Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CAMPO DE ESPADAS / Conn Iggulden
CAMPO DE ESPADAS / Conn Iggulden

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Júlio estava perto da janela, olhando por sobre as colinas da Espanha. O sol poente borrava de ouro uma crista distante que parecia pairar sem sustentação, uma veia de luz à distância. Atrás dele o murmúrio de conversa subia e descia sem interromper seus pensamentos. Sentia cheiro de madressilva na brisa, e o toque do perfume nas narinas tornava seu suor fétido ainda pungente enquanto a delicada fragrância se agitava no ar e desaparecia.

Tinha sido um dia longo. Quando apertou uma das mãos contra os olhos sentiu um jorro de exaustão subindo por dentro como água escura. As vozes na sala de campanha se misturavam ao rangido das cadeiras e ao farfalhar dos mapas. Quantas centenas de tardes havia passado no último andar da fortaleza com aqueles homens? A rotina se tornara um conforto para todos no fim de cada dia, e mesmo quando não havia o que discutir reuniam-se nas salas de campanha para beber e conversar. Isso mantinha Roma viva em suas mentes, e às vezes quase podiam esquecer que não viam seus lares há mais de quatro anos.

 

 

 

 

A princípio Júlio tinha se envolvido com os problemas daquelas regiões e mal pensava em Roma durante meses seguidos. Os dias haviam passado enquanto ele acordava e dormia com o sol, e a Décima criava cidades nos ermos. No litoral, Valência fora transformada com calcário, madeira e tinta até tornar-se quase uma nova cidade envernizada sobre a antiga. Tinham construído estradas para ligar a terra e pontes que abriam os morros selvagens aos colonos. Júlio trabalhara com uma energia frenética e espasmódica naqueles primeiros anos, usando a exaustão como uma droga que expulsasse as lembranças. Então ia dormir e Cornélia surgia. Aquelas eram as noites em que deixava a cama encharcada de suor e cavalgava até os postos de vigia, surgindo da escuridão sem ser anunciado, até que a Décima ficasse tão nervosa e cansada quanto ele próprio.

Como para zombar de sua indiferença, os engenheiros tinham encontrado ouro em dois novos veios, mais ricos do que jamais haviam conhecido. O metal amarelo tinha atração, e quando Júlio viu o primeiro lote derramado de um pedaço de pano sobre sua mesa olhou para aquilo com ódio pelo que representava. Viera à Espanha sem nada, mas o chão lhe dava seus segredos, e com a riqueza vinha o puxão da velha cidade e da vida que ele quase esquecera.

Suspirou ao pensar. A Espanha tinha tesouros tão grandes que seria difícil deixá-la, mas parte dele sabia que não podia se perder ali por muito mais tempo. A vida era preciosa demais e curta demais para ser desperdiçada.

A sala estava quente com a proximidade dos corpos. Os mapas das novas minas estavam abertos em mesas baixas, seguros por pesos. Júlio podia ouvir Rênio discutindo com Brutus e a cadência grave dos risos de Domício. Apenas o gigante Ciro estava em silêncio. Mas mesmo os que falavam estavam marcando o tempo até que Júlio se juntasse a eles. Eram bons homens. Cada um tinha permanecido ao seu lado contra inimigos e passado pelo sofrimento, e havia ocasiões em que Júlio podia imaginar como seria atravessar o mundo com eles. Eram homens para percorrer um belo caminho e não para ser esquecidos na Espanha, e Júlio não suportava a simpatia que via nos olhos deles. Sabia que merecia apenas o desprezo por tê-los trazido a esse lugar e se enterrado num trabalho mesquinho.

Se Cornélia tivesse sobrevivido, ele a teria levado à Espanha. Teria sido um recomeço longe das intrigas da cidade. Baixou a cabeça enquanto a brisa do início da noite tocava seu rosto. Era uma dor velha, e havia dias inteiros em que não pensava nela. Mas logo a culpa chegava à superfície e os sonhos eram terríveis, como uma punição pela falha.

— Júlio? O guarda está na porta para falar com você — disse Brutus, tocando-o no ombro. Júlio assentiu e se virou para os homens na sala, os olhos procurando o estranho entre eles.

O legionário pareceu nervoso enquanto espiava as mesas cheias de mapas e as jarras de vinho, claramente num temor respeitoso pelas pessoas ali dentro.

— E então? — perguntou Júlio.

O soldado engoliu em seco enquanto encarava os olhos escuros de seu general. Não havia gentileza naquele rosto duro, descarnado, e o jovem legionário gaguejou ligeiramente.

— Há um jovem espanhol no portão, general. Diz ser quem estávamos procurando.

As conversas na sala morreram e o guarda desejou estar em outro local que não fosse sob o escrutínio daqueles homens.

— Vocês o revistaram em busca de armas?

— Sim, senhor.

— Então traga-o. Quero falar com o homem que me causou tantos problemas.

Júlio ficou parado no topo da escada e o espanhol foi trazido. Suas roupas eram pequenas demais para os membros desengonçados, e o rosto estava apanhado na mudança entre menino e homem, mas não havia suavidade no maxilar ossudo. Quando os olhos dos dois se encontraram, o espanhol hesitou, tropeçando.

— Qual é o seu nome, garoto? — perguntou Júlio quando os dois estavam no mesmo nível.

— Adàn — respondeu o espanhol com esforço.

— Você matou meu oficial? — perguntou Júlio com um riso de desprezo. O rapaz se imobilizou, depois assentiu, a expressão hesitando entre medo e determinação. Podia ver os rostos virados em sua direção, e a coragem pareceu abandoná-lo ao pensar que estava entre eles. Podia ter recuado se o guarda não o empurrasse pela porta.

— Espere embaixo — disse Júlio ao legionário, subitamente irritado.

Adàn se recusou a baixar a cabeça diante dos olhares hostis dos romanos, mas não conseguia se lembrar de ter sentido mais medo na vida. Quando Júlio fechou a porta ele estremeceu em silêncio, xingando o próprio nervosismo. Ficou observando o general sentar-se diante dele, e um terror opaco o dominou. Será que deveria manter as mãos ao lado do corpo? De repente elas pareciam desajeitadas e ele pensou em fechá-las ou em cruzar os dedos às costas. O silêncio era doloroso enquanto esperava, e os olhos dos homens continuavam fixos nele. Adàn engoliu com dificuldade, decidido a não demonstrar o medo.

— Você conseguiu me dizer seu nome. Consegue me entender? Adàn se esforçou por colocar saliva na boca seca.

— Consigo — disse. Pelo menos a voz não tinha saído esganiçada como de um garoto. Ajeitou os ombros ligeiramente e olhou para os outros, quase se encolhendo com a animosidade explícita vinda de um deles, parecido com um urso e tendo apenas um braço, que parecia estar praticamente rosnando de fúria.

— Você falou aos guardas que era aquele que estamos procurando, o que matou o soldado — disse Júlio.

O olhar de Adàn voltou-se rapidamente para ele.

— Fui eu. Eu o matei — respondeu, as palavras saindo num jorro.

— Você o torturou — acrescentou Júlio.

Adàn engoliu em seco de novo. Tinha imaginado esta cena enquanto caminhava pelos campos escuros até a fortaleza, mas não conseguia invocar o desafio que tinha visualizado. Sentia como se estivesse confessando ao pai, e precisava fazer força para não arrastar os pés com vergonha, apesar das intenções.

— Ele estava tentando estuprar minha mãe. Eu o levei para o mato. Ela tentou me impedir, mas não obedeci — disse Adàn rapidamente, tentando se lembrar das palavras que tinha ensaiado.

Alguém na sala murmurou um palavrão, mas Adàn não conseguia afastar os olhos do general. Sentia um obscuro alívio por contar a eles. Agora iriam matá-lo e seus pais seriam libertados.

Pensar na mãe foi um erro. Lágrimas brotaram do nada, enchendo seus olhos, e o rapaz piscou furiosamente para afastá-las. Ela desejaria que ele se mostrasse forte diante daqueles homens.

Júlio o observou. O jovem espanhol estava visivelmente trêmulo, e com motivo. Ele só precisava dar a ordem e Adàn seria levado ao pátio e executado diante das fileiras. Seria o fim, mas uma lembrança conteve sua mão.

— Por que se entregou, Adàn?

— Minha família foi presa para interrogatório, general. Eles são inocentes. É a mim que o senhor quer.

— Acha que sua morte vai salvá-los?

Adàn hesitou. Como poderia explicar que apenas uma débil esperança o fizera vir?

— Eles não fizeram nada de errado.

Júlio levantou a mão para coçar a sobrancelha, depois pousou o cotovelo no braço da cadeira enquanto pensava.

— Quando era mais novo do que você, Adàn, fiquei diante de um romano chamado Cornélio Sila. Ele havia assassinado meu tio e destruído tudo que eu valorizava no mundo. Disse que eu ficaria livre se deixasse minha mulher de lado e a envergonhasse diante do pai dela. Ele adorava esses pequenos atos de maldade.

Por um momento Júlio olhou para a distância inimaginável do passado e Adàn sentiu o suor brotar na testa. Por que aquele homem estava falando isso? Ele já havia confessado; não restava mais nada. Apesar do medo sentiu o interesse aguçar. Os romanos pareciam possuir apenas um rosto na Espanha. Ouvir que eles tinham rivalidades e inimigos em suas próprias fileiras era uma revelação.

— Odiei aquele homem, Adàn. Se me dessem uma arma, eu a teria usado contra ele, mesmo que isso significasse minha vida. Imagino que você entenda esse tipo de ódio.

— O senhor não abriu mão de sua esposa?

Júlio piscou diante da pergunta súbita, depois deu um sorriso amargo.

— Não. Recusei-me e ele me deixou viver. O chão aos seus pés estava sujo do sangue das pessoas que ele havia matado e torturado, no entanto me deixou viver. Freqüentemente me pergunto o motivo.

— Ele não o considerou uma ameaça — disse Adàn, surpreso pela própria coragem em falar ao general. Júlio balançou a cabeça, lembrando.

— Duvido. Eu lhe disse que dedicaria minha vida a acabar com ele, se me libertasse. — Por um momento Júlio quase contou em voz alta como seu amigo tinha envenenado o ditador, mas essa parte da história jamais poderia ser contada, nem mesmo aos outros homens na sala.

Deu de ombros.

— Ele acabou morrendo pelas mãos de outro. É uma das coisas que lamento, não poder ter feito isso pessoalmente e olhar a vida desaparecer de seus olhos.

Adàn teve de afastar os olhos do fogo que viu no romano. Acreditou, e o pensamento naquele homem ordenando sua morte com tamanho rancor o fez estremecer.

Júlio não falou de novo por longo tempo e Adàn sentiu-se fraco com a tensão. Sua cabeça se ergueu bruscamente quando por fim o general rompeu o silêncio.

— Há assassinos nas celas daqui e de Valência. Um deles será enforcado pelos crimes que você cometeu, bem como pelos dele. Sim, vou perdoá-lo. Vou assinar meu nome na ordem e você voltará para casa com sua família e jamais atrairá minha atenção de novo.

Rênio fungou, pasmo.

— Eu gostaria de trocar uma palavra em particular, general — resmungou, olhando venenosamente para Adàn. O jovem espanhol ficou parado, boquiaberto.

— Não, Rênio. Minha palavra ficará — respondeu Júlio sem olhá-lo. Observou o garoto por um momento e sentiu um peso sair das costas. Tinha tomado a decisão correta, tinha certeza. Vira-se nos olhos do espanhol e era como levantar um véu da memória. Como Sila tinha parecido amedrontador! Para Adàn, Júlio seria outra figura daquele tipo cruel, envolvido numa armadura de metal e de pensamentos mais duros ainda. Como tinha chegado perto de mandar Adàn ser empalado, queimado ou pregado ao portão da fortaleza, como Sila fizera com tantos inimigos! Era uma ironia que o antigo capricho de Sila tivesse salvado Adàn, mas Júlio havia se contido antes da ordem mortal e pensado no que estava se tornando. Não seria um daqueles homens que ele odiava. A idade não iria encaixá-lo no molde, se tivesse força. Levantou-se e encarou Adàn.

— Espero que não desperdice esta chance, Adàn. Você não terá outra, vinda de mim.

Adàn quase irrompeu em lágrimas, com as emoções rolando e domi-nando-o. Tinha se preparado para a morte, e vê-la arrancada junto com a vinda da liberdade era demais. Num impulso deu um passo adiante e se abaixou sobre um dos joelhos antes que alguém pudesse reagir.

Júlio se levantou devagar, olhando o rapaz.

— Nós não somos o inimigo, Adàn. Lembre-se disso. Mandarei um escriba preparar o perdão. Espere por mim lá embaixo.

Adàn se levantou e encarou os olhos escuros do romano por um último momento antes de sair da sala. Quando a porta se fechou ele se encostou frouxo na parede, enxugando o suor do rosto. Sentia-se tonto de alívio e cada respiração era límpida e fria. Não conseguia entender por que fora poupado.

O guarda na sala embaixo inclinou a cabeça para olhar a figura frouxa de Adàn nas sombras.

— Então, devo esquentar as facas para você? — zombou o romano.

— Hoje, não — respondeu Adàn, desfrutando a expressão confusa que surgiu no rosto do sujeito.

Brutus pôs uma taça na mão de Júlio, derramando o vinho habilmente de uma ânfora.

— Vai nos dizer por que o deixou ir? — perguntou.

Júlio ergueu a taça para interromper o fluxo e bebeu o conteúdo antes de estendê-la de novo.

— Porque ele foi corajoso.

Rênio coçou a barba que começava a crescer no queixo.

— Você sabe que ele será famoso nas cidades. Será o homem que nos enfrentou e sobreviveu. Provavelmente vão torná-lo prefeito quando Del Subió morrer. Os jovens vão se juntar ao redor dele e antes que você perceba...

— Chega — interrompeu Júlio com o rosto vermelho por causa do vinho. — A espada não é resposta para tudo, não importando o quanto você deseje. Temos de viver com eles sem ter de mandar nossos homens em pares vigiar cada beco e procurar emboscadas. — Suas mãos cortavam formas no ar enquanto se esforçava para encontrar as palavras certas para o pensamento. — Eles devem ser tão romanos quanto nós, dispostos a morrer por nossas causas e contra nossos inimigos. Pompeu mostrou o caminho com as legiões que montou aqui. Falei a verdade quando disse que não éramos o inimigo. Vocês conseguem entender isso?

— Eu entendo — respondeu Ciro de repente, sua voz profunda ressoando acima da resposta de Rênio.

O rosto de Júlio se iluminou com a idéia.

— Aí está. Ciro não nasceu em Roma, mas veio a nós livremente e pertence a Roma. — Ele lutou para encontrar as palavras, a mente correndo mais depressa do que a língua. — Roma é... uma idéia, mais do que sangue. Devemos fazer a coisa de modo que, para Adàn, nos afastar seja como arrancar o próprio coração. Esta noite ele vai se perguntar por que não foi morto. Saberá que pode haver justiça, mesmo depois da morte de um soldado romano. Contará a história, e os que duvidam vão hesitar. Isso basta como motivo.

— A não ser que ele tenha matado o homem por esporte — disse Rênio — e conte aos amigos que somos fracos e estúpidos. — Rênio não confiava em si mesmo para continuar falando, em vez disso foi até Brutus e pegou a ânfora com ele, segurando-a na dobra do cotovelo para encher sua taça. Com a raiva, um pouco do vinho se derramou.

Júlio estreitou os olhos para o velho gladiador. Respirou lentamente para controlar o mau humor que crescia por dentro.

— Eu não serei Sila. Nem Catão. Entende pelo menos isso, Rênio? Não governarei com medo e ódio, tendo de mandar que provem cada refeição para ver se tem veneno. Entende isso? — Sua voz tinha subido enquanto falava, e Rênio se virou para encará-lo, percebendo que tinha ido longe demais.

Júlio ergueu o punho fechado, a raiva se irradiando.

— Se eu der a ordem, Ciro arrancará seu coração por mim, Rênio. Ele nasceu num litoral de uma terra diferente, mas é romano. É soldado da Décima e é meu. Eu não o seguro através do medo, e sim do amor. Entende isso?

Rênio se imobilizou.

— Sei disso, claro, você...

Júlio o interrompeu com um gesto, sentindo uma dor de cabeça brotar entre os olhos. O medo de um ataque na frente dos outros fez sua raiva se desvanecer e ele ficou com um sentimento de vazio e cansaço.

— Deixem-me, todos. Mandem chamar Caberá. Perdoe minha raiva, Rênio. Eu preciso discutir com você para conhecer minha própria mente.

Rênio assentiu aceitando o pedido de desculpas. Saiu com os outros, deixando Júlio sozinho. A semi-escuridão do fim de tarde tinha quase virado noite, e Júlio acendeu as lâmpadas antes de parar junto à janela aberta, apertando a testa na pedra fria. A dor de cabeça latejou e ele gemeu baixinho, esfregando as têmporas em movimentos circulares, como Caberá tinha ensinado.

Havia muito trabalho a fazer e o tempo todo uma voz interna lhe sussurrava, zombando. Será que estava se escondendo naquelas colinas? Um dia sonhara em ficar de pé na casa do senado, agora se recolhia para longe. Cornélia estava morta, Tubruk também. Sua filha era uma estranha, vivendo numa casa que ele visitara durante apenas uma noite em seis anos. Houvera um tempo em que se sentia faminto por comparar sua força e inteligência com homens como Sila e Pompeu, mas agora a idéia de se lançar de novo nos jogos do poder o deixava nauseado de tanto ódio. Melhor, certamente melhor, era fazer um lar na Espanha, achar uma mulher ali e jamais ver sua casa de novo.

— Não posso voltar — falou alto, a voz embargada.

Rênio achou Caberá no estábulo, lancetando um inchaço na carne macia da pata de um cavalo. Os animais sempre pareciam entender que ele estava tentando ajudá-los, e até os mais agitados ficavam imóveis depois de algumas palavras murmuradas e tapinhas.

Estavam sozinhos, e Rênio esperou até que a agulha de Caberá tivesse liberado o pus da pata do animal, os dedos massageando a carne macia para ajudar a drenagem. O cavalo estremeceu como se houvesse moscas pousando na pele, mas Caberá nunca levara um coice, e a perna estava relaxada em suas mãos firmes.

— Ele quer você — disse Rênio.

Caberá ergueu os olhos ao ouvir o tom de voz do outro.

— Entregue-me aquele pote, por favor.

Rênio passou a tigela de alcatrão pegajoso que lacraria o ferimento. Olhou Caberá trabalhar em silêncio, e, quando o machucado estava coberto, Caberá se virou para ele com a usual neutralidade de humor.

— Você está preocupado com Júlio — disse o velho curandeiro.

Rênio deu de ombros.

— Ele está se matando aqui. Claro que estou preocupado. Júlio não dorme, só passa as noites trabalhando nas minas e nos mapas. Eu... não consigo conversar com ele sem que tudo vire uma discussão.

Caberá estendeu a mão e apertou os músculos de ferro do braço de Rênio.

— Ele sabe que você está aqui para o que der e vier. Vou lhe dar um sonífero para esta noite. Talvez você também devesse tomar um. Está parecendo exausto.

Rênio balançou a cabeça.

— Faça o que puder por ele. Ele merece mais do que isso. Caberá viu o gladiador maneta afastar-se no escuro.

— Você é um homem bom, Rênio — falou baixo demais para ser ouvido.

 

Servília estava junto a amurada do pequeno navio mercante, olhando as figuras que corriam de um lado para o outro no cais, à medida que chegavam mais perto. Havia centenas de barquinhos nas águas ao redor do porto de Valência, e o capitão mercante ordenara por duas vezes que as tripulações de pescadores ficassem longe de seu navio. Parecia não haver ordem naquilo, e Servília se pegou sorrindo quando outro jovem espanhol levantou um peixe que tinha apanhado e gritou o preço. Notou que o homem se equilibrava enquanto a canoa se sacudia nas ondas. Ele usava apenas um pano estreito na cintura, com uma faca pendurada num cinto largo, através de uma tira de couro. Servília o achou lindo.

O capitão acenou para afastar o barco e foi ignorado enquanto o pescador farejava uma venda para a mulher que lhe dava um riso tão bonito.

— Vou comprar os peixes dele, capitão — disse Servília.

O mercador romano franziu a testa, as sobrancelhas grossas juntando-se.

— As moedas são suas, mas os preços serão melhores no porto.

Ela estendeu a mão e deu um tapinha no ombro do homem, cujos modos carrancudos desapareceram em confusão.

— Mesmo assim o sol está quente, e depois de tanto tempo a bordo eu adoraria alguma coisa fresca.

O capitão cedeu de má vontade, pegando o grosso rolo de corda e jogando-o por sobre a amurada. O pescador amarrou a ponta numa rede aos seus pés e depois subiu ao navio, passando as pernas sobre a amurada com uma agilidade tranqüila. O jovem espanhol era moreno e endurecido pelo trabalho, com manchas brancas de sal na pele. Fez uma reverência profunda em resposta à avaliação dela e começou a puxar sua rede. Servília olhou o movimento dos músculos dos braços e dos ombros do rapaz, com um olhar de conhecedora.

— Seu barquinho não vai se afastar? — perguntou ela.

O jovem espanhol abriu a boca para responder e o capitão fungou.

— Acho que ele só fala sua própria língua. Eles não têm escolas enquanto nós não construímos.

Servília captou um clarão de escárnio nos olhos do rapaz. Uma corda fina ia da rede até seu barco, e com um gesto do pulso o espanhol a amarrou na amurada, batendo no nó com um dedo, em resposta à pergunta de Servília.

A rede continha uma massa coleante de peixes azuis-escuros. Servília estremeceu e se afastou enquanto eles se sacudiam e pulavam ao entrar em contato com o convés. O pescador riu do desconforto dela e puxou um grande pelo rabo. Era comprido como o braço dele, e ainda muito vivo. Servília viu o olho do peixe se mover loucamente enquanto se sacudia na mão do rapaz. A pele azul era brilhante e perfeita, e havia uma linha mais escura indo da cauda à cabeça. Ela assentiu e levantou cinco dedos diante de um riso de resposta.

— Cinco vão bastar para a tripulação, capitão?----perguntou ela.

O romano grunhiu aprovando e assobiou para dois marinheiros pegarem os peixes.

— Apenas alguns cobres bastarão, senhora — disse ele.

Servília abriu uma faixa larga em volta do pulso, revelando suas pequenas moedas. Escolheu um denário de prata e entregou ao jovem. Ele ergueu as sobrancelhas e acrescentou outro dos peixes maiores que estavam na rede, antes de apertar a corda que a fechava. Em seguida lançou uma expressão de triunfo para o capitão e desamarrou o nó, antes de subir na amurada e mergulhar na água azul. Servília se inclinou para olhá-lo vir à superfície e riu com prazer quando ele subiu no barquinho, brilhando ao sol como seus peixes. Em seguida o rapaz puxou a rede da água e acenou.

— Que início maravilhoso! — ofegou ela. O capitão murmurou algo ininteligível.

Os tripulantes que pegaram os peixes trouxeram porretes de madeira tirados de um armário no convés e, antes que Servília percebesse o que estavam fazendo, bateram nas cabeças luzidias, provocando um ruído desagradável. Os olhos brilhantes desapareceram sob a força dos golpes, empurrados para dentro da cabeça enquanto o sangue espirrava no convés. Servília fez uma careta quando uma gota de sangue caiu no seu braço. Os marinheiros estavam claramente se divertindo, de súbito com mais vitalidade do que tinham estado em qualquer ponto da viagem desde Ostia. Era como se tivessem ficado vivos durante a matança, riam e brincavam uns com os outros enquanto terminavam a tarefa medonha.

Quando o último peixe morreu, o convés estava coberto de sangue e minúsculas escamas prateadas. Servília ficou olhando os marinheiros jogarem ao mar um balde de lona preso a uma corda e lavar as pranchas.

— O porto está apinhado de embarcações, senhora — disse o capitão junto ao seu ombro, franzindo a vista por causa do sol. — Vou levar o navio o mais perto possível, mas teremos de ficar ancorados durante algumas horas até haver lugar no cais. — Servília se virou para olhar Valência outra vez, subitamente desejando estar em terra de novo.

— Como quiser, capitão — murmurou.

As montanhas atrás do porto pareciam preencher o horizonte, verdes e vermelhas de encontro ao azul-escuro do céu. Seu filho, Brutus, estava em algum lugar nelas, e vê-lo depois de tanto tempo seria maravilhoso. Estranhamente seu estômago se apertou, quase doendo, quando pensou no jovem amigo dele. Imaginou como os anos o teriam mudado, e tocou o cabelo inconscientemente, alisando-o onde estava encaracolado, úmido devido ao ar marinho.

A noite havia diminuído o calor do sol, numa suavidade cinzenta, quando o navio mercante romano pôde passar entre as cordas das embarcações ancoradas e ocupar seu lugar no cais. Servília tinha trazido três de suas garotas mais lindas, que se juntaram a ela no convés enquanto a tripulação jogava cordas para os trabalhadores das docas e usava os remos que serviam como lemes para colocá-los em segurança de encontro às enormes vigas de madeira.

Era uma manobra delicada e o capitão mostrou sua grande habilidade, enquanto se comunicava com o imediato na proa com uma série de sinais de mão e gritos.

Havia um ar de empolgação geral e as garotas que Servília tinha trazido riam e brincavam enquanto os trabalhadores nas docas as viam e gritavam comentários obscenos. Servília as deixou se divertir sem dizer uma palavra; todas as três eram do tipo raro, em seu negócio, que ainda não tinham perdido o amor pelo trabalho. De fato, Angelina, a mais nova, vivia se apaixonando pelos clientes, e poucos meses se passavam sem que algum romântico se oferecesse para comprá-la para se casar. O preço sempre parecia surpreendê-los, e Angelina ficava carrancuda por dias até que outro atraísse sua atenção.

As garotas estavam vestidas com a modéstia das filhas de qualquer casa importante. Servília tinha tomado um cuidado enorme com a segurança delas, sabendo que mesmo uma curta viagem pelo mar dava aos homens um sentimento de liberdade que poderia ter causado encrenca. Os vestidos eram cortados para disfarçar as curvas dos corpos jovens, mas havia vestimentas mais provocadoras nos baús que Servília tinha trazido. Se as cartas que Brutus mandara eram corretas, haveria um mercado, e as três garotas seriam as primeiras na nova casa que ela iria comprar. Os marinheiros que grunhiam e reclamavam carregando os baús pesados ficariam em choque ao saber do peso em ouro que fora dividido entre eles.

O exame do convés foi interrompido quando Angelina gritou de repente. O olhar rápido de Servília captou o marinheiro correndo para longe e o ultraje satisfeito da jovem antes que ela se virasse de novo. Tinham chegado em terra bem na hora, pensou.

O capitão gritou para os trabalhadores das docas apertarem as cordas e a tripulação gritou de alegria diante do anúncio, já antecipando os prazeres do porto. Servília captou o olhar do capitão e ele se aproximou pelo convés, subitamente mais afável do que ela aprendera a esperar.

— Nós só vamos retirar a carga amanhã de manhã — disse ele. — Posso recomendar alguns lugares, se a senhora quiser ir para terra, e há um primo meu que pode lhe alugar quantas carroças a senhora quiser a um bom preço.

— Obrigada, capitão. Foi um grande prazer. — Servília sorriu para ele, satisfeita em ver um rubor começar no alto das bochechas do sujeito. Angelina não era a única com um círculo de admiradores no navio, pensou com algum prazer.

O capitão pigarreou e levantou o queixo para falar de novo, parecendo subitamente nervoso.

— Mais tarde vou jantar sozinho. Se quiser se juntar a mim... Trarão frutas frescas para o navio, de modo que será melhor do que o de costume.

Servília pôs a mão no braço dele e sentiu o calor da pele por baixo da túnica.

— Terá de ficar para outra vez. Eu gostaria de partir ao amanhecer. Será que o senhor poderia mandar que meus baús fossem tirados primeiro? Vou falar com a legião para conseguir um guarda para eles até que as carroças estejam carregadas.

O capitão assentiu, tentando esconder a frustração. O primeiro-imediato havia dito que aquela mulher era uma prostituta, mas ele teve a impressão intensa de que oferecer dinheiro para ela ficar levaria a uma humilhação medonha. Por um momento pareceu tão terrivelmente solitário que Servília pensou em deixar Angelina levantar seu ânimo. A lourinha adorava homens mais velhos. Eles sempre ficavam desesperadamente gratos, e em troca de um esforço tão pequeno! Olhando-o, Servília adivinhou que o capitão provavelmente recusaria a oferta. Os homens da idade dele costumavam querer a companhia de uma mulher madura, tanto quanto os prazeres físicos, e a franqueza direta de Angelina só iria embaraçá-lo.

— Seus baús serão os primeiros a ir para o cais, senhora. Foi um prazer — disse ele, olhando-a cheio de desejo enquanto ela descia a escada. Vários de seus tripulantes haviam se reunido, para o caso de as jovens se desequilibrarem ao passar pela amurada, e suas sobrancelhas se juntaram enquanto pensava nelas. Depois de um momento, foi atrás de Servília, sabendo instintivamente que deveria estar lá para ajudar os homens.

Júlio estava trabalhando concentrado quando o guarda bateu à porta de seus aposentos.

— O que é?

O legionário parecia estar num nervosismo incomum enquanto saudava.

— Acho melhor o senhor vir ao portão. Precisa ver isso.

Levantando as sobrancelhas Júlio acompanhou o homem escada abaixo e saiu ao forte sol da tarde. Havia uma tensão peculiar afetando os soldados reunidos em volta do portão, e quando eles se separaram para sua passagem Júlio notou que dois tinham o rosto tenso de quem tenta não sorrir. A diversão deles e o calor pareceram alimentar a comichão de raiva que havia se tornado a base de suas horas de vigília.

Do outro lado do portão aberto havia uma fileira de carroças cheias de carga, com os cocheiros levemente cobertos pelo pó da estrada. Uns vinte homens da Décima haviam se posicionado à frente e atrás da estranha procissão. Com os olhos franzidos, Júlio reconheceu o oficial como o que fora despachado para o serviço no porto na véspera, e seu humor se esgarçou ainda mais. Como as carroças, os legionários estavam cobertos de poeira suficiente para mostrar que tinham andado cada passo do caminho.

Júlio os encarou, furioso.

— Eu não me lembro de ter dado ordens para vocês escoltarem mercadorias da costa — falou rispidamente. — É melhor que haja um motivo excelente para deixarem o posto e desobedecer às minhas ordens. Não consigo pensar em nenhum, mas talvez vocês me surpreendam.

O oficial empalideceu ligeiramente por baixo da poeira.

— A dama, senhor... — começou ele.

— O quê? Que dama? — replicou Júlio, perdendo a paciência com a hesitação do sujeito. Então outra voz soou, fazendo-o levar um susto ao reconhecê-la.

— Eu disse aos seus homens que você não se oporia a que eles ajudassem uma velha amiga — disse Servília, descendo do assento de uma carroça e indo na direção dele.

Por um momento Júlio não pôde responder. Os cabelos escuros da mulher estavam revoltos ao redor da cabeça, e os olhos dele beberam a visão. Rodeada por homens, ela parecia revigorada e calma, perfeitamente cônscia da sensação que causava. Andava como um gato na caçada, usando um vestido de algodão marrom que deixava os braços e o pescoço descobertos. Não usava jóias além de uma corrente simples, de ouro, que terminava num pendente quase escondido entre os seios.

— Servília. Você não deveria ter presumido coisas a partir de uma amizade — disse Júlio, rigidamente.

Ela deu de ombros e sorriu, como se aquilo não fosse nada.

— Espero que não os castigue, general. O cais pode ser perigoso sem guardas e eu não tinha mais ninguém para me ajudar.

Júlio a encarou com frieza antes de voltar o olhar para o oficial. O homem havia acompanhado a troca de palavras com a expressão vítrea de alguém que esperasse más notícias.

— Minhas ordens foram claras? — perguntou Júlio.

— Sim, senhor.

— Então você e seus homens vão assumir os próximos dois turnos de vigia. Seu posto o torna mais responsável do que eles, não é?

— Sim, senhor — respondeu o soldado infeliz. Júlio assentiu.

— Quando terminar o serviço, você se apresentará ao seu centurião para ser flagelado. Diga a ele que serão vinte chibatadas, por minhas ordens, e que seu nome deve ser posto nas listas, por desobediência. Agora corram de volta.

O oficial fez uma saudação elegante e girou nos calcanhares.

— Meia-volta! — gritou ele para a sua vintena. — Velocidade dupla, retornando ao cais.

Com Júlio ali, ninguém ousou reclamar, mas estariam exaustos antes da metade do caminho até o posto original e durante os próximos turnos despencariam de cansaço.

Júlio olhou-os até estarem longe da fileira de carroças, antes de se virar de novo para Servília. Ela ficou parada rigidamente, tentando esconder a surpresa e a culpa pelo que seu pedido havia provocado.

— Veio ver seu filho? — perguntou ele, franzindo a testa. — Brutus está treinando com a legião e deve retornar ao crepúsculo. — Em seguida olhou para a fileira de carroças e bois mugindo, claramente apanhado entre a irritação diante da chegada inesperada e as exigências da cortesia. Depois de um longo silêncio, cedeu.

— Pode esperar Brutus lá dentro. Mandarei alguém dar água aos seus animais e lhe trazer uma refeição.

— Obrigada pela gentileza. — Servília sorriu para encobrir a confusão. Não conseguia entender as diferenças no jovem general. Toda Roma sabia que ele tinha perdido a esposa, mas era como falar com outro homem, diferente do que ela conhecera. Havia círculos escuros em volta dos olhos, mas era mais do que simples cansaço. Quando o vira pela última vez, Júlio estava pronto para tomar armas contra Espártaco, e o fogo dentro dele mal era controlado. O coração de Servília sofreu pelo que o rapaz havia perdido. Nesse momento Angelina saltou da carroça no fim da fila e balançou a mão, gritando algo a Servília. Ela e Júlio se enrijeceram quando a voz de menina ressoou.

— Quem é ela? — perguntou Júlio, com os olhos se estreitando diante da claridade.

— Uma companheira, general. Tenho três jovens damas comigo, para a viagem.

Algo no tom de voz fez com que Júlio a olhasse com suspeitas súbitas.

— Elas são...

— Companheiras, general, sim — respondeu Servília em tom afável. — Todas boas meninas. — Pelo preço certo podem ser soberbas, acrescentou em silêncio.

— Vou colocar um guarda à porta delas. Os homens não estão acostumados com... — ele hesitou. — Pode ser necessário manter uma guarda. A porta.

Para o prazer intenso de Servília, um lento rubor havia surgido nas bochechas de Júlio. Ainda existia vida nele, em algum lugar fundo, pensou. Suas narinas se alargaram ligeiramente com a empolgação de uma caçada. Enquanto Júlio marchava de volta pelo portão, ela o olhou e sorriu, apertando entre os dentes o cheio lábio inferior, achando divertido. Não estava velha demais, afinal de contas, disse a si mesma, alisando o cabelo emaranhado.

 

Brutus alongou os músculos das costas enquanto cavalgava os últimos quilômetros em direção à fortaleza. Sua centúria de extraordinarii estava em formação, atrás, e ele sentiu um toque de orgulho ao olhar para cada lado e ver a linha bem-arrumada de cavalos a meio galope. Domício estava posicionado à sua direita e Otaviano se mantinha na fila, um pouco atrás. Trovejavam juntos pela planície, levantando uma pluma de poeira que deixava o gosto de terra amarga na boca. O ar era quente ao redor e o humor era leve. Todos estavam cansados, mas era aquela letargia agradável do trabalho hábil, com comida e uma boa noite de sono logo adiante.

Quando a fortaleza surgiu, Brutus gritou para Domício acima do barulho dos cavalos:

— Vamos fazer um espetáculo para eles. Dividir e girar ao meu sinal.

Os guardas no portão estariam observando-os chegar, ele sabia. Ainda que os extraordinarii estivessem juntos há menos de dois anos, Júlio lhe dera o que ele queria, em termos de homens e cavalos, e Brutus quisera o melhor da Décima. Homem por homem, apostaria neles contra qualquer exército do mundo. Eram os rompedores de barreiras, os primeiros a entrar em situações impossíveis. Cada um fora escolhido por sua habilidade com o cavalo e a espada, e Brutus sentia orgulho de todos. Sabia que o resto da Décima os considerava mais espetáculo do que substância, mas afinal de contas a legião não vira uma batalha no tempo passado na Espanha. Quando os extraordinarii tivessem seu batismo de sangue e mostrassem o que podiam fazer, justificariam os gastos, tinha certeza. Só as armaduras custavam uma pequena fortuna: bronze atado e tiras de ferro que lhes permitiam maior movimento do que as placas pesadas dos legionários triarii. Os extraordinarii de Brutus haviam polido os metais até brilhar e, contra a pele brilhante das montarias, luziam ao sol poente.

Levantou a mão e fez gestos incisivos para cada lado. Instigou a montaria até o galope enquanto o grupo se dividia facilmente, como se uma linha invisível fosse desenhada no chão. Agora o vento soprava no rosto de Brutus e ele riu empolgado, sem ter de olhar para saber que a formação era perfeita. Gotas de cuspe branco voavam da boca do cavalo, e ele se inclinou para a frente sobre o arção da sela, prendendo-se com as pernas e sentindo que estava voando.

A fortaleza estava crescendo com rapidez espantosa e, apanhado no momento, Brutus quase deixou atrasar demais o sinal para refazer o quadrado partido. Os dois grupos se juntaram apenas instantes antes de mudar a pegada nas rédeas para parar, mas não houve erros. Como se fossem um homem só, desmontaram dando tapinhas no pescoço fumegante dos gara-nhões e capões que Júlio trouxera de Roma. Apenas montarias castradas iam nas batalhas contra cavalarias inimigas, já que os garanhões intactos podiam enlouquecer com o cheiro de uma égua no cio. Era um ato de equilíbrio entre pegar os melhores para os extraordinarii e manter a linhagem forte. Até mesmo os espanhóis assobiavam e gritavam ao ver aqueles cavalos, já que seu amor pela criação dos animais suplantava a reticência usual demonstrada para com os soldados romanos.

Brutus estava rindo de alguma coisa dita por Domício quando viu sua mãe. Seus olhos se arregalaram por um momento, antes de ele correr por baixo do arco do portão para abraçá-la.

— Suas cartas não mencionaram isso! — disse ele, levantando-a na ponta dos pés e beijando-a nas duas bochechas.

— Achei que você poderia ficar empolgado demais. Os dois riram e Brutus a pôs de volta no chão.

Servília o afastou um pouco e sorriu ao vê-lo tão cheio de vida. Os anos na Espanha tinham sido bons para seu filho único. Ele tinha uma força vital que fazia os outros homens levantar a cabeça e ficar mais eretos em sua presença.

— Bonito como sempre, estou vendo — disse ela com orgulho. — Acho que você tem uma fila de garotas perseguindo-o.

— Não ouso sair sem uma guarda que me salve das pobres criaturas — respondeu ele.

Domício apareceu de súbito, entrando entre eles para forçar uma apresentação.

— Ah, sim, este é Domício, que limpa os cavalos. Já conheceu Otaviano? É parente de Júlio. — Rindo da expressão pasma de Domício, Brutus teve de sinalizar para que Otaviano se aproximasse.

Otaviano ficou atarantado e tentou uma saudação que terminou em mais confusão ainda, fazendo Brutus rir. Ele estava familiarizado demais com o efeito que sua mãe causava para se surpreender com isso, mas notou que estavam rapidamente se tornando o centro de um círculo de extraordinarii em admiração, que se empurravam para ver a recém-chegada.

Servília acenou para eles, adorando a atenção depois do mês monótono no oceano.

Os rapazes tinham uma vibração peculiar, intocados pelos temores da idade ou da morte. Estavam ao redor dela como deuses inocentes e a animavam com sua confiança.

— Já viu Júlio, mãe? Ele... — Brutus parou diante do silêncio súbito que caiu sobre a guarda. Três garotas saíram de uma arcada e a multidão de soldados se dividiu diante delas. Eram todas lindas, de modos diferentes. A mais jovem era loura e magra, as bochechas iluminadas com a cor que subia enquanto andava na direção de Servília. De cada lado estavam outras duas, com feições que fariam homens adultos chorar na taça de vinho.

O feitiço da entrada foi quebrado quando alguém soltou um assovio baixo e a turba retornou à vida.

Servília levantou uma sobrancelha para Angelina quando se encontraram. A garota sabia exatamente o que estava fazendo. Servília tinha visto isso nela desde o início. Era o tipo de mulher que fazia os homens lutarem para protegê-la, e sua presença numa casa onde havia bebida geralmente bastava para provocar tumulto antes do fim da noite. Servília a encontrara servindo vinho e dando de graça aquilo pelo qual os homens pagavam bem. Não fora necessária muita persuasão, considerando as quantias envolvidas. Servília ficava com dois quintos de tudo que Angelina ganhasse na casa em Roma, e mesmo assim a jovem loura estava se tornando uma mulher rica. Se continuasse assim, poderia abrir seu próprio estabelecimento dentro de alguns anos e procuraria Servília para o empréstimo.

— Estávamos preocupadas com a senhora — mentiu Angelina, toda animada.

Brutus a encarou com interesse explícito e ela devolveu o olhar sem embaraço. Sob o exame da garota, ele mal podia confirmar a suspeita que lhe viera à mente. Mesmo tendo dito a si mesmo que estava conformado com a profissão de Servília, a idéia de seus homens saberem mostrava que não se sentia tão seguro quanto imaginava.

— Vai nos apresentar, mamãe? — perguntou. Angelina arregalou os olhos por uma fração de segundo.

— Este é o seu filho? É exatamente como a senhora disse. Que maravilhoso!

Servília jamais tinha falado de Brutus com Angelina, mas foi apanhada entre a exasperação diante da transparência da garota e uma parte sua mais astuta, que podia farejar dinheiro a ser ganho. A multidão ao redor havia crescido. Aqueles não eram homens acostumados às atenções de mulheres jovens. Começou a suspeitar que, somente com os negócios na legião, Valência seria muito lucrativa.

— Esta é Angelina — falou.

Brutus fez uma reverência e os olhos de Angelina brilharam diante de sua cortesia.

— Junte-se a nós à mesa do general esta noite. Vou revirar o porão atrás de vinho e vamos lavar o pó da estrada em você. — Ele sustentou o olhar de Angelina enquanto falava e conseguiu fazer com que a proposta soasse notavelmente sexual. Servília pigarreou para interrompê-los.

— Vamos entrar, Brutus.

Os extraordinarii se separaram de novo para deixar que passassem. A refeição quente que os esperava nos alojamentos não foi nem de longe tão tentadora quanto parecera na cavalgada de volta, sem a companhia das mulheres como tempero extra. Ficaram no pátio, como se estivessem abandonados, até que o pequeno grupo desapareceu dentro da construção. Então o feitiço se quebrou e eles se separaram para cuidar dos cavalos, subitamente rápidos nos movimentos como se não tivessem sido interrompidos.

 

Apesar dos protestos de Angelina, Servília deixou suas três acompanhantes nos aposentos que haviam recebido. Alguém precisava desfazer os baús e naquela primeira noite Servília queria toda a atenção do filho. Afinal, não as havia trazido a Valência para que Brutus escolhesse uma esposa.

Júlio não desceu com os outros e mandou um curto pedido de desculpas através de seu guarda pessoal quando Brutus perguntou se ele iria se juntar ao grupo. Servília viu que a recusa não surpreendeu nenhum dos homens à mesa e se perguntou de novo sobre as mudanças que a Espanha havia provocado neles.

Em homenagem a Servília, a refeição era uma mistura de pratos locais apresentados numa quantidade de tigelas pequenas. Os temperos e as pimentas fizeram Otaviano tossir até que alguém teve de bater nas suas costas e lhe dar vinho para limpar a garganta. Ele ficara pasmo com Servília desde o primeiro instante no pátio e Brutus o provocava sutilmente, enquanto Servília fingia não notar o desconforto do rapaz.

A sala estava iluminada por lâmpadas quentes e tremulantes, e o vinho era tão bom quanto Brutus havia prometido. Era uma refeição agradável, e Servília descobriu que estava gostando das brincadeiras entre os homens.

Domício se deixou ser convencido a contar uma de suas histórias, se bem que o desfecho foi ligeiramente estragado quando Caberá gritou antes da hora, com entusiasmo, e depois bateu na mesa, divertindo-se.

— Esta história já era velha quando eu era garoto — riu o velho, estendendo a mão para pegar um pedaço de peixe numa tigela perto de Otaviano. O rapaz ia pegar o mesmo pedaço. Caberá bateu nos dedos dele para fazê-lo largar e segurou a carne enquanto caía. Otaviano fez uma careta, claramente contendo uma resposta quando se lembrou da presença de Servília à mesa.

— Como veio parar na Décima, Domício? — perguntou Servília.

— Brutus arranjou isso quando estávamos no sul lutando contra Espártaco. Eu deixei que ele ganhasse umas duas lutas, por gentileza, mas no todo ele viu que poderia se beneficiar com meu treinamento.

— Mentira! — disse Brutus, rindo. — Eu lhe perguntei de passagem se ele estaria disposto a se transferir para a nova legião e ele praticamente arrancou meu braço com uma mordida, de puro entusiasmo. Júlio teve de pagar uma fortuna em compensação ao legado. Ainda estamos esperando para ver se valeu a pena.

Domício aguardou com paciência até Brutus estar tomando seu vinho.

— Sou o melhor de minha geração, veja bem — disse a Servília, e olhou divertido Brutus lutando para não se engasgar e ficando vermelho.

O som de passos fez todos olharem para cima e os homens se levantaram juntos para receber Júlio. Ele ocupou seu lugar à cabeceira da mesa e sinalizou para se sentarem. Serviçais trouxeram novos pratos e Brutus encheu uma taça de vinho, sorrindo ao ver Júlio levantar a sobrancelha diante da qualidade.

A conversa recomeçou. Servília atraiu o olhar de Júlio e inclinou a cabeça ligeiramente. Ele copiou o gesto, aceitando-a à mesa, e ela se pegou soltando uma respiração que não percebera que estava segurando.

Havia no rapaz uma autoridade que ela não conseguia se lembrar de ter visto antes. Júlio não se juntava aos risos, meramente sorrindo diante das gargalhadas mais ultrajantes. Castigava o vinho, notou Servília, bebendo-o como se fosse água e sem qualquer efeito óbvio, ainda que tivesse surgido em seu pescoço um pequeno rubor que poderia ser devido ao calor da noite.

A animação à mesa foi restaurada rapidamente. A camaradagem entre os homens era contagiosa e depois de um tempo Servília se envolveu nas histórias e no humor com os outros. Caberá flertava ultrajantemente com ela, piscando em momentos inoportunos e fazendo-a fungar, divertida. Uma vez, ao rir, ela atraiu de novo o olhar de Júlio e o momento pareceu se imobilizar, sugerindo uma realidade mais profunda atrás da fachada alegre da refeição.

Júlio a observava, constantemente surpreso com o efeito que aquela mulher havia provocado na reunião que costumava ser sombria. Ela ria sem afetação e nesses momentos ele se perguntava como algum dia pudera tê-la achado menos do que linda. Sua pele era morena e com sardas do sol; o nariz e o queixo um pouco fortes demais, no entanto Servília tinha alguma coisa que a destacava. A parte calculista dele viu como ela transferia a atenção para quem quer que falasse, lisonjeando-os simplesmente pelo interesse demonstrado. Era uma mulher que gostava de homens e eles sentiam isso, mas era tão diferente de Cornélia que não lhe ocorria qualquer comparação para perturbar seus pensamentos.

Júlio não tivera companhia feminina há muito tempo e, mesmo assim, apenas quando Brutus conseguia enfiar bebida suficiente em sua garganta a ponto de ele não se incomodar mais. Olhar para Servília o lembrou do mundo distante das reuniões ruidosas com seus soldados. Sentia-se desequilibrado com ela, desacostumado. Pensou que deveria tomar o cuidado de manter distância. Uma mulher com a experiência dela poderia muito bem comê-lo vivo.

Balançou a cabeça para desanuviá-la, irritado com a própria fraqueza. Era a primeira mulher a sentar-se à mesa deles em meses, e Júlio estava reagindo com pouco mais de sofisticação do que Otaviano, mas esperava que seus pensamentos não estivessem tão óbvios. Se estivessem, jamais ouviria o fim das chacotas de Brutus. Imaginou com um tremor as provocações divertidas e afastou a taça de vinho com firmeza. Apesar de qualquer coisa, ela teria pouca probabilidade de demonstrar interesse por um amigo do filho. Era ridículo ao menos pensar na idéia.

Otaviano interrompeu as meditações de Júlio enquanto estendia a mão sobre a mesa para oferecer a Servília o último bocado de um prato de ervas. O jovem romano tinha crescido em força e habilidades sob a tutela de Brutus e Domício. Júlio se perguntou se Otaviano teria muito a temer dos aprendizes na cidade, como antigamente. Duvidava. O rapaz parecia prosperar na companhia dos soldados rudes da Décima, e até mesmo copiava o caminhar de Brutus, para diversão do amigo. Parecia jovem demais, e era estranho pensar que Júlio havia se casado quando era apenas um ano mais velho.

— Aprendi uma nova finta esta manhã, senhor — disse Otaviano com orgulho.

Júlio sorriu para ele.

— Terá de me mostrar — falou desalinhando o cabelo do garoto. Otaviano riu de orelha a orelha em resposta à pequena demonstração de afeto.

— Então vai treinar conosco amanhã? — perguntou preparando-se para o desapontamento.

Júlio balançou a cabeça.

— Vou com Rênio passar alguns dias nas minas de ouro, mas talvez treinemos juntos quando eu voltar.

Otaviano tentou parecer satisfeito, mas todos podiam ver que tinha recebido isso como uma recusa direta. Júlio quase mudou de idéia, mas os humores sombrios que o assolavam voltaram aos pensamentos. Nenhum deles entendia seu trabalho. Tinham o espírito leve dos meninos, e essa despreocupação não era mais um luxo que ele pudesse desfrutar. Esquecendo-se da decisão anterior, estendeu a mão para a taça e a esvaziou.

Brutus viu a depressão se acomodar no amigo e lutou para encontrar alguma coisa que o desviasse daquilo.

— O ferreiro espanhol começará a trabalhar com os homens de nossa legião amanhã. Você não pode adiar a viagem até ver pelo que pagou?

Júlio o encarou, deixando todos desconfortáveis.

— Não, os preparativos estão feitos — falou enchendo de novo a taça e xingando baixo quando derramou um pouco do vinho na mesa. Franziu a testa olhando para as mãos. Haveria um tremor ali? Não dava para dizer. Enquanto a conversa entrecortada recomeçava, observou os outros, procurando algum sinal de terem visto sua fraqueza. Apenas Caberá o encarou e o rosto do velho estava totalmente gentil. Júlio tomou todo o vinho, subitamente com raiva de todos.

Servília mergulhou os dedos na tigela d'água e limpou a boca delicadamente com eles, um gesto que prendeu a atenção de Júlio, mas ela pareceu não notar.

— Gostei tremendamente do jantar, mas a viagem foi cansativa — disse ela sorrindo para todos. — Vou acordar cedo para assistir ao treinamento, Otaviano, se você não se incomodar.

— Claro, venha ver — disse Brutus, satisfeito. — Vou deixar uma carruagem pronta para você no estábulo. Este é um posto luxuoso, comparado a outros. Você vai adorar isto aqui.

— Arranje um bom cavalo e eu não precisarei de carruagem — respondeu Servília, notando o brilho nos olhos de Júlio enquanto ele digeria a informação. Os homens eram criaturas estranhas, mas ela ainda não encontrara um que não gostasse da idéia de uma bela mulher montada a cavalo. — Espero que minhas garotas não distraiam vocês. Vou procurar um lugar na cidade amanhã. Boa noite, senhores. General.

Eles se levantaram também, e de novo ela experimentou aquele estranho frisson quando o olhar de Júlio encontrou o seu.

Júlio se levantou logo depois de ela ter saído, cambaleando ligeiramente.

— Deixei minhas ordens em seus aposentos, Brutus, para o tempo em que eu estiver fora. Certifique-se de que haja uma guarda com aquelas garotas, enquanto elas estiverem sob nossos cuidados. Boa noite. — E saiu sem dizer mais nenhuma palavra, andando com a rigidez exagerada de alguém que tenta esconder os efeitos de vinho demasiado no sangue. Por um momento houve um silêncio dolorido.

— É bom ter uma cara nova aqui — disse Brutus, evitando cuidadosamente assuntos mais difíceis. — Ela vai animar este lugar um pouco. Ultimamente anda quieto demais.

Caberá assoviou baixinho.

— Uma mulher assim... todos os homens viram idiotas perto dela — falou baixo, e seu tom de voz fez Brutus o encarar, perplexo. A expressão do velho era ininteligível enquanto ele balançava um pouco a cabeça e pegava mais vinho.

— Ela é muito... graciosa — concordou Domício, procurando a última palavra.

Brutus fungou.

— O que vocês esperavam, depois de terem me visto com uma espada? Eu não teria saído de uma égua de carroça, não é?

— Sempre achei que havia um jeito feminino em sua postura, sim —respondeu Domício, coçando a testa, pensativo. — É, agora entendo. Mas fica melhor nela.

— Em mim é uma graça masculina, Domício, masculina. Ficarei bem feliz em demonstrar de novo amanhã. — O velho sorriso havia retornado ao rosto de Brutus enquanto ele estreitava os olhos fingindo ofensa.

— Eu tenho uma graça masculina, Domício? — perguntou Otaviano. Domício assentiu lentamente, com os modos tranqüilos.

— Tem, claro, garoto. É só Brutus que luta como uma mulher. Brutus explodiu numa gargalhada e jogou um prato contra Domício, que

se desviou facilmente. Ele se despedaçou no chão de pedras e todos se imobilizaram comicamente antes que a tensão se dissolvesse de novo em humor.

— Por que sua mãe quer uma casa na cidade? — perguntou Otaviano. Brutus o encarou incisivamente, lamentando de súbito ter de estragar a

inocência dele.

— Para negócios, garoto. Acho que as garotas da minha mãe vão divertir a legião dentro de pouco tempo.

Otaviano olhou em volta, confuso por um momento, depois seu rosto se iluminou. Todos estavam observando-o atentamente.

— Elas vão cobrar o preço integral para alguém da minha idade, você acha? — perguntou o garoto.

Brutus jogou outro prato na direção dele, acertando Caberá. Deitado no catre estreito em seus aposentos em cima, Júlio pôde ouvir os risos e fechou os olhos com força no escuro.

 

Servília já amava a cidadezinha de Valência. As ruas eram limpas e cheias de pessoas. Havia um ar de afluência no local, que fazia as palmas de suas mãos coçarem. No entanto, apesar dos sinais de riqueza, existia uma sensação de frescor que sua cidade antiga perdera há séculos. Este era um lugar mais inocente. Até mesmo encontrar a casa certa fora mais fácil do que ela havia esperado. Não havia autoridades precisando de um pagamento particular antes que os documentos fossem assinados; era simplesmente uma questão de achar o local certo e pagar em ouro ao proprietário atual. Era revigorante, depois da burocracia de Roma, e os soldados que Brutus havia mandado acompanhá-la puderam lhe mostrar três locais possíveis assim que ela perguntou. Os dois primeiros eram perto do mar e tinham probabilidade de atrair mais trabalhadores das docas do que ela queria. O terceiro era perfeito.

