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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CANÇÃO DO RIO / Sue Harrison
CANÇÃO DO RIO / Sue Harrison

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

 

Fim do Outono, 6480 a. C.

A oeste do Lago do Avô (atualmente lago Iliamna, Alasca)

ALDEIA DE INVERNO DO POVO DE RIO PRIMO

A dor foi terrível, mas não era disso que K’os se lembrava. Lembrava-se do seu desamparo.

Lutou, arranhou, deu pontapés, mordeu o lóbulo da orelha de um homem, vazou o olho de outro.

Sabia os nomes deles: Asa-de-Gaivota, Raposa-Que-Ladra e Dorminhoco. Tinham vindo da aldeia de Rio Próximo para negociar. Raposa-Que-Ladra tinha o olhar mesquinho dos homens que mentiam, e Dorminhoco mexia-se devagar, como se estivesse acostumado à preguiça, mas Asa-de-Gaivota comportava-se como um caçador. K’os observara-o nessa noite, na cabana da mãe, e lhe teria sorrido se ele tivesse olhado na sua direção.

Na manhã seguinte, foi atrás deles até ao Lago do Avô e escondeu-se atrás do Rochedo do Avô. Aquela rocha era um local que dava sorte às mulheres. As que estavam grávidas iam ali sentar-se, na esperança de que a magia do rochedo passasse para os filhos que esperavam no seu ventre. Falavam dos seus anseios em voz alta: para um filho, que fosse caçador, para uma filha, que olhasse pelos pais quando estes fossem velhos, e que o parto fosse fácil.

Os animais sabiam que aquele lugar era benigno. Os caribus, os linces e os ursos iam ali beber. Os ratos-almiscarados construíam as tocas nas margens dos ribeiros que corriam para o mar do Norte. No Verão, havia pássaros mergansos e mergulhões. No Inverno, o lago era um belo local para apanhar pescada-preta, aqueles peixes pequenos e tenros que eram bons comidos crus, cheios de óleo. Bastavam alguns para encher a barriga de gordura no Inverno.

O caminho da aldeia para o Lago do Avô era difícil, através de pântanos cobertos de musgos e juncos, sobre tufos de erva que chegava até aos joelhos. Eram difíceis de contornar, aqueles tufos, e traiçoeiros para as canelas de quem resolvesse passar por cima deles. As mulheres que iam ao Lago do Avô viam-se aflitas para lá chegarem. Mas a boa sorte valia o esforço.

Contudo, nesse dia, o local não dera sorte a K’os.

Agora, doente e ensangüentada devido à luta, contornava a aldeia em vez de a atravessar. A entrada das cabanas estava virada para leste, para o sol da manhã. K’os aproximou-se da cabana da mãe pelos fundos, onde se encontravam os montes de lixo. Puxou o capuz da sua parka de pele de esquilo para cima e escondeu o rosto no rufo de pele de carcaju.

Afastou a aba da entrada para o lado e entrou no túnel engatinhando. A cabana era grande: três homens altos conseguiam dormir uns a seguir aos outros no chão e ainda havia espaço para uma mulher passar entre eles e a parede. Seixos do rio, alisados pela água, tinham sido trazidos para a aldeia de Inverno, talvez pelo avô ou pelo pai de K’os, para revestir as paredes do buraco aberto no solo, com vários palmos de profundidade. Os postes, amarrados numa ampla cúpula acima do chão, estavam cobertos por duas camadas de peles de caribu, para impedir que o vento roubasse o calor produzido pelo fogo de lenha.

As paredes de peles de caribu estavam todas bem costuradas e o chão encontrava-se coberto de peles de caribu. As camas eram de peles quentes e macias de lobo, lince e raposa.

A mãe de K’os, Marta, suspirou de alívio ao ver a filha, mas limitou-se a dizer:

Demoraste muito.

K’os esperava uma reprimenda maior. A boca sorridente da mãe escondia uma língua afiada.

Eu te disse que ia ao Lago do Avô, respondeu K’os.

As suas próprias palavras pareceram-lhe estranhas, como se saíssem da boca de outra mulher. K’os levou a mão ao rosto. Sentiu o mesmo em relação aos lábios, ao nariz e aos olhos. Deixou-se ficar onde estava, tendo o cuidado de desviar o olhar das armas do pai. Sangue era sangue. Apesar de o seu fluxo mensal ainda não ser regular, podia ter poder suficiente para amaldiçoar as lanças, as facas, os arpões e os anzóis do pai.

Onde estão as raízes?

K’os respirou fundo, depressa e a custo. Disse à mãe que ia ao Lago do Avô apanhar raízes de abeto. Os abetos negros que cresciam na turfeira escura e úmida a oeste do lago tinham raízes compridas que pareciam cordas fortes, mas eram fáceis de cortar. K’os levara um dos cestos favoritos da mãe para as trazer. Devia ter deixado lá o cesto, depois de os homens a terem descoberto.

Não as tenho, respondeu ela.

Não as tens? Onde estão?

K’os percebeu a irritação na voz da mãe e esteve quase a contar-lhe o que sucedera. Para quê guardar aquele problema só para ela? A mãe e o pai que partilhassem a sua dor. Mas a língua da mãe não só era forte como nunca estava parada. Dali a pouco, todas as mulheres da aldeia saberiam o que se passara. Não só as mulheres como os homens. Depois, quem a quereria como esposa?

Comecei a sangrar, disse K’os. Precisamente quando o cesto estava quase cheio. Não sabia o que fazer com as raízes. Tive medo que o meu sangue lunar lhes desse demasiado poder e por isso deixei-as lá. Eu sei onde está o cesto. Escondi-o. Se dizes que as raízes são boas, irei lá buscá-las. Caso contrário, deixo-as lá.

A mãe começou a lamentar-se, mas o pai disse:

O que ela fez foi sensato. Deixa-a em paz. E se te servisses dessas raízes para tecer um sael e mais tarde um caçador comesse dele? Ela pode ir buscar o cesto quando terminar o sangue lunar.

O pai franziu a testa a K’os e depois apontou-lhe para a cara com o queixo.

Precisas de água. Tens sangue na cara.

K’os levantou de novo a mão e levou-a ao rosto.

Era uma bela mulher, todos o reconheciam, e descobrira que era bom ser bela. Isso dava poder. Podia mentir para se livrar de embaraços, podia pedir coisas, que elas lhe seriam concedidas.

Pensava muitas vezes na sua beleza. O que era? A distância entre os olhos? Um nariz aquilino, a boca nem muito grande nem muito pequena? Cabelos brilhantes. Havia mais alguma coisa, algo que estivesse ligado à sorte? Com certeza nesse dia, perdera toda a sorte que tinha.

Olhou para a mãe.

Caí, explicou.

Foram as moitas observou a mãe, abanando a cabeça. Eu te disse que não fosses.

Tinhas razão respondeu K’os.

Marta inclinou a cabeça para o lado da cabana em que havia montes de peles empilhadas à espera de serem costuradas.

Tens ali muito que fazer disse ela. E vou dizer à minha irmã que leve a tua priminha Gguzaakk para o tikiyaasde. O espaço chega para as duas. Podes olhar por ela enquanto nós trabalhamos.

K’os não gostava de Gguzaakk. A criança tinha apenas dois verões; era chorona e trepava para cima de tudo. Mas K’os fez um sinal afirmativo. Sim, enquanto estivesse na cabana da menstruação olharia por Gguzaakk. E dessa vez a mãe de Gguzaakk não teria razões de queixa.

Marta trouxe um cilt’ogho de água feito de casca de bétula. K’os pegou-o. Tinha sangue seco na palma da mão. Marta, de olhar pregado ao rosto da filha, não reparou.

No queixo e no olho, também disse ela, com a mão encostada à face. Nódoas negras.

K’os sentou-se. Tapou a boca para abafar um gemido. Qualquer movimento lhe era doloroso. As dores tinham-na obrigado a abrandar o passo na viagem de regresso, e ela receara não conseguir chegar à cabana da mãe antes do anoitecer. Além disso, que hipótese teria, sozinha e sem sorte?

Os homens tinham-na machucado tanto que o espírito lhe saíra do corpo, e por isso ela não percebeu tudo o que eles lhe haviam feito. Enquanto percorria o longo caminho de regresso do Lago do Avô, era como se não tivesse nada na barriga que a amparasse; tinha a certeza de que eles lhe haviam rasgado qualquer coisa lá dentro. Quando urinou, sangrou.

Colocou a mão no sael. Tinham sido estúpidos, aqueles três homens, ao deitarem-se ali, na relva à volta do Lago do Avô, com ela ainda viva. Deviam ter julgado que ela morrera, ou pelo menos que não voltaria a si durante muito tempo.

Ela deixara-se ficar deitada ouvindo-os, às suas fanfarronices, primeiro sobre o que lhe tinham feito, e depois acerca de outras mulheres de que se haviam servido. Iam possuí-la outra vez, concluíram, e depois partiriam, voltariam para a aldeia de Rio Próximo, para junto das mulheres e dos filhos.

Tinham levantado a parka de K’os, desnudando-lhe a barriga e os seios, mas nem se incomodaram em despi-la. Puxaram-lhe o capuz para a cara e enfiaram-lhe uma parte do rufo na boca, empurrando-o até à garganta, até ela quase não conseguir respirar. Tinham descoberto a faca de mulher enfiada na bainha, à cintura, mas não a lâmina que ela trazia escondida no braço esquerdo, debaixo da manga da parka.

Aquela faca fora um presente de um dos irmãos mais velhos. Ele a oferecera antes de ir viver com a família da mulher na aldeia de Quatro Rios. Era uma faca de homem para a proteger, porque todos os irmãos dela viviam noutras aldeias com as mulheres.

K’os agarrara a faca com as duas mãos e rolara do rochedo, com ela entre os seios, o gume virado para fora, segurando no cabo e apertando-o ligeiramente contra o peito. Asa-de-Gaivota estava deitado junto do rochedo. K’os caiu sobre ele e enfiou-lhe a faca no coração antes que o homem pudesse reagir. Tirou-a e enterrou-a num dos olhos e depois no pescoço. Os gritos gorgolejantes do homem obrigaram os outros a levantar-se. K’os retirou a faca da garganta de Asa-de-Gaivota e apontou-a para eles.

Qual é que eu mato a seguir? perguntou ela, passando por cima de Asa-de-Gaivota, que se contorcia com os espasmos da morte.

K’os enfiou o dedo no sangue do homem e lambeu-o.

Ficou à espera que os outros dois a atacassem. Mas eles deram meia volta e fugiram.

K’os conseguiu levantar-se, gemendo e sentindo a barriga ardendo. Em seguida, desatou também a correr, afastando-se do lago, do rochedo e de Asa-de-Gaivota, já morto.

Caindo e levantando-se sucessivamente, só parou quando sentiu o sangue correndo-lhe pelas pernas como um rio. Então, escondeu-se num tufo de salgueiros e encheu a vagina de musgo e de folhas, para estancar o sangue.

Ficou ali, como um animal ferido. A princípio, teve medo de que a encontrassem, medo de morrer, mas depois receou não morrer, destruída como estava.

Por fim, resolveu continuar a andar para a aldeia; porém, quando se levantou, os pés não seguiram nessa direção. Viraram-se para o Lago do Avô. E levaram-na de novo para junto do corpo de Asa-de-Gaivota.

Aí, K’os arrancou o coração de Asa-de-Gaivota e ofereceu-o ao Rochedo do Avô.

 

 

 

 

                               Quatro dias depois

 

ALDEIA DE INVERNO DO POVO DE RIO PRÓXIMO

Era o quarto filho de Mulher Diurna. O parto não devia ter sido tão longo, tão complicado. A velha Ligige’ ficara preocupada com o que isso poderia significar. Mulher Diurna quebrara algum tabu? De qualquer modo, parecia ser uma pessoa respeitadora, apesar da sorte a ter abandonado nos dois últimos anos. O primeiro filho morreu afogado quando estava pescando com o pai; uma filha nasceu morta.

Perante aquelas mortes, a velha Pena Amarela afirmara ter ouvido um corvo crocitando à noite, o que, evidentemente, significava morte. Mas Pena Amarela não era tia nem avó de ninguém da família de Mulher Diurna. Então, se fora Pena Amarela a ouvir o grito da ave, porque atingira a morte os filhos de Mulher Diurna?

Alguns velhos diziam que o problema residia em Asa-de-Gaivota, o marido de Mulher Diurna. O próprio marido de Ligige’ não ia à caça nem à pesca com o homem. Todo mundo sabia que ele não tinha cuidado com os animais. Não cortava as articulações dos lobos que matava, e ria quando algum homem depositava um osso na boca de uma raposa morta. Se a dádiva não era feita, como sabia a raposa que era respeitada? Porque havia ela de voltar no ano seguinte para se entregar ao Povo?

Todos acreditavam que iria acontecer alguma coisa, e aconteceu. Três dias antes, dois dos caçadores da aldeia, Raposa-Que-Ladra e Dorminhoco, tinham regressado de uma visita à aldeia do povo de Rio Primo. Asa-de-Gaivota, irmão de Raposa-Que-ladra e marido de Mulher Diurna, também fora com eles. Tinha sido morto por um urso junto do chamado Lago do Avô. O urso levara o seu corpo arrastando-o, e fora impossível encontrá-lo; por isso não restara nada nem os ossos para trazer para a aldeia.

Ninguém se admirou. Um homem como Asa-de-Gaivota atraía problemas.

Na noite em que começou o luto, o filho de Mulher Diurna resolveu vir ao mundo, e agora, três dias depois, continuava tentando. Três dias, quando os outros filhos de Mulher Diurna tinham nascido com tanta facilidade que a mulher até riu das dores.

Ligige’ entregou-se aos seus pensamentos, sentada, com os braços bem apertados em volta dos joelhos. Como gostaria de aliviar as dores de Mulher Diurna! Levou uma mão deformada à barriga. Estava mole e engelhada desde o nascimento do último filho. Esse filho morreu, como todos os outros, mas ela tinha Mulher Diurna, que era uma boa sobrinha, sempre levando-lhe comida, coisas que faziam as delícias da língua de uma velha, como a carne delicada do mergulhão-de-pescoço-vermelho, aquele pássaro desajeitado cuja carne podia abrandar o passo de uma criança ou de um caçador. Mas porque havia uma velha de se preocupar com tal coisa? As velhas andavam sempre devagar.

Quando Ligige’ se lembrou do que sofrera com a perda dos seus próprios filhos, admitiu que, se aquele bebê morresse, talvez Mulher Diurna resolvesse ir atrás dele. Contando com este, já lhe tinham morrido três filhos e o marido. Não era preferível ir com eles do que ficar com Sok, o único filho que ainda era vivo? Era difícil dizer, evidentemente.

Sok era um rapaz grande e saudável. Veloz na corrida e forte no arremesso. Os homens da aldeia diziam que ele seria um bom caçador e um guerreiro hábil.

Talvez Mulher Diurna resolvesse viver um pouco e ver crescer aquele rapaz. E depois, quando ele fosse um homem, com a sua vida própria, talvez ela fosse fazer companhia aos mortos. Afinal, os que estão vivos podem sempre optar por se tornarem espíritos. Aos mortos é que não restam mais escolhas.

Com um aceno de cabeça, Ligige’ virou-se para os sonhos, obrigando-se a ver aquelas imagens que se acumulavam debaixo da pele aveludada das suas pálpebras. Suspirou e quase sorriu. Então, Mulher Diurna deu um grito que acordou Ligige’ e lhe fez pele de galinha desde o pescoço até aos pulsos. Talvez fosse algo mais do que uma criança tentando sair. Talvez o desrespeito de Asa-de-Gaivota tivesse amaldiçoado o ventre de Mulher Diurna.

Ligige’ levantou-se e virou-se para a porta, pronta a correr se saísse algo horrível da carne rosada e inchada entre as pernas de Mulher Diurna.

Mulher Diurna gritou outra vez. Ligige’ viu o cabelo negro e reluzente da cabeça de um bebê. Respirou fundo. Pelo menos, a coisa era uma criança. Se fosse deformada, não seria o primeiro bebê deformado que ela ajudara a nascer.

Mulher Diurna pôs-se de cócoras, de pernas abertas, agarrando-se a uma tira entrançada de couro cru que estava pendurada nos postes da cabana. Fez um esgar. Fez força, gemendo com o esforço, e Ligige’ ajoelhou-se entre as pernas da sobrinha e pôs as mãos à volta da vulva quando esta se dilatou para deixar sair o bebê.

Primeiro apareceu a cabeça, e depois os ombros. Ligige’ pegou-a e pousou-a no ninho de musgo que Mulher Diurna estendera por baixo do corpo.

Ah! Tens sorte! exclamou Ligige’.

A criança era um rapaz, a minúscula saliência do pênis anunciava. Irrompeu num choro forte.

Mulher Diurna riu, susteve o fôlego para deixar sair a placenta e depois soltou outra gargalhada.

Outro rapaz cacarejou ela.

Ligige’ estendeu o bebê à mãe. Mulher Diurna o pôs ao peito e, apesar de a maioria dos recém-nascidos não se mostrar muito interessada em comer no seu primeiro dia de vida, a criança abriu a boca, agarrou-se ao mamilo da mãe e começou a mamar. Mulher Diurna fez um esgar ao sentir o leite saindo, mas depois riu, deliciada.

Ligige’ envolveu a placenta em casca de bétula, deu um nó no cordão umbilical e depois cortou-o com a sua faca de obsidiana. Levou a placenta lá para fora, caminhando com todo o cuidado com a casca de bétula bem alta, não fosse algum caçador cruzar-se com ela e arriscar-se a perder o poder. Depois de a enterrar, regressou à cabana.

Mulher Diurna adormecera. A criança descansava no seu peito, com a pele escura pelo sangue do parto. Ligige’ pegou o menino com cuidado e levou-o para o cesto de casca de bétula que forrara de peles de esquilo amaciadas pelas suas próprias mãos. Tirou uma bexiga de caribu cheia de água dos postes da cabana e, puxando a rolha de chifre, derramou um pouco de água numa pele de caribu raspada que amaciara com gordura. Lavou o rosto do bebê, servindo-se de uma unha para lhe retirar o muco das pequenas narinas, e depois esfregou-lhe o peito e a barriga até ficarem brilhantes e rosados. Mergulhou a pele na água e lavou-lhe as pernas e um pé, e depois o outro. Parou.

Desolada, sentiu uma dor na barriga. Os últimos três dedos dos dois pés estavam unidos por uma membrana, e o pé esquerdo do menino era tão deformado que a planta se virava para dentro. Pousou o pé no chão e forçou-o até o bebê começar a chorar. Já vira uma deformidade como aquela. Os pais tinham resolvido deixar morrer o filho. Com um pé tão torto, como é que ele poderia acompanhar o Povo quando este fosse atrás dos caribus ou saísse da aldeia de Inverno para o pesqueiro de Verão? E o que aconteceria às outras mães que traziam nos ventres os seus bebês? Ao verem aquele, poderiam passar a deformidade aos filhos que tinham na barriga. Seria possível deixar viver uma criança como aquela? Como é que Mulher Diurna arranjaria um marido quando passasse o seu período de luto? Qual o homem que queria uma mulher cujo filho podia amaldiçoar os seguintes?

Ligige’ olhou para Mulher Diurna, que dormia, tranqüila e feliz. Seria preferível desembaraçar-se da criança naquele momento, mas Ligige’ não era a mãe. Não lhe competia tomar a decisão. Embrulhou o bebê em várias peles de esquilo e colocou-o sobre a lama endurecida do chão da cabana, fora do alcance da mãe. Seria preferível que Mulher Diurna não se habituasse a pegar-lhe ao colo e que o bebê não levasse recordações da mãe para o mundo dos espíritos. Talvez, então, ele não a incitasse a deixar a companhia dos vivos.

Ligige’ atravessou a aldeia adormecida em direção à cabana do irmão. Este era um velho respeitado e o que era mais importante o pai de Mulher Diurna. Desde jovem que tinha visões em sonhos. Ele saberia o que havia a fazer.

A voz era suave, um som que parecia o grito de um mocho. Dizia a Tsaani que se preparasse para a morte. O velho estremeceu, sabendo que os mochos só se pronunciam com segurança, e perguntou a si próprio se a ave se referia à sua morte ou à de outra pessoa da aldeia. A sua própria morte não seria uma perda terrível afinal, ele era um velho. Vivera muitas noites estreladas, muitos dias de sol. Mas o mais provável era que o mocho se referisse à sua filha, Mulher Diurna.

Quantas mulheres sobreviviam a três dias de trabalho de parto? Perdê-la não seria tão grave como perder um caçador, apesar de ela ser jovem e ainda poder gerar filhos, porque era forte. Era um caso invulgar no Povo: ela não tinha medo da água. Era ela que mergulhava no rio para consertar as armadilhas de pesca, e uma vez salvara uma criança que ia sendo levada pela corrente nas inundações da Primavera.

Dizia-se que a família dela possuía o sangue dos Caçadores Marinhos, que viviam nas ilhas do mar do Norte. Mas quem podia ter a certeza?

O grito ouviu-se de novo, e dessa vez Tsaani percebeu que não fora a voz de um mocho que o acordara do seu sono, mas sim a da sua irmã Ligige’. Desembaraçou-se do monte de peles que era a sua cama e enrolou uma manta de pele de lebre à volta dos ombros nus. Sentiu as pregas brancas e macias a fazerem cócegas nas solas dos pés.

Estou acordado, irmã disse ele. Entra. Ligige’ entrou e, à luz tênue das brasas da lareira, Tsaani reparou na sua expressão crispada e inquieta.

A minha filha? perguntou Tsaani, tendo o cuidado de não lhe pronunciar o nome. Se a filha tivesse morrido, ele não queria invocar o seu espírito para a cabana. Para quê lembrar à morte que ele era um velho?

Mulher Diurna está bem. É a criança.

Nasceu morta?

Está viva e forte, e é um rapaz.

Era uma boa notícia, mas Tsaani percebeu que a irmã estava triste.

Então o que há? perguntou ele.

A criança é aleijada.

Como?

Tem um pé torto. Poderia aprender a andar. Mas nunca poderá correr.

Não há nada a fazer? Ligige’ ergueu as mãos.

Os ossos de um bebê são moles. Se o pé fosse torcido e reposto no seu lugar, talvez ajudasse, ou talvez não.

Ele pode atrair má sorte para a mãe, ou, o que é pior, para o irmão. Até para toda a aldeia.

É verdade.

Se o deixarmos morrer, a mãe pode ser tentada a segui-lo comentou Tsaani em voz baixa, quase como se falasse sozinho. Ela é jovem. Seria mau perdê-la.

Ligige’ ergueu a sobrancelha em sinal de assentimento.

O que diz a mãe?

Nada. Ela não sabe. Está dormindo.

Já o amamentou?

Já.

Tsaani assobiou e Ligige’ censurou-se pelo seu descuido. Devia ter reparado na deformidade no instante do nascimento. O leite era forte como uma corda de tendão, que ligava a mãe ao filho.

Tsaani olhou para o teto da cabana. O fumo da lareira elevava-se atrás dele, como se transportasse as suas preces.

Traz-me a criança, mas tenta não acordar a mãe disse ele por fim.

Quando a irmã saiu, Tsaani virou-se e ficou observando a fumaça na escuridão. Em seguida, aproximou-se do seu saco dos remédios, uma pele de lontra do rio, ainda com a cauda, as pernas e a cabeça agarradas e com a barriga cheia de plantas secas, cada uma com o seu dom. Encontrou um pacote atado com um nó. Folhas de amora-da-silva-salmão, secas e reduzidas a um pó fino. Desfez o nó e deitou cuidadosamente uma pitada na mão em forma de concha.

Jogou o pó sobre as brasas, e em seguida falou em voz baixa, pronunciando as palavras uma por uma à medida que a fumaça se elevava no ar. Pediu sabedoria, força, não só para si próprio como também para Mulher Diurna e Ligige’.

Quando terminou as suas preces, sentiu Ligige’ a arranhar de novo a aba da porta de pele de caribu. Foi ao seu encontro, mas ordenou-lhe que ficasse lá fora. Para quê arriscar-se a que a sua cabana fosse amaldiçoada?

Desembrulhou a criança. À luz da lua cheia, viu que o menino era forte, com a cabeça e a face bem torneadas e os ombros largos. Tsaani enfiou cuidadosamente as mãos entre as pernas da criança. Os ossos eram direitos mas, como em todos os bebês, a planta do pé inclinava-se para dentro. Tsaani puxou-lhe ligeiramente o pé direito e espalmou-o na sua mão. Empurrou-o e a criança, com uma força surpreendente, ofereceu resistência. Em seguida, Tsaani pousou a mão na planta do pé esquerdo. Apesar de este se dobrar um pouco, manteve-se curvo na ponta.

Tsaani respirou fundo e deixou escapar um suspiro.

O pé desta criança é torto como a pata de um urso a espantar o peixe da água disse ele a Ligige’. A mãe dele deve ter visto um urso a apanhar salmões.

Por que motivo é que as mulheres nunca aprendiam a venerar aqueles animais que exigiam veneração?

Reparaste que ele tem os dedos unidos por membranas? perguntou Tsaani à irmã.

Ligige’ fez um sinal afirmativo.

Isto não é uma maldição observou ela.

Sim, mas o pé...

Tsaani abanou a cabeça. Quando falou, foi com a voz trêmula de um velho.

Vou levá-lo para o Rochedo do Avô. Quando Mulher Diurna acordar de manhã, a criança já terá desaparecido.

Mulher Diurna chamou Ligige’. Doíam-lhe os seios, disse ela. Estavam cheios de leite. Onde estava a criança?

Durante algum tempo, Ligige’ fingiu que não ouvia. Estava tecendo um recipiente de casca de bétula. Era do comprimento do seu braço, desde o pulso até ao ombro, e tão largo como a coxa de um homem. Ela apertara o recipiente no fundo e fechara-o com raízes de abeto. Agora costurava-o de lado, abrindo orifícios na casca sobreposta com um furador de osso de pássaro e dando grandes pontos cruzados em todo o comprimento. Seria útil para levar às costas quando fosse colher plantas na floresta.

Eu preciso do meu filho afirmou Mulher Diurna e, servindo-se da tira de couro que ainda pendia sobre o seu corpo, conseguiu levantar-se.

Apalpou a cama de casca de bétula da criança, com o seu ninho de peles de esquilo, e depois soltou um grito abafado.

Não chames por ele ordenou Ligige’ tranqüilamente. Os espíritos levaram-no. Era necessário.

A velha explicou o que se passava com o pé da criança. Mulher Diurna pegou as peles de esquilo, encostou-as ao peito e deixou-se cair no chão de terra batida.

Falei com o teu pai disse Ligige’. Ele está rezando. O espírito da criança está a salvo. Eu prometi ficar junto de ti durante estes dias, para que os teus poderes não ponham em risco os dotes dos caçadores.

Eu posso optar por ir atrás do meu filho disse Mulher Diurna.

Ligige’ rosnou:

És jovem. Virão outros bebês.

Mas baixou os olhos para que Mulher Diurna não se apercebesse da sua compaixão.

Mulher Diurna soltou um gemido e perguntou:

Como é que isso é possível? Não tenho marido.

O irmão do teu marido, Raposa-Que-Ladra, diz que te aceita.

Ele concordou?

O teu pai falou com ele ontem à noite. Ele concordou.

Durante muito tempo, Mulher Diurna não disse nada, e Ligige’ viu que o seu rosto era o de alguém que tomava uma resolução. Por fim, Mulher Diurna começou a entoar um cântico fúnebre. Fechou os braços sobre os seios inchados, inclinou-se para a frente e encostou o rosto ao chão de terra batida. Ligige’ pôs de lado o seu recipiente de casca de bétula e procurou qualquer coisa no cesto de pele de peixe que levava consigo quando ia para as cabanas de partos. Tirou um pente feito de madeira de bétula e começou a pentear devagarinho os cabelos de Mulher Diurna. Ao mesmo tempo, cantava, pronunciando em voz baixa as palavras que o Povo usava para encaminhar os bebês recém-nascidos para o mundo dos espíritos.

 

LAGO DO AVÔ

Os liquens que cobriam o rochedo espetavam-se na pele nua da criança, que arqueava as costas. Apesar de se aproximar o Inverno, o sol era forte e quente. O bebê piscava os olhos e esbracejava, mas não havia ninguém por perto que o protegesse, e ele assustou-se, reagindo como se fosse a escorregar. De súbito, um cobertor macio caiu sobre ele, impedindo a passagem da luz e concentrando o calor no seu rosto. O cobertor encostou-se à sua boca, e a criança deixou de chorar. Mexeu a cabeça e a boca, à procura do seio da mãe. Mordeu uma ponta do cobertor e chupou, mas não saiu leite. Com fome, a criança encostou as gengivas na pele e depois chupou com força, arrancando um tufo de pêlo que lhe escorregou para a garganta. Engasgou-se, virando a cabeça para tentar respirar. O seu rosto adquiriu um tom escuro e os lábios ficaram arroxeados.

Por fim, tossiu e conseguiu que o pêlo que tinha na garganta lhe passasse para a boca. Empurrou-o com a língua, depois respirou e começou a chorar.

O velho afastou-se; o choro perseguia-o. Tapou os ouvidos com as mãos e rezou, pedindo proteção para o espírito da criança.

Era de tarde quando K’os chegou ao Lago do Avô. Não queria ir, mas a mãe obrigara-a. Esperava conseguir encontrar o cesto depressa.

Procurou-o primeiro à beira da água. Talvez o cesto tivesse caído para ali durante a luta.

Encontrou penas de narceja, pegadas de urso e nada mais. Por instantes, deixou-se ficar de cócoras, descansando. Sangrara durante quatro dias. Depois a hemorragia parara, mas ainda lhe doía a barriga. Olhou para o lago. A água estava imóvel; só a ondulação provocada pelos saltos dos peixes agitava a superfície.

Manteve-se de costas para o monte onde se erguia o Rochedo do Avô. Mesmo àquela distância, sentia o rochedo a empurrá-la, e parecia ouvir os seus próprios gritos e sentir a dor causada pelas mãos dos homens nos seus pulsos e tornozelos, entre as pernas.

Não seria sempre assim, prometeu a si própria. Exultou ao pensar em Asa-de-Gaivota. Mataria os outros, também. Apesar de ser mulher, havia de arranjar maneira de os matar. Se tivera forças para fazer aquilo, teria forças para enfrentar o Rochedo do Avô, e o corpo de Asa-de-Gaivota, que apodrecia junto dele.

Virou-se e começou a subir o monte, mas sempre desviando o olhar do rochedo e perscrutando o solo, à procura do cesto. Era um cesto de pele de salmão, feito com seis peles cortadas da barriga, esfoladas e cosidas, com a cauda para baixo, para formarem uma base estreita. As peles tinham sido tão bem raspadas que se via a luz através delas. A mãe cortara as cabeças do peixe e as curvas das fendas branquiais na extremidade superior do cesto pareciam uma série de ondas, umas a seguir das outras.

K’os fez um esgar e levantou a cabeça para ver o rochedo. As ervas cobriam-no quase todo, e algures jazia o que restava do corpo de Asa-de-Gaivota. As recordações sucederam-se, comprimindo-lhe a carne até já não haver lugar senão para a raiva e para o sofrimento.

K’os gritou, dirigindo-se ao rochedo:

Dá-me uma vida longa. Deixa que o meu ódio se torne forte e escuro como um abeto. Que ele me acompanhe durante toda a minha existência.

Repetiu as palavras até estas se transformarem numa canção, e cantou até lhe doer a garganta. Subiu ao cimo do monte e depois parou.

Havia um cobertor de pele de lebre, branco como a neve, enrodilhado em cima do rochedo. Quem teria ali deixado uma coisa tão bela? Com as primeiras chuvas, começaria a apodrecer. K’os caminhava devagar, com cautela, à procura dos ossos de Asa-de-Gaivota. Mas não viu nada, nem ossos, nem carne. É claro que um urso poderia tê-lo levado. Ou os lobos. Julgou ver um espaço entre as ervas, um nivelamento, mas não tinha a certeza. Um caçador saberia, um homem habituado a seguir os trilhos dos animais.

Talvez os amigos de Asa-de-Gaivota tivessem vindo buscá-lo, ou o tivessem levado para o rochedo e tapado o seu corpo com o cobertor.

Apeteceu-lhe levantar o cobertor para ver como o cadáver apodrecera, para se rir da pele e dos músculos a soltarem-se dos ossos, dos olhos arrancados pelos corvos e da carne devorada pelas raposas. Mas hesitou. Como podia saber ao certo o que estava debaixo do cobertor? Que maldição a aguardaria?

Era melhor encontrar o cesto da mãe e ir-se embora.

Desceu a encosta virada a norte e depois encaminhou-se para o terreno escuro e molhado onde cresciam abetos grossos e altos. Não tirou os olhos do solo e por fim avistou o cesto, virado. A mãe ficaria zangada se ele estivesse estragado. K’os apanhou-o. Estava intacto, mas agora ela teria que enchê-lo de raízes de abeto.

Inclinou-se, ignorando as dores lancinantes que a trespassavam ao fundo das costas, e começou a escavar o chão com o seu pau. Quando o sentiu preso, empurrou-o de lado e levantou-o até trazer uma raiz à superfície. Servindo-se do pau e das mãos, puxou-a até ela atingir o comprimento de dois braços. Em seguida, cortou-a e afastou-se da árvore, enrolando-a e puxando-a ao mesmo tempo, até a raiz se partir. Aproximou-se de outra árvore, tirou outra raiz e mais uma terceira. Repetiu a operação até as raízes enroladas encherem o cesto.

Sabia que devia deixar uma oferenda às árvores. A mãe insistira para que ela levasse folhas-de-caribu secas, mas ela deixara as ervas na bolsa que trazia atada à cintura. As árvores tinham visto chegar os homens, tinham visto eles levarem-na para o Rochedo do Avô, mas nada haviam feito para a ajudar. Porque havia ela de lhes deixar alguma coisa?

Iniciou o caminho de regresso à aldeia, mas depois resolveu voltar ao Rochedo do Avô. Espreitaria debaixo do cobertor e entoaria cânticos de louvor aos animais que tinham comido a carne de Asa-de-Gaivota. A meio da encosta, cheirou-lhe a carne putrefata. O cheiro não vinha do rochedo. Saiu do carreiro e descobriu o monte de ossos e os restos de carne que tinham pertencido a Asa-de-Gaivota.

Soltou uma gargalhada, chamou-o, levantou a parka e disse-lhe que a possuísse, se considerava que isso era tão bom. Depois, sempre a rir, continuou a subir na direção do Rochedo do Avô. Se Asa-de-Gaivota não estava debaixo do cobertor, seria um disparate deixá-lo ali. Porque não juntá-lo aos cobertores que já pusera separados para o dia em que se tornasse esposa e tivesse uma cabana só dela?

Pousou o cesto de pele de peixe no solo, junto do rochedo, e por instantes examinou o cobertor. Era feito de peles de lebre, todas de um branco imaculado, e estava em monte, Como se cobrisse qualquer coisa. K’os levantou uma ponta. Ouviu um ruído, como uma ave a pipilar. Deixou cair o cobertor e recuou.

Não passa de uma ave, pensou, impressionada. Podes matá-la com o teu pau e levá-la para casa, para a panela. Ergueu o pau, disposta a bater, e depois afastou o cobertor.

Em cima do rochedo encontrava-se um bebê.

K’os fechou os olhos rapidamente, com medo de descobrir qualquer grande deformidade na criança. Por que outro motivo deixavam ali as crianças?

O bebê começou a chorar. K’os quis vê-lo, saber o que se passava com ele. Entreabriu os olhos e espreitou por entre as pestanas.

A criança estava inteira e era gorda, um rapaz, comprido e perfeito. K’os agachou-se junto do rochedo. Donde viera ele? Pelo menos há duas luas que ninguém que ela conhecesse tivera um bebê, e aquela criança não tinha mais de um ou dois dias. O toco do cordão umbilical ainda se via na barriga. Talvez ele fosse do povo de Rio Próximo, ou de um dos grupos do Povo Caribu que andavam de um lado para o outro, atrás das manadas. K’os aproximou-se dele lentamente e tocou-lhe no rosto. A criança virou a cabeça para os dedos dela.

K’os lembrou-se de Gguzaakk quando ela era pequena e fazia o mesmo, à procura do seio cheio de leite da mãe. Era uma pena que a tia não estivesse ali. Poderia amamentá-lo.

Os lábios do bebê estavam gretados e secos. A criança precisava de leite. K’os deixou cair o pau, cuspiu na palma da mão e esfregou-lhe a saliva nos lábios. Ele tentou chupar-lhe os dedos, mas ela afastou-os.

Abanou a cabeça. Era uma pena que não tivesse sido outra pessoa a encontrá-lo. Havia muitas mulheres que receberiam um filho de boa vontade. Ela não. Não o faria. Encostou a mão à barriga. No dia seguinte, iria ter com Irmã Velha e dir-lhe-ia que fizera um disparate. Dormira com um dos filhos da irmã da mãe e não queria que o pai soubesse. Irmã Velha teria alguma coisa que ela pudesse tomar? Com certeza que havia mezinhas... K’os olhou para o bebê, que tremia. Os braços e as pernas da criança agitavam-se em espasmos. Sim, era uma situação péssima.

Fechou os olhos e lembrou-se do coração de Asa-de-Gaivota, ali no meio do rochedo, precisamente no local em que o bebê se encontrava agora.

De súbito, K’os imobilizou-se. Ela deixara o coração como oferenda. E se o Rochedo do Avô lhe tivesse dado um presente em troca? Não havia sinais do coração; contudo, ali estava aquela criança. K’os inclinou-se sobre ela e examinou o seu rosto. Havia qualquer coisa nele que lhe fazia lembrar Asa-de-Gaivota. Seriam os olhos, as sobrancelhas? Não, que disparate. Olhou para os dedos compridos das mãos da criança. Os de Asa-de-Gaivota eram curtos e grossos. Os dedos dos pés da criança também eram compridos e... K’os parou de novo. Estavam unidos por uma membrana; cada um dos últimos três dedos estava unido ao seguinte.

Então, K’os percebeu.

Era uma criança doada por um animal. Como nas histórias. Não era verdade que os maiores caçadores, os mais célebres xamãs do seu povo, doados pelos animais, tinham nascido de um coágulo de sangue ou de um pedaço de carne?

Aquela criança era um deles. O Rochedo do Avô moldara uma criança, talvez a partir do sangue de Asa-de-Gaivota, mas mais provavelmente do sangue de um animal. Agora o rochedo oferecia-lhe a criança de presente, para lhe dar poder. Para lhe devolver a sorte.

K’os pegou no cesto de raízes da mãe e depois o bebê. Embrulhou-o no cobertor de pele de lebre e depois cuspiu-lhe na boca. Não tinha leite nos seios, mas conseguiria mantê-lo vivo até chegarem à aldeia. A mãe logo encontraria uma mulher que o amamentasse.

K’os sentia o seu poder a aumentar a cada passo. Não conseguiu conter o riso na garganta. Ele saiu-lhe pela boca e dançou à sua frente, enquanto ela levava o bebê oferecido pelos animais para a aldeia.

 

 

                 Vinte anos depois. Inverno, 6460 a. C.

 

Olhem! O que vejo eu? Os ossos golpeiam-lhes os pés.

Apresentei este enigma ao Povo antes de abandonar a minha aldeia. Pronunciei estas palavras e contei-lhes muitas histórias. Continuei a falar até de madrugada, e o Povo ouvia o que eu dizia, mas eu tinha pouca esperança que eles compreendessem.

Os ossos são os de Primeiro Salmão, Caribu Andante e Mãe Urso, e de todos os animais que regressam ano após ano para se oferecerem, para que o Povo possa viver. Os pés pertencem às pessoas que já não demonstram o respeito que aqueles animais merecem.

Os velhos cochicharam entre si e eu ouvi as suas palavras.

Vejam o que a falta de respeito nos custou diziam eles. Vejam o que acontece quando as pessoas deixam de seguir os costumes antigos. O salmão abandona os nossos rios. Os jovens anseiam pela guerra.

Por isso agora, eu, Chakliux, tenho de orientar os meus pensamentos para a luta, não uma luta de facas e de lanças, mas uma luta do espírito. Vou lutar pela paz. Para que mais fui treinado como contador de histórias? Para que mais fui oferecido ao Povo pelos animais?

 

ALDEIA DE RIO PRÓXIMO

Os pensamentos de Chakliux tinham o sabor amargo do chá de casca de salgueiro, e ele abanou a cabeça, impacientando-se subitamente com a sua autocomiseração. Pelo menos ela era bela. Ele podia consolar-se com isso. Se não a olhasse nos olhos e não visse o vazio que eles encerravam. Se não desse ouvidos ao riso tolo dela, aos seus pequenos queixumes.

O que era mais importante? A sua felicidade ou a segurança das pessoas da aldeia e a sua?

Vira a tempestade a aproximar-se, vira-a quando ela era apenas um movimento das estrelas, um monte de nuvens, mas a cada incidente o roubo de uma armadilha, a recusa de um dote a pressão ia aumentando e bastava uma pequena coisa para que os caçadores se atirassem uns aos outros.

O que era melhor do que unir as aldeias através do casamento? Qual o casamento mais forte do que aquele que unia um filho dzuuggi e a filha do xamã de Rio Próximo?

Os caçadores mais velhos da aldeia invejavam-no. Ele ria-se das suas piadas, do desejo nas suas vozes quando falavam dela, dessa bela mulher de Rio Próximo. Mas Chakliux não a desejava. Como podia ela comparar-se à sua Gguzaakk?

Gguzaakk trazia a alma nos olhos. Ainda agora ele sentia o espírito dela a pairar. Não tinha medo dela, que ela tentasse chamá-lo para o mundo dos mortos, que ele a seguisse e ao filhinho de ambos. Gguzaakk compreendia o que ele foi obrigado a fazer, e Chakliux sentia o seu desgosto.

Lembrou-se de que Neve-no-Cabelo era jovem. Gguzaakk tinha mais de quatro mãos-cheias de Verões quando morrera. A sabedoria vem com a idade. Neve-no-Cabelo tornar-se-ia sábia à medida que os anos fossem passando.

Chakliux observava-a enquanto ela falava com a mãe, como se ria e fazia olhinhos aos jovens guerreiros que davam uma ou outra desculpa para se aproximarem dela. Vestia uma parka com capuz de pele de castor branco, e cada pele esguia fora cosida de modo a ficar com a cauda de ponta negra solta. A parka era de cortar a respiração, mas Chakliux consolou-se ao admitir que fora Neve-no-Cabelo quem costurou-a. Sorriu ao lembrar-se como Gguzaakk ficava desajeitada com o furador e a agulha na mão. Mas o que importava isso? Gguzaakk compreendia as coisas do espírito. Observava os olhos de uma pessoa e sabia o que devia dizer.

Mas, pensou Chakliux, seria bom ter uma mulher que soubesse costurar. Que melhor maneira tem uma mulher de venerar os animais do que criando beleza com as suas peles?

Chakliux também vestia uma parka especial. Era feita de peles de lontra-marinha compradas dos Caçadores de Morsas para lembrar os seus poderes ao Povo do Rio. Fora a mãe que lhe fizera. Era uma mulher habilidosa no manejo da agulha e com rapidez nos dedos das mãos. Chakliux vestia perneiras de pele de caribu, mas estava descalço. Sabia que as pessoas quereriam ver os seus dedos unidos por uma membrana, e o seu pé torto na ponta, um sinal de que tinha sangue de lontra. Quem podia duvidar de que ele era lontra quando vissem aquele pé sempre pronto a nadar?

Se não fosse Inverno, lhes teria mostrado que sabia nadar.

Ainda agora ele ansiava pelo frio sereno dos abismos, pela luz clara e prateada que penetrava na água. Queria ensinar os outros a nadar, mas eles nem tentavam, e todos os anos crianças que poderiam se ter salvo se soubessem nadar eram levadas pelo rio. Até Gguzaakk tinha medo de nadar...

Ah, ele não podia dar-se ao luxo de pensar muito em Gguzaakk. Dentro de pouco tempo teria outra esposa. Seria um bom marido para ela.

Orientou os seus pensamentos para a cabana, para as peles de caribu que estavam estendidas nos postes, para as esteiras grossas do chão. Era uma boa cabana de Inverno. Seria um local confortável para ficar, e o pai de Neve-no-Cabelo parecia ser um homem sensato. Não seria difícil viver com aquela família.

Neve-no-Cabelo levantou-se para receber mais um presente: um cesto de salgueiro, feito de raízes entrelaçadas. Lá dentro estava uma pele de pica-pau. As penas malhadas da ave que um homem só via uma ou duas vezes na vida dar-lhes-iam sorte no casamento.

Chakliux agradeceu a quem o trouxera uma velha de que ele ouvira falar, chamada Ligige’. Tinha as costas deformadas e curvas e por isso ele não conseguiu ver-lhe a face, mas reparou no respeito com que as outras pessoas que se encontravam na cabana tratavam a mulher, no lugar de honra que lhe reservavam junto da lareira.

Ela balbuciou qualquer coisa quando ele lhe agradeceu e depois começou a virar-se. De súbito, parou. Olhou-lhe para os pés, e Chakliux sentiu o calor dos olhos dela, como se ao olhar ela ateasse um fogo. Endireitou-se com esforço, olhou de frente para ele e ficou sem fôlego. Não disse nada; limitou-se a desviar o olhar e a tapar a boca com a mão. Mas, à medida que ela se afastava, Chakliux sentia o espírito de Gguzaakk a deslocar-se como um vento caprichoso, soprando de todas as direções.

Sok observava Neve-no-Cabelo, e deixava que o seu olhar lhe acariciasse os braços longos e graciosos e as pequenas saliências dos seios por baixo da parka. Nessa noite, ela tornar-se-ia esposa do caçador de Rio Primo, do homem com pés de lontra. Apreciaria ele a sua beleza? Sok observara o homem com cuidado, e não vira grande alegria nele ao olhar para Neve-no-Cabelo. Talvez ele fosse mais lontra do que homem. Talvez ele quisesse uma mulher como Boca Feliz, que parecia uma lontra.

A primeira vez que Sok se lembrava de ter visto Neve-no-Cabelo, era ela criança e estava a brincar na terra à porta da cabana da mãe. Reconhecera logo a sua beleza e inclinara-se para brincar com ela, até que um dos seus companheiros de caça o vira e soltara uma gargalhada trocista.

Podia ter esperado dez anos, poupado um dote que nem um xamã recusaria, mas o seu corpo ardia de desejo. Mesmo quando caçava, só conseguia pensar em mulheres. Os animais sentiam o seu desrespeito e recusavam entregar-se às suas lanças. Por fim, até o padrasto reparou e ordenou-lhe que arranjasse uma esposa. Sok aceitara Folha Vermelha, uma boa mulher. Dera-lhe dois filhos belos e fortes, mas sempre que ele via Neve-no-Cabelo lamentava não ter esperado.

Pensara em pedi-la como segunda esposa, mas era raro um homem do Povo ter uma segunda esposa, a menos que a primeira fosse estéril ou enfermiça, e Folha Vermelha não era uma coisa nem outra. A única esperança de Sok era tornar-se chefe dos caçadores ou um guerreiro famoso. Muitas vezes, os guerreiros e os chefes dos caçadores tinham duas ou mesmo três esposas. Mas depois surgira aquele homem-lontra. Ainda trazia nele o cheiro da aldeia de Rio Primo. Neve-no-Cabelo merecia melhor.

Não deixes que ela o veja disse Ligige’ ao irmão. Pelo menos até esta noite, até eles selarem com os corpos o que foi dito por palavras, e o pai ter aceitado os presentes do homem.

Isso está certo? perguntou o irmão. A verdade não pode ser alterada.

Este casamento abre esperanças de paz. Bem sabes que os nossos jovens caçadores procuram qualquer pretexto para lutarem com o povo de Rio Primo. Danificam as suas próprias armadilhas para arranjar um motivo.

Tsaani concordou. A irmã tinha razão. E não seria a primeira vez que haveria luta entre a aldeia do Povo e a de Rio Primo. Apenas com dois a três dias de caminho separando as aldeias de Inverno e menos entre os pesqueiros de Verão, as pessoas viam-se umas às outras com muita freqüência, pensavam em muitas razões para se odiarem umas às outras, sobretudo desde que o salmão começara a escassear nos últimos anos.

Mas só os mais velhos desta aldeia a irmã, Ligige’, Pato-de-Cabeça-Azul e ele próprio é que se lembravam da última luta. As palavras não tinham força suficiente para descrever o horror: jovens mortos, dias de luto e Invernos duros com poucos caçadores nas duas aldeias para sustentar os velhos e os muito novos.

Para evitar mais mortes, ele e Ligige’ eram obrigados a guardar aquele segredo, em especial de Mulher Diurna.

Tsaani ouvira o povo de Rio Primo a gabar-se do filho que lhe fora oferecido pelos animais, mas por qualquer motivo julgara que ele ainda era uma criança. Até o povo de Rio Próximo voltara para contar histórias dos seus dotes natatórios. Uma pessoa que sabia nadar? Como é que alguém conseguia suportar as águas frias dos rios do Povo? Mas Tsaani lembrou-se de que a sua própria filha não tinha medo da água, e dizia-se que a família deles trazia sangue dos Caçadores Marinhos nas veias. Este povo insular afirmava ser irmão das lontras-marinhas. Talvez os talentos do homem não passassem disso, de uma recordação dos antepassados mortos há muito.

Se assim era, Ligige’ tinha razão. O jovem que chegara para casar com a filha do xamã não era uma dádiva dos animais, mas sim o filho de Mulher Diurna, descoberto antes de morrer no Rochedo do Avô.

 

ALDEIA DE RIO PRIMO

K’os espreguiçou-se e enrolou os dedos dos pés. Estava deitada nas esteiras da sua cama e observava Caça-Ursos ajustar a tanga e atar as perneiras. Ela era uma velha, diziam. Riu-se. Caça-Ursos olhou para ela e inclinou a cabeça.

És feliz? perguntou ele.

Sou feliz respondeu ela.

Velha, sim. Velha, mas com a pele flexível e sem barriga, como uma moça. Sete mãos-cheias de Verões, e ainda era uma moça. Tinha o cabelo preto, sem um fio branco, e a face era macia e os dentes fortes. Só as mãos lhe denunciavam a idade, mas os homens não lhe olhavam para as mãos. Ela tinha outras coisas que eles preferiam ver.

Caça-Ursos agachou-se no túnel de entrada e afastou a aba da porta com cautela.

K’os manifestou o seu descontentamento.

Se tens medo do meu marido, não devias ter vindo aqui advertiu ela.

Ele saiu do túnel e vestiu a parka. Ela viu-lhe a face corada, mas ele não disse nada. Voltaria. Eles voltavam sempre. E o que podia Bate-no-Chão fazer? Expulsá-la? Matá-los? Ele era um velho. Ela podia dizer-lhe tudo, que ele acreditava. Sobretudo agora que o filho dela, Chakliux, partira. Para quê preocupar-se?

Chakliux. K’os perguntou a si própria como ele estaria se dando na aldeia de Rio Próximo. Sorriu. Teriam descoberto quem ele era? Talvez não. O povo de Rio Próximo não era conhecido pela sua mente veloz. Ela estava satisfeita por ele ter partido, mas sentia a sua falta. Ele era tão ajuizado. Sabia fazê-la rir... Ou pensar. E os seus enigmas! Qual deles era o melhor?

Porém, Chakliux também a assustava. Sabia quem ela era: talvez o soubesse desde criança. Mas ela também conhecia os seus segredos, coisas que ele desconhecia acerca de si próprio. Coisas que ninguém sabia na aldeia.

Gguzaakk exigira o coração dele, mas não estivera à altura de K’os. Qual a esposa que podia substituir uma mãe? Sobretudo uma esposa que tivera a infelicidade de morrer de parto.

Ah, bem, Chakliux estava agora na aldeia de Rio Próximo. Diziam que a filha do xamã era bela. Em breve ele esqueceria a sua rechonchuda e insignificante Gguzaakk.

Os poderes de Chakliux eram grandes, mas eram como os poderes do mocho. Ninguém queria ser alvo do olhar de Chakliux. Ele não trazia boa sorte. Ninguém estava a salvo. Nem sequer a mãe dele. Nem sequer a mulher.

K’os atirou a cabeça para trás e deu uma gargalhada. A aldeia de Rio Próximo que se entendesse com a sorte de Chakliux.

 

ALDEIA DE RIO PRÓXIMO

Os anos tinham enfraquecido as pernas de Tsaani. O velho ainda caçava, mas tudo o que fazia era devagar. Agora, ao dirigir-se para a cabana da filha, pousava cuidadosamente os pés nos caminhos cobertos de neve. A lama escorria do gelo no meio do caminho, e o cheiro úmido da terra enchia as narinas de Tsaani. Na grande luta entre o Sol e a noite, o Inverno saía mais uma vez derrotado.

Dirigia-se para a cabana no centro da aldeia onde vivia a filha. Era uma cabana pequena; o telhado de pele de caribu precisava ser substituído, mas como ela era segunda esposa, Tsaani tinha pouca esperança de que tal viesse a acontecer.

Talvez ele apanhasse alguns caribus nas caçadas desse ano. A sua mulher não precisava das peles. A cabana dela era nova. Ele não permitiria que a filha vivesse envergonhada por ser segunda esposa e porque o marido preferia dormir em vez de caçar.

Raspou na aba, mas ninguém lhe respondeu. Por fim, entrou engatinhando no túnel, uma coisa que ele nunca teria feito a não ser na cabana da filha. A cabana estava vazia.

Raposa-Que-Ladra, o marido de Mulher Diurna, era um homem cujos pensamentos estavam sempre voltados para si próprio. Levara as duas esposas ao dzuuggi de Rio Primo, pensando que o dzuuggi o consideraria uma pessoa importante. Se um homem era demasiado preguiçoso para caçar, de que serviam as esposas? Se ele deixava a mulher viver numa cabana que tresandava a mofo, quem poderia considerá-lo importante?

Tsaani tinha dores nos joelhos e nos tornozelos, mas fez o possível por andar mais depressa. A cabana do xamã ficava no outro extremo da aldeia. Os seus sapatos de pele de caribu pareciam escorregar mais do que era necessário, mas por fim aproximou-se da cabana e da multidão que a rodeava.

Quando as pessoas o viram, afastaram-se para o deixar passar.

A cabana estava quente, demasiado quente, com gente a mais, e cada pessoa aumentava o calor com as suas palavras e os seus risos. Tsaani ficou à beira do grupo, apesar de várias pessoas lhe indicarem os confortáveis tapetes de pele e os espaldares de madeira de salgueiro reservados aos mais velhos. Mas ele manteve-se onde estava, à espreita e à escuta.

Os seus olhos caíram em primeiro lugar sobre o dzuuggi de Rio Primo, e nesse momento Tsaani não percebeu por que motivo Ligige’ lhe pedira que fosse lá. Não havia nada que ele pudesse fazer. O jovem estava descalço, com o pé de lontra e os dedos unidos descobertos para todos verem. Mas mesmo que o homem estivesse calçado, como poderia esconder a testa alta, os malares salientes e os olhos bem delineados? Aquele era o filho de Asa-de-Gaivota. O jovem riu-se, e era o riso de Asa-de-Gaivota. Eles eram cegos? Ou surdos?

Tsaani olhou para o rosto das pessoas que se encontravam na cabana. Não havia ninguém da aldeia de Rio Primo. O homem viera sozinho? Talvez, como Tsaani e Ligige’, ele pensasse que muitos jovens caçadores ansiavam por ser guerreiros e se tivesse resolvido a arriscar a vida.

Tsaani observou o homem durante algum tempo e ouviu-o falar ao povo. Talvez fosse parecido com o pai, mas ultrapassava em muito a sabedoria de Asa-de-Gaivota. Devia ser essa sabedoria que levava toda a gente a não perceber quem ele era.

Tsaani examinou devagar o rosto dos homens e das mulheres da sua aldeia, velhos e novos, sábios e tolos. Eles ouviam o dzuuggi falar dos laços que uniam as duas aldeias, e contar histórias das lutas e das caçadas, dos antepassados e dos guerreiros que faziam deles um só povo.

Então, Tsaani descobriu a filha e percebeu que ela sabia. Havia dor no seu rosto, e a tristeza manifestava-se nas longas rugas que lhe sulcavam a face. Mulher Diurna abriu a boca e Tsaani receou que ela falasse, que dissesse alguma coisa que quebrasse o encanto do dzuuggi, mas nenhum som saiu da sua boca, apesar de esta se ter mexido.

Tsaani começou a abrir caminho entre as pessoas, na direção da filha, para a avisar, para lhe explicar que não podia revelar que aquele homem era seu filho, que tinha de fazer um sacrifício, como fizera quando o filho nascera, para proteger a sua aldeia.

Entraram mais pessoas na cabana, empurrando Tsaani, e era como se ele estivesse num sonho e cada passo o conduzisse a lado nenhum, mas por fim encontrava-se apenas a três mulheres de distância dela, depois a duas. Estendeu o braço para lhe agarrar no ombro, mas antes de conseguir tocar-lhe ouviu-se um grito, um grito lancinante e prolongado.

Como se o grito fosse uma parede, Tsaani sentiu-se afastado. Mulher Diurna atirou-se aos pés do jovem, agarrou-o pelos tornozelos e exclamou:

Meu filho, oh, meu filho, voltaste para mim!

Julgas que eu quero um marido que foi rejeitado? exclamou Neve-no-Cabelo. Julgas que eu quero filhos que estão amaldiçoados? Os meus filhos podem já estar amaldiçoados só por eu ter olhado para ti. Só porque me sentei ao teu lado.

Ninguém da aldeia de Rio Primo foi amaldiçoado por minha causa disse Chakliux em voz baixa.

Isso é porque eles não sabem quem tu és!

Nada mudou. Eu sou a mesma pessoa que sempre fui afirmou Chakliux, mas, ao falar, a dúvida atormentava-lhe o coração.

Gguzaakk morrera ao dar à luz. Fora ele que a amaldiçoara? Chakliux abanou a cabeça. Não. Ele sabia por que motivo ela morrera. Era por isso que estava ali. Como podia ele suportar ficar na sua própria aldeia com esse pensamento a destroçá-lo?

Depois, sentiu o conforto do espírito de Gguzaakk junto do seu, e lembrou-se que até o seu filho nascera perfeito. Sem deformidades, sem sinais de maldição.

Lobo-e-Corvo e a mulher, Flor Azul, mantiveram-se sentados, sem dizerem uma palavra. Observavam a filha como se ela fosse uma bailarina, a dançar. Por fim, quando Neve-no-Cabelo se sentiu cansada, desatou a chorar, com o rosto escondido no regaço da mãe.

Pouco depois, Lobo-e-Corvo pigarreou. Chakliux esperou que o homem falasse e, entretanto, foi reunindo palavras para a sua resposta. Tinha de convencer Lobo-e-Corvo que nem ele nem o velho Falador, o xamã da aldeia de Chakliux, tinham tido a intenção de prejudicar Neve-no-Cabelo nem qualquer outra pessoa da aldeia. Só queriam viver juntos e em paz.

Há quem diga que o povo de Rio Primo te enviou para nos amaldiçoares disse por fim Lobo-e-Corvo. Era um homem de rosto alongado e pele flácida, e a sua boca era demasiado grande para as suas palavras, engolindo-as, de tal modo que Chakliux teve que apurar o ouvido para perceber o que ele dizia. Eu não acredito nisso.

Chakliux ergueu as sobrancelhas para mostrar que concordava com o homem.

Vi a tua surpresa quando Mulher Diurna se dirigiu a ti. Creio que vieste trazer a paz. Precisamos dela. Não me lembro da última vez em que as nossas aldeias lutaram, mas há quem se recorde. Se o que eles dizem é verdade, não quero que volte a acontecer o mesmo.

”Também conheci o teu pai, o teu verdadeiro pai. Tens a cara dele, apesar de me parecer que não tens o seu espírito. E Mulher Diurna não é pessoa para mentir. Nem Ligige’.

Calou-se neste ponto e apontou com o queixo para os pés de Chakliux.

Ela diz que os teus pés são iguais aos de um bebê que ela deu à luz há muito tempo... O filho de Mulher Diurna. A criança foi levada para o Rochedo do Avô. Até a tua mãe de Rio Primo diz que foste encontrado no Rochedo do Avô.

Sim, pensou Chakliux. Encontrado pela mãe. Ele conhecia bem a história. Como podia não a conhecer, sendo dzuuggi?

Mas nós precisamos de paz insistiu Lobo-e-Corvo. Falei com o teu avô, Tsaani. Ele concorda comigo. Neve-no-Cabelo não será tua mulher. Não posso obrigá-la. Não conheço os costumes da tua aldeia, mas aqui uma mulher não é oferecida como esposa contra a sua vontade.

É o mesmo na minha aldeia declarou Chakliux tranqüilamente.

Pedimos que fique. Para caçar e pescar conosco, para passar este ano conosco, para que o nosso povo veja que não és uma maldição. Os jovens caçadores têm de compreender que, se optarem por lutar, matarão boa gente, homens como eles.

”Por agora, viverás com o teu irmão. O marido da tua mãe não te quer na cabana dela até ter a certeza de que não estás amaldiçoado. Mas o teu irmão é um caçador robusto. Ele e a mulher dizem que serás bem-vindo na cabana dela.

Como ele se chama?

Sok. Tu viste-o. A mulher dele é que faz a forma do Sol com pedaços de pele nas parkas e nas botas dele.

Sim, pensou Chakliux. Conhecia o homem. Tinha um aspecto forte; não era alto mas era grande. Falava alto e ria-se muito. Parecia ser um homem que procurava atrair as atenções, que gostava de ser invejado pelos outros. Era estranho pensar nele como irmão.

Pela minha filha, eu gostaria que fosse uma dádiva dos animais disse Lobo-e-Corvo. Por mim, não me importo. Oferecido ou não pelos animais, precisamos que fique na aldeia, que una o nosso povo pela amizade. Muitos morrerão se nos tornarmos inimigos.

As palavras do homem lavaram Chakliux como água cristalina. Se havia homens na aldeia de Rio Próximo que ansiavam pela paz, então havia uma hipótese.

Ficarei prometeu Chakliux.

Baixou a cabeça para que Lobo-e-Corvo não visse a dúvida a escurecer o seu olhar. Tinha um irmão que não conhecia e uma mãe que parecia não ter consciência de nada, além das suas próprias necessidades. Porque o reclamava agora, quando outrora o abandonara para morrer ao frio, ao vento e aos dentes dos animais? Porque lhe retirara a sua honra de dádiva dos animais?

Mas ela não teria qualquer coisa a dizer? Ele não era uma dádiva dos animais. Fora apenas uma criança rejeitada, uma maldição.

Então ouviu a voz de Gguzaakk no seu coração, lembrando o motivo por que ele se encontrava na aldeia de Rio Próximo. Ele tinha de descobrir como havia de convencer as pessoas a passarem do ódio para a compreensão. Não importava que ele fosse uma dádiva dos animais. Não importava que o seu pé fosse um sinal de que possuía sangue de lontra nas veias. Se ele não conseguisse trazer a paz, muita gente morreria naquela aldeia e na sua.

 

ALDEIA DOS PRIMEIROS HOMENS

BAÍA DOS COMERCIANTES

(Atual Baía de Herendeen, Península do Alasca)

Aqamdax olhou para a enseada coberta de gelo, a norte, na direção do mar, e depois para leste, para o território do Povo Rio. Talvez no Verão seguinte a mãe dela voltasse. Partira há quatro anos com o comerciante, mas prometera a Aqamdax que voltaria, e todos os Verões ela esperava e observava.

O vento soprava forte do oeste, obrigando Aqamdax a avançar e a proteger o corpo. Não havia mais ninguém na praia e por isso ela podia gritar, dirigir as palavras ao vento e enviar a mensagem que conseguiria chegar à mãe.

Deixaste-me no ulax de Cantador disse Aqamdax, como que a cantarolar. A sua prancha de arremesso é forte. O seu arpão é afiado e há comida que chegue para todos. As suas mulheres continuam a odiar-me, mas eu faço o que posso para as ajudar.

Há dois Verões que o meu sangue seguiu a Lua. Dentro em pouco serei esposa. Volta e partilha a minha alegria.

Aqamdax teria dito mais coisas, mas avistou pelo canto do olho a segunda mulher de Cantador, que chegara à praia. A mulher dirigiu-se a ela, inclinada pelo vento, com a boca a abrir-se e a fechar-se como a de um peixe. Arrastava a filha mais nova pela mão. A criança gritava, mas o vento afastava o ruído, e Aqamdax só percebeu os seus protestos ao olhar-lhe para o rosto.

Quando Leva-Peixe se aproximou, pôs as mãos no meio das costas da menina e empurrou-a na direção de Aqamdax.

Eu disse-te esta manhã que tens de tomar conta dela. Como acabarei a parka do meu marido se esta anda sempre a trepar para o meu colo?

Ela estava dormindo disse Aqamdax à mulher.

Acordou.

Leva-Peixe voltou-se para os ulaxs com telhado de grama, deixando a menina com Aqamdax. A criança ainda não tinha idade para se recordar, mas sabia falar e andar. Aqamdax ajoelhou-se a seu lado, abrigando-a do vento com o seu corpo.

Pássaro Pequeno, porque choras?

Quero comer pediu ela. Levantou a mão enluvada para limpar o muco do nariz e deixou escapar um soluço.

Toma, tenho aqui uma coisa.

Aqamdax tirou uma tira de peixe seco da manga do seu sax de pele de pássaro.

Aqamdax comia bem no ulax do chefe dos caçadores, mas não se esquecera do Verão posterior à morte do pai, antes de Cantador ter aceitado sustentá-las, a ela e à mãe. Agora, trazia sempre carne ou peixe seco e escondia até uma parte no local em que dormia.

Pássaro Pequeno estendeu a mão para agarrar no peixe, mas Aqamdax tirou uma parte, aqueceu-a na boca e depois deu-a à criança.

Temos de voltar para a aldeia. Está muito frio na praia disse Aqamdax.

Pegou na criança ao colo, apoiou-a numa anca e depois subiu a ravina da praia pelo carreiro aberto na neve. Levou Pássaro Pequeno para a cabana de Dá-Lanças. Dá-Lanças era um velho, e nunca se importava que alguém se sentasse no abrigo do vento do seu ulax. Além disso, era um dos poucos caçadores da aldeia que nunca freqüentara a cama de Aqamdax. Mesmo que a esposa de Dá-Lanças visse Aqamdax sentada junto do ulax do marido, não haveria problema.

Aqamdax agachou-se e puxou Pássaro Pequeno para junto dela. Sentaram-se, encostadas uma à outra, comendo. Pássaro Pequeno tagarelava como um bebê, usando palavras incompletas que Aqamdax não compreendia, mas a menina não parecia importar-se com o fato de não obter respostas.

Aqamdax deixou que os seus pensamentos regressassem à noite da véspera. Não ficara admirada ao ouvir alguém raspando na cortina da sua cama. Muitos caçadores iam ter com ela à noite, embora fossem poucos os que tinham coragem de entrar no ulax de Cantador, quando o homem voltava para casa depois de uma das suas muitas caçadas.

É Salmão, pensara Aqamdax. O homem visitava-a muitas vezes. Mas quando ela afastou a cortina, era Rompe-o-Dia, o filho mais velho de Cantador, que estava ali. Ficou imediatamente sem fôlego e nem conseguiu dizer nada; limitou-se a abrir-lhe os braços e a recebê-lo no calor dos seus cobertores de pele de foca.

Ele possuíra-a à pressa, com movimentos bruscos, e ela ficara satisfeita ao sentir a força da sua necessidade, mas não era disso que se lembrava quando estava sentada junto de Pássaro Pequeno.

Lembrou-se do que ele lhe dissera ao sair da sua cama:

Dá-me um filho, que eu te aceitarei como minha esposa segredara ele.

 

ALDEIA DE RIO PRÓXIMO

Nesse dia, a caçada resumira-se a ficarem olhando, vendo além dos montes abertos, longe das moitas de salgueiros e amieiros que cobriam as margens do rio.

Verás o vapor elevando-se, como se fosse água fervendo disse Tsaani a Chakliux. Num dia de nevoeiro ou de neve não o verás, mas, numa manhã calma e fria como esta, ele estará lá, vindo do solo, e saberás que um urso está à espera, no calor da sua toca.

Este tipo de caça exigia cânticos diferentes, preces diferentes das que Chakliux sabia, mas durante a lua em que vivera com o irmão, Sok aprendera muito. O avô até lhe oferecera dois dos seus cânticos de caça ao urso, um presente tão valioso como qualquer daqueles que Chakliux contava receber.

Mas apesar da sua observação, não viram nada, e por fim resolveram voltar para a aldeia. Os homens discutiram, atirando-se uns aos outros como cães famintos, evitando olhar para Chakliux, envergonhados por ele ter assistido à sua derrota, mas também furiosos, murmurando à boca pequena que ele lhes trouxera azar.

Que boa maneira de trazer a paz, pensou Chakliux com amargura. Que boa maneira de afastar os jovens caçadores dos seus sonhos de luta. Então, de súbito, Tsaani parou. Chakliux olhou para ele e o velho apontou com o queixo para a sua cadela, Nariz Preto.

O animal estava agitado e nervoso e soltou um latido forte. Tsaani ajoelhou-se junto dele e Chakliux reparou que a cadela tremia.

Tsaani estava velho, mas ainda caçava, sobretudo graças aos seus cães, Nariz Preto, Cauda Comprida e o mais novo, a que nunca dera verdadeiramente um nome, exceto Cão um nome tão bom como qualquer outro, pensou Chakliux. Os três animais estavam agora tensos e com pêlo do pescoço eriçado.

Chakliux pensou que os dois machos iriam atirar-se um ao outro, tentando roubar comida um ao outro ou lutando para montar Nariz Preto, mas, quando Tsaani os levava à caça, eles trabalhavam em conjunto, como se cada um conhecesse o que se passava na cabeça do outro. Tsaani contou-lhe que eles tinham derrubado ursos-pardos maiores do que um homem.

Tsaani fez sinal aos caçadores que estavam atrás dele e apontou com a cabeça para um monte de terra coberto de neve que se via numa colina à esquerda. Os homens subiram sem fazer barulho. Cauda Comprida começou a escavar a terra gelada junto do extremo do monte, atirando pedaços de neve e de lama para trás, por entre as pernas.

Nariz Preto rosnou. Tsaani pôs-lhe a mão no cimo da cabeça e apertou-lhe a cúpula do crânio. Treinara-a para se manter em silêncio nas caçadas até os homens avançarem a matar, mas a cadela estava prenha e era mais difícil de controlar.

Sok, com uma faca de lâmina curta na mão, avançou e agitou-a no ar um pouco acima do nariz da cadela. O animal agachou-se. Furioso, Tsaani agarrou no pulso de Sok. Qual o cão, treinado para ter medo, que reagia com coragem quando esta era necessária? Os cães de Sok, se Tsaani tivesse permitido que eles viessem naquela caçada, estariam agora amedrontados atrás dos homens em vez de escavar a toca em silêncio.

Sok lançou um olhar furioso a Tsaani. Chakliux destacou-se do grupo e pôs-se atrás da cadela, pousando as mãos no seu dorso. Nariz Preto voltou a levantar-se, de focinho empinado e orelhas encostadas à cabeça.

Chakliux olhou para Tsaani, apontou para a toca e depois abanou a cabeça. Tsaani percebeu o que ele queria dizer. Havia qualquer coisa que não estava certa. Nariz Preto não rosnava sem motivo. Era estranho, pensou Tsaani, como caçava bem na companhia daquele neto, apesar de o conhecer só há uma lua.

Tsaani fez sinal aos caçadores para que cercassem a toca. De repente, Nariz Preto deu um salto, e um ronco que mais parecia de um urso do que de um cão saiu-lhe da garganta. Chakliux quis agarrá-la pelo cachaço mas falhou, caindo para a frente antes de conseguir equilibrar-se.

De repente, a encosta do monte como que explodiu. Um urso irrompeu da terra com tal força que tanto Cauda Comprida como Cão foram projetados para trás.

A princípio, os homens nem reagiram. Nem Tsaani, com toda a sua experiência de caça, vira um animal a sair da terra daquela maneira.

O poder está funcionando, pensou Tsaani. Por instantes, hesitou, sem saber se deviam desistir do urso. Haveria ali algo sagrado que os homens não tinham o direito de destruir? Talvez um dos seus caçadores tivesse quebrado um tabu ou tratado qualquer coisa com desrespeito.

Os pensamentos de Tsaani retardaram-lhe os movimentos das mãos, mas Nariz Preto atirou-se ao urso. Tsaani perdeu o fôlego. O urso era capaz de lhe abrir a barriga. Mas a velocidade da cadela pareceu apanhar o urso de surpresa. Nariz Preto enterrou os dentes na garganta da fera e não a largou, deixando um longo rasto branco no pêlo negro do urso.

O urso abanou a cabeça, sacudindo a lama e a poeira do focinho e depois atacou Nariz Preto, arranhando-a no dorso com as garras. O sangue manchou o seu pêlo e Tsaani soltou um gemido. Apesar das feridas, a cadela não largou o urso e logo a seguir Cauda Comprida e Cão atacaram-no também, mordendo-lhe os membros posteriores.

O urso virou a cabeça e atirou-se aos cães. Aproximou-se do grupo dos homens, ainda com Nariz Preto agarrada ao pescoço. Virou-se para Chakliux, que estava de quatro no local onde caíra, com a lança e o pau no chão a seu lado.

Chakliux agarrou a lança e conseguiu levantar-se, aliviando a perna mais fraca e o pé aleijado. Sok pôs-se ao lado do irmão, ambos de frente para o urso. Sok agarrou-se ao lançador e puxou o braço para trás. Atirou, e a lança atravessou o quarto dianteiro direito do urso, abrindo uma ferida profunda.

O urso reagiu à lança, abocanhou-a e partiu o cabo, mas a ponta continuava espetada no seu corpo.

Nariz Preto largou o pescoço do urso e fugiu por entre as suas pernas. O urso atirou-se a ela, mas só conseguiu apanhar um tufo de pêlo. A cadela foi juntar-se a Cauda Comprida e a Cão, que atacavam os quartos traseiros da fera.

Tsaani atirou a sua lança e os outros caçadores fizeram o mesmo. O urso empinou-se pela última vez nas patas traseiras, com as lanças espetadas na cabeça e nos flancos, e depois caiu para a frente e ficou imóvel.

Os caçadores deram um grito quando o urso caiu mas, assim que Tsaani se aproximou do animal, calaram-se. O velho ordenou aos cães que recuassem e eles obedeceram.

Os caçadores esquartejariam e esfolariam o urso ali mesmo. Como podia um caçador ter esperança de caçar mais ursos se levasse um de rastos para a aldeia, como se ele não fosse mais do que um fardo de mulher a ser levado para o pesqueiro?

Durante algum tempo, os homens mantiveram-se em silêncio, como que recolhidos numa prece de ação de graças, mas por fim Tsaani ergueu a voz, primeiro num cântico de caça e depois proferindo a velha bênção:

Honramos-te, a ti, que nos honraste com a tua vida.

Deu um passo em frente, tirou da manga uma faca sagrada de jade e arrancou os olhos do urso com todo o cuidado. Se por qualquer descuido, um dos caçadores quebrasse um tabu ao esquartejar a carcaça, era preferível que o urso não visse. Servindo-se da sua faca longa de caça, Tsaani cortou as patas do urso para conservar o espírito do animal e depois fez sinal aos outros caçadores para que se aproximassem.

Quando acabaram de esquartejar o urso, comeram a carne da cabeça e a que envolvia as primeiras costelas. Partilhariam o resto com as suas famílias, mas deixariam a pele na toca, para que nenhuma mulher fosse tentada a tocar-lhe, destruindo assim a sorte do marido na caça.

Tsaani soltou um gemido de prazer. O que havia de melhor do que uma barriga cheia e uma boa esposa? Encostou-se ao espaldar que Mirtilo fizera com salgueiro entrelaçado. A madeira estalou quando ele apoiou as omoplatas. Tsaani fechou os olhos e reviveu a caçada. Fora um belo dia.

Tsaani era um velho tão velho que perdera a conta aos Verões que vivera, catorze mãos-cheias, pelo menos. Desde que Estrelas-na-Boca morrera, no Inverno, que ele era a pessoa mais velha da aldeia. A irmã, Ligige’, tinha menos três ou quatro Verões do que ele, embora às vezes, quando estava de mau humor, afirmasse que era a mais velha.

Tsaani ouviu a aba a abrir-se e depois os passos leves da mulher. Sentia-se particularmente contente por não ser mulher. Uma mulher não podia comer carne da cabeça nem das costelas do urso, nem sequer podia chamá-lo pelo nome. O animal era demasiado sagrado. Pelo menos tinha gordura suficiente para que cada família pudesse receber o seu quinhão, e as velhas podiam comer o bitaala’, a camada de gordura que fica entre o estômago e o fígado do urso. Isso abafaria os queixumes de qualquer velha.

Eram um problema, essas velhas. Tsaani recordava-se de uma época em que elas não abriam a boca senão para contar histórias ou dar um conselho. Mas as velhas de agora!... É claro que eram influenciadas por Ligige’, cuja boca fazia barulho desde que ela saíra do ventre da mãe.

Tsaani abriu os olhos e fitou Mirtilo. Aceitara-a pouco depois do seu primeiro período de sangue lunar, há menos de um ano. Ainda não engravidara, mas Tsaani freqüentava muito a cama dela, esperando fazer um filho na velhice. Era o seu único e verdadeiro desgosto, que os filhos tivessem morrido todos na infância.

Mirtilo sorriu-lhe, erguendo a sobrancelha.

Julgava que estavas dormindo observou ela, falando com a delicadeza devida por uma esposa ao marido, pelos jovens aos velhos. Sok está lá fora. Pede para falar contigo.

Diz-lhe que entre ordenou Tsaani. Seria uma boa maneira de acabar o dia, um momento para discutir a caça ao urso, fixando-a na sua mente com palavras.

Mirtilo agachou-se para falar através do túnel de entrada. O Povo ainda se encontrava no acampamento de Inverno, nas fortes cabanas de Inverno. Cada uma era formada por um círculo cavado na terra, com quatro ou cinco palmos de profundidade, coberto por camadas duplas de peles de caribu unidas por costuras sobrepostas e depois besuntadas de gordura para não deixarem entrar a água. O telhado tinha um orifício ao meio, e as suas abas estavam munidas de paus que podiam ser retirados para evitar a entrada da chuva ou para escoar a fumaça da lareira.

Tsaani permitiu-se demorar o olhar na curva das costas de Mirtilo, no ponto em que estas se estreitavam e davam lugar às ancas. Passara muitos anos sozinho depois da morte da última esposa, entregue aos cuidados de Ligige’. Era bom ter de novo a sua esposa, conhecer a alegria nos cobertores dela. Também era bom estar afastado da língua afiada de Ligige’. Houvera momentos em que Tsaani julgara ser mais fácil fazer o trabalho das mulheres do que viver com a irmã.

Sok entrou na cabana, desviando respeitosamente o olhar de Mirtilo e baixando-o na presença do avô, mas Tsaani reparou no sorriso disfarçado de Sok e sentiu o mesmo sorriso na sua boca. Qual o caçador que não sorria naquele dia? Um urso durante a Lua das Barrigas Vazias. Era um sinal favorável, sobretudo depois de um terceiro Verão sem muitos salmões.

Sok sentou-se em frente de Tsaani, e as brasas da lareira aqueciam o espaço que os separava. Mirtilo pegou no seu sael de casca de bétula e saiu da cabana. Talvez fosse às lareiras, que ficavam no centro da aldeia, buscar qualquer coisa, para o caso ele ou Sok terem fome. Apesar de estar convencido de que não comeria mais, tentaria fazê-lo para que Mirtilo soubesse que ele apreciava os seus esforços.

Por delicadeza, Sok não falou e ficou à espera que ele iniciasse a conversa. O calor do fogo e a barriga cheia deixavam Tsaani sonolento, mas por fim o velho perguntou:

Tens a barriga cheia?

Sok respondeu erguendo a sobrancelha e dando uma gargalhada.

Prepara-te para comer mais disse Tsaani, e apontou para o lugar vazio da esposa da zona da cabana reservada às mulheres.

Quando Mirtilo voltou, ofereceu primeiro o seu sael a Tsaani, que, satisfeito, viu que ela não trouxera mais carne, mas sim que fora buscar bolos de frutos secos e gordura de caribu na despensa. Tsaani tirou um bolo e mostrou-o a Sok. Este soltou um grunhido de satisfação e serviu-se de dois. Surgiram duas covinhas na face de Mirtilo, que olhou para Tsaani por cima do ombro, como uma criança que procura a aprovação do pai.

Tsaani correspondeu-lhe com um aceno de cabeça. Mirtilo era uma mulher útil. Quem lhe pusera o nome sabia o que fazia.

Pato-de-Cabeça-Azul contara a Tsaani que, nesse dia, aparecera um comerciante na aldeia. O gelo do rio era resistente e continuaria a sê-lo pelo menos durante mais uma lua, e o homem viera a pé, atravessando os rios gelados do último Inverno. Talvez ele trouxesse qualquer bugiganga que fizesse uma mulher feliz, sobretudo se Tsaani lhe desse uma unha de urso.

E Nariz Preto? perguntou Sok, dando uma dentada no bolo de fruta.

As feridas não são profundas respondeu Tsaani. Tens gálio-boreal?

Tenho disse Sok. A minha mulher secou algum no Verão passado. Não é tão bom como o fresco, mas...

Ergueu as mãos e olhou para as paredes da cabana como se visse a neve lá fora através das peles de caribu.

Amanhã trago-te um bocado, ou esta noite, se quiseres.

Não respondeu Tsaani. Traz amanhã.

Fez uma pausa, comeu o seu bolo e afastou Mirtilo quando ela lhe ofereceu mais. Sok inclinou-se e tirou outro.

Nariz Preto é uma boa cadela, mas nunca fez uma coisa destas comentou Tsaani.

Agora, há muitos caçadores que esperam ficar com um dos cachorros dela. Ainda bem que ela não morreu.

Não era o seu dia de morrer. O pretalhão entregou-se a nós. Quando um homem e os seus cães são respeitosos, um urso percebe.

Sok mexeu-se, como se as palavras de Tsaani o tivessem incomodado. Abriu a boca duas vezes para falar, mas voltou a fechá-la. Fizera Sok alguma coisa para destruir aquela boa sorte que bafejara o Povo?, perguntou Tsaani a si próprio. Sok era um homem duro, rude treinando os cães e no trato com as outras pessoas, mas agia como lhe tinham ensinado. Quem poderia esperar outra coisa de alguém criado por Raposa-Que-Ladra?

Morreu outro cão disse Sok por fim.

Outro? Dos teus?

Meu. O macho jovem, o preto com a mancha branca na cabeça.

Sok passou a mão pela face.

Tsaani abanou a cabeça. O melhor dos cães novos de Sok. Dois tinham morrido, um macho e uma fêmea, ambos da mesma ninhada. E outros três cães da aldeia também haviam morrido na lua anterior. Um era velho, apesar de forte, mas os outros eram como os cães de Sok, novos e sem sinais de doença.

Há alguma maldição disse Sok.

As pessoas desta aldeia são cuidadosas respondeu Tsaani. Todos os homens respeitam a vida; todas as mulheres observam os tabus. Que maldição poderíamos ter? O que fizemos nós? Sabes quem poderia ter provocado tal coisa?

Durante muito tempo Sok não disse nada. Depois falou em voz baixa, tão baixa que Tsaani reparou que Mirtilo, que costurava à entrada da cabana, virara a cabeça para o ouvir melhor.

Há poucas mudanças na nossa aldeia. Só Estrelas-na-Boca é que morreu, e não era mulher que gostasse muito de cães. Por isso não creio que seja a falta das suas preces. Parece ser qualquer coisa que sucedeu na lua passada. Perdemos cinco cães saudáveis e vários cachorros de duas ninhadas diferentes nasceram mortos. Talvez não devêssemos ter deixado viver os cachorros saudáveis. Talvez devêssemos tê-los matado todos.

Quantos cachorros restam das duas ninhadas?

Cinco.

Quem é que os tem?

Um foi-me oferecido e outro foi para o marido da minha mãe. Outro para Dorminhoco e dois para Pato-de-Cabeça-Azul.

Vai falar com esses homens ordenou Tsaani. Diz-lhes que cada um pode ficar com um cachorro da ninhada de Nariz Preto se matarem esses outros cães. Também ficarás com um dos cachorros de Nariz Preto.

Sok fez um sinal afirmativo.

Dizes que esses problemas surgiram depois da última lua? perguntou Tsaani.

Sok fitou Tsaani.

Sim assentiu ele.

Durante algum tempo, ficou conversando com Tsaani acerca da caçada. Por fim, levantou-se e virou-se para o túnel de entrada. Parou e, erguendo o que restava de um bolo, disse a Mirtilo:

São bons.

Ela baixou a cabeça em sinal de reconhecimento quando ele saiu e depois foi para junto de Tsaani. Este passou-lhe a mão pela cintura. Sem dizerem nada, foram para a cama de Mirtilo. Ela despiu o vestido solto de pele de caribu que usava na cabana e ficou diante do marido só com as perneiras atadas ao meio das coxas. Tsaani deixou cair a sua manta de pele de lebre entrelaçada, pegou-lhe as mãos e encaminhou-as para a sua tanga. Ela ajoelhou-se para desatar o fio e Tsaani passou as mãos pelo rio escuro e macio do cabelo dela.

Uma lua, pensou Tsaani. Quando é que Chakliux chegara à aldeia? Um homem como Chakliux um homem criado como dzuuggi se trouxesse uma maldição, poderia destruir uma aldeia inteira. Mas, naquele dia, tinham apanhado um urso. Isso era certamente um sinal de boa sorte.

Sim, pensou Tsaani. Não teríamos apanhado um urso se estivéssemos amaldiçoados.

A felicidade provocada pela caçada voltou a Tsaani, que afastou todos os pensamentos exceto os que celebravam a alegria das mãos pequenas e hábeis da mulher.

Sok atravessou a aldeia. Anoitecera e as peles de caribu que cobriam todas as cabanas de Inverno tinham um tom amarelado, iluminadas por dentro pelas lareiras.

Ainda não falara ao avô daquilo que mais o pressionava, o seu desejo por Neve-no-Cabelo, mas pelo menos o velho Tsaani começaria a pensar no problema de ter Chakliux naquela aldeia. Fora um disparate encontrar aquele irmão. Sok nem sequer sabia que tinha um irmão. Porque saberia? Ninguém falava dos mortos. Para quê correr o risco de invocar os seus espíritos? Para quê recordar a sua perda àqueles que os amavam?

Ao conceder a Chakliux um lugar na cabana da esposa, Sok esperara alcançar os favores de Lobo-e-Corvo, mas o homem parecia tratá-lo como de costume. Pelo menos não obrigara Neve-no-Cabelo a tornar-se esposa de Chakliux. E depois dele, Sok parecia ser uma boa escolha.

Agora, muitos caçadores nem se atreviam a olhar para ela. Estavam inquietos com a má sorte que ela atraíra ao recusar Chakliux. Bem, mesmo assim, Sok estava disposto a aceitá-la, embora Chakliux tivesse de arranjar outra cabana para viver. Mas porque havia de se preocupar? Ele poderia sempre regressar ao povo de Rio Primo.

Chakliux falara-lhe várias vezes da raiva que grassava entre os jovens das duas aldeias, mas Sok não podia preocupar-se com essa loucura. Sempre fora assim, desde que ele se lembrava. Uma rixa entre dois caçadores, algumas palavras de irritação, o que era isso? E se houvesse um verdadeiro ataque, de uma aldeia à outra... Sok não conseguiu manter o sorriso. Qual a melhor oportunidade de um homem mostrar o que valia? Neve-no-Cabelo ficaria orgulhosa por ter um marido que também era guerreiro.

Se Chakliux estava tão preocupado com a luta entre as aldeias, devia voltar para o povo de Rio Primo e avisá-lo. Devia dizer-lhes que aquela aldeia albergava caçadores fortes. Se os de Rio Próximo iniciassem uma luta, não sairiam vencedores.

Sok caminhava de cabeça baixa, e os seus olhos só viam os seus pensamentos. Por pouco não chocou com Daes. Ambos ficaram surpreendidos e a mulher pediu desculpa em surdina.

Sok correspondeu com um gesto de cabeça e, desejoso de saber o que fazia ela lá fora de noite, com o filho de três anos apoiado numa das ancas, escondeu-se na sombra de uma cabana e ficou observando-a. Ela encaminhava-se rapidamente para as moitas no extremo da aldeia, onde as mulheres faziam as suas necessidades.

Porque levava o filho com ela numa noite tão fria?, pensou Sok. A criança devia estar dormindo. Talvez Água-Castanha, a esposa-irmã de Daes, não tivesse autorizado o menino a urinar na cabana. Quase todas as mães guardavam a urina dos filhos em baldes de madeira. A urina era boa para muitas coisas: desengordurar o cabelo e as peles, fixar as tintas nas peles raspadas. Daes era terceira esposa de um velho, e toda a gente sabia que a primeira esposa, Água-Castanha, era uma mulher dada a fúrias e a exigências insensatas. Mas talvez Água-Castanha tivesse razão ao pedir-lhe tal coisa.

Daes viera daquele povo que vivia nas ilhas do mar, lá longe, a oeste. Talvez o menino, que era dos Caçadores Marinhos, tivesse qualquer poder na urina que Água-Castanha não queria na sua cabana.

Os contadores de histórias falavam de épocas em que os Caçadores Marinhos e o Povo negociavam muito, chegando a trocar esposas e filhos, mas havia sempre histórias de lutas e de ódios. Por que confiar em homens que ora eram parceiros de negócios, ora eram inimigos? Era melhor deixá-los sozinhos. Os homens assim não eram bem gente.

Daes tivera muita sorte em arranjar um marido. Fora trazida por um comerciante, grávida. Sok nunca percebera por que motivo é que o comerciante a deixara. O filho era dele, até as velhas o diziam, mas talvez o comerciante não quisesse uma esposa dos Caçadores Marinhos, que não era totalmente humana.

Ele voltara uma ou duas vezes desde que o filho nascera. Agora o homem estava lá outra vez. Sok sorriu. Talvez Daes fosse mais humana do que ele julgava. Talvez saísse à socapa da cabana de Água-Castanha para ir ter com o comerciante. Porque não? Era uma bela mulher. Ele não ficaria admirado se o comerciante a recebesse na sua cama.

Sok pensou em Neve-no-Cabelo, e o seu desejo era como um fogo que lhe consumia as entranhas. Era um caçador respeitado e, até à chegada de Chakliux, os seus cães eram os mais saudáveis da aldeia. Até o velho Tsaani lhe pedia conselho quando precisava de remédios para os seus animais.

O poder de Sok e os seus dotes de caçador deviam ser suficientes para satisfazer Neve-no-Cabelo, sobretudo se Tsaani oferecesse a Sok os seus hinos de caça ao urso e lhe transmitisse a sua sorte. Esse dia não tardaria a chegar. Sok era o único verdadeiro neto de Tsaani... Quem contava Chakliux?

Então, talvez Neve-no-Cabelo quisesse ser a sua segunda esposa. Sok a respeitaria como se fosse primeira esposa. Até lhe ofereceria peles de caribu para ela ter a sua própria cabana. Que mais podia uma mulher desejar?

Tsaani dormiu um sono pesado e sem sonhos, como acontecia sempre que possuía a sua jovem mulher. Quando Mirtilo o despertou, Tsaani, julgando que ela queria mais, acordou rindo, mas depois ouviu o que ela estava dizendo e viu que tentava vestir-se. Estava alguém a raspar na aba da porta.

Mirtilo soprou as brasas, juntou alguns gravetos para alimentar o lume e depois mandou entrar quem estava à espera. Era o xamã, Lobo-e-Corvo. Tsaani pôs rapidamente aos ombros a sua manta de pele e disse a Mirtilo que fosse para a cabana da mãe, passasse lá a noite e voltasse de manhã para fazer a comida.

Espera gritou Tsaani, sem olhar para Lobo-e-Corvo.

O homem não ficaria satisfeito por vê-lo perdendo tempo falando com a mulher, mas Tsaani não se importava. Não queria que o pai de Mirtilo pensasse que ela não lhe agradara e que ele a devolvia aos pais. Procurou um pequeno amuleto feito de uma pata de ptármiga e deu-o a Mirtilo.

É para o teu pai disse ele. Para lhe agradecer a filha, que é uma boa esposa.

Mirtilo baixou a cabeça, mas o sorriso transformou-lhe a face em duas bolas cheias e redondas. Saiu, e Tsaani virou-se para Lobo-e-Corvo, fazendo sinal ao homem para que tomasse o seu lugar na parte de trás da cabana. Lobo-e-Corvo sentou-se. Durante muito tempo não falou, e Tsaani sabia que ele estava reunindo poder. Fosse o que fosse que o homem tinha a dizer era importante, e talvez fosse algo que Tsaani não gostasse de ouvir.

Por fim, Lobo-e-Corvo falou:

Vim por causa dos cães.

Os teus cães estão bem? perguntou Tsaani. Oferecera a Lobo-e-Corvo uma bela cadela, de ossos largos. Dentro de pouco tempo teria filhotes.

Os meus cães estão de boa saúde. Mas ouvi dizer que há outros cães na aldeia... muitos... que estão morrendo. Diz-se que foram amaldiçoados. Tu é que tens poder quando se trata de cães. O Povo não consegue sobreviver a um Inverno rigoroso sem os seus cães. Como iremos à caça? Quem levará as nossas coisas quando formos atrás dos caribus? O que comeremos num Inverno de míngua se perdermos os nossos cães?

Não preciso que me digas como os cães são importantes. Geralmente sou eu a lembrar-te de que lhes deves respeito.

Lobo-e-Corvo empertigou-se e encheu o peito de ar, mas Tsaani viu que o homem era mais vento do que músculo, sustendo o fôlego para aumentar a sua estatura, como um cão de pêlo eriçado antes de uma luta.

Quando Chakliux veio para a nossa aldeia, não sabia quem era, mas falou de paz entre os nossos povos prosseguiu Lobo-e-Corvo. Resolvi que ele ficaria conosco e que trabalharia pela paz. Agora penso que ele nos trouxe uma maldição. Se os nossos cães morrerem, ficaremos fracos. O povo de Rio Primo vencer-nos-á com facilidade.

Então, diz-lhe que volte sugeriu Tsaani. Se foi ele o causador desta situação, obriga-o a partir. Qual é a dificuldade?

Algumas pessoas ainda acreditam que ele é uma dádiva dos animais. Viram-no nadar no pesqueiro de Rio Primo. Há quem diga que ele é uma lontra.

Tsaani encolheu os ombros.

Tu és xamã. Devias saber quem é que tem razão. Lobo-e-Corvo fez um ar carrancudo. Tsaani conhecia-o há muitos anos. Não era pessoa para tomar decisões. Mas se ele queria a honra de ser xamã, também tinha de assumir as responsabilidades.

Se ainda não sabes o que está certo, porque estás aqui? perguntou Tsaani. Vai para a cabana da tua mulher. Reza. Faz o que tens a fazer. És um xamã. Bem sabes. Não precisas que eu te diga.

Lobo-e-Corvo olhou para Tsaani e encarou-o com um ar furioso.

Ou és uma criança? perguntou Tsaani em voz baixa. Lobo-e-Corvo levantou-se de um salto.

Tem cuidado com a língua, velho advertiu ele. As palavras eram curtas e agudas como o regougar de uma raposa. Eu sei mais de espíritos e de cânticos do que tu. Já vimos que as tuas preces não têm força suficiente para proteger os nossos cães. Dá graças por eu estar aqui para lutar contra esta maldição.

Lobo-e-Corvo encaminhou-se para a saída e afastou a aba da porta.

Diz a Sok que se afaste da minha filha. Ele foi à cabana da minha mulher ontem à noite. Neve-no-Cabelo merece melhor do que ser segunda esposa do teu neto.

Tsaani levantou-se e dirigiu-se para a porta. Prendeu a aba, para o caso de ventar durante a noite, e depois foi para a cama, cansado. Deitou-se e embrulhou-se nos cobertores de pele.

Sok, disse ele em voz baixa, dirigindo-se à noite. Porque tornas sempre tudo tão difícil para ti próprio? Tens uma boa esposa. Se julgas que precisas de outra, escolhe uma viúva, alguém que agradeça a tua proteção e que seja suficientemente jovem para gerar filhos.

Todavia, quando o sono lhe cerrou as pálpebras, Tsaani viu Neve-no-Cabelo, o ondular gracioso das suas ancas ao andar e os seus seios redondos e cheios. Sentiu uma tensão nas virilhas.

Ah, Sok! Ah, Sok... murmurou.

 

Alguém decidiu que um velho não tem autorização de dormir? gritou Tsaani, mas levantou-se da cama e desatou a aba. Ah, também tu saíste à noite? perguntou ele ao ver Raposa-Que-Ladra.

Raposa-Que-Ladra entrou, mas Tsaani não lhe ofereceu o lugar almofadado na parte mais recuada da cabana; nem sequer espevitou as brasas da lareira. Virou-se para a cama e sentou-se nas peles.

Como está à minha filha? perguntou ele.

Está bem.

Sok esteve aqui, depois veio outro homem e agora vens tu. Porque estás aqui?

Para falar contigo acerca do filho da tua filha.

Sok ou Chakliux?

O seu verdadeiro filho, Sok.

Segundo a minha irmã, Chakliux é tão filho de Mulher Diurna como Sok.

Raposa-Que-Ladra agachou-se e tirou o capuz da parka. Esta estava muito bem feita. Estreitava tanto na frente como nas costas, tinha caudas de castor de ponta preta penduradas nos ombros e pele de carcaju costurada à volta do capuz. Raposa-Que-Ladra não merecia uma parka como aquela, pensou Tsaani. Acima de tudo, não merecia Mulher Diurna. Diziam que Raposa-Que-Ladra fora corajoso ao casar com ela, mas Tsaani não concordava. Raposa-Que-Ladra era um homem indolente e um caçador sofrível. Aceitara Mulher Diurna não por ser corajoso, mas porque ela trabalhava muito e era de bom trato.

Raposa-Que-Ladra era magro e tinha umas mãos demasiado grandes para o tamanho dos braços. Na opinião de Tsaani, estas tinham crescido daquela maneira para agarrar tudo aquilo que ele queria mas de que não precisava. Agora, o homem estava de mãos abertas, com as palmas viradas para cima, e perguntou:

Sok esteve aqui?

Esteve.

Porque ele veio?

Tsaani virou a cabeça perante a indelicadeza de Raposa-Que-Ladra. Até uma criança sabia que não devia fazer perguntas acerca das conversas de outra pessoa.

Como Tsaani não respondeu, Raposa-Que-Ladra perguntou:

Já sabes o que se passa com os cães?

Já respondeu Tsaani.

Sabes da filha de Lobo-e-Corvo?

Sei que ela dará uma bela esposa para qualquer homem respondeu Tsaani.

Sok a quer, mas o pai não deixa que ela seja segunda esposa disse Raposa-Que-Ladra.

Achas que Sok vai rejeitar Folha Vermelha?

Não disse Raposa-Que-Ladra. Um homem pode rejeitar a mulher, mas dois filhos e uma boa cabana? Não.

Sok não precisa de outra mulher declarou Tsaani. É um ganancioso. Ainda parte as costas ao carregar tudo o que quer. Quando eu morrer, ele fica com os meus cães. Já lhe dei muitos dos meus hinos de caça. Se ele os usar com sensatez, será um homem poderoso. Talvez mereça duas esposas.

Raposa-Que-Ladra esfregou as mãos e aproximou-as do lume.

É noite. Devias estar na cabana da tua mulher disse Tsaani, mas Raposa-Que-Ladra não fez menção de se ir embora. Sou um velho. Fica, se quiseres, mas eu tenho de dormir.

Tsaani enrolou-se nos cobertores de pele e virou as costas a Raposa-Que-Ladra.

A cabana do comerciante era apenas uma tenda de Verão. O telhado de pele de caribu estava preso por um círculo de pedras e protegido do frio por ramos de abeto e neve. Uma pequena fogueira ardia ao meio. O seu calor era engolido antes de chegar às paredes da cabana, mas Daes não tinha frio. Encostou-se ao corpo de Cen. Sabia que ele faria amor à pressa, mas era melhor do que aturar o velho, que era lento e às vezes chorava quando não conseguia ficar suficientemente duro para entrar nela. Isso não tinha importância, dizia ela, e era verdade. Era bom homem. Oferecera-lhe um lar quando ela tinha apenas um filho amaldiçoado no ventre.

Não, isso não tinha importância, nem com o seu velho marido, nem com aquele comerciante. Ela morrera há mais de quatro anos, quando o seu marido dos Primeiros Homens se afogara. Daes levantou a cabeça das peles da cama do comerciante para se certificar de que o filho, Ghaden, ainda estava deitado na esteira do outro lado da lareira. A criança mantinha-se acordada, de olhos abertos, mas estava quieta e bem embrulhada em cobertores de pele de lebre. Daes julgou ouvi-lo a trautear uma canção do Povo Rio. Era um bom filho, mas ela não gostava tanto dele como da filha, Aqamdax. Como era isso possível? Ghaden era filho de Cen.

Cen puxou-a para o seu lado.

É um belo rapaz observou ele, olhando depois para a criança como que para se certificar que o que dizia era verdade. Será um bom comerciante, um dia, mas antes farei de ti minha esposa. Quando o teu velho marido morrer, aceito-te e um dia levo-te a visitar o teu povo.

Sim disse Daes em voz baixa. Sim.

É claro que seria esposa dele. Seria esposa de um qualquer desde que isso implicasse regressar aos Primeiros Homens e voltar a ver Aqamdax. Quando voltasse à sua aldeia, nunca mais a deixaria. Até lá, seria o que Cen quisesse que ela fosse.

Durante algum tempo, Raposa-Que-Ladra falou da ganância e do egoísmo de Sok, mas de súbito pareceu mudar de opinião. Elogiou a habilidade de Sok na caça, os seus cães e os seus dois filhos. Disse que Tsaani lhe passaria a sua sabedoria e o seu lugar ainda antes de morrer; daria a Sok todos os seus hinos de caça ao urso. Quem sabe? Talvez Sok viesse a ser chefe dos caçadores de ursos e depois Lobo-e-Corvo suplicar-lhe-ia que aceitasse a filha.

Apesar de Tsaani estar deitado de costas voltadas para ele, a princípio ainda deu algumas respostas. O que mais podia fazer um homem que não sabia o que era a indelicadeza? Por fim, Tsaani calou-se, embora Raposa-Que-Ladra começasse a falar dos cães da aldeia e da maldição trazida a todos eles por Chakliux. Como Raposa-Que-Ladra não se calava, Tsaani fingiu que estava a ressonar. Então ouviu Raposa-Que-Ladra levantar-se e sair, mas não sem antes remexer nos sacos de comida de Mirtilo.

Pelo menos, o homem não iria embora com fome, pensou Tsaani, contendo o riso e mergulhando nos seus sonhos.

Quando acabou de fazer amor, Cen limpou-se nas peles da cama, endireitou a tanga e vestiu as perneiras e a parka. Observou Daes enquanto ela se vestia, com um olhar sombrio e terno. Ela não conseguiu olhar para ele. Há tempos, acreditara que ele conseguiria preencher o vazio criado pela perda do marido. Fora uma tola, mas o desgosto tornara-se tão grande que ela teria feito quase tudo para lhe escapar. Entregara-se a Cen, quebrando os tabus do seu luto. Por castigo, concebera um filho.

Sabia que não podia ficar com o seu povo, por isso saíra da aldeia. De que outra maneira poderia proteger a filha dos espíritos furiosos com o que ela fizera?

Descobrira tarde demais as dificuldades da vida de um comerciante. Como podia ela ficar com ele, aventurar-se nas tempestades, atravessar os rios e a tundra e ainda cuidar de uma criança? Pedira a Cen que a levasse para uma aldeia onde pudesse dar à luz o bebê de ambos e suplicara-lhe que lhe arranjasse um marido, um caçador, que tomasse conta dela.

Desolado, ele fizera-o e deixara-a, mas voltava todos os anos, vezes duas vezes por ano. Daes dissera-lhe que era preferível para o filho. Por fim, naquele Verão, Ghaden já era suficientemente forte para fazer a viagem até à aldeia dos Primeiros Homens. Naquele ano, Daes não permitiria que Cen partisse sem ela. Pôs as mãos nas costas e acariciou-lhe a parka de pele de lobo.

Sim proferiu ela em voz baixa. Ficarei contente por passar a ser tua mulher. Depois, regressaremos à minha aldeia. Voltarei a ver a minha filha. Podes construir uma cabana lá e, quando não andares a trabalhar, terás um sítio quente para ficar e uma mulher à tua espera.

Cen virou-se e olhou-a nos olhos.

Diz ao teu marido que tem que morrer depressa.

Ele não viverá outro Inverno retorquiu Daes, sentindo uma tristeza repentina e sabendo que estava dizendo a verdade. Mas eu partirei quando disseres. Se quiseres que eu vá agora, eu vou.

Cen semicerrou os olhos, inclinou a cabeça e olhou para as paredes de pele de caribu.

Daqui subirei o rio até à aldeia de Monte Rochoso e seguirei viagem. Na época do degelo, estarei de volta. Prepara-te para ires comigo nessa altura.

Vai embora gritou Tsaani, e com a sua necessidade de sono nem lamentou a sua indelicadeza. Já tive gente suficiente nesta cabana. Vai embora e volta só de manhã.

Tsaani virou a cabeça para a aba da porta, mas a cabana estava tão escura que ele não via nada. Até o lume da lareira, cujas brasas deviam estar incandescentes nas pontas, escurecera.

Não abafaste as brasas, velho, pensou ele. Mas tinha a certeza de que se lembrava de o ter feito de deitar cinza por cima das brasas para abrandar a combustão durante a noite assim que Lobo-e-Corvo saíra. Talvez estivesses sonhando, pensou.

Olhou pela última vez para a lareira e viu uma ponta de luz, e mais outra, e depois a escuridão abateu-se de novo sobre a luz. O coração de Tsaani batia com força, passando do ritmo lento do sono para a rapidez do medo. Havia um espírito na cabana, algo entre ele e o lume.

O urso, pensou Tsaani. O urso. Tsaani mostrara desrespeito? Esquecera algum hino de louvor? Comera carne sem se sentir grato? Não. Fizera tudo o que tinha a fazer para o venerar. Tirara-lhe as patas e a cabeça; cortara-lhe a pele em tiras para que fosse usada pelas aves e outros animais para comer e forrar as tocas, e não se desperdiçasse. Tudo isto fora feito com respeito, segundo os costumes dos antepassados de Tsaani e dos antepassados destes.

Depois, viu que o urso tinha a cabeça de uma pessoa. Tinha mãos e pés, e o pêlo escuro era apenas uma parka.

O coração de Tsaani abrandou, aliviado. O velho abandonou-se às peles da cama, mas depois a raiva apoderou-se dele.

Porque está aqui? Porque vem ver um velho de madrugada? Tu não precisas dormir, mas eu preciso! disse ele.

Aquele que estava sobre ele não disse nada, e, quando Tsaani viu a faca no meio das sombras negras, era tarde demais.

Daes agachou-se à entrada do túnel da cabana de Água Castanha. Era de madrugada. Ela não iria lá para fora com roupas que usava apenas nas melhores ocasiões. Água Castanha odiava-a. Estava sempre dizendo-lhe que o marido devia rejeitá-la.

Eu devia ter pedido uma cabana só para mim, pensou Daes. Boca Feliz e a filha, Yaa, teriam ido comigo. Água Castanha que se encarregue sozinha de manter a sua própria cabana.

Mas não era tarefa fácil para uma mulher construir uma cabana quando o marido já não caçava há muito tempo. Onde iria ela arranjar as peles de caribu, sobretudo quando Água Castanha exigia tudo de valioso que ia parar na cabana do marido? Além disso, porque trabalharia mais? Dentro de uma lua, talvez duas, partiria da aldeia do Povo Rio e regressaria aos Primeiros Homens.

Daes inclinou a cabeça e pôs-se à escuta. Ouvia o marido ressonando, mas não vinha qualquer ruído da zona das mulheres, e geralmente Água Castanha ressonava mais do que outra pessoa qualquer. Água Castanha estava à espera que ela voltasse. Acusaria Daes de ter estado com Cen. Como poderia ela se defender? A melhor coisa a fazer era esperar que Água Castanha adormecesse e depois trepar para a cama do marido. Daes diria que voltara cedo que Água Castanha estava dormindo e se esta acordasse mais tarde à espera de Daes, seria tola, porque Daes passara a maior parte da noite na cama do marido.

Contudo, se Daes queria esperar que Água Castanha começasse a ressonar, tinha que acomodar Ghaden. O rapaz era pesado e ela tinha o braço dormente do seu peso. Olhou para o filho, mas na escuridão não lhe viu os olhos. Passou-lhe os dedos pelas pálpebras. Levou-lhe um dedo aos lábios e segredou-lhe que não fizesse barulho. Em seguida, disse que precisava que ele se levantasse, por pouco tempo.

Quando se inclinou para o deitar, viu qualquer coisa mexendo-se no escuro. Ia alguém passando pela cabana. Um espírito. O que mais podia ser? Até o Povo Rio sabia que os espíritos se deslocavam entre as cabanas, de madrugada.

Recuou até ao túnel de entrada, mas Ghaden fugiu e foi lá para fora, para o caminho que o espírito seguia. Daes esteve prestes a deixar-se ficar escondida, na esperança de que o espírito, ao ver uma criança inocente, passasse sem lhe fazer mal, mas depois sentiu a dor da perda de Aqamdax e percebeu que sentiria o mesmo se perdesse o filho. Saiu do túnel e levantou-se.

As estrelas estavam perto, como sempre nas noites em que os espíritos andavam por ali. À sua luz, avistou Ghaden, e depois susteve a respiração ao perceber que ele apanhara o espírito entre as pernas.

O menino é meu disse ela baixinho, tentando que a voz não lhe tremesse.

Daes estendeu os braços a Ghaden e pareceu-lhe que o movimento lhe puxava o corpo, como se ela não andasse mas flutuasse sobre o caminho coberto de gelo. Agarrou no filho e pegou-lhe ao colo. Manteve-se cabisbaixa, sem olhar para o rosto do espírito. À luz das estrelas viu as botas de pele, com guizos de cascos de caribu atados nos tornozelos.

Depois, Ghaden encostou qualquer coisa longa e dura ao seu peito. Era uma faca, e Daes tirou-a das mãos dele.

Cheirava a sangue.

Ghaden disse ela. Onde...

Levantou a cabeça e viu que quem estava em frente dela não era um espírito.

Matou alguma coisa? perguntou Daes. Precisas de ajuda?

Mas ao fazer a pergunta, pensou: Quem é que caça de noite? Só os animais. Então talvez isto seja um mocho ou um lobo, e os meus olhos enganam-me e levam-me a acreditar que é alguém da aldeia.

Se precisares de ajuda, eu e a minha esposa-irmã Boca Feliz iremos contigo disse Daes à pressa.

O caçador estendeu o braço e tirou-lhe a faca da mão. Daes entregou-a com facilidade, como se não tivesse mais do que uma pena na palma da mão. Virou-se para a cabana de Água Castanha, mas, apesar de os seus pés flutuarem quando Daes se afastara dela, agora pareciam enterrar-se a cada passo.

Primeiro os pés enterraram-se no gelo, e depois no solo. A terra estava fria e colava-se à carne, ao mesmo tempo que a sugava. Retirava-lhe o calor do corpo como medula sugada de um osso.

Então Daes sentiu a faca. Não houve dor; apenas a força da lâmina a enterrar-se-lhe na carne. Empurrou-a cada vez mais para o chão até ela ficar apenas com os olhos e o cimo da cabeça fora da terra. Daes viu que Ghaden também estava a ser sugado. Os pés dele já estavam enterrados, e com as suas pernas, pálidas à luz das estrelas, ele parecia uma bétula a crescer. Mas foi então que a faca o atingiu. Ele tombou no chão e o sangue que jorrou da sua ferida caiu nos olhos de Daes, até que ela deixou de ver.

 

A respiração de Chakliux era uma nuvem no ar frio. Os abetos-negros que cresciam à volta da aldeia estavam orlados de geada, mas o céu matinal estava límpido. Por volta do meio-dia, o sol transformaria em lama os caminhos abertos no gelo.

Chakliux caíra mais do que uma vez nesses caminhos imundos, mas, apesar de o pé deformado lhe afetar o equilíbrio, ele só coxeava quando estava cansado ou corria. Nessa manhã, levava um grande sael cheio de peixe seco para os cães do avô.

Chakliux gostava de ir visitar Tsaani. Só com alguns comentários ou uma simples história, o velho permitia que Chakliux embarcasse numa viagem mental que durava o dia inteiro.

Ao passar pela cabana de Mulher Diurna, Chakliux baixou a cabeça, esperando não a ver. O olhar dela traía os seus sentimentos e ele não conseguia encará-la sem sentir que recuava aos seus tempos de criança, do bebê que ela abandonara à morte. Cada dia que passava naquela aldeia parecia retirar-lhe um pouco mais do seu poder. Gostaria de regressar ao seio do seu povo e de aprender a ser ele próprio outra vez, mas tinha de ficar na aldeia de Rio Próximo. Tanto Tsaani como Lobo-e-Corvo tinham começado a confiar nele, a saber que ele trabalhava para a paz.

Os gritos roucos dos gaios chegaram até ele, quebrando o silêncio do fim do Inverno. Por instantes, Chakliux ficou olhando para as aves e não reparou no monte de pelo senão quando tropeçou nele. Deixou cair o sael mas apoiou-se nas pontas dos dedos. Ao levantar-se, percebeu que a pele não era um cobertor deixado à toa no exterior de uma cabana, mas sim uma jovem. Reconheceu-a Daes, a mulher dos Caçadores Marinhos e também viu que ela estava morta, com os olhos esbugalhados e a face embranquecida pela geada. Encontrava-se deitada de borco, com a cabeça virada para trás, como se tentasse espreitar por cima do ombro o que lhe provocara a morte.

Uma maldição, pensou Chakliux, e fechou os olhos, apercebendo-se de repente de que o povo de Rio Próximo o acusaria, tal como o acusara do que acontecia aos cães. Até o irmão, Sok, embora o tratasse com respeito, não conseguia esconder a sua preocupação crescente à medida que os cães morriam.

Chakliux ajoelhou-se ao lado da mulher e depois viu-lhe o sangue nas costas, as feridas. Não era uma maldição. Desde quando é que as maldições usavam facas?

Oh, que podia ele fazer? Chamar o xamã? Avisar Sok? Cada aldeia tinha os seus hábitos. O que fazia o povo de Rio Próximo?

Avisar o marido, pensou Chakliux. Os homens aqui falavam mais alto do que na sua aldeia. Esperavam saber as coisas primeiro e tomar a maior parte das decisões.

Chakliux levantou-se e, ao fazê-lo, ouviu um gemido débil. Primeiro, julgou que era Daes, talvez o seu espírito, mas quando se agachou viu que o filhinho dela estava debaixo da mãe. Chakliux não se lembrava do nome dele. Ouviu de novo um gemido e, apesar de não querer tocar na mulher morta com medo de que ela amaldiçoasse os seus dotes de caça, empurrou o seu corpo para o lado e puxou a criança.

Ao morrer, a mãe devia tê-lo puxado para debaixo dela, impedindo-o assim de morrer gelado, pensou Chakliux. Mas o rapaz estava frio, lívido e com as pálpebras e as sobrancelhas cobertos de geada. Chorou, e Chakliux viu a faca espetada nas costas da criança, com o cabo escuro de sangue.

Não, não era uma maldição, pensou Chakliux. Era algo pior.

Yaa foi a primeira a ouvir na cabana o choro de Ghaden. O som vinha lá de fora. Porque estaria o irmão lá fora?, perguntou Yaa a si própria, cujos pensamentos ainda mal se distinguiam dos sonhos. Olhou para a mãe, mas Boca Feliz estava dormindo, e Água Castanha, mesmo que estivesse acordada, nunca se incomodaria com Ghaden. Daes, a mãe de Ghaden, não estava na cama dela. Devia estar lá fora com ele, pensou Yaa, mas embrulhou-se num dos cobertores e levantou-se.

Inclinou-se para espevitar as brasas, mas ouviu chorar outra vez. Até parecia que Ghaden estava ferido. Yaa foi para junto da mãe e abanou-a até ela acordar. Ia a explicar o que se passava quando ouviu outro som uma voz de homem pedindo socorro.

Boca Feliz quase derrubou a filha ao sair da cama e, apesar de fazer sinal a Yaa para ficar ali, a menina foi atrás dela até ao túnel de entrada.

Ghaden! gritou Yaa ao ver o rapaz nos braços de Chakliux. Deu a mão à mãe. Mãe, ele está ferido disse ela, correndo para Chakliux, mas parou ao ver Daes, lívida e enregelada, no chão.

Yaa já vira pessoas mortas. Reconheceu a rigidez e a palidez da morte. O estômago subiu-lhe à garganta e ela começou a vomitar, vômitos secos que pareciam dar-lhe a volta na barriga.

Vai buscar Água Castanha ordenou-lhe a mãe, em voz baixa. Não acordes o teu pai.

Yaa levou as mãos à boca e, aspirando por entre os dedos, encheu o peito de ar até os vômitos pararem e entrou na cabana. Tanto Água Castanha como o pai estavam acordados.

Mãe, a tua esposa-irmã precisa de ti disse ela, dirigindo-se a Água Castanha com delicadeza.

Água Castanha embrulhou-se num cobertor e repreendeu-a:

Foste imprudente. Eu disse-te que ficasses aqui dentro.

A princípio, Yaa julgou que Água Castanha estava a falar com ela, mas depois percebeu que a mulher inclinara a cabeça e olhava à sua volta como se falasse com alguém através do orifício da chaminé.

Julgas que nós não sabemos que foste se encontrar com o comerciante? insistiu Água Castanha.

Yaa olhou para o cimo da cabana. Teria Água Castanha visto o espírito de Daes a pairar lá em cima?

O que aconteceu? perguntou o pai de Yaa, Rosto de Verão, com a voz rouca da idade e do sono.

Yaa aproximou-se da cama dele, um lugar onde não devia estar, mas isto era diferente. Ninguém precisava de lhe dizer que Daes era a esposa favorita dele e que, de todos os seus filhos, mesmo dos crescidos que viviam noutras cabanas, Ghaden era também o seu predileto, mas isso não incomodava Yaa. Ela era a preferida da mãe. Daes, a mãe de Ghaden, apesar de o ter amamentado e de lhe costurar a roupa, não queria pegar ele no colo nem cantar-lhe ou contar-lhe histórias. Ainda bem que o pai gostava mais dele.

Yaa ajoelhou-se ao lado do velho. Ele apoiou-se num cotovelo e olhou para a porta.

O que aconteceu? perguntou ele outra vez. Onde estão todos?

Estão lá fora, mas eu estou aqui contigo respondeu Yaa. Eu não te abandonarei. Não te preocupes.

Rosto de Verão pestanejou e olhou à sua volta. A cama onde Boca Feliz e Água Castanha tinham dormido ainda estava amarrotada, mas os cobertores de pele de Daes estavam intactos.

Daes, minha esposa disse o velho baixinho. Depois, levantando a voz, perguntou: Onde está Daes, filha?

Lá fora com a minha mãe respondeu Yaa, sustendo a respiração. O coração batia-lhe no peito como se fosse um tambor. Queres água ou comida? Posso ir buscar-te qualquer coisa acrescentou ela, mais alto para não ouvir o coração.

Sim disse o velho, recostando-se nos cobertores. Água. Daes que me traga de comer mais tarde.

Yaa afastou-se do pai e levantou-se para ir buscar um dos odres de água feitos de bexigas de caribu que estavam pendurados nos postes da cabana. Esperava que o pai não visse o suficiente e não reparasse que ela tinha as mãos tremendo. Levou-lhe a água e esperou que ele se levantasse para beber do bocal de madeira. Quando ele acabou de beber, reclinou-se e fechou os olhos.

Yaa não sabia o que havia de fazer a seguir. Era estranho, pensou. Em certos aspectos, o pai fazia-lhe lembrar Ghaden, não muito o Ghaden de agora, mas quando era bebê, os cuidados que ele exigia e o muito que dormia. Ao pensar em Ghaden, sentiu os olhos a arder e virou a cara para o lado. O pai não podia vê-la chorar, mas como evitaria ela as lágrimas? O irmão estava ferido e Daes estava morta.

Havia sangue, muito sangue... E Ghaden parecera-lhe tão pequenino e pálido. Era o homem de Rio Primo que o tinha ao colo. Algumas das outras crianças diziam que o homem de Rio Primo estava amaldiçoado. Talvez ele tivesse matado Daes e ferido Ghaden. Mas não, talvez não. Porque havia ele de pedir ajuda se tivesse sido ele próprio a atacá-los?

Yaa fechou os olhos com a ponta dos dedos e tentou afastar as lágrimas das pálpebras. Como se sentiria Ghaden quando soubesse que a mãe tinha morrido? Talvez resolvesse morrer também.

Yaa lembrou-se das vezes em que tirara os melhores bocados de carne, antes que Ghaden conseguisse pegar-lhes com as suas mãos lentas de bebê. Lembrou-se de lhe gritar quando ele estava brincando com os primos. Nem sempre fora a melhor das irmãs, mas passaria a ser. Daí em diante, passaria a ser...

Água Castanha tentou afastar o rapaz de Chakliux, mas este agarrou-o ainda mais.

Eu vou levá-lo ao xamã disse ele.

Água Castanha empurrou a perna mais fraca de Chakliux, servindo-se da sua corpulência para o desequilibrar.

Se me fizeres cair, a ferida do rapaz pode começar de novo a sangrar avisou ele em voz baixa, embora lhe apetecesse gritar com a mulher pela sua estupidez.

Tira a faca. Tira a faca ordenou ela, num tom sibilante.

A faca pode estar a estancar o sangue. Eu levo-o ao xamã. Ele é curandeiro? Ou há mais alguém?

A pergunta pareceu acalmar Água Castanha, que se afastou, pensativa.

Lobo-e-Corvo sabe orações informou ela. Sim, leva o rapaz à cabana dele, mas eu vou buscar a velha Ligige’. Ela é curandeira e faz remédios à base de plantas. Talvez saiba alguma coisa que Lobo-e-Corvo não saiba.

Ótimo disse Chakliux, e encaminhou-se para a cabana do xamã com pequenos passos.

Viu Água Castanha ajoelhar-se ao lado de Daes e depois, com gestos bruscos, dizer qualquer coisa à esposa-irmã. Boca Feliz entrou na cabana. Chakliux calculou que a tivessem incumbido de falar ao velho da morta.

Daes fora assassinada. O pensamento metia medo. Chakliux estava há pouco tempo na aldeia e prestara pouca atenção à mulher, mas nunca percebera que ela causasse discórdia. Mas, tal como ele, ela era de outra terra. Talvez houvesse alguém que pensasse que também ela estava amaldiçoada. Ou talvez... Não, ele não podia pensar que alguém da sua própria aldeia tivesse feito tal coisa. Nem a Daes, nem a Ghaden.

Por um momento, Chakliux desviou o olhar do caminho para observar o cabo da faca que saía do ombro do rapaz. O cabo era de chifre, tosco e envolvido em longos fios de cabelo preto. De repente, percebeu que a faca era muito parecida com aquelas que ele e vários caçadores tinham comprado na véspera. Era uma das facas do comerciante. A lâmina não era comprida, mas servira para matar.

De súbito, o rapaz gemeu e torceu o ombro ferido. Tentou abrir os olhos por instantes, e Chakliux inclinou-se para ele, esforçando-se ao mesmo tempo por continuar a andar sem cair.

Fique quieto disse ele em voz baixa à criança. Fique quieto. Fique quieto agora. Tenta dormir.

O rapaz respirou fundo e uma gota de sangue avivou a ferida. Depois, a sua voz ergueu-se de repente num choro lancinante. O som levou algumas pessoas a sair das cabanas, mulheres com paus de mexer a comida na mão e homens ainda embrulhados nos cobertores.

A maior parte deles limitou-se a olhar, mas um dos homens gritou:

Tu, da aldeia de Rio Primo. O que se passa?

O rapaz está ferido. Vou levá-lo a Lobo-e-Corvo respondeu Chakliux.

De quem é a criança? gritou uma mulher, mas Chakliux baixou a cabeça e inclinou-se sobre o rapaz, desatando a correr, apesar de coxear.

Ghaden continuou chorando e Chakliux disse-lhe com uma voz firme:

És um homem. Não chores. Fique calado.

O rapaz calou-se tão depressa que Chakliux teve receio de que ele tivesse morrido. Olhou para ele. O espírito do rapaz ainda lhe espreitava nos olhos, assustado e dolorido.

Fique calado. Dói menos se não te mexeres avisou Chakliux, apesar de saber que a sua corrida desajeitada sacudia a ferida.

O rapaz abriu a boca e arfou, mas não chorou. Então, a velha Ligige’ apareceu a seu lado e fez sinal às outras pessoas para que se afastassem.

Ele ainda está vivo? perguntou.

Está respondeu Chakliux. Apontando com o queixo para o ombro, acrescentou: Uma ferida feita por uma faca.

Mais duas cabanas disse Ligige’, como se lesse os pensamentos de Chakliux e percebesse que ele precisava saber até onde tinha que levar o rapaz. Reconheces a faca?

Foi o comerciante que a trouxe. Pode ser de qualquer um respondeu Chakliux

Achas que o comerciante... adiantou a mulher, mas entretanto chegaram à cabana de Lobo-e-Corvo.

Sem raspar na aba da porta, sem pigarrear e sem ter a delicadeza de chamar, Ligige’ entrou no túnel engatinhando e fez sinal a Chakliux para que a seguisse.

Lobo-e-Corvo ainda se encontrava na cama e a mulher dava-lhe uma tigela de madeira cheia de comida. Carne de urso, pensou Chakliux, reconhecendo o odor suculento e a gordura derretida no caldo. Apesar de estar preocupado com a criança, o seu estômago resmungou, lembrando-lhe de que ele ainda não comera nessa manhã.

O que estás fazendo? perguntou Lobo-e-Corvo, com uma voz irritada.

Cale-se e ajuda-nos, priminho, disse Ligige’ dirigindo-se ao xamã, não com respeito mas como se fossem duas crianças falando.

Chakliux esperava uma explosão de raiva do homem, mas viu-lhe a ternura no olhar. Com que então eram primos, pensou Chakliux, filho e filha de irmãos, a avaliar pelo termo de parentesco que Ligige’ usara.

A criança está ferida. Com uma faca disse Ligige’. A velha inclinou-se e segredou qualquer coisa ao ouvido de Lobo-e-Corvo, sem dúvida algo que ela não queria que o rapaz ouvisse, talvez que a mãe tinha morrido.

A mulher de Lobo-e-Corvo apressou-se a fazer uma cama de um monte de peles de lebre, e Chakliux deitou o rapaz em cima das peles. A velha ajoelhou-se ao lado da criança, mas Lobo-e-Corvo virou-se para Chakliux.

Viste isto acontecer? perguntou ele.

Estúpido! disse Ligige’.

A violência da palavra assustou o rapaz, que desatou de novo a chorar, mas Ligige’ ignorou-o e continuou a falar em voz alta.

A maior parte do sangue à volta da ferida é antigo, está escuro. Isto aconteceu ontem à noite. A criança perdeu muito sangue e tem frio. Expulsa os espíritos da dor enquanto eu tiro a faca e o aqueço.

Apesar de Chakliux estar à espera que Lobo-e-Corvo reagisse mal, tal não aconteceu. O xamã dirigiu-se ao fundo da cabana e aí destapou várias bolsas de pele de caribu, cada uma enfeitada com a pele de um animal protetor pica-paus e pequenas doninhas. De uma tirou vários embrulhos dobrados, cada um cheio de um pó de cor diferente. Misturou os pós com gordura, fazendo tintas para pintar a cara e os braços. De outra bolsa tirou chocalhos e folhas, penas e conchas. Chakliux começou a ficar preocupado, talvez algumas coisas fossem demasiado sagradas para ele ver. Para se proteger e a Lobo-e-Corvo, desviou o olhar e observou Ligige’.

A velha embrulhara o rapaz em cobertores quentes de pele e estava misturando folhas e raízes em pó num cilt’ogho de água. Colocou uma parte da água numa pele de esquilo raspada e depois, com um movimento rápido, tirou a faca do ombro do rapaz e aplicou a pele dobrada sobre a ferida. A criança soltou um gemido fraco.

Segura nisto rosnou ela a Chakliux, que se ajoelhou junto do rapaz, segurando na pele de esquilo. Aperta com força ordenou ela.

Ligige’ mergulhou os dedos no cilt’ogho e deitou umas gotas na boca do rapaz.

Vai aliviar a dor disse-lhe ela.

Deitou um pouco mais de líquido à volta da ferida, servindo-se de outra pele amaciada para limpar o sangue. Por fim, fez sinal a Chakliux para mexer a mão. Continuou a limpar a ferida e depois preparou outra pele que aplicou sobre a ferida e atou com longas tiras de couro cru.

Lobo-e-Corvo acabou os preparativos e começou a cantar, arrastando os pés ao ritmo do cântico. Chakliux entendia uma parte do que ele dizia, mas outras palavras pareciam-lhe embaralhadas, como se não fizessem parte da língua do Povo. Pouco depois, a testa de Lobo-e-Corvo estava brilhando de transpiração. O xamã era quase um velho, já com as pregas na barriga e os braços magros daqueles que passavam a maior parte do tempo sentados, mas os pés não estavam parados, e o homem continuava cantando alto e com clareza. Se as suas preces conseguissem afastar aqueles espíritos que provocavam dores, que infectavam as feridas e que as enchiam de pus, talvez a criança vivesse se a mãe não o chamasse para ir atrás dela na morte.

Se tal acontecesse, Chakliux duvidava que qualquer xamã tivesse grande préstimo. Qual a criança que não iria com a mãe se esta a chamasse?

Se quiseres ficar, és bem-vindo, mas se quiseres ir... segredou Ligige’ a Chakliux.

Chakliux fez-lhe sinal que compreendia.

O meu avô está à minha espera disse ele. Tenho que ir.

Por instantes Chakliux observou a velha acariciando o cabelo do rapaz com as suas mãos deformadas e tapando-o com outro cobertor.

A criança parecia um monte de gelo nos braços de Chakliux. O frio levaria muito tempo a sair do seu corpo. Talvez nunca saísse, depois de ele ter estado deitado debaixo do cadáver da mãe. Quem sabia o que isso faria a uma criança? Contudo, ao ver Ligige’ trabalhar, Chakliux sentiu aumentar a sua esperança. As mãos dela eram rápidas e sem hesitações quando preparavam cataplasmas e chás.

Chakliux saiu. Lá fora, a manhã estava luminosa. Voltou à cabana de Água Castanha. Lhes diria que o rapaz ainda estava vivo, sem a faca, e que a hemorragia parara. Encontravam-se muitas pessoas à entrada da cabana que se afastaram ao verem Chakliux, recuando como se ele levasse o espírito da morte consigo. Chakliux baixou a cabeça e viu o sangue que lhe manchava a parka desde o meio do peito até ao rufo de pele de lobo que lhe chegava aos joelhos. Depois, Água Castanha apareceu à entrada e disse a Chakliux com uma voz firme:k

O meu marido quer falar contigo.

Chakliux inclinou-se para entrar na cabana atrás de Água Castanha. O interior era espaçoso e estava asseado. Uma panela de pele de caribu cheia de sopa fervendo pendia junto de uma lareira central. A criança que ele vira quando encontrara o rapaz uma menina de seis ou sete verões estava embrulhada até à cintura num cobertor de pele de lebre, sentada ao lado de um velho, com as mãozinhas nos seus ombros aconchegados pelas peles.

Era filha do velho; tinha os mesmos malares fortes por baixo dos olhos em meia-lua. Tinha o mesmo torvelinho de cabelo no meio da testa alta.

Ela engoliu e Chakliux viu-lhe a covinha ao canto da boca, a mesma que valera à mãe o nome de Boca Feliz. Era um rosto feito para alguém que se ria muitas vezes e que via as coisas boas do mundo, e Chakliux ficou satisfeito por o velho ter uma filha assim.

O rapaz está vivo informou Chakliux, apesar de as mulheres não terem perguntado nada e de o velho não ter dado mostras de perceber o que tinha acontecido.

A faca? perguntou Água Castanha, olhando para o lado.

Chakliux seguiu o seu olhar e viu que a morta estava ali deitada. Haviam-lhe lavado a cara e retirado o sangue e a geada. A mulher tinha longas tiras de babiche atadas com nós à volta dos pulsos e dos cotovelos e algumas a seu lado.

A faca era uma das que o comerciante trouxe afirmou Chakliux.

Eu disse-lhe que ela não devia ir ter com ele repetiu Água Castanha.

Depois virou-se para o marido com os olhos muito abertos, mas o olhar do velho vagueava como se ele não a tivesse ouvido.

Não se pode saber se o comerciante... começou Chakliux.

Água Castanha, porém, apontou com a cabeça para o velho e Chakliux concluiu dizendo:

Muitos homens trocaram coisas ontem. Arregaçou a manga da parka para as mulheres verem a faca embainhada que trazia no braço. Era semelhante àquela que se encontrava agora na cabana de Lobo-e-Corvo.

Eu comprei esta.

Encontraste-a quando ias para...

Para a cabana do meu avô. Sou eu que dou de comer aos cães dele todas as manhãs.

Sim. Eu te vi. Não sabes mais nada?

Mais nada respondeu Chakliux, olhando em seguida para a morta. Apontou com o queixo para as tiras de babiche. Façam o que puderem para manter o espírito dela aqui.

Tanto Água Castanha como Boca Feliz ergueram as sobrancelhas em sinal de assentimento. Em seguida, Boca Feliz ajoelhou-se ao lado da morta, pegou numa tira de babiche e atou-a à articulação do ombro. Depois de todas as articulações estarem atadas, o espírito perdia poder. Então talvez a criança não fosse chamada a seguir a mãe na morte.

Chakliux saiu da cabana. O sael do peixe estava junto da parede. Perguntou a si próprio se o barulho e os choros teriam acordado Tsaani.

Talvez não, pensou. Ainda era cedo, e os velhos tinham o sono pesado.

 

Cen estava dormindo quando eles chegaram.

Não entraram pela porta da sua cabana, mas pelas paredes de pele de caribu, rasgando as peles com facas e pontas de lança. Antes que ele conseguisse desembaraçar-se dos cobertores, os homens caíram sobre ele, amarrando-lhe os braços, batendo-lhe e dando-lhe pontapés. Em seguida, entraram as mulheres, arranhando-lhe os olhos com as unhas e deixando-lhe longas marcas no rosto e no peito nu.

Ele afastou as mulheres ao pontapé enquanto os homens o agarravam e depois começou a gritar, perguntando porque estavam a atacá-lo. Era um comerciante respeitado. Há muitos anos que ia àquela aldeia. Alguma vez enganara alguém? Alguma vez abusara da hospitalidade deles?

A sua última pergunta pareceu despertar-lhes de novo a fúria, e uma das mulheres gritou-lhe:

E a minha esposa-irmã? E o filhinho dela? Tu mataste-os e dizes que mostras respeito?

Ele reconheceu a mulher, o seu vozeirão e os seus modos bruscos. Era Água Castanha. As palavras dela atravessaram-lhe os ouvidos como agulhas de osso de pássaro. O que dissera ela acerca de mortes? Referia-se a Daes? A Ghaden?

Quem é que morreu? gritou ele, mas a sua pergunta provocou ainda mais gritos e mais raiva. Vários homens bateram-lhe: socos duros, pesados, no rosto e na barriga, que o obrigaram a enrolar-se para se proteger. Os seus pensamentos rodopiavam como se ele vivesse um sonho. Por instantes, levantou a cabeça para olhar para a cama, quase na esperança de se ver ali dormindo, sonhando com a dor.

Chakliux viu os caçadores de Rio Próximo e várias mulheres, com Água Castanha à cabeça, saírem da aldeia. Sabia que eles se dirigiam ao acampamento do comerciante. Vários homens lhe fizeram sinal para que ele se lhes juntasse, mas Chakliux abanou a cabeça. Lá porque Daes fora assassinada com uma faca de comerciante, eles julgavam que fora Cen que a matara? Que homem seria tão estúpido ao ponto de deixar um vestígio tão claro?

Chakliux observara o comerciante, vira a sua habilidade a negociar e apreciara o modo como ele julgava os homens. Se tivesse assassinado alguém, não teria deixado ficar a faca. Chakliux não queria tomar parte no que eles iam fazer ao homem.

Já sabes o que aconteceu?

Chakliux virou a cabeça ao ouvir a voz do irmão.

Fui eu que a encontrei respondeu Chakliux.

Tu?

Sim.

Ela estava morta quando a encontraste?

Estava, e o rapaz estava quase morto.

Achas que ele viverá?

Ligige’ estancou a hemorragia e o xamã está rezando. Talvez ele escape, ou talvez não.

Eles estão convencidos de que foi o comerciante?

Uma das facas do comerciante ainda estava espetada no ombro do rapaz.

Sok resfolegou.

Cen não é estúpido observou ele. Se matasse alguém, não deixaria ficar a faca.

Achas que eles vão matá-lo? perguntou Chakliux. Sok levantou as mãos, afastando os dedos.

Quem sabe? Talvez o tragam para a aldeia até resolver o que vão fazer.

Devemos esperar por eles? perguntou Chakliux. Um homem não deve ser morto por aquilo que não fez. Se falarmos com eles...

Eu fico à espera deles. Tu não o deves fazer aconselhou Sok. Bem sabes o que alguns dizem acerca dos cães.

Chakliux fez um gesto de concordância.

Sim.

Quantos cães tinham morrido desde que ele chegara à aldeia? Sete, oito? Acusavam-no do sucedido. Os cães de Rio Próximo eram fortes e saudáveis até ele chegar.

Se eles te acusam por causa dos cães, também podem acusar-te de outras coisas. comentou Sok. Eu espero por eles e tentarei falar com eles.

Chakliux virou-se para a cabana do avô e, depois de dar alguns passos, a voz do irmão obrigou-o a parar.

Aonde vais?

Dar de comer aos cães do avô.

Ainda não deste de comer aos cães?

Não.

Sok deu um estalido com a língua, como se estivesse a repreender uma criança.

Eu encarrego-me disso afirmou ele. Vai. Sai da aldeia durante o dia de hoje. Faz o que te apetecer, mas sai da aldeia.

Chakliux viu a irritação no olhar do irmão. Em geral, dar de comer aos cães era tarefa de rapaz. Chakliux fazia-o porque gostava da companhia de Tsaani. De que outra maneira podia demonstrar a sua gratidão pela paciência do homem, pela sua disponibilidade em aceitá-lo sem compaixão nem medo da sua diferença?

Chakliux voltou à cabana de Folha Vermelha. O irmão tinha razão. Ele devia sair da aldeia, andar por fora até à noite. Folha Vermelha não ficaria triste ao vê-lo partir só por um dia. Ele era mais um a quem tinha de dar de comer e costurar as roupas. Era uma boa esposa para Sok e uma boa mãe para os filhos deste, mas não fazia qualquer esforço para esconder o seu ressentimento perante Chakliux.

Folha Vermelha era uma mulher corpulenta, tão alta como Chakliux e larga de ancas e de ombros uma mulher que daria filhos grandes e robustos a um homem. O seu rosto era tão quadrado como o seu corpo, e a pele era escura e macia. Quando Sok entrava na cabana, os olhos de Folha Vermelha nunca mais o largavam. As mãos dela, em geral capazes e fortes, flutuavam quando ele falava, e, ao sacudir-lhe a neve da parka, os seus dedos apenas afloravam a pele. Ao ver Chakliux, fazia um esgar ou semicerrava os olhos, mas dessa vez sorriu e estendeu-lhe uma tigela de carne e caldo e depois rodeou-o para lhe sacudir a neve da parka.

