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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CÃO DA LUA / Erik L’Homme
CÃO DA LUA / Erik L’Homme

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

O comandante Brînx Vobranx deixou seu olhar se perder nas estrelas, para além dos muros de poli-vidro. As luzes artificiais banhavam os prédios metálicos com um halo azulado. Era sempre noite sobre a base imperial do Planeta Morto.

Brînx sentia um aperto no coração. Nifhell parecia tão longe! A imagem de seu pequeno menino e de sua esposa surgiu à frente de seus olhos. Não os via há mais de seis meses. O jovem oficial suspirou. Sem dúvida, comandar uma guarnição daquela importância era uma honra. Mas o Planeta Morto era triste demais! O tempo passava muito lentamente...

Sem conseguir parar de virar as páginas do paleocalendário, que dominava a tela do seu computador, Brînx contava e recontava os dias que faltavam para a chegada de seu substituto. Três meses ainda.

Respirou fundo e tentou se recompor. O que seriam três meses de sua vidinha pacata, comparados aos três séculos de grandeza do império dos generais-condes de Nifhell? Nifhell, planeta dos confins, varrido pelos ventos glaciais, havia imposto sua dominação à metade do sistema solar de Drasill graças a homens bravos e corajosos. Ele devia isso aos homens que lutaram com todas as forças para conter as ambições do canado de Muspell.

Controlando especialmente o Planeta Morto e os Caminhos Brancos.

Os Caminhos Brancos eram corredores que conectavam o Planeta Morto aos demais planetas de Drasill, ligando-os em poucas horas, em vez de anos, como acontecia antes. Algumas horas de uma viagem segura - conduzida pelos fluxos de energia produzida no coração do Planeta Morto -, contra vários anos de um périplo incerto no espaço chamado por todos de Rochedos, exposto aos perigos dos Tumultos, essas temíveis tempestades estelares.

O oficial culpou-se pelo momento de fraqueza.

Prometeu a si mesmo não mais deixar-se abater...

 

 

 

 

Bateram à porta.

Um jovem entrou, trazendo debaixo do braço mapas enrolados.

- Comandante Brînx, o tenente-cartógrafo pediu para entregar-lhe os últimos levantamentos feitos pela equipe de solo.

Brînx sorriu. Sob o pretexto de que viagens e experiências formavam melhor a juventude do que numerosas horas nos bancos da escola, o império Comtal enviava estagiários para todos os serviços, aos quatro cantos do sistema solar; o ar sério do rapaz o animou.

Era uma tradição quase tão velha quanto o próprio império: dos treze aos dezesseis anos, os meninos e as meninas de Nifhell interrompiam seus estudos e partiam para um estágio. Eram colocados em diferentes serviços, em função de suas aptidões e aspirações. Depois, os estagiários podiam continuar a se aprimorar e aprender uma profissão, ou então, voltar para a escola.

Brînx lembrou-se de seus anos de estágio, em Garm, o planeta dos veranistas, como segurança.

Ele recuperou seu bom humor.

- Como você se chama, rapaz?

- Rôlan Atkoll, meu comandante.

Rôlan seguia a moda dos jovens do império: cabelos pintados metade preto e metade branco e lentes de contato vermelhas.

Em suas roupas sóbrias havia um licorne, o símbolo de Nifhell, e, bem ao lado, as insígnias de estagiário - uma ampulheta que lembrava a seu portador que o tempo passava independente do que ele fazia, e que valia então utilizá-lo de forma construtiva! Só os escudos eram obrigatórios. Os estagiários vestiam-se conforme as suas conveniências, ou a de seus empregadores. Brînx alisou seu fino bigode louro.

- Você está encarregado do serviço de cartografia, é isso?

- Sim, meu comandante.

- Você gosta?

Rôlan esforçou-se para não fazer uma careta.

- Sim, meu comandante.

- Seja franco comigo, meu rapaz.

- Sim, meu comandante... Quer dizer, não, meu comandante. Na verdade, eu...

Brînx riu diante do embaraço do estagiário e acrescentou:

- Na verdade, você se encontra nessa função sem ter pedido.

- Sim, meu capitão - disse Rôlan aliviado.

- Qual era a sua escolha inicial?

- Eu queria entrar na fanfarra dos generais-condes...

- Ah, então! E... que instrumento você toca?

- O tambor ultra-sônico.

- E você tocou para os mestres da fanfarra?

- Sim... e na manhã seguinte eu recebi minha ordem de destino no Planeta Morto, no setor de cartografia.

O comandante controlou-se para não rir.

- Mas, diga-me, Rôlan, você trouxe o seu tambor?

- Sim, meu comandante - respondeu o estagiário. - Mas o oficial de bagagens do Planeta Morto o reteve, alegando que esse tipo de instrumento musical era vetado pelo regulamento. Disse ainda que uma regra militar muito importante devia ser respeitada: nunca fazer barulho no Planeta Morto.

- Sim, hum, exatamente - respirou fundo Brînx, prometendo a sim mesmo felicitar o oficial de bagagens por sua vivacidade de espírito. - O regulamento... é muito restritivo nesse ponto!

O comandante ia liberar o estagiário, mas mudou de idéia e deteve-o por mais um instante.

- Eu compreendo a sua decepção, Rôlan Atkoll - disse em tom paternal. - Mas aqui é assim. Cabe a você escolher (fez um gesto em direção à ampulheta costurada no distintivo no peito do rapaz): ou rumina a sua decepção, faz cara feia e perde três anos da sua vida, ou aceita este golpe do destino contra o qual não pode fazer nada e tenta tirar proveito da situação. Vamos, eu estou certo de que o tenente-cartógrafo não é má pessoa, e que você pode aprender muito com ele e sua equipe!

- Sim, meu capitão - concordou Rôlan, com ar grave, antes de sair. - É certamente um bom conselho. Obrigado!

Enquanto Nifhell fornecer jovens voluntários e entusiastas, o império Comtal continuará a dominar Drasill, pensou Brînx alegremente.

De volta à sua solidão, o comandante lançou-se sobre os mapas que o estagiário trouxera. Os cartógrafos tinham trabalhado bem.

Logo que assumira o comando da guarnição, Brînx Vobranx se deu conta de que numerosas zonas do Planeta Morto continuavam pouco conhecidas.

Era um planeta sem atmosfera, totalmente desabitado. Apenas rochas e poeira!

A base - que compreendia um modesto astroporto e alguns prédios nos quais viviam e trabalhavam os soldados e técnicos do império - fora construída na face sombria do planeta, abrigada contra os terríveis e muito próximos raios solares. Sob a base, uma rede de galerias, naturais e artificiais, enterradas profundamente no solo. O resto era morto. Aliás, o Planeta Morto parecia mais uma lua do que um planeta!

Mas Brînx, profissional consciente, havia assumido a tarefa de completar o mapa deste pequeno e pouco conhecido pedaço de galáxia pela qual era responsável. Para isso, solicitara uma tripulação pouco habituada a tanta atividade. O comandante sorriu ao relembrar o assombro do tenente-cartógrafo quando ele ordenou verificar o estado dos cilindros de oxigênio de seus homens e se preparar para saídas cotidianas em solo...

A atenção de Brînx foi atraída de repente por um clarão diferente no céu.

Ele enrugou a sobrancelha e aumentou a transparência do polividro para enxergar melhor.

Um ponto luminoso, que parecia seguido de vários outros, aproximava-se rapidamente do Planeta Morto.

Brînx inicialmente acreditou que fosse uma chuva de meteoritos e se perguntou como o polividro resistiria se um deles atingisse a base.

Um alarme discreto soou.

Ele tirou do bolso de seu uniforme um tecnofone do tamanho de um isqueiro. O tecnofone permitia se ligar com todas as pessoas no sistema solar, graças à extraordinária rede dos Caminhos Brancos.

- Serviço de detecção, meu comandante - atendeu uma voz feminina. - Nós lhe assinalamos que uma frota inteira se aproxima do Planeta Morto! Já avistamos mais de duzentas naves.

- Pelas garras de Gôndül! - exclamou Brînx Vobranx. - Vocês podem... vocês podem identificá-los?

- Sim, comandante: naves com os pássaros vermelhos do cã de Muspell. E...

-E?

- Uma bandeira desfraldada na antena da nave-almirante. E o símbolo é um Polvo...

Brînx cortou a comunicação e enxugou o suor que começava a escorrer sobre o seu rosto.

- Um ataque, é um ataque. O cã de Muspell é louco de desafiar o império, ameaçando o Planeta Morto.

Brînx Vobranx teclou em seu tecnofone o número direto dos generais-condes de Nifhell. Depois comunicou com uma voz rouca que Muspell acabara de romper a trégua e estava se preparando para tomar de assalto o Planeta Morto.

 

Vrânken de Xaintrailles pisava alegremente as lajes de pedra negra do interminável corredor que conduzia à sala do Conselho. Não que apreciasse o palácio do Conselho - que desenhava uma silhueta sombria e sem graça no coração de Kenningar, a capital de Nifhell. Mas fora convocado pelos generais-condes; isso significava o seu retorno em breve ao espaço!

Remoia-se há muito tempo na velha casa dos Xaintrailles, aos pés das montanhas de Skadi...

O capitão Vrânken de Xaintrailles acabara de festejar seus trinta anos. Seus amigos chamavam-no de Vrânk e seus inimigos de Cão-da-Lua - por conta do brasão de sua família, que tinha o desenho da cabeça de um cão, no interior de uma lua crescente, de mandíbula aberta.

Vrânk tinha porte mediano, mas seu comportamento o fazia parecer maior. Sob a camisa preta e larga, as calças de tecido antracito, as botas de couro e um sobretudo roxo dos jovens nobres do império, se avistavam os músculos habituados a exercícios diários.

De fato, quando estava em solo firme, Vrânken enganava a sua espera e a solidão em sua residência ancestral esgrimindo todas as manhãs com um velho mestre de armas, e à tarde, enfrentando corajosamente os ventos glaciais das encostas nevadas das montanhas. À noite, dependendo de seu humor, lia em frente ao fogo, em sua poltrona de couro, ou então ia para uma taberna e esvaziava alguns copos de cerveja espessa com os jovens do vilarejo.

Felizmente, essas temporadas nunca eram muito longas. O império Comtal amava a ação, e Vrânken era um capitão muito solicitado.

Vrânken arrumou seus longos cabelos louros, que iam até os ombros, com as mãos. Mirou seus olhos azuis no guarda imperial em frente à imensa porta.

Depois fixou o olhar no fuzil de polimetal que o homem carregava. Sempre fora fascinado por esta liga de metais, de múltiplas possibilidades, cujo segredo o império guardava a sete chaves.

Com certa dificuldade ele voltou o olhar para o guarda. - Capitão de Xaintrailles - anunciou-se ao soldado. - Estou sendo esperado.

O guarda imperial movimentou a cabeça sem, no entanto, relaxar a vigilância.

Vrânken percebeu imediatamente que algo estranho estava acontecendo. Ele estremeceu, e sentiu uma excitação suplementar.

As pesadas portas de polimetal se abriram. O capitão entrou com passos decididos na vasta sala, onde gigantescos muros de pedra escura alternavam com painéis espessos de polividro.

Os nove generais-condes que comandavam os destinos do império estavam sentados em volta de uma mesa redonda feita de oricalco e de bronze, dois metais obsoletos.

Sobre a mesa estavam gravados os vinte e um planetas que gravitavam em torno do sol de Drasill.

Os generais-condes estavam vestidos com armaduras de polimetal negro. Um deles levantou e fez sinal para Vrânken se aproximar.

- Sente-se, capitão - disse simplesmente o homem.

Seu semblante era duro e a silhueta imponente, apenas seus cabelos brancos enganavam a idade.

Vrânken sentou-se ao seu lado.

Ele reconheceu o general-conde Egîl Skinir, que havia sido eleito por seus pares alguns anos antes para chefiar o conselho dos Nove. O fato de Egîl Skinir dirigir-lhe a palavra diretamente deixou Vrânken curioso.

- Xaintrailles - continuou Egîl Skinir -, o império Comtal está enfrentando desde a noite passada um grave problema. Vrânken sentiu um incômodo em sua voz, como se o general-conde tivesse sido pego cometendo um erro.

- A guarnição encarregada de vigiar o Planeta Morto não responde mais aos nossos chamados. O senhor escutará a última mensagem que recebemos, há poucas horas, do oficial responsável.

Bateu uma palma. Logo, uma voz alterada se fez escutar:

- General-conde Skinir! Aqui é o comandante Brînx Vobranx, do Planeta Morto. Estamos sob ataque! Duzentas naves de guerra com a marca de Muspell! A nave-almirante...

- Já basta! - disse o general-conde Rân Gragass que representava o lodoso condado de Sungr, interrompendo a gravação. - Eu conheço os Vobranx. E uma antiga e honesta família. Quanto ao oficial Brînx, ele sempre foi muito bem visto pelos seus superiores. Então podemos ter certeza de que trata-se de uma mensagem séria.

Egîl Skinir bateu o punho sobre a mesa.

- Esses bárbaros de Muspell! Nos desafiando! Que audácia, capitão!

Vrânken recuperou-se do susto. Estava calado, enfiado em sua poltrona, tentava refletir.

- Capitão - retomou Egîl Skinir -, nós queríamos que o senhor assumisse a liderança da contra-ofensiva que lançaremos sobre o Planeta Morto. É inútil, eu penso, recordar nossos interesses nesse caso...

Vrânken não respondeu imediatamente. O general-conde levantou a sobrancelha.

- Então, Xaintrailles? A sua resposta...

- Três coisas me impressionam... - começou Vrânken quebrando seu silêncio.

- Prossiga, Xaintrailles.

- Em primeiro lugar, que interesse teria o cã de Muspell de atacar o Planeta Morto? O império nunca impediu Muspell de utilizar os Caminhos Brancos para suas viagens interplanetárias. E um acordo tácito de mais de cento e cinqüenta anos: nós controlamos o Planeta Morto, mas todo mundo pode utilizar os Caminhos Brancos, para viajar, se comunicar e fazer comércio. Muspell tem o seu espaço, e precisa tanto dos Caminhos quanto nós. Por que o tratante do Atli Blodox correria o risco de um confronto direto com o império?

- Nós também nos fizemos essa pergunta - disse Egîl Skinir. - As pessoas de Muspell são imprevisíveis. São uns bárbaros; sempre se consideraram insultados de ter apenas nove planetas enquanto nós temos doze. Talvez tenham achado que chegou a hora da revanche. Ou então, pura e simplesmente, o cã está querendo garantir sua autoridade em Muspell!

- Talvez - continuou Vrânken, reflexivo. - Eu me pergunto da mesma forma por que os senhores me escolheram.

Nifhell conta com outros capitães muito mais prestigiados.

Nifhell, que era apenas parcialmente habitado por conta de suas péssimas condições climáticas (o planeta se encontrava longe do sol), comportava nove condados. Cada um elegia por nove anos um general-conde para o palácio Comtal de Kenningar. Os generais-condes, que em outros tempos dirigiam apenas um planeta, se encontravam depois de três séculos no topo de um império que controlava mais de metade do sistema solar de Drasill, nas fronteiras da galáxia de Eridan.

A base do império Comtal repousava sob um sólido e tradicional pedestal, e sob uma aristocracia antiga cujos direitos e deveres eram transmitidos de geração em geração. Os Xaintrailles sempre comandaram naves. Vrânken, como muitos outros em Nifhell, não havia feito mais do que herdar uma antiga nave de família.

A diferença é que ele sempre mostrara excelente capacidade e os generais-condes sabiam disso. O capitão Vrânken de Xaintrailles tinha bom instinto e caráter, e isso o designava naturalmente para virar o homem-chave de uma situação difícil...

- Sejamos francos - respondeu Egîl Skinir. - Nem eu, nem o general-conde Arvâk Augentyr, que representa o condado de Skadi, ignoramos: apesar da pouca idade, você é o estrategista mais brilhante do império. Era quem nos faltava! Você logo compreenderá...

Egîl Skinir retomou a gravação e a voz de Brînx Vobranx soou novamente:

- ...a nave-almirante traz o símbolo do Polvo! Venham nos ajudar! Pelo chifre de...

A frase ficou incompleta.

- A comunicação foi interrompida. E bem verdade que...

Mas Vrânken não escutou mais. Fez um esforço incomum para manter-se calmo. Os acontecimentos tomavam uma outra dimensão: o Polvo dirigira um ataque contra o Planeta Morto!

O Polvo. Essa estratégia assombrosa reaparecia repentinamente após quatro anos. Desde então ridicularizava os navios do império em todos os combates que opunham Nifhell a Muspell. Ganhara o apelido durante um audacioso golpe, nas imediações do planeta Narvh, quando utilizou as naves do cã como tentáculos para resgatar do império um comboio de prisioneiros. Essa forma de agir foi em seguida aprimorada, e a evocação desse nome trazia terror aos marinheiros de Nifhell.

Nunca o Polvo fora derrotado.

Um arrepio percorreu a espinha de Vrânken, como cada vez que se sentia desafiado. Ele abriu um sorriso e virou-se para Egîl Skinir, que ainda aguardava sua resposta.

- Eu espero que você ame frutos do mar, general-conde! Todos receberam a resposta bem-humorada com um certo alívio e até mesmo alguns sorrisos.

- Perfeito, Xaintrailles - disse Egîl Skinir, apertando vigorosamente sua mão. - Nós ficamos felizes porque você aceitou! A partida será dentro de três ou quatro dias, tempo necessário para reunir um número suficiente de naves. Assim que souberem que você é o líder dessa operação, não tenho dúvida de que as pessoas lotarão o astroporto!

Ao contrário do canado de Muspell, que mantinha uma frota permanente de guerra, o império só contava com algumas guarnições independentes que escolhiam participar ou não de uma campanha.

Essa independência era bravamente defendida pelos marinheiros de Nifhell e, mais ainda, pela população, que considerava há muito tempo a liberdade como valor fundamental.

Esse estado de espírito, repleto de orgulho e entusiasmo, era a força e o ponto fraco do império... Vrânken levantou-se para sair.

- Mais um instante, Xaintrailles - pediu Egîl Skinir. - Você disse que três coisas o espantavam nesse caso. Podemos conhecer a terceira?

Vrânken sorriu novamente, zombando dessa vez.

- Antes era um general-conde que tomava a liderança de cada expedição. Eu constato que esta época está definitivamente encerrada.

Egîl Skinir ergueu os ombros. E contentou-se em fazer sinal para que o jovem capitão saísse.

- Não se esqueça, Xaintrailles, dentro de três dias, no astroporto de Kenningar!

- Não se preocupe. Minha nave será ancorada amanhã...

Exultante, Vrânken saudou os nove generais-condes, rodou sobre os calcanhares e saiu.

 

Uma leve brisa acariciava o feltro da grande tenda, no centro do acampamento.

Drasill não estava ainda muito alto no céu, mas já lançava temerosos raios sobre a grande estepe de Muspell. O planeta das tribos do cã era tão quente quanto o dos generais-condes era frio.

Um pássaro abriu suas gigantescas asas vermelhas e saiu de seu ninho de pedras, acolchoado de lã, construído no alto de um pico rochoso.

Aproveitando as correntes de ar matinais, elevou-se rapidamente para cima da planície de ervas amarelas. E logo avistou uma tropa de zoghs, grandes cabras marrons produtoras de lã, leite e carne necessários à sobrevivência dos habitantes de Muspell. O pássaro girou um momento sobre os animais à procura de uma cria isolada, mas o estrondo feito pelos cães-leões o incitou a voar em outra parte.

Em poucas batidas de asas, a ave foi longe. Sobrevoou as imponentes montanhas áridas, onde os homens haviam cavado uma mina que fornecia sal, ferro e carvão. Passou rapidamente por cima das fábricas que, escondidas sob a terra, fabricavam aço e aprimoravam as naves que haviam permitido aos primeiros cãs partir na conquista das estrelas. Algumas chaminés cuspiam uma nuvem negra. O pássaro não perdeu tempo. Nem sequer olhou as torres de aço esguias do astroporto que flanqueavam a montanha. Um forte barulho denunciava uma atividade incessante.

Ele sobrevoou outras estepes imensas, outros rebanhos, outros povoados de tendas espremidas em volta de poços. Deu meia-volta ao se aproximar do deserto que delimitava a estepe das altas planícies. Como o gelo sobre Nifhell, o fogo do sol tornava Muspell inabitável em três quartos.

Próximo a uma floresta de amoreiras anãs, domínio dos insetos que tecem a famosa seda negra de Muspell, o pássaro vermelho enfim descobriu o que procurava.

Seu bico se abriu emitindo um grito estridente.

O pássaro projetou-se como uma lança sobre o solo. O coelho-toupeira não teve tempo de entender o que estava acontecendo. Foi agarrado e carregado entre os dentes afiados da ave. Assim era a vida em Muspell: selvagem e precária...

Atli Blodox estava de excelente humor. Sentado no tapete de lã e de seda que cobria o chão de sua tenda, trocava sorrisos com os chefes de tribos que havia convocado.

O cã era baixo, mas rechonchudo e surpreendentemente forte. Seu olhar sombrio deixava transparecer uma inteligência aguda e uma vontade inquebrantável. Seu crânio era raspado, como o de todos os homens de Muspell. Trazia no torso, ao lado de uma tatuagem de pássaro vermelho, uma longa cicatriz embranquecida, lembrança dos combates contra os outros pretendentes ao trono, vinte anos antes.

Na tradição de Muspell, o cã não era nem eleito, nem herdeiro. Quando o cã morria, cada tribo designava um campeão, e ele deveria provar ser o mais forte e o mais digno de ocupar o lugar vago...

Vinte e sete tribos dividiam a estepe, e, a cada quatro anos, forneciam ao cã um contingente de guerreiros que eram enviados, seja em guarnições para os planetas ocupados, seja em serviços nas naves da frota estelar. Com o dever cumprido, a maioria retornava para a estepe, para seus locais de origem, e retomava a velha forma de vida. Os demais entravam para os quadros das forças armadas e formavam os novos recrutas.

- Meus irmãos - começou Atli Blodox. - A esta hora, as naves do pássaro vermelho devem estar no Planeta Morto.

A voz do cã estava firme e grave.

- Finalmente, vamos obter a nossa revanche - disse, cerrando seus enormes punhos. Seu rosto era cortado por cicatrizes.

- Colocamos um fim à arrogância dos generais-condes - acrescentou um chefe de tribo, cuja estatura era alta e magra como uma garça.

- O império não sabe o que o espera - concluiu feliz o cã. Três servos apareceram com bandejas, e começaram a servir chá e pães com amêndoas.

Ao contrário do império Comtal, que se contentava em exigir dos planetas conquistados um imposto e locais reservados para as naves imperiais nos astroportos, o canado de Muspell explorava sem nenhuma vergonha as populações sob o seu controle...

Uma campainha tocou na tenda. Atli Blodox colocou seu tecnofone no ouvido e conversou por um momento em voz baixa.

- Vitória, meus irmãos! - anunciou o cã triunfante. - A operação foi um total sucesso.

- Nossos guerreiros assumiram o controle dos Caminhos Brancos? - quis saber um velho enrugado como um maracujá.

- Não totalmente. Ainda existem bolsões de resistência no subsolo. Mas, nesse momento, não é o mais importante!

Atli Blodox soltou uma enorme gargalhada, imitada pelos outros chefes de tribo.

Pouco depois, enquanto os homens mais poderosos de Muspell acabavam de comer a carne trazida em pratos de barro, um indivíduo surgiu na tenda.

Era alto e magro, e estava repugnantemente sujo. Ele se apoiava em um cajado esculpido, coberto de sinais incompreensíveis.

Fez-se um silêncio imediato.

Atli Blodox inclinou a cabeça em sinal de respeito: tratava-se de um otchigin, um príncipe do fogo, um xamã.

Cada tribo tinha o seu xamã, seu feiticeiro, que interrogava durante transes sagrados os espíritos de Tengri, do céu e da terra.

O otchigin que acabara de entrar na tenda era considerado o mais poderoso dos vinte e sete xamãs de Muspell.

- Ó, grande cã - começou a falar com uma voz cavernosa -, eu venho a ti para questionar as Forças. Estás preparado para escutar o que elas revelam sobre o futuro?

- Eu estou pronto, otchigin. O xamã fechou os olhos.

Murmurou algumas palavras incompreensíveis e bateu com o cajado no chão. Logo, um fogo de flamas frias nasceu da poeira sob exclamações ofegantes.

Em seguida, o xamã tirou um punhado de ervas do bolso de sua veste remendada e jogo-o no fogo. Uma fumaça espessa tomou conta da tenda, provocando algumas tosses e arranhando gargantas. Seu corpo elevou-se sobre a fumaça. O xamã respirou fundo e em seguida jogou a cabeça para trás. Começou então a se balançar de um lado para o outro.

Assim que retomou a palavra, parecia outra voz saindo de sua boca:

- Há um clarão no céu... Os tentáculos do Polvo apertam a pressão... Eu escuto gritos de dor... Muitas mortes... Uma sombra se aproxima... A sombra de um cão que late... O Tengri prende a respiração... Só os Tumultos podem saber...

O xamã parou. Gemeu, depois sacudiu a cabeça, como se tentasse se livrar de uma presença invasora. Ele reabriu os olhos.

Um silêncio tenso tomou conta da tenda. Com um gesto de seu cajado, o fogo se apagou e a fumaça se dissipou.

- Otchigin - perguntou Atli Blodox -, você tem noção do que acaba de descrever?

- Eu descrevi o que talvez seja, grande cã. O futuro não é congelado como o passado. As Forças, elas mesmas, são submetidas.

- Mas diga-me: era um bom ou um mau presságio?

- Era um bom e um mau presságio.

Após a resposta enigmática, o otchigin retirou-se discretamente.

- Então, meu cã? - inquietou-se um dos homens mais próximos.

- Vocês entenderam como eu entendi - disse Atli Blodox, servindo-se de álcool de trigo. - Os deuses não sabem de nada. Tudo é possível, tudo está aberto. Meus irmãos, eu proponho que nós levantemos nossos copos e saudemos a nossa empreitada. Que Tengri nos proteja.

- Que Tengri nos proteja! - repetiram os chefes de tribo.

- Agora - bradou o cã -, vamos nos divertir! Façam entrar os músicos! As incertezas do futuro devem nos incitar a aproveitar plenamente o presente!

Do lado de fora, o vento deslocava pequenas nuvens de areia. Ao abrigo do feltro da grande tenda, os homens acompanhavam a melodia das flautas e dos tambores, como faziam seus ancestrais - a única diferença era o céu sobre suas cabeças que não pertencia somente aos deuses...

 

- Primeiro... existia apenas o abismo. Nem mar, nem areia, nem o céu profundo, nem erva, nem árvore. Não havia nada mais do que o abismo. E o abismo estava cheio de Forças desordenadas. O abismo esperava. Uma bruma glacial se elevava de um dos lados do abismo, e do outro, um vento que queimava. Do encontro dos dois nascia a galáxia de Eridan. Os planetas, as estrelas e o espaço que se chama hoje de Rochedos... Por favor, Morgana, continue.

Uma jovem, distraída, sobressaltou-se, e olhou em direção à adivinha. Suas amigas reunidas em torno de Frä Ülfidas, sobre os galhos de uma árvore artificial de polividro, gargalharam. A aluna ficou levemente ruborizada. Ela era alta e magra, como pode ser uma moça na adolescência.

Suas longas madeixas castanhas flutuavam sem parar sobre seu vestido marrom de noviça da ordem feminina das Frä Daüda. Seus olhos claros eram imensos. Morgana fixou sua atenção sobre a fonte de polimetal líquido, que jorrava ao pé da árvore translúcida, e se concentrou.

- Em seguida... - recitou ela com uma voz monocórdia - foi o reino dos monstros, o dos titãs e aquele das Forças. Os Rochedos eram o domínio dos terríveis Gôndüls, como os oceanos de Nifhell são hoje o refúgio dos tubarões negros de dentes afiados e hálito fétido. Os planetas abrigavam trolls, gigantes malcheirosos e cruéis, elfos e inumeráveis espíritos. Quanto às estrelas, elas nutriam em suas sombras grandes serpentes estelares. Isso na época em que o universo ainda era jovem!...

- Morgana... - interrompeu Frä Ülfidas -, por que te sentes obrigada a usar esses adjetivos inventados para uma simples narração que satisfaz as noviças há quase mil anos?

Morgana fez o ar mais inocente que pôde.

- Foi a forma que encontrei para fazer a história ficar mais interessante. Veja, Frä Ülfidas, se repetimos tolamente o que dizem os textos sagrados, é claro que eu os respeito, eles só falam que os planetas abrigavam os trolls. Se precisarmos que eram gigantes malcheirosos e cruéis, fazemos uma imagem mais precisa!

A velha adivinha não escondeu mais o sorriso.