Numa rua calma perto do mercado e longe do mar, era uma construção espaçosa com uma impressionante fachada de calcário branco e madeira-de-lei. Servília era há muito familiarizada com a necessidade de apresentar ao mundo uma face agradável. Sem dúvida havia casinhas sujas escondidas nas cidades, onde viúvas e prostitutas ganhavam um dinheirinho extra deitadas de costas, mas o tipo de lugar que ela desejava atrairia dignitários e oficiais da legião, e portanto seria mais caro.

Com tantas casas novas sendo construídas pela Décima, Servília sentira que o proprietário poderia ser pressionado, e o preço final foi uma pechincha, mesmo com os móveis que seriam postos. Parte deles teria de ser mandada de Roma, mas uma rápida inspeção nas costureiras locais resultou em vários pagamentos e acordos menores.

De posse da casa, pagou a um mercador para levar uma lista de seus pedidos de volta a Roma. Seriam necessárias pelo menos mais quatro mulheres, e Servília tomou muito cuidado em escolher suas características. Era importante estabelecer uma reputação de qualidade.

Depois de três dias havia pouca coisa a fazer além de dar um nome à casa, mas isso foi mais difícil do que ela Esperava. Ainda que não houvesse prescrições claras na lei, Servília sabia instintivamente que deveria ser algo discreto e ao mesmo tempo sugestivo. Chamá-la de "Casa dos Aríetes" ou algo do tipo não seria nem um pouco bom.

No fim Angelina a surpreendeu com uma sugestão. "A Mão Dourada" era suficientemente erótico sem ser grosseiro, e Servília se perguntou se a cor clara de Angelina provocara a idéia. Quando ela concordou, Angelina deu um pulo e a beijou nas duas bochechas. A garota podia ser adorável quando lhe faziam a vontade, disso não havia dúvida.

Na terceira manhã depois de entrar na cidade, Servília observou uma placa delicadamente desenhada ser pendurada em ganchos de ferro, e sorriu quando alguns dos homens da Décima aplaudiram. Eles espalhariam a notícia de que a casa estava aberta para negócios, e ela esperava que a primeira noite fosse movimentada. Depois disso o futuro estava garantido, e esperava ter condições de passar o controle a outra pessoa dentro de alguns meses. Era tentador pensar num estabelecimento semelhante em cada cidade da Espanha. As melhores garotas e um gosto de Roma. O mercado estava ali e o dinheiro jorraria em seus cofres.

Virou-se para os guardas do filho e sorriu.

— Espero que vocês consigam passes para esta noite — falou animada. Eles se entreolharam, sabendo que o turno de trabalho nas docas havia se transformado numa moeda valiosa.

— Talvez seu filho pudesse interceder por nós, senhora — respondeu o oficial.

Servília franziu a testa. Apesar de não terem discutido isso abertamente, ela suspeitava de que Brutus se sentia um tanto desconfortável com seus negócios. Por sinal, perguntava-se se Júlio fora informado sobre a nova casa e imaginava o que ele acharia da idéia. Talvez não tivesse ouvido falar de seus planos enquanto estava longe em suas minas do sul, mas ela não via como o general poderia ser contra.

Passou a mão preguiçosamente pela garganta enquanto pensava nele. Hoje era o dia em que ele voltaria. Provavelmente estava comendo no alojamento agora mesmo, e se ela partisse sem demora poderia estar de volta à fortaleza antes que o dia se exaurisse.

— Realmente vou precisar de guardas permanentes para a casa — falou enquanto o pensamento lhe ocorria. — Se você quiser, peço ao general que o ponha aqui. Afinal de contas, sou cidadã romana.

Os guardas se entreolharam conjecturando loucamente. Por mais que a sugestão parecesse maravilhosa, a idéia de César ouvir seus nomes para guardar um bordel bastava para esfriar o ardor de qualquer homem. Com relutância balançaram a cabeça.

— Acho que ele preferiria homens locais como guardas daqui — disse o oficial por fim.

Servília pegou as rédeas de seu cavalo com um dos homens da Décima e saltou na sela. As calças que usava estavam um tanto frouxas, mas uma saia ou stola não seria adequada.

— Montem, rapazes. Vou perguntar a ele e veremos — falou girando o cavalo e instigando-o a galopar. Os cascos faziam barulho na rua e as mulheres locais levantaram as sobrancelhas diante daquela estranha dama romana que cavalgava como um soldado.

Júlio estava cumprimentando um espanhol idoso quando Servília chegou cavalgando diante da fortaleza. Durante o dia os portões eram mantidos abertos e os guardas passaram por eles direto até o pátio, com um simples cumprimento de cabeça. A escolta que a acompanhara da cidade levou as montarias para comer e beber água, deixando-a sozinha. Ser mãe de Brutus estava se mostrando tremendamente útil, percebeu.

— Gostaria de trocar uma palavra com o senhor, general, se for possível — gritou ela, puxando o cavalo até os dois homens.

Júlio franziu a testa numa raiva mal disfarçada.

— Este é o prefeito Del Subió, Servília. Sinto muito mas não tenho tempo para recebê-la esta tarde. Talvez amanhã.

Ele se virou para guiar o homem mais velho entrando no prédio principal, e Servília falou rapidamente, cumprimentando o prefeito com um sorriso rígido:

— Pensei em cavalgar até as cidadezinhas locais. O senhor poderia me recomendar uma rota?

Júlio se virou para o prefeito.

— Por favor, com licença um momento — disse ele.

Del Subió fez uma reverência olhando para Servília por baixo das sobrancelhas grossas. Se ele fosse o general romano não deixaria aquela beldade fazendo beicinho sozinha. Mesmo em sua idade Del Subió sabia apreciar uma bela mulher, e imaginou qual seria o motivo para a irritação de Júlio.

Júlio andou até Servília.

— Estas colinas não são completamente seguras. Há bandidos e viajantes que nem pensariam duas vezes antes de atacá-la. Se tiver sorte, eles apenas roubarão o cavalo e a deixarão caminhar de volta.

Com o aviso dado, tentou voltar ao prefeito.

— Então talvez você queira se juntar a mim, para me proteger — disse ela em voz suave.

Júlio se imobilizou encarando-a. Seu coração martelou no peito antes que ele pudesse recuperar o controle. Não era fácil recusá-la, mas esta tarde estava cheia de trabalho. Seus olhos reviraram o pátio e viram Otaviano saindo do estábulo. Deu um assobio forte para atrair a atenção do garoto.

— Otaviano. Sele um cavalo. Você tem um serviço de escolta. Otaviano fez uma saudação e desapareceu na escuridão do estábulo. Júlio olhou inexpressivo para Servília, como se a conversa estivesse terminada.

— Obrigada — disse ela, mas ele não respondeu enquanto levava Del Subió para dentro.

Quando Otaviano reapareceu já havia montado e teve de se abaixar sobre a sela para não esbarrar no arco do estábulo. Seu riso sumiu diante da expressão de Servília enquanto ela segurava no arção e passava uma perna sobre a sela. O garoto nunca a vira com raiva e, no mínimo, a fúria em seus olhos a tornava mais linda. Sem lhe dirigir uma palavra ela passou pelo portão a galope, obrigando os guardas a se desviarem para não ser derrubados. Arregalado de surpresa, Otaviano foi atrás.

Servília cavalgou em alta velocidade por um quilômetro e meio antes de puxar as rédeas e estabelecer um ritmo mais tranqüilo. Otaviano se aproximou para cavalgar ao lado, demonstrando inconscientemente a habilidade pelo modo como acompanhava com exatidão o passo dela. Notou com o olhar hábil dos extraordinarii que ela manobrava bem o cavalo. Pequenos movimentos de rédea guiavam o animal ofegante para a direita e a esquerda rodeando obstáculos, e uma vez ela instigou a montaria a pular uma árvore caída, levantando-se na sela e pousando sem sequer um tremor.

Otaviano ficou em transe e disse a si mesmo que não falaria até achar alguma coisa suficientemente madura e interessante a dizer. A inspiração não veio, mas ela parecia disposta a deixar que o silêncio continuasse, esgotando no cansaço da corrida a raiva contra o desprezo de Júlio. Por fim puxou as rédeas ofegando ligeiramente. Deixou Otaviano se aproximar e sorriu.

— Brutus disse que você é parente de César. Fale sobre ele.

Otaviano sorriu de volta, completamente incapaz de resistir ao charme ou de questionar os motivos.

Júlio havia dispensado o último suplicante há uma hora e estava parado sozinho junto à janela que dava para os morros. Tinha assinado ordens para recrutar mais mil trabalhadores para as minas e dado compensação a três homens cujas terras tinham sido ocupadas pelas novas construções na costa. Quantas outras reuniões haviam acontecido? Dez? Sua mão doía das cartas que escrevera e ele a massageou levemente com a outra, enquanto esperava. Seu último escriba tinha se aposentado há um mês, e ele sentia tremendamente a perda. A armadura estava pendurada no cabide de madeira perto da mesa e o ar da noite era um alívio na túnica encharcada de suor. Bocejou e coçou o rosto com força. Já ia escurecendo, mas Otaviano e Servília ainda estavam por aí, em algum lugar. Imaginou se ela seria capaz de manter o garoto até tarde só para preocupá-lo, ou se algo teria acontecido. Talvez um dos cavalos tivesse machucado a pata e precisasse ser puxado de volta à fortaleza.

Fungou baixinho. Seria uma lição merecida, se fosse o caso. Afora as estradas, a terra era áspera e selvagem. Um cavalo podia facilmente quebrar a perna, especialmente na escuridão do fim de tarde, quando buracos e tocas de animais ficavam escondidos nas sombras.

Era ridículo se preocupar. Por duas vezes perdeu a paciência e se afastou da janela, mas enquanto pensava nas tarefas do dia seguinte pegou-se voltando para a vista das colinas, procurando-os. Longe da brisa a sala podia ser muito quente, disse a si mesmo, cansado demais até para acreditar em suas próprias mentiras.

Quando o sol era pouco mais do que uma linha vermelha contra as montanhas ele ouviu o barulho de cascos no pátio e se afastou rapidamente da janela para não ser visto. Quem era aquela mulher para lhe causar tanto desconforto? Imaginou quanto tempo demoraria para os dois escovarem os cavalos e darem água a eles antes de entrar. Será que iriam se juntar de novo aos oficiais para uma refeição? Estava com fome mas não queria fazer sala para uma hóspede. Mandaria que lhe trouxessem a comida e...

Uma batida baixa na porta interrompeu seus pensamentos, dando-lhe um susto. De algum modo soube que era ela no mesmo instante em que pigarreou para gritar:

— Entre.

Servília abriu a porta e entrou. Seu cabelo estava revolto por causa da cavalgada e uma mancha de sujeira marcava o rosto no local onde ela o havia tocado. Cheirava a palha e cavalo. Ele percebeu os próprios sentidos se estimulando ao vê-la. Dava para notar que ela ainda estava com raiva, e Júlio juntou a coragem para resistir ao que quer que Servília tivesse vindo exigir. Na verdade era demais ela entrar sem ao menos se anunciar. O que o guarda estava fazendo lá embaixo? Estaria dormindo? Iria ouvir poucas e boas quando ela tivesse ido embora, prometeu Júlio.

Sem falar, Servília atravessou o piso de madeira até ele. Antes que Júlio pudesse reagir ela apertou a palma da mão em seu peito, sentindo o coração bater por baixo do tecido.

— Então ainda está quente. Eu tinha começado a me perguntar—disse ela em voz baixa. Seu tom tinha uma intimidade que o perturbava, e de algum modo Júlio não conseguia juntar a raiva que havia esperado. Podia sentir o ponto em que a mão havia encostado, como se tivesse deixado um sinal visível do toque. Ela o encarou, bem de perto, e ele ficou subitamente cônscio da escuridão no quarto.

— Brutus vai ficar se perguntando onde você está — disse ele.

— E, ele me protege bastante. — Servília se virou para sair e Júlio quase estendeu a mão, observando confuso enquanto ela atravessava o quarto.

— Eu não... pensaria que você precisa de muita proteção — murmurou ele. Não pretendera de fato que ela ouvisse, mas viu-a sorrir antes que a porta se fechasse e ele estivesse sozinho, com os pensamentos girando caóticos. Soltou o ar lentamente, balançando a cabeça perplexo com as próprias reações. Sentia como se estivesse sendo caçado, mas não era desagradável. O cansaço parecia ter desaparecido e ele pensou que talvez pudesse se juntar aos outros para o jantar, afinal.

A porta se abriu de novo e ele ergueu os olhos vendo-a, ainda ali.

— Quer cavalgar comigo amanhã? — perguntou ela. — Otaviano disse que você conhece a região melhor do que ninguém.

Ele assentiu devagar, incapaz de se lembrar de que reuniões tinha planejado e não se importando particularmente. Quanto tempo fazia desde que havia tirado um dia de folga?

— Certo, Servília. Amanhã de manhã.

Ela riu sem responder, saiu e fechou a porta sem fazer barulho. Ele esperou um momento até ouvir seu passo leve descendo e relaxou. Estava surpreso ao ver como se sentia ansioso pelo dia seguinte.

À medida que a luz diminuía a fornalha transformava a oficina num local de fogo e sombras. A única luz vinha da forja, e o brilho iluminava os ferreiros romanos que esperavam com impaciência aprender o mistério do ferro duro. Júlio havia pagado uma fortuna em ouro para que um mestre espanhol lhes ensinasse, mas não era uma coisa a ser passada adiante num momento, ou mesmo num único dia. Para a exasperação deles, Cavallo tinha-os levado por todo o processo, passo a passo. A princípio haviam resistido a ser tratados como aprendizes, mas então os mais experientes viram que o espanhol era exato em cada parte de seu conhecimento e começaram a prestar atenção. Tinham cortado madeira de cipreste e amieiro, seguindo as ordens dele, e empilhado as toras embaixo de argila num buraco do tamanho de uma casa durante os quatro primeiros dias. Enquanto a madeira queimava ele lhes mostrou sua fornalha de minério e ensinou a lavar as pedras ásperas antes de lacrá-las com o carvão, para queimar limpas.

Eram todos homens que adoravam o que faziam, e no fim do quinto dia estavam cheios de antecipação empolgada enquanto Cavallo trazia um pedaço de lingote de ferro para a fornalha e derramava o metal derretido em suportes de argila, finalmente colocando as pesadas barras do metal numa bancada para eles examinarem.

— O amieiro queima mais frio do que a maioria das madeiras e torna as mudanças mais lentas. Isso faz um metal mais duro, já que uma parcela maior dele absorve o carvão, mas isso é apenas uma parte — disse ele, enfiando uma das barras no calor amarelo luminoso de sua forja. Praticamente não havia espaço para esquentar duas peças ao mesmo tempo, de modo que os ferreiros se amontoaram em volta da segunda, copiando cada movimento e instrução dada. A oficina apinhada não podia abrigar todos, por isso eles se revezavam entrando e saindo para o ar fresco da noite. Só Rênio ficou o tempo todo, como observador, e produzia suor suficiente para ficar cego, anotando silenciosamente cada estágio do processo.

Também estava fascinado. Apesar de ter usado espadas em toda a vida adulta, jamais as vira ser feitas, e isso o fazia apreciar as habilidades dos homens rudes que trabalhavam a terra para transformá-la em lâminas brilhantes.

Cavallo usou um martelo para bater na barra dando-lhe a forma de uma espada, aquecendo-a repetidamente até que a peça parecesse um gládio preto, com uma crosta de impurezas. Parte da habilidade era avaliar a temperatura segundo a cor, quando o ferro saía da forja. A cada vez que a espada ficava na temperatura correta Cavallo a levantava para que os outros vissem o tom de amarelo antes de desbotar. Em seguida batia o metal macio até seu suor pingar sobre ele, chiando, caindo em gotas gordas que desapareciam ao contato.

A barra dos romanos se igualava à sua em todos os pontos, e quando a luz se ergueu ele assentiu para os outros, satisfeito. Seus filhos tinham acendido uma panela rasa cheia de carvão, comprida como um homem, e antes que a tampa de metal fosse retirada ela brilhava tanto quanto a forja. Enquanto a espada se aquecia de novo, Cavallo sinalizou para uma fileira de aventais de couro pendurados em ganchos. Eram coisas incômodas de usar, grossas e rígidas de velhice. Cobriam o corpo inteiro do pescoço aos pés, deixando apenas os braços nus. Sorriu enquanto os romanos os vestiam, agora acostumado a seguirem suas instruções sem questionar.

— Vocês vão precisar da proteção — disse enquanto os outros lutavam para se mover sob a incômoda veste de couro. Ao seu sinal os filhos usaram tenazes para levantar a tampa da panela de carvão e Cavallo puxou a lâmina amarela da fornalha, com um floreio. Os ferreiros romanos chegaram mais perto, sabendo que estavam vendo um estágio do processo que não reconheciam. Rênio teve de recuar diante de uma súbita onda de calor e se esticar para ver o que estava acontecendo.

No calor incandescente do carvão Cavallo martelou a lâmina de novo, lançando fagulhas e pedaços de fogo para o ar. Um pousou em seu cabelo e ele bateu na chama automaticamente, apagando-a. Batia repetidamente na lâmina, com o martelo trabalhando para cima e para baixo sem a força dos primeiros golpes. O som era quase suave, mas todos podiam ver o carvão se grudando ao metal em crostas escuras.

— Aqui é preciso ser rápido. Não deve esfriar muito antes de ir para a água. Olhem a cor... agora!

A voz de Cavallo tinha ficado mais suave, os olhos cheios de amor pelo metal. A medida que o vermelho escurecia ele ergueu sua tenaz e enfiou a espada num balde d'água, soltando um jorro de vapor que encheu a pequena oficina.

— E de volta ao calor. O estágio mais importante. Se avaliarem errado a cor agora, a espada ficará quebradiça e inútil. Precisam aprender qual é o tom certo, caso contrário tudo que ensinei terá sido desperdiçado. Para mim é a cor de sangue velho de um dia, mas vocês devem achar sua própria memória e fixá-la na mente.

A segunda espada estava pronta, e ele repetiu as batidas no leito de carvão, de novo lançando brasas no ar. Nesse ponto estava suficientemente claro o motivo para usarem as vestes de couro. Um romano grunhiu de dor quando uma lasca incandescente caiu em seu braço antes que ele pudesse afastá-la.

As espadas foram reaquecidas e enfiadas no carvão mais quatro vezes antes que Cavallo finalmente assentisse. Todos estavam suando e praticamente cegos pela névoa úmida na oficina. Só as lâminas cortavam o vapor, com o ar se queimando em trilhas límpidas.

O alvorecer iluminava as montanhas lá fora, mas eles não podiam ver a luz. Todos tinham ficado olhando a fornalha por tanto tempo que, para onde quer que espiassem, havia escuridão.

Os filhos de Cavallo cobriram a bandeja e a puxaram de volta para a parede. Enquanto os romanos respiravam fundo e enxugavam o suor dos olhos, o armeiro fechou a forja e tirou os foles dos buracos de ar, pendurando-os com cuidado em ganchos, prontos para ser usados de novo. O calor ainda era opressivo, mas havia uma sensação de que tudo aquilo estava acabando quando ele os encarou, segurando uma lâmina preta em cada mão, os dedos envolvendo uma haste estreita que seria encaixada no punho, antes do uso.

As lâminas eram foscas e de aparência áspera. Apesar de ter martelado cada uma com a orientação apenas dos olhos, elas eram idênticas em tamanho e largura, e quando ficaram suficientemente frias para ser passadas ao redor os ferreiros romanos sentiram o mesmo equilíbrio em cada uma. As-sentiram diante da habilidade, não mais se ressentindo com o tempo que tinham passado longe de suas próprias forjas. Cada um percebia que tinham recebido algo valioso, e sorriam como crianças enquanto sopesavam as lâminas nuas.

Rênio se revezou com eles, mas não tinha experiência para avaliar o peso sem um punho. As lâminas tinham sido tiradas da terra da Espanha, e ele passou um dedo pelo metal áspero, esperando ser capaz de fazer com que Júlio entendesse a glória daquele momento.

— O leito de carvão dá a pele dura sobre um núcleo mais macio. Estas lâminas não vão se partir na batalha, a não ser que vocês deixem impurezas dentro, ou que ponham na água quando estiverem com a cor errada. Deixem-me mostrar — disse Cavallo, com a voz rígida de orgulho. Ele pegou as lâminas com os ferreiros romanos e sinalizou para recuarem. Então bateu com cada uma delas, com força, na beira da forja, provocando um som profundo como um sino ao alvorecer. As espadas permaneceram inteiras, e ele soltou o ar lentamente, satisfeito. — Estas aqui matarão homens. Tornarão a morte uma arte. — Ele falava com reverência e os outros entendiam. — O novo dia começa, senhores. Seu carvão estará pronto ao meio-dia, e voltem às suas forjas para fazer exemplos das novas espadas. Vou querer vê-las, de todos vocês, digamos... em três dias. Deixem-nas sem punhos, e eu farei os punhos com vocês. Agora vou dormir.

Os experientes ferreiros romanos murmuraram agradecimentos e saíram da oficina, olhando para trás, com expressão de desejo, para as lâminas que tinham feito naquela noite.

 

Pompeu e Crasso se levantaram de seus assentos à sombra para cumprimentar a multidão. Os freqüentadores do Circo Máximo aplaudiram seus cônsules numa onda de som e empolgação que ecoou pela platéia apinhada. Pompeu levantou a mão para eles e Crasso deu um leve sorriso, desfrutando da atenção. Ele merecia, pensou, depois de todo o ouro que aquilo tinha lhe custado. Cada ingresso de argila era estampado com o nome dos dois cônsules e, mesmo sendo dados de graça,; Crasso ouvira dizer que os ingressos serviam como moeda nas semanas anteriores ao evento. Muitos dos que esperavam a primeira corrida tinham pagado um bom preço pelo privilégio. Ele nunca deixava de ficar satisfeito em ver como seu povo podia transformar até mesmo presentes em oportunidade para lucrar.

O tempo estava bom e apenas os fiapos mais diáfanos de nuvens pairavam sobre a pista comprida enquanto as pessoas se acomodavam e gritavam umas para as outras. Havia um ar de empolgação nos bancos e Crasso notou como havia poucas famílias. Era um triste fato da vida que as corridas costumassem ser manchadas por brigas nas arquibancadas mais baratas, enquanto os homens discutiam as perdas. Há apenas um mês o circo tivera de ser esvaziado por legionários chamados para restaurar a ordem. Cinco homens foram mortos num pequeno tumulto depois que o favorito perdeu a última corrida do dia.

Crasso franziu a testa ao pensar nisso, esperando que não acontecesse de novo. Esticou-se no banco para notar a posição dos soldados de Pompeu nos portões e nas entradas principais. Era o bastante para intimidar a todos, menos os mais idiotas, esperava. Não queria que a memória de seu ano consular fosse associada a inquietação civil. Como as coisas estavam, seu endosso aos candidatos nas próximas eleições ainda valeria um bocado. Mesmo com mais de metade do mandato ainda por cumprir, as facções no senado se alteravam enquanto os que esperavam ocupar os postos mais elevados começavam a se fazer conhecidos. Era o maior jogo em Roma, e Crasso sabia que os favores que pudesse reunir significariam a moeda do poder no ano seguinte, ou por um tempo muito maior.

Crasso olhou para o outro cônsul, imaginando se Pompeu também estaria planejando o futuro. Sempre que se sentia tentado a maldizer a lei que os continha ele se consolava com o fato de que Pompeu estava atado do mesmo modo. Roma não permitiria outro Mário permanecendo como cônsul repetidamente. Aqueles dias loucos tinham chegado ao fim com a sombra de Sila e a guerra civil. Mesmo assim não havia nada para impedir Pompeu de preparar seus favoritos para sucedê-lo.

Crasso desejava ser capaz de afastar o sentimento de inadequação que o atacava sempre que estava perto de Pompeu. Diferentemente de suas feições afiladas, Pompeu tinha a aparência que se esperava de um cônsul, com rosto largo e forte e o cabelo ficando suavemente grisalho. Em particular Crasso imaginava se a imagem digna era ajudada com um pouco de pó branco nas têmporas. Mesmo sentado perto dele não podia ter certeza.

Como se os deuses não tivessem lhe dado o bastante, Pompeu parecia ter a bênção deles nos empreendimentos militares. Havia prometido ao povo livrar os mares dos piratas, e em apenas alguns meses a frota romana tinha varrido o Maré Internum das aves de rapina. O comércio florescera como Pompeu havia prometido. Ninguém na cidade agradecia a Crasso por financiar o empreendimento ou por suportar os prejuízos dos navios que não sobreviviam. Em vez disso, era forçado a jogar ainda mais ouro ao povo, para não o esquecerem, enquanto Pompeu podia ficar tranqüilo com a adoração das massas.

Bateu com os dedos de uma das mãos na outra enquanto pensava. Os cidadãos de Roma só respeitavam o que podiam ver. Se ele montasse uma legião própria para patrulhar as ruas eles iriam abençoá-lo a cada vez que seus homens pegassem um ladrão ou acabassem com uma briga. Sem a legião ele sabia que Pompeu jamais iria tratá-lo como igual. Não era uma idéia nova, mas tinha hesitado em plantar um novo estandarte no Campo de Marte. Sempre havia o medo particular de que Pompeu estivesse certo na avaliação que fazia a seu respeito. Que vitórias Crasso poderia reivindicar para Roma? Não importando como a vestisse com armaduras brilhantes, uma legião precisava ser bem comandada, e ainda que isso parecesse fácil para Pompeu, a idéia de se arriscar a outra humilhação era mais do que Crasso poderia suportar.

A campanha contra Espártaco fora, bastante ruim, pensou frustrado. Tinha certeza de que ainda zombavam dele por ter construído uma muralha atravessando o dedo do pé da Itália. Ninguém do senado mencionava isso em público, mas os boatos tinham se filtrado de volta, vindos dos soldados, e seus espiões lhe diziam que isso ainda era visto como motivo de risos entre as massas fofoqueiras da cidade. Pompeu lhe disse que isso não era nada, mas ele podia se dar ao luxo de ser complacente. Não importando quem fosse eleito no fim do ano, Pompeu ainda seria uma força no senado. Crasso desejou ter a mesma certeza com relação a si mesmo.

Os dois ficaram olhando enquanto os sete ovos de madeira eram trazidos à espinha central da pista. No início de cada volta um deles seria retirado, até que o último sinalizasse o frenesi que marcava o fim de cada disputa.

Enquanto o ritual antes das corridas se aproximava do final, Crasso sinalizou para trás e um escravo bem-vestido se adiantou para repassar suas apostas. Ainda que Pompeu tivesse desdenhado a oportunidade, Crasso passara uma hora útil com os concorrentes e seus cavalos no estábulo escuro construído sob as arquibancadas. Considerava-se um bom avaliador e achava que a quadriga com cavalos brancos espanhóis sob o comando de Paulo era invencível. Hesitou enquanto o escravo esperava para repassar a aposta dele aos seus senhores. O vale entre as colinas geralmente era perfeito para cavalos que preferiam uma pista macia, mas houvera pouca chuva durante quase uma semana e ele podia ver espirais de fumaça no chão abaixo do camarote consular. Sua boca também estava seca quando tomou a decisão. Paulo tinha se mostrado confiante e os deuses adoravam os jogadores. Este era seu dia, afinal de contas.

— Três sestércios na quadriga de Paulo — disse ele depois de uma longa pausa. O escravo assentiu, mas quando ele se virou Crasso segurou seu braço com os dedos ossudos. — Não, só dois. A pista está muito seca.

Enquanto o homem se afastava Crasso sentiu o riso de Pompeu.

— Realmente não sei por que você aposta. Você é tranqüilamente o homem mais rico de Roma, mas coloca dinheiro com menos coragem do que metade das pessoas aqui. O que são dois sestércios para você? Uma taça de vinho?

Crasso fungou diante de um assunto que já ouvira. Pompeu gostava de provocá-lo, mas mesmo assim vinha implorar ouro quando precisava de verbas para suas preciosas legiões. Esse era um prazer secreto para o homem mais velho, mas imaginava se Pompeu já havia pensado nisso. Se Crasso estivesse naquela posição, teria sido como veneno lento, mas Pompeu nunca alterava seus modos alegres. O sujeito não entendia a dignidade da riqueza, de modo nenhum.

— Um cavalo pode torcer uma perna ou um condutor pode cair em qualquer corrida. Você espera que eu desperdice ouro com o simples acaso?

O escravo das apostas voltou e entregou uma ficha que Crasso segurou com força. Pompeu o espiou com seus olhos claros e havia neles um nojo que Crasso fingiu não notar.

— Afora Paulo, quem mais corre na primeira? — perguntou Pompeu ao escravo.

— Mais três, senhor. Uma nova quadriga da Trácia, Dado, de Módena, e outra mandada da Espanha. Dizem que os cavalos da Espanha passaram por uma tempestade que os deixou inquietos. A maioria das apostas está indo para Dado, no momento.

Crasso lançou um olhar irado para o sujeito.

— Você não mencionou isso antes — disse rispidamente. — Paulo trouxe seus cavalos da Espanha. Eles estavam no mesmo navio?

— Não sei, senhor — respondeu o escravo baixando a cabeça. Crasso ficou vermelho enquanto imaginava se deveria retirar a aposta antes do início da corrida. Não, não na frente de Pompeu, a não ser que pudesse arranjar um motivo para sair por alguns instantes. Pompeu sorriu diante do desconforto do outro cônsul.

— Vou confiar no povo. Cem de ouro em Dácio.

O escravo nem mesmo piscou diante de uma quantia maior do que seu próprio preço, caso fosse vendido.

— Certamente, senhor. Vou lhe trazer a ficha. — Ele parou um momento numa interrogação silenciosa, mas Crasso apenas o olhou irritado.

- Depressa, a corrida já vai começar — acrescentou Pompeu, fazendo o escravo sair correndo. Pompeu tinha visto dois porta-bandeiras se aproximar do longo chifre de bronze na beira da pista. A multidão aplaudiu quando a trombeta soou e o portão do estábulo se abriu.

Primeiro saiu o romano, Dácio, com sua carruagem leve puxada por capões escuros. Crasso se remexeu enquanto notava a pose arrogante e o equilíbrio do sujeito trazendo seus animais numa curva suave até a linha de largada. Ele era baixo e atarracado, e a multidão o aplaudiu loucamente. Dácio fez uma saudação em direção ao camarote consular e Pompeu se levantou para devolver o gesto. Crasso copiou a ação, mas Dácio já havia se virado para terminar seus preparativos.

— Hoje ele parece ávido, Crasso. Seus cavalos estão lutando contra o freio — disse Pompeu, animado, ao colega.

Crasso o ignorou, observando a próxima quadriga. Era a da Trácia, marcada em verde. O condutor barbudo era inexperiente e poucas pessoas da multidão tinham apostado dinheiro nele. Mesmo assim aplaudiram devidamente, ainda que muitos já estivessem esticando o pescoço para ver as últimas duas saírem da semi-escuridão do estábulo.

Paulo sacudiu as rédeas compridas sobre seus cavalos espanhóis que saíram trovejando para a luz. Crasso bateu no corrimão com o punho ao vê-los.

— Dácio terá de trabalhar duro para vencer esses aí. Olhe a condição deles, Pompeu. Gloriosos.

Paulo parecia de fato confiante enquanto saudava os cônsules. Mesmo à distância Crasso viu o clarão de dentes brancos contra sua pele morena, e parte de sua preocupação se desfez. A quadriga ocupou seu lugar com as outras e o último competidor espanhol saiu juntando-se a elas.

Crasso não tinha visto nada de errado com os cavalos em sua primeira visita, mas agora os examinava procurando sinais de fraqueza. Apesar das afirmações feitas a Pompeu, de repente estava convencido de que os garanhões pareciam pouco à vontade em comparação com os outros. Ocupou seu lugar com relutância quando a trombeta soou de novo e as apostas cessaram. O escravo retornou para entregar a ficha a Pompeu e o cônsul ficou brincando preguiçosamente com ela enquanto esperavam.

O silêncio caiu sobre a massa de pessoas. A quadriga de Dácio se assustou com alguma coisa e andou de lado, para cima dos cavalos do trácio, forçando os dois homens a estalar os chicotes acima da cabeça. Um bom condutor era capaz de estalar a ponta a centímetros de qualquer um de seus cavalos a pleno galope, e a ordem foi rapidamente restaurada. Crasso notou a calma do trácio e imaginou se teria perdido uma chance. O sujeitinho não parecia deslocado entre os condutores mais experientes.

O silêncio se manteve enquanto os cavalos pateavam e fungavam no lugar durante um momento, então a trombeta foi soada pela terceira vez e seu lamento se perdeu em meio ao rugido enquanto as quadrigas saltavam para a frente e a corrida tinha início.

— Você fez bem, Crasso — disse Pompeu olhando por cima das cabeças da multidão. — Duvido que haja um homem em Roma que não conheça sua generosidade.

Crasso o olhou incisivamente, procurando algum tom de zombaria. Pompeu estava impassível e não pareceu sentir o olhar.

Abaixo deles os cavalos chegaram trovejando à primeira curva. As carruagens leves marcaram compridos arcos deslizantes na areia ao ser puxadas em círculo pelos cavalos a toda velocidade. Os condutores se inclinaram para se equilibrar, mantidos no local apenas pela habilidade e pela força. Era uma demonstração impressionante e Dácio deslizou facilmente entre duas quadrigas para assumir a liderança precoce. Crasso franziu a testa diante daquilo.

— Você decidiu quem vai apoiar para cônsul no fim do ano? — perguntou, forçando um tom de voz neutro.

Pompeu sorriu.

— É meio cedo para pensar nisso, amigo. Por enquanto estou gostando de ocupar o cargo.

Crasso fungou diante da falsidade explícita. Conhecia Pompeu bem demais para acreditar na negativa. Sob a pressão de seu olhar, Pompeu deu de ombros.

— Acredito que o senador Prando pode ser persuadido a pôr o nome na lista — disse ele.

Crasso olhou as quadrigas em disputa, considerando o que sabia sobre o sujeito.

— Há escolhas piores — disse finalmente. — Ele aceitaria sua... orientação?

Os olhos de Pompeu estavam brilhantes de empolgação enquanto Dado continuava na liderança. Crasso se perguntou se ele estaria meramente fingindo interesse para irritá-lo.

— Pompeu? — instigou ele.

— Ele não causaria encrenca.

Crasso escondeu o prazer. Nem Prando nem seu filho Suetônio eram homens de influência no senado, mas ter homens fracos como cônsules significaria que ele e Pompeu poderiam continuar guiando a cidade, meramente trocando o aspecto público pelo privado. Voltar ao anonimato dos bancos dos fundos depois de liderar Roma era uma perspectiva desagradável para os dois. Crasso se perguntou se Pompeu sabia que a família de Prando lhe devia e que ele teria sua própria forma de controle caso o senador fosse eleito.

— Eu poderia aceitar Prando se você tiver certeza com relação a ele — disse acima do barulho da multidão. Pompeu se virou com uma expressão divertida.

— Excelente. Você sabe se Cina se apresentaria? Crasso balançou a cabeça.

— Ele está praticamente aposentado desde a morte da filha. Você soube de alguma coisa?

Em sua ansiedade Crasso estendeu a mão para segurar o braço de Pompeu e este fez uma careta diante do toque. Crasso sentiu uma pontada de ódio contra o sujeito. Que direito ele tinha de presumir aqueles ares, quando Crasso pagara as contas de suas grandes casas?

— Ainda não soube de nada, Crasso. Mas se não for Cina devemos achar outro que se apresente para o segundo posto. Talvez não seja cedo demais para começar a cultivar um novo nome.

Quando a quarta volta começou, Dácio liderava por um comprimento inteiro, com o trácio mantendo posição atrás dele. Paulo vinha em terceiro, e os cavalos espanhóis enjoados pelo mar em último. A multidão gritava aprovando, e cada olhar estava fixo nas quadrigas que rodeavam a curva mais distante e galopavam pela reta de largada iniciando a quinta volta. O ovo de madeira foi retirado e as vozes que gritavam iam ficando roucas.

— Você pensou em Júlio? O período dele na Espanha está quase terminado — disse Crasso.

Pompeu olhou-o, subitamente cauteloso. Ainda suspeitava que Crasso tivesse uma lealdade que ele não compartilhava com relação ao jovem César. Não tinha perdoado as dívidas da Décima logo depois de Júlio ter assumido o controle? Pompeu balançou a cabeça.

— Ele não, Crasso. Aquele cão tem dentes. Tenho certeza de que você não quer... rupturas, tanto quanto eu.

Dácio tinha aumentado sua liderança e Crasso continuou a falar, satisfeito em poder abalar a calma placidez do colega.

— Dizem que César se saiu muito bem na Espanha. Novas terras sob seu controle, novas cidades. Acho que andam falando num Triunfo para ele.

Pompeu olhou incisivamente para Crasso, com a testa franzindo.

— Não ouvi nada sobre Triunfos, e deixei isso claro. Quando terminar o período dele vou mandá-lo a outro lugar. Talvez à Grécia. O que quer que você esteja planejando deve ser esquecido, Crasso. Eu testemunhei meus próprios homens de pé na chuva diante dele, quando viram sua coroa de louros. Meus próprios homens homenageando um estranho! Você se lembra muito bem de Mário. Não queremos outro na cidade, especialmente como cônsul.

Crasso não respondeu por um longo momento, e Pompeu optou por interpretar o silêncio como concordância.

Abaixo, na pista, Dácio veio por trás da quadriga espanhola e se posicionou para lhe dar uma volta. O condutor hesitante cambaleou violentamente ao ser ultrapassado por Dácio, perdendo o controle por uma fração de segundo. Foi o suficiente. Com um estalo que pôde ser ouvido acima do uivo pasmo da multidão as duas quadrigas se embolaram e num momento as arrumadas fileiras de cavalos se transformaram num caos relinchante. O trácio puxou as rédeas para se afastar da confusão. Seu chicote estalou junto aos cavalos do lado interno, obrigando-os a diminuir o passo para uma curva que quase o fez tombar. A multidão ficou olhando em agonia enquanto o homenzinho os guiava ao redor, mas logo conseguiram passar e muitas pessoas no circo se levantaram para aplaudir sua habilidade.

Pompeu xingou baixinho ao ver Dácio caído na areia. Uma das pernas dele estava torcida de um modo estranho. O joelho fora claramente despedaçado, e apesar de ele ainda viver, jamais disputaria outra corrida.

— Sinalize para os guardas que eu lhe dei, Crasso. Haverá brigas assim que eles se recuperarem do choque.

Crasso trincou os dentes com raiva, atraindo o olhar de um centurião, e levantando o punho fechado. Os guardas desceram pelas arquibancadas, e não sem tempo. Depois da empolgação pela destruição dos cavalos e das carruagens as pessoas tinham percebido as perdas nas apostas e gritavam umas contra as outras numa orgia de frustração. As últimas voltas prosseguiram sem incidentes, com o trácio passando em primeiro lugar pela linha de chegada diante da indiferença geral. Brigas já haviam começado e os legionários agiam depressa, usando a parte chata das espadas para separar os homens.

Pompeu sinalizou para sua guarda pessoal dizendo que estava pronto para ir embora e ela abriu caminho. Enquanto saía trocou um olhar com Crasso e viu o desgosto do outro, pela primeira vez sem disfarce. Quando chegou à rua Pompeu estava perdido em pensamentos, mal ouvindo a confusão cada vez maior atrás de si.

 

Júlio desmontou no limite do povoado, seu cavalo relinchando baixinho enquanto pastava o capim que crescia entre as pedras de uma estrada antiga. Ele e Servília tinham cavalgado para o interior e não havia sinal de vida nas colinas em volta. Era uma região linda, com vastidões de florestas e penhascos de calcário que mergulhavam em vales verdejantes. O sol havia passado do meio-dia antes de eles chegarem ali. Tinham visto cervos vermelhos pintalgados e javalis que fugiam guinchando de seus cavalos.

Júlio havia escolhido trilhas longas e sinuosas para evitar todos os sinais de pessoas. Parecia contente em ficar sozinho com ela, e Servília se sentiu lisonjeada. Às vezes parecia que os dois eram as únicas pessoas vivas. As florestas estavam cheias de sombras e silêncio enquanto eles passavam pela semi-escuridão quase como se fossem fantasmas. Então as árvores davam lugar à luz forte do sol e a uma planície coberta de capim, e eles galopavam afoitos afastando-se da escuridão, até estarem ofegando e rindo juntos. Servília não conseguia se lembrar de um dia mais perfeito.

O povoado aonde Júlio a levou era um lugar estranho ao pé de um vale.

Um rio passava perto, mas, como nas florestas, não havia vozes para romper o silêncio. As casas eram encurvadas pela idade, samambaias selvagens e hera cresciam saindo pelas janelas. Em toda parte havia sinais de decadência. Portas que tinham sido penduradas com rígidas dobradiças de couro bocejavam escancaradas, e animais selvagens se espalhavam enquanto eles guiavam os cavalos por uma rua em direção ao centro. O silêncio do povoado vazio tornava difícil conversar, como se fosse uma intromissão. Servília se lembrou das abóbadas ecoantes de um templo e se perguntou por que Júlio a teria trazido ali.

— Por que eles foram embora? — perguntou. Ele deu de ombros.

— Pode ter sido qualquer coisa: invasão, doença. Talvez só quisessem encontrar um novo lar em outro local. Passei dias aqui quando vim pela primeira vez, mas as casas foram saqueadas há muito tempo e resta pouco para mostrar como eles viviam. É um lugar estranho, mas eu adoro. Se alguma vez chegarmos a este vale com nossas pontes e ruas novas, ficarei triste em vê-lo desaparecer.

Seu pé esbarrou num pedaço de cerâmica desbotada que podia ter sido a placa de um estabelecimento comercial e ele se ajoelhou para examinar, soprando o pó. Estava em branco, e era tão fina que ele podia parti-la com as mãos.

— Acho que isto aqui já se pareceu com Valência. Um mercado e produtos para vender, crianças correndo em meio às galinhas. Agora é difícil imaginar.

Servília olhou ao redor e tentou conjurar a imagem de um lugar cheio de gente e agitação. Um lagarto correu ao longo de uma parede ali perto, atraindo seu olhar por um segundo antes de desaparecer sob um beiral meio caído. Havia alguma coisa fantasmagórica em caminhar por um lugar assim, como se a qualquer momento as ruas fossem se encher de vida e barulho outra vez, tendo se esquecido da interrupção da vida.

— Por que veio aqui? — perguntou.

Ele a olhou de lado, dando um sorriso estranho.

— Vou lhe mostrar — falou virando a esquina para uma rua mais larga. Aqui as casas eram pouco mais do que montes de entulho e Servília pôde ver uma praça mais adiante. O sol tornava o ar quente e leve à medida que se aproximavam, e Júlio apressou o passo ansioso enquanto chegavam à área aberta.

As pedras grandes da praça estavam rachadas, com capim e flores silvestres crescendo nos intervalos, mas Júlio caminhou por elas sem olhar, fixo num pedestal quebrado e numa estátua caída, em pedaços. As feições estavam quase totalmente gastas e a pedra branca era lascada e partida, no entanto Júlio se aproximou dela com reverência. Amarrou os cavalos numa árvore pequena que tinha brotado em meio às pedras da praça e se encostou na estátua, traçando as feições com as mãos. Um braço havia sumido, mas Servília pôde ver que a estátua já tivera uma figura poderosa. Viu onde haviam sido gravadas palavras no grande pedestal e acompanhou os caracteres estranhos com o dedo.

— Quem é? — sussurrou.

— Um dos eruditos locais me disse que está escrito "Alexandre, o Rei". A voz de Júlio estava áspera de emoção e ela sentiu de novo o desejo de tocá-lo, de compartilhar seus pensamentos. Para sua perplexidade, viu lágrimas se formar nos olhos dele enquanto o rapaz olhava para o rosto de pedra.

— O que é? Não entendo — disse ela estendendo a mão sem pensar. A pele de Júlio estava quente ao contato, e ele não se afastou.

— Vendo-o... — disse ele baixinho, enxugando os olhos. Por um momento Júlio pôs a mão sobre a dela e a apertou contra o corpo, antes de deixá-la cair. Depois de olhar longamente outra vez para a figura de pedra, deu de ombros, tendo encontrado de novo o controle.

— Quando ele tinha a minha idade já havia conquistado o mundo. Diziam que era um deus. Comparado a isso, desperdicei a vida.

Servília sentou-se na laje perto dele, com as coxas se tocando de leve, mas sentia cada parte do contato. Júlio falou de novo depois de um tempo, com a voz distante pelas memórias.

— Quando eu era garoto ouvia as histórias das batalhas e da vida de Alexandre. Ele era... impressionante. Tinha o mundo nas mãos quando era pouco mais do que uma criança. Eu costumava me imaginar... costumava ver o caminho dele.

De novo Servília estendeu a mão para o rosto do rapaz, alisando a pele. Ele pareceu sentir pela primeira vez e levantou a cabeça para olhá-la enquanto ela falava.

— O caminho está aqui para você, se quiser. — Servília não sabia bem se estava oferecendo mais do que apenas uma esperança de glória ou algo mais pessoal. Júlio pareceu ouvir os dois significados nas palavras e segurou a mão dela outra vez. Desta vez seus olhos procuraram os de Servília fazendo uma pergunta silenciosa.

— Eu quero tudo — sussurrou, e ela não poderia dizer qual dos dois se moveu para dar o beijo. Simplesmente aconteceu, e eles sentiram a força daquilo, sentados aos pés de Alexandre.

 

Nos dias seguintes o tempo parecia passar mais lentamente quando Servília não conseguia arranjar uma desculpa para sair com os cavalos de novo. A Mão Dourada ia bem, e ela havia trazido de Roma dois homens suficientemente grandes para aquietar os clientes mais agitados. Em vez de sentir prazer com o sucesso, via os pensamentos constantemente voltando para o estranho rapaz que podia ser vulnerável e amedrontador ao mesmo instante. Tinha se obrigado a não perguntar por ele e depois esperou seu convite. Quando veio, riu em voz alta, divertida consigo mesma, mas incapaz de resistir à empolgação.

Parou para acrescentar mais uma flor à tiara que estava trançando enquanto andavam por um campo de trigo ondulante. Júlio parou com ela, mais relaxado do que se sentia há muito tempo. A depressão que o havia esmagado parecia se desvanecer em sua companhia, e era estranho pensar que a primeira cavalgada dos dois pelas terras ermas tinha acontecido há apenas algumas semanas. Ela vira as partes da vida dele que mais lhe importavam, e Júlio sentia como se sempre tivesse conhecido aquela mulher.

Com ela os pesadelos que tentava afogar como gatinhos no vinho forte tinham se afastado, mas ele ainda os sentia circulando. Ela era a bênção de Alexandre, uma proteção contra as sombras que o comprimiam na direção do desespero. Podia se esquecer de quem havia se tornado, largando o manto da autoridade. Uma hora ou duas a cada dia, ao sol que esquentava algo mais do que a sua pele.

Olhou-a se empertigando e pensou na força dos sentimentos que ela engendrava. Num momento podia revelar um conhecimento sobre a cidade e os senadores que o deixava sem fôlego, e em outro podia ser quase infantil enquanto ria ou escolhia mais uma flor para trançar.

Brutus havia encorajado a amizade depois daquela primeira ida ao povoado da estátua quebrada. Viu que Servília era como um bálsamo para o espírito perturbado do amigo, começando a curar ferimentos que haviam se infeccionado por tempo demais.

— Pompeu estava errado em mandar crucificar os escravos — disse Júlio, lembrando-se da fileira de cruzes e das figuras chorando, torturadas, esperando a morte. As imagens da grande rebelião dos escravos ainda estavam dolorosamente frescas em sua mente, mesmo depois de quatro anos. Os corvos tinham se refestelado até estarem gordos demais para voar e gras-navam furiosos contra seus homens que chutavam os pássaros cambaleantes. Júlio estremeceu ligeiramente.

— Depois do início nós não oferecemos nada além de morte aos escravos. Eles sabiam que não iríamos deixá-los fugir. Eram mal liderados e Pompeu mandou que fossem amarrados e pregados por toda a Via, desde o sul. Então não foi grandeza da parte dele reagir ao terror da turba.

— Você não teria feito isso? — perguntou Servília.

— Espártaco e seus gladiadores tinham de morrer, mas havia homens corajosos nas fileiras, que enfrentaram as legiões e as derrotaram. Não, eu teria formado uma nova legião e a teria temperado com os centuriões mais endurecidos de todas as outras. Seis mil homens corajosos, Servília, todos desperdiçados diante da ambição dele. Teria sido um exemplo melhor do que crucificar todos, mas Pompeu não consegue enxergar além de suas regras e tradições mesquinhas. Ele segura seu lugar enquanto o resto do mundo passa adiante.

— O povo o saudou ao entrar na cidade, Júlio. Pompeu era quem eles realmente queriam como cônsul. Crasso ocupou o segundo lugar, à sombra dele.

— Melhor se tivessem dominado os escravos sozinhos — murmurou Júlio. — Então ficariam eretos, em vez de correr para beijar os pés de Pompeu. É melhor cuidar da própria plantação do que implorar que homens como Pompeu nos dêem comida. É uma doença que há em nós, você sabe. Sempre erguemos homens indignos para nos governar.

Lutou para encontrar palavras e Servília parou, virando-se para encará-lo. Naquele dia tão quente ela havia escolhido uma estola de linho fino e usava o cabelo preso com um cordão de prata, revelando o pescoço. Cada dia que Júlio passava com ela parecia trazer alguma faceta à atenção dele. Queria beijar o pescoço de Servília.

— Ele destruiu os piratas, Júlio. Você, principalmente, deveria estar satisfeito com isso.

— Claro que estou — disse ele amargamente —, mas eu queria ter essa tarefa. Pompeu não sonha, Servília*. Há terras novas, ricas em pérolas e ouro, mas ele descansa e organiza jogos para o povo que morre de fome nos campos enquanto Pompeu constrói novos templos para que rezem pela riqueza.

— Você faria mais? — perguntou ela, segurando seu braço. O toque era quente e os pensamentos de Júlio voaram para longe sob o ataque de uma súbita paixão que o surpreendeu. Imaginou se seus pensamentos apareciam, enquanto gaguejava uma resposta.

— Eufaria mais. Há ouro suficiente para levantar Roma inteira e a chance está aí, para nós, se a aproveitarmos. Não há nada no mundo como a nossa cidade. Dizem que o Egito é mais rico, mas ainda somos suficientemente jovens para encher as mãos. Pompeu está dormindo se acha que as fronteiras permanecerão seguras com as legiões que temos. Precisamos de mais, e temos de pagar por elas com novas terras e ouro.

Ela deixou a mão cair, sentindo um tremor de desejo levantar os pêlos macios da pele. Havia uma enorme força nele, quando não estava trancada sob sofrimento e desespero. Servília viu a escuridão ser afastada por espanto e prazer. O homem que a excitava com um toque não era o que a havia recebido no portão da fortaleza, e ela imaginou o que resultaria do despertar.

Quando se descobriu desejando-o ficara chocada, quase amedrontada. Não era como deveria ser. Os homens que a amavam nunca tocavam mais do que a pele pela qual ansiavam. Podiam se exaurir nela sem mais do que um tremor de reação verdadeira. No entanto esse rapaz estranho a lançava em confusão sempre que seus olhos azuis se fixavam nos dela. Olhos estranhos, com a pupila escura que doía à luz forte. Pareciam ver todos os seus artifícios como o que realmente eram, atravessando a brandura de seus gestos até a privacidade dentro dela.

Suspirou enquanto andavam. Estava sendo boba. Não era a época da vida para estar apaixonada por um homem com a idade de seu filho. Passou a mão inconscientemente pelos cabelos presos. Não que sua idade aparecesse, de modo algum. Tinham-lhe dito que os homens podiam considerá-la com trinta anos, em vez dos trinta e nove que ela admitia. Quarenta e dois. Algumas vezes sentia-se mais velha do que isso, especialmente na cidade, quando Crasso a visitava. Algumas vezes chorava sem motivo, com o humor estranho desaparecendo tão rapidamente quanto havia surgido. Sabia que o rapaz ao seu lado poderia ter qualquer uma das garotas da cidade. Não quereria alguém que carregasse tantas marcas, marcas que ninguém mais conseguia ver.

Cruzou os braços, quase esmagando a tiara de flores trançadas. Não duvidava de que era capaz de excitá-lo até a paixão, se quisesse. Ele era jovem e inocente comparado a ela. Seria fácil, e Servília percebeu que uma parte sua queria isso, gostaria das mãos dele em seu corpo sobre a grama longa da campina. Balançou a cabeça ligeiramente. Garota estúpida. Nunca deveria tê-lo beijado.

Falou rapidamente para encobrir a pausa, imaginando se ele teria notado sua distração ou o rubor que tinha subido às bochechas.

— Você não andou vendo Roma recentemente, Júlio. Agora há muitos pobres. O exército de escravos não deixou quase ninguém para trabalhar nos campos e os mendigos parecem moscas. Pelo menos Pompeu lhes dá um gosto da glória, mesmo com a barriga vazia. O senado não ousaria contestá-lo em nada, caso contrário a multidão poderia se erguer e consumir todos eles. Quando saí havia uma paz frágil, e duvido que algo tenha melhorado desde então. Você não sabe como eles estão próximos do caos. O senado vive no medo de outro levante que se rivalize com as batalhas contra Espártaco. Todo mundo que pode tem guardas, e os pobres se matam uns aos outros nas ruas sem que nada seja feito. Não são tempos fáceis, Júlio.

— Então talvez eu deva retornar. Não vejo minha filha há quatro anos e Pompeu me deve um bocado. Talvez seja hora de cobrar algumas dívidas e garantir que eu faça parte da obra de novo.

Por um momento seu rosto se iluminou com uma paixão que fez o coração de Servília se animar ao ver a imagem do homem que tinha observado durante o julgamento, mantendo o senado num fascínio enquanto fazia a justiça contra seus inimigos. Então, com a mesma rapidez, aquilo desapareceu e ele soltou o ar pelos lábios, exasperado.

— Antes de tudo isso eu tinha uma mulher com quem compartilhar. Tinha Tubruk, que era mais um pai do que um amigo; minha casa. O futuro corria na minha direção com uma espécie de... júbilo. Agora não tenho nada além de novas espadas e minas, e isso parece sem sentido. Daria tudo para ter Tubruk de volta por uma hora, para compartilhar uma bebida, ou a chance de ver Cornélia só um momento, o bastante para pedir desculpa por ter deixado de cumprir as promessas que fiz.

Esfregou os olhos com a mão, antes de continuar andando. Servília quase o segurou, sabendo que seu toque poderia lhe trazer conforto. Resistiu com um esforço enorme. O toque levaria a outros, e apesar de estar ansiando por ser também tocada, teve a força para não fazer o jogo que conhecia tão bem, que conhecera durante toda a vida. Uma mulher mais jovem poderia tê-lo agarrado sem pudor no momento de fraqueza, mas Servília sabia demais para não tentar isso. Haveria outros dias.

Então ele se virou e a abraçou com força suficiente para doer, com a boca apertando seus lábios para se abrirem. Ela cedeu, incapaz de se conter.

Brutus deslizou habilmente da sela enquanto passava sob o portão da fortaleza. A Décima havia feito manobras complexas nas colinas e Otaviano tinha se saído bem, usando a força que recebera para flanquear Domício, numa demonstração de capacidade. Brutus não hesitou enquanto corria para as construções. O humor sombrio que lançara uma nuvem sobre todos eles já era uma lembrança, e ele sabia que Júlio ficaria satisfeito ao saber como seu jovem parente estava se saindo bem. Otaviano tinha ombros para comandar, como costumava dizer Mário.

O guarda na base da escada estava fora de posição, de pé e bastante afastado de seu posto. Brutus o ouviu gritar enquanto subia a escada fazendo barulho, mas somente riu.

Júlio estava deitado num divã com Servília, o rosto dos dois ruborizado em pânico diante da chegada súbita e ruidosa de Brutus. Júlio saltou de pé, nu, e encarou o amigo com fúria.

— Saia! — trovejou.

Brutus se imobilizou, incrédulo, então seu rosto se retorceu e ele girou, batendo a porta com força.

Júlio se virou lentamente para encarar Servília, já arrependido da raiva. Vestiu as roupas depressa, sentando-se no comprido divã. O perfume da mulher era inebriante em suas narinas, e ele sabia que cheirava a ela. Quando se levantou, o calor da roupa foi deixado para trás e ele se afastou, pensando no que tinha de fazer.

— Vou procurá-lo — disse ela, ficando de pé.

Envolvido no amargor, Júlio mal percebeu a nudez de Servília. Tinha sido loucura cair no sono quando poderiam ser encontrados, mas não havia sentido em lamentar o passado. Balançou a cabeça enquanto amarrava as sandálias.

— Você não tem de se desculpar. Deixe-me encontrá-lo primeiro Os olhos dela se endureceram por um momento.

— Você não vai se desculpar... por mim? — perguntou com a voz enganosamente calma.

Júlio ficou de pé e a encarou.

— Por você, nem por um momento — disse em voz suave.

Então ela entrou em seus braços e Júlio descobriu que havia algo indescritivelmente erótico em abraçar uma mulher nua estando totalmente vestido. Separou-se com um riso apesar da preocupação por Brutus.

— Ele vai ficar bem quando se acalmar um pouco — falou para tranqüilizá-la, desejando acreditar. Com as mãos firmes afivelou o gládio à cintura. De repente Servília pareceu sentir medo.

— Não quero que você brigue com ele, Júlio. Você não deve. Júlio forçou um riso que pareceu ecoar no estômago vazio.

— Ele nunca me machucaria — falou saindo.

Do lado de fora sua expressão se acomodou numa máscara séria enquanto descia a escada. Domício e Caberá estavam ali com Ciro, e ele imaginou que os olhos dos amigos o acusavam.

— Onde ele está? — perguntou rispidamente.

— No pátio de treinamento — disse Domício. — Se fosse você eu o deixaria sozinho por um tempo, general. O sangue dele está quente e não seria bom soltá-lo agora.

Júlio hesitou, depois foi dominado por sua velha afoiteza. Tinha provocado aquilo e deveria pagar o preço.

- Fiquem aqui — disse peremptoriamente. — Ele é meu amigo mais antigo e isso é assunto particular.

Brutus estava sozinho no pátio vazio, com um gládio feito por Cavallo brilhando na mão. Assentiu enquanto Júlio ia até ele, e de novo Júlio hesitou diante da expressão sombria que seguia cada movimento seu. Se a coisa rendesse sangue, não poderia derrotar Brutus. Mesmo que pudesse roubar a vitória, duvidava de que seria capaz de tirar aquela vida, acima de todas as outras.

Brutus ergueu a lâmina brilhante na primeira posição e Júlio esvaziou a mente com a antiga disciplina que Rênio havia ensinado. Ali estava um inimigo que poderia matá-lo.

Desembainhou sua espada.

— Você pagou por ela? — perguntou Brutus em voz baixa, rompendo sua concentração.

Júlio lutou contra a raiva irritante que lhe veio. Os dois tinham aprendido com o mesmo homem e ele sabia que não deveria prestar atenção. Os dois começaram a girar um ao redor do outro.

— Acho que eu sabia, mas não acreditava — começou Brutus de novo. — Pensei que você não iria me envergonhar com ela, por isso não me preocupei.

— Não há vergonha.

— Há, sim — disse Brutus, e se moveu.

Júlio conhecia o estilo dele melhor do que ninguém, mas mal conseguiu desviar a lâmina que veio direto para o seu coração. Era um golpe mortal e ele não pôde desculpá-lo. A raiva lhe subiu por dentro e ele se moveu um pouco mais rápido, o passo um pouco mais firme no chão e seus sentidos acelerados. Então, que fosse.

Adiantou-se rapidamente, abaixando-se sob um clarão de prata e obrigando Brutus a se apoiar no pé de trás. Puxou a lâmina para o lado para cortar, mas Brutus se afastou com um riso zombeteiro, depois respondeu com uma chuva de golpes.

Os dois se afastaram, começando a ofegar ligeiramente. Júlio fechou a mão esquerda para estancar um corte na palma. O sangue pingava lentamente enquanto ele se movia, deixando manchas como olhos vítreos desaparecendo na areia.

— Eu a amo — disse Júlio. — E amo você. É demais para isso. — Com um gesto de nojo, jogou a espada longe e ficou de frente para o amigo.

Brutus levou a ponta da espada à garganta de Júlio e o encarou nos olhos.

— Todo mundo sabe? Caberá, Domício, Otaviano? Júlio o olhou com firmeza, fazendo força para não tremer.

— Talvez. Nós não planejamos, Brutus. Eu não queria que você nos encontrasse daquele jeito.

A espada era um ponto imóvel num mundo em movimento. Júlio trincou o maxilar, com um vasto sentimento de calma dominando-o. Relaxou conscientemente cada músculo e ficou esperando. Não queria morrer, mas se isso acontecesse trataria a morte com desprezo.

— Não é uma coisa pequena, Marco. Nem para mim nem para ela — falou.

A espada baixou subitamente e a luz maníaca morreu nos olhos de Brutus.

— Há coisa demais entre nós, Júlio, mas se você magoá-la eu o mato.

— Vá vê-la. Ela está preocupada com você — respondeu Júlio, ignorando a ameaça.,

Brutus sustentou seu olhar por um longo momento antes de se afastar e deixá-lo sozinho no pátio de treinamento. Júlio ficou observando, depois abriu a mão, encolhendo-se de dor. Por um momento a raiva cresceu por dentro. Teria enforcado qualquer um que ousasse erguer uma espada contra ele. Não poderia haver desculpa.

Mas os dois tinham sido crianças juntos, e isso contava. Talvez o bastante para engolir a traição de uma lâmina apontada para seu coração. Estreitou os olhos, pensando. Seria mais difícil confiar naquele homem numa segunda vez.

As seis semanas seguintes foram cheias de uma tensão quase insuportável. Apesar de Brutus ter conversado com a mãe e abençoado de má vontade a união, andava pela fortaleza com a raiva e a solidão parecendo uma capa que o envolvia.

Sem uma palavra de explicação Júlio começou a treinar pessoalmente a Décima de novo. Levava-a sozinho durante dias de cada vez e jamais falava, a não ser para dar ordens. Os legionários lutavam com dor e exaustão só para receber um movimento de cabeça da parte dele, e isso parecia valer mais do que elogios efusivos de qualquer outro.

Quando estava no alojamento Júlio escrevia cartas e ordens até tarde da noite, usando boa parte das reservas de ouro que havia juntado. Mandou cavaleiros de volta a Roma para encomendar novas armaduras na oficina de Alexandria e caravanas de suprimentos abriam caminho pelas montanhas, vindas das cidades espanholas. Novas minas tinham de ser abertas para fornecer minério de ferro para as espadas que eram produzidas com os projetos de Cavallo. Florestas eram derrubadas para fazer carvão, e jamais havia um momento em que qualquer um dos cinco mil soldados da Décima não tinha duas ou três tarefas para realizar.

Seus oficiais eram apanhados entre a dor de ser excluídos e uma espécie de júbilo ao ver o general redescobrir a velha energia. Muito antes de Júlio convocar os subordinados de seus postos em todo o país eles adivinharam que o tempo na Espanha estava chegando ao fim. A Hispânia era simplesmente pequena demais para conter o general da Décima.

Júlio escolheu os questores espanhóis mais hábeis para ocupar seu lugar até que Roma nomeasse um de seus filhos. Entregou o sinete de seu cargo e em seguida voltou a trabalhar dia e noite, algumas vezes ficando três dias sem dormir antes de desmoronar exausto. Depois de um curto descanso levantava-se e recomeçava. Os que estavam nos alojamentos andavam com cuidado ao redor dele e esperavam nervosos o resultado de todo esse trabalho.

Brutus o procurou no alvorecer de um dia, quando o acampamento ainda estava em silêncio ao redor. Bateu à porta e entrou quando Júlio respondeu baixo.

Júlio estava sentado a uma mesa cheia de mapas e tabuletas de argila, com mais ainda no chão aos seus pés. Levantou-se ao ver Brutus e por um momento a frieza entre eles pareceu proibir a fala. O hábito da amizade estava enferrujado.

Brutus engoliu em seco dolorosamente.

— Desculpe — falou.

Júlio permaneceu quieto, observando-o. O rosto que ele apresentava era como de um estranho, sem nada da amizade da qual Brutus sentia falta. Brutus tentou de novo.

— Fui um idiota, mas você me conhece há tempo suficiente para deixar isso passar. Sou seu amigo. Sua espada, lembra-se?

Júlio assentiu, aceitando-o.

— Eu amo Servília — falou em voz baixa. — Teria contado a você antes de todo mundo, mas a coisa entre nós aconteceu depressa demais. Não há jogos aqui, mas meu relacionamento é particular. Não vou falar dele com você.

— Quando vi vocês dois juntos... — começou Brutus. Júlio levantou a mão, rígida.

— Não. Não quero ouvir isso de novo. Já passou.

— Deuses, você não vai tornar a coisa fácil para mim, vai? — Brutus balançou a cabeça.

— Eu não deveria. Gosto mais de você do que de qualquer homem que já conheci, e você tentou me matar no pátio de treinamento. É difícil perdoar.

— O quê? — respondeu Brutus rapidamente. — Eu não...

— Eu sei, Brutus. Brutus se encurvou ligeiramente. Sem dizer outra palavra pegou um banco. Depois de um momento Júlio também se sentou.

— Quer que eu fique me desculpando? Eu estava furioso. Pensei que você a estava usando como... Foi um erro, desculpe. O que mais você quer?

— Quero saber que posso confiar em você. Quero que tudo isso seja esquecido.

Brutus se levantou.

— Pode confiar em mim. Você sabe. Eu abri mão da Primogênita por você. Deixe isso para lá.

Quando os dois se entreolharam, um sorriso se esgueirou no rosto de Júlio.

— Notou como eu desviei aquele golpe? Gostaria que Rênio tivesse visto.

— É, você foi muito bom — respondeu Brutus sarcasticamente. — Está satisfeito?

— Acho que eu poderia ter vencido — disse Júlio, animado. Brutus piscou para ele.

— Agora está indo longe demais.

A tensão entre os dois recuou até uma pressão distante.

— Vou levar a legião de volta a Roma—disse Júlio num jorro, aliviado por ter o amigo para compartilhar seus planos de novo. Imaginou se as semanas depois da briga teriam magoado Brutus a metade do que o haviam magoado.

— Todos nós sabemos, Júlio. Os homens fofocam como um bando de velhas. É para desafiar Pompeu? — perguntou Brutus casualmente, como se a vida de milhares de pessoas não dependesse da resposta.

— Não, ele governa bastante bem, com Crasso. Vou apresentar meu nome como candidato a cônsul na próxima eleição.

Esperou a reação de Brutus.

— Você acha que pode ganhar? — respondeu Brutus lentamente, pensando. — Você só terá alguns meses, e as pessoas têm memória curta.

— Sou o último sobrevivente do sangue de Mário. Vou lembrar isso a eles. Brutus sentiu a antiga empolgação chegando. Refletiu em como seu amigo havia experimentado quase um renascimento nos últimos meses. A raiva brusca havia sumido, e sua mãe tinha representado um papel nisso. Até mesmo sua querida e pequena Angelina estava pasma com Servília, e ele podia começar a entender por quê.

— Está quase amanhecendo. Você deveria dormir um pouco — disse ele.

— Ainda não, há muito a fazer antes de vermos Roma de novo.

— Então vou ficar junto, a não ser que você se incomode. — Brutus conteve outro bocejo.

Júlio sorriu.

— Não me incomodo. Preciso de alguém para escrever o que eu ditar.

 

Rênio parou no leito seco do rio e ergueu os olhos para a ponte. A estrutura estava apinhada de romanos e homens do local, passando sobre um esqueleto de madeira que balançava e estalava enquanto eles andavam pelas passarelas. Eram sessenta metros desde o leito seco até as pedras da estrada no alto. Quando estivesse pronta, a represa rio acima seria retirada e a água esconderia os enormes pés da ponte, passando ao redor das bordas afiladas muito depois de os construtores terem virado pó. Simplesmente estar à sombra dela era uma sensação estranha para o velho gladiador. Quando as águas viessem, ninguém poderia ficar ali de novo.

Balançou a cabeça num orgulho silencioso, ouvindo as ordens e gritos enquanto as equipes dos guinchos começavam a erguer outro dos blocos que formariam o arco. As vozes ecoavam sob a ponte, e Rênio podia ver que os soldados compartilhavam sua satisfação. Esta ponte jamais cairia, e eles sabiam disso.

A estrada acima de sua cabeça abriria caminho para um vale fértil numa linha direta até o litoral. Cidades seriam construídas e as estradas se estenderiam para atender às necessidades dos novos colonos. Eles viriam pelo solo bom e pelo comércio, e acima de tudo pela água limpa e doce que vinha dos aquedutos subterrâneos que tinham levado três anos para ser construídos.

Rênio observou uma equipe fazer força com as cordas pesadas enquanto a pedra do arco era erguida até a posição correta. As polias guinchavam, e ele viu Ciro inclinado por cima do parapeito para guiar o bloco. Homens ao seu lado colocavam argamassa marrom sobre as superfícies, e então Ciro envolveu o bloco com os braços, cantando junto com os outros num ritmo monótono para as equipes abaixo. Rênio prendeu o fôlego. Ainda que a força do gigante não tivesse igual entre as equipes, um escorregão poderia facilmente esmagar uma mão ou um ombro. Se o bloco saísse da posição, tinha peso suficiente para desmoronar os suportes, levando todos eles juntos.

Mesmo tão lá embaixo Rênio podia ouvir Ciro grunhindo enquanto movia o bloco para o lugar certo, fazendo a argamassa se espremer para fora e cair em nacos úmidos no leito do rio abaixo. Rênio protegeu os olhos para ver se um deles não cairia perto a ponto de obrigá-lo a se afastar, sorrindo do esforço deles.

Gostava do grandalhão. Ciro não falava muito, mas não poupava esforços quando se tratava de trabalho duro, e somente por isso Rênio gostaria dele. A princípio ficara surpreso ao descobrir que gostava de ensinar a Ciro as habilidades que legionários mais experientes consideravam ponto pacífico. Uma legião não podia ser parada por vales ou montanhas. Cada homem no andaime sabia que não havia um rio onde não poderiam fazer uma ponte, nem uma estrada que não poderiam abrir em todo o mundo. Eles construíam Roma onde quer que fossem.

Ciro ficara pasmo com a água e os quilômetros de túneis que tinham aberto para trazê-la das fontes no alto das montanhas. Agora as pessoas que se estabeleciam no vale não enfrentariam as doenças a cada verão, com os poços ficando estragados e com a água densa. Talvez então pensassem nos homens de Roma que os haviam construído.

O ritmo dos pensamentos de Rênio foram interrompidos por um cavaleiro de armadura vindo junto à margem e descendo até onde ele se encontrava. O homem estava suando no calor e esticou o pescoço para olhar para Cima num medo instintivo, enquanto passava sob os arcos. Um martelo pesado caindo daquela altura poderia matar o cavalo bem como o homem que o montava, mas Rênio deu um risinho diante da cautela do sujeito.

- Tem uma mensagem para mim? — perguntou.

O homem trotou à sombra do arco e desmontou.

— Sim, senhor. O general requisita sua presença no alojamento. Disse para levar junto o legionário chamado Ciro.

— O último arco está quase terminado, garoto.

— Ele disse para ir imediatamente, senhor.

Rênio franziu a testa, depois olhou para Ciro lá em cima. Só um idiota gritaria ordens para um homem que carregava uma pedra quase tão pesada quanto ele próprio, mas viu que Ciro estava recuando, enxugando o suor da testa com um trapo. Rênio encheu os pulmões.

— Desça, Ciro. Fomos chamados.

Apesar do sol, Otaviano se arrepiou quando a brisa chicoteou sua pele. Sua meia centúria estava a pleno galope descendo a colina mais íngreme que ele já vira. Se não tivesse examinado cada centímetro dela naquela manhã, jamais ousaria uma velocidade tão grande, mas o terreno era regular e nenhum dos cavaleiros experientes caiu, usando a força das pernas para ficarem presos às selas. Mesmo assim os arções pressionavam contra as virilhas. Otaviano trincou os dentes por causa da dor enquanto o galope o machucava impiedosamente.

Brutus tinha escolhido a colina junto com ele, para mostrar a realidade e o poder de uma carga de cavalaria. Esperava a chegada com uma centúria de extraordinarii ao pé da colina, e mesmo àquela distância Otaviano podia ver as montarias se movendo ariscas enquanto tentavam instintivamente se afastar dos cinqüenta que desciam trovejando.

O barulho era incrível, enquanto Otaviano gritava para seus homens manterem as posições. A fileira estava ficando meio irregular, era preciso rugir no volume máximo para atrair a atenção dos cavaleiros ao redor. Eles mostraram sua habilidade quando a linha se formou sem diminuir o passo, e Otaviano desembainhou a espada, prendendo-se furiosamente com os joelhos. Suas pernas estavam se torturando naquele ângulo, mas ele se sustentou.

O terreno se nivelava ligeiramente embaixo e Otaviano mal teve tempo de equilibrar o peso antes que sua meia centúria atravessasse as fileiras abertas que os encaravam. Rostos e cavalos eram turvos na velocidade espantosa enquanto passavam pela centúria e saíam do outro lado no que pareceu um único instante. Otaviano viu um oficial ficando pálido enquanto passava por ele. Se tivesse mantido a espada esticada, a cabeça do sujeito teria voado.

Gritou empolgado enquanto chamava seus homens para fazerem a volta e restabelecer a formação. Alguns riam de alívio enquanto se juntavam a Brutus e viam a expressão tensa dos homens que ele comandava naquele dia.

— Com o terreno certo podemos ser aterrorizadores — disse Brutus erguendo a voz para que todos ouvissem. — Eu praticamente perdi minha espada no final, e sabia que vocês só estavam passando por nós.

Os cavaleiros sob o comando de Otaviano aplaudiram aquela confissão, mas não acreditaram. Um deles deu um tapa nas costas de Otaviano enquanto Brutus se virava para encará-los com um risinho de desprezo.

— Agora vocês vão ter o gostinho. Formem-se em fileiras abertas enquanto eu levo os meus morro acima. Segurem-se firmes enquanto nós passamos pelo meio, e vocês vão aprender uma coisa.

Otaviano engoliu em seco, subitamente nervoso, ainda cheio da empolgação louca da carga. Brutus apeou para puxar o cavalo morro acima, e então viu um cavaleiro solitário vindo para eles.

— O que será isso? — murmurou.

O soldado desceu do cavalo e saudou Brutus.

— O general César está chamando Otaviano e o senhor. Brutus assentiu, com um lento sorriso se abrindo.

— É mesmo? — E se virou para seus amados extraordinários.

— E se os seus oficiais fossem mortos na primeira carga? Haveria caos? Continuem sem nós. Quero um relato completo quando voltarem aos alojamentos.

Otaviano e Brutus foram atrás do mensageiro quando ele montou de novo. Depois de um tempo cansaram-se do ritmo do sujeito e o ultrapassaram galopando.

Caberá passou os dedos por um pedaço de seda, com deleite infantil. Parecia apanhado entre o espanto e os risos diante dos caros móveis que Servília havia mandado trazer para a Mão Dourada, e a paciência dela estava se esgotando.

Interrompeu-a de novo para passar adiante e tocar uma delicada peça de estatuária.

— Então veja bem — tentou ela de novo —, eu gostaria de estabelecer uma reputação de casa limpa, e alguns soldados usam pó de giz para cobrir as erupções que eles têm...

— Tudo isto para o prazer! — interrompeu Caberá, piscando sugestivamente para ela. — Quero morrer num lugar assim. — Enquanto Servília franzia a testa, ele se aproximou de uma reentrância cheia de almofadas de seda, abaixo do nível do piso. Olhou-a pedindo permissão e Servília balançou a cabeça com firmeza.

— Júlio disse que você tem um bom conhecimento das doenças da pele, e eu pagaria bem para você ficar disponível para a casa. — Ela foi obrigada a parar de novo enquanto o velho pulava na massa de almofadas e se remexia entre elas, rindo.

— Não é um trabalho difícil — continuou Servília teimosamente. — Minhas garotas reconhecerão um problema quando virem, mas se houver discussão preciso de alguém que possa examinar o... homem em questão. Só até eu conseguir um médico mais permanente vindo da cidade. — Ficou olhando pasma enquanto Caberá rolava de um lado para o outro.

— Eu pago cinco sestércios por mês — disse ela.

— Quinze — respondeu Caberá, subitamente sério. Enquanto Servília piscava de surpresa, ele alisou o velho manto com movimentos rápidos dos dedos.

— Não pagarei mais do que dez, velho. Por quinze posso ter um médico local morando aqui.

Caberá fungou.

— Eles não sabem nada e você desperdiçaria um quarto. Doze, mas não vou cuidar de gravidez. Ache outra pessoa para isso.

— Eu não comando um bordel vagabundo — reagiu Servília rispidamente. — Minhas garotas podem olhar a lua, como qualquer outra mulher. Se ficarem grávidas eu pago para irem embora. A maioria volta para mim quando a criança desmama. Dez é a minha oferta final.

— Examinar as partes podres dos soldados vale doze sestércios — disse Caberá animado. — Além disso eu gostaria de umas almofadas destas.

Servília trincou os dentes.

— Elas custam mais do que os seus serviços, velho. Doze, então, mas as almofadas ficam.

Caberá bateu palmas, de prazer.

— O primeiro pagamento é adiantado e uma taça de vinho para selar o acordo, certo?

Servília abriu a boca para responder e ouviu alguém pigarrear delicadamente, atrás. Era Nádia, uma das novas que ela havia trazido, uma mulher com olhos pintados com kohl tão duros quanto o corpo era macio.

— Senhora, há um mensageiro da legião à porta.

— Traga-o, Nádia — disse Servília forçando um sorriso. Quando a mulher desapareceu ela girou para Caberá. *-

— Agora saia daqui. Não serei embaraçada por você.

Caberá saiu do poço das almofadas, com os dedos compridos enfiando uma delas sob o manto enquanto Servília se virava para receber o mensageiro.

O soldado estava ruborizando furiosamente e Servília pôde ver, pelo riso de Nádia atrás do ombro dele, que ela estivera falando com o sujeito.

— Senhora, César quer sua presença no alojamento. — O olhar dele foi até Caberá. — O senhor também, curandeiro. Eu serei seu acompanhante. Os cavalos estão lá fora.

Servília coçou o canto da boca, pensativa, ignorando o modo como o mensageiro a observava.

— Meu filho estará lá? — perguntou ela. O mensageiro assentiu.

— Todo mundo está sendo chamado, senhora. Só preciso encontrar o centurião Domício.

— Isso é fácil. Ele está lá em cima — disse ela, olhando com interesse o rubor do soldado descer até o pescoço e sob a túnica. Praticamente podia sentir o calor vindo do sujeito. — Eu esperaria um pouco, se fosse você.

 

A medida que se sentavam na sala comprida que dava para o pátio, todos sentiam pontadas de empolgação enquanto se entreolhavam. Júlio dominava o cômodo, parado junto à janela, esperando a chegada do último. A brisa das colinas atravessava lentamente a sala e os refrescava, mas a tensão era quase dolorosa. Otaviano riu nervosamente quando Caberá puxou uma almofada de seda de baixo do manto, e Rênio segurava a taça de vinho apertando um pouco demais.

Quando o guarda fechou a porta e desceu a escada, Brutus terminou de beber seu vinho e riu.

— Então, vai dizer por que estamos aqui, Júlio?

Todos olharam o homem à frente. O cansaço familiar havia desaparecido de suas feições e ele estava ereto, com a armadura brilhando de óleo.

— Senhores, Servília. Nós terminamos aqui. É hora de ir para casa. Houve um momento de silêncio e Servília pulou em sua cadeira quando

os outros aplaudiram e riram juntos.

— Vou beber a isso — disse Rênio, inclinando a taça.

Júlio desenrolou um mapa sobre a mesa e eles se amontoaram em volta enquanto ele colocava pesos sobre os cantos. Servília se sentiu excluída. Júlio captou seu olhar e sorriu para ela. Tudo ficaria bem.

Enquanto Júlio discutia os problemas de mover cinco mil homens ela começou a calcular. A Mão de Ouro mal fora inaugurada, e quem iria administrá-la se ela fosse embora? Angelina não tinha mão de ferro. Estaria comandando uma casa gratuita em menos de um ano se Servília a deixasse no comando. Nádia, possivelmente. Coração de sílex e bastante experiente, mas daria para confiar que não roubaria os lucros? Ao ouvir seu nome ela retornou bruscamente dos pensamentos.

— ... então não vamos por terra, nesse tempo. Servília me deu a idéia quando conhecemos o capitão mercante que ela usa. Vou escrever ordens para requisitar cada navio que esteja na passagem. Isso não será discutido a não ser entre nós. Se eles souberem que usaremos seus navios, zarparão logo e nós ficaremos aqui.

— Por que você vai partir antes de terminar aqui? — perguntou Caberá em voz baixa.

A conversa ao redor da mesa morreu e Júlio parou com o dedo sobre o mapa.

— Eu terminei aqui. Não é onde devo estar. Você mesmo disse. Se eu esperar o fim do período determinado Pompeu me mandará para outro lugar longe de minha cidade. E se eu recusar, esse será meu último posto em qualquer local. Não há segundas chances com aquele homem. —Júlio bateu o dedo no mapa sobre a minúscula marca da cidade que ele amava.

- Haverá eleições no fim do ano, para dois cargos de cônsul. Vou voltar e me candidatar a um deles.

Caberá deu de ombros, ainda testando.

- E depois? Vai travar uma guerra pela cidade, como Sila?

Júlio ficou imóvel por um momento e seu olhar se cravou em Caberá.

- Não, velho amigo — disse baixinho. — Depois não serei mais mandado para qualquer lugar segundo a vontade de Pompeu. Como cônsul serei intocável. Estarei de novo no centro das coisas.

Caberá queria deixar que o momento passasse, mas sua teimosia o obrigou a falar.

— Mas e depois disso? Deixará Brutus exercitando a Décima enquanto redige novas leis que o povo não vai entender? Vai se perder em mapas e pontes, como fez aqui?

Rênio estendeu a mão e segurou o ombro de Caberá para fazê-lo parar, mas o velho ignorou.

— Você pode fazer mais do que isso, se tiver olhos para ver — disse, encolhendo-se quando Rênio fechou a mão sobre os músculos magros, machucando-o.

— Se eu for cônsul — começou Júlio lentamente —, vou levar o que amo aos lugares mais selvagens que puder encontrar. É isso que você quer que eu diga? Que a Espanha é calma demais para mim? Eu sei. Vou encontrar meu caminho lá, Caberá. Os deuses ouvem com mais atenção quem fala em Roma. Eles simplesmente não conseguem me ouvir aqui. —Júlio sorriu para encobrir a raiva e sentiu Servília observando-o por cima do ombro de Otaviano. Rênio soltou o braço de Caberá, que fez uma careta de desdém para ele.

Brutus falou para aliviar o momento:

— Se começarmos a segurar navios esta noite, quanto tempo se passará até termos o bastante para mover a Décima?

Júlio assentiu levemente, agradecendo.

— Um mês, no máximo. Já espalhei a notícia de que precisamos de capitães para uma grande carga. Acho que não mais do que trinta navios bastarão para desembarcar em Óstia. O senado jamais me deixaria me aproximar de Roma com uma legião inteira, por isso preciso de um acampamento no litoral. Vou levar o ouro na primeira viagem. Temos o bastante para o que tenho em mente.

Servília os observou discutindo até o sol se pôr. Eles mal notaram o guarda entrar na sala para acender mais lâmpadas. Depois de um tempo ela saiu para começar seus preparativos, com o ar da noite fazendo-a se sentir mais viva depois do calor da sala.

Ainda podia ouvir as vozes enquanto atravessava o pátio e via as sentinelas do portão se enrijecer ao vê-la.

— É verdade que vamos para Roma, senhora? — perguntou um deles quando ela passou. Não foi surpresa descobrir que o sujeito ouvira o boato. Algumas de suas melhores informações em Roma vinham dos soldados rasos.

— É.

O homem sorriu.

— Já estava na hora.

Quando a Décima se moveu, moveu-se depressa. Um dia depois da reunião na sala comprida, dez dos maiores navios no porto de Valência tinham guardas impedindo que escapassem. Para fúria dos capitães mercantes, suas preciosas cargas foram retiradas e deixadas nos armazéns do cais para abrir mais espaço para a vasta quantidade de equipamentos e homens que compunham uma legião.

O ouro que estava na fortaleza foi posto em caixotes e levado aos navios, com centúrias totalmente armadas cuidando de cada parte da viagem. As forjas dos armeiros foram desmontadas e amarradas a enormes tablados de madeira que precisaram de juntas de boi para ser postos nos porões escuros. A grande balista e as catapultas foram reduzidas às peças básicas, e os pesados navios ficaram cada vez mais baixos na água, enquanto eram enchidos. Precisariam da maré mais alta para sair do porto, e Júlio marcou o dia para exatamente um mês depois de ter feito o anúncio formal. Se tudo corresse bem, chegariam a Roma pouco mais de cem dias antes da eleição consular.

O questor que Júlio havia promovido era ambicioso, e Júlio sabia que ele trabalharia como um escravo para manter o novo posto. Não haveria perda de disciplina quando a Décima fosse embora. O questor trouxe duas coortes para o leste, sob ordens de Júlio, alguns eram homens locais que tinham entrado para as forças romanas há anos. Era o bastante para manter a paz, e Júlio sentiu prazer porque o problema não era mais seu.

Havia mil coisas para organizar antes que os navios pudessem soltar as amarras. Júlio se empenhava até a exaustão, dormindo apenas uma noite em cada duas, no máximo. Encontrou-se com líderes locais de todo o país para explicar o que estava acontecendo, e os presentes que deixou para eles garantiram sua ajuda e sua bênção.

O questor ficara silenciosamente pasmo quando Júlio lhe disse como as novas minas tinham se tornado produtivas durante seu tempo na Espanha. Eles as haviam percorrido juntos e o sujeito aproveitou a oportunidade para garantir um empréstimo dos cofres da Décima, para ser pago em cinco anos. Não importando quem terminasse no posto de pretor, a dívida permaneceria. As minas seriam desenvolvidas e sem dúvida parte da nova riqueza seria declarada. Não antes que o posto se tornasse permanente, pensou Júlio com desagrado. Não seria bom excitar a fome de homens como Crasso em Roma.

Enquanto saía ao pátio Júlio teve de proteger os olhos contra o sol feroz. O portão estava aberto e a fortaleza tinha um ar vazio que o lembrou do povoado com a estátua de Alexandre. Era um pensamento estranho, mas as novas coortes eram esperadas para a manhã seguinte, e então a fortaleza voltaria à vida.

Na claridade ofuscante não viu o rapaz parado junto ao portão, esperando-o. Júlio estava indo para o estábulo e foi arrancado do devaneio quando o sujeito falou. Sua mão baixou ao gládio, num reflexo.

— General? Tem um momento?

Júlio o reconheceu e estreitou os olhos. Seu nome era Adàn, lembrou-se. O jovem que ele havia poupado.

— O que é? — perguntou impaciente.

Adàn se aproximou dele e Júlio manteve a mão junto ao punho da espada. Não duvidava que poderia dominar o jovem espanhol, mas poderia haver outros, e tinha vivido o suficiente para não baixar a guarda com tanta facilidade. Seus olhos examinaram o portão, em busca de sombras em movimento.

— O prefeito, Del Subió, disse que o senhor precisa de um escriba. Eu sei ler e escrever em latim.

Júlio o encarou cheio de suspeitas.

Del Subió mencionou o fato de que estou indo para Roma?

Adàn assentiu.

Todo mundo sabe. Eu gostaria de ver a cidade, mas quero o trabalho.

Júlio o encarou, avaliando. Confiava nos próprios instintos e não podia ver nada escondido no rosto aberto do sujeito. Talvez o jovem espanhol estivesse dizendo a verdade, mas Júlio não conseguia evitar as suspeitas quanto aos seus motivos, com a legião a ponto de viajar.

— Uma viagem de graça até Roma, e então você desaparece nos mercados, Adàn?

O rapaz deu de ombros.

— O senhor tem minha palavra. Não posso oferecer mais nada. Trabalho duro e quero ver mais do mundo. Só isso.

— Por que trabalhar para mim, então? Não faz muito tempo que você teve sangue romano nas mãos.

Adàn ficou vermelho, mas levantou a cabeça, recusando-se a se acovardar.

— O senhor é um homem honrado, general. Ainda que eu preferisse que Roma não pusesse as mãos sobre meu povo, o senhor me deixou curioso. Não vai se arrepender de me contratar, juro.

Júlio franziu a testa. O sujeito parecia não perceber o perigo em suas palavras. Lembrou-se do modo como ele ficou diante dos seus homens na sala comprida, lutando para controlar o medo.

— Preciso ser capaz de confiar em você, Adàn, e isso só virá com o tempo. O que você ouvir de mim valerá dinheiro aos que pagam por informações. Posso confiar em que manterá meus negócios em segredo?

— Como o senhor disse, com o tempo saberá. Minha palavra tem valor. Júlio chegou a uma decisão e sua testa se franziu.

— Muito bem, Adàn. Vá até meus aposentos e pegue os papéis que estão na mesa. Vou ditar uma carta e avaliar sua letra. Então você terá tempo de se despedir de sua família. Partiremos para Roma dentro de três dias.

 

Brutus vomitava por cima da amurada no mar turbulento.

— Eu tinha esquecido disso — falou arrasado.

Ciro só conseguia gemer em resposta enquanto as últimas taças de vinho que eles tinham tomado em Valência ficavam retornando. O vento soprava e fez com que parte do líquido fétido voltasse para eles. Brutus se imobilizou, enojado.

— Vá para longe de mim, seu jumento — gritou por cima do vendaval. Apesar de seu estômago estar vazio, os espasmos dolorosos recomeçaram e ele se encolheu com o amargo na boca.

As nuvens tinham vindo do leste enquanto as montanhas espanholas afundavam atrás deles. Os navios haviam se espalhado diante da tempestade, forçados a se distanciar uns dos outros. Os que tinham remos mantinham alguma aparência de controle, mas os conveses balouçantes faziam as pás compridas saírem completamente da água de um dos lados, depois do outro • Os mercadores que dependiam das velas estavam arrastando âncoras flutuantes, grandes amarrados de lona e traves para diminuir a velocidade e dar aos lemes pesados algo contra o qual trabalhar. Isso ajudava pouco. A tempestade trouxe a escuridão mais cedo e eles perderam de vista uns aos outros, cada navio subitamente sozinho para lutar contra as ondas.

Brutus estremeceu na popa quando outra onda feroz jogou água por sobre a amurada num grande jorro de brancura. Segurou o parapeito com força enquanto a onda espumava ao redor de seus joelhos e depois se esvaía. Os remos batiam e saltavam sobre montanhas de água escura, e Brutus imaginou se eles se chocariam com a terra numa pancada súbita.

O negrume era absoluto e mesmo a poucos passos ele mal podia enxergar Ciro. Ouviu o grandalhão gemer baixinho e fechou os olhos, só querendo que tudo aquilo parasse. Estivera se sentindo bem até que haviam se afastado da costa e as grandes ondas começaram a sacudi-los. Então o enjôo começou com um ataque de arrotos e a súbita ânsia de ir para a amurada. Tivera o bom senso de mirar por cima da popa, mas os homens abaixo não puderam se dar a esse luxo. Amontoados como estavam no porão, foi uma cena de pesadelo.

A pequena parte de sua mente que conseguia pensar em alguma coisa além do desconforto percebeu que teriam de ancorar fora de Ostia por um ou dois dias antes de entrar, nem que fosse para lavar o navio e restaurar o brilho da Décima. Se chegassem ao porto naquele momento os estivadores pensariam que eram refugiados de alguma batalha terrível.

Brutus ouviu um passo atrás dele.

— Quem é? — perguntou, esticando o pescoço para tentar ver as feições do sujeito.

— Júlio — respondeu uma voz animada. — Tenho água para você. Vai lhe dar algo para pôr para fora, ao menos.

Brutus deu um sorriso débil, aceitando o odre e apertando o bocal de tubo contra os lábios. Engoliu e cuspiu duas vezes antes de deixar que algum líquido escorresse garganta abaixo. Ciro pegou o odre com ele e engoliu ruidosamente.

Brutus sabia que deveria perguntar sobre os homens ou a rota que estavam fazendo para levá-los por entre a Sardenha e a Córsega, mas simplesmente não conseguia se obrigar. A cabeça estava pesada por causa do enjôo e ele só conseguiu balançar a mão para Júlio, num pedido de desculpas, antes de se dobrar sobre a amurada de novo. Era quase pior quando não estava vomitando. De modo que não havia nada a fazer senão dar livre vazão.

Os três cambalearam quando o navio balançou num ângulo apavorante e algo caiu com estrondo no porão. Júlio perdeu o apoio no convés escorregadio e foi salvo agarrando o braço de Ciro. Em seguida respirou fundo, agradecendo.

— Eu sentia falta disso — falou aos dois. — Estar fora das vistas de terra, no escuro. — Em seguida chegou mais perto de Ciro. — Você vai ficar comigo no último turno de vigia, amanhã. As estrelas vão tirar seu fôlego quando a tempestade for soprada para longe. O enjôo nunca dura mais do que um dia ou dois, no máximo.

— Espero que sim — conseguiu dizer Ciro, em dúvida. Para ele Júlio estava forçando os laços da amizade ao parecer tão obscenamente animado enquanto eles esperavam ser levados pela morte. Daria um mês de salário em troca de uma única hora de calma para acomodar o estômago. Então poderia encarar qualquer coisa, tinha certeza.

Júlio seguiu junto à amurada e foi falar com o capitão. O mercador havia se acomodado numa aceitação carrancuda de seu novo papel, chegando ao ponto de falar com os soldados enquanto eles se apinhavam em seu navio. Tinha-os alertado para ter uma das mãos a postos para o navio e a outra para se salvar, o tempo todo.

— Se caírem no mar — disse aos legionários —, é o fim. Mesmo que eu volte, e não voltarei, é quase impossível ver a cabeça de uma pessoa mesmo quando o mar está calmo. Se houver um pouco de vento é melhor vocês encherem logo os pulmões de água e afundar. Será mais rápido assim.

— Estamos no rumo, capitão? — perguntou Júlio ao chegar perto da figura envolta em sombras, encolhida contra o vento e envolta num grosso oleado.

— Vamos saber se chegarmos à Sardenha, mas eu fiz esta viagem muitas vezes. O vento vem do sudeste e nós o estamos atravessando.

Júlio não conseguia ver as feições dele na escuridão de breu, mas a voz não parecia preocupada. Quando os primeiros vendavais tinham acertado o navio o capitão amarrou os lemes em alguns graus de arco e assumiu seu posto, ocasionalmente gritando ordens à tripulação que se movia invisivelmente pelo convés.

Com a amurada às costas, Júlio balançava no ritmo das ondas, gostando tremendamente daquilo. Seu tempo na Accipiter com Gadítico como capitão parecia ter acontecido numa outra vida, mas se deixasse a mente vaguear era quase como se estivesse de volta, num mar diferente, no escuro. Imaginou se Ciro ao menos pensava naqueles tempos. Eles haviam jogado com a vida em incontáveis ocasiões na caça pelo pirata que tinha destruído o pequeno navio.

Fechou os olhos ao pensar nos que tinham morrido durante a caçada. Peritas, em particular, era um bom homem que se fora há muito. Na época tudo parecia simples demais, como se o caminho estivesse esperando. Agora havia mais opções do que ele desejava. Se conseguisse um posto de cônsul poderia ficar em Roma ou levar sua legião a uma nova terra em qualquer lugar do mundo. Alexandre fizera isso. O menino rei tinha levado seus exércitos para o leste, em direção ao sol nascente, a terras tão distantes que eram pouco mais do que lendas. Parte de Júlio queria a louca liberdade que tinha conhecido na África e na Grécia. Ninguém para persuadir ou a quem prestar contas, só um novo caminho a abrir.

Sorriu no escuro. A Espanha estava lá atrás e todas as suas preocupações, rotinas e reuniões tinham saído de seus ombros com a tempestade.

Enquanto se encostava na amurada, um ruído de passos trouxe mais um para jogar fora a última refeição. Júlio ouviu a exclamação de Adàn ao ver o caminho bloqueado por Ciro xingando, frustrado.

— O que é isso, um elefante? Abra espaço, grandão! — disse o jovem espanhol, e Ciro deu um risinho débil, satisfeito em compartilhar o sofrimento com alguém.

A chuva começou a cair em torrentes, e em algum lugar adiante a lança de um raio fez todos tremerem sob a luz súbita.

Sem ser visto, Júlio ergueu as mãos numa oração silenciosa dando as boas-vindas à tempestade. Roma estava em algum lugar adiante e ele se sentia vivo como não acontecia há anos.

A chuva se derramava do céu escuro sobre a cidade. Ainda que tentasse sentir conforto com seus dois guardas, Alexandria descobriu que estava com medo enquanto a noite caía cedo sob as nuvens. Sem o sol as ruas se esvaziavam rapidamente enquanto as famílias trancavam as portas e acendiam as luzes. As pedras das ruas sumiam rapidamente sob a lenta maré de imundície que redemoinhava e se grudava aos seus pés. Alexandria quase escorregou numa pedra escondida e fez uma careta ao pensar em pôr as mãos naquilo.

Não havia luz nas ruas, e cada figura escura parecia ameaçadora. As gangues de raptores estariam procurando vítimas fáceis para estuprar e roubar, e Alexandria só podia esperar que Tedo e seu filho conseguissem afastá-los.

- Fique perto, senhora. Agora não falta muito — disse Tedo à frente.

Ela mal podia ver a forma dele mancando, mas o som de sua voz ajudava a aplacar o medo.

O vento trouxe o cheiro de excremento humano num jorro súbito, forte, e Alexandria teve de engolir a saliva rapidamente enquanto engasgava. Era difícil não sentir medo. Tedo havia passado há muito seus melhores anos e um velho ferimento na perna lhe dava um passo manco que parecia quase cômico. Seu filho carrancudo jamais falava, e ela não sabia se podia confiar nele.

À medida que seguiam pelas ruas vazias Alexandria ouvia trancas sendo postas nas portas por onde passava enquanto as famílias tentavam se proteger. O bom povo de Roma não tinha proteção contra as quadrilhas, e somente quem tinha guardas ousava percorrer a cidade depois do anoitecer.

Um grupo apareceu numa esquina adiante, sombras que observavam as três figuras e fizeram Alexandria estremecer. Ouviu Tedo sacar sua faca de caça, mas eles teriam de atravessar a rua ou passar pelo grupo, e ela controlou a ânsia de correr. Sabia que morreria caso se afastasse de seus guardas, e apenas esse pensamento a manteve firme enquanto se aproximavam da esquina. O filho de Tedo veio para o lado, roçando seu braço mas sem trazer qualquer sensação de segurança.

— Estamos quase em casa — disse Tedo com clareza, mais para os homens que estavam no canto do que para Alexandria, que conhecia as ruas tão bem quanto ele. O velho parecia despreocupado e mantinha a faca comprida ao lado do corpo enquanto passavam pelos homens. Estava escuro demais para ver os rostos, mas Alexandria pôde sentir o cheiro de lã úmida e alho azedo. Seu coração martelou quando uma sombra esbarrou em seu ombro, fazendo-a tropeçar. O filho de Tedo a guiou para longe com a mão da espada, mostrando a lâmina a eles. Os homens não se moveram e Alexandria pôde sentir os olhares ameaçadores enquanto a situação pendia na balança. Bastaria um escorregão e eles atacariam, tinha certeza, com o coração batendo numa velocidade dolorosa.

Então haviam passado e Tedo segurou seu braço com força, e o filho fez o mesmo do outro lado.

— Não olhe para trás, senhora — murmurou Tedo baixinho.

Ela assentiu, mas sabia que ele não podia vê-la. Será que os homens estariam seguindo-os, trotando como cachorros selvagens? Estava louca para olhar por cima do ombro, mas Tedo a empurrava pelas ruas, afastando-a. O coxear dele estava piorando e a respiração se esforçava dolorosa enquanto deixavam a esquina para trás. O velho jamais falava a respeito, mas a perna tinha de ser esfregada com linimento a cada noite somente para sustentar seu peso de manhã.

Acima deles a chuva batia no telhado das casas apinhadas de pessoas que não ousariam sair às ruas à noite. Alexandria arriscou um olhar para trás, mas não pôde ver nada e desejou não ter feito isso. A raiva se agitou por dentro. Os senadores não precisavam temer como ela. Nunca se movimentavam sem guardas armados e os raptores os evitavam, reconhecendo a presença de uma ameaça maior do que poderiam enfrentar. Os pobres não tinham essa proteção, e mesmo à luz do dia havia ladrões e súbitas escaramuças que deixavam um ou dois mortos e o resto se afastando rigidamente, sabendo que não seriam apanhados e nem mesmo perseguidos.

— Estamos quase chegando, senhora — disse Tedo outra vez, agora a sério.

Alexandria escutou o alívio na voz dele e se perguntou o que teria acontecido se o grupo tivesse sacado as facas. Será que ele teria morrido por ela ou iria deixá-la à mercê da quadrilha? Impossível saber, mas calculou o custo de contratar outro guarda para se juntar a eles. Quem iria vigiá-lo?

Viraram mais duas vezes e chegaram à sua rua. As casas eram maiores do que no labirinto pelo qual tinham passado, mas a imundície era no mínimo mais densa, inchada pela chuva. Fez uma careta quando um borrifo daquilo espirrou por baixo da stola, acertando no joelho. Mais um par de sandálias arruinado. O couro jamais cheiraria a limpo outra vez, não importando o quanto ela o encharcasse.

Grunhindo silenciosamente em dor, Tedo chegou primeiro à porta e bateu. Esperaram em silêncio, os dois homens olhando para um lado e outro da rua, para o caso de alguém estar esperando para atacá-los. Isso tinha acontecido a uma pessoa há apenas algumas noites, numa rua não muito distante. Ninguém ousara vir ajudar.

Alexandria ouviu passos se aproximando do outro lado.

— Quem é? — perguntou a voz de Atia, e Alexandria soltou o ar lentamente, aliviada por estar em casa. Conhecia a mulher há anos, e apesar de ela viver na casa e cozinhar, Atia era a coisa mais próxima de uma família que tinha em Roma.

— Sou eu, Ati — disse ela.

A luz se derramou quando a porta foi aberta e eles entraram rapidamente Tedo esperando até ela estar fora da rua antes de ir atrás. Recolocou a trava com cuidado e finalmente embainhou a faca, com a tensão se esvaindo dos ombros.

— Obrigada a vocês dois — disse Alexandria.

O filho ficou em silêncio, mas Tedo grunhiu uma resposta, batendo com a mão na solidez da porta, como se para tranqüilizá-la.

— É para isso que nós somos pagos — disse ele.

Ela viu que a perna fraca do velho estava ligeiramente levantada, para não apoiar o peso, e seu coração se condoeu. Havia diferentes tipos de coragem.

— Vou trazer uma bebida quente depois de você cuidar de sua perna — falou.

Para sua surpresa ele ruborizou ligeiramente.

— Não precisa, senhora. Eu e o menino nos cuidamos. Talvez mais tarde. Alexandria assentiu, sem saber se deveria tentar de novo. Tedo parecia desconfortável com qualquer coisa que se aproximasse de uma oferta de amizade. Parecia não querer nada dela além do pagamento regular, e ela aceitava sua reserva. Mas esta noite ainda estava abalada e precisava de pessoas em volta.

— Vocês devem estar com fome, e há carne fria na cozinha. Eu ficaria satisfeita se comessem conosco quando estiverem prontos.

Atia mudou o peso do corpo sobre os pés e Tedo olhou para o chão durante um momento, franzindo a testa ligeiramente.

— Se a senhora tem certeza — disse por fim.

Alexandria ficou olhando os dois indo para seus aposentos. Olhou para Atia e sorriu diante da expressão séria da mulher. - Você é gentil demais com esses dois — disse Atia. — Há pouca coisa boa neles, tanto no pai quanto no filho. Se deixá-los comandar a casa eles vão se aproveitar, tenho certeza. Os serviçais não devem esquecer seu lugar, nem os que pagam por eles.

Alexandria deu um risinho, com o medo da noite começando a se esvair. Na teoria Atia também era uma serviçal, mas as duas nunca falavam disso. Alexandria a conhecera quando foi procurar um quarto limpo na cidade, e quando seu negócio de jóias cresceu Atia foi com ela, para cuidar da casa nova. A mulher era uma tirana com os outros serviçais, mas fazia com que o local parecesse um lar.

— Fiquei feliz por eles estarem comigo, Atia. Os raptores saíram cedo por causa da tempestade, e duas taças de vinho são um preço barato pela segurança. Venha, estou morrendo de fome.

Atia fungou para não responder, mas passou à frente dela no corredor enquanto iam para a cozinha.

 

O prédio do senado era preenchido com a luz de dezenas de lâmpadas que estalavam junto às paredes. O salão cheio de ecos estava quente e seco apesar do baixo tamborilar da chuva lá fora, e poucos dos homens presentes queriam pensar em se molhar no caminho para casa. A tarde fora dominada pelos relatórios sobre o orçamento da cidade, com várias votações para aprovar vastas quantias destinadas às legiões que mantinham a Pax Romana em terras distantes. As somas eram estarrecedoras, mas as reservas estavam suficientemente saudáveis para manter a cidade durante mais um ano. Um ou dois dos senadores mais idosos tinham deixado o calor acalentá-los num cochilo, e somente a tempestade lá fora os impedia de ir para casa fazer uma refeição tardia e cair na cama.

O senador Prando estava de pé no rostro, com o olhar varrendo as fileiras semicirculares de bancos, procurando apoio. Incomodava-o que Pompeu estivesse murmurando com um colega enquanto ele anunciava sua candidatura para um posto de cônsul. Fora a pedido de Pompeu que Prando concordara em apresentar o nome, e o mínimo que o sujeito poderia fazer era parecer atento.

— Se for eleito para o cargo pretendo reunir os fabricantes de moedas sob um único teto e estabelecer uma unidade monetária na qual os cidadãos possam confiar. Há muitas moedas que somente afirmam ser de ouro ou prata pura, e cada loja tem de ter suas próprias balanças para pesar o dinheiro que recebe. Uma única casa da moeda, pertencente ao senado, acabará com a confusão e restaurará a confiança.

Viu Crasso franzir a testa e imaginou se ele seria responsável por algumas daquelas moedas falsas que provocavam tanto dano. Não ficaria surpreso com isso.

- Se os cidadãos me derem o direito de ser cônsul agirei no interesse de Roma, restaurando a fé na autoridade do senado. — Prando parou de novo quando Pompeu levantou os olhos, e percebeu que tinha cometido um erro. Alguém deu um risinho e ele percebeu que ia ficando sem graça.

- ... fé maior no senado — acrescentou. — Respeito pela autoridade e pelo primado da lei. Justiça livre de suborno ou corrupção. — Parou de novo, com a mente se esvaziando. — Será uma honra servir. Obrigado — falou descendo do rostro e ocupando seu lugar na primeira fila, com alívio evidente. Um ou dois homens mais próximos deram-lhe tapinhas no ombro e Prando começou a relaxar. Virou-se para o filho, Suetônio, querendo ver como ele havia recebido o discurso, mas o rapaz estava olhando à frente, sem expressão.

Pompeu caminhou por entre os bancos e sorriu para o senador Prando ao passar por ele. Os que tinham começado as conversas sussurradas silenciaram quando o cônsul subiu ao rostro. Parecia relaxado e confiante, pensou Prando com um toque de irritação.

— Agradeço as palavras dos candidatos — disse Pompeu, pousando o olhar nos homens, num reconhecimento silencioso, antes de continuar. — Isso me dá esperança de que a cidade ainda pode encontrar pessoas dispostas a dedicar a vida a ela sem pensar em ganhos pessoais ou ambição. — Esperou que o risinho apreciativo parasse, inclinando-se para a frente e se apoiando nos braços. — A eleição dará aos meus construtores a chance de aumentar este local, e estou disposto a ceder o uso de meu novo teatro enquanto o trabalho continua. Acho que será adequado. — Ele sorriu e os outros responderam, sabendo que o teatro tinha o dobro do tamanho do prédio do senado e era pelo menos duas vezes mais luxuoso. Não houve objeções. — Além dos que temos aqui, qualquer outro candidato deve se apresentar antes da festa da Volturnália, dentro de dez dias. Informem-me antecipadamente, por favor. Antes de enfrentarmos a chuva devo anunciar uma reunião pública no fórum daqui a uma semana. O julgamento de Hospius será adiado por um mês. Então Crasso e eu faremos o discurso dos cônsules ao povo. Se algum dos outros candidatos quiser acrescentar sua voz à nossa, fale comigo antes de eu sair esta noite.

Pompeu captou o olhar de Prando por um breve momento antes de ir em frente. Tudo fora combinado e Prando sabia que sua candidatura seria reforçada pela associação com os homens mais experientes. Era melhor treinar o discurso. Apesar de todas as promessas de Pompeu, a multidão de Roma podia ser uma platéia difícil.

— O dia está terminando, senadores. Levantem-se para o juramento — disse Pompeu, erguendo a voz para ser ouvido acima da chuva que castigava a cidade.

A tempestade durou três dias, varrendo os navios espalhados em direção ao destino. Quando passou, a frota que transportava a Décima se juntou de novo lentamente, cada navio se transformando numa colméia de atividade enquanto eram feitos reparos nas velas e remos, e o alcatrão era esquentado para pingar entre as tábuas largas dos conveses, onde a água tinha vazado. Como Brutus previra, Júlio sinalizou para a frota ancorar fora de Ostia, e os barcos pequenos se moveram entre os navios, levando suprimentos e carpinteiros e se certificando de que suportariam qualquer exame. O sol secava os conveses e a Décima lavou os porões, limpando o cheiro de vômito com água do mar e graxa branca.

Quando as âncoras foram puxadas e limpas da argila, os navios foram para o porto, com Júlio na frente do primeiro. Estava de pé com um dos braços envolvendo a proa alta, bebendo a visão da pátria. Ao olhar para trás, por cima do ombro, viu as asas brancas dos navios a remo formando uma ponta de flecha atrás dele, com as velas dos outros fechando o cortejo. Não poderia colocar os sentimentos em palavras caso lhe perguntassem, e não tentou examiná-los. As dores de cabeça tinham desaparecido ao vento fresco do mar, e ele havia queimado incenso num braseiro agradecendo aos deuses pela passagem segura em meio à tempestade.