Foste tu que a encontraste disse ela, nas suas costas. Achas que foram os espíritos que a mataram?

Chakliux levou a tigela à boca e bebeu. Limpou os lábios com a mão e respondeu:

Os espíritos não usam facas.

Não viste ninguém? Alguém que a possa ter matado? Chakliux agachou-se junto da lareira. Folha Vermelha ajoelhou-se a seu lado e disse em voz baixa:

Raposa-Que-Ladra diz que pode ter sido a própria Água Castanha.

Eu não vi ninguém respondeu Chakliux. Ela estava morta há muito tempo quando eu a encontrei.

Folha Vermelha não disse nada.

Chakliux pousou a tigela em cima das peles de caribu raspadas que cobriam o chão.

Hoje vou à caça afirmou ele, sem olhar para a mulher.

O que se passava com ela? Aquilo não era nenhuma celebração. Daes estava morta; o filho dela estava gravemente ferido, talvez a morrer. E o pior de tudo é que alguém cometera o assassinato.

Na sua aldeia, Chakliux aprendera as histórias do seu povo, histórias que passavam de umas pessoas para as outras a fim de que determinadas coisas não fossem esquecidas. Em várias dessas histórias, as pessoas matavam outras, mas isso fora há muito tempo, quando os homens e os animais falavam uns com os outros. Aquele assassinato era recente.

Chakliux pegou as suas armas e na sua bolsa de caça. Aconchegou o capuz da parka ao rosto e saiu da cabana. Quando chegou ao extremo da aldeia, ouviu o ruído súbito de vozes alteradas e os choros das mulheres. Os cânticos eram como gelo nos seus dentes. A criança tinha morrido, pensou ele, e sentiu a raiva aumentar contra quem fizera tal coisa.

Espreitou entre as cabanas. Uma multidão reunira-se no outro extremo da aldeia. Tinham apanhado o comerciante. Chakliux apertou o passo na direção do rio. Sok tinha razão. Ele não devia ficar ali. Quando voltasse à aldeia nessa noite, se ouvisse cochichar contra ele, regressaria ao seu próprio povo. Que esperança podia ele ter de levar a paz àquela aldeia se eles o julgavam capaz de matar uma mulher e uma criança?

Depois de regressar à aldeia de Rio Primo, estaria atento e vigilante e, se descobrisse que as mortes tinham sido planejadas ali, lhes provaria que a vida se pagava com a vida.

Quando Boca Feliz foi à procura de Ligige’, perguntou primeiro por Ghaden.

Não morreu respondeu Ligige’.

A velha limpara a ferida muitas vezes, cantando enquanto tirava a cataplasma, para que os espíritos não entrassem no corpo do rapaz através do orifício aberto pela faca.

Ghaden choramingou e Ligige’ pegou as mãos do rapaz para mostrar a Boca Feliz que ele tinha as pontas dos dedos rosadas, apenas com algumas queimaduras provocadas pela geada. Afastou-lhe o cabelo preto da testa. A pele do rosto também estava boa e só duas linhas estreitas de sangue seco lhe marcavam os lábios, rachados pelo frio. Daes fora uma boa mãe. Mesmo na morte, lutara por manter o filho quente durante a longa noite.

E os pés? perguntou Boca Feliz.

Ligige’ afastou os cobertores. Também os pés de Ghaden estavam rosados, sem manchas brancas nem dedos enegrecidos.

Dizem que devias vir agora afirmou Boca Feliz. Havia um estranho tremor nos seus lábios, como se ela fizesse o possível para não chorar.

Sim, pensou Ligige’. O rapaz merecia as lágrimas de uma mulher. Agora que Daes morrera, era muito provável que Boca Feliz o criasse como se fosse seu filho.

Eu posso ficar aqui disse Ligige’. Não tenho ninguém na minha cabana a quem dar de comer. Agora o meu irmão tem a sua mulher.

Ligige’... chamou Boca Feliz em voz baixa.

Ligige’ olhou para a cara da mulher e percebeu que o sofrimento não era por Ghaden mas sim por ela. Sentiu um aperto no coração, como se este tentasse esconder-se no seu peito.

Quem foi?

O teu irmão respondeu Boca Feliz. Mais uma vez, os seus lábios tentaram conter as lágrimas. Morreu.

Ligige’ inclinou-se para aconchegar Ghaden. Depois, levantou a cabeça e suspirou.

Ele era velho observou ela, apesar de não o considerar como tal nos seus pensamentos.

Boca Feliz abanou a cabeça.

Foi morto com a mesma faca disse ela num sussurro.

A princípio, Ligige’ não percebeu as palavras. Com certeza que o irmão fora chamado por um daqueles espíritos que levavam a morte aos mais velhos, um daqueles que param o coração ou abrandam a respiração, roubam a fala ou a razão. Mas uma faca? A mesma faca que matara Daes?

Alguém matou... A voz dela fraquejou. Por quê?

Boca Feliz não respondeu. Ajudou Ligige’ a levantar-se e a sair da cabana. Ligige’ mal ouviu Boca Feliz chamar a filha, Yaa, mas percebeu que ela lhe disse para ficar junto de Ghaden, e que a fosse chamar ou a Água Castanha se o rapaz acordasse e aquecesse ou arrefecesse de repente.

Ligige’ olhou para a luminosidade da manhã. O espírito do irmão estava ali, à espreita, tinha a certeza. Viu a cara dele, suave e sorridente, rindo-se com ela, partilhando histórias.

Sou a mais velha afirmou ela em surdina e olhou para cima, para que o irmão a ouvisse.

Cen observou a cara dos homens que o agarravam. Tinha um olho fechado de tão inchado que estava e parecia-lhe que a cabeça latejava ao ritmo do coração. Tinha a certeza de que eles lhe haviam partido o nariz, várias costelas e talvez o pulso esquerdo.

Desde que era comerciante vira muitas vezes a morte à sua frente. Uma vez o seu iqyax fora destruído pela rebentação. Outra, caíra num poço quando ia de uma aldeia para outra. Muitas vezes, fora apanhado no meio de tempestades de Inverno.

Conseguira chegar à costa nos destroços do seu iqyax, apesar de o frio das ondas o ter deixado moribundo. No poço, falara com as ervas que o rodeavam, pedira-lhes que lhe dessem força e conseguira sair a pulso. Sobrevivera às tempestades abrigando-se em grutas abertas na neve que cavara com as suas próprias mãos. Mas isso era diferente. Com os ventos e a água, um comerciante tinha uma oportunidade se se mantivesse respeitoso. Com os homens...

Arrastaram-no para o centro da aldeia. Aí, obrigaram-no a levantar-se, deixando-o nu, exceto a tanga, entregue ao vento frio. As mulheres gritavam-lhe, atiravam-lhe pedras e batiam-lhe com paus.

Veio-lhe à mente a imagem de Daes. A mulher estava à frente dele com a sua nova parka, a que ele lhe trouxera dos Caçadores de Morsas. Abriu a boca. Em vez de palavras, saiu sangue, e ele percebeu que ela estava morta. A consciência desse fato teve o efeito do gelo no seu coração, e de repente Cen não se importou que o Povo Rio o matasse. Daes e ele ficariam juntos. Longe daquela aldeia, longe daquela gente. E se Ghaden estivesse vivo, poderia Cen entregar-se à alegria de Daes? Quem havia de proteger o filho de ambos? Quem se importaria que ele viesse ou não a ser um homem bom e forte?

Cen reuniu forças e endireitou-se como pode.

Digam-me gritou ele. Digam-me. O meu filho ainda está vivo?

A sua pergunta foi recebida com ódio, com homens de punhos erguidos e lanças apontadas ao seu corpo. Cen foi obrigado a enrolar-se como uma bola, com a cara enfiada entre os joelhos e os braços cruzados sobre a nuca.

Por fim, um dos homens obrigou-o a levantar-se. Era grande, tinha a cabeça larga e cheia de cicatrizes e o lado esquerdo da cara arrepanhado como se em tempos tivesse sofrido queimaduras da testa até à boca.

Perguntas pelo rapaz disse ele. Por quê?

Eu não o matei respondeu Cen, com os lábios cortados pelos dentes partidos. Porque havia de matar o meu próprio filho? Algum de vocês mataria um filho? Então porque julgam que eu o faria? Sou parecido com um daqueles que não têm povo e que vivem no sopé das Montanhas Distantes?

Cen fez uma pausa para ganhar fôlego e a dor parecia uma lança a trespassar-lhe o peito. Cuspiu sangue e esperou que fosse apenas dos golpes que tinha na boca.

Eu não matei o meu filho acrescentou.

A gritaria diminuiu e os homens rodearam-no. Cen sentiu os olhos deles no seu rosto. Encorajado pela atenção deles, disse:

Quase todos vocês sabem que, quando eu trouxe a mulher dos Caçadores Marinhos para aqui, ela trazia o meu filho no ventre. Mas como pode um comerciante ter uma esposa? Eu não podia caçar para ela, nem ensinar um filho a caçar. Por isso os trouxe para cá, para esta boa aldeia. Todos os anos eu vinha cá, negociar convosco e ver o meu filho. Espero que, um dia, ele venha comigo e também seja comerciante.

Um homem alto e magro reagiu a estas palavras, gritando-lhe que ele não viveria para ver o filho crescido.

Então ele está vivo disse Cen, e uma mulher escondida pelos homens que o rodeavam assobiou àquele que falara.

Ele está vivo repetiu Cen.

Está afirmou o homem das cicatrizes.

Um jovem abriu caminho e pôs-se ao lado de Cen. O comerciante já o vira. Sim. Chamava-se Sok e comprara-lhe várias coisas na véspera.

O rapaz está vivo, mas o espírito da mãe está a chamá-lo, assim como o espírito do meu avô, que também foi morto declarou Sok.

O comerciante ficou a olhar para Sok. Dizia ele que mais alguém morrera? Tinham sido atacadas três pessoas?

Morto com uma faca que eu vi ontem nas tuas mãos.

Tens a faca?

Tenho.

Muitos de vocês compraram facas ontem observou Cen. Julgas que eu tinha alguma razão para matar a mulher e o meu filho e um velho que não conheço, que eu seria estúpido ao ponto de usar a minha própria faca? De a deixar?

Fez-se um silêncio interrompido apenas pelos gemidos de várias mulheres e pelo murmúrio dos homens. Uma onda de dor arrasou Cen, mas ele conseguiu enfrentá-la.

Tragam-me a faca. Deixem-me vê-la. Talvez eu me lembre de quem ma comprou disse ele.

Cen olhou para os homens que o rodeavam. Era medo o que via em alguns rostos?

Tragam a faca ordenou Sok. Tenho que me vingar daquele que matou o meu avô.

Chakliux encaminhou-se para o rio. Ainda estava gelado. Uma parte do gelo estava nua e outra coberta de neve endurecida pelo vento. Daí a uma lua, ou talvez duas, o gelo enfraqueceria e uma torrente de água, gelo e terra vindos de montante precipitar-se-iam no mar. Ainda agora, Chakliux via as cicatrizes dos degelos anteriores, lugares em que árvores inteiras tinham sido arrancadas pelas raízes e grandes extensões da margem haviam sido arrastadas e levadas.

Se ele não tivesse visto isso acontecer, seria difícil imaginar. O rio debaixo do gelo e da neve parecia tão calmo, como se nunca tivesse sido mais do que um caminho branco para os pés de Chakliux.

Chakliux sentia falta da sua aldeia, do seu povo. Tinha saudades de contar histórias, mas pelo menos esta aldeia tinha um rio. Desde que se lembrava, Chakliux gostava da água. Em criança, no pesqueiro, diziam-lhe muitas vezes para se afastar do rio, mas ele continuava a brincar e a chapinhar nos baixios. Pouco depois, aprendera a nadar, apesar de a água fria lhe fazer doer os ossos.

Ele era uma lontra, concluíra finalmente o xamã. Quem podia negá-lo? Quem não via o seu pé de lontra? Não fora ele um bebê oferecido pelos animais, que nascera de um coágulo de sangue de um animal? Além disso, todos sabiam que as pessoas não nadavam.

Depois disso, K’os não tentara afastá-lo da água. Os seus dotes eram úteis para construir e reparar as armadilhas de pesca da aldeia e para recuperar linhas e anzóis perdidos. Chakliux ocupava um lugar especial na sua aldeia e era venerado pela sua diferença.

Não era propriamente uma lontra que nadasse no mar, mas já vira mais do que uma vez comerciantes a servirem-se de barcos construídos pelos Caçadores Marinhos. Iqyan, chamavam-se esses barcos, esguios como uma lontra e revestidos de peles de leão-marinho ou de morsa. Como eram diferentes das jangadas desajeitadas e dos postes que o Povo usava para se fazer transportar no rio no Verão!

Uma vez, um comerciante dissera-lhe que esses Caçadores Marinhos se consideravam irmãos das lontras-marinhas. Uma vez, um dos seus caçadores aparecera no pesqueiro para negociar. Era mais baixo e tinha a pele mais escura do que o Povo, braços compridos e grossos e ombros fortes. Chakliux vira-o enrolar o iqyax e sair do rio, com água a escorrer da sua boca grande e sorridente. Trazia uma parka de pele de pássaro. Algumas mulheres diziam que ele não era um homem mas sim uma ave marinha e lutaram entre si para o convidarem para a sua cama, na esperança de conceberem uma ave marinha mágica.

Chakliux e os outros homens tinham-se interessado mais pelo casaco de pele que ele trazia por cima da parka. Segundo explicara o homem dos Caçadores Marinhos, era feita de intestinos de foca, todos eles cortados e achatados e depois tão bem raspados que até se via a luz à transparência. As tiras eram costuradas de modo a não deixar entrar a água. Quando o homem enrolava o seu iqyax, a parka protegia-o e a água não lhe passava para as roupas, nem lhe fazia parar o coração com o frio.

Um dia, Chakliux teria o seu próprio iqyax. Não queria ser comerciante. Não era cômodo conhecer outras pessoas quando ele era diferente e via interrogações e preocupação nos olhos de todos aqueles que o observavam. Sentia-se feliz por ser caçador. Se aprendesse a caçar de um iqyax, a sua família não viveria apenas de peixe, de caribus ou mesmo de ursos. Também poderia contar com a gordura e o óleo dos mamíferos marinhos, focas, leões-marinhos e morsas, porque ele desceria o rio no seu iqyax até ao mar do Norte para caçar.

Sim, era um caçador. Ficava radiante quando um animal resolvia entregar-se para que o Povo pudesse viver, mas era difícil acompanhar o ritmo dos outros caçadores, transportar a sua parte, manter o equilíbrio em trilhos pantanosos e atravessar os arbustos à beira dos rios. As suas pernas eram feitas para a água, não para a terra.

No passado, segundo os velhos contadores de histórias da sua aldeia, os Caçadores Marinhos tinham mesmo caçado baleias. Como dzuuggi, haviam-lhe sido confiados segredos, histórias raramente contadas à volta de fogueiras no Inverno, mas que deviam ser recordadas, pelo menos por alguns. Essas histórias diziam que havia uma ilha, quase do outro lado do mundo, onde os homens ainda caçavam baleias. O homem dos Caçadores Marinhos informara-os de que esses caçadores de baleias tinham morrido há muito, quando uma montanha enfurecida os destruíra por qualquer motivo de que ninguém se lembrava.

Desde que conhecera o homem dos Caçadores Marinhos, Chakliux sonhava em comprar um iqyax só dele, ou talvez mesmo em aprender a fazer um. Agora, ao olhar para o rio, pensava pela primeira vez em ir procurar esse povo antigo que caçava baleias. Ainda estaria lá, naquela ilha distante? Seria preciso uma vida inteira de Verões para chegar ao outro lado do mundo?

O povo de Rio Próximo considerava-o amaldiçoado. A mulher que o dera à luz dissera que ele fora abandonado para morrer. Talvez, na sua aldeia, o Povo já soubesse a história e não o quisesse como dzuuggi, aquele que lhes recordava o seu passado. Se isso fosse verdade, porque ele ficaria? Não poderia fazer a paz se ninguém o respeitasse nas aldeias.

Chakliux protegeu os olhos da claridade do sol do meio-dia. A neve estava derretendo. Ele comprara coisas, o dote de peles rejeitado por Lobo-e-Corvo que talvez desse para comprar um iqyax. Depois, o que o impediria de encontrar esses caçadores de baleias, irmãos das lontras?

As dores eram muitas para que Cen pudesse ignorá-las, mas o homem fez um esforço.

Já lhes disse que vão buscar a faca incitou ele outra vez.

O homem grande saiu do grupo e, quando voltou, trazia a faca ainda coberta de sangue seco. Cen cerrou os lábios e tentou não mostrar o seu desapontamento. Havia várias facas de que ele se lembrava bem distinguiam-se pelo comprimento da lâmina e pela cor ou pelo formato do cabo, mas aquela era de um caçador dos Caribus que ele encontrara no caminho, no Verão anterior. As suas facas eram todas iguais, com variações tão pequenas que um homem mal distinguia umas das outras. Cen vendera cerca de duas mãos-cheias daquelas facas ao povo da aldeia.

Fez sinal ao homem para que aproximasse mais a faca e examinou-a com cuidado. Devia ter havido luta. Alguns dos cabelos que envolviam o cabo estavam partidos. Pendiam como uma franja negra do cabo de chifre esculpido. Os pensamentos de Cen misturavam-se uns com os outros. Por instantes, não se lembrou de nada do que lhe tinham dado em troca das suas facas. Peles? Sim, tinha a certeza. Talvez cestos de pele de peixe.

Como vêem, o cabo está solto observou Cen, apontando com o queixo para a faca. O caçador que me vendeu estas facas pertencia ao Povo Caribu. Eles colam o cabo à lâmina de pedra com resina de abeto.

O que é que isso nos interessa? perguntou o homem mais novo.

Não, a cola não lhes interessava, mas as palavras acalmavam as pessoas, faziam-nas pensar. Quando os homens ocupavam o tempo a pensar, tinham menos probabilidades de se deixarem levar pela ira. As palavras de Cen também pareceram acalmar os seus próprios pensamentos, e de repente ele lembrou-se daquilo que precisava de saber.

Tu compraste uma faca assim afirmou ele fixando Sok e detectando no seu olhar um ligeiro assomo de surpresa.

Virou-se para outro homem.

E tu disse ele. Apontou para vários e inclinou mesmo a cabeça para um dos que o agarravam. E tu também.

Sim anuiu o homem que o agarrava, largando o ombro de Cen. O caçador arregaçou a manga e mostrou uma faca numa bainha atada acima do pulso. Ainda a tenho.

Eu também ainda tenho a minha disse outro homem, e mais outro.

Sok, que ainda estava à frente do comerciante, exibiu uma faca. Surgiram outras, mais do que Cen vendera àqueles homens, muitas mais. Noutro sítio, noutro momento, ele teria dado uma gargalhada.

Mas porque não mostrar uma faca? Era preferível mostrar que tinha uma do que ser acusado de matar.

O homem corpulento, que ainda tinha na mão a faca assassina, virou-se para os caçadores, para as suas lâminas apontadas para o céu. Nesse momento, com um braço livre e já sem ninguém a olhar para ele, Cen tirou-lhe a faca da mão com um movimento rápido. O homem deu um berro, mas Cen apontou-lhe a faca e depois ao outro homem que continuava a agarrá-lo. Este, um dos velhos da aldeia, largou-o.

No entanto, os homens eram muitos, e tinham muitas armas. Cen nunca conseguiria fugir. Além disso, como podia ele correr muito com as costelas partidas e os olhos quase fechados de tão inchados que estavam? Os homens mostravam-se cautelosos. Porquê ser o primeiro a atirar-se ao comerciante? Porquê ser o primeiro a sentir a sua lâmina? Se ele tivesse matado uma vez, não hesitaria em voltar a fazê-lo.

Um de vocês comprou esta faca declarou Cen. Continuava a apontar-lhes a lâmina, aproximando-se lentamente. Os homens estavam calados, mas todos o observavam, na expectativa, com as facas em riste.

Um de vocês matou a mulher e o avô deste homem prosseguiu Cen, erguendo o queixo para Sok. Um de vocês tentou matar o meu filho. Vou matá-lo por isso, seja ele quem for. Se eu não o descobrir durante a minha vida, o encontrarei quando morrer, quando eu for espírito e puder deslocar-me sem ser visto.

”Digo isto a todos vós. Não matei ninguém. Não feri o meu filho."

Cen fincou os pés na terra. De que serviam as palavras se a vertigem se apoderava dele?

De repente, surgiu-lhe uma imagem, algo que ele tentara expulsar da sua mente há muito tempo uma cerimônia fúnebre a que ele assistira lá para o Norte, no seio de pessoas a quem já nem conseguia dar nome. Uma mulher perdera o marido, um pai e o filho. Tinham retalhado o corpo com facas para mostrar o seu desgosto. Este fato em si mesmo não era tão invulgar, mas a mulher também cortara um dedo e o homem um pedaço de carne do tornozelo. Sangue em troca de sangue, pensou Cen, e exclamou:

Ergo a minha própria voz em sinal de luto. E virando-se para Sok, acrescentou: Choro o homem a quem chamas avô. Choro a mulher que foi mãe e esposa entre vós.

Ficou à espera, mas ninguém avançou para ele; ninguém falou.

Eu não os matei insistiu ele outra vez. E não feri o meu filho. Ergo a minha voz aos espíritos que possam chamar o meu filho para o seu mundo. Ofereço sangue em troca de sangue. O meu em troca do dele.

Cen cerrou os lábios. Eles queriam sangue, como cães ansiosos pelos pulmões de caribus acabados de matar. Via-o nos olhos deles. Aqueles homens esperavam que isso lhes aliviasse o sofrimento? Ou precisavam de exibir a sua própria força? Acreditavam que, se controlassem o poder de matar, este não poderia ser usado contra eles.

O sangue pelo sangue disse Cen outra vez. Enterrou a fina lâmina de sílex na perna e extraiu um grande pedaço de pele. A dor foi maior do que ele imaginava. A escuridão fechou-se à sua volta. Cerrou os dentes e esperou que a mente clareasse. Em seguida, levantando o bocado de pele, separou-o da perna e atirou-o para o chão.

Para mostrar o meu desgosto disse ele. Inclinou-se e tirou uma pedra do tamanho de um punho fechado da lareira mais próxima. Sok fez menção de se aproximar dele, mas Cen empunhou a sua faca.

Um negócio com os espíritos explicou ele. Deixou escorregar a pedra para a mão esquerda e depois apertou-a contra o peito. Agarrou na faca e, com toda a força que tinha, cortou o dedo mindinho, acima da articulação intermédia. A lâmina enterrou-se na carne, provocando-lhe uma dor lancinante, e depois no osso. Cen sentiu a dor profunda quando a faca se enterrou e se partiu. Só parou quando a lâmina atingiu a pedra.

O dedo decepado caiu ao chão e Cen apanhou a pedra.

Um negócio com os espíritos declarou ele outra vez. Com a lâmina ensangüentada, apontou para o dedo. Pela vida do meu filho.

Sok apanhou o homem quando ele caiu.

 

ALDEIA DOS PRIMEIROS HOMENS

Salmão inclinou-se para a frente e passou os dedos pelo rosto de Aqamdax. Cheirava a peixe, mas o seu toque era quente e ela sentiu um leve aperto na barriga. Ele baixou a mão e agarrou-lhe o seio esquerdo.

Já lá vai muito tempo afirmou ele num sussurro Aqamdax desviou o olhar dele. Salmão viera procurá-la a meio do dia, interrompera o cesto que ela estava fazendo e quando viu que ela se encontrava sozinha no ulax, começou a falar com palavras ternas e atraentes. A sua primeira esposa estava no quinto mês de gravidez do terceiro filho. A sua outra esposa, uma mulher que tinha tantos Verões como Aqamdax, acabara de lhe dar uma filha. A bem da sua caça. Salmão devia mostrar-se disciplinado e esperar.

Mas para quê preocupar-se com a caça de Salmão ou pensar nas suas mulheres? Ainda há dois dias Aqamdax pensara que seria esposa dentro de pouco tempo. Acreditara nas promessas sussurradas de Rompe-o-Dia, mas nessa manhã, quando estava sentada com Cantador e as suas quatro esposas, Rompe-o-Dia fora para junto deles e anunciara-lhe que ia casar-se com Sorridente, uma mulher cujos pais viviam na aldeia, uma mulher com quatro irmãos robustos. Mais tarde, quando Rompe-o-Dia e Cantador foram visitar o pai de Sorridente, Aqamdax ouvira Olhos-de-Erva e Leva-Peixe cochichando. Riam tapando o rosto com as mãos, dizendo que Sorridente já trazia o filho de Rompe-o-Dia na barriga, e que lhe faltavam três luas de sangramento.

Então Aqamdax percebeu que as promessas de Rompe-o-Dia não passavam de mentiras para ele ter acesso à sua cama.

Nesse caso, porque havia ela de hesitar em gozar com Salmão, mesmo em pleno dia? As mulheres da aldeia já a desprezavam e cuspiam quando ela passava. Aqamdax não se importava. Elas só invejavam a sua beleza. Viam o desejo no olhar dos maridos quando ela passava. Sabiam que os filhos a procuravam nos longos dias de Verão, ao entardecer. Salmão afastou a tanga e deitou-se sobre Aqamdax, encostando-a às esteiras de erva entrelaçada que cobriam o chão do ulax. Os seus dedos procuraram as fitas que atavam os seus aventais de erva, os grandes painéis entrançados que ela trazia pendurados à cintura, um à frente e outro sobre as nádegas, o único vestuário que as mulheres dos Primeiros Homens usavam no interior do ulax.

Os dedos de Salmão eram grandes e desajeitados, e ainda ele não conseguira desatar os aventais quando Aqamdax ouviu um grito e percebeu que era Olhos-de-Erva.

Aqamdax censurou-se pela imprudência de não ter levado Salmão para a sua cama. Embora Olhos-de-Erva soubesse o que eles estavam fazendo, pelo menos não teria visto nada e Aqamdax poderia ter negado as acusações da mulher. Salmão conseguiu levantar-se, pegou na parka e desatou a correr. Esperou que Olhos-de-Erva saltasse do tronco cheio de nós enfiado numa fenda do chão do ulax que dava acesso a um orifício de entrada situado no telhado. Em seguida, trepou pelo tronco e saiu, antes que os gritos de Olhos-de-Erva dessem lugar às palavras.

Aqamdax nem sequer olhou para ela. Endireitou os aventais e empurrou os longos cabelos negros para trás, cobrindo as orelhas. Depois, fez aquele sorriso que sabia que Olhos-de-Erva detestava, levantando um dos cantos da boca. Olhos-de-Erva pegou o cesto que Aqamdax estava fazendo. Era um cesto grande e de malha larga, utilizado para apanhar coisas. A mulher atirou-o a Aqamdax.

Não prestas para nada gritou ela. Todas as mulheres desta aldeia ficam envergonhadas quando te vêem. És pior do que a tua mãe. Não percebes que os homens se riem de ti? Como podes ser tão estúpida? Desaparece da minha vista. Maldito o dia em que a tua mãe te deixou!

Aqamdax pegou o cesto.

Olha para este cesto ordenou ela com uma voz serena. É melhor do que qualquer das coisas que tu sabes fazer, mas me dizes que eu não presto para nada. Ninguém nesta aldeia tece tão bem como eu. Teço até me doerem os olhos e ficar a sangrar dos dedos. Tu vendes os meus cestos e ficas com o que recebes em troca, e depois dizes-me que eu não valho nada. Já esqueceste que Leva-Peixe é tão preguiçosa que não raspa as pontas das peles e as deixa imperfeitas e tesas? E Folha Malhada? Os dedos dela são tão vagarosos que levaria um ano a fazer um sax, mesmo de peles de cormorão. E não preciso de te dizer que Dá-a-Volta é uma criança. O que sabe ela fazer além de agradar ao teu marido na cama? Talvez sejas tu a única que não vale nada Por que outro motivo precisaria Cantador de mais três esposas? Tu não deves saber como lhe agradar. Terei muito prazer em ensinar-te concluiu Aqamdax sorrindo.

Olhos-de-Erva curvou os dedos como se fossem garras e correu para Aqamdax. Esta agarrou o seu sax de pele de pássaro que estava no chão, onde o deixara, e fugiu, subindo o tronco. Deixou-se

escorregar pelo lado do ulax, ignorando a queimadura provocada pelo gelo e pela erva gelada nos pés nus, e depois correu para a praia.

O solo estava frio debaixo dos seus pés descalços. Fora um disparate não ter trazido as botas de barbatana de foca. Não gostava do toque delas. Lhe faziam doer os ossos, tentando sempre estreitá-los como gostava Folha Malhada, a terceira esposa do chefe, mas era preferível tê-las trazido do que andar descalça na neve. Aqamdax vestiu o sax. Era comprido, à maneira tradicional dos Primeiros Homens. Caía solto e tapava-lhe os joelhos. Aqamdax agachou-se junto de um tufo de erva da praia, de costas para o vento, enrolou o sax nas pernas e prendeu-o debaixo dos pés.

Detestava viver no ulax do chefe, mas que alternativa tinha? Sem o pai nem os avós vivos, e com a mãe ausente da aldeia, tinha que ficar onde os velhos decidiam.

Aqamdax tentou pensar na noite em que a mãe partira, mas, à medida que os anos passavam, a recordação esfumava-se e agora parecia quase um sonho.

Daes aproximara-se da cama que partilhava com a filha. Falara-lhe em voz baixa do seu amor e depois dissera-lhe que se ia embora da aldeia, que ia viver com o Povo Rio. Aqamdax, chorando, suplicara-lhe que a levasse consigo, mas a mãe explicara-lhe que o comerciante não levava as duas. Prometera voltar e trazer presentes. Por isso Aqamdax ficara na cama e só mais tarde percebera que não sabia qual o comerciante a que a mãe se referia, nem para que aldeia de Rio é que eles iam.

Durante o primeiro ano, mesmo no Inverno, Aqamdax fora todos os dias para a praia e esperara, atenta. Perguntava a todos os comerciantes que iam à aldeia se sabiam da mãe. Nenhum sabia.

Ouvira o falatório das mulheres da aldeia. Elas diziam que ela fugira com esse comerciante, mas Aqamdax conhecia o verdadeiro motivo que levara a mãe a partir.

Uma lua antes, o pai de Aqamdax morrera afogado quando andava caçando. Depois da sua morte, a raiva criara raízes no peito de Aqamdax, que tratava mal toda a gente, inclusivamente a mãe, até que Daes partira com o primeiro homem que demonstrara algum interesse por ela.

Aqamdax sentiu um nó na garganta, mas não cedeu ao choro. As lágrimas não devolveriam a vida ao pai nem trariam a mãe de volta do Povo Rio. As lágrimas nem sequer a ajudariam a viver mais um dia com as esposas do chefe dos caçadores.

Elas odiavam-na, aquelas quatro mulheres. Cada uma julgava-se a mulher mais importante da aldeia: Olhos-de-Erva porque era a primeira esposa do chefe; Leva-Peixe porque fora a que gerara mais filhos; Folha Malhada pela sua beleza; e Dá-a-Volta porque era a favorita do chefe.

Nos dois primeiros anos em que Aqamdax vivera no ulax de Cantador, teve esperança de que ele a considerasse sua filha. Tinham-lhe garantido que lhe arranjariam um marido. Quem hesitaria em aceitar a filha do chefe dos caçadores como esposa? Mas quando tudo corria mal, acusavam-na. As esposas-irmãs erguiam as sobrancelhas e faziam estalar a língua, cochichando e olhando-a de esguelha.

Por fim, quando Aqamdax percebera que não podia ter esperança de vir a agradar-lhes, passava as noites pensando como as irritaria. Porque não se divertiria fazendo travessuras se a culpavam sempre de tudo?

Como é que o colar de Folha Malhada fora parar ao fundo do cesto da costura de Leva-Peixe? Porque é que Dá-a-Volta comera os frutos que Olhos-de-Erva andava guardando para o marido? E a bela parka que Olhos-de-Erva fizera, como é que se rasgara quando o chefe a vestira pela primeira vez?

Todos os anos, Aqamdax garantia a si própria que um caçador a pediria em casamento talvez um dos velhos, ou talvez alguém muito jovem e que depois ela poderia sair do ulax do chefe dos caçadores. Todas as meninas com quem ela crescera, as suas companheiras de infância, eram esposas. Quase todas tinham bebês, mas nenhum homem queria Aqamdax.

Fora então que Rompe-o-Dia começara a atraí-la para a cama, à noite...

Aqamdax levantou a cabeça para ver a baía. Pedaços de gelo juncavam a praia e o vento soprava de oeste, eriçando as penas do sax de Aqamdax. Levantou os ombros para que a gola alta lhe tapasse as orelhas. Precisava de uma parka, de uma parka de pele de lontra com um capuz, como aquelas que os Caçadores de Morsas usavam, mas onde iria arranjar as peles para a fazer?

Podia pedir aos homens que dormiam com ela, mas eles podiam zangar-se e deixar de a procurar. Depois, como é que ela havia de suportar a solidão? A sua única esperança era engravidar, afirmar que a criança pertencia ao caçador mais capaz de a aceitar como esposa. No entanto, apesar de todos os homens a quem dava prazer, nunca falhara um período de sangue lunar.

Pôs a mão na barriga. Às vezes, a velha Qung contava histórias de mulheres que, como castigo por terem quebrado um tabu, não tinham filhos. Talvez Aqamdax devesse tratar as esposas do chefe com mais respeito.

Suspirou. Não seria fácil; cada uma delas tinha um espírito tão diferente, mas se ela começasse por lhes oferecer um presente talvez elas acreditassem que ela tencionava modificar-se. Olhou para a praia. Era pouco provável encontrar alguma coisa com a baía ainda gelada. Até os caçadores da aldeia estavam em casa com as suas mulheres.

É claro que havia madeira flutuante, se ela se desse ao trabalho de a apanhar. Desde a segunda tempestade do Inverno que um grande pedaço de madeira, comprido como o seu braço e largo como a coxa de um homem, se encontrava na praia, debaixo do gelo. Depois da tempestade, várias mulheres tinham tentado soltá-lo, mas acabaram por desistir. Aqamdax podia levá-lo a Olhos-de-Erva. Talvez a mulher o aceitasse como uma oferta de paz e se esquecesse de que a encontrara com Salmão.

Aqamdax voltou para o ulax e pegou nas suas botas de barbatana de foca. As duas filhas pequenas de Olhos-de-Erva estavam sentadas, choramingando, ao lado da mãe, que tentava ensiná-las a fazer cestos.

Eu já venho ajudar-te disse Aqamdax.

A mulher olhou para ela mas não disse nada.

Aqamdax calçou as botas e voltou a sair. Subiu a camada de gelo que cobria a praia até chegar junto do tronco. Cerca de metade deste estava enterrado no gelo, mas Aqamdax pensou que talvez fosse capaz de o tirar. Aproximou-se de um monte de seixos rolados do tamanho de um punho, gastos ao longo do tempo pelo vento e pela água. Com um pontapé, soltou um e levou-o para junto do tronco. Pegou a pedra com as duas mãos e deixou-a cair com força em cima do gelo que cobria o tronco.

Repetiu várias vezes a operação até lhe doerem as mãos e ficar com os dedos sangrando. Por fim, encostando-se em peso a ele, conseguiu deslocar o tronco, menos que a largura de um dedo da mão, mas mesmo assim ele mexeu-se. Enfiou as mãos nas mangas para aquecer os dedos. Estavam dormentes e, quando recuperou a sensibilidade, doíam-lhe tanto que as lágrimas lhe saltaram dos olhos. Aqamdax limpou a cara à manga e atirou-se contra o tronco até ele se soltar o suficiente para ela o puxar.

Pegou-o, o pôs no ombro e iniciou o caminho de regresso no gelo, passando pelos tufos de erva gelada que assinalavam a linha da maré alta, em direção à aldeia.

Havia dez dezenas de ulaxs na aldeia, todos eles suficientemente quentes e resistentes para suportar o ataque dos ventos agrestes que vinham do mar. A maior parte deles albergavam famílias numerosas: caçadores e esposas, filhos, por vezes avós, tias e tios. Os ulaxs eram cavados na terra, cobertos de troncos de madeira flutuante ou de vigas de mandíbula de baleia e depois de esteiras de erva, colmo e várias camadas de grama com terra e raízes.

Lá dentro, ardia uma ou duas grandes lamparinas seixos com a parte de cima escavada para receber óleo, ou lamparinas de pedra mais pequenas, orladas de pavios de musgo e cheias de óleo de foca. O seu calor era suficiente para aquecer o ulax, mesmo no Inverno.

O ulax do chefe dos caçadores era dos maiores. Tinha sete camas, cada uma das quais dava para duas ou três pessoas e estava almofadada com peles de lontra-marinha e de raposa e separada do quarto principal por painéis de erva entrançada. Na parede tinham sido cavadas despensas para os alimentos e espaços para armazenar peles e óleo de foca, estômagos de leão-marinho cheios de carne de foca seca, peixe seco, búzios e moluscos. Estômagos e bexigas de caribu, equipados com bocais de osso esculpido e cheios de água, estavam pendurados nas vigas do ulax.

A aldeia era um bom local para viver. Os caçadores eram quase sempre bem sucedidos; as crianças eram bem alimentadas e saudáveis. Até no Inverno a comida era suficiente. Os caçadores que não eram mortos por tempestades súbitas ou animais marinhos enfurecidos e as mulheres que sobreviviam aos partos podiam ter esperança de chegar à velhice e serem respeitadas, tratadas e alimentadas.

Era freqüente aparecerem comerciantes na praia. Os caçadores dos Primeiros Homens tinham sempre carne e óleo. Quem fazia melhores cestos e melhores parkas de pele de pássaro do que as mulheres daquela aldeia dos Primeiros Homens?

O vento empurrava Aqamdax. Pôs um ombro à frente do corpo, baixou a cabeça e só viu a velha quando ia a chocar com ela. De repente, as penas escuras de cormorão do sax da mulher apareceram à sua frente, e Aqamdax parou tão depressa que o tronco lhe escorregou do ombro, atingindo-lhe o tornozelo antes de cair ao chão.

Aqamdax ia a refilar, mas conteve-se. A velha era Qung, a contadora de histórias da aldeia, respeitada por toda a gente.

Das pessoas que diziam mal de Aqamdax, as velhas eram as piores, mas desde que ela começara a receber homens na sua cama, nunca ouvira Qung pronunciar uma palavra contra ela.

Este pensamento fez nascer nela uma súbita onda de gratidão. Aqamdax inclinou-se para olhar para a mulher, pois a artrite afetara-a verdadeiramente, deformando-lhe de tal modo o corpo que a corcunda das suas costas tinha quase a mesma altura da cabeça.

Desculpe, tia, disse Aqamdax, dirigindo-se à velha com delicadeza.

Ah, os meus olhos não prestam, filha, respondeu Qung. Virou a cabeça para o lado e depois para cima, pestanejando ao olhar para o rosto de Aqamdax. És Aqamdax, não és? A filha de Daes?

Sim, tia.

Qung deu uma palmadinha na mão de Aqamdax.

Pobre criança.

As suas palavras surpreenderam Aqamdax. Qung, velha e curvada, é que era digna de dó.

Deixaste cair qualquer coisa disse Qung.

É um tronco trazido pelo mar respondeu Aqamdax.

Depois, ansiosa por mostrar a Qung que conseguia afastar as coisas desagradáveis e não merecia compaixão, acrescentou:

Eu não preciso dele. Quere-o para si?

Aqamdax ficou à espera que a velha se inclinasse ainda mais, estendesse a mão deformada e tocasse na madeira. O mar do Norte levara-lhe a casca, deixando-a macia ao tacto mas áspera à vista. Era densa, estava gelada, mas a água não a apodrecera.

Junto da aldeia dos Primeiros Homens havia árvores, sobretudo salgueiros raquíticos e abetos-negros esculpidos pelo vento, mas se os contadores de histórias estavam certos, os Primeiros Homens vinham de ilhas onde não havia árvores, onde a madeira de que precisavam para as vigas dos iqyan ou ulax tinha de ser procurada nas praias, como dádiva do mar. Ainda assim, era mais fácil trazer madeira das praias do que ir ao interior cortar árvores vivas.

Achas que Cantador não precisa dela? perguntou Qung.

Não.

Então fico-te agradecida por ela disse Qung.

Sorriu-lhe e Aqamdax reparou que os dentes dela já estavam gastos quase até às gengivas. Era uma velha, aquela mulher. Não era de admirar que soubesse tantas histórias.

Aqamdax pegou a madeira e levou-a para o ulax de Qung. Era o ulax mais pequeno da aldeia, novo, construído para a velha pelas filhas, e quando Qung contava histórias as pessoas da aldeia podiam ir para ali, sentar-se e escutar, passar longos dias, longos serões, sem se intrometer na vida dos filhos de Qung. A velha vivia ali sozinha, apesar de as filhas a visitarem com freqüência.

Às vezes, a própria Aqamdax ia ouvi-la falar. Devia ser maravilhoso ter o seu próprio ulax, um lugar onde não tivesse esposas que lhe ralhassem, mas ela não tinha nem marido nem irmãs que a ajudassem a construí-lo, e como podia uma mulher fazê-lo sozinha? Talvez conseguisse cavar um local para ele nas colinas sobranceiras à praia e apanhar pedras para reforçar as paredes, mas não tinha força para erguer as vigas.

Mesmo que a tivesse, os velhos da aldeia não permitiriam que uma jovem tivesse o seu próprio ulax.

Aqamdax levou a madeira para o telhado e depois voltou para ajudar Qung a subir. A velha convidou-a a entrar e prometeu dar-lhe de comer e contar-lhe uma história.

Aqamdax aceitou com alegria. Como podia Olhos-de-Erva zangar-se quando ela lhe dissesse que passara o dia com Qung e que lhe oferecera um tronco de madeira flutuante?

O ulax estava quente. Os pavios de musgo da lamparina libertavam fiozinhos de fumaça branca e as paredes estavam macias e secas, bem revestidas de esteiras entrançadas. Sim, aquele devia ser um bom local para viver.

Qung foi buscar comida e água e depois, pegando um bocado de peixe seco, agachou-se junto de Aqamdax e começou a contar histórias. Começou por histórias do antepassado Shuganan e em seguida falou de uma mulher e do irmão que se tinham transformado em lontras-marinhas.

As histórias eram boas. Aqamdax perdeu-se nelas e deu consigo a desejar ter a força daquele povo antigo; o homem só com uma mão, a mulher que salvara os filhos das travessuras do Corvo.

Aqamdax deixou-se ficar, até a luz do dia dar lugar à noite, e depois voltou para o ulax do chefe dos caçadores, para o vozerio das mulheres e dos filhos dele.

Regressou à fúria e às acusações de Olhos-de-Erva e das filhas e ao silêncio solene das esposas-irmãs.

Passaste o dia inteiro longe do trabalho que havia para fazer, repreendeu Olhos-de-Erva. Deixaste as peles de foca que havia para raspar, os cestos que havia para tecer, a comida que havia para fazer. Mas não nos trouxeste nada da praia.

Em geral, Aqamdax retrucava, lembrava a Olhos-de-Erva que era ela que fazia a maior parte do trabalho no ulax perguntava-lhe o que era possível trazer da praia no Inverno. Mas desta vez Aqamdax limitou-se a sorrir.

Nessa noite, Aqamdax não se deixou adormecer. Esperou que todos saíssem do aposento principal do ulax, mesmo Leva-Peixe, que muitas vezes ficava à espera de apanhar algum caçador que ia visitar Aqamdax à noite. Quando todos adormeceram, Aqamdax afastou um canto da cortina, ergueu a voz num lamento e ficou à espreita, à espera que as esposas saíssem das camas.

Leva-Peixe foi a primeira a sair, seguida por Folha Malhada. Quando Olhos-de-Erva apareceu, Aqamdax saiu também da cama, de braços erguidos e olhos fechados. Contou a história de Shuganan com uma voz suave e cantante.

As esposas começaram a discutir, cada uma acusando as outras de a terem acordado, mas Aqamdax ignorou-as, continuou a contar a sua história e divertiu-se com a confusão delas. De repente calou-se, parou a meio de uma palavra, abriu os olhos e olhou à sua volta como se estivesse admirada.

As esposas estavam engalfinhadas umas nas outras e batiam-se; a lamparina que ficava acesa durante a noite projetava as suas sombras, longas e escuras, na parede. Aqamdax olhou para a cama de Dá-a-Volta. Ela e Cantador tinham afastado a cortina. Estavam ambos olhando para ela.

Oh! exclamou Aqamdax. Estou aqui. Onde está Qung?

Qung? perguntou o chefe dos caçadores. Como havemos de saber?

Julguei que ela estava aqui junto de mim, ensinando-me. Julguei que eu era uma contadora de histórias.

Dá-a-Volta desatou a rir, mas Olhos-de-Erva endireitou-se e, com um gesto de cabeça, voltou para a cama. Folha Malhada e Leva-Peixe fizeram o mesmo.

Nessa mesma noite, mais tarde, Olhos-de-Erva, Leva-Peixe e Folha Malhada tiveram todas o mesmo sonho. De manhã, depois de Dá-a-Volta pensar nisso, lembrou-se que também sonhara.

Quatro esposas-irmãs com o mesmo sonho na mesma noite. Quem podia negar o que havia de sagrado naquilo? Não havia dúvida de que Aqamdax devia ir para junto de Qung. Tinha de ir viver para o ulax de Qung para aprender as histórias antigas dos Primeiros Homens.

Num dia de neve e de ventos de tempestade, mandaram o marido falar com Qung.

 

ALDEIA DE RIO PRÓXIMO

Ao anoitecer, a luz dourada das lareiras via-se através das paredes das cabanas e o céu ostentava o tom azul-escuro que era próprio do crepúsculo. Chakliux tinha apanhado duas lebres nas suas armadilhas. Levou-as para a cabana de Folha Vermelha e deixou-as do lado de dentro da porta. Folha Vermelha se encarregaria de as esfolar e de juntar a carne e os ossos ao guisado que fervia na panela.

A cabana estava vazia. Era natural que Sok tivesse ido a qualquer lado, mas onde estavam Folha Vermelha e os filhos, Leva-Muito e Chora-Alto?

Chakliux despiu a parka e as perneiras e descalçou as botas. Sacudiu a neve da pele antes que ela derretesse com o calor da cabana e depois vestiu uma camisa de pele de caribu macia. Quase todos os homens da aldeia de Rio Próximo usavam aquelas camisas quando estavam nas cabanas. Os caçadores da aldeia de Chakliux não as usavam e preferiam as parkas interiores nos dias mais frios, ou então apenas as tangas. Chakliux ainda não se habituara completamente à camisa, mas Folha Vermelha tivera a amabilidade de lhe fazer uma, e por isso ele usava-a.

Um grito agudo, um grito fúnebre, atravessou as paredes da cabana. Foi o rapaz, pensou Chakliux, suspirando. Ainda sentia o peso da criança nos seus braços quando a levara para a cabana do xamã. Pelo menos a sua morte seria chorada. O velho Rosto-de-Verão aceitara-o como filho, e por isso o rapaz tinha pai, irmãs, tias e tios. Quanto a Daes, só se fariam os preparativos necessários. Ela não tinha ninguém, exceto um marido velho que não tardaria a juntar-se a ela na morte. No ano seguinte, quando as ossadas dela fossem retiradas das armações fúnebres, quando fossem atadas e enterradas, quem se lembraria dela?

Chakliux pegou a tigela e, servindo-se de uma concha feita de uma omoplata de caribu, encheu-a de guisado quente. Um ruído no túnel de entrada obrigou-o a virar a cabeça Sok entrou e por instantes não disse nada.

O rapaz? perguntou Chakliux. Ouvi os choros fúnebres.

Mas quando o homem se aproximou do clarão da lareira, Chakliux viu que ele cortara o cabelo em madeixas toscas por cima das orelhas e que tinha a cara coberta de cinza

Quem foi? perguntou Chakliux. As palavras arranharam-lhe a garganta como uma lâmina.

O nosso avô respondeu Sok em voz baixa.

O nosso avô? repetiu Chakliux, como se a sua dúvida alterasse o que Sok dissera.

Com a mesma faca.

O som da voz de Sok entrou nos ouvidos de Chakliux e a luz e os odores da cabana ribombaram de súbito na sua cabeça. Sentiu um tal peso no peito que lhe custava a respirar, como se tivesse feito uma longa corrida.

Por quê? perguntou por fim Chakliux. Quem queria vê-lo morto? Quem queria matar a mulher e o rapaz?

O rapaz ainda está vivo disse Sok, mas a princípio Chakliux ouviu-o sem compreender e com uma inércia que não lhe deu alegria nem alívio.

Chakliux deu a sua tigela de comida a Sok.

Come disse ele. Eu não consigo. Sok pegou a tigela.

Alguém sabe quem foi? perguntou Chakliux.

Uns dizem que foi o comerciante, outros dizem que foi alguém de outra aldeia.

Sok não se referiu à aldeia de Rio Primo, mas Chakliux viu a acusação nos seus olhos.

Da aldeia de Rio Primo? perguntou ele.

Sok baixou os olhos sobre a tigela e respondeu com a boca cheia:

É o que alguns dizem.

Porque alguém da aldeia de Rio Primo mataria o nosso avô, ou a mulher? O que teriam a ganhar?

Honra, respondeu Sok e, ao levantar a cabeça, os olhares de ambos cruzaram-se. Honra de guerreiros.

Para começar a luta, queres dizer disse Chakliux.

Sim.

Então porque não deixaram um sinal, um amuleto ou uma faca, para mostrar quem o fez?

Sok encolheu os ombros.

Os jovens dizem que ficou alguma coisa, mas que tu a escondeste.

Estúpidos! exclamou Chakliux. Eu só encontrei o rapaz. E quem é que encontrou o nosso avô? Foi Mirtilo? Ela disse que não ficara nada para se saber quem fora?

Não foi Mirtilo disse Sok, com um ar triste. Chakliux disse baixinho:

Foste tu que o encontraste porque levavas o peixe para os cães.

Fui eu que o encontrei afirmou Sok.

Havia alguma coisa que indicasse quem o matou? Sok abanou a cabeça.

Nada. Nada.

Os velhos e os caçadores sabem isso?

Sabem, mas dizem que eu escondi qualquer coisa. Fez uma pausa e depois acrescentou: Para te proteger, irmãozinho.

Como é que os homens daquela aldeia podiam ser tão estúpidos?, pensou Chakliux. Agora, por sua causa, o lugar de honra de Sok, o respeito que os mais velhos e os outros caçadores lhe tinham, estava ameaçado.

Desculpa, irmão disse ele a Sok. Farei o que puder para lhes mostrar...

O que podes fazer? perguntou Sok, com palavras ásperas, eivadas de raiva. E se tivesses encontrado alguma coisa? Nos dirias? Dizes que vieste para trazer a paz. Se alguns homens da tua aldeia matassem alguém daqui... apenas um velho e uma mulher... as suas mortes justificariam a perda de caçadores? Justifica-se a perda de crianças e de velhos num Inverno de fome porque não há caçadores suficientes que tragam carne?

As palavras de Sok dilaceraram o coração de Chakliux. Se fossem caçadores de Rio Primo, ele os teria protegido? Talvez, se isso salvasse vidas... Mas se tinham matado uma vez, porque não voltariam a matar?

O comerciante. O que lhe fizeram? perguntou Chakliux.

Deixaram-no partir.

Chegaram à conclusão de que não foi ele?

Quase todos pensam que ele não mataria o próprio filho. Daes, talvez. Ela era uma mulher muito lamurienta Pelo menos é o que diz Água Castanha, e Folha Vermelha também. Mas mesmo por isso, porque um homem que era comerciante... e que não tinha de viver com ela, a mataria? Porque não a deixaria? Há outras mulheres em outras aldeias.

Sok continuou a falar, mas Chakliux não conseguia concentrar-se nas palavras do irmão. Pensou no avô, nas gargalhadas que tinham partilhado, nas anedotas e nos enigmas. Porque alguém quereria matar Tsaani? Era um velho, forte na sabedoria, generoso nas dádivas e ainda capaz de alimentar o Povo com o que caçava.

Seria possível que Chakliux tivesse trazido uma maldição ao avô? E se Neve-no-Cabelo tivesse razão? E se o seu pé torto fosse sinal não do seu parentesco com as lontras mas de azar?

Ele teve uma vida boa, uma vida longa, com muita felicidade observou Sok, e as palavras distraíram Chakliux dos seus pensamentos. Duas boas esposas, uma que envelheceu com ele e outra que lhe devolveu a juventude. Filhos robustos, segundo dizem, apesar de terem morrido novos, e a nossa mãe... a filha dele, uma boa mulher. Dois netos. Ele estava contente contigo. Falou-me muitas vezes nisso.

Chakliux esfregou a testa com a mão.

Julgas que foi alguém desta aldeia? Julgas que havia aqui alguém que fosse capaz de tal coisa?

Durante muito tempo, Sok não disse nada. Por fim respondeu:

Passei o dia inteiro perguntando o mesmo a mim. Outros passaram o dia inteiro a fazer a mesma pergunta. A minha resposta é não. Não creio que haja alguém nesta aldeia que fizesse tal coisa.

Achas que foi o comerciante? Sok ergueu as mãos.

Quem sabe? Ninguém viu o que aconteceu.

O rapaz viu, disse Chakliux.

Sok inclinou a cabeça e pareceu ficar pensando.

Talvez, mas ele é uma criança. Chakliux fez um sinal afirmativo.

Alguém diz que fui eu? perguntou ele.

Não, irmãozinho respondeu Sok. Mas se eu ouvir dizer alguma coisa, aviso-te.

Devíamos ir ver a nossa mãe.

Sim disse Sok, suspirando. Folha Vermelha está lá, e os meus filhos. A nossa mãe não é fácil de consolar. Teve muitos desgostos na vida.

Chakliux vestiu as perneiras e a parka e calçou as botas. Depois, saiu da cabana na companhia do irmão. Lembrou-se da última vez que vira o avô. Desde que chegara à aldeia de Rio Próximo que ensinava enigmas ao velho uma tradição da sua aldeia, mas não daquela.

Olhem! O que vejo eu? Torna-se castanho quando antes era branco, dissera Chakliux a Tsaani.

Tsaani rira-se e dissera:

É um enigma para crianças, esse. Quando o Verão se aproxima, as penas da ptármiga deixam de ser brancas e passam a ser castanhas.

Fora o primeiro enigma a que o velho respondera sem os palpites nem as explicações de Chakliux, que sentira um estranho orgulho, como se o avô fosse a criança e ele o professor.

Começara a nevar, grandes flocos que se colavam ao caminho lamacento. Caíam nas pestanas de Chakliux e derretiam-se nas suas pálpebras.

Um enigma para ti, avô, pensou Chakliux quando se dirigia para a cabana da mãe, atrás de Sok. Olhem! O que vejo eu? Sangra mas ninguém vê a ferida. Depois, Chakliux deu a resposta em voz alta:

O coração do teu neto.

Yaa observava Água Castanha quando esta cumprimentava outra mulher e aceitava um cesto de pescada-preta fresca e um sael de vacínios secos. Yaa adorava vacínios secos, mas reparou na pressa com que Água Castanha escondeu o sael e percebeu que ela não queria que Yaa os visse. Virou a cabeça e fingiu que não sabia o que Água Castanha fizera. Descobrira que era mais fácil fingir que era estúpida, como Água Castanha julgava que ela era.

Mas Yaa iria contar à mãe, e ambas provariam alguns dos preciosos frutos, embora poucos, para que Água Castanha não desse pela falta deles. A mãe de Yaa também daria alguns ao marido, uma boa parte e como podia Água Castanha queixar-se disso?

Yaa olhou para o local onde se encontrava o pai. O velho parecia estar dormindo, mas Yaa estava convencida do contrário. Tinha os olhos fechados, mas só para não ver a cabana sem a mulher e o filho predileto.

Pelo menos, talvez Ghaden voltasse, pensou Yaa. Quando ela fora espreitá-lo pela última vez, ele não lhe parecera melhor nem pior. Até Ligige’, com a face mascarrada de cinza em sinal de luto pelo irmão, se mostrara aliviada ao pôr a mão na testa de Ghaden e ao ver a ferida no ombro.

Tivera vontade de perguntar: Porque estás admirada? Eu já tenho idade para tratar do meu irmão.

Mas preferira não ser indelicada e por isso mantivera-se cabisbaixa em sinal de respeito enquanto o xamã e Ligige’ falavam do rapaz.

Yaa aproximou-se do pai, sentou-se a seu lado e acariciou-lhe a cabeça. Ela sabia que ele gostava que lhe acariciassem o cabelo, que lhe coçassem o couro cabeludo. Daes sempre lhe fizera isso. O homem entreabriu os olhos por instantes e olhou para Yaa. Fez menção de sorrir, mas parecia estar cansado demais. Fechou os olhos e Yaa acariciou-lhe os longos cabelos brancos com as duas mãos. Ele suspirou e Yaa não percebeu se o suspiro era um sinal de preocupação, de tristeza ou de contentamento, mas viu-o esboçar de novo um sorriso, e uma parte do peso que tinha no coração desapareceu.

Ele está velho demais para estes problemas, pensou Yaa. Tem os ossos muito fracos. Se o coração lhe doesse tanto como o dela, talvez até as costelas se partissem. Debaixo do cobertor, pareciam finas como paus.

Yaa! gritou Água Castanha, assustando de tal maneira a menina que ela se agarrou aos cabelos do pai, empurrando-lhe a cabeça. És uma inútil. Olha à tua volta. Preciso de lenha. Vai buscar alguma e põe aqui dentro. Bem sabes que a neve se derrete todos os dias e que a lenha tem de ficar aqui dentro secando.

Yaa sabia que havia lenha suficiente lenha seca mas não valia a pena discutir. Olhou para o pai e leu na sua boca a palavra ”Vai”.

Acariciou os cabelos do pai mais uma vez e depois levantou-se. Tinha apenas sete Verões, e portanto na cabana usava apenas um avental curto para limpar as mãos e enfiar entre as pernas quando se sentava em peles de caribu ásperas. Água Castanha usava peles felpudas no chão, que largavam pelo na comida e na cama.

Yaa decidira que, quando tivesse a sua própria cabana, rasparia as peles todas, apesar de isso implicar mais trabalho. O seu marido nunca teria pelos de caribu na comida.

És preguiçosa, ralhou Água Castanha. Mais valia que aquela faca tivesse atingido a ti e não o teu irmão. Pelo menos um dia ele seria caçador.

Yaa estava habituada aos insultos de Água Castanha, sobretudo quando a mãe não se encontrava na cabana, mas aquelas palavras como que lhe ficaram enroladas na garganta. Afastou as lágrimas, mantendo a cabeça virada para Água Castanha não ver. Depois, sentiu os dedos rijos e secos do pai no seu rosto.

Boa filha disse ele.

Yaa deu-lhe uma palmadinha na mão e ficou admirada ao ver que ele estava chorando. Depois percebeu. O pai tirara-lhe as lágrimas do rosto e pusera-as nos seus próprios olhos para que Yaa pudesse enfrentar os insultos de Água Castanha sem o embaraço do choro.

Yaa levantou a cabeça. Fitou Água Castanha com os olhos secos como pedras. Sem deixar de encarar a mulher, vestiu a parka e as perneiras e calçou as botas de pele. Água Castanha tentou virar a cabeça, mas Yaa usou o poder do seu olhar para atrair a atenção da mulher. Por fim, Água Castanha começou a guinchar. Atirou uma tampa em Yaa, mas a menina foi mais rápida. Escapou para o túnel e saiu da cabana.

Não gostava de sair quando estava escuro, mas nessa noite sentia-se satisfeita por se afastar de Água Castanha. Passou na ponta dos pés pelo local em que Daes morrera. O cadáver estava dentro da cabana, mas era mais provável que o espírito dela estivesse ali, onde fora assassinada.

Durante algum tempo, Yaa ficou olhando para a mancha escura junto da entrada da cabana onde Ghaden e Daes tinham caído, misturando a neve com o próprio sangue.

Yaa quase falou em voz alta. Quase pediu a Daes que deixasse Ghaden ficar com eles naquela aldeia, mas teve medo do espírito da mulher, da sua raiva por ter morrido.

Por isso, não disse nada e correu para o caminho que ia dar ao centro da aldeia. Mais tarde levaria a lenha a Água Castanha, tirando-a de baixo da neve que cobria os ramos que ela, a mãe e Daes tinham empilhado à volta da cabana no início do Inverno.

Agora iria às lareiras. Já não era um bebê, já não era uma criança a quem as velhas avós dessem estalos com a língua e escolhessem um pedaço de carne tenra. O mais provável é que erguessem uma concha, que a ameaçassem com histórias daqueles seres de cauda, os cet’aeni, que levavam as crianças com eles para as suas casas nas árvores. Mas ela tinha muito jeito para arranjar comida, e nesse dia talvez as avós lhe dessem alguma coisa, sobretudo por o irmão estar tão doente. Talvez não lhe doesse tanto o peito se tivesse a barriga cheia.

O meu pai, chorava a mãe de Chakliux. Quem matou o meu pai?

A primeira vez que ela fizera a pergunta, Chakliux tentara dar uma resposta, consolá-la, mas naquele momento, depois de lhe ouvir aquelas palavras cinco mãos-cheias de vezes, deixou-se ficar sentado, de olhos em alvo, deixando que o seu espírito vagueasse para além das paredes de pele de caribu.

Reuniu mentalmente os seus pertences, as suas peles e até as poucas coisas que deixara na sua própria aldeia. Dava tudo aos Caçadores de Morsas em troca de um iqyax. Quanto é que os Caçadores de Morsas quereriam por um iqyax! Mais do que um homem daria por uma mulher, com certeza.

Não sabia há quanto tempo estava ali sentado quando começou a sentir o calor dos olhares fixos nele. A princípio olhou para Sok e viu que o irmão o fitava, com um ar de censura e com os olhos entreabertos. Sok cerrou os punhos.

Tenho que matar quem fez isto proferiu Sok, cujas palavras caíram entre ambos como pedras aguçadas.

Quando souberes quem foi, te ajudarei respondeu Chakliux, reparando que também cerrara os punhos.

Ele era um bom pai, um bom avô disse Raposa-Que-Ladra. Eram as primeiras palavras que dirigia a qualquer dos enteados desde que estes tinham entrado na cabana. Apontou para a mãe deles. Ele era um bom pai para ela.

Sok empurrou a palma da outra mão com o punho cerrado, fazendo estalar os nós dos dedos. Ouviu-se raspar à porta e entraram várias mulheres. Traziam uma panela. Folha Vermelha levantou-se para as ajudar a pendurá-la nos postes. Por instantes, elas ficaram olhando para Mulher Diurna e depois saíram, sem lhe dirigir palavras de esperança ou de conforto.

Folha Vermelha foi buscar três tigelas. Deu a primeira a Raposa-Que-Ladra, outra a Sok e outra a Chakliux. Chakliux abanou a cabeça, mas o padrasto disse:

Comam.

Vocês os dois. Tenho que dizer uma coisa. Uma coisa que o vosso avô me contou na véspera de ser assassinado.

Esperou que eles comessem, sem tocar na sua tigela, observando-os como se fosse uma velha à espera de lhes voltar a encher as tigelas. Chakliux foi o primeiro a acabar. Pousou a tigela no chão. Raposa-Que-Ladra olhou para Sok e depois virou-se de frente para Chakliux.

O vosso avô pediu-me que vos dissesse isto... começou Raposa-Que-Ladra. Lambeu os lábios como que para atrair à boca as palavras de que precisava. Foi ele que resolveu... Calou-se, inclinou a cabeça e rolou-a de ombro a ombro. Depois olhou de novo para Chakliux e prosseguiu: Sabes, quando nasceste, não foi a tua mãe que te abandonou. A velha Ligige’ foi ter com o teu avô e perguntou-lhe o que havia de fazer.

Chakliux ficou admirado com as palavras de Raposa-Que-Ladra. Com o avô morto, um padrasto ou um tio materno seriam os únicos a tomar decisões em relação à sua vida. Não havia nenhum tio. De repente, teve uma sensação estranha no peito, como se os ossos roçassem uns nos outros, como se se apertassem e desgastassem.

O teu avô disse que tomou a decisão errada. É por isso que foste encontrado pela jovem de Rio Primo. É por isso que eles resolveram criar-te como filho, como dzuuggi. Ele disse-me que um dia faria qualquer coisa para melhorar a tua vida.

Chakliux olhou para Sok. O irmão tinha as bochechas cheias de comida mas não mastigava.

Ele deu-me o que eu precisava afirmou Chakliux tranqüilamente. No pouco tempo que passei nesta aldeia, aprendi muito. Tudo graças à sabedoria do meu avô e aos dotes de caça do meu irmão.

Raposa-Que-Ladra levantou as mãos, como que para mostrar que não guardava ressentimentos em relação a Chakliux. Depois, olhando para Sok, declarou:

Sok, és tu que deves receber as armas do teu avô. As suas lanças e dardos, o seu lançador, os seus anzóis, redes de pesca e pau de arremesso, tudo o que a sua mulher não ponha junto dele na armação fúnebre. Tudo isso é teu. A cabana, a comida que está na despensa, os cestos e tigelas, a cama e as peles, tudo isso pertence à mulher dele.

Evidentemente, pensou Chakliux. Até era estranho que Raposa-Que-Ladra se referisse a essas coisas. Todos sabiam que a mulher era a dona da cabana, de todos os utensílios de cozinha, da cama e dos cestos. Era o mesmo na sua aldeia, mas talvez Raposa-Que-Ladra desconhecesse os hábitos da aldeia de Chakliux e tivesse dado aquela explicação para ele compreender.

Tu, o filho mais novo da minha mulher, terás aquilo de que precisas para reclamar um lugar nesta aldeia. O teu avô quer que a mulher dele, Mirtilo, passe para ti disse Raposa-Que-Ladra a Chakliux.

Estas palavras provocaram um golpe duro e frio no peito de Chakliux. Mirtilo seria sua mulher? Era uma boa mulher, fora uma boa esposa para Tsaani, mas era jovem. Seria livre de escolher qualquer homem da aldeia. Não havia de querer Chakliux.

Ela disse que seria minha mulher? perguntou Chakliux.

Ela concordou. Raposa-Que-Ladra pigarreou e depois prosseguiu: Esta não foi a maior honra que Tsaani te concedeu.

Chakliux reparou que Sok engolira toda a comida que tinha na boca, pousara a tigela e se inclinara para a frente.

Ficarás com os cães dele. Ele pensa que tu serás um grande caçador. Crê que farás com que os ursos continuem a vir para esta aldeia.

Ouviu-se um ruído vindo da garganta de Sok, como se ele estivesse a sufocar. Quando conseguiu falar, indagou:

O nosso avô deu os cães a Chakliux?

Sim respondeu Raposa-Que-Ladra, mas as suas mãos mexeram-se numa dança rápida e nervosa.

Chakliux olhou para o irmão e depois para o padrasto. Os dois homens olhavam fixamente um para o outro.

Se Sok quiser os cães, pode ficar com eles, pensou Chakliux. E também com Mirtilo. Uma esposa? Cães? Não preciso deles. Se não for bem-vindo aqui, voltarei para a minha aldeia e verei o que os homens de lá pensam. Se me considerarem amaldiçoado, deixarei o Povo e irei viver com os Caçadores Marinhos. Como posso eu fazer isso se tiver uma esposa e cães?

Olhou para Sok. O rosto do irmão estava negro de cólera e a crispação da boca denunciava o seu sofrimento.

Durante todos estes anos, fui eu que tratei dos cães. Durante todos estes anos, ele ensinou-me.

São teus disse Chakliux a Sok. Os cães são teus. Não os quero. Nem quero uma esposa.

Chakliux olhou para o padrasto. A boca do homem estava aberta como se quisesse engolir as palavras de Chakliux.

Arranja outra pessoa para Mirtilo. Diz-lhe que está livre. Sok, és um bom caçador. Podes sustentar uma segunda esposa. Mirtilo já tem a sua própria cabana. Talvez nem precises de dote para a reclamar.

Sok e Raposa-Que-Ladra olharam para Chakliux como se ele fosse uma criança tola.

Tu não podes recusar aquilo que o teu avô te deu por sua morte salientou Raposa-Que-Ladra.

Alguns dizem que tu estás amaldiçoado insistiu Sok, com uma voz áspera como pedra. Se recusares Mirtilo e os cães, serás amaldiçoado. Não podes envergonhar o nosso avô dessa maneira.

Porém ao falar, Sok fazia grandes gestos no ar, como se quisesse expulsar Chakliux da cabana da mãe.

Mirtilo deve fazer luto durante uma lua afirmou Raposa-Que-Ladra. Depois, irás ter com ela. Se ela te desagradar, podes mandá-la embora. Se tu lhe desagradares, ela pode mandar-te embora, mas tu não podes recusá-la. Nem recusar os cães.

E os filhotes? Posso ceder os filhotes? perguntou Chakliux olhando para Raposa-Que-Ladra.

Todos eles já estão prometidos respondeu Sok. Um vai para Dorminhoco, outro para Raposa-Que-Ladra, dois são para Pato-de-Cabeça-Azul e um é para mim.

Ficarás com esse e com os outros. De todas as ninhadas prometeu Chakliux. Não quero o cargo de chefe dos caçadores do nosso avô. Deves ser tu o chefe dos caçadores. Tu é que tens as suas armas.

E tu tens os seus cães contrapôs Sok, e abriu as mãos como se fosse fazer uma pergunta. Veremos qual de nós é que os espíritos escolhem.

Pode não ser nenhum de vocês proferiu Raposa-Que-Ladra em voz baixa, mas riu-se quando Sok e Chakliux olharam para ele. Quem sabe o que os espíritos farão? O que mais podemos pedir senão que a aldeia tenha carne? Agora que o vosso avô morreu, temos de pensar primeiro na nossa barriga.

Yaa desatou a correr ao chegar à cabana de Ligige’. Era preferível não se aproximar muito. O espírito do velho podia estar à espreita, tentando encontrar alguém que o acompanhasse ao mundo dos mortos. Anoitecia e era então que os espíritos se descuidavam, atraídos pelos belos odores que vinham das chaminés e das lareiras.

Já mais à frente, Yaa olhou para trás por cima do ombro, para se certificar de que nenhum espírito a seguia. De repente, empurraram-na, com força.

Estúpida! Onde tens os olhos? gritou alguém. Yaa nem precisou de levantar a cabeça. Conhecia aquela voz. Era Dança-no-Gelo, um rapaz um pouco mais velho do que ela e com o dobro do seu tamanho. O rapaz debruçou-se sobre ela, que ficara sentada no chão. Yaa não disse nada. Ia distraída, mas ele também ia. Se ele a tivesse visto, a teria evitado. Ela era pequena; não ocupava o caminho todo.

Então aonde vais?

Yaa não respondeu. Levantou-se e sacudiu a neve das nádegas.

Dança-no-Gelo era mau. Obrigava outras crianças a fazer coisas perigosas com ameaças e desafios, e depois, quando alguém se aleijava, ia fazer queixa às velhas.

Não era bom corredor nem lançador. Não era hábil com a lança nem tinha jeito para pescar, mas sabia usar o medo. Era o que ele fazia melhor.

Não falas comigo? perguntou ele.

Yaa tentou contorná-lo, mas ele bloqueou-lhe o caminho.

Julgas que podes safar-te?

Me deixa em paz disse Yaa. A minha mãe pediu-me para ir buscar uma coisa.

O quê?

Uma coisa de que precisamos para o luto.

Yaa empurrou-o, mas ele agarrou-a pela manga e puxou-a para trás.

Não me toques. Posso ter alguma maldição disse ela.

Dança-no-Gelo deu uma gargalhada.

Não me importo que apanhes a minha maldição disse Yaa.

Dança-no-Gelo largou-a, mas aproximou o rosto do dela e disse.

Acho que tens razão. Tu tens uma maldição. Deves sair à Da... À morta, por ter morrido assim.

Yaa sorriu.

Por pouco não disseste o nome dela. Por pouco não te amaldiçoaste.

Dança-no-Gelo empurrou-a com força, com as duas mãos, mas Yaa estava preparada e conseguiu equilibrar-se.

Estavas na cabana quando ela morreu? perguntou Dança-no-Gelo.

Ela morreu lá fora respondeu Yaa.

Ouviste alguma coisa? Dança-no-Gelo não lhe deu tempo para responder e acrescentou em voz baixa: Acho que foi a tua mãe que fez aquilo. Foi ela, a esposa feia. Foi ela que a matou.

As palavras dele deixaram um nó na garganta de Yaa, que começou a sufocar. A mãe era uma mulher bondosa e terna. Nunca faria mal a ninguém. Furiosa, Yaa encarou Dança-no-Gelo e cerrou o punho.

Dança-no-Gelo fez um sorriso trocista e cuspiu-lhe na cara. Yaa bateu-lhe com toda a força que tinha. O murro acertou-lhe em cheio no nariz.

Dança-no-Gelo gritou e foi como se o seu grito tivesse feito jorrar o sangue, que lhe saiu das narinas e lhe chegou a boca e ao queixo.

A minha mãe é boa! gritou-lhe Yaa.

Deu meia volta e desatou a correr, sem olhar para trás, até chegar às lareiras. O seu coração batia tanto que ela o sentia nos ouvidos, e doía-lhe o pulso, mas estava radiante com o que fizera.

Encontrou um lugar no grupo de crianças que aguardavam comida. Cinco lareiras formavam um grande círculo no centro da aldeia. Junto de cada uma, viam-se grandes panelas de pele de caribu penduradas em tripés e espetos feitos de madeira verde enfiados no solo. Lebres e ptármigas, a pingar gordura, assavam em cada espeto.

Várias avós davam pedaços de comida às crianças mais pequenas, mas as mais crescidas eram ignoradas. As mulheres estavam atarefadas demais cozinhando para as famílias enlutadas.

Yaa pensou na carne que as mulheres já tinham levado para a cabana de Água Castanha, mas sabia que pouco receberia.

Subitamente, um vulto escuro atirou-se às crianças. O primeiro pensamento de Yaa foi para Dança-no-Gelo, e depois para os espíritos, mas, quando as outras crianças à sua volta começaram a gritar, ela percebeu que se tratava apenas de um cão. Arrastava a corda quando se aproximou correndo das lareiras. As mulheres, de conchas em riste, correram atrás dele, tentando afastá-lo das cabanas e dos cães dos maridos.

O cão atirou-se a um macho corpulento que estava preso ali perto. Os dois animais engalfinharam-se, tentando alcançar o pescoço um do outro numa mistura de pêlo branco e preto.

A maioria das crianças foi atrás das mulheres, gritando e rindo, mas Yaa deixou-se ficar para trás. Por um momento, as lareiras permaneceram sem ninguém. Ela desatou a correr como uma seta e agarrou num espeto em que assava uma lebre gorda.

O espeto estava quente, mas Yaa segurou-o bem e desatou a correr. Atravessou as sombras da aldeia, com a lebre agarrada ao corpo e mudando o espeto de uma mão para a outra até ele esfriar.

Só abrandou quando se aproximou dos abetos-negros que assinalavam um trilho estreito feito pelos animais e escondido debaixo dos ramos de uma árvore. Meteu-se debaixo do abeto e, agachando-se, conseguiu chegar à toca que descobrira há vários anos. Pegou no pau que deixava sempre à entrada e enfiou-o lá dentro. A toca estava vazia.

A entrada era tão estreita que ela teve de se arrastar de barriga para baixo, mas, já lá dentro, sentou-se de pernas cruzadas, com os cabelos roçando no teto de rocha e nas raízes das árvores.

Respirou fundo e enterrou os dentes na carne quente. Engoliu-a. Tinha o estômago tão vazio que nem podia esperar para mastigar. Sentiu a carne escorregar e um calor confortável por baixo das costelas.

Quem me dera que Ghaden estivesse aqui comigo proferiu ela, no caso de Daes estar ouvindo-a. Há comida que chegue para dois. Podíamos fazer um banquete.

Ao pensar em Ghaden, sentiu um nó na garganta que não a deixou engolir. Pensou em Dança-no-Gelo, no murro reconfortante que lhe dera no nariz. Riu-se. Depois a garganta abriu-se e ela conseguiu comer.

 

Cen abriu caminho no mato cerrado que crescia na margem e depois agachou-se até o coração abrandar. Não fazia sentido esconder-se. Com a neve macia, as suas pegadas eram fáceis de seguir mas, quando descansava, sentia-se mais seguro longe do rio. Aspirou o aroma limpo dos salgueiros à sua volta. A casca amarelada estava ganhando o tom verde-acinzentado da Primavera e os rebentos das folhas tinham começado a inchar, apesar de a neve ainda não se ter derretido nos pequenos ramos do tamanho de um dedo da mão.

Com uma necessidade premente de dormir, fechou os olhos, mas pouco depois acordou sobressaltado. Tinha que se afastar da aldeia o mais que pudesse. Com a mão direita, agarrou uma pequena faca. Trazia ao ombro o que restava de uma lança. Se eles tentassem agarrá-lo, mataria pelo menos um.

Depois de o Povo Rio o deixar partir, Cen limpara as feridas, mas sabia que ainda cheirava a sangue. Os lobos são mais perigosos do que o Povo Rio, pensou. Qual a alcatéia que hesitaria em atacar um ferido? Cen trazia amuletos pendurados ao pescoço, o amuleto que o tio lhe dera ao nascer e outros que ele comprara em aldeias tão distantes como Rio Grande. Talvez eles fossem suficientes para afastar os animais.

Gostaria de ter um amuleto dos Primeiros Homens, do povo de Daes. Eles eram poderosos, aqueles Caçadores Marinhos.

O Povo Rio mantivera-o preso o dia inteiro e obrigara-o a esperar no centro da aldeia que os velhos decidissem se ele podia partir. Estúpidos! Ele nunca mataria Daes nem o seu próprio filho. Já era duro sair da aldeia sem saber se o rapaz vivia ou morria. Mas para quê arriscar-se a que os velhos mudassem de opinião ou que mais alguém fosse encontrado morto? Fora um deles que matara Daes e o velho.

Durante o dia em que esteve preso, ninguém lhe dera nada para comer. Sem comida, o frio enterrara-se em seus ossos, mas, aproveitando qualquer distração, Cen aproximara-se cada vez mais das lareiras. Não teve oportunidade de roubar comida, mas o calor aliviou-lhe as dores, e ele conseguiu inalar o vapor que saía das panelas. Os xamãs diziam que os próprios espíritos viviam do fumo que a gordura fervente libertava. Se os espíritos conseguiam, os homens também conseguiriam.

Finalmente, quando o soltaram, os rapazes pequenos e os cães foram correndo atrás dele até os limites da aldeia. Antes de se aproximar das árvores, caíra duas vezes e sentira os golpes provocados pelos paus dos rapazes nos braços e nas pernas. Fora mordido numa mão e num tornozelo, mas por fim eles tinham voltado, permitindo que Cen se aproximasse da sua cabana. Aí verificou que os seus fardos estavam espalhados, que a maior parte das suas mercadorias e armas fora levada e que o cabo da única lança que restava estava partido. Tinham-lhe deixado uma mão-cheia de carne seca que ele enfiou na boca ainda antes de se servir do seu arco para acender de novo a fogueira.

Haviam levado os cobertores e as roupas mais quentes, mas não tinham tocado nos seus pacotes sagrados nem nas peles de pica-pau. As suas melhores parkas haviam desaparecido, tanto a mais pesada de pele de lobo, como a mais leve de pele de esquilo. O capuz da parka de pele de esquilo era feito de pedacinhos de pele da cabeça, cada uma das quais tinha apenas o comprimento de um dedo mindinho.

Quem levara as parkas deixara-lhe uma velha parka de pele de carcaju. Estava desgastada pelo bolor e cairia do corpo se ele não se mexesse com cuidado, mas era quente.

Cen, derretera neve numa panela assente num tripé e bebera a água gelada. Em seguida, dirigira-se aos fundos da cabana, levantara uma velha esteira cheia de mofo que pusera deliberadamente naquele local. Derretera o solo gelado com fogo e passara a primeira noite acordado para manter as brasas acesas até que o solo amaciasse o suficiente para ele cavar. Fizera um buraco, enterrara um saco de carne e de bolos de fruta e uma pequena reserva de obsidiana num cesto de erva.

Cen voltou para junto da fogueira, debruçou-se sobre ela e comeu dois bolos. Tinha a sola dos pés latejando e sempre que respirava era como se lhe enfiassem uma faca no peito. O pulso esquerdo estava inchado e tinha quase a largura da mão. Cen cobriu o pulso e a cara de gelo, na esperança de reduzir o inchaço que quase o obrigava a fechar os olhos. As dores confundiam-lhe os pensamentos, mas Cen forçou-se a decidir o que faria a seguir.

Tinham-lhe levado quase toda a mercadoria, mas tendo em conta os seus ferimentos, ainda era muito o que havia para transportar.

Cen era forte e capaz de puxar cargas pesadas num trenó feito dos postes da sua cabana. Tinha feito grampos de madeira que lhe permitiam unir os postes para construir um trenó e revestira alguns de tiras de osso para fazer os patins. Naquele momento não poderia puxar um trenó. Já lhe era difícil andar. Era obrigado a deixar tudo, até a cabana, levando apenas comida e os seus amuletos.

Cen reunira tudo o que levaria e embrulhara a carga numa das esteiras que lhe tinham deixado. Prendeu o fardo com vários atilhos, enroscou-se junto da fogueira e deixou-se dormir. Porque não? Se eles viessem à sua procura, o que ele faria?

Acordara ao sentir o fogo apagando-se. Pôs uma brasa na concavidade de um nó de madeira, pendurou-o ao pescoço e depois atou o fardo às costas. Ainda era noite quando saiu da cabana, apesar de já se avistarem os primeiros raios de sol por cima das árvores.

Fazia pequenas paradas, comia, até dormiu uma vez e depois esforçava-se por continuar andando.

De vez em quando, aliviava os pés e abria caminho por entre a vegetação até chegar à margem do rio. Caminhou até a exaustão o impedir de pensar, até os pés pareceram coisas que não lhe pertenciam nem sentir as dores nos ossos do pulso. De repente, viu-se de joelhos, sem se lembrar como caíra.

Fez um esforço para se levantar e pensou em Daes. Fora uma boa mulher, demasiado boa para morrer na aldeia de Rio Próximo, onde não tinha ninguém que a chorasse.

A raiva deu-lhe forças. Os seus passos recuperaram a firmeza na neve. Se vingaria e desse modo Daes seria lamentada. Ela tinha uma filha. Falava dela muitas vezes. Cen julgava lembrar-se dela. Era uma moça com dez ou doze Verões, nesse tempo. Agora devia ser uma mulher e talvez já tivesse filhos.

Cen tinha que ir lhe dizer que a mãe morrera. Recordou a imagem dela. Era muito parecida com Daes. Sim, ele tinha que ir aos Primeiros Homens, tinha que lhes contar o que acontecera a Daes e a Ghaden. Talvez alguns dos caçadores estivessem dispostos a ajudá-lo a vingar a morte da mulher.

Um dia depois da cerimônia fúnebre, Chakliux foi falar com Mirtilo. Sem Tsaani, a cabana parecia vazia e gelada.

Mirtilo não olhou para ele. De cabeça baixa, fez-lhe sinal para que fosse para o outro lado da lareira, para o lugar em que Tsaani se sentava sempre, mas Chakliux não quis assumir uma honra que não lhe pertencia. Mirtilo levou-lhe uma tigela de carne quente e de caldo cheio de gordura derretida e temperado com folhas de azeda. Chakliux levou a tigela à boca e empurrou a carne com os dedos.

É bom. Muito bom, afirmou ele.

Então, ela olhou para ele e Chakliux viu que os olhos dela estavam inchados e vermelhos e que ela cortara o cabelo de tal modo que este formava tufos irregulares à volta das orelhas.

Doeu-lhe o peito ao ver o sofrimento da mulher.

Partilho o teu desgosto disse ele. Mirtilo franziu a testa.

Porquê? perguntou ela. A morte do teu avô deu-te uma esposa. Julgas que eu não ouço as gargalhadas das mulheres? Julgas que me sinto orgulhosa por receber aquilo que Neve-no-Cabelo não quis?

Chakliux não conseguiu responder. Vivia há pouco tempo na aldeia de Rio Próximo mas fora muitas vezes àquela cabana. Mirtilo sempre lhe parecera uma mulher silenciosa, incapaz de insultar fosse quem fosse.

É do desgosto, pensou Chakliux.

Não pretendo ser o que o teu marido era, mas sempre fui um caçador. Trarei alimento para a cabana. Tu e os teus filhos terão o suficiente para comer prometeu ele.

Esses filhos serão lontras ou gente? perguntou Mirtilo.

Subitamente enfurecido, Chakliux disse:

Ninguém te obriga a seres minha esposa.

Julgas que desagradarei ao meu marido, que o desonrarei recusando o que ele pede?

Como é que honras o teu defunto marido se tratas o neto dele com desprezo?

Ela semicerrou os olhos e abriu a boca para falar, mas nesse momento alguém raspou na aba da porta.

Entre! gritou Mirtilo, ainda com a raiva na voz. Sok entrou. Por instantes, ficou agachado ao fundo do túnel, olhando para ambos. Mirtilo virou as costas aos homens e foi para a zona das mulheres.

Sok fez um esgar como se ela não estivesse ali e disse a Chakliux:

Está frio aqui. O que aconteceu à mulher a quem pertence esta cabana? Não consegue manter uma lareira acesa?

Sok pegou alguns pedaços de lenha, acendeu o lume e depois fez sinal a Chakliux para que se sentasse a seu lado. Chakliux agachou-se.

Deixa-a chorar o marido disse ele em voz baixa.

Ela não quer ser esposa outra vez? perguntou Sok.

Não comigo.

Muitas vezes as jovens são estúpidas, comentou Sok, falando em voz alta e virando a cabeça para que Mirtilo ouvisse as suas palavras.

Há comida, disse Chakliux, apontando para a panela.

Sok pegou uma tigela e encheu-a. Depois agachou-se ao lado do irmão. Comeu durante pouco tempo e depois disse:

Isto não me parece certo sem o nosso avô.

Subitamente, Mirtilo virou-se, de olhar carregado e dentes cerrados. Com um gesto indelicado, apontou para Chakliux e disse-lhe num tom de desafio:

Chakliux, há uma coisa que tens de saber. Foi o teu avô que resolveu abandonar-te. Foi ele que te tirou da tua mãe e que te deixou entregue à tua sorte. Sabes isso?

Sei, respondeu Chakliux em voz baixa.

Ela levantou-se, boquiaberta. Em seguida, agarrou um cobertor de pele de lebre e embrulhou-se nele.

Na opinião dele, tu não devias viver observou ela. Ele queria que tu morresses. Porque ele me diria para eu ser tua esposa?

A mulher pronunciou as últimas palavras por cima do ombro e saiu da cabana.

Sok estendeu o braço e pousou a mão no ombro de Chakliux.

Não posso ser marido dela declarou Chakliux.

Serias capaz de desonrar o nosso avô recusando-a? perguntou Sok. Deixa-a em paz. Não entres nesta cabana senão para trazer carne. A seu tempo, ela reconhecerá que o nosso avô tinha razão.

Chakliux não disse nada. Naquele momento, mais do que nunca, desejava regressar à sua aldeia, ao seu povo. Ficaria onde não era desejado, amarrado a um lugar por cães e por uma mulher que o odiava?

Há outro assunto em que temos que pensar, disse Sok, e as suas palavras foram tão arrastadas e tristes que Chakliux susteve o fôlego enquanto aguardava o que o irmão tinha a dizer. Morreram mais cães.

De quem eram? perguntou Chakliux.

De Pato-de-Cabeça-Azul. Chakliux passou uma mão pela face.

Os velhos estão reunidos neste momento para resolver o que há a fazer. Pediram-me que fosse falar com eles ao meio-dia. Para saber o que eles têm a dizer.

Diz-lhes que eu partirei desta aldeia decidiu Chakliux. Estou farto. Ficarei muito satisfeito por voltar para junto do meu povo.

Chakliux não olhou para Sok, nem quis ver se havia mágoa no olhar do irmão.

Sok encontrava-se no meio dos velhos. Cada um era respeitado à sua maneira, por qualquer habilidade, pelo que sabia.

Foi Treina-Cães quem falou. Tinha mais cães do que qualquer outro homem da aldeia. Agora que Tsaani morrera. Treina-Cães era considerado o mais sabedor na matéria

Têm morrido muitos cães, muitos que não estavam doentes ou feridos, nem eram velhos. Os filhotes nascem mortos ou fracos demais para sobreviver. Nunca tivemos problemas destes até o teu irmão chegar. O xamã de Rio Primo disse-nos que Chakliux era um homem com poderes animais, uma dádiva dos animais. Mas nós, os desta aldeia, lembramo-nos do dia em que a tua mãe deu à luz, lembramo-nos do seu desgosto por ter de desistir de um filho, porque ele não seria capaz de andar nem de correr

Pensamos que ele deve sair da aldeia. Admitimos que ele seja a causa do nosso azar com os cães. Também dizem que foi alguém da aldeia dele, algum caçador que queria levar os nossos jovens a atacar, que matou o teu avô e a mulher dos Caçadores Marinhos.

O meu irmão sabe de tudo o que acabas de dizer respondeu Sok. Ele não quer levantar problemas aqui. Ele veio trabalhar pela compreensão, para que a sua aldeia e a nossa pudessem continuar a viver em paz.

Alguns de nós pensam que o teu irmão tem que sair da nossa aldeia, insistiu o velho que dizia chamar-se Pato-de-Cabeça-Azul. O homem tinha muitos filhos, todos vivos. Olhou para Treina-Cães, apesar de ele estar falando com Sok.

Mas alguns de nós consideram que ele tem poder. Uma criança que foi abandonada para morrer e que não morreu, tem algum favor dos espíritos. Uma criança que não conseguia andar, mas que cresceu e pode andar, ultrapassou de certo modo a sua maldição.

Mas os cães estão morrendo repetiu Treina-Cães. Julgas que esta aldeia sobreviverá se os nossos cães morrerem? E, se tivermos um Inverno de míngua, o que comeremos? Como iremos para o pesqueiro? Queres que sejam as nossas mulheres transportando tudo?

Bem sabes que eu quero que os nossos cães vivam disse Pato-de-Cabeça-Azul com um ar paciente. Mas porque desperdiçaríamos poder?

O meu irmão é diferente de todos nós afirmou Sok. As suas palavras eram cautelosas e lentas. Ele tem poderes que não compreendemos. Isso é motivo para o acusarmos do que aconteceu? Devíamos antes pensar como é que ele poderia ajudar-nos. Vocês sabem que muitas vezes tentamos que o povo de Rio Primo nos vendesse um dos seus cães, aqueles de olhos dourados que os antepassados deles compraram dos seguidores de caribus que vivem lá para o Norte. E se Chakliux conseguir um desses cães para nós? Talvez isso bastasse para anular a sua maldição.

Durante muito tempo, ninguém falou. Por fim, Treina-Cães proferiu:

Diz ao teu irmão que venha falar comigo. Lhe pedirei para ir visitar a aldeia de Rio Primo e para fazer bons negócios.

Raposa-Que-Ladra desviou o olhar do lume.

Esse plano parece-me um disparate observou ele, roncando. O que tem Chakliux para negociar? Ele não tem nada exceto os cães e a esposa do avô.

A minha neta não sairá daqui disse outro dos velhos, pai da mãe de Mirtilo.

Então Chakliux irá sozinho e todos nós lhe daremos coisas para negociar, para que cada um de nós tenha o seu quinhão de sorte disse Treina-Cães.

Era uma boa idéia, pensou Chakliux. Se ele fosse bem sucedido, voltaria dali a uma lua, e traria cães da sua aldeia para os homens de Rio Próximo. Os cães criados na sua aldeia eram maiores e mais fortes do que aqueles, embora não tão dados à luta. Os poucos que possuíam olhos dourados eram conhecidos por terem poderes especiais, mas os caçadores da sua aldeia não se separariam deles com facilidade.

Um homem conseguia quase tudo em troca de uma ninhada de cães de olhos dourados. Tudo exceto um iqyax como os dos Caçadores Marinhos, pensou Chakliux. Os comerciantes diziam que os Caçadores Marinhos não tinham cães. Porque teriam? Não eram como o Povo Caribu, que ia atrás das manadas quando estas se deslocavam, na Primavera e no Outono; não eram como esta aldeia de Rio Próximo, onde os cães serviam para caçar ursos. Eles não morriam de fome no Inverno nem comiam os seus cães Quem morreria de fome onde havia baleias para caçar?

Os velhos de Rio Próximo disseram-lhe que ficariam satisfeitos com um cão de olhos dourados. Macho ou fêmea, velho ou novo, desde que não fosse velho demais para acasalar. Agora que Chakliux estava na cabana de Sok, escolhia as mercadorias que lhe tinham dado, todas embaladas em cestos de pele de peixe, cujas costuras haviam sido reforçadas com debruns de pele de caribu e enfeitadas com penas verdes da cabeça de um merganso macho. Alguns cestos estavam cheios de peles de castores apanhados no começo do Inverno, quando o seu pelo era espesso e brilhante, outros levavam bolos de fruta, carne seca ou peixe defumado.

Pato-de-Cabeça-Azul enviara três belas parkas de pele de lobo debruadas de pele de carcaju; Sok oferecera perneiras de pele de caribu, contas de conchas e uma mão-cheia de lâminas estreitas de sílex que se podiam enfiar num cabo afiado de osso ou de marfim para fazer uma ponta de lança que provocaria um grande derramamento de sangue e uma morte rápida. Outros tinham levado redes de pesca de casca de salgueiro e cobertores de pele de lebre, lâminas de jade, óculos para a neve de chifre de caribu, raspadores, facas de mulher, armadilhas de pesca de osso e marfim e até um arco incendiário. O suficiente para comprar vários cães, Chakliux tinha a certeza disso.

Sok emprestara-lhe o trenó. Era grande e resistente, com a estrutura e os patins de madeira de bétula e a carcaça feita de raízes de salgueiro entrelaçadas. Os patins estavam revestidos de marfim de morsa que Sok comprara. Nos dias mais frios, quando a neve parecia areia, ou nas épocas mais quentes, quando se tornava pegajosa, um homem podia urinar nos patins. Quando a urina gelava, formava uma fina camada de gelo que deslizava facilmente em qualquer tipo de neve.

Chakliux atou tudo o que lhe fora oferecido ao trenó e depois juntou as botas, a parka, as perneiras e as lanças de que precisaria para a viagem. Também juntou um embrulho com as suas próprias coisas para negociar. Talvez conseguisse trazer um cão só para ele.

Topa-Nuvens, primo de K’os, tinha vários cães de olhos dourados. Talvez estivesse disposto a trocá-los, e essa seria uma maneira de Chakliux conseguir um iqyax, pelo menos se negociasse com os Caçadores de Morsas. Diziam que os iqyax deles não eram tão bons como aqueles que eram feitos pelos Caçadores Marinhos, mas, ao contrário destes, os Caçadores de Morsas tinham cães.

Estás pronto? perguntou Sok assim que ele entrou na cabana.

Estou. Tenciono partir de manhã.

Folha Vermelha está na lareira da comida. Ela e muitas das velhas prepararam um banquete. Todos comerão juntos. Anda, que haverá tambores e danças. O que vais fazer dá-nos motivos para festejar.

Chakliux foi atrás de Sok para as lareiras da comida. Ficaria lá durante algum tempo e depois iria ver Mulher Diurna antes de partir. E também Mirtilo. Nenhuma das visitas seria fácil.

Uma velha ofereceu a Chakliux uma tigela de comida, mas a maior parte das pessoas manteve-se à distância, observando-o pelo canto do olho. Chakliux pegou na tigela e depois foi se juntar a Sok.

Este encontrava-se no meio de um grupo de homens, contando histórias de caça. Calou-se ao ver Chakliux e fez-lhe sinal para que fosse ao seu encontro. Depois, começou a gabar-se das habilidades do irmão.

Por delicadeza, Chakliux ficou ouvindo-o, mas descobriu que não conseguia olhar para os que estavam à sua volta enquanto Sok falava. Não estava habituado a ouvir falar das suas caçadas. Mas era bom ser conhecido como caçador. Era hábil no manejo da lança; praticara muito em criança, convencido de que um braço forte compensaria uma perna fraca.

Por fim, Sok terminou. Os homens olharam para Chakliux e ele percebeu que estavam à espera que ele contasse uma história acerca de Sok.

Fora várias vezes à caça com o irmão, e Sok saíra-se bem, mostrara coragem, apesar de ser duro com os cães. Chakliux sabia falar dessas caçadas mas, ao contar tais histórias, havia muitas formas de um homem ser apanhado em desrespeito. Cada aldeia possuía a sua maneira própria de elogiar.

Era melhor falar com sinceridade, pensou Chakliux, do que arriscar-se a amaldiçoar o irmão.

Alguém sabe que o irmão é um caçador respeitado... começou ele, sorrindo para Sok.

Sok devolveu-lhe o sorriso e vários homens teceram elogios ruidosos.

Um dia continuou Chakliux, alguém o honrará com histórias que ficarão na língua dos homens durante um Inverno de noites, mas, quando um homem ainda não conhece todos os costumes de uma aldeia, é muito fácil amaldiçoar quando está elogiando.

Chakliux encarou os homens, enfrentou o seu olhar e viu-os erguer a sobrancelha em sinal de concordância.

Na aldeia de Rio Primo há uma tradição iniciada pelos contadores de histórias, afirmou Chakliux. São os enigmas. Eu digo-vos o que vejo e cada um tem de procurar adivinhar em pensamento de que falo eu. Até os avós ensinam os netos através de enigmas. Por isso, escutem, e tentem adivinhar do que eu estou falando.

Chakliux olhou para o círculo de homens. Tinham-se aproximado mais, aos dois e aos três, com ele e Sok no meio. Quase todos traziam tigelas de comida na mão e vestiam parkas, mas alguns vinham embrulhados em cobertores de pele, como se fossem apenas buscar comida e regressassem depois ao calor das suas cabanas. Chakliux olhou para o rosto de todos, não para mostrar desrespeito mas para que soubessem que ele se sentia igual a eles, um caçador na presença de caçadores.

Olhem! O que vejo eu? disse ele, começando à maneira tradicional da sua aldeia. Vai longe, cantando, e Sok é o primeiro a encher-lhe a boca de carne.

Chakliux ficou à espera. Na sua aldeia, havia homens que sabiam desvendar um enigma e a resposta seria rápida. Qual o caçador que nunca ouvira a voz da sua lança depois de ela deixar o lançador?

Vários homens começaram a falar em voz baixa e quase raiando a irritação, de tal modo que Chakliux perguntou a si próprio se, ao evitar uma maldição, não teria caído noutra.

Há um segredo para cada enigma explicou Chakliux, tentando ultrapassar o mal-estar dos caçadores de Rio Próximo. Vou dizer-vos este e vocês serão dos poucos homens que sabem.

Então, da mesma maneira que Chakliux ouvira os avós falarem com os netos por enigmas, explicou a sua adivinha aos homens de Rio Próximo.

Todos os homens conhecem a voz da sua lança quando ela sai das suas mãos.

Vários homens riram-se, com o riso ruidoso da compreensão súbita.

E quem come primeiro? perguntou Pato-de-Cabeça-Azul. Ainda antes do caçador.

A sua lança! gritaram vários homens.

Então a resposta é a lança de Sok disse Narceja. Um por um, os caçadores começaram a rir, um riso que indicava que os seus corações estavam satisfeitos com o que tinham aprendido. Então Chakliux esgueirou-se e segredou a Sok que ia visitar a mãe e Mirtilo.

Leva comida disse-lhe Sok.

Chakliux dirigiu-se a uma das mulheres mais velhas, aquela que parecia dizer às outras o que tinham a fazer. Pediu-lhe comida, qualquer coisa para levar à mãe e algo mais para Mirtilo. A mulher encheu dois pequenos sacos de pele de caribu de carne e caldo e deixou cair uma pedra quente em cada um. As pedras assobiaram e estalaram ao enterrarem-se na carne.

Chakliux levava os sacos à sua frente. Quando chegou à cabana da mãe, raspou e gritou e depois agachou-se para entrar no túnel.

A mãe estava sentada às escuras, apenas com umas brasas na lareira e a cara negra de fuligem de outros fogos.

Virou a cabeça quando ele pendurou os sacos de pele de caribu num poste. Chakliux tirou uma tigela de carne e deu-a a ela.

Come disse ele. Até durante o luto uma pessoa tem que comer.

A mãe pegou na tigela mas não a levou à boca.

Não é o luto que afasta a comida da minha boca. É o medo. Por ti, disse ela levantando a cabeça.

Ele agachou-se junto dela, meteu dois dedos na tigela e tirou um pedaço de carne. Meteu-a na boca. Ela começou a comer devagar.

Bem sabes que eu vou apenas à aldeia de Rio Primo, explicou ele. Nada me acontecerá lá.

Do olho esquerdo de Mulher Diurna caiu uma lágrima que lhe rolou pela face.

E se eles descobriram que tu és... Calou-se, limpou o rosto ao ombro e depois continuou:

Disseste-me que eles julgam que és uma dádiva dos animais. E se eles descobrirem...

Se eles ainda não souberem, eu lhes direi, respondeu Chakliux. Sou a mesma pessoa. Ainda sei as histórias do Povo; ainda sei nadar, ainda tenho a marca da lontra E se o que eu lhes disser os irritar, voltarei para cá. Se não me quiserem aqui, encontrarei outra aldeia. Há muitas aldeias. Mais do que aquelas que um homem poderia visitar durante a vida.

Chakliux meteu-lhe outro pedaço de carne na boca.

Julgas que ficarei mais forte sabendo que a minha mãe está matando-se de fome na sua cabana? Julgas que isso tornará a minha viagem mais fácil?

Mulher Diurna parecia ter envelhecido desde que Chakliux chegara à aldeia. Tinha mais cabelos brancos. Mas apesar das rugas na face e dos cabelos grisalhos, ainda era uma bela mulher, com os ossos salientes debaixo da pele.

Na aldeia de Rio Primo fazemos isto declarou Chakliux. Arrancou vários cabelos da cabeça, enrolou-os nas mãos e depois deu um nó. Comprimiu o nó na palma da mão da mãe.

Põe isto no teu amuleto. Deixa-o lá ficar. Isto me fará voltar.

Ela agarrou nos cabelos com as duas mãos. Chakliux levantou-se.

Agora tenho de ir ver Mirtilo disse ele, percebendo o ar de preocupação da mãe.

Sim, qual a mãe que não ficaria inquieta, pensou Chakliux, quando em pouco mais de uma lua duas mulheres diziam ao filho que não o queriam para marido?

Depois de Gguzaakk, ter morrido, Chakliux parecia não sentir nada, nem sequer a necessidade de uma mulher. Porém, à medida que as luas iam passando, a dor transformava-se num sofrimento monótono, algo com que ele conseguia viver. Voltou a comer e a gostar da sua comida; caçava e festejava cada matança; por fim, sentiu de novo a necessidade de uma mulher.

Tanto Neve-no-Cabelo quanto Mirtilo eram agradáveis à vista. Ele não podia negar que as desejava, mas ainda assim o desejo não era tão forte como nos seus tempos de juventude. Agora, ele podia esperar. Não se casaria só para ter uma mulher na sua cama.

A cabana de Mirtilo estava bem iluminada e, quando Chakliux raspou, ela respondeu com uma voz alegre. Ao vê-lo, mostrou-se surpreendida.

Tinha o rosto limpo e vestia boas roupas; nada roto nem sujo que indicasse o luto.

Então, era porque esperava alguém, pensou Chakliux ao pendurar o saco da carne num poste da cabana.

As mulheres mandaram comida disse Chakliux apontando para o saco.

Queres comer? perguntou ela. Chakliux ficou olhando para ela.

Está mais alguém para chegar? perguntou. Não, respondeu ela.

Já não estás de luto pelo teu marido?

Chakliux olhou para o rosto limpo e para os cabelos penteados e entrançados da mulher.

Mirtilo cobriu a face com as mãos e depois levou os dedos às tranças. Mordeu o lábio e disse:

Esta noite tive um sonho. Com o teu avô. Ele disse-me que não queria a mulher dele suja. Disse que a queria bonita para que todos vissem que ele tinha uma boa mulher.

Chakliux ouviu-a, reparou nos movimentos frenéticos das suas mãos e na freqüência com que a língua lhe saía da boca para lamber os lábios.

Tenho fome disse Chakliux, agachando-se enquanto ela enchia uma tigela. O caldo caiu-lhe nos dedos quando ela lhe deu.

Chakliux não disse nada. Limpou as mãos às perneiras e sorriu. Comeu, esvaziou a tigela e estendeu-a para que ela a voltasse a encher.

Ouviste dizer que eu vou à aldeia de Rio Primo? perguntou ele.

Ouvi respondeu ela, com uma alegria furtiva no olhar.

Chakliux pegou a tigela para beber o caldo. Levantou-se e aproximou-se de um monte de peles que se encontrava na cabana. Tirou várias e fez uma cama ao fundo da cabana.

Entre o meu povo, antes de uma viagem, é costume dormirmos na cama com a pessoa que esperamos que volte.

A... Aqui não é costume gaguejou ela. Chakliux, porém, deitou-se nas peles, tapou-se com uma e fechou os olhos. Pouco depois, ouviu alguém a raspar na aba da porta. Abriu os olhos e viu Mirtilo correr para o túnel de entrada, mas desembaraçou-se rapidamente das peles e foi o primeiro a chegar.

Busca-Raízes encontrava-se lá fora, boquiaberto. Chakliux lembrava-se dele durante a caçada ao urso.

Mirtilo está à tua espera disse Chakliux ao homem, mas Busca-Raízes recuou, falando em voz baixa. Escorregou na neve e ficou de quatro.

Chakliux entrou na cabana. Mirtilo estava de costas para ele.

Julgas que eu sou parvo? perguntou-lhe Chakliux. Percebi o que estavas a tramar assim que entrei na tua cabana.

Mirtilo não disse nada.

Não dormirei aqui esta noite declarou Chakliux. Não creio que me apeteça voltar a esta cabana nem à tua cama. Julgas que Sok não gostará de saber o que aconteceu? Bem sabes que ele anda à procura da pessoa que matou o teu marido. Pergunta a Busca-Raízes se ele perdeu uma faca.

Chakliux saiu da cabana e contornou a aldeia para não ter de passar pela multidão que se aglomerava junto das lareiras da comida. Os tambores já rufavam; estava a escurecer. Se ele quisesse partir de manhã cedo, seria melhor ir dormir do que ir dançar.

Dirigiu-se à cabana de Folha Vermelha. Estava vazia. Desenrolou a sua cama e estendeu as peles. Tentou descontrair-se e dormir, mas os pensamentos afastavam-lhe os sonhos.

Mirtilo fora uma boa esposa para o avô, ou andara a meter Busca-Raízes às escondidas na sua cabana quando o velho não estava?

Se assim fosse, Chakliux esperava que Tsaani não tivesse sabido. Suspirou. Se preocuparia com ela mais tarde, depois de regressar. Pelo menos, tinha um motivo para a rejeitar. Desse modo, havia menos uma coisa a ligá-lo àquela aldeia. A mulher nem merecia que pensassem nela.

A ida à sua aldeia era mais importante. Estava ansioso por ver o pai, Bate-no-Chão, e precisava de falar com a mãe, K’os. De manhã, antes de partir, iria ter com Pato-de-Cabeça-Azul. Talvez o homem soubesse alguma coisa que ajudasse Chakliux a lidar com a mãe. Tinha que saber se ela estava por trás dos assassinatos da aldeia de Rio Próximo. Não lhe passava pela cabeça que tivesse sido ela a matar Tsaani ou Daes. Se o quisesse fazer, seria mais provável que tivesse convencido algum jovem a fazê-lo por ela. Mas quem saberia ao certo?

Afinal, ela matara Gguzaakk.

 

Yaa levantou a cabeça e ficou olhando para o orifício da fumaça. Talvez o céu estivesse clareando, pelo menos um pouco. Passara a noite acordada, oscilando entre estranhos arremedos de pensamentos que não eram exatamente sonhos.

Tentara tudo aquilo que costumava fazer quando não conseguia dormir: contar, nomear as amigas, recordar-se de brincadeiras e contar histórias a si própria. Por fim, esgueirara-se da cama e aproximara-se da panela. Se tivesse alguma coisa que comer, talvez fosse útil, pensou. Mas até na escuridão Água Castanha a vira.

A mulher saltara da cama, pegara a concha e batera nos nós dos dedos de Yaa. Por isso Yaa estava deitada, não só tentando dormir como tentando ignorar o latejar da mão.

Só numa lua, houvera muitas mudanças na cabana. Primeiro Daes fora assassinada e Ghaden fora viver com Lobo-e-Corvo. Depois, há cinco dias, o pai de Yaa morrera. A dor desta morte estava ainda tão fresca que era mais forte que a da mão.

Na primeira noite depois da morte dele, Yaa sonhara com o pai e com Daes. Eles tinham-na chamado. Desde então, custava a adormecer e, quando adormecia, acordava sobressaltada e em pânico, com o coração batendo com tal força que parecia saltar-lhe do peito.

Durante o dia, Yaa fazia os seus trabalhos a custo, o que lhe valia surras e repreensões até lhe doerem as costas e já não poder ouvir os gritos de Água Castanha. Mas na véspera, Lobo-e-Corvo fora à cabana e comunicara a Água Castanha que Ghaden estava pronto para voltar. Depois de uma noite de cânticos e de preces, o homem levaria Ghaden para a cabana de Água Castanha.

As palavras de Lobo-e-Corvo animaram o mundo cinzento de Yaa. De repente, conseguia fazer as coisas como no passado, sem se embaraçar nem tropeçar.

Ajudara a mãe a preparar a cama de Ghaden. Tinham arejado os seus cobertores de pele de lebre e enfiado amuletos para dar sorte debaixo das esteiras de erva da cama.

Quando acabaram, a mãe de Yaa virou-se para ela e ordenou:

Agora vai buscar a tua cama e põe-na aqui ao lado da de Ghaden. Água Castanha e eu decidimos que tens de ser tu a tratar dele. A Primavera não tarda e nós teremos muito que fazer.

Sorrira-lhe e Yaa ficara com um nó na garganta. Nessa noite, teve a certeza de que iria dormir mas, apesar de querer sonhar, parecia que os músculos lhe dançavam debaixo da pele. Agora faltava pouco para amanhecer e Yaa tinha a certeza de que passara a noite acordada.

Ouviu Água Castanha tossindo por causa da fumaça da lareira e, entreabrindo os olhos, viu a mulher levantar-se e espevitar as brasas na escuridão da cabana. Fechou os olhos para se proteger do clarão do lume e nesse momento devia ter adormecido porque, pouco depois, Água Castanha abanou-a até ela acordar, chamando-lhe gaivota, uma ave preguiçosa que roubava as lareiras da comida e os estrados da carne.

Yaa abriu os olhos e levantou-se de um salto, vestiu a parka e saiu correndo para ir buscar lenha. Batia com os pedaços no chão para sacudir a neve. Três dias antes, houvera uma tempestade mas, desde então, só espessas camadas de geada se tinham acumulado nos telhados de pele de caribu das cabanas, estalando e refletindo a luz clara da manhã.

Todos os dias o Sol nascia mais cedo. Yaa detectava as diferenças na atmosfera, como se dos ramos nus e quebradiços das árvores se libertasse o primeiro aroma das folhas prometidas.

Yaa levou seis braçadas de lenha para a cabana e ia a sair para ir buscar mais quando Água Castanha gritou:

Chega!

Apontou com a cabeça para a panela, dando a entender a Yaa que podia comer.

Yaa comeu uma tigela de carne e depois sentou-se para fazer uma esteira. Tecer não era o seu trabalho favorito. Parecia-lhe sempre que a erva seca se colava aos dedos, e o ambiente fumacento da cabana fazia-lhe arder os olhos. Mas era melhor do que costurar, pensou.

A sua tarefa matinal favorita era ocupar-se de uma das panelas nas lareiras da aldeia. Gostava de ouvir as mulheres conversando. Falavam dos maridos com risinhos, e Yaa sabia segredos de muitos caçadores, de homens que caminhavam de queixo empinado, envergando parkas enfeitadas com conchas e penas.

O velho Pato-de-Cabeça-Azul, respeitado por caçar muitos caribus, gostava que lhe coçassem as nádegas à noite, antes de adormecer, e Narceja, cujo má aparência levava as crianças a afastarem-se dele, tinha medo de ratos-silvestres.

Todavia, nessa manhã Yaa tinha que ficar na cabana. Se ia tomar conta de Ghaden, tinha que lá estar quando ele voltasse para casa.

Ghaden acordou ao som de Flor Azul fazendo a comida. Cheirava bem. Estava esfomeado. Rolou o corpo para o lado e conseguiu levantar-se.

A dor estava lá, agarrada a ele com dedos de unhas aguçadas, mas o pior já passara. Ainda lhe custava respirar fundo. Todos os dias a velha Ligige’ ia vê-lo, obrigava-o a levantar-se e a encher o peito de ar até ele ser obrigado a tossir. Às vezes, quando a ouvia chegar, fingia que estava dormindo. A princípio, o truque dera resultado. A velha fora-se embora, prometendo voltar no dia seguinte, mas agora, quando ele fingia, ela limitava-se a abaná-lo até ele concluir que assim era pior do que respirar fundo.

Aquilo ajudava-o, afirmava Boca Feliz, dizendo-lhe que ele tinha que obedecer a Ligige’ e comer, mesmo que não tivesse fome. Depois, recuperaria as forças e poderia voltar para a sua cabana. Sim, ele queria ir para casa, mais do que tudo, ainda mais do que ver-se livre das dores.

Ghaden, estás acordado? perguntou Flor Azul.

Ghaden sorriu. A mulher fazia-lhe lembrar a mãe.

Tenho fome disse ele.

Fome? Ótimo!

Flor Azul encheu uma tigela de comida e entregou-a. Ghaden cruzou as pernas e pousou a tigela no colo. Meteu os dedos no caldo e tirou um pedaço de carne.

É hoje? perguntou ele a Boca Feliz. Ela ergueu as sobrancelhas e respondeu:

Sim, é hoje.

O seu riso aumentou de tom e saiu-lhe da boca como as bolhas de saliva que Yaa e ele faziam com os lábios. Nesse dia poderia voltar para a cabana de Água Castanha. Nesse dia veria a mãe.

Lobo-e-Corvo chegou quando o Sol já ia alto no céu. A espera arrepiara Yaa. A menina deu um salto ao ouvir raspar na porta, mas Água Castanha fez-lhe sinal para que se deixasse ficar sentada. Ela suspirou e voltou a por a esteira no colo, fez mais uma volta na erva entrançada e serviu-se de um osso de pássaro com nódulos para a puxar.

Água Castanha cumprimentou Lobo-e-Corvo. Yaa ficou desapontada ao ver que Ghaden não vinha com ele mas, depois de algumas palavras de cortesia, o homem enfiou a cabeça no túnel de entrada e chamou a mulher, que entrou com Ghaden ao colo.

O rosto de Ghaden era um círculo pálido enfiado em peles. Yaa achou-o mais magro, apesar de o ter ido visitar muitas vezes.

Água Castanha apontou para a cama do rapaz e Flor Azul levou-o para lá e instalou-o no meio dos cobertores.

Yaa disse Água Castanha, e levantou o queixo na direção do rapaz.

Agradecida, Yaa enrolou a esteira e foi-se sentar ao lado do irmão. Flor Azul acariciou-lhe a cabeça, deixou-os e foi juntar-se aos adultos junto da lareira. Água Castanha ofereceu-lhes comida e Boca Feliz encheu as tigelas. Em seguida, virou-se para Ghaden e perguntou-lhe se ele tinha fome.

O rapaz abanou a cabeça mas tentou sentar-se. Atrás dele, Yaa apressou-se a ampará-lo pelos ombros.

Ele diz que não, disse ela à mãe, inclinando-se em seguida para ouvir o que Ghaden estava dizendo em voz baixa.

A minha mãe. Onde está a minha mãe? Onde está? perguntou ele.

Yaa abriu a boca mas não soube o que responder. Ninguém lhe dissera que Daes morrera? Ninguém lhe explicara que ela não estaria ali? Yaa olhou para Lobo-e-Corvo, para as penas imponentes que ele trazia na cabeça e para os amuletos que tinha ao pescoço. A mulher estava muito bem vestida, com uma parka de pele de carcaju enfeitada nos ombros com aplicações de pele de doninha-branca. Estava contando uma anedota. Água Castanha e a mãe de Yaa riam.

Yaa teve vontade de lhes gritar, de as interromper indelicadamente e de lhes perguntar o que haviam dito a Ghaden. Talvez não tivessem dito nada. Talvez esperassem que fosse ela a dizer-lhe que Daes morrera.

Eu quero a minha mãe disse Ghaden outra vez, e Yaa viu o brilho das lágrimas nos olhos dele.

Inclinou-se para a frente, encostou os lábios ao ouvido de Ghaden e proferiu:

A tua mãe foi ferida, como tu, irmãozinho. Ferida demais para melhorar. Teve de ir viver com os espíritos. Agora está lá.

Ghaden virou a cabeça e olhou para ela.

Quando é que ela volta? perguntou.

Durante muito tempo não poderá voltar respondeu Yaa, esperando estar falando a verdade, esperando que Daes estivesse contente por os deixar.

Ghaden arregalou os olhos. Meteu o polegar na boca e começou a chupá-lo, uma coisa que Yaa não o via fazer desde bebê.

Não te preocupes. Continuarás a viver aqui conosco prometeu Yaa.

Ghaden tirou o dedo da boca, com um estalido. Cerrou os lábios e, por instantes, o seu pequeno rosto de criança fez lembrar o de Daes. Olhou para o círculo de pessoas que rodeavam a lareira. Várias outras tinham entrado na cabana. Neve Preguiçosa, que morava na cabana ao lado, trouxera um cesto de vacínios secos. Talvez tivesse visto Lobo-e-Corvo levando Ghaden para casa, pensou Yaa, e sacrificasse alguns dos seus preciosos vacínios para ver o que estava se passando. Pato-de-Cabeça-Azul, tio de Água Castanha, também aparecera, sem dúvida convidado por ser um velho respeitado.

Água Castanha é que é agora a minha mãe? perguntou Ghaden em voz baixa e trêmula.

Água Castanha estava sentada, muito direita, com o pescoço esticado e um ar importante. O que poderia haver de pior do que ter Água Castanha como mãe?, pensou Yaa.

Não disse ela a Ghaden. Água Castanha não é tua mãe. Eu serei a tua mãe.

Ghaden suspirou e depois encostou-se a Yaa, descontraído. Voltou a enfiar o dedo na boca e Yaa inclinou-se para a frente e apoiou a face na cabeça dele. Ghaden estendeu o braço e afagou-lhe os cabelos. Depois fechou os olhos e continuou a chupar o dedo sem fazer barulho.

 

ALDEIA DE RIO PRIMO

Chakliux examinou o homem que estava sentado à sua frente. Topa-Nuvens era grande, mas o seu corpo flácido e gordo lembrava o de uma velha que tivesse muitos filhos dando-lhe de comer. Contudo, o seu olhar era vivo e astuto.

Topa-Nuvens era considerado um velho, uma honra concedida mais pela sua sabedoria do que pela sua idade. Era um bom caçador e um homem honesto.

Quando os comerciantes vinham comprar cães, visitavam Topa-Nuvens em primeiro lugar. Os seus animais raramente lutavam, nem se encolhiam ou uivavam quando os homens se aproximavam. Os músculos dos animais eram firmes e bem definidos debaixo do pêlo luzidio. Se Chakliux conseguisse levar cães como aqueles para a aldeia de Rio Próximo, talvez os velhos acreditassem que ele trabalhava para ajudar as pessoas.

Com que então, durante os dias que passaste conosco, percebeste que os jovens da nossa aldeia estão fartos de estar sentados disse Topa-Nuvens. Eles consideram que a melhor maneira de provar o seu valor é através da guerra. Dizes que isso também está a acontecer com o povo de Rio Próximo? Estou admirado. Os jovens deles são caçadores de ursos. Na tua opinião, basta-lhes terem a honra de caçar. Se os nossos homens soubessem descobrir tocas no Inverno, ficariam mais satisfeitos.

Topa-Nuvens encolheu os ombros.

A Primavera é uma época má. Os nossos jovens... até os meus quatro filhos... estão fartos do Inverno, das vozes das mulheres e das cantigas das crianças. Estão famintos de carne fresca e de honra.

Isso é verdade, mas talvez os homens de Rio Próximo já não queiram lutar quando eu lhes levar bons cães.

Aqui há uma coisa mais importante do que os cães disse Topa-Nuvens. Os velhos de Rio Próximo querem luta ou procuram a paz?

Tal como a maior parte dos velhos desta aldeia, querem a paz respondeu Chakliux. O que lucra um velho em lutar? Um pai quer perder os seus filhos? Bem sabes que Falador me mandou à aldeia de Rio Próximo para casar e assim fortalecer os laços que unem os nossos dois povos, mas a mulher não me quis. Teve medo que os nossos filhos nascessem com pés iguais ao meu.

O que há de tão terrível nisso? perguntou Topa-Nuvens. Ela não queria um homem com o poder de uma dádiva dos animais?

Chakliux levantou os braços.

Quem sabe o que uma mulher quer? disse ele. Os cães estão morrendo na aldeia deles. Cães fortes e saudáveis. Alguns jovens tentam fomentar o ódio ao nosso povo e dizem que eu os amaldiçoei. Os velhos esperam que, se eu levar cães pretos de olhos dourados, as pessoas compreendam que eu não fui lá para amaldiçoar mas sim para ajudar.

Topa-Nuvens inclinou-se para a frente e encarou Chakliux.

Há mais alguma coisa, disse ele.

Durante muito tempo, Chakliux ficou pensando no que diria ao homem. Por fim, acrescentou:

Menos de um mês antes da minha partida para cá, foram assassinadas duas pessoas do povo de Rio Próximo. Uma foi um velho, um caçador respeitado, e a outra foi uma mulher. Além disso, foi ferida uma criança. O velho foi morto na sua cabana, enquanto dormia. A mulher estava lá fora e ia entrando na cabana da esposa-irmã. A criança era filho dela. Os assassínios foram cometidos com uma faca.

Julgas que foi algum dos nossos jovens que fez uma coisa dessas?

Não sei. O xamã de Rio Próximo diz que foram os espíritos que os mataram.

Topa-Nuvens soprou, mostrando a sua discordância.

Qual o espírito que se serve de uma faca? perguntou ele.

Havia um comerciante na aldeia. Alguns julgam que foi ele disse Chakliux.

O que pensas?

Porque havia ele de matar um velho da aldeia? O rapaz era filho do comerciante. Porque tentaria ele matar o próprio filho? A faca ainda estava no ombro da criança quando ela foi encontrada. Era uma das facas que o comerciante tinha levado para a aldeia. Porque ele deixaria a sua faca?

É estúpido, esse homem?

Não no seu negócio.

Então julgas que talvez um dos nossos jovens.

Não tenho certeza. Se um caçador desta aldeia quisesse dar aos de Rio Próximo um pretexto para lutar, porque mataria uma mulher ou uma criança, ou um velho?

Quem é que mais precisa de proteção? perguntou Topa-Nuvens. Quando os jovens lutam é pela sua honra e para proteger os que não podem combater: os velhos, as crianças e as mulheres.

Isso é verdade, mas porque deixariam uma faca do comerciante? Porque não dariam a entender que fora um caçador de Rio Próximo a matar?

Topa-Nuvens fez um sinal de concordância.

Sabes de alguns caçadores que se tenham ausentado desta aldeia por um período de tempo necessário para fazer tal coisa? perguntou Chakliux. Talvez seis, oito dias pelo menos.

Topa-Nuvens franziu a testa, olhou para o teto da cabana e fez um esgar.

Os meus filhos, Homem Noturno e o irmão, Tikaani, passaram dois dias caçando disse ele devagar. Trouxeram um lince, algumas lebres e uma raposa. Topa-Nuvens calou-se e depois acrescentou: Não sei de mais nenhum. Tens ficado na cabana dos caçadores, não tens?

Tenho.

Muitas vezes, os jovens gabam-se. Ouviste alguma coisa?

Tenho me deitado vestido e finjo que estou dormindo. Não ouvi nada.

Então se algo foi feito por algum dos nossos, por qualquer motivo foi em segredo. Há uma pessoa que seria capaz disso, mas não seria ela própria a fazê-lo. Mandaria alguém.

Topa-Nuvens ergueu a sobrancelha a Chakliux, que sentiu um aperto no estômago. K’os. Quem mais podia ser? E se tivesse sido ela, para quê dizer ao povo de Rio Próximo? Seria um pretexto para os jovens lutarem. Era melhor esperar e estar atento, pronto para o que ela resolvesse fazer a seguir.

Compreendo disse Chakliux tranqüilamente.

E tu sabes que é preferível esperar?

Sei.

Topa-Nuvens respirou fundo.

Temos que estar de olhos e ouvidos bem abertos, tu e eu disse ele. Vamos impedi-la.

O velho levantou-se e encheu de novo a tigela até cima. Apontou com o queixo para a tigela de Chakliux. Chakliux abanou a cabeça. Topa-Nuvens sentou-se. Com a boca cheia, disse:

Entretanto, precisas de cães. Porque vieste falar comigo?

Tu tens os melhores cães. Topa-Nuvens riu.

É bom ser conhecido por qualquer outra coisa além da gordura comentou ele, apesar de todos saberem que o homem se orgulhava do seu tamanho.

Se um homem estava gordo, mesmo na Primavera, era porque escolhera bem a mulher e era hábil na caça. Ou por isso ou por ser voraz, e quem ia à cabana de Topa-Nuvens nunca o acusara de voracidade. Chakliux olhou para a grande tigela de madeira que ele tinha no regaço. Estava comendo desde que ele chegara e a tigela ainda estava meio cheia.

Propões então um negócio? perguntou Topa-Nuvens.

Tenho mercadorias minhas, e também coisas do povo de Rio Próximo: peles e parkas, cobertores de pele de lebre, um sael de gordura de ganso, cestos de pele de peixe, redes de pesca, anzóis e pontas de lança. Tenho um arco de fogo feito por um dos velhos. Muitas coisas.

E em troca disso tudo queres um cão?

Uma cadela que tenha parido há pouco tempo.

E as crias?

Sim. Tu tens mais do que uma cadela. Há várias que acabaram de parir.

Não é fácil para mim desistir de um dos meus cães. Eles são como meus filhos. Tenho que saber se serão bem tratados.

Conheces-me desde criança, Topa-Nuvens. Sabes que eu tratarei bem dela.

Topa-Nuvens inclinou a cabeça.

Eu nem pensaria nisso se fosses apenas um homem à procura de um bom cão, mas não quero ver a nossa gente lutando. Somos primos dos de Rio Próximo. Temos os mesmos antepassados. E se algum inimigo se mete entre nós? Há desconhecidos que vivem a duas, três mãos-cheias de dias daqui. Usam armas que nós não sabemos fazer e não respeitam as coisas sagradas. Ninguém percebe a língua deles. E se eles atacam as nossas aldeias? E se eles vêm roubar as nossas filhas e as nossas mulheres? O que faríamos se não pudéssemos aliar-nos ao povo de Rio Próximo? Topa-Nuvens suspirou e depois pediu:

Mostra-me o que trouxeste. Talvez eu faça negócio.

Com que então ele resolveu dar-te um cão? perguntou K’os, fazendo um esgar.

Chakliux evitara a mãe desde que estava na aldeia, mas um caçador tinha de ir às lareiras da comida. Senão, como comeria?

Naquele momento, K’os encontrava-se sozinha junto das lareiras, mexendo uma das panelas, como se fizesse sempre o seu turno a cozinhar como outras mulheres da aldeia. Apontou para a tigela vazia de Chakliux.

Já comeste? perguntou.

Esta manhã, com Topa-Nuvens respondeu Chakliux.

Então porque comes aqui? perguntou ela.

Aliás, se tens fome outra vez, eu tenho comida melhor na minha cabana.

A comida dela era boa. Muitas vezes, os caçadores levavam-lhe a melhor carne pelos favores que ela fazia. Era raro K’os partilhá-la com outras famílias e servir-se das lareiras da aldeia, exceto durante as festas em que os homens estavam perto, e não tinha que recear que as mulheres da aldeia atirassem conchas de comida quente naquela que se deitava com os maridos e os filhos jovens.

Não posso. Tenho que voltar para a cabana dos caçadores. Eles estão à minha espera.

Estás enganado. Eles estão cansados dos teus pedidos de paz, das tuas histórias sobre o bom e generoso povo de Rio Próximo. Eles não esqueceram que o povo de Rio Próximo amaldiçoou a nossa pesca. Disseste-lhes que as filhas de Rio Próximo não te querem? K’os ergueu as sobrancelhas e deu uma gargalhada. Não, claro que não. Que respeito despertarias tu nesta aldeia se soubessem o que o povo de Rio Próximo sabe?

Se ele fosse mais novo e não estivesse tão habituado a lidar com a mãe, a raiva o teria feito proferir palavras imprudentes. Lhe teria dito que os jovens caçadores não se importavam com as honras que recebiam ou não, na aldeia de Rio Próximo. Estavam mais interessados em saber os segredos da caça nas tocas durante o Inverno. Mas calou-se, ocultando os seus pensamentos. Quanto menos ela soubesse, melhor seria para todos.

É claro que ela possuía muitas maneiras de descobrir o que queria saber. Nas suas mãos, um jovem depressa responderia às suas perguntas. Em criança, Chakliux ouvira conversas da sua cama e reconhecera a astúcia da mãe.

Uma velha encaminhou-se para a lareira. Quando viu K’os, enrolou os braços à volta do corpo como que para afastar as pontas da parka do contato com ela. A mulher tirou o capuz e despejou uma mão-cheia de frutos secos numa das panelas. Chakliux aproximou-se dela e estendeu-lhe a sua tigela. Ela ergueu as sobrancelhas e olhou para K’os, com um sorriso ao canto da boca. Encheu a tigela de Chakliux, que se afastou sem olhar para a mãe, apesar de sentir o seu olhar a queimar-lhe as costas.

Já decidi afirmou Topa-Nuvens.

O velho estava sentado com Chakliux na parte de trás da cabana dos caçadores, um lugar de honra que lhes fora concedido pelos mais jovens.

Chakliux susteve a respiração e depois deixou escapar um sopro de desapontamento quando Topa-Nuvens disse: Isto não é suficiente. Não posso ceder os meus cães em troca do que ofereces.

Chakliux lutou contra a raiva que lhe empurrava palavras insensatas para a boca. Topa-Nuvens dissera que compreendia, e parecia desejar tanto como Chakliux a paz entre as aldeias. Então porque pedia mais coisas? Chakliux não tinha mais nada. Em três dias de negociação, pedira peles emprestadas ao pai para juntar às mercadorias.

Os meus cães, não só me pertencem como a todas as pessoas desta aldeia disse Topa-Nuvens. Como é que eu posso dá-los a outra aldeia sem pedir algo para os outros caçadores além de mim?

Chakliux estendeu as mãos vazias.

Sabes que eu ofereci tudo o que tenho, até o meu segundo par de botas. Não há mais nada. Sabes que a minha mulher e o meu filho morreram, por isso não posso prometer dar um filho em casamento.

Não te peço mais nada declarou Topa-Nuvens. O que eu peço é ao povo de Rio Próximo.

Chakliux enfrentou o olhar do homem. Não viu nele ganância mas sabedoria, e ficou à espera que Topa-Nuvens falasse.

O povo de Rio Próximo precisa dos nossos cães robustos de olhos dourados, mas também tem algo de que nós precisamos.

Topa-Nuvens fez uma pausa e virou a cabeça para os homens que os rodeavam.

Cada um estava ocupado fazendo alguma coisa; aparando o cabo de uma lança, afiando uma lâmina, retocando a ponta de uma lança. Apesar de não se encontrarem olhando para Chakliux nem para Topa-Nuvens, Chakliux sabia que eles estavam ouvindo a conversa e que iriam contá-la aos pais, aos tios e às mulheres que cortejavam. Por isso, dentro de pouco tempo, toda a aldeia saberia.

Qual o animal que é mais venerado do que o urso? perguntou Topa-Nuvens. Qual o animal que tem mais poder? Mas no fim do Inverno e no começo da Primavera, quando o nosso povo está desejoso de carne gorda, não podemos caçar ursos porque não conseguimos encontrá-los.

Os cães são teus, a cadela e as cinco crias, em troca das mercadorias e de outra coisa. Tens de me levar contigo à aldeia de Rio Próximo. Enquanto eu lá estiver, ensinarei o Povo de Rio Próximo a tratar dos meus cães, e os caçadores deles me ensinarão a encontrar ursos. Depois voltarei e contarei o que sei a estes jovens propôs Topa-Nuvens apontando com o queixo para os caçadores do outro lado da lareira.

Chakliux sentiu a esperança a brilhar no seu coração. Era um bom plano, que podia resultar. Gostaria que Tsaani fosse vivo para partilhar a sua sabedoria, mas Sok era um caçador hábil e enviara mercadorias para trocar. Um dos cachorros seria para ele. Talvez ele quisesse ensinar a Topa-Nuvens o que Tsaani lhe ensinara.

Topa-Nuvens era inteligente. Porque não fazer qualquer coisa por si próprio, ao mesmo tempo que comprava a paz para a sua aldeia? Poderia voltar com os conhecimentos que todos os caçadores desejavam. Depois de matar alguns ursos, poderia exigir o título de chefe dos caçadores. Naquele momento, não havia nenhum verdadeiro chefe dos caçadores na aldeia. Bate-no-Chão, o pai de Chakliux, ainda tinha o respeito da maioria dos homens, mas havia outros caçadores que traziam mais carne. Chegara o momento de um homem ser considerado chefe, de ocupar o lugar de honra.

Sim, anuiu Chakliux, sentindo que os caçadores jovens se aproximavam dele. O seu entusiasmo era visível no interior da cabana.

Me levas contigo?

Parto amanhã.

Tão cedo? hesitou Topa-Nuvens. Estarei pronto. Chakliux fez um sinal afirmativo. Se não voltassem tão depressa, não haveria ursos nas tocas. O tempo quente os obrigaria a sair. Além disso, era preferível partir antes que a mãe soubesse, era preferível mantê-la na ignorância enquanto fosse possível. Ela não queria que Topa-Nuvens fosse o chefe dos caçadores. Ele não a visitava, e como poderia ela induzi-lo a seguir os seus planos?

É claro que Chakliux vira a maior parte daqueles jovens caçadores a entrar na cabana da mãe, numa ou noutra vez. Era melhor mantê-los ali durante a noite até que ele e Topa-Nuvens se pusessem a caminho da aldeia de Rio Próximo.

Quando Topa-Nuvens saiu da cabana, Chakliux levantou-se e declarou:

Qualquer homem que queira aprender os cânticos sagrados e que tenha respeito no seu coração pode caçar ursos nas tocas. Fiquem aqui esta noite. Vos ensinarei cânticos que me foram transmitidos pelo chefe dos caçadores de ursos do povo de Rio Próximo. Apesar de velho, a sua força foi uma lenda. Quando Topa-Nuvens voltar a esta aldeia, vocês estarão prontos para aprender o que ele vos ensinar, e depois poderão caçar.

Vários homens agitaram-se com nervosismo. Chakliux percebeu que eram eles que queriam lutar com o povo de Rio Próximo. Agora diziam-lhes que o honrassem aprendendo os seus cânticos, mas quase todos falavam com excitação. Faziam perguntas e Chakliux respondia de tal maneira que até os homens de olhos baixos começavam a escutá-lo. Quando Chakliux se ofereceu de novo para lhes ensinar cânticos, todos os homens ficaram e cantaram com ele até conhecerem as palavras que Tsaani ensinara ao neto.

De manhã cedo, Chakliux dirigiu-se à cabana de Topa-Nuvens. Foi recebido à entrada por Estrela, filha de Topa-Nuvens. Chakliux ouvira dizer que ela era estranha e que umas vezes parecia uma criança, por não deixar a mãe, e outras se comportava como uma mulher, inteligente em todas as situações.

Ao ver os seus olhos grandes, Chakliux sentiu-se atraído por ela.

Estrela inclinou-se para a frente e segredou-lhe:

Toma conta do meu pai. Ele julga que ainda é novo. Neste momento, a minha mãe está escondida na nossa cabana, com vergonha das suas lágrimas.

O teu pai é um homem inteligente respondeu Chakliux, permitindo que o seu olhar se detivesse no rosto da jovem, na sua pele macia e no tom rosado da face. A sua inteligência velará pela sua segurança, e talvez também pela minha, mas farei o que puder para protegê-lo.

Ouvi dizer que as mulheres de Rio Próximo usam perneiras enfeitadas com contas feitas de conchas.

Chakliux, admirado com o atrevimento dela, ficou pensando, tentando lembrar-se do que usavam as mulheres.

Sim, algumas usam disse ele. Olhou para a filha de Topa-Nuvens e sentiu-se de novo atraído pelos olhos dela. Se me sobrarem mercadorias depois de eu fazer negócio com o teu pai, tentarei arranjar-te umas perneiras.

Ela sorriu, mostrando uma covinha ao canto da boca. Nesse momento, o pai chamou-a do interior da cabana e ela enfiou-se lá dentro. Topa-Nuvens saiu. Com a sua parka de pelo comprido, era tão grande quanto um urso. Como é que um homem daqueles tinha uma filha tão pequena e bela?, perguntou Chakliux a si próprio. Depois, afastou o pensamento da jovem e viu Topa-Nuvens a prendendo a cadela, Falcão da Neve, ao trenó de Sok.

Ficou satisfeito ao ver que Topa-Nuvens resolvera levar Falcão da Neve. Era um animal forte, de peito largo e pernas bem torneadas. Ao contrário dos outros cães, sabia puxar um trenó e nunca tentava libertar-se do arnês. Além disso, acabara de dar à luz uma ninhada de cachorros saudáveis.

Topa-Nuvens entregou-os a Chakliux. Estavam enfiados em bolsas de pele de caribu penduradas numa alça.

Põe-nos lá dentro ordenou-lhe Topa-Nuvens, apontando para o peito de Chakliux.

Colocou-lhe a alça ao pescoço e enfiou-lhe os cachorros debaixo da parka. Os animais ainda eram pequenos, do tamanho da mão de Chakliux, que sentiu as suas línguas quentes na pele quando os acomodou.

Topa-Nuvens calçou as raquetas, tiras de salgueiro atadas em círculo com uma trança de couro cru. Eram mais compridas e mais largas que as de Chakliux. Ao ouvir o seu sinal de comando, Falcão da Neve encostou-se em peso ao trenó de Sok.

Quatro fêmeas e um macho disse Topa-Nuvens, apontando para a saliência formada pelos cachorros na parka de Chakliux.

Chakliux ergueu a sobrancelha para mostrar que compreendia. Quatro fêmeas, cinco, contando com Falcão da Neve, e um macho. E Topa-Nuvens, para ensinar o povo de Rio Próximo a criar cães fortes. Um negócio melhor do que ele esperava.

Topa-Nuvens pegou o arnês de Falcão da Neve quando ela passou pelos cães presos atrás da cabana da mulher. A cadela levantou o nariz e uivou. Nervoso, Chakliux olhou para a cabana de K’os. Ficava do outro lado da aldeia, mas a mulher tinha o ouvido apurado. Inclinou-se para Falcão da Neve e tapou-lhe o focinho com a mão. A cadela calou-se, mas empinou-se quando Topa-Nuvens soltou um dos seus machos maiores.

Pescoço Grande, disse ele a Chakliux. Chakliux lembrava-se do cão. Era o mais pequeno de uma ninhada tão grande que a mãe tivera dificuldade em amamentar todos. O dono resolvera matar o cachorro e juntar a sua carne às panelas da aldeia, mas Topa-Nuvens percebera o valor do cão e trocara-o por alguns adornos insignificantes. Agora, qualquer homem da aldeia se orgulharia de possuir Pescoço Grande.

Pescoço Grande empinou a cauda, de orelhas arrebitadas, e as suas patas dançaram quando ele viu Falcão da Neve. Os cães tocaram nos narizes um do outro e depois, obedecendo à ordem de Topa-Nuvens, encaminharam-se para a saída da aldeia.

