estábulo. Seus olhos perscrutaram o horizonte e ele não gostou do que viu. Amarrando uma ponta de um cordão a um poste do curral, ele andou até o vão da escada no curral, e então para a cabana, onde puxou a ponta do cordão pelo buraco do trinco da porta e deu um nó, para mantê-lo no lugar.

— Parece que vai ser uma tempestade ruim, madame. Agora posso encontrar o caminho até os cavalos e o curral, mesmo se o pior acontecer... o que espero que não aconteça.

Mas o vento gemeu alto e a neve caía misturada com pedrinhas de gelo que batiam na janela da cabana. Ao meio-dia, a grama estava coberta de gelo e a grama curta de búfalo tinha desaparecido sob um lençol branco. Jesse, sentada à mesa, assistia à tempestade, orando para que parasse, para que ela pudesse ir embora. A fraqueza tomou conta dela, que se encolheu perto da lareira e dormiu, não aceitando as ordens de Canard para que dormisse na cama de corda, no canto.

Ela acordou assustada, com o gemido desesperado do vento. Lá fora a escuridão assustadora aumentara e ela sabia que não poderia achar o caminho de volta para casa naquele dia. A nevasca apagaria qualquer rasto que Lobo Uivante tivesse deixado. Ela percebeu, com uma satisfação implacável, que a nevasca destruiria o bêbado Lobo Uivante também.E ela ficou pensando em Águia que Voa Alto e seu grupo de caça. Teriam voltado para a aldeia agora ou teriam sido pegos pela tempestade também? Quanto tempo demoraria até Águia que Voa Alto saber o que tinha aconte¬cido? Quanto tempo demoraria antes de ele tentar encontrá-la?

Seus pensamentos foram interrompidos pelas solicitações repetidas de Canard para que ela descansasse na cama de corda. Ela recusou, escolhendo, em vez disso, fazer sua cama no chão, num canto da cabana mais afastado. Canard foi vencido pela teimosia dela e pendurou uma colcha esfarrapada atravessada no canto, para lhe dar alguma privacidade.

— Obrigada— ela conseguiu dizer. Então falou delicadamente: — Eu sinto muito não poder explicar-lhe, mas tudo está tão confuso. Eu nem sei por onde começar...e— ela suspirou, — Estou cansada demais".

Canard a interrompeu:

— Esta tempestade vai dar-lhe muitos dias para pensar. E se a senhora decidir contar sua história, então eu ouvirei. Mas, madame— e os olhos azuis cintilaram calorosa¬mente, — A senhora não precisa contar-me nada, se assim o desejar. Eu ouvirei, se quiser falar... se desejar manter silêncio, eu entenderei. E, madame— ele acrescentou incomodamente, — Eu estou numa terra de muitos homens sem Deus, mas sou um homem temente a Deus. Não vou feri-la. Talvez Deus a tenha mandado aqui para que eu pudesse ajudá-la... por favor, não tenha medo de mim". Parecia que ele ia dizer ainda outras palavras, mas não disse mais nada. Jesse somente assentiu, com a cabeça, ao tentar alcançar as implicações do discurso dele. Ela ficou com muita raiva por ter sido arrancada dos lakotas. Ela não queria um futuro novo. Queria ir para casa, onde Águia que Voa Alto, Flor do Campo e Velha a esperavam. Se um retorno para os brancos era a vontade de Deus, então, pela primeira vez, ela não queria a vontade de Deus. Cavalga o Vento, Águia que Voa Alto, Flor do Campo, Homer, cavalos, carroções, potros, Velha, imagens e memórias rodopiavam e dançavam junto com a neve em turbilhão lá fora, destruindo qualquer esperança de ela seguir o rastro de volta para os lakotas.

 

Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu... Tempo de chorar, e tempo de rir; tempo de prantear, e tempo de saltar.

Eclesiastes 3: 2,4

 

Elas chegaram à noite. Nas primeiras horas Jesse dormiu e acordou, intercaladamente, perguntando-se na semiconsciência por que os sons de uma nevasca poderiam causar-lhe tanto alarme. As eólicas de estômago não se acalmaram, e ela acordou, sentindo-se acabada. Sua respiração ficou ofegante quando tentou levantar-se da cama no chão. Tateando ao redor, no escuro, ela pegou a lamparina que havia deixado no chão. Uma golfada de um líquido quente revelou a causa de seu desconforto.

"Ó meu Senhor— ela cochichou, — Nesta noite não, aqui não, por favor, Senhor". v

A resposta à sua oração veio numa nova onda de contrações. Sim, minha filha, esta noite. Jesse respirou bem fundo e preparou-se para a próxima contração.

Sim, Jesse, aqui. As respostas não eram audíveis, mas, na verdade seu coração ouviu.E eu estarei aqui, com você,da mesma forma que estava quando você andou no meio das chamas, da mesma forma que estava lá, no vale da morte, desse jeito, eu estarei aqui.

A mente de Jesse se acalmou. As contrações diminuíram e ela pensou com clareza. Ela precisaria de água quente, uma faca, algo para embrulhar o filho.

O filho, ela pensou maravilhada. Nesta noite ela iria carregar o filho de Cavalga o Vento em seus braços! Uma contração bem mais forte veio e Jesse gritou — um gemido baixo, que cresceu com a contração e acabou num agudo — Ai".

Ela apertou os lábios para se aquietar, mas era-tarde demais.

Canard tinha ouvido. Ele estava parado, indeciso, bem do outro lado da colcha rasgada que ele tinha pendurado, para a privacidade dela.

— Madame, o que é isso?— ele perguntou ansioso. — A senhora precisa de ajuda?— Sua voz era sincera, preocupada.

Jesse respirou fundo.

— Estou bem— ela falou ofegante. — Vou ter o nenê esta noite, ao que parece."

Canard ficou do outro lado da divisória, sem vontade de se mexer sem a permissão dela.

— A senhora sabe como fazer isso?— foi a próxima pergunta.

Jesse esperou a próxima contração passar, antes de responder:

— Este não é meu primeiro filho. Muitos anos atrás tive um filho. Ele morreu, um nenê, caiu do carroção. Eu tive ajuda entre os lakotas. Vai dar tudo certo". Outra contração cortou sua resposta. Ela gemeu baixinho.

Canard perguntou de novo:

— O que posso fazer?".

Jesse, em silêncio, pediu socorro ao Senhor. Para Canard, ela respondeu: "Água, uma faca, papel e a-a-a-alguma - coisa – para embrulhar - o - ne-nê— As últimas palavras vieram em curtas arfadas. Ela tinha imaginado um longo sofrimento, mas não seria.

Canard se mexia rapidamente. Por debaixo da colcha pendurada, ela viu sombras dançando, pois ele também acendera um lamparina. A porta da cabana abria e fechava.Duas contrações depois e um balde de água fresca estava debaixo da colcha. Ele mexeu em alguma coisa, na prateleira, e papel de embrulho marrom e faca apareceram. Finalmente, uma barra de sabão de lixívia e um tecido macio foram acrescentados à fileira de coisas no chão. Obrigada, Senhor, Jesse pensou, por suprir aquilo de que eu precisava antes mesmo de pedir.

Mais duas contrações vieram, uma em seguida da outra. Jesse foi forçada a ir para a cama.

Houve pouca folga depois disto. Num determinado ponto, Canard espiou pela beira da colcha. Seu rosto aparentava preocupação verdadeira, mas Jesse rejeitou sua ajuda.

Inteiramente consumida por seu próprio corpo, envolvida totalmente pela dor física, desejando a presença de Cavalga o Vento e querendo estar em outro lugar, Jesse agarrou-se à sua privacidade. — Eu - não - quero - você - aqui!— ela disse com os dentes travados, irritada. Canard murmurou um pedido de desculpas e saiu. Ele andava pesadamente de um lado para o outro, no comprimento da cabana, totalmente imerso no milagre acontecendo do outro lado da colcha rasgada.

Ela chegou no amanhecer. Berrando imediatamente e balançando as mãozinhas, uma menina nasceu, na cabana de Pierre Canard, o comerciante. Tremendo de cansaço e conten¬tamento, Jesse falou baixinho palavras familiares ao bebê: — Hoksicala wan icimani hi, um nenê viajante chegou. Águia que Voa Alto, você tem uma irmã".

Ela conseguiu cortar o cordão, limpar-se e lavar a criança antes de desmoronar. Canard arrancou a colcha, que o havia deixado de fora, precipitou-se sobre a mãe e a criança e cuidou de ambas. Ele arrumou um acolchoado limpo para a cama de Jesse e levantou-a e colocou-a nele, para descansar. Jesse emocionou-se e ficou surpreendida ao vê-lo pôr uma roupinha no nenê, com habilidade. Ele prendeu uma touca sobre o cabelo preto e grosso antes de embrulhá-la em um acolchoado e dá-la à sua mãe.

Jesse agradeceu em voz baixa e perguntou:

— Mas, onde...?".

Canard não a deixou terminar:

— Não sou tão velho quanto pareço, madame. Isto pertencia à minha esposa, Suzette. Nós sonhamos juntos com uma família, um lar. Mais cinco anos de caça e voltaríamos para casa em St. Louis. Mas meus sonhos... eles morreram. Suzette — nosso nenê— Sua voz tremeu. Ele encolheu os ombros e terminou sua história: — Eu ainda guardo o malão cheio de memórias, cheio de sonhos que já morreram. Você pode pegar para essa pequenina tudo do que ela precisar. Minha Suzette adorava costurar. Ela fez muitas coisas de nenê. Pegue também o que era da minha Suzette, que está aqui dentro. Qualquer coisa de que você precisar. Ela ficaria feliz em saber que estava ajudando. Ela estava sempre ocupada nisso — ajudar pessoas".

Sua voz falhou e Canard correu para fora, voltando mais tarde e encontrando Jesse e a filha dormindo.

Algumas horas mais tarde, Jesse acordou com os berros de um nenê faminto e com o cheiro de café forte. Canard mexia-se na cabana, cozinhando, limpando, como que preparando sua casa para um convidado real. Escutando o choro do nenê, aproximou-se da colcha e perguntou:

— A mamãe também está com fome?". Jesse disse que sim e rapidamente recebeu dele — Panquecas suficientes para fartar uma mula— Ela sorriu amargamente com a lembrança causada pela frase de tanto tempo atrás. Homer tinha usado essa frase, quando ele pedira seu café na manhã seguinte à do nascimento de Jacob. Jesse tinha saído da cama e preparado.

No entanto, esse nascimento e a tempestade de neve a tinham deixado aos cuidados de Pierre Canard. Parecia que ele estava determinado a mostrar à mãe e à criança seu cuidado, com toda a atenção que ele tinha reservado para sua própria esposa e filho, e nunca usara. Mas Jesse não teria nada disso.

— Tolice— ela respondeu à insistência de Canard de que ela descansasse. — O Senhor tem-me abençoado com saúde e força. Eu não serei um fardo para você. Tão logo a tempestade passe, precisaremos retornar para o povo. Meu filho estará me procurando." Mesmo enquanto ela dizia isto, sua cabeça rodava e ela se viu escorregando para debaixo do acolchoado.

Canard disse delicadamente:

— O Senhor abençoou, é verdade, e a senhora precisa pedir também para ser humilde, madame. Talvez Deus a tenha enviado a mim, para que eu possa ajudá-la. O que acha disso?".

A tempestade de neve estava violenta, lançando tanta neve contra a cabana, que se tornava quase impossível para Canard sair para cuidar dos cavalos. Jesse percebeu que seria impossível retornar à aldeia.

Quando seu nenê tinha dois dias, Jesse encontrou coragem para mexer no baú que Canard tinha colocado no canto. Ele tinha roupas de nenê suficientes para manter uma criança limpa por muitos dias. Dois vestidos de chita em bom estado foram tirados e lavados para Jesse. Soltando a cintura, abaixando a barra e ignorando as mangas bem curtas, Jesse ganhou parcialmente sua aparência de mulher branca. Ela deixou o cabelo trançado e recusou o par de sapatos de Canard que ele ofereceu quando viu que os pés de Jesse não entrariam nos sapatos pequenos de Suzette.

— De qualquer forma, eu detesto sapatos— ela argumentou. — Os mocassins são tão mais confortáveis. Além disso — ela acrescentou, — Estes foram um presente de alguém muito querido". Canard deixou o assunto dos mocassins e voltou a admirar o nenê, cujos roncos e suspiros saíam do caixote que ele tinha transformado em berço.

— E qual é o nome da menininha, hein?— ele perguntou.

— Eu não tenho um nome... ainda— Jesse respondeu rápido. — E ela veio muito cedo."

No terceiro dia de vida de sua filha, a nevasca finalmente diminuiu e Jesse arriscou-se a sair. O mundo era um mar branco e brilhante. Ela ouviu um relincho familiar vindo do curral. Estrela Vermelha ficou parada, olhando para ela com os olhos e orelhas alertas. A onda de emoção que sentiu ao ver sua potranca e ouvir o seu relincho a surpreenderam. Ela enfiou a cabeça na crina vermelha e soluçou. Canard deu uma olhada da porta e balançou a cabeça.

— Bom— ele falou — isso é bom, ela chora, sente-se melhor".

Embaraçada por mostrar sua emoção, Jesse hesitou em voltar à cabana, mas um grito esfomeado impedia maior privacidade. Jesse correu para dentro, agarrou o nenê e recolheu-se rapidamente ao seu canto. Canard fingiu que não tinha visto suas lágrimas e ela não deu explicações.

Com o passar do tempo, Jesse recuperou-se fisicamente e tornou-se mais descontente. Parecia não haver jeito de sair da cabana do comerciante. As pessoas já teriam-se mudado para o acampamento de primavera. Águia que Voa Alto procuraria. Mas haveria alguma chance de ele encontrá-la? Canard era um cavalheiro, mas pensar em permanecer sozinha com ele a enchia de medo. Sem idéia do que fazer, Jesse ficou lá, orando por respostas. Parecia que ela só ouvia o silêncio. Os dias se passaram e ela perdeu toda a alegria na filha. Olhar os seus cabelos e olhos pretos era olhar no rosto de Águia que Voa Alto, que se parecia tanto com seu pai.

Canard falava amorosamente com a criança, fazendo-se ridículo. Ele tentava persuadir Jesse, com sugestões para um nome, mas ela não se decidia. Jesse preocupava-se e alimentava o nenê, mas, uma vez que as necessidades estivessem supridas, Jesse a colocava de volta no caixote-berço e ou se assentava numa cadeira perto da janela para ficar olhando para fora ou saía da cabana para curtir seu sofrimento recente com Estrela Vermelha. Seus olhos perscrutavam o horizonte, buscando um sinal de Águia que Voa Alto.

Canard esperava Jesse recuperar-se, mas a recuperação não acontecia. Ao contrário, ela se afundava num atoleiro, sempre mais fundo, de depressão e indecisão. Ela dormia bastante, trabalhava pouco e fazia apenas o que era preciso para manter sua filha viva. Deus, onde está o Senhor? ela orava. Eu não consigo ajudar-me... por que o Senhor não me ajuda ? Onde está Águia que Voa Alto — por que ele não vem? As palavras pareciam cair no vazio. Ela finalmente cansou-se de orar.

Canard a via caindo em um espiral de depressão e ia-se desesperando para forçar uma mudança. Ele cozinhava bem e tentava atrair Jesse com pratos criativos. Ela comia o que quer que cozinhasse, sem se agradar, e continuava a emagrecer. Ele cantava e dançava com o nenê, mas Jesse virava as costas.

Afinal, a paciência se esgotou; Canard ficou bravo e, por acidente, descobriu um caminho para recuperar Jesse. Ele se agitou, repreendendo Jesse:

— Você diz que tem um Pai celeste que a ajudará com esta criança, não é? E onde Ele está agora, hein? Ele está longe agora e a deixa ficar tão triste, não é, pobre madame? A senhora tem um nenê saudável, não é? Ah, sim, o marido se foi... mas veja o que ele lhe deu! Minha Suzette, quando ela partiu, ela levou o nenê junto! Pierre, ele não tem nada! Bem, veja madame— Canard correu para o baú. Abriu e começou a arrancar as coisas de dentro. — Digo uma coisa à senhora, vou ajudá-la a encontrar o seu bando — seu filho. Eu estou falando que vou ajudá-la a encontrar uma vida nova — se é que a senhora deseja. Mas a senhora fica sentada e não fala nada. Olhe aqui, madame. A senhora quer morrer, Pierre tem o caixão, certinho para a senhora. Olhe aqui.— Ele mediu a sua altura, segurando seus braços separados, enquanto se aproximava de Jesse. — Cabe certinho. Então a madame pode morrer — a senhora não se importa com o nenê mesmo. Eu crio esta criança. Eu vou amá-la. A senhora!— Ele empurrou Jesse para trás, na cama, que estava cheia das roupas do baú. — Vá em frente. Morra. Morra agora!"

Canard, irritado olhou o bebê dormindo, pegou-a com caixote e tudo e levou-a para fora. Jesse não prestou atenção a ele. Ao contrário, ficou parada, olhando para si mesma e para os pedaços de retalhos que Pierre tinha espalhado com raiva. Mecanicamente, ela começou a recolhê-los. Alguns eram cortados no formato de diamantes. Outros em tiras estreitas. Então ela o encontrou. Estava meio coberto por uma bata de retalhos, mas ela o descobriu. Um retalho com modelo de cabana, ela pensou, igualzinho à minha colcha com modelo de cabanas lá em casa... Casa? Seu cérebro expulsou a lembrança dolorosa. Ela começou a separar os retalhos à sua volta.

Jesse correu para o baú e remexeu, procurando agitadamente. Lá, no canto. Estava um pouco enferrujada, mas era uma agulha! Linha,ela pensou,eu preciso de linha.Ela arrancou o alinhavo da bata fora de uso. O projeto a consumia. Ela separava e separava e punha do lado. E, de alguma forma, no trabalho de separar, Deus começou o Seu trabalho de cobrir a sua dor.

Horas mais tarde, quando Pierre retornou, ele encontrou Jesse sentada, emendando, à janela. Ele não viu nenhum sinal do conteúdo do baú, exceto umas pilhas daquilo que Pierre chamava de trapos. Eles estavam separados por cor e formato e eles foram o início da cura de Jesse.

O clima continuou ruim. A primavera estava atrasada naquele ano e Jesse estava contente. Isso trazia uma desculpa para a ausência do grupo de busca. Isso evitava que ela tivesse de tomar uma decisão sobre o lugar aonde ir. Ela esperava ser encontrada. Pierre tornou-se um amigo precioso. Eles faziam listas de nomes de bebês, bebiam litros de café e cantarolavam cantigas de ninar.

Jesse começou uma colcha. No início era de cabanas, mas então ela parou e acrescentou uma bordadura e uma fileira com retalhos de formato de diamante. Num instante ela usou todos os retalhos que Suzette havia cortado. Pierre ofereceu mais alguns pedaços preciosos de tecido para que Jesse continuasse trabalhando. Ela os acrescentou à colcha.

Conforme a colcha ia aumentando, o espírito de Jesse ia-se elevando. Ela cantava canções de ninar para o bebê, começando com aquela que aprendera com Cavalga o Vento:

a wa wa wa

Inila istinma ma

a wa wa wa

Fique quietinha, durma.

Numa manhã fria, ela saiu para ver Estrela Vermelha e ficou surpresa ao perceber que a saudação da mula já não lhe trazia angústia. Ao contrário, havia um regozijo singelo ao ouvir o som familiar. As lembranças vinham de roldão, mas Jesse sorria com elas e acariciava o focinho macio de Estrela.

— Estrela— ela disse alto — Águia que Voa Alto não veio. Eu não consigo encontrar o caminho sozinha. Pierre me fala da cobiça dos brancos por terra. Eles guerreiam contra os lakotas, os quais chamam de sioux. Eu me pergunto o que tudo isso trará para nós".

Com o retrocesso da depressão, a certeza de Jesse de voltar para a sociedade branca cresceu. Águia que Voa Alto não tinha vindo e ela começou a acreditar que Lobo Uivante tinha sido o instrumento de Deus para guiá-la ao que agora desejava para o novo nenê. Jesse costurava, e cozinhava, e orava pedindo respostas. Elas não vieram de uma vez, mas ela já não sentia mais que suas orações não eram ouvidas.

Jesse começou a pensar na filha como Filha do Vento. Mas quando, finalmente, compartilhou sua decisão com Pierre, o nome que ela falou não foi Filha do Vento. Jesse se surpreendeu ao ouvir-se dizendo: — O nome dela será Lisbeth W. King. Lisbeth, de minha avó".

"... e o W?— Pierre perguntou.

— Só W. Algum dia eu direi a ela. Ela quase teve o nome do vento."

 

E, se algum de vós tem falta de sabedoria, peça-a a Deus.

Tiago 1: 5

 

Na primavera de 1855, o cabo Gavin Donovan estava de folga quando Pierre Canard entrou no Forte Kearney, com três mulas carregadas. Sua chegada teria sido pouco notada, se não fosse pelo fato de ele estar acompanhado por uma mulher e um nenê. Apoiando-se no canto da cabana de placas de grama do vivandeiro, Donovan assobiou baixo e mandou uma cusparada de tabaco em direção às mulas do caçador de peles, antes de dizer:

— Ah, há! Então, não é o Canard? Parece que você teve um bom inverno, francês".

— Este ano não foi tão bom para a caça, muita neve. Foi difícil manter as armadilhas montadas. Houve muita tempestade."

— Não era bem de peles que eu estava falando— disse o cabo, dando uma olhada significativa para Jesse e Lisbeth. Fingindo não ouvir, Jesse endireitou-se melhor na sela e evitou olhar para Donovan.

Canard ignorou a piada maliciosa. Ele segurou Lisbeth enquanto Jesse descia e o acompanhava até o vivandeiro. Havia umas poucas provisões, fracas, alinhadas na prateleira da cabana. Moses Shipman reclamou do serviço de transporte ruim que ele tinha recebido durante todo o inverno e desculpou-se com Pierre pela falta de provisões.

— Se você puder esperar por uma semana, há uma carga chegando por aí. Eu terei estoque então."

— Uma semana não é problema. Posso esperar.— Virando-se para Jesse, ele falou: — Se a senhora esperar lá fora, Madame King, eu pedirei para ver o capitão".

A companhia de Donovan, mesmo por uns poucos momentos, causou-lhe repulsa.

— Por favor, Pierre, eu posso falar por mim.— Ao completar a sentença, a figura de Donovan, em forma de barril, encheu a porta do vivandeiro. Ele abaixou-se exageradamente, quando Pierre e Jesse, com Lisbeth bem grudada a seu corpo, passaram apertados pela porta.

Saindo para a luz do sol, Jesse respirou fundo o ar fresco. Na quadra de exercícios militares, os soldados estavam saindo aos montes e alinhando-se para os exercícios matutinos. Jesse seguiu Pierre até o prédio próximo à cabana do vivandeiro, onde ele pediu para falar com o capitão Woodbury.

O capitão Angus Woodbury havia comido muita torta de amora na noite anterior e açor dado a noite toda com uma indigestão fortíssima. Quando ouviu que Pierre Canard havia marcado um encontro com ele, ficou irritado. Ele não havia levado em conta a Senhora Angus Woodbury, que tinha controlado sua paixão por torta de amora, na noite anterior, na esperança de — Entrar— No seu vestido novo, no baile dos oficiais.

Libby Rose Barber e Angus Woodbury haviam-se casado no salão da casa grande que representava a Plantação de Rosewood nos arredores do condado. Enrubescendo um pouco, como uma dama, ela se havia parabenizado por ter desposado o graduado mais bonito de West Point, no condado. Ela tinha empacotado seu dote — incluindo o jogo de chá de porcelana da avó, trazido da Inglaterra — e montado a casa numa casinha nova, a qual, ela tinha certeza, seria substituída pelo quartel do oficial generoso, num abrir e fechar de olhos.

Angus não a decepcionou. Ele foi bem-sucedido como militar e rapidamente fora promovido. O que a decepcionava mesmo, no entanto, era a sua paixão pela fronteira. Libby tinha arregalado os olhos, fitando-o, sem fala e esmorecida, no dia em que Angus foi para casa com a notícia de que eles iriam para Nebraska, onde ele iria comandar o forte Kearney.

— Pense bem nisto, Libby. Nós podemos fazer a diferença lá! Estaremos protegendo os emigrantes que passam por lá, providenciando um lugar para eles pararem e refletirem, para se reorientarem e se recuperarem. Nós asseguraremos que estejam a salvo e faremos a nossa parte no crescimento de nosso país.— Angus estava radiante de entusiasmo. Libby não estava divertindo-se. Mas Libby Rose Barber era mais esperta do que parecia. Ela fingiu estar excitada e, querendo dividir seu entusiasmo, encaixotou seu jogo de chá de porcelana e enviou-o para a fronteira sem discordar. Então ela começou a cultivar o amor e o compromisso, o que manteria seu casamento durante os cinqüenta anos de vida militar, sem filhos. Assim ela selou a sua promessa de que seria fiel a Angus até que a morte o colocasse nos braços de Deus.

Bem no momento em que Canard pediu para ver o capitão, Lisbeth decidiu que estava com fome e fez um berreiro. Libby Rose ouviu o choro faminto de Lisbeth. Jesse estava sentada num banco estreito e duro no escritório do comandante, pensando em onde encontrar um lugar privado em que pudesse amamentar o nenê, quando uma mulher pequena apareceu pela porta detrás da escrivaninha.

— Ah, um nenê!— ela exclamou encantada. — Posso vê-lo?— E quando Jesse, concordando, puxou a colcha do rosto de Lisbeth, ela soltou exclamações de agrado e arrancou o nenê dos braços de Jesse, cobrindo o rosto indígena com beijos. Ela ficou, por uns momentos, perdida na sua vibração, e então parou um pouco. Carregando ainda Lisbeth, que havia parado de chorar, parecendo ter perdido a respiração devido às atenções, Libby exclamou: — Céus! Você deve pensar que eu sou uma tonta! Desculpe-me. Eu nem mesmo me apresentei. Sou Libby Rose, a esposa do capitão".

Jesse levantou-se e balançou a cabeça, com um sorriso.

— Jesse King, madame. É um prazer conhecê-la.

— E você está aqui com Pierre?— Ela envolveu Lisbeth, que tinha milagrosamente dormido nos braços estranhos.

Jesse sentiu-se incapaz de explicar. Gaguejou e ficou aliviada ao ver a porta aberta de novo e o capitão entrar na sala. Pierre entrou atrás dela e os quatro se olharam um ao outro momen¬taneamente, antes de o capitão pedir explicações.

— O senhor pediu para ver-me, Senhor Canard?— Seu estomago ainda estava desarranjado e ele tocou um sino para um oficial e pediu chá.

— Obrigado, senhor. Como o senhor vê, tenho uma companheira de viagem nesta primavera. A senhora King chegou até mim, no dia anterior à nevasca." Pierre tinha pedido a Jesse para prestar contas, abreviadamente, satisfazendo a curiosidade de estranhos. Ele repetiu aquilo que eles tinham combinado contar. — Um guerreiro sioux a trouxe amarrada e amordaçada para minha cabana. Ele só queria uns cavalos em troca dela. É lógico que, quando vi que ela era cativa, fiz logo a troca. A criança nasceu bem na noite em que ela chegou. Graças a Deus, tanto a mãe quanto a criança ficaram bem. Com o tempo ruim, tantas tempestades, não houve chance de viajarmos esta distância, até uma semana atrás, quando, finalmente começou o degelo. Eu queria deixá-la a salvo, antes que os rios se enchessem com o degelo da primavera. Eu disse à senhora King que ela só encontraria bondade para com ela nessa situação angustiante. Espero que o senhor seja capaz de ajudá-la a encontrar o seu caminho, conforme o desejo de Deus.

Enquanto Pierre falava, Jesse olhava do capitão para sua esposa. A expressão de Libby era ora de horror, ora de compaixão. Ela deu outro beijo no rosto da pequena e sorriu carinhosamente para Jesse. Evidentemente, isto era um problema para mulher resolver.

— Querido Angus— Libby falou em voz baixa — como sempre, eu acato seu desejo, nas questões militares...— Então seus olhos brilharam e parecia que ela se enchia de vida. — Mas Angus querido, nós temos que ajudar esta pobre mulher! Olha este rostinho precioso. Nossa, quando eu penso no que elas passaram... Nós precisamos ajudá-la. Angus, o que podemos fazer?" Claramente, Libby Rose tinha colocado Jesse King sob suas asas e pretendia que ela ficasse ali até que, com certeza, ela e o nenê estivessem a salvo.

Angus pensou em suas opções cuidadosamente. Libby Rose não teve paciência de esperá-lo pensar. Ela achou que era necessário apressar-se.

— Pense bem, Angus, se fosse eu — se eu tivesse sido pega pelos índios — o que seria de mim, sendo levada aos cuidados de alguns oficiais militares! Como você gostaria que eu fosse tratada, Angus?"

A última coisa em que Angus queria pensar era em sua Libby Rose nas mãos dos sioux. Ele se apressou em falar, para que essa imagem saísse de sua cabeça:

— Senhora King, nós faremos tudo o que os militares puderem fazer para localizar sua família e levá-la de volta a ela. Por favor, dê-me o endereço deles. Nós enviaremos um comunicado imediatamente. E enquanto a senhora arruma tudo para voltar para casa, receberá abrigo....".

A questão de abrigo era difícil. Os poucos alojamentos de madeira estavam todos ocupados por oficiais ou homens comissionados, pelo vivandeiro e pelo professor. Somente construções toscas e úmidas completavam o pequeno quadro de construções que cercavam a quadra de exercícios militares com seu ponto central, o mastro da bandeira. Mal havia quartos para aqueles que prestavam serviços regulares para o forte. Acrescentar um convidado não seria uma tarefa fácil.

Jesse quebrou o silêncio e resolveu a dificuldade. Ela também fechou seu passado e completou a separação de sua família em Illinois, que havia começado no dia em que fora levada por Cavalga o Vento.

— Verdade seja dita, capitão, eu não tenho família. Pelo menos, ninguém que me recebesse em casa, agora.

O capitão Woodbury limpou a garganta. O espectro das experiências da pobre mulher com os selvagens aflorou e forçou-o a tomar uma atitude imediata para protegê-la.

— Senhora King— Woodbury disse baixo — Deus não permita que qualquer pessoa que eu ame passe os maus pedaços que a senhora passou. Este governo tem um juramento de proteger seus cidadãos e, como seu representante, eu ofereço à senhora tudo o que, em meu poder, possa ajudá-la a conseguir seu lugar de direito em nossa sociedade."

Foi um discurso bonito, mas ainda o capitão não tinha idéia de como ajudá-la. Libby o salvou.

— Angus.. .talvez ela pudesse trabalhar aqui no forte. Os homens têm reclamado que não há lavadeiras suficientes e, com a chegada dos soldados da cavalaria no outono..."

Jesse falou rapidamente:

— Eu estaria grata por qualquer serviço, senhor. Seus olhos cinza, calmos, encontraram os do capitão. — O Senhor tem-me abençoado com boa saúde e uma constituição forte. Parece que ele declarou que eu teria de fazer meu próprio caminho no mundo. Eu não tenho medo de trabalho duro, se ele me prover os meios para um lar para minha filha.

A menina em questão acordou e, sem nenhum aviso, começou a berrar de novo. Libby não conseguiu aquietá-la desta vez e, com relutância, devolveu-a para a mãe, depois introduziu Jesse em sua própria sala de estar para maior privacidade.

Quando as duas mulheres ficaram sozinhas, Libby mostrou-se calorosa e preocupada.

— Os quartos das lavadeiras são úmidos no momento, mas Angus tem planos de reconstruí-los o mais rápido possível. A maioria das outras lavadeiras são esposas de homens alistados. Elas não são tão rudes ou indesejáveis e algumas têm filhos também. Eu acho que você estará bem."

— Estou agradecida por sua ajuda, Senhora Woodbury.— Jesse deu uma respirada funda. — Mas a maior preocupação minha é esta: posso depender da senhora para ajudar a proteger minha filha? — Olhos cinza e frios encontraram olhos verdes e brilhantes e se entenderam. Mas Jesse não ficava contente com promessas sem palavras. — Eu fiquei entre os sioux, como vocês os chamam, por muitos anos. Retornei para cá contra meu desejo. Mas, após uma longa primavera de orações constantes, buscando a vontade de Deus, senti que ele tem um plano para nós que não inclui nossa estada entre o povo. As tensões aumentam a cada dia. Eu sei do poder do governo e do desejo dos lakotas. Haverá problemas e, pela segurança de Lisbeth, nós não deveríamos estar com os lakotas quando as hostilidades explodirem. Eu preciso fazer o melhor pela vida de Lisbeth, por ela e pelo pai. Então, contra meus próprios desejos, eu vim aqui, buscando uma vida nova. — Os olhos Jesse não se desviaram de Libby, durante toda a fala. — A senhora me ajudará a construir uma vida nova, pela segurança do nenê?"

Libby Rose Barber Woodbury esticou-se em todo o seu comprimento — que não ia além de l,5m. Honestamente, com as mãos juntas, ela disse solenemente:

— Senhora King, eu prometo, neste momento, pela memória de meu amado pai, que o seu segredo irá para a sepultura comigo— Ela era a figura perfeita de uma criança, no clímax de uma atuação dramática. Sua promessa parecia genuína, mas foram suas palavras seguintes que confortaram Jesse verdadeiramente e a capacitaram a confiar nessa estranha. — A Palavra de Deus diz que o Senhor odeia lábios mentirosos. Senhora King, eu tento obedecer a Palavra dele, com todo meu ser. Seu segredo está a salvo comigo."

Jesse acabou de amamentar Lisbeth e foi introduzida mais uma vez à sala do capitão, onde Pierre Canard e outro soldado esperavam. Woodbury curvou-se formalmente para Jesse e estendeu a mão. — Eu a saúdo e lhe dou as boas-vindas oficialmente ao Forte Kearney. O soldado Dennison vai acompanhá-la para seu novo alojamento e a apresentará a Gilda, a chefe das lavadeiras. Se houver qualquer coisa que pudermos fazer para ajudá-la a se instalar, por favor, não hesite em trazer-nos suas necessidades."

Jesse seguiu Pierre e o soldado, passando pelos alojamentos do vivandeiro e pelo hospital, um prédio baixo e úmido. Num extremo do prédio havia uma porta fechada. O soldado escancarou-a, revelando o quarto sujo que se tornaria seu novo lar. Ao olhar de desânimo no rosto de Jesse, o soldado deu umas explicações:

— Não se assuste, senhora. O capitão deu ordens para três de nós limparmos isso para a senhora e já vamos fazer — e trazer algum móvel também. Não vai ficar com luxo, mas aconchegante. Úmido não parece muito, mas é fresco no verão e quente no inverno. E nós vamos construir um lugar novo para a senhora logo, pelo menos é o que a madame disse". O soldado deu um sorriso largo para Jesse. — E uma coisa que todos nós aprendemos bem rápido aqui é que ela é pequena, mas quando a madame fala, as coisas são feitas."

A madame tinha aparentemente falado sobre os novos alojamentos para as lavadeiras novas. Pierre chegou com suas mulas carregadas e descarregou todas as coisas de Suzette que ele tinha conseguido convencer Jesse a trazer. Juntos atravessaram o recinto para levar Estrela Vermelha e a mula do comboio ao estábulo. Pierre ficaria alguns dias até que os carroções chegassem com provisões novas.

Tendo ajeitado os animais, Jesse e Pierre pararam de novo no vivandeiro, onde ele insistiu que Jesse o deixasse trocar uma fina pele de castor por várias jardas de chita bem colorida de marrom, musselina, um pacote novo de agulhas para colchas e vários pedaços de meia jarda de tecido de algodão de cores diversas.

— Eu vi como o trabalho com agulhas cura você, quando está sozinha— disse Pierre. — Este é o meu presente para você, pela pequenina.— Jesse aceitou os presentes, com agradecimentos calorosos.

Quando retornaram, percorrendo a pequena distância para o novo alojamento de Jesse, os três soldados responsáveis pela tarefa tinham varrido bem o quarto, colocado dois catres e uma mesa e posto um prato, uma xícara, uma frigideira e uma chaleira perto da lareira. Uma cadeira de balanço, com os — Cumprimentos da madame— foi colocada perto da lareira. Jesse assentou-se nela, agradecida, e balançou Lisbeth antes de deitá-la, já começando a ressonar, no catre do canto.

Pierre limpou a garganta e virou-se para sair.

— Vou vê-lo com certeza, antes de você...?"

— É claro, eu vou dar uma parada aqui, para ver como vocês estão. Se você quiser, agora, encontrar esta Gilda, a chefe das lavadeiras, eu fico aqui com a Lisbeth.— Ele sentiu-se embaraçado no quarto dela e encorajou-a a ir.

Jesse procurou Gilda, que ficou parada, esfregando o colarinho de uma camisa imunda, sob o vapor de uma panela com água.

— Então, aqui está aquela que está causando toda a reviravolta hoje— foi sua breve saudação. Jesse hesitou na porta.

— Cadê o nenê?"

— Ela está dormindo. O Senhor Canard disse que cuidaria dela.