- De uma certa forma você tem razão, Morgana. Mas como pode ter certeza de que os trolls eram fétidos e cruéis? Quem te disse que eles não eram amáveis e que não se lavavam diariamente?

Morgana procurou em vão qualquer resposta, antes de abaixar a cabeça com um ar envergonhado.

- Veja você, Morgana, vejam vocês, minhas crianças - prosseguiu a adivinha, dirigindo-se às doze meninas sentadas em torno dela, na grande sala de aula. - É preciso assegurar o respeito à verdade. E a verdade é, em geral, melhor quando oferecida nua. Não sabemos nada dos gigantes que habitavam os planetas antes de nós. Nós apenas os chamamos de trolls. Evitemos outras definições, mesmo se for para tornar a história mais interessante. Não somos poetas, nossa escola não é de trovadores, cuja arte é inventar e enfeitar suas histórias para cativar a platéia! Ao contrário, somos a memória e a clarividência desse universo. Nós aprendemos a escutar o passado e a ver o futuro. Vocês entenderam?

Todas balançaram a cabeça, mesmo Morgana que olhava de forma mais atenta a velha professora.

Morgana amava sinceramente Frä Ülfidas e detestava incomodá-la. Lamentava apenas não haver mais lugar para fantasias na ordem das Frä Daüda.

Seus pais, como os da maioria de suas amigas noviças, tinham morrido em guerras que regularmente aconteciam entre Nifhell e Muspell, ou por ocasião dos ferozes ataques efetuados freqüentemente pelos piratas dos Rochedos sobre o planeta de Drasill. Ela não sabia exatamente. Depois, a ordem das Frä Daüda a abrigara, virando sua família. Aos sete anos já usava o hábito de noviça, e, apesar de seu temperamento rebelde, era amada pelo corpo docente. Mesmo não sendo a menina mais estudiosa da ordem, ela soube conquistar o seu lugar.

Aos treze anos, lhe parecia, com o orgulho característico da juventude, que não havia mais grande coisa a aprender sobre os mistérios das Frä Daüda...

- Xändrine - repreendeu a adivinha, dirigindo-se a uma menina de cabelos negros -, você não gostaria de continuar?

- Na seqüência... Alguma coisa veio do exterior. O universo hesitou entre a ordem e o caos. Alguma coisa veio e se foi, alterando tudo em sua passagem, provocando o desaparecimento dos seres antigos e a aparição dos novos. Os trolls e os elfos deram lugar aos homens. Os Gôndüls rarearam. Numerosos espíritos abandonaram os planetas e foram para as estrelas. A grande serpente invadiu os Rochedos, e seus sobressaltos deram vida às tempestades mortais que chamamos hoje de Tumultos. Sobretudo, em seu rastro, a coisa do exterior deixou o tempo, que engendra o passado, o presente e o futuro...

- Gäranze - ordenou Frä Ülfidas. Uma outra aluna tomou timidamente a palavra:

- Depois... o equilíbrio do universo foi rompido. Inquietos como formigas alucinadas, os homens se espalharam pelas galáxias. As primeiras guerras começaram. Estrondos de armas, gritos de agonias. Silêncio. Batimentos de asas dos corvos. Os irmãos se matavam, o medo dominava os seres, tempos de machados e de espadas, tempos de tempestades e de lobos. Os Rochedos dominaram as terras, as estrelas se encobriram, o céu inteiro parecia reduzido a cinzas...

Frä Ülfidas terminou:

- Por fim... nas fronteiras de Eridan destruído, um sol novo se levantou e foi chamado de Drasill. Ele clareou vinte e um planetas salvos do desastre. As guerras recomeçaram entre os homens que haviam escapado do furor do caos, guerras bem irrisórias em comparação com as do passado. Logo um equilíbrio se instalou, condes e cãs traçaram as fronteiras militares da galáxia. Sobre as folhas da grande árvore, as adivinhas evocam o passado e os antigos segredos. Penduradas sob a fonte, elas mergulham seus olhares no misterioso futuro. Elas lembram e adivinham. Elas se apropriam do tempo. Nascidas em Nifhell, as Frä Daüda se tornaram a alma do império, assim como os otchigins encarnam o sopro do canado...

A adivinha levantou-se e bateu uma palma.

- Vamos, meninas, está terminado. Não se esqueçam de fazer os exercícios de concentração antes de ir para o refeitório!

As meninas se dispersaram alegremente. Cada noviça possuía um quarto, onde tinha liberdade de se isolar quando desejasse. Não faltavam locais públicos: o grande refeitório, os ginásios, as saunas e inúmeras bibliotecas que freqüentemente ressoavam barulho de conversas.

A escola das Frä Daüda, de pedras velhas na parte mais antiga, e de polividro nos prédios modernos, ocupava um bairro inteiro de Urd, capital do condado do mesmo nome, às margens do oceano congelado que cobria o norte do planeta. Juntamente com o palácio Comtal e a Academia Espacial de Kenningar, era o local de maior prestígio de Nifhell...

Morgana se apressou para junto com Xändrine disputar uma partida de paleotenis quando foi impedida por Frä Ülfidas.

- Morgana, espere um momento, por favor. Eu quero falar com você.

A jovem fez sinal para a sua amiga não esperá-la e aproximou-se da adivinha.

- Sim, Frä Ülfidas?

A velha mulher cobriu Morgana com um olhar cheio de ternura.

A idade havia enrugado sua pele, fundido sua carne e entortado seus dedos, mas não havia curvado suas costas nem apagado o brilhante fogo de seus olhos. Ela se mantinha ereta em sua roupa cinza de adivinha. Morgana a lembrava de si própria, com seu jeito decidido de quando tinha a mesma idade da jovem.

- Morgana, você vai completar treze anos amanhã.

- Eu sei isso muito bem! Já preparei uma grande festa! Por quê? A senhora... deseja vir?

- Morgana, já faz muito tempo que as leis do império não abrangem mais as Frä Daüda. E um erro? Eu acho que sim.

A jovem foi sendo tomada pela ansiedade. Treze anos no dia seguinte, as leis do império! Será que...? Não, não era possível. Já fazia muito tempo que nenhuma noviça partia!

- Minha querida - continuou a adivinha. - Eu sinto muito pela sua festa, mas, amanhã, você vai partir para um estágio...

Morgana sentiu uma bola crescer em sua garganta.

- Frä Ülfidas - conseguiu falar com a voz trêmula -, eu não estou entendendo...

- Existem importantes tradições que não podem ser esquecidas. A presença das adivinhas a bordo das naves de Nifhell é uma delas.

A jovem lançou um olhar suplicante à velha mulher.

- Minha decisão é irrevogável - continuou ela. - Você será a assistente de Frä Drümar em uma nave que se prepara para partir em campanha. A missão parece ser importante. Ela me pediu para escolher uma estagiária entre as melhores.

Morgana levou um susto.

- Frä Ülfidas... No meu aniversário, eu estava tão feliz...

A adivinha não deu ouvidos ao que a jovem dizia.

- Eu espero muito de você, minha filha. Frä Drümar também foi uma das melhores alunas, isso já faz algum tempo. Você aprenderá muito com ela. Trate de ajudá-la da melhor maneira.

Morgana não resistiu muito tempo e explodiu em soluços.

- Escute, Morgana. Esses três anos longe de Urd serão proveitosos. É uma chance que eu lhe ofereço. Não desperdice a oportunidade de virar aquilo que você deve ser...

- Eu não quero... partir - soluçou. - Meu lugar é aqui... Aqui!

Morgana afastou-se bruscamente da velha mulher e correu em direção aos prédios que abrigavam os quartos das noviças.

Frä Ülfidas suspirou.

Ela compreendia a grande dor que aquilo poderia representar para a menina, que deixaria as amigas e o universo que a acolheu a vida inteira. Mas estava convencida de ter feito a melhor escolha. Para todo mundo.

Em uma reza muda, ela pediu à árvore sagrada para cuidar de sua protegida.

 

- Mamãe! Você viu o meu casaco preto? Eu não estou encontrando!

- Você procurou direito, meu querido? Tem certeza?

-Sim!

Lëna Augentyr abandonou seu livro e dirigiu-se ao elevador. Entrou no tubo de polividro, e em voz alta determinou que queria ficar no primeiro andar.

Achou o deslocamento rápido demais e regulou a velocidade. Ajeitou os cabelos alourados, e andou rapidamente em direção ao quarto de seu filho.

- Xâvier! O que é isso aqui?

O quarto, aberto sobre os arbustos do parque atrás da casa, estava uma desordem. A cama parecia um campo de batalha; um par de meias estirado sobre o computador e diversas pilhas de livros sobre o chão antipoeira que imitava madeira. Os bárbaros de Muspell não saberiam fazer mais bagunça!

Um menino de treze anos, bem alto para a idade, com os cabelos pintados em preto e branco e olhos vermelhos por conta das lentes, que desde a volta às aulas faziam furor no colégio, olhou para Lëna com um olhar suplicante.

- Mãe! Eu preciso m-u-i-t-o do meu casaco! E o meu preferido!

Lëna Augentyr comoveu-se diante da súplica do filho. O casaco seria tão importante? Ela percebeu que o jovem procurava para levá-lo consigo, e seu coração apertou. Ela resolvera não mais pensar no que lhe era insuportável: seu Xâvier acabara de fazer treze anos, e, como todo filho de general-conde, deveria se curvar à tradição em vigor em Nifhell. Deveria partir para um estágio de três anos, e ela só voltaria a vê-lo nas férias que porventura lhe fossem concedidas.

Sentiu algo subir em sua garganta quase impedindo-a de respirar. Nunca havia se separado dele. Não poderia haver uma exceção? Para se aclamar, prometeu a si mesma obter do marido a promessa de que Xâvier viria sempre que possível para Kenningar.

- Mãe...

Reprimindo as lágrimas, Lëna começou a procurar no armário e não demorou muito a encontrar o requisitado casaco. Xâvier agradeceu, jogou-o dentro de sua mochila que começava a se avolumar de maneira absurda e logo saiu em busca de outras coisas.

- Querido, como é mesmo o nome da embarcação em que você fará o seu estágio? Eu esqueci!

- Destruidor de Ossos, mãe. E uma nave famosa, você sabe! Pertence ao melhor capitão de Nifhell. Papai me disse que serei alocado em serviço pessoal. Você precisava ver a cara dos meus amigos quando contei isso!

"Destruidor de Ossos... ridículo!", pensou Lëna. "Eu só espero que esse capitão não seja um maluco e, sobretudo, trate o meu filho com tudo o que ele tem direito. Se não, ele terá problemas. Palavra de mulher de general-conde..."

Lëna cruzou os braços, nervosa, e aproximou-se do garoto.

- Você embarca amanhã?

- Hoje, mãe! Eu já te disse isso pelo menos cem vezes!

- Você está com tanta pressa assim de me abandonar?

- Isso não tem nada a ver! Você mistura tudo! Eu te amo, te amo, te amo! Mas enfim, eu vou para o meu estágio, é assim com todo mundo!

Ela quase começou a gritar que ele não era todo mundo, que era seu filho, e filho de um general-conde! Mas logo percebeu o quanto ele estava excitado por conta da partida. O momento não era adequado para expressar seus sentimentos.

Tentou lembrar-se de seus tempos de estágio, que ela havia feito como enfermeira no hospital de Kenningar, e o que veio em sua mente não foram boas recordações. Naquele tempo desejava ser médica. Sonhava em visitar os planetas mais distantes, conhecer todo tipo de gente. Mas isso fora há muito tempo!

- Vou subir, querido. Se você precisar de mim, é só me chamar.

- Obrigado, mãe!

Ela saiu do primeiro andar.

Xâvier ocupava o andar inteiro. Tinha à sua disposição um quarto, uma sala de cinema, um ginásio e uma piscina. O térreo era usado para recepcionar as visitas e o segundo andar era de seus pais.

Mesmo representando o condado de Skadi, onde fora eleito, o general-conde Arvâk Augentyr tinha sido convencido pela esposa a morar na capital. A maior preocupação da família eram os estudos de Xâvier. Sendo ela natural de Kenningar, já não suportava mais o isolamento e a rudeza do montanhoso condado.

Os nove condados de Nifhell tinham em comum o frio, ventos e uma permanente bruma. Uns mais do que os outros. A começar pelo condado de Skadi, constantemente varrido pelos ventos. O condado de Sungr, cheio de lagos e de pântanos, era particularmente úmido. O de Urd, o mais setentrional, onde viviam as adivinhas, às margens do oceano gelado, era glacial. O condado de Alsvin, com suas florestas sempre cobertas de geada, abrigava ainda todo tipo de animais ferozes. Em Vermal, uma ilha do sul, às margens do oceano Livre era o menor de todos, mas também o mais próspero, pois seu subsolo era rico no mineral que entrava na composição do polimetal. E ainda havia o condado industrial de Grudai, o condado de Menglod, que também era chamado de condado dos comerciantes, e o de Gerd, famoso pela beleza de suas mulheres, e por último o de Kenningar.

Kenningar era a única verdadeira cidade de Nifhell. A maioria das capitais dos condados não passava de pequenas vilas onde havia as feiras, ou onde se realizavam as festas e as cerimônias, ou onde residiam grandes comerciantes ou administradores imperiais. Elas possuíam em alguns casos um pequeno astroporto, uma universidade ou um hospital. Mas o essencial da vida se passava em outro lugar. Em pequenas vilas cercadas de muros ou em casas fortificadas, nas florestas nevadas, cercadas de polividro e com tempestades glaciais. Nifhell abrigava originariamente camponeses e marinheiros, homens orgulhosos e livres, fortemente ligados à sua terra, sua família e seus amigos. À época do império interplanetário, as coisas não haviam mudado, e só se ia até Kenningar para tratar de assuntos importantes, pegar uma, nave no astroporto, assistir a um concerto, freqüentar bons restaurantes ou para estudar.

Esse fora o caso de Lëna Augentyr, que convencera o filho a abandonar os amigos de Skadi, seduzindo-o com a célebre Academia Espacial de Kenningar. Os Augentyr resolveram então escolher como local de residência a parte alta da cidade, nos bairros chiques. Xâvier entrou para o melhor estabelecimento de Kenningar, e freqüentava, para a satisfação de sua mãe, a boa sociedade de Nifhell.

Xâvier Augentyr irritou-se por um momento, enquanto fechava a mochila, depois, todo suado, jogou-a sobre a cama. Estava pronto!

Com os olhos no teto, imaginou-se a bordo do Destruidor de Ossos, combatendo os piratas dos Rochedos, escapando das ferozes naves de Muspell. Sem nenhuma dúvida, um dia ele seria um capitão. Seu pai tinha a fortuna necessária para poder comprar-lhe uma embarcação. Quanto a ele... Afinal, não era o primeiro de sua classe em matemática aplicada e em estratégia espacial?

Ele sonhava com um brilhante futuro e seu coração começou a bater forte.

Depois voltou ao Destruidor de Ossos e a seu capitão. Ele vira sua foto na revista Simulações e teorias, uma publicação sobre as guerras espaciais. O artigo comentava, com muitos detalhes, as onze vitórias espetaculares obtidas contra a frota do cã de Muspell.

Xâvier ficara impressionado. As premiações do capitão se igualavam às do Polvo, o genial almirante de Muspell, cuja estratégia acabara de se transformar em um jogo virtual. Jogo que ele adquiriu rapidamente.

Enfim, o artigo da revista deixava subentender que o proprietário do Destruidor de Ossos não hesitava em se aventurar nos Rochedos de vez em quando...

Os Rochedos. Era o nome que os habitantes do sistema solar de Drasill davam ao espaço. Um espaço que os fascinava e assustava tanto quanto os oceanos assustavam e fascinam seus ancestrais, antes de começar a grande aventura interplanetária.

Depois da descoberta das propriedades do Planeta Morto, que havia permitido a concepção dos Caminhos Brancos, raros eram os que escolhiam o confronto com os Rochedos e seus perigos, piratas e tempestades estelares. Apesar de que uma viagem através dos Rochedos poderia durar apenas uma hora usando os Caminhos Brancos! Só sendo louco para se afastar. E o capitão era uma pessoa ímpar.

Seu pai parecia tê-lo em grande estima. Foi por isso que usara de sua influência para conseguir que seu filho estagiasse próximo a ele...

Xâvier levantou-se e inspecionou o quarto. Era fato, havia exagerado! Por um instante, pensou em arrumá-lo. Mas depois lembrou que os empregados da casa viriam no dia seguinte, e eles se ocupariam disso!

Então, deixou tudo do jeito que estava; apenas tirou as meias do computador, ligou a tela holográfica e começou uma batalha espacial em três dimensões.

 

O astroporto de Kenningar era situado fora da cidade, em um local bem alto e longe do alcance das brumas que vinham do oceano, principalmente no inverno e na primavera.

Hangares gigantescos foram construídos de polimetal ao lado de plataformas banhadas de luz azul. Torres de controle, que se lançavam em direção ao céu, eram cercadas por albergues de trânsito sobre o contorno da colina.

Construído na medida das necessidades do império, o astroporto era mais impressionante do que bonito. Era possível perceber, por trás do aparente rigor militar, a inquietude e o espírito de liberdade das pessoas de Nifhell.

O eletrobus partiu novamente. Mârk ficou um longo tempo contemplando o incrível emaranhado de prédios. Era a primeira vez que vinha ao astroporto, e ninguém em sua curta vida o havia preparado para isso.

Uma ligeira brisa começou a soprar. Era verão em Nifhell, mas fazia frio. Ele subiu a gola de sua jaqueta surrada, muito grande para ele, que seu avô guardara para o neto causar boa impressão. Pensando nele, Mârk deixou-se abater por uma súbita tristeza. Talvez devesse ter recusado partir...

Mârk Glabar era um jovem atarracado, de cabelos negros e os olhos sombrios, contrastantes com a brancura de sua pele. Seu pulôver estava remendado, mas limpo.

Naquela manhã, ainda na madrugada, após as aulas que haviam durado boa parte da noite, ele saíra do bairro do velho porto de Kenningar, onde ficava o centro de aprendizagem, para o bairro dos tecelões, encostado a uma colina. Era um dos numerosos bairros populares da capital. Ele conhecia todas as ruas de cor e quase que poderia dizer o nome de todos os seus habitantes.

Uma padeira parou-o e deu-lhe um pedaço de pão quente, pedindo para que mandasse seus cumprimentos ao avô. Ele agradeceu educadamente.

- Não é porque somos pobres que somos malandros - dizia-lhe insistentemente o velho homem. - Ao contrário, muitos ricos são verdadeiros vadios, confundem o que possuem com aquilo que são. O pobre, ele só tem aquilo que ele é. Seja sempre digno, garoto, e proteja a sua honra. Ela é a sua única riqueza!

Com a morte de seus pais, Mârk fora abrigado por seu avô, um estivador preso há muito tempo a uma poltrona por conta de um acidente de trabalho. Ele fora o responsável pela educação do neto.

Apesar de ser bom aluno, Mârk percebera rapidamente que a pequena pensão de seu avô não lhe permitiria continuar os estudos. Ele havia então decidido aprender uma profissão, a cozinha, com esperanças de poder um dia montar seu próprio restaurante no bairro em que nascera.

Mârk havia subido quatro a quatro os degraus que levavam ao modesto apartamento que ocupavam em imóvel que pertencia ao império.

Mesmo não dando a devida atenção, os generais-condes jamais haviam abandonado o povoado de Nifhell. Velavam pela salubridade dos bairros baixos e ajudavam os mais necessitados. Graças a isso, apesar da pobreza corrente em Kenningar, a miséria não estivera presente, e todos eram favoráveis ao regime implantado pelo poder vigente há quase mil anos em Nifhell.

- Vô, sou eu! - anunciou ele, entrando no apartamento.

Ele havia colocado o pão sobre a mesa de polividro da cozinha e se dirigiu à sala, usada como quarto do velho homem.

Mârk o havia encontrado em lágrimas em sua poltrona. Ele tinha uma carta nas mãos.

- Vovô! - exclamou Mârk, precipitando-se em sua direção. - O que aconteceu? O homem parecia incapaz de pronunciar uma só palavra. Com a mão trêmula estendeu a carta para o neto. Mârk a leu.

Era uma convocação. O garoto fora chamado a se apresentar antes das nove horas no astroporto de Kenningar, para cumprir seu estágio de cozinheiro em uma nave que estava de partida.

O rosto de Mârk se modificou.

- Eu vou recusar - declarou. - Dane-se, se eu for classificado como desertor!

- Eu te proíbo, entendeu? - rugira seu avô antes de firmar-se na poltrona. - Não quero que digam que o meu neto fugiu de seu dever e renunciou a um direito. Partir para fazer um estágio é um direito de todos os jovens de Nifhell. Ricos e pobres, fortes e fracos, é a única igualdade prometida e garantida pelo império aos seus cidadãos.

Mârk virou-se para ele com um olhar doído.

- Mas, vovô, quem tomará conta de você?

- Eu sou suficientemente grande para tomar conta de mim! Além disso, temos vizinhos compreensivos.

Mârk estava mudo, tomado de emoção. A voz de seu avô agora estava doce.

- Você vai me fazer muita falta - recomeçou o velho -, isso é certo. Mas estou orgulhoso por você fazer o seu estágio em uma nave espacial. Não se esqueça de nos honrar.

- Eu não esquecerei, vovô - respondeu ele, comovido como nunca estivera na vida...

Mârk respirou fundo para se encorajar. Depois pegou a mala, mantida fechada graças a um pedaço de corda, e entrou nas instalações do astroporto.

No hall central ele avistou o grande painel "Recepção". A simpática atendente não tinha nenhuma informação sobre as partidas das naves, mas aconselhou-o a dirigir-se à plataforma central, que havia sido requisitada pelos generais-condes.

Ele saiu em disparada. Percebeu que estava atrasado...

Ainda no caminho do astroporto, Mârk ficara bloqueado pelo bando do Cara-Torta, de mecânicos do último ano escolar que freqüentavam o centro, como ele. Tornaram-se seus inimigos no dia em que ele recusou participar de zombadas, e ainda incentivou seus amigos a fazer o mesmo. Era muito idiota! Ele conseguira evitá-los até o momento. Mas dessa vez, estando quatro contra um, ele estava frito.

Mârk resmungou algo próximo a um "dane-se" e preparou-se para a briga. A rua era uma selva que tinha suas próprias leis, leis sobretudo favoráveis aos mais fortes. Ele sabia, e por isso freqüentava assiduamente o velho ginásio do centro de aprendizagem, fazendo aos poucos amizade com o vigia. O homem, um antigo guarda do império, acabou por ensinar-lhe "dois ou três truques que poderiam ter alguma utilidade algum dia".

Cara-Torta tinha dado um passo. Ele ganhara esse apelido após ter sido desfigurado por uma peça de motor mal ajustada.

Mais velho alguns anos que Mârk, era também maior e mais pesado.

- Dizem que as coisas não andam bem pro seu lado, Mârk - zombou ele.

Sua voz saía deformada de seus lábios grudados. Por um instante, Mârk sentira pena daquele que pretendia massacrá-lo.

- Vamos terminar logo com isso - murmurou.

- Como você quiser - chacoteou Cara-Torta, fazendo sinal para seus parceiros.

Os três aprendizes, muito seguros, se jogaram sobre Mârk.

Mârk deu um primeiro chute na barriga de um de seus agressores. Agradeceu mentalmente ao seu amigo do ginásio pelos "dois ou três truques úteis". Em seguida, recepcionou o outro com mais um chute, na cabeça dessa vez, e abateu o terceiro com um soco.

A briga não durou dez segundos.

Uma profunda surpresa marcou os traços deformados de Cara-Torta. Uma surpresa que logo foi substituída por uma irritação...

- Senhor valentão - encarnou -, muito bem!

Ele tirou uma faca de seu bolso e se lançou sobre Mârk.

O rapaz, pego de surpresa, não pôde evitar totalmente o golpe de Cara-Torta em seu rosto. Sentiu uma queimadura e o sangue a escorrer sobre sua bochecha. Colocou o dedo na ferida, inicialmente incrédulo.

Depois foi tomado por uma cólera fria. Cara-Torta tinha ido longe demais. E assim devem ter pensado seus amigos, que, após se levantarem, conversavam entre si em voz baixa.

Desaprovando visivelmente o chefe, o bando abandonou o local.

Mârk decidiu aproveitar a situação. Com um golpe brusco, tirou a faca das mãos de Cara-Torta. E feriu a garganta de seu detrator.

Seu adversário emitiu um som seco antes de perder a consciência e cair pesadamente.

Mârk não esperou para vê-lo se levantar. E caiu fora.

Um pouco adiante, ele limpou seu machucado com um lenço molhado em uma fonte.

Caminhando no corredor do astroporto, Mârk tocou a face com uma das mãos. O corte, profundo, ainda sangrava.

Mas ele não estava nem aí. Derrubara quatro adversários, e escapara da morte. Nada mau para um garoto de treze anos. Para surpresa dos passageiros do astro-porto, ele começou a rir alto, sempre se lembrando da frase de seu avô: "Chega uma hora que falar não serve para nada. Só os atos têm importância. Esses atos falam por você..."

No início, Mârk havia tentado conversar com o bando de Cara-Torta para que eles parassem com os atos de vandalismo. Sem sucesso. Os atos então deram lugar às palavras, e os atos haviam falado!

Era assim, a vida: uma selva e, no meio dessa selva, confrontos infindáveis.

Fazendo essa reflexão, Mârk chegou à plataforma central.

 

A plataforma central podia acolher trezentas naves. Ela estava lotada. O anúncio da expedição de libertação do Planeta Morto e a nomeação de Vrânken de Xaintrailles como capitão-em-chefe atraiu numerosos voluntários. O local estava agitado pela multidão.

Mârk hesitou. Acabou por abordar um homem com o uniforme do império, que lhe indicou a sala de espera no fim da plataforma.

Mârk caminhou em direção à sala, inquieto. Só relaxou quando chegou ao local e leu num cartaz a inscrição "Estagiários". Ao se aproximar, viu dois jovens de sua idade, cada um em um canto.

Um deles, um rapaz maior que ele, mantinha-se ereto como uma lança em frente à sua enorme mochila. Mârk lançou um "oi"! Ficou sem resposta. Logo compreendeu - pelos cabelos pintados em preto e branco, lentes vermelhas e roupas de luxo - o meio social de que o jovem fazia parte. Ele balançou os ombros e saiu na direção da outra pessoa.

Era uma menina franzina, de longos cabelos e olhos azuis cativantes. Usava um vestido de lã marrom, muito simples, e estava sentada sobre um pequeno saco. Mârk franziu a cara. Ele já vira algumas adivinhas com suas noviças, ao lado do velho porto, onde vinham conversar com os idosos dos bairros pobres. Sempre desconfiara das Frä Daüda, que julgava muito estranhas. Mesmo assim lançou um outro "oi" e a menina respondeu com um gesto de mão. Ele suspirou internamente. Desejou que os dois não fossem estagiários de sua nave!

Mârk avistou uma cadeira, pousou a mala e aguardou.

Xâvier sentiu câimbras. Já fazia ao menos uma hora que ele se esforçava para ficar em pé, ostentando uma indiferença que acreditava ser própria à elite de Nifhell. Tudo isso começara com a entrada da menina. Mais para bonita, convinha ser percebido. Mas ela estava tão mal vestida! O que ela estaria fazendo ali? Quanto ao outro, era certo, vinha direto de uma parte pobre da cidade, e mesmo assim havia dirigido a palavra a ele como se fosse um dos seus... Quem ele achava que era! Se por azar também embarcasse no Destruidor de Ossos, ele mostraria rapidamente a distância que os separava!

Não agüentando mais, Xâvier começou a andar com um ar indolente, fingindo interesse na arquitetura da sala de espera.

Então são assim os garotos "expertos"?, pensou Mor-gana se divertindo vagamente, olhando para eles. Talvez estejam comigo. Mesmo que tenham ar de perfeitos idiotas, é sempre melhor do que ficar sozinha...

Claro que Morgana já conhecia garotos. A escola das Frä Daüda não era nem um convento nem uma prisão! Mas ela debochava dela mesma por conta das recomendações que tinham sido feitas pelas velhas adivinhas antes de sua partida, sobretudo no que dizia respeito aos meninos "expertos" que a cercariam durante o estágio.

Por ora, o cancelamento de sua festa de aniversário e o adeus às suas amigas ainda eram uma lembrança amarga. Ela não estava com humor para conversas!

Um homem vestido como um marinheiro, com botas de couro, uma sólida calça de brim e pulôver de lã, entrou de forma abrupta na sala.

- Vocês são os estagiários do Destruidor de Ossos?

- Sim - responderam em uma só voz Mârk, Morgana e Xâvier, antes de se encararem com surpresa.

- Então, sigam-me!