Estão ansiosos por conhecerem os cães de Rio Próximo comentou Topa-Nuvens, soltando uma gargalhada.

Chakliux sorriu mas não falou da sua alegria. O que podia haver de melhor? Tinham Falcão da Neve e os cinco cachorros. Talvez Pescoço Grande cobrisse as fêmeas de Rio Próximo enquanto Topa-Nuvens visitava a aldeia. Depois, até os jovens caçadores seriam obrigados a reconhecer a generosidade do povo de Rio Primo.

Caminharam durante todo o dia e pararam apenas para retirar as bolas de neve que se formavam entre as almofadinhas das patas dos cães e para que Falcão da Neve amamentasse os seus filhotes.

Nessa noite, acenderam uma fogueira com lenha que Topa-Nuvens trazia no trenó. Comeram gordura endurecida, bolos de frutos e carne seca que a mulher de Topa-Nuvens tinha acondicionado para eles. Depois, viraram o trenó de lado para se abrigarem do vento e protegerem o lume e falaram dos tempos que tinham partilhado na aldeia. Por fim, Topa-Nuvens pediu:

Fala-me desse povo de Rio Próximo. Tenho ido muitas vezes à aldeia deles, tenho dormido com algumas das suas mulheres, mas não os conheço como tu.

São pessoas muito trabalhadoras respondeu Chakliux. Os seus costumes são muito parecidos com os nossos. São caçadores hábeis, mas os seus cães não são tão bons como os nossos nem as suas mulheres são tão belas.

Topa-Nuvens riu em voz alta na atmosfera fria.

Disseste-me que a filha do xamã não te quis, mas falaste com outras mulheres? perguntou ele.

Não respondeu Chakliux.

Tirara os cachorros da parka. Os animais estavam agora mamando, deitados numa cama de ramos de abeto coberta por uma pele de caribu. Chakliux inclinou-se e acariciou o flanco de Falcão da Neve. Pensou em Mirtilo, mas disse:

Não tenho mulher na aldeia deles. Topa-Nuvens não disse nada, mas Chakliux percebeu que o homem estava à espera de uma explicação. Por fim, Chakliux prosseguiu:

Há uma coisa que tenho de te dizer, uma coisa que eu só soube depois de visitar a aldeia de Rio Próximo. Chakliux endireitou-se e virou-se para Topa-Nuvens. Há uma mulher na aldeia de Rio Próximo que afirma ser minha mãe. Diz que me rejeitou, que me abandonou por causa do meu pé.

Então, para o povo de Rio Próximo, tu não és uma dádiva dos animais. Eles consideram-te amaldiçoado? perguntou Topa-Nuvens.

Alguns. Outros não. Lembram-se de que eu sei nadar. Consideram que o meu pé prova que eu tenho sangue de lontra.

Durante muito tempo, Topa-Nuvens ficou observando as chamas da fogueira e depois disse:

É assim que eu te vejo, como uma lontra. Um homem que trabalha para fazer a paz é bom, seja qual for a sua mãe.

E Chakliux percebeu que ele não se referia à sua mãe de Rio Próximo, mas a K’os.

Acordaram com a tempestade. Os cães estavam enroscados para se proteger do vento, com a cauda por cima do nariz. Os filhotes tinham dormido com a mãe durante a noite, e Chakliux saiu engatinhando do abrigo feito de peles felpudas e de neve endurecida para os ir espiar.

O vento projetava neve e gelo, duros como pedras. Chakliux falou com os cães, apesar de a tempestade afastar as suas palavras. Não queria assustar Falcão da Neve, nem enfrentar os seus dentes quando ela saltasse para proteger os filhos. Mas a cadela não se mexeu. Com cuidado, Chakliux enfiou a mão no monte de neve que a cobria, tentando não o deslocar por saber que lhe conservava o calor, mas o animal levantou a cabeça. Chakliux tirou a luva de pele de caribu e pôs a mão debaixo da barriga de Falcão da Neve.

Encontrou o primeiro cachorro, agarrado a uma das tetas da mãe. O coração do filhote batia com força. Chakliux tocou em cada um dos outros. Estavam quentes, secos e vivos. Voltou para o seu lugar e enfiou-se debaixo do trenó virado. Sentiu que lhe tocavam no braço e respondeu à pergunta de Topa-Nuvens.

Falcão da Neve e os cachorros estão bem. Não vi Pescoço Grande.

Ele assistiu a muitas tempestades disse Topa-Nuvens. Não te preocupes com ele.

Deu a Chakliux um bocado de carne seca. Chakliux segurou a ponta com os dentes e cortou um pedacinho com a faca que trazia na manga. O sabor defumado aqueceu-o, como se ele possuísse uma pequena fogueira na boca.

A tempestade deixou-os na noite seguinte, e eles partiram sob o brilho límpido das estrelas. Falcão da Neve parecia inquieta, encostando-se ao arnês do trenó, até que Chakliux a deixou começar a andar.

Ao caminhar, Chakliux escutou o som de estalido, primeiro no espírito e depois nos ouvidos. Olhou por cima do ombro para o céu alto e escuro do Norte e sorriu ao ver os yaykaas a aurora boreal a inclinar-se e a brilhar em tons verdes e rosados.

Olha disse Topa-Nuvens, apontando para as luzes que se moviam como bailarinas sobre a terra. Os nossos antepassados dizem-nos que estamos procedendo bem. Os yaykaas são os antepassados das duas aldeias e não querem ver os seus filhos matando-se uns aos outros.

Sim assentiu Chakliux.

Sentiu os cachorros contorcendo-se debaixo da parka e uma força súbita apoderou-se do seu corpo. Fosse o que fosse que o povo de Rio Próximo pensasse dele, quando visse os cães não poderia negar que ele tentara levar-lhes qualquer coisa boa.

Olhou para Falcão da Neve. Nenhum dos cães da aldeia de Rio Próximo se comparava com ela, nem sequer os belos cães de Tsaani que participavam na caça ao urso. O animal parecia não fazer grande esforço a puxar o trenó. Pescoço Grande caminhava ao lado dela, de cabeça erguida e olhar atento, como se fosse o único responsável pela segurança de todos.

De repente, Pescoço Grande parou, de nariz no ar. Topa-Nuvens deu uma palmada no ombro de Chakliux e apontou para o cão com a mão enluvada. Chakliux reagiu com um aceno de cabeça quando o animal se empinou, nervoso, descrevendo um círculo, e depois olhou para trás. O cão ergueu de novo o focinho e rosnou baixinho.

Lobos disse Topa-Nuvens. Devem estar com fome depois desta tempestade.

Falou a Pescoço Grande com rispidez. O cão uivou e depois juntou-se a eles, aproximando-se de Falcão da Neve. A cadela olhou para ele mas continuou puxando, virando a cabeça de vez em quando para olhar para o peito de Chakliux, onde iam os seus cachorros. Topa-Nuvens fez-lhe sinal para continuar a andar e ela obedeceu, mas soltou um ganido agudo que se sobrepôs ao som dos patins do trenó.

Topa-Nuvens inclinou-se sobre a cadela e disse:

Não te preocupes. Eles estão a salvo.

Mas o animal continuou a ganir e aumentou a velocidade de tal maneira que Chakliux quase tinha de correr para manter o ritmo dela.

Faça ela abrandar gritou Topa-Nuvens. Vai deixar-nos transpirando.

Sim, pensou Chakliux, sabendo que o suor formaria uma estreita camada de gelo na pele que os faria gelar antes de chegarem à aldeia de Rio Próximo. Agarrou na parte de trás do trenó, obrigando Falcão da Neve a abrandar sob a pressão das suas mãos. Virou-se para trás e olhou para Topa-Nuvens. Este fez-lhe sinal e depois levantou a mão esquerda, mostrando a Chakliux que desembainhara a faca que trazia na manga.

Sok oferecera a Chakliux uma faca com uma longa lâmina de obsidiana na manhã em que ele partira da aldeia de Rio Próximo; não era para trocar, dissera-lhe Sok, mas para ele se proteger. Chakliux tirou-a da bainha atada à parte de fora do tornozelo direito. A lâmina negra provocou um gesto de admiração de Topa-Nuvens.

É do meu irmão afirmou Chakliux.

Queres trocá-la? perguntou Topa-Nuvens.

Não posso.

Então a tua visita ao povo de Rio Próximo já teve uma coisa boa. O teu irmão disse Topa-Nuvens.

É verdade.

Talvez essa faca nos dê sorte contra os lobos. Pescoço Grande parou e virou o focinho para trás. Por fim, Topa-Nuvens também parou e espreitou o caminho. Chakliux continuou andando e, quando Topa-Nuvens o alcançou, ele perguntou:

Viste alguma coisa?

Nada, mas não guardes a tua faca. Andaremos máximo que pudermos. Talvez consigamos chegar à aldeia de Rio Próximo sem parar.

E os cães?

Será mais fácil para eles do que para nós observou Topa-Nuvens, e tentou rir, mas foi uma gargalhada oca na abóbada do céu noturno.

É muito longe, pensou Chakliux, sentindo já o pé doendo e ouvindo a respiração irregular de Topa-Nuvens. Se ele tivesse dois pés fortes, se Topa-Nuvens fosse magro e ágil, talvez conseguissem, mas assim não. Teriam de parar e enfrentar os lobos.

Passaram a noite andando e continuaram durante o dia. O sol brilhava, atravessando as frestas dos seus óculos de neve feitos de chifre de caribu. Continuaram a andar depois do por do sol. Ainda não tinham chegado a Rio Próximo, e Chakliux perguntou a si próprio se, com a tempestade, não estariam andando em círculo, perdidos na tundra. Pelo menos, os cães já não estavam inquietos. Os lobos tinham-se cansado de os seguir, concluiu Chakliux.

Por fim, pararam. Até os cães tinham as pernas rígidas. Os olhos de Chakliux ardiam do sol, e no escuro tudo parecia manchado, com as nesgas de luz que o impediam de ter certeza do que via. As suas mãos, agora acostumadas ao arnês de Falcão da Neve, soltaram o cão sem a ajuda dos olhos. Chakliux meteu as mãos na parka para lhe dar os filhotes para amamentar, mas o animal deu um salto quando Topa-Nuvens lhe atirou pedaços de salmão e a Pescoço Grande.

Chakliux começou a cavar até chegar ao solo nu e depois espalhou uma camada de ramos de abeto e dispôs a lenha para fazer uma fogueira. Tirou erva-do-fogo e lascas de casca de bétula seca de um pacote que trazia ao pescoço e dispôs em volta de um pedaço de madeira. Em seguida, pegou seu arco incendiário. Enrolou o fio em volta do pau, depois enfiou-o na madeira e empurrou com o queixo a parte de cima do pau. Serviu-se do arco para enrolar e desenrolar o fio, virando-o até o movimento e a pressão criarem calor suficiente para atear o fogo. As chamas atingiram a erva-do-fogo e depois espalharam-se à casca de bétula e à madeira.

Topa-Nuvens agachou-se ao lado dele e alimentou pacientemente a fogueira até conseguir um bom lume. Em seguida, pôs um tripé por cima em que pendurou uma pequena panela com guisado feito pela mulher. Durante a viagem, a comida gelara na panela. Topa-Nuvens quase a deixara ficar, lembrando a Chakliux que tinham carne seca e bolos de frutos suficientes para comer. Agora, depois de passarem um dia inteiro e a maior parte da noite andando, depois de dois dias de tempestade, Chakliux sentia-se satisfeito por ter oportunidade de provar comida quente. Os dois homens colocaram neve nas tigelas de madeira e puseram-nas à beira da fogueira para derreter o conteúdo.

Chakliux começou a ver melhor e sentiu-se descontraído. A tensão nos ombros e nas costas deu lugar a uma dor. Se tivessem sido perseguidos por lobos, eles atacariam naquele momento, pensou Chakliux, na escuridão, mas os cães não davam mostras de nervosismo. Falcão da Neve dava de mamar aos filhotes e Pescoço Grande estava dormindo. É claro que a fogueira ajudaria a afastar os lobos, mas o cheiro da comida poderia atraí-los. Chakliux enfiara a faca na bainha quando pararam para acampar, mas espetara a lança na neve, de ponta para cima, ao alcance da mão.

Remexeu a neve que tinha na tigela até ela se derreter. Bebeu a água e depois esperou que Topa-Nuvens mergulhasse a sua tigela na panela e a enchesse de guisado. Foi Chakliux que encheu a sua. Ainda estavam comendo quando Pescoço Grande levantou a cabeça e rosnou.

O cão levantou-se, com as pernas retesadas e o pelo do dorso eriçado. Chakliux agarrou na lança e pôs-se em pé de um salto.

Ouviu-se um grito vindo da escuridão, uma voz de homem.

Topa-Nuvens atirou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada.

Salta-no-Rio apareceu à luz da fogueira, e Chakliux sorriu também.

Tens vindo atrás de nós? perguntou Chakliux.

Ah, a minha mulher expulsou-me outra vez respondeu ele, cujo rosto era apenas um círculo negro enfiado no rufo da parka. Tive que vir até aqui para arranjar comida.

Topa-Nuvens mergulhou a tigela na panela e estendeu-a ao homem.

Então foi isso que aconteceu aos nossos lobos disse ele. Eles vinham atrás de nós. Devem ter sentido que tu vinhas atrás e afastaram-se do nosso caminho. São espertos demais para serem apanhados entre dois grupos de caçadores.

Salta-no-Rio pegou a tigela que Topa-Nuvens lhe estendia.

Vi as pegadas deles afirmou ele. Eram cinco.

Ainda bem que eles não te atacaram disse Topa-Nuvens.

Não devias ter vindo sozinho. É um caminho perigoso para um homem sem amigos.

Salta-no-Rio apontou para Chakliux com a tigela da carne.

Este jovem o fez. Eu sabia que também seria capaz. Mas pensei que vos alcançaria antes. Quero ajudar-vos a fazerem um bom negócio com os de Rio Próximo. Eles são pessoas de palavras brandas, mas eu também sou concluiu ele, rindo-se.

Chakliux pousou a lança, pegou a tigela e afastou-se do clarão da lareira. Tirou a faca da bainha que tinha na manga e espetou-a na neve endurecida. Sabia que Salta-no-Rio devia ter sede.

Ouviu Topa-Nuvens rindo, o vozeirão de Salta-no-Rio e depois um som abafado, como se tivesse caído alguma coisa na neve. Virou-se, com a tigela na mão e a faca na outra.

A princípio, não percebeu o que viu: Salta-no-Rio encontrava-se na sua frente com uma faca na mão. O sangue escorria da lâmina. Chakliux deixou cair a tigela, agachou-se e procurou os lobos, julgando que tinham sido eles a atacar. Depois, viu Topa-Nuvens caído junto da fogueira, e percebeu que não havia lobos. Apenas Salta-no-Rio.

Falcão da Neve recuou, e alguns dos cachorros tentaram manter-se agarrados às suas tetas. Chakliux ia a chamá-la, mas não o fez. Para quê alertar Salta-no-Rio?

Pescoço Grande rosnou e Salta-no-Rio virou-se para ele. O homem gritou e Pescoço Grande atacou. Salta-no-Rio enfrentou-o com a lança de Topa-Nuvens, atirando-a à barriga do cão no momento em que este saltou. O cão ganiu e caiu. Latiu ao embater no chão e depois ficou imóvel.

Salta-no-Rio tirou a lança do corpo de Pescoço Grande. Falcão da Neve colocou-se entre o homem e as suas crias com as orelhas encostadas à cabeça e os dentes à mostra.

Não te preocupes, mamã disse Salta-no-Rio. Eu não te faço mal.

Inclinou-se devagar e apanhou a lança de Chakliux. Depois levantou-se, ergueu as duas armas e gritou:

A tua mãe, K’os, manda-te cumprimentos.

 

Porquê? gritou Chakliux a Salta-no-Rio, apontando para Topa-Nuvens. O homem estava deitado no chão, e o seu sangue entranhava-se na neve.

Olhem! O que vejo eu? disse Salta-no-Rio, respondendo sob a forma conhecida de um enigma. O Inverno envelhece e, furioso, envia o vento.

Tu és o vento? perguntou Chakliux. Salta-no-Rio riu-se.

Respeita-me disse ele, abanando a cabeça. És uma criança, Chakliux. Não tentes compreender.

Falcão da Neve estava ao lado dos filhotes, e o seu olhar desviou-se de Chakliux para as lanças que Salta-no-Rio tinha na mão. Agachou-se, e Chakliux viu-a retesar os músculos dos flancos. Conhecia Falcão da Neve; observara-a junto dos cães da aldeia. Ela lutaria até à morte, mas não por ele. Chakliux ainda não conquistara essa lealdade. Ela lutaria pelos seus filhos. Se atiraria ao pescoço de Salta-no-Rio, mesmo depois de ver que Topa-Nuvens e Pescoço Grande estavam mortos.

Chakliux passou a faca para a mão esquerda e desembainhou cuidadosamente a lâmina de obsidiana. Era uma bela faca, equilibrada, e ele era bom em facas, mas quem sabia se as facas feitas na aldeia de Rio Próximo tinham a mesma visão daquelas com que ele fora criado? Cada arma, assim como cada homem, era diferente. Chakliux concentrou-se no triângulo por baixo do queixo de Salta-no-Rio, no espaço deixado pelo rufo da parka. Naquele sítio macio e vulnerável.

Falcão da Neve rosnou, com um som baixo vindo da garganta. Salta-no-Rio desviou o olhar para o animal. Nesse breve instante, Chakliux atirou.

Viu a surpresa no rosto de Salta-no-Rio, ouviu o silvo vindo da garganta do homem e viu o sangue borbulhando. Salta-no-Rio deixou cair os braços e largou as lanças. Depois, antes que Chakliux conseguisse impedi-la, Falcão da Neve atacou o homem, deitando-o ao chão com o seu peso, enterrando-lhe os dentes no pescoço e rasgando-lhe a carne.

Chakliux gritou-lhe e ela parou, mantendo-se por cima de Salta-no-Rio, com a boca ensangüentada.

Vai disse ele, em voz alta mas controlada. Deixa-o.

Ela arreganhou os dentes, guardando a sua presa.

Chakliux contornou-a cuidadosamente até se aproximar da cama de ramos de abeto em que se aninhavam os filhotes. Tirou-os um por um e os pôs na neve. O mais pequeno, uma fêmea preta e branca, começou a chorar.

Falcão da Neve olhou para o corpo de Salta-no-Rio. Levantou a cabeça, rosnou para Chakliux e depois aproximou-se dos filhotes.

Chakliux não se mexeu enquanto Falcão da Neve levava as crias de novo para a cama de ramos de abeto. Depois, passou lentamente pelo corpo de Salta-no-Rio e aproximou-se de Topa-Nuvens.

Devia estar morto, pensou. Ninguém conseguia sobreviver a uma lança espetada no peito. Mas para sua surpresa, Topa-Nuvens abriu os olhos. Chakliux sentiu a esperança a nascer. Talvez a lança tivesse sido desviada por qualquer arma que Topa-Nuvens trazia debaixo da parka. Então, Topa-Nuvens tentou falar. O sangue espumava na sua boca e a esperança de Chakliux morreu.

Vai disse Topa-Nuvens, sufocando.

Não retorquiu Chakliux.

Ajoelhou-se junto de Topa-Nuvens e abriu-lhe a parka, tentando encontrar a ferida e estancar o sangue que jorrava.

Estúpidos! exclamou Topa-Nuvens. Salta-no-Rio... Não viria.. Sozinho. Outros... Ali.

As suas palavras foram abafadas por um espasmo.

Chakliux levantou a cabeça de Topa-Nuvens para lhe facilitar a respiração. Soltou o capuz da parka e afastou-o do pescoço do homem.

Vai! disse Topa-Nuvens outra vez. Não pares senão quando...

Respirou fundo e estremeceu, proferindo em voz baixa:

Deixa-me. Estou morto.

Um lamento forte elevou-se no ar e Chakliux percebeu que era Falcão da Neve. Estava deitada com os filhotes, mas observava Topa-Nuvens.

Traz-me o meu cão segredou Topa-Nuvens, apontando para Pescoço Grande.

Chakliux pegou o cão e depositou-o ao lado de Topa-Nuvens. Este acariciou o pelo espesso do animal e, olhando para Chakliux, tentou sorrir.

Vai, proferiu ele pela última vez.

Falcão da Neve caminhava de orelhas murchas e o pelo do pescoço eriçado. Chakliux abandonara o trenó, que só os atrasaria, e levava apenas um pequeno fardo com alguns mantimentos.

Desembainhara a faca que Topa-Nuvens trazia na manga e enfiara na mão direita, mas, quando estava pronto para partir, o homem já tinha morrido.

Atirou a lança de Salta-no-Rio para a escuridão da noite. Não cabia no seu lançador. Para quê correr o risco de que a lança contaminasse os seus utensílios de caça, o lançador, as facas e as lanças? Mas não queria deixar a arma à mercê de quem o seguia. Trocara todas as suas lanças na aldeia de Rio Primo exceto uma, e por isso resolvera levar consigo a de Topa-Nuvens.

Pensou que Rio Próximo não podia estar longe. Não sabia se deveria seguir pelo rio gelado ou acompanhar as pegadas dos animais na neve e na vegetação das margens. Era menos provável que o vissem no meio das árvores, mas estas iriam atrasá-lo. Não chegaria à aldeia de manhã, e à luz do dia as suas pegadas seriam fáceis de descobrir. Se seguisse pelo rio, talvez chegasse à aldeia de manhã, antes de eles o apanharem. Além disso, era muito provável que os outros homens parassem durante a noite. Era perigoso caminhar na escuridão.

Sim, concluiu Chakliux. Eles deviam ter parado para passar a noite e enviado Salta-no-Rio à frente para espiar o seu acampamento. Talvez, quando resolvessem ir ver por que motivo é que Salta-no-Rio não voltava, Chakliux já estivesse na aldeia de Rio Próximo.

Falcão da Neve rosnou, mas Chakliux pensou que os cães não sabiam tudo. Talvez fosse por causa do vento.

Puxou o capuz da parka bem para os olhos, mas mesmo assim sentiu o frio cortante da noite na cana do nariz.

O Inverno envelhece, pensou ele, lembrando-se do enigma de Salta-no-Rio. Fora a mãe que os enviara. Talvez tivesse sido ela a insistir com o velho xamã, Falador, para que ele oferecesse Chakliux para marido da filha de Lobo-e-Corvo. Mesmo que Mulher Diurna não tivesse percebido que Chakliux era seu filho, bastaria segredar à pessoa certa para que alguém da aldeia de Rio Próximo descobrisse quem ele era uma maldição devolvida ao seu povo. Talvez tivesse sido ela que matara Tsaani.

Mas porquê? Talvez ela precisasse saber que ainda controlava os jovens, que conseguia obrigá-los a lutar ou a morrer conforme os seus caprichos.

Até a morte de Gguzaakk, Chakliux mantivera-se cego à extensão da maldade de K’os. Gguzaakk tentara avisá-lo, mas qual o homem que dava ouvidos ao que a mulher dizia da mãe? Eram coisas de mulheres, disparates que os homens nem se davam ao trabalho de entender. Mesmo depois de Gguzaakk e o filho terem morrido, ele não queria acreditar...

A minha mãe pronunciou Chakliux em voz alta, de tal modo que Falcão da Neve virou a cabeça e olhou para ele. A minha mãe.

Chakliux cuspiu as palavras, atirando-as para longe.

A minha mãe é Mulher Diurna disse ele, dirigindo-se à noite. O meu povo é o povo de Rio Próximo. Sou um caçador da aldeia de Rio Próximo. Não sou uma dádiva dos animais nem um dzuuggi.

Segredou estas palavras à luz esverdeada que espalhava dedos ondulantes em direção ao céu do Norte. Depois, virou-se e disse o mesmo virado para Rio Próximo, ao Sul.

Um caçador. Qual o homem que precisava ser mais do que isso?

O frio da noite entranhava-se nas articulações, tornando-lhe o andar rígido e desajeitado. Os joelhos gemiam como árvores ao vento. Chakliux parou para tirar as bolas de neve das almofadinhas das patas de Falcão da Neve. O animal farejou-lhe a parte da frente da parka.

Ainda não disse ele à cadela. Ainda não. Daqui a pouco.

Então avistou a estreita nesga escura que sobressaía na neve, as árvores que assinalavam o curso sinuoso do rio. A visão deu-lhe força nas pernas, e Chakliux estugou o passo. Falcão da Neve parecia sentir o seu entusiasmo e desatou a correr, mas ele conseguiu apanhá-la, pegou-lhe na cauda e obrigou-a a abrandar. Com aquele frio, não podia arriscar-se a correr.

Atravessaram a vegetação até chegarem a um trilho feito por animais que descia suavemente até ao rio. O gelo do rio estava bem firme debaixo dos pés e coberto por uma crosta dura de neve polida pelo vento. Chakliux descalçou as raquetes. A neve estava suficientemente dura. Atou os sapatos às costas e começou a andar. A dor no seu pé de lontra abrandou. Era bom caminhar sobre o rio. Até Falcão da Neve se deslocava com mais segurança, como se já tivesse feito aquele caminho, como se soubesse aonde ia dar.

Chakliux levantou a cabeça. No Verão, àquela hora da noite, o céu estava claro, mas naquele momento o Sol escondia ainda a sua face, envergonhado por deixar que o Inverno passasse tanto tempo com o povo, segundo diziam os mais velhos. Quando chegasse à aldeia, o Sol estaria alto no horizonte, descrevendo a sua curva no céu. Chakliux ainda tinha que andar, mas encontrava-se suficientemente perto para ter esperança de que, se os homens de Rio Primo viessem atrás dele, voltassem para trás em vez de se arriscarem a enfrentar os caçadores de Rio Próximo.

Só viu a água quando era tarde demais. Ouviu-a, primeiro o cântico estaladiço do gelo debaixo dos seus pés. A água devia ter-se escoado por uma fenda durante o dia e inundado o gelo. Depois gelara. Quem passasse por ali ficaria molhado e, se não agisse depressa, com os pés gelados.

Chakliux conhecera caçadores que tinham feito tal coisa e lembrou-se do que haviam sofrido. Em geral, mesmo que os pés e os calcanhares fossem amputados, a putrefação provocava uma morte lenta e dolorosa. Os que sobreviviam, como o velho Faz-Redes, ficavam aleijados e eram um fardo para o povo, quando este ia para o pesqueiro ou seguia os caribus.

Mas às vezes o gelo avisava, como acontecera com ele, uma voz que salvaria um caçador se ele fosse atento, se ele continuasse a andar sem parar. Chakliux estugou o passo, apoiando os pés com cuidado e empurrando Falcão da Neve à sua frente. Era uma grande inundação. Muitas tinham apenas alguns passos de largura, mas esta estendia-se a toda a largura do rio.

Depois, mais à frente, Chakliux viu a escuridão clara do gelo sólido, no local em que o vento varrera a neve. Gelo ou uma fenda através da qual se via a água. Era gelo, pensou Chakliux. Era gelo, não água. Deu mais dois passos rápidos e saltou.

Falcão da Neve ia a seu lado, farejando a parka, e ganiu. Chakliux olhou para a cadela e depois ajoelhou-se para lhe tirar a neve das patas. Enquanto lhe verificava as patas dianteiras, afastou todos os pensamentos da mente, como se pudesse alterar o que acontecera, recusando-se a pensar nisso. Pousou uma pata e levantou a outra. Estavam ambas secas.

Se não parares, morres, pensou ele. As palavras saíam-lhe da boca como se fossem pronunciadas por outra pessoa. E esta não é uma boa maneira de morrer.

Um homem tem sempre a sua faca respondeu Chakliux. Posso viver sem um pé.

Além disso, que alternativa tinha ele? Se parasse, fizesse uma fogueira e secasse os pés e as botas, os homens da aldeia de Rio Primo apanhavam-no. E que hipóteses tinha Chakliux contra eles? Matavam-no, levavam Falcão da Neve e as crias e não haveria esperança de paz. Morreriam muitos homens, mulheres e também crianças. O que era a vida dele comparada com a de tantos?

Vamos, Falcão da Neve incitou ele a cadela, pousando a pata da frente e levantando a traseira do lado esquerdo.

O animal ganiu outra vez. Chakliux passou-lhe os dedos pelo pêlo espesso que almofadava a pata. Levantou a da direita e de novo as duas da frente.

Também tu, disse ele, apertando-lhe levemente as patas traseiras. Estavam molhadas.

Chakliux continuou a andar até o declive da margem se esbater. Depois atravessou a vegetação com Falcão da Neve até chegar a uma clareira onde a neve formava uma crosta dura e brilhante. Cortou galhos de abeto e salgueiro, servindo-se da faca da manga para abrir os ramos até chegar ao coração seco da madeira. Fez uma fogueira e alimentou-a cuidadosamente. Em seguida, procurou no fardo. Tinha algumas peles de lebre. Descalçou a bota e embrulhou o pé nas peles. Pôs a bota ao pé do lume e observou a água evaporando-se.

Falcão da Neve enrolou-se numa bola e começou a lamber a pata traseira esquerda. Chakliux tirou um pedaço de pele de caribu do seu fardo. Embrulhou-a no outro pé, esfregando-o até sentir a pele seca debaixo dos dedos. Quando tinha os dois pés secos, tirou os filhotes da alça e deixou-os mamar. Depois, os pôs de novo debaixo da parka.

Virou a bota, aproximando-a mais do fogo e esfregando-a como esfregara as patas de Falcão da Neve. Em seguida, comeu, partilhando a carne seca com a cadela. Comeu à pressa e esfregou a bota pela última vez. Não estava seca, mas ele não queria esperar mais. Pelo menos tinha o pé quente. Talvez o andar o impedisse de enregelar antes de chegar à aldeia de Rio Próximo.

Voltou a enrolar o pé numa pele de lebre e atou-a ao tornozelo com uma tira de babiche. Quando ia pegando a bota, Falcão da Neve rosnou. Chakliux desembainhou a faca comprida que trazia junto à barriga da perna e virou lentamente a cabeça para olhar para o animal, que tinha as orelhas espetadas para a frente.

Homens? Não são lobos? perguntou Chakliux em voz baixa.

Falcão da Neve voltou a pousar a cabeça nas patas e ficou de olhos muito abertos observando a escuridão. Chakliux levantou-se e descreveu um círculo lentamente, desviando o olhar da fogueira até se habituar à noite. Não viu nada.

Rápido, golpeou a neve endurecida com a faca e escavou-a com as mãos enluvadas.

Falcão da Neve levantou a cabeça para ver, enquanto ele fazia um monte de neve e o cobria com um cobertor de pele de lebre. Sim, pensou. Aquilo podia ser um homem. Se alguém acreditasse nisso. Colocou mais lenha na fogueira. Em seguida, pegou sua lança e a de Topa-Nuvens e recuou. Embrenhou-se com cautela nos trilhos que fizera quando viera do rio, até chegar a um local onde a vegetação era densa. Falcão da Neve levantou-se para ir atrás dele, mas Chakliux ordenou-lhe que ficasse. A cadela deitou-se, com o nariz virado para o lugar em que ele se escondera.

Chakliux pôs os braços à volta das pernas e fingiu que não sentia o frio que vinha do solo e que se lhe entranhava na sola do pé. A pele não era suficiente para impedir que o pé gelasse, mas daria jeito durante algum tempo. Sobretudo se ele se levantasse de vez em quando para aliviar o corpo.

Como todos os jovens, desde bebê que Chakliux fora deixado ao relento, nu, por alguns momentos, em noites muito frias, para endurecer o corpo. Sabia combater o frio. Mexeu os dedos das mãos e dos pés, puxou o rufo da parka bem para os olhos e deixou que a sua mente vagueasse para outras coisas.

Enfiara o lançador na manga esquerda. Sentia o calor dele na sua pele, como se emprestasse força ao seu corpo. Fora Chakliux que fizera o lançador como a maior parte dos homens para caber na sua própria mão. Abrira uma concavidade na parte lateral que se adaptava confortavelmente à almofada de carne na base do polegar. O indicador esticava-se por baixo do lançador e subia até chegar a um buraco; o polegar agarrava-se a um dos lados do lançador e os outros três dedos ao outro.

A lança encontrava-se numa ranhura, na parte de cima, com a ponta virada para o alvo. A arma era manuseada com o braço levantado, a mão estendida para trás, ao contrário da direção em que a lança seria atirada. Com o lançador, Chakliux podia atirar a lança mais longe e com mais força.

A noite passou lentamente. Por fim, Chakliux virou-se para leste e olhou para o céu. Era imaginação sua ou o céu clareara? Levantou-se, viu Falcão da Neve virando a cabeça subitamente e ouviu-a rosnar. Chakliux agarrou-se à lança e abaixou-se para desembainhar a faca de obsidiana.

As lanças deles surgiram rapidamente, duas, espetando-se na neve coberta pela pele ao lado da fogueira. Falcão da Neve deu um salto quando quatro homens penetraram no estreito clarão.

Homem Noturno, Tikaani, Caribu e Silencioso, os filhos de Topa-Nuvens. Por um momento, Chakliux ia gritar-lhes, mas depois lembrou-se que os vira, um por um, na cabana da mãe. Estariam a agir por instruções de K’os? Se assim era, talvez julgassem que ele matara Dança-no-Rio e o pai.

Os quatro homens avançaram lentamente para o monte de neve coberto pela pele. Chakliux gostaria de ter tido mais tempo para o tornar mais verossímil, com uma luva ou uma madeixa de cabelo de fora. Falcão da Neve levantou-se, rosnando.

Homem Noturno tocou no monte com um dedo do pé; depois gemeu e afastou o cobertor. Gritou:

Chakliux, viemos porque aquele caçador que mataste disse que tu tencionavas matar o nosso pai. Choramos os dois homens. Vamos matar-te e a quem quer que se diga teu amigo.

Até este cão vai morrer ameaçou o irmão chamado Silencioso.

O homem virou-se, ficou de costas para Chakliux e ergueu a lança como se fosse atirá-la ao peito de Falcão da Neve.

Falcão da Neve rosnou e agachou-se, arreganhando os dentes.

Topa-Nuvens, meu amigo, perdoa o que vou fazer proferiu Chakliux em voz baixa.

Puxou do lançador e ajustou a extremidade saliente da sua lança na placa de marfim que a mantinha firme. Ergueu-a acima do ombro e atirou. A lança aterrou com um baque surdo no meio das costas de Silencioso. O homem caiu de joelhos com um gemido. Os irmãos mexeram-se lentamente, como se não acreditassem no que os seus olhos viam.

Chakliux ajustou a lança de Topa-Nuvens na sua tábua de arremesso e atirou outra vez. O seu lance foi alto e atingiu Homem Noturno no ombro direito. O homem gritou, virou-se e depois caiu, contorcendo-se.

Falcão da Neve começou a latir alto e com frenesi.

Cala a boca, cão! gritou Homem Noturno, com a dor na voz.

Arrancou a lança do ombro e depois caiu de costas, ainda com a arma nas mãos.

Assim que atirou, Chakliux percebeu que o lançamento fora demasiado alto, mas esperava que a lança tivesse atingido o osso do ombro de Homem Noturno, o que não aconteceu. Homem Noturno tirara-a com facilidade.

Homem Noturno ergueu-se, servindo-se para tal do cabo da lança de Topa-Nuvens. Tossiu e engasgou-se, vomitando na neve. Cuspiu e depois tentou falar, mas não conseguiu. Por instantes, Chakliux teve vontade de dar meia volta e correr. Todos eles eram rapazes. Talvez tivessem vindo a pedido da mãe dele, julgando proteger o pai e encontrar a honra no assassinato. Até essa noite, Chakliux nunca matara um homem. Não era como abater um animal para comer. Qual o animal abatido que não se oferecia voluntariamente? O Povo cantava, dançava e rezava. Os espíritos dos animais compreendiam e aceitavam essas coisas como dádivas, e depois voltavam no ano seguinte para se oferecerem de novo, e para receberem outra vez.

O que se ganhava com a morte de um homem? Ofereciam-se presentes? Alimentavam-se crianças?

Chakliux! gritou Tikaani. Julgas que te deixaremos viver depois de teres morto o nosso pai?

Chakliux não se mexeu. Atirara as duas lanças e agora só dispunha das facas para se defender. Que opção tinha? Eles eram dois. Três, se Homem Noturno não estivesse gravemente ferido. Até Falcão da Neve se pusera ao lado deles, de dentes arreganhados ao olhar para o tufo de árvores e de arbustos em que Chakliux se escondia. Pelo menos, a escuridão estava do seu lado. Se ficasse imóvel, se não se mexesse nem gritasse, eles não saberiam onde ele se encontrava até o amanhecer.

Além disso, eles não sabiam que ele não tinha mais lanças.

Sobressaltavam-se com as rajadas de vento e os estalidos dos ramos.

Homem Noturno sentou-se junto da lareira e pôs uma mão-cheia de neve no rasgão ensangüentado da parka.

Ele pode ver-te aí, ao pé da fogueira avisou Caribu o irmão.

Ele vê-nos a todos afirmou Tikaani. Tirou a sua lança do cobertor de pele de lebre. Julga que somos parvos.

Temos sido parvos disse Caribu.

Afastou-se do lume e Chakliux viu-lhe apenas a aplicação branca nos ombros da parka, duas linhas brancas que se moviam na escuridão.

Passaste uma noite na cabana de K’os e depois prontificas-te a fazer tudo o que ela te manda, a acreditar em tudo o que ela te diz continuou Caribu. Julgas que o povo de Rio Próximo enviou Chakliux para nos amaldiçoar? Se isso é verdade, porque é que K’os o criou? A maldição está nela, não no filho. Bem sabes o que as mulheres dizem. Eu ouvi a minha mãe dizer em voz baixa que K’os matou a mulher de Chakliux, porque não queria que a prima tivesse um filho, quando ela não podia ter nenhum. O nosso pai está morto, e o nosso irmão!

E foi uma faca de mulher que os matou? rosnou Tikaani. Foi a própria lança de Chakliux. No entanto, acusas K’os. Esquece-a. Chegou o momento de matar aquele que trouxe a morte a tanta gente. Acho que ele não tem mais lanças. De outro modo, teria acabado com Homem Noturno. Ele é um alvo fácil, sentado ao pé da fogueira.

Homem Noturno começou a choramingar e Tikaani virou-se para ele, puxando-lhe o capuz da parka para o esbofetear. Homem Noturno tirou a faca da manga e apontou-a até Tikaani lhe voltar as costas.

Talvez Chakliux vá já rio acima para a sua aldeia gritou-lhes Caribu da escuridão. Não fica longe do povo de Rio Próximo. Enquanto vocês os dois brigam, ele foge.

Acho que não queres matá-lo comentou Tikaani, saindo também do círculo de luz e dirigindo-se para a escuridão até Chakliux não ver para onde ele fora. Temos que acabar o que começamos, ou todos os homens da aldeia de Rio Próximo virão atrás de nós. Saberão quem somos só pelas nossas pegadas.

Sim, pensou Chakliux. As mulheres de Rio Próximo faziam botas com solas duplas, dobradas à frente com costuras mais próximas da ponta. Quando a neve estava mole, era possível perceber se as pegadas tinham sido feitas por caçadores de Rio Próximo ou por homens da aldeia de Rio Primo.

Eles saberão pelo nosso irmão que morreu afirmou Tikaani.

Julgas que eu abandonarei o meu irmão? perguntou Caribu do meio da escuridão.

Chakliux mexeu-se e desviou a cabeça, tentando ver donde vinha a voz. Os homens pareciam aproximar-se dele. Chakliux recuou, com todo o cuidado, devagar, para não fazer barulho. Se conseguisse chegar ao rio, esgueirar-se ao longo da margem, talvez pudesse distanciar-se dos homens. Eles não iriam muito mais longe. A aldeia de Rio Próximo estava perto demais. Era mesmo possível que Falcão da Neve o seguisse até à aldeia. Ele é que levava os filhotes.

Chakliux meteu a mão na parka e acariciou a cabeça dos cachorros. Depois apalpou um tronco de árvore. Deu mais alguns passos e parou de novo, à escuta.

Ouviu a faca antes de a ver, o silvo da lâmina, quando esta se dirigia a ele. Sentiu a ponta raspar-lhe no peito e depois ouviu o latido agudo de um dos filhotes. Pegou a faca e depois avançou com ela na mão esquerda e a sua na direita. Surgiram braços à sua frente, na escuridão, e ele sentiu a faca que tinha na mão esquerda a enterrar-se na carne. Ouviu alguém ofegando, e depois os braços desapareceram, assim como a faca. Esbracejou com a faca na mão direita, mas foi impedido pelos ramos.

Chakliux recuou e tropeçou. Caiu num emaranhado de salgueiros e perdeu a faca, mas saltou sobre o seu atacante. Era Caribu. Um homem baixo e possante, mais forte do que ele e mais esperto que os irmãos.

Caribu tinha uma faca. Chakliux agarrou-lhe no pulso, mas Caribu rasgou-lhe o capuz da parka com a mão livre até lhe aproximar o polegar da garganta. Os braços de Chakliux começaram a fraquejar à medida que ele deixava de respirar, até ser deitado ao chão, partindo ramos de árvores ao cair e ficando com a cabeça debaixo da neve enquanto o peso do corpo de Caribu o empurrava para baixo. Então ouviu rosnar. Era Falcão da Neve.

Ao cair, Chakliux agarrara o pulso de Caribu. Nesse momento, quando Caribu tentava virar-se para a cadela e apontar-lhe a faca, Chakliux enterrou a unha do polegar no pulso do homem, obrigando-o a largar a arma.

Chakliux libertou o braço, levantou as pernas para afastar Caribu e depois passou os dedos pela neve até encontrar a faca.

Apanhou-a e, com um movimento rápido, enterrou a lâmina na pele macia por baixo do queixo do homem. Uma golfada de sangue caiu-lhe nos dedos, fazendo escorregar a faca que tombou no capuz da parka. Então, Falcão da Neve atirou-se ao pescoço do homem e os gritos de Caribu deixaram de se ouvir.

Chakliux procurou as suas facas e por fim encontrou a de obsidiana enterrada na neve, no local em que Caribu o atacara pela primeira vez. Encostou-se a uma árvore, tentando recuperar o fôlego e espreitou para a fogueira. Só lá estava Silencioso, caído de borco na neve. A lança de Chakliux desaparecera.

Onde estavam Tikaani e Homem Noturno?, perguntou ele a si próprio. Regressaram à aldeia ou esperavam-no na escuridão?

 

ALDEIA DE RIO PRÓXIMO

Ghaden estendeu o braço e apalpou o monte de cobertores a seu lado. Passou a mão por eles até encontrar o rosto de Yaa, que estava dormindo. De outro modo, teria pegado a mão.

Agora ela era a mãe dele, uma boa mãe. Contava-lhe histórias e brincava com ele, e quando ele começava a ter dores ela esfregava-lhe as costas. Nunca gritava com ele como fazia Água Castanha, mas mesmo assim Ghaden tinha saudades da primeira mãe, tantas que às vezes não conseguia fazer mais nada senão chorar.

Yaa não sabia as canções da outra mãe nem as palavras secretas que ela ensinara a Ghaden palavras dos Primeiros Homens que ele não devia repetir a ninguém.

Às vezes, também, Yaa parecia não ser suficientemente grande para ser uma mãe. Não podia levar-lhe comida sempre que ele queria. Sobretudo, tinha que a tirar às escondidas da panela, quando Água Castanha estava distraída. E o colo dela era tão pequeno que, quando pegava em Ghaden no colo, parecia-lhe sempre que ia escorregar. Mas preferia tê-la como mãe do que a Água Castanha. Ela ainda era melhor do que Boca Feliz. Por isso ele tentava conter as lágrimas e não pensar na sua outra mãe. Chorava principalmente quando Yaa estava lá fora. Depois lembrava-se do que acontecera à primeira mãe e receava que alguma coisa pudesse suceder a Yaa. Quem passaria a ser a mãe dele se isso acontecesse?

Agarrou uma das longas tranças de Yaa, enfiou o dedo na boca e esfregou a trança nas pálpebras. Era macia e cheirava a fumo de lenha. Ghaden sentiu as lágrimas a nascerem-lhe na garganta até quase o sufocarem.

Era melhor estar ali do que na cabana do xamã. Tinha Yaa, e a velha avó Ligige’ aparecia muitas vezes. Ele sabia que Ligige’ tentava apenas curá-lo, mas os chás dela tinham um gosto tão ruim; e, quando ela punha mezinhas na ferida que a faca lhe fizera nas costas, aquilo ardia. Ela obrigava-o a tossir, e isso doía. Se ele chorava, ela chamava-lhe bebê e dizia-lhe que tinha de ser forte como um homem. Ele sabia que ela tinha razão. Ele tinha de ser forte, mas às vezes era difícil fingir que uma coisa não doía ou não caia mal.

Uma vez, Ghaden pedira-lhe um remédio para acabar com a dor interior. Ele não sabia ao certo donde vinha a dor. Talvez a faca lhe tivesse cortado qualquer coisa no fundo do peito que não se via de fora.

Ligige’ examinara-o de cima a baixo, batendo-lhe nos ossos com os dedos duros e deformados e encostando o ouvido ao corpo dele, na frente e nas costas. Mas apesar de a dor da ferida ir passando a pouco e pouco, a dor interior continuava, doendo sempre, sempre.

Algum tempo depois, Ghaden concluiu que Ligige’ sabia que a dor estava lá, mas não tinha remédio para ela. Pediu a Lobo-e-Corvo que cantasse para ele, mas nem isso ajudou. Um dia, quando a mulher de Lobo-e-Corvo estava brincando com ele com ossos, a dor desapareceu, só por um bocadinho, e isso deu esperanças a Ghaden de que ela não o acompanhasse para sempre. Mesmo assim, doía-lhe quase sempre, sobretudo à noite ou quando estava sozinho.

Ghaden suspirou e esfregou a ponta da trança de Yaa no nariz. A dor aliviou um pouco. Ghaden fechou os olhos e tentou dormir, com a trança bem fechada na sua mão.

O puxão nos cabelos acordou-a. Yaa sorriu. Deixou-se ficar quieta até ouvir a respiração de Ghaden abrandando ao ritmo do sono. Depois, virou-se com cuidado para não lhe tirar a trança das mãos.

A velha Ligige’ convidara Água Castanha para ir à cabana dela de manhã. O rapaz estava mais ou menos bem, dissera Ligige’. Não era preciso ela ir vê-lo todos os dias. Ensinaria água Castanha a dar-lhe os remédios.

Para surpresa de Yaa, depois de Ligige’ sair, Água Castanha pedira-lhe que fosse também.

Tu é que passas a tratar do rapaz ordenou ela. Tens que ouvir todas aquelas instruções. Eu não tenho tempo para essas coisas.

Yaa guardara a felicidade para si própria. Se sorrisse muito, Água Castanha poderia mudar de idéia. Além disso, na cabana, ainda estavam todos de luto pelo pai de Yaa. Muitas vezes, a própria Yaa tinha necessidade de se refugiar na sua toca para chorar, recordando os modos ternos do pai, sem que mais ninguém visse as suas lágrimas.

Encostou-se muito a Ghaden. Ele estava deitado de costas, com o rosto iluminado pela luz dourada das brasas da lareira. A sua face estava ficando de novo redonda e gorda, e as pestanas escuras contrastavam com o tom mais claro da pele. Apesar de ele ser pouco mais do que um bebê, o osso do nariz já tinha uma pequena saliência no meio. Como o nariz do comerciante, pensou Yaa, lembrando-se da cara do homem.

Então, teve uma idéia: talvez o comerciante fosse o pai de Ghaden. Fora ele que trouxera Daes para a aldeia. Yaa era pequena quando eles chegaram, mas lembrava-se. Por isso é que, todos os anos, ele vinha ver Daes e Ghaden, e talvez fosse por esse motivo que Daes saía da cabana às escondidas para o ir visitar. Também era por isso que ela suportava os murros que Água Castanha lhe dava por fazer tal coisa.

Apesar de Lobo-e-Corvo dizer a toda a gente que fora um espírito enraivecido que matara Daes e o velho Tsaani, algumas das mulheres continuavam pensando que fora o comerciante. Yaa ouvira-as a cochichar acerca dele junto das lareiras da comida, mas porque havia um homem de tentar matar o seu próprio filho? Porque havia de matar a mãe do seu filho? Ele trazia sempre presentes a Daes e a Ghaden. Às vezes, também dava presentes a Yaa, e dizia-lhe para olhar por Ghaden, para ser uma boa irmã para o irmãozinho. Se ele estava tão preocupado com o filho, porque havia de feri-lo ou à mãe?

Yaa recordou a noite em que Daes fora assassinada. Qualquer coisa a acordara. Um som, tinha a certeza. Talvez fosse Daes ou Ghaden chorando, mas ela estava a sonhar e julgara então que o barulho fazia parte do sonho.

Estivera sonhando com Dança-no-Gelo. Ele estava a arreliá-la, com um pau na mão. Um pau. Sim. E de repente o pau transformara-se em... Em quê? Numa boleadeira. Ele agitava-a. As pedras formavam um grande círculo por cima da cabeça dele e depois caíam ao chão. De repente, as pedras não eram pedras mas sim pedaços de chifre, a chocalhar uns nos outros. A chocalhar ao ritmo do andar de uma pessoa, como se ela tivesse chocalhos de casco de caribu no cimo das botas. Sim, botas cerimoniais, daquelas que se usavam nas danças.

Havia muitos homens com chocalhos de caribu nas suas botas de dança, mas aquele som era diferente. Era o som dos chocalhos, mas algo mais... Algo mais.

O esforço de memória deixou a cabeça de Yaa a latejar.

Ghaden gemeu e virou-se. Yaa tirou as mãos do calor dos cobertores de pele e abraçou o rapaz.

Estaria Ghaden acordado quando a mãe fora atacada? Se não estava, com certeza que o ataque o acordara. Lembraria ele de alguma coisa?

Mesmo que se lembrasse, talvez não tivesse dito nada a Ligige’ nem a Lobo-e-Corvo. Sempre fora tímido, mas talvez falasse com Yaa, e depois talvez ela conseguisse descobrir quem matara Daes.

O assassino tinha de ser alguém forte. Não só matara Daes como Tsaani. Tsaani era um velho, mas ainda caçava. Com certeza que devia ter lutado para salvar a vida. Então Yaa lembrou-se de uma coisa que lhe fez gelar os ossos. E se o assassino tivesse medo que Ghaden se lembrasse?

Na cabana de Lobo-e-Corvo, Ghaden estivera a salvo. Quem tentaria matar alguém na cabana de um xamã? Mas ali, só com mulheres e crianças, o assassino não teria ninguém para lhe fazer frente. O coração bateu-lhe com força debaixo das costelas.

Se eu já fosse crescida, pensou ela, casaria com um jovem forte e o traria para esta cabana para nos proteger a todos. Mas uma menina de sete Verões ainda não tinha idade para casar.

O melhor era que a mãe de Yaa ou Água Castanha voltassem a casar, mas ninguém queria Água Castanha. Era muito velha e estava sempre de mau humor. Talvez alguém quisesse a mãe de Yaa. Pelo menos como segunda esposa, mas ela tinha de esperar pelo fim do luto antes que algum homem a aceitasse. Quanto tempo faltaria? Yaa não se lembrava. Uma lua, ou talvez duas.

Até lá, a melhor forma de se proteger seria Yaa descobrir quem matara Daes e contar a toda a gente. No dia seguinte, quando a mãe e Água Castanha estivessem lá fora, ela falaria com Ghaden. Talvez ele lhe contasse o que sabia.

De manhã, Yaa não quis deixar Ghaden. Os seus receios noturnos atormentavam-na, e ela imaginou um homem de faca em punho entrando na cabana à força.

Yaa pensou que o assassino não faria tal coisa durante o dia, quando todos o vissem, mais ainda assim ficou inquieta. Disse à mãe que olhasse por Ghaden, que ficasse com ele. Disse-lhe tantas vezes que, por fim, Água Castanha deu-lhe uma palmada na cabeça e a pôs para fora da cabana.

As lágrimas fizeram-lhe arder os olhos, mas Yaa afastou-se. A palmada de Água Castanha não lhe doera tanto assim, mas o medo nos olhos de Ghaden que ela vira ao sair parecia uma faca no seu coração. Seguiu Água Castanha pelos estreitos caminhos da aldeia até chegar à cabana de Ligige’, e depois sentou-se como uma sombra ao lado da mulher.

Ligige’ e Água Castanha começaram por falar delicadamente de coisas sem importância e depois Ligige’ serviu-lhes tigelas de caldo que tirou de uma pequena panela pendurada nos postes da cabana. Por fim, depois de comerem, Ligige’ começou a mostrar ervas e pedaços de coisas secas, gravetos e pós, casca de amieiro moída, fervida e arrefecida para aplicar no local da ferida, raiz amarela para dar forças e casca interior de salgueiro contra a febre.

Enquanto explicava como se devia usar cada remédio, olhava muitas vezes para Yaa, para que esta soubesse que a velha compreendia que seria ela a dar os remédios, que seria ela a responsável.

Por fim, a sessão terminou e voltaram para a cabana de Água Castanha. Estava tudo como elas tinham deixado. Não havia golpes nas paredes da cabana, nem sangue nem cadáveres lá fora.

Vês? És uma tola, pensou Yaa, entrando no túnel atrás de Água Castanha. Mas esta parou ao fundo do túnel e não deixou entrar Yaa. A mulher fez um estranho ruído, como se estivesse sufocando, e Yaa sentiu-se de repente sem força nos braços, com o medo.

Devias ter-me avisado que vinhas disse Água Castanha. Onde está Boca Feliz?

Yaa empurrou Água Castanha e a mulher entrou, permitindo que Yaa a seguisse. O medo de Yaa desvaneceu-se tão depressa que ela ia perdendo os sentidos. Era o velho Pato-de-Cabeça-Azul. Estava de cócoras ao lado de Ghaden. Tinha nas mãos um cachorrinho castanho e branco. Ghaden sorria. Desatou a rir quando o animal se inclinou para lhe lamber o nariz.

É o meu cãozinho disse Ghaden a Yaa. Depois, muito sério, olhou para a cara de Água Castanha e acrescentou: Mãe, este é o meu cão. Este avô diz que vai ensinar-me a tomar conta dele.

Boca Feliz foi buscar comida na lareira disse Pato-de-Cabeça-Azul a Água Castanha. Ela não se demora.

Água Castanha fez um aceno de cabeça, tirou o capuz da parka e disse a Yaa que abrisse vários odres de água. Yaa pousou o cesto dos remédios de Ligige’ junto das suas esteiras dobradas e correu a fazer o que Água Castanha lhe dissera.

E se Pato-de-Cabeça-Azul fosse o assassino?, pensou ela ao dar-lhe um dos odres. Com um cãozinho ao colo, quem desconfiaria dele? Ele podia ter morto Ghaden antes de a mãe voltar.

Pato-de-Cabeça-Azul bebeu um bom gole e depois, baixando o odre, olhou para Água Castanha.

Este cachorro é bem constituído observou ele. Será um bom cão para a caça e para carga. Devia ficar cá dentro.

Lá dentro, pensou Yaa. Quem tinha um cão dentro de casa? Olhou para Água Castanha, esperando que ela tivesse um ataque de fúria. Nem um velho podia ordenar a uma mulher que tivesse um cão dentro da cabana. Mas água Castanha não se enfureceu. Deitou um olhar demorado e pensativo ao cachorro.

Ele late muito? perguntou ela.

Late.

Será um bom cão para esta cabana.

Então, Yaa percebeu que não era a única pensando que Ghaden estava em perigo.

Ghaden fez uma bola da tira de pele e atirou-a. O cachorro foi atrás dela, latindo. Ghaden sabia que estavam fazendo muito barulho. Se Água Castanha estivesse na cabana, já lhes teria ralhado, mas Ghaden, Yaa e o seu novo cão estavam sozinhos.

Ghaden chamaria Mordedor ao cão, apesar de ainda não ter dito a ninguém. Quando Mordedor crescesse, seria um cão grande, com dentes compridos e fortes, e toda a gente teria medo dele. Se Mordedor estivesse junto deles naquela noite, talvez tivesse salvo a primeira mãe de Ghaden.

O cachorro era castanho-claro, com o pêlo mais escuro à volta dos olhos. Tinha uma pequena mancha branca, em forma de estrela, no queixo, e o peito e a barriga eram brancos.

Como vais chamar-lhe? perguntou Yaa. Ghaden olhou para o rosto redondo de Yaa e mostrou os dentes.

Mordedor respondeu ele, rosnando.

Mordedor!

Ghaden rosnou outra vez, olhando de soslaio para Yaa e com a boca entreaberta.

Ele é um cão feroz afirmou Ghaden.

Uma vez tive um cãozinho. Chamei-lhe Caça-Caudas disse Yaa. Inclinou a cabeça e olhou bem de frente para Ghaden. Caça-Caudas é um bom nome.

Caça-Caudas, pensou Ghaden. Quem teria medo de um cão chamado Caça-Caudas.

Ele chama-se Mordedor. Yaa levantou os braços.

O cão é teu. Põe-lhe o nome que quiseres. Ghaden foi engatinhando atrás de Mordedor, agarrou a bola de pele e atirou-a outra vez.

Agarra, Mordedor!

O cão agitou a cauda felpuda e correu atrás dela.

O que aconteceu a Caça-Caudas?

Comemos respondeu Yaa. Foi no fim do Inverno e o nosso pai já não podia ir caçar.

Yaa esfregou as mãos, pensando nas articulações inchadas que tinham transformado o pai num velho.

Ninguém comerá o Mordedor declarou Ghaden. Ele os comerá primeiro.

Yaa ergueu a sobrancelha.

Precisamos de um cão que nos proteja nesta cabana disse ela. Talvez Mordedor seja um bom nome para ele.

Yaa olhou para o cachorro. Tinha a tira de pele na boca e abanava a cabeça. Teria uma boa altura, pensou ela. Água Castanha e a mãe estavam nas lareiras da comida e Ghaden estava mais falador do que nunca desde que a mãe morrera.

Agora estás seguro afirmou Yaa, olhando para Ghaden.

Ele ergueu a sobrancelha em sinal de concordância.

Ninguém me apanhará retorquiu ele com uma voz firme.

Ghaden, ninguém sabe quem matou... Quem te feriu... começou Yaa.

Ghaden foi atrás do cachorro, pegou-o no colo e pôs a tira de pele em cima da cabeça dele. Mordedor trepou pelas pernas de Ghaden e chocou com o nariz do rapaz. Levantou-se outra vez, atirou-se à pele e apanhou-a. Ghaden riu.

Sabes quem te feriu? perguntou Yaa.

Foi como se Ghaden não tivesse ouvido a pergunta dela. Continuou brincando com o cão, fazendo dançar a tira de pele à volta da cabeça do animal.

Ghaden, sabes?

Yaa aproximou-se do irmão, pegou-lhe no braço e olhou de frente para ele.

Ghaden, perguntei-te se sabias quem te feriu insistiu ela, com determinação.

Ghaden fechou os olhos e abanou a cabeça até Yaa lhe agarrar nos dois lados da cara e o obrigar a parar.

Ghaden disse ela baixinho. Se nós soubermos quem te fez mal, podemos dizer aos mais velhos. Eles expulsam-no e nunca mais te fará mal.

Ghaden olhou para ela, espantado, tentando conter as lágrimas.

Eu vi... Eu vi... murmurou ele, dando pancadinhas nas pernas.

Viste-lhe as pernas?

Sim, vi-as.

Julguei que era... Julguei que era... Cen.

O comerciante? Ghaden ergueu a sobrancelha.

Mas não era?

Não.

Sabes quem...?

Ele abanou a cabeça outra vez.

Eu vi a faca disse ele. Tinha sangue. Ghaden enfiou o dedo na boca e puxou as pernas para junto do corpo. Agarrou uma das tranças de Yaa e depois afastou a mão. Mordedor deu um salto e começou a lamber a face de Ghaden. O rapaz afastou-o. O cão inclinou a cabeça, arrebitou as orelhas e sentou-se tranqüilamente ao lado de Ghaden.

Ghaden passou um braço à volta do cachorro e enfiou os dedos no seu pêlo espesso.

Lembras-te de alguma coisa a respeito dele? perguntou Yaa.

Era alto respondeu Ghaden, sem tirar o dedo da boca.

Ouviste algum barulho? As botas dele tinham chocalhos?

Ghaden tentou recordar aquela noite. As botas eram diferentes, mas ele não se lembrava porquê. Estava escuro e ele tinha sono. Quisera ficar com Cen. Havia sempre fartura de comida e coisas para brincar nos fardos do comerciante. Mas a mãe dissera que tinham que voltar para a cabana de Água Castanha.

Quando voltaram, Ghaden estava pronto para se deitar mas, por qualquer motivo, a mãe não entrou. Esperaram no frio até que a atmosfera gelada se entranhou nas suas roupas.

Ao baixarem-se para entrar no túnel, Ghaden espreitara por cima do ombro e vira alguém. Julgou que era Cen que viera buscá-los para os levar para a sua cabana aquecida.

Ghaden afastou-se da mãe e correu a agarrar-se às pernas de Cen para ele não fugir.

Eles estavam no meio das sombras. Cen podia ter continuado a andar, e Ghaden tinha frio.

Não era Cen. Quem quer que era trazia uma faca. Mesmo às escuras, Ghaden viu o sangue na lâmina. Não sabia ao certo porque lhe pegara, mas lembrava-se de estar assustado. Correra para a mãe com a faca na mão, e assim encaminhara o assassino para ela...

Ghaden deitou-se de lado e enroscou-se como se fosse uma bola. Mordedor lambeu-lhe a face e Yaa fez mais perguntas. Ghaden tapou os olhos com a mão para não ter de olhar para ela. Yaa era como a mulher de Lobo-e-Corvo, como a velha Ligigge’, como o homem que fora à cabana de Lobo-e-Corvo quando Ghaden lá estava sozinho. Todos eles faziam perguntas demais.

Por fim, as perguntas de Yaa transformaram-se numa cantilena, numa canção em surdina.

Não voltarei a falar disso, Ghaden prometeu ela. Não tenhas medo.

Mordedor deitou-se ao lado dele, e encostou o nariz frio e molhado à face de Ghaden. Este acariciou o cão e Yaa cantou até ele adormecer.

 

A manhã estava quente, e um vento sul amolecia a neve debaixo dos pés de Chakliux. As ervas do ano anterior formavam tufos escuros à beira da margem. A fumaça estendia-se numa camada fina sobre as cabanas de Rio Próximo. Os cães latiam alguns satisfeitos por estarem comendo; outros cheirando o peixe que davam aos vizinhos e reclamando a sua parte.

Falcão da Neve arrebitou as orelhas e parou. Ganiu e olhou para a parka de Chakliux onde se encontravam os seus filhotes. Um morrera, trespassado pela faca de Caribu. Chakliux tirara o cachorro da parka, mostrara-o a Falcão da Neve e depois abrira um pequeno buraco na neve endurecida do rio. Deixara que Falcão da Neve amamentasse os outros cachorros, depois enfiara-os de novo na parka e continuara o caminho até a aldeia de Rio Próximo. Às botas do morto que Chakliux calçara estavam secas e quentes.

As crianças foram as primeiras a avistá-lo, os rapazes que estavam dando comida aos cães. Gritaram ao vê-lo aproximar-se e depois calaram-se quando perceberam quem era. Chakliux não percebeu se o consideravam uma maldição ou apenas um caçador que regressava.

De quem é o cão? perguntou um dos rapazes mais velhos. É uma cadela e pertence aos velhos respondeu Chakliux.

O rapaz aproximou-se e olhou para os companheiros para ver a reação deles à sua coragem.

Sua crias estão na parka disse Chakliux ao rapaz, pondo a mão no peito. Ela é capaz de lutar para as proteger.

O rapaz obedeceu e depois, examinando o animal, gritou:

Ela tem olhos dourados. Olhem! Ela tem olhos dourados.

Chakliux meteu a mão no fardo que trazia às costas e tirou um pedaço de corda feito de casca de árvore entrançada. Atou-a à volta do pescoço de Falcão da Neve e atravessou a aldeia com ela, passando pelos cães que se atiravam à cadela, presos às suas trelas junto das cabanas.

Passou primeiro pela cabana da mulher do irmão, entrou e levou o animal consigo.

Folha Vermelha estava fazendo uma parka muito bonita que devia ser para Sok. Levantou a cabeça quando ele entrou e ficou um pouco sobressaltada ao ver o cão. Apontou rudemente para a porta e gritou:

Tira esse cão da minha... Depois calou-se. Um cão de olhos dourados disse ela. Conseguiste um...

Cinco, tenho cinco respondeu Chakliux e, metendo a mão na parka, pôs os quatro cachorros, dois pretos e os outros quase todos brancos, no chão. Três fêmeas e um macho afirmou Chakliux, pegando-lhes para mostrar os olhos a Folha Vermelha.

Falcão da Neve farejou cada um deles e parou para lamber o sangue escuro do pelo preto e branco do mais pequeno.

Está ferido? perguntou Folha Vermelha.

Não respondeu Chakliux, sem dizer mais nada. Não queria que ela espalhasse a história da sua viagem pelas mulheres da aldeia antes de Sok e os velhos a ouvirem.

Folha Vermelha encheu uma tigela de caldo quente e deu-a a Chakliux. Ele não despiu a parka. Graças ao filhote de Falcão da Neve, o bico da faca de Caribu fizera-lhe apenas uma ferida pouco profunda no peito, mas Folha Vermelha não precisava vê-la.

Chakliux pegou a tigela e bebeu um bom gole de líquido quente. Este aliviou-lhe a dor na barriga e espalhou-lhe o calor pelas pernas e pelos braços. Chakliux esvaziou a tigela e depois perguntou:

Onde está Sok?

Foi com os meus filhos dar comida aos cães do av... Foi dar comida aos teus cães.

Sim, aos cães dele. Quase se esquecera. Durante a viagem, o mundo reduzira-se apenas a ele próprio, a Falcão da Neve e aos filhotes. Ali, tinha cães e uma esposa.

Folha Vermelha voltou a encher-lhe a tigela. Ele bebeu vários goles e depois a pôs no chão para Falcão da Neve beber. O animal estava deitado a seu lado, com os cachorros amontoados junto da barriga, mamando. Folha Vermelha protestou quando a cadela começou a beber o caldo, mas Chakliux disse:

Falcão da Neve bem o mereceu.

Porque julgas que eles vieram atrás de ti? perguntou Treina-Cães.

O homem tinha o rosto crispado, e a luz trêmula da lareira acentuava-lhe as rugas na face e na testa.

Longe da fogueira, a cabana estava tão escura que Chakliux quase se esquecera que ainda não anoitecera. Os olhos ardiam-lhe como se tivesse areia debaixo das pálpebras e, enquanto explicava aos velhos o que acontecera, foi obrigado a disfarçar um bocejo várias vezes.

Chakliux abanou a cabeça.

Não sei. Topa-Nuvens vendeu-me os cães. Como era um dos mais velhos da aldeia de Rio Primo, veio comigo para falar a todos vocês, para vos dizer que os velhos de Rio Primo queriam paz e que só os jovens caçadores, cansados dos dias escuros de Inverno, é que falavam em lutar.

Então foram mortas três pessoas? perguntou Narceja.

Estava sentado ao lado de Treina-Cães, num dos lugares de honra nos fundos da cabana. Sok estava ao lado de Chakliux, virado para o semicírculo formado pelos velhos da aldeia.

Três ou talvez quatro. Houve outro caçador que ficou ferido respondeu Chakliux.

Mas eles mataram o velho que te vendeu os cães?

Mataram. Foi um dos caçadores que o matou.

Não nos aconteceu nada disse Sok. Nenhum dos nossos jovens foi morto. Este velho era um dos deles. O meu irmão também é da aldeia deles. Talvez este problema não nos diga respeito e tenham de ser eles a resolvê-lo.

Mas nós não sabemos o que os caçadores de Rio Primo disseram ao seu povo salientou Treina-Cães. Talvez eles lhe tenham dito que Chakliux roubou os cães, que o negócio não foi limpo e que foi ele que matou o velho e os caçadores para ficar com os cães para nós.

Chakliux sentiu o olhar dos velhos cravado nele. O que Treina-Cães dissera era verdade. Talvez os filhos de Topa-Nuvens estivessem convencidos de que ele matara o pai. Seria justo que aquela aldeia sofresse por algo que se passara entre as pessoas da aldeia de Rio Primo?

Voltarei para eles. Contarei o que aconteceu sugeriu Chakliux.

Não disse Sok, mas foi interrompido pelo padrasto.

E os cães? perguntou Raposa-Que-Ladra. Trocaste todas as nossas mercadorias por esses cães. Não os podes levar outra vez.

Se ele não os levar, o povo de Rio Primo ficará sabendo que eles estão aqui lembrou Treina-Cães. Pensará que matamos para ficarmos com os cães.

Espera disse Vê-Luz, avô de Mirtilo. Apontou para Chakliux com o queixo. Agora, este homem é marido da minha neta. Se ele regressar à aldeia de Rio Primo, vocês julgam que eles o deixarão viver?

Calou-se, mas os outros homens não disseram nada.

E se ele não tivesse voltado com os cães? O que diria disso o povo de Rio Primo?

Então para onde teria ele ido? perguntou Sok.

Talvez ao encontro dos Caçadores de Morsas para lhes vender este cão de olhos dourados.

O que beneficiaremos nós com isso? indagou Raposa-Que-Ladra. Enviamos Chakliux à aldeia de Rio Primo na esperança de que um cão de olhos dourados quebrasse a maldição que se abateu sobre os nossos animais.

Ela tem quatro crias, não tem? perguntou Vê-Luz. Quantas das vossas fêmeas é que têm novas ninhadas?

Vários homens tartamudearam, acenando com a cabeça e erguendo as sobrancelhas, entre eles Raposa-Que-Ladra.

Talvez algumas fêmeas aceitem um novo filhote. Esses cachorros, se viverem, ainda nos dão uma oportunidade de quebrar a maldição. Se o povo de Rio Primo enviar homens à procura de Chakliux, escondemos os cachorros. Isso não será difícil. Eles são pequenos.

E Chakliux? perguntou Sok.

Ele foi uma maldição entre nós afirmou Vê Luz. Gostaríamos que ele regressasse para a sua aldeia. Gostaríamos que ele nunca mais voltasse.

 

ALDEIA DE RIO PRIMO

Então vocês deixaram-no fugir? perguntou K’os, com uma voz imperturbável. Ele tem a cadela e os filhotes e não está ferido?

O homem engoliu em seco e respondeu:

Ele matou o meu pai.

Então o velho morreu, mas o meu filho salvou-se?

Ele não se safa rosnou Tikaani.

Ele matou Salta-no-Rio, Silencioso e Caribu. Homem Noturno está quase morto e esperas que eu acredite que tu vais matar Chakliux?

K’os deu uma gargalhada e percebeu que Tikaani julgara que ela se rira dele, mas ela rira-se da ingenuidade do filho. Ele era mais desembaraçado do que ela julgava. A situação revelara-se um belo jogo. Melhor do que ela esperava. Quem podia acreditar que o velho louco Topa-Nuvens e o seu filho aleijado tinham qualquer hipótese contra Salta-no-Rio e quatro dos melhores jovens caçadores da aldeia? É claro que Chakliux ficara com os cães.

A cadela não está ferida?

Não me parece. Não vi os filhotes. K’os encolheu os ombros.

Os filhotes morrem com facilidade afirmou ela.

Foi a cadela que matou o meu irmão Caribu. Atacou-o. Então talvez não fosse a perícia mas a sorte que salvara Chakliux, pensou K’os. Ou o poder. A idéia incomodava-a. Ele fora a sua brincadeira, uma brincadeira terrível, terrível...

Recordou a época em que era nova. Agora era bela. Mas fora muito mais. Todos os homens da aldeia a tinham desejado. Os jovens caçadores... Ah, os seus corpos gritavam pelo dela, mas o pai só via a honra que alcançaria se a entregasse a um velho.

Os presentes de Dá-Nomes tinham sido maravilhosos, mas ele parecia um pau seco e velho. K’os queria alguém mais jovem.

Lembrou-se da manhã em que o pai lhe comunicara a sua decisão. Ela espreitara pela aba da porta e vira Bate-no-Chão e Salta-no-Rio lá fora. Tinham montado um alvo de pele de caribu, esticado à volta de uma estrutura de rebentos de árvores, e atiravam setas de ponta romba para praticar. Como se fossem rapazes pequenos. Ela observava-os de trás da aba e tossira uma vez para eles saberem que ela estava ali. Depois, o pai afastara-a.

Tu julgas que, porque és bela, podes ter todos os jovens da aldeia, disse-lhe ele. Julgas que, porque encontraste uma criança doada pelos animais, deves ter tudo quanto queres. Não és melhor do que outra mulher qualquer. Tens de ter um único marido; tens de fazer filhos para honrares o teu marido. Eu escolhi Dá-Nomes.

As palavras foram como pedras que caíssem no estômago de K’os. Ela suplicara-lhe, mas ele não mudara de opinião. K’os enrolara-se nos cobertores e chorara até o pai sair da cabana, saturado. Furiosa, amaldiçoara Dá-Nomes. Porque havia um velho de querer uma jovem? Havia viúvas na aldeia. E Três Pássaros? Não era feia. E Mulher Matinal?

Mais tarde, K’os fora ao Lago do Avô, com Chakliux atado às suas costas. Não lhe apetecia ver as outras jovens da aldeia, os seus risos ocultos atrás das mãos, o seu olhar deliciado ao saberem que K’os seria a mulher de Dá-Nomes. No lago, gritou a sua fúria ao Rochedo do Avô, fez oferendas e até prometeu devolver Chakliux aos espíritos do Avô se, quando regressasse à aldeia, Dá-Nomes tivesse morrido. O lago e o rochedo não a ouviram. Dá-Nomes estava vivo e ela tornou-se sua esposa, oferecida pelo pai em troca da promessa de caribus mortos e de peixe seco.

Dá-Nomes não conseguiu fazer nada na cama dela. K’os disse à mãe e ao pai, e perguntou-lhes se podia expulsá-lo e voltar para a cabana da mãe, mas eles responderam-lhe que não. Explicaram-lhe que era por causa da honra que ela perderia, mas K’os sabia que eles não se importavam com a sua honra, mas apenas com os presentes de Dá-Nomes. Pior, quando Chakliux tentara levantar-se pela primeira vez, K’os reparara na deformidade do seu pé. Fora mais um motivo de raiva a juntar aos que lhe atormentavam a vida. Concluiu que Chakliux não era uma dádiva dos animais, mas apenas uma criança que alguém abandonara. Através de perguntas cautelosas feitas a homens que haviam ido negociar à aldeia de Rio Próximo, K’os descobrira que tinha razão. Um dia, quando Dá-Nomes fora visitar outro velho, Bate-no-Chão aparecera na cabana de K’os e ela falara em levá-lo para a sua cama. Mais tarde, quando estava nos braços de Bate-no-Chão, rejubilando com a saciedade que lhe aquecia o corpo, ele dissera-lhe que ia casar com Três Pássaros. Ela ficara furiosa e expulsara-o da cabana.

Foi então que K’os começou a visitar Velha Irmã. Velha Irmã era uma curandeira, muito conhecedora de mezinhas feitas com plantas. Deu a conhecer a K’os as plantas e as ervas que garantiriam a saúde de Dá-Nomes. Ensinou-lhe aquelas que deviam ser evitadas. Durante um ano, K’os visitou Velha Irmã todos os dias. Todos os dias aprendia qualquer coisa até Velha Irmã não ter mais nada a ensinar.

Era uma tristeza quando uma doença desconhecida surgia na aldeia. K’os fazia muitas mezinhas mas, por qualquer motivo, elas não resultavam. Cortou os cabelos em sinal de luto quando a doença ceifou Velha Irmã. Confortou Bate-no-Chão no seu desgosto quando este perdeu Três Pássaros. Usou farrapos e cinzas de viúva quando o próprio Dá-Nomes sucumbiu.

Desde então, muitas coisas tinham mudado. K’os virou-se para Tikaani. Ele era pouco mais do que um rapaz. O seu peito ainda não se enchera e os seus braços ainda não eram grossos e fortes, mas as pernas bem musculadas faziam prever o homem que ele seria, e ela ainda não se cansara dele na cama.

Volta para a cabana dos caçadores aconselhou ela. Teremos a nossa vingança, mas não será nada que tu faças sozinho. Espera. Eu aviso-te quando chegar a altura certa. Então a aldeia de Rio Próximo ficará em ruínas e o povo de Rio Próximo servirá de alimento a corvos e raposas.

K’os foi falar primeiro com os tios e depois com os primos. Disse-lhes que Silencioso e Caribu eram jovens demais para terem morrido por causa do egoísmo do filho e da ganância do povo de Rio Próximo. Homem Noturno estava deitado na cabana da mãe, quase morto, com o ombro infectado. Era um milagre que Tikaani tivesse conseguido trazê-lo para a aldeia. Salta-no-Rio fora um dos seus melhores caçadores. Agora, quem daria de comer aos filhos dele? Depois, havia Topa-Nuvens, um homem sábio, um velho respeitado por muitos.

K’os baixou a cabeça, envergonhada, sabendo que o filho o matara. O que podia ela dizer à jovem filha de Topa-Nuvens, Estrela, que ainda vivia na cabana da mulher dele?

A culpa era sua, disse-lhes K’os. Ela trouxera Chakliux para a aldeia, pensando que ele traria honra e poder ao povo.

Convidou os homens a irem à sua cabana e, ao deixar cada um pensar que ficaria a sós com ela, sabia que eles iriam.

Trabalhou bastante para preparar a chegada deles, enchendo panelas de carne e água, levando-as para as lareiras para cozinhar, e vigiando-as para que outros não tirassem uma parte. Ignorou o falatório das outras mulheres quando lhes empurrou as conchas ávidas da sua carne.

Quando viu o rosto furibundo de Esquilo e a palidez amuada de Caça-Mochos, desafiou-as dizendo:

Não se preocupem. Os vossos maridos ficarão convosco na cama esta noite. Esta comida é para as famílias que estão de luto.

Então elas deixaram-na em paz, e até a ajudaram a afastar as crianças da comida.

Quando a carne estava quente, a borbulhar no seu próprio suco, cheia de gordura e temperada com frutos secos, K’os levou as panelas para a sua cabana, pendurou-as nos postes e esperou que os homens chegassem.

 

ALDEIA DE RIO PRÓXIMO

Chakliux sentou-se no chão de pele de caribu da cabana de Folha Vermelha e esfregou o seu pé de lontra. Doía-lhe, desde a luta com Tikaani e os irmãos, mas nesse dia a dor parecia ter abrandado.

Folha Vermelha entrou na cabana com os braços cheios de lenha. Ele levantou-se, tirou-lhe a lenha das mãos e empilhou-a junto do túnel de entrada enquanto ela despia a parka.

Isso ainda te incomoda? perguntou ela.

Ainda.

Tenho aqui uma coisa disse Folha Vermelha mostrando um pequeno embrulho. Foi Ligige’ que me deu. É uma coisa de que a mulher dos Caçadores Marinhos lhe falou. Chama-se sixsiqax. Ligige’ disse que as folhas frescas são melhores, mas ela só tinha secas. Eu mergulhei-as em água quente.

Apontou para as traseiras da cabana, na direção das lareiras da aldeia. As mulheres tinham sempre uma pele de caribu cheia de água quente, aquecida com pedras tiradas das extremidades das lareiras.

Senta-te disse ela a Chakliux.

Ele sentou-se e Folha Vermelha ajoelhou-se a seu lado. Aplicou-lhe as folhas molhadas e quentes no pé. Aparentemente, elas tiraram-lhe as dores nos ossos.

Sixsiqax? perguntou Chakliux. A palavra arranhava-lhe a garganta e era desconhecida. É um nome dos Caçadores Marinhos?

Folha Vermelha encolheu os ombros e depois perguntou:

Onde está Sok?

Com os cães.

O que aconteceu com os velhos?

Chakliux sabia que ela não faria tal pergunta a Sok, mas era mais atrevida com ele.

Estão satisfeitos com os cães.

Devem estar.

Folha Vermelha ficou à espera, e Chakliux percebeu que ela esperava que ele dissesse mais alguma coisa, mas as mulheres não tinham de saber o que se passava na cabana dos velhos.

O que pensas dos nossos jovens? perguntou Folha Vermelha. Alguns querem atacar a aldeia de Rio Primo.

São estúpidos observou Chakliux.

Durante muito tempo, Folha Vermelha não disse nada. Chakliux ficou à espera. Ela era uma mulher que passava muito tempo nas lareiras, a ouvir e a contar. Não ficaria calada para sempre. Por fim ela disse:

Não tem havido mortes desde que saíste da nossa aldeia, nem de cães nem de pessoas.

Então as mulheres julgam que fui eu que matei o meu avô e a mulher dos Caçadores Marinhos?

Chakliux sentiu um aperto na garganta ao fazer a pergunta.

A maioria concluiu que foi o comerciante que os matou disse ela. A maioria julga que ele morreu. Estava gravemente ferido quando saiu da nossa aldeia. Alguns dos jovens julgam que tu é que foste o assassino, mas Pato-de-Cabeça-Azul disse-lhes que, se fosses, não terias regressado a esta aldeia.

Chakliux respirou fundo.

Não sou eu o assassino declarou ele.

Agora que trouxeste os cães, ninguém da aldeia pensa que foste tu disse Folha Vermelha, mas desviou o olhar ao pronunciar estas palavras.

Chakliux fez um aceno de cabeça. Sabia que ela não lhe estava a dizer toda a verdade. Ainda havia os que tinham medo dele.

Umas mulheres dizem que tu sairás da aldeia. Outras dizem que ficarás aqui e que aceitarás Mirtilo como esposa. Outras pensam que a rejeitarás.

Há mulheres que falam de mais respondeu Chakliux.

Folha Vermelha pegou a parka que estava fazendo. Começou a passar uma linha de tendão pelos orifícios que abrira com um furador.

Se não aceitares Mirtilo, pensas que Sok a aceitará? A pergunta surpreendeu Chakliux. Era uma coisa que Folha Vermelha não devia perguntar.

Não sei respondeu ele. Pergunta ao teu marido. Folha Vermelha rosnou.

Mirtilo é melhor do que Neve-no-Cabelo afirmou ela, levantando a parka para Chakliux ver o complicado desenho do Sol nas costas. Mas nenhuma sabe fazer uma parka como esta.

 

ALDEIA DE RIO PRIMO

K’os convidou não só os tios e os primos que já eram caçadores, como também os jovens primos que ainda se consideravam rapazes. Precisava dos jovens, talvez mais do que daqueles que eram caçadores experientes. Todos os homens ficaram admirados ao entrar na cabana dela primeiro ao verem o marido, Bate-no-Chão, e depois ao verem os outros, entre os quais os pais, os filhos ou os irmãos.

K’os riu internamente ao ver a cara deles, a passagem da avidez ao embaraço, e depois o ar carrancudo que denunciava a sua fúria. Serviria bem o objetivo de K’os, essa fúria.

Fez o papel de esposa, servindo a cada homem uma tigela de carne. A dos mais velhos fora temperada com a raiz da planta alta de flores roxas que ela descobrira, algo que Velha Irmã nem sequer conhecera. Eles mal dariam pelo seu gosto suave, mas ela os deixaria calmos, descontraídos. Eles ficariam sentados em silêncio e não fariam nada enquanto ela atuava junto dos jovens, estimulando a sua raiva.

Os caçadores comeram em silêncio, olhando de esguelha uns para os outros. Zanguem-se, disse K’os aos jovens, em silêncio. Zanguem-se. Astuta, K’os procurou o olhar de cada caçador, ergueu a sobrancelha e fez um esgar. O marido estava atento, ela tinha certeza. Ele sabia demais. Que pena. O momento não era bom para lutos, mas havia coisas que não podiam ser evitadas.

Por fim, K’os pigarreou e olhou para Bate-no-Chão. Pelo menos ele concordara com aquilo. Ela sorriu, sem abrir a boca. Talvez ele pensasse que a idéia fora sua.

Pedi a todos vocês que viessem cá começou ele. K’os viu a surpresa no olhar dos homens. Ela não lhes dissera nada quanto ao fato de o marido os querer ali, mas que melhor maneira havia de alimentar a raiva dos jovens?

Todos vocês estão de luto. A minha mulher e eu queremos que saibam que partilhamos o vosso desgosto. Temos presentes.

Bate-no-Chão apontou para uma pilha de objetos que estava ao canto da cabana, coisas que ele e K’os tinham reunido em dois dias, desde o regresso de Tikaani à aldeia. Quase todos os objetos lhe haviam sido oferecidos pelos homens que iam visitá-la à cabana. Ela guardava os presentes nos fundos da despensa, por baixo de fardos de peixe seco, carne congelada e intestinos de caribu recheados de gordura e frutos. Pouco se preocupava que Bate-no-Chão encontrasse aqueles tesouros. Qual o homem que resistia a um bom naco de carne?

K’os dissera a Bate-no-Chão que trocara carne por outros objetos com as amigas, com a tia, com uma prima.

Os homens deitaram um olhar ávido às mercadorias.

Com estes presentes, estamos a honrar-vos declarou Bate-no-Chão. Sabemos que o nosso filho é a causa do vosso luto e por isso também estamos de luto.

O marido estava saindo-se bem, pensou K’os, apesar de ter uma voz fina que às vezes parecia fraquejar quando ele elogiava cada um dos mortos e entoava um cântico pela cura de Homem Noturno.

Ele não fora uma má escolha como marido. Depois de Dá-Nomes ter morrido, quando K’os era nova, ainda acalentava a esperança de ter filhos e não sabia que uma mulher não precisava de um marido para a sustentar, chegara a desejá-lo. O manteria por pouco tempo. Mas ele não queria lutar com o povo de Rio Próximo, e como fora o chefe dos caçadores da aldeia durante muitos anos, outros tinham seguido a sua decisão, pelo menos os mais velhos. Os jovens fariam o que Tikaani dissesse. Afinal, ele era o verdadeiro chefe dos caçadores da aldeia. Trazia mais carne do que Bate-no-Chão alguma vez trouxera, e Tikaani estava sempre ansioso por ir se juntar com ela à cama.

Por isso, talvez ela lhe desse o que ele mais desejava, o reconhecimento como único chefe dos caçadores da aldeia. Depois, juntos, continuariam a sua vingança contra o povo de Rio Próximo por aquilo que eles lhes tinham feito.

 

ALDEIA DE RIO PRÓXIMO

Chakliux aproximou-se da lareira da cabana e espalhou a gordura de ganso na pele. Vestiu-se lentamente: uma tanga nova que Folha Vermelha lhe fizera, as perneiras interiores de pele de lebre macia, a camisa de pele de caribu bem limpa com areia fina, depois as botas interiores de pele de esquilo, as perneiras exteriores de pele de caribu, a parka de pele de esquilo e as botas de pele de foca.

Ele tinha presentes, coisas que uma mulher iria apreciar: uma pele de lobo, um agulheiro de marfim, um pente de madeira, peixe seco, frutos secos, uma faca de mulher de jade e uma armadilha de pesca de dente de morsa. É claro que não seriam suficientes como dote, mas como Mirtilo lhe fora oferecida pelo avô, os presentes não eram necessários. Talvez isso facilitasse a noite que tinham que passar juntos.

Chakliux não se deitara com nenhuma mulher desde que Gguzaakk morrera e ainda antes disso. Ela morrera pouco depois de o filho nascer, e qual o homem que aceita uma mulher grávida na sua cama?

Um homem que não consegue disciplinar-se para esperar por uma mulher, não terá a paciência de que precisa para caçar bem. O que era a caça senão observar e esperar? Um movimento no momento errado podia fazer a diferença entre uma família que sobrevivia a um Inverno rigoroso e outra que sucumbia.

Mirtilo era uma mulher bela muito mais bela do que Gguzaakk, mas Gguzaakk era bela por dentro, bela e inteligente. Chakliux não sabia ao certo se Mirtilo também era, apesar de ter tratado bem o avô. Pelo menos, a avaliar pelo que ele vira.

Só uma noite, pensou Chakliux. Tenho de lhe dar uma noite. Isso era o suficiente para honrar Tsaani. O fato de a ter encontrado com Caça-Raízes quando ainda estava de luto era motivo suficiente para a rejeitar mas, por respeito ao avô, não faria referência a isso. Chakliux iria quebrar os laços do casamento só pela viagem que tinha que fazer a Caçadores de Morsas. Quem sabia se voltaria? Talvez os Caçadores de Morsas o recebessem bem, e nesse caso Chakliux ficaria e aprenderia a caçar animais marinhos e a construir um iqyax só para ele. Talvez resolvesse até ir visitar algumas aldeias dos Caçadores Marinhos.

Sentia um certo mal-estar sempre que pensava na sua viagem. O que sabia ele dos Caçadores de Morsas? Conseguiria aprender a caçar animais marinhos? Podia um homem aprender a fazer qualquer coisa que levava uma vida inteira a dominar?

Talvez. Se ele estivesse disposto a ser rapaz outra vez, se o seu orgulho não se interpusesse no caminho da sua aprendizagem.

Guardou os presentes num cesto de pele de peixe. Nessa noite teria a sua primeira lição. Nessa noite aprenderia a viver sem orgulho.

Partimos amanhã disse Sok a Vê-Luz. Vou com o meu irmão.

Quanto tempo estarás ausente? perguntou o homem.

Não te preocupes disse Sok. O meu irmão arranja outro homem que aceite a tua neta como esposa. Ela não morrerá de fome.

Vê-Luz fez um sinal de assentimento e depois apontou com o queixo para Sok.

E a tua mulher?

Tem irmãos. Por instantes, a voz de Sok endureceu. Ela é uma mulher que sabe tomar conta de si própria. Além disso, eu voltarei quando tiver feito os meus negócios.

Chakliux só voltará se o povo de Rio Primo não o procurar. De outro modo ficará com os Caçadores de Morsas. Talvez eles compreendam a honra que ele lhes concede por ser lontra e homem ao mesmo tempo.

Vê-Luz desviou o olhar e Sok percebeu o embaraço do homem. Deixa ele ficar embaraçado, pensou Chakliux. Esperava que Vê-Luz tivesse recordado à neta o respeito que uma esposa devia ao marido, em especial a alguém como Chakliux.

Chakliux tinha poder. Se assim não fosse, como teria ele conseguido aparecer, como filho mais novo, e receber todas as coisas que Sok queria? Mas como podia Sok queixar-se? Como podia ele guardar rancor a Chakliux se este conquistara o seu respeito de tantas maneiras? Pela sua caça, pela sua destreza no manejo das armas e até pelo modo como tratava os filhos do irmão. E até Folha Vermelha abrandara nos seus sentimentos para com o homem.

Uma vez, Chakliux dissera a Sok que o seu sonho era ter um iqyax e aprender a caçar animais marinhos. Se ele conseguisse fazer uma coisa dessas, talvez ficasse com os Caçadores de Morsas. Ou fosse viver com os Caçadores Marinhos. Então, um dia poderia regressar à sua aldeia e ensinar Sok a caçar animais marinhos. O pensamento animou Sok, mas este tentou não imaginar como seria voltar àquela aldeia sozinho, sem Chakliux, o irmão que exigia demais, o irmão favorecido pelos espíritos desde o nascimento, o irmão que ele aprendera a amar.

Mirtilo levantou-se quando Chakliux entrou na cabana. Não usava ornamentos, apenas uma camisa de pele de caribu e meias de pele de lebre até aos joelhos. Chakliux lamentou não ter trazido colares, penas ou caudas de doninha. Há muito tempo que estava afastado das mulheres. Esquecera-se do que elas gostavam.

Deu-lhe o cesto de pele de peixe.

É para ti disse ele.

Ela pegou o cesto sem dizer nada, baixando a cabeça ao pegar-lhe para que Chakliux visse a longa risca branca que lhe dividia o cabelo. Era uma mulher pequena e estreita de ancas, como Gguzaakk. Chakliux sentiu um aperto no coração ao pensar nisso e depois lembrou-se de que ela seria sua mulher apenas por uma noite. Nunca sentiria a alma dilacerada pelo medo quando ela estivesse dando à luz.

Mirtilo pousou o cesto no chão e trouxe-lhe uma tigela de comida. Ele sentou-se comendo, observando-a pelo canto do olho enquanto ela via os presentes que ele lhe levara. A mulher soltava exclamações ao ver cada um, com palavras discretas mas satisfeitas, e Chakliux sentiu que o seu coração se enchia também de alegria. Com certeza que ela já recebera presentes. Com certeza que uma mulher tão bela como Mirtilo sabia o que era receber boas coisas.

Ele entregou-lhe a tigela vazia e ela deitou um olhar para a panela que estava pendurada nos postes da cabana.

Estava muito bom, afirmou Chakliux.

Os presentes também são muito bonitos, retribuiu Mirtilo, tão baixinho que Chakliux teve que se inclinar para a ouvir.

Há mais um presente para ti esta noite. Ela ficou admirada e olhou para o sexo dele.

Não disse Chakliux, sem conseguir deixar de sorrir. Apontou com o queixo para a tigela. Enche outra vez a minha tigela, e mais outra.

Não tenho fome disse Mirtilo.

Não é para ti.

Alguém raspou na aba da porta e Chakliux gritou:

Entre.

Mirtilo virou-se para o túnel, de olhos arregalados, e, quando Caça-Raízes entrou, ela deixou cair a tigela de Chakliux e cobriu o rosto com as mãos.

Mulher, o nosso convidado precisa de comer proferiu Chakliux.

Mirtilo pegou a tigela de Chakliux, encheu-a e entregou-a. Encheu outra para Caça-Raízes. Chakliux fez sinal ao homem para se sentar ao lado dele.

Caça-Raízes estava nervoso. Os seus dedos compridos e esguios tremiam ao receber a tigela das mãos de Mirtilo.

Mirtilo trouxe um odre de água, o pôs junto de Chakliux e depois foi para o canto dos cestos, enfiando-se entre os juncos e as ervas e as pilhas de cestos de pele de peixe que lá tinha. Pôs um molho de ervas secas no colo e começou a cortar uma folha com a unha do polegar.

Chakliux comeu. Não disse nada a Caça-Raízes nem a Mirtilo, apesar de reparar que, de vez em quando, ambos o espiavam pelo canto do olho.

Quando acabou de comer, pousou a tigela no chão. Mirtilo levantou-se de um salto para a encher, mas ele levantou a mão e ela voltou a instalar-se no meio dos cestos.

Chakliux esperou que Caça-Raízes acabasse de comer. O homem comia mais devagar do que era necessário, pensou Chakliux, mas depois lembrou-se de que Caça-Raízes era um homem vagaroso, nos pés e no pensamento. Porque não seria também vagaroso para comer?

Reparei que vives na cabana da tua mãe começou Chakliux, virando-se para olhar de frente para Caça-Raízes. Como eu estou nesta aldeia há poucas luas, não sei tudo acerca de toda a gente, mas ouvi dizer que não tens mulher.

Não, não tenho retorquiu o homem, com uma voz esganiçada como a de um rapaz.

Precisas de uma esposa disse Chakliux.

Sim anuiu Caça-Raízes, empalidecendo.

Há muitas mulheres nesta aldeia, jovens e viúvas, que não estão comprometidas. Há a filha de Lobo-e-Corvo, Neve-no-Cabelo; há Erva Quebrada, uma viúva ainda suficientemente nova para ter filhos. Há a neta de Treina-Cães, que acabou de celebrar os seus rituais de mulher.

Chakliux calou-se e debruçou-se para passar um dedo pela tigela, chupando o molho da carne.

Já pensaste nalguma destas mulheres? perguntou Chakliux.

Só em Erva Quebrada respondeu Caça-Raízes.

Chakliux olhou para Mirtilo e viu a surpresa no seu rosto. Acreditaria ela que aquele homem só pensava nela? O marido morrera apenas há uma lua.

Caça-Raízes seguiu o olhar de Chakliux até este pousar em Mirtilo. Depois baixou a cabeça, corando de repente.

Como sabes, tenho que aceitar Mirtilo como esposa prosseguiu Chakliux, olhando outra vez para Caça-Raízes.

Chakliux virou-se para Mirtilo.

Compreendes, mulher? perguntou ele.

Compreendo.

Mas há uma coisa que eu tenho a dizer-vos. Chakliux encostou-se ao espaldar que pertencera ao avô. Acabei de regressar da aldeia de Rio Primo, do meu próprio povo. Negociei de modo a trazer, de boa-fé, uma cadela de olhos dourados e as suas crias. Trouxe os cães para cá na esperança de quebrar a maldição que está matando os animais desta aldeia. Os jovens caçadores da aldeia de Rio Primo não querem bons negócios entre nós. Procuram alcançar a honra tornando-se guerreiros. Depois de eu sair da aldeia, eles atacaram-me.

Chakliux olhou para Mirtilo e viu que ela o ouvia de olhos arregalados e boca aberta. Caça-Raízes também o observava.

Porquê? perguntou ele.

Quem sabe? A honra é uma coisa para um homem e outra para outro.

Vi a fêmea e os quatro cachorros que trouxeste, disse Caça-Raízes.

Os cachorros eram cinco afirmou Chakliux. Eles mataram um, e um cão que eu trazia para acasalar com as fêmeas. Também mataram um velho de Rio Primo que veio comigo. Três desses caçadores morreram. Três de cinco. Outro ficou ferido. Depois, eles regressaram à sua aldeia e eu vim para cá.

Eles virão à tua procura salientou Mirtilo, dirigindo-se para o lugar deles à lareira, ajoelhada entre ambos, como se se tivesse esquecido da sua posição de mulher.

Eles virão e, se não te entregarmos, eles atacarão disse Caça-Raízes.

Isso é o que os velhos pensam respondeu Chakliux. E o que eu e o meu irmão pensamos, também. Por isso, tencionamos deixar a aldeia amanhã. Iremos negociar com os Caçadores de Morsas; talvez iremos ainda mais longe e negociemos com os Caçadores Marinhos.

Chakliux olhou para Mirtilo, viu-lhe as rugas na testa e percebeu que ela estava pensando.

Estarás ausente durante muito tempo concluiu ela tranqüilamente.

Posso não voltar retorquiu Chakliux, e as suas palavras pairaram, frias e ocas, na cabana. Posso não conseguir voltar. Os velhos resolveram dizer que eu não voltei com os cães de olhos dourados. Assim, o vosso povo não será acusado da morte dos caçadores de Rio Primo. Que culpa têm vocês que um homem de Rio Primo mate outro homem de Rio Primo? Como é que os jovens caçadores podem servir-se de tal pretexto para começar uma guerra?

Então levas os cães e vais embora? perguntou Mirtilo.

Para quê levar os cães? Ele trouxe-os para nós, disse Caça-Raízes.

Mirtilo olhou para o homem, desolada.

Se os guerreiros deles vierem, reconhecerão a fêmea disse ela.

E os filhotes? perguntou ele.

Ainda falta decidir o que se fará com os filhotes, disse Chakliux.

Os velhos ainda não tinham decidido quais os homens para quem iriam os cachorros. Um seria para Treina-Cães e talvez outro para o padrasto, Raposa-Que-Ladra. Mas para quê divulgar a sua decisão? Quanto menos homens soubessem o destino dos cachorros que ficariam na aldeia, melhor.

Tenho uma cadela com uma nova ninhada. Ela pode amamentar mais uma informou Caça-Raízes.

Chakliux mordeu o interior da face.

É uma decisão que serão os mais velhos a tomar. Vai falar com Treina-Cães. Talvez eles concluam que não é seguro deixar aqui os cachorros.

Como é que um homem reconhece um cachorro depois de crescido? perguntou Caça-Raízes.

Pelos olhos respondeu Chakliux.

De vez em quando nasce um cachorro de olhos dourados nas nossas ninhadas.

Talvez fosse verdade, pensou Chakliux. Ainda vivia na aldeia há pouco tempo para saber.

A minha preocupação não é com os cães disse ele a Caça-Raízes. A minha preocupação é com a minha mulher. Não posso levá-la comigo. Não sei se voltarei. Aceita-a como esposa? Assim, terá um caçador que olhe por ela, e eu não me preocuparei a pensar se ela terá a carne de que precisa para o próximo Inverno.

Mirtilo voltou a esconder a face.

Aceito-a se ela me aceitar retorquiu Caça-Raízes, apertando a tigela que ainda tinha no colo.

Mirtilo?

Sim, eu vou com ele disse ela, com a voz abafada pelas mãos.

Eu fiz a pergunta por tua causa, disse Chakliux a Caça-Raízes. Eu não te daria Mirtilo se não fosses um bom caçador nem um bom homem.

Caça-Raízes inclinou a cabeça e engoliu em seco. Tinha o pescoço comprido e a cabeça saía-lhe da parka como se fosse o rebento encaracolado de uma planta nova.

Vai então ordenou Chakliux. Vem encontrar-nos de manhã, quando ainda estiver escuro. É quando Sok e eu tencionamos partir.

Virou-se para Mirtilo e disse-lhe, tirando-lhe as mãos do rosto:

Bem sabes que eu tenho que te rejeitar. De outro modo, não serás livre de vires a ser esposa de Caça-Raízes.

Sim.

Se fizermos isto de manhã cedo, ninguém nos verá. Não enfrentarás a desonra.

Chakliux respirou fundo. Não tinha mais nada a dizer. Não era fácil ceder a mulher a outro homem, mesmo que não a desejasse.

Caça-Raízes levantou-se, inclinou a cabeça para Chakliux e depois fitou Mirtilo. A mulher baixou a cabeça e olhou para Chakliux. Caça-Raízes saiu e a cabana ficou de repente grande demais, silenciosa demais.

Chakliux levantou a tigela na direção de Mirtilo, apesar de ter o estômago cheio. Tinha que comer, e lembrou-se que, durante a viagem, sentiria a falta da boa comida de Mirtilo. Depois, recordaria esta segunda tigela de comida.

Serve-te de uma também disse ele.

Mirtilo pousou a mão na barriga e ele julgou que ela ia dizer que não tinha fome, mas ela encheu a tigela, depois sentou-se do outro lado da lareira e começou a comer. Manteve a tigela inclinada para esconder a face.

Quando acabou de comer, baixou a tigela, olhou para ele e disse com um ar tranqüilo:

Obrigada.

Chakliux não teve a certeza se ela lhe agradecia pela comida ou por Caça-Raízes. Perguntou a si próprio se Mirtilo quebrara tabus com Caça-Raízes ou se o recebera na sua cama quando Tsaani ainda era vivo, mas pensou que não tinha nada a ver com isso. Se ela tivesse quebrado tabus e promessas, a sorte a abandonaria e o êxito de Caça-Raízes na caça ficaria ameaçado. Agora, como eles passariam a pertencer um ao outro, as maldições recairiam essencialmente sobre eles próprios, o que era melhor.

Em seguida, Chakliux afastou todos os pensamentos de Caça-Raízes e levou Mirtilo para a cama. Despiu-se e ficou apenas de tanga. Mirtilo tirou a camisa pela cabeça. Ficou de costas para a brasa da lareira e, na penumbra, Chakliux não a via com clareza; distinguia apenas as saliências dos seios, mais escuros no meio, e a sombra do sexo entre as pernas.

Ela era mais magra, tinha os ossos mais finos do que Gguzaakk. Ao olhar para ela, Chakliux começou por reparar apenas nas diferenças entre as duas mulheres; depois, foi como se as visse lado a lado e elas começassem por fim a confluir, como dois ribeiros que se juntavam, o escuro e estreito Mirtilo e o Gguzaakk, mais claro e mais largo, que se juntavam pouco a pouco até se tornarem um só. Chakliux abraçou Mirtilo e acariciou-lhe as costas, os ombros e os braços.

Então as mãos de Mirtilo pousaram no seu corpo, leves e ternas, e Chakliux sentiu os calos pequenos e ásperos na sua pele. Esquecera-se do gozo do corpo de uma mulher, do seu calor. De repente, ficou satisfeito por já a ter prometido a Caça-Raízes. Não sabia ao certo se o teria feito depois de a aceitar como esposa.

 

ALDEIA DE RIO PRIMO

K’os guardou cuidadosamente o pó num pedaço de pele de caribu. Tingira a pele com cinco-folhas e a cor vermelha constituiria um aviso para ela. Fechou-a com muitas fitas de tendão e depois guardou-a no fundo da sua bolsa dos remédios feita de pele de castor. Bate-no-Chão conquistara uma suspensão temporária da execução. Surgiria outra oportunidade, pensou ela, acariciando a bolsa. Por agora, aceitaria a sugestão do marido.

Havia um risco. Eles eram conhecidos na aldeia de Rio Próximo. O marido caçara com alguns dos seus homens e, evidentemente, negociara com eles. K’os também conhecia alguns dos caçadores de Rio Próximo. Conhecia-os muito bem. Mas isso era algo que talvez eles quisessem esconder, sobretudo quando ela estava na companhia do marido.

Bate-no-Chão levantou a aba da porta no túnel de entrada e gritou:

Estás pronta?

Ela puxou o capuz da parka bem para o rosto. Era de manhã cedo, uma boa hora para partir, quando o solo estava duro e gelado. Não podiam esperar mais para decidir o que iriam fazer. A Primavera estava chegando. Depois ninguém conseguiria atravessar o rio senão quando as águas das inundações descessem. Partiriam agora e enfrentariam o filho da aldeia de Rio Próximo.

Cada cão levava um fardo. Eram três animais: uma fêmea e dois machos, todos de olhos dourados. Se o povo de Rio Próximo estava ansioso pela paz, talvez ficasse menos ao ver aqueles cães. Quando os seus jovens percebessem que podiam vir a ter cães como aqueles, concluiriam que também queriam lutar.

O marido de K’os inclinou-se sobre cada um dos animais e verificou os atilhos que seguravam os fardos. K’os afastou-se dele e aproximou-se de Tikaani e de Quebra Neve, os dois jovens caçadores que iriam com eles.

A voz dela era calma e suave, amaciada pelo rufo de pele que lhe emoldurava a face.

Ele julga que vai falar de paz àquela gente de Rio Próximo. Não creio que haja qualquer hipótese de paz. Vigiem-no. Quando eles virem os cães, creio que tentarão matá-lo. Dirão que foi um acidente, mas...

K’os levantou as mãos enluvadas.

Bate-no-Chão olhou para trás e fez-lhes sinal para avançarem. Cada um dos homens ia acompanhado de um cão. K’os seguia atrás. A aldeia estava silenciosa ao princípio da manhã. A fumaça elevava-se no ar e formava uma camada fina sobre as cabanas. As estrelas ainda brilhavam no céu.

A neve chiava debaixo das botas de pele de foca de K’os. A mulher calçara raquetes e transportava um pequeno fardo com mantimentos às costas. À cintura, levava facas de mulher embainhadas e atara uma faca de lâmina curta ao pulso esquerdo. Debaixo da parka, encostada à pele quente, encontrava-se a bolsa dos remédios. K’os acariciou-a e sentiu o coração bater com força como se reagisse à carícia. K’os sorriu, espreitando pelo túnel do capuz. Seria uma longa caminhada, mas estava ansiosa por voltar a ver o filho. Sentia a falta dele.

K’os tirou os óculos de neve. Eram feitos de chifre de caribu ocos e adaptados ao tamanho dos seus olhos. As estreitas fendas e o carvão esfregado no interior ajudavam a cortar o brilho do sol na neve, mas mesmo assim doía-lhe a cabeça e via manchas. Pelo menos, tinham caminhado a maior parte do dia sobre o rio gelado em vez de atravessarem as densas moitas de salgueiros ou a tundra, onde a neve começava a derreter-se.

Há três dias que caminhavam e, quando chegaram ao local em que o rio descrevia uma curva larga, Bate-no-Chão virou-se para trás e gritou a K’os:

Lá está a aldeia de Rio Próximo.

Um caminho aberto na neve estendia-se desde a margem até um trilho pedregoso que era fácil de subir, visto que uma pessoa carregada não tinha de se agarrar às árvores nem escalar engatinhando. Quando chegaram ao topo da margem, K’os verificou que a aldeia era maior do que ela pensava.

As cabanas estavam mais próximas umas das outras do que na sua aldeia. K’os perguntou a si própria onde armariam eles os estrados de seca. Não havia espaço para eles entre as cabanas. Talvez fosse nos limites da aldeia, onde estariam mais expostos ao sol, mas também mais à mercê dos animais.

K’os inclinou-se para Tikaani e disse em voz baixa:

A aldeia é mais pequena do que a nossa. Ele fez um sinal afirmativo.

Mas o número de homens que havia naquelas cabanas é que era importante. Quantos eram? Quantos seriam capazes de lutar?

Um grupo de crianças constituído por rapazes e moças embrulhados em parkas e perneiras foi ao encontro deles. Tinham o rosto redondo e os olhos límpidos.

Ali não havia falta de comida, pensou K’os. As crianças eram sempre as primeiras a mostrar a fraqueza ou a força de uma aldeia.

Somos da aldeia de Rio Primo e vimos visitar-vos disse-lhes Bate-no-Chão.

Uma das crianças mais velhas, um rapaz, deu um passo em frente. Era bem constituído e tinha um aspecto forte, com o queixo tão saliente que os dentes do maxilar inferior não se ajustavam aos de cima. As outras crianças mantiveram-se à distância dele, deixando um pequeno espaço vazio.

K’os observou a criança. Talvez conseguisse servir-se de um rapaz como aquele.

O rapaz abriu a boca, mas antes que ele conseguisse falar, K’os perguntou:

Como te chamas?

A raiva ensombrou-lhe o olhar. Não era uma pergunta própria de um desconhecido, e muito menos de uma mulher. Um nome era uma coisa demasiado sagrada. Quando uma pessoa sabia o nome de outra, tinha poder sobre ela.

Eu sou K’os disse ela, dando-lhe a saber o seu nome para que ele sentisse necessidade de fazer o mesmo. A troca não era igual. Era reduzido o poder que o rapaz poderia exercer contra ela.

Eu vou levar-vos aos velhos afirmou ele, virando as costas a K’os e dirigindo-se a Bate-no-Chão.

K’os sorriu. Ele não era estúpido. Fanfarrão, talvez, mas não estúpido. Tanto melhor. Quantas vezes é que os seus planos tinham sido destruídos pela estupidez? Salta-no-Rio! Bem merecera o que lhe acontecera.

Sim, diz-lhes que viemos visitar os nossos irmãos em sinal de respeito anunciou Bate-no-Chão.

As crianças deram meia volta e desataram a correr para o centro da aldeia.

Diz-lhes que trazemos cães de olhos dourados gritou-lhes Tikaani.

Eles não são cegos comentou Bate-no-Chão. Bem vêem o que nós trazemos.

K’os levantou a cabeça e olhou para as cabanas que os rodeavam. Daí a pouco, nem uma ficaria de pé, pensou. Nem uma. Daí a um ano, só haveria esquilos e ptármigas na aldeia. K’os conteve o riso. O povo de Rio Próximo merecia morrer. Atraía maldições e depois, sem pensar, estendia-as aos outros.

Pouco depois, as crianças voltaram. Vinham acompanhadas por dois velhos. K’os examinou o rosto dos dois homens mas não os reconheceu. Ainda bem, pensou. Depois, baixou a cabeça e pôs-se atrás do marido. À espera, como as mulheres deviam fazer.

A cabana dos velhos era grande. Os postes estavam cheios de peles de animais sagrados doninhas-brancas, pica-paus, marmotas, esquilos e muitos carcajus. Os homens estavam sentados em círculo à volta da lareira. Concederam a K’os um lugar atrás do marido. As mulheres acorreram, trazendo comida das lareiras no exterior. Comeram bem e em seguida o marido de K’os mostrou os presentes que trouxera: facas de jade e de obsidiana para todos os homens. Eles aceitaram-nas com uma expressão séria, como era costume na aldeia, mas não conseguiram esconder um lampejo de alegria no olhar. Pelo visto uma idéia do marido de K’os acerca da qual ela não tinha certeza fora uma boa decisão.

Os homens falaram de muitas coisas, de caçadas e do degelo da Primavera, e até dos filhos e das mulheres, o que surpreendeu K’os. Na sua aldeia, era raro os homens falarem das suas famílias. Era bom que aquela gente de Rio Próximo desse tanto valor aos filhos, pensou K’os. Estariam mais dispostos a lutar por eles, mas a dúvida pairava sobre outros pensamentos, uma dúvida que ela não conseguia afastar. Da última vez que fora à aldeia de Rio Próximo, K’os ainda era uma menina. Fora o pai que a levara. Se bem se lembrava, o povo de Rio Próximo estava de luto por um grupo de homens que tinham morrido afogados no rio. Ela não sabia como isso acontecera muito provavelmente devido ao degelo e às inundações da Primavera mas recordava-se que a aldeia de Rio Próximo era muito mais pequena nessa época. Apesar de ser apenas uma criança, ficara contente por viver na aldeia de Rio Primo e pedira ao pai que não a prometesse como esposa a nenhum homem de Rio Próximo.

Percebera-se que a aldeia mudaria com o passar do tempo, que poderia tornar-se mais forte. Agora, enquanto os homens falavam, ela pensava como é que a aldeia poderia ser tomada pela força. Não seria fácil. Até os velhos pareciam bem alimentados.

Estava tão absorta nos seus pensamentos que quase nem ouviu a pergunta do marido.

Viram o nosso filho? perguntou ele. Ele trouxe vários cães de olhos dourados da nossa aldeia para todos vocês. Ele esperava trazer mais, e nós conseguimos assegurar mais dois machos depois de ele partir. Viemos trazer-lhes.

K’os estava quase escondida pelo marido e assim, na penumbra da parte de trás da cabana, conseguia mudar de posição para ver o rosto de todos os velhos. Estes olharam uns para os outros, mordendo os lábios e erguendo as sobrancelhas, até que um disse:

Ele não veio para cá. Não o vemos desde que ele saiu da nossa aldeia e regressou à vossa, quase há uma lua.

Vários velhos mudaram de posição, pouco à vontade, mas a maioria fez um sinal afirmativo e empinou o queixo, num gesto de concordância.

Não competia a uma mulher falar numa reunião de velhos. Já era invulgar que eles a tivessem convidado para estar ali naquele momento, mas K’os era curandeira e conhecia vários daqueles homens o velho Gaio Azul e Faz-Tendas. K’os tinha a certeza de que eles não a tinham esquecido. Além disso, era uma mulher assustada por causa do filho. Quem poderia culpá-la se falasse?

Pigarreou. Depois pôs as mãos na cara e gemeu.

Ele não está aqui? perguntou ela. Ele saiu da nossa aldeia há seis ou sete dias.

Com os olhos marejados de lágrimas, debruçou-se para eles lhe verem a cara à luz da lareira.

Há outras aldeias disse um dos velhos, o homem a quem chamavam Treina-Cães. Talvez ele tenha ido à aldeia de Quatro Rios, na esperança de encontrar mais cães para trocar aqui.

K’os abanou a cabeça.

Ele sabia que nós estávamos tentando arranjar mais cães para ele. Ele sabia que nós poderíamos vir uns dias depois.

K’os desatou a chorar, sacudida pelos soluços, e Gaio Azul perguntou:

Não viram sinais de ele ter acampado quando vinham para cá?

Um, respondeu Bate-no-Chão, e K’os olhou para ele, cerrando os dentes.

Ele falava verdade. Tinham encontrado um dos acampamentos de Chakliux e dois cadáveres o que restava deles mas ela queria que Bate-no-Chão estivesse calado, que a deixasse falar. Ele julgava que andavam apenas à procura do filho de K’os, para o avisarem do ódio que crescia contra ele na aldeia e para lhe levarem mais cães para que ele pudesse assegurar um lugar naquela aldeia ou noutra.

K’os baixou a cabeça, refreando os soluços.

Gaio Azul levantou-se e aproximou-se dela.

Ela pode ir para a cabana da minha mulher afirmou ele em voz baixa a Bate-no-Chão, e depois ajudou K’os a levantar-se.

Já iam no túnel quando Treina-Cães disse:

É triste que o jovem caçador não tenha regressado à nossa aldeia.

K’os virou-se e olhou para o homem, vendo que o seu olhar era duro e estava fixo no rosto de Gaio Azul.

Sim, é triste tartamudeou Gaio Azul.

Por agora não ficarei sabendo nada, pensou K’os, mas há mais gente nesta aldeia além dos velhos, e as mulheres nem sempre fazem o que os maridos dizem.

A mulher de Gaio Azul chamava-se Canção, pura e simplesmente. Um nome estranho, pensou K’os, mas pouco depois percebeu. A velha não fazia nada sem cantar. A sua voz fina e rouca feria os ouvidos de K’os até lhe doer a cabeça.

Canção dirigiu-se a ela em voz baixa, exprimindo-lhe a sua compaixão, e observando-a com os seus olhinhos negros, cujas pálpebras tão engelhadas levaram K’os a perguntar a si própria como é que a mulher conseguia abri-las para ver.

O teu filho deve estar bem cantarolou a mulher. Ele é forte e saudável. A mãe não se deve preocupar.

Sim, Chakliux estivera ali, pensou K’os, enquanto a mulher repetia as mesmas palavras, sempre a cantarolar. Por qualquer motivo, o povo não queria que eles soubessem. Talvez Chakliux lhes tivesse dito que os caçadores da aldeia de Rio Primo procuravam um pretexto para atacar. Se assim fosse, ela e Bate-no-Chão tinham tido a sorte de os velhos os receberem. É claro que, como pais de Chakliux, talvez fossem considerados mais como amigos do que como inimigos.

Entretanto, a cabana não era má. Estava limpa e cuidada. Havia cestos de pele de peixe e de erva empilhados num lado e camas dobradas noutro. As peles de caribu do chão estavam bem raspadas. K’os conhecia mulheres da sua aldeia que fariam roupas daquelas peles em vez de as usarem para forrar o chão. Mas, ao olhar para a parka da mulher, pendurada numa cavilha junto da entrada, K’os compreendeu. Era de lontra-marinha, de certeza, com um rufo de pele de carcaju e os punhos debruados de pele de caribu, raspada e amaciada até ficar quase branca. As costas da parka terminavam numa cauda ampla de uma estranha pele malhada, de pêlo rijo, diferente de todas as que K’os conhecia.

Numa parte da cabana estavam penduradas as armas e as roupas dos homens, embrulhos sagrados de penas de pica-pau e uma bolsa de pele de castor muito parecida com a que ela trazia por baixo da parka, em que a cabeça fazia de aba e se fechava sobre uma abertura no pescoço.

Viam-se vários arcos incendiários, um maior do que todos os que K’os vira. Como é que um homem conseguia fazer fogo com um arco tão comprido? Quanto mais olhava para ele, mais intrigada ficava. A parte de madeira era muito forte, reforçada, ao que parecia, por tendões entrançados.

Ah, tens fome disse a velha.

Cantarolou qualquer coisa em voz baixa e depois, coxeando, aproximou-se da panela que estava pendurada nos postes da cabana, sobre uma pedra escavada.

K’os já vira uma pedra como aquela. Tinham-lhe dito que servia para fazer fogo lá dentro e que era usada por um povo a que chamavam Caçadores Marinhos. Aquilo parecia-lhe um disparate. Que calor é que uma pedra podia fornecer? E como é que a lenha cabia lá dentro? Agora, ela verificava que a pedra estava cheia de óleo, no qual se viam bocados de musgo torcido boiando. Canção foi buscar lume na lareira e tocou fogo no musgo. Este ardeu mas, por qualquer motivo, não foi consumido pelas chamas. A pedra não era mais larga do que a distância entre o cotovelo e o punho de K’os, e só se viam algumas pequenas labaredas saindo do musgo, mas K’os sentia o calor libertado pela pedra no local em que estava sentada, do outro lado da cabana.

A velha tirou uma tigela de comida e levou a ela.

Isso, o que é? perguntou K’os, apontando com o queixo para a pedra escavada.

Um qignax respondeu a velha. Os Caçadores Marinhos usam-nos para aquecer óleo de foca. É mais limpo do que uma lareira e uma boa maneira de usar gordura velha que já esteja rançosa para cozinhar. O meu marido foi comerciante quando era novo.

Cantarolou outra vez, sem palavras.

Sim, pensou K’os. Lembrou-se que Gaio Azul comprara os seus favores com um belo colar de pedra-sabão, de contas finamente esculpidas.

Ele comprou aquele arco de fogo? perguntou K’os, olhando para o arco que estava pendurado no meio das armas.

A velha riu.

Não é um arco de fogo observou ela. É um estranho modelo de lançador. Ele recebeu-o daquele povo que vive perto das Montanhas Distantes, à beira do mar do Sul.

K’os ouvira contar histórias desse povo.

Disseram-me que eles não são humanos, contrapôs ela.

A velha encolheu os ombros.

O meu marido diz que a língua deles é diferente e que os costumes deles também são diferentes. Vivem em cabanas de terra e de árvores mortas. Ele diz que ainda bem que nós não vivemos perto deles. São guerreiros e, com as suas armas, teríamos grande dificuldade em sobreviver a um ataque.

Armas como aquele arco de fogo? O que faz ele? perguntou K’os.

Não posso tocar-lhe explicou a velha. Até o meu marido raramente lhe toca. Não o levamos para o pesqueiro nem quando vamos atrás dos caribus. Deixamo-lo aqui no acampamento de Inverno. Ele tem muito poder, mas o meu marido mostrou-me como funciona e eu vou explicar-te.

A velha foi buscar um pequeno arco de fogo, agachou-se ao lado de K’os e puxou a corda até ela dobrar a parte de madeira do arco. Deu-o a K’os e depois vasculhou na pilha da lenha até encontrar um pau. Cortou a ponta do pau com a sua faca de mulher e colocou o pau na corda, puxou-a para trás e largou o pau. Este atravessou a cabana de um lado ao outro e foi espetar-se na parede de pele de caribu.

Eles fazem isso com as lanças? perguntou K’os.

É o que diz o meu marido. Pequenas lanças com penas na ponta, como os nossos homens põem nas suas lanças de ponta de osso. Os cabos não são mais compridos do que isto disse ela, afastando as mãos à altura dos ombros. As pontas das lanças também são pequenas, do comprimento de um dedo da mão, e finas e leves, feitas de osso e de pedaços de sílex.

E porque é que as pessoas usam uma arma dessas? perguntou K’os.

É fácil de transportar. Um homem pode levar uma mão-cheia, duas mãos-cheias de pequenas lanças e atirá-las rapidamente, e muito longe.

Mais longe do que um homem atirando uma lança com o lançador?

Sim respondeu a mulher, mas devagar, como se não tivesse a certeza do que estava a dizer. Estou tentando lembrar-me do que o meu marido me disse.

Calou-se por alguns momentos e depois olhou para K’os de sobrancelha erguida.

Um homem fraco consegue atirar a sua pequena lança quase tão longe quanto um caçador forte. Essa é a vantagem. Isto ajuda um rapaz ou um velho a trazer carne para casa, para a família.

Isso é mesmo bom observou K’os, levando a tigela à boca.

O guisado de carne e raízes da velha aqueceu-a desde a boca até à barriga. K’os não tirava os olhos do arco, acariciando-o em pensamento. Lembrou-se de todos os jovens que recebera na sua cama durante o ano anterior rapazes de braços magros, que ainda não tinham a força de um adulto. Com aqueles arcos, eles seriam tão bons como os guerreiros mais velhos? Isso seria possível?

K’os acabou de comer a carne e depois meteu a mão na parka, acariciando os muitos colares que trazia junto da pele. Os colares não eram tão bons como certas coisas. Não se podiam comer, nem aqueciam as pessoas, mas tinham a sua utilidade.

Foste simpática comigo disse ela a Canção. Toma isto para te lembrares da minha gratidão.

Por instantes, viu o brilho de uma jovem nos olhos mortiços de Canção, e depois uma mão deformada agarrou no colar. K’os levantou-se e pô-lo sobre a camisa de pele de caribu da velha. Depois, recusou-se a ouvir a sua pobre canção de louvor.

Aceitarias um cão de olhos dourados? perguntou K’os.

Não respondeu o velho. Como é que eu posso trocá-lo? Ele é que me dá sorte. Não há nada que possas dar-me por ele, nem sequer um cão de olhos dourados. Ainda vou à caça, velho como estou. Esse arco dá força ao meu lançador. Este ano matei um urso. E também apanhei muitos caribus. Olha para a minha cabana. Repara nas peles e nos cestos de carne seca. A minha despensa ainda está quase cheia. Daqui a pouco tempo, vou oferecer uma parte. É demais para mim e para a minha mulher, portanto vou partilhá-la com os outros. Faremos um banquete. Posso fazê-lo antes de partires. O teu marido e os caçadores da tua aldeia verão a sorte que eu tenho.

K’os semicerrou os olhos e calou-se. Gaio Azul era estúpido. Para que precisava de sorte? Estava velho.

Se eu resolvesse oferecê-lo, seria para ti. Mas um homem não pode perder a sua sorte. Sobretudo um velho.

Ela percebeu a súplica na sua voz e concluiu que Gaio Azul era como todos os homens, desejoso de agradar. Levantou-se.

Compreendo disse ela. Não te pedirei uma coisa dessas. Nem o meu marido.

O velho sorriu, aliviado.

Pediram-me que fosse visitar a mãe do meu filho em Rio Próximo, disse K’os.

Gaio Azul olhou para as mãos.

Sei que julgas que o teu filho é uma dádiva dos animais, disse ele. Alguns de nós nesta aldeia também acreditamos nisso. Não deixes que essa mulher te roube o coração.

K’os sorriu.

Chakliux é uma dádiva dos deuses, mas se Mulher Diurna julga que ele é o seu filho perdido, talvez essa convicção a conforte. Também não lhe roubarei o coração.

És boa afirmou Gaio Azul. Depois, apontou para a parka de Canção. A minha mulher vai indicar-te o caminho.

K’os fez um sinal afirmativo e saiu da cabana atrás de Canção.

Ele é um bom homem, preocupa-se com toda mundo disse a velha.

É verdade respondeu K’os.

Era uma pena que a sorte dele tivesse acabado, pensou ela.

Depois de Canção as deixar a sós, K’os percebeu-se o nervosismo de Mulher Diurna. Não conseguia levantar a cabeça e as mãos tremiam-lhe quando deu a K’os um prato de carne. K’os pousou a comida no chão, a seu lado.

Mulher Diurna arregalou os olhos.

Preferes comer outra coisa qualquer? perguntou ela.

Já comi o suficiente respondeu K’os.

Sorriu ao ver o ar ofendido de Mulher Diurna e perguntou:

És a verdadeira mãe de Chakliux?

Não esperava que a mulher lhe respondesse. Vira tantas esposas assim, conhecera tantas. Viviam sempre tentando agradar os outros. Um dia ouvira um ditado que dizia. ”Quem anda à chuva molha-se." Mulher Diurna molhava-se, sem dúvida.

A sua cabana era a prova disso. Os postes eram tortos e pequenos, as peles da cama estavam velhas e o cheiro de mofo era forte. As peles de caribu do chão tinham sido bem raspadas mas estavam rompendo-se.

Sim, sou a mãe de Chakliux, respondeu Mulher Diurna.

K’os ficou admirada mas satisfeita com a frontalidade de Mulher Diurna. Apreciava sempre um desafio.

Não, não és a mãe dele. Ele é uma dádiva dos animais, a mim. Os poderes dele são para o povo da minha aldeia.

Mulher Diurna ficou boquiaberta, e K’os viu que os olhos dela se enchiam de lágrimas.

Chorar não altera a realidade.

Não choro pelo que estás dizendo respondeu Mulher Diurna, mais alto do que falara até aí, como se as lágrimas dessem força à sua voz. Choro pelo tempo em que não fui mãe dele, e agradeço-te por teres sido a mãe que eu não fui.

K’os encolheu os ombros. Depois pegou a tigela e começou a comer. Ao levantar a cabeça, reparou que Mulher Diurna parecia mais descontraída ao vê-la comer. A hospitalidade era muito importante para aquele povo de Rio Próximo, recordou K’os. Até os homens de Rio Próximo que iam à aldeia dela negociar, e à cabana dela por outros motivos, levavam sempre presentes e palavras amáveis. Aborreciam-na, falando de coisas que não tinham interesse. Ela tinha olhos na cara; nada a impedia de olhar lá para fora e ver o céu, para saber se chovia ou não, se nevava ou se estava bom tempo. Porque tinham eles que falar dessas coisas como se ela dependesse das suas palavras?

K’os baixou a tigela e fitou Mulher Diurna. Sim, ela parecia-se um pouco com Chakliux, a curva da boca, o olho direito um pouco maior do que o esquerdo.

Se és a mãe dele, compreendes o que eu sinto, afirmou K’os, falando devagar. Há mais de duas mãos-cheias de dias que ele saiu da nossa aldeia. Vinha para cá.

Encontramos o cadáver do homem que o acompanhava. Não há sinais do meu filho e os vossos velhos dizem que ele não voltou a esta aldeia.

K’os olhou para Mulher Diurna e depois para o teto da cabana. Manteve os olhos bem abertos e nem pestanejou até o fumo da lareira os fazer arder. Depois levantou a mão para limpar as lágrimas que lhe corriam pela face.

Não posso suportar que ele tenha...

Mulher Diurna inclinou-se para a frente, abanando a cabeça.

Não chores, irmã. Não chores.

De quatro, aproximou-se de K’os e abraçou-a.

K’os ficou tesa ao sentir o contato da mulher, mas forçou-se a permanecer imóvel. Mulher Diurna acariciou-lhe os cabelos como se ela fosse uma criança.

Os velhos têm medo dos jovens guerreiros da tua aldeia declarou Mulher Diurna. Têm medo que os caçadores de Rio Primo pensem que Chakliux roubou os cães de olhos dourados para nos dar.

Voltou a acariciar os cabelos de K’os e embalou-a, de joelhos.

Cala-te, agora. Chakliux está vivo. Não te preocupes. Neste momento, ele vai ao encontro dos Caçadores de Morsas. Neste momento, ele está a salvo, ele e o irmão, o meu filho Sok.

 

A gritaria acordou Yaa, e a princípio ela pensou que era Ghaden. Quando viu que ele estava dormindo, tocou-lhe. O rapaz acordou, sobressaltado. Yaa pegou-lhe ao colo e ele retraiu-se quando ela o abraçou com muita força.

O que é? O que se passa? gritou Água Castanha.

É qualquer coisa lá fora respondeu Boca Feliz. Na semiobscuridade das primeiras horas da manhã, Yaa viu Água Castanha sair da cama, embrulhar-se num cobertor de pele de lebre e enfiar-se no túnel de entrada.

Yaa, Ghaden, estão acordados? perguntou a mãe de Yaa.

Sim. Estamos acordados respondeu Yaa.

Calcem as botas mas fiquem na cama ordenou Boca Feliz.

Água Castanha enfiou a cabeça lá dentro e disse:

Há fogo na cabana de Canção.

Yaa ficou sem fôlego. Quando deflagrava um incêndio, propagava-se rapidamente, de uns telhados para os outros. As peles de caribu engorduradas ardiam tão depressa que muitas vezes as pessoas ficavam presas lá dentro.

Essa era uma das razões pelas quais as mulheres da aldeia faziam a maior parte da comida lá fora e mantinham um pequeno lume aceso na cabana para se aquecerem no Inverno e para afastar os mosquitos no Verão. Fora uma das coisas que Yaa aprendera, a acender o lume e a controlá-lo.

Na cabana de Canção, dissera Água Castanha. Era muito freqüente os incêndios começarem nas cabanas das velhas.

Yaa vestiu a parka em Ghaden, acabou de lhe calçar as botas e depois arrastou-o para o túnel. O cachorro bocejou, encaminhou-se a custo para o túnel e alçou a perna, e por pouco não caiu ao urinar na parede da cabana.

Maroto! gritou-lhe Yaa, mas não teve tempo de fazer mais nada. Pegou o cesto de costura de Água Castanha, a bolsa de facas da mãe e os utensílios de raspar as peles e os pôs junto de Ghaden.

Fica aqui até eu vir buscar-te ordenou ela. Não voltes para a cama.

Em seguida, vestiu a parka, agarrou as três maiores tigelas de madeira e saiu. A mãe e Água Castanha estavam acumulando neve junto da cabana. Yaa deu uma tigela a cada uma, encheu a sua tigela de neve úmida e pesada e começou a aplicá-la nas paredes de pele de caribu.

O meu marido soluçou K’os. Ele tentou impedir aquilo. Têm que tirá-lo de lá. Por favor! Canção está lá dentro com o marido dela. Eles estão todos lá dentro.

A sua voz transformou-se num grito. Ao ver Tikaani, caiu-lhe nos braços, ajoelhou-se e agarrou-se às pernas dele.

Bate-no-Chão, meu marido, Bate-no-Chão! gritava ela.

Tikaani ajudou-a a levantar-se.

K’os, tem calma. Eles vão tirá-lo de lá. Eu vou lá buscá-lo.

Afastou-se dela e dirigiu-se para a cabana em chamas, mas K’os agarrou-se a ele e obrigou-o a parar. Ele gritou, pedindo que alguém a levasse dali. Aproximou-se um velho, um dos homens mais idosos de Rio Próximo. Agarrou as mãos de K’os e manietou-a.

As chamas passaram da cabana de Canção para a outra ao lado. O vento não era forte, e por isso era pouco provável que toda a aldeia ardesse, pensou K’os.

Empurrou os cabelos para trás. Tinha a cara e a parka cheias de fuligem, e as mãos também. Viu Tikaani enfiar-se no túnel de entrada. Susteve a respiração, esperando que ele não ficasse queimado. Não queria regressar à sua aldeia sem ele, nem queria ficar na aldeia de Rio Próximo além do que era necessário. Já seria mau permanecerem ali durante o período do luto, embora o povo talvez não esperasse que ela se demorasse uma lua inteira, mas que aguardasse apenas o momento em que o marido fosse amortalhado e deposto numa armação fúnebre.

O fogo estava quase extinto na cabana do lado. Só uma parte do telhado de pele de caribu é que ardera. Até os postes pareciam intactos. Na aldeia, algumas pessoas já tinham começado a entoar cânticos fúnebres. K’os juntou-se a elas.

Tikaani saiu da cabana de Canção puxando um cadáver. Era de Bate-no-Chão. K’os respirou fundo, soltou um grito lancinante e libertou-se do homem que a agarrava. Naquele momento, os postes da cabana ruíram, arrastando as chamas. Com um estrondo, o fogo consumiu o interior da cabana.

K’os lançou-se sobre o corpo do marido, ignorando o cheiro desagradável de carne queimada. Tirou uma faca de mulher da manga e golpeou o braço. O sangue vermelho-escuro derramou-se no rosto queimado de Bate-no-Chão.

Durante cinco dias, K’os ficou com o povo de Rio Próximo, chorando, fazendo o luto. Ofereceu um dos cães de olhos dourados ao filho mais velho de Canção e outro aos velhos. Abanou a cabeça ao pensar que era um milagre estar viva, agradeceu àqueles que lhe encheram um trenó de presentes e de comida e não aceitou que os caçadores de Rio Próximo a acompanhassem até a sua aldeia.

O povo de Rio Próximo prometeu-lhe que respeitaria Bate-no-Chão, dissuadindo-a com histórias de lobos de levar o cadáver.

No sexto dia, K’os levantou-se cedo, acabou de acondicionar a bagagem e desculpou-se dizendo que ia à latrina das mulheres no extremo da aldeia.

Yaa estava deitada à entrada da toca, com uma perna de lebre assada nas mãos. Roubara-a a uma das velhas nas lareiras da comida, metade de uma lebre, magra e dura por causa do Inverno, mas saborosa. Embrulhou a maior parte num bocado de pele de caribu para a levar a Ghaden, para lhe dar quando estivessem sozinhos, mas não conseguira esperar e estava comendo a seu parte.

Encontrava-se deitada de barriga para baixo, apoiada nos cotovelos, espreitando por entre os ramos baixos dos abetos-negros que escondiam a toca. Era bom estar ali. Ainda não tivera oportunidade de voltar àquele local desde que Ghaden regressara à cabana. Mas ele bem o merecia e dentro de pouco já teria forças para a acompanhar. Era um belo esconderijo.

Yaa gostava especialmente de estar na toca ao amanhecer, quando as mulheres iam fazer as suas necessidades. Era ainda muito cedo e só algumas mulheres, aquelas a quem competia acender o lume e as grávidas, cuja barriga as obrigava a madrugar se viam no caminho. Yaa enterrou os dentes na lebre e encheu a boca de carne.

Quando viu as botas, percebeu que se tratava da mulher de Rio Primo. Eles faziam mal as botas, com as costuras muito em cima do pé. Yaa chegou-se mais à frente com a ajuda dos cotovelos e espreitou-a. Água Castanha dissera que a mulher golpeara o braço em sinal de luto, mas mantivera os cabelos compridos; não os cortara. Partia nesse dia, segundo lhe dissera Dança-no-Gelo, que lhe batera várias vezes em troca da informação.

Ainda bem que a vi, pensou Yaa, ansiosa por contar às amigas.

Yaa pousou a carne no tapete feito de agulhas de abeto que cobria a neve endurecida e aproximou-se mais do caminho. Agarrou num ramo com a mão e baixou-o para esconder a cara. Pouco depois, a mulher passou. Yaa observou-lhe os pés, tentando ver os pormenores das botas para poder contar à mãe. Boca Feliz fazia as melhores botas da aldeia, quentes e secas, com as costuras nos seus devidos lugares para não fazerem bolhas nos dedos.

Quando a mulher ia a descer o caminho, Yaa saiu de baixo da árvore e pegou de novo na carne. Já chegara a perder comida por ser descuidada. Os animais pequenos surgiam depressa. O caminho fazia uma curva por trás de um denso tufo de salgueiros e depois descia na direção da aldeia. Por isso, quando Yaa se pôs de pé, perdeu a mulher de vista, mas manteve-se atenta ao local em que ela surgiria dos arbustos. Esperou durante muito tempo, mas não viu nada. Sim, era a mulher e os dois jovens caçadores que a haviam acompanhado. Só tinham um cão. Um dos outros dois.

Então a mulher não voltaria para a aldeia. Devia ter ido fazer as suas necessidades lá acima, por uma questão de pudor. Dança-no-Gelo dissera que eles levariam três ou quatro dias a chegar à aldeia de Rio Primo. Muitas vezes, em campo aberto, a pobre mulher seria obrigada a agachar-se na presença daqueles caçadores, que nem sequer eram filhos dela. Yaa detestava quando o seu povo ia atrás dos caribus e não havia privacidade, apesar de as meninas seguirem em grupo. Os rapazes ora! Não se importavam com nada. Alguns paravam e faziam ali mesmo no caminho. É claro que para eles a coisa era mais fácil.

Yaa deu uma dentada na carne, vendo os jovens caçadores saudando a mulher. Ela deu qualquer coisa a um dos homens. Um arco de fogo, concluiu Yaa, mas depois abanou a cabeça. Não. Era demasiado comprido para ser um arco de fogo. Ah, já sabia o que era. Era aquela arma estranha daquele povo que não era humano. Aquele objeto sagrado que pertencia ao velho Gaio Azul. Ele devia ter-lhe oferecido antes do incêndio. A mulher tivera sorte em conseguir retirá-lo a tempo. Podia ter ardido.

Yaa observou as pessoas de Rio Primo até elas desaparecerem no declive da margem e depois enfiou-se de novo debaixo da árvore. Tinha que se apressar a comer. Já saíra há muito tempo, só para ir buscar lenha. Deu mais algumas dentadas e depois guardou o resto da carne dentro da parka.

Saiu de baixo do abeto e enfiou os pés nas pegadas deixadas pela mulher de Rio Primo, em direção à aldeia. Suspirou. Era triste a situação daquela mulher. Pelo menos o velho Gaio Azul dera-lhe um presente, mas não era muito em troca de um marido.

 

                             Verão, 6460 a. C.

 

Furiosa, trouxe-a para a minha cabana para o calor das minhas lamparinas de óleo de foca, para a segurança das paredes grossas do meu ulax. Digo isto para que compreendam que eu não queria o caminho aberto para nós. Por isso não me venham dizer como é que uma velha consegue o que quer com lamúrias.

O nosso caminho foi escolhido pelo chefe dos caçadores da nossa aldeia e pelas mulheres do seu ulax. Elas tiveram o mesmo sonho, todas essas esposas-irmãs, na mesma noite. Quatro mulheres com o mesmo sonho. Quem pode negar que tal acontecimento é sagrado?