— Como você vai trabalhar com um nenê a reboque?— Ela não olhou, não deu uma pausa em seu ataque ao colarinho.

— Eu consigo."

— Não quero que você espere favores."

— Não espero."

— O fogo precisa ser aceso e estar quente às cinco da manhã. É quando a brigada enche os tubos. Você sabe como acender um fogo?"

Jesse sorriu, com a ironia da pergunta.

— Eu sei."

— Então, este é o seu trabalho de agora em diante."

Dois dias mais tarde, Pierre Canard tinha trocado suas peles por provisões e ido para casa. Antes de sair, fechou as mãos de Jesse calorosamente nas suas.

— A costura que a ajudou a não sentir-se sozinha. ..talvez eu devesse ter pedido para você me ensinar, hein?— Ele limpou a garganta, beijou Jesse na face, esfregou o cabelo preto e grosso de Lisbeth e saiu rapidamente.

 

Os teus testemunhos são... meus conselheiros.

Salmo 119:24

 

Com o crescimento de Lisbeth, começando a aprender a andar, Jesse sempre sentia falta de colocá-la num carregador de bebê, como tinha feito com Duas Mães. Ela tinha achado isto cruel, no começo da vida entre os lakotas, mas agora apreciava aquela forma sensível de manter um nenê longe do perigo. De alguma forma ela conseguia manter Lisbeth afastada dos perigos da lavanderia. Ela montou um tipo de uma área de brincar, cercada com uma mistura de galhos e cadeiras quebradas. Mas, quando Lisbeth começou a subir nas paredes de sua prisão, Jesse desmontou tudo com medo de que caísse. Então ela amarrou uma corda na cintura de Lisbeth e na sua, ignorando as caçoadas dos oficiais, que diziam que Lisbeth era o bichinho de estimação de Jesse. De vez em quando alguém se oferecia para ajudá-la com a criança, mas Jesse sempre recusava. Ela nunca tinha muita certeza se não confiava nos cuidados de quem se oferecia ou se simplesmente não podia agüentar ficar com a filha fora da vista. Qualquer que fosse a razão, Lisbeth cresceu, literalmente, presa às tiras do avental da mãe. Mas, tão logo cresceu o suficiente para andar com segurança, ela pôde correr livre, provando ser obediente, mesmo fora da vista da mãe.

A vida no Forte Kearney caiu numa rotina monótona. Às quatro da manhã, Jesse vestia-se no escuro, prendendo suas tranças grossas em volta da cabeça, sem se importar com o estilo. Acendendo um foguinho, preparava bolachas e papas quentes para o café e punha uma tigela pequena perto das chamas para mantê-la aquecida, até que Lisbeth acordasse. Em poucos momentos, Jesse saía para a lavanderia. Ao entrar, repetia o processo de acender o fogo, esquentando os tubos grandes de água que eram enchidos, a cada manhã, pelos homens da cavalaria.

Como estava crescida, Lisbeth podia dar-se ao luxo de dormir e acordar na hora que quisesse, que geralmente era logo após o nascer do sol. Quando ela tinha sete anos, sua rotina matinal estava bem estabelecida. Depois de arrumar a cama, ela tomava café, lavava a xícara e a tigela no balde de água logo fora da porta e seguia os passos da mãe pelo recinto.

Quando Lisbeth chegava, Jesse sempre parava por um momento, para segurar as mãos da filha e fazer uma rápida oração pelo dia à frente delas. Esta prática lhes trazia conforto, pois Jesse entregava sua filha aos cuidados do Senhor, pedia ajuda em seu serviço e lhe agradecia pelo lar delas. A gratidão dela nunca hesitou, e, conseqüentemente, Lisbeth nunca se sentiu privada. Parecia que ela não percebia que sua vida era diferente da vida das outras crianças que tinham família grande no forte.

Jesse sempre se desesperava por mais tempo para gastar com a filha. Ela precisava de tempo, pensava, para ensinar muitas coisas que uma menina nova precisa saber. Mas o serviço não acabava e nunca havia tempo para ir além de lições básicas. Lisbeth aprendeu a ler, falando alto e memorizando uma palavra de cada vez na Bíblia — único livro delas. Ela aprendeu a cuidar da casa, olhando-a, tarde da noite, varrendo e lavando suas próprias roupas. Tão logo ficou capaz, a menina tornou-se responsável por várias tarefas. Ela logo percebia os traços de cansaço no rosto da mãe, ao fim do dia, e com seu jeito infantil, Lisbeth lutava para aliviar o fardo.

A prática das orações matinais ensinou a Lisbeth a importância da adoração constante. As rápidas orações que sempre ouvia a mãe enviar aos céus ensinaram-lhe a dinâmica de uma fé viva. Qualquer que fosse o problema, Jesse sempre levava ao seu Senhor. Ela parava no meio de uma conversa com Lisbeth para dizer:

— Agora teremos de perguntar ao Senhor sobre isso, Lisbeth— E sem mesmo inclinar a cabeça dirigia suas palavras ao céu: — Pai, precisamos de tecido para fazer um vestido novo para Lisbeth". Ou: — Pai faça o Jimmy ver que ele machuca a Lisbeth quando não brinca direito. E às vezes: — Pai, nós não precisamos mesmo disso, mas com certeza gostaríamos de uma nova lâmpada para iluminar nosso quarto à noite". Lisbeth aprendeu que Deus não era um estranho distante no céu e que ele estava interessado em seus problemas. Lisbeth aprendeu sobre o Deus que é — Um socorro sempre presente".

— Nós não temos papai aqui para cuidar de nós— Jesse diria — mas o nosso Pai do céu sabe disso e cuida de nós, assim, nós só temos de lhe falar e esperar para ver o que ele acha que precisa ser feito."

Depois do longo dia de labuta com os tubos da lavanderia e ferros de engomar, Jesse se arrastava de volta para o aposento e se deitava por uns minutinhos. Ela só tinha quarenta anos, mas estava sentindo-se envelhecida.

Quando Jesse se levantava e começava a preparar o jantar, Lisbeth começava o seu colar de histórias do dia de aventuras. Ela explorava cada canto do Forte Kearney, sabia o nome de cada soldado, dava tapinhas no pescoço de todos os cavalos e nunca reclamava de estar chateada. Jesse sempre agradecia a Deus por ter-lhe dado uma filha tão capaz de se entreter sozinha e tão capaz de fazer algumas tarefas pedidas a ela. De fato, parecia que, desde que Lisbeth era um nenê, ela tinha sido uma bênção. Quando nenê, ela ficava deitada horas, olhando a mãe esforçar-se no serviço, chorando só de fome. Jesse ouviria os primeiros barulhinhos e olharia para ver dois olhos pretos seguindo-a pela lavanderia. Vinha também a lembrança de outros olhos pretos que seguiam cada movimento seu, ansiosos, esperando para ser alimentado.

Após cada jantar, com a luz mais turva da noite, Jesse colocava sua Bíblia na mesa rústica, abrindo-a em sua passagem preferida,, lendo-a alto. Era um dos poucos momentos em que podia ser inflexível com Lisbeth.

— Ter as próprias palavras de Deus em um livro á uma coisa estupenda, Lisbeth— Jesse lembraria sua filha ao primeiro sinal de movimento dela. — Nós precisamos tratá-la com carinho. Mas o mais importante é obedecer ao que ela diz. Agora, vamos ver o que o Senhor tem para nós hoje.— Jesse preferia os Salmos e o final de Jó, onde Deus

— Seu papai adorava esta parte da Bíblia— Jesse dizia, e os olhos de Lisbeth brilhavam com o pensamento de seu pai lendo o mesmo livro que sua mãe segurava.

— Ele nunca aprendeu a ler sozinho— Jesse explicou — mas eu lia para ele todas as noites. E ele gostava, particularmente dessa parte, de Deus controlando o vento e os animais selvagens— Então Jesse lia. Ela tomava o cuidado de não ler muito. Não queria esgotar a atenção da filha, antes preferia que ela desejasse mais e não quisesse parar.

Lisbeth fazia a sua parte, sentando-se quieta, escutando as palavras.

— Não é muito, Senhor— Jesse orava — mas o Senhor prometeu que a sua palavra não voltaria vazia. Estou fazendo o que posso para compartilhar isto com minha filha. Por favor, abençoe isto. Coloque no coração dela de tal forma que algum dia, quando ela precisar, a sua palavra venha confortá-la e guiá-la.

Todo santo dia o programa de Jesse e Lisbeth era o mesmo. Havia poucas interrupções na rotina da vida. Domingo era o dia em que as duas tinham folga. Começavam com a igreja. Jesse ficaria embaraçada se sua filha percebesse que não era a igreja que trazia refrigério à sua alma. Muitos domingos Jesse mal agüentava os sermões grandiloqüentes, esperando pelo verdadeiro brilho de sua semana: a oportunidade para escapar do forte, retornar para a campina e recordar.

Depois dos cultos, elas punham roupas velhas, arreavam Estrela Vermelha e marchavam a furta-passo pela pradaria. Os muros do forte iam diminuindo à distância e o espírito de Jesse voava. Dirigindo-se para perto do rio, Lisbeth e Jesse desciam do cavalo e comiam seu mísero lanche.

Depois do piquenique, as tranças pesadas de Jesse eram soltas e Lisbeth podia brincar com o cabelo da mãe. Elas colhiam flores, cantavam hinos, andavam ao longo da margem do rio, conversavam e riam. Na maioria dos domingos, Jesse trazia consigo algo para emendar ou marcar. Ela ensinava a sua filha, diligentemente, o básico da costura e emenda. Juntas, elas cortavam os retalhos de uniformes descartados e Lisbeth alegremente fazia uma colcha de retalhos para sua boneca esgarçada, que ela tanto amava. Era um modelo simples de "remendo nove" e as costuras ficavam tortas, de forma que uma ponta ficava mais comprida que a outra, mas Jesse elogiava e marcava o nome de Lisbeth e a data na beirada.

Enquanto elas faziam o piquenique, cantavam e marcavam, os olhos de Jesse fitavam o horizonte. As sombras pareciam dançar na relva da campina ao redor delas. Se Lisbeth as tivesse visto, ficaria com medo, mas Jesse sentia-se confortada. Seu cabelo comprido caía em suas costas e ela sorvia o ar fresco. Ele deve ter dezenove anos agora, Jesse pensava, imaginando Águia que Voa Alto caçando com os amigos. O tempo sempre passava rápido demais. Lisbeth olhava fascinada, sua mãe colocando de novo o cabelo ao redor da cabeça. Vagarosamente elas andavam a cavalo de volta para o forte, para começar outra semana de sabão, água e enxágüe, de esfregação e trabalho árduo.

Se Jesse percebia o quanto sua existência era solitária, ela nunca falava. Se Lisbeth ansiava por um amigo querido, ela nunca falava disso para mãe. Lisbeth começou a perceber que mãe tinha dois sorrisos. Havia o sorriso gentil, de todos os dias — aquele que mal aparecia e deixava os olhos cinza solenes. Mas havia outro sorriso que emoldurava seu rosto com alegria e iluminava algo em seus olhos. Eu só vejo aquele sorriso aos domingos, Lisbeth pensava, eu queria saber por quê.

Lisbeth sentou-se fora da lavanderia, onde Jesse trabalhava. Suas pernas balançavam no ar e seus pés pequenos espancavam a terra com raiva, enquanto ela batia na terra e resmungava para si mesma. Sua mão rechonchuda desafiadoramente limpava as lágrimas que ela não conseguia segurar.

— Não vou chorar... não vou chorar— ela resmungava para si mesma.

Sentando-se ao lado de Lisbeth, Jesse disse:

— Você voltou cedo. Estava muito quente para jogar?".

Lisbeth negou e virou a cabeça. Mas Jesse já tinha visto as marcas das lágrimas nas bochechas sujas da filha.

— Por que, Lisbeth?— Jesse falou delicadamente. — O que aconteceu? Você caiu? Machucou-se?"

Lisbeth dizia que não, balançando a cabeça. Ela abraçou os joelhos e observou os dedos do pé, esperando a mãe sair. Mas Jesse não desistia assim tão fácil.

— Lisbeth— ela disse, — você precisa dizer-me o que aconteceu".

Veio tudo para fora numa explosão raivosa:

— Eu odeio Jimmy Callaway. Eu simplesmente o odeio! Ele pensa que é alguma coisa. Pensa que é melhor do que eu".

Jesse esperou a vozinha controlar-se. Lisbeth continuou:

— Disse que não me queria no time dele. Disse que eu não tenho pai". Lisbeth fixou os olhos nos de sua mãe. — Ele me chamou de um nome."

Jesse envolveu sua filha em seus braços e falou baixinho:

— Jimmy Callaway é só um menininho, Lisbeth. Ele não sabe nada sobre nós. Você tem um papa sim, Lisbeth. Mas seu papai, está no céu — só isso".

Lisbeth escorregou dos braços firmes de Jesse:

— Conte sobre ele, mãe. Conta-me sobre meu pai— ela suplicou.

Jesse havia contado dezenas de vezes à filha. Cada vez ela pensava em contar tudo, mas alguma coisa sempre a segurava. Isso havia passado em sua mente muitas vezes. Esta criança precisa saber, ela pensava, precisa saber tudo sobre o pai dela. Mas então ela pensou sobre a palavra mestiça e o ódio geral daqueles que a cercavam, em relação aos índios. O medo de como seriam tratadas crescia e, de alguma forma, a precaução vencia e elas teriam mais um dia com Lisbeth pensando que Homer era seu pai. Jesse pretendia corrigir a lembrança. Ela queria dizer a Lisbeth que seu pai era Cavalga o Vento, um índio lakota. Mas, de qualquer forma, nunca disse.

— Seu papai foi o homem melhor, o mais gentil, o mais corajoso que eu já encontrei— Jesse dizia. — Ele tinha cabelo preto, os olhos pretos e ele andava mancando, engraçado, porque ele tinha machucado sua perna antes de nos conhecermos. Ele sabia andar a cavalo e caçar."

E Lisbeth repetiu em cadência:

— E ele a amava muito, muito, muito, muito".

— Isso mesmo, docinho— Jesse falou. — Ele me amava muito, muito, muito."

Lisbeth acrescentou:

— E você ficou muito, muito triste quando ele morreu".

— Eu fiquei muito, muito triste por muito, muito tempo— Jesse concordou. — Mas então, você nasceu, e você se parecia tanto com seu papai, que era como se ele tivesse voltado para ficar comigo. Nós nos mudamos da casa onde eu havia morado com papai. E viemos aqui para o Forte Kearney. Deus nos deu um novo lar. Temos muita comida, roupas limpas para usar e um quarto gostoso. E precisamos agradecer a Deus por suas bênçãos."

Jesse segurou os ombros de sua filha e fixou os olhos nos dela solenemente:

— Agora você pode voltar para o Jimmy Callaway e contar-lhe sobre o seu papai. Não tenha vergonha, Lisbeth. E não fuja. Quando as pessoas não entendem, dizem coisas medíocres. Pode ser que Jimmy não conheça Jesus, como conhecemos. Eu sei que dói quando as pessoas falam assim, mas, se você pedir a Jesus para ajudá-la, ele a ajudará a ser boa para Jimmy".

Jesse deu um empurrãozinho em Lisbeth, em direção ao lugar onde as crianças brincavam, e voltou ao trabalho. Uma vozinha cantou, de volta para ela:

Ele não conhece Jesus

e ele não sabe sobre meu papai,

Então Jimmy Callaway

não sabe de nada.

Lisbeth escapuliu feliz com sua nova música. Jesse voltou ao trabalho, atacando as manchas na camisa do cabo Donovan, com energia fora do comum. Ela riu contente com as amigas e transformou o incidente em uma piada divertida para contar junto aos tubos cheios de espuma e quentes da lavanderia.

Mas, sob o sorriso e por trás da risada, permanecia um desejo por coragem para contar a história que não havia sido contada.

 

Em todo o tempo ama o amigo; e na angústia nasce o irmão.

Provérbios 17:17

 

Foi num dia particularmente monótono, no ano em que Lisbeth estava completando doze anos, que o passado de Jesse ecoou em Forte Kearney, num carroção de frete, danificado pelo uso. Jesse tinha ido para fora e estava abanando-se com o avental. O telhado sobre a porta da lavanderia fazia sombra em seu rosto. Há quase vinte e cinco anos que ela não o via, mas George Wood ainda dava passos leves quando descia de seu carroção.

Tirando seu chapéu, já gasto pelo uso, bateu-o no assento do carroção para tirar o pó. Arrumando o vinco dele cuidadosamente, George pôs novamente o chapéu, abaixou a aba para proteger os olhos e deu uma olhada em volta, no recinto. Jesse ficou imóvel, com a ponta do avental suspensa no ar. O reconhecimento, a surpresa e a seguir o espanto apareceram no rosto de George. Ele caminhou rápido os poucos metros que os separavam.

— Jesse? Jesse King? É você? É você mesmo?— Então, sem esperar uma resposta: — Eu não posso acreditar! Depois de tantos anos!"

Jesse estendeu a mão: "George ... George Wood".

Enquanto Jesse ficava sem fala, George falava confusamente e sem parar.

— Jesse... como? Nós procuramos você! Quando vocês não nos alcançaram naquela noite, nós voltamos. Encontramos — encontramos Homer — os cavalos — mas você tinha ido. Vinnie quase morreu de preocupação. Não havia nenhum sinal de seu rasto depois daquela tempestade. Como você... Onde você...?"

Bem nessa hora Lisbeth veio correndo e agarrou a mão de Jesse. Quando Jesse apresentou sua filha, George olhou para baixo, para o cabelo preto da menina pequena. O cabelo ondulado caía até o meio das costas. A pele dela estava queimada pelo sol quente de Nebraska. Em segundos ele calculou a idade dela e preencheu os detalhes sobre o que tinha acontecido com Jesse King depois de eles terem desistido da busca. Ele sentiu-se um infeliz.

— Ah, Jesse — sinto muito. Nós nunca devíamos ter desistido. Nós tínhamos de ter procurado até..."

Jesse o interrompeu:

— O Senhor sempre sustenta por ele mesmo, George— Seus olhos cinza fitaram firmemente os dele ao tentar enviar uma mensagem sem palavras. Pela primeira vez ela foi culpada por uma decepção deliberada. — Depois que o pai de Lisbeth morreu, o Senhor nos proveu. Nós temos sido bem cuidadas, por pessoas boas, e não tenho reclamação. Você não precisa sentir-se culpado, George. Deus usou todas as coisas para o meu próprio bem."

O entendimento brilhou nos olhos de George. Ele mudou de assunto.

— Eu desejaria mesmo que Vinnie pudesse estar aqui pra ver isso. Ela queria vir comigo, mas eu disse que há muitos problemas com índios. Isto convenceu-a a ficar. Nós temos uma propriedade rural no Vale Willamette, Jesse. Ela jamais acreditará quando eu disser que vi Jesse King."

— Você pode jantar conosco?— Jesse perguntou. — Nosso quartinho é bem ali. Não vai ser nada especial, mas eu gostaria muito de ter notícias de todos."

— O senhor conhecia meu papai?— Lisbeth interrompeu.

Jesse abaixou os olhos para a filha e falou, antes que George tivesse chance de responder:

— Não, Lisbeth, o Senhor Wood nunca teve a chance de conhecer papai, mas ele virá jantar esta noite e poderemos conversar melhor então". Jesse olhou para George esperançosa e ele assentiu com a cabeça.

Lisbeth saiu correndo, feliz, antecipando o jantar com um convidado. Isso era novo. Elas nunca tinham tido um amigo para jantar. Elas nunca tinham tido um amigo, na verdade. Lisbeth gostou da idéia.

Quando ela não podia mais ouvir, George disse:

— Vou dar uma olhada em minha parelha, Jesse. Quando você tiver acabado o serviço, avise-me. Estarei no vivandeiro algum tempo. E Jesse — ele acrescentou, — Seu segredo está bem guardado comigo".

— Obrigada, George. Nós jantamos mais ou menos às seis horas."

O jantar tinha de ser simples, mas Jesse fez o melhor que pôde. Pôs uma toalha na mesa rústica. Lisbeth havia colhido algumas flores do campo, que serviram para um arranjo no centro. George dominou a conversa durante o jantar. Impelido por perguntas sem fim, ele ria e fazia piadas, como se a viagem para o Oeste tivesse sido uma aventura extremamente alegre. Lavínia estava bem de saúde; as crianças, bem crescidas. Tinha havido uma epidemia de febre e a pequena Esther quase morrera.

— Mas o Senhor a curou— disse George. — Parece que o Senhor tem sempre nos tirado das dificuldades."

— É — Jesse concordou, — Algumas vezes de formas que nunca esperamos, mas Ele tem sempre nos curado".

George estava voltando para o Leste para tentar convencer o cunhado e a irmã de Lavínia a se juntar a eles no Oregon. Ele contou as vantagens do novo território e Jesse lembrou-se dos discursos persuasivos do Dr. Whitman.

— Você ficou sabendo do Dr. Whitman?— perguntou George. Quando Jesse disse que não, ele lhe contou a história triste. Dr. Whitman, sua esposa tão boa e seus ajudantes tinham sido mortos pelos índios, os quais tinham ido servir. George finalizou a história: — Que perda... vidas tão jovens acabadas daquela maneira!".

— As vidas que servem a Deus nunca são perdidas, George— Jesse lembrou. — Porque agora vemos como por espelho, obscuramente?'

Sentindo-se desconfortável com a possibilidade de uma discussão teológica, George levantou-se para sair.

— Jesse— ele disse, estendendo suas mãos para segurar as dela — quando Vinnie souber que você sobreviveu, provavelmente ouviremos o — Aleluia dela por todo o Oregon. Você tem planos?".

— Somente o plano de criar minha filha, George— foi a sua resposta.

— Eu vou passar de volta por aqui, em poucas semanas, como resto da família. Por que não fazemos uma coisa melhor do que só contar a Vinnie sobre você? Por que você e Lisbeth não vêm conosco para o Oeste? Você pode ter o seu lar, lá. Vai ter amigos. Você era mais ligada a Vinnie do que a própria irmã dela. Vocês não vão ser só amigas, serão uma família. Que você acha?"

Quando Jesse hesitou, George apressou-se:

— Bem, pense sobre isso. Não precisa responder-me agora, mas quando eu passar de volta, vou procurá-la esperando que já esteja com sua mala pronta e o chapéu na cabeça".

— Não sei, George, respondo quando passar de volta." George saiu, Lisbeth foi para a cama e Jesse ficou acordada na cama até depois da meia-noite, pensando na possibilidade de juntar-se aos amigos no território de Oregon.

O que devo fazer, Senhor? ela orou. Nas primeiras horas da manhã, Jesse sentiu que já tinha a resposta. A campina havia reivindicado a vida do homem que ela tinha amado, e houve tempo em que, amargurada, ela havia odiado essa terra. Mas diante da possibilidade de deixar esse lugar para trás, Jesse surpreendeu-se ao ver que ela amava a terra ao seu redor. Era cruel, algumas vezes, quando vinham as nevascas ou o sol quente queimando tudo. Mesmo assim, havia algo nesta paisagem que prendia seu coração. Era sua pátria adotada, mas era também seu lar, e ela não desejava largar esse lugar pelas florestas do Noroeste.

Só algum tempo depois é que Jesse percebeu que o convite de George tivera um papel importante na maior mudança que viria a seguir em sua vida. Apesar de estar determinada a nunca sair da campina, ela chegou à conclusão de que, como Lisbeth crescera, havia necessidade de criar vínculos. Elas tinham necessidade de uma vida mais estruturada do que aquela no forte. A possibilidade de mudanças foi plantada, de forma que nas semanas seguintes Jesse convenceu-se de que Deus tinha um novo plano para ela e para sua filha.

Certa manhã, não muito depois da partida de George, Gilda entrou correndo na lavanderia, com notícias de um confronto entre os sioux e um grupo de reconhecimento. Tinha havido vítimas, principalmente entre — Os sioux ladrões— mas um tenente jovem havia sido gravemente ferido.

— O cabo Donovan acabou de entrar com os prisioneiros. Diz que vai voltar e limpar o resto dos encrenqueiros— Gilda deixou escapar.

Jesse deu uma olhada pela porta da lavanderia, bem quando os soldados, conduzindo o grupo de prisioneiros, passavam ali perto. Atrás, meio separada do grupo de guerreiros de idade, vinha uma índia de meia idade, com um vestido de pele de alce esfarrapado. Dando uma olhadela nos brancos, ela escondia seu rosto com uma coberta, na qual se enrolava.

Jesse estava pondo lençóis no tanque de água quente à sua frente. Quando viu a índia, largou os lençóis rapidamente e pegou o avental para enxugar os olhos. A índia tinha abaixado a coberta, revelando um rosto outrora lindo, desfigurado por uma feia cicatriz no cavalete do nariz.

Jesse ofegou, não acreditando, e imediatamente estava do lado de fora. — Flor do Campo— ela gritou em lakota. Abriu caminho à força, empurrando um soldado, e tocou os ombros de uma índia. Virando-se, a índia gaguejou: — Caminhando nas Chamas! É você?!".

O soldado que Jesse tinha empurrado as interrompeu:

— Senhora King... a senhora conhece essa índia?— ele a questionou, com descrédito, forçando seu corpanzil entre as duas mulheres.

Jesse percebeu que ela precisava explicar-se de uma forma que protegesse Lisbeth.

— Ah, conheço, cabo Donovan... conheço. Anos atrás, quando estávamos cruzando a campina, meu marido e eu sofremos um acidente. Fomos atropelados por búfalos e nosso carroção foi destruído. Um grupo de caçadores ajudou-me de uma forma incomum. Flor do Campo era do bando deles. Ela foi muito bondosa para mim. De fato, nunca a esqueci."

Donovan sorriu. Não era um sorriso agradável.

— Flor do Campo— ele repetiu o nome. — Com certeza ela não tem muito de uma flor agora, não é? E só uma índia velha, marcada por uma cicatriz, seguindo de perto alguns índios surpreendidos por nós. E é um grupo ordinário, esse." Donovan empurrou um dos guerreiros. Ele foi andando, tomando cuidado para esconder a raiva flamejante em seus olhos pretos. O valente olhou para o chão e resmungou: — Você, cachorro branco — eu vou alimentar as águias com. você".

Donovan virou-se para o rastreador pawnee que tinha acompanhado os soldados na missão deles:

— O que ele diz?"

Jesse interrompeu, antes que o pawnee pudesse responder:

— Ele diz que ele deseja ver o líder dos homens valentes que lutaram hoje".

Donovan ficou admirado, mas, quando o pawnee ficou quieto, Jesse explicou:

— Nós ficamos entre os lakotas o tempo suficiente para eu aprender um pouco de sua língua e costumes. Eles valorizam os corajosos acima de tudo. Vocês devem tê-lo impressionado, como oponentes valiosos, para que ele quisesse ver seu líder. É um sinal de grande respeito". Jesse orou para que Donovan acreditasse nela e que Deus perdoasse suas mentiras.

Donovan virou-se para seu rastreador pawnee:

— Ela está dizendo a verdade?".

O pawnee olhou bastante para Jesse e então para Flor do Campo. Ele encarou seu inimigo. Finalmente, disse:

— Ela fala verdade. O povo valoriza a coragem".

Donovan olhou para Jesse de novo. Ele olhou firme os mocassins dela e rabiscou o chão com seu rebenque, enquanto se encolhia.

— Bem, agora diga a esses sujeitos para comportarem-se bem e não causarem nenhum problema e pode ser que eles encontrem o capitão hoje."

Jesse virou-se para os guerreiros e, pela primeira vez, reconheceu Fala Muito, o pai de Flor do Campo. Ela se dirigiu a ele vagarosamente. Fazia anos que ela não falava mais lakota. As palavras vinham com dificuldade.

— Este branco cachorro diz que você precisa ter paciência. Ele é um arrogante que não presta para nada, mas vou tentar encontrar um jeito de conseguir que o líder venha ver vocês logo. O capitão é um homem justo."

Enquanto falava isso, Jesse pensava em como iria cumprir sua promessa. Como uma lavadeira esperava passar para trás um cabo e ter alguma influência sobre o capitão?

Fala Muito permaneceu sem expressão, mas Jesse percebeu um olhar de gratidão.

Donovan balançou a cabeça, concordando com a fala dela, e sorriu confidencialmente. Flor do Campo baixou sua cabeça para evitar rir da tolice dele.

— Bem— disse Donovan, batendo na palma da mão com seu rebenque. — Agora vamos.— Sua unidade conduziu os índios pelo recinto.

— Cabo— Jesse pediu, — A mulher não poderia ficar comigo?".

— Senhora King— Donovan zombou, — Esses aqui são prisioneiros do governo dos Estados Unidos. Eu não posso entregá-los pra qualquer um que sentir dó deles". Fez uma pausa e examinou cuidadosamente Jesse. — Além disto, eu não sei quanto você foi amiga deles antes. Como eu poderia saber que você não vai ajudá-los a escapar?"

Jesse ficou vermelha com o insulto nas entrelinhas, mas controlou-se.

— É lógico que, como um cavalheiro, você não iria querer que uma mulher sozinha ficasse trancada com homens."

Os lábios de Donovan se apertaram:

— Madame, é de índios que estamos falando. Eu não acho que haverá problema em deixar todos eles juntos. É diferente das pessoas brancas que têm moral e tudo mais". Donovan divertiu-se ao ver Jesse ficar vermelha de raiva novamente. A curiosidade dele estava excitada. A primavera fora entediante e ele tinha gostado de lutar contra os índios. Agora, o relacionamento dessa mulher com os sioux acrescentava uma nova dimensão ao caso todo. As coisas estavam melhorando.

Donovan encarou os mocassins de Jesse novamente. Involuntariamente, ela puxou os dedos do pé para trás, embaixo das saias.

— Bom-dia, madame— disse a Jesse, tocando a aba do boné com seu rebenque e dando as costas rotundas a ela. Jesse viu Flor do Campo cobrir o rosto com cicatriz dos olhos curiosos dos moradores do forte, que se juntaram para ver os índios. Fala Muito andava com orgulho, com seus cabelos compridos e grisalhos caindo sobre os ombros e com a cabeça levantada.

Jesse voltou ao trabalho, silenciando as perguntas de Lisbeth, com uma severidade incomum, enquanto pensava em como poderia ajudar os amigos. Ela pensou e orou o resto do dia enquanto trabalhava lá. Não houve resposta. Ela continuou a preocupar-se e a pensar, durante o jantar com Lisbeth, que percebeu que sua mãe estava mais quieta do que nunca.

Quando o sol se pôs, Jesse acomodou-se em sua cadeira de balanço à beira da lareira, pegou a colcha de retalhos e orou desesperadamente por sabedoria para raciocinar e descobrir um meio de ajudar Fala Muito e Flor do Campo. E Senhor, ela acrescentou,dê-me tempo para perguntar sobre Águia que Voa Alto—Senhor, eu preciso saber.

— Mamãe, como a índia ficou com aquela cicatriz no rosto?— A voz de Lisbeth interrompeu os pensamentos de Jesse.

— Eu conto num outro dia.

— Mamãe, a senhora conhece o outro, de cabelo comprido, cinza?"

— Conheço."

— Como a senhora aprendeu a falar como eles?"

Não houve resposta. Lisbeth nunca tinha sido tão excluída dos pensamentos de Jesse. Confusa e um pouco brava, ela preparou-se, fazendo barulho, para dormir. Ela se irritou, suspirou, mexeu-se rápida e ruidosamente no quarto pequeno, finalmente acomodou-se em seu catre e, para surpresa de Jesse, caiu imediatamente no sono.

Tão logo viu que Lisbeth estava dormindo, Jesse pulou e foi até a porta. O horizonte estava desvanecendo-se num rosa-pálido e, acima da risca do pôr-do-sol, no céu azul-violeta, brilhava uma estrela e a lua crescente. O gigante do céu dorme... mas veja, ele abriu um olho para nos espiar. Jesse encostou-se na porta de seu quarto ao lembrar-se de como Cavalga o Vento, certa vez, descrevera a lua a Duas Mães antes daquele dia horrível em que ele se tornara Águia que Voa Alto.

As lembranças de sua outra vida a assaltaram, confundindo seus pensamentos e tornando difícil para ela planejar. Ela ansiou pelo fim da hostilidade entre brancos e índios. Pensou em como ajudar os velhos amigos e orou por uma forma de apresentar Lisbeth à sua verdadeira herança, sem prejudicar o futuro dela.

Respirando fundo mais uma vez diante da impossibilidade disso tudo, Jesse virou-se em direção ao fogo fraco, sentou-se de novo na cadeira que rangia e pegou seu cesto de costura. Seus dedos apertaram a costura com poucos retalhos, enquanto pensava na situação difícil em que se encontrava. Pegando um retalho no chão, ao lado da cesta, ela dobrou e cortou na chita um triângulo pequeno já em seu colo. A monotonia de costurar logo a acalmou, fazendo-a avaliar sua situação, planejando sobre como proceder quando a luz do dia chegasse.

Os últimos pontos na faixa foram dados e Jesse se abaixara para dobrar a faixa de retalhos e colocá-la de volta na cesta, quando Flor do Campo precipitou-se pela porta. Soluçando, a mulher lançou-se aos pés de Jesse. O som de botas, batendo fortemente na terra logo do outro lado da porta, precedeu o aparecimento de Donovan. Seu corpo grande preencheu o espaço da porta. Vozes bêbadas dos soldados que o acompanhavam acrescentaram-se ao alarido.

Jesse levantou-se, sua saia grande escondendo parte de Flor do Campo. Ela tinha compreendido o suficiente pelos gritos ofegantes deles.

Calmamente, Jesse abaixou-se para pegar os retalhos que haviam caído no chão. Mãos firmes escondiam o coração disparado. Lisbeth tinha acordado e estava deitada, de olhos arregalados, fitando por sobre a coberta. Seus olhos negros moviam-se de Flor do Campo para Donovan e então para a mãe.

Jesse pegou os retalhos devagarinho. Um brilho de aço refletiu na luz da fogueira. Ela pegou sua tesoura e ficou ereta para encarar Donovan. No seu lado, um pulso apertava a tesoura. Donovan podia ver as juntas, que ficaram brancas, de apertar a tesoura, apontando as lâminas para cima como uma arma. Sua voz foi firme.

— Cabo Donovan. Há algum problema?"

Os bêbados atrás dele de repente se aquietaram e a voz retumbante do cabo arrastou-se numa resposta:

— O único problema aqui é essa índia... ela que não sabe seu lugar no mundo... e que corre quando a gente só quer ser amigo".

Flor do Campo tremia e murmurava imprecações entre a respiração. Os olhos cinza de Jesse fitavam friamente cada homem parado atrás de Donovan. Finalmente, após um longo silêncio, os olhos dela encontráramos dele:

— Talvez ela tenha visto as tentativas de amizade de homens brancos no passado. Talvez ela não queira ser amiga de vocês".

Donovan arrotou alto, cocou debaixo do braço e xingou uma resposta. Jesse estava ciente do movimento de Lisbeth, que pôs o pé para cima. A criança se encolheu, como uma bola apertada embaixo das cobertas, e cobriu o rosto. Os soluços de Flor do Campo pararam e ela se sentou, ouvindo.

— Esta mulher é prisioneira do exército?— Jesse perguntou.

— Prisioneira?... Não, não é prisioneira. Ela só veio atrás, quando trouxemos para cá esse bando de selvagens sem valor."

— Então, ela está livre para ir, se quiser? É lógico que o Exército não pede que vocês prendam uma mulher inocente. Com certeza o capitão não gostaria de que vocês a detivessem, contra a vontade dela.— Jesse mencionou o nome do capitão deliberadamente. Donovan esticou o beiço e olhou de soslaio para ela.

— Por que você se importa com uma índia velha e suja? Não há prêmio por pegar ela nem... rosto cheio de cicatriz. Você quer, pode ficar com ela.— Ele virou seu corpanzil e disse alto: — Eu não dou a mínima por uma índia velha e suja mesmo". Os homens com Donovan começaram a se dispersar.

O coração de Jesse estava disparado e ela orou para que Donovan não visse suas mãos tremendo, quando ela apertou a tesoura mais forte. Ela permaneceu em pé, olhando o cabo, ouvindo o que ele tentava dizer a si mesmo, fora do confronto. A idéia de falar dele ao capitão tinha funcionado. Ele podia estar bêbado, mas não era tonto e sabia que seu futuro no Exército dependia da opinião de seu oficial comandante.

Jesse terminou suas divagações:

— Boa-noite, cabo. Obrigada por ter trazido Flor do Campo para mim. Eu cuidarei para que ela tenha um lugar confortável para descansar esta noite, e com certeza encontrarei o senhor de manhã, no escritório do comandante, para decidir sobre o futuro dela. O senhor será recompensado por seu interesse em tentar melhorar as relações com os índios— Enquanto falava, Jesse deu um passo atrás, segurou a porta pesada de seu quarto e ameaçou empurrá-la e fechar na cara de Donovan. Ele retirou-se com uma imprecação evasiva aos seus homens. Jesse fechou a porta, encostando-se nela, tremendo.

O ar do quarto estava viciado, cheio do mau cheiro do corpo sujo de Donovan e do licor que ele tinha espirrado nele mesmo durante a festa noturna dos bêbados.