Mârk e Morgana levantaram sem dizer nada e pegaram suas bagagens. Xâvier deu um passo à frente e disse com voz firme:

- Eu sou Xâvier Augentyr, filho do general-conde Augentyr. Não tem ninguém para levar a minha bagagem?

O marinheiro olhou o garoto com enorme espanto e caiu na gargalhada.

- Sim, meu garoto, tem alguém sim: você! E nem pense em arrastar!

Xâvier abriu a boca de espanto. Ele ia responder quando o marinheiro girou sobre os calcanhares e dirigiu-se rapidamente à plataforma, seguido por Morgana e por Mârk, que sorriu maliciosamente.

Xâvier, com cara de poucos amigos, jogou a mochila nas costas e, resmungando, apressou-se para alcançar o pequeno grupo.

Eles caminharam aproximadamente quinhentos metros quando o marinheiro parou:

- Aqui está o Destruidor de Ossos, meninos! Amarrada à plataforma, flutuava no ar a nave de guerra mais estranha que eles já tinham visto.

Era enorme.

Sua silhueta não era nem graciosa nem impressionante: em geral as naves eram delgadas como os pássaros, ou poderosas e robustas como esqualos, porém aquela que estava sob seus olhares mais parecia um grande tubo, um submarino de livros de história.

Era exatamente isso: o Destruidor de Ossos era uma embarcação dos primeiros tempos, um quebra-Rochedos, construído tendo como modelo os antigos submersíveis!

Bem no alto, na ponta de uma antena, tremulava o licorne empinado da bandeira de Nifhell. Isso significava que a nave estava em missão oficial do império.

Os flancos do Destruidor de Ossos, recobertos de um estranho material que parecia couro, eram cobertos de tubos e de canos que se cruzavam e se embaralhavam de maneira anárquica.

Na parte de trás se abria um reator gigantesco.

Na parte da frente surgia uma carranca monstruosa.

- O que é isso? - perguntou Mârk ao marinheiro, fascinado pela proa.

- É uma cabeça de Gôndül esculpida - respondeu o marinheiro com orgulho. - Impressionante, não é mesmo? Foi colocada ali para amedrontar os inimigos!

- Muito bem - confirmou o garoto arrepiado -, é um sucesso! Brrr...

O artista que havia realizado a obra trabalhara bem. Era possível imaginar um animal adormecido. Protegido por mandíbulas salientes, um chifre pontiagudo e os olhos fechados sobre um bico, que pareciam prontos para se abrir.

- Essa nave... é... - começou Xâvier - essa nave não é, como eu posso dizer... um pouco velha?

- Você tem razão, garoto. É até mesmo muito velha! É uma embarcação de primeira geração, do tipo que permitiu ao império se lançar na conquista de Drasill.

- E este material - perguntou Morgana, apontando o estranho couro que cobria a cabeça do Gôndül e o resto da nave - é de quê? Não parece nada conhecido.

- Por um motivo, minha querida! O Destruidor de Ossos foi construído antes da invenção do polimetal e do polividro! E tudo o que sei.

Mârk balançou a cabeça. A nave tinha uma impressionante robustez, inspirava confiança. E como ele nunca havia colocado os pés no espaço, aquilo era mais do que suficiente!

Xâvier estava terrivelmente decepcionado. Esperava algo extraordinário, magnífico, brilhante! E o quê? O Destruidor de Ossos era um monte de ferragem, bom para o ferro-velho. Ele mordeu os lábios. Assim que tivesse uma oportunidade, ligaria para seu pai e pediria explicações...

Morgana não fez mais nenhuma pergunta. Bons fluidos emanavam da nave. E se Frä Ülfidas havia escolhido essa nave era porque tinha suas razões. A menina bem que tentara demovê-la da idéia, mas fora em vão. Graças aos conselhos de sua melhor amiga Xändrine, Morgana finalmente decidira aceitar seu destino e confiar na adivinha. Para o melhor e para o pior...

O marinheiro fez sinal com a mão para que os jovens o seguissem. Eles caminharam pela passarela e entraram na embarcação.

 

Entre a proa e a popa, a velha nave se dividia em três níveis que se ligavam por escadas de metal.

A popa abrigava os mecânicos, as máquinas que renovavam a atmosfera de bordo e o motor à propulsão fotônica. A proa, curiosamente disforme, abrigava o sistema de orientação para ser usado nos Caminhos Brancos.

No primeiro nível encontravam-se os setores técnicos, a cisterna de água, a câmara fria e os celeiros, sem esquecer os equipamentos de salva-vidas. O segundo andar fora concebido essencialmente para a parte social: cantina, cozinha, sala de jogos, sala de repouso e as cabines dos guardas do império. Já a tripulação ficava no terceiro nível, junto com os postos dos canhoneiros. Um pouco mais acima, a sala de pilotagem, que formava uma saliência nas costas da nave.

E no centro da embarcação havia um local misterioso, que atravessava os três níveis. Os marinheiros apelidaram-no discretamente de "O Templo"...

Claro que Xâvier, Morgana e Mârk não puderam ver tudo isso. Foram escoltados pela embarcação e, finalmente, abandonados em uma grande sala, cheia de mesas e cadeiras, provavelmente a cantina.

Eles puderam constatar, pelos estreitos corredores e espiando curiosamente as salas abertas, que estavam em um ambiente espartano, nenhum supérfluo e nada de inútil. Era uma nave de guerra, construída objetivando a eficiência, sem nenhuma concessão para o conforto. Uma embarcação austera, para uma tripulação rude.

Xâvier sentiu-se ainda mais desconfortável. As únicas naves que já embarcara, dos amigos de seu pai, eram extraordinariamente luxuosas. Decepcionado pelo aspecto do Destruidor de Ossos, imaginara que ao menos o interior seria mais resplandecente. Ele tomou uma decisão: na primeira oportunidade procuraria seu pai e pediria para ser remanejado...

Já Morgana se recusava a formar uma opinião sobre a nave onde moraria durante três anos. Mas não se incomodara com a singeleza do local. Na escola das Frä Daüda, seus lugares preferidos eram exatamente os mais simples, os mais antigos, os mais toscos. Jamais dividira com suas amigas o gosto pelo luxo e pelo brilho... Mârk, quanto a ele, contentava-se em pisar forte no piso metálico para verificar sua solidez. Uma vez no espaço seria a única coisa que teria sob seus pés...

Logo três pessoas se juntaram a eles: o marinheiro que os acompanhara, um homem de rosto redondo e jovial, vestindo um avental branco que mal escondia sua enorme barriga e uma mulher de idade indefinida e de expressão carrancuda, usando um vestido cinza longo.

Morgana foi a primeira a andar na direção da mulher. Ignorando os dois homens, ela sorriu para a adivinha e, inclinando-se levemente, pegou sua mão direita e aproximou-a de seus lábios. A mulher deixou a mão ser beijada por Morgana, sem no entanto sorrir.

O ritual se repetiu três vezes, sob o olhar intrigado dos outros.

- Seja bem-vinda, Morgana! - disse a adivinha com um tom de autoridade. - Eu sou Frä Drümar.

- Eu estou muito feliz e muito honrada de tê-la como guia, Frä Drümar - murmurou a noviça abaixando os olhos.

A recepção fria da adivinha deixou-a petrificada, mas resolveu não deixar transparecer. Rapidamente elas saíram da sala.

- Você é Mârk Glabar? - perguntou o homem de avental, abrindo um sorriso caloroso ao garoto de roupas remendadas.

- Sim.

- Ótimo! - disse olhando para Xâvier. - Eu sou Brâg Svipdag, o cozinheiro do Destruidor de Ossos. Aqui, todo mundo me chama de "Gordo".

O homem deu uma enorme gargalhada. Mârk sentiu uma simpatia imediata pelo cozinheiro. Certamente trabalharia sob suas ordens. Mas era melhor esperar e conferir!

Pegou sua bagagem e retirou-se com Gordo.

Xâvier ficou sozinho com o marinheiro.

- Siga-me, o capitão quer vê-lo.

Aliviado, ele balançou a cabeça. As coisas, enfim, pareciam caminhar para a normalidade!

Desestabilizado pelo comportamento que tinham tido com ele, o jovem logo recuperou sua segurança habitual: certamente o capitão pediria desculpas. Como um príncipe, ele aceitaria! Apesar de não querer ficar muito tempo a bordo...

Eles subiram para a ponte superior e caminharam a passos largos por outros corredores. O garoto arrastava a perna, sentia o peso de sua mochila e mal acompanhava o ritmo veloz de seu guia.

Depois pegaram escadas metálicas um pouco íngremes e chegaram ao vasto domo de vidro nas costas da nave. Era a cabine de pilotagem. Nada atrapalhava a visão em 360 graus. Havia um enorme leme em frente ao púlpito de comando que permitia ao capitão comandar sua nave.

Vrânken de Xaintrailles estava lá, vestido com um casaco preto de gola rulê e uma calça preta de brim. Trazia um punhal de combate na cintura, assim como um par de paleo-pistolas a cartucho. Suas botas de couro brilhavam.

Ao seu lado estava um gigante de barba desgrenhada e de cabelos cinza amarrados na parte de trás, que aumentavam sua cabeça. O homem tinha uma perna artificial de polimetal.

Sobre os ombros, um ciber-rato, metade animal metade máquina, olhou fixo com o seu único olho para Xâvier.

O marinheiro se aproximou de Vrânken e lhe disse algo em voz baixa.

O capitão do Destruidor de Ossos olhou com seus olhos azuis para Xâvier, que estava intimidado.

- Xâvier Augentyr? - perguntou com voz firme.

O garoto tomou coragem e avançou em sua direção.

- Sim, capitão! Estagiário escalado para ser seu assistente a bordo do Destruidor de Ossos, a seu serviço!

Houve um momento de silêncio. Na seqüência, o gigante gargalhou, seguido por Vrânken. Mais atrás, o marinheiro também riu.

- Tudo isso é muito teatral, meu rapaz - disse o capitão. - Um pouco mais de simplicidade! Bom. Eu te apresento Rymôr Ercildur (o gigante inclinou levemente a cabeça). É meu segundo homem, é o chefe da tripulação. O único chefe depois de mim, das Forças... e do destino! Os marinheiros o chamam de chefe. Você também pode chamá-lo de senhor, se quiser. Você dependerá dele durante o seu estágio.

- Se o senhor permitir, capitão, meu pai me disse...

- Eu sei quem é o seu pai - cortou Vrânken secamente.

- Em Nifhell ele é tudo. Aqui ele não é nada. No Destruidor de Ossos, só existe você. Não será tratado nem melhor, nem pior do que ninguém. E será sempre recompensado pelos seus próprios méritos. Se vale alguma coisa, ótimo, do contrário dane-se. Cabe a você mostrar quem realmente é.

- Mas, capitão, eu protesto! Não foi isso que..

- Silêncio! - rugiu Rymôr. - Como você ousa?

Vrânken levantou a mão para acalmar o chefe da tripulação. Sobre seu ombro, o ciber-rato começou a vaiar Xâvier mecanicamente.

O capitão tirou uma folha do bolso e mostrou-a ao garoto.

- Esta é uma carta que o conde Augentyr entregou-me pessoalmente. Você sabe o que está escrito?

Xâvier engoliu em seco e balançou a cabeça.

- Seu pai me pediu expressamente para tratá-lo como todos os demais estagiários. Ele ainda acrescentou que deseja que essa experiência faça de você um verdadeiro homem.

O coração do menino quase saiu de seu peito. Suas pernas bambearam. Não era possível! Aquilo era um pesadelo! Logo ele despertaria. Logo sua mãe entraria em seu quarto trazendo um bom chocolate quente...

- Marujo? - chamou Vrânken, virando-se para o marinheiro.

- Sim, capitão!

- Conduza esse estagiário para sua cabine. O chefe da tripulação irá logo lhe dizer quais serão as suas obrigações.

Arrasado, Xâvier seguiu cabisbaixo o marinheiro. Quando estava prestes a sair do domo, Vrânken disse uma última coisa:

- Eu já ia esquecendo, rapaz! Me faça o favor de lavar seus cabelos e tirar essas ridículas lentes vermelhas! Estamos em uma nave de guerra! Isso aqui não é nenhum bar da moda de Kenningar!

Xâvier parou para escutar e, depois, saiu andando como um zumbi.

Assim que saiu, Rymôr e Vrânken morreram de rir.

- Que topete, esse moleque! A juventude não é mais a mesma! - exclamou o gigante.

- Bom! Até aqui ele é apenas filho de seus pais e só isso - disse Vrânken. - Um pivete que ainda não viveu por ele mesmo. Mas vamos esperar o fim da missão no Planeta Morto para fazermos o nosso julgamento.

- Em todo caso, o pai dele deve ser uma pessoa bem-intencionada - reconheceu Rymôr acariciando o rato. - Pelo menos a carta revela bons princípios...

- Você fala disso? - perguntou Vrânken pegando a folha. - E a lista de mapas que nos faltam!

Rymôr abriu a boca de surpresa. De novo gargalhou e deu um tapa nas costas de Vrânken.

- Você não perde uma chance!

- Se eu fosse o pai desse menino, essa seria exatamente a carta que eu mandaria! Bom, você já acabou de rir? Ainda temos muitas coisas sérias para resolver antes da partida!

O capitão e seu segundo oficial voltaram ao trabalho. Rymôr não conseguia parar de pensar no rosto apavorado do estagiário, e teve que segurar o riso algumas vezes. Mas uma pergunta feita por Vrânken o fez voltar ao normal.

- Quando teremos algum contato com o Planeta Morto?

- Estamos sempre tentando fazer contato com a guarnição, Vrânken. Eu coloquei o meu melhor transmissor! Infelizmente, ninguém responde. Eu temo que...

- Vamos continuar - cortou duramente Vrânken. - As chances deles captarem nossas mensagens são ínfimas e diminuem de hora em hora, eu sei. Mas eu gostaria tanto que esses corajosos soubessem que o império não os abandonou!

 

Rôlan gritou ao descarregar sua arma nos guerreiros de Muspell que tentavam ocupar os corredores do subsolo. O comandante fora ferido e os sobreviventes da guarnição de soldados imperiais levaram-no para um lugar mais seguro. O garoto ficara com alguns soldados para cobrir a retirada.

As balas de aço ricocheteavam em torno dele.

Rôlan Atkoll não se deixava abater. O importante era ganhar tempo para permitir que os outros se abrigassem. Em pleno fogo cruzado, suas lentes tinham caído, revelando o brilho determinado de seus olhos claros. Seus cabelos estavam cinza de poeira.

Um oficial gritou uma ordem.

Eles abandonaram suas posições.

Rôlan apertou o passo, olhando para trás. Quando viu já era tarde. Tropeçou em um corpo estendido no meio do corredor e caiu. Levantou-se blasfemando e retomou seu curso. Tinidos metálicos interromperam sua caminhada: os guerreiros de Muspell o alcançaram e apontavam as armas em sua direção. Irritado, ele jogou seu fuzil no chão e levantou as mãos. Pensou no comandante, torcendo com todas as forças para que ele estivesse fora de perigo...

Brînx Vobranx parou de correr.

Tirou um lenço de seu bolso e pressionou a ferida que sangrava em sua face. Um centímetro mais para a esquerda e a bala do atirador de Muspell atravessaria seu crânio. A dor era suportável, mas o sangue que corria incomodava.

Ele escutou um barulho de passos ritmados. Eram os soldados que tinham feito a cobertura que se aproximavam.

Brînx foi em direção ao que sobrara da guarnição do Planeta Morto:

- Nos aproximamos das instalações principais... Nossos inimigos não poderão em nenhum caso ter acesso. Vamos defendê-las até o último suspiro!

Ouviram-se alguns bramidos de aprovação, e todos os olhares que se voltaram para Brînx manifestavam grande determinação.

Desde o início do assalto, o comandante pensava em sua mulher e no filho que certamente nunca mais voltaria a ver, mas também no império Comtal e na sua responsabilidade.

Seus agressores, superiores em força e número, dominaram facilmente a base da superfície. Após um breve instante de confusão, Brînx retomou o controle da situação e ordenou o recuo em direção à parte subterrânea. Lá, comandando seus homens, na proporção de um contra dez, eles defenderam cada metro de corredor, cada sala, cada porta.

Com a esperança não de vencer ou mesmo escapar, mas de alongar ao máximo os combates para que desse tempo de Nifhell mandar reforços. Planeta Morto não devia cair nas mãos dos inimigos do império!

E Brînx, como cada um dos homens ao seu lado, tinha consciência de que, a partir desse momento, suas vidas estavam no grande tabuleiro das Forças...

- Rôlan não está aqui? Quem viu Rôlan Atkoll, o jovem estagiário?

O comandante acabara de perceber a ausência do garoto.

- Ele estava... conosco... - respondeu um dos homens, que mal conseguia respirar. - Eu creio... que ele não nos... acompanhou...

Brînx expressou sua raiva com um gesto. Estava particularmente ligado ao estagiário, que desde o início lutara como um leão contra os guerreiros de Muspell. Onde ele havia arrumado tanta coragem para entrar de cabeça na batalha? Na admiração que tinha pelo seu chefe, talvez. Por ele tê-lo sempre tratado como um filho desde a primeira vez que o viu. Porque Rôlan, triste como todos os outros pela distância dos pais, sempre necessitara de um pai para respeitar...

Brînx se recompôs. Não poderia se deixar levar pela emoção. Não tinha esse direito. Muitas coisas ainda dependiam dele.

Ele fez sinal para que continuassem seu caminho no corredor cravado na rocha.

Logo eles chegaram em frente a uma porta redonda e monumental, parecida com a dos gigantescos cofres. Brînx adiantou-se até o painel de comando e colocou seu olho direito e a palma da mão esquerda sobre os tecnocontroles. Depois digitou um código no teclado e pediu a abertura da porta falando em voz alta. Ela se abriu rangendo, revelando uma vasta caverna inteiramente revestida de polimetal.

Quando todos entraram, o comandante fechou a porta e destruiu os comandos de abertura. Depois respirou aliviado.

Eles estavam abrigados, pois só ele tinha acesso ao núcleo do dispositivo.

E claro, sempre seria possível forçar passagem. Mas atravessar uma porta ou um muro de polimetal demandava tempo. Muito tempo.

O suficiente para permitir que as naves dos generais-condes viessem ajudá-los.

A parte maior da caverna era ocupada por um maquinário complexo, responsável pelo funcionamento dos Caminhos Brancos. Eram tubos gigantescos, cravados do solo até o núcleo do planeta, que a impressionante instalação mantinha em atividade.

As máquinas funcionavam sozinhas. Autônomas. Os técnicos só iam até a caverna ocasionalmente, para verificar se tudo ia bem.

E era assim há mais de cento e cinqüenta anos, desde que os astrosábios do império descobriram as propriedades do Planeta Morto e elaboraram um sistema capaz de explorá-las.

Inaugurando uma era magnificente para o império, que havia aberto os Caminhos Brancos com a condição tácita de respeitar sua autoridade sobre Drasill...

Brînx exigiu que seus homens descansassem e eles obedeceram. Até escutarem os primeiros estrondos contra a porta.

Ainda era muito cedo, mas os homens de Brînx Vobranx se espalharam rapidamente pela sala e se prepararam para o último assalto.

O comandante se isolou atrás de um cofre de polimetal maciço. Lá, apertando sua arma contra o corpo, longe dos olhares de seus homens, ele fez desfilar em sua cabeça os rostos de sua mulher e de seu filho. De Rôlan. Depois chorou em silêncio.

 

O cavalo-serpente do cã avançava lentamente sobre as altas ervas da estepe.

Fazia um frio atípico. Havia chovido na véspera, e isso fora suficiente para baixar a temperatura em alguns graus.

O cã havia festejado essa chuva providencial com sua tribo. Dançaram muito, e beberam na mesma quantidade. No fim da noite, o otchigin apareceu. Ele trouxera boas novidades. O futuro se anunciava bom.

Todo satisfeito, o cã decidira caçar na manhã seguinte. A caça ao phurr, o maior predador das estepes. Havia muitas formas de se ter sucesso: com alguns homens, atacando de lança, ou então, crivá-lo de flechas. Desde que estivesse bem acompanhado, os riscos eram limitados. Mas existia uma maneira mais nobre de enfrentar o animal: só, apenas com um sabre. Isso era chamado de "caça selvagem". Nessa manhã, todos os sentidos de Adi Blodox estavam de sobreaviso. Seria melhor não se deixar surpreender pelo phurr! Mas não podia impedir os seus sentimentos de fluírem. O odor úmido que subia do solo revelava suas lembranças enterradas. Ele se viu criança, rindo e correndo atrás dos zoghs de seu pai. Lembrou-se da grande caminhada, realizada com seus melhores amigos durante a adolescência, através da estepe, e a sua surpresa ao avistar pela primeira vez o deserto imenso. Ele escutou os murmúrios da primeira garota que havia beijado. Tanto tempo! Por um breve instante, Atli Blodox se sentiu tomado pela nostalgia. Mas ele caçou rapidamente essa emoção. Hoje ele era o cã, após ter demonstrado o seu valor. Ele era o guia e o protetor de seu povo. E iria entrar na história, colocar sua marca como uma assinatura indelével! Ele, cã dos cãs!

De repente, o cavalo-serpente empinou e açoitou o chão com sua cauda escamosa.

O cã percebeu entre as ervas a pele amarela salpicada de branco da grande fera. Ele acalmou sua montaria acariciando a parte de trás de sua crina. Se o animal fizesse algum ruído, o phurr atacaria em uma questão de segundos, com suas garras e dentes afiados.

Felizmente, estavam com sorte.

Sem tirar seus olhos do local onde dormia o temível animal, empunhou seu sabre com a mão direita e o deslizou pela capa que usava nas costas. Em seguida saltou.

Atli Blodox se aproximou do phurr, silencioso como uma sombra, pronto para o combate.

Parou a alguns passos do animal. Seria fácil atacar e matar a grande fera aproveitando-se do efeito surpresa. Mas sem desprezar a vantagem do uso da astúcia para atingir seus objetivos, o cã desejava, hoje, um confronto direto.

Então interpelou a fera:

- De pé, meu irmão da estepe! Eu sou Atli Blodox, cã dos cãs, e eu te desafio! Mostremos aos espíritos do deserto quem de nós é o mais forte!

Na primeira palavra, o phurr despertou rugindo e se levantou usando as patas traseiras. Parecia uma espécie de cruzamento de urso, de quem tinha a força, e de um tigre de dentes afiados.

Em uma fração de segundos, a fera tomou consciência de que fora incomodada e atacou.

Atli Blodox se esquivou, e tão rápido quanto o animal, em um movimento quase que imperceptível, cortou a pata que o ameaçava.

O phurr urrou de dor. Ele empinou em todo o seu esplendor, ficando um metro mais alto que o homem.

- Você se deixa levar pela raiva, meu irmão selvagem! - disse o cã gritando para cobrir os urros. - Não tem mais nenhuma chance contra mim!

Em um único movimento, ele se lançou e golpeou. A lâmina de seu sabre entrou dentro do peito da besta, transpassando o coração.

O phurr caiu no chão, fulminado.

Atli Blodox limpou a arma na manga de sua camisa. Depois se ajoelhou em frente a sua vítima e inclinou a cabeça em sinal de respeito.

- Você se defendeu honrosamente, meu irmão de Muspell. Eu sei que a sua valentia agradou aos espíritos. Eu desejo que você seja feliz com eles no Tengri.

Ele retirou uma garra de uma das patas do phurr. A garra encontraria seu lugar no colar bem cheio que ele adorava usar nas cerimônias.

Seu tecnofone tocou.

- Você está paralisado em frente à última porta? - repetiu mecanicamente Atli Blodox. - Não, claro que não! Você fez algum prisioneiro? Muito bem, use-os como moeda de troca. Temos que nos apoderar dessa sala, mas ela deverá estar intacta. Rápido, imediatamente. Entendeu?

O cã interrompeu a comunicação. Ele estava inquieto. O controle dos Caminhos Brancos era parte essencial de seu plano...

Ele endereçou uma reza muda aos espíritos do Tengri e chamou seu cavalo-serpente.

Ele partiu a galope pela estepe.

 

Rymôr Ercildur caminhava assobiando nos estreitos corredores do Destruidor de Ossos.

O grandalhão tinha que se abaixar para passar por certas portas, e sua perna artificial batia no piso metálico sempre anunciando com muita antecedência sua chegada.

Ele poderia circular na nave de olhos fechados. Tudo que lá se encontrava, tudo o que acontecia era de sua responsabilidade, do mais insignificante parafuso ao chefe dos mecânicos, das pequenas querelas aos grandes problemas técnicos.

Se Vrânken era a alma da nave e os marinheiros os membros, Rymôr era o coração...

O capitão do Destruidor de Ossos conhecera seu braço direito por acaso.

Na época em que Vrânken era apenas um brilhante estudante da Academia Espacial e o jovem herdeiro da nave de seu pai, Rymôr Ercildur já era veterano de duas guerras do império contra os piratas. Graves feridas o haviam mandado de volta para Nifhell, onde ele se entediava.

Passava seu tempo em uma taverna de Kenningar, interpelando os clientes e oferecendo bebida em troca de um pouco de seu tempo. Àqueles que aceitavam, ele contava suas proezas no espaço.

Foi assim que conheceu Vrânken.

Impressionado pelo gigante ainda cheio de energia, ele ofereceu uma prótese para sua perna e um emprego no Destruidor de Ossos. O velho marinheiro, emocionado, aceitou imediatamente.

Dez anos de aventuras acabaram por solidificar a amizade...

- Vamos fazer uma visita ao pequeno grumete colorido, hein, Bumposh? - disse Rymôr ao ciber-rato sobre seu ombro. - Eu quero ver o que aquele moleque tem na cabeça.

Ele acariciou o animal no cocuruto, que respondeu com um guincho de alegria.

O gigante barbudo era temido pela tripulação, mas seu rato ainda mais.

Seu olho negro e a bilha de aço que substituía o que fora arrancado, as caras que fazia ao olhar os homens provocavam incontroláveis calafrios.

A parte inferior de seu corpo era constituída de tubos e de placas de polimetal.

Uma lenda corria a bordo, diziam que o ciber-rato de Rymôr era telepata. Assim, diante do chefe da tripulação, todos se petrificavam. Primeiro por respeito, e também porque, se por um lado ele era temido, todos admitiam a sua coragem pessoal e seu senso de justiça. Mas, sobretudo, cada um se concentrava para tentar dissimular seus pensamentos sobre o animal!

Rymôr conhecia sua fama e a do animal. E sempre ria disso com Vrânken nas noites, em volta de uma cachaça de ameixa, na sala de pilotagem.

Para o chefe da tripulação, pouco importava que seus homens não gostassem dele. Ele também não gostava de todos! Do momento em que surgia uma mútua estima e que cada um dava o melhor de si, nada mais lhe parecia importante.

Xâvier friccionava raivoso sua cabeça. Ele acabara de lavar os cabelos e jogara as lentes vermelhas no lixo.

A carta que o capitão lera tinha tido o efeito de um choque elétrico.

Inicialmente havia sentido um horrível sentimento de solidão. Seu pai o havia abandonado! Ele o havia entregue de bandeja a um capitão cínico e cruel! E todos teriam um malicioso prazer, ao longo dos três anos, de humilhá-lo e de fazê-lo sofrer!

Ao chegar em sua cabine, jogou-se no colchão e chorou de humilhação. Depois ele se acalmou e tentou refletir. Era sempre assim que agia quando as coisas saíam de seu controle. Acabou por compreender uma coisa: na nave, bancar o malandro não daria certo!

Ele contemplou sua imagem no pequeno espelho do banheiro próximo à sua cabine. Sem sua aparência habitual, ele estava irreconhecível. Sentia-se nu e vulnerável. Ele voltara a ser o garoto louro de olhos marrons que sua mãe havia posto no mundo.

Xâvier, novamente, segurou o choro.

Rymôr caminhou para a popa da embarcação, lá onde era mais quente e o barulho do motor fotônico era mais intenso.

Os Xaintrailles sempre basearam seus estagiários nesse local. Consideravam ser educativo que os jovens só desfrutassem de alguma vantagem na nave quando fossem capazes de mostrar a capacidade individual nas respectivas funções.

Ele bateu à porta e um som surdo soou.

Xâvier percebeu com surpresa a enorme silhueta do chefe da tripulação.

- Muito bem, meu garoto! - comentou Rymôr com sua voz grossa e se curvando para passar pela porta da pequena cabine. - Você recuperou a sua aparência humana!

O grandalhão se sentou em uma das camas.

A mochila de Xâvier estava aberta no meio da cabine; suas coisas espalhadas pelo chão.

- Você vai ter que arrumar isso, entendeu? Eu tenho horror a bagunça e desordem. Nós somos muitos em um pequeno espaço, isso demanda disciplina!

Xâvier abaixou a cabeça, envergonhado, e começou a catar algumas roupas no chão.

- Então, alguma novidade desde o nosso último encontro? Xâvier não respondeu. Ele mordeu o lábio, o queixo tremia.

Rymôr percebeu e adocicou a voz:

- Então, Xâvier! Você é inteligente, cheio de boa vontade. Só precisa ajustar a sua capacidade de se virar sozinho. Mas confie em mim, isso acontece rapidamente quando estamos em uma embarcação de guerra!

Ele se levantou e deu um tapinha na bochecha do garoto.

- Seu primeiro trabalho será explorar o Destruidor de Ossos de cabo a rabo. Eu quero que, a partir desta noite, você seja capaz de ir e vir em todos os níveis sem se perder. Ah, apenas um conselho: aproveite para conhecer a cantina e sala de jogos, pois ninguém dirá a você a hora das refeições e os momentos de lazer!

- E... o emblema? - perguntou timidamente o garoto. - O licorne e a ampulheta de estagiário?

Rymôr fez um gesto de desprezo.

- Eu posso arrumar um se realmente esse for o seu desejo, mas o capitão não acha que isso seja muito útil, pelo menos no primeiro ano. Um jovem estagiário é fácil de ser reconhecido: tem a altura de três maçãs empilhadas e a cara de quem está sempre perdido!

Ele partiu levando junto sua gargalhada espaçosa e acabou sendo imitado por Xâvier, aliviado.

O chefe da tripulação estava saindo, mas parou.

- Me diga, rapaz, é impressão minha ou você não tem medo de Bumposh, meu ciber-rato?

- Ele se chama Bumposh? Eu achei ele engraçado - disse Xâvier aproximando a mão do animal, que se refugiou na barba de seu dono. - Em casa eu tinha um ciber-rato que se chamava Poreik. Minha mãe comprou para nos livrar dos camundongos, mas ele passava a maior parte do tempo dormindo. Eu disse aos meus amigos da escola que ele fazia isso porque era telepata, e que ele descobria onde estavam os camundongos durante o dia para caçá-los à noite. Isso impressionava muito meus amigos!

Rymôr se divertiu com a história.

- Eu entendo... não esqueça que nos vemos amanhã. Quero que você conheça a nave de trás para a frente!

- E assim será, chefe, eu prometo! - disse Xâvier com um tom quase que feliz.

O chefe da tripulação se afastou pelos corredores mancando levemente.

- Nada mau, hein? - murmurou ele na orelha de Bumposh. Vrânken tinha razão. Era necessário dar uma chance ao jovem!

O animal emitiu vários grunhidos. Parecia concordar.

 

- Estamos em casa - disse Frä Drümar fechando a porta blindada atrás da jovem estagiária.

Morgana arregalou os olhos: o compartimento no qual acabara de entrar era totalmente inesperado. Situado no coração do Destruidor de Ossos, era maior e mais alto do que as outras cabines da embarcação. Sobretudo, no centro, havia uma réplica exata um pouquinho menor, claro - da árvore artificial da escola!

Morgana se aproximou.

O tronco de polividro não era apoiado em uma cepa de madeira milenar, mas sobre uma haste metálica que parecia afundar nas entranhas da nave. Entre as raízes translúcidas da árvore sagrada - não havia água como em Nifhell mas uma estranha substância preta - jorrava a fonte de polimetal líquido...

- Estamos no Templo da nave - explicou Frä Drümar. - É, de alguma maneira, um anexo da cabine de pilotagem: o capitão Vrânken investiga o espaço, as Frä Daüda observam o tempo. Enfim, elas tentam!

A última frase cheia de ironia agradou a jovem. Se Frä Drümar era capaz de gozar dela mesma, talvez não fosse tão terrível como parecia ser! Morgana também percebeu que ela pronunciara o nome do capitão com uma certa emoção.

- Você dormirá ali, ao meu lado - continuou ela apontando para a estagiária dois colchões e alguns cobertores em um canto da sala. A porta que você vê no fundo é a do banheiro. Nós faremos as refeições ora sozinhas, ora com a tripulação...

Morgana observava tudo com atenção.

Ela não era tão velha. Uns quarenta anos, talvez quarenta e cinco. Mas seu ar duro a envelhecia. Seu rosto ainda era bonito, seus olhos claros e profundos, seus cabelos quase grisalhos. Não era muito alta, e através de suas mãos se podia perceber a magreza escondida pelo vestido da ordem.

Uma mudança de tom na voz da adivinha tirou Morgana de seus pensamentos:

- Frä Ülfidas pensa que você é brilhante. Espero poder confirmar isso. Ver para crer: um pouco paradoxal para uma adivinha, não?

Sempre a mesma ironia, um certo distanciamento... Sem se perturbar, Morgana fez cara de quem entendera e perguntou:

- Paradoxal? Isso depende! É claro, devemos acreditar nos mistérios da ordem para vermos o futuro. Mas eu vejo freqüentemente adivinhas que não acreditam, e outras, ainda mais numerosas, que crêem enxergar alguma coisa!

Frä Drümar abriu a boca, surpresa. Ela examinou longamente a estagiária.

- Muito bem, vejo que você fala demais. Brilhante? Acho que não tinha entendido bem o que Frä Ülfidas disse a seu respeito. Ela deve ter dito insolente!

Pouco depois Morgana percebeu no rosto da adivinha uma expressão menos dura.

- Sente-se perto da fonte. Eu vou preparar um chá e já volto. Lá será mais agradável para conversarmos.

Morgana se instalou ao pé da árvore, sob os galhos e as folhas de polividro. Esperando Frä Drümar, ela arrumou seu vestido, tirou uma presilha de seu bolso e ajeitou os cabelos.

Logo, a adivinha chegou trazendo uma chaleira.

- Minha filha... - disse Frä Drümar enchendo a taça com um líquido quente e escuro.

Ao escutar as duas palavras quase carinhosas saídas da boca da adivinha, Morgana teve dificuldades de esconder sua alegria.

- Minha filha - retomou Frä Drümar -, talvez você esteja intrigada com esse lugar. Ou melhor, com a existência de um local como esse em uma nave. É preciso que você saiba que em outros tempos, no tempo das conquistas, enviavam aos Rochedos as forças vivas de Nifhell, e cada embarcação possuía seu templo e sua Frä Daüda. Sem a ajuda de nossa ordem, nada do que foi conquistado teria sido possível.

- Isso tudo eu sei, Frä Drümar - afirmou Morgana contendo um bocejo.

- O que você certamente não sabe, minha pequena atrevida - continuou a adivinha -, é que atualmente raras são as embarcações que possuem um templo e abrigam uma Frä Daüda! E os próprios condes param de sorrir quando se fala nas adivinhas de Kenningar!

Havia um certo ar amargo nas palavras da adivinha.

- Mas, Frä Drümar - disse Morgana eloqüente -, o império Comtal demonstra um grande respeito pela nossa ordem!

Frä Drümar pousou sua taça.

- Queridinha! Se nos respeitam hoje, é em nome do que já fomos, não por aquilo que ainda podemos ser. O império nos teme, nos tolera, mas, esteja certa, não gosta mais de nós...

Morgana ficou paralisada. As palavras que Frä Ülfidas havia pronunciado às vésperas de sua partida, e que ela não havia entendido, achavam agora eco nas palavras de sua nova professora. As leis do império que não eram aplicadas à ordem, as tradições importantes que não eram mais respeitadas... Frä Drümar ainda fora mais longe: as Frä Daüda não eram mais do que relíquias do passado! Como ela poderia imaginar isso? Aluna na escola de Urd, a mais pura das puras, ela estava até aquele momento convencida de que a ordem era uma potência, uma potência pelo menos tão importante quanto a dos generais-condes e superior a todo o resto! Morgana viu seu mundo desabar.

- Mas por quê? - articulou ela.

- Os Caminhos Brancos, minha filha - respondeu Frä Daüda bebendo um gole de chá. - Antes deles, a navegação dos Rochedos era cheia de perigos e semeada de armadilhas. A função das adivinhas era capital. Com a criação dos corredores de segurança, onde as viagens não duram mais do que algumas horas, a nossa função ficou muito menos importante. Começaram por suprimir os templos para dar mais espaço às cargas ou às tropas. Depois algumas vozes se levantaram para protestar contra a presença a bordo das adivinhas que, segundo se diz, atrapalhavam a tripulação. Ridículo!

- Por que... Por que isso tudo? - perguntou Morgana espantada.

- As ilusões são um obstáculo para o caminho da clarividência - respondeu misteriosamente a adivinha. - Eu não preciso de uma assistente cega!

- Eu entendo o que você está tentando me dizer. Enfim, eu acho... mas eu não entendo a atitude do império em relação a nós - confessou Morgana. - Nós não apenas prevemos o futuro! Nós somos igualmente as guardiães do passado, a memória de Nifhell, e mesmo de Drasill! Os condes devem saber disso, não?

- Boa menina, você aprendeu a lição - respondeu Frä Drümar com um tom de voz que acabou sendo uma ducha de água fria no entusiasmo da noviça. - Veja você, as lembranças são por vezes embaraçosas, e numerosas pessoas influentes de Nifhell gostariam de se livrar do passado para moldar o futuro ao seu gosto. Felizmente, outros consideram as Frä Daüda indissociáveis à grandeza do império...

- Outros, como o capitão de Xaintrailles, por exemplo?

- Como ele, claro! Vrânken entendeu tudo. Mas cabe dizer que é um dos raros capitães que ainda se aventuram nos Rochedos, fora dos Caminhos Brancos. A primeira vez que ele fez isso foi para me testar, pouco depois de ter recebido essa nave de herança. Eu era a adivinha de seu pai. E ele não me conhecia muito bem; queria me conhecer.

- E aí? - emendou imediatamente Morgana.

- Aí, jovem noviça curiosa - se esquivou Frä Drümar -, nós voltamos vivos para o astroporto de Skadi. Depois disso, Vrânken nunca mais duvidou da importância do templo e de uma adivinha a bordo de sua embarcação.

Morgana bem que gostaria de ter sabido mais, mas a adivinha não parecia disposta a continuar sua história. A jovem sentiu que ela escondia alguma coisa.

Frä Drümar a trouxe de volta à realidade. - Agora, Morgana, diga-me o que você vê. Morgana percebeu que as coisas sérias começavam. Ela já estava esperando por algum tipo de teste de seus poderes, ou algo parecido!

Pega de surpresa, apesar de tudo, ela consagrou alguns minutos à concentração.

Em seguida respirou fundo e mergulhou seu olhar na pequena pia que jorrava o metal líquido da fonte.

No início, ela viu apenas o seu reflexo, seus grandes olhos azuis abertos, seus cabelos presos pela presilha e o colarinho de seu vestido marrom de noviça.

Depois, pouco a pouco, à medida que ela abria seu espírito, canalizadas pela árvore que funcionava como uma antena mística, imagens foram aparecendo. Furtivas. Embaçadas. Até aquele momento ela não obtivera nada melhor.

Ela comunicou a Frä Drümar o pouco que vira. A professora balançou a cabeça.

- Nós vamos trabalhar. Trabalhar muito. Logo, você vai ver mais coisas e verá bem.

Morgana concordou. Ela sentiu ser tomada por uma furiosa vontade de aprender. Queria surpreender Frä Ülfidas quando voltasse para Urd, queria honrar as Frä Daüda, para mostrar ao império que elas ainda eram importantes! Ou simplesmente por curiosidade, a curiosidade de uma jovem confrontada com os mistérios do futuro...

 

Como ele esperava, Mârk foi entregue ao corpulento cozinheiro.

Brâg Svipdag, que a tripulação chamava de Gordo, com mais carinho do que maldade, o levou imediatamente para a cozinha.

- Meu reino - anunciou ele orgulhoso pegando nos ombros de Mârk.

O local era escuro. Grandes fornos avermelhados ao fundo. Uma única lâmpada clareava com dificuldade um vasto espaço metálico, projetando reflexos sobre uma bateria de panelas e de frigideiras meticulosamente alinhadas na parede. Mârk levou um curto tempo para habituar seus olhos à penumbra. Reinava um calor assustador.

- A luz me cansa - comunicou Gordo. - Por outro lado, eu adoro sentir calor!

- Tudo bem! - disse Mârk. O garoto apoiou sua mala contra uma enorme panela, tirou sua jaqueta e levantou as mangas de sua camisa. Rindo, Brâg jogou um avental para ele.

- Você entende rápido!

- Transpirar não me mete medo - respondeu Mârk com um tom desafiador.

- Você aprendeu a cozinhar, no seu centro de aprendizagem?

- O senhor verá!

Mârk começou a trabalhar imediatamente, sob o olhar amável de seu novo chefe.

Ele preparou, com ajuda de uma faca afiada como navalha, enormes galinhas de crina azul de Narvh, depois passou o resto do dia assando as aves em um dos fornos. Atrás dele, Brâg Svipdag se debatia como um diabo em torno de um gigantesco gratinado de batatas vermelhas.

Mârk estava suando. Secava a testa com um pano enquanto olhava curioso para todos os lados. A cozinha dava a impressão de ser uma bagunça e ao mesmo tempo perfeitamente arrumada. Curiosamente, ele se sentia bem. Seu olhar se prendeu, entre o armário de pratos e a geladeira deformada, num alvo de madeira todo marcado.

- Quando estou entediado - explicou Gordo surpreendendo o olhar do estagiário -, eu me divirto lançando facas. Mas isso não acontece muito!

Caminhou rindo e pegou uma faca pontuda. Com precisão, ele a lançou contra o alvo. A lâmina penetrou bem perto do ponto central.

- Eu posso tentar? - perguntou Mârk com um sorriso que não parava de se alargar.

- Claro! Mas atenção para não atirar contra a minha pobre geladeira. Ela já está bem castigada.

O garoto pegou a faca que usara para limpar as galinhas. Bem equilibrado, pegou a lâmina e, com um gesto preciso, lançou-a em direção ao alvo. A faca cravou bem ao lado da lançada por Brâg.

O cozinheiro assobiou admirado.

- Bravo, garoto! Você sabe que me agrada cada vez mais? Mas... onde você aprendeu a fazer isso?

- No centro de aprendizagem - respondeu modestamente Mârk. - Também nos acontecia de ficar aborrecidos na cozinha!

Gordo deu-lhe um tapa no ombro que ecoou.

- Você bem que merece a sua refeição!

Pegou dois pratos e encheu de gratinado. Eles comeram em um canto da mesa.

- Estou orgulhoso de você, Mârk - disse o cozinheiro. - Você não é apenas um hábil lançador de facas: você trabalha bem e rápido! Bom, aqui está a programação dos próximos dias: nós acordamos na madrugada para preparar o café da manhã. Na seqüência, atacamos o almoço. Ao meio dia, você trabalha. À tarde, fica livre! De noite você retorna. Quanto à louça, não se preocupe: minha cozinha pode parecer pobre, mas é equipada de máquinas que funcionam muito bem! Alguma pergunta?

- Para o café da manhã, eu queria saber... se temos Nutella a bordo?

O chefe da cozinha quase morreu de rir. O gosto incontrolável dos jovens do império por essa paleopasta doce sempre o impressionava.

- Claro! Com três estagiários no Destruidor de Ossos, você acha que eu esqueceria?

Mârk sorriu. A estada se anunciava boa. Estava bem impressionado com seu chefe. Além do mais, ele adorou a idéia de ter as tardes livres!

- Vamos - continuou Gordo -, é o bastante por hoje. Eu tomo conta do resto. Você ganhou o direito de descansar.

Explicou ao jovem como chegar à sua cabine. Mârk agradeceu, pegou seu casaco e sua mala, e se foi.

Ele vagou longamente pela nave e acabou se perdendo no labirinto de pequenos corredores.

Sua errância o conduziu ao centro da nave onde encontrou uma parede blindada que o impedia de continuar. Mârk suspirou.

- Bom - disse -, ao menos eu agora sei que não deveria pegar esse corredor!

Ele deu meia-volta e foi surpreendido por um homem.

- Pois bem! O que você está fazendo aqui? - perguntou uma voz em tom de surpresa.

Era Brâg Svipdag.

- Ah, é o senhor! Que susto! Eu estava procurando a minha cabine! O senhor me explicou, mas eu me perdi!

O cozinheiro elevou a voz.

- Você não prestou atenção, Mârk! Você nem está perto do caminho certo!

- Eu acabei de perceber, senhor!

Brâg lhe mostrou gentilmente o caminho e ainda o acompanhou em uma parte do trajeto. Depois Mârk continuou seguindo cautelosamente as indicações de Gordo e, enfim, chegou até sua cabine.

Logo que abriu a porta, ele viu um garoto de sua idade, alto e louro de olhos marrons, já ocupando o quarto. Ele levou um momento para reconhecer o esnobe da sala de espera do astroporto. Era obrigado a reconhecer que, sem sua fantasia, ele tinha um aspecto menos grotesco!

Dessa vez, Mârk o ignorou magnificamente.

- Eu me chamo Xâvier - disse o louro, sem graça, estendendo a mão.

Mârk levantou a sobrancelha.

- É mesmo? - respondeu olhando com certa desconfiança a mão estendida.

Xâvier a retirou. Sem saber o que fazer, cocou a cabeça.

- Eu me instalei embaixo, na cama da esquerda - tentou ele mais uma vez.

- A da direita pra mim está ótimo - disse Mârk pousando sua mala ao lado.

- O banheiro é pequeno, e só tem água fria, mas é limpo.

Mârk nada respondeu. Um silêncio se instalou entre eles.

- Foi bom o seu primeiro dia? - tentou Xâvier.

- Não foi mal - respondeu após hesitar. - Eu vou trabalhar na cozinha.

- Eu pilotarei a nave quando o capitão estiver muito cansado.

Mârk o olhou, desconfiado.

- Sim, ao menos... nos meus sonhos! - precisou Xâvier. - No momento eu não sei o que me aguarda. Talvez eu tenha que varrer os corredores.

Ele tinha o ar tão constrito que Mârk não perdeu a chance de gozá-lo.

- Se você ainda estivesse com a sua fantasia talvez pudesse ser o bufão da nave.

- Não era uma fantasia - se insurgiu Xâvier. - Em Kenningar, todos os alunos do meu colégio se vestem assim!

- Um colégio de bufões?

Xâvier cerrou os punhos. Mârk percebeu e também se preparou.

- E você, de onde vem para ser tão engraçado?

- Do centro de aprendizes, no velho

porto - respondeu Mârk. Xâvier arregalou os olhos.

- Uau! Dizem que os aprendizes são duros na queda. É verdade?

- Tá vendo esse machucado no meu rosto? Então, é um corte de faca, eu ganhei isso hoje.

- Tá de onda... você quer me impressionar! Mârk riu sarcástico.

- Acredite no que quiser, pra mim tanto faz. Agora, vou me deitar, estou morto e essa noite eu ainda vou trabalhar. Eu espero que você não seja do tipo que faz barulho.

- Não, claro que não!

- Outra coisa: eu também espero que você não ronque. Detesto gente que ronca - concluiu o aprendiz de cozinheiro em tom ameaçador ao se jogar na cama e se enrolar no cobertor.

- É... boa sesta, então! - respondeu Xâvier se apressando em diminuir a luz.

 

Mârk não parou de remexer na cama. Ele não conseguia dormir. Tudo era muito estranho, tudo muito novo. Entretanto, a manhã fora difícil! Ele suspirou e preferiu se levantar a ficar perdendo tempo tentando dormir. Ir até a sala de jogos, a que Brâg Svipdag lhe havia mostrado, talvez fosse a melhor coisa a fazer enquanto o turno da noite não chegava... A sala de jogos estava vazia.

Aparelhos de musculação colocados ao longo das paredes, ao lado de uma pilha de colchonetes de ginástica e de um saco de boxe. Mârk se distraiu dando uns socos.

No solo, linhas e círculos limitavam o espaço de paleo-siule, um esporte enérgico e viril que fazia furor em todo o império.

Por último, reinava no centro uma mesa de pingue-pongue novinha em folha, que chamava a atenção.

- Legal! - disse Mârk em voz alta empunhando uma das raquetes.

O pingue-pongue - um desses paleoesportes que haviam atravessado os séculos - era um dos jogos mais populares entre os jovens de Nifhell e certamente o mais praticado nas escolas. Em todas as escolas.

- Você por aqui?

Xâvier acabara de entrar na sala.

- Não deu para ver? - retocou Mârk com um tom ácido.

- Honestamente, não imediatamente - respondeu ingenuamente Xâvier ao se aproximar. - E quase impossível te ver atrás da mesa.

Mârk continuou mudo. Esse moleque rico era louco de provocá-lo dessa forma! Em todo caso, se procurava encrenca, ele acharia.

- Vamos jogar uma partida? - propôs Xâvier pegando uma raquete.

- Tá zoando? Eu não jogo com perdedores.

- Perdedores? - Xâvier se irritou. - Fique sabendo que fui campeão do grande colégio de Kenningar!

Mârk ganhou tempo para pensar.

- Tudo bem, uma partida! Mas estaremos disputando o quê?

- Disputando? Eu não sei! Um... aperto de mãos?

Mârk ficou calado.

- Nada melhor para propor? Então, digamos, se eu perder, eu aperto a sua mão, e se eu ganhar, você limpa a cabine por um ano.

- Nenhum problema - aceitou imediatamente Xâvier. - Eu topo!

- Vamos, filhinho de papai, prepare-se para a maior surra da sua vida!

A partida começou bem disputada. Os dois garotos pareciam ter o mesmo nível.

- Eu devo reconhecer - disse Xâvier enxugando a testa com a camisa - que você se defende bem, e...

- Cale a boca, Xâvier, o Palhaço! Deixe sua alma na mesa!

As bolas que se seguiram foram acompanhadas de gritos de raiva.

- Nada mal, melhor do que eu esperava - gritou Xâvier. - Eu te subestimei!

- Eu devo admitir - rebateu Mârk tomando fôlego - que você não é só um estúpido pretensioso. Pronto? Minha vez de sacar.

- Eu jogo com o vencedor! Mârk e Xâvier se assustaram.

Na porta, a menina dos grandes olhos e de longos cabelos castanhos que os havia acompanhado na chegada da nave.

- Eu jogo com o vencedor - repetiu ela.

Os dois garotos trocaram olhares e balançaram os ombros. Eles murmuraram algo para exprimir que estavam de acordo e retomaram a partida. A presença da menina deu mais ânimo ao jogo. As trocas de bola ficaram ainda mais acirradas.

Assim que Mârk ganhou o ponto decisivo, Xâvier xingou e jogou a raquete na mesa.

- Tss, tss - fez a menina com ar reprovador. - Que feio não saber perder!

Xâvier não respondeu, sentou-se em um dos aparelhos e ficou encostado na parede.

- Ao menos você sabe jogar? - se inquietou Mârk vendo-a pegar a raquete abandonada.

- Não se preocupe comigo - rebateu com uma voz tranqüila. - Você quer descansar antes de recomeçar?

- Não, obrigado.

Mârk se sentiu tocado e envergonhado pela atenção.

- Eu me chamo Mârk - continuou ele para dissipar seu mal-estar -, o outro ali é o Xâvier.

- Prazer! Eu sou Morgana.

- Pronta, Morgana?

- Pronta.

A partida foi uma das mais curtas da história do pingue-pongue. O garoto não marcou um único ponto. Do outro lado, uma fúria atacou todas as suas bolas e as devolvia com uma força e uma precisão incríveis.

- Que coisa! - Espantado, ele apertou a mão fina e nervosa de Morgana. - Eu nunca tinha visto alguém jogar como você!

- Parabéns! Foi muito legal! - exclamou Xâvier que, surpreso, esquecera seu despeito.

- O mérito não é meu - disse a menina quase se desculpando. - Eu sou uma Frä Daüda. Estou acostumada a adivinhar as coisas. Até mesmo a trajetória das bolas! Nós treinamos freqüentemente isso, entre as noviças, na escola.

- Você quer dizer... que adivinhava onde eu jogaria as bolas?

Mârk não conseguia acreditar. Ele já escutara muitas histórias das Frä Daüda, mas era a primeira vez que tomava consciência de que elas podiam ser verdadeiras.

- De certa forma, sim. Alguns segundos na frente. O suficiente para não perdê-las.

- Parabéns! - era a única coisa que Xâvier conseguia dizer.

- Se eu bem entendi - resumiu Mârk -, você é imbatível no pingue-pongue. E nos outros jogos?

- Eu sou melhor do que vocês em tudo - reconheceu tranqüilamente Morgana. - Mas não porque eu sou uma Frä Daüda.

- Então, por quê?

- Porque eu sou uma garota!

Xâvier e Mârk ficaram indignados. E Morgana não conseguiu conter as gargalhadas ao ver a reação deles.

- Vamos - disse ela pegando os dois pelo braço -, eu pago uma bebida na sala de estar!

Eles foram conversando no caminho, cada um perguntando ao outro o que fazia e descrevendo em detalhes o primeiro dia a bordo do Destruidor de Ossos.

Também muito discutiram sobre a guerra que estava em curso contra Muspell para libertar o Planeta Morto. Mas a inconseqüência da juventude os preservava do medo, e essa perspectiva era apenas um dos assuntos.

Quando chegaram à sala de estar já eram quase bons amigos.

Mârk e Xâvier se jogaram nas poltronas. Morgana foi pegar três copos de suco de multifrutas na máquina.

- Eu estou bem contente que vocês estão aqui - revelou Morgana servindo a bebida. - Frä Drümar , minha professora, é gentil, mas não é uma pessoa divertida! Assim que tivermos tempo livre, podemos nos encontrar.

- Grande idéia - disse Xâvier. - Eu proponho um brinde: aos nossos próximos encontros!

- A nós, os estagiários! - acrescentou Morgana levantando o copo.

- Ao Destruidor de Ossos, também! - completou Mârk um pouco supersticioso. - E ao seu capitão!

Eles beberam.

- A propósito - perguntou Morgana -, vocês viram o capitão? Me disseram que ele é uma graça!

- Ih, sem exageros. O que você achou, Mârk?

- Eu ainda não o conheci. Mas é certo que é um excelente capitão! Ao menos é isso que diz o meu chefe. Mas bonito? Poxa! Isso é coisa de menina.

- Vocês são muito bobos - suspirou Morgana. - Bom, eu tenho ainda alguns exercícios de concentração para fazer!

- Droga! - exclamou Xâvier preocupado. - Eu já ia esquecendo meu encontro com o chefe Rymôr!

- Deixem seus copos, eu termino - disse Mârk, se despedindo de seus amigos com um ar de gozação, enquanto se estirava na poltrona.

Bruscamente, Xâvier fez meia-volta e voltou-se para ele.

- Ei, sobre a limpeza da cabine durante um ano, foi brincadeira, não?

Mârk deu um riso sádico.

- Não.

- Coitado de mim! - gemeu. - Mas eu nunca fiz faxina, nem mesmo no meu próprio quarto!

- Ah - consolou Mârk dando um tapinha em suas costas. - Vou tentar ser legal e não deixar meu lanche cair no chão.

Xâvier olhou para ele com um olhar de cão sem dono e saiu arrastando os sapatos.

- Xâvier? - chamou Mârk, que havia se levantado da poltrona e o alcançava perto da porta.

- Sim?

- Eu sei que ganhei, mas... podemos apertar as mãos mesmo assim. Eu admiro os adversários que sabem perder, e sobretudo os que não se esquecem das promessas.

Estendeu a mão. Xâvier apertou-a e recuperou seu bom humor.

 

Rymôr entrou no domo de vidro. Vrânken estava de pé em seu posto de pilotagem e consultava um mapa do sistema solar de Drasill.

- Algum problema, Vrânk?

- Hum...

O gigante conhecia suficientemente seu capitão para sentir quando alguma coisa não ia bem.

- Mais ainda?

Vrânken esperou um momento em silêncio antes de responder:

- Existe algo que não está batendo nessa história. Quanto mais eu penso menos eu compreendo o plano do cã.

- Não há nada para compreender - disse Rymôr levantando os ombros. - Muspell decidiu atacar o Planeta Morto porque é um símbolo, e isso é tudo! Que outra razão eles teriam? Eu não sei. O cã nos lançou, talvez, um desafio, ou então as coisas não andam bem em Muspell e ele está querendo impressionar seu povo...

- É o que pensam os generais-condes - disse Vrânken em tom sonhador.

- Então, é isso! - triunfou Rymôr.

- Não, eu não vejo assim, ninguém vê! E esse é o problema! Os generais-condes não são infalíveis. E se você quiser saber a minha opinião, eles inclusive estão no caminho errado.

O ar surpreso de seu companheiro obrigou Vrânken a expressar seu pensamento:

- Os generais-condes amoleceram, todo o império amoleceu. Estamos seguros demais de nós mesmos, cheios de confiança, vemos o futuro com desdém. Nos esquecemos de que devemos provar continuamente que somos merecedores da nossa herança!

- Afinal, nós somos o topo do maior império do sistema solar...

- Erro, meu velho Rymôr! Você já pode usar o verbo no passado. Nossos ancestrais eram lobos, foram eles que construíram o império. Nós somos hoje os cordeirinhos, no topo de um império frágil, e todo o Drasill assim sente! Em Nifhell, nós entregamos o poder a anciões petrificados de más convicções, e a filhinhos de papai cujo único mérito é ser rico ou ter algum parente influente. Em Muspell, as crianças têm de enfrentar leões à mão para serem admitidos entre os homens. Imagine as provas que aguardam seus oficiais! Quanto ao cã... Então se um general-conde, eleito pelos seus belos discursos ou porque seu pai já era um general-conde, trata a gente de Muspell de bárbara e diz que seus planos são insensatos, eu me preocupo. E me pergunto o que está por trás disso. Rymôr estava com aspecto abalado.

- Mas, Vrânk, você aceitou essa missão...

- Sim, pois amo o espaço, meu velho amigo. Eu amo o perigo e a batalha! Porque eu me aborreço menos no meu Destruidor de Ossos do que nas minhas terras de Skadi. E, sobretudo - concluiu ele, lançando um sorriso de predador -, porque ao lado do Planeta Morto tem uma nave com a marca do Polvo em seu estandarte...

O gigante recuperou o sorriso. Ele preferia Vrânken como homem de ação, não como homem de discurso.

- Chamo os estagiários?

- Claro! Essa é a tradição.

Rymôr gritou das escadas metálicas por Mârk, Morgana e Xâvier, que esperavam no nível inferior. Eles subiram timidamente e se aproximaram lentamente do capitão, que os recebeu com um amável sorriso.

- Jovens, o Destruidor de Ossos vai partir e atrás dele todas as embarcações que livremente decidiram segui-lo.

Desde sempre, os estagiários vêm assistir dentro da cabine de comando. Aproveitem e abram bem os olhos: vale a pena o espetáculo!

Vrânken dirigiu-se a um púlpito de comando.

- Marinheiros! Soltem as amarras! - ordenou em um microfone. - Mecânicos! Motor fotônico em meia carga!

Dando as costas aos estagiários, ele ocupou o local em frente ao leme.

A embarcação foi tomada por um gemido surdo que percorreu toda a sua carcaça metálica. Em seguida, com o estrondo do reator abarcando o ar úmido do astroporto, o Destruidor de Ossos se afastou do local.

O capitão girou duas vezes o leme. A nave apontou em direção às estrelas e lentamente foi pegando velocidade.

Mârk sentia-se pasmo. Quase assombrado. Decididamente, o seu prazer era estar em terra firme! Felizmente, alguma coisa no barulho da nave, na atitude serena do capitão e no olhar confiante do chefe Rymôr lhe deu confiança.

- Vamos - murmurou Mârk -, você vai passar três anos a bordo dessa embarcação. É melhor ir logo se acostumando!

E se forçou a respirar calmamente.

Xâvier, por sua vez, sentiu uma emoção indescritível. A nave parecia viva e não uma sucata de máquinas e canos. Fazia barulho, mexia e navegava em direção ao céu! Todas as suas dúvidas, se é que ainda existiam, foram dissipadas instantaneamente: ele seria piloto, e talvez capitão, caso viesse a ser um dia dono de sua própria embarcação!

Olhava para Vrânken como se um deus tivesse aparecido no Destruidor de Ossos...

Ele não era o único a manter os olhos fixos sobre a silhueta jovem do capitão.

- Nossa, como ele é lindo! - disse a si mesma Morgana. E, de fato, em suas roupas negras, com aqueles cabelos dourados, rosto simpático e olhos claros, Vrânken parecia mais um elfo das lendas do que um homem.

Naquele momento ela entendeu as razões pelas quais Frä Drümar sentia-se fascinada por Vrânken.

O céu em torno do domo transparente logo ficou sombrio e cheio de estrelas.

Embaixo, cada vez mais distante, o planeta Nifhell com suas vastas geleiras e oceanos congelados parecia uma grande bola branca.

Bem atrás deles, era possível ver as luzes azuis de centenas de outras naves.

Os três sentiram o coração bater forte.

- É bonito, não é, garotos? - perguntou Rymôr ao se aproximar deles. - A frota das melhores naves de Nifhell, a armada do império! E lá, na nossa frente - continuou apontando o horizonte -, os Rochedos, Drasill, Eridan, o espaço infinito!

Rymôr também estava emocionado.

- Nunca nos acostumamos a esse espetáculo - murmurou ao se aproximar de Vrânken.

- Nós vamos entrar nos Caminhos Brancos - anunciou o capitão.

De fato, como do nada, flutuando no vazio, um vórtice apareceu em frente ao Destruidor de Ossos. Parecia um enorme funil luminoso, um espiral de contornos indefinidos.

Vrânken pilotava de forma resoluta sua nave.

- Nossa trajetória até o Planeta Morto levará apenas doze horas, em vez de doze anos como pelos Rochedos - explicou Xâvier em voz baixa a seus amigos.

- Diga, Xâvier, você sabe muitas coisas! - disse Morgana admirada.

- A ciência espacial é minha matéria preferida, então...

- Chega - resmungou Mârk. - Pare de se exibir.

- Olhem! - bradou a menina. - Os Caminhos Brancos! Eles se calaram.

O tempo pareceu se condensar.

O céu desapareceu em torno da embarcação deixando lugar a uma intensa luz branca.

- Uau! - exclamaram eles.

- É isso - disse Vrânken soltando o leme. - O sistema de navegação do Destruidor de Ossos se ocupa do resto. Estamos como sobre trilhos! Nós chegaremos ainda essa noite no Planeta Morto. Vocês estão liberados... Menos você, Xâvier Augentyr: eu quero mostrar-lhe mais alguns detalhes do posto de comando.

Surpreso, Xâvier engoliu em seco e concordou balançando a cabeça com veemência.

Mârk e Morgana deixaram o domo.

- Vamos ver um filme na sala de repouso?

- Eu bem queria, Mârk, mas Frä Drümar me espera na sala de jogos! Ela quer me passar alguns exercícios...

- Tem certeza? Você não pode dar uma desculpa?

- Não, eu não posso - respondeu sorrindo gentilmente. - Nos vemos mais tarde?

- De qualquer maneira, eu não tenho outra opção, né?

- Pare de reclamar um pouco! - provocou ela se afastando pelo corredor. - Eu vou acabar achando que você não é um cara legal!

Mârk ficou olhando até ela sumir.

- Agora, eu estou sozinho. Agora que fomos engolidos vivos por essa coisa flutuante no espaço! - resmungou em voz baixa. - Obrigado, meus amigos!

16/Jogos engraçados

- Aqui são os quadrantes que permitem controlar o nível de energia de que dispõe a embarcação. Ali, é o astrocontador que indica a nossa velocidade. Lá, o teclado que comanda...

- ...os tecnoescaners da nave - completou Xâvier, com o olhar brilhando.

Vrânken observou o filho do general-conde com olhar divertido.

- Vejo que eu não tenho mais nada para te ensinar.

- Oh! Perdão, capitão. Eu simplesmente andei lendo umas coisas sobre isso...

- Não se deve lamentar por saber algo, meu rapaz. Mas será que você sabe pôr os seus conhecimentos em prática?

- Eu... na teoria, capitão - respondeu Xâvier confuso.

Vrânken gargalhou.

- Em que área você é competente... em teoria, jovem Augentyr?

- Ciências e estratégias espaciais, capitão.

E também matemática e astrofísica, claro.

- Claro!

Vrânken refletia. O garoto parecia mesmo promissor. Rymôr talvez não tivesse se enganado ao descrever a primeira conversa com o jovem, na cabine dos estagiários.

- Estou com vontade de propor-lhe um negócio.

- Capitão?

- Você sabe jogar xadrez?

- Sim, capitão!

- Caso ganhe três partidas seguidas, eu aceitarei você durante todo o seu estágio no posto de pilotagem, e ensinarei coisas que não vai ler em lugar nenhum.

- E se eu perder?

- Ao fim de três anos, você será o mestre na arte de varrer os corredores.

- E caso eu não aceite o desafio?

- O chefe Rymôr continuará a lhe dar tarefas mais ou menos interessantes.

- Quando eu devo responder?

- Imediatamente.

Xâvier hesitou antes de balançar os ombros.

- Eu topo!

Vrânken fez sinal para que ele o acompanhasse até um par de poltronas separadas por uma grande mesa opaca. Xâvier logo reconheceu o suporte magnético: o jogo seria em três dimensões!

Na verdade, quando Vrânken tocou uma tecla, a bandeja começou a lançar uma pálida luz dourada.

O capitão pegou um exocubo de polimetal, gravado com as armas da família Xaintrailles: um cão mostrando os dentes em meio a uma lua crescente.

Vrânken acariciou o animal com o dedo. Um lado do cubo se abriu e liberou figuras de polimetal que se elevaram rapidamente no campo magnético e ocuparam suas posições sobre a mesa.

Xâvier ficou impressionado. Ele jogava freqüentemente em três dimensões, mas em telas holográficas, com imagens luminosas! Era a primeira vez que ele via um jogo polimetálico com suporte magnético. Como o capitão obtivera aquilo? Deveria valer uma fortuna...

O garoto observou o exocubo com mais atenção. O metal estava gasto, polido por gerações de mãos. Certamente pertencia à família Xaintrailles há muito tempo...

- Dentro de doze horas, no máximo, meu garoto - anunciou Vrânken -, você terá um cabo de vassouras entre as mãos. Só nos resta saber qual será...

Xâvier se esforçou para se concentrar.

Ele não estava apreensivo. Apenas excitado como sempre ficava antes de iniciar uma partida de seu jogo favorito. Ele se acomodou em sua poltrona. Talvez ele devesse ter informado ao capitão que ganhara por dois anos seguidos o famoso torneio de xadrez interplanetário de Kenningar...

Após hesitar um momento sobre o que deveria fazer para esquecer os Caminhos Brancos que o oprimiam, Mârk decidiu voltar para sua cabine e tentar dormir.

Porém, como tinha tempo, ele não foi pelo caminho mais rápido e ficou perambulando pela nave.

Passou pelas cabines da tripulação. Os marinheiros que não estavam de plantão cochilavam, escreviam para suas famílias nos computadores ou jogavam cartas, sentados em suas camas. Eles cumprimentaram cordialmente o jovem, que retribuiu feliz.

Quase todos no Destruidor de Ossos já conheciam Mârk. É verdade que trabalhar na cozinha e servir enormes porções contribuíam para a sua notoriedade. Mas o estagiário soubera, em apenas dois dias, ser querido por suas brincadeiras e seu temperamento.

Após vagar, acabou chegando aos dormitórios reservados às tropas embarcadas em Kenningar, que serviriam no Planeta Morto.

Era uma honra que os generais-condes tivessem, de comum acordo, entregado a Vrânken as tropas de elite, que eram normalmente usadas na segurança pessoal deles! Tinham como principal missão defender a nave do capitão-em-chefe, caso ele fosse capturado. Mas também podiam ser utilizadas para abordar naves inimigas.

As tropas de elite não se misturavam com o resto da tripulação e comiam em horários diferentes. Rymôr havia explicado que fora o capitão Vrânken que decidira assim.

Mârk fez um sinal para o tenente que os comandava, e prosseguiu em sua caminhada sem rumo certo.

Ele desceu até a casa das máquinas.

Estava fora de questão entrar lá: o chefe dos mecânicos vigiava com ciúmes seu reino e não permitia que ninguém entrasse, fora Vrânken e Rymôr. Mas Mârk adorava escutar o rugido do motor fotônico.

Em seguida ele retornou ao convés superior e passou por acaso próximo à sala de jogos. Lembrou que Morgana havia dito que ela estaria ali para se exercitar com sua professora. Hesitou. Vou apenas dar uma olhada, prometeu a si mesmo. Não há nada de mau nisso. O único risco é ser posto para fora por Frä Daüda.

A porta estava entreaberta. Ele espiou lá dentro. Morgana dançava sob o olhar atento de uma mulher com um vestido cinza. Ou melhor, ela encadeava poses, inspirava, expirava, se lançava ao solo e se recompunha, tudo com uma graça infinita. Mârk perdeu o fôlego. Nunca vira nada tão belo.

Frä Daüda acabou percebendo a presença dele. Lançou ao jovem um olhar mordaz.

Morgana também percebeu e parou de se movimentar. Mârk se retirou rapidamente.

- Tomara que a velha não jogue um feitiço contra mim! - inquietou-se o estagiário.

Ele apertou o passo para sair logo do setor.

Morgana dançava ainda em seus pensamentos quando Mârk deparou-se com a sala blindada. Localizada bem no centro da nave, os marinheiros mais temerosos chamavam-na de Templo. Fora contra essa parede que ele se chocou no dia de sua chegada ao procurar pela cabine dos estagiários.

Ele sabia que era ali que Morgana passava a maior parte do tempo, e que ela praticava a magia misteriosa das Frä Daüda.

Mârk sentia uma verdadeira fascinação pela ordem das adivinhas, uma fascinação misturada de uma certa suspeita supersticiosa, assim como todos do povo baixo de Nifhell.

Morgana era diferente.

Era uma menina de sua idade, não uma mulher severa, que metia medo. Fora alguns detalhes, até parecia normal. E também - Mârk abriu um largo sorriso - ela era muito, muito bonita...

Ele ia finalmente tomar a direção de sua cabine quando percebeu uma silhueta que se aproximava furtivamente do Templo. Seu instinto, apurado por um ano de pega-pega com o bando de Cara-Torta, o incitou a se esconder imediatamente na sombra, em um canto do corredor. Alguns segundos mais tarde, ele reconheceu Brâg Svipdag. E não era mais o cozinheiro tosco, caminhando pesado, com a pança na frente. Seus passos tinham ficado espantosamente suaves.

Olhava de forma desconfiada para todos os lados.

Parou bruscamente, apurou os ouvidos, e, tranqüilizado, mostrou interesse pela porta do Templo. Tirou de seu bolso um bloco de resina mimetizada e aplicou na fechadura. Assegurou-se quanto à qualidade da moldagem e soltou alguns resmungos de satisfação.

Depois partiu, tão discreto quanto havia chegado.

Mârk suspirou. Para não revelar sua presença, ele quase parará de respirar! Por um instante, seu chefe, tão gentil e compreensivo, parecia assustador.

Balançou a cabeça. Que estranho. Anormal. Por que Brâg Svipdag se comportava como um espião? Por que se interessava pelo Templo? Seu coração pulava em seu peito. Ali havia um mistério, e até mais que um mistério: uma ameaça!

Mârk voltou rapidamente para a sua cabine. Com quem deveria falar sobre o caso? Quem acreditaria, quem o levaria a sério? O cozinheiro era amigo de todo mundo do Destruidor de Ossosl E sua imagem testemunhava a favor de sua inocência...

O rosto honesto de Xâvier e o sorridente de Morgana logo tomaram o seu coração.

 

- Então Morgana, o que você está vendo?

Ajoelhada ao pé da árvore translúcida, a jovem olhava fixamente a fonte de metal com reflexos negros.

Era a segunda vez que ela mergulhava seu olhar na fonte. Logo constatou a que ponto os exercícios de Frä Drümar eram eficazes. Sua concentração havia adquirido muita rapidez e qualidade.

Algumas imagens apareciam claramente.

- Vejo muitas naves... elas estão imóveis... elas esperam... Atrás tem um planeta... parece uma lua...

- Sim, está bom, muito bom, Morgana. Trata-se sem nenhuma dúvida da frota de Muspell e do Planeta Morto. Continue.

Outras imagens se sucederam, mas muito embaçadas.

De repente, ela viu alguma coisa tão claramente como vira as naves no espaço. Alguém... alguém estava sendo assassinado.

Uma mancha vermelha invadiu a imagem e obscureceu sua visão.

Morgana deu um grito.

- Acalme-se, Morgana, acalme-se. - Frä Drümar abraçou a jovem, que se refugiou em seus braços.

- Foi... horrível... - disse em prantos. - Mataram uma mulher... bem sob os meus olhos...

- Calma, calma - repetiu gentilmente a adivinha. - O que você viu não acontecerá jamais, sem nenhuma dúvida.

- Como, como? - fungou Morgana.

- Mesmo começando a ver coisas, você ainda continua uma noviça, não se esqueça! Você ainda domina mal as suas visões. Pense: o que pode você dizer sobre essa mulher da sua visão? De que planeta ela é? De que época?

- Eu... eu não sei.

Frä Drümar balançou a cabeça devagar.

- O que distingue uma adivinha de uma noviça, minha filha, não é a qualidade da visão. Certas jovens vêem muito melhor do que muitas velhas adivinhas. É um dom da natureza, como algumas têm facilidade para desenhar ou correr. A diferença é o treinamento e a experiência que permitem interpretar uma visão, situá-la, lhe dar sentido. Você entende o que digo?

- Sim, Frä Drümar, eu compreendo.

- Por outro lado, Morgana, a adivinhação é um exercício extremamente complexo, e cheio de sombras. Você vê o futuro, mas raramente o futuro é escrito com antecedência. Esses pedaços de futuro que nós descobrimos nas águas sagradas de nossas fontes são elementos, pistas, probabilidades, mas nenhuma certeza. Quanto mais distante está o futuro, menos é previsível!

- Então ninguém vai matar a mulher que eu vi?

- Não foi isso o que eu disse. Talvez alguém a mate. E esse "talvez" que é importante! Mas tenha certeza, eu duvido que você já seja capaz de ler o futuro com a clareza necessária. É verdade, você parece possuir uma acuidade divina muito forte. E ainda possui toda a inteligência necessária para compreender o que vê. Mas só com muito trabalho será capaz de dominar os mistérios das Frä Daüda!

A jovem fingiu contentar-se com a explicação de Frä Drümar. Por que a adivinha não a levava a sério? A visão se impusera a ela de forma muito forte!

Morgana secou as lágrimas, e aquiesceu. Mas, no fundo, estava transtornada.

O Destruidor de Ossos emergiu primeiro dos Caminhos Brancos. Atrás dele, uma após a outra, as naves da frota imperial saíam do vórtice luminoso.

- Acho que estamos sendo esperados - comentou lacônico Rymôr Ercildur.

Por fora do domo de vidro do posto de pilotagem, as embarcações do cã estavam em posição de combate, impedindo o acesso ao Planeta Morto.

- Quantos eles são? - perguntou Rymôr virando-se para Vrânken.

O capitão balançou os ombros com irritação.

- Pergunte ao geniozinho!

Acariciando seu ciber-rato, o chefe se aproximou de Xâvier, que não conseguia parar de olhar o tão grandioso espetáculo.

- Ele ainda não digeriu sua derrota no xadrez, não é, garoto?

- É o que eu acho. Em outras circunstâncias, eu teria permitido que me vencesse. Afinal, era o capitão! Mas, realmente, não tive outra opção...

- Hum, não se aborreça - continuou Rymôr, que estava se divertindo com a situação. - Ele não é nem mau, nem rancoroso. É só orgulhoso, só isso.

- Ah, eu entendo! - disse dolorosamente o estagiário dando uma rápida olhada em direção a Vrânken. - Mas eu estou desconfortável. É bom que eu diga que jamais encontrei um adversário tão forte como ele, mas... mesmo assim ele está com raiva de mim.

O gigante soltou uma enorme gargalhada.

- O que você acha, Bumposh? - perguntou ao seu animal. - Nosso capitão deveria estar contente de enfim ter achado um estagiário digno de se investir. Mas não, ele choraminga em seu canto como um garotinho. Se o Polvo soubesse disso, atacaria imediatamente!

O rato guinchou. Parecia até que sorria.

- Bom, já chega - suspirou Vrânken. - Mas, pelas Forças, ninguém ainda tinha me vencido no xadrez!

Em seguida o capitão tomou posição em frente ao leme e observou atentamente as naves inimigas, imóveis a alguns nós-espaciais.

- Então, Xâvier? O chefe Rymôr quer uma estimativa de quantos eles são!

- Sim, capitão! Eu estimo em aproximadamente duzentos...

- São duzentos e onze exatamente.

Xâvier ficou estupefato. Vrânken se virou com um sorriso discreto e lhe mostrou um velho contador que o garoto nunca vira antes.

- Minha nave é como você, cheia de surpresas, jovem Augentyr. Agora, me diga: qual o tamanho da nossa frota?

- Umas... aproximadamente trezentas, capitão.

- Trezentas e trinta. Dois terços da frota de Nifhell. E, sobretudo, seus melhores elementos. E então?

- Então?

- Que ensinamento você tira dessa situação?

- Nós somos superiores em número, capitão.

- Bravo. Então deverá ser fácil retomar o controle da situação, recuperar o Planeta Morto e mandar esses vadios de volta para casa, após aplicarmos um duro corretivo para desestimular qualquer outra tentativa! Algum comentário? - Hum... por que o cã não mandou uma frota mais importante? Quando atacamos, devemos juntar todas as forças.

- Astuto o rapaz, hein, Rymôr? - disse Vrânken olhando para o gigante. - Isso é verdade! O que os generais-condes fizeram para mobilizar mais embarcações do que o grande cã?

Xâvier esperou com impaciência o capitão solucionar esse mistério. E ficou cruelmente decepcionado.

- O que você ainda está fazendo aqui?

- E que... o senhor...

- O chefe Rymôr e eu temos coisas para falar que não lhe interessam. Você tem tempo livre.

- Mas... - rebateu o garoto.

- Você escutou o capitão? - completou Rymôr. - Saia! Xâvier fez cara de poucos amigos. Olhou desapontado para Vrânken e desapareceu pela escada batendo forte com os pés.

- Se ele não for devorado pelos cãs, nós faremos algo com esse menino! Não é verdade, Vrânken? - comentou o gigante piscando o olho.

- Bom, podemos trabalhar agora?

O tom grave de Vrânken trouxe Rymôr para o sério.

- Você ainda está se perguntando sobre as verdadeiras motivações do cã?

Vrânken balançou a cabeça pensativo antes de continuar:

- Ninguém me tira da idéia que existe algo a mais nesse caso. Bom, mas vamos nos preparar para a nossa ofensiva. Não vejo nada melhor a fazer no momento. Por enquanto... prudência. Vamos manter os olhos abertos!

 

O chefe Rymôr reuniu a tripulação na cantina para dar as últimas informações. Vrânken acabara de fazer o mesmo, pelo rádio, com os outros capitães das naves imperiais. A ação era iminente.

O capitão do Destruidor de Ossos passou a mão nos cabelos e avaliou a frota de guerra à sua frente.

Esse era o primeiro combate aberto entre Nifhell e Muspell depois de três gerações. Escaramuças, ataques-surpresa e emboscadas eram normais, mas só atacavam algumas embarcações. Nenhum caso que motivasse beligerância. Hoje seria diferente.

A história de Drasill entrava em um novo ciclo. Um ciclo em que a autoridade do império Comtal seria sistematicamente questionada.

Seria então necessário golpear forte para impressionar os opositores de Nifhell por um longo tempo. O que não seria nada fácil. Mesmo porque o cã parecia disposto a usar todas as artimanhas possíveis. Ele mandara seu melhor general! O melhor estrategista da história!

Ele procurou com os olhos a embarcação que trazia a bandeira do Polvo e não encontrou. Evidente. O chefe de guerra de Muspell não facilitaria o trabalho de seus adversários indicando sua presença.

Em seguida pensou na guarnição de plantão no Planeta Morto.

- Coragem, rapazes - murmurou Vrânken. - Estamos aqui...

A silhueta enorme de Rymôr emergiu no posto de pilotagem.

- Estamos todos prontos, Vrânk. Os canhoneiros estão em seus postos, a tropa em estado de alerta. Quando você quiser.

Vrânken sentiu-se fustigado por uma descarga de adrenalina.

Ele acionou o sistema de comunicação de segurança que o ligava com as trezentas e vinte e nove outras embarcações do império e seus capitães. Essa comunicação não permitia nenhuma escuta, era a forma de se evitar contestações e conselhos que nunca deixavam de acontecer. Em ação, só o estrategista decidia.

Depois verificou que o fone de ouvido de seu tecnofone estava funcionando bem. - Frä Drümar? - perguntou. - Você está na escuta?

- Tão claramente como a água de minha fonte, capitão. Seguro, Vrânken se concentrou no que devia fazer.

Era um momento que ele adorava.

Tomou posição no centro da cabine de comando. Agachou-se e apertou um botão escondido no chão. Logo, o piso opaco foi tomado por um halo dourado e um fraco campo magnético se desenhou no local.

Vrânken colocou no chão o exocubo com as armas dos Xaintrailles. Ele roçou a lua do brasão. Do estranho objeto jorravam pedaços disformes de polimetal que começaram a flutuar em volta do capitão, na espera de informações. Os captores externos da nave entraram em pleno funcionamento. O polimetal logo reproduziu no espaço magnético a forma do Planeta Morto e dos asteróides que gravitam em torno dele.

Na seqüência, Vrânken acariciou o cão gravado no exocubo. Liberadas, as peças do jogo de xadrez apareceram sobre sua cabeça. Os captores crepitaram outra vez. O polimetal se desagregou e deu forma a centenas de pequenas bolas que, imitando a posição exata das naves das duas frotas, posicionaram-se em frente ao Planeta Morto.

O teatro das operações estava montado.

- Perfeito! - pensou Vrânk olhando de forma quase afetuosa para o polimetal que gravitava.

Em seguida, usando o sistema de comunicação se dirigiu aos capitães.

- Senhores, passem ao modo de cibercomando. Que seus canhoneiros estejam prontos.

Uma a uma, as bilhas de polimetal correspondentes a cada nave imperial passaram a brilhar. As outras continuaram escuras.

Vrânken mexeu os dedos para as abrandar. Doravante, toda a frota estaria diretamente submetida às suas decisões! Ele seria o maestro. E a partitura que executaria estava apenas em sua cabeça.

Ele respirou fundo.

Então começou a se mover em volta do campo de batalha em três dimensões. Segurava as naves entre os dedos, deslocava-as, mexia em umas e recolocava outras. E no espaço, do lado de fora, a resposta do estrategista às suas solicitações foi instantânea graças aos cibercomandos, os motores em movimento rugiam! Os pedaços de polimetal, representando a frota inimiga, movimentavam-se sob os olhos atentos de Vrânk em resposta aos seus próprios movimentos.

As embarcações do cã eram verdadeiras naves de guerra. Seus flancos eram cheios de canhões, e seu dorso trazia impressionantes torres. Olhando-as, as naves do império pareciam embarcações comerciais ou cruzeiros. Mas o polimetal que as recobria, assim como a sólida artilharia concebida para responder aos ataques dos piratas dos Rochedos, as tornavam também temíveis.

As naves imperiais se deslocavam nos espaço por ondas. Seus capitães não estavam mais no comando: no Destruidor de Ossos, Vrânken comandava sozinho as manobras. Por outro lado, os canhoneiros mantinham total independência.

O Lobisomem era uma das trezentas e trinta embarcações da frota Comtal. A nave - usada em transporte de madeira de linhas robustas - se encontrava pela vontade de Vrânken em frente a uma nave do cã e recebeu uma chuva de obuses. Impossibilitado de se mover, os canhoneiros responderam bravamente com tiros de balas de polimetal. Um dos tiros destruiu uma torre. Uma fumaça saiu da nave de guerra. Um clamor de vitória tomou conta dos marinheiros de Nifhell. Mas duas outras naves se aproximaram rapidamente em defesa da embarcação atingida. Logo os motores do Lobisomem voltaram a funcionar: em seu tabuleiro magnético, Vrânken havia visto o perigo...

- Capitão? - disse a voz de Frä Drümar no tecnofone. - Cuidado com a ala esquerda...

Vrânken não perdeu tempo e deslocou outras peças. Como havia previsto a adivinha, a frota do cã avançou e, diante da reação de Vrânken, ela parou. Ele então lançou um contra-ataque.

Como se soubessem o que estava sendo preparado, as naves inimigas imediatamente se retiraram.

- Eles devem ter um otchigin - explicou a adivinha. - Eles também antecipam as nossas ações! Estamos lutando com armas iguais... Em guarda, capitão, o inimigo vai tentar surpreender nosso flanco direito.

As mãos de Vrânken se mexeram rapidamente no campo magnético. Surgindo das sombras do Planeta Morto, nove naves inimigas atacaram. O ataque foi respondido prontamente.

Vrânken foi surpreendido por um sentimento de admiração extrema pela estratégia do adversário. Sua reputação não estava nem um pouco usurpada. Suas manobras eram executadas com flexibilidade e rapidez. Vrânken lutava realmente contra os tentáculos de um polvo!

Ele sentiu uma excitação extraordinária. Pela primeira vez em muito tempo, ele combatia um adversário que o ultrapassava.

Quando, exausto, Vrânken resolveu colocar um termo nesse primeiro confronto, poucas tinham sido as perdas de ambos os lados.

As duas frotas retornaram à posição frontal.

Vrânken fez uma cara feia de decepção. Mesmo que ninguém estivesse em vantagem, sentia o gosto amargo da derrota. Havia apenas obtido um empate, e ele comandava o time mais numeroso...

Não, na realidade, era Muspell que havia ganho a partida.

A genialidade do almirante do cã transparecia ainda mais assim que repassava em sua mente as diversas fases da batalha.

Ele realinhou as peças de polimetal no exocubo e apagou o campo magnético. Depois anunciou no sistema de comunicação:

- Tempo morto, senhores. Nosso ataque não foi decisivo, mas não cedemos nada, nem perdemos. Eu só peço que continuemos em contato.

Seu fone crepitou:

- Capitão?

- Sim, Frä Drümar?

- Não vejo nada de preocupante nesse momento. Vou descansar um pouco.

- Claro. Mas mantenha o seu tecnofone ligado, por favor.

Rymôr se aproximou com seu passo ora leve ora claudicante.

- Foi magnífico, Vrânk. Cada vez que eu via você mexer no campo magnético, era igual: minhas tripas se mexiam. Você é o melhor!

Vrânk respondeu em um tom pouco humorado:

- Não dessa vez, velho. Sobre a minha sepultura vão poder registrar o seguinte resultado: Vrânk contra Muspell: onze vitórias, uma derrota.

- Poxa - tentou reconfortar Rymôr cocando o crânio -, foi só uma etapa da partida, não é mesmo?

O capitão não respondeu, deixando o gigante constrangido.

Frä Drümar sentou-se encostada na árvore translúcida. Ela fechou os olhos e deixou a cabeça pousar no tronco. Ficar concentrada por tanto tempo no futuro era muito cansativo.

- Tudo bem, senhora?

- Sim, Morgana, eu só necessito um pouco de repouso, é tudo.

A menina acompanhara toda a batalha de dentro do Templo.

Ela vira Frä Drümar escrutar a fonte intensamente, triar as visões e advertir o capitão das ameaças que se revelavam exatas.

Ela ficara impressionada e sentia aumentar a sua admiração por aquela mulher que a tinha em suas mãos, e, sob os seus olhos, o destino de milhares de homens, e mais, de todo um império! Ela acabara de entender o preço que as Frä Daüda pagaram para merecer seu lugar em Nifhell, e que laços podiam unir um capitão e sua adivinha.

Exaltada, ela se perguntou se não procuraria, ao fim de seu estágio, um capitão ligado às tradições, que a levasse em sua nave...

- Morgana?

- Sim, Frä Drümar?

- Você deveria esticar suas pernas. Eu não preciso de você agora aqui.

- Você tem certeza de que está tudo bem?

- perguntou a menina.

- Claro! Não se preocupe.

- Está bem, então. Mas voltarei ao som do primeiro tiro de canhão!

A adivinha sorriu.

- Se você quiser. Agora, vá!

Morgana saiu do Templo e resolveu, fechando a porta, dividir com Mârk e Xâvier suas impressões sobre a batalha.

 

Morgana se dirigiu à sala de jogos, que estava vazia. Então foi até a sala de repouso, em vão.

Diante do insucesso ela teve um rasgo de mau humor.

- Será que estão escondidos? - disse em voz alta. De repente se lembrou da cabine reservada aos estagiários, na parte de trás da nave, que os meninos dividiam.

Após se perder e perguntar o caminho a um marinheiro, ela se encaminhou para lá.

Ela bateu à porta e alguém a mandou entrar.

- Oi! - respondeu ela abrindo a porta. - Sou eu! Xâvier e Mârk estavam deitados em seus colchonetes.

Eles se endireitaram ao ver a menina entrar no quarto.

- E aí! Legal você passar aqui, eu já estava ficando entediado. O Mârk está calado o tempo todo!

- Vocês viram alguma coisa da batalha? - perguntou e se sentou ao lado deles.

- Eu fui expulso da cabine de comando - disse Xâvier fazendo uma cara feia.

Mârk levantou os ombros para dizer que não estava interessado no assunto. Mas Morgana não desistiu.

- Eu não vi nada... - ela fez um ar misterioso -, mas escutei tudo...

Ela se apressou em contar aos amigos o que havia vivido no Templo, e omitindo tudo o que era segredo da sua ordem.

Mârk sabia das histórias que circulavam sobre as Frä Daüda na parte baixa de Kenningar, e, aberto ao sobrenatural, assim como a grande maioria do povo de Nifhell, e apesar do mau humor, escutou atento o relato da menina. Mas Xâvier, empedernido pela ciência e pela lógica, refratário a tudo que escapasse da razão, ficou chocado.

- Uma ligação tecnofônica direta e secreta entre Frä Drümar e o capitão Vrânken? - espantou-se, falando em tom de dúvida. - Uma estratégia baseada na premeditação do futuro? Por que não um Gôndül dançando uma valsa?

- Você não está sendo correto - disse Morgana vexada. - Se eu, uma noviça, consigo, graças aos meus dons, derrotá-los no pingue-pongue, uma adivinha bem preparada pode muito bem ajudar um capitão a ganhar uma guerra!

- Ela tem razão - disse Mârk, usando um tom agressivo para defender a menina. - As Frä Daüda devem mesmo ser verdadeiramente úteis para disporem de um compartimento como o Templo no Destruidor de Ossos!

Morgana olhou para o rapaz com reconhecimento.

- Traidor - bradou Xâvier. - Você debandou para o campo das meninas!

A noviça apertou os olhos e explodiu:

- Então é isso que te incomoda? Que as mulheres tenham um papel importante na nave? Ou no império? Macho débil!

Xâvier imediatamente se defendeu.

- Não foi isso que eu disse!

- Mas é o que pensa, confessa! - Não!

Um silêncio pesado tomou conta da cabine. Mârk deu um longo suspiro.

- Um obus pode cair sobre nós a qualquer momento, podemos morrer, e vocês, tudo o que encontraram para fazer foi ficar enchendo a cabeça de idiotices!

Foi nesse instante que Morgana se deu conta que algo realmente perturbava Mârk.

- O que você tem? Está tudo bem?

- Não tenho nada! - murmurou o garoto.

- Como nada? Me diga! - perguntou ela com voz doce, encorajando o amigo.

Incentivado pela menina, Mârk decidiu conversar.

- É meu chefe, Brâg Svipdag. Ele tem algo de estranho.

- Algo de estranho? O que você quer dizer?

- Eu o surpreendi nas imediações do Templo em uma atitude suspeita...

- É tudo? - quis saber Morgana, decepcionada. - Muitos marinheiros fazem isso. Eles ficam loucos de curiosidade, e a curió...

- Deixe-me terminar, obrigado! - cortou Mârk. - Decididamente, não é à toa que você é uma menina! Sempre a boca aberta!

- O que você quer insinuar com isso? Teria sido uma reprovação? Ah, já sei! O senhor ainda não engoliu a derrota no pingue-pongue!

- Vai, Mârk - interveio Xâvier -, termina logo a história!

- Eu ia dizendo - retomou o garoto - que Brâg Svipdag não circulou simplesmente em torno do Templo. Ele também pegou um molde da fechadura da porta...

Dessa vez, Morgana ficou sem voz.

A porta. Uma porta que abre atrás de uma mulher. Aquilo a lembrava vagamente uma coisa. Algo que vira em um sonho. Não, não fora em um sonho...

Ela se sentiu mal.

- Mârk, você tem certeza do que você viu? - perguntou Xâvier com tom preocupado. - Não se deve acusar sem provas.

- Eu estava lá - protestou o estagiário da cozinha -, escondido no corredor! Eu vi com meus próprios olhos!

- E existem outras testemunhas? Mârk suspirou.

- Não. Eu estava sozinho. O que me aborrece é que o cara é o meu chefe, e eu gosto dele! Mas parece que ele não está bem-intencionado.

- É bem possível - concordou Xâvier, pensativo. - Mas quem devemos prevenir? E quem acreditará, se não temos testemunhas?

- E se eu falar com a Frä Drümar? - propôs Morgana com a voz trêmula. - Eu sei que ela vai me escutar.

- Boa idéia! E sobretudo - acrescentou Xâvier abaixando a voz com medo de estar sendo escutado por mais alguém -, vamos ficar de olhos bem abertos, cada um de nós. Talvez o Svipdag cometa um erro que seja fatal!

Em face desse mistério, ele sentiu uma exaltação percorrer-lhe o corpo. Não era mais um jogo: estavam confrontando um perigo que ameaçava claramente a nave inteira!

Mârk se sentia sujo com a situação. Estava acusando seu chefe, sempre tão simpático com ele. Ele perguntou a si mesmo o que seu avô teria feito em seu lugar. Na falta de uma resposta, tornou a suspirar.

Brînx Vobranx blasfemou. O polimetal era menos resistente que o previsto! Atacado por potentes jatos de energia, a porta blindada gemia, queimava e se desfazia. Ela cedia, inexoravelmente. As esperanças do comandante se abalavam junto com o feixe das faíscas que eram projetadas pelo tecnomaçarico dentro da caverna. Planeta Morto cairia antes da chegada dos reforços de Nifhell...

A porta desmoronou com um barulho surdo.

Escondidos atrás das máquinas, os soldados de Brînx apontaram suas armas em direção à entrada, prontos para abrir fogo. O polimetal incandescente enrugava, e volutas de fumaça branca mascaravam a abertura escancarada. As mãos se crisparam nos fuzis. No entanto, nenhum guerreiro de Muspell entrou.

Para enorme surpresa dos defensores, uma bandeira branca apareceu, agitada por um oficial que entrou na caverna. Um pedaço de lençol rasgado, pego de uma cama, de um quarto, que poderia ter pertencido a um deles, lembrou aos homens da guarnição que a base não era mais controlada por eles.

O oficial do cã falou na língua do império:

- Soldados de Nifhell! Nós sabemos que vocês estão dispostos a lutar até o fim! Vocês já nos mostraram a sua valentia! Mas nós temos muitos dos seus... Evitemos uma batalha de sangue inútil: joguem as armas e se rendam! A não ser que vocês queiram carregar a morte de seus companheiros em suas consciências...

O oficial fez um gesto. Alguns homens acorrentados foram levados até ele. O coração de Brînx Vobranx parou por um instante.

Entre os prisioneiros estava Rôlan.

Brînx fechou os olhos. Então o rapaz não estava morto! Estava ali, sujo e humilhado, solidamente amarrado, mas bem vivo! Ele sentiu um enorme alívio. Nesse momento, teve certeza do que deveria fazer.

Ele fez uma reza às Forças, e depois saiu de trás do cofre que servia como seu esconderijo. Na seqüência, interpelou seus homens:

- Façam o que ele determinou! Assumo a vergonha dessa rendição. Não quero sacrificar dez dos nossos para ganhar mais tempo. Não terei esse orgulho imbecil...

Brînx largou seu fuzil no chão e caminhou na direção do oficial com a bandeira branca.

- A caverna é sua - disse em um tom amargo, enquanto os homens de Nifhell, após momentos de hesitação, seguiam o exemplo.

- Obrigado! - respondeu o oficial do cã, maliciosamente. - Nós saberemos fazer bom uso disso!

Um rasgo de interrogação passou nos olhos do comandante.

O guerreiro de Muspell caiu numa gargalhada que chegou a congelar o sangue de Brînx.

 

Frä Drümar passou um lenço na testa.

Ela estava mais do que testada. E, no entanto, a campanha acabara de começar! Quantas outras batalhas ainda teria essa nova guerra? Seria ela capaz de ver tudo, e de ver bem?

Frä Drümar não tinha mais a energia dos seus vinte anos. Abusara da visão, mergulhando por muito tempo e por muitas vezes sua curiosidade na fonte de metal.

Não lamentou ter arrasado sua saúde durante as longas viagens imóveis que fazia em direção ao futuro. Havia um alto preço a ser pago sempre que ultrapassava certos limites. E esse preço, no fim das contas, era pouco considerando tudo que ela vira e descobrira ao longo de sua vida! Ao longo de sua fuga...

Ela fechou os olhos.

De onde vinha essa necessidade de fugir sempre, cada vez mais longe, de se perder nos meandros da fonte? A imagem de um homem, belo como um deus, inacessível como um deus, apareceu em seu espírito.

- Vrânken - murmurou tristemente.

Por que ela continuara nessa nave? Talvez porque ela preferisse sofrer perto dele do que longe. Os mistérios do coração não são menores que os do futuro.

Logo que ela havia confiado seus tormentos à sua antiga professora, Frä Ülfidas, aquela havia prometido enviar uma noviça para ajudá-la e para quebrar sua pesada solidão. A decana de Urd considerava capital a relação entre um capitão e sua adivinha. Afinal, o império não nascera dessa incrível colaboração?

Frä Ülfidas mantivera sua palavra. Ela havia mesmo enviado um belo presente na figura de Morgana. A jovem possuía todos os pré-requisitos para se tornar um dia uma grande adivinha...

Frä Drümar suspirou e retirou com dificuldade suas costas da árvore artificial.

- Então - fustigou-se -, eu ainda não sou inútil! Ainda sou capaz de fazer o meu dever, e de contribuir para a vitória do império! E a de Vrânken...

O ruído da fonte a reconfortava.

Ela sentiu vontade de relaxar perto dela. Inclinou-se sobre o espelho líquido e deixou as imagens fluírem diante de seus olhos.

Muitas desfilaram sem que ela prestasse atenção. Eram imagens secundárias, pouco interessantes ou muito aleatórias.

Mas, de repente Frä Drümar estremeceu. Alguma coisa traçou um caminho até o seu espírito. Ela deu um grito: alguém era assassinado. O sangue escorria em um compartimento.

- Pela folhagem da grande árvore! - murmurou. - Morgana tinha razão! A noviça tivera uma visão verdadeira! Alguém morrerá em breve... Alguém próximo, e perto daqui...

Ela tentou analisar o que via cada vez mais claramente.

- Morgana tinha razão, mas não completamente - continuou em voz baixa. - Não é uma mulher que será assassinada, será um homem!

Totalmente concentrada e com os ouvidos cheios com o ruído da fonte, a adivinha não percebeu que alguém abriu a porta silenciosamente. Furtiva, uma silhueta entrou no local e se dissimulou em um canto escuro.

- Um homem que eu conheço bem, um homem de quem eu gosto e que não deve morrer... - cochichou como se estivesse em transe. - Vrânken! É Vrânken! Alguém vai matá-lo!

A adivinha se levantou titubeando. Ela procurou o tecnofone que permitia se comunicar diretamente com o capitão.

Lembrava de tê-lo deixado ao pé da árvore.

Ela caminhou.

- E isso que você procura, feiticeira? Frä Drümar não se assustou. Ela havia sentido a presença do intruso um segundo antes de ele falar.

Ela se virou.

À sua frente estava um homem de grande porte, corpulento, rosto redondo e os olhos brilhando de raiva.

Era o cozinheiro da nave! Ele brincava com o tecnofone na mão esquerda.

- Como você entrou?

- Pela porta, madame. Basta ter a chave. Não é muito complicado.

Frä Drümar percebeu uma faca em sua mão direita.

- Você veio para me matar?

- Como adivinhou? - ironizou o homem que começou a rir, visivelmente orgulhoso de si próprio.

Ela viu logo no rosto do cozinheiro que ele falava a verdade. Também percebeu pela maneira que o homem segurava a arma que, por trás daquela aparência jovem e tranqüila, estava escondido um assassino profissional. Ela não teria nenhuma chance. Seria inútil resistir.

- Triste consolo - disse a si mesma Frä Drümar. - A pequena Morgana tinha razão. Não foi apenas uma, mas duas visões diferentes que nós tivemos! Eu vou morrer, e o capitão vai morrer, pois eu não posso preveni-lo... Sentiu um imenso desgosto. Ela havia falhado. O cozinheiro se aproximou.

- Quem é você exatamente? - perguntou a adivinha. O homem abriu um sorriso feliz.

- Mas... um cozinheiro! Um simples cozinheiro. Não dá para perceber com a minha faca?

O sorriso se transformou em um riso sinistro.

- Eu vou morrer na mão de um homem imbecil - constatou sem demonstrar nenhuma emoção.

- Me diga o motivo?

- Uma nave cega não se pilota tão bem. Uma guerra abandonada ao presente é menos fácil de se levar...

Essas foram as últimas palavras que a adivinha escutou. Brâg Svipdag deixou o corpo sem vida cair no chão. O sangue escorreu nas raízes de polividro e fluiu em direção à fonte, que ficou vermelha.

- Uma coisa boa de se fazer - disse feliz o assassino, limpando a lâmina no vestido cinza de Frä Drümar.

Ele colocou o tecnofone ao pé da árvore e saiu.

 

Foi um membro nervoso da tripulação que comunicou a Vrânken a morte de Frä Drümar.

Rymôr, que estava ao seu lado, blasfemou e deu um soco na mesa de mapas.

- Pobre Drümar! Ela não merecia isso! - concluiu com uma voz embargada.

O capitão não reagiu imediatamente. Seu rosto ficou pálido como cera.

- Rymôr - ordenou. - Entre em campo e faça a investigação. Que ela seja rápida e eficiente. E depois, mande o corpo de Frä Drümar para a câmera de tecnoconservação. Nós a homenagearemos assim que tivermos tempo.

Ele tentou sorrir. O tempo... o tempo acabara de lhe fechar suas portas e corria de novo normalmente para ele como para os outros!

Rymôr foi surpreendido pela frieza do capitão. Achava que o capitão era mais ligado à adivinha do que demonstrara. Ele balançou a cabeça e desapareceu nas escadas.

Já fazia dez anos que Vrânken conhecia Frä Drümar. Dez anos que ele herdara o Destruidor de Ossos. Dez anos que ele combatera os Rochedos pela primeira vez.

Lembrava como se fosse ontem...

Ele acabara de se formar major na Academia Espacial. E estava tão firme de suas convicções que se sentiu incomodado ao saber da presença, na nave de sua família, de uma adivinha.

Seu pai havia recomendado, em testamento, mantê-la a bordo, para ele não se comportar como os jovens capitães modernos. Por respeito, ele assim fez. Mas sempre tentou mostrar que era um erro, que um capitão só necessitava de uma embarcação.

Então, ele partiu por muitos meses para os Rochedos. E foi lá que tudo mudou, pois Frä Drümar o havia salvo por três vezes da morte certa.

Ao antecipar um ataque de piratas.

E, em seguida, ao adverti-lo sobre a aproximação de um Tumulto, uma dessas violentas tempestades estelares que destruíam as naves com a mesma facilidade que uma pedra quebra uma noz.

Ela também descobriu um motim em que a tripulação queria se apoderar da embarcação.

Ele escapara por pouco das três ameaças, e havia ficado abalado com a experiência. De tal forma que ao retornar não era o mesmo de quando partira!

Quando voltou para as suas terras, no condado de Skadi, convocou Frä Drümar. Ele a recebeu ajoelhado, cabeça baixa, lhe apresentou desculpas por ter duvidado de sua utilidade. Essa foi a primeira e a última vez que Vrânken se ajoelhou para alguém.

Desde esse dia, ele se tornou um ardente defensor das Frä Daüda e até mesmo suscitou um movimento favorável à ordem entre os capitães de Nifhell.

Mas ele surpreendeu um olhar da adivinha. Um olhar para o qual ele não estava preparado, e que acabara por distanciá-lo dela. Mas o tempo pouco a pouco confirmou essa estranha relação, mistura de estima e amizade distante, que deixava ambos contentados...

Uma chamada no tecnofone tirou Vrânken de suas lembranças.

- Rymôr? Estou na escuta... Ah?... Muito bem, faça os três subirem.

Ele guardou o minúsculo aparelho no bolso.

Foi a menina que descobriu o corpo de Frä Drümar. O choque deve ter sido duro. Segundo um dos marinheiros, o assassino não agira de forma elegante.

O que mesmo a jovem disse para Rymôr? Ah sim, que ela sabia de muitas coisas, mas que só falaria ao capitão, e na presença dos outros dois estagiários. Ele balançou os ombros. Ele toparia qualquer capricho para chegar à verdade!

Levados por Rymôr, os estagiários não tardaram a chegar ao posto de pilotagem.

Vrânken dirigiu-se imediatamente a Morgana, cujos olhos vermelhos indicavam que ela havia chorado:

- Pobre menina... eu entendo o seu pesar. Eu estimava Frä Drümar. Ela vai fazer muita falta.

- Ela gostava muito do senhor - respondeu Morgana com a voz fraca. - E é por isso que eu vou confiar no senhor e falar tudo o que eu sei.

A jovem não conseguia esquecer a atroz descoberta feita ao voltar ao Templo, logo quando ela resolvera confiar em sua professora e contar as suspeitas de Mârk sobre o cozinheiro. O sangue... tudo fora horrível.

- Estou ouvindo você, Morgana. O que tem para me contar?

Ela tentou falar mas foi tomada pela emoção. Ela olhou com os olhos intumescidos para Mârk. Ele começou a falar no lugar da menina. Sua voz demonstrava alguma hesitação.

- Na verdade, capitão, fui eu quem descobriu uma coisa. Ontem, por acaso, eu surpreendi o meu chefe, Brâg Svipdag, rondando o Templo. Eu o vi fazendo o molde da fechadura. Achei estranho e contei para Morgana e Xâvier. Decidimos que ficaríamos de olho nele. Morgana queria contar tudo para a adivinha...

Rymôr e Vrânken escutaram a história dos estagiários com atenção. Assim que Mârk mencionou o nome do cozinheiro, eles trocaram olhares surpresos. Brâg Svipdag era um homem amável e consciencioso, fazia parte da tripulação há muitos anos!

Rymôr ligou seu tecnofone e deu ordem para os soldados de encontrar e trazer Brâg Svipdag até o posto de pilotagem.

- Logo teremos uma solução - anunciou o capitão aos estagiários. - Brâg Svipdag nos dará logo as explicações necessárias. Eu espero que você tenha contado a verdade, meu garoto.

Mârk reagiu sem pestanejar:

- Eu juro, meu capitão!

- Muito bem! De qualquer maneira, apenas Morgana e Frä Drümar possuíam a chave do Templo. Sua história tem o mérito de explicar como o assassino pôde penetrar em local protegido.

- O que me impressiona - interveio Rymôr, cheio de dúvidas - é que a agressão parece coisa de profissional! Não consigo imaginar o Gordo nesse papel.

Vrânken levantou a mão para pôr um fim à discussão.

- Esperemos o depoimento de Brâg Svipdag. Ele nos explicará talvez por que... Um sinal de alerta tocou nesse exato momento.

Rymôr se precipitou ao púlpito de comando.

- Danou, Vrânk! A frota inimiga... eles acabam de entrar em ação!

- O Polvo lançou seu ataque - concluiu em voz baixa o capitão. - Podemos dizer que eles souberam escolher a hora certa!

Sim, eles souberam a hora exata, claro, percebeu o capitão. Eles sabem! Eles sabem que não temos mais uma adivinha! Frä Drümar pensava que o Polvo utilizava os serviços de um otchigin. O diabo do xamã deve ter visto em seu fogo maldito que as portas do futuro estavam fechadas para nós! A menos que... o assassinato! O assassinato estava previsto, era um crime encomendado! O Polvo não tinha mais razão para aguardar o ataque!

- O que vamos fazer, Vrânk? - perguntou Rymôr, tirando o capitão de suas reflexões.

- Vamos nos defender e contra-atacar, o que você quer que a gente faça?

Com raiva ele pegou o exocubo que estava ao lado do leme e se dirigiu ao centro do posto de pilotagem.

Os estagiários, ignorados, decidiram se refugiar nas poltronas.

 

A frota do cã avançava rapidamente em direção às naves imperiais.

No posto de pilotagem cheio de luz dourada, o exocubo havia liberado suas peças no centro do campo magnético que fora reativado.

Os estagiários olhavam, boquiabertos, a réplica do campo de batalha montar-se diante deles.

Vrânken ocupou sua posição central.

- Vamos passar ao modo de cibercomando - anunciou ele, com a voz firme, ao microfone que ligava todos os outros capitães.

A armada virtual de Nifhell, salvo algumas naves que voluntariamente ficaram fora de controle, logo brilhou em volta do capitão-em-chefe.

- As primeiras deserções! - constatou Vrânken amargo. - Os outros ainda confiam em mim. Mas sem a ajuda de Frä Drümar, será que isso vai durar?

As duas armadas se enfileiraram no espaço, uma perseguindo a outra.

O capitão do Destruidor de Ossos ainda esperou um instante.

Depois ele começou seu impressionante balé, colocando e deslocando as naves de sua frota que confiavam deliberadamente em sua vontade e na sua genialidade. Ele parecia tudo ver e tudo compreender. Xâvier, Mârk e Morgana estavam subjugados.

Vrânken tentou diversas manobras. Mas, antecipando suas ações, as embarcações do Polvo formavam tentáculos, isolavam e assediavam as naves imperiais. Apesar da defesa eficaz, diversas naves de Nifhell foram destruídas ou arrasadas.

Em poucos minutos, Vrânken perdera numerosas embarcações.

- Pelas Forças! - bradou. - E o otchigin que está com eles. Graças a ele, estarão sempre uma jogada na frente! É o fim, não temos mais nada a fazer a não ser fugir...

Com o rosto tenso, ele começou a direcionar as suas naves para longe.

- Capitão, existe uma maneira de retomarmos a vantagem! - emergiu Morgana de uma intensa reflexão.

Vrânken desaprovou-a com o olhar.

- De que maneira? Frä Drümar está morta e só ela me permitiria lutar de igual para igual com o Polvo!

A jovem não desistiu, e continuou corajosa:

- O futuro não está escrito de forma clara e definitiva. Existe uma grande chance do otchigin se concentrar sobre o seu futuro, capitão.

Vrânken enrugou os olhos:

- Meu futuro? Como assim? Eu não compreendo o que você quer dizer.

- O futuro que o xamã de Muspell vê, na minha opinião, obedece a um só critério: as suas decisões. Você é o capitão-em-chefe da frota imperial: o seu futuro depende apenas das suas decisões!

- Sim, e daí? - interveio Rymôr que não estava entendendo as explicações da jovem estagiária.

- Se outra pessoa manobrar, o xamã corre o risco de ser pego de surpresa.

Vrânken olhou Morgana fixamente. Ela desviou o olhar.

- Eu acho que entendo - concluiu. - Nós não temos nada a perder confiando em você. Eu vou passar o comando para um outro capitão.

- É que... - hesitou Morgana. - Não é assim tão simples!

Vrânken, que continuava manipulando as peças de polimetal para evitar a destruição de sua frota, escutava com paciência.

Ela mergulhou de novo seus grandes olhos nos do capitão. - Se você parar de tomar as decisões - explicou ela -, o futuro deixa de te pertencer. O xamã vai perceber no mesmo instante e vai procurar o novo comando. Isso não mudará nada! Não, é necessário que o senhor continue no comando, mas que os capitães obedeçam a outra pessoa.

- Devagar, menina - disse Rymôr cocando a cabeça. - Não entendi várias coisas. Eu estou de acordo com Vrânk em lhe dar crédito, só acho a sua proposta irrealizável! Como você quer que...

- Eu achei! - disse Vrânken cortando o gigante. - Existe uma solução! Mas - continuou ele olhando para Xâvier -, eu preciso de você.

- De mim? - perguntou assustado o estagiário.

- Sim, de você. Mais precisamente do brilhante jogador de xadrez! Olhe o que vamos fazer: você vai entrar aqui no campo magnético comigo. Enquanto eu movimento as peças secundárias para enganar o otchigin, você manobra a parte principal da frota. Eu sei que você joga isso no seu computador!

O garoto abriu a boca para protestar, mas não conseguiu dizer nada.

Era uma responsabilidade terrível! Ele iria ter em suas mãos a vida de milhares de homens! Era muito, demais. E, além do mais, não era só um joguinho: era o Polvo, o Polvo em pessoa, o estrategista absoluto! Ele não teria nenhuma chance.

- Eu... eu não sei se seria capaz, capitão - gemeu ele.

Vrânken olhou espantado para o rapaz.

- Que conversa é essa? É claro que você é capaz! Não é muito mais difícil do que jogar xadrez. Vamos, prepare-se, Xâvier!

- Não, eu não posso. Impossível - murmurou o garoto balançando a cabeça e se juntando aos amigos.

O capitão se virou para Rymôr.

- Não me olhe assim, Vrânk - desculpou-se o gigante. - Estratégias não são o meu forte, você bem sabe disso.

- Então o quê? - disse irritado Vrânken. - Vamos cruzar os braços, bem agora que temos a solução para os nossos problemas?

O barulho de uma disputa roubou a cena. Perto da poltrona, Mârk censurou violentamente Xâvier.

- Você é mesmo detestável, eu bem sabia! Você é o único aqui capaz de fazer algo por nós e está se recusando! Eu, no seu lugar, não hesitaria nem um segundo! Você é desprezível!

Sua voz tremia de raiva.

- Você não deve fazer isso - disse Rymôr para Mârk, se aproximando dos garotos. - E uma responsabilidade muito grande, que poucos capitães destemidos teriam aceitado...

- Não - disse Xâvier pálido. - Não temos outra solução. Mârk tem razão! Eu devo agir.

Ele se aproximou de Vrânken diante das peças de polimetal e tentou abrir um sorriso.

O capitão não escondeu o seu alívio.

- Se nós sairmos dessa você poderá me chamar de Vrânken, como os meus amigos.

- Certo, capitão. Desde que você me chame de Xâvie...

- Nesse caso... esqueça o que eu disse! Está pronto?

O garoto balançou a cabeça.

O capitão pegou um punhado de naves e espalhou na direita.

Xâvier aproximou os dedos das peças que brilhavam no centro. Ele tremia.

Pegou uma e a deslocou.

Era muito diferente das imagens holográficas que ele estava acostumado a manipular!

Ele mexeu uma embarcação, e outra. Aos poucos foi ficando mais confiante. Ao mesmo tempo, uma estratégia nasceu em sua cabeça.

Ao lado dele, Vrânken se divertia mexendo as naves do campo de batalha.

Rymôr olhou através do domo. A frota do cã estava parada. Parecia sem rumo.

- Acho que está funcionando! - exultou.

Xâvier se movimentava entre as peças suspensas da mesma forma que Vrânken. Estava se sentindo todo-poderoso. A imagem do Polvo se dissolvia. Ele não estava mais jogando contra um grande estrategista, ele brincava, brincava com um jogo terrivelmente excitante!

Ele se agitava no meio do campo de batalha como se sempre tivesse feito aquilo.

Ao fim de uma manobra audaciosa, as embarcações imperiais se alinharam como os dentes de uma mandíbula dentro da linha muspeliana.

O Polvo reagia mal aos movimentos da frota adversa. Agora, muitas naves que erguiam o pássaro vermelho estavam em chamas.

A armada do cã acabou se recompondo. Ela se posicionou em direção ao Planeta Morto, formando um círculo defensivo e começou a responder ao assalto inimigo do império.

Xâvier ficou ofegante.

O Polvo perdera muitas naves.

Vrânken hesitou em abrir mão da vantagem. Mas seu estagiário parecia precisar de repouso.

- Parabéns, rapaz! - felicitou Rymôr apertando a mão do estagiário. - Você realmente fez um ótimo trabalho!

- Não exageremos - interveio Vrânken. - Não foi nada mal, é verdade. Mas você ainda tem muito o que aprender.

Na verdade, ele estava impressionado. Impressionado e com ciúmes. Apesar da confusão imposta ao otchigin, o Polvo poderia ter combatido melhor! Mas os golpes do garoto pareciam ter surtido efeito. Enquanto ele se contentara em lutar em igualdade de condições contra o estrategista do cã, seu estagiário, saído do nada, acabara em vantagem logo no primeiro confronto! Ele estava humilhado. Já Xâvier sentia a maior euforia.

- Obrigado, chefe, obrigado, capitão - disse cheio de orgulho.

Mârk, por sua vez, se aproximou do amigo.

- Nada mal para um filhinho de papai! Desculpe o que eu disse há pouco. Mas você estava me irritando!

Xâvier apertou a mão do jovem com emoção.

- Nós devemos essa vitória a você, Mârk. Se não tivesse me envergonhado, eu talvez não tivesse ousado!

Depois ele murmurou em sua orelha:

- Já que estamos fazendo confidencias... nós bem que poderíamos rever essa história de eu ter que limpar a cabine!

- Renegociar? Por que não! - respondeu Mârk rindo. - Vamos resolver isso numa queda-de-braço!

- Bom, e eu, vocês esqueceram? - interveio Morgana com as mãos na cintura. - A idéia do terceiro estrategista por acaso saiu do cubo mágico?

- Claro que não, não te esquecemos! Como nós poderíamos? - suspiraram os dois garotos se aproximando dela para os cumprimentos.

A chegada dos guardas do império ao posto de comando acabou com o clima de congratulações. Eles escoltavam um homem cujo rosto estampava uma enorme surpresa.

- Ah, Brâg, estávamos esperando a sua chegada com impaciência! - lançou Rymôr, fazendo um sinal para ele se aproximar.

 

Brâg Svipdag caminhou hesitante, seguido de perto pelos guardas.

- O que está acontecendo? - perguntou Gordo triturando o bolso de seu avental. - Esse soldados vieram me procurar como se estivessem atrás de um ladrão...

- Fique tranqüilo, senhor cozinheiro - interveio Vrânken -, nós temos apenas umas coisas para esclarecer juntos.

O olhar de Brâg Svipdag demonstrava uma certa inquietude.

- Estou à sua disposição, capitão - disse de forma afável.

- Você deve saber que a nossa Frä Drümar foi morta no Templo, e que normalmente ninguém tem acesso a essa parte da nave.

- Sim, eu estou sabendo disso. Pobre mulher! Tão discreta! Comia muito pouco...

- Pois - continuou Vrânken, fazendo sinal para Mârk se aproximar, e em seguida colocou as mãos em seu ombro para protegê-lo - o seu estagiário viu o senhor rondando o Templo e fazendo um molde da fechadura. Certamente, para fazer uma chave.

O cozinheiro olhou fixo para o garoto, que abaixou os olhos. Esse pequeno enfrentamento foi percebido por Vrânken.

- Por que ele lhe contou isso? - queixou-se o homem. - Eu gosto muito desse garoto! Eu fui gentil com ele! Eu não entendo...

Brâg Svipdag tinha o ar sincero. O caso corria o risco de se eternizar e de se virar contra o garoto. No entanto, Vrânken sentia que Mârk falava a verdade, e que o cozinheiro escondia algo.

Ele percebeu, então, que Brâg não parava de mexer no bolso de seu avental. Havia algo em seu interior. Um objeto plano e pequeno!

Ele tentou uma jogada de pôquer.

- Eu suponho, senhor Svipdag, que você não verá nenhum inconveniente se nós revistarmos a sua cabine. O assassino seguramente não se livrou de uma chave tão preciosa! Se não acharmos nada, eu apresentarei as minhas desculpas e você poderá retornar ao seu trabalho.

E fez um gesto aos guardas.

O cozinheiro pulou bruscamente. Ao mesmo tempo, duas bilhas de metal apareceram entre os seus dedos. Com uma habilidade diabólica, ele as lançou na direção de Vrânken.

- Vá reencontrar a sua feiticeira na morte, Cão-da-Lua! - gritou.

Ao longo da trajetória as duas bilhas mudaram de forma e se transformaram em duas grandes vespas.

- Ciberassassinas! - berrou Rymôr.

O capitão gritou e se jogou no chão, levando junto Mârk.

Rymôr rugiu desesperado.

- Nãããão!

Ele não conseguia acreditar. Vrânken que sobrevivera a tantas batalhas, Vrânken que os piratas dos Rochedos e os guerreiros de Muspell pronunciavam o nome com arrepios na voz, acabara de morrer bestamente, em sua própria nave, por um de seus homens! Era impossível...

Com o capitão estendido no solo, Brâg Svipdag jogava duas outras ciberassassinas nos guardas. A escolta recuou precipitadamente. Golpes de fogo foram atirados em sua direção, mas sem nenhum sucesso.

Rymôr respirava forte, furioso. Era necessário fazer algo antes que o cozinheiro matasse todo mundo, se apoderasse do exocubo ou sabotasse o posto de pilotagem! Ele puxou uma enorme pistola que trazia na cintura e apontou em sua direção, blasfemando.

Mas o assassino, com uma habilidade rara para os homens corpulentos, se jogou na direção dos dois estagiários paralisados de terror. Ele tentou alcançar Morgana, no entanto, Xâvier, sem pensar, impediu. Assustada, a jovem caiu no chão. Brâg Svipdag, então, colocou sua faca na garganta do rapaz.

- Largue sua arma, manco! - gritou. - Vocês também, guardas!

Brâg Svipdag fez pressão com a faca no pescoço de Xâvier para deixar claro que não estava brincando.

- Faça o que eu digo ou eu mato ele!

Bumposh se escondeu na barba espessa de seu dono. Rymôr não hesitou mais. Largou sua pistola. Os soldados fizeram o mesmo.

- E agora? - zombou Rymôr cruzando os braços com um ar desafiador.

- Agora? - tirou onda Brâg Svipdag. - Eu não tenho mais nada para fazer aqui. Sem a feiticeira e sem o seu capitão, vocês não têm nenhuma chance contra os homens do cã! Como previsto, eu vou pegar uma das cápsulas de salvamento do Destruidor de Ossos e partir. Esse garoto vai comigo, caso vocês resolvam fazer alguma coisa...

Os dados foram lançados. Xâvier estava branco de medo.

Foi nesse momento que um gemido se fez escutar atrás de Rymôr. O corpo do capitão Xaintrailles mexeu ligeiramente. Ele ainda estava vivo! Brâg Svipdag urrou de raiva.

Sem largar seu refém, ele pegou com a mão livre uma das terríveis bilhas assassinas e se preparou para jogá-la sobre Vrânken.

O gigante percebeu as intenções de Brâg Svipdag e reagiu rápido. Ele não sobrevivera por acaso a duas guerras! Sua intuição, seus reflexos e sua força o haviam salvado, ele e seus homens, em diversas ocasiões. Ao tentar arremessar a ciberassassina, o cozinheiro acabou oferecendo um ângulo de ataque a Rymôr. Não havia a menor possibilidade de dar uma segunda chance ao traidor...

O gigante se jogou no chão e rolou para o lado. Sua mão acionou um mecanismo em sua perna artificial, que ele apontou na direção do assassino. O salto escamoteava o cano de um fuzil. Ele abriu fogo.

Brâg Svipdag foi atingido no ventre por uma bola que o lançou longe. Xâvier titubeou, bruscamente solto por seu agressor. Ele estava são e salvo.

- Busquem o médico! - gritou Rymôr para os guardas e se precipitou sobre Vrânken.

- Tudo bem, tudo bem, eu estou bem...

Vrânken se recompôs, ainda tossindo. Uma ciberassassina havia tocado seu ombro esquerdo e feito um grande estrago.

- Foi o garoto que ficou ferido... - anunciou fazendo uma careta.

As costas de Mârk, de fato, estavam manchadas de um marrom que não parava de crescer.

- Ele quis me proteger... - começou a explicar antes de tossir e de cuspir um pouco de sangue.

Vrânken não se enganou. Logo que ele viu as assassinas caírem sobre o capitão, Mârk sem pensar muito se jogou sobre sua trajetória...

O médico do Destruidor de Ossos chegou rapidamente. Ele requisitara alguns marinheiros para carregar as maças. Vrânken se recusou a deitar.

Morgana, atormentada por sua queda, se levantou, ajudada por Xâvier que lentamente se acalmava. Em dúvida do que acontecera, os dois foram até a maca onde Mârk estava estendido.

Ao ver o amigo inconsciente, metade do corpo coberto por um lençol, Morgana sentiu os olhos embaçarem.

- Agüente firme - murmurou a menina no ouvido dele. - Nós estamos aqui, Xâvier e eu. Não te abandonaremos...

- O Gordo está morto - gritou um dos guardas inclinando-se sobre o corpo do cozinheiro.

- Ele levou seus segredos junto com ele - lamentou Rymôr acariciando o ciber-rato ainda tonto pelos movimentos bruscos de seu dono.

- Você não teve como não usar o golpe da pata louca, hein?

- Fazemos o que sabemos fazer, Vrânk, é sempre assim. Os dois homens forçaram um sorriso. Eles sabiam que haviam acabado de passar muito perto de uma catástrofe.

- Conversamos daqui a pouco, concorda? - disse Vrânken. - Eu vou voltar o mais rápido possível. Apenas o tempo de curar essa feridinha e saber qual o estado do garoto!

Segurando seu ombro ferido, ele seguiu o médico até a enfermaria.

Caminhando na frente, Morgana e Xâvier escoltavam o amigo desacordado.

Os corpos de Brâg Svipdag e dos dois guardas mortos pelas ciberassassinas foram levados para a câmara de tecno-conservação, onde estava o de Frä Drümar. O posto de pilotagem se esvaziou pouco a pouco.

Rymôr liberou os últimos soldados e marinheiros, chamados para limpar o local. Ele precisava ficar sozinho.

Ficara tremendamente aliviado ao saber que Vrânken estava vivo. Mas também sabia que fora sua culpa quase perder seu chefe. Também era sua culpa a grave situação em que se encontrava Mârk. A tripulação, toda a tripulação, estava sob sua responsabilidade. Do menor estagiário aos oficiais de bordo... Svipdag traidor! Quem poderia desconfiar? É verdade, ele havia retomado o controle da situação, mas levara muito tempo.

Sob as luzes das estrelas, face à presença ameaçadora da frota inimiga, o gigante revolveu suas idéias sombrias esperando o retorno de Vrânken.

 

Vrânken apareceu no posto de comando, seu ombro ferido estava coberto por uma tala regenerada, dando-lhe um ar de ciborg, uma dessas criaturas meio homem, meio máquina, que o império desenvolvera antes das pressões éticas da população de Nifhell.

- Se você ousar me zoar - advertiu Vrânken -, eu te mando em cana!

- Por que eu te gozaria? O que um manco pode falar de um maneta?

A piada fez com que o capitão risse triste.

- Como está o garoto? - indagou Rymôr em tom mais grave.

- Nada brilhante, mas não corre risco de vida. O médico disse que a recuperação vai ser demorada.

- Pobre garoto - concluiu o gigante balançando a cabeça. - Se todos os moleques de Nifhell fossem como ele, não seria apenas Drasill que nós dominaríamos, mas Eridan inteiro!

Vrânken olhou para fora do domo de vidro, para o nanquim do espaço, onde brilhavam algumas estrelas e naves com o pássaro vermelho.

- Que faz a frota do cã?

- Nada. Parece que estão em compasso de espera.

- Se eles esperam pelas notícias de Brâg Svipdag, a espera será longa...

O capitão deixou a frase incompleta. Seu espírito fora tomado por uma idéia. Ele se virou para Rymôr.

- Claro, é evidente! Meu assassinato estava programado! Talvez Svipdag não esperasse ter que agir tão rápido, mas ele acabaria por fazê-lo! O traidor tinha a missão de acabar com Frä Drümar e com o capitão, os olhos e a mente da expedição. Agora, o Polvo espera. Ele espera o sinal verde do cozinheiro para passar ao ataque!

- Então a espera será em vão!

- Mas nós podemos fazer isso em seu lugar. E vamos ficar em vantagem! Imagine, meu velho: o Polvo acredita que eu estou morto, lança um assalto, todo confiante, pensando que as naves do império estão desorganizadas...

- ...e terão a maior surpresa da vida! - sorriu Rymôr. - Boa idéia, isso me agrada, Vrânk!

- Mas temos um problema - prosseguiu o capitão pensativo. - Que sinal o traidor daria aos seus superiores para avisar que a hora chegara? Os dois homens refletiram.

- Já sei! - exclamou Rymôr socando uma das mãos com a outra. - A cápsula de salvamento! Svipdag pretendia fugir em uma delas com o filho de Augentyr refém! "Como previsto" - concluiu.

- Perfeito! Basta lançarmos uma cápsula vazia no momento desejado. E por que não cheia de explosivos, caso seus amigos queiram resgatá-lo? Vamos localizar o Polvo, organizar uma divertida armadilha e concentrar nosso ataque sobre a nave-almirante. Sem seu chefe, a frota do cã ficará à nossa mercê!

- Seu plano é ambicioso, é bem verdade, mas irrealizável - suspirou Rymôr. - Vrânk, como você quer localizar o Polvo sem uma Frä Drümar para nos orientar?

Vrânken abriu um largo sorriso e deu um tapinha nas costas de seu companheiro.

- Mas, meu velho Rymôr, nós temos uma Frä Daüda a bordo!

O gigante ficou com ar interrogativo.

- Você está falando da garota? Ela é apenas uma noviça, uma estudante! Você está maluco, Vrânk, a experiência é fundamental para se ver o futuro. Não é um jogo! Mesmo a Frä Drümar...

- Talvez ela só seja uma garotinha, mas foi ela que nos salvou há pouco, lembre-se. Vá buscar a noviça. Eu quero falar com ela.

Rymôr contemplou por um tempo seu capitão, pensou em falar algo e acabou desistindo.

Mârk repousava em uma cama da enfermaria.

Ele dormia sedado por uma droga muito forte ministrada pelos médicos, depois de sua pequena cirurgia. A ciberassassina havia perfurado um pulmão e destruído a omoplata.

Uma lâmpada regeneradora projetava sobre as feridas uma estranha luz branca. Sentados ao seu lado, Morgana e Xâvier velavam o sono do amigo.

- Eu não consigo imaginar... que ele poderia ter morrido! - confessou a menina com a boca trêmula. - Assim que ele caiu, eu realmente pensei que...

- Acabou, Morgana, ele está a salvo agora - consolou Xâvier, pegando sua mão.

Ela devolveu um sorriso demonstrando pouca convicção.

- Eu sou boa na hora de me gabar diante de uma mesa de pingue-pongue, não é mesmo? Mas no primeiro problema sério eu entro em pânico, como qualquer idiota!

- Não diga isso... E normal ficar abalada! Você acha que eu também não entrei em pânico, com um maluco apontando a faca na minha garganta? Não, ao contrário, eu acho que nos saímos muito bem. Todos.

Eles se calaram. Os bips eletrônicos do aparelho médico tomaram conta da enfermaria.

Morgana se recompôs e recobriu Mârk com o lençol que caíra de seu corpo.

- Você tem razão, Xâve. Nos saímos muito bem. Afinal, o capitão Vrânken poderia ter morrido. Como o Mârk. E como você, também.

Xâvier enrugou os olhos.

- Como eu?

- O que você acha? - respondeu ela balançando os ombros. - Que Svipdag teria te adotado, quando vocês fugissem na cápsula? De qualquer maneira... - retomou ela abaixando os olhos - eu queria te agradecer.

- É mesmo? E... por quê?

Diante de tanta ingenuidade, Morgana se perguntou se um menino sem garota valia mais do que um capitão sem a sua adivinha. Ela suspirou e explicou:

- Por ter me protegido. Se você não tivesse ficado na frente do Svipdag, eu é que teria sido feita de refém...

Nesse instante, a porta da enfermaria se abriu, empurrada por uma potente mão. Eles se afastaram bruscamente um do outro como se tivessem sido pegos fazendo algo errado.

- Morgana? - chamou Rymôr com sua voz grave. - O capitão quer falar com você. E você, meu garoto, vai ficar ou vai para a sua cabine, nada de ficar perambulando pela nave. Entendeu?

Xâvier balançou a cabeça. Ele deu uma última olhada para Morgana, que já caminhava ao lado do gigante.

Em seu peito, sem saber o motivo, seu coração de jovem estagiário batia como um tambor.

 

- Aproxime-se, Morgana, não tenha medo.

Morgana deu alguns passos na direção de Vrânken, que estava no posto de pilotagem.

Rymôr se debruçou sobre a mesa dos mapas, pensativo.

- O senhor mandou me chamar, capitão?

Vrânken percebeu que ela mantinha os olhos fixos sobre a tala de seu braço ferido.

- Graças a esta estranha atadura, meu ombro estará curado em menos de duas semanas - explicou. - E outra vantagem: isso me impede de sentir dor!

A menina relaxou. Vrânken procurou seu olhar. Quando o encontrou, ele sentiu o mesmo sentimento de surpresa de quando ela explicou o futuro. Seus olhos eram terrivelmente profundos. Eram dois poços. Dois poços cheios de águas límpidas, da mesma cor do céu.

"Impressionante!", pensou. "É o mesmo olhar de Frä Drümar!"

A pureza e a maturidade que ele percebia em Morgana confortaram sua decisão.

- Morgana, eu tenho um trabalho para você. Poderia dizer que o império precisa de você, eu não estaria mentindo. Poderia falar de Frä Drümar para sensibilizá-la! Mas é um capitão sem recursos que vai pedir simplesmente: ajude-me.

Os cílios da noviça não paravam. Ela respondeu com um tom suave:

- Eu estou às suas ordens, capitão.

- Isso talvez seja difícil para você. Assim, eu vou compreender se não aceitar.

Morgana ficou em silêncio.

O capitão continuou olhando nos olhos da garota.

- Eu gostaria que você retornasse ao Templo, levando o tecnofone de Frä Drümar, e interrogasse as Forças. Quero que descubra onde se esconde o Polvo entre as diversas naves do cã.

Morgana se obrigou a respirar com calma. Logo que ela voltou a abrir a boca, sua voz saiu firme:

- Eu farei. Não vou prometer nada: sou apenas uma noviça, não uma adivinha. Mas vou tentar.

- Manterei um guarda na porta do Templo - disse Vrânken para tranqüilizar a menina.

Ela abriu um sorriso. Vrânken fez um sinal para um marinheiro que assistira a toda a conversa. Ele estava armado com um fuzil e não perguntou nada.

Os dois saíram juntos.

- Ela é genial, essa menina - reconheceu Rymôr juntando-se ao capitão.

- Às vezes eu tenho o sentimento doloroso, meu velho amigo, de ser um garoto cercado de adultos.

Ele concordou com a cabeça e retomou:

- A cápsula-armadilha está pronta? Nós a lançaremos assim que Morgana detectar o Polvo. Ela vai dar conta, não tenho dúvidas! Mande Xâvier subir: nós vamos precisar dele. Seria muito tolo ser traído pelo meu próprio futuro...

Morgana fechou a porta e deu uma volta na chave. Em seguida se virou.

Fora ela que descobrira o corpo da adivinha. Ela dera o alarme. Depois disso ela evitava passar perto do Templo.

Agora era diferente.

Nesse momento ela deveria entrar, e mais que isso, se ajoelhar em frente à fonte, no mesmo local onde antes Frä Drümar estava caída.

Na seqüência, ela deveria remexer as águas sombrias com reflexos metálicos em busca de imagens imprecisas, sem saber o que iria descobrir.

Ela reprimiu um longo arrepio.

Ela deu alguns passos na direção da árvore de polividro.

O local fora lavado. Nada mais indicava que um drama terrível acontecera ali, algumas horas antes.

- Pelas folhas da árvore sagrada! - murmurou Morgana. - Eu nunca poderia. É muito difícil...

Procurou em si mesma a força para manter a promessa que ela havia feito ao capitão.

Em vão.

Então, seus pensamentos se voltaram para Vrânken, para o olhar do capitão. Seu coração começou a bater mais rápido. Da mesma forma que quando ela havia surpreendido Mârk enquanto a olhava dançando, ou quando Xâvier tocara sua mão na enfermaria. Não, diferentemente! Ela não sabia mais. Se ainda era uma noviça em adivinhação, era ainda mais em relação aos sentimentos! Tudo embaralhava.

Ele respirou profundo. O que ela sabia é que não desejava decepcionar Vrânken.

A imagem do rosto de Frä Drümar surgiu em sua cabeça.

Tiveram pouquíssimo tempo para aprender a se conhecer, e se apreciar! No entanto, o pouco tempo fora suficiente. A adivinha falara com ela como quem fala com um adulto, ensinara e revelara coisas como ninguém antes fizera. Além disso... Morgana havia adivinhado o sentimento que sua professora nutria pelo capitão. Ela se sentiu ainda mais próxima de Frä Drümar.

Então para ela, por sua memória, ela deveria cumprir seus deveres de Frä Daüda. Não romper a ligação que unem os capitães e as adivinhas. Continuar provando ao império que ele necessitava das Frä Daüda.

Ela se ajoelhou ao pé da árvore e mergulhou um olhar decidido na fonte.

- Silêncio! - gritou Vrânken para acalmar a agitação que tomara conta do posto de comando, momentos antes de entrarem em ação. - Silêncio!

Os homens que estavam sob o domo de vidro viraram para o capitão e obedeceram. Ele havia fechado os olhos e protegia com a mão o fone de seu tecnofone.

- Tudo pronto! - anunciou ele. - Morgana acha que encontrou o Polvo!

- Ela acha ou está certa? - questionou inquieto Rymôr.

- Ela acha que está certa, eu não posso dizer mais nada.

- Não é maravilhoso! - gritou o gigante.

- É tudo o que temos - respondeu duro Vrânken. - Escute, meu velho, eu sou o capitão e estou dizendo que nós vamos seguir as intuições de Morgana.

- Tudo bem, Vrânk, tudo bem! - se rendeu Rymôr. - Eu não diria que sinto a mesma confiança cega que você sente pela menina, mas nós não temos um plano melhor. E depois - ele trovejou -, é um bom golpe de pôquer, e eu adoro pôquer!

- Permita-me interromper a sua apaixonante conversa... -, interveio Xâvier que estava ao lado do capitão. - Podemos saber em que nave se esconde o Polvo?

- Diga, então, moleque - rugiu Rymôr. - Um pouco de respeito! Você quer partir na cápsula com os explosivos?

- Calma! Xâvier tem razão - reconheceu Vrânken. - Está na hora de agir. Tenente?

O chefe dos guardas do império se aproximou.

- Capitão?

- Seus homens estão prontos?

- Sim, capitão.

- Perfeito.

Ele ligou seu microfone que permitia se comunicar com os demais capitães da frota imperial.

- Senhores, desde a nossa última comunicação muita coisa aconteceu, os detalhes serão relatados mais tarde. Saibam que nós vamos logo entrar em ação, e que esta ação será decisiva. Eu peço mais uma vez que obedeçam às ordens do Destruidor de Ossos, mesmo que não sejam diretamente dadas por mim! É importante! Estejam prontos.

Ele cortou a comunicação.

- Xâvier, você tem à sua disposição uma frota inteira para se divertir, o Destruidor de Ossos pata se aproximar do Polvo e uma unidade de elite pronta para ação. É a sua vez de jogar!

- Capitão - respondeu ansioso o garoto -, se o senhor não me disser onde ele se encontra, eu terei muitas dificuldades!

- Claro! Eu sou um idiota! - disse Vrânken brincando. Ele se aproximou do garoto e cochichou algo em seu ouvido. Xâvier ficou surpreso. Mas logo uma estratégia apareceu em sua cabeça. Assim que suas idéias ficaram claras, ele se instalou em frente ao leme e passeou seu olhar em meio às estrelas.

- Tudo pronto - anunciou -, podemos ir. Soltem a cápsula!

- Você não prefere primeiro ligar o campo magnético e colocar as peças do exocubo no lugar? - se admirou Vrânken.

- Não precisa - respondeu Xâvier sem hesitar.

A pequena nave de salvamento foi projetada no espaço em direção à frota do cã. Rymôr não se enganara: como se esperassem por esse sinal, a armada de Muspell se pôs em movimento.

- Senhores - ordenou Xâvier em seu microfone geral -, as instruções são simples: nada de cibercomando dessa vez. Afrontem diretamente as naves do cã baseados em suas próprias iniciativas! Precisamos simplesmente de algumas horas de tranqüilidade. Nós contamos com os senhores...

Ele desligou o tecnofone e olhou para Rymôr.

- Meu velho Rymôr - disse Xâvier imitando o capitão -, nós vamos para o Planeta Morto, é lá que se encontra desde o início da batalha o Polvo e seu comando maior!

 

A frota do cã, muito confiante, atacou as embarcações imperiais. Seguindo as instruções de Xâvier, elas contra-atacaram na maior desordem. A cápsula solta pelo Destruidor de Ossos não demorou muito e foi resgatada pelos homens de Muspell, e uma luz intensa e rápida de uma explosão invadiu o espaço.

- Deu certo - comentou Vrânken enquanto sua nave se dirigia em direção ao Planeta Morto. - Eles encontraram nosso presentinho!

De repente, uma nave inimiga se separou das demais e se lançou sobre eles.

- Estamos sendo perseguidos - anunciou calmamente Rymôr.

Era uma embarcação de grande porte, maciça e robusta. Ela lançou imediatamente uma primeira salva de obuses que se destruíram ao entrar em contato com a estranha matéria que recobria a nave. O quebra-Rochedos rangeu sob o choque. Vrânken rebateu o ataque.

- Então essa é a brincadeira? Ótimo!

O Destruidor de Ossos era bem mais performático que seu agressor. Sob o comando hábil do capitão, dois outros tiros foram evitados e ainda se posicionaram sobre a pesada embarcação. Xâvier não perdeu nem um detalhe. Com um misto de inveja e admiração, observava Vrânken, que manobrava sua nave com seu braço bom.

- Rymôr, solte as exobombas! - ordenou o capitão. O gigante teclou nos comandos. Uma porta se abriu no ventre da nave e liberou uma dezena de ogivas que flutuaram no vazio antes de convergir na direção da embarcação de guerra. Vrânken fez o motor fotônico falar alto e deu vários giros no leme. O Destruidor de Ossos mergulhou. Ao mesmo tempo, as exobombas explodiram, destruindo o casco de aço da embarcação de Muspell.

- É preciso mais de uma nave para pegar o Cão-da-Lua - rosnou Vrânken retomando o curso em direção ao Planeta Morto.

Logo sua superfície desértica apareceu para os ocupantes do Destruidor de Ossos. No céu negro, sobre eles, traços de luz indicavam a continuação dos combates. A nave mergulhava com toda a potência em direção à base construída pelo império.

- E se o Polvo e sua tripulação estiverem refugiados no complexo subterrâneo? - se inquietou o gigante olhando para Vrânken.

- Eu não acredito - respondeu. - As edificações da superfície oferecem a eles uma vista interessante sobre o campo de batalha.

- Ali! Olhem! - gritou Xâvier.

Ancorada ao pé de um enorme rochedo, uma nave de Muspell, ornada no flanco com o pássaro vermelho do cã. Na ponta de uma antena tremulava uma bandeira do Polvo.

- Ganhei! - gritou Rymôr.

- Ninguém a bordo. - indicou o marinheiro consultando os tecnoescaners.

- Então, velho cético - disse Vrânken com uma voz alegre -, o que você acha agora das previsões da nossa pequena noviça?

- Bom, bom, tudo bem - resmungou o gigante. - Agora, se você deixar eu continuar o meu trabalho...

Rymôr entrou em contato com os canhoneiros da tripulação.

- Rapazes, eu quero ver grandes buracos na nave que se esconde sob os nossos pés!

Os canhões do Destruidor de Ossos logo cuspiram as bolas de polimetal, que transformaram a nave do Polvo em uma carcaça enfumaçada.

- É imprudente parar seu veículo fora do estacionamento! - disse Rymôr gargalhando.

Depois o Destruidor de Ossos sobrevoou lentamente a cidadezinha que abrigava a guarnição imperial.

Alguns traços recentes de destruição confirmavam que o Planeta Morto havia sido brutalmente atacado.

Xâvier se preocupou. Uma outra nave da frota do cã não haveria de atacá-los? Olhou mais uma vez nas telas dos radares para ter certeza: nenhuma embarcação estava sendo assinalada nas proximidades. Os capitães do império estavam se virando bem!

O Destruidor de Ossos recebeu um tiro vindo da torre que abrigara antes o comando.

- Os tecnoescaners confirmam a presença de seres vivos lá dentro - anunciou o marinheiro.

- Eles estão aqui! - disse Vrânken esfregando as mãos. - E não estão em grande número! Eu estou certo que o Polvo não previu que nós viríamos desalojá-los de sua cova! Eu coloco minha mão no fogo como eles só dispõem de uma pequena guarnição... Isso vai ser um jogo de crianças! Tenente?

- Sim, capitão?

- Vamos tomar a torre. Eu quero prisioneiros, apenas prisioneiros. Está claro?

- Perfeitamente claro, capitão.

O oficial, apertado em sua armadura de polimetal leve e equipado de um capacete com oxigênio, juntou-se rapidamente aos seus homens nas entranhas da nave.

- Xâvier, você já viu a nossa guarda em ação?

- E... Sim, capitão, na tela do meu computador...

- Não fale besteira e olhe. É impressionante.

Uns vinte torpedos grandes se desprenderam dos flancos do Destruidor de Ossos, que estava parado sobre a torre. Eles percutiram no alvo em diferentes pontos.

- Cada exotorpedo pode conter até três soldados - explicou Vrânken ao estagiário. - A ponta do projétil é feita para perfurar qualquer tipo de parede. Na seqüência, eles se abrem e, então, dominamos os guardas. É isso, só nos resta esperar!

Sob a direção de Rymôr e o olhar atento dos canhoneiros, o Destruidor de Ossos se postou e inspecionou à sua volta. Mas nada se mexia, e os tecnoescaners confirmavam a ausência de vida fora da torre.

O rádio que garantia a ligação do chefe com o comando chiou:

- Capitão! A zona está sob controle e totalmente segura. Também tenho uma boa notícia para anunciar: nós temos o Polvo!

- Eles têm o Polvo! - perdeu o fôlego Vrânken. - Parabéns, tenente! Prepare a nossa abordagem.

Ele se agitou.

Foi um grande dia para o império! Eles contiveram a estratégia do cã de Muspell! A campanha de liberação do Planeta Morto ia se transformando em um formidável sucesso.

- O que faremos, Vrânk? Já podemos espalhar a informação?

- Ainda não. Vamos esperar até que tenhamos certeza. O Destruidor de Ossos foi amarrado na ponte flutuante da torre. Os guardas ligaram com um túnel de polividro o dorso da nave com o prédio. Vrânken foi o primeiro a entrar com seu passo firme e rápido. Ele estava impaciente...

 

Os guardas haviam reunido os prisioneiros em um vasto hall do andar térreo. Móveis revirados e destroços de paredes atestavam que a guarnição do Planeta Morto havia defendido a base com galhardia.

Como Vrânken havia previsto, apenas um punhado de guerreiros de Muspell estava presente na torre. Vencidos e amarrados, eles olhavam ora com raiva ora com orgulho para os oficiais do império.

Em um canto, homens e mulheres vestidos com uma simples túnica de brim se apertavam uns contra os outros com medo. O canado amava dominar os planetas, e era freqüente encontrar servos até mesmo nas naves de guerra. Vrânken torceu o nariz desconfiado. Sua primeira decisão seria de mandar de volta para casa aqueles pobres coitados.

Por fim, no centro da sala, cercado por cinco oficiais, se encontrava um homem de uns cinqüenta anos.

Ele trazia em seu uniforme um galão de general do cã. Alto, magro, com um rosto duro, mas jovial, ele recebeu Vrânken com um sorriso cheio de arrogância.

Ao seu lado, um velho usando um sobretudo sujo e surrado se apoiava em um cajado deformado.

- O Polvo... - murmurou o capitão ao se aproximar. - E o otchigin, seu adivinho!

Ele pousou seus olhos brilhantes no olhar sombrio do estrategista de Muspell.

- Eu estou contente de finalmente encontrá-lo, general. Eu diria que a sorte mudou de lado!

O homem se limitou a mover o queixo em direção ao ombro ferido de Vrânken. O velho ao seu lado cuspiu no chão e zombou.

- Sim, general, sim, feiticeiro, seu homem quase conseguiu me matar. E vocês também quase conseguiram me vencer. Mas quase não é o suficiente... Tenham certeza, ainda teremos a oportunidade de discutir: as prisões dispõem de um parlatório, em Nifhell! Tenente?

- Sim, capitão!

Vrânken caminhou na direção do oficial que comandara o assalto à torre, e apertou-lhe a mão.

- Parabéns pela operação perfeitamente coordenada! Alguma perda?

- Não, capitão. Mas nós encontramos outros membros da guarnição imperial presos no subsolo da torre. Alguns estão feridos.

- Tragam o médico da nave. E comecem a inspecionar as nossas instalações: os homens do cã podem ter deixado algumas surpresas desagradáveis! Rymôr?

- Sim, Vrânk?

- Comunique a notícia: o Polvo está em nossas mãos! Tente obter o fim dos combates. E, assim que possível, peça a uma das nossas naves mais confortáveis para nos vir fazer companhia. A Splendida, por exemplo. Temos aqui pobres pessoas maltratadas pelo canado e corajosos soldados do império que merecem descansar...

Xâvier sentiu um vivo prazer ao ver Morgana reaparecer no posto de pilotagem. Ele correu em sua direção e foi recebido com um sorriso.

- Você não está muito cansada?

- Estou bem, obrigada.

- Você quer sentar?

- Não, prefiro caminhar.

O garoto olhou de forma interrogativa para o marinheiro que ficou sob o domo de vidro. Esse respondeu com um sinal de cabeça afirmativo.

- Venha, Morgana, eu te ofereço um passeio!

Xâvier pegou a menina pela mão e tomou a direção de uma das escadas.

Alguns instantes mais tarde, eles saíram do Destruidor de Ossos e atravessaram o túnel translúcido.

Os guardas os detiveram na entrada do hall onde se encontravam agrupados os prisioneiros. Eles foram impedidos de continuar.

Desapontados, mas terrivelmente curiosos, decidiram ficar no corredor. Morgana olhava para o céu, através de uma das janelas.

- Eu vi na fonte imagens terríveis - murmurou ela. - Naves destruídas, homens que urravam.

- Acabou - disse Xâvier -, está tudo terminado. Graças a você, nós capturamos o Polvo, e a frota do cã se rendeu...

O anúncio da captura do Polvo feita pelo Destruidor de Ossos teve um efeito imediato na frota de Muspell. Uma das naves desfraldou uma bandeira branca. As embarcações que haviam sobrevivido ao impiedoso ataque ficaram perfiladas atrás dele.

Em frente, o império também acusava perdas. Elas foram menos pesadas, mas uma parte da frota Comtal ardera em chamas ao longo da batalha.

Os combates haviam sido violentos. Poucos eram os que tiveram a sorte de sair de suas naves nas cápsulas de salvamento...

- E agora? - perguntou Morgana se virando para o amigo.

- Agora, nós deixaremos alguns guardas no Planeta Morto e vamos voltar para

Nifhell com os prisioneiros.

- E todos irão voltar no Destruidor de Ossos}

- Não. Somente o Polvo, o feiticeiro que o acompanha e o comandante da guarnição ao momento do ataque ao canado. Os outros irão em uma nave maior.

Atendendo ao pedido de Vrânken, enquanto a armada imperial vasculhava, uma a uma, as naves de Muspell, uma enorme embarcação apontava nos céus do Planeta Morto.

- O feiticeiro?! - exclamou Morgana. - Você está dizendo que um otchigin vai embarcar com a gente? Mas isso é genial!

- E mesmo?

- Claro! Os otchigins lêem o futuro no fogo! Pelas folhas da árvore sagrada, eu gostaria de ver como ele faz!

- Eu não estou entendendo nada do que você está dizendo.

- Eu te explicarei - disse ela.

- É o que eu espero - respondeu envergonhado.

- Nervosinho! - continuou ela, zombando. - Nada acontece aqui que você não saiba? Você é o novo capitão?

- Eu, não - disse Xâvier -, mas quando a gente fica na sala de pilotagem, acaba-se escutando tudo...

- Silêncio! - exclamou ela ao se virar. - Acho que está acontecendo algo!

 

Foi uma gritaria tão grande no corredor que chamou a atenção de Morgana.

O capitão da Splendida, a orgulhosa nave de aparato que acabara de chegar, se aproximava.

O homem era alto, gordo, e se vestia ricamente como todo nobre do império. Sua entrada no hall foi barulhenta. Estava acompanhado de uma dúzia de cortesãos que se imprensavam em sua volta tagarelando.

- Então, onde está esse Polvo, vamos torcer o seu pescoço? - declamou com uma voz alta e aguda.

- Capitão de Vergueil, eu esperava pelo senhor - disse Vrânken andando em sua direção.

- Ah! Capitão de Xaintrailles! Parabéns! Que estrategista o senhor é! Rápido! Aplausos!

Os cortesãos logo passaram a aplaudir e a cacarejar.

Rymôr levou os olhos ao céu. Morgana e Xâvier ficaram estupefatos.

- Meu querido Xaintrailles - retomou o capitão de Vergueil -, estou muito honrado de ter sido escolhido para receber, em nome da frota imperial, os seus agradecimentos e as suas felicitações pelas glórias que acabamos de ter lá no alto, no espaço infinito, e...

Vrânken o interrompeu com um gesto.

- O senhor está equivocado, capitão. Eu mandei chamá-lo porque a sua nave é uma das poucas que se encontra intacta. Os seus cibercomandos, sem nenhuma dúvida, deviam estar com algum problema!

- Quer dizer... sim, nós tivemos um problema técnico que... - precipitou Vergueil.

- O senhor levará em sua nave os guerreiros prisioneiros, assim como os valentes soldados da guarnição do Planeta Morto que lutaram pelo império até as últimas forças.

O capitão de Vergueil pareceu indignado.

- O senhor também receberá com muito respeito e com todo conforto, eu sei que posso confiar no senhor nesse aspecto, os homens e mulheres usados como servos na nave do Polvo. Alguma pergunta?

- Sim, Senhor de Xaintrailles! Por que...?

- O senhor pode ir, capitão. Vou dar início ao embarque dos seus hóspedes.

O tom seco de Vrânken dissuadiu seu interlocutor a abrir novamente a boca. Vergueil girou sobre os calcanhares, sob sorrisos maliciosos dos guardas.

Rymôr lhe fez um gesto provocador. O nobre balançou os ombros e desapareceu nos corredores.

Morgana e Xâvier gargalharam.

- Você me garante, Vrânk, ele é o único de sua espécie, hein?

- Lamento que não, meu velho Rymôr. Mas, mesmo assim, ainda restam muitos homens de valor em Nifhell, felizmente. Quanto a esse Vergueil... é o pior! Bom, vamos embarcar essa gente e decolar. Planeta Morto não é o local onde eu sonho passar minhas férias.

Os guardas estavam prontos para escoltar os guerreiros e os oficiais do cã até a Splendida. Os trinta soldados da guarnição imperial libertada acompanhavam os passos.

- Comandante Vobranx? Brînx Vobranx?

Um dos homens se virou. Ele parecia exausto. Seu bigode e uma parte de seu rosto estavam sujos de sangue. Ele trazia uma bandagem no crânio.

- Capitão?

- Eu adoraria que o senhor me desse a honra de me acompanhar em minha própria nave.

O capitão Vobranx balançou a cabeça.

- É muito amável de sua parte, senhor. Mas eu não abandonaria os meus homens agora.

Ao pronunciar essas palavras, ele colocou a mão no ombro de um jovem garoto que ainda estava coberto de poeira e que estava ao seu lado.

- Nesse caso, comandante - disse Vrânken -, eu convido o senhor e seus homens a viajarem no Destruidor de Ossos. Uma tropa de guardas ficará no Planeta Morto. Temos espaço para todos vocês. O conforto será menor do que na Splendida, mas eu prometo uma atenção e um nível de conversa menos... fútil!

- E muito amável de sua parte, capitão. Nesse caso, aceito com prazer.

Depois foram os servos que desfilaram em frente a Vrânken.

- Pobre gente! - desabafou o gigante que acabara de chegar. - Por que o império não controla todos os planetas de Drasill? Isso colocaria um basta nessa miséria toda!

- O império já tem dificuldades para dar conta da parte que protege e...

Vrânken foi interrompido pelos gritos estridentes de Bumposh.

O ciber-rato que estava no ombro de seu amo parecia desesperado.

- O que é, Rymôr?

- Algo anormal - reclamou o gigante. Rymôr sacou sua enorme pistola da cintura.

- Ninguém se mexe! Fiquem parados onde estão! Tenente, chame os homens!

Os guardas se deslocaram imediatamente em torno das pessoas presentes na sala e apontaram suas armas.

Um grande silêncio tomou conta do local.

- Mas, enfim, Rymôr! Você não vai me dizer o que está acontecendo?

- Estão dando um golpe baixo. O Polvo vai escapar!

- Escapar? Tá maluco, velho? Olhe - continuou Vrânken mostrando com os dedos os prisioneiros e o general cercado por três soldados!

- Meu Bumposh nunca se engana, Vrânk. Confie em mim.

Os guerreiros de Muspell, já no corredor, foram levados de volta para o hall, assim como os homens do comandante Vobranx.

Todo mundo foi reagrupado no centro, sob a vigilância dos guardas.

- O chefe Rymôr ficou louco! - cochichou Xâvier para sua amiga, no corredor de onde observavam a cena.

O gigante começou a andar por entre os grupos. Ele acariciava o animal e murmurava em sua orelha:

- Então, meu Bumposh, o que está te perturbando? Mostre pro papai, mostre!

Ele passou ao lado do Polvo, que olhou inquieto.

- Ele nos esconde algo, hein, Bumposh?

Mas o rato olhou para outro lado. Rymôr continuou andando. Ele se aproximou do grupo de servos. Bumposh guinchou.

- É aqui? É aqui o problema? Diga-me, Bumposh!

De repente, o olho negro do ciber-rato brilhou de excitação. Ele se pôs a cuspir em direção a uma jovem mulher que abaixou a cabeça, escondida atrás de outros.

Rymôr a pegou pelo braço e a puxou em sua direção.

- Vamos, belezinha, mostre-se um pouco.

De tamanho médio, ela deveria ter uns dezoito ou dezenove anos. Sua túnica de serva mal escondia um corpo delgado, esportivo e bronzeado. Uma longa cabeleira ruiva caía sobre seus ombros.

Com a mão, Rymôr obrigou-a a levantar a cabeça. Seu rosto de traços finos era de uma grande beleza. Seus olhos verdes brilhavam.

- Nossa! - disparou o gigante.

- Vrânk?

O capitão se aproximou.

- Meu querido Vrânk - anunciou Rymôr -, eu te apresento o Polvo. O verdadeiro!

Do outro lado da sala, o general ficou tenso. O otchigin deixou escapar um gemido sinistro.

- Incrível! - exclamou Xâvier em seu canto. - O rato é mesmo telepata.

 

Vrânken ficou um longo tempo imóvel em frente à falsa serva que o encarava corajosamente.

- Será possível? - murmurou ele. - O Polvo, esta menina?

- Veja, veja - ironizou Rymôr. - Percebo agora que você duvida do valor dos jovens!

- E aquele lá, com seu galão de general? É um impostor?

- É seu cúmplice. Que é sem dúvida um general. Vrânken ganhou tempo para pensar.

- Muito bem. Vamos continuar o embarque. Mas mande essa garota para o Destruidor de Ossos, junto com o general e o otchigin. Eu vou descobrir o final dessa história!

Rymôr obedeceu às suas ordens.

O movimento retomou seu ritmo, vigiado de perto pelos guardas.

A Splendida foi a primeira a decolar, seguida de perto pelo Destruidor de Ossos. Vrânken resolveu passar em revista os guardas que ficariam no Planeta Morto até que o império mandasse uma nova guarnição.

- Você acreditou nessa história que a menina é o Polvo?

- Sim, Xâve, eu acredito. Mesmo eu estando longe, eu bem vi como ela olhava para o capitão. Eu diria que mesmo vencida, mesmo desmascarada, ela ainda mantinha uma postura desafiadora!

Os dois estagiários andavam lado a lado nos corredores da nave. Xâvier estava com o ar pensativo.

- Pra mim isso tudo é muito estranho - confessou Xâvier.

- Por quê? Só porque ela é uma menina?

- Claro, quer dizer... não! Mas...

- Já entendi - se enervou Morgana. - O senhor não suporta saber que existe um outro gênio precoce! Realmente você é impossível!

- Você se engana - disse Xâvier melindrado, e respondeu docemente: - mas você, talvez você, não fique indiferente no caso de o nosso capitão se sentir subjugado por essa beleza surgida do nada.

Ela não respondeu, balançou os ombros e acelerou o passo. Xâvier correu para alcançá-la.

- Morgana, perdão, eu não queria...

A estagiária pôs um dedo em seus lábios para que ele se calasse. Eles chegaram à enfermaria e Mârk ainda dormia.

Xâvier não se enganou sobre o efeito que a desconhecida produzira no capitão. Logo que Vrânken trancafiou o general e seu feiticeiro em uma das celas do Destruidor de Ossos, ele transferiu sua bagagem para a cabine de Rymôr e ofereceu sua própria cabine para a jovem ruiva. Sensível a essa atitude de respeito, ela agradeceu e lhe disse seu nome antes de fechar a porta. Vrânken mandou um marinheiro ficar de guarda e foi para o posto de pilotagem.

No caminho, ele pensou no nome que o agradou imediatamente. Com uma voz quente, e com sotaque de Muspell, ela pronunciara: Alyss...

- Então, Vrânk?

- Vamos tratar de resolver o mistério do Polvo ao longo da viagem. O essencial foi ter ganhado a guerra e posto um freio, por muito tempo eu espero, nas ambições do cã!

- Que vamos fazer com as embarcações prisioneiras?

- Vamos manter as melhores. Desarmamos as outras, embarcamos os guerreiros de Muspell e os mandamos de volta para casa. O cã ficará furioso!

- Isso corre o risco de demorar muito.

- Tempo não nos falta. Faça o que eu disse.

Rymôr se apressou em comunicar aos oficiais imperiais a decisão de Vrânken. O capitão retomou rapidamente seus sonhos.

Era noite em Muspell.

A grande estepe, castigada por um calor tórrido, acordava lentamente. O cerrado se reerguia, os arbustos abriam suas folhagens à procura de um pouco de umidade. Os animais se aventuravam fora de seus territórios, abandonavam suas tocas e partiam para caçar ou em busca de água.

Sobre sua grande tenda de feltro, o cã também aproveitava o frescor da noite. Reunira alguns amigos entre os mais fiéis chefes de tribos, que estendidos em almofadas de seda eram servidos de chá por uma serva.

A conversa era dominada pelas últimas corridas de cavalos-serpentes, vencidas por um pequeno clã do outro lado da estepe. Depois, o assunto girou em torno de alguns problemas de fontes secas e de terras reivindicadas por algumas famílias.

Também falaram sobre os planetas controlados pelo canado e as dificuldades crescentes encontradas pelos guerreiros para manter a ordem.

- Isso não continuará mais - disse Atli Blodox, com um sorriso. - Logo, todo Drasill perceberá que o império não vale mais nada. Muspell será um reino de um único planeta, e coitados daqueles que se rebelarem contra nós!

Uma campainha discreta soou. O cã empunhou seu tecnofone.

- Eu estava aguardando novidades... - anunciou a seus amigos. - Sim?

Atli Blodox foi abaixando a cabeça ao longo da conversa.

- Que aborrecimento. Mas isso não atrapalha nossos projetos.

Seu rosto foi se iluminando pouco a pouco. Ele passou a mão sobre o seu crânio raspado.

- Perfeito! Agora, cortem tudo! Ele desligou.

- Meus amigos! A armada imperial enviada pelos estúpidos generais-condes está finalmente à mercê de nossa frota. O Cão-da-Lua conseguiu capturar o nosso Polvo... Eu ordenei que nossos guerreiros escondidos nas profundezas do Planeta Morto lancem a segunda fase do plano. Meus amigos! Bebamos à vitória inelutável do grande canado de Muspell!

Ele gargalhou feliz e foi ovacionado pelos chefes das tribos. Seus olhos brilhavam.

Cravado no peito nu de um guerreiro acordado pelos risos, parecia que o pássaro vermelho levantaria vôo.

 

A transferência das tripulações para as naves de Muspell, assim como o desarmamento dos que não seriam enviados para Nifhell, tomaram, como previra Rymôr, mais tempo do que o desejado.

Para agravar, uma informação inquietante chegou até o gigante: a maior parte das naves do cã era de velhos modelos. O que isso significava? Concluiu-se que o canado dispunha de naves mais recentes!

Ele pensou em comunicar sua inquietação a Vrânken, mas acabou desistindo. O capitão estava totalmente absorvido por outros pensamentos. Se dependesse dele, teriam retornado a Nifhell o quanto antes! Mas Rymôr sabia, a decisão de Vrânken era baseada em uma incontornável realidade: a armada do império era constituída de embarcações livres, comandadas por capitães livres que não entenderiam sair de uma campanha vitoriosa sem nenhum troféu de guerra...

Enfim, a frota imperial estava pronta para partir.

- Senhores - disse o capitão em seu microfone que ainda o ligava às outras naves da frota -, direto para os Caminhos Brancos! Festejaremos nossa vitória em casa, entre os que amamos!

A comunicação era em uma única direção, mas Vrânken imaginou, muito bem, os gritos de alegria que o aviso provocara.

- Pé na estrada, meu velho Rymôr!

- Em tempo! - suspirou o gigante em plena atividade no púlpito de comando.

Ao mesmo tempo, o Destruidor de Ossos fez um enorme estrondo como se tivesse sido pego por uma onda.

- O que está acontecendo? - berrou Vrânken segurando firme o leme.

- Veio do Planeta Morto, capitão - respondeu um marinheiro.

Uma nuvem de poeira gigantesca se levantou sobre aquilo que fora a base. Uma terrível explosão acabara de destruir tudo.

- Pelas Forças! - exclamou Vrânken. - Os guardas! Os infelizes...

- Caramba! - rugiu Rymôr. - Olhe!

Diante de seus olhos incrédulos, os Caminhos Brancos turvaram, e foram lentamente se apagando. O caminho para casa não existia mais.

- O Polvo! Ele sabotou a base! Ele explodiu as instalações subterrâneas!

Tomado pela raiva, Vrânken saiu do posto de pilotagem.

- Coitados de nós - murmurou Rymôr arrasado.

Vrânken, furioso, entrou sem bater em sua cabine onde se encontrava a jovem desmascarada no Planeta Morto. Ele a interpelou sem cerimônias:

- Se você é o verdadeiro Polvo, você sabe o que está acontecendo! Você vai me contar tudo!

Alyss estava sentada no único colchão do quarto.

Ela tomara banho e enfiara uma calça e uma camisa de Vrânken. Penteava lentamente seus cabelos ruivos. Ela virou-se para o capitão com um sorriso tranqüilo.

- Claro que eu sei, Cão-da-Lua.

Em seguida pousou seus grandes olhos verdes, de um verde sombrio, nos olhos de Vrânken.

- E a surpresa final ainda nem aconteceu - acrescentou ela sem perder o sorriso, nem a calma.

O tecnofone soou no bolso de Vrânken. Ele levou um tempo para responder. Ele não conseguia tirar seus olhos de Alyss.

- Sim? - acabou por dizer.

- O senhor deve voltar imediatamente, capitão - respondeu a voz do marinheiro que estava sob o domo de vidro.

Vrânken desligou seu tecnofone e guardou-o mecanicamente. Hesitou, olhou mais uma vez para a jovem que sorria se divertindo, depois saiu apressado do local.

- O que foi isso?

- Eu não tenho a menor idéia - respondeu Morgana colocando de volta em seus lugares os objetos que caíram no chão da enfermaria durante a explosão. - Se estivesse no Templo, talvez eu pudesse responder, mas aqui...

- Devemos ir ver. O que você acha?

Agitado, Mârk se movimentou em sua cama. Ele gemeu. Morgana lhe deu a mão. Ela olhou para Xâvier.

- Não vamos abandoná-lo, não é mesmo?

- Não, claro que não! - respondeu. - De qualquer forma, o que podemos fazer? E depois, se precisassem de nós, Rymôr saberia onde nos procurar...

Vrânken apareceu no domo de vidro. Rymôr se apressou em sua direção.

- Vrânk! Onde você estava? Acabamos de receber uma mensagem de Nifhell, enviada pouco antes de os Caminhos Brancos serem cortados. Escute...

O marinheiro responsável pela transmissão acionou a gravação.

- Aqui fala o general-conde Egîl Skinir. Isso é uma mensagem prioritária para o capitão Vrânken de Xaintrailles: cessem os combates no Planeta Morto e retornem com a frota para Nifhell com urgência! Uma esquadra de guerra do pássaro vermelho de Muspell se aproxima de nosso planeta! Não temos condições de responder ao ataque sem vocês! Eu repito: não estamos em condições...

A mensagem estava cortada nesse ponto.

O mundo de Vrânken desabou.

Um raio poderia cair sobre Vrânken e não teria produzido mais efeito.

- Como? - acabou falando. - Como é possível?

- Uma gigantesca armadilha - balbuciou Rymôr. - A frota que acabamos de abater é falsa, um punhado de velhas embarcações. O ataque ao Planeta Morto, os combates, nossa vitória, a captura do Polvo, tudo era sem importância. Só queriam nos tirar de Nifhell! Você tinha razão de se questionar, Vrânk, você foi o único... Nos prepararam uma armadilha - repetiu antes de se jogar em uma das poltronas e acariciar mecanicamente Bumposh que tremia em seu ombro.

- Mas essas naves do cã em frente a Nifhell, do outro lado de Drasill? - continuou o capitão abalado. - Enfim, Rymôr, como não foram vistas?! Os Caminhos Brancos transitam todos pelo Planeta Morto! Não acredito, uma frota desta importância não passa despercebida!

Desamparado, o gigante fez um gesto que significava que ele também não havia compreendido.

Vrânken se obrigou a respirar profundamente.

Certamente haveria uma explicação! Ele cocou a cabeça. Mas isso, por ora, não era o mais importante.

O império cometera um terrível erro.

Os generais-condes teriam se deixado enganar pela diabólica armadilha que Rymôr acabava de evidenciar, ele mesmo, o capitão-em-chefe, apesar de suas reticências, acabara sendo totalmente envolvido!

O que fazer agora?

Deveria existir uma solução, sim, haveria forçosamente uma.

Ele olhou para fora, para as estrelas. Nunca antes elas estiveram tão longe.

 

 

                                                                  Erik L’Homme

 

 

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