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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CÉREBRO / Robin Cook
CÉREBRO / Robin Cook

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

CÉREBRO

 

                   7 DE MARÇO

Katherine Collins subiu os três degraus da calçada meio indecisa. Estendeu a mão para a porta de vidro e aço e empurrou-a. Mas a porta não abriu. Inclinando-se para trás, ela olhou para a fachada do prédio onde estava entalhada a inscrição: “Centro Médico da Universidade de Hobson: Para os Doentes e Enfermos da Cidade de Nova York.” Segundo a maneira de pensar de Katherine, ali deveria estar escrito: “Deixai Toda a Esperança, oh vós que Entrais Aqui!”

Virando-se, suas pupilas estreitaram-se à luz do Sol daquela manhã de março; sua vontade era sair correndo e voltar para a calidez do apartamento. O último lugar no mundo ao qual ela queria voltar era para o hospital. Antes, porém, que pudesse mexer-se, vá­rios pacientes subiram os degraus e passaram roçando por ela. Sem parar, eles abriam a porta que dava para a clínica principal e eram instantaneamente devorados pela sinistra massa do edifício.

Katherine cerrou os olhos por um instante, admirada ante sua própria idiotice. Claro, as portas da clínica abriam-se para fora! Agarrando sua enorme bolsa, ela abriu a porta e penetrou naquele inundo inferior.

A primeira coisa que a acometeu foi o cheiro. Nada havia de igual em seus 21 anos de experiência. O odor dominante era o de um produto químico, uma mistura de álcool e um desodorante doentiamente adocicado. Achava que o álcool era uma tentativa para conter a doença que se ocultava no ar; sabia que o desodo­rante era para disfarçar os cheiros biológicos que pairavam por sobre a doença. Quaisquer remanescentes da repulsa com que Katherine vinha lutando para ajudá-la a fazer aquela visita evaporaram-se sob o ataque do odor. Até sua primeira visita ao hospital, há alguns meses, ela jamais havia considerado sua própria mortalidade e havia aceito a saúde e o bem-estar como um direito seu. Agora era diferente e, ao entrar na clínica com aquele cheiro, sua consciência foi inundada pelo pensamento de todos os seus recentes problemas de saúde. Mordendo o lábio inferior para controlar as emoções, ela avançou na direção dos elevadores.

A turba que freqüentava o hospital incomodava Katherine. Queria enclausurar-se como num casulo para evitar ser tocada ou que respirassem ou tossissem em cima dela. Era com dificuldade que olhava para os rostos contorcidos, os exantemas escamosos e as lesões exsudativas. O pior era no elevador, onde ela se comprimia de encontro a um bando da humanidade que a fazia lembrar-se das multidões numa pintura de Brueghel. Conservando os olhos gruda­dos no indicador dos andares, tentava ignorar os que a cercavam ensaiando o que ia dizer à recepcionista na Clínica Ginecológica. “Alô, meu nome é Katherine Collins. Sou estudante universitária e já estive aqui quatro vezes. Estou em vias de ir para casa a fim de consultar-me com o clínico de minha família e gostaria de ter uma cópia de minha ficha ginecológica.”

Parecia muito simples. Katherine permitiu que seus olhos se desviassem para o cabineiro. O rosto do homem era muito largo, porém, quando ele se virava de lado, a cabeça ficava chata. Involun­tariamente, os olhos de Katherine se fixaram naquela imagem distorcida, e quando o cabineiro se voltou para anunciar o terceiro andar, viu o olhar fixo de Katherine. Um dos olhos dele olhava para baixo e para o lado. O outro fitava Katherine com uma intensidade maligna. Katherine desviou o olhar, sentindo-se enrubescer. Um homenzarrão cabeludo empurrou-a para sair. Firmando-se na parede do elevador com uma das mãos, ela baixou os olhos para uma garotinha loura de cinco anos. Um olhinho verde retribuiu seu sorriso. O outro estava perdido embaixo das dobras violáceas de uma grande massa tumoral.

A porta do elevador fechou-se e o carro subiu. Katherine foi invadida por uma sensação de tonteira. Era diferente da vertigem que havia precedido os dois ataques que ela sofrera no mês anterior, mas ainda assim era assustador dentro do ambiente fechado e sufo­cante do elevador. Katherine fechou os olhos e lutou contra a sensa­ção da claustrofobia. Alguém tossiu atrás dela, e a moça sentiu os perdigotos no pescoço. A cabine deu um solavanco, as portas abriram-se, e Katherine saiu no quarto andar. Dirigiu-se para a parede onde se encostou, deixando que as pessoas passassem por ela. Sua vertigem desapareceu rapidamente. Sentindo-se retornar à normalidade, virou para a esquerda na direção de um corredor que tinha sido pintado de verde-claro fazia 20 anos.

O corredor se alargava numa sala de espera para a Clínica Ginecológica. Estava cheia de pacientes, crianças e fumaça de ci­garro. Katherine atravessou esta área central e penetrou num beco sem saída à direita. A Clínica Ginecológica da universidade, que servia a todas as faculdades bem como às servidoras do hospital, tinha sua própria sala de espera, embora a decoração e a mobília fossem as mesmas que as da sala principal. Quando Katherine entrou, havia sete mulheres sentadas nas cadeiras de tubos de aço e vinil. Todas folheavam nervosamente números atrasados de revistas. Sen­tada atrás de uma mesa, a recepcionista era uma mulher com cara de pássaro, com cerca de 25 anos, de cabelos oxigenados, pele pálida e feições estreitas. Sua plaqueta de identificação, pregada por um alfinete em seu peito chato, informava que seu nome era Ellen Cohen. Levantou os olhos quando Katherine se aproximou.

— Alô, meu nome é Katherine Collins... — Notou que sua voz carecia da segurança que ela pretendera. De fato, ao terminar seu pedido, Katherine falava como se estivesse implorando.

A recepcionista contemplou-a por um instante.

— Você quer seus antecedentes médicos? — perguntou. Sua voz refletia um misto de desdém e incredulidade.

Katherine acenou com a cabeça e tentou sorrir.

— Bem, você tem de tratar disso com a Sra. Blackman. Sen­te-se, por favor. — A voz de Ellen Cohen tornou-se brusca e auto­ritária. Katherine virou-se e achou um lugar perto da mesa. A re­cepcionista foi até um fichário e tirou a ficha clínica de Katherine. A seguir desapareceu por uma das várias portas que davam para as salas de exames.

Inconscientemente, Katherine começou a alisar seu lustroso cabelo castanho, puxando-o por sobre o ombro esquerdo. Era-lhe um gesto comum, particularmente quando se achava sob tensão. Katherine era uma jovem atraente de atentos olhos azul-cinzentos. Media 1,57 m de altura, porém sua personalidade enérgica fazia-a parecer mais alta. Era querida por suas amigas na faculdade, talvez devido à sua franqueza, e profundamente amada por seus pais, preo­cupados com a vulnerabilidade da filha única na selva da Cidade de Nova York. No entanto, tinha sido a preocupação e super proteção dos pais de Katherine que a haviam levado a optar por estu­dar em Nova York, acreditando que a cidade a ajudaria a demons­trar sua força e individualidade inatas. Até sua atual doença, a jovem fora bem-sucedida, zombando das advertências dos pais. Nova York tinha-se tornado a sua cidade e ela amava sua vitali­dade pulsante.

A recepcionista tornou a aparecer e sentou-se à máquina de escrever.

Furtivamente, Katherine varreu com os olhos a sala de espera, anotando as cabeças curvadas das jovens que esperavam a vez como gado desconhecido. Katherine sentia-se extremamente feliz por não estar, ela também, aguardando para ser examinada. De­testava a experiência, à qual se submetera por quatro vezes: a última há quatro semanas. Vir à clínica tinha-se constituído no seu ato de independência mais difícil. Na verdade ela teria preferido muito mais retornar a Weston, em Massachusetts, e consultar seu próprio ginecologista, o Dr. Wilson. Ele fora o primeiro e o único médico a examiná-la. O Dr. Wilson era mais velho do que os re­sidentes que trabalhavam na clínica, e possuía um senso de humor que destruía os aspectos humilhantes da experiência, tornando-a pelo menos tolerável. Aqui não. A clínica era impessoal e fria e, em combinação com o ambiente do hospital, cada visita transformava-se num pesadelo. Todavia, Katherine tinha persistido. Seu sentido de independência o exigia, pelo menos até ficar enferma.

A enfermeira diplomada Sra. Blackman surgiu de uma das salas. Era uma mulher robusta de 45 anos com o cabelo negro como azeviche puxado para trás e apanhado num coque no alto da cabeça. Vestia um uniforme impecavelmente branco, perfeita­mente engomado. Seu traje refletia o modo pelo qual ela gostava de administrar a clínica: com uma fria eficiência. Há 11 anos que ela trabalhava para o Centro Médico.

A recepcionista falou à Sra. Blackman, e Katherine ouviu ser mencionado seu nome. A enfermeira acenou com a cabeça e virou-se por um instante para olhar na direção de Katherine. Contras­tando com seu exterior agressivo, os olhos castanho-escuros da Sra. Blackman davam uma impressão de grande cordialidade. Subi­tamente, Katherine achou que, fora do hospital, a Sra. Blackman era muito mais agradável.

Mas a Sra. Blackman não veio falar com Katherine. Em vez disso, sussurrou qualquer coisa para Ellen Cohen, e em seguida tornou a examinar a sala. Katherine sentiu-se enrubescer. Achou que estava sendo deliberadamente ignorada; seria um modo pelo qual o pessoal da clínica demonstrava seu desprazer pelo fato de ela querer consultar-se com seu próprio médico. Nervosa, a jovem apanhou um velho exemplar sem capa do Ladies' Home Journal, porém não pôde concentrar-se.

Tentou passar o tempo imaginando sua chegada em casa na­quela noite; pensando em como seus pais ficariam surpresos. Podia imaginar-se entrando no antigo quarto. Desde o Natal que não estivera lá, mas sabia que ele se conservava exatamente conforme ela o deixara. A colcha amarela, as cortinas da mesma cor, todas as lembranças de sua adolescência cuidadosamente preservadas pela mãe. A reconfortante imagem da mãe fez Katherine tornar a inda­gar-se se devia telefonar para os pais avisando-os de que estava indo para casa. No máximo, eles iriam esperá-la no Aeroporto Logan. No mínimo, ela seria obrigada a explicar por que estava vindo para casa, e Katherine queria discutir sua doença pessoal­mente, e não por telefone.

Vinte minutos mais tarde, a Sra. Blackman reapareceu e tornou a conversar com a recepcionista em surdina. Katherine fingiu estar concentrada na revista. Finalmente, a enfermeira cessou de falar e dirigiu-se a Kaherine.

— Srta. Collins? — falou, com sutil irritação. Katherine levantou os olhos.

— Eu soube que você pediu seus antecedentes médicos?

— Perfeitamente — retrucou Katherine, baixando   a revista.

— Não está satisfeita com nosso tratamento? — perguntou a Sra. Blackman.

— Absolutamente. Vou para casa consultar o clínico da fa­mília e quero levar comigo meus assentamentos médicos.

— Isto é um tanto irregular — observou a Sra. Blackman. — Estamos acostumadas a enviar as fichas clínicas somente quando são solicitadas pelo médico.

— Parto para casa esta noite e queria ter as fichas comigo. Se meu médico precisar delas, não quero esperar até que sejam enviadas.

— Só que não é assim que as coisas são feitas aqui no Centra Médico.

— Mas sei que, se eu quiser, tenho o direito de ter minhas fichas comigo.

A este comentário seguiu-se, para Katherine, um desconfor­tável silêncio. Ela não estava acostumada a ser tão categórica. A Sra. Blackman fitou-a como um pai ou mãe irritados ante um filho recalcitrante. Katherine retribuiu o olhar, transfixada pelos olhos negros e fluidos da Sra. Blackman.

— Você vai ter que falar com o médico — disse a Sra. Black­man. E sem esperar uma resposta afastou-se de Katherine, en­trando por uma das portas próximas, que foi trancada automati­camente.

Katherine respirou fundo e olhou em torno de si. As outras pacientes a observavam prudentemente como se compartilhassem do desdém do pessoal da clínica pelo seu desejo de alterar o pro­cedimento de rotina. Katherine lutava por controlar-se, dizendo consigo mesma que estava ficando paranóica. Fingia ler a revista enquanto sentia os olhares das outras mulheres. Queria recolher-se para dentro de si mesma como uma tartaruga, levantar-se e ir embora. Não pôde fazer nada disso. O tempo caminhava lenta e dolorosamente para frente. Várias outras pacientes foram chamadas para exame. Agora, era evidente que ela estava sendo ignorada.

Passaram-se 45 minutos quando o médico da clínica, envergando uma jaqueta e calça amarrotada, apareceu com a ficha de Katherine. A recepcionista acenou com a cabeça em sua direção, e o Dr. Harper avançou despreocupadamente até parar diretamente à sua frente. Ele era calvo, exceto por uma réstea de cabelo que começava por cima de cada orelha e descia ao encontro de um tufo piloso na nuca. Fora ele o médico que examinara Katherine em duas vezes anteriores, e a jovem lembrava-se distintamente de suas mãos e dedos cabeludos, que tinham uma aparência estranha quando combinados com as luvas de borracha semitransparentes.

Katherine olhou para o rosto do homem, aguardando um lam­pejo de amabilidade. Não houve nenhum. Em vez disso, silen­ciosamente abriu a pasta dela, apoiando-a na mão esquerda e acompanhando a leitura com o dedo indicador direito. Era como se ele fosse pregar um sermão.

Katherine baixou os olhos. Na frente da perna esquerda da calça do médico havia uma série de pequeninas manchas de sangue. Enganchados em seu cinto à direita, um pedaço de tubo de bor­racha, e à esquerda os beepers.

— Por que você quer seus antecedentes ginecológicos? — perguntou ele sem a olhar.

Katherine repetiu seus planos.

— Acho que é uma perda de tempo — disse o Dr. Harper, folheando ainda as anotações. — Na verdade, esta ficha quase nada contém. Alguns esfregaços de Papanicolau levemente atípicos, alguns corrimentos gram positivos explicáveis por uma ligeira erosão cervical. Quero dizer, isso não vai ajudar a ninguém. Aqui você teve uma crise de cistite, mas que provavelmente foi provocada pela relação sexual que manteve no dia anterior ao do apareci­mento dos sintomas, a qual você admitiu...

Katherine sentiu o rosto corar de humilhação. Ela sabia que todo mundo na sala de espera podia ouvir.

— ... olhe, Srta. Collins, o problema de suas vertigens nada tem a ver com a ginecologia. Eu sugeria que a Srta. consultasse a Clínica Neurológica...

— Já estive na Neurologia — interrompeu Katherine.   — E já tenho as fichas dali. — Katherine reprimiu as lágrimas. Geral­mente ela não era emotiva, mas   as poucas vezes que se sentia chorando tinha grande dificuldade em se controlar.

O Dr. Harper ergueu lentamente os olhos da ficha. Inspirou e expirou ruidosamente o ar através dos lábios contraídos. Ele estava entediado.

— Olhe, Srta. Collins, você recebeu um tratamento excelente aqui...

— Não me estou queixando do tratamento — disse Katherine, sem levantar os olhos. Estes achavam-se cheios de lágrimas que ameaçavam descer pelas faces. — Só quero minhas fichas.

— Tudo o que estou dizendo — continuou o Dr. Harper — é que você não precisa de outras opiniões sobre sua situação ginecológica.

— Por favor — disse Katherine, lentamente. — O senhor vai dar-me as fichas, ou tenho que ir ao administrador? — Aos poucos, ela ergueu os olhos para o Dr. Harper. Com os nós dos dedos pegou a lágrima que havia extravasado pela pálpebra inferior.

Por fim, o médico encolheu os ombros, e Katherine pôde ouvi-lo praguejar de mistura com sua respiração, enquanto atirava a ficha clínica sobre a escrivaninha da recepcionista, dizendo à mulher que fizesse uma cópia. Sem se despedir nem olhar para trás, ele desapareceu na sala de exames.

Ao vestir o casaco, Katherine tornou a sentir que estava trê­mula e zonza. Caminhou até à mesa da recepcionista e agarrou a borda procurando apoio.

A loura de cara de pássaro decidiu ignorá-la enquanto datilo­grafava uma carta. Quando colocou o envelope na máquina, Ka­therine lembrou a recepcionista de sua presença.

— Muito bem, espere um pouco — disse Ellen Cohen, com visível irritação em cada palavra.

Só depois de haver datilografado o envelope, de tê-lo enchido, fechado e selado foi que ela se levantou, pegou na ficha de Katherine e desapareceu no canto do corredor. Durante todo esse tempo evitou olhar para Katherine.

Mais duas pacientes foram chamadas antes que Katherine re­cebesse um envelope de papel manilha. Ela agradeceu à moça, mas nem obteve a delicadeza de uma resposta. Katherine não se im­portou. Com o envelope sob o braço e a bolsa dependurada do ombro, ela fez meia-volta e, meio correndo meio andando, saiu da confusão da sala de espera principal da Ginecologia.

Katherine parou ao sentir-se, no ar pesado, envolvida por uma sufocante onda vertiginosa que descia sobre si. Seu frágil estado emocional combinado com o súbito esforço físico de suas passadas rápidas tinham sido demasiados. A visão ficou embaçada, e ela estendeu a mão agarrando o encosto de uma cadeira da sala de espera. O envelope de papel manilha escorregou de sob seu braço e caiu ao chão. A sala girou, e os joelhos da jovem curvaram-se.

Katherine sentiu que fortes mãos a pegavam pelos braços, apoiando-a. Ouviu alguém tranqüilizando-a, dizendo-lhe que tudo ficaria bem. Ela queria dizer que, se pudesse sentar-se um pouco, seria ótimo, porém sua língua não ajudava. Vagamente teve cons­ciência de que estava sendo carregada ereta pelo corredor, seus pés, como os de uma marionete, batendo debilmente pelo chão.

Havia uma porta, e depois um quarto pequeno. A terrível sensação de rodopio continuava. Katherine teve medo de que pu­desse estar mal, e sua testa ficou porejada de um suor frio. Teve consciência de ser baixada até o chão. Quase que imediatamente sua visão começou a clarear e o remoinhar do quarto cessou. Ela estava sendo socorrida por dois médicos vestidos de branco. Com alguma dificuldade, eles puxaram um de seus braços para fora do seu casaco e aplicaram-lhe um torniquete. A jovem se sentiu feliz por estar longe da apinhada sala de espera e de não estar sendo objeto da curiosidade de todo mundo.

— Acho que estou melhor — disse Katherine,   piscando os olhos.

— Ótimo — disse um dos médicos. — Vamos aplicar-lhe uma coisa.

— O quê?

— Apenas uma coisa para acalmá-la.

Katherine sentiu uma agulha penetrar a pele macia da concavidade entre o antebraço e o braço. O torniquete foi retirado e seu pulso tornou a ser sentido em seus dedos.

— Mas eu me sinto muito melhor — protestou ela, virando-se para ver uma mão pressionando o êmbolo de uma seringa. Os médicos estavam debruçados sobre ela. — Mas estou bem — in­sistiu Katherine.

Os dois médicos não responderam: limitaram-se a olhá-la, mantendo-a deitada.

— Agora realmente estou melhor — falou Katherine, olhando de um médico para o outro. Um deles tinha os olhos mais verdes que Katherine jamais havia visto, como esmeraldas. Katherine ten­tou mexer-se. O médico a conteve com mais força.

De repente, a visão de Katherine escureceu, e o médico pare­ceu estar longe. Ao mesmo tempo ouviu um sino tocando em seus ouvidos e seu corpo ficou pesado.

— Sinto-me muito... — A voz de Katherine era pastosa e os lábios se moviam vagarosamente. A cabeça tombou para um dos lados. Ela pôde ver que se achava no chão de um depósito. Depois, tudo escureceu.

 

                   14 DE MARÇO

O Sr. e a Sra. Wilbur Collins se apoiavam mutuamente enquanto aguardavam que a porta fosse aberta. Primeiro a chave não queria entrar na fechadura, e o zelador tirou-a e examinou-a para se certificar que era a chave do 92. Tornou a tentar, vendo que a havia enfiado de cabeça para baixo. A porta abriu-se e ele se afas­tou para deixar entrar a Diretora do Departamento Feminino da universidade.

— Belo apartamento — disse a Diretora.

Era uma mulherzinha de cerca de 50 anos, com gestos muito rápidos e nervosos. Estava evidente que se achava sob   pressão.

O Sr. e a Sra. Wilbur Collins e os dois policiais uniformizados da Cidade de Nova York seguiram a Diretora no quarto.

Era um apartamento pequeno, de apenas um quarto, anun­ciado como dando vista para o rio. Assim era realmente, porém apenas através de uma janelinha no banheiro que parecia um ar­mário. Os dois policiais se mantinham em pé, ao lado, com as mãos cruzadas atrás das costas. A Sra. Collins, mulher de 52 anos, hesitou perto da entrada como se tivesse medo do que pudesse encontrar. Ao contrário, o Sr. Collins avançou capengando diretamente para o centro do aposento. Ele tivera poliomielite em 1952 a qual afetara sua perna direita, mas não a sua sagacidade e habi­lidade para os negócios. Aos 52 anos ele era o segundo homem no First National Bank City do império de Boston. Era um homem que exigia ação e respeito.

— Já que faz apenas uma semana — observou a Diretora — talvez sua preocupação seja prematura.

— Jamais deveríamos ter permitido que Katherine viesse para Nova York — disse a Sra. Collins, mexendo com as mãos.

O Sr. Collins ignorou ambos os comentários. Dirigiu-se para o quarto de dormir e olhou lá dentro.

— Sua mala está sobre a cama.

— Isto é um bom sinal — falou a Diretora. — Muitos estu­dantes reagem à tensão afastando-se da escola por alguns dias.

— Se Katherine tivesse saído,   teria levado sua   maleta — observou a Sra. Collins. — Além disso, teria telefonado para nós no domingo. Ela sempre nos telefona aos domingos.

— Como Diretora, sei que muitas estudantes de repente pre­cisam respirar, precisam de um descanso, mesmo boas estudantes como Katherine.

— Nossa filha é diferente — retrucou o Sr. Collins, desapa­recendo no banheiro.

A Diretora revirou os olhos para um dos policiais que perma­neceu impassível.

O Sr. Collins voltou mancando para a sala de estar.

— Ela não foi a lugar algum — falou por fim.

— O que você quer dizer, querido? — perguntou a Sra. Col­lins, com crescente ansiedade.

— Justamente o que eu disse — retrucou o Sr. Collins. — Ela não iria a lugar algum sem isso. — E atirou um pacote de pílulas anticoncepcionais pela metade sobre o divã. — Ela está em Nova York e quero que a encontrem. — E olhando para o policial, acrescentou: — Acredite-me, pretendo ver ação neste caso.

 

                   15 DE ABRIL

O Dr. Martin Philips encostou a cabeça contra a parede da sala de controle; o frescor do revestimento dava uma sensação gostosa. À sua frente, quatro estudantes do terceiro ano de Medicina se comprimiam de encontro à divisão de vidro, observando com res­peitosa admiração como o paciente estava sendo preparado para uma CAT scan, tomografia axial computadorizada. Era o pri­meiro dia de sua aula na cadeira facultativa de Radiologia; eles estavam começando pela Neuro-Radiologja. Philips os trouxera para verem o CAT scanner primeiro, pois sabia que ficariam im­pressionados e humildes. Às vezes, os estudantes de Medicina ten­diam a bancar os sabichões.

Dentro da sala de exame, o técnico estava curvado, verifi­cando a posição da cabeça do paciente em relação ao aparelho que parecia um gigantesco biscoito em forma de rosca. Ele se endi­reitou, puxou uma tira de fita adesiva, e fixou a cabeça do doente a um bloco de Styrofoam.

Estendendo a mão por sobre o consolo do computador, Phi­lips apanhou o formulário de requisição e a ficha do doente, exa­minando ambos em busca de dados clínicos.

— O nome do paciente é Schiller — disse Philips. Os estu­dantes estavam tão absorvidos pelos preparativos que nem se vol­taram, quando ele falou. — A principal queixa é uma fraqueza na perna e no braço direitos. Tem quarenta e sete anos. — Philips olhou para o doente. A experiência lhe dizia que provavelmente o homem estava terrivelmente assustado.

Philips recolocou a requisição do exame e a ficha em seus lugares, enquanto dentro da sala de exame o técnico ativava a mesa. Lentamente, a cabeça do paciente deslizou para dentro do orifício do aparelho como se fosse ser devorada. Lançando um olhar final para a posição da cabeça, o técnico virou-se e se retirou para a sala de controle.

— Afastem-se da janela por um momento — disse Philips. Os quatro estudantes de Medicina obedeceram imediatamente,

deslocando-se para o lado do computador, cujas luzes brilhavam antecipadamente. Conforme Philips havia presumido, eles estavam impressionados ao ponto de ficar submissos.

O técnico segurou a porta de comunicação e tirou o microfone de seu suporte.

— Fique bem quieto, Sr. Schiller. Bem quieto.

Com o dedo indicador, o técnico comprimiu o botão de partida no painel de controle. Dentro da sala de exame a enorme massa em forma de rosca que cercava a cabeça do Sr. Schiller começou abruptamente a executar movimentos rotacionais intermitentes como a ação da roda dentada de um gigantesco relógio mecânico. O som metálico, alto para o Sr. Schiller, chegava abafado para os que se achavam do outro lado do vidro.

— O que acontece agora — falou Martin — é que a máquina está fazendo duzentas e quarenta leituras separadas de raios X para cada simples grau de movimento rotacional.

Um dos estudantes fez uma expressão de total incompreensão para seus colegas. Martin ignorou o gesto e enfiou o rosto nas mãos com os dedos nos olhos, esfregando cuidadosamente e depois massageando as têmporas. Ele ainda não havia tomado seu café e sentia-se tonto. Normalmente ele teria parado no restaurante do hospital, mas naquela manhã não tivera tempo por causa dos estu­dantes. Philips, como Assistente-Chefe de Neuro-Radiologia, sempre fizera questão de iniciar os estudantes pela Neuro-Radiologia. Sua compulsão a respeito havia-se tornado uma verdadeira obsessão porque interferia com o seu tempo de pesquisa. Nas primeiras 20 ou 30 vezes ele gostara de impressionar os estudantes com seu exaustivo conhecimento da anatomia do cérebro. Mas a novidade acabara. Agora, a coisa só era agradável se havia um estudante particularmente inteligente, e na Neuro-Radiologia isso não acon­tecia com muita freqüência.

Depois de alguns minutos, o aparelho em forma de rosca cessou seu movimento rotacional, e o consolo do computador en­trou em atividade. Era uma estrutura impressionante como um painel de controle num filme de ficção científica. Todos os olhos se desviaram do paciente para as luzes que piscavam, exceto os de Philips, que baixara o olhar para as mãos e procurava deslocar um pedacinho de pele morta que estava ao lado da unha do dedo indicador. Sua mente vagueava.

— Nos próximos trinta segundos o computador resolve si­multaneamente quarenta e três mil e duzentas equações de medidas de densidade dos tecidos — disse o técnico, ansioso por assumir o papel de Philips. E este o encorajava a isso. De fato, ele apenas dava aos estudantes suas aulas normais, permitindo que o ensino prático fosse feito pela turma da Neuro-Radiologia, ou pelos técnicos soberbamente treinados.

Erguendo a cabeça, Philips contemplava os estudantes de Me­dicina que estavam paralisados em frente do consolo do compu­tador. Voltando seu olhar para a janela de vidro com chumbo, Philips só podia ver os pés nus do Sr. Schiller. Por um instante, o paciente passara a ser um participante esquecido no drama que se desenrolava. Para os estudantes a máquina era infinitamente mais interessante.

Havia um pequeno espelho sobre um armário de primeiros socorros, e Philips olhou-se nele. Ainda não se havia barbeado, e os pêlos de um dia sobressaíam como cerdas numa escova. Sem­pre chegava uma boa hora antes de qualquer outro em todo o departamento, e tinha criado o hábito de se barbear na sala dos armários cirúrgicos. Sua rotina consistia em levantar-se, correr, tomar uma chuveirada no hospital e fazer uma parada no restaurante para tomar o seu café. Geralmente isso lhe dava duas horas para trabalhar em seus interesses de pesquisa sem interrupção.

Ainda mirando-se no espelho, Philips correu a mão por seu espesso cabelo ruivo, jogando-o para trás. Havia tal diferença entre o brilho das extremidades e o louro-escuro das raízes que algumas das enfermeiras caçoavam com Philips dizendo que ele pintava os cabelos. Nada era mais falso. Philips raramente pensava em sua aparência, eventualmente aparando ele próprio seu cabelo quando não tinha tempo de ir ao barbeiro do hospital. Mas, a despeito de seu desleixamento, Martin era um belo homem. Estava com 41 anos, e as recentes rugas que se haviam formado em torno dos olhos e da boca valorizavam apenas sua aparência que, antes, era um tanto infantil. Agora ele parecia mais duro, e um cliente re­cente observara que ele parecia mais um vaqueiro da TV do que um médico. Ele gostara do comentário, que não era de todo absur­do. Philips tinha pouco menos de 1,80 m de altura, era de consti­tuição atlética, e seu rosto não dava a impressão de um acadêmico. Era anguloso, com um nariz reto e uma boca expressiva. Seus olhos eram de um azul vivo, brilhante e, mais do que qualquer outra coisa, refletiam sua inteligência básica. Havia-se formado com distinção e louvor em Harvard, na turma de 1961.

O tubo de raios catódicos na saída do consolo ativou-se ao aparecer a primeira imagem. Rapidamente, o técnico ajustou a largura da tela e a densidade para obter uma melhor imagem. Os estudantes se agruparam em torno da pequena tela de TV como se para ver o Super Bowl, mas a figura que viram era oval de bordas brancas e com um interior granuloso. Era a imagem cons­truída pelo computador do interior da cabeça do paciente, colo­cada como se alguém estivesse espiando para dentro do Sr. Schiller depois de ter sido removido o tampo de seu crânio.

Martin olhou de soslaio para o seu relógio de pulso. Eram 15 para as oito. Ele estava esperando que a Dra. Denise Sanger che­gasse a qualquer momento e tomasse conta dos estudantes. O que realmente estava na mente de Philips naquela manhã era um en­contro com o seu associado de pesquisa, William Michaels. Este havia telefonado no dia anterior, dizendo que chegaria cedo pela manhã com uma pequena surpresa   para Philips. A esta altura a curiosidade de Martin tinha sido aguçada como o fio de uma na­valha, e o suspense o estava matando. Há quatro anos que os dois homens vinham trabalhando num programa para possibilitar a um computador ler as chapas de raios X do crânio, substituindo o radiologista. O problema estava em programar a máquina para emitir juízos qualitativos sobre as densidades de áreas específicas de raios X. Se fossem bem-sucedidos, as recompensas seriam ina­creditáveis. E como os problemas de interpretação dos raios X do crânio eram essencialmente os mesmos que na interpretação de outras chapas de raios X, o programa acabaria por ser aplicável a todo o campo da Radiologia. E se eles conseguissem aquilo... Philips ocasionalmente sonhava em ter o seu próprio departamen­to, seu próprio serviço médico, e até com a obtenção do Prêmio Nobel.

A imagem seguinte apareceu na tela fazendo com que Philips retornasse ao presente.

— Este corte é treze milímetros mais alto do que a imagem anterior — falou o técnico. Com o dedo, ele apontou para o fundo da seção da oval. — Aqui temos o cerebelo e.. .

— Há algo de anormal — disse Philips.

— Onde? — perguntou o técnico, que estava sentado sobre um banquinho à frente do computador.

— Aqui — continuou Philips, esgueirando-se   de modo que pudesse apontar. Seu dedo tocava a área que o técnico acabara de descrever como o cerebelo. — Esta luminosidade aqui no he­misfério cerebelar direito é anormal. Devia ter a mesma densidade que a do outro lado.

— O que é? — perguntou um dos estudantes.

— É difícil de dizer neste momento — falou Philips. E cur­vou-se para observar mais de perto a área em questão. — Gostaria de saber se o paciente tem algum problema de deambulação.

— Sim, tem — disse o técnico. — Há uma semana que está com ataxia.

— Trata-se   provavelmente   de   um   tumor —   disse   Philips, erguendo-se.

Imediatamente os rostos dos quatro estudantes refletiam uma expressão de terror, olhando para a inocente luminosidade na tela.

Por um lado, eles estavam excitados por assistirem a uma demons­tração positiva do poder da   moderna tecnologia diagnostica. Por outro, estavam   assustados pelo   conceito   de um tumor cerebral; pela idéia de que qualquer pessoa podia ter um; até eles. A próxima imagem começou a apagar a anterior.

— Eis outra área de maior luminosidade no lobo temporal — falou Philips, rapidamente apontando para uma região que já ia sendo substituída pela próxima imagem. — Vamos ver isso melhor no próximo corte. Mas precisamos fazer um estudo de contraste.

O técnico levantou-se e foi injetar o material de contraste na veia do Sr. Schiller.

— O que faz a substância contrastante? — perguntou Nancy McFadden.

— Ajuda   a delinear as lesões como os tumores, quando é quebrada a barreira de sangue do cérebro — disse Philips, que se virara para ver quem estava entrando na sala. Ele tinha ouvido abrir-se a porta do corredor.

— O contraste contém iodo?

Philips não tinha ouvido a última pergunta porque Denise Sanger havia entrado e estava sorrindo cordialmente para o médico por trás das costas dos estudantes agrupados.

Ela despiu sua curta jaqueta branca e levantou a mão para pendurá-la próximo ao armário de primeiros socorros. Era sua maneira de se preparar para o trabalho. Seu efeito sobre Philips foi o oposto. Sanger vestia uma blusa cor-de-rosa, pregueada na frente e com uma fina fita azul fazendo um laço. Ao estender o braço para pendurar a jaqueta, seus seios projetaram-se contra a blusa, e Philips apreciou a imagem como um connoisseur veria uma obra de arte, pois Martin achava Denise uma das mulheres mais bonitas que ele jamais conhecera. Ela dizia medir 1,62m quando na verdade tinha 1,60m. Seu vulto era delgado, pesava 49kg, e tinha seios que não eram grandes porém maravilhosa­mente modelados e firmes. Tinha bastos cabelos castanhos bri­lhantes, que em geral ela puxava e prendia atrás da cabeça com um único grampo. Seus olhos eram de um castanho-claro com pintas acinzentadas, conferindo-lhe uma aparência viva, travessa. Muito pouca gente sabia que ela se diplomara no primeiro lugar na sua escola de Medicina há três anos, e muitos nem acreditavam que tivesse 28 anos.

Sem a jaqueta, Denise passou roçando por Philips, apertando-lhe furtivamente o cotovelo esquerdo. Foi tão rápido que Philips nem pôde responder. Ela sentou-se junto à tela, ajustou os contro­les do visor, e apresentou-se aos estudantes. O técnico voltou e anunciou que o contraste tinha sido aplicado. Ele preparou o apa­relho para uma outra volta.

Philips debruçou-se de modo a poder apoiar-se sobre o ombro de Denise e apontou para a imagem na tela.

— Aqui está uma lesão no lobo temporal e, pelo menos uma, talvez duas, no frontal. — A seguir virou-se para os estudantes.

— Observei na ficha que o paciente é um fumante inveterado. O que tudo isso lhes sugere?

Os alunos olharam para a imagem receosos de fazer qualquer gesto. Para eles era como estar num leilão sem dinheiro; qualquer movimento por mais leve que fosse poderia ser interpretado como um lance.

— Vou-lhes dar um palpite — disse Philips. — Os tumores primários do cérebro são geralmente solitários, ao passo que os tumores que vêm de outras partes do corpo, o que nós chamamos de metástases, podem ser únicos ou múltiplos.

— Câncer do pulmão — deixou escapar um dos estudantes como se estivesse participando de uma brincadeira num programa de TV.

— Muito bem — falou Philips. — Até agora não se pode ter cem por cento de certeza, mas eu faria uma aposta na sugestão.

— Quanto tempo de vida tem o paciente?   — perguntou   o estudante, obviamente empolgado pelo diagnóstico.

— Quem é o médico? — indagou Philips.

— Ele está no serviço de Neurocirurgia de Curt Mannerheim

— respondeu Denise.

— Então ele não deve viver muito — disse Martin. — Man­nerheim vai querer operá-lo.

Denise voltou-se rapidamente.

— Um caso desses é inoperável.

— Você não conhece Mannerheim. Ele opera qualquer coisa. Especialmente tumores. — Martin debruçou-se de novo sobre o ombro de Denise, aspirando o inconfundível aroma de seu cabelo recém-lavado. Para o médico, ele era tão único quanto uma im­pressão digital, e a despeito do ambiente profissional experimentou uma leve sensação de paixão. E levantou-se para quebrar o en­cantamento.

— Dra. Sanger, posso falar-lhe um momento — disse ele de repente, levando-a para um canto da sala.

Denise concordou voluntariamente, com uma expressão de espanto.

— É minha opinião profissional... — disse Philips no mesmo tom formal de voz. A seguir fez uma pausa e quando continuou sua voz era um sussurro — ... que você hoje está incrivelmente sexy.

Denise custou a mudar sua expressão. Levou um momento para que a observação fosse registrada. Quando isso se deu, ela quase riu.

— Martin, você me pegou desprevenida. Parecia tão severo que eu pensei ter feito algo de errado.

— E fez. Usou este conjunto simplesmente para inibir meus poderes de concentração.

— Sexy? Estou abotoada até o pescoço.

— Em você, qualquer coisa parece sexy.

— É sua mente suja, meu velho!

Martin teve de rir. Denise estava certa. Todas as vezes que ele a via, inadvertidamente lembrava-se de como era maravilhosa nua. Há mais de seis meses que ele se vinha encontrando com Denise, e ainda se sentia tão excitado como um adolescente. Primeiro, haviam tomado todas as precauções para impedir que o resto do hospital comentasse e espalhasse o caso, mas, à medida que se tornavam cada vez mais confiantes em que seu relacionamento era sério, ficaram menos preocupados com o segredo, especialmente desde que, quanto mais se conheciam, menor se tornava a dife­rença de suas idades. E o fato de Martin ser o Assistente-Chefe da Neuro-Radiologia enquanto Denise era uma residente do se­gundo ano em Radiologia era uma fonte de estímulo profissional para ambos, particularmente depois que ela começou seu serviço em turnos, três semanas antes. Denise já podia emparelhar suas realizações com os dois caras que já tinham terminado suas resi­dências na Radiologia. E, além de tudo isso, era divertido.

— Velho, hem? — sussurrou Martin. — Você vai ser casti­gada por este comentário. Vou deixar esses estudantes de Medi­cina em suas mãos. Se eles começarem a se mostrar aborrecidos, envie-os para a sala de angiografia. Vamos dar-lhes uma superdose de clínica antes da teoria.

Sanger acenou resignadamente em assentimento.

— E quando você terminar com o programa matinal da CAT scan — continuou Philips,   ainda sussurrando — venha ao meu gabinete. Talvez possamos dar uma fugida até o restaurante!

Antes que ela pudesse responder, ele pegou seu longo avental branco, e saiu.

As suítes cirúrgicas ficavam no mesmo andar da Radiologia, e Philips se encaminhou naquela direção. Esquivando-se por entre um tráfego congestionado de macas cheias de pacientes à espera de se submeterem à fluoroscopia, Philips atalhou pela sala de inter­pretação das chapas de raios X. Era uma grande área cheia de divisões formadas por bancas de negatoscópios, ocupada corren­temente por cerca de uma dúzia de residentes que conversavam e tomavam café. A avalanche de chapas ainda ia começar, embora os aparelhos de raios X já estivessem trabalhando há cerca de meia hora. Primeiro, as chapas chegavam pingando, depois era um ver­dadeiro dilúvio. Philips lembrava-se muito bem de seus dias como residente. Ele havia treinado no Centro Médico e, ajustando-se à pesada atmosfera de um dos maiores e melhores serviços de Ra­diologia do país, havia passado muitas vezes 12 horas por dia naquela mesma sala.

A recompensa por seu esforço tinha sido um convite para ficar ali como bolsista em Neuro-Radiologia. Ao terminar a bolsa, seu desempenho tinha sido tão notável que lhe ofereceram um lugar na equipe por indicação da junta da escola médica. Daquela nova posição, ele subira rapidamente até seu atual status, Assistente Chefe de Neuro-Radiologia.

Philips parou momentaneamente bem no centro da sala de interpretação dos raios X. Sua iluminação única, reduzida, que provinha das lâmpadas fluorescentes por detrás dos negatoscópios, lançava uma luz misteriosa sobre quem estava na sala. Por instantes, os residentes pareciam cadáveres com a pele branca e as órbitas vazias. Philips pôs-se a imaginar por que jamais observara isso antes. Baixou o olhar e contemplou sua própria mão. Estava da mesma cor.

Ele caminhava sentindo-se estranhamente perturbado. Não era a primeira vez, no último ano, que ele encarava uma cena hospi­talar familiar com inveja. Talvez o motivo fosse uma leve porém crescente insatisfação com seu cargo. Seu trabalho estava-se tor­nando cada vez mais administrativo e, acima de tudo, ele se sentia estagnado pelas circunstâncias. O Chefe da Neuro-Radiologia, Tom Brockton, estava com 58 anos e não pensava em se aposentar. Além disso, o Chefe da Radiologia, Harold Goldblatt, era também um neuro-radiologista. Philips era obrigado a reconhecer que sua meteórica ascensão no serviço chegara a um impasse, não por falta de capacidade de sua parte, mas porque as duas posições acima dele achavam-se solidamente ocupadas. Há quase um ano Philips vinha relutantemente alimentando a idéia de deixar o Centro Mé­dico por um outro hospital, onde tivesse a oportunidade de atingir mais alto.

Martin enveredou pelo corredor que levava à cirurgia. Passou pelas portas de vaivém, cujo letreiro avisava aos visitantes que estavam entrando numa área proibida, atravessou outra série de portas de vaivém, até a sala onde se mantinham os pacientes. Ali havia um bando de macas cheias de pacientes ansiosos, aguar­dando sua vez de serem dissecados. E no fim desta enorme área havia um longo balcão construído em fórmica branca guardando a entrada das 30 salas de operação e das salas de recuperação. Por trás do balcão, três enfermeiras envergando aventais cirúrgicos verdes se ocupavam em ver se o paciente certo entrava na sala certa para se submeter à operação certa. Com quase 200 interven­ções em qualquer período de 24 horas, este era um trabalho de tempo integral.

— Alguém é capaz de me falar sobre o caso de Mannerheim? — perguntou Philips, debruçando-se sobre o balcão.

Todas as três enfermeiras ergueram o olhar e começaram a falar ao mesmo tempo. Sendo um dos poucos médicos sem com­promisso, Martin era um visitante bem-vindo ao centro cirúrgico. Ao verem o que tinha acontecido, as enfermeiras riram e então, cerimoniosamente, delegaram a tarefa uma à outra.

— Talvez eu deva perguntar a outra pessoa — disse Philips, fingindo que ia embora.

— Oh, não — falou a enfermeira loura.

— Podemos ir até o armário da roupa de cama para discutir isso — sugeriu a morena.

O centro cirúrgico era o lugar do hospital onde as inibições se relaxavam. A atmosfera ali era diferente da de qualquer outro serviço. Philips achava que talvez isso se devesse ao fato de todo mundo usar o mesmo vestuário em forma de pijamas, mais o potencial para a crise, onde as insinuações sexuais forneciam uma válvula de escape. Fosse o que fosse, Philips lembrava-se disso muito bem. Ele havia sido residente na cirurgia durante um ano antes de se decidir pela radiologia.

— Em qual dos casos de Mannerheim você está interessado — perguntou a enfermeira loura. — Marino?

— Esse mesmo — disse Philips.

— Está bem atrás de você — continuou a enfermeira loura. Philips virou-se. A mais ou menos seis   metros de distância estava uma maca de rodas suportando o vulto coberto de uma mulher de 21 anos. Ela devia ter ouvido seu nome através da névoa da medicação pré-operatória porque sua cabeça girou lenta­mente na direção de Philips. Seu crânio estava completamente ras­pado, preparado antecipadamente para sua operação, e a imagem fazia Philips lembrar-se de uma ave canora sem as penas. Já a vira rapidamente duas vezes antes, quando ela estava sendo radiografada como parte dos preparativos para a operação, e ele ficou chocado com a diferença que agora ela apresentava. Não havia percebido quão pequena e delicada ela era. Seus olhos pareciam suplicantes como os de uma criança abandonada, e Philips fizera todo o possí­vel para retornar sua atenção para as enfermeiras. Um dos motivos pelo qual ele deixara a cirurgia pela radiologia tinha sido a verifica­ção de que era incapaz de controlar sua empatia por certos pacientes.

— Por que ainda não   começaram a operação? — indagou ele à enfermeira, irritado com   o fato de o paciente ser deixado entregue a seus temores.

— Mannerheim está esperando eletrodos especiais do Gibson Memorial Hospital — informou a enfermeira loura. — Ele quer fazer alguns registros da parte do cérebro que vai remover.

— Sei... — comentou Philips, tentando planejar sua manhã. Mannerheim tinha um meio de alterar os programas de todo mundo.

— Mannerheim recebeu dois visitantes do Japão — acres­centou a enfermeira loura — e vai montar um grande espetáculo para toda a semana. Mas vão começar dentro de poucos minutos. Já chamaram a doente. Apenas ainda não tivemos ninguém para mandar com ela.

— Muito bem — disse Philips, começando a se retirar da sala dos pacientes. — Quando Mannerheim quiser suas radiografias para localização, telefone diretamente para meu gabinete. Isso vai econo­mizar alguns minutos.

Enquanto retornava, Martin lembrou-se de que ainda tinha de fazer a barba e se encaminhou para a sala de estar do centro cirúrgico. Às oito e dez ela estava quase deserta desde que os 73 casos achavam-se todos em andamento e os “seguintes” deviam esperar algum tempo para começar. Apenas um cirurgião estava lá falando ao telefone para seu corretor, enquanto se coçava distraidamente. Philips entrou na parte destinada ao vestuário e girou a com­binação do seu armário de 30 centímetros quadrados que Tosy, o velho que tomava conta do centro cirúrgico, lhe permitira ter como seu.

Assim que ele acabou de ensaboar totalmente o rosto, seu beeper entrou em ação fazendo-o pular. Ele não percebera quão tensos estavam seus nervos. Usou o telefone da parede para res­ponder, tentando evitar que o creme de barbear entrasse em contacto com o fone. Era Helen Walker, sua secretária, informando-o de que William Michaels tinha chegado e estava esperando por ele em seu gabinete com uma surpresa.

Philips tornou à sua barba com renovado entusiasmo. Toda a sua excitação pela surpresa de William voltou estrepitosamente. Ele se encharcou de água-de-colônia e vestiu rapidamente seu longo avental branco. Ao tornar a passar de volta pela sala de estar do centro cirúrgico, notou que o cirurgião ainda estava falando no telefone com seu corretor.

Quando Martin chegou a seu gabinete estava quase correndo. Helen Walker ergueu os olhos da máquina de escrever e, assustada, viu passar por ela o vulto embaçado de seu chefe. Pegou uma pilha de correspondência e recados telefônicos e ia levantando-se, mas parou quando a porta do gabinete de Philips se fechou com estrépito. Ela deu de ombros e retornou a seu trabalho de datilografia.

Philips encostou-se na porta fechada, respirando pesadamente. Despreocupado, Michaels folheava uma das revistas de radiologia de Philips.

— E então? — falou Philips, excitado.

Michaels envergava, como de hábito, seu mal-ajustado e já ligeiramente gasto casaco de tweed, que tinha sido comprado durante seu terceiro ano no Massachusetts Institute of Technology (MIT). Estava com 30 anos mas parecia ter 20, com um cabelo tão louro que fazia o de Philips parecer castanho. Sorria, seus olhos azuis pálidos piscavam, e sua boca travessa expressava satisfação.

— O que há? — disse, fingindo voltar à revista.

— Vamos — falou Philips — sei que você está procurando irritar-me. O diabo é que está conseguindo.

— Não sei o que... — começou Michaels, porém não pros­seguiu. Com um movimento rápido, Philips atravessou o escritório e arrancou a revista de suas mãos.

— Vamos deixar de pantomima — exclamou Philips. — Você sabia que dizendo a Helen que tinha uma “surpresa” para mim ia-me deixar louco. Quase que telefonei para você a noite passada, às quatro horas da madrugada. Agora estou arrependido de não o ter feito. Acho que você merecia.

— Ah, sim, a surpresa — falou Michaels provocantemente. Quase me esqueci.

William debruçou-se sobre sua pasta e começou a remexer no interior. Um minuto mais tarde, tirou um pequeno volume embrulhado num papel verde e amarrado com um grosso cordão amarelo. Martin ficou desapontado.

— O que é isso? — Ele esperara alguns papéis, algo assim como impressos   para computador, revelando   alguma descoberta sensacional em suas pesquisas. Jamais pensara num presente.

— É a sua surpresa — disse Michaels, estendendo o embrulho para Philips.

Os olhos de Philips retomaram ao presente. Seu desaponta­mento fora tão grande que era quase raiva.

— Por que, diabo, você comprou um presente para mim?

— Porque você tem sido um maravilhoso parceiro nas pesqui­sas — falou Michaels, segurando ainda o embrulho na direção de Philips. — Tome.

Philips estendeu a mão. Havia-se recuperado do choque o su­ficiente para se envergonhar de sua reação. Fossem quais fossem os seus sentimentos, ele não queria magoar Michaels. Afinal de contas, era um belo gesto.

Philips agradeceu enquanto avaliava o peso do embrulho. Era leve e media cerca de 10 centímetros de comprimento por dois e meio de altura.

— Não vai abri-lo? — perguntou Michaels.

— Claro — disse Philips, estudando por um instante o rosto de Michaels.

Comprar um presente parecia uma coisa tão fora de propósito para aquele menino-gênio do Departamento de Ciências Compu­tadorizadas. Não que ele não fosse cordial ou generoso. É que geralmente ele se achava tão completamente absorvido em suas pesquisas que se esquecia dessas delicadezas. De fato, durante os quatro anos em que vinham trabalhando juntos, Philips jamais tinha visto Michaels socialmente. Philips havia concluído que a incrível mente do outro jamais se desligava. Afinal, ele tinha sido escolhido para dirigir a recém-criada Divisão de Inteligência Arti­ficial da Universidade aos 26 anos. Tinha completado seu Ph.D no MIT, quando estava apenas com 19 anos.

— Ande com isso — falou Michaels impaciente.

Philips tirou o cordão e deixou-o cair cerimoniosamente entre várias coisas sobre sua mesa. Seguiu-se o papel verde. Por baixo havia uma caixa preta.

— Existe um pequeno simbolismo aí — disse Michaels.

— Ah, é?

— Sim — continuou Michaels. — Você sabe como a Psicolo­gia trata o cérebro como uma caixa preta. Bem, você tem de olhar lá dentro.

Philips esboçou um leve sorriso. Ele não sabia a que Michaels se estava referindo. Abriu a tampa da caixa e afastou alguns tecidos. Para surpresa sua retirou lá de dentro um estojo de cassete rotulado Rumors (Ruídos) por Fleetwood Mac.

— Que diabo é isso? — Philips sorriu. Ele não tinha a mais longínqua idéia de por que Michaels lhe compraria uma gravação de Fleetwood Mac.

— Mais simbolismo — explicou Michaels. — O que está aí dentro vai representar mais do que música para os seus ouvidos!

De repente toda a charada fez sentido. Philips abriu o estojo e tirou a fita cassete. Não era uma gravação musical. Era um pro­grama de computador.

— Até onde conseguimos ir? — perguntou   Philips, quase num sussurro.

— Conseguimos tudo.

— Não! — exclamou, incrédulo, Martin.

— Você se recorda do último material que me deu? Funcionou como um encantamento. Resolveu o problema da densidade e da interpretação dos limites. Este programa incorpora tudo o que você incluiu em todas as suas folhas de planos. Ele vai ler qualquer radiografia de crânio que você lhe der, desde que a coloque dentro daquela peça de equipamento ali.

E Michaels apontou para a parte detrás do escritório de Philips. Sobre a mesa de trabalho do médico havia um aparelho elétrico do tamanho de uma televisão. Era óbvio que fora construído mais como um protótipo do que como um modelo para produção. A frente era feita de uma chapa plana de aço inoxidável fixada por parafusos salientes. No canto superior esquerdo havia uma abertura para receber a fita cassete programada. De cada um de seus lados se projetavam dois cabos elétricos. Um alimentava um dispositivo de entrada e saída de informações. O outro vinha de uma caixa retangular de aço inoxidável de mais ou menos um metro quadrado de área e 30 cm de altura. Na frente deste aparelho de metal havia uma longa fenda onde se viam cilindros para a inserção de uma chapa de raios X.

— Não acredito — disse Philips, receoso de que Michaels esti­vesse troçando de novo com ele.

— Nem eu — admitiu Michaels. — Tudo se ajustou muito repentinamente. — A seguir, deu uns passos e bateu sobre a unidade do computador. — Todo o trabalho que você realizou em subdivi­dir a solução do problema e os aspectos do reconhecimento dos padrões da radiologia não só tornaram aparente que precisávamos de novas ferramentas, mas também sugeriram o modo de planejá-las. É isso.

— Visto de fora parece simples.

— Como sempre, as aparências enganam — disse Michaels. — As entranhas dessa unidade vão revolucionar o mundo   dos computadores.

— E pense no que vai fazer no campo da radiologia, se real­mente puder interpretar as chapas — aduziu Martin.

— Vai interpretá-las — falou Michaels. — Mas ainda pode haver falhas no programa. O que se tem de fazer agora é aplicar o programa a tantas chapas de raios X do crânio quantas forem pos­síveis de encontrar já interpretadas no passado. Se houver proble­mas, acho que estarão na área dos falsos negativos. Significando que o programa dirá que a chapa está normal, quando, na verdade, existe uma patologia presente.

— O problema é o mesmo com os radiologistas — comentou Philips.

— Bem, acho que poderemos eliminar isso no programa — disse Michaels. — Vai depender de você. Agora, para isso funcionar, a primeira coisa a fazer é ligá-la. Acho que mesmo um doutor em Medicina é capaz de fazê-lo.

— Sem dúvida — retrucou Philips. — Mas vamos precisar de um Ph.D para ligar a tomada.

— Muito bom. — Michaels riu. — Seu humor está-se aper­feiçoando. Uma vez que a unidade seja conectada à tomada e ligada, insere-se a fita cassete do programa na unidade central. O terminal de saída vai-lhe informar então quando se deve inserir a chapa de raios X no varredor de laser.

— E quanto à orientação do filme?

— Não importa, desde que o lado da emulsão fique para baixo.

— Okay — exclamou Philips, esfregando as mãos e olhando para o aparelho como um pai orgulhoso. — Ainda não estou acre­ditando.