Lisbeth assentou-se ereta, abaixou a coberta e encarou Flor do Campo. A mulher olhou também. Então, entendendo, seus olhos brilharam. Ela olhou calorosamente enquanto dizia com delicadeza:

— Esta tem os olhos do pai dela".

Jesse entendeu, mas estava lerda para responder.

— Sim, os olhos do pai. E quando ela ri, algumas vezes penso que estou ouvindo Águia que Voa Alto."

Lisbeth começou a falar, mas Jesse a interrompeu:

— Lisbeth— ela ordenou, — você precisa ficar quieta agora. Flor do Campo e eu precisamos conversar sobre o que precisa ser feito. Não posso traduzir para você. Faz muito tempo e não consigo lembrar-me direito das palavras. Vai ser difícil eu conversar e você precisa ficar quieta".

Jesse agachou-se no chão, ao lado de Flor do Campo, e sussurrou:

— Preciso saber, Flor do Campo. Conte-me sobre Águia que Voa Alto. Por que ele não me procurou? O que aconteceu...".

Flor do Campo interrompeu:

— Quando Velha acordou e deu o alarme, a tempestade já tinha começado".

Jesse vibrou:

— Velha não morrera!".

Flor do Campo continuou a falar: "Águia que Voa Alto e os outros caçadores ficaram presos com a nevasca. Demorou vários dias para eles voltarem. Mesmo assim, Águia que Voa Alto montou num potro descansado e jurou trazê-la de volta. A neve estava tão alta no Portal do Búfalo que seu potro não conseguiu atravessar. Ele tentou várias vezes. Por fim, os anciões o convenceram, dizendo que, tão logo a neve baixasse, um grupo de busca dos nossos melhores rastreadores seria enviado".

Flor do Campo parou e sorriu implacavelmente:

— Muitos dias depois, a neve derreteu, descobrindo Vento Uivante. Pensamos que ele tinha matado você e Estrela Vermelha.. Não havia trilha para seguir".

Jesse implorou por mais:

— Conte-me de Águia que Voa Alto. Conte-me do meu filho". Lisbeth, com os braços em torno dos joelhos, olhava as duas mulheres. Ela nunca tinha ouvido esse tom de voz de sua mãe. Ela parecia feliz, e triste, e quase desesperada, tudo de uma vez. O que elas poderiam estar conversando?

— Quando ele pensou que você estivesse perdida, quando nós pensamos que estivesse perdida, pranteamos muito, Caminhando nas Chamas. Águia que Voa Alto cortou suas tranças e cantou a música de lamento.

Jesse, ansiosamente, perguntou mais:

— E agora, onde ele está? Ele estava na batalha? Ele luta contra os soldados?".

Flor do Campo ergueu a mão para deter a enxurrada de perguntas:

— Ele é um caçador, não um guerreiro. Mas agora os brancos tomam mais e mais. Muitos caçadores tornaram-se guerreiros. Águia que Voa Alto se lembra de que uma mulher branca foi sua mãe. É difícil para ele".

Com um olhar para Lisbeth, Flor do Campo continuou:

— Eu vou contar a ele de sua irmã e de Caminhando nas Chamas. Você pode contar a ela— Flor do Campo disse, mostrando Lisbeth com um gesto de cabeça — que Águia que Voa Alto, irmão dela, tornou-se um grande caçador, como o pai dela".

Jesse cochichou relutantemente:

— Minha amiga, eu não contei que ela é uma de seu povo— Ela apressou-se a defender-se: — Nós estamos entre o brancos agora e eles não seriam bons para ela, se soubessem".

Os olhos castanho-claros de Flor do Campo piscaram rapidamente enquanto replicava:

— Não há vergonha em ser filha de Cavalga o Vento, não há vergonha em ser irmã de Águia que Voa Alto".

Jesse gaguejou:

— Eu sei, mas...— Então tentou dar uma desculpa: — Eu conto a ela sobre o pai. Eu não menciono o povo, só isso".

Flor do Campo espantou-se:

— Ela pensa que o pai era branco? Ela pensa que o pai era aquele homem com quem você estava antes de vir para nós?".

Jesse concordou.

— Então você pegou as lembranças que pertencem a Cavalga o Vento e as deu a um homem branco sem valor?"

As emoções com as quais Jesse tinha lutado por anos, emoções que ela pensava há muito estarem esquecidas, brotaram. Lembranças que ela havia orado para que Deus levasse jorraram no quarto e Jesse as empurrou de volta, uma a uma, para os cubículos pequenos reservados ao passado em sua mente.

Jesse queria perguntar mais. Queria saber sobre Velha. Mas Lisbeth tinha ficado quieta o máximo que podia.

— Mamãe, como se fala o nome dela?"

Grata pela mudança de assunto, Jesse ajudou Lisbeth a pronunciar umas palavras lakotas. Então ela pronunciou o nome Lisbeth para Flor do Campo, que sorriu e ofereceu a mão à menina enquanto dizia:

— Lisbeth".

— Mamãe— Lisbeth perguntou, — A senhora acha que o capitão vai ajudar a Flor do Campo? Ele vai soltar os amigos dela?".

— O capitão é um homem bom, Lisbeth, mas Fala Muito e os outros valentes estavam lutando contra os soldados. Eu tenho medo de que ele tenha de puni-los. Flor do Campo não fez nada errado, mas ela jamais deixará seu pai sozinho aqui."

Enquanto falava, Jesse pegou sua agulhinha de fazer colchas da cesta de costura e começou a tentar remendar o rasgo na roupa de Flor do Campo. Não adiantou. A agulhinha não furava a pele de veado. Jesse puxou seu único vestido, além do que vestia, do gancho onde estava dependurado atrás da porta e ofereceu-o à amiga. Flor do Campo negou com a cabeça, mas Jesse insistiu.

— Foi seu vestido que eu usei, quando me tornei esposa de Cavalga o Vento. Agora eu retribuo a bondade."

Flor do Campo hesitou entre seu horror a qualquer coisa dos brancos, que vinha da relação em sua mente com a crueldade, e a bondade desta mulher que tinha sido sua amiga.

A necessidade venceu. Ela aceitou o vestido e vestiu desajeitada mente, tendo dificuldades com os fechamentos cheios de detalhes, murmurando contra as saias floridas e as mangas compridas.

Quando ela estava vestida, as duas mulheres pararam, olhando uma para a outra. Flor do Campo falou primeiro:

— O homem de quem você fala — esse capitão — se este homem fosse bom, ele não estaria defendendo as pessoas que tomam as terras onde nós caçamos. Ele saberia que o Grande Mistério nos deu a terra. Ele não enviaria seus homens para matar mulheres e crianças. Eu vou até Fala Muito, agora. Eles o puseram, junto com os outros atrás de uma porta que não se abrirá. Eu preciso encontrar um jeito de tirá-los de lá, para podermos pegar nosso caminho de volta para o povo— Ela estava fora da porta e tinha desaparecido na escuridão, antes que Jesse pudesse impedi-la.

Jesse não teve tempo de orar ou raciocinar sobre isto, mas ela sabia o que faria. Pegando sua própria colcha, ela a abriu inteira e colocou-a em sua cama.

— Lisbeth— ela disse, — vista-se. Recolha o que você puder. Enrole nesta colcha. Só o suficiente para caber na colcha, agora. E não se esqueça de minha Bíblia. Espere até eu voltar".

Alguma coisa nova na voz da mãe evitou a explosão de perguntas infantis. A mãe estava muito séria esta noite e Lisbeth assentiu com a cabeça, obediente mente, e escorregou para fora da cama, já começando a se vestir, ainda quando Jesse dava o primeiro passo para fora.

Os pés de Jesse nos mocassins davam passos silenciosos ao longo dos alojamentos das lavadeiras. Sentindo o caminho na escuridão, ela dava passos cuidadosos em direção ao depósito, onde sabia que haviam trancado Fala Muito e os outros guerreiros.

Não havia sinal de Flor do Campo, mas ela sabia que a filha não estaria longe da prisão do pai. Ela orou para que a bebedeira de Donovan prevenisse qualquer outro encontro. O homem fora barulhento, vil e excessivamente confiante. Com certeza ele não estaria esperando uma tentativa de fuga nesta noite.

Jesse quase tropeçou num corpo dormindo, do guarda que deveria estar a serviço. Procurando no bolso de seu avental, ela encontrou a chave e sorriu, implacavelmente ante a ironia de que, entre todas as mulheres do forte, Gilda a tivesse escolhido para guardá-la.

— Eu sei que você não quer a responsabilidade— Gilda disse — mas o capitão disse que alguém deveria ter uma extra. E você é a que mais depende deste lugar. Então, é isso. Pegue a chave e não a perca".

A que mais depende, Jesse pensou ao pegar na porta para destrancá-la. O guarda que dormia roncou e seu coração disparou. Mas ele somente cocou o nariz e se ajeitou, roncando alto.

Espiando do canto do depósito, Jesse viu Flor do Campo. Quando a porta do depósito abriu-se gradualmente para fora, uma mão forte agarrou a garganta de Jesse e empurrou-a abruptamente para dentro. Outra mão prendeu sua garganta e começou a apertar. Jesse bateu-se sem fazer barulho para tirar a mão, sinalizando — Amigo" freneticamente, sem parar, enquanto orava para que na escuridão alguém visse o sinal e a salvasse de ser asfixiada até morrer. Houve um sussurro fraco e ela sentiu que estava rodeada pelo pequeno grupo de guerreiros que tinha estado planejando sua fuga.

Fala Muito arrancou a mão que apertava sua garganta. Não era necessário palavras para comunicar os planos. Sinais furiosos iam para a frente e para trás na escuridão do interior do depósito. Em segundos os guerreiros haviam deslizado para fora do depósito, dando a volta no corpo do guarda bêbado, sem fazer barulho e desaparecendo na escuridão. Somente Fala Muito ficou. Flor do Campo veio para seu lado. Ela fez um sinal para Jesse:

— Você vem. Traga criança".

Jesse balançou a cabeça de um lado para o outro. Impulsivamente, ela pegou o fecho da corrente com a cruz de ouro, que estava pendurada em seu pescoço por tantos anos. Ela nunca a tinha deixado, mas então tirou-a e a colocou na palma da mão da amiga, fechando os dedos compridos de Flor do Campo sobre o metal e apertando a mão dela.

Flor do Campo tentou recusar. Era essa cruz que tinha feito Cavalga o Vento levar Jesse para o acampamento. Jesse a tinha usado para contar a ela sobre um homem que morrera anos atrás. Ela tinha dito que o homem havia vivido de novo. Flor do Campo duvidava disto, mas ela tinha visto que a crença deles neste homem e no livro estranho que liam havia criado um laço forte entre os dois. Mas ela tinha sempre se recusado acreditar nisto. Era só uma história bonita para contar em volta da fogueira.

E agora a cruz, a única coisa que Caminhando nas Chamas ainda tinha de seu tempo entre o povo, era oferecida a Flor do Campo. Na luz fraca, Jesse viu Flor do Campo segurar a cruz numa mão fechada, enquanto cruzava os pulsos sinalizando — Amor— Segundos após o gesto, Flor do Campo e Fala Muito desapareceram na noite.

 

Muita paz têm os que amam a tua lei.

Salmo 119:165

 

Jesse correu mais do que depressa de volta ao seu quarto para encontrar Lisbeth vestida, sentada obedientemente ao pé da cama, a colcha de retalhos marrom enrolada, ao seu lado. Jesse fez uma verificação, só para se certificar de que sua Bíblia estava na colcha enrolada. Apertando a mão de Lisbeth, ela cruzou o recinto até o estábulo. Alguns cavalos resfolegaram e bateram as patas no chão quando as duas entraram, mexendo-se sem parar na cocheira. Jesse assobiou baixo e eles ficaram quietos. Do outro lado da fileira de baias, veio um relincho de boas-vindas.

Rapidamente Jesse arreou Estrela Vermelha. Levantou Lisbeth até a sela e guiou a velha mula para fora, agora correndo, desesperada para ter o forte o mais longe possível delas, antes que a fuga fosse descoberta. Elas já estavam longe do forte quando Jesse falou.

— Lisbeth, mamãe fez algo que talvez você não entenda. Mas eu tinha de fazer isto. Eu ajudei meus amigos a escaparem e agora temos de nos afastar rapidamente antes que eu seja descoberta. Se formos pegas, Deus cuidará de nós... mas estou orando para que não sejamos pegas. Já há algum tempo eu estava sentindo que deveríamos sair do forte. Eu estava considerando se deveríamos ir para o Oeste, com o Sr. Wood, quando ele retornasse. Precisamos correr esta noite e orar para que Deus nos proteja.

Lisbeth ponderou as palavras da mãe, antes de responder. Então, olhando para trás, sobre o ombro dela, disse:

— Estou feliz de estarmos saindo, mamãe. Eu não gosto mais de lá. Venta muito, há muito pó e não há árvores. Quero ir para onde existem árvores e onde podemos ter amigos e ser como todos os outros— Ela hesitou e perguntou: — Mas mamãe, para onde nós vamos?".

— Para Dobytown— veio a resposta.

— Dobytown?!— Lisbeth só tinha ouvido histórias sobre este lugar de destino, mas, ainda assim, não poderia jamais imaginar sua mãe concordando em pôr o pé nesse lugar.

A fama de Dobytown, a apenas duas milhas do forte, tinha-se espalhado para muito mais longe. Habitada por jogadores, mulheres lascivas e criminosos, Dobytown era evitada pelos tementes a Deus e procurada pelos amantes do pecado.

E é exatamente por isso, Jesse pensou, que precisamos ir para lá. Ninguém no Forte Kearney pensaria em procurar Jesse lá. Primeiro eles procurariam em todos os acampamentos de imigrantes, no lado oposto ao forte. Isto tomaria um tempo precioso e propiciaria a elas, talvez... bem, Jesse não tinha um plano além de Dobytown, mas ela sabia que sua melhor oportunidade para escapar estava lá.

— Senhor— Jesse falou alto, — Senhor, precisamos da sua ajuda. Por favor, mande-nos alguém para nos ajudar a fugir. Faça Donovan — e ninguém mais — ir para o outro lado.— Ela parou, com medo de falar muito mais, pois seu coração estava batendo muito rápido, e o medo de ser pega e separada de Lisbeth estava crescendo. Se acontecer qualquer coisa a mim, Senhor,ela orou silenciosamente,o que será de Lisbeth?

Ela ficou pensando onde estaria, agora, a coragem com a qual ajudara os índios a escaparem. Mas foi coragem? Enquanto Estrela Vermelha trotava na campina aberta, a fadiga de Jesse aumentava. Lisbeth apertava as ancas da mãe e deitava a cabeça em suas costas. O que eu estava pensando? Jesse pensou. Que boba que fui. E mesmo assim, não conseguia arrepender-se de ter ajudado os amigos.

Não temas... Não temas... As palavras vieram novamente no ritmo da marcha de Estrela Vermelha. As palavras ecoaram do passado e, como sempre, deixaram-na reanimada. Jesse pôde orar de novo. Seus pensamentos voltaram-se de novo para Lisbeth. De fato, onde, neste território de Nebraska, uma mulher sozinha poderia construir uma vida para sua filha? Ela precisava de escolas, igreja e amigos. Ela precisava de uma sociedade que não fosse dividida entre "filhos de oficiais" e — Os outros".

Estrela Vermelha parou e resfolegou, olhando bem à frente. Suas orelhas pequenas moviam-se para a frente e para trás, tentando captar um som à frente. Com desânimo, Jesse percebeu que elas tinham perdido Dobytown.

Um homem estava curvado sobre sua fogueira. Com o barulho de Estrela Vermelha resfolegando, um dos seus cavalos relinchou. Sua voz, forte, retumbou na escuridão:

— Quem vem lá?".

Como Jesse não respondesse, ele gritou de novo:

— Quem vem lá? E que serviço faz à noite? Se você não falar, minha arma vai falar".

Lisbeth tinha acordado e se agarrado a cintura da mãe, com medo.

— Não atire! — Jesse gritou. — É só uma mulher e sua filha. Só. Por favor, não atire!"

O rifle baixou do ombro. A voz gritou de novo:

— E como posso saber que você está falando a verdade e não é alguém que não presta, de Dobytown, planejando roubar e matar?".

— Eu juro pelo Senhor Deus que fez o céu e a terra, somos só eu e minha filha.

— Então anda para perto da fogueira para eu ver vocês."

Jesse impeliu Estrela Vermelha para onde o homem pudesse vê-las inteiras.

Lisbeth agarrou-se à sua mãe e cochichou ruidosamente:

— Mamãe, aquele homem é preto!".

O homem levantou uma sobrancelha e olhou para os antebraços fortes. Esticando uma mão, segurou-a levantada sobre a fogueira e a examinou.

— Bem, eu serei....— ele exclamou, fingindo surpresa. — Eu sou mesmo! Agora, como você acha que isso aconteceu?— Ele deu um sorriso largo para Lisbeth e Jesse relaxou um pouco.

Então, Lisbeth respondeu: — Mamãe diz que Deus fez as pessoas de todas as cores, para que o mundo não ficasse chato. Nós conhecemos gente branca e temos alguns amigos marrons, mas nunca tivemos amigos pretos, antes. Nós temos de ir embora agora porque mamãe ajudou nossos amigos marrons e eles podem-nos pegar e levar a mamãe embora".

Jesse fez Lisbeth calar-se:

— Minha filha e eu estávamos nos dirigindo a Dobytown. Meu nome é Jesse King. Minha mula deve ter pego o caminho errado e...".

O homem segurou a aba do chapéu e a colocou mais atrás, na cabeça.

— Dobytown? Por que estão procurando por Dobytown? Dobytown não é lugar para uma mulher com sua filha..."

— E, eu sei disso... e sob circunstâncias normais eu jamais... mas..."

— Alguém está procurando você?"

— Não tenho certeza, mas se eles estiverem..."

Ele interrompeu:

— Mas se eles estiverem, jamais procurarão em Dobytown. É isso?".

Jesse perguntou a si mesma se Deus teria respondido sua oração por socorro tão rápido. Ela respondeu:

— Exatamente".

— Quem são estas pessoas marrons que ajudou?"

— Lakotas. No forte. Amigos meus. Eu destranquei a porta do quarto onde estavam presos e os ajudei a escapar."

O homem acrescentou:

— Então é melhor você ir fugindo também— Aproximando-se de Estrela Vermelha, colocou sua atenção em Lisbeth: — Você está com fome, senhorinha? Sirva-se. Atirei num coelho há algum tempo. Ainda tem uns pedaços de carne no resto da fogueira— Ele tirou Lisbeth da mula e, por alguma razão, Jesse não se mexeu para impedir. Ela desceu e ficou segurando as rédeas enquanto Lisbeth correu para a beira da fogueira.

— Parece que perdi os modos, madame— disse ele. — Meu nome é Joseph Freeman. Sou um ferreiro. Estava trabalhando em Dobytown há algumas semanas. Mas estou indo embora. Cansado dos palavrões e da baderna. Não é lugar pra homem que... bem, que se preocupa com as coisas do Senhor e tudo o mais. Há uma nova cidade começando, perto de Salt Creek. Nome de Lancaster. Imagino que toda cidade boa precise de ferreiro. Eu vou ficar lá um tempo e ver se gosto."

Enquanto falava, foi levando Jesse até a fogueira, ajudando-a a se ajeitar no chão, desarreando Estrela Vermelha, esfregando-a para baixo, para limpá-la, inspecionando sua patas com mãos firmes, antes de maneá-la com um conjunto novo de maneias que ele buscou em seu carroção.

Sua voz era agradável e Jesse ajeitou-se perto do fogo, enquanto uma paz inexplicável tomava conta dela.

Joseph Freeman divagava em seus planos:

— Há uma viúva lá, dona Augusta Hathaway. Aquela dona Hathaway é uma mulher boa mesmo. Uma mulher cristã de verdade. Nunca ouvi palavras ruins sobre ela, mas só coisa boa. Colegas dizem que aquela cidade nova vai crescer rápido. É certeza que a dona Hathaway vai ajudar vocês a se ajeitar lá. Se não têm nada contra viajar com um homem negro, eu fico feliz por ter vocês junto. Não é certo vocês irem para Dobytown. Não, madame... não está certo mesmo".

Freeman parou de repente. A mulher estava dormindo. A criança, deitada ao seu lado, encaixada na posição curvada da mãe, no chão.

— Acorda homem!... Joseph, quando é que você vai aprender a calar a boca? Você fez a mulher dormir, de tanto falar!— Ele riu dele mesmo e pôs seu saco de dormir a uma distância razoável da fogueira. Desenrolando a colcha da mulher para cobri-la, ele derrubou a Bíblia dela na terra. Pegou-a, limpou-a e colocou-a onde a mulher pudesse ver, tão logo acordasse.

Jesse e Lisbeth acordaram, na manhã seguinte, com o aroma do café fervendo e bolachas assando. Lisbeth rapidamente proclamou a bondade do amigo novo delas. Freeman ouviu a conversinha dela, sendo naturalmente bom, e explicou a Jesse:

— Vocês duas dormiram tão rápido à noite e eu achei que não ia se importar se eu cobrisse a menina. A Bíblia caiu da colcha, madame. Espero mesmo que não tenha estragado nada".

Jesse pegou a Bíblia e esfregou seu pescoço dolorido:

— Tudo bem, Sr. Freeman. Obrigada por sua bondade".

Joseph lhe ofereceu café e, ao pegar a xícara esfumaçando, disse:

— Se a senhora não se importar, madame, eu adoraria mesmo ouvir algumas palavras desse livro. Quer dizer, se a senhora não se importar, madame".

O pedido fez Jesse sentir-se mais à vontade com o estranho. Independentemente de seu passado, se ele amava a palavra de Deus, ela sentia que podiam ser amigos. Já acostumada à leitura bíblica de há muito tempo, Lisbeth instantaneamente pulou, assentou-se num tronco perto da fogueira e esperou sua mãe ler.

— O senhor tem alguma passagem preferida, Sr. Freeman?"

— Ah não, madame, nunca aprendi a ler. Qualquer uma. É que eu adoro ouvir as palavras.— Ele tirou o chapéu, abaixou a cabeça e ficou parado, como se esperando uma bênção. Jesse virou as páginas gastas e leu alto: — Em ti Senhor, confio...". É ela leu calmamente o salmo; Joseph ficou — Bebendo— as palavras. Quando Jesse acabou com: — Esforçai-vos, e ele fortalecerá o vosso coração, vós todos que esperais no Senhor— Freeman suspirou, e do fundo do coração disse: — Amém!— Ele enfiou o chapéu de volta na cabeça e, com súbita energia e poucas palavras, aproximou-se de Estrela Vermelha e de sua parelha. Arreando a parelha, voltou-se para Jesse.

— Como eu disse à noite, madame, estou indo em direção a Salt Creek, a umas 150 milhas daqui. Há uma viúva lá, dona Augusta Hathaway, uma boa cristã, que ficaria feliz se a senhora ficasse por lá, tenho certeza. Não há muita gente, só umas trinta pessoas estabelecidas lá, mas seja quem for que estiver procurando a senhora, não procuraria lá, com certeza.

— Nós ficaremos muito gratas ao senhor, se pudermos acompanhá-lo, Sr. Freeman. Eu não tenho como pagá-lo pela sua proteção, mas parece que o Senhor Deus o enviou para nós, e se o senhor acha que a senhora Hathaway não se importaria com duas peregrinas apeando à sua porta, então iremos com o senhor."

Enquanto falava, Jesse montou em Estrela Vermelha e gesticulou para Lisbeth vir para junto dela, mas a menina tinha suas próprias idéias de como preferia viajar.

— Eu não quero montar nesse cavalo velho, mamãe. Eu quero viajar no carroção com o Sr. Joseph!"

Embaraçada com o oferecimento da filha, Jesse tentou silenciá-la, mas Joseph interrompeu:

— Eu ficaria honrado em tê-la comigo, madame, se achar que não há problema".

Jesse hesitou, e Joseph interpretou mal a hesitação. Virou-se para Lisbeth:

— Senhorinha, não fica bem para você viajar perto de um homem que não conhece direito e sua mãe tem razão em preocupar-se. Agora você suba naquela mula e não dê mais trabalho pra sua mãe".

Lisbeth protestou de novo e Freeman agiu antes mesmo de pensar:

— Minha mãe costumava me beliscar forte, quando eu fazia o que você está fazendo agora. Seja uma dama, como sua mãe, e suba naquele cavalo!".

Sem esperar Lisbeth obedecer, ele levantou-a em seus braços grandes e colocou-a no lombo de Estrela Vermelha, onde ela assentou-se mal humorada, mas quieta. Tomaram o rumo da planície, enquanto a luz da manhã começava a tocar as pontas dos arbustos que salpicavam a vasta campina.

Na maior parte de sua vida, Jesse tinha sido levada, uma participante sem vontade na maior parte dos acontecimentos que tinham formado sua vida. O encontro com Flor do Campo tinha mudado isso. Sem tempo para pedir conscientemente a direção do Senhor e esperar por uma resposta, ela havia escolhido fazer algo que mudaria sua vida permanentemente. Enquanto viajava atrás do carroção de Freeman, ela teve tempo para pensar nos resultados de suas ações. Parecia que Deus tinha abençoado sua decisão. Ele tinha, além de tudo, mandado Joseph Freeman para guiá-las a uma nova cidade e a uma nova vida, e tinha transmitido sua paz.

No transcorrer da manhã, Jesse e Lisbeth seguiam o caminho atrás do carroção de Freeman e Jesse sentia cada vez mais que ela estava no centro da vontade de Deus para a vida dela. Acompanhar Joseph Freeman para a cidade de Salt Creek parecia o certo. Seu coração enchia-se com uma felicidade repentina, inexplicável, e ela começou a cantarolar. Freeman ouviu a música, pegou o tom e começou a cantarolar pelo caminho. Não demorou muito para começarem a cantar letras conhecidas. As vozes de Jesse, com seu contralto rouco, e de Freeman, com seu baixo bonito, ressoavam pela campina.

Lisbeth recuperou-se de seu acesso de raiva e começou a cantar também. As orelhas de Estrela Vermelha trabalhavam como loucas, primeiro levantando-se para a frente para ouvir o baixo vindo do carroção e então rapidamente para trás, para as vozes familiares que ela conhecia há tanto tempo.

Enquanto a música continuava, algo aconteceu. Mãos invisíveis estendiam-se entre os viajantes. Um pouco hesitantes, elas não tocavam, mas ficavam lá, prontas para o que fosse oferecido. A manhã passava, distâncias eram cobertas e as mãos invisíveis iam ficando mais perto. Um laço espiritual crescia, criado pela crença em Cristo, compartilhada entre eles.

Quando pararam para almoçar, Jesse pulou do lombo de Estrela Vermelha para o chão, alegremente, e perguntou a Freeman como ela poderia ajudar.

— Apenas leia um pouco mais, madame. Isso já é o suficiente. Eu tenho bastante bolacha dura e carne seca... um pouco de água mais e teremos café suficiente para chegarmos lá."

— Mas quero fazer a minha parte, pagá-lo de alguma maneira por sua bondade."

— Bem, então, madame, leia o Livro Bom e deixe-me cozinhar."

Eles comeram rápido e aprontaram-se para continuar. Enquanto Freeman subia no carroção, Jesse gritou:

— Sr. Freeman, se o senhor não se importar, a Lisbeth poderia viajar com o senhor esta tarde?".

Ele estava de costas para ela, mas, com a pergunta, ela viu os ombros largos relaxarem, ele se virou com um sorriso carinhoso e, piscando para Lisbeth, respondeu:

— Eu ficaria honrado, Senhora King— Ele queria falar mais, mas controlou-se e ajudou Lisbeth a subir para o seu lado. Juntos eles se aninharam e sacolejaram no caminho. As mãos invisíveis se juntaram, unindo-se e prendendo firmemente.

Benditos laços são os do fraterno amor,

Que assim, em santa comunhão, nos unem no Senhor.

O velho hino tornou-se real, com a passagem dos dias. Jesse viajava ao lado do carroção e não mais atrás. Eles cantaram todos os hinos que conheciam. No final da semana, Jesse já não tinha mais medo de uma perseguição do forte. Três estranhos tinham-se juntado em tal união que aqueles que não conheciam o Deus deles jamais poderiam entender.

Finalmente, uma noite, à beira da fogueira, Jesse contou a Freeman os detalhes de sua saída rápida do Forte Kearney. Ele ouviu sem muita reação e não contou nada de volta de sua história. O silêncio tinha-se tornado desconfortável, quando Lisbeth falou:

— Você fala diferente das pessoas do Forte Kearney, Joseph. Por quê?".

— Sr. Freeman, Lisbeth!— Jesse corrigiu.

Freeman sorriu.

— Tudo bem, Lisbeth. Pode chamar-me de Joseph. Acho que os companheiros de viagem não precisam ser tão formais. Ele se afastou da fogueira para a sombra, antes de responder à pergunta de Lisbeth. — Bem, então, Lisbeth, eu falo diferente porque eu não sou desta região aqui. Eu falo do jeito que o povo onde nasci fala.

— Onde você nasceu?"

— Carolina do Sul."

Lisbeth olhou para sua mãe:

— É longe, mamãe?".

— Muito longe, Lisbeth."

— Mais longe que Illinois?— Lisbeth olhou de Jesse para Joseph. Quando sua mãe concordou, Lisbeth falou abruptamente: — Mamãe diz que ela e o papai vieram todo o caminho de Illinois, foi uma viagem terrivelmente difícil e levou meses e meses. Então papai morreu e tivemos de ficar aqui no território de Nebraska e trabalhar para os soldados. Mamãe diz que o Senhor Deus a fez forte para trabalhar muito e cuidar bem de nós com a ajuda dele. Ela não queria outro marido depois que o papai morreu, e é por isso que ficamos". Lisbeth deu outra respirada. — Então, por que o senhor andou tudo isto até Nebraska, desde Carolina do Sul, Sr. Joseph?"

— Lisbeth! O Sr. Freeman não precisa nos contar sua vida pessoal. E você,jovenzinha, contou toda nossa vida pessoal sem um pingo de boas maneiras!"

Freeman interrompeu:

— Não há problema, madame. Não tenho muito para falar sobre mim. Eu fui para guerra e fiz trincheiras e coisas do tipo por quase quatro anos. Entrei numa luta uma noite, fui golpeado na cabeça. Quando voltei a mim, estava deitado em um monte de feno, em um campo. Fui para o Oeste. Não parei até chegar no Rio Missouri. Continuei trabalhando em meu caminho para o Oeste, e aqui estou".

Lisbeth não ficou satisfeita.

— A sua família vai vir aqui quando você se acertar?"

— Lisbeth!— Jesse quase gritou.

Lisbeth defendeu-se:

— Bem, mamãe, aquele cabo Donovan disse que, quando ele se estabelecesse, sua esposa e filhos viriam para o Oeste, e achei que talvez a do Sr. Freeman também".

Com a menção de família, o rosto de Freeman tornou-se uma máscara. O sorriso tolerante deixou seu rosto e ele baixou o olhar para as mãos. Ainda assim, respondeu a Lisbeth honestamente. Num sussurro, ele disse:

— Tinha esposa. Dois meninos. Foram vendidos para fora da fazenda antes da guerra".

O coração de Jesse condoeu-se pelo homem. Ela ficou parada, incomodada, esperando-o terminar. Ela não queria ouvir a história dele, mas parecia que ele precisava contá-la. Ele olhou firme para Lisbeth, que olhou firme de volta, não acreditando. Ela tinha ouvido sobre escravidão, mas isto nunca a tinha tocado. A guerra tinha vindo e os soldados deixavam o forte em bandos. Recrutas voluntários de Iowa tinham tomado o lugar deles. Isto tinha tido pouco efeito na vida dela. Mas ali, à sua frente, estava um homem — um homem bom — que tinha perdido sua família. Freeman continuou:

— O Massah prometeu que nunca faria isto, mas o tempo passou, ele voltou atrás em sua palavra. Acho que todos eles voltam atrás, algumas vezes. Quando a guerra veio, eu fugi na primeira chance que tive... procurando Mattie e os meninos. Não adiantou. Era como se tivessem desaparecido da face da Terra. Espero que tenham fugido. Algumas pessoas ajudaram-nos quando fugimos". Os olhos de Freeman se entristeceram. Então, sussurrou para si mesmo: — Espero que tenham escapado— Ele tinha retornado a um mundo do passado que Jesse e Lisbeth jamais entenderiam ou conheceriam.

Aspirando profundamente, ele passou sua mão pela testa e olhou de novo para Lisbeth. Não havia sorriso, mas ela percebeu a bondade em sua voz quando ele disse sinceramente:

— Seja grata a Deus por ter feito você nascer onde nasceu, Lisbeth. Você teve tempos difíceis, eu sei. Mas é livre. Você nunca precisou temer que sua mãe fosse vendida para longe de você, nunca precisou ter medo de você ser vendida. Seja grata".

Lisbeth assentiu com a cabeça, solenemente:

— Sr. Joseph, senhor— ela ofereceu, — Eu vou orar por sua Mattie e pelos seus meninos. Mamãe diz que o Senhor cuida de todas as suas crianças. Mamãe diz que nós vamos ver o papai algum dia no céu. Algumas vezes, à noite, quando eu desejo ter um papai, eu penso só no céu e finjo que ele está-me abraçando apertado e então me sinto melhor. Talvez o senhor pudesse pensar sobre o céu também... e talvez...— a vozinha tremeu. Ela estava emocionada demais para continuar.

Um sorriso leve voltou ao semblante ferido, arrasado de Joseph:

— Sabe, Lisbeth, é isto mesmo que eu faço. Quando dói tanto e não posso mais agüentar, é então que olho para Deus, pedindo socorro, e parece que Ele tem sempre uma forma de ajuda. Esta noite Ele me ajudou com você dizendo estas coisas boas. Você ajudou-me a lembrar que o Senhor sabe onde Mattie e meus meninos estão e, algum dia, vou entrar naquele portão e lá dentro vai haver três rostos sorrindo e gritando, e glória!— Ele quase gritou: — Nós vamos ter uma festa então, com certeza!". Deu um tapa nos joelhos e levantou-se de repente. Jesse pulou com o barulho súbito.

Os viajantes se apressaram a inspecionar os cavalos, abrir as colchas de dormir e lavar as xícaras de café no riacho próximo. Com o uivo dos coiotes, Jesse e Lisbeth deitaram-se sob o acolchoado que repartiram, olhando o fogo se extinguir. Jesse pensava no futuro, enquanto Lisbeth só conseguia pensar no passado, de famílias separadas, de pais separados dos filhos e de homens vendendo outros homens. O mal chamado escravidão tinha um rosto, agora. Tinha um nome também. Joseph Freeman.

 

Confia no Senhor de todo o teu coração, e não te estribes no teu próprio entendimento. Reconhece-o em todos os teus caminhos, e ele endireitará as tuas veredas.

Provérbios 3:5,6

 

Na manhã do quinto dia da jornada, três viajantes cansados subiram uma colina e pararam sob um céu azul para observar o que havia à frente deles. Joseph Freeman conhecia a paisagem.

— Aquilo são planícies de sal."

A pradaria vasta, sem árvores, era marcada por uma grande área de um branco brilhante. Liso como um vidro, parecia um mármore polido. A terra era ressecada, árida e coberta com umas duas ou três polegadas de sal. Alguém tinha tentado recolhê-lo e havia deixado os destroços de duas fornalhas velhas e duas cabanas.

— De onde vem isto, Joseph?— Lisbeth perguntou.

— Vê as rachaduras lá?— Joseph apontou os buracos na terra seca. Parando sua parelha, ele pulou fora do carroção e foi até uma das rachaduras. Era tão funda que seu braço entrou até o cotovelo. — Agora você vê porque estamos viajando em volta e não pelo meio disto? Eu perderia uma roda inteira do carroção se caísse em uma dessas rachaduras. Coisa engraçada, entretanto. Eu ouvia falar mas não acreditava, até ver isto acontecer. Duas vezes por dia, como um relógio mesmo, esta base aqui inunda. Água rasa, só umas duas polegadas de profundidade, mas, quando afunda de volta para as rachaduras, deixa o sal para trás. As pessoas vêm de todos os lugares para raspar o sal. Às vezes ficam umas duas ou três polegadas de sal."

Jesse ponderou sobre o futuro das Planícies de Sal. Joseph falou da indústria de sal, próspera, que todos os colonizadores esperavam surgir e estimular o crescimento de Lancaster. Jesse viu o potencial. Ser parte de uma comunidade em crescimento daria a Lisbeth benefícios que ela nunca teria no Fort Kearney.

Eles viajavam para o sudoeste, descendo numa planície. Viram umas árvores, um elmo gigante e algumas alfarrobeiras entrecortadas por moitas de ameixeiras. Quando o vilarejo Lancaster apareceu à vista, o coração de Jesse ficou pesado. Os únicos prédios avistados eram uma estrutura de dois andares de grés, duas cabanas de madeira, uma cabana de placas de grama, um prédio pequeno de pedras e um pequeno abrigo rústico cavado na colina! Uma inspeção mais minuciosa revelou duas lojas, uma loja de calçados, seis ou sete casas, mas nem rua principal, nem árvores, nem igrejas. Eles atravessaram vários leitos secos de riachos. Um coiote correu à vista deles, parou, olhou em sua direção e continuou sem preocupação. Uma pequena multidão tinha-se juntado fora de uma das cabanas maiores. Joseph puxou sua parelha para a sombra da cabana. Ninguém pareceu notar a chegada dos estranhos. Toda atenção estava num homem alto, barbado, fazendo um discurso.