Os seus sonhos diziam que Aqamdax, filha de Daes uma das que eram veneradas como netas de Shuganan devia vir comigo, que sou irmã da avó do pai dela, para aprender a ser a contadora de histórias seguinte.

Durante cinco dezenas de anos, contei as histórias antigas e sagradas do nosso povo. De outro modo, como poderia alguém conhecer o avô Shuganan e o guerreiro Samiq? Da minha boca saíram apenas as histórias de Chagak, aquele que chamava as lontras, do Corvo Manhoso e do escultor Kiin, e do neto de Kiin, Ukamax, que deu aos Primeiros Homens as suas danças sagradas. Estas histórias foram passadas de uns contadores de histórias para outros, desde uma época tão recuada que ninguém sabe contar os anos.

Essas esposas-irmãs diziam que os espíritos lhes tinham anunciado que Aqamdax era a escolhida. Hii! O marido pode acreditar nelas, mas não eu.

Ele é bom homem, e levou a mãe e a filha para o seu ulax. Quem mais os levaria depois de o marido e pai ter morrido, amaldiçoado pelos animais marinhos na sua caçada? Mas a mulher mostrou-se agradecida? Não.

Pouco depois de o luto ter acabado, ela aceitou um nome do Povo Rio, Daes, e fugiu com um comerciante. Dizem que vive agora com o Povo Rio. Gente que come peixe e que nem sequer sabe caçar animais marinhos!

Hii! O que seria de esperar da filha de Bate-na-Água?

Portanto, escutem o que eu digo, porque é a verdade: aquelas esposas, as mulheres do chefe dos caçadores, estavam fartas das brigas de Aqamdax e dos seus truques. Que melhor maneira de se verem livres da moça do que me entregarem? Eu não passei anos a rezar para que o contador de histórias seguinte fosse revelado? Eu não olhava para cada bebê que nascia e não suplicava para que fosse ele? Como posso discutir a decisão dos espíritos? Afinal, Aqamdax é uma bela mulher.

Vocês não saberiam ao vê-la que ela é apenas uma nayux de barbatana de foca, que a pele dela foi moldada pelo sopro do seu ódio.

 

ALDEIA DOS PRIMEIROS HOMENS

Chamariz estremeceu e largou-a. Aqamdax agarrou-se a ele na escuridão, ansiando pelo peso e pelo calor do seu corpo, mas ele levantou-se da cama sem dizer uma palavra. Não era diferente dos outros. Assim que estavam satisfeitos, iam embora.

O que lhe interessava que a velha os ouvisse? Era preciso gritar para que alguma coisa lhe entrasse nos ouvidos.

Havia outros homens. Aqamdax podia preencher as suas noites com eles. A moça enrolou-se nos cobertores e cruzou os braços sobre o peito. Sim, faria isso. Numa noite qualquer, faria isso. Arranjaria seis homens, ou talvez sete, e durante toda a noite teria alguém junto dela, alguém que a abraçasse. Então o frio sairia dos seus ossos e ela conseguiria aquecer como acontecia quando o pai era vivo, quando a terra era tão boa e luminosa como o sorriso do pai.

O jovem atravessou o ulax e dirigiu-se para o poste de escalar, mas Qung fingiu que não o via. Julgavam que ela era estúpida por ser velha, mas ela sabia quem ia se encontrar com Aqamdax e com que freqüência.

Era quase noite. Qung perguntou a si própria se viria mais algum homem ou se Aqamdax se contentaria só com um. A moça era tal e qual a mãe. Seria uma bênção para toda a aldeia se aparecesse algum comerciante que a levasse. Qung suspirou e enrolou a esteira de erva que estava tecendo. Era uma esteira grosseira, muito diferente das que ela fazia quando era nova, mas as articulações estavam inchadas e doíam-lhe tanto que ela já não conseguia entrelaçar erva.

Até que Aqamdax fizesse alguma coisa, arranjasse um marido ou saísse da aldeia, Qung tinha que a ensinar, e ela não gostava de ser ensinada. Era rápida; não levava muito tempo para aprender uma nova história. Mas não conseguia estar parada. Andava de um lado para o outro enquanto Qung a ensinava, e a velha, que tinha de virar a cabeça para acompanhar os movimentos da garota, muitas vezes ficava tonta.

Aqamdax representava as histórias; Qung tinha que admitir que assim era. Até aprendera a projetar a voz, como se esta viesse do buraco no telhado ou da cama, de uma lamparina ou de um estrado, e era quase tão boa como a própria Qung. Mas Aqamdax tinha tendência a irritar-se quando não havia motivo para isso, a atirar coisas e a amuar.

Aqamdax vivia com ela há mais de três luas e Qung ainda não se habituara aos destemperos da garota. Nos primeiros dias, Qung tinha esperança, sempre que um jovem caçador ia visitar a moça. Aqamdax tinha quinze Verões. Nessa idade, quase todas as mulheres estavam casadas e tinham filhos. Agora Qung percebia que era pouco provável que Aqamdax encontrasse um homem.

Porquê confiar numa mulher que dormia com todos os homens que a solicitavam? Além disso, qual o caçador que quereria uma mulher que, depois de ter tido tantas oportunidades, ainda não engravidara? E quem havia de querer uma mulher que estava sempre zangada, sempre discutindo?

Qung suspirou. Estava velha mas ainda era forte. Ainda poderia viver mais alguns Invernos, mas como podia alegrar-se com a sua longa vida se partilhava o seu ulax com uma pessoa como Aqamdax?

Qung levantou-se devagar e a custo, apagou vários pavios da grande lamparina de óleo e deixou apenas um aceso. Arrastou-se para a cama. A lamparina projetou na parede as longas sombras dos seus ombros corcovados e dos seus braços magros. Ao arredar as cortinas de erva da cama, ouviu um barulho e virou-se. Vinha alguém descendo o poste. Era Salmão. Porque ele estaria ali? Tinha duas esposas.

Qung deu um estalo com a língua em sinal de desagrado e ficou à espera que Salmão a visse. Abanou-lhe a cabeça e ele baixou a sua, desviando o olhar. Como é que aqueles homens esperavam ter sorte na caça se tinham tantas mulheres para lhes satisfazerem o desejo? Os animais marinhos respeitavam aquela fraqueza? Como é que Salmão esperava que o seu iqyax não tivesse ciúmes se todas as manhãs lá entrava com o cheiro de uma mulher nas mãos? Um dia, o barco ainda o atiraria ao mar. Depois quem iria à caça para alimentar as suas mulheres e os seus bebês?

Qung instalou-se na cama, tendo o cuidado de embrulhar os pés na pele de foca mais grossa. O passado estava sendo esquecido. Os tabus estavam sendo ignorados. De que servia ser contadora de histórias se as pessoas não as ouviam nem aprendiam com elas?

Qung virou-se de costas para a cortina de erva. Talvez as pessoas estivessem cansadas de ouvir uma velha dizendo-lhes como deviam ser as coisas. Talvez tivesse chegado o momento de ouvir contar as histórias de novas maneiras, por uma voz jovem e forte. Mas o que aconteceria àquelas histórias sagradas quando saíssem da boca de Aqamdax? Seriam suficientemente fortes para se manterem puras, ou o desrespeito de Aqamdax as torceria como uma mulher torce o pescoço a uma ptármiga?

Esta noite é a festa do Sol anunciou Qung.

Eu sei respondeu Aqamdax, mordendo a língua para impedir a troça que lhe vinha com facilidade à boca. Toda a gente sabia que era a festa do Sol.

Preparaste comida? perguntou Qung. Aqamdax levantou a sobrancelha, admirada, e apontou para o peixe seco e para os talos de iitikaalux descascados que dispusera em esteiras de erva.

Qung fez um sinal afirmativo, como se tivesse visto o que Aqamdax fizera.

Leva alguns dos nossos ovos ordenou ela.

Aqamdax ficou de novo surpreendida. Os ovos conservados em óleo de foca e enterrados na areia eram o alimento preferido de Qung. A velha não os repartia com ninguém, e até Aqamdax tinha de se esconder para ir buscar um na despensa, apesar de ser ela que subia aos rochedos para ir apanhá-los.

Ovos? repetiu ela, para se certificar de que ouvira bem o que a velha dissera.

Ovos. Eu disse ovos respondeu Qung, enfadada. Leva ovos.

Sim, tia

É uma festa, como sabes. Aqamdax sorriu.

Eu sei.

O dia do Sol trazia sempre esperança, e os Primeiros Homens tentavam mostrar ao Sol que apreciavam o fato de ele nascer todas as manhãs. Se não o fizessem, se não o louvassem, o que poderia acontecer? Talvez o Sol optasse por ficar no local para onde ia todas as noites e nunca mais voltasse.

Os Primeiros Homens vão ter um novo contador de histórias.

Aqamdax abriu a boca mas não disse nada. Um novo contador de histórias. Qung devia estar referindo-se a ela, mas saberia ela bem as histórias? E se as pessoas não a ouvissem quando ela falasse? Como podia ela ter esperança de conquistar o seu respeito como Qung conquistara?

Os homens corriam voluntariamente à cama dela, mas Aqamdax sabia o que diziam nas suas costas. Percebia a fúria das esposas e das mães. Uma coisa era um homem procurar uma mulher disponível durante uma longa viagem, mas ter uma mulher dessas na aldeia, sempre pronta a substituir uma esposa... Se Aqamdax fosse esposa, também ficaria ressentida.

No entanto, nunca fora reclamada como esposa, e continuava a sangrar todos os meses. Então, como podia ter esperança de vir a ser esposa? Para quê pagar um dote por uma mulher estéril se ela receberia um homem na sua cama de qualquer modo? Para quê ter o trabalho de a alimentar?

Por isso, dariam as pessoas ouvidos a alguém como ela? O que sentiriam quando as suas histórias sagradas saíssem da boca dela?

Estás pronta. Eu sei. Estás pronta afirmou Qung, com uma segurança que reduziu a ansiedade de Aqamdax.

Eu estou pronta respondeu Aqamdax, tentando que a sua voz fosse tão segura como a de Qung. Sorriu à velha, cujo rosto tinha tantas rugas que mal se viam os olhos. Achas que o nosso povo está pronto para me aceitar?

Aqamdax riu ao ver que Qung não lhe respondia e depois levantou a cabeça. Seria diferente quando ela fosse apanhar moluscos com as outras mulheres ou se juntasse às esposas do chefe para pescar savelha. Era perita em ignorar farpas, sorrisos maliciosos e olhos semicerrados. Se contasse bem as histórias, talvez eles se esquecessem de quem as contava e pensassem apenas nas palavras.

No ulax às escuras, acendendo apenas alguns pavios numa lamparina de óleo, Aqamdax perguntou a si própria se a velha teria feito aquilo na esperança de que as pessoas se esquecessem de quem estava falando.

 

Aqamdax saíra com o seu sax de penas, o casaco comprido que lhe dava pelos tornozelos e que quase todos os Primeiros Homens usavam no exterior do ulax. Preferia usar uma parka de Inverno, cujo capuz a protegia dos pensamentos das outras pessoas. Pelo menos o sax escondia-lhe o ventre e os seios, acariciados por tantos homens.

Não participara na dança e comera muito pouco durante a festa. Era como se as pessoas das suas histórias estivessem vivas na sua mente, dançando, cantando e gritando, fazendo a sua própria celebração, segredando-lhe ao ouvido e empurrando as suas canções para a boca dela, até Aqamdax ficar tão cheia que não suportasse a companhia dos que a rodeavam.

Escondera-se lá fora, na sombra do ulax, ao abrigo do vento, o mais longe possível da festa, ouvindo a tagarelice no interior da sua cabeça, até perceber que estava encostada no ulax dos mortos.

Aqamdax levantara-se para ir embora, mas depois resolvera ficar. Ali estaria sozinha. Ninguém a interromperia quando ela voltasse a contar as histórias. Talvez aquelas ossadas que estavam no ulax gostassem de ouvir as velhas histórias mais uma vez.

Começou pelas histórias do Criador, explicou como todas as coisas tinham sido criadas o mar e o céu, a terra, os animais e o homem. Falou de tempos passados em que as lontras-marinhas e os Primeiros Homens eram irmãos. Contou como um irmão e uma irmã, amaldiçoados por dormirem juntos, tinham se tornado o Sol e a Lua. Ainda era possível vê-los no céu, perseguindo um ao outro. Contou histórias e mais histórias mais recentes, de caçadores e guerreiros, de Invernos rigorosos e de Verões amenos. Por fim, quando o Sol tinha mergulhado na terra, regressou ao ulax de Qung.

A velha estava à espera. As estreitas nesgas dos seus olhos brilhavam quando Aqamdax desceu o poste do ulax.

Aqamdax perguntou a si própria se Qung também contaria histórias ou se queria que fosse apenas ela a contá-las. Em geral, quando uma aldeia tinha mais de um contador de histórias, estes revezavam-se, contando um, depois o outro, e cada um inventava histórias a partir das que já tinham sido contadas.

Durante algum tempo, ficaram sentadas em silêncio. Depois, Qung disse:

Vou contar a primeira história. Quando acabar, será a tua vez. Se alguém objetar, não pares. Eu farei o que tiver a fazer.

Alguém sabe que eu...

Eu disse ao chefe dos caçadores. Talvez ele diga às suas esposas. Ou talvez não, mas quem sabe? Foram elas que sonharam contigo.

Aqamdax riu. Sim, elas tinham sonhado com ela. Que outra coisa podiam fazer? Ela precisava ser esposa. Se não era, porque não seria contadora de histórias?

Tem calma, Aqamdax, recomendou Qung, e Aqamdax percebeu que andava de um lado para o outro no ulax, com passos compridos e rápidos.

Fez o possível para se sentar, mas os pés e os joelhos não estavam quietos e os músculos das pernas dançavam-lhe debaixo da pele.

Toma disse Qung, pondo qualquer coisa na mão de Aqamdax.

A moça abriu os olhos. Era um dente de baleia, esculpido nas espirais de uma concha. Liso e frio, como se tivesse sido feito para caber dentro de uma mão. Os dedos de Aqamdax acompanharam as curvas da espiral, acariciando-a. Parecia que o nervosismo lhe saía do corpo à medida que os seus dedos se mexiam, devagarinho, nos sulcos da concha de dente de baleia.

Agora é teu. Não preciso dele disse Qung. Aqamdax ficou admirada. Tinha certeza de que não dera motivos a Qung para esta lhe oferecer presentes.

Era de Shuganan? perguntou Aqamdax.

A mãe tinha várias esculturas antigas do homem, mas levara-as quando abandonara os Primeiros Homens.

Não, não era de Shuganan respondeu Qung. Era de uma das netas dele.

Obrigada agradeceu Aqamdax, percebendo que não agradecia a ninguém há muito tempo, desde que a mãe partira.

Faço-o como se fosse um favor a mim própria respondeu Qung, esticando um braço na direção dos pés de Aqamdax. Agora não tenho que aturar o teu mau gênio.

Cacarejou, como fazem as velhas quando se riem; depois levantou-se e aproximou-se do poste. Olhou para cima e ficou à espera.

Ela não ouve tão mal como dá a entender, pensou Aqamdax, e prometeu não se esquecer disso. Depois, as pessoas começaram a descer para o ulax, homens seguidos pelas mulheres e pelos filhos. Os bebês vinham em alças às costas e as crianças que mal sabiam andar vinham apoiadas nas ancas das mães. As mais pequenas desciam com todo o cuidado; as mais crescidas saltavam para dentro do ulax quase do topo do poste.

Qung sentou-se ao lado de Aqamdax e inclinou a cabeça. Aqamdax reparou e fez o mesmo. Era uma atitude acertada, concluiu ela. A cabeça baixa pareceu desencorajar fosse quem fosse de iniciar uma conversa, e ajudou Aqamdax a concentrar-se nas histórias que iria contar.

Quando Qung começou a contar a primeira história, Aqamdax levantou a cabeça e olhou para as pessoas. Todas elas estavam de olhos postos em Qung; todas se inclinavam para a frente como se estivessem prontas a agarrar as palavras que saíam da boca de Qung. Olhariam para Aqamdax da mesma maneira ou assobiariam para exprimir o seu desagrado?

Aqamdax reconheceu todas as esposas do chefe. Estavam sentadas atrás dos homens, mas à frente de quase todas as outras mulheres. Aqamdax viu a prima, Kittiwake, e o filhinho desta. Peixe Azul, a melhor amiga da mãe, estava lá, assim como a tia de Peixe Azul, já com pouco tino e sempre se babando.

Aqamdax olhou para os homens, viu o chefe, Salmão e aquele que fora o companheiro de caça do pai, Com-Medo-da-Mão, o homem que não conseguira salvá-lo das águas do mar.

Os dedos dos pés de Aqamdax começaram a agitar-se e ela sentiu Qung apertar-lhe o braço e mexer na concha de osso de baleia que ela ainda segurava na mão.

Aqamdax esfregou os dedos na concha e depois respirou fundo. Qung continuou a contar a história como se nada tivesse acontecido e Aqamdax inclinou a cabeça, fez o possível para estar quieta e atenta, até se deixar arrebatar pelas palavras, como se o antigo escultor Shuganan estivesse de novo vivo nos montes e nas praias que ela via na sua mente.

Quando a história acabou, Qung apertou a mão de Aqamdax e acariciou com os seus dedos deformados a escultura a que Aqamdax se agarrava.

A mulher Chagak andava nos montes apanhando frutos quando chegaram os guerreiros começou Aqamdax.

Calou-se para ganhar fôlego, com o coração acelerado pelo medo. E se as pessoas se levantassem e se fossem embora? Ouviu várias mulheres assobiando. Qung apertou-lhe de novo a mão e Aqamdax lembrou-se do que a velha lhe dissera. Continua falando, não pares. Continua contando a história.

Aqamdax abriu a boca e as palavras saíram, parando a princípio, mas depois fluíram. Eram palavras belas, buriladas por muitos contadores de histórias e que transportavam a mente para lugares e épocas muito recuados.

A princípio, falou baixinho, mas à medida que a história unia os Primeiros Homens, parecia também dar-lhe forças. Quando Chagak falou à lontra, Aqamdax serviu-se dos ensinamentos de Qung para levantar a voz, como se fosse a lontra a chamar do topo do ulax, como se o animal estivesse sentado acima deles.

Várias crianças olharam para o orifício do teto e algumas mulheres murmuraram em sinal de aprovação. O elogio silencioso brilhou no peito de Aqamdax, enchendo-a de alegria. A sua voz ganhou força, e a história rodeou-se de toda a sua magia, tal qual uma lontra-marinha se embrenha nas algas, em segurança.

 

ALDEIA DOS CAÇADORES DE MORSAS

O contador de histórias falou cantarolando, usando fiadas de nós de tendão esticados entre os dedos rápidos para ilustrar as suas palavras, mas estas eram muitas vezes rápidas demais para que Chakliux as entendesse, com alusões a outras histórias, a caçadores e a guerreiros que Chakliux não conhecia. Quando as pessoas riam, Chakliux não podia fazer coro com elas, e quando faziam gestos de cabeça, juntando comentários próprios, concordando ou discordando do que o contador de histórias dizia, Chakliux sentia-se como uma criança que compreendia apenas fragmentos do mundo que a rodeava.

Olhou para o círculo de pessoas que rodeavam o contador de histórias. Estavam ao ar livre, nos limites da aldeia de Verão dos Caçadores de Morsas, e as mulheres e as crianças estavam ao lado dos homens. Chakliux viu Sok com os braços descaradamente enfiados debaixo da parka de Orelhas Pequenas, e a mulher escondendo o riso atrás das mãos.

O pai de Orelhas Pequenas já sondara Sok, pedindo um preço pela mulher. Sok fizera promessas vagas, deixara hipóteses em aberto, mas Chakliux sabia que ele só queria a mulher enquanto eles permanecessem na aldeia dos Caçadores de Morsas. Era pouco provável que Sok aceitasse Neve-no-Cabelo como segunda esposa. Como poderia ele conquistá-la se ela fosse terceira esposa? E quem suportaria a fúria dos Caçadores de Morsas quando Sok partisse? Chakliux, evidentemente. Se Chakliux não voltasse à aldeia de Rio Próximo, talvez ficasse ali, convivendo com as conseqüências dos erros de Sok.

Chakliux passou o olhar pelo círculo de pessoas, evitando Sok e Orelhas Pequenas. Havia Mata Morsas, o chefe dos caçadores, as suas duas esposas e os seus muitos filhos. Dente Velho, um caçador que nada tinha de velho, estava sentado ao lado deles. Estava ajudando Chakliux a construir o seu próprio iqyax. Juntos, já tinham apanhado madeira flutuante para fazer a estrutura. Dente Velho fora generoso ao vender a Chakliux o marfim de que ele precisava para embutir nas juntas da madeira. Ensinara-o a fazer com ocre vermelho uma tinta para impedir que a estrutura do iqyax apodrecesse e também para mostrar aos animais marinhos que o iqyax era um deles, que a estrutura de madeira eram os seus ossos, que as cordas eram os seus tendões e que o ocre era o seu sangue.

Dente Velho oferecera-se para ensinar Chakliux a remar e já o levara num velho iqyax. Agora Chakliux sabia inclinar o corpo com o barco, mexer as pernas como se elas fossem os músculos do iqyax e os remos como se fossem as barbatanas e a cauda. Chakliux ainda tinha muito que aprender, como o conhecimento das marés e das correntes, das nuvens e dos ventos, mas chegara à fase em que tinha que aprender a ser o verdadeiro irmão do iqyax, e como podia ele ser um verdadeiro irmão se não construísse a estrutura com as suas próprias mãos, se não lhe desse o comprimento das suas pernas e dos seus braços?

Agora a estrutura estava quase pronta, mas como podia ele acabar um iqyax sem uma mulher para costurar a cobertura? Orelhas Pequenas tinha-se oferecido, mas Chakliux não podia aceitar, sabendo as intenções de Sok.

Os pensamentos de Chakliux concentraram-se no contador de histórias. Tentou acompanhar as suas palavras, atentar nas tiras de tendão a que o homem deu primeiro a forma de uma cabeça de raposa, fazendo depois uma série de nós a que chamou pássaros. Chakliux perguntou a si próprio se conseguiria aprender a fazer tal coisa para dar mais força às suas próprias histórias, para ajudar os homens de Rio Próximo a decifrar os seus enigmas.

Era a festa do Sol, um período de celebração e de ação de graças, mas Chakliux não se sentia à vontade na aldeia nesse dia. O que estaria o seu próprio povo fazendo? Quem contaria agora histórias se eles não tinham um dzuuggi. Os costumes sagrados estavam sendo respeitados? Ou os espíritos estavam zangados porque o Povo se esquecera do que tinha a fazer?

E estes Caçadores de Morsas? Não faziam as coisas como deviam. Chakliux sabia venerar o Sol; conhecia os cânticos adequados, as histórias antigas, e no entanto estava ali sentado como uma criança ouvindo o contador de histórias dos Caçadores de Morsas. Devia levantar a voz e dizer-lhes o que tinha a dizer? Mas como podia ele fazê-lo sem as palavras dos Caçadores de Morsas suficientes para falar com clareza e de maneira que as pessoas o entendessem?

Os Caçadores de Morsas pareciam fortes e saudáveis. As suas despensas estavam cheias de comida; as suas mulheres eram felizes. Talvez o que eles faziam estivesse certo para a sua praia, para a sua aldeia, mas estaria certo para Chakliux e para Sok? Deviam os dois irmãos fazer a sua própria festa, recordando os costumes do Povo, em vez de confiarem nas tradições dos Caçadores de Morsas?

Havia muitos problemas para ele na aldeia dos Caçadores de Morsas, mas a sua vida seria melhor com Mirtilo... Ou com K’os?

Então Chakliux recriminou-se. Então, lamentas o teu mal-estar como se fosses uma velha? Choras quando tens a barriga cheia e as mãos ocupadas, quando esta boa gente faz o que pode para te ajudar? Tem calma. Não quero ouvir as tuas lamentações. Não és nenhuma criança.

Voltou a prestar atenção ao contador de histórias, observou os dedos encantados do homem, que, com os seus nós, transformava os pássaros no focinho de uma lontra com uns longos bigodes. O contador de histórias levantou a lontra no ar para que todos vissem. Depois, virou-se e sorriu a Chakliux, o homem-lontra que fora viver com eles.

 

ALDEIA DOS PRIMEIROS HOMENS

Aqamdax libertou-se dos dedos trêmulos de Salmão quando ele lhe acariciou o braço. Pelo menos as esposas tinham saído do ulax e não o viram. Estava admirada consigo mesma. Por que motivo que uma coisa que lhe dera prazer na véspera a fazia estremecer naquele momento? Ele era o mesmo homem. De todos os caçadores, era o único que ficava na cama dela e a abraçava depois de estar satisfeito. De certo modo, as histórias tinham-na preenchido, tinham-na feito sentir completa, como se não precisasse de ninguém para a proteger da noite.

Não, Salmão disse ela, tentando afastar o tom ríspido da voz.

Porque havia de ofender o homem? E se no dia seguinte as histórias tivessem desaparecido e ela voltasse a sentir-se só? Talvez precisasse que Salmão a abraçasse para não voar para os céus escuros nem se perder no imenso vazio que separava a terra das estrelas.

Estou cansada lamentou-se ela baixinho. As pessoas cujas histórias contei parecem ter-se apoderado de uma parte do meu espírito, e por isso pouco ficou para me encaminhar para os sonhos.

Salmão ficou atrapalhado, mas Aqamdax não lhe deu mais nenhuma explicação. Como o poderia fazer? As histórias não só a enchiam, como transportavam a sua alma para lugares em que ela nunca estivera. Parecia-lhe uma traição levar um homem que não era seu marido para a cama dela. Pelo menos nessa noite era o que lhe parecia. Amanhã, quem poderia dizer?

Salmão saiu, tal como outros homens que ouviram o que ela lhe disse. Depois das histórias, eram muitos os que queriam partilhar a cama dela, uns que nunca a tinham procurado; outros que era raro aparecerem. Por fim, o último homem foi-se embora e Aqamdax e Qung ficaram sós.

A velha sorriu.

Procedeste bem, disse ela.

Aqamdax, que não estava habituada a cumprimentos, baixou a cabeça, sem saber o que havia de responder. Qung apontou para o ulax vazio.

Não há homens esta noite? perguntou.

Esta noite, não.

Qung ergueu a sobrancelha. Aqamdax encolheu os ombros e Qung virou-se para a sua cama. Disse qualquer coisa em voz baixa, mas depois falou mais alto.

Talvez aquelas mulheres do chefe não tenham mentido disse a velha. Talvez elas tenham mesmo sonhado.

Durante alguns momentos, Aqamdax ficou no ulax vazio, imaginando que as pessoas ainda lá estavam. Com a sua voz e as suas palavras, levara-as daquele ulax para locais onde nenhuma delas estivera. Transformara-as em guerreiros e velhos, crianças e comerciantes. Elas tinham-se transformado em Caçadores de Baleias, em homens dos Caçadores de Morsas, até no Povo Rio. Ela conseguira essa proeza.

Abanou a cabeça, incrédula. Fizera isso só com as palavras saídas da sua boca.

 

ALDEIA DOS CAÇADORES DE MORSAS

As pessoas da aldeia dos Caçadores de Morsas contaram histórias durante toda a noite, esperando que o Sol mostrasse o seu rosto de manhã. Depois voltaram a festejar, celebrando a luz. Sok e Chakliux observavam os homens dos Caçadores de Morsas servindo-se do peixe seco e da carne de morsa amontoada em esteiras dispostas junto das lareiras exteriores.

Sok e Chakliux não comeram senão depois de os velhos e os caçadores da aldeia se servirem, mas quando os rapazes começaram a trazer as tigelas, Chakliux e Sok também se aproximaram. Uma velha foi ao encontro deles com uma concha de osso e encheu a tigela de Sok. Ele agradeceu-lhe e depois tirou vários bocados de peixe seco e os pôs em cima da tigela, para o vapor do caldo os amaciar.

Chakliux ficou à espera, partindo do princípio de que a mulher também o serviria de caldo, mas ela encaminhou-o para uma panela, como se ele fosse uma criança. Era uma mulher pequena, com a pele escurecida pela idade, mas de olhos brilhantes, e magra e direita como uma jovem.

Ainda antes de chegares, ouvi histórias a teu respeito disse ela, e Chakliux percebeu que ela falava a língua do Povo Rio. As suas palavras, embora sincopadas por uma língua habituada a falar a língua dos Caçadores de Morsas, eram claras.

Falas a minha língua disse Chakliux.

E qual é a dificuldade? perguntou ela. Até as crianças pequenas falam a língua do Povo Rio, não falam?

Riu, e Chakliux riu com ela.

Chamo-me Tutaqagiisix.

Chakliux tentou repetir o nome, mas os sons embrulharam-se como se ele tivesse uma bola na garganta, e não conseguiu.

A velha riu outra vez.

As crianças chamam-me Tut. Sou dos Primeiros Homens. Há muito tempo, trouxeram-me para esta aldeia como noiva de um Caçador de Morsas. Mantive o meu nome dos Primeiros Homens, apesar de o meu marido não ter ficado satisfeito com isso. É um sinal do meu dom, que me foi concedido em criança. Aprendo a falar línguas com facilidade. Ouço os sons e pouco depois compreendo. Tutaqagiisix quer dizer ”ouvir”.

Mergulhou a concha numa panela e tirou-a cheia de carne e de ossos pequenos.

Ossos de barbatana de foca disse ela, continuando a falar na língua de Rio. Eles vêm para a minha concha para me lembrarem o que tenho para te dizer.

A velha mordeu uma das pontas amolecida pela fervura e chupou-a. Ficou com o queixo besuntado de óleo e de caldo e limpou-o com as costas da mão. Em seguida, despejou o resto da carne e dos ossos na tigela de Chakliux.

Tu também tens um dom. Tut olhou para as botas de pele de caribu de Chakliux. És um dzuuggi, uma dádiva dos animais.

Chakliux ficou surpreendido com as palavras dela. Sok e ele tinham contado poucas coisas acerca do seu passado. Eram apenas caçadores, que andavam fazendo negócio, tentando obter um dote para uma esposa, e à procura de cães robustos para o Povo Rio.

Como se lhe tivesse ouvido os pensamentos, a velha disse:

Lembra-te do meu nome. Eu ouço muita coisa. Dizem que és uma lontra.

Uns dizem que eu sou uma lontra. Outros dizem que não.

O que dizes tu?

Chakliux desviou o olhar da mulher. Onde estava Sok? Porque se encontrava ele sozinho com aquela velha e as suas perguntas?

A velha fitou-o como se ele fosse uma criança, à espera da sua resposta, mas o que podia Chakliux dizer se ele próprio não sabia o que era? Um dzuuggi, sim, mas uma lontra? Uma dádiva dos animais?

Sou um dzuuggi, treinado para ser contador de histórias e para saber as muitas tradições do meu povo, as recordações das guerras, os invernos rigorosos e as boas caçadas.

Tut levou de novo o osso à boca, chupou-o e depois olhou para Chakliux de esguelha.

E não és uma dádiva dos animais?

Se sou uma dádiva dos animais, sou uma lontra afirmou por fim Chakliux. Não sei mais do que isso. Quem me encontrou disse-me que eu era uma dádiva dos animais. Umas vezes, acredito nisso; outras não.

As tuas palavras são honestas, como devem ser as palavras de um dzuuggi observou a velha. Dizem que tens um pé de lontra. Mostra-me.

O pedido dela surpreendeu-o, mas Chakliux satisfê-lo, mostrando-lhe primeiro os três dedos unidos do pé direito e depois o pé de lontra, torto e curvo. Ela inclinou-se, tocou-lhe no pé e depois disse:

És lontra.

As palavras atravessaram Chakliux como uma chuva quente, dissipando as dúvidas. Depois, lembrou-se de que ela era apenas uma velha. O que sabia ela? Mas ouviu uma vozinha, como se fosse Gguzaakk a falar: Porque duvidas? Tutaqagiisix também fora contemplada com um dom. Quem mais consegue reconhecer o mesmo nos outros?

Então, onde estás construindo o teu iqyax? perguntou Tut.

Deu a tigela a Chakliux e, como se fossem irmão e irmã. nascidos da mesma mãe, partilhando a mesma comida, meteu a mão lá dentro e tirou outro osso de barbatana de foca.

Junto do rochedo da morsa, ao abrigo do vento, para lá do sinal da maré alta respondeu Chakliux.

Vai à minha tenda amanhã, de manhã cedo. Podes levar a pele de morsa. É pesada para uma velha como eu

Então, como de irmão para irmã, Chakliux ofereceu-lhe de novo a sua tigela para que ela metesse os dedos lá dentro.

 

Chakliux dirigiu o seu iqyax para as ondas e dobrou a parte superior do corpo para manejar melhor o remo, empurrando a proa para a frente, resistindo aos espíritos da água que queriam que o seu iqyax fosse de novo para a costa.

Os seus braços eram fortes, endurecidos pelas quatro luas que ele passara com os Caçadores de Morsas, e agora ele tinha o seu próprio iqyax. Os pontos minúsculos de Tut uniam a cobertura de pele de morsa como se esta fosse feita de uma única peça, da pele de um único animal.

Tut também fizera um resguardo para o convés, e o chigdax de Chakliux, uma parka impermeável feita de tripas de leão-marinho, com atilhos nos punhos e no capuz. A velha fizera tudo aquilo e dera-lhe de presente, contrariando os protestos dele com os seus: Para quem havia ela de costurar, agora que era viúva? Como queria ele que ela passasse os dias? Sentada, resmungando com as outras velhas?

O iqyax deslocava-se sobre as ondas como uma lontra. Os atilhos de tendão nas juntas permitiam que ele se dobrasse e inclinasse quando Chakliux remava. Este servia-se do corpo e das pernas dentro da estrutura de madeira como se o iqyax fosse a pele e o esqueleto e ele próprio os músculos.

Dente Velho trouxera bexigas de foca cheias de ar e amarradas umas às outras, cada uma com um lastro de pedra numa longa linha de algas, para não se perder nas ondas. Em cada extremidade da linha, Dente Velho atara bóias de pele de foca.

Tu primeiro gritou Dente Velho.

Chakliux puxou a amarra que prendia o seu lançador ao convés do iqyax. Enfiou um arpão no lançador e levantou o braço, puxou-o para trás, com a mão bem firme e os dedos aflorando o cabo do arpão para o manter no seu lugar. O lance tinha que ser rigoroso, tinha que atingir o meio do alvo, caso contrário, a bexiga se soltaria do arpão. Chakliux atirou e o seu arpão acertou; a bexiga rebentou. A amarra cedeu ao peso do lastro de pedra, já sem a bóia, e as bexigas chocaram uma com a outra.

Dente Velho atirou o seu arpão. Também acertou. Chakliux ergueu a voz em sinal de ação de graças, mas Dente Velho exclamou:

Fazes muito barulho, irmão. Lembra-te de que onde houver um animal pode haver muitos mais. Tenta outra vez.

Chakliux recolheu o arpão, o pôs no lançador e atirou de novo. Dessa vez falhou. O lance limitou-se a empurrar a bexiga para o lado. Dente Velho atirou outra vez e voltou a acertar.

Vê o que acontece quando fazes muito barulho, irmão exclamou ele. Os animais afastam-se de ti.

Chakliux recebeu a censura com bom humor. Dente Velho tinha razão. Caçar animais marinhos era muito diferente de apanhar caribus ou ursos. Recolheu o arpão e atirou. Atingiu a bexiga e, antes de puxar o arpão, retirou outro do convés do iqyax e atirou-o. Voltou a atingir o alvo.

Dessa vez, foi Dente Velho quem elevou a voz, elogiando-o, e Chakliux não pôde deixar de sorrir. Começou a recolher os seus arpões. Além das peles de foca, havia duas mãos-cheias de bexigas ainda flutuando. Chakliux e Dente Velho só apontavam às bexigas para a linha não ir ao fundo, custando-lhes as bóias, as linhas de algas e os lastros. Chakliux atou um arpão ao seu iqyax e ajustou o outro ao lançador. Levantou o braço e depois viu que Dente Velho tinha erguido o seu lançador no ar.

Como todos os homens dos Caçadores de Morsas, Dente Velho pintara o seu lançador de preto em cima e de vermelho em baixo. Quando punha o lado vermelho para cima e o virava para Chakliux, isso significava que o arpão atingira o alvo. Dessa vez, o lado preto estava para cima, um sinal de que ele avistara um animal. Teria ele visto uma foca ou uma lontra, apesar do barulho dos exercícios?

Dente Velho apontou com o lançador para oeste, para a linha do horizonte, e Chakliux viu-os. Eram três iqyan, talvez quatro. Apressou-se a atar o arpão e o lançador ao seu iqyax e agarrou no remo, pronto a voltar para a aldeia, mas Dente Velho gritou:

São dos Caçadores de Morsas.

Começou a remar na direção dos iqyan. Chakliux foi atrás dele. Quando se aproximaram, viu as marcas amarelas e vermelhas e percebeu que os homens eram comerciantes. Lembrou-se do grupo que partira da aldeia dos Caçadores de Morsas pouco depois de Sok e ele terem chegado. Compreendera que eles tencionavam negociar com os Caçadores Marinhos.

Chakliux atirou o seu remo ao mar e foi ao encontro deles, para ver os comerciantes e os iqyan que tinham estado na presença de homens-lontras. Talvez um dia ele fosse àquelas costas distantes e aprendesse o que os Caçadores Marinhos tinham para lhe ensinar.

Sok sorriu. Foi um sorriso forçado, para disfarçar a sua raiva. As suas ofertas eram mais do que suficientes para ficar com a máscara e a bolsa do xamã. Yehl era um velho que se escondia atrás do poder dos seus cânticos e das suas mezinhas.

Os seus prazeres já não vinham dos corpos das mulheres nem da acumulação de objetos; agora, encontrava alegria em sonegar aos outros o que ele não podia ter.

Os Caçadores de Morsas consideravam-se um povo forte, mas quanto tempo duraria essa força com um xamã como Yehl? Com certeza os espíritos sabiam que ele estava enfraquecendo. Em breve, esses malvados começariam a pregar as suas peças. Os animais marinhos continuariam a entregar-se aos arpões dos homens cujo xamã não tinha poder?

Sok perdera quatro luas naquela aldeia, decerto o suficiente para saber se o povo de Rio Primo procurava vingança, mas também o suficiente, mais do que o suficiente, para acumular as mercadorias de que precisaria para mudar a opinião de Lobo-e-Corvo e convencê-lo a dar-lhe Neve-no-Cabelo em casamento.

Mas fora ganancioso demais e caíra na asneira de trocar Falcão da Neve durante os primeiros dias de estada na aldeia. Chakliux dissera-lhe que aguardasse, mas Sok, ao ver os objetos que lhe propunham, não o fizera. Desde então, tanto ele como Chakliux tinham sido obrigados a dar muito do que tinham recebido pelo cão em troca de comida, alojamento e óleo. Como é que ele saberia que as coisas que aceitara em troca, apesar de serem raras para o Povo Rio, eram usadas diariamente naquela aldeia? Como é que ele saberia que ao devolver essas coisas aos Caçadores de Morsas, receberia tão pouco em troca?

Mesmo assim, tinha dois dentes de morsa e várias pontas de lança de obsidiana. Com certeza Lobo-e-Corvo encontraria algum valor naquelas coisas, mas talvez não o suficiente para pagar o preço de Neve-no-Cabelo.

Yehl mexeu-se nas esteiras de pele em que estava sentado, levantou-se e pegou a sua parka de pele de caribu, outra coisa que Sok dera ao homem por troca. Sok levantou-se, ainda não habituado aos modos rudes dos Caçadores de Morsas. Qual o homem que abandona aquele que o foi visitar? Lembrou-se da voz calma de Chakliux: cada aldeia tem os seus hábitos.

Nesse caso, como devia reagir?, perguntou Sok a si próprio. Por fim, levantou-se também, puxou o capuz da parka para a cara e, quando Yehl saiu da cabana, foi atrás dele. Os seus olhos ainda não tinham se adaptado ao sol quando Chakliux se aproximou dele correndo, lhe agarrou o braço como se ambos fossem ainda crianças e começou a falar tão depressa que Sok não entendeu o que ele disse.

Sok afastou o braço.

O que aconteceu? perguntou ele.

Os comerciantes dos Caçadores de Morsas voltaram. Sok olhou para o irmão. Tinha os olhos brilhantes, o rosto corado e a pele caindo devido aos longos dias que passara no iqyax. Talvez tivesse chegado o momento de Sok sair daquela aldeia. Aparentemente, Chakliux gostaria de ficar. Até aprendera muitas palavras dos Caçadores de Morsas. Sok só conseguia comunicar com um dos filhos de Yehl, um homem que falava a língua de Rio, embora mal, e com uma velha chamada Tut.

Pelo menos havia Orelhas Pequenas. Ela sabia poucas palavras do Povo Rio, mas o que ele precisava dizer quando estava com ela?

Eles têm coisas dos Caçadores Marinhos: peles de lontra, obsidiana, cestos de erva, contas de conchas, botas de pele de foca...

A lista de Chakliux continuou, até que Sok se acalmou e percebeu que o irmão estava sugerindo que ambos negociassem aquelas coisas. Por que não? Qualquer coisa trazida das praias distantes do povo dos Caçadores Marinhos teria mais valor para Lobo-e-Corvo do que simples objetos dos Caçadores de Morsas. Sok deu uma palmada no ombro de Chakliux. O irmão ainda trazia a parka até aos joelhos que os caçadores usavam para se proteger da água quando iam nos seus iqyan.

Foste praticar hoje? perguntou ele a Chakliux.

Foi uma pena que as bexigas não fossem focas respondeu Chakliux.

Sok deu uma gargalhada. Abriram caminho entre as crianças e as mulheres na direção do grupo de homens dos Caçadores de Morsas que rodeavam os comerciantes.

Os comerciantes puxavam fardos da proa e da popa dos seus iqyan. Vários velhos já tinham aberto os fardos, retirando nódulos de obsidiana do tamanho de punhos, cordas de algas entrançadas, pacotes de conchas, dentes de baleia e anzóis. Várias crianças que tinham conseguido atravessar a multidão em direção aos iqyan haviam aberto a barriga de um leão-marinho cheia de peixe seco. Desataram a correr e a rir, com as mãos cheias de pedaços de peixe, quando um dos comerciantes foi atrás delas.

Chakliux reparou em várias peles de foca inteiras viradas do avesso, nos locais das barbatanas frontais e nas peles esticadas e inchadas com o que tinham lá dentro.

Óleo informou Tut, aproximando-se dele. Eles fazem como nós. Viram a pele do avesso, com o pelo e tudo e deitam as tiras de gordura lá para dentro para derreterem sozinhas.

Não gosto do pelo disse Chakliux.

Tut encolheu os ombros.

É saboroso observou ela.

Eles também derretem uma parte em poços ou em panelas, mas isso leva muito tempo. É preferível costurar o chigdax do marido do que esperar pelo óleo, não achas?

Sok agarrou no braço de Chakliux e apontou com o queixo. Um dos comerciantes exibia uma parka feita de pedaços de pele de pássaro. Ao sol, as penas pretas tinham o brilho da obsidiana. Possuía umas faixas bordadas com pelo e tiras penduradas com contas de conchas iridescentes.

Então o que achas? perguntou ele. Lobo-e-Corvo queria uma coisa daquelas?

Qual o homem que não queria? respondeu Chakliux.

Não penses que a vais conseguir disse Tut. Os Caçadores de Morsas não se afastam dessas coisas com facilidade.

A raiva provocada pela frustração perante Yehl e a impotência que sentia ao viver com aqueles Caçadores de Morsas levou Sok a responder com rispidez:

O que sabes tu, velha? Virou-se, para ela ver o que Folha Vermelha aplicara nas costas da sua parka. Nem sequer por isto?

Tenho ouvido os homens gabarem a tua parka. Devias ter trazido mais.

Sok já pensara muitas vezes no mesmo, mas quem havia de adivinhar que uma coisa feita por uma mulher teria mais valor para aqueles Caçadores de Morsas do que armas ou alimentos?

Sok virou-se para Tut.

Diz a esses homens que não se desfaçam de muitas coisas. Diz-lhes que este caçador do Povo Rio tem muita coisa para oferecer.

Direi, mas não esperes que eles te dêem com facilidade o que lhes custou muitas luas de viagem dura.

Aceitara o nome de Yehl, Corvo, quando era novo e forte, ainda não tão poderoso nas suas lidas de xamã como viria a ser, mas, ao contrário de muitos xamãs, era um caçador hábil, tanto na terra como no mar. Agora, os seus braços estavam magros como os de um velho. A sua voz, que em tempos se ouvia a cantar em toda a aldeia, parecia fraca, assim como os seus olhos.

Alguém raspou na parte lateral da sua tenda, e Yehl levantou-se com dificuldade.

Estou aqui gritou.

Reconheceu a mão grande e quadrada que afastou a aba de pele de morsa. Era Bate-no-Sol. A mãe dele afirmava que ele era filho de Yehl. Quem sabia ao certo? A mulher nunca fora sua esposa. Não era de confiança, e Yehl nunca acreditara verdadeiramente na sua afirmação.

Yehl tratava bem o rapaz, levando-o às caçadas com os filhos das irmãs, partilhando carne e óleo com a mãe de Bate-no-Sol sempre que ela não tinha marido, mas guardava as coisas importantes, cânticos, armas e amuletos para os filhos das suas esposas.

Pai, venho contar-te a minha visão disse Bate-no-Sol ainda antes de Yehl ter voltado a sentar-se nas peles macias.

Yehl suspirou. Ele não era parvo. Sabia que Bate-no-Sol queria suceder-lhe como xamã, e como podia ele negar-lhe tal pretensão? Nenhum dos seus filhos pretendia verdadeiramente seguir os passos do pai, nem tão pouco os filhos das irmãs. Contentavam-se em ser caçadores. Mas Bate-no-Sol não tinha paciência. Queria que Yehl o ensinasse depressa, para ele poder vangloriar-se de poderes que não conquistara. Era muito parecido com a mãe. Queria uma coisa, e outra, e nunca estava satisfeito com o que tinha.

Há comida na panela disse Yehl, apontando para a aba da porta, pois o tripé estava lá fora.

Bate-no-Sol abanou a cabeça e agachou-se.

Eu estava dormindo sem dormir, vendo sem ver, declarou ele, palavras que Yehl se lembrava de lhe ter dito há muito tempo, quando lhe explicara um dos seus sonhos. Uma mulher veio ao meu encontro. A voz dela era a voz de uma lontra, e quando ela falou, era como o vento partilhando os segredos que a terra lhe contara.

Os olhos do jovem brilharam, e por uma vez Yehl acreditou nele. Houvera um sonho. Yehl sabia quando alguém estava mentindo. Mas um sonho podia significar muitas coisas talvez apenas que alguém tinha medo ou queria alguma coisa. Talvez apenas que o espírito vivia a sua própria vida enquanto o corpo descansava.

Essa mulher... quem é? perguntou Yehl. Bate-no-Sol abanou a cabeça.

Por isso é que eu vim te ver. Talvez tu saibas.

Lembras-te como ela era?

Nova, com a cara redonda como uma lontra. Com uma boca grande, e vestia uma parka de pele de pássaro, muito parecida com aquela que os comerciantes trouxeram da aldeia dos Primeiros Homens.

Sonhaste isso antes ou depois de veres a parka! perguntou Yehl.

Antes. Esta noite, antes de os comerciantes voltarem. Yehl ergueu a sobrancelha. Então o sonho não era porque Bate-no-Sol quisesse a parka. Talvez fosse porque ele precisava de uma mulher.

A tua mulher está no período de sangue lunar? Bate-no-Sol franziu a testa.

Não.

Quando é que visitaste a cama dela pela última vez?

Esta noite respondeu Bate-no-Sol.

Yehl fechou os olhos por um momento e depois disse a Bate-no-Sol:

Talvez haja qualquer coisa relacionada com esse sonho. Como ela trazia uma parka de pele de pássaro, talvez essa mulher seja dos Primeiros Homens. Talvez devêssemos ir falar com os nossos comerciantes e ver se eles encontraram lá uma mulher assim. Se ela tem algum poder especial...

Yehl olhou para Bate-no-Sol e virou a cabeça. Com a sua idade avançada, às vezes falava muito depressa, falava demais. E se aquela mulher tivesse poderes espirituais? Talvez ele pudesse recebê-la como esposa, talvez a força dela compensasse a sua própria fraqueza.

Disseste que ela tinha uma boca grande? perguntou ele.

Grande demais. Tinha um rosto bonito, exceto a boca.

Yehl vestiu uma parka e fez sinal a Bate-no-Sol para que o acompanhasse.

Talvez fosse melhor eu comer sugeriu Bate-no-Sol, olhando para o saco da comida quando iam saindo.

A comida estará aqui quando voltarmos retorquiu Yehl. Não tarda que esses comerciantes se lembrem das suas mulheres e fechem a porta a todos nós. Depois, nem um xamã será bem-vindo.

Yehl deu uma gargalhada e Bate-no-Sol acompanhou-o no seu riso.

Chakliux foi com Sok às tendas dos comerciantes. Tut explicara que os comerciantes eram irmãos, quatro, e que partilhavam a mesma cabana na aldeia de Inverno. Naquele acampamento de Verão à beira do mar do Norte, tinham construído as suas tendas perto umas das outras. Tut dissera-lhes que deviam dirigir-se à tenda do irmão mais velho. Era ele que fazia a maior parte dos negócios. Tut aconselhou Sok a levar outros artigos para troca, objetos pelos quais o Povo Rio era conhecido, cestos de casca de árvore e de pele de pássaro, perneiras de pele de caribu bordadas com espinhos de ouriço-cacheiro e os quentes cobertores de pele de lebre que as mulheres faziam. Mas Sok rira-se das sugestões de Tut.

Ela dá valor a todas essas coisas porque é uma mulher disse ele a Chakliux. O que daria um comerciante dos Caçadores de Morsas por um cesto que não tem mais poder do que aquilo que uma mulher põe lá dentro?

Optou por levar fisgas, armadilhas e anzóis para pescar no rio, óculos e raquetes de neve, facas de sílex com cabos de osso de caribu e pontas de lança com uma base de osso própria para lâminas de pedra, qualquer delas não maior do que o dedo mindinho de um homem e com metade da largura da ponta de uma pena de águia. Vestiu a parka, como Tut sugerira, e levou um cobertor de pele de lebre.

Ela não percebe nada de negócios comentou Sok. Qual a mulher que percebe?

A maioria não percebe, pelo menos as do Povo Rio, mas talvez aqui... disse Chakliux.

Foste tu que me disseste que cada aldeia tem os seus hábitos recordou Sok.

Chakliux baixou a cabeça e tentou não discutir com o irmão. Às vezes, as palavras só dificultavam as coisas.

Estavam quase tantas pessoas reunidas à volta das cabanas de Verão dos comerciantes como tinham estado à chegada dos seus iqyan à praia. Tantas mulheres quantos homens, reparou Chakliux, e muitas vezes as mulheres levantavam a voz, fazendo ofertas para conseguir um ou outro objeto. Sok abriu caminho entre a multidão até se aproximar de um dos comerciantes. Estava negociando um arpão de ponta de osso com outro homem. Ao contrário dos arpões dos Caçadores de Morsas, este tinha uma ponta com maior número de farpas num dos lados. O comerciante levantou o arpão, desenrolou os tendões que cobriam a parte em que a cabeça do arpão se juntava a um cabo de osso e mostrou a pequena língua chanfrada de marfim que estava inserida numa ranhura feita no cabo.

Como um homem dentro de uma mulher gracejou o caçador.

Sim, e tal como um homem dentro de uma mulher, isto funciona bem disse o comerciante. Não falharás uma foca nem um leão-marinho com este arpão.

É pequeno demais para morsas observou o caçador.

Eles não caçam morsas, esses Primeiros Homens.

Então, para que preciso dessa pequena lança, que só serve para caçar focas? Talvez seja um disparate eu estar olhando para ela.

Eles também caçam baleias afirmou Chakliux em voz baixa, falando na língua dos Caçadores de Morsas.

Ouviu Tut assobiar. Ah, talvez ele tivesse quebrado algum tabu.

O caçador deu meia volta e olhou com desprezo para Chakliux, mas o comerciante riu e levantou uma mão em sinal de cumprimento.

Aí está, amigo disse o comerciante ao caçador. Até o Povo Rio sabe que os Primeiros Homens caçam baleias.

Com isso? perguntou o caçador, apontando para o arpão.

O comerciante olhou para Chakliux e ergueu as sobrancelhas.

Não retorquiu Chakliux. Mas sei de histórias que falam de Caçadores Marinhos apanhando baleias.

Então, as mesmas mãos fazem arpões para baleias e para focas. Não vez o poder que há nisso? perguntou o comerciante.

Outro caçador deu um passo em frente.

Se ele não vê, vejo eu disse ele.

O primeiro caçador agarrou no arpão e apontou com o queixo para uma tenda de Verão construída na zona da aldeia virada para o mar.

Vou dar-te o que pediste. Duas peles de foca de óleo. Dois arpões para caçar morsas. A minha filha está naquela tenda. Ela vai fazer-te um cesto de raízes de salgueiro.

O homem afastou-se do comerciante, deitou um olhar de desprezo a Chakliux e foi-se embora.

Agora, homem do Povo Rio, é a tua vez. O que pretendes trocar? perguntou o comerciante a Chakliux.

Chakliux pôs a mão no ombro de Sok.

O meu irmão é que veio para negociar disse ele. Sok avançou, inclinou-se e depois segredou a Chakliux.

Não me ajudes a negociar. Explica-me apenas o que eles dizem. Não quero seguir as passadas daquele último caçador.

A minha boca está fechada afirmou Chakliux, mas não pôde deixar de sorrir.

Tut aproximou-se de Chakliux e, quando o comerciante começou a falar, ela traduziu as partes mais difíceis das suas palavras, aquelas coisas que Chakliux não conseguia entender.

Ele pergunta o que queres disse Chakliux a Sok.

Sok apontou com o queixo para a parka de penas. Ouviu-se um sussurro de admiração entre a multidão, e o comerciante deu uma gargalhada. Disse uma série de palavras, tão depressa que Chakliux não conseguiu segui-lo.

Ele diz que o teu irmão deve ser um grande caçador, com peles e carne suficientes para oferecer em troca do sax explicou Tut.

O quê?

O sax, uma palavra dos Primeiros Homens. Significa ”parka”. Aquela peça de vestuário que vês ali no chão é um sax.

Sok virou-se para Chakliux.

Diz-lhe que negociarei de igual para igual. Esta bela parka que tenho vestida em troca daquela parka de penas. Diz-lhe que esta parka é de pele de caribu, lobo e doninha, muito mais forte do que uma feita de peles de pássaro. E mais quente, também.

Oferece menos primeiro disse Tut a Sok.

Velha, deixa os negócios para os homens ordenou Sok.

Tut levantou a cabeça e encolheu os ombros.

De igual para igual disse ela em língua do Povo Rio, e depois repetiu as palavras na língua dos Caçadores de Morsas.

Sok virou-se e disse as mesmas palavras ao comerciante. O homem riu-se de novo.

E o que tens tu que seja igual? perguntou ele. Chakliux traduziu as palavras e Sok estendeu os braços e virou-se para o comerciante para ele ver o desenho do Sol aplicado nas costas da sua parka.

Isso vale qualquer coisa observou o comerciante. Mas qual a mulher que não sabe fazer parkas de pele de caribu? No entanto, peles de pássaro são uma coisa diferente. Há aqui alguma mulher que saiba trabalhar com peles de pássaro?

Sok virou-se para Chakliux e ergueu as sobrancelhas, perguntando o que o homem estava dizendo.

Vai-te embora aconselhou Tut a Sok. Já perdeste. Vai-te embora. Não tens nada que ele aceite.

Sok cuspiu no chão.

Não me digas o que fazer, mulher, insistiu ele.

Em seguida, virou-se para o comerciante e mostrou o cobertor de pele de lebre que trazia no braço. O comerciante abanou a cabeça.

Como se diz pontas de lança? perguntou Sok a Chakliux, sem olhar para trás. E óculos de neve? E armadilhas de pesca?

Tut disse-lhe quais eram as palavras e Sok repetiu-as ao comerciante.

Mais uma vez o homem abanou a cabeça.

O teu irmão não sabe negociar, segredou Tut a Chakliux. Ele não tem mais nada?

Não.

Eu tenho cestos de erva, perneiras e um pouco de óleo.

Ele não precisa do sax, Tut. Não ofereças as tuas coisas para ele satisfazer os seus caprichos. Ele não é nenhuma criança. Além disso, não se deu ao respeito nesta troca de palavras na presença de todas as pessoas da aldeia. Ele não apreciaria a tua ajuda.

Com um irmão como Sok, como é que te tornaste tão sensato?

Chakliux respondeu sorrindo:

Através de coisas que não desejo a ninguém.

Sok virou as costas e abriu caminho entre a multidão. Ia a descer o caminho para a praia quando Bate-no-Sol saiu da cabana do comerciante e o chamou. Sok olhou para ele, admirado. Depois, voltou a atravessar a multidão e segredou a Chakliux ao passar:

Espera por mim.

Tem cuidado com aquele disse Tut a Sok. Ele quer mais do que deve.

Eu não sou nenhuma criança, mulher, repetiu Sok, empurrando-a.

Tut viu-o afastar-se e depois virou-se para Chakliux. Não disse nada, mas Chakliux reparou no seu olhar sombrio e preocupado, e por instantes foi como se estivesse outra vez com Gguzaakk, ganhando sabedoria com a sabedoria dela.

 

ALDEIA DOS PRIMEIROS HOMENS

Aqamdax cortou o caule de azevém, pegando no limbo de seis folhas com a mão esquerda enquanto cortava com a direita. A planta nova brotava do que restava de muitos Verões anteriores, como se cada tufo fosse uma família e os pais e os avós empurrassem as novas folhas verdes na direção do sol. Pousou o caule no molho que tinha aos pés. Qung dizia que as plantas daquela colina eram as melhores para fazer cestos. Não eram tão ásperas como as que cresciam junto das praias. Aquele azevém crescia no meio dos fetos e tentava imitar as suas folhas recortadas, formando plantas altas, fortes e graciosas, ao ponto de as folhas exteriores serem mais compridas que o braço de uma mulher.

Os salmões abundavam no rio mais próximo da aldeia, e todas as mulheres se cansavam limpando e secando o que os homens traziam, mas Qung era uma especialista em cestos e insistia que, como já estava muito velha para andar no meio daquela vegetação particularmente forte, devia ser Aqamdax a ir. Tinha que ser naquela época, quando os grãos começavam a espreitar dos caules e antes que as primeiras tempestades dobrassem e torcessem as plantas, antes que a neve e o gelo arrancassem as folhas exteriores e tornassem aquelas descoradas folhas do meio quebradiças e cortantes.

Aqamdax discutira com ela. Não poderiam comer cestos quando chegassem as duras luas de Inverno. Era preferível terem peixe seco e armazenado do que cestos de ervas.

Outros trariam a comida, dissera-lhe Qung. Faziam-no sempre, e a velha fora tão segura na sua afirmação que Aqamdax acabara por se deixar convencer. Por isso, ali estava cortando plantas, a um quarto de dia de caminho da aldeia, quando devia estar ajudando Qung a arranjar o peixe.

O sol dissipara a névoa da manhã e aquecia-lhe a cabeça. De vez em quando, Aqamdax olhava para os montes em que cresciam a erva-das-ptármigas e a erva-do-fogo de flores vermelhas; onde a cor escura dos talos duros do iitikaalux contrastava com as outras plantas e as campainhas amarelas e as piloselas alaranjadas se inclinavam ao vento. Ela sabia o que diriam as mulheres da aldeia. Não só que ela era uma ladra de maridos, como também que era preguiçosa, deixando uma velha sozinha apanhando peixe.

Hii! Deixá-las falar. Ela estava sendo agradável a Qung e isso era o mais importante. Nunca conhecera ninguém que fosse tão meticuloso fazendo cestos de erva, mas também não conhecia ninguém que os fizesse tão bem como Qung.

Qung cortava a planta em tiras finas como todas as mulheres faziam, mas em vez de as juntar num rolo e de as costurar com pontos bem apertados para cobrir o rolo à medida que ele ia formando o cesto, atava várias tiras no meio e abria-as em leque como se fossem uma folha de chuhnusix. Depois, servindo-se de duas tiras da planta como se fossem teares, enfiava-as para dentro e para fora entre as tiras atadas, formando um círculo que seria o fundo do cesto.

Era algo que não podia ser feito sem a planta adequada, seca como devia ser, explicara Qung a Aqamdax. Em seguida, mandara-a apanhar as plantas. Em troca, prometera contar-lhe duas histórias antigas que a maior parte dos Primeiros Homens não sabiam. Aqamdax não dissera a Qung que iria apanhar a planta para ela de qualquer maneira, mesmo sem a promessa das histórias.

É claro que as mulheres da aldeia, em especial as velhas, iam falar, usar palavras sutis para a envergonhar, mas, mesmo assim, iam ouvir as histórias dela. Sim, ouviam e concordavam com um aceno de cabeça, ou às vezes interrompiam-na para lhe dizer que já tinham ouvido contar a mesma história de outra maneira. Mas isso era bom. Como é que uma pessoa aprendia se não fosse a ouvir as idéias dos outros, a escolher a melhor?

Em geral, no Verão, havia pouco tempo para histórias, exceto algumas que uma avó ou uma tia ensinavam e que faziam parte da vida de todas as crianças. Era preferível guardar os serões de histórias, em que a maior parte das pessoas da aldeia se reunia num único ulax, para as longas noites de Inverno. Nesse Verão, os salmões eram poucos. Não era que as pessoas morressem de fome, havia fartura de focas, leões-marinhos e linguados mas algumas preocupavam-se com as pragas e as maldições, talvez como castigo pelo abandono de costumes antigos.

Agora, para ajudar as pessoas a lembrarem-se desses costumes, Cantador pedira serões de histórias. Nessa noite e nas duas seguintes, Qung e Aqamdax contariam histórias. Falariam até que os velhos tivessem certeza de que todas as coisas eram feitas com respeito.

Nos últimos dias, enquanto Aqamdax apanhava salmões, cortava plantas, costurava e tecia, contava histórias a si própria em silêncio, que lhe coloriam os pensamentos como as plantas e as flores coloriam os montes.

Enquanto praticava, parava às vezes para rezar, e cada prece era um pedido para que as pessoas não percebessem que a maior mudança da aldeia era a nova contadora de histórias, uma mulher que, no passado, levara caçadores para a sua cama sem se preocupar com os tabus da caça nem com os corações das esposas.

 

Chakliux mudava o remo de um lado para o outro: três movimentos à esquerda e depois três à direita. O ritmo parecia-lhe tão natural como respirar.

Quando Dente Velho começou a ensiná-lo, o iqyax era estranho, como se fosse um homem que ele não conhecia, alguém para quem olhava de braços cruzados, com a mão direita bem agarrada ao cabo duro de osso de uma faca na manga. Agora o iqyax era-lhe tão familiar como o seu próprio corpo. Quando ele remava, era uma verdadeira lontra, e o mar era a sua casa, como qualquer monte coberto de vegetação.

Chakliux olhou para trás, para o irmão, Sok, pensando se ele teria se arrependido do acordo com Yehl, o xamã dos Caçadores de Morsas. A parka de pele de pássaro, uma máscara de xamã, um tambor, um apito, um saco de remédios e o iqyax em que Sok seguia era mais do que eles teriam dado por um cão de olhos dourados, mas em troca tinham que trazer de volta a contadora de histórias dos Primeiros Homens. Como esperavam eles convencer uma aldeia a desistir da sua contadora de histórias para ela desposar um velho xamã dos Caçadores de Morsas? Mesmo que a convencessem a ir com eles, quem sabia se Lobo-e-Corvo estaria disposto a dar a sua filha como segunda esposa em troca de todos os poderes da parka de penas, da máscara e do tambor?

Havia quatro iqyan nesta viagem: o de Chakliux, o de Sok e os dos comerciantes dos Caçadores de Morsas, Cormorão e Pena Vermelha. Tut também os acompanhava. A velha pedira para ir fazer uma última visita à sua aldeia, onde poderia ficar ou talvez não. Ia no iqyax de Cormorão enquanto Pena Vermelha levava quase todas as mercadorias, um dote para oferecer ao pai, aos irmãos ou aos tios da contadora de histórias. Chakliux, Cormorão e Pena Vermelha receberiam cada um o seu quinhão de objetos por acompanharem Sok, mas para Chakliux o maior presente era a viagem propriamente dita, a oportunidade de visitar uma aldeia dos Primeiros Homens, de conhecer aqueles caçadores que eram irmãos das lontras-marinhas.

Apesar de Sok levar menos carga do que Chakliux, apesar de ser mais largo de braços e de peito do que os outros homens, era sempre o último. Às vezes, quando olhava para trás, Chakliux nem o via. Então dava a volta no seu iqyax e remava até se certificar de que o irmão não estava ferido nem capotara. Sok não aprendera a servir-se da sua força para remar. Em vez disso, lutava contra o mar, usando o remo como se este fosse uma lança, como se cada onda fosse um inimigo a abater. O seu rosto estava inchado do sal mais do que o de Chakliux, Cormorão ou Pena Vermelha como se o mar reconhecesse a sua inimizade.

Depois de alguns dias de viagem, aproximaram-se da aldeia dos Primeiros Homens. Já tinham virado os seus iqyan para a barra larga que ia dar à Praia dos Comerciantes. De vez em quando, Cormorão levantava o remo para apontar para um rio ou para uma faixa de terra onde os Primeiros

Homens pescavam, caçavam ou erguiam acampamentos de Verão. Não tardariam a chegar lá, um lugar que Chakliux sempre tivera esperança de conhecer e sonhara em visitar, e Sok começaria a negociar para conseguir a contadora de histórias.

Chakliux sentiu um arrepio na espinha, apesar de o sol de Verão ser quente. Sok não era um comerciante. Não compreendia o uso sutil das palavras e dos olhares. Talvez ele desse ouvidos a Cormorão e a Pena Vermelha. Talvez ele lhes desse ouvidos e aprendesse como é que um homem conseguia o que queria.

 

Qung dissera a Aqamdax que levasse as plantas com cuidado, nos braços estendidos. Ao regressar à aldeia, Aqamdax ainda não andara muito quando se arrependeu de não ter cortado menos azevém. Em geral, o regresso era mais fácil, quase sempre descendo, mas, quando avistou a aldeia, doíam-lhe tanto os braços e os ombros que lhe deu vontade de jogar fora a planta e dizer a Qung que não conseguira descobrir o local onde ela crescia. Mas como poderia fazer tal coisa se Qung fizera tanto por ela?

Qung estava velha. Todos os dias tinha dores nos braços; todas as noites as dores nas articulações a roubavam aos seus sonhos. Como podia Aqamdax queixar-se por dar mais alguns passos?

Começou a recitar uma das histórias que iria contar nessa noite, tentando encontrar as palavras que lhe soavam melhor, repetindo frases enquanto andava e ouvindo o som da sua voz. Na crista do monte atrás da aldeia, parou, agachou-se por instantes e apoiou os braços nos joelhos. Fechou os olhos e voltou a abri-los, contemplando a baía. O monte estava coberto de plantas, de amoras-da-silva-salmão e de tufos densos de salgueiros raquíticos, mas os caçadores mantinham aquele sítio limpo para que os rapazes pudessem observar a baía, procurando vestígios de salmões, focas e leões-marinhos.

Nesse dia, a baía estava cheia de homens em iqyan, uns a pescar, outros treinando com dardos e arpões. Várias mulheres pescavam à linha na praia, mas a maioria encontrava-se concentrada na foz do rio apanhando salmões.

Aqamdax reparou nos iqyan de vários comerciantes que estavam sendo puxados para a praia. Não era raro. Pelo menos daí a uma lua, ou talvez mais, as tempestades impediriam as viagens. Quando se sentiu mais aliviada das dores nas costas, levantou-se e continuou o caminho para a aldeia.

Era freqüente os Caçadores de Morsas irem negociar na aldeia. Desde criança que Aqamdax aprendera muitas das suas palavras, como todas as crianças dos Primeiros Homens. Às vezes, os Caçadores de Morsas arranjavam esposas dos Primeiros Homens, mas em geral, quando o faziam, viviam na aldeia dos Primeiros Homens. Aqamdax gostaria que a mãe tivesse partido com um comerciante dos Caçadores de Morsas. Talvez tivesse voltado agora, pelo menos para a visitar.

Aqamdax levou a erva para o topo do ulax de Qung e pousou-a ali. Viu que Qung não estava lá dentro e correu para a praia. Iria ao riacho dos salmões e faria o que pudesse para ajudar Qung. Bem alto, para as outras mulheres ouvirem, diria à velha que apanhara um bom molho de erva. Assim elas ficariam sabendo que não fora a preguiça que a afastara dos salmões.

Dirigiu-se para a praia e parou ao ver um grupo de homens reunidos à volta dos iqyan dos comerciantes. Sempre que estes chegavam, ela tinha esperança de que fossem homens do Povo Rio, mas, no fim do Verão, sabia que as hipóteses eram poucas, e não ficou desiludida ao ver as marcas dos comerciantes dos Caçadores de Morsas nas proas dos iqyan. Encaminhou-se para o rio dos salmões. Ajudaria Qung até chegar a hora de contar histórias, e depois se ajudariam uma à outra, tentando que as pessoas voltassem aos hábitos antigos e sagrados.

Sok percebeu que ela era filha de Daes. Era tão parecida com ela que tinha que ser. Mas era mais forte do que Daes. Na voz, e até nos ossos do rosto, era mais forte. A princípio, ela falara devagar, com palavras espaçadas. Outras vezes, falava tão baixinho que Sok mal ouvia o que ela dizia, mas, à medida que a história evoluía, a mulher parecia também crescer, ao ponto de sobressair de tal modo pela sua estatura que ele tinha de levantar a cabeça para lhe ver o rosto.

Nesse momento falava com outra voz, algo que vinha do cimo da cabana. A princípio, Sok julgou que havia alguém lá fora que os chamava pelo buraco da chaminé. Depois, percebeu que era a filha de Daes que fazia as duas vozes.

Ah, aquela mulher conquistaria o coração de Lobo-e-Corvo ainda mais do que uma parka de penas ou uma máscara de xamã. Quem não a desejaria como esposa? Depois, Neve-no-Cabelo lhe pertenceria, se ele conseguisse afastar a filha de Daes do seu marido dos Primeiros Homens. O lugar dela como contadora de histórias dava-lhe tal prestígio que nenhum marido a rejeitaria voluntariamente. Talvez o marido fosse um homem fraco, alguém que não percebesse o verdadeiro valor das coisas, e admitisse um certo tipo de negócio, sobretudo quando Sok lhe mostrasse os objetos que levava.

Sok estava ansioso por que as histórias acabassem, mas elas continuaram. A filha de Daes alternava com uma mulher tão velha que o seu rosto era castanho como o de uma lontra do rio. Tut estava sentada entre Sok e Chakliux, traduzindo o que as contadoras de histórias diziam, mas, com o esforço exigido pelos remos, o encontro na praia com os caçadores e o chefe dos Primeiros Homens e o tempo passado fazendo um abrigo tosco com peles de caribu e com os iqyan virados ao contrário, Sok estava ansioso por ir dormir. Quando a velha contava algumas das últimas histórias, ele chegara a fechar os olhos e a deixar que os sussurros de Tut o atraíssem para os sonhos.

Acordou quando os que o rodeavam começaram a levantar-se, e a princípio nem sabia onde estava. Depois viu Tut. Chakliux estava falando com Cormorão, e Pena Vermelha juntara-se a um grupo dos Primeiros Homens, mas Sok procurou a filha de Daes. Tentou identificar o marido, mas ninguém parecia reclamá-la, apesar de vários caçadores a assediarem, com o desejo no rosto. Por fim, quando todas as mulheres e crianças tinham saído da cabana, dois homens aproximaram-se dela. Ela falou com eles, com um ar carrancudo, à luz da lamparina. Tut também a observava e Sok perguntou-lhe:

Qual deles é o marido dela?

Ficou à espera que Tut fizesse a pergunta a um caçador na língua gutural dos Primeiros Homens.

Ele diz que ela não tem marido disse Tut a Sok. Sok não escondeu a sua surpresa. A filha de Daes não era feia. Tinha o rosto redondo, o queixo pequeno, uns olhos grandes e um nariz bem feito, e quando sorria, o que era raro, via-se que tinha bons dentes.

Ela é viúva? perguntou ele, e quando Tut repetiu a pergunta ao caçador dos Primeiros Homens, o homem riu-se.

É uma mulher que todas as noites tem um homem diferente na sua cama disse Tut a Sok, traduzindo as palavras do caçador. Ele diz que, se tu a quiseres, talvez a consigas, mas que, na opinião de todos os homens que a conheceram, ela é estéril.

Sok fez um aceno de cabeça, mas tentou disfarçar o seu interesse. O caçador dos Primeiros Homens falou outra vez e Sok, impaciente, ficou à espera que Tut o esclarecesse.

Ela chama-se Aqamdax. O pai morreu. Ela vive com Qung, a velha contadora de histórias.

O caçador dos Primeiros Homens apontou para a velha com o queixo. A mulher tinha as costas tão curvadas que era obrigada a inclinar a cabeça para olhar para alguém que estivesse na sua frente. Contara muitas histórias e, apesar de Sok não perceber as suas palavras, sentira a força na sua voz e o respeito que ela despertava naquela gente.

O caçador dos Primeiros Homens falou de novo. Dessa vez falou na língua dos Caçadores de Morsas, com palavras sincopadas e lentas que, curiosamente, Sok percebeu muito melhor do que quando Cormorão e Pena Vermelha falavam.

Qung muito poder. Despensa. Riu-se e descreveu um grande círculo com os braços. Muito cheia.

Voltou à sua própria língua e falou com Tut durante muito tempo. Sok virou-se para Cormorão e Chakliux, que falavam na língua dos Caçadores de Morsas. Chakliux falava quase tão bem como qualquer deles, e Sok ficou um pouco irritado.

Por fim, Tut puxou o braço de Sok e disse:

Ouve, este caçador diz que a jovem contadora de histórias se chama Aqamdax. Há uns anos, a mãe partiu com um comerciante que dizia pertencer ao Povo Rio. Conhece-lo?

Sok encolheu os ombros.

Há muitos comerciantes. Como se chama ele?

Tut virou-se para o caçador dos Primeiros Homens e fez a pergunta de Sok.

O caçador abriu os braços, encolheu os ombros e depois foi falar com Aqamdax, mas Sok ficou escondido nas sombras da cabana. No dia seguinte, quando as histórias a tivessem deixado e ela fosse apenas uma mulher, iria falar-lhe.

 

Preciso de saber como se diz ”avó” na língua dos Primeiros Homens disse Sok a Tut.

Tut sorriu-lhe.

Tencionas fazer algum negócio? perguntou ela.

O que te interessa isso, velha?

Talvez interesse de muitas maneiras respondeu ela.

Começara a usar o cabelo como as mulheres dos Primeiros Homens, solto ou preso atrás num espesso rolo encostado à nuca. Era uma mulher orgulhosa uma coisa de que Sok percebera assim que a vira pela primeira vez e empinou a cabeça. Por alguma razão, parecia quase uma jovem nesse momento. Chakliux disse que ela descobrira os seus três irmãos ainda vivos, além de muitos sobrinhos e sobrinhas.

Não quero que enganes a minha família.

Eu não vou enganar ninguém.

Por instantes, ela inclinou a cabeça e examinou-o. Por fim, disse:

Acredito em ti.

Diz ”kulax”. Significa ”avó”, mas cuidado com o modo como usas esta palavra. Algumas mulheres não gostam de ser avós para um homem do Povo Rio.

A velha afastou-se, sorrindo-lhe por cima do ombro, e Sok percebeu que ela estava prestes a desatar à gargalhada.

Eram os únicos comerciantes que estavam de visita aos Primeiros Homens, apesar de Tut ter dito a Chakliux que muitas vezes aldeias inteiras de comerciantes ficavam nas suas tendas junto da praia.

É uma baía abrigada explicara ela. Um bom ponto de paragem entre as aldeias dos Primeiros Homens nas praias a oeste e as aldeias dos Caçadores de Morsas a leste.

Ouvi dizer que os Primeiros Homens vivem em ilhas que vão até ao extremo da terra dissera Chakliux.

Tut encolhera os ombros.

Quem sabe? Sabemos de aldeias aonde se leva uma lua a chegar, sempre viajando para oeste. Os contadores de histórias dizem que viemos de uma ilha muito distante, no meio do mar, e que os nossos caçadores matavam baleias. Se isto é verdade, é porque perdemos esses poderes.

Cormorão e Pena Vermelha dispuseram as mercadorias em esteiras junto dos iqyan virados ao contrário. Em voz baixa, reconheceram que não tinham tido oportunidade de se reabastecer desde a sua última visita aos Primeiros Homens. Tinham parado numa aldeia entre o acampamento de Verão dos Morsas e esta, mas as pessoas tinham poucas coisas, apenas peixe e esteiras de erva. Chakliux conseguira negociar vários pescoços secos de leão-marinho, que não eram suficientes para um chigdax, mas constituíam um começo. Fora o melhor negócio feito por qualquer deles, e Sok não trocara nada, guardando tudo o que tinha para pagar o dote da contadora de histórias.

Chakliux agachou-se e olhou para o mar. O vento era fraco e a baía quase não tinha ondas. Dois jovens haviam ido para a praia cedo, tirando os seus iqyan das armações e levando-os para a água. O nevoeiro cobria a barra e estendia-se em longas faixas até à praia e aos vales baixos entre as cordilheiras. Chakliux observou os homens até eles serem engolidos pela mancha cinzenta. Gostaria de levar o seu próprio iqyax e ir com eles, mas não queria fazer nada que quebrasse tabus ou mostrasse desrespeito.

Quando eles voltassem, iria a eles e lhes perguntaria se podia ver os seus iqyan, para verificar o tamanho das balizas que eles usavam e ver como ligavam o rebordo do convés à armação. Cormorão dissera-lhe que eles usavam peles de leão-marinho em vez de morsa para revestir os iqyan. Como Chakliux gostaria de saber falar a língua dos Primeiros Homens! Tinha tantas perguntas a fazer mas, quando os homens voltassem, talvez ele conseguisse que Tut traduzisse o que ele dizia.

Estavam ali apenas há uma noite, e parecia que a velha já pertencia à aldeia. O irmão mais velho oferecera-lhe um lugar na sua cabana. Não, não era uma cabana, era um ulax. Era assim que os Primeiros Homens chamavam às suas cabanas. Chakliux não se admiraria se ela resolvesse ficar com os Primeiros Homens, mas iria sentir a sua falta. Era sincera como uma criança, e como uma criança parecia deliciar-se com tudo.

Como se os pensamentos dele a tivessem atraído, Chakliux viu Tut saindo do nevoeiro, acompanhada por uma velha curvada. Tut acenou-lhe para que fosse ao encontro dela, e Chakliux desatou a correr, retardado pela areia debaixo dos pés.

Lembras-te de Qung? perguntou Tut, quando ele se aproximou delas. Ela quer ver o teu pé de lontra.

De súbito um ramo de gavieiro enrolou-se nos tornozelos e ele tropeçou, mas endireitou-se antes de cair. Sacudiu a areia das palmas das mãos e tentou apresentar-se com dignidade, mas Tut desatou a rir e ele seguiu-a.

Sim, lembro-me de Qung. É contadora de histórias respondeu ele.

Tut disse qualquer coisa à mulher na língua dos Primeiros Homens e Qung respondeu com uma rispidez que levou Chakliux a pensar se ela estaria zangada.

Ela está a ralhar comigo pela minha indelicadeza disse Tut. Está dizendo-me que os Caçadores de Morsas me fizeram esquecer a educação dos Primeiros Homens. Por isso, daqui em diante, serei educada. O que pensas do nevoeiro? Aqui é sempre assim. Já me esquecia. O que pensas da aldeia? É grande e as pessoas são fortes, não são? Gostaste das histórias desta noite? Tut não deu tempo a que Chakliux respondesse e por fim acrescentou: Agora acabemos com as delicadezas. Mostra-lhe o teu pé.

Rindo-se dos modos estranhos de Tut, Chakliux descalçou a bota e tirou as peles de lebre com que costumava aconchegar o pé. Qung inclinou-se tanto que Chakliux teve medo que ela tropeçasse. A mulher disse qualquer coisa, elevando a voz como se fizesse uma pergunta.

Ela quer tocar-lhe disse-lhe Tut.

Diz-lhe que o pode fazer.

A mão de Qung estava fria. A velha voltou a falar; mais uma vez, Tut traduziu:

Ela quer saber se tu cantas, se és versado em preces e cânticos.

Diz-lhe que sou dzuuggi. Sabes o que é um dzuuggi?

Sei. Um contador de histórias, tal como Qung. Também és xamã?

Não tenho poderes espirituais. A minha força vem das histórias que aprendi e dos enigmas do meu povo.

Tut disse a Qung e a velha fez mais perguntas, sem tirar as mãos do pé de Chakliux. Por fim, endireitou-se o mais que podia, gemendo com o esforço, e Tut disse:

Ela quer um enigma. Nada acerca do Povo Rio, mas qualquer coisa que uma mulher dos Primeiros Homens consiga adivinhar.

Chakliux ficou pensando, tentando lembrar-se de algumas informações que Tut lhe dera acerca dos Primeiros Homens e das suas praias, de qualquer coisa simples que pudesse ser transformada num enigma. Por fim, disse:

Olhem! O que vejo eu? Um louco segue o seu caminho.

Tut disse a Qung, e a velha levantou a cabeça, ergueu as sobrancelhas e sorriu.

Ela quer a resposta?

Deixa-a pensar no enigma durante um tempo disse Tut. Os Primeiros Homens são um povo silencioso. Utilizam quase todas as suas palavras nos seus pensamentos. Ela pergunta-te se quiser saber.

Qung apontou com a boca para o pé de Chakliux e Tut disse:

Ela agradece-te por a deixares ver o teu pé.

Em seguida, Qung deu meia volta e embrenhou-se de novo no nevoeiro.

Eles perguntam por ti afirmou Qung descendo lentamente o poste do ulax.

Aqamdax levantou a cabeça da pele de foca em que estava trabalhando com um furador de osso de pássaro.

Quem?

Aqueles comerciantes dos Caçadores de Morsas.

São os mesmos que estiveram aqui há uma lua?

Dois são.

Talvez lhes tivessem dito que ela levava muitos homens para a cama. Aqamdax perguntou a si própria quais as bugigangas que eles lhe ofereceriam e depois abanou a cabeça para se livrar de tais pensamentos. Ainda havia períodos em que não conseguia dormir, mas estavam diminuindo, e agora que a aldeia estava prestes a ter três noites de histórias, ela não queria que os homens interferissem nas novas histórias que a sua mente lhe ensinara.

Não quero que eles venham aqui declarou Aqamdax.

Mesmo os dois que são do Povo Rio?

As palavras de Qung fizeram erguer a cabeça de Aqamdax, como se esta fosse uma bexiga cheia de ar e presa a um fio.

Dois são do Povo Rio? Eles entendem a nossa língua? Falaste com eles? Eles sabem alguma coisa da minha mãe?

Fazes perguntas demais comentou Qung, descendo o último degrau do poste. Instalou-se numa almofada de pele de raposa cheia de penas de ganso e prosseguiu: O grande e o pequeno são irmãos. São do Povo Rio. O pequeno tem um dom especial. Um dos pés parece a barbatana de uma lontra, com os dedos ligados por uma membrana, e é um contador de histórias do seu povo. Cantador diz que o homem é quase tão bom num iqyax como um caçador dos Primeiros Homens. Não sei muita coisa acerca do alto. Algumas mulheres dizem que ele quer uma esposa. Guarda Cestos disse que ele perguntou por ti.

Nenhum perguntou pela minha mãe?

Quem perguntaria pela tua mãe a não ser tu?

Então eles entendem a língua dos Primeiros Homens?

Não. Eu falei com o lontra. A mulher que veio com eles, Tutaqagiisix, é uma das nossas, casada com um dos Caçadores de Morsas antes de tu nasceres. O irmão dela é Lago Pequeno. Ela voltou para ficar com ele. Traduziu as palavras do homem para eu entender, e as minhas para ele. Apresentou-me um enigma. Queres ouvir?

Aqamdax dobrou a pele e enfiou o furador e o dedal no seu agulheiro de marfim.

Os homens do Povo Rio estão na praia? perguntou ela.

Não queres ouvir o enigma?

O enigma?

O homem do pé de lontra ensinou-me um enigma. É uma charada de palavras.

Sim, mas não agora. Guarda-o para mim. Aqamdax vestiu o sax e começou a subir o poste.

Devias levar alguma coisa para trocar. Os comerciantes não dão nada de graça, nem sequer informações.

Mas parecia que os ouvidos de Aqamdax tinham se fechado a tudo exceto aos seus próprios pensamentos.

 

Dois, disse o comerciante dos Caçadores de Morsas. Mais nada. Olha, a pele de lontra é velha. Levou-a ao nariz e cheirou-a. Posso vendê-la ao Povo Caribu. Eles não sabem distinguir, mas os Caçadores de Morsas, outros Primeiros Homens e até o Povo Rio sabem. Como posso eu dar-te mais se fico com tão pouco para mim?

Cabelo Branco baixou a cabeça. Aqamdax já vira comerciantes negociando com velhas. Os caçadores da aldeia não as deixavam morrer de fome, mas como os maridos delas não podiam caçar, as melhores peles nunca iam parar em suas mãos. Pouco a pouco, as mulheres desfaziam-se das suas melhores peles, mesmo daquelas que tinham guardado para si. Se tivesse sido bem raspada e amaciada e guardada com todo o cuidado, uma pele velha valia quase tanto como uma nova, mas para quê dizer isso ao homem? Se ele era comerciante, bem o sabia.

E, evidentemente, não mentira. Os Caçadores de Morsas e os Primeiros Homens sabiam ver que a pele era velha, mas também conheciam o seu valor.

Comes bem, avó? perguntou o comerciante.

A mulher esfregou as mãos na superfície do pêlo escuro e denso mas não respondeu.

Nem por isso disse o comerciante. Duas barrigas de foca cheias de óleo dão-te para muito tempo. Mais do que quando eras nova.

Eu tenho marido, disse Cabelo Branco.

Aqui está. O comerciante tirou um pequeno alfinete de nariz de marfim de um dos seus fardos. Leva isto também. O teu marido vai ficar satisfeito.

A mulher pegou o alfinete de nariz, mas Aqamdax agarrou-lhe primeiro. O comerciante fitou-a.

Sim. O meu tio vai gostar disto disse ela. Pegou o alfinete e deixou-o cair nas mãos da velha. O que te ofereceu ele em troca dessa pele, tia?

Duas barrigas respondeu Cabelo Branco. Aqamdax resmungou:

Consegues quatro ou cinco peles de caribu por isso, não consegues? perguntou ela ao comerciante.

É velha respondeu ele, mas recuou, afastando-se da verdade das palavras dela.

Aqamdax pegou a pele. Levou-a ao nariz e depois virou-se para as mulheres que estavam mais perto dela.

Cheira a podre?

Não, disse Grita-Alto.

Era uma mulher ousada, e em geral era a primeira a chamar-lhe nomes feios quando Aqamdax passava pelo seu ulax, mas naquele momento sorriu, com um misto de astúcia e de alegria no olhar, empinando levemente o queixo para lhe mostrar a sua aprovação.

Aqamdax aproximou a pele da cara do homem e encostou-a no nariz dele.

Cheira a podre?

O comerciante afastou a pele.

Leva-a. Não a quero disse ele.

Eu diria que esta é uma das melhores peles que tenho visto observou Aqamdax. Eu diria que esta pele vale alguma coisa.

Olhou por cima do ombro para Grita-Alto, para Olhos-de-Erva e para Folha Malhada. Elas concordaram.

Aqamdax aproximou-se do comerciante e encostou-lhe de novo a pele na cara.

Duas barrigas de óleo só para a ver, diria eu, insistiu ela.

Mais uma vez, as mulheres concordaram em voz baixa e várias exclamaram:

Duas barrigas, sim. Duas barrigas.

Aproximaram-se outras que juntaram a sua voz à de Aqamdax.

O comerciante abriu a boca para falar, mas depois olhou para as mulheres.

Somos muitas disse-lhe Aqamdax. E todas trouxemos coisas para trocar. Tenho certeza de que, se tratares bem os nossos velhos, continuarás a ser bem recebido na nossa aldeia.

Duas barrigas? perguntou o comerciante. Aqamdax fez um sinal afirmativo.

Ele diz duas, tia. E também o alfinete de nariz?

O que se passa aqui?

Aqamdax reconheceu a voz de Rompe-o-Dia. As outras mulheres afastaram-se para ele se aproximar do comerciante, mas Aqamdax ficou onde estava.

Este homem é um bom comerciante disse ela a Rompe-o-Dia. Ofereceu à nossa tia duas barrigas de óleo e um alfinete de nariz pela oportunidade de ver esta pele de lontra.

Rompe-o-Dia olhou para o comerciante e depois para Aqamdax.

Isto é verdade? perguntou ele.

Sim, respondeu o comerciante com uma voz débil. O homem pigarreou e acrescentou:

Sim. Duas barrigas. O alfinete de nariz é um presente.

Rompe-o-Dia fez um aceno de cabeça mas cravou os olhos em Aqamdax e ergueu uma sobrancelha, um olhar que a atingiu o coração, um olhar que ele reservava geralmente à mulher.

Vou mandar outras pessoas falar contigo, comerciante, disse ele.

Em seguida, pegou a pele e as duas barrigas de óleo e acompanhou Cabelo Branco até a aldeia.

Chakliux e Tut estavam sentados junto das armações dos iqyan, abrigados do vento, observando e ouvindo como Aqamdax, a contadora de histórias, negociava com Cormorão, primeiro ajudando uma das velhas e depois negociando dois saels de casca de bétula, duas peles de caribu, colares e alguns espinhos pintados de ouriços-cacheiros.

Várias vezes, Chakliux foi obrigado a conter o riso quando Tut traduzia as palavras da contadora de histórias. Era uma mulher que sabia o que queria.

Quando ela acabou de negociar, chegou Qung, a outra contadora de histórias. Cormorão e Pena Vermelha propuseram-lhe bons negócios. Uma pele de caribu e peixe seco em troca de uma pequena pele de foca e de um rolo de tendão. Um colar de presente, que o próprio Pena Vermelha lhe pôs no pescoço.

Depois de a velha ir embora, Chakliux concentrou o seu pensamento em Aqamdax. As suas histórias eram um dom. Perguntou a si próprio se ela saberia como era boa. Sok gabara-se a Chakliux que, se Yehl não a aceitasse, ele ficaria com ela. Porque não? Talvez ele conseguisse negociar com aqueles que vinham ouvi-la. Negociar em troca das palavras que saíam da boca de uma mulher. O que havia de mais fácil?

Os comerciantes dos Caçadores de Morsas tinham exposto os seus produtos mais cedo do que Sok julgava. Acordou ao som dos homens e das mulheres pechinchando, das vozes elevando-se ou esmorecendo, fazendo ofertas, rejeitando e aceitando. Foi correndo apresentar os seus produtos, as poucas coisas que lhe pertenciam e que ele não pusera de lado para o dote de Aqamdax coisas que não teriam grande significado para o Povo Rio, mas talvez tivessem algum valor para os Caçadores Marinhos.

As primeiras a examinar alguns dos seus produtos foram várias jovens, todas com muitos risos e sem nada para trocar, mas pouco depois a mãe de uma delas aproximou-se. Chamou as outras e por fim a multidão à volta de Sok era quase tão grande como a que rodeava os comerciantes dos Morsas.

A velha contadora de histórias chegou, acompanhada por Aqamdax. Sok tentou não olhar para a jovem, mas deu consigo observando os movimentos graciosos das suas mãos quando ela pegou um cobertor de pele de lebre. Inclinou-se para segredar ao ouvido da velha, e ambas examinaram a textura do cobertor.

Era uma mulher de aspecto agradável. Não era de admirar que os homens acorressem à sua cama. Sok perguntou a si próprio se eles lhe dariam os seus produtos em troca do seu prazer. Em certas aldeias, as mulheres conseguiam muitas coisas assim, peles e colares, óleo e carne. Segundo os Caçadores de Morsas, a prática não era habitual entre os Primeiros Homens. Os homens não partilhavam as suas mulheres exceto com companheiros de caça ou com um irmão que não tivesse mulher, e os maridos nem sequer podiam obrigar a mulher a deitar-se com um homem que ela não desejasse. Mas Aqamdax não era mulher de ninguém. Não tinha irmão, nem pai, nem tio para falar por ela. E o pior é que era estéril.

Então o que aconteceria se Sok lhe pedisse que fosse com ele para desposar o xamã dos Morsas? Qual a mulher, mesmo uma contadora de histórias, mesmo uma que partilhava prontamente a sua cama, que conseguiria sobreviver sem ser esposa? Não tardaria a envelhecer. E depois? Quem a quereria? Além disso, o que perdia Sok ao perguntar?

Pelo canto do olho, Sok observou-a. Ela acariciava as peles de doninha e examinava um sael de casca de bétula cheio de espinhos. Pegou um cesto de pele de pássaro e depois juntou o seu riso trocista ao de várias mulheres. Sok ignorou a troça.

Servira-se de pedras para fazer um estrado e colocou os produtos em cima das pedras. Apesar de estas serem irregulares, era melhor do que ter as coisas no chão. Os homens e as mulheres tinham cuidado, mas as crianças, com o entusiasmo da negociação, muitas vezes desatavam a correr para ir brincar. Cormorão contara-lhe que perdera mais de um cesto de pele de pássaro debaixo dos pés de uma criança.

Por fim, Aqamdax aproximou-se dele. Ofereceu um colar de conchas por uma mão-cheia de contas esculpidas de pedra-sabão. Era um bom negócio para ele. O Povo Caribu daria muito por um colar de conchas.

Quantas? perguntou ele, falando em língua dos Morsas.

Ela levantou cinco dedos duas vezes.

Leva mais, disse ele.

Sok sorriu quando ela ergueu as sobrancelhas, admirada. Aqamdax tirou mais três contas e ele, com um aceno de cabeça, aceitou o colar.

Tut atravessou a multidão e, contornando as mercadorias, aproximou-se de Sok.

Precisas de ajuda para perceber o que eles dizem? perguntou ela.

Sim, sim, respondeu Sok, olhando de novo para Aqamdax.

Ela já lhe virara as costas e, nas pontas de pés, espreitava os produtos dos outros comerciantes por cima da cabeça das outras pessoas. Ele não podia cometer a indelicadeza de lhe agarrar o braço. Por isso falou, inclinando-se sobre as suas mercadorias.

As tuas histórias são muito boas, afirmou ele, levantando a voz acima da tagarelice das mulheres.

Tut também se debruçou e falou na língua dos Primeiros Homens.

Aqamdax virou-se e olhou para Tut e depois para Sok. O seu sorriso embelezava-a, atenuava-lhe as rugas entre as sobrancelhas e transformava-lhe os olhos em quartos crescentes brilhantes. Sok considerava que Daes era bela. Mas esta mulher superava-a. Sim, o xamã dos Morsas ia ficar satisfeito, sobretudo se ninguém lhe dissesse que ela era estéril.

Eu não deixei nenhum presente ontem à noite. Posso ir levar-te alguma coisa mais tarde, quando acabar o negócio?

Quando Tut falou, Sok viu a surpresa no rosto de Aqamdax. Ela abriu a boca e depois hesitou.

Há alguma coisa de que tu ou o teu marido gostem, do que vês aqui? perguntou Sok apontando para as suas mercadorias.

O meu marido? perguntou ela. Ah, ele sempre quis um bom cesto de pele de pássaro disse ela.

Aqamdax riu-se e várias mulheres junto dela também se riram.

Quando Tut traduziu, Sok sentiu uma ponta de raiva no peito, mas disse:

Vou guardar um para ele.

Pegou o cesto maior, agachou-se e encheu-o de peles e colares. Depois levantou-se e declarou:

Levá-lo-ei esta noite. Vives no ulax da contadora de histórias?

Vivo respondeu Aqamdax, olhando primeiro para Tut e depois para Sok.

Disse mais qualquer coisa, e Tut traduziu, explicando que Aqamdax não tinha marido, mas Sok ignorou-a e olhou para os caçadores que estavam à espera. Cormorão dissera-lhe que eles só se aproximariam quando as mulheres fossem embora, e que depois Sok deveria expor as armas e os objetos de sílex. Sok fingiu não ouvir o que Tut estava dizendo e voltou a arranjar o sílex e as bóias de pele de foca que trouxera da aldeia dos Caçadores de Morsas.

Aqamdax apertou as contas contra o peito e passou entre as mulheres, deixando que outras ocupassem o seu lugar. Tinha mais do que esperava, belas contas do comerciante do Povo Rio, colares e recipientes de casca de bétula dos homens dos Morsas, e o comerciante do Povo Rio ia levar-lhe um presente, embora uma parte dele fosse um cesto de pele de pássaro uma coisa que ela merecia, por ter troçado do homem. A maioria dos outros homens teria reagido com palavras desagradáveis ou mantido um silêncio raivoso.

Já ia regressando à aldeia quando se lembrou que Qung ainda estava negociando. Aqamdax devia ter esperado por ela, devia estar lá para trazer o que a mulher tivesse trocado. Os comerciantes haviam sido generosos com os velhos desde que Aqamdax enfrentara aquele a quem chamavam Cormorão. Aqamdax disfarçou um sorriso. Era bom fazer qualquer coisa para ajudar os outros.

Apressou o passo e dirigiu-se para o ulax. Levaria as suas coisas para casa e depois voltaria para ajudar Qung. Cortou caminho subindo a pequena duna que separava a aldeia da praia. À sua frente iam quatro mulheres Guarda-Cestos e a irmã mais velha, uma tia e outra mulher chamada Boca. Era aconselhável não ter Boca como inimiga. As suas palavras eram afiadas como as ervas da praia ressequidas pelo Inverno.

Aqamdax abrandou o passo para não ter que acompanhá-las.

O vento aumentara de intensidade desde o princípio da manhã, empurrando uma faixa de nuvens cinzentas e espessas do horizonte. Moldava-lhe o sax de pele de pássaro às pernas e, quando ela ia a descer a encosta da duna, também lhe fez chegar aos ouvidos as palavras das mulheres.

Guarda-Cestos lamentava-se, como era habitual, do muito que tinha para fazer. Aqamdax abanou a cabeça. Comparada com a maioria das esposas, até tinha pouco. Só dera um filho ao marido, e todas as mulheres da aldeia sabiam que era a esposa-irmã que se ocupava da maior parte da costura e da comida.

A irmã de Guarda-Cestos riu.

Tu és preguiçosa. Se vivesse com o meu marido, então saberias o que é trabalho, disse ela.

Ou se apanhasse um ano em que houvesse abundância de salmão, acrescentou a tia. Há tão poucos este ano. Ainda só enchi dois estrados de seca.

Boca resmungou:

O que esperam vocês? Nós temos uma maldição. Até temos sorte em apanhar alguns salmões.

Há anos bons e outros que não são tão bons, disse a tia.

Eu não discuto isso, mas ninguém, nem sequer os mais velhos, se recorda de um ano com tão pouco peixe, observou Boca. Há sempre uma razão para estas coisas.

Guarda-Cestos concordou.

O Povo Duas Praias tem um xamã forte... A mulher apontou para a outra aldeia. Talvez ele nos explique porque é que isto aconteceu.

Hii! Não preciso de um xamã para uma coisa tão simples como essa retorquiu Boca. Só houve uma coisa que mudou desde o Verão. Uma mulher que é respeitada e que não devia ser. Uma mulher...

Tenho sido uma boa esposa disse Guarda-Cestos. Pergunta ao meu marido. Tudo o que eu faço para respeitar...

Boca cortou-lhe a palavra.

Estúpida! exclamou ela, inclinando-se para olhar para Guarda-Cestos. Julgas sempre que é tudo a teu respeito? Quem vive agora com Qung? Quem foi honrada com conhecimentos que nem os nossos velhos têm?

As palavras de Boca tiveram o efeito de facas na alegria que as mercadorias haviam despertado em Aqamdax. De súbito, as contas esculpidas pareciam cortar-lhe as mãos e os novos colares como que lhe arranhavam a pele.

Ah! exclamou Guarda-Cestos.

Ah! exclamou a irmã.

Aqamdax teve vontade de responder, mas dobrou a língua. Por pouco não gritou às mulheres e não lhes disse o que pensava. Mas de que serviria a sua raiva? Talvez servisse apenas para provar a acusação de Boca. O que havia de mais indelicado do que ouvir as conversas dos outros? O que havia de mais indelicado do que interromper os outros?

Optou por apertar o passo, passando por elas e cumprimentando-as. Virou-se, com os braços cheios de objetos que trocara, e disse, sorrindo:

Está um lindo dia, não está?

Elas pestanejaram ante a boa disposição dela e por fim Guarda-Cestos gaguejou:

O sol, o sol está quente.

O vento arrasta a chuva, disse Boca. Aqamdax encolheu os ombros.

Já tivemos chuva, respondeu ela. Somos mesmo uma aldeia abençoada pela sorte.

Em seguida, virou para o ulax de Qung e continuou a andar, recusando-se a ouvir o que diziam atrás dela.

Eu te disse que ele vinha aí disse Aqamdax, espalhando mais peixe e outro monte de ouriços-do-mar. Vem ver o meu marido. Não me deu ouvidos quando eu lhe disse que não era casada.

Qung ficou atenta, sem perceber o motivo do nervosismo de Aqamdax. Muitos homens tinham entrado naquele ulax. Aqamdax nunca lhes oferecera comida nem se preocupara por não ter marido. Porque se preocuparia agora? Ele comeria, iria para a cama dela, iria embora e, de manhã, Qung veria o que Aqamdax ganhara por ter aberto as pernas a outro homem.

Tia, eu... Agora sou contadora de histórias afirmou Aqamdax.

Deitou a cabeça para trás e suspirou. Os cabelos brilhantes chegavam-lhe às ancas e, por instantes, Qung invejou a beleza da jovem.

Não o quero na minha cama disse ela por fim.

As histórias bastam. Agora não preciso dos homens. As histórias alteraram a minha situação. Não consigo explicar, mas...

O que te leva a pensar que ele vem pela tua cama?

Todos os homens querem ir para a minha cama. Bem sabes.

Há homens que não te procuram. Disseste que ele trazia um presente para o teu marido. Ele não espera nada de ti, se tenciona ver o teu marido.

Pensas que nenhum dos homens lhe falou de mim?

Imaginas que os homens falam das mulheres? Têm muitas outras coisas que lhes enchem a boca. A pesca, a caça e as armas. Fui casada durante muitos anos. Nunca ouvi o meu marido falar acerca de mim nem dos nossos filhos. Os homens não são como as mulheres. Não se interessam muito pelas pessoas.

Deitarem-se com uma mulher é diferente, retrucou Aqamdax. Para um homem, isso não tem a ver com as pessoas.

Qung levantou as mãos.

Quem sabe? Nunca compreendi os homens e não creio que eles compreendam as mulheres. Aqui está ele, disse ela, apontando com o queixo para o buraco do telhado.

Aqamdax endireitou o sax, ajeitou os colares que trazia no pescoço e susteve a respiração quando o homem começou a descer para o ulax. Reconheceu os pés que desciam o poste e de súbito sentiu-se impaciente.

Então agora que a tua mulher está grávida, vens me ver outra vez? perguntou ela.

Rompe-o-Dia pousou os pés no chão do ulax e virou-se lentamente para ela.

Não estou interessado na tua cama, disse ele.

Como se reparasse pela primeira vez que Qung o observava, acenou à velha, tartamudeou um cumprimento e chamou-lhe avó por respeito para com a sua idade.

A minha mulher ouviu dizer que um dos comerciantes vinha visitar-te.

A tua mulher ouve muitas coisas, respondeu Aqamdax.

Rompe-o-Dia ficou carrancudo, o que divertiu Aqamdax.

Ele prometera-lhe que ela seria sua esposa. Ela acreditara nele, apesar de as mulheres do chefe terem rido quando ela lhes contara. Agora, Aqamdax entendia os seus risos. Como é que Rompe-o-Dia poderia casar com uma mulher que não tinha pai, nem tios, nem irmãos, nem sequer um avô?

Foi o comerciante chamado Sok?

Sim. O alto respondeu Aqamdax.

Vi-o tentando enganar uma velha.

Esse pertence aos comerciantes dos Morsas. Sok não enganou ninguém, disse Aqamdax.

Ele deu-me uma pele de caribu inteira e peixe seco em troca de uma pequena pele de foca e de um rolo de tendão. Não me enganou, disse Qung.

Vim dizer-te que tenhas cuidado, avisou Rompe-o-Dia. O meu tio disse-me que ninguém deve confiar num comerciante.

O teu tio não confia em ninguém porque é desonesto, declarou Qung. Aqamdax aprendeu muitas coisas na vida. Já teve homens que lhe fizeram promessas. Ela sabe ser cuidadosa.

A velha aproximou-se de Rompe-o-Dia e olhou-o fixamente até ele dar meia volta e começar a subir o poste.

Não julgues que és o único sábio, gritou-lhe Qung.

Depois olhou para Aqamdax e riu como uma menina.

Encontraram-se no telhado do ulax de Qung, e por isso foi difícil fingir que não se viam um ao outro, mas nenhum deles falou. Sok teve um acesso de fúria. Aquele era um dos homens que freqüentava a cama de Aqamdax? Mas censurou-se. O que tinha ele com isso? A mulher não lhe pertencia.

O homem dos Caçadores Marinhos saltou do telhado do ulax e Sok viu-o aproximar-se de outro ulax maior. Agarrou com força o cesto de pele de salmão que trazia na mão e depois parou junto do buraco do telhado. Não sabia os hábitos dos Primeiros Homens quanto às visitas. Devia gritar? Servir-se de um pau para raspar na madeira da armação do buraco? Tut dissera que ela se encontraria ali com ele. Devia esperar por ela?

Por fim, Sok gritou do buraco do telhado e depois desceu. Era um ulax pequeno, com metade do tamanho de muitos que havia na aldeia. É claro que a maior parte dos ulax albergava várias famílias. Aquele, tanto quanto ele percebera, pertencia à velha Qung, e só ela e Aqamdax é que lá viviam. Tut dissera-lhe que era raro uma mulher dos Primeiros Homens ser dona de um ulax. Quase todos pertenciam aos homens.

O que lhe parecia mais difícil na vida de um comerciante, além de viajar, era aprender os hábitos de cada aldeia. Era fácil um homem ofender sem perceber. Cormorão recomendara-lhe que falasse baixinho e pouco, sobretudo quando fosse convidado para a cabana de alguém da aldeia.

As duas mulheres estavam junto da base do poste, e Qung disse qualquer coisa que Sok entendeu como um cumprimento. Pegou o cesto, tirou dois colares de osso de pássaro e ofereceu um a cada mulher. Depois, virou-se e olhou à sua volta como se procurasse o marido de Aqamdax.

Trouxe estas coisas em sinal de respeito pelo teu marido. Ele não está? perguntou ele na língua do Povo Rio. Como elas não lhe respondessem, Sok falou na língua dos Morsas:

Marido?

Não há marido disse Qung, falando também na língua dos Morsas.

Alguém chamou pelo buraco do telhado e, aliviado, Sok reconheceu a voz de Tut.

A velha desceu o poste, falou com Qung e depois disse a Sok:

Elas sabem que eu estou aqui para traduzir. O que queres que eu lhes diga?

Diz-lhes que eu já sei que Aqamdax não tem marido. Diz-lhes que eu quero que elas fiquem com estas coisas.

Tut explicou demoradamente o que ele dissera. Qung sorriu, pegou o cesto e pousou-o no chão. Agachou-se junto dele e tirou os seus presentes, soltando exclamações de alegria ao ver cada um como se fosse uma criança.

Sok observava-a, e depois sentiu uma mão na manga da parka.

Queres comer alguma coisa? perguntou Aqamdax, imitando uma tigela com uma mão e levando dois dedos da outra à boca.

Sim. Tenho fome. Sok apontou com os lábios para Qung e para o cesto. Não queres ver o que eu trouxe?

Tut repetiu a pergunta e, com uma expressão sorridente, traduziu a resposta de Aqamdax:

Ela diz que Qung não é gananciosa. Que dará a Aqamdax uma boa parte.

Aqamdax encheu uma tigela de comida que tirou de uma panela pendurada sobre uma lamparina de óleo e estendeu-a a Sok. Ele agachou-se e comeu. Quase todas as mulheres teriam arranjado qualquer coisa para fazer, costurar ou entrelaçar ervas mas Aqamdax agachou-se ao lado dele e ficou observando-o. Aquilo incomodava-o. Continuou a olhar em frente e, quando acabou de comer, deu-lhe a tigela.

A mulher não era delicada. Não lhe ofereceu mais comida nem esperou que ele falasse primeiro. Virou-se e disse qualquer coisa a Tut.

Tut riu outra vez.

Ela diz que não é parva. Ela percebe pelos teus presentes que tu sabias que ela não tinha marido. Por isso pergunta porque estás aqui, já que não vieste para falar com o marido.

Ele reagiu à indelicadeza dela com a sua e respondeu:

Ainda estou com fome.

Tut disse a Aqamdax e Sok ficou à espera de uma carranca ou de palavras desagradáveis, mas Aqamdax não se mostrou ofendida. Levantou-se, encheu-lhe a tigela e entregou-a. Mais uma vez ficou vendo-o comer; mais uma vez ele a ignorou.

Por fim, quando ele terminou, ela falou. Tut afastou-se de Qung, sem se dar ao trabalho de se levantar, arrastando-se como um papagaio-do-mar, com as pernas encolhidas debaixo do corpo.

Aqamdax diz que a mãe dela vive com o Povo Rio disse Tut a Sok.

Antes que Sok pudesse dizer fosse o que fosse, a velha Qung gritou qualquer coisa.

Qung diz que tu não respondeste à pergunta de Aqamdax, traduziu Tut. Ela quer saber porque estás aqui. Porque trouxeste estes presentes?

Gostei das vossas histórias, respondeu Sok.

Isso vale uma barriga de óleo, ou talvez uma pele de foca continuou Qung, parando de vez em quando para Tut traduzir. Ofereceste coisas demais. Isso não se usa nesta aldeia. Aceitamos uma coisa e podes ficar com o resto para negociar.

Um povo rude, aqueles Primeiros Homens, pensou Sok. Depois perguntou a si próprio se seria mais rude dizer o que pensava ou esconder as suas intenções sob um manto de palavras ou um cesto de presentes.

Vim pedir a Aqamdax que volte comigo para a aldeia dos Caçadores de Morsas para ser esposa, explicou ele.

Tut traduziu, e quer Qung quer Aqamdax ficaram boquiabertas. Sok esperou que uma delas falasse, mas nenhuma disse nada.

Por fim, ele disse:

Sei que não é uma decisão fácil. Agora vou-me embora e volto amanhã.

Sem esperar que Tut traduzisse, Sok levantou-se, agradeceu-lhes a comida e saiu do ulax.

O que disse ele? perguntou Aqamdax.

Que volta amanhã para saber a tua decisão, respondeu Tut.

Aqamdax olhou para Qung com um ar preocupado.

Deixarias de ser contadora de histórias para seres mulher de um comerciante? perguntou-lhe Qung.

Aqamdax não conseguiu responder.

 

Aqamdax entrou na baía, primeiro com a água pelos joelhos e depois mais acima. A água cobriu os escassos pelos negros que lhe protegiam o sexo e depois a barriga, até chegar aos seios pequenos e redondos. Por instantes, uma onda a fez desequilibrar-se e o medo obrigou-a a suster a respiração, mas a água pousou-a de novo. Nunca tinha ido tão longe e, como a maioria dos Primeiros Homens, não sabia nadar. Em geral, todas as manhãs ia ao rio, ao pequeno lago que ele escavara no local em que desaguava na baía. Aí, ela e as outras mulheres podiam ficar, com água até aos joelhos, viradas para o sol, jogando água, para se lavar e fortalecer.

Nesse dia fora para a baía, como faziam os caçadores, para desafiar a água mais profunda e o frio agreste que lhe fazia doer os ossos. Escolhera as águas da baía para se preparar para o que tinha que fazer a seguir, não só para endurecer a carne como a alma. De outro modo, como poderia ter esperança de sobreviver? Com certeza que o seu espírito a abandonaria e voltaria àquele sítio que ela amava, às rochas, às plantas e às praias que eram a sua casa.

Então fizeste-lhe a pergunta? Sok fez um sinal afirmativo.

Chakliux viu Sok a dar estalidos com os nós dos dedos da mão esquerda e depois com os da direita.

E então?

Há uma hipótese. Dizem que ela é estéril. Apesar de os seus poderes serem grandes como contadora de histórias, não consegue dar um filho a um marido.

Talvez ela se contente em ser apenas contadora de histórias.

Qual a mulher que não quer ser esposa? Nem uma contadora de histórias pode esperar que os caçadores da aldeia forneçam tanta comida como um marido ou os filhos.

Talvez isso seja verdade, mas às vezes basta um presente. Vale mais do que carne ou óleo, respondeu Chakliux.

Eu disse-lhe que lhe ofereceria muitos presentes, respondeu Sok.

Chakliux desviou o olhar, e nem tentou explicar ao irmão o que quisera dizer com aquilo.

Estavam sentados nas armações dos iqyan, de costas viradas para o vento, e os capuzes protegiam-lhes as orelhas do frio.

Não esperes demais, irmão, recomendou Chakliux.

De súbito, o vento fustigou as armações, jogando-lhes um jato de areia na cara. Chakliux fechou os olhos e apertou o capuz. Tut dissera-lhe que o vento era mais forte ali do que no local em que os Caçadores de Morsas viviam, e os comerciantes afirmavam que ele ainda era mais forte para oeste. Chakliux piscou para afastar a areia dos olhos e depois reparou em alguma coisa que se deslocava na água.

Uma lontra, pensou, empurrando o capuz para trás para ver melhor. A cabeça escura da lontra saiu da água, ergueu-se e transformou-se numa mulher, cujos cabelos negros e brilhantes pareciam obsidiana, moldados como uma peça de roupa aos ombros e aos seios.

Ouviu Sok arfando atrás de si e depois sentiu a mão rija do irmão no braço.

Vira a cabeça, irmão ordenou Sok.

E Chakliux percebeu que as palavras dele não eram por causa de a mulher estar nua. Os Primeiros Homens não se davam tanto ao trabalho de esconder o corpo uns dos outros como fazia o Povo Rio. Era por a mulher estar concluindo algum banho sagrado, uma tradição dos Primeiros Homens, como Tut lhe explicara uma vez.

Mesmo assim, a graciosidade da mulher prendeu-lhe a atenção, e de repente ele percebeu que se tratava da contadora de histórias, Aqamdax. Ela levantou as mãos para o céu e depois baixou-se de novo e enfiou-se na água, onde aparentemente se transformou de novo numa lontra. Sok tinha razão; aquilo tinha algo de sagrado.

Chakliux virou a cabeça e fechou os olhos.

Qung nem levantou a cabeça quando Aqamdax entrou no ulax. A velha estava fazendo um dos seus cestos de erva entrelaçada. Era pequeno, não maior do que um punho fechado. Não era para apanhar nem para guardar nada, era um cesto para os olhos, como diria Qung.

Senta-te aqui, ordenou ela sem desviar o olhar do seu trabalho.

Aqamdax sentou-se ao lado dela.

Presta atenção, disse Qung.

Aqamdax concentrou-se nos dedos hábeis de Qung. O corpo do cesto repousava na sua mão esquerda, e ela segurava as tiras finas da planta cortada entre o indicador e o dedo médio da mão esquerda, enquanto a mão direita as torcia e entrelaçava. Em geral, depois de Qung lhe dizer que prestasse atenção, as duas mulheres ficavam sentadas em silêncio, mas dessa vez Qung começou a falar, e os seus dedos trabalhavam ao ritmo das suas palavras.

Fazer um cesto não é muito diferente de tecer uma história disse ela. As tiras de erva são como as palavras. Cada uma tem o seu lugar; cada uma contribui para reforçar o conjunto. Eu escolho as ervas com cuidado... folhas interiores fortes, secas, lentamente... tal como escolho as minhas palavras. A velha mergulhou os dedos numa pequena tigela de água. Mantenho-as molhadas, para elas se lembrarem como a chuva as fortalece, e assim ficarem fortes quando eu as entrelaço, tal como as histórias se fortalecem com as recordações.

Calou-se de novo, e Aqamdax inclinou a cabeça para ver os dedos de Qung. A velha teceu durante algum tempo; depois parou e virou o cesto sobre uma forma de madeira escavada do mesmo tamanho e formato do cesto. Procurou entre as tiras de erva que tinha a seu lado, escolheu duas, cruzou-as ao meio, enrolou-as uma sobre a outra, entrelaçando-as. Agora eram uma trama. Inseriu uma tira entre elas, enrolou-as sobre ela e continuou a juntar ervas entrelaçadas. Olhou para Aqamdax.

Resolveste ir com os comerciantes, não é verdade? Aqamdax torceu os dedos no colo.

A minha mãe vive com o Povo Rio. Talvez eu a encontre.

Não se referiu ao que Boca e as outras mulheres tinham dito.

Qung fez-se numa bola, pondo os braços em volta dos joelhos erguidos e baixando a cabeça para Aqamdax não lhe ver o rosto. Por fim falou, quase num murmúrio:

Se casares com um comerciante, talvez voltes.

Talvez, todos os anos afirmou Aqamdax. Qung levantou a cabeça.

Não te esquecerás das histórias?

Nunca me esquecerei das histórias.

Fez-se de novo silêncio. Qung passou os dedos pelo cesto que começara e depois, de repente, atirou-o a Aqamdax.

Tens muito que aprender. Observa-me e segue as minhas mãos.

Qung pegou o cesto e começou a tecer. Aqamdax, com os dedos ainda entorpecidos pelo nervosismo, observou, tentando imitá-la. A erva era tão fina, o círculo da trama era tão frágil nas suas mãos. Qung pousou o seu próprio cesto para observar, abanou a cabeça, tirou-lhe o trabalho das mãos e ordenou-lhe que recomeçasse.

Teceram durante toda a tarde, e Aqamdax continuava onde começara. Por fim, Qung verificou o trabalho dela e fez um sinal afirmativo, deixando que Aqamdax continuasse. Em seguida, mostrou-lhe como devia acrescentar mais tiras. Aqamdax continuou trabalhando, apesar de já lhe doerem o pescoço e os ombros e de lhe arderem os olhos.

Chega, disse por fim Qung. Larga isso. O teu homem do Povo Rio não tarda a chegar.

Aqamdax pôs de lado o pequeno círculo entrelaçado que concluíra. Penteou-se, oleou a pele até ficar brilhando e trocou os aventais de erva por aqueles que guardava para as festas, com tiras de cores vivas e que lhe chegavam aos joelhos, um na frente, outro nas costas.

Quando entrou no ulax, Qung olhou para ela, piscou os olhos e disse:

Deram-te um nome apropriado. Aqamdax, amora-da-silva-salmão. Essa planta dá um único fruto bem no cimo do caule. Desse modo, vê tudo, mas também é a primeira a morrer com as geadas do Inverno. Tal como a amora-da-silva-salmão, tu levantas muito a cabeça, tentando sempre ver uma grande parte do mundo à tua volta. Devias ter mais cuidado como o empetro, que se aninha em segurança nos seus ramos de urze.

Aqamdax esperava os cumprimentos de Qung, ou até algumas sugestões sobre o modo como devia lidar com o comerciante do Povo Rio. Depois de ouvir as palavras da velha, ia caindo nos comentários que fizera às esposas de Cantador, mas cerrou os lábios, evitando palavras duras, e respondeu:

Mas, tia, o que é mais saboroso do que a amora-da-silva-salmão depois da primeira geada?

Qung não respondeu.

Ele chegou acompanhado pela velha Tut, uma mulher que Qung não estava ansiosa por ter no seu ulax. Afinal, ela optara por deixar os Primeiros Homens por um Caçador de Morsas, que nem sequer era um bom caçador, segundo Qung ouvira dizer, mas quem podia ter certeza de que os cochichos eram sempre verdadeiros? Ela tinha bom aspecto. Estava velha, mas quem não envelhecia? Só aqueles que morriam cedo.

Era uma mulher de vozes, essa Tutaqagiisix, com uma certa magia na boca que lhe permitia falar as línguas dos comerciantes apenas uns dias depois de os ter ouvido. Qung sempre invejara esse dom. Uma vez, quando era pequena, tentara mesmo trocar uma bugiganga de que muito gostava pelo saber de Tut. Mas esta dissera que não sabia como o fazia como se isso pudesse ser verdade e desse modo Qung também ficara conhecendo a ganância da mulher.

Era bom que ela tivesse ido para os Morsas. Quando uma pessoa permite que a ganância entre na sua vida, ela depressa se espalha. Ninguém precisa de uma mulher que leva mais do que a sua parte de óleo ou de comida, com boa ou má sorte.

Além disso, se Tut tivesse ficado, Qung poderia não ter sido escolhida como contadora de histórias. Como teria ela vivido depois de o marido morrer? Devia muito à decisão de Tut sair daquela aldeia, recordou Qung, e por isso deu-lhe um lugar de honra junto da lamparina a óleo, ao lado do comerciante do Povo Rio que viera tirar-lhe Aqamdax.

Sok perguntara a Tut quais os hábitos de delicadeza seguidos pelos Primeiros Homens. Silêncio, dissera-lhe Tut. Sossego. A princípio, Sok sorrira, julgando que ela estava gracejando. Qual o homem que entra numa cabana e se mantém calado? Para que se juntavam as pessoas senão para comer e falar? Mas Tut repetira a sua afirmação e depois acrescentara:

Que melhor maneira de mostrar respeito pelos pensamentos de outra pessoa do que através do silêncio? Achas que é delicado cobrir esses pensamentos com as tuas próprias idéias? O que há de delicado nisso?

Era uma estranha maneira de pensar, mas Sok compreendia que um povo acabasse por acreditar em tal coisa. Houvera momentos em que ele precisara sair da sua própria cabana, nem que fosse para se afastar das muitas palavras de Folha Vermelha, da sua necessidade de preencher todo o espaço que o rodeava com as suas canções, a sua tagarelice e os seus contatos físicos constantes.

Por isso naquele momento, ao ocupar o lugar indicado por Qung, ele deixava-se conduzir por Tut, esperando que o olhar dela lhe dissesse quando devia falar. A princípio, o silêncio o fez sentir-se pouco à vontade. Sok ouvia-o melhor do que a alguém que estivesse gritando. Depois, começou a observar o ulax, as lamparinas de pedra onde ardia óleo, fazendo uma chama quase sem fumaça que deixava o ambiente do ulax mais nítido do que nas cabanas do Povo Rio. Examinou as esteiras de erva entrelaçada que estavam penduradas em armações de madeira à volta do grande espaço central. Segundo Tut lhe explicara, por trás daquelas esteiras havia lugares separados para dormir. O teto estava coberto de erva e de esteiras de erva seguras por ripas de madeira flutuante e ramos de salgueiro. O chão estava atapetado com erva. Nos sítios em que as cortinas das camas não lhe impediam a visão, Sok verificou que fora cavada uma vala no chão, com um palmo de profundidade, junto das paredes de terra, e perguntou a si próprio se durante o ano, talvez na Primavera, quando a neve derretia, as paredes não deixariam entrar água.

Agora, no Verão, o ulax parecia seco e quente, bastante resistente para suportar os ventos fortes que muitas vezes varriam a praia.

Por fim, Qung falou, pronunciando algumas palavras. Tut respondeu, mas não se incomodou a traduzir. Tut dissera-lhe que falariam do tempo, de acontecimentos insignificantes na aldeia, tal como o Povo Rio fazia quando alguém o visitava. Depois se sentariam comendo e, quando terminassem, Tut abordaria o assunto do dote.

Aqamdax sentou-se tranqüilamente num lugar que parecia cheio de montes de ervas secas. Aquilo que as mãos dela estavam fazendo era tão pequeno que Sok nem conseguia ver. Talvez ela estivesse começando um dos cestos de erva em que as mulheres da aldeia trabalhavam, mas aquele parecia muito pequeno. Sok calculava que todos os cestos começassem por ser pequenos, evidentemente, apesar de não prestar muita atenção às mulheres nem aos seus cestos.

Aqamdax era alta, mais alta do que Folha Vermelha, mas mais pequena e estreita de ossos, embora a maior parte das mulheres dos Primeiros Homens fosse entroncada. Usava os cabelos compridos e soltos por trás das orelhas. Tinha um rosto redondo e uns olhos grandes.

Qung e Tut conversaram durante muito tempo. Por fim, Qung disse qualquer coisa a Aqamdax. A jovem levantou a cabeça e Sok sentiu o calor dos olhos dela na sua face. O seu corpo endureceu de desejo, mas ele lembrou-se de que ela estava destinada a ser esposa de Yehl.

Aqamdax levantou-se e encheu uma tigela de carne escura e adocicada de leão-marinho. Qung ofereceu comida a Tut e em seguida as duas mulheres dos Primeiros Homens serviram-se e sentaram-se a comer. Tut dissera-lhe que, em certas aldeias, os homens comiam primeiro e as mulheres depois, mas ali as mulheres comiam muitas vezes com os seus homens e isso não era considerado uma indelicadeza. Tal não seria possível com o Povo Rio, sobretudo durante as luas de escassez do fim do Inverno, quando a vida das pessoas dependia da força dos seus caçadores.

Depois de todos acabarem de comer, Tut falou com Qung e depois disse a Sok:

Agora tens de fazer a pergunta.

Por instantes, ele não viu as mulheres sentadas a seu lado, mas apenas o rosto pequeno e os olhos grandes de Neve-no-Cabelo. As palavras que ensaiara vieram-lhe à mente e Sok falou de Yehl, do xamã dos Morsas, da força e da sabedoria do homem. Falou dos presentes que Aqamdax e Qung receberiam e do lugar de honra que Aqamdax ocuparia na aldeia dos Caçadores de Morsas como contadora de histórias, e, enquanto ele falava, Tut traduzia as suas palavras para Qung e Aqamdax.

Chakliux caminhava à beira da praia. Nessa noite, Sok iria saber se a contadora de histórias iria ou não com eles. Chakliux abanou a cabeça. Porque ela iria? Tinha todos os motivos para ficar ali, com o seu povo, a sua família. Sok era estúpido ao pensar que poderia conquistá-la, mas para quê queixar-se da estupidez de Sok? Ele dera a Chakliux uma oportunidade de ir àquela aldeia dos Primeiros Homens estudar os seus iqyan, observar o modo como remavam e pensar na maneira de tornar o seu iqyax mais resistente e de aperfeiçoar as suas técnicas. Dois homens tinham-no mesmo levado à caça de lontras-marinhas. Haviam lhe emprestado dardos especiais para usar no seu lançador e tinham-no deixado ser o primeiro a atirar quando encontraram um grupo de lontras. Haviam voltado com duas e oferecido generosamente a Chakliux os dentes dos animais.

Eram boa gente, aqueles Primeiros Homens, cheios de anedotas e de risos, com vozes ricas e fortes que cantavam quando eles estavam nos iqyan. Chakliux ouvira dizer que não eram totalmente humanos, mas, agora que os conhecia melhor, pensava que os que faziam tal afirmação estavam errados. Talvez outros Primeiros Homens, mais para oeste, nas ilhas do fim do mundo, não fossem tão humanos, mas aqueles eram tão humanos como ele. Olhou para o seu pé de lontra e depois riu. Quantos julgariam que ele não era humano? Até Mirtilo. Até as crianças da aldeia em que crescera.

O céu estava escurecendo, anunciando a curta noite de Verão. Chakliux deu meia volta e regressou ao abrigo que Sok e ele partilhavam com os comerciantes dos Morsas. Avistou a fogueira à entrada. Perguntou a si próprio se Sok já voltara do ulax da contadora de histórias. Fosse o que fosse que tivesse acontecido, em breve partiriam da aldeia e regressariam aos Caçadores de Morsas. Suspirou. Que estranho! Apesar de não saber a língua deles e de não ter mulher nem família ali, tinha vontade de ficar.

Aqamdax franziu a testa. Disse algo coisa a Qung e esta falou com Tut.

Sok inclinou-se para Tut. Ela está zangada? perguntou ele. Tut apontou para ele. Sok cerrou os punhos. Por tudo o que Tut estava dizendo-lhe, ele podia nem sequer estar ali. Apontou mais uma vez para a pilha de mercadorias que trouxera como dote. Tinha coisas que ainda podia oferecer, presentes que guardara para o caso de Qung e Aqamdax precisarem de mais persuasão.

Começou a levantar-se. Tenho mais coisas. Na minha tenda. Tut, ainda falando com Qung, olhou para ele. Senta-te e fica quieto ordenou ela, como se ele fosse uma criança.

Sok teve que morder as bochechas para manter a boca fechada apesar da sua fúria. Havia um problema, mas como podia ele evitá-lo se Tut não lhe dissesse do que se tratava? Julgaria ela que sabia mais do que ele? Era um homem habituado a regatear nos negócios, a lutar com as palavras. O que sabia ela? Era apenas uma velha.

Gostaria de ter levado Chakliux com ele. O irmão aprendera depressa a língua dos Morsas e, apesar de não conseguir manter uma longa conversa, sabia o suficiente para dar a conhecer as suas necessidades. Talvez, durante os poucos dias que ali tinham passado, ele também tivesse aprendido algumas palavras dos Primeiros Homens, pelo menos para adivinhar o que estava se passando. Mas Sok receava que, se Chakliux viesse, contasse com uma parte do pagamento do xamã dos Morsas, e depois talvez Sok não ficasse com o suficiente para dar a Lobo-e-Corvo por Neve-no-Cabelo.

A mãe de Aqamdax saiu desta aldeia com um comerciante do Povo Rio. Aqamdax pergunta se podes ajudá-la a encontrar essa mulher. Ela chama-se Daes.

Posso tentar.

Tut falou com Qung durante muito tempo, mas Qung pouco disse, cerrando os lábios como que para poupar as palavras.

Por fim, Tut suspirou e disse a Sok:

Não posso fazer melhor.

Eu disse-te que tenho mais coisas. Tut abanou a cabeça.

Qung diz que o que ofereceste é suficiente. Ela diz que guardes o resto para tomares bem conta da tua mulher.

Falaste-lhe de Folha Vermelha? perguntou Sok. O sorriso lento de Tut fê-la mexer apenas um lado da boca.

Aqamdax irá contigo, mas não como esposa de Yehl. Irá apenas como tua esposa explicou ela a Sok.

Sok não conseguiu disfarçar a surpresa. Olhou para Aqamdax e esta levantou-se. A luz da lamparina brilhava na sua pele untada, projetando um clarão vermelho nas pontas escuras dos seios e na cascata macia do cabelo. Os seus olhos cobertos de sombras eram buracos escuros no círculo suave do rosto.

Ela estendeu-lhe o braço. Lentamente, ele pegou-lhe a mão e sentiu os seus dedos longos e esguios.

Não há cerimônia? perguntou Sok a Tut.

Não há cerimônia? Ela abanou a cabeça.

Basta ir com ela respondeu a velha.

Fitou-o, e Sok viu as perguntas no rosto da velha, mas olhou para Aqamdax e afastou essas perguntas da sua mente. Teria tempo de pensar em Yehl, de decidir o que faria.

Foi atrás de Aqamdax para a cama dela.

Aqamdax não conseguiu olhar para Qung quando levou o comerciante do Povo Rio para a sua cama. Talvez Qung pensasse que ela aceitara ser esposa só para levar aquele homem para o meio dos seus cobertores. O que mais ela pensaria, considerando o modo como Aqamdax vivera antes de ser contadora de histórias?

Mas aquilo não era a mesma coisa. Agora ela podia ser respeitada como esposa. Era também a sua oportunidade de encontrar a mãe e, como a sua intenção era honesta, talvez um dia conseguisse gerar filhos.

Qung teria de escolher outra pessoa para lhe suceder como contadora de histórias. Seria com certeza mais respeitável do que Aqamdax, e, se os salmões tivessem sido ofendidos por ela, veriam agora que os Primeiros Homens estavam de novo fazendo as coisas de um modo respeitável.

O comerciante do Povo Rio chamava-se Sok. Tut disse-lhe que o nome significava ”crocitar do corvo”. Era um bom nome para ele, um nome forte. Ele era um homem possante, com os músculos dos braços e do peito grossos e pesados. Tinha o nariz grande e bicudo que ela vira noutros comerciantes, lábios cheios e olhos profundos, cabelos escuros e espessos que ele usava em duas tranças curtas e espetadas. As vezes, punha ornamentos nos lobos das orelhas mas, ao contrário dos Primeiros Homens, não usava alfinete no nariz.

Sok pronunciou ela em voz baixa, tocando-lhe no rosto. Os seus olhos ainda não tinham se adaptado à escuridão do lugar, mas ela sentiu-o sorrir.

Chamo-me Aqamdax disse ela. Pôs a mão no peito e pronunciou outra vez: Aqamdax.

 

 

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Ficou à espera que ele repetisse o seu nome, mas Sok não o fez, e por qualquer motivo ela ficou desapontada. És parva, disse ela consigo própria. Agora és esposa; porta-te como tal. O pensamento a fez estremecer de alegria. Inclinou-se para a frente e meteu as mãos debaixo da parka dele. Era uma parka bem feita, tão boa como outras que ela vira, e Aqamdax perguntou a si própria se ele teria outra esposa. Segunda esposa seria melhor do que nada, pensou ela. É claro que, como ele era comerciante, talvez a tivesse comprado numa aldeia onde as mulheres se orgulhassem dos seus dotes de costura.

Aqamdax passou-lhe as mãos pelos lados do corpo e depois em volta do peito. A pele dele estava quente. De repente, ele cruzou os braços, pegou a parte de baixo da parka e despiu-a pela cabeça. Ficou sentado, sem se mexer. Em seguida, deitou-se de costas nos cobertores de pele de raposa e puxou Aqamdax. Encostou o seu rosto ao pescoço dela e começou a lambê-la. Aqamdax fechou os olhos e perdeu-se no prazer do seu contato. Pôs-lhe as mãos nas coxas e ouviu a respiração suave dele. Depois, sentiu as mãos dele no seu corpo, mexendo-se muito depressa, com uma grande premência.

Mais uma vez, Aqamdax não se entregou ao desapontamento. A maioria dos homens tinha pouca paciência para as carícias suaves e lentas que ela apreciava. Ele desejava-a nesse momento, e era seu marido. Ela levantou o corpo e montou-o. As mãos dele agarraram-lhe as ancas e empurraram-na para baixo. Ela começou a mexer-se, esperando dar-lhe prazer, esperando dar-lhe alegria.

Qung tentava escutar Tut em vez do barulho que Aqamdax e o comerciante faziam atrás das cortinas da cama. O que havia de mais respeitável do que a união de marido e mulher?, perguntou a si própria, enquanto a tagarelice de Tut enchia o ulax. O que havia de melhor para Aqamdax do que ter um marido só dela? Talvez ele até a ajudasse a encontrar a mãe. Não era, evidentemente, que Daes merecesse ter tal filha, não, mas todos os filhos precisam de uma mãe, e, apesar de Aqamdax ser crescida, qual a mulher que às vezes não era uma criança?

Sim, era melhor. E seria bom ficar com o ulax só para ela outra vez, saber que aquilo que ela punha na despensa ainda estaria lá quando voltasse. Como era agradável não ter receio do falatório das mulheres! Quem criticaria Aqamdax por se tornar esposa e quem criticaria o belo dote que Sok oferecera por ela? Era mais do que Rompe-o-Dia dera por Sorridente. Sim, era bom, muito bom.

Agora, se Tut fosse embora e a deixasse sozinha para ela verter umas lágrimas tontas...

Na manhã seguinte, Chakliux entrou no mar da baía até a água lhe chegar às coxas. Já se banhara em água fria. Rio Primo nunca estava quente e muitas vezes ele nadava até às profundezas. Lembrou-se que a diferença que sentia era a mesma de uma lontra do rio entrando no mar pela primeira vez. Mergulhou rapidamente, agachou-se e depois meteu a cabeça debaixo d'água, embrenhando-se no frio com braçadas fortes até atingir o fundo, sentindo o impulso das ondas quando passavam por ele e a força da corrente paralela à costa. Nadou até os pulmões lhe doerem e depois regressou à claridade.

A sua cabeça saiu da água a uma certa distância do local em que mergulhara, mais perto da praia, onde dois caçadores dos Primeiros Homens andavam com a água pelos joelhos. Um disse qualquer coisa a Chakliux, mas ele não o entendeu. Pousou os pés no fundo e pôs-se de pé.

Não entender, disse ele na língua dos Morsas.

Tu falas a língua dos Morsas, afirmou o outro caçador.

Pareciam irmãos, mas Chakliux não tinha certeza. Muitos dos Primeiros Homens pareciam iguais.

Um pouco, disse Chakliux.

Tu és aquele a quem chamam lontra, observou o caçador.

Chakliux ficou admirado. Não sabia o que os Morsas ou os Primeiros Homens lhe chamavam.

As pessoas não nadam. Tu deves ser uma lontra.

Qualquer pessoa pode nadar.

Os homens riram e começaram a dirigir-se para a praia. Chakliux foi atrás deles. Quando chegou junto das suas roupas, esfregou os braços e as pernas com o forro de pele de lebre de uma das suas botas e reparou que os Primeiros Homens só tiravam a água do corpo com as mãos, e ele fez o mesmo.

Vestiu as perneiras. O couro colou-se à pele molhada. Calçou as caneleiras e as botas e vestiu a parka. Alguém o chamou. Era Sok. Tut acompanhava-o; não, não era Tut. Tut não vestia roupas dos Primeiros Homens. Era Aqamdax, a contadora de histórias.

Quando Chakliux se aproximou, Sok pôs o braço por cima dos ombros da mulher. Chakliux olhou bem de frente para o irmão. Sok passara toda a noite fora e agora comportava-se como se a contadora de histórias fosse sua mulher. Em muitas aldeias, as pessoas ficariam ofendidas por ter entre si um homem tão descuidado nos seus contatos físicos.

Ela é minha, declarou Sok, sorrindo.

Ela aceitou vir conosco para os Caçadores de Morsas?

Sok riu.

Ela é minha esposa.

Quando Cormorão e Pena Vermelha, os comerciantes dos Caçadores de Morsas, viram a mulher, ficaram encantados.

E quando Cormorão e Pena Vermelha souberem que ela é tua mulher? Quando a levares para a tua cama, agora ou esta noite? Estás preparado para as facas deles? perguntou Chakliux a Sok, enquanto os comerciantes festejavam e Aqamdax olhava, sorrindo e rindo.

Eu fiz a minha parte, respondeu Sok. Comprei a mulher e ela prometeu vir conosco para a aldeia dos Caçadores de Morsas. Julgas que foi fácil? Tu é que vais ter que participar aos comerciantes dos Caçadores de Morsas. Afinal, como é que eu posso falar com eles? Não sei a sua língua.

Chakliux ficou irritado. A estupidez de Sok podia custar-lhes a vida.

Nesse caso, irmão, talvez eu lhes diga o que eles querem ouvir disse Chakliux. Que tu conseguiste a mulher para o xamã deles. Serás tu a decidir se te deitas ou não com ela. É a ti que cortarão o pescoço se o fizeres.

Não podes dizer-lhes isso. Tut ouve e vai contar-lhes. Chakliux encolheu os ombros.

Mesmo assim, antes a tua vida do que a minha. Sok pôs as mãos nos ombros de Chakliux.

Pedi-lhe para ser mulher do xamã e ela recusou. Só aceitaria vir como minha esposa.

Pelo menos isso nos dá um ponto de partida, disse-lhe Chakliux. Eu vou à procura de Tut. É melhor pedirmos-lhe conselho e confiarmos nas palavras dela e não nas minhas para explicar tudo isto. Tenta não tocar na Aqamdax até eu voltar.