Sabia que a Décima poderia montar acampamento permanente nos campos além do porto enquanto ele pegava a estrada para a cidade. Os soldados estavam tão empolgados quanto os oficiais diante da chance de ver familiares e amigos de novo, mas não haveria licença até que o acampamento fosse montado em segurança. Cinco mil homens era um número grande demais para ir até sua propriedade. Simplesmente alimentar um número assim causaria problema, e os preços eram melhores junto ao cais. Como gafanhotos, se ele deixasse, a Décima poderia comer o ouro que trouxera. Pelo menos os soldados estariam gastando os próprios salários nas estalagens e bordéis da cidade.

O pensamento em ver sua propriedade no campo trouxe uma mistura de sofrimento e empolgação. Veria como sua filha tinha crescido e caminharia pelo rio que seu pai tinha represado para passar pelas terras. O sorriso de Júlio desapareceu ao pensar no pai. O túmulo da família ficava na estrada para a cidade, e antes de qualquer coisa teria de ver as sepulturas daqueles que deixara para trás.

 

Crasso respirou o vapor da piscina enquanto se enfiava na água até a cintura. O encosto de mármore estava gélido de encontro aos seus ombros. Sentou-se no degrau de baixo e o contraste era exótico. Sentia os nós de tensão no pescoço e balançou a mão para chamar um escravo dos banhos para massageá-los enquanto conversava.

Os outros homens na piscina eram todos seus clientes, e mais leais do que o estipêndio mensal que recebiam. Crasso fechou os olhos quando os polegares duros do escravo começaram a despertar seus músculos e suspirou de prazer antes de falar.

— Meu mandato de cônsul marcou pouco na cidade, senhores. — Deu um sorriso torto enquanto os homens ao lado se remexiam consternados. Antes que pudessem protestar, continuou: — Pensei que teria feito mais. Há muito poucas coisas para as quais posso apontar e dizer: "Isto é meu, somente meu." Parece que as renegociações comerciais não são o que agita o sangue dos nossos cidadãos.

Sua expressão se tingiu de amargura enquanto olhava para eles e traçava um redemoinho com um dedo na superfície da água.

— Ah! Eu lhes dei pão quando disseram que não tinham. Mas quando os pães acabaram nada havia mudado. Eles tiveram alguns dias de corrida pagos com minha bolsa e viram um templo ser restaurado no fórum. Mas imagino se irão se lembrar deste ano, ou mesmo se irão se lembrar de mim enquanto cônsul.

- Nós somos seus defensores — disse um dos homens, e o sentimento foi rapidamente ecoado pelos outros.

Crasso assentiu, expirando seu cinismo no vapor.

- Eu não venci guerras para eles, vejam bem. Em vez disso cortejam

Pompeu e o velho Crasso é esquecido.

Os clientes não ousavam se encarar mutuamente e ver a verdade das palavras refletidas nos rostos. Crasso ergueu os olhos diante do embaraço dos outros antes de prosseguir, com a voz se firmando cheia de objetivo.

— Não quero que meu ano seja esquecido, senhores. Comprei mais um dia na pista de corridas para eles, o que é um começo. Quero que os que me pagam aluguel tenham a primeira opção de ingressos, e tentem conseguir famílias. — Ele parou para pegar uma taça de água fresca atrás da cabeça e o escravo interrompeu a massagem para entregá-la nos dedos ossudos. Crasso sorriu para o rapaz antes de continuar. — Os novos sestércios que têm minha efígie estão prontos. Precisarei de todos vocês para cuidar da distribuição, senhores. Eles só irão para as casas mais pobres, e não mais de um para cada homem e mulher. Vocês terão de usar guardas e levar apenas pequenas quantias de cada vez.

— Posso mencionar uma idéia, cônsul? — perguntou um homem.

— Claro, Pareu — respondeu Crasso erguendo uma sobrancelha.

— Contrate homens para limpar as ruas. — As palavras se derramaram rapidamente diante do olhar do cônsul. — Boa parte da cidade está fedendo e as pessoas iriam lhe agradecer por isso.

Crasso riu.

— Se eu fizer isso elas vão parar de jogar a imundície nas ruas? Não. Vão dizer: deixe para lá, porque o velho Crasso virá com baldes para limpar tudo de novo. Não, meu amigo, se querem ruas limpas elas devem pegar água e panos e limpá-las. Se o fedor ficar ruim demais no verão elas podem ser obrigadas a fazer isso, o que vai lhes ensinar a ser limpas. — Crasso viu o desapontamento do sujeito e falou com gentileza: —Admiro um homem que pensa no melhor para nosso povo, mas há muitos que não têm o bom senso de não sujar o lugar onde pisam. Não há sentido em cortejar a boa vontade de gente assim. — Crasso riu baixinho diante do pensamento, depois ficou quieto. — Por outro lado, se fosse popular... não. Não serei conhecido como Crasso, o limpador de merda. Não.

— E as quadrilhas de rua, então? — continuou Pareu teimosamente. — Elas estão fora de controle em algumas áreas. Algumas centenas de homens com permissão de acabar com as gangues fariam mais pela cidade do que...

— Você quer que uma quadrilha controle as outras? E quem vai manter essa nova quadrilha sob controle? Você pediria um grupo ainda maior para cuidar do primeiro? — Crasso fez "tsk tsk", achando divertida a insistência do sujeito.

— Uma centúria de legião poderia... — gaguejou ele.

— Sim, Pareu, uma legião poderia fazer muitas coisas, mas eu não tenho uma sob meu comando, como talvez você deva ser lembrado. Gostaria que eu implorasse por mais soldados de Pompeu para patrulhar as áreas pobres? Ele cobra fortunas só para ter guardas nas corridas, e já estou farto de incrementar a reputação dele com o meu ouro. — Crasso balançou a mão e derrubou a taça de metal fazendo-a girar pelos ladrilhos da casa de banhos. — Por ora chega, senhores. Vocês têm suas tarefas e eu lhes darei outras amanhã. Deixem-me.

Os homens saíram da piscina sem dizer nada, afastando-se rapidamente do chefe irascível.

Júlio gostou de deixar para trás o barulho do porto enquanto pegava com Otaviano a estrada para a cidade. Com Brutus supervisionando o descarregamento de homens e equipamentos, o trabalho seria terminado logo. Os centuriões tinham sido escolhidos pessoalmente e dava para confiar que mantivessem os homens sob rédea curta até que os primeiros grupos tivessem permissão de tirar licença.

Olhou para Otaviano e notou como o rapaz montava bem. O treinamento com os extraordinarii havia domado sua selvageria e agora ele montava como se tivesse nascido sobre a sela, e não como um moleque de rua que só vira um cavalo depois dos nove anos de idade.

Guiavam as montarias pelas pedras gastas da estrada, desviando-se de carroças e escravos que a percorriam em tarefas desconhecidas. Grãos e vinho, pedras preciosas, peles, ferramentas de ferro e bronze, mil outras coisas se destinavam ao bucho da cidade lá adiante. Os cocheiros estalavam os chicotes com habilidade sobre os bois e jumentos, e Júlio sabia que as caravanas se estenderiam desde o mar até o coração dos mercados.

As batidas suaves dos cascos davam sono, mas Júlio estava preso de uma tensão que fazia seus ombros doerem. O túmulo da família ficava do lado de fora da cidade, e ele seguia olhando em frente, à espera do primeiro vislumbre.

O sol se elevava em direção ao meio-dia quando ele sentiu que estava pronto e bateu com os calcanhares nos flancos do capão. Otaviano acompanhou seu passo instantaneamente e os dois dispararam sobre as pedras, seguidos por gritos e assobios de apreciação de parte dos mercadores que iam ficando para trás.

O túmulo era simples, de mármore escuro, um bloco retangular de pedra pesada que se agachava na lateral do caminho com a grande porta da cidade a menos de um quilômetro e meio adiante. Júlio estava suando ao desmontar, guiando o cavalo até a grama que crescia entre os túmulos, luxuriante devido aos mortos romanos.

— E este — sussurrou deixando as rédeas caírem das mãos. Leu os nomes gravados na pedra escura e fechou os olhos por um momento ao chegar ao da mãe. Em parte havia esperado isso, mas a realidade de saber que as cinzas dela estavam ali provocou uma dor que o surpreendeu, marejando os olhos.

O nome de seu pai ainda estava nítido depois de mais de uma década, e Júlio baixou a cabeça ao tocar as letras com as pontas dos dedos, acompanhando as linhas.

O terceiro nome ainda parecia tão recente quanto a dor que ele sentiu ao olhá-lo. Cornélia. Escondida do sol e de seu abraço. Não podia segurá-la de novo.

— Está com o vinho, Otaviano? — perguntou depois de um longo tempo. Tentou ficar ereto, mas a mão que tinha posto na pedra parecia grudada, e ele não conseguia soltá-la. Ouviu Otaviano remexer nas bolsas e sentiu a argila fria da ânfora que tinha lhe custado mais do que um mês do salário de um dos seus homens. Não existia vinho melhor do que o Falerno, mas Júlio queria o mais fino para homenagear aqueles que mais amava.

Em cima do túmulo uma tigela rasa fora esculpida no mármore, levando a um buraco não maior do que uma moeda de cobre. Enquanto Júlio quebrava o lacre do vinho imaginou se Clódia já havia levado sua filha para alimentar os mortos. Não achava que a velha teria se esquecido de Cornélia, assim como ele.

O vinho escuro gorgolejou na tigela e Júlio pôde ouvi-lo pingando lá dentro.

— Esta taça é para o meu pai, que me fez forte — sussurrou. — Esta para minha mãe, que me deu seu amor. Esta última para minha mulher. — Parou hipnotizado pela bebida que desaparecia num redemoinho entrando no túmulo. — Cornélia, que amei e ainda reverencio.

Quando finalmente devolveu a ânfora a Otaviano seus olhos estavam vermelhos de chorar.

— Amarre bem o gargalo, garoto. Há outra sepultura para ver antes de chegarmos à propriedade, e Tubruk quererá mais do que apenas uma taça. —Júlio se obrigou a sorrir e sentiu parte da tristeza ficar mais leve enquanto montava de novo. Os cascos do animal fizeram barulho suficiente para romper o silêncio da fileira de túmulos que se estendia até longe.

Aproximou-se de sua propriedade com uma espécie de medo roendo por dentro. Era um lugar de muitas lembranças e muita dor. O olhar de sua infância notou os juncos ásperos em meio às plantações que lutavam para crescer e viram um sutil ar de decadência em cada trilha com mato e cada parede mal consertada. O zumbido baixo das colméias podia ser ouvido, e ele sentiu os olhos ardendo diante daquele som.

As paredes brancas ao redor das construções principais provocaram uma dor. A tinta estava manchada com trechos nus e ele sentiu uma pontada de culpa pela falta de contato com elas. A casa fizera parte de cada ferimento na memória, e nenhuma carta viera de sua mão para sua filha, ou Clódia. Puxou as rédeas contendo a montaria, cada passo trazendo mais dor.

Ali estava o portão de onde vigiava a chegada do pai da cidade. Mais além estaria o estábulo onde tinha provado o primeiro beijo e o pátio onde quase morreu nas mãos de Rênio, há anos. Apesar da aparência meio arruinada, tudo ainda era igual onde importava, uma âncora nas mudanças de sua vida. No entanto daria tudo para que Tubruk viesse recebê-lo. Ou que Cornélia estivesse ali.

Parou diante do portão e esperou em silêncio, perdido em lembranças que agarrava junto ao peito como se pudessem permanecer reais até que o portão fosse aberto e tudo mudasse de novo.

Um homem que ele não conhecia apareceu acima do muro e Júlio sorriu ao pensar na escada oculta. Conhecia-a melhor do que qualquer coisa no mundo. Sua escada. Sua casa.

- O que o senhor deseja? — perguntou o homem, mantendo a voz neutra. Ainda que Júlio usasse sua armadura mais simples, mesmo assim havia uma aura de autoridade na avaliação silenciosa que fazia dos muros, e o homem sentiu isso.

— Vim ver Clódia e minha filha.

Os olhos do homem se arregalaram ligeiramente, surpresos, antes de desaparecer para sinalizar aos que estavam dentro.

O portão se abriu lentamente e Júlio entrou no pátio, com Otaviano atrás. À distância escutou alguém chamando Clódia, mas o momento de lembrança se manteve e ele respirou fundo.

Seu pai tinha morrido defendendo aquele muro. Tubruk o havia carregado nos ombros pelo portão. Júlio estremeceu ligeiramente apesar do calor do sol. Havia fantasmas demais naquele lugar. Imaginou se algum dia poderia se sentir realmente confortável ali, com cada canto lembrando-o do passado.

Clódia saiu correndo de uma construção e se imobilizou ao vê-lo. Enquanto ele desmontava, ela fez uma reverência profunda. A idade não lhe fora gentil, pensou Júlio enquanto a segurava pelos ombros e a abraçava. Ela sempre fora uma mulher grande e capaz, mas o rosto estava marcado por mais coisas do que o tempo. Se Tubruk tivesse sobrevivido ela iria se casar com ele, mas essa chance de felicidade fora roubada pelas mesmas facas que tinham levado Cornélia.

Enquanto ela se levantava para encará-lo, Júlio viu novas lágrimas, e a visão pareceu trazer sua tristeza particular mais para perto da superfície. Os dois haviam compartilhado uma perda, e ele não se sentiu preparado para a crueza dos sentimentos enquanto os anos se desvaneciam e os dois estavam de novo parados no pátio enquanto a rebelião de escravos devastava o sul. Ela prometera ficar e criar sua filha, as últimas palavras que os dois tinham trocado antes de Júlio partir.

— Foi muito tempo sem notícias suas, Júlio. Eu não sabia para onde mandar a notícia sobre sua mãe — disse Clódia. Novas lágrimas escorreram em suas bochechas enquanto ela falava, e Júlio a apertou com força.

— Eu... sabia que isso ia acontecer. Foi difícil? Clódia balançou a cabeça, enxugando os olhos.

— Ela falou de você, no final, e sentiu conforto com Júlia. Não houve dor. Nenhuma.

— Fico feliz — respondeu Júlio baixinho. Sua mãe fora uma figura distante durante tanto tempo que ele ficou surpreso ao ver como lamentava ter perdido a chance de vê-la, sentar-se à cama dela e contar todos os detalhes da Espanha e das batalhas que vira. Quantas vezes viera lhe contar o que tinha feito da vida? Mesmo quando a doença havia lhe roubado a razão ela parecia ouvi-lo. Agora não havia ninguém. Nem o pai para quem correr, nem Tubruk para rir de seus erros, ninguém que o amava sem limites restava no mundo. Sentia dor por todos eles. — Onde está Júlia? — perguntou dando um passo atrás.

O rosto de Clódia mudou ligeiramente enquanto o orgulho e o amor inundavam suas feições.

— Cavalgando. Ela leva seu pônei para a floresta sempre que pode. Parece Cornélia, Júlio. O mesmo cabelo. Algumas vezes, quando ri, é como se trinta anos tivessem sumido e ela estivesse ali, de novo comigo. — Clódia viu a tensão nele e entendeu mal. — Eu nunca a deixo cavalgar sozinha. Ela está com dois serviçais, pela segurança.

— Ela vai me reconhecer? — Subitamente Júlio se sentiu desconfortável. Olhou para o portão, como se falar de Júlia pudesse trazê-la à vista. Lembrava-se apenas um pouquinho da filha que deixara aos cuidados de Clódia. Apenas uma menina frágil que ele havia consolado enquanto o corpo da mãe era arrumado no escuro. A lembrança das mãos minúsculas em volta de seu pescoço era estranhamente poderosa.

— Vai, tenho certeza. Ela vive pedindo histórias sobre você, e eu contei todas que pude. — O olhar de Clódia foi para além dele, até Otaviano, que estava parado rigidamente junto aos cavalos. — Otaviano? — perguntou ela, pensando nas mudanças no rapaz.

Antes que ele pudesse resistir, Clódia correu e lhe administrou um abraço esmagador. Júlio riu do desconforto do rapaz.

- Estamos com poeira na garganta, Clódia. Vai nos manter aqui de pé o dia inteiro?

Clódia deixou Otaviano escapar.

- Sim, claro. Entregue os cavalos a um dos garotos ali e eu vou levá-los à cozinha. Agora somos apenas alguns escravos e eu. Sem os papéis em seu nome os mercadores não negociam comigo. Sem Tubruk para administrar, tem sido...

Júlio ficou ruborizado enquanto a mulher ficava outra vez à beira das lágrimas. Não tinha cumprido seu dever para com ela, percebeu, pensando na própria cegueira. Clódia estava fazendo pouco dos anos duros e, para sua vergonha, Júlio poderia ter aliviado o fardo. Deveria ter substituído Tubruk antes de partir e assinado um documento passando a ela o controle das verbas. De repente Clódia pareceu sem graça ao pensar que Júlio veria a casa que ela passara a ver como sua, e ele pôs a mão em seu braço para tranqüilizá-la.

— Eu não poderia ter pedido mais — disse ele.

Parte da tensão em Clódia desapareceu. Enquanto os cavalos eram levados para ser escovados e comer, Clódia entrou na casa e eles foram atrás, Júlio engolindo em seco enquanto passavam do pátio para os cômodos de sua infância.

A refeição que Clódia trouxe foi interrompida por um grito agudo e doce do lado de fora quando o barulho de cascos marcou a volta de Júlia. Com a boca cheia de pão e mel, Júlio saltou de pé e saiu ao sol. Tinha pensado que iria deixar que ela entrasse e a receberia formalmente, mas o som de sua voz suplantou a paciência e ele não pôde esperar.

Ainda que tivesse vivido apenas dez verões, a menina era a imagem da mãe, e o cabelo escuro era usado comprido, numa trança que descia pelas costas. Júlio riu ao vê-la pulando do pônei e se movimentando ao redor do animal, puxando espinhos e carrapichos da crina usando os dedos como pente.

Sua filha levou um susto ao ouvir a voz estranha e olhou em volta para ver quem ousava rir dela em sua própria casa. Quando seu olhar encontrou de Júlio, ela franziu a testa, com suspeitas. Júlio a observou atentamente enquanto a menina se aproximava, a cabeça inclinada de lado numa interação silenciosa, como ele se lembrava de Cornélia fazendo.

Clódia havia saído para testemunhar o encontro e sorriu para os dois com orgulho materno.

— Este é o seu pai, Júlia — disse ela. A menina se imobilizou no gesto de espanar poeira da manga. Olhou para Júlio com expressão vazia.

— Eu me lembro de você — falou lentamente. — Veio para ficar?

— Durante um tempo — respondeu Júlio com seriedade igual. A menina pareceu digerir isso, e assentiu.

— Vai comprar um cavalo para mim? Estou ficando grande demais para o velho Gibi e Récido diz que eu me sairia bem numa montaria com um pouco mais de espírito.

Júlio piscou para ela e parte do passado pareceu se dissolver em sua diversão.

— Vou achar uma beldade para você — prometeu, recompensado por um sorriso que fez seu coração martelar pela mulher que ele havia perdido.

Alexandria se afastou do calor da forja observando Tabbic retirar o copo de ouro derretido e posicioná-lo sobre os furos na argila.

— Mão firme agora — alertou ela desnecessariamente enquanto Tàbbic começava a girar o comprido cabo de madeira sem qualquer tremor. Os dois davam ao metal líquido o respeito merecido enquanto sibilava e gorgolejava dentro do molde. Um simples respingo queimaria a carne até o osso, e cada parte do processo tinha de ser lento e cuidadoso. Alexandria assentiu satisfeita enquanto o vapor assobiava saindo dos buracos destinados ao ar, e o gorgolejo profundo começou a subir de tom até a estrutura estar cheia. Quando o ouro tivesse esfriado a argila seria cuidadosamente removida para revelar uma máscara tão perfeita quanto o rosto da mulher que ela representava. A pedido de um senador, Alexandria realizara a tarefa desagradável de fazer um molde da esposa dele apenas algumas horas depois da morte. Três outras máscaras tinham se seguido em argila, enquanto Alexandria alterava as linhas do rosto para afastar a devastação provocada pela doença. Com cuidado infinito reconstruíra o nariz onde a doença comera a carne, e finalmente o homem chorou ao ver a imagem que a morte lhe havia roubado. Em ouro ela seria preservada jovem para sempre, muito depois do homem que a amava também virar cinzas.

Alexandria encostou a mão na argila, sentindo o calor contido lá dentro e imaginando se algum homem iria amá-la o bastante para manter sua imagem por toda a vida.

Perdida em pensamentos não viu Brutus entrar na oficina, e somente o silêncio enquanto ele a olhava a fez se virar, sentindo algo ao qual não poderia dar um nome.

— Abra o vinho bom e tire a roupa — disse Brutus. Estava com os olhos fixos nela e nem notou Tàbbic ali parado, boquiaberto. —Voltei, garota. Júlio voltou e Roma estará de cabeça para baixo quando nós terminarmos.

 

Brutus deu um tapinha na coxa de Alexandria, disfrutando da sensação de seu corpo enquanto cavalgavam através do crepúsculo até a propriedade. Depois de passar o dia na cama com ela, sentia-se mais relaxado e à vontade com o mundo do que conseguia lembrar. Queria que todas as recepções fossem dessa qualidade.

Não acostumada a cavalgar, Alexandria o apertava com força e Brutus podia sentir as chicotadas dos cabelos dela batendo em seu pescoço nu, algo que achou extraordinariamente erótico. Ela havia ficado forte enquanto ele estava longe, o corpo rijo de saúde e força. O rosto também tinha se alterado sutilmente e a testa era marcada por uma cicatriz provocada por um es-pirro de metal quente, quase na forma de uma lágrima.

A capa preta de Alexandria estalou em volta dele por um instante ao vento, e ele agarrou a borda, puxando-a para perto. Ela envolveu seu peito com os braços e respirou fundo. O ar era quente enquanto a terra devolvia o calor do sol e Brutus só desejava haver alguém ali para testemunhar como os dois deviam estar magníficos atravessando os campos até a propriedade.

Viu-a de longe, a luz das tochas se fundindo para tornar os muros uma coroa de luz na escuridão que aumentava. No fim diminuiu o passo e por um momento pensou que era Tubruk que estava esperando-o perto do portão aberto.

Júlio ficou quieto olhando-os reduzir a velocidade até o caminhar, adivinhando os pensamentos de Brutus e entendendo-os. Deixou de lado a impaciência e agradeceu silenciosamente a chegada do amigo. Era certo que ele estivesse ali, e os dois compartilharam um sorriso particular de lamento enquanto Brutus se virava na sela para ajudar Alexandria a descer e depois pulava no chão ao lado dela.

Júlio beijou Alexandria no rosto.

- Sinto-me honrado em tê-la na minha casa. Os serviçais vão levá-la para dentro enquanto eu converso com Brutus.

Os olhos de Alexandria brilhavam, pensou Júlio, imaginando se a mente dela, como a sua, costumava retornar a uma noite específica.

Quando ela havia entrado Júlio respirou fundo e deu um tapa afetuoso no ombro de Brutus.

— Não consigo acreditar que Tubruk não está aqui — disse olhando para os campos.

Brutus olhou para ele em silêncio por um momento, depois se abaixou e pegou um punhado de terra.

— Você se lembra de quando ele o fez segurar isso?

Júlio assentiu, copiando o gesto. Brutus ficou satisfeito ao vê-lo sorrir enquanto deixava o pó escorrer na brisa.

— Alimentada com o sangue dos que se foram antes de nós—disse Júlio.

— E com o nosso sangue. Ele era um bom homem. — Brutus deixou seu punhado escorrer e bateu as palmas. — Você terá de arranjar alguém para arar os campos de novo. Nunca vi esse lugar tão malcuidado. Mas agora você está de volta.

Júlio franziu a testa.

— Eu ia perguntar para onde você tinha desaparecido, mas vejo que achou algo melhor do que cuidar do acampamento em Ostia.

Júlio não conseguia se obrigar a ficar com raiva do amigo, mas tinha pretendido deixar a questão bastante clara.

- Rênio está com tudo sob controle e eu fiz uma coisa boa. Alexandria me disse que haverá um debate público amanhã no fórum, e vim direto lhe contar. Eu sei. Servília me disse assim que ficou sabendo. De qualquer modo fico feliz por você ter vindo. Eu teria mandado chamá-lo mesmo que você não tivesse me desobedecido.

Brutus olhou para o amigo, tentando avaliar a seriedade com que estava sendo criticado. A tensão e a exaustão do período passado na Espanha tinham sumido do rosto de Júlio, e ele parecia mais jovem do que há muito tempo. Brutus esperou um momento.

— Estou perdoado? — perguntou.

— Está. Agora entre e venha conhecer minha filha. Há um quarto pronto para você e quero que fique comigo para planejar uma campanha. Você é o último a chegar.

Caminharam juntos pelo pátio, e o único som eram os estalos das lâmpadas ao longo da parede. A brisa passou por eles um momento, quando o portão foi fechado, e Brutus sentiu os pêlos dos braços se levantando, fazendo-o estremecer. Júlio abriu uma porta para um cômodo cheio de vida e conversas e ele abaixou a cabeça para acompanhá-lo, sentindo os primeiros toques de empolgação.

Júlio tinha convocado todos, viu Brutus enquanto olhava ao redor e cumprimentava os amigos. Com Alexandria, todo mundo de quem ele gostava se encontrava naquela sala, e todos tinham os olhos brilhantes de conspiradores animados, planejando como governar uma cidade. Servília, Caberá, Domício, Ciro, Otaviano, todos os que Júlio tinha trazido para seu lado. O único estranho era o jovem espanhol que viera com eles como escriba de Júlio. Adàn olhava de um rosto para o outro ao mesmo tempo que Brutus, e quando os olhares dos dois se encontraram Brutus assentiu, cumprimentando-o como Júlio iria querer.

Brutus viu que Alexandria estava de pé, rígida, entre eles, e foi instintivamente para perto dela. Júlio captou o movimento e entendeu.

— Precisamos de você aqui, Alexandria. Ninguém mais viveu na cidade nos últimos anos, e quero esse conhecimento.

Ela ruborizou lindamente enquanto relaxava e Brutus apertou sua nádega, sem ser visto pelos outros. A mãe dele o olhou incisivamente enquanto Alexandria dava um tapa em sua mão, mas Brutus apenas sorriu para ela antes de se virar de novo na direção de Júlio.

— Onde está essa sua filha? — perguntou Brutus. Sentia-se curioso para ver a menina.

— Deve estar no estábulo. Ela monta como um centauro, sabe? Vou chamá-la antes de ela ir dormir. — Por um instante o orgulho tocou suas feições enquanto Júlio pensava na filha, e Brutus sorriu com ele. Em seguida Júlio pigarreou, olhando para todos.

- Agora quero decidir o que vou fazer amanhã de manhã, quando entrar no fórum e me declarar candidato a cônsul.

Todo mundo tentou falar ao mesmo tempo e a batida na porta não foi ouvida nos primeiros instantes. Clódia a abriu e sua expressão provocou silêncio quando a olharam.

- Está aí... eu não pude impedi-lo — começou ela.

Júlio a segurou pelo braço.

— Quem é?

Ele se imobilizou ao ver a figura atrás dela e recuou com Clódia, para deixar a porta se abrir totalmente.

Crasso estava ali parado, vestido numa toga de branco ofuscante contra a pele morena. Um broche de ouro brilhava no ombro, e Alexandria piscou ao reconhecer seu próprio trabalho, imaginando se seria coincidência ou prova sutil de que ele entendia os relacionamentos naquela sala.

— Boa noite, César. Creio que seu posto de tribuno não foi revogado. Devo me dirigir a você pelo título, agora que deixou para trás a pretoria na Espanha?

Júlio fez uma reverência com a cabeça, lutando para esconder a raiva que sentia pela entrada casual do sujeito em sua casa. A mente girou com pensamentos súbitos. Haveria soldados lá fora? Se houvesse, Crasso acharia mais difícil sair do que entrar, jurou em silêncio. Soltou o braço de Clódia e ela saiu da sala rapidamente, sem olhar para trás. Ele não a culpou por deixar Crasso entrar. Apesar de ela ter administrado a casa como a dona, tinha sido escrava durante muitos anos para não se amedrontar com um dos homens mais poderosos do senado. Nenhuma porta poderia ser trancada diante de um cônsul de Roma.

Crasso viu a tensão no jovem à frente e continuou:

Fique tranqüilo, Júlio. Eu sou amigo desta casa, como fui de Mário,

antes de você. Acha que poderia desembarcar uma legião em meu litoral sem que eu ficasse sabendo? Imagino que até mesmo o débil círculo de espiões de Pompeu já sabe que você voltou. — Crasso viu Servília na sala e baixou a cabeça ligeiramente, num cumprimento.

Você é bem-vindo — disse Júlio, tentando relaxar. Sabia que tinha hesitado por tempo demais e suspeitava de que o velho tinha desfrutado cada momento da confusão que criara.

— Fico feliz. Bom, se alguém arranjar outra cadeira eu me junto a vocês, com sua permissão. Você precisará de um discurso forte amanhã, se pretende conseguir um manto de cônsul para o ano que vem. Pompeu não ficará satisfeito ao saber disso, mas esta é a doçura do molho.

— Não existem segredos que você não conheça? — perguntou Júlio, começando a se recuperar.

Crasso sorriu.

— Confirmado por sua própria boca! Pensei que não poderia haver outro motivo para você deixar o posto de pretor. Imagino que tenha nomeado um substituto antes de navegar para Roma, não é?

— Nomeei, claro. — Para sua surpresa, Júlio percebeu que estava gostando da conversa.

Crasso pegou a cadeira que Otaviano tinha desocupado para ele e se acomodou, usando os dedos compridos para ajeitar impecavelmente a toga. A tensão na sala começou a se dissipar enquanto eles o aceitavam em seu meio.

— Fico pensando: você simplesmente achou que atravessaria o fórum e subiria à plataforma dos oradores? — perguntou Crasso.

Júlio o olhou inexpressivamente.

— Por que não? Servília me disse que Prando irá falar. Eu tenho tanto direito quanto ele.

Crasso sorriu, balançando a cabeça.

— Acredito que você teria feito isso. É melhor ir a meu convite, Júlio. Pompeu não vai convidá-lo a se juntar a nós, afinal de contas. Estou ansioso para ver o rosto dele quando você colocar o nome na lista.

Ele aceitou um copo de vinho e tomou um gole, encolhendo-se ligeiramente.

— Percebe que Pompeu pode afirmar que você abandonou o dever ao voltar antes do fim de seu mandato na Espanha? — perguntou inclinando-se à frente.

— Como tribuno sou imune a um processo — respondeu Júlio rapidamente.

— A não ser que seja um crime de violência, meu amigo, mas acho que desertar de seu posto é bastante seguro. Pompeu sabe que você está protegido mas como isso vai parecer ao povo? De agora até a eleição, Júlio, você não somente deve agir bem, mas ser considerado como alguém que age bem, caso contrário os votos de que precisa serão desperdiçados em outro candidato.

Crasso olhou para os outros em volta e sorriu quando seu olhar encontrou o de Alexandria. Por um instante seus dedos acariciaram o broche de ouro no ombro, e ela soube que ele a havia reconhecido e experimentou um arrepio de perigo. Pela primeira vez, desde que Brutus a havia encontrado na oficina, percebeu que Júlio coletava tanto amigos quanto inimigos, e ela ainda não tinha certeza do que Crasso era.

- O que você ganha me ajudando? — perguntou Júlio de repente.

— Você tem uma legião que eu ajudei a reconstruir, Júlio, quando ela se chamava Primogênita. Fui... persuadido de que é necessário ter homens na cidade. Homens treinados que não possam ser vítimas de suborno nem tentados pelas quadrilhas de raptores.

— Está me cobrando uma dívida? — respondeu Júlio, retesando-se para recusar.

Crasso se virou para Servília e trocou um olhar de compreensão que Júlio não pôde avaliar.

— Não. Abri mão de qualquer dívida há muito tempo, para mencionar. Estou pedindo livremente sua ajuda, e em troca meus clientes ajudarão a espalhar seu nome pela cidade. Você tem apenas cem dias, amigo. Mesmo com minha ajuda, é pouco tempo.

Ele viu Júlio hesitar e continuou:

— Eu fui amigo de seu pai e de Mário. É demais pedir a confiança do filho?

Servília tentou fazer com que Júlio a olhasse. Ela conhecia Crasso melhor do que ninguém na sala e esperava que Júlio não fizesse a tolice de recusar. Observou o amado com uma espécie de dor enquanto esperava sua resposta.

-— Obrigado, cônsul — disse Júlio com formalidade. — Eu não me esqueço dos amigos.

Crasso sorriu com prazer genuíno.

Com minha riqueza... — começou ele. Júlio balançou a cabeça.

- Eu tenho o bastante para isso, Crasso, mas agradeço, pela primeira vez Crasso olhou o jovem general com o início de um respeito verdadeiro. Estivera certo em seu julgamento, pensou. Poderia trabalhar com ele e enfurecer Pompeu ao mesmo tempo.

— Então vamos brindar à sua candidatura? — perguntou levantando sua taça.

Com a confirmação de Júlio os outros pegaram o vinho e levantaram as taças desajeitadamente enquanto esperavam. Por um momento Júlio lamentou ter acabado com o Falerno, mas pensou melhor. Tubruk poderia fazer um brinde a eles, onde quer que estivesse.

Júlia se levantou na escuridão do estábulo, desfrutando o conforto quente trazido pelos cavalos. Caminhou pelas baias dando tapinhas nos focinhos, falando baixo com cada um deles. Parou diante do enorme capão em que o amigo de seu pai tinha trazido aquela mulher. Era estranho usar a palavra. Seu pai. Quantas vezes Clódia havia lhe contado sobre o homem corajoso que fora mandado para longe da cidade pelo capricho de um cônsul? Ela havia criado imagens dele, dizendo a si mesma que o pai estava preso pelos laços do dever e não podia voltar. Clódia sempre dizia que Júlio ia voltar e que tudo ficaria bem, mas agora que ele estava aqui Júlia o achava um tanto amedrontador. Assim que ele pôs os pés na poeira do pátio, tudo mudou e a casa tinha um novo dono.

Ele parecia sério demais, pensou a menina enquanto roçava o nariz no focinho de veludo do cavalo. O animal relinchou baixo em resposta e fez pressão contra ela, soprando ar quente em seu rosto. Júlio não era tão velho quanto ela esperava. Tinha-o imaginado com cabelos grisalhos nas têmporas e a calma dignidade de um membro do senado.

O ar noturno trouxe um jorro de barulhos de onde as pessoas novas haviam se reunido. Eram tantas! A casa nunca estivera tão cheia de visitantes, pensou imaginando quem seriam. De seu poleiro na muralha externa tinha visto quando chegaram e ficou balançando a cabeça diante de tantos estranhos.

Eram muito diferentes dos convidados de Clódia, especialmente a mulher velha com diamantes no pescoço. Júlia tinha visto seu pai beijá-la quando achou que ninguém podia ver, e sentiu a garganta apertar, de nojo. Tinha tentado dizer a si mesma que era apenas amizade, mas houvera algo íntimo no modo como a mulher relaxou contra ele, e as bochechas de Júlia ficaram quentes de embaraço. Quem quer que ela fosse, a menina jurou que nunca seriam amigas.

Ficou algum tempo imaginando se a mulher tentaria ganhar seu afeto. Seria muito fria, pensou. Não grosseira; Clódia a havia ensinado a desprezar a grosseria. Só o bastante para que a mulher não se sentisse bem-vinda.

Havia uma capa pesada num gancho perto da baia do capão, e Júlia a reconheceu como a que tinha envolvido o último casal. Lembrou-se do riso do homem espalhando-se pelo campo. Ele era muito bonito, pensou. Mais baixo do que seu pai, caminhava como o homem que Clódia havia contratado para ensiná-la a cavalgar, como se tivesse tanta energia que mal conseguisse se impedir de dançar de prazer.

Pensou que a companheira devia amá-lo, pelo modo como tinha se grudado às costas dele. Os dois sempre pareciam estar se tocando, quase por acidente.

Ficou no estábulo por longo tempo, tentando entender no fundo o que era diferente desde a chegada do pai. Sempre vinha aqui quando tinha problema ou quando havia chateado Clódia. Em meio ao cheiro de couro e palha, nas sombras, sempre se sentira segura. A casa principal tinha muitos cômodos vazios que eram frios e escuros à noite. Quando se esgueirava por eles para subir no muro sob o luar, podia imaginar a mãe caminhando por ali e estremecia. Era fácil demais pensar nos homens que a haviam matado, escondidos, até que Júlia girava aterrorizada e recuava dos fantasmas que jamais conseguia ver.

Uma explosão de risos chegou da casa e ela ergueu a cabeça para prestar atenção. O som se esvaiu num silêncio mais profundo e ela piscou no escuro ao perceber que a presença dos amigos do pai a faziam sentir-se em segurança. Esta noite não haveria assassinos se esgueirando sobre o muro para pegá-la, nem pesadelos.

Deu um tapinha de leve no focinho do cavalo e pegou a capa no gancho, deixando-a cair no chão empoeirado num momento de despeito. O amigo do pai merecia coisa melhor, pensou, abraçando-se no escuro.

Pompeu andava de um lado para o outro com as mãos cruzadas com força as costas. Usava uma toga de tecido grosso e branco que deixava os braços nus, e os músculos se moviam visivelmente enquanto movimentava os dedos uns contra os outros. As lâmpadas em sua casa da cidade tinham começado a ficar fracas, mas ele não chamou escravos para encher de novo os reservatórios. A luz débil se ajustava ao humor do cônsul de Roma.

— Somente a candidatura às eleições poderia reparar o dano de deixar o posto. Nada mais vale o risco que ele correu, Regulo.

Seu centurião mais importante ficou em posição de sentido enquanto o general andava de um lado para o outro. Ele lhe era leal há mais de vinte anos e conhecia seus humores mais do que ninguém.

— Estou a seu comando, senhor — disse ele, olhando direto em frente. Pompeu o encarou, e o que viu pareceu satisfazê-lo.

— Você é meu braço direito, Regulo, eu sei. Mas preciso de mais do que obediência, para que César não herde a cidade de minhas mãos. Preciso de idéias. Fale livremente e nada tema.

Regulo relaxou um pouco diante da ordem.

— O senhor já pensou em esboçar uma lei permitindo que se candidate de novo? Ele não poderia assumir o posto caso o senhor fosse a alternativa.

Pompeu franziu a testa. Se pensasse sequer por um momento que isso fosse possível, teria considerado a hipótese. Os senadores, até mesmo os cidadãos, iriam se revoltar contra a mera sugestão de um retorno aos velhos tempos. A ironia de ter ajudado a trazer as próprias restrições que agora o continham não lhe passou despercebida, mas esses pensamentos não o levaram mais para perto de uma solução.

— Não é possível — falou com os dentes trincados.

— Então devemos planejar para o futuro, senhor. Pompeu parou para examiná-lo com esperança nos olhos. Regulo respirou fundo antes de falar.

— Deixe-me entrar para a legião dele. Se em algum momento o senhor sentir necessidade de que ele seja impedido, terá uma espada próxima dele.

Pompeu coçou o rosto enquanto considerava a oferta. Tamanha lealdade num homem tão violento! Ainda que parte dele se sentisse repelida pela idéia de uma opção tão desonrosa, seria um tolo se recusasse arma para os anos vindouros. Quem sabia o que o futuro guardava qualquer um deles?

— Você teria de se alistar como soldado raso - disse Pompeu lentamente.

O centurião respirou fundo ao ver que sua idéia não seria descartada sem ouvir melhor.

- Não será difícil para mim. Minhas promoções vieram nos campos de batalha, de sua mão. Já passei por isso.

- Mas com suas cicatrizes eles saberão o que você é.

- Direi que sou mercenário. Posso representar o papel com facilidade. Deixe-me ficar perto dele, cônsul. Eu sou o seu homem.

Pompeu considerou isso, com objeções vindo e indo nos pensamentos. Suspirou. Afinal de contas a política era uma coisa prática.

- Podem-se passar anos, Regulo. Vá com minha bênção.

Regulo lutou para encontrar palavras.

— É... é uma honra, senhor. Estarei perto dele se o senhor me convocar. Juro.

— Sei que estará, Regulo. Vou recompensá-lo quando...

— Não é necessário, senhor — disse Regulo rapidamente, surpreendendo a si mesmo. Em geral não teria ousado interromper o cônsul, mas queria dar algum sinal de que a confiança era merecida. Sentiu-se gratificado quando Pompeu sorriu.

— Se eu tivesse outros como você, Regulo! Nenhum homem é mais bem servido do que eu.

— Obrigado, senhor. — O peito de Regulo se estufou. Sabia que estava diante de anos de disciplina dura e salário pequeno, mas isso não o preocupava nem um pouco.

 

Roma jamais parava, e quando a alvorada chegou o vasto espaço do fórum tinha-se enchido com uma massa ondulante de cidadãos, mudando constantemente enquanto fluxos de pessoas se moviam. Pais seguravam filhos nos ombros para captar um vislumbre dos cônsules, só para dizer que tinham visto os homens que derrotaram Espártaco e salvado a cidade.

Para Júlio a multidão parecia sem rosto e intimidante. Será que deveria olhar para o espaço enquanto falava ou fixar o olhar em algum cidadão desafortunado? Imaginou se eles ao menos o ouviriam. Tinham ficado em silêncio para Pompeu, mas Júlio não duvidava de que o cônsul havia infiltrado seus clientes em meio à multidão. Se eles gritassem e zombassem quando Júlio falasse, seria um mau começo para sua candidatura. Repassou várias vezes o discurso na mente. Poderia haver perguntas quando terminasse, talvez feitas por homens pagos pelos cônsules. Ele poderia ser humilhado. Cuidadosamente apoiou as mãos úmidas nos joelhos, deixando o tecido absorver o suor grudado nelas.

Sentou-se na plataforma elevada, com Crasso e o pai de Suetônio, sem olhar para nenhum dos dois. Estavam escutando atentamente enquanto Pompeu dizia algo espirituoso e levantava as mãos para acalmar os risos. Não havia hesitação nele, viu Júlio. Os cidadãos erguiam o rosto para o cônsul quase em adoração, e Júlio sentiu um aperto medonho nas entranhas ao pensar que seria o próximo a falar.

A voz de Pompeu ficou grave enquanto narrava seu serviço no ano consular, e a multidão aplaudiu. Os sucessos militares foram intercalados com promessas de grãos e pão grátis, jogos e moedas comemorativas. Crasso se enrijeceu ligeiramente diante da última promessa. Imaginou onde Pompeu arranjaria o dinheiro para ter seu rosto gravado em prata. O pior de tudo era saber que os subornos eram desnecessários. Pompeu dominava a multidão levando-a dos risos ao orgulho sério em instantes. Era um desempenho magistral e, quando terminou, Júlio ficou de pé e teve de forçar um sorriso no rosto enquanto Pompeu recuava e sinalizava para ele. Júlio trincou os dentes, irritado com a mão estendida como se estivesse sendo levado à frente por um patrocinador paternal.

Enquanto passavam, Pompeu falou rapidamente com ele:

— Nenhum escudo envolto em capas, Júlio? Achei que você teria algo preparado.

Júlio foi obrigado a sorrir, como se as palavras fossem algum comentário brincalhão, e não uma ferroada. Os dois se lembravam do julgamento que ele vencera naquele fórum, onde escudos representando cenas da vida de Mário foram revelados à multidão.

Pompeu ocupou seu lugar sem dizer mais qualquer palavra, parecendo calmo e interessado. Júlio se aproximou do rostro e parou um momento, olhando o mar de faces. Quantos tinham se reunido para ouvir os cônsules fazerem o discurso anual? Oito mil, dez mil? Com o sol nascente ainda escondido atrás dos templos que cercavam a grande praça, a luz era cinzenta e fria enquanto seu olhar passava sobre eles. Júlio respirou fundo, forçando a voz a ficar firme e forte desde o início. Era importante que ouvissem cada palavra.

Meu nome é Caio Júlio César, sobrinho de Mário, que foi cônsul sete vezes em Roma. Escrevi meu nome na casa do senado para o mesmo posto. Não o faço pela memória daquele homem, mas para continuar seu trabalho. Querem me ouvir fazer promessas de lhes dar moedas e pão? Vocês não são crianças para ganhar coisas bonitas em troca da lealdade. Um bom Pai não estraga os filhos com presentes.

Júlio parou e começou a relaxar. Cada olhar no fórum estava fixo em seu rosto, e ele sentiu o primeiro toque de confiança desde que subira à plataforma.

— Conheço aqueles que arrebentam as costas plantando trigo para o pão de vocês. Não existe fortuna em alimentar os outros, mas eles têm orgulho e são homens. Conheço muitos que lutaram sem reclamar por esta cidade. Algumas vezes vocês os vêem nas ruas, sem um olho ou um membro enquanto nós passamos e olhamos de lado, esquecendo que só podemos rir e amar porque esses soldados deram tanto de si.

— Nós fizemos esta cidade crescer sobre o sangue e o suor dos que se foram, mas ainda há muito a fazer. Vocês ouviram o cônsul Crasso falar de soldados para tornar as ruas seguras? Eu lhes dou meus homens sem lamentar, mas quando eu os levar para descobrir novas terras e riquezas para Roma, quem irá manter vocês em segurança, se não forem vocês mesmos?

A multidão se remexeu inquieta e Júlio hesitou um momento. Podia ver a idéia na cabeça, mas esforçava-se para encontrar um modo de fazê-los entender.

— Aristóteles disse que os estadistas são ansiosos para produzir um certo caráter moral em seus cidadãos, uma disposição para a virtude. Eu procuro por isso em vocês, e ela está ali, pronta para ser invocada. São vocês que ocuparam as muralhas para defender Roma de uma rebelião de escravos. Vocês não se esconderam do dever naquele momento, e não se esconderão agora, quando eu peço. — E prosseguiu, mais alto do que antes: — Separarei verbas para qualquer homem sem trabalho se ele limpar as ruas e impedir que as quadrilhas aterrorizem os mais fracos de nós. Onde está a glória de Roma se vivemos no medo à noite? Quantos de vocês põem trancas nas portas e esperam atrás delas pelos primeiros ruídos do assassino ou do ladrão?

Em silêncio agradeceu a Alexandria pelo que ela havia contado, e viu, através das cabeças confirmando, que tinha marcado ponto com muitos na multidão.

— O cônsul Crasso me nomeou como edil, o que significa que é comigo que vocês devem reclamar se houver crime ou desordem na cidade. Venham a mim se forem acusados injustamente. Ouvirei seus argumentos e eu próprio irei defendê-los se não conseguir um advogado. Agora meu tempo e minha força são de vocês, se quiserem. Meus clientes e meus homens tornarão as ruas seguras e eu farei com que a lei seja justa para todos. Se for eleito cônsul, serei a enchente que limpará Roma da sujeira dos séculos, mas não sozinho. Não vou lhes dar uma cidade melhor. Juntos iremos renová-la.

Sentiu uma alegria inebriante enquanto eles reagiam. Isso é que era ser tocado pelos deuses! Seu peito se inchou enquanto sua voz se derramava sobre a multidão que lutava para encontrar seu olhar.

- Onde está a riqueza que nossas legiões trouxeram para a cidade?

Somente neste fórum? Acho que não basta. Se for eleito cônsul não vou me afastar das coisas pequenas. As ruas ficam bloqueadas pelo tráfego até que o comércio pare. Farei com que eles se movimentem à noite e silenciarei o grito interminável dos carroceiros. — A platéia riu disso e Júlio sorriu de volta. Seu povo.

— Acham que não devo? Será que devo usar meu tempo para construir outro belo edifício que vocês nunca usarão?

Alguém gritou:

— Não!

E Júlio riu escutando a voz solitária, desfrutando da maré de risos que se espalhou.

— Àquele homem que gritou, eu digo: sim! Nós devemos construir templos altos e grandiosos, pontes e aquedutos para ter água limpa. Se um rei estrangeiro chegar a Roma quero que ele saiba que somos abençoados em todas as coisas. Quero que ele erga os olhos. Mas que não pise em alguma coisa horrível quando fizer isso.

Júlio esperou o riso se dissipar antes de ir em frente. Sabia que estavam ouvindo pelo simples motivo de que sua voz soava com convicção. Acreditava no que dizia, e eles escutavam e se sentiam elevados.

— Somos um povo prático, vocês e eu. Precisamos de esgotos, segurança, comércio honesto e comida barata para viver. Mas também somos sonhadores, sonhadores práticos que vamos refazer o mundo para que dure mil anos. Construímos para durar. Somos os herdeiros da Grécia. Temos força, mas não somente a força do corpo. Inventamos e aperfeiçoamos até que não haja nada tão belo quanto Roma. Uma rua de cada vez, se for necessário.

Respirou fundo, lentamente, e seus olhos se encheram de afeto pelo povo que ouvia.

- Olho para todos vocês e sinto orgulho. Meu sangue ajudou a fazer Roma e não o vejo desperdiçado quando olho seu povo. Esta é a nossa terra.

Mas há um mundo lá fora que ainda não conhece o que descobrimos. O que fizemos é suficientemente grandioso para ser levado aos lugares sombrios para espalhar o domínio da lei, a honra de nossa cidade, até que em qualquer lugar do mundo um de nós possa dizer "sou cidadão romano" e ter garantido bom tratamento. Se for eleito cônsul, trabalharei para esse dia.

Tinha terminado, mas a princípio eles não perceberam. Esperaram pacientemente para escutar o que diria em seguida, e Júlio quase se sentiu tentado a prosseguir, antes que uma voz interior, de cautela, lhe dissesse para simplesmente agradecer e se retirar.

O silêncio explodiu num rugido de apreciação, e Júlio ficou vermelho, de tão empolgado. Não percebia os homens na plataforma atrás dele e só conseguia ver o povo que tinha prestado atenção, cada um ouvindo-o sozinho e captando as palavras. Era melhor do que vinho.

A suas costas Pompeu se inclinou para Crasso e sussurrou enquanto aplaudia:

— Você o nomeou edil? Ele não é seu amigo, Crasso. Acredite.

Por causa da multidão Crasso sorriu de volta para o colega, os olhos brilhando de raiva.

— Eu sei como avaliar um amigo, Pompeu.

Então Pompeu se levantou e deu um tapa no ombro de Júlio quando este chegou perto. Enquanto via os dois sorrirem um para o outro, a multidão aplaudiu de novo e Pompeu levantou o outro braço para agradecer, como se Júlio fosse seu pupilo e tivesse feito um bom trabalho para agradá-los.

Júlio apertou a mão que era oferecida antes de se virar para chamar Crasso à frente. O outro cônsul já estava se movendo, astuto demais para deixar que a oportunidade passasse sem sua presença.

Os três ficaram juntos enquanto a multidão aplaudia, e à distância seus sorrisos pareciam genuínos. O senador Prando também se levantou, mas ninguém percebeu.

Alexandria se virou para Tedo, ao lado, enquanto a multidão aplaudia os homens sobre a plataforma.

— E então, o que achou dele? — perguntou.

O velho soldado coçou a barba crescida no queixo. Tinha vindo porque Alexandria pedira, mas não tinha o menor interesse nas promessas dos homens que governavam a cidade e não sabia como dizer isso sem ofender a patroa.

— Ele foi bem — disse depois de pensar. — Mas não o ouvi se oferecer para mandar cunhar uma moeda com sua efígie, como os outros. Promessa é coisa boa, senhora, mas uma moeda de prata compra uma boa refeição e uma jarra de vinho.

Alexandria franziu a testa um momento, depois abriu o pesado bracelete no pulso, fazendo um denário deslizar dele para a mão. Deu-o a Tedo e ele aceitou, levantando as sobrancelhas.

— Para o quê é isso?

— Gaste. Quando a moeda tiver ido embora e você estiver com fome de novo, César continuará ali.

Tedo assentiu como se entendesse, cuidadosamente enfiando a moeda no bolso escondido de sua túnica. Olhou em volta para ver se alguém tinha notado onde guardava o dinheiro, mas a multidão parecia concentrada no palco elevado. Mesmo assim valia a pena ser cuidadoso em Roma.

Servília observou o amado enquanto Pompeu segurava o ombro dele. O cônsul podia sentir a mudança dos ventos mais rapidamente do que qualquer senador, mas ela se perguntou se Pompeu sabia que Júlio não permitiria sequer a idéia de controle da parte dos cônsules que saíam.

Havia ocasiões em que odiava os jogos rasos que todos eles faziam. Até mesmo dar a Júlio e Prando a chance de falar na ocasião dos discursos formais dos cônsules fazia parte disso. Ela sabia da existência de mais dois candidatos na lista do senado, e ainda faltavam alguns dias para a lista ser fechada. Nenhum daqueles tivera permissão de tornar baratos os discursos dos cônsules com suas promessas débeis.

A multidão só iria se lembrar de três homens, e Júlio era a um deles. Servília soltou o ar, aliviando a tensão. Diferentemente da maioria dos que se encontravam no fórum, não pudera relaxar e desfrutar dos discursos. Enquanto Júlio se levantava para enfrentá-los, seu coração tinha martelado de medo e Orgulho. Ele não escorregara. A lembrança do homem que ela havia encontrado na Espanha era simplesmente isso, agora. Júlio tinha recapturado a velha magia, que tocava até mesmo ela, ouvindo e vendo seus olhos brilhantes varrerem-na sem parar. Era tão jovem! Será que a multidão via isso? Apesar de toda a habilidade e inteligência, Pompeu e Crasso eram poderes decadentes, comparados a ele, e ele era seu.

Um homem chegou um pouco perto demais enquanto abria caminho pela multidão, e Servília captou o vislumbre de um rosto duro e marcado por cicatrizes, úmido de suor. Antes que ela pudesse reagir, uma mão forte apertou o braço do sujeito, fazendo-o gritar.

— Siga seu caminho — disse Brutus em voz baixa.

O sujeito puxou o braço com força, para se livrar, e recuou, mas parou para cuspir quando estava fora do alcance, em segurança. Servília se virou para o filho e ele sorriu, tendo esquecido o incidente.

— Acho que você apostou no cavalo certo, mamãe — disse ele, olhando para Júlio. — Não dá para sentir? Tudo está no lugar, para ele.

Servília deu um risinho, apanhada pelo entusiasmo do rapaz. Sem a armadura seu filho parecia mais juvenil do que o normal, e ela desgrenhou seu cabelo afetuosamente.

— Um discurso não faz um cônsul, você sabe. O trabalho começa hoje. Ela seguiu o olhar dele para onde Júlio estava finalmente se virando para ir até a multidão, apertando mãos estendidas e respondendo aos cidadãos que o chamavam. Mesmo à distância dava para ver sua alegria.

— Mas é um bom começo — falou.

Suetônio caminhava com os amigos por ruas vazias afastando-se do fórum. As lojas e as casas estavam fechadas com trancas, e eles ainda podiam ouvir o som abafado da multidão atrás das fileiras de moradias.

Por longo tempo não falou, o rosto rígido de amargura. Cada aplauso dos comerciantes tinha-o comido por dentro, até ele não suportar mais. Júlio, sempre Júlio. Não importando o que acontecesse, o sujeito parecia ter mais sorte do que todo mundo. Algumas palavras para uma multidão e ela se abria toda, de modo enjoativo, enquanto o pai de Suetônio era humilhado. Era espantoso vê-los enganados por truques e palavras enquanto um bom romano passava despercebido. Sentira tanto orgulho quando seu pai permitiu ter o nome indicado para cônsul! Roma merecia um homem de sua dignidade e sua honra, e não um César, que nada desejava além da glória.

Apertou os punhos, quase rosnando diante do que tinha testemunhado. Os dois amigos junto dele trocaram olhares nervosos.

- Ele vai vencer, não vai? — disse Suetônio sem olhá-los.

Bíbilo assentiu, um passo atrás do amigo, depois percebeu que o gesto não podia ser visto.