— Senhoras... e senhores... Embora este não seja um anúncio oficial, sinto que é nosso dever informá-los de que a comissão se reuniu em sessão fechada e a escolha foi unânime para fazer de Lancaster a grande capital deste estado enorme... O estado de Nebraska!— Vivas vieram das cerca de vinte pessoas que tinham estado escutando atenciosamente o discurso. Uns poucos homens jogaram os chapéus para o ar, com entusiasmo. Um grupo de meninos, aparentemente vindo do buraco de pesca mais próximo, conversavam, com a pesca da manhã pendurada na linha. Parando momentaneamente, eles perderam depressa o interesse e continuaram na direção da cabana somente visível na direção sudoeste, perto das únicas árvores avistadas.

Tão logo o discurso terminara, uma mulher grande, vestida de preto, veio ao encontro deles. Com sua voz suave, maternal, gritou:

— É você, Joseph Freeman?".

— Sou eu, Sra. Hathaway. Trouxe umas pobres almas comigo."

Quando Augusta Hathaway olhou para elas, Jesse mexeu-se nervosamente em sua sela. A mulher era uma observadora perspicaz. Seus olhos moveram-se do rosto de Lisbeth — aquilo era uma piscada ou somente o brilho do sol fazendo-a semicerrar os olhos? — para o de Jesse, para Estrela Vermelha; olhou a roupa, a colcha de dormir e os pés de Jesse com mocassins. Jesse sentiu-se como se tivesse sido pesada numa balança e não tivesse sido aprovada.

Mas então o rosto redondo enrugou-se com um sorriso largo, os olhos se aqueceram e, sim, tinha sido mesmo uma piscada que ela tinha dado a Lisbeth.

— E que turma variada vocês são, Joseph. Bem, vão direto para casa. Há muito almoço para vocês todos.— Ela virou-se para Jesse: — E então, você pode contar-me de que jeito juntou-se a esse miserável desgraçado?".

Augusta Hathaway era, aparentemente, acostumada a ser obedecida. Antes que Jesse pudesse responder ou apresentar-se — de fato, até mesmo antes de Lisbeth poder soltar qualquer palavra — a mulher corpulenta tinha pegado as saias empoeiradas dela e estava andando a passos largos, afastando-se deles na direção de um sobrado de madeira a pelo menos cem jardas dali. Chegando à casa, Jesse desceu do cavalo, um pouco retraída. Augusta Hathaway arremeteu-se sobre ela, puxou-a para dentro, empurrou-a para uma cadeira em uma mesa comprida, colocou um prato cheio de comida quentinha, saindo fumaça, à frente dela, deu um tapinha no queixo de Lisbeth e então, mãos nos quadris, mandou que Joseph Freeman contasse a ela exatamente o que ele pretendia ao aparecer à sua porta com duas bocas extras para se alimentarem sem explicação.

Antes que Joseph pudesse responder, Augusta virou-se para Lisbeth:

— Tome todo o leite que você quiser, doçura. A jarra está cheia, a vaca está lá atrás e há muito mais no lugar de onde veio".

Joseph começou a responder, mas Augusta interrompeu novamente, desta vez falando para Jesse:

— Esse homem é o melhor ferreiro que eu conheço e eu tentei fazê-lo acreditar em mim quando lhe disse que Dobytown não era lugar para tementes a Deus, mas, como um homem mesmo, ele não acreditaria em mim...teve de descobrir sozinho. Bem como um homem mesmo!".

Sem esperar uma resposta de Jesse, virou-se para Joseph, de novo:

— Bem, fale, homem! Que diabos você planeja fazer agora? Finalmente enxergou a razão de minha oferta? Vai ficar e ser parte desta nova cidade? Você ouviu? Vai ser a capital do estado. Então, isso sim é algo de que se deve fazer parte, Joseph! Isto aqui é um lugar de futuro. Escute-me e vou dar um jeito de você arrumar a sua vida!".

Jesse estava começando a imaginar se alguma vez havia esperado uma resposta para qualquer uma de suas perguntas.

Augusta continuou:

— Minha nossa, Joseph, assente-se e coma alguma coisa. Fiquei tão ligada ao futuro que me esqueci de lavar um prato para você. Desculpe-me por isso— Enquanto falava, encheu um prato com rosbife e batatas que frigiam no fogão de ferro, no canto da cabana. Servindo a mesa sem cerimônia, ela deu o Joseph talheres embrulhados num guardanapo bem branco. Joseph assentou-se e começou a comer.

— Bem, eu imagino que ele não vai me dizer nada, então, minha querida, como você veio para Lincoln? Este é o novo nome, Joseph, Lincoln. Eles tentaram pegar os votos contra a condição de estado —apesar de que os democratas nunca votariam para a condição de estado se eles soubessem que a capital teria o nome do nosso querido presidente, já falecido.— Augusta esfregou uma lágrima imaginária, em respeito ao presidente assassinado. — Humm! Bem como os homens. Eles vão usar qualquer coisa para tentar manipular seus caminhos. Mas isto não funcionou! Nós estamos na União como um estado, e Lincoln será a capital. E você, Joseph, vai gostar de saber que, em Nebraska, os negros vão poder votar!"

Joseph olhou para cima, sem acreditar. Augusta assegurou-lhe que era verdade. Jesse esperou receber permissão para responder à pergunta. Agora, que pergunta ela responderia, se lhe fosse dada a oportunidade de falar, em algum momento? Como sempre, Lisbeth tomou a iniciativa e disse:

— Nós nos perdemos no escuro, e Estrela Vermelha nos levou para a fogueira do Sr. Freeman. No começo, fiquei com medo porque estava escuro e ele era negro e tinha uma arma. Então, ele sorriu e eu sabia que ele iria ser meu amigo. Eu gosto de gente com voz forte. A senhora tem uma voz forte também, Sra. Hathaway, mas a senhora piscou para mim e me disse que eu podia tomar todo o leite que eu quisesse e eu acho que a senhora vai ser minha amiga também!".

Augusta deu uma risadinha.

— Bem, parece que minha impetuosidade exterior falhou em lograr você, jovenzinha. Eu preciso treinar melhor meu comportamento. Nunca conte por aí que Augusta Hathaway é um alvo fácil!— Ela piscou bastante para Lisbeth e virou-se com um grande sorriso para Jesse. Jesse suspeitou que Augusta Hathaway tinha mesmo de convencer alguém de que ela era uma mulher a ser temida. Apesar da voz forte e dos modos expansivos, ela exalava bondade como um grande acolchoado pronto para se espalhar sobre todos à sua volta.

Finalmente, ela perguntou a história de Jesse e esperou uma resposta. Assentando-se na cadeira de balanço perto da lareira, na cozinha, ela pôs as mãos no enorme colo e esperou Jesse falar. Jesse olhou para baixo, para suas mãos envelhecidas pelo trabalho. Ela esfregou as duas juntas, segurou um cacho de cabelo isolado e o pôs de volta à nuca. Joseph engolia o café com barulho, claramente desconfortável com o silêncio que tinha subitamente baixado sobre o interior da cabana. Lisbeth cruzava e descruzava as pernas embaixo da mesa e sorvia o leite regaladamente. Augusta esperou pacientemente. Por fim, Jesse juntou os pensamentos e falou:

— Minha filha e eu moramos em Forte Kearney por muitos anos. Fui lavadeira desde que Lisbeth era um bebê. Meu marido morreu antes de Lisbeth nascer e fomos forçadas a nos defender sozinhas. Nós deixamos o Forte Kearney na noite em que nossa segurança estava ameaçada e Deus guiou-nos até a fogueira do Sr. Freeman. Ele concordou que o acompanhássemos até aqui. Precisamos de uma nova casa. Parece que Joseph acha que Lanças ter — Lincoln —será uma grande cidade algum dia. Preciso pensar em minha filha. Uma cidade talvez pudesse oferecer uma escola — e a chance de uma vida melhor."

Augusta Hathaway queria saber mais. Mas os olhos cinza que encontraram os seus estavam levemente cobertos, avisando para não perguntarem muito. Eles ainda continuavam a olhar diretamente, sem se desviarem. A mulher tinha força, pensou Augusta. Força para desistir e sair de um lugar ruim, viajar por alguns dias e começar uma vida nova. Ela disse isso para Jesse.

— Força? Não, dona Hathaway. Eu não tenho coragem, por mim mesma. Eu sempre tive dificuldades em tomar decisões, mas o Senhor tem sempre cuidado de nós, apesar de minhas fraquezas.

Vir para cá simplesmente parecia a coisa certa a fazer."

Augusta perguntou:

— Esta era mesmo a única coisa que você podia fazer?".

Jesse respondeu com honestidade:

— Não. De fato, quando saímos de Forte Kearney, estávamos esperando pela chegada de um velho amigo que nos tinha convidado para acompanhá-lo até Oregon. Mas não podíamos esperar. E eu tinha decidido que não iria, de qualquer forma".

— Mas por que não, se você tem amigos lá?"

Jesse lutou para encontrar palavras a fim de explicar sua decisão.

— Eu não sei, realmente. Não parece certo, de qualquer jeito. Lisbeth nasceu aqui, na campina.— Jesse olhou sobre o ombro de Augusta, na distância. — Há alguma coisa na campina. Cresce em você, entra no seu sangue, eu acho.— Ela tornou a olhar para Augusta e corou, embaraçada. — Parece bobo e banal..."

Augusta interrompeu:

— Tudo bem, querida. Eu também sinto isto. Eu cresci em Minnesota, cercada por árvores — bem perto de casa. Você não via nada de terra. Era como ficar fechado num lugar, imaginando o que havia lá fora. No minuto em que pus o pé do outro lado do Rio Missouri, sabia que este era o meu lugar. Nebraska é um lugar onde você pode ver o horizonte sem barreiras e o futuro— A voz aumentou sua delicadeza e caiu alguns decibéis: — Esta terra ficou com meu marido, minha irmã e os filhos dela... cólera... Eu deveria odiar isto aqui, mas não odeio. Encaixo-me bem. Lincoln vai ser uma grande cidade, um dia, e o Hotel Casa Hathaway será uma parte da cidade!".

O interesse de Joseph foi, outra vez despertado.

— Casa Hathaway, madame?"

A energia de Augusta voltou e ela ficou em pé, abruptamente, com suas mãos grandes gesticulando expansivamente.

— Isso mesmo, Joseph... Casa Hathaway. Haverá todo tipo de pessoas chegando em Lincoln, brevemente: carpinteiros e pedreiros e todo tipo de pessoas para construir. Eles precisarão de uma prefeitura, primeiro, e então haverá mais — uma universidade, uma penitenciária, igrejas, escolas. Eu já tenho servido jantar a uma meia dúzia de solteiros toda noite. Estão aqui, procurando terrenos, no interior do país. Posso cozinhar e limpar como ninguém e a Casa Hathaway vai ser o melhor hotel das campinas! Então, Joseph, você vai ou não vai começar aquele alpendre sobre o qual discutimos e abrir sua loja de ferreiro? Desde que você se foi, tenho expandido os planos também. Por que não um estábulo com cocheiras de aluguel?"

Joseph deu um sorriso largo, pelos planos sempre em expansão para seu futuro.

— Dona Hathaway, gastei muitas horas pensando em seus planos. Parece que eu não encontraria uma chance melhor de fazer minha vida em nenhum outro lugar. E se eles vão deixar-me votar neste estado aqui, então digo que Nebraska é minha casa, de agora em diante! E honras a Lincoln!"

Augusta virou-se para Jesse.

— Sra. King, um hotel é um monte de trabalho prodigioso. Você tem sido lavadeira para os militares infernais, então você conhece trabalho árduo. Se você quiser juntar-se a mim, ofereço um quarto para você e Lisbeth, refeições e um salário — embora pequeno, no começo — em retribuição por seu serviço com a lavanderia e a manutenção da casa, e seja lá o que for que aparecer."

O rosto de Lisbeth brilhou e ela olhou ansiosa para sua mãe. Jesse fez uma pausa apenas momentânea. Gastar mais dias viajando para encontrar uma outra cidade para estabelecer-se não era de seu agrado.

— Ficarei honrada se a senhora nos aceitar, Sra. Hathaway."

— Há um só pedido que você pode achar difícil.— A mulher cruzou os braços no peito.

Jesse levantou o olhar com apreensão ao semblante repentina¬mente grave.

— Você não pode continuar a me chamar de senhora Hathaway. Sou apenas a simples Augusta para todos os trinta cidadãos ilustres de Lancaster-que-virou-Lincoln; e não vou aceitá-la com esses ares de formalidade. Você me chama de Augusta e eu a chamo de Jesse, e pronto! E você, jovenzinha— Augusta voltou-se para Lisbeth, que se sentou direito e olhou subitamente séria — você me chama de tia Augusta. Isto vai espantar qualquer alma curiosa que simplesmente não sossega com sua própria vida.

Dia 22 de junho de 1867 é lembrado na história de Nebraska como o dia em que sua capital foi escolhida. Em nenhum lugar está escrito que outra cerimônia importante foi testemunhada nesse dia. É claro, a única testemunha era um escravo libertado recentemente. No entanto, foi um dia muito significativo para Jesse e Lisbeth King, recém- saídas do Forte Kearney, Nebraska. Adotadas na família da senhora Augusta Hathaway, a tão conhecida hospedeira, as tão desconhecidas mulheres King começaram uma vida nova.

 

E, tudo quanto fizerdes, fazei-o de todo o coração, como ao Senhor, e não aos homens.

Colossenses 3:23

 

Augusta e Joseph estavam certos sobre o potencial de crescimento do vilarejo Lancaster. Novos moradores vieram, aos montes, expandindo a população e trazendo a Augusta e Jesse mais serviço do que elas tinham previsto. Elas faziam assados, conservas, e davam cama aos viajantes, trabalhando do nascer ao pôr-do-sol, com pouco tempo de folga. Augusta mantinha-se informada dos eventos que aconteciam, lendo os artigos do jornal Commonwealth em voz alta, sem pagamento por seu comentário editorial.

Há cinqüenta milhas de distância, em Omaha, o zombeteiro Republicano trazia: Ninguém jamais irá para Lincoln...sem rio, sem estrada de ferro, sem carros a vapor, sem nada...cinqüenta milhas distante de qualquer lugar. Augusta tomou a desconsideração para si. — Ah! Só besteiras, mais nada. Eles queriam a capital para eles e, agora que perderam, não têm mais nada para dizer."

Augusta mal tinha acabado seu comentário quando uma carruagem elegante parou do lado de fora do hotel. Três cavalheiros usando cartola e ternos bem talhados desceram e pararam, olhando a Rua Market. Um deles finalmente saiu do trio e entrou no hotel, limpou sua cartola cuidadosamente e perguntou:

— Seria possível servir jantar extra para três hóspedes esta noite?".

Augusta, que jamais dispensaria serviço, assegurou ao visitante de que a Casa Hathaway ficaria contente em servir a ele e a seus companheiros um bom jantar — em cerca de duas horas.

O homem curvou-se formalmente e saiu para avisar seus amigos.

— Ah!— Augusta vociferou, — Ele praticamente franziu o nariz quando entrou pela porta. Acha que a Casa Hathaway não é boa o suficiente para ele!".

— Augusta— ralhou Jesse. — Não está certo. Você nem conhece o homem."

— Conhecê-lo?— replicou Augusta. — Eu o conheço muito bem. Aquele é o Jonathan Daniels, de Omaha. Foi ele que ficou muito bravo quando levaram escondidos os registros do estado para fora de Omaha, naquela tempestade do último inverno. Eu, algum dia, gostaria de saber o que ele está aprontando! Pense rápido, Jesse. O que nós podemos servir no jantar que seja... elegante? Se aquele cara tiver uma pequenina desculpa para derrubar Lincoln, ele o fará. Um daqueles outros homens é, provavelmente, um repórter, e tenho certeza de que adorariam escrever um bom artigo sobre quão impossível é ter uma boa refeição no Oeste! Agora, Jesse, diga o que fará, pois é nosso dever cívico alimentar aqueles homens com a melhor refeição que jamais tiveram."

Jesse não poderia argumentar contra um dever cívico. Joseph foi requisitado para caçar galinhas da campina.

— Lisbeth, venha cá!— Jesse gritou. — Augusta, nós voltaremos em pouco tempo. Tenho umas idéias." Catando seus chapéus, as duas já estavam do lado de fora, antes que Augusta pudesse fazer muitas perguntas. Dirigindo-se para fora da cidade, Jesse começou a colher uma raiz aqui, algumas flores ali...

— Lisbeth, procure um arbusto com flores laranja-claras — ali! Lá! Aquele um! Veja como as borboletas vão para ele. Cavouque fundo e traga algumas raízes. Nós usaremos aquele para dar sabor à sopa. Agora... mais um pouco desses...— Jesse tirou algumas folhas de um planta e as socou no saco de musselina que ela tinha trazido e que já estava cheio.

— Mamãe, onde você aprendeu sobre todas estas plantas? Você nunca cozinhou com elas antes."

Jesse sorriu.

— Lembra-se quando eu lhe disse o quanto os lakotas haviam-me ajudado e ao papai? Então, eles me ensinaram sobre as plantas também, e estas coisas são todas comestíveis. E têm um gosto maravilhoso. Eu não acho que aqueles cavalheiros de Omaha algum dia já tenham provado tal sabor."

Lisbeth olhou para a mãe. Jesse deu um sorriso largo.

— Eu também aprendi a fazer um assado de carne de cachorro...— Lisbeth fez uma careta e Jesse acrescentou: "...mas não acho que poremos isto no cardápio desta noite... embora, na verdade, seja muito gostoso".

De volta para a cozinha, Lisbeth depenou as aves enquanto Jesse fazia uma salada de vegetais silvestres e cebola. As aves foram assadas no forno, ao lado de um bolo de ameixas do campo.

— Vamos fazer um chá de ervas, em vez de café. Diga-lhes somente que é importado— Jesse cochichou.

— Mamãe, você me ensinou a nunca mentir— disse Lisbeth reprovando.

— Bem, ele é importado — da campina!"

Justamente quando o bolo saía do forno, Jonathan Daniels, Timothy Price e Pythias Young assentaram-se à sua mesa, a alguns pés de distância dos hóspedes regulares, conforme requisitado. Eles resolviam negócios importantes enquanto a cozinha os servia.

Pythias Young foi o primeiro a notar que aquelas coisas não estavam bem certas. Olhando seu prato, ele fincou os garfos nos vegetais, com suspeita. Mas, faminto, continuou. Com um suspiro, murmurou:

— Imagine se eu tinha de esperar uma refeição apropriada aqui na fronteira — e deu uma bocada. Deu mais uma bocada. Então, experimentou as cenouras silvestres. A esta altura, Jonathan e Timothy, o membro menos tímido do grupo, tinham atacado as galinhas da campina com gosto.

O encontro planejado forçosamente teve de esperar, pois, os três cavalheiros de Omaha esqueceram-se de que eram finos e precisavam dar um bom exemplo para os pioneiros rudes de Lincoln.

Augusta e Jesse serviram pratos cheios da comida a todos os hóspedes, que agiam como se eles comessem nesse grande estilo todas as noites na Casa Hathaway.

Jesse gostaria de ter abraçado o esquelético Tom Mason quando ele comentou alto o suficiente para ser ouvido pelos três:

— Mais uma refeição excelente, Sra. King. Eu sempre digo que a Casa Hathaway, em Lincoln, sabe como servir alimentação fina para todos os gostos".

— Obrigada, Sr. Mason— Jesse falou normalmente. Os olhos dela brilharam. Augusta deu um tapinha nas costas dele e ofereceu-lhe mais chá.

— Chá?— Jonathan Daniels perguntou do outro lado da sala.

— Importado!— vociferou Augusta enquanto enchia uma xícara. — Combina mais com a sobremesa do que café. Veja se concorda!— E colocou um pedaço grande de bolo no prato dele.

Os cavalheiros de Omaha estavam acalmando-se em relação a Lincoln. Pythias começou a achar que talvez seu editorial não devesse ser tão descaradamente negativo, depois de tudo isso. Jonathan perdeu as esperanças de ter umas piadas brilhantes para contar no clube, quando retornasse.

— Ah! então, do que era a sopa deliciosa servida esta noite, senhora King?— perguntou em sua voz mais macia.

Jesse não pôde resistir.

— Assado de carne de cachorro, senhor. E a especialidade da Casa Hathaway."

Os três homens de Omaha ficaram horrorizados. Pythias apertou a beirada da mesa com ambas as mãos e fez força para reter a comida. Jesse enrugou os lábios, arqueou uma sobrancelha e deu uma risadinha, curvando os cantos da boca. Da ponta da cozinha, Lisbeth abafou o riso.

Os cavalheiros olharam para Jesse e depois um para o outro.

— Ah! uma piada, piada da fronteira, que divertido!— Eles riram o bastante para cobrir seus suspiros de alívio — e Jonathan, o inteligente, gargalhou: — Assado de carne de cachorro, especialidade da Casa Hathaway! Esplêndido! Adorei!". Jonathan tinha sua piada para a próxima noite no clube. Ele ficou mais caloroso em relação à Casa Hathaway e a Lincoln. O pequeno vilarejo estava atingindo a maioridade, depois de tudo.

Tendo comido bolo até empanturrar-se, de acordo com Augusta, os cavalheiros subiram as escadas para os seus quartos. Os outros hóspedes os imitavam e caçoavam deles enquanto Jesse tentava sinceramente não participar, sem o conseguir. Quando o último hóspede havia deixado a sala de jantar, as três mulheres compartilharam sorrisos triunfantes.

Na manhã seguinte Jonathan, Pythias e Timothy partiram na diligência das sete da manhã para Elkhorn e de lá para Omaha. O Republicano, uns dias mais tarde, publicou um artigo pequeno que Tom Mason correu mostrar para Augusta.

Os proprietários da Casa Hathaway, em Lincoln, não fazem nada pela metade. Servem as refeições mais finas, usando o que a campina oferece, para criar pratos especiais que este escritor achou muito apetitosos.

— Imagino que achou!— bufou Augusta quando leu o artigo para Lisbeth e Jesse. — Ele comeu dois pratos cheios de legumes!— O artigo concluía:

O autor ficou muito impressionado com o rápido crescimento de Lincoln. Graças a cidadãos como aqueles encontrados na Casa Hathaway, e com o desenvolvimento da indústria do sal, ela se transformará, sem dúvida, numa boa cidade.

Apesar do reconhecimento relutante de Omaha, Lincoln ainda tinha seus problemas. Os comissionados falharam em sua primeira tentativa de conseguir levantar os $50,000 necessários para uma capital.

Augusta foi para a primeira venda de terras e apressou-se de volta a casa, proprietária orgulhosa do lote adjacente à sua concessão. Ela se orgulhava do preço barato de somente vinte e cinco centavos sobre o valor estimado de quarenta dólares e lamentava a tolice daqueles que recusavam especular. Mas a dela fora a única compra feita naquele dia.

— É uma cidade muito bem pensada, Jesse— Augusta argumentou. — Eles guardaram quarteirões e lotes para escolas, parques, igrejas e feira. Olha só, eles permitiram lugar para três pensões. As pessoas virão de todos os lugares. Eu não consigo entender por que aqueles homens idiotas não vêem isto. E bem como homens mesmo, eles temo seu próprio modo de agir e temem fazer as coisas de outra maneira! Por que é que você não compra um lote? Eu lhe empresto o dinheiro, com certeza!— Augusta estava expansiva em seu desejo de repartir o futuro de sua amada Lincoln.

— Eu não discuto que um dia Lincoln será uma grande cidade/ Augusta. A única coisa é que estou contente. — Jesse explicou:

— Quanto mais uma pessoa possui, mais precisa preocupar-se. Lisbeth e eu temos o suficiente".

Augusta não conseguia entender. Lisbeth, que estava mexendo um tacho com uma espécie de geléia de maçã, questionou o desejo de sua mãe, secretamente. Mas Jesse não se mexeu. Augusta parou de pressionar e tentou enfatizar:

— Minha tendência é exagerar, algumas vezes. Assim, imagino que vamos equilibrar-nos. Você parece não querer nada e eu quero possuir a cidade inteira! Você me segura de ir muito longe... e talvez eu a force a pensar no futuro de Lisbeth um pouco mais."

Jesse encolerizou-se visivelmente:

— Augusta, o Senhor é perfeitamente capaz de cuidar do futuro de Lisbeth. Eu não acho que as minhas aquisições materiais são o caminho para ensinar-lhe sobre segurança. Eu quero que ela ponha toda sua fé no Senhor. Ele sempre cuida dos seus".

— O Senhor ajuda aqueles que ajudam a si mesmos, Jesse!"

Jesse sorriu e ressaltou:

— Meu socorro vem do SENHOR, que fez o céu e a terra".

— Este é o problema com você, Jesse, sempre tem uma resposta para tudo. E geralmente é das Escrituras, o que me faz sentir como gentia se tento argumentar!— Augusta mudou de repente de assunto, indo para a porta e olhando a terra vasta. — Agora, onde está Joseph com a fieira de peixes que me prometeu para o jantar? Todas estas pessoas recém-chegadas não devem ter pescado todos os peixes!"

Joseph logo chegou com uma fieira de peixes em sua mão. Doze hóspedes regulares tomavam agora refeições na Casa Hathaway de manhã e à noite, com um almoço disponível àqueles que o requisitavam, por um preço extra mínimo. A maior parte dos hóspedes eram os trabalhadores especializados para ajudar a construir o novo capitólio. Alguns tinham vindo de muito longe, como Chicago, e suas opiniões sobre a cidade da campina proporcionavam debates calorosos na maioria das refeições.

— Sabe de uma coisa, Sra. Hathaway?— Tom Mason começava, deliciando-se por mexer em confusão. — Hoje eu ouvi que a estrada de ferro direcionada para o lado das planícies do sul não vai passar perto de Lincoln, por medo de que alguns índios sioux no caminho da guerra escalpem as pessoas."

Fosse qual fosse o estratagema usado para irritar a senhora Hathaway— ele sempre funcionava. Augusta se encolerizava.

— Tom Mason, você e eu sabemos que não tem havido sustos com os índios nestas bandas há anos; e diga à sua 'fonte' que aqui em volta só temos pawnees, e eles têm sido pacificadores há muitos, muitos anos!"

Um dormitório de placas de terra foi levantado no solo do capitólio. Hóspedes do leste resmungavam por morar em casa sujas e Augusta defendia de novo:

— Eu presumo que vocês do leste teriam apenas deitado na planície e morrido, anteriormente. Não têm garra! Bem, o povo de Nebraska sabe como fazer acontecer e, se o Bom Deus não prover árvores, o povo de Nebraska simplesmente olha em volta e usa o que ele dá. Nossas casas de placas de terra ainda estarão em pé quando seus filhos tiverem filhos!".

O tempo todo Augusta argumentava e defendia, mexia-se em volta da mesa, tirando os pratos, enchendo as xícaras de café. Jesse trabalhava arduamente também, mas em silêncio. Ambas as mulheres mantinham Lisbeth ocupada na cozinha, fora da vista e barulho dos homens.

— Pelo seu próprio bem, queridinha— insistia Augusta. Lisbeth transformava-se rapidamente em uma moça, e nem Jesse nem Augusta queriam notar.

Augusta estava errada sobre a falta de ambição de Jesse para ávida de Lisbeth. Quando Jesse viu o anúncio de Hortense Griswall na Commonwealth, ela foi uma das primeiras a responder.

A escola selecionada da Srta. Griswall abrirá no dia 1o de outubro na Rua 10. Vá à primeira porta ao sul da Farmácia do Dr. Patton. Preço por período de 12 semanas: Primeiras Séries: $4; Inglês Avançado e Latim: $7; Francês e Música, extra. Metade do pagamento no início.

— Lisbeth, olhe isto!— Jesse chamou, na primeira noite que o anúncio apareceu. Lisbeth largou seu tricô e olhou por sobre o ombro da mãe.

— Ah, mãe... sou muito velha para a escola!"

— Bobagem, Lisbeth. 'Inglês avançado e Latim'. Nós temos o suficiente para isto. Agora estou pensando quanto custará a música e o francês."

Lisbeth franziu o nariz e voltou ao seu tricô.

— Eu não preciso ir à escola. Eu sei de tudo o que preciso saber para as contas do livro de contabilidade da tia Augusta. Eu sei cozinhar e limpar..."

Jesse a interrompeu:

— E você não sabe fazer nada mais".

— Mas mãe, eu não quero fazer nada mais. Tudo o que eu quero da vida é uma casa e uma família. — Vendo que seu argumento não achava espaço com a mãe, Lisbeth mudou o ataque. — Mãe, a senhora diz que o maior chamado de Deus é para ser esposa e mãe. De repente a senhora mudou de idéia?"

— É claro que não, querida. Só que..."

— Só que a senhora tem medo de que eu não consiga encontrar o chamado maior, então é melhor me ocupar e me preparar para alguma outra coisa. E isso, certo?"

— Não é isso— Jesse respondeu, sentindo-se na defensiva. Lisbeth mudou de estratégia de novo.

— Mãe, se nós confiamos que o Senhor fará o melhor para mim, então por que eu precisaria de um plano secundário ao plano melhor dele? Por que simplesmente não ser paciente para ele cumprir isto tudo? É isto que a senhora tem sempre me dito. Tenha paciência. Ele faz todas as coisas belas a seu tempo..."

A mente de Jesse ficou num turbilhão, por uma resposta. Ela foi buscar sua cesta de costura no quarto, gastando tempo para planejar uma resposta razoável. Pelo tempo da volta, Deus tinha providenciado.

— Lisbeth, é claro que nós esperamos por Deus para responder nossas orações. No entanto, isto não significa não fazermos nada enquanto esperamos. Você se lembra quando Joseph compartilhou sobre a parede de pedras conosco? Ele disse que havia uma parede de pedras e o Senhor dizia: 'Joseph, agora eu quero que você passe através dela'. Ele não ia dizer: 'Senhor, eu não posso. Não posso fazer nada'. Tudo o que ele precisava fazer era ir de encontro à parede, e o serviço do Senhor foi fazê-lo atravessá-la.

— Lisbeth, o futuro é uma parede de pedra. Somente Deus pode fazer você passar através dela para um casamento feliz. Mas você tem de dar passos em direção à parede e empurrá-la. Você tem de entrar na sociedade, há algumas coisas que uma jovem precisa saber... coisas que nunca tive chance de aprender. Coisas que Augusta nunca aprendeu. Nós duas estivemos ocupadas demais para sobreviver para nos preocuparmos com elas. Mas você não precisa preocupar-se em sobreviver, Lisbeth. Eu proverei seu sustento. Você pode aprender todas essas coisas, e eu quero que você aprenda. Deus deu a oportunidade. Não podemos negligenciar em relação a empurrar a parede de pedras.

— Certo, mãe— Lisbeth, suspirou. — Eu vou pendurar meu rabecão. Eu vou para a escola da senhorita Riswal— ela acrescentou — mas é bom que ela seja legal!".

Hortense Griswall era legal. Ela era muito legal. No primeiro dia de aulas ela usava um vestido de chita marrom amendoado, enfeitado com um broche dourado onde estavam gravadas em letras bonitas as iniciais H. G. Pregas cuidadosamente costuradas cobriam o corpete inteiro do vestido, do alto do pescoço à cintura bem acertada. A bainha se arrastava no chão no comprimento bem certo.

Infelizmente, apesar de seu guarda-roupas meticuloso e do cabelo perfeitamente arrumado, aqueles que descreviam Hortense com sensibilidade cristã podiam apenas explicar seu comportamento tão bom e sua vestimenta sempre bem arrumada. Bobby Miller que aos seis anos não havia praticado sensibilidade cristã, tinha dito isso quando Hortense, também com seis anos, sorrira para ele na esperança de que ele a convidaria para a celebração da Festa da Primavera.

— Você é muito legal, Hortense, mas não quero ir com você. Você é feia demais."

Mas ela era legal. Hortense nunca se queixava. Embora achasse as primeiras séries tediosas e crianças pequenas muito fatigantes, ela era uma professora excelente.

Apenas um pouco mais velha que Lisbeth, Hortense queria indignar-se com a beleza de Lisbeth. Mas descobriu que não podia, pois a menina era despretensiosa e, após os primeiros resmungos com a mãe, honestamente faminta por aprender.

Assim, Hortense Griswall labutava na gramática elementar com seus cinco alunos pequenos, retocava sua maquiagem ao meio-dia e então estendia-se nas tardes, com as energias renovadas, à conjugação de verbos do latim e francês com Lisbeth.

Certa noite, bem depois de Lisbeth ter ido para a cama, Jesse e Augusta sobressaltaram-se com uma batida urgente na porta.

— Quem é?— perguntou Augusta, pegando o rifle do marido, que ela guardava sobre a porta.

— Tom, madame. Tom Mason."

O rifle foi colocado em seu lugar e Augusta abriu para Tom entrar.

— Meu Deus, Tom, você quase nos matou de medo! O que você quer a esta hora?"

Tom olhou para baixo, embaraçado.

— Sra. Hathaway... a senhora tem mais quartos? Qualquer quarto. Estou morrendo de nojo daqueles vermes com os quais temos de repartir nossa cabana! Fui virar-me esta noite e uma cobra caiu do telhado e se enrolou bem no meu catre! Por favor, madame... farei qualquer coisa. Mesmo uma esteira de dormir no chão... Só para eu não ter de dormir nunca mais em casas sujas!"

Jesse já estava empurrando as cadeiras de balanço para longe da lareira. Augusta entendeu o significado.

— Bem, Tom, todas as camas estão ocupadas, mas, se você está decidido, pode dormir aqui perto da lareira.— O jovem concordou com gratidão e pegou do lado de fora da porta o que parecia ser sua esteira de dormir. Ele sabia que a senhora Augusta nunca o mandaria de volta.

As duas mulheres lhe deram boa-noite. Quando elas desceram, de manhã, para começar a preparar o café, Tom estava lá fora, tirando leite da vaca, enquanto Lisbeth punha o café e preparava bolachas.

Augusta deu uma risadinha de contentamento.

— Bem, este deve ser um homem que vale alguma coisa, afinal! E o primeiro que encontrei— ela disse, acrescentando repentinamente, — Exceto, é claro, pelo senhor Hathaway".

— E Joseph— Lisbeth a lembrou.

— E Joseph— Augusta concordou.

Quando o café terminou e os comensais arrastaram suas cadeiras para trás, para se dirigirem ao seu trabalho no capitólio, Augusta anunciou uma oferta: Qualquer de vocês, homens interessados, eu darei quarto de graça e pensão, em turnos, para começarem minha construção adicional. Joseph terá toda a madeira cortada até o próximo mês. Eu preciso de um sobrado atrás, aqui... vocês todos poderão ter quarto e pensão, é sua chance de um novo espaço por quanto tempo quiserem, se decidirem ficar em Lincoln".

— Eu vou fazer o alicerce, Sra. Hathaway."

— Eu ajudarei o Joseph a cortar madeira se ele me disser onde encontrar, depois do jantar."

— Eu sou bom em carpintaria... pôr portas e coisas do tipo."

Quando os homens saíram, a construção de Augusta já estava a caminho. Ela balançou a cabeça com satisfação.

— Vamos abrir uma porta aqui— e ela disse, marcando a nova porta na parede posterior da cabana. — Um hall estreito, três quartos embaixo, três quartos em cima. A escada bem no outro lado desta parede-conveniente para você e para mim. Quando a construção estiver pronta e todos os quartos alugados, nós vamos derrubar o outro lado da cozinha, para você e a Lisbeth terem quartos novos, então vou pegar o seu quarto para minha sala de estar particular. Vai ser um tipo de construção em miscelânea, mas servirá para nós."

— Augusta— Jesse falou, — Eu agradeço sua generosidade, mas, por mais que trabalhe, nunca conseguirei pagar a construção de uma ala só para Lisbeth e eu. Por favor, não se sinta na obrigação de fazer tal coisa".

— Bem, Jesse King, escute-me. Vocês duas são a coisa mais próxima a família que eu tenho e se eu as quero ver confortáveis, você somente fique calada e deixe-me ficar feliz fazendo isto! Às vezes eu me encrespo e me espinho, mas não pense que não aprecio as flores do campo que Lisbeth traz para as mesas a cada refeição. E não pense que eu não sei que você tem um cuidado extra com as colchas e acolchoados que fez para todas as camas neste lugar. Pelo amor de Deus, mulher! Você merece mais do que um quarto novo — Augusta ficou de costas para Jesse e varreu o chão com força enquanto ranzinzava: — Vocês duas ganharam um lugar especial neste coração velho e duro. Então, fique quieta e deixe-me fazer o que eu quero!".

Jesse deu um tapinha nas costas grandes de Augusta e disse suavemente:

— Não me faça de boba nem um pouco, Augusta Hathaway. Você é toda tumulto e preocupação, mas eu vejo além disto. Por dentro há um coração de ouro, só esperando para se mostrar. Eu agradeço ao Senhor por ter-me permitido ver isso".