Ao afastar-se, julgou sentir o olhar da contadora de histórias nas suas costas, mas talvez fosse apenas Gguzaakk à espera de ver o que iria acontecer.

Foi encontrar Tut no ulax do chefe dos caçadores. A voz da velha sobrepunha-se à tagarelice das esposas. Chakliux chamou-a pelo buraco do telhado. Tut convidou-o a entrar e ele aceitou, admirado com o tamanho do ulax ao descer o poste. Estava limpo e bem tratado, com o chão coberto de longas faixas de ervas secas e os pavios da lamparina a arder com pouco fumo. Folhas e raízes entrançadas, e por vezes plantas inteiras, pendiam das altas vigas do teto.

Eles sabiam construir cabanas, aqueles Primeiros Homens.

Chakliux ficou à espera junto da escada, tentando chamar a atenção de Tut, mas ela não olhou para ele. Ela sabe que eu quero que ela venha comigo, pensou ele, mas não quer abandonar as mulheres. Porque quereria?

Chakliux pensou nas vezes que se lembrara da sua aldeia, do seu povo. Sentia a falta da sabedoria dos velhos, das suas histórias de caçadas e de Invernos rigorosos. Tut também devia ter sentido a falta do povo daquela aldeia.

Por fim, a mulher mais velha disse qualquer coisa a Tut e apontou com o queixo para uma zona do ulax separada por uma cortina. Tut abanou a cabeça. Em seguida, levantou-se e aproximou-se do poste.

Olhos-de-Erva quer saber se tens fome.

Preciso que venhas comigo disse ele.

Agora?

Sim. Desculpa, mas o meu irmão fez uma coisa que pode causar-nos problemas.

Aceitou a contadora de histórias como esposa.

Já sabias?

Eu estava lá quando ele lhe fez o pedido.

Há mais alguém na aldeia que saiba isso?

Julgas que uma coisa como essa poderia manter-se secreta durante uma noite inteira?

Essas mulheres, o que pensam?

Estão contentes, respondeu Tut. Dizem que ela será uma boa esposa. Querem saber se vocês a levam para junto do Povo Rio ou se o teu irmão ficará aqui vivendo conosco.

Ele tenciona levá-la. Tut encolheu os ombros.

Então, qual é o problema? Chakliux baixou a voz.

Tut, sabes que os comerciantes dos Caçadores de Morsas vieram buscá-la para ela ser esposa do seu xamã.

E Sok ainda não lhes disse que é o marido dela?

Não.

Tut atirou a cabeça para trás e deu uma gargalhada.

E eu é que tenho de me preocupar com isso?

Tut, vem, por favor.

Tu falas a língua. Diz-lhes.

Tu arriscavas uma coisa como esta aos meus fracos conhecimentos da língua deles?

Tut lançou-lhe um olhar carrancudo. Depois suspirou e virou-se. Disse qualquer coisa às mulheres dos Primeiros Homens e depois fez sinal a Chakliux para que subisse o poste. Ele ficou à espera no topo do ulax, e por fim ela apareceu. Ele ajudou-a e depois ela afastou-se dele, batendo com os pés no chão como uma criança amuada. Por fim, perguntou:

E o que queres que eu lhes diga?

Diz-lhes a verdade respondeu Chakliux. Diz-lhes que ela não iria se não fosse esposa de Sok e que fica ao cuidado do xamã dos Morsas conquistá-la com presentes e promessas quando chegarmos à aldeia deles.

Tut fez um sinal afirmativo e não disse nada até chegarem à tenda dos comerciantes.

Chakliux ouviu a voz de Aqamdax quando se aproximaram da tenda e, apesar de ela falar na língua dos Primeiros Homens, percebeu pela cadência das suas palavras que estava contando uma história. A sua voz aumentou de tom quando eles entraram, apesar de a contadora de histórias não sair do centro do abrigo. Os comerciantes dos Caçadores de Morsas estavam sentados, escutando-a, tal como Sok, com o rosto enrugado por um sorriso. Quando viu Chakliux, explicou:

Ela está contando-nos uma história. Vê a força que ela tem. Escuta.

Ela falou com muitas vozes, e o seu rosto brilhava com as suas palavras; o seu corpo mexia-se ao ritmo da conversa. Admirado, Chakliux sentiu o sexo endurecer de desejo, e por fim fechou os olhos para não a ver. Era um disparate desejar a mulher do irmão.

Depois, na escuridão, ouviu Tut falar aos comerciantes dos Caçadores de Morsas do casamento de Sok. Para sua surpresa, os homens pareciam pensar que Sok agira bem. Chakliux não percebeu se eles esperavam que Sok a desse a Yehl assim que regressassem à aldeia dos Caçadores de Morsas. E Sok? Estaria disposto a cedê-la depois de ela lhe pertencer?

Durante duas noites, Sok e Aqamdax ficaram no ulax de Qung e dormiram na cama de Aqamdax. Nessas noites, Aqamdax acordou muitas vezes, umas para corresponder ao amor do marido do Povo Rio, mas quase sempre porque algo nos seus sonhos lhe lembrava que era esposa. Acordava e ouvia a respiração de Sok, o ruído que ele fazia a dormir. A palavra ayagax esposa? vinha-lhe à mente, e parecia-lhe que Sok respirava ao ritmo dela: ayagax, ayagax.

Depois, o seu coração encheu-se como se fosse um wyux, mantendo o seu espírito na superfície, erguendo-a da escuridão dos anos desde a morte do pai.

No terceiro dia, Tut chamou-a de lado, sentou-se com ela no exterior do ulax de Qung, ao abrigo do vento, e ambas rasparam peles de leão-marinho. Trabalhavam em silêncio, gozando o sol do Verão, o som do vento na erva do telhado do ulax, o ruído das crianças brincando. O raspador de Aqamdax estalava no meio do silêncio que reinava entre elas, e ela tinha a certeza de que Tut também ouvia e compreendia a sua alegria: ayagax, ayagax. Por fim, Tut perguntou:

Sabes que eles tencionam partir amanhã?

A pergunta pareceu prender-se na ponta entalhada do raspador de Aqamdax, e as suas mãos foram obrigadas a parar.

Amanhã?

Regressam aos Caçadores de Morsas, e depois o teu marido e o irmão vão para o Povo Rio.

Aqamdax pensou na mãe, foi buscar a recordação difusa do seu rosto, e as suas mãos começaram de novo a mexer-se. Encostou-se em peso ao raspador, tirou uma tira fina de membrana da pele e viu-a afastar-se a pairar, apanhada pelo vento.

Então talvez eu encontre a minha mãe, afirmou Aqamdax, falando com convicção para Tut não pensar que ela lamentava ter resolvido casar-se.

Durante muito tempo, Tut não disse nada, e Aqamdax deixou que o seu olhar abandonasse o que as mãos estavam fazendo e pousasse nas pequenas coisas familiares que via daquele lado do ulax de Qung. O tufo de amoras-da-silva-salmão junto do ulax de Chama-Peixe; as rochas vulcânicas negras que Cantador guardava como recordação dos avós e dos bisavós; a longa fila de cestos de erva de Qung, virados ao contrário, nos estrados de seca.

Aqamdax falou com os seus olhos, disse-lhes que vissem e recordassem, disse aos seus ouvidos que não se esquecessem do som do mar naquela praia. Depois, com palavras suficientemente duras para afastar a tristeza, lembrou a si própria: És uma esposa! Um dia, voltarás. Trarás os teus bebês para ouvirem as histórias de Qung.

Qung está velha, solta, insistiu o pensamento, mas Aqamdax afastou-o. Qung era forte, apesar da sua idade. Viveria para ver os filhos de Aqamdax. Não seria fácil despedir-se da velha, mas Aqamdax tinha que se lembrar do que lhe fora dado. Um marido forte, uma nova casa e a oportunidade de voltar a ver a mãe.

Se tens perguntas a fazer, faz agora, ordenou Tut. Não terás ninguém a quem as fazer depois de saíres daqui. Na aldeia dos Caçadores de Morsas ninguém fala bem a língua dos Primeiros Homens. Sempre foram os Primeiros Homens falando as duas línguas. Apesar de nenhum comerciante a saber. Por isso pergunta, e eu farei o que puder para responder.

Aqamdax pousou o raspador e olhou para a mulher. Tut estava velha, mas mantinha-se direita e as mãos não denunciavam a artrite que prende as articulações e entorta o corpo. Aqamdax julgava que a mulher voltaria para a aldeia dos Caçadores de Morsas com eles, e ao saber da sua decisão sentira um súbito mal-estar no estômago.

Não regressas aos Caçadores de Morsas? perguntou ela.

O meu marido dos Caçadores de Morsas morreu. A minha filha casou com um caçador dos Primeiros Homens e vive numa aldeia um ou dois dias a oeste daqui. É melhor eu ficar aqui, com os meus irmãos, com a minha família dos Primeiros Homens.

Nesse caso, ficarei sozinha afirmou Aqamdax, em voz baixa, como se falasse consigo própria.

Vais gostar da aldeia dos Caçadores de Morsas, disse-lhe Tut. As pessoas são boas. Serão uma nova família para ti.

Talvez eu não fique lá muito tempo declarou Aqamdax. O meu marido em breve voltará à sua aldeia do Povo Rio.

Sabes que o xamã dos Morsas pediu que fosses esposa dele? perguntou Tut.

Sei, mas agora Sok é meu marido. Não ficarei com os Morsas respondeu Aqamdax.

Eu digo-lhe isso por ti. Tenho certeza de que ele vai compreender.

Aqamdax pegou o raspador e depois largou-o outra vez.

Não o acompanharei, se ele tenciona entregar-me ao xamã dos Morsas.

As suas palavras eram determinadas, mas Aqamdax sentiu uma náusea interior, como se alguma coisa estivesse a devorar-lhe o coração. Sok a teria aceitado só para que ela o acompanhasse e depois ele se visse livre dela, quando ela estivesse longe do seu povo e já não fosse a contadora de histórias da aldeia? Lembrou-se das mãos dele no seu corpo, da força dos braços dele à sua volta. Não, ele não a trocaria. Já tinham criado aquele vínculo forte que se forma entre marido e mulher. Ela não tinha motivos para se preocupar.

Há mais alguma coisa que eu possa perguntar-lhe?

Sabes se ele tem outras esposas? Tut ficou pensando.

Ele tem dois filhos, afirmou ela. Fala muitas vezes deles. Ainda são pequenos mas já vão à caça.

Então eu sou segunda esposa.

Talvez.

Perguntas-lhe o que espera o Povo Rio de uma segunda esposa? Não quero ofender ninguém.

Eu faço-lhe essas perguntas por ti. E pergunto-lhe que outras coisas deves saber acerca dos costumes do Povo Rio.

Aqamdax fez um sinal afirmativo mas não disse nada. Trabalharam em silêncio, as duas juntas. Aqamdax tentou pensar noutras coisas para perguntar a Tut, mas os seus pensamentos eram como os pequenos farrapos de carne que ela raspava da pele de leão-marinho, levados rapidamente pelo vento.

 

ALDEIA DE RIO PRÓXIMO

Ghaden ouviu o ruído das botas do assassino, o tilintar dos chocalhos de casco de caribu como aqueles que as bailarinas usavam nas festas. Abriu a boca para gritar, mas não teve palavras, nada lhe saiu a não ser um gemido silencioso que mais parecia o vento do que a sua voz. De repente, um cão ladrou, foi no encalço daquele que tinha a faca e, em vez do tilintar, Ghaden ouviu a voz de Água Castanha, alta e irritada.

Yaa, põe esse cão lá fora.

Ghaden respirou fundo. Estivera sonhando. Estava a salvo na cabana de Água Castanha. Yaa desembaraçou-se dos seus cobertores de pele de lebre. Ghaden sentiu o calor do corpo dela afastando-se do seu e ouviu-a ralhando em voz baixa com Mordedor quando abriu a aba para deixá-lo sair. Pouco depois, sentiu o cão voltar. Yaa aconchegou-se a seu lado nas esteiras da cama, trazendo com ela uma corrente de ar frio, o cheiro fresco lá de fora e o zumbir dos mosquitos.

Mordedor deixou-se cair aos pés de Ghaden. O rapaz sentou-se e acariciou a cabeça do animal, deixando que ele lhe lambesse a mão com a língua quente. Durante muito tempo, Ghaden ficou sentado às escuras, afagando a cabeça do cão. Quando por fim se deitou, adormeceu facilmente e, nessa noite, não voltou a sonhar.

Ghaden abanou a fiada de contas de osso e depois bateu no chão da cabana com um pau até Mordedor começar a latir.

O rapaz latiu também, fazendo a expressão mais feroz de que foi capaz e tentando mostrar a Mordedor que tinha de se preparar para a luta.

Abanou as contas mais uma vez e depois atirou-as para o chão, rosnou-lhes e bateu-lhes com o pau. Mordedor saltou sobre as contas, abocanhou-as, atirou-as para trás da cabeça e latiu.

Parecia um latido feroz, mas Mordedor não tinha um aspecto ameaçador. Era como se estivesse brincando. Era um cão que parecia estar sorrindo, se é que os cães sabiam sorrir. Latir seria suficiente para assustar o assassino se ele voltasse outra vez, fazendo tilintar os chocalhos de osso?

Ghaden e Mordedor faziam tanto barulho que o rapaz nem ouviu Água Castanha entrar na cabana, nem reparou que ela estava atrás dele senão quando a mulher o agarrou pelo ombro. Ficou tão assustado que a princípio julgou tratar-se do assassino. Gritou e voltou-se, com o pau na mão, pronto a bater. Ao mesmo tempo, Mordedor atirou-se a Água Castanha, de dentes arreganhados. De repente, Yaa aproximou-se, com as mãos no pescoço de Mordedor, com os dedos enfiados no pêlo do cão, afastando-o de Água Castanha.

Quando Ghaden percebeu que fora Água Castanha que o agarrara, deixou cair o pau e agachou-se, protegendo a cabeça com as mãos.

O que estavas fazendo? perguntou ela, levantando a mão, mas sem lhe bater.

Ensinando o Mordedor respondeu Ghaden com uma voz débil, tentando sufocar um soluço que ameaçava entrecortar-lhe as palavras.

Estás fazendo tanto barulho que Neve Preguiçosa veio ver o que se passava. Ela tem o nariz comprido. Não precisamos dele cá dentro da nossa cabana. Brinca sem fazeres barulho disse Água Castanha, baixando a mão.

A mulher olhou para Yaa.

Onde estavas?

Disseste-me para ir buscar madeira.

Bem, onde está ela?

Lá fora.

Traz para dentro, disse ela a Yaa. Quando acabares, leva o rapaz e vai fazer qualquer coisa com ele. Creio que já tem forças para passar mais tempo lá fora. Leva também o cão.

Yaa saiu e Ghaden encolheu-se para fugir da mão pesada de Água Castanha, mas ela limitou-se a apontar com o queixo para as esteiras enroladas da cama e ordenou:

Senta-te até Yaa acabar o que tem para fazer. Ghaden aproximou-se do cobertor da sua cama e sentou-se. Estava tão bem enrolado que parecia um toro grosso e felpudo. Mordedor sentou-se ao lado dele e Ghaden começou a acariciar as orelhas do cão. Ia a colocar o dedo na boca, mas depois arrependeu-se. Porque havia de dar a Água Castanha motivos para gritar?

Yaa levou tempo buscando a madeira. Sabia que Água Castanha iria para as lareiras da comida dentro de pouco tempo e então ela e Ghaden poderiam ficar com a cabana só para eles. Mas Água Castanha também parecia não estar com pressa. Yaa já levara quase toda a lenha para dentro quando a mulher saiu. Pegou outra mão-cheia e viu Água Castanha desaparecer na direção das lareiras da comida. Depois entrou.

Ghaden estava sentado com um braço por cima de Mordedor. O cão já atingira quase todo o seu tamanho, apesar de ter ainda a flacidez de um filhote. Yaa reparou que, assim que Água Castanha saíra da cabana, Ghaden colocara o dedo na boca.

Então, Ghaden, Água Castanha diz que podes sair. Há muito tempo que não brincas com os teus amigos. Não queres ir à procura de Peixe Pequeno e de Lança?

Não.

Porquê?

Ghaden encostou a cabeça em Mordedor.

O Mordedor também pode ir?

Se ele se afastar dos outros cães.

Ele afasta-se.

Porque vocês estavam fazendo tanto barulho? Ghaden tirou o dedo da boca e sorriu.

Eu estava ensinando o Mordedor a ser feroz.

Com isto?

Yaa apanhou a fiada de contas do chão. Agitou-as e Mordedor rosnou.

Ghaden riu e abraçou o cão.

O velho dos ossos não nos apanhará, declarou ele.

Quem é o velho dos ossos? Ghaden enfiou o dedo na boca.

É segredo disse ele, quase imperceptivelmente. Não posso dizer-te.

Ghaden sentiu-se pequeno ao chegar lá fora. Mais pequeno do que era dentro da cabana. E a aldeia parecia-lhe estranha, demasiado silenciosa. Quase todas as pessoas estavam no pesqueiro, mas Água Castanha resolvera não ir nesse ano. Dizia que era uma longa caminhada para ela. Ele ainda não tinha forças e ela obrigava-o quase sempre a ficar lá dentro. O Verão não fora bom.

Até Yaa o tratava como se ele fosse um bebê. Quando saíam, ela besuntava-lhe a cara com gordura de ganso para afastar os insetos e obrigava-o a calçar as botas de pele de caribu, apesar de ele querer ir descalço como ela.

Ghaden foi atrás dela até aos limites da aldeia. Pararam numa clareira junto da margem íngreme que descia até ao rio. Os rapazes mais velhos estavam jogando com uma bexiga de caribu que passavam uns aos outros, tentando evitar que ela tocasse no chão. Ghaden observava-os, extasiado. Tanto ele como Yaa tinham que segurar Mordedor para ele não se intrometer no jogo.

Vários dos rapazes mais pequenos foram ao encontro de Ghaden, tentando convencê-lo a ir brincar, mas Yaa não podia deixá-lo ir. Ghaden virou-lhes as costas e Primeiros Pés, um rapaz com cerca de cinco Verões, começou a chamar-lhe nomes.

Olha que o meu cão te morde! gritou Ghaden Mordedor arreganhou os dentes, mas Yaa tapou-lhe o focinho com a mão. Depois, levou Ghaden e o cão para as lareiras da comida, onde a mãe deu a ambos um pedaço de carne.

Queres voltar para a cabana? perguntou Yaa a Ghaden.

Não.

Queres ficar vendo os rapazes?

Não.

Yaa ajoelhou-se em frente de Ghaden. Às vezes, quando ela queria que ele lhe respondesse, tinha mais sorte se o olhasse bem de frente.

Diz-me o que queres fazer. Ele virou a cara para o lado.

Está bem. Vamos para a cabana. Tu podes ficar lá com Mordedor. Eu vou encontrar as minhas amigas. Tu podes ficar sozinho.

Ele agarrou-lhe a mão.

Não, Yaa. Fica comigo.

Já sei o que faremos, disse Yaa, pensando em voz alta. Há um lugar onde eu te quero levar.

O Mordedor pode ir?

Se se portar bem.

Ele porta-se sempre bem.

Ghaden, este local é secreto. Não podes dizer a ninguém, declarou ela devagar.

Ghaden olhou-a fixamente.

Não direi.

Como a maior parte das crianças estava no acampamento de pesca, era uma boa oportunidade para ela ir mostrar a sua toca a Ghaden. Não queria que pessoas como Dança-no-Gelo descobrissem o seu esconderijo. O rapaz poderia destruí-lo. Além disso, a grande vantagem de ter uma toca era ninguém saber que ela existia.

Yaa pegou a mão de Ghaden e saiu da aldeia com ele, na direção da latrina das mulheres, e depois virou para um carreiro que ia dar na toca. Levou um dedo aos lábios, ajoelhou-se em frente dos abetos-negros e meteu-se debaixo dos ramos inferiores. Ghaden e Mordedor foram atrás dela. Yaa pegou o pau e enfiou-o na toca. Depois entrou lá dentro de quatro. Adorava a escuridão e o cheiro adocicado da terra. Recuou e empurrou Ghaden lá para dentro. As duas crianças riram ao ver Mordedor rastejando.

Somos raposas? perguntou Ghaden. A idéia fez Yaa sorrir.

Sim, somos raposas. Eu sou a mãe. Tu és o pai e o Mordedor é o bebê.

Ele é o cão disse Ghaden com um ar solene.

As raposas não têm cães disse Yaa.

Nós temos.

Está bem, Mordedor é o cão. Gostas disto aqui? perguntou ela, apontando para o teto da toca. Olha, aposto que quase cabias aqui de pé.

Ele levantou-se mas teve que inclinar a cabeça para o lado.

Quase, disse Yaa.

Gosto respondeu Ghaden em voz baixa. O que fazes quando estás aqui?

Às vezes trago comida.

Tenho fome, Yaa.

Yaa arregalou os olhos, apesar de saber que a escuridão talvez não o deixasse ver.

Acabaste de comer. Ghaden não respondeu.

Às vezes gosto de me sentar pensando em coisas disse ela.

Em que pensas?

Hum, às vezes penso em ti. No que te aconteceu. Yaa sentiu que Ghaden ficara rígido.

Aqui estás bem disse ela. A melhor coisa deste esconderijo é estarmos seguros aqui. Ninguém sabe que ele existe exceto nós. Se alguém tentar apanhar-te, podes vir para cá e estarás em segurança. Digas o que disseres, aqui ninguém pode ouvir-te. É um bom lugar para contar segredos.

Ghaden manteve-se calado durante muito tempo. Por fim, disse:

Eu tenho segredos.

Tens?

Não dizes a ninguém?

Não.

Yaa susteve a respiração, esperando que ele falasse da noite em que Daes fora assassinada.

Ontem à noite tirei comida da panela.

Yaa ficou desapontada, mas lembrou-se de que os grandes segredos não se contavam com facilidade. Era melhor começar pelos pequenos. Riu.

Eu também, disse ela. Ghaden deu uma gargalhada.

Não faças barulho segredou Yaa, mas teve o cuidado de não deixar de sorrir, para Ghaden perceber que ela não estava zangada.

Tens mais segredos? perguntou Yaa.

De repente, Ghaden ficou muito quieto, e Yaa esperou que ele lhe contasse qualquer coisa. Todos os dias, quando ia buscar lenha, mexia as panelas e fazia esteiras, e todas as noites, quando tentava adormecer, pensava no assassino, e perguntava a si própria se ele tentaria atacar Ghaden outra vez. Pensou em Daes e nas pessoas da aldeia que a odiavam ao ponto de a matarem.

Ainda não chegara a nenhuma conclusão. As mulheres da aldeia não tinham sido simpáticas para Daes, exceto talvez a mãe de Yaa, mas só Água Castanha fora ostensivamente má, e Água Castanha encontrava-se na cabana naquela noite; pelo menos estava lá quando Yaa adormecera, e ainda lá estava quando ela acordara de manhã. Por outro lado, porque havia Água Castanha de querer matar Daes? Sem ela, todas as mulheres da cabana teriam mais trabalho para fazer.

Quando Ghaden falou, foi tão baixinho que Yaa quase nem ouviu as suas palavras.

Eu tenho segredos, afirmou ele outra vez. Eu e o Mordedor temos segredos.

E vais contar-me esses segredos? perguntou Yaa.

Hoje não, disse ele.

Eu não conto a ninguém. Prometo.

Hoje não. Um dia destes. Hoje não.

Não me podes dizer quem é o velho dos ossos?

Não.

Não sabes quem ele é?

Não, não sei, disse Ghaden. Depois, acrescentou em voz baixa: Ele tinha uma faca cheia de sangue.

 

MAR DE BERING

Durante os primeiros dias de viagem, Aqamdax perguntou a si própria se teria aceitado vir se soubesse do frio, do medo e da fome que iria passar. O chigdax mantinha-a seca, mas, mesmo com um sax quente por baixo, o frio que vinha do mar chegava-lhe aos ossos até lhe doerem os dentes.

Antes de chegarem à aldeia dos Primeiros Homens, Cantador mostrou a Sok como podia alargar o convés do seu iqyax para Aqamdax e ele se sentarem lá dentro, costas com costas. Pelo menos o corpo de Sok protegia-a em parte do vento e as costas dele, encostadas às suas, aqueciam-na.

As ondas eram piores do que o frio. Irrompiam do mar, por baixo do iqyax, e às vezes eram tão grandes que Aqamdax nem via os outros homens, e parecia que Sok e ela viviam sozinhos num mundo de água, sem esperança de chegar a terra. Aqamdax nem se permitia pensar como eram finas as paredes do iqyax, e ignorava histórias de animais marinhos que vinham dos abismos e abriam buracos nos iqyan.

No segundo dia, verificou que os homens não tinham comido antes de saírem das praias de manhã. Talvez tivessem comido um pouco de peixe seco, e bebiam sempre água, mas não comiam mais nada até acostar todas as noites. Aqamdax fazia o mesmo, apesar de o estômago lhe doer com fome ao fim do dia.

Os comerciantes dos Caçadores de Morsas cantavam enquanto remavam, e às vezes o irmão de Sok cantava canções do Povo Rio, mas as palavras, que lhe pareciam estranhas e sem sentido, só aumentavam o seu desespero. Como iria ela viver com um povo que não compreendia?

Tinha a pele caindo e a estalando, e o rosto e as mãos doíam-lhe e estavam vermelhos. Sok deu-lhe gordura de ganso para servir de bálsamo, mas a água do mar atravessava a gordura e a pele e abria-lhe feridas nos lábios, no canto dos olhos e na ponta das narinas.

À medida que os dias passavam e o seu terror diminuía. Aqamdax chorava a sua aldeia, o seu povo e o som das palavras que entendia. Uma manhã, ao acordar para o terror que antecedia cada dia, ouviu uma voz como se Qung falasse com ela.

Era uma voz de censura, de avó para neta. ”Tu és uma contadora de histórias, mas passas os dias lamentando-te. As canções do irmão do teu marido enquanto rema chegam aos teus ouvidos, mas tu não as ouves. Chegou o momento de aprenderes algumas palavras. Como serás contadora de histórias junto do Povo Rio se não falares a sua língua? Esperas que sejam eles a aprender a tua?”

Então, depois de Aqamdax desmontar a tenda de pele de caribu e enrolar os pés nas meias quentes de pele de lebre que o marido lhe dera no segundo dia da viagem, quando vestiu o seu chigdax, agarrou num bocado de peixe seco e levantou-o. Disse a Sok qual a palavra que significava ”peixe” na língua dos Primeiros Homens, erguendo a voz para ele perceber que ela estava perguntando qual era o termo do Povo Rio correspondente, mas ele limitou-se a abanar a cabeça. Ela pegou em várias coisas na sua bota de pele de foca, numa faca e por fim numa pedra mas ele olhava para ela no meio de um silêncio confuso. Por fim, ele perdeu a paciência, apontou para o trabalho que ela deixara por fazer e para a água, para ela perceber que eles tinham que partir, caso contrário seriam obrigados a esperar naquela praia rochosa que a maré voltasse a subir.

Aqamdax encheu o iqyax de Sok, tentando esconder a sua desilusão. Qual o marido que quer uma mulher cuja boca está cheia de suspiros e cujos lábios nunca sorriem? Então Chakliux aproximou-se dela, cautelosamente, com o seu pé de lontra. Pegou numa pedra do tamanho de um punho cerrado, branca e com manchas, que parecia o ovo de um papagaio-do-mar.

Ts ’es, disse ele, e repetiu a palavra. Aqamdax fez o possível para dobrar a língua em volta dos sons desconhecidos, e ele sorriu, com um aceno de cabeça.

Ts ’es, pronunciou ela. Depois, apontou com o queixo para as pedras que tinha debaixo dos pés. Ts’es, ts’es, ts’es.

Ele riu e, por qualquer motivo, o riso dele aliviou a tristeza de Aqamdax. Passou o dia repetindo a palavra para si própria até que, quando a luz difusa do Sol por baixo das nuvens lhe indicou que dentro de pouco tempo abandonariam os seus iqyan para passar a noite, ela percebeu que, de todas as palavras que escolhera, ts ’es era das que menos falta lhe fazia. Ao virarem os iqyan para a praia, Aqamdax deu consigo rindo da sua estupidez e escolheu as coisas cujo nome iria perguntar nessa noite: peixe seco, tenda de pele de caribu, água, marido, olhos, nariz e boca. Todos os dias aprenderia mais até conseguir entender o que uma esposa do Povo Rio devia entender, e falar como uma contadora de histórias devia falar.

Chegaram à aldeia dos Caçadores de Morsas no meio do dia. Sok foi o primeiro a reparar na mudança de cor do mar e depois nas faixas de algas que traziam à superfície folhas acastanhadas, as quais se agarravam aos remos de tal modo que o roçagar do seu chigdax quando ele se mexia já não acompanhava as canções dos comerciantes. Sok levantou a voz e chamou Aqamdax, tratando-a por esposa, uma palavra do Povo Rio que ela já compreendia. Serviu-se do remo para apontar para as algas, indicando-lhe a palavra dos Caçadores de Morsas, visto que o seu povo não tinha nenhuma. Tentou lembrar-se das poucas palavras do Povo Rio que ela sabia e por fim disse:

Aldeia dos Morsas, ali. Pouco tempo.

Não soube ao certo se ela o entendera, mas enquanto ele remava, acelerando o ritmo o melhor que podia no meio das algas, ela encostou-se às suas costas como se também ela fizesse força para a frente, para terra, para a aldeia dos Caçadores de Morsas.

No Verão, apesar de alguns Caçadores de Morsas irem para acampamentos de pesca junto dos rios e de pequenos lagos interiores, a maior parte ficava em tendas à beira-mar. Era uma boa hora para caçar leões-marinhos e focas, e os caçadores também se juntavam para caçar as poucas morsas que acorriam àquelas águas.

Sok não sabia o que o xamã dos Morsas iria pensar de Aqamdax. A viagem, apesar de não ser longa, fora dura para ela. A pele do seu rosto já não estava macia mas cheia de feridas, e os seios e a barriga já não estavam cheios e roliços como dantes. De noite, quando a abraçava, sentia-lhe os ossos das costelas em vez da pele lustrosa e macia. Nos primeiros dias de viagem, arrependera-se de a ter trazido, mas depois ela começara a aprender palavras do Povo Rio e parecia sentir-se mais feliz. Durante a viagem, repetia as palavras que aprendera, misturando-as às vezes de tal maneira que Sok era obrigado a sorrir.

Nem queria pensar no dia em que ela percebesse que ele a dera ao xamã dos Morsas. Iria sentir a falta dela. Era boa na cama, muito melhor que Folha Vermelha, mas com a máscara do xamã, os amuletos e o sax de penas que ele daria por ela, era quase certo que Lobo-e-Corvo lhe entregaria Neve-no-Cabelo. O que havia de melhor do que ter finalmente aquela que vivia no seu coração desde menina?

A aldeia de Caçadores de Morsas era como Aqamdax imaginara. Como todas as crianças da sua aldeia, ouvira as histórias dos comerciantes e acabara por aprender algumas palavras dos Morsas para que um adulto como ela pudesse negociar ou mesmo elogiar um homem dos Morsas que a escolhesse para a sua cama.

Quando ela e Sok puxaram o iqyax para a praia, mulheres e crianças, e alguns caçadores, foram ajudá-los. As crianças aproximaram-se para ver Aqamdax, e as mulheres observaram-na pelo canto do olho, falando umas com as outras com a mão sobre a boca e dizendo coisas que ela não conseguia ouvir.

Por fim, Sok aproximou-se dela, desatou-lhe a fita do capuz do chigdax e ajudou-a a despi-lo pela cabeça. Depois, agarrando-lhe os cabelos compridos com as duas mãos. tirou-os do sax e alisou-os nas costas. Aqamdax ficou satisfeita com a ternura do seu gesto e com o orgulho com que ele a virou de frente para as pessoas.

Aqamdax disse ele, dando ao nome dela a entoação da língua do Povo Rio.

Ela olhou para ele, para o seu marido alto e forte, e disse em voz baixa a palavra do Povo Rio que significava ”marido”; em seguida, disse-a também na língua dos Morsas. De súbito, os dias passados no iqyax valiam a alegria que a inundava.

Então Sok gritou:

Onde está Yehl?

E embora as palavras que se seguiram fossem uma mistura entrecortada das línguas do Povo Rio e dos Morsas, Aqamdax entendeu e, horrorizada, não conseguiu mexer-se nem falar.

Digam a Yehl que eu trouxe Aqamdax. Digam-lhe que eu tenho a esposa dele.

Chakliux virou-se e fixou o olhar no horizonte. Não conseguia suportar a expressão de Aqamdax ao perceber o que estava acontecendo. Quando Sok lhe comunicou que a entregaria a Yehl na presença de todos, Chakliux dissera-lhe que era preferível ele falar com Aqamdax em particular. Mas Sok respondera: ”Qual a mulher que gosta de ser desonrada diante de toda a aldeia? Se eu anunciar a minha intenção para que toda a gente ouça, ela não poderá deixar de comportar-se como se já soubesse que ia ser a esposa do xamã.”

E Chakliux concluiu que não podia discordar. Como esposa do xamã, ela ocuparia um lugar de honra na aldeia. Vivendo ali, estaria mais perto do seu povo, e talvez conseguisse fazer o que Tut fizera depois de envelhecer: voltar a aldeia dos Primeiros Homens. Também teria oportunidade de se encontrar com comerciantes dos Primeiros Homens, os poucos que iam à aldeia dos Caçadores de Morsas todos os anos, e assim ouvir falar a sua própria língua.

Nos dias seguintes, depois de Sok ter feito o seu último negócio, ele e Chakliux partiriam para a aldeia de Rio Próximo e, se Chakliux fosse bem recebido, não voltariam aos Caçadores de Morsas. Se verificassem que o povo de Rio Primo continuava procurando vingança, Chakliux voltaria. De qualquer modo, Aqamdax não teria que ver Sok outra vez. Não teria o rosto dele a alimentar o seu ódio nem a voz dele avivando recordações de tempos partilhados como marido e mulher.

Chakliux subiu à praia, direito às armações dos iqyan. Precisava olear o seu iqyax e de consertar algumas costuras. Sok tencionava voltar a pé para a aldeia de Rio Próximo, mas Chakliux iria por mar. Sok rira dele e perguntara-lhe como é que o iqyax o ajudaria a caçar ursos ou caribus, mas Chakliux lembrara-lhe que os poucos comerciantes dos Primeiros Homens que iam às aldeias do Povo Rio subiam o rio nos seus iqyan e deslocavam-se muito mais depressa do que se fossem a pé.

Além disso, o seu iqyax era mais do que madeira e pele de morsa. Permitia-lhe tornar-se uma verdadeira lontra. No seu iqyax, ele sentia-se íntegro e forte. Como podia ele explicar tal coisa a Sok? Como é que Sok podia perceber que o iqyax de Chakliux era como outro irmão para ele?

Uma súbita gargalhada geral obrigou Chakliux a virar-se e a voltar por onde viera. Abriu caminho entre um grupo de Caçadores de Morsas. Uma luta, pensou. Alguém começara uma luta. Talvez fossem dois jovens, mas depois percebeu que não eram dois jovens que lutavam mas sim Aqamdax.

Conseguiu chegar ao meio do grupo e viu que ela atirara Sok ao chão e estava escarranchada nos ombros dele, agarrando-lhe nos cabelos com uma mão e encostando-lhe ao pescoço uma faca de mulher de lâmina curva com a outra. Um dos comerciantes dos Morsas agarrara-a pela cintura e encostara-lhe uma faca no pescoço. Gritou-lhe qualquer coisa na língua dos Primeiros Homens, qualquer coisa que Chakliux não entendeu, e Aqamdax respondeu-lhe aos gritos, com mãos-cheias de palavras, plenas de ódio. Ele viu o desespero no olhar da mulher e percebeu que ela não se importava que o comerciante lhe cortasse o pescoço.

Sok deu um berro e, com um movimento forte, atirou ao chão o comerciante dos Morsas e Aqamdax. Chakliux pôs-se entre a mulher e o irmão. Pisou a mão dela, encostando-a ao chão, enquanto um dos homens dos Morsas lhe tirava a faca dos dedos e outro lhe verificava as mangas do sax à procura de outras armas. Foram precisos vários homens para a neutralizar; por fim, um trouxe uma corda para lhe atar as mãos e os pés.

Durante a viagem por mar, Chakliux começara a perceber a força e a determinação de Aqamdax mas, ainda assim, não pensara que ela reagisse com raiva, mas sim mais à maneira de K’os que assumisse uma postura altiva, como se sempre tivesse sabido o que iria acontecer na aldeia dos Caçadores de Morsas. A sua mãe de Rio Próximo, Mulher Diurna, poderia ter feito ouvir os seus lamentos, mas quantas mulheres teriam tentado matar o homem que as traíra?

Sok pôs a mão no pescoço, tentando estancar o sangue de um pequeno golpe.

Como está isso? perguntou Chakliux.

Não é nada disse Sok, resmungando. Arreganhou os dentes e acrescentou: Qual o homem que queria uma mulher assim? Ela é pior do que um cão.

Chakliux ia concordando, mas sabia que não estaria sendo sincero e por isso guardou as palavras para si próprio e não disse ao irmão que Aqamdax não era um cão mas sim uma mulher aguerrida.

Atiraram-na em uma tenda dos Morsas vazia. Ela gritou nas palavras dos Morsas que sabia, misturadas com a língua dos Primeiros Homens:

Julgam que conseguem manter-me aqui? Eu consigo rasgar estas paredes de pele com os dentes. O vosso mau cheiro chega para me afastar desta aldeia. Nem posso olhar para vocês. Vocês são como peixes mortos, brancos e podres na praia. Vocês são vômito de cão. As vossas mulheres são as fezes das focas.

Aqamdax tinha as mãos atadas, mas à frente do corpo, e por isso conseguiu desfazer os nós com os dentes e soltar-se. Desenrolou a corda que tinha nos tornozelos e começou a rasgar as peles, empoleirando-se nos estrados das camas. Pisou cestos de pele de peixe, abriu uma bexiga de leão-marinho e entornou o óleo nas peles das camas. Os seus insultos transformaram-se em gritos que pareciam rebentar-lhe o coração e tirar-lhe o ar dos pulmões.

Porque confiara nele? Não aprendera nada com Nasce-o-Dia? Qual o homem que fora honesto com ela? Qual o homem que cumprira o que prometera?

Durante muito tempo, Aqamdax não cedeu às lágrimas, mas por fim a sua raiva foi diminuindo lentamente, como o latejar de uma ferida, e ela deu consigo pensando no xamã dos Morsas.

Vira-o numa ponta da multidão, vira o seu horror quando ela atacara Sok. Usava muitos amuletos e talismãs, peles de animais que ela não conhecia. Julgaria ele que a impressionava?

Era um velho, mas isso não tinha importância, sobretudo se, com os seus conhecimentos de xamã, lhe desse um filho. Depois, Aqamdax percebeu que não era o fato de pensar nele como seu marido que alimentava a sua fúria, mas sim a traição de Sok.

É claro que, da primeira vez que Sok fora ao seu encontro, ele pedira-lhe para ir com ele para a aldeia dos Caçadores de Morsas para ser esposa do xamã. Na sua estupidez, acreditara que conseguira fazê-lo mudar de opinião.

Negociara o suficiente com comerciantes para saber que eles não se enganavam a si próprios, e provavelmente o xamã dera muito a Sok para ele a levar para ali. E ela acrescentara-se a essas mercadorias, proporcionando a Sok noites de prazer nos seus cobertores.

Pensou no irmão de Sok, Chakliux. Não era tão grande nem tão forte como Sok, mas tinha uma força de espírito que lhe agradava. Saberia ele do plano de Sok? Como podia não saber? O que lhes oferecera o xamã para eles a enganarem daquela maneira?

Olhou para os estragos que fizera. Depois, enxugou os olhos com as pontas das mãos e aspirou as lágrimas que lhe corriam pelo nariz. Portara-se como uma criança. Como pudera ser tão estúpida? Todos os Verões apareciam comerciantes dos Primeiros Homens naquela aldeia. Ela voltaria para junto do seu povo. Com certeza Qung a receberia bem.

Entretanto, se não quisesse passar a vida sozinha numa tenda dos Morsas, teria de comportar-se como uma boa esposa.

Talvez antes de ela sair daquela aldeia, o xamã lhe pusesse um filho na barriga. Talvez ela conseguisse aprender a falar a língua dos Morsas suficientemente bem para aprender algumas das histórias deles.

Começou a apanhar as peles das camas e a limpar o óleo daquelas que tinha sujado. Em seguida, limpou o cabelo, os braços e as pernas.

Quando foram buscá-la, encontraram a tenda em ordem e Aqamdax pronta para se apresentar ao xamã como esposa, mas, se Sok voltasse àquela aldeia, ela arranjaria uma maneira de se vingar. Arranjaria uma maneira de o fazer arrepender-se do que lhe fizera.

 

ALDEIA DOS PRIMEIROS HOMENS

Cen puxou o seu iqyax para além do alcance das ondas e depois começou a desfazer os seus fardos. Gostava daquela aldeia. As pessoas eram fortes e saudáveis; riam muito e sabiam negociar. Com o pulso esquerdo ainda fraco, levara quase uma lua remando para ir da povoação dos Caçadores de Morsas mais próxima até a Praia dos Comerciantes, mas, se tudo corresse como ele planejara, o seu esforço seria recompensado.

Os Primeiros Homens tinham escolhido bem aquele local para a sua aldeia, porque assim podiam caçar tanto em terra como no mar e pescar na baía e nos rios que a alimentavam. Mas todos os Invernos o gelo trazia novos baixios e novas rochas. Era preciso ter cuidado, estar sempre atento quando remava.

Se um dos caçadores da aldeia visse um comerciante chegando, faria as vezes de guia, mas dessa vez não estava ninguém na praia. Cen chegara sozinho. A maré alta ajudara-o a evitar estragos provocados por rochas ou bancos de areia e permitira que ele desembarcasse com facilidade. Ouviu vozes e levantou a cabeça. Avistou vários velhos que iam saudá-lo. Cen recebeu-os de mãos erguidas, assegurando-lhes que vinha em paz. A língua deles não assentava facilmente na sua, mas ele sabia que um dia na aldeia seria suficiente para lhe recordar o essencial. Os seus anos de visitas a Daes tinham-lhe dado mais do que o calor de uma mulher na sua cama.

Vieste negociar? perguntou um dos velhos.

Cen respondeu ao homem com delicadeza, enumerando alguns dos produtos que tinha para negociar - peles de morsa, parkas de pele de lobo, cestos de casca de salgueiro e grandes anzóis de madeira para linguados. Não tinha tanto como era habitual - abandonara o Povo Rio apenas com algumas facas.

Estava convencido de que a sorte o abandonara, tinha certeza de que o depósito que conservava nos arredores de uma das duas aldeias dos Morsas onde costumava negociar fora descoberto por homens ou por animais, mas o local estava intacto. As parkas de pele de lobo, as peles de caribu, um sael de gordura, peles de foca cheias de óleo e, o que era mais importante, o seu iqyax, estavam à espera dele.

Cen dirigiu-se à aldeia dos Primeiros Homens, não só para negociar como para ir ao encontro da família de Daes. Ela dissera-lhe que o pai tinha morrido e que não tinha irmãos, mas com certeza que tinha primos, e uma filha, evidentemente, que agora já devia ter marido. Quando Cen explicasse o que acontecera a Daes, decerto iriam com ele para se vingarem. O ajudariam a trazer de volta o filho, Ghaden.

Endireitou-se, aliviando a dor das feridas recém-cicatrizadas e esfregou o nariz. Agora estava torto, largo e achatado. Uma cicatriz arrepanhava-lhe a boca de um lado, mas nesta aldeia até era bom que ele tivesse mudado de aspecto. Devia haver caçadores dos Primeiros Homens que não estavam satisfeitos por ele ter levado Daes, aqueles que a queriam para si próprios. Se reconhecessem Cen, podiam enfurecer-se antes de ele ter oportunidade de explicar porque viera.

Cen mostrara-se particularmente cauteloso quando estava com Daes, ciente dos tabus do luto que a obrigavam a afastar-se dos homens. Talvez fosse por isso que ela parecia tão irresistível, por causa dos tabus. Ele poderia ter escolhido outras mulheres dos Primeiros Homens, mas ficara deslumbrado com Daes.

Fora um erro ter ido mais para oeste quando regressava dos seus negócios, depois de ter se deitado com ela. Mas como podia esquecê-la? Daes continuava a povoar os seus sonhos. Cen devia ter ficado com ela na aldeia do Povo Rio. O que lhe interessava a aldeia em que vivia? A mãe pertencera ao Povo Caribu, o pai era dos Morsas e ele passara diversos Verões em aldeias do Povo Rio enquanto os pais andavam de um lado para o outro. Crescera falando três línguas e compreendia bem a língua dos Primeiros Homens.

Ele devia ter vivido com Daes, adotado o filho dela, o rapaz cujo rosto era tão parecido com o do avô que pertencia aos Morsas e cuja voz tinha o timbre claro e cantante do Povo Caribu. Mas Cen sabia que, sempre que Daes olhava para ele, desejava que ele fosse o seu marido dos Primeiros Homens. Por outro lado, qual o comerciante que precisa do estorvo que uma mulher e um bebê constituem? Cen arranjara-lhe um velho do Povo Rio que ainda era um caçador robusto e que seria um bom pai para a criança e um bom marido para Daes.

Apesar de a ter deixado ficar para trás, no Inverno seguinte os seus pensamentos haviam permanecido com Daes. Por muitas mulheres dos Tundra que lhe aquecessem a cama, a pele morena e macia que ele sentia nas mãos era sempre a de Daes. Por isso ia visitá-la todos os anos, e por fim ela aceitara ir com ele. Depois, Cen ousara acreditar que ela já não desejava que ele fosse o marido morto, que ela aprendera a cuidar dele por causa dos seus próprios dotes.

Tudo parecia tão bem. Doía-lhe a garganta só de pensar nisso. Mas se vingaria, e aquele Povo Rio os poucos que ele deixasse vivos nunca mais o esqueceria.

 

ALDEIA DOS MORSAS

Aqamdax esperava que eles viessem à noite, e por isso ficou à espera, mantendo-se acordada com canções e histórias, mas por fim adormeceu onde estava sentada, encostada ao espaldar da cama. Acordou ao romper do dia com o pescoço rijo e as pernas presas. A entrada ainda estava fechada e Aqamdax, que precisava fazer as suas necessidades, procurou na cabana um balde de urina ou um cesto do lixo. Por fim, agachou-se sobre um recipiente de pele de peixe, esperando que ele não vertesse e que ela não estivesse quebrando algum tabu dos Morsas.

A lamparina continha pouco óleo e já se tinham consumido vários pavios. Havia um resto de óleo na barriga de foca, e ela colocou uma parte na lamparina. A chama aumentou de intensidade, mas mesmo assim ela tinha frio. Procurou uma despensa no meio dos cestos e das peles e junto das paredes, mas não encontrou nada. Por histórias que ouvira contar, lembrou-se que os Morsas guardavam a comida em despensas ao ar livre, mas não tinha certeza. Comera na véspera. Não morreria de fome e havia bexigas cheias de água penduradas nos postes da cabana.

Ah, Tut, porque não te fiz mais perguntas sobre este povo?, pensou Aqamdax. Devia ter insultado a aldeia toda ao recusar o xamã. Esperaria mais um dia e depois, na breve escuridão da noite, sairia da cabana com o auxílio da pequena faca de esfolar que trazia no cinto, debaixo do sax. Eles não tinham descoberto aquela faca e, apesar de a lâmina ser curta, era afiada. Se tivesse cuidado e trabalhasse devagar, talvez conseguisse furar a pele de morsa.

E depois? Sem comida, sem a sua faca de mulher, o que podia ela fazer? Teria de encontrar Sok e o irmão, suplicar-lhes que a levassem com eles, ou que fossem falar com o xamã, pedir-lhe desculpa e implorar que a dessem a qualquer dos Caçadores de Morsas como esposa. Sentou-se na beira do estrado da cama e acariciou as penas macias do sax.

Não, não voltaria para Sok. Porque confiaria no homem? Era melhor ficar naquela aldeia, mais perto do seu povo. Iria oferecer-se ao xamã. Se ele já não a quisesse, pediria para ser esposa de um caçador, segunda esposa, se necessário.

Hii, como fora estúpida! Mas agora seria sensata, e se conseguisse não fazer mais disparates, conseguiria voltar ao seu povo.

Chakliux atravessou a aldeia na direção das armações dos iqyan. Durante a viagem por mar, passara muito tempo pensando nos iqyan dos Primeiros Homens, sem saber se modificaria o seu para ficar mais parecido com os deles mais estreito para ser mais veloz e com uma sobrequilha feita de três pedaços de madeira em vez de um, para dar mais força ao iqyax e mais flexibilidade nas ondas.

Talvez fizesse outro, em vez de alterar o iqyax que tinha. Para quê destruir uma coisa que funcionava bem? Depois, compararia os dois, veria como cada um se deslocava nas ondas, como respondia ao remo em correntes e marés, em redemoinhos e na rebentação.

Passou pela pequena tenda em que haviam fechado Aqamdax. Tinha pena da mulher. Ela mostrara-se tão interessada em Sok e esforçara-se tanto por ser uma boa esposa.

Com um afluxo de calor, lembrou-se como fora bom ter Gguzaakk como esposa e recordou o horror da sua morte. O filho de ambos morrera no dia seguinte e, com o desgosto, Chakliux perdera a vontade de viver. Mas qual o dzuuggi que podia dar-se ao luxo de morrer?

Continuava trabalhando pela paz, apesar de saber que K’os estava contra ele. Só quando o desgosto o levou a ir visitar a armação fúnebre de Gguzaakk é que percebeu a extensão do ódio de K’os. Ao aproximar-se do local sagrado, viu que K’os estava lá e ficou à espera, pensando que ela também fora chorar. K’os inclinou-se e colocou qualquer coisa no chão. Quando ele se aproximou, viu que era um ramo de flores roxas e percebeu, como qualquer criança, do veneno mortal da planta e das suas flores encapuzadas.

O meu filho também? perguntara-lhe ele.

As crianças morrem com facilidade respondera ela e levantara a mão para tapar a boca e o nariz.

Ele devia tê-la matado nesse momento, mas não conseguiu se mexer, como se também o seu corpo tivesse sido atacado por aquele veneno que imobiliza os músculos e faz parar o coração. Foi falar com os velhos, os caçadores e até com o pai, mas ninguém acreditou nele. Vingar-se equivaleria à sua própria morte, à aldeia inteira contra ele. Depois, que oportunidade teria de trabalhar pela paz?

Às vezes, era muito difícil ser dzuuggi. As luas passadas com os Morsas e os Primeiros Homens, um período em que ele era apenas caçador, tinham sido boas.

Chakliux invejava Sok. O que mais podia um homem desejar do que uma mulher que o respeitasse? Folha Vermelha e Aqamdax eram duas boas mulheres. Era triste que Sok não pudesse ficar com Aqamdax. No entanto, todos os homens tinham que dar valor à sua vida, e, se Sok não a tivesse oferecido ao xamã dos Morsas, este poderia tê-lo matado ou amaldiçoado com doenças.

É claro que, quando Aqamdax se recusara a acompanhá-los, exceto se fosse mulher de Sok, ele podia tê-la deixado com o seu povo. Mas se eles não a tivessem trazido, o xamã dos Morsas teria autorizado Chakliux a ficar na aldeia se ele não pudesse voltar para junto do povo de Rio Próximo? Portanto, embora Sok tivesse lucrado com isso, também ajudara Chakliux.

Quando Chakliux passou pela tenda de Aqamdax, ouviu o som suave de uma canção, algo que ela cantara quando iam nos iqyan. Sentiu um aperto no coração como se a tristeza dela o comovesse, mas pensou que em breve ela se sentiria feliz por ser esposa do xamã da aldeia e alegre por descobrir novas histórias.

Só quando chegou à praia é que ouviu os primeiros choros das mulheres.

 

ALDEIA DOS PRIMEIROS HOMENS

Eu te conheço disse a velha.

Inclinou-se para a frente e, devido à grande corcunda que lhe deformava as costas, Cen julgou que ela ia cair-lhe aos pés, mas a velha virou a cabeça para olhar para cima, com os olhos semicerrados. O coração dele deu um pulo, mas depois Cen recriminou-se. Estava com medo de uma velha?

Já estive aqui, afirmou ele com um ar de desafio. Vês alguma coisa que queiras?

Cen apontou para as mercadorias que expusera junto do seu iqyax.

Por instantes, ela ficou olhando para baixo, e ele julgou que a distraíra, mas a velha virou de novo a cabeça para o examinar e repetiu:

Eu te conheço. Estiveste aqui.. Fez uma pausa. Há quatro Verões. Não, cinco.

Avó, estive em muitas aldeias há cinco Verões. Não posso dizer ao certo se estive aqui. Talvez. Vim para estes lados nessa época, apesar de só agora ter voltado.

Ela não deu mostras de o ouvir e começou a falar sozinha, em voz baixa. Passou os dedos pelas mercadorias de Cen e depois largou-as. Em seguida, as mulheres mais jovens começaram a olhar, todas falando ao mesmo tempo, fitando-o com os seus olhos escuros, para o insultar, mas também para ver se ele percebia a impertinência delas. Aquelas mulheres dos Primeiros Homens não eram pessoas que se atirassem para a cama de um homem, mas em geral, na maioria das aldeias dos Primeiros Homens, havia uma ou duas que estavam dispostas a oferecer os seus favores a um comerciante. Ele contava encontrar uma dessas nessa aldeia. Na privacidade da cama dela, Cen perguntaria por Aqamdax, diria que outro comerciante afirmara que ela era boa na cama de um homem. A jovem, na sua ânsia de mostrar a Cen que podia dar-lhe mais prazer do que Aqamdax, talvez respondesse a todas as suas perguntas e satisfizesse todas as suas necessidades.

Ao longo do dia, Cen fez negócio, trocando os seus artigos por outros dos Primeiros Homens que lhe renderiam mais junto dos povos Caribu e Tundra, mas nenhuma mulher lhe deu quaisquer indícios de o receber na sua cama.

Mais tarde, quando os caçadores estavam negociando, Cen aventurou-se a perguntar se alguma mulher da aldeia lhe dava hospitalidade.

Um dos caçadores sorriu-lhe, mostrando um dente da frente partido e umas grandes gengivas rosadas.

Chegaste tarde demais disse ele. Havia uma, mas apareceu um comerciante do Povo Rio que a aceitou como esposa.

Cen abanou a cabeça. Um comerciante do Povo Rio? Eles raramente iam tão longe. Apesar de as suas jangadas de madeira lhes permitirem navegar nos rios mais calmos, eles não conseguiam enfrentar os ventos fortes e as ondas alterosas do mar do Norte. É claro que um homem podia vir por terra, mas porque ele perderia tantas luas para visitar algumas aldeias dos Primeiros Homens? No mesmo período de tempo, podia fazer os seus negócios em muitos locais dos povos Rio e Caribu, e talvez atravessar os grandes rios até chegar ao território do povo da Tundra do Norte, aqueles caçadores que não tinham propriamente aldeias e que viviam em tendas frágeis, seguindo o vento.

Porém, Cen lembrou-se de que os Primeiros Homens consideravam que, quem não pertencesse aos Morsas nem aos Primeiros Homens, era do Povo Rio. Não o consideravam também um comerciante do Povo Rio?

Então não há nenhuma? perguntou Cen.

O caçador dos Primeiros Homens encolheu os ombros, estendeu as mãos e depois pegou vários dardos com ponta de osso de pássaro e pousou-os de novo. Talvez fosse melhor ir perguntar, pensou Cen, embora muitas vezes, quando se falava no nome de alguém, as pessoas reagissem com desconfiança e se recusassem a dizer fosse o que fosse. Cen não se lembrava muito bem do seu aspecto, apesar de ter pensado muito nela durante a viagem. Observara todas as jovens da aldeia, procurando uma que fosse parecida com Daes, mas não encontrara nenhuma. É claro que as filhas nem sempre eram parecidas com as mães. Talvez, depois de crescida, ela se parecesse mais com o pai que morrera afogado, ou com uma das avós.

Cen inclinou-se para o caçador que voltara a interessar-se pelos dardos de osso.

Dois por uma mão-cheia de pedras de boleadeira disse Cen ao homem.

O caçador olhou para ele com um ar admirado.

Mas não digas aos outros caçadores senão depois de eu partir. Não posso fazer isso a todos. Ficaria sem nada para negociar nas outras aldeias.

O homem levantou a mão, com a palma virada para fora.

Guarda-os. Eu volto.

Escolhe os que quiseres disse Cen.

O caçador escolheu os dardos, todos eles guarnecidos de penas de cagarra em branco-prateado. Cen colocou-os debaixo do seu iqyan virado ao contrário. Depois ficou esperando, propôs outros negócios a outros caçadores, picando e desafiando, sempre tentando fazê-los sentir que o tinham superado, que os seus talentos eram superiores aos dele.

Por fim, o caçador voltou, com duas mãos-cheias de boleadeiras de andesito bem aguçadas num quadrado de pele de foca. Cen examinou-as e pegou várias na mão. Sem dizer nada, tirou os dardos do iqyax e entregou-os ao homem. Depois, inclinou-se para a frente e disse em voz baixa:

Há uma mulher de que me falaram. Chamam-lhe Aqamdax.

O caçador começou a rir.

Falaram-te dela, disse ele. Sim, tenho certeza de que te falaram dela. O homem riu outra vez. Não há nenhum homem nesta aldeia que não sinta a falta dela.

Ela já não está aqui? perguntou Cen.

Foi ela que partiu com o comerciante do Povo Rio. Ele disse que a queria pelas suas histórias, mas ninguém desta aldeia acreditou nisso.

Então ela não tinha um marido dos Primeiros Homens?

Não.

Nem irmãos ou tios?

Ninguém. O chefe dos caçadores levou-a para o ulax dele durante um tempo, mas ela acabou por ficar com a velha Qung.

O homem apontou com a cabeça para um grupo de mulheres que se tinham instalado numa pequena colina relvada sobre a praia.

É a velha que está no meio do grupo.

Era a corcunda que quisera conhecê-lo. Estava de cócoras, com a cabeça tão inclinada que parecia encostada aos joelhos levantados. Apesar de não conseguir ouvir o que ela dizia, Cen percebeu que a velha estava falando.

Ela é a contadora de histórias da nossa aldeia. Aqamdax foi viver com ela para aprender. As mulheres não ficaram muito satisfeitas com isso, mas ela saiu-se bem. As histórias dela eram agradáveis de ouvir.

O homem continuou falando, contando a Cen os talentos de Aqamdax nas histórias e na cama mas, naquele momento, Cen já não o ouvia. Para quê? Aqamdax não podia ajudá-lo. Ele perdera o seu tempo vindo àquela aldeia e agora não era compensado, arriscando de novo a vida no mar do Norte. Pior do que isso, tinha que fazer um novo plano, de arranjar maneira de se vingar do Povo Rio, e de levar Ghaden, porque qual o pai que consentiria que o seu filho fosse criado como um inimigo?

 

ALDEIA DOS MORSAS

A lança do caçador tinha uma ponta de osso e de concha manchada de sangue antigo. O homem encostou-a no pescoço de Aqamdax, por baixo do queixo, com a ponta virada para a pele.

Vários Caçadores de Morsas tinham ido buscá-la na tenda de Verão. Saíram com ela da aldeia e disseram-lhe, num misto de língua dos Morsas e dos Primeiros Homens, que ficasse junto da praia. Depois, foram todos embora exceto um. Esse estava naquele momento entre ela e a aldeia, como se Aqamdax constituísse um perigo para os que lá viviam, como se ela tivesse de ser mantida à distância com ameaças e armas.

As mulheres juntaram-se atrás do caçador e começaram a gritar, furiosas, mas Aqamdax também ouvia choros vindos da aldeia. Seriam lamentos fúnebres?

Morrera alguém? Seriam os Morsas um povo que matava para expressar a sua tristeza? Ela sabia de esposas que morriam chorando a perda de um marido ou de um filho, e de velhos que, ao perderem um filho, iam para a cama e aí ficavam à espera da morte. Mas porquê matar? Por vingança, sim, mas por desgosto?

O coração de Aqamdax batia tão depressa que lhe tremiam as mãos e os braços. Respirou fundo, tentou avistar Chakliux ou mesmo Sok, mas viu apenas as mulheres dos Morsas, aglomeradas num pequeno círculo.

Lembrou-se da morte do pai e recordou como o sorriso de outra pessoa qualquer a enfurecia. Como podia alguém sorrir quando o pai dela estava morto? Eles não sentiam o desgosto que lhe consumia o coração, até este não ser mais do que um monte de cinzas endurecidas e escuras?

Portanto, se aqueles Morsas estavam chorando a morte de alguém, talvez ficassem um pouco mais calmos se ela partilhasse a sua dor.

Então, apesar da lança apontada à garganta, apesar das velhas que se debruçavam para lhe cuspir, Aqamdax levantou a voz no ulular que era o cântico fúnebre dos Primeiros Homens.

Quando avistou Chakliux, a lança fora retirada e as mulheres choravam com ela.

Aqamdax estava sentada entre eles sem falar, sem olhar para ninguém. Chakliux sentia a sua raiva, e a de Sok. Dente Velho fora escolhido para os vigiar. Levara-os para uma faixa de praia aberta, a pouca distância da aldeia dos Caçadores de Morsas. Ameaçara atá-los de pés e mãos, mas deixara os atilhos de couro a seus pés. Apesar de não os ter amarrado, fazia movimentos rápidos com a lança na direção deles, se eles tentavam falar.

Dente Velho não olhava para Chakliux, mas de vez em quando fazia alguns comentários em voz baixa sobre o vento e as marés, como se eles fossem caçadores que estivessem observando o mar.

Durante algum tempo, Chakliux ouviu-o, mas por fim perguntou:

Quem morreu?

Dente Velho levantou a lança e assobiou, mas respondeu:

Quem julgas que foi? Aquele com quem ela ia casar.

O xamã? perguntou Sok.

Dente Velho baixou a ponta da sua lança até esta ficar apenas a um palmo de distância do pescoço de Sok.

Não podes falar disse Dente Velho. Depois, olhando para Chakliux, acrescentou: Eles julgam que foi a mulher que o matou.

Como é que ela podia fazer uma coisa dessas? Passou a noite inteira na cabana salientou Chakliux.

Dente Velho baixou a lança.

Uns dizem que ela é xamã. Outros julgam que ela traz maus espíritos.

O xamã estava velho. Morreu naturalmente, declarou Sok.

Dente Velho encolheu os ombros.

Uns dizem que isso é verdade.

Então os velhos é que vão decidir se foi ela ou não que o matou? perguntou Chakliux.

Eles é que vão decidir.

E depois o que acontece?

Podem deixar-vos partir. Podem matar-vos. Talvez matem só a mulher.

Não podes fazer nada?

Como posso deixar-vos partir se vocês mataram o nosso xamã?

Nós não matamos ninguém! exclamou Sok, quase gritando.

Dente Velho voltou a apontar a lança ao pescoço de Sok.

Fique calado. Não podes falar, disse ele.

Era de novo o guarda, não o amigo, que os vigiava cuidadosamente, apontando a lança a um e depois a outro, e olhando de vez em quando para o extremo da aldeia, onde os velhos tinham se reunido para tomar a decisão.

Aqamdax tinha sede; o vento secara-lhe a garganta e até os olhos. Seria bom beber um pouco de água antes de morrer.

Nessa manhã, antes de a terem ido buscar, sentira fome, mas agora não lhe parecia que conseguisse comer.

Não devia ter chorado. Devia ter deixado que o homem dos Morsas a matasse. Havia piores maneiras de morrer do que ser trespassada por uma lança.

Como fora estúpida ao deixar a sua aldeia! Até os anos que passara no ulax de Cantador tinham sido melhores do que a sua vida desde então.

Havia melhor professora do que Qung? Quem tinha mais paciência? Se os Morsas matassem Aqamdax, todo aquele conhecimento se perderia. Qung estava velha. Viveria o suficiente para treinar outra contadora de histórias? Talvez ao pensar que Aqamdax ainda tinha uma longa vida para viver, Qung não tivesse pressa de ensinar mais alguém. Talvez ela esperasse demais e muitas das histórias do seu povo se perdessem.

Aqamdax olhou para o homem dos Morsas que os guardava. Era um jovem, com o rosto enegrecido por uma série de tatuagens no nariz e na face. Empurrara o capuz da parka para trás, e Aqamdax reparou que ele tinha o cabelo untado e penteado em duas tranças apertadas, uma de cada lado da cabeça.

Começou a falar, sabendo que as suas palavras poderiam fazer aproximar a lança, mas talvez a levassem também para a sua aldeia, para Qung perceber que tinha que ensinar outra contadora de histórias.

Estou aqui, Qung declarou Aqamdax, falando na língua dos Primeiros Homens. Talvez daqui a pouco tempo se possa dizer que os Morsas me mataram. Talvez daqui a pouco tempo se possa dizer nos ulaxs que eu morri.

O guarda dos Caçadores de Morsas resmungou, furioso, mas Aqamdax levantou a voz, e, quando acabou de enviar a sua mensagem a Qung, começou a contar histórias. Se tinha que morrer, porque não seria como contadora de histórias?

Pelo canto do olho, viu o homem aproximando a lança do seu rosto, mas não deixou de falar. As suas palavras foram pronunciadas na sua própria voz, depois na voz das lontras-marinhas e do vento, na voz de crianças e caçadores. Aqamdax fechou os olhos para não ver a lança, fechou os olhos para não deixar de falar quando a concha lhe cortasse o pescoço, para que as suas palavras fluíssem mesmo depois do seu sangue derramado

 

Escuto Sok, este homem a que tenho outra vez que chamar marido. A sua face está coberta por uma espessa camada de gordura. Ele diz que detesta mosquitos, apesar de não haver tantos assim. Uma pessoa pode passar a mão à frente dos olhos e abrir caminho para ver. Quem precisa de mais do que isso?

Os mosquitos colam-se à cara como nós de cabelo preto, e eu odeio ouvi-lo chamar-me para a sua cama.

Tento vê-lo como ele era na minha aldeia, com o cabelo liso e brilhante, os braços flexíveis e musculados, as pernas grossas e fortes como o poste de madeira por onde saímos do ulax de Qung.

Na viagem para a aldeia dos Morsas, dormimos debaixo do iqyax dele, cuja carcaça abaulada parecia a concha de um molusco, lustrosa e molhada dos baixios.

Mas agora imagino-me uma concha, que alguém tirou da areia e que aguarda. As mãos dele abrem caminho entre as penas e as peles do meu sax, por baixo de costuras meticulosas e de pequenos pontos, até chegarem às minhas pernas. Ele entra em mim, devora-me, e depois adormece, com a cabeça encostada à minha e os mosquitos mortos pela gordura colados ao meu cabelo.

 

ALDEIA DE RIO PRÓXIMO

Chakliux subira Rio Próximo no seu iqyax e esperara duas mãos-cheias de dias por Sok e Aqamdax, que tinham vindo a pé com os cães desde a aldeia dos Caçadores de Morsas. Tinham acampado com ele na última noite. Nessa manhã, depois de Chakliux ter escondido o iqyax no alto dos ramos de um abeto-negro frondoso e de o ter coberto com casca de árvore, partiram para a aldeia de Rio Próximo. Tinham menos de um dia de caminho à sua frente, a maior parte do qual ao longo de um trilho que o povo de Rio Próximo fizera no meio da vegetação que crescia à beira do rio.

Sok disse-lhe que Aqamdax não levantara problemas e que, apesar de a princípio ter medo dos cães, depressa aprendera a atar os fardos e a prendê-los bem para que os animais não roessem as cordas e a alimentá-los para que não se mostrassem preguiçosos no dia seguinte. Além disso, já sabia todas as palavras da língua do Povo Rio que todos os cães entendiam. Mas embora Sok elogiasse a mulher, Chakliux não precisava se esforçar muito para ver o desprezo no olhar de Aqamdax. Quando ela aceitava qualquer coisa das mãos de Sok ou o seguia, submissa, para a cama, Chakliux percebia que ela troçava do irmão com um esgar.

Que outra coisa Sok podia esperar?, perguntou Chakliux a si próprio. Aqamdax fora enganada ao tornar-se esposa, fora entregue a um povo que ia matá-la e, mesmo assim, Sok não fizera nada para salvá-la.

Apesar de o escárnio dela desagradar a Chakliux, ele também tinha motivos para elogiá-la. Quantas mulheres e quantos caçadores teriam se lembrado de se juntar ao cântico das carpideiras se a sua vida estivesse ameaçada? Quando ela fora acusada de causar a morte daquele velho a quem chamavam xamã, não o negara, mas servira-se de várias vozes ao contar as suas histórias para mostrar ao povo os seus poderes.

Como é que os Caçadores de Morsas se arriscariam a matá-la se ela poderia vingar-se? Sem o xamã para os orientar, como eles poderiam proteger-se?

Chakliux vira o homem morto. Fora enrolado como se fosse uma criança, com as mãos fechadas sobre o peito. Não havia marcas de fogo nem de faca, nem sinais de medo nos seus olhos abertos. Era um velho. Os velhos morrem. Porque pensaria que fora Aqamdax? Chakliux dissera-o a Sok quando este não queria levar Aqamdax com eles, e lembrara-lhe que, se a mulher tivesse verdadeiramente poderes, o mais provável era que os matasse a ambos e não o xamã. Por isso, para salvarem a vida dela, e talvez a deles, concordaram em partir, levando todas as suas mercadorias, incluindo Falcão da Neve e Cinzento, os cães que tinham trazido da aldeia de Rio Próximo.

Dente Velho disse a Chakliux que eles depositariam o cadáver do xamã na cabana onde Aqamdax ficara e que depois queimariam aquele local quando terminasse o período de luto. Se uma mulher conseguia matar um xamã, que esperança podia ter alguém de ir contra os seus poderes? Ela não pisara o chão daquela cabana, largando o seu poder a cada passo? Era melhor expulsar esse poder através do fogo para o afastar dos Caçadores de Morsas, que sempre tinham tentado viver com respeito.

Yaa foi a primeira pessoa da aldeia a vê-los. Estava verificando as armadilhas de lebres da mãe, que ela própria montara na margem do rio. Ghaden arrastava-se atrás dela, com Mordedor a seu lado. O rapaz ia silencioso como uma sombra, aproximando-se sempre que ela parava e mantendo-se três passos atrás quando ela andava. Yaa acabara de encontrar a segunda lebre o animal fora estrangulado pelo laço de tendão bem feito da armadilha quando ouviu a vegetação estalando. A primeira coisa de que se lembrou foi de ursos. Puxou Ghaden para junto dela, agachou-se, agarrou o pelo do pescoço de Mordedor e tapou-lhe o focinho com uma mão.

Depois, as folhas afastaram-se e ela reconheceu Sok. O homem de Rio Primo, Chakliux, vinha com ele, e atrás de ambos vinha uma mulher, alta e morena, que usava um estranho adorno de penas. Yaa ia chamá-los, ia saudá-los, mas não o fez. Não conhecia a mulher. Com aquela parka de penas escuras, talvez fosse uma parenta de Corvo. Para quê chamar a atenção de alguém tão poderoso? Yaa deixou-os passar.

Depois que eles se afastarem, Yaa teve vontade de desatar a correr e ir contar o que vira a toda a gente da aldeia, mas sabia que Água Castanha lhe ralharia por sair dali sem verificar e voltar a montar as armadilhas. Até a mãe se zangaria com ela. Só faltavam três. Yaa olhou para trás para ver se Ghaden vinha atrás dela. Ele seguia-a com uma mão enrolada no pelo de Mordedor e a outra esfregando os olhos. Ela parou e ajoelhou-se à frente dele.

Ghaden, te machucaste?

Ele baixou o olhar e abanou a cabeça.

O que se passa?

Nada, respondeu ele em voz baixa e com um suspiro trêmulo.

Ela conhecia-o muito bem para saber que de nada serviria fazer-lhe mais perguntas. Qual o rapaz que admitia que estava chorando? Yaa pegou-lhe as mãos, virou-as, afastou-lhe o cabelo da testa e depois passou-lhe os dedos pelas perneiras até chegar aos pés. Não havia sangue. Talvez ele tivesse machucado um pé com um pau ou alguma pedra escondida nas ervas da margem. Yaa abrandou o passo, mas aproximou-se da armadilha seguinte. Na última, descansariam, mas até um rapazinho tinha que aprender a acabar o seu trabalho. Se os caçadores ficassem em casa sempre que estavam feridos, quem daria de comer às pessoas?

 

Aqamdax ficou satisfeita quando o caminho desembocou numa clareira. Ali, as árvores eram mais altas do que no local em que vivia o seu povo. Apesar de os ramos a ultrapassarem bastante em altura, era como se se encostassem aos ombros dela com os pensamentos e os poderes que as árvores tinham. Algumas eram tão grandes que nem deixavam ver o céu. Quando Aqamdax olhava para cima, era como se elas lhe puxassem o espírito através dos olhos e o levassem para a escuridão dos seus ramos.

As clareiras eram melhores. Apesar de haver pouco vento e um rio em vez do mar, a paisagem era mais parecida com a da sua terra. Como podia alguém saber o que se passava no mundo se o céu estava coberto pelas árvores? Como alguém poderia saber se se aproximavam tempestades ou se ia chover? Nevar ou fazer sol?

Os homens tinham parado, e Aqamdax, ao vê-los, parou também. Pôs as mãos no dorso dos cães para se certificar de que eles não desatavam a correr à sua frente. Os animais tinham aprendido a obedecer-lhe, mas às vezes parecia que viravam selvagens e até rosnavam a Sok. Aqamdax não podia censurá-los. Havia momentos em que também lhe dava vontade de desatar a correr, deixar os fardos que levava e esquecer os muitos tabus do Povo Rio que Chakliux lhe ensinara.

Os tabus dos Primeiros Homens faziam sentido, mas os que ela era obrigada a seguir agora que tinha um marido do Povo Rio maneiras de cortar a carne, palavras que deviam ser ditas quando ela tirava água ou qualquer coisa da terra eram um disparate. As suas próprias palavras não seriam melhores? Agora que ela era uma esposa do Povo Rio, agora que estava ali no local em que vivia aquele povo, isso significava que os tabus dos Primeiros Homens, a sabedoria dos Primeiros Homens, já não deviam ser seguidos? Aqamdax entoava cânticos dos Primeiros Homens e cânticos do Povo Rio, seguia tabus dos Primeiros Homens e tabus do Povo Rio, mas parecia-lhe que levava às costas os ramos das árvores em peso, e deu consigo a observar os pássaros, a seguir o seu vôo, e a desejar que ela também fosse capaz de planar acima das árvores e da terra, levando consigo apenas uma capa de penas e o vento.

Aqamdax! Anda.

Era Sok. Fez-lhe sinal para que se aproximasse deles, e ela pôs-se a seu lado. Ele estendeu o braço, com os dedos esticados, e ela viu que ele apontava para uma aldeia, cujos ulaxs se acumulavam num vale com o formato de uma tigela. Aqamdax não pôde esconder a sua curiosidade. Quem podia acreditar que havia tantas maneiras diferentes de fazer ulaxs?

Escuta! Consegues ouvir os cães? indagou Sok. Aqamdax fez um sinal afirmativo. Olhando para Falcão da Neve e para Cinzento, reparou que os animais tinham as orelhas espetadas e o corpo rígido.

É a tua aldeia? perguntou Aqamdax, reparando que falara na língua dos Primeiros Homens.

Procurou encontrar palavras do Povo Rio e apontou para a aldeia com o queixo. Depois apertou-lhe o braço com as pontas dos dedos e perguntou:

Tua?

Sim, respondeu ele.

Chakliux avançou, disse-lhe a palavra do Povo Rio que significava ”aldeia” e corrigiu-lhe a pronúncia quando ela a repetiu.

Recomeçaram a andar. Sok ia tão depressa que Chakliux tinha dificuldade em acompanhá-lo. Por fim, Chakliux deixou-se ficar para trás e caminhou ao lado dela, e Aqamdax abrandou o passo. O que interessava que Sok chegasse primeiro? Ela tinha tantos dias para viver naquela aldeia, tanto tempo para aprender a língua deles e depois para procurar a mãe, tanto tempo para arranjar maneira de voltar para o seu povo! Pensou em Tut, que envelhecera antes de regressar aos Primeiros Homens, e perguntou a si própria se também ela envelheceria antes de voltar para a sua terra.

Dirigiram-se primeiro à cabana dos velhos. Pousaram os fardos pesados à entrada e deixaram Aqamdax e os cães lá fora.

Treina-Cães saudou-os, e quando os olhos de Chakliux se habituaram à luz fumarenta da lareira, viram que Lobo-e-Corvo, Pato-de-Cabeça-Azul, Raposa-Que-Ladra, Dorminhoco e Faz-Tendas estavam sentados na parte de trás da cabana. Raposa-Que-Ladra levantou-se e fez um grande alarido, como se revisse a mulher e os filhos, mas depois das suas saudações Chakliux sentiu a ganância do homem quando ele fez perguntas subtis acerca dos cães e das mercadorias.

Por fim, Sok interrompeu-o:

Sim, trazemos mercadorias, mas o mais importante é saber se o meu irmão é bem-vindo nesta aldeia disse ele.

São ambos bem-vindos respondeu Pato-de-Cabeça-Azul. Nesta cabana e nesta aldeia. Sentem-se, que vos conto o que aconteceu.

Sentaram-se e pouco depois entrou a mulher de Pato-de-Cabeça-Azul com uma panela de guisado espesso e fumegante. Comeram antes de falar. A comida quente encheu Chakliux de satisfação, que esperava que Pato-de-Cabeça-Azul não estivesse apenas sendo delicado quando afirmara que eles eram bem-vindos na aldeia.

Por fim, depois de esvaziar a tigela, Pato-de-Cabeça-Azul contou:

Depois de vocês partirem, chegou uma mulher com o marido e dois jovens caçadores da aldeia de Rio Primo.

O homem olhou para Chakliux.

Ela disse que era tua mãe e o homem disse que era teu pai. Trouxeram cães de olhos dourados para te ajudar nos negócios. Nós dissemos-lhes que nunca tinhas chegado aqui, que devias ter ido negociar com os Caçadores de Morsas, ou talvez com a gente de outras aldeias Rio.

Eles não procuraram vingar-se? perguntou Sok.

Só se mostraram preocupados com a segurança de Chakliux respondeu Pato-de-Cabeça-Azul.

A minha mãe? K’os? perguntou Chakliux.

Sim afirmou Pato-de-Cabeça-Azul. Não foi fácil fingir que tu nunca tinhas voltado à aldeia. Ela temia por ti, que tivesses morrido. Foi um período duro para ela. Sofreu muito enquanto esteve aqui.

Raposa-Que-Ladra inclinou-se para a frente e serviu-se da tigela para apontar para Chakliux.

Agora só tens um homem a quem chamar pai. Dá graças por a tua mãe, Mulher Diurna, ter um marido comentou ele.

A princípio, Chakliux não percebeu as palavras de Raposa-Que-Ladra, mas, à medida que ia compreendendo, o fôlego parecia abandoná-lo, e não conseguiu falar.

Estão a dizer-nos que o pai de Chakliux morreu? perguntou Sok.

Pato-de-Cabeça-Azul olhou para Raposa-que-Ladra.

Há maneiras melhores de dizer uma coisa dessas disse ele, agarrando no braço de Chakliux. Lamento. Das poucas vezes que fiz negócio com ele, tive sempre o teu pai na conta de um homem honrado.

Chakliux recuperou a voz e perguntou baixinho:

Como ele morreu?

Num incêndio informou Pato-de-Cabeça-Azul. A tua mãe e o teu pai estavam na cabana de um velho, com a mulher dele, aquela que estava sempre cantando. A cabana peou fogo durante a noite. O teu pai e os dois velhos morreram. A tua mãe passou aqui alguns dias de luto e depois voltou à sua aldeia.

Ela não ficou ferida? perguntou Chakliux.

Não. Só ela é que sobreviveu.

Chakliux ficou impassível, sem mostrar nem raiva nem desgosto. É claro que a mãe sobrevivera. Evidentemente. E os dois velhos que tinham morrido... Ele lembrava-se da mulher, Canção. E o marido era... Gaio Azul. Sim. Havia muitas razões para que seu pai, Bate-no-Chão, morresse, muitas maneiras de ele desagradar a K’os. Mas porquê matar os dois velhos? Talvez só para disfarçar a intervenção de K’os na morte de Bate-no-Chão. Talvez só para isso.

Irmão, partilho o teu desgosto disse Sok. Chakliux fitou o irmão e a tristeza apertou-lhe de tal modo a garganta que ele só conseguiu reagir às palavras do irmão com um gesto de cabeça.

Pato-de-Cabeça-Azul, não veio mais ninguém da aldeia de Rio Primo? perguntou Sok. À procura de vingança? Ninguém que perguntasse por Chakliux nem para onde ele fora?

Ninguém.

Quem eram os dois jovens caçadores que vinham com o pai e a mãe de Chakliux?

Tikaani e Quebra-Neve respondeu Pato-de-Cabeça-Azul. O homem olhou para Sok. Conhece-los?

Não respondeu Sok.

Eu conheço-os disse Chakliux em voz baixa.

Sim, pensou ele, e se eram os dois que vinham com a mãe, vinham à procura de vingança. Mas talvez acreditassem no que os velhos lhes tinham dito, que Chakliux não voltara à aldeia. Mas havia muita gente numa aldeia, velhos, esposas e filhos. Alguém lhes podia ter dito que ele passara por ali e que depois fora para os Caçadores de Morsas. De qualquer modo, aparentemente os velhos não estavam convencidos de que o povo de Rio Primo planejasse qualquer ato de vingança.

Era melhor ficar durante algum tempo, concluiu Chakliux, pelo menos até ver o que acontecia a Aqamdax. Além disso, alguém tinha que estar atento. Quem sabia quais eram os planos de K’os? Devia haver alguém na aldeia com os olhos abertos.

És bem-vindo se quiseres ficar aqui conosco. Precisamos de um bom contador de histórias nesta aldeia disse Pato-de-Cabeça-Azul a Chakliux.

Os outros concordaram em surdina, e Faz Tendas acrescentou:

Tens que saber que a tua mãe deixou as ossadas do teu pai no nosso cemitério.

As palavras do homem confortaram-no. As ossadas do pai... Outro laço que o ligava àquela aldeia.

Ficarei, afirmou Chakliux.

Yaa puxou Ghaden para o túnel de entrada. Estava quase perdendo a paciência com ele. Ele mantivera-se perto dela enquanto verificavam as armadilhas mas, no regresso à aldeia, ficara para trás até ela se ver obrigada a pegar-lhe no colo. O rapaz ia no seu quarto Verão era grande demais para andar no colo e crescido demais para se portar como um bebê. Yaa enfiou a cabeça no túnel. Água Castanha estava sentada no interior da cabana fazendo buracos numa pele de caribu com um furador de osso de pássaro.

Yaa virou-se e tirou o dedo da boca de Ghaden. Depois entrou na cabana de cócoras. Ghaden foi atrás dela, de joelhos, e depois atirou-se para cima das esteiras enroladas da cama. Enroscou-se, de costas para Água Castanha, e Mordedor deixou-se cair a seu lado.

Yaa mostrou as duas lebres, mas Água Castanha ignorou-a, dizendo:

Os caçadores não amaldiçoam as suas armas com dedos molhados.

Ghaden ficou imóvel e Água Castanha suspirou, virando-se depois para Yaa. Olhou para as lebres e perguntou:

Voltaste a montar as armadilhas?

A pergunta era um insulto. É claro que ela voltara a montar as armadilhas. Até Ghaden sabia uma coisa dessas.

Sim, respondeu Yaa.

Tira as tripas das lebres e esfola-as, disse-lhe Água Castanha. Depois leva-as para as lareiras. Sok e o irmão voltaram e trouxeram uma mulher dos Caçadores Marinhos. Lobo-e-Corvo resolveu mostrar-lhe que somos uma aldeia forte. Sok diz que ela era contadora de histórias quando vivia com o seu povo.

Yaa arregalou os olhos e olhou para Ghaden. Ambos adoravam serões de histórias, mas Ghaden ficou imóvel, como se estivesse dormindo.

Ela é mulher de Chakliux? perguntou Yaa.

Alguém disse que ela é mulher de Sok.

Mas Sok já tem uma mulher, e Chakliux não tem nenhuma.

Água Castanha encolheu os ombros e depois respondeu:

Falas demais. Faz o teu trabalho. Se todas as mulheres desta aldeia fossem como tu, nunca teríamos nada para comer.

Chakliux e Aqamdax ficaram esperando no exterior da cabana de Folha Vermelha. Os sobrinhos tinham vindo correndo recebê-lo, o mais novo com um esbracejar desordenado e uma tagarelice bem-disposta. O mais velho cumprimentara Chakliux com um sorriso tímido e depois fizera perguntas, muitas perguntas sobre os Primeiros Homens, como caçavam, sobre os seus iqyan, as suas armas. Entretanto, Aqamdax aguardava, de cócoras ao lado dos cães, com um olhar atento. Não dizia nada, embora pouco depois uma multidão de pessoas da aldeia, sobretudo mulheres, se tivesse reunido e apontasse para ela com esgares e queixos empinados, falando dela como se a mulher não estivesse ali ouvindo as suas palavras.

É claro que ela entendia pouco, pensou Chakliux, o que era bom, visto que nem sempre eles eram amáveis, apesar de todos falarem com admiração do sax de penas de Aqamdax.

Por fim, quando Sok saiu, várias mulheres fizeram perguntas sem olhar a delicadeza, mas ele não respondeu. Inclinou-se para pegar o braço de Aqamdax e fez sinal a Chakliux para que entrasse com eles.

Chakliux não sabia o que esperar de Folha Vermelha. Algumas primeiras esposas ficavam zangadas quando uma segunda esposa vinha para a cabana delas, mas outras, em especial as que acolhiam irmãs ou primas como segundas esposas, ficavam satisfeitas era mais uma pessoa para ajudar a costurar e a cozinhar, para preparar as peles e para tomar conta das armadilhas. Mas como podia qualquer mulher do Povo Rio reagir ao ver que a segunda esposa do marido era uma mulher dos Primeiros Homens que mal sabia falar a língua do Povo Rio?

Chakliux deu uma olhadela a Folha Vermelha e viu-lhe os olhos inchados e as lágrimas.

Serás sempre minha esposa, disse-lhe Sok, mas Folha Vermelha desviou o olhar.

Mesmo que ela te dê muitos filhos? perguntou a mulher por fim, em voz baixa.

Que melhor filho há do que Leva-Muito? respondeu Sok. Que filho me poderia dar mais alegria do que Chora-Alto?

Sok tentou rir, mas o som era estranho, como se o riso não fosse dele.

Folha Vermelha fez beicinho e depois aproximou-se de Sok quando este trouxe vários cestos de erva finamente tecidos e um agulheiro de pele de morsa do tamanho da sua mão e cheio de pedaços de pele de foca atravessados por muitas agulhas de todos os tamanhos e feitios.

Também trouxe carne de morsa para os nossos filhos, e um odre de óleo de baleia disse ele. O que lhes dá mais força do que o óleo e a carne de animais tão possantes como as baleias e as morsas?

Esta mulher não presta na cama de um homem declarou Sok, apontando com o queixo para Aqamdax. Mas é boa a fazer cestos e esteiras. Pode fazer as coisas que tu não quiseres. Pode tomar conta dos nossos cães e ir apanhar lenha. Pode arranjar o peixe e manter a neve empilhada à volta da nossa cabana no Inverno. Pensei que, de todos os presentes que eu te trouxe, seria ela o que mais te agradaria. Folha Vermelha levantou a cabeça e observou Aqamdax. Esta enfrentou o olhar da mulher.

Aqui está. Também trouxe isto para ti disse Sok, tirando uma pele de lontra-marinha de um dos seus fardos.

Folha Vermelha pegou a pele, passou a mão pelo pelo espesso e macio, virou-a ao contrário e cheirou-a.

É bonita observou ela. Olhou de novo para Aqamdax. Ela não entende a nossa língua?

Só algumas palavras, respondeu Sok.

Não tenho tempo para me preocupar com ela, disse Folha Vermelha. Não lhe posso ensinar a falar a verdadeira língua e costurar ao mesmo tempo.

Eu não a trouxe para te dar mais trabalho, disse Sok à mulher. Olhando por cima do ombro para Chakliux, acrescentou: Chakliux ensina-a. O que quiseres que ela faça, diz a Chakliux.

Fica aqui, então! gritou Yaa, e deixou Ghaden sozinho na cabana. Vou para as lareiras da comida.

Levava as lebres, sem tripas e esfoladas, na mão, com o braço estendido para não encostarem na parka.

Não era fácil ser mãe, em especial agora que a ferida de Ghaden sarara. Quanto mais forte ele estava, mais lhe desobedecia. Bem, ela não ia faltar à festa. Além disso, queria contar às amigas que vira a mulher dos Primeiros Homens antes de todo mundo.

Gostaria de ter largado as armadilhas e ido correndo contar a todos que Sok e Chakliux vinham chegando. Agora as amigas podiam dizer que ela inventara a história, apesar de saberem que não dizia mentiras.

Tinha a mente tão cheia do que iria contar às amigas que nem viu Dança-no-Gelo senão quando ele estava a seu lado.

Sok e o irmão de Rio Primo estão de volta disse ele. Vi-os quando iam a chegar à aldeia.

Eu já os vi disse Yaa, arrependendo-se de ter falado.

Mentirosa!

Dança-no-Gelo fez um esgar e, de súbito, Yaa lembrou-se da alegria que sentira ao dar-lhe um murro e do sangue que ele deitara pelo nariz. O rapaz era grande e mais velho do que ela, mas não era tão corajoso como fingia ser.

Desta vez, ela não lhe respondeu. Limitou-se a encolher os ombros. Quando ele percebeu que ela não iria fazer perguntas, atirou a cabeça para trás e desatou a correr, deixando-a sozinha. Yaa suspirou e abrandou o passo para não ter que apanhá-lo. Quando passou pela cabana de Folha Vermelha, andou ainda mais devagar, esperando ver a mulher dos Primeiros Homens, Sok ou Chakliux, mas até os cães estavam calados, exceto um de olhos dourados do povo de Rio Primo, que Yaa reconheceu. Ficou admirada ao ver que o cão voltara para a aldeia. Uma das amigas dissera-lhe que os velhos não o queriam ali, embora ela não soubesse ao certo porquê.

Em seguida, aproximou-se da cabana de Flor Malhada. A mãe estava lá fora e disse a Yaa que a filha já estava nas lareiras da comida. Yaa apressou o passo e quando chegou às lareiras, examinou o grupo de crianças e levou as lebres para a panela mais distante do local em que Dança-no-Gelo se encontrava. Já se formara à volta dele um grupo de rapazes mais pequenos, e Dança-no-Gelo estava falando-lhes da mulher dos Caçadores Marinhos.

A avó Serve-se-Sozinha tirou-lhe as lebres da mão. Como eram muito grandes, Yaa lembrara-se de as assar no espeto, mas Serve-se-Sozinha pôs as lebres numa prancha de madeira e começou a cortá-las em pedaços com a sua faca de mulher.

Como se adivinhasse os pensamentos de Yaa, levantou a cabeça e disse:

Elas são boas demais para que a gordura caia no fogo.

É claro que todos sabiam que a gordura caída no fogo não se perdia. As ervas, os frutos e as árvores serviam-se dela para crescer. Os espíritos cheiravam-na na fumaça e evitavam fazer as patifarias que tinham combinado. Mas as pessoas também precisavam de gordura, e Yaa sentia-se orgulhosa por as suas lebres darem alegria às barrigas e força aos braços e às pernas. Lambeu o sangue da lebre crua que tinha na mão e nos dedos e depois avistou Flor Malhada com um grupo de amigas. Tinham escolhido um local para o qual o vento empurrava o fumo das lareiras, afastando os mosquitos.

Yaa foi juntar-se ao grupo e ficou escutando durante algum tempo, antes de falar, rindo quando Bom Punho descreveu a luta que travara com o irmão e depois levantando-se para ver o novo pente que Corta-Lenha-Depressa trazia no alto da cabeça, um presente do jovem caçador que estava destinado a ser seu marido assim que ela começasse os seus períodos lunares.

Corta-Lenha-Depressa era dois anos mais velha do que Yaa, mas era estranho pensar nela como esposa de alguém. Apesar de ser mais velha, estava, em certos aspectos, mais longe de ser uma mulher do que Yaa, como todas aquelas amigas. Nenhuma delas era mãe como Yaa. Risca Verde levava o irmão mais novo atado às costas numa prancha de embalar, mas cuidar de um irmão ou de uma irmã, de um primo ou de um sobrinho, não era a mesma coisa que ser mãe. Às vezes, quando estava com as amigas, Yaa sentia-se uma velha junto das crianças; no entanto, ainda não tinha os olhos abertos para as coisas duras da vida.

Por fim, a conversa enveredou por Sok e Chakliux. Várias meninas riram por a mulher nova ser esposa de Sok e não de Chakliux. Ah, Chakliux, diziam, que não conseguia encontrar alegria, apesar de Mirtilo ter sido estúpida ao escolher Caça-Raízes, e Neve-no-Cabelo... Puseram a mão na boca e riram. Algumas das mais velhas lembravam-se do tempo em que Neve-no-Cabelo brincava com elas, antes de o sangue lunar a separar das brincadeiras e das crianças. Parva! Agora não tinha marido, e qual o homem que a queria se ela não respeitava uma pessoa cujo pé de lontra lhe dava tanto poder?

Dizem que a mulher dos Primeiros Homens é feia, cochichou Risca Verde.

As meninas inclinaram a cabeça e Corta-Lenha-Depressa acrescentou:

O meu pai disse-me que não olhasse para ela, porque a feiúra dela pode passar para a minha cara e depois Rato Almiscarado não me quer.

Yaa abanou a cabeça. Corta-Lenha-Depressa tentava sempre desviar a conversa para poder falar de Rato-Almiscarado. O rapaz era filho da irmã do pai dela e estava-lhe prometido desde bebê. As tias de Yaa não tinham filhos, e a tia de Flor Malhada era velha; todos os seus filhos tinham esposas. O mesmo se passava com as outras meninas. As tias tinham morrido, e ou não tinham filhos ou estes eram novos ou velhos demais. Corta-Lenha-Depressa não tinha verdadeiramente um motivo para se considerar melhor do que as outras pelo fato de já estar prometida. Não era a mesma coisa que um caçador a ter pedido por ela ser bela ou hábil na costura.

Estás enganada, disse Yaa.

As meninas olharam para ela, admiradas. Até a irmã de três anos de Bom Punho, Rede, que estava entretida com uma mão-cheia de seixos coloridos, levantou a cabeça. Rede enfiou um dos seixos na boca e Bom Punho, sem desviar o olhar de Yaa, meteu um dedo na boca da irmã e retirou a pedra.

Como sabes? perguntou Flor Malhada.

Vi.

As perguntas surgiram depressa demais para que Yaa pudesse responder, até que uma das meninas mais velhas, Colar Azul cujas queixas de dores nos seios davam a saber a todas que, dentro de pouco tempo, ela abandonaria o círculo das crianças para ocupar um lugar entre as mulheres mandou-as calar e ordenou a Yaa que se explicasse.

Yaa sentiu-se eufórica de entusiasmo. Não era muito freqüente ser alvo da atenção de Colar Azul. Falou depressa, contando que ela e Ghaden andavam verificando as armadilhas. Disse que a mulher não era feia, que as roupas dela eram diferentes, como aquelas que a mãe de Ghaden usava quando era viva. Não mencionou o nome de Daes; não se ia arriscar a fazer tal coisa mas, mesmo assim, as meninas viraram a cara para o lado quando ela falou na mulher morta.

Depois de Yaa ter contado a sua história, elas fizeram-lhe perguntas até a menina não ter mais nada para lhes contar. Concentraram-se então noutros assuntos, e daí a pouco Corta-Lenha-Depressa começou de novo a gabar-se de Rato Almiscarado.

Durante algum tempo, Yaa esteve sentada ao pé delas, mas depois começou a sentir-se inquieta, lembrando-se de repente que deixara Ghaden sozinho na cabana. Quem sabia o que podia fazer uma criança, sozinha, sem ninguém a olhar por ela? Yaa aceitara ser mãe dele; não era uma coisa de que se pudesse esquecer quando estava cansada do excesso de trabalho.

Levantou-se e, apontando com o queixo para a irmãzinha de Bom Punho, disse:

Tenho que ir tomar conta de Ghaden. Eu volto.

A maior parte das meninas, porém, estava conversando sobre outra coisa qualquer, e Colar Azul já abandonara o grupo, dirigindo-se, rebolando, para o grupo dos rapazes e inclinando-se para um dos jovens caçadores a fim de lhe dizer qualquer coisa ao ouvido.

Aquela não tarda a estar casada, pensou Yaa. Mas quando as meninas mais velhas partiam para se tornarem esposas, os bebês cresciam e iam ocupando o lugar delas, o que era bom, era assim que as coisas deviam ser.

Pouco faltava para que Ghaden fosse se juntar aos rapazes. Parecia ter decorrido tanto tempo desde o último Inverno, quando ele fora esfaqueado. Com Mordedor vivendo na cabana deles, Yaa começara a sentir-se segura. Mas, se o assassino fosse alguém da aldeia, talvez estivesse à espera que eles se esquecessem, que Yaa estivesse tão ocupada com a sua própria vida que deixasse de se preocupar com Ghaden.

Quando Yaa chegou à cabana, entrou de cócoras, chamando Ghaden. Mordedor deu um salto rápido e começou a lamber-lhe o rosto antes que ela conseguisse levantar-se e afastá-lo. Ghaden sentou-se, esfregando os olhos. Yaa respirou fundo e riu das suas preocupações exageradas.

Venho buscar-te para ires comigo às lareiras arranjar comida disse ela.

Não tenho fome.

Ghaden, tu tens sempre fome!

Não.

Ghaden, tens de vir.

Ele desatou a chorar, mas Yaa agarrou a parka dele e enfiou-lhe pela cabeça. Depois, esfregou-lhe o rosto com gordura para o proteger dos insetos. A princípio, ele ofereceu resistência, mas por fim deixou-se ir, coxeando. Yaa teve a sensação de que estava tratando de um bebê.

Podemos levar Mordedor!

Bem sabes que Mordedor rouba comida se o levarmos.

Ghaden enfiou o dedo na boca. Em geral, Yaa tirava-o, mas dessa vez não lhe tocou. Pegou as tigelas da comida, atou uma corda entrançada ao pescoço de Mordedor e prendeu-o lá fora. Ghaden abraçou o cão e foi atrás de Yaa. Andava devagar, mas sem se lamentar nem chorar.

Quando chegaram às lareiras, Dança-no-Gelo e três outros rapazes passaram por eles. Dança-no-Gelo parou e encostou a cara à de Yaa.

Mentirosa disse ele. Eu sei o que disseste a Colar Azul e às meninas.

Yaa pegou a mão de Ghaden e apertou o passo, mas Dança-no-Gelo agarrou o capuz da parka de Ghaden, agachou-se e disse:

A tua irmã é uma mentirosa. Sabias?

Ghaden enfiou o dedo na boca e Dança-no-Gelo deu uma gargalhada. Pegou a mão de Ghaden, abriu a boca e meteu o dedo do rapazinho lá dentro.

Eu devia arrancá-lo à dentada, para não ficares um bebê para toda a vida.

O meu cão te mataria disse Ghaden. Dois dos outros rapazes riram.

É assim mesmo! Aperta ele! disse Primeira Árvore a Ghaden.

Dança-no-Gelo levantou-se e agarrou Primeira Árvore. Yaa puxou Ghaden. Dança-no-Gelo disse qualquer coisa à menina que ela não ouviu. Yaa viu a mãe mexendo numa panela e aproximou-se dela. Apesar das suas fanfarronices, Dança-no-Gelo não causava problemas quando os adultos pudessem vê-lo.

Os outros homens já tinham comido quando Sok, Chakliux, Folha Vermelha e a mulher dos Primeiros Homens chegaram às lareiras. Assim que Ghaden os viu, desatou a chorar. Por fim, Boca Feliz disse a Yaa que o levasse para casa.

Quando chegaram à cabana, Yaa pôs mais lenha na lareira e tirou a parka de Ghaden, limpou-lhe os restos de comida da boca e embrulhou-o nos cobertores. Mordedor deitou-se ao lado dele mascando um pedaço de carne seca que Yaa roubara para ele de um cesto de comida.

A menina afagou o cabelo de Ghaden e cantou até o choro dele se resumir a um ou outro soluço. Depois, inclinou-se sobre ele e disse em voz baixa:

Tens que me explicar porque estás chorando, Ghaden. Tens medo de Sok? Tens medo de Chakliux?

Ghaden não respondeu. Fechou os olhos e aproximou-se mais de Mordedor. Levantou a cabeça e escondeu o rosto no pelo macio do pescoço do cão.

 

Era mais difícil do que o desgosto que ele sofrera da última vez que estivera na aldeia de Rio Próximo, pior do que descobrir que Aqamdax saíra da aldeia dos Primeiros Homens. As mãos de Cen agarraram-se ao remo, e os músculos das pernas crisparam-se, como se pudessem tirá-lo do iqyax que navegava nas águas sombrias do rio e levá-lo para a cabana onde Ghaden dormia.

Passara propositadamente vários dias sem fazer nada com a tenda montada à beira de um regato de águas vagarosas à espera daquela noite de lua nova, escura e silenciosa. Agora passava pela aldeia, afagando a margem distante do rio, e, apesar de não ver nada na escuridão, não pôde deixar de olhar para aquelas cabanas nem de pensar no filho.

Por duas vezes atravessara aquele rio, quase decidido a ir à aldeia, mas, ao mudar o remo para o lado esquerdo do iqyax para dar a curva, lembrou-se das acusações dos aldeões, da sua raiva, e recordou a si próprio que nunca conseguiria ir buscar o filho se ele próprio morresse. E embora, como espírito, pudesse ter alguma oportunidade de se vingar, era melhor continuar vivo, procurar vingança como guerreiro e ter a satisfação de ensinar o filho a caçar e a negociar.

As pessoas da aldeia de Rio Primo iriam recebê-lo bem. Era sempre assim. Como o Verão ainda não acabara, talvez ainda estivessem nos seus acampamentos de pesca à beira do rio.

A raiva parecia alimentar escaramuças freqüentes entre as duas aldeias, apesar de ambas terem antepassados comuns com o povo de Rio Próximo. Talvez ele encontrasse homens de Rio Primo que o ajudassem a recuperar o filho e a vingar-se. Visitara aquela aldeia há dois ou três Verões. K’os recebera-o na sua cabana. Era curandeira e o marido era o chefe dos caçadores, apesar de estar velho e perdendo o respeito dos jovens.

Se K’os ainda estivesse lá, iria visitá-la em primeiro lugar. Ela estava sempre ansiosa por mercadorias, e ele tinha muitas coisas dos Primeiros Homens que a mulher iria apreciar.

Ouviu vários cães da aldeia começarem a latir. Talvez o sentissem remando, mas o rio era tão largo que não devia ser por isso. O mais provável era que tivessem visto um porco-espinho ou um mocho, mas Cen remou mais depressa, para o caso de o barulho chamar a atenção de algum caçador.

Remou com força até se afastar bastante da aldeia. Só pararia de manhã, e apenas para repousar um pouco e comer um pedaço de peixe seco. Não queria que nenhum caçador de Rio Próximo o visse, caso ele resolvesse vingar-se outra vez da morte de Tsaani e de Daes.

 

Cães. Lutavam, mordendo os braços de Aqamdax, atirando os corpos pesados contra as pernas dela para a derrubar e morder.

Acordou sobressaltada, com a respiração ofegante, até que o sonho a abandonou. Deixou-se ficar quieta e por fim percebeu que tinha o braço de Sok em cima da barriga. Gostaria de não dormir com ele até ter a sua própria cabana. Não podia suportar o olhar triste de Folha Vermelha sempre que Sok lhe tocava.

Tentara explicar a Folha Vermelha que não sentia nada por ele, que nada faria para ganhar os seus favores, mas Folha Vermelha começara a desfiar as virtudes de Sok, enumerando, tanto quanto Aqamdax conseguira perceber, os dotes e os poderes do marido, até encher a cabana com os seus gritos e obrigar Aqamdax a sair. Juntara-se ali um grupo de mulheres, com a mão na boca, mas ela estava habituada a ser alvo de troça; por isso, empinou a cabeça e encaminhou-se para as lareiras da aldeia, começando a mexer nas panelas como se nada tivesse acontecido.

Do outro lado da cabana, Folha Vermelha suspirou e disse qualquer coisa dormindo. Sok gemeu e tirou o braço de cima da barriga de Aqamdax. Ela afastou-se dele. Desde que chegara àquela aldeia que não dormia bem. Acordava no meio da noite, e as preocupações embrenhavam-se nos seus pensamentos até chegar a hora de acender o fogo da manhã e ir buscar lenha.

Perdera a conta aos dias que passara ali. Mais de dez, disso ela tinha certeza, mas ainda não de uma lua cheia a outra.

Todos os dias Chakliux lhe ensinava mais alguma coisa da língua dele. Parecia adivinhar as palavras que ela devia aprender em primeiro lugar, mas mesmo assim Aqamdax tinha que pensar cada frase na sua própria língua antes de se lembrar da palavra na língua do Povo Rio, o que lhe retardava os pensamentos e lhe embaralhava a fala. Folha Vermelha não a ajudava e parecia divertir-se atrapalhando o seu esforço de aprendizagem. Sok não tinha paciência, mas os dois filhos começavam a tratá-la como amiga, rindo dos seus erros, mas ajudando-a também a corrigi-los. Aqamdax já começara a fazer um impermeável de tripa de caribu para cada um deles, embora Sok tivesse duvidado da utilidade de tal peça de vestuário para um rapaz do Povo Rio e Folha Vermelha tivesse reagido com fúria.

Também fizera um cesto para Folha Vermelha, mas a mulher jogara-o fora e pisara-o com desdém.

Aqamdax dizia a si própria que as coisas haviam de melhorar. Dentro de pouco tempo, saberia falar a língua do Povo Rio suficientemente bem para contar histórias, e Sok já lhe dera as peles de caribu que eram necessárias para construir uma cabana, apesar de ela não saber ao certo como se fazia tal coisa. Esperava que algumas mulheres da aldeia a ensinassem.

Elas pareciam tratá-la bem quando Aqamdax fazia o seu turno nas lareiras da comida. Uma mulher chamada Boca Feliz até a abordara e mantivera uma conversa animada que ela percebera vagamente. Mesmo assim, a aceitação de Boca Feliz dera-lhe esperança de que outras mulheres viessem também a considerá-la uma amiga.

Aqamdax virou a cabeça para ver o orifício da fumaça. Estava muito escuro. Era noite de lua nova, mas faltava pouco para o céu clarear e ela poder se levantar. Lembra-te que não ficarás aqui para sempre, pensou ela. Um dia, alguém dos Primeiros Homens virá aqui fazer negócio.

Então ela iria com ele, regressaria ao seu povo, à sua aldeia, e voltaria a ser contadora de histórias.

O latir dos cães acordou-o. Ghaden procurou Yaa, apalpando os cabelos escuros e macios da menina e enfiou o dedo na boca. Sentiu Mordedor mexer-se a seu lado e ouviu-o começar a rosnar. Pôs-lhe a mão no dorso, mas Mordedor levantou-se, com as pernas esticadas, e dirigiu-se para a porta. Ghaden ficou à espera, sustendo a respiração.

Talvez fosse ela. Ghaden sabia que ela viria buscá-lo. Poderia Mordedor protegê-lo das pessoas, e dos fantasmas? O que faziam os fantasmas? Transformavam as pessoas em fantasmas? Se ele fosse um fantasma, ainda viveria naquela cabana com Yaa, Água Castanha e Boca Feliz? Poderia brincar com os outros meninos ou teria de pairar como a fumaça? Pior, o fantasma mataria Mordedor!

Ouviu o cão rosnar outra vez e abanou o braço de Yaa até ela acordar.

O que foi? perguntou ela com uma voz sonolenta. Pareceu-lhe que Yaa estava zangada com ele, apesar de não lhe ver a cara no escuro.

Algo está lá fora, disse Ghaden em voz baixa.

São só os cães latindo. Dorme.

Yaa deixou-se cair de novo nos cobertores, mas Ghaden debruçou-se sobre ela e insistiu:

Talvez seja o fantasma. Yaa sentou-se.

Que fantasma?

Aquele que veio com os caçadores. Aquele que vive com o homem-lontra.

A mulher dos Primeiros Homens?

Ela é um fantasma.

Ghaden! Ela é uma mulher. Tal como nós. Bem, quase como nós.

Ghaden sentiu as lágrimas sufocando-o. Yaa não gostava que ele chorasse, por isso fechou os olhos com força e tentou conter as lágrimas.

Ghaden, porque achas que ela é um fantasma? perguntou Yaa baixinho.

Ela é a minha outra mãe respondeu Ghaden, mas, quando ele falou, as suas palavras foram acompanhadas de um soluço. Fechou a boca, amargurado por Yaa ter percebido que ele estava chorando.

Chiu, disse ela.

Yaa sentou-se e pegou-lhe no colo. Mordedor foi para junto deles, enfiou o nariz no rosto de Ghaden e lambeu-lhe as lágrimas.

Não te aflijas, Ghaden disse-lhe Yaa. Ela não é um fantasma mas, mesmo que fosse, estás em segurança conosco.

De manhã, Yaa deixou Ghaden na cabana e foi às lareiras. Passou pelo local em que a mulher dos Caçadores Marinhos de Sok estava construindo a sua nova cabana, esperando vê-la ali trabalhando. Vários velhos cavavam um círculo na terra com grandes lâminas de ardósia. Em geral, eram as mulheres que faziam aquilo, mas muitas ainda estavam nos pesqueiros de Verão com as suas famílias, embora voltassem àquela aldeia de Inverno antes de partir para a caça ao caribu.

Yaa mal se lembrava da última vez que estivera numa caçada ao caribu. Fora quando o pai ainda tinha forças para caçar, mas depois ele envelhecera e agora, sem um homem na cabana, dependiam do filho casado de Água Castanha para lhes trazer carne de caribu, apesar de ela, a mãe e Água Castanha terem participado na pesca e na seca do salmão para o Inverno.

Passou devagar pelo local da cabana, arranjando um pretexto para parar e apertando os atilhos de couro cru das botas desde o peito do pé até aos tornozelos. Começou pelo pé esquerdo e depois passou ao direito, mas a mulher dos Caçadores Marinhos não apareceu. Yaa ficou olhando para os velhos, até que Pato-de-Cabeça-Azul parou de cavar e ralhou com ela, chamando-lhe preguiçosa. Yaa desatou a correr para as lareiras, escolheu uma panela e despejou a magra contribuição de Água Castanha constituída por salmão seco e uma mão-cheia de vacínios frescos. Colocou mais lenha numa das fogueiras e depois serviu-se de um cabo de madeira de salgueiro para tirar uma pedra das brasas. Levou-a para junto da panela, atirou-a lá para dentro e ouviu-a assobiar, transmitindo o seu calor à carne e ao caldo.

Ficou desapontada por a mulher dos Caçadores Marinhos não estar trabalhando na sua cabana. Devia estar quase sempre lá dentro, pensou Yaa, porque era raro mostrar-se. Bem, como segunda esposa, a mulher dos Caçadores Marinhos teria que fazer o que Folha Vermelha lhe mandasse, tal como a mãe de Yaa tinha que fazer o que Água Castanha mandava.

Yaa mexeu a panela outra vez e olhou para o céu. Água Castanha dissera-lhe para ficar ali até que o Sol tivesse passado dois palmos do cimo das árvores, a nordeste. Ela levantou a mão na direção da copa das árvores. Um e meio. Pôs mais lenha em duas fogueiras, nos lugares em que abafava menos as brasas. Não se importava de ir apanhar lenha nem de alimentar o fogo ou mexer a comida, mas não gostava de ir buscar pedras quentes nem de as deixar cair dentro das panelas. Até as pedras escolhidas com mais cuidado lisas e redondas às vezes se partiam aos pedacinhos quando as juntavam à carne. Havia sempre a possibilidade de saltar uma lasca que lhe cortasse as mãos ou o rosto. Bom Punho tinha uma cicatriz por cima da sobrancelha esquerda causada pelo golpe de uma pedra feito no ano anterior. Depois, evidentemente, alguém tinha que procurar todas as lascas da pedra e tirá-las da comida. Yaa já nem se lembrava quantas vezes tivera que fazer isso. Mesmo assim, apesar de ser cuidadosa, uma vez Treina-Cães partira um dente numa lasca que ela não encontrara.

Yaa passou para a panela do lado. Naquele momento, estava sozinha nas lareiras, embora percebesse que as outras mulheres tinham saído dali pouco tempo antes, visto o fogo estar ardendo muito bem, e não tardariam a voltar. Mexeu a carne, sentiu o calor subindo, mas sabia que era preciso mais uma pedra. Estava apanhando a pedra com o cabo de salgueiro quando viu a mulher dos Caçadores Marinhos caminhando na sua direção. Por muito que quisesse vê-la, Yaa não desviou olhar da pedra até conseguir puxá-la para junto da panela. Deixou-a cair lá dentro, levantou a cabeça e cumprimentou a mulher.

A mulher dos Caçadores Marinhos sorriu a Yaa e levantou uma pele de caribu. Apontou para as panelas com o queixo e depois para a pele, a fim de que Yaa percebesse que ela queria levar carne para a cabana de Folha Vermelha.

Folha Vermelha dizer... Vir... Buscar.

Era como se a fala entrecortada da mulher tivesse roubado as palavras a Yaa, que se limitou a fazer um gesto com a cabeça. A mulher levou-lhe a pele e ela encheu-a.

A mulher dos Caçadores Marinhos agradeceu-lhe e Yaa inclinou a cabeça. Depois, recomeçou a mexer a comida. Quando a mulher ia a afastar-se, Yaa gritou-lhe:

Sou Yaa. A minha mãe é Boca Feliz. O meu irmão é Ghaden.

A mulher virou-se

Não falar, disse ela.

Yaa pôs a mão no peito e pronunciou:

Yaa.

Aqamdax. Yaa levantou o queixo na direção da mulher.

Aqamdax? perguntou ela.

Sim. A mulher afastou-se. Aqamdax, pensou Yaa. Era uma palavra que ela não conhecia. Uma palavra dos Caçadores Marinhos, sem dúvida, e difícil de pronunciar. A última parte parecia mais uma engasgadela do que um som. Não era de admirar que as pessoas não a tratassem pelo nome.

Daes tinha um nome do Povo Rio. Talvez aquela mulher, depois de viver há algum tempo na aldeia, adotasse um nome que todos conseguissem pronunciar. Em seguida, pensando em Daes, Yaa percebeu que aquela nova mulher era muito parecida com ela. Era sempre a mesma coisa se havia muita gente. Os caçadores da aldeia de Rio Primo, quando iam ali negociar, pareciam ser todos iguais.

Daes conservara os cabelos compridos, e era raro apanhá-los e afastá-los da cara. Cortava uma franja de um lado ao outro da testa, como aquela nova mulher dos Primeiros Homens. De repente, Yaa deixou de mexer a comida. Não era de admirar que Ghaden não quisesse sair. Aqamdax era mesmo parecida com Daes. Talvez ele julgasse que ela era o fantasma da mãe.

 

ACAMPAMENTO DE PESCA DE RIO PRIMO

K’os enrolou as esteiras da cama e atou-as com uma tira de couro cru entrançado. Detestava os três longos dias de caminho até à aldeia de Inverno. Ficariam ali apenas uma lua e depois partiriam para a caça ao caribu, e o que era pior do que isso? Empilhar pedras e reconstruir sebes de ramos para encaminhar os caribus para os caçadores. Depois, esquartejar e transportar a carne, um trabalho quase todo feito pelas mulheres.

Nos últimos anos, K’os resolvera ficar na aldeia de Inverno e encontrara uma jovem disposta a acompanhar o marido e a fazer o trabalho dele na esperança de vir a ser segunda esposa. K’os não se importava de ter outra mulher na cama de Bate-no-Chão durante a caça ao caribu, mas uma segunda esposa? Não. Para quê arriscar-se a que Bate-no-Chão fosse influenciado pelas necessidades de outra mulher, pelos desejos dela ou pelas idéias do pai dela? K’os reparava sempre que elas eram bem pagas em carne, e recebiam até alguns colares, mas encontravam sempre motivos para regressarem às cabanas das mães.

Nesse ano, porém, K’os não tinha marido, e isso implicava que ela tinha que voltar a ir à caça. Faria a sua parte do trabalho construir sebes, esquartejar e esfolar mas mesmo assim estaria atenta.

Nesse ano, os jovens caçadores tinham resolvido romper com outra tradição e ela receava que, na sua ausência, eles se deixassem convencer pelos velhos e voltassem às suas lanças e aos seus lançadores, sem terem oportunidade de provar que os seus arcos e as suas setas curtas também funcionavam, talvez ainda melhor.

Juntou o rolo dos cobertores ao monte dos seus pertences. Os seus dois cães levariam a tenda de pele de caribu, a cama e os utensílios de cozinha. Ela levaria a bolsa dos remédios, as plantas que colhera e secara e as poucas armas que possuía.

Protegeu os olhos do sol e observou o acampamento. Tinham ficado poucas famílias, e portanto era fácil ver que a tenda de Tikaani ainda estava de pé. A irmã dele era vagarosa. K’os retirou dois peixes secos de um sael e deu um a cada cão. Quase todos os velhos julgavam que os cães trabalhavam melhor com o estômago vazio, mas ela sempre os alimentara bem e nunca tivera problemas com eles.

Cães e homens eram muito parecidos: maus quando tinham a barriga vazia. K’os riu e sentou-se no rolo da cama. Tirou um peixe e começou a comer, de costas para o acampamento de Verão, para poder ver o caminho que vinha do rio.

A princípio, julgou tratar-se de uma visão o corpo de um urso com a cabeça e o bico de uma águia gigante. Quando vários velhos encontraram coragem para avançar e ir ao encontro do estranho animal, ela percebeu que se tratava apenas de um homem transportando um grande fardo e um barco coberto por uma pele. Um comerciante dos Caçadores Marinhos tão longe do mar?

Nunca fora pessoa para correr a cumprimentar comerciantes ou caçadores sem perceber que tipo de homens eles eram. Uma vez, essa imprudência custara-lhe muito caro. Não repetiria o erro. Agachou-se no meio dos cães, com um braço à volta do pescoço de cada animal, e falou-lhes numa voz firme até o ladrar dos animais se transformar em ganidos fracos e agudos.

Quando o homem se aproximou o suficiente para ela lhe ver a cara, recordou-se dele, lembrou-se de o ter convidado para a sua cama. Fora apressado demais para o gosto dela, mas mostrara-se generoso na recompensa. O seu rosto mudara mais do que seria de esperar da passagem dos anos. Partira o nariz e tinha uma cicatriz que lhe repuxava a boca, mas os malares e os ossos das faces eram os mesmos

O xamã Falador levantou-se, endireitou os ombros e encolheu a barriga flácida. Aproximou-se do homem e pouco depois discutia com ele, afirmando que ele nunca estivera naquela aldeia. K’os fez um sorriso trocista. O que sabia Falador?

K’os levantou-se e encaminhou-se lentamente para o comerciante. O homem pousara o barco e K’os reparou que ele trazia um chapéu em bico. Parecia ser de madeira, esguio e abaulado como o seio de uma mulher, mas suficientemente grande para assentar na cabeça de um caçador. Fora impermeabilizado com tiras de intestino. K’os percebia a razão de ser de tal objeto, sobretudo no mar. Protegia os olhos do sol e até da chuva. Um caçador poderia usá-lo, ou um xamã. De qualquer modo, devia ter poder. Ela queria aquele chapéu e, quando o comerciante partisse, ficaria com ele.

Ele já esteve aqui disse K’os a Falador. Falador virou-se para ela, e K’os reparou no olhar sombrio e enraivecido do homem. Falador não gostava dela. Era uma mulher, e mais nova do que ele, mas o seu poder era grande. Tinha medo dela. Fora o primeiro a acusá-la da morte de Gguzaakk, e o primeiro a retirar tais acusações depois de três noites de dores de estômago e de fezes soltas e sanguinolentas. Nem sequer tivera a decência de lhe agradecer os remédios que ela lhe dera e que o aliviaram das dores quase tão depressa como tinham começado.

Ele já esteve aqui, repetiu ela. Esteve hospedado na minha cabana do acampamento de pesca, como convidado e amigo do meu falecido marido.

Esta referência a Bate-no-Chão seria suficiente para convencer os poucos que ainda duvidassem. Quem se arriscaria a mencionar um morto, a menos que essa menção tivesse grande importância?

K’os avançou e examinou o rosto do comerciante, tão perto que o bico do chapéu quase lhe tapou a cabeça. Sim, era a mesma pessoa. Ela não estava enganada. Ah, como se chamava ele? Qualquer coisa ligada à terra. Sim, tundra, Cen.

O que aconteceu ao teu rosto, Cen? perguntou ela, sorrindo do seu próprio atrevimento.

A pergunta dela surpreendeu-o. A mulher não era nova, mas um homem teria dificuldade em perceber isso. O seu rosto era belo, mas quem conseguia acumular a sabedoria fria presente naquele olhar sem viver há muitos anos? O homem ia respondendo-lhe com um gracejo, mas, por qualquer motivo, as palavras que lhe saíram da boca foram ríspidas, irritadas. Palavras que diziam a verdade.

O povo de Rio Próximo matou a minha mulher e por pouco não me matou também, respondeu ele. Eles ainda têm o meu filho, a menos que também o tenham matado.

Juntara-se mais gente, e os caçadores aproximaram-se tanto que o apertavam por todos os lados. Falavam uns com os outros em voz baixa, e as suas vozes lembravam um ronco surdo na garganta de um cão. O homem arregaçou a manga para eles verem o seu punho ferido.

O ronco transformou-se num bramido de fúria, mas a mulher que estava à frente dele levantou a voz e gritou:

Temos um inimigo comum. Eles matam o nosso peixe e amaldiçoam a nossa caça. Eles viraram o meu próprio filho contra nós.

Cen viu diversos velhos recuando e empurrando os jovens que se encontravam no meio da multidão, mas os caçadores afastaram-nos.

Tencionas vingar-te? perguntou ela de chofre, com uma voz sibilante.

Sim. E quero o meu filho, respondeu o homem. Ela virou-se, de braços abertos, alargando assim o círculo das pessoas.

Como vêem, não somos os únicos que o povo de Rio Próximo amaldiçoou, disse ela, olhando para Cen por cima do ombro. Aqueles que têm os mesmos inimigos deviam unir as suas forças. A nossa aldeia de Inverno fica a três dias de caminho. Vens conosco?

O homem olhou para ela. A pergunta ultrapassava a simples expectativa de fazer negócio.

Há alguma cabana de comerciantes onde eu possa ficar? Já não tenho os meus postes.

Há uma cabana onde podes ficar afirmou ela. Depois, obrigou-o a fechar a mão esquerda, arregaçou-lhe a manga e a sua mão pairou por instantes sobre o cabo da faca que o homem usava naquele local. Passou-lhe os dedos fortes pelo pulso, apalpando-lhe o inchaço que lhe apanhava o braço.

Ele reparou que as mãos dela eram as mãos de uma velha, com a pele manchada e grandes veias arroxeadas. Perguntou a si próprio até onde iria aquela velhice até aos seios, à barriga? Ou o corpo dela seria jovem como o seu rosto?

Tenho uma coisa que te alivia as dores no pulso disse ela.

Consigo suportar a dor, mas preciso de recuperar a minha força.

Talvez eu possa ajudar-te insistiu ela, encolhendo os ombros. Ou talvez não, mas as dores enfraquecem a vontade.

Eu vou contigo, respondeu Cen.

A mulher afastou-se e os caçadores voltaram a fechar o círculo, fazendo perguntas sobre o chapéu dos Primeiros Homens e as botas de barbatana de foca que ele usava.

Fora sensato ao vir encontrar com aquele povo. Pelo menos, porque faria bons negócios. Olhou para o local em que a mulher estivera sentada. Mas podia ganhar mais do que isso. Talvez muito mais do que isso.

 

ALDEIA DE RIO PRÓXIMO

Risca Verde riu e Bom Punho pronunciou: Dats ’eni.

Dats’eni, repetiu Aqamdax, corrigindo a pronúncia.

Estás melhorando disse Bom Punho. Aqamdax sorriu.

Porque tu me ajudaste retorquiu. Bom Punho, uma moça que não fora abençoada com um rosto atraente nem com a rapidez das mãos, endireitou as costas e ergueu as sobrancelhas a Aqamdax, e esta continuou a sua história. Era acerca de um pato e de um corvo, uma das poucas que as crianças do Povo Rio tinham lhe contado. Adotara-a, juntando-lhe algumas vozes e dando ao pato uma boa dose de sabedoria para fazer frente à astúcia do corvo.

Quando acabou a história, uma das crianças pediu-lhe que contasse outra.

É a última, disse-lhes Aqamdax, apesar de gostar muito de contar histórias e de a língua não lhe entorpecer os dedos, pois estava fazendo uma parka de pele de caribu para o filho mais novo de Folha Vermelha.

Nesse dia, tinham-se juntado mais de duas dezenas de crianças para ouvir as suas histórias. Até alguns dos rapazes mais crescidos haviam se aproximado do grupo, cada um com uma lança ou uma boleadeira na mão, como se tivessem parado ali por pouco tempo.

Primeiro, as crianças tinham se limitado a observá-la quando ela estava sentada junto da sua nova cabana costurando ou raspando peles. Aqamdax tentara falar com elas, mas as crianças afastavam-se quando ela as olhava. Então, um dia, não tirou os olhos da costura e começou a cantar servindo-se das poucas palavras do Povo Rio que conhecia. Um dia, começou a contar histórias, coisas simples acerca de animais ou plantas, como se falasse sozinha.

Por fim, as crianças ganharam confiança e foram sentar-se junto dela, contando-lhe também histórias, corrigindo-a e respondendo às suas perguntas sobre o modo como certas coisas se faziam na aldeia.

Aqamdax descobriu que eles eram professores admiráveis. Há duas luas que vivia na aldeia e já aprendera uma boa parte da língua. Também era bom ter as crianças como amigas. Agora que possuía a sua própria cabana, estava muitas vezes sozinha, apesar de Sok passar algumas noites na sua cama e de Folha Vermelha lhe levar mais trabalho para fazer todos os dias.

Em geral, Chakliux ia lá todas as manhãs, a princípio para lhe ensinar novas palavras do Povo Rio e partilhar uma tigela de comida, mas agora eram amigos. Ela falava-lhe do seu povo e se fazia também de professora, ensinando-lhe palavras dos Primeiros Homens quando Chakliux partilhava a sua língua com ela.

Nos últimos quatro dias, Chakliux fora à caça ao urso e, pouco depois, partiria para a caça ao caribu. Folha Vermelha dissera-lhe que ela não participaria nessa caçada, apesar de Folha Vermelha acompanhar Sok e os filhos. Alguém tinha de ficar com os cães. Alguém tinha que ficar vigiando as cabanas. Isso não tinha importância para Aqamdax. Como nunca fora à caça ao caribu, seria como uma criança, sempre atrapalhando os outros.

Aqamdax ficou satisfeita com o afastamento de Folha Vermelha, mas iria sentir a falta de Chakliux. Já agora, com ele ausente na caça ao urso, sentia uma dorzinha debaixo das costelas sempre que pensava nele. Chakliux ensinara-lhe não só palavras do Povo Rio como alguns dos enigmas usados na aldeia de Rio Primo, a aldeia em que ele fora criado, apesar de ser irmão de Sok.

Aqamdax terminou a sua história e levantou-se, arrancando gemidos e suspiros das crianças.

Venham amanhã, que haverá mais histórias prometeu ela.

Um enigma antes de irmos embora pediu Yaa, uma menina cujo irmãozinho escondia sempre o rosto no peito dela.

Olhem! disse Aqamdax, começando como Chakliux lhe ensinara. Estou vendo alguma coisa.

Um pássaro, gritou um dos rapazes antes de ela terminar a frase.

Uma nuvem, disse Bom Punho.

Um animal morto, cheirando mal, disse Dança-no-Gelo, um rapaz que Aqamdax aprendera a ignorar.

Traz um banquete, disse alguém atrás dela. Aqamdax virou-se ao ouvir aquela voz, subitamente alvoroçada.

É um enigma simples, afirmou ela. Trazes carne?

Ele parecia mais magro do que antes de partir, a sua parka precisava de ser escovada e uma das mangas estava descosturada na costura, mas tinha os olhos brilhantes e vinha sorrindo.

Os caçadores já voltaram? perguntaram várias crianças, que desataram a correr para ir dar a notícia. Ainda bem que a minha cabana fica aqui no extremo da aldeia disse Aqamdax. Sou a primeira a saber as notícias agradáveis.

Falas bem, Aqamdax observou Chakliux. Durante estes dias em que eu não estive aqui, aprendeste mais, apesar de ainda pronunciares as palavras como os Primeiros Homens.

Eu sou dos Primeiros Homens afirmou ela em voz baixa. Serei sempre dos Primeiros Homens. Não mudarei. Aprenderei, mas não mudarei. Tu, Pé-de-Lontra, devias compreender isto melhor do que ninguém.

Ele sorriu e, quando ela o olhou, foi obrigada a desviar o olhar. Era bom sentir o coração aos pulos por causa de Chakliux, quando não se sentia assim com Sok.

Aqamdax virou-se como se fosse a entrar na cabana. mas olhou para Chakliux por cima do ombro e perguntou-lhe se estava com fome.

Passamos o último dia comendo, para venerar os animais que apanhamos e, esta noite, estou certo de que as mulheres irão preparar outro banquete, embora só com a carne em que elas podem tocar.

Aqamdax abanou a cabeça. Aquele povo tinha tabus esquisitos. Alguns eram o que qualquer pessoa esperaria o enterramento dos ossos, a veneração dos animais. Outros, como a ingestão e a preparação da carne de urso, o uso de certas aves e outros animais, pareciam estranhos e sem sentido. Mas quem era ela para comentar? Era uma mulher dos Primeiros Homens, e os Caçadores Marinhos raramente apanhavam um urso.

Elas vão cozinhar a carne nas lareiras? perguntou ela.

Vão.

E há alguns tabus que eu deva conhecer?

Tens uma concha ou um pau para mexer a comida?

Posso arranjar um pau, respondeu ela.

Ótimo. Arranja. Eu já te disse que as mulheres não devem pronunciar o nome do animal?

Já.

Lembra-te disso e não comas antes de Folha Vermelha ter comido.

Aqamdax ficou admirada.

Isso é um tabu?

É um hábito de delicadeza.

Aqamdax sentiu uma ponta de raiva, como sentira tantas vezes quando vivia com as esposas de Cantador e as suas estúpidas regras.

Talvez eu não vá. Tenho aqui boa comida. Apontou para a despensa junto da sua cabana. Era um estrado alto que sustentava um pequeno quadrado feito de toros, onde ela guardava carne e peixe seco, frutos conservados em óleo e os poucos odres de gordura de foca que trouxera da sua aldeia.

Também tenho carne de morsa acrescentou ela, apesar de ter sido o próprio Chakliux que lhe dera.

Chakliux desviou o olhar e ela sentiu o seu desapontamento.

Não, não julgues que ele se interessa por ti, pensou. Tu tens um marido. Ele ofereceu-te a tua própria cabana. Talvez um dia tenhas a sorte de gerar filhos.

Mas, ao afastar-se, Chakliux disse em voz baixa:

Dois dos animais são meus.

Talvez eu tenha a honra de preparar a carne deles para ti, gritou-lhe Aqamdax.

 

ALDEIA DE RIO PRIMO

Cen susteve a respiração, puxou a corda para trás e largou a seta. Esta voou na direção da árvore e foi espetar-se na pele de ganso recheada de gordura que os caçadores tinham pendurado num ramo baixo.

Tikaani soltou um grito de aprovação.

Dentro de pouco tempo serás tão bom quanto nós, afirmou ele, mas Cen sabia que as palavras do homem eram um exagero.

Apesar de os seus primeiros lances acertarem no alvo quase sempre, quanto mais ele praticava, mais piorava. Por fim, o pulso esquerdo começava a latejar com a força que fazia para segurar o arco e os olhos já não conseguiam acompanhar a trajetória da seta até ao alvo.

Atirou outra vez, mas a seta desviou-se bastante para a esquerda e o pulso estalou assim que ele largou a corda.

Basta, disse ele, sem deixar de reparar no sorriso malicioso de Tikaani.

Porque censuraria o homem? Ambos partilhavam uma paz incômoda, unidos pela necessidade de vingança, ele por Daes, e Tikaani por dois irmãos que tinham morrido e por outro que talvez não sobrevivesse, com um braço aleijado e o corpo enfraquecido por um espírito qualquer que se infiltrara na ferida infectada.

Também partilhavam a cama de K’os. A mulher não pertencia a nenhum deles, mas Cen não sabia ao certo se Tikaani compreendia isso.

Cen não sentia por K’os o mesmo que sentira por Daes, mas, como lhe doía o pulso, os seus pensamentos fugiam sempre para os dedos da mulher que lhe aliviavam as dores, aplicando-lhe tiras de pele de esquilo úmidas e quentes na mão e no pulso e inundando a cabana com o aroma intenso da matricária.

Estás pronto para ir comigo, disse Tikaani.

Aonde vais?

K’os não te disse? perguntou ele.

K’os dissera-lhe, mas ele era suficientemente cauteloso para se fingir surpreendido.

Não me disse o quê?

Que os caçadores estão quase prontos, que querem que nós vamos primeiro, para fazer o reconhecimento do melhor sítio para o ataque. Talvez consigamos trazer o teu filho.

Quando partimos?

Amanhã, cedo, antes do nascer do Sol, respondeu Tikaani.

Levamos cães?

Nada de cães. Só armas de caça e, se os nossos velhos fizerem perguntas, diremos que vamos ver se os nossos arcos são honrados pelos ursos.

Achas que não dará azar dizer uma coisa que não é verdade, que isso talvez leve os ursos a pensar que não temos respeito por eles?

Achas que não conseguimos encontrar o teu filho nem caçar?

Cen ficou pensando e depois disse:

E talvez negociar também.

Negociar?

Trocar a vida pela vida.

A vida pela vida, repetiu Tikaani.

 

ALDEIA DE RIO PRÓXIMO

Eu mexo por ti, disse Yaa, levantando a voz acima da tagarelice das mulheres que se encontravam junto das lareiras da comida. O Sol pusera-se e quase todo mundo já tinha comido. Dali a pouco começariam as danças e as histórias.

Aqamdax entregou a Yaa o pau de mexer a comida.

É novo? perguntou Yaa.

É.

Existe o mesmo costume na tua aldeia?

Nós não temos muitos...

Aqamdax calou-se, tapando a boca com a mão antes de pronunciar a palavra ”urso”.

O que comem?

Sobretudo peixe e carne de foca. Leão-marinho.

E de caribu?

Alguma.

Podes sentar-te aqui.

Yaa apontou com o queixo para um monte de cobertores de pele de lebre.

O teu irmão?

Está dormindo. Não o vês?

Na escuridão, cortada apenas pelas chamas amareladas das lareiras da comida, Aqamdax não dera pela sombra da cabeça do rapaz projetada na pele.

Ele não gosta de mim. E se acorda?

Ele gosta de ti, mas tem medo. Julga que és um fantasma.

Um fantasma? Porquê?

A mãe dele morreu.

Yaa baixou a voz e Aqamdax foi obrigada a inclinar-se para a ouvir.

Ele ficou ferido.

Quando Aqamdax chegara à aldeia, Chakliux contara-lhe a história de uma mulher que fora morta e cujo filho ficara ferido, mas isso fora antes de ela aprender a língua do Povo Rio. Não entendera tudo o que ele dissera, nunca soubera ao certo a que rapaz é que ele se referia.

Então é ele, disse Aqamdax. Mas a tua mãe...

Era a esposa-irmã da mãe dele.

Ah!

Agora a mãe de Ghaden sou eu, declarou Yaa, cujo sorriso parecia o de uma mulher muito mais velha que falasse do filho com orgulho. Ele julga que tu és um fantasma porque és um pouco parecida com a mãe.

Vou sentar-me junto de Ghaden, mas, se ele acordar. volto para aqui. Não quero que se assuste.

Aqamdax deu o pau a Yaa e depois agachou-se com um suspiro, sentando-se à maneira dos Primeiros Homens, com os pés plantados no chão e os braços em volta dos joelhos levantados. O Povo Rio gastava muitas peles porque preferia sentar-se de pernas cruzadas, cobrindo o chão com cobertores de pele de lebre e tapetes de pele de caribu. Qualquer pele enfraquecia quando se molhava. Quem é que não sabia uma coisa dessas?

Aqamdax fechou os olhos por instantes, desejando que alguém fosse embora para ela poder também afastar-se sem receio de quebrar tabus ou de ser indelicada. Apesar de desejar a presença dela naquele banquete, Chakliux não lhe dirigira a palavra, embora se aproximasse da lareira dela sempre que queria a tigela cheia.

Aqamdax olhou para o rapaz que dormia a seu lado. O seu coração teve um sobressalto. Sempre que ela o via, era como se estivesse a olhar para uma criança da sua própria aldeia. Era como se ele pertencesse aos Primeiros Homens. Tinha a cara larga e o nariz, embora adunco, era pequeno, ao contrário dos narizes grandes do Povo Rio. Mas Aqamdax lembrou-se de que os olhos dele eram como os do Povo Rio, inclinados aos cantos e mais estreitos que os do seu povo. Também tinha a pele mais clara. Ainda assim, ao olhar para ele, imaginava-se na sua terra, talvez num ulax, festejando com um banquete e histórias. Era como se ouvisse os tambores do seu povo a rufar com força, ao ritmo do coração.

Aqamdax fechou os olhos. Os sonhos chamaram-na e ela quase se deixou levar por eles, mas depois ouviu-se um grito, a voz de um caçador. Os olhos de Aqamdax abriram-se e ela pôs-se em pé de um salto, ouvindo o riso das mulheres que estavam sentadas à sua volta. Uma, ainda rindo, inclinou-se e empurrou-a, dizendo-lhe em surdina que os homens iriam contar histórias das suas caçadas.

Aqamdax sorriu, percebendo de que o riso delas não era de desprezo. Em seguida, instalou-se junto de Ghaden, que continuava dormindo, e abriu muito os olhos para não adormecer. Dois velhos encaminharam-se para o círculo formado pelas lareiras, um lugar vago mas iluminado pelo que restava do lume.

Aqamdax teve facilidade em seguir as histórias deles porque as palavras eram acompanhadas por atos, para que todos compreendessem como é que um caçador perseguia um urso; todos o observavam enquanto ele explicava como punha uma lança no seu lançador e matava o animal.

Aqamdax observava atentamente, tentando lembrar-se das palavras que eles usavam para começar e acabar as suas histórias. Essas coisas tinham importância, na medida em que faziam parte da tradição de uma aldeia e talvez estivessem também aliadas à boa sorte e ao respeito. Aqamdax tentou recordar-se dos movimentos das mãos deles, pequenas coisas que poderia adaptar à sua narrativa, maneiras de criar imagens na mente de quem ouvia. Porque o que era contar histórias senão dar corpo a idéias que os olhos interiores daqueles que a escutavam pudessem ver?

Depois dos velhos, surgiram dois homens, um deles com uma máscara que lhe chegava aos joelhos; tinha a boca escancarada e cheia de dentes de urso. Os outros homens estavam vestidos de caçadores e traziam armas. A sua história foi contada sem palavras, só com atos representados ao ritmo dos tambores. Quando terminaram, apareceu Sok. A princípio estava sozinho, sem máscara e sem armas. Os belos desenhos da parka e das botas atraíam a luz, enaltecendo o trabalho manual de Folha Vermelha, e ouviu-se um murmúrio entre as mulheres.