— Nem eu — concordou Michaels. — Quem imaginaria há quatro anos que chegaríamos a fazer este progresso? Ainda posso lembrar-me do dia em que você chegou sem se anunciar no Depar­tamento de Ciência de Computadores, perguntando melancolicamente se alguém estava interessado no reconhecimento de padrões.

— Foi por pura sorte   que   eu topei com você — retrucou Philips. — Naquela ocasião eu pensava que você fosse um estu­dante. Nem sabia o que era a Divisão de Inteligência Artificial.

— A sorte tem seu papel em todas as descobertas científicas — — concordou Michaels. — Mas depois da sorte vem um bocado de trabalho árduo, como o que o espera. Lembre-se de que, quanto mais radiografias de crânio você examinar com o programa, melhor será, não apenas para corrigir as falhas, mas também porque o pro­grama é heurístico.

— Não me venha com   esses palavrões — falou Philips. — O que você quer dizer com “heurístico”?

— Então você desgosta de sua própria Medicina. — Michaels riu. — Nunca pensei em ouvir um médico se queixar de palavras incompreensíveis. Um programa heurístico é um capaz de aprender.

— Você quer dizer que esta coisa pode ficar mais sabida?

— Isso mesmo — disse Michaels, dirigindo-se para a porta. — Mas agora depende de você. E, lembre-se, o mesmo formato será aplicável às outras áreas da radiologia. Assim, em suas horas de lazer, na medida em que as tiver, comece a preparar os impressos para   leitura dos   angiogramas   cerebrais. Mais   tarde   falarei com você.

Fechando a porta atrás de Michaels, Philips encaminhou-se para a mesa de trabalho e contemplou o aparelho de leitura das radiografias. Estava impaciente para começar a trabalhar com ele imediatamente, porém sabia que sua carga de serviço rotineiro o impedia. Como que confirmando o fato, Helen entrou com uma pilha de correspondência, recados telefônicos e a agradável novidade de que o aparelho de raios X numa das salas de angiografia cerebral não estava funcionando adequadamente. Com relutância, Philips deu as costas para sua nova máquina.

 

— Lisa Marino? — perguntou uma voz, fazendo com que Lisa abrisse seus olhos. Debruçada sobre ela achava-se uma enfermeira chamada Carol Bigelow, cujos olhos castanho-escuros eram a única porção visível de seu rosto. Uma touca estampada de flores man­tinha seu cabelo. O nariz e a boca estavam ocultos por uma máscara cirúrgica.

Lisa sentiu que levantavam e giravam seu braço para que a enfermeira pudesse ler a pulseira de identificação. Com uma pancadinha, o braço voltou ao lugar anterior.

— Está   pronta   para   que   a   preparemos, Lisa Marino? — perguntou Carol, soltando com o pé o mecanismo do freio da maca de rodas, e puxando-a da parede.

— Não sei — admitiu Lisa, tentando olhar para o rosto da enfermeira. Mas Carol tinha-se virado, dizendo:

— Claro que está! — E passou com a maca pelo balcão de fórmica branca.

As portas fecharam-se automaticamente atrás delas quando Lisa iniciou sua fatídica viagem pelo corredor para a sala de operação n.° 21. Geralmente a neurocirurgia era realizada numa das quatro salas números 20, 21, 22 ou 23. Elas achavam-se dotadas com equipamentos especializados para uma cirurgia cerebral. Possuíam microscópios operatórios Zeiss   montados no teto, sistema de circuitos fechados de TV com possibilidade de gravação, e mesas especiais de operação. A sala n.° 21 tinha também uma galeria para assistentes e era a favorita do Dr. Curt Mannerheim, Chefe da Neu­rocirurgia e Presidente do Departamento na Escola de Medicina.

Lisa tinha esperado que, neste ponto, ela já estivesse dormindo, mas tal não foi o caso. Porém, se se pode dizer, achava-se parti­cularmente consciente com todos os seus sentidos aguçados. Até o cheiro dos anti-sépticos parecia-lhe excepcionalmente acre. Ainda havia tempo, pensou ela. Ela podia saltar da maca e correr. Ela não queria ser operada, principalmente na cabeça. De fato, qualquer coisa, menos a cabeça.

O movimento parou. Voltando-se para olhar, ela viu a enfer­meira desaparecer num dos cantos. Lisa ficara estacionada como um carro numa rua movimentada. Um grupo de gente passou por ela, transportando outro paciente que estava vomitando. Seu queixo era mantido por uma das atendentes que empurrava a maca, e sua cabeça era um verdadeiro pesadelo de ataduras.

As lágrimas começaram a deslizar pelas faces de Lisa. O doente a fez lembrar-se da provação que a esperava. Seu ser central ia ser rudemente quebrado, aberto e violado. Não uma porção de sua periferia, como um pé ou um braço, mas a cabeça... onde estava sua personalidade e onde residia sua própria alma. Depois daquilo tudo, seria ela a mesma pessoa?

Quando Lisa estava com 11 anos sofrera uma apendicite agu­da. Na ocasião a operação a havia assustado, porém nada como ela estava experimentando agora. Achava-se convencida de que ia perder sua identidade, senão sua vida. Em qualquer dos casos, a jovem estava-se fragmentando, e os pedaços encontravam-se ali para que as pessoas colhessem e examinassem.

Carol Bigelow reapareceu.

— Muito bem, Lisa. Estamos prontas para você.

— Por favor — sussurrou Lisa.

— Ora, vamos, Lisa — disse Carol Bigelow. — Você não vai querer que o Dr. Mannerheim a veja chorando, não é?

Lisa não queria que ninguém a visse chorando. Em resposta à observação de Carol Bigelow, ela sacudiu a cabeça, mas sua emoção transformou-se em raiva. Por que lhe estava acontecendo aquilo?

Não era justo. Há um ano ela fora uma estudante normal. Decidi­ra aperfeiçoar seu inglês, na esperança de se preparar para a Fa­culdade de Direito. Adorava os cursos de literatura e havia sido uma ótima estudante, pelo menos até haver conhecido Jim Conway. Sabia que havia abandonado seus estudos, mas isso fora somente por mais ou menos um mês. Antes de conhecer Jim, ela praticara o sexo em várias ocasiões, porém jamais satisfatoriamente, e se perguntara por que era tão complicado. Com Jim, porém, tinha sido diferente. Logo soube que, com Jim, o sexo seria conforme ela esperava que fosse. E ela não tinha sido irresponsável. Não acredi­tava na pílula, mas se esforçara por se ajeitar com um diafragma. Lisa podia lembrar-se muito distintamente de como tinha sido difícil para ela tomar coragem para fazer aquele primeiro exame ginecológico e voltar quando necessário.

A maca entrou na sala de operação. Era completamente qua­drada com 7,5m de lado. As paredes eram revestidas de azulejos cinzentos até a janela de vidro da galeria em cima. O teto era domi­nado por dois grandes projetores operatórios de aço inoxidável com o formato de tímbalos invertidos. A mesa da operação ficava no centro da sala. Era uma peça estreita, feia, lembrando Lisa de um altar para algum rito pagão. Numa das extremidades da mesa havia uma peça redonda acolchoada com um buraco no centro que, instintivamente, Lisa percebeu que era para segurar sua cabeça. Completamente desajustada do ambiente, a voz dos Bee Gees en­toava uma canção que saía de um pequeno rádio transistor num dos cantos.

— Agora, quero que você passe aqui para cima da mesa — disse Carol Bigelow.

— Está bem — retrucou Lisa. — Muito obrigada.

Lisa ficou aborrecida com sua própria resposta. Muito obrigada era a última coisa que ela tinha em mente responder. No entanto, queria que as pessoas gostassem dela, pois sabia que das mesmas dependia para ser cuidada. Passando da maca para a mesa de opera­ção, Lisa conservou o lençol numa vã tentativa de manter uma modesta dignidade. Uma vez sobre a mesa ficou imóvel, olhando para as luzes dos projetores operatórios. Bem ao lado das luzes, percebeu as divisões de vidro. Devido aos reflexos, era difícil ver através do vidro, mas ela conseguiu enxergar os rostos que a olha­vam. Lisa fechou os olhos. Ela era um espetáculo.

Sua vida tornara-se um pesadelo. Tudo havia sido maravilhoso até aquela fatídica noite. Reunira-se com Jim e ambos estavam estudando. Aos poucos, ela sentira que tinha dificuldade de ler, principalmente quando chegava a uma frase específica que come­çava com a palavra “Sempre”. Lisa tinha certeza de que conhecia a palavra, porém sua mente recusava-se a dar-lhe o significado. Pre­cisava perguntar a Jim. Sua resposta era um sorriso, pois ele achava que o estava chateando. Ante sua insistência, ele lhe dizia: “sem­pre”. Mesmo após Jim haver-lhe dito o significado da palavra, quan­do ela olhava para sua forma impressa não conseguia entendê-la. Lembrava-se de haver experimentado uma poderosa sensação de frustração e de medo. Depois, começou a sentir um cheiro estra­nho. Era um cheiro ruim, e embora achasse que já o havia sentido antes, não podia dizer o que era. Jim negou estar sentindo qualquer cheiro, e aquilo foi a última coisa de que Lisa se recordava. O que se seguira fora o seu primeiro ataque. Aparentemente, ele tinha sido terrível, e Jim estava tremendo quando ela recobrou a consciên­cia. A jovem lhe havia batido várias vezes e lhe arranhara o rosto.

— Bom-dia Lisa — falou uma voz masculina agradável com um sotaque britânico. Olhando para cima e para trás, Lisa deu com os olhos do Dr. Bal Ranade, um médico indiano que tinha treinado na universidade. — Lembra-se do que eu lhe disse na noite passada?

— Nada de tosses nem de movimentos bruscos — respondeu Lisa, acenando com a cabeça e ansiosa por agradar.

Lembrava-se vividamente da visita do Dr. Ranade. Ele apare­cera depois do jantar, apresentando-se como o anestesista que ia cuidar dela durante a operação. E continuara fazendo as mesmas perguntas sobre sua saúde que ela já havia respondido muitas vezes antes. A diferença era que o Dr. Ranade não parecia interessado nas respostas. Seu rosto de mogno não mudara de expressão, exceto quando Lisa descreveu sua apendicectomia feita aos 11 anos de idade. O Dr. Ranade acenou com a cabeça, quando Lisa disse não ter tido nenhum problema com a anestesia. A única outra informação que o interessara fora a ausência de reações alérgicas. Então ele acenara também com a cabeça.

Geralmente Lisa preferia as pessoas extrovertidas. O Dr. Ranade era o oposto. Não expressava qualquer emoção, apenas uma intensa calma. Mas para Lisa, naquelas circunstâncias, esta fria afetação era adequada. Ficara satisfeita por encontrar alguém para quem sua provação não passava de rotina. Mas então o Dr. Ranade chocou-a. Com o mesmo preciso sotaque de Oxford ele dissera:

— Suponho que o Dr. Mannerheim tenha discutido com você a técnica da anestesia que será usada.

— Não — retrucara Lisa.

— Estranho — falara o Dr. Ranade.

— Por quê? — indagara Lisa, pressentindo um problema. A idéia de que pudesse ter havido uma falha na comunicação era alar­mante. — O que é estranho?

— Em geral usamos a anestesia geral para a craniotomia — explicara o Dr. Ranade. — Mas o Dr. Mannerheim nos informou de que queria anestesia local.

Lisa não tinha ouvido referências à sua operação como cranio­tomia. O Dr. Mannerheim dissera que ia “revirar um retalho” e fazer uma pequena janela em sua cabeça de modo que pudesse remover a parte lesada de seu lobo temporal direito. Dissera a Lisa que, de qualquer modo, uma parte do cérebro dela tinha sido lesada, e que era aquela seção que estava provocando os ataques. Se ele pudesse retirar apenas a parte lesada, os ataques cessariam. Havia praticado quase uma centena dessas operações com resultados mara­vilhosos. Naquela ocasião, Lisa tinha ficado encantada, pois até en­contrar o Dr. Mannerheim tudo o que conseguira obter dos médicos era uma expressão de pena e um abanar de cabeça.

E os ataques eram horríveis. Em geral ela sabia quando eles iam chegar porque sentia aquele cheiro estranhamente familiar. Porém, às vezes, eles vinham sem aviso, caindo sobre ela como uma avalanche. Certa vez, num cinema, depois de ter tomado uma tonelada de remédios e de lhe terem assegurado que o problema estava sob controle, sentiu o horrível odor. Tomada de pânico, levantou-se de um salto, saiu cambaleando pelo corredor entre as cadeiras, e voltou correndo para a sala de espera. Naquele ponto ela perdeu consciência de seus atos. Mais tarde “voltou a si” encostada na parede da sala, junto à máquina de vender balas e com a mão entre as pernas. Suas roupas achavam-se parcialmente tiradas e, como uma gata no calor, estava-se masturbando. Um grupo de pessoas a contemplava como se ela fosse uma monstruosidade, inclusive Jim, a quem ela esmurrara e chutara. Mais tarde soube que havia atacado duas moças, machucando uma o bastante para que fosse hospitalizada. No momento em que “voltou a si”, tudo o que pôde fazer foi fechar os olhos e chorar. Todo mundo estava com medo de se aproximar dela. Lembrava-se de ter ouvido, ao longe, o som de uma ambulância. Achou que ia enlouquecer.

A vida de Lisa havia parado. Não estava louca, mas não havia remédios que controlassem seus ataques. Assim, quando o Dr. Man­nerheim surgira, pareceu como um salvador. Foi só depois da visita do Dr. Ranade que ela começou a compreender a realidade do que lhe ia acontecer. Depois do Dr. Ranade, tinha chegado uma atendente para raspar sua cabeça. Daquele momento em diante, Lisa fi­cou assustada.

— Há alguma razão pela qual ele queira anestesia local? — perguntara Lisa. Suas mãos tinham   começado a   tremer. O   Dr. Ranade tinha pensado cuidadosamente nesta resposta.

— Sim — dissera o anestesista por fim. — Ele quer localizar a parte doente de seu cérebro. E precisa de sua ajuda.

— Quer dizer   que eu estarei acordada   quando...   — Lisa não terminara a frase. Sua voz havia sumido. A idéia lhe parecia absurda.

— Isso mesmo — confirmara o Dr. Ranade.

— Mas ele sabe onde está a parte lesada de meu cérebro — protestara Lisa.

— Não o suficiente. Mas não se preocupe. Eu estarei lá. Não haverá dor. Tudo o que você precisa lembrar é de não tossir nem fazer movimentos bruscos.

A cisma de Lisa foi interrompida por uma sensação de dor em seu antebraço esquerdo. Erguendo os olhos ela pôde ver peque­nas bolhas que subiam dentro de um frasco suspenso sobre sua cabeça. O Dr. Ranade tinha começado a aplicar uma injeção endovenosa. Ele fez a mesma coisa em seu antebraço direito, enfiando-lhe um longo tubo de plástico fino. A seguir, ajustou a mesa de modo a que ela se inclinasse levemente para baixo.

— Lisa — disse Carol Bigelow. — Vou sondar você.

Erguendo a cabeça, Lisa olhou para baixo. Carol estava ocupa­da desembrulhando uma caixa coberta com um plástico. Nancy Donovan, outra enfermeira da sala, puxou o lençol de Lisa, expon­do-a da cintura para baixo.

— Sondar? — inquiriu Lisa.

— Sim — respondeu Carol Bigelow, retirando umas luvas de borracha. — Vou colocar uma sonda em sua bexiga.

Lisa deixou pender a cabeça para trás. Nancy Donovan segurou as pernas de Lisa e colocou-as numa posição em que as solas dos pés se tocavam enquanto os joelhos ficavam bem afastados. Ali es­tava ela exposta para que o mundo a visse.

— Vou dar-lhe um remédio chamado Manitol — explicou o Dr. Ranade. — Ele vai fazer com que você urine um bocado.

Lisa fez que sim com a cabeça como se entendesse, enquanto sentia Carol começando a esfregar seus órgãos genitais.

— Hei, Lisa, sou o Dr. George Newman. Lembra-se de mim? Abrindo os olhos, Lisa fitou outro rosto de máscara.   Esses

olhos eram azuis. Do outro lado dela estava um outro rosto com olhos castanhos.

— Sou o Residente Chefe da Neurocirurgia — falou o Dr. Newman. — E este é o Dr. Ralph Lowry, um dos nossos residentes do terceiro ano. Ele vai ajudar o Dr. Mannerheim, conforme eu lhe expliquei ontem.

Antes que pudesse responder, Lisa sentiu uma súbita dor aguda entre as pernas, seguida de uma curiosa sensação de plenitude na bexiga. Ela respirou fundo. Sentiu colocarem um esparadrapo na face interna de sua coxa.

— Agora relaxe — falou o Dr. Newman sem esperar que ela respondesse. — Você estará pronta num instante. — E ambos os médicos voltaram sua atenção para uma série de radiografias afixa­das numa das paredes.

As coisas se apressavam na sala de operação. Nancy Donovan apareceu com uma bandeja de aço inoxidável fumegante e cheia de instrumentos depositando-a com força e estrépito sobre uma mesa próxima. Darlene Cooper, outra instrumentadora, que já estava de avental e de luvas, pegou os instrumentos e começou a dispô-los sobre uma bandeja. Lisa desviou a cabeça ao ver que Darlene Cooper levantava uma grande broca.

O Dr. Ranade passou o manguito de um aparelho de pressão em torno do braço direito de Lisa. Carol Bigelow expôs o peito de Lisa nele fixando os terminais do eletrocardiograma (ECG). Em breve, os bips como os de um sonar que vinham do monitor car­díaco competiam com a voz de John Denver no rádio transistor.

O Dr. Newman terminou o estudo das radiografias e colocou em posição a cabeça raspada de Lisa. Com o dedo mindinho sobre o nariz dela e o polegar no alto da cabeça ele traçou uma linha com uma caneta dermográfica. A primeira linha ia de ouvido a ouvido, passando pelo topo da cabeça. A segunda dividia em duas a anterior, bem no centro começando no meio da testa e se proje­tando para trás para a região occipital.

— Agora, Lisa, vire sua cabeça para a esquerda — disse o Dr. Newman.

Lisa conservava os olhos fechados. Ela sentiu um dedo palpar a borda do osso que corria do seu olho direito para o ouvido direito. Depois sentiu a caneta dermográfica traçar uma linha em curva que começava na têmpora direita e se arqueava para cima e para trás terminando por trás das orelhas. A linha demarcava uma área com o formato de uma ferradura tendo a orelha de Lisa em sua base. Era o retalho que o Dr. Mannerheim havia descrito.

Uma inesperada sonolência percorria o corpo de Lisa. Era como se o ar da sala se tivesse tornado viscoso e as extremidades dela parecessem pesadas. Era-lhe necessário um grande esforço para abrir as pálpebras. O Dr. Ranade sorria-lhe. Numa das mãos estava o tubo de injeção intravenosa; na outra, uma seringa.

— Isso é para relaxá-la — disse o Dr. Ranade.

O tempo perdia a continuidade. Sons entravam em sua cons­ciência e dela saíam. Ela queria adormecer, porém seu corpo invo­luntariamente lutava contra isso. Lisa sentiu-se virar de lado com seu ombro direito elevado e sustentado por um travesseiro. Com uma sensação de indiferença, sentiu que a fixavam a uma prancha que se projetava em ângulos retos da mesa de operação. Seus braços estavam tão pesados que, de qualquer modo ela não teria podido retirá-los. Um largo cinto de couro foi passado em torno de sua cintura, segurando-lhe o corpo. Sentiu que lhe esfregavam e pinta­vam a cabeça. Sentiu várias agulhadas acompanhadas de uma dor efêmera antes de ter a cabeça presa numa espécie de torno. A des­peito de si mesma, a jovem adormeceu.

Uma dor súbita e intensa acordou-a com um sobressalto. Ela não fazia idéia de quanto tempo havia decorrido. A dor era localizada acima de sua orelha direita. Tornou a ocorrer. Ela soltou um grito e tentou mover-se. À exceção de um túnel de pano diretamente em frente a seu rosto, Lisa estava coberta de camadas de campos cirúr­gicos. No fim do túnel, ela podia ver o rosto do Dr. Ranade.

— Tudo está ótimo, Lisa — falou ele. — Não se mexa agora. Eles  estão injetando   o   anetésico local.   Você vai   sentir só um instante.

A dor se fez sentir repetidas vezes. Lisa tinha a impressão que seu couro cabeludo ia explodir. Tentou erguer os braços apenas para encontrar a contenção imposta pelos panos.

— Por favor — gritou ela, mas sua voz era fraca.

— Tudo está ótimo, Lisa. Procure relaxar.

A dor cessou. Lisa podia ouvir a respiração dos médicos. Eles estavam diretamente sobre seu ouvido direito.

— Bisturi — disse o Dr. Newman.

Lisa encolheu-se de medo. Sentiu como que a pressão de um dedo sobre seu couro cabeludo, correndo pela linha traçada com a caneta dermográfica. E pôde sentir um fluido quente em seu pes­coço, através dos campos.

— Pinças hemostáticas — pediu o Dr. Newman. Lisa podia ouvir os estalidos metálicos.

— Clipes de Raney — pediu o Dr. Newman. — E chamem Mannerheim. Digam-lhe que em trinta minutos estaremos prontos para ele.

Lisa procurava não pensar no que estava acontecendo em sua cabeça. Em vez disso fixava-se no desconforto na bexiga.

Ela chamou o Dr. Ranade e lhe disse que precisava urinar.

— Você está com uma sonda na bexiga — retrucou o médico.

— Mas eu preciso urinar — insistiu Lisa.

— Apenas relaxe, Lisa — falou o Dr. Ranade. — Vou-lhe dar um pouco mais de remédio para dormir.

A próxima coisa de que Lisa tomou consciência foi o guincho agudo de um motor movido a gasolina combinado com a sensação de pressão e vibração sobre sua cabeça. O barulho era assustador porque ela sabia o que ele significava. Seu crânio estava sendo aberto por uma serra; ela não sabia que o instrumento se chamava um craniótomo. Felizmente não havia dor, muito embora Lisa esperasse que ocorresse a qualquer momento. O cheiro do osso chamuscado penetrava os campos de gaze que estavam sobre seu rosto. Sentiu que o Dr. Ranade lhe tomava as mãos, e ficou-lhe grata por isso, apertando-as como se ali estivesse sua única esperança de sobreviver.

O som do craniótomo parou. Da súbita calmaria emergiram os bips ritmados do monitor cardíaco. Então, Lisa tornou a sentir dor, desta vez mais como o desconforto de uma dor de cabeça localiza­da. O rosto do Dr. Ranade aparecia no fim do seu túnel de visão. Ele a observava enquanto a jovem sentia inflar-se o manguito do aparelho de pressão.

— Pinça para osso — pediu o Dr. Newman.

Lisa ouvia e sentia o osso sendo triturado. O som estava muito perto de seu ouvido direito.

— Afastadores — pediu o Dr. Newman.

Lisa sentiu várias outras pontadas, seguidas pelo que lhe pare­ceu um forte estalo. Ela sabia que sua cabeça estava aberta.

— Gaze molhada — falou o Dr. Newman, numa voz incisiva.

 

Ainda lavando e desinfetando as mãos, o Dr. Curt Mannerheim inclinou-se para olhar pela porta da sala de operação n.° 21 e ver o relógio na parede distante. Eram quase nove horas. Naquele mo­mento, ele viu seu Residente Chefe, Dr. Newman, afastar-se da mesa. O residente cruzou as mãos enluvadas sobre o peito, e avançou para estudar as radiografias dispostas no negatoscópio. Aquilo só podia significar numa coisa. A craniotomia já tinha sido feita e eles estavam prontos para o Chefe. O Dr. Mannerheim sabia que não tinha muito tempo a perder. A comissão de investigação do Minis­tério da Saúde devia chegar ao meio-dia. O que estava em jogo era uma verba de 12.000.000 de dólares que sustentaria suas pesquisas nos próximos cinco anos. Ele precisava obter aquela verba. Se não, poderia perder todo o seu laboratório animal, e com ele os resultados de quatro anos de trabalho. Mannerheim tinha a certeza de que estava na iminência de descobrir o local exato no cérebro responsável pela agressão e pela raiva.

Enxaguando as mãos para retirar o sabão, Mannerheim avistou Lori McInter, a Diretora-Assistente do Centro Cirúrgico. Gritou por seu nome e ela parou.

— Lori, querida! Estou aqui com dois médicos japoneses que vieram de Tóquio. Será que você podia mandar alguém à sala de estar para termos a certeza de que eles vão achar os aventais e tudo o mais?

Lori Mclnter acenou, embora demonstrasse que não lhe agra­dava o pedido. Mannerheim gritando no corredor a irritava.

Mannerheim entendeu a silenciosa repreensão e amaldiçoou a enfermeira baixinho.

— Mulheres — murmurou ele.   Para Mannerheim as enfer­meiras estavam-se tornando cada vez mais um problema.

Mannerheim irrompeu pela sala de operação como um touro por uma arena. A atmosfera agradável mudou imediatamente. Darlene Cooper entregou-lhe uma toalha esterilizada. Enxugando uma das mãos e depois a outra, e esfregando até os antebraços, Manner­heim debruçou-se para olhar a abertura no crânio de Lisa Marino.

— Que diabo, Newman — rosnou Mannerheim — quando é que você vai aprender a fazer uma craniotomia decente. Eu já lhe disse milhares de vezes para chanfrar mais as bordas. Meu Deus, isto está uma porcaria!

Por baixo dos campos Lisa experimentou uma nova onda de medo. Alguma coisa tinha saído errada com sua operação.

— Eu... — começou a falar Newman.

— Não quero ouvir nenhuma desculpa. Ou você faz a coisa direito, ou vai procurar outro emprego. Vou receber alguns japo­neses aqui, e o que eles vão dizer ao verem isso?

Nancy Donovan estava em pé a seu lado para receber a toalha, porém Mannerheim preferiu jogá-la no chão. Ele gostava de fazer estragos e, como uma criança, exigia uma completa atenção onde quer que estivesse. E conseguia. Tecnicamente, era considerado um dos melhores neurocirurgiões dos EUA, quando não o mais rápido. Ele costumava dizer: “Uma vez que você entra na cabeça, não há tempo para vaguear furtivamente.” E com seu conhecimento enci­clopédico das complexidades da neuro-anatomia, ele era de uma soberba eficiência.

Darlene Cooper mantinha abertas as luvas marrons de borracha especial que Mannerheim pedia. Enfiando as mãos dentro das luvas, ele fitou os olhos da moça.

— Ah — arruinou ele, como se estivesse experimentando um prazer orgástico ao inserir as mãos nas luvas. — Garota, você é fabulosa.

Darlene Cooper evitou olhar nos olhos cinzentos-azulados de Mannerheim, ao entregar-lhe uma toalha úmida para limpar o talco das luvas. Estava acostumada a seus comentários e, por experiência, sabia que a melhor defesa consistia em ignorá-lo.

Colocando-se à cabeceira da mesa com Newman à sua direita e Lowry à esquerda, Mannerheim baixou o olhar para a dura-máter semitransparente que recobria o cérebro de Lisa. Newman passara cuidadosamente suturas na espessura da dura-máter e a havia fixado na borda do local da craniotomia. Essas suturas mantinham a dura-máter tensamente presa à superfície interna do crânio.

— Muito bem, vamos tocar o espetáculo para frente — disse Mannerheim. — Gancho durai e bisturi.

Os instrumentos foram colocados Com força na mão de Man­nerheim.

— Calma, garota — disse Mannerheim. — Não estamos na TV. Não quero sentir dor a cada vez que pedir um instrumento.

Debruçou-se e habilmente ergueu a dura-máter com o gancho, enquanto com o bisturi praticava uma pequena abertura. Através do orifício se podia ver uma pequena protuberância róseo-acizentada do cérebro nu.

Uma vez a operação iniciada, Mannerheim tornou-se comple­tamente profissional. Suas mãos relativamente pequenas moviam-se com econômica deliberação, seus olhos salientes jamais se desviando de seu paciente. Ele era uma pessoa com extraordinário controle da mão e dos olhos. O fato de ser baixo, medindo cerca de l,65m, era-lhe uma constante fonte de irritação. Achava que havia sido roubado em cerca de 12cm para poder estar ao nível de sua altura intelectual, porém conservava-se em excelente forma e parecia mui­to mais jovem do que seus 61 anos.

Com pequenas tesouras e tiras algodoadas, que ele inseria entre o cérebro e a dura-máter para proteção, Mannerheim abriu a mem­brana protetora do cérebro de Lisa numa extensão equivalente à da janela óssea. Usando do dedo indicador, delicadamente ele palpou o lobo temporal de Lisa. Com sua experiência, a menor anormali­dade poderia ser detectada. Para Mannerheim, esta interação entre ele próprio e um cérebro humano vivo e pulsante era a apoteose de sua existência. Durante muitas operações, aquela total excitação provocou-lhe uma ereção sexual.

— Agora vamos ao estimulador e aos eletrodos do eletrencefalógrafo.

Os Drs. Newman e Lowry lutavam com a profusão de peque­ninos fios. Nancy Donovan, como enfermeira circulante, apanhou os eletrodos apropriados quando os médicos os entregaram a ela. e ligou-os na tomada dos consolos elétricos próximos. O Dr. New­man dispôs cuidadosamente os fios dos eletrodos em duas fileiras paralelas. Uma ao longo do meio do lobo temporal e a outra sobre a veia silviana. Os eletrodos flexíveis com as pontas de prata mer­gulharam sob o cérebro. Nancy Donovan acionou um comutador e uma tela do EEG próxima do monitor cardíaco ativou-se com blips fluorescentes que traçavam linhas erráticas.

Os Drs. Harata e Nagamoto entraram na sala de operação. Mannerheim estava satisfeito não tanto porque os visitantes podiam aprender alguma coisa, mas porque ele adorava uma platéia.

— Agora vejam — falou Mannerheim, gesticulando. — Na literatura há um bocado de merda sobre se se deve retirar a parte superior do lobo temporal durante a lobectomia temporal. Alguns médicos temem que isso possa afetar a fala do paciente. A resposta é, experimente.

Com um estimulador elétrico em sua mão como a batuta de um maestro, Mannerheim fez sinal ao Dr. Ranade para que se in­clinasse e erguesse o lençol.

— Lisa — chamou o anestesista.

Lisa abriu os olhos, que refletiam o espanto pela conversa que tinha ouvido.

— Lisa — disse o Dr. Ranade — quero que você recite o máximo de versos que aprendeu na infância.

Lisa aquiesceu, na esperança de que, cooperando, aquilo tudo acabasse logo. E começou a falar, mas, ao fazê-lo, o Dr. Mannerheim tocou a superfície de seu cérebro com o estimulador. Ela parou de falar no meio de uma palavra. Lisa sabia o que queria dizer, porém não era capaz. Ao mesmo tempo teve uma imagem mental de uma pessoa atravessando por uma porta.

Notando a interrupção na fala de Lisa, Mannerheim disse:

— Aí está a resposta. Não vamos retirar a circunvolução tem­poral superior desta paciente.

Os japoneses inclinaram as cabeças mostrando que entendiam.

— Agora, a parte mais importante deste exercício — disse Mannerheim, pegando um dos dois eletrodos de profundidade que havia trazido do Gibson Memorial Hospital. — A propósito, que alguém arranje um aparelho de raios X. Quero uma chapa desses eletrodos de modo que, mais tarde, possamos saber onde eles es­tavam.

As agulhas rígidas dos eletrodos eram ao mesmo tempo instru­mentos registradores e estimuladores. Antes de esterilizá-los, Man­nerheim havia marcado um ponto nos eletrodos a quatro centíme­tros da ponta da agulha. Com uma pequena régua de metal ele mediu quatro centímetros da borda frontal do lobo temporal. Man­tendo o eletrodo em ângulo reto com a superfície do cérebro, Mannerheim empurrou-o às cegas e com facilidade até a marca dos quatro centímetros. Os tecidos cerebrais ofereceram uma resis­tência mínima. Ele apanhou o segundo eletrodo e inseriu-o dois centímetros atrás do primeiro. Cada eletrodo sobressaía cerca de cinco centímetros da superfície do cérebro.

Felizmente, Kenneth Robbins, o técnico de raios X Chefe da Neuro-Radiologia, chegava naquele instante. Se se houvesse atra­sado, Mannerheim teria tido uma de suas célebres crises de cólera. Como a sala de operação estava equipada para facilitar a tomada de radiografias, o técnico só precisou de uns poucos minutos para fazer duas chapas.

— Agora — falou Mannerheim, olhando de relance para o relógio no alto, e vendo que ia ter de acelerar as coisas. — Vamos estimular os eletrodos profundos a fim de ver se podemos gerar algumas   ondas cerebrais epilépticas. Segundo minha   experiência, se o pudermos fazer, então as   chances de que a lobectomia vai ajudar a resolver o problema dos ataques são de cem por cento.

Os médicos reagruparam-se em torno da paciente.

— Dr. Ranade — disse Mannerheim — quero que peça à paciente para descrever o que sente e pensa após o estímulo.

O Dr. Ranade acenou afirmativamente, e desapareceu por baixo da borda dos lençóis. Ao reaparecer, indicou a Mannerheim que prosseguisse.

Para Lisa o estímulo foi como a explosão de uma bomba sem som nem dor. Depois de um período em branco que poderia ter durado uma fração de segundo ou uma hora, um caleidoscópio de imagens surgiu no rosto do Dr. Ranade lá no fim de um longo túnel. Ela não reconheceu o Dr. Ranade nem onde estava. Só tinha consciência do terrível cheiro que prenunciava seus ataques. Ficou apavorada.

— O que foi que você sentiu? — perguntou o Dr. Ranade.

— Ajude-me — implorou   Lisa.   Ela tentou   mover-se mas sentiu-se presa.   Ela   sabia   que   o ataque   estava chegando.   — Ajude-me.

— Lisa — falou o Dr. Ranade, ficando alarmado. — Lisa, tudo está bem. Apenas relaxe.

— Ajude-me — gritou a moça ao perder o controle de sua mente. As tiras na cabeça e a faixa de couro na cintura mantinham-se firmes. Toda sua força concentrou-se em seu braço direito, que ela puxou rápida e violentamente. O punho preso soltou-se e seu braço livre descreveu um arco para cima através   dos   lençóis e campos operatórios.

Mannerheim estava hipnotizado pelos registros anormais no EEG quando viu, pelo canto do olho, a mão de Lisa. Se houvesse reagido mais rapidamente, talvez tivesse podido evitar o incidente. Ficara, porém, tão espantado que por um momento tornara-se in­capaz de reagir. A mão de Lisa, debatendo-se furiosamente   para libertar seu corpo aprisionado pela mesa de operação, tocou as extre­midades salientes dos eletrodos e enterrou-os em seu cérebro.

 

Philips estava falando ao telefone com um pediatra chamado George Rees quando Robbins bateu na porta e abriu-a. Com a mão, Phi­lips acenou para que o técnico entrasse em seu gabinete enquanto ele terminava a conversa. Rees queria saber da radiografia de crâ­nio de um garoto de dois anos que se supunha ter rolado uma escada. Martin informara ao pediatra que suspeitava de algo em face das antigas fraturas de costelas que tinha visto na radiografia do tórax do paciente. Era um caso difícil, e Philips ficou contente quando pôde desligar.

— O que você tem aí? — perguntou Philips a Robbins, virando-se em sua cadeira giratória. Robbins era o técnico chefe da Neuro-Radiologia que Philips recrutara, e entre os dois homens havia um relacionamento especial.

— Apenas os filmes de localização que você me pediu para fazer para Mannerheim.

Philips acenou com a cabeça, enquanto Robbins colocava as chapas no negatoscópio de Philips. Normalmente o técnico não saía do departamento para fazer as radiografias, mas Philips lhe havia pedido para atender pessoalmente a Mannerheim a fim de evitar problemas.

As radiografias da operação de Lisa Marino se iluminaram na tela do negatoscópio. A chapa lateral revelava uma luminescência onde o retalho de osso havia sido removido. Dentro desta área pre­cisamente definida brilhavam as silhuetas de numerosos eletrodos. Os longos eletrodos de profundidade do feitio de agulhas que Man­nerheim tinha enfiado no lobo temporal de Lisa Marino eram os mais evidentes, e era a posição desses instrumentos que interessava a Philips. Com o pé, Philips ativou o motor de um negatoscópio do tamanho da parede chamado de um alternador. À medida que ele mantinha o pé no pedal, a tela à sua frente mudava. A unidade podia ser carregada com qualquer número de chapas para ele in­terpretar. Philips conservou a máquina funcionando até encontrar a tela que continha as radiografias anteriores de Lisa Marino.

Comparando as novas chapas com as antigas, Philips podia de­terminar a exata localização dos eletrodos profundos.

— Puxa — disse Philips. — Que belas radiografias você tira. Se eu pudesse fazer um clone de você, metade de meus problemas estariam resolvidos.

Robbins deu de ombros como se não ligasse, mas o cumpri­mento o sensibilizou. Philips era um chefe exigente porém grato.

Martin usava uma régua finamente calibrada para medir as distâncias associadas com os diminutos vasos sangüíneos nas radio­grafias mais antigas. Com seu conhecimento da anatomia do cére­bro e a habitual localização desses vasos sangüíneos, ele podia formar em sua mente uma imagem tridimensional da área em que estava interessado. A transferência desta informação para as novas chapas dava-lhe a posição das pontas dos eletrodos.

— Espantoso —   exclamou Philips,   reclinando-se. — Esses eletrodos estão perfeitamente posicionados. Mannerheim é fantás­tico. Ah, se seu bom senso igualasse sua habilidade técnica.

— Quer que eu devolva essas chapas à sala de operação — perguntou Robbins.

— Não, eu mesmo as levarei — respondeu Philips, abanando a cabeça. — Quero falar com Mannerheim. Vou levar também algumas dessas chapas antigas. A posição desta artéria cerebral pos­terior está-me intrigando um pouco.

Philips apanhou as radiografias e se encaminhou para a porta.

 

Embora a situação na sala de operação n.° 21 houvesse aparente­mente voltado à normalidade, Mannerheim ficou furioso com o acidente. Nem a presença dos visitantes abrandou sua raiva. Newman e Lowry eram os que mais sofriam. Era como se Mannerheim achasse que eles tivessem deliberadamente preparado tudo para provocar o problema.

Ele começara a lobectomia temporal assim que Ranade havia induzido Lisa à anestesia geral através da anestesia endotraqueal. Tinha havido pânico logo após o ataque de Lisa, embora todos houvessem reagido muito bem. Mannerheim tinha conseguido se­gurar a mão de Lisa, que se debatia, antes que causasse mais danos do que já havia causado. Ranade, o verdadeiro herói, tinha reagido instantaneamente injetando na veia uma dose sonífera de 150mg de Tiopental, seguida de um paralisante muscular chamado D-Tubocurarina. Essas drogas não só tinham feito Lisa dormir, como haviam terminado com o ataque. Em poucos minutos, Ranade havia colocado o tubo endotraqueal, iniciando a administração de óxido nitroso e colocando em posição seus dispositivos de controle.

Entrementes, Newman tinha retirado os dois eletrodos inad­vertida e profundamente enfiados no cérebro, enquanto Lowry re­movia os outros eletrodos de superfície. Lowry havia também co­locado uma gaze algodoada molhada sobre o cérebro exposto antes de cobrir a área com uma toalha estéril. A paciente tinha sido envolvida em novos lençóis e os médicos haviam envergado outros aventais e luvas. Tudo havia retornado ao normal, exceto o humor de Mannerheim.

— Merda! — exclamou ele,   espreguiçando-se para aliviar a tensão em suas costas. — Lowry, se você resolver ser alguma outra coisa quando crescer, diga-me. Se não, segure esses afastadores de modo que eu possa ver. — Da posição de Lowry, o residente não podia ver o que ele estava fazendo.

A porta da sala de operação abriu-se, e Philips entrou tra­zendo as radiografias.

— Cuidado — sussurrou Nancy Donovan. — Napoleão está de mau humor.

— Obrigado pelo aviso — disse um Philips exasperado.

Ele se irritava com o fato de todo mundo tolerar a personali­dade adolescente de Mannerheim, por melhor cirurgião que ele fosse. Colocou as radiografias no negatoscópio, certo de que Man­nerheim o havia visto. Passaram-se cinco minutos antes que Phi­lips percebesse que Mannerheim o estava ignorando deliberada-mente.

— Dr. Mannerheim — chamou Martin, por sobre o som do monitor cardíaco.

Todos os olhares se voltaram quando Mannerheim se esticou, desviando a cabeça de modo que o raio de luz de seu projetor de cabeça, semelhante ao de um mineiro, caísse diretamente sobre o rosto do radiologista.

— Talvez você não saiba que estamos realizando aqui uma cirurgia cerebral o que talvez você não   devesse interromper — falou Mannerheim, controlando sua fúria.

— Você pediu   as chapas de localização — retrucou Philips, calmamente — e acho que é meu dever fornecer a informação.

— Considere cumprido o seu dever — disse Mannerheim, vol­vendo o olhar para sua incisão que se expandia.

A verdadeira preocupação de Philips não estava na posição dos eletrodos, pois sabia que se achava perfeita. Era a orientação do eletrodo posterior ou do hipocampo em relação à formidável artéria cerebral posterior.

— Há mais uma coisa — disse Martin. — Eu...

Mannerheim levantou a cabeça violentamente. O feixe lumi­noso de seu projetor da cabeça varreu a parede, depois o teto, enquanto sua voz zunia como uma chicotada.

— Dr. Philips, o senhor se incomodaria de sair daqui com as suas radiografias para que eu possa acabar a operação? Quando eu precisar do senhor, eu chamo. — Depois com a voz normal, pediu à instrumentadora uma pinça em forma de baioneta e voltou ao trabalho.

Calmamente, Martin pegou suas chapas de raios X e saiu da sala de operação. A seguir trocou de roupa no vestiário, sem pensar muito; era mais fácil para sua maneira de ser. Voltando à Ra­diologia, permitiu-se ponderar sobre o conflito, no sentido da res­ponsabilidade que o incidente evocava. Tratando com Mannerheim, ele apelava para recursos que jamais imaginara ter como radiolo­gista. Ainda não havia chegado a qualquer conclusão, quando chegou de volta ao seu departamento.

— Já estão prontos para o senhor na sala de angiografia — disse Helen Walker, quando Philips chegou a seu gabinete. Ela o aguardava e entrou com ele. Helen era uma negra extremamente graciosa, de 38 anos, do Queens, que há cinco era secretária de Philips. Ambos mantinham um maravilhoso   relacionamento. Phi­lips ficava apavorado só de pensar que ela fosse embora, pois, como qualquer boa secretária, Helen era fundamental na vida rotineira de Philips. Até o guarda-roupa atualizado de Philips era resultado de seus esforços. Ele ainda estaria usando as mesmas roupas antigas da faculdade, se Helen não o apoquentasse para se encontrar com ela em Bloomingdale numa tarde de sábado. O resultado tinha sido um novo Philips, e as roupas apropriadas que se ajustavam a seu corpo atlético.

Philips atirou as radiografias de Mannerheim em cima da mesa, onde elas se misturaram com outras chapas de raios X, papéis, revistas e livros. Era um lugar em que Philips proibia Helen de mexer. Por mais desarrumada que sua mesa parecesse, ele sabia onde estava tudo.

Helen permanecia de pé a seu lado lendo uma torrente de recados que ela se sentia na obrigação de lhe comunicar. O Dr. Rees tinha telefonado perguntando sobre a CAT scan de seu pacien­te, o aparelho de raios X da segunda sala de angiografia tinha sido consertado e estava funcionado normalmente, a unidade de emer­gência chamara dizendo que estavam esperando um grave lesionado de cabeça que precisaria de uma CAT scan de emergência. A lista não acabava mais e era de rotina. Philips disse-lhe que tratasse de tudo, que era o que ela tinha planejado fazer de qualquer modo, e Helen desapareceu voltando para sua mesa.

Philips tirou o casaco branco e pôs o avental de chumbo que ele usava durante certos procedimentos radiológicos para se prote­ger da radiação. O peito do avental se distinguia por um desenho esmaecido do Super-Homem, que tinha resistido a todas as tenta­tivas para ser removido. Tinha sido desenhado ali dois anos antes como um gracejo da turma da Neuro-Radiologia. Como havia sido feito sem nenhum desrespeito, Martin não ficara aborrecido.

Antes de sair, seus olhos correram por cima da superfície da mesa para se assegurar da presença da fita cassete do programa, só para ter a certeza de que não fantasiara as novidades de Michaels. Não a vendo, Martin remexeu as camadas mais recentes de papéis e coisas. Descobriu a fita embaixo das radiografias de Mannerheim. Philips se preparava para sair, porém tornou a parar. Apanhou a fita e a última de perfil do crânio de Lisa Marino. Gritando pela porta aberta para que Helen comunicasse à sala de angiografia que logo ele estaria lá, Martin encaminhou-se para sua mesa de tra­balho.

Tirou o avental forrado de chumbo e jogou-o sobre uma ca­deira. Pôs-se a olhar para o protótipo do computador, imaginando se ele funcionava realmente. Então segurou a radiografia feita durante a operação de Lisa contra a luz que vinha do balcão dos negatoscópios. Não estava interessado na silhueta dos eletrodos, e sua mente os eliminou. Philips estava interessado no que o compu­tador diria sobre a craniotomia. Philips sabia que eles não haviam incluído o procedimento no programa.

Ele deu uma pancadinha no comutador do processador central. Acendeu-se uma luzinha vermelha e vagarosamente ele introduziu a fita cassete. Ela já tinha percorrido três quartos do caminho, quando a máquina a engoliu como um cão faminto. Imediatamente a unidade de impressão se ativou. Philips adiantou-se para poder ler o que estava saindo.

HEI! LEITURA RADIOGRAFIA CRÂNIO 1. FAVOR INSERIR O NOME DO PACIENTE

Philips bateu com seus dois dedos indicadores “Lisa Marino”, e introduziu no aparelho.

OBRIGADO. FAVOR INTRODUZIR QUEIXA   ATUAL

Philips digitou: “Perturbação vertiginosa”, e meteu no aparelho.

OBRIGADO. FAVOR INTRODUZIR INFORMAÇÕES CLI­NICAS RELEVANTES

Philips tornou a digitar: “Mulher de 21 anos, um ano de his­tória de epilepsia do lobo temporal.”

OBRIGADO. FAVOR INSERIR RADIOGRAFIA NA LEI­TORA DE LASER.

Philips dirigiu-se para a leitura de laser. Os cilindros dentro dos lábios da fenda de inserção estavam-se movendo. Cuidadosa­mente, Philips alinhou a chapa de raios X com sua emulsão para baixo. A máquina agarrou-a e puxou-a para dentro. A impressora tornou a ativar-se. Philips correu para ela. Dizia: OBRIGADO. TOME UMA XÍCARA DE CAFÉ. Philips sorriu. Quando menos se esperava surgia o senso de humor de Michaels.

A leitora de laser emitiu um leve zumbido elétrico; o dispo­sitivo de saída ficou em silêncio. Philips pegou seu avental forrado de chumbo e saiu do escritório.

A sala de operação n.° 21 achava-se em silêncio enquanto Manner­heim soltava o lobo temporal de Lisa e o erguia lentamente de sua base. Umas poucas vênulas podiam ser vistas unindo a peça aos seios venosos, e Newman habilidosamente os coagulava e dividia. Por fim ele ficou livre, e Mannerheim retirou o pedaço do cérebro de dentro do crânio de Lisa, depositando-o numa cuba de aço inoxidável segura por Darlene Cooper, a instrumentadora. Mannerheim olhou para o relógio. Estava indo bem. À medida que a operação prosseguira, o humor de Mannerheim tornara a mudar. Agora ele estava eufórico e justamente satisfeito com seu desem­penho. Havia realizado tudo na metade do tempo habitual. Tinha certeza de que estaria em seu gabinete ao meio-dia.

— Ainda não terminamos tudo — disse Mannerheim, segu­rando o aspirador de metal em sua mão esquerda e a pinça na direita. Cautelosamente ele trabalhava a região onde havia estado o lobo temporal, aspirando mais tecido cerebral. Estava removendo o que denominava de núcleos mais profundos. Era a parte mais arriscada da operação, porém a de que Mannerheim mais gostava. Com uma confiança suprema, ele guiava o aspirador, evitando as estruturas vitais.

Num ponto, um grande glóbulo de tecido cerebral bloqueou momentaneamente a abertura do aspirador. Ouviu-se um leve silvo, antes que um pedaço de tecido subisse aspirado pelo tubo.

— Aí vão as lições de música — disse Mannerheim. Era uma piada   neurocirúrgica comum, mas vinda de   Mannerheim depois de toda a tensão que ele havia causado, ficava mais engraçada do que de hábito. Todo mundo riu, até os dois médicos japoneses.

Assim que Mannerheim acabou de remover o tecido cerebral, Ranade reduziu a ventilação da paciente. Ele queria que a pressão arterial de Lisa subisse um pouco enquanto Mannerheim inspecio­nava cuidadosamente a cavidade em busca de alguma hemorragia. Depois de bem examinar, Mannerheim ficou satisfeito, pois a zona operada estava seca. Segurando um pegador de agulhas ele come­çou a fechar a dura-máter, a resistente membrana que cobria o cérebro. Neste ponto, Ranade começou a reduzir a anestesia de Lisa. Quando a operação terminasse, ele queria poder retirar o tubo da traquéia de Lisa sem provocar tosse ou esforço. Isso exigia uma delicada combinação de todas as drogas que ele tinha usado. Era imperativo que a pressão arterial de Lisa não subisse.

A sutura para fechamento da incisão da dura-máter prosseguiu com rapidez e, com uma hábil rotação de punho, Mannerheim deu o último ponto interrompido. O cérebro de Lisa achava-se nova­mente protegido, embora a dura-máter houvesse mergulhado mais profundamente e estivesse mais escura onde havia estado o lobo temporal de Lisa. Mannerheim ergueu, arrogante, a cabeça, en­quanto admirava seu trabalho manual; depois, recuando um passo, arrancou com estrépito suas luvas de borracha. O som ecoou pela sala.

— Muito bem! — exclamou Mannerheim. — Feche. Mas que isso não dure toda a sua vida.

Fazendo sinal para que os dois médicos japoneses o seguissem, Mannerheim saiu da sala.

Newman tomou o lugar de Mannerheim junto à cabeça de Lisa.

— Muito bem, Lowry — disse Newman, imitando seu chefe. — Vejamos se você pode ajudar-me em vez de me atrapalhar.

Depois de recolocar no lugar o retalho de osso como o topo de uma abóbora da festa de Hallooween (a véspera do dia de Todos os Santos) e amarrar os fios, Newman estava pronto para fechar a ferida. Com um par de pinças denteadas pegou a borda do ferimento de Lisa Marino e parcialmente desvirou-o. Depois, enfiou a agulha pela pele do couro cabeludo, certificando-se de que estava apanhando o pericrânio, e a fez sair do outro lado da ferida. Tirando o pegador de agulhas de sua posição original mais para trás da agulha, usou o instrumento para segurá-la pela ponta trazendo o fio para fora da ferida incisa. Usando essencialmente da mesma técnica, passou o fio de seda pelo outro lado da incisão, levando-o à mão do Dr. Lowry que estava esperando para poder dar o nó. Ambos repetiram esse procedimento até a ferida estar fechada com fios negros, dando a impressão de um grande zíper ao lado da cabeça de Lisa.

Durante esta parte da operação, o Dr. Ranade ainda estava ventilando Lisa por compressão da bolsa respiratória. Assim que fosse dado o último ponto, ele planejava administrar 100% de oxigênio a Lisa e inverter o restante paralisador muscular que seu corpo não havia metabolizado. Segundo o esquema, sua mão ainda comprimia a bolsa respiratória, mas desta vez seus dedos experi­mentados perceberam uma sutil alteração da compressão anterior. Nos últimos minutos Lisa começara a fazer esforços para iniciar a respiração por si mesma. Esses esforços tinham criado uma certa resistência para ventilá-la. Esta resistência havia desaparecido com a última compressão. Observando a bolsa respiratória e ouvindo com o estetoscópio esofagiano, Ranade decidiu que Lisa tinha pa­rado subitamente de respirar. Ele checou o estimulador de nervo periférico. Segundo o instrumento, o paralisador muscular estava sendo retirado conforme o previsto. Mas por que ela não estava respirando? O pulso de Ranade acelerou. Para ele a anestesia era como estar em pé numa saliência segura, porém estreita, à beira de um precipício.

Rapidamente, Ranade tomou a pressão arterial de Lisa. Havia subido para 150 x 90. Durante a operação havia-se estabilizado em 105 x 60. Alguma coisa estava errada!

— Espere! — exclamou para o Dr. Newman, dardejando o olhar para o monitor cardíaco. Os batimentos eram regulares porém retardando-se com pausas cada vez maiores entre os picos.

— O que há de errado? — indagou o Dr. Newman, perce­bendo a ansiedade na voz do Dr. Ranade.

— Não sei.

O Dr. Ranade verificou a pressão venosa de Lisa enquanto se preparava para injetar uma droga chamada Nitroprusside para fazer baixar sua pressão arterial. Até então, o anestesista achava que a variação nos sinais vitais de Lisa era uma reação de seu cérebro ao trauma da cirurgia. Mas agora ele começava a temer uma hemor­ragia! Lisa era capaz de estar sangrando, e a pressão dentro de sua cabeça podia estar subindo. Isso explicaria a seqüência dos sinais. Tornou a tomar a pressão arterial. Havia subido para 170 x 100. Prontamente ele injetou o Nitroprusside. Ao fazê-lo, experimentou aquela desagradável sensação de fracasso dentro de seu abdômen associada com o terror.

— Ela pode estar fazendo uma hemorragia — falou ele, curvando-se para abrir as pálpebras de Lisa. E viu o que temia. As pupilas estavam dilatadas. — Não há dúvida de que está com uma hemorragia — gritou Ranade.

Os dois residentes entreolhavam-se por sobre a paciente. Seus pensamentos eram os mesmos.

— Mannerheim vai ficar furioso — disse o Dr. Newman. — É melhor chamá-lo. — Corra — falou para Nancy Donovan. — Di­ga-lhe que se trata de uma emergência.

Nancy Donovan disparou para o intercomunicador e chamou da mesinha da frente.

— Devemos abri-la de novo? — indagou o Dr. Lowry.

— Não sei — retrucou, nervosamente,   o Dr. Newman.   — Se ela está fazendo uma hemorragia dentro do cérebro seria me­lhor arranjar uma CAT scan de emergência. Se está sangrando no local da intervenção, então temos de abrir.

— A pressão arterial continua subindo — falou o Dr. Ranade sem acreditar, observando o relógio do aparelho. E preparou-se para aplicar-lhe mais remédios para fazer baixar a pressão.

Os dois residentes permaneciam imóveis.