Augusta, de repente, ficou séria.

— Eu gostaria de poder ver dentro de você, Jesse King. Você é toda polidez e delicadeza. Você nunca ficou tão louca ou triste que quisesse gritar? Como é possível você estar sempre tão... distante?— Os olhos azul-claros de Augusta encontraram os de Jesse. Jesse olhou sobre os ombros da amiga. Atrás da cadeira de balanço dela, perto do fogo, estava a colcha de retalhos que contava toda a história: a cabana rústica de madeira, os sonhos partidos, as rodas do carroção, as tendas dos índios, a Videira Verdadeira que a tinha carregado por tudo isto.

Ela sussurrou:

— Ah! Tive meus momentos— A solidão a fez desejar repartir a história com Augusta. O medo a fez segurar-se. O que Augusta pensaria? Ela entenderia? Jesse olhou de volta os olhos azuis firmes que ainda questionavam. Ela endireitou os ombros, levantou o queixo e fechou a porta a Augusta. Os olhos azuis sorriram e Augusta baixou suas mãos dos braços de Jesse com um suspiro: — Mas você não pode falar sobre isso, não é? Sua bondade nunca consegue. Há um fogo por trás destes olhos cinza. Eu vejo, Jesse. Sou uma boa juíza das pessoas, e há muito mais para você do que você permite— Ela suspirou de novo antes de mudar de assunto abruptamente. — Agora temos de ir para as cerejas silvestres ou os homens não terão torta de cereja de vinte minutos para o almoço."

— O que é isso, tia Augusta?— Lisbeth entrou com um buquê de flores para a mesa.

— Ora, aquilo é torta de cerejas com caroços. Leva vinte minutos para se comer cada pedaço!— A risada de Augusta explodiu.

Os olhos de Jesse se enrugaram nos cantos e ela piscou para Lisbeth.

— Este é um jeito de evitar que os hóspedes comam mais que a sua quota!"

As três mulheres se juntavam nos preparativos agora familiares que repetiam dia após dia, semana após semana, mês após mês, enquanto o crescimento de Lincoln continuava, a Casa Hathaway crescia e o estábulo com cocheiras e a loja de ferreiro de Joseph Freeman atendia às necessidades dos viajantes de perto e de longe.

 

O homem de Belial, o homem vicioso, anda em perversidade de boca. Acena com os olhos... Perversidade há no seu coração; todo o tempo maquina o mal.

Provérbios 6:12-14

 

Em 1868 a população de Lincoln tinha crescido de trinta para quinhentos. Augusta exultava: Cento e quarenta e três casas, Jesse, e nós temos nosso primeiro banco agora! Deus abençoe James Sweet e N. C. Brock e o prédio novo deles, de pedra!". O jornal farfalhou e Augusta pulou da cadeira.

— E a Casa Hathaway precisa de uma mudança também. Chega dessa cabana de madeira da fronteira, Jesse. Nós vamos ter tijolos! E uma sala de jantar bonita, não mais com apenas estas mesas de tábuas. Augusta pegou um lápis e começou a tomar notas na margem do papel.

Jesse e Lisbeth sorriram uma para a outra sobre a cabeça curvada de Augusta.

— Joseph!— ela gritou — Joseph!— Ele veio correndo, limpando seu rosto. Augusta começou a compartilhar seus planos. — Agora, quando você tiver tempo, Joseph, poderia localizar aquele pedreiro que está trabalhando para George Atwood e pedir-lhe para dar uma chegadinha aqui?"

— Com prazer, Sra. Hathaway. Eu acabei de pôr ferradura na mula baia. Ela está alugada para amanhã e parece que ela estava arrastando um pouco aquela pata traseira. Já arrumei tudo. Ela vai mostrar um trote bonito pela cidade."

Augusta fez uma carranca:

— Imagino que seja Winston Gregory novamente?!".

— É ."

— Eu desejaria que aquele verme fosse trabalhar em algum outro lugar!"

— Bem, Sra. Hathaway, o dinheiro dele é tão verde quanto o de qualquer outro.— Joseph estava desconfortável. Ele sabia para onde caminhava a conversa.

Jesse interrompeu:

— Ele trata você como um escravo, Joseph".

— No lugar de onde ele vem, Sra. King, eu seria um escravo."

— Mas você está livre agora, Joseph— Jesse respondeu.

Joseph encarou Jesse de volta, no mesmo nível, e desvendou só um pedacinho de sua alma.

— A Senhora sabe disto e a Sra. Hathaway também, mas não são muitos outros que parecem lembrar-se disto, madame. Eu posso ser livre, mas não sou livre o suficiente para recusar o serviço de um homem branco só porque ele é pretensioso."

Jesse sabia que isto era verdade. Joseph fechou sua alma exposta e saiu à procura do pedreiro. Jesse voltou à colcha de retalhos, e Augusta voltou a ler o jornal. Lisbeth sentou-se à mesa fingindo emendar meias, mas sua mente não estava no trabalho das mãos, pois tinha ido à cidade e, ao sair da Farmácia Patton, tinha sido o alvo de um sorriso de Winston Gregory.

"Winston! Winston Gregory, venha aqui!— a voz estridente podia ser ouvida de cima a baixo no quarteirão e sem dúvida Winston Gregory ouvira os gritos de sua mãe bem antes de ter respondido. No entanto, ele estava absorto no romance barato que tinha escondido no balcão do fundo.

— Mãe pode esperar— ele disse a si mesmo, — Além de tudo eu não sou escravo dela!— Ele interiormente lamentava a perda dos escravos deles. Os dois últimos tinham sido vendidos na cidade de Nebraska porque os cidadãos de lá não permitiriam mais escravidão em seu território.

— Uma instituição tão sensata— a mãe dele tinha reclamado — mas seu pai pensava que nós simplesmente precisávamos tirar vantagens de uma cidade nova. Embora eu não saiba como seguir em frente sem a Betsy". Lillia Gregory tinha feito um sinal de desespero com o lenço de nariz e fechado os olhos, uma mártir dos desejos do marido.

O pai de Winston, Randall Gregory, fora um advogado ambicioso e vigoroso, com planos de ter um grande nome. Ele tinha herdado riquezas das propriedades do pai, mas queria fazer seu próprio caminho. O território de Nebraska tinha a chave para a futura posição social que ele ganharia pelos próprios méritos. Assim, Randall partiu o coração da mãe, pegou sua imensa herança, empacotou sua esposa chorona e o filho mimado e dirigiu-se ao — Oeste selvagem— Ele teve o bom senso de estabelecer-se na cidade em crescimento, Lincoln, e a má sorte de morrer pouco depois de erguer uma mansão na esquina da Rua 13 com a Rua J.

No momento em que o funeral do marido acabou, Lillia Gregory começou a encher os baús e a fazer planos para voltar à civilização. Só o que faltava era vender a casa, e um corretor tinha assegurado que aquilo poderia ser feito pelo correio. Winston dividia com a mãe a paixão pelo retorno à — Sociedade real— mas então a beleza do cabelo negro fora da farmácia foi flagrada pelo seu olhar. Winston tinha sorrido. Ela sorriu de volta. Ele a seguiu até sua casa e fungou audivelmente quando viu o lugar onde morava. Muito Tuim. A filha de uma empregada da Casa Hathaway. Suas perspectivas brilharam. Não adequada para uma esposa, mas perfeita para um prazerzinho antes de sair da cidade. Por que não?

No domingo, Winston Gregory agradou sua mãe oferecendo-se para acompanhá-la à igreja. Ele estava muito bonito com seu melhor terno e chapéu. Bem quando estava ajudando a mãe a descer da diligência alugada, Jesse e Lisbeth passavam a pé. Winston tirou o chapéu e curvou-se. Lisbeth corou. Jesse balançou a cabeça, apertou os lábios e entrou rapidamente.

Sentadas no banco de sempre, as duas mulheres esperaram o início do culto. Winston Gregory indicou o mesmo banco delas à sua mãe:

— Senhoras, podemos assentar-nos com vocês?".

Jesse forçou um sorriso e escorregou no banco para deixar lugar. Lillia assentou-se ereta e não agradeceu. Não era necessário tomar conhecimento da existência de empregados na cidade, além de tudo. Winston cantou alto demais e deu bastante dinheiro quando o prato de ofertas passou. Jesse colocou seu magro donativo e sentiu-se miserável.

De volta à Casa Hathaway, Jesse e Lisbeth juntaram-se a Augusta para preparar a refeição antecipada da tarde. A Casa Hathaway oferecia apenas uma refeição às três horas do domingo, em deferência ao Dia do Senhor, e pela insistência de Jesse. A fé de Augusta não era nem um pouco ameaçada pelo ganhar dinheiro no Sabbath, mas Jesse insistia que elas, de alguma forma, honrassem ao Senhor.

Augusta tinha-se recusado categoricamente a fechar a cozinha do hotel.

— Você simplesmente não pode fazer isso, Jesse. Não é bom negócio."

— Bons negócios honram ao Senhor, Augusta. Qualquer outra coisa é sem valor."

Augusta havia há tempo aprendido que o exterior frio de Jesse era facilmente agitado por assuntos em que sua fé no que era certo diante de Deus fosse desafiada.

— Compromisso, Jesse— Augusta incitava. — Nós não fecharemos, mas vamos oferecer somente uma refeição. O Senhor não comeu no Sabbath? É claro que ele entenderia que nós não poderíamos deixar nossos hóspedes com fome!"

— Poderíamos preparar um almoço frio no sábado, para servir no domingo."

— E perder todos os hóspedes para a Casa Cadman! Não nessa vida, Jesse King! Sabe, vou levar em conta sua devoção quando puder, mas negócio é negócio e não desistirei. Serviremos uma refeição quente às três horas, aos domingos. Mas só uma refeição."

Augusta não mudou de idéia. Ela é osso duro de roer, Jesse pensou, bem como o Homer.

Assim, o anúncio no Jornal do Estado, a vinte centavos, dizia:

Num esforço para honrar o Dia do Senhor e dar a todos um dia de descanso, os hóspedes da Casa Hathaway são, de hoje em diante, notificados de que apenas uma refeição será servida no Sabbath. Os hóspedes são convidados a tomar as refeições às três horas da tarde, na sala de jantar do hotel. Um banquete suntuoso será servido.

Para grande surpresa de Augusta, nenhum hóspede reclamou. Ela atribuiu isso ao — Banquete suntuoso". Jesse atribuiu às horas que ela havia gasto de joelhos, pedindo a Deus que entendesse, e desse um jeito de ela honrar seu dia.

O tempo de Winston Gregory estava encurtando. Uma diligência partiria em apenas dois dias e ele ainda não tinha conseguido beijar Lisbeth King. Ele tinha alugado a melhor diligência de Joseph Freeman para a noite e agora se apresentava à Casa Hathaway bem na hora em que Lisbeth estava arrumando as mesas para o almoço.

Winston limpou a garganta e Lisbeth pulou, virou-se e corou.

— Fiquei contente por vê-la na igreja ontem de manhã.— Ele viu a jarra de água tremer quando Lisbeth tentou parecer natural e continuou a despejar água nos copos. Ela espirrou um pouco.

— Eu queria saber se você estaria disponível para um passeio na carruagem esta noite, após o jantar."

Lisbeth corou.

— Eu... Eu teria de pedir para a minha mãe."

Winston sorriu com paciência.

— É claro.— Lisbeth saiu da sala, passou pela cozinha e foi para fora, onde Jesse estava colhendo cenouras do jardim.

— Mãe! Mãe! Winston Gregory está lá dentro e... e... ele quer-me levar a passear na diligência esta noite!"

Jesse levantou-se de repente, chacoalhando as cenouras para tirar a terra. — Lisbeth King, você tem só treze anos!"

— Mas mãe, ele não sabe isso. Eu pareço mais velha. Todo mundo diz isso. Sou madura para a minha idade.— Lisbeth foi ficando mais desafiadora ao ver a expressão da mãe. Ela sabia qual ia ser a resposta.

Ela veio numa voz agradável, mas ainda assim foi difícil aceitar.

— Há muito tempo para você crescer, Lisbeth. Aproveite para ser uma menina por mais tempo. Vou dizer não para Winston, por você.— Jesse moveu-se para passar por Lisbeth, mas esta segurou a mão da mãe e disse, sentindo-se miserável: — Não, mãe... vou eu lhe dizer. Eu sabia que não poderia". Os olhos escuros brilharam: — Mas mãe, é bom ser notada e... ser convidada. Você não se lembra quando era uma menina e os meninos a olhavam... não é gostoso?".

A pergunta era inocente, mas trouxe de volta a angústia da solidão, o sentimento de rejeição de uma mulher jovem, solitária, quando os moços não a notavam e ninguém a convidava para sair.

Jesse limpou sua garganta seca e mentiu:

— É claro, querida... isso é bom. Mas é cedo demais. Diga a Winston que você é muito jovem. Jesse corrigiu-se: — Não, não precisa falar isso. Só fale que eu disse não, que você precisa trabalhar na cozinha depois que os hóspedes comerem e quando você acabar será muito tarde para passear". Jesse sorriu: — Faça-me parecer um bicho-papão. E não precisa dizer-lhe que só tem treze anos. Eu sei que você não quer que ele pense que é um bebê".

Lisbeth deu um abraço rápido na mãe e cochichou:

— Eu não queria ir mesmo, de qualquer forma. É um pouco assustador crescer, mamãe. Obrigada por dizer não".

— Lisbeth, é para isso que as mães servem. Pode usar-me qualquer hora que precisar de uma desculpa para dizer não e continuar de bem com os amigos. Não minta, mas pode usar-me para o que for necessário, se precisar de socorro."

Lisbeth voltou à sala de jantar, onde Winston esperava cheio de esperança.

— Muito obrigada, Winston, mas...— Lisbeth suspirou dramaticamente — minha mãe insiste em que eu arrume a cozinha depois que os hóspedes comerem. É claro, seria muito agradável".

Winston virou o chapéu nas mãos e pensou numa alternativa: — Então vamos caminhar depois que acabar seu serviço. Eu vou sair na diligência e quando a trouxer de volta darei uma volta no estábulo, esperando. Saia então, quando tiver arrumado a cozinha e sua mãe estiver dormindo".

Lisbeth hesitou.

— Vamos, Lisbeth. Vou embora depois de amanhã. Só quero alguém com quem conversar. Tenho estado sozinho aqui... E..., puxa... achei que você entenderia.

O coração de Lisbeth enterneceu-se momentaneamente, mas Jesse veio para a porta. Ela tinha ouvido e estava brava. Faíscas verdes saíam de seus olhos.

— Nós podemos ser uma classe trabalhadora, senhor Gregory, mas isto não significa que minha filha possa ser usada para uma noite de diversão, quando você não tem mais nada que fazer. Ela não vai sair desacompanhada, senhor, e sugiro que se lembre disso, ou...— Jesse o cortou com sarcasmo, — vou contar à sua mãe o que você estava querendo fazer".

Winston Gregory corou de raiva, meteu o chapéu na cabeça e retirou-se. Lisbeth tentou ficar brava com a mãe, mas uma olhadela em Winston e ela caiu na gargalhada.

— Ah, mamãe, ele estava fingindo ser tão adulto. Achei que ele fosse um homem, mas olha para ele, precipitando-se rua abaixo só porque a senhora ameaçou contar para a mãe dele! Que quadro!"

Numa onda de afeto, Lisbeth abraçou sua mãe:

— Obrigada, mamãe, por proteger-me desses espíritos maléficos de fantasmas e bestas de pernas compridas e coisas que estouram na noite. E de Winston Gregory!".

Jesse estava séria.

— Lisbeth, em algum lugar, Deus tem um marido para você. Tenho certeza disto. Tenho orado por ele, desde que você era pequena. Quando ele vier, nós vamos saber. Até então, você precisa ser muito cuidadosa para nunca dar a ninguém o que deve ser dado só a ele. Não desista de seus sonhos, pensamentos íntimos ou afeto até você ter o homem certo."

— Você guardou os seus sonhos para o papai?— Lisbeth perguntou.

Jesse ponderou a pergunta e evitou respondê-la diretamente.

— Há alguém, no fundo de cada mulher, Lisbeth, só esperando ser amada. Ela estava lá, dentro de mim, mas eu não sabia, até encontrar o papai."

Lisbeth viu a mudança de expressão da mãe. Aquele outro sorriso, o dos domingos, no Forte Kearney, quase voltou. Lisbeth não via esse outro sorriso há muito tempo e isso a fez doer por dentro. Isso a fez desejar um pai. Jesse sabia.

— Ah, querida Lisbeth, não se esqueça, quando sentir saudades de papai, pode sempre contar para o Senhor. Ele prometeu ser seu Pai. Ele será o seu guia e nunca, jamais a deixará."

— Algumas vezes isso não parece suficiente, mamãe.

Jesse apertou a mão da filha.

— Eu sei, doçura. Às vezes isso não parece ser suficiente para mim também. Mas eu só dou uma respirada funda e dou o passo seguinte, e, de alguma forma, isso basta. O Senhor me dá a graça para continuar." Quase sem parar, Jesse acrescentou: — Quando o homem certo chegar, Lisbeth, ele preencherá o lugar dentro de você que papai deixou vazio. O sentimento tomará conta e transbordará até você ficar vibrando com o amor dentro de você. Por enquanto, não dê nada do coração de Lisbeth para esses tipos como Winston Gregory, ou vou dar-lhe uma surra!".

Jesse tentou o gracejo, para esconder as lágrimas. Lisbeth era quase adulta. Os homens a estavam convidando e algum dia ela estaria partindo — para onde?

Com um braço ao redor da cintura da filha, Jesse acrescentou:

— Agora vamos preparar a refeição. Prometi a Augusta que cuidaríamos de tudo esta noite, para que ela participasse da reunião do banco. Vamos, então!".

Winston Gregory e sua mãe partiram na diligência da quarta-feira, às sete da manhã, para Marysville, em Kansas, onde se encontrariam com a família de Lillia e voltariam para o Missouri e para a civilização. De qualquer jeito, Nebraska continuou sem eles.

 

Ora, àquele que é poderoso para fazer tudo muito mais abundantemente além daquilo que pedimos ou pensamos, segundo o poder que em nós opera, a esse glória...

Efésios 3:20-21

 

— Até que enfim está virando xarope, mamãe.— Lisbeth gritou, limpando sua testa e continuando a mexer a panela grande com um líquido roxo, fervente. Jesse apressadamente limpou, com um pano, as bordas dos últimos e poucos potes para conservas e debruçou-se sobre o fogão. Juntas, as duas mulheres tiraram conchas do xarope e puseram nos potes, selaram as tampas e se afastaram para examinar o trabalho, com satisfação.

— Então, olhem, vocês não estão felizes por termos ajudado o Joseph a colher as frutas?— perguntou Jesse. — Não há nada tão recompensador quanto uma despensa cheia de conservas!"

"...a não ser um baú de enxoval cheio de colchas!— Lisbeth acabou a sentença para sua mãe.

Jesse riu:

— Acho que já disse isso o suficiente, não é?".

Lisbeth sorriu pensativamente.

— Cada vez a senhora acrescenta uma colcha ao meu baú de enxoval, mamãe, e há doze hoje, só que toda a esperança está quase acabando."

O esforço de Jesse para encorajar a filha, que havia presenciado os casamentos de todas as suas colegas de classe, nos últimos meses, foi interrompido pela voz crescente de Augusta:

— Venham aqui! Olhem isso... Eu nunca!".

Jesse e Lisbeth apressaram-se em ir para a sala da frente, onde Augusta olhava com atenção para fora. O sol tinha-se escondido atrás de uma nuvem escura e a casa era sacudida por ventos violentos que vinham de repente, com o troar da chuva de granizo. Mas não houve granizo. Enquanto as três mulheres olhavam, a nuvem preta passou e o vento aquietou-se. Na distância, elas podiam ver a nuvem, que parecia descer do céu. Alguns gafanhotos apareceram na estrada.

— Estranho— Augusta murmurou. As três mulheres voltaram às suas tarefas e não pensaram mais na nuvem até a manhã seguinte, quando colonos começaram a chegar na cidade e a contar histórias inacreditáveis.

— Em duas horas, eles estavam a quatro polegadas no solo..."

— Estou acabado. Eles comeram as cebolas, bem ali, na terra.

— Tudo que foi deixado no meu jardim são buracos, onde havia cenouras e beterrabas..."

— Eles subiram no meu vestido... e comeram a barra, o tecido, antes que eu pudesse tirá-los e voltar para casa.

— As cortinas estão penduradas em farrapos, nas janelas..."

— O gado ficou louco e fugiu..."

Jesse e Lisbeth oraram pelos colonos e ficaram gratas por estarem na cidade. A nuvem passara sobre Lincoln, mas tinha sido uma calamidade para centenas de colonizadores. Cercados por fogos da campina e inundações, quando a seca acabou, tendo enfrentado tornados e nevascas, foram, por fim,varridos por insetos. Uns poucos dias após os habitantes da Casa Hathaway terem visto a nuvem de gafanhotos passar por cima da cidade, grupos de colonizadores começaram a chegar para pegar o trem de volta ao Leste, para casa, para o Oeste, ou Norte — qualquer lugar.

Uma pobre mulher pegou o trem, naquela semana, chorando, histérica, e gritando para os passageiros que desembarcavam:

— Vão embora, vão embora! Eu passei um inverno e um verão aqui. Deus abençoe todos vocês, se ficarem nesse lugar amaldiçoado!". O marido dela, embaraçado, puxou-a para dentro do vagão e gentilmente conduziu-a para um assento, com seus braços ao redor dos ombros que balançavam.

Na sexta-feira daquela semana, um carroção frágil, parou do lado de fora da Casa Hathaway. Mackenzie Baird gritou um "Ôooo" desnecessário para sua velha parelha, que já tinha parado mesmo para beber água no cocho da rua; vagarosamente, desceu do carroção. Ficou parado por um momento, com as mãos no lado do carroção, parecendo inspecionar o que havia dentro.

Lisbeth viu pela janela da sala e ficou prestando atenção. A cabeça do homem estava virada para o outro lado. Ela não podia ver o rosto dele, mas viu os ombros levantando-se enquanto ele dava uma respirada funda. Ela viu o chapéu empoeirado ser tirado e balançado fortemente, enquanto a outra mão fechada dava um murro no carroção.

Antes de virar-se para o hotel, Mackenzie Baird prendeu o chapéu, um pouco grande para a sua cabeça, e puxou a aba para baixo, sobre os olhos. Então, fez uma inspeção elaborada na rédea gasta que prendia seus cavalos ao carroção. Com uma última tentativa de bater o pó da camisa de flanela, Mackenzie deu uns passos para o hotel e tocou o sino, chamando algum atendente.

Augusta atendeu à porta imediatamente, passando rápido para o pequeno escritório, junto à sua sala de estar, no fundo.

A voz que Lisbeth ouvia, de seu lugar fora de vista, na sala de jantar, era suave, profunda. Ela a descreveria, anos mais tarde, como um rio profundo, deslizando devagar por um desfiladeiro de pedras. Eu quero saber se ele é tão bom quanto soa, ela pensou, e corou. Lisbeth, você não é namoradeira... pare de ser dramática! Bem escondida, continuou a bisbilhotar.

A voz era firme, mas levemente tensa.

— A senhora tem algum serviço disponível, com o qual eu pudesse pagar por um quarto, madame? Joseph Freeman disse para eu tentar na Casa Hathaway, tão logo eu chegasse na cidade.— A voz do jovem vacilou. Mackenzie limpou a garganta, enroscou o dedão direito no suspensório e continuou: — Eu, é, nós — quer dizer, os gafanhotos nos limparam e tão logo as coisas se assentem e eu ganhe o suficiente para um carroção novo e uma parelha, vou partir— Ele se apressou em continuar: — Farei qualquer coisa honesta, para ganhar a vida. Sou forte e trabalho bastante, mas o fato é que não tenho como pagar um quarto ou comida a não ser que arrume emprego".

A idade avançada não tinha embrutecido a capacidade de Augusta de admirar um cabelo preto, farto, os olhos azuis profundos, dentes bonitos e um rosto inegavelmente lindo. A idade, no entanto, a tinha ensinado a dosar sua bondade cuidadosamente,para aqueles que a mereciam. Augusta posteriormente assegurou a si mesma, a Jesse e a Lisbeth que a beleza de Mackenzie Baird não tinha nada que ver com sua imediata admissão. Mais do que isso, fora seu uso da — Senha— que resultava em incontáveis pessoas encontrando abrigo na Casa Hathaway. Mackenzie Baird chamou Joseph Freeman de — Um amigo". Quando Joseph Freeman enviava alguém para Augusta, ela o ajudava.

Assim, foi após uns momentos de luta, para Augusta olhar o caso de forma madura, controlada, que Mackenzie Baird encontrou-se no quarto do hotel, introduzido por Jesse. Um quarto limpíssimo, onde recebeu roupa de cama limpa das mãos da filha bonita, de cabelo preto, que lhe dissera que o jantar seria servido em duas horas e então ficara corada e praticamente descera as escadas correndo para a porta de frente do hotel.

Lisbeth parou logo, ao atravessar a porta. Uma tempestade, bem de manhã, tinha transformado as ruas de Lincoln quase num atoleiro intransitável. A extremidade da calçada acabava no final do quarteirão, ocupado só pela Casa Hathaway e pelo estábulo de Joseph Freeman. Olhando seus sapatos novos, Lisbeth virou-se para a esquerda, em direção ao estábulo. Levantando bem sua saia de chita, cortou caminho pela lama e esquivou-se para dentro do estábulo. Já dentro, fechou os olhos e inspirou profundamente o aroma maravilhoso dos cavalos recentemente tratados e do feno fresco. De cima, Warbonnet, o gato-chefe do quarteirão, olhava para baixo como um rei.

"Warbonnet, vem cá, bichina, bichina...— Lisbeth chamou. Mas Warbonnet a ignorou. Lisbeth correu escada acima para o sótão o mais rápido que suas anáguas permitiam e jogou-se numa pilha de feno fresco. O gato levantou uma orelha na direção dela e bocejou.

— Ah, está bem, Warbonnet, então não tenho nenhum leite comigo hoje. Mesmo assim você tem que me ouvir.— Lisbeth baixou a voz e confidenciou: — É a melhor notícia do mundo inteiro, Warbonnet. Eu o encontrei! Encontrei o homem com quem vou-me casar.

Warbonnet não era um bom amigo. Ao primeiro som da voz de Lisbeth, ele tinha visto um rato no lado oposto, no chão. Com uma chicotada com o rabo, do qual faltava metade, pulou para baixo e começou a perseguição calorosa.

Lisbeth não ficou desencorajada.

— Bem... não acredita em mim. Mas eu sei o que sei e um dia, gato velho, você verá. Mamãe e eu emendamos e costuramos, até fazer transbordar meu baú, com coisas lindas. Eu quase perdi a esperança, mas agora não! Mackenzie Baird...— ela repetiu o nome, alto, várias vezes. Então ouviu sons de passos embaixo e teve de ficar quieta ou seria descoberta.

Era Joseph, trazendo a parelha de Mackenzie.

— Mas Joseph, eu não posso pagar isso. Vou levá-los para as margens da cidade e deixá-los pastando. Ora! Eu vi gado pastando na relva ao lado das construções. Ninguém vai-se importar com dois cavalos velhos, de puxar carroça, fora da cidade. Você não vai querer ocupar espaço nas suas cocheiras com meus cavalos."

— Mac, simplesmente se apresse— Joseph replicou — preciso falar que eu vou ajudar você? E horrível o que aconteceu com todos nós. Você vai ficar bem. Tenho o estábulo e minhas terras. A colheita está arruinada este ano, é lógico, eu tenho de experimentar o lugar e pode demorar um ano, enquanto toco o estábulo. O que aconteceu lá no seu lugar nunca deveria ter acontecido com ninguém, filho... e o Senhor Deus me falou para ajudar você como eu puder. Então fique quieto e deixe esse preto velho emprestar uma cocheira pra você!".

Na privacidade do estábulo, Mackenzie se abriu. A bondade demonstrada era muita. Tinha-se preparado para a luta contra o horror daquilo que encontrara, ao voltar da procura do gado, desde a noite anterior. Mas ele não se havia preparado para manejar a bondade.

Sem jeito de escapar do sótão, Lisbeth ouviu os sonhos partidos do jovem colonizador, derramando-se nos ombros largos de um antigo escravo:

— Por que ele fez isso, Joseph? Nunca vou entender o que o fez agir dessa maneira. Nós poderíamos ter começado de novo. Podíamos ter cuidado de tudo...".

Joseph interrompeu o jovem:

— Não sei por que alguém tira a própria vida, filho. Não há nunca uma resposta. Simplesmente deixa as pessoas para trás, com um buraco enorme nos corações e uma grande culpa".

— Talvez fosse exigir muito dele."

— Perder sua mãe no inverno passado, ele sentiu demais."

Lisbeth espiou pela fresta do sótão. Mackenzie estava enxugando o rosto, com um lenço desbotado, balançando a cabeça.

— E, quando a mãe morreu parece que o pai perdeu o interesse por tudo. Ele foi decaindo desde então, mas nunca pensei... eu jamais suspeitei... nunca teria saído e deixado ele sozinho...— A voz tremeu de novo, ameaçando chorar mais uma vez. Joseph pôs sua mão magra no ombro do garoto.

— Pare com isso, menino. Você fez o que era certo. Alguém tinha de ver se havia gado para ser cercado. Alguém tinha que assumir e continuar. Você agiu bem. Seu pai tomou o caminho errado, filho. É só isso. O caminho errado. A vida lhe encheu as mãos com coisas duras, mas o Senhor sempre ajuda seus filhos a resistir. Olhe aqui, Mac, você não sabe nada sobre mim, e não vou contar muito a você também. O que passou, passou, e não faz bem ficar desenterrando. Mas vou dizer-lhe uma coisa, já passei por situações piores que enchentes e gafanhotos. Perdi a esposa, e não foi doença que a levou, não, a não ser doença de um homem pensando que ele pode possuir pessoas e comprá-las e vendê-las como se fossem animais. Perdi dois meninos da mesma forma. Pensei que fosse ficar louco, quando isso aconteceu. Mas não fiquei. Eu só cantei e orei por meu caminho para a liberdade, e orei um pouco mais e, finalmente, isto já não me machucava tanto..."

Mackenzie olhou no rosto escuro, honesto, e falou sombriamente:

— Quanto tempo demorou até que você pudesse cantar e orar para continuar, Joseph?".

— Não sei, Mackenzie, não sei."

Os olhos azuis questionaram.

— Não sei, porque eu ainda estou cantando e orando para continuar. Esse tipo de dor nunca vai embora, filho. Mas torna-se suportável. Ela enfraquece. E a sua também enfraquecerá. Somente continue cantando e orando.— Joseph fez uma pausa. — Fale pra mim, você sabe ler, menino?"

— Papai ia mandar-me para a universidade no ano que vem. Sim, eu sei ler."

— Então ore, cante e leia a Bíblia. Continue a fazer isto todos os dias e você vai ver. O Senhor o sustentará. E quando você precisar, filho, você vem para o estábulo e deixa o velho Joseph Freeman ouvir seus problemas. Somente o Senhor pode solucioná-los, mas às vezes você precisa contar para alguém."

— Para quem você sempre conta, Joseph?"

Freeman respondeu rápido. — Só encontro duas pessoas a quem sempre conto. Você já as conheceu. Lisbeth e sua mãe ouviram isso há muito tempo. A Sra. King, ela nunca vai esquecer. Eu vejo isso em sua face, cada vez que ela olha para mim. Aquela é uma mulher que nunca mostra muito seus sentimentos. Mesmo assim, eu sei que ela se preocupa.

— Como você sabe?"

— Ah, ela não é de muitas palavras, a Sra. King não é. Ela só faz o que é certo e fica de boca fechada. A semana passada um dos pobres negros, morreu. A família não tinha dinheiro nem para enterrá-lo. Nós fizemos para nós um bom cemitério, a nordeste daqui, chamado Wyuka — lugar de descanso— em sioux. Não é engraçado o homem branco dando ao seu cemitério um nome desses, quando ele não vai dar um lugar para os índios descansarem, em toda essa terra deles? De qualquer modo, o velho Jubilee Jamison morreu e a família dele não tinha como pagar o enterro. Eles estavam gritando e carregando uma coisa feia. Veio uma batida na porta e lá estava a Sra. King. Ela não falou uma palavra, só deu um envelope e então saiu. Ela já estava no meio do caminho de volta, quando a viúva do Jubilee veio atrás dela. A Sra. King virou-se e disse, com bastante simplicidade mesmo: O Senhor providenciou para o Jubilee, Harriet. Não diga a ninguém mais ou ele pode ficar chateado com todos nós, por estarmos exibindo nossas boas ações!'. E é assim. O serviço funerário recebeu um chamado e Jubilee Johnson teve um funeral realmente bom, depois de tudo. Agora pergunta para Sra. King sobre isto/ ela só olha para fora da janela, sorri e diz: 'Não sei o que falar sobre isto, mas não é lindo como o Senhor prove?'."

— Ela ouviu minha história e nunca vai esquecer. Posso dizer qualquer coisa que ela ouve com cuidado. É um remédio, Mackenzie, repartir com outro ser humano todas as nossas dores que a vida dá. Você tem um monte de dores para seus poucos anos. Quando precisar pôr para fora, saiba sempre onde Joseph Freeman está!"

Joseph terminou o assunto.

— Agora, vamos correr! A Sra. Hathaway não demora muito para encontrar serviço para alguém, e com certeza ela já tem um trabalho para você agora. Vá, descubra o que é e comece!"

 

Se a tua lei não fora toda a minha recreação, há muito que teria perecido na minha angústia.

Salmo 119:92

 

No fim, foi Jesse e não Augusta quem ajudou Mackenzie a encontrar serviço. Sua procura diligente por um trabalho e seus modos gentis conquistaram as três mulheres da Casa Hathaway. Jesse e Augusta concordaram que ele era — Um homem bem-educado". Quando chegou o domingo e Mackenzie pediu permissão para acompanhar as mulheres à igreja, a aprovação de Jesse elevou-se quase tanto quanto o coração da filha. Embora fosse Augusta que Mackenzie escolhera para escoltar pessoalmente, e embora ele se tivesse assentado no lado oposto ao dela, Lisbeth foi incapaz de concentrar-se na exposição bíblica do Reverendo Samuel naquele dia.

A paixão da filha por Mackenzie não passou despercebida a Jesse. Quando Lisbeth servia a refeição, Mackenzie recebia as maiores porções, os bolinhos mais macios, o café mais fresquinho. Se acontecesse de ele olhar diretamente para ela, a jovem, sempre cheia de vida, corava e gaguejava alguma resposta.

Ele estava em Lincoln somente há duas semanas quando anunciou que, tão logo conseguisse economizar dinheiro suficiente para um novo equipamento, ele se dirigiria para Black Hills, para tentar a sorte nas minas de ouro. Jesse tinha dado uma palavrinha para J. W. Miles, proprietário de uma loja de tecidos e armarinhos na cidade, e Mackenzie estava trabalhando para ele desde o dia seguinte à sua chegada na cidade.

— Lincoln é uma cidade boa— ele disse com uma deferência cheia de tato para com Augusta — mas não sou o tipo talhado para viver em cidade. Eu cresci ao ar livre e não agüentaria ficar fechado em uma loja por muito tempo.

Virando-se para Jesse, ele acrescentou apressadamente:

— Não quer dizer que eu não seja grato por tudo o que a senhora tem feito para me ajudar, Sra. King".

Augusta o interrompeu:

— As minas de ouro de Black Hills não são exatamente o lugar mais seguro para alguém fazer fortuna, Mackenzie".

Jesse concordou:

— Eu certamente entendo o seu amor pelo ar livre, Mackenzie. Mas por que não voltar para a propriedade rural da família? O senhor Miles diz que você é um bom trabalhador. Estabeleça crédito com ele para equipar sua fazenda. Possuir uma terra é um caminho maravilhoso para um homem novo começar. Ora, você tem meio caminho andado para sustentar uma esposa e família de fato". Jesse parou um pouquinho. — Quero dizer, se uma família faz parte dos seus planos futuros— Ela se sentiu inoportuna entabulando tal assunto pessoal, e rapidamente voltou para o assunto de Augusta. — Os lakotas têm sido empurrados para tão longe... exploradores vindo para suas terras estarão numa posição muito precária.

Sem ser convidados, outros homens na sala de jantar entraram na conversa.

— É, aquele massacre em 66 os fez pensar que eles poderiam empurrar-nos."

Outra voz cresceu:

— Carrington com certeza fez aquele serviço malfeito, certo? Devia tê-los submetido a conselho de guerra".

— Eles tinham de enforcar dez desses selvagens assassinos por cada um dos nossos meninos que eles têm esquartejado."

O rosto de Jesse ficou vermelho de raiva. Sua voz quis sair, mas a raiva revolveu-se sem palavras. Tão rápido quanto ela tinha aberto sua boca, fechou, pediu desculpas à mesa e correu para a cozinha.