Aqamdax virou-se para o local em que se encontrava a sua esposa-irmã e reparou na cabeça erguida e na expressão determinada e altiva de Folha Vermelha. Nesse momento, embora fosse difícil chamar irmã a Folha Vermelha, Aqamdax sentiu-se orgulhosa, como se ela própria fosse alvo de respeito. As mulheres começaram a ulular, alternando a intensidade dos seus gritos, e Aqamdax juntou-se a elas, virando a cabeça propositadamente para Folha Vermelha a fim de que todos soubessem que ela apreciava a sua esposa-irmã.

Folha Vermelha viu Aqamdax. Os olhares de ambas cruzaram-se e, nesse instante, Aqamdax percebeu a surpresa da mulher e depois da sua compreensão.

Sok começou a dançar, ajustando o seu ritmo ao tilintar dos chocalhos de osso cosidos nos canos das botas. Fazia movimentos fortes e bruscos. Aqamdax percebia que cada passo devia ter um significado, embora esse fosse diferente para o Povo Rio do que ela aprendera com os Primeiros Homens. Aqamdax reparou que, enquanto dançava, Sok olhava muitas vezes numa direção. A princípio, julgou que ele observava Folha Vermelha, mas depois percebeu que ele olhava para o local em que se encontravam as mulheres mais novas da aldeia, e por fim compreendeu que ele estava de olhos pregados numa mulher chamada Neve-no-Cabelo. Aqamdax cruzara-se com ela algumas vezes nas lareiras da comida, apesar de Neve-no-Cabelo a ignorar quando estavam as duas sozinhas e virar indelicadamente a cara para o lado se havia outras mulheres nas redondezas.

Aqamdax deitou um olhar rápido a Folha Vermelha, mas a mulher não deu mostras de ter reparado, de olhos postos no marido e mexendo os lábios como se contasse os passos dele, tentando ajudá-lo a manter o ritmo. Aqamdax sentiu-se inquieta, subitamente apreensiva, mas depois censurou-se pela sua estupidez. Qual o homem que não queria impressionar as jovens, em especial uma mulher tão bonita como Neve-no-Cabelo? Mas Sok tinha duas esposas. Não era chefe dos caçadores para ter três ou quatro como Cantador e, no Povo Rio, a maioria dos homens tinha só uma esposa.

Por fim, entrou outro caçador mascarado no círculo de dança. Também usava uma máscara de urso, embora esta lhe cobrisse apenas o rosto e estivesse pintada de cores vivas. O bailarino estava descalço, e portanto não era difícil ver que se tratava de Chakliux. Mexia-se com graciosidade, como se tivesse os pés normais num homem, e Aqamdax estava tão embrenhada na dança que a princípio não ouviu a lamúria que crescia a seu lado. Quando esta se transformou num choro, percebeu que era Ghaden. A criança olhava para os bailarinos, de boca aberta e olhos arregalados.

Aqamdax pegou-lhe ao colo e, quando Ghaden olhou para ela, desatou a gritar:

O fantasma! O fantasma! Ela está aqui! Yaa, não deixes que ela me apanhe!

Yaa tirou o rapaz do colo de Aqamdax e acalmou-o, cantando baixinho. A mãe de Yaa e Água Castanha aproximaram-se, afastaram as duas crianças do círculo de dança e levaram-nas para o conforto da cabana de Água Castanha.

Aqamdax viu-os desaparecer na escuridão e depois agachou-se e pegou os cobertores do rapaz para os devolver quando a dança acabasse. Durante algum tempo, as mulheres à sua volta continuaram a murmurar, mas Aqamdax voltou a concentrar-se em Sok e Chakliux. Quase perdeu aquela palavra, aquele nome, pronunciado em surdina e depois silenciado com um assobio de medo, coberto por uma série de palavras sagradas e um alvoroçar de mãos para evitar uma maldição.

De súbito, muitas coisas se clarificaram. De súbito, ela não se sentiu uma filha traída, mas uma filha amada. Depois, encarou o marido não com orgulho mas com raiva, encarou o irmão dele não com amizade mas com repugnância, e só porque não queria envergonhar Folha Vermelha é que ficou até a dança terminar. Em seguida, levantou-se e, antes que as mulheres reconhecessem o seu lugar de segunda esposa, de esposa-irmã, com um gesto de cabeça, antes que Sok ou Chakliux olhassem para ela na expectativa de um elogio, ela afastou-se e, levando o molho de cobertores de Ghaden, encaminhou-se para a cabana de Água Castanha.

Ouviu Yaa cantando através das paredes da cabana e arranhou as peles de caribu que a revestiam até Água Castanha lhe gritar que entrasse. Agachou-se e entrou no túnel.

Yaa arregalou os olhos ao vê-la e puxou o irmão para si, virando-lhe a cabeça para o seu peito.

Escolhendo as palavras devagar e com cuidado, Aqamdax disse a Água Castanha:

Não sou do teu povo. Não conheço todos os tabus, mas tenho que perguntar uma coisa.

Então, anda comigo ordenou Água Castanha, saindo da cabana.

Aqamdax foi atrás dela. Sabia que Água Castanha devia ser uma mulher forte. Mantivera o seu lugar respeitável mesmo depois da morte do marido e agora vivia sozinha, como viúva, ela, a sua esposa-irmã e as duas crianças. Eram estranhos os hábitos daquele Povo Rio. Para os Primeiros Homens, quando o luto terminava, a mulher ia viver com outro caçador, ou com um irmão, na pior das hipóteses, para o ulax dele. Como é que aquelas mulheres viviam sem um caçador na sua cabana?

Água Castanha afastou-se um pouco da cabana. Depois virou-se e perguntou a Aqamdax:

O que queres saber?

Essa tua esposa-irmã, a mãe de Ghaden, como é que morreu? perguntou Aqamdax.

Água Castanha pôs os braços à volta do corpo.

Não é bom falar nesse assunto, respondeu ela.

Quebra algum tabu?

A mulher não olhou para Aqamdax. Olhou para a cabana, depois para o chão e por fim para o céu.

Ninguém sabe, disse por fim.

Ela era dos Primeiros Homens... Dos Caçadores Marinhos proferiu Aqamdax.

Sim. Conheceste-a?

Aqamdax suspirou.

Conheci-a. Alguém me disse que havia uma faca. Água Castanha fez um sinal afirmativo.

Havia uma faca. Mas Lobo-e-Corvo diz que foi um espírito que a matou.

Com uma faca?

Quem sabe o que um espírito pode fazer? Quem sabe os espíritos que ela pode ter ofendido? Não, ela não devia estar aqui.

Água Castanha fixou Aqamdax, que não desviou o olhar. Água Castanha levantou uma mão e apontou rudemente com um dedo grosso para o peito de Aqamdax.

Tu não devias estar aqui. Uma coisa é o teu povo vir negociar, mas, quando os caçadores aceitam esposas, muitas coisas podem acontecer.

Essa mulher tinha inimigos?

Eu não gostava dela, declarou Água Castanha. Eu não a queria na minha cabana. Se ela tinha uma inimiga, era eu, mas eu não quis desonrar o meu marido. Não fui eu que a matei. Ela foi morta por um espírito. Teve o que merecia.

Durante muito tempo, Aqamdax ficou olhando para a mulher, agarrada ao seu amuleto e passando os dedos pelas espirais do dente de baleia que usava na cintura. Acreditava em Água Castanha, mas havia ali qualquer coisa má que ela não entendia.

Achas que o rapaz, Ghaden, está seguro?

Tão seguro quanto isso dependa de Lobo-e-Corvo. Tão seguro quanto isso dependa de mim. Por quê?

Diz-lhe que eu não sou o fantasma da mãe, proferiu Aqamdax em voz baixa. Diz-lhe que eu sou parecida com a morta porque ela também era minha mãe.

 

Cen afastou o capuz da parka da cara. O pelo misturava-se com os tons cinzentos e os amarelos das folhas de Outono, mas ele tinha muito calor. Tikaani insistira para que eles levassem parkas de pele de lebre, mas estas faziam Cen transpirar, exceto à noite, quando o calor era bem-vindo. Era preferível ter trazido roupa de pele de esquilo, que aconchegava mas não era quente, e que era leve. Mas talvez a sugestão de Tikaani fosse boa, pensou Cen. Todas as manhãs, as pequenas poças de água estavam cobertas por uma fina crosta de gelo nos cantos. Talvez houvesse um dia em que o calor da pele de lebre lhe agradasse.

Não tinham trazido os cães, e graças a uma magia qualquer que ainda fazia Cen encolher-se de medo quando via a sua cara refletida na água, K’os fizera uma pomada para escurecer e encarquilhar a cara dos homens. Com a sua agulha hábil, costurara tufos brancos de pele de caribu às tranças para eles ficarem com aspecto de velhos e não de caçadores nem de guerreiros. Mostrara-lhes como deviam encher o fundo das botas de ervas para andarem como os velhos, apesar de eles não terem usado tal estratagema senão quando estavam a dia e meio de caminho da aldeia de Rio Próximo. K’os também lhes dera uma coisa para beberem que lhes queimara a garganta e os deixara roucos e quase sem voz.

A mulher transformara-os em velhos e garantira-lhes que tinha o poder de os fazer rejuvenescer outra vez. Cen não duvidava que ela tivesse esse poder. O que o preocupava era se ela voltaria a devolver-lhes a juventude. E o que pediria em troca?

Agora estavam escondidos na floresta sombria nos limites da aldeia, debaixo dos ramos dos abetos-negros. Com folhas espetadas nas roupas, encontravam-se nas bordas da tigela de terra que abrigava a aldeia de Rio Próximo. Viam passar mulheres e crianças e contavam os guerreiros como K’os os aconselhara a fazer. Durante a noite, haviam examinado todas as despensas para ver a quantidade de peixe que as pessoas tinham para o Inverno, mas não tiraram nada, nem fizeram nada para que alguém percebesse que eles estavam à espreita.

Durante dois dias, Aqamdax não falou com Sok e evitou Chakliux. Entretanto, conquistou Ghaden como irmão, deu uma explicação cuidadosa a Água Castanha, a Boca Feliz e a Yaa, e tentou não acusar o marido de a ter enganado. Afinal, talvez ela não lhe tivesse dito o nome da mãe, embora julgasse que o fizera.

Nos cinco anos posteriores à partida de Daes da aldeia dos Primeiros Homens, Aqamdax sentira uma grande raiva contra a mãe. A mulher abandonara-a, obrigara-a a viver com aqueles que não a queriam. Agora, pelo menos, entendia o que acontecera.

Os Primeiros Homens choravam os seus mortos durante quatro dezenas de dias, e depois disso uma viúva devia manter-se afastada dos outros homens, para mostrar respeito pelo marido, durante quatro luas. Os comerciantes tinham chegado duas luas depois da morte do pai de Aqamdax, e a mãe, tal como ela própria, não conseguira suportar o vazio das noites solitárias. Entregara-se a um comerciante, engravidara e depois partira com ele para proteger a aldeia da maldição dos tabus quebrados. Para proteger Aqamdax.

Ela falava muito de ti, afirmou Boca Feliz. Queria voltar para junto de ti e do seu povo.

Aqamdax olhou para Água Castanha e viu a surpresa no olhar da mulher, apesar de tentar disfarçá-la com os olhos semicerrados e um gesto de cabeça. Sim, pensou Aqamdax. também ela confiaria em Boca Feliz, mas nunca em Água Castanha. Quem podia confiar na boca fina e dura da mulher, nas suas palavras coléricas?

No dia em que Aqamdax disse a Ghaden que era irmã dele, o rapaz limitou-se a olhar para ela do colo seguro de Yaa, mas a pouco e pouco começou a observá-la sem medo. Nessa manhã, três dias depois, quando ela entrou na cabana, ele correu para ela e mostrou-lhe uma bola de tiras de couro cru do tamanho de um punho fechado que Yaa lhe fizera.

Mordedor, agarra! disse ele, atirando a bola e obrigando o cão a procurá-la numa pilha de cestos.

É melhor ires brincar lá para fora avisou Yaa, olhando para o local em que Água Castanha costumava estar sentada.

Aqamdax elogiou o cão e a bola e depois levou Ghaden e Mordedor para os limites da aldeia, onde ficaram brincando até Yaa chegar e levar Ghaden para ele a ajudar a carregar lenha. Em seguida, Aqamdax dirigiu-se à cabana de Folha Vermelha. Ensaiara o que ia dizer e ganhara coragem para falar com Sok, e tencionava fazê-lo não deixando passar nem mais um dia. Foi encontrá-lo sozinho e ainda embrulhado nos cobertores.

Folha Vermelha está nas lareiras da comida informou ele, de olhos fechados.

Vim para te ver e ao teu irmão disse ela.

Daqui a três ou quatro dias, partimos para a caça ao caribu. Não podes deixar-me dormir sabendo que eu pouco descansarei durante a próxima lua?

Como se ele não lhe tivesse dito nada, Aqamdax perguntou:

Porque me deixaste pensar que eu encontraria a minha mãe se viesse contigo?

Sok abriu os olhos devagar.

Tu e Chakliux sabiam que a minha mãe tinha morrido. Ele sentou-se.

Quem te disse que ela morreu? perguntou ele.

Ghaden, o meu irmão.

Sok resmungou, levantou-se e deu um pontapé nas peles, atirando-as para cima dos rolos impecavelmente empilhados nas traseiras da cabana.

Agora não posso falar contigo declarou ele.

Onde está Chakliux?

Ele não sabia disse Sok. Pelo menos, eu nunca lhe falei na tua mãe. E tu?

Não.

Então guarda a tua raiva para mim, e não para ele. Por qualquer motivo, as palavras dele acalmaram-na.

Porque não me disseste?

Terias vindo comigo se soubesses que a tua mãe morrera?

Talvez não. Mas se eu soubesse que tinha um irmão... Sok encolheu os ombros.

Às vezes, os irmãos são coisas boas; outras vezes não são. Como é que eu poderia saber o que sentirias por ele? Ghaden é uma criança.

Sabias com certeza que eu descobriria que a minha mãe morrera quando chegasse aqui.

Eu não tencionava trazer-te para cá. Eu trouxe-te para o xamã dos Morsas.

Não fui eu que o matei, disse Aqamdax.

Achas que eu te aceitaria como minha esposa se pensasse que o tinhas feito?

Nesse caso, o que o xamã te ofereceu para te obrigar a ires à minha aldeia? Porque ele me queria ele?

Não finjas que ignoras os teus poderes. Que melhor esposa para um xamã do que uma contadora de histórias?

Talvez, proferiu ela em voz baixa. Sok voltou a encolher os ombros.

Ele queria-te e ofereceu-me coisas úteis.

O quê?

Muitas coisas. Muitas mercadorias.

E por isso foste ao mar, um homem que tinha pouca experiência num iqyax?

Eu desvencilho-me bem num iqyax.

Para quem caça caribus exclamou ela.

Não queres ser minha esposa? perguntou ele. Ela respirou fundo.

Não.

E se outro homem oferecesse alguma coisa por ti?

Quem?

Alguém que é respeitado nesta aldeia. Alguém cujos poderes são grandes, talvez maiores do que os teus.

Aqamdax susteve a respiração. Por pouco não pronunciou o nome do irmão dele. Por pouco não denunciou as suas esperanças em voz alta, mas já sofrera muitas desilusões. Era mais fácil desistir de um sonho que mais ninguém conhecia.

Quem? perguntou ela outra vez.

O xamã, Lobo-e-Corvo.

De repente, ela percebeu. Neve-no-Cabelo. Por que outro motivo arriscaria Sok a vida a troco de mercadorias? Ele precisava pagar o dote.

Com que então, agora que o xamã dos Morsas morreu, eu sirvo para pagar o dote de Neve-no-Cabelo?

Não queres ser esposa de um xamã?

Não sou uma pessoa que queira poder nem que pense que o poder sobre os espíritos é desejável. É muitas vezes mal utilizado.

Lobo-e-Corvo não é desses. É um homem respeitável.

É forte? É bom caçador?

O suficiente.

Se ele fosse um homem com tal poder, porque estaria interessado nas minhas pobres histórias? Eu não pertenço ao teu povo. Porque um xamã quereria uma esposa que não é totalmente humana?

Sok começou a andar rapidamente de um lado para o outro, e Aqamdax perguntou a si própria se ele já teria falado com Lobo-e-Corvo, se já a teria oferecido ao homem.

No meu povo, uma mulher escolhe o homem que quer para marido, disse Aqamdax. O pai ou um tio podem prometê-la, mas, se ela não quiser, ninguém a obriga. E se o marido não for bom para ela nem para os filhos, a mulher pode deixá-lo e escolher outro.

Eu não esperava outra coisa de pessoas que não são totalmente humanas, retorquiu Sok, parando e olhando-a de frente. Tu não estás com o teu povo. Estás aqui. És minha esposa. Farás o que eu mandar.

Se me deres a outro, dá-me ao teu irmão. Aqamdax falou depressa, antes de perder a coragem.

Chakliux?

Sim.

Sok atirou a cabeça para trás e deu uma gargalhada.

Ele não te quer. Além disso não tem com que pagar o dote.

Ele tem cães e um iqyax.

Estás louca se julgas que ele trocaria essas coisas por ti! As palavras feriram-na, e Aqamdax amaldiçoou-se pela sua estupidez. Quando alguém conhecia os interesses de outra pessoa, sabia como magoá-la.

Tu és como a tua mãe, sem respeito, sem honra. Ela desonrou o marido e partiu com o comerciante Cen. O que lhe deu ele em troca? Uma faca, a morte. Se não tiveres cuidado, pode acontecer-te a mesma coisa.

Foi um comerciante que a matou? perguntou Aqamdax.

Alguns dizem que foi.

Água Castanha diz que foram os espíritos que a mataram.

Não sei quem a matou. Quem quer que fosse, também matou o meu avô. Se eu soubesse quem foi, tal pessoa, já não estaria viva neste momento.

Sok apalpou um monte de roupas e tirou um par de perneiras de pele de caribu.

O que tens de saber é que, se não tiveres marido, ninguém desta aldeia te protegerá declarou ele, olhando para Aqamdax. E se eu te recusar? O que farás?

Aqamdax reconheceu que ele tinha razão. Ela devia proteger-se encontrando um bom marido, gerando filhos e reforçando os laços com Ghaden, mas tudo isso levaria muitos anos. Agora não tinha ninguém, nem nada para trocar exceto a sua vontade de ajudar Sok a conseguir o que ele queria.

O que queres que eu faça? perguntou ela em voz baixa.

Quero que as pessoas ouçam as tuas histórias, que vejam os teus poderes.

Combinas uma sessão de histórias, então?

Chakliux e eu trataremos de combinar um desses serões, uma maneira de mostrar respeito e alcançar a honra antes de partirmos para a caça ao caribu.

E eu também contarei histórias?

Sim.

Quando Lobo-e-Corvo ouvir as minhas histórias, achas que me quererá?

Ele verá os teus poderes, e depois eu falarei com ele acerca do preço de Neve-no-Cabelo.

E se eu fizer isso?

Terás um novo marido.

Eu quero mais do que um novo marido.

O que queres mais?

Quero ficar com a minha cabana.

Não. Prometi-a a Neve-no-Cabelo.

Ela que construa outra.

Que alternativa tens?

Contar histórias ou nada dizer.

A alternativa de viveres ou morreres.

Eu quero a minha cabana.

Talvez Lobo-e-Corvo queira que tu fiques na cabana de Flor Azul.

Ele só tem uma esposa?

Sim.

Achas que ele se arrisca a desagradar-lhe?

Acho que ela vai perceber os poderes que ele pode vir a ter se te aceitar como segunda esposa. Penso que ela vai ficar satisfeita por ter outra mulher que faça uma parte do trabalho.

E se eu disser a Lobo-e-Corvo que não serei mulher dele se não ficar com a minha própria cabana?

Sok inclinou a cabeça e olhou para o orifício da fumaça.

Não é fácil te ter como esposa, disse ele. Por pouco, Aqamdax não sorriu.

Se Neve-no-Cabelo quiser a tua cabana, tens que sair, mas eu dou-te peles de caribu suficientes para construíres outra prometeu ele.

E tu e Chakliux ajudam-me a cortar os postes?

Ajudamos. Aqamdax riu.

Prometes a ajuda do teu irmão sem o consultares?

Eu dei três, quatro luas da minha vida para o salvar dos Caçadores de Morsas até sabermos que o povo de Rio Primo não tentaria matá-lo. Ele pode dar-me alguns dias.

Eu contarei histórias prometeu Aqamdax. Eu mostrarei a este povo os poderes de uma mulher dos Primeiros Homens. Deixa-os pensar nisso e alegra-te por eles não chamarem o inimigo dos Primeiros Homens.

 

No terceiro dia de vigilância, Cen viu-o. Era Ghaden, mais alto e mais magro do que ele julgava, mas era Ghaden. Ao ver o rapaz, foi como se tivesse levado um murro no estômago. Ficou sem fôlego e, a princípio, nem conseguiu dizer nada a Tikaani. Limitou-se a observar o filho, acariciando-o com os olhos. Nunca acreditara totalmente que o rapaz estivesse vivo, e naquele momento receava que a faca tivesse provocado alguma deformidade a Ghaden. Mas verificou que o rapaz não coxeava e que, apesar de ser difícil fazer tal afirmação àquela distância, parecia não ter qualquer cicatriz no rosto. Tinha um cão e atirava uma bola muito alto, rindo quando o cão a apanhava e ralhando com ele se o animal não a largava quando ele mandava.

Cen abriu a boca para dizer a Tikaani, mas as lágrimas impediram-no de falar. Foi obrigado a engoli-las e, quando falou, foi tremendo como um velho. Era o chá de K’os que lhe queimara a garganta, pensou, e não admitiu que eram as lágrimas que lhe faziam arder os olhos.

O meu filho, proferiu ele, estendendo o braço. Tu disseste que ele foi ferido disse Tikaani. Observou o rapaz durante algum tempo e depois acrescentou: Ele parece forte.

Repara. Ele atira a bola com a mão esquerda, indicou Cen. O ombro direito é mais alto do que o outro, e às vezes ele empurra o braço direito para o lado.

Ele nem sempre foi canhoto? Cen abanou a cabeça.

Um guerreiro deve caçar com a mão direita. É assim que deve ser.

Ghaden apanhou a bola e atirou-a com a mão direita. O lance não foi muito forte e a bola não subiu tanto no ar, mas foi um bom lance.

Ele precisa de um homem que o ensine, insistiu Cen. Sabes quem é a mulher que está com ele? Não é nenhuma das esposas-irmãs da mãe.

Tikaani manteve-se em silêncio, mas por fim disse:

Eu estive na aldeia com K’os no fim do Inverno passado, mas não a reconheço.

Talvez um dos homens a tenha trazido de outra aldeia do Povo Rio.

Ela tem uma parka estranha.

Estas palavras tiveram o efeito de uma revelação súbita na mente de Cen, mas o comerciante não disse nada a Tikaani senão depois de observar a mulher durante algum tempo e ver, com o coração alvoroçado pelo desgosto, como ela era parecida com Daes, até no andar e no modo como afastava o cabelo dos olhos. Então segredou-lhe:

É um sax dos Primeiros Homens, feito de penas. Eu conheço-a, apesar de ela ter mudado em quatro anos. É Aqamdax, a irmã de Ghaden.

Uma mulher dos Primeiros Homens? A tua... Da morta...

Filha.

Não é tua filha?

Não.

Como é que ela veio parar aqui?

Não sei. Talvez tivesse vindo à procura da mãe. Disseram-me que o marido dela é um comerciante do Povo Rio.

Pelo menos, toma conta do teu filho.

Como eu posso deixá-lo crescer com as pessoas que lhe mataram a mãe?

Tikaani olhou para ele e sorriu lentamente.

Temos que partir depressa, amanhã, ou no dia seguinte. Queres trazê-lo conosco?

Cen desembainhou a faca que trazia na manga e atirou-a ao solo coberto de grama em que se encontravam.

Sim respondeu ele. Quero. Seria capaz de matar todos os homens daquela aldeia só para o recuperar.

 

Ele quer uma sessão de histórias esta noite? Aqamdax fez um sinal afirmativo.

Devo oferecer comida? Não tenho muita na minha despensa. As pessoas comem óleo de foca?

Nada de comida, respondeu Folha Vermelha. Deixa-as comer junto das lareiras. Não é uma festa propriamente dita, apenas uma oportunidade de as pessoas se reunirem antes de as famílias partirem para a caça ao caribu. Além disso, em geral as mulheres também vão. Como poderemos preparar-nos para partir se tivermos que dar uma festa? Deixaremos a festa para mais tarde, quando trouxermos a carne.

Aqamdax observava cautelosamente Folha Vermelha enquanto ela falava. Gostaria de conhecer melhor a mulher. Era difícil estar numa aldeia nova. Não percebera a quantidade de conhecimentos que uma pessoa acumulava durante a infância. Na sua aldeia, conseguia adivinhar os verdadeiros pensamentos de uma mulher pelo tom da sua voz ou pela expressão do seu rosto. Aqui, no seio do Povo Rio, era difícil saber. Só há alguns dias é que reparara que eles exprimiam a sua concordância não por palavras mas levantando a sobrancelha.

Agora, ao ouvir Folha Vermelha, Aqamdax lembrava-se de que a mulher não gostava dela, que talvez lhe desagradasse a existência de uma esposa-irmã. Por isso, estaria a dizer a verdade acerca da comida, ou esperaria envergonhar Aqamdax dizendo-lhe para fazer uma coisa que não estava de acordo com as tradições da aldeia?

Para ficar descansada, quando Folha Vermelha saísse, Aqamdax iria à procura de Chakliux para lhe fazer a pergunta.

Desde que soubera que a mãe morrera, sentia-se confusa. Fizera o seu próprio luto, entoando os cânticos fúnebres dos Primeiros Homens quando estava sozinha na sua cabana, e Boca Feliz dissera-lhe que ela e Água Castanha tinham cantado durante quatro dias depois da morte de Daes. Mesmo assim, era como se os pensamentos de Aqamdax fossem linhas de tendão velhas e desfiadas.

Mesmo que ela conhecesse melhor Folha Vermelha, o momento não era adequado para confiar na sua própria análise. Sim, iria perguntar a Chakliux.

Não quero envergonhar o teu marido disse Aqamdax, sabendo que Folha Vermelha fazia tudo o que podia para respeitar Sok. Ainda falo com dificuldade. Tenho muito que aprender.

Tentarei ajudar-te, disse Folha Vermelha e, mais uma vez, apesar de a mulher olhar bem de frente para ela enquanto falava, Aqamdax não tinha certeza se podia confiar nela. Se não souberes alguma palavra, eu digo-a por ti.

Obrigada respondeu Aqamdax, mas perguntou a si própria se Folha Vermelha se arriscaria a ridicularizar Sok para a humilhar. Talvez não. Ela parecia apreciar a ordem e não ria nem gracejava muito. Seguia Sok com o olhar quando ele estava perto e falava muito dele quando conversava com outras mulheres.

As mãos de Folha Vermelha estavam sempre ocupadas, e naquele momento, apesar de ela ter ido à cabana de Aqamdax só para lhe levar algumas peles de lebre para raspar, também trouxera a sua costura. Estava fazendo um par de botas de dança para Sok, embora as outras ainda estivessem novas e bonitas. Enrolou a parte de cima das peles, enfiou a agulha num pedaço de pele e guardou-a no seu agulheiro. Conservou-o na mão para Aqamdax o ver, mas esta, sabendo o orgulho que a mulher tinha dele, comentou com admiração o desenho formado por linhas e círculos.

Agora vou embora disse ela a Aqamdax. Vejo-te esta noite. E ajudo, se puder. Parou no túnel de entrada. Devias ter água. Quantos odres tens?

Quatro.

Folha Vermelha inclinou a cabeça para o lado e fez um esgar.

Eu trago mais três. Devem chegar.

Saiu e Aqamdax ficou pensando na conversa. Aparentemente, Folha Vermelha não queria que Aqamdax falhasse nas histórias. Talvez ela se tivesse habituado à idéia de que teria de partilhar Sok, se não com Aqamdax, com outra mulher qualquer. É melhor ele conservar-me, pensou Aqamdax. Como mulher dos Primeiros Homens, eu nunca terei o mesmo estatuto que teria uma nascida aqui.

Tirou dois odres dos postes. Iria ao rio enchê-los de água fresca. Também iria apanhar lenha, faria uma boa pilha junto da porta, pronta a levá-la para dentro se a chuva ameaçasse, ou a pegar-lhe fogo se os insetos ou o frio perturbassem as suas histórias.

Atravessou a aldeia, perguntando a si própria se Ghaden e a irmã, Yaa, andariam por ali. Se assim fosse, a veriam e iriam com ela. Na véspera, Ghaden sentara-se ao seu colo enquanto ela lhe contava histórias. Aqamdax adorava sentir o peso dele no peito, o cheiro do seu cabelo macio, o som do seu riso quando ela contava uma anedota. Também começava a encarar Yaa como irmã. A menina era uma pessoa invulgar uma adulta num corpo de criança sempre ocupada, sempre séria. Se Aqamdax escolhesse uma irmã mais nova, seria Yaa.

Havia outras pessoas no rio, algumas pescando com linhas finas de tendão enrolado. Aqamdax continuava a usando a sua linha de algas, embora algumas mulheres rissem dela. Deixa rir; as algas eram fortes. Não tinha que se preocupar com uma linha partida se apanhasse um peixe grande.

Aqamdax dirigiu-se para o local em que as mulheres enchiam os odres de água. A margem fazia um declive suave até ao rio e uma faixa curva de areia formava uma praia com largura suficiente para lançar barcos na água, um bom lugar para estar sentado e reparar redes ou entrar na água pouco profunda.

Quando ela ouviu a voz de Chakliux, virou-se e sorriu-lhe. Ele agachou-se à maneira dos Primeiros Homens e ofereceu-lhe uma tira de peixe seco. Ela acabou de encher os odres. Em seguida, aproximou-se dele, pegou o peixe e ofereceu-lhe um odre de água. Ele bebeu e colocou um pouco de água sobre o peixe para o amolecer.

Aqamdax agachou-se ao lado dele e comeu sem falar. Quando ele acabou de comer, bebeu mais um gole e devolveu-lhe o odre. Ela bebeu, pôs a tampa no odre e guardou-o aos seus pés.

Vais contar histórias esta noite, disse Chakliux.

Sim, mas ainda é muito cedo, respondeu ela.

Todos os dias contas histórias às crianças. Aqamdax riu.

Elas contam-me tantas histórias como eu a elas. Elas ensinam-me.

Ensinaram-te bem.

Há muita coisa que eu não sei disse ela. Muitas vezes escolhia a palavra errada e tinha que repetir.

Terás que falar devagar. Alguns dos velhos que não ouvem bem vão ficar atrapalhados com o som da tua voz dos Primeiros Homens e podem perder as palavras do Povo Rio.

Falarei devagar afirmou Aqamdax. Estava desapontada. Tivera esperança de que ele a ajudasse tentando convencer Sok a esperar. Tu és um contador de histórias como eu. Não preciso te explicar a magia das palavras. Mas como posso ter certeza de que as minhas histórias dos Primeiros Homens saem fortes e inteiras se usar palavras do Povo Rio para as contar?

Durante muito tempo, Chakliux ficou olhando para o rio. Por fim, tirou um longo fio de tendão de uma bolsa que trazia à cintura. Enrolou-o nos dedos até Aqamdax ver os contornos de uma lontra-marinha feitos com voltas e nós.

Os Caçadores de Morsas servem-se de fios para os ajudarem a contar histórias, explicou-lhe Chakliux. Ouvi dizer que as mulheres de Tundra desenham as suas histórias na neve com facas de madeira e de marfim.

Pegou a mão esquerda de Aqamdax, enrolou-lhe o fio no pulso e atou-o.

Aqamdax susteve a respiração e, por alguns momentos, esqueceu tudo menos o calor do contato de Chakliux.

Quando as tuas palavras te parecerem fracas, lembra-te da pulseira de tendão disse ele, envolvendo-lhe o pulso com os dedos. Lembra-te de que isso é mais forte do que parece. Lembra-te de que eu estou aqui contigo.

Chakliux largou-lhe a mão e levantou-se.

Ainda tenho muitas perguntas a fazer, disse Aqamdax. Tens tempo para me ajudar?

Sabia que parecia uma criança, incomodando os outros, mas queria mantê-lo junto dela, mesmo que fosse por pouco tempo.

Ele olhou para o Sol.

Sim, tenho armas para preparar, mas tenho tempo.

Leva as tuas armas para a minha cabana. Podes trabalhar lá disse Aqamdax.

Aqamdax sabia que ele iria falar-lhe em algum tabu. Era raro ele entrar na sua cabana. Mas, quando o fazia, em geral levava um dos sobrinhos.

Traz o Leva-Muito ou o Chora-Alto, se quiseres, disse ela, adiantando-se.

Irei, prometeu ele.

Em seguida, foi-se embora, afastando-se a passos largos em direção à aldeia.

 

Um homem como tu devia ter mais do que uma esposa, disse Sok, apontando para a tigela meio cheia que ele tinha na mão direita. O velho xamã da aldeia dos Morsas tinha três esposas.

A minha mulher não ficaria contente respondeu Lobo-e-Corvo.

Sok levou a tigela à boca e engoliu um pouco de caldo. Lobo-e-Corvo não era um homem que mudasse de idéia com facilidade. Mesmo quando repetia cânticos e preces, era melhor que alguém lhe dissesse o que era preciso.

Tal como a maioria dos caçadores da aldeia, Sok cansava-se muito com o vozeirão da velha Ligige’ a mulher devia ter sido homem; gostava tanto de tomar decisões mas naquele momento desejava que a tia estivesse ali. Se ele soubesse que ela estava de acordo com ele, a teria trazido, como acontecera no passado, muita coisa seria diferente na vida de Sok. Sim, muita, muita coisa.

A tua filha precisa de um bom marido, alguém que um dia seja o chefe dos caçadores desta aldeia, afirmou Sok.

Lobo-e-Corvo sorveu ruidosamente o caldo e depois olhou para Sok por cima da borda.

Também é o que me diz a minha mulher.

Eu serei um bom marido para ela.

Ela seria uma segunda esposa.

Eu a respeitaria como se ela fosse primeira esposa.

Tivemos esta mesma conversa antes da morte do teu avô. Eu disse-te então que te daria Neve-no-Cabelo, mas só como primeira esposa.

Desde que ela recusou Chakliux os caçadores a receiam. Têm medo que ela lhes dê azar.

Lobo-e-Corvo levantou a sobrancelha.

E tu não tens medo dela, apesar de ter recusado o teu irmão?

Porque eu teria medo de alguém que recusou o meu irmão? Julgas que ele me amaldiçoaria? Somos companheiros de caça. Ele vive na cabana da minha mulher.

Isso é verdade. Isso é verdade, assentiu Lobo-e-Corvo.

Como sabes, tenho muito para dar por ela, mais do que pela mulher dos Primeiros Homens, tanto quanto a filha de alguém pode render.

Porque julgas que eu queria a mulher dos Caçadores Marinhos?

Tens que ouvi-la contando histórias. Ela tem poderes que nem imaginas. Quando as palavras lhe saem da boca, transportam-te para outros sítios, outras épocas. Ela é dotada.

Durante muito tempo, Lobo-e-Corvo não falou. Durante muito tempo, Sok ficou esperando. Estava quase resolvido a levantar-se, a sair e a dizer a Aqamdax que não haveria histórias ao serão, mas então Lobo-e-Corvo falou, lenta, tranqüilamente.

Não digas nada à tua mulher, Folha Vermelha. Não quero que a minha mulher saiba por enquanto.

As palavras fizeram nascer a esperança no coração de Sok, que se debruçou, pegando a tigela de madeira com tal força que ela chiou nas suas mãos.

Dizes que essa mulher dos Caçadores Marinhos vai contar histórias esta noite? perguntou Lobo-e-Corvo.

Sim.

Estarei lá para a ouvir. Se ela me agradar, faremos negócio. Amanhã, me dás como segunda esposa, mas a minha filha fica comigo durante a caça ao caribu. Podes reclamá-la quando a caçada acabar.

Não era burro... aquele, pensou Sok. Teria duas esposas e uma filha para o ajudar a esquartejar a sua carne e a preparar as suas peles. Teria menos ajuda da mulher dos Primeiros Homens, mas pelo menos ela aprenderia e estaria preparada para o ano seguinte. Talvez Flor Azul estivesse mais disposta a ensiná-la do que Folha Vermelha.

Está bem, respondeu Sok.

Saiu da cabana às pressas, antes que Lobo-e-Corvo mudasse de idéia.

Aqamdax espalhou ervas frescas e flores secas de erva-do-fogo pelo chão. O Povo Rio cobria o chão com peles de caribu, mas ela usava plantas, como lhe tinham ensinado. O que cheirava melhor do que as ervas e as flores secas? Trouxera esteiras entrançadas e pendurara-as nas paredes. Os desenhos da tecelagem desviavam os olhares das cinzas da lareira e dirigiam-nos para a beleza das paredes da cabana. A primeira vez que Folha Vermelha vira a cabana de Aqamdax, tapara a boca com a mão, escondendo a surpresa ou o riso, Aqamdax não sabia, mas quem podia esperar que aquelas mulheres do Povo Rio compreendessem o que era belo se faziam os seus cestos com pele de peixe?

Aqamdax ouviu raspar à porta e inclinou-se para mandar entrar quem estava lá fora, esperando que fosse Chakliux.

Quando vivia com os Primeiros Homens no ulax do chefe dos caçadores, ficava sempre satisfeita quando os homens iam vê-la, por saber que não enfrentaria sozinha a escuridão da noite. Com Chakliux, sentia uma alegria diferente. Queria olhá-lo nos olhos quando o confrontava com um enigma. Queria ouvir a sua voz quando ele falava com ela. Nem com Rompe-o-Dia ela sentira aquilo.

Não sabia ao certo por que motivo Chakliux lhe agradava. Não era um homem grande, apesar de ter uns braços fortes. Talvez fosse o poder do seu pé de lontra. Talvez fosse a sua rapidez de espírito. Muitas vezes, antes de adormecer, os pensamentos de Aqamdax viravam-se para ele, e muitas vezes ela dizia a si própria que não devia pensar tanto no irmão do marido. Mas, mesmo em sonhos, ele vinha encontrá-la, e quem podia controlar os sonhos?

Sorriu, mas o seu sorriso deu lugar a uma boca aberta de admiração ao ver que quem entrara na cabana não fora Chakliux mas sim uma das velhas da aldeia, uma das tias de Chakliux, apesar de Aqamdax não se lembrar do nome dela.

B... bem... vinda, tia gaguejou Aqamdax.

A mulher inclinou a cabeça, como se meditasse na relação que Aqamdax assumira com tanta facilidade.

Tia do teu marido, isso é verdade disse ela por fim.

Havia uma rispidez na sua voz que irritou Aqamdax, e as palavras vieram-lhe depressa demais à língua:

Não tens certeza se queres ser tia de alguém que não é totalmente humano. Segundo as histórias do meu povo, somos irmãos das lontras-marinhas. Considerando o teu sobrinho Chakliux, talvez sejamos mais chegadas do que tu julgas.

A velha semicerrou os olhos e abriu a boca, e nesse momento Chakliux entrou na cabana. Hiii, pensou Aqamdax, que boa maneira de começar as minhas histórias, insultando uma das velhas, tia do meu marido. Porque falo eu sempre antes de pensar?

Então, para surpresa de Aqamdax, a velha desatou a rir. Era um riso profundo e ressonante, que poderia sair da boca de uma jovem, e Chakliux, que observava a cena, começou também a rir, até que Aqamdax deu consigo a sorrir.

A velha sentou-se perto do centro da cabana, junto do lume, e Chakliux sentou-se ao lado dela, de pernas cruzadas. Aqamdax levou-lhes tigelas de sopa de peixe e um odre de água.

A velha limpou os olhos na manga e aceitou a sopa das mãos de Aqamdax.

Folha Vermelha disse-te que não era preciso preparares comida para as pessoas? perguntou Chakliux.

Sim, respondeu Aqamdax, agradecida por verificar que a mulher lhe dissera a verdade. Mas ainda não chegou a hora das histórias, e vocês são da família.

Aqamdax olhou para a velha e reparou que ela erguera ligeiramente a testa. Era um bom sinal.

Esta mulher de Sok tem o marido errado comentou a velha, virando-se para Chakliux, como se Aqamdax tivesse saído da cabana.

De repente, as mãos de Aqamdax imobilizaram-se. Saberia ela dos planos de Sok para a vender a Lobo-e-Corvo?

Chakliux abriu a boca e voltou a fechá-la, como se não soubesse o que dizer. Por fim, olhou fixamente para Aqamdax.

O meu irmão disse-me que tenciona vendê-la. Talvez a Lobo-e-Corvo.

Lobo-e-Corvo faria pior, mas tu és o único que podes salvá-la observou a velha.

Sim, sou concordou Chakliux, sem tirar os olhos do rosto de Aqamdax.

 

Sok vestiu a sua melhor parka. Fora Folha Vermelha que a fizera com pele de lobo e de marta. As peles de lobo mais leves e com o pelo mais comprido eram trabalhadas em diagonal e alternavam com as peles de marta castanho-escuras e fofas. No meio das costas, fizera o desenho do Sol com pedaços de uma pele amarela e branca que Sok comprara. A parka era tão grossa e dura que Folha Vermelha machucara as mãos ao costurá-la. Enfeitara-lhe as mangas com intestino de caribu raspado, gelado e seco de tal maneira que adquirira uma brancura imaculada, alternando com tiras que ela tingira de vermelho e de preto. À frente viam-se dentes de peixe pendurados, furados e costurados de modo a oscilarem em duas longas filas que iam dos ombros até à cintura, e, por trás de cada dente, a mulher pendurara uma pena escura e iridescente de pescoço de cormorão.

Era uma parka que dava nas vistas e, quando Sok entrou na cabana, todos olharam para ele. Ocupou o lugar de honra nos fundos da cabana, falando em voz alta e gracejando. Aqamdax sentou-se junto da entrada, com dois odres de água em cada mão. Resolvera vestir-se como era costume quando contava histórias ao seu povo, com as tangas tecidas atadas à cintura e, como a cabana não estava quente pelo menos não tão quente como ela estava habituada, vestia também o seu sax de penas de cormorão-preto. Vestira-o com as penas viradas para dentro durante a longa viagem no mar do Norte, e algumas estavam partidas. Aqamdax fora obrigada a reforçar várias costuras, mas a parka continuava a ser muito bonita e tão boa como qualquer outra usada pelas mulheres do Povo Rio. Sok empinou o queixo para ela e depois fez-lhe sinal para que ocupasse o seu lugar de contadora de histórias. Ela colocara uma almofada de peles de lontra-marinha de um dos lados da lareira e sentou-se ali, quase sem perceber que Folha Vermelha se aproximara dela, lhe tirara os odres de água e ficara com eles na mão.

De repente, Aqamdax esqueceu-se das palavras do Povo Rio, lembrando-se apenas da língua do seu povo. Arregalou os olhos de medo e fitou Chakliux, que lhe sorriu. Sim, devia ser mulher dele, pensou Aqamdax. Se assim fosse, não estaria tentando contar histórias antes de estar preparada para isso, tentando conquistar o seu lugar na cabana de um homem que ela não desejava.

Eles estavam à espera, os homens, as mulheres e as crianças que se acumulavam na sua pequena cabana; outros espiavam do túnel de entrada. Se ela começasse a falar na língua dos Primeiros Homens, talvez conseguisse mudar mais facilmente para as palavras do Povo Rio, mas quem podia dizer ao certo? O Povo Rio podia ofender-se.

Por fim, Chakliux levantou-se, olhando fixamente para Sok, como se lhe dissesse para estar calado e esperar.

Começo as histórias segundo a tradição que aprendi em criança disse ele, e com as suas palavras, pronunciadas com tanta clareza na língua do Povo Rio, Aqamdax voltou a lembrar-se da língua. Primeiro, um enigma.

Ouviu-se um murmúrio vindo da assistência, de ansiedade ou de descontentamento, Aqamdax não sabia ao certo, mas só pôde sentir gratidão.

Olhem, vejo alguma coisa, disse Chakliux.

O quê? perguntou uma das crianças, um rapazinho com cerca de três Verões.

A pergunta provocou uma gargalhada geral, e Chakliux também riu.

Crescem juntos, são sagrados e ajudam as pessoas proferiu ele.

Houve muitos palpites: as árvores e os animais, os peixes e as aves, até que por fim a velha, a tia, levantou a cabeça e disse:

O que é mais sagrado para o nosso povo, das coisas que crescem, do que as plantas que nos dão frutos? Elas vivem perto da terra, vão buscar força ao solo e transmitem-na através dos seus frutos.

Ligige’, tu és inteligente disse Lobo-e-Corvo. Quem sabe responder ao enigma de Chakliux?

Ligige’, pensou Aqamdax. Não se podia esquecer do nome da velha. Aqamdax podia fazer-lhe perguntas, e talvez um dia... Mas não. Não podia entregar-se ao desejo de vir a ser esposa de Chakliux. Estava prometida a Lobo-e-Corvo. E ainda pertencia a Sok.

Os empetros e as amoras-da-silva-salmão crescem juntos disse Leva-Muito, um dos filhos de Sok.

Aqamdax viu Sok erguer as sobrancelhas e olhar para Chakliux. Este fez um sinal afirmativo ao sobrinho e Sok exprimiu a sua satisfação com a resposta do filho.

Tu és inteligente, comentou Chakliux.

As pessoas concordaram com um murmúrio, e Aqamdax percebeu que o seu medo desaparecera. Mesmo assim, a tarefa seria difícil, e ela não reclamaria o lugar de contadora de histórias. Naquela aldeia, esse lugar pertencia a Chakliux. Contentava-se em contar histórias às crianças, mas nessa noite ajudaria Sok a conquistar a mulher que ele desejava. Talvez um dia, em troca, ele a ajudasse a encontrar uma maneira de ser esposa de Chakliux.

Aqamdax instalou-se nas almofadas de pele de lontra, agachando-se como o seu povo fazia.

Para o meu povo, eu sou uma contadora de histórias, ensinada por outra contadora de histórias anunciou ela, sem tropeçar nas palavras.

Todos vocês conhecem as histórias de Rio melhor do que eu, por isso não tentarei contá-las. É preferível que sejam vocês a me contá-las.

Eles abanaram a cabeça, de sobrancelhas erguidas. Era um bom começo.

Portanto, esta noite o meu marido oferece a sua hospitalidade na esperança de que vocês gostem de ouvir novas histórias do povo a que chamam Caçadores Marinhos. Há muito que eles são vossos parceiros de negócios, e por vezes nós também negociamos esposas.

Aqamdax sorriu e ouviu-se uma gargalhada geral.

Por isso vou começar por vos falar das lontras-marinhas, nossas irmãs, e do modo como elas nasceram.

Aqamdax falou desse irmão e dessa irmã, que se descobrira serem amantes, e que por isso tinham caído em desgraça junto do seu povo. Como continuavam precisando um do outro, atiraram-se ao mar e tornaram-se as primeiras lontras-marinhas. Quando Aqamdax acabou a história, contou outra, do grande entalhador Shuganan, e depois começou a contar a história de Chagak. Embora as palavras da língua do Povo Rio não lhe saíssem da boca com a mesma fluência da sua própria língua, ela sabia que o povo começava a vivê-las, a transformar-se naqueles de quem ela falava. Às vezes, tinha que fazer uma pausa e procurar uma palavra, mas se não se lembrava do que precisava de saber, olhava para Chakliux. De cada vez, ele mexia os lábios para ela ver a palavra antes de a pronunciar, e era como se ela se servisse do seu próprio fôlego para dar vida ao que ele dizia.

Quando chegou à parte da história em que falava das lontras, mudou a voz como fizera no seio do seu povo, como se fosse uma lontra a falar em vez de uma mulher.

Apertou a garganta, e foi buscar a voz na escuridão que naquele momento se fechava em volta do orifício do fumo. O primeiro som depois da voz da lontra foi a vozearia deliciada das crianças. Aqamdax já se servira das vozes delas, e as crianças já estavam à espera disso. Mas com um ruído semelhante ao ranger da terra quando esta se mexe debaixo de uma aldeia, os caçadores começaram a murmurar e Aqamdax ouviu as mulheres levantarem a voz num tom lamuriento, como se elas próprias tivessem se tornado crianças de repente.

Em seguida, Lobo-e-Corvo levantou-se, gritando-lhe e brandindo o seu cajado, cantarolando palavras que pareciam ser maldições. Aqamdax olhou para Chakliux, mas ele estava de costas, com as mãos já fincadas nos braços de Lobo-e-Corvo. Depois, Sok aproximou-se dela, gritando às pessoas que abriam caminho para sair da cabana.

Aqui não há nada a temer. Ela não invoca os espíritos. É a voz dela. É ela que faz as vozes. Ela é uma contadora de histórias. Porque vocês têm medo?

Mas eles não pararam, e por fim só Sok, Chakliux, Ligige’ e Lobo-e-Corvo ficaram com Aqamdax na cabana.

Esperas vender uma pessoa que não tem respeito pelos poderes de um xamã? Julgas que a aceito em troca da minha filha? gritou Lobo-e-Corvo a Sok. Só um xamã tem direito de usar as vozes dos espíritos.

Sok levantou-se, boquiaberto. Aqamdax esperou que ele falasse para dar as suas explicações a Lobo-e-Corvo, mas. como ele não o fez, ela disse:

Eu não desrespeito ninguém. Sou uma contadora de histórias. Sou eu que faço as vozes. Posso fazê-lo agora, se quiseres. Muitas vozes. É assim que os Primeiros Homens contam histórias.

Não ouvirei mais histórias tuas declarou ele. Lobo-e-Corvo saiu da cabana e Sok foi atrás dele.


Capítulo Trinta e Quatro

 

Colar Azul acha que ela é uma bruxa, mas eu não acho. Ela não invoca espíritos. Só conta histórias.

Yaa afastou o cabelo dos olhos. Este prendera-se numa raiz caída do teto da toca que lhe soltara uma madeixa das tranças. Na penumbra, ela não via bem o rosto de Ghaden mas ouvia-o comer.

Ela é minha irmã disse ele, com a voz embaralhada pelo peixe que tinha na boca.

Sim, e é contadora de histórias.

Tu és minha irmã

Somos ambas tuas irmãs disse Yaa com paciência. Era uma ladainha em que, aparentemente, ambos tinham que participar todos os dias, para garantir que Aqamdax era irmã de Ghaden.

Tu também és irmã dela? perguntou ele.

Yaa franziu a testa. Ghaden nunca fizera esta pergunta.

Não, bem, talvez, visto que a mãe dela e a minha eram esposas-irmãs.

As relações entre as pessoas eram complicadas. Às vezes, os primos também eram marido e mulher. Depois, os filhos eram irmãos uns dos outros ou eram primos? Bom Punho dizia que eram as duas coisas, mas às vezes Bom Punho tinha idéias esquisitas. Havia muitas regras acerca daqueles com quem era possível casar ou ter relações de parentesco. Yaa estava aprendendo-as. Eram complicadas demais para Ghaden compreendê-las.

Como Yaa tinha levado Ghaden à toca, varrera o chão e retirara o lixo. Até se lembrara de transportar um cobertor, mas algum animal podia cheirá-lo e levá-lo ou rasgá-lo, ou até mudar-se para ali, apesar de Yaa ter urinado num dos cantos para deixar o seu odor, assinalando aquele local como seu.

Lobo-e-Corvo estava zangado com ela, não estava, Yaa?

Estava apenas irritado. Bem sabes que ele se irrita de vez em quando. Como Água Castanha.

Sim, disse Ghaden, e Yaa não percebeu se se tratara de uma expressão de agrado ou desagrado.

Deu uma dentada no seu peixe e mastigou-o devagar, tentando fazê-lo durar muito. Era um truque que aprendera uma vez na Primavera, quando tinha a idade de Ghaden. Se comesse devagar, a boca lembrava-se do sabor e depois, quando a comida escasseasse, ela podia fechar os olhos e fingir que estava comendo.

Agora, até as despensas de Água Castanha estavam cheias, atulhadas de peixe seco e de ovas, de pequenos pássaros inteiros e de frutos secos conservados em óleo. Tinham empilhado as cabeças de peixe em poços, fermentando, e dali a pouco tempo, se os caçadores tivessem sorte, teriam carne de caribu defumada e seca.

Ele está zangado com o homem grande, afirmou Ghaden, interrompendo os pensamentos de Yaa.

Quem é que está zangado?

Lobo-e-Corvo.

Oh! Yaa gostaria de ter tido o bom senso suficiente para levar Ghaden para casa depois das primeiras histórias. Antes de Aqamdax ter imitado as vozes. Aparentemente, ele não conseguia deixar de pensar no que acontecera.

Já te disse que ele ficou apenas irritado disse ela.

Com o homem grande, também?

Quem é o... Ah, Sok.

Sim, concordou Ghaden outra vez. Lobo-e-Corvo estava irritado com Sok.

Às vezes isso acontece, mas em geral eles são amigos.

A minha irmã vai voltar para a aldeia dela?

Yaa inclinou a cabeça e olhou para a parte mais escura da toca. Ainda não pensara no assunto, mas talvez alguém obrigasse Aqamdax a voltar para os Caçadores Marinhos. Ela esperava que não. Era bom ter uma pessoa crescida que era como uma irmã, e não uma mãe. Era bom ter outra cabana para onde ir quando Água Castanha estava zangada.

Ela tem marido, portanto pode ficar aqui, disse Yaa a Ghaden, mas perguntou a si própria o que faria Aqamdax se Sok a rejeitasse.

Yaa esperava que, quando tivesse idade para ser esposa, arranjasse um marido da sua aldeia. Era mais fácil. Uma coisa era certa: ela nunca aceitaria ir para tão longe como a aldeia de Caçadores Marinhos.

 

E a menina? perguntou Tikaani.

Deixa-a.

Ela vai dizer à mãe, e depois os caçadores vêm atrás de nós.

Cen rosnou, mas sabia que Tikaani tinha razão. Eles precisavam apanhar o rapaz sozinho, mas era raro a irmã abandoná-lo.

Poderíamos matá-la, sugeriu Tikaani.

Não era prudente matar uma criança. Qual o pai que não procuraria vingar-se?

Levamo-la também, afirmou por fim Cen. Alguém a comprará, se não na vossa aldeia, noutra qualquer. Ela ainda não tem idade para ser esposa, mas parece forte. Alguém a quererá como escrava, ou para trocar por uma esposa, daqui a uns Verões.

Achas que o rapaz se lembra de ti?

Acho que sim, mas não desta maneira. Cen apontou para a cara, enrugada e suja, e para os tufos de pele branca nas tranças. Mas tenho coisas de que um rapaz gostaria. Uma seta pequena, anzóis e uma linha de pesca.

Se não o apanharmos o quanto antes, teremos que ir embora. Julguei que já o teríamos há três ou quatro dias.

Às vezes ele fica sozinho quando a menina está nas lareiras.

O cão.

Cen tirou uma coxa de uma lebre recém morta de uma bolsa que trazia pendurada à cintura.

Então, esperamos, disse Tikaani. K’os também pode esperar. Teremos boas coisas para lhe contar quando voltarmos.

Cen pensou em K’os. Ela não era uma pessoa que gostasse de esperar, mas ele não se importava com aquilo de que ela gostava. Queria Ghaden.

 

Chakliux estava sentado numa rocha à beira da floresta. Descobrira aquele lugar quando fora pela primeira vez à aldeia de Rio Próximo, quando Sok era mais um inimigo do que um irmão e Folha Vermelha se queixara em voz alta do acréscimo de trabalho que ele representava. Há muito tempo que ele não ia ali. Agora era bem recebido por Sok e Folha Vermelha, o tio verdadeiro de Leva-Mais e Chora-Alto. Folha Vermelha não tinha irmãos que ajudassem os filhos a manejar as armas e a caçar, que lhes ensinassem aquilo que um homem devia saber, e por isso Chakliux tentava ensiná-los, à maneira dos caçadores quer de Rio Próximo quer de Rio Primo.

Quando Sok ofereceu a Aqamdax uma cabana só para ela, a mulher começou a costurar para Chakliux, com belos pontos em costuras duplas, segundo a tradição dos Primeiros Homens. Já lhe fizera um chigdax novo e estava trabalhando numa parka de pele de pássaro, não tão quente como as parkas de pele de caribu ou de lobo, mas boa para o Verão e para o abrigar da chuva.

Às vezes, quase parecia que eles eram casados, e uma vez, quando Sok sugeriu que ele partilhasse a cama de Aqamdax, uma situação concedida a um irmão que não tinha mulher, Chakliux quase concordou. Mas não sabia ao certo se Aqamdax queria e por isso não fora passar a noite com ela.

Naquele momento, ainda não sabia o que era melhor. Talvez, antes de lhe pedir para ser sua esposa, ele se oferecesse para a levar para a aldeia dela. Uma viagem até a aldeia dos Primeiros Homens seria perigosa naquela época do ano, mas ele podia prometer-lhe que a levaria no Verão seguinte. Talvez ela quisesse ser sua esposa durante o Inverno... Mas depois como poderia ele suportar deixá-la partir?

Estava fazendo pesos de pedra-sabão para as boleadeiras, esculpindo em cada um a cabeça de um corvo. As boleadeiras seriam uma oferenda para depor junto das ossadas do pai, um sinal do luto que Chakliux fazia por ele no seu coração. Chakliux não era um bom entalhador, mas o trabalho em pedra-sabão macia em contato com a lâmina de sílex da faca que trazia na manga descontraía-o. Apesar da geada que endurecia o chão todas as noites, o sol da manhã estava quente, e as árvores que rodeavam três dos lados da rocha protegiam-no do vento.

Chakliux ouviu um ruído e levantou a cabeça, vendo Dorminhoco, o companheiro de caça de Raposa-Que-Ladra, o marido da mãe. O homem tinha o rosto crispado, embora geralmente andasse de boca aberta, como se o fato de a fechar lhe exigisse um enorme esforço.

Chakliux acenou ao homem e Dorminhoco disse: O teu pai pediu-me que viesse falar contigo.

O que deseja Raposa-Que-Ladra? perguntou Chakliux, tentando não mostrar através da voz que nunca considerara Raposa-Que-Ladra como um pai, que nunca conseguira conceder tal honra ao homem.

Morreram mais dois cães.

Os cães dele?

Não, os de Pato-de-Cabeça-Azul. Um era uma cadela com a barriga cheia de filhotes.

Chakliux abanou a cabeça. Com os cães de olhos dourados que havia agora na aldeia, ele tinha esperança de que aquela conversa dos cães amaldiçoados tivesse acabado.

Como é que eles morreram?

Ninguém sabe.

Não estavam doentes?

Não.

O que espera Raposa-Que-Ladra que eu faça? Não tenho mais cães de olhos dourados para oferecer.

Ele quer que saibas que alguns caçadores julgam que a maldição voltou. Ele quer que saibas que eles julgam que tu trouxeste de novo o azar à nossa aldeia.

Diz-lhe que os cães morrem. Lembra-lhe que eles morreram antes de eu chegar e que morrerão depois de eu partir. Eu trouxe cães fortes da aldeia de Rio Primo e dos Caçadores de Morsas. É tudo o que posso fazer. Com exceção dos cães do meu avô, não fiquei com um único para mim. Só depois que Nariz Preto parir outra ninhada é que poderei oferecer a Pato-de-Cabeça-Azul um cão para substituir os que ele perdeu. Diz a Raposa-Que-Ladra que, se ele quiser que se faça alguma coisa agora, tem de oferecer um dos seus cães a Pato-de-Cabeça-Azul.

Dorminhoco proferiu qualquer coisa entre dentes, mas Chakliux não quis saber o que o homem dissera e não lhe pediu que repetisse. Regressou ao seu trabalho, e por fim Dorminhoco afastou-se.

Não, não podia fazer nada pelos cães, mas podia fazer outra coisa. Podia ir falar com Sok e dizer-lhe que queria Aqamdax. Talvez Sok ficasse zangado, mas que lhe importava isso? Na noite da véspera, ele afirmara que não queria Aqamdax como esposa. Esperava o irmão que a mulher passasse o Inverno na aldeia de Rio Próximo sem marido?

Aqamdax ficara a manhã toda na cabana. Tinha a certeza de que Sok viria dizer-lhe que a rejeitava. Esperava que ele aparecesse cedo, antes de a maior parte das mulheres acordar. Não sabia os costumes do Povo Rio. Se ele a rejeitasse, isso significaria que ela tinha de abandonar a cabana? Ou até a aldeia? Haveria alguma família disposta a aceitá-la até ela arranjar maneira de voltar para os Primeiros Homens?

Gostaria que Chakliux fosse falar com ela. Os conselhos dele eram sempre bons, sempre acertados, e o melhor que lhe podia acontecer era que ele a aceitasse como esposa. Mas, se ele a quisesse, não devia já ter aparecido? Talvez tivesse mudado de idéia. Talvez, também ele, quisesse que ela abandonasse a aldeia.

Aqamdax pegou um cesto que começara a fazer há uns dias. Tentara entretecê-lo à maneira de Qung, dando laçadas frágeis com pedaços de erva. Estava quase a acabando o círculo do fundo, mas nesse dia tinha os dedos tremendo e não conseguia fazer nada. Largou o trabalho e começou a andar de um lado para o outro na cabana. Ouviu um som à entrada do túnel e ficou à espera, com o coração apertado e a bater com força debaixo das costelas. Reconheceu o cimo da cabeça de Sok e afastou-se quando ele se pôs de pé.

Sok demorou-se a olhar para ela. Tinha um olhar frio.

Desculpa... ela ia dizendo, mas ele interrompeu-a.

Cala-te ordenou ele. Não quero voltar a ouvir a tua voz.

Ela fechou a boca e cruzou as mãos, obrigando-se a manter os dedos imóveis.

Sok vestia a mesma parka cerimonial da noite da véspera, mas as perneiras e as botas eram as de todos os dias, sem chocalhos de casco de caribu nem bordados de pelo pintado.

Tu já não és minha esposa declarou ele, e as suas palavras foram como uma bofetada na face de Aqamdax. Rejeito-te. Não foste minha esposa tempo suficiente para ficares com esta cabana. Se não arranjares um marido que me pague as peles de caribu, também tens que partir.

Mais uma vez, Aqamdax abriu a boca para falar, mas ele encostou-lhe um dedo espetado à cara.

Não fales comigo insistiu ele, enfiando-se no túnel.

Aqamdax ficou imóvel durante muito tempo, pressionada pelas palavras até sentir que não conseguia respirar. Em seguida, enfiou as perneiras, calçou as botas e vestiu a parka que fizera à maneira do Povo Rio.

Um cão, pensou. Tenho que arranjar um cão. Talvez conseguisse ir a pé para a aldeia do seu povo se tivesse o cão para a proteger e para transportar as suas coisas e mantimentos. Possuía coisas para trocar, um chigdax... Mas não, e se ela encontrasse um comerciante disposto a levá-la de barco? Precisaria do chigdax.

Possuía cestos. Eles haviam de render alguma coisa. Ela tinha pouca comida de reserva. Talvez pudesse ceder uma parte do óleo de foca.

Primeiro, iria falar com a velha Ligige’. Talvez ela conhecesse alguém que quisesse vender um cão. Talvez ela soubesse se Chakliux também estava zangado com ela.

Não, primeiro iria falar com Ghaden e Yaa, despedir-se deles. Talvez, quando fosse crescido, Ghaden quisesse ser comerciante como o pai. Um dia, ele iria à aldeia de Aqamdax e ela poderia voltar a vê-lo. Mas o fato de saber que isso talvez nunca viesse a acontecer fê-la sentir um nó na garganta e as lágrimas prestes a saltarem-lhe dos olhos.

Lembrou-se de que poderia nunca ter vindo para ali, de que poderia nunca ter sabido que tinha um irmão. Só o fato de saber, de o ter conhecido, valia muito, mesmo que fosse obrigada a partir.

Embalou o que lhe pertencia, enrolou as esteiras e os cobertores, depois parou e percorreu a cabana com o olhar. Sorriu, um sorriso rápido, recordando que desejara ter a sua própria cabana quando vivia com os Primeiros Homens. Agora que tinha uma, ia deixá-la. Tirou um odre meio cheio de água dos postes e o pôs a tiracolo. Depois pegou um fardo que preparara com os objetos para trocar e saiu da cabana.

Sok entrou na cabana de Folha Vermelha arrastando uma lufada de ar frio saturado do cheiro de fumaça e a folhas secas. Olhou para Chakliux.

Ela é tua, mas não é bem-vinda nesta cabana. Tu és, disse ele, apontando com o queixo para o irmão.

Darei peles de caribu a Folha Vermelha, metade da parte que me cabe da nossa caçada, em troca da cabana de Aqamdax.

Sok encolheu os ombros e desviou o olhar. Chakliux pegou a parka, mas Folha Vermelha impediu-o.

Espera disse ela. Ainda não podes ir.

Sok semicerrou os olhos à mulher, disparou algumas palavras, furioso, e saiu da cabana. Folha Vermelha sorriu.

Não podes ir falar com uma noiva sem te preparares. Eu tenho óleo. Tenho erva-do-fogo seca para te amaciar o cabelo. Tens algum presente para ela?

Chakliux sentiu-se corar. Passara a noite pensando num presente, mas não queria dizer isso a Folha Vermelha. Por fim, resolvera-se pelo colar de conchas e jaspe que usava nas cerimônias.

Eu tenho um colar disse ele.

Ainda bem. Toma.

A mulher deu-lhe um sael de gordura de ganso, que adquirira um tom amarelo-claro. Ele tirou um bocadinho e passou-o pelo cabelo. Depois, sentiu-se descontraído quando Folha Vermelha lho penteou com os dedos.

Esposa. Da última vez que se preparara para aceitar uma esposa, a mulher era Mirtilo e ele só sentira tristeza. Agora, conhecia Aqamdax e sabia o que era a alegria, tão fervilhante e cheia como no dia em que ele aceitara Gguzaakk.

Ah, minha Gguzaakk, alegra-te por mim, pensou ele. Encontra um bom caçador para ti nesse mundo dos espíritos e um dia estaremos todos juntos, tu, eu e o nosso filhinho, o teu caçador e a minha Aqamdax, e talvez outros filhos e filhas.

Não quero que as pessoas te vejam aqui, declarou-lhe Água Castanha. Não és bem-vinda na minha cabana. Não entres. Deixa-nos.

Os olhos da mulher eram duros e negros como pedra, mas Aqamdax não se virou.

Preciso ver o meu irmão disse ela.

Ele não é teu irmão.

Daes é minha mãe. Ghaden é meu irmão.

Água Castanha ficou sem fôlego quando Aqamdax pronunciou o nome de Daes em voz alta, e Aqamdax viu-lhe o medo no olhar.

Julgas que eu não sou humana para pronunciar o nome de uma morta? Estás enganada. Mas não tenho medo da minha própria mãe, e o que mais tenho a perder, agora que perdi tudo? Quero ver o meu irmão.

Ele saiu. Não sei onde está. Deve estar com Yaa. Aqamdax não sabia se Água Castanha estava dizendo-lhe a verdade. Talvez fosse melhor fingir que acreditava nela. Encontraria Ligige’ e depois voltaria para perguntar se podia falar com Ghaden.

Eu volto, afirmou Aqamdax a Água Castanha, sorrindo-lhe como se fossem duas amigas cumprimentando-se.

Encaminhou-se para a cabana de Ligige’ de cabeça erguida. Com certeza que algumas mulheres já sabiam que Sok a rejeitara, mas isso seria pior do que o ridículo a que ela estivera sujeita na sua própria aldeia?

Ligige’ deixara um pau espetado à entrada da cabana. Aqamdax pegou-o e raspou as peles de caribu já gastas.

Estou aqui! gritou Ligige’, com a voz rouca de uma velha, mas mais alto do que Aqamdax esperava.

Aqamdax enfiou a cabeça na entrada. O cheiro agradável a carne cozida impregnava o ambiente. Ligige’ estava mexendo algo numa pele pendurada num tripé.

Estou velha demais para ir sempre às lareiras da aldeia, disse ela a Aqamdax. Tens fome?

Aqamdax ia recusando a comida tinha o estômago pequeno demais e encolhido de preocupação mas não sabia ao certo se era delicado recusar para o Povo Rio.

Tenho disse ela. Isso cheira bem. Ligige’ apontou com o queixo saliente para um amontoado de tigelas de madeira que se encontravam numa rede pendurada do outro lado da cabana. Aqamdax pegou numa.

Também queres? perguntou ela.

Sim respondeu Ligige’, que encheu as duas tigelas e estendeu uma a Aqamdax.

A velha sentou-se numa esteira perto da lareira e começou a comer. Aqamdax agachou-se ao lado dela. Ligige’ parou de comer e apontou com a tigela para as pernas de Aqamdax, perguntando:

Não te cansas de estares sentada assim?

Sempre me sentei assim respondeu ela. Para quê molhar um sax de penas sentando-me em cima dele?

Às vezes, acho que os Caçadores Marinhos são mais humanos do que nós.

Aqamdax levantou a sobrancelha, admirada com o comentário. E depois lembrou-se de que, para o Povo Rio, erguer o sobrancelha significava concordância; por isso baixou a cabeça depressa, esperando que Ligige’ não tivesse visto.

Creio que todos somos humanos, afirmou Aqamdax em voz baixa. Somos apenas diferentes, mais nada.

Talvez, disse Ligige’, com a boca cheia de comida. Quando Aqamdax esvaziou a tigela, Ligige’ ofereceu-lhe mais, mas ela disse-lhe que estava cheia. A velha lançou um olhar ávido à panela e tirou um pouco mais.

Comer parece ser o único prazer que me resta, observou ela.

Aqamdax sorriu.

Chakliux disse-me que tu aprecias um bom enigma.

Ah, também isso, concordou Ligige’, batendo com a mão no joelho. Também isso. É bom ter Chakliux na nossa aldeia. Ele e os seus enigmas fazem boa companhia.

Também sou dessa opinião, disse Aqamdax.

Algumas das mulheres andam falando comentou Ligige’. Vejo que trazes um fardo. Vais deixar-nos?

Não tenho alternativa. O meu marido rejeitou-me.

E não há outros homens para ti nesta aldeia? perguntou Ligige’.

Nenhum que me aceite.

Acho que estás enganada.

Quem me quer depois de ter assistido à fúria de Lobo-e-Corvo?

Não tenhas medo que Lobo-e-Corvo te amaldiçoe. Ele não é pessoa para fazer uma coisa dessas.

Ele julga que eu não respeito os seus poderes de xamã.

No seu íntimo, ele sabe que tu não quiseste mostrar desrespeito, mas, às vezes, Lobo-e-Corvo demora um certo tempo a ser honesto consigo próprio. Ele é meu primo, e eu conheço-o desde que ele nasceu. Eu tinha treze Verões nessa altura, e passei muito tempo com ele ao colo, limpando-o e a mudando-lhe o musgo que lhe almofadava o espaldar. É difícil tomar um homem muito a sério quando nos lembramos de que lhe limpávamos o traseiro em pequeno. A velha empinou o queixo e disse a Aqamdax: Tu só o conheceste como xamã. Eu vejo-o também como um bebê chorando e como uma criança. Compreendo-o melhor, também.

Ligige’ inclinou-se para Aqamdax, tirou-lhe a tigela das mãos e largou também a sua.

Sinto a falta do meu irmão, Tsaani disse ela. Aqamdax não se lembrava de ninguém na aldeia que se chamasse Tsaani.

Ele vive noutra aldeia? perguntou ela.

Não. Vivia aqui. Morreu antes de tu chegares. Não te preocupes que eu pronuncie o seu nome. Estás a salvo comigo.

Eu não me preocupo, disse Aqamdax. Ele morreu há muito tempo?

Não há muito. Há tanto como a tua mãe. Só isso.

Sabes que ela era minha mãe?

Pronuncia o nome dela se quiseres, a menos que seja tabu para ti. Eu estou velha. Não a receio. Soube que ela era tua mãe assim que te vi. És parecida com ela. Outros diziam que era por tu seres dos Caçadores Marinhos, mas eu sabia. Algumas pessoas são tolas, julgam que os Caçadores Marinhos deviam ser todos parecidos. Vou dizer-te uma coisa que tu devias saber. A velha inclinou-se para Aqamdax, baixou a voz e proferiu com uma voz rouca: O meu irmão e a tua mãe foram mortos com a mesma faca.

Ele era o avô de Chakliux?

Era.

Foi ele que morreu na mesma noite da minha mãe?

Sim. Os dois. Na mesma noite. Foi Chakliux que te contou?

Água Castanha.

Ah! Estou admirada por Sok não te ter dito.

Descobri que há muita coisa que Sok não me disse.

Ele não é um homem bom nas palavras, mas é um ótimo caçador.

Por instantes, Aqamdax sentiu-se irritada, mas depois os seus pensamentos abandonaram Sok e viraram-se para a noite em que a mãe morrera. Se Daes fora assassinada por ser dos Primeiros Homens, porque Tsaani fora morto? Se o comerciante tinha algum motivo para matar Daes, porque matara também Tsaani? Porque tentara matar o próprio filho e depois deixara uma faca que quase todas as pessoas sabiam pertencer-lhe? Os comerciantes não eram tolos. Os tolos não sobreviviam a longas viagens de aldeia em aldeia, negociando com muita gente.

Eles estiveram juntos nessa noite, o teu irmão e a minha mãe? perguntou ela a Ligige’.

Não. O meu irmão estava na cabana da mulher. A tua mãe e o teu irmão foram encontrados à porta da cabana de Água Castanha.

Chakliux contou-me umas coisas, prosseguiu Aqamdax. Que encontrou o meu irmão e que ele ainda tinha a faca espetada nas costas.

Sim. Fui eu que ajudei Lobo-e-Corvo a tratar do rapaz.

Então eu devo-te muito, disse Aqamdax.

O que deve alguém a uma velha que trata de uma pessoa que um dia virá a caçar?

Quem era a mulher do teu irmão?

Mirtilo.

Aquela que é agora mulher de Caça-Raízes?

Sim.

Ela é nova.

Foi uma boa esposa para o meu irmão. Ele mandou-a para a cabana dos pais nessa noite porque Lobo-e-Corvo fora falar com ele.

Acerca de quê?

Ligige’ franziu a testa e Aqamdax levantou uma mão.

Desculpa. Eu não queria ser indelicada. Ligige’ encolheu os ombros.

Os costumes variam de aldeia para aldeia e de povos para povos.

Na minha aldeia isto também seria uma indelicadeza, declarou Aqamdax.

A velha sorriu.

Compreendo que queiras saber o que aconteceu. Não posso dizer-te muito; só que Mirtilo disse que estava na cabana da mãe e que até o irmão mais novo, que só tinha quatro Verões, te dirá o mesmo. Ela não sabia do que queria falar Lobo-e-Corvo... Como vês, eu também perguntei... E por isso eu fui falar com ele e perguntei-lhe.

E ele disse-te?

Começou a resmungar, mas sim, disse-me. Disse que queria comunicar a Tsaani que Sok não ficaria com Neve-no-Cabelo, que a filha dele não seria segunda esposa de nenhum caçador.

Há muito tempo que Sok tenta conquistar Neve-no-Cabelo?

Sim, há muito tempo. Sabes que foi essa a razão da sessão de histórias desta noite?

Sei.

Lobo-e-Corvo não é mau homem, mas é muito cioso dos seus poderes de xamã. Se ele fosse mais forte, mais seguro de si, não creio que tivesse ficado tão zangado. Preocupa-o que haja outros que mereçam mais tal poder do que ele.

Eu compreendo, afirmou Aqamdax.

Tu és uma criança. Como é que podes compreender?

Eu era contadora de histórias na nossa aldeia, mas antes disso... Aqamdax fez uma pausa, ponderando cuidadosamente as palavras. Antes disso eu não era uma mulher que um homem quisesse ter como esposa.

Mas Sok quis-te.

Não. O xamã dos Morsas é que me queria. Sok entregou-me a ele para conseguir mercadorias que lhe permitissem comprar Neve-no-Cabelo.

Então, porque estás aqui?

O xamã dos Morsas morreu antes de eu me tornar mulher dele.

Ligige’ arregalou os olhos e de súbito Aqamdax desejou não ter contado nada à mulher.

Eu não o matei disse ela. Eu não tive nada a ver com a morte dele.

Então tu querias ficar com o xamã dos Morsas?

Nesse tempo, eu queria ser mulher de Sok. Depois descobri que ele só me aceitara para me vender ao xamã dos Morsas.

Mas tu vieste para cá com ele.

Os Morsas não me deixariam ficar com eles, e depois de eu estar aqui...

Tu ficaste por causa de Chakliux afirmou Ligige’ por fim.

Não... disse Aqamdax. De repente, percebeu que Ligige’ tinha razão. Ela ficara por causa de Chakliux. Sim.

Não partas antes de falares com ele.

Tenho outras coisas a fazer primeiro. Conheces alguém que tenha um cão para vender?

Ligige’ abanou a cabeça.

Vai às lareiras e pergunta às mulheres que lá estão.

Também tenho que encontrar o meu irmão, Ghaden, e a irmã, Yaa. Eles não estavam na cabana de Água Castanha.

As crianças brincam disse Ligige’. Há uma bela toca de raposa no caminho para a latrina das mulheres, perto da saída da aldeia. Lembras-te do velho abeto, do mais alto, na curva do caminho?

Aqamdax fez um sinal afirmativo.

É debaixo dessa árvore. Procura aí se não conseguires encontrá-los na aldeia.

Obrigada. Seria bom chamar-te tia.

Então, chama. A velha levantou-se. Não partas sem falares com Chakliux.

Aqamdax sorriu e fitou a mulher.

Falarei com Chakliux prometeu ela.

 

O meu pai nunca me deixará ir contigo agora, disse Neve-no-Cabelo.

Sok pousou-lhe a mão no ombro, mas ela afastou-se e virou-lhe as costas. Os cabelos espessos e soltos chegavam-lhe quase à cintura. A mulher despira a parka no ambiente morno da cabana de Folha Vermelha e vestia apenas uma camisa de pele de caribu com longas fendas debaixo dos braços. Quando se mexia, ele via-lhe a pele escura do lado dos seios.

Tenho o suficiente para comprar três esposas afirmou Sok, olhando para o teto da cabana para não se perder de desejo por ela.

Ainda há uma maneira disse Neve-no-Cabelo, e falou tão baixinho que Sok teve que se debruçar para ouvir as palavras dela.

Ela fitou-o e ele sentiu uma tremura na barriga, como se andasse caçando, de lança e lançador em riste, espreitando um animal.

Se rejeitares Folha Vermelha...

Ele desviou o olhar.

Não posso. Como posso suportar ver os meus filhos junto de outro homem?

Ela encostou-se às costas dele, abraçou-o pela cintura e colou-se a ele para Sok lhe sentir os seios e os ossos duros e salientes que lhe guardavam as pregas macias da vulva.

Posso dar-te filhos declarou ela em voz baixa.

Muitos filhos. Tantos filhos que teremos de construir duas cabanas. Neve-no-Cabelo riu, um som alegre que ele adorava. Tantos filhos que terás de casar com outra mulher só para ela ajudar a tratar deles.

Ele não podia mexer-se. A alegria e o horror daquilo que ela queria que ele fizesse levavam-no a sentir-se como se tivesse uma corda atada ao pescoço. Depois, ouviu-a arfar, soltando-o. Levantou a cabeça e viu Folha Vermelha.

Folha Vermelha era uma mulher alta, quase tão alta como Sok, e nesse momento parecia maior, mais alta ainda. Sok julgou que ela desataria a gritar de fúria, mas ela limitou-se a levantar a cabeça e a empinar o queixo.

Dois filhos fortes são melhores do que promessas de filhos afirmou ela, dirigindo as suas palavras a Neve-no-Cabelo. Depois, olhou para Sok e acrescentou: Não é preciso rejeitares-me. Eu sei como podes convencer Lobo-e-Corvo a conseguir esta moça que desejas. É fácil. É uma coisa que uma mulher pode fazer. Que eu posso fazer. E se o fizer, nem sequer terás que lhe pagar nada por ela.

A mulher inclinou a cabeça e olhou de esguelha para Neve-no-Cabelo.

Mas as peles que não deres a Lobo-e-Corvo serão para mim declarou ela.

Serão para ti concordou Sok.

 

Yaa?

Aqamdax agachou-se em frente do abeto e gritou na direção dos ramos. Devia ser aquela a árvore a que Ligige’ se referia. Era a única árvore grande que havia na curva do caminho.

Ghaden? É a tua irmã Aqamdax.

Aqamdax ouviu um restolhar nos ramos e recuou. Não sabia nada acerca dos animais que viviam perto da aldeia de Rio Próximo, nem sabia ao certo o que havia de fazer se apanhasse um pela frente.

Então Ghaden espreitou, com um rostinho pálido, redondo e sorridente.

Ghaden!

O grito foi em surdina, mas Aqamdax reconheceu a voz de Yaa. De repente, alguém afastou Ghaden, cujo rosto desapareceu debaixo dos ramos do abeto. Aqamdax foi atrás dele, de rastos.

É tarde demais. Sei que estás aí, Yaa. Foi a Ligige’ que me disse.

A Ligige’!

Yaa saiu, corada e aborrecida.

A Ligige’ disse que nós estávamos aqui?

Disse.

Como é que ela sabia? Ninguém sabe deste lugar exceto eu e Ghaden. E agora tu acrescentou Yaa fazendo beicinho.

Os velhos sabem muitas coisas, mas não me parece que tenhas motivos para te preocupares. Ela não dirá a ninguém, nem eu. Esse continuará a ser o vosso esconderijo. Eu não voltarei aqui.

Yaa suspirou.

Acho que podes vir se nós te convidarmos. Mas não muitas vezes.

Aqamdax sorriu e abanou a cabeça lentamente.

Não, Yaa, eu não voltarei a vir aqui. Venham comigo. Preciso falar contigo e com Ghaden.

Chakliux foi primeiro à cabana de Aqamdax. Quase todas as coisas dela estavam embaladas. Até as esteiras que ela pendurara nas paredes estavam enroladas junto de um odre de óleo de foca. Resolvera ela sair da aldeia? Sok não lhe dissera que Chakliux a queria como esposa? Ela sabia com certeza que ele viria à sua procura.

Devia estar com Ghaden ou com Ligige’. Evidentemente. Mas, apesar de Chakliux saber que ela ainda devia estar na aldeia, sentiu um medo súbito. Ela era dos Primeiros Homens e não tinha a proteção de um marido. Quem sabia o que os espíritos poderiam fazer-lhe?

Chakliux dirigiu-se à cabana de Água Castanha, e encontrou a mulher cá fora a raspar uma pele de raposa que pusera em cima de um tronco. O raspador era o osso da perna de um caribu, e, quando ele lhe dirigiu a palavra, ela ergueu o raspador como se fosse uma arma, agarrando-o como um homem agarrava numa lança.

Não pronuncies o nome dela, declarou Água Castanha quando ele lhe perguntou por Aqamdax. Ela é como a mãe, sempre encontrando maneira de mostrar desrespeito, de arranjar problemas. Não fiquei admirada quando os espíritos lhe mataram a mãe, e não ficarei admirada se acontecer o mesmo a Aqamdax.

Chakliux enfrentou a mulher como se esta fosse um guerreiro, cruzando os braços e levando a mão à faca embainhada que trazia à cintura.

Tu viste-a. Para onde foi ela? perguntou ele, confrontado com um gesto relutante de Água Castanha.

Ela queria ver Ghaden. É tudo o que sei.

Onde está ele?

Foi com ela, espero, respondeu Água Castanha. Apontou o furador ao centro do peito de Chakliux. Ela faz bem em sair desta aldeia. Isso é uma coisa que eu diria. Ela não devia estar aqui. Ela não é dos nossos.

Por fim, Chakliux virou-lhe as costas, mas continuou a ouvir a voz de Água Castanha ralhando e lamentando-se.

Encaminhou-se para a cabana de Ligige’ e encontrou-a lá dentro, sentada, sem fazer nada. Esperava que ela desse alguma desculpa pela sua inatividade, mas a velha disse apenas, como se houvesse motivos suficientes para tudo o que fora ou não feito:

Sou uma velha.

Chakliux não tinha palavras amáveis na ponta da língua e por isso tartamudeou durante alguns momentos, tentando lembrar-se se estava ou não sol ou frio lá fora.

Por fim, Ligige’ perguntou:

Procuras Aqamdax?

Ele fechou a boca e engoliu em seco.

Sim, disse.

Eu sabia que isso iria acontecer. Ela está com Ghaden.

Onde está Ghaden?

Ah, isso não posso dizer-te. É um esconderijo que só ele e as irmãs conhecem.

Ligige’, ela vai-se embora. Tenho que encontrá-la.

Não posso dizer onde é o esconderijo, mas talvez consigas descobri-lo disse ela, fazendo-lhe sinal para que ele se aproximasse.

 

Estás pronto?

Cen fez um sinal afirmativo.

E a mulher?

Não a matem disse Cen.

Com que então queres poupar a vida a alguém que nem sequer é humano.

Cen virou-se e fitou Tikaani. Acreditaria ele verdadeiramente que uma pessoa que não fosse do Povo Rio não era humana?

Ela é irmã do meu filho. Não a matem.

Mas a menina... Não te preocupas com ela?

Eu não a matarei. Façam o que quiserem. Tikaani começou a descer para o vale de Rio Próximo, com cuidado, pousando primeiro os dedos dos pés e depois o calcanhar. De repente, desatou a correr, sem fazer barulho. Cen teve dificuldade em apanhá-lo, pousando os pés nos mesmos locais que Tikaani pisara.

Surgiram tão depressa que só a menina mais nova é que teve tempo de gritar. Cen agarrou Ghaden pela barriga e tapou-lhe a boca com a mão. Pegou ele no colo e desatou a correr pelo caminho por onde tinham chegado.

Só quando voltaram ao abrigo nas árvores é que ele percebeu que a menina mais nova fora atrás dele. Sentiu o pau nas pernas e depois na nuca. Parou, e ela atirou-se a ele, ao soco e ao pontapé, enquanto Ghaden, ainda nos braços de Cen, abria a boca e lhe dava uma dentada na mão.

Cen tirou a mão da boca de Ghaden e deu uma bofetada à menina. Atingiu-a na têmpora. Por instantes, ela fitou-o com os seus olhos escuros. Depois, caiu em peso e ficou imóvel.

A minha irmã! A minha mãe! gritou Ghaden.

Ela está bem. Está dormindo, mais nada. Está apenas dormindo. Olha para mim, Ghaden. Lembras-te? Sou Cen, o comerciante. Sou o teu pai. Vim tirar-te desta aldeia. Houve aqui alguém que matou a tua mãe. Também podem matar-te. Vou levar-te para um local seguro. Quero que venhas comigo.

Ghaden olhou para a irmã e depois lentamente para Cen.

Ela está dormindo? perguntou ele.

Está.

Eu preciso do Mordedor.

Quem é o Mordedor?

É o meu cão. Ele está na cabana de Água Castanha. Preciso dele.

Teremos que vir buscá-lo mais tarde disse Cen. Ghaden fez uma careta tão grande que Cen julgou que o rapaz ia desatar a chorar, mas ele enfiou o dedo na boca e fechou os olhos.

Cen passou-o para o outro braço e embrenhou-se mais no arvoredo. Não podiam correr o risco de seguir os caminhos que iam dar no rio durante o dia, mas tinham assinalado uma trilha na floresta, dobrando caules e cortando pedacinhos de casca de árvore, sinais em que ninguém reparava a menos que andasse à procura deles.

O peso do rapaz nos seus braços provocou-lhe uma alegria súbita, e Cen nem quis pensar na menina que deixara caída no chão. Por fim, Tikaani aproximou-se dele, com a mulher dos Primeiros Homens num ombro e o fardo dela no outro.

Caminharam durante muito tempo sem parar, mas de vez em quando Tikaani gemia, agachava-se e deixava a mulher cair no chão.

Cen pousou Ghaden e endireitou o braço para aliviar as cãibras nos músculos. Ghaden ajoelhou-se ao lado de Aqamdax, encostou o seu rosto ao dela e agarrou-se aos cabelos dela. Cen abanou a cabeça. Ela era muito parecida com Daes. Arranjara maneira de descobrir para onde é que ele levara a mãe e viera para aquela aldeia. Cen não sabia se conseguiria convencê-la a ir com ele. Ela podia tomar conta de Ghaden e ajudá-lo a transportar os fardos. Em tempos, julgara que uma mulher era um estorvo, mas desde a morte de Daes que estava obcecado com a idéia de arranjar outra. Ajoelhou-se ao lado dela, pôs-lhe a mão no pescoço e sentiu-lhe a pulsação forte debaixo dos dedos.

O que lhe fizeste? perguntou ele a Tikaani.

É melhor perguntares o que ela me fez.

Sangue seco assinalava quatro golpes que lhe iam da testa até ao queixo. Tikaani estendeu a mão e Cen viu as marcas dos dentes.

Bati-lhe.

O homem inclinou-se para a frente e apontou para uma nódoa negra no queixo de Aqamdax.

Ali. Levou a mão à boca. Sugou-a, cuspiu uma golfada de sangue e depois disse: Agora amarra-a.

Ela vai lembrar-se de mim. Não oferecerá resistência, disse Cen.

No entanto, levantou-lhe o sax e tirou a faca de mulher do embrulho que ela atara à cintura. Em seguida, apalpou-lhe as mangas para ver se ela tinha facas embainhadas nos braços.

Toma conta dela. Eu vou comer e depois dormir. Será mais fácil se não a levarmos.

E fazemos o quê?

Matamo-la ou amarramo-la e deixamo-la aqui.

Ela não viverá muito tempo se a amarrarmos.

Ela não merece viver muito tempo.

Então tu não lutarias se alguém te agarrasse e ao teu irmão? A vingança está certa para ti mas não para ela?

Tikaani resmungou qualquer coisa em voz baixa e depois encaminhou-se para um montículo de musgo debaixo de uma árvore e sentou-se. Abriu o fardo que a mulher dos Primeiros Homens trazia e descobriu um sael de peixe seco. Atirou um bocado a Cen.

É um fardo pesado para uma mulher observou ele, com a boca cheia de peixe. Há aqui muita comida.

Ela ia embora, disse Ghaden, com a sua vozinha. Ia para a terra dela. Disse que eu podia ir vê-la quando fosse comerciante.

Venha cá, Ghaden chamou Cen.

O rapaz ficou ao lado da mulher por um momento, mas, quando Cen lhe estendeu os braços, ele aproximou-se. Cen pegou-lhe no colo e deu-lhe uma parte do peixe.

Quando é que podemos ir buscar o Mordedor? perguntou Ghaden.

É o cão dele, explicou Cen a Tikaani.

O homem fez um sorriso trocista e depois, debruçando-se sobre o fardo de Aqamdax, tirou mais mantimentos.

Hoje não, disse Cen.

Eu disse à Yaa que devíamos trazê-lo, mas ela disse que ele fazia muito barulho. Que alguém o ouviria. Yaa já acordou?

A menina pequena chama-se Yaa? perguntou Cen.

Sim.

Ela está acordada neste momento.

Água Castanha vai ficar furiosa.

Porquê?

Porque eu não estou em casa. Tenho trabalho para fazer.

Deixa-a lá. Tu estás comigo, e eu não estou zangado.

Ela pode não dar de comer ao Mordedor.

Yaa dará de comer ao Mordedor.

Yaa dá?

Yaa dá.

Ghaden meteu o dedo na boca e encostou-se a Cen.

Faz com que Aqamdax acorde, pediu ele.

É melhor ela estar dormindo.

A erva estava pisada. Havia sangue. O fio partido de um colar. Chakliux apanhou-o e viu que pertencia a Aqamdax. O coração começou a bater-lhe com força. Eram palpitações intensas e violentas que lhe faziam eco na garganta. O que acontecera ali? Ela e Sok tinham lutado? O irmão ferira-a, ou matara-a? Ele era homem para ser levado pela ira, sem pensar nas conseqüências. Chakliux pegou as contas do colar que tinham ficado ali e começou a bater a área. Percorreu o caminho quase até à latrina das mulheres e depois até à aldeia. Havia pegadas, algumas tão grandes que pareciam ser de um homem, mas o trilho era utilizado sobretudo pelas mulheres, e era impossível distinguir qualquer rasto com clareza.

Chakliux dirigiu-se à cabana de Folha Vermelha e encontrou Sok, olhando para as chamas da lareira.

Onde está Aqamdax? perguntou Chakliux.

Como queres que eu saiba? Rejeitei-a.

Não lhe fizeste nada?

O quê?

Onde é que ela estava da última vez que a viste?

Na cabana dela. Já te disse que a rejeitei. Talvez ela lá esteja agora.

Depois disso, onde foste?

Chakliux, o que aconteceu?

Onde foste?

Fui falar com Neve-no-Cabelo. Passei o dia com ela e com Folha Vermelha. Pergunta-lhes.

Chakliux saiu da cabana. Como podia ele saber se o irmão estava dizendo a verdade? Como podia ele confiar em alguém naquela aldeia de Rio Próximo? Talvez o seu próprio povo tivesse razão. Se eles fossem boas pessoas, permitiriam que homens como Raposa-Que-Ladra e Dorminhoco ficassem na aldeia? Mas depois Chakliux lembrou-se de Pato-de-Cabeça-Azul e de Tsaani. De Faz-Tendas e Treina-Cães. Todos boas pessoas. Até Lobo-e-Corvo era bom homem, apesar de ser fraco.

No povo de Rio Próximo não havia também gente boa e má? Porquê julgar uma aldeia inteira por uma ou duas pessoas?

Voltaria ao caminho em que encontrara o colar. Enfiou a cabeça na cabana de Aqamdax ao passar. Continuava vazia. Embora não quisesse, voltou a atravessar a aldeia, parou na cabana de Água Castanha e arranhou no túnel de entrada.

Yaa? exclamou uma voz aguda. Água Castanha gritou:

Onde estiveram, tu e Ghaden? É quase noite.

A mulher veio espreitar ao túnel. Fez um ar carrancudo ao ver Chakliux.

Não encontraste a mulher? perguntou ela.

Não.

É melhor que a encontres. Ela levou Ghaden e Yaa.

Ela não levaria os teus filhos.

Conhece-la assim tão bem? Ela é má. Se essas crianças não voltarem depressa, peço aos caçadores que vão atrás dela. Digo ao meu filho que a mate.

Água Castanha voltou a entrar na cabana, mas, quando Chakliux ia afastando-se, um cão ganiu e apareceu no túnel de entrada, com a cauda entre as pernas. O cão acovardou-se ao ver Chakliux, mas este ajoelhou-se e deu-lhe a mão para cheirar. Já vira o animal, sempre ao lado de Ghaden. Tinha as pernas compridas e desajeitadas e o peito ainda era estreito, mas já crescera bastante. Como lhe chamava o rapaz? Era um nome estranho para um cão.

Mordedor. Era isso. Chakliux já ouvira alguém dizer que, quando o cão caçava, trazia a presa ao rapaz. Qual o cão que fazia uma coisa dessas?

Mordedor, disse Chakliux em voz baixa. Mordedor. Ajudas-me a encontrar Ghaden?

Chakliux teve que obrigar o cão a afastar-se da cabana de Água Castanha, mas por fim conseguiu que ele o acompanhasse.

Lindo menino. Vamos encontrar Ghaden, Yaa e Aqamdax disse Chakliux ao cão, uma promessa que fazia a Mordedor e a si próprio.

 

A princípio, Ghaden não acreditou que o homem que o levava no colo fosse Cen, o comerciante. Cen, aquele que tinha sempre coisas boas para lhe dar, que tinha sempre boa comida. Como podia Cen estar tão velho? Cen era um comerciante, não era um velho. Como podia ele ter cabelos brancos? Como podia ele ter uma cara tão cheia de rugas e de manchas?

Contudo, quando eles pararam para descansar, o velho abriu um fardo e tirou algumas das mesmas coisas com que Ghaden brincara da última vez que estivera na cabana de Cen, na cabana do comerciante com a sua primeira mãe. Ghaden espiou o rosto do velho. O nariz não era o de Cen. E havia uma cicatriz, cor-de-rosa e brilhante. Cen não tinha nenhuma cicatriz. Mas os olhos pareciam os de Cen, e o cabelo...

Ghaden estendeu o braço e tocou num tufo de cabelos brancos. O velho riu-se, pegou os cabelos brancos, arrancou-os da cabeça e deu-os a Ghaden. O rapaz não quis tocar-lhes. Havia neles uma magia qualquer, tinha certeza disso. De outro modo, não teriam saído da cabeça do velho com tanta facilidade, mas o homem lhe dera. Como se fosse um presente. Não se jogavam presentes fora, nem se mostrava que não os queríamos. Ghaden recebeu os cabelos mas não os agarrou.

O homem riu e esfregou os cabelos nos dedos.

Olha. É pelo de caribu, estás vendo? disse ele.

Ghaden inclinou-se, observou-os com atenção e depois esfregou os cabelos como o velho fizera. Era mesmo pelo de caribu. Ele tinha ouvido histórias de homens que se transformavam em animais, e de animais que se transformavam em homens.

Tu és um caribu? perguntou ele em voz baixa. O velho riu.

Não. Já te disse que sou Cen, o teu pai, Cen respondeu ele.

O pai dele? Não, o pai dele tinha morrido. Tinha morrido quando Ghaden estava na cabana do xamã, quando ele estava curando-se da ferida provocada pela faca.

O meu pai morreu, disse Ghaden.

Um dos teus pais, explicou o homem. Eu sou o teu outro pai. O teu primeiro pai. Quando a tua mãe resolveu ficar com o Povo Rio, arranjaste outro pai.

Ghaden inclinou a cabeça e olhou fixamente para o homem. Ele parecia-se um bocadinho com Cen. Só um bocadinho, e a voz era a de Cen. Quando Ghaden fechava os olhos e escutava, parecia Cen falando. Trazia os fardos de Cen. Até as botas que calçava eram de Cen, ou talvez não fossem exatamente iguais.

Porque tens cabelos de caribu? perguntou Ghaden por fim.

Para me fazerem mais velho.

Porquê?

Para me aproximar da aldeia às escondidas e te trazer comigo.

Porquê?

Porque sou o teu pai.

Água Castanha vai ficar furiosa.

Não te preocupes com Água Castanha. Eu protejo-te dela. Como podia eu deixar-te crescer com Água Castanha se quero ensinar-te a ser um comerciante como eu, a caçar e a remar um barco de comerciante?

Ghaden enfiou o dedo na boca.

Quero o Mordedor. Quero a minha Yaa exclamou.

Eu arranjo-te um cão. Um cão melhor do que o Mordedor, maior e melhor.

Ghaden abanou a cabeça devagar.

Não, disse ele.

Em seguida, levantou-se e aproximou-se do local onde os homens tinham deixado Aqamdax. Sentou-se ao lado dela, de costas, para não ver o velho que afirmava ser Cen. Enrolou a mão nos cabelos de Aqamdax. Esperaria que ela acordasse e depois abandonaria aqueles homens e voltaria para a sua aldeia. Quando Yaa voltasse a dizer que o Mordedor não podia ir com eles para a toca, ele também não iria.

Deixa a mulher.

Era uma voz de homem. Falava a língua do Povo Rio.

Aqamdax deixou-se ficar de olhos fechados. Sabia que Ghaden estava ao lado dela, sentia as mãozinhas dele a acariciarem-lhe a cabeça, a agarrarem-lhe os cabelos. Ele estremecia de vez em quando, como se tentasse conter as lágrimas.

Não a abandonarei, disse outro homem. Apesar de falar na língua do Povo Rio, a sua voz tinha sotaque de comerciante, de um homem que falava muitas línguas, cada uma das quais deixava um pouco de si, como uma pedra que conserva as cores das sementes e dos frutos secos moídos por ela. É a filha da minha mulher. Não a abandonarei.

Ao ouvir aquelas palavras, Aqamdax por pouco não abriu os olhos. A filha da mulher? Os seus primeiros pensamentos foram para o pai, que morrera afogado no mar do Norte. Teria ela deixado a terra para ir viver no mundo dos espíritos? Depois percebeu a sua estupidez. O homem era o comerciante. Talvez fosse aquele que levara a mãe para a aldeia do Povo Rio. Talvez fosse o pai de Ghaden.

Pouco a pouco, entreabriu os olhos e tentou ver alguma coisa entre as pestanas. Sim, eram dois homens. Estavam agachados junto dos seus fardos. O fardo dela também estava ali. Apesar de lhe ser difícil vê-los com clareza, parecia que ambos tinham cabelos brancos de velhos, mas os seus corpos eram direitos como os de jovens caçadores. Quem seriam? Porque a teriam atacado, e a Ghaden e Yaa?

Yaa! Onde estava ela? A teriam matado?

Como é que a levas? Ela é muito pesada para levar nas costas. Só servirá para nos atrasar. Eles encontram a outra e vêm atrás de nós. Um bom batedor depressa verá os sinais que deixamos para nos orientarmos na volta.

Se eu ficar quieta, eles deixam-me aqui, pensou Aqamdax. Depois poderei ir procurar ajuda. Mas eles levarão Ghaden, e se os nossos caçadores não conseguirem encontrá-los?

Virou a cabeça, abriu os olhos e sorriu a Ghaden. O rapaz correspondeu-lhe com um sorriso aberto.

Aqamdax levantou a cabeça, cerrou os dentes ao sentir a dor e sentou-se. Todo o lado do rosto lhe doía.

Eu vou com vocês, disse ela.

As palavras eram embaralhadas, e Aqamdax levou a mão à boca. Tinha os lábios inchados e cobertos de sangue seco.

Os dois homens assustaram-se. Um levantou-se e aproximou-se dela. Mesmo na penumbra da floresta, Aqamdax viu que os cabelos brancos dele tinham sido costurados, como se fossem bordados, mas que eram... pelos de caribu. O rosto era engelhado e escuro, e tinha cicatrizes, mas os olhos eram os de um jovem, com os dentes brancos e os lábios ainda não carcomidos pela idade.

Sou Cen, informou ele, falando na língua dos Primeiros Homens. Não tenho faca.

O homem abriu as mãos e afastou os dedos, num cumprimento que Aqamdax vira muitas vezes. As palavras, na língua dela, eram como uma dádiva, mas Aqamdax ficou na defensiva. Lá porque um homem falava a sua língua, isso não queria dizer que ele fosse amigo.

Irei contigo e com o meu irmão, disse ela, puxando Ghaden para o colo.

Consegues andar? perguntou o outro homem. Nós não podemos levar-te nas costas. Assim que anoitecer, partiremos.

Para onde vão?

O homem semicerrou os olhos e Aqamdax arrependeu-se de ter feito a pergunta.

Para muito longe respondeu ele. Em seguida, dirigindo-se ao que se chamava Cen, disse: Tu já sabes a escolha que fazes. Se a levares, és responsável por ela.

Eu quero os dois disse o homem. Depois, aproximou-se do seu fardo, abriu um odre de água e tirou peixes secos. Atirou-os a Aqamdax. Come e obriga o teu irmão a fazer o mesmo. Só paramos de manhã.

Pensar em comida enjoava-a, mas fez o possível por dar uma dentada e depois deu os peixes a Ghaden.

Come pediu ela, rezando para que ele não recusasse.

Quero Yaa. Quero o Mordedor, proferiu ele em voz baixa.

Ghaden, tens de comer.

O rapaz olhou para ela, viu-a dar mais uma dentada e depois comeu também.

 

Como é que o cão podia ter desaparecido? Ia com ele, um pouco mais à frente, e depois desaparecera na curva do caminho.

Como é que um animal desaparecia?, perguntou Chakliux a si próprio. Os esquilos, as raposas e até as ptármigas na neve? Tinham buracos, lugares seguros, tocas escondidas.

Ao contrário da maior parte dos abetos-negros que cresciam nos limites da aldeia, os ramos daqueles que ladeavam o caminho chegavam ao chão. Chakliux pôs-se de quatro, afastou as ervas e os galhos e espiou as reentrâncias escuras por baixo dos galhos. A árvore do canto, no local em que o caminho virava para a latrina das mulheres, era a maior. Os seus ramos formavam um círculo irregular cujo raio tinha quase o comprimento do corpo de um homem. Chakliux levantou o ramo maior. Havia outro, mais pequeno, por baixo. Chakliux levantou-o também e depois ficou sem fôlego quando qualquer coisa saiu, como uma seta, de baixo das árvores.

Chakliux pegou a faca da manga, desembainhou-a e depois viu que o animal era um cão. Deixou cair a faca antes que Mordedor, na sua avidez, se espetasse nela.

Onde te meteste? perguntou Chakliux.

Em seguida, levantou o ramo outra vez e segurou-o enquanto o cão voltava a enfiar-se debaixo da árvore e entrava num buraco escuro que parecia afundar-se por baixo das raízes.

Chakliux foi atrás do cão, aproximando-se do buraco. Ficou preso pelos ombros. A terra era como mãos que o agarravam. Deu um pontapé com a perna direita, a mais forte, uma, duas vezes, e viu-se dentro de uma toca, com os cabelos presos num emaranhado de raízes. Pouco a pouco, os seus olhos adaptaram-se à escuridão, até que distinguiu Mordedor e alguma coisa amontoada ao lado do animal. Aquilo mexeu-se, e Chakliux ouviu uma vozinha, a voz de Yaa:

Mordedor, agora todo mundo sabe onde fica o nosso esconderijo. Cão maroto.

Chakliux levou-a ao colo como em tempos levara Ghaden, mas desta vez Mordedor acompanhava-o, mordendo quem se aproximasse demais. Quando chegaram à cabana de Água Castanha, levava um grupo de crianças atrás dele, os rapazes mais velhos fazendo perguntas e uma das meninas chorando. Gritou à porta da cabana e depois entrou. Quando o viu, Boca Feliz soltou um grito e começou a fazer uma lamúria que Água Castanha interrompeu rapidamente, tapando-lhe a boca com a mão.

Não atraias a morte, disse Água Castanha, encostando as pontas dos dedos ao pescoço da menina. Ela está viva.

Boca Feliz desenrolou os cobertores e Chakliux deitou a menina. Afastou Mordedor do rosto dela enquanto Água Castanha e Boca Feliz lhe verificavam as pernas e os braços, lhe levantavam a parka e lhe apalpavam a barriga e o peito e por fim lhe passavam as mãos pela cabeça.

Aqui proferiu Água Castanha, tateando a orelha esquerda de Yaa.

Chakliux viu-a pestanejar.

Dói? perguntou Boca Feliz à menina.

Sim, respondeu Yaa com uma voz fraca. Chakliux, ajoelhado atrás das mulheres, sentiu uma mão no ombro. Levantou a cabeça e viu Ligige’.

Bom Punho foi chamar-me segredou-lhe ela. Onde encontraste Yaa?

À saída da aldeia, junto do caminho das mulheres, onde há um grande abeto. Debaixo do...

Eu sei onde é. Sabes o que lhe aconteceu? perguntou a velha.

Não.

Yaa levantou a cabeça, fazendo o possível para ver além da mãe e de Água Castanha, procurando Chakliux com o olhar.

Ghaden? perguntou ela.

Não está aqui. Yaa deixou-se cair nos cobertores e fechou os olhos.

Eu devia ter... Ele queria levar o Mordedor. Eles levaram-no.

Quem é que o levou? perguntou Chakliux.

E a Aqamdax, acrescentou ela.

Foi aquela mulher. Aquela mulher levou-o. Eu sabia que ela o faria. Temos que mandar caçadores atrás deles. Ela não pode estar muito longe, uma mulher com uma criança.

Não, exclamou Yaa, mas Água Castanha levantara a voz e dizia a Chakliux que fosse falar com os velhos e pedia a Ligige’ que encontrasse caçadores jovens.

Não! gritou Yaa outra vez. De repente, sentou-se, tapou a boca com as mãos e começou a vomitar.

Boca Feliz agarrou um sael de casca de árvore e o pôs debaixo do queixo da filha, mas Água Castanha virou-se para Chakliux.

Conheces aquela mulher dos Caçadores Marinhos tão bem como outra pessoa qualquer. O que achas?

Não sei, disse ele em voz baixa.

O marido rejeitou-a esta manhã acrescentou Ligige’. Ela veio falar comigo depois disso. Levava um fardo de coisas para negociar e andava à procura de Ghaden e de Yaa.

Onde disseste que eles estavam? guinchou Água Castanha, estendendo um braço e apontando para a cama de Yaa. Olhem o que ela fez à nossa filhinha.

Talvez ela tivesse resolvido sair da aldeia, disse Ligige’, ignorando Água Castanha. Talvez ela quisesse regressar ao seu povo, mas não acredito que fizesse mal a ninguém, em especial a uma criança.

Água Castanha encostou o dedo ao peito de Chakliux.

A culpa é tua, tua e do teu irmão. Vai à procura dela e traz Ghaden.

Chakliux ignorou Água Castanha e olhou para Ligige’.

Ela não disse para onde ia?

Não.

Eu a encontrarei, declarou Chakliux. Tomem conta da menina.

Tirou um fio de tendão com conchas que trazia ao pescoço. Era um dos presentes que tencionava oferecer a Aqamdax. Estendeu-o a Boca Feliz.

É para Yaa, quando ela se sentir melhor disse ele. Em seguida, saiu da cabana.

 

Fui eu que o encontrei. É meu disse Dança-no-Gelo.

Todos nós o encontramos. Tem que pertencer a todos nós. afirmou Lua Preta.

Os quatro rapazes rodearam o iqyax. Este estava guardado no interior de um esconderijo de cortiça empoleirado numa árvore.

Talvez seja do meu tio disse Leva-Muito aos outros, que troçaram dele.

Leva-Muito encolheu os ombros.

O teu tio disse que tinha um iqyax!

Ele nunca falou nisso. Mas sabe construí-los. Tal como o meu pai insistiu Leva-Muito.

Vês alguma marca deles? perguntou Lua Preta. Leva-Muito passou a mão pela cobertura macia de pele de morsa.

Talvez seja isto disse ele, apontando com o queixo para uma série de círculos brancos junto da proa pontiaguda.

Talvez seja isto, repetiu Dança-no-Gelo, com uma voz esganiçada, imitando Leva-Muito.

Dança-no-Gelo era o mais velho dos rapazes, muito mais velho do que Leva-Muito e muito maior do que todos eles.

É meu, disse ele outra vez. Vou ficar com ele. De repente, avançou, agarrou na parte da frente da parka de Leva-Muito e torceu a pele até Leva-Muito começar a sufocar.

E se alguém for contar ao tio dele, ou a outro tio qualquer, pode dar-se por muito feliz se morrer.

Dança-no-Gelo largou Leva-Muito tão de repente que o rapaz caiu no chão.

Os outros rapazes deram uma gargalhada nervosa, e depois Lua Preta inclinou-se e ofereceu a mão a Leva-Muito.

Acho que vou colocá-lo noutro local, declarou Dança-no-Gelo.

Se encontrarmos uma árvore com uns ramos de bom tamanho, talvez eles o agüentem. Só para não ficar no chão.

O rapaz pôs o ombro direito debaixo do iqyax e levantou-o.

Ajudem-me aqui. Lua Preta, vai do outro lado. Atira-Pedras, pega-lhe por trás. Leva-Muito, vai para casa. Talvez precises mamar nas tetas da tua mãe.

Ela não partiria sem falar com ele, pensou Chakliux. A amizade de ambos fora profunda demais... Mas talvez só para ele. Era irmão do marido dela. Porque havia ela de pensar que Chakliux a queria depois de Sok a ter rejeitado num momento de fúria?

Talvez ela apenas se fingisse amiga dele. Como contador de histórias, ele tinha algo para lhe oferecer. Contara-lhe histórias dos comerciantes de Caribu, e partilhara mesmo outras que os homens da Tundra do Norte afirmavam serem de pessoas que viviam tão perto do sol-nascente que acendiam as lareiras com o seu calor.

Mas fosse o que fosse que tivesse existido entre ambos, fosse ou não verdadeiro, se Aqamdax resolvera voltar para o seu próprio povo e levar o irmão com ela, como iria? Teria que seguir o rio até ao mar e depois caminhar ao longo da costa. Podia apanhar pássaros com redes e pescar à linha, mas o irmão a obrigaria a andar mais devagar. A criança era crescida demais para ir no colo e pequena demais para percorrer a pé uma grande distância. Ela sabia com certeza que o Inverno estava muito próximo para fazer uma tal viagem. Ela sabia com certeza que alguém iria atrás dela, pelo menos para recuperar o rapaz.

Depois, Chakliux lembrou-se de uma coisa que o deixou sem fôlego, como se alguém lhe tivesse aplicado um soco no estômago. Ela podia ter levado o seu iqyax.

Com o iqyax, o irmão não seria um estorvo, e ela poderia remar ao largo da aldeia dos Caçadores de Morsas, onde as pessoas talvez ainda quisessem matá-la. Então, ficas aqui sentado a pensar ou vais ver se o teu iqyax ainda lá está?, perguntou ele a si próprio.

Passou pela cabana de Folha Vermelha, pegou a lança e a prancha de arremesso, outra faca e um odre de óleo. Era um disparate pensar que Aqamdax lhe levara o iqyax, mas iria verificar e olear a cobertura, tirá-lo dali e guardá-lo num sítio seco durante o Inverno. Quando chegou ao esconderijo, era quase noite.

Subiu à árvore e se entregou à sua angústia, soltando um grito de guerra.

 

Eles não acreditaram nela. Nem Água Castanha. Nem os mais velhos. Nem sequer a mãe. A princípio, isso não teve importância. Yaa ficara tão machucada que só conseguia pensar nas dores, mas agora que estava melhor, agora que conseguia fixar a vista outra vez, irritava-se sempre que tentava falar com eles. Por fim, concluiu que não podia ficar na cabana de Água Castanha sem fazer nada. Já era mau que Chakliux tivesse ficado na cabana de Aqamdax, que não fosse procurá-los. Algumas mulheres diziam que ele nem sequer comia.

Havia muita gente zangada na aldeia: os mais velhos furiosos por Aqamdax ter roubado Ghaden; Chakliux furioso por ela ter levado o seu iqyax: Água Castanha furiosa por Yaa estar ferida. Todos estavam furiosos por Lobo-e-Corvo não ter o poder de deter Aqamdax, e Lobo-e-Corvo estava furioso com tudo.

Agora, segundo lhe contara Bom Punho nessa manhã, Lobo-e-Corvo tinha um novo motivo para estar zangado. As mulheres andavam dizendo que a filha, Neve-no-Cabelo, dormia com muitos homens da aldeia, tentando ficar com um bebê na barriga para que um deles concluísse que valia a pena ficar com ela.

A mãe de Yaa e Água Castanha passavam muito tempo nas lareiras da aldeia, falando, falando. Outras famílias começavam a partir para a caça ao caribu. Água Castanha dizia que Sok e Chakliux partiriam dentro de pouco tempo, e que Dança-no-Gelo e a família já tinham ido. Talvez fosse uma boa hora para ela partir também, pensou Yaa. Como todos pensavam noutras coisas, talvez levassem mais tempo a dar pela falta dela. Precisava de comida e de mais um par de botas, de água e de uma faca de mulher. Talvez conseguisse tirar uma das lanças do pai, uma das poucas que não ficara junto do seu cadáver na armação fúnebre. Yaa diria que ia visitar Bom Punho, que iria passar o dia ensinando-lhe a fazer cestos de erva. Depois partiria com Mordedor.

Seria difícil seguir aqueles dois homens depois de tantos dias, mas Mordedor tinha um bom faro.

Além disso, Yaa sabia de onde eram aqueles homens. A última coisa que vira antes de a escuridão chegar e a levar, fora a bota velha do homem, com costuras feitas à maneira estúpida do povo de Rio Primo.

 

Chakliux tinha a língua inchada e o corpo doía-lhe. O suor colara-lhe o cabelo no pescoço e nos ombros. Era o seu terceiro dia de jejum, o seu terceiro dia de preces, e passara quase sempre sem água. Deixara as suas preces entregues apenas ao sonho, e agora os seus sonhos eram visões de guerra em que os povos de Rio Primo e de Rio Próximo se destruíam um ao outro.

Chakliux também combatia, deslocando-se em sonhos para atacar primeiro um grupo e depois outro, mas, fosse qual fosse a aldeia que ele atacava, a pessoa que estava sempre do outro lado da sua faca, na ponta da sua lança, era Aqamdax, com os cabelos soltos e ao vento e Ghaden pendurado na anca. Sempre que ele a atirava ao chão, com a lança apontada ao coração, parava, subitamente incapaz de se mexer. No seu sonho, eles combatiam dos iqyan e, quando ele erguia a lança para a atirar ao coração dela, ela projetava a lança primeiro, não ao corpo dele mas à cobertura esticada do seu iqyax, trespassando a coberta e o casco, e Chakliux sentia a água fria inundando o seu barco e puxando-o para o mar.

Deu um grito e, de súbito, encontrou-se na cabana de Aqamdax, o local que ele escolhera para o seu jejum, longe dos gritos e das conversas de Leva-Muito e de Chora-Alto, das birras e das preocupações de Folha Vermelha e dos planos astutos de Sok para fazer de Neve-no-Cabelo a sua segunda esposa.

As paredes da cabana estavam próximas e exalavam o odor penetrante da fumaça da lareira. Chakliux tinha o corpo pesado e as pernas e os braços lentos e vagarosos, como se se tivesse esquecido de como usá-los. Levantou-se e sentiu a cabeça rodar. Tirou um odre de um poste. A água estava tépida e ganhara o sabor do recipiente, mas ele engoliu-a e os seus pensamentos clarificaram-se. Viu duas caras, não aquelas que esperava de Aqamdax, de K’os, ou da sua Gguzaakk mas de Yaa e do seu sobrinho Leva-Muito. Abanou a cabeça, bebeu mais um gole, mas as caras continuavam ali.

Serviu-se da água que ficara no odre para limpar a fuligem da cara, depois vestiu a parka e saiu da cabana de Aqamdax.

Yaa contou a sua história devagar, dessa vez com esperança, ao mesmo tempo que esfregava as orelhas de Mordedor. Chakliux escutava-a, sentado, e parecia ignorar os suspiros e os protestos de Água Castanha, a sua indelicadeza quando percebera que ele tencionava dar ouvidos a Yaa.

Yaa levantou a voz para se sobrepor à súbita decisão de Água Castanha de cantar, ao ruído dos pratos de madeira da mulher e a uma conversa em voz alta que ela tinha consigo própria acerca da tolice das meninas. Contou a sua história o melhor que a sua memória lhe permitiu, desde o momento em que ela e Ghaden haviam ouvido Aqamdax à porta do seu esconderijo até levar a última pancada na cabeça. Não disse a Chakliux que, na sua opinião, os homens eram de Rio Primo. Para quê insultá-lo? Afinal, não era ele também da aldeia de Rio Primo? Mas disse-lhe que eles eram velhos e que o mais baixo fora buscar Aqamdax, que tinha muitos cabelos brancos e que o outro homem usava um colar de dentes de leão-marinho.

Susteve a respiração quando acabou de falar, esperando que ele acreditasse nela, e que fosse atrás de Ghaden e de Aqamdax. Mas ele não disse nada, limitando-se a fazer um ou outro gesto de cabeça enquanto ela falava. Quando ela, acabou de falar, ele agradeceu-lhe e saiu da cabana.

Yaa ficou desapontada, mas Chakliux sempre lhe parecera um pouco estranho, com os olhos fixos acima da testa dela, o rosto abatido e pálido, o cabelo sem vida e despenteado, como se ele não o oleasse há muitos dias.

Depois de ele sair, Água Castanha ralhou com ela e disse-lhe que fosse buscar lenha. Era a primeira vez que Água Castanha lhe dizia para fazer alguma coisa desde que Yaa fora ferida, mas a menina ficou satisfeita por ir até lá fora e sentir o vento no rosto. Até os pedaços mais toscos de lenha lhe eram agradáveis ao tato. Quando a mãe a viu trabalhando, aproximou-se, com um ar preocupado, mas Yaa disse-lhe que se sentia com forças. Depois, perguntou-lhe se podia ir passar o dia seguinte na cabana de Bom Punho.

Boca Feliz, olhando para a pesada carga que a filha tinha nos braços e para a sua palidez, afirmou que era uma boa idéia ela ir passar o dia na cabana de Bom Punho.

 

Chakliux dormiu uma noite, um dia inteiro e mais uma noite, acordando só para beber água. O sono parecia não ser tanto uma oportunidade para descansar como para pensar no que Yaa lhe contara e para recordar todas as conversas que tivera com Aqamdax.

Acordou esfomeado, e com a certeza de que sabia o que acontecera. Yaa afirmara que um dos assaltantes usava um colar de dentes de leão-marinho. Quem mais além dos Primeiros Homens e dos Caçadores de Morsas usava dentes de leão-marinho? Daqueles dois povos, qual o que procurava vingar-se de Aqamdax? Quem enviaria velhos para vingar a morte de um xamã a não ser os Caçadores de Morsas? Se eles se perdessem, as pessoas não sofreriam com a sua morte como sofreriam com o desaparecimento de caçadores jovens.

Chakliux sentou-se, afastou os cobertores e depois verificou que não estava sozinho na cabana de Aqamdax, que Leva-Muito também estava lá.

As palavras vieram-lhe à boca antes de Chakliux pensar nelas:

Tens algo para me dizer.

Sim respondeu Leva-Muito, sem se mostrar admirado por Chakliux saber.

Quando Leva-Muito começou a falar, foi tão baixinho que Chakliux mal o ouvia, mas, quanto mais falava, mais parecia ganhar coragem e, ao terminar, a sua voz era forte como a de um homem.

Então Chakliux dirigiu-se a ele como a um adulto, da mesma maneira que falaria com Sok.

Tenho que fazer uma viagem e preciso do meu iqyax. Chakliux sentiu um aperto no coração ao pensar que Aqamdax poderia já ter morrido, mas a dor não foi tão grande como fora quando ele julgara que ela partira de livre vontade, roubando o que era dele, algo que ela sabia que ele apreciava mais do que outra coisa qualquer.

Chakliux levantou-se e fez sinal a Leva-Muito para que fizesse o mesmo.

Então me mostra onde é que Dança-no-Gelo pôs o meu iqyax!

Leva-Muito fez um sinal afirmativo.

Ótimo. Depois me ajuda a levar a comida e os mantimentos de que eu preciso. Em seguida, vais dizer ao teu pai que eu fui à aldeia dos Caçadores de Morsas. Diz-lhe que os velhos vieram aqui e levaram a Aqamdax e, como Ghaden estava com ela, levaram-no também. Diz-lhe que tentarei trazer os dois de volta. E, daqui em diante, não faças o que Dança-no-Gelo te disser para fazer.

Não, não farei.

Chakliux pôs a mão no ombro do sobrinho.

Ótimo disse ele. É uma lição que todos os homens têm que aprender. Há muitos Dança-no-Gelo neste mundo. Pelo menos um para cada um de nós, ao que parece.

Chakliux fitou o sobrinho até que o rapaz acabou por sorrir.

 

                                       Inverno, 6459 a. C.

 

Às vezes, sonho que estou outra vez com o meu povo, na nossa aldeia na baía. Ouço as gaivotas. Vejo as ervas dobradas pelo vento. Quando acordo, deixo-me ficar deitada, muito quieta, e apesar de a minha cama ser dura, e eu dormir no frio no túnel de entrada; quase me convenço de que estou em casa, que dentro de pouco tempo ouvirei as palavras sábias e tranqüilas de Qung ou as vozes de censura das esposas de Cantador.

Quando cheguei a esta aldeia, tinha sempre sonhos maus, mas depois o Mordedor trouxe Yaa até nós. Quando ela chegou, só conseguia andar agarrada ao seu pelo, mas conseguiu sobreviver à viagem. Ela e Ghaden foram adotados por uma mulher jovem. Chamam-lhe Estrela e dizem que a mãe dela tem vivido no limiar da loucura desde que o pai de Estrela morreu. Segundo K'os me explicou, foi assassinado pelo seu filho, Chakliux, mas eu já conheço K’os, sendo ela a patroa e eu a escrava. É um tipo peculiar de conhecimento, e obriga-me a ser cautelosa naquilo em que acredito. Não creio que Chakliux tivesse assassinado o homem sem um bom motivo.

Nas noites frias, Yaa manda Mordedor para dormir comigo. O corpo do cão aquece o meu, e tenho certeza de que o seu pelo grosso impede a passagem dos sonhos maus, porque ainda não tive nenhum desde que ele dorme ao meu lado.

K’os me dá muito trabalho para fazer e o pior é que me empresta a caçadores e a comerciantes para eu aquecer as suas camas. Em outros tempos, eu não me importava de fazer tal coisa, mas é diferente receber homens na condição de escrava. Apesar de tudo isto ser mau, também há uma coisa boa. K’os reconhece o meu mérito como contadora de histórias. Durante este longo Inverno, tenho tido muitas oportunidades de pôr em prática os meus dotes, e nesta aldeia nenhum xamã protesta quando eu falo com outras vozes. Qung ensinou-me bem. Nunca poderei recompensá-la, nem sequer transmitir-lhe a minha gratidão. Mas não lhe devo só as histórias. Enquanto Qung viveu sozinha na nossa aldeia, usando as suas histórias tal como um caçador usa o seu arpão para arranjar carne, aprendeu a viver como vive um caçador, atraindo a boa sorte com respeito, com tranqüilidade e com perícia.

Agora ponho em prática o que ela me ensinou: não falo do meu descontentamento, observo, sobrevivo.

 

ALDEIA DE RIO PRIMO

Aqamdax levantou a cabeça e olhou para K’os.

Vai buscar lenha, disse-lhe K’os. Não nos montes que estão na entrada da cabana, mas na floresta. A mulher sorriu. Deixa-a no túnel para secar.

Aqamdax ficou impávida e não abriu a boca. Chegara à conclusão de que K’os fazia a maior parte das coisas para exibir o seu poder, para se congratular com aquilo que podia obrigar Aqamdax a fazer, e Aqamdax tinha cicatrizes que lhe lembravam os tempos em que tentara desafiar a mulher.

O vento descobrira o orifício do fumo da cabana delas e empurrava a fuligem lá para dentro, espevitando as brasas da lareira. Uma camada de cristais de gelo soltou-se do túnel de entrada. K’os só lhe cedera um cobertor de pele de lebre entrançada, tão velho que fazia esquecer o calor dos animais de que era feito. Cen tinha um dos cobertores dela, feito de pele de lontra-marinha, espesso e pesado. Usava-o na sua própria cama mas, nas noites mais frias, dava-o a Aqamdax. Ela tinha o cuidado de o esconder debaixo do cobertor de pele de lebre para K’os não ver.

Aqamdax puxou o capuz da parka, aconchegou-o bem em volta do rosto e calçou as botas que Cen lhe oferecera, umas botas boas e quentes de pele de caribu e de foca. K’os já recompensara Cen por ele ter oferecido as botas a Aqamdax, uma refeição que o deixara a contorcer-se, agarrado à barriga durante dois dias. Durante muito tempo, depois da doença de Cen, Aqamdax não aceitara comida das mãos de K’os. Uma escrava que adoecesse podia ser morta. Quem tinha tempo para tratar dela?

Aqamdax calçou as raquetes e atravessou o túnel de entrada, abrindo caminho através do monte de neve que bloqueava a porta e soltando a aba gelada de pele de caribu com cuidado para não estalar com o frio. Fizera umas luvas com as peles dos esquilos que matara no Outono, quando andara apanhando lenha na floresta na saída da aldeia. Escondera a carne dos animais e comera-a crua para K’os não notar. As peles davam luvas quentes com pequenas bolsas para os polegares e punhos altos que lhe chegavam quase aos cotovelos.

O vento era tão forte e a neve tão espessa que Aqamdax nem via a cabana ao lado. Já seria muito difícil tirar a lenha das pilhas que ela guardara em volta da cabana, quanto mais ir buscá-la na floresta.

No entanto, o pedido de K’os não a surpreendera. Cen partira há vários dias para uma viagem de negócios à aldeia de Rio Preto e, desde então, Tikaani não aparecera na cabana de K’os como era habitual quando Cen estava ausente. Por fim, K’os fora visitar Tikaani na cabana dos caçadores, a única mulher da aldeia a fazer tal coisa, segundo Aqamdax ouvia as mulheres nas lareiras da comida dizer.

Nesse dia, K’os voltara para a cabana tão furiosa que Aqamdax arranjara uma desculpa às pressas para sair, dizendo a K’os que um dos velhos lhe pedira que ela lhe levasse um pouco do seu chá de casca de salgueiro.

K’os atirara um pacote de casca de salgueiro a Aqamdax, que pegara a parka e as botas e fugira para o túnel de entrada, onde se vestira e calçara. Levara a casca de salgueiro à cabana da velha Caule Torto e dissera à mulher que vinha da parte de K’os e que o chá aliviaria as dores que o marido tinha nas ancas e nos joelhos.

Em troca, Caule Torto presenteara-a com uma tigela de carne e de caldo, mais do que Aqamdax costumava comer num dia, e, quando ela acabou de comer, deu-lhe uma esteira para o chão, muito imperfeita, para ela levar a K’os.

Aqamdax andara pela aldeia na esperança de ver Ghaden ou Yaa antes de voltar para a cabana de K’os mas, apesar de algumas crianças andarem escorregando em peles de caribu numa colina coberta de neve, Ghaden e Yaa não estavam entre elas. Aqamdax ficara olhando para as crianças durante algum tempo, pensando como as mães de Rio Primo eram espertas, permitindo que os filhos as substituíssem num trabalho tão duro, gastar o pêlo das peles servindo-se delas para escorregar.

Por fim, regressara à cabana de K’os, à cólera da mulher, à sua língua afiada e à sua mão pesada. K’os cortou a esteira de Caule Torto em tiras e disse a Aqamdax que as jogasse no lume, mas ela guardou uma parte e escondeu-a no túnel para mais tarde almofadar a sua própria cama.

Nesse dia, não haveria crianças lá fora. Até os cães estavam enroscados junto das cabanas, com o nariz debaixo da cauda, e a neve amontoando-se em cima deles. Aqamdax ia de cabana em cabana, recordando as histórias que algumas mulheres tinham lhe contado sobre pessoas perdidas nas tempestades e que só foram encontradas na Primavera. Naquela aldeia, quem é que daria pela falta dela se lhe acontecesse tal coisa?

Estrela não permitia que Ghaden e Yaa estivessem com Aqamdax e tapava-lhes os olhos com a mão quando eles passavam por ela ou a encontravam nas lareiras da comida. Nem sequer estavam autorizados a comparecer quando havia uma sessão de histórias organizada por K’os. Estrela dizia que era por Aqamdax ser escrava, mas, na opinião de Aqamdax, era mais provável que a mulher receasse que ela roubasse as crianças e as levasse de novo para a aldeia de Rio Próximo.

Mas porque ela voltaria para a aldeia de Rio Próximo? Ninguém a queria lá. Nem Sok, nem Folha Vermelha; talvez Chakliux, mas, se ele se interessava por ela, porque não viera à sua procura?

Aqamdax virou-se e continuou a andar de costas para o vento. Correu para a cabana seguinte, tropeçando num monte de lenha. Ao cair, a neve entrou-lhe pelas costas da parka. Estava frio demais para fazer uma tal asneira, pensou ela, ao levantar-se e sacudir a neve antes que esta derretesse. Atravessou a aldeia a custo e encaminhou-se para a árvore que ficava do outro lado da última cabana. Parou ali, na esperança de descobrir um galho partido pelo vento, mas não viu nenhum, e os ramos que antes se encontravam ao seu alcance tinham sido levados por outras mãos para alimentar as lareiras.

O caminho que fora fácil de encontrar de manhã estava agora enterrado mas, apesar da neve e do vento, Aqamdax julgou ver a orla escura da floresta. Seguiu nessa direção, apertando de tal maneira o capuz à volta do rosto que só se viam os olhos. Os dedos dos pés pareciam pedaços de madeira e os das mãos doíam-lhe com o frio.

Ao entrar na floresta, o vento arrancou uma estranha canção das árvores, e Aqamdax envolveu o corpo com os braços. Os Primeiros Homens não eram um povo de florestas. Quem sabia o que escondiam os espíritos naqueles ramos torcidos? Quem sabia quais os amuletos e as canções que os acalmariam?

Aqamdax abriu a boca e cantarolou o seu agradecimento, um cântico de louvor às árvores, improvisado. Depois, ouviu um estalido por cima da cabeça, um som que fez vibrar a terra. Encostou-se ao tronco de uma árvore e olhou para cima, espiando através dos ramos. O topo da árvore inclinou-se e caiu, partindo os ramos mais baixos, movendo-se lentamente como num sonho e salpicando de neve o rosto de Aqamdax ao atingir o solo.

 

Mordedor arranhou a parte lateral da cabana e Yaa fez-lhe uma careta. O animal não saíra durante todo o dia e ela tinha certeza de que ele precisava de ir lá fora, mas a fúria da tempestade era enorme, e por qualquer motivo o vento parecia assustar Ghaden. Estrela ignorou o cão, como sempre, desde que ela e Ghaden tinham gritado um com o outro acerca do direito de o animal ficar na cabana em vez de estar preso lá fora como os outros cães. Muitas vezes, Yaa sentia-se mãe de Estrela e de Ghaden, apesar de Estrela ter o rosto e o corpo de um adulto.

Havia dias bons em que Estrela tomava conta de Ghaden, lhe dava comida e lhe fazia roupas. Ensinava Yaa a fazer aplicações de pelo de caribu em forma de folhas e de flores na sua roupa. Depois, de repente, ficava lamurienta e mal-humorada como uma criança, discutindo por coisas insignificantes e dando beliscões quando não conseguia fazer a sua vontade.

Olhos Grandes, a mãe de Estrela, era pior do que a filha. Passava o dia inteiro sentada, balançando-se de um lado para o outro e cantando com palavras que Yaa não entendia. Olhos Grandes só saía da cabana duas vezes por dia para ir à latrina, e uma vez por mês para ir passar quatro ou cinco dias na cabana do sangue lunar. Esses eram os melhores períodos, se Estrela também estivesse bem-disposta. Os piores momentos eram como este, quando as duas mulheres estavam na cabana e Estrela se portava como uma criança, fazendo os seus pedidos aos gritos e às vezes tentando mesmo enroscar-se no colo da mãe. Aquilo era uma maldição, dissera-lhe Trepa-Caminhos. Acontecera alguma coisa à mãe quando o marido fora morto pelo filho de K’os. Esse filho partira, abandonara a aldeia coberto de vergonha, e todos estavam proibidos de pronunciar sequer o seu nome, mas os caçadores da aldeia estavam preparando-se para a vingança e iam atacar a aldeia onde ele vivia.

Tinham até armas novas, segundo Trepa-Caminhos lhe dissera, segredando-lhe que ela não podia dizer nada a ninguém, nem sequer a Ghaden. Yaa prometera não o fazer e depois perguntara a Trepa-Caminhos se Estrela também se transformara nesta estranha mulher-criança depois da morte do pai. Trepa-Caminhos dissera-lhe que Estrela sempre fora assim, estragada com mimos e esperando receber mais do que os outros, mas que piorara depois de o pai morrer.

Nos períodos difíceis, Yaa lembrava-se das três mãos-cheias de dias que ela e Mordedor tinham levado encontrando a aldeia de Rio Primo. Lembrava-se do uivo dos lobos, das pegadas dos ursos. Não sabia que o céu noturno era tão grande e que a luz das estrelas era tão fraca na escuridão. Quando a comida se acabara, haviam comido frutos tão enjoativos que ela mal conseguia andar sem descansar de vez em quando, e quando Mordedor apanhara uma ptármiga, ela nem sequer tivera forças para fazer uma fogueira. Ela e Mordedor tinham comido o pássaro cru, adormecido e recomeçado a caminhar. Chegaram à aldeia de Rio Primo ao fim desse dia. Yaa estava tão fraca que tinha de se encostar a Mordedor para andar.

Sempre que Yaa se lembrava disto, sentia-se reconhecida a Estrela e a Olhos Grandes pela cabana quente que partilhavam com ela e com Ghaden, sobretudo em dias de tempestade como este.

Estrela, tenho que deixar o Mordedor sair, disse Yaa ao ver que o cão arranhava as paredes da cabana cada vez com mais frenesi.

Estrela fitou Yaa com um olhar vago, mas Ghaden agarrou-se ao pelo de Mordedor.

Ele não pode usar a bacia como tu lembrou-lhe Yaa. Se ele for lá para dentro, Estrela zanga-se e prende-o lá fora.

Yaa não queria lembrar-lhe que era freqüente o povo de Rio Primo comer cães, mais do que o povo de Rio Próximo, em especial cães que não tivessem olhos dourados. Pela cara de Ghaden, viu que ele lhe adivinhara o pensamento. O rapaz largou o animal e Yaa disse-lhe em voz baixa:

Vai para junto de Estrela. Sobe para o colo dela. Talvez consigas distraí-la para eu levar o Mordedor lá fora.

Ele volta? perguntou Ghaden, olhando para a crosta de neve que se formara por cima do orifício da fumaça.

Yaa também levantou a cabeça e pensou que teria que afastar a neve naquele momento, e também durante a noite, se a tempestade não amainasse.

O Mordedor é esperto demais para ficar lá fora com esta tempestade, disse Yaa a Ghaden.

Esperou que o rapaz trepasse para o colo de Estrela e se servisse dos dedos como de um pente para lhe afagar o cabelo. Yaa entrou no túnel, abriu a aba para o cão passar, foi atrás dele até a aba exterior, partiu a neve que se formara nos cantos e deixou-o sair. Esperou um pouco e depois chamou-o. Espiou lá para fora e viu que ele estava de nariz empinado, como se cheirasse o vento. Em seguida, virou-se e entrou com ela.

Afasta-te do túnel. Não vás lá para fora disse Estrela quando Yaa voltou.

Ghaden estava sentado em frente dela e penteara-lhe o cabelo para a cara. Yaa tirou um dente de concha de um dos cestos de Estrela e agachou-se ao lado dela. Apontou para Mordedor, e Ghaden aproximou-se do cão e sacudiu-lhe a neve do pêlo.

Yaa passou o pente pelos cabelos compridos e grossos de Estrela.

Estou aqui disse ela a Estrela. Não te preocupes. Não iremos lá para fora.

 

Os homens estavam reunidos na cabana dos caçadores. Os que tinham esposas resmungavam por causa do muito tempo que passavam ouvindo o choro das crianças e a lamúria das mulheres.

Tikaani olhou para o irmão, Homem Noturno. Parecia estar um pouco mais forte, capaz de se levantar e andar pela cabana se se amparasse a um cajado. Apesar de não ter sido ferido nas pernas, a ferida do ombro ainda não sarara e espalhara o seu veneno pelo corpo, deixando-lhe gânglios dolorosos nas virilhas, atrás dos joelhos e debaixo dos braços.

Era um veneno que nem K’os conseguia suster, atribuindo o seu poder ao povo de Rio Próximo, dizendo aos homens que tinham que destruir aquela aldeia, caso contrário, o veneno passaria de Homem Noturno para todos os caçadores de Rio Primo. No Outono, com fartura de comida e de lenha, era uma coisa a ponderar, matar aquela gente de Rio Próximo. Os guerreiros aperfeiçoavam os seus dotes com lanças e lançadores, com facas e também com a nova arma sagrada que K’os conseguira arranjar-lhes com a sua astúcia.

Mas agora havia mais em que pensar do que na vingança. Agora as despensas da aldeia estavam quase vazias. Com a escassez de salmões, não tinham comida suficiente até a Primavera, apesar de a caça ao caribu lhes ter trazido mais carne do que era habitual. A cabana dos caçadores também estava quase sem lenha, apesar de Tikaani saber que K’os tinha uma grande reserva feita por aquela diligente mulher dos Primeiros Homens que ele e Cen tinham trazido à força da aldeia de Rio Próximo. Ela não seria escrava por muito tempo. As crianças já ansiavam por ouvir as suas histórias e os velhos também davam uma ou outra desculpa para escutá-la.

Contar histórias era um bom divertimento para as crianças, mas os jovens caçadores perdiam a paciência ao ouvir os velhos. De que serviam as histórias deles? Enchiam as barrigas ou aqueciam as cabanas?

Caribu Preto estava falando, contando uma história comprida e desconexa, mas por fim terminou e, antes que outro velho começasse a falar, Tikaani interrompeu-o com um enigma.

Caribu Preto semicerrou os olhos, mas Tikaani ignorou-o.

Olhem! O que vejo eu? disse Tikaani. Olhou para os velhos que o fitaram, surpreendidos. Estranhavam que um jovem caçador falasse? A necessidade aguçava o engenho.

Olhem! O que vejo eu? repetiu Tikaani. Não há pegadas por baixo dela.

Os velhos nem olharam para ele. Alguns mexeram os queixos como se tivessem que mastigar as suas palavras, fazê-las em pedaços para compreender o seu significado.

Por fim, Homem Noturno falou, atraindo os olhares dos homens.

Uma despensa vazia, disse ele.

Uma despensa vazia, repetiu Tikaani, muito orgulhoso do raciocínio rápido do irmão.

Eu tenho comida suficiente, disse Caribu Preto.

Para ti e para toda a aldeia? perguntou Tikaani. Porque se tens apenas comida para ti, isso não basta.

Para mim e para a minha mulher, respondeu Caribu Preto, mais baixo e com uma voz menos fanfarrona.

É por causa do peixe, disse outro dos velhos.

Os de Rio Próximo e a sua maldição. Esse tal Chakliux, proferiu um dos jovens.

Uns concordaram; outros ergueram a sua voz em desacordo; e ainda que Tikaani tivesse apreciado a discussão noutra hora, naquele dia havia coisas mais importantes a tratar.

Como nos vingaremos se morrermos antes do Verão? perguntou ele.

Os homens ficaram em silêncio. Por fim, Caribu Preto disse:

Tikaani tem razão.

Então vocês vão caçar no meio desta tempestade? perguntou Homem Noturno, e apontou para o topo da cabana, onde o vento lutava com o calor do fogo. Até a nossa reserva de lenha está diminuindo.

As mulheres são preguiçosas. Homem Noturno encolheu os ombros.

Elas preocupam-se com as cabanas em primeiro lugar. O que esperavam vocês? Elas pensam nos filhos.

O que julgam elas que alimenta os filhos?

Eu vou caçar. Assim que acabar esta tempestade, disse Tikaani.

Esperas encontrar algo mais do que lebres?

Não tenho problema em comer lebres.

Tikaani olhou para a cara manchada de fuligem de Caribu Preto e para os outros caçadores que se encontravam na cabana. Estavam magros, mas ainda não famintos, naquela fase em que a fome provocava irritação e não letargia. Mesmo assim, era um período difícil para convencer os homens a caçar. As armadilhas das mulheres haviam aproximado todas as pequenas presas da aldeia e os caribus haviam ido para o Sul, para os seus pastos de Inverno abrigados. Qual o caçador que queria passar vários dias na neve só para trazer carne de mulheres? Lebres e ptármigas?

Então, quem vem comigo? perguntou Tikaani. Ficou à espera, mas ninguém falou.

Por fim, Homem Noturno disse:

Eu vou.

Tikaani ia recusar a oferta, mas depois viu o orgulho no olhar do irmão.

Ótimo disse ele. Eu e Homem Noturno vamos.

Ficou outra vez à espera, certo de que a oferta de Homem Noturno envergonharia outros caçadores e os obrigaria a juntar-se a eles, mas os homens mantiveram-se cabisbaixos, desviando o olhar.

Não há nada para caçar, disse alguém.

As palavras foram pronunciadas em surdina e Tikaani nem percebeu quem tinha falado. De que servia o orgulho de um homem se o impedia de apanhar lebres num período de escassez de alimento? E quem sabia? Mesmo que um homem andasse à procura de lebres, podia encontrar um caribu.

Quando o vento amainar, quando deixar de nevar, Homem Noturno e eu partiremos, afirmou Tikaani. É bom para as nossas mulheres que haja dois caçadores nesta aldeia.

 

A lenha era pesada e as mãos dela estavam dormentes; por isso às vezes Aqamdax não percebia que ia a largar os ramos senão quando eles lhe caíam aos pés. Arrastava a copa da árvore e levava os ramos partidos mais pequenos no braço esquerdo. Quando chegou à orla da floresta, parou e olhou para a brancura da tempestade. Sem árvores que fizessem frente ao vento e à neve, ela via apenas o passo seguinte. Até as pegadas das raquetas tinham sido preenchidas, como se ela não tivesse ido à floresta, como se ela tivesse ficado no calor e na segurança da cabana de K’os.

As cabanas da aldeia de Rio Primo estavam mais afastadas umas das outras do que as do povo de Rio Próximo, e ela receava ter o azar de passar entre elas, atravessar a aldeia e voltar a sair. Devia ter contado os passos que separavam a última cabana da orla da floresta.

Dez dezenas, pensou. Não devia ser mais do que isso. Agarrou-se mais aos ramos, enfiou a cabeça contra o vento e começou a contar. De dez em dez passos parava, mas via sempre uma cortina branca. O vento parecia sugar-lhe o ar dos pulmões, mas Aqamdax continuou até contar dez passos dez vezes. Não via nada. Apenas branco, neve e vento.

Não estás muito longe proferiu ela em voz alta, pensando que o som da sua voz lhe daria coragem, mas o vento levou-lhe as palavras antes que elas lhe chegassem aos ouvidos.

Não percebeu que se enterrara até aos joelhos senão quando se inclinou para a frente e sentiu a neve na cara. Fechou os olhos. Talvez se descansasse um pouco...

Não. Já se esquecera das muitas histórias do Povo Rio em que as pessoas perdidas na tempestade adormeciam e acabavam morrendo? Levantou uma perna, plantou o pé no chão, deixou cair a lenha para se pôr de pé, com a mão no joelho, depois apanhou a lenha e continuou a andar.

Concentrou-se nos pés, mexendo um de cada vez. Com certeza já passara pela aldeia. Era possível abrir grutas na neve para fazer um abrigo. Chakliux contara-lhe uma história de uma gruta na neve...

A sua mente raciocinava tão devagar que os seus pensamentos pareciam tão inconsistentes e tolos como os sonhos. Cavavam, paravam, voltavam a cavar e... Mas eles tinham cães nas histórias. Não tinham cães? Para os ajudar a cavar? Não, talvez não. Lobos? Ursos? Que disparate, quem partilharia uma toca com um urso?

De repente, o vento e a neve escureceram, duros como a terra. Aqamdax embateu nessa escuridão, depois escorregou, e as lascas dos ramos atravessaram a luva e espetaram-se na palma da sua mão. Em seguida, a neve cobriu-a, escorrendo-lhe pela cabeça como água, protegendo-a do vento mas tirando-lhe o fôlego. Aqamdax engoliu uma boa quantidade dela e sentiu-a queimar-lhe os pulmões. Levantou-se a custo e percebeu que tinha chocado com uma cabana.

Desatou a rir, um riso agudo e tonto. Juntaram-se pessoas à sua volta. Aqamdax viu os rostos dos caçadores de Rio Primo. Tikaani, Caribu Preto, Corredor e Fala-Primeiro. Fora parar na cabana dos caçadores.

Não estás ferida? perguntou Tikaani, debruçando-se sobre ela.

Então, os pensamentos de Aqamdax tornaram-se nítidos, como se ela não tivesse feito aquela árdua caminhada para ir buscar lenha, como se fosse um dia sem vento, neve e frio, muito frio.

Virou-se para a copa da árvore que arrastara desde a floresta.

Pensei em vocês disse ela aos homens. Sei que têm de passar muito tempo caçando. Achei que devia trazer-vos lenha.

 

Bem sabes que Estrela não toma conta de Homem Noturno, e a minha mãe... Tikaani levantou as mãos. Para quê dizer mais alguma coisa? A mãe perdera muito, e muito depressa.

Aqamdax é uma escrava. Não tem uma cabana, nada. Onde eles irão viver? perguntou Caribu Preto.

Com a minha mãe e Estrela.

Quem caçará para eles? Homem Noturno mal tem força para atravessar a aldeia. Não basta já que tu tragas carne para a tua mãe, para Estrela e para aquelas crianças! que ela resolveu adotar?

Já sou eu que alimento Aqamdax, afirmou Tikaani, e pouco depois Caribu Preto concordou com ele, apesar de não se referir a K’os nem ao fato de Tikaani fornecer uma grande parte da carne que ia para a cabana dessa mulher.

Então, se pensas que podes ficar com ela, faz o que for melhor. Ela é trabalhadora. Ainda não sei como é que conseguiu trazer esta lenha para a cabana dos caçadores. Sabes que ela voltou mais tarde para a cortar e empilhar?

Homem Noturno me disse.

Caribu Preto semicerrou os olhos, como se tivesse acabado de pensar numa coisa.

Homem Noturno quer uma esposa? perguntou ele.

Qual o homem que não quer uma esposa? retorquiu Tikaani.

Não se referiu à discussão que tivera com Homem Noturno a respeito da escrava de K’os. Quando Homem Noturno recuperasse as forças para voltar a caçar, poderia rejeitá-la e arranjar outra mulher ou, se ela lhe agradasse, poderia mantê-la e arranjar uma segunda esposa. Homem Noturno acabara por concordar, mas continuava inquieto pelo fato de ser uma mulher dos Caçadores Marinhos a mudar a sua sorte.

Que pensamento disparatado! Seria bom que ela o fizesse. A família dele só tivera azar desde que Chakliux convencera Topa-Nuvens a oferecer alguns dos seus cães aos de Rio Próximo.

Tikaani e Caribu Preto saíram da cabana dos caçadores e encaminharam-se para a cabana de Caribu Preto.

A tempestade durara três dias, mas agora o céu estava límpido e tinha aquele tom azul-forte que às vezes surge no meio do Inverno, um dia frio em que a respiração encarquilhava o interior do nariz e fazia doer os pulmões.

Vais falar com K’os agora? perguntou Caribu Preto assim que entrou no túnel.

Vou.

Caribu Preto abanou a cabeça e pigarreou.

Tikaani não disse nada, mas percebeu as idéias do homem. Pedir a K’os seria a parte mais difícil, porque há muitos dias que ele não a visitava. Andava ocupado demais, tinha muita gente para quem caçar, preocupações demais. Além disso, enchera-lhe a despensa no Outono, ainda antes de encher a sua parte na despensa dos caçadores e de oferecer carne à mãe e à irmã. Que razões de queixa tinha K’os se ele lhe dera tanto? Mas perguntou a si próprio o que iria custar-lhe conseguir uma esposa para o irmão.

K’os atirou o pedaço de pele de caribu a Aqamdax e soltou um grito de frustração. Doíam-lhe tanto as mãos que nem sequer conseguia pegar a agulha. Pior, os dedos tinham começado a entortar-se e agora ela não conseguia endireitá-los. Pareciam garras, curvas e deformadas. Ela tentara todos os remédios que conhecia, mas o Inverno limitava-a. Havia raízes e folhas que deviam ser usadas frescas, e ela não conseguiria arranjá-las senão na Primavera.

K’os julgava que o Inverno seria ameno. Depois da morte do marido, Bate-no-Chão, convencera-se de que era mais provável que outros caçadores a visitassem, mas eles não tinham aparecido, nem sequer Tikaani, apesar de lhe ter levado carne. Os poucos homens que costumavam visitá-la perguntavam por Aqamdax. E se fingiam desejar K’os, os seus olhos continuavam a vaguear à procura da mulher dos Caçadores Marinhos. Seriam parvos? Aqamdax não tinha poder para lhes dar. Era apenas uma mulher dos Caçadores Marinhos, era apenas uma escrava.

Alguém raspou no exterior da cabana. K’os ouviu a voz de um caçador. Tikaani. Escondeu as mãos num cobertor de pele de lebre e convidou-o a entrar.

Ele apareceu à sua frente e ela baixou as pálpebras, fitou-o e depois desviou o olhar às pressas, um insulto que a maioria das mulheres aprendia quando ainda eram novas. Que mais podia ele esperar? Não a fora visitar durante uma lua ou mais. K’os empinou o queixo e olhou para ele, mas não se levantou para lhe oferecer comida nem água, nem lhe indicou um lugar junto da lareira.

Sabia que Aqamdax estava observando-a e viu a indecisão no olhar da mulher. Devia ser ela a oferecer comida? A ir buscar água?

Vim falar contigo acerca de um assunto importante, K’os, disse Tikaani.

K’os fez um sorriso forçado, bem escondido atrás dos dentes. Obrigara-o a falar em primeiro lugar, a cometer a indelicadeza de ser ele a quebrar o silêncio, dando-lhe assim a vantagem do seu desrespeito.

Não disse nada durante algum tempo, gozando o mal-estar que via nos olhos de Tikaani e a confusão que sentia na sua escrava, que aguardava as suas ordens. Por fim, K’os apontou com a cabeça para a panela de pele de caribu em que fervia uma espessa sopa de carne e frutos secos.

K’os e Tikaani comeram em silêncio, e Aqamdax ficou atrás deles. K’os sabia que a mulher saltaria ao estalar dos seus dedos, para trazer água ou mais comida, ou mesmo para ir buscar lenha lá fora. A cólera e a pancada não resultavam com ela, e K’os passara alguns dias de frustração até perceber isso, mas desde então que tudo era fácil. Muito fácil.

Então o que tens para me dizer? perguntou por fim K’os, fazendo a pergunta no momento exato em que Tikaani pegara a tigela e enchera a boca.

Mais uma vez, conteve o sorriso enquanto observava a luta de Tikaani para engolir depressa, o que o levou quase a engasgar-se com a carne.

Venho procurar uma esposa para o meu irmão, Homem Noturno.

Julgas que casarei com um aleijado, um homem que não pode caçar nem sequer ir pescar no Verão com os velhos?

Assim que as palavras lhe saíram da boca, K’os percebeu que Tikaani não se referia a ela mas à escrava Aqamdax. Horrorizada, viu os cantos da boca dele a torcerem-se e os ombros a tremerem com um riso silencioso. Quando as pessoas deixariam de rir dela? Desde pequena que isso acontecia. Tikaani era estúpido ao ponto de ignorar o seu poder? Esquecera-se da arma sagrada que ela roubara do velho Gaio Azul? Esquecera-se do preço que ela estava disposta a pagar por isso?

Ensinaste-me muito bem, K’os, afirmou Tikaani. Não há um homem nesta aldeia que se atreva a pedir-te em casamento.

As palavras dele eram macias como óleo.

K’os semicerrou os olhos, tentando descortinar o que estava além daquelas palavras, discernir outras intenções subjacentes ao que ele dizia.

Nem sequer tu? perguntou ela.

O que tenho eu para dar? Tenho uma irmã e uma mãe, dois filhos e um irmão para alimentar. É provável que também tenha que sustentar a mulher do meu irmão. Como posso aspirar a uma mulher como tu se tenho tão pouco a oferecer?

K’os cerrou os lábios. Seria bom acreditar nele. Talvez ela acreditasse, mas seria preferível que ele não o soubesse.

Cruzou os braços sobre o peito, escondeu as mãos nas mangas e riu. Depois, ainda a sorrir, declarou:

A mulher já me apanhou lenha suficiente para todo o Inverno, e eu estou cansada de a sustentar. O que me ofereces em troca?

O que pretendes?

O que eu verdadeiramente desejo não pode acontecer antes da Primavera. Calculo que o teu irmão queira a mulher antes disso.

Sim.

Ah, muito bem! exclamou ela, olhando para Aqamdax e não deixando de reparar no brilho nos olhos da mulher. Há várias coisas. Diz-lhe que me faça mais três cestos. Já viste os cestos de erva que ela faz?

Já os vi.

Três desses, dos grandes. Quero peles de lobo. Duas. Bem raspadas. E encherás a minha despensa na próxima Primavera, quando os caribus voltarem a passar.

Tikaani fez um sinal afirmativo e olhou para Aqamdax.

Farás os cestos?

Sim, farei.

Depressa, disse K’os.

Depressa, repetiu Aqamdax.

Encho-te a despensa na próxima Primavera. Tenho uma pele de lobo. Preta. Arranjarei outra.

A preta está bem disse K’os.

Se eu te trouxer agora, posso levar a mulher?

K’os virou-se e olhou para Aqamdax, detendo-se no rosto da mulher. Era uma boa escrava, trabalhadora, mas K’os não gostava dela. Fazia o que lhe ordenavam, levava os homens que K’os lhe mandava para a sua cama e até enfrentara uma tempestade para ir buscar lenha.

Além disso, era uma bela mulher, embora a sua beleza fosse estranha demais. Quando os olhos se habituavam a ela, verificava-se que era aparente.

Porém, o seu espírito não era o de uma escrava. Isso era o pior, e nada do que K’os lhe fizera alterara a situação. Talvez fosse preferível deixá-la ter um marido enfermo. Deixá-la descobrir como era difícil tratar de alguém que nunca poderia caçar nem protegê-la, que não poderia oferecer-lhe um estatuto à altura dos atos do marido.

É claro, ainda havia uma coisa que K’os podia fazer, uma pequena coisa, por sinal; nada que se comparasse às ameaças que ela fizera àquelas crianças do Povo Rio, Yaa e Ghaden.

Bem, se ela aceitar, podes levá-la. K’os levantou-se e virou-se para Aqamdax.

Já viste Homem Noturno? indagou ela.

Sim, respondeu Aqamdax em voz baixa, mas o brilho do seu olhar desafiava a tranqüilidade da sua resposta.

Ele não recuperou de um ferimento no ombro, uma coisa que o meu próprio filho lhe fez e que parece uma pedra no meu coração. Talvez, ao oferecer-te, eu compense em parte o ato do meu filho. Mas, como todas as mulheres, és tu que escolhes. Ficas aqui comigo, ou vais, como quiseres. Seja qual for a tua escolha, eu ficarei satisfeita.

Aqamdax esperou antes de dar a resposta. Já vivia com K’os há muito tempo para saber que a mulher não oferecia boas coisas sem motivo, e quase sempre esse motivo era congratular-se com o desapontamento alheio quando essa dádiva era retirada. Ser esposa? Sim, para sair daquela cabana seria esposa de qualquer homem, velho ou novo, doente ou são. Pelo que Tikaani dissera, ao tornar-se mulher de Homem Noturno passaria a viver na mesma cabana de Ghaden e Yaa. Com certeza que K’os via o desejo no seu olhar, a esperança. E o que dava mais prazer a K’os do que destruir a esperança?

Por fim, declarou:

Serei esposa de Homem Noturno.

A imagem do rosto magro e pálido do homem veio-lhe à mente.

Por qualquer motivo, ao mesmo tempo, viu também o rosto de Chakliux, mas fez o possível por afastar tal imagem. Se o homem se interessasse por ela, teria vindo à sua procura, há muito tempo.

Quando é que me queres?

Leva-a já, ordenou K’os, cortando a resposta de Tikaani, fosse ela qual fosse. Julgas que estou disposta a alimentá-la por mais tempo do que devo?

Posso levar-te já, disse Tikaani, mas Aqamdax percebeu pela expressão do homem que ele não tencionava levá-la consigo naquele momento, e perguntou a si própria se ele já falara com Homem Noturno. Vai para a cabana dos caçadores quando estiveres pronta, mas não entres. Grita, que eu vou te encontrar lá fora.

Tikaani já enfiara a cabeça no túnel quando K’os pigarreou e disse:

Há mais uma coisa que eu peço. A mulher fez uma pausa e sorriu a Aqamdax. Há um cão que às vezes aparece na minha cabana, de noite. Creio que ele até dorme no meu túnel. Não o quero aqui. Traga-o para a minha panela. Juntarei a sua carne ao meu guisado de caribu.

Aqamdax abriu a boca mas não encontrou palavras. De que serviriam, aliás? O que K’os dizia era verdade. O cão dormia no túnel, uma coisa que os cães não deviam fazer.

Sabes de quem é ele? perguntou Tikaani.

Ele veio com aquela menina de Rio Próximo.

Ah, o cão de Ghaden, disse Tikaani. Ele não quer que o cão morra. O animal está treinado para o proteger. Tens certeza de que é esse? É um cão que obedece às ordens. Parece que se Ghaden quisesse que ele ficasse em casa, ele... Tikaani calou-se e olhou para Aqamdax. Esse cão protege outras pessoas além de Ghaden.

Aqamdax tentou pensar numa maneira de salvar Mordedor. Talvez a única coisa a fazer fosse recusar-se a ir como esposa. Não, K’os usaria a sua recusa contra ela, tal como estava agora usando a sua aceitação. De qualquer modo, alguma coisa aconteceria ao cão ou o que era pior a Ghaden ou a Yaa.

Traz-me o cão e uma pele de lobo, e ela é tua... Ou do teu irmão disse K’os.

Trarei os dois esta noite prometeu Tikaani, mas Aqamdax avançou e estendeu a mão na direção do homem, tendo o cuidado de não lhe tocar.

Esta noite, não, disse ela tranqüilamente. Quando chegaste a esta cabana, eu ia dizer a K’os que tenho de ir para a cabana do sangue lunar.

K’os assobiou.

Podias tê-lo amaldiçoado se ele trouxesse uma arma. Como pudeste ser tão descuidada?

No meu povo, só nos separamos durante a primeira menstruação.

Vai-te embora, então, ordenou K’os, agitando os dedos na direção de Aqamdax.

Aqamdax vestiu a parka e pegou o cesto que estava fazendo. Os dias que passaria na cabana das mulheres lhe dariam tempo de sobra para o acabar.

Tikaani saiu da cabana de K’os atrás dela e chamou-a. Aproximou-se mais do que ela esperava, o suficiente para ela o ouvir dizer em surdina:

Tu não estás sangrando, disse ele. Ela abanou a cabeça.

Mas isto me dá cinco dias. Talvez eu consiga arranjar uma maneira de salvar o Mordedor.

Ele encolheu os ombros.

Que importância tem um cão? Eu ofereço outro ao rapaz, um de olhos dourados.

Por favor, deixa-me tentar. Tikaani voltou a encolher os ombros.

Faz o que quiseres. Vou dizer ao meu irmão que irás te encontrar com ele daqui a cinco dias. No nosso povo, é costume uma noiva fazer alguma coisa para o marido. Talvez umas botas.

Não tenho nada para fazê-las.

Eu levo-te qualquer coisa.

Aqamdax viu-o afastar-se e depois foi para a cabana do sangue lunar. Era um bom lugar, tranqüilo, e, apesar de as mulheres raramente lhe dirigirem a palavra, ela não se importava. Assim podia estar longe de K’os.

Acabaria o cesto e veria o que podia fazer para salvar Mordedor. Também faria umas botas para Homem Noturno. Fizera vários pares à moda do Povo Rio. Enfeitaria as de Homem Noturno, mostrando-lhe assim que estava satisfeita por ser mulher dele. Os enfeites teriam que seguir os do seu povo. Uma mulher não copiava os desenhos de outra. Os modelos eram passados pela mãe ou pela avó, como presente, e ela não tinha desenhos do Povo Rio, mas talvez Homem Noturno concluísse que havia força nos desenhos dos Primeiros Homens, um poder que evocasse a energia dos mamíferos marinhos, que passavam longos dias nadando em busca do calor do Verão.

 

ALDEIA DOS PRIMEIROS HOMENS

Chakliux fechou os olhos e ficou escutando enquanto a velha começava a contar a sua história. Apesar dos meses que passara na aldeia dos Primeiros Homens, fora a única vez que Qung o autorizara a entrar no seu ulax.

A viagem fora longa até a aldeia dos Primeiros Homens. Depois de ouvir a história de Yaa, tinha certeza de que os Caçadores de Morsas tinham levado Aqamdax, e por isso passara primeiro pela aldeia dos Caçadores de Morsas. Acalentava pouca esperança de chegar a tempo de os demover da vingança, mas, se não conseguisse salvar Aqamdax, talvez conseguisse encontrar Ghaden. Além disso, como podia ele ficar esperando sem fazer nada?

Os Morsas não o tinham recebido bem, mas nenhum deles parecia acusá-lo do que acontecera com Aqamdax. Chakliux passara três dias com eles, perguntando por Aqamdax e Ghaden aos caçadores, às mulheres e até às crianças. Todos eles afirmaram nada saber, mas uma noite, Bate-no-Sol, um filho do falecido xamã, foi falar com ele e contou dos caçadores dos Primeiros Homens que tinham passado pela aldeia uns dias antes da chegada de Chakliux.

Não tinham parado para fazer negócio, assegurou Bate-no-Sol, o que era invulgar nos Primeiros Homens, e por isso ele fora atrás deles no seu iqyax. Não se aproximara, mas julgou ter visto uma mulher num dos iqyan, talvez uma mulher em cada um. Não tinha certeza.

Pouco depois, Chakliux regressara à sua aldeia. Se o povo de Aqamdax viera buscá-la, como ela o quereria? Mas já que ele chegara à aldeia dos Primeiros Homens, porque não continuar? Porque não ir ver se ela estava disposta a ser sua mulher? Se ela não voltasse com ele para a aldeia de Rio Próximo, talvez os Primeiros Homens o deixassem viver na aldeia deles. Tinham-no recebido bem como comerciante. Porque não como marido?

Se Chakliux não encontrasse Aqamdax, ou se ela o recusasse, poderia pelo menos passar o Inverno com eles e trocar peles de caribu das caçadas de Verão por carne e por um lugar num ulax dos Primeiros Homens. Enfrentara tempestades de Outono, passara dias agachado debaixo do iqyax, tentando escapar da chuva e do vento, mas por fim chegara à enseada que ia dar na aldeia dos Primeiros Homens. Tinham-no recebido bem como comerciante e ficaram admirados por ele chegar tão perto do Inverno. As suas perguntas acerca de Aqamdax tinham-no obrigado a falar com Qung e com várias outras mulheres no primeiro dia.

Qung perguntara por Aqamdax e ficara sabendo que Sok a rejeitara e que Chakliux andava à procura dela. As outras mulheres tinham iniciado um cântico fúnebre, mas Qung calara-as com olhares sombrios e palavras indignadas. Também nesse primeiro dia, Tut cumprimentara Chakliux como amigo e convidara-o para ir viver com a família dela.

Durante quase todo o Inverno, Qung evitara-o e, por intermédio de Tut, fizera saber que ele não era bem-vindo no ulax dela, nem sequer durante os serões de histórias.

Nessa noite, havia uma festa na aldeia em memória de antigos guerreiros e caçadores, de gente que morrera há muito tempo. Para surpresa de Chakliux, Qung pedira-lhe que comparecesse. Como contador de histórias, Chakliux aceitara o convite, apesar de Tut o ter avisado que talvez Qung tentasse embaraçá-lo.

Já tenho estado embaraçado, tia dissera-lhe Chakliux, falando na língua dos Primeiros Homens, o que lhe valeu um sorriso da velha.

Como sabes, não podes sentar-te junto aos homens. Não és um Caçador Marinho.

Tia, ficas embaraçada se eu me sentar junto de ti?

Não, respondera Tut, e agora estavam sentados na fila das mulheres do ulax de Qung.

O poste de Qung estava cheio de bexigas de foca repletas de ar e bem atadas a cada degrau. Chakliux sabia o que o esperava quando viu uma multidão de crianças reunidas no telhado, escondendo o riso atrás das mãos. Aqamdax falara-lhe daquela história, e o melhor que ele tinha a fazer era rir também e participar na brincadeira, mesmo que o fizesse cair.

Olhou lá para baixo, fingiu-se admirado e começou a falar numa mistura das línguas do Povo Rio e dos Primeiros Homens. Por fim, perguntou às crianças o que deveria fazer.

Elas responderam-lhe que ele tinha que descer. Ele apoiou firmemente o pé e rebentou duas bexigas antes de resolver escorregar pelo poste até o chão. Ouviu as vozes das crianças ao aterrar, virado para cima, ileso e impecável, depois de recobrar o fôlego, e riu com elas. Deu uma olhadela a Qung, cujo rosto ficou impassível, quase rígido, mas depois a velha ergueu ligeiramente o queixo na sua direção, reconhecendo a sua presença.

Quando Qung começou a contar histórias, a sua voz, forte como a de uma jovem, encheu o ulax, e agora, muito mais tarde, ela continuava falando, descansando de vez em quando para permitir que o chefe dos caçadores falasse de caçadas, umas recentes e outras passadas.

Qung não dissera nada depreciativo acerca de Chakliux, nem se mostrara irritada com o Povo Rio, embora uma história aludisse a uma criança do Povo Rio criada pelos Primeiros Homens, que os ensinara a caçar animais terrestres, uma técnica que eles tinham esquecido ao viver em ilhas muito distantes, lá para oeste.

De súbito, Qung olhou para ele e, mesmo na penumbra do ulax, Chakliux viu-lhe o fogo nos olhos.

Está aqui outro contador de histórias, apesar de ele se considerar um comerciante anunciou ela. Os contadores de histórias reconhecem-se sempre uns aos outros. Somos um povo de muitas palavras. Vivemos do roubo, tirando idéias de todos aqueles que nos rodeiam, tirando histórias das vidas de outros povos. Admites esse roubo, homem do Povo Rio? perguntou ela.

Não, respondeu Chakliux. Eu sou um contador de histórias, como disseste, mas não sou um ladrão. Sou comerciante, troco umas histórias por outras, e sou um tecelão, que transforma pedaços e restos de palavras em cestos inteiros capazes de guardar idéias e a recordação de vidas muito antigas.

Os olhos de Qung, minúsculos num rosto cheio de rugas, pestanejaram, e Chakliux julgou vê-la sorrir. A velha não o fez, mas ele sentiu-lhe o riso formando-se na garganta quando ela indagou:

Tens alguma dessas histórias que possas trocar?

Aqamdax contara-lhe muitas histórias dos Primeiros Homens, histórias que Qung, apesar do muito que falava, ainda não contara. Chakliux podia contar histórias do Povo Rio ou lendas que ele aprendera com outros povos, Caribu, Morsa e Tundra do Norte, mas resolveu contar-lhes outra uma história que eles tinham que saber se Aqamdax alguma vez voltasse e levasse com ela o irmão, Ghaden.

Olhem! O que vejo eu! disse ele, e explicou que, na sua aldeia, os velhos se serviam de enigmas para ensinar as crianças e para dizer certas coisas que não podiam ser ditas com delicadeza de outra maneira. De longe, parece preta. De perto, vê-se através dela.

Não estava à espera de uma resposta, mas Qung disse:

Uma pena. Uma pena de cormorão.

Em seguida, arrancando uma pena da parte da frente do seu sax, aproximou-a do rosto, lembrando àqueles que a questionavam que tanto era possível ver através de uma pena como dos cílios.

Chakliux fez um gesto de cabeça aprovando a resposta dela e depois prosseguiu:

É então que vemos como os outros vivem as suas vidas. Vemos com mais clareza quando vemos mais de perto.

Depois, começou a contar a história de Daes, tal como a ouvira de Aqamdax.

Quando acabou, ouviu-se um murmúrio de aprovação e, mais tarde, já de madrugada, quando as histórias haviam acabado e as pessoas iam saindo, Qung pegou-lhe na mão, puxou-o para os fundos do ulax e perguntou:

Sabes quem matou a mulher?

Não sei, respondeu Chakliux.

Essa gente do Povo Rio, não matará Aqamdax?

Ela já não está com eles.

Tut diz que tu não sabes onde ela está. Porque andas à procura dela?

Quero que ela seja minha mulher.

Então, partes na Primavera e continuas procurando-a?

Sim, regressarei ao Povo Rio e tentarei encontrá-la.

Ela pode estar morta.

Pode.

Qung suspirou e virou-lhe as costas, resmungando:

Eu lhe disse que não fosse,

Chakliux ia a meio caminho do poste quando Qung lhe gritou:

Se a encontrares, volta para cá. Precisamos de bons contadores de histórias nesta aldeia.

Voltarei, tia. Tenho muito a aprender respondeu Chakliux.

 

ALDEIA DE RIO PRIMO

Aqamdax esperava ter oportunidade de se esgueirar da cabana do sangue lunar à noite, ir às escuras até à cabana de Estrela e contar o seu plano a Yaa. Todas as noites as mulheres faziam turnos para ir buscar lenha e alimentar a lareira. Na segunda noite, foi a vez de Aqamdax. Quem reparava se ela fosse mais longe do que era preciso para arranjar um punhado de madeira?

Depois chegara Terceira Filha, com o bebê. Não era raro que uma mãe que amamentava tivesse períodos menstruais. Em geral, um bebê impedia que o sangue corresse, para que o filho seguinte que estava à espera soubesse que não podia vir senão quando o outro fosse desmamado. Mas, apesar de o bebê de Terceira Filha ainda ser pequeno, o leite da mãe quase secara e os períodos menstruais tinham recomeçado. Algum tabu que fora quebrado, disseram-lhe as outras mulheres que estavam na cabana.

Terceira Filha embalou o bebê, dando-lhe o peito para tentar que ele não chorasse, mas a criança chorou durante todo o dia e quase toda a noite. Como podia Aqamdax sair sem ser vista se o bebê de Terceira Filha as mantinha acordadas?

Aqamdax passou o tempo fazendo um cesto, mas os seus pensamentos estavam sempre em Mordedor, e o seu peito estava cheio do desgosto de Ghaden.

Lembrou-se de que o cão tinha sorte em estar vivo.

O Inverno estava sendo duro, e dali a pouco começariam a matar cães para comer. Optariam por matar primeiro um dos que lhes pertenciam, antes de Mordedor. Se ela pudesse afastar-se da cabana, mesmo por pouco tempo, se ela pudesse falar com Yaa...

A aba da porta abriu-se; uma lufada de ar frio entrou na cabana. O bebê de Terceira Filha calou-se, sustendo a respiração com o frio e, no meio daquele silêncio súbito, Aqamdax levantou a cabeça e viu Estrela com Yaa atrás dela, deixando entrar o ar invernoso até largar a aba da porta que, com o peso das pedras, voltou ao seu lugar.

Estrela dirigiu-se para os fundos da cabana e Yaa foi atrás dela, levando comida e utensílios de costura. Aqamdax regressou ao seu trabalho de tecelagem, mantendo-se debruçada sobre o cesto, mas espiando Estrela pelo canto do olho. Quando a mulher se instalou e mandou Yaa embora, Aqamdax levantou-se e disse:

Vou buscar lenha.

Não se deu ao trabalho de vestir a parka. Tinha medo que Yaa fosse embora antes de ela conseguir apanhá-la. Mas foi encontrar a menina à sua espera, agachada, de costas para o vento.

Tu e Ghaden estão bem? perguntou Aqamdax.

É um bom período para nós, quando Estrela está na cabana das mulheres, respondeu Yaa.

Não é muito difícil tomar conta da mãe de Estrela?

Ela está quase sempre sentada. Umas vezes, costura, outras, pega Ghaden no colo. Come quando eu lhe dou comida e vai comigo quando eu vou à latrina das mulheres. Estrela não é tão fácil.

Yaa, tenho uma coisa importante a dizer-te começou Aqamdax. Tikaani pediu a K’os que me deixasse ser esposa de Homem Noturno.

Yaa arregalou os olhos. Bateu as palmas com as mãos enluvadas e perguntou:

Irias viver conosco?

Sim.

Yaa abriu a boca para exprimir a sua alegria, mas Aqamdax mandou-a calar.

Há um problema. K’os pediu um preço. Ela quer o Mordedor.

Ela aceitaria o Mordedor! Ela tem cães. Aqamdax cerrou os lábios e mordeu o interior da face.

Ela quer matar o Mordedor. Pediu que lhe levem para ela o comer.

O Mordedor! Não! Ghaden não suportaria tal coisa.

Escuta, Yaa, Mesmo que eu recuse a oferta de Tikaani...

Podes fazer isso?

Cala-te e ouve. Tenho que voltar depressa. Eles vão transformar o Mordedor em comida, não por enquanto mas dentro de pouco tempo. As despensas estão ficando vazias e o Inverno tem sido duro. Temos que lhes mostrar que ele é um cão que vale a pena conservar.

”Tenho um plano que talvez resulte, mas tens que fazer uma coisa. Será mais fácil agora que Estrela está ali. Aqamdax apontou para a cabana das mulheres.

Amanhã, sairei da cabana das mulheres. No dia seguinte, Tikaani quer a minha resposta. Nessa manhã, quero que vás dar comida ao Mordedor e que o alimentes bem, que depois o leves para junto das armadilhas de K’os e que o deixes lá. Em seguida, voltas, agasalhas bem Ghaden e obriga-lo a brincar lá fora. O mantém lá fora até o Mordedor voltar. Podes fazer isso?

Posso.

A voz de Estrela ergueu-se num lamento e chegou até elas através das paredes da cabana.

Tenho que ir para dentro disse Aqamdax. Não te esqueças. Daqui a dois dias. De manhã.

Prometo.

Aqamdax apanhou uma braçada de lenha e depois entrou na cabana. Pôs a lenha junto da porta e ficou ouvindo as lamentações de Estrela por causa da neve que ela trouxera para dentro, o frio e a preguiça daquele povo que se chamava Caçadores Marinhos.

Quando Aqamdax saiu da cabana do sangue lunar e regressou à de K’os, a mulher mal lhe falou. Aqamdax foi buscar lenha, derreteu a neve para fazer água, deu comida aos cães de K’os e depois ofereceu-se para ir verificar as armadilhas.

Tu só queres é roubar o meu alimento para dares ao teu marido disse K’os.

Aqamdax baixou a cabeça e calçou as botas. A mulher tinha razão. Ela tencionava roubar comida, mas apenas uma lebre. Sentiu uma volta no estômago ao pensar de repente que as armadilhas poderiam estar vazias.

Trago-te o que encontrar prometeu Aqamdax, vestindo a parka.

Tirou um par de raquetes da entrada e levou-as. Encaminhou-se para a cabana de Estrela. Yaa estava lá fora.

Levo o Mordedor agora? segredou Yaa quando Aqamdax passou por ela.

Só quando eu sair da aldeia afirmou Aqamdax inclinando-se para calçar as raquetes. Leva-o para as armadilhas de K’os e fica junto dele até ele seguir as minhas pegadas. Depois, volta e prepara Ghaden.

Endireitou-se e continuou a andar.

A primeira armadilha estava vazia. O fio ainda se encontrava atado no seu laço com finas tiras de erva. A seguinte tinha uma lebre, hirta e gelada. Aqamdax suspirou de alívio, soltou-a, sacudiu a neve e enfiou-a debaixo da parka para descongelar. As outras armadilhas estavam vazias.

Aqamdax iniciou o regresso à aldeia e, no meio do caminho, parou à espera de Mordedor. Yaa já o devia ter soltado.

Aqamdax esperou até que o frio começou a entranhar-se-lhe nos pés. Por fim, aproximou-se da armadilha seguinte, e depois de outra. Mordedor continuava a não aparecer. Teria Yaa se esquecido? Não, Yaa era digna de confiança como qualquer mulher adulta. Muito provavelmente, Mordedor distraíra-se com um animal qualquer.

Aqamdax resolveu ir ver se encontrava pegadas de Mordedor. Se ele tivesse ido atrás de algum animal para a floresta, talvez ela ainda o encontrasse. Na orla da floresta, descobriu as pegadas do cão e depois reparou que havia uma fila de pegadas um pouco à sua esquerda. Eram de Mordedor. Ele virara-se e voltara para trás.

Estúpida!, pensou Aqamdax. Julgavas que o teu plano resultava? Alguém teria percebido que a lebre fora morta por uma armadilha e não por um cão, apesar de a descongelares o suficiente para que ela parecesse ter sido apanhada há pouco tempo.

Quando Mordedor era pequeno, Aqamdax ensinara-o a caçar animais pequenos e a levá-los a ela ou a Ghaden, mas naquela aldeia o animal estava quase sempre preso. Não caçava há muito tempo. Mesmo que ela conseguisse dar-lhe a lebre para ele a levar a Ghaden, uma velha poderia acusar o cão de lhe ter roubado das armadilhas.

Tirou a lebre da parka e pendurou-a na corda que trazia à cintura. Em seguida, encaminhou-se para a aldeia. Contornou o caminho que ia dar na cabana de Estrela e depois parou. À entrada da cabana, via-se um pequeno grupo de mulheres. Foi então que Aqamdax avistou Mordedor. O cão estava sentado, de cabeça levantada e com a língua de fora. Uma lebre enorme, com o pescoço ensangüentado, jazia no chão ao lado dele, que a deixara à entrada da cabana, tal como um caçador deixava uma presa à mulher.

Algumas das mulheres mais velhas viraram-se, avistaram Aqamdax e desviaram o olhar, mas ela ouviu o que diziam umas às outras e conseguiu perceber que Mordedor levara a lebre a Ghaden, que estava sentado lá fora, fazendo uma cova na neve, brincando como qualquer criança.

Por fim, uma das mulheres mais novas voltou-se para Aqamdax e perguntou-lhe:

Este cão veio da aldeia de Rio Próximo?

Veio. Foi um dos velhos que o ofereceu a Ghaden.

Em seguida, muitas mulheres começaram a fazer perguntas: Que idade tinha Mordedor? Quem o ensinara a caçar? Alguma vez o animal comera o que caçara recusando-se a dar a sua presa a Ghaden?

Aqamdax respondeu às perguntas o melhor que pôde, escondendo um sorriso ao pensar que algumas das mulheres mais velhas falavam com ela pela primeira vez. Eram mulheres que nunca pensariam em dirigir a palavra a uma escrava, e muito menos à de K’os.

Por fim, quando o grupo engrossou, juntaram-se vários homens que também começaram a fazer perguntas. Aqamdax ouviu a voz de Tikaani, que abriu caminho entre a multidão até se aproximar do cão. As suas palavras foram para Mordedor, um elogio rápido, algo que um caçador poderia dizer a outro. Inclinou-se e estendeu o braço para pegar a lebre.

Mordedor arreganhou os dentes, rosnou e pôs uma pata em cima do animal; depois abocanhou-o, arrastou-o para junto de Ghaden e deixou-o cair.

Tikaani inclinou a cabeça e deu uma gargalhada.

Quem ensinou o cão a caçar desta maneira? perguntou ele.

Yaa, que estava de pé ao lado de Ghaden, com uma mão no ombro do irmão, apontou com o queixo pequeno para Aqamdax e, com uma voz clara, respondeu:

A nossa irmã, Aqamdax.

Na noite seguinte, Aqamdax já não era escrava, mas sim esposa. Ignorando os olhares mal humorados de K’os, levou os seus poucos pertences para a cabana de Estrela e depois ajudou Homem Noturno a trazer as coisas dele da cabana dos caçadores. Até Olhos Grandes, a mãe de Estrela, parecia ter saído do estranho mundo de sonho em que vivia e preparou a comida, embora tratasse Ghaden pelo nome de um dos filhos mortos. Parecia não ver Aqamdax. Chocou mesmo com ela várias vezes e depois recuou, assustada mas como se não a visse, como se Aqamdax fosse transparente como a água.

Nessa noite, depois de Tikaani ter saído da cabana e de Ghaden e Yaa terem adormecido, Mordedor, com o seu novo estatuto de caçador, estava agora autorizado a dormir na cama de Ghaden. Aqamdax estendeu as suas esteiras ao lado das do marido.

Apesar de viver com o Povo Rio há cerca de um ano, nunca se habituara a dormir como eles, todos no mesmo local, sem cortinas que isolassem a zona das camas, que separassem maridos e mulheres dos outros membros da família. Reparou que, por delicadeza, Estrela e Olhos Grandes estavam de costas para eles, ao contrário de K’os, que parecia sentir um estranho prazer em observar quando Aqamdax era obrigada a satisfazer um homem. Mas porquê julgar o Povo Rio através de K’os?

Aqamdax sentou-se ao lado de Homem Noturno. O homem deitara-se, encostado a um espaldar de salgueiro, com o ombro doente aconchegado numa pele de lobo macia. Estava magro e pálido. Era alto e tinha um grande nariz adunco que nascia direito da testa e se inclinava para baixo no meio, fazendo lembrar a Aqamdax um cotovelo. Os seus olhos eram do castanho mais claro que havia no Povo Rio, da mesma cor dos de Chakliux, e estavam bem enterrados nas órbitas. A boca era cheia e larga e às vezes fugia um pouco para cima num sorriso curto e silencioso. Aqamdax reparara que, quando as dores no ombro eram mais violentas, ele cerrava os lábios com força.

Ao contrário dos Primeiros Homens, o Povo Rio fazia uma cerimônia de casamento, que era mais do que um pai ou um tio empurrando o caçador e a mulher para a cama no meio de risadas. Os noivos tinham sido abençoados com palavras e seguira-se um banquete. Como Homem Noturno não podia suportar os empurrões próprios das aglomerações, ele e Aqamdax tinham ficado na cabana, à espera que o povo da aldeia fosse para junto deles.

Aqamdax não possuía roupas novas para a festa, embora Estrela lhe tivesse oferecido um cinto estreito de pele de caribu bordado com pelo de caribu tingido de vermelho e com pequenas contas feitas de conchas, em forma de disco. Aqamdax soltara os cabelos, vestira a parka interior sem capuz, com a pele de esquilo para fora, e pusera o cinto. A mãe de Estrela ficara na cabana com eles, cantarolando uma estranha canção que parecia o uivo do vento.

Homem Noturno, como a maioria dos caçadores, só falava quando era necessário. Quando ficaram sozinhos na cabana com Olhos Grandes, Aqamdax encostara-se ao seu novo marido e segredara:

Obrigada por me fazeres tua esposa.

Todavia, mesmo assim, ele limitara-se a soltar um grunhido, a acenar com a cabeça e a desviar o olhar.

Por um breve momento, Aqamdax pensou em Chakliux, um homem com quem conversara sobre muitas coisas, discutira, gracejara e construíra enigmas. Acariciou a fita enrolada de tendão que ainda trazia no pulso. K’os não a considerara digna de ficar com ela, ao contrário dos colares de Aqamdax. A saudade súbita que Aqamdax teve de Chakliux, da sua inteligência terna e das suas histórias era afiada como uma faca, mas ela lembrou-se da sua vida com K’os, das noites em que fora obrigada a aceitar homens na sua cama e dos dias frios em que era forçada a ir levar recados sem sentido. Depois disso, só conseguia encarar Homem Noturno com gratidão, só podia sentir-se satisfeita por já não ser escrava

Yaa virou-se na cama e fechou os olhos com força. Não queria que Aqamdax nem Homem Noturno pensassem que ela estava observando-os, apesar de ter curiosidade quanto ao que eles fariam na sua primeira noite juntos. Quando era muito pequena, vira o pai na cama com a mãe, vira-os mexerem-se juntos e às vezes ouvia-os gemer de satisfação. Perguntou a si própria se aconteceria o mesmo com Aqamdax e Homem Noturno.

Homem Noturno não tinha um aspecto forte como a maioria dos caçadores. Andava devagar e usava um cajado como o pai de Yaa. Era novo, mas não parecia novo. Fora ferido, segundo uma das meninas de Rio Primo contara a Yaa, apesar de poucas brincarem com ela e raramente lhe dirigirem a palavra. Não tinha importância. Havia sempre muito que fazer, tentando agradar a Estrela e tomar conta de Ghaden, além de se preocupar com Aqamdax, até esse dia. Agora seria melhor, embora tivesse pena que Aqamdax fosse esposa de um homem que talvez estivesse doente demais para caçar e que tinha um cheiro esquisito, quase de carne podre.

Ouviu os dois falando em voz baixa. Depois, Aqamdax ajoelhou-se em frente de Homem Noturno e ajudou-o a despir a camisa. Yaa esqueceu-se de manter os olhos fechados e arregalou-os ao ouvir Homem Noturno dar um grito quando a camisa lhe tocou no ombro. Uma onda do cheiro de carne podre varreu a cabana. Depois, Aqamdax ajudou Homem Noturno a instalar-se de novo no espaldar.

De repente, Yaa lembrou-se de que devia estar dormindo. Fechou os olhos e ficou escutando, abrandando mesmo o ritmo da respiração para que esta não cobrisse o som das vozes do casal.

Ouviu um roçar junto da cama e percebeu que Aqamdax estava a seu lado.

Sei que estás fingindo, irmã sussurrou Aqamdax, com uma voz terna. Abre os olhos e me ajuda.

Yaa abriu os olhos devagarinho.

Onde é que Estrela guarda os remédios? Onde é que ela tem as peles raspadas? perguntou Aqamdax.

Yaa desembrulhou-se dos cobertores e levou a Aqamdax um monte de peles, com e sem pelo. Aqamdax escolheu algumas das mais pequenas, bem raspadas dos dois lados.

Yaa levantou-se e observou Aqamdax enquanto esta encostava algumas pedras de cozinha nas brasas e avivava o fogo.

O meu marido está doente e eu não quero esperar pela manhã para ajudá-lo, disse ela a Yaa, jogando água numa panela vazia e pronta para receber as pedras quando estivessem quentes.

Ele vai morrer? perguntou Yaa.

Não, ele não vai morrer, respondeu Aqamdax. Eu não deixarei.

 

K’os não fora à festa. Por que celebrar? Que respeito poderia vir do fato de permitirem que uma mulher que nem sequer era humana fosse esposa?

Além disso, quem podia responder pela lealdade de Aqamdax? Ela vivera com os de Rio Próximo. Se ela soubesse dos planos de K’os, arranjaria maneira de os avisar? Não havia um grande risco de que ela o fizesse agora, quando os habitantes das duas aldeias se encontravam nos acampamentos de Inverno, e se os jovens caçadores concluíssem que, depois de um Inverno tão duro, não tinham forças suficientes para combater? Depois teriam que esperar pelo fim do Verão. De que serviria atacarem quando havia tantas famílias espalhadas pelos vários acampamentos de pesca? Mas, durante o Verão, havia períodos em que os povos de Rio Próximo e Rio Primo estavam separados por menos de meio dia de caminho. O que impediria Aqamdax de escapulir para ir avisá-los?

É claro que talvez K’os conseguisse convencer os caçadores a atacarem antes de as famílias da aldeia partirem para os seus pesqueiros. Caso contrário, seria obrigada a matar a mulher dos Caçadores Marinhos. Isso seria difícil, sobretudo agora que Aqamdax vivia numa cabana com tanta gente. Se a comida fosse envenenada, morreriam muitos; e outras pessoas da aldeia poderiam desconfiar. K’os tinha que ser mais cautelosa dali em diante. Quando era nova, usara veneno com inteira liberdade. Mas descobrira que às vezes havia métodos melhores de se vingar do que matar, e muitas vezes melhores maneiras de matar do que usando as suas próprias mãos.

 

Aqamdax serviu-se de cataplasmas quentes para extrair o veneno do ombro de Homem Noturno. A ferida gangrenara e atingira o músculo do braço. O homem tinha gânglios dolorosos no pescoço e nas axilas, e até na articulação entre a perna esquerda e a virilha. Ela conseguiu expurgar uma parte do veneno e, de manhã, ele tinha menos dores. Até o seu olhar era mais límpido.

Tu és curandeira segredara-lhe ele durante a noite, mas ela respondera que era apenas uma esposa.

Ao amanhecer, Homem Noturno adormeceu e Aqamdax também concedeu a si própria uns momentos de sono, escutando, mesmo em sonhos, a respiração do marido.

Acordou com Estrela junto deles, de nariz torcido ao ver a tigela de madeira cheia de sangue coagulado e de pus. Estrela tocou-lhe com um dedo do pé e perguntou:

O que lhe fizeste?

Limpei-lhe a ferida, respondeu Aqamdax, sentando-se.

Dormira com a sua parka de pele de esquilo e sem cobertores, satisfeita por se encontrar numa cabana quente.

Não quero que Ghaden veja essa porcaria, avisou Estrela.

Aqamdax concordou, com um gesto de cabeça. Estrela tinha razão. Não seria uma boa coisa. Vestiu a parka exterior e levou a tigela e os pedaços de pele piores para a lixeira que ficava mesmo ao lado da latrina das mulheres.

Quando regressou à cabana, Homem Noturno estava acordado. Os olhos dele brilharam ao vê-la, e ele estendeu-lhe a mão.

Mulher, proferiu ele, e esta palavra aqueceu o coração de Aqamdax. Tenho fome.

Sabes onde fica a nossa despensa? perguntou-lhe Estrela.

Sei.

Ainda bem. Vai buscar o que precisares para ele e para ti. Ontem à noite, comemos quase tudo o que havia na cabana.

A despensa ficava perto da de K’os. Era um estrado quadrado assente em quatro pernas feitas de troncos. Uma maneira esquisita de conservar a comida, pensou Aqamdax, mas o Povo Rio fazia quase tudo de uma forma muito estranha. Os barcos deles eram jangadas feitas de troncos de árvores atados uns aos outros. Eram tão pesados que seriam necessários vários homens para afastar só um dos rápidos e dos baixios.

Cada despensa tinha uma escada dois longos postes unidos um ao outro por traves feitas de ramos grossos. Eram fáceis de subir, mesmo com os braços ocupados, e podiam ser retiradas com facilidade para os animais não irem lá acima. Aqamdax subiu, desatou o fio da porta e abriu a despensa. Ainda estava pelo menos meio cheia. Nem K’os tinha tanta carne, apesar de exigir que cada homem que dormisse com Aqamdax lhe pagasse em carne de caribu ou em peixe.

Aqamdax pegou um recipiente de pele de caribu, abriu-o e retirou um naco de carne congelada. Junto da porta havia fardos de peixe seco e congelado. Aqamdax tirou vários peixes para dar a Mordedor.

Parou no topo da despensa e olhou cuidadosamente à sua volta, à procura de nuvens de bafo gelado que pudessem denunciar lobos ou algum cão solto que a tivesse seguido e esperasse que ela descesse com a carne, mas não viu nada exceto a fumaça acumulada que saía dos orifícios dos telhados das cabanas e a luz acinzentada da manhã. Fechou a porta e desceu.

Ao voltar para a cabana, cruzou-se com outras mulheres. Baixou a cabeça, preparada para escutar palavras ofensivas, como acontecia todas as manhãs, em que ouvia comentar como eram estranhos os que não pertenciam ao Povo Rio. Nesse dia, porém, as mulheres saudaram-na como faziam umas às outras. Uma até parou para perguntar como estava Homem Noturno. Então Aqamdax avistou K’os. A mulher encaminhava-se na sua direção, de olhar fixo, como se ninguém fosse digno da sua atenção.

Uma das crianças dissera a Aqamdax que K’os era velha, e devia ser, para ser mãe de Chakliux, mas o seu rosto não parecia o de uma velha. Só as mãos, deformadas e escuras, denunciavam a sua idade. Aqamdax levantou bem a cabeça, enfrentando uma mulher como uma esposa enfrentava uma viúva. Esperava que K’os passasse por ela tal como passara pelas outras mulheres, sem falar, sem um clarão no olhar que mostrasse que a reconhecera, mas ela parou, estendendo uma mão enluvada.

Tikaani disse-me que o teu marido tem muitas dores.

A ferida nunca sarou, disse Aqamdax, esperando que as suas palavras não fossem um insulto para alguém que era considerada uma curandeira.

Como K’os não disse nada, Aqamdax, desejosa de quebrar o silêncio entre ambas, perguntou:

Esta aldeia não tem um xamã que saiba os cânticos e as preces que afastam os maus espíritos?

K’os fez um ar carrancudo.

Ele morreu no Outono, disse ela. Pouco depois de voltarmos do nosso pesqueiro de Verão. Estava velho, mas não era muito sábio. Eu tenho plantas que podem ajudar Homem Noturno. Dei algumas à mãe dele antes de começar o Inverno. Se eu soubesse que ele não estava melhor, teria levado mais.

A mulher entendia com certeza que era pior dar coisas à mãe de Homem Noturno do que a uma criança, pensou Aqamdax. Além disso, não confiava em K’os. A mulher podia resolver dar-lhe veneno em vez de remédios.

Eu levo-te algumas.

Aqamdax fez um gesto de agradecimento e continuou a andar na direção da cabana de Estrela. Aceitaria as plantas de K’os mas não as daria a Homem Noturno. Talvez as suas cataplasmas fossem suficientes para ele recuperar as forças. Aqamdax entrou na cabana e viu que o marido estava sentado, de boca fechada, concentrado, enquanto ele e Ghaden entrançavam tiras de couro cru numa raquete.

É bom ser esposa, pensou Aqamdax. Alguma vez desejara mais do que isso?

 

ALDEIA DE RIO PRÓXIMO

Sok pegou o corpo do cão. Levantou-se sem dizer nada e Dorminhoco cuspiu-lhe em cheio na cara.

Isto é o que eu penso dos cães do teu irmão. Isto é o que eu penso de ti. Se o teu irmão voltar a esta aldeia, diz-lhe que me deve duas mãos-cheias de peles de caribu, as suficientes para pagar três bons cães.

Sok conteve a fúria.

Julgas que eu também não perdi alguns cães?

Sei que perdeste. Os teus foram dos primeiros a morrer. Mas agora a insensatez do teu irmão... tentar ligar-nos, pela amizade ao povo de Rio Primo... matou não só os teus cães como a maioria dos cães da aldeia. Não tenho mais nada a dizer-te, Sok.

Sok ficou com o cão nos braços, sem saber o que fazer. Tinha perdido a conta aos cães que haviam morrido no último ano quatro mão-cheias? Cinco? Tinha que ir falar com Lobo-e-Corvo. Um xamã saberia como afastar uma maldição da aldeia, mas Lobo-e-Corvo ainda estava zangado por Sok ter levado Neve-no-Cabelo como segunda esposa.

A sua fúria não tinha razão de ser. Neve-no-Cabelo era feliz. Sok não a obrigara a deitar-se na sua cama. Ela fora de livre vontade e ele aceitara-a como esposa quando ela engravidara. Ele pagara o mesmo preço por ela como se fosse uma primeira esposa. Agora ela vivia na cabana de Aqamdax e Sok passava lá a maior parte das noites, apesar de não a possuir durante a gravidez.

Os boatos que circulavam na aldeia que Neve-no-Cabelo dormira com muitos caçadores para engravidar e ser aceite como esposa não eram verdadeiros. Ela dormira apenas com Sok. Os boatos faziam parte do plano de Folha Vermelha para obrigar Lobo-e-Corvo a autorizar o casamento da filha. De que outra maneira podia ele dá-la a Sok, a menos que acreditasse que, na sua desgraça, ela nunca arranjaria um marido?

Lobo-e-Corvo devia estar agradecido. O velho xamã julgava que tinha poder suficiente para fabricar um marido para a filha com pedras, gravetos ou lama? Os muitos dias que ele passara falando com os espíritos pareciam ter-lhe turvado a mente e ninguém o compreendia verdadeiramente.

Porque Sok levaria o cão morto a Lobo-e-Corvo? Ele só repreenderia Sok e rogaria pragas a Chakliux.

Era preferível ir falar com Pato-de-Cabeça-Azul. Sok encaminhou-se para a cabana do velho, com o cão nos braços, olhando em frente e ignorando aqueles que paravam no caminho, encarando. Não raspou na aba da porta. Como podia fazê-lo, com os braços ocupados? A velha esposa de Pato-de-Cabeça-Azul pigarreou quando ele entrou e pôs o cão morto no chão.

Pato-de-Cabeça-Azul estava sentado ao pé da lareira e levava uma tigela de comida à boca. Largou a tigela, mas ficou de boca aberta.

Não falou, e Sok disse por fim:

Primeiro, acusaram o meu irmão. Agora é a mim que acusam. Dizem que não tenho os dons do meu avô, que todos os nossos cães morrerão e que depois acontecerá o pior. Talvez as nossas crianças...

Cala a boca! exclamou Pato-de-Cabeça-Azul. Não abras os ouvidos dos espíritos com tais palavras.

Estas palavras já foram ditas, retorquiu Sok. Segredadas de cabana em cabana por velhas que não têm mais nada que fazer.

De quem é o cão?

Foi Dorminhoco que me trouxe.

Ele sempre se orgulhou dos seus cães. O que ele te aconselha a fazer?

Não me deu conselhos. Só acusa, como todos na aldeia.

Foi ele que disse que devias vir aqui?

Não.

Então porque vieste? Entendo pouco de cães. Só tenho aquele de que preciso para ajudar a minha mulher a levar a bagagem quando vamos para o acampamento de pesca na Primavera. Já não caço ursos nem vou atrás de caribus. Sou um velho. Para que preciso de cães?

Sok escolheu cuidadosamente as palavras:

És o caçador mais velho da nossa aldeia. Conheces as preces e os cânticos que acalmam os espíritos quase tão bem como Lobo-e-Corvo. Peço-te que juntes as tuas preces e os teus cânticos aos meus e aos de Lobo-e-Corvo para eles protegerem os nossos cães. Se alguma atitude desrespeitosa irritou os espíritos, talvez isso ajude. Nós parecemos crianças, não sabemos o que fazer.

Enquanto Sok falava, Pato-de-Cabeça-Azul endireitou-se e por fim levantou-se, de olhar fixo em Sok.

Deixa o cão. Eu rezarei até decidir o que faremos.

 

Ao anoitecer, Ligige’ saiu da cabana. Doíam-lhe os braços e as articulações dos dedos. Só conseguia costurar um pouco e depois era obrigada a parar. Pouco mais fazia do que comer e dormir. Que préstimo tinha para a aldeia uma mulher que recebia uma ração de comida mas que não tinha nada para dar em troca?

Resolvera ir para as lareiras e fazer um turno mexendo as panelas para que algumas das mulheres mais novas pudessem voltar para as suas cabanas e também para poder tirar a gordura quente e macia que ficava no topo das panelas em que o líquido fervera. A esfregaria nas mãos para aliviar as dores nas articulações, e mais tarde serviria para lamber.

Por pouco não se chocou com Rato Silvestre, a mulher de Pato-de-Cabeça-Azul, que estava tirando um cão morto da cabana.

É o teu cão? perguntou Ligige’, sem perceber por que motivo Rato Silvestre não o esquartejara para comer.

Não, respondeu a mulher, com a voz abafada pela parte da frente da parka quando se inclinou para pôr o cão lá fora.

Ligige’ viu o cão de Pato-de-Cabeça-Azul levantar-se de um salto no local em que estava preso, nos fundos da cabana. Esticou a corda, atirou-se ao cão morto e começou a ganir.

Foi Sok que o trouxe.

Outro cão morto?

Sim. O meu marido disse para eu te dar. Ele livrou-o da maldição e disse que podes ficar com ele.

De quem é o cão?

Foi Dorminhoco que o deu a Sok.

Ele não o quer?

Ele disse ao meu marido que o oferecesse a alguém que precisasse da carne.

Ligige’ debruçou-se para ajudar Rato Silvestre a puxar o cão para a sua cabana. Agradeceu à mulher, disse-lhe que transmitisse também os seus agradecimentos a Pato-de-Cabeça-Azul e a Dorminhoco mas, depois de Rato Silvestre se afastar, Ligige’ sentou-se e ficou olhando para a carcaça. Se a carne estava livre de maldições, por que motivo é que Pato-de-Cabeça-Azul ou Dorminhoco não a queriam? Se era tão seguro comê-la, porque havia Rato Silvestre de oferecê-la de tão boa vontade, conhecida que era a sua predileção por carne de cão?

Ligige’ ficou sentada ao lado do cão morto até a noite; levou o dia a pensar nos cães que tinham morrido. Só haviam começado a morrer quando Chakliux chegara à aldeia. As pessoas tinham-no acusado, mas agora ele partira.

Segundo Boca Feliz afirmara, ele fora aos Caçadores de Morsas à procura de Ghaden e de Yaa, mas quem podia acreditar numa coisa dessas? Porque iria ele à procura de crianças que não lhe pertenciam, que nem sequer eram irmãos ou primos? Boca Feliz só esperava que ele tivesse ido, e a esperança levara-a a acreditar numa coisa que não era verdade. Além disso, quem podia duvidar que Aqamdax levara Ghaden? É claro que ela tinha poucas chances de sobreviver na viagem de regresso ao seu povo.

Folha Vermelha assegurara que ela levara o iqyax de Chakliux. Quem sabia que Chakliux tinha um iqyax? Estava escondido na floresta, segundo dissera Sok, mas porque ele o escondera? Estaria mais seguro na aldeia.

Alguns dias depois, Folha Vermelha alterara a sua história.

Os Caçadores de Morsas tinham levado Aqamdax para se vingarem de qualquer coisa que ela fizera. Se isso fosse verdade, que oportunidade tinha Aqamdax de sobreviver? Se isso fosse verdade, porque teriam eles levado também Ghaden, e o que acontecera a Yaa?

Água Castanha dizia que Yaa não ficara boa da cabeça desde que Chakliux a encontrara, e que ninguém sabia como é que ela se ferira. A maior parte das mulheres pensava que ela fora atingida pela queda de um ramo e que, depois de Chakliux sair da aldeia, talvez andasse vagando sem destino. Um dia, um caçador encontraria os seus ossos.

Depois de Chakliux partir, os velhos tinham dito que já não havia motivo para se preocuparem com os cães. Eles estavam em segurança. No entanto, mesmo sem Chakliux na aldeia, os animais tinham recomeçado a morrer. Agora as pessoas acusavam Sok. Diziam que ele não era tão poderoso como o avô, que não sabia proteger os cães. Ela ouvira alguns dos homens falarem contra a cadela de Rio Primo, Falcão da Neve, e os quatro filhotes que Chakliux trouxera dessa aldeia. Uns diziam que aqueles cães tinham que ser mortos, mas os animais eram saudáveis e os donos queriam mantê-los. Dois já haviam parido ninhadas de cachorros fortes, alguns dos quais tinham olhos dourados, segundo Ligige’ ouvira dizer.

Por outro lado, aqueles velhos esqueciam que os primeiros cães haviam morrido quando Tsaani ainda era vivo? Talvez ela devesse lembrar isso a Pato-de-Cabeça-Azul. Ele parecia ser o velho que melhor se fazia ouvir e, em geral, o mais sensato dos homens cuja idade lhes valera o respeito da aldeia.

Era estranho que todos os animais tivessem morrido com o tempo frio. Também era estranho que a maior parte deles parecesse saudável. Os que tinham morrido eram muitas vezes os favoritos dos donos. Se houvesse alguma maldição, mesmo que fosse algo que os espíritos tivessem enviado como castigo por qualquer ato de desrespeito, seria natural que os animais velhos e fracos fossem os primeiros a morrer.

Os pensamentos de Ligige’ começaram a andar à roda, gerando a confusão. Ardiam-lhe os olhos de ter passado o dia inteiro no meio da fumaça da sua cabana.

Bem, velha, tens que fazer qualquer coisa com este cão proferiu ela em voz alta.

Parecia-lhe que os outros cães que tinham morrido não haviam sido comidos. Uns foram queimados e as crias foram enterradas. Talvez Pato-de-Cabeça-Azul receasse que o desperdício de carne tivesse enfurecido os espíritos. Talvez fosse por isso que lhe oferecera o cão.

Se ela o comesse e os espíritos ficassem satisfeitos, talvez as mortes parassem. Se ela o comesse e os espíritos ficassem zangados, seria ela a sofrer, ela e não um caçador ou uma mulher jovem que ainda pudesse ter filhos. O pensamento irritou-a, mas depois Ligige’ lembrou-se de que essa era uma maneira de ajudar alguém. Porquê lamentar-se?

Foi buscar uma faca com uma lâmina de pedra afiada e retocada há pouco tempo. Não tinha forças para levantar a carcaça e pendurá-la no ramo de uma árvore; além disso, já estava muito frio e escuro para ela trabalhar lá fora. Pôs umas esteiras velhas debaixo do cão, depois deitou-o de costas e fez o primeiro corte, da garganta ao ânus. Comeria o fígado e os rins, o pâncreas e o coração, mas poria de lado os intestinos e o estômago para limpar lá fora. De outro modo, o cheiro nunca mais sairia da cabana.

Ignorando as dores nas articulações, conseguiu separar as vísceras e levou o estômago e os intestinos para o túnel de entrada. Ficariam ali ao frio até ela estar disposta a arrumá-los. Deu-lhes um último empurrão para soltar a aba da porta, mas perdeu o equilíbrio e caiu para a frente.

Aterrou com o rosto em cima das vísceras e soltou um grito de repugnância ao sentir o cheiro pastoso das fezes que enchia o túnel de entrada.

Estúpida, estúpida, estúpida! gritou ela. Devias ter esperado pela manhã. Há muitas moças que te teriam ajudado.

Levantou-se a custo e assustou-se. Caíra em cima de um objeto afiado que lhe fizera um golpe na mão esquerda. Recuou para o interior da cabana, pegou um odre de água e limpou as fezes. Tinha uma ferida na mão que sangrava. Pegou numa faca limpa e fez um corte maior. Já vivera o suficiente para saber que aquelas feridas infectavam, sobretudo quando sangravam pouco. Lavou a mão outra vez e depois chupou a ferida, puxando mais sangue. Aqueceu água, fez uma cataplasma de gordura e folhas secas de violeta e aplicou-a na mão com uma almofada de pele de caribu.

Puxou os despojos do cão para o túnel e deixou-os ali. Já chega, pensou. Já eram horas de uma velha ir dormir. Resolveria o que faria ao cão na manhã seguinte.

 

ALDEIA DE RIO PRIMO

Tinham passado duas dezenas de dias desde que Homem Noturno recebera Aqamdax como esposa. Entretanto, ela só fora uma vez para a cama dele, três dias depois da cerimônia. Durante esses três dias, Homem Noturno ganhara forças e Aqamdax ficara à espera que ele lhe pedisse para ir para a sua cama, mas quando anoitecia ele não dizia nada e ela ia para a zona das mulheres da cabana e enrolava-se nos cobertores ao lado de Estrela e de Olhos Grandes.

No terceiro dia, ela acabara de ir buscar lenha. Sacudiu a neve da parka e pendurou-a num poste da cabana. Tinha frio e aproximou as mãos do fogo. Ghaden e Yaa estavam brincando lá fora e Estrela também saíra; só Olhos Grandes estava sentada, entoando a sua estranha canção, e olhando fixamente para as paredes da cabana.

Homem Noturno chamou Aqamdax e ela lamentou afastar-se do calor da lareira.

Queres comer ou beber? perguntou ela.

Nem comer nem beber, respondeu ele em voz baixa, estendendo a mão sã.

Ela ajoelhou-se a seu lado e ele acariciou-lhe o rosto.

Tens frio? perguntou ele baixinho. Aqui está quente, nesta cama.

Homem Noturno levantou as peles que o cobriam e olhou fixamente para Aqamdax. Ela deitou-se ao lado dele e sentiu-se descontrair quando o calor do corpo do marido a envolveu. Deixou-se ficar quieta, à espera, sem saber se ele queria o seu corpo ou apenas o conforto de a ter a seu lado.

Ele virou-se para poder olhar para ela, e Aqamdax percebeu as dores que o esforço dele lhe custava. Apoiou-se num cotovelo, reclinou-o nos cobertores e começou a acariciar-lhe o braço são e depois o ombro, passando a pouco e pouco as mãos para o resto do corpo. Afastou os cobertores e viu que ele estava pronto para ela, ainda antes de ela lhe tocar. Aqamdax tirou a camisa e as perneiras e ele levou-lhe a mão aos seios, descendo depois ao ventre.

As carícias de ambos ganharam ritmo e pouco depois ela mexia-se por cima dele, com murmúrios de prazer, rezando para que a alegria daquela união afastasse o mal da doença do marido.

Durante dois dias, ela convenceu-se de que tal iria acontecer. Durante dois dias, pareceu-lhe que ele ganhara forças. Passava a maior parte do tempo sentado e uma vez, com a ajuda de Tikaani, fora até a cabana dos caçadores.

Aqamdax, ansiosa, ficou esperando que ele voltasse a convidá-la para a sua cama. Sentou-se mesmo debaixo das peles dele e iniciou as carícias que antecediam o amor, mas ele limitou-se a sorrir, sem fazer qualquer movimento para a estimular e, a fim de esconder o seu embaraço perante a muda rejeição do marido, Aqamdax pôs-se atrás dele, massageou-lhe os músculos das costas e do pescoço, e depois regressou à zona das mulheres.

Seis dias depois da cerimônia do casamento, Aqamdax acordou e encontrou Homem Noturno num frenesi provocado por sonhos estranhos. Estava ardendo em febre e tinha os lábios gretados e cheios de sangue seco. Estrela, que também acordara com os gritos de Homem Noturno, juntou algumas peles e comida que tinham sobrado da festa do casamento e, apesar dos protestos de Aqamdax, levou-as para a cabana de K’os.

K’os apareceu nessa noite. Trouxe uma das suas bolsas de remédios uma pele de uma lontra do rio, ainda com os ossos do crânio, os olhos vazados com as órbitas cheias de pedras negras e reluzentes e a barriga repleta de pacotes de raízes e de plantas secas.

Tens-lhe dado os remédios que eu mandei? perguntou ela a Aqamdax.

Antes que Aqamdax pudesse responder, Estrela disse:

Eu tenho. Ela estava jogando-os fora. Eu vi-a levá-los para a lixeira, fui atrás dela e trouxe o pacote. Fiz chás quentes para o meu irmão sempre que Aqamdax saía.

K’os fitou Aqamdax com os olhos semicerrados e esboçou um sorriso de troça.

Não confias em mim? perguntou ela. Bem sabes que sou curandeira. Não faria mal a ninguém.

Esqueceste que eu vivi contigo, K’os. Não tocarás no meu marido respondeu Aqamdax.

Estrela? disse K’os, estendendo os braços.

Não vás embora. Eu vou chamar Tikaani. Estrela dirigiu-se à cabana dos caçadores e, entretanto, Aqamdax debruçou-se sobre Homem Noturno, para o proteger.

Quando Tikaani chegou, pediu a K’os que desse um remédio a Homem Noturno. Aqamdax ajoelhou-se e suplicou, enquanto K’os se atarefava fazendo chás de pós, misturando raízes com gordura, afastando o calor da pele de Homem Noturno com o seu leque de penas de corvo e dirigindo-o para a fumaça da lareira para que este saísse da cabana.

No dia seguinte, Homem Noturno parecia mais forte e a febre baixara, mas deixou de falar e era raro abrir os olhos. Às vezes, ao vê-lo tão quieto, Aqamdax debruçava-se sobre ele para lhe sentir a respiração na sua face e certificar-se de que ainda estava vivo.

 

ALDEIA DE RIO PRÓXIMO

Ligige’ despertou de um sonho com cães mortos. De olhos vidrados e línguas inchadas, os animais executavam uma das danças do povo para apaziguar os espíritos que roubavam as almas. Não usavam as grandes máscaras de madeira dos bailarinos fúnebres. Pelo contrário, os seus focinhos estavam bem visíveis, tanto os dos vivos como os dos mortos, e as patas enterravam-se no solo a cada passo, como se extraíssem poder da terra.

Ligige’ acordou sem fôlego, e aquela dança burlesca do sonho turvou-lhe a visão da cabana e das suas paredes de pele de caribu.

Estremeceu e obrigou-se a sair da cama, assobiando quando se apoiou na palma da mão esquerda. Retirou os pelos das tiras de pele de caribu com que cobrira a ferida. Começara a formar-se uma crosta escura que unia as pontas e não havia sinais de veneno que tentasse chegar-lhe ao coração.

Tinha que tirar o cão morto da cabana. Fora um disparate deixá-lo ali durante a noite. Quem sabia quais os espíritos que ele atraíra, ali deitado no túnel? Ligige’ suspirou e apalpou o estômago para ver se sentia inchaços ou dores que não estivessem lá na véspera.

Não sentiu nada, só as ancas, as mãos, os joelhos e o pescoço doloridos, aquelas dores que todo mundo tinha com a idade, e com as quais ela aprendera a viver. Estava cada vez mais furiosa com Pato-de-Cabeça-Azul. Que disparate ter lhe oferecido o cão!

Calçou as perneiras e as botas, vestiu a parka e as luvas e encaminhou-se para o túnel. Arrastou a carcaça lá para fora. Dorminhoco que a tirasse dali. Ele era forte. Ela não passava de uma velha. Foi buscar as vísceras.

Estas estavam inchadas e quando ela saiu, escorregou na neve. Caiu de joelhos e depois de borco. Tinha os olhos fechados quando caiu e, ao abri-los, viu uma tira comprida que lhe pareceu ser marfim saindo da barriga do cão.

Ligige’ puxou-a e ela saiu com facilidade. Tinha quase o tamanho do antebraço dela, era fina como um dedo da mão e afiada dos dois lados. Uma das extremidades era curva, como se tivesse sido fortemente enrolada. Ligige’ voltou a entrar na cabana, pegou uma faca de lâmina comprida, saiu e fez um corte na barriga do cão.

Encontrou três tiras como a primeira, uma delas enrolada numa bola de gordura endurecida. Tirou as luvas, meteu as mãos na barriga do animal e encontrou quatro bolas, qualquer delas não maior do que o punho cerrado de uma criança. Pousou-as na neve e depois chamou a primeira mulher que ia passando.

Vai chamar Pato-de-Cabeça-Azul. Diz que Ligige’ precisa dele. Diz-lhe que venha imediatamente!

O cão não morrera por causa dos espíritos nem da doença. Os espíritos faziam uma maldade daquelas? Enfiar tiras de marfim em gordura e as pôr junto dos cães para eles as engolirem? A doença fazia tal coisa?

Pato-de-Cabeça-Azul aproximou-se, resmungando por o obrigarem a sair do calor da cabana logo de manhã.

Cala a boca e olha para isto gritou-lhe Ligige’. Ainda resmungando, o velho agachou-se junto dela.

Olha. Foi isto que matou o cão.

Ligige’ pegou uma das bolas de gordura e ele tirou-a e virou-a nas mãos.

Isto? Isto é veneno?

Abre-a.

O homem tirou uma luva e enfiou a unha do polegar na

gordura. Deu um salto quando o marfim enrolado se endireitou de repente, salpicando-lhe a cara com pedaços de gordura e o conteúdo putrefato do estômago do cão.

Já viste uma coisa destas? perguntou-lhe Ligige’.

Já tenho ouvido falar disto. Os caçadores de Tundra do Norte servem-se disto para matar lobos. Os lobos engolem como os cães. Engolem sem mastigar. O calor do estômago derrete a gordura e solta a tira de marfim. Eles sangram até a morte, se tiverem sorte. Às vezes, a ferida infecta...

Ligige’ fez um sinal afirmativo.

Então não era um espírito mau que andava matando os cães declarou ela.

Pato-de-Cabeça-Azul examinou o marfim e arrancou a ponta aguçada com a unha do polegar.

Conto isto aos velhos? perguntou ele por fim.

Se contares aos velhos, daqui a pouco quem fez isto ficará sabendo que tu sabes.

Pato-de-Cabeça-Azul concordou.

Talvez seja melhor eu esperar, embora isso possa custar a vida a mais alguns cães da nossa aldeia. Guardas o marfim e isto?

O velho apontou para as bolas de gordura ainda intactas.

Eu guardo-as.

Num local frio.

Eu não sou idiota.

Não, disse ele, sorrindo. Tu não és idiota. O homem levantou-se e mexeu no cão com o pé.

Vou chamar o marido da minha filha para tirar isto da aldeia... A menos que tu queiras a carne.

Não, respondeu Ligige’. Eu não quero a carne. Diz à tua filha que pode ficar com ela. Ela está esperando de um filho. Eu só preciso de comida para mim mesma.

Quando Pato-de-Cabeça-Azul se afastou, Ligige’ guardou as tiras de marfim e as bolas de gordura num velho cesto de pele de peixe. Pôs o cesto na entrada do túnel, amontoou um pouco de neve em volta dele e entrou na cabana.

Ligige’ estava com fome e a bexiga muito cheia causava-lhe mal-estar, mas ficou junto da lareira durante muito tempo, olhando para as chamas.

 

MAR DO NORTE

Partira antes de o aconselharem a fazê-lo. O gelo da baía desaparecera, empurrado para o mar do Norte por fortes ventos de tempestade, mas, quando os caçadores saíram da enseada nos seus iqyan, verificaram que ele continuava boiando em pedaços do tamanho do telhado de um ulax. Disseram a Chakliux que havia um espaço entre as massas de gelo flutuante por onde um homem podia passar com o seu iqyax, mas o vento inesperado e na direção errada podia unir o gelo e esmagar o iqyax como se este fosse um ouriço-do-mar.

Disseram-lhe que ele deveria partir dentro de uma lua, ou talvez mais, mas Chakliux foi atrás deles e aprendeu a manobrar o iqyax entre as placas de gelo flutuante.

Queria verificar as praias e passar de novo pela aldeia dos Caçadores de Morsas, para ver se Aqamdax chegara durante o Inverno. Todas as noites, o seu sono era perturbado por sonhos em que as ossadas dela jaziam sem honra em algum entre a aldeia de Rio Próximo e aquela que era a sua terra natal. Como podia ele esperar?

Entre a lua cheia e a lua nova três mãos-cheias de dias ele remara sem problemas, auxiliado por um forte vento do Sul, que afastava o gelo da costa. Todas as noites encontrara uma boa praia e dormira debaixo do iqyax, abrigado do vento pela pele esticada. Mas depois o vento mudara, empurrando de novo o gelo para as praias e transformando as massas flutuantes numa placa dura e sólida e obrigando Chakliux a afastar-se da costa.

Os dias e as noites sucediam-se. O corpo doía-lhe de cansaço, mas Chakliux receava que, se adormecesse, o iqyax se virasse com as ondas e o atirasse ao mar. Sob a orientação de Rompe-o-Dia, aprendera a endireitar-se se virasse, mas ainda não se sentia à vontade. Era melhor ficar acordado. De vigia.

Os Primeiros Homens o tinham ensinado a fazer um tubo de escoamento, mais fácil de manejar do que a tigela de madeira que ele costumava usar. O tubo era mais comprido do que o seu braço, do punho ao cotovelo, estreito nas pontas e mais largo no meio. Chakliux podia pôr dentro do iqyax, colocar a boca numa extremidade e sugar, enchendo o tubo de água. Aprendera a levantar o tubo agarrando-o com os dentes e virando a cabeça para cima, para depois despejar a água. Nos últimos dias passados no iqyax, a água entrava constantemente, e o tubo de escoamento fora-lhe muito útil, mas Chakliux estava sempre com medo que um bloco de gelo lhe rasgasse as partes laterais do iqyax, amolecidas pela água.

No fim do dia seguinte, os ventos diminuíram e Chakliux descobriu uma passagem no gelo tão larga quanto o comprimento do seu iqyax. Estendia-se na direção da costa, tanto quanto ele podia ver, e o gelo dos dois lados era suficientemente fino para se partir com o remo. Chakliux ouvira contar histórias dos Primeiros Homens de caçadores apanhados nas passagens no gelo, cujos iqyan tinham sido esmagados quando o vento mudara, mas afastou esses pensamentos e começou a remar o mais depressa que podia para chegar à terra antes de terminar a calmaria. Pouco depois, o gelo ganhou espessura, a passagem estreitou-se, e Chakliux foi obrigado a servir-se de um machado para abrir espaço suficiente para dar a volta. Encaminhou-se para o mar e, em águas calmas, rumou para leste, convencendo-se de que não precisava dormir.

Por fim, já sem conseguir levantar os braços, percebeu que tinha que prender o remo ao convés do iqyax e ir atrás dos sonhos que o chamavam.

 

ALDEIA DE RIO PRIMO

K’os escondeu-se bem para eles não saberem que ela estava a espiando-os. Para que lembrar-lhes que ela tinha o poder da vida e da morte sobre cada homem, mulher e criança? Para que arriscar-se a que o seu poder sombreasse o deles e consumisse as capacidades deles com a nova arma que ela lhes oferecera?

Já eram poucos os que falavam da origem dos arcos. Com certeza que não fora ela que lhes dera. Eles não os tinham feito com as suas próprias mãos? Não haviam sido eles trabalhando a madeira e reforçando-a com tiras de pele de caribu? Não tinham sido eles enrolando as fitas de tendão e fazendo as pequenas setas nodosas que aqueles arcos atiravam tão longe e tão depressa?

Deixava-os viver na ilusão. Ela sabia quem levara o arco para a aldeia. Isso bastava. Pelo menos por agora. Pelo menos até eles fazerem o que ela queria.

K’os observava enquanto os homens praticavam. As setas espetavam-se no centro da pele de caribu almofadada que eles usavam como alvo. Ela observava-os e refreava a alegria. Eles estavam prontos, e dali a pouco tempo ela lhes daria mais do que simples peles de caribu para eles mirarem.

Tikaani baixou o arco e inclinou a cabeça em sinal de assentimento para Três Peles. Estas novas pontas de setas eram mesmo aquilo de que eles precisavam. Sentiu o peito encher-se de orgulho, como se a idéia tivesse sido dele e não do irmão, Homem Noturno.

As primeiras pontas eram de pedra. Tinham menos de metade do tamanho das que eles faziam para as lanças, mas mesmo assim o seu peso obrigava as setas a descreverem uma trajetória curva no ar e a caírem a pouca distância da maioria dos alvos.

Homem Noturno passara muitos dias de Inverno esculpindo pontas de setas de pedra. Nenhuma era suficientemente leve. Por fim, fizera várias de osso, que eram leves mas frágeis.

Que não se preocupasse com isso, dissera-lhe Tikaani. Eles podiam usar pontas de pedra para alvos próximos e de osso para outros mais distantes e para presas mais pequenas, como gansos. Mas Homem Noturno continuara trabalhando, e Tikaani não o desencorajara, na esperança de que o homem esquecesse as dores, enquanto passava os dias sombrios do Inverno pensando em pedras afiadas, em osso e em sangue.

Agora Tikaani examinava a ponta de seta que o irmão fizera e tentava não se lembrar de que, na lua passada, Homem Noturno parecia ter perdido as poucas forças que ainda lhe restavam. Aqamdax tratava do marido como se ele fosse um bebê: limpava-o, virava-o e obrigava-o a beber água. Quase todos os dias, K’os ia levar-lhe remédios. Umas vezes, estes pareciam ajudar; outras não.

Ao pensar em K’os, Tikaani sentiu-se pouco à vontade. Tinha que ir visitá-la mais vezes. Desde a morte de Bate-no-Chão que ele deixara de gozar como antes na cama dela. Talvez porque agora era reconhecido como chefe dos caçadores, não tinha de provar a si próprio que era digno dessa honra possuindo a mulher do antigo chefe. Além disso, havia muitas mães ansiosas por que ele conhecesse as filhas. No Verão, tinha que arranjar uma esposa. Para quê escolher K’os? Tinha que escolher uma jovem que lhe desse filhos robustos. E podia continuar a passar as noites que quisesse na cabana de K’os. Talvez mesmo nessa noite...

Voltou a examinar a ponta de seta que tinha na mão. Homem Noturno transformara uma haste de caribu numa seta tão comprida e quase tão larga como o seu dedo mindinho. Afiara-a numa ponta e afunilara-a na outra para a amarrar ao cabo. Fizera duas ranhuras verticais no meio da haste, começando pela ponta, uma de cada lado da seta, e depois enfiara uma fina lâmina de pedra em cada ranhura.

A ponta da seta era leve e forte e mais fácil de fazer do que as de sílex ou de obsidiana.

Tikaani observava enquanto Três Peles atirava várias setas no alvo. O homem tinha pontaria, as novas pontas de seta enterravam-se com facilidade na pele de caribu. Tikaani suspirou. Três Peles era um bom caçador, mas devia ser Homem Noturno ali com ele, experimentando as novas pontas. Homem Noturno era o tipo de caçador de que qualquer aldeia precisava. Forte e leal, com uma boa mente. Merecia melhor do que aquilo que tinha, uma morte em vida e uma mulher dos Caçadores Marinhos.

Há pouco mais de um ano, eles possuíam tanta coisa. O pai, Topa-Nuvens, era vivo e são, respeitado pela aldeia. A irmã, Estrela, tinha dois jovens que a queriam como esposa. A mãe era uma mulher alegre. Os irmãos, Caribu e Silencioso, eram ambos caçadores promissores. Agora só ele ficara inteiro e como antes.

Não, não como antes.

Um dia, encontraria Chakliux. Teria o prazer de matá-lo. Chakliux morreria na desonra, e ele, Estrela e K’os dançariam sobre os seus ossos.

 

MAR DO NORTE

Chakliux acordou com a água salgada queimando-lhe o nariz. Inalou antes de poder evitá-lo, engasgou-se e entrou em pânico. Quando percebeu que estava de cabeça para baixo, começou a rasgar a saia que o prendia ao iqyax e depois conseguiu ter a presença de espírito suficiente para puxar o fio que soltava o remo. Ainda estava engasgado, com os pulmões precisando de ar, mas agitou o remo para baixo e para trás, virando o corpo para ganhar impulso. O iqyax estremeceu mas continuou virado ao contrário.

Chakliux voltou a debater-se na saia, mas depois perguntou a si próprio quanto tempo conseguiria sobreviver sem o seu iqyax nas águas frias do mar do Norte, mesmo que conseguisse libertar-se e nadar. Era preferível morrer agora, era melhor engolir a próxima golfada de água.

Sentiu um peso no peito e a escuridão começou a escurecer-lhe a visão. Depois viu Aqamdax, não os seus ossos, mas o seu rosto. Ela abriu a boca para falar e a sua voz chegou até ele tão nitidamente como se ela estivesse ali, na água, no frio.

Olha, vejo alguma coisa.

Ela levantou a mão e ele viu o tendão enrolado no pulso dela, uma cabeça de lontra feita de nós.

Como uma lontra, Chakliux virou o corpo, atirou-se para trás e depois para a frente, com o seu remo. Sentiu o iqyax virando-se, erguendo-se debaixo dele, reagindo aos seus movimentos, afastando-o do mar. Respirou fundo, aspirando um tanto de ar e outro de água que lhe escorria da cabeça e do rosto. Provocou o vômito e engasgou-se. Vomitou água. Engasgou-se outra vez. Inalou. Encheu os pulmões de ar. Estava vivo.

 

ALDEIA DE RIO PRIMO

K’os chamou-o e o rapaz foi falar com ela. Era novo, com oito Verões, talvez nove. Era um rapaz bonito e forte, o único filho de Come-Fogo o único filho numa cabana de meninas. Ela agitou o amuleto diante dele.

É uma coisa que eu fiz para ti disse ela.

Ele semicerrou os olhos. Era esperto, aquele rapaz, e fora por isso que ela o escolhera. Era uma promessa para toda a aldeia. Um rapaz como ele poderia vir a ser o chefe dos caçadores. Já participara de uma caçada ao urso, uma honra rara para uma pessoa tão nova. A sua primeira presa não fora um pássaro de pernas amarelas, como fora para tantos rapazes. Ele e a irmã tinham sido perseguidos por um lince, e o rapaz matara-o, conquistando um novo nome.

Mata-Linces disse ela com uma voz aduladora, a mesma com que se dirigia aos homens. Mata-Linces, eu tive uma visão. Tu serás o próximo chefe dos caçadores, depois do teu primo Tikaani. Os espíritos disseram-me que fizesse este amuleto para ti.

Ele inclinou a cabeça e estendeu o braço para a bolsa de pele de caribu que balançava nos dedos de K’os.

Ela puxou-a antes que ele lhe tocasse, sorriu e soltou uma gargalhada que lhe iluminou as palavras.

Isto tem que ser conquistado afirmou ela.

Como?

Mata-Linces tinha uma voz dura, desrespeitadora, e K’os ficou irritada. Era uma pena que o rapaz não vivesse o suficiente para ficar sabendo quais eram os seus verdadeiros poderes, embora talvez ele começasse a compreender na hora da morte. Quando o espírito se separasse do corpo, com certeza ele saberia quem o matara. K’os fez um sorriso terno, como se fosse uma mãe sorrindo a um filho.

Conheces o grupo de abetos-negros a que os caçadores chamam Sete Irmãs?

K’os viu que o rapaz ficara admirado.

Não entendes como é que eu sei uma coisa dessas, uma coisa que só os homens sabem, disse ela. Eu sou a curandeira desta aldeia. Há certas coisas que uma curandeira tem que saber para ter o poder de que necessita para fazer remédios. Não te preocupes. Isto não é um tabu para mim. Eu sou diferente. Pergunta ao teu primo Tikaani. Ele te dirá.

O rapaz concordou, devagar, mas não tirou os olhos do rosto dela.

Eu conheço as Sete Irmãs, disse ele.

Vai lá. Não deves dizer a ninguém onde vais nem porquê. Vai lá, se és corajoso. Depois senta-te e fecha os olhos. Espera, e os espíritos te dirão o que tens a fazer. Leva água contigo, mas não comida. Leva a tua faca e as tuas lanças. Quando saíres da aldeia, se vires alguém e te perguntarem onde vais, limita-te a erguer as lanças e a dizer: ”Vou caçar.”

O meu pai não me deixa ir lá sozinho.

Tu não estás sozinho. Ninguém está sozinho quando vai numa busca como esta. Aliás, o teu pai já sabe que tu vais. Já te deu a sua bênção. Agora parte, sem demora. Pega as tuas armas e parte.

K’os viu o rapaz atravessar a aldeia correndo na direção da cabana da mãe. A mulher estava junto das lareiras da comida. K’os vira-a lá há pouco, e ele não teria problemas com o pai. K’os voltou para a aldeia e passou pela mãe de Mata-Linces. A cabeça escura da mulher inclinava-se para a que estava a seu lado. Ambas taparam a boca com a mão e cochicharam quando K’os retirou uma tigela de carne de uma das panelas.

Assim que K’os chegou à sua cabana, tirou o capuz da parka antes de se abaixar para entrar no túnel; depois levantou-se e sorriu a Come-Fogo. O homem estava deitado, nu, na sua cama. Ela largou a tigela de carne que trouxera das lareiras, riu e disse:

Talvez queiras comer mais tarde.

K’os despiu a parka e as perneiras, descalçou as botas, ajoelhou-se por cima dele, levou-lhe as mãos aos seios e depois largou-se nele.

Vi o teu filho. Disse-me que ia caçar afirmou ela. Uma sombra pairou no olhar de Come-Fogo, mas ela levantou-se e estendeu-se sobre ele.

Eu disse-lhe que não se afastasse, disse ela.

 

Ghaden dispôs os seixos entre as duas linhas que escavara na neve. Mata-Linces passou por ele correndo.

Mata-Linces! chamou Ghaden, mas o rapaz não parou, nem sequer olhou para ele.

O desapontamento de Ghaden deixou-o à beira das lágrimas. Mata-Linces era o único rapaz da aldeia que lhe falava quase sempre, apesar de ter quase idade para ser caçador. Ghaden baixou a cabeça sobre os seus seixos. Esfregou os olhos com os punhos. O que pensaria Mata-Linces se visse Ghaden chorando por uma coisa tão insignificante? Conteve as lágrimas e engoliu-as. Eram como sal na sua boca; faziam-lhe arder a garganta.

Voltou à sua brincadeira. Cada seixo era um caribu. Iam atravessando um rio e em breve cairiam na armadilha dos caçadores. Ele não sabia bem como é que os caçadores apanhavam os caribus, mas os rapazes de Rio Primo estavam sempre falando na caça ao caribu. Aqamdax dizia que, se Homem Noturno ganhasse mais forças, eles próprios iriam caçar caribus, mas Ghaden não acreditava que Homem Noturno estivesse ganhando forças.

Ghaden!

Ghaden olhou para cima. Era Mata-Linces. O rapaz tinha várias lanças na mão esquerda e uma faca de caça embainhada na perna direita, dardos para pássaros e um atirador de dardos na mão direita.

Vou caçar. Foi por isso que não pude ficar brincando. Desculpa.

As suas palavras foram rápidas, pronunciadas como se ele estivesse sem fôlego. Ghaden ajoelhou-se e viu o rapaz atravessar a aldeia correndo até desaparecer no meio das cabanas.

Era um bom lugar aquela aldeia de Rio Primo, pensou Ghaden. Sobretudo desde que Aqamdax fora viver com eles. O velho dos ossos não podia apanhá-los ali. Nem sequer sabia onde eles estavam.

Ghaden olhou para o seu jogo e ficou sem fôlego. Um dardo para pássaros estava no meio dos seixos. Mata-Linces devia tê-lo deixado cair. Se Ghaden se apressasse, talvez ainda o alcançasse antes de ele sair da aldeia.

Levantou-se de um salto e olhou para a cabana. Tinha que avisar Yaa, mas ela estava nas lareiras da comida, assim como Estrela. A velha avó, Olhos Grandes, estava lá dentro com Aqamdax e Homem Noturno, mas ele não queria incomodar o homem. Iria correndo e voltaria à cabana antes de eles darem pela sua falta. Ghaden soltou Mordedor, e o cão foi atrás dele.

 

MAR DO NORTE

Apesar de o chigdax o ter protegido da água, Chakliux tinha frio, as mãos enregeladas e os dedos dormentes. Desamarrou um saco de peixe seco que trazia no convés do iqyax e comeu. A comida fortaleceu-o e ele olhou de novo para além do gelo, primeiro para leste e depois para sul. Piscou duas vezes antes de se permitir acreditar no que via. Apesar de o gelo ainda lhe bloquear o caminho, a costa estava perto. Se tivesse paciência, encontraria uma passagem aberta que lhe permitiria puxar o seu iqyax para a praia.

O Inverno dera novas formas às enseadas e às praias, mas Chakliux julgou reconhecer as colinas que ficavam a sul da aldeia dos Caçadores de Morsas. Não demoraria a regressar à aldeia de Rio Próximo.

 

ALDEIA DE RIO PRIMO

Mordedor! Seu cão sapeca!

Ghaden atravessara a aldeia correndo, com Mordedor atrás, mas ao passarem pela última cabana, ignorando a risada das filhas de Mergulhão, uma lebre atravessara-se no caminho. Mordedor saltou sobre ela, desaparecendo no meio da vegetação, antes de Ghaden poder reagir.

O rapaz, que seguia o cão a uma pequena distância, chamou-o, mas Mordedor não se virou. Por fim, Ghaden voltou ao caminho, para diversão das filhas de Mergulhão. Mostrou-lhes o dardo de caça de Mata-Linces e perguntou se elas o tinham visto. A mais nova disse que ele fora para norte da aldeia e desaparecera na floresta de abetos precisamente antes de Ghaden e Mordedor chegarem. A menina continuava rindo.

Ghaden desceu o caminho correndo, na direção dos abetos sombrios. Ele e Aqamdax tinham atravessado uma série de florestas quando vinham da aldeia de Rio Próximo, mas que eram essencialmente de salgueiros e de bétulas sem folhas, a vegetação rasteira que crescia à beira do rio.

Ali era diferente. As árvores eram tão grandes que não deixavam passar a luz. O solo estava esponjoso com a neve derretendo-se, e ele sentia o estalar das agulhas dos abetos debaixo dos pés. Até onde devia ir? Olhava constantemente para trás. Por fim, o caminho resumia-se a uma pequena claridade na escuridão das árvores.

Pôs-se à escuta, na esperança de ouvir Mata-Linces andando, mas o único som que ouviu foi o do vento balançando os ramos dos abetos, as vozes das árvores falando baixinho, como velhas costurando em volta de uma lareira de inverno.

Era melhor voltar. Nunca encontraria Mata-Linces e, além disso, Mordedor podia apanhar aquela lebre e levá-la para a cabana. Gostaria de lá estar quando o cão fizesse uma coisa dessas. Afinal, Mordedor era o seu cão e, quando ele levava carne, Estrela mostrava-se sempre um pouco mais simpática, não tão pronta a fazer as coisas mesquinhas que estragavam os dias de Ghaden, dar beliscões, rasteiras, dizer palavras desagradáveis sobre coisas que Ghaden não entendia e, o pior de tudo, dar-lhe pancadas rápidas e fortes com um pau de salgueiro no rosto e nas mãos, uma coisa que ela também fazia a Yaa, apesar de Yaa ser mais capaz de conter as lágrimas do que ele.

Essas coisas não aconteciam quando Aqamdax se encontrava na cabana, mas ela não podia estar lá sempre e, evidentemente, havia aqueles períodos que ela tinha que passar na cabana das mulheres, cinco longos dias de maus tratos de Estrela e de várias mulheres que iam ajudar a tratar de Homem Noturno. Às vezes, até aparecia K’os, aquela mulher alta e estranha. Quando Ghaden a via, tentava sempre esconder-se.

Ele sabia que ela era boa, apesar de não ter aspecto de boa pessoa. Trazia remédios para Homem Noturno. Também tinha remédios para Estrela. Depois de Estrela tomar os remédios de K’os, ficava calada e sorria muito, embora se esquecesse de dar comida a Ghaden quando estava assim, e depois dormia durante muito tempo.

Ghaden deu meia volta e começou a descer o caminho, andou um pouco e parou. Se as filhas de Mergulhão ainda estivessem lá, perceberiam que ele não fora muito longe. Talvez fosse melhor ele sentar-se e ficar esperando. Talvez Mata-Linces voltasse por ali ou Mordedor descobrisse Ghaden pelo faro se ele estivesse quieto e deixasse que o seu cheiro ficasse no mesmo local durante algum tempo.

Ghaden agachou-se. Imaginou como seria ser crescido para ir caçar como Mata-Linces, ter as suas próprias lanças e dardos para pássaros e uma faca de caça. Começava a doer-lhe a perna direita. Ele e Mordedor tinham lutado na véspera e Mordedor saltara por cima dele, fazendo-lhe duas nódoas negras na coxa. Ghaden levantou-se, esticou a perna e depois viu uma árvore com um ramo largo e baixo. Subiu para o ramo e encostou-se ao tronco. Fechou os olhos. Ainda estava muito frio para aparecerem mosquitos e moscas, e o solo ainda não estava ensopado com a água do degelo. Era uma boa época do ano.

Na lua anterior, tinham passado uma certa fome, mas ninguém estava morrendo, e talvez Mordedor apanhasse aquela lebre. Se assim fosse, teriam carne fresca no guisado... E na Primavera iriam à caça do caribu. Seria bom. Depois, comeriam até ficarem com a barriga quase rebentando. Fora o que Mata-Linces lhe dissera. Comeriam, comeriam, e não teriam fome durante muito, muito tempo...

 

O estalar de um ramo acordou-o. Ghaden esfregou os olhos e abanou a cabeça. Onde estava? Por instantes, teve medo, mas depois lembrou-se de que seguira Mata-Linces até a floresta. Tinha o dardo para pássaros em cima do estômago. Pegou-o e olhou para o ponto de luz que assinalava o caminho para a aldeia. Estava escurecendo. Yaa devia estar preocupada. Desceu da árvore, abriu caminho entre os ramos mais baixos e depois ouviu outro estalo.

Ouviu o som outra vez e depois um grito rápido e abafado. Seria Mata-Linces? Olhou para o dardo que tinha na mão. Era a única arma que possuía. Que disparate ter ido para a floresta só com um dardo para pássaros. E se algum animal os perseguisse? De que servia um dardo para pássaros? Voltou a enfiar-se nos ramos do abeto, na esperança de que o cheiro intenso da árvore disfarçasse o seu.

Ouviu passos e susteve a respiração. Esforçou-se por ver através dos ramos, mas estes eram tão grossos que Ghaden distinguiu apenas uma mancha de pêlo escuro. Depois percebeu que não era um animal, mas uma pessoa. Mata-Linces... Não... Uma mulher.

A parka tinha riscas brancas nos ombros e caudas fulvas de raposa penduradas nas costas. Era K’os, a curandeira. Levava um cesto enfiado no braço. Ghaden suspirou de alívio e saiu do seu refúgio na árvore. Abriu a boca para a chamar mas, com a pressa, deixou cair o dardo de Mata-Linces. Era difícil ver na escuridão, debaixo dos ramos do abeto. Apalpou o chão às pressas, mas levou muito tempo para encontrar o dardo. Conseguiu sair do meio dos ramos e viu que K’os ia saindo da floresta.

Pelo menos, tinha o dardo. Além disso, não precisava que uma velha o levasse para a aldeia. Já tinha quase idade para ser caçador.

 

Os gritos fúnebres atravessaram o céu escuro e silencioso. Estrela foi a primeira a sair da sua cabana; Yaa e Aqamdax vinham atrás dela. Até Olhos Grandes foi para fora e levantou a voz. Ghaden esfregou os olhos sonolentos e olhou para Homem Noturno. Ele devia ter morrido. Ghaden sentiu-se triste por Aqamdax e assustado com as mulheres que correriam à cabana deles. O empurrariam para um canto, xingariam Mordedor e contariam desagradáveis histórias de mortos.

Mordedor tocou em Ghaden com o nariz, tentando tirá-lo do meio dos cobertores. Na véspera, o cão voltara antes de Ghaden, com uma lebre na boca. Devia ter andado de cabana em cabana, à procura de Ghaden. O rapaz não ouvira os elogios que as mulheres da aldeia tinham tecido ao cão, mas pelo menos conseguira saborear a carne fresca no guisado e o belo caldo que tornara o peixe do ano anterior quase saboroso. Mas agora Homem Noturno...

Ghaden olhou para a cama de Homem Noturno e pestanejou para que o espírito do homem não o visse. Depois, Homem Noturno gemeu, mexeu-se e voltou a gemer. Ghaden saltou da cama. Só com a tanga em cima do corpo, correu lá para fora e pegou na mão de Yaa.

Ele está vivo, Yaa. Entra. Ele não morreu. Eu o vi mexer-se.

Quem? perguntou Yaa, olhando para ele e fazendo uma careta.

Homem Noturno.

Homem Noturno não morreu.

Eu sei. Eu vi-o mexer-se. Ele... Não morreu?

Não.

Quem é que morreu?

Ghaden viu as lágrimas nos olhos de Yaa. De repente, assustou-se.

Quem é que morreu, Yaa?

Ela inclinou-se e segredou o nome ao ouvido de Ghaden para o espírito do morto não ouvir nem pensar que eles falavam por desrespeito.

Mata-Linces murmurou ela.

Ghaden sorriu. Era uma brincadeira. Ela estava enganando-o. Às vezes, Yaa brincava com ele, dizia-lhes coisas que não eram verdade. Às vezes, ela fazia isso.

Não, disse Ghaden.

Ela fez um sinal afirmativo e ele viu-lhe os olhos marejados de lágrimas.

Não, insistiu Ghaden outra vez. Eu tenho o dardo para pássaros dele. Tenho que lhe entregar.

Aqamdax abraçou-o.

Tenho muita pena, irmãozinho disse ela em voz baixa.

Então Ghaden percebeu que era verdade.

Ontem ele foi caçar. Eu o vi informou Ghaden. O vi ir. Ele deixou cair um dardo para pássaros. Eu fui atrás dele, para lho dar, mas não consegui encontrá-lo.

Ghaden sentiu um calafrio na espinha. Ele fora atrás de Mata-Linces. O rapaz fora apanhado por algum animal?

Foi um urso? perguntou Ghaden. Aqamdax encostou-se mais a ele.

Dizem que foi uma lança, uma lança de Rio Próximo. Então o medo surgiu outra vez e engoliu Ghaden como um lobo engolia carne. Eles eram de Rio Próximo, ele e Yaa. Julgariam os velhos que tinham sido eles?

Quem é que o encontrou? perguntou Estrela a um dos homens que ia passando pela cabana.

K’os, respondeu o caçador, apertando o passo na direção da cabana dos caçadores. Ela foi colher plantas esta manhã, gritou ele por cima do ombro. Ela encontrou-o na floresta de abetos, perto da aldeia. A lança estava espetada no coração.

K’os, pensou Ghaden. Ela fora apanhar plantas na véspera... N floresta de abetos. Fora uma sorte o povo de Rio Próximo não apanhá-la também.

Nessa noite, Tikaani foi se encontrar com K’os. Ela não o recebeu na sua cama. Porquê receber um homem que a ignorara durante quase todo o Inverno? Porquê fingir que não estava zangada?

Tikaani entrou na cabana dela. K’os já não se lembrava como ele era grande e forte e, de repente, embora só por um momento, sentiu que os anos lhe dobravam a espinha, sentiu o seu peso nos ombros. Mas levantou a cabeça, endireitou-se e sentiu que o seu próprio poder se dirigia a ele e o moldava, transformando-o no jovem que ela recordava, impetuoso e às vezes imprudente.

Lamento o que aconteceu ao teu priminho, disse K’os.

Ele semicerrou os olhos, como se tentasse ver além das palavras dela. K’os virou-lhe as costas e sentou-se, pegou uma parka que estava a costurando e levantou-a para ele ver as finas riscas de pêlo de caribu que formavam um desenho multicor nos ombros, nos punhos e no topo do capuz. No passado, não havia muito tempo, ela teria feito uma parka para ele. Aquela era para Espreita-o-Céu, um homem mais novo do que Tikaani, mas que prometia ser um grande caçador e um guerreiro hábil. Ela viu Tikaani olhando para a parka e percebeu que ele reparara nos símbolos sagrados que ela bordara: a asa escura e pontiaguda que era o corvo, os círculos que eram o Sol e as linhas que representavam os animais apanhados. Qual o homem que não gostaria de ter uma coisa daquelas, de ter o poder que ela dava a quem a vestia?

Esta é para Espreita-o-Céu disse ela, disfarçando um sorriso ao ver o ar carrancudo de Tikaani.

Tikaani agachou-se do outro lado da lareira, na frente dela.

Eles vão lutar, afirmou ele em voz alta e num tom ríspido. Eles concluíram que os arcos são vantajosos.

Ela tentou manter-se impassível, não dar sinais de alegria, mas não conseguiu. Sorriu.

Quando? perguntou ela.

Agora, antes do degelo do rio, antes de partirem para a caça ao caribu. Antes das nossas caçadas.

Têm algum plano? perguntou K’os.

Era muito freqüente os homens daquela aldeia fazerem coisas sem pensar, sem decidirem como deviam agir. Muitas vezes, cada um seguia as suas próprias idéias, julgando que todos os outros pensavam como ele. Muitas vezes, eles guardavam as palavras para si próprios até ser tarde demais para fazer qualquer coisa, exceto para sobreviver. Ela dissera-o muitas vezes a Tikaani ao longo dos anos. Desde que ele era pouco mais do que uma criança que ela lhe dissera que as caçadas e as lutas corriam melhor quando se faziam planos, quando as idéias eram partilhadas com sabedoria e sem lutas pelo poder ou pela honra.

Nós temos um plano. Tu ensinaste-me bem, disse ele.

Desta vez, ela não tentou esconder o sorriso, mas levantou a parka que tinha no colo.

Podia ser para ti. Posso fazer outra para Espreita-o-Céu.

A mulher levantou a saia de pele de caribu que trazia vestida e abriu as pernas. Ele abanou a cabeça.

O único presente que eu quero é para o meu irmão declarou ele, olhando-a fixamente. Ela sentiu a fúria, o ódio dele. A minha esperança é que, um dia, o meu irmão recupere as forças.

Tikaani saiu da cabana. K’os cerrou os dentes. Sim, ela ensinara-o bem. Muito bem. Como podia ela controlá-lo se não conseguisse atraí-lo de novo para a sua cama?

Ficou sentada durante muito tempo, quase até o fogo da lareira se apagar e o frio da noite se infiltrar na sua cabana. De repente, atirou a cabeça para trás e deu uma gargalhada, espevitou o lume e pegou na sua bolsa dos remédios. Tikaani julgava que era um homem mas ainda era uma criança. Um menino com um brinquedo novo. Que disparate ela não ter percebido isso!

 

ALDEIA DE RIO PRÓXIMO

As crianças mais pequenas chegaram primeiro, aos gritos, assustadas. Estava aproximando-se algo terrível, diziam elas, chorando pelas mães. Era um gigante, enorme, com uma cabeça tão grande que chocava com as árvores quando se virava, diziam elas. Apontaram para a floresta, para o caminho que acompanhava o rio.

Sok ignorou-as e esperou pelos rapazes mais velhos, entre os quais vinha o filho, Leva-Muito.

Também eles vinham ofegantes, mas disseram aos homens que era um caçador com alguma coisa na cabeça.

Um iqyax. Como o do meu tio, disse Leva-Muito.

Talvez fosse um comerciante, pensou Sok, mas era mais provável que fosse Chakliux, que regressava finalmente, depois de ter ido procurar aquela inútil da Aqamdax. Regressava sozinho, evidentemente.

Chakliux era imprudente ao levar o iqyax para a aldeia. Quem sabia como poderiam reagir os velhos? Diriam que ele quebrava os tabus do Povo Rio? E se os rapazes novos não se mostrassem respeitadores? E se as mulheres julgassem que podiam tocar no iqyax, usá-lo como usavam as suas jangadas? Era melhor preparar primeiro as pessoas com histórias e depois, no fim do Verão, mostrar-lhes o iqyax, ensinar os homens a construí-los e lembrar às mulheres e às crianças que aqueles barcos tinham de ser tratados com respeito.

Sok viu o homem a sair da floresta, reparou que ele coxeava e percebeu que se tratava do irmão. Correu ao encontro dele e tirou-lhe o iqyax dos ombros. O revestimento do iqyax estava muito gasto e Sok percebeu que Chakliux passara longos dias no mar do Norte. Reparou nas botas do irmão, agora esfarrapadas e com manchas escuras de sangue, e concluiu que o irmão fizera uma longa caminhada. Sok levou o iqyax para um dos estrados de seca que tinham sobrevivido ao Inverno, virou-o de barriga para baixo e recomendou às mulheres e às crianças que não tocassem nele. Depois, ficou ali para afastar as mãos dos mais pequenos. Chakliux aproximou-se dele, desapertou o fardo e o pôs no chão. Sok, ao ver o olhar do irmão, não perguntou por Aqamdax.

Reuniram-se na cabana de Folha Vermelha. Até Neve-no-Cabelo viera, com o filho de Sok na barriga. Chakliux quis perguntar para quando esperavam o nascimento da criança, mas não era uma coisa que um caçador perguntasse a outro. Se Aqamdax ali estivesse, ele perguntava-lhe, mas não queria fazer a pergunta a Folha Vermelha. Embora ela sorrisse e se mostrasse cordial com Chakliux, e meiga com os filhos de Sok, ficava rígida e fazia uma careta quando tinha que falar com Neve-no-Cabelo.

A mulher dos Caçadores Marinhos não voltou a esta aldeia, disse Sok. Todos sabem que ela morreu. Chakliux não conseguiu encontrar palavras para responder ao irmão. Talvez Sok tivesse razão e, se ela não tivesse morrido, era porque partira de livre vontade e não levada pelos Caçadores de Morsas sedentos de vingança ou por algum caçador dos Primeiros Homens que a queria como esposa. Deveria deixá-la ir, pensou ele. Há outras mulheres. Julgavas que nunca encontrarias nenhuma que se comparasse a Gguzaakk, e no entanto Aqamdax conquistou um lugar no teu coração. Chakliux pensara o mesmo a cada passo quando atravessara o rio gelado que o levava à aldeia do irmão. Fora buscar recordações dela e deixara-as espalhadas atrás de si, nos ramos das árvores e nas ervas espalmadas pelo Inverno. Nessa noite, deitado na cabana de Folha Vermelha, nas peles macias e nas esteiras limpas, Chakliux não pensou em Aqamdax, não levou a imagem dela para os seus sonhos,

mas, quando o sono estava prestes a engoli-lo, ouviu a voz de Folha Vermelha, que estava deitada com Sok.

Então, talvez a filha pequena de Boca Feliz tenha falado a verdade antes de desaparecer. Talvez dois velhos de Rio Primo tenham levado Aqamdax e o rapaz.

Na manhã seguinte, depois de comer, Chakliux foi à cabana de Ligige’. Ela mandou-o entrar e recebeu-o como se ele fosse uma criança.

Ficas aí, com a boca vazia de boas palavras, quando viajaste tanto? Ficas aí sem uma saudação para uma velha cujas preces te acompanharam?

Ele sentou-se numa almofada de pele que ela lhe arranjou, e esperou em silêncio que ela enchesse as tigelas e lhe oferecesse água e caldo de peixe. Ele aceitou o caldo, bebeu-o e disse:

Tia, senti a falta da tua sabedoria.

Era uma frase amável que ele aprendera quando vivia com os Primeiros Homens.

Ela esboçou um sorriso. Ele viu-lhe o rosto a tremer e percebeu que ela ficara satisfeita.

Então voltaste para nós com óleo na língua disse ela. As tuas palavras brilham como os cabelos de uma mulher nova.

Ele riu e ela o seguiu. Em seguida, perguntou:

Foste aos Primeiros Homens? Encontraste a mulher dos Caçadores Marinhos?

Chakliux abanou a cabeça.

Não a encontrei mas, sim, fui falar com o povo dela. Foi um bom Inverno. Aprendi muito. Eles são sábios. Sobretudo as mulheres.

E dirás aos nossos caçadores que os homens é que eram sábios?

Talvez, e não seria mentira, nem eu te menti, respondeu ele.

Então porque vieste à minha cabana? Com certeza Folha Vermelha tinha comida melhor e um fogo mais quente.

Tenho uma pergunta a fazer acerca da filha de Boca Feliz disse Chakliux.

Ninguém a encontrou informou Ligige’.

Eles acham que ela morreu?

Lobo-e-Corvo acha, e os velhos.

E tu?

Ligige’ levantou a sobrancelha e depois bebeu um bom gole da tigela de caldo que tinha nas mãos. Largou-a e perguntou:

Ouviste a história da menina a respeito dos dois velhos?

Sim. Achas que ela disse a verdade?

Acho que ela disse o que julgava ser a verdade. Tu falaste com ela antes de partires, no Outono passado. O que te disse ela sobre os que a tinham atacado?

Que eram velhos e que um deles usava um colar de dentes de leão-marinho.

Não te disse nada da aldeia de Rio Primo?

Nada.

Boca Feliz diz que ela garantiu que eles eram da aldeia de Rio Primo.

Ela tinha um motivo para pensar tal coisa? Ligige’ apontou para os pés.

As botas deles.

Bebeu outro gole da tigela e, quando acabou, Chakliux perguntou-lhe:

Alguém foi à procura dela?

Alguns caçadores. Encontraram pegadas de lobo, restos de ossos, e concluíram que ela tinha morrido.

Acredito que aqueles de quem a menina falou fossem Morsas, disse Chakliux, encostando uma mão ao peito. Por causa do colar. Como não os encontrei na aldeia dos Caçadores de Morsas, segui viagem no meu iqyax e fui ao encontro dos Caçadores Marinhos, na esperança de que o povo da mulher a tivesse levado. Quando cheguei aqui, Folha Vermelha disse que a menina fora embora, que desaparecera, como a mulher dos Caçadores Marinhos e o irmão.

Então agora o que vais fazer?

Vou à minha aldeia. Se os encontrar, trago-os para cá.

Arriscas-te a encontrar-te com aqueles caçadores que tentaram matar-te?

Eu irei sem fazer barulho. Verei sem ser visto. Ligige’ passou uma mão pelo rosto, como se afastasse a fumaça, e disse:

Há mais uma coisa da qual quero te falar, que preciso de te mostrar.

A velha entrou no túnel e trouxe um cesto de pele de peixe. Meteu a mão lá dentro, tirou uma bola de gordura e deixou-a cair na mão de Chakliux.

 

ALDEIA DE RIO PRIMO

Era o segundo dia de lua nova. Aqamdax foi lá fora, olhou o céu e gozou o sol revigorante. Pôs uma mão na barriga e sentiu o calor do corpo através do pelo da parka.

Da cabana dos caçadores vinha o som dos tambores e dos cânticos. Aqamdax ouvira as mulheres cochichando nas lareiras. A lança encontrada no peito de Mata-Linces tinha as marcas do povo de Rio Próximo uma risca negra encimada por um círculo branco e agora que tinham acabado os dias de luto, haveria vingança. Alguém iria morrer pelo rapaz que fora assassinado.

Ela não podia deixar de pensar em quem poderia ser. Talvez fosse um rapaz que tivesse se juntado ao círculo de histórias na sua cabana de Rio Próximo. Um jovem que nunca fosse caçador, que nunca conhecesse a alegria de dormir com a mulher nem de ver os filhos crescer e ganhar forças. Mas quem era ela para protestar? Algum caçador estúpido, talvez um jovem que ainda não fosse suficientemente sábio para ver além do momento que estava vivendo e que tirara a vida a um rapaz de Rio Primo, de um jovem promissor. Que outra coisa poderiam fazer os caçadores senão pagar na mesma moeda?

Voltou para a cabana. Homem Noturno mexia-se e remexia-se na cama. Nessa manhã, no meio da vozearia dos cânticos, K’os levara-lhe um novo remédio e até fora chamar Tikaani, o irmão de Homem Noturno, à cabana dos caçadores para ele ver o resultado. Aqamdax agachara-se em silêncio ao canto, junto da mãe do marido, pegara as mãos frias e imóveis da velha e esperara que K’os saísse da cabana.

Pensara que Tikaani iria atrás de K’os, como fazia a maioria dos homens da aldeia, mas ele não fora. Ficara à espera com Aqamdax, vira-a esticar a cama do marido, dar-lhe papas de aveia a comer, penteá-lo e esfregar-lhe o rosto. Depois, Tikaani também saíra e Aqamdax conseguira convencer Olhos Grandes a levantar-se. Apoiara-a quando ela se dirigia, com passos pequenos e arrastados, para a latrina das mulheres a fim de fazer as suas necessidades, e depois trouxera-a de novo para a cabana. Deu-lhe comida e, apesar de ter que lembrar à velha que comesse de vez em quando, Olhos Grandes engoliu tudo e levantou a tigela, pedindo mais uma porção.

Durante todo esse tempo, Aqamdax separara os pensamentos das esperanças, mas agora permitia-se refletir no peso que trazia no ventre, e sabia que estava gerando o filho de Homem Noturno.

Agachou-se ao lado do marido e chamou-o em voz baixa. Ele abriu os olhos, mas estes estavam turvos, como se ele não visse nada, como se o seu corpo vivesse sem o espírito. Ela ajeitou-lhe o espaldar até lhe parecer que o marido estava confortável e depois pôs-lhe as mãos nas virilhas para apalpar a almofada de musgo que lhe aparava a urina. Estava seca. Aqamdax levantou-se, tirou um estômago de caribu cheio de água de um dos postes da cabana, ajoelhou-se ao lado dele e deu-lhe bebida. Por fim, ele virou a cabeça para o outro lado. Aqamdax pôs de novo a tampa de marfim no gargalo do recipiente, voltou a pendurá-lo e sentou-se outra vez ao lado do marido.

Em geral, ficava junto dele, a costurando ou tecendo, suficientemente perto para encostar a perna à sua coxa. Falava muitas vezes com ele, apesar dos olhares gozadores de Estrela, mas naquele momento estava apenas observando-o, esperando algum sinal de que ele soubesse que ela estava ali. Fechou-lhe a mão e julgou senti-lo apertando os dedos. Inclinou-se e disse-lhe ao ouvido:

Marido, meu marido, trago o teu filho no meu ventre. Pegou-lhe a mão esquerda com as suas e pousou-a na barriga. Um filho.

Ela vira o mais pequeno lampejo de compreensão nos olhos dele? Talvez o filho, à medida que se tornava maior e mais forte, tivesse o poder de obrigar o espírito do pai a voltar e de o devolver ao corpo de Homem Noturno.

 

ALDEIA DE RIO PRÓXIMO

Já viste uma coisa destas? perguntou Ligige’, voltando a pôr a bola de gordura no cesto.

Por instantes, Chakliux não disse nada. Havia algo no fundo das suas recordações. Uma história que ele ouvira contar...

O povo de Tundra do Norte usa-as para matar lobos, respondeu ele por fim.

Elas são venenosas, disse então Ligige’, mas algo nas suas palavras deu a entender a Chakliux que ela sabia que não eram.

Chakliux desembainhou a faca que trazia no punho e abriu a bola com um corte, estendendo a mão por precaução quando Ligige’ se aproximou demais.

Protege os olhos disse ele, virando a cara para o lado.

Ele não precisava se preocupar. O rolo de marfim afiado endireitou-se lentamente na sua mão.

Isto fura o estômago do lobo depois de a gordura se derreter com o calor do corpo do animal. Em geral, eles morrem, apesar de um caçador de Tundra do Norte ter me contado que encontrou um lobo com uma na barriga, que ficou enrolada.

Como é que isso pôde acontecer? Chakliux encolheu os ombros.

Não sei, mas ele trazia-a como se fosse um objeto sagrado na sua bolsa de amuletos, e os outros caçadores diziam que ele tinha sempre boa sorte na caça aos lobos.

Ligige’ rosnou:

O povo de Tundra do Norte diz-te sempre alguma coisa. Eles não são bem humanos, como sabes.

Ligige’, eles são muito parecidos conosco afirmou Chakliux em voz baixa.

Ela franziu a sobrancelha e Chakliux perguntou:

Onde encontraste isto?

No estômago de um cão.

Os de Rio Próximo usam isto para matar lobos? perguntou Chakliux, dando-lhe a tira de marfim.

Não.

Ligige’, há quanto tempo começaram a morrer cães nesta aldeia? Cães saudáveis, não cachorros nem cães velhos.

Desde que tu chegaste respondeu ela.

Nenhum morreu antes de eu chegar?

Talvez alguns cães velhos. E sempre alguns filhotes. Nada em que as pessoas reparassem.

E no Inverno passado, quantos morreram?

Quatro mãos-cheias, talvez mais. Cães adultos. Nem velhos nem doentes.

E filhotes?

Sim, alguns. Quase todos pertenciam aos velhos.

Eram doentes ou deformados?

Dois nasceram sem o maxilar inferior. Isso foi antes. Com a cadela escura de Faz-Tendas. Alguns dos filhotes dela são assim.

E os outros? Eram doentes?

Não sei. Devias falar com Treina-Cães. Ele sabe essas coisas.

Chakliux suspirou. Tinha que partir, de iniciar a sua viagem à aldeia de Rio Primo, mas aquilo também era importante. Se Aqamdax e Ghaden tivessem sido levados para a aldeia de Rio Primo, tinham passado lá o Inverno. Que importância tinha mais um dia?

Vou falar com Treina-Cães afirmou Chakliux. Quantas dessas bolas estavam no estômago do cão?

Uma mão-cheia ou mais. Quatro ainda enroladas.

Guardaste-as?

Guardei.

Tens gordura suficiente para fazer as bolas outra vez? Ela encolheu os ombros.

A despensa de uma velha não tem muita gordura no fim de um Inverno longo.

Eu trago-te gordura.

Isso seria bom disse ela, lambendo-se.

Mais alguém sabe como é que o cão morreu?

Só Pato-de-Cabeça-Azul.

Por agora, não digas a mais ninguém.

Ninguém saberá, prometeu ela. Chakliux saiu da cabana de Ligige’ e dirigiu-se para a cabana dos velhos. Raspou à entrada e gritou. Depois, ficou esperando que alguém o mandasse entrar.

Ouviu-se a voz de Pato-de-Cabeça-Azul e depois a de Treina-Cães. Eram os únicos que estavam lá, e ambos resmungando porque as mulheres não tinham voltado a encher-lhes o saco da comida. Lançaram um olhar circunspeto a Chakliux. Ele era novo demais para ir à cabana só para conversar ou contar histórias, pelo menos sem ser convidado. Por que outro motivo iam os jovens lá senão para pedir favores?

Preciso de falar com vocês a respeito dos cães, disse Chakliux, que foi olhado com desagrado.

Chakliux lembrou-se que devia ter falado de outras coisas. Qual o homem que é indelicado ao ponto de esquecer os elogios e a honra devidos a um velho?

Ambos são dotados de sabedoria proferiu ele, na esperança de que o elogio os levasse a ignorar a sua indelicadeza. Nesta aldeia e mesmo naquela em que fui criado, as pessoas conhecem os vossos nomes. Considero que é uma honra pedir conselho a homens que são mais sabedores do que eu.

Os dois velhos endireitaram os ombros, e Chakliux percebeu que pronunciara finalmente as palavras certas. As perguntas acumulavam-se na sua boca de tal modo que ele mal conseguia respirar, mas esperou que Pato-de-Cabeça-Azul dissesse:

Se precisas de conselhos sobre cães, deves falar com Treina-Cães. Ele sabe muito mais do que eu, mas eu ajudo-te se puder.

Treina-Cães inclinou a cabeça e Chakliux perguntou:

Perdeste alguns cães neste Inverno?

Nenhum, respondeu Treina Cães.

E tu? perguntou Chakliux a Pato-de-Cabeça-Azul.

Três cães saudáveis e quatro filhotes.

Não estavam doentes?

Só no momento de morrer. Ganiam, mordiam a barriga e cuspiam sangue. Alguns dias depois, morreram.

E os filhotes também?

Não, encontrei-os mortos de manhã. Os quatro.

Um cachorro pode morrer de muitas maneiras, disse Treina-Cães.

E houve outros cães adultos da aldeia que morreram depois de cuspirem sangue? perguntou Chakliux.

Sim, respondeu Treina-Cães. Mais de duas mãos-cheias, e outros no Inverno passado. Como sabes, a maior parte dos cães do teu irmão morreu o ano passado. Ele disse-te que só um dos cães do teu avô é que ainda está vivo?

Não, respondeu Chakliux, sentindo um súbito remorso por não ter ficado na aldeia tratando dos cães que o avô lhe confiara. Qual deles é que está vivo?

A fêmea.

Nariz Preto disse ele, com um aceno de cabeça. Dos três, ela era a mais forte. Chakliux passaria a vigiá-la melhor. Se oferecesse carne ou óleo a Ligige’, talvez ela deixasse a cadela ficar no túnel da entrada da sua cabana.

Morreram alguns no Verão? perguntou Chakliux.

Nós não perdemos nenhum, exceto um filhote de vez em quando ou um cão velho.

Mas esses cães que morreram da maneira que vocês me contaram... Isso só aconteceu no Inverno? perguntou Chakliux.

Sim. Pato-de-Cabeça-Azul olhou para ele.

Alguns caçadores estão convencidos de que tu amaldiçoaste os nossos cães. Mas, neste último Inverno, tu não estavas aqui e os cães continuaram morrendo. Talvez não sejas tu.

Talvez não, repetiu Chakliux em voz baixa.

 

ALDEIA DE RIO PRIMO

Cen viu a fina camada de fumaça no céu e percebeu que estava aproximando-se da aldeia. O Inverno fora muito bom para os negócios. Apesar de ter começado com pouco, conseguira acumular muito. Antevia o brilho no olhar de K’os quando ela visse a pele de urso-branco que ele conseguira comprar de um velho de uma aldeia no Grande Rio.

O seu fardo era pesado, mas Cen apertou o passo e pouco depois foi recebido pelos gritos das crianças nos limites da aldeia. Elas lembravam-se do seu nome, e era bom ter um lugar que ele pudesse considerar como sua casa. Atrás do grupo, avistou Ghaden. Pousou o fardo, abriu os braços e chamou-o pelo nome.

A princípio, Ghaden ficou envergonhado, mas as outras crianças empurraram-no para a frente até que Cen conseguiu pegar-lhe no colo e levantá-lo à altura dos olhos. Cen riu o pôs no chão e viu o rapaz esboçar um sorriso.

Cresceste! exclamou Cen com uma voz sonora e rouca, como acontecia sempre que pronunciava as primeiras palavras depois de longos dias de caminho. Vem aqui, disse ele.

Pegou o fardo e tirou uma mão-cheia de apitos de madeira feitos de ramos de salgueiro. Pôs um na boca e apitou, rindo dos guinchos das crianças.

Não tenho que cheguem para todos, mas se vocês os mostrarem aos vossos tios eles fazem apitos para todos disse ele.

Deu um a Ghaden e atirou os outros ao grupo de crianças, rindo quando elas se puseram de quatro para apanhá-los. Pouco depois, as crianças corriam para casa com os seus tesouros.

Vai mostrar à tua irmã, disse ele a Ghaden, dando uma palmada no ombro ao rapaz.

Ghaden crescera. Tinha a constituição física robusta dos Primeiros Homens, que já se notava na largura dos ombros. Os velhos podiam tê-lo oferecido a Estrela, mas não impediriam Cen de levar o rapaz quando este tivesse idade para viajar como comerciante.

Além disso, o fato de Ghaden estar na cabana de Estrela não era de todo mau. Dava tempo a Cen para ficar sozinho com K’os.

Atravessou a aldeia a passos largos na direção da cabana de K’os, largou o fardo à porta e desatou a pele de urso. Era pesada e dura, mas ele conseguira enrolá-la e atá-la do lado esquerdo do fardo. Puxou o fardo para o túnel de entrada, pegou a pele de urso e entrou na cabana de quatro.

Na penumbra, ouviu os gemidos ainda antes de vê-los. O rapaz, Espreita-o-Céu, estava por cima, com o corpo nu e viscoso de suor. K’os, também nua e contorcendo-se, estava debaixo dele.

Era uma mulher que tinha muitos homens, ele sabia isso. Não deitara ele com outras mulheres durante a viagem? Não devia esperar um comportamento diferente da parte dela, mas ao vê-los fora como se lhe tivessem espetado uma faca na barriga. Não era Daes com um pobre e velho caçador, um homem bondoso e capaz de criar Ghaden como se fosse seu filho, um homem que não se podia comparar a Cen. Espreita-o-Céu era jovem e já um bom caçador.

K’os sorriu, afastou o rapaz do seu ventre e foi falar com Cen, de mãos abertas.

Ele ia tocando nela, mas depois, como se fosse outro homem ditando os seus atos, virou-lhe as costas e saiu da cabana, arrastando o fardo e com a pele de urso ainda nos braços.

 

ALDEIA DE RIO PRÓXIMO

Dizes aos outros, então? perguntou Chakliux a Pato-de-Cabeça-Azul.

Esta noite, à porta da cabana dos velhos. Eu aviso-os respondeu Pato-de-Cabeça-Azul.

Chakliux fez um gesto de concordância e, depois de uma troca de palavras delicada, saiu da cabana dos velhos e foi à despensa que partilhava com Sok. Tirou um fardo de gordura de caribu endurecida. Era preciosa, sobretudo naquela época do ano, e não lhe pertencia verdadeiramente, mas ele oferecera a Sok vários estômagos de foca cheios de óleo. Com certeza valiam mais do que um fardo de gordura de caribu. Levou a gordura para a cabana de Ligige’, raspou e esperou que ela gritasse.

A velha pareceu-lhe distraída e irritada com a interrupção, mas ele entrou mesmo assim. Quando ela viu que era ele, sorriu.

Achei que era Tece-Folhas. Aquela velha vem todos os dias servir-se da minha comida e encher-me os ouvidos com os seus disparates.

Chakliux largou o fardo no chão ao lado dela, e Ligige’ sorriu-lhe, mostrando os dentes gastos quase até às grandes gengivas rosadas.

Que bom, disse ela. Eu só tinha gordura suficiente para fazer duas bolas. Não é fácil, sabes? A primeira demorou muito tempo. Não está frio suficiente para endurecer as bolas, e portanto a gordura não mantém o marfim enrolado.

Como é que conseguiste? perguntou Chakliux. Ela estendeu-lhe uma bola de gordura, e ele viu que ela estava enrolada em vários locais com tiras finas de tendão.

Esta noite, quando o tempo esfriar, elas congelam, e depois podes tirar o tendão. De súbito, apertou os olhos e olhou para ele. Não deixes que os teus cães as comam, disse ela.

Não as darei aos cães de ninguém, prometeu ele.

Se as puseres lá fora para os lobos, algum cão pode apanhá-las.

Nem sequer as darei aos lobos. Chakliux agachou-se e olhou-a bem de frente.

Tu sabias o que isto queria dizer quando encontraste a primeira tira de marfim no estômago daquele cão.

Eu sabia, disse ela baixinho.

Não é uma maldição. Não é uma doença, insistiu Chakliux.

Alguém anda matando os nossos cães disse Ligige’.

Sabes quem é? perguntou Chakliux.

Ela olhou-o de novo, e Chakliux ficou admirado ao ver-lhe os olhos marejados de lágrimas.

Sei, respondeu ela em voz baixa.

 

ALDEIA DE RIO PRIMO

Aqamdax ficara com Homem Noturno durante vários dias em que ele nem se mexera e ela o julgara morto, ou em que os braços e as pernas do homem se debatiam em agonia no mundo em que ele então vivia. Por isso, nem levantou a cabeça do seu trabalho quando o braço dele se mexeu, quando o corpo dele se virou nas esteiras da cama. Nem olhou para ele senão quando um pequeno gemido lhe saiu da garganta e, no meio dele, o som do nome dela.

Então, deu um grito, largou o que estava fazendo e foi chamar Estrela, Olhos Grandes, Ghaden e Yaa. Foi buscar um odre de água para Homem Noturno beber e afastou-o depois de ele ter bebido vários goles.

Deixa-o beber, disse Estrela.

Ele vai adoecer, afirmou Aqamdax, lembrando-se de caçadores que tinham regressado de longas viagens por mar sem água doce para beber. Bebiam devagar, uns goles a princípio e depois mais alguns. Se não o fizessem, o estômago endurecia provocando-lhes espasmos e vômitos.

Estrela ia contestando, mas Aqamdax desviou o olhar. Não queria discutir precisamente no momento em que o espírito de Homem Noturno regressara. Aproximou-se da panela que estava pendurada junto da lareira e tirou uma tigela de caldo. Levou-a ao marido e ajoelhou-se ao lado dele, alimentando-o devagar. Estrela afastou-se deles e levou Ghaden e Yaa. Sentou a menina nos joelhos e começou a penteá-la com o pente de concha de Aqamdax, que ela considerava um tesouro por o ter trazido da sua aldeia natal. Aqamdax ignorou-a, falando em voz baixa com Homem Noturno. Por fim, ele levantou a mão para indicar que já comera o suficiente. Ela voltou a dar-lhe água e ele bebeu, desta vez lentamente. Em seguida, perguntou:

Quanto tempo dormi?

Duas luas, quase três gritou Estrela, e Aqamdax reparou que até Olhos Grandes se virara para ver o filho, com uma expressão radiosa, como se compreendesse em parte o que estava se passando.

Homem Noturno deitou-se de novo na cama.

Não te preocupes, marido, disse Aqamdax em voz baixa, para Estrela não ouvir. Era uma boa época do ano para dormir.

Ele olhou-a de sobrancelhas erguidas e fez um esforço para rir, mas o riso terminou num ataque de tosse que o debilitou. Fechou os olhos, e Aqamdax teve vontade de chamá-lo, com medo de que ele fugisse de novo para o mundo em que andara perdido durante tanto tempo.

Mas, como se lhe adivinhasse os pensamentos, ele disse:

Minha mulher, não te preocupes. Eu estou apenas dormindo.

Aqamdax inclinou-se e encostou a face na testa do marido. Este tinha a pele seca mas fria, e o seu hálito parecia ter perdido o cheiro acre.

De repente, Homem Noturno arregalou os olhos e virou-se para ela.

Tive um sonho... proferiu ele, mas as suas palavras foram interrompidas por alguém raspando no túnel de entrada. Era Cen.

Aqamdax ficou sem fôlego. Ele e Tikaani é que a tinham trazido para a aldeia. Tikaani, preocupado com Homem Noturno, há muito que conquistara a amizade de Aqamdax, mas ela só sentia raiva e ódio por Cen. Ele podia ter adotado Ghaden, um bom irmãozinho, mas exigira-lhe demais em troca.

Quando Estrela o viu, começou a saltar, a bater as palmas e a dançar como uma criança. Cen deixou cair uma pele branca e pesada no chão da cabana.

Isto é para mim? guinchou Estrela, agarrando a pele enrolada.

Cen ficou olhando para ela, abriu a boca e depois fechou-a outra vez.

Não. Isso é a minha cama, disse ele por fim. As palavras dele não pareceram incomodar Estrela.

A mulher chamou Yaa para junto de si e, juntas, desataram o fio de couro cru que segurava a pele, desenrolando-a. Estrela deitou-se em cima da pele e olhou para Cen, lambendo o lábio superior.

Aqamdax desviou o olhar, enojada, e debruçou-se sobre Homem Noturno.

É Cen? perguntou ele em voz baixa e rouca.

Ele voltou, respondeu ela.

Homem Noturno fez um aceno de cabeça e voltou a fechar os olhos.

Tiveste um sonho? perguntou Aqamdax, esperando que ele ficasse acordado mais um pouco, mas Homem Noturno suspirou e adormeceu.

Nessa noite, Cen ficou na cabana deles e, apesar de Estrela ter se oferecido ostensivamente ao homem, ele instalou a sua cama perto de Homem Noturno e disse a Estrela que estava muito cansado dos longos dias de caminhada para fazer outra coisa que não fosse dormir. Ela emburrou mas depois, como se a presença de Cen lhe lembrasse que era uma mulher, começou a fazer o papel de irmã e de mãe, vendo se Homem Noturno se sentia confortável e se Ghaden e Yaa tinham comida.

Aqamdax ficou acordada muito depois de os outros adormecerem. Durante a noite, os tambores continuaram a rufar na cabana dos caçadores. Ela não perguntara a Cen se ele fora ao encontro dos homens antes de ir à cabana de Estrela. Ele não pertencia verdadeiramente ao povo de Rio Primo, e portanto podia não ser bem recebido num momento em que os homens planejavam ataques de vingança.

Por fim, adormeceu também e só acordou de repente ao amanhecer. O seu primeiro pensamento foi para Homem Noturno. Acontecera-lhe alguma coisa, alguma súbita passagem do seu espírito? Levou-lhe as mãos ao rosto e ele murmurou alguma coisa e afastou-lhe a mão, sonolento, fazendo-a sorrir. Então, ela percebeu que fora o silêncio que acordou-a.

Os tambores calaram-se, segredou Estrela do outro lado da cabana.

Até os guerreiros têm que dormir, murmurou Aqamdax. Virou-se de lado e puxou o cobertor de pele de lebre até ao ombro.

Só reparou que Tikaani entrara na cabana quando ele estava a seu lado, debruçado sobre Homem Noturno e com a mão na testa do irmão.

Aqamdax apoiou-se num cotovelo e disse:

Ele voltou para nós ontem à noite. Agora está a dormindo.

Estou acordado proferiu Homem Noturno, e Aqamdax, admirada, levou a mão à boca.

Como se não percebesse que estava ocupando a cama de Aqamdax, Tikaani aproximou-se mais do irmão, sentou-se de pernas cruzadas e aproximou a cabeça da cara de Homem Noturno.

Estás acordado? perguntou Tikaani.

Como é que eu posso dormir se tu não te calas? respondeu o irmão.

Tikaani riu e olhou para Aqamdax, com a alegria dançando-lhe nos olhos.

Está certo o que fazemos, disse ele. Eu disse aos velhos que estava. Falei-lhes das mortes, dos salmões; disse-lhes que tudo isto acontecera por não termos acalmado os nossos mortos com a vingança. Assim que fizermos os nossos planos, tu vens conosco.

Talvez não tenha forças suficientes para lutar disse Homem Noturno, tentando sorrir.

Eu lutarei pelos dois.

Qual é o plano dos caçadores?

Temos uma nova arma. Lembras-te?

O arco.

Sim. Em vez de alguns homens tentarem matar um ou dois caçadores dos deles pelo que nos fizeram, desta vez iremos todos, caçadores e velhos, e até os rapazes mais crescidos.

Tikaani juntou as mãos, formando um círculo. Lembras-te que a aldeia deles está instalada numa cova do feitio de uma tigela, com árvores em volta?

Lembro.

Com os arcos, podemos sentar-nos nas árvores e disparar para a aldeia, atingindo os homens à distância, para que eles nem sequer saibam quem é que foi atingido.

Homem Noturno levantou a mão saudável e Tikaani fechou-a na sua. Em seguida saiu, ao encontro da aurora, deixando o irmão dormindo e Aqamdax olhando para a luz tênue da manhã com horror, imaginando os rostos das pessoas de Rio Próximo. Mulheres e crianças, velhos e caçadores. Chakliux.

 

ALDEIA DE RIO PRÓXIMO

Só te digo isto. A minha filha quer ser a tua primeira esposa disse Lobo-e-Corvo a Sok.

Sok passara a noite inteira de pé devido ao trabalho de parto de Neve-no-Cabelo, aos gritos da mulher. Chegara a recear que ela estivesse morrendo. Qual a mulher que gritava, a menos que os espíritos a afastassem do marido e do novo filho?

Os seus pensamentos recuaram até aquela primeira noite que tinham passado juntos, à alegria de a ter na sua cama. Ela mostrara-se tímida, desviando a cabeça quando ele começara por lhe acariciar os seios e ofegando de surpresa quando ele fizera deslizar os dedos para o seu sexo úmido e quente de mulher.

Sok guardava essas recordações como se elas pudessem conservar Neve-no-Cabelo junto dele, mesmo durante o parto. Combatera os seus medos com preces e cânticos.

Quando a tia da mulher foi falar com ele antes do amanhecer, teve tanto medo que julgou não conseguir ouvir o que ela tinha para lhe dizer, mas a mulher disse que o nascimento fora fácil. Que o filho de ambos era forte, que Neve-no-Cabelo estava tão bem como seria de esperar de qualquer mulher que tivesse acabado de dar à luz e que gritara tanto que não deixara dormir ninguém na aldeia.

Agora, o pai dela encontrava-se na cabana da filha e insistia com Sok para que ele rejeitasse a sua boa primeira esposa, uma mulher que lhe dera dois filhos robustos, dois rapazes que já davam mostras de vir a ser bons caçadores uma mulher que não gritara uma única vez ao dar à luz os filhos. Estavam a sós, Sok e Lobo-e-Corvo. Sok permanecera na cabana da mulher durante a noite, um hábito na aldeia, uma maneira de dar força a Neve-no-Cabelo durante o parto. Não estava ansioso por enfrentar os outros homens da aldeia, nem as mulheres, com os seus olhares furtivos de desdém, fingindo ocultar o riso atrás das mãos. Era melhor ficar lá dentro por enquanto, mas entretanto chegara Lobo-e-Corvo.

Ela é segunda esposa. Continuará a ser segunda esposa, declarou Sok, com voz de guerreiro.

Então Lobo-e-Corvo levantou-se, como se não tivesse vindo por outro motivo, e disse:

O teu irmão pediu que houvesse uma reunião com todas as pessoas da aldeia, esta noite.

Chakliux?

Sim. Lobo-e-Corvo empinou o queixo para Sok. Poucos caçadores irão. O que tem Chakliux a dizer-nos de tão importante?

Estarei lá, afirmou Sok.

Lobo-e-Corvo saiu da cabana, e Sok reclinou-se no cobertor de pele de lebre que Neve-no-Cabelo lhe fizera. Era ralo e imperfeito. Os cobertores de Folha Vermelha eram tão bem tecidos que nem o mais pequeno raio de luz passava através deles.

Ouviu raspar na parede da cabana.

Entre! exclamou ele, com uma voz rude. Talvez fosse Lobo-e-Corvo com outro disparate qualquer.

Folha Vermelha entrou com uma panela na mão.

Meu marido, disse ela com uma voz tranqüila. Estou contente por saber do teu novo filho.

Saiu da cabana sem olhar para ele.

 

Chakliux sentia a hostilidade dos homens. Quem era ele para convocar todas as pessoas da aldeia, para lhes pedir que o escutassem ao serão? Havia tanta coisa para fazer naquela época do ano redes para remendar, facas para esculpir, lâminas para retocar. Eles não tinham tempo para as palermices de um homem de Rio Primo.

Mas foram. Resmungando, franzindo a sobrancelha, mas foram. Até as crianças pareciam sentir a irritação dos pais; começavam brigas entre elas, que tinham que ser apaziguadas pelos pais; os bebês choravam. Chakliux fechou os olhos, procurando a tranqüilidade que sentia sempre que estava no seu iqyax e os únicos sons eram os da água, dos pássaros e do vento.

Ligige’ preparara as bolas de gordura, enrolara osso ou marfim dentro de cada uma, duas mãos-cheias ao todo. Envolvera-as em pedaços de tripa seca e amolecida e depois colocara-as num cesto de pele de peixe. Chakliux teve o cuidado de manter o cesto a seu lado, mas não perto demais. Não queria que o calor do seu corpo derretesse a gordura e os rolos se soltassem.

Reuniram-se ao ar livre, junto da cabana dos velhos. Os jovens tinham feito uma grande fogueira e os velhos sentaram-se em círculo mais perto das chamas. Seguiam-se os caçadores, por idades, depois as avós, as mulheres com bebês e, por fim, as mulheres solteiras e as crianças. As mulheres tinham levado comida, mas os velhos haviam-na recusado, tal como a maioria dos caçadores. As crianças pediram os restos e algumas avós cederam, aumentando a confusão quando começaram brigas entre as crianças que tinham comida e as que não tinham.

Chakliux, sentado com os caçadores, esperou que Lobo-e-Corvo se levantasse e dissesse às crianças que deixassem de lutar. Quando o ruído diminuiu, o homem olhou para Chakliux e falou:

Diz-nos agora o que tens a dizer. Chakliux dirigiu-se para o meio do círculo, de costas para a cabana dos velhos e de frente para as pessoas. A noite primaveril ainda não caíra por completo, o céu tinha um tom azul-forte e havia longas faixas de sombra. O clarão da fogueira iluminava o rosto das pessoas, e Chakliux reconheceu Ligige’, Raposa-Que-Ladra, Olhos Grandes, Pato-de-Cabeça-Azul, Treina-Cães, Busca-Raízes e Sok.

Pedi-vos que viessem para podermos falar dos vossos cães, disse Chakliux.

Ouviu-se um murmúrio vindo dos caçadores, e Chakliux ouviu Ligige’ dizer:

Fiquem calados. Escutem.

O murmúrio terminou e Chakliux continuou falando.

Como sabem, morreu mais um cão. Morreu da mesma doença que matou muitos dos nossos cães. Era uma doença que nenhum de nós conhecia até que Ligige’ descobriu o que se passava.

Muitos voltaram-se para Ligige’. Ela empinou o queixo e manteve-se de olhos postos em Chakliux.

Ligige’ pediu-me que vos falasse nisso.

Fez-se imediatamente silêncio. Até as crianças se calaram. Chakliux pegou o cesto que tinha a seu lado. Tirou uma das bolas de gordura.

Busca-Raízes! gritou ele.

O homem olhou para ele e Chakliux atirou-lhe a bola. Busca-Raízes apanhou-a e levou-a à boca para lhe dar uma dentada.

Ligige’ gritou:

Não. Não a comas. Espera.

É veneno? perguntou Sok.

Não, respondeu Chakliux. Não é veneno. Atirou bolas de gordura a Raposa-Que-Ladra, a Dorminhoco, a Treina-Cães e até ao jovem Dança-no-Gelo. Eles enfiaram os dedos nas bolas e cheiraram-nas.

Por fim, restavam duas e Chakliux ainda não encontrara a reação que esperava. Olhou para Ligige’. Ela lançou-lhe um olhar claro e firme, levantou as mãos e juntou-as. Ele atirou-lhe uma das bolas e ela apanhou-a com facilidade. Em seguida, apoiando-se no ombro da mulher que estava a seu lado, levantou-se e atirou a bola a Lobo-e-Corvo.

Ele agitou-a, deixou-a cair ao chão e não a apanhou.

Pega ela, priminho, disse Ligige’, e as pessoas sorriram, contendo o riso ao ouvirem o diminutivo que ela usara para se dirigir a ele.

Ele pegou a bola, mostrou-a aos outros e voltou a largá-la no chão.

Ela não mata senão quando está lá dentro, priminho, disse Ligige’, e Chakliux percebeu da enorme tristeza na voz dela.

De repente, Busca-Raízes deu um grito. O calor da sua mão derretera um dos lados da bola de gordura e uma ponta do rolo cortara-lhe o polegar.

O que é isto? gritou ele, deixando cair a bola ao chão e chupando a ferida.

Pato-de-Cabeça-Azul teve pena de uma velha, disse Ligige’. Ofereceu-me um cão morto. Quando eu esquartejei o animal, encontrei isto. A velha mostrou uma tira de marfim. Estava no estômago do cão. Havia muitas, mais do que uma mão-cheia.

Chakliux reparou que os outros tinham posto as suas bolas de gordura no chão tal como Lobo-e-Corvo. Estendeu o cesto de pele de peixe a uma das mulheres.

Peguem elas e voltem a me dar. Virou-se para Lobo-e-Corvo e perguntou: Não pegaste a bola de gordura. Porquê?

Não confio num homem da aldeia de Rio Primo, é por isso respondeu Lobo-e-Corvo.

Chakliux virou-se para os velhos.

Não acuso ninguém disse ele. Concluam vocês quem matou os cães. Vocês viram o que o rolo de osso fez à mão de Busca-Raízes. Imaginem o que ela faz no estômago de um cão.

Ouviu-se um burburinho, um murmúrio de raiva, dos homens e das mulheres.

Porquê? perguntou um dos caçadores. Porquê matar os nossos cães? Precisamos deles para caçar e para comer. Porque alguém faria uma coisa destas?

Uma mulher que se encontrava na parte de trás do círculo levantou-se. Chakliux só percebeu que se tratava da mulher de Lobo-e-Corvo quando ela falou.

Pelo poder, exclamou Flor Azul. Só pelo poder. Para poder acusar outros de provocar esta maldição, e depois dizer que seria capaz de lhe pôr fim.

Eu rejeito-te! gritou Lobo-e-Corvo, pondo-se em pé e atirando o cajado à mulher.

Não, respondeu ela. Eu é que te rejeito. Tira as coisas da minha cabana. Não quero voltar a te ver.

Então, todos começaram a falar, a gritar, a discutir. A maioria soltava imprecações contra Lobo-e-Corvo. Uns gritavam com Chakliux e outros com Ligige’. Lobo-e-Corvo levara a sua máscara de xamã repleta de contas e de bicos de corvo. Tirou-a e estendeu-a a quem se aproximava, abrindo caminho entre as pessoas para se afastar. Alguns homens gritavam em desacordo com Chakliux. Outros davam-lhe palmadas nas costas, agradeciam-lhe, espreitavam as bolas dentro do cesto e depois, apertando-lhe a mão, afastavam-se.

Pouco depois, todos tinham ido embora, exceto Chakliux e Ligige’. A velha estava encolhida no chão, com o cobertor por cima da cabeça. Chakliux ajoelhou-se a seu lado.

Tia, queres ficar na cabana de Folha Vermelha esta noite? perguntou ele em voz baixa.

Não creio que Sok me queira lá, respondeu ela, com a voz trêmula. Eu destruí o pai da mulher dele.

Lobo-e-Corvo é que destruiu a si mesmo, disse Chakliux, ajudando-a a levantar-se.

Acho que vou para a minha cabana afirmou Ligige’. Acho que esta aldeia está farta de ouvir a minha voz.

Então posso ficar contigo? perguntou-lhe Chakliux.

Sim, vem e fica comigo. Ligige’ afastou as lágrimas e fez um sorriso maroto. As velhas dizem que tens mais óleo de foca. Dizem que é muito bom com peixe seco.

Chakliux sorriu também.

Sim, tia, é muito bom, como vais ver.


ALDEIA DE RIO PRIMO

Cen não queria ir com eles. Ainda não dominava aquelas armas, os arcos. Além disso, era comerciante. Qual o comerciante que desejava fomentar a luta? Mas fora o povo de Rio Próximo que assassinara Daes. E que quase o havia matado. As costelas ainda lhe doíam nos dias frios e o pulso esquerdo nunca mais voltaria a ter a força que tinha.

Pensara nas palavras de Aqamdax. Ela fora de cabana em cabana, argumentando com os caçadores, dizendo-lhes que as pessoas de Rio Próximo eram boas, pedindo-lhes que roubassem apenas uma vida em troca do rapaz que fora morto. Mas até Ghaden cerrara os dentes, erguera um punho fechado e manifestara a sua raiva pelas pessoas de Rio Próximo por terem morto um rapaz que era seu amigo.

Não levaram cães. Só fardos de comida e apetrechos. Só armas. Arcos, lanças, dardos e facas.

Cen tinha um arco, mas o pulso esquerdo ainda ficava preso quando ele puxava o fio para trás. Era preferível usar uma lança. Pelo menos, o pulso direito era forte e o seu lance era rigoroso e de longo alcance.

Em geral, eram necessários três dias para fazer a viagem da aldeia de Inverno do povo de Rio Próximo para o acampamento de Inverno do povo de Rio Primo, e isso era com cães que transportassem os fardos. Mas a raiva parecia emprestar força às pernas dos homens, e no fim do primeiro dia, estavam quase em Rio Próximo. A noite foi de vento e de neve, a última dentada do Inverno, à medida que era derrotado pela força do novo Sol.

Na segunda manhã, fizeram-se a caminho cedo, e cerca de meio-dia saíram do rio gelado e entraram na floresta. Acamparam perto da aldeia. Agora, restava-lhes esperar pela manhã seguinte, na esperança de que algum caçador saísse da aldeia e fosse a primeira vítima.

Começava a anoitecer quando ele apareceu, um homem sozinho, sem um cão a seu lado. Trazia um grande fardo, como se fosse um comerciante. Servia-se da lança como se fosse um cajado.

Cen estava sentado numa árvore derrubada, sacudira a neve do tronco e almofadara a casca molhada com uma pele de caribu. Os seus pensamentos não se concentravam na luta, no ataque que Tikaani e os outros tinham resolvido iniciar logo de manhã. Pensava em K’os. Ela era uma mulher, como Daes, que parecia roubar-lhe a inteligência, que o fazia agir sem pensar, sem ponderar as conseqüências. Agora que estava longe dela, que o rosto dela não lhe turvava o raciocínio, era um bom momento para decidir o que fazer.

Mesmo que ela se tornasse sua esposa, seria provável que continuasse a convidar muitos homens para a cama. Cen ouvira as histórias a respeito dos seus dois maridos. Ambos tinham morrido de uma forma terrível. O primeiro fora consumido por uma doença que parecia devorar-lhe as entranhas até começar a vomitar sangue. O outro morrera num incêndio do qual escapara a própria K’os. Com certeza que K’os era perseguida por qualquer espírito de azar que não tardava a atacar quem quer que ela escolhesse como marido. Alguns caçadores afirmavam que K’os estava velha, velha demais para gerar filhos. Isso era difícil de acreditar. O seu rosto mostrava que ela era jovem, mas parecia ser estéril.

Cen estava agradecido pela existência de Ghaden, mas queria mais filhos, e até uma filha. O que havia de melhor para um velho do que uma filha para cuidar dele nos últimos anos da vida?

Ele podia casar com Estrela, mas não queria uma mulher que chorava e fazia birras como uma criança. Também havia Aqamdax. Era muito mais parecida com Daes e muito trabalhadora. Os Primeiros Homens afirmavam que ela era uma contadora de histórias. Era esposa de Homem Noturno, mas quem esperava que ele vivesse muito? Na noite em que Cen ficara na cabana de Estrela, fora obrigado a virar a cara quando Aqamdax mudara a cataplasma do ombro de Homem Noturno, tal era o cheiro de carne podre.

Quando Homem Noturno morresse, o que faria Aqamdax? Talvez Tikaani a aceitasse, mas agora era o chefe dos caçadores. Não seria aconselhável que o chefe dos caçadores aceitasse uma mulher de outra aldeia para primeira esposa. Quem queria acarretar com os problemas que tal situação causaria?

Cen foi afastado dos seus pensamentos por um assobio suave que passou de uns caçadores para os outros. Agachou-se ao lado do tronco, pegou a lança e encostou-a ao ombro, de ponta em riste.

De repente, as setas começaram a voar, algumas fazendo ricochete nas árvores, outras seguindo a sua trajetória, com vozes mais altas e agudas do que as vozes da lança e do lançador.

Cen ouviu gritos, e depois a vozearia dos homens de Rio Primo como se tivessem feito uma caçada bem sucedida. Levantou-se, sempre agarrado à lança, e foi ver os resultados da matança. Um animal, pensou ele, talvez um urso que vinha a sair da sua toca de Inverno. Que melhor sinal de favor?

Não, era um homem. Levava às costas um fardo pesado crivado de setas, e as pernas e os braços sangravam na neve. Depois Cen reparou na bolsa dos remédios, numa pele de lontra do rio e noutra de carcaju. Levava uma asa de pica-pau pendurada no fardo, e uma máscara de contas.

Lobo-e-Corvo, disse ele.

Alguns dos homens que o acompanhavam ficaram sem fôlego; outros, os mais novos, estavam confusos.

Um xamã, esclareceu Tikaani.

Alguns olharam para Cen, aguardando a confirmação.

Sim, um xamã respondeu ele.

Cortem-lhe as articulações, depressa disse um dos jovens.

Tikaani olhou para o homem, que ainda era um rapaz, e estendeu-lhe a sua faca. Agarrado ao seu amuleto, Tikaani afastou-se, entoando um cântico em voz baixa. Os outros fizeram o mesmo, deixando o rapaz ali sozinho. Por fim, ele deixou cair a faca, recuou, levantou as mãos como quem pedia proteção, e ergueu o amuleto bem acima da cabeça.

Mais tarde, enquanto os outros dormiam, Cen embrenhou-se na floresta. Caminhou sobre o gelo do rio durante toda a noite e todo o dia seguinte. Depois, continuou para norte, na direção do Grande Rio, e para leste, na direção das aldeias do Povo Caribu.

 

ALDEIA DE RIO PRÓXIMO

Chakliux julgou que o som fazia parte do seu sonho, mas depois ouviu uma voz e acordou. Sentou-se e recordou-se que resolvera passar a noite na cabana de Ligige’.

As brasas estavam reduzidas a pedacinhos incandescentes, mas ele percebeu que Ligige’ também estava sentada.

É Lobo-e-Corvo. Conheço a voz dele, disse ela.

Ele saiu da aldeia, lembrou-lhe Chakliux. Fora a própria Flor Azul que viera avisá-los.

É Lobo-e-Corvo, insistiu Ligige’.

Chakliux embrulhou-se num cobertor de pele de lebre e atravessou o túnel de entrada. Não havia lua e as nuvens não deixavam ver as estrelas. Na escuridão, não se via nada.

Quem está aí? perguntou ele em voz baixa. Para quê acordar os outros por algo que não passava talvez do sonho de uma velha?

Não havia nada, nem um som. Nem sequer o latir dos cães ou o choro de um bebê. Chakliux ia entrando outra vez quando ouviu o gemido. Ficou escutando, ouviu de novo um gemido e depois seguiu, cauteloso, na direção do som. Às escuras, tropeçou em alguma coisa, e então percebeu que estava um homem estendido na neve. Chamou Ligige’ e disse-lhe que trouxesse brasas para dar luz. A velha saiu, já embrulhada na parka, com uma tigela cheia de brasas.

Ajoelhou-se ao lado de Chakliux, pousou a tigela na neve para impedir que as brasas se incendiassem e depois, com a voz entrecortada pelas lágrimas, falou:

É Lobo-e-Corvo. Eu disse-te. Alguém o matou.

Ajuda-me, pediu Chakliux.

Agarrou o homem e, juntos, levaram-no para o interior da cabana.

O que é isto? perguntou Ligige’, abanando a cabeça, chorando.

Apontou para lascas de madeira cobertas de penas, uma no ombro de Lobo-e-Corvo, duas no braço esquerdo, uma na perna e outra na barriga.

Não é uma arma que o Povo Rio use, declarou Chakliux.

Inclinou-se mais e viu uma risca vermelha, negra e branca numa das setas, que era sua conhecida.

Depois, ouviu outro gemido. Ligige’ choramingou e começou a embalar Lobo-e-Corvo. Ele abriu os olhos, mas não deu mostras de vê-la.

Como é que isto aconteceu? perguntou Chakliux, falando devagar, mas suficientemente alto para que o espírito de Lobo-e-Corvo o ouvisse antes de se afastar e abandonar o corpo.

Lobo-e-Corvo abriu a boca e disse o que Chakliux já sabia.

Os de Rio Primo... Estão chegando...

Tiraste isto da perna do xamã? perguntou Sok, virando a seta nas mãos.

Chakliux fez um sinal afirmativo. Estavam na cabana dos velhos, com quase todos os caçadores de Rio Próximo.

Parece uma das setas que o velho comerciante tinha na sua cabana, afirmou Sok. Ele disse-nos que era o grande arco de fogo que as atirava. Olhou para Chakliux. Esse comerciante morreu no mesmo incêndio que matou o teu pai.

O comerciante nunca usava a arma, disse um dos velhos. Guardava-a para dar sorte.

O meu pai ficou nessa cabana? perguntou Chakliux. Pato-de-Cabeça-Azul confirmou com um gesto de cabeça.

E a mulher.

K’os?

Sim.

Então já sabemos como é que eles conseguiram a arma, observou Sok.

E porque é que os velhos morreram, acrescentou Chakliux.

Essa mulher faria uma coisa dessas? perguntou Treina-Cães.

Faria, respondeu Raposa-Que-Ladra. Admirado, Chakliux olhou para o padrasto.

Eu a conheci, há muito tempo, disse Raposa-Que-Ladra.

Ao recordar os muitos homens que freqüentavam a cabana da mãe, Chakliux não duvidou que Raposa-Que-Ladra falasse a verdade.

Então o nosso xamã disse que os caçadores de Rio Primo vêm aí? perguntou Pato-de-Cabeça-Azul.

Deixa-os vir, disse um dos homens mais novos. Estou cansado dos disparates deles. Apontou para a seta que Sok tinha na mão. As nossas lanças são mais fortes do que isso. Vamos matá-los todos. Depois, iremos à aldeia deles e traremos as mulheres e a comida que eles têm nas despensas.

Um dos velhos, Primeiro Rio, levantou-se. Não era tão velho como Pato-de-Cabeça-Azul, mas era mais fraco e estivera quase morrendo no Inverno. Usava um cajado para dar força às pernas e olhava em frente. As cataratas brancas que lhe cobriam os olhos roubavam-lhe a maior parte da visão.

Em tempos, fui comerciante disse ele, com uma voz tão débil que Chakliux mal o ouviu.

Alguns dos caçadores mais novos nem perceberam que ele estava falando e continuaram a conversar entre si, até que Pato-de-Cabeça-Azul levantou o cajado e tocou no ombro de um deles.

Em tempos, fui comerciante, repetiu Primeiro Rio. Depois parou e tossiu, com o esforço provocado pela fala. Era parceiro daquele que morreu no incêndio. Éramos companheiros de caça e de negócio. A minha primeira esposa era irmã da mulher dele.

O homem calou-se e inclinou-se sobre o cajado. Um dos jovens levantou-se e aproximou-se de Primeiro Rio, agarrou o velho pelos ombros e ajudou-o a manter-se de pé, respirando fundo como se pudesse dar-lhe forças com a sua própria respiração.

Uma vez fomos longe. Para lá das montanhas do Sul. Andamos por lá dois anos. As nossas mulheres achavam que tínhamos morrido. A mulher do morto até arranjou outro marido. O velho riu e lançou um olhar penetrante a Pato-de-Cabeça-Azul. Mas deixou-o quando o marido voltou.

Vimos gente que usava estas pequenas setas. Os seus lançadores pareciam arcos de fogo, mas eram mais compridos. Alguns de vocês viram uma coisa parecida pendurada na parede da cabana desse morto. São pequenas, essas setas, mas atravessam a pele de um animal quase como se fossem uma lança grande, e um caçador consegue atirar depressa, mais depressa do que uma lança, e sem se cansar tanto. As setas pequenas também chegam mais longe. Por isso, um caçador não tem de se aproximar tanto dos animais que tenta matar.

O velho calou-se, e durante muito tempo mais ninguém falou. Por fim, Chakliux disse:

Primeiro Rio, se atacasses esta aldeia com essas armas, como farias?

Os outros homens ficaram admirados com a pergunta de Chakliux, mas Primeiro Rio apressou-se a responder, como se já tivesse pensado nisso.

Da cumeeira afirmou ele. Como sabes, construímos as nossas cabanas neste local por ele estar perto do rio e porque o terreno, em forma de tigela, nos protege dos ventos. No entanto, os inimigos podem cercar-nos por todos os lados, sentar-se nas árvores e atirar aqui para baixo, sabendo que as nossas lanças não podem atingi-los.

Não, estas pequenas setas não chegam tão longe exclamou um dos caçadores mais novos.

Chegam, disse Primeiro Rio. Eu as vi. É possível. E qual de nós é que tem força para atirar esta lança a essa distância? Talvez só Sok.

Sok fez um sinal afirmativo, mas acrescentou:

E poucas vezes. Se não, ficaria sem forças.

Essas pequenas setas, mesmo que atinjam um homem, não o matam disse Dança-no-Gelo.

Era uma afirmação disparatada, e a maior parte dos homens nem sequer se deu ao trabalho de responder, deixando Dança-no-Gelo todo inchado, pensando que dissera qualquer coisa importante, mas Primeiro Rio respondeu:

Elas mataram o xamã.

Conseguem atravessar as paredes das nossas cabanas? perguntou Sok.

Talvez não, porque as nossas cabanas são feitas com duas camadas, respondeu Pato-de-Cabeça-Azul. Talvez seja melhor ficarmos aqui dentro, à espera que eles se aproximem, e depois os matamos.

Mas durante quanto tempo até eles pensarem em fogo? perguntou Primeiro Rio. Estava fortemente apoiado no jovem ao lado dele. Esses caçadores de terras distantes atavam musgo ensopado em óleo nas pontas das setas, pegavam-lhes fogo e atiravam-nas nas cabanas. As pessoas que sobreviviam às setas morriam no incêndio.

O que faremos? perguntou Sok.

Partimos agora, disse Chakliux. Podemos subir às cumeeiras e ir ao encontro deles com as nossas lanças.

Primeiro Rio, num espaço fechado, quais são as melhores armas, as nossas lanças ou as deles?

As nossas, respondeu Primeiro Rio.

Alguns dos mais jovens começaram a comemorar, mas Pato-de-Cabeça-Azul mandou-os calar.

Lembrem-se do nosso xamã. Lembrem-se de que, mesmo na sua desgraça, ele desafiou a morte para nos ajudar. Agora vão, peguem as vossas armas e saiam da aldeia sem fazer barulho. Esperem no meio dos salgueiros, à beira da cumeeira, e quando os caçadores de Rio Primo chegarem, verão que somos mais fortes do que eles julgam.

Alguns dos homens de Rio Primo não queriam lutar. Viram que o xamã desaparecera, deixando apenas o seu fardo para assinalar o local em que morrera. Tinham medo que o espírito dele tivesse levado o seu corpo e lutasse contra eles ao lado dos de Rio Próximo.

Foram os lobos que o levaram, disse Homem Risonho, e Tikaani concordou, mas nem tentou explicar a si próprio como é que os lobos haviam arrastado o homem sem tocar no fardo.

Receava que a sorte tivesse começado a abandoná-los, por isso disse aos homens que corressem para a cumeeira que rodeava a aldeia, que fossem enquanto ainda estava escuro, antes que perdessem toda a boa sorte. Quando os primeiros caçadores de Rio Próximo saíssem das suas cabanas de manhã, as setas silenciosas e rápidas dos guerreiros de Rio Primo estariam à espera deles.

Todos os guerreiros de Rio Primo haviam atirado paus para determinar o seu lugar na luta. O maior tinha quatro lados, um que assinalava o Norte e os outros o Sul, o Este e o Oeste. O pau de Tikaani caíra virado para norte, o lado da aldeia que estava virado para o rio. Era um bom local, pensara Tikaani, o melhor para fugir se a sorte não os acompanhasse como eles esperavam. O segundo pau tinha oito lados, e o seu caíra do lado que indicava uma das posições centrais. Quem podia saber se isso era bom ou mau? O terceiro pau era achatado, só com dois lados, um para ficar de pé e outro para subir numa árvore. Cada caçador que tivesse atirado para o Norte, tinha que ficar de pé.

O velho Leva-Mais disse aos homens do lado norte que voltassem a atirar, mas mais uma vez o pau lhes disse que ficassem de pé. Então, Leva-Mais disse que os espíritos estavam falando com eles, que todos os que se encontravam do lado do rio deviam ficar de pé, embora, nos outros lados, os caçadores devessem ficar de pé e subir às árvores.

Talvez fosse melhor assim, pensou Tikaani, mas nunca soubera ao certo até onde chegava a sabedoria de Leva-Mais. Ficaria de pé a princípio, mas depois, se a luta não estivesse correndo bem, subiria numa árvore. Era melhor ver, atirar as suas setas para longe.

Ocupou o seu lugar, tirou uma seta da sua aljava e ficou esperando. Estava escuro demais para ver o que se passava na aldeia, exceto o clarão daquelas cabanas em que a lareira estava acesa, e nesse momento, mesmo antes do nascer do Sol, a luz era escassa. De repente, viu uma luz forte numa das cabanas, depois noutra e mais outra. As mulheres de Rio Próximo levantavam-se tão cedo?

Um movimento chamou-lhe a atenção. Ouviu um som sibilante, como se todos os homens que se encontravam na cumeeira fossem um só, vigiassem e respirassem em conjunto. As pessoas deslocavam-se no meio das cabanas. Tikaani via-lhes as sombras das cabeças.

Eles têm lanças, segredou alguém à sua esquerda.

Tikaani pestanejou e mexeu a cabeça, tentando ver melhor na escuridão. Depois veio a ordem, de um dos homens perto dele ou do meio.

Atirar!

Tikaani puxou o arco para trás e soltou a seta.

 

Chakliux rastejou no meio das cabanas. Alguns dos homens tinham visto Lobo-e-Corvo saindo da aldeia. Afirmaram que ele seguira para leste, em direção à floresta e, portanto, também eles seguiram para leste, esperando tomar posição entre os homens de Rio Primo e as suas famílias.

Chakliux gostaria de ter mais tempo. Mais uns dias e a situação seria diferente. Primeiro Rio poderia ter-lhes dado uma idéia melhor daquilo que enfrentavam com o arco de fogo. Até onde levaria uma coisa dessas as suas setas? Conseguiriam elas atravessar as paredes das cabanas? Com uns dias de aviso, eles poderiam ter tirado as mulheres e as crianças da aldeia ou armado uma emboscada aos homens de Rio Primo na floresta.

O topo da cabana à direita de Chakliux iluminou-se de repente. Depois, outra mais à frente. As mulheres estavam acordadas. Quem poderia censurá-las? Os seus homens tinham voltado só para ir buscar as armas e os amuletos de proteção. Chakliux não queria lutar. O medo no seu peito era tão grande que parecia dificultar-lhe o bater do coração, mas ele estava satisfeito por não ser mulher, por não ficar esperando.

O som veio por cima dele, um silvo que o obrigou a baixar-se. Seguiu-se um estrondo, um grito, e Chakliux viu Doninha Pequena, um dos caçadores mais jovens, colado à cabana mesmo à frente, com uma seta atravessando-lhe a carne tenra do flanco e a ponta espetada na pele de caribu da cabana.

Chakliux correu para ele. Doninha Pequena tentava libertar-se da seta, espumando de raiva.

Fica calado, fica quieto, ordenou-lhe Chakliux. Serviu-se da faca que trazia na manga para cortar o cabo acima da ponta da seta e depois arrancou-a da ferida. Doninha Pequena caiu-lhe aos pés e Chakliux pegou-o. Escaparam por pouco de outra seta que atravessou a cabana junto da qual eles se encontravam. Chakliux não parou para ver a quem pertencia a cabana. Limitou-se a arrastar Doninha Pequena para a entrada, pediu ajuda às mulheres lá dentro e foi-se embora.

Qual a magia que dava aos caçadores de Rio Primo o poder de ver na escuridão?, interrogou-se ele, baixando-se de novo quando outra seta se espetou no chão, à sua frente. Puxou a seta e atirou-a para a sua aljava. Talvez a magia estivesse na própria seta. Se ela se encontrasse junto das suas lanças, talvez elas também vissem na escuridão. Levantou a cabeça. Busca-Raízes estava na sua frente, e a sombra do seu corpo sobressaía junto de uma cabana. Antes que Chakliux conseguisse reagir, uma seta de Rio Primo atingiu Busca-Raízes na garganta. Horrorizado, Chakliux correu para ele; horrorizado, viu o corpo de Busca-Raízes devastado pelos espasmos da morte. Quando o jovem se imobilizou, Chakliux levantou-se, mas baixou-se de novo no momento em que uma seta se espetou na cabana, por cima da sua cabeça.

Então, entendeu. Não havia magia nenhuma; eram apenas as silhuetas dos homens de Rio Próximo que se destacavam das cabanas iluminadas. Quando as mulheres atiçavam o lume das lareiras, a luz permitia que os caçadores de Rio Primo vissem os caçadores que saíam da aldeia.

Baixem-se, gritou ele. Eles conseguem ver-nos quando passamos pelas cabanas.

Chakliux colou-se ao chão. Se os homens de Rio Primo cercavam a aldeia, havia poucos lugares onde pudessem esconder-se das suas setas. A cumeeira era como a borda de uma tigela, interrompida apenas pelos degraus de pedra que iam dar no rio. Se alguns dos homens conseguissem chegar ali antes de o Sol nascer, talvez pudessem abrir caminho atrás dos homens de Rio Primo e atacá-los pela retaguarda.

Chakliux olhou para a sua esquerda; depois esperou até ver um movimento e agarrou a perna de Pato-de-Cabeça-Azul, que se arrastava de barriga para baixo. O velho virou-se, de faca em riste.

Sou Chakliux.

Ias morrer, observou o velho.

Vem comigo para o rio disse Chakliux. Não te levantes.

As nossas mulheres são estúpidas, segredou Pato-de-Cabeça-Azul.

Levantou a mão, bateu na parede da cabana mais próxima e gritou:

Apaguem o fogo. Os homens de Rio Primo podem ver-vos. Vocês estão dando luz aos olhos deles para nos encontrarem.

Chakliux ouviu vozes abafadas no interior da cabana e depois, de súbito, a luz apagou-se. Continuou a rastejar para a cabana seguinte, meteu a cabeça no túnel e disse a mesma coisa. Ao longo do caminho que bordejava a aldeia, foram avisando as mulheres e, quando encontravam um caçador, diziam-lhe que os seguisse. Assim que reuniram mais homens, separaram-se em grupos de três e de quatro, com receio que um grupo numeroso chamasse a atenção dos caçadores de Rio Primo, mesmo na escuridão.

Chakliux, Pato-de-Cabeça-Azul e Leva-muito foram os primeiros caçadores a chegar ao caminho para o rio. As sombras eram densas e, por instantes, Chakliux pensou em levantar-se e atirar uma lança aos caçadores de Rio Primo que estavam mais perto deles na cumeeira. Mas não via suficientemente bem para saber se acertaria o alvo. Além disso, se falhasse, os caçadores mais próximos dele poderiam alvejar o caminho, que se bifurcava na cumeeira.

Chakliux agarrou o pulso de Pato-de-Cabeça-Azul e ordenou em voz baixa:

Não atires a tua lança. Assim eles saberão que estamos aqui.

Em seguida, disse o mesmo a Leva-mais. Sentiu que o rapaz ficara sem fôlego e percebeu que ele já tinha uma lança pronta a atirar.

Vão para o rio, disse-lhes Chakliux. No lugar em que a margem é baixa, subam para a floresta. Coloquem-se atrás dos homens de Rio Primo, escolham o vosso alvo, mas não atirem a vossa lança senão quando me ouvirem gritar. Apertou o ombro de Leva-muito e sentiu o rapaz tremendo. Agora vai. Não faças barulho.

Pato-de-Cabeça-Azul e Leva-Muito afastaram-se, e Chakliux ficou à espera do grupo seguinte. Este chegou, conduzido por Sok. Chakliux nem teve palavras para exprimir a sua alegria por o irmão ainda estar vivo, e disse-lhes apenas o que dissera aos outros, mandando-os também para o rio. Continuou esperando.

Apareceram cinco grupos de homens, cada um com três ou quatro caçadores. Por fim, Chakliux dirigiu-se também para o rio e seguiu o seu curso até chegar ao local em que a margem era mais baixa. Subiu-a e desapareceu na floresta de abetos. Encontrou os homens de Rio Próximo na entrada da floresta, à espera, a alguns passos das árvores em que se escondiam os caçadores de Rio Primo.

Muitos dos caçadores de Rio Primo encontravam-se na saliência rochosa. Uns riam, gritando insultos, ao mesmo tempo que atiravam as suas setas para a aldeia. Eram homens que tinham crescido com Chakliux, e ele não pôde deixar de pensar no tempo que haviam passado juntos nem de imaginar a destruição que atingiria as duas aldeias, fosse qual fosse o vencedor. Avançou, gritou e atirou a sua lança. Esta atingiu um caçador de Rio Primo em cheio na omoplata. O homem caiu e o caçador que se encontrava a seu lado virou-se para ver o que acontecera. A sua exclamação de surpresa deu lugar a uma golfada de sangue quando também ele foi atingido.

Em seguida, os homens de Rio Próximo clamaram vitória. Vários caçadores surgiram na cumeeira para exprimir o seu contentamento e foram atingidos pelas setas, mas os outros, a maioria dos caçadores de Rio Próximo voltaram para a floresta, esconderam-se e esperaram pela luz, esperaram que os homens de Rio Primo fossem ao seu encontro.

Eles não foram. Ao amanhecer, desceram das árvores e entraram na aldeia, onde começaram a lutar, cabana a cabana. Chakliux conduziu os homens de Rio Próximo para a aldeia, e eles combateram corpo a corpo, com as suas facas. Os braços possantes de Chakliux permitiram-lhe matar dois homens, mas as pernas fraquejaram e os músculos foram atacados por câimbras. Chakliux entrou numa cabana, rastejando, e depositou a faca nas mãos de uma mulher de Rio Próximo. Ela desatou a chorar, deu-lhe água e ofereceu-lhe comida. Ele aceitou a água, mas não lhe pareceu que fosse capaz de comer. Tinha o estômago crispado pela raiva e pelo medo.

Quando voltou a sair, agarrou por trás um caçador de Rio Primo que lutava com Raposa-Que-Ladra. Matou o homem de Rio Primo com a sua faca de lâmina comprida, e depois aniquilou da mesma maneira um caçador que lutava com Sok.

Chakliux lutou com vários homens até perder o rastro do sol e não sentir as dores. Por fim, quando já não havia mais ninguém para combater, ouviu os gritos de vitória, o ulular das mulheres e as afirmações de que os caçadores de Rio Primo tinham fugido.

Quando as mulheres encontraram os maridos e os filhos mortos, os cânticos fúnebres abafaram os gritos de vitória, mas o cansaço de Chakliux era tão grande que, a princípio, eles não lhe trespassaram o coração. Olhou para o céu e reparou que o Sol ainda ia alto. Como era possível que tivesse acontecido tanta coisa num tão curto espaço de tempo? Com certeza que ele combatera por vários anos. Com certeza tinham levado mais de uma manhã destruindo-se a si próprios.

 

K’os contou os dias pelos dedos. Três para chegar à aldeia de Rio Próximo, apesar de os homens levarem menos tempo, porque eram caçadores e não tinham mulheres nem crianças atrasando-os. Mais um dia para preparar as armas e concluir os planos. Um dia para combater. Talvez dois? K’os contou com dois. Outro dia para celebrar e saquear, dividir as mulheres e as crianças. E depois, quatro dias para regressar a casa? Com mulheres e crianças a estorvá-los, com os feridos, sim, talvez quatro dias. O que dava mais de duas mãos-cheias. Ainda era cedo para se preocupar. Ainda só tinha decorrido uma mão-cheia e mais três.

Agachou-se ao pé do lume e avivou as brasas. A aldeia parecia muito vazia sem os homens, e, por qualquer motivo, K’os não conseguia aquecer-se. Era como se o vento, sabendo que as mulheres e os velhos estavam sozinhos, soprasse com mais força. Meteu as mãos no molho de peles que guardava para fazer botas, perneiras e parkas e encontrou uma grande pele de lobo, virou o pelo para dentro e a pôs em volta dos ombros.

Tencionava fazer uma parka durante a ausência dos homens. Estaria mais bonita para comemorar a vitória. A vestiria para honrar a sua vingança contra Raposa-Que-Ladra e Dorminhoco. Eles mereciam morrer, assim como as mulheres e os filhos. E aquela mulher que abandonara Chakliux no Rochedo do Avô e levara K’os a criar uma criança amaldiçoada? Ela também tinha que morrer.

Todavia, apesar dos seus planos, os dedos de K’os estavam nervosos demais. Deixavam cair furadores e agulhas e emaranhavam as linhas de tendão. Ela cortara a parka e até tingira o pelo de caribu com que bordaria um desenho nos ombros, nos pulsos e no peito, mas não fizera mais nada.

Ouviu um grito mesmo na saída da cabana e levantou a cabeça. Era uma voz de mulher. Talvez alguma criança tivesse se machucado. Ou uma mulher tivesse entornado caldo quente no corpo. K’os deixou cair a pele de lobo que tinha aos ombros e foi buscar a sua bolsa dos remédios. Possuía gálio-boreal para as queimaduras, apesar de os caules secos não serem tão bons como a seiva fresca de uma planta esmagada. Possuía folhas de violeta-amarela misturadas com gordura de ganso para os arranhões, cortes e nódoas negras, e sabia fazer talas de casca de bétula para os ossos partidos.

Mais gritos e alguém chorando. K’os suspirou e depois sorriu. Conseguia um bom preço pelo seu trabalho em geral, um amuleto muito apreciado pela pessoa doente ou ferida. Mais tarde, K’os usava-o muitas vezes ou, melhor ainda, destruía-o e deixava os restos bem à vista no monte de entulho na saída da aldeia.

Tirou várias fiadas de contas e atou-as ao pescoço. Em seguida, pegou a bolsa dos remédios. Porque os obrigaria a ir buscá-la? Porque não sair já? As pessoas que viviam na mesma aldeia deviam ajudar-se umas às outras.

Escutem! disse Homem Noturno. Endireitou-se no espaldar e encolheu-se com o solavanco no ombro.

Tinha bom ouvido, muito melhor que o de Aqamdax. Ela arrastou-se até a entrada e ouviu o som agudo das vozes, das mulheres chorando.

Não saias daqui, ordenou ela a Ghaden, que fora atrás dela. Depois, saiu.

Não conseguia ver nada, mas voltou a ouvir as vozes. Pareciam vir do lado sul da aldeia. Voltou para a cabana.

Aconteceu alguma coisa, disse ela a Homem Noturno.

Calçou as botas e vestiu as perneiras e a parka de sair. Ghaden começou a tentar vestir a parka, mas Homem Noturno abanou a cabeça.

Fica, ordenou ele. Se fores, o Mordedor também irá, e causará problemas se alguém estiver ferido.

Achas que os homens voltaram? perguntou Yaa.

Se tivessem voltado, Estrela teria vindo avisar-nos, disse Aqamdax, mas não deixou de reparar na expressão de terror de Homem Noturno. Se os homens tinham voltado, a coisa não correra bem. Não havia gritos de celebração.

Já venho, disse Aqamdax, saindo às pressas. Atravessou a aldeia correndo, juntou-se a outras mulheres que também corriam e, quando viu o grupo dos homens, ergueu a sua voz num lamento.

Só haviam voltado seis caçadores: Pescador, Corredor, Espreita-o-Céu, Leva-Mais, Homem Risonho e Tikaani. Todos eles tinham algum ferimento. Tikaani vinha deitado num trenó; estava tão pálido que Aqamdax o julgou morto. Estrela e K’os acotovelavam-se atrás dele. K’os olhou por cima do ombro e viu Aqamdax.

Temos que levar este homem para a minha cabana, disse K’os. Levantou a voz e dirigiu-se às mulheres: Levem os outros, cada um para uma cabana. Vejam se eles têm queimaduras provocadas pelo gelo nas mãos ou nos pés, dêem-lhes água e comida, lavem-lhes as feridas e deixem-nos dormir. Eu irei levar remédios mais tarde.

Virou-se e olhou para os homens que estavam junto do trenó de Tikaani.

Algum de vocês tem força para o levar para a minha cabana?

Eu tenho afirmou Espreita-o-Céu. Leva-mais, um velho, caiu de joelhos.

Tragam-no também, disse K’os, apontando com o queixo para o velho.

Aqamdax inclinou-se junto de Estrela e ajudou-a a levantar Leva-Mais. No caminho para a cabana de K’os, Aqamdax viu uma das amigas de Yaa e pediu-lhe que fosse avisar quem estava na cabana de Estrela de que os homens haviam regressado.

Diz-lhes que eu estou na cabana de K’os com o Tikaani e que irei para casa quando puder.

A menina afastou-se correndo, e Aqamdax desejou ser ela a ir. Como iria Homem Noturno reagir, sabendo que o irmão estava ferido? Tinha que ir falar com o marido, mas não queria deixar Tikaani sozinho com K’os.

Aqamdax ajudou Estrela a instalar Leva-Mais nas peles que K’os estendera no chão. Em seguida, despiram-lhe a parka e tiraram-lhe as perneiras e as botas. O homem tinha várias feridas profundas nos braços e uma na testa, mas nenhuma parecia infectada. Abriu os olhos, olhou para as duas mulheres e pediu água a custo. Aqamdax foi buscar um odre de água e pegou-lhe de modo a que só uma gota caísse na boca de Leva-Mais.

O homem protestou, e Aqamdax disse a Estrela:

Este está apenas cansado.

Não consigo ver bem. Vejo tudo em dobro, avisou ele em voz baixa.

Apesar de K’os estar tratando de Tikaani, perguntou:

Alguém te bateu na cara ou na cabeça?

Na nuca, respondeu Leva-Mais. Durante um dia inteiro, não dei por nada. Puseram-me num trenó com Tikaani.

K’os empinou o queixo para Aqamdax.

Põe-lhe as mãos na nuca. Toca-lhe com as pontas dos dedos.

Aqamdax fez o que K’os lhe dissera.

Sentes algum inchaço ou alguma zona encovada?

Um inchaço, respondeu Aqamdax, descrevendo um círculo com o polegar e o indicador para mostrar a K’os como o inchaço era grande.

Verás melhor amanhã, ou pelo menos daqui a dois dias, disse K’os a Leva-Mais. Fica comigo esta noite. Aqamdax vai fazer-te um chá.

A mulher enfiou a mão na bolsa dos remédios, tirou um pacote e atirou-o a Aqamdax.

Só uma pitada. Deixa-o levantar fervura e depois esfriar. Obriga-o a bebê-lo todo.

Retirou várias folhas de vara-de-ouro em pó e disse a Aqamdax e a Estrela que tirassem gordura da panela, que a misturassem com o pó e que a espalhassem nos golpes de Leva-Mais.

Virou-se de novo para Tikaani e cuidou dele durante algum tempo, apalpando-o e limpando-lhe as feridas. Por fim, levantou a cabeça. Um sorriso na face deu esperança a Aqamdax, mas K’os declarou:

Ele está morto. Uma ferida na barriga não é uma boa maneira de morrer, pelo menos nos primeiros dias. K’os olhou para Espreita-o-Céu. Devias tê-lo deixado, devias ter poupado as tuas forças.

Ele era primo da minha mãe, respondeu o jovem. Lutou bem. Eu não podia abandoná-lo.

Não voltou mais nenhum dos nossos caçadores? perguntou-lhe K’os.

Não. Só ficamos nós.

Ao ouvir aquelas palavras, Estrela começou a chorar em voz alta.

K’os virou-se para ela e gritou:

Cala a boca! Depois, perguntou ao jovem: E quantos de Rio Próximo morreram?

Muitos, respondeu ele.

K’os inclinou a cabeça para trás e entoou um cântico, feito de estranhas palavras e de riso.

Conhecias algum? perguntou ela. Um homem chamado Raposa-Que-Ladra e outro chamado Dorminhoco... Morreram?

Não sei, respondeu ele.

Eu lutei com Raposa-Que-Ladra. disse Leva-Mais. Ele ainda está vivo, mas tem um corte aqui. O homem fez deslizar um dedo desde a testa até ao queixo, passando por cima de um olho. Dorminhoco morreu. Fui eu que o matei.

Ah! exclamou K’os. Vou recompensar a tua coragem. Meteu a mão na bolsa dos remédios. Põe isto no chá que estás fazendo disse ela a Aqamdax. Lhe dará melhor sabor e aliviará as dores de Leva-Mais.

Aproximou-se de Leva-Mais, começou a examinar-lhe as feridas e por fim fez um gesto de cabeça como se estivesse satisfeita.

Não temos aqui nada de grave, observou ela, carregando-lhe na nuca. Mesmo isto. Tenho visto pior. O meu filho Chakliux. Viste-o? perguntou ela a Espreita-o-Céu.

Está vivo, disse ele. Vi-o quando vínhamos embora. Julguei que ele nos mataria, mas ele afastou os caçadores, apesar de alguns ficarem irritados. Eu ouvia os gritos deles. Mesmo assim, fizeram o que ele disse.

K’os assobiou, não disse nada durante muito tempo e, quando voltou a falar, Aqamdax viu-lhe sangue nos cantos da boca.

Não te importas de levar este para casa? disse ela, tocando no corpo de Tikaani com o pé. Não te importas de o levar para a cabana dela? K’os apontou para Estrela. A mãe e a irmã que o preparem para o funeral. Eu não tenho tempo. O meu trabalho é com os vivos. Além disso, se algum dos nossos homens merecia a morte, era ele. Foi ele que planejou o ataque aos de Rio Próximo.

Eu sei quem planejou o ataque afirmou, Espreita-o-Céu. Depois, levantou a cabeça e cuspiu no rosto de K’os.

Ela começou a gritar e a praguejar, mas o homem ignorou-a. Ele pôs o corpo de Tikaani no ombro e saiu da cabana atrás de Estrela e de Aqamdax.

 

ALDEIA DE RIO PRÓXIMO

Pato-de-Cabeça-Azul estava morrendo. As feridas no corpo eram superficiais e não bastavam para o matar mas, em algum lugar durante a luta, alguém amaldiçoara o coração do homem, e ele tombara como que atingido por uma seta, agarrando-se ao peito com dores, onde não tinha sangue.

Agora, tens que ser tu conduzindo esta aldeia, disse ele a Chakliux. Não há mais ninguém. Tsaani morreu. Lobo-e-Corvo morreu.

O velho enumerava os nomes como se também ele tivesse morrido e não se preocupasse com aquilo que os espíritos lhe poderiam fazer.

Sok não tem inteligência para isso.

Pato-de-Cabeça-Azul fez uma pausa, respirou fundo, levou a mão ao peito e estremeceu, e Chakliux desejou poder partilhar as dores do homem.

Não queremos Raposa-Que-Ladra. Um homem que é tão preguiçoso que não consegue sustentar as suas mulheres não deve conduzir uma aldeia. Não queremos Treina-Cães.

Uma lua antes, Chakliux teria sorrido ao ouvir as palavras de Pato-de-Cabeça-Azul. Todos sabiam a rivalidade que existia entre Pato-de-Cabeça-Azul e Treina-Cães. Treina-Cães teria sido um bom chefe, suficientemente sensato e forte para defender o que considerava estar certo. Mas Treina-Cães morrera. Chakliux desviou o olhar para que Pato-de-Cabeça-Azul não percebesse o conhecimento dessa morte. Em breve o saberia. O deixaria rivalizar um com o outro no mundo dos espíritos.

Pedi às pessoas que se reúnam esta noite. Estarei lá. Elas me darão ouvidos.

Chakliux fez um gesto afirmativo e não exprimiu a sua dúvida. Por que elas dariam ouvidos a um homem que estava morrendo? Quase todos os homens reconheciam que Chakliux ajudara a salvar a aldeia da destruição total, mas muitos caçadores e a maioria dos velhos tinham morrido. Quando os homens de Rio Primo viram que estavam perdendo, incendiaram algumas cabanas, matando duas velhas e várias outras mulheres: Flor Azul e Sem-Dentes, Erva Nova e o seu bebê e as esposas-irmãs Água Castanha e Boca Feliz. Metade dos jovens caçadores tinham morrido na batalha, assim como a maioria dos rapazes, incluindo Leva-Muito, o filho de Sok.

Chakliux não queria lembrar-se do rosto do sobrinho. Quando o recordava, a sua tristeza era como uma ferida no coração, e só conseguia chorar para exprimir a sua angústia.

Tinham caçadores suficientes para manter a aldeia forte, para fornecer comida para o Inverno e para pescar, mas só sobrevivera uma mão-cheia de homens de Rio Primo, e, desses, Tikaani e Leva-Mais tinham sido levados num trenó.

Chakliux convencera os homens de Rio Próximo a deixá-los partir. Talvez isso fosse um disparate, mas como poderiam as mulheres deles sobreviver se não tivessem homens para caçar?

Chakliux saiu da cabana de Pato-de-Cabeça-Azul e dirigiu-se para a floresta, passando por um grupo de jovens que experimentavam arcos e flechas apresados na batalha. Descobriu um rochedo junto de um grande abeto, sentou-se, e levantou os pés, protegendo-se do frio que vinha do solo ainda gelado.

Relembrou todos os rostos dos homens de Rio Primo que conhecera. Embora tivessem sido eles a começar a luta, lamentava tanto a sua morte como a do povo de Rio Próximo. Era provável que tivesse sido um caçador de Rio Primo a matar Tsaani e Daes. Porque é que as pessoas faziam coisas tão estúpidas?

Encostou a cabeça ao tronco da árvore e pensou em todas as histórias que tinham lhe contado: as histórias de Rio Primo e de Rio Próximo, Tundra do Norte e Caribu, e as histórias dos Primeiros Homens que ouvira Aqamdax e Qung contar. Ouviu-as de novo como se fosse uma criança e aprendesse tudo pela primeira vez. Escutou-as, e as palavras eram como um bálsamo quer para as feridas do seu corpo quer para as outras, maiores e mais profundas, que lhe dilaceravam a alma.

Sok ocupou o seu lugar no meio dos caçadores. Com tantos mortos na batalha, o círculo de homens era pequeno, mas essa pequenez fazia-o sentir-se maior, mais importante. Nessa noite iriam escolher um chefe. Quem mais poderia ser, senão ele? Pato-de-Cabeça-Azul estava morrendo, fora o próprio Chakliux que o dissera a Folha Vermelha. Dorminhoco e Treina-Cães tinham morrido. Chakliux não seria escolhido. Como podia um homem com só uma perna boa conduzir o seu povo? Como podia uma pessoa criada na aldeia de Rio Primo contar com o respeito dos caçadores de Rio Próximo? Ninguém queria Raposa-Que-Ladra. Quem podia confiar no homem? A pessoa mais velha da aldeia devia ser Ligige’. Quem lhe daria ouvidos?

Sok vestira a sua melhor parka e levara as suas duas esposas, assim como Chora-Alto e o filho recém-nascido de Neve-no-Cabelo. Folha Vermelha besuntara a face com carvão e cortara o cabelo curto em sinal de luto. Também Sok sofria com a morte do filho, mas este morrera com bravura, e qual o pai que não encontrava nisso consolação? Poria o nome de Leva-Muito no filho de Neve-no-Cabelo, chamando assim de novo o rapaz a viver com eles. Talvez Folha Vermelha encontrasse conforto nisso, embora as duas mulheres discutissem muitas vezes, usando as palavras como os homens usavam as armas.

Quatro caçadores trouxeram Pato-de-Cabeça-Azul da sua cabana num cobertor de pele de caribu, cada um segurando num canto. A velha esposa corria ao lado dele, acariciando-lhe os cabelos e as roupas, exagerando, até que Sok foi obrigado a desviar o olhar para não criticar o destempero da mulher.

Pousaram-no numa almofada de peles macias, junto da lareira. Os três outros velhos instalaram-se perto dele, mas Sok ficou com os caçadores mais jovens e esperou que a mulher de Pato-de-Cabeça-Azul se afastasse do marido e ocupasse o seu lugar no meio das mulheres. Então, aproximou-se de Neve-no-Cabelo, tirou-lhe o filho dos braços e levou-o com Chora-Alto a Pato-de-Cabeça-Azul. Ajoelhou-se ao lado do homem e disse:

Trago os meus filhos para prestarem homenagem aos velhos desta aldeia. Trago-os para que eles compreendam aquilo que é sagrado e respeitem o que estes homens dão ao povo de Rio Próximo.

Aguardou, na esperança de que Pato-de-Cabeça-Azul abrisse os olhos e dissesse qualquer coisa, mas o velho parecia já estar morto, apesar de Sok ver os movimentos penosos da respiração no seu peito. Por fim, Sok começou a cantar em voz baixa, um cântico de caça que aprendera com o avô. Devolveu o bebê e Chora-Alto às mães e retomou o seu lugar no meio dos caçadores. Acalmou a sua fúria esperando que, mesmo sem o reconhecimento de Pato-de-Cabeça-Azul, o seu ato tivesse sido suficiente para conquistar o favor das pessoas, para as fazer compreender quem devia ser o chefe dos caçadores.

Esperou, no meio de um silêncio desconfortável, sem saber quem seria o primeiro a falar. Dos velhos que ainda eram vivos, Pato-de-Cabeça-Azul estava perto demais do mundo dos espíritos para saber o que se passava na aldeia. Raposa-Que-Ladra não tinha o respeito de ninguém. Chama-o-Sol era um homem gago e de poucas palavras, e Dá-Carne retirara-se há muito para um mundo inatingível. Passava o tempo sentado, babando-se, e com as perneiras manchadas de urina.

Então Pato-de-Cabeça-Azul levantou a mão, fez um pedido em surdina, e Chama-o-Sol puxou-o para cima até ele ficar quase sentado.

Estou morrendo, disse ele, tão de repente que todos os murmúrios, todos os movimentos cessaram, e era como se até o vento se tivesse calado. Há mais de um ano, vivemos sem o nosso chefe dos caçadores. Uns dizem que a sua vida foi levada pelos espíritos; outros afirmam que foi por aqueles inimigos que acabamos de derrotar. Agora perdemos o nosso xamã. A nossa curandeira é uma velha.

Pato-de-Cabeça-Azul virou-se lentamente para Ligige’. Os olhos dela, que se destacavam da face enegrecida pelo luto, encontraram-se com os dele.

Alguns chamaram-me chefe, disse Pato-de-Cabeça-Azul. No meio dos velhos, eu fui muitas vezes o primeiro a falar.

O velho engasgou-se, respirou fundo várias vezes e, quando voltou a falar, foi com uma voz mais sonora, mais forte.

Vocês têm que escolher um novo chefe. Não digo que escolham um novo xamã, que isso é impossível, mas que escolham alguém que oriente os velhos, alguém que seja chefe dos caçadores, talvez um homem, ou dois. Fez uma pausa. A minha escolha seria...

Sok susteve o fôlego e esperou com impaciência que o olhar de Pato-de-Cabeça-Azul pousasse nele, mas tal não aconteceu. Sok inclinou-se para a frente e verificou que o velho olhava fixamente para Chakliux.

Chakliux, proferiu Pato-de-Cabeça-Azul. Para chefe dos velhos e dos caçadores.

Sok abriu a boca para protestar, mas as palavras sufocaram-no e, antes que conseguisse dizer alguma coisa, Pato-de-Cabeça-Azul arfou, agarrou-se ao peito, contorcendo-se como se quisesse fugir das dores. Soltou um grito e depois imobilizou-se, com a boca e os olhos abertos.

Mulheres e homens rodearam-no, e por fim a velha Ligige’ levantou a voz para anunciar a toda a gente que ele estava morto.

Ninguém entoou um cântico fúnebre, e Sok perguntou a si próprio se a tristeza se acumulara de tal modo nas pessoas que estas já não tinham mais nada para cantar.

De repente, Raposa-Que-Ladra começou a falar, levantando-se, no meio dos velhos.

Este homem era bom, inteligente e forte. Vamos sentir a sua falta. Eu gostava de lhe chamar amigo, mas agora que só restam três velhos, tenho que falar. Como podemos aceitar um homem que é novo, e que, embora seja meu filho, foi criado no seio daqueles a que chamamos inimigos? Ele combateu por nós, e eu orgulho-me da sua força, mas afirmo que nós, que somos velhos, nos conduziremos a nós próprios. Vocês, os jovens, vão, cacem e protejam as nossas mulheres, dêem-lhes filhos e filhas, ensinem os vossos sobrinhos a caçar. Quando os anos vos tiverem dado sabedoria, juntem-se a nós, os velhos, mas não antes.

Chakliux, não quero desrespeitar-te declarou ele, sorrindo. Tu és um contador de histórias. Orgulha-te disso, mas deixa que os velhos se conduzam a si próprios.

Sok olhou para Chama-o-Sol e para Dá-Carne, ciente de que tudo seria resolvido por Raposa-Que-Ladra.

Por isso, ergo a minha voz para venerar o nosso contador de histórias.

O homem iniciou um cântico de louvor e outros fizeram o mesmo, mas Sok manteve-se sentado e em silêncio, assim como Chakliux, de olhos postos em Pato-de-Cabeça-Azul, um homem bom que jazia morto sem a homenagem dos cânticos fúnebres.

Quando o cântico de louvor terminou, uma mulher começou a entoar um cântico fúnebre, mas Raposa-Que-Ladra falou de novo.

Apesar desta homenagem prestada ao meu filho Chakliux, não posso pedir que ele seja também chefe dos caçadores. Há outros que trazem mais carne. Agora, depois desta batalha com os nossos inimigos, temos que arranjar um chefe dos caçadores cuja boa sorte se estenda a todos os homens da aldeia.

Vários caçadores gritaram o nome de Sok, e mais uma vez ele sentiu a esperança a crescer no seu coração. Raposa-Que-Ladra tinha razão. Chakliux fora criado como dzuuggi pelo povo de Rio Primo, e devia ser contador de histórias. Mas a perna fraca impedia-o de ser chefe dos caçadores.

Raposa-Que-Ladra levantou as mãos, olhou para Sok e sorriu.

Mais uma vez, tenho a honra de ouvir o nome de um dos meus filhos. Qual o caçador que é melhor do que Sok? Até o avô sabia que ele era hábil no manejo da lança e do lançador, mas Sok tem uma maldição. Ele é meu filho, e eu não queria dizer-vos isto, mas tenho essa obrigação. Já morreu muita gente.

Sok olhou para o padrasto. A que se referia ele? A que maldição? Olhou à sua volta e procurou Chakliux. Muitas vezes, o irmão compreendia coisas que escapavam ao seu entendimento, mas viu a mesma confusão no rosto do irmão. Em seguida, viu Folha Vermelha estendendo os braços para Raposa-Que-Ladra, como se pudesse impedi-lo de pronunciar aquelas palavras.

Olhem! O que vejo eu? A neve é vermelha, como o chão de uma cabana, declarou Raposa-Que-Ladra, dirigindo-se a Chakliux. Aprendi a apreciar os teus enigmas. Depois, virou-se para Sok. Olhem, o que vejo eu? Ela receia ter que construir uma cabana na lixeira e deixar de ver o Sol.

Sok olhou para Chakliux e viu a compreensão, depois a tristeza e a alvorada nos olhos do irmão.

 

Raposa-Que-Ladra semicerrou os olhos. A ferida que lhe rasgava a cara da testa até o queixo estava escura como o sangue.

Não compreendes? disse ele a Sok. Pergunta ao teu irmão. Com a mente dele e os teus pés, ambos dariam um bom guerreiro. Em seguida, estendendo os braços para o círculo de pessoas, Raposa-Que-Ladra disse: Temos que esperar antes de decidirmos quem será o chefe dos caçadores. Depois da caça ao caribu, saberemos e tomaremos uma decisão acertada. Até lá, os velhos resolverão quando iremos à caça e onde. Nós os três, indicou ele. apontando para Chama-o-Sol e Dá-Carne.

Ouviu-se um murmúrio de desaprovação, e por fim um dos jovens falou.

Sok é o nosso melhor caçador, e Chakliux entende de caça no mar. Sok tem muitos cães fortes e Chakliux trouxe-nos os filhotes de olhos dourados. Acho que estás enganado quanto a essa maldição.

Eu sei coisas que tu não sabes, disse Raposa-Que-Ladra. Lembra-te de que Chakliux só tem um cão neste momento, e a maior parte dos cães de Sok morreu.

O homem ficou esperando, mas ninguém falou.

Não me interpretem mal. Talvez seja Chakliux ou Sok a conduzir-nos. O que eu digo é que devemos esperar Depois do que caçamos na Primavera e no Verão, quando o Inverno se aproximar, resolveremos quem será o nosso chefe dos caçadores. Quem sabe o que acontecerá então? Muitas coisas podem mudar.

Levantou a sobrancelha a Chakliux, mas este fingiu que não via. Talvez o enigma de Raposa-Que-Ladra não estivesse certo. O homem mentia com freqüência, sobretudo em seu próprio benefício.

Agora, o que é mais importante é este morto, respeitado como velho durante tanto tempo. Temos que chorá-lo, como choramos todos os homens e mulheres que morreram nesta batalha.

Algumas mulheres levantaram a voz para começar a chorar, mas os homens ergueram facas e lanças.

Raposa-Que-Ladra fez sinal aos homens para que baixassem as armas.

Quando acabarmos o nosso luto, falaremos de vingança exclamou ele. Seis caçadores dos deles saíram vivos desta aldeia. Alguns dos nossos homens disseram que não devíamos ir atrás deles. Eu digo que fizemos mal em deixá-los viver. Não, eles não podem atacar a nossa aldeia como fizeram uma vez, mas o que os impedirá de perseguirem os nossos caçadores e de os matarem um a um? O que os impedirá de atacarem as nossas mulheres e os nossos filhos quando eles forem montar armadilhas?

Os caçadores começaram a falar em voz alta e vários homens levantaram-se, entoando um cântico de vitória. Chakliux também se levantou, aproximou-se do irmão e afastou-o do círculo.

Qual o significado dos enigmas? perguntou Sok, arfando como se tivesse vindo correndo. Compreendes o que ele acabou de nos fazer? Juntos, poderíamos ser os chefes da nossa aldeia, eu o chefe dos caçadores e tu o chefe dos velhos.

Ele quer poder para si próprio, afirmou Chakliux.

Julgas que eu não sei que ele quer todo o poder para si próprio, só porque não entendo os seus enigmas?

Chakliux sentiu o medo nas palavras do irmão.

Sok, agora há coisas mais importantes a resolver. A cabana de Folha Vermelha está vazia?

Está.

Vamos para lá.

Ligige’ viu Sok e Chakliux saírem do círculo. Ouvia Raposa-Que-Ladra, que continuava falando, e matutava nos enigmas, virando-os e sacudindo-os como uma mulher limpando as esteiras do chão. Os enigmas eram um disparate, pensou ela. Porque gostaria tanto deles o povo de Rio Primo? A sua irritação aumentava à medida que Raposa-Que-Ladra falava. As pessoas acreditavam nele? As suas palavras eram como redes prontas a apanhá-los a todos. Embora ele elogiasse Pato-de-Cabeça-Azul naquele momento, os outros já teriam se esquecido das anedotas que Raposa-Que-Ladra inventava a respeito do homem, das mentiras que contava dos seus filhos e até dos seus cães? Julgariam que ele era digno de confiança só porque vertera umas lágrimas?

Raposa-Que-Ladra disse a várias velhas e dois sobrinhos de Pato-de-Cabeça-Azul que levassem o cadáver do homem para a cabana da mulher e, quando eles saíram, falou de novo em vingança, prometendo aos jovens que eles podiam fazer das mulheres de Rio Primo suas esposas e assegurando às mulheres que os seus homens trariam comida e peles das despensas de Rio Primo. Por fim, Ligige’ não conseguiu ouvi-lo mais.

Levantou-se com a ajuda da bengala e gritou para quem a quisesse ouvir:

Ele é um louco, um mentiroso. Se vocês o seguirem, não são melhores do que ele.

Virou-se para abandonar o círculo, ignorando os gritos que lhe eram dirigidos. Ao afastar-se, a sua fúria pareceu desanuviar-lhe a mente e, de repente, percebeu o que Raposa-Que-Ladra queria dizer com os enigmas.

Foi como se lhe tivessem dado um murro no estômago, e foi obrigada a parar, a recuperar o fôlego. Ia dirigindo-se para a cabana de Folha Vermelha, mas depois concluiu que tinha que pensar antes de falar com Sok.

Os seus pensamentos eram tênues como a fumaça, descrevendo círculos, desde a batalha. Quem podia acreditar que uma aldeia tivesse perdido tanto num dia? Quem podia acreditar que morrera tanta gente? E quem podia acreditar que o desgosto não a matara?

Sok espevitou as brasas da lareira, empurrou o capuz da parka para trás e aproximou as mãos abertas do fogo. Por fim, Chakliux declarou:

Não me parece que muita gente tenha compreendido os enigmas.

Talvez eu tenha compreendido o primeiro, respondeu Sok. Vermelho na neve e no chão de uma cabana significa sangue. Ele falava de duas mortes, a do nosso avô e a da mulher dos Caçadores Marinhos.

Chakliux concordou com um gesto de cabeça.

Mas não compreendo o segundo enigma.

Chakliux fechou os olhos e cerrou os punhos. Não queria dizer aquilo a Sok. Se não fosse verdade, porque o repetiria? Mas se fosse verdade e Raposa-Que-Ladra soubesse, tinham que estar preparados: deviam pensar antes de agir.

O que nós pomos nas lixeiras? perguntou ele em voz baixa.

Sok despiu a parka pela cabeça, a pôs no chão e depois resmungou:

Coisas para jogar fora, coisas que não queremos.

Quem é que vive em cabanas? perguntou Chakliux.

Nós. Todos nós, respondeu Sok com uma ponta de irritação na voz.

Pessoas, disse Chakliux. Nem animais, nem pedras, nem plantas. Pessoas.

Sim.

De quem são as nossas cabanas?

Das mulheres.

O segundo enigma era: "Ela receia ter que construir uma cabana na lixeira e deixar de ver o Sol.”

Uma mulher rejeitada. Ele refere-se a uma mulher rejeitada pelo marido, afirmou Sok, franzindo a testa. As únicas mulheres rejeitadas no ano passado foram Mirtilo e a mulher dos Caçadores Marinhos.

Chakliux abanou a cabeça.

Raposa-Que-Ladra falava de uma mulher que tinha medo de ser rejeitada.

Podia ser uma mulher qualquer.

Lembra-te de que ela tem medo de não voltar a ver o Sol.

Chakliux apontou para o motivo do Sol na parka de Sok e viu a compreensão e depois o horror no rosto do irmão.

Folha Vermelha? perguntou ele em voz baixa. Não foi Folha Vermelha. Ela preocupava-se tanto com o nosso avô. Ela não seria...

De repente, Sok levantou-se.

Raposa-Que-Ladra! gritou Sok. Ele está tentando destruir-nos. Ele quer que os outros nos expulsem da aldeia!

Abriu a aba da porta, depois parou e voltou a entrar na cabana, boquiaberto. Folha Vermelha entrou, de olhos postos nele.

Compreendes o enigma? perguntou ela.

Ele está mentindo. Não é verdade? disse Sok. Então, Raposa-Que-Ladra entrou também na cabana, com a boca escancarada num sorriso.

Conta-lhe, disse Raposa-Que-Ladra a Folha Vermelha.

A mulher falou em voz baixa, como que em segredo:

Eu matei o teu avô e a mulher dos Caçadores Marinhos.

Ela teria me matado, se pudesse, mas achou que eu guardaria o seu segredo, disse Raposa-Que-Ladra. Ela julgava que eu preferia manter a honra do meu filho. Foi o que fiz quase sempre, mas havia momentos...

O homem olhou para Sok e riu.

Folha Vermelha virou-se para ele e levantou as mãos.

Para que ficasses com os seus cães. Para que ficasses com as suas canções. Para que fosses chefe dos caçadores.

Sok enterrou a face nas mãos. Os seus ombros estremeceram, mas Chakliux não ouviu nenhum som. Por fim, Sok olhou para a mulher.

Nenhum homem quer ser chefe dos caçadores dessa maneira, declarou ele, falando em voz baixa como se se dirigisse a uma criança.

Eu tinha medo de que me rejeitasses para ficares com Neve-no-Cabelo como primeira esposa. Eu sabia que tu a desejavas ainda antes de me tornar tua mulher. Julguei que conseguiria fazer-te esquecê-la, e depois pensei que ela poderia ser segunda esposa, mas que Lobo-e-Corvo não te daria.

Pensei que ele poderia dar-te se fosses chefe dos caçadores. Então, não me rejeitarias. Eu não tencionava matar a mulher dos Caçadores Marinhos. Mas ela viu-me, ela e o filho. Julguei que o rapaz fosse dizer a outras pessoas, mas eu vesti-me de homem e ele não deve ter me reconhecido. Mas Raposa-Que-Ladra viu-me...

Eu acabara de sair da cabana do vosso avô, continuou Raposa-Que-Ladra. Vi-a das sombras, mas ela não me viu. Só no dia seguinte é que eu soube quem tinha morrido. Depois lembrei-me de que a tinha visto. Fui falar com Folha Vermelha e prometi-lhe que não contaria nada, que eu não queria que o meu filho fosse prejudicado por um ato cometido pela mulher. Mas às vezes um homem não consegue viver mais tempo com mentiras.

Sok virou as costas a Raposa-Que-Ladra e disse a Folha Vermelha:

Nós tínhamos dois filhos fortes. Eu não te rejeitaria, mas agora...

As suas palavras desvaneceram-se, e Sok agarrou a faca que trazia à cintura.

Sabes quantas vezes desejei matar a pessoa que tirou a vida ao meu avô?

Eu sairei da aldeia, declarou Folha Vermelha. Encontrarei outro local qualquer para criar o nosso filho.

Sok cerrou os dentes.

Se eu te deixar sair, não levarás Chora-Alto. Ele ficará comigo. Neve-no-Cabelo será a sua mãe.

Eu não estou falando de Chora-Alto, proferiu Folha Vermelha, pondo a mão na barriga. Falo deste filho que trago debaixo do coração.

Raposa-Que-Ladra riu.

Então, que alternativa tens? perguntou ele. Fica com ela. É uma mulher forte. Quem mais sabe fazer parkas como Folha Vermelha? Mas devo dizer-te que ela não é bem-vinda nesta aldeia. Tu podes ficar, mas ela não. Nem o filho. Qualquer filho.

O homem riu outra vez.

Sok deu meia volta, pegou a parka e atirou-a para o fogo. O pelo incendiou-se, enchendo a cabana de fumaça.

Sai! gritou ele a Raposa-Que-Ladra. Esta mulher, eu e os nossos filhos sairemos da aldeia amanhã de manhã. Até lá, não te quero ver.

Sok empurrou Raposa-Que-Ladra para o túnel de entrada.

Chakliux tirou os restos queimados da parka da lareira com um pau e foi colocá-los lá fora.

Sok agachou-se e depois sentou-se com a cabeça nas mãos. Chakliux sentou-se a seu lado.

Eu vou contigo, disse ele ao irmão. Ainda tenho esperança de encontrar Aqamdax.

Aqamdax morreu, disse Sok. Vi a morte dela em sonhos.

Eu não vi, respondeu Chakliux em voz baixa.

Para onde iremos?

Para a aldeia de Rio Primo.

Eles são nossos inimigos.

Eles são o meu povo. Não posso permitir que Raposa-Que-Ladra planeje um ataque de vingança sem eu avisá-los.

Porque eles acreditarão em ti? Porque te darão ouvidos? Eles sabem que lutaste contra eles.

Irei falar com a minha mãe, na calada da noite.

Achas que ela não te matará?

Talvez tente matar-me, mas me ouvirá primeiro.

De que lhes servirá saberem que os nossos caçadores vão a caminho? Só lhes resta uma mão-cheia de caçadores. Sok olhou fixamente para Chakliux. Não esperas que eu lute contra o meu próprio povo. Não o farei. Procurarei vingar-me de Raposa-Que-Ladra, mas não dos outros.

Então compreendes o que sinto pelo meu povo. Tenho poucos de que me queira vingar: Homem Noturno e Tikaani, embora ambos já possam ter morrido. Não vi Homem Noturno na luta nem entre os sobreviventes, e Tikaani foi levado de trenó. Resta apenas a minha mãe.

E, nesta aldeia, Folha Vermelha, disse Sok, olhando para a mulher até ela se encolher junto da parede da cabana e cobrir o rosto com as mãos.

Durante muito tempo, nenhum dos homens falou, mas, por fim, Sok quebrou o silêncio.

Levarei Folha Vermelha e Chora-Alto e partirei de manhã. Andarei pelos arredores da aldeia de Rio Primo. Se optares por vir comigo, vem. Fico à espera que vás visitar o povo de Rio Primo. Se não voltares, continuarei a viagem e tentarei encontrar uma aldeia de Rio que receba bem um caçador e a sua mulher. Ou talvez construa uma cabana perto do Lago do Avô e fique por lá. Sok fixou Chakliux.

Tem sido bom ter um irmão.

Desenrolaram as esteiras, mas Chakliux não conseguia dormir. Já tinham embalado muitos dos seus pertences, e de manhã esvaziariam as suas despensas. Embora Lobo-e-Corvo lhe tivesse matado a maior parte dos cães, Sok ainda possuía Falcão da Neve e mais dois. Chakliux tinha Nariz Preto. Com os cães e os quatro Chakliux, Sok, Folha Vermelha e Chora-Alto podiam levar muita coisa, e até a cobertura de pele de caribu da cabana de Folha Vermelha.

Chora-Alto fora falar com eles quando estavam preparando a bagagem, mas Sok recusara-se a responder às muitas perguntas do rapaz. Por fim, Folha Vermelha chamou-o de lado e falou com ele durante muito tempo. Então, o rapaz ajudou-os também, com o rosto sombrio e os olhos vermelhos e inchados, embora Chakliux não o tivesse visto chorar.

De madrugada, Chakliux ouviu alguém do lado de fora da cabana. Sentou-se e pegou a faca. Se os outros tivessem resolvido os enigmas de Raposa-Que-Ladra, poderiam querer vingar-se, mas depois Chakliux sentiu raspar na parede da cabana. Qual o inimigo que avisava antes de entrar? Atravessou o túnel. Neve-no-Cabelo estava lá fora, com o filho atado nas costas.

Preciso de falar com o meu marido.

Chakliux fez-lhe sinal para que entrasse e viu que Sok e Folha Vermelha estavam acordados. Sok sentou-se junto da lareira.

Chakliux embrulhou-se nos cobertores, deitou-se e virou-lhes as costas.

Raposa-Que-Ladra foi falar comigo, afirmou Neve-no-Cabelo. O que ele me contou é verdade?

É, respondeu Folha Vermelha tranqüilamente, aproximando-se de Sok.

Porque fizeste uma coisa dessas?

Para conservar o meu marido, respondeu Folha Vermelha.

Acho que posso compreender. Se eu for com vocês, eu e o meu filho estaremos seguros? perguntou Neve-no-Cabelo.

Estarão seguros, respondeu Sok, mais alto.

Não. Estou perguntando a Folha Vermelha, disse Neve-no-Cabelo.

Estarás segura, assim como qualquer dos teus filhos.

Quando partem?

De manhã, depois de tirarmos a cobertura da cabana respondeu Sok.

Me ajuda a tirar a cobertura da minha? perguntou ela.

Ajudo, disse Sok, e Chakliux percebeu a alegria na voz do irmão.

A mulher saiu e em seguida entrou a mãe, Mulher Diurna. As suas lágrimas e os seus soluços acordaram Chora-Alto. Iria com eles, disse ela, e nenhum argumento de Sok ou de Chakliux a conseguiu convencer do contrário. Já trouxera o seu fardo. Raposa-Que-Ladra estava zangado, mas não a impediria de partir. Qual o préstimo de uma mulher sem filhos na aldeia, uma mulher que já não tinha idade para conceber? Era provável que Raposa-Que-Ladra a rejeitasse no começo do Inverno. Preferia uma mulher mais nova.

O que podiam Sok e Chakliux fazer senão levá-la?

De manhã, quando enrolaram os cobertores, quando Folha Vermelha e Mulher Diurna foram esvaziar a despensa, enquanto Chora-Alto e Chakliux começavam a tirar a cobertura da cabana dos postes, Ligige’ foi falar com eles. Levava o cão de Lobo-e-Corvo e os seus pertences atados ao dorso do animal. Agachou-se e ficou vendo-os trabalhar, aconselhando-os de vez em quando.

Cerca de meio-dia, estavam prontos para sair da aldeia. Ignorando as pragas e reconhecendo os gritos que eram bênçãos, partiram: dois caçadores, duas mulheres, um rapaz, um bebê, cinco cães e duas velhas.

 

Pela terceira vez desde o regresso dos homens, os sonhos de K’os fizeram-na recuar ao dia no Rochedo do Avô. Pela terceira noite, ela não era K’os, curandeira, temida por todos, mas K’os, filha de Marta, uma moça sem poder. Acordou sobressaltada. Os cobertores estavam enrolados à sua volta, imobilizando-a, tal como Asa-de-Gaivota a imobilizara; a trança desfizera-se e os cabelos cobriam-lhe o rosto, abafando-a, tal como a parka a abafara.

Depois ouviu a voz do homem. Como ainda estava sonhando, julgou tratar-se de Asa-de-Gaivota. Abriu a boca para gritar mas, ao respirar, engoliu o próprio cabelo. Sentiu as mãos no rosto, mas eram ternas, afastando-lhe os cabelos, soltando-lhe os cobertores. Então a sua mente e os seus olhos desanuviaram-se, e ela percebeu que era Chakliux.

Afastou-lhe as mãos, levantou-se, desembaraçou-se dos cobertores e pôs um deles pela cintura. Mexeu as brasas da lareira, chegou um tripé em que estava pendurada uma pele de caribu cheia de guisado mais para junto das brasas, agachou-se e olhou para ele.

Ele era maior do que ela julgava, e o seu rosto mudara. De rapaz para homem? Não, isso acontecera muito antes. De contador de histórias para guerreiro. Talvez isso.

Então estás vivo, disse-lhe ela.

As palavras foram ríspidas, secas com a apatia do sono.

O silêncio dele recordou-lhe Bate-no-Chão, e K’os perguntou a si própria se o espírito do marido morto não teria passado para Chakliux, não reforçara nele uma necessidade de vingança.

Os nossos guerreiros dizem que os homens de Rio Próximo lutaram com bravura, comentou ela. Também me dizem que foste tu que os chefiaste.

Combatemos para proteger as mulheres e as crianças, e os velhos, disse Chakliux.

K’os levantou-se, pegou duas tigelas de madeira e encheu-as com carne que tirou da panela.

Comes? perguntou ela estendendo-lhe as duas tigelas.

Ele pegou uma, envolveu-a com as mãos e esperou que K’os desse a primeira dentada. Depois comeu.

Tens medo que eu te envenene? perguntou ela, gozando dele.

Ensinaste-me a ser cauteloso, respondeu ele.

E porque eu como, pensas que estás seguro? E se eu tiver resolvido morrer? E se eu tiver decidido sacrificar-me para matar aquele que matou tanta gente do meu povo?

Chakliux sorriu.

Tu não te importas com o teu povo. Porque morreras por ele?

Porque não? Um dia morrerei de qualquer maneira. Sou uma velha.

Chakliux examinou-a.

Sim, és uma velha, disse ele por fim.

As palavras dele enraiveceram-na, mas K’os conseguiu conter-se.

A sabedoria vem com a idade. A força, o poder e o respeito.

Para alguns.

A garganta de K’os ardia com pragas não verbalizadas, e a mulher agarrou-se com força à tigela para não dar uma bofetada em Chakliux.

Pois então vieste escarnecer da nossa derrota, aproveitar-te das mulheres? Só cinco é que têm marido, seis, se contares com Aqamdax, embora Homem Noturno esteja morrendo.

K’os ouviu-o arfar quando ela se referiu a Aqamdax.

Não sabias que a mulher estava aqui? perguntou ela, rindo. Foi-me oferecida por Tikaani e Cen. Foi minha escrava até Tikaani concluir que o irmão precisava de uma esposa. Usei-a bem.

A mulher riu outra vez e sentiu que o riso lhe devolvia uma parte do seu poder.

Pois então ela encontrou um lugar no teu coração. Julguei que não tinhas espaço senão para uma mulher morta e um filho morto.

Chakliux não respondeu e K’os continuou falando.

Sim, Cen e Tikaani apanharam-na e ao rapaz, o irmão. Ele também está aqui. Estrela recebeu-o como um filho, mas não te preocupes em vingar a captura deles. Tikaani morreu e, como Cen não regressou da batalha, creio que também morreu.

A mulher apertou os olhos e observou Chakliux. Este levou a tigela à boca e comeu até a esvaziar.

Perguntei porque estás aqui, disse K’os, sem voltar a encher-lhe a tigela e sem lhe oferecer água.

Ele levantou-se, tirou um odre de água do poste e bebeu. Limpou a boca com a mão e depois estendeu-lhe o odre. Ela abanou a cabeça.

Estou aqui para te dizer que os homens de Rio Próximo estão planejando um ataque para se vingarem.

Quantos são?

Não sei.

Eles sabem que vieste avisar-nos?

Não me parece.

Porque vieste? Porque não ficaste para lutar ao lado deles?

K’os viu-o hesitar e lembrou-se de que ele fazia o mesmo quando era pequeno, quando havia alguma coisa que ele não queria dizer-lhe. Chakliux podia ser um homem, um guerreiro, até um dzuuggi, mas continuava a ser uma criança, e ela conhecia bem essa criança.

Eles não te querem lá. Porquê?

Chakliux agachou-se de novo à beira do fogo.

Eu não os chefiei por escolha ou decisão, deles ou minha. Eu chefiei-os porque fui o primeiro a compreender o plano que os teus homens usaram para nos combater.

E arranjaste uma maneira de responder ao seu ataque. Ele apoiou as mãos nos joelhos.

Os velhos dizem que foste tu que deste os arcos aos homens de Rio Primo. Dizem que tiraste um arco a um dos nossos velhos.

K’os levantou a sobrancelha.

Um belo velho, disse ela. Talvez te lembres dele quando vinha à minha cabana. Era comerciante e às vezes aceitava a nossa hospitalidade. Teve uma morte triste.

Como Chakliux não disse nada, ela acabou de comer a carne que tinha na tigela, levantou-se e foi servir-se de novo, mas não lhe ofereceu nada.

Então porque vieste avisar-nos? perguntou ela, sentando-se outra vez. Com certeza que nos consideras teus inimigos.

Para dizer a verdade, só tenho um inimigo disse ele.

Achas? perguntou ela.

Acho.

Estás enganado. Estrela odeia-te por lhe teres matado os irmãos. Aqamdax odeia-te porque a deixaste aqui e não tentaste encontrá-la. Aqueles cinco guerreiros que sobreviveram também te odeiam.

Aviso-vos por causa das mulheres e das crianças. Aviso-vos para que possam sair da aldeia antes de os homens de Rio Próximo chegarem.

É o que julgas que faremos? Fugir? Esconder-nos? Julgas que estamos tão assustados com os de Rio Próximo que deixaremos os nossos feridos e os nossos velhos?

Acho que vocês têm três ou quatro dias para resolver o que vão fazer disse ele, devagar. Três ou quatro dias para levar os vossos filhos, feridos e velhos para um local mais seguro.

E tu lutarás ao lado deles? perguntou K’os.

Não. Eu luto para salvar vidas, não para as ceifar, respondeu ele.

Pôs o capuz em volta do rosto e virou-se para o túnel.

Chakliux, chamou K’os. Raposa-Que-Ladra e aquele a quem chamam Dorminhoco morreram na batalha?

Dorminhoco morreu.

E Raposa-Que-Ladra? perguntou ela.

É agora o chefe do povo de Rio Próximo.

Chakliux saiu da cabana, e só quando K’os levou a tigela à boca é que reparou que tinha enterrado os dentes no lábio inferior.

Chakliux atravessou as sombras escuras da aldeia em direção à cabana de Estrela. Esperava ouvir o uivo dos cães de Topa-Nuvens, mas, apesar de os animais terem levantado a cabeça à sua passagem, só um é que latiu dois latidos curtos. Os cães lembravam-se dele. Sabiam que ele pertencia à aldeia.

Aproximou-se da cabana e agachou-se junto do túnel de entrada. Não queria entrar, nem arriscar-se a acordar Estrela, a mãe ou o marido de Aqamdax, Homem Noturno. Mas como podia sair da aldeia sem ver Aqamdax?

Ficou imóvel durante muito tempo, até o frio lhe adormecer os pés e lhe chegar aos tornozelos. Por fim, afastou a aba da porta. Era um quadrado de pele de caribu com costuras duplas e pedras na parte inferior para que o peso destas não permitisse que o vento a abrisse. Ninguém falou, nenhum cão latiu e ele entrou, repôs a aba no seu lugar e ficou de novo esperando, escutando.

Por fim, afastou a aba interior. Ouviu um leve rosnar. Estrela também tinha um cão na cabana? Então, Chakliux percebeu que era Mordedor. Sorriu, estendeu a mão, chamou o cão em surdina, tirou uma tira de carne seca da manga e lhe deu. O animal aproximou-se devagar. À luz do braseiro da lareira, Chakliux viu que ele tinha o pelo eriçado. O animal cheirou a carne, tirou-a da mão com cuidado e depois abanou a cauda. Chakliux acariciou o peito amplo do cão e repetiu o nome dele em voz baixa. Mordedor levou a carne para uma esteira do lado das mulheres.

Ainda parcialmente escondido no túnel, Chakliux avistou Ghaden, deitado e de boca aberta. O rapaz mexeu-se, passou um braço por cima do cão, balbuciou qualquer coisa dormindo e depois calou-se. Alguém estava deitado ao lado dele. Seria Aqamdax? Ou Estrela? Chakliux, que se encontrava de joelhos, levantou-se um pouco. Não, era uma menina. Virou-se e ele viu-lhe o rosto. Era Yaa. Porque não? Se Mordedor estava ali, porque não Yaa? K’os dissera-lhe que ela e o cão tinham desaparecido poucos dias depois de ele sair da aldeia. Talvez Cen e Tikaani também a tivessem levado. Ou talvez ela os tivesse seguido. Chakliux tentou imaginar-se fazendo o mesmo em criança, mas não conseguiu.

Mexeu-se para poder ver o outro lado da cabana. Viu duas mulheres Estrela e outra de cabelos grisalhos. A mãe dela. Avançou mais um pouco e viu Homem Noturno, dormindo. Depois, viu o rosto da pessoa que estava sentada ao lado de Homem Noturno.

Aqamdax. Ela sorriu um sorriso triste e fez-lhe sinal para que voltasse para o túnel. Ele ficou esperando e ela foi ao seu encontro, embrulhada num cobertor que lhe cobria a cabeça e os ombros. Às escuras, ele tocou-lhe no rosto, que estava úmido. Aqamdax deitou a cabeça no ombro dele e, durante muito tempo, ficaram sentados sem dizer nada.

Rezei para que viesses falar comigo, disse ela em voz baixa.

Vem comigo agora incitou ele, enfiando a mão entre o cobertor e o cabelo dela.

Não posso abandonar o meu marido, disse ela. Não posso abandonar Ghaden nem Yaa.

Traga-os. Todos.

Homem Noturno está muito doente. Não posso deslocá-lo.

Aqamdax, os homens de Rio Próximo vêm atacar a aldeia. Tens três ou quatro dias, mais nada. Homem Noturno tem forças para chegar à floresta? Se conseguires fazê-lo chegar lá, eu posso levá-lo de trenó e tirá-lo da aldeia antes do ataque.

Deixa-me pensar, disse ela, encostando de novo a cabeça no ombro dele.

Ele abraçou-a com força. Era mulher de outro, mas tê-la encontrado depois de procurar tanto... Chakliux ainda não acreditava que era verdade.

Amanhã, quando o Sol estiver bem alto no céu, espera por nós na floresta disse Aqamdax. Conheces a rocha negra à beira do caminho?

Conheço.

Faremos o possível por chegar lá. Aviso os outros, os poucos homens que nos restam, que os guerreiros de Rio Próximo vêm a caminho?

Eu disse a K’os, respondeu Chakliux.

Não podes ficar aqui. Os homens te matam.

Não te preocupes. Eu vim com o meu irmão.

Sok está aí?

Ele está à minha espera, mas não sabe que estás aqui. Ele sentiu-a sorrir.

Ele não vai ficar satisfeito por me teres encontrado, observou ela.

Vai. Ele sabe há quanto tempo é que eu ando à tua procura, respondeu Chakliux.

Porque só vieste agora?

Primeiro, fui à tua aldeia disse ele. Ouviu-a ofegar.

Ao meu povo? perguntou ela.

Ao teu povo e aos Morsas.

Viste Qung e Cantador? Viste Tut?

Todos. Vivi com Tut e os irmãos.

Qung está bem?

Está.

Chakliux encostou a face em cima da cabeça dela, Aqamdax levou a mão ao rosto dele e Chakliux agarrou-lhe o pulso e sentiu o fio de tendão que ela usava como pulseira. Apalpou os nós e reconheceu o desenho da lontra.

Guardei-a disse ela.

Em seguida, afastou-se dele e procurou alguma coisa que trazia à cintura. Na escuridão do túnel, ele não viu o que era, mas ela depositou-lhe nas mãos um objeto frio e liso.

É uma concha feita de dente de baleia disse ela em surdina. Uma coisa que os contadores de histórias usam na minha aldeia. Foi Qung que me ofereceu. Ela te lembrará do laço que une os contadores de histórias, tal como o tendão no meu pulso me recorda que ambos descendemos das lontras.

Ouviu-se um gemido suave vindo do interior da cabana. Aqamdax encostou-se a Chakliux e segredou:

É o meu marido.

E, de súbito, desapareceu, tão depressa como viera.

Aqamdax adormeceu finalmente ao romper da aurora. Depois, foi arrancada aos seus sonhos por alguém falando alto. Era Pescador raspando na parede da cabana, até que o latir de Mordedor acordou a todos.

Pescador entrou sem Estrela o convidar e sentou-se ao lado de Homem Noturno, que também acordara com a falta de educação do homem.

Foi K’os que me mandou aqui, disse ele a Estrela. Ela diz que todo mundo da aldeia virá aqui daqui a pouco.

Estrela susteve a respiração.

Não precisas lhes dar comida. É só para nos reunirmos e debatermos uns planos. Ontem à noite, Chakliux esteve na aldeia e disse a K’os que os de Rio Próximo não tardarão a atacar-nos. Ela quer que discutamos a melhor maneira de os combatermos. Resolveu juntar-nos nesta cabana, sobretudo porque Homem Noturno não pode andar. Pescador virou-se para Homem Noturno. Ela quer a tua sabedoria.

O olhar de Homem Noturno desanuviou-se e o homem endireitou-se nas esteiras.

Aqamdax levantou-se da cama, vestiu as perneiras e uma camisa de pele de caribu, enrolou a cama e foi buscar comida. Estrela demorou muito vestindo-se e a penteando-se. Fez tudo em frente de Pescador, observando-o com um olhar lânguido. Aqamdax pediu a Yaa que a ajudasse a levar Olhos Grandes à latrina das mulheres. Yaa abriu a boca e Aqamdax percebeu que ela ia perguntar por que motivo a velha tinha que sair. À noite e de manhã, costumava urinar num balde de madeira. Mas Aqamdax franziu a testa à menina e abanou a cabeça. Em seguida, vestiu as perneiras e a parka em Olhos Grandes, calçou-lhe as botas e saíram as três.

Quando chegaram à latrina das mulheres, Aqamdax ajudou Olhos Grandes com as perneiras e a parka e segurou-a quando ela se agachou para urinar. Depois, enquanto a velha ajeitava as roupas, Aqamdax puxou Yaa para o lado e contou-lhe o plano de Chakliux.

Vai dizer-lhe que eu não posso ir, que K’os deve ter adivinhado o que nós faríamos e convocou uma reunião para a nossa cabana. Pegou o queixo da menina com as mãos. Leva Ghaden e o Mordedor e vai com ele. Não fiques na aldeia.

É só Chakliux? Ele vem sozinho? perguntou Yaa.

Ele e Sok, respondeu Aqamdax. Yaa abanou a cabeça e desviou o olhar.

Não podemos ir com ele, disse ela. Ghaden não pode. E eu não posso.

Yaa, isso é um disparate. Os homens de Rio Próximo...

Aqamdax, quando estávamos na aldeia de Rio Próximo, disseste-me para eu continuar falando com Ghaden, para tentar ajudá-lo a lembrar-se de quem matara... A mãe dele... A tua mãe.

Aqamdax ficou sem fôlego.

Sim, disse ela em voz baixa.

Durante a dança, quando os homens daqui se preparavam para atacar a nossa aldeia, lembras-te das botas que eles usavam, aquelas com os chocalhos?

Aqamdax fez um sinal afirmativo.

O ruído dessas botas ajudou Ghaden a lembrar-se. As botas do assassino tinham chocalhos e, dos lados, a pele estava cortada em forma de sol.

Sok, disse Aqamdax em voz baixa.

Nós ficaremos contigo, disse Yaa em voz alta. Lutaremos ao teu lado contra os de Rio Próximo. Se eles tentarem matar Homem Noturno, nós os mataremos.

Ajudaram Olhos Grandes a voltar para a cabana. Em seguida, afastaram as camas e as esteiras para arranjar espaço para as pessoas da aldeia. Aqamdax tentou não pensar que Chakliux estava esperando-a nem no que ele faria se ela não aparecesse.

Nessa manhã, K’os mandou os rapazes ficarem espiando em toda a volta da aldeia, os mais novos a norte, por onde seria menos provável que os de Rio Próximo chegassem, e os mais velhos a sul, escondidos na vegetação do Rio Primo. Quando a reunião começou e K’os disse às pessoas que Chakliux os fora avisar, elas gozaram, mas depois algumas das velhas que cuspiam em K’os tomaram o partido dela. Que asneira pensarem que eles não viriam, disse uma velha. Recordava-se de outras lutas. Quando numa aldeia só restavam mulheres e crianças, porque não ir roubar as despensas e buscar escravos?

Os homens falaram como se quisessem lutar, mas, pelo olhar deles, K’os percebeu que não o desejavam. Deixou-os falar durante muito tempo, mas de vez em quando fazia perguntas para lhes lembrar como fora a batalha. Por fim, apresentou o seu próprio plano.

Deixem as mulheres irem ao encontro deles, disse ela, ignorando a respiração ofegante e o terror dos velhos e das mulheres com filhos ao peito. Não iremos todas, só algumas. Eu vou. Finjo-me admirada por eles virem atacar-nos. Digo que nos preparávamos para irmos à aldeia de Rio Próximo. Iremos carregados com mantimentos das nossas despensas. Prometeremos ir com eles e diremos que não queremos lutar.

Julgas que isso os impedirá de atacar os que ficarem aqui? perguntou Espreita-o-Céu.

Não, é claro que não, respondeu K’os. Olhou para Pescador e perguntou: Se um grupo de mulheres fosse falar contigo, oferecendo-se para se render, o que farias?

Ele ficou pensando e depois disse:

Deixava um ou dois velhos com elas e levava o resto dos homens para lutar como tínhamos planejado.

Algum de vós agiria de modo diferente? perguntou K’os.

Ouviu-se um murmúrio de concordância.

E se as outras mulheres, os rapazes e os velhos da aldeia... quem conseguir sair da aldeia... fossem para a floresta, se escondessem até os homens atacarem e depois saíssem da floresta e atacassem de surpresa? Então, nós, que tínhamos ido ao encontro dos caçadores, voltaríamos também para lutar com as lanças e as facas que escondêramos nos nossos fardos.

As mulheres não sabem utilizar lanças nem facas, observou Leva-mais.

Temos um ou dois dias para aprender alguma coisa, disse Estrela, com os olhos brilhando e arreganhando os dentes. Eu gostaria de matar um deles.

Caule Torto levantou-se, cambaleando.

Os de Rio Próximo mataram o meu neto e dois dos meus filhos disse ela. Não me interessa saber se ganhamos. Eu só quero que apanhemos tantos quantos pudermos.

Começou a cantar, um cântico guerreiro. Durante algum tempo, cantou sozinha; depois um dos homens se juntou a ela, e vários rapazes. Então, todos cantaram, batendo com os pés e com os punhos no chão para que a força da terra os ajudasse na sua vingança.

K’os ficou sentada em silêncio, escolhendo quais as mulheres e os rapazes que levaria consigo ao encontro dos caçadores de Rio Próximo.

 

Eram doze, sem contar os bebês. Levavam cajados, como se fossem preparados para uma longa viagem. Tanto eles como os cães transportavam fardos pesados. K’os fizera uma escolha criteriosa, levando mulheres que eram dóceis mas fortes, com uma certa beleza no rosto ou no corpo. Três eram jovens mães, todas viúvas, todas com bebês; duas tinham filhos que já andavam. K’os incluiu três jovens solteiras, que já tinham tido a sua primeira menstruação. Uma das mães, Guarda-Peixe, insistira em acompanhar a filha, Filha-do-Sol, apesar de K’os não querer levá-la. Guarda-Peixe era uma mulher de vontade forte. K’os também levara dois rapazes, quase adultos, no caso de elas precisarem de proteção, mas que aceitavam ordens com facilidade.

Os três rapazes que vigiavam o caminho da floresta tinham ido falar com os caçadores na noite anterior, dizendo que haviam visto fogueiras e ouvido cânticos de guerra de um grupo de homens acampados a meio dia de caminho para o Sul. Na manhã seguinte, K’os pôs-se em marcha com o seu grupo.

Quando saíram da orla mais distante da floresta, um dos rapazes foi correndo à frente. Ao voltar, trazia a boca fechada e K’os percebeu o seu medo.

Eles estão perto, disse-lhe ele.

Ainda bem, respondeu K’os, ignorando a expressão de surpresa do rapaz. Os de Rio Próximo ainda não sabem, mas a luta já começou.

Chakliux observava a cena da floresta. Nesse dia, Aqamdax também não aparecera. Quando ele avistou K’os e os que a acompanhavam, foi atrás deles. Caminhando em silêncio, escondido nas moitas de amieiros e de bétulas, observava-os e perguntava a si próprio aonde iriam. Assim que eles desapareceram nos acidentes do terreno, ele seguiu na direção do rio e atravessou o mato até descobrir o grupo outra vez. Caminhavam devagar, com as mães e os filhos, e, apesar de o rio ainda estar gelado, ao meio-dia a terra amolecia e a lama se colava aos pés.

Chakliux viu o rapaz correndo para eles, ouviu a sua mensagem e a resposta de K’os.

Então a aldeia tinha um plano de luta. Queria ficar escondido, vendo o que acontecia, mas rastejou até o rio, caminhando cautelosamente por cima das pedras e do gelo, tentando não deixar rasto, e voltou para a floresta. Se ia travar-se uma batalha, ele ficaria junto de Aqamdax para lhe oferecer toda a proteção que fosse possível.

Eram conduzidos por Raposa-Que-Ladra, como Chakliux lhe dissera. O ódio fervilhava no coração de K’os. Seria difícil render-se a ele, mas essa seria apenas a primeira de muitas coisas difíceis. Teria que ser escrava durante algum tempo, mas sabia como agradar os homens. Pouco depois, seria esposa, talvez até de Raposa-Que-Ladra. Sim, muito provavelmente dele.

De repente, ficou satisfeita por ele ainda estar vivo. Gostaria de ser sua mulher, e ele ficaria agradecido por ela ser curandeira.

Encontraram-se em campo aberto. K’os tomou a dianteira do grupo e gritou:

Sou K’os, uma mulher da aldeia de Rio Primo, uma curandeira do Povo Rio. Eu e esta gente vamos ao encontro dos nossos irmãos na aldeia de Rio Próximo. Esperamos encontrar um lugar entre os vossos.

Raposa-Que-Ladra ficou de boca aberta como se fosse falar, mas não disse nada. Por fim, um homem mais pequeno que ia a seu lado, outro velho, falou. As palavras saíam-lhe da boca aos poucos, como se ele não estivesse habituado a exprimir o que sentia na presença de outras pessoas.

Quantos são... Na aldeia? perguntou ele.

Poucos, respondeu ela. Seis caçadores, um moribundo e dois feridos. Seis mãos-cheias de jovens. K’os encolheu os ombros. Mais quatro mãos-cheias de velhas. Crianças e bebês. Vários rapazes.

Por fim, Raposa-Que-Ladra recuperou a fala.

Esses outros estão na aldeia?

Alguns estão respondeu K’os. Vão lutar convosco, mas nós já estamos fartos de guerra. Não temos nada contra as pessoas da aldeia de Rio Próximo. Porque teríamos? Temos os mesmos antepassados. Deixem-nos ir para a aldeia de Rio Próximo. Ficaremos lá à vossa espera.

Raposa-Que-Ladra soltou uma gargalhada, e os homens que o seguiam riram também. Eram cerca de seis mãos-cheias, segundo os cálculos de K’os, o que queria dizer que os homens de Rio Primo tinham matado mais gente do que ela julgava, ou que alguns dos homens de Rio Próximo haviam resolvido não vir.

Nesse caso, os autorizo a irem sozinhos, disse Raposa-Que-Ladra. E se vocês resolverem ir para a aldeia de Rio Preto? E se resolverem juntar-se à luta e atacar-nos pela retaguarda?

O rapaz mais perto de K’os olhou para ela, mas a mulher ignorou-o.

Não o faremos, prometeu K’os.

Julgas que não me lembro de ti, K’os? perguntou Raposa-Que-Ladra. Julgas que os anos te mudaram tanto assim?

Ambos mudamos, respondeu K’os. Fazemos coisas que muitas vezes lamentamos. Eu tive a minha vingança. Procuro a paz.

Eu não tive a minha vingança, declarou Raposa-Que-Ladra. Ficarás aqui. Tu e o teu grupo. Construam abrigos e esperem que nós voltemos. Alguns de nós gostarão de ter escravas.

O homem apontou com o queixo para o velho a seu lado e para dois jovens que pouco mais eram do que meninos. Ambos rosnaram quando ele os escolheu.

Se se queixarem, não levarão nada, mas se mantiverem esta gente aqui até regressarmos, poderão receber a parte de vocês de escravas e dividir os pertences e os cães deles entre os dois e Chama-o-Sol. Depois, olhou de novo para K’os e prosseguiu: Todos exceto a curandeira K’os. Ela e os seus pertences serão para mim.

K’os cerrou os dentes para não sorrir.

Quando Raposa-Que-Ladra e os seus homens partiram, K’os e o seu grupo começaram a construir os abrigos. Fizeram alpendres de casca de árvore e peles de caribu, uns virados para os outros, e acenderam uma fogueira no meio. K’os construiu um alpendre só para ela e, enquanto trabalhava, os rapazes foram falar com ela, um por um, e perguntaram-lhe se podiam matar os homens que os vigiavam quando iniciassem o ataque a Raposa-Que-Ladra e aos seus homens.

Esta noite, quando estiver escuro, respondeu ela. Prometeu deitar um pó na carne dos homens para os deixar dormindo.

Quando acabou de construir o seu abrigo, sentou-se junto da fogueira e partilhou com Guarda-Peixe e a filha algumas tiras de carne de caribu enfiadas num pau aguçado e aproximou a carne das chamas para a amaciar. Quando a carne estava pronta, deu uma parte a um dos jovens de Rio Próximo e convidou-o a comer com ela.

Pouco depois, estavam os dois enrolados nos seus cobertores e K’os segredava-lhe ao ouvido que os rapazes tencionavam matá-los nessa noite. Disse-lhes que haveria algo no guisado que os faria dormir e que depois os rapazes os atacariam, que lhes cortariam a garganta.

O caçador fitou-a com a raiva no olhar e deu uma gargalhada.

Eles são rapazes. Não podem fazer nada contra nós, disse ele.

Então come só a carne que eu te der, aconselhou ela.

Porque confiaria em ti? perguntou ele.

Julgas que eu quero ser escrava de Raposa-Que-Ladra? Ao ajudar-te, talvez mostre o que valho. Talvez concluas que precisas de outra esposa.

Ele sorriu, orgulhoso, e possuiu-a às pressas, com movimentos fortes e gemidos ruidosos. Depois, ela ficou debaixo dele, cujo corpo inerte lhe pesava no peito. Tocou-lhe até ele se mexer e segredou:

Serias capaz de dormir depois do que eu te disse? Ele levantou-se, ela vestiu de novo as perneiras, calçou as botas, pôs a parka em volta das ancas e foi falar com o velho de Rio Próximo, Chama-o-Sol.

 

Aqamdax ficou sem fôlego quando Chakliux entrou de cócoras na cabana, mas ao ver o marido estender o braço para a lança pegou-lhe o pulso.

Espera, disse Aqamdax.

Ele matou os meus irmãos!

As palavras de Homem Noturno pareceram roubar-lhe o fôlego, e o homem teve que se recostar por uns instantes, mas fez uma careta, com os olhos muito abertos.

Estou aqui para ajudar, não para matar, declarou Chakliux. Os de Rio Próximo estão a menos de um dia de caminho. Como vocês não foram à floresta, eu voltei para lutar ao vosso lado.

Homem Noturno olhou para Aqamdax com um ar interrogador.

Bem sabes que Chakliux esteve nesta aldeia há três dias, disse-lhe ela. Também veio a esta cabana e ofereceu-se para nos ajudar a fugir para não estarmos aqui durante o ataque.

Tu não irias, disse Homem Noturno em voz baixa.

Eu não te abandonaria, proferiu ela, sem olhar para Chakliux. Teria sido mais fácil dizer-lhe aquelas palavras de noite, quando não lhe visse os olhos.

Devias ter mandado as crianças, disse Homem Noturno. Elas são de Rio Próximo.

Elas não iriam, retorquiu Aqamdax.

Elas conhecem-me, disse Chakliux. Ghaden, porque não irias? Eu e o meu irmão temos um acampamento a três dias daqui, para leste. Lá estarias seguro.

Ghaden escondeu o rosto no pelo denso de Mordedor.

Ele não iria por causa de Sok, disse Yaa. Aqui temos uma oportunidade, mesmo com uma batalha. Às vezes, não matam as crianças. Além disso, estamos perto de Rio Próximo. Se eles nos virem, deixam-nos em paz. Com Sok, não estamos seguros.

Os longos dias de espera, a preocupação e a frustração de não saber porque Aqamdax não aparecera despertaram a fúria de Chakliux. Olhou para Aqamdax:

Que disparate é este?

Ela falou devagar, de olhos baixos, como se tivesse dificuldade em pronunciar as palavras.

Na noite anterior àquela em que os homens de Rio Primo partiram para atacar a aldeia de Rio Próximo, dançaram e entoaram cânticos de guerra. Ouvimos o ruído das suas vozes e dos chocalhos de casco de caribu nos seus pés.

”Ghaden estava dormindo, mas acordou e falou a Yaa das botas daquele que matou a mãe, a nossa mãe. Tinham chocalhos de caribu e estavam enfeitadas com imagens do Sol dos lados. Aqamdax esticou os dedos como se fossem raios de sol. Só Sok é que usa botas como essas.

Não foi Sok, respondeu Chakliux tranqüilamente, virando-se para Ghaden. Não foste tu o único a ver o assassino. Raposa-Que-Ladra também viu. Ele tinha ido visitar o meu avô nessa noite e escondeu-se na sombra das cabanas. Viu o assassino saindo da cabana do meu avô.

E não fez nada para ajudar? perguntou Aqamdax.

Ele é um homem egoísta, respondeu Chakliux. Desde então, tem recebido muitos favores por causa do que sabe e por fim, quando lhe convinha revelar o nome do assassino, o fez, mas só a Sok e a mim, porque fomos escolhidos para chefiar o povo de Rio Próximo, Sok como chefe dos caçadores e eu como chefe dos velhos. Raposa-Que-Ladra queria todo o poder para si próprio.

Se Sok não é o assassino, então quem é?

Folha Vermelha.

Aqamdax não se mexeu. As palavras dele foram como uma facada no seu peito.

Ela levou as botas e a parka do marido para se disfarçar, informou Chakliux. Serviu-se de uma das facas dele.

Porquê? perguntou Aqamdax.

Folha Vermelha julgava que Sok a rejeitaria para aceitar Neve-no-Cabelo como esposa. Julgava que, se ele ficasse com os cães e as armas do avô, passaria a ser o chefe dos caçadores e seria suficientemente respeitado na aldeia para que o pai de Neve-no-Cabelo permitisse que a filha fosse segunda esposa de Sok.

E a minha mãe...

Viu-a, por acaso.

Então, Raposa-Que-Ladra expulsou vocês da aldeia, a ti e a Sok.

Sim. A nossa mãe também quis vir conosco, e Ligige’, Neve-no-Cabelo e o bebê, Chora-alto e...

Neve-no-Cabelo é mulher de Sok?

Sim. Está grávida do filho dele, e o pai deixou-a ser segunda esposa.

E tu trazes os filhos de Sok?

Só Chora-Alto. Aqamdax suspirou e calou-se.

O outro... Morreu? Chakliux fez um sinal afirmativo.

Também trazemos Folha Vermelha. Aqamdax perdeu o fôlego.

Ninguém a matou?

Ela traz o filho de Sok no ventre. Mas Ghaden não tem motivos para se preocupar. Ela não tem mais nada a esconder.

E quando nascer o bebê? perguntou Aqamdax.

Nessa hora, Sok e eu decidiremos o que faremos para vingar o nosso avô.

Nessa noite, Aqamdax e Chakliux fizeram turnos, sentados à porta. Estrela levara a mãe com as outras pessoas que aguardariam fora da aldeia e que depois usariam arcos e flechas contra os caçadores de Rio Próximo numa emboscada, enquanto que os poucos que tinham ficado nas cabanas combateriam lá de dentro.

Só ao amanhecer é que Aqamdax reparou no primeiro sinal de movimento. O seu coração acelerou-se, e ela piscou os olhos, tentando ver na penumbra. A melhor chance de sobreviver era deixar que os caçadores de Rio Próximo a vissem, percebessem que ela tinha também Ghaden e Yaa consigo. Por isso, ficou do lado de fora da cabana, à espera que chegassem os primeiros homens.

Chakliux pedira-lhe que o acordasse assim que ela visse alguma coisa. Com os dois, tinham mais probabilidades de que os de Rio Próximo poupassem a cabana, mas mesmo assim ela sabia que, com o frenesi da luta, isso poderia não acontecer.

Cantara e rezara ao acordar; seguindo a tradição dos Primeiros Homens, agradecera ao Criador a sua vida e dera as boas-vindas ao Sol. Apaziguara o seu coração com canções tranqüilas sempre que o medo da morte a avassalara.

Naquele momento, o horror do que estava vendo imobilizou-a por instantes, impedindo-a de se mexer. Os homens de Rio Próximo vinham de todos os lados da aldeia, cada um com uma lança e um lançador na mão. Na ponta de cada lança, o fogo brilhava.

O grito de Aqamdax acordou Chakliux, que se levantou de um salto, agarrando na lança. Homem Noturno estava sentado na cama, com uma faca em cada mão.

Aqamdax entrou na cabana correndo, pegando não em armas mas nos odres de água.

Fogo! gritou ela. Eles botaram fogo nas cabanas!

Fica aqui dentro! gritou-lhe Chakliux.

Em seguida, agarrou uma das peles de caribu que forravam o chão, levou-a consigo e esperou no túnel que uma das lanças de fogo atingisse o topo da cabana. Depois, saiu, atirou a pele em cima das labaredas e abafou-as antes que o fogo se propagasse.

Já havia outras cabanas ardendo. As pessoas combatiam o fogo com água e peles, mas pouco depois as chamas espalharam-se por toda a aldeia. Os de Rio Próximo levaram alguns dos rapazes e dos homens, mas a maioria dos caçadores ficaram junto das despensas da comida, apagando as chamas que alastravam na vegetação próxima, impedindo que o fogo a consumisse.

Quando o calor das chamas atingiu a sua pior fase, Chakliux percebeu que já não conseguia impedir por mais tempo que a cabana de Estrela ardesse.

Leva o que puderes gritou ele a Aqamdax. Leva as crianças lá para fora. Eu ajudo o teu marido.

A fumaça embrenhara-se de tal maneira na cabana que Chakliux quase nem via a cama de Homem Noturno. Ardiam-lhe os olhos, e o calor do fogo queimava-lhe a garganta e os pulmões, dificultando-lhe a respiração. O fumaça não era tão densa mais perto do chão; por isso ele quase dobrou o corpo ao meio para respirar o ar mais fresco.

Não via Aqamdax nem as crianças e, embora as chamasse, o ruído do fogo, tão forte como o barulho do mar ou do vento, abafava as suas palavras. Quando chegaram aos limites da aldeia, ele disse a Homem Noturno que voltaria atrás para ir buscar Yaa, Ghaden e Aqamdax, mas depois, como se lhe tivesse sido concedido um dom, eles apareceram a seu lado, pegaram a esteira de Homem Noturno e, os quatro, levaram-no para um local seguro.

Não combateram. Para quê morrerem sem motivo? Dois rapazes e uma mulher de Rio Primo que tinham tentado atacar foram mortos. Pescador também foi morto e Corredor foi atingido com uma lança nas costas. As velhas diziam que ele não sobreviveria. Na aldeia, ficaram apenas três caçadores e Homem Noturno.

Os de Rio Próximo partiram nesse dia, levando o que podiam das despensas, a maior parte das jovens e todos os cães, exceto Mordedor. Deixaram os velhos e os feridos nos restos carbonizados da aldeia, sem comida suficiente para os dias seguintes.

E K’os e aqueles que ela levara consigo? Porque ela não voltara?, perguntavam-se os poucos que ficaram na aldeia. Os de Rio Próximo tinham-na matado? O mais provável era que ela e os rapazes não tivessem conseguido dominar os guardas. Bem, sempre eram menos bocas a sustentar com a comida que ficara. Além disso, na opinião das velhas, eles não precisavam de uma curandeira. Morreriam antes do Inverno. Quase todos estariam mortos antes de o Verão chegar.

Assim que os homens de Rio Próximo chegaram ao local onde tinham deixado K’os, desataram aos gritos, como se ela rejubilasse com eles pela sua vitória. Mas ela empinou o queixo, desviou o olhar e respondeu-lhes de mau humor.

Quando as mulheres de Rio Primo que tinham vindo da aldeia perguntaram a K’os porque não se juntara ao ataque, ela apontou para os corpos dos dois rapazes e da mãe de Filha-do-Sol, os três que se tinham oferecido para cortar a garganta aos guardas de Rio Próximo. Então as pessoas de Rio Primo chegaram à aldeia de Rio Próximo de luto, com a cara, os braços e as roupas cobertos de fuligem para exprimir o seu desgosto.

O que mais entristeceu K’os foi o número de mulheres de Rio Primo que optou por ir para a aldeia de Rio Próximo. Ela contava que morressem mais na batalha, sobretudo depois de ter convencido os homens a deixarem as mulheres usar armas.

Quem havia de pensar que os caçadores de Rio Próximo incendiariam a aldeia de Rio Primo? Quem havia de pensar que Raposa-Que-Ladra teria uma idéia dessas?

Agora, com tantas mulheres da aldeia de Rio Primo, havia menos chances de que ela se tornasse esposa e maiores probabilidades de que viesse a ser escrava. Mas caminhava de cabeça erguida e nem se deu ao trabalho de recordar a última vez que lá estivera, com Bate-no-Chão, Tikaani e Quebra-Neve, agora todos mortos.

O que lhes acontecera não tinha importância, pensou K’os. Ela estava viva. Havia homens de Rio Próximo, feridos na batalha, a quem ela podia ser útil. Trouxera os seus remédios, e dali a pouco chegaria o Verão, a época de colher novas plantas. Se não houvesse feridos suficientes para ela tratar, tinha certeza de que outros adoeceriam. K’os acariciou as suas bolsas dos remédios. Também tinha certeza de que os curaria.

 

Dos que ficaram na aldeia de Rio Primo, cinco eram caçadores, incluindo Chakliux e Homem Noturno. Havia seis rapazes de sete Verões e mais velhos, uma mão-cheia de mulheres mais novas e três mãos-cheias de velhas. Cinco mãos-cheias de crianças e de bebês. Caule Torto escondera duas cadelinhas debaixo da parka, e uma jovem mãe que perdera o bebê há pouco tempo disse que as amamentaria. Por isso, contando com Mordedor, possuíam três cães.

Aqamdax suspirou e continuou a escolher o que restava da cabana queimada de K’os. Lâminas de facas, raspadores, pedras de cozinha e uma série de contas que tinham sobrevivido às chamas. Também encontrou um molho de peles de raposa, queimadas só nas pontas, alguns pedaços de esteiras e um odre de água.

Três velhas lutavam pelo recheio da cabana ao lado da de K’os. Aqamdax, exprimindo o seu desespero, levantou a voz e interrompeu a disputa.

Tias, tudo pertence a todos nós. Se lutarmos uns com os outros, que esperança nos resta?

As três mulheres calaram-se de repente e depois viraram-se para ela, cobrindo-a de insultos e escarnecendo dela. Aqamdax fechou os olhos para não chorar e em seguida abriu-os e viu Chakliux a seu lado.

Chakliux afastou-a das ruínas fumegantes. Desceram o caminho e entraram na calma refrescante da floresta.

Esta não é a tua gente, Aqamdax declarou ele.

Porque ficas? Vem comigo; traz Yaa e Ghaden. Vamos nos encontrar com Sok, passamos o Verão pescando e caçando juntos. As nossas cabanas estarão quentes no próximo Inverno e teremos comida que chegue. Durante as longas luas que antecedem a Primavera, eu construo um iqyax. No Verão, quando tivermos peixe suficiente para uma longa viagem, tu e eu poderemos regressar ao teu povo.

Chakliux, não posso deixar Ghaden retorquiu ela. Yaa talvez queira voltar para junto da mãe, mas...

A mãe de Yaa morreu na luta disse Chakliux em voz baixa. Tomou as mãos enluvadas de Aqamdax na sua. Vou construir dois iqyan. Esperamos que Ghaden seja crescido para levar um e depois partimos, mas, até lá, traz o teu irmão e Yaa e vem comigo.

Aqamdax retirou as mãos.

Não posso deixar o meu marido.

Há muitas mulheres nesta aldeia que precisam de um marido. Deixa-o ser marido de uma delas.

Chakliux, disse Aqamdax, começando a chorar e pondo a mão na barriga. Não posso deixar Homem Noturno. Trago o filho dele no ventre.

Construíram uma cabana, servindo-se de postes e de peles de caribu que tinham escapado às chamas. As mulheres com bebês e as crianças foram lá para dentro. As outras, mães com filhos mais velhos, os caçadores e as velhas fizeram abrigos. Dispuseram-nos em círculo, com as aberturas viradas para a cabana, como que para aproveitar o calor que vinha lá de dentro.

Entoaram cânticos fúnebres, e as palavras elevaram-se no céu noturno, conduzindo a fumaça que saía em espiral das lareiras.

Chakliux aproximou-se do abrigo de Homem Noturno. A irmã, Estrela, estava sentada de um lado das esteiras da cama, e Aqamdax do outro. Yaa e Ghaden estavam encostados um ao outro na parte de trás do abrigo, e a mãe de Estrela retorcia as mãos, olhando à distância, como se aguardasse os mortos que nunca mais voltariam.

Homem Noturno desviou propositadamente o olhar, mas Chakliux dirigiu-se a ele e pousou duas grandes lebres no chão, junto do lume.

Não precisamos da tua carne disse Homem Noturno.

Estrela olhou ansiosamente para o irmão e começou a morder o lábio inferior.

Precisamos das peles. Homem Noturno levantou a voz.

Nesta cabana há um caçador.

Vim pedir uma esposa disse Chakliux. Não é vergonha nenhuma aceitar carne de um homem que será marido da tua irmã.

Embora Aqamdax percebesse que Chakliux fazia aquilo por ela, as suas palavras pareciam facas no seu peito. Chakliux fora criado com Estrela. Sabia com certeza que ela não seria uma boa esposa.

Não seria fácil ficar vivendo na mesma cabana com ele, vê-lo partilhar a cama com Estrela de noite, mas ele era caçador. Traria carne. Aqamdax levantou a cabeça para olhar para Homem Noturno e viu que ele ficara dividido com a proposta de Chakliux. Chakliux fora um inimigo. Como poderia Homem Noturno recebê-lo como irmão? Mas, se não o fizesse, não estaria perdendo as vidas da mulher e do filho, da irmã e da mãe?

Aceitas este homem como marido? perguntou ele a Estrela.

Estrela levantou-se e aproximou-se lentamente de Chakliux.

Achas que consegues viver de novo como alguém de Rio Primo? perguntou ela.

Consigo viver como alguém de Rio Primo, afirmou ele.

Então serei tua esposa disse ela. Tens presentes para me oferecer?

Só a promessa do que eu caçar.

Estrela fez beicinho, mas Homem Noturno declarou:

Isso é suficiente. Levantou a mão saudável como que abrangendo as ruínas da aldeia para além do círculo formado pelos abrigos. O que podemos pedir mais?

Há uma coisa que eu tenho de fazer primeiro, disse Chakliux. O meu irmão Sok, as esposas e os filhos dele, a nossa mãe e uma tia fizeram um acampamento a três dias daqui. Eles estão à minha espera. Tenho que avisá-los que fico nesta aldeia.

Tenho ouvido falar do caçador Sok, disse Homem Noturno. Diz-lhe que é bem-vindo aqui.

Lhe direi.

Quando partes?

Se me deres um lugar junto da tua fogueira esta noite, partirei de manhã, e voltarei assim que puder, respondeu Chakliux.

Tens um lugar junto da minha fogueira afirmou Homem Noturno.

Chakliux pegou as duas lebres e deu-as a Estrela.

Isto não é um dote, disse ele. Um dia, ofereço-te uma coisa melhor.

Ela pegou as lebres, sentou-se, estendeu-as no colo e afagou-lhes o pelo. Mordedor afastou-se de Ghaden, com os olhos nas lebres, mas Yaa agarrou-o pelo pescoço e segurou-o.

Mulher, esfola-as disse Homem Noturno a Aqamdax. Precisamos de carne para esta noite.

Aqamdax tirou as lebres de Estrela, que começou a chorar como uma criança. A mãe olhou para ela, assustada, e depois começou a entoar um cântico fúnebre. Estrela olhou para Chakliux, deixou de chorar e começou também a cantar.

Passou-se uma mão-cheia de dias, duas, e Chakliux ainda não voltara. Estrela, furiosa, gritava com as velhas do acampamento e com as crianças, e por duas vezes Aqamdax teve que a segurá-la quando ela, de faca em punho, se preparava para golpear as paredes do abrigo.

Ele não voltaria, pensou Aqamdax. Com certeza, quando tivesse tempo para pensar, tempo para antever como seria difícil ter Estrela como esposa, ficaria com Sok, e Aqamdax não voltaria a vê-lo.

As pessoas tinham construído outra cabana, mais pequena, cuja cobertura era feita de restos de pele de caribu queimados e enfraquecidos pelo fogo, mas agora as velhas e algumas das crianças mais velhas já possuíam uma casa. Ghaden e Yaa passavam a noite nessa cabana, apesar de Ghaden não ter sido autorizado a levar Mordedor.

Nos primeiros dias depois da partida de Chakliux, Estrela fora montar armadilhas com Yaa e Aqamdax. Agora, não fazia nada, exceto vociferar ou agachar-se dentro do abrigo, recusando-se a comer e a falar.

Todas as manhãs, Homem Noturno se esforçava por estar mais tempo sentado, e por fim conseguiu levantar-se, ajoelhando-se primeiro, embora se mantivesse de pé por pouco tempo. O seu braço direito continuava inerte, e Aqamdax fez-lhe uma alça para o ligar ao corpo.

Várias velhas aproveitaram restos de cestos queimados e fizeram armadilhas de pesca. Os três homens com força para caçar prepararam lanças e armas para ir à caça do caribu. Os rapazes fizeram boleadeiras para apanhar os pássaros que voltariam do Sul dentro de pouco tempo.

No décimo segundo dia depois da partida de Chakliux, Aqamdax foi verificar as armadilhas e levou Mordedor. Parou junto de um folhado, apanhou alguns frutos mirrados e deu-os a Mordedor.

No próximo ano será melhor disse ela.

Mordedor, com o pelo áspero e o corpo magro, ganiu como se tivesse compreendido as suas palavras. De repente, deu um salto e desatou a correr. Ela foi atrás dele, mas depois percebeu que o cão perseguia uma lebre. Voltou às suas armadilhas. Estavam todas vazias.

Tais coisas aconteciam sempre naquela época do ano, pensou ela. As armadilhas de Inverno já tinham apanhado a maior parte dos pequenos animais que viviam perto da aldeia. Aqamdax teria que montar as armadilhas mais longe.

Quando Mordedor voltou, trazia a metade dianteira de uma lebre na boca. Aqamdax elogiou-o, admirada por o cão ter trazido alguma coisa, quando partilhavam tão pouco com ele.

Aquela lebre era um sinal que lembrava todas as coisas boas, pensou Aqamdax. Ela estava viva e trazia um filho no ventre, um filho que seria um caçador forte, ou uma filha que costuraria e teceria e que um dia lhe daria netos.

Sorriu, e olhou para o céu azul. Soprava um vento primaveril, enchendo a floresta de um calor que afastava o último frio do Inverno do solo castanho-acinzentado. Aqamdax entoou um cântico de louvor, de ação de graças pela sua vida, pela vida do filho de Homem Noturno, de Ghaden e de Yaa. Pelo marido e pela família dele.

De repente, Mordedor arrebitou as orelhas. Uivou, pousou a carcaça da lebre no chão, pôs uma das patas dianteiras em cima dela e começou a latir.

Aqamdax desembainhou a faca e agachou-se ao lado do cão, pondo-lhe a mão no focinho para o calar. Ficou à espera e depois ouviu alguém chamá-la.

Deixas-me levar isto? perguntou ela a Mordedor, estendendo o braço para pegar na lebre.

O cão levantou a pata e ela tirou-a devagar e enfiou-a no saco que trazia ao ombro. Mordedor olhou para ela e desatou a correr. Aqamdax foi atrás dele e depois viu-os todos, Chakliux, Sok, Folha Vermelha, Neve-no-Cabelo, Chora-Alto, Mulher Diurna e, por último, a velha Ligige’, cuja voz se sobrepunha à de todos os outros.

Viemos com o meu irmão, gritou Sok. Ouvimos dizer que há uma aldeia aqui perto que precisa de caçadores.

O olhar de Aqamdax cruzou-se com o de Chakliux, um longo olhar de alegria e boas-vindas. Aqamdax chamou Mordedor, esperou que os outros passassem e foi retribuindo os seus cumprimentos. Folha Vermelha não disse nada; passou por ela, de mãos na barriga.

Aqamdax foi juntar-se a Ligige’, na última da fila.

Ainda bem que resolveste vir, tia afirmou ela. Mesmo contando com Sok e Chakliux, temos apenas cinco homens fortes que cacem para nós.

Ah, filha, retorquiu-lhe Ligige’. Talvez tenhamos apenas cinco caçadores, mas quantas aldeias têm dois contadores de histórias? Tu e Chakliux nos ajudarão a esquecer a nossa barriga. As histórias de vocês nos darão forças para o que temos que suportar, e nos lembrarão de que a vida é sagrada e a terra é boa.

 


NOTAS DA AUTORA

Talvez o maior dom que um romance pode conceder seja o fato de permitir, sob o disfarce do entretenimento, que o leitor desafie os limites do tempo e do espaço e acompanhe a vida das suas personagens. Esta transliteração da visão interior do leitor gera uma oportunidade incrível: uma mente aberta à compreensão de novas coisas.

Quando nos afastamos de nós mesmos e vemos pelos olhos de outros, somos abençoados não só com uma visão diferente da nossa como com um retrato mais rigoroso de nós mesmos, do nosso meio político e social e dos preconceitos que dão cor ao nosso pensamento.

Embora não garanta que Canção do Rio tenha esse efeito nos leitores, durante a fase de investigação e de escrita deste romance, descobri que compreendia melhor as fraquezas que desencadeiam a guerra, os preconceitos com que nos justificamos e a destruição que o ódio pode gerar.

Mesmo quando a guerra se reduz ao nível elementar do conflito entre aldeias, as tradições de preconceito e as mitologias de superioridade são utilizadas para justificar comportamentos elitistas e até fortemente desviantes. Tanto nas sociedades primitivas como nas complexas, o conforto material tende a camuflar os males sociais mais destruidores, não aqueles que nos negam riqueza e lazer, mas os que atingem o nível mais básico e vital da nossa existência: as nossas almas, as nossas consciências, precisamente aquilo que nos torna humanos.

Embora seja consensual que os antepassados do atual povo aleúte viveram nas ilhas Aleútes há milhares de anos, arqueólogos, antropólogos e etnólogos discordam quanto à identidade dos descendentes do povo do Complexo Denali, aqueles utilizadores de lâminas minúsculas que também viveram no Alasca há milhares de anos.

Apesar de os romancistas se entregarem a liberdades que não são permitidas aos investigadores científicos, podem estar certos de que a minha especulação foi temperada por investigação efetuada sobre muitas culturas aborígines norte-americanas e asiáticas, tanto pré-históricas como históricas, incluindo a Aleúte, Diuktai, Nenana, Denali, Denbigh, Yup’ik, Athabascan, Cree, Eyak, Tlingit, Tsimshian, Haida, Kwakiutl, Nootka, Koryak, Even, Chukchi, Itelmen e Yakut.

Considero há muito que uma das melhores maneiras de conhecer um povo é através da sua língua. Em Canção do Rio, incluo vários termos nativos, quase todos pertencentes às línguas aleúte e athabaskan ahtna, com ortografias estandardizadas no Aleut Dictionary, Unangam Tunudgusii, compilado por Knut Bergsland, e no Ahtna Athabaskan Dictionary, compilado e editado por James Kari. Estes dois dicionários foram publicados pelo Centro de Línguas Nativas do Alasca, da Universidade de Alaska Fairbanks.

Aqueles leitores que conhecem os meus primeiros romances Mãe Terra, Pai Céu, Minha Irmã, a Lua e Meu Irmão, o Vento e os termos aleútes utilizados nesses textos, perceberão diferenças ortográficas menores. Quando escrevi Mãe Terra, Pai Céu e as obras que se lhe seguiram, não pude contar com o belo dicionário de Bergsland (publicado em 1994) e por isso recorri a diversas fontes para me informar sobre as palavras aleútes. Como considero que o dicionário de Bergsland é e continuará a ser a referência definitiva do léxico da língua aleúte, uso a sua grafia em Canção do Rio.

A minha decisão de usar uma língua athabascan para o Povo Rio não resultou apenas de um capricho; deveu-se também ao fato de os povos Athabascan do Alasca terem desenvolvido uma cultura ribeirinha e também caçarem caribus, ursos e vários animais mais pequenos, incluindo aves.

A família lingüística Athabascan é constituída por cerca de trinta e cinco línguas faladas no Alasca, no Canadá e no Oeste e Sudoeste dos Estados Unidos. Quando este romance foi publicado, menos de uma centena de pessoas, quase todas com mais de cinqüenta anos, falava athabascan ahtna, apesar de existir mais de um milhar de pessoas vivas com ascendência Ahtna.

Com Canção do Rio e os meus outros romances, espero despertar a consciência dos leitores para o tesouro que as línguas nativas norte-americanas encerram e, com esse objetivo, peço que o leitor aceite as palavras nativas deste romance não com irritação ou resignação, mas com um misto de fascínio contemplativo e de alegria.

Os enigmas referidos neste romance inspiram-se nos enigmas de um dos povos Athabascan mais setentrionais, os Koyukon. No entanto, todos eles são originais, e nenhum foi copiado de qualquer enigma Koyukon, em sinal de reconhecimento e de respeito pelos direitos de propriedade.

(Para aqueles leitores que são admiradores das bizarrias e das possibilidades da linguagem: no enigma de Chakliux apresentado no oitavo capítulo [”Olhem! O que vejo eu? Vai longe, cantando, e Sok é o primeiro a encher-lhe a boca de carne.” Resposta: a lança de Sok], o termo Ahtna que designa uma lança com ponta de osso e cabo de bétula para caçar caribus ou ursos é "e ’izaeggi", de raiz zaek, muito semelhante a "zaek”, que significa ”voz” ou ”saliva”, e também ao termo zaa, que significa ”boca”. Além de apresentar um enigma, Chakliux está também fazendo um trocadilho, acrescentando assim uma nova dimensão ao esclarecimento.)

Dois últimos comentários: muitos caçadores dos Athabascan não se servem de cães para caçar ursos. Consideram que esse tipo de caça é um insulto ao urso. Em segundo lugar, não confundam o desprezo que algumas das minhas personagens sentem pelos cestos de pele de peixe com um reflexo das minhas preferências. Estas referências destinam-se apenas a ilustrar os pequenos preconceitos que dão colorido às nossas vidas. Os cestos de pele de peixe, cujos exemplares podem ser vistos em muitos dos belos museus do Alasca, são exemplos incríveis da beleza, da variedade e da ingenuidade dos objetos produzidos pelos povos nativos. 

 

                                                                                Sue Harrison 

 

 

                      

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