- Talvez. Pompeu e Crasso, pelo menos, parecem achar que sim. Seu pai ainda pode pegar o segundo posto.

Ele se perguntou se Suetônio faria com que marchassem por todo o caminho de volta à propriedade fora de Roma. Bons cavalos e quartos confortáveis os esperavam na outra direção, enquanto Suetônio andava carrancudo, cego de ódio. Bíbilo odiava caminhar quando havia cavalos disponíveis. Também odiava cavalgar, mas era mais fácil para as pernas e ele suava menos.

— O sujeito deserta do posto na Espanha e vem anunciar a candidatura para cônsul, e eles simplesmente aceitam! Imagino que subornos mudaram de mãos para que isso acontecesse. Ele é capaz disso, acredite. Eu o conheço bem. Não tem honra. Eu me lembro disso, do tempo dos navios e da Grécia. Aquele desgraçado, voltando para me assombrar. É de pensar que ele deixaria a política para homens melhores depois da morte da esposa, não é? Deveria ter aprendido quais eram os perigos. Vou lhe dizer, Catão pode ter feito inimigos, mas era duas vezes mais homem do que César. Seu pai sabia disso, Bíbilo.

Bíbilo olhou nervoso ao redor, para ver se havia alguém ao alcance de escutar. Com Suetônio nesse clima, não dava para saber o que ele diria. Bíbilo gostava do estilo amargo do amigo quando estavam em aposentos particulares. Espantava-se com o nível de raiva que Suetônio parecia capaz de produzir. Mas numa rua pública sentiu o suor fazendo as axilas baterem úmidas, suetônio continuava marchando como se o sol nascente não passasse de uma visão, e o calor estava aumentando.

Suetônio escorregou numa pedra solta e xingou. Sempre César para atormentá-lo. Sempre que ele estava na cidade a fortuna de sua família sofria, sabia que César tinha espalhado os boatos que o impediam de comandar uma legião. Tinha visto os sorrisos disfarçados e os sussurros, e sabia qual era a fonte.

Quando vira os assassinos se esgueirando para a casa de César tinha experimentado um momento de prazer verdadeiro. Poderia ter dado o alarme, mandado cavaleiros para alertá-los. Poderia ter impedido, mas afastou-se sem dizer nada. Eles tinham despedaçado a mulher de César. Lembrou-se de como riu quando o pai lhe contou a notícia horrenda. O velho estava com tamanha expressão de gravidade que Suetônio não pôde se conter. O espanto de seu pai pareceu alimentar aquilo até que os olhos dele estavam derramando lágrimas.

Talvez o pai entendesse um pouco melhor agora que vira por si mesmo as promessas e lisonjas de César. Acomodou-se em sua mente o estranho pensamento de que poderia conversar de novo com o pai, com algo sendo compartilhado pelos dois. Suetônio não se lembrava da última vez em que ele dissera mais do que algumas palavras curtas ao filho, e essa frieza também era coisa de César. O pai devolvera as terras que eles tinham conseguido com tanta esperteza enquanto Júlio estava longe. Devolvera o terreno onde Suetônio construiria sua casa. Ainda se lembrava do olhar do pai quando protestou. Não havia amor, simplesmente uma fria avaliação que sempre o considerava indigno.

Levantou a cabeça e relaxou as mãos. Iria se encontrar com o pai e se condoer. Talvez ele não se encolhesse, quando Suetônio o encarasse, como se sentisse enjôo pelo que via ali. Talvez não parecesse tão desapontado com o filho.

Bíbilo tinha visto a mudança no passo do amigo e aproveitou a oportunidade.

— Está ficando quente, Suetônio. Deveríamos voltar à estalagem. Suetônio parou e se virou para o outro.

— Você é muito rico, Bíbilo? — perguntou de súbito.

Bíbilo esfregou as mãos nervosamente, como sempre fazia quando o assunto do dinheiro surgia entre eles. Tinha herdado uma quantia suficientemente grande para jamais ter de trabalhar, mas falar nisso o deixava vermelho de embaraço. Desejava que Suetônio não achasse o assunto tão fascinante.

— Tenho o bastante, você sabe. Não como Crasso, obviamente, mas o bastante — disse com cautela. Será que ele queria outro empréstimo? Bíbilo esperava que não. De algum modo, a única vez em que Suetônio prometia pagar era quando pedia. Quando recebia o dinheiro o assunto nunca mais era mencionado. Quando Bíbilo juntava coragem suficiente para falar das enormes quantias Suetônio ficava irritadiço e em geral terminava brigando e indo embora, até que Bíbilo precisava pedir desculpa.

- O bastante para se candidatar a cônsul, Bíbilo? Ainda faltam uns dois dias até que a lista do senado seja fechada para novos nomes.

Bíbilo piscou, confuso e horrorizado com a idéia.

- Não, Suetônio, definitivamente não. Não farei isso, nem por você.

Gosto da minha vida e de minha posição no senado como está. Não quereria ser cônsul nem que eles me oferecessem.

Suetônio chegou mais perto e segurou sua toga úmida, com o rosto cheio de nojo.

— Você quer ver César como cônsul? Ao menos se lembra da guerra civil? Lembra-se de Mário e dos danos que ele causou? Se você se candidatar poderá dividir os votos destinados a César e deixar um dos outros entrar junto com meu pai. Se fosse meu amigo você não hesitaria.

— Eu sou, claro, mas não vai dar certo! — disse Bíbilo, tentando se afastar da raiva. O pensamento de que Suetônio sentiria o cheiro de seu suor era humilhante, mas ele segurava sua toga com força, expondo a pele branca do peito mole.

— Mesmo que eu me apresente e consiga alguns votos, poderia retirá-los tanto de seu pai quanto de César, não vê? Por que você não se candidata, se é o que deseja? Eu lhe dou a verba de campanha, juro.

— Perdeu a cabeça, sugerindo que eu concorra contra meu próprio pai? Não, Bíbilo. Você pode não ser um grande amigo, nem grande coisa, mas não há mais ninguém importante na lista. Se não fizermos nada meu pai será destruído por César. Sei como ele faz intrigas com a turba, como ela o ama. Quantos vão honrar meu pai tendo César desfilando como uma prostituta cheia de brilhos? Você vem de uma família antiga e tem dinheiro para levantar seu nome antes da eleição. — Seus olhos se iluminaram de malícia enquanto pensava na idéia.

- Meu pai não ficou longe de Roma durante anos, lembre-se, e tem aPoio nas centúrias mais ricas, que votam primeiro. Você viu os discursos. César apela aos pobres preguiçosos. Se uma maioria for conseguida cedo, metade de Roma pode não ser convocada a votar. Isso pode ser feito.

— Não creio... — gaguejou Bíbilo.

— Você deve, Bibi, por mim. Só algumas das primeiras centúrias na eleição podem bastar, e então ele terá de deixar Roma, envergonhado. Se você vir que a votação para meu pai está sendo prejudicada, pode retirar a candidatura. Nada pode ser mais simples, a não ser que você prefira deixar que César seja cônsul sem brigar.

Bíbilo tentou de novo.

— Eu não tenho fundos para pagar por...

— Seu pai lhe deixou uma fortuna, Bibi; acha que não sei? Acha que ele quereria ver o antigo inimigo de Catão como cônsul? Não, esses pequenos empréstimos que você me fez no passado não passam do ganho de alguns dias para você. — Suetônio pareceu sentir a incongruência de segurar o amigo com tanta força ao mesmo tempo que tentava persuadi-lo. Soltou-o e ajeitou a toga de Bíbilo, passando os dedos de leve.

— Assim é melhor. Agora, vai fazer isso por mim, Bíbilo? Você sabe como isso é importante para mim. Quem sabe, talvez você goste de ser cônsul com meu pai, se chegar a esse ponto. Mais importante, César não deve ter permissão de abrir caminho até o poder nesta cidade.

— Não. Está ouvindo? Não vou fazer isso! — disse Bíbilo, chiando ligeiramente de medo.

Suetônio estreitou os olhos e segurou Bíbilo pelo braço, afastando-o dos companheiros. Quando não podia ser ouvido pelos outros, inclinou-se perto do rosto suado do jovem romano.

— Você se lembra do que me disse no ano passado? Do que eu vi quando cheguei à sua casa? Sei por que seu pai o desprezava, Bíbilo, por que ele o mandou embora para sua bela casa e se afastou do senado. Talvez por isso o coração dele tenha falhado, quem sabe? Quanto tempo você acha que sobreviveria se seus gostos se tornassem de conhecimento público?

Bíbilo pareceu doente, com o rosto se retorcendo.

— Aquela garota foi um acidente. Ela teve um fluxo...

— Você consegue suportar a luz do dia, Bíbilo? — disse Suetônio, chegando ainda mais perto. — Eu vi os resultados do seu... entusiasmo. Eu mesmo poderia abrir um processo contra você, e as penalidades são desagradáveis, ainda que não mais do que o que você merece. Quantas meninas e meninos passaram por suas mãos nos últimos anos, Bíbilo? Quantos senadores você acha que são pais?

A boca de Bíbilo tremeu de frustração.

— Você não tem direito de me ameaçar! Meus escravos são minha propriedade. Ninguém prestaria atenção a você.

Suetônio mostrou os dentes, com o rosto feio de triunfo.

— Pompeu perdeu uma filha, Bibi. Ele prestaria atenção. Ele se certificaria de que você morresse por causa de seus prazeres, não acha? Tenho certeza de que Pompeu não me afastaria se eu o procurasse.

Bíbilo afrouxou o corpo, com os olhos se enchendo de lágrimas.

— Por favor... — sussurrou.

Suetônio deu-lhe um tapinha no ombro.

— Nem precisa mencionar, Bibi. Um amigo não abandona o outro —falou, esfregando de modo reconfortante a pele úmida.

— Cem dias, Servília — disse Júlio enquanto a tomava nos braços na escadaria do senado. — Tenho homens examinando os processos legais que virão. Vou escolher os melhores e fazer meu nome, e as tribos virão escutar. Deuses, há tanta coisa a fazer! Preciso de que você contate todo mundo que tem dívidas para com minha família. Preciso de mensageiros, organizadores, qualquer um que possa argumentar a meu favor nas ruas, do amanhecer ao anoitecer. Brutus deve usar a Décima para controlar as quadrilhas. Agora é minha responsabilidade, graças a Crasso. O velho é um gênio, juro. Num só golpe tenho o poder de que preciso para provar que posso manter as ruas em segurança. Tudo chegou rápido demais, eu quase não...

Servília apertou os dedos nos lábios de Júlio para impedir a torrente de palavras. Riu enquanto ele continuava a falar, murmurando idéias abafadas enquanto lhe vinham. Beijou-o então, e por um segundo Júlio continuou a falar enquanto os lábios se tocavam, até que ela lhe deu um tapinha na bochecha, com a mão livre.

Ele se afastou, rindo.

Tenho de me reunir com os senadores e não posso me atrasar. Conhece o trabalho, Servília. Encontro você aqui ao meio-dia.

Ela o olhou subir correndo a escada e desaparecer na semi-escuridão, em seguida desceu com o passo leve até onde os guardas esperavam.

Quando chegou à porta da câmara externa Júlio encontrou Crasso à espera. O velho parecia estranhamente nervoso, e gotas de suor penetravam nas rugas do rosto.

— Preciso falar com você antes que entre, Júlio. Não lá dentro, onde há ouvidos para escutar.

— O que é? — Júlio sentiu um peso súbito baixando sobre ele enquanto percebia o nervosismo do cônsul.

— Não fui totalmente honesto com você, amigo.

 

Podiam ouvir o murmúrio das vozes dos senadores atrás quando se sentaram nos degraus largos, olhando para o fórum. Júlio balançou a cabeça, incrédulo.

— Eu não acreditaria que você é capaz disso, Crasso.

— Não sou capaz — reagiu Crasso rispidamente. — Estou dizendo agora, antes que os conspiradores ajam contra Pompeu.

— Você deveria ter impedido quando ficou sabendo. Poderia ter ido direto ao senado e denunciado esse Catilina antes que ele tivesse algo mais do que idéias. Agora vem dizer que ele juntou um exército? É meio tarde para se eximir de culpa, Crasso, por mais que você proteste.

— Se eu tivesse recusado eles me matariam e, sim, quando me prometeram o governo de Roma fiquei tentado. Pronto, já me ouviu dizer. Será que eu deveria tê-los dado a Pompeu, para que ele desfilasse outra vitória diante do povo? Vê-lo tornado ditador por toda a vida, como Sila? Fiquei tentado, Júlio, e deixei passar muito tempo sem informar, mas agora estou mudando isso. Conheço os planos deles e onde eles se reúnem. Com sua legião podemos destruí-los antes que o mal seja feito.

— Foi por isso que me nomeou edil? Crasso deu de ombros.

— Claro. Agora é sua responsabilidade impedi-los. Será um belo pilar para sua campanha junto ao povo ver um nobilitas como Catilina ser responsabilizado por crimes, tanto quanto qualquer outro cidadão. Eles irão vê-lo como alguém que está acima dos laços mesquinhos de classe e tribo.

Júlio olhou para o cônsul com ar de pena.

— E se eu não tivesse retornado da Espanha?

— Eu teria arranjado outro modo de derrotá-los antes do fim.

— Teria?

Crasso retornou o olhar furioso do rapaz.

— Não duvide. No entanto agora você está aqui. Posso lhe entregar os líderes, e a Décima vai destruir a ralé que eles reuniram. Eles só representavam perigo quando ninguém sabia. Sem essa surpresa você vai espalhá-los e o cargo de cônsul será seu. Espero que então não se esqueça dos amigos.

Júlio se levantou rapidamente, olhando para o cônsul. Será que tinha ouvido toda a verdade ou apenas as partes que Crasso queria que ele ouvisse? Talvez os homens que o velho senador estava traindo fossem culpados apenas de ser inimigos dele. Não seria bom mandar a Décima para as casas de homens poderosos baseado numa conversa que Crasso poderia negar. O cônsul era capaz disso, Júlio tinha certeza.

— Pensarei no que fazer, Crasso. Não serei sua espada para golpear seus inimigos.

Crasso se levantou para encará-lo, com os olhos brilhando de fúria contida.

— A política é sangrenta, Júlio. É melhor aprender isso agora do que tarde demais. Eu esperei tempo demais para lidar com eles. Certifique-se de não cometer o mesmo erro.

Os dois entraram juntos no prédio do senado, mas separados.

 

A casa que Servília encontrara para a campanha tinha três andares e estava cheia de gente. Mais importante, era central, no vale Esquilino, uma parte movimentada da cidade que mantinha Júlio em contato com os que precisavam vê-lo. Desde antes do amanhecer até o crepúsculo seus clientes ficavam entrando e saindo pelas portas abertas, fazendo mandados e levando ordens enquanto Júlio começava a organizar a estratégia. A Décima espalhou grupos à noite, e depois de três lutas violentas com gangues de raptores limpou onze ruas nas áreas mais pobres, e estava se espalhando. Júlio sabia que apenas um idiota iria acreditar que as gangues estavam derrotadas, mas elas não ousavam se reunir nas áreas que ele escolhera, e com o tempo as pessoas perceberiam que estavam sob a proteção da legião e caminhariam com confiança.

Tinha aceitado três processos no tribunal do fórum e venceu o primeiro, faltando apenas três dias para o segundo. A multidão viera ver o jovem orador e aplaudir a decisão favorável, ainda que o crime fosse relativamente pequeno. Júlio ainda esperava, mesmo sendo improvável, que lhe pedissem para julgar um assassinato ou alguma outra ofensa que trouxesse milhares de pessoas para ouvi-lo falar.

Não tinha visto Alexandria por quase duas semanas, depois de ela ter aceitado a encomenda para fazer as armaduras dos lutadores para um grande torneio de espadas fora da cidade. Quando Júlio ficava exausto com o trabalho recuperava-se cavalgando até o Campo de Marte para ver a arena sendo construída. Brutus e Domício tinham mandado a notícia para cada cidade romana num raio de oitocentos quilômetros, para garantir a melhor nualidade dos desafiantes. Mesmo assim os dois esperavam estar na final, e Brutus se convenceu de que venceria, chegando a ponto de apostar mais do que o salário de um ano.

Quando Júlio caminhava até o fórum ou cavalgava até a arena que estava sendo construída fazia questão de ir sem guardas, convencido de que o povo deveria ver sua confiança nele. Brutus havia argumentado contra essa decisão, depois cedeu com uma facilidade suspeitosa. Júlio supôs que o amigo tivesse posto homens para segui-lo aonde quer que fosse na cidade, prontos para defendê-lo. Não se incomodava com essa tática, desde que fosse escondida. A aparência era muito mais importante do que a realidade.

Como prometido, argumentou no senado para organizar o tráfego dos comerciantes de modo a entrarem e saírem de Roma apenas à noite, mantendo as ruas livres para os cidadãos. Seus soldados estavam em cada esquina para garantir o silêncio depois do escurecer, e depois de alguns gritos com mercadores irritados, a mudança aconteceu facilmente. Como edil, a responsabilidade pela ordem urbana era dele, e com Crasso o apoiando abertamente houvera poucas restrições impostas pelos outros membros do senado.

Júlio apertou os olhos cansados com os nós dos dedos até ver luzes piscando. Seus clientes e seus soldados trabalhavam duro por ele. A campanha ia bem, e ele poderia estar contente se não fosse o problema que Crasso pusera no seu colo.

O cônsul o pressionava diariamente para agir contra os que chamava de traidores. Enquanto empurrava com a barriga, Júlio se atormentava com o pensamento de que eles poderiam atacar — e a cidade mergulharia num caos que ele poderia ter impedido. Pusera espiões vigiando as casas dos acusados, e estava bastante claro que eles se reuniam em aposentos particulares e casas de banho onde nenhum ouvido estranho poderia se intrometer. Mesmo assim Júlio não agiu. Quando olhava para as ruas calmas ao redor da casa da campada parecia impossível acreditar que houvesse uma trama da magnitude que Crasso havia descrito. No entanto tinha visto a guerra tocar Roma, e isso lhe bastou Para mandar Brutus como batedor ao local indicado por Crasso.

Esse era o fardo da responsabilidade pela qual ansiara, reconhecia Júlio ironicamente. Ainda que pudesse desejar que outro arriscasse a carreira e a vida, a decisão fora deixada em suas mãos. Não subestimava os riscos. Sem ter nada além de uns poucos nomes não podia acusar senadores de traição sem colocar o próprio pescoço na forca. Se não conseguisse provas, o senado iria se voltar contra ele sem um minuto de arrependimento. Pior, o povo poderia temer uma volta aos dias de Sila, quando ninguém sabia quem seria arrancado de casa acusado de traição. Roma poderia ser mais prejudicada pelo erro do que se ele não tivesse feito nada, e essa pressão era quase demasiada para suportar.

Sozinho durante alguns instantes preciosos, bateu o punho na mesa, fazendo-a tremer. Como poderia confiar em Crasso depois de tal revelação? Como cônsul ele deveria ter denunciado a conspiração de Catilina no momento em que entrasse no prédio do senado. Dentre todos os homens de Roma, havia fracassado no dever mais básico e, apesar dos protestos de inocência, Júlio achava difícil perdoar essa fraqueza. Desde Sila nenhum exército ameaçara entrar na cidade, e a lembrança daquela noite ainda o fazia estremecer. Tinha visto Mário derrubado por soldados envoltos em capas escuras, envol-vendo-o como um enxame de formigas da África. Crasso não deveria ter ouvido homens como Catilina, não importando o que eles prometessem.

Foi espantado dos pensamentos por uma agitação lá embaixo. Sua mão baixou até o gládio sobre a mesa, antes de reconhecer a voz de Brutus e relaxar. Era isso que Crasso havia trazido, uma volta do medo que ele sentira quando Catão o ameaçou e cada homem tinha de ser considerado inimigo. A raiva inchou por dentro enquanto ele entendia como Crasso o havia manipulado, no entanto sabia que o velho teria o que desejava. Os conspiradores precisavam ser contidos antes de agir. Será que poderiam ser ameaçados? Uma centúria da Décima mandada com seus melhores oficiais às casas deles, talvez. Se os homens percebessem que os planos eram conhecidos, a conspiração poderia morrer antes do nascimento.

Brutus bateu na porta e entrou, e Júlio soube que era má notícia ao ver a expressão dele.

— Mandei meus homens investigarem os povoados dos quais Crasso o alertou. Acho que ele está falando a verdade — disse Brutus sem preâmbulos. Não havia nada dos seus modos geralmente tranqüilos.

— Quantas espadas eles têm?

— Oito mil, talvez mais, porém estão espalhadas. Cada cidade está cheia de homens, um número demasiado para elas sustentarem. Nenhuma marca nem bandeira de legião, apenas uma quantidade incrível de espadas perto demais de Roma. Se meus rapazes não estivessem procurando sinais poderiam ter deixado de perceber completamente. Acho que a ameaça é real, Júlio.

— Então preciso agir. A coisa foi longe demais para mandar que parem. Vá à casa de Catilina pessoalmente. Prenda os conspiradores e os leve à reunião do senado esta manhã. Vou pedir a palavra e dizer aos nossos senadores como eles estiveram perto da destruição. — Júlio ficou de pé e prendeu a espada no cinto. — Tenha cuidado, Brutus. Eles devem ter apoiadores na cidade para isto dar certo. Crasso disse que eles começariam incêndios nas áreas pobres, como sinal, de modo que devemos ter homens nas ruas, prontos para isso. Quem sabe quantos estão envolvidos?

— A Décima vai se espalhar demais se tivermos de cobrir toda a cidade, Júlio. Não posso manter a ordem e ao mesmo tempo ocupar o campo contra os mercenários.

— Vou convencer Pompeu a usar seus homens nas ruas. Ele verá a necessidade. Depois de você ter levado os homens ao senado, dê-me uma hora para apresentar a situação, e depois marche. Se eu não estiver lá para liderar, vá sozinho contra eles.

Brutus parou um momento, entendendo o que estava sendo pedido.

— Se eu ocupar o campo sem uma ordem do senado isso pode ser o meu fim, quer consigamos a vitória ou não — falou em voz baixa. — Tem certeza de que pode confiar em que Crasso não irá traí-lo?

Júlio hesitou. Se Crasso se recusasse a repetir as acusações no senado seria o bastante para acabar com todos eles. O velho era suficientemente sutil para ter criado a conspiração simplesmente com o objetivo de remover alguns opositores. Crasso poderia se livrar dos concorrentes ao mesmo tempo que se mantinha imaculado por aquilo tudo.

Mesmo assim, que opção havia? Não podia permitir o início de uma rebelião enquanto tivesse chance de impedi-la.

— Não posso confiar nele, mas independentemente de quem seja responsável por aqueles soldados, não posso permitir uma ameaça a Roma. Prenda os homens que ele citou antes que um mal maior seja causado pela espera. Eu assumo a responsabilidade se puder chegar até você. E se eu não estiver lá, a decisão é sua. Espere o quanto puder.

 

Brutus levou vinte de seus melhores homens, junto com Domício, para prender Catilina em casa. Para sua fúria, foram retardados durante momentos cruciais enquanto passavam pelo portão externo. Quando chegaram aos aposentos particulares Catilina estava esquentando as mãos num braseiro cheio de papéis sendo queimados. O sujeito parecia calmo enquanto cumprimentava os legionários. Seu rosto era quase esculpido em planos duros, e a postura dos ombros mostrava que ele cuidava da própria força. De modo incomum para um senador, usava um gládio na cintura, numa bainha ornamentada.

Brutus entrou correndo e jogou uma jarra de vinho nas chamas. Enquanto a fumaça úmida subia chiando, ele enfiou as mãos nas cinzas encharcadas, mas não restava nada.

— Seu senhor passou do ponto, cavalheiros — observou Catilina.

— Minhas ordens são para levá-lo à Cúria, senador, para responder a acusações de traição — disse Domício.

Catilina deixou a mão esquerda pousar no cabo do gládio, e Brutus e Domício se enrijeceram.

— Se tocar esta espada outra vez o senhor morrerá agora — alertou Brutus em voz baixa, e os olhos de Catilina se arregalaram sob as pálpebras pesadas enquanto avaliava o perigo.

— Qual é o seu nome? — perguntou.

— Marco Brutus, da Décima.

— Bem, Brutus, o cônsul Crasso é meu amigo, e quando eu estiver livre discutirei isto com você em mais detalhes. Agora faça o que lhe mandaram e me leve ao senado.

Domício estendeu a mão para segurar o braço do senador e Catilina o empurrou para o lado, com a irritação aparecendo por baixo da falsa calma.

— Não ouse pôr as mãos em mim! Sou senador de Roma. Quando isto estiver acabado não pense que esquecerei os insultos à minha pessoa. Seu senhor nem sempre poderá protegê-lo da lei.

Catilina passou por eles com expressão assassina. Os soldados da Décima entraram em formação ao redor, trocando olhares preocupados. Domício não disse mais nada quando chegaram à rua, mas esperava que os outros grupos tivessem encontrado alguma prova com a qual acusar os homens. Sem ela Júlio poderia ter criado a própria destruição.

A rua estava se enchendo com a multidão matinal, e Brutus teve de usar a parte chata da espada para abrir caminho. Os cidadãos estavam muito apinhados para se afastar com facilidade, e o progresso era lento. Brutus xingou baixinho quando chegaram à primeira esquina e ele não sentiu a mudança na multidão até ser tarde demais.

As crianças e mulheres tinham desaparecido e os soldados da Décima foram rodeados por homens de aparência dura. Brutus olhou para Catilina. O rosto do senador tinha se iluminado de triunfo. Brutus sentiu-se empurrado e, num enjoativo clarão de compreensão, soube que Catilina estivera preparado para eles.

— Defendam-se! — rugiu Brutus. Ao mesmo tempo que dava a ordem viu espadas saindo de capas e túnicas enquanto a multidão se enchia de violência. Os homens de Catilina tinham se escondido entre os passantes, esperando para libertar seu líder. A rua fervilhava de espadas e gritos enquanto os primeiros soldados da Décima eram apanhados des-prevenidos e derrubados.

Brutus viu Catilina sendo arrastado por seus defensores e tentou agarrá-lo. Foi impossível. Ao mesmo tempo que esticava o braço alguém golpeou com a espada e Brutus se defendeu furiosamente. Pressionado por corpos, sentiu-se à beira do pânico. Depois viu que Domício tinha aberto um espaço sangrento na rua e foi para o lado dele.

Os soldados da Décima sustentaram a coragem, derrubando os defensores de Catilina com a sombria eficiência de seu treinamento. Não havia homens fracos entre eles, mas cada um enfrentava duas ou três espadas golpeando loucamente. Apesar de toda a falta de habilidade, os atacantes lutavam com energia fanática, e até mesmo a armadura dos legionários só podia suportar alguns golpes.

Brutus agarrou um homem pela garganta, com a mão esquerda, e puxou-o no caminho de dois outros. Matando-os com movimentos límpidos enquanto lutavam entre si. Então sentiu o coração se acalmar, dando-lhe a chance de olhar em volta. Recuou de um gládio apontado para cortar seu braço que segurava a espada e deu um golpe de resposta contra a garganta do sujeito. Garganta e virilha, as mortes mais rápidas.

Cambaleou quando algo o acertou nas costas e ele sentiu uma das tiras do peitoral se soltar, mudando o peso. Girou com a espada num ângulo agudo para cortar a clavícula de outro homem jogando-o na confusão de imundície e carne aos seus pés. Sangue espirrou e Brutus piscou rapidamente procurando Catilina. O senador havia sumido.

— Limpem a porcaria desta rua, Décima! — gritou, e seus homens responderam abrindo caminho a golpes de gládio. As lâminas pesadas decepavam os inimigos, cortando membros com tanta facilidade quanto um cutelo de açougueiro. Com parte dos homens de Catilina recuando com o senador, os números estavam diminuindo e os legionários puderam isolar os restantes, enfiando as lâminas repetidamente nos corpos para pagar o insulto do ataque na única moeda que ele merecia.

Quando tudo terminou os legionários ficaram ofegando, com a armadura coberta de sangue escuro que pingava lentamente do metal polido. Um ou dois deles andaram cautelosamente até cada um dos homens de Catilina e enfiaram a espada uma última vez, para ter certeza.

Brutus enxugou seu gládio num homem que ele havia matado e o embainhou cuidadosamente depois de verificar o gume. Não havia falhas na obra de Cavallo.

Dos vinte legionários originais, apenas onze estavam de pé e mais dois agonizavam. Sem que precisasse dar ordens, Brutus viu seus homens levantarem os colegas da rua e os sustentarem, trocando algumas últimas palavras enquanto a vida se esvaía em sangue.

Brutus tentou se concentrar. Os homens de Catilina tinham estado prontos para roubá-lo de volta da Décima. Ele já podia estar a caminho de se juntar aos rebeldes, ou estes a ele.

Soube que precisava tomar uma decisão rápido. Seus homens o observavam em silêncio, esperando a ordem.

— Domício, deixe nossos feridos aos cuidados das casas mais próximas. Antes de nos alcançar, leve uma mensagem a Júlio, no senado. Não podemos esperar por ele agora. O resto de vocês, venha correndo comigo.

Sem outra palavra Brutus começou a correr depressa, com seus homens indo atrás o mais rápido que podiam.

 

O senado estava num caos, enquanto trezentos senadores lutavam para gritar uns acima dos outros. Os protestos eram mais altos no centro do salão enquanto quatro dos homens que Júlio prendera eram acorrentados ali, exigindo provas das acusações. A princípio os homens tinham se resignado, mas quando perceberam que Catilina não seria arrastado para junto deles sua confiança retornou depressa.

Pompeu esperou pacientemente o silêncio e por fim foi obrigado a acrescentar sua voz à balbúrdia, gritando acima dos outros.

— Ocupem seus lugares e façam silêncio! — rugiu, olhando furioso ao redor. Os que estavam mais perto sentaram-se rapidamente, e a ondulação que se seguiu restaurou alguma aparência de ordem.

Pompeu esperou até que o ruído tivesse virado sussurros. Apoiou-se no rostro com força, mas antes que pudesse se dirigir ao senado inquieto, um dos quatro acusados levantou as correntes, num apelo.

— Cônsul, exijo que sejamos soltos. Fomos arrastados de nossas casas sob...

— Fique quieto ou mandarei que seja amordaçado com ferro. — Pompeu falou em voz baixa, mas desta vez ela chegou aos mais distantes recessos da casa. — Você terá a chance de responder às acusações trazidas por César. — E respirou fundo. — Senadores, estes homens são acusados de uma trama para criar tumultos na cidade levando a uma rebelião em escala total e à derrubada do poder deste corpo, culminando no assassinato de nossas autoridades. Os de vocês que gritam tão alto por justiça farão bem em considerar a seriedade desses crimes. Fiquem em silêncio para César, que os acusa.

Enquanto caminhava para o rostro, Júlio sentiu o suor brotar na pele. Onde estava Catilina? Houvera tempo suficiente para Brutus trazê-lo com os outros, mas agora sentia cada passo como uma lenta marcha para a destruição. Não tinha nada além das palavras de Crasso para atacar os homens ou aplacar suas próprias dúvidas.

Encarou as fileiras de colegas, notando as expressões rebeldes de muitos. Suetônio estava quase do lado oposto, sentado com Bíbilo. Os dois praticamente tremiam de interesse pelos procedimentos. Cina estava lá, com a expressão ilegível enquanto assentia para Júlio. Desde a morte da filha ele raramente aparecia no senado. Não podia haver amizade entre os dois, mas Júlio não o considerava inimigo. Desejava ter a mesma certeza com relação aos outros senadores.

Respirou fundo para se acalmar enquanto organizava os pensamentos Se estivesse errado com relação a isso, estava acabado. Se Crasso o havia colocado naquele ponto pretendendo deixá-lo à mercê dos lobos, ele estava diante da desgraça e possivelmente até do banimento.

Encontrou o olhar de Crasso, procurando algum sinal de triunfo. O velho tocou de leve o próprio peito e Júlio não deu sinal de ter visto.

— Acuso estes homens e o outro, chamado Lúcio Sérgio Catilina, de traição contra a cidade e o senado — começou Júlio, as palavras ecoando no silêncio de morte. O ar parecia sair estremecendo de seu peito. Não havia como recuar. — Posso confirmar que foi reunido um exército nos povoados ao norte da cidade, com oito a dez mil homens. Tendo Catilina como líder, eles iriam atacar ao sinal de incêndios ateados nas colinas de Roma, junto de uma agitação generalizada. Isso seria fomentado por apoiadores dentro da cidade.

Cada olhar se voltou para os quatro homens acorrentados aos pés deles. Todos estavam de pé, em desafio, olhando de volta com expressão furiosa. Um deles balançou a cabeça incrédulo diante das palavras de Júlio.

Antes que Júlio pudesse continuar, um mensageiro com vestes do senado correu até perto dele e entregou uma tabuleta de cera. Júlio a leu rapidamente, franzindo a testa.

— Tenho notícia de que o líder destes homens escapou dos que mandei para prendê-lo. Agora peço uma ordem do senado para levar a Décima ao norte, contra os bandidos que eles reuniram. Não posso me demorar aqui.

Um senador se levantou lentamente.

— Que provas você nos oferece?

— Minha palavra e a de Crasso — respondeu Júlio depressa, ignorando as próprias dúvidas. — A natureza de uma conspiração é não deixar muitos traços, senador. Catilina escapou matando nove dos meus homens. Ele procurou o senador Crasso, com estes quatro que estão à frente de vocês, oferecendo a morte de Pompeu e uma nova ordem em Roma. Mais informações terão de esperar até que eu lide com a ameaça à cidade.

Crasso se levantou e Júlio o encarou, ainda sem saber se poderia confiar nele. O cônsul olhou para baixo, para os conspiradores acorrentados, e sua expressão mostrou uma raiva profunda.

- Denuncio Catilina como traidor.

Júlio sentiu uma grande onda de alívio quando Crasso falou. Independentemente do que o velho estivesse fazendo, pelo menos não recuou. Crasso olhou para ele antes de continuar, e Júlio se perguntou o quanto o sujeito entendia seus pensamentos.

- Como cônsul dou o consentimento para a Décima deixar Roma e ocupar o campo. Pompeu?

Pompeu se levantou com o olhar saltando para cada um dos dois homens. Também podia sentir que havia mais coisas na história do que o que estavam lhe dizendo, mas depois de longa pausa assentiu.

— Vá, então. Espero que a necessidade seja tão grande quanto estão me dizendo, Júlio. Minha legião impedirá uma rebelião na cidade. Mas esses homens que você chama de conspiradores não serão sentenciados até sua volta e até eu estar satisfeito com a clareza da situação. Eu mesmo irei interrogá-los.

Uma tempestade de sussurros irrompeu entre os bancos, diante dessa fala tensa, e os três homens avaliaram em silêncio a posição de cada um dos outros. Nenhum cedeu.

Crasso foi o primeiro a interromper e chamou um escriba para redigir a ordem, entregando-a a Júlio enquanto este descia do rostro.

— Cumpra seu dever e você estará em segurança — murmurou. Júlio o encarou por um momento antes de sair rapidamente do fórum.

 

Cavalgava com seus Extraordinarii na vanguarda da Décima, cobrindo muitas vezes a distância dos soldados em marcha enquanto seguiam adiante e nas laterais da coluna. Por necessidade ficaram a norte e oeste da cidade enquanto o grosso da legião tinha de ser convocado do acampamento junto ao litoral e atravessar o campo para encontrar a centúria que Brutus trouxera do antigo alojamento da Primogênita.

Quando se juntaram, parte do nervosismo que afetara Brutus desapareceu na empolgação de liderar uma legião contra um inimigo pela primeira vez. Ainda que esperasse ver Júlio chegar por trás, parte dele queria ser deixado sozinho para liderá-los na batalha. Seus extraordinarii giravam sob suas ordens como se tivessem lutado juntos por anos. Brutus adorava a visão e sentiu bastante relutância ao pensar em entregar isso a qualquer pessoa.

Rênio tinha ficado no litoral com cinco centúrias para proteger o equipamento e o ouro trazido da Espanha. Isso precisava ser feito, mas Brutus lamentava cada homem deixado para trás enquanto os números do inimigo eram desconhecidos. A medida que lançava um olhar profissional pela coluna sentiu um arrepio de orgulho diante dos homens que marchavam por ele. Tinham começado com nada mais do que uma águia de ouro e uma lembrança de Mário, mas eram de novo uma legião, e eram seus.

Lançou um olhar para a posição do sol e se lembrou dos mapas que seus batedores tinham desenhado. As forças de Catilina estavam a mais de um dia de marcha da cidade, e ele teria de decidir se faria um acampamento fortificado ou se marcharia durante a noite. A Décima sem dúvida estava o mais revigorada possível, tendo há muito se recuperado da viagem pelo mar que a trouxera a Roma. Além disso, um pensamento rebelde o lembrou de que Júlio poderia alcançá-los se acampassem, e o comando passaria mais uma vez para ele. O terreno irregular seria traiçoeiro no escuro, mas Brutus decidiu impelir seus homens até que encontrassem o inimigo.

A região da Etrúria, da qual Roma era o ponto mais ao sul, era uma terra de montes e ravinas, difícil de atravessar. A Décima foi obrigada a se espalhar em fileiras mais largas para rodear antigos picos e vales e Brutus ficou satisfeito ao ver as formações mudarem com velocidade e disciplina. Otaviano atravessou galopando seu campo de visão, virando o animal numa demonstração espalhafatosa de habilidade ao se aproximar.

— Quanto falta? — gritou acima do barulho dos soldados em movimento.

— Mais quarenta e cinco quilômetros até os povoados que nós investigamos — respondeu Brutus, sorrindo. Dava para ver a empolgação que sentia espelhada no rosto de Otaviano. O rapaz nunca tinha visto uma batalha, e para ele a marcha não era atrapalhada por pensamentos de morte e dor. Brutus deveria estar imune, mas a Décima brilhava ao sol e o garoto que ele já fora adorava estar no comando.

— Leve uma centúria para ficar de escolta na retaguarda — ordenou Brutus, ignorando a expressão de desapontamento no rosto do rapaz. Era duro para ele, mas Brutus sabia que não deveria deixar Otaviano na primeira carga antes de ter aprendido um pouco mais sobre a realidade de uma batalha.

Ficou olhando Otaviano juntar cavaleiros que se moveram em formação perfeita até o fim da coluna. Assentiu satisfeito, sentindo prazer com a chance de pensar como general.

Lembrou-se de como, há anos, tinha entregado a Primogênita a Júlio, e um arrependimento amargo o dominou antes que ele o esmagasse. O comando que exercia era apenas provisório, até a chegada de Júlio, mas sabia que os momentos desta marcha ficariam em sua memória por longo tempo.

Um dos batedores chegou depressa, o animal derrapando na terra frouxa enquanto o cavaleiro puxava as rédeas. O rosto do sujeito estava pálido de empolgação.

— O inimigo está à vista, senhor. Marchando para Roma.

— Quantos? — perguntou Brutus, com o coração disparando.

— Duas legiões de irregulares, senhor, em quadrados abertos. Sem cavalaria que eu pudesse ver.

Um grito veio de trás, e Brutus girou na sela com um sentimento quase de medo. Atrás da coluna dois cavaleiros galopavam para eles. Então soube que Domício tinha cumprido o dever e trazido Júlio para a Décima. Trincou o maxilar contra a raiva que o dominou.

Virou-se para o batedor, hesitando. Será que deveria esperar Júlio para assumir o comando? Não, não esperaria. A ordem era sua, e ele respirou fundo.

— Espalhe a notícia. Avançar e enfrentar o inimigo. Mande os cornicens tocarem ordem de manipula. Velites na ponta para enfrentá-los. Extraordinarii nos flancos. Vamos romper esses desgraçados no primeiro ataque.

O batedor fez uma saudação antes de galopar para longe e Brutus se sentiu vazio enquanto olhava a nuvem de poeira que prometia sangue e batalha. Agora Júlio iria conduzi-los.

Ao ver a legião se aproximando as fileiras de mercenários hesitaram e diminuíram o passo. A Décima estava deslizando pela terra na direção deles como uma grande fera prateada e o terreno estremecia delicadamente com a cadência de sua marcha. Uma quantidade de bandeiras fora erguida ao vento, e o uivo dos cornicens podia ser ouvido debilmente contra a brisa.

Quatro mil dos que tinham vindo pelo ouro de Catilina eram da Gália e seu líder se virou para o romano, pousando a mão poderosa em seu braço.

— Você disse que o caminho para a cidade não estaria defendido — falou rispidamente.

Catilina soltou a mão.

— Nós temos o número para derrotá-los, Glavis. Você sabia que seria um trabalho sangrento.

O gaulês assentiu, franzindo os olhos em meio à poeira em direção às fileiras romanas. Seus dentes apareciam através da barba enquanto ele tirava uma espada pesada da bainha presa às costas, grunhindo ao sentir o peso. Ao redor seus homens seguiram o gesto, até que uma enorme quantidade de lâminas se ergueu acima das cabeças para enfrentar o desafio.

— Então é apenas esta pequena legião, e mais uma na cidade. Vamos comê-los — prometeu Glavis inclinando a cabeça para trás e gritando. Os gauleses ao redor responderam e as fileiras da frente se separaram e se moveram mais depressa, correndo pelo terreno irregular.

Catilina desembainhou seu gládio e enxugou o suor dos olhos. Seu coração martelava com um medo desacostumado e ele se perguntou se o gaulês tinha notado. Balançou a cabeça, amargo, e xingou Crasso por suas mentiras. Poderia ter havido uma chance de tomar Roma na confusão, no pânico e no escuro, mas uma legião no campo?

— Nós temos os números — sussurrou consigo mesmo, engolindo em seco. A sua frente viu uma massa fluida de cavalos encontrar as fileiras. O terreno tremia com o peso do ataque e de repente Catilina acreditou que ia morrer. Naquele momento o pânico desapareceu e seus pés estavam leves enquanto corria.

Júlio assumiu o comando sem hesitar enquanto levava sua montaria suada até Brutus. Entregou a tabuleta de cera assinada pelos cônsules.

— Agora somos legítimos. Você deu as ordens de batalha?

— Dei. — Brutus tentou esconder a frieza que sentia, mas Júlio estava olhando para longe, avaliando a linha de aproximação das forças rebeldes.

— Os extraordinarii estão prontos nos flancos — disse Brutus. — Eu gostaria de me juntar a eles.

Júlio assentiu.

Quero ver esses mercenários dominados rapidamente. Pegue a direita e lidere os extraordinarii ao meu sinal. Duas notas curtas das trompas. Fique atento.

Brutus saudou e foi embora, cedendo o comando sem um olhar para trás. Us extroordinarii tinham assumido posição em fileiras. Deixaram seu cavalo ir até a frente ao vê-lo se aproximar, e algumas vozes animadas gritaram as boas-vindas. Brutus franziu a testa diante disso, esperando que não estivessem confiantes demais. Como acontecia com Otaviano, havia uma diferença entre despedaçar alvos com escudos e enfiar lanças em homens vivos.

— Mantenham as fileiras — gritou Brutus por cima da cabeça dos homens, olhando-os com ferocidade.

Então eles se aquietaram, ainda que a empolgação fosse palpável. Os cavalos relinchavam e puxavam querendo disparar, mas eram contidos com mãos firmes. Os homens estavam nervosos, dava para ver. Muitos deles verificavam as lanças repetidamente, afrouxando-as nos longos suportes de couro que pendiam nas laterais dos cavalos.

Agora podiam ver o rosto dos rebeldes, uma massa de homens gritando e correndo com espadas erguidas acima dos ombros para um golpe esmagador. As lâminas refletiam o sol.

As centúrias da Décima apertaram as formações, cada homem pronto com o gládio desembainhado, o escudo protegendo o soldado da esquerda. Não havia aberturas nas fileiras enquanto marchavam rapidamente. Então os cornicens tocaram três notas curtas e a Décima começou a correr, mantendo silêncio até o último instante, quando todos rugiram como um só e levantaram as lanças.

As pesadas pontas de ferro levantavam homens do chão ao longo da linha inimiga e Brutus mandou os extraordinaríi atacarem ligeiramente atrás, com seus golpes mais precisos apontados para qualquer um que tentasse organizar o inimigo. Antes que os exércitos se encontrassem de verdade, centenas tinham morrido sem que uma vida romana fosse tomada. Os extraordinaríi circulavam nas laterais e Júlio podia ver os cavaleiros girando os escudos automaticamente para cobrir as costas enquanto faziam a volta. Era uma soberba demonstração de habilidade e treinamento, e Júlio exultou diante daquela visão enquanto as fileiras principais se entrechocavam.

Glavis gastou seu primeiro golpe poderoso contra um escudo, despedaçando-o. Enquanto tentava se recuperar, uma espada penetrou em sua barriga. Encolheu-se esperando a dor que viria, erguendo a lâmina de novo. Enquanto tentava um segundo golpe, outro romano o acertou com o escudo e ele caiu de lado, com a espada derrubada dos dedos entorpecidos. Entrou em pânico enquanto olhava para cima e via a floresta de pernas e espadas começando a passar. Os romanos o chutavam e pisoteavam, e em segundos seu corpo fora penetrado mais quatro vezes. O sangue jorrava e ele cuspiu cansado sentindo o gosto de sangue na garganta. Ninguém poderia ter marcado o instante exato de sua morte. Não teve tempo de ver a primeira linha de seus gauleses desmoronar enquanto se descobriam incapazes de romper o ritmo de luta da Décima.

Quando Glavis foi visto caindo os gauleses hesitaram, e esse foi o momento que Júlio tinha esperado para ver. Gritou para seu sinalizador e as duas notas curtas soaram.

Brutus ouviu e sentiu o coração saltar no peito. Apesar da vantagem dos números os mercenários estavam sendo rompidos pela carga romana. Alguns já estavam se afastando, largando as espadas. Brutus riu enquanto levantava o punho, movendo-o na direção do inimigo. Agora os suportes das lanças estavam vazios e eles iriam provar seu verdadeiro valor. Os extraordinarii responderam como se tivessem lutado juntos por toda a vida, girando para se dar espaço e depois acertando o inimigo como uma faca rasgando as fileiras. Cada cavaleiro guiava a montaria com uma das mãos nas rédeas e a comprida espada cortando as cabeças dos que os enfrentavam. Os cavalos eram suficientemente pesados para arrancar os homens do chão e nada podia suportar seu impulso mergulhando nas fileiras, cada vez mais fundo, rompendo os rebeldes.

A primeira fileira da Décima moveu-se rapidamente sobre o inimigo, cada homem usava a espada e o escudo sabendo que era protegido pelo irmão da direita. Eram impossíveis de ser contidos, e depois que as primeiras fileiras caíram eles aceleraram, ofegando e grunhindo de esforço enquanto os braços começavam a cansar.

Júlio gritou as ordens de manipula e seus centuriões as rugiram. Os velites recuaram com pés leves e deixaram os triarii se adiantarem com suas armaduras mais pesadas.

Então os rebeldes desistiram quando novos soldados chegaram contra Centenas largaram as armas e outras centenas saíram correndo, ignorando os chamados dos líderes.

Para os que se rendiam cedo demais não podia haver misericórdia. A fileira romana não podia se dar ao luxo de que eles permanecessem através do avanço, e todos foram mortos com o resto.

Os extraordinarii fluíam ao redor dos rebeldes, uma massa preta de cavalos fungando e cavaleiros gritando, manchados de vermelho do sangue e suficientemente loucos para gerar pesadelos. Eles os cercaram e, como se tivesse havido um sinal geral, milhares de homens largaram as espadas e levantaram as mãos vazias, ofegando.

Júlio hesitou ao ver o fim. Se não mandasse os cornicens soarem para cessar a luta, a Décima continuaria até que o último rebelde estivesse morto. Parte dele sentia-se tentado a deixar. O que faria com tantos prisioneiros? Milhares tinham sido deixados vivos e não podiam ter permissão de voltar às suas terras e seus lares. Esperou, sentindo o olhar dos centuriões aguardando o sinal para parar a matança. Nesse momento havia uma carnificina e os que estavam mais perto dos romanos já começavam a pegar as espadas de novo, para não morrer desarmados. Júlio xingou baixinho, baixando a mão. Os cornicens viram o movimento e tocaram uma nota descendente. E estava acabado.

Os que foram deixados vivos foram desarmados o mais rapidamente que a Décima conseguiu, espalhando-se entre eles. Em pequenos grupos os soldados revistaram os mercenários, com um romano retirando as armas enquanto os outros o observavam numa concentração séria, prontos para punir qualquer movimento súbito.

Os oficiais mercenários tinham sido retirados das fileiras e levados à frente de Júlio. Eles o observavam em resignação silenciosa, um grupo estranho, vestido com tecidos grosseiros e armaduras desiguais.

Uma brisa soprou fria pelo campo de batalha enquanto o sol descia para o horizonte. Júlio olhou para os prisioneiros ajoelhados, arrumados numa aparência de fileiras, com cadáveres interrompendo as linhas. O corpo de Catilina fora encontrado e arrastado até a frente. Júlio olhou aquela coisa furada e sangrenta que tinha sido um senador. Dele não viriam respostas.

Mesmo sabendo que conhecia a verdade sobre a rebelião fracassada, suspeitava que Crasso permaneceria intocado pela participação. Talvez fosse melhor que alguns segredos ficassem longe do olhar do público. Não seria mau ter o homem mais rico de Roma devendo a ele.

Olhou Otaviano dando um tapa no pescoço de sua montaria, pratica-mente luzindo com a empolgação da velocidade e do medo que iam recuando. Finalmente os extraordinarii tinham tido o batismo de sangue. Cavalos e homens estavam ensangüentados e sujos de terra levantada durante o ataque. Brutus se encontrava entre eles, trocando baixas palavras de elogio enquanto esperava Júlio terminar. Não era uma ordem que ele teria gostado de dar, admitiu Brutus, mas Roma não permitiria uma demonstração de misericórdia.

Júlio sinalizou para os homens da Décima arrebanharem os oficiais mais para perto. Os optios bateram com os cajados nos mercenários, fazendo um deles cair esparramado. O sujeito gritou de raiva e teria se jogado contra eles se outro não o tivesse segurado. Júlio prestou atenção enquanto eles discutiam, mas a língua era desconhecida.

— Há um comandante entre vocês? — perguntou finalmente. Os líderes se entreolharam e um se adiantou.

— Era Glavis, para os de nós que somos da Gália. — O sujeito apontou o polegar para as pilhas de corpos que atulhavam o chão. — Está por aí.

O sujeito devolveu a avaliação fria de Júlio antes de desviar o olhar. Observou o campo de batalha com uma expressão triste antes que seus olhos retornassem rapidamente.

— Você tem nossas armas, romano. Não somos mais uma ameaça. Deixe-nos ir.

Júlio balançou a cabeça lentamente.

— Vocês nunca foram uma ameaça para nós — falou notando a fagulha que brilhou nos olhos do sujeito antes de se esconder. Em seguida ergueu a voz para chegar a todos eles. — Vocês têm uma escolha, senhores. Ou morrem sob minha palavra... —Júlio hesitou. Pompeu ficaria alucinado quando soubesse. — Ou fazem o juramento de legionários para mim, sob minhas ordens.

A balbúrdia que se seguiu não foi restrita aos mercenários. Os soldados da Décima ficaram boquiabertos pelo que ouviam.

— Receberão pagamento no primeiro dia de cada mês. Setenta e cinco moedas de prata para cada homem, mas parte disso será retida.

Quanto? — gritou alguém. Júlio se virou na direção da voz.

— O bastante para o sal, comida, armadura e para um dízimo destinado às viúvas e aos órfãos. Restarão quarenta e dois denários para cada homem gastar como quiser.

Um pensamento o assaltou então e o fez hesitar. O pagamento para tantos homens significaria milhares de moedas. Seria preciso uma riqueza gigantesca para manter duas legiões, e até mesmo o ouro que ele trouxera da Espanha sumiria rapidamente sob tal demanda. Como Catilina tinha arranjado dinheiro? Empurrou de lado a suspeita súbita, para continuar.

— Espalharei meus oficiais em suas fileiras para treiná-los a lutar tão bem quanto os homens que os fizeram parecer crianças hoje. Vocês terão boas espadas e armaduras, e a recompensa virá com o tempo. É isso ou morrer agora. Andem entre seus homens e lhes digam isso. Alerto que, se estão pensando em escapar, vou caçá-los e enforcá-los. Os que optarem por viver serão levados a Roma, mas não como prisioneiros. O treinamento será duro, mas eles têm coragem suficiente para começar. Qualquer outra coisa pode ser ensinada.

— Você vai nos devolver nossas armas? — perguntou a voz, vinda dos oficiais.

— Não seja idiota. Agora andem! De um modo ou de outro isto vai acabar ao pôr-do-sol.

Incapazes de enfrentar seu olhar, os mercenários saíram, voltando aos irmãos que estavam ajoelhados na lama. Os legionários deixaram que eles passassem, trocando olhares de espanto.

Enquanto eles esperavam, Brutus foi até o lado de Júlio.

— O senado não ficará satisfeito, Júlio. Você não precisa de mais inimigos.

— Eu estou no campo. Quer eles gostem ou não, no campo eu falo pela cidade. Aqui eu sou Roma, e a decisão é minha.

— Mas nós tínhamos ordens para destruí-los — disse Brutus suficientemente baixo para não ser ouvido.

Júlio deu de ombros.

— Isso ainda pode acontecer, meu amigo, mas você deveria esperar qi eles fizessem o juramento.

— Por que eu deveria esperar isso? — perguntou Brutus cheio de suspeitas.

Júlio sorriu, estendendo a mão para lhe dar um tapa no ombro.

- Porque eles serão sua legião.

Brutus ficou imóvel, absorvendo aquilo.

- Eles se dobraram diante de nós, Júlio. Nem o próprio Marte poderia transformar esse pessoal numa legião.

- Você fez isso uma vez, com a Primogênita. Fará com estes. Diga que eles sobreviveram a uma carga da melhor legião saída de Roma, sob o comando de um general abençoado. Levante a cabeça deles, Brutus, e eles irão segui-lo.

- Eles serão somente meus?

Júlio o encarou.

.— Se você ainda for minha espada, juro que não interferirei, mas o comando geral deverá ser meu quando lutarmos juntos. Afora isso, se você seguir meu caminho será por sua escolha. Como sempre foi.

Um a um os oficiais mercenários estavam se reunindo de novo. Quando se encontravam assentiam depressa, relaxando visivelmente. Júlio sabia que os tinha ganhado antes mesmo que o porta-voz viesse em sua direção.

— Não foi exatamente uma escolha — disse o homem.

— Não há... nenhuma recusa? — perguntou Júlio em voz baixa. O gaulês balançou a cabeça.

— Bom. Mande que eles se levantem. Quando cada homem tiver feito o juramento vamos acender tochas e marchar pela noite até Roma. Há um alojamento lá para vocês e uma refeição quente.

Júlio se virou para Brutus.

— Mande os cavaleiros mais descansados com mensagens para os senadores. Eles não saberão se somos o inimigo ou não, e não quero disparar a própria rebelião que lutamos para impedir.

— Nós somos o inimigo — murmurou Brutus.

— Não mais, Brutus. Nenhum desses homens dará um passo antes de estar preso por juramento. Depois disso eles serão nossos, quer saibam ou não enquanto cavalgava para a cidade com uma guarda composta por extraordinarii escolhidos, Júlio viu que os portões estavam fechados. A primeira luz cinzenta da alvorada já estava aparecendo no horizonte e ele sentiu um cansaço nas juntas. Ainda havia mais a ser feito antes que pudesse parar.

— Abram o portão! — gritou enquanto puxava as rédeas, olhando para a massa sombria de madeira e ferro que bloqueava o caminho.

Um legionário usando a armadura de Pompeu apareceu na muralha observando-os. Depois de um olhar para o pequeno grupo de cavaleiros espiou para a estrada, vendo que não havia uma força escondida esperando para invadir a cidade.

— Só depois do amanhecer, senhor — gritou ele, reconhecendo a armadura de Júlio. — Ordens de Pompeu.

Júlio xingou baixinho.

— Então me jogue uma corda. Eu tenho negócios com o cônsul e não vou esperar.

O soldado desapareceu, presumivelmente para falar com seu oficial superior. Os extraordinarii se agitaram inquietos.

— Recebemos ordem de escoltá-lo ao senado, general — disse um deles. Júlio se virou na sela para encarar o sujeito.

— Se Pompeu lacrou a cidade a legião dele deve estar inteira nas ruas. Não correrei perigo.

— Sim, senhor — respondeu o cavaleiro, com a disciplina impedindo-o de contestar.

Na muralha um oficial apareceu com armadura completa, a pluma do capacete movendo-se ligeiramente na brisa noturna.

— Edil César? Vou descer uma corda se o senhor me der a palavra de que virá sozinho. Os cônsules não disseram nada quanto à sua chegada tão cedo.

— Você tem minha palavra — respondeu Júlio, observando enquanto o sujeito sinalizava e um rolo de corda caía até o pé do portão. Viu os arqueiros cobrindo-o das torres e assentiu sozinho. Pompeu não era idiota.

Enquanto desmontava e segurava a corda, Júlio olhou para os extraordinarii.

— Voltem ao antigo alojamento da Primogênita com os outros. Brutus está no comando até minha volta.

Sem outra palavra começou a subir.

 

Uma chuva fraca começou a cair enquanto Júlio caminhava pela cidade vazia. Com a alvorada no horizonte as ruas deveriam estar cheias de trabalhadores, serviçais e escravos se agitando em mil tarefas. Os gritos dos vendedores deveriam ser ouvidos, junto com o barulho de milhares de atividades. Em vez disso havia um silêncio fantasmagórico.

Júlio curvou os ombros por causa da chuva, ouvindo seus passos ecoarem nas casas de cada lado. Viu rostos nas altas janelas dos cortiços, mas ninguém gritou para ele, que se apressou na direção do fórum.

Os homens de Pompeu estavam em cada esquina, em pequenos grupos, prontos para impor o toque de recolher. Um deles segurou no punho da espada ao ver a figura solitária. Júlio jogou para trás a capa de montaria revelando a armadura por baixo, e eles o deixaram passar. Toda a cidade estava nervosa, e Júlio sentiu uma raiva incômoda do papel que Crasso havia representado naquilo.

Caminhou rapidamente pela Alta Semita, descendo a colina do Quirinal até o torum. As grandes pedras lisas usadas para a travessia o mantinham longe da imundície do leito da rua abaixo dos pés. A chuva tinha começado a lavar a cidade» mas demoraria mais do que um breve aguaceiro para terminar a tarefa.

Em toda a vida nunca tinha visto o vasto espaço do fórum tão vazio. Um Vento que fora bloqueado pelas fileiras de casas o acertou quando ele entrou na praça, fazendo sua capa estalar às costas. Havia soldados nas entradas do templo e do senado, mas não dava para ver nenhuma luz dentro. Os sacerdotes tinham acendido tochas para os que rezavam dentro, mas Júlio não tinha nada a ver com eles. Enquanto passava pelo templo de Minerva murmurou baixinho para ela, pedindo sabedoria para abrir caminho pelo emaranhado que Crasso criara.

Os cravos de ferro de suas sandálias estalavam nas pedras do grande espaço enquanto se aproximava do prédio do senado. Dois legionários montavam guarda, absolutamente imóveis apesar da chuva e do vento que açoitavam a pele exposta. Quando Júlio pôs o pé no primeiro degrau os dois desemba-inharam as espadas e Júlio franziu a testa. Ambos eram jovens. Homens mais experientes não teriam sacado as armas com tão pouca provocação.

— Por ordem do cônsul Pompeu ninguém pode entrar até que o senado seja convocado outra vez — disse um deles, cheio da importância de seu dever.

— Preciso falar com os cônsules antes da reunião — respondeu Júlio. — Onde estão eles?

Os dois soldados se entreolharam por um momento, tentando decidir se seria certo dar a informação. Encharcado até os ossos, Júlio sentiu o mau humor crescendo.

— Recebi ordens de prestar contas assim que voltasse a Roma. Estou aqui. Onde está o seu comandante?

— Na prisão, senhor — respondeu o soldado. E abriu a boca para continuar, depois achou melhor não fazer isso, retomando a posição de antes e embainhando o gládio. De novo pareciam estátuas gêmeas na chuva.

Havia nuvens escuras sobre a cidade e o vento estava ganhando força, começando a uivar no fórum vazio. Júlio resistiu à ânsia de correr em busca de abrigo e caminhou até a prisão anexa ao prédio do senado. Era uma construção pequena, com apenas duas celas no subsolo. Os que seriam executados eram mantidos ali durante a noite anterior à morte. Não havia outras prisões na cidade: a execução e o banimento anulavam a necessidade de construí-las. O simples fato de Pompeu estar lá, revelou a Júlio o que encontraria, e ele se preparou para encarar o fato sem se encolher.

Outro par dos homens de Pompeu guardava a porta externa. Enquanto Júlio se aproximava os dois assentiram como se ele fosse esperado e abriram o portão de ferro.

A armadura que ele usava estava marcada com a insígnia da Décima, e Júlio não foi interrompido até chegar à escada que descia para as celas. Três homens se separaram sutilmente enquanto ele se anunciava, e outro desceu escada. Júlio esperou pacientemente enquanto ouvia seu nome falado em algum lugar lá embaixo e o trovão da resposta de Pompeu. Os homens que o observavam estavam rígidos de tensão, por isso ele se encostou na parede do modo mais relaxado que pôde, tirando com a mão parte da água grudada à armadura e espremendo-a do cabelo. As ações o ajudaram a relaxar sob os olhares silenciosos e Júlio pôde sorrir quando Pompeu veio com o soldado.

- Este é César — confirmou Pompeu. Seus olhos estavam duros e não havia sorriso de resposta. Diante da confirmação do general os homens afastaram as mãos do punho das espadas e se afastaram, deixando aberto o caminho para a escada.

— Ainda há ameaça à cidade? — perguntou Pompeu.

— Ela terminou. Catilina não sobreviveu à batalha. Pompeu xingou baixinho.

— Isso é lamentável. Desça comigo, César. Você deve fazer parte disto.

Enquanto falava, Pompeu enxugou o suor da testa e Júlio viu uma mancha de sangue em sua mão. Seguiu-o escada abaixo, com o coração martelando de ansiedade.

Crasso estava nas celas. O sangue parecia ter sumido de seu rosto, e sob a luz das lâmpadas ele parecia uma figura de cera. Ergueu os olhos quando Júlio entrou na sala baixa e seus olhos brilharam de modo doentio. Havia um cheiro enjoativo no ar e Júlio tentou não olhar para as figuras amarradas às cadeiras no centro da cela. Eram quatro, e o cheiro de sangue fresco era muito bem conhecido.

— E Catilina? Você o trouxe? — perguntou Crasso, pondo a mão no braço de Júlio.

— Ele foi morto no primeiro ataque, cônsul — respondeu Júlio observando os olhos do outro. Viu o medo sumir, como havia esperado. Os segredos de Catilina tinham morrido junto com ele.

Pompeu grunhiu, sinalizando para os torturadores que estavam perto dos corpos machucados dos conspiradores.

Uma pena. Essas criaturas o citaram como líder, mas não sabem nada dos detalhes que eu queria. Se soubessem já teriam contado.

Júlio olhou para os homens e conteve um tremor diante do que lhes fora feito. Pompeu tinha sido meticuloso e ele também duvidava de que os homens pudessem ter deixado de falar alguma coisa. Três deles pareciam mortos, imóveis, mas o último revirou a cabeça para eles com um movimento brusco. Um de seus olhos fora cortado e chorou um jorro brilhante de líquido pela bochecha, mas o outro espiava ao redor sem objetivo, iluminando-se ao ver Júlio.

— Você! Eu acuso você! — cuspiu ele, depois balbuciou debilmente com o sangue escorrendo pelo queixo.

Júlio lutou contra a sensação de vômito ao ver alguns cacos de dentes brancos no chão de pedra. Alguns ainda tinham as raízes presas.

— Ele ficou louco — falou baixinho e, para seu alívio, Pompeu assentiu.

— É, mas foi o que suportou mais tempo. Eles viverão o bastante para ser executados, e será o fim. Devo agradecer a vocês por trazer isso ao senado a tempo. Foi um ato nobre e digno dos dois. — Pompeu olhou para o homem que concorreria ao cargo de cônsul dentro de apenas dois meses.

— Quando meu toque de recolher tiver terminado acho que o povo vai se regozijar por ter sido salvo de uma insurreição sangrenta. Elevai elegê-lo, não acha? Como pode não eleger?

Seus olhos negavam o tom leve e Júlio não o encarou enquanto sentia o olhar do sujeito. Teve vergonha daquilo tudo.

— Talvez sim — disse Crasso em voz baixa. — Nós três teremos de trabalhar juntos por Roma. Um triunvirato trará seus próprios problemas, tenho certeza. Talvez devêssemos...

— Em outra ocasião, Crasso — respondeu Pompeu rispidamente. — Não agora, com o cheiro deste lugar nos meus pulmões. Ainda temos uma reunião do senado ao amanhecer e quero visitar a casa de banhos antes disso.

— O amanhecer já está chegando — disse Júlio.

Pompeu xingou baixinho, usando um trapo para limpar as mãos.

— Aqui em baixo é sempre noite. Acabem com esses aí.

Deu ordens aos torturadores para limpar os homens e torná-los apresentáveis, antes de se virar para Crasso. Enquanto Júlio observava, esponjas escuras foram mergulhadas em baldes e o pior do sangue começou a ser lavado, correndo em valetas de pedra ao longo do chão, entre suas pernas.

— Marcarei a execução para o meio-dia — prometeu Pompeu subindo a escada à frente deles, para as salas frescas acima.

A luz cinzenta havia assumido um tom avermelhado enquanto Júlio e Crasso saíam ao fórum. A chuva batia nas pedras, ricocheteando em milhares de gotas minúsculas que tamborilavam no vazio. Apesar de Júlio ter chamado seu nome, Crasso se afastou rapidamente sob o aguaceiro. Sem dúvida um banho e uma troca de roupas retirariam parte da palidez doentia de sua pele, pensou Júlio. Correu para alcançar o cônsul.

— Algo me ocorreu enquanto estava destruindo os rebeldes reunidos em seu nome — gritou Júlio, com a voz ecoando.

— Em meu nome, Júlio? Catilina os liderava. Os seguidores dele não assassinaram seus soldados na rua?

— Talvez, mas a casa que você me mostrou era modesta, Crasso. Onde Catilina teria conseguido ouro suficiente para pagar dez mil homens? Muito poucos nesta cidade poderiam ter pagado por um exército assim, não acha? Imagino o que aconteceria se eu mandasse homens investigar as contas dele. Será que encontraria um traidor com gigantescas reservas de riqueza oculta, ou será que deveria procurar por outro, por um financiador?

Crasso não podia saber nada sobre os papéis queimados que Brutus encontrara na casa, e a fagulha de preocupação que Júlio viu era tudo que precisava para confirmar as suspeitas.

— Percebo que uma força tão grande de mercenários, junto com tumultos e incêndios na cidade, poderia ter se saído bem tendo apenas a legião de Pompeu para guardar Roma. Não foi uma oferta vazia que eles lhe fizeram, não é, Crasso? A cidade poderia muito bem ter sido sua. Estou surpreso por você não ter se sentido tentado. Você ficaria de pé sobre a montanha de cadáveres e Roma poderia estar pronta para uma ditadura.

Enquanto Crasso começava a responder, a expressão de Júlio mudou, e seu tom zombeteiro ficou duro.

— Mas sem aviso outra legião é trazida da Espanha para Roma e então...? Então você deve ter ficado numa situação bem diferente. As forças estão estabelecidas, a conspiração está armada, mas Roma está guardada por dez mil e a vitória não é mais garantida. Um jogador poderia ter se arriscado, mas não você. Você é um homem que sabe quando o jogo acabou. Imagino quando decidiu que era melhor trair Catilina do que ir até o final. Foi quando chegou em minha casa e planejou minha campanha comigo?

Crasso pôs a mão no ombro de Júlio.

- Eu disse que sou amigo de sua casa, Júlio, por isso vou ignorar suas palavras. Para seu próprio bem. — Ele parou um instante. — Os conspiradores estão mortos e Roma está em segurança. Na verdade é um resultado excelente. Que isso baste para você. Não há mais nada que deva perturbar seus pensamentos. Deixe para lá.

Inclinando a cabeça para se proteger da chuva, Crasso se afastou e deixou Júlio observando-o.

 

As nuvens cinzentas e frias pairavam baixas no céu sobre a vasta multidão que esperava no Campo de Marte. O terreno estava encharcado, mas milhares tinham deixado suas casas e locais de trabalho para caminhar até o grande campo e testemunhar as execuções. Os soldados de Pompeu esperavam em fileiras perfeitas e brilhantes, sem qualquer sinal do trabalho para construir a plataforma dos prisioneiros, ou para montar a quantidade de bancos para os senadores. Até o chão fora coberto com junco seco que estalava sob os pés.

Crianças eram levantadas no alto pelos pais para captar um vislumbre dos quatro homens que esperavam em desgraça na plataforma de madeira, e a multidão conversava em voz baixa, sentindo algo da solenidade do momento.

A medida que o meio-dia se aproximava os senadores tinham deixado suas deliberações na Cúria e caminharam juntos até o campo. Soldados da Décima tinham se juntado aos homens de Pompeu fechando a cidade, colocando lacres de cera nos portões e levantando a bandeira na colina Junículo. Com o senado ausente a cidade era mantida em estado de sítio armado, até a volta. Muitos senadores olhavam preguiçosamente para a bandeira distante na colina a oeste. Ela permaneceria ali até que a cidade estivesse em segurança, e até mesmo a execução dos traidores seria interrompida se a bandeira fosse baixada para alertar sobre a aproximação de um inimigo.

Júlio estava parado, com as dobras úmidas de sua melhor capa enrolada no corpo. Mesmo com a túnica e a toga pesada por baixo ele tremia olhando os desgraçados trazidos a este local de morte devido às ações dele.

Os prisioneiros não tinham proteção contra o vento cortante. Apenas dois conseguiam ficar de pé e estavam encolhidos de dor, com as mãos acorrentadas apertando num sofrimento mudo os ferimentos da noite. Talvez porque a morte estivesse tão perto aqueles dois sorviam o ar frio, enchendo os pulmões e ignorando a ardência na pele exposta.

O mais alto dos dois tinha cabelo comprido que batia no rosto e o escondia. Os olhos estavam inchados, mas Júlio pôde ver um brilho quase oculto pela pele machucada, o clarão febril de um animal caído numa armadilha.

O que tinha falado com Júlio na prisão estava soluçando, com a cabeça envolta num tecido. Uma escura moeda de sangue tinha aparecido no material, marcando o lugar onde o olho estivera. Júlio estremeceu diante da lembrança e apertou mais a capa, sentindo o metal gélido de um dos broches de Alexandria tocar o pescoço. Olhou para Pompeu e Crasso, parados no leito de juncos postos sobre a lama. Os dois cônsules conversavam em voz baixa e a multidão esperava por eles, com os olhos brilhantes de antecipação.

Por fim os dois se separaram. Pompeu atraiu o olhar de um magistrado da cidade e a multidão se remexeu e conversou enquanto o homem subia à plataforma e olhava para todos.

— Estes quatro foram considerados culpados de traição contra a cidade. Por ordem dos cônsules Crasso e Pompeu e por ordem do senado eles serão executados. Seus corpos serão esquartejados e a carne espalhada para as aves. Suas cabeças serão postas em quatro portões como alerta aos que ameaçam Roma. Esta é a vontade de nossos cônsules, que falam como Roma.

O carrasco era um açougueiro de profissão, um homem corpulento com cabelos grisalhos cortados curtos. Usava uma toga de lã marrom áspera, presa com cinto para sustentar a barriga ampla. Não se apressou, desfrutando do olhar da multidão concentrada nele. As moedas de prata que receberia pelo serviço não se comparavam à satisfação que sentia ao realizá-lo.

Júlio ficou olhando enquanto o sujeito fingia examinar a faca, passando uma pedra pela lâmina uma última vez. Era uma lâmina maligna, um cutelo estreito do tamanho de seu antebraço, com a lâmina engastada num grosso cabo de madeira. O metal tinha quase um dedo de grossura na parte mais espessa. Uma criança riu nervosamente e foi silenciada pelos pais. O prisioneiro de cabelos compridos começou a rezar alto, com os olhos vítreos. Talvez fosse esse barulho, ou apenas um sentimento de espetáculo, mas o açougueiro foi direto para ele, encostando o cutelo em seu pescoço.

O homem se encolheu e sua voz ficou mais aguda, o ar sibilando ao entrar e sair dos pulmões em jorros súbitos. Suas mãos tremeram e a pele pálida ficou branca como cera. A multidão olhou fascinada o açougueiro pegar um punhado de seus cabelos e inclinar a cabeça lentamente para o lado, expondo a linha limpa do pescoço.

A voz do homem saiu profunda e grave.

— Não, não... não — murmurou, e a multidão se esforçou para ouvir suas últimas palavras.

Não houve fanfarras nem aviso. O açougueiro ajeitou a mão segurando os cabelos do sujeito e começou a cortar lentamente a carne. O sangue jorrou, encharcando os dois, e o condenado ergueu as mãos tentando debilmente puxar a faca que comia sua carne, para trás e para a frente, com precisão terrível. Soltou um ruído baixo, um grito feio que durou apenas um momento. Suas pernas desmoronaram mas o açougueiro era forte e o segurou até que o cutelo roçou o osso. Então puxou-o e, com dois golpes rápidos, decepou a cabeça, deixando o corpo cair frouxo. Músculos ainda estremeciam nas bochechas e os olhos permaneceram abertos numa paródia da vida.

Na multidão mãos cobriram bocas num prazer estremecido enquanto o corpo escorregava da plataforma para os juncos abaixo, parecendo sem ossos. As pessoas ficaram nas pontas dos pés empurrando-se para ver enquanto o açougueiro erguia a cabeça para elas, com o sangue escorrendo pelo braço e manchando a toga até ficar quase preta. O queixo se abriu com o movimento, revelando os dentes e a língua.

Um dos outros prisioneiros vomitou sobre si mesmo e depois gritou. Como se fosse um sinal, os outros dois se juntaram a ele, gemendo e implorando. A multidão se empolgou com o barulho, zombando e rindo loucamente com a quebra na tensão. O açougueiro enfiou a cabeça decepada num saco de pano e se virou lentamente para segurar o homem mais próximo. Fechou a mão forte numa das orelhas e obrigou a figura que gritava a ficar de pé.

Júlio desviou o olhar até que tudo terminasse. Ao fazer isso viu Crasso se virar em sua direção, mas ignorou o olhar dele. O povo aplaudiu cada cabeça que era mostrada, e Júlio o observou, curioso. Imaginava se os espetáculos pagos por Crasso tinham pelo menos a metade da atração de hoje.

Era o seu povo, esta multidão que se estendia escura sobre o terreno molhado do Campo de Marte. Os senhores nominais da cidade, saciados com o terror dos outros e sentindo-se limpos por ele. Quando tudo terminou, viu os rostos se afrouxarem como se algum peso enorme fosse retirado. Maridos e esposas trocavam piadas, relaxando, e ele soube que haveria pouco trabalho na cidade naquele dia. Eles passariam pelos grandes portões e iriam para as casas de vinho e estalagens discutir o que tinham visto. Os problemas da vida ficariam menos importantes por algumas horas. A cidade deslizaria até a tarde sem nada da pressa usual nas ruas. Eles dormiriam bem e acordariam revigorados.

As fileiras dos homens de Pompeu se abriram para dar passagem aos senadores. Júlio se levantou com os outros e voltou ao portão, observando os lacres serem quebrados e uma faixa de luz aparecer entre eles. Tinha dois processos para preparar para o tribunal do fórum e seu torneio de espadas seria dali a apenas alguns dias mas, como a multidão de cidadãos, sentia-se estranhamente em paz ao pensar no trabalho vindouro. Não poderia haver esforços num dia daquele, e o ar úmido parecia limpo e fresco em seus pulmões.

Naquela noite Júlio se levantou e bateu com os nós dos dedos na mesa da casa da campanha. A balbúrdia diminuiu tão rapidamente quanto o bom vinho tinto permitia e ele esperou, olhando em volta os que tinham vindo juntos na disputa para cônsul. Cada pessoa à mesa havia se arriscado bastante no apoio público a ele. Se perdesse, todos sofreriam de algum modo. Alexandria poderia ver os clientes desaparecendo a uma única palavra de Pompeu, e seus negócios arruinados. Se Júlio pudesse levar a Décima a algum posto distante, os que fossem com ele abririam mão das carreiras, homens esquecidos que teriam sorte se vissem a cidade de novo antes da aposentadoria.

Enquanto eles silenciavam Júlio olhou para Otaviano, o único na mesa a quem era ligado por sangue. Ver o culto ao herói no rapaz era doloroso quando pensava nos anos cinzentos que se seguiriam ao seu fracasso e banimento. Será que então Otaviano olharia para a campanha com amargura?

— Chegamos longe — disse a eles. — Alguns de vocês estão comigo quase desde o início. Nem consigo lembrar de quando Rênio não estava presente, ou Caberá. Meu pai teria orgulho de ver seu filho com esses amigos.

— Você acha que ele vai falar meu nome? — perguntou Brutus a Alexandria.

Júlio deu um sorriso gentil. Tinha pensado em fazer um brinde simples aos que haviam entrado no torneio de espadas, mas as execuções da manhã ficaram com ele durante todo o dia, lançando um manto cinzento em seu humor.

— Gostaria que houvesse outros nesta mesa — falou. — Mário, para começar. Quando olho para trás as boas lembranças se perdem no meio das outras, mas conheci grandes homens. — Sentiu o coração martelando no peito enquanto as palavras chegavam. — Jamais conheci um caminho reto na vida. Estava ao lado de Mário quando atravessamos Roma lançando moedas para a multidão. O ar estava cheio de pétalas e aplausos e eu ouvia o escravo cuja tarefa era falar no ouvido dele: "Lembre-se de que você é mortal." — Júlio suspirou ao ver de novo as cores e a empolgação daquele dia. — Estive tão perto da morte que até mesmo Caberá desistiu de mim. Perdi amigos e esperança, e vi reis caírem e Catão cortar a própria garganta no fórum. Estive encharcado pela morte a ponto de achar que nunca mais riria ou gostaria de alguém.

Eles o encararam por cima dos pratos que atulhavam a mesa comprida, mas seu olhar estava distante, e Júlio não viu o efeito das palavras.

— Vi Tubruk morrer e o corpo de Cornélia tão branco que não parecia real, até que a toquei. — Sua voz virou um sussurro e Brutus olhou para a mãe. Ela havia empalidecido, apertando a boca com a mão enquanto Júlio falava. — Vou lhes dizer: não desejaria para ninguém o que vi — murmurou Júlio. Em seguida pareceu voltar, consciente do frio na sala. — Mas ainda estou aqui. Honro os mortos, mas usarei o tempo que tenho. Roma só viu o início de minha luta. Esta é minha cidade, meu verão. Dei minha juventude a ela e lançaria meus anos para ela de novo, se tivesse chance.

Ergueu a taça diante dos companheiros perplexos.

— Quando olho para todos vocês nem posso imaginar a força no mundo que possa nos fazer parar. Bebam à amizade e ao amor, porque o resto não passa de metal sem brilho.

Eles se levantaram lentamente, ergueram as taças e beberam o vinho cor de sangue.

 

A visão de vinte mil cidadãos de Roma de pé nas arquibancadas era uma lembrança para guardar, pensou Júlio, com o olhar percorrendo-as. Todos os lugares foram ocupados para cada dia do torneio de espadas, e os ingressos de argila para assistir aos trinta e dois últimos combatentes ainda estavam trocando de mãos por quantias cada vez maiores a cada manhã. A princípio Júlio ficara surpreso ao ver pessoas nos quatro portões da arena, oferecendo-se para comprar os ingressos da multidão que chegava. Havia poucos que aceitavam vender.

O camarote consular estava fresco à sombra de um toldo de linho suspenso entre colunas esguias. O lugar tinha a melhor visão da arena e nenhum dos convidados de Júlio tinha recusado a oferta. Todos os candidatos tinham chegado com suas famílias e Júlio achou divertido ver o conflito em Suetônio e no pai ao aceitar sua generosidade.

O calor havia aumentado durante toda a manhã e ao meio-dia a areia estaria quente a ponto de queimar a pele nua. Muitos na multidão tinham trazido água e vinho, mas mesmo assim Júlio achou que teria um belo lucro com as bebidas e comidas que seus clientes estavam vendendo para ele. O aluguel de almofadas para o dia custava apenas algumas moedas de cobre e o estoque desapareceu rapidamente. Pompeu tinha respondido ao convite com elegância, e enquanto ele e Crasso ocupavam seus lugares a multidão se levantou respeitosamente até que as trombetas anunciaram os primeiros combates.

Rênio também estava lá e Júlio tinha posto mensageiros perto dele, para o caso de haver problemas no alojamento. Não podia negar o lugar ao velho gladiador, mas com Brutus entre os últimos trinta e dois, junto com Otaviano e Domício, esperava que os recrutas mercenários se comportassem. Com isso em mente fora obrigado a negar à maioria da Décima a chance de assistir aos combates, mas trocava de guardas três vezes por dia para dividir a experiência entre o maior número possível. Como exercício de sua nova autoridade, Brutus tinha acrescentado dez dos recrutas mais promissores ao grupo de guardas. Júlio achava cedo demais, mas não impôs sua vontade sabendo como era importante eles verem seu general se sair bem. Ainda que estivessem desconfortáveis com o saiote de legionário, os homens pareciam bastante dóceis.

As apostas eram ferozes como sempre. Seu povo amava jogar, e Júlio achou que fortunas seriam perdidas e ganhadas antes das últimas lutas. Até mesmo Crasso havia apostado um punhado de moedas de prata em Brutus, seguindo a sugestão de Júlio. Pelo que Júlio sabia, o próprio Brutus tinha apostado tudo que possuía na vitória final. Se vencesse estaria menos dependente de Júlio e dos credores. Seu amigo tinha chegado aos trinta e dois sem problemas, mas o nível era alto e um azar poderia estragar a melhor chance.

Abaixo do camarote consular os últimos lutadores saíram dos alojamentos para a areia fervente. As armaduras de prata brilhavam quase brancas e a multidão ofegou ao vê-los, já aplaudindo os favoritos. Alexandria tinha se superado com o brilho do metal que eles usavam. Júlio tinha certeza de que a qualidade dos finalistas se devia em parte à promessa de que poderiam ficar com as armaduras depois dos combates. Simplesmente pelo peso, cada conjunto daria para comprar uma pequena fazenda se fosse vendido, e com a fama do torneio espalhada, poderia render mais ainda. Júlio tentou não pensar no quanto lhe haviam custado. Toda Roma tinha falado de sua generosidade e elas eram belas ao sol.

Alguns lutadores mostravam ferimentos dos primeiros combates. Os dias tinham sido civilizados, com apenas quatro homens mortos — e mesmo assim de golpes acidentais no calor da disputa. O primeiro sangue acabava com cada combate, sem qualquer outro limite além da exaustão. O mais longo antes das finais havia durado quase uma hora, e os dois homens mal podiam ficar de pé quando a disputa foi resolvida com um corte desajeitado na parte de trás de uma perna. A multidão aplaudiu tanto o perdedor quanto o homem que foi para as finais.

As primeiras rodadas tinham sido um tumulto de habilidade e força, com mais de cem pares na arena ao mesmo tempo. De certa forma, ver tantas espadas reluzindo era tão empolgante quanto as lutas individuais dos últimos trinta e dois, ainda que os verdadeiros conhecedores preferissem os combates simples, onde podiam se concentrar nos estilos e habilidades.

A variedade era espantosa e Júlio tinha feito anotações sobre uma quantidade de homens para recrutar para a nova legião que estava no alojamento. Já havia comprado os serviços de três bons espadachins. Por necessidade fora obrigado a contratar os que lutavam no estilo romano, mas lhe doía deixar de lado alguns dos outros. O chamado por lutadores tinha se espalhado muito mais longe do que seus mensageiros, e havia homens de todas as terras romanas e mais além. Africanos misturados com homens cor de mogno da índia e do Egito. Um homem, Sung, tinha os olhos repuxados de raças tão distantes no oriente que eram quase míticas. Júlio fora obrigado a designar guardas para impedir que a multidão o tocasse nas ruas. Só os deuses sabiam o que ele fazia tão longe de seu lar, mas a espada comprida era usada por Sung com uma habilidade que o levara às últimas rodadas com as lutas mais curtas dentre todos que estavam ali. Júlio o observou saudando os cônsules junto dos outros e decidiu fazer uma oferta ao sujeito caso ele chegasse aos oito últimos, com ou sem estilo romano.

Nesse estágio os nomes dos homens na arena eram anunciados, cada um se adiantando para ser aplaudido pelo povo de Roma. Brutus e Otaviano estavam juntos, com Domício, as armaduras brilhando ao sol. Júlio sorriu diante do prazer que viu nas expressões deles. Não importando quem ganhasse a espada do vitorioso, eles jamais esqueceriam a experiência.

Os três romanos levantaram as espadas para a multidão e depois para os cônsules. A multidão rugiu, uma parede de som estonteante, quase dolorosa. O dia tinha começado. O anunciante foi até os tubos de latão que amplificavam a voz e gritou os nomes do primeiro combate.

Comício iria enfrentar um nortista que tinha viajado para casa com a Permissão do comandante de sua legião para participar do torneio. Era um homem grande, com antebraços poderosos e cintura estreita e ágil. Enquanto os outros saíam da arena ele observou Domício cautelosamente, observan do-o começar os exercícios de alongamento. Mesmo à distância Júlio não podia ver qualquer sinal de tensão no rosto de Domício. Sentiu o coração bater mais rápido, com empolgação crescente, e os outros no camarote tiveram a mesma sensação. Pompeu se levantou e apertou seu ombro.

— Devo apostar no seu homem, Júlio? Ele vai chegar aos dezesseis?

Júlio se virou e viu o brilho nos olhos do cônsul. Uma linha de suor brilhante apareceu na testa de Pompeu e seus olhos estavam luminosos de antecipação. Júlio assentiu.

— Domício é o segundo melhor espadachim que eu já vi. Chamem os escravos das apostas e vamos apostar uma fortuna nele. — Os dois riram juntos, como meninos, e era difícil lembrar que aquele homem não era amigo.

O escravo chegou, pronto para eles. Pompeu ergueu os olhos exasperado enquanto Crasso contava três moedas de prata para entregar ao garoto.

— Só uma vez, Crasso. Só uma vez eu gostaria de vê-lo apostar o bastante para se machucar. Não existe júbilo em pequenas moedas. A coisa deve arder um pouquinho.

Crasso franziu a testa olhando para Júlio. Um rubor escuro se espalhou em seus olhos enquanto ele guardava as moedas.

— Muito bem. Garoto, dê-me a tabuleta das apostas.

O escravo pegou um quadrado de madeira coberto com uma fina camada de cera e Crasso apertou seu anel contra ela, escrevendo seu nome e as quantias sem mostrar aos outros. Quando ele a entregou, Pompeu estendeu a mão e puxou-a, assobiando baixinho. O escravo esperou com paciência.

— Uma fortuna, Crasso. Você me espanta. Uma peça de ouro é mais do que já vi você apostar em qualquer coisa.

Crasso fungou e olhou para os dois lutadores, observando-os andar até as posições e esperar o toque da trombeta.

— Vou apostar cem no seu homem, Júlio. Você me acompanha?

— Mil para mim. Conheço meu homem.

O rosto de Pompeu se endureceu diante do desafio.

— Então devo me igualar a você, Júlio.

Os dois escreveram as quantias e os nomes no quadrado de cera. Rênio pigarreou.

— Cinco de ouro em Domício, para mim — disse carrancudo.

De todos, foi o único a pegar as moedas, estendendo-as rigidamente para o escravo pegá-las. O velho gladiador ficou olhando até o brilho desaparecer na bolsa de pano, depois se recostou, suando. Suetônio já ia apostar mas se virou para o pai, pedindo verba. Eles apresentaram as peças de ouro e a tabuleta foi passada mais uma vez, e até Bíbilo arriscou algumas moedas de prata.

O escravo correu de volta para seu senhor e Júlio ficou de pé para sinalizar aos cornicens. A multidão ficou quieta ao vê-lo se levantar, e ele imaginou quantos se lembrariam de seu nome nas eleições. Saboreou o silêncio por um instante, depois baixou a mão. O uivo agudo das trombetas ressoou na arena.

Domício tinha assistido ao máximo de combates anteriores possível, quando não estava lutando. Tinha feito anotações sobre os que achava que chegariam às últimas rodadas, e dos últimos trinta e dois apenas metade era realmente perigosa. O nortista à sua frente era bastante hábil para ter chegado a esse estágio, mas entrava em pânico quando era pressionado e Domício pretendia pressioná-lo desde o primeiro instante.

Sentiu os olhos do sujeito nele enquanto alongava as costas e as pernas e mantinha o rosto o mais pacífico e sem pressa que podia. Tinha lutado em torneios suficientes para saber que muitos combates não eram vencidos com a espada e sim nos momentos anteriores. Seu antigo treinador tinha o hábito de sentar com as pernas abertas no chão, numa imobilidade absoluta diante dos opositores. Enquanto eles se movimentavam e saltavam para afrouxar os músculos o sujeito parecia uma rocha, e nada irritava os outros tanto quanto isso. Quando finalmente se levantava como fumaça para encará-los, a batalha já estava meio vencida. Domício tinha entendido a lição e não Permitia que nada de seu cansaço aparecesse nos movimentos. Na verdade Seu joelho direito estava dolorido e com uma sensação de rigidez por causa de um movimento brusco numa luta anterior, mas ele nem piscou, movendo-se lenta e fluidamente durante os exercícios, hipnotizando com a facilidade dos gestos. Sentiu uma grande calma baixar e fez uma oração silenciosa a seu antigo professor.

Mantendo a espada baixa e longe do corpo, chegou à sua marca e ficou imóvel. O opositor girou os ombros num movimento nervoso, balançando a cabeça de um lado para o outro. Quando seus olhares se encontraram o nortista o encarou furioso, não querendo ser o primeiro a desviar o olhar. Domício ficou parado como uma estátua, os músculos dos ombros, claramente definidos, brilhando de suor. A armadura de prata protegia o peito dos lutadores, mas Domício era capaz de cortar uma mecha de cabelos de um homem que passasse correndo, e se sentia forte.

As trombetas o arrancaram da imobilidade e ele atacou antes que o som tivesse sido totalmente registrado pelo outro homem. O jogo de pés do nortista o havia levado às finais, e antes que a lâmina pudesse cortá-lo ele havia saído do alcance. Domício podia ouvir sua respiração e se concentrou nela enquanto o sujeito contra-atacava. O nortista usava a respiração para aumentar a força do golpe, grunhindo a cada investida. Domício deixou-o relaxar num ritmo, recuando uma dúzia de passos diante do ataque, esperando outras fraquezas.

No último passo sentiu uma pontada de dor quando o peso se apoiou na perna direita, como se uma agulha fosse cravada na patela. O joelho se dobrou, destruindo o equilíbrio, e ele ficou pressionado enquanto o nortista sentia a fraqueza. Domício tentou tirar isso do pensamento, mas não ousava confiar na perna. Forçou-se para a frente em passos arrastados até o suor dos dois se misturar, saltando. O nortista recuou, depois mais ainda, enquanto tentava ganhar espaço, mas Domício ficou junto, quebrando o ritmo dos golpes com um soco rápido quando as lâminas se engastaram.

O nortista balançou e escapou do soco e os dois se separaram, começando a circular um ao outro. Domício ouvia a respiração dele e esperou a minúscula escapada de ar que vinha antes de cada ataque. Não ousava olhar para o joelho, mas cada passo provocava um novo protesto.

O nortista tentou cansá-lo com um jorro de golpes mas Domício os bloqueou, lendo a respiração do sujeito e esperando o momento certo. O sol estava alto e o suor brotava nos olhos dos dois, ardendo. O nortista inspirou fundo e Domício deu uma estocada. Mesmo antes do toque soube que o golpe era perfeito, abrindo uma aba de pele no crânio do sujeito. Uma fatia de orelha caiu no chão enquanto o sangue jorrava e o nortista rugia, contra-atacando loucamente enquanto Domício tentava se afastar.

O joelho de Domício se dobrou, lançando uma agonia pela virilha acima O nortista hesitou, os olhos clareando enquanto sentia a dor crescente do ferimento, de onde jorrava sangue. Domício o observou atentamente, tentando ignorar a dor no joelho.

O nortista tocou a umidade quente do pescoço, olhando para os dedos ensangüentados. Então uma resignação séria baixou em seu rosto e ele as-sentiu para Domício e os dois voltaram às suas marcas.

- Você deveria atar esse seu joelho, amigo. Os outros devem ter notado - disse o nortista em voz baixa, sinalizando para o local onde o resto dos finalistas observava à sombra dos toldos em seu cercado. Domício deu de ombros. Testou a junta e se encolheu, contendo um grito.

Compreendendo, o nortista balançou a cabeça enquanto eles saudavam a multidão e os cônsules. Domício tentou não mostrar o medo súbito que lhe veio. A junta estava estranha e ele rezou para que fosse apenas uma distensão ou um deslocamento parcial que poderia ser ajeitado. A alternativa era insuportável para um homem que não tinha nada na vida além de sua espada e a Décima. Enquanto os dois voltavam pela areia fervente, Domício lutou para não mancar, trincando os dentes por causa da dor. Outro par de armaduras prateadas saiu ao sol para o próximo combate, e Domício pôde sentir a confiança deles, olhando-o e sorrindo.

 

Júlio viu o amigo desaparecer à sombra e se encolheu, com simpatia.

— Com licença, senhores. Gostaria de ver se os ferimentos deles estão sendo bem tratados — falou.

Pompeu deu-lhe um tapa nas costas, rouco demais para gritar respondendo. Crasso pediu bebidas refrescantes para todos e o clima era de uma leveza contagiante enquanto eles se sentavam de novo para o próximo embate. Comida seria trazida enquanto assistiam, e cada homem ali sentia a emoção do sangue e do talento. Suetônio estava demonstrando uma finta ao Pai e o velho sorriu com ele, juntando-se à empolgação.

Rênio se levantou quando Júlio chegou ao seu assento na beira do camarote.

Seguiu atrás dele sem dizer palavra e os dois saíram do calor para o caminho fresco por baixo das arquibancadas.

Era um mundo diferente abaixo da multidão, com o rugido soando abafado e distante. A luz do sol entrava por frestas nas grandes tábuas e batia no chão em tiras desiguais, mudando de forma enquanto as pessoas se moviam acima. O chão ali era a terra macia do Campo de Marte, sem a camada de areia que fora trazida do litoral.

— Ele vai lutar de novo? — perguntou Júlio. Rênio deu de ombros.

— Caberá vai ajudá-lo. O velho tem poder.

Júlio não respondeu, lembrando-se de como Caberá tinha tocado as mãos em Tubruk, caído com o corpo retalhado no ataque contra a propriedade, quando Cornélia foi morta. Caberá se recusava a falar sobre sua habilidade de cura, mas Júlio se lembrava de que uma vez ele tinha lhe dito que era uma questão de caminhos. Se o caminho estivesse terminado, não havia nada que ele pudesse fazer, mas com alguns, como Rênio, ele havia roubado de volta um pouco de tempo.

Lançou um olhar de lado para o velho gladiador. A medida que os anos passavam, a breve energia da juventude estava dando lugar à idade. De novo o rosto mostrava as feições escarpadas e amargas de um velho, e Júlio ainda não sabia por que ele fora salvo da morte. Caberá acreditava que os deuses vigiavam todos eles com amor ciumento e Júlio invejava sua convicção. Quando rezava era como gritar num vácuo sem resposta, até desesperar.

Em cima a multidão se levantou para aplaudir um golpe, mudando o padrão de luz no chão poeirento. Júlio passou entre as últimas duas colunas de madeira até a área aberta mais além e ofegou diante do ar aquecido que parecia denso demais para ser respirado.

Olhou para a arena, franzindo a vista por causa da claridade e vendo duas figuras saltando uma para a outra como numa dança. As espadas captavam a luz em clarões e a multidão se levantou, batendo os pés no ritmo. Júlio piscou quando um pouco de poeira caiu em seu rosto. Olhou para as traves grossas que sustentavam as arquibancadas, sentindo o tremor na madeira enquanto apertava as mãos contra ela. Esperava que agüentasse.

Caberá estava enrolando um pano fino no joelho de Domício e Brutus havia se ajoelhado perto deles, junto com Otaviano, sem olhar a luta na arena

— Todos ergueram o olhar quando Júlio chegou, e Domício balançou uma das mãos, com um sorriso débil.

— Posso sentir o resto deles me olhando. São todos abutres — falou ofegando enquanto Caberá apertava mais o tecido.

— Está muito ruim? — perguntou Júlio.

Domício não respondeu, mas havia em seus olhos um temor que abalou todos.

— Não sei — respondeu Caberá bruscamente, diante da pressão silenciosa. — A patela está rachada e não sei como ele agüentou tanto tempo. Não deveria estar conseguindo andar, e a junta pode ter... quem sabe? Farei o máximo possível.

— Ele precisa, Caberá — disse Júlio em voz baixa. O velho curandeiro fungou baixinho.

— O que importa se ele lutar mais uma vez aí? Não é...

— Não, não para isso. Ele é um de nós. Tem um caminho a seguir — disse Júlio mais ansioso. Se fosse preciso imploraria ao velho.

Caberá se enrijeceu e se sentou nos calcanhares.

— Você não sabe o que está pedindo, amigo. O que eu tenho não é para ser usado em cada arranhão e osso partido. — Ele olhou para Júlio e pareceu afrouxar de cansaço. — Você quereria que eu perdesse isso por causa de um capricho? O transe é... uma agonia, nem posso contar. E a cada vez não sei se a dor é desperdiçada ou se há deuses que movem minhas mãos.

Estavam todos em silêncio enquanto Júlio sustentava o olhar dele, insistindo para que tentasse. Outro dos trinta e dois pigarreou enquanto se aproximava deles e Júlio se virou para o sujeito, reconhecendo-o como um dos que havia notado pela habilidade. Seu rosto tinha a cor de madeira velha, e era o único que não usava a armadura que tinha recebido, preferindo a liberdade de um manto simples. O homem fez uma reverência.

— Meu nome é Salomin — disse ele, parando como se o nome pudesse ser reconhecido. Quando não foi, ele deu de ombros. —Você lutou bem falou. — Está em condições de continuar?

Domício forçou um sorriso.

Vou descansar um pouco, depois verei.

— Você deveria usar panos frios para o inchaço, amigo. O mais frio que conseguir achar neste calor. Espero que esteja pronto se formos chamados juntos. Não gostaria de lutar contra um homem ferido.

— Eu gostaria.

Salomin piscou em confusão enquanto Brutus dava um risinho, imaginando que piada seria aquela. Em seguida fez uma reverência e se afastou e Domício olhou para o joelho esticado.

— Se eu não puder marchar, estou acabado — falou, com a voz quase num sussurro.

Caberá usou os dedos para massagear os fluidos para longe da junta, com a expressão dura. O silêncio se estendeu interminavelmente e uma gota de suor escorreu do início dos cabelos do velho até a ponta do nariz, onde estremeceu, ignorada.

Nenhum deles ouviu Brutus ser chamado pela primeira vez. O homem que lutaria com ele passou pelo grupo e saiu ao sol sem olhar para trás, mas Salomin se aproximou e cutucou o romano, tirando-o da concentração.

— É sua vez — disse Salomin, com os olhos grandes parecendo escuros mesmo de encontro à pele.

— Vou acabar com esse depressa — respondeu Brutus, desembainhando a espada e saindo atrás do oponente.

Salomin balançou a cabeça espantado, abrigando os olhos enquanto ia até o limite da sombra, assistir à luta.

Júlio sentiu que Caberá não faria nada enquanto ele estivesse ali, olhan-do-o, e aproveitou a oportunidade para deixar Domício sozinho com o curandeiro.

— Dê espaço aos dois, Otaviano — falou sinalizando para Rênio segui-lo. Otaviano aproveitou a deixa e se afastou com o rosto enrugado de preocupação. Também abrigou o rosto para olhar o local onde Brutus esperava impaciente o toque das trombetas.

Sob a arquibancada Júlio ouviu o toque agudo dos cornicens e começou a correr. Antes que ele e Rênio tivessem andado mais do que alguns passos os aplausos da multidão foram subitamente interrompidos por um silêncio fantasmagórico. Júlio correu mais rápido, chegando ofegante de volta ao camarote consular.

Os senadores também estavam imobilizados de surpresa quando Júlio entrou. Brutus já voltava rigidamente para a área dos lutadores, deixando uma figura esparramada na areia.

— O que aconteceu? — perguntou Júlio.

Pompeu balançou a cabeça, espantado.

— Foi rápido demais, Júlio. Nunca vi nada assim.

De todos eles, apenas Crasso parecia não estar abalado.

— Seu homem ficou imóvel, se desviou de dois golpes sem mover os pés e depois derrubou o oponente com um soco e cortou a perna dele enquanto estava no chão. É uma vitória, então pareceu um soco justo.

Pensando em outra grande aposta em Brutus, Pompeu foi rápido em falar:

— Brutus tirou o primeiro sangue, mesmo que o sujeito estivesse inconsciente. Vai valer.

O silêncio da multidão fora rompido enquanto a mesma pergunta era feita em toda a arquibancada. Muitos rostos olhavam para o camarote consular procurando orientação e Júlio mandou um mensageiro aos cornicens para confirmar a vitória de Brutus.

Houve resmungos da parte dos que tinham apostado contra o jovem romano, mas a maioria do público pareceu contente com a decisão. Júlio viu as pessoas representando os golpes, umas para as outras, rindo o tempo todo. Dois soldados da Décima acordaram o lutador caído com um tapa na bochecha e o ajudaram a sair da arena. Enquanto a consciência retornava ele começou a lutar para se soltar, gritando furioso contra o resultado. Os guardas não se abalaram com seus protestos, desaparecendo sob os toldos sombreados.

A tarde prosseguiu com o resto das batalhas dos trinta e dois finalistas. Utaviano venceu seu combate com um corte na coxa do opositor enquanto este tentava se afastar de um golpe. A multidão sofria sob o sol, não querendo perder um instante sequer.

Os dezesseis vitoriosos foram trazidos mais uma vez, vestidos com as armaduras para a multidão aplaudir. A sessão à luz de tochas começaria ao pôr-do-sol, reduzindo os lutadores até o dia final, dando aos vencedores a chance de Se curar e se recuperar durante a noite. Moedas cobriram o chão ao redor de seus pés enquanto eles levantavam as espadas, e flores que tinham sido guardadas desde a manhã foram lançadas em manchas de cores. Júlio observou atentamente quando Domício foi chamado, e seu coração se animou ao vê-lo andar com a facilidade e tranqüilidade de sempre. Não havia necessidade de palavras, mas viu os nós dos dedos de Rênio ficarem brancos no parapeito enquanto eles olhavam para a arena e gritavam tanto quanto a multidão.

 

No último dia Servília se juntou a eles no camarote. Usava um vestido solto, de seda branca e aberto no pescoço. Júlio achou divertido como os outros homens pareciam hipnotizados pelo decote fundo que foi revelado quando ela se levantou para aplaudir os homens da Décima que tinham chegado aos dezesseis finalistas.

Otaviano levou um corte na bochecha na última luta dos dezesseis. Perdeu para Salomin, que passou em triunfo para os oito, com Domício, Brutus e cinco outros que Júlio não conhecia, a não ser por suas anotações. Quando havia estranhos na arena Júlio ditava cartas a Adàn, em rápida sucessão, só ficando quieto quando uma luta chegava ao clímax e o jovem espanhol não conseguia afastar os olhos dos homens na arena. Adàn estava fascinado pelo espetáculo e pasmo com a quantidade de pessoas presentes. As quantias cada vez maiores apostadas por Pompeu e Júlio o faziam balançar a cabeça num espanto silencioso, mas se esforçava ao máximo para parecer tão casual quanto os outros ocupantes do camarote.

A primeira sessão do dia fora longa e quente, com o ritmo das batalhas diminuindo. Cada homem que ainda estava na lista era um mestre, e não havia vitórias rápidas. O humor dos espectadores também havia mudado, mantendo uma discussão constante sobre técnica e estilo enquanto olhavam e aplaudiam os melhores golpes.

Salomin estava pressionado enquanto lutava para chegar aos quatro finalistas, para o clímax da tarde. Apesar da pressão do trabalho, Júlio interrompeu o ditado para observar o sujeito depois de Adàn ter perdido por duas vezes o fio das palavras. Ter optado por lutar sem a armadura de prata destacava Salomin, e ele já era um dos favoritos da multidão. Seu estilo mostrava a sabedoria da escolha. O homenzinho lutava como um acrobata jamais ficando imóvel. Tombava e rolava numa fluida série de golpes que fazia os opositores parecerem desajeitados.

No entanto o homem com quem Salomin lutou para chegar aos quatro não era novato para se espantar. Rênio assentiu aprovando o jogo de pés que era suficientemente bom para impedir que os giros de Salomin achassem uma abertura em sua defesa.

— Salomin vai se exaurir, com certeza — disse Crasso.

Ninguém respondeu, todos em transe com o espetáculo. A espada de Salomin era vários centímetros maior do que o gládio que os outros usavam e tinha um alcance assustador no fim de uma estocada.

Foi o tamanho extra que desequilibrou o combate, depois de o sol ter se movido meio palmo pelo céu no calor da tarde. Ambos pingavam suor e Salomin saiu um pouco de lado num golpe reto que havia disfarçado com o corpo. O outro homem não viu quando a espada penetrou em sua garganta e ele desmoronou, jorrando sangue na areia.

Perto como estavam, Júlio pôde ver que Salomin não tinha pretendido um golpe mortal. O homenzinho ficou perplexo, com as mãos trêmulas enquanto se mantinha junto ao oponente. Ajoelhou-se perto do corpo e baixou a cabeça.

A platéia ficou de pé para gritar por ele, e depois de longo tempo o barulho pareceu atravessar seu devaneio. Salomin olhou irritado para os cidadãos que berravam. Sem levantar a espada na saudação costumeira, o homenzinho passou o indicador e o polegar pela lâmina para limpá-la e voltou para a área sombreada.

— Não é um de nós — pronunciou Pompeu, achando divertido. Tinha ganhado outra grande aposta e nada poderia abalar seu bom humor, mas algumas pessoas na multidão começaram a zombar ao perceber que não haveria saudação aos cônsules. O corpo foi arrastado para fora e outra batalha foi anunciada rapidamente, antes que a multidão se inquietasse.

- Mas ele mereceu o lugar entre os quatro — disse Júlio.

Domício tinha lutado tremendamente para passar pelos oito, mas ele também estaria num dos dois últimos pares a lutar no torneio. Havia apenas um lugar ainda a ser decidido, e Brutus lutaria por ele. Nesse ponto a multidão os havia observado durante dias e toda Roma acompanhava seu progresso, com mensageiros levando as notícias aos que não podiam conseguir lugar nas arquibancadas. Com a eleição a menos de um mês de distância Júlio já era tratado como se tivesse obtido o cargo de cônsul. Pompeu tinha se abrandado notavelmente com relação a ele e Júlio recusara encontros com os dois homens para discutir o futuro. Não queria tentar o destino até que seu povo tivesse votado, mas nos momentos calmos sonhava em se dirigir ao senado como um dos líderes de Roma.

Bíbilo havia comparecido no último dia e Júlio olhou para o rapaz, imaginando qual seria sua motivação para permanecer na disputa para cônsul. Muitos dos candidatos iniciais tinham desistido à medida que a eleição se aproximava, tendo obtido um status temporário com os colegas. Parecia que Bíbilo estava ali para ficar. Apesar de sua aparente tenacidade, Bíbilo falava mal, e uma tentativa de defender um homem acusado de roubo tinha terminado em farsa. Mesmo assim seus clientes percorriam a cidade com seu nome nos lábios e os jovens de Roma pareciam tê-lo adotado como mascote. As velhas fortunas de Roma podiam muito bem preferir um dos seus contra Júlio, e ele não podia ser descartado.

Júlio pensava nos custos da campanha enquanto esperava que Brutus fosse chamado ao combate. Mais de mil homens recebiam pagamento da casa na base da colina Esquilina a cada manhã. Júlio não tinha certeza do que eles poderiam conseguir numa votação secreta, mas tinha aceitado o argumento de Servília, de que todos deveriam ver que ele possuía apoiadores. Era um jogo perigoso, já que apoio demais poderia significar que muitos de Roma ficariam em casa no dia da eleição, contentes no conhecimento de que seu candidato não poderia perder. Era uma falha do sistema que mantinha os homens livres de Roma votando há séculos. Se ao menos um pequeno número do grupo estivesse presente, poderia votar por todos. Bíbilo poderia beneficiar dessa confiança equivocada, ou o senador Prando, que parecia ter tantos homens empregados quanto Júlio.

Mesmo assim, seu papel na derrota de Catilina estava se tornando bem conhecido e até mesmo seus inimigos precisavam admitir que o torneio de espadas era um sucesso. Além disso Júlio havia ganhado o suficiente apostando em seus homens para saldar algumas dívidas de campanha. Adàn mantinha a contabilidade, e a cada dia o ouro espanhol diminuía, obrigan-do-o a abrir linhas de crédito. Às vezes as quantias devidas o preocupavam mas se fosse eleito cônsul nada disso importaria.

— Meu filho! — disse Servília subitamente, enquanto Brutus saía na arena com Aulo, um lutador magro, das encostas do Vesúvio no sul.

Os dois pareciam esplêndidos na armadura prateada e Júlio sorriu para Brutus quando este fez a saudação ao camarote consular, piscando para a mãe antes de se virar e levantar a espada para a multidão. A platéia gritou aprovando e os dois caminharam com passo leve até suas marcas no centro. Rênio fungou baixinho, mas Júlio podia ver a tensão quando ele se inclinou para a frente, bebendo a imagem.

Júlio esperava que Brutus pudesse suportar uma perda com tanta facilidade quanto suportava as vitórias. Simplesmente chegar aos oito últimos era um feito para regalar os netos, mas Brutus dissera desde o início que estaria na final. Nem mesmo ele havia jurado que venceria, mas sua confiança era bastante clara.

— Aposte tudo nele, Pompeu. Eu próprio pego suas apostas — disse Júlio, apanhado na empolgação.

Pompeu hesitou apenas um momento.

— Os apostadores compartilham sua confiança, Júlio. Se você me oferecer um pagamento decente posso aceitar sua oferta.

— Uma moeda por cinqüenta suas em Brutus. Cinco moedas por uma sua em Aulo — disse Júlio rapidamente. Pompeu sorriu.

— Está tão convencido assim de que Marco Brutus vai vencer? Você me tenta a apostar nesse tal de Aulo, com um pagamento desses. Cinco mil moedas de ouro contra o seu homem, nessa taxa. Aceita?

Júlio olhou para a arena, com o bom humor subitamente hesitando. Era a última luta dos oito finalistas, e Salomin e Domício já haviam passado. Certamente não poderia haver outro lutador com habilidade suficiente para vencer seu amigo mais antigo, não é?

— Aceito, Pompeu. Dou minha palavra — falou, sentindo um suor novo brotar na pele. Adàn ficou claramente pasmo e Júlio não olhou para ele.

Manteve a expressão calma enquanto tentava se lembrar do quanto suas reservas tinham encolhido depois da nova armadura para os mercenários e os pagamentos para os clientes a cada semana. Se Brutus perdesse, vinte cinco mil em ouro seriam o bastante para levá-lo à falência, mas sempre havia o pensamento de que, como cônsul, seu crédito seria bom. Os emprestadores fariam fila para ele.

- Este Aulo. Ele é hábil? — perguntou Servília para quebrar o silêncio que havia brotado no camarote.

Bíbilo tinha trocado de lugar para ficar perto dela e respondeu com o que considerou um sorriso vitorioso.

— Neste estágio todos são, senhora. Os dois venceram sete batalhas para chegar a este ponto, mas tenho certeza de que seu filho vencerá. Ele é o predileto do público, e dizem que isso pode estimular maravilhosamente um homem.

— Obrigada — respondeu Servília, concedendo-lhe um sorriso. Bíbilo ficou vermelho e cruzou os dedos. Júlio olhou-o com algo menos do que afeto, imaginando se aqueles modos escondiam uma mente mais afiada ou se Bíbilo era realmente o idiota absoluto que aparentava ser.

As trombetas soaram e o primeiro entrechoque de lâminas fez com que todos se inclinassem sobre o parapeito, lutando por espaço sem pensar em importância social. Servília respirava depressa e seu nervosismo aparecia o bastante para Júlio tocar em seu braço. Ela não pareceu sentir.

Na arena as espadas reluziam, com os homens movendo um ao redor do outro numa velocidade que zombava do calor. Circulavam-se rapidamente, quebrando o passo para reverter com uma habilidade linda de se olhar. Aulo tinha uma compleição semelhante à de Brutus, e os dois pareciam bem equiparados. Adàn contava baixinho o número de golpes, quase inconscientemente, apertando os dedos empolgado. Suas anotações e cartas foram esquecidas na cadeira atrás.

Brutus acertou a armadura três vezes, em rápida sucessão. Aulo deixou que os golpes passassem pela defesa para lhe dar a chance de contra-atacar, e somente o trabalho de pés salvou Brutus a cada vez, depois do tinir de metal. Os dois pingavam suor, os cabelos pretos encharcados. Separaram-se numa pausa tensa e Júlio pôde ouvir a voz de Brutus na arena. Ninguém no camarote pôde identificar as palavras, mas Júlio sabia que seriam farpas para tragar Aulo com a raiva.

Aulo riu da tentativa e os dois se juntaram de novo, numa proximidade amedrontadora enquanto as espadas giravam e brilhavam, os cabos e as lâminas batendo e deslizando numa chuva de golpes rápida demais para Adàn contar. A boca do jovem espanhol se abriu de espanto diante do nível de habilidade e toda a multidão ficou em silêncio. Naquela tensão medonha muitos prendiam o fôlego, esperando o primeiro jorro de sangue que espirraria do par em luta.

— Ali! — gritou Servília ao ver uma tira que aparecera na coxa direita de Aulo. — Está vendo? Olhe, ali! — Ela apontava loucamente, ao mesmo tempo que a dança das espadas alcançava uma intensidade maníaca na arena. Quer Brutus soubesse ou não, estava claro que Aulo não fazia idéia de que fora ferido e Brutus não podia se afastar estando tão perto, sem se arriscar a um golpe fatal. Eles permaneciam presos nos ritmos enquanto o suor espirrava.

Ao sinal de Júlio os cornicens tocaram uma nota de alerta. Era perigoso atrapalhar a concentração deles desse modo, mas os dois pararam ao mesmo tempo, ofegando em grandes haustos. Aulo tocou a coxa e ergueu a palma vermelha para Brutus. Nenhum dos dois podia falar, e Brutus apertou os joelhos com as mãos para inspirar em enormes haustos devido às pancadas do coração que parecia latejar no corpo inteiro. Cuspiu um bocado de saliva grossa e teve de cuspir de novo para limpar o fio comprido que chegava até o chão. Enquanto a pulsação dos dois parava de martelar, eles puderam ouvir a multidão aplaudindo e se abraçaram brevemente antes de levantar as espadas de novo, saudando.

Servília se abraçou, rindo alto com a empolgação.

— Então ele chegou à semifinal? Meu filho querido. Ele foi espantoso, não foi?

— Agora ele tem a chance de vencer e trazer honra para Roma — respondeu Pompeu com um olhar azedo para Júlio. — Dois romanos nos últimos dois pares. Só os deuses sabem de onde os outros dois vieram. Esse tal de Salomin é escuro como um buraco e o outro de olhos puxados, quem sabe? Esperemos que baste ter um romano para ganhar essa sua espada. Júlio-Seria uma pena ver um pagão ficar com ela depois de tudo isso.

Júlio deu de ombros.

— Está nas mãos dos deuses.

Esperou que o cônsul falasse da aposta feita e Pompeu sentiu seus pensamentos, franzindo a testa.

— Mandarei um homem levá-lo a você, Júlio. Não precisa ficar aí parado feito uma galinha choca.

Júlio assentiu instantaneamente. Apesar das aparências amistosas, cada fiapo de conversa no camarote era como um duelo sem sangue enquanto os dois manobravam procurando vantagem. Estava ansioso pela última sessão à noite, nem que fosse apenas para ver o final daquilo.

— Claro, cônsul. Estarei na casa da Esquilina até os combates da noite.

Pompeu franziu a testa. Não tinha esperado a necessidade de entregar uma quantia tão grande tão depressa, mas agora os ocupantes do camarote estavam olhando-o atentamente e Crasso tinha um sorrisinho maligno espreitando como um fantasma ao redor dos lábios. Pompeu sentiu-se ferver por dentro. Teria de cobrar as apostas ganhadas, para poder pagar, e todo o sucesso anterior fora apagado. Só Crasso teria tanto dinheiro em mãos. Sem dúvida o abutre estava pensando presunçoso na única moeda que havia ganhado apostando em Brutus.

— Excelente — disse Pompeu, não querendo se comprometer definitivamente. Mesmo com suas vitórias aquilo o deixaria com pouco dinheiro, mas preferiria ver Roma pegar fogo antes de pedir outro empréstimo a Crasso. — Até lá, senhores. Servília — disse Pompeu com um sorriso tenso. Sinalizou para seus guardas e saiu do camarote com as costas rígidas.

Júlio o observou sair antes de rir de prazer. Cinco mil! Numa única aposta sua campanha estava solvente de novo.

— Adoro esta cidade — falou em voz alta.

Suetônio se levantou com o pai e, ainda que a cortesia obrigasse o rapaz a murmurar alguma amenidade ao passar, não havia prazer em seu rosto fino. Bíbilo se levantou com eles, olhando nervoso para o amigo enquanto também murmurava um agradecimento e ia atrás.

Servília ficou, os olhos refletindo parte da mesma empolgação que via em Júlio. A multidão ia saindo para arranjar comida e os soldados da Décima estavam bem à vista quando ela o beijou faminta.

— Se você mandasse seus homens ajeitar esse toldo e ficar longe, podíamos ter privacidade para ser travessos como crianças, Júlio. - Você é velha demais para ser travessa, minha linda amante — respondeu

Júlio abrindo os braços para envolvê-la. Servília se enrijeceu, um jorro de raiva fazendo as bochechas brilharem.

Seus olhos relampejaram quando falou, e Júlio ficou pasmo diante da súbita mudança.

— Então em outra hora — falou passando rapidamente por ele.

— Servília! — gritou Júlio, mas ela não se virou e ele ficou sozinho no camarote vazio, furioso consigo mesmo pelo deslize.

 

No frescor do início de noite Júlio andava no camarote de um lado para o outro esperando a chegada de Servília. O empregado de Pompeu tinha mandado um baú de moedas para ele minutos antes de sair para os últimos combates, e Júlio fora obrigado a se atrasar enquanto convocava um número suficiente de soldados da Décima para guardar tal fortuna. Mesmo com homens de confiança ele se preocupava com a idéia de tamanha riqueza à mão.

Todos os outros tinham chegado bem antes e Pompeu deu um sorriso sem humor diante da expressão preocupada de Júlio enquanto subia correndo os degraus para ocupar seu assento. Onde estava Servília? Ela não tinha se juntado a ele na casa da campanha, mas certamente não perderia as últimas lutas do filho, não é? Júlio não conseguia ficar sentado por mais do que um instante e andava de um lado para o outro na beira do camarote, inquieto.

A arena fora iluminada com tochas tremeluzentes e a noite trouxera uma brisa suave para aliviar o calor do dia. Os lugares estavam apinhados de cidadãos, e cada membro do senado havia comparecido. Não haveria trabalho na cidade até que o torneio acabasse, e a tensão parecia ter se derramado Pelas ruas mais humildes. As pessoas se reuniam numa multidão informe no Campo de Marte, como fariam de novo na eleição vindoura.

A chegada de Servília coincidiu com o primeiro toque dos cornicens convocando os últimos quatro competidores à arena. Júlio a olhou interrogativamente enquanto se acomodavam, mas ela não o encarou e parecia mais fria do que ele jamais vira.

— Desculpe — sussurrou ele inclinando a cabeça. Servília não deu sinal de ter ouvido e Júlio se recostou, irritado. Prometeu que não tentaria de novo

A multidão se levantou para aplaudir os favoritos, e os escravos das apostas iam de um lado para o outro. Júlio viu que Pompeu os ignorou, sentindo um prazer maligno na mudança de atitude que havia provocado. Olhou para Servília para ver se ela notara e sua decisão se desvaneceu diante da máscara fria que ela virou em sua direção. Inclinou-se para perto de novo.

— Eu significo tão pouco assim para você? — sussurrou alto demais de modo que Bíbilo e Adàn levaram um susto em suas cadeiras e depois tentaram fingir que não tinham escutado. Ela não respondeu e Júlio trincou o maxilar, com raiva, olhando para a arena escura.

Os últimos competidores saíram lentamente sob a luz das tochas. A platéia se levantou para eles e o som foi esmagador enquanto todos rugiam, vinte mil gargantas funcionando como uma só. Brutus caminhava ao lado de Domício, tentando falar acima do ruído. Salomin veio em seguida e atrás dele o último lutador saiu num passo rápido, praticamente sem provocar qualquer reação da platéia. De algum modo o estilo e as vitórias de Sung não haviam captado a imaginação do público. Ele não demonstrava emoção e suas saudações eram superficiais. Era alto e mais corpulento do que Salomin e seu rosto chato e a cabeça raspada lhe davam um aspecto ameaçador enquanto caminhava atrás dos outros, quase como se os estivesse perseguindo à espreita. Sung usava a maior espada dos quatro. Sem dúvida isso lhe dava vantagem, mas qualquer um dos outros poderia ter usado uma lâmina de dimensões semelhantes se quisesse. Júlio sabia que Brutus havia pensado nisso, tendo alguma experiência com a espada, mas no fim a familiaridade do gládio o fizera escolhê-lo.

Júlio observou os quatro atentamente, procurando alguma rigidez ou um membro favorecido. Salomin, em particular, parecia estar sofrendo e caminhava de cabeça baixa, junto ao peito. Todos tinham hematomas e levavam a exaustão dos dias anteriores. De certa forma a vitória final poderia ser decidida não pela habilidade, mas pela energia. Imaginou como os pares seriam divididos e esperava que Brutus lutasse contra Domício, para forçar a presença de um romano na final. A parte política dele tinha toda a consciência de que a multidão perderia o interesse se o último combate fosse entre Salomin e Sung sozinhos na arena. Seria um terrível anticlímax para a semana e seu coração se encolheu ao ouvir os pares sendo chamados: Brutus lutaria com Salomin e Domício com Sung. As apostas começaram a voar de novo numa cacofonia de gritos e risos nervosos. A tensão pairava acima deles e Júlio sentiu o suor brotar de novo nas axilas apesar da brisa que atravessava a arena.

Os quatro homens ficaram observando atentamente enquanto um comissário jogava uma moeda para o alto. Sung assentiu diante do resultado e Domício fez algum comentário com ele que não pôde ser ouvido sobre o ruído da multidão. Havia um respeito profissional entre os quatro, isso era claro em cada movimento. Cada um tinha visto o outro repetidamente e não guardava qualquer ilusão quanto à dureza da luta que viria.

Gritando um encorajamento para Domício por cima do ombro, Brutus caminhou de volta com Salomin até o cercado. Notou uma nova rigidez nos movimentos de Salomin e se perguntou se ele teria luxado algum músculo. Uma coisa pequena assim poderia significar a diferença entre chegar à final e sair sem nada. Brutus o examinou com atenção, imaginando se o homen-zinho estaria representando para enganá-lo. Isso não o surpreenderia. Nesse estágio todos estavam dispostos a tentar qualquer coisa para conseguir uma vantagem mínima.

A platéia ficou quieta tão rapidamente que o silêncio foi estragado por risos nervosos. Os cornicens estavam prontos em seus lugares, olhando para cima para ver se Júlio continuava em seu assento.

Júlio esperou pacientemente enquanto Domício iniciava seus exercícios de alongamento. Sung ignorou o romano contra quem ia lutar, em vez disso ficou olhando a multidão até que algumas pessoas notaram e começaram a apontar e olhar irritados de volta. Tudo isso fazia parte da empolgação da última noite e Júlio podia ver centenas de crianças pequenas perto dos pais, animadas por ficarem fora da cama na noite final.

Domício terminou seus movimentos lentos com uma estocada apoiando-se no joelho direito e Júlio viu um sorriso enrugar o rosto moreno quando a perna se sustentou sem dor. Agradeceu aos deuses por Caberá, apesar de sentir culpa por ter pedido. O velho tinha caído no chão depois da cura estava mais cinza e com aparência doentia do que Júlio jamais o vira. Quando tudo terminasse, jurou Júlio consigo mesmo, daria qualquer recompensa que ele quisesse. A idéia de ficar sem o curandeiro era algo em que não ousava pensar por muito tempo, mas quem sabia qual era a idade de Caberá?

Baixou a mão e as trombetas soaram. Estava claro desde o primeiro instante que Sung pretendia usar a vantagem dada por sua espada longa. Seus pulsos deviam ser como ferro para segurá-la tão longe do corpo e suportar o peso da lâmina de Domício, percebeu Júlio. No entanto as pernas poderosas pareciam ancoradas na areia e a grande tira de metal prateado mantinha Domício à distância enquanto os dois fintavam e atacavam. Depois de tanto estudo cada um conhecia o estilo do outro quase tão bem quanto o seu próprio, e o resultado era um impasse. Domício não ousava chegar ao alcance da lâmina de Sung, mas quando era pressionado não havia brecha em sua defesa.

Rênio ficou batendo o pé na balaustrada num ritmo forte, gritando rouco quando Domício obrigava Sung a se apoiar por um momento no pé de trás, estragando o equilíbrio. A lâmina comprida girou e Domício se abaixou sob ela, estocando no final. A estocada foi perfeita mas Sung se moveu facilmente para o lado, deixando o golpe passar perto da armadura no peito, depois levando o punho de sua espada contra o rosto de Domício.

Foi um golpe resvalante, mas boa parte da multidão se encolheu ao vê-lo. Júlio balançou a cabeça maravilhado com o nível de habilidade, mas para o olho não treinado aquela poderia parecer uma luta confusa. Não havia nada dos ataques e contra-ataques perfeitos que todos tinham visto quando homens melhores lutavam contra novatos nas primeiras disputas. Aqui, cada movimento para aparar e cada resposta era estragado quase no instante em que começava, e o resultado era uma saraivada de golpes feios sem que uma gota de sangue se derramasse.

Domício se afastou primeiro. Seu malar estava inchado por causa da pancada com o cabo, e ele levantou a palma da mão até lá. Sung esperou pacientemente com a espada a postos enquanto Domício lhe mostrava a mão sem qualquer marca de sangue. A pele não tinha se rompido e eles saltaram de novo com ferocidade ainda maior.

Apenas o latejamento em seu pulso fez Júlio perceber que estava prendendo o fôlego. Eles não conseguiriam sustentar esse ritmo por muito tempo tinha certeza, e a qualquer momento esperava que um dos dois fizesse um corte.

Os lutadores se separaram de novo e ficaram se circulando quase numa corrida, estabelecendo e quebrando ritmos tão rapidamente quanto o outro os percebia. Por duas vezes Domício quase atraiu Sung para um passo falso enquanto mudava de direção, e a segunda vez levou a um golpe que deveria ter arrancado o braço de Sung se ele não o tivesse puxado, recebendo o impacto na armadura.

A exaustão dos dias anteriores estava começando a aparecer nos dois, talvez mais em Domício, que ofegava visivelmente. Júlio sabia que a batalha que assistia estava sendo travada tanto nas mentes quanto com as espadas, e não podia adivinhar se aquilo era outro ardil ou se Domício estava realmente sofrendo. Sua força parecia vir em jorros e a velocidade do braço variava à medida que ficava mais pesado.

Sung também estava inseguro e por duas vezes deixou passar oportunidades em que poderia ter se aproveitado de uma defesa atrasada. Inclinou a cabeça de lado como se estivesse avaliando e de novo manteve o romano à distância com uma série espantosa de movimentos com a ponta.

Um golpe reverso rapidíssimo quase acabou com a luta quando Domício bateu com a mão na parte chata da espada e mudou de direção tão rapidamente que Sung se jogou de costas no chão. Rênio gritou empolgado. Havia poucos que tinham conhecimento para ver que a queda fora deliberada e controlada. Não havia modo mais rápido de evitar um golpe, mas a platéia aplaudiu como se seu favorito tivesse vencido e uivou ao ver Sung se afastar rapidamente como um caranguejo para longe das estocadas de Domício até que, milagrosamente, o sujeito estava de pé outra vez.

Talvez fosse a frustração de ter chegado tão perto, mas Domício conteve seu ímpeto uma fração de segundo tarde demais e a ponta da lâmina de Sung chicoteou para cima, mordendo a carne na borda inferior da armadura de Domício. Os dois se imobilizaram e os que tinham bons olhos na platéia gemeram de frustração, ao mesmo tempo que seus vizinhos esticavam o pescoço para ver quem tinha ganhado.

O sangue escorreu pela perna de Domício e Júlio pôde vê-lo soltando uma torrente de palavrões antes de recuperar o controle e voltar à sua primeira marca. O rosto de Sung jamais se alterou, mas quando os dois se encararam ele fez uma reverência pela primeira vez no torneio. Para o prazer da multidão, Domício devolveu o gesto e riu abertamente em meio à exausta enquanto os dois saudavam juntos a platéia.

Rênio se virou para Júlio com os olhos brilhantes.

— Com sua permissão, senhor. Se eu tivesse Domício, o treinamemto dos homens novos seria muito melhor. Ele é um lutador que pensa e eles reagiriam bem.

Júlio podia sentir cada orelha no camarote ficando em pé ao captar essa menção à nova legião precária.

— Se ele e Brutus concordarem, vou mandá-lo a você. Prometi a tarefa aos meus melhores centuriões e optios. Domício irá com eles.

— Precisamos de ferreiros e curtidores tanto quanto... — começou Rênio, parando quando Júlio balançou a cabeça.

Servília se levantou quando Brutus e Salomin saíram na arena. Estremeceu inconscientemente ao olhar o filho e fechou o punho. Havia algo terrivelmente ameaçador na arena iluminada por tochas.

Júlio queria segurá-la mas controlou o impulso, cônscio de cada aspecto dos movimentos dela perto de seu ombro. Podia sentir seu perfume no ar da noite e isso o atormentava. A raiva e a confusão quase estragaram o momento em que ele apertou seu anel com sinete junto a uma aposta de cinco mil moedas de ouro em Brutus. A expressão de Pompeu foi de deleite e ele sentiu o ânimo crescer, apesar da rigidez de Servília. Adàn também conteve um olhar de horror e Júlio piscou para ele. Tinham examinado as reservas juntos e o simples fato era que o ouro espanhol que havia trazido estava praticamente acabado. Se perdesse os cinco mil seria forçado a depender de crédito até que a campanha terminasse. Júlio optou por não contar ao jovem espanhol sobre a pérola negra que tinha comprado para Servília. Sentia o peso da jóia numa bolsa junto ao peito e estava tão satisfeito que queria entregá-la, independentemente do humor dela. O preço o fez se encolher ligeiramente ao pensar na quantidade de armaduras e suprimentos que poderiam ter sido comprados com aquele valor. Sessenta mil moedas de ouro. Estava louco. Certamente era algo extravagante demais para pôr na contabilidade. O mercador tinha jurado que poderiam se passar pelo menos alguns dias antes que a notícia da compra gigantesca fosse conhecida em cada estalagem e bordel de Roma. Júlio podia sentir o peso puxando sua toga e de vez quando levava a mão quase inconscientemente para sentir a curva da pérola sob o tecido.

Salomin também tinha assistido a cada batalha travada por Brutus, inclusive aquela em que ele havia nocauteado um homem e depois tirado o primeiro sangue com um corte quase desdenhoso na perna. Se estivesse em sua melhor condição ainda teria preferido lutar contra Domício ou o chinês preguiçoso, Sung. Tinha visto o jovem romano lutar sem a menor pausa para pensamento ou tática, como se seu corpo e seus músculos fossem treinados para agir sem direção consciente. Enquanto o encarava sobre a areia, Salomin engoliu em seco, forçando-se a se concentrar. O desespero o encheu enquanto afrouxava os músculos dos ombros e sentiu os lanhos e hematomas se abrindo nas costas. O suor escorria da testa enquanto esperava o som das trombetas.

Os soldados tinham vindo procurá-lo naquela tarde enquanto ele comia e descansava na modesta pensão perto da muralha externa da cidade. Não sabia por que o haviam arrastado para a rua e lhe dado uma surra até que os cajados se partissem. Tinha esfregado gordura de ganso em cada um dos cortes e tentado permanecer em condições, mas qualquer chance que pudesse ter tido desaparecera e somente o orgulho o fazia ocupar o lugar. Murmurou uma oração curta na língua de sua cidade e sentiu que ela o acalmava.

Quando as trombetas soaram ele reagiu instintivamente, tentando deslizar para longe. Suas costas se repuxaram em agonia e lágrimas encheram seus olhos, transformando as tochas em estrelas. Ele ergueu a espada às cegas e Brutus se desviou. Salomin gritou de dor e frustração quando seus músculos rígidos se rasgaram. Ele tentou outro golpe e errou totalmente. O suor escorria no rosto em gotas grossas enquanto ele se mantinha de pé pela força de vontade.

Brutus se afastou perplexo e franzindo a testa. Apontou para o braço de Salomin. Por um momento Salomin não ousou olhar, mas quando sentiu a Pontada seu olhar saltou para um corte raso na pele e assentiu resignado.

Não é meu pior corte hoje, amigo. Espero que você seja inocente Os outros — disse Salomin em voz baixa.

Brutus ficou inexpressivo enquanto levantava a espada para a multidão subitamente cônscio da postura encurvada com que o homenzinho geralmente ágil estava parado. Seu rosto se clareou num relâmpago de compreensão horrorizada.

— Quem fez isso? Salomin deu de ombros.

— Quem sabe distinguir um romano de outro? Eram soldados. Está feito. Brutus empalideceu de fúria, o olhar saltando cheio de suspeitas para onde Júlio estava aplaudindo-o. Saiu da arena surdo aos aplausos em seu nome.

Com uma pausa de duas horas antes da final, a areia foi varrida e limpa enquanto muitos cidadãos saíam para comer e se lavar, conversando empolgados. O camarote se esvaziou rapidamente e Júlio notou que o senador Prando saiu antes do filho, que caminhava na multidão com Bíbilo, mal cumprimentando o pai enquanto passavam.

Júlio ouviu Brutus se aproximar enquanto a multidão em movimento junto ao camarote reconhecia seu campeão e o saudava com novo entusiasmo. Mesmo estando trêmulo de emoção Brutus manteve o bom senso o suficiente para embainhar a espada antes de se aproximar dos guardas em volta do camarote. O dever deles os teria obrigado a desafiá-lo, não importando seu novo status.

Júlio e Servília foram rapidamente até ele e os parabéns de Júlio morreram na garganta ao ver a expressão do amigo que estava branco de fúria.

— Você mandou espancar Salomin? — perguntou Brutus rispidamente, quando chegou. — Ele mal conseguia ficar de pé. Você fez isso?

— Eu... — começou Júlio, pasmo. Foi interrompido pelo ruído súbito dos soldados de Pompeu ficando em posição de sentido quando a cortina foi puxada de lado e o cônsul saiu.

Tremendo de emoção contida Brutus fez uma saudação e ficou rigidamente em posição de sentido enquanto Pompeu o examinava.

— Eu dei a ordem. Não me interessa se você lucrou ou não com isso. Um estrangeiro que não faz saudação não pode esperar coisa melhor, e merece pior. Se ele não estivesse entre os últimos quatro estaria pendurado» balançando ao vento.

E devolveu o olhar perplexo dos outros.

— Acho que até um estrangeiro pode aprender o respeito. Agora, Brutus vá descansar para a final.

Dispensado, Brutus não pôde fazer nada além de dar um olhar de desculpas para o amigo e a mãe.

— Talvez fosse melhor esperar até o fim do torneio — disse Júlio depois de Brutus ter saído. Algo no olhar reptiliano de Pompeu o fez tomar cuidado com as palavras. A arrogância do sujeito era maior do que ele jamais havia percebido.

— Ah, esqueça disso, certo? Um cônsul é Roma, César. Ele não deve ser zombado ou tratado com superficialidade. Talvez com o tempo você entenda isso, se os cidadãos lhe derem a chatice de ficar onde estou hoje.

Júlio abriu a boca para perguntar se Pompeu tinha apostado em Brutus e a fechou bem a tempo, antes de se destruir. Lembrou-se de que Pompeu não o fizera: seu deturpado senso de honra o teria impedido de lucrar com a punição.

Subitamente cansado e enjoado daquilo tudo, Júlio assentiu como se entendesse, mantendo aberta a cortina para que Servília e Pompeu passassem. Mesmo então ela não o olhou e ele suspirou amargo enquanto os seguia. Tinha certeza de que ela esperaria que ele a procurasse em particular e achou que isso o irritava, mas havia pouca opção. Sua mão foi até o volume da pérola e bateu nela, pensativo.

Ainda ofegando da cavalgada Júlio respirou fundo antes de bater à porta. O taverneiro tinha confirmado que Servília voltara ao quarto e Júlio pôde ouvir o barulho de água lá dentro enquanto ela se banhava antes da última luta. Apesar de sua agitação Júlio não pôde evitar o sentimento dos primeiros toques sedosos da excitação ao ouvir passos se aproximando, mas a voz que falou era da escrava que enchia a banheira para os clientes.

Júlio — respondeu ele à pergunta. Talvez seus títulos tivessem feito a garota se mover um pouco mais depressa, mas havia ouvidos ao longo do Pequeno corredor e algo ligeiramente ridículo em falar com uma porta fechada como um garoto apaixonado. Estalou os nós dos dedos enquanto esperava. Pelo menos a taverna era suficientemente próxima das muralhas da cidade para que ele voltasse a tempo. Seu cavalo estava mastigando feno num pequeno estábulo e ele só precisava de um minuto para dar a pérola a Servília e suportar seus abraços deliciados e galopar de volta ao campo com ela para a última luta à meia-noite.

A escrava abriu a porta finalmente, fazendo uma reverência. Júlio podia ver a diversão nos olhos da garota enquanto ela passava para o corredor, mas esqueceu-a assim que a porta se fechou.

Servília estava com um manto simples, o cabelo amarrado num coque na nuca. Parte dele imaginou como a mulher teria arranjado tempo para aplicar pintura e óleos no rosto, mas correu para ela.

— Não me importam os anos que nos separam. Eles importavam na Espanha? — perguntou. Antes que pudesse tocá-la ela ergueu uma das mãos as costas rígidas como de uma rainha.

— Você não entende nada, Júlio, e esta é a verdade simples.

Ele tentou protestar mas ela falou alto, com os olhos chamejando.

— Na Espanha eu sabia que era impossível, mas lá era tudo diferente. Não consigo explicar... era como se Roma estivesse longe demais e você fosse tudo que importava. Quando estou aqui sinto os anos, as décadas, Júlio. Décadas que nos separam. Meu aniversário de quarenta e três anos foi ontem. Quando você estiver nos quarenta eu serei uma velha grisalha. Já tenho cabelos grisalhos, mas cobertos com as melhores tinturas do Egito. Deixe-me, Júlio. Não podemos mais passar tempo juntos.

— Não me importa, Servília! Você ainda é linda... Servília deu um riso desagradável.

— Ainda sou linda, Júlio? E, é um espanto eu manter a aparência, mas você não sabe nada do trabalho que dá apresentar um rosto liso ao mundo.

Por um momento seus olhos desmoronaram e ela lutou contra as lágrimas. Quando falou de novo a voz estava cheia de um cansaço infinito.

— Não deixarei que você me veja envelhecer, Júlio. Você, não. Volte aos seus amigos antes que eu chame os guardas da taverna para o expulsarem-Deixe-me terminar de me vestir.

Júlio abriu a mão e lhe mostrou a pérola. Sabia que era a coisa errada a fazer, mas tinha planejado o gesto enquanto vinha do Campo e agora era como se seu braço se movesse sem vontade consciente. Ela balançou a cabeça, incrédula.

— Será que eu deveria me lançar em seus braços agora, Júlio? Será que deveria chorar e pedir desculpa por ter pensado que você era um menino?

Com uma raiva brusca Servília arrancou a pérola e a jogou contra ele, acertando na testa e fazendo-o se encolher. Ele a ouviu rolar para os recessos do quarto e o som pareceu continuar interminavelmente.

Servília falou devagar, como se estivesse louca:

— Agora saia.

Quando a porta se fechou ela esfregou com força os olhos e se levantou para procurar a pérola nos cantos do quarto. Quando seus dedos se fecharam sobre ela ergueu-a à luz da lâmpada e por um momento sua expressão se suavizou. Apesar da beleza, era fria e dura em sua mão, como ela própria fingia ser.

Acariciou a pérola com os dedos compridos, pensando nele. Júlio ainda não vivera trinta anos e, mesmo aparentemente não pensando nisso, iria querer uma esposa para lhe dar filhos. Lágrimas brilharam nos cílios enquanto ela pensava no útero agonizante. Não saía sangue há três meses e nenhuma vida se agitava dentro dela. Por um tempo tinha ousado esperar um filho, mas quando outra menstruação não veio ela soube que tinha passado a última era da juventude. Não haveria filho, e era melhor mandá-lo embora antes que os pensamentos dele se voltassem para filhos que ela não podia dar. Melhor do que esperar que ele a mandasse embora; Júlio usava a própria força tão bem e com tanta facilidade que ela sabia que ele jamais entenderia seu medo. Respirou fundo para se acalmar. Ele se recuperaria, os jovens sempre se recuperavam.

 

Quando Brutus e Sung emergiram à meia-noite as tochas tinham sido cheias de óleo e a arena luzia na escuridão do Campo. Os escravos das apostas haviam se retirado discretamente e nenhum dinheiro estava sendo mais recolhido. Muitos cidadãos tinham bebido sem parar durante toda a tarde, preparando-se para o clímax, e Júlio mandou mensageiros convocar mais soldados da Décima para o caso de haver tumulto no final. Apesar do cansaço que assaltava seu espírito, sentia a empolgação do orgulho enquanto olhava Brutus erguer pela última vez uma das espadas de Cavallo. O gesto tinha um significado pessoal e dolorido para todos que o entendiam.

Sem pensar Júlio estendeu a mão para segurar a de Servília e em seguir] a deixou cair.

O humor dela mudaria quando Brutus vencesse, tinha quase certeza

A lua havia subido, um crescente pálido que pairava acima do círculo de tochas. Mesmo sendo tarde a notícia dos finalistas havia passado rapidamente pela cidade e toda Roma estava acordada esperando o resultado. Se vencesse, Brutus seria famoso, e Júlio teve o pensamento tortuoso de que, se seu amigo se candidatasse a cônsul, quase certamente ganharia.

Quando os cornicens tocaram as trombetas Sung atacou sem aviso, tentando uma vitória no primeiro instante. Sua lâmina ficou turva enquanto girava na direção das pernas de Brutus e o jovem romano a desviou para o lado com um tinir de metal. Não contra-atacou, e por um momento Sung ficou desequilibrado. As fendas estreitas de seus olhos permaneceram impassíveis enquanto ele dava de ombros e se adiantava de novo, com a espada comprida cortando uma curva no ar.

De novo Brutus desviou a lâmina e o som de metal parecia um sino ressoando sobre a multidão silenciosa. Todos assistiam fascinados esta última batalha que era tão diferente das anteriores.

Júlio podia ver as manchas de raiva ainda no rosto e no pescoço de Brutus e se perguntou se ele mataria Sung ou seria morto enquanto a mente permanecia na falsa vitória contra Salomin.

O combate se desenvolveu numa séria de golpes e tinir de lâminas, mas Brutus não havia dado sequer um passo para longe de sua marca. Quando a lâmina de Sung se movia para alcançá-lo era bloqueada com um movimento curto do gládio. Quando o golpe era uma finta Brutus o ignorava, mesmo quando o metal passava suficientemente perto para ele ouvi-lo cortando o ar. Sung estava respirando com força enquanto a multidão começava a levantar as vozes diante de cada ataque dele, ficando quieta para o golpe e depois soltando um ofegar sibilante que parecia zombeteiro. Achavam que Brutus estava dando ao sujeito uma lição sobre Roma.

Enquanto observava, Júlio sabia que Brutus estava lutando somente consigo mesmo. Estava quase desesperado para ganhar, mas a vergonha pelo tratamento dado a Salomin o comia por dentro e ele meramente sustentava Sung enquanto pensava. Júlio percebeu que testemunhava a apresentação de um espadachim perfeito. Era uma verdade espantosa, mas o garoto que conhecera tinha se tornado um mestre, maior do que Rênio ou qualquer outro.

Sung sabia disso enquanto o suor ardia em seus olhos e o Romano continuava parado diante dele. O rosto de Sung se encheu de fúria e frustração. Tinha começado a grunhir a cada golpe e, sem uma escolha consciente, não estava mais golpeando para tirar o primeiro sangue, e sim para matar.

Júlio não suportava olhar aquilo. Inclinou-se sobre o parapeito e gritou para o amigo:

— Vença, Brutus! Por nós, vença!

Seu povo rugiu ao ouvi-lo. Brutus virou a lâmina de Sung com a sua, prendendo-a por tempo suficiente para dar uma cotovelada na boca do sujeito. O sangue se derramou visivelmente sobre a pele pálida de Sung e o chinês recuou, perplexo. Júlio viu Brutus levantar a mão e falar com o sujeito, então Sung balançou a cabeça e atacou de novo.

Então Brutus ficou vivo e era como olhar um gato espantado saltar. Deixou a lâmina comprida deslizar ao longo das costelas para entrar dentro da guarda e projetou seu gládio contra o pescoço de Sung com cada grama da raiva. A lâmina desapareceu sob a armadura de prata e Brutus se afastou pela arena, sem olhar para trás.

Sung olhou para ele com o rosto contorcido. Sua mão esquerda puxou a lâmina enquanto tentava gritar, mas os pulmões eram fitas de carne por dentro e apenas um grasnar rouco pôde ser ouvido no silêncio mortal.

A multidão começou a zombar e Júlio sentiu vergonha dela. Levantou-se e gritou pedindo silêncio, o bastante para aquietar os que puderam ouvir. O resto acompanhou numa imobilidade tensa enquanto o povo de Roma esperava a queda de Sung.

Sung cuspiu com raiva na areia, com toda a cor sumindo do rosto. Mesmo à distância o público podia ouvir cada respiração sair num arranco. Lentamente, com cuidado infinito, ele abriu as fivelas da armadura e a deixou cair. O tecido por baixo estava encharcado e preto à luz das tochas e Sung ficou espantado, o olhar escuro saltando para as fileiras de romanos que observavam.

— Ande, desgraçado — sussurrou Rênio baixinho. — Mostre a eles como se morre.

Com a precisão da agonia Sung embainhou sua espada comprida e então suas pernas o traíram, e ele caiu de joelhos. Mesmo assim olhou em volta e cada respiração parecia um grito, cada qual mais curto do que a anterior Então ele caiu e os espectadores soltaram o ar, sentados como estátuas de deuses num julgamento.

Pompeu enxugou a testa, balançando a cabeça.

— Você deve parabenizar seu homem, César. Nunca vi coisa melhor — disse ele.

Júlio virou os olhos frios para o cônsul e Pompeu assentiu como se para si mesmo, chamando os guardas para escoltá-lo de volta às muralhas da cidade.

 

Bíbilo ficou olhando irritado, em silêncio, Suetônio andar de um lado para o outro na sala comprida onde ele recebia os visitantes. Como cada parte da casa, era decorada segundo o gosto de Bíbilo, e enquanto observava Suetônio ele se sentia reconfortado pelas cores simples dos divãs e pelas colunas com capitéis dourados. De algum modo a limpeza nítida nunca deixava de acalmá-lo. E ao entrar em qualquer cômodo da vila, simplesmente num relance, ele sabia se alguma coisa estava fora do lugar. O piso de mármore preto era tão polido que cada passo de Suetônio era acompanhado por uma sombra colorida sob seus pés, como se ele andasse sobre a água. Estavam sozinhos, tendo dispensado até mesmo os escravos. O fogo havia se apagado há muito e o ar estava frio a ponto de congelar o hálito. Bíbilo teria gostado de pedir vinho esquentado com um ferro em brasa, ou um pouco de comida, mas não ousava interromper o amigo.

Começou a contar as voltas enquanto Suetônio andava, com a tensão aparecendo nos ombros rígidos e nas mãos cruzadas com força às costas, deixando brancos os nós dos dedos. Bíbilo suportava com ressentimento o uso noturno de sua casa, mas Suetônio o dominava e ele se sentia obrigado a escutar, mesmo tendo passado a desprezar o outro.

A voz dura de Suetônio rompeu o silêncio sem aviso, como se a raiva não pudesse mais ser contida.

— Juro que se eu pudesse alcançá-lo mandaria matá-lo Bibi. Pela cabeça de Júpiter, juro!

— Não diga isso — gaguejou Bíbilo, chocado. Mesmo em sua própria casa algumas palavras nunca deveriam ser ditas.

Suetônio parou de andar como se tivesse sido desafiado e Bíbilo se encolheu de volta no divã fofo. Gotas de saliva branca tinham se juntado nos cantos da boca de Suetônio e Bíbilo ficou olhando para elas, incapaz de se desviar.

— Você não o conhece, Bíbilo. Não viu como ele representa o papel de um romano nobre, como o tio dele. Como se sua família fosse algo além de mercadores! Ele lisonjeia as pessoas de quem precisa, inflando-as como se fossem galos à sua passagem. Ah, isso eu tenho de admitir! Ele é um mestre em encontrar quem o ame. Tudo construído sobre mentiras, Bíbilo. Eu vi.

Ele olhou irritado para o amigo como se esperasse ser questionado.

— Sua vaidade brilha até eu não acreditar que sou o único que nota, no entanto todos se enfileiram para ele e o chamam de jovem leão de Roma.

Suetônio cuspiu no chão polido e Bíbilo olhou com nojo para a mancha de catarro úmido. Suetônio deu um riso de desprezo, com a amargura transformando suas feições numa máscara feia.

— Para Pompeu e Crasso tudo é um jogo. Eu vi quando nós voltamos juntos da Grécia. A cidade estava pobre, os escravos à beira da maior rebelião da nossa história e eles colocaram César como tribuno. Eu deveria saber então que nunca veria justiça. O que ele tinha feito para merecer aquilo, afinal? Eu estive lá quando lutamos contra Mitridates, Bibi. César não era mais líder do que eu, mas fingia ser. Mitridates praticamente nos deu a vitória mas nunca vi Júlio lutar. Já falei isso? Nunca o vi ao menos desembainhar a espada para nos ajudar quando o sangue corria.

Bíbilo suspirou. Tinha ouvido tudo isso antes, mas sempre que escutava a narrativa de ressentimentos César se tornava cada vez mais o vilão que Suetônio desejava.

— E a Espanha? Ah, Bibi, eu sei tudo sobre a Espanha. Ele vai para sem nada e volta com ouro suficiente para concorrer ao cargo de cônsul) mas eles o questionam? Ele é derrubado pelos tribunais? Escrevi para o homem que ocupou o lugar dele e questionei os números que ele deu ao senado. Fiz o trabalho daqueles velhos idiotas, Bibi.

- O que ele disse? — perguntou Bíbilo, erguendo o olhar das mãos.

Esta era uma parte nova na arenga, e lhe interessava. Ficou olhando Suetônio procurar palavras e esperou que ele não cuspisse de novo.

- Nada! Escrevi repetidamente. Por fim o sujeito me mandou um bilhete curto, um alerta para não interferir com o governo de Roma. Uma ameaça, Bíbilo, uma ameaçazinha maligna. Então eu soube que ele era um dos homens de César. Sem dúvida suas mãos estão tão sujas quanto as dele. Júlio se encobre bem, mas vou criar uma armadilha.

Cansado e faminto, Bíbilo não pôde resistir a uma pequena farpa.

— Se ele virar cônsul ficará imune a processos, Suetônio, mesmo por crimes capitais. Então você não poderá tocá-lo.

Suetônio deu um riso de desprezo antes de falar. Lembrou-se de ter visto os homens envoltos em sombra indo para a propriedade de César, assassinar Cornélia e os serviçais dela. Algumas vezes pensava que essa lembrança era tudo que o impedia de ficar louco. Os deuses não tinham protegido Júlio naquele dia. Júlio fora mandado à Espanha com boatos de desgraça, enquanto sua bela esposa tinha a garganta cortada. Então Suetônio pensou que finalmente havia dominado a raiva. A morte de Cornélia era como um tumor estourando nele, com todo o veneno escorrendo para fora.

Suspirou pela perda daquela paz. Júlio tinha abusado do cargo na Espanha, estuprando o país para conseguir ouro. Deveria ter sido apedrejado nas ruas, mas tinha voltado e contado suas mentiras para a multidão simples e ganhado a confiança dela. O torneio tinha espalhado seu nome pela cidade.

— Há alguma surpresa quando o amigo dele vence o torneio, Bibi? Não, eles simplesmente aplaudem de cabeça vazia, se bem que qualquer um com olhos conseguisse ver que Salomin mal podia andar até sua marca. Esse era o verdadeiro César, o que eu conheci. Bem ali na frente de bilhares, e eles não viam. Onde estava sua preciosa honra, então? — Suetônio começou a andar de novo, cada passo batendo em sua imagem espelhada. — Ele não deve ser cônsul, Bibi. Farei o que for preciso, mas

e não deve. Você não é minha única esperança, amigo. Você ainda pode Pegar bastante votos das centúrias para derrubá-lo, mas eu acharei outro modo se isso não for o bastante.

— Se você for apanhado fazendo alguma coisa eu... Suetônio sinalizou para que ele ficasse quieto.

— Faça o seu trabalho, Bíbilo, e eu faço o meu. Acene para a multidão vá aos tribunais, faça seus discursos.

— E se isso não bastar? — perguntou temendo a resposta.

— Não me desaponte, Bíbilo. Você chegará até o fim, a não ser que sua retirada favoreça o meu pai. É muito para pedir? Não é nada.

— Mas e se...

— Estou cansado das suas objeções, amigo — disse Suetônio em voz baixa. — Se você quiser posso ir até Pompeu e mostrar por que você não é apto para defender Roma. Gostaria disso, Bibi? Gostaria que ele conhecesse seus segredos?

— Não faça... — disse Bíbilo, com lágrimas ardendo nos olhos. Em ocasiões assim sentia apenas ódio pelo homem à sua frente. Suetônio fazia tudo parecer sórdido.

Suetônio se aproximou e pôs a mão sob a carne do queixo de Bíbilo.

— Até os cachorros pequenos podem morder, não é, Bíbilo? Será que você me trairia? Sim, claro que trairia, se eu desse chance. Mas você cairia comigo, e a queda seria pior. Sabe disso, não sabe?

Suetônio segurou uma papada entre dois dedos e torceu. Bíbilo estremeceu de dor.

— Você é realmente um sujeitinho sujo, Bíbilo. Mas preciso de você e isso nos liga melhor do que a amizade, melhor do que o sangue. Não esqueça, Bibi. Você não suportaria a tortura. E sabemos que Pompeu é meticuloso.

Com um movimento brusco Bíbilo se afastou, as mãos macias apertando a garganta machucada.

— Chame suas crianças bonitas e mande que acendam o fogo de novo. Está frio aqui — disse Suetônio com os olhos brilhando.

Na sala de jantar da casa da campanha Brutus se levantou à cabeceira da mesa e ergueu a taça enquanto olhava os amigos. Eles se levantaram para homenageá-lo e parte da amargura sentida por causa de Solomin desapareceu com a companhia. Júlio o encarou e Brutus forçou um sorriso, com vergonha de ter acreditado que o amigo seria responsável pela surra.

- A que devemos beber? — perguntou Brutus.

Alexandria pigarreou e todos olharam para ela.

- Precisaremos de mais do que um brinde, mas o primeiro deve ser a

Marco Brutus, a primeira espada de Roma.

Todos sorriram e ecoaram as palavras, e Brutus pôde ouvir a voz grave de Rênio rosnar acima dos outros. O velho gladiador tinha conversado com ele durante longo tempo depois da vitória no torneio e, como era ele, Brutus tinha ouvido.

Brutus levantou a taça quando seus olhares se encontraram, fazendo um agradecimento particular. Rênio riu e Brutus sentiu o humor ficar mais leve.

— Então o próximo deve ser para minha linda ourives — disse ele — que ama um bom espadachim de vários modos.

Alexandria ruborizou diante dos risos e Brutus olhou desejoso para seu decote.

— Você está bêbado, seu devasso — respondeu ela com os olhos brilhando de diversão.

Júlio pediu que as taças fossem cheias de novo.

— Aos que amamos e não estão aqui — disse ele, e algo em seu tom de voz fez com que todos parassem. Caberá estava deitado lá em cima, com os melhores médicos de Roma ao lado, nenhum deles tendo metade de sua capacidade. Apesar de ter curado Domício o velho havia desmoronado imediatamente depois, e sua doença lançou uma mortalha sobre os outros.

Eles ecoaram o brinde, ficando quietos ao lembrar os que tinham perdido. Além do velho curandeiro, Júlio pensava em Servília, e seu olhar foi até a cadeira vazia deixada para ela. Coçou a testa lembrando de onde a pérola o havia acertado.

— Vamos ficar de pé a noite inteira? — perguntou Domício. — Utaviano já deveria estar na cama.

Otaviano inclinou a taça, esvaziando-a na boca.

Disseram que eu posso ficar acordado até tarde se for bonzinho — respondeu animado.

Júlio olhou com afeto para seu jovem parente enquanto todos se sentavam. Ele estava se tornando um belo homem, ainda que seus modos fossem um tanto rudes. Até Brutus havia observado a quantidade de vezes que Otaviano fora visto na casa de Servília: aparentemente o rapaz estava se tornando uma espécie de favorito das garotas. Júlio ficou olhando Otaviano rir de algo que Rênio tinha dito e esperou que a confiança extraordinária de sua juventude não lhe fosse tirada com muita dureza. No entanto, se ele nunca fosse realmente testado, viraria uma concha. Havia muitas coisas que Júlio mudaria no próprio passado, mas sem elas sabia que ainda seria o garotinho cheio de raiva e orgulho que Rênio tinha treinado. Era uma coisa terrível de considerar, mas esperava que Otaviano conhecesse pelo menos um pouco de dor, para transformá-lo num homem. Era o único modo que ele conhecia, e ainda que Júlio pudesse se esquecer de seus triunfos, seus fracassos o haviam moldado.

A comida veio em seus pratos de prata, feitos na Espanha. Todos estavam famintos e por longo tempo ninguém falou para interromper o ruído baixo da mastigação.

Brutus se recostou na cadeira e cobriu um arroto com a mão.

— Então você vai ser cônsul, Júlio? — perguntou.

— Se os votos forem suficientes.

— Alexandria está fazendo um broche de cônsul para sua capa. É muito bonito — continuou Brutus.

Alexandria pousou a cabeça numa das mãos.

— Era surpresa, lembra, Brutus? Eu disse que era uma surpresa. O que isso significou para você, exatamente?

Brutus apertou a mão dela.

— Desculpe. Mas é bonito mesmo, Júlio.

— Espero ter a chance de usá-lo. Obrigado, Alexandria. Só gostaria de ter tanta certeza da vitória quanto Brutus.

— Por que não teria? Você perdeu um processo no fórum que ninguém poderia ter ganhado. Ganhou três que deveria ter perdido. Seus clientes saem toda noite para você, e os relatórios são bons.

Júlio assentiu pensando nas dívidas que tinha contraído para alcançar isso. O ouro que ganhara de Pompeu havia desaparecido em alguns curtos dias de campanha. Apesar da reputação extravagante que ganhara, lamentava alguns dos gastos mais loucos, particularmente a pérola. Pior ainda era o modo como os emprestadores assumiam uma familiaridade com ele à medida que os gastos aumentavam. Era como se sentissem que eram donos de uma parte dele, e Júlio ansiava pelo dia em que estaria livre daquilo. Ruborizado pelo vinho, Brutus se levantou de novo.

- Façamos outro brinde—falou.—À vitória, mas à vitória com honra.

Todos se levantaram e levantaram as taças. Júlio desejou que seu pai pudesse vê-los.

 

Havia uma grande solenidade na vasta multidão que tinha saído da cidade para votar. Júlio olhava com orgulho enquanto o povo se dividia nas centúrias da eleição e levava as tabuletas de cera até os diribitores, que as colocavam em cestos para a contagem. A cidade pairava no horizonte, e a oeste a bandeira distante na colina Janículo estava hasteada, sinalizando que a cidade estava em segurança e lacrada enquanto a eleição acontecia.

O sono fora impossível na noite anterior, e quando os augures se aprontaram para sair e consagrar o terreno Júlio estava com eles junto ao portão, nervoso e com a cabeça estranhamente leve enquanto os observava preparar as facas e guiar um grande novilho branco para fora da cidade. O corpo frouxo do animal estava caído perto de onde Júlio se encontrava em silêncio, tentando avaliar o humor da multidão. Muitas pessoas assentiam e sorriam para ele enquanto colocavam os votos nos cestos, mas Júlio sentia pouco prazer com isso. Somente os votos das centúrias de eleitores contariam, e com as classes mais ricas votando primeiro, Prando já garantira sete contra quatro para Bíbilo. Nenhuma das onze primeiras centúrias tinha se declarado a favor de Júlio e ele sentia o suor escorrendo das axilas por baixo da toga, enquanto o calor do dia começava a aumentar.

Sempre soubera que os votos dos ricos livres seriam os mais difíceis de ganhar, mas ver a realidade de cada voto perdido era uma experiência amarga.

Os cônsules e candidatos estavam ao seu lado num grupo digno, mas Pompeu não podia esconder a diversão e conversava com um escravo ao lado enquanto estendia a taça pedindo uma bebida fria.

Júlio se esforçou tremendamente para manter uma expressão agradável. Mesmo depois de todos os preparativos os primeiros votos poderiam influenciar as últimas centúrias e o resultado poderia ser uma derrota fragorosa, sem espaço para ele. Pela primeira vez desde que voltara à cidade imaginou o que faria se perdesse.

Ficar numa cidade governada por Bíbilo e Prando seria o seu fim, tinha certeza. Pompeu arranjaria um modo de destruí-lo, se Suetônio não o fizesse. Simplesmente para sobreviver àquele ano ele seria obrigado a implorar um posto em algum buraco distante nos limites da influência romana. Balançou a cabeça inconscientemente, com os pensamentos tocando possibilidades cada vez piores enquanto os votos eram cantados. Os que apoiavam Prando e Bíbilo aplaudiam a cada sucesso e Júlio era obrigado a sorrir dando os parabéns, ainda que isso fosse como ácido para ele.

Disse a si mesmo que não havia nada que pudesse fazer e encontrou nisso uma calma momentânea. Os homens de Roma votavam em pequenos cubículos de madeira e passavam aos diribitores as tabuletas viradas para baixo, para esconder as marcas que tinham feito. Nesse estágio não poderia haver coerção e todos os subornos e jogos nada significavam enquanto os cidadãos ficavam sozinhos e apertavam a cera duas vezes junto aos nomes escolhidos. Mesmo assim a multidão que esperava ouvia cada resultado e logo votaria com a massa de homens à frente dela. Em muitas eleições Júlio tinha visto as classes mais pobres ser mandadas de volta a Roma assim que era anunciada uma maioria. Rezava para que não acontecesse isso.

— ...César — gritou o magistrado e Júlio ergueu a cabeça bruscamente para ouvir. Era o fim da primeira classe e ele havia ganhado um voto na rabeira. Agora os que tinham menos propriedades e riquezas teriam sua vez. Ao mesmo tempo que sorria ficava agitado, tentando não demonstrar. A maior parte de seu apoio estava entre os mais pobres, que o viam como um homem que tinha subido até aquela posição; mas sem mais votos dos ricos seu povo nem teria a chance de marcar a cera em seu nome.

Os resultados da segunda classe foram ainda mais equilibrados e Júlio se empertigou um pouco mais, enquanto ouvia sua contagem crescer junto com os outros. Prando tinha dezessete, Bíbilo quatorze e mais cinco centúria haviam se declarado por Júlio, aumentando suas esperanças. Viu que não era o único a sofrer. O pai de Suetônio tinha empalidecido com a tensão extraordinária e Júlio achou que o sujeito queria tanto sentar quanto ele próprio. Bíbilo também estava nervoso, o olhar indo para Suetônio a intervalos, quase como se estivesse implorando.

Na hora seguinte a liderança mudou três vezes, e no fim o total de votos para o pai de Suetônio o deixou em terceiro lugar, caindo cada vez mais Júlio viu Suetônio ir até o lado de Bíbilo. O gordo se encolheu, mas Suetônio agarrou seu braço e sussurrou asperamente no ouvido dele. Sua raiva tornou a fala perfeitamente audível a todos e Bíbilo ficou com o rosto carmim.

— Retire a candidatura, Bibi. Você deve retirar agora! — rosnou Suetônio ignorando o olhar de Pompeu.

Bíbilo assentiu nervosamente, como num espasmo, mas Pompeu pôs a mão enorme nos ombros dele como se Suetônio não estivesse ali, obrigando o jovem romano a se afastar rapidamente para não tocar o cônsul.

— Espero que você não esteja pensando em sair da lista, Bíbilo — disse Pompeu.

Bíbilo fez um som que poderia ter sido uma resposta, mas Pompeu continuou:

— Você se saiu muito bem entre as primeiras classes, e pode se sair ainda melhor antes do fim. Continue, e quem sabe? Mesmo que não tenha sucesso, sempre há um lugar para as famílias antigas no senado.

Bíbilo grudou um sorriso doentio no rosto e Pompeu deu-lhe um tapinha no braço enquanto o liberava. Suetônio se virou de costas para não tentar de novo e ficou olhando friamente enquanto Bíbilo recebia mais três votos.

Ao meio-dia cada resultado era recebido com aplausos e gritos enquanto os vendedores de vinho vendiam seu produto à multidão. Júlio se achou em condições de relaxar o suficiente para tomar uma taça, mas não sentiu o gosto. Trocava amenidades com Bíbilo, mas o senador Prando permanecia distante e só assentia rigidamente quando Júlio o parabenizava. Suetônio não tinha a habilidade do pai para esconder as emoções e Júlio sentia seus olhos constantemente fixos nele, irritando-o.

Quando o sol passou do zênite Pompeu pediu toldos para cobri-los. Cem centúrias tinham votado e Júlio estava em segundo lugar, dezessete votos à frente de Prando. Como as coisas estavam, Bíbilo e Júlio ocupariam os assentos, e a multidão começou a demonstrar o interesse mais abertamente, aplaudindo e mpurrando uns aos outros para observar os candidatos. Júlio observou quando Suetônio tirou um grande tecido vermelho na toga e enxugou a testa com ele. Era um gesto estranhamente espalhafatoso e Júlio deu um sorriso sem humor, olhando para o oeste, onde a bandeira na Janículo podia ser vista.

Da colina Janículo tinha-se uma vista total da cidade e das terras em volta. Um mastro enorme se erguia de uma base de pedra no ponto mais alto e os homens que vigiavam a possibilidade de uma invasão jamais desviavam o olhar. Em geral era um serviço fácil, mais adequado aos dias antigos em que a cidade vivia no perigo constante de ser atacada por tribos e exércitos de fora. Este ano a conspiração de Catilina havia trazido de volta a necessidade constante do dever, e os que haviam ganhado a tarefa por sorteio estavam alertas e vigilantes. Eram seis, quatro rapazes e dois veteranos da legião de Pompeu. Falavam dos candidatos enquanto comiam um almoço frio, desfrutando do afastamento dos serviços normais. Ao pôr-do-sol terminariam o dia tocando uma nota numa trombeta comprida e com o abaixamento solene da bandeira.

Não viram os homens se esgueirando morro acima por trás deles até que uma pedrinha bateu numa rocha e escorregou pelo lado íngreme abaixo da crista. Os garotos se viraram para ver que animal os havia perturbado e um deles gritou em alerta ao ver os homens armados subindo. Eram sete; raptores grandes, cheios de cicatrizes, que mostraram os dentes ao ver o pequeno grupo de defensores.

Os homens de Pompeu saltaram de pé, espalhando comida e derrubando uma jarra de argila com água que escureceu o chão poeirento. No instante em que suas espadas saíram eles foram rodeados, mas conheciam seu dever e o primeiro raptor caiu com um soco quando chegou perto demais, os outros vieram para cima, rosnando, e então outra voz chegou pelo ar.

— Parados! Quem se mexer morre — gritou Brutus. Estava correndo para eles com vinte soldados atrás. Mesmo que estivesse sozinho poderia ter bastado. Havia poucos em Roma que não reconheceriam a armadura de prata que ele usava, ou a espada com cabo de ouro que havia ganhado.

Os raptores se imobilizaram. Eram ladrões e assassinos e nada em experiência os havia preparado para enfrentar os soldados de sua cidade. Demoraram apenas um instante para abandonar as encostas íngremes. Dois deles perderam o apoio e rolaram, largando as armas no pânico Quando Brutus chegou ao mastro da bandeira estava ofegando ligeiramente e os homens de Pompeu o saudaram com o rosto vermelho.

— Seria uma vergonha ver a eleição ser interrompida por alguns ladrões, não é? — disse Brutus, olhando as figuras que se afastavam.

— Tenho certeza de que Briny e eu poderíamos impedi-los, senhor —. respondeu um dos homens de Pompeu — mas esses são bons garotos e sem dúvida perderíamos um ou dois. — O homem parou enquanto lhe ocorria que estava sendo pouco agradecido pelo resgate. — Ficamos felizes em vê-lo, senhor. Vai deixá-los ir embora?

O legionário chegou até a borda com Brutus, observando o progresso dos raptores. Brutus balançou a cabeça.

— Tenho alguns cavaleiros lá embaixo. Eles não chegarão à cidade.

— Obrigado, senhor — respondeu o soldado com um sorriso sério.

— Eles não merecem.

— Você consegue ver que candidato está perdendo neste momento?

— perguntou Brutus, estreitando os olhos para a massa escura de cidadãos à distância. Podia perceber onde Júlio estava parado e viu uma mancha de vermelho aparecer num dos homens ao lado dele. Assentiu satisfeito. Júlio tinha adivinhado.

O soldado de Pompeu deu de ombros.

— Daqui não dá para ver grande coisa, senhor. Acha que aquele pano vermelho era o sinal para eles?

Brutus deu um risinho.

— Nunca poderemos provar, você sabe. É tentador pensar em dobrar aqueles ladrões com um pouco de ouro, colocando-os contra quem os mandou. Mais satisfatório do que simplesmente deixar o corpo deles aqui, não acha?

O soldado deu um sorriso rígido. Sabia que seu general não era amigo do homem que estava ao seu lado, mas a armadura de prata o deixou num espanto reverente. Poderia contar aos filhos que tinha conversado com maior espadachim de Roma.

— É muito melhor se eles fizerem isso, senhor.

— Ah, acho que farão. Meus cavaleiros podem ser muito persuasivos - respondeu Brutus, olhando a bandeira que tremulava na brisa acima de sua cabeça.

Suetônio olhava o mais casualmente que podia para a bandeira na Janículo. Ainda estava hasteada! Mordeu o lábio inferior, irritado, imaginando se deveria tirar mais uma vez o pano vermelho de dentro da toga. Será que estariam dormindo? Ou simplesmente tinham chegado seu dinheiro e estavam em alguma taverna bebendo até desmaiar? Pensou ter visto figuras escuras movendo-se na crista escura e imaginou se os homens que havia contratado não conseguiam ver seu sinal. Olhou em volta, sentindo culpa, e enfiou de novo a mão dentro do tecido macio do manto. Nesse momento viu que Júlio estava sorrindo para ele, o olhar divertido parecendo conhecer cada pensamento em sua cabeça. Suetônio deixou a mão cair ao lado do corpo e ficou parado rigidamente, dolorosamente cônscio do rubor que começara no pescoço e nas bochechas.

Otaviano estava deitado no capim alto, com o cavalo ao lado, cujo peito enorme arfava respirando lentamente. Eles haviam treinado as montarias durante meses para conseguir manter a posição pouco natural, e agora os extraordinarii só precisavam encostar a mão nos focinhos macios para mantê-los imóveis. Ficaram olhando enquanto os raptores escorregavam e pulavam descendo a Janículo, e Otaviano riu. Júlio estivera certo pensando que alguém poderia tentar baixar a bandeira caso a eleição ficasse desfavorável. Ainda que fosse um ardil simples, os efeitos seriam devastadores. Os cidadãos de Roma teriam voltado para a cidade e os resultados até aquele ponto seriam declarados nulos. Talvez mais um mês se passasse antes que se reunissem de novo, e nesse tempo muita coisa poderia mudar.

Otaviano esperou até que os homens estivessem perto, depois deu um assobio baixo, passando a perna sobre a sela enquanto o cavalo se levantava.

O resto de sua vintena saltou fluidamente com ele, ocupando as selas antes que as montarias estivessem totalmente de pé.

Para os ladrões em fuga pareceu que toda uma cavalaria armada havia brotado do chão diante deles. Os sete homens entraram totalmente em pânico, jogando-se no solo ou levantando as mãos rendendo-se num instante. Otaviano desembainhou a espada, sustentando o olhar deles. O líder ficou olhando-o resignado e virou a cabeça para cuspir no capim comprido

— Então venha. Acabe logo com isso — disse ele.

Apesar de seu aparente fatalismo o ladrão tinha plena consciência das posições dos cavaleiros e só relaxou quando todas as opções de retirada foram bloqueadas. Ouvira dizer que um homem podia correr mais depressa do que um cavalo numa curta distância, mas olhando os animais luzidios dos extraordinaríi isso não parecia provável.

Quando as últimas armas foram retiradas dos ladrões, Otaviano soltou o capacete que estava preso à cela e o colocou na cabeça. A pluma balançou suavemente na brisa, aumentando seu tamanho e lhe dando um aspecto ameaçador. Achou que valia totalmente a parte do salário gasta para comprá-la. Sem dúvida todos os raptores o olhavam agora, esperando sérios a ordem para ser mortos.

— Não imagino que seja possível fazer acusações contra seu senhor — disse Otaviano.

O líder cuspiu de novo.

— Não tenho nenhum senhor, soldado, a não ser, talvez, a prata — disse ele, com o rosto subitamente esperto ao sentir que havia algo ali.

— Seria uma pena se ele escapasse sem ao menos uma boa surra, não acha? — perguntou Otaviano com inocência.

Os raptores assentiram, e até o mais obtuso começou a perceber que a ordem para matar não viria.

— Eu posso encontrá-lo de novo, se o senhor nos deixar ir — disse o líder tentando não ter esperanças. Havia algo aterrorizante nos cavalos para um homem que tinha crescido na cidade. Nunca havia entendido exatamente como eram grandes, e estremeceu quando um dos animais bufou atrás dele.

Otaviano jogou uma pequena bolsa no ar e o sujeito pegou-a, sentindo o peso automaticamente antes de fazê-la desaparecer dentro da túnica.

— Faça um serviço profissional — disse Otaviano, recuando o cavalo para deixar um espaço de passagem. Dois raptores tentaram fazer uma saudação enquanto caminhavam entre os cavaleiros e começavam a ir para a cidade. Nenhum deles ousou olhar para trás.

Antes que as últimas centúrias votassem Júlio soube que ele e Bíbilo tinham obtido o cargo de cônsul para o próximo ano. Lembrou-se dos movimentos das abelhas enquanto os senadores se reuniam em volta dos dois e riu da expressão estupefata de Bíbilo.

Júlio teve o ombro seguro e a mão apertada por dezenas de homens que mal conhecia, e antes de ter entendido completamente a mudança em seu status, estava se desviando de perguntas e pedidos de seu tempo e mesmo de sugestões de oportunidades para investir. Em seu papel como a "Comitia Centuriata" formal, os cidadãos de Roma tinham criado dois novos corpos para a cidade sugar até o fim, e Júlio se sentiu avassalado e irritado com a atenção. Onde aqueles apoiadores sorridentes tinham estado durante sua campanha?

Em comparação com o calor raso dos senadores, ter Pompeu e Crasso parabenizando-o foi um prazer genuíno, em particular porque sabia que Pompeu preferiria comer vidro a dizer aquelas palavras. Júlio apertou a mão oferecida sem qualquer sinal de júbilo excessivo, com a mente já no futuro. Não importando quem o povo elegera para liderar o senado, os cônsules atuais ainda eram uma força na cidade. Só um idiota zombaria deles no momento de triunfo.

O magistrado subiu numa pequena plataforma para dispensar as últimas centúrias. Os eleitores baixaram a cabeça enquanto o homem gritava agra-decendo-lhes, terminando com a ordem tradicional:

— Discedite!

Os cidadãos obedeceram e se espalharam, rindo e brincando enquanto começavam a andar de volta para a cidade lacrada.

Suetônio e seu pai tinham prestado suas homenagens e Júlio falou calorosamente com eles, sabendo que era uma chance de emendar as pontes partidas na campanha e no passado. Podia suportar o gesto, e Prando pareceu aceitar sua boa vontade, fazendo uma ligeira reverência ao cônsul eleito de Roma. Seu filho Suetônio olhou direto através dele, com o rosto vazio pela derrota.

Os homens de Pompeu tinham trazido cavalos e Júlio ergueu os olhos quando as rédeas foram postas em sua mão. Das costas de um capão cinza Pompeu olhou para ele com a expressão ilegível.

— Vão se passar horas antes que o senado se reúna de novo para confirmar a eleição, Júlio. Se for conosco agora, teremos a Cúria só para nós.

Crasso se inclinou sobre o pescoço do cavalo para falar mais particularmente:

— Você confiará em mim mais uma vez?

Júlio olhou para os dois, sentindo a tensão sutil neles enquanto esperavam sua resposta. Não hesitou, saltando na sela e levantando um braço para as pessoas da multidão que observavam a conversa. Elas o aplaudiram enquanto ele girava o animal e partia pelo vasto campo com os outros dois, e uma centúria da cavalaria de Pompeu se acomodava atrás, em escolta. A multidão se partiu diante deles e suas sombras se estenderam atrás.

 

Sem as Centúrias de eleitores a cidade estava estranhamente vazia enquanto os três homens cavalgavam pelas ruas. Júlio se lembrou da noite da tempestade em que tinha descido às celas da prisão e visto as figuras torturadas dos homens de Catilina. Olhou para Crasso enquanto desmontavam diante do senado e o velho levantou as sobrancelhas, tentando adivinhar o motivo da atenção.

Júlio nunca havia entrado no prédio do senado sem que o local estivesse cheio de homens nos bancos. O eco era extraordinário, refletindo cada passo enquanto eles ocupavam lugares perto do rostro. A porta fora deixada aberta e o sol brilhava como se fosse uma barra de ouro, fazendo as paredes de mármore parecerem leves e aéreas. Júlio se recostou no duro banco de madeira com um sentimento de enorme satisfação. Sua eleição só estava começando a assentar por dentro e ele mal conseguia resistir a rir sozinho diante do pensamento.

— Crasso e eu achamos que todos poderíamos nos beneficiar de uma conversa privada antes que o senado se reúna — começou Pompeu. Em seguida se levantou e começou a andar de um lado para o outro enquanto falava. — Deixando de lado as palavras elaboradas para o público, os três temos pouca amizade entre nós. Há respeito, imagino, mas não um grande apreço. — Ele fez uma pausa e Crasso deu de ombros. Júlio ficou quieto.

— Se não chegarmos a algum tipo de acordo para o ano que vem continuou Pompeu — acho que será um tempo desperdiçado para a cidade. Você viu a influência que Suetônio tem sobre Bíbilo. Todo o senado ouvi os balidos de reclamações dele contra você no correr dos anos. Juntos dois vão adiar ou frustrar qualquer coisa que você proponha até que nada possa ser feito. Não será bom para Roma.

Júlio olhou para o sujeito, lembrando-se de quando o conhecera naquele mesmo salão. Pompeu era um tático soberbo no campo e no senado, mas ele e Crasso estavam diante da perda de poder e do respeito que desfrutavam. Este era o verdadeiro motivo para a reunião particular, e não qualquer preocupação com o ano consular de Júlio. Um acordo era certamente possível, se ele pudesse encontrar termos que satisfizessem a todos.

— Já pensei um pouco no assunto — disse Júlio.

 

Suetônio cavalgou até o estábulo da estalagem perto ao portão na muralha, onde tinha ocupado um quarto para o dia da eleição. Seu pai mal havia falado com ele e apenas assentiu quando Suetônio ofereceu as condolências pela perda. O senador Prando havia comido rapidamente e em silêncio antes de ir para o quarto em cima, deixando o filho afogar a frustração em vinho barato.

A porta da taverna se abriu e Suetônio ergueu os olhos, esperando que fosse Bíbilo. Sem dúvida o amigo estava de volta ao palacete no centro da cidade, sendo massageado por escravos bonitos, sem qualquer preocupação no mundo. Suetônio ainda não havia começado a pensar nas implicações de ter Bíbilo como cônsul. Seu primeiro pensamento em pânico foi que a imunidade consular retiraria a vantagem que tinha sobre o sujeito, mas descartou isso assim que pensou. Imune ou não, Bíbilo ficaria aterrorizado se seus hábitos ficassem conhecidos na cidade. Talvez até pudesse haver benefícios em ter o amigo gordo liderando o senado. Não era o que ele planejara, mas ter um cônsul sob seu comando poderia ser interessante. Suetônio decidiu, sonolento, visitar a casa dele e lembrá-lo desse relacionamento.

O homem que entrou era um estranho e a princípio Suetônio o ignorou. Estava bêbado demais para se espantar quando o sujeito pigarreou e disse:

— Senhor, o garoto do estábulo disse que há um problema com seu cavalo. Acha que está com um espinho no casco.

— Vou mandar açoitá-lo se estiver — reagiu Suetônio rispidamente, levantando-se depressa demais. Mal notou a mão firmando seu ombro enquanto era guiado para a escuridão fora da estalagem.

O ar da noite ajudou um pouco a retirar a névoa de vinho de seus pensamentos e ele se afastou do braço que o segurava enquanto ia entrando no estábulo baixo. Havia homens ali, homens demais para estarem cuidando dos cavalos. Riram para ele enquanto um pânico frio se acomodava em seu sangue arfante.

- O que vocês querem? Quem são vocês? — perguntou bruscamente.

O líder dos raptores se adiantou saindo das sombras e Suetônio recuou diante da expressão do sujeito.

— Para mim isso é só um serviço, mas sempre agrego valor quando posso — disse ele, indo lentamente na direção do jovem romano.

Suetônio foi seguro com força pelos dois braços no instante em que começou a lutar, e uma mão se apertou contra sua boca. O líder flexionou as mãos ameaçadoramente.

— Apaguem as lâmpadas, rapazes. Não preciso de luz para isso — disse ele, e na escuridão súbita veio uma chuva de socos violentos.

 

Júlio desejou ter dormido na noite anterior. Seu cansaço pesava, mas agora, logo agora, precisava estar afiado para lidar com os dois homens.

— Juntos vocês ainda têm apoio suficiente no senado para forçar a aprovação de qualquer coisa.

— A não ser que haja um veto consular — respondeu Pompeu imediatamente.

Júlio deu de ombros.

— Não considere isso. Eu cuidarei de Bíbilo quando chegar a hora. Pompeu piscou para ele e Júlio continuou:

— Sem esse bloqueio suas facções no senado bastam. A questão é meramente o que devo lhes dar para garantir seu apoio.

— Não acho... — começou Crasso rigidamente, mas Pompeu levantou uma das mãos.

— Deixe-o falar, Crasso. Você e eu discutimos isso o suficiente, sem solução. Quero ouvir o que ele tem em mente.

Júlio deu um risinho diante da ânsia deles.

— Crasso quer o comércio. Juntos, Pompeu, nós podemos garantir ele um monopólio absoluto nas terras romanas. Uma licença para dois anos digamos. Ele terá o controle de cada moeda nos domínios. E no entanto não duvido, a riqueza total crescerá sob sua mão. Se conheço Crasso, o tesouro de Roma inchará até quase estourar, em menos de um ano.

Crasso sorriu diante do elogio, mas não pareceu especialmente comovido. Júlio tinha esperado que o velho se sentisse tentado apenas pela licença mas o acordo tinha de deixar todos eles satisfeitos, caso contrário seria rompido no primeiro teste.

— Mas talvez isso não baste, não é? — disse Júlio, observando os dois cuidadosamente.

Os olhos de Pompeu brilharam de interesse e Crasso ficou imerso em pensamentos. A idéia de um controle total sobre o comércio lhe era maravilhosamente inebriante, e ele sabia melhor do que Júlio o que poderia conseguir com esse poder. Seus concorrentes virariam mendigos num só golpe, com as casas e escravos levados a leilão. Num curto tempo ele poderia triplicar suas posses de terras e teria uma frota mercante maior do que o mundo já vira. Poderia ignorar os prejuízos das tempestades distantes e mandar seus navios a países longínquos, Egito, índia, até a lugares sem nome. Nada disso aparecia em sua expressão. Crasso franziu a testa cuidadosamente para mostrar ao rapaz que ainda precisava ser persuadido, enquanto sua mente girava ao pensar na frota que montaria.

— Que tal as suas concessões, Júlio? — perguntou Pompeu impaciente.

— Quero seis meses no senado trabalhando com o apoio de vocês dois. As promessas que fiz ao povo de Roma não eram vazias. Quero aprovar novas leis e normas. Algumas vão incomodar aos membros mais tradicionais do senado e eu preciso ter os votos de vocês comigo, para suplantar as objeções. O povo me elegeu; não podemos ser contidos por Bíbilo e um bando de velhos desdentados.

— Não vejo que vantagem eu posso ter nesse arranjo — disse Pompeu.

Júlio ergueu as sobrancelhas.

— Afora o bem de Roma, claro. — Ele sorriu para aliviar a farpa enquanto Pompeu ficava vermelho, sabendo que ainda podia perder tudo com um passo em falso.

— Seus desejos são bastante simples, meu amigo — disse Júlio.—Você quer a ditadura, ainda que possa resistir ao nome. Crasso e eu endossaremos qualquer moção ou eleição que você apresentar ao senado. Qualquer coisa. Juntos podemos ter o senado aos nossos pés.

- Isso não é coisa pequena — disse Pompeu em voz baixa. O que Júlio estava propondo minava totalmente o objetivo de ter dois cônsules para que um contivesse o outro, mas Pompeu não conseguia encontrar forças para afirmar isso.

Júlio assentiu.

— Eu não diria isso se você fosse um homem menos digno, Pompeu. Nós discordamos no passado, mas jamais questionei seu amor por esta cidade, e quem o conhece melhor do que eu? Nós destruímos Catão juntos, lembra? Roma não sofrerá sob o seu comando.

O elogio talvez fosse um pouco óbvio, mas para sua surpresa Júlio descobriu que acreditava pelo menos em parte. Pompeu era um líder sólido e defenderia os interesses de Roma com determinação e força, mesmo que nunca os ampliasse.

— Não confio em você, César — disse Pompeu, curto e grosso. — Todas essas promessas podem dar em nada, a não ser que tenhamos uma ligação mais firme. — Ele pigarreou. — Preciso de uma prova de boa vontade de sua parte, uma prova de seu apoio que seja mais do que ar.

— Diga o que quer — respondeu Júlio dando de ombros.

— Quantos anos tem sua filha?

O rosto de Pompeu estava numa seriedade mortal e Júlio entendeu imediatamente o que ele queria dizer.

Faz dez este ano. É nova demais para você, Pompeu. Nem sempre será. Ligue seu sangue ao meu e eu aceitarei suas promessas. Minha esposa está na sepultura há mais de três anos e um homem não deve ficar sozinho. Quando ela tiver quatorze mande-a para mim e eu me casarei com ela.

Júlio esfregou os olhos. Muita coisa dependia de chegar a um acordo com aqueles dois lobos velhos. Se sua filha fosse um de seus soldados ele poderia sacrificá-la sem pensar um instante.

— Dezesseis. Ela será sua esposa aos dezesseis anos — disse por fim Pompeu sorriu e confirmou com a cabeça, estendendo a mão. Júlio sentiu-se frio ao segurá-la. Tinha os dois, se pudesse fornecer as peças finais mas o problema de Crasso ainda preocupava seus pensamentos. Na Cúria silenciosa podia ouvir os ecos dos soldados de Pompeu marchando no fórum e ouvi-los lhe deu a resposta.

— Uma legião também, Crasso — disse Júlio pensando rapidamente. — Uma nova águia no Campo de Marte, erguida em seu nome. Homens que eu treinarei e misturarei aos meus melhores oficiais durante meio ano. Mandaremos revirar o campo em busca deles, dezenas de milhares de homens simples que nunca tiveram chance de lutar por Roma. Eles serão seus, Crasso, e posso lhe dizer que não existe elo ou alegria maior do que formá-los numa legião. Eu os farei para você, mas você usará a pluma de general.

Crasso ergueu os olhos rapidamente para os dois, pensando na oferta. Tinha ansiado por um comando desde o desastre contra Espártaco, que lhe fora recusado devido à dúvida incômoda de que não conseguia liderar com tanta facilidade quanto Pompeu ou César. Ouvir Júlio fazia com que isso parecesse possível, mas tentou falar, explicar suas dúvidas.

Júlio pôs a mão no braço dele.

— Eu peguei homens da África e da Grécia e os transformei em soldados, Crasso. Farei mais ainda com os de sangue romano. Catilina viu uma fraqueza que devemos afastar, se Roma quiser prosperar com o seu comércio, não acha? A cidade precisa de bons homens nas muralhas, acima de tudo.

Crasso ruborizou.

— Talvez eu... não seja o homem certo para liderá-los, César — falou com os dentes trincados.

Júlio podia imaginar o que havia lhe custado admitir aquilo na frente de Pompeu, mas fungou em resposta.

— Nem eu era, até que Mário, Rênio e, sim, Pompeu, me mostraram como, com exemplo e treinamento. Nenhum homem salta totalmente crescido nessa função, Crasso. Eu estarei com você nos primeiros passos e Pompeu sempre estará presente. Ele sabe que Roma precisa de uma segunda legião para proteção. Duvido de que ele queira algo menos numa cidade que responde a ele.

Os dois olharam Pompeu e este respondeu de imediato:

— O que você precisar, Crasso. Há verdade no que ele diz. — Antes que os dois pudessem mais do que sorrir, Pompeu foi em frente: — Você pinta um quadro bonito para nós, Júlio. Crasso com seu comércio, eu com uma noiva e a cidade que amo. Mas você não falou qual é o preço desta generosidade. Diga agora.

Crasso interrompeu:

— Aceitarei esses termos, com dois acréscimos. Uma licença por cinco anos, não dois, e meu filho mais velho, Eublio, deve ser posto na Décima como oficial, centurião. Eu sou velho, Júlio. Meu filho liderará esta nova legião para mim.

— Posso concordar com isso — disse Júlio. Pompeu pigarreou impaciente.

— Mas o que você quer, Júlio?

Júlio esfregou os olhos de novo. Não tinha pensado em ligar sua família à linhagem de Pompeu, mas num só golpe sua filha subiria ao mais alto nível social de Roma. Era uma boa barganha. Os dois eram velhos demais na política para recusar um arranjo assim, e o que ele oferecera era absurdamente melhor do que o sofrimento de perder o poder e a influência, mesmo em parte. Júlio conhecia a natureza viciante do comando. Não havia satisfação maior do que liderar. Quando levantou a cabeça para eles, seus olhos estavam luminosos e incisivos.

— Quando os meus seis meses terminarem na cidade e as leis que eu quero forem acrescentadas, é simples. Quero levar minhas duas legiões a terras novas. Vou dar uma procuração a Pompeu e quero que os dois assinem ordens me dando completa liberdade para convocar soldados, fazer acordos e leis em nome de Roma. Não voltarei até que ache que devo. Não prestarei contas a ninguém além de mim mesmo.

— Isso será legal? — perguntou Crasso. Pompeu assentiu.

— Se eu tiver a procuração de cônsul, será. Há algum precedente. — Pompeu franziu a testa, pensativo. — Aonde você levará essas legiões, para fazer isso?

Júlio riu, empolgado pelo novo entusiasmo. Como tinha discutido com os amigos sobre qual seria o destino! Mas no fim houvera apenas uma opção. Alexandre fora para o leste e esse caminho era bem percorrido. Iria para o oeste.

— Quero terras selvagens, senhores. Quero a Gália.

 

Com armadura completa, Júlio caminhava pela noite, indo para a casa de Bíbilo. Pompeu e Crasso acreditavam que ele sabia de algum modo para -amordaçar seu co-cônsul, mas a verdade era que não tinha idéia clara de como impedir Bíbilo e Suetônio de zombar de todos os planos deles.

Apertou os punhos enquanto andava. Tinha cedido a filha e prometido tempo, dinheiro e poder a Pompeu e Crasso. Em troca teria uma liberdade maior do que qualquer general romano na história da cidade. Cipião, o africano, não desfrutara de tanto poder quanto Júlio teria na Gália. Até mesmo Mário prestara contas ao senado. Júlio sabia que não deixaria isso cair de suas mãos por causa de um homem, não importando o que tivesse de fazer.

A multidão abria caminho para ele. Os que o reconheciam ficavam em silêncio. A expressão do novo cônsul proibia qualquer tentativa de cumprimentá-lo ou parabenizá-lo, e um bom número de pessoas imaginava que notícia poderia ter enfurecido alguém no mesmo dia de sua eleição.

Júlio os deixou murmurando enquanto se aproximava do grande portão e das colunas da casa de Bíbilo. Sua decisão se endureceu enquanto erguia o punho para bater na porta de carvalho. Ninguém lhe negaria este último passo.

O escravo que atendeu era um garoto com o rosto muito pintado, que lhe dava uma expressão lasciva mesmo quando reconheceu o visitante e seus olhos se arregalaram de surpresa.

— Sou cônsul de Roma. Você conhece a lei? O escravo assentiu, aterrorizado.

— Então não feche qualquer porta para mim. Toque em minha manga e você morre. Vim ver o seu senhor. Leve-me para dentro.

— C... cônsul...

O rapaz tentou se ajoelhar e Júlio gritou com ele:

— Agora!

O garoto pintado não precisou de mais ordens. Virou-se e quase correu para longe de Júlio, deixando a porta da rua balançando aberta.

Júlio foi atrás, atravessando cômodos onde uma dúzia de crianças pintadas de modo semelhante olhavam imobilizadas sua passagem. Uma ou duas gritaram espantadas e Júlio as encarou furioso. Não havia adultos neste lugar? O modo como estavam vestidas o fazia se lembrar mais das prostitutas de Servília do que...

Quase perdeu o garoto escravo numa esquina do corredor quando o pensamento lhe ocorreu. Então acelerou o passo e o escravo aumentou a velocidade através de antecâmaras e corredores até que os dois chegaram juntos num cômodo iluminado.

— Senhor! — gritou o garoto. — O cônsul César está aqui!

Júlio fez uma pausa, ofegando ligeiramente com a raiva que corria pelas veias. Bíbilo estava no cômodo, com Suetônio curvado sobre ele, sussurrando em seu ouvido. Outros escravos bonitos estavam parados nos cantos e havia dois meninos nus deitados indolentes aos pés dos dois homens. Júlio viu que o rosto dos meninos estava ruborizado de vinho e que os olhos eram mais velhos do que a carne. Estremeceu quando se virou para encarar Suetônio.

— Saia — falou.

Suetônio tinha se levantado devagar, como num transe, à chegada de Júlio. Estava feio de malícia enquanto lutava com emoções conflitantes. Um cônsul não podia ser tocado, não podia ser seguro. Nem a posição de Suetônio no senado iria salvá-lo depois de um insulto.

Casualmente Júlio baixou a mão até a espada. Sabia que Bíbilo seria mais fraco sem o amigo. Sabia disso mesmo quando não possuía uma alavanca para revirar as entranhas do gordo. Agora tinha encontrado.

Enquanto olhava para Bíbilo procurando ajuda, Suetônio encontrou apenas terror no rosto carnudo do cônsul. Ouviu Júlio marchar pelo chão de mármore e mesmo assim se demorou, esperando a palavra que lhe permitiria ficar.

Bíbilo ficou olhando como uma criança diante de uma cobra enquanto Júlio se aproximava de Suetônio e se inclinava para ele. Suetônio se encolheu para longe.

— Saia — disse Júlio baixinho, e Suetônio saiu correndo. Enquanto Júlio se virava em sua direção, Bíbilo encontrou uma voz gaguejante.

— Esta é a minha c... casa — tentou.

Júlio rugiu, um estrondo que fez Bíbilo recuar no divã.

— Seu imundo! Ousa falar comigo com essas crianças sentadas aos seus pés! Se eu o matasse agora seria uma bênção para Roma. Não, melhor: eu deveria cortar a única coisa que faz de você um homem. Vou fazer isso. Agora

Desembainhando a espada Júlio avançou para o divã e Bíbilo gritou gadanhando o tecido para se afastar. Chorava lágrimas pesadas enquanto Júlio segurava a lâmina brilhante junto à sua virilha.

Bíbilo se imobilizou.

— Por favor — gemeu.

Júlio girou a lâmina, enfiando-a mais nas dobras do tecido. Bíbilo se comprimiu contra o encosto do divã, mas não pôde recuar mais.

— Por favor, o que você quiser... — E começou uma série de soluços engasgados que acrescentou um muco brilhante às lágrimas até que o rosto mal parecesse humano.

Júlio sabia que o destino tinha posto tudo em suas mãos. A parte mais fria dele se regozijava ao ver Bíbilo revelando tamanha fraqueza. Bastariam algumas ameaças bem escolhidas e o sujeito jamais ousaria mostrar o rosto no senado de novo. No entanto, quando Júlio começou a falar, um dos meninos se mexeu e Júlio olhou para ele. O garoto não estava olhando para ele, e sim para seu senhor, esticando o pescoço querendo ver melhor. Havia ódio ali, horrendo num rosto tão jovem. As costelas do menino podiam ser vistas com clareza e seu pescoço tinha uma mancha roxa. Júlio percebeu que sua filha era da mesma idade. Voltou a fúria contra Bíbilo.

— Venda seus escravos. Venda para onde não sejam machucados e me mande os endereços, para eu verificar um a um. Você viverá sozinho, se viver.

Bíbilo assentiu, com as papadas tremendo.

— Sim, sim, eu vou... não me corte. — De novo irrompeu numa torrente de sons agonizantes e Júlio deu-lhe dois tapas no rosto, fazendo sua cabeça girar para trás. Um fino risco de sangue escorreu pelos lábios e ele tremeu visivelmente.

— Se eu o vir no senado sua imunidade não irá protegê-lo, juro por todos os deuses. Garantirei que você seja levado a algum lugar silencioso e que seja queimado e espancado dia após dia. Você implorará para que isso acabe.

- Mas eu sou cônsul! — engasgou Bíbilo.

Júlio se inclinou com a ponta da espada, fazendo-o ofegar.

- Só no nome. Não terei um homem como você no meu senado. Nunca nesta vida. Seu tempo ali acabou.

- Ele pode me machucar agora? — perguntou de repente o menino escravo.

Júlio olhou para ele e viu que o garoto tinha ficado de pé. Balançou a cabeça.

— Então me dê uma faca. Eu corto ele — disse o menino.

Júlio o encarou e viu apenas a decisão inabalável.

— Você será morto se fizer isso — falou em voz baixa.

O garoto deu de ombros.

— Vale a pena. Me dê uma faca e eu faço isso.

Bíbilo abriu a boca e Júlio torceu o gládio com malignidade.

— Fica quieto. Há homens conversando aqui. Você não faz parte da conversa. — Em seguida se virou de novo para o escravo e viu como ele ficou mais ereto ao ouvir as palavras.

— Se você quiser, garoto, não vou impedir. Mas ele é mais útil para mim vivo do que morto. Pelo menos por enquanto.

Um cadáver significaria outra eleição e um novo adversário que talvez não tivesse as fraquezas de Bíbilo. No entanto Júlio não mandou o menino embora.

— O senhor quer que ele fique vivo?

Júlio devolveu o olhar por longo momento antes de assentir.

— Certo, mas quero ir embora daqui esta noite.

— Eu posso arranjar um lugar para você, garoto. Você tem minha gratidão.

— Não só eu. Todos nós. Não vamos passar mais nenhuma noite aqui. Júlio o encarou surpreso.

— Todos vocês?

— Todos — disse o escravo, sustentando o olhar dele sem o menor tremor. Júlio desviou os olhos primeiro.

— Muito bem, garoto. Junte-os na porta da frente. Deixe-me sozinho com Bíbilo um pouco mais e já vou falar com vocês.

— Obrigado, senhor.

Dentro de alguns instantes todas as crianças que estavam no quarto tinham desaparecido com ele, e o único som era a respiração torturada de Bíbilo.

— Como v... você descobriu? — sussurrou Bíbilo.

— Até vê-los eu não sabia o que você era. Mesmo que não tivesse visto você está melado de culpa — resmungou Júlio. — Lembre-se, eu saberei se você trouxer mais crianças para sua casa. Se ouvir falar de um único menino ou menina passando pela sua porta, saberei e não vou me segurar. Está entendendo? Agora o senado é meu. Completamente.

Com a última palavra Júlio sacudiu a espada e Bíbilo gritou, soltando a bexiga, aterrorizado. Gemendo, agarrou a mancha de urina que se espalhava tingida de sangue. Júlio embainhou a espada e voltou para a frente, onde mais de trinta escravos tinham se reunido.

Cada um dos refugiados tinha alguns itens de vestuário numa trouxa nos braços. Os olhos estavam arregalados e temerosos à luz das lâmpadas, e o silêncio era quase doloroso quando todos se viraram para olhá-lo.

— Certo. Esta noite vocês ficam na minha casa — disse Júlio. — Vou encontrar para vocês famílias que tenham perdido um filho e que irão amá-los.

A felicidade nas expressões lhe causou uma vergonha pior do que facas. Não tinha vindo à casa por causa deles.

 

O Verão tinha ido embora com seus longos dias movimentados, mas o inverno ainda estava longe enquanto Júlio montava em seu cavalo na porta do Quirinal, pronto para se juntar às legiões no Campo. Olhou em volta pegando as rédeas, tentando fixar na mente a última imagem da cidade. Quem sabia quanto tempo por ela teria de sustentá-lo na Gália distante? Os viajantes e mercadores que tinham estado no pequeno acampamento romano do outro lado dos Alpes disseram que era um lugar amargo, mais frio do que qualquer um que tinham conhecido. Júlio havia utilizado tremendamente suas linhas de crédito para comprar peles e provisões para dez mil soldados. Sabia que eventualmente teria de prestar contas, mas não deixou que o pensamento na dívida estragasse os últimos momentos que passava em sua cidade.

O portão do Quirinal estava aberto e através dele Júlio podia ver o Campo de Marte, com seus soldados esperando pacientemente em quadrados brilhantes. Duvidou que houvesse alguma legião que se igualasse à Décima, e Brutus havia trabalhado duro para fazer algo maior com os homens que ele havia recrutado. Nenhum deles tivera permissão de licença em quase Um ano e haviam usado bem o tempo. Júlio ficou satisfeito com o nome que Brutus escolheu. A Terceira Gálica iria se endurecer na terra com cujo nome foi batizada.

Brutus e Otaviano estavam montados ao lado dele, enquanto Domício verificava as tiras de sua sela uma última vez. Júlio sorriu sozinho ao ver as armaduras de prata. Os três tinham ganhado o direito de usá-las, mas aquela era uma visão incomum nas ruas perto do portão e já havia uma turba de moleques olhando boquiabertos e apontando. E não era de espantar. Cada parte da armadura luzia o máximo que os produtos usados para polimento podiam render, e Júlio sentiu uma empolgação ao cavalgar com aqueles homens em nome de Roma.

Se Salomin tivesse vindo com eles teria sido perfeito, pensou Júlio. Era apenas mais um revés incômodo num mar de tantos outros, o fato de não ter conseguido convencer o pequeno lutador a fazer a viagem para a Gália. Salomin tinha falado por longo tempo sobre a honra romana e Júlio ouviu. Era tudo que poderia oferecer depois do vergonhoso tratamento dado por Pompeu, mas não pressionou depois da primeira recusa.

Os meses no senado haviam excedido as esperanças de Júlio, e o triunvirato estava se sustentando melhor do que ele tinha qualquer direito de esperar. Crasso começara seu domínio do comércio e sua grande frota já rivalizava com qualquer coisa que Cartago pusera no mar. Sua legião novata fora posta numa aparência de boa forma com a ajuda dos melhores oficiais da Décima, e Pompeu continuaria o trabalho quando eles tivessem ido embora. Os três haviam desenvolvido um carrancudo respeito mútuo nos meses passados juntos e Júlio não se arrependeu da barganha feita com eles.

Depois da noite da eleição Bíbilo não fora visto no senado em uma única reunião. Boatos de uma doença crônica se espalharam pela cidade, mas Júlio mantinha o silêncio sobre o que acontecera. Tinha cumprido a promessa feita às crianças, mandando-as para serem criadas por famílias amorosas no norte distante. Sua vergonha particular por ter lucrado com o sofrimento delas tinha-o levado a lhes comprar a liberdade, mas isso sangrou suas verbas ainda mais, além de todo o resto. Estranhamente esse ato simples lhe dera mais satisfação do que quase qualquer outra coisa feita nos meses passados como cônsul.

— Brutus! — gritou uma voz, despedaçando o momento.

Júlio virou o cavalo fazendo um círculo apertado e Brutus riu alto ao ver Alexandria lutando para passar pela multidão até chegar ao portão. Quando chegou perto ela ficou na ponta dos pés para ser beijada, mas Brutus estendeu a mão e a puxou para a sela. Júlio desviou os olhos, não que eles fossem notar. Era difícil não pensar em Servília ao ver a felicidade dos dois.

Quando Alexandria foi baixada ao chão Júlio notou que a jovem segurava um embrulho de pano. Ergueu as sobrancelhas quando ela o estendeu para ele e ruborizou de embaraço com o gesto de afeto que havia presenciado. Júlio pegou o embrulho e o desfez lentamente, os olhos se arregalando enquanto revelava um capacete feito com habilidade extraordinária. Era de ferro polido e brilhava com óleo, mas a coisa mais estranha era a máscara inteira, modelada para lembrar suas próprias feições.

Com reverência Júlio o ergueu e colocou na cabeça, apertando a máscara presa com dobradiça até ouvir um estalo. Ajustava-se como uma segunda pele. Os olhos eram suficientemente grandes para enxergar facilmente, e pelas reações dos companheiros soube que o capacete conseguira o resultado que Alexandria desejara.

— Tem uma expressão fria — murmurou Otaviano, olhando-o. Brutus assentiu e Alexandria chegou junto à sela de Júlio, para falar com ele em particular.

— Achei que protegeria sua cabeça melhor do que o que você usa geralmente. No topo há um suporte para uma pluma, se você quiser usar. Não há nada igual em Roma.

Júlio olhou para ela através da máscara de ferro, desejando por um momento doloroso que a jovem fosse sua, e não do amigo.

— É perfeito — falou. — Obrigado. — Em seguida se abaixou e abraçou-a, sentindo o perfume intenso que ela usava. Então um impulso o assaltou e ele retirou o capacete enquanto Alexandria recuava um passo. O rosto de Júlio estava vermelho, e não só pelo calor. A legião esperaria um pouco mais, afinal de contas. Talvez ainda houvesse tempo para visitar Servília antes de partir.

— Alexandria, devo pedir que nos dê licença — falou. — Senhores? Tenho uma tarefa na cidade antes de reunirmos os homens.

Domício saltou sobre a sela, como resposta, e os outros dois assumiram formação. Alexandria jogou um beijo para Brutus enquanto Júlio batia os calcanhares nos flancos do cavalo e eles foram trotando, espalhando a multidão.

Enquanto se aproximavam da casa de Servília, Brutus perdeu parte do júbilo dado por Alexandria. No mínimo se sentira aliviado quando o relacionamento entre Júlio e sua mãe terminou. Mas agora, vendo a expressão ansiosa do amigo gemeu por dentro. Deveria saber que Júlio não desistiria tão facilmente.

— Tem certeza? — perguntou Brutus enquanto eles desmontavam junto à porta e entregavam os cavalos aos escravos.

— Tenho — respondeu Júlio, entrando.

Como cônsul podia ir aonde quisesse na cidade, mas os quatro eram conhecidos da casa em vários sentidos, e Otaviano e Domício pararam num aposento externo para se despedir de suas prediletas enquanto tinham chance. Brutus se jogou num divã comprido e se acomodou para esperar. Era o único que não tinha visitado a casa para alguma coisa além de ver a mãe. Havia algo vagamente incestuoso na idéia, e ele ignorava o interesse das garotas que Servília mantinha ali. De qualquer modo, existia Alexandria disse virtuosamente a si mesmo.

Júlio andou pelos corredores até os aposentos particulares de Servília. O que diria a ela? Não conversavam há meses, mas havia uma magia na partida, uma falta de conseqüência que poderia ajudá-lo a descobrir pelo menos algum tipo de amizade.

Seu ânimo aumentou ao vê-la. Ela usava um vestido azul-escuro, trespassado, que deixava os ombros nus, e ele sorriu ao ver sua pérola negra engastada em ouro junto à primeira encosta suave dos seios. Alexandria merecia a reputação que possuía, pensou.

— Estou partindo, Servília — falou indo até ela. — Para a Gália. Estava na porta da muralha quando pensei em você.

Pensou ter visto um sorriso tocar os lábios dela quando se aproximou, e se animou com isso. Ela nunca parecera tão linda quanto naquele momento, e ele sabia que não teria dificuldade em se lembrar de seu rosto na longa marcha adiante. Segurou suas mãos e apertou-as, olhando nos olhos dela.

— Por que você não vem junto? — perguntou. — Eu poderia mandar que a melhor carruagem de Roma fosse levada até a coluna. Há um povoado romano no sul da Gália e você poderia estar comigo.

— Para que você não tivesse de encontrar suas próprias prostitutas, Júlio? — disse ela em voz baixa. — Está preocupado com o que vai fazer sem uma mulher tão longe de casa?

Ele a encarou boquiaberto, vendo uma dureza fria, de intensidade quase amedrontadora.

— Não entendo você.

Ela puxou as mãos e ele oscilou. Estava suficientemente perto para sentir seu perfume, e aquilo era de enlouquecer. Não poder tocá-la depois de cada centímetro daquele corpo ter sido seu. Sentiu uma raiva crescer por dentro.

- Você é cruel, Servília — murmurou, e ela riu.

- Sabe quantos amantes rejeitados eu vi gritando nesta casa? Cônsules também, Júlio, ou você acha que eles são poderosos demais para uma coisa dessas? O que quer que você quisesse de mim, não está aqui. Entende?

Em algum lugar atrás dela Júlio escutou uma voz chamando. Ficou tenso.

— Crasso? Ele está aqui?

Servília deu um passo adiante, encostando a mão no peito dele. Seus dentes apareceram quando ela falou, e a voz tinha perdido toda a suavidade que ele amava.

— Não é da sua conta quem eu recebo, Júlio.

Júlio perdeu as estribeiras, com as mãos se fechando numa fúria impotente. Em sua paixão pensou em arrancar a pérola do pescoço dela e Servília se afastou, como se sentisse.

— Agora você vai ser a prostituta dele? Pelo menos a idade dele é mais próxima da sua.

Servília lhe deu um tapa com força e Júlio fez a cabeça dela se sacudir para trás com um soco, seguindo instantaneamente por outro dela, de modo que os sons vinham quase juntos.

Servília lançou a outra mão contra os olhos dele, marcando as bochechas com as unhas, e Júlio rosnou para ela, adiantando-se para atacar. Estava cego de fúria quando ela finalmente caiu para trás, então a raiva o deixou vazio e ofegante, com o rosto amargo. Uma gota de sangue caiu de seu queixo onde ela o havia marcado. Seu olhar acompanhou o sangue.

-— Então é isso que você é, Júlio — disse ela, levantando-se rigidamente.

Júlio viu a boca de Servília já começando a inchar, e a vergonha o dominou.

Ela deu um riso de desprezo.

— Imagino o que meu filho dirá quando você o encontrar da próxima Vez-----Seus olhos brilharam de malícia e Júlio balançou a cabeça.

— Eu teria dado tudo a você, Servília. Tudo que você quisesse —-em voz baixa. Então ela se afastou, deixando-o sozinho.

 

Brutus estava de pé quando Júlio voltou pelos aposentos externos da casa. Otaviano e Domício estavam juntos, e pelas expressões Júlio soube que ti nham ouvido. Brutus estava pálido, os olhos mortos, e Júlio sentiu um involuntário tremor de medo ao olhar para o amigo.

— Você bateu nela, Júlio? — perguntou Brutus. Júlio tocou o rosto ensangüentado.

— Não vou me explicar a você, nem mesmo a você — respondeu ele começando a passar pelos três.

Brutus baixou a mão para o punho de ouro que tinha ganhado, e Domício e Otaviano tocaram os seus, posicionando-se entre ele e Júlio.

— Não — disse Domício rispidamente. — Dê um passo atrás! Brutus afastou o olhar de Júlio para os olhos que o encaravam com tamanha ameaça.

— Vocês realmente acham que poderiam me impedir? Domício devolveu o olhar.

— Se for preciso. Você acha que desembainhar sua espada vai mudar alguma coisa? O que acontece entre eles não é da sua conta, tanto quanto não é da minha. Deixe para lá.

Brutus afastou a mão da espada. Abriu a boca para falar e depois passou por todos eles indo até os cavalos, saltando na sela e impelindo a montaria até o galope na direção do portão.

Domício enxugou o suor da testa. Olhou para Otaviano e viu a preocupação ali enquanto o rapaz era apanhado entre forças que não podia suportar-

— Ele vai se acalmar, Otaviano, conte com isso.

— A marcha vai fazê-lo suar até esquecer — disse Júlio olhando para o amigo. Esperava que fosse verdade. Tocou o rosto de novo e se encolheu.

— Não é o melhor dos presságios — murmurou baixinho. — Vamos, senhores. Já vi o bastante desta cidade por um longo tempo. Assim que passarmos pelo portão estaremos livres de tudo isso.

— Espero que sim — respondeu Domício, mas Júlio não escutou.

 

Quando chegaram trotando à porta do Quirinal, Brutus estava ali, à sombra. Júlio viu que os olhos dele eram buracos injetados, com uma expressão assassina enquanto puxava as rédeas aproximando-se.

— Eu cometi um erro voltando a ela, Brutus — disse Júlio observando-o atentamente. Amava o amigo mais do que qualquer pessoa do mundo, mas se a mão dele se movesse para o punho do gládio Júlio estava pronto para impelir o cavalo direto contra ele, estragando o ataque. Cada músculo de suas pernas estava tenso para a ação quando Brutus levantou a cabeça.

— As legiões estão prontas para marchar. É hora — falou. Seus olhos estavam frios e Júlio soltou o ar lentamente, com as palavras morrendo na garganta.

— Então abra a marcha — disse em voz baixa.

Brutus assentiu. Sem dizer palavra cavalgou pela porta e foi para o Campo, sem olhar para trás. Júlio apertou os calcanhares no cavalo e foi atrás.

— Cônsul! — veio um grito da multidão.

Júlio gemeu alto. Será que isso não tinha fim? A sombra do portão estava perto demais, chamando-o. Com expressão séria viu um grupo de homens correr até os cavalos. Hermínio, o agiota, estava à frente deles, e quando Júlio o reconheceu olhou o portão com verdadeiro desejo.

— Senhor, fico feliz por tê-lo alcançado. Na certa o senhor não pretende deixar a cidade sem saldar seus empréstimos, não é? — disse Hermínio, ofegando pelo esforço.

— Venha aqui — chamou Júlio. Em seguida fez o cavalo andar sob a sombra do portão, saindo para o Campo, e Hermínio veio junto, sem compreender.

Júlio olhou para o sujeito.

— Está vendo esta linha, onde o portão deixou uma marca na pedra? — perguntou.

Hermínio olhou inexpressivo e Júlio riu.

— Bom. Então posso lhe dizer que gastei cada moeda de cobre que pude pegar emprestado ou implorar para deixar meus homens em condições de ir à Gália. Somente as provisões e os bois e jumentos para carregá-las, custam uma pequena fortuna. Sal, couro, lingotes de ferro, ouro para Subornos, cavalos, lanças, selas, tendas, ferramentas, a lista é interminável.

— Senhor? Está dizendo... — disse Hermínio, começando a entender.

— Estou dizendo que, no momento em que atravessei esta linha, minhas dívidas ficaram para trás. Minha palavra é boa, Hermínio. Pagarei quando voltar, pela minha honra. Mas hoje você não receberá uma moeda.

Hermínio se enrijeceu numa raiva impotente. Olhou para a armadura de prata dos homens montados ao lado de Júlio. Depois suspirou e tentou sorrir.

— Estarei ansioso por sua volta, cônsul.

— Claro que sim, Hermínio — respondeu Júlio inclinando a cabeça numa saudação irônica.

Quando o agiota se foi, Júlio olhou pela porta uma última vez. Os problemas da cidade não eram mais seus, pelo menos por um tempo.

— Agora vamos para o norte—falou virando-se para Domício e Otaviano.

 

 

                                                          CONTINUA

 

 

— Então por que fica com ele? — Perguntou Caberá. O guerreiro com armadura de prata ao seu lado mostrava apenas alguns lampejos do menino que tinha sido, e poucas outras pessoas no acampamento ousariam fazer essa pergunta a Brutus.

Ficaram olhando Júlio subir a escada de carvalho até o muro dos arqueiros no topo da fortificação que haviam construído. Estava longe demais para ver os detalhes, mas Brutus podia enxergar o sol se refletindo no peitoral que ele usava. Por fim desviou o olhar, depois espiou Caberá incisivamente, como se tivesse se lembrado de sua presença.

— Olhe para ele — respondeu. — Há menos de dois anos saiu da Espanha sem nada e agora é um cônsul com carta branca do senado. Quem mais poderia ter me trazido a este lugar, no comando de minha própria legião? Quem mais você acha que eu seguiria?

Sua voz estava amarga e Caberá temeu pelos dois homens que ele conhecia desde meninos. Tinha ouvido os detalhes da separação entre Júlio e Servília, mas o filho dela jamais havia falado a respeito. Ansiava por perguntar a Brutus, nem que fosse para avaliar o dano causado.

— Ele é seu amigo mais antigo — disse Caberá, e Brutus pareceu estremecer diante das palavras.

— Eu sou a espada dele. Quando olho calmamente para o que Júlio fez, fico pasmo, Caberá. Será que o pessoal de Roma é idiota, para não ver a ambição dele? Júlio me falou sobre a barganha que fez com eles e ainda não consigo acreditar. Será que Pompeu acha que ganhou a melhor parte? O sujeito pode ter a cidade, mas está como um inquilino esperando a chegada do dono. O povo sabe. Você viu a multidão que veio ao Campo ver nossa partida. Pompeu deve ser idiota se acha que Júlio ficará satisfeito com qualquer coisa a menos do que uma coroa.

 

 

 

 

Então parou, olhando ao redor automaticamente para ver se alguém estaria ouvindo. Os dois se encostaram na fortificação que levara meses para ser construída. Trinta quilômetros de muros e terra e jamais com menos do qqe a altura de três homens grandes. Erguia-se acima do rio Ródano e dominava seu curso ao longo da fronteira norte da província romana. Era uma barreira tão sólida quanto os Alpes, a leste.

Tinham sido juntados ferro e pedras em número suficiente junto à muralha para afundar qualquer exército que tentasse atravessar o rio. As legiões tinham confiança enquanto mantinham a vigilância, ainda que nenhum homem ali acreditasse que, com o documento que trouxera, Júlio estaria satisfeito apenas com uma defesa.

Júlio o havia mostrado ao pretor da minúscula província romana que se agachava ao pé dos Alpes e o homem empalideceu ao ler, tocando com um dedo reverente o selo do senado. Nunca tinha visto um comando expresso de modo tão vago e só pôde baixar a cabeça ao considerar as implicações. Pompeu e Crasso não tinham discutido os detalhes; na verdade Brutus sabia que Júlio havia ditado a carta a Adàn e ela foi mandada aos dois para colocarem seus selos e estabelecer a votação no senado. Era breve e completa nos poderes dados a Júlio na Gália, e cada legionário que estava com ele sabia disso.

Caberá esfregou os músculos flácidos no lado do rosto e Brutus o olhou com simpatia. Depois de curar Domício o velho tinha sofrido uma fraqueza que deixou o rosto frouxo de um dos lados e metade do corpo quase inútil. Nunca mais retesaria um arco, e na marcha pelos Alpes tinha sido carregado numa liteira pelos homens da Décima. Jamais reclamou. Brutus achava que apenas a intensa curiosidade do velho o mantinha vivo. Ele simplesmente não morreria enquanto houvesse coisas para ver, e a Gália era tão selvagem e estranha para ele quanto para qualquer um dos outros.

— Está sentindo dor? — perguntou Brutus.

Caberá deu de ombros do melhor modo possível e... 

 

                                                                                                   

 

 

                                         

O melhor da literatura para todos os gostos e idades