Augusta percebeu. Potes e panelas estão com certeza sendo manuseados com mais barulho do que sempre. Ela pulou com o barulho de um prato quebrando-se no chão.

Enquanto os homens continuavam a opinar sobre a — Situação dos índios— Augusta seguiu Jesse na cozinha, onde sempre a encontrava calma, nunca emocionalmente simpatizante de bater coisas, resmungar para ela mesma, enxugar lágrimas tanto de raiva como de suor em sua face. Lisbeth corria em volta, tentando ajudar e ao mesmo tempo sair do caminho de Jesse.

Outro prato alcançou o chão e Jesse bateu o pé, irritada.

— Miséria" balbuciou veementemente.

— Jesse!— Augusta exclamou.

Jesse levantou os olhos, assustada. Augusta e Lisbeth olharam atônitas, sem fala. O silêncio cresceu na cozinha. Joseph quebrou o silêncio incômodo, ao entrar pela porta do fundo com uma braçada de lenha.

— Até que enfim!— ele exclamou. — Mulheres, vocês finalmente fizeram isso! Eu ficava pensando quanto tempo três mulheres poderiam viver em cômodos assim tão pequenos e não terem um arranhão. Então, o que aconteceu?"

Jesse fechou os olhos, olhou para o céu e respirou fundo.

— Joseph— ela disse, sua voz suave novamente sob controle. — Eu dei uma de boba e quebrei dois pratos. Você se importaria de varrer isso, enquanto Augusta e Lisbeth servem a sobremesa?"

Ela se virou para Augusta.

— Sinto muito, Augusta, mas eu não posso voltar àquela sala de jantar com essa conversa continuando e permanecer polida. Se você não quiser ser forçada a fechar a Casa Hathaway devido à insanidade de uma das 'serviçais', é melhor você servir a sobremesa e deixar-me tomar um ar fresco."

Jesse não esperou Augusta responder. Ela passou por Joseph e bateu com força a porta do fundo ao sair, batendo o pé. Augusta apressou-se a fatiar o bolo de maçã e nozes que Jesse tinha tirado do forno. Joseph não perguntou mais nada. Pensando no que havia acontecido e imaginando que Jesse e Lisbeth tinham tido algum tipo de discussão, ele ajudou Augusta, trabalhando na cozinha enquanto Lisbeth e Augusta caminhavam apressadas entre a cozinha e a sala servindo os fregueses.

Quando o último freguês pagante saiu, Mackenzie levantou-se rapidamente da cadeira para ajudar a limpar as mesas. Quando Jesse não apareceu para ajudar com a louça, ele arregaçou as mangas e pôs as mãos cheias de calos na água quente para lavar. Joseph limpou as mesas, Augusta e Lisbeth secaram a louça e guardaram. Joseph e Mackenzie conversaram sob re qualquer coisa para evitar falar sobre o que lhes interessava mais. Augusta e Lisbeth quebraram o recorde pessoal do silêncio.

Quando a última louça estava limpa, o chão varrido, as mesas postas para o café da manhã, os dois homens deixaram Augusta sentada perto da lareira lendo. Lisbeth tinha corrido para seu quarto, bastante preocupada com a explosão da mãe.

Mackenzie ouviu a voz tranqüilizadora de Joseph enquanto saía pela porta do fundo:

— Vou procurá-la, Sra. Augusta. Se ela não aparecer logo, vou arrear a velha mula".

Augusta murmurou agradecimentos e Mackenzie subiu as escadas para seu quarto, de onde ficou olhando pela janela até ver Jesse retornando ao hotel, vindo do Oeste. O cabelo grisalho dela ou tinha caído ou sido solto, e ela segurava um maço de flores em sua mão esquerda. Antes de ela entrar, Mackenzie a viu parar e olhar a lua cheia do outono que estava baixa, no horizonte. Ela abaixou a cabeça por um minuto e então Mackenzie ouviu o barulho da porta e o som de vozes. Ele escutou bem. Incapaz de decifrar as palavras propriamente ditas, ele ainda conseguiu entender o que escutou. O murmúrio de vozes era baixo. Não havia raiva. Os tons eram suaves e confortantes. Após alguns instantes, somente uma voz podia ser ouvida. As vozes continuaram até Mackenzie cair no sono, com a luz do criado-mudo ainda acesa.

Augusta aceitou os pedidos de desculpas de Jesse com cordialidade:

— Tolice! Não precisa pedir desculpas! Faz um tempão que eu espero ver você dar uma de louca, Jesse King. Fez bem para o meu coração". Com um sorriso largo, Augusta desejou-lhe boa-noite a Jesse e dirigiu-se a seu próprio quarto. Ela pôs as flores que havia colhido em um vaso, apagou a luz e caminhou para o hall em direção a seu quarto. Soluços abafados vinham da porta de Lisbeth. Jesse abriu devagar. Lisbeth estava deitada na cama, apertando a almofada que a mãe havia bordado recentemente.

Tão logo sentiu a mão da mãe em seu ombro, Lisbeth ficou quieta e falou baixinho:

— Mãe, ele não pode ir embora! Simplesmente não pode! Se ele for embora agora, ele nunca saberá o quanto eu gosto dele".

Jesse deu uns tapinhas no braço da filha e concatenou seus pensamentos. Com uma oração silenciosa por sabedoria, Jesse respondeu:

— Um homem jovem tem de seguir seu próprio caminho no mundo, Lisbeth. Você não iria querer que ele fizesse nada menos do que seguir seu próprio caminho".

Lisbeth assentou-se repentinamente na cama, cruzou as pernas e jogou a almofada no colo para apoiar os cotovelos. Descansando o queixo nas mãos, os olhos escuros sérios, ela respondeu:

— É claro que eu quero que ele siga o seu próprio caminho, mamãe, mas se ele for embora...".

— Lisbeth— Jesse suspirou — Mackenzie é um moço fino. Eu não poderia desejar ninguém mais educado do que ele para você — se o Senhor o escolheu para você. Mas querida— Jesse tentou suavizar a voz, — Não parece que haja... quero dizer, ele não me pediu permissão para namorar você".

Lisbeth estava na defensiva.

— É claro que não, mãe! Mackenzie jamais pediria para namorar uma menina se não tem. condições de sustentar uma esposa.

— Ele tem a propriedade da família.

— Ele nunca voltará para lá.— A voz tremeu com sentimento.

— Por que não? Joseph diz que são acres e mais acres de terra rica.

Os olhos de Lisbeth encheram-se de lágrimas.

— Ah, mamãe, é tão terrível. E tão triste, mas ele nunca vai conseguir voltar.— Ela expôs, o que acontecera no sótão do estábulo de Joseph, o compartilhar emocional de Mackenzie, o suicídio de seu pai. O coração de Jesse encheu-se de compaixão e afeto pelo moço, que tão cedo fora exposto à dor de coração e ruína.

Antes que Lisbeth acabasse a história, Jesse tinha coberto as mãos da jovem filha e apertado carinhosamente. O gesto deu coragem a Lisbeth para continuar, após ter contado a história de Mackenzie.

— Mamãe, não posso explicar isso. É claro que sinto muito por ele, mas quando ouvi as palavras —quando vi como ele se sentia — eu só podia amá-lo! A senhora acha que isso pode acontecer desse jeito, mamãe? Uma mulher pode amar alguém tão de repente? É assim que se ama alguém?"

De um jeito característico, os olhos cinza de Jesse afastaram-se enquanto ela ponderava sua resposta.

— Eu não sei, Lisbeth. Não me lembro."

Impulsivamente Lisbeth interrompeu-a:

— Ah, mãe! Você é sempre tão... tão analítica! Honestamente, eu não me lembro nunca de tê-la visto nervosa — até esta noite. Por favor, não fique magoada, mãe, mas às vezes eu fico pensando se a senhora consegue porventura entender como eu me sinto."

Jesse levantou-se de repente e cruzou o quarto para olhar-se no espelho. Lisbeth notou pela primeira vez que o cabelo da mãe caía pelas costas. Jesse segurou com uma mão e começou a balançar um cacho grisalho com os dedos.

— Você pensa que eu não entendo como é sentir-se jovem e apaixonada. Bem, talvez eu tenha-me esquecido de algumas coisas. Mas, agora mesmo, você sabe o que eu estava pensando?"

Jesse virou-se para olhar a filha.

— Eu estava olhando no espelho e pensando. Quem é aquela mulher velha que veio interromper minha conversa com Lisbeth?— Jesse procurou os olhos da filha e encontrou vontade de ouvir e tentar entender.

— Veja bem, Lisbeth, quando eu penso em mim mesma, não penso naquela mulher que eu acabei de ver no espelho. Às vezes, sou uma criancinha, correndo para o poço para bombear aguar fresca para minha mãe. Então, num outro momento, sou uma jovem esposa, fazendo compras para encher um carroção para uma viagem que cruzará a planície. Estou morrendo de medo, mas estou fazendo o que eu tenho de fazer. Às vezes sou uma mulher triste, lamentando a perda de seu marido. Mas nunca, Lisbeth, nunca eu penso em mim como a mulher velha que você vê. Parece que faz tão pouco tempo que eu era moça. Ah, eu nunca fui bonita como você, e certamente nunca tão impulsiva, mas era jovem. E ainda sou jovem por dentro. Sim, querida, eu me lembro mesmo como era e, sim, eu tenho sentimentos fortes também. Eu apenas pratiquei bastante para escondê-los de forma que outros não os vejam...— Jesse hesitou antes de acrescentar: — Assim, os outros não me vêem. Lisbeth querida, nem sempre aceite o que você vê, porque, se aceitar, então você não verá a mim. Eu sei que geralmente sou de fala mansa e bem reservada, mas eu me lembro de encher um baú inteiro de enxoval com colchas... e esperar... e esperar... e ninguém veio encher minhas esperanças. Eu me lembro da dor e a seguir do aprendizado em amar alguém que eu nunca escolhera para mim e então de sofrer novamente, mais do que eu jamais pensara ser possível. Eu aprendi a confiar no Senhor em todas essas coisas. Há um versículo bíblico, Lisbeth: 'Tudo fez formoso em seu tempo'. Eu aprendi a verdade deste versículo e agora, as mãos de Jesse tremeram ao repartir e trançar o cabelo grosso vagamente, — Agora eu acho que é hora de você aprender sobre sua mamãe e você mesma. Enxugue as lágrimas, lave o rosto e encontre-me na cozinha".

Jesse saiu e Lisbeth espirrou água no rosto, foi para a cozinha, ativou o fogo e sentou-se em uma das cadeiras de balanço, com seu coração aos saltos.

Quando Augusta respondeu à batida delicada em sua porta, Jesse sussurrou: "Graças a Deus— e então disse rápido:

— Augusta, estou para fazer algo de que eu poderei arrepender-me, mas vou fazê-lo antes que perca a coragem. Você pode vir para a cozinha comigo e ficar lá enquanto conto uma coisa para Lisbeth?".

Augusta viu medo nos olhos da amiga. Ela agarrou seu guarda-pó e seguiu Jesse para a cozinha, onde Lisbeth esperava.

Jesse limpou a garganta e então a coragem lhe faltou.

— Esperem aqui— ela disse, e saiu de novo. Augusta e Lisbeth trocaram olhares curiosos e esperaram. Quando Jesse reentrou na cozinha, estava carregando a colcha de retalhos esfarrapada que sempre cobrira sua cama. Lisbeth tinha tentado substituí-la inúmeras vezes, mas Jesse não aceitava. — Ela me serve— dizia, — E nunca faça nada com essa colcha. É mais do que tecido velho e linha. Estes pontos têm segredos, todos os quadros contam histórias e algum dia vou contá-las".

A colcha permanecera na cama, estragando-se mais e mais, esgarçando até quase não ter mais conserto. Ainda assim Jesse se agarrava a ela.

Agora ela estava tremendo diante de sua única filha, agarrou-se à colcha e disse:

— Lisbeth, eu sei que você quis que eu me livrasse desta coisa por anos, e eu nunca me livrei. Bem, agora você vai saber por quê. Eu lhe disse que estes pontos têm segredos e os retalhos podem contar histórias e agora, eu acho— Jesse parou e respirou fundo, — Agora acho que é hora de você ouvir as histórias".

Jesse abriu a colcha no chão entre elas e Lisbeth e Augusta foram para a frente, nas cadeiras. A luz do fogo dava um brilho aconchegante ao cômodo. Ninguém tinha acendido a lâmpada e assim, as três mulheres assentaram-se à meia luz. Jesse começou, passando a mão na colcha e mostrando o painel central:

— Começa aqui, Lisbeth. Os quadros de cabanas de troncos são minha casa em Illinois. Havia mamãe, papai, minha irmã Betsy e eu.— Jesse descreveu sua casa—as árvores, os celeiros, os campos— para Lisbeth. Ela parou de repente. — Mas Lisbeth, seu conhecimento sobre o lugar onde eu cresci e como ele era, — isso não diz nada a você sobre mim, diz?— Sua voz tremeu um pouco quando continuou a contar sobre seu próprio baú de enxoval, os desapontamentos de sua juventude e como ela tinha-se casado com Homer King.

— Mas Mamãe— Lisbeth interrompeu, todas estas histórias você já me contou, o quanto amava papai, e como...."

— Quieta, Lisbeth, ou eu nunca vou conseguir, sua mãe ordenou, — você vai ouvir tudo, mas é duro para mim falar sobre isso. Às vezes dói lembrar".

A mão de Jesse escorregou pela colcha até a próxima fileira de quadros.

— Estas ainda são as cabanas de tronco, mas todas cortadas, pela metade. Eu a fiz assim, pois quando Homer decidiu que sairíamos de Illinois, parecia para mim que meu lar estava partido. Eu me senti como que partida por dentro também.

— E estas— Jesse disse passando os dedos sobre as rodas que tinham sido bordadas nas próximas extremidades de tiras de tecidos lisos, largas, — Estas são as rodas que me levaram para longe de todos que eu conhecia e de tudo o que eu amava".

A voz de Jesse equilibrou-se ao recontar o número de semanas na caravana, as travessias de rio, as rodas quebradas e a morte de Jacob.

Lisbeth abriu a boca assombrada:

— Eu tive um irmão, mamãe? Você nunca me contou. O que significa a próxima fileira, mamãe? Os pedaços de diamante...— Jesse enviou uma rápida súplica aos céus por coragem. Ela limpou a garganta e então mergulhou no capítulo seguinte de sua vida. — Estes são sobre a parte de minha vida mais difícil de contar. Eu sempre soube que deveria. Mas toda vez que tentei, perdi a coragem."

Os olhos de Lisbeth se arregalaram, imaginando coisas terríveis.

— Lisbeth, os diamantes estão costurados juntos para formar um triângulo, e triângulos formam tendas. Tendas indígenas — tendas que outrora temi, mas então vim a chamar de lar... depois de Homer morreu... e eu fui levada pelos lakotas... e encontrei seu pai.— Jesse levantou os olhos para a filha. Lisbeth sentou-se abruptamente para trás em sua cadeira, boquiaberta. Um sulco apareceu entre suas sobrancelhas enquanto ela tentava compreender o que sua mãe tinha acabado de dizer.

Augusta sentou-se mais à frente da cadeira ainda, que fez barulho devido a seu peso. Jesse pulou com o barulho súbito e apressou-se a adiantar a história, contando tudo o que podia, tentando contar sobre anos em poucos momentos, tentando contar antes que sua coragem falhasse, Lisbeth a detivesse ou Augusta a interrompesse. Augusta não tinha intenção de interrompê-la e Lisbeth estava sem fala. Qual emoção exatamente a deixou sem fala Jesse não saberia dizer, pois tinha medo de olhar para cima.

Ela dirigiu sua atenção à colcha, contando a história. Ela descreveu Cavalga o Vento, Velha, Duas Mães, que se tornara Águia que Voa Alto e Flor do Campo. Finalmente falou sobre Lobo Uivante e sua ida para a cabana de Pierre Canard.

— Foi nesse dia que você nasceu, Lisbeth. Nesse dia, na cabana de Pierre Canard."

Jesse continuou contando à filha sobre a dificuldade em lhe dar um nome. Explicou que o W. em seu nome era para Wind e que ela quase se tornara a Filha do Vento. E compartilhou sobre a depressão que tinha enfrentado, a perda, e finalmente como ter encontrado os retalhos de Suzette Canard e feito a colcha a tinha ajudado a curar seu pesar. Ela foi para o último bordado.

— E este último bordado, Lisbeth— disse Jesse num cochicho rouco, — Esta videira é a Videira Verdadeira, meu Senhor Jesus Cristo, que se tem colocado ao redor de tudo o que sempre aconteceu comigo e fez tudo formoso a seu tempo".

Finalmente ela havia contado cada ponto. Jesse estava exausta. Puxando a colcha para si, sentou-se no chão da cozinha, envolveu nela o corpo a colcha de retalhos e não chorou.

Lisbeth fitou com descrédito a colcha de retalhos que se espalhava do colo de sua mãe para o chão. Seus olhos seguiam os motivos para cima até as mãos enrugadas que a seguravam. Elas se mexiam nervosamente. Finalmente, Lisbeth olhou nos olhos cinza, solenes, da mulher que a tinha trazido à luz.

Jesse King já não era mais somente mamãe. Com a história da colcha ela tinha-se tornado uma mulher que havia amado e sofrido, mantido sua fé, crescido e triunfado em seu próprio e silencioso caminho.

O silêncio tornou-se pesado demais. Jesse o quebrou.

— Então Lisbeth, é assim que você veio a existir.— Ao falar, os olhos de Jesse procuraram o rosto da filha ansiosamente. A expressão de Lisbeth revelava uma tempestade de perguntas se revolvendo interior¬mente. Uma parte dela estava zangada. Ela queria acusar a mãe de mentir. Mas, ao retroceder nas lembranças, sabia que Jesse nunca tinha mentido. Ela tinha sempre parado pouco antes da verdade toda aparecer. Mas ela nunca tinha mentido.

— Por que a senhora não me contou?"

— Eu tinha medo, Lisbeth."

— A senhora tinha vergonha!— Lisbeth retorquiu.

Jesse ficou firme.

— Eu nunca tive vergonha, Lisbeth. Eu tentei ser verdadeira com o Senhor e verdadeira com seu pai. Mas eu queria proteger você daquilo que outros poderiam dizer para machucá-la.

Um rio de questões desaguou.

— Como ele era? Como era o meu pai?— ela queria saber.

A face de idade avançada brilhou com amor.

— Tudo o que já disse para você sobre seu pai era verdade, Lisbeth. Tudo sobre a bondade dele, o caráter dele, o amor dele. Mas o nome dele não era Homer King. Era Cavalga o Vento. Esta é a única coisa que eu não contei direito.— A voz de Jesse falhou: — E talvez esta fosse a coisa mais importante para você saber".

— Aquela mulher no Forte Keaney — era Flor do Campo?— Jesse concordou e Lisbeth começou a entender a conversa ansiosa de sua mãe naquela noite.

— O que aconteceu para Águia que Voa Alto?— Jesse contou o que sabia.

Perguntas e mais perguntas foram feitas noite a dentro, até que a mente de Lisbeth estava cheia demais para receber qualquer outra coisa e a voz de Jesse quase sumira.

Finalmente, Lisbeth olhou para a colcha.

— Agora entendo porque a senhora jamais largaria essa colcha.

Jesse levantou os olhos.

— Você está zangada comigo, Lisbeth?"

— Ah, mamãe, eu queria ficar zangada, mas não posso. A senhora disse que não me contou porque me ama. Eu sei que a senhora me ama, mamãe. Como posso ficar brava com a senhora, se durante todos esses anos guardou os segredos aí dentro? Todos esses anos achei que a senhora fosse apenas mamãe, e havia um mundo inteiro de coisas sobre a senhora que eu não sabia! Não posso ficar brava. Mamãe. Eu tenho tão poucos problemas com que me preocupar e a senhora tem um monte deles." Impulsivamente, Lisbeth ajoelhou-se perto da mãe, envolveu-a em seus braços e derramou suas primeiras lágrimas de mulher.

Augusta juntou-se às lágrimas e; quando Lisbeth e Jesse finalmente se levantaram, Jesse sorriu encabulada e falou:

— Eu disse a você no começo que tivera meus momentos e agora você sabe sobre todos eles. Você tem sido uma amiga querida Augusta. Achei que merecia ouvir isto. Espero que isso não mude as coisas... mas, se mudar, eu entenderei". Jesse revestiu-se de coragem e preparou-se para proteger Lisbeth de qualquer coisa dolorosa que pudesse vir agora que Augusta sabia que tinha empregado uma mulher de passado questionável com uma filha de herança questionável.

— Jesse King— Augusta ralhou esfregando o rosto para tirar as lágrimas e passando a mão de Jesse no rosto. — Eu não sou boba e eu sabia que você tinha alguns segredos para contar. E não pense que não fui capaz de saber que dois e dois são quatro nestes poucos anos passados com todo o problema com os índios, e vendo suas reações às notícias e às conversas na sala de jantar.

— Por Deus do céu, mulher! Eu sabia que havia mais coisa corn¬os índios em sua história do que você contava. E com a mentalidade justa que você tem, Jesse King, sendo uma mulher tão cristã que educou a filha para ser uma boa cristã... o que os olhos não vêem, o coração não sente. É isso aí!"

Então Lisbeth, Jesse King e Augusta Hathaway foram para seus quartos descansar durante as horas restantes antes do amanhecer. Jesse pôs a colcha esfarrapada em sua cama e lembrou-se das coisas que pertenciam somente a ela e a Cavalga o Vento.

Augusta afundou em seu acolchoado e preocupou-se com o futuro.

Mas Lisbeth ficou deitada, acordada, revendo tudo aquilo em sua mente e carregando um grande peso. Como poderei casar-me com Mackenzie, ela pensou, agora que eu sei? Como poderei algum dia casar-me com um homem respeitável? Pois Lisbeth tinha ouvido a conversa da sala de jantar e tinha lido os artigos do jornal. Eles descreviam "demônios em forma humana" cometendo — Bárbaras traições— Sem — Nenhuma preocupação pela vida humana". Mamãe tinha descrito um homem que amava sua esposa e filho. Era tão confuso! Mas, Lisbeth raciocinou, nós vivemos no mundo dos brancos. Ela tinha visto como os mestiços eram tratados... e agora ela tinha-se tornado um deles. Minha vida é toda farrapos, bem como a colcha da mamãe, mas mamãe fez o melhor que pôde. Lisbeth decidiu ser corajosa, como o pai dela, Cavalga o Vento. Ela guardaria a dor consigo mesma. E, naquele momento, Lisbeth tornou-se uma mulher, exatamente como sua mãe.

 

...mas uma coisa faço, e é que, esquecendo-se das coisas que atrás ficam, e avançando para as que estão diante de mim, prossigo para o alvo, pelo prêmio da soberana vocação de Deus em Cristo Jesus.

Filipenses 3:13-14

 

— Basta, Mac..., pode fechá-la. — J. W. berrou a ordem tão alto que Mackenzie ouviu facilmente, embora J. W. estivesse no fundo da loja e Mackenzie varrendo o chão perto da vitrina da frente. A ordem teve o efeito desejado. Duas jovens que tinham estado traquinando no balcão de doces pularam e saíram correndo. A senhora Bond decidiu que levaria seis jardas do rosa de duas larguras e deixaria o dourado Califórnia — embora achasse que a filha Charity ficaria tão bonita em dourado na social da igreja na próxima semana. A senhora Bond fez o último comentário o mais despretensiosamente possível. No entanto, quando falou o nome de Charity, ela olhou o jovem Mackenzie cuidadosamente, para ver qualquer reação ao som do nome de sua filha.

Aparentemente Mackenzie tinha alguma coisa em sua mente. A Sra. Bond tentou de novo.

— Você vai à social da igreja, não vai, Mackenzie?

Enquanto Mac media o tecido, J. W. andava para a frente da loja, fazendo barulho alto com as chaves da porta. Mac cortou e dobrou o tecido, embrulhou-o com papel marrom e amarrou-o com barbante.

— Ponho isto em sua conta, Sra. Bond?

— Ah, sim, Mackenzie, por favor — ela suspirou e virou os olhos. Tenho certeza de que a Charity virá aqui pelo menos mais uma vez para se divertir com outra compra antes da social. Ela vai precisar de luvas e... ai, me esqueci! Você é novo na cidade, não é Mackenzie? Eu tenho certeza de que Charity ficará contente em ter você junto com ela e com os amigos dela na social. A Charity vai ficar feliz em apresentá-lo aos outros jovens da igreja. Você não teve muita oportunidade de encontrar ninguém, teve?

  1. W. balançou as chaves de novo e limpou a garganta.

— Tenha um bom dia, Sra. Bond. Obrigado por vir aqui. Lembranças à família... — Ele mexeu a porta aberta.

A Senhora Bond não saía facilmente.

— Então, Mackenzie, vou certificar-me de que Charity venha aqui amanhã. Vocês dois podem combinar então.

  1. W. levantou uma sobrancelha às costas da Sra. Bond e balançou a cabeça para Mackenzie, fazendo uma careta.

— Bem, eu que agradeço, Sra. Bond. Estarei participando da social, é claro, mas provavelmente chegarei tarde. Tenho de ajudar a fechar aqui, a senhora sabe, e eu não gostaria de que Charity tivesse que ficar me esperando.— Ao falar, Mackenzie pegou o braço da Sra. Bond e educadamente a acompanhou para a frente da loja. Agnes Bond de repente viu-se parada na calçada da loja falando com a porta fechada.

  1. W. já tinha girado a tranca na porta e abaixado as cortinas. Apertando firmemente seu pacote, Agnes pôs-se a descer a calçada e a atravessar a rua. Ela não tinha alcançado o outro lado quando um sorriso emoldurou seu rosto, formando covinhas. Que boba que sou, ela pensou, Charity não vai querer esse rosa forte. Tenho certeza de que ela vai querer que eu troque, mas estarei muito ocupada arrumando as conservas. Ela terá de fazer isso sozinha!

Quando J. W. fechou a porta da loja, deu um tapinha nas costas de Mackenzie.

— Bom trabalho, meu garoto! Agora vou dizer-lhe uma coisa sobre o negócio de tecidos. Compre a melhor mercadoria, venda a um preço razoável e — ele deu uma piscada — Nunca, mas nunca permita que Agnes Bond planeje sua vida social! Uma mãe à procura de um marido para sua filha não é coisa pra se brincar.

Mackenzie riu em resposta.

— Ah, a Charity não é tão ruim, Milles, ela é só um pouco mimada, só isso.

— Um pouco mimada! A bondade jorra de sua língua, jovem.

Mackenzie mudou de assunto. Puxando um livro de debaixo do balcão, ele disse:

— Ah! Quase esqueci... preciso pagar isto!

Miles pegou-o para marcar na caixa registradora e leu alto:

— Memórias do Oeste Selvagem, de Francis Day— Ele olhou para Mackenzie: — Você se interessa pelas guerras com índios, Mac?

— Eu li uma crítica no jornal. Dizia “ela mostra que entende o grande Oeste” e eu achei que deve ser interessante ler. Eu ainda era bem jovem quando tudo começou.

  1. W. não perguntou mais nada. Pegou o dinheiro de Mac, embrulhou o livro e deixaram a loja juntos — pelos fundos e longe de Agnes Bond. Mac correu rápido pelo fundo do estábulo e até a porta da frente do hotel. Olhando cuidadosamente em volta, andou em silêncio pela sala de jantar e entrou na cozinha onde Lisbeth estava ajudando sua mãe a preparar o jantar.

Jesse sorriu uma saudação. Lisbeth não levantou os olhos, até Mac chamar seu nome.

— Lisbeth. — Foi a vez de Mac sentir-se embaraçado. No lugar daquela menina que corou e tremeu, na primeira vez em que ele a viu, quando chegou, ali estava uma jovem mulher calma, que parecia — bem — completamente desinteressada no que ele tinha para dizer. Ela estava agindo assim há umas duas semanas, e ele tinha de admitir que isto o fazia sentir-se embaraçado. Isto também tornava Lisbeth terrivelmente atraente.

Mac levantou o pacote.

— Isto chegou no Miles. Sei que você gosta de ler e achei que pode divertir-se com ele.

Lisbeth pegou o presente friamente e o desembrulhou. Correndo os olhos para o título, corou e voltou-se para Jesse.

— É aquele livro da Sra. Day, mãe. Mais uma história de índios sanguinários e a pessoa branca indefesa que eles estão assas¬sinando. — Virando-se para Mac, ela acrescentou amargamente: — Fico pensando, Sr. Baird, será que a Sra. Day menciona que os brancos em questão têm violado mais pactos e tomado mais terras dos índios? A Sra. Day menciona as mulheres índias e crianças assassinadas pela infantaria?

— Lisbeth! — Jesse falou brusca e asperamente. — Lisbeth, Mackenzie fez-lhe uma delicadeza. Onde estão os seus modos?

— Obrigada, Mackenzie — Lisbeth disse mecanicamente.

Mackenzie fitou o livro com arrependimento.

— Desculpe-me, Lisbeth... eu só queria... eu não queria... — Ele decidiu mudar de assunto. — Vim na verdade convidá-la para a social da igreja na próxima semana. Mas imagino que não queira ir comigo... Desculpe-me, eu...

Jesse interrompeu.

— Mackenzie, você não precisa desculpar-se por ter trazido um presente à minha filha. Foi uma coisa muito boa que você fez, e se ela é tão mal-educada a ponto de não agradecer direito, eu agradeço. Muito obrigada por ser tão bom. — Jesse virou-se para Lisbeth esperando que ela entrasse na conversa. Ao contrário, Lisbeth tirou o avental cuidadosamente, dobrou-o pondo no encosto de uma cadeira e saiu da cozinha.

Mackenzie ficou olhando-a sair. Pegando o papel e o livro, ele virou-se para sair da cozinha.

— Espere, Mackenzie — Jesse falou. — Espere eu conversar com ela. Tenho certeza de que ela adoraria ir à social com você. Só deixe eu ir ver o que está acontecendo com ela!

Mackenzie deu um sorriso largo.

— Obrigado, Sra. King. Eu não posso entendê-la mesmo. Achei que ela gostava um pouco de mim. — Ele corou na frente da mãe de Lisbeth, de todas as pessoas. — Não que ela tenha flertado ou outra coisa...

Jesse abaixou a voz.

— Acho que Lisbeth seria um tanto boba se não gostasse de você, Mackenzie... e eu não criei uma boba. Se você tiver paciência, eu vou tentar chegar à raiz desse negócio.

Mackenzie assentou-se na cozinha e arregaçou as mangas.

— Só me dê serviço, Sra. King... e será um prazer esperar.— Ele ficou, de repente, muito sério. — Eu quero mesmo que ela vá comigo à social da igreja.

Augusta deu as ordens, na porta do fundo, gritando:

— Jesse, aqui está uma mistura de feijão se é que você já viu uma. Eu sabia que valeria a pena plantar! — Augusta tinha ouvido Mac pedir serviço e colocou o cesto cheio de feijões na frente dele, deu-lhe um tapinha carinhoso nas costas e ordenou: — Trabalhe neles, jovem!

Mac sentou-se para trabalhar e Jesse foi atrás de Lisbeth.

 

Dava para ouvir o choro de Lisbeth antes de abrir a porta de seu quarto. Ao som do barulho dos trincos, Lisbeth olhou. Ao ver Jesse, disse dramaticamente:

— Ah mãe! Eu ia ser tão corajosa, tão adulta. Eu decidi que eu não ia nem me importar se não pudesse me casar com o Mac. Eu decidi mesmo parar de olhar para ele, e às vezes eu nem penso nele. Decidi ir para a universidade, como a Hortense. Vou dedicar minha vida ao ensino e não vou importar-me se não puder casar. Eu tinha planejado e parecia que estava tudo certo. Além disso, Mackenzie nunca me notou antes.

Ela acrescentou miseravelmente:

— Então ele teve de vir e me dar aquele livro bobo e me convidar para a social da igreja. Mãe! Mackenzie Baird não sabia que eu existia todas estas semanas que ficou em Lincoln. Como pode, bem quando eu decido não me importar...

— Mas você se importa, Lisbeth — Jesse interrompeu.

Lisbeth deu de ombros e fez uma careta.

— Você se importa mesmo — Jesse insistiu.

— É claro que eu me importo— ela resmungou. — Mas isso não interessa. Porque ninguém tão bom quanto Mackenzie se casaria comigo algum dia.

— Por que não, Lisbeth?

Lisbeth tentou não dizer. Ela não queria falar nisso. Mas a palavra estava no ar e, finalmente, ela a agarrou e jogou para sua mãe.

— Porque eu sou uma mestiça, é por isso. Eu leio jornais, mãe. Sei o que as pessoas vão pensar. O que elas vão dizer. Quando descobrir a verdade, Mackenzie não vai querer nem andar do mesmo lado da rua em que eu ando e muito menos ir à social da igreja. E Deus me livre de pensar na palavra casamento!

Jesse ficou um pouco impaciente.

— Lisbeth, você não está sendo um pouco dramática demais? O moço simplesmente lhe deu um presente e a convidou para a social da igreja.

— Você não entende, mãe! — veio a resposta irritada. — Eu não posso ter uma vida normal, agora, porque eu não sou uma menina normal. Meu pai corria pela campina, seminu, retalhando seus inimigos. Como isso seria registrado num convite de casamento?

Lisbeth tinha jogado as palavras com muita precipitação para poder recolhê-las. O efeito delas em sua mãe foi imediato. Jesse fechou ambas as mãos em volta da balaústre da cama até suas juntas ficarem brancas. Manchas verdes apareceram nos olhos cinza quando ela disse:

— Pela primeira vez desde que você nasceu, Lisbeth, sinto vergonha de você. Seu pai usava pele de animal em vez de ternos de lã. Ele falava uma língua diferente. Ele parecia diferente dos homens em nossa sociedade. Mas quando se trata do valor de um homem, Lisbeth, essas diferenças não fazem, na verdade, nenhuma diferença. Você dá menos valor ao Mackenzie por saber que o pai dele era um homem fraco que se suicidou? Claro que não. O Mackenzie vai dar menos valor a você quando souber que seu pai era um valente lakota? Eu não sei. Mas acho que Mackenzie merece mais do que, subitamente, ser desprezado pela mulher de quem ele gosta, sem nenhuma explicação.

— Talvez ele mude de idéia quando souber que você é mestiça. Mas Lisbeth, você tem de correr esse risco. Não use seus pais como uma desculpa para ser miserável. Seu futuro é responsabilidade sua, Lisbeth. Eu não serei culpada por alguma felicidade imaginada que você pense que roubei de você. Deus me pôs nos braços de seu pai e você não tem o direito de dizer que havia qualquer coisa errada nisso.

— Cavalga o Vento foi um homem lindo, bom. Eu o amava. Eu ainda o amo e você o teria amado também se tivesse tido a chance de conhecê-lo. — Jesse abaixou a voz e disse com bastante frieza: — Você nunca falará dele com desrespeito de novo, entendeu?

O monólogo de Jesse tinha sido dito num tom de raiva que Lisbeth nunca ouvira antes. Isto a deixou um pouco com medo. Agora, na voz familiar da mamãe, Jesse acrescentou:

— Agora, há um homem muito bonito lá na cozinha esperando para acompanhá-la à social da igreja. Conte a ele sobre seu pai. Eu a eduquei para ser honesta, por isso diga a Mackenzie a verdade e tome seja qual for a resposta como sendo do Senhor. Se Mackenzie aceitar você como você é e ainda quiser levá-la à social, então talvez ele seja o homem que Deus tem para você. Se não for, é melhor você saber agora. Não há nada mais desmotivante do que viver com um homem que não a aprova. Não repita o erro que fiz quando me casei com Homer King. Agora eu sugiro enfaticamente que você vá para a cozinha e se desculpe de alguma forma. Talvez você não tenha uma segunda chance para a felicidade, Lisbeth.

Jesse estava tremendo de emoção quando terminou. Girando ao redor, saiu do quarto de Lisbeth, atravessando o hall, para o seu quarto. Ela se deitou e puxou a colcha sobre si, prestando atenção ao silêncio no corredor fora de sua porta.

Alguns momentos depois, ela ouviu o ranger da porta de Lisbeth e passos em direção à cozinha. Jesse ficou em seu quarto, esperando, pensando no que Mackenzie faria.

Mackenzie e Augusta conversavam à vontade enquanto Augusta se alvoroçava na cozinha e Mackenzie separava os feijões verdes. Lisbeth parou na porta da cozinha, olhando-o trabalhar, ouvindo o tom de sua voz e o riso fácil que dividia com Augusta, sobre um incidente na loja naquele dia. O cabelo grosso, escuro, estava caído na testa enquanto trabalhava. Lisbeth gostava do jeito das veias nas costas das mãos dele saltarem, quando trabalhava. Quando ele acabou, empurrou a cadeira de volta e se espreguiçou tranqüilo, com as mãos atrás da cabeça. No meio do espreguiçar, viu Lisbeth e imediatamente ambas as mãos caíram para o lado. Um sorriso formou-se em seu rosto.

— Mackenzie — Lisbeth perguntou — posso conversar com você lá fora, só por um instante?

— Claro, Lisbeth — Mackenzie lançou um olhar para Augusta, que balançou a cabeça encorajando-o, enquanto os dois jovens saíam.

Em quase todos os contatos com ele, Mackenzie tinha estado sentado a uma mesa enquanto ela o servia. Ela nunca tinha percebido mesmo quão alto ele era. Ela gostava do jeito que ele se elevava acima dela. E ela gostava do jeito como ele ficava quieto, esperando-a arrumar os pensamentos.

Os dois deram a volta pelo fundo até o estábulo. Estrela Vermelha, agora uma égua velha, reclinou-se num cumprimento e eles foram até as cocheiras para coçar atrás das orelhas dela.

— Estrela Vermelha era tudo que tínhamos nesse mundo, quando viemos para Lincoln — disse Lisbeth. — Tinha acabado deter o nome Lancaster trocado, então.

— Quando os meus pais receberam a propriedade, era Lancaster.

— Então você estava aqui? Por que nunca veio para a cidade?

— Papai fazia toda a compra na cidade de Nebraska. Dizia que Lancaster nunca chegaria a nada.

Enquanto conversavam, Lisbeth começou a trançar a crina de Estrela Vermelha. Ela ficou em silêncio por um momento. Então, sem olhar para cima, balbuciou:

— Eu sei, Mackenzie sobre os seus, sobre seu pai. Eu estava no sótão no dia em que você falou com o Joseph.

Mackenzie olhou profundamente para ela, que se apressou em explicar:

— O sótão é um tipo de esconderijo secreto para mim, onde posso pensar e ficar sozinha. Eu estava lá em cima, naquele dia. Eu não queria bisbilhotar, mas não havia como eu descer, enquanto você conversava com o Joseph.

— Tudo bem, eu acho — disse Mackenzie, encolhendo seus ombros. Então, numa súplica quase desesperada, continuou: — Mas você não vai contar para ninguém, vai? Quer dizer... papai não tinha muitos amigos aqui, mas eu não quero que eles pensem...

Lisbeth acabou de trançar a crina de Estrela Vermelha e olhou para Mackenzie. Ela prometeu:

— É claro que eu não vou contar a ninguém, Mackenzie. Não é da conta de ninguém, por sinal.

Mackenzie balançou a cabeça em agradecimento, engoliu seco e fixou os olhos na crina de Estrela Vermelha, perguntando depressa:

— Então, Lisbeth, você vai à social comigo? Ou talvez você não queira ir com alguém que tenha um homem louco como pai— Sua voz era dolorida.

— Ah! Mackenzie, eu não ligo para isso! — Lisbeth exclamou rápido. — Você não pode culpar uma pessoa pelo que seus pais fizeram. Meu Deus! Pense bem em como seria esse mundo se todos guardássemos registros de gerações passadas. — Ela deu uma risadinha. — Porque não há nenhuma pessoa em Lincoln que não tenha algum envolvimento com outra. Todos sabem da vida de todos.

Mackenzie sorriu:

— Então, você irá ou não comigo?

Estava ficando mais fácil conversar com ele. Lisbeth olhou firme em seus olhos azuis.

— Primeiro tenho de explicar uma coisa, Mackenzie. Você pode não querer convidar-me quando ouvir isso. Espero que não se importe. — Lisbeth piscou. — Mas, se você se importar, se isto fizer diferença, então eu entenderei.

Ela contou tudo, o mais rápido que pôde, juntando as sentenças, como quando era menininha. Ao final da história, encontrou-se defendendo sua mãe, revoltada com o mundo que tornava necessária uma explicação. Impulsivamente ela agarrou uma escova e começou a escovar o pêlo vermelho de Estrela Vermelha com vigor. Fez isso por um longo tempo e lágrimas começaram a ofuscar sua visão. Ela tentou conformar-se com o que parecia estar acontecendo. Então, uma mão cobriu as suas e apertou-as com afeto. Mac tirou a escova e dobrou-se para beijar as costas da mão dela.

— Então, Srta. King, você me dará a honra de acompanhá-la à social na próxima sexta-feira, à noite, na Igreja Congregacional?

A Srta. King embaraçou-se ao dizer sim tão alto que o cavalo sonolento, na cocheira perto de Estrela Vermelha, assustado, pulou e deu um coice no lado da cocheira. Os dois jovens riram e Mackenzie levantou Lisbeth no ar, rodando-a em seus braços.

 

Doente de apreensão, Jesse tinha sido incapaz de permanecer sozinha por muito tempo. Ela voltara à cozinha para ajudar Augusta com o preparo da refeição, orando firmemente por Lisbeth e Mackenzie, enquanto trabalhava. Quando os dois jovens entraram juntos pela porta da cozinha, o sorriso feliz contou às mulheres mais velhas tudo o que precisavam saber.

Lisbeth estava séria, quando disse à mãe:

— Mãe, eu...

Jesse levantou uma mão para fazê-la calar-se.

— Tudo bem, Lisbeth. Estou feliz que tudo tenha-se esclarecido. Estava orando por vocês dois.

— Mãe, nós quatro sabemos sobre papai. Você me contaria uma história sobre ele, enquanto preparamos o jantar?

O criminoso nunca apareceu, mas, em algum momento daquela noite, a primeira queima de livros no estado do Nebraska aconteceu. Memórias de um Oeste Selvagem, de Francis Day, encontrou seu caminho no fogão de Augusta.

 

Ela... trabalha de boa vontade com as suas mãos.

Provérbios 31:13

 

Era sábado à noite. Os hóspedes tinham todos jantado, ido para a cama e Augusta e Jesse estavam acabando o dia da forma usual. Jesse, assentada na cadeira de balanço, perto do fogão, acrescentava bordados em sua última capa de acolchoado. Seria nas cores da moda: verdes e vermelhos uniformes. Jesse queria tentar uma colcha modelo Baltimore Álbum, o qual uma das senhoras do grupo social de senhoras da igreja tinha visto numa viagem de volta ao Leste. Entretanto, Jesse tinha optado por alguma coisa menos complicada, com apliques mais fáceis. Se eu trabalhar com pedaços maiores, ela pensou, então posso gastar todo o tempo que quiser no acolchoamento. Jesse adorava trabalhar com colchas, acolchoados, e nada a satisfazia mais do que cobrir a parte externa deles com plumas e penas, então juntá-las com linhas de acolchoamento bem próximas e pontilhadas.

Enquanto Jesse costurava, Augusta lia alto o Commonwealth. Já não era mais o único jornal em Lincoln, mas Augusta permanecia leal ao velho periódico e a seu editor.

— Eles estavam aqui quando começamos Lincoln, e eles ainda estarão aqui quando passarmos desta vida — era o que Augusta explicava quando um vendedor de jornal tentava vender-lhe o jornal novo. — Fico orgulhosa de chamar Charles Gere de meu amigo, e ele sempre fala o que é correto. — O vendedor aceitava a derrota e continuava na rua, procurando um território novo para conquistar.

Augusta, de olhos semicerrados, leu alto o impresso bonito:

Nós não temos visto em Nebraska nada tão livre ao mesmo tempo de formalidade e vulgaridade como as únicas e originais cenas retratadas nos momentos de diversão, na última noite oferecida pelas senhoras de Lincoln, para o benefício da Igreja Congregacional.

— Livre de formalidade e vulgaridade — Augusta repetiu. — Bem, diversão certamente houve — no entanto, não posso dizer o mesmo em relação à Srta. Charity Bond, quando avistou nossa Lisbeth de braço dado com Mackenzie Baird.

— Augusta! — Jesse censurou.

Augusta abaixou o jornal.

— Só estou dizendo o que é real, Jesse. Você também viu isso. Aquela metidinha tem estado levantando seus cachos como uma mulher sem-vergonha, a cada homem novo que aparece na cidade. Ela estava dando em cima de Mackenzie, para casar-se com ele, e você e eu sabemos disso. Eu nunca vou esquecer o olhar no rosto dela, quando Mackenzie e Lisbeth entraram juntos. Ela parecia ter engolido um cabo de vassoura, cruzando em disparada aquele espaço para puxar Mackenzie para longe. Totalmente mal-educada, diria eu.

Jesse tentou interrompê-la.

— Ah! Eu sei, eu sei... ela “só queria apresentá-lo para os amigos dela”, ela disse. É claro, ela tinha de se colocar entre Lisbeth e Mackenzie para fazer isso! E ela quase se esqueceu de apresentar Lisbeth. Vulgar, eu diria, é a palavra para descrever as maneiras daquela pequena senhorita. A mãe deveria ter vergonha dela!

— Augusta, o que mais o jornal diz sobre o evento? — Jesse, sempre boa e desejosa de desculpar os outros, tentou mudar de assunto.

Augusta leu rapidamente:

Aos convidados foram apresentadas várias cenas de peças sob a direção habilidosa da Sra. Agnes Bond e Sra. Hortense Griswall. Estavam incluídas: Pedro na prisão (a preferida do editor), A rainha Ester, Pigmalião e A tentação.

Augusta parou de ler, de novo.

— Habilidosa! Eu nunca vi tal habilidade fazer Charity Bond destacar-se. Agnes certificou-se de dar a Charity o papel principal em cada peça, exceto a que melhor lhe convém: A tentação. Teria sido perfeita, mas Agnes não ia querer sua querida Charity parecendo uma tentadora. Ahhh!

— Augusta, por favor... só leia as notícias — Jesse implorou.

— Ah, está bem, Jesse! Mas o que é certo é certo e Lisbeth deveria ter tido uma parte. É tudo que eu digo.

— Augusta, você sabe muito bem que Lisbeth não tem mesmo interesse em teatro. Você estava nesta sala, quando ela suplicou para não ser forçada a participar.

Augusta fingiu não ouvir e acabou de ler o artigo.

As cenas foram acompanhadas com talento pelo ótimo desempenho da Sra. Agnes ao piano.

Augusta interpôs:

— O que lhe deu toda oportunidade de introduzir mais alto as entradas de Charity Bond — com a assistência de Birdie Pound, uma fadinha que saudava a audiência ao anunciar cada peça seguinte. Saiba-se que Birdie foi a preferida da audiência. As senhoras merecem o mais alto louvor pela invenção, originalidade e capacidade artística.

Augusta parou de ler para fazer um editorial final:

— Originalidade — com certeza Charity descartou isso. Eu nunca vi esquemas tão originais para fazer Mackenzie prestar-lhe atenção. Quando ela derrubou o ponche e manchou o vestido novo de Lisbeth, eu queria bater nela. Mas Mackenzie salvou o dia. Ele pegou o braço de Lisbeth, andou em volta com ela e esperou que se trocasse. Abençoado seja o coração desse menino.

Mesmo tendo um coração mais manso, Jesse não pôde resistir a um comentário neste ponto:

— Devo admitir que não foi bondoso da parte de Charity. Pareceu mesmo que ela teve a intenção de fazer aquilo. Entretanto, fiquei orgulhosa de Lisbeth. Não é sempre que ela expressa tal autocontrole, como o de uma senhora fina.

Augusta concordou:

— Quando você se mudou para cá, essa criança simplesmente estourava por qualquer razão. Eu me lembro como ela foi falando sem parar sobre Warbonnet, escolhendo seu gatinho preferido. Eu confesso, algumas vezes eu pedia para ela só treinar ficar quieta, pelo menos um pouco. Nestas últimas semanas, no entanto, parece que ela cresceu tudo o que tinha para crescer, de uma só vez. Podemos ficar orgulhosa dela.

Augusta estava acostumada a não reconhecer sua participação nas coisas boas que aconteciam em Lincoln. Lisbeth também estava incluída nesse caso.

— Você tem sido uma grande ajuda para nós duas, Augusta. Tenho agradecido ao Senhor, sempre, por ter-nos guiado ao Joseph Freeman, naquela noite escura, há tanto tempo. E Joseph nos trouxe a você. — Jesse levou a costura para perto do rosto, dando os pontinhos finais que completavam a capa da colcha, enquanto dizia: — Você é uma bênção, Augusta.

Augusta limpou a garganta alto e voltou ao assunto Lisbeth e Mackenzie:

— Acha que estaremos planejando um casamento logo?

Jesse abriu a capa da colcha no chão, antes de responder. Plumas grandes cortadas em vermelho e verde uniformes tinham sido aplicadas em volta de um centro liso, de musselina vermelha, para formar uma flor em forma de cata-vento. Somente quatro dessas flores grandes, colocadas juntas, eram suficientes para cobrir a parte superior de uma cama. Os lados e pés eram bordados com tiras de musselina de dez polegadas de largura, aplicadas com videiras bem trabalhadas, intercaladas com flores e folhas.

Jesse respondeu:

— Bem, não tão logo, espero eu. Eu só acabei a capa. Preciso de algum tempo para acabar o trabalho de acolchoamento.

Augusta se alegrou.

— Jesse King! Eu sabia que você estava pensando nisto também! Por que você não disse nada? Eu estava a ponto de estourar de rir, vendo aqueles dois olhando um para o outro.

Jesse puxou a capa da colcha do chão.

— É melhor deixar o tempo passar um pouco. Eu não gostaria de apressar nada. Casamento é para toda a vida e quero que eles tenham certeza disso. Quanto mais esperarem, mais tempo para eu orar. — Jesse levantou-se e acrescentou num tom mais leve: — E mais tempo terei para criar minha obra de arte! — Ela sorriu feliz. — Vou para a cama, Augusta. As mulheres da igreja prometeram ajudar-me a alinhavar e pôr a moldura, depois do almoço, amanhã.

— Elas vão ajudá-la a acolchoá-lo, também? — perguntou Augusta.

— Ah, não, Augusta. Este aqui não é para ser tocado por nenhuma agulha, a não ser a minha.

— Por que não?

Jesse estava relutante em admitir, mas disse:

— Bem... a Agnes e a Ona não são... eu não quero ser maldosa, Augusta, mas elas não costuram bem para fazer isto. Além disso, quero que este seja todo meu, para Lisbeth. — Jesse pôs a capa da colcha dobrada sobre o braço. — O que me lembra... você se importaria se eu pedisse para o Mackenzie montar uma moldura aqui?

Augusta olhou em volta, na cozinha cheia.

— Eu não me importo, Jesse, mas não há espaço.

— Eu pensei que, se puser uma roldana no forro, ela ficaria fora do caminho durante o dia. Então, à noite, quando não estamos trabalhando, eu posso abaixá-la e colocá-la nas costas da cadeira e trabalhar assim.

Augusta elogiou a invenção e concordou na hora. Na segunda-feira, Mackenzie e Joseph montaram as roldanas e naquela noite Jesse começou a trabalhar no que queria: sua obra-prima — e seu presente de casamento para Lisbeth e Mackenzie Baird.

Jesse acolchoou durante todo o inverno. Lisbeth a prevenia:

— Mamãe, a senhora vai estragar a vista.

Mas Jesse, ainda assim, trabalhava duro.

Mackenzie balançava a cabeça ao ver o tempo que Jesse gastava, curvada em seu trabalho.

— Com todo respeito, senhora — ele disse uma noite — A senhora tem costurado o tempo todo em que a Sra. Hathaway se dedica à leitura. Ela lê o jornal inteiro para nós e a senhora trabalha em um único quadro, do tamanho da minha mão? Como a senhora agüenta isso? — Ele acrescentou, rápido: — É lindo, é lindo, Sra. King — não entenda mal. Só que é preciso ter muita paciência.

Jesse sorriu.

— É aí que você se engana, Mackenzie. Não é preciso ter muita paciência para fazer aquilo de que se gosta muito. Agora, debulhar ervilhas... para isso, sim, precisa-se de paciência! — Jesse olhou para Lisbeth, que estava fazendo justamente essa tarefa.

— Amém, mamãe! Concordo com a senhora. Mas prefiro fazer isto a fazer acolchoados todos os dias.

Jesse curvou-se sobre a colcha e continuou a costurar. Mas ela pensou no que Mackenzie disse aquela noite toda e no dia seguinte. Por que, pensou ela, as mulheres fazem colchas? Os acolchoados servem para a mesma coisa — e nós podemos emendar muitos em um só dia. De fato, nós trabalhamos e trabalhamos cortando retalhos, emendando-os e criando colchas.

 

No dia seguinte, Mackenzie e Lisbeth chegaram cedo do ensaio do coral. Eles pareciam mais felizes do que sempre, mas Jesse apressou-se em compartilhar seus pensamentos enquanto eles ainda estavam organizados.

— Mackenzie — ela começou — A noite passada você perguntou como eu podia agüentar todo esse trabalho. Eu nunca havia pensado nisso. Mas fiquei refletindo o dia todo e acho que tenho a resposta. Quando um homem quer deixar sua marca no mundo, ele constrói alguma coisa. Pode ser uma propriedade, um jornal, um hotel ou uma loja de tecidos. Assim, seja o que for que fizer, um homem pode sempre apontar algo e dizer: Isto — eu sou isto. E isto que fiz que é importante. Agora, uma mulher cozinha, limpa e tira o pó, acaba tudo e tem de fazer de novo. Quando penso nisso, Mackenzie, nas únicas coisas que vão ficar, quando partir desta vida, só restam minhas colchas. Acho que por isso que as faço com tanto cuidado. No entanto, nunca havia pensado realmente no assunto, até agora. Há uma grande satisfação em correr minha mão sobre uma colcha acabada e saber que fui eu quem a fez. Deve ser algo como o que o Senhor sentiu quando olhou e viu que era bom, e então descansou no Sabbath.

Mackenzie olhou atentamente a colcha quase terminada.

— Qual é o nome deste modelo, Sra. King?

— Plumagem de Princesa— Jesse respondeu.

Pegando a mão de Lisbeth, Mackenzie perguntou:

— Seria presunçoso de minha parte perguntar se a senhora planejou acrescentar esta colcha ao enxoval de Lisbeth?

Jesse ergueu os olhos para o casal e sorriu.

— Eu poderia ser persuadida a fazê-lo. Mas apenas se eu tivesse certeza de que seu futuro marido fosse um homem valoroso para repartir tal presente.

Mackenzie limpou a garganta:

— Bem, senhora, eu não tenho certeza de ser um homem valoroso, mas nós ficaríamos com certeza honrados se a senhora deixasse sua obra de arte enfeitar nossa casa. Eu pedi Lisbeth em casamento, Sra. King, e ela disse sim... — Mackenzie foi impedido de acabar a sentença por Augusta, que se precipitou sobre os dois e os abraçou. Mackenzie ficou vermelho e acabou: — Ela disse sim, se a senhora concordar.

Jesse ficou quieta tanto tempo que tanto Mackenzie quanto Lisbeth ficaram nervosos. As lágrimas encheram seus olhos. Ela lutou contra elas e disse baixinho:

— Mackenzie, em tudo o que você disse e em tudo o que você fez provou ser um homem trabalhador. Mas há muitos homens trabalhadores por aí. Isto só não é suficiente para fazer um marido adequado. Desde que Lisbeth era bem pequenina, oro a Deus que mande a ela um homem firme na fé. Eu observei você cuidadosamente, meu rapaz.

Jesse levantou-se da cadeira e pôs a mão levemente sobre a colcha.

— E parece-me que você é comprometido com o Senhor. Eu sei que ele capacitará você a continuar em seu compromisso com minha filha. Mackenzie, estou orgulhosa de entregar Lisbeth a você.

As lágrimas encheram os olhos de Jesse novamente.

— Perdoem as lágrimas, crianças. Não é uma coisa fácil entregar a única filha. — Jesse olhou para Lisbeth, cuja face estava emoldurada por sorrisos. — Deus abençoe os dois. Vocês têm a minha bênção.

Houve um momento de silêncio e, então, Augusta disse alto:

— O momento pede uma celebração. Mackenzie, você daria uma olhada na cocheira, para ver se o Joseph está lá? Eu creio que ele ia ficar até mais tarde para cuidar daquela mula que está para parir a qualquer hora. Agora, todos esperem aqui — Ela saiu depressa da sala e voltou com cinco taças de cristal em uma bandeja de prata.

Joseph entrou com Mackenzie, rindo de alegria e tirando o chapéu.

— Estes eram de minha mãe — Augusta explicou. — Eu os guardo em minha escrivaninha, longe dos olhos curiosos da clientela. — Enquanto falava, colocava vinho nas taças.

— Para Lisbeth e Mackenzie! — exclamou.

O brinde com os cristais fechou a noite. Na madrugada, Jesse levantou-se, acendeu a luz da cozinha e curvou-se sobre a colcha mais uma vez. De manhã, Lisbeth viu o complemento feito, na borda de baixo da colcha. Com suas agulhas mais finas, Jesse tinha acrescentado:

Para L. W. K. B. de JK.

 

Não me instes para que te deixe, e me afaste de ao pé de ti: porque aonde quer que tu fores irei eu.

Rute 1:16

 

O resto do inverno foi gasto terminando o enxoval e preparando o casamento. As três mulheres trabalhavam longas horas. Augusta deixava as amigas admiradas ao pegar a agulha e marcar alguns guardanapos.

— Bem, meu Deus! — ela exclamava. — Não é porque não costuro que eu não saiba! Agora dê-me aquela toalha de mesa! — ela ordenava.

Então Augusta tornou-se a marcadora oficial. Mackenzie tomou conta da leitura do jornal, quando não trabalhava até mais tarde. Ele estava trabalhando o máximo possível para economizar para uma casa nova. Tinha jurado nunca retornar à propriedade que só trazia lembranças de tragédia. Estava na lista de agentes imobiliários por $ 5 o acre.

Lisbeth sentia-se agitada por não saber onde moraria depois de casada. Jesse lhe assegurava:

— Mackenzie é um homem responsável, Lisbeth. Quando a propriedade for vendida, ele terá meios para fazer planos concretos. Você tem de ser paciente.

Mackenzie tinha planos, sim. Na noite em que ele os compartilhou, quase perdeu a noiva.

— Vou alistar-me no exército.

Lisbeth derrubou a xícara que ia ser lavada. Jesse parou no meio do ponto e Augusta chacoalhou a pilha de pratos que estava segurando.

— Mackenzie! — Lisbeth exclamou. — Por quê?

— Para ganhar a vida para nós, é claro — veio a resposta defensiva. — Há necessidade de homens bons no Oeste. Lisbeth, eu não agüento ficar preso numa loja o dia inteiro. Eu nunca vou economizar o suficiente para um novo equipamento, e a propriedade não está vendida. Tenho de fazer alguma coisa para continuar com a vida e preparar um futuro para nós.

Mackenzie vinha pensando nisso há semanas e ele não ia desistir. Lisbeth ficou horrorizada.

— Mas, Mackenzie, o exército no Oeste... é perigoso! E é claro que você não quer passar a existência matando índios! — Lisbeth enfatizou suas palavras.

— É claro que não, Lisbeth. Eu não vou ser um homem de luta. Eles precisam de todos os tipos de homens. Ferradores, vendedores e talvez eu possa fazer algo de bom. — Ele declarou com firmeza: — Olha, Lisbeth, em algum momento nessa loucura toda os brancos e os índios vão ter de fazer as pazes, paz final, duradoura. Talvez possamos fazer parte disso — fazer algo bom — ajudar, de algum jeito.

Jesse interrompeu:

— Mackenzie, eu admiro seus ideais. Mas não estou certa de que eles possam ser alcançados com sua adesão ao exército.

Mackenzie estava decidido.

— Com todo o respeito, senhora, Lisbeth e eu temos que conversar isto entre nós.

Lisbeth retorquiu:

— Agradeceria se você não falasse assim com minha mãe, Mackenzie!

Jesse respondeu, calma:

— Lisbeth, Mackenzie tem razão. Ele tem de fazer o que pensa que é melhor para vocês. Eu deveria guardar meus pensamentos comigo, a não ser que fossem solicitados. Acho que vocês dois precisam de privacidade.

Jesse recolheu sua costura e voltou para seu quarto. Augusta esfregou as mãos, fez um comentário sobre ler em seu próprio quarto, para variar, e saiu logo.

Lisbeth e Mackenzie ficaram sozinhos para resolver o assunto. O que se seguiu foi a típica primeira discussão. Nenhum dos dois foi racional e nenhum venceu. Tudo acabou com cada um indo para seu canto, na Casa Hathaway, enfurecidos e mentalmente revisando o acontecimento.

Jesse estava determinada a manter-se fora da vida de Lisbeth e Mackenzie. Ela tinha opiniões fortes sobre o exército, e odiava pensar em Lisbeth voltando para aquela vida dura. Ainda assim, ela cria fortemente no papel de uma esposa no casamento e essas crenças a guiaram no conselho dado a Lisbeth quando a jovem veio bater à sua porta.

— Mãe, o Oeste de Nebraska é uma imensa selvageria — eu não posso ir para lá.

— Aonde quer que tu fores irei eu, Lisbeth. Este é o plano de Deus para o casamento.

— Mas, mãe, Mackenzie não foi justo comigo. Ele nunca disse uma palavra sobre o exército. Eu pensei que ele fosse começar a gostar de Lincoln, que ficaríamos aqui e faríamos nossa vida.

— Mackenzie não fez segredo de que detesta trabalhar naquela loja, Lisbeth. No primeiro dia em que chegou a Lincoln, ele nos disse que, tão logo pudesse economizar dinheiro para um novo equipamento, ele iria para o Oeste.

— Mas, mãe, eu não pensei que ele fizesse isso!

Jesse ficou mais rígida.

— Lisbeth, eu acho melhor você reconsiderar sua promessa ao Mackenzie. Casamento é compromisso para a vida inteira, minha querida. Você pensou que prometia amá-lo enquanto ele tomasse decisões com as quais você concordasse?

— Não, é claro que não, mas eu não pensei...

— Aparentemente, não. É melhor pensar agora, Lisbeth. E pense muito. Não tente mudar o Mackenzie. Se você não está preparada para ser a companheira dele, aonde quer que ele decida ir, então você estará causando-lhe um dano terrível. Mackenzie merece o melhor.

— De que lado você está, mãe? — Lisbeth estava estarrecida, pois parecia que a mãe estava contra ela.

— Estou do lado daquilo que é certo para cada um de vocês, Lisbeth. Eu amo você, querida, e porque eu a amo estou-lhe dizendo o que você precisa ouvir. Prepare-se para seguir Mackenzie aonde quer que o Senhor o guiar até que a morte separe vocês dois. Se você não puder cumprir a promessa, então não a faça. Fique aqui em Lincoln e rompa com ele.

— Eu gosto muito do Mackenzie. Se ele tem a intenção de uma vida no Oeste, ele precisa de uma mulher com garra, como diz Augusta. Se você não tiver garra, Lisbeth, reconheça isso agora. Não acrescente a um homem jovem uma carga, ficando entre ele e o que ele pensa que o fará feliz.

— Eu pensei que eu ia fazê-lo feliz.

— Você está falando como uma menina bem imatura e boboca, Lisbeth. Há mais em um casamento do que essas tolices românticas que você lê em alguns livros. Há um trabalho a dois por um sonho, o cuidado na doença, a perda do que você ama, e o trabalho a dois para conquistar isso de volta novamente. É o dia-a-dia que faz o amor duradouro crescer, Lisbeth. Se você não deseja estar ao lado de Mackenzie no dia-a-dia, então, pelo amor de Deus, não se case com ele só porque ele é bonito e faz seu coração balançar.

— Mãe! — disse Lisbeth embaraçada.

— Lisbeth, nós já conversamos isto antes. Eu me lembro mesmo desta fase de minha juventude. Eu pouco lidei com “o amor que é mais forte que a morte”. A pergunta que você tem de responder é: que tipo de amor você quer? O amor-paixão ou o duradouro?

— Eu quero ambos, mãe!

— E você pode tê-los também. Mackenzie pode dar ambos a você. Mas a não ser que você deseje pôr seus sonhos junto com os deles e vá para o Oeste. Então, Lisbeth — disse Jesse pegando a filha pelos ombros e falando sério — Ou você entra no carroção e vai para o Oeste com seu homem, ou sai da vida dele.

Lisbeth ponderou o conselho. Ela se levantou para ir e Jesse acrescentou:

— É melhor dar uma caminhada e pensar a respeito, Lisbeth. Não é uma decisão fácil de se tomar.

A natureza teve sua parte na tomada de decisão de Lisbeth. Ela seguiu o conselho de Jesse e saiu para uma caminhada. Tinha sido uma noite de primavera, apesar de nuvens estarem vindo do Oeste. Lisbeth andou uma distância pequena do hotel quando o vento chegou e a temperatura começou a cair. Ela se virou de volta para o hotel. Da rua ela podia ver que alguém tinha arreado uma parelha e a estava puxando para fora da cocheira. O vento foi ficando mais frio e alguns flocos de neve começaram a cair. Lisbeth puxou seu xale ao redor do corpo e tremeu. Ela se apressou em voltar para o hotel justamente quando a tempestade começou forte. A neve continuava a cair insistente. Entrando pela porta da cozinha, ela seguiu pela escada. Augusta apareceu e chamou-a.

— Se você está subindo para falar com o Mackenzie, querida, ele saiu. Ele saiu há poucos minutos...

Lisbeth desceu as escadas e saiu à porta em tempo de ver o velho carroção desaparecendo na distância. O vento estava soprando muito forte e ele não pôde ouvi-la gritando. Augusta a seguiu até lá fora.

— Volte para dentro, querida. Ele só está indo para a propriedade para recolher algumas coisas. Ele disse que voltaria bem de manhã.

Mas Mackenzie não voltou na manhã seguinte. O vento soprou a noite toda, a neve bateu contra o hotel, formando montes enormes. Lisbeth acordou o tempo todo, escutando a tempestade e orando por Mackenzie. Quando ela não conseguiu mais dormir, foi até a cozinha onde encontrou Jesse, curvada sobre outra colcha, costurando tão rapidamente como nunca.

Jesse levantou os olhos quando Lisbeth entrou:

— Ele está bem, Lisbeth. Mackenzie tem muito juízo. Ele vai encontrar um abrigo, estará bem — Ela se fez calma e segura, mas o medo por Mackenzie e a filha apertaram o seu coração.

Nevou por três dias. Jesse e Augusta tiveram de ser muito criativas para alimentar os hóspedes, que ficaram na sala de jantar o tempo todo, jogando cartas, lendo jornais, fumando, conversando sobre política. As guerras com os índios foram comentadas inúmeras vezes, com Jesse esforçando-se ao máximo para fechar os ouvidos à discussão.

Quando a neve finalmente parou de cair, o mundo era um lugar branco-brilhante. Todos na cidade voltaram-se para ajudar a cavoucar e logo as pessoas puderam circular novamente. Carruagens moviam-se devagar pela vala que haviam cavado no meio das ruas principais.

A neve facilitou visualizar os sinais de um animal selvagem e Joseph viajava milhas com as raquetes de neve nos pés, trazendo carne fresca todos os dias. J. W. Miles quase ficou sem farinha, mas Miles protegia a Casa Hathaway por causa de Mackenzie. Assim, ele manteve Augusta no topo de sua lista de suprimentos e escondeu seu último saco de cinqüenta libras de farinha para ela. Augusta ficou presunçosamente satisfeita quando os hóspedes do Hotel Cadman pagaram os seus $ 2 e mudaram-se para a Casa Hathaway por uma semana até os trens chegarem trazendo suprimentos de emergência.

Por fim, Jesse puxou Joseph de lado e cochichou:

— Joseph, você acha que é possível ir a cavalo até a propriedade e averiguar o que houve com o Mackenzie? Eu não sei mais quanto a Lisbeth pode agüentar...

Joseph balançou a cabeça:

— Eu não acho que haja muita chance de conseguir, madame — disse ele triste — mas eu estava vindo justamente para perguntar-lhe se a senhora achava que eu deveria ir. E se eu encontrar...

— Se você o encontrar, traga-o de volta, Joseph. Nós precisamos saber. — Jesse tremeu com o quadro que lhe veio à mente. — Está frio o suficiente para trazê-lo de volta e nós o enterraremos em Wyuka. Será uma coisa terrível, mas, pelo menos Lisbeth terá um túmulo para visitar.

Lisbeth entrou na cozinha justamente quando eles acabavam a conversa. Ela percebeu o assunto e agradeceu a Joseph.

As horas se arrastaram depois que Joseph saiu. As emoções se alteravam e elas se irritavam uma com a outra por qualquer motivo por pequeno que fosse. Por fim, Jesse chamou-as para orarem juntas.

— Senhor Deus — disse simplesmente — O Senhor sabe onde está o Mackenzie exatamente agora. Se ele precisar de ajuda, faça com que o Joseph o encontre. Se ele estiver bem, então traga-o para nós rapidamente. E Senhor — orou Jesse — Se ele estiver com o Senhor, ajude-nos a suportar isso — Ela acrescentou uma palavra final em silêncio: Senhor, a Lisbeth é tão jovem. Se é da tua vontade, não permita que ela encare a morte bem agora. Por favor, Senhor.

As mulheres esperaram a noite toda. Jesse trabalhou com as colchas, embora suas mãos tremessem, e ela, mais tarde, se sentisse compelida a remover os pontos desalinhados. Augusta leu alto para elas até ficar rouca e ter de parar. Tanto ela quanto Lisbeth estavam cochilando em suas cadeiras quando o livro caiu da mão de Augusta e bateu no chão, acordando-as subitamente. Fora da porta da cozinha, elas ouviram barulho de rédeas e cascos de cavalo. Lisbeth deu um gritinho quando dois homens bateram os pés na cozinha, chacoalhando a neve toda pelo chão, ao tirarem os casacos e chapéus.

Joseph estava rindo feliz e Mackenzie começou a dizer alguma coisa, mas foi interrompido pelas atenções de uma moça que decididamente saltou na cozinha para os braços dele, chorando de felicidade. Todos começaram a falar ao mesmo tempo, fazendo perguntas e rindo irracionalmente.

— Pelo menos este menino tem algum juízo — orgulhou-se Joseph. — Há apenas um abrigo muito rústico entre Lincoln e a propriedade dele. Quando a tempestade chegou, ele foi direto para lá com os cavalos e ficou ali sentado os quatro dias.

— E os cavalos fizeram como eu também — riu Mackenzie. — Eles roeram cada pedaço de mobília do lugar e estavam começando a roer o teto também, quando a neve finalmente parou. Nós continuamos seguindo para a minha propriedade, então. Foi terrivelmente difícil encontrar os montes de feno, mas finalmente conseguimos desenterrar um e ficamos bem.

— O que você comeu, Mackenzie? — perguntou Jesse.

— Coelho — uma porção deles. Quatro dias de coelho!

Lisbeth começou a falar, mas Mackenzie levantou a mão.

— Lisbeth, desculpe-me por não ter atendido ao seu pedido, mas o fato é que eu simplesmente não consigo viver na cidade. Tive de voltar para minha propriedade e pensar um pouco. Achei que talvez pudesse começar alguma coisa lá — ele estremeceu — Mas não posso. Diga que sou um homem fraco, mas, para mim, não há nada naquele lugar além de lembranças de morte e tristeza. Aquele não é o lugar para se começar uma vida nova.

Ele se virou para Lisbeth:

— Eu amo você, Lisbeth King. Quero casar-me com você. Mas vou para o Oeste tão logo a neve derreta. Você virá comigo?

Lisbeth olhou solenemente para Mackenzie:

— Mackenzie Baird, eu prometi a Deus a noite passada que se eu tivesse uma segunda chance, haveria uma coisa que eu diria a você. — A voz de Lisbeth tremeu de emoção, ao recitar o texto bíblico: “Aonde quer que tu fores irei eu, e onde quer que pousar está noite ali pousarei eu. O teu povo é o meu povo, o teu Deus é o meu Deus".

Do outro lado da cozinha, Jesse permitiu-se um grito não característico, de alegria:

— Aleluia! — Num romper de atividade, o café começou a ser preparado e bolachas foram feitas.

Joseph e Mackenzie levaram os cavalos para o estábulo, dando-lhes malte quente e aveia. Em seguida, voltaram para o hotel para se alegrarem com um café gostoso.

Apenas quatro semanas mais tarde, Augusta leu o seu Commonwealth, com lágrimas nos olhos:

A Srta. Lisbeth King e Sr. Mackenzie Baird uniram-se em casamento hoje, numa cerimônia na Igreja Congregacional. A Srta. King, filha de Jesse King, uma viúva empregada na casa Hataway, é conhecida por todos nós como uma árdua trabalhadora e jovem mulher temente a Deus e de grande caráter. O Sr. Baird, conhecido pelos cidadãos há bem pouco tempo, tem provado ser um homem honesto e um grande trunfo para o estado. O casal partiu imediatamente para o Oeste, onde o Sr. Baird se voluntariou para servir nosso grande exército no domínio de nossas fronteiras. Nós lhes desejamos o bem e muitas felicidades.

Jesse acolchoava furiosamente, enquanto Augusta lia. Só na manhã seguinte ela percebeu que seus esforços tinham sido em vão, pois as lágrimas a tinham impedido de ver que havia colocado uma linha de cor errada na agulha.

 

Abre a sua mão ao aflito; e ao necessitado estende as suas mãos.

Provérbios 31:20

 

Tanto Jesse quanto Augusta ficaram surpresas ao ver o quanto a vida ficou vazia sem Lisbeth. As mulheres continuavam envolvidas na Igreja Congregacional e em atividades cívicas, além de Jesse ter-se associado a Augusta no hotel. O estabelecimento delas foi o primeiro em Lincoln a se orgulhar por ter luz a gás, embora Jesse não confiasse muito nisso e continuasse a usar sua luz de querosene em seu quarto.

A ausência de Lisbeth introduziu-a em um novo tipo de solidão. Jesse tinha sofrido muitas separações em sua vida. Cada uma tinha-lhe trazido seu próprio tipo de dor, embora todas tivessem sido administradas da mesma forma: fervor na leitura da Palavra e oração renovados. Essa despedida não fora diferente, exceto por uma coisa maravilhosa: Jesse podia continuar a orar por Lisbeth e Mackenzie. Ela podia continuar a compartilhar suas vidas.

As cartas os mantinham juntos. Lisbeth sempre escrevia — cartas longas, detalhadas, que descreviam o interior, as cidades e as pessoas que encontrava. Sua escrita parecia sempre com a menininha que falava bem rápido, pondo todas as sentenças juntas. Jesse e Augusta as liam várias vezes antes de Jesse colocá-las numa caixa de papelão, na gaveta de cima de sua cômoda.

Levou poucos dias para ambas perceberem que precisavam contratar alguém para ajudá-las.

— Joseph é uma grande ajuda, mas estamos ficando velhas, Jesse. Nós simplesmente não podemos manter esse ritmo.

Jesse concordou. Fazer parte do serviço de Lisbeth a estava desgastando. Ela se sentia cansada demais para costurar à noite e se afundava em sua cama o mais cedo possível, sempre esperando recobrar as forças para retornar à costura no outro dia.

Augusta pôs um anúncio no Commonwealth. Quando Jesse foi ao escritório pagar o anúncio, contornou a esquina da Rua 10 e da Rua K e quase trombou com uma moça correndo com uma criança nos braços. Atrás dela, numa perseguição acirrada, vinha uma senhora velha mas saudável, segurando suas saias levantadas e gritando:

— Sarah, Sarah Biddle, volte aqui neste minuto!

Sarah Biddle continuou a correr na Rua 10 até desaparecer de vista. A velha parou logo e bateu o pé no chão com raiva.

— Tento ajudar esses órfãos e o que é que eu ganho? Nada, a não ser problemas! — A mulher balançou a sombrinha para Jesse: — O que foi que eu disse para eles na agência? Não peguem aquela Sarah Biddle! Ela é ruim; ninguém vai querer ficar com ela, se ela insistir em manter aquele aleijado consigo. Bem, agora eu provei para eles! Vou à polícia, para mim, chega! Ela vai voltar para Nova Iorque, é isso! Eu não serei responsável!

A mulher virou-se e saiu na direção oposta, resmungando e ameaçando a cada passo.

Jesse arrumou o chapéu, acabou sua missão e voltou à Casa Hathaway.

Naquela noite, muito depois do trem para o Leste ter partido sem os fugitivos e a polícia ter cessado sua busca, Joseph Freeman preparava-se para fechar o estábulo quando um barulho, em cima, chamou sua atenção. Puxando a porta grande fechada, Joseph subiu rapidamente a escada para o sótão. Ao chegar em cima, um vislumbre de cor desapareceu atrás de um fardo de feno, no canto oposto à escada.

Joseph brandiu a ferramenta que trazia na mão.

— Você tem de sair porque só há uma porta neste sótão e eu não vou embora sem saber quem está aí.

De trás do fardo de feno, uns olhos o espiavam. Uma voz feminina, desafiadora, rebateu:

— Nós vamos morrer de fome, então não vamos sair para ser mandados para Nova Iorque!

Uma vozinha mais nova ecoou:

— E, nós não vamos sair!

Joseph sentou-se no feno.

— Temos eco aqui?

Silêncio.

Ele tentou de novo.

— Bem, eu só estava-me preparando para ir à Casa Hathaway para jantar. Elas estão fazendo frango frito, esta noite. Bastante frango, purê de batatas e torta. Hummm, essa Sra. King faz cada torta! Que pena que você não pode ir comer um pouco!

Silêncio.

Finalmente, outro comentário desafiador:

— A Sra. King não dá jantar de graça, não é? Nós não temos nenhum dinheiro e, então, nós não vamos comer frango frito. Também a velha rabugenta provavelmente está esperando a gente lá fora, com a polícia, para levar a gente embora de qualquer jeito.

Joseph usou a mesma voz que ele tinha usado a vida toda para acalmar cavalos assustados. Era leve, baixa, quase sem expressão.

— Agora, o que eu ouvi foi o seguinte. A Sra. Ophelia Granwich deixou avisada a polícia que, se a Srta. Sarah Biddle e o irmão dela forem encontrados, devem ser enviados de volta a Nova Iorque, no próximo trem, a não ser que alguém os queira. E claro que eu não acho que eles vão precisar daquelas passagens de trem, pois eu sei que a Sra. King e a Sra. Hathaway estão procurando alguém para ajudá-las no hotel. O que eu vejo é que é um bom serviço para qualquer pessoa.

Silêncio.

Então, uma voz ainda desafiadora, com um quê de desespero:

— A Sra. King não vai querer nós. Meu irmão é aleijado. Não trabalha duro. Ninguém quer nós dois — e eu não largo dele! Não largo!

Joseph continuou tentando acalmar a situação:

— Vamos dar uma olhadinha. Não deve ser tão mau — Inspirando fundo, disse: — Hummm! Acho que senti cheiro de frango frito, agora.

Dois pares de olhos apareceram sobre o fardo de feno. Vagarosamente, a loira Sarah Biddle levantou-se. Apertando a mão de Tom, seu irmão, ela o puxou para ficar em pé, também. Então, ajudou-o a sentar-se no fardo de feno. Ela girou as pernas dele, para que ficasse de frente para Joseph e, sentando-se ao lado dele, apertou um braço ao redor de sua cintura.

— Você está apertando muito forte — disse Joseph.

Sarah concordou.

— Nós estamos juntos, nós vamos ficar juntos! A velha rabugenta não pode fazer nada, também. Talvez eu vá voltar para Nova Iorque. Tem um homem lá que me ofereceu um serviço. Disse que eu podia ficar com o Tom, também — contanto que ele ficasse no quarto do fundo enquanto conversasse com os meus visitantes. — Ela, graciosamente, colocou o queixo para a frente. — Nem sei por que eu vim naquele trem besta, mesmo. As pessoas cutucando, bisbilhotando e falando sobre nós como se a gente fosse neg...

Joseph terminou a palavra para ela:

— Como se vocês fossem negros? Imagino que eu sei o que é isso. Mesmo assim, há lugar pior que viver em Lincoln.

— Acho que a gente nunca vai descobrir.

Sarah levantou-se impulsivamente e puxou o irmão para o seu lado.

— Nós vamos embora, acho. Você pode mostrar para nós a delegacia de polícia?

— Não precisa de pressa agora, jovem— Joseph replicou. — Há tempo de sobra para isso. O trem não volta até amanhã, de qualquer jeito. Por que vocês dois não vêm e comem comigo?

— Não posso, já disse. Nós não temos dinheiro.

— Não precisa de dinheiro.

Sarah olhou para ele com suspeita.

— Como eu vou pagar sem dinheiro? — Ela segurou o irmão mais apertado.

— Você não vai pagar. Lincoln tem essa regra. Na primeira noite na cidade, cada visitante tem direito a uma refeição de graça, na Casa Hathaway. A cidade paga por isso. É uma forma de fazer as pessoas ficarem e tentarem algo por aqui.

— Isso é verdade?

— Juro pelos meus papéis de liberdade.

Sarah considerou. Tom encerrou o assunto:

— Quero frango. Estou com fome!

— Está certo, então, senhor. Vamos comer a refeição de graça.

Joseph levantou-se.

— Só me dá o seu irmão e nós descemos.

— Não! — Ela deu um salto para trás, com os olhos arregalados, assustada. — Ninguém carrega o Tom, só eu. Você fica para lá!

Joseph levantou as mãos para acalmá-la.

— Tudo bem, senhorita, tudo bem. Eu vou descer a escada; se precisar de alguma ajuda, é só gritar.

Joseph desceu a escada e ficou olhando admirado, enquanto a menina pequena também descia, carregando o irmão, degrau a degrau. Quando seu pé esquerdo alcançou a primeira travessa, Joseph viu o problema. Uma perna era pelos menos duas polegadas mais curta que a outra. Uma cicatriz funda subia do calcanhar até não se ver o resto, embaixo da roupa dele. Joseph decidiu não prestar mais atenção naquilo, saindo os três para a Casa Hathaway.

Entrando na cozinha, Joseph falou antes que Augusta perguntasse:

— Sra. Hathaway, esta aqui é Sarah Biddle e seu irmão, Tom. Eles estão visitando Lincoln e eu lhes falei sobre a refeição de graça que nós oferecemos para todos os visitantes novos. Eu me lembrei de falar para eles que é só uma refeição de graça. Eles resolveram que viriam esta noite, se não houver problema.

Augusta piscou para Jesse e entrou na brincadeira.

— Ora, é claro, Joseph. Está bem. — Virando-se para Sarah, Augusta disse educadamente: — Vocês dois gostariam de se lavar, antes do jantar?

Sarah assentiu com a cabeça e Jesse começou sua atuação.

— Por favor, por aqui, Sra. Biddle. Nós temos um quarto aqui atrás só para visitantes de primeira vez.

Sarah seguiu Jesse para o quarto de Lisbeth. Seus olhos se arregalaram ao examinar o quarto confortável, a cama com quatro mastros, as fronhas dos travesseiros limpas e claras. Havia um pequeno lavatório perto da cama, com toalhas de linho. Jesse pôs água fresca do jarro na mão dela. Ela bondosamente despejou dois copos cheios de água. Sarah jogou Tom na cama.

— O jantar está pronto para quando quiser, Sra. Biddle. É só vir para a cozinha.

Depois que Jesse saiu, Tom bocejou na cama.

— Sarah... é tão macio! — exclamou. — Eu gosto daqui!

Sarah esfregou seu rosto e mãos e virou-se para lavar Tom, tentando remover o máximo possível do encardido. Ela umedeceu as mãos e tentou colocar o cabelo teimoso no lugar. Havia uma cômoda no lado oposto ao lavatório e em cima dela ficava um espelho muito bonito. Sarah examinou-o detalhadamente, girando-o para se olhar. Ela pegou uma escova e, olhando sobre o ombro para a porta aberta, rapidamente penteou o cabelo.

— Bem— disse — finalmente. Acho que podemos jantar, agora.

— Nós vamos ficar aqui, Sarah? — Tom perguntou.

— Nem pense nisso, Tom. Só comer a refeição grátis. Então, vamos dormir no sótão, até o trem chegar amanhã.

— Mas eu quero ficar aqui, Sarah!

— Não pode ficar aqui, Tom— ela disse de maneira triste. Então ela se atirou sobre ele para impedir qualquer outra pergunta. — Pare de choradeira, Tom. Nós vamos ter uma refeição decente, não é? Já chega! Agora vamos comer.

Sarah e Tom reapareceram na cozinha e comeram uma grande quantidade de comida. A vida tinha-lhes ensinado a comer muito quando havia bastante, pois no outro dia poderia não haver nada.

Jesse e Augusta deixaram as crianças aos cuidados de Joseph, ocupando-se em servir os hóspedes na sala de jantar. Sarah e Tom as olhavam irem e virem, com grande interesse. Entre mordidas enormes no frango, Tom perguntou:

— As duas senhoras são donas do hotel? Elas são boas? Como é que aquelas pessoas lá fora não comem toda a comida delas? Vocês comem assim toda noite? Quando é que o trem chega amanhã?

Joseph, pacientemente, respondeu a cada pergunta. Sarah o deixou falar livremente até fazer a última:

— Podemos ficar aqui? Vocês comem bem!

Sarah deu uma cotovelada nas costelas dele e mandou-o ficar quieto.

As duas crianças ficaram sentadas sem se mexer e sonolentas, depois de terem-se empanturrado com a comida. Quando Jesse e Augusta acabaram suas tarefas, Augusta assentou-se confortavelmente em sua cadeira e pegou o Commonwealth. Jesse disse a Sarah:

— Srta. Biddle, você é bem-vinda para ficar naquele quarto — só por essa noite, é claro!

— Não posso — veio a resposta curta. — Não tenho dinheiro. Podemos dormir no sótão? — Esta foi dirigida a Joseph, que disse que sim, implorando a Jesse com os olhos.

— Bem, então, Srta. Biddle, eu entendo o problema de não ter dinheiro. Eu mesma já fiquei sem dinheiro muitas vezes. Você seria capaz de fazer algum serviço em troca de usar o quarto esta noite?

Sarah olhou com suspeita, de novo.

— Que tipo de serviço?

Jesse olhou para Joseph.

— Bem, tenho certeza de que o Sr. Freeman poderia precisar de ajuda para tratar dos cavalos esta noite. E ele geralmente traz lenha para o fogão. Talvez você pudesse ajudá-lo nisso.

Sarah pulou vigorosamente.

— É um prazer. Eu gosto de cavalos!

Sarah tentou encostar-se em Tom.

— Ah, está certo, Srta. Biddle. Tom pode ficar conosco.

Sarah apertou a manga da roupa de Tom.

— Não! Tom fica comigo!

Tom acordou e esfregou os olhos.

— Cansado, Sarah. Tom está cansado. Quero dormir.

Jesse pôs a mão no cabelo desgrenhado de Tom e afagou-o carinhosamente.

— Que tal colocarmos o Tom na cama? Então você pode ajudar o Joseph com as tarefas.

Sarah considerou:

— Você quer dizer... lá? — apontando para o quarto de Lisbeth.

— É.

— Posso colocá-lo na cama?

— É claro!

— E a senhora não vai levar ele pra nenhum lugar enquanto eu sair?

— Sarah, eu nunca, nunca tiraria um irmão de perto de sua irmã. Famílias são importantes e devem ficar juntas. — Ela se ajoelhou perto de Sarah e Tom. — Você é uma irmã muito boa, cuidando tanto de Tom. Vamos lá, colocá-lo na cama.

Sarah sentiu alguma coisa sair de dentro dela. Algo que estava machucando. Não era suficiente deixá-la chorar todas as lágrimas que tinha acumulado nos últimos catorze anos, mas era suficiente para ela sentir que talvez — só talvez — houvesse pessoas no mundo em quem poderia confiar, enfim.

Ela pegou Tom no colo e o carregou até o quarto de Lisbeth, onde ele dormiu na hora, curvado sobre o travesseiro. Respirando feliz, ele nem percebeu que Sarah saiu para fazer seu serviço — nem que ela voltou para dormir, numa camisola que Jesse lhe emprestara. Quando Jesse veio ver como estavam, Sarah estava deitada de lado, com a bainha da camisa de Tom apertada em uma mão.

Sarah sentou-se subitamente na cama ao ouvir o barulho do apito do trem. Balançando Tom vagarosamente, ela gritou:

— Tom! Tom! Acorda! O trem está vindo!

Jesse e Augusta ouviram a agitação e correram para o quarto.

— Sarah! Sarah! Tudo bem. Há muitos trens vindo para Lincoln todos os dias. O trem para Nova Iorque só vai voltar à tarde. Está tudo bem acalme-se!

Tom aninhou-se feliz embaixo da coberta, de novo. Mas Sarah puxou as cobertas.

— Não faz mal, Tom. A manhã está chegando. Precisamos sair daqui. Onde estão nossas roupas? — Sarah perguntou.

Jesse respondeu:

— Lá na cozinha, perto do fogão. Nós as lavamos, depois que vocês foram dormir. Achamos que não iam ligar — Enquanto Jesse explicava, Augusta trouxe as roupas limpas que ela tinha tirado do suporte de secar roupa perto do fogão.

Augusta interrompeu:

— Sarah — Srta.Biddle — nós queríamos perguntar-lhe uma coisa. Por favor, venha até a cozinha, depois de se vestir.

Sarah entrou na cozinha onde Jesse e Augusta estavam sentadas, tomando café, parecendo relaxadas. Sarah estava desconfiada.

— A senhora queria alguma coisa?

Jesse tinha sido eleita para falar.

— Você é mais delicada do que eu, Jesse. Sou muito espinhosa. Leva tempo para eu amaciar. Você sabe falar isso melhor — você fala. Augusta encontrou os olhos dela. — Essas crianças não devem jamais voltar para Nova Iorque! Depois do que ouvi o que contaram para Joseph sobre para onde seriam encaminhados...

— Por favor, Sarah — se é que posso chamá-la de Sarah —, por favor, assente-se.

— Eu fico em pé, obrigada. — Ela não se deixava vencer facilmente.

— Augusta e eu somos donas deste hotel, Sarah. Até pouco tempo minha filha Lisbeth morou aqui. Agora ela é casada e nós precisamos de ajuda. Pusemos um anúncio no jornal, mas não obtivemos resposta. Você ficaria com o serviço?

Jesse continuou.

— Você ficaria com as obrigações de Lisbeth, o que significa ajudar-nos a cozinhar, limpar os quartos, o jardim — o que for preciso. Nós lhe daríamos quarto e comida...

— E o Tom? — Sarah não deixou Jesse acabar.

— O Tom pode ficar aqui também.

Sarah encarou-os, não acreditando.

— O Tom é aleijado. Não pode trabalhar muito.

— Nós sabemos, Sarah.

— Por que querem ele, então?

O espectro de um pequeno túmulo guardado no passado veio à mente de Jesse. Ela respondeu, honestamente:

— Quando eu era jovem, Sarah, perdi um menininho da idade de Tom. O nome dele era Jacob. Se você e o Tom ficarem, então vai ser como se Deus estivesse me dando de volta meu menininho. Vou ter uma segunda chance de ter um menininho.

Sarah olhou com os olhos semicerrados o rosto de Jesse.

— O que aconteceu com seu menininho?

— Ele caiu embaixo das rodas do carroção, que passou por cima dele.

Os olhos de Sarah se arregalaram e ela falou baixinho:

— Um carroção passou por cima do Tom também, só que ele não morreu. Machucou demais a perna dele. Ele nunca mais andou direito.

Jesse piscou, segurando as lágrimas. Augusta falou:

— Sarah, eu não sou tão delicada para falar como a Jesse, mas eu gostaria de que vocês ficassem também. Você e o Tom.

Sarah examinou a cozinha e pediu com muita insistência:

— Nós podemos ficar naquele quarto?

— É parte do acordo.

— Vocês vão deixar a cama lá?

Jesse segurou o riso.

— É claro, Sarah. Seria a sua cama. Sua e do Tom. Embora possamos pedir ao Joseph para fazer um estrado que deslize para debaixo da cama, para o Tom. Dessa forma, cada um de vocês teria a própria cama.

Sua própria cama representava mais riqueza do que Sarah jamais havia esperado. Isto selava o acordo.

— Nós ficamos — ela disse simplesmente. — O que é para eu fazer primeiro?

— Primeiro — disse Jesse mansamente, deixe o Tom dormir um pouco mais. Segundo, venha comigo e vou mostrar-lhe o hotel e ensinar-lhe algumas coisas que fazemos ao passar pelos quartos.

Augusta acendeu o fogo, enquanto Jesse andava com Sarah pela casa, mostrando-lhe a sala de jantar, a ala oeste e os cômodos de Augusta.

— Nós gostaríamos de aumentar, mas precisaríamos de mais ajuda. Assim, não temos certeza do que fazer. Por enquanto, vamos continuar como estamos. Além disso, estamos ficando velhas.

— A senhora não é tão velha, madame. Está um pouco enrugada, mas o seu cabelo não está de todo branco. A senhora sobe muito bem as escadas. A senhora não está tão velha. — Jesse abafou uma risada, limpou a garganta e agradeceu o elogio.

De volta à cozinha, Augusta viu que Sarah sabia muito sobre cozinhas e nada sobre salas de jantar.

— Ela vai ter de ficar nos bastidores, por enquanto — Augusta aconselhou Jesse mais tarde. — Você pode administrar a sala de jantar sozinha?

Jesse assentiu:

— É claro. É melhor se no começo Tom ficar à vista de Sarah, de qualquer forma, até ele se acostumar conosco.

Mas Tom sentiu-se instantaneamente em casa, na Casa Hathaway. Mancando feliz da mesa até a cozinha, ele trabalhava bastante, todos os dias, até que sua perna começasse a doer e ele fosse forçado a se assentar. Jesse e Augusta pediram ao Dr. Patton para vir olhar a perna do menino.

— Um caso claro de medicina irresponsável — ele diagnosticou. — Não há razão alguma para este menino não ter sido bem curado. Alguns médicos não têm o cuidado suficiente para arrumar isso direito. Ele vai mancar pelo resto da vida, pobre menino.

Jesse sorriu.

— Tudo bem, doutor. Nós vamos dar uma chance ao Tom. Estou matriculando-o na Srta. Griswall, amanhã. Acho que ele é um menino muito vivo. Talvez Deus tenha outros planos para Tom Biddle.

— A Srta. Griswall vai fazer o melhor que puder por ele — o médico concordou. — Ela é uma mulher muito bondosa.

 

Por que o amor é forte como a morte.

Cantores de Salomão 8:6

 

— Tia Jesse! O que está acontecendo?! — Sara e Jesse estavam esfregando as roupas de cama no alpendre que Joseph havia construído no fundo da cozinha. De repente, o rosto de Jesse ficou branco. Ela se assentou, segurando a mão fechada sobre o coração.

Sarah ficou horrorizada.

— Vou chamar tia Augusta.

— Não! — disse Jesse com a voz entrecortada. — Não faça nada disso. Ela ficará toda alvoroçada, preocupada comigo e me deixará louca. Só me deixe descansar um minuto. Vai passar.

Jesse respirou fundo e, como havia dito, em poucos segundos a dor havia passado. Ela deu um sorriso luminoso.

— E, então, viu só? Não disse que ia passar? Agora é melhor acabar com essa roupa ou Augusta nos arranca o couro! — Jesse retornou à lavagem de roupa.

Quando acabaram, entretanto, uma grande fadiga tomou conta dela.

— Sarah, estou entrando para me deitar alguns minutos. Acho que fiquei até muito tarde fazendo colcha a noite passada.

Sarah ficou preocupada e pensando no que fazer. Quando Tom voltou da escola, ela fez sinal de silêncio com o dedo e puxou-o para o quarto deles.

— Alguma coisa está errada com a tia Jesse, Tom! Mas ela disse para não contar pra tia Augusta. Eu acho que ela precisa ir ao médico!

Tom considerou a notícia franzindo a sobrancelha. Então, seu rosto brilhou.

— Eu sei! Vou fingir que minha perna está doendo muito. Tia Jesse vai chamar o médico para mim... e aí, ele examina ela também!

 

No dia seguinte, quando Tom veio da escola, mancava muito, assentando-se à mesa para esfregar sua perna.

— O que está acontecendo?— Jesse perguntou.

— Ai!, nada — disse Tom fazendo caretas dramáticas.

— Sua perna está doendo?

— Acho que um pouco.

Augusta interrompeu:

— Vou chamar o Dr. Patton, agora mesmo.

— Ai, não preciso do doutor, tia Augusta. Ele não pode fazer nada mesmo.

— Tolice, Tom. Se dói, há alguma coisa errada. O Dr. Patton disse que não deveria doer muito. — Augusta pegou seu chapéu e saiu para procurar o médico. Sarah e Tom olharam-se e riram escondido. Jesse expressou sua preocupação mandando Tom deitar-se e colocar as pernas sobre o travesseiro.

Sarah reclamou:

— Você mima muito ele, tia Jesse!

Jesse concordou:

— Eu sei, Sarah. Acho que estou tentando compensar alguma coisa para ele.

Sarah, de repente, ficou séria.

— A senhora já fez o suficiente. A senhora e tia Augusta deram um lar para nós; vocês têm sido tão boas para nós que quase nem sabemos como agir. Agora estamos felizes por termos viajado naquele trem de órfãos.

Jesse sorriu carinhosamente.

— Nós estamos contentes também, Sarah. Vocês dois preencheram um grande espaço vazio no coração de nós duas. Além disso — Jesse piscou — precisamos de trabalha¬dores livres pra manter o lugar funcionando.

Sarah havia-se tornado segura em sua função no hotel, durante aqueles meses. Ela brincou, em contrapartida:

— É , e vocês me fazem trabalhar como um cavalo também! Eu vou voltar para aquele orfanato qualquer dia desses. Vocês duas não me tratam bem!

— Tente fazer isso, jovenzinha! — Jesse brincou, balançando o dedo no nariz de Sarah. — Vocês não vão sair daqui nunca mais! — Em seguida, puxou Sarah e deu-lhe um abraço. — Nós amamos muito você para deixá-la ir.

Sarah não teve resposta para aquilo. Ela podia brincar e fazer piadas sobre seu novo lar, mas a palavra "amor" não estava em seu vocabulário — ainda. Augusta chegou com o médico que se apressou em ver Tom, com Jesse logo atrás.

— Onde dói, Tom? — perguntou Dr. Patton.

— Ah, é mais aqui — disse Tom apontando para seu joelho. O médico mexeu com a junta, olhou para ver se estava inchado e não encontrou nada. — Bem... talvez seja aqui— disse Tom, agora indi¬cando seu tornozelo. O médico novamente não encontrou nada. Olhando sem entender, ele se sentou na beira da cama. — Então, quando esta dor começou, Tom?

— Ontem.

— Você estava fazendo alguma coisa diferente? Tentou pular ou correr?

— Não.

— O que estava fazendo, quando começou a doer?

— Conversando.

— Conversando?!

— É , com a Sarah.

— Sobre o que vocês estavam falando, Tom?

— Sobre a tia Jesse.

— E a sua perna começou a doer?

— Bem... não é bem isso.

— Não é bem isso? — O médico estava ficando impaciente.

Tom sentou-se.

— Nós estávamos conversando que a tia Jesse precisava ir ao médico e que ela não vai porque pensa que não é nada; então, nós achamos que se o senhor viesse-me ver, então podia ver tia Jesse também e descobrir por que o coração dela dói.

Augusta lançou um olhar de acusação a Jesse. O Dr. Patton sorriu e deu um tapinha em Tom.

— Muito sabido, Tom, muito sabido.

Virando-se para Jesse, disse:

— Então, Sra. King, talvez a senhora gostasse de esclarecer este assunto?

Acuada, Jesse foi forçada a falar.

— Bem... talvez eu tenha tido alguns acessos ultimamente.

Augusta protestou:

— E por que eu não fiquei sabendo disso?

— Porque provavelmente não seja nada, só por isso. Foram poucas vezes — uma dorzinha — é só isso.

— Algum outro sintoma, Sra. King?

— Não, nada mais para ser dito.

— Você tem estado bem cansada ultimamente, Jesse — acrescentou Augusta.

— Ah, é porque estou trabalhando bastante, doutor. Eu só preciso de um pouco mais de descanso, só isso.

— Jesse King — Augusta insistiu. — Quando você está cansada demais para trabalhar com acolchoamento é porque alguma coisa está errada! Você está com aquela colcha na moldura por semanas, ela mal está começada. Se você estivesse normal, já teria aquela colcha dobrada e outra começada! E não pense que eu não sei disso!

— Está certo, está certo, Augusta. — Jesse virou-se para o médico: — Eu vou procurá-lo amanhã, doutor. Esses três não vão dar-me um minuto de paz, se eu não for.

Satisfeito, o médico levantou-se para sair. Jesse ralhou com Sarah e Tom:

— E vocês dois! Escandalosos! Gastando tempo do doutor, chamando-o aqui, preocupando tia Augusta!

— Mas funcionou, não é, tia Jesse?— disse Tom.

Jesse riu.

— Acho que sim, Tom, acho que sim.

 

Jesse manteve a promessa e foi ao médico no dia seguinte. Ele fez-lhe umas poucas perguntas, ouviu o coração e franziu a testa. Prescreveu uns dias de repouso, sem levantar-se, e uma atenção especial a uma dieta apropriada. Jesse agradeceu por sua bondade, pagou a conta e ignorou suas instruções. Ela se convenceu de que estava se sentindo muito melhor. De fato, parecia que as dores haviam-se acalmado, e ela estava progredindo em sua colcha quando Sarah veio correndo para dentro com uma incumbência da cidade, O Estrela da Noite nas mãos.

— Tia Jesse! Tia Augusta! Olhem!

Augusta não estava inclinada a ler o jornal concorrente. Então a manchete chamou-lhe a atenção: “Telegrama — 3: 00 a.m. — Guerra com índios — Notícias sangrentas de Stillwater, Montana. Gen. Custer e grande parte de seu comando massacrado. — Os diabos vermelhos mataram a família inteira de Custer e esquartejaram 300 soldados".

Augusta agarrou o jornal e foi olhando para Jesse, que estava arrumando as mesas na sala de jantar.

— Jesse! A qual comando você disse que o Mackenzie tinha-se juntado, pela última notícia?

Jesse hesitou.

— Puxa, Augusta, não me lembro. Ele foi mudado tantas vezes nos últimos meses. Pobre Lisbeth, está tão cansada de ficar viajando. Espero que o Mac pegue alguma folga logo, se é que as coisas algum dia vão-se acalmar. Gostaria de que o Cavalo Louco e o Touro Sentado escutassem o Nuvem Vermelha. — Jesse fez uma pausa... — Custer! Acho que é isso... General George Custer. É esse o oficial comandante do Mac. — Jesse estava de costas para Augusta e continuou a conversa tranqüila. — Lisbeth diz que ele é um homem muito lindo e que se veste com muito capricho. Ela conheceu a esposa dele, também.

Só então Jesse virou-se e viu a expressão de Augusta.

— O que foi, Augusta? — Sua mão foi até a garganta. — O que aconteceu?

— Sente para não cair, Jesse — ordenou Augusta.

Jesse assentou-se com o coração disparado. Augusta lutou para controlar sua voz tremida enquanto lia alto:

Uma batalha foi travada no dia 25, trinta ou quarenta milhas abaixo da Little Big Horn. Custer atacou uma aldeia habitada por 2.500 a 4.000 guerreiros. Custer, quinze oficiais e todos os homens pertencentes a cinco companhias foram mortos. O campo de batalha parecia um...

Augusta, abruptamente, parou de ler.

— Continue, Augusta — Jesse pediu.

Ela levantou a mão e com a palma pressionou o peito num esforço para parar a dor que estava manifestando-se.

Relutantemente, Augusta leu:

O campo de batalha parecia um curral de matadouro, o que na verdade era. Os mortos estavam muito mutilados... Um correspondente especial do Helena Hercúd escrev...

Enquanto Augusta continuava a leitura. Tom e Sarah foram para o lado de Jesse. Preocupados, cada um pôs uma mão no ombro de Jesse.

Sarah disse:

— Tudo bem, tia Jesse. Mackenzie provavelmente mudou de novo. A senhora disse que ele tem-se mudado bastante ultimamente.

Tom não sabia o que dizer. Ele só continuou dando tapinhas no ombro de Jesse.

Jesse pôs o cotovelo na mesa e apoiou a testa com uma das mãos. Augusta não via o seu rosto. Seu coração continuava a bater disparado. Ela só conseguia pensar em Lisbeth. Fazia só um ano que Lisbeth estava tão apaixonada. Ah! Senhor, com certeza Lisbeth não tem de passar o que eu passei. Há tanta dor no mundo, Senhor. Ela não está preparada. Ela é tão jovem para suportar isso! A mente de Jesse estava um turbilhão. Ela levantou os olhos.

— A Lisbeth e o Mackenzie podem não ter sido afetados, Jesse — disse Augusta com esperança.

— Eu sei disso — Jesse murmurou. — Mas então, de novo, Lisbeth, minha amada Lisbeth, pode já ter sabido que o seu jovem marido está morto no imenso deserto onde ela não queria ir.

Lá estava ele — aquele sentimento. Não doía; só aquele sentimento estranho. Jesse arrastou-se da mesa para seu quarto. Sarah e Tom acabaram de arrumar as mesas. Augusta precisava conversar. Ela gritou na porta do fundo:

— Joseph! — Seu amigo fiel nunca estava longe. Ele correu do estábulo.

— Joseph, Jesse e eu acabamos de saber da batalha no Little Big Horn. Mackenzie devia estar lá. Ah, Joseph, como nós agüentaremos isso?

Joseph pensou um momento.

— Nós agüentaremos isso do mesmo jeito que agüentamos as outras coisas, madame. É só uma hora de cada vez, eu espero. Orando e perguntando “por quê” e confiando no Senhor que sabe e faz o que é melhor.

Lá fora o som de uma tempestade ameaçava. Joseph murmurou:

— Bem, nós precisamos de chuva — Ele se virou devagar e começou a lavar a louça de comida para os hóspedes que já estavam chegando.

 

A tempestade soprou com fúria, trazendo correntes de chuva à cidade e transformando as ruas poeirentas num mar de lama. Tom Biddle sentou-se à mesa da cozinha, resolvendo uma pequena prova, passada a ele naquele dia pela bondosa Srta. Griswall. Ao se concentrar, ele mordia a língua. Ele escreveu com todo cuidado: O que eu gosto em Lincoln.

Sarah corria de lá para cá, entre a sala de jantar e a cozinha, lançando olhares preocupados ao quarto de Jesse. Não havia nenhum som vindo daquela direção.

Bem, Sarah pensou, pelo menos ela não está chorando. Acho que já é alguma coisa.

Augusta colocou sua preocupação no trabalho, enchendo copos com água, servindo café, ouvindo cada comentário sobre as notícias que tinham acabado de chegar. Ela esticava o pescoço como se, ouvindo os comentários dos cidadãos de Lincoln, pudesse saber se Mackenzie Baird — o jovem e bonito Mackenzie Baird — era um daqueles que jaziam mortos no campo de batalha tão longe.

Somente Lisbeth sabia. Lisbeth, a bonita jovem de cabelos pretos que há tão pouco tempo havia tomado conhecimento de que era meio índia lakota e que desejava saber mais sobre seu pai — e “ajudar a fazer a diferença". Movendo-se rapidamente em ocupações não do seu feitio, Lisbeth havia recebido a notícia da morte de Mackenzie e naquele momento estava escrevendo à sua mãe, em Lincoln, para lhe dizer que ela iria para casa brevemente.

Jesse, deitada de costas, olhava para fora da janela. Enquanto o trovão retumbava, ela abriu o coração ao Senhor. Agora a tempestade havia passado, e o silêncio veio tão de repente quanto o trovão tinha rolado pelas planícies. Ela podia ouvir os sons dos que jantavam — vozes ressoando, talheres batendo, cadeiras se arrastando no chão, quando os hóspedes se sentavam em seus lugares preferidos.

Tenho de levantar, Jesse pensou. Com uma força tremenda, ela alcançou a beira do colchão para levantar-se. Tenho de levantar para ajudar a Velha... Mas por quê?, ela se confundiu, depois de todos esses anos, por que pensei nisso?

O nome juntou as lembranças: um nenê num suporte, preso no mastro de uma tenda, olhando uma mulher velha amassar grãos e fazer um mingau. Seus pensamentos estavam confusos. Jesse repreendeu-se a si mesma: Velha bandida que sou! Não preciso ajudar Velha a fazer nada! No entanto, preciso ajudar Augusta. Precisamos estar prontas quando Lisbeth chegar.

Os sons da sala vieram de novo. Apertando os lados do colchão, ela se lançou meio caminho para cima, arquejando com esforço. Por que estou tão cansada o tempo inteiro? Velha preguiçosa. Mas, por mais que reclamasse, sabia que não conseguiria levantar-se. A fadiga apossou-se dela, cobriu-a e engoliu sua vontade de ir à cozinha. Uma dor entorpecida encheu o seu peito e fluiu para um braço. Cobrindo-se novamente com a colcha, suspirou e mudou sua atenção para fora da janela.

O céu negro de tempestade havia mudado para cinza-escuro e, na distância, vagalhões de nuvens eram soprados sobre a campina. Elas começavam a correr uma ao lado da outra, misturadas pelo vento, e o sol brilhando nelas as fazia parecer um branco-brilhante num céu escuro.

As lembranças tomaram conta dela: um comerciante francês com os olhos risonhos; uma viagem comprida, a cavalo, até o Forte Kearney; e, em algum lugar, bem longe, um montinho de pedras recuando na planície vasta enquanto um carroção ia embora. Então ele veio, um valente lakota, com o seu potro branco como a neve. Eles saltaram juntos para o céu, e em cada pulo o coração de Jesse se agitava irregularmente. Ela ficou em pé na campina, suas tranças vermelhas, compridas, decoradas com penas, a risca do cabelo na cor ocre. Ela levantou a mão tremendo, para saudá-lo, mas ele tinha ido embora.

Sua mão caiu de volta na colcha, e Jesse viu as nuvens de novo e percebeu que tinha sido apenas uma lembrança. Ela era uma mulher velha, muito cansada para ajudar com o jantar, talvez até cansada demais para ser útil a Lisbeth.

As nuvens lá de fora aproximaram-se, e o velho coração se excitou com a lembrança de um homem que cavalgava no vento há muito tempo. Ele levantou uma mão, saudando-a.

— Vou pedir ao Pai — ele havia dito — E voltarei para você.

Jesse sentou-se na cama, seu rosto vivo com uma nova luz. Cavalga o Vento sorriu e alcançou-a para puxá-la, majestosamente, para a garupa dele.

 

                                                                                Stephanie Grace Whitson  

 

 

                      

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