— A pressão continua a subir — gritou o Dr. Ranade. — Pelo amor de Deus, faça alguma coisa!

— Tesouras — berrou o Dr. Newman.

Elas foram violentamente depositadas na palma de sua mão e ele cortou as suturas que tinha acabado de fazer. A ferida abriu-se espontaneamente quando ele alcançou o fim da incisão. Ao puxar para trás o retalho do couro cabeludo, a seção do crânio que eles haviam removido para praticar a craniotomia subiu em sua direção. Parecia estar pulsando.

— Dêem-me as quatro empolas de sangue de reserva — gritou o Dr. Ranade.

O Dr. Newman cortou as duas suturas em gancho que manti­nham no lugar o retalho ósseo. O pedaço de osso caiu para um dos lados antes que o Dr. Newman o pegasse. A dura-máter estava abaulada com uma sinistra cor escura.

A porta da sala de operação abriu-se com violência e o Dr. Mannerheim entrou voando, sua bata desabotoada, exceto embaixo.

— Que diabo está acontecendo? — gritou ele. E então viu a dura-máter saliente e pulsando. — Meu Deus! Luvas! Quero as luvas!

Nancy Donovan começou a abrir um novo par de luvas, mas Mannerheim arrancou-as das mãos dela e as enfiou sem mesmo se desinfetar.

Tão logo uns poucos pontos foram cortados, a dura-máter abriu-se explosivamente, e um sangue vermelho-vivo esguichou sobre o peito de Mannerheim, empapando-o enquanto, às cegas, ele cortava o resto da sutura. Ele sabia que precisava achar o local do sangramento.

— Aspirador! — berrou Mannerheim.

Com um som áspero a máquina começou a retirar o sangue. Logo tornou-se aparente que o cérebro havia-se desviado ou intumescido, porque Mannerheim prontamente o encontrou.

— A pressão arterial está caindo — falou Ranade.

Mannerheim berrou pedindo um afastador cerebral para aju­dá-lo a tentar ver a base da área operada, mas o sangue jorrou no momento em que o aspirador foi retirado.

— Pressão arterial... — falou o Dr. Ranade, fazendo uma pausa. — Pressão arterial impossível de se achar.

O som do monitor cardíaco, que fora tão constante durante a operação, reduziu-se a um pulsar difícil, e depois cessou.

— Parada cardíaca! — gritou o Dr. Ranade.

Os residentes arregaçaram os grossos lençóis cirúrgicos, ex­pondo o corpo de Lisa e cobrindo sua cabeça. Newman trepou no banco que ficava próximo da mesa de operação e começou a pra­ticar a massagem cardíaca, comprimindo o esterno de Lisa. Tendo recebido o sangue que pedira, o Dr. Ranade pendurou os reci­pientes no suporte. Já havia aberto todos os seus tubos endovenosos, fazendo o fluido correr para dentro de Lisa o mais depressa possível.

— Pare — gritou Mannerheim, que recuara da mesa de ope­ração quando o Dr. Ranade exclamara parada cardíaca. Com uma sensação de total frustração, Mannerheim jogou o   afastador de cérebro no chão.

Ali ficou ele por um instante, com os braços aos lados, pin­gando sangue e pedacinhos de cérebro de seus dedos.

— Pare! Não adianta — falou por fim. — É óbvio que se rompeu alguma grande artéria. Deve ter acontecido quando a mal­dita da paciente empurrou aqueles eletrodos. Provavelmente seccionou uma artéria que entrou em espasmo provocado pelo ataque, camuflando a situação. Quando o espasmo relaxou, ela explodiu. Não há meios de ressuscitar esta paciente.

Agarrando sua calça de cirurgião antes que caísse, Manner­heim virou-se para sair. Na porta olhou para trás, para os dois residentes.

— Quero que vocês tornem a fechar tudo como se ela ainda estivesse viva. Entendido?

 

— Meu nome é Kristin Lindquist — disse a mocinha que espe­rava na Clínica Ginecológica da universidade. Ela tentou sorrir, porém os cantos de sua boca tremeram levemente. — Tenho uma consulta marcada com o Dr. John Schonfeld às onze e quinze.

Eram exatamente 11 horas segundo o relógio da parede.

Ellen Cohen, a recepcionista, ergueu os olhos de seu romance para o lindo rosto que sorria para ela. Imediatamente viu que Kristin Lindquist era tudo o que Ellen Cohen não era. Kristin tinha cabelos louros de verdade, tão finos como a seda, um narizinho arrebitado, grandes e profundos olhos azuis, e pernas longas e bem feitas. Instantaneamente Ellen passou a odiar Kristin, rotulando-a mentalmente como uma das prostitutas da Califórnia. O fato de que Kristin Lindquist fosse de Madison, no Wisconsin, não fazia qualquer diferença para Ellen. Deu uma longa tragada em seu cigarro, e expeliu a fumaça pelo nariz enquanto examinava o livro de consultas. Riscou o nome de Kristin e disse-lhe que se sentasse, aduzindo que Kristin iria ver o Dr. Harper, e não o Dr. Schonfeld.

— Por que não posso ser atendida pelo Dr. Schonfeld? — indagou Kristin. O Dr. Schonfeld tinha-lhe sido recomendado por uma das garotas no dormitório.

— Por que ele não está aqui. Isso responde à sua pergunta?

Kristin acenou que sim, porém Ellen não reparou. Voltou a seu romance, embora, quando Kristin se afastou, Ellen a tivesse olhado com irritação e inveja.

Foi naquele momento que Kristin devia ter saído. Ela pensou nisso, vendo que ninguém teria notado, se ela continuasse a andar pelo caminho pelo qual tinha vindo. Ela já não gostava do am­biente desagradável e arruinado do hospital, que lhe lembrava a doença e o declínio. O Dr. Walter Peterson, no Wisconsin, tinha um consultório limpo e agradável, e embora Kristin não apreciasse ter de se submeter a um exame de seis em seis meses, pelo menos não era deprimente.

Mas Kristin não saiu. Fora necessária uma boa dose de cora­gem para que ela marcasse a consulta, e agora ia terminar compulsivamente o que havia começado. Assim, sentou-se na cadeira de vinil manchada da sala de espera, cruzou as pernas e aguardou.

Os ponteiros do relógio avançavam com uma lentidão dolorosa, e depois de 15 minutos Kristin verificou que as palmas de suas mãos estavam suando. Reconhecia que estava ficando cada vez mais ansiosa, e imaginou se havia algo de psicologicamente errado com ela. Havia seis outras mulheres na pequena sala de espera, todas parecendo calmas, fato que aumentou a aflição de Kristin. Ela se sentia mal ao pensar em sua estrutura interna, e a visita ao ginecologista amplificava o efeito de um modo brutal e de­sagradável.

Pegando uma revista em frangalhos, Kristin tentou desviar seu pensamento. Não teve êxito. Quase todos os anúncios lembravam-lhe a provação pela qual ia passar. Então, ela viu a figura de um homem e uma mulher, e uma nova preocupação ocupou sua mente: quanto tempo depois de uma relação sexual se podia encontrar esperma na vagina? Duas noites antes, Kristin tinha estado com seu namorado, Thomas Hurons, estudante do último ano, e haviam dormido juntos. Kristin sabia que se sentiria humilhada se o mé­dico pudesse descobrir isso.

Seu relacionamento com Thomas era o motivo pelo qual Kris­tin tinha resolvido marcar uma consulta na clínica. Vinham-se vendo com regularidade desde o outono. À medida que seu relacionamento se estreitava, Kristin percebeu que procurar decidir quando era “seguro” não constituía mais um método razoável de controle da natalidade. Thomas recusava-se a assumir qualquer responsabilidade e pressionava continuamente Kristin para faze­rem mais sexo. Ela procurara inteirar-se sobre as pílulas anticoncep­cionais na farmácia do estudante e lhe disseram que primeiro tinha de se submeter a um exame ginecológico no Centro Médico. Kris­tin teria preferido consultar seu antigo médico em casa, mas a preocupação com   sua   privacidade tornava isso impossível.

Tomando uma inspiração profunda, Kristin sentiu que seu estômago era agora um nó, e que podia experimentar ruídos nos intestinos. A última coisa que ela desejava era ficar tão assustada que fosse acometida de uma crise de diarréia. Só este pensamento a mortíficava. Olhando para o relógio, tinha esperanças de não precisar esperar muito mais tempo.

 

Uma hora e vinte minutos mais tarde Ellen Cohen chamou Kristin para uma das salas de exame. Seus pés sentiram o frio do chão de linóleo quando ela se despiu por detrás de um pequeno biombo. Havia um cabide, e nele Kristin pendurou todas as suas roupas. Conforme lhe fora ordenado, vestiu um avental do hospital, que descia até a metade da coxa e era amarrado na frente. Baixando os olhos, viu que os mamilos de seus seios estavam eretos devido ao frio, fazendo saliência no tecido de algodão gasto como se fos­sem dois botões duros. Ela esperava que eles baixassem antes que o médico a visse.

Emergindo por detrás da cortina, Kristin viu a enfermeira, Sra. Blackman, dispondo os instrumentos sobre uma toalha. Kristin desviou os olhos, não sem antes ver de relance, involuntariamente, uma série de brilhantes instrumentos de aço, inclusive um especulo e algumas pinças. A simples vista desses instrumentos fez Kristin sentir-se fraca.

— Ah, muito bem — disse a Sra. Blackman. — Você é rá­pida e nós gostamos disso. Venha! — A Sra. Blackman bateu de leve na mesa de exames. — Agora, suba aqui. O médico virá em seguida. — E com o pé a Sra. Blackman deslocou um banquinho para uma posição estratégica.

Usando de ambas as mãos para agarrar seu fino avental, Kris­tin adiantou-se para a mesa de exames. Com os estribos de metal sobressaindo na extremidade, a mesa parecia um engenho de tor­tura medieval. A moça subiu no banquinho e sentou-se de frente para a enfermeira.

Então a Sra. Blackman tomou uma detalhada história clínica, que impressionou Kristin por sua minuciosidade. Jamais alguém havia feito um trabalho tão perfeito, que incluía cuidadosas per­guntas sobre a história familiar de Kristin. Da primeira vez que Kristin vira a Sra. Blackman, sentira-se mal, receando que a en­fermeira fosse ser tão fria e brusca quanto dava a entender sua aparência. Mas durante a anamnese, a Sra. Blackman foi tão agra­dável e se mostrara tão interessada em Kristin como uma pessoa, que esta começou a relaxar. Os únicos sintomas importantes que a Sra. Blackman anotara foram um leve corrimento que Kristin havia reparado nos últimos meses e ocasionais sangramentos intermenstruais, que ela tinha tanto quanto podia lembrar-se.

— Muito bem, vamos-nos preparar para o médico — disse a Sra. Blackman, pondo de lado a papeleta. — Agora, deite-se e ponha os pés nos estribos.

Kristin obedeceu, tentando em vão manter unidas as bordas do avental. Era impossível, e sua calma começou de novo a desa­parecer. Os estribos de metal pareciam de gelo, fazendo um cala­frio percorrer seu corpo.

A Sra. Blackman desdobrou um lençol lavado de fresco e colocou-o sobre Kristin. Erguendo a extremidade do lençol, a Sra. Blackman espiou por baixo. Kristin quase que podia sentir o olhar da enfermeira na região entre suas pernas, totalmente exposta.

— Muito bem — disse a Sra. Blackman. — Desça o corpo para a extremidade da mesa.

Empregando uma espécie de movimento rotatório dos quadris, Kristin escorregou suas costas na direção dos pés.

A Sra. Blackmann, ainda olhando por baixo do lençol, não ficou satisfeita.

— Mais um pouco.

Kristin avançou mais para baixo até sentir que metade de suas nádegas estavam fora da extremidade da mesa.

— Assim está ótimo — disse   a Sra. Blackman.   — Agora relaxe antes que o Dr. Harper venha.

Relaxar!, pensou Kristin. Como podia relaxar? Sentia-se como um pedaço de carne numa prateleira esperando ser manuseada pelos fregueses. Por trás dela havia uma janela, e o fato de o lençol não estar totalmente fechado a incomodava imensamente.

Sem bater na porta da sala de exames, esta foi aberta e um mensageiro do hospital enfiou a cabeça por ela. Onde estavam as amostras que iam ser enviadas ao laboratório? A Sra. Blackman disse que iria mostrar ao rapaz e desapareceu.

Kristin foi deixada por sua conta na atmosfera estéril, envolvi­da pelo cheiro asséptico do álcool. Fechou os olhos e fez várias inspirações profundas. Era a espera que tornava as coisas tão ruins.

A outra porta abriu-se. Kristin levantou a cabeça, esperando ver o médico, mas em vez disso viu a recepcionista que lhe perguntou onde estava a Sr. Blackman. Kristin limitou-se a sacudir a cabeça. A recepcionista saiu, batendo a porta. Kristin tornou a reclinar a cabeça e a fechar os olhos. Não ia poder agüentar muito mais.

No instante em que Kristin estava pensando em levantar-se e ir embora, a porta abriu-se e o médico entrou.

— Hei, minha cara, sou o Dr. David Harper. Como está pas­sando hoje?

— Ótima — retrucou Kristin, sem convicção.

O Dr. David Harper não era o que Kristin esperava. Parecia jovem demais para ser um médico. Seu rosto juvenil estava cheio de pêlos que conflitavam com sua cabeça quase calva. Suas sobran­celhas eram tão espessas que não pareciam reais. Curvou-se sobre a pequena pia e rapidamente lavou as mãos.

— Você estuda na universidade? — perguntou ele, lendo a papeleta que estava sobre o balcão.

— Sim — respondeu Kristin.

— O que está estudando?

— Arte — retrucou Kristin. Sabia que o Dr. Harper estava ape­nas conversando um pouco, mas sem ligar a mínima para o que se dizia. Na verdade, era um alívio falar depois daquela interminá­vel espera.

— Mas   que ótimo!   — comentou Harper, com indiferença. Após enxugar as mãos, abriu um pacote de luvas de borracha fina. Calçou-as na frente   de Kristin, fechando-as com um   estalo nos punhos, e a seguir ajustando um dedo de cada vez. Isso era feito meticulosamente, como um ritual. Kristin reparou que o Dr. Harper tinha muito cabelo por toda a parte, menos no alto da cabeça. Vis­tos através das finas luvas de borracha, os pêlos do dorso de suas mãos pareciam vulgares.

Encaminhando-se para o pé da mesa, inquiriu Kristin sobre seu leve corrimento e seu sangramento ocasional. Era óbvio que não estava interessado em nenhum dos dois sintomas. Sem mais delongas, sentou-se no banquinho, desaparecendo da vista de Kristin. Esta experimentou uma sensação de pânico quando a extremidade ter­minal do lençol foi levantada.

— Quero que você escorregue para baixo, na minha direção — disse o Dr. Harper casualmente.

Enquanto Kristin descia mais por sobre a mesa, a porta da sala de exames abriu-se e a Sra. Blackman entrou. Kristin ficou satisfeita ao vê-la. Sentiu que suas pernas eram afastadas o máximo. Não podia ficar mais exposta e vulnerável.

— Dê-me o espéculo de Graves — disse o Dr. Harper para a Sra. Blackman.

Kristin não podia ver o que estava acontecendo, mas ouviu o tinido agudo de metal batendo contra metal, e isso lhe deu uma sensação de vazio no fundo do abdômen.

— O.K. — continuou o Dr. Harper. — Agora, quero que você relaxe.

Antes que Kristin pudesse reagir, um dedo enluvado afastou os lábios de sua vagina e os músculos das coxas se contraíram por reflexo. Então ela sentiu o frio da penetração do especulo de metal.

— Vamos, relaxe! Quando foi que você fez seu último esfregaço de Papanicolau?

Passaram-se alguns segundos antes que Kristin percebesse que a pergunta lhe era dirigida.

— Há cerca de um ano. — Seguiu-se uma sensação de invasão.

O Dr. Harper ficou calado. Kristin não fazia idéia do que estava acontecendo. Com o espéculo dentro de si, ela estava aterro­rizada de mexer um músculo. Por que estava demorando tanto? O espéculo moveu-se ligeiramente e ela pôde ouvir o médico murmu­rando. Haveria algo de errado? Erguendo a cabeça, Kristin pôde ver que ele nem a estava olhando. Tinha-se voltado e achava-se debru­çado sobre a mesinha, fazendo algo que exigia ambas as mãos. A Sra. Blackman acenava com a cabeça e sussurrava. Deitada de cos­tas, Kristin ansiava por que ele se apressasse e retirasse o espéculo. Então sentiu o espéculo deslocar-se, e em seguida experimentou uma profunda e estranha sensação de vazio dentro do abdômen.

— Muito bem — disse por fim o Dr. Harper. O espéculo saiu tão depressa quanto entrara e apenas com uma rápida pontada dolo­rosa. Kristin respirou aliviada, somente para se assustar com o resto do exame.

— Seus ovários estão muito bons — falou, finalmente, o Dr. Harper enquanto descalçava suas luvas sujas, jogando-as num balde de tampa.

— Felizmente — disse Kristin, referindo-se mais ao fim da experiência.

Depois de um rápido exame dos seios, o Dr. Harper disse-lhe que podia vestir-se. Ele agia ríspida e despreocupadamente. Kristin passou para trás do biombo fechando a cortina. Vestiu-se o mais depressa possível, com medo de que o médico pudesse ir embora antes que ela tivesse oportunidade de falar com ele. Quando saiu do local de se vestir ainda vinha abotoando a blusa. Foi na hora certa, pois o Dr. Harper estava acabando de completar a papeleta.

— Dr. Harper — começou Kristin. — Queria falar-lhe sobre o controle de natalidade.

— O que você quer saber?

— Gostaria de saber qual o melhor método anticoncepcional para eu usar.

O Dr. Harper encolheu os ombros.

— Cada método tem seus aspectos bons e maus. No que lhe concerne, não creio que haja   contra-indicação para qualquer um dos métodos. É uma escolha pessoal. Fale sobre isso com a Sra. Blackman.

Kristin assentiu com a cabeça. Queria perguntar mais coisas, porém os modos rudes do Dr. Harper a constrangeram.

— Seu exame — continuou o Dr. Harper, ao recolocar a caneta no bolso do jaleco e levantar-se — foi essencialmente normal. Notei uma pequena erosão no colo do útero, que pode explicar o leve corrimento. Não é nada. Talvez devamos examiná-la de novo dentro de dois meses.

— O que é uma erosão? — indagou Kristin, sem saber se estava segura de querer saber.

— Apenas uma área despida das células   epiteliais   habituais — disse o Dr. Harper. — Tem mais alguma pergunta?

O Dr. Harper deixava claro que estava com pressa de terminar a consulta. Kristin hesitava.

— Bem, tenho mais pacientes para ver — disse o Dr. Harper, rapidamente. — Se precisar de mais informações sobre o controle da natalidade, pergunte à Sra. Blackman. Ela é uma boa conselheira. Você pode, também, perder sangue pouco depois do exame, mas não se preocupe com isso. Tornarei a vê-la dentro de alguns meses. — E finalizou com um sorriso, saindo depois de dar uma pancadinha afetuosa na cabeça de Kristin.

Um instante mais tarde a porta se abriu e a Sra. Blackman espiou para dentro da sala. Parecia surpresa ao ver que o Dr. Har­per tinha ido embora.

— Foi rápido — disse a Sra. Blackman, apanhando a pape­leta. — Vamos ao laboratório para terminar logo com isso, a fim de que você possa ir embora.

Kristin acompanhou a Sra. Blackman até uma outra sala com duas mesas de exame e uma longa bancada com toda a espécie de instrumentos, inclusive um microscópio. Na parede mais distante havia um armário de porta de vidro cheio de um sortimento de objetos de aparência maligna. Junto a ele pendia uma carta para exame de vista. Kristin reparou nela por se tratar de uma das que se compunha unicamente da letra E.

— Você usa óculos — perguntou a Sra. Blackman.

— Não.

— Ótimo — observou a Sra. Blackman. — Agora, deite-se e vamos tirar um pouco de sangue.

Kristin fez o que lhe mandavam.

— Eu fico um pouco fraca quando tiro sangue.

— Isso é muito comum — disse a Sra. Blackman. — Eis por que pedimos que vocês se deitem.

Kristin desviou os olhos para que não tivesse de ver a agulha. A Sra. Blackman agiu rapidamente, e depois de retirar o sangue de Kristin tomou-lhe a pressão arterial e o pulso. A seguir, escureceu a sala para um exame de vista.

Kristin tentou fazer com que a Sra. Blackman discutisse o con­trole da natalidade, mas só depois que ela terminou seu trabalho de rotina foi que respondeu às perguntas da moça. E então, remeteu Kristin ao Centro de Planejamento Familiar da universidade, dizen­do-lhe que não teria problemas, agora que já tinha feito seu exame ginecológico. Quanto à erosão, a Sra. Blackman fez um pequeno desenho para ter a certeza de que tudo ficara esclarecido. Depois, tomou o número do telefone de Kristin e lhe disse que seria infor­mada de qualquer anormalidade com os resultados de seus exames de laboratório.

Com grande alívio, Kristin saiu da clínica. Finalmente tudo estava terminado. Depois de toda tensão que havia experimentado, decidiu que faltaria à aula da tarde. Ao chegar no centro da Clínica Ginecológica, Kristin sentiu-se um pouco desorientada, esquecendo o caminho por onde tinha vindo. Virando-se, procurou uma indica­ção para os elevadores. Viu-a sobre a parede do corredor mais próximo. Mas quando a imagem da palavra bateu em sua retina, algo de estranho ocorreu no cérebro de Kristin. Sentiu uma coisa esquisita e uma leve tonteira, seguida de um cheiro desagradável. Embora não pudesse localizar o cheiro, Kristin achou-o estranha­mente familiar.

Com um pressentimento, Kristin tentou ignorar os sintomas e avançou pelo corredor apinhado. Precisava sair do hospital. Mas a tonteira aumentou e o corredor começou a girar. Apoiando-se agar­rada num portal, Kristin fechou os olhos. A sensação de rodopio cessou. Primeiro ela ficou com medo de abrir os olhos temendo que os sintomas retornassem e, quando o fez, foi aos poucos. Felizmente a tonteira não voltou, e poucos instantes após a jovem conseguiu passar pelos batentes da porta.

Antes que Kristin pudesse dar um passo, uma mão segurou-lhe o braço e ela recuou assustada. Ficou aliviada ao ver que era o Dr. Harper.

— Você está bem? — perguntou o médico.

— Estou ótima — redargüiu Kristin prontamente, não que­rendo admitir seus sintomas.

— Tem certeza?

Kristin acenou afirmativamente com a cabeça e, para reforçar o que dizia, puxou o braço da mão de Harper.

— Então, lamento tê-la aborrecido — disse o Dr. Harper, que se desculpou e desceu para o hall.

Kristin viu-o misturar-se à multidão. Fez uma inspiração e caminhou na direção dos elevadores, com as pernas feito borracha.

 

Martin deixou a sala de angiografia assim que se convenceu de que o residente tinha tudo sob controle e de que o cateter estava fora da artéria do paciente. Rapidamente caminhou pelo corredor. Ao se aproximar de seu gabinete esperava que Helen tivesse ido almo­çar, mas, ao virar a última esquina do corredor, ela o viu e caiu em cima dele com sua onipresente mancheia de recados urgentes. Não é que Philips não desejasse vê-la realmente, era apenas porque o médico sabia que ela era portadora de todas as espécies de más notícias.

— A segunda sala de angiografia ainda está com defeito — disse ela no momento em que conseguiu prender a atenção do médico. — Não é o aparelho de raios X em si, mas sim o meca­nismo que move as chapas.

Philips acenou com a cabeça enquanto pendurava seu avental forrado de chumbo. Estava consciente do problema e confiava em que Helen já teria chamado a companhia com a qual eles manti­nham um convênio de manutenção. Ele olhou para o dispositivo de impressão sobre sua mesa de trabalho, e pôde ver uma página inteira cheia de notas geradas pelo computador.

— Há também um problema com Claire   O'Brian e Joseph Abbodanza — continuou Helen. Claire e Joseph eram dois técnicos em neuro-radiologia que ele vinha treinando há anos.

— Que tipo de problema? — indagou Philips.

— Eles resolveram casar-se.

— Bem — riu   Philips. — Andaram   fazendo   alguma   coisa incomum no quarto escuro?

— Não! — redargüiu de pronto   Helen. — Eles   já tinham resolvido casar-se em junho, e depois tirar todo o verão para uma viagem à Europa.

— O verão todo! — gritou Philips. — Eles não podem fazer isso!   Já vai ser bastante difícil deixá-los tirar duas   semanas de férias ao mesmo tempo. Espero que você lhes tenha dito isso.

— Claro que disse. Mas eles retrucaram que não se importam. Vão de qualquer jeito, mesmo que sejam despedidos.

— Meu Deus! — disse Philips, dando um tapa na testa. Sabia que com o treinamento que tinham, Claire e Joseph poderiam tra­balhar em qualquer grande Centro Médico.

— Ainda há mais — continuou Helen. — O Deão da Escola de   Medicina telefonou. Disse que  aprovaram, numa   reunião   na última semana, duplicar o número de estudantes de Medicina em rodízio na Neuro-Radiologia. Disse que no ano passado os estudan­tes elegeram o serviço como um dos melhores.

Philips cerrou os olhos e massageou as têmporas. Mais estudan­tes de Medicina! Meu Deus. Era só o que faltava!

— E por fim — disse Helen, dirigindo-se para a porta — o Sr. Michael Ferguson telefonou da Administração para dizer que a sala que estávamos usando para os suprimentos tem de ser esva­ziada. Precisam dela para o serviço social.

— E, pelo amor de Deus, diga-me o que é que eles pretendem que façamos com os nossos suprimentos?

— Fiz a mesma pergunta — disse Helen. — Ele me disse que o senhor sempre soube que aquele espaço   não estava destinado para a Neuro-Radiologia, e que pensasse noutra coisa. Bem, vou dar uma saída rápida para o almoço. Volto logo.

— Claro. Bom apetite.

Philips esperou alguns minutos até que sua pressão voltasse ao normal. Os problemas administrativos estavam-se tornando cada vez mais intoleráveis. Encaminhou-se para o terminal de entrada e saída e arrancou o relatório.

 

LEITURA DE RADIOGRAFIA. CRÂNIO 1

MARINO, LISA

INFORMAÇÃO CLÍNICA

MULHER DE 21 ANOS COM HISTÓRIA DE EPILEPSIA DO LOBO TEMPORAL HÁ UM ANO. UMA ÚNICA PROJEÇÃO LATERAL ESQUERDA FEITA POR UM APARELHO PORTÁTIL DE RAIOS X. A PROJEÇÃO PARECE ESTAR APROXIMADAMENTE A OITO GRAUS DO PONTO LATERAL VERDADEIRO

HÁ GRANDE LUMINOSIDADE NA REGIÃO TEMPORAL DIREITA REPRESENTANDO UMA ÁREA DESTITUÍDA DE OSSO. AS BORDAS DESTA ÁREA SÃO MUITO NÍTIDAS SUGERINDO UMA ORIGEM IATROGÊNICA

ESTA IMPRESSÃO É CONFIRMADA POR UMA ESPESSA ÁREA DE TECIDO MACIO ABAIXO DO DEFEITO ÓSSEO SUGERINDO RETIRADA DE UM GRANDE RETALHO.

A CHAPA É MAIS PROVAVELMENTE UMA RADIOGRAFIA OPERATÓRIA. NOTAM-SE NUMEROSOS CORPOS METÁLICOS REPRESENTANDO ELETRODOS SUPERFICIAIS

DOIS ELETRODOS METÁLICOS COLÍNDRICOS ESTREITOS PARECEM SER ELETRODOS DE PROFUNDIDADE NO LOBO TEMPORAL, MAIS PROVAVELMENTE POSTADOS NA AMÍGDALA (*) E HIPOCAMPO

AS DENSIDADES CEREBRAIS REVELAM DELICADAS VARIAÇÕES LINEARES NOS LOBOS OCCIPITAL, MÉDIO-PARIETAL, E TEMPORAL

 

* (A   amígdala aqui referida é um aglomerado de substância cinzenta no lobo cerebral. (N. do T.)

 

CONCLUSÃO

 

RADIOGRAFIA OPERATÓRIA COM GRANDE DEFEITO ÓSSEO NA REGIÃO TEMPORAL DIREITA.

VÁRIOS ELETRODOS DE SUPERFÍCIE E DOIS ELETRODOS DE PROFUNDIDADE. AMPLAS VARIAÇÓES DE DENSIDADE DE NATUREZA NÃO PROGRAMADA.

 

RECOMENDAÇÓES

RECOMENDADAS PROJEÇÓES POSTERIOR E OBLÍQUA BEM COMO CAT SCAN PARA MELHOR CARACTERIZAÇÃO DAS VARIAÇÕES LINEARES DE DENSIDADE E PARA LOCALIZAÇÃO DOS ELETRODOS DE PROFUNDIDADE

RECOMENDADOS DADOS ANGIOGRÁFICOS PARA ASSOCIAR POSIÇÃO DOS ELETRODOS DE PROFUNDIDADE COM OS GRANDES VASOS

PROGRAMA SOLICITA INSERÇÃO NA UNIDADE DE MEMÓRIA CENTRAL DO SIGNIFICADO DAS VARIAÇÓES LINEARES DE DENSIDADE

 

               MUITO OBRIGADO

               E FAVOR REMETER A CONTA

               PARA WILLIAM MICHAELS, PH. D

               E MARTIN PHILIPS, M.D.

 

Philips não podia acreditar no que tinha acabado de ler; era bom» mais do que bom, era fantástico. E com aquele pequeno toque de humor no fim, era impressionante. Philips reviu as seções do rela­tório. Era-lhe muito difícil acreditar que estava lendo um relatório que provinha de sua máquina e não de um outro neuro-radiologista. Embora o aparelho não tivesse sido programado para craniotomias, parecia ter sido capaz de raciocinar com a informação que possuía e dera a resposta certa. E havia ainda a parte referente às variações de densidade. Philips não tinha idéia do que aquilo representava.

Tirando a radiografia de Lisa Marino do varredor de laser, Philips colocou-a num negatoscópio. Começou a sentir-se um pouco alarmado, quando não viu as variações que o relatório impresso sugeria. Talvez o novo método com que eles tratavam as densidades, que tinha sido a parte claudicante desde o início, afinal de contas não valesse nada. Philips ativou seu alternador e as radiografias foram passando pela tela até que ele encontrou o estudo angiográfico de Lisa Marino. Ele parou o alternador e tirou uma das pri­meiras chapas laterais do crânio. Colocando-a junto à radiografia feita durante a operação, tornou a procurar as variações de densi­dade conforme estava descrito no relatório impresso. Para desapon­tamento seu, a radiografia parecia normal.

A porta do gabinete se abriu e Denise Sanger entrou. Philips sorriu e voltou ao que estava fazendo. Dobrando uma folha de papel pelo meio, ele cortou um pedacinho e, ao abri-la, havia um buraquinho no centro.

— Então — disse Denise, passando-lhe o braço em torno dos ombros — estou vendo que você fica ocupado aqui fazendo re­cortes.

— A ciência avança por caminhos estranhos e maravilhosos — retrucou Philips. — Muita coisa aconteceu desde que a vi esta manhã. Michaels entregou nossa primeira unidade para leitura de crânio. Aqui está o primeiro relatório impresso.

Enquanto Denise o lia, Philips colocou a folha de papel com o buraquinho sobre a radiografia de Lisa Marino que estava no negatoscópio. O que o papel fez foi eliminar todos os outros aspectos complicados da radiografia, exceto a pequena seção visível através do buraquinho. Martin estudou cuidadosamente a pequenina área. Retirando o papel, perguntou a Denise se ela era capaz de ver algo de anormal. Ela não viu. Mesmo quando Philips recolocou o papel, ela persistiu em nada ver de estranho, até que ele apontou para umas manchas brancas orientadas linearmente. Retirando o papel, ambos puderam vê-las, agora que seus olhos já esperavam por isso.

— O que você acha disso? — perguntou Denise, examinando a chapa com muita atenção.

— Não faço a menor idéia.

Philips caminhou para o terminal de entrada e saída e preparou o pequeno computador para receber a chapa anterior de Lisa Mari­no. Esperava que o programa visse a mesma variação de densidade. O varredor de laser engoliu a chapa com o mesmo apetite que havia demonstrado antes.

— Mas isso me perturba — acrescentou Philips, recuando para a unidade de entrada e saída que começava a se ativar.

— Por quê? — indagou Denise, com o rosto iluminado pela luz pálida do negatoscópio. — Acho este relatório fantástico.

— É — concordou Philips. — Eis aí a questão. Ele sugere que o programa é capaz de interpretar as radiografias melhor do que o seu criador. Jamais vi aquelas variações de densidade. Faz-me lembrar das histórias de Frankenstein. — De repente, Martin riu.

— Agora, qual é a graça? — perguntou Denise.

— Michaels! Parece que esta coisa está programada de modo que de cada vez que eu lhe dê uma chapa ela me diz para eu relaxar enquanto funciona. Da primeira vez mandou que eu tomasse uma xícara de café. Desta vez me diz que eu vá comer qualquer coisa.

— Parece-me uma boa sugestão — disse Denise. — Que tal aquele romântico rendez-vous que você me prometeu no restaurante? Não disponho de muito tempo; tenho de voltar ao CAT scanner.

— Não posso sair já — falou Philips, justificando-se.   Sabia que lhe havia prometido um almoço e não queria desapontá-la. — Fiquei realmente excitado com essa coisa.

— O.K. — disse Denise. — Mas eu vou pegar um sanduíche. Quer que lhe traga alguma coisa na volta?

— Não, muito obrigado. — Philips notou que o   impressor estava-se ativando.

— Fico realmente satisfeita por ver que sua pesquisa está indo tão bem — disse ela na porta. — Sei como isso é importante para você. — Depois saiu.

Assim que o impressor parou, Philips puxou a folha. Como na primeira vez, o relatório estava muito completo e, para delícia de Philips, o computador tornava a descrever a variação de densi­dade e recomendava fazer mais radiografias de diferentes ângulos bem como uma outra CAT scan.

Jogando a cabeça para trás, Philip soltou um grito de entusias­mo, batendo sobre o balcão como se fosse num tambor. Algumas das radiografias de Lisa Marino soltaram-se dos grampos que as prendiam e caíram do negatoscópio. Ao virar-se e curvar-se para apanhá-las, ele deparou com Helen Walker. Ela estava junto à por­ta, olhando-o como se ele estivesse maluco.

— O senhor está bem, Dr. Philips? — perguntou Helen.

— Claro — disse Martin, sentindo-se enrubescer enquanto apa­nhava as radiografias. — Estou ótimo. Apenas um pouco excitado. Pensei que você tinha ido almoçar.

— Eu fui — disse Helen. — Na volta trouxe um sanduíche para comer em minha mesa.

— Que tal se você chamasse William Michaels ao telefone para mim?

Helen acenou com a cabeça e desapareceu. Philips recolocou as chapas de raios X no lugar. Olhando para as insignificantes man­chas brancas, ele imaginava o que poderiam significar. Não pare­ciam de cálcio, e nem estavam orientadas como vasos sangüíneos. Pôs-se a pensar em como poderia determinar se as alterações eram na massa cinzenta ou área celular do cérebro chamada de córtex, ou se eram na matéria branca ou camada fibrosa do cérebro.

A cigarra do telefone tocou, e Philips estendeu a mão e atendeu na extensão. Era Michaels. A excitação de Philips era óbvia, en­quanto descrevia o incrível sucesso do desempenho da programação. Disse que ela era capaz de detectar um tipo de variação de densidade que passara despercebida. Falava com tanta rapidez que Michaels lhe disse para ir mais devagar.

— Bem, fico satisfeito por saber   que está funcionando tão bem quanto esperávamos — falou, finalmente, Michaels,   quando Martin fez uma pausa.

— Tão bem quanto esperávamos? Muito mais do que eu jamais pensei.

— Ótimo. Quantas chapas antigas você passou pelo aparelho?

— Realmente apenas uma — admitiu Martin. — Passei duas, mas ambas eram da mesma paciente.

— Passou só duas radiografias? — indagou Michaels, desa­pontado. — Espero que você não se esteja desgastando.

— Muito bem, muito bem. Infelizmente não disponho de muito tempo durante o dia para dedicar ao nosso projeto.

Michaels disse que entendia, mas implorou a Philips que com­parasse a programação com todas as radiografias de crânio que ele

havia interpretado nos últimos anos, em vez de ficar apegado a um achado positivo. Michaels tornou a enfatizar que, neste ponto do trabalho deles, e eliminação das falsas interpretações ou leituras negativas era a tarefa mais importante.

Martin continuava a escutar, mas não podia parar de estudar as variações aracniformes de densidade da chapa de raios X de Lisa Marino. Sabia que se tratava de uma paciente presa de verti­gens, e sua mente científica de pronto perguntou se não poderia haver uma associação entre as vertigens e aqueles sutis achados na radiografia. Talvez eles representassem alguma doença neurológica difusa...

Philips terminou sua conversa com Michaels com um novo sentimento de excitação. Havia-se lembrado de que um dos diagnós­ticos de Lisa Marino fora o de esclerose múltipla. Que tal se ele topasse com um diagnóstico radiológico para a doença? Seria uma descoberta fantástica. Há anos que os médicos vinham à procura de um diagnóstico de laboratório para a esclerose múltipla. Martin sabia que tinha de fazer mais radiografias de Lisa Marino e uma nova CAT scan. Não ia ser fácil, desde que ela acabava de ser operada, e ele precisava obter a autorização de Mannerheim. Mas este era inclinado às pesquisas, e Philips decidiu abordá-lo direta­mente.

Através da porta aberta Philips berrou para que Helen chamas­se o neurocirurgião ao telefonar e retornou à chapa de raios X de Lisa Marino. Em termos radiológicos as alterações de densidade eram denominadas de reticulares, embora as finas linhas mais pare­cessem paralelas do que formando uma rede. Usando de uma lente de aumento, Martin imaginou se as fibras nervosas poderiam ser responsáveis pelo desenho que ele estava vendo. Esta idéia não fazia sentido devido aos raios X relativamente fortes que era pre­ciso empregar para atravessar o cérebro. Sua seqüência de pensa­mentos foi interrompida pela cigarra. Mannerheim estava ao telefone.

Philips começou a conversa com algumas cortesias habituais, ignorando o recente episódio a respeito dos raios X na sala de operação. Com Mannerheim era sempre bom deixar as coisas corre­rem suavemente. O cirurgião estava singularmente calado de modo que Martin continuou, explicando que estava telefonando porque havia descoberto certas densidades peculiares nas radiografias de Lisa Marino.

— Acho que essas densidades deveriam ser exploradas e gos­taria de fazer mais chapas do crânio e outra CAT scan, assim que a paciente possa tolerar. Claro, se você concordar.

Seguiu-se uma pausa desconfortável. Philips estava prestes a prosseguir, quando Mannerheim falou com rispidez:

— Isto é alguma piada? Se é, é de muito mau gosto.

— Não se trata de piada — retrucou Martin, desconcertado.

— Escute   — gritou Mannerheim, elevando   a   voz. — Por Deus! Já está um pouco tarde para a Radiologia estar interpretando chapas agora.

Houve um estalido e o telefone emudeceu. O comportamento egocêntrico de Mannerheim parecia ter alcançado novas alturas. Martin desligou o telefone, pensando. Sabia que não podia deixar que suas emoções interferissem; além disso, havia uma outra opção. Ele sabia que Mannerheim não acompanhava com muito cuidado o pós-operatório de seus pacientes, e que era Newman, o Residente-Chefe, o responsável por aquele procedimento diário. Martin resol­veu entrar em contato com Newman e ver se a moça ainda estava na sala de recuperação.

— Newman? — respondeu a mesa do Centro Cirúrgico. — Já faz algum tempo que saiu.

— Oh! — exclamou Philips, passando   o fone para o outro ouvido. — Lisa Marino ainda está na sala de recuperação?

— Não — retrucou a mesa do Centro Cirúrgico. — Infeliz­mente ela jamais foi para lá.

— Jamais foi para lá? — Repentinamente Philips compreen­deu a conduta de Mannerheim.

— Morreu na mesa — disse a enfermeira. — Foi uma tragé­dia, principalmente desde que foi o primeiro caso de Mannerheim.

Philips retornou ao negatoscópio. Em vez de ver a radiografia de Lisa Marino, via o rosto da jovem conforme o vira naquela manhã na área de espera da ante-sala do Centro Cirúrgico. Lem­brava-se de sua imagem parecida com a de um pássaro sem suas penas. Era de transtornar, e Philips obrigou sua atenção a voltar-se para a chapa de raios X. Pôs-se a pensar no que poderia ser apren­dido com o fato. Impulsivamente, Martin escorregou do banco. Queria ver a papeleta de Lisa Marino. Queria ver se podia associar o padrão da radiografia com quaisquer sinais e sintomas clínicos de esclerose múltipla na observação neurológica da paciente. Não subs­tituiria a realização de mais radiografias, mas haveria alguma coisa.

Ao passar por Helen, que estava comendo um sanduíche em sua escrivaninha, Philips falou-lhe que telefonasse para a sala de angiografia e dissesse aos residentes que começassem sem ele, que não demoraria a estar lá. Helen engoliu rapidamente e perguntou o que diria ao Sr. Michael Ferguson sobre a sala de suprimentos quando ele telefonasse. Philips não respondeu. Fingiu que não tinha ouvido. “Ferguson que se foda”, disse para si mesmo ao virar para o corredor principal que dava para a cirurgia. Tinha aprendido a des­prezar os administradores do hospital.

Havia ainda alguns pacientes aguardando na área de espera, quando Philips chegou no Centro Cirúrgico, porém de modo algum este se achava tão desordenado quanto de manhã. Philips reconheceu Nancy Donovan, que acabava de sair das suítes operatórias. Dirigiu-se a ela, que sorriu.

— Problemas com o caso Marino? — perguntou Philips, compassivamente.

O sorriso de Nancy Donovan desapareceu.

— Foi terrível. Simplesmente terrível. Uma garota tão jovem. Fiquei com pena do Dr. Mannerheim.

Philips assentiu com a cabeça, embora achasse espantoso o fato de que Nancy pudesse simpatizar com um bastardo como Man­nerheim.

— O que aconteceu? — indagou ele.

— Uma artéria grande abriu-se mesmo no fim da operação. Philips abanou a cabeça revelando compreensão e desalento ao mesmo tempo. Ele se lembrava da proximidade do eletrodo e da artéria cerebral posterior.

— Onde pode estar a papeleta? — indagou Philips.

— Não sei — admitiu Nancy Donovan. — Vou perguntar lá na mesa.

Philips ficou observando, enquanto Nancy falava com outras três enfermeiras do Centro Cirúrgico. Ao voltar, a moça disse:

— Elas acham que ainda está na Anestesia, junto à sala número vinte e um.

Retornando à sala de estar da cirurgia, que agora estava apinhada de gente, Philips envergou um avental operatório, e retroce­deu para a área do Centro Cirúrgico. O corredor principal que levava às salas de operação mostrava sinais das batalhas da manhã. Em torno de cada pia para lavagem e desinfecção havia poças d’água cujas superfícies se mostravam opalescentes com uma fina camada de sabão. Esponjas e escovas enchiam as bordas das pias, havendo mesmo algumas caída ao chão. Numa das macas empurradas para um dos lados do corredor dormia um cirurgião que provavelmente passara a noite toda operando e, ao terminar, achou que podia usar a maca para um momento de descanso. Em vez disso, adormecera e ninguém o perturbara.

Philips alcançou a sala de anestesia junto à sala de operação n.° 21 e experimentou a porta. Estava trancada. Retrocedendo, es­piou pela janelinha da sala de operação. Estava escuro, mas quando ele empurrou a porta, esta se abriu. Deu uma pancadinha num comutador e um dos enormes projetores operatórios do formato de um tímbale acendeu com um zumbido elétrico. O feixe de luz con­centrou-se sobre a mesa de operação deixando o resto da sala numa relativa escuridão. Philips tomou um choque. A sala n.° 21 não havia sido limpa desde o desastre do caso Marino. A mesa de operação vazia com seu suporte mecânico tinha uma aparência par­ticularmente maligna. Pelo chão, em torno da cabeceira da mesa, havia poças de sangue coagulado. Pegadas de sangue irradiavam em várias direções.

A cena fez Martin sentir-se mal, lembrando-lhe desagradáveis episódios da Escola de Medicina. Ele estremeceu, e a sensação pas­sou. Evitando propositalmente as manchas de sangue, contornou a mesa e passou pela porta de vaivém para a sala de anestesia. Com o pé, manteve a porta entreaberta para poder ver onde ligar a luz. Mas a sala não estava tão escura quanto ele esperava. A porta que dava para o corredor encontrava-se aberta cerca de 15cm, permitindo a passagem de um pouco da luz do corredor. Surpreso, Phi­lips acendeu as lâmpadas fluorescentes do teto.

No centro da sala, que tinha a metade do tamanho da sala de operação, achava-se uma maca com um corpo amortalhado. O cadá­ver estava coberto por um lençol branco, exceto os dedos dos pés, que se projetaram esticados obscenamente. Não fora isso, e tudo estaria bem para Philips. Os dedos avisavam que o vulto coberto era de fato um corpo humano. Casualmente, em cima do corpo, estava colocada a papeleta do hospital.

Respirando de mansinho, como se a presença da morte fosse contagiosa, Philips contornou a maca e abriu completamente a porta que dava para o corredor. Dali podia ver o cirurgião dormindo e várias atendentes. A seguir, olhou em ambas as direções, imagi­nando se não teria aberto a porta errada cedo demais. Incapaz de decidir, resolveu ignorar o fato, e voltou à papeleta.

Estava prestes a abri-la, quando foi assaltado por uma com­pulsão de levantar a mortalha. Sabia que não queria olhar para o corpo e, no entanto, estendeu a mão e puxou o lençol. Antes que a cabeça ficasse descoberta, Philips fechou os olhos. Quando os abriu, viu-se contemplando o rosto de porcelana e sem vida de Lisa Marino. Um olho estava parcialmente aberto mostrando uma pupila vidrada e fixa. O outro achava-se fechado. Do lado direito de sua cabeça raspada havia uma incisão cuidadosamente suturada em forma de ferradura. Estava perfeitamente limpa e não se via sangue algum. Philips pôs-se a pensar se Mannerheim havia feito aquilo para poder dizer que ela morrera depois, e não durante a operação.

A fria finalidade da morte varreu a mente de Martin como um vento do Ártico. Rapidamente, ele cobriu a cabeça sem cabelos e levou a papeleta para o banco do anestesista. Como a maioria dos pacientes num hospital de universidade, a papeleta de Lisa Marino já estava grossa, embora ela estivesse hospitalizada há apenas dois dias. Havia longas observações feitas por residentes e estudantes de vários níveis. Philips folheou as antigas e prolixas consultas da Neurologia e da Oftalmologia. Encontrou até uma anotação feita por Mannerheim, mas os rabiscos eram totalmente   ilegíveis. O que Martin queria era o resumo final feito pelo Residente-Chefe da Neurocirurgia, Dr. Newman.

 

Em resumo a paciente é branca, tem vinte e um anos de idade, com um ano de história de epilepsia progressiva do lobo temporal, que deu entrada no hospital para submeter-se a uma lobectomia temporal direita sob anestesia local. A perturbação vertiginosa da paciente tem sido totalmente resistente ao máximo da terapêutica médica. As vertigens têm-se tornado mais freqüentes, em geral anunciadas por uma aura de odor desagradável, e caracterizadas por um aumento da agressividade e da atividade sexual. Os locais da vertigem foram mapeados em ambos os lobos temporais, porém mais significantemente no. direito pelo eletrencefalograma. Não há história conhecida de trauma ou lesão cerebral. A paciente tem gozado de boa saúde até a presente doença, embora se tenham registrado vários esfregaços atípicos de teste de Papanicolau.

A não ser os achados anormais do EEG, toda a observação neurológica foi normal.

Todos os exames de laboratório, inclusive os trabalhos de angiografia e a tomografia axial computadorizada (CAT scan) foram normais.

Subjetivamente, a paciente informou sofrer de alguns proble­mas de percepção visual, que no entanto não foram confir­mados pela Neurologia nem pela Oftalmologia. A paciente também informou parestesias passageiras e fraquezas mus­culares, mas não foram documentadas. Admite-se, porém sem confirmação, um diagnóstico de esclerose múltipla. A paciente esteve presente às grandes visitas e discussões na Neurologia e Neurocirurgia, e a opinião combinada é que se trata de uma boa candidata para uma lobectomia temporal direita.

(Assinado) George Newman

 

Philips recolocou a papeleta com todo o cuidado em cima de Lisa Marino como se ela ainda fosse capaz de experimentar sensações. Depois, voltou correndo para o vestiário a fim de trocar a roupa.

Tinha de admitir que a papeleta não fora tão recompensadora quanto ele esperara. Havia mencionado a esclerose múltipla confor­me ele se lembrava, porém não oferecia qualquer informação que pudesse substituir radiografias adicionais ou outra CAT scan. En­quanto acabava de se vestir, Philips ficou imaginando o quadro da pálida máscara mortal de Lisa. Isso o fez lembrar-se de que prova­velmente ela seria autopsiada, desde que morrera durante a opera­ção. Usando o telefone da parede, ele chamou o Dr. Jeffrey Reynolds na Patologia, um amigo e ex-bolsista, e lhe falou do caso.

— Eu ainda não sabia — disse Reynolds.

— Ela morreu na sala de operação por volta do meio-dia — informou Philips. — Embora eles levassem algum tempo para cos­turá-la.

— Não é incomum — disse Reynolds. — Às vezes, eles os levam para a sala de recuperação para dá-los como mortos lá para não estragar suas estatísticas operatórias.

— Você vai fazer uma autópsia? — perguntou Philips.

— Não posso dizer... Depende da ordem do inspetor.

— Se você realizar a autópsia, quando será? — continuou Philips.

— Para falar a verdade, agora estamos muito ocupados. Talvez à tardinha.

— Estou muito interessado neste caso — disse Philips. — Olhe, vou ficar perambulando pelo hospital até ser feita a autópsia. Você podia dar ordem para que me chamem quando forem exami­nar o cérebro?

— Claro. Vou dar a ordem e teremos uma bela festa. E se não houver autópsia, eu lhe comunicarei.

Atulhando tudo em seu armário, Philips saiu do vestiário. Desde o tempo de estudante que ele sofria de uma ansiedade irracional, toda a vez que estava atrasado em seu trabalho. Ao voltar pelo hospital cheio e atarefado, experimentou a mesma antiga sensação de má acolhida. Sabia que estava atrasado na sala de angiografia e que os residentes o estariam esperando; sabia que tinha de chamar Ferguson tanto quanto gostaria de ignorar o filho da puta; sabia que tinha de falar com Robbins sobre os técnicos que queriam tirar férias durante todo o verão; e sabia que Helen tinha uma dúzia de outras emergências aguardando por ele no escritório.

Ao passar pelo CAT scanner, Philips decidiu fazer um rápido desvio. Afinal de contas, o que eram mais dois minutos quando ele já estava tão atrasado. Entrando na sala do computador, Philips recebeu as boas-vindas do frio ar-condicionado exigido para con­servar os computadores em funcionamento. Denise e os quatro estudantes de Medicina estavam agrupados em torno da tela seme­lhante à de uma TV, totalmente absortos. Em pé, por trás deles, achava-se o Dr. George Newman. Este achegou-se ao grupo sem ser percebido, e olhou para a tela. Sanger estava descrevendo um grande hematoma subdural à esquerda, e mostrando aos estudantes como o coágulo sangüíneo havia empurrado o cérebro para a di­reita. Newman interrompeu e sugeriu que o coágulo sangüíneo podia ser intracerebral. Disse que achava que o sangue estava dentro do cérebro e não sobre sua superfície.

— Não! A Dra. Sanger está certa — disse Martin.

Todos se voltaram surpresos de ver Philips na sala. Ele cur­vou-se, e usando o dedo descreveu os aspectos clássicos de um hematoma subdural. Não havia dúvidas de que Denise estava certa.

— Bem, isso resolve tudo — falou Newman, bem-humorado. — Acho que era melhor levar esse camarada para a cirurgia.

— Quanto mais depressa melhor — concordou Philips. E su­geriu também onde Newman devia abrir o orifício no crânio para facilitar a remoção do coágulo. Estava para fazer algumas pergun­tas ao Residente-Chefe sobre Lisa Marino, mas achou melhor dei­xá-lo sair.

Antes de ele mesmo ir embora, puxou Denise para o lado.

— Escute. Para compensar sua espera no almoço, que tal um jantar romântico?

Sanger sacudiu a cabeça e sorriu.

— Está pronto para qualquer coisa, não é? Mas você sabe que estou de plantão no hospital esta noite.

— Sei — admitiu Martin. — Eu estava pensando no restau­rante do hospital.

— Maravilhoso — disse Denise com sarcasmo. — E seu jogo de tênis?

— Já o estou cancelando.

— Então, realmente você está pronto para topar qualquer coisa. Martin riu. Era verdade que ele só cancelava o jogo devido a emergências nacionais. Philips disse a Denise que o encontrasse em seu gabinete para examinarem as radiografias do dia, depois que ela tivesse terminado com o programa da CAT scan para os estu­dantes. Poderia levá-los, se eles quisessem ir também. De volta ao vestíbulo, despediram-se rapidamente, e Philips foi embora, dando ainda uma carreira. Ele queria fazer bastante vapor de modo que, quando passasse por Helen, nada mais fosse do que um borrão transitório e incapaz de ser detido.

 

Aguardando numa longa fila para se registrar. Lynn Anne Lucas estava pensando se tinha sido uma boa idéia ter vindo à sala de emergência. Antes telefonara para o serviço de saúde dos estudantes esperando ser examinada no campus, mas o médico havia saído às três horas, e o único lugar em que ela podia obter um tratamento imediato era a sala de emergência do hospital. Lynn Anne lutara consigo mesma sobre se devia ou não esperar até o dia seguinte. Mas tudo o que teve a fazer foi pegar um livro e ten­tar lê-lo para se convencer de que devia ir ao médico imediatamente. Lynn Anne estava assustada.

A unidade de emergência estava tão atarefada no fim da tarde que a fila, só para registro, se movia a passo de cágado. Era como se toda Nova York estivesse ali. O homem atrás de Lynn Anne estava bêbado, vestia uns trapos e fedia a urina e vinho velhos. De cada vez que a fila avançava, ele tropeçava em Lynn Anne e se agarrava a ela para não cair no chão. Na frente de Lynn Anne achava-se uma mulheraça, carregando uma criança toda embrulhada num cobertor sujo. A mulher e a criança estavam caladas, esperan­do sua vez.

Grandes portas se abriram à esquerda de Lynn Anne, e a fila teve de dar passagem a um enxame de macas que transportavam os resultados de um desastre de automóvel ocorrido poucos minutos antes. Os feridos e os mortos passavam rapidamente pela sala de espera e eram introduzidos diretamente na sala de emergência pro­priamente dita. Os que estavam esperando para serem vistos sabiam que ia levar muito mais tempo para serem chamados. Num dos cantos, uma família porto-riquenha achava-se sentada em torno de uma janela, jantando uma galinha assada à Kentucky. Pareciam completamente alheios ao que estava acontecendo na sala de emer­gência e nem tinham notado a chegada das vítimas do desastre de automóvel.

Finalmente, restou apenas a mulheraça com a criança na fren­te de Lynn Anne. Quando a mulher falava denotava ser estrangeira. Ela dizia à atendente que “o bebê dela não chorar mais”. A atendente retrucou-lhe que o comum era queixarem-se do contrário, o que a mulher não entendeu. A atendente pediu para ver o bebê. A mulher puxou as bordas do cobertor, mostrando um bebê da cor do céu antes de uma tempestade de verão, de um azul-cinza escuro. O bebê tinha morrido há tanto tempo que estava rijo como uma tábua.

Quando chegou sua vez, Lynn Anne estava tão chocada que nem podia falar. A atendente simpatizou com ela e disse-lhe que eles estavam preparados para ver de tudo. Repuxando seu cabelo castanho-avermelhado da testa, Lynn Anne reencontrou sua voz e deu seu nome, seu número de identificação de estudante e falou dos seus sintomas. A atendente disse-lhe que a atenderiam o mais pron­tamente possível.

Depois de esperar quase mais de duas horas, Lynn Anne Lucas foi conduzida a um vestíbulo cheio e colocada num cubículo sepa­rado de uma sala maior por cortinas de náilon manchadas. Uma eficiente EPL (enfermeira prática licenciada) tomou sua tempera­tura oral, sua pressão arterial e depois saiu. Lynn Anne ficou sen­tada na borda de uma velha mesa de exames escutando uma porção de sons que a cercavam. Suas mãos estavam úmidas devido à ansie­dade. A jovem tinha 20 anos, achava-se no terceiro ano preparató­rio, e vinha alimentando a idéia de entrar para a escola de Medicina, fazendo os cursos exigidos. Mas agora, ao olhar em torno de si, pôs-se a pensar. Aquilo não era o que ela havia esperado.

Era jovem e sadia, e sua única outra experiência com as salas de emergência do hospital tinha sido devido a uma queda de patins, quando estava com 11 anos de idade. Por uma grande coincidência, ela havia sido trazida para a mesma sala, desde que, antes de se mudar para a Flórida, morara com a família naquela vizinhança. Porém Lynn Anne não guardara uma lembrança má do acontecido. Ela presumia que o Centro Médico houvesse mudado tanto quanto sua vizinhança desde que ali estivera quando criança.

O interno que apareceu cerca de meia hora mais tarde era o jovem Dr. Huggens. Sendo de West Palm Beach, ele parecia apre­ciar o fato de que Lynn Anne fosse de Coral Gables, e falou um pouco sobre a Flórida enquanto olhava sua papeleta. Era óbvio também que ele estava satisfeito que Lynn Anne fosse uma bela típica moça americana, uma coisa que ele não vira em seu último milhar de pacientes. Mais tarde, ele tinha idéia de pedir-lhe o nú­mero de seu telefone.

— O que a trouxe aqui à Unidade de Emergência? — indagou ele, iniciando sua observação.

— É difícil de responder — retrucou Lynn Anne. — Há oca­siões em que não vejo direito. Isso começou há cerca de uma semana enquanto eu estava lendo. De repente comecei a experimentar pro­blemas com certas palavras. Podia vê-las mas não estava bem certa de seu significado. Ao mesmo tempo sentia uma terrível dor de cabeça. Aqui — explicou Lynn Anne colocando a mão na nuca e levando-a em torno da cabeça até um ponto acima do ouvido. — É uma dor surda que vem e vai.

O Dr. Huggens acenou afirmativamente com a cabeça.

— E sinto um certo cheiro — continuou Lynn Anne.

— Como o quê?

Lynn Anne parecia um pouco embaraçada.

— Não sei — retrucou ela. — É um cheiro ruim, e embora eu não saiba o que é, parece-me familiar.

O Dr. Huggens assentiu, mas era aparente que os sintomas de Lynn Anne não se estavam enquadrando numa categoria simples.

— Mais alguma coisa? — indagou o médico.

— Uma certa tonteira, e minhas pernas ficam pesadas, e isso vem acontecendo com mais freqüência agora, quase todas as vezes que tento ler.

O Dr. Huggens baixou a papeleta e examinou Lynn Anne. Es­piou dentro de seus olhos, ouvidos e boca, e auscultou-lhe o coração e os pulmões. Testou seus reflexos, a fez tocar em coisas, caminhar em linha reta, e relembrar seqüências de números.

— Você me parece perfeitamente normal — disse o Dr. Muggens. — Acho que você devia talvez pegar dois médicos e voltar para nos ver quando precisar tomar aspirina.   — E riu de sua própria piada.

Lynn Anne não riu. Tinha decidido que não seria despachada assim tão facilmente, em especial depois de aguardar tanto tempo. O Dr. Huggens notou que ela não estava reagindo à piada.

— Seriamente. Acho que você devia tomar um pouco de aspi­rina para alívio dos sintomas e voltar amanhã à Neurologia. Talvez eles possam descobrir alguma coisa.

— Eu quero ser encaminhada à Neurologia agora — disse a moça.

— Isso aqui é um posto de emergência, não um serviço clínico — falou o Dr. Huggens com firmeza.

— Pouco se me dá — retrucou Lynn Ann, ocultando desa-fiadoramente suas emoções.

— Muito bem, muito bem! — exclamou o Dr. Huggens. — Vou contactar a Neurologia. De fato, a Oftalmologia também, mas isso talvez demore.

Lynn Anne acenou com a cabeça. Estava com medo de falar naquele momento, receosa de que sua defesa se dissolvesse em lá­grimas.

E demorou mesmo. Já passava das seis horas quando a cortina tornou a ser afastada. Lynn Anne ergueu os olhos para o rosto barbado do Dr. Wayne Thomas. Este, um negro de Baltimore, constituiu uma surpresa para Lynn Anne, que nunca tinha sido tratada por um médico de cor. Mas rapidamente a moça afastou sua reação inicial e respondeu às perguntas feitas com toda a pre­cisão.

O Dr. Thomas descobriu vários outros fatos que considerou significativos. Cerca de três dias antes, Lynn Anne tinha tido um dos seus “episódios”, conforme ela os denominava, e havia pulado ime­diatamente para fora da cama onde estava lendo. A próxima coisa de que se lembrava era de ter “voltado a si” no chão, onde caíra desmaiada. Aparentemente tinha batido com a cabeça, pois havia ficado com um grande galo do lado direito do couro cabeludo. O Dr. Thomas também ficou sabendo que Lynn Anne tinha tido dois esfregaços atípicos do teste de Papanicolau, e que estava marcada para voltar à Clínica Ginecológica dentro de uma semana. A moça também sofrera recentemente de uma infecção do trato urinário tratada com sucesso com enxofre.

Depois de terminar a anamnese, o Dr. Thomas chamou uma enfermeira e realizou o mais completo exame clínico a que Lynn Anne jamais se submetera. Ele fez tudo o que o Dr. Huggens tinha feito e mais alguma coisa. A maioria dos testes era um mistério total para Lynn Anne, porém sua minuciosidade a encorajava. O único exame que a desagradou foi a punção lombar. Curvada de lado, com os joelhos tocando o queixo, ela sentiu uma agulha atra­vessar sua pele bem no fim das costas, mas foi apenas uma dor muito rápida.

Ao terminar, o Dr. Thomas disse a Lynn Anne que queria tirar algumas radiografias para se certificar de que ela não havia fratu­rado o crânio quando sofrera a queda. Pouco antes de deixá-la, falou que tudo o que encontrara durante o exame tinha sido o fato de que certas regiões de seu corpo pareciam ter perdido a sensibilidade. Admitiu não saber se isso era ou não importante.

Lynn Anne tornou a esperar.

 

— Você já viu? — perguntou Philips enquanto metia mais uma porção de peru na boca. Mastigou e engoliu rapidamente. — O primeiro paciente   de Mannerheim morto na sala de operação, e tinha de ser uma doente de quem eu queria mais radiografias. — Tinha apenas vinte e um anos, não é? — disse Denise.

— Certo. — Martin pôs mais sal e pimenta na comida para dar-lhe um pouco de sabor. — Foi uma tragédia, na verdade uma tragédia dupla, já que não pude fazer as radiografias.

Eles haviam levado suas bandejas do restaurante do hospital para o canto mais longe do balcão de vapor, procurando isolar-se o máximo possível do ambiente. Era difícil. As paredes estavam pintadas de uma cor de mostarda escura; o chão era coberto por um linóleo cinzento; e as cadeiras de plástico moldado eram de uma terrível cor amarelo-esverdeada. Ao fundo, o sistema de alto-falan­tes do hospital declamava monotonamente nomes de médicos e os números das extensões para as quais deveriam telefonar.

— Por que ela foi operada? — perguntou Denise, pegando um pouco de salada.

— Problema de vertigens. Mas o interessante é que ela podia ter tido esclerose múltipla. Depois que você me deixou esta tarde, ocorreu-me que as alterações de densidade que vimos na radiogra­fia podiam representar algum tipo de doença neurológica difusa. Verifiquei a papeleta dela. A esclerose múltipla entrava nas consi­derações.

— Você examinou algumas chapas de pacientes com esclerose múltipla reconhecida?

— Isso vai começar esta noite — respondeu Philips. — A fim de checar a programação de Michaels, tenho de passar no apa­relho o que puder de chapas de crânio. Seria muito interessante se eu pudesse encontrar outros casos com o mesmo quadro radiológico.

— Parece que seu projeto de pesquisa vai dar realmente certo.

— Espero que sim. — Martin pegou um pedaço de aspargo e resolveu não comer mais. — Estou tentando   não   ficar muito excitado cedo demais, porém, por Deus, parece que as coisas vão indo bem. Eis por que fiquei tão entusiasmado com o caso Marino. Ele prometia algo de imediatamente tangível. Na verdade, ainda há uma chance. Ela vai ser autopsiada esta noite, de modo que tentarei estabelecer uma relação entre o quadro radiológico e os achados patológicos. Se se tratar de esclerose múltipla, é para ficarmos aler­tas, pois estamos no caminho certo. Mas uma coisa eu lhe digo: tenho de achar algo para me afastar desta corrida clínica de ratos, nem que seja alguns dias por semana.

Denise baixou o garfo e fitou os olhos azuis e agitados de Martin.

— Afastar-se da clínica? Você não pode fazer isso. Você é um dos melhores neuro-radiologistas que há. Pense em todos os pacien­tes que se beneficiam de suas habilidades. Se você deixar a radio­logia clínica, isso será uma verdadeira tragédia.

Martin descansou o garfo e segurou a mão esquerda dela. Pela primeira vez ele não se incomodava que alguém no hospital os pu­desse estar observando.

— Denise — disse ele baixinho. — Atualmente em minha vida só há duas coisas pelas quais eu realmente me interesso:   você e minha pesquisa. E se houvesse um meio de ganhar a vida só estando com você, eu poderia até esquecer a pesquisa.

Denise olhou para Martin sem saber se devia ficar lisonjeada ou acautelar-se. Cada vez tinha mais confiança na afeição dele, mas não fazia idéia de que Martin tivesse potencial para assumir um compromisso. Desde o início ficara impressionada por sua repu­tação e aparente conhecimento enciclopédico da radiologia. Ele havia sido um amante e um ídolo profissional, e ela não se permi­tira pensar que talvez seu relacionamento tivesse um futuro. Denise não tinha certeza de que estivesse pronta para tal.

— Escute — continuou Martin. — Este não é o momento nem o lugar para falarmos sobre isso. — E afastou os aspargos   do caminho como se quisesse tornar bem claro o que ia dizer. — Mas é importante que você saiba onde eu quero chegar. Você se encon­tra no estado inicial de seu treinamento clínico, o que é muito gratificante. Passa todo o tempo aprendendo e tratando com os doen­tes. Infelizmente eu passo a menor de todas as partes de meu tempo fazendo isso. A maior parte é gasta tentando tratar de dores de cabeça administrativas e de porcarias burocráticas. Já estou até aqui.

Denise ergueu sua mão esquerda, que ainda se achava forte­mente presa pela dele, e roçou de leve os lábios nos nós dos dedos de Martin. Fê-lo rapidamente, e depois fitou-o por baixo de suas sobrancelhas escuras. Estava sendo propositadamente coquete, sa­bendo que assim desfaria sua súbita raiva. O ato funcionou como de hábito, e Martin riu. E apertou bastante a mão dela antes de soltá-la, olhando depois em torno para ver se alguém tinha visto.

Seu beeper deu-lhes um choque ao entrar em ação. Ele se levan­tou de imediato e correu para um dos telefones do hospital. Denise ficou observando-o. Fora atraída por ele desde que se conheceram, porém ela se sentia cada vez mais cativada por seu humor e sur­preendente sensibilidade, e agora a nova admissão de insatisfação e vulnerabilidade por parte dele parecia aumentar seus sentimentos.

Mas era verdadeira a vulnerabilidade? Era a desculpa de Phi­lips sobre as cargas administrativas apenas uma racionalização para explicar uma insatisfação por ter ficado mais velho e ter de admitir que, profissionalmente falando, sua vida tinha-se tornado previsível? Denise não sabia. Desde que conhecera Martin, ele sempre abor­dara seu trabalho com tal compulsão que ela jamais considerara a possibilidade da insatisfação, porém sentindo tocada com o fato de ele partilhar seus sentimentos com ela. Isso devia significar que ele achava o seu relacionamento mais importante do que ela pensara.

Vendo Martin ao telefone, a médica admitiu um outro ponto sobre o caso que mantinham. Ele lhe dera forças para terminar finalmente com um outro relacionamento, que tinha sido comple­tamente destrutivo. Quando Denise era ainda estudante de Medi­cina, conhecera e ficara deslumbrada por um residente da Neurolo­gia que havia habilmente manipulado seus sentimentos. Devido ao isolamento impessoal da escola, Denise ficara suscetível à idéia do compromisso. Jamais tivera qualquer dúvida em sua mente de que seria capaz de partilhar um lar e uma carreira com alguém que conhecia intimamente as exigências da Medicina. Richard Druker, seu amante, foi bastante astuto para reconhecer seus sentimentos e convencê-la de que sentia a mesma coisa. Mas não era assim. Ele dirigiu-a durante anos, evitando qualquer compromisso real, mas inteligentemente cultivando sua dependência. O resultado foi que ela não pôde deixá-lo, mesmo depois de reconhecer quem era ele e sofria a humilhação de vários de seus casos. Continuava a voltar como um cão velho para ser mais maltratada, esperando em vão que ele se corrigisse e se tornasse a pessoa que dizia ser. A espe­rança deu lugar ao desespero, quando ela começou a questionar mais a sua feminilidade do que sua imaturidade. Não fora capaz de abandoná-lo até conhecer Martin Philips.

Enquanto Martin voltava para a mesa, Denise sentiu uma onda de afeição e gratidão. Ao mesmo tempo reconhecia que ele era um homem, e ela tinha medo de assumir um compromisso que ele não sentia.

— Hoje não é o meu dia — disse Martin, sentando-se em frente dela. — Era o Dr. Reynolds. Marino não vai ser autopsiada.

— Eu achava que devia ser — falou Denise, surpresa e pro­curando fazer sua mente retornar à Medicina.

— Claro. Era um caso para o inspetor médico, mas por deferência a Mannerheim, o inspetor liberou o corpo do nosso Departa­mento de Patologia. A Patologia abordou a família pedindo per­missão para realizar a autópsia, e a família recusou. Parece que eles estavam bastante histéricos.

— Isso é compreensível — disse Sanger.

— Suponho — falou Philips, abatido. — Diabos... diabos!

— Por que não pegar algumas chapas de pacientes com esclerose múltipla reconhecida e ver se pode descobrir alterações seme­lhantes?

— É — falou Philips, com um suspiro.

— Você podia pensar mais na paciente em vez de em seu desa­pontamento.

Martin fitou Denise por vários minutos, fazendo-a sentir que havia ultrapassado uma fronteira não mencionada. Ela não tinha querido pregar moral. Então, seu rosto mudou de expressão e ele deu um largo sorriso.

— Você está certa! — exclamou ele. — Você na verdade acaba de me dar uma fabulosa idéia.

 

Diretamente do lado oposto à mesa da sala de emergência havia uma porta cinzenta com um letreiro que dizia

 

               PESSOAL DA UNI­DADE DE EMERGÊNCIA

 

Era a sala de estar para os internos e residentes, embora raramente fosse usada para repouso. Atrás havia um lavatório com chuveiros para os homens; as médicas tinham de subir para a sala de estar das enfermeiras. Ao correr de um lado havia três quartos pequenos, cada um com duas camas de lona de armar, porém não eram muito usadas a não ser para tirar uns cochilos. Nunca havia tempo.

O Dr. Wayne Thomas havia ocupado a única cadeira confor­tável da sala de estar: um antigo monstro de couro com um pouco do estofamento saindo por uma abertura como a de uma ferida aberta.

— Acho que Lynn Anne Lucas está doente — dizia ele com convicção.

Em torno dele, apoiados na mesa ou sentados em uma das cadeiras de madeira achavam-se os Dr. Huggens, Dr. Carolo Langone, residente em Medicina Interna, Dr. Ralph Lowry, residente em Neurologia, Dr. David Harper, residente em Ginecologia, e o Dr. Sean Farnsworth, residente em Oftalmologia. Separados do grupo havia dois outros médicos lendo um ECG junto a um balcão.

— Acho que você está ficando depravado — disse o Dr. Lo­wry com um sorriso cínico. — Ela é a garota mais bem apanhada que vimos durante todo o dia e você está querendo arranjar uma desculpa para interná-la em seu serviço.

Todos riram, menos o Dr. Thomas.

— Ralph acertou — admitiu Langone. — Ela não tem febre, seus sinais vitais são normais, exame de sangue normal, urina nor­mal, e exame do fluido cérebro-espinhal normal.

— E uma   radiografia   do   crânio   normal — aduziu o Dr. Lowry.

— Bem — falou o Dr. Harper, levantando-se de sua cadeira. — Seja lá o que for, não é para a Ginecologia. Ela apresenta dois testes de Papanicolau anormais,   porém   isso está sendo visto   na clínica. Assim, vou deixar que vocês resolvam este problema sem mim. Para falar a verdade, acho que ela está ficando histérica.

— Concordo — disse o Dr. Farnsworth. — Ela se queixa de perturbações da visão, mas seu exame oftalmológico é normal e na leitura do cartão para visão de perto é capaz de ler com facilidade a fileira dos números pequenos.

— E quanto aos seus campos visuais? — perguntou o   Dr. Thomas.

Farnsworth pôs-se de pé, preparando-se para sair.

— A mim me parecem normais. Podemos realizar amanhã um campo visual, de Goldman, mas não os fazemos como uma emer­gência.

— E as retinas? — perguntou o Dr. Thomas.

— Normais — respondeu Farnsworth. — Muito obrigado pela consulta. Foi muita cortesia sua. — E apanhando sua maleta de instrumentos, o oftalmologista deixou a sala.

— Cortesia! Merda! — disse o Dr. Lowry. — Se mais algum maldito veado espiador de olhos residente me disser que eles não fazem campos de Goldman à noite, acho que lhe dou um murro.

— Cale a boca, Ralph — falou Thomas. — Você está come­çando a agir como um cirurgião.

O Dr. Langone levantou-se e espreguiçou-se.

— Também vou indo. Diga-me, Thomas, por que acha você que esta moça está doente: só por causa da diminuição de sua sen­sibilidade? Acho que isso é muito subjetivo.

— É uma impressão que tenho. Ela está assustada, mas estou certo de que não é histérica. Além disso, suas anormalidades sensoriais são bem reproduzíveis. Ela não está simulando. Existe qual­quer coisa escusa no cérebro dela.

O Dr. Lowry riu.

— A única coisa escusa nesse caso é o que você gostaria de fazer, se a encontrasse em circunstâncias mais sociais. Vamos, Tho­mas, se ela fosse um cão você lhe diria para voltar à clínica antes do meio-dia.

Toda a saia ecoou com as risadas. O Dr. Thomas ergueu-se da poltrona e acenou com a mão despedindo-se dos colegas.

— Desisto de vocês, seus palhaços. Eu mesmo vou tratar do caso.

— Não se esqueça de lhe pedir o número do telefone — disse o Dr. Lowry, quando Thomas saía. O Dr. Huggens riu, pois já havia pensado que não era má idéia.

De volta à Unidade de Emergência, Thomas olhou em derredor. Das sete às nove horas havia uma relativa trégua como se as pessoas fizessem uma pausa em seus sofrimentos, dores e doenças enquanto o jantavam. Por volta das 10 começavam a chegar os bêbados, os acidentados em desastres de automóveis, e os loucos; lá pelas 11 horas seriam os crimes passionais. Assim, Thomas tinha um pouco de tempo para pensar em Lynn Anne Lucas. Algo o estava intrigando naquele caso; era como se ele estivesse deixando passar despercebido um ponto importante.

Parando junto ao balcão principal, perguntou a uma das atendentes se a papeleta do hospital de Lynn Anne Lucas já havia che­gado da sala de registro. A atendente verificou, disse que não, mas depois garantiu-lhe que tornaria a telefonar. O Dr. Thomas assentiu distraidamente, imaginando se Lynn Anne havia tomado alguma droga exótica. Virando para o corredor principal, retornou à sala de exames, onde a moça estava esperando.

 

Denise não tinha a menor suspeita de qual seria a “fabulosa idéia” de Martin. Ele lhe pedira que voltasse a seu gabinete por volta das 9 horas da noite. Já passavam cerca de 15 minutos da hora mar­cada, quando ela teve uma folga na interpretação que estava fazendo das chapas de traumatizados na sala de emergência. Usando da escada através do andar térreo fechado do hospital, Denise chegou ao pavimento da Radiologia. O corredor parecia um lugar muito diferente da comoção e do caos do dia. Lá no fim do vestíbulo um dos serventes estava passando um polidor pelo chão de vinil.

A porta do gabinete de Philips estava aberta, e Denise podia ouvi-lo ditando com uma voz monótona. Quando ela entrou, encon­trou-o terminando os angiogramas cerebrais do dia. Em frente dele, em seu alternador, achava-se uma série de estudos angiográficos. Dentro de cada chapa de raios X do crânio, os milhares de vasos sangüíneos se mostravam como filamentos parecendo um sistema de raízes de uma árvore de cabeça para baixo. Enquanto falava, ia apontando com o dedo para as lesões para benefício de Denise. Esta olhava e assentia com a cabeça, embora não compreendesse como ele sabia os nomes, tamanho e posição normal de cada vaso.

“Conclusão:”, falou Philips, “a angiografia cerebral revela uma grande malformação arteriovenosa nos gânglios basais neste jovem de dezenove anos. Ponto. Esta malformação circulatória é alimen­tada pela artéria cerebral média direita através dos ramos lentículo-estriados bem como da artéria cerebral posterior direita através do tálamo-perfurado e dos ramos talamogeniculados. Ponto. Fim do ditado. Favor enviar uma cópia deste relatório para os Drs. Man­nerheim, Prince e Clauson. Muito obrigado.”

Com um estalido, o gravador parou, e Martin girou em sua cadeira. Sorria maliciosamente e esfregava as mãos como um tratante shakespeariano.

— Cronometragem perfeita — falou ele.

— O que foi que deu em você? — perguntou Denise, fingindo-se assustada.

— Vamos — disse Philips, levando-a para fora. Encostada à parede estava uma maca completamente carregada de frascos para injeções endovenosas, roupas de cama e um travesseiro. Sorrindo ante a surpresa da moça, Martin começou a empurrar a maca pelo vestíbulo. Denise alcançou-o junto ao elevador dos pacientes.

— Fui eu quem lhe deu esta fabulosa idéia? — perguntou ela, ajudando-o a introduzir a maca no elevador.

— Isso mesmo — retrucou Philips. A seguir apertou o botão do subsolo e as portas se fecharam.

Eles saíram nos intestinos do hospital. Um emaranhado de canos, como se fossem vasos sangüíneos, corria em ambos os sen­tidos torcendo-se e envolvendo-se uns aos outros como se em ago­nia. Tudo era pintado de cinzento ou negro, eliminando toda sensa­ção de cor. A luz, que era escassa, provinha de lâmpadas fluorescentes encerradas numa malha de fios de arame e colocadas a grandes intervalos, provocando manchas contrastantes de uma branca luminosidade separadas por longas extensões de sombra forte. Do outro lado do elevador havia um letreiro: NECROTÉRIO: SIGA A LINHA VERMELHA.

Como um rasto de sangue, a linha corria pelo meio do corre­dor. Traçava um caminho complicado através das passagens escuras, torcendo-se violentamente quando o corredor se ramificava. Por fim descia por uma rampa cuja inclinação quase que arrancava a maca das mãos de Martin.

— Em nome de Deus, o que estamos fazendo aqui? — pergun­tou Denise. Sua voz ecoou juntamente com suas passadas por aque­les espaços destituídos de vida.

—   Você vai ver — retrucou Philips. Seu sorriso tinha desapa­recido e a voz estava tensa. Sua jocosidade original dera lugar a uma nervosa preocupação sobre a prudência do que estava fazendo.

Subitamente, o corredor se abriu numa caverna subterrânea. Aqui, a luz era tão escassa quanto no corredor, e o teto, da altura de um prédio de dois andares, perdia-se na sombra. Na parede à esquerda achava-se a porta fechada que dava para o incinerador, e se podia ouvir o silvar das chamas famintas.

Adiante estavam as duplas portas de vaivém que levavam ao necrotério. No chão, em frente delas, a linha vermelha terminava com abrupta finalidade. Philips largou a maca e avançou na direção da entrada. Abrindo a porta da direita, olhou para dentro.

— Estamos com sorte — disse, retornando à maca. — O lugar está à nossa disposição.

Denise seguiu-o com relutância.

O necrotério era um amplo aposento negligenciado, que se deixara estragar ao ponto de parecer um daqueles pórticos desen­terrados de Pompéia. Do teto pendia uma porção de fios de luz com abajures, porém só uns poucos tinham lâmpadas. O chão era cons­truído de fragmentos de mármore manchados, enquanto as paredes eram de azulejos baratos e rachados. No centro do aposento havia uma depressão com uma velha mesa de autópsia de mármore. Não era usada desde os anos 20, e ali no meio dos restos arruinados parecia um altar pagão, As autópsias atualmente eram realizadas no Departamento de Patologia no quinto andar, num moderno conjunto de aço inoxidável.

Inúmeras portas ladeavam as paredes do aposento, inclusive uma maciça porta de madeira que parecia a de uma geladeira de açougue. Na parede do fundo havia um corredor inclinado que, na maior escuridão, dava para uma porta que se abria numa alameda atrás do complexo do hospital. Havia um silêncio de morte. Os únicos ruídos eram o ocasional gotejar de uma pia e os sons de seus próprios passos.

Martin estacionou a maca e ergueu o frasco de soro endove­noso.

— Tome — disse ele, entregando a ponta de um dos lençóis limpos a Denise e mandando que ela o prendesse em torno do acolchoado da maca.

Philips dirigiu-se até a grande porta de madeira, puxou o pino do trinco e, com grande esforço, abriu-a. De dentro escapou uma névoa gelada, que se depositou sobre o chão.

Depois de achar o comutador da luz, Martin acendeu-a e notou que Denise não se havia mexido.

— Venha! E traga a maca.

— Não saio daqui até você me dizer o que se está passando — retrucou ela.

— Estamos fingindo que vivemos no século quinze.

— O que você quer dizer?

— Vamos roubar um cadáver para a ciência.

— Lisa Marino? — perguntou Denise, incrédula.

— Exatamente.

— Não vou tomar parte nisso. — E Denise recuou como se para fugir.

— Denise, não seja boba. Tudo o que vou fazer são a CAT scan e as radiografias que eu queria. Depois, o corpo vai voltar direitinho para cá. Você não está pensando que eu vou guardá-lo comigo, está?

— Não sei o que pensar.

— Que imaginação — falou Philips, enquanto pegava a extre­midade da maca e a puxava para a antiga geladeira. O frasco de soro endovenoso tilintou de encontro a seu suporte vertical de metal. Denise entrou em seguida, explorando rapidamente com os olhos o interior completamente forrado de azulejos e ladrilhos; paredes, teto e piso. Os azulejos outrora tinham sido brancos; agora, eram de uma cor cinza indeterminada. O lugar tinha nove metros de com­primento e seis de largura. Dispostos em fileiras de cada lado havia antigos carrinhos de madeira com rodas do tamanho das de uma bicicleta. No centro da sala havia uma pista aberta. Cada carrinho continha um cadáver amortalhado.

Lentamente, Philips avançou pela passagem central, olhando de um lado para o outro. No fundo da sala ele se virou e voltou, come­çando a levantar a ponta dos lençóis. Denise tremia de frio naquele ambiente úmido. Ela procurava não olhar para os corpos que lhe estavam mais perto, e que eram o resultado desagradável de um dos acidentes de tráfego ocorrido na hora do rush. Um pé, ainda com o sapato, projetava-se num ângulo maluco, demonstrando que a perna se havia quebrado no meio. Em algum lugar, embora escon­dido, trabalhava um velho compressor.

— Ah, aqui está ela — exclamou Philips, espiando por baixo de um dos lençóis.

Felizmente para Denise, ele deixou a mortalha no lugar e fez-lhe sinal para que descesse com a maca. Ela o atendeu como um autômato.

— Ajude-me a levantá-la — disse Philips.

Denise segurou os tornozelos de Lisa Marino através do lençol para evitar tocar no cadáver. Philips ergueu o torso. Após contarem até três, moveram o corpo, notando que já tinha ficado rígido. A seguir, com Denise puxando e Martin empurrando, saíram com a maca da geladeira. Philips fechou e trancou a porta.

— Para que o frasco de soro? — perguntou Sanger.

— Não quero que as pessoas pensem que   estamos andando por aí com um cadáver — falou Philips. — E, para esse efeito, o soro endovenoso é o toque de mestre.

Martin desceu o lençol, expondo o rosto sem sangue de Lisa Marino. Denise desviou o olhar enquanto ele erguia a cabeça e metia o travesseiro por baixo dela. Depois enfiou o tubo vazio do frasco de soro embaixo do lençol. Recuando um passo, Philips ficou apreciando o efeito.

— Perfeito. — Em seguida, deu uma pancadinha no braço do cadáver, dizendo: — Está confortável agora?

— Martin, pelo amor de Deus, você precisa ser tão horrível?

— Bem, para falar a verdade, é um meio de defesa. Não tenho certeza que devêssemos estar fazendo isso.

— Agora ele me diz isso — gemeu Denise, enquanto ajudava a passar a maca pela porta dupla.

Voltando pelo mesmo caminho através do labirinto subterrâ­neo, entraram no elevador dos doentes. Para aflição deles, o carro parou no primeiro andar. Duas atendentes estavam esperando com um paciente   numa cadeira de rodas. Martin e Denise entreolharam-se por um instante, com medo. Então Denise desviou o olhar, criticando-se severamente por ter-se envolvido naquela ridícula extravagância.

As atendentes colocaram o paciente no elevador de modo que ele ficou olhando para o fundo, o que não devia fazer. As moças estavam conversando sobre a próxima temporada de beisebol e, se repararam na aparência de Lisa Marino, nada disseram. Mas com o doente foi diferente. Ele levantou os olhos e viu a enorme incisão suturada, em forma de ferradura, no lado da cabeça de Lisa Marino.

— Ela foi operada? — perguntou ele.

— Sim — respondeu Philips.

— Vai ficar boa?

— Ela está um pouco cansada — retrucou Philips. — Pre­cisa repousar um pouco.

O doente acenou com a cabeça como se compreendesse. Então as portas se abriram no segundo andar, e Philips e Sanger saíram. Uma das atendentes chegou mesmo a ajudar a empurrar a maca para fora do elevador.

— Isso é ridículo — disse Sanger, enquanto caminhavam pelo corredor vazio. — Sinto-me como uma criminosa.

Eles entraram na sala da CAT scan. O técnico ruivo viu-os através da janela de vidro com chumbo da sala de controle, e veio saudá-los. Philips disse-lhe que se tratava de um exame de emer­gência. Em seguida, o técnico ajustou a mesa, colocou-se atrás da cabeça de Lisa Marino e pôs suas mãos sob os ombros dela, pre­parando-se para erguê-la. Sentindo a carne gelada e sem vida, deu um pulo para trás.

— Mas ela está morta! — exclamou, chocado. Denise cobriu os olhos.

— Digamos que ela teve um dia difícil — falou Philips. — E você não vai falar nada sobre esta pequena ocorrência.

— Ainda quer uma CAT scan? — indagou o técnico, incrédulo.

— Decididamente, sim.

Aproximando-se, o técnico ajudou Martin a pôr Lisa sobre a mesa. Uma vez que não havia necessidade de dispositivos imobili­zadores, ele imediatamente pôs a mesa em funcionamento e a cabeça de Lisa correu para dentro do aparelho. Após verificar a posi­ção, levou Philips e Sanger para a sala de controle.

— Ela pode estar pálida — falou o técnico — mas parece melhor do que alguns doentes que pegamos na Neurocirurgia. — A seguir, apertou o botão para iniciar o processo de varredura e a enorme máquina em forma de rosca ativou-se subitamente, pondo-se a girar em torno da cabeça de Lisa.

Agrupando-se em frente ao visor da tela eles aguardaram. No alto da tela apareceu uma linha horizontal, depois desceu, parecen­do revelar a primeira imagem. A estrutura óssea do crânio era vi­sível, porém nada se podia definir dentro dela. O interior do crânio estava escuro e homogêneo.

— Que diabo é isso? — indagou Martin.

O técnico foi até à mesa de controle e verificou os ajustes. Voltou sacudindo a cabeça. Esperaram pela nova imagem. De novo foi visto o contorno do crânio, mas seu interior continuava uniforme.

— O aparelho tem funcionado bem esta noite? — perguntou Philips.

— Perfeitamente — respondeu o técnico.

Philips estendeu a mão e ajustou os controles do visor, va­riando o nível e a largura.

— Meu Deus! — exclamou depois de um minuto. — Sabem o que estamos vendo? Ar! Não existe cérebro. Foi retirado!

Todos se entreolharam partilhando uma sensação de surpresa e descrença. De repente, Martin virou-se e correu para a sala do aparelho explorador. Denise e o técnico seguiram-no. Martin agar­rou a cabeça de Lisa com ambas as mãos e suspendeu-a. Devido à rigidez, todo o torso do cadáver ergueu-se da mesa. O técnico ajudou, permitindo que Philips visse a região posterior da cabeça de Lisa. Ele precisou olhar atentamente para a pele lívida, mas achou: uma delicada incisão em forma de U que se estendia em torno da base do crânio dela, e fora fechada com uma costura de pontos subcuticulares de modo que não se via qualquer sutura.

— Acho melhor devolvermos este corpo ao necrotério — falou Martin, constrangido.

A viagem de volta foi rápida e quase sem nenhuma conversa. Denise não queria ir, porém sabia que Martin ia precisar de ajuda para retirar Lisa da maca. Ao chegarem ao incinerador, ele tornou a examinar tudo para ter certeza de que o necrotério estava vazio. Mantendo as portas abertas, ele acenou com a mão para Denise entrar, ajudando a empurrar a maca até a geladeira. Rápido, Philips abriu a maciça porta de madeira. Denise contemplava tudo ofegando no ar frio, enquanto descia de volta pela passagem, empurrando a maca. Quando iam alinhá-la com o antigo carrinho de madeira e estavam prestes a erguer o corpo, um som horrível ressoou no ar frio.

Denise e Martin sentiram seus corações pulsarem, e decorre­ram vários segundos antes de perceberem que o ruído era do beeper de Denise. A moça desligou-o rapidamente como se aquela intrusão fosse culpa sua, agarrou os tornozelos de Lisa e, após contarem até três, ajudou a passá-la para o carrinho.

— Há um telefone na parede do necrotério aí fora — disse Martin, levantando a mortalha. — Responda à sua chamada en­quanto vejo se o corpo está conforme o encontramos.

Não precisando de outro encorajamento, Denise saiu correndo. Estava totalmente despreparada para o que aconteceu. Ao se virar na direção do telefone, esbarrou em cheio num homem que se apro­ximara da porta da geladeira. Involuntariamente, a médica soltou um gemido e teve de erguer as mãos para amortecer o impacto.

— O que você está fazendo aqui? — perguntou, bruscamente, o homem.   Seu nome era Werner, e ele era zelador no hospital. Estendendo o braço, segurou um dos punhos erguidos de Sanger

Ouvindo a agitação, Martin apareceu na entrada da geladeira.

— Sou o Dr. Martin Philips e esta é a Dra. Denise Sanger. — Ele queria falar forte, mas, em vez disso, sua voz saiu cava e em­botada.

Werner largou o pulso de Denise. Ele era um homem emacia­do, com os ossos malares salientes, e um rosto cavernoso. A luz mortiça não deixava ver seus olhos profundamente implantados. As órbitas como que estavam vazias, semelhantes a buracos queimados numa máscara. Seu nariz era estreito e afilado como a lâmina de uma machadinha. Vestia uma camisa de gola alta preta, e tinha na frente um avental de borracha também preto.

— O que vocês estão fazendo com meus corpos? — perguntou Werner, afastando para os lados os médicos e a maca.   Dentro da geladeira ele contou os cadáveres.   Apontando para Marino, falou:

— Vocês tiraram este daqui?

Tendo-se recuperado do choque inicial, Philips maravilhou-se com o senso de propriedade do zelador para com os mortos.

— Não estou bem certo se é correto dizer os “seus corpos”, Sr. ...

— Werner — disse o zelador, retornando na direção de Mar­tin e espetando o indicador no rosto de Philips.

— Até que alguém passe um recibo por esses cadáveres, eles são meus corpos. Eu sou o responsável.

Philips achou melhor não discutir. A boca de Werner com seus lábios finos formava uma linha firme, inflexível. Philips começou a falar, mas sua voz saiu como um guincho. Limpando a garganta, ele recomeçou:

— Queremos falar-lhe a respeito de um desses corpos. Acre­ditamos que ele foi violado.

O beeper de Sanger começou a funcionar pela segunda vez. Desculpando-se, ela correu para o telefone da parede e respondeu à sua chamada.

— De que corpo você está falando? — indagou, brusco, Wer­ner.   Seu olhar não se desviava do rosto de Martin.

— De Lisa Marino — disse Philips, apontando para o cadá­ver parcialmente coberto. — O que sabe você a respeito desta mu­lher?

— Não muita coisa — retrucou Werner, virando-se para Lisa e relaxando um pouco. — Apanhada na cirurgia.   Acho que vai embora mais tarde esta noite ou amanhã de manhã cedo.

— E quanto ao corpo em si mesmo? — Martin reparou que o zelador usava o cabelo cortado à escovinha, penteado para cima. dos lados.

— Lindo — retrucou Werner, olhando ainda para Lisa.

— O que você quer dizer com lindo? — indagou Philips.

— Fazia tempo que eu não via uma mulher tão boa — res­pondeu Werner.   Quando se virou para encarar Martin, sua boca se repuxou num sorriso obsceno.

Momentaneamente desarmado, Martin engoliu em seco. Sentia a boca seca e ficou satisfeito quando Denise voltou, dizendo:

— Tenho de ir. Estão-me chamando na Emergência para exa­minar uma radiografia de crânio.

— Muito bem — falou Martin, tentando recompor seus pen­samentos. — Encontre-me   em meu gabinete, quando você ficar livre.

Denise assentiu com um movimento de cabeça, e saiu com uma sensação de alívio.

Martin, bem constrangido e sozinho com Werner no necrotério, obrigou-se a caminhar até onde estava Lisa Marino. Puxando o lençol que a cobria, girou seu cadáver puxando-o pelo ombro. Apon­tando para a incisão cuidadosamente suturada, perguntou:

— O que você sabe sobre isso?

— Não sei nada — retrucou Werner, rapidamente.

Martin nem tinha certeza de que o servente houvesse visto o que ele estava mostrando. Deixando o corpo de Lisa voltar à antiga posição no carrinho de madeira, Philips estudou o homem. A rígida expressão de seu rosto fez Martin lembrar-se de um tipo de nazista.

— Diga-me — continuou Philips. — Algum dos rapazes de Mannerheim esteve aqui hoje?

— Não sei — retrucou Werner. — Só soube que não ia haver autópsia.

— Bem, esta incisão não é de autópsia — disse Philips. Agar­rando a ponta do lençol, o médico puxou-o para cima de Lisa Ma­rino. — Alguma coisa estranha está acontecendo. Você tem certeza de que não sabe nada a respeito disso?

Werner abanou a cabeça.

— Vamos ver — disse Philips.

Em seguida, Martin saiu da geladeira, deixando a maca para que Werner tratasse dela. O zelador esperou até ouvir as portas se fecharem. Então, agarrou a maca e deu-lhe um forte empurrão. Ela saiu da geladeira, atravessou metade do necrotério e se espati­fou numa das pontas da mesa de autópsia de mármore, virando com um barulho tremendo. O frasco de soro estilhaçou-se num milhão de pedacinhos.

O Dr. Wayne Thomas encostou-se na parede com os braços cruza­dos sobre o peito. Lynn Anne Lucas estava sentada sobre a velha mesa de exames. Seus olhos achavam-se no mesmo plano: os dele, alertas e contemplativos; os dela esgotados e exaustos.

— E quanto a esta recente infecção urinária? — perguntou o Pr. Thomas. — Resolveu-se com a administração de sulfas.   Há mais alguma coisa sobre esta doença que você não tenha mencio­nado?

— Não — retrucou Lynn Anne, lentamente. — Exceto o fato de que me enviaram a um urologista. Ele me disse que eu tinha um problema de reter muita urina em minha bexiga depois de sair do banheiro. Disse-me que eu procurasse um neurologista.

— E você procurou?

— Não. O problema se resolveu por si mesmo, de modo que achei que não tinha importância.

A cortina se abriu e a Dra. Sanger enfiou a cabeça na sala.

— Desculpem-me. Alguém me chamou para opinar sobre uma radiografia de crânio.

Thomas afastou-se da parede, dizendo que voltaria num minuto. Enquanto retornavam à sala de estar, ele fez uma descrição sucinta do caso de Lynn Anne. Disse que a seu ver a radiografia estava normal, mas que ele queria uma confirmação quanto à área da hipófise.

— Qual é o diagnóstico? — indagou Denise.

— Aí é que está o problema — retrucou Thomas, abrindo a porta que dava para a sala de estar. — A pobrezinha está aqui há cinco horas, mas não consigo chegar a uma conclusão.   Pensei que talvez ela fosse uma viciada em drogas, mas não é. Nem mesmo fuma maconha.

Thomas colocou a chapa com violência no negatoscópio. De­nise passou a explorá-la de maneira ordenada, começando pelos ossos.

— O resto da turma da Emergência está me chateando, me­xendo comigo — disse Thomas. — Eles acham que estou interessa­do no caso porque a paciente é um bocado boa.

Denise deixou de estudar a radiografia e olhou atentamente para Thomas.

— Mas não é este o caso — continuou Thomas. — Há algo de errado com o cérebro desta moça. E seja lá o que for, é bem espalhado.

Sanger tornou a examinar cuidadosamente a chapa. A estru­tura óssea estava normal, inclusive a região da hipófise. Ela olhava para vagas sombras no interior do cérebro. Com o objetivo de se orientar, procurou verificar se a glândula pineal estava calcificada. Não estava. Denise ia declarar que a chapa estava normal, quando percebeu uma ligeira variação na contextura. Formando uma pe­quena abertura com as duas mãos, estudou aquela seção da chapa em particular. Era um estratagema semelhante ao que vira Philips fazer com o buraco no papel. Ao afastar as mãos ela estava con­vencida! Encontrara um outro exemplo de variação na densidade que Martin lhe mostrara anteriormente na chapa de Lisa Marino.

— Quero que mais alguém veja esta chapa — falou Denise, tirando a radiografia do negatoscópio.

— Achou alguma coisa? — indagou Thomas, encorajado.

— Penso que sim. Conserve a paciente aqui até eu voltar. — E saiu antes que Thomas pudesse replicar.

Dois minutos mais tarde, ela estava no gabinete de Martin.

— Você tem certeza? — perguntou ele.

— Estou absolutamente certa. — E entregou-lhe a chapa.

Martin pegou a radiografia mas não a levantou de pronto. To­cou-a com os dedos, receoso de ter de confrontar-se com outra decepção.

— Vamos — insistiu Denise, que estava ansiosa por ver con­firmadas suas suspeitas.

A chapa de raios X deslizou por sob os grampos. A luz do visor piscou, e a seguir acendeu-se. O olho treinado de Philips traçou uma trajetória errática sobre a região adequada.

— Acho que você está certa — disse ele. Usando o pedaço de papel com o buraco, examinou mais detidamente a chapa. Não havia dúvida de que o mesmo padrão anormal de densidade que ele tinha visto na radiografia de Lisa Marino também existia na­quela chapa. A diferença estava em que, na nova, era menos pro­nunciada e não tão extensa.

Procurando controlar sua excitação, Martin ligou o computador de Michaels. Digitou o nome. Virando-se para Denise, perguntou qual era a queixa atual da paciente. Denise disse-lhe que era a di­ficuldade de ler associada a crises de inconsciência. Philips intro­duziu a informação, e depois pisou no leitor de laser. Quando a pequena luz vermelha acendeu, ele introduziu a borda da chapa. A impressora entrou em ação. MUITO OBRIGADA, escreveu ela. TI­RE UMA SONECA!

Enquanto aguardavam, Denise contou a Martin o que mais ela soubera sobre Lynn Anne Lucas, porém ele estava mais excitado com o fato de a paciente estar viva e na sala de emergência.

Assim que a impressora cessou o seu rápido staccato, Philips retirou o relatório, e leu-o com Denise espiando por cima de seu ombro.

— Espantoso! — exclamou Philips quando terminou. — Não há dúvida de que o computador concorda com sua impressão.   E lembra que viu o mesmo padrão de densidade na chapa de raios X de Lisa Marino, e por cima de tudo me pede para dizer o que significa esta variação de densidade!   Esta coisa é tremendamente espantosa.   Ela quer aprender!   É tão humana que me assusta.   A próxima coisa que sei é que ela vai querer casar-se com o compu­tador da CAT scan, e passar todo o verão de férias.

— Casar-se? — perguntou Sanger, rindo. Martin acenou com a mão para ela.

— Aborrecimentos administrativos.   Não comece a me agitar! Vamos trazer esta tal de Lynn Anne Lucas para cá e submetê-la à CAT scan e às radiografias que não pude fazer com Lisa Marino.

— Você já viu que é um bocado tarde? O técnico da Cat scan fecha a unidade às dez horas e vai embora. Vamos ter que chamá-lo. E você tem certeza de que quer fazer tudo isso esta noite?

Philips consultou seu relógio. Eram dez e meia.

— Você está certa. Mas não quero perder esta paciente.   Vou providenciar para que seja admitida pelo menos esta noite.

Denise acompanhou Martin de volta à Unidade de Emergência, levando-o diretamente para uma das grandes salas de tratamento. Conduziu-o para o canto direito, e puxou uma cortina que sepa­rava uma pequena área de exame. Lynn Anne Lucas ergueu os olhos congestionados. Estivera sentada junto à mesa, encostada nela, com a cabeça apoiada no braço.

Antes que Denise pudesse apresentar Philips, seu beeper en­trou a funcionar, e a médica deixou Martin para que este falasse com Lynn Anne sozinho. Ele viu logo que a jovem estava exausta. Sorriu-lhe afetuosamente e perguntou-lhe se ela se importaria de passar a noite no hospital para que se pudessem tirar algumas cha­pas de raios X especiais pela manhã. Lynn Anne retrucou que não se importava, desde que fosse retirada da sala de emergência e pu­desse dormir. Philips apertou-lhe o braço delicadamente, e lhe disse que ia arranjar isso.

No balcão principal, Philips teve de agir como se estivesse no térreo de uma loja em liquidação, empurrando, berrando, e até ba­tendo sobre o balcão com a mão espalmada para chamar atenção de uma das apressadas atendentes. Fez perguntas sobre Lynn Anne Lucas querendo saber quem estava encarregado da paciente. A atendente verificou o registro principal e disse-lhe que era o Dr. Wayne Thomas, no momento no quarto 7 com um caso de derrame cerebral.

Ao entrar, achou-se em meio a uma parada cardíaca. O pa­ciente era um homem obeso que se dobrava sobre a mesa de exames como uma enorme panqueca. Um cara de barba preta, que Philips logo soube ser o Dr. Thomas, estava de pé sobre uma cadeira pra­ticando uma massagem cardíaca no paciente. A cada compressão as mãos do Dr. Thomas desapareciam nas pregas de carne. Do outro lado do paciente, um residente segurava as placas de um desfibrilador enquanto observava o traçado do monitor cardíaco. Junto à cabeça do paciente, um anestesista ventilava-o com um ambu, tipo de bolsa respiratória automática, coordenando seus esforços com o Dr. Thomas.

— Pare — disse o residente com o desfibrilador.

Todos recuaram enquanto ele colocava as placas sobre a geléia condutora em cima do mal definido tórax do paciente. Ao compri­mir o botão no alto do eletrodo peitoral anterior, um impulso elétri­co percorreu o peito do paciente provocando uma devastação elé­trica. As extremidades do homem tremularam rápida, irregular e debilmente como uma galinha gorda tentando voar.

Imediatamente, o anestesista recomendou assistência respirató­ria. O monitor reajustou-se e surgiu um traçado lento porém regular.

— Consegui um bom pulso carotidiano — falou o anestesista pressionando com uma das mãos um lado do pescoço do paciente.

— Ótimo — disse o residente com o desfibrilador.   Ele não havia desviado os olhos do monitor, e quando ocorreu o primeiro pico ectópico ventricular, ordenou:   Setenta e cinco miligramas de Lidocaína.

Philips adiantou-se até Thomas e chamou sua atenção batendo-lhe de leve na perna. O residente desceu de sua cadeira e deu um passo atrás, embora conservasse um olho na mesa.

— Sua paciente, Lynn Anne Lucas — falou Philips. — Tem alguns achados radiográficos interessantes na região occipital esten­dendo-se para frente.

— Alegra-me que tenha encontrado alguma coisa.   Minha in­tuição vem-me dizendo que há qualquer coisa errada com a moça, mas não sei o que é.

— Ainda não posso ajudar no diagnóstico — disse Philips. — O que eu gostaria era de fazer mais algumas chapas amanhã.   Que tal interná-la por esta noite?

— Claro — retrucou Thomas. — Eu adoraria fazê-lo, mas vou receber um fogo cerrado dos rapazes se não tiver ao menos um diagnóstico provisório.

— Que tal esclerose múltipla?

— Esclerose múltipla?   Isso vai deixar-me numa situação crí­tica. — falou Thomas, cofiando a barba.

— Existe algum motivo pelo qual não possa tratar-se de escle­rose múltipla?

— Não — respondeu Thomas. — Mas também não há muita razão para sugerir isso.

— E se ela estivesse bem no início?

— É possível, porém a esclerose múltipla em geral é diagnos­ticada mais tarde, quando seus aspectos característicos se tornam aparentes.

— Aí é que está a questão. Estamos sugerindo fazer o diag­nóstico mais cedo do que mais tarde.

— Muito bem, mas vou declarar na ficha de admissão que foi a Radiologia que sugeriu este diagnóstico.

— Fique inteiramente à vontade para isso — observou Philips. — Apenas não se esqueça de escrever nas prescrições que amanhã deve ser feito uma CAT scan e uma politomografia. Eu me encar­regarei de programar tudo na Radiologia.

De volta ao balcão, Philips suportou por bastante tempo toda aquela multidão para obter a papeleta de Lynn Anne Lucas preen­chida na sala de emergência e o registro do hospital. Levou ambos para a sala de estar deserta e sentou-se.

Primeiro leu as observações do Dr. Huggens e do Dr. Thomas. Nada havia de excitante. A seguir olhou a papeleta. Pelo código de cores na borda das páginas, notou que havia um relatório radiológico. Abriu a papeleta naquela página, que informava sobre a realização de uma radiografia de crânio aos 11 anos de idade, após uma queda de patins. A chapa de raios X tinha sido inter­pretada por um residente que Philips conhecia. Estava vários anos atrás de Philips e agora se encontrava em Houston. A radiografia era descrita como normal.

Folheando a papeleta de diante para trás, Philips encontrou registros dos últimos dois anos referentes a infecções do trato respi­ratório superior tratadas no dispensário do campus. Viu de relance também uma série de consultas à clínica Ginecológica onde haviam sido anotados vários esfregaços atípicos do teste de Papanicolau. Philips tinha de admitir que a informação não era tão elucidativa devido à quantidade de dados sobre clínica geral que ele havia es­quecido desde os dias que passara a integrar a equipe da casa. De 1969 a 1970 não havia quaisquer registros na papeleta.

Philips recolocou a papeleta no balcão da Unidade de Emer­gência antes de retornar a seu gabinete. Subiu as escadas de dois em dois degraus, sua energia instigada por um maravilhoso sentido de um impulso investigador. Depois da decepção experimentada com Lisa Marino, a descoberta de Lucas era muito mais excitante. De volta ao gabinete, Martin desencavou os tratados empoeirados de Clínica Médica e procurou a esclerose múltipla.

Tanto quanto se lembrava, o diagnóstico da doença era cir­cunstancial.   Não havia qualquer   ajuda de laboratório totalmente confiável, exceto a autópsia. O imenso e evidente valor de um diagnóstico radiológico tornou a ocorrer a Philips. Ele continuava a ler, observando que os aspectos clássicos da doença incluíam anormalidades da visão bem como disfunção vesical. Após ler as duas primeiras frases do parágrafo seguinte, Philips parou. E reco­meçou a lê-las em voz alta:

 

O diagnóstico pode ser duvidoso nos primeiros anos da doença. Longos períodos de latência entre um pequeno sintoma inicial, que pode até passar despercebido ao médico, e o subseqüente desenvolvimento de outros mais característicos podem retardar o diagnóstico final.

 

Philips pegou o telefone e discou o número da casa de Michaels. Com um diagnóstico radiológico sensível, evitar-se-ia o atra­so do diagnóstico final.

Só depois de o telefone começar a chamar foi que Martin olhou de relance para o relógio, verificando chocado que já passava das 11 horas. Naquele instante a esposa de Michaels, Eleanor, que Philips jamais vira, atendeu o telefone. Imediatamente Philips se lançou numa extensa desculpa por haver telefonado tão tarde, em­bora ela não desse a impressão de que estivesse dormindo. Eleanor assegurou-lhe que eles jamais se recolhiam antes da meia-noite e pôs o marido na linha.

Michaels riu ante o que chamava entusiasmo de adolescente de Philips, ao saber que Martin ainda estava em seu gabinete.

— Tenho estado ocupado — explicou Philips. — Tomei uma xícara de café, comi alguma coisa, e tirei um cochilo.

— Não deixe todo mundo ver aquelas informações impressas pelo computador — disse Michaels, rindo de novo. — Programei algumas sugestões obscenas.

Philips prosseguiu dizendo excitadamente a Michaels que lhe havia telefonado porque encontrara uma outra paciente na Unidade de Emergência, chamada Lynn Anne Lucas, que apresentava o mesmo padrão anormal de densidade que ele vira na chapa de Lisa Marino. Disse a Michaels que não conseguira prosseguir com o caso Marino, mas que, na manhã seguinte, tiraria chapas definitivas.

Acrescentou que o computador até lhe havia pedido para dizer o que eram aquelas alterações anormais de densidade.

— O diabo daquela coisa quer aprender!

— Lembre-se — continuou Michaels — de que o programa aborda a radiologia do mesmo modo que você. São as suas técnicas que ele utiliza.

— Sim, mas ele já está melhor do que eu. Detectou esta va­riação de densidade antes que eu a visse. Se o aparelho usa minhas técnicas, como é que você explica isso?

— É fácil.   Lembre-se de que o computador digita a imagem numa grade de duzentos e cinqüenta e seis vezes duzentos e cin­qüenta e seis pontos, com valores de cinza entre zero e duzentos. Quando o testamos, você só pode diferençar valores de zero a cin­qüenta. Obviamente a máquina é mais sensível.

— Desculpe-me por haver perguntado — falou Philips.

— Você passou o programa com alguma radiografia de crânio antiga?

— Não — admitiu Philips. — Estou para começar.

— Bem, você não precisa fazer tudo numa noite. Einstein não fazia. Por que não espera até amanhã de manhã?

— Bico calado — retrucou Philips de bom humor, e desligou. De posse do número de Lynn Anne Lucas no hospital, Philips

encontrou seu arquivo de raios X com relativa facilidade. Continha apenas duas radiografias recentes do tórax e a série de chapas do crânio tiradas após o acidente de patins, quando ela contava apenas 11 anos. Colocou uma das velhas radiografias de perfil do crânio no negatoscópio junto da feita daquela noite. Comparando-as, Phi­lips certificou-se de que a densidade anormal tinha-se desenvolvido depois dos 11 anos de idade. Para ter certeza absoluta, Philips in­troduziu uma das chapas antigas no computador. O resultado coin­cidiu.

Philips tornou a pôr as antigas radiografias de Lynn Anne em seus envelopes e colocou as novas por cima. Depois, deixou tudo sobre sua mesa, onde sabia que Helen não tocaria. Até realizar novos estudos sobre o caso de Lynn Anne, nada mais havia para fazer.

Martin pôs-se a pensar no passo seguinte. Apesar da hora, sabia que estava demasiado excitado para dormir e, além disso, queria aguardar Denise. Ele esperava que ela viesse a seu gabinete assim que terminasse o que quer que estivesse fazendo. Pensou em chamá-la pelo sistema de alto-falantes, mas depois pensou melhor.

Resolveu passar o tempo apanhando algumas chapas antigas de crânio da sala de arquivo. Achou que bem podia dar início ao processo de verificação do programa do computador. No caso de Denise chegar antes da volta dele, deixou um bilhete para a médica na porta: “Estou no Centro de Radiologia.”

Num dos terminais do computador central do hospital, ele la­boriosamente digitou o que desejava: uma folha impressa com os nomes e os números de matrícula de todos os pacientes que se tinham submetido a radiografias de crânio nos últimos 10 anos. Quando terminou apertou o botão “entrada” e girou na cadeira para olhar a folha impressa que ia sair. Houve uma pequena demora* Então a máquina acelerou e começou a expelir o papel numa velo­cidade de alarmar. Quando parou, Philips viu-se com uma lista de milhares de nomes na mão. Só de olhar para eles sentia-se cansado.

Impávido, pensou em Randy Jacobs, um dos empregados que trabalhava à noite no departamento, contratado para arquivar as radiografias do dia e retirar as chapas de que se ia precisar no dia seguinte. Estudava Farmácia em tempo integral, era um talentoso flautista, e homossexual. Philips achava-o inteligente, animado, e um fabuloso trabalhador.

Para começar, Martin pediu a Randy que tirasse as chapas de raios X da primeira página da lista. Representava cerca de 60 pa­cientes. Com sua habitual eficiência, em 20 minutos Randy já tinha o mesmo número de chapas de perfil de crânio no alternador de Philips. Mas este não passou as radiografias pelo computador, con­forme Michaels pedira. Em vez disso começou a examiná-las aten­tamente, incapaz de resistir à tentação de procurar mais densidades anormais semelhantes às que ele havia descoberto nas chapas de raios X de Marino e Lucas. Usando o seu papel com o furinho como dispositivo explorador, começou a passar de uma radiografia para outra, avançando as telas negatoscópicas à medida que ia pre­cisando, pressionando a alavanca elétrica com o pé. Philips já havia examinado cerca de metade das chapas de raios X quando Denise chegou.

— Com toda essa conversa de querer deixar a Clínica Radio­lógica, aí está você vendo chapas de raios X quando já é quase meia-noite.

— Talvez seja uma bobagem — disse Martin, esfregando os olhos com os nós dos dedos e reclinando-se em sua cadeira. — Mas tirei essas radiografias antigas achando que poderia encontrar um outro caso como o de Lucas ou de Marino.

Denise postou-se por trás dele e massageou seu pescoço. O rosto de Philips denotava cansaço.

— Encontrou alguma? — perguntou Denise.

— Não, mas só examinei cerca de uma dúzia.

— Você restringiu seu campo?

— O que você quer dizer?

— Bem, você viu dois casos. Ambos são recentes, ambos são de mulheres, e ambas com cerca de vinte anos.

Philips olhou para a fileira de chapas à sua frente e soltou um grunhido. Era a sua maneira de reconhecer que Denise tinha dado uma boa dica. E ficou imaginando por que não havia ele mesmo pensado nisso.

A médica o acompanhou de volta ao terminal do computador principal comentando sem parar a noite agitada que tivera na Uni­dade de Emergência. Philips ouvia pela metade, enquanto prepa­rava sua consulta ao computador. Pediu os nomes e números das radiografias das doentes de sexo feminino, de 15 a 25 anos de idade que tinham feito chapas do crânio nos últimos dois anos. Ao se ativar, a impressora datilografou apenas uma linha. Dizia a Philips que o banco de dados não estava programado para procurar radio­grafias de crânio pelo sexo. Philips ajustou sua solicitação no te­clado. Quando a impressora se reativou, datilografou a uma veloci­dade irregular porém apenas por pouco tempo. A lista incluía so­mente 103 pacientes. Uma rápida olhada, sugeriu que um pouco menos da metade eram mulheres.

Randy gostou da nova lista. Ele dizia que a outra era desmo­ralizante. Enquanto esperavam, puxou sete envelopes dizendo que já serviria para começar enquanto pegava os outros.

De volta a seu gabinete, Martin admitiu que estava abatido e que a fadiga começava a minar seu entusiasmo. Deixando cair as chapas em frente de seu alternador e envolvendo Denise com os braços, apertou-a contra si. Sua cabeça reclinou-se no ombro dela, que retribuiu o abraço passando as mãos por baixo dos ombros dele. E ali ficaram de pé por um momento, apoiando-se mutua­mente, sem dizer palavra.

Por fim Denise ergueu o olhar para o rosto de Martin e afastou o cabelo louro da testa. Os olhos dele estavam fechados.

— Por que não comemorarmos o dia? — disse ela.

— Boa idéia — retrucou Philips, abrindo os olhos. — Por que você não volta ao meu apartamento? Ainda me sinto um pouco maníaco. Preciso falar.

— Falar?

— Não importa sobre o quê.

— Infelizmente, tenho a certeza de que serei chamada de volta ao hospital.

Philips morava num edifício de apartamento chamado As Tor­res, que tinha sido construído pelo Centro Médico e era contíguo ao hospital. Embora tivesse sido planejado com muito pouca cria­tividade, era novo, seguro, e muito conveniente. Era também cons­truído junto ao rio, e Martin ocupava um dos apartamentos que davam para ele. Denise, por sua vez, morava num velho prédio numa rua lateral atravancada. Seu apartamento era no terceiro an­dar e as janelas olhavam para um poço de ventilação sempre escuro.

Martin fez ver que seu apartamento era tão perto do hospital quanto o alojamento das enfermeiras de plantão, que Denise usava, e três vezes mais perto do que o apartamento dela.

— Se você for chamada, estará de plantão.

Ela hesitou. Encontrarem-se enquanto estava de plantão era uma experiência nova, e Denise tinha medo de que o estreitamento do relacionamento forçaria a uma decisão.

— Ê possível — disse ela. — Primeiro, deixe-me verificar a Unidade de Emergência e ver se não há algum problema em pers­pectiva.

Enquanto a aguardava, o médico começou a colocar algumas das novas chapas radiográficas em seu negatoscópio. Colocou três antes que seus olhos fossem atraídos pela primeira. Dando um salto da cadeira, encostou o nariz na chapa. Outro caso! Havia o mes­mo pontilhado que partia da região posterior do cérebro e corria para frente. Philips olhou para o envelope. O nome era Katherine Collins, idade 21 anos. O relatório datilografado da chapa, colado no envelope, dizia: “Perturbação vertiginosa”, como informação clí­nica.

Levando a radiografia de Katherine Collins de volta ao pequeno computador, ele a colocou no explorador. Depois, apanhou os qua­tro envelopes restantes e de cada um tirou uma chapa de crânio. De novo foi pondo as radiografias no negatoscópio, mas antes que sua mão soltasse a borda da primeira, viu que havia encontrado mais outro caso. Seus olhos agora estavam muito sensíveis para detectar as menores alterações. Ellen McCarthy, idade 22 anos, história clínica: dores de cabeça, perturbações visuais, e fraqueza das extremidades direitas.   As outras chapas estavam normais.

Usando um par de radiografias de perfil do crânio, que tinham sido tiradas de ângulos ligeiramente diferentes, do envelope de Ellen McCarthy, Philips acendeu a luz de seu visor estereoscópico. Olhan­do pela ocular, teve grande dificuldade em perceber qualquer pon­tilhado. O que ele podia ver parecia ser superficial, no córtex ce­rebral em vez de nas fibras nervosas mais profundas da substância branca. Era uma informação um tanto inusitada. Em geral as le­sões da esclerose múltipla achavam-se na substância branca do cére­bro. Arrancando a folha impressa pelo computador, Philips leu o relatório. No alto da página estava um MUITO OBRIGADO refe­rente a quando Philips inserira a chapa. A isso seguia-se um nome de moça e um número de telefone fictício. Mais uma amostra do humor de Michaels.

O relatório em si mesmo estava como Philips esperava. As densidades achavam-se descritas e conforme acontecera com o caso de Lynn Anne Lucas, tornava a pedir para ser informado do signi­ficado das anormalidades não programadas.

Quase que simultaneamente Denise regressou da Unidade de Emergência e Randy chegou com mais 15 envelopes. Philips deu um sonoro beijo em Denise. Disse-lhe que graças à sua sugestão, havia encontrado mais dois casos, ambos de mulheres jovens.   Pe-

gou as novas chapas com Randy e estava prestes a trabalhar com elas, quando Denise pôs as mãos sobre os ombros dele.

— A Unidade de Emergência agora está calma. Daqui a uma hora, quem sabe?

Philips suspirou. Sentiu-se como se fosse uma criança com um brinquedo novo«e a quem se pede que o deixe por aquela noite. Relutantemente, baixou os envelopes e disse a Randy que tirasse o resto das chapas da segunda lista e as empilhasse sobre sua mesa. Depois, se lhe sobrasse tempo, poderia começar a tirar as chapas da lista principal, e a empilhá-las contra a parede dos fundos, por trás da mesa de trabalho. Pensando melhor, Martin pediu a Randy que telefonasse para o Centro de Registros Médicos e providen­ciasse para que os prontuários de Katherine Collins e Ellen McCar­thy fossem mandados para seu gabinete. Relanceando o olhar à sua volta, Martin falou:

— Será que estou esquecendo de alguma coisa?

— De você mesmo — exclamou Denise, exasperada.   — Há dezoito horas que está aqui. Já é demais, vamos.

 

Já que As Torres fazia parte do Centro Médico, era unido ao hospital por um túnel subterrâneo pintado em cores alegres e bem iluminado. Caminhando de mãos dadas, Martin e Denise passaram primeiro por baixo da velha Escola de Medicina e depois por sob a nova. Mais adiante ultrapassaram as ramificações do túnel que levavam ao Hospital Pediátrico Brenner e ao Instituto Goldman de Psiquiatria. No fim do túnel, achava-se As Torres, que representava o atual limite da expansão do cancerosado Centro Médico pela co­munidade circundante. Um lance de degraus conduzia diretamente ao saguão inferior do prédio de apartamentos. Um guarda atrás de um vidro à prova de bala reconheceu Philips e fez os dois en­trarem, depois de apertar o botão de uma cigarra.

As Torres era um edifício luxuoso, habitado principalmente por médicos e outros profissionais do Centro Médico. Uns poucos professores da universidade também moravam ali, mas geralmente ocupavam os apartamentos mais caros. Quanto aos médicos, a maioria era de divorciados, embora houvesse um crescente contin- gente de jovens profissionais com suas agressivas mulheres, preocupa­das com as carreiras dos maridos. Quase não havia crianças, exceto nos fins-de-semana quando era a vez de os papais ficarem com os filhos. Martin sabia que havia também alguns psiquiatras, e tinha notado um número não insignificante de homossexuais.

Martin era um dos divorciados. O divórcio ocorrera há quatro anos, após seis anos de um impasse matrimonial. Como a maioria de seus colegas, Martin havia-se casado durante sua residência num tipo de reação contra as exigências de sua vida profissional. O no­me da esposa era Shirley, e ele a amara; pelo menos pensava assim. Tinha ficado chocado na ocasião em que ela se fartara e de­cidira deixá-lo. Felizmente eles não tinham filhos. Sua reação ao divórcio fora a depressão, que ele combatera procurando trabalhar cada vez mais, como se isso fosse possível. Aos poucos, à medida que o tempo foi passando, pôde encarar a experiência com o ne­cessário alheamento para perceber o que acontecera. Philips havia-se casado com a Medicina; sua esposa tinha sido a amante. Shirley escolhera o ano em que ele fora nomeado Assistente-Chefe da Neuro-Radiologia para abandoná-lo, porque compreendera finalmente o sistema de valores dele. Antes da nomeação, a desculpa que dava para a mulher pelas suas 70 horas de trabalho por semana era que ele estava lutando para se tornar Assistente-Chefe. Uma vez conseguida a posição, a desculpa para a mesma carga horária de trabalho semanal foi a de que agora ele era o Chefe. Shirley ti­nha visto a luz, embora o mesmo não acontecesse a Philips. Re­cusara-se a estar casada e a viver sozinha, e assim fora embora.

— Chegou a alguma conclusão sobre o desaparecimento do cérebro de Marino? — perguntou Denise, trazendo Martin de volta ao presente.

— Não. Porém Mannerheim deve ter sido de algum modo o responsável.

Estavam aguardando o elevador embaixo de um enorme e es­palhafatoso lustre. O tapete era de um alaranjado queimado, en­tremeado de círculos dourados.

— Você vai fazer alguma coisa a respeito?

— Não sei o que fazer.   Certamente eu não me importaria de saber por que ele foi removido.

O mais belo aspecto do apartamento de Philips era a vista para o rio e a graciosa curva da ponte. Do contrário, não teria nada de notável. Philips havia-se mudado repentinamente. Alugara o apar­tamento por telefone e contratara uma firma para mobiliá-lo. E eis o que conseguira — mobília: um divã; um par de mesinhas; uma mesa para café; um par de poltronas para a sala de estar; um con­junto para a saleta de jantar; e uma cama e mesinha de cabeceira para o quarto de dormir. Não era muita coisa, e apenas temporário. Jamais ocorreu a Philips o fato de que já estava morando ali há quatro anos.

Martin não era um bebedor mas naquela noite queria descon­trair-se de modo que derramou um pouco de uísque escocês sobre o gelo. Num sinal de cortesia, levantou a garrafa para Denise, po­rém esta abanou a cabeça conforme ele já esperava. A moça só bebia vinho e ocasionalmente gim e água tônica, e principalmente não quando estava de plantão. Em vez disso, a médica abriu a geladeira e preparou para si um copo grande de suco de laranja.

Na sala de estar, Denise ouvia Martin falar, esperando que acabasse depressa o assunto, pois não estava interessada em tratar de pesquisas ou de cérebros desaparecidos. Lembrava-se da afeição que ele havia admitido. A possibilidade de ele estar falando sério a excitava e lhe permitia ver seus próprios sentimentos.

— A vida pode ser espantosa — dizia Martin.   — Num só dia pode tomar maravilhosas direções.

— A que você está-se referindo? — indagou Denise, esperando que ele abordasse o relacionamento dos dois.

— Ontem, eu não fazia idéia do quanto estávamos próximos de produzir o programa de interpretação das chapas de raios X. Se as coisas vão...

Exasperada, ela se levantou e pôs-se a puxar a fralda da camisa dele, dizendo-lhe que deveria relaxar e esquecer o hospital. Olhava para o rosto espantado dele com um sorriso de mofa, de modo a que nada do que viesse a acontecer fosse embaraçoso.

Philips concordou em que estava exausto e disse que ficaria melhor se tomasse um banho de chuveiro rápido. Não era bem aquilo que Denise tinha em mente, porém ele a encorajou a entrar no banheiro e a fazer-lhe companhia. Observava-o através do vidro do boxe do chuveiro, que estava embaçado de um lado e biselado do outro. A imagem do corpo nu de Philips se partia e difundia de um modo curiosamente erótico, enquanto ele se torcia e retorcia sob o jato dágua.

Denise sorvia o suco de laranja aos goles, enquanto Martin procurava manter a conversa acima do ruído da água. Ela não podia ouvir uma só palavra, o que achava aliás muito bom. No momento, preferia contemplar a ouvir. A afeição a inundara inte­riormente, enchendo-a de fervor.

Quando acabou, Martin fechou a água e, apanhando uma toalha, saiu do chuveiro. Para desgosto de Denise, ele ainda estava falando de computadores e médicos. Entediada, apoderou-se da toalha e começou a enxugar as costas dele.   Quando terminou, virou-o.

— Faça-me um favor — disse ela, como se estivesse zangada. — Cale-se!

Depois, pegou na mão dele e puxou-o para fora do banheiro. Confuso ante aquela súbita explosão, Philips deixou-se levar para o quarto de dormir às escuras. Ali, à vista do rio silencioso e da ponte, Denise lançou os braços em torno de seu pescoço e beijou-o apaixonadamente.

Martin retribuiu no mesmo instante, mas antes mesmo que pu­desse despir Denise, o beeper dela encheu o quarto com seu som insistente. Por um momento, apenas se seguraram, adiando o ine­vitável, e desfrutando da intimidade. Sem nada dizer, ambos sa­biam que seu relacionamento havia alcançado um novo platô.

 

Eram 2:40 da madrugada quando uma ambulância da cidade en­trou na área de recepção do Centro Médico. Já havia duas outras iguais paradas ali, e a recém-chegada estacionou de ré entre elas até seu pára-choque encostar na proteção de borracha. O motor afogou e morreu antes que o motorista e o ajudante saltassem da cabina. Com as cabeças curvadas ante a chuva impertinente de abril, os dois correram para trás e pularam para a plataforma. O mais magro dos dois abriu a porta posterior da ambulância. O outro, mais musculoso, enfiou-se lá dentro e puxou uma maca vazia. Ao contrário das outras ambulâncias, esta não trazia qualquer casa de emergência. Tinha vindo apanhar um paciente. Ocorrência que não era rara.

Os homens pegaram a maca pelas extremidades e, como uma tábua de passar roupa, as pernas caíram. Imediatamente a maca foi convertida num carrinho estreito porém funcional. Juntos, pas­saram pela porta de correr automáticas da unidade de emergência e, sem olhar à direita nem à esquerda, viraram pelo corredor prin­cipal e tomaram um elevador para a Neurologia, a oeste, no 14.° andar.

Havia duas enfermeiras registradas e cinco enfermeiras práti­cas designadas para aquele andar naquele turno, porém uma das enfermeiras e três das ajudantes estavam em seu período de repouso, de modo que Claudine Arnette, enfermeira registrada, estava de serviço. Foi a ela que o homem mais magro apresentou os do­cumentos de transferência. A paciente ia ser transferida para um quarto particular no New York Medicai Center, onde seu médico particular conseguira uma vaga.

A enfermeira Arnette examinou os papéis, praguejou baixinho porque havia acabado de preparar o prontuário da admissão e assi­nara o formulário. Pediu a Maria Gonzalez que acompanhasse os homens até o quarto 1420, retornando à sua verificação dos nar­cóticos antes de tirar seu próprio período de repouso. Mesmo à luz mortiça, ela havia reparado que o motorista tinha olhos espanto­samente verdes.

Maria Gonzales abriu a porta do quarto 1420 e tentou acordar Lynn Anne. Estava difícil. Ela explicou aos homens da ambulân­cia que haviam recebido pelo telefone uma ordem para aplicar uma dose dupla de medicação hipnótica bem como de fenobarbital, de­vido à possibilidade de um ataque. Os homens disseram a Maria que isso não importava e arrumaram os cobertores. Mostrando muita prática, executaram uma manobra levantando a paciente e colocando-a no carrinho.   Lynn Anne Lucas nunca mais acordou.

Os homens agradeceram a Maria, que já tinha começado a desfazer a cama desocupada de Lynn Anne.   Então, saíram com a moça no carrinho pelo corredor. A enfermeira Arnette nem se­quer olhou quando eles passaram pelo posto da enfermagem e re­trocederam para o elevador. Uma hora mais tarde a ambulância arrancava do Centro Médico. Não houve necessidade de ligar a sirene ou a luz giratória.   A ambulância estava vazia.

 

Momentos antes de a campainha soar, Martin apertou o botão do despertador e ficou deitado ali, olhando para o teto. Seu corpo estava tão acostumado a acordar às 5:25 que raramente precisava de ajuda, deitasse a que hora fosse para dormir. Reunindo suas forças, levantou-se rapidamente e envergou seu traje de corrida.

A chuva da noite havia saturado o ar de umidade, e um ne­voeiro viscoso pendia por sobre o rio, fazendo com que os pilares da ponte parecessem suportados por nuvens vaporosas. A umidade amortecia o som de modo que o tráfego do início da manhã não interrompia seus pensamentos, na maior parte dirigidos para Denise.

Havia anos que ele experimentara a excitação do amor român­tico. Durante algumas semanas, nem mesmo reconheceu o motivo de sua insônia e de suas esquisitices, mas quando se viu lembrando-se do que Denise usava a cada dia, finalmente a realidade surgiu com uma mistura de cinismo e prazer. O cinismo adveio do fato de haver observado que vários de seus colegas também por volta dos 40 anos ficavam como loucos com os amores novos e jovens. O prazer advinha do próprio relacionamento. Denise Sanger não era apenas um corpo jovem para ser usado a fim de negar a inevitabilidade do tempo. Ela era uma combinação de uma maliciosa inventiva e de uma inteligência penetrante. O fato de que fosse tão linda era como a cobertura do bolo.   Philips tinha de admitir que não só estava louco por ela, mas também que se estava tor­nando dependente da jovem como meio de se salvar da profecia autogratificante em que sua vida se havia tornado.

Ao alcançar a marca aproximada dos 4.000 m, Philips virou-se e voltou. Agora havia mais corredores, alguns dos quais ele reco­nhecia mas que se ignoraram reciprocamente. Sua respiração estava ficando mais ofegante, porém ele continuou a manter um passo firme durante todo o percurso até o seu apartamento.

Philips sabia que tanto quanto gostava da Medicina, a usava como desculpa a fim de não expandir outras partes de sua vida. O choque da fuga de sua mulher tinha sido a maior e única causa desta verificação. O que fazer a respeito era outra questão. Para Martin, a pesquisa havia-se tornado a salvação em potencial. En­quanto prosseguia com seus exaustivos compromissos diários, ele expandia suas pesquisas esperando que acabasse conseguindo algu­ma liberdade para si. Não desejava abandonar a Medicina, apenas afrouxar um pouco o laço em que ela metera sua vida. E agora que Denise havia surgido, ele se achava ainda mais comprometido. Havia jurado que não cometeria o mesmo erro de novo. Se as coisas saíssem bem entre os dois, Denise ia ser sua esposa no sen­tido amplo da palavra. Mas para fazer isso, sua pesquisa tinha de ser bem-sucedida. Por volta das 7:15, Philips já havia tomado seu banho de chuveiro, tinha feito a barba e se achava na porta de seu gabinete. Quando entrou parou, assustado. Durante a noite o escritório parecia ter-se transformado num monturo de antigas radiografias. Randy Jacobs, com sua habitual eficiência, tinha re­tirado uma grande porcentagem das chapas que ele havia solicitado. Os envelopes da lista principal achavam-se empilhados precaria­mente por trás da mesa de trabalho. As da segunda lista, menor, estavam empilhadas junto ao alternador de Philips. Chapas de per­fil de crânios deste último grupo tinham sido tiradas de seus enve­lopes e dispostas sobre as telas dos negatoscópios.

Philips experimentou uma nova onda de entusiasmo e sentou-se em frente do alternador. Imediatamente começou a examinar as chapas à procura de anormalidades semelhantes às que vira nas de Marino, Lucas, Collins e McCarthy. Já havia percorrido quase a metade, quando Denise entrou.

Ela parecia exausta. Seu cabelo normalmente lustroso parecia oleoso, e o rosto estava pálido com profundas olheiras escuras.

A moça abraçou-o rapidamente e sentou-se. Vendo seu aspec­to doentio, Philips sugeriu-lhe que cochilasse um pouco. Ele a veria na sala de angiografia quando ela se sentisse em condições de vol­tar.   Significando, é claro, que ele iniciaria a discussão do caso.

— Pare — disse Denise. — Nada de concessões especiais para a amante do chefe. É a minha vez de estar no serviço de angiogra­fia cerebral e lá eu estarei quer tenha dormido ou não.

Martin percebeu que havia cometido um erro. Quando se tra­tava de seu trabalho, Denise jamais seria outra coisa senão uma profissional. Ele sorriu, e acariciou-lhe a mão, dizendo-lhe que es­tava satisfeito por ela ser assim.

Um pouco mais calma, Denise disse:

— Vou tomar uma rápida   chuveirada.   Estarei de volta em trinta minutos.

Philips viu a médica sair, e a seguir voltou-se para a tela do seu visor. Ao fazer isso, seus olhos correram por sobre sua mesa c ele notou algo de novo no meio do caos. Adiantando-se para ver o que era achou dois prontuários do hospital e um bilhete de Randy. O bilhete dizia simplesmente que o resto das chapas de raios X seria tirado na noite seguinte. Os prontuários eram os de Katherine Collins e Ellen McCarthy.

Philips levou-os para a cadeira em frente ao negatoscópio, abrindo primeiro o de Collins. Foi preciso apenas alguns minutos para coligir os dados essenciais, a saber: Katherine Collins era uma mulher branca de 21 anos com sintomas neurológicos difusos, ex­tensamente observados pela Neurologia sem que se chegasse à con­firmação de um diagnóstico. No diagnóstico diferencial era levada em conta a esclerose múltipla.

Philips leu atentamente toda a papeleta. Ao chegar ao fim reparou que as consultas de Collins e os exames de laboratório ti­nham cessado abruptamente há um mês. Até então, houvera assen­tamentos cada vez mais freqüentes e algumas das últimas notas indicavam que ela devia voltar para continuar os exames. Aparen­temente jamais tornara a aparecer.

Pegando o outro prontuário, que era consideravelmente menor, Philips leu a respeito de Ellen McCarthy. Era uma mulher de 22 anos, cuja história neurológica envolvia dois ataques. Estava sendo examinada quando suas anotações cessaram repentinamente. Isso fora há dois meses. Philips encontrou mesmo uma nota dizendo que havia sido marcado um outro EEG seguido de sonoterapia para a paciente na outra semana. Nunca tinham sido feitos. Sua observa­ção estava incompleta e não havia diagnóstico diferencial na papeleta.

Helen chegou com o habitual monte de problemas, mas antes de dizer qualquer coisa deu a Martin uma xícara de café fresco e uma rosquinha que havia trazido de Chocy Full O'Nuts. Então, lançou-se ao trabalho. Ferguson tinha telefonado de novo e dito que os apetrechos precisavam ser removidos da sala em questão até o meio-dia ou seriam postos na rua. E Helen fez uma pausa es­perando pela resposta.

Martin não sabia o que fazer com todo aquele equipamento. O departamento já estava atulhado num espaço com a metade do tamanho de que eles precisavam. Só para se ver livre do problema, ainda que temporariamente, falou a Helen que trouxesse tudo para seu gabinete e empilhasse contra a parede. Disse que até o fim da semana pensaria em alguma coisa.

Satisfeita, Helen passou ao problema dos técnicos que queriam casar-se. Philips disse-lhe que deixasse Robbins resolver o caso. Com toda a paciência, Helen explicou que fora Robbins que lhe apresentara o problema para que Philips o solucionasse.

— Diabo! — exclamou Martin. Realmente não havia solução. Era tarde demais para treinar novos técnicos antes que eles par­tissem. Se os despedisse, eles encontrariam facilmente novos em­pregos enquanto Philips teria problemas para substituí-los. — Ve­rifique exatamente quanto tempo eles pretendem ficar fora — disse, procurando abafar seu desespero. Ele próprio há dois anos não tirava férias.

Passando à página seguinte de suas anotações, Helen comuni­cou a Philips que Cornelia Rogers, da datilografia, tornara a tele­fonar dizendo que estava doente, completando assim o nono dia de ausência naquele mês. Conseguia ficar doente pelo menos sete dias por mês nos cinco meses que vinha trabalhando na Neuro-Radio­logia. Helen perguntou a Philips o que queria que se fizesse.

Para Philips a moça devia levar uma surra, ser esquartejada e atirada no East River.

— O que você gostaria de fazer? — perguntou ele, controlan­do-se.

— Acho que ele deveria receber uma advertência.

— Ótimo, trate disso.

Helen tinha uma última comunicação antes de se dirigir para a porta: Philips ia fazer às 13 horas uma palestra no departamento de CAT scanner para um grupo de estudantes. Quando ia sair, Philips a deteve:

— Escute, faça-me um favor.   Há uma paciente internada cha­mada Lynn Anne Lucas. Está programada para uma CAT scan e uma politomografia.   Se houver qualquer problema, diga apenas que se trata de um pedido especial meu. E peça aos técnicos que me cha­mem antes de iniciarem os preparativos.

Helen anotou o recado e saiu. Martin retornou aos dois pron­tuários. Era encorajador que ambas as jovens tivessem sintomas neurológicos, em especial desde que a esclerose múltipla estava es­pecificamente relacionada como uma possibilidade no caso de Katherine Collins. Em relação a Ellen McCarthy, Philips observou quantas vezes os ataques faziam parte do quadro clínico da escle­rose múltipla. Menos de 10%, mas ocorriam. Porém, por que ambas as moças tinham de repente desaparecido e deixado de se submeter aos exames? Martin não podia deixar de se preocupar sabendo que teria muita dificuldade em chamá-las para fazer novas radiografias, se houvessem sido transferidas para se tratar em outro lugar, talvez até mesmo em outra cidade.

Naquele instante, Helen apertou a cigarra para lhe dizer que o residente já estava preparado para ele na sala de angiografia Philips colocou o avental de chumbo com o signo do Super-Homem desbotado, apanhou os prontuários de Collins e de McCarthy e saiu do gabinete. Parando junto à mesa de Helen, pediu-lhe que pro­curasse a pista das duas doentes e as encorajasse a voltar para se submeter a uma radiografia diagnóstica gratuita. Queria que Helen não assustasse as mulheres, mas fizesse com que compreendessem que aquilo era importante.

Embaixo ele encontrou Denise à sua espera. Ela havia tomado uma chuveirada, lavado os cabelos e mudado de roupa; tinha sido uma transformação milagrosa realizada em 30 minutos. Ela não parecia mais cansada e seus olhos castanhos-brilhantes cintilavam por cima da máscara cirúrgica. Philips teria adorado tocá-la, mas, em vez disso, permitiu apenas que seus olhos pousassem por um segundo extra nela.

Denise já havia realizado bastante angiogramas, de modo que ele agia apenas como seu assistente. Não se conversava enquanto ela habilmente pegava o cateter, introduzindo-o pela artéria do pa­ciente. Philips observava atento, pronto para fazer quaisquer su­gestões se achasse necessário. Não foi. O paciente era Harold Shil­ler, que havia sido passado pelo CAT scanner no dia anterior. Con­forme Philips imaginara, Mannerheim tinha ordenado um angiogra­ma cerebral provavelmente como um exame pré-operatório, embora o caso fosse evidentemente inoperável.

Uma hora mais tarde o exame estava quase acabado.

— Estou-lhe dizendo — sussurrou Martin — que você está ficando melhor do que eu, e só há algumas semanas é que vem fazendo isso.

Denise enrubesceu, porém Martin sabia que ela ficara satis­feita. Deixando-a sozinha, disse-lhe que apertasse o botão da ci­garra quando o próximo caso estivesse pronto para começar. Ele queria terminar o exame das chapas de crânio em seu alternador, e depois começar a passar as antigas radiografias pelo computador de Michaels. Calculou que se pudesse passar 100 por dia, seria capaz de percorrer toda a lista principal em um mês e meio. Achou também que podia dar a Michaels as discrepâncias que surgissem de modo que, quando terminasse tudo, Michaels pudesse corrigir os defeitos do programa. Se assim fosse, ambos teriam algo para apre­sentar à comunidade médica, que de nada suspeitava, mais ou me­nos em julho.

Mas ao virar o corredor externo de seu escritório, foi abordado por Helen que o aguardava com más notícias. Não tivera sorte com nenhum dos seus pedidos.   Lynn Anne Lucas não podia ser submetida ao exame de CAT scan ou ser radiografada porque tinha sido transferida durante a noite para o New York Medicai Center. Quanto ao que se referia a Katherine Collins e Ellen McCarthy, conseguira segui-las até à universidade. Ambas não se haviam for­mado. Contudo, Collins não pôde ser encontrada porque, ao que tudo indicava, fugira há um mês e era considerada como desapa­recida. Por outro lado, Ellen McCarthy estava morta. Tinha so­frido um acidente fatal de automóvel há dois meses na Rodovia West Side.

— Meu Deus! — exclamou Philips.   — Diga que está brin­cando.

— Lamento — retrucou Helen.   — Foi o melhor que pude fazer.

Philips abanou a cabeça, descrente. Estava perto de que con­seguiria um dos três casos para examinar. Entrou em seu escritório e ficou olhando, perplexo, para a parede dos fundos. Sua persona­lidade compulsiva não estava acostumada a tratar com esses con­tratempos.

Espalmando uma das mãos e esmurrando-a com a outra fez com que o som ecoasse pelo aposento. Então pôs-se a andar de um lado para outro, tentando pensar. Collins tinha ido embora. Se a polícia não pudera encontrá-la, como o poderia ele? McCarthy? Se tinha morrido devia ter sido levada para um hospital. Mas qual? E Lucas... esta pelo menos tinha sido levada para o New York Medicai Center, onde ele tinha um bom amigo, em vez de para o Bellevue. Se tivesse sido transportada para o último, ele teria que desistir.

Philips disse a Helen que procurasse descobrir por que Lynn Anne havia sido transferida e pediu-lhe que fizesse uma ligação para o Dr. Donald Travis no New York Medicai Center. Pediu-lhe que visse se a polícia sabia para onde Ellen McCarthy tinha sido levada após o acidente.

Ainda distraído, Philips forçava-se a se concentrar nas chapas de crânio à sua frente. Todas estavam normais no que dizia res­peito à contextura. Quando se dirigiu à mesa de Helen, poucas eram as boas notícias. O Dr. Travis estava ocupado e teria de ser chamado outra vez. Ela não tinha conseguido descobrir muita coisa sobre Lucas, porquanto a enfermeira de serviço na ocasião fora para casa às sete horas e não pudera ser encontrada. A única infor­mação positiva era a de que Ellen McCarthy havia sido transpor­tada para o Centro Médico após seu acidente.

Antes que Philips pudesse pedir-lhe para seguir aquela pista, apareceu um homem da manutenção com um grande carro cheio de caixas, papéis, e outros trastes. Sem uma palavra, entrou no gabinete de Philips e começou a descarregar o material.

— Que diabo é isso? — perguntou Philips.

— São os apetrechos do depósito que o senhor disse que pu­sesse aqui — explicou Helen.

— Merda! — exclamou ele, enquanto o homem empilhava tudo ao longo da parede.   Philips teve a desagradável sensação de que estava perdendo o controle da situação.

Sentado no meio daquela confusão, Philips discou o telefone para o Departamento de Admissão. Ele se sentia cada vez mais irri­tado na medida em que o telefone tocava interminavelmente no ou­tro extremo da linha.

— Pode conceder-me um instante? — falou William Michaels. Ele se encostara na porta aberta de Philips, com seu sorriso alegre num gritante contraste com o cenho carrancudo de Martin.   A se­guir seu olhar percorreu, sem acreditar, o resto da sala.

— Não pergunte! — retrucou Philips, antecipando algum co­mentário mordaz.

— Meu Deus — continuou Michaels. — Quando se trabalha, não se faz toda essa confusão.

Naquele ponto alguém atendeu o telefone na Admissão, mas foi uma telefonista que logo passou a ligação de Martin para outra pessoa. Esta pessoa somente tratava das admissões, não das altas ou transferências, de modo que Philips ficou no mesmo. Só então ele soube que a pessoa com quem tinha de falar estava na folga para o café e, assim, desligou, frustrado com a burocracia, dizendo: — Por que cargas d'água não fui ser encanador?

Michaels riu, e depois perguntou como Philips estava indo com o projeto deles. Philips informou-lhe que já havia retirado a maior parte das radiografias, indicando a pilha com a mão. Adiantou que talvez as pudesse examinar num mês e meio.

— Perfeito — retrucou Michaels.   — Quanto mais cedo me­lhor, porque o novo banco de memória e o sistema de associação em que vimos trabalhando está saindo melhor do que sonhávamos. Quando você acabar, teremos um novo processador central para manusear o programa isento de falhas. Você nem faz idéia de como vai ser bom.

— Muito pelo contrário — disse Philips, levantando-se.   — Faço uma idéia muito boa. Deixe-me mostrar-lhe o que o programa já captou.

Martin iluminou uma das telas do negatoscópio e pôs nela as radiografias de Marino, Lucas, Collins e McCarthy. Com o dedo indicador, e depois com o pedaço de papel com o buraquinho, ten­tou mostrar as densidades anormais em cada uma.

— Para mim todas parecem iguais — admitiu Michaels.

— Eis aí a questão! — disse Philips. — Aí é que se vê como o sistema é bom.   Só de falar com Michaels, Martin tornou a se inflamar de excitação.

Naquele instante o telefone tocou e Philips atendeu-o. Era o Dr. Donald Travis do New York Medicai Center. Martin explicou seu problema a respeito de Lynn Anne Lucas, mas, propositalmente, deixou de fora a anormalidade radiológica. Depois, perguntou a Travis se ele podia arranjar para se fazer uma CAT scan e algumas radiografias especiais na paciente. Travis concordou e des­ligou. Imediatamente após o telefone zumbiu, e Helen disse a Phi­lips que Denise estava pronta para o próximo angiograma.

— De qualquer modo eu precisava ir — falou Michaels.   — Boa sorte com as chapas.   Lembre-se de que agora depende de você.   Precisamos desse dado assim que você nos puder dar.

Philips tirou seu avental do cabide e seguiu Michaels para fora do escritório.

 

Uma das grandes instalações de luz fluorescente diretamente por cima de Kristin Lindquist estava funcionando mal de modo que piscava com uma rápida freqüência e emitia um zumbido constante. Ela procurava ignorá-la mas era difícil. Ela não se sentia bem desde que acordara naquela manhã com uma leve dor de cabeça e a luz tremulante aumentava o seu mal-estar. A dor era constante e sur­da, e Kristin notou que não piorava com o esforço físico, conforme era hábito com suas outras dores de cabeça.

Olhou para o modelo, um homem nu, na plataforma no cen­tro da sala e depois para o seu trabalho. Seu desenho parecia cha­to, bidimensional e sem sentimento. Normalmente ela gostava de sua vida na turma de desenho. Mas naquela manhã não sentia qualquer prazer, e seu trabalho refletia isso.

Quem dera que aquela luz parasse de tremer. Aquilo a estava pondo louca. Com a mão esquerda protegeu os olhos. Assim fi­cava melhor. Usando um pedaço novo de carvão, começou a de­senhar uma base para nela pôr sua figura. Começou com uma linha vertical, puxando o carvão diretamente para baixo no papel. Ao le­vantar o marcador ficou surpresa ao ver que não havia linha algu­ma. Olhando para a extremidade do carvão de desenho, pôde ver uma área achatada onde o havia passado por sobre o papel. Achan­do que se tratava de um pedaço com defeito, Kristin virou a cabeça ligeiramente para fazer uma marca com o carvão no canto do papel. Ao fazê-lo, reparou que a linha vertical que acabara de traçar aparecia na periferia de sua visão. Ao girar a cabeça leve­mente a linha desapareceu. Kristin repetiu este gesto várias vezes, para certificar-se de que não estava tendo alucinações. Seu olho era incapaz de perceber a linha vertical, quando sua cabeça estava diretamente alinhada com ela. Se virasse a cabeça em qualquer di­reção, a linha aparecia. Fantástico!

Kristin já ouvira falar de enxaquecas, e embora jamais hou­vesse sofrido delas, achou que estava experimentando uma. Depois de baixar seu carvão e arrumar o material no armário, Kristin ex­plicou ao instrutor que não se estava sentindo bem e partiu para seu apartamento.

Ao atravessar o campus, a jovem sentiu a mesma tonteira que experimentara a caminho da aula. Era como se o mundo girasse repentinamente uma fração de grau provocando-lhe um leve dese­quilíbrio. Isso vinha acompanhado de um cheiro desagradável, se bem que vagamente familiar, e de um tilintar de sinos no ouvido.

O apartamento de Kristin, que ela partilhava com sua colega Carol Danforth, ficava no terceiro andar de um edifício a um quar­teirão do campus. Ao subir as escadas, Kristin sentiu um peso nas pernas, o que a fez pensar que estava ficando resfriada.

O apartamento encontra-se vazio. Sem dúvida Carol estava em aula. Por um lado era bom, pois Kristin achava que precisava repousar sem ser perturbada, mas bem que ela teria apreciado a atenção de Carol. Em seguida, tomou duas aspirinas, tirou a rou­pa, deitou-se na cama, e pôs um pano frio na cabeça. Quase que imediatamente sentiu-se melhor. Foi uma mudança tão repentina que ela se deixou ficar ali, preocupada com que, se se mexesse, os estranhos sintomas voltariam.

Quando o telefone ao lado da cama tocou, ficou satisfeita por­que queria falar com alguém. Mas não era uma de suas amigas. Era da Clínica Ginecológica chamando-a para dizer-lhe que seu tes­te de Papanicolau estava anormal.

Kristin ouviu, procurando manter-se calma. Eles diziam que não ficasse preocupada, porque testes de Papanicolau anormais não eram tão raros assim, especialmente quando associados com a pequena erosão que tinha no colo do útero, mas, por segurança, que­riam que voltasse à clínica naquela tarde para repeti-lo.

Kristin tentou protelar, dizendo que estava com dor de cabeça. Mas a Ginecologia insistia, declarando que quanto mais cedo seria melhor. Eles tinham um horário vago naquela tarde, e Kristin podia ser atendida num instante.

A jovem relutou mas concordou em ir. Talvez houvesse al­guma coisa realmente errada e, se fosse esse o caso, ela seria res­ponsável. Porém tinha medo de ir sozinha. Tentou comunicar-se com o namorado, Thomas, mas claro que ele não estava em casa. Kristin sabia que era irracional, porém não podia deixar de sentir que havia algo de ruim no Centro Médico.

 

Martin inspirou profundamente antes de entrar na Patologia. Quan­do Philips era estudante, aquele serviço tinha sido sua bête noire. Sua primeira autópsia se constituíra numa provação para a qual não fora preparado. Achava que ia ser como a aula de Anatomia do primeiro ano, onde o cadáver pouca semelhança tinha com um ser humano, mais parecendo uma estátua de madeira. O cheiro ti­nha sido desagradável, mas, pelo menos, provinha de produtos quí­micos. Além disso, o laboratório de Anatomia se havia caracteri­zado por brincadeiras e piadas, que aliviavam a tensão. No Depar­tamento de Patologia, não. A autópsia tinha sido praticada num menino de 10 anos que morrera de leucemia. Seu corpo estava pálido porém flexível, em tudo parecendo um corpo com vida. Quando o cadáver foi rudemente aberto, ficando estripado como o de um peixe, as pernas de Martin pareciam feitas de borracha e o almoço subiu-lhe até à boca. Evitara vomitar virando a cabeça, porém o esôfago ardia com a acidez de seus próprios sucos diges­tivos. O professor tinha informado qualquer coisa, mas Philips nada ouvira. Havia permanecido ali, sofrendo, condoído daquele garoto sem vida.

Philips, com um movimento brusco, abriu as portas do Depar­tamento de Patologia. O ambiente estava longe de ser o do seu tempo de estudante de Medicina. O departamento mudara-se para o novo prédio da Escola de Medicina e abrigava uma aparelhagem ultra moderna. Em vez dos pequenos espaços sombrios com altos tetos e chãos de mármore, onde os passos ecoavam de modo sobre­natural, a nova área da Patologia era aberta e limpa. Os materiais predominantes eram a fórmica branca e o aço inoxidável. Os compartimentos individuais tinham sido substituídos por áreas demar­cadas por divisões que chegavam à altura dos ombros. As paredes eram cobertas de cópias coloridas de pinturas impressionistas, par­ticularmente de Monet.

A recepcionista indicou a Martin o anfiteatro de autópsia, onde o Dr. Jeffrey Reynolds estava assistindo os residentes. Martin tinha esperado pegar Reynolds em seu gabinete, mas a recepcionista insis­tiu com ele para que fosse ao anfiteatro, pois o Dr. Reynolds não se importava de ser interrompido. Philips não estava preocupado com Reynolds, mas consigo mesmo. Não obstante, seguiu a dire­ção em que apontava o dedo da recepcionista.

À sua frente, sobre uma mesa de aço inoxidável, como um vitelo, achava-se um cadáver. A autópsia tinha começado naquele momento com uma incisão em forma de Y que atravessava o peito e descia até o púbis. A pele e os tecidos subjacentes tinham sido rebatidos para trás, deixando ver a caixa torácica e os órgãos abdo­minais. No instante em que Philips entrou, um dos residentes es­tava cortando com ruído através das costelas.

Reynolds viu Philips e encaminhou-se para ele. Em sua mão trazia uma grande faca de autópsia semelhante a uma faca de açou­gueiro. Martin relanceou o olhar em torno para não fitar o que se passava à sua frente. O local parecia uma sala de operação. Era novo e moderno e completamente azulejado, de modo que podia ser limpo com facilidade. Havia cinco mesas de aço inoxidável. Na parede dos fundos havia uma série de portas de geladeiras quadradas.

— Salve, Martin — disse Reynolds, limpando as mãos em seu avental.   — Lamento o caso Marino.   Gostaria de tê-lo ajudado.

— Compreendo.   Obrigado por haver tentado.   Já que não ia haver uma autópsia, procurei fazer uma CAT scan no cadáver. Foi surpreendente. Sabe o que descobri?

Reynolds meneou a cabeça.

— Não havia cérebro — continuou Philips.   — Alguém re­moveu o cérebro e tornou a suturar a cabeça de um modo que era praticamente impossível perceber.

— Não!

— Sim.

— Meu Deus!   Pode imaginar o tipo de escândalo que isso causaria se a imprensa tomasse conhecimento do fato, e ainda mais a família? Eles foram taxativos em que não haveria autópsia.

— É por isso que eu queria falar com você — disse Philips.

— Espere um minuto — falou Reynolds, após uma pausa. — Você não está pensando que a Patologia se envolveu nisso.

— Não sei — admitiu Philips.

O rosto de Reynolds ficou vermelho, e as veias apareceram em sua testa.

— Bem, posso assegurar-lhe.   O corpo jamais veio para cá. Foi diretamente para o necrotério.

— E quanto à Neurocirurgia? — perguntou Philips.

— Bem, os rapazes de Mannerheim são malucos, mas não creio que até este ponto.

Martin encolheu os ombros, e então disse a Reynolds que o verdadeiro motivo de haver passado por ali era saber de uma pa­ciente de nome Ellen McCarthy que tinha chegado morta na Uni­dade de Emergência há cerca de dois meses. Philips queria saber se ela havia sido autopsiada.

Reynolds arrancou rapidamente suas luvas e enveredou por entre as portas para a parte principal do departamento. Usando o terminal do computador principal da Patologia, digitou o nome de Ellen McCarthy e o número da unidade. De imediato, o nome dela apareceu na tela do computador seguido da data e do número da autópsia bem como da causa da morte: lesão cefálica resultando em maciça hemorragia intracerebral e hérnia do pedúnculo cerebral. Rapidamente, Reynolds localizou uma cópia do relatório da autóp­sia e entregou-o a Philips.

— Você examinou o cérebro? — perguntou Philips.

— Claro que examinamos o cérebro! — exclamou Reynolds. E pegou de volta o relatório. — Você acha que não íamos examinar o cérebro num caso de lesão na cabeça? — E correu os olhos rapidamente pelo papel.

Philips observava-o. Reynolds havia ganho quase 23 quilos desde que eles tinham trabalhado como colegas no laboratório da Escola de Medicina, 6 uma dobra de pele na região posterior do pescoço ocultava a parte superior do colarinho. Suas bochechas eram salientes, e bem abaixo da pele desenhava-se uma delicada rede de capilares vermelhos.

— Ela podia ter sofrido um ataque antes do acidente de auto­móvel — disse Reynolds, ainda lendo o relatório.

— Como se poderia determinar isso?

— Sua língua fora mordida várias vezes. Não é uma certeza, apenas uma presunção...

Philips estava impressionado. Sabia que esses pontos delicados em geral só eram percebidos pelos médicos-legistas.

— Aqui está a seção do cérebro — falou Reynolds. — He­morragia maciça.   Eis algo interessante.   Uma parte do córtex do lobo temporal revelava a morte isolada de células nervosas. Muito pequena reação glial. Não foi feito qualquer diagnóstico.

— E quanto à região occipital? — perguntou Philips.   — Vi umas pequeninas anormalidades radiográficas ali.

— Foi feito um corte — disse Reynolds — e este estava normal.

— Apenas um. Diabos, eu quisera que houvesse outros.

— Você pode estar com sorte. Aqui diz que o cérebro estava perfeito. Espere um minuto.

Reynolds encaminhou-se para um catálogo de cartões e puxou a gaveta M. Philips sentiu-se algo encorajado.

— Bem, estava perfeito e a salvo, porém não o temos. A Neu­rocirurgia o queria, de modo que acho que está lá em cima no laboratório da Neurocirurgia.

Depois de parar para observar Denise praticar impecável e eficiente angiografia de um único vaso, Philips dirigiu-se para a Cirurgia. Esquivando-se do tráfego de pacientes na área de estacio­namento, foi até o balcão do Centro Cirúrgico.

— Estou à procura de Mannerheim — disse Philips para a enfermeira loura.   — Sabe dizer-me quando ele sairá da sala de operações?

— Sabemos com exatidão.

— E quando será isso?

— Há vinte minutos. — As outras duas enfermeiras riram. Aparentemente as coisas estavam correndo muito bem na sala de operação para que elas demonstrassem tão bom humor. — Seus residentes estão fechando.   Mannerheim acha-se na sala de estar.

Philips encontrou Mannerheim sendo cortejado. Os dois médi­cos japoneses visitantes achavam-se, um de cada lado dele, sorrindo e curvando-se a intervalos regulares. No grupo havia cinco outros cirurgiões, todos bebendo café. Mannerheim segurava um cigarro na mesma mão com que pegava a xícara. Havia deixado de fumar há um ano, o que significava que não comprava mais cigarros, porém pedia-os a todo mundo.

— Então sabem o que eu disse àquela besta de advogado? — falava Mannerheim, gesticulando dramaticamente com a mão livre. — Claro que eu banco Deus. Quem você acha que meus pacientes querem que fique remexendo dentro de seus cérebros? Um lixeiro?

O grupo gargalhou ruidosamente em aprovação, e depois co­meçou a se dispersar. Martin aproximou-se com desdém para Man­nerheim.

— Ora, ora, nosso valioso radiologista.

— Nós procuramos agradar — retrucou Philips, alegremente.

— Bem, posso dizer-lhe que não gostei de sua piadinha no telefone ontem à noite.

— Eu não pretendia fazer uma piada — falou Philips. — La­mento que meu comentário tenha parecido fora de propósito.   Eu não sabia que a Marino estava morta e havia notado umas anor­malidades bastante sutis em sua radiografia.

— É de se esperar que você examine as chapas de raios X antes que o paciente morra — disse Mannerheim com grosseria.

— Olhe, o que me interessa discutir é que o cérebro da Ma­rino foi removido de seu cadáver.

Mannerheim esbugalhou os olhos e todo seu rosto ficou rubro. Pegando Philips pelo braço, afastou-o dos dois médicos japoneses.

— Deixe-me dizer uma coisa — falou, rispidamente. — Acon­tece que sei que você retirou o corpo de Lisa Marino daqui na noite passada sem autorização e fez radiografias dele. E quero dizer-lhe que não gosto que ninguém fique fuxicando meus pacientes. Espe­cialmente quando há complicações.

— Escute — retrucou Martin, soltando com um puxão o bra­ço que Mannerheim agarrava. — Só estou interessado em algumas estranhas anormalidades radiológicas que podem resultar numa im­portante descoberta.   Não me interessam suas complicações.

— É melhor mesmo.   Se algo de irregular foi praticado em Lisa Marino, vai cair sobre sua cabeça. Que se saiba, você foi o único que carregou o corpo do necrotério. Não se esqueça disso. — E Mannerheim apontou um dedo ameaçador para o rosto de Philips.

Um repentino receio de vulnerabilidade profissional fez Martin hesitar. Embora o odiasse, tinha de admitir que Mannerheim havia marcado um ponto. Se se viesse a saber que o cérebro de Marino tinha sido removido, competia-lhe provar que não fora ele quem o fizera. Denise, com quem ele estava tendo um caso, era sua única testemunha.

— Muito bem, esqueçamos o caso Marino — disse ele. — Achei outra paciente com o mesmo quadro radiográfico. Ellen Mc-Carthy. Infelizmente morreu num acidente de automóvel. Mas foi autopsiada aqui no Centro Médico e o cérebro foi examinado e enviado para a Neurocirurgia. Eu gostaria de poder ver e tocar este cérebro.

— E eu gostaria que você ficasse fora do meu caminho. Sou um homem ocupado. Trato de pacientes reais, não fico sentado o dia todo vendo chapas e figuras.

Mannerheim virou-se e começou a se afastar.

Philips sentiu-se tomado por uma onda de fúria. Tinha von­tade de gritar: “Seu filho da mãe arrogante e provinciano.” Mas não pôde. Era aquilo que Mannerheim esperava, talvez até dese­jasse. Em vez disso, Martin atacou o conhecido calcanhar-de-aquiles do cirurgião. Com uma voz calma e bem perceptível disse:

— Dr. Mannerheim, o senhor precisa é de um psiquiatra. Mannerheim voltou-se, pronto para o combate, mas Philips já

tinha saído.   Para Mannerheim, a Psiquiatria representava a antítese de tudo o que ele apoiava. A seu ver, era um charco de secundarismos hiperconceituais, e dizer que precisava consultar um psiquiatra era para ele o pior dos insultos. Cego de raiva, o cirur­gião chocou-se contra a porta, entrou no vestiário, descalçou os sapatos sujos de sangue da sala de operação e atirou-os por toda a extensão da sala. Os sapatos se chocaram contra uma carreira de armários e deslizaram para debaixo das pias.

A seguir, pegou bruscamente o telefone da parede e fez duas chamadas em voz alta. Primeiro, falou com o Diretor do Hospital, Stanley Drake, depois chamou o Chefe da Radiologia, Dr. Harold Goldblatt, insistindo com cada um que queria que se fizesse alguma coisa com Martin Philips. Os dois homens escutaram em silêncio: Mannerheim era um indivíduo poderoso dentro da comunidade hos­pitalar.

 

Philips não era o tipo de pessoa que se zanga com freqüência, mas ao chegar a seu gabinete, estava fumegando. Ao vê-lo, Helen ergueu os olhos.

— Lembre-se de que dentro de quinze minutos o senhor tem de fazer a palestra para os estudantes.

Philips murmurou qualquer coisa, ofegante, ao passar por ela. Para surpresa sua, Denise achava-se sentada em frente de seu alternador estudando os prontuários de McCarthy e Collins. Quando ele entrou, a médica levantou os olhos.

— Que tal um almoço, meu velho?

— Não tenho tempo para almoçar — retrucou, brusco, Phi­lips, atirando-se em sua poltrona.

— Você está maravilhosamente bem-humorado.

Apoiando os cotovelos na mesa, ele cobriu o rosto com as mãos. Houve um momento de silêncio. Denise largou as chapas e pôs-se de pé.

— Lamento — disse Martin, através dos dedos. — Esta ma­nhã tem sido cansativa. Este hospital é capaz de levantar incríveis barreiras contra qualquer investigação esclarecedora.   Posso ter to­pado com uma importante descoberta radiológica, mas o hospital parece determinado a me impedir de persegui-la.

— Hegel escreveu: “Nada de grande no mundo foi realizado sem paixão” — disse Denise, com um piscar de olhos.   Ela quase se formara em Filosofia, e descobrira que Martin apreciava sua ca­pacidade de citar os grandes pensadores.

Finalmente, Philips afastou as mãos do rosto e sorriu.

— Eu poderia ter empregado um pouco mais de paixão na noite

— Interprete a palavra neste contexto.   Ê difícil que Hegel quisesse dizer isso.   De qualquer modo, vou comer alguma coisa. Tem certeza de que não quer acompanhar-me?

— Não posso. Tenho de fazer uma palestra para os estudantes. Denise começou a se encaminhar para a porta.

— A propósito, enquanto repassava os prontuários de Collins e McCarthy reparei que ambas tiveram vários esfregaços atípicos de Papanicolau. — E ficou parada.

— Pensei que seus exames na Ginecologia tivessem sido nor­mais — comentou Philips.

— Tudo estava normal em ambas as pacientes, exceto os es­fregaços de Papanicolau.   Estavam atípicos, não significando que fossem francamente patológicos, apenas não perfeitamente normais.

— Isso é raro?

— Não, mas é de se esperar que sejam repetidos até que o teste se revele normal. Não vi nenhum relatório normal.   Bem, é provável que isso não seja nada.   Só achei que devia mencioná-lo. Até logo!

Philips acenou com a mão e permaneceu sentado à sua mesa, tentando relembrar a papeleta de Lisa Marino. Parecia-lhe haver visto também um teste de Papanicolau registrado nela. Voltando-se para a ante-sala, Philips chamou a atenção de Helen:

— Lembre-me de que devo ir à Clínica Ginecológica esta tarde.

 

Às 13:05, armado com seu carrossel de slides intitulado “Palestra Introdutória ao Cat Scanner”, Philips entrou no salão de conferências do Walowski Memorial. Era muito diferente do resto do Departa­mento de Radiologia que era utilitarista e atulhado num local ina­dequado. O salão era excessivamente luxuoso, parecendo mais um salão de projeções de Hollywood do que o auditório de um hospital. As poltronas eram estofadas com um tecido aveludado e macio, e dispostas em fileiras, permitindo uma visão perfeita da tela. De imediato, os estudantes tomaram seus lugares nas poltronas, pres­tando-lhe atenção. Philips reduziu as luzes e acionou o primeiro slide.

A palestra estava mais do que aprimorada. Philips já a havia realizado várias vezes. Começava com a origem do conceito do Cat scanner pelo Sr. Godfrey Hornsfield, da Inglaterra, seguida por uma enumeração cronológica de seu desenvolvimento. Com muito cuidado Philips enfatizou que, embora se usasse um tubo de raios X, a imagem resultante era, na verdade, uma reconstrução matemática depois que um computador havia analisado a informação. Uma vez que os estudantes compreendiam aquele conceito básico, ele achava que o ponto principal da palestra tinha sido alcançado.

Enquanto falava, a mente de Martin começou a divagar. Ele estava tão familiarizado com o material que não fazia diferença. Sua admiração pela gente que havia planejado o CAT scanner in­cluía um toque de inveja. Mas então compreendeu que, se seu pro­jeto desse certo, ele iria alcançar a notoriedade no mundo científico. Seu trabalho podia causar um impacto ainda mais revolucionário no diagnóstico radiológico. Sem dúvida o colocaria na disputa de um Prêmio Nobel.

Em meio a uma frase descrevendo a capacidade do CAT scan­ner em detectar tumores, o beeper de Philips começou a funcionar. Acendendo as luzes do salão, ele pediu desculpas e correu para o telefone. Philips sabia que Helen não o chamaria a não ser num caso de emergência. Mas a telefonista disse que a chamada era de fora, e antes que ele pudesse protestar, já estava ligado com o Dr. Donald Travis.

— Donald — disse Martin, colocando a mão em concha em torno do receptor. — Estou no meio de uma palestra.   Posso cha­má-lo mais tarde?

— Diabos, não! — berrou Travis. — Já gastei uma boa parte da minha manhã em busca de sua mítica transferência do meio da noite.

— Não pôde achar Lynn Anne Lucas?

— Não.   De fato, há uma semana que não se faz qualquer maldita transferência do Centro Médico.

— É muito estranho. Disseram-me distintamente que ela foi para o New York Medicai Center. Olhe, vou falar com a Admissão, mas, por favor, verifique mais uma vez, é importante.

Philips desligou o telefone, mas deixou sua mão sobre o recep­tor por um instante. Tratar com os burocratas era quase tão ruim quanto tratar com gente como Mannerheim. Voltando para o ta­blado, tentou reajuntar os pedaços da palestra, mas sua concentra­ção estava completamente desfeita. Pela primeira vez, desde que começara a lecionar, inventou uma falsa emergência e suspendeu a palestra.

De volta ao gabinete, Helen desculpou-se pela interrupção, di­zendo que o Dr. Travis havia insistido. Philips retrucou que tudo estava bem, e ela o seguiu pelo gabinete desenrolando seus recados. Disse que o Diretor do Hospital, Stanley Drake, havia telefonado duas vezes e queria ser chamado o mais cedo possível. Falou que o Dr. Robert McNeally havia telefonado de Houston, perguntando se o Dr. Philips queria presidir a seção de Neuro-Radiologia na Convenção anual de radiologia em Nova Orleans. Disse que ele queria uma resposta dentro de uma semana. E ia passar ao próxi­mo tópico, quando Philips ergueu a mão abruptamente.

— Por ora chega! — exclamou Philips.

— Mas tem mais.

— Sei que tem mais.   Sempre tem mais. Helen ficou desconcertada.

— O senhor vai chamar o Sr. Drake?

— Não. Telefone-lhe e diga-lhe que estou muito ocupado para chamá-lo hoje e que falarei com ele amanhã.

Helen tinha bastante senso para saber quando devia deixar seu chefe sozinho.

De pé na soleira de seu gabinete, Philips olhou em derredor do aposento. A confusão causada pelas pilhas de radiografias de crâ­nios tinha sido removida e em seu lugar estavam os angiogramas da manhã. Pelo menos seu técnico chefe, Kenneth Robbins, tinha as coisas sob controle.

O trabalho era a estabilidade de Philips. Assim, sentou-se, pe­gou o microfone e começou a ditar. Havia chegado ao último angio­grama quando percebeu que alguém tinha entrado no gabinete e se achava de pé atrás dele. Esperando ver Denise, Philips ficou sur­preso quando, ao levantar os olhos, notou o rosto sorridente de Stanley Drake, o Diretor do Hospital.

Segundo o modo de pensar de Philips, Drake parecia um po­lítico educado e elegante. Estava sempre muito janota em seu terno listrado de três peças e seu relógio de corrente de ouro. Usava gravatas de seda com um passador, de modo que ficavam horizon­talmente sobre sua camisa branca engomada. Era a única pessoa do conhecimento de Philips que usava punhos grandes com abotoaduras francesas. De algum modo ele conseguia estar sempre bron­zeado, mesmo durante um chuvoso mês de abril em Nova York.

Philips retornou a seu angiograma e continuou a ditar: “Con­cluindo, o paciente apresenta uma grande malformação arteriovenosa na região dos gânglios basais à esquerda, alimentada pelas artérias coroidal e cerebral média e posterior. Ponto. Fim do di­tado. Muito obrigado.”

Abandonando o microfone, Martin voltou-se para o Diretor. Aborrecia-o que houvesse tão pouco senso de privacidade no hos­pital a ponto de alguém ir entrando por seu gabinete.

— Dr. Philips, é um prazer vê-lo — disse Drake, sorrindo. — Como vai sua mulher?

Philips fitou-o por um minuto sem saber se ria ou se ficava zangado.   Por fim, disse calmamente:

— Há quatro anos que me divorciei.

Foi uma água na fervura. Drake engoliu em seco. Por um instante seu sorriso vacilou, e ele mudou de assunto para dizer o quanto a Junta Diretora do hospital estava satisfeita com o bom funcionamento do Departamento de Neuro-Radiologia desde a no­meação de Philips. Depois houve uma pausa. Philips limitava-se a observar. Sabia por que Drake estava ali e não iria facilitar as coisas para ele.

— Bem — prosseguiu o Diretor, assumindo um tom mais sé­rio.   Sua pequena boca ficou repuxada. — Estou aqui para discutir esse infeliz caso Marino.

— O que há?

— O fato é que o corpo da pobre moça foi irreverentemente manuseado e radiografado sem autorização para ser examinado post-mortem.

— E o cérebro foi removido — disse Philips. — Radiografar um corpo e remover um cérebro não estão na mesma categoria?

— Sim, naturalmente.   Agora, neste momento não interessa se você esteve envolvido na retirada do cérebro.   A questão é que. ..

— Espere aí! — Philips ergueu-se em sua cadeira. — Quero deixar isso bem claro.   Radiografei o corpo, é verdade.   Mas não removi o cérebro.

— Dr. Philips, não estou preocupado com quem retirou o cé­rebro.   Preocupa-me o fato de que o cérebro foi removido.   Neste ponto é minha responsabilidade proteger o hospital e seu pessoal de uma publicidade má e de uma responsabilidade financeira ror qualquer indenização.

— Bem, e eu estou preocupado com quem removeu o cérebro, principalmente se alguém pensa que fui eu.

— Dr. Philips, não precisa ficar alarmado.   O hospital já en­trou em contato com a empresa funerária. A família não vai saber desse episódio infeliz. Mas devo lembrá-lo de sua posição delicada nesse caso e imploro que deixe as coisas ficarem como estão.   É apenas isso.

— Foi Mannerheim quem o mandou vir aqui? — perguntou Philips, começando a se irritar.

— Dr. Philips, por favor compreenda minha posição — retru­cou Drake. — Estou do seu lado.   Estou procurando apagar uma fogueirinha antes que ela se espalhe e cause danos.   É para o bem de todos. Estou-lhe apenas pedindo que seja razoável.

— Muito obrigado — disse Philips, levantando-se. — Muito obrigado por passar aqui.   Vou pensar bastante no que o senhor disse. — Philips empurrou Drake para fora de seu gabinete, e fechou a porta.

Ao repassar a conversa, mal acreditou que ela houvesse acon­tecido. Através da porta podia ouvir Drake falando com Helen, de modo que teve a certeza de que não tinha sonhado. Porém, mais do que tudo, aquilo reforçara sua determinação de se livrar da cor- rida de ratos dos departamentos. Mais do que nunca, ele sabia que sua pesquisa tinha de ser bem-sucedida.

Com um crescente senso de motivação, Philips apanhou a lista principal das chapas de crânio feitas nos últimos 10 anos. Checan­do os números de cada uma com a pilha de chapas, rapidamente determinou a ordem em que foram arquivadas. Pegou o primeiro envelope, riscou o nome da lista, e depois retirou as radiografias de dentro dele. Pegou duas chapas feitas de perfil que se casavam, co­locando o resto no envelope. Depois de dar a necessária informação ao computador, colocou uma das chapas no leitor laser. A outra foi disposta em seu negatoscópio. O relatório da antiga chapa foi posto junto à impressora da console.

Conforme a maioria das personalidades compulsivas, Martin era um organizador de listas. Ele havia anotado Marino Lucas, Collins e McCarthy quando o telefone tocou. Era Denise dizendo que o primeiro angiograma da tarde estava pronto para ser feito. Philips pensou por um instante, e depois disse que sua presença era desne­cessária e sugeriu que ela prosseguisse com o trabalho enquanto achasse que estava bem. Segundo ele esperava, Denise ficou satis­feita com aquele voto de confiança.

Retornando à sua lista, Philips riscou Collins. Adiante do no­me de Marino escreveu: “Necrotério, ver Werner.” Philips tinha uma forte intuição de que o empregado do necrotério sabia o que havia acontecido ao corpo de Lisa Marino. Adiante de McCarthy, Philips escreveu: “Laboratório da Neurocirurgia.” Restava Lucas. Depois de sua conversa com Travis, ele estava confiante em que ela não se achava no New York Medicai Center, a não ser que houvesse sido admitida sob um nome suposto, porém isso não fazia muito sentido, e assim escreveu: “Enfermeira de serviço à noite na Neurologia — 14, Oeste”, após o nome dela.

Então pegou o telefone e tornou a ligar para a Admissão. O telefone tocou 36 vezes antes que alguém atendesse. Uma vez mais, a pessoa com quem Philips tinha de falar não estava disponível. Philips deixou seu nome e um recado para que fosse chamado depois.

Naquele momento o computador havia acabado seu trabalho. Philips leu o relatório excitado, comparando-o com a antiga inter­pretação, e depois examinando a própria chapa. O computador não só detectou tudo o que vinha mencionado no relatório, como até descobriu um leve espessamento e uma opacidade dos seios frontais que tinham passado despercebidos na interpretação original. Olhan­do para a chapa, Philips teve de concordar com o computador. Era espantoso.

Ele estava repetindo o processo com a próxima chapa, quando Helen enfiou a cabeça pela porta e, desculpando-se pela intromissão, disse que o “chefão” queria vê-lo o mais depressa possível.

O gabinete do Dr. Harold Goldblatt estava situado bem no fim do departamento, numa ala do prédio que se projetava para o pátio central como um pequeno tumor retangular. Toda gente sabia quan­do entrava em seus domínios, porque o chão era atapetado e as paredes, apaineladas com mogno. Isso lembrava a Philips um da­queles escritórios de advocacia do centro da cidade, cujos cabeçalhos nos impressos tinham tantos nomes quanto uma página da lista telefônica.

Martin bateu na pesada porta de madeira. Goldblatt estava sen­tado atrás de sua maciça mesa de mogno. A sala tinha janelas dos três lados e a mesa ficava de frente para a porta. Havia mais do que uma casual semelhança com o Salão Oval da Casa Branca. Goldblatt reverenciava os adornos do poder, e após toda uma vida de manobras maquiavélicas, tinha-se tornado uma figura internacio­nal na Radiologia. Houve um tempo em que fora bom em Neuro-Radiologia; agora ele era uma instituição, e seu conhecimento pro­fissional marcado e, portanto, limitado. Embora Martin particular­mente encarasse com cinismo o fato de Goldblatt compreender ino­vações tais como o CAT scanner, ainda admirava o homem. Ele havia sido uma grande força na elevação da Radiologia a seu atual estágio de prestígio.

Goldblatt levantou-se para apertar a mão de Philips e indicou-lhe uma cadeira de frente para a mesa. Goldblatt era um homem vigoroso aos 64 anos. Ainda se vestia do mesmo modo que quando se formara por Harvard em 1939. Seu traje era de três peças, com a calça balofa e com bainhas nas extremidades, e cerca de 3cm. acima de seus tornozelos. Usava uma gravata de laço dado à mão e, portanto, torto e assimétrico. Seu cabelo era quase branco, apa­rado numa versão modificada do corte à escovinha, que o permitia descer um pouco por sobre as orelhas. Ele espiou para Martin por sobre os óculos de aros de metal.

— Dr. Philips — começou Goldblatt, sentando-se.   A seguir, apoiou os cotovelos sobre a mesa, entrecruzando as mãos com força. — Trazer cadáveres que mal acabaram de esfriar do necrotério para o departamento no meio da noite não é a idéia que faço de uma conduta normal.

Philips concordou com que aquilo parecia um absurdo e, como uma explicação, não como uma desculpa, falou a Goldblatt primei­ro sobre o programa de leitura e interpretação que ele e William Michaels tinham desenvolvido, e depois sobre a densidade anormal que o programa do computador havia detectado na radiografia de Lisa Marino. Disse a Goldblatt que precisava de mais chapas a fim de caracterizar a anormalidade. Falou que achava imperativo prosseguir com o projeto, porque ele poderia ser usado para lançar o conceito de um computador analisador de chapas de raios X.

Depois de Philips ter falado, Goldblatt sorriu bondosamente, acenando com a cabeça.

— Ao escutá-lo, Martin, fico pensando se você sabe exatamen­te o que está fazendo.

— Acho que sei. — A observação de Goldblatt surpreendera Philips, e era difícil não tomá-la como ofensa.

— Não me estou referindo ao lado técnico do projeto. Refiro-me à implicação do seu trabalho.   Francamente, não acho que o departamento possa apoiar um projeto cujo objetivo é alienar o pa­ciente ainda mais do que já está do médico.   Você está propondo um sistema onde a máquina substitui o radiologista.

Martin estava pasmo. Não se achava preparado para enfrentar a carga de heresia de Goldblatt. Ele esperava por aquilo, mas so­mente de alguns radiologistas pouco competentes, muitos dos quais Philips conhecia.

— Você tem um futuro promissor — continuou Goldblatt — e eu gostaria de ajudá-lo a atingi-lo. Também estou comprometido com a preservação da integridade aqui no departamento no Centro Médico.   Tenho a   impressão que você deveria   desviar suas ten­dências de pesquisa para uma direção mais aceitável.   De qualquer modo, você não vai poder mais radiografar cadáveres sem autori­zação.   Isso nem precisava ter sido dito.

Philips teve um súbito vislumbre interior. Mannerheim devia ter ido a Goldblatt. Não havia outra explicação. Porém, Manner­heim era uma prima-dona que não gostava de dividir as atenções com ninguém. Por que estaria agora trabalhando com Goldblatt e, provavelmente, com Drake?   Isso não fazia sentido.

— Um último ponto — prosseguiu Goldblatt, formando um campanário com as mãos unidas. — Foi trazido a meu conhecimen­to que você estabeleceu uma espécie de ligação com uma das resi­dentes.   Não creio que o departamento possa fazer vista grossa a este tipo de fraternidade.

Philips ergueu-se subitamente, apertou os olhos, e seus múscu­los do rosto ficaram tensos.

— A não ser que minha vida profissional seja comprometida .— falou devagar — minha vida pessoal não é assunto do depar­tamento.

Deu meia-volta e saiu do escritório. Goldblatt foi em seu en­calço, dizendo-lhe algo sobre a imagem do departamento, porém Philips não se deteve.

Passou por Helen sem mesmo a olhar de relance, embora a moça estivesse em pé, com o bloco de recados na mão. Philips bateu a porta, sentou-se em frente do alternador e apanhou o microfone. Era melhor trabalhar e deixar passar um pouco o tempo antes de confrontar seus sentimentos. O telefone tocou e ele o ignorou. He­len atendeu e apertou o botão da cigarra. Philips foi até à porta e, através de gestos, perguntou a Helen quem era. Era o Dr. Travis, disse ela.

Travis disse a Martin que, definitivamente, não havia nenhuma Lynn Anne Lucas no New York Medicai Center. Ele dera uma busca no hospital, investigando todos os meios concebíveis de trans­ferência que poderiam ter sido burlados. Depois, perguntou a Phi­lips o que conseguira saber na Admissão.

— Não muita coisa — respondeu Philips, sem jeito.   Estava constrangido em dizer que não fizera qualquer verificação depois de ter submetido o colega a um esforço tão grande.   Assim que desli­gou, telefonou para a Admissão. A persistência acabou por dar seus dividendos, e ele finalmente conseguiu falar com a mulher encar­regada das altas e das transferências. Perguntou-lhe como um pa­ciente podia sair do hospital no meio da noite.

— Os doentes não são prisioneiros — retrucou a mulher da Admissão. — O paciente foi internado através da Unidade de Emer­gência?

— Sim — respondeu Philips.

— Bem, isso é comum — disse a mulher. — Muitas vezes os pacientes admitidos pela Unidade de Emergência são transferidos depois que o doente melhora, se o médico particular não goza de prerrogativas aqui.

Philips grunhiu qualquer coisa à guisa de ter entendido, e de­pois pediu detalhes concernentes a Lynn Anne Lucas. Desde que o computador processador de dados usado pela Admissão era acio­nado pelo número do paciente ou data do nascimento, a mulher disse que tinha de obter o número do registro da doente na Unidade de Emergência antes de poder conseguir qualquer informação. Assim que pudesse, ela lhe telefonaria.

Martin procurou voltar ao ditado, mas era difícil concentrar-se. Bem à frente de seu nariz achavam-se as papeletas hospitalares de Collins e McCarthy. Lembrava-se dos comentários de Denise a res­peito dos esfregaços de Papanicolau. Era muito pouco o que ele sabia sobre ginecologia em geral e testes de Papanicolau em parti­cular. Vestindo seu longo avental branco e pegando o prontuário de Katherine Collins, Philips saiu do gabinete. Ao passar por Helen, disse-lhe que estaria de volta dentro de um instante e que ela só o chamasse numa emergência.

A primeira etapa foi a biblioteca. Passando apressadamente por vários pacientes em tratamento ambulatorial, Philips decidiu usar o túnel. Para ir-se ao novo edifício da Escola de Medicina tomava-se a mesma ramificação que Philips usava para ir para o seu apartamento. Ele ficava bem além das escadas que levavam à velha Escola de Medicina, que tinha sido abandonada dois anos antes, quando haviam sido completadas as novas instalações.

O antigo edifício devia ter sido renovado para prover com ur­gência o espaço necessário para os departamentos clínicos que es­tavam brotando como o da Radiologia, porém, devido ao enorme custo das obras, o dinheiro havia acabado quando a nova escola estava para ser completada. Dois anos após, até mesmo uma parte da nova Escola de Medicina estava ainda aguardando novos fundos. Assim, o antigo projeto da Escola de Medicina tinha sido indefini­damente adiado e os departamentos clínicos tiveram de esperar.

A nova Escola de Medicina era muito diferente da de quando Philips era estudante: particularmente a biblioteca. O dinheiro não tinha sido levado em conta, o que era certamente o motivo pelo qual a velha Escola de Medicina permanecia abandonada na maior parte. O saguão era espaçoso e atapetado, refletido em dois espe­lhos, com escadarias em curva que levavam ao andar superior.

O catálogo de fichas da biblioteca achava-se sob a borda do balcão que formava a sobreloja. Philips anotou o número de um tratado padrão de Ginecologia. Embora se achasse interessado em ler alguma coisa sobre o esfregaço de Papanicolau, não estava in­teressado em consultar um exaustivo compêndio de citologia. Já conhecia a eficiência do teste; como procedimento revelador do cân­cer, era talvez o melhor e o mais seguro. Ele próprio o havia reali­zado, como estudante, de modo que sabia que era muito fácil de fazer, bastando raspar um pouco a superfície da cérvix com um abaixador de língua, e em seguida espalhar o material numa lâmina de vidro. Não se lembrava era da classificação dos resultados e do que se devia fazer, se o relatório declarasse o exame “atípico”. In­felizmente, o compêndio não foi muito útil. Tudo o que dizia era que qualquer exame suspeito da cérvix devia ser seguido de um teste de Schiller, que consistia em passar iodo na cérvix para determinar as áreas anormais, ou da realização de uma biópsia ou de uma col­poscopia. Philips não fazia idéia do que fosse uma colposcopia e teve de usar o índice. Consistia de um processo no qual um instru­mento semelhante a um microscópio era usado para se examinar a cérvix.

O que mais surpreendeu Philips foi aprender que cerca de 10 a 15% dos novos casos de câncer cervical ocorriam entre os 20 e 25 anos de idade. Tinha a impressão errônea de que o câncer cer­vical fosse um problema de um grupo etário mais velho. Não podia haver melhor argumento a favor da realização do exame ginecológico anual.

Martin devolveu o livro e dirigiu-se para a Clínica Ginecológica da universidade. Lembrava-se de que esta parte do serviço havia permanecido fora dos limites para os estudantes, que teriam ficado como animais famintos frente à carne pendente, já que as pacientes eram em geral bonitas alunas das faculdades. As pacientes coloca­das à disposição dos estudantes de Medicina eram as coroas multíparas das clínicas regulares, e o contraste fazia com que as alunas parecessem figuras das páginas centrais do Playboy.

Philips sentiu-se bastante deslocado ao se aproximar da recep­cionista. Quando parou à sua frente, ela tremeu os olhos e tomou uma inspiração profunda para elevar seu peito achatado. Martin fitou-a atentamente porque algo lhe pareceu muito estranho em seu rosto. Mas desviou o olhar ao perceber que os olhos dela eram insolitamente fechados.

— Sou o Dr. Martin Philips.

— Oi, e eu sou Ellen Cohen.

Involuntariamente, Philips voltou a contemplar de relance os olhos de Ellen Cohen.

— Gostaria de falar com o médico de serviço — disse o radiologista.

Ellen Cohen tremeu as pálpebras mais uma vez.

— O Dr. Harper está examinando uma paciente agora, mas logo estará livre.

Num outro departamento qualquer, provavelmente Philips teria caminhado diretamente para a sala de exames. Em vez disso, vol­tou-se para a sala de espera, sentindo-se constrangido como se lem­brava de ficar, quando, aos 12 anos, esperava por sua mãe no ca­beleireiro. Cerca de meia dúzia de moças achavam-se sentadas ali, com os olhos fixos nele. Quando seus olhares se cruzavam, elas baixavam o olhar para suas revistas.

Martin sentou-se numa cadeira bem junto à mesa da recepcio­nista. Furtivamente, Ellen Cohen fez escorregar para dentro de uma das gavetas o romance que estava lendo. Quando Philips relanceava o olhar em sua direção, ela sorria.

Philips deixou sua mente vagar até Goldblatt. O atrevimento do homem em pensar que tinha o direito de ditar a vida particular de Philips, ou mesmo de sua pesquisa, era de pasmar. Se o departamento custeasse a pesquisa de Philips, poderia haver uma justifi­cativa, mas não era esse o caso. A contribuição da Radiologia era o tempo de Martin. Os fundos que tinham sido necessários para o material e custos da programação, que tinham sido consideráveis, provinham de fontes acessíveis através do Departamento de Ciência de Computadores de Michaels.

De repente, Martin notou que uma paciente tinha-se aproxi­mado da recepcionista e estava perguntando o significado de um es-fregaço atípico de Papanicolau. Ela parecia falar com esforço, apoiando-se levemente na mesa da recepcionista.

— Queridinha. — Imediatamente, a recepcionista percebeu a atenção de Philips. — Não sou médica — continuou ela, sorrindo, mais para satisfazê-la. — Sente-se.   A Sra. Blackman logo estará aqui.

Naquele dia Kristin Lindquist tinha experimentado todas as frustrações que era capaz de suportar.

— Disseram-me que eu seria examinada imediatamente — fa­lou ela, e prosseguiu contando à recepcionista que tinha tido dor de cabeça, tonteira e perturbações da visão naquela manhã, de modo que, de fato, não podia esperar como no dia anterior. — Por favor, diga à Sra. Blackman agora mesmo que estou aqui. Ela me telefo­nou e me disse que não haveria nenhuma demora.

Kristin virou-se e caminhou até uma cadeira em frente a Phi­lips. Andava lentamente, como uma pessoa insegura de seu equi­líbrio.

Ellen Cohen revirou os olhos ao cruzá-los com os de Philips, insinuando que a moça estava fazendo uma exigência absurda, mas ergueu-se para ir em busca da enfermeira. Martin voltou-se para olhar Kristin. Sua mente achava-se ocupada em estabelecer asso­ciações entre os esfregaços atípicos do teste de Papanicolau e vagos sintomas neurológicos. Kristin tinha fechado os olhos de modo que Philips podia olhá-la sem se sentir constrangido. Calculou que a jovem tinha cerca de 20 anos. Rápido, Philips abriu o prontuário de Katherine Collins e folheou-o às pressas até encontrar a anotação neurológica inicial. Dor de cabeça, tonteira e perturbações visuais achavam-se descritas como os sintomas apresentados.

Voltou a olhar para Kristin Lindquist. Poderia aquela mulher à sua frente ser mais um caso com o mesmo quadro radiológico? Philips achava possível. Com todas as dificuldades encontradas para obter mais radiografias de outras pacientes, a idéia de descobrir um novo caso era tremendamente sedutora. Ele poderia fazer as cha­pas de raios X adequadas desde o início.

Não precisando de outro incentivo, foi até onde estava Kristin e tocou-lhe de leve no ombro. A jovem sacudiu-se surpresa e afas­tou uma mecha de cabelos louros do rosto. A expressão de medo que mostrava lhe dava uma aparência particularmente vulnerável, e Martin de repente tomou consciência da beleza da garota.

Escolhendo cuidadosamente as palavras, Martin apresentou-se, dizendo que era do Departamento de Radiologia e a tinha ouvido descrever seus sintomas para a recepcionista. Disse-lhe que havia examinado chapas de raios X de quatro moças com problemas se­melhantes e que talvez lhe fosse útil fazer uma radiografia. Teve todo o cuidado em enfatizar que se tratava apenas de uma precau­ção, e que ela não deveria alarmar-se.

Para Kristin, o hospital estava cheio de surpresas. Em sua pri­meira consulta no dia anterior ficara esperando durante horas. Ago­ra, via-se frente a um médico que, ao que parece, solicitava pa­cientes.

— Não sou apegada a hospitais — falou ela.   Kristin queria acrescentar: e aos médicos, porém aquilo lhe parecia muito irreve­rente.

— Para lhe falar a verdade, sinto a mesma coisa — disse Phi­lips, sorrindo. Gostara imediatamente daquela atraente jovem e sen­tia-se como um protetor. — Porém, uma radiografia não demoraria muito tempo para ser feita.

— Ainda me estou sentindo mal, e acho que seria melhor se fosse para casa o mais depressa possível.

— Será rápido — continuou Philips. — Eu lhe prometo. Uma chapa. Eu mesmo providenciarei.

Kristin hesitava. Por um lado detestava o hospital. Por outro, ainda se sentia mal e estava sensibilizada com a preocupação de Philips

— E então? — insistiu ele.

— Está bem — respondeu, finalmente, Kristin.

— Ótimo. Quanto tempo você vai ficar aqui na clínica?

— Não sei. Disseram que não vai ser muito tempo.

— Ótimo. Não saia sem mim — finalizou Martin. Minutos depois, Kristin foi chamada. Quase simultaneamente abriu-se uma outra porta e apareceu o Dr. Harper.

Philips reconheceu Harper como um dos residentes que vira certa ocasião andando pelo hospital. Jamais estivera com o homem, mas sua cabeça polida era difícil de esquecer. Philips levantou-se e apresentou-se. Seguiu-se um momento de embaraço. Como resi­dente, Harper não dispunha de um escritório, e como ambas as salas de exame estavam ocupadas não havia um lugar onde pudes­sem falar. Meteram-se então pelo estreito corredor.

— Em que lhe posso ser útil? — perguntou Harper, um tanto desconfiado.   Era estranho que o Diretor Assistente da Neuro-Radiologia estivesse em visita à Ginecologia, desde que seus interesses e habilidades técnicas se situavam nos extremos opostos do espectro médico.

Philips iniciou a conversa em termos mais ou menos vagos, expressando interesse no modo pelo qual a clínica era dirigida, per­guntando há quanto tempo Harper estava ali, e se gostava do ser­viço. As respostas de Harper eram bruscas e seus olhos pequeninos dardejavam sobre o rosto de Philips, enquanto ia explicando que a clínica da universidade usava de um sistema rotativo de dois meses para um residente sênior, acrescentando que se havia tornado um marco simbólico ser convidado para participar da equipe depois de completar a residência.

— Olhe — disse Harper, depois de uma pausa — tenho um bocado de pacientes para ver.

Martin verificou que em vez de fazer o homem se descontrair, suas perguntas o estavam constrangendo.

— Só mais uma coisa — disse Philips. — Quando um esfre­gaço de Papanicolau é dado como atípico, o que geralmente se faz?

— Depende — retrucou Harper cautelosamente. — Há duas categorias de células atípicas. Uma é atípica porém não sugestiva de um tumor, ao passo que a outra é atípica e sugere a existência de um tumor.

— Em qualquer das hipóteses não se deve fazer algo? Quero dizer, se não está normal, deve ser acompanhado com regularidade. Não está certo?

— Sim — respondeu Harper, evasivamente. — Por que está me fazendo essas perguntas? — Ele sentia distintamente que estava sendo encostado na parede.

— Só por curiosidade — disse Martin. E mostrou o prontuá­rio de Collins. — Encontrei por acaso várias papeletas que tiveram esfregaços atípicos de Papanicolau nesta clínica. Mas lendo as ob­servações ginecológicas, não encontrei qualquer referência ao teste de Schiller, nada sobre uma biópsia ou sobre colposcopia... apenas esfregaços repetidos. Isso não é... irregular? — Philips olhou para Harper sentindo o desconforto do outro. — Olhe, não estou fazendo qualquer censura. É apenas curiosidade.

— Nada posso dizer, a menos que veja o prontuário — falou Harper. Com aquele comentário, pretendia pôr fim à conversa.

Philips entregou a papeleta de Collins a Harper, e ficou obser­vando enquanto o residente a abria. Quando Harper leu o nome, “Katherine Collins”, seu rosto ficou tenso. Martin contemplava, curioso, como o homem folheava o prontuário, depressa demais para poder ler qualquer coisa adequadamente. Ao chegar ao fim, ele ergueu os olhos e o devolveu.

— Não sei o que dizer.

— É irregular, não é? — insistiu Martin.

— Digamos o seguinte: não é o modo pelo qual eu trataria do caso. Mas agora tenho de trabalhar.   Desculpe-me. — E empurrou Philips, que teve de se colar à parede a fim de dar espaço para o colega passar.

Surpreso ante o súbito fim da conversa, Martin viu o residente entrar às pressas numa das salas de exame. Philips não pretendera que suas perguntas fossem tomadas pessoalmente, e ficou imagi­nando se tinha parecido mais acusador do que pensava. Contudo, a reação do residente ao abrir o prontuário de Katherine Collins tinha sido estranha. Quanto a isso, Philips não alimentava qualquer dúvida.

Achando que não adiantava mais falar com Harper, Martin voltou até onde estava a recepcionista e perguntou por Kristin Lindquist. Primeiro, Ellen Cohen agiu como se não tivesse ouvido a pergunta. Quando Philips a repetiu a mulher respondeu com gros­seria que a Srta. Lindquist estava com a enfermeira e logo sairia. Não tendo gostado de Kristin já de início, agora que Philips parecia interessado nela, detestava-a ainda mais. Inconsciente dos ciúmes de Ellen Cohen, Martin sentia-se incrivelmente confuso sobre a Clí­nica Ginecológica da universidade.

Alguns minutos mais tarde, Kristin saiu da sala de exames, ajudada por uma enfermeira. Martin já vira a enfermeira, prova­velmente no restaurante, e se lembrava de seu cabelo negro e es­pesso, amarrado num coque no alto da cabeça.

Ele se pôs de pé quando a mulher se aproximou da mesa e ouviu a enfermeira dizer à recepcionista que marcasse uma consulta para daí a quatro dias para Kristin. A moça estava muito pálida.

— Srta. Lindquist — indagou Martin. — Já terminou tudo?

— Acho que sim — respondeu Kristin.

— E quanto à radiografia? — prosseguiu Philips. — Está dis­posta a fazê-la?

— Acho que sim — tornou a dizer Kristin.

Súbito, a enfermeira de cabelos negros voltou para a mesa da recepcionista.

— Se o senhor não se importa, eu gostaria de saber de que tipo de radiografia estão falando.

— Uma chapa de perfil do crânio — disse Martin.

— Está bem.   Estou perguntando porque   Kristin apresentou um teste anormal de Papanicolau, e preferimos que evite submeter-se a radiografias abdominais ou pélvicas, até que seu exame de Pa­panicolau se revele normal.

— Não há problemas — explicou Philips. — Em meu depar­tamento só estamos interessados na cabeça. — Ele nunca ouvira falar de qualquer relação entre os esfregaços de Papanicolau e o exame diagnóstico de raios X, mas a explicação lhe pareceu razoável.

A enfermeira assentiu com a cabeça, e saiu. Ellen Cohen me­teu bruscamente o cartão da consulta na mão de Kristin, que o aguardava, antes de se voltar e fingir que estava ocupada em sua máquina de escrever.

— Putinha suja da Califórnia — murmurou Ellen.

Martin afastou Kristin do ambiente confuso da clínica, e le­vou-a através de uma porta que dava para o hospital propriamente dito. Uma vez ultrapassada a porta de incêndio, o cenário pareceu muito agradável em contraste com o da clínica. Kristin estava sur­presa.

— Esses são os gabinetes particulares para alguns dos cirur­giões — ia explicando Philips, enquanto ambos caminhavam pelo saguão atapetado.   Havia até quadros a óleo nas paredes recente­mente pintadas.

— Pensei que o hospital todo fosse velho e arruinado — co­mentou Kristin.

— Pelo contrário. — De repente, passou pela mente de Phi­lips uma imagem do necrotério subterrâneo, que se mesclou ime­diatamente com sua recente visão da Clínica Ginecológica. — Diga-me, Kristin, como uma paciente, que tal você acha a clínica da universidade?

— Eis uma pergunta difícil — retrucou Kristin. — Odeio tan­to as consultas na Ginecologia que acredito não poder dar uma res­posta justa.

— Como você as compara com sua experiência no passado?

— Bem, é uma coisa terrivelmente impessoal, pelo menos on­tem, quando vi o médico. Hoje, porém, só vi a enfermeira e foi melhor. Mas também hoje não tive de esperar tanto quanto ontem, e tudo o que fizeram foi retirar mais sangue e tornar a examinar minha visão. Não fiz mais nenhum exame. Graças a Deus.

Eles haviam chegado à área do elevador, e Philips apertou o botão.

— A Sra. Blackman também teve tempo para me explicar o meu esfregaço de Papanicolau.   Parece que não estava muito mau. Falou que era do Tipo II, que é comum e quase retorna ao normal espontaneamente.   E que provavelmente era provocado pela erosão cervical, adiantando que eu deveria fazer minha higiene em ducha fraca e evitar o sexo.

Martin ficou momentaneamente admirado pela franqueza de Kristin. Conforme a maioria dos médicos, esqueceu-se surpreenden­temente que o fato de ser médico encorajava as pessoas a contar seus segredos.

Chegando ao Raio X, Philips procurou Kenneth Robbins e en­tregou-lhe Kristin para que fosse feita a radiografia simples de perfil do crânio que ele queria. Como já passava das quatro horas, o departamento estava relativamente calmo e uma das principais salas de raios X achava-se vazia. Robbins tirou a radiografia e desapa­receu na câmara escura para colocar a chapa no revelador automá­tico. Enquanto Kristin esperava, o próprio Martin ficou parado junto à abertura no saguão principal, onde sairia a radiografia.

— Você parece um gato vigiando o buraco de um rato — disse Denise, que havia chegado por trás de Philips e o pegara de surpresa.

— E é assim mesmo que me sinto.   Descobri uma paciente lá na Ginecologia com sintomas semelhantes aos de Marino   e das outras, e estou prendendo a respiração para ver se o quadro radioIógico é o mesmo. Como foram seus angiogramas esta tarde?

— Muito bem, obrigada.   Apreciei que você me deixasse agir por minha conta.

— Não me agradeça. Você merece.

Naquele momento apareceu a ponta da radiografia de Kristin, que depois saiu do cilindro, caindo na caixa receptora. Martin ar­rancou-a rapidamente e colocou-a no negatoscópio. Seu dedo per­correu examinando de trás para frente uma região aproximadamente por sobre o ouvido de Kristin.

— Diabo! — exclamou ele. — Está limpa.

— Ora vamos! — protestou Denise. — Não vá dizer-me agora que quer que a paciente esteja com a doença.

— Você está certa — falou Martin. — Não quero que nin­guém sofra disso. Quero apenas um caso que eu possa radiografar adequadamente.

Robbins saiu da câmara escura.

— Quer mais chapas, Dr. Philips?

Martin meneou a cabeça, pegou a radiografia e entrou na sala onde Kristin estava esperando. Denise seguiu-o.

— Boas novas — falou Philips, acenando com a radiografia. — Sua chapa está normal. — Então disse a Kristin que talvez de­vessem repeti-la dentro de uma semana, se seus sintomas persistis­sem.   Pediu-lhe o número de seu telefone e deu-lhe o seu, direto, para o caso de ela querer perguntar alguma coisa.

Kristin agradeceu-lhe e tentou pôr-se de pé. Imediatamente teve de apoiar-se, agarrando-se na mesa de raios X, atingida que fora por uma aura de vertigem. A sala parecia girar no sentido dos ponteiros de um relógio.

— Você está bem? — perguntou Martin segurando-lhe o braço.

— Acho que sim — respondeu Kristin, piscando. — Foi aquela mesma tonteira. Mas já passou. — O que ela não disse foi que sen­tira o mesmo desagradável odor familiar. Era um sintoma muito estranho para ela contar. — Logo estarei boa. Acho melhor ir para casa.

Philips ofereceu-se para chamar um táxi, porém a moça insistiu em que estava bem. Quando a porta do elevador se fechava, Kristin acenou com a mão e chegou mesmo a esboçar um sorriso.

— Foi um modo muito inteligente de obter o número do te­lefone de uma garota atraente — disse Denise, enquanto ambos voltavam para o gabinete de Philips.

Contornando a esquina do corredor, Philips sentiu-se aliviado ao ver que Helen tinha ido embora. Denise deu uma espiadela na sala e disse, ofegante:

— Que diabo é isso?

— Não diga nada — falou Philips, abrindo caminho por en­tre aquele amontoado de coisas até sua mesa. — Minha vida está-se desintegrando, e comentários violentos de nada vão adiantar.

Apanhou os recados que Helen deixara. Conforme esperava, havia chamadas com a anotação de “importantes” de Goldblatt e Dra­ke. Depois de fitá-las por um instante, deixou que os dois pedaços de papel descrevessem uma delicada espiral, caindo em sua grande cesta de papéis.

Então ligou o computador e introduziu a chapa de crânio de Kristin.

— Muito bem! Como estão indo as coisas? — disse Michaels, aparecendo na entrada da porta. Pela desordem reinante, ele podia dizer que pouco havia mudado desde a sua visita pela manhã.

— Depende do que você está falando — disse Philips. — Se é sobre o programa, a resposta é: ótimas. Só passei algumas radio­grafias, mas até agora o aparelho está-se desempenhando com uma exatidão de cerca de cento e dez por cento.

— Maravilhoso! —   exclamou Michaels,   aplaudindo com as mãos.

— É mais do que maravilhoso — falou Philips.   __ É fantás­tico! É a única coisa por aqui que está dando certo.   Lamento que não tenha tido mais tempo para trabalhar nele. Infelizmente, estou preso ao meu trabalho regular. Mas vou ficar um pouco aqui esta noite e passar tantas chapas quantas puder.

Philips viu Denise virar-se e fitá-lo. Tentou ler sua expressão, mas teve sua atenção presa pelo barulho rápido e trepidante da impressora que ia redigindo o relatório. Michaels viu o que estava acontecendo e colocou-se atrás de Philips para olhar por sobre seu ombro. Do ponto de vista de Denise, eles pareciam dois pais orgu­lhosos.

— O aparelho está interpretando uma radiografia de crânio que acabo de tirar de uma jovem — explicou Martin. — Seu nome é Kristin Lindquist. Achei que talvez ela apresentasse a mesma anor­malidade que as outras pacientes que lhe descrevi. Mas não.

— Por que você está tão interessado nesta anormalidade em particular? — perguntou Michaels. — Pessoalmente, preferia vê-lo gastando seu tempo realmente com o programa.   Mais tarde haverá tempo para você se dedicar a este tipo de divertimento.

— Você não conhece os médicos — disse Martin. — Quando liberarmos este pequeno computador para a   comunidade médica que de nada suspeita, vai ser o mesmo que confrontar a Igreja Ca­tólica medieval com a Astronomia de Copérnico. Se pudermos apre­sentar um novo dado radiológico descoberto pelo programa, sua aceitação será muito mais fácil.

Quando a impressora fez uma pausa, Philips arrancou o rela­tório dela. Rapidamente seus olhos percorreram a folha, e então se concentraram num parágrafo central.

— Não acredito. — Martin pegou a radiografia e recolocou-a em seu negatoscópio.

Com as mãos bloqueando a maior parte da chapa, Philips iso­lou uma pequena área na região posterior do crânio.

— Aí está! Meu Deus! Eu sabia que a paciente tinha os mes­mos sintomas. O programa lembrou-se dos outros casos e foi capaz de descobrir este exemplo muito pequeno da mesma anormalidade.

— E pensamos que estivesse muito sutil nas outras chapas — disse Denise, espiando por cima do ombro de Philips.   — Esta envolve apenas a ponta do pólo occipital, não a região parietal ou temporal.

— Talvez se trate da doença num estágio mais inicial — su­geriu Philips.

— Que doença? — perguntou Michaels.

— Não temos certeza ainda — respondeu Martin. — Porém várias das pacientes que revelaram esta mesma anormalidade na densidade eram suspeitas de esclerose múltipla.   É apenas um pal­pite.

— Não vejo nada — admitiu Michaels. Chegou o rosto bem perto da radiografia, mas de nada adiantou.

— É uma qualidade da contextura — explicou Martin.   — Você tem que conhecer qual é a contextura normal, antes de poder apreciar a diferença. Acredite-me que está ali.   Não é o programa que a está criando.   Amanhã vou fazer a paciente voltar, e foca­lizar bem a área. Talvez com algumas radiografias melhores você possa ver.

Michaels admitiu que sua observação sobre a anormalidade não era uma crítica. Depois de declinar um convite para jantar no restaurante do hospital, Michaels desculpou-se. Na porta, tornou a pedir a Martin que despendesse mais tempo passando as antigas chapas pelo computador, argumentando que era uma boa chance para o programa detectar todos os tipos de novos sinais radiológicos, e que se Philips empregasse o tempo seguindo cada uma delas, o o programa jamais seria liberado de suas falhas. E com um aceno final, Michaels partiu.

— Ele está impaciente não é? — comentou Denise.

— Com boas razões — disse Martin. — Falou-me hoje que, para conduzir o programa, eles projetaram um processador mais novo que tem uma memória mais eficiente.   Ao que parece, vai ficar pronto logo.   Quando o estiver, serei o único a mexer com isso.

— Então você está planejando trabalhar esta noite? — per­guntou Denise.

— Claro.   — Martin olhou-a e, pela primeira vez, notou o quanto estava cansada. A médica quase não havia dormido na noi­te anterior e tinha trabalhado o dia todo.

— Esperava que você estivesse interessado em vir a meu apar­tamento para um pequeno jantar e talvez acabarmos o que havíamos começado na noite passada.

Estava sendo deliberadamente erótica, e Martin era um alvo fácil. A atividade sexual seria um meio maravilhoso de lidar com as frustrações e exasperações do dia. Mas Philips sabia que tinha um trabalho a fazer e que Denise era por demais importante para ser apenas usada conforme ele fizera com as enfermeiras, quando era um interno necessitando relaxar sua tensão.

— Tenho que pôr em dia algumas coisas — falou ele, por fim. — Por que você não vai para casa mais cedo? Eu lhe telefo­narei e talvez dê um pulo lá mais tarde.

Porém Denise insistiu em esperar, enquanto ele passava em revista todos os angiogramas e CAT scans do dia, que tinham sido ditados pelos colegas da Neuro-Radiologia. Mesmo que seu nome não aparecesse nos relatórios, Philips examinava tudo o que era feito no departamento.

Faltavam 15 para as sete, quando eles recuaram suas cadeiras e se puseram de pé para se espreguiçar. Martin voltou a olhar para Denise, porém esta escondeu o rosto.

— O que há?

— Não gosto que você me veja quando estou tão horrorosa. Abanando a cabeça sem acreditar, estendeu o braço e tentou levantar-lhe o queixo, porém ela puxou bruscamente a mão dele. Era espantoso como, segundos após haver desligado o negatoscópio, a mulher havia passado de uma absorta profissional para uma mu­lher sensível. Quanto ao que dizia respeito a Martin, parecia can­sada mas tão atraente como sempre. Quis dizer-lhe, porém ela não acreditaria. Depois de beijá-lo rapidamente, disse que ia para casa tomar um banho demorado, e que esperava vê-lo mais tarde. E saiu como um pássaro em fuga.

Martin levou alguns minutos para se refazer. Denise tinha o poder de pôr seu cérebro em curto-circuito. Estava apaixonado e o sabia. Pegando o número do telefone de Kristin, Philips fez a ligação, mas não houve resposta. Decidiu então pegar um maço de correspondência para rever, enquanto jantava no restaurante.

Eram 9:15 quando Martin terminou com o ditado e a corres­pondência. Durante o mesmo tempo, havia podido passar mais 25 chapas antigas pelo computador que funcionou sem uma falha. Enquanto isso, Randy Jacobs fazia freqüentes viagens de ida e vol­ta aos arquivos. Estava recolhendo a seus lugares os envelopes já examinados, mas como tirara várias centenas de outros, o escritório de Philips se achava ainda mais atulhado e desorganizado do que antes.

Usando o telefone de sua mesa, Philips ligou de novo para o número de Kristin. A jovem atendeu na segunda chamada.

— Estou um pouco constrangido — disse ele — mas, olhando sua radiografia mais atentamente, acho que há uma região que pre­cisa de um exame mais acurado.   Poderia voltar aqui amanhã de manhã?

— De manhã, não — retrucou Kristin. — Já perdi aulas dois dias seguidos. É melhor não faltar mais.

Concordaram que seria às três e meia da tarde. Martin asse­gurou-lhe que ela não teria de esperar. Ao chegar, devia ir dire­tamente ao gabinete dele.

Desligando, Martin recostou-se em sua poltrona e deixou-se envolver pelos problemas do dia. As conversas com Mannerheim e Drake tinham sido irritantes, mas pelo menos estavam de acor­do com as personalidades dos dois homens. A conversa com Gold­blatt fora diferente. Philips não esperara por um tal ataque de al­guém que fora seu mentor. Martin estava certo de que Goldblatt tinha sido o responsável por sua nomeação para o lugar de Assis­tente Chefe da Neuro-Radiologia há quatro anos. Assim, o fato não fazia sentido. Se a hostilidade ao projeto do computador era responsável pela conduta de Goldblatt, Philips e Michaels iriam en­frentar mais problemas do que haviam previsto. Aquele pensamento fez com que Martin se endireitasse na poltrona e procurasse a lista que tinha feito dos pacientes potencialmente portadores do novo sinal radiológico. A corroboração da nova técnica diagnóstica havia assumido uma importância maior. Achou a lista e acrescentou-lhe o nome de Kristin Lindquist.

Mesmo admitindo a antipatia de Goldblatt pelo novo compu­tador, seu comportamento ainda não fazia sentido. Aquilo sugeria um conluio com Mannerheim e Drake, e para Goldblatt tomar o partido de Mannerheim, se tal era o caso, algo fora do comum devia estar acontecendo. Algo muito estranho.

Philips tornou a pegar a lista: Marino, Lucas, Collins, McCarthy e Lindquist. Adiante de McCarthy ele havia escrito “Labo­ratório de Neurocirurgia.” Se Mannerheim sabia ser sinuoso, ele também sabia. Philips saiu da obscuridade de seu escritório para a luz brilhante do corredor. Na direção das salas de fluoroscopia, viu o que estava procurando: os carrinhos de limpeza da turma da manutenção.

Trabalhando normalmente por longas horas, Martin teve várias oportunidades para se familiarizar com a turma da limpeza. Em várias ocasiões, haviam limpado seu gabinete com ele lá dentro, fazendo piadas e brincando, dizendo que ele vivia secretamente sob sua mesa. Era um grupo interessante composto de dois homens de pouco mais de 20 anos, um branco e um preto, e duas mulheres mais velhas, uma porto-riquenha e a outra irlandesa. Philips queria falar com a irlandesa. Há 14 anos ela trabalhava para o Centro Médico, e era a supervisora nominal do grupo.

Philips encontrou a turma numa das salas de fluoroscopia na hora da folga para o café.

— Escute, Dearie — disse Martin para a mulher. Dearie (Que­ridinha) era o apelido dela, porque era como se dirigia a todo mun­do. — Será que você pode entrar no laboratório de pesquisa neurocirúrgica?

— Posso entrar em qualquer lugar deste hospital, exceto nos armários dos narcóticos — disse Dearie, orgulhosa.

— Ótimo — retrucou Martin. — Vou fazer-lhe uma oferta que você não vai poder recusar. — E continuou, dizendo que que­ria que ela lhe emprestasse sua chave mestra por 15 minutos para ele apanhar uma peça do laboratório da Neurocirurgia que ele de­sejava radiografar. Em troca, ela teria uma CAT scan grátis!

Dearie levou bem um minuto para parar de rir.

— Eu não devia fazer isso, mas considerando quem o senhor é... Só peço que me devolva a chave antes de sairmos da Radio­logia. Para isso o senhor tem vinte minutos.

Philips usou o túnel para ir ao Edifício de Pesquisas Watson. O elevador estava esperando no saguão deserto; ele entrou e aper­tou o botão do andar que queria. Embora Martin estivesse no meio de um atarefado centro médico numa populosa cidade em cresci­mento, sentia-se isolado e sozinho. A pesquisa era realizada entre oito e cinco horas, e o edifício estava vazio. O único som que se ouvia era o do vento assobiando no poço do elevador enquanto o carro subia.

As portas se abriram e ele saltou num vestíbulo parcamente iluminado. Passando pela porta de incêndio, viu-se num corredor que seguia por todo o comprimento do edifício. A fim de poupar energia quase todas as luzes estavam apagadas. Dearie não lhe dera apenas uma chave, mas sim toda uma penca que tilintava no si­lêncio do prédio vazio.

O laboratório da Neurocirurgia ficava no terceiro andar à es­querda, perto da outra extremidade do corredor, e à medida que Martin chegava mais perto, sentia-se tenso. A porta que dava para o laboratório era de metal com um painel de vidro no centro. De­pois de olhar de soslaio por sobre o ombro, enfiou a chave na fe­chadura. A porta abriu-se. Rápido Philips entrou e fechou-a. Ten­tou sorrir ante seu próprio senso de suspense mas isso de nada adiantou. Seu nervosismo havia ultrapassado a proporção do que estava fazendo. Ele decidiu que estava bancando um ladrão vulgar.

O botão da luz fez um estalido excessivamente alto, quando ele o ligou. Fileiras de lâmpadas fluorescentes iluminaram o enor­me laboratório. Dois balcões corriam até a metade do aposento, cheios de pias, bicos de gás, e prateleiras apinhadas de frascos de vidro. Na extremidade havia uma área reservada para cirurgia ani­mal, que parecia uma moderna sala de operação reduzida a três quartos do tamanho. Tinha projetores operatórios, uma pequena mesa de operação, e até um aparelho para anestesia. Não havia qualquer separação entre a área operatória e o laboratório propria­mente dito, a não ser que a parte cirúrgica era ladrilhada. De um modo geral constituía um impressionante conjunto que se erguia como tributo à habilidade de Mannerheim em obter verbas para pesquisas.

Philips não fazia idéia de onde poderia estar guardado um espécime de cérebro, mas achou que devia haver uma coleção, e assim só procurou nos armários maiores. Não achou nada, mas re­parou que havia uma outra porta perto da área cirúrgica. Apresen­tava uma janelinha de vidro com uma rede metálica embutida e, encostando-se nela, espiou para dentro de um quarto escuro que ficava para além. Bem do outro lado da porta, Philips pôde ver uma série de estantes contendo potes de vidro; todo um grupo com cérebros imersos num líquido conservador.

A ansiedade de Martin continuava a aumentar a cada minuto que passava. No momento em que viu os cérebros, quis encontrar o de McCarthy e ir embora. Abriu a porta com um empurrão e começou a examinar rapidamente os rótulos. Seu nariz foi atingida por um forte cheiro de bichos e, na escuridão, à esquerda, ele per­cebeu de relance uma série de gaiolas. Mas seu interesse estava concentrado nos potes de vidro; cada qual rotulado com um nome, um número e uma data. Calculando que a data fosse a da morte do paciente, Philips avançou rapidamente pela longa fileira de po­tes. Como a única luz era a que vinha através da janelinha de vidro na porta, precisava chegar bem perto de cada pote a cada passo que dava. O de McCarthy achava-se no fim da sala perto de uma porta de saída.

Ao estender a mão para pegar o espécime, Philips foi assaltado por um grito horripilante que ecoou pelo pequeno aposento, ime­diatamente seguido por um barulho de metal batendo contra metal. As pernas de Philips curvaram-se quando ele se voltou para se de­fender, batendo com o ombro de encontro à parede. Outro grita cortou os ares, mas nenhum ataque se materializou. Em vez disso Martin viu-se cara a cara com um macaco engaiolado. O animal estava totalmente raivoso. Seus olhos pareciam dois carvões acesos. Seus lábios estavam repuxados expondo seus dentes, dois dos quais haviam-se quebrado quando ele tinha tentado morder as barras de aço de sua prisão. Do alto da cabeça do macaco, projetava-se um grupo de eletrodos como espaguetes multicoloridos.

Philips verificou que estava olhando para um dos animais que Mannerheim e seus rapazes tinham transformado num monstro berrador. Era bem conhecido no Centro Médico que o último inte­resse de Mannerheim achava-se em descobrir a localização exata no cérebro associada com a reação de raiva. O fato de que outros pesquisadores achassem que não havia um único centro em nada dissuadia Mannerheim de seu intento.

Quando os olhos de Philips se adaptaram à obscuridade, ele pôde ver muitas gaiolas. Cada uma tinha um macaco com todas as variedades de mutilações na cabeça. Alguns tinham toda a par­te posterior de seus crânios substituída por hemisférios de plexiglas através dos quais passavam centenas de eletrodos embutidos. Uns eram dóceis como se houvessem sido lobotomizados.

Philips recuou e pôs-se de pé. Atento ao animal irado que continuava a guinchar e a sacudir barulhentamente a gaiola, o mé­dico levantou o vidro que continha o cérebro parcialmente dissecado de McCarthy. Atrás dele havia um grupo de lâminas atadas por um elástico. Philips também as pegou. E estava-se preparando para sair, quando ouviu a porta externa do laboratório abrir-se e fechar-se, seguida de ruídos abafados.

Martin entrou em pânico. Sacudindo o pote de vidro, as lâ­minas e a penca de chaves, ele abriu a porta de trás do biotério. À sua frente, a escada de incêndio mergulhava numa infinita série de reentrâncias. Philips parou no topo da escadaria e concluiu que fugir não era a solução. Segurando a porta antes que se fechasse com o ferrolho, retornou ao laboratório.

— Dr. Philips — falou, surpreso, um dos homens da segu­rança. Seu nome era Peter Chobanian.   Pertencia ao time interno de basquetebol do Centro Médico e havia mantido várias palestras tarde da noite com Philips. — O que o senhor está fazendo aqui?

— Eu precisava de um lanche — respondeu Martin, com o rosto muito sério. E levantou o vidro com o espécime de cérebro.

— Ah! — exclamou Chobanian, desviando o olhar. — Antes de trabalhar aqui eu pensava que só os psiquiatras eram malucos!

— É sério — disse Philips, adiantando-se sobre as pernas que lhe pareciam de borracha. — Vou tirar uma radiografia dessa peça.

Eu devia tê-lo pegado hoje mas não... — E acenou para o outro segurança que ele não conhecia.

— O senhor nos devia dizer quando vem aqui — continuou Chobanian. — Alguns dos microscópios têm desaparecido deste prédio, e estamos procurando apertar a vigilância.

 

Philips conseguiu que um dos técnicos da Radiologia que trabalhava à noite viesse até o Departamento de Neuro-Radiologia numa das folgas entre os casos de traumatismo na Unidade de Emergência para dar uma opinião. Philips havia tentado inutilmente tirar uma chapa do cérebro parcialmente dissecado de McCarthy, que ele ha­via colocado num prato de papel. Por mais que Philips fizesse, as radiografias saíam ruins. Em todas as chapas era difícil ressaltar a estrutura interna. Tentou reduzir a voltagem, mas de nada adian­tou. O técnico lançou um olhar para o cérebro e ficou verde. De­pois que o homem foi embora, Martin finalmente viu qual era o problema. Embora o cérebro houvesse estado no formol, a estru­tura interna tinha sido bastante destruída para embaraçar qualquer definição radiológica. Deixando cair o cérebro em seu pote de vi­dro, Philips levou-o juntamente com o pacote de lâminas para a Patologia.

O laboratório não estava trancado, mas se achava deserto. Se alguém queria roubar microscópios, era ali que devia ir buscá-los, pensou ele. Então, abriu a porta da sala de autópsias. Ali também não havia ninguém. Andando ao longo da comprida mesa central sobre a qual se alinhava uma porção de microscópios, cada qual com seu gravador para ditado ao lado, Philips lembrou-se da pri­meira vez que olhara para o seu próprio sangue. Recordou-se do terror que sentiu, imaginando que sua lâmina de sangue pudesse revelar uma leucemia. A Escola de Medicina tinha sido uma época de doenças imaginárias, e Martin havia contraído quase todas elas.

No fundo do salão, encontrou um bico de Bunsen fazendo ferver um béquer cheio d'água. Descansando o pote de vidro e as lâminas, ele esperou. Não demorou muito. Um corpulento e obeso residente da patologia entrou gingando. Era evidente que não es­tava esperando companhia, pois vinha puxando o zíper da braguilha da calça ao passar pela porta. Seu nome era Benjamin Barnes. Philips apresentou-se e perguntou a Barnes se podia fazer-lhe um favor.

— Que tipo de favor? Estou procurando acabar com esta au­tópsia para cair fora daqui.

— Consegui umas lâminas.   Gostaria de saber se posso olhá-las rapidamente.

— Você tem aí uma porção de microscópios.   Por que não os usa?

Era um modo grosseiro de tratar uma pessoa da equipe do hospital, mesmo que fosse de um outro departamento, porém Mar­tin conseguiu conter sua irritação.

— É que já faz alguns anos — disse. — Além disso trata-se de lâminas de cérebro e eu nunca fui bom em cérebro.

— Seria melhor esperar pelo neuropatologista amanhã de ma­nhã — retrucou Barnes.

— Estou interessado num   exame rápido   agora — insistiu Martin.

Philips jamais achara gente gorda agradável, e o patologista estava confirmando sua impressão.

Relutantemente, Barnes tomou as lâminas e colocou uma sob o microscópio. Examinou-a, e pôs outra. Levou cerca de 10 mi­nutos para observar toda a série.

— Interessante — disse ele. — Veja isso aqui. — E afastou-se para o lado a fim de que Philips pudesse espiar.

— Está vendo aquela área em claro? — perguntou Barnes.

— Sim.

— Deve ter havido uma célula nervosa ali. Philips olhou para Barnes.

— Todas essas lâminas marcadas com lápis dermográfico ver­melho têm áreas onde faltam neurônios ou onde eles estão defor­mados — explicou o residente. O curioso é que a inflamação é muito leve. Não faço idéia do que seja. Eu a descreveria como uma área de “discreta morte neurônica multifocal”, de etilogia desconhecida.

— Não imagina qual seja a causa? — perguntou Philips.

— Absolutamente.

— Que tal a esclerose múltipla?

O residente fez uma cara estranha, franzindo a testa.

— Talvez.   Ocasionalmente ocorrem lesões da substância cin­zenta na esclerose múltipla, embora essas lesões se localizem em geral na substância branca. Mas não são assim como esta. A infla­mação seria maior. Para ter certeza, preciso corar a mielina.

— E quanto ao cálcio? — perguntou Philips, sabendo que não havia muitas coisas que afetassem a densidade das chapas, mas que o cálcio era uma delas.

— Não vejo nada que sugira cálcio. De novo lhe digo que preciso fazer uma coloração.

— Outra coisa — prosseguiu Philips.   — Eu gostaria de ter algumas preparações feitas com lâminas do lobo occipital.   — E bateu de leve no pote de vidro.

— Eu pensei que você só quisesse que eu olhasse as lâminas — disse Barnes.

— Está certo.   Não quero que você olhe ou examine o cé­rebro, apenas que faça os cortes. — O dia de Martin havia sido ruim, e ele não estava com disposição para tratar com um patolo­gista residente preguiçoso.

Barnes teve bastante senso para não dizer mais nada. Pegou o pote de vidro e entrou bamboleando na sala de autópsias. Philips seguiu-o. Com uma concha, Barnes tirou o cérebro do formol e colocou-o sobre o balcão de tampo de aço inoxidável junto da pia. Brandindo uma das facas grandes de autópsia, deixou que Philips lhe mostrasse a região que desejava. Então Barnes tirou várias fatias de mais ou menos 1,25 cm e imergiu-os em parafina.

— Os cortes serão   feitos   amanhã.   Que tipos de coloração você quer?

— Todos os que você possa imaginar — respondeu Philips. — E uma última coisa: você conhece o empregado que trabalha à noite aqui no necrotério?

— Está-se referindo a Werner? Philips assentiu com a cabeça.

— Vagamente. É um pouco esquisito mas de confiança e um bom trabalhador. Está aqui há vários anos.

— Acha que ele anda atrás de alguma coisa?

— Não tenho a menor idéia. O que ele iria querer?

— Qualquer coisa. Hipófises para vender o hormônio de cres­cimento; dentes de ouro; favores especiais.

— Não sei. Mas acho que isso não me surpreenderia.

 

Depois da perturbadora experiência no laboratório da Neurocirur­gia, Philips sentia-se particularmente constrangido ao seguir a linha vermelha na direção do necrotério no subsolo. A enorme área es­cura, como uma caverna, do lado de fora do necrotério parecia o palco perfeito para uma cena de horror gótico. A janelinha de quartzo na porta do incinerador brilhava na escuridão como o olho de um monstro ciclópico.

“Pelo amor de Deus, Martin. O que há com você?”, disse Philips a si mesmo, tentando fortalecer sua confiança que se extinguia. O necrotério tinha a mesma aparência da noite anterior. As lâmpadas desprotegidas, pendentes de seus fios emprestavam à cena um tom de fantástica irrealidade. Havia um leve cheiro de coisas em decomposição. A porta da geladeira estava entreaberta e um pouco da luz interior coava para fora juntamente com uma corrente de névoa fria.

— Werner! — chamou Philips. Sua voz ecoou pelo velho apo­sento ladrilhado.   Não houve resposta.   Philips entrou e a porta fechou-se atrás dele.

— Werner!

O silêncio só era quebrado pelo gotejar de uma torneira. Fa­zendo uma experiência, Philips adiantou-se para a geladeira e olhou em seu interior. Werner estava lutando com um dos cadáveres. Aparentemente o corpo havia caído da carreta, porquanto Werner estava levantando o cadáver rijo e nu, tentando desajeitadamente re­pô-lo em sua maca móvel. Podia ter dado algum auxílio, mas Philips permaneceu onde estava, observando. Quando o zelador conseguiu recolocar o cadáver na maca, Martin entrou na geladeira.

— Werner! — a voz de Martin soava inexpressiva.

O zelador flexionou os joelhos e ergueu as mãos como uma criatura da selva pronta para atacar. Philips havia assustado o homem.

— Quero falar com você — disse Philips. Pretendera ser au­toritário, porém sua voz saiu fraca.   Rodeado pela morte, suas de­fesas se desfaziam. — Compreendo sua situação e não quero cau­sar nenhum problema, mas preciso de umas informações.

Ao reconhecer Philips, Werner descontraiu-se, porém não se mexeu. Sua respiração se fazia em haustos curtos de vapor con­densado.

— Preciso achar o cérebro de Lisa Marino.   Não me interessa quem o levou ou por qual razão.   Quero apenas uma oportunidade de vê-lo para um projeto de pesquisa.

Werner estava como uma estátua. Exceto por seus movimentos respiratórios, era como um dos mortos.

— Olhe — continuou Martin.   — Eu pago.   — Jamais ele havia subornado alguém na vida.

— Quanto? — indagou Werner.

— Cem dólares.

— Não sei nada sobre o cérebro da Marino.

Philips olhou para as feições impassíveis do homem. Diante das circunstâncias, ele se sentia impotente.

— Muito bem.   Telefone para a Radiologia, se você de repen­te se lembrar. — Em seguida virou-se e saiu, mas no corredor, de­sandou a correr para a fila dos elevadores.

 

Ao entrar no vestíbulo externo do edifício de apartamentos de Denise, Philips esquadrinhou as plaquetas com os nomes. Ele sabia aproximadamente onde estava a dela, mas eram tantas que ele sem­pre tinha de procurar um pouco. Depois de apertar o botão ne­gro, Philips aguardou, com a mão na maçaneta da porta da frente, que a cigarra lhe permitisse entrar.

Dentro do prédio o ar cheirava como se todo mundo houvesse assado cebolas para o jantar. Philips subiu pelas escadas. Havia um elevador, porém, se não estava já esperando embaixo no saguão, demorava muito tempo para chegar. Denise morava no terceiro andar, e Philips não se importava de subir pelas escadas. Mas ao atingir o último lance, começou a ver o quanto estava cansado. Tinha sido um dia longo e exaustivo.

Denise havia passado por outra metamorfose. Não mais pa­recia cansada, e disse que tinha tirado um cochilo após o banho. Seus cabelos, livres dos grampos, caíam como as águas de uma cascata da cabeça. Ela vestia uma camisola de cetim cor-de-rosa com calcinha furadinha que combinava com a camisola, deixando à vista a porção exata para despertar a imaginação. Aquilo fez passar um pouco da fadiga de Martin. Sempre se admirava da habilidade de Denise em se desfazer de sua eficiente personalidade hospitalar, embora compreendesse que ela alimentava bastante confiança em suas habilidades intelectuais, para se permitir suas fantasias femi­ninas. Era um equilíbrio raro e maravilhoso.

Os dois se abraçaram na porta e então, sem nada falar, ca­minharam de braços dados para o quarto de dormir. Martin pu­xou-a para a cama. No início ela apenas aquiesceu, desfrutando da impaciência dele, mas depois juntou-se a Philips, combinando sua paixão até que ambos se entregaram a uma mútua gratificação.

Durante algum tempo, os dois ficaram juntos, deitados, gozan­do da intimidade e desejando conservar em suas mentes o prazer que se davam mutuamente. Por fim, Martin apoiou-se num coto­velo de modo a poder passar o dedo pelo nariz e lábios finamente desenhados da médica.

— Acho que este relacionamento está ficando inteiramente fora de controle — disse ele, rindo.

— Concordo.

— Há algumas semanas que venho apresentando os sintomas, mas só nos últimos dois dias foi que fiquei certo do diagnóstico. Estou apaixonado por você, Denise.

Para a médica, a palavra jamais tivera tanta significação. Ante­riormente, nunca Martin havia falado em amor, mesmo quando dizia que se interessava muito por ela.

Eles se beijaram levemente. As palavras não tinham sido ne­cessárias, mas acrescentaram uma nova dimensão de intimidade.

— O fato de eu admitir o meu amor por você — continuou Martin, após uns instantes — de certo modo me assusta. A Medi­cina destruiu o meu relacionamento anterior, e tenho receio de que possa fazê-lo de novo.

— Não penso assim.

— Eu penso.   Ela tem um meio de conservar um refém por exigências sempre crescentes.

— Mas entendo essas exigências.

— Não tenho certeza de que você entenda.   Ainda não — disse Martin. Tinha consciência de que o comentário parecia indulgente, mas sabia que neste ponto da carreira de Sanger seria impos­sível convencê-la de que dirigir um departamento tornava a Me­dicina do dia-a-dia tão enervante quanto os outros negócios.   Além disso, Philips conservava em mente o desafio de Goldblatt ao rela­cionamento deles, de modo que a preocupação não era hipotética.

— Acho que compreendo mais do que você pensa — disse Denise. — Penso que você mudou desde que se divorciou. Naquela ocasião, creio que você tinha uma espécie de crença machista em que poderia obter a maior parte de sua gratificação de sua carreira. Mas tenho a impressão de que isso agora mudou.   Acredito que você perceba que a maior parte de sua satisfação provirá de seus relacionamentos pessoais.

Houve um momento de silêncio. Martin estava espantado ante a sua transparência bem como diante da clarividência de Denise. Foi esta quem quebrou o silêncio.

— A única coisa que não consigo entender é que, se você está interessado em passar mais tempo de sua vida fora do hospital, por que não reduz seu trabalho de pesquisa?

— Porque ele pode representar a chave para minha liberdade — respondeu Martin, puxando-a mais para perto de si.   — Você se tornou minha promessa para uma completa realização, e a pes­quisa tem o poder de me dar o que quero da Medicina, bem como mais tempo com você.

E se beijaram, certos de sua recém expressa afeição. Mas à medida que permaneciam ali deitados e abraçados, começaram a experimentar grande exaustão e sentiram que deviam dormir.

Denise foi escovar os dentes, enquanto Martin deixava seus pensamentos flutuarem, retornando ao misterioso desaparecimento de Lynn Anne. Relanceando o olhar pela porta do banheiro, de­cidiu dar um telefonema rápido para o hospital, lembrando à en­fermeira que Lynn Anne havia sido admitida pela Unidade de Emergência, e depois imediatamente transferida. A enfermeira lembrava-se do caso porque a ordem de transferência tinha chegado logo após ela haver terminado de preencher a ficha de admissão. Martin indagou se ela se lembrava de para onde a paciente tinha sido enviada, porém a enfermeira respondeu que não. Philips agra­deceu e desligou.

Na cama, ele se enrascou nas costas de Denise, mas teve di­ficuldade em conciliar o sono. Começou por contar-lhe sua extraor­dinária e perturbadora experiência com os macacos com os eletro­dos na cabeça, e perguntou-lhe se achava que a informação que Mannerheim obtinha valia o sacrifício. Denise, prestes a dormir, apenas grunhia algo, porém a mente de Martin super estimulada sal­tou retornando à visita que tinha feito à Clínica Ginecológica da universidade.

— Hei, você já esteve na Clínica Ginecológica do hospital? — E apoiando-se em seu cotovelo puxou Denise, virando-a de cos­tas. O movimento fez com que ela acordasse.

— Não. Nunca estive.

— Eu fui lá hoje, e o lugar me causou uma sensação estranha.

— Como assim?

— Não sei. É difícil de dizer mas é verdade que não conheço muitas clínicas ginecológicas.

— Realmente, elas são muito divertidas — disse Denise com sarcasmo, e retomou sua posição de lado, afastando-se de Martin.

— Você me faria o favor de verificar isso?

— Quer dizer, como paciente?

— Seja lá como for.   Eu gostaria de saber sua opinião sobre o pessoal.

— Bem, estou um pouco atrasada em relação ao meu chekup anual. Acho que poderia fazê-lo ali. De fato, irei lá amanhã.

— Muito obrigado — disse finalmente Martin, preparando-se para dormir.

10

Já passava das sete horas quando Denise acordou e agarrou o relógio. Ficou horrorizada ao ver que horas eram. Estava tão acostumada com Martin levantar-se às seis, que não havia destravado o alarme do despertador. Atirando longe as cobertas, saiu correndo para o banheiro e entrou no chuveiro. Philips abriu os olhos a tempo de ver suas costas nuas disparando pelo corredor. Era uma imagem maravilhosa com que começar o dia.

Dormir demais tinha sido uma deliberada atitude de Philips em desafio a seu velho costume, e ele se espreguiçou gostosamente no leito quente. Pensou em voltar a dormir, mas então resolveu que tomar uma chuveirada com Denise era uma idéia melhor.

No banheiro, ele a encontrou já quase terminada e sem dis­posição para brincar. Entrando no boxe do chuveiro meteu-se em seu caminho e ela impacientemente lembrou-lhe que tinha de apre­sentar as chapas de raios X na reunião das 8:00, no Centro.

— Por que não fazemos amor de novo? — falou Martin, amo­rosamente. — Como médico eu lhe darei um atestado para justi­ficar seu atraso.

Denise envolveu a cabeça de Martin em seu pano de esfregar, e passou para o tapete do banheiro. Enquanto se enxugava, falou para Philips, elevando o tom de voz para cobrir o barulho da água.

— Se você terminar a uma hora decente, esta noite prepararei um jantar.

— Não aceito subornos — gritou Martin. — Vou ver o que a Patologia tem a dizer   sobre   os   meus   cortes   do   cérebro de McCarthy, e espero fazer algumas tomografias e uma CAT scan em Kristin Lindquist. Além disso, preciso passar um punhado de velhas radiografias de crânio pelo computador. Hoje, a pesquisa vai render um bocado.

— Acho que você está obcecado — observou Denise.

— Compulsivo — completou Martin.

— Quando quer que eu vá à Clínica Ginecológica?

— Assim que você puder.

— Muito bem. Irei amanhã.

Enquanto Sanger usava o secador de cabelo era impossível conversar. Philips saiu do chuveiro e barbeou-se com uma das giletes disponíveis. Os dois tinham que realizar uma complicada dança no espaço confinado do pequeno banheiro.

— O que você acha que está provocando a variação de den­sidade naquelas radiografias? — perguntou Denise, chegando bem perto do espelho para pôr a maquilagem no olho.

— Realmente não sei — retrucou Philips, tentando assentar seu teimoso cabelo ouro. — Foi por isso que arranjei o corte na Patologia.

Denise recuou para analisar o resultado de seus esforços na maquilagem.

— Parece-me que antes de associar a anormalidade com uma doença específica como   a esclerose múltipla,   seu primeiro passo deveria ser responder a essa questão.

— Você está certa. A idéia da esclerose múltipla nasceu do exame das papeletas clínicas. Foi um golpe no escuro. Mas, quer saber de uma coisa, você acaba de me dar outra idéia.

 

Philips entrou no velho prédio da Escola de Medicina pelo túnel. Há muito que a entrada da rua tinha sido interditada. Ao subir as escadas para o saguão, ele se sentia surpreendentemente senti­mental, lembrando-se do tempo em que o futuro nada oferecia senão promessas. Ao atingir as familiares portas escuras de madeira com painéis de couro gasto, ele fez uma pausa. O letreiro cuida­dosamente pintado em que se lia ESCOLA DE MEDICINA havia sido profanado por uma tábua pregada de qualquer madeira por cima dele. Embaixo, seguro por percevejos, um cartaz de papelão que dizia: “Escola de Medicina situada no Edifício Burger.”

Para além das portas antigas e veneráveis, a decoração se de­teriorava. O velho saguão tinha sido demolido, seus lambris de carvalho, vendidos em leilão. Os fundos para reconstrução tinham-se acabado antes mesmo de completada a demolição.

Philips seguiu por um caminho livre de detritos que contor­nava o que fora uma cabina de informações, e subiu pela escadaria em curva. Olhando por todo o comprimento do saguão ele podia ver a entrada interditada da rua. As portas tinham sido fechadas por   correntes.

O destino de Philips era o Anfiteatro Barrow. Ao chegar re­parou num novo cartaz que dizia: DEPARTAMENTO DE CI­ÊNCIA DE COMPUTADORES: DIVISÃO DE INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL. Philips abriu a porta e, caminhando por sobre o encanamento de ferro que formava a balaustrada, olhou para o auditório semicircular embaixo. As poltronas tinham sido remo­vidas. Dispostos a intervalos em várias filas estavam todos os tipos de componentes. No fundo do anfiteatro havia duas grandes uni­dades construídas como o pequeno processador que tinha sido le­vado para o escritório de Philips. Um homem jovem vestindo um casaco branco de mangas curtas trabalhava num deles. Numa das mãos tinha uma pistola de soldar, na outra um fio.

— Em que lhe posso ser útil? — gritou ele.

— Estou à procura de William Michaels — berrou Philips.

— Ele ainda não chegou. — O homem largou as ferramentas e avançou na direção de Philips. — Quer deixar algum recado?

— Basta dizer ao Sr. Michaels que dê um telefonema para o Dr. Philips.

— O senhor é o Dr. Philips. Muito prazer em conhecê-lo. Sou Carl Rudman, um dos estudantes graduados do Sr. Michaels. — E Rudman   estendeu a   mão   através da   balaustrada. Philips agarrou-a, contemplando o impressionante equipamento.

— Que equipamentos têm vocês aqui! — Martin jamais visi­tara o laboratório do computador antes, e não imaginava que fosse tão extenso. — Experimento uma estranha sensação em estar nesta sala — admitiu. — Estudei Medicina aqui, e em 1961 freqüentei um curso de Microbiologia neste anfiteatro.

— Bem — disse Rudman. — Pelo menos estamos fazendo um bom uso dele. Ê provável que não tivéssemos arranjado nenhum espaço, se eles não tivessem ficado sem dinheiro para reconstruir a Escola de Medicina. E este local é ideal para trabalhar no com­putador,   pois nunca   há   muita   gente por   aqui.

— Os laboratórios de Microbiologia ainda estão intactos por trás do anfiteatro?

— Claro que estão. Na verdade, nós os estamos usando para nossa pesquisa de memória. O isolamento é perfeito. Aposto que o senhor não faz idéia da espionagem que existe no mundo dos computadores.

— Você tem razão — disse Philips, enquanto seu beeper co­meçou a   soar insistentemente.   Ele o desligou e   perguntou:   — Sabe alguma coisa sobre o programa de leitura de crânio?

— Claro. É o protótipo   de   nosso   programa   de   inteligência artificial. Todos nós sabemos muita coisa sobre ele.

— Bem, talvez você possa então me responder. Queria per­guntar a Michaels se a sub-rotina que lida com as densidades pode ser separadamente impressa.

— Claro que pode. Ê só pedir ao computador. Ele fará quase tudo o que se quiser, exceto polir os sapatos da gente.

Por volta das oito e quinze, a Patologia achava-se em pleno funcionamento. O longo balcão com sua linha de microscópios estava apinhado de residentes. Quinze minutos antes cortes con­gelados tinham começado a chegar da cirurgia. Martin encontrou Reynolds em seu pequeno gabinete, em frente a um elaborado microscópio acoplado a uma câmara de 35 mm, de modo que ele podia fotografar o que quer que fosse que estivesse observando.

— Tem um minuto? — perguntou Philips.

— Claro. De fato já examinei aqueles cortes que você trouxe na noite passada. Benjamin Barnes trouxe-os para mim esta manhã.

— Ele é um tipo muito agradável — disse Martin, ironicamente.

— É um rabugento, porém um excelente residente da Pato­logia.   Além   disso, gosto   de tê-lo por perto.   Ele me faz sentir magro.

— O que achou das lâminas?

— Muito interessantes. Quero que alguém da Neuropatologia venha vê-las, porque não sei do que se trata. As células nervosas focais sumiram ou estão muito deformadas,   com os núcleos es­curos e em desintegração. Existe muito pouca ou nenhuma infla­mação. Porém o curioso é que a destruição das células nervosas se processa em colunas estreitas perpendiculares à superfície do cérebro. Nunca vi coisa igual.

— E quanto às várias colorações? O que foi que revelaram?

— Nada. Nenhum cálcio ou metais pesados, se é a isso que você se refere.

— Então não há nada que se possa ver para se revelar numa chapa de raios X? — perguntou Philips.

— Absolutamente   nada   —   respondeu   Reynolds. —   Certa­mente não as microscópicas colunas de células mortas. Barnes disse que você falou em esclerose múltipla. Não é possível. Não há alte­rações das fibras mielínicas.

— Se você tivesse de fazer um diagnóstico ao acaso, o que diria?

— É difícil. Um vírus, quem sabe? Mas eu não diria isso com muita confiança. Esta coisa me parece muito estranha.

 

Quando Philips chegou a seu gabinete, Helen o aguardava numa virtual emboscada. Deu um salto e tentou barrar a entrada dele com a mão cheia de recados telefônicos e de correspondência. Mas Philips, fingindo que ia passar pela esquerda, contornou-a pela direita, rindo amplamente o tempo todo. A noite passada com Denise havia mudado todo o seu aspecto.

— Onde o senhor esteve? Já são quase nove horas. — E Helen começou a dar-lhe os recados, enquanto ele esquadrinhava sua mesa   à procura   da radiografia do crânio   de   Lisa Marino.

Achou-a embaixo das papeletas do hospital, que estavam sob a lista principal das radiografias de crânio. Com a chapa debaixo do braço, Philips dirigiu-se apressadamente para o pequeno com­putador e ligou-o. Para irritação de Helen, começou a digitar a informação para o computador em seu escritório. Instruiu a má­quina para mostrar a sub-rotina da densidade.

— A secretária do Dr. Goldblatt telefonou duas vezes — falou Helen. — E espera que o senhor a chame assim que chegar.

A unidade de saída ativou-se e perguntou a Martin se ele queria uma amostra digital e/ou analógica. Philips não sabia e, assim, pediu ambas. A folha impressa disse-lhe que introduzisse a chapa.

— O Dr. Clinton Clark, Chefe da Ginecologia, também cha­mou, e não foi por intermédio da secretária não, foi ele próprio. E parecia que estava muito zangado — zumbiu Helen. — Ele quer que o senhor lhe telefone. E o Sr. Drake também quer que o chame.

A impressora entrou em ação e começou a vomitar página após página de papel cheia de números. Philips observava aquilo com crescente confusão. Era como se a pequena máquina houvesse sofrido um colapso nervoso.

Helen elevou a voz para competir com o rápido staccaco da máquina.

— William Michaels telefonou e disse que lamenta não ter estado lá no laboratório do computador, quando o senhor apareceu de surpresa. Quer que o senhor telefone para ele. O pessoal de Houston telefonou para falar sobre sua indicação para presidir a seção de Neuro-Radiologia na reunião anual. Disseram que pre­cisam de saber a resposta hoje. Vejamos o que tem mais.

Enquanto Helen remexia em suas mensagens, Philips erguia as incompreensíveis folhas de papel do computador cobertas de milhares de dígitos. Por fim a impressora parou de produzir os números e então fez um esquemático perfil do crânio, onde as várias áreas estavam codificadas por letras. Philips verificou que, encontrando a letra-código adequada, podia achar a folha corres­pondente às áreas em que ele estava interessado. Mas a informação impressa pelo   computador não   cessou. Apresentou um esquema das várias regiões do crânio e os valores da densidade saíram im­pressos em diversos tons de cinza. Tratava-se da impressão analó­gica, e era mais fácil de consultar.

— Ah, sim — disse Helen. — A segunda sala de angiografia vai ficar fechada, sem funcionar, todo o dia de hoje, enquanto é instalado um novo carregador de chapas.

Neste ponto, Philips já não estava ouvindo mais nada do que Helen dizia. Comparando as áreas na folha impressa analógica, Martin viu que as regiões anormais tinham por toda a parte uma densidade menor do que as zonas circundantes normais. Isso apa­receu como uma surpresa, pois embora as alterações fossem sutis, ele tinha tido a errônea impressão de que a densidade era maior. Olhando para a interpretação digital, Philips entendeu por quê. Na fórmula digital era evidente que havia largos intervalos entre os valores dos dígitos vizinhos, o que o fizera pensar que fossem mi­núsculos pontos de cálcio ou de um outro material denso nas ra­diografias. Porém a máquina lhe estava dizendo que as áreas anor­mais eram, no todo, menos densas ou mais transparentes do que o tecido normal, significando que os raios X podiam atravessá-las com mais facilidade. Philips pensou na morte das células nervosas que havia visto na Patologia, mas obviamente isso não era o bas­tante para afetar a absorção dos raios X. Era um mistério que Philips não sabia como explicar.

— Veja   isso — disse ele,   mostrando a leitura digital para Helen. Esta assentiu e fingiu entender.

— O que significa? — perguntou a secretária.

— Não sei, a menos que...— Martin parou no meio da frase.

— A menos quê? — indagou Helen.

— Arranje-me uma faca.   Qualquer tipo de faca. — Philips parecia muito excitado.

Helen tirou uma que estava no pote de manteiga de amendoim junto ao bule de café, maravilhada com o seu fantástico chefe. Quando retornou ao gabinete dele, ficou sem fala, despreparada que estava para o que viu. Philips estava retirando um cérebro humano de dentro de um vidro de formol e colocando-o sobre um jornal, com suas familiares circunvoluções brilhando à luz do negatoscópio. Lutando contra a onda de náusea que a invadia, Helen ficou vendo Philips cortar um pedaço da região posterior do espé­cime. Depois de recolocar o cérebro no formol ele se encaminhou para a porta carregando o pedaço de cérebro no jornal.

— E também a mulher do Dr. Thomas está preparada para o senhor na sala de mielografia — disse Helen, ao ver que Philips ia embora.

Martin não respondeu. Dirigiu-se rapidamente pelo vestíbulo para a câmara escura. Foram necessários alguns minutos para que seus olhos se acomodassem à mortiça luz vermelha. Quando pôde distinguir as coisas apropriadamente, pegou uma chapa de raios X virgem, depositou a fatia do cérebro em cima dela, e colocou tudo num armário superior. Selando o armário com uma fita adesiva, escreveu: “Chapa virgem. Não abra! Dr. Philips.”

 

Denise telefonou para a Clínica Ginecológica quando saiu da con­ferência no CPC. Achando que poderia avaliar melhor o pessoal se eles não soubessem que ela era médica, apenas informou que pertencia à comunidade universitária. Ficou surpresa quando a re­cepcionista pediu-lhe que aguardasse. Quando a próxima pessoa atendeu, Denise se impressionou com a quantidade de dados que a clínica requeria antes de marcar uma consulta. Insistiam em saber sobre sua saúde geral, e até sobre suas condições neurológicas, bem como sobre sua história ginecológica.

— Teremos muito prazer em atendê-la — falou por fim a mulher. — Na verdade, temos uma vaga para esta tarde.

— Eu não posso — retrucou Denise. — Que tal amanhã?

— Ótimo — prosseguiu a mulher. — Por volta das onze e quarenta e cinco?

— Perfeito — admitiu Denise. Depois de desligar, ficou ima­ginando por que Martin parecia suspeitar da clínica. Sua reação inicial fora muito positiva.

 

Chegando-se mais para perto da mielografia que estava em seu negatoscópio, Philips tentava verificar exatamente o que o cirurgião ortopédico havia feito nas costas da Sra. Thomas. Parecia que ela havia sofrido uma extensa laminectomia envolvendo a quarta vértebra lombar.

Naquele momento, a porta do gabinete de Philips abriu-se vio­lentamente, e por ela irrompeu um Goldblatt cheio de ira. Seu rosto estava congestionado e os óculos se agarravam bem na ponta do nariz. Martin olhou-o brevemente, e retornou às suas radio­grafias.

Aquela manifestação de desprezo aumentou a fúria de Gold­blatt.

— Seu atrevimento é de espantar — rosnou ele.

— Acho que o senhor entrou aqui sem bater. Eu respeitei seu gabinete. Acho que eu merecia o mesmo tratamento de sua parte.

— Seu atual   comportamento no que respeita à propriedade privada   não   justifica tal cortesia. Mannerheim   me   telefonou ao romper do dia berrando que você entrou em seu laboratório de pesquisas e roubou uma peça. É verdade?

— Tomei-a emprestada — disse Philips.

— Emprestada, meu Deus! — gritou Goldblatt. — E ontem tomou emprestado um cadáver lá do necrotério. Que diabo está acontecendo com você, Philips? Está com vontade de se suicidar profissionalmente? Se o caso é esse, diga-me. Será mais fácil para nós ambos.

— Isso é tudo? — perguntou Philips, com uma calma delibe­rada.

— Não! Não é tudo! — berrou Goldblatt. — Clinton Clark me contou que você esteve arengando com um de seus melhores residentes na Clínica Ginecológica. Philips, está ficando maluco? Você é um neuro-radiologista! E se não fosse tão bom, já estaria fora daqui.

Philips continuou calado.

— O problema é — continuou Goldblatt, com uma voz que já começava a perder seu tom irado — que você é um notável neuro-radiologista. Olhe, Martin, quero que por enquanto você se conserve calmo. Sei que Mannerheim pode representar um proble­ma. Saia do caminho dele. E, pelo amor de Deus, fique fora do laboratório dele. O cara não gosta que ninguém ande por lá, a qualquer hora, e muito menos furtivamente à noite.

Pela primeira vez desde sua chegada, Goldblatt se permitiu percorrer com os olhos o gabinete atulhado de Philips. Seu queixo caiu lentamente de espanto ante a incrível desordem. Retornando a Philips, fitou-o silenciosamente por bem um minuto.

— Na semana passada você esteve ótimo e realizando um tra­balho maravilhoso. Estava sendo preparado para, na primeira opor­tunidade, dirigir este lugar. Quero que volte a ser o antigo Martin Philips. Não entendo sua conduta recente e não compreendo o modo pelo qual se apresenta este escritório. Mas posso dizer-lhe isso: se você não endireitar, vai ter que procurar outro emprego.

Goldblatt girou nos calcanhares e saiu do gabinete. Philips continuou sentado em silêncio, vendo-o afastar-se. Não sabia se ficava zangado ou se ria. A despeito de seus pensamentos de in­dependência, a idéia de ser despedido era apavorante. Em conse­qüência, Martin tornou-se um redemoinho de atividade dirigida. Assim, percorreu o departamento e examinou todos os casos em andamento dando certas sugestões quando necessárias. Leu todas as chapas feitas de manhã e que se haviam acumulado. Depois, reali­zou pessoalmente um angiograma cerebral esquerdo num caso di­fícil, que demonstrou definitivamente que o paciente não precisava ser operado. Reunindo os estudantes de Medicina, deu-lhes uma aula sobre o CAT scanner que os deixou deslumbrados ou total­mente confusos, dependendo do seu grau de concentração. Entrementes, mantinha Helen ocupada respondendo toda a correspon­dência e os recados que se haviam acumulado nos últimos dias. E por cima de tudo, fez com que um servente arrumasse a massa de radiografias de crânio em seu gabinete sistematicamente, de modo que, por volta das três horas da tarde, ele já havia conseguido passar 60 das antigas radiografias pelo computador e tinha com­parado os resultados com as antigas interpretações. O programa estava funcionando soberbamente.

Às três e meia, pôs a cabeça para fora do gabinete e pergun­tou a Helen se Kristin Lindquist havia chamado. Ela abanou a cabeça. Encaminhando-se para as salas de raios X, Philips indagou a Kenneth Robbins se a jovem havia aparecido. A resposta foi negativa.

Por volta das quatro horas, Philips havia passado mais outras seis chapas pelo computador. Uma vez mais a máquina insinuou que era melhor radiologista do que Philips, detectando um traça de calcificação que sugeria um meningioma. Tornando a olhar para a chapa, Philips teve de concordar. Martin pôs de lado a chapa a fim de ver se Helen podia localizar a paciente.

Às quatro e quinze, Philips telefonou para Kristin Lindquist. A chamada foi atendida ao segundo toque por sua companheira de quarto.

— Lamento, Dr. Philips, porém não vejo Kristin desde antes de ela sair para ir ao Museu Metropolitano esta manhã. Ela faltou às aulas das onze e da uma e quinze, o que não é comum.

— Será que você poderia tentar localizá-la para mim e fazer com que ela me telefone? — pediu Philips.

— Com muito   prazer. Francamente,   estou   um   pouco   pre­ocupada.

Às 4:45, Helen entrou no escritório de Philips com a corres­pondência do dia para ele assinar a fim de que ela pudesse pôr as cartas no Correio. Um pouco depois das 5:30, Denise passou pelo escritório.

— Parece que as coisas estão mais controladas — disse, olhan­do em derredor de modo apreciativo.

— São apenas aparências — retrucou Philips, enquanto o var-redor laser arrancava uma chapa de sua mão.

Philips fechou a porta do gabinete e deu um forte abraço em Denise. Não queria soltá-la, e quando finalmente permitiu-lhe que se desvencilhasse dele, a moça ergueu o olhar e falou:

— O que foi que eu fiz para merecer isso?

— Passei o dia todo pensando em você e revivendo a noite passada.

Queria desesperadamente falar com Denise sobre as insegu­ranças que Goldblatt havia evocado naquela manhã, e dizer-lhe que queria que ela ficasse com ele pelo resto da vida. O problema era que não se permitira nenhum tempo para pensar, e embora não quisesse que a moça se fosse, desejava igualmente ficar so­zinho, pelo menos por enquanto. Quando Denise lhe lembrou de que havia prometido fazer o jantar, ele hesitou. Sentindo que a magoava, disse:

— O que eu estava pensando é que, se puder arranjar alguém com uma boa cabeça para começar a passar essas chapas antigas, talvez pudéssemos ir de carro até a ilha sábado à noite.

— Isso seria maravilhoso — disse Denise, acalmando-se. — Oh, a propósito, telefonei para a Ginecologia e marquei uma con­sulta para amanhã por volta do meio-dia.

— Ótimo. Com quem você falou?

— Não sei. Mas foram muito gentis e pareceram sinceramente felizes em me receber. Olhe, se você acabar cedo por que não vai lá?

Fazia cerca de uma hora que Denise fora embora quando Michaels chegou, deliciando-se ao ver que Philips finalmente co­meçara a trabalhar seriamente no programa.

— Está excedendo a todas as minhas expectativas — disse Martin. — Não houve uma só interpretação negativa falsa.

— Fabuloso — comentou Michaels. — Talvez tenhamos ido mais longe do que imaginamos.

— É o que parece. Se isso continua assim, pelo início do outono vamos ter um sistema funcional comercialmente disponível. Poderemos valer-nos do encontro anual de radiologia para revelá-lo. — E a mente de Philips corria na frente, imaginando o im­pacto. O fato fazia com que sua insegurança profissional daquela manhã parecesse ridícula.

Depois que Michaels saiu, Philips voltou ao trabalho. Ele havia criado um sistema de introdução das velhas chapas de raios X na máquina que acelerava o processo. Porém, à medida que ia trabalhando, começou a se sentir cada vez mais inquieto, quanto à ausência de Kristin Lindquist. Uma crescente sensação de responsabilidade acometeu sua irritação inicial ante a aparente insegurança dela. Seria uma coincidência muito grande, se alguma coisa acontecesse a esta mulher que o impedisse de conseguir mais radiografias.

Por volta das nove horas, Martin tornou a discar o número de Kristin. Sua companheira de quarto atendeu ao primeiro toque do telefone.

— Lamento, Dr. Philips. Eu devia tê-lo chamado. Mas não consigo achar Kristin em lugar algum. Ninguém a viu o dia todo. Cheguei a telefonar para a Polícia.

Philips desligou, tentando negar a realidade dizendo a si mesmo que aquilo não podia acontecer. Era impossível... Marino, Lucas, McCarthy, Collins e agora Lindquist! Não. Não podia ser. Era absurdo. De repente, ele se lembrou de que não tivera notícias da Admissão. Segurando o telefone, surpreendeu-se ao ver que era atendido após tocar apenas quatro vezes. Mas a mulher que estava tratando do caso havia saído às cinco horas e só voltaria às oito da manhã seguinte, e não havia ninguém mais que o pudesse ajudar. Philips bateu com o fone.

— Diabo!   — gritou   ele,   levantando-se   de seu banquinho e começando a andar de um lado para o outro. Súbito, lembrou-se do corte do cérebro de Ellen McCarthy que havia posto no ar­mário.

Na câmara escura teve de esperar que o técnico terminasse de processar algumas radiografias da Unidade de Emergência. Assim que pôde, Martin abriu o armário e apanhou a chapa com a fatia de cérebro agora ressecado. Não sabendo o que fazer com o es­pécime, acabou jogando-o na cesta de lixo. A chapa virgem, não exposta, foi colocada no revelador.

De pé no saguão, junto à abertura por onde sairia a radio­grafia, Martin estava imaginando se o desaparecimento de Kristin podia ser mais uma coincidência. E se não fosse, o que significaria? Mais importante ainda, o que poderia ele fazer?

Naquele momento, a chapa radiográfica caiu no aparador. Martin esperava que a radiografia estivesse totalmente escura, de modo que, ao colocá-la no negatoscópio, sofreu um choque. “Meu Deus!” E ficou boquiaberto, descrente do que via. Havia uma área luminosa com a forma exata do pedaço de cérebro. Philips sabia que só havia uma causa possível para aquilo! Radiação! A anor­malidade da densidade nas radiografias provinha de uma significa­tiva quantidade de radiação.

Philips desandou a correr para o Departamento de Medicina Nuclear. No laboratório próximo ao betatron, o acelerador de partículas   atômicas, encontrou o que precisava:   um detector de radiação, e uma caixa de estocagem de bom tamanho, protegida por um revestimento de chumbo. Ele pôde levantar a caixa mas não estava querendo carregá-la, e assim colocou-a sobre uma maca de rodas.

Sua primeira parada foi em seu gabinete. O pote de vidro com o cérebro estava definitivamente contaminado, de modo que ele calçou umas luvas de borracha e meteu-o dentro de caixa de chumbo. Encontrou também o jornal sobre o qual havia posto o cérebro e colocou-o dentro da caixa. Chegou até a encontrar a faca que usara para cortar o cérebro, que também foi para a caixa. A seguir passou o detector de radiação em derredor de seu ga­binete. Estava limpo.

Na câmara escura, Philips pegou na cesta de lixo e despejou seu conteúdo dentro da caixa. Testando a seguir a cesta de lixo, ficou satisfeito. De volta ao escritório, descalçou as luvas e atirou-as na caixa, selando-a em seguida. Tornou a examinar a sala com o detector de radiação e satisfez-se ao achar apenas uma insignifi­cante quantidade de radiação. Seu próximo passo consistiu em re­tirar o filme do dosímetro que usava em seu cinto e preparar-se para processá-lo. Ele queria saber a quantidade exata de radiação que havia recebido do espécime do cérebro.

Durante toda esta febril atividade física, Martin tentava inu­tilmente relacionar todos esses fatos díspares: cinco mulheres jo­vens, provavelmente todas elas com níveis significativamente altos de radiação em suas cabeças e talvez em outras partes dos cor­pos... sintomas neurológicos sugestivos de uma esclerose múlti­pla... todas examinadas na Clínica Ginecológica e com esfregaços atípicos de Papanicolau.

Philips não via explicação para esses fatos, mas lhe parecia que a radiação devia ser o ponto central. Raciocinou que altos níveis de radiação geral podiam provocar alterações nas células cervicais e, portanto, um esfregaço atípico de Papanicolau. Mas era peculiar que todos esses casos tivessem tido esfregaços atípicos, pela coincidência. Contudo, que outra mais poderia ser a explica­ção?

Terminada a limpeza, Philips escreveu os números unitários de Collins e McCarthy e as datas de suas visitas à Ginecologia em sua lista. Depois, disparou pelo corredor central da Radiologia e atalhou pela sala principal de interpretação das radiografias. Junto aos elevadores, apertou o botão com uma crescente sensação de urgência. Concluiu que Kristin Lindquist era uma bomba do tempo ambulante. Para que a radiação em sua cabeça se revelasse em uma radiografia regular, deveria haver uma grande quantidade envol­vida. E para achá-la, Martin acreditava que teria de resolver todos os intrigantes acontecimentos da semana passada. Para sua sur­presa, ele encontrou Benjamin Barnes curvado sobre sua banca de trabalho. O patologista residente podia não ter uma personalidade agradável, porém Martin tinha de respeitar a dedicação do homem.

— O que vem fazer aqui duas noites seguidas? — indagou o residente.

— Esfregaços de Papanicolau — disse Philips, sem qualquer preâmbulo.

— Suponho que você tem qualquer coisa de emergência que quer que eu interprete — disse Barnes, sarcasticamente.

— Não. Quero apenas algumas informações. Quero saber se a radiação pode provocar um esfregaço de Papanicolau atípico.

Barnes pensou por um momento antes de responder.

— Nunca ouvi falar nisso   devido a um exame radiológico, mas não há dúvida de que a radioterapia vai afetar as células cer­vicais e daí o esfregaço de Papanicolau.

— Se você olhasse para um esfregaço atípico, poderia dizer se foi causado por radiação?

— Talvez.

— Lembra-se   daquelas lâminas que examinou para mim na noite passada? — continuou Philips. — Os cortes de cérebro. Po­deriam aquelas lesões das células nervosas ter sido causadas pela radiação?

— Duvido   um   pouco   —   respondeu Barnes.   — A radiação teria de ser dirigida com um visor telescópico de alta precisão. As células nervosas bem junto às lesadas pareciam estar perfeitamente sãs.

Philips empalideceu enquanto procurava juntar os fatos incon­sistentes. As pacientes haviam absorvido bastante radiação para que se revelasse numa radiografia e, no entanto, ao nível celular, uma célula era totalmente destruída enquanto sua vizinha mantinha-se perfeita.

— As amostras de esfregaços de Papanicolau são guardadas? — perguntou Philips, finalmente.

— Acho que sim. Pelo menos por algum tempo, mas não aqui. Ficam no laboratório de Citologia, que funciona nas horas vagas. Estarão por lá amanhã de manhã, depois das nove.

— Obrigado — respondeu Philips, suspirando. Estava pensan­do se poderia entrar no laboratório imediatamente. Talvez, se cha­masse Reynolds. Já ia sair, quando se lembrou de algo mais.

— Quando os esfregaços são examinados, o resultado vai para a papeleta apenas como classificação, ou descrevem também a pa­tologia?

— Acho que sim — retrucou Barnes. — Os resultados são guardados em fita gravada. Tudo o que se precisa saber é o nú­mero da unidade da paciente e pode-se ler o relatório.

— Muito obrigado mesmo — disse Philips. — Sei que você está ocupado e aprecio muito sua atenção.

Barnes acenou levemente com a cabeça em sinal de reconhe­cimento, e tornou a olhar no microscópio.

O terminal do computador da Patologia era separado do labo­ratório por uma série de divisões. Puxando uma cadeira, Martin sentou-se em frente do aparelho. Era semelhante ao terminal da Radiologia com uma grande tela semelhante a uma TV direta­mente por trás do teclado. Tomando a lista das cinco pacientes, Philips digitou o nome de Katherine Collins muito rapidamente, seguido de uma pequena pausa. Depois a data do primeiro esfregaço de Papanicolau seguido de:

 

ESFREGAÇO ADEQUADO, BOA FIXAÇÃO, E COLORAÇÃO APROPRIADA. AS CÉLULAS REVELAM MATURAÇÃO E DIFERENCIAÇÃO NORMAIS

EFEITO ESTROGÊNICO NORMAL: 0/20/80. ALGUNS ESPÉCIMES DE CANDIDA(*) RESULTADO: NEGATIVO

 

* (Tipo de parasita encontrado ocasionalmente na vagina. (N. do T)

 

Philips verificou a data do primeiro esfregaço enquanto a máquina grafava o relatório seguinte. A data correspondia à pri­meira que Philips havia escrito na lista. Voltando a olhar para a tela do computador, os olhos descrentes de Philips leram que o segundo esfregaço de Papanicolau de Collins também era nega­tivo!

Philips limpou a tela e entrou rapidamente com o nome de McCarthy, seu número unitário e o código próprio. Sentiu um nó no estômago quando a máquina começou a liberar a informação. Era a mesma — negativa!

Enquanto voltava para baixo, Martin sentia-se aturdido. Na Medicina, ele aprendera a acreditar no que lia nas papeletas, em especial no que se referia aos relatórios dos exames de laborató­rio. Eram dados objetivos ao passo que os sintomas dos pacien­tes e as impressões dos médicos eram subjetivos. Philips sabia que podia existir uma pequena chance de erro num exame de labora­tório bem como a possibilidade de que ele deixasse passar ou interpretasse erroneamente algo numa radiografia. Mas a baixa probabilidade de erro estava muito longe de uma falsificação deli­berada. Isso requeria uma espécie de conspiração, e Philips toma­va o fato muito pessoalmente.

Sentando-se à sua mesa, Martin enfiou a cabeça entre as mãos e esfregou os olhos. Seu primeiro impulso foi chamar as autori­dades do hospital, mas isso significava Stanley Drake, e ele afas­tou a idéia. A reação de Drake seria manter tudo fora dos jor­nais, ocultar tudo. A Polícia! Mentalmente ele figurou uma con­versa hipotética: “Alô, aqui fala o Dr. Martin Philips e quero informar que algo muito estranho está-se passando no Centro Médico Universitário Hobson. As moças se submetem a testes de Papanicolau que resultam normais, mas que são anotados em seus prontuários como atípicos.” Philips abanou a cabeça. Aquilo soa­va bastante ridículo. Não, precisava de mais dados antes de envol­ver a Polícia. Intuitivamente sentia que a coisa estava ligada à radiação, mas isso não fazia sentido. De fato, a radiação podia provocar um esfregaço atípico de Papanicolau, e a Philips pare­cia que, se alguém quisesse evitar a descoberta da radiação, pode- ria dar o teste de Papanicolau como normal, porém não o con­trário.

Philips tornou a pensar no zelador da morgue. Após o seu malogrado encontro na noite anterior, Martin havia-se convencido de que Werner sabia mais sobre Lisa Marino do que queria reve­lar. Talvez 100 dólares não tivessem sido o bastante. Talvez Phi­lips devesse oferecer mais. Afinal de contas, o caso não era mais um trabalho acadêmico.

Martin percebeu que tentar um confronto com Werner no necrotério com sucesso era uma impossibilidade. Cercado pelos mortos, Werner estava em seu elemento, ao passo que Martin achava o lugar totalmente enervante e sabia que tinha de ser vio­lento e exigente, se queria que Werner falasse. Philips olhou o relógio. Eram 11:25 da noite. Obviamente, Werner trabalhava no turno da noite, das quatro à meia-noite. Impulsivamente, Philips decidiu que seguiria Werner até em casa e lhe ofereceria 500 dólares.

Com um certo receio, discou o número de Denise. A campai­nha tocou seis vezes antes que uma voz sonolenta atendesse:

— Você vem?

— Não — disse Philips, evasivamente. — Estou metido em algo importante, e vou prosseguir.

— Aqui tem um lugar bem quentinho esperando por você.

— Deixemos isso para este fim de semana. Bons sonhos. Martin tirou do armário o casaco de lã azul que usava para esquiar e enfiou um chapéu na cabeça. Era abril, mas o tempo chuvoso e garoento tinha chegado com o vento vindo do nordeste, e estava frio.

Saiu do hospital pela porta da sala de emergência, saltando da plataforma para a área de estacionamento cheia de poças. Mas em vez de caminhar para a rua, virou à direita, contornando o edifício principal do hospital e avançou por uma garganta forma­da pela fachada norte do Brenner Childrens Hospital. Após cerca de 50 metros, o caminho se abria no pátio interno do Centro Médico.

Os edifícios do hospital se elevavam na noite enevoada como rochedos formando um vale irregular de cimento. O Centro Médico tinha sido construído aos arrancos sem um prévio e racional plano geral. O fato era evidente no pátio, onde os prédios inva­diam o espaço com ângulos e arcobotantes caóticos. Philips reco­nheceu a pequena ala que alojava o escritório de Goldblatt, e usando-a como guia conseguiu orientar-se. Foi somente a cerca de 20 metros mais adiante que ele encontrou a plataforma não marcada que ele sabia levar às profundezas do necrotério. O hos­pital não gostava de alardear que lidava com a morte, e os cor­pos eram passados para os negros carros mortuários que os aguar­davam, longe dos olhos do público.

Martin encostou-se na parede e enfiou as mãos nos bolsos. Enquanto esperava tentava recapitular os complicados aconteci­mentos que tinha experimentado desde que Kenneth Robbins lhe havia entregue a radiografia de Lisa Marino. Não fazia ainda dois dias, e parecia que já se haviam passado duas semanas. A excitação inicial que ele sentira ao ver a estranha anormalidade radiológica tinha agora se transformado num medo surdo. Quase temia descobrir o que estava ocorrendo no hospital. Era como uma doença em sua própria família. A Medicina tinha sido a sua vida. Se não fosse pelo imediato senso de responsabilidade no tocante a Kristin Lindquist, ele imaginava se teria esquecido o que sabia. A tirada de Goldblatt sobre seu suicídio profissional ecoava-lhe nos ouvidos.

Werner surgiu no horário, voltando-se para fechar a porta atrás de si. Philips adiantou-se e protegeu os olhos com as mãos na meia-luz para certificar-se de que era mesmo Werner. Este havia mudado de roupa, e usava agora um terno escuro, camisa e gravata brancas. Para surpresa de Martin, o zelador parecia um comerciante bem-sucedido fechando sua loja à noite. O rosto emaciado, que parecia maligno dentro do necrotério, apresentava ago­ra uma expressão quase aristocrata.

Werner virou-se e hesitou por um momento, estendendo a mão com a palma voltada para cima para ver se estava chovendo. Satisfeito, saiu na direção da rua. Na mão direita carregava uma pasta de couro preta. De sobre seu braço esquerdo fletido pendia um guarda-chuva fechado.

Seguindo a uma distância segura, Martin reparou que Werner andava de um modo estranho. Ele não mancava; era mais como se desse um salto como se uma perna fosse muito mais forte do que a outra. Mas caminhava com rapidez e regularidade.

As esperanças de Martin de que Werner morasse perto do hospital se desvaneceram quando o homem virou na esquina da Broadway e desceu pelas escadas que levavam ao Metrô. Acele­rando o passo, Philips reduziu o intervalo entre os dois, descendo a escada de dois em dois degraus de cada vez. No início, não viu Werner. Aparentemente o homem já tinha entrada para o metrô. Prontamente Philips comprou um bilhete e passou pela borboleta. O elevador estava vazio, de modo que Philips correu pela passagem in­clinada na direção da plataforma de embarque. Ao virar a esquina, avistou a cabeça de Werner acabando de subir pela escada que dava para a plataforma dos trens que se dirigiam à cidade.

Tirando um jornal de um depósito de papéis usados, Philips fingiu que lia. Werner encontrava-se a apenas 10 metros de distân­cia, sentado numa das cadeiras de plástico moldado, curvado sobre um livro que era, nada mais nada menos, do que Aberturas de Xadrez. À luz branca pastosa da estação do Metrô, Philips pôde apreciar melhor os trajes do homem. O terno era de um azul es­curo, de modelo eduardiano, aberto dos lados. Com o cabelo cor­tado à escovinha e recentemente assentado; os ossos malares sa­lientes, as faces bronzeadas pelo sol, ele parecia um general prus­siano. A única coisa que estragava sua aparência eram os sapatos, muito gastos e necessitando de uma boa engraxadela.

Sendo hora de mudança de turno no hospital, a plataforma do Metrô estava apinhada de enfermeiras, serventes e técnicos. Quan­do o trem para a cidade entrou atroando pela estação, Werner embarcou, e Philips acompanhou-o. O zelador sentou-se no trem como uma estátua com o livro à sua frente; seus olhos muito aten­tos iam de um lado para o outro através das páginas. Sua pasta, apertada entre os joelhos, mantinha-se em pé sobre o chão. Phi­lips sentou-se meio carro adiante, na frente de um belo tipo espa­nhol metido num terno de poliéster.

Em cada parada, Martin preparava-se para saltar, porém Wer­ner não se mexia. Ao passarem   a   parada   da   Rua   59,   Philips começou a ficar preocupado. Talvez Werner não estivesse indo diretamente para casa. Por alguma razão aquela hipótese jamais ocorrera a Philips. Sentiu-se aliviado quando finalmente seguiu o zelador na estação da Rua 42. Não se tratava mais, agora, de saber se Werner ia para casa ou não. Agora, era uma questão de saber quanto tempo ia ele ficar em qualquer lugar que fosse. Philips sentiu-se meio idiota e desencorajado ao chegar à rua.

Os noctívagos ali se encontravam em quantidade. A despeito da hora e do frio úmido, a Rua 42 estava agitada com suas visões espalhafatosas. Werner, elegantemente vestido, ignorava a gente esquisita e grotesca que se acotovelava em frente dos cinemas que passavam filmes pornográficos e das livrarias que vendiam livros do mesmo tipo. Parecia estar acostumado ao mundo das perversões psicossexuais. Para Philips, era diferente. Era como se um mundo estranho deliberadamente retardasse seu avanço, obrigando-o a contorcer-se e a virar-se e até a pisar ocasionalmente na pista de carros a fim de ultrapassar agrupamentos de humanidade, enquan­to mantinha Werner sob sua vista. Lá adiante, de repente, ele viu Werner entrar numa das livrarias para adultos.

Martin parou do lado de fora. Tinha resolvido conceder a Werner uma hora desse absurdo. Se o zelador não se dirigisse para sua casa dentro deste tempo, Philips desistiria. Esperando, logo Martin descobriu que era um bom partido para um bando de pedintes, traficantes e mendigos de toda a espécie. Eram todos muito insistentes e, para evitar seus pedidos e investidas, Philips mudou de idéia e entrou na loja.

Bem lá dentro, colocada num balcão semelhante a um púlpi­to próximo do teto, sentava-se uma mulher de cabelos de um lavanda pálido, de olhar duro, que ficou espiando Philips. Seus olhos profundos, dentro de círculos negros, esquadrinharam o cor­po de Martin como que avaliando sua condição para entrar ali. Desviando o olhar, receoso de que alguém o visse naquele lugar, o médico se encaminhou para a passagem mais próxima. Werner não estava à vista!

Um freguês passou por Philips com os braços pendentes dos lados, de modo que suas mãos roçavam o traseiro do médico. Só depois que o homem havia-se afastado foi que Martin percebeu o que tinha acontecido. Ele ficou doente de raiva e quase gritou, porém a última coisa que desejava fazer era atrair a atenção para si mesmo.

Andava pela loja a fim de certificar-se de que Werner não podia estar escondido atrás de uma das prateleiras de livros ou estantes de revistas. A mulher de cabelos cor de lavanda, de seu ninho de corvo, parecia seguir cada movimento que Philips fazia, de modo que, para despertar menos suspeitas, ele pegou numa revista, mas, ao descobrir que estava envolta e selada num plás­tico, recolocou-a no lugar. Na capa, havia dois homens se acasa­lando acrobaticamente.

Súbito, Werner surgiu de uma porta no fundo da loja e andou na direção de Philips que, assustado, afastou-se para remexer em alguns vídeos-cassetes pornográficos. Werner, porém, não olhou quer para a direita quer para a esquerda. Era como se estivesse usando antolhos. Em segundos, já havia saído da loja.

Martin ainda ficou lá dentro o tempo que, segundo seus cál­culos, lhe permitiria continuar a seguir Werner sem o perder de vista. Ele não queria deixar transparecer que estava seguindo o homem, porém, quando ele saía, a mulher no balcão debruçou-se e observou-o passar pela porta. Ela teve a certeza de que o estra­nho estava atrás de alguma coisa.

Ao chegar à rua, Philips viu Werner tomando um táxi. Rece­oso de que pudesse perdê-lo depois de todo aquele esforço, Phi­lips pulou do meio-fio e acenou freneticamente para um táxi. O carro parou do outro lado da rua, e Philips entrou nele depois de passar esquivando-se no meio do tráfego.

— Siga aquele táxi que vai atrás do ônibus — disse, excita­damente.

O motorista limitou-se a fitá-lo.

— Vamos — insistiu Philips.

O homem encolheu os ombros e engrenou a marcha.

— Você é um tira?

Martin não respondeu. Achou que, quanto menos falasse, seria melhor. Werner saltou na Rua 52 com a Segunda Avenida; Mar­tin deixou seu táxi cerca de 30 metros antes da esquina e correu

até o fim do quarteirão, procurando pelo zelador. Werner entrou numa loja três portas adiante.

Atravessando a avenida, Martin olhou para a loja. Chamava-se “Auxílios Sexuais”. Era muito diferente da livraria para adultos da Rua 42 com um exterior bastante conservador. Olhando em der-redor, Philips notou que a mesma se localizava entre lojas de antiguidades, restaurantes elegantes e boutiques caras. Elevando os olhos, podia dizer que os edifícios de apartamentos eram todos de classe média. Tratava-se de uma boa vizinhança.

Werner apareceu na porta acompanhado por um outro homem que estava rindo e tinha o braço sobre o ombro do zelador. Wer­ner sorriu e cumprimentou o homem apertando-lhe as mãos antes de partir, caminhando pela Segunda Avenida. Philips pôs-se atrás dele, mantendo uma distância segura.

Se ele tivesse tido a vaga idéia de que seguindo Werner iria envolver-se com todas essas paradas, não o teria feito. Já que havia começado, ficou esperando que a odisséia terminasse. Porém, Werner tinha outras idéias. O zelador atravessou a Terceira Ave­nida, subindo pela Rua 55, onde entrou num pequeno prédio escondido na sombra de um arranha-céu de cimento e vidro. Era um bar que parecia uma fotografia da década de 20.

Depois de lutar consigo mesmo, Martin prosseguiu, com medo de perder Werner, se não conservasse os olhos em cima dele. Para seu espanto o estabelecimento estava cheio de animados fregueses a despeito da hora, e ele teve de se esgueirar pelo meio daquela gente. Era um bar popular para solteiros, de novo um ambiente com o qual Philips não se achava familiarizado.

Esquadrinhando a multidão à procura de Werner, Philips tomou um choque ao vê-lo imediatamente à sua esquerda. Estava segurando uma caneca de cerveja e rindo para uma loura caixeirinha da casa. Philips puxou seu chapéu um pouco mais para baixo.

— O que você faz? — perguntou a moça, gritando para poder ser ouvida por sobre a algazarra reinante.

— Sou médico — respondeu Werner. — Patologista.

— Realmente? — observou a empregada, obviamente impres­sionada.

— Tem seus lados bons e maus — dizia Werner. — Em geral tenho de trabalhar até tarde, mas talvez você   gostasse de   tomar um drinque.

— Eu adoraria — gritou a mulher.

Martin dirigiu-se ao bar imaginando se a moça sabia em que se estava metendo. Pediu uma cerveja, e foi abrindo caminho até a parede dos fundos, onde encontrou um lugar de onde podia observar Werner. Tomando sua bebida aos goles, Martin começou a considerar o absurdo da situação. Depois de estudar todos aque­les anos, ali estava ele, num bar de solteiros, no meio da noite, seguindo um indivíduo estranho que parecia assustadoramente nor­mal. De fato, ao olhar em derredor, Philips ficou impressionado com a facilidade com que Werner se combinava com os homens de negócios e advogados.

Depois de anotar o número do telefone da garota, o zelador deu cabo de sua cerveja, pegou suas coisas, e tomou um outro táxi na Terceira Avenida. Martin teve uma pequena discussão com o motorista de seu táxi quanto a seguir o outro carro, mas tudo ficou resolvido com uma nota de cinco dólares.

A viagem transcorreu em silêncio. Philips observava as luzes da cidade até que ficaram empanadas por uma súbita pancada de chuva. Os limpadores do pára-brisa do táxi se apressavam em impedir que a água se acumulasse e dificultasse a visão. Atraves­saram a cidade pela Rua 57; do Columbus Circle cortaram diago­nalmente para o norte na Broadway, e depois viraram para a Ave­nida Amsterdã. Philips reconheceu a Universidade de Columbia, quando passaram por ela à esquerda. A chuva tinha parado tão subitamente quanto começara. Na Rua 141, dobraram à direita e Philips, inclinando-se para frente, perguntou em que bairro da cidade se achavam.

— Hamilton Heights — disse o motorista, virando à esquerda no Hamilton Terrace, e a seguir reduzindo a velocidade.

Adiante, o táxi de Werner parou. Philips pagou sua corrida e saltou. Embora a paisagem na Avenida Amsterdã viesse decaindo à medida que eles avançavam para o norte, Philips achava-se ago­ra numa vizinhança surpreendentemente atraente. A rua era lade­ada de casas antigas porém   simpáticas,   cujas   fachadas   variadas refletiam todas as escolas arquitetônicas desde a Renascença. Era claro que a maioria dos prédios tinha sido renovada. No fim da rua, dando frente para o Hamilton Terrace, Werner entrou num prédio com a fachada de calcário branco e cujas janelas eram cir­cundadas por uma decoração gótico-veneziana.

Quando Philips alcançou o prédio, as luzes tinham sido ace­sas nas janelas do terceiro andar. De perto, a casa não estava em tão boas condições quando vista de longe, mas sua má aparência não provinha de seu efeito total; ela dava a Philips a sensação de uma elegância deslustrada, e ele ficou impressionado com a habi­lidade de Werner em se estabelecer.

Ao entrar no saguão, Philips viu que não poderia surpreender Werner batendo diretamente em sua porta. Como no apartamen­to de Denise, havia um vestíbulo trancado com botões de cigarras individuais para os vários apartamentos. O nome Helmut Werner era o terceiro de baixo para cima.

Pondo o dedo sobre o botão da cigarra, Philips hesitou, sem ter certeza de que queria ir até o fim com aquela aventura. Nem tinha certeza do que devia dizer, mas a lembrança de Kristin Lindquist deu-lhe coragem. Apertou o botão e aguardou.

— Quem é? — A voz de Werner, carregada de estática, bro­tou de um pequeno alto-falante.

— Dr. Philips. Tenho dinheiro para você, Werner. Um boca­do de dinheiro.

Houve um ou dois momentos de silêncio, e Martin podia ouvir seu pulso.

— Quem mais está com você, Philips?

— Ninguém.

Um ruído rouco encheu o vestíbulo outrora suntuoso e Phi­lips empurrou a porta, que se abriu, o médico dirigindo-se para as escadas que levavam ao terceiro andar. Por trás da única porta ele pôde ouvir uma porção de fechaduras que se abriam. A porta abriu-se um pouquinho, de modo que uma réstea de luz caiu sobre o rosto de Philips. Ele pôde ver um dos fundos olhos de Werner que o fitava. A sobrancelha estava alçada, aparentando surpresa. Então foi removida uma corrente e a porta se abriu completa­mente.

Martin entrou bruscamente no quarto, obrigando Werner a recuar para evitar um choque. No centro do quarto, Martin parou.

— Não me importo de pagar, meu amigo — disse o médico tão categoricamente quanto possível. — Mas quero saber o que aconteceu ao cérebro de Lisa Marino.

— Quanto? — indagou Werner, abrindo e fechando as mãos ritmicamente.

— Quinhentos dólares — respondeu Philips. Ele queria que a quantia parecesse sedutora.

A boca fina de Werner repuxou-se para trás num sorriso pro­vocando o surgimento de rugas em suas bochechas fundas. Seus dentes eram pequeninos e quadrados.

— Tem certeza de que está sozinho? — perguntou Werner. Philips fez que sim com a cabeça.

— Onde está o dinheiro?

— Bem aqui — respondeu Philips, batendo no lado esquerdo do peito.

— Muito bem — retrucou Werner. — O que quer saber?

— Tudo — disse Philips.

— É uma longa história — falou Werner, dando de ombros.

— Tenho tempo.

— Eu ia justamente comer. Você quer?

Philips abanou a cabeça. Seu estômago estava tenso.

— Fique à vontade. — Werner voltou-se e, com seu andar característico, entrou na cozinha. Philips acompanhou-o, relanceando os olhos pelo apartamento. As paredes eram de uma espécie de veludo vermelho, a mobília vitoriana. O aposento tinha uma elegância pesada e inconsistente, realçada pela parca   iluminação que provinha de uma única lâmpada Tiffany. Sobre a mesa esta­va a pasta de Werner. Perto dela encontrava-se uma câmara Pola­roid que devia ter saído da pasta, Juntamente com uma pilha de fotos.

A cozinha era pequena com uma pia, um fogãozinho e uma geladeira, semelhante às que Martin vira desde a infância. Era uma caixa de superfície esmaltada com uma bobina cilíndrica no alto. Werner abriu a geladeira e tirou um sanduíche e uma garra­fa de cerveja. Em uma gaveta embaixo da pia apanhou um abridor e removeu a tampa da garrafa, repondo o   abridor   onde   o havia pegado.

— Gostaria de tomar um drinque?   —   perguntou   Werner, erguendo a garrafa de cerveja.

Philips abanou a cabeça. O zelador saiu da cozinha, e Phi­lips seguiu-o. Na mesa da sala de jantar Werner empurrou a pas­ta e a Polaroid para um lado, fazendo sinal a Philips para se sen­tar. O zelador tomou um grande gole de cerveja e arrotou ruido­samente, enquanto depunha a garrafa sobre a mesa. Quanto mais o tempo passava, menos confiante Philips se sentia. Havia perdi­do a vantagem inicial da surpresa. A fim de evitar que suas mãos tremessem, colocou-as sobre os joelhos. Os olhos estavam colados em Werner, seguindo cada movimento do homem.

— Ninguém pode viver com o salário de um empregado do necrotério — disse Werner.

Philips assentiu, aguardando. Werner deu uma mordida no sanduíche.

— Sabe, eu venho da minha velha terra — continuou Wer­ner, com a boca cheia. — Da Romênia. Não é uma história boni­ta, porque os nazistas “mataram” minha família e me levaram para a Alemanha, quando eu tinha cinco anos, Foi com esta idade que comecei a tratar com cadáveres em Dachau...

Werner continuou a contar sua história com os mais horren­dos detalhes, como seus pais tinham sido mortos, como ele havia sido tratado nos campos de concentração, e como foi obrigado a viver com os mortos. Prosseguia com a narrativa horrorosa sem poupar Martin de um só capítulo repulsivo. Em várias ocasiões, Philips tentou interromper a fantástica história, mas Werner insis­tia, e Philips sentia que sua firmeza de propósito se derretia como cera diante de um carvão em brasa.

— Então, eu vim para a América — disse Werner, acabando sua cerveja com um ruído de sucção. Arrastou a cadeira para trás e foi à cozinha apanhar outra. Philips, estarrecido com a história, observava-o da mesa. — Consegui um emprego no necrotério da Escola de Medicina — berrou Werner, abrindo a gaveta por sob a pia. Embaixo do abridor de garrafas havia várias facas grandes de autópsia que Werner surrupiara do necrotério, quando as autóp- sias ainda eram realizadas na velha mesa de mármore. Pegou numa delas e enfiou-a de ponta dentro da manga esquerda do pale­tó — Mas eu precisava de mais dinheiro do que o salário que eu ganhava. — Depois de abrir a garrafa, recolocou o abridor onde estivera, fechou a gaveta e voltou para a mesa.

— Só quero saber sobre Lisa Marino — disse Martin, vaci­lante. A história da vida de Werner havia feito com que Philips tomasse consciência de sua fadiga física.

—   Vou chegar lá — retrucou Werner. A seguir, tomou um gole da nova cerveja e colocou-a sobre a mesa.   — Comecei   a ganhar dinheiro no necrotério quando a Anatomia era mais popu­lar do que agora. Uma porção de pequenas coisas. Foi quando me nasceu a idéia das fotos. Vendo-as na Rua 42. Há anos que venho fazendo isso. — E com um braço fez um gesto de apresen­tação em derredor do apartamento.

Philips deixou que seus olhos percorressem o cômodo pouco iluminado. Ele tivera a vaga impressão de que as paredes de veludo vermelho estavam cobertas de fotografias. Agora, ao fitá-las, viu que eram fotos obscenas e horríveis de cadáveres femininos nus. Aos poucos, Philips voltou sua atenção para o malicioso Werner.

— Lisa Marino foi um de meus melhores modelos — disse Werner. E pegou a pilha de fotos da Polaroid que estavam sobre a mesa atirando-as no colo de Philips. — Olhe para elas. Estão dando um bom   dinheiro,   especialmente   na   Segunda   Avenida. Veja-as com calma. Tenho de ir   ao banheiro. É a cerveja; ela logo passa por mim.

Werner contornou o estupefato Philips e desapareceu através da porta do quarto de dormir. Martin contemplou relutante as repugnantes e sádicas fotografias do cadáver de Lisa Marino. Esta­va com medo de tocá-las, como se a aberração mental que repre­sentavam pudesse pegar-se a seus dedos. Era evidente que Wer­ner tinha interpretado erroneamente o interesse de Philips. Talvez o zelador nem soubesse nada sobre o desaparecimento do cérebro, e sua conduta suspeita se devesse apenas a seu comércio ilícito com as fotografias necrófilas. Philips sentia ondas de náusea.

Werner havia atravessado o quarto de dormir e entrado no banheiro. Abriu a torneira a um ponto em que o barulho da água correndo simulava uma pessoa que estivesse urinando e, metendo a mão dentro da manga, de lá retirou a delgada e longa faca de autópsia. Segurou-a na mão direita como se fosse uma adaga, e depois retornou atravessando silenciosamente o quarto de dormir.

Philips estava sentado a cerca de quatro metros e meio de distância, de costas para Werner, com a cabeça curvada, olhando para as fotos que se achavam em seu colo. Werner parou além do portal do quarto de dormir. Seus dedos alongados se apertaram cm torno do cabo de madeira já gasto da faca e ele cerrou forte­mente os lábios.

Philips pegou as fotografias e ergueu-as preparando-se para colocá-las viradas para baixo sobre a mesa. Estava com elas à altura do peito, quando percebeu o movimento atrás de si. Come­çou a virar-se. Então ecoou um grito!

A lâmina da faca mergulhou bem por trás da clavícula direita na base do pescoço, cortando o lobo superior do pulmão antes de perfurar a artéria pulmonar direita. O sangue penetrou no brônquio aberto, provocando um reflexo tussígeno agônico, que fez o sangue jorrar num arco por sobre a cabeça de Philips, ensopando a mesa que estava à sua frente.

Impulsionado por um reflexo animal, Martin pulou para a direita, agarrando a garrafa de cerveja no processo. Girando em torno de si, viu Werner cambaleando para frente, tentando em vão puxar com a mão um estilete que havia sido enfiado até o cabo em seu pescoço. Com um único gorgolejo brotado de sua garganta, debatendo-se, seu corpo inclinou-se para diante antes de cair como um monte no chão. A faca de autópsia que Werner tinha segu­rado tilintou ao bater na mesa e pulou no chão com um baque surdo.

— Não se mexa, nem toque em nada — berrou o atacante de Werner, que tinha passado pela porta para o corredor. — Em boa hora resolvemos colocá-lo sob vigilância. — Quem assim fa­lava era o hispano-americano com o bigode espesso e o terno de poliéster que Philips lembrava-se de ter visto no Metrô. — A idéia era atingir um vaso grande ou o coração, mas este cara não ia me dar tempo.

O homem curvou-se e tentou puxar sua faca do pescoço de Werner. Este havia caído com a cabeça contra o ombro direito e a lâmina estava presa. O atacante passou por cima do zelador retorcido, para melhor poder retirar a arma.

Philips já estava bastante recuperado do choque inicial, para reagir quando o homem se debruçou junto à mesa. Descrevendo um arco completo com a garrafa de cerveja, Martin a fez descer sobre a cabeça do intruso. O homem percebeu o golpe e, no úl­timo segundo, tinha-se virado ligeiramente de modo que a força da pancada se dissipou por sobre seu ombro. Contudo, fez com que o homem se esparramasse por sobre sua vítima moribunda.

Tomado pelo pânico, Philips começou a correr, ainda segu­rando a garrafa de cerveja. Mas, ao chegar à porta, julgou ter ouvido ruídos no corredor embaixo, fazendo-o temer que o assassi­no não estivesse sozinho. Firmando-se no batente da porta para inverter sua direção, ele disparou de volta pelo apartamento de Werner. O assassino havia-se posto em pé, mas ainda estava es­tonteado, amparando a cabeça com ambas as mãos.

Martin correu para uma janela nos fundos do quarto de dormir e levantou o caixilho. Tentou abrir a parte inferior mas não conseguiu, e então arrebentou-a com o pé. Uma vez do lado de fora na escada de incêndio, desceu verticalmente. Foi um mi­lagre que não tropeçasse, pois sua saída era mais do que uma queda controlada. No chão, não tinha direção a escolher; precisava correr para o leste. Bem além do prédio vizinho, entrou na vege­tação de um terreno baldio. À sua direita, havia uma cerca que barrava o caminho para o Hamilton Terrace.

À medida que ele corria para leste, o chão ia-se inclinando fortemente para baixo, e Philips viu-se escorregando e caindo por um outeiro juncado de calhaus. A luz agora achava-se por detrás, e ele avançava para a escuridão. Logo tropeçou contra uma cer­ca de arame. Para além dela havia uma barreira que caía a pique de uma altura de três metros sobre um pátio de sucata de auto­móveis. Mais além ainda havia a vastidão mal iluminada da Ave­nida Saint Nicholas. Philips ia escalar a cerca baixa, quando repa-

rou que ela havia sido cortada. Esgueirou-se pela providencial abertura e jogou-se pela parede de cimento.

Não se tratava de um verdadeiro depósito de carros velhos. Era uma área abandonada, onde vários carros tinham sido deixa­dos ao tempo e onde estavam enferrujando. Cautelosamente, Mar­tin foi caminhando por entre as retorcidas carcaças de metal para a luz da avenida que lhe ficava em frente. A qualquer momento, esperava ouvir alguém em sua perseguição.

Uma vez na rua, ele pôde correr com mais facilidade. Queria colocar o máximo de distância possível entre ele e o apartamento de Werner. Em vão buscou uma patrulhinha da polícia. Não viu nenhuma. Os prédios que o ladeavam tinham-se arruinado, e ao olhar de um para outro lado, Philips viu que muitas das constru­ções estavam queimadas e abandonadas. Os enormes edifícios de apartamentos pareciam esqueletos na noite escura e enevoada. As calçadas achavam-se cheias de lixo e detritos.

Subitamente, Philips percebeu onde se encontrava. Havia cor­rido diretamente para o Harlem. Aquela descoberta fez com que reduzisse a marcha. O cenário deserto e escuro acentuava seu ter­ror. Dois quarteirões adiante Martin avistou um grupo de negros vagabundos e maltrapilhos que se mostraram um tanto chocados com o vulto de Philips correndo. Os pretos interromperam suas transações de drogas, a fim de contemplar o tipo branco e malu­co que passava correndo por eles, dirigindo-se para o centro do Harlem.

Embora se encontrasse em boa forma, as passadas forçadas logo o esgotaram, e Martin sentiu que estava prestes a cair, cada inspiração lhe provocando uma dor pungente no peito. Por fim, em desespero, meteu-se numa entrada escura e sem porta, respi­rando com dificuldade, ofegante, enquanto os pés tropeçavam em tijolos esparsos pelo chão. Apoiando-se na parede úmida, ele se firmou. Imediatamente suas narinas foram invadidas por um chei­ro repugnante. Porém Philips ignorou-o, tal era o alívio de parar de correr.

Com todo o cuidado, ele se debruçou para fora e lutou para ver se alguém o havia seguido. Tudo estava calmo, mortalmente calmo. Philips percebeu o cheiro da pessoa antes de sentir a mão que se estendeu das profundezas das trevas do prédio e agarrou seu braço. Um grito formou-se em sua garganta, porém quando saiu da boca mais parecia o débil balido de um carneirinho. Ele pulou para fora da entrada, sacudindo seu braço como se estives­se nas garras de um inseto venenoso. O dono da mão foi empur­rado inadvertidamente para fora do portal e Martin viu-se olhan­do para um viciado toxicômano que mal podia manter-se em pé.

— Meu Deus! — gritou Philips, virando-se e voltando para dentro da noite.

Decidido a não parar outra vez, Philips reencetou seu habi­tual passo de corrida. Achava-se totalmente perdido, mas racio­cinava que, se continuasse em linha reta, acabaria por ir ter a algum tipo de zona povoada.

Tinha recomeçado a chover, uma garoa fina que redemoinha­va em torno dos espaçados lampiões da rua.

Dois quarteirões adiante Philips encontrou um oásis. Tinha chegado a uma larga avenida e na esquina havia um bar, desses que ficam abertos a noite toda, com um berrante anúncio néon da Budweiser, que piscava com uma luz vermelho-sanguínea no cruzamento. Alguns vultos acotovelavam-se junto aos portais como se o letreiro vermelho oferecesse uma espécie de abrigo da cidade decadente.

Passando a mão pelo cabelo úmido, Martin teve a sensação de algo empastado. À luz do letreiro da Budweiser, ele verificou que eram salpicos do sangue de Werner. Não desejando parecer que se houvesse metido numa briga, tentou limpar o sangue com a mão. Depois de passá-la várias vezes pelo cabelo, o empasta-mento desapareceu e Philips abriu a porta com violência.

Dentro do bar, a atmosfera estava densa e cheia de fumaça. A música da vitrola vibrava de modo tão ensurdecedor que Martin podia sentir cada batimento do coração dentro do peito. Havia cerca de 12 pessoas no bar, todas meio sonolentas, e todas negras. Além da música da vitrola, uma pequena televisão a cores trans­mitia um filme de gângsteres da década de 1930. A única pessoa vigilante era o robusto empregado do balcão, que usava um sujo avental branco.

Os fregueses viraram-se para Philips, e uma súbita tensão encheu o ar como a eletricidade estática antes de uma tempesta­de. Embora em seu estado de pânico, Philips sentiu-o imediata­mente. Se bem que vivesse em Nova York há quase 20 anos, havia-se resguardado tanto da pobreza desesperada quanto da riqueza opulenta.

Agora, avançando cautelosamente pelo bar adentro, como que esperava ser atacado a qualquer momento. Ao passar, os rostos ameaçadores se voltaram para acompanhá-lo. À sua frente, um homem barbado virou-se no banco do bar e plantou-se diretamen­te em seu caminho. Era um negro musculoso cujo corpo brilha­va com força, à luz mortiça.

— Vamos, branco — rosnou ele.

— Acalme-se, Flash — falou, brusco, o barman. — Deixe dis­so. — E virando-se para Philips perguntou: — Mister, que porra está fazendo aqui? Está querendo ser morto?

— Preciso de um telefone — conseguiu dizer Philips.

— Lá no fundo — respondeu o barman, sacudindo a cabeça como se não acreditasse no que estava vendo.

Philips susteve a respiração ao passar ao lado do homem cha­mado Flash. Depois de apanhar uma moeda de 10 cents no bolso, procurou pelo telefone. Encontrou um perto dos toaletes, mas esta­va ocupado por um sujeito que discutia com sua amiguinha:

— Olhe, amorzinho, por que está chorando?

Antes tomado como estava pelo pânico, Martin teria sido capaz de arrebatar o telefone do homem, porém agora ele já esta­va mais ou menos controlado e retornou ao bar onde ficou em pé, junto ao extremo do balcão, aguardando. O ambiente havia relaxado um pouco e as conversas tinham recomeçado.

O barman pediu primeiro o dinheiro e depois serviu-lhe o conhaque. O líquido ardente acalmou-lhe os nervos arruinados e ajudou-o a concentrar seus pensamentos. Pela primeira vez desde o incrível acontecimento da morte de Werner, Martin foi capaz de considerar o que havia ocorrido. No momento da punhalada ele pensara que tinha sido um acessório coincidente e que a luta era entre Werner e seu atacante. Depois, porém, o assaltante tinha dito qualquer coisa insinuando que vinha seguindo Philips. Mas aquilo era um absurdo! Martin seguira Werner. E Martin havia visto a faca de Werner. Estaria o zelador prestes a atacá-lo? A análise do episódio tornava Philips ainda mais confuso, especial­mente quando ele se lembrava de ter visto o assaltante no Metrô naquela noite. Philips tomou o drinque e pediu outro. Perguntou ao barman onde se encontrava, e o homem lhe disse. Porém os nomes das ruas nada significavam para Philips.

O negro que estivera discutindo ao telefone passou por detrás de Philips e saiu do bar. Martin desceu do banco e, sorvendo seu novo drinque, encaminhou-se para o fundo do bar. Sentia-se um pouco mais calmo e achou que podia apresentar um caso mais inteligente à polícia. Embaixo do telefone havia uma pequena pra­teleira, e Philips depositou ali seu drinque. Introduzindo uma moe­da, discou 911.

Por sobre os sons da vitrola e da TV, ele podia ouvir a cam­painha chamando no outro extremo da linha. Pôs-se a pensar se devia dizer alguma coisa sobre suas descobertas no hospital, mas decidiu que aquilo só serviria para aumentar a confusão numa situação já confusa. Resolveu que nada diria sobre suas preocupa­ções médicas, a menos que lhe perguntassem especificamente o que estava fazendo no apartamento de Werner no meio da noite. Uma voz enfadada e rouca atendeu.

— Divisão Seis. Aqui fala o Sargento McNeally.

— Quero comunicar um assassinato   —   falou   Martin,   pro­curando manter serena a voz.

— Onde? — indagou o Sargento.

— Não estou bem certo do endereço, mas acho que reconhe­cerei o edifício se o vir de novo.

— Você agora está em perigo?

— Acho que não. Encontro-me num bar no Harlem...

— Num bar! Muito bem — interrompeu o Sargento. — Quan­tos drinques já tomou?

Philips sentiu que o Sargento pensava que ele era um excên­trico.

— Escute. Vi um homem ser esfaqueado.

— Muita gente é esfaqueada no Harlem, meu amigo. Qual é seu nome?

— Dr. Martin Philips. Sou radiologista da equipe do Centro Médico da Universidade Hobson.

— Você disse Philips? — Indagou o Sargento, modificando o tom de voz.

— Isso mesmo — confirmou Martin, surpreso ante a reação do Sargento.

— Por que não disse logo? Olhe, estamos esperando por seu telefonema. Devo transferi-lo imediatamente para o Bureau. Não desligue. Se a linha cair, torne a me chamar. O.K.?

O policial não esperou pela resposta. Seguiu-se um estalido enquanto Philips era posto na linha. Afastando o fone do ouvido, Martin olhou-o como que à espera de uma explicação por aquela estranha conversa. Philips tinha certeza de que o Sargento dissera que estava esperando por seu telefonema! E que queria ele dizer com Bureau? Bureau de quê?

Uma série de cliques se seguiu pela voz de alguém mais que atendia no outro extremo da linha. A voz era intensa e ansiosa.

— Muito bem, Philips, onde está você?

— Estou no Harlem. Quem está falando aí?

— O Agente Sansone. Sou o Diretor Assistente do   Bureau aqui na cidade.

— Qual Bureau? — Os nervos de Philips, que tinham come­çado a relaxar, voltaram a formigar como se ele estivesse ligado a uma corrente galvânica.

— O FBI, seu idiota! Escute, não podemos perder tempo. Você tem de sair desta área.

— Por quê? — Martin estava perplexo, porém sentiu que San­sone falava sério.

— Não tenho tempo para explicar. Mas aquele homem   que você golpeou na cabeça era um de meus agentes que procurava protegê-lo. Ele acaba de fazer seu relatório. Você não compreen­de? O envolvimento de Werner foi apenas um incidente casual.

— Não estou entendendo nada — gritou Philips.

— Não interessa! — retrucou, brusco, Sansone. — É impor­tante que você caia fora daí. Espere, tenho de ver se esta linha é segura.

Ouviu-se um outro estai ido enquanto Philips aguardava na linha. Fixando o olhar no telefone silencioso, as emoções de Phi­lips se agitaram ao ponto de ele sentir raiva. Tudo aquilo tinha de ser uma piada de mau gosto.

— A linha não está segura — disse Sansone, retornando ao telefone. — Dê-me seu número e tornarei a chamar.

Philips deu o número e desligou. Sua ira começou a se divi­dir num medo renovado. Afinal de contas, era o FBI.

O telefone soou estridentemente sob a mão de Philips, sobressaltando-o. Era Sansone.

— Muito bem, Philips. Escute! Existe uma conspiração envol­vendo o Centro Médico da Universidade Hobson, que vimos inves­tigando secretamente.

— E que envolve radiação — deixou escapar, impensadamen­te. Philips. As coisas começavam a fazer sentido.

— Você tem certeza?

— Absoluta — confirmou o médico.

— Ótimo! Escute, Philips, precisamos de você   nesta investi­gação, mas receamos que você possa estar sob vigilância. Temos que falar com você. Precisamos de alguém dentro do Centro Médi­co, está entendendo? — Sansone nem esperou que Philips respon­desse. — Não podemos permitir que venha para cá,   caso   esteja sendo seguido. A última coisa que desejamos neste momento é deixar que eles saibam que o FBI os está investigando. Não des­ligue.

Sansone deixou o telefone, mas Philips podia ouvir uma dis­cussão ao fundo.

—   O Mosteiro, Philips. Conhece o   Mosteiro?   — perguntou Sansone, retomando à linha.

— Claro — respondeu Martin, desconcertado.

— Vamos nos encontrar lá. Pegue um táxi e salte na entrada principal. Mande o táxi embora. Isso nos dará uma oportunidade de nos certificarmos de que você está limpo.

— Limpo?

— De que não está sendo seguido, pelo amor de Deus! Faça isso, Philips.

O médico ficou segurando um fone morto, calado. Sansone não havia esperado por perguntas nem por concordâncias. Suas instruções não eram sugestões, eram ordens. Philips não podia senão ficar impressionado pela total seriedade do agente. Voltou ao barman e perguntou-lhe se podia chamar um táxi.

— Dificilmente os táxis vêm ao Harlem à noite — respondeu o homem.

Uma nota de cinco dólares fez com que o homem mudasse seu modo de pensar e usasse o telefone que ficava atrás da caixa registradora. Martin reparou na coronha de uma pistola calibre 45 que estava no mesmo lugar.

Antes que o motorista do táxi concordasse em vir, Martin teve que prometer uma gorjeta de 20 dólares e dizer que seu des­tino era Washington Heights. Seguiram-se 15 minutos de uma espe­ra nervosa até que ele visse o táxi parar à sua frente. O carro arrancou com um guincho dos pneus pela outrora elegante aveni­da. Logo depois que partiram, o motorista pediu a Martin que trancasse todas as portas.

Percorreram cerca de 10 quarteirões antes que a cidade come­çasse a parecer menos ameaçadora. Em breve, encontraram-se numa zona familiar a Philips, onde as fachadas iluminadas das lojas substituíram a desolação anterior. Martin podia ver até algu­mas pessoas andando com guarda-chuvas.

— Muito bem, para onde vamos? — indagou o motorista. Era evidente seu alívio, como se houvesse resgatado alguém detrás das linhas inimigas.

— Para o Mosteiro — disse Philips.

— O Mosteiro! Homem, são três e   meia   da   manhã.   Toda aquela área está deserta.

— Eu lhe pagarei   — retrucou   Martin,   não   desejando   dis­cutir.

— Espere um minuto —   falou   o   motorista,   parando   num sinal vermelho. Virou-se para olhar através da divisão   de   plexi­glas. — Não quero problemas. Não sei que porra você vai fazer, mas não quero problemas comigo.

— Não vai haver nenhum problema. Só quero que me deixe na entrada principal. Depois, pode seguir seu caminho.

O sinal abriu e o motorista acelerou. O comentário de Mar­tin deve ter satisfeito o homem, porque ele não se queixou mais, e Martin ficou contente de poder pensar.

Os modos autoritários de Sansone tinham sido úteis. Ante as circunstâncias, Philips sentia que não poderia ter tomado qualquer decisão por si mesmo. Era tudo muito estranho! Desde o momen­to em que deixara o hospital, Philips tinha mergulhado num mun­do não marcado pelos habituais limites da realidade. Chegou a pensar que suas experiências tinham sido imaginárias até que viu as manchas de Werner em seu casaco de lã. Num certo sentido, elas eram confortadoras; pelo menos Philips sabia que não tinha ficado louco.

Olhando pela janela, contemplava as luzes da cidade que pas­savam dançando, e procurava concentrar-se na improvável inter­venção do FBI. Philips tivera bastante experiência no hospital para saber que as organizações funcionam tipicamente para defender seus interesses e não os do indivíduo. Se este caso, fosse qual fos­se, era tão importante para o FBI, como poderia Martin esperar que eles estivessem profundamente voltados para os interesses dele? Não era possível! Esses pensamentos fizeram-no sentir-se pouco à vontade quanto ao encontro no Mosteiro. Seu isolamento e seu afastamento perturbavam-no. Virando-se, espiou para trás do táxi, procurando ver se estava sendo seguido. O tráfego era pequeno e o fato não parecia provável, porém ele não podia ter certeza. Ia dizer ao motorista que mudasse de direção, quando percebeu, com um senso de impotência, que provavelmente não havia qualquer lugar seguro aonde ir. Continuou sentado, tenso, até estarem qua­se chegando ao Mosteiro, quando então se debruçou para frente e disse:

— Não pare, continue dirigindo.

— Mas você disse que queria ser deixado aqui — protestou o motorista.

O táxi tinha acabado de entrar na área oval pavimentada de pedra, que servia de entrada principal. Havia uma grande lâmpa­da sobre o portal medieval, cuja luz cintilava no pavimento de granito molhado.

— Contorne mais uma vez — disse Philips, esquadrinhando a área com os olhos. Duas estradas particulares se dirigiam para a escuridão. Lá em cima podiam-se ver algumas luzes no interior do edifício. À noite, o complexo tinha a ameaçadora aparência de um castelo dos Cruzados.

O motorista soltou uma praga, mas seguiu a estrada circular que se abria numa paisagem que dava para o Hudson. Martin não podia ver o rio em si, porém a Ponte George Washington, com suas graciosas parábolas de luzes, destacava-se contra o céu.

Martin girava a cabeça de um lado para outro procurando sinais de vida. Não havia nenhum. Nem mesmo os habituais namo­rados em carros estacionados próximo ao rio. Ou era muito tarde, ou estava frio demais. Ao completarem a volta até a entrada, o táxi parou.

— Muito bem, agora, porra, o que você quer fazer? — per­guntou o motorista, olhando para Philips pelo espelho retrovisor.

— Vamos embora daqui — retrucou este.

O motorista respondeu virando a direção e arrancando em disparada para longe do edifício.

— Espere! Pare! — berrou Martin,   e   o   motorista   do   táxi apertou os freios. Philips havia visto três vagabundos que olhavam por sobre a parede de pedra que ladeava a entrada. Eles haviam ouvido o guincho dos pneus. Quando o táxi parou, os três se acha­vam a cerca de 30 metros à retaguarda.

— Quanto é? — perguntou Martin, olhando pela janela do táxi.

— Nada. Só quero que você dê o fora.

Philips pôs uma nota de 10 dólares no puxador do plexiglas e saltou. O carro partiu célere assim que a porta se fechou. O ruído do táxi desapareceu rapidamente no ar úmido da noite. Atrás dele ficou um silêncio pesado, interrompido apenas por even­tuais chiados dos carros que passavam pela invisível Estrada Hen­ry Hudson. Philips retornou, caminhando na direção dos vagabun­dos. À sua direita, um caminho pavimentado saía da estrada e passava por entre arbustos que desabrochavam. Philips pôde ver vagamente que o caminho se bifurcava com um dos ramos torcendo-se e voltando a correr por baixo da estrada arqueada.

Enveredando por ele, Philips olhou por baixo da passagem superior. Os vagabundos não eram três; eram quatro. Um deles estava deitado de costa e ressonando. Os outros três achavam-se sentados, jogando cartas. Uma pequena fogueira iluminava dois garrafões de vinho quase vazios. Por um momento Philips obser­vou-os, querendo certificar-se de que eram o que pareciam ser, apenas vadios. Martin imaginava um meio de usar aqueles homens como um escudo entre ele próprio e Sansone. Não que ele espe­rasse ser preso, mas sua experiência com as instituições levava-o a investigar e a ter algumas idéias sobre o que aguardar, e o emprego de um intermediário era o único método em que ele podia pensar. Afinal de contas, mesmo que fizesse sentido, um encon­tro no Mosteiro no meio da noite era uma conduta muito pouco normal.

Depois de observar por alguns minutos mais, Philips cami­nhou por baixo da arcada agindo como se estivesse um pouco bêbado. Os três vagabundos olharam-no por um instante e, deci­dindo que ele não representava qualquer perigo, voltaram às cartas.

— Algum de vocês, caras, quer ganhar dez paus? — falou Martin.

Pela segunda vez, os três desgraçados levantaram os olhos.

— O que temos de fazer para ganhar os dez dólares? — inda­gou o mais jovem deles.

— Ser eu durante dez minutos.

Os três vagabundos entreolharam-se e riram. O mais jovem levantou-se.

— Sim, e que farei quando for você?

— Vá até o Mosteiro e dê   uma   volta   em  torno   dele.   Se alguém lhe perguntar quem é, diga que é Philips.

— Deixe eu ver os dez dólares. Philips mostrou o dinheiro.

— E eu? — indagou um dos homens mais velhos, pondo-se de pé com dificuldade.

— Cale a boca, Jack — disse o mais jovem. — Senhor, qual é o seu nome todo?

— Martin Philips.

— O.K., Martin, trato feito.

Tirando o casaco e o chapéu, Philips fez com que o homem os vestisse, puxando a aba do chapéu bem para baixo. Então Mar­tin pegou o casaco do vagabundo e, com relutância, enfiou seus braços pelas mangas. Era um velho casaco surrado tipo Chester­field com uma estreita lapela de veludo. No bolso, havia parte de um sanduíche sem o invólucro.

Apesar das objeções de Martin, os outros dois homens insis­tiram em acompanhar o primeiro, pondo-se a rir e a fazer piadas até que Philips disse que o negócio ficaria desfeito se eles não se calassem.

— Devo caminhar firme e reto? — perguntou o jovem.

— Sim — respondeu Martin, que estava tendo segundas inten­ções quanto ao disfarce. O caminho se aproximava do pátio por baixo da estrada principal. Havia   uma   íngreme   inclinação   bem antes da área calçada de pedras, com um banco para os pedestres que estivessem cansados. A parede de pedra que limitava a entra­da terminava abruptamente na interseção. Bem em frente, do outro lado, achava-se a entrada principal para o Mosteiro.

— Muito bem — sussurrou Martin. —   Basta   caminhar   até aquela   porta,   tentar   abri-la,   depois   recuar,   e   os   10   dólares são seus.

— Como é que você sabe que não vou   sair   correndo   com seu chapéu e seu casaco — falou o camarada mais jovem.

— Vou arriscar. Além disso, eu o pegaria — disse Philips.

— Qual é mesmo o seu nome?

— Philips. Martin Philips.

O vagabundo baixou ainda mais a aba do chapéu sobre a tes­ta de modo que teve de inclinar a cabeça para trás a fim de poder enxergar. Começou a se inclinar, quase perdeu o equilíbrio. Mar­tin deu-lhe um empurrão nas costas e ele se curvou para frente.

Martin subiu a rampa até que sua linha de visão ficou logo acima da parede de pedra. O vagabundo já havia atravessado a estrada e tinha alcançado as pedras irregulares do pavimento, que lhe provocaram um momentâneo desequilíbrio, embora ele se tives­se endireitado antes de cair. Contornou a ilha central, que servia de parada dos ônibus, e se dirigiu para a porta de madeira.

— Há alguém em casa? — berrou o homem. Sua voz ecoou pelo pátio. Tropeçando no meio do pátio, tornou a berrar: — Sou Martin Philips.

Não se ouvia nenhum som, exceto um leve tamborilar da chu­va que havia começado pouco antes. O antigo Mosteiro, com suas muralhas ásperas conferia ao ambiente uma impressão de irreali­dade e eternidade. Martin tornou a pensar se não estava sendo vítima de uma gigantesca alucinação.

Súbito, um tiro quebrou o silêncio. O vagabundo que estava no pátio foi erguido e arremessado de encontro ao pavimento de granito. O efeito foi o mesmo que o de uma granada de alta velo­cidade atingindo um melão maduro. A entrada da bala era uma incisão cirúrgica; a saída, uma horrível força despedaçadora que arrancou a maior parte do rosto do homem, espalhando-o por um arco de 10 metros.

Philips e seus dois companheiros ficaram pasmos. Ao perce­berem que alguém tinha alvejado o vagabundo, viraram-se e fugi­ram, tropeçando uns sobre os outros pela encosta que se afastava do mosteiro.

Nunca Martin experimentara tanto desespero. Mesmo quando saíra correndo da casa de Werner, sentira tanto medo. A qualquer segundo ele esperava tornar a ouvir o fuzil e a sentir a dor candente de uma bala mortal. Sabia que a pessoa que o estava per­seguindo iria examinar o corpo no pátio e logo perceberia o enga­no. Precisava dar o fora.

Mas a encosta pedregosa era em si mesma um perigo. O pé de Philips tropeçou num toco de raiz e ele caiu ao comprido, esca­pando por pouco de bater num afloramento rochoso. Ao se levan­tar, viu um caminho que se desviava para a direita. Afastando a vegetação rasteira, enveredou por ele.

Um segundo estampido foi seguido por um grito de agonia. O coração de Philips parecia que ia saltar pela boca. Uma vez livre do mato, Martin correu o mais depressa que pôde, arremessando-se pela passagem dentro das trevas.

Antes de perceber o que estava acontecendo, ele se havia lan­çado no ar no topo de uma escadaria. Pareceu decorrer um tempo incrivelmente longo antes que ele tocasse de novo o solo. Instin­tivamente, Philips curvou-se para diante para absorver o choque, enfiando a cabeça para frente e dando um salto mortal, como um acrobata. Acabou caindo de costas, e então sentou-se, estonteado. De lá detrás vinha o som de passos correndo pela passagem, de modo que ele se obrigou a pôr-se de pé. E correu também, lutan­do contra a tonteira.

Desta vez, viu as escadas a tempo e reduziu as passadas. Subiu os degraus de três em três, de quatro em quatro, e prosseguiu na corrida com as pernas bambas. O caminho cortava um outro em ângulo reto. Tudo aquilo acontecia com tanta rapidez que Martin não teve tempo de decidir se mudava ou não de direção.

No próximo cruzamento, o caminho de Martin terminou, obrigando-o a um momento de hesitação. Embaixo e à direita, podia ver o fim da mata. À margem das árvores havia uma espécie de balcão com uma balaustrada de cimento. De repente, Philips tor­nou a ouvir passos, e desta vez parecendo ser de mais de uma pessoa. Não havia tempo para pensar. Virou-se e correu para bai­xo do balcão. Abaixo dele, estendendo-se por cerca de 100 metros havia um pátio de recreio de cimento com balanços e bancos, e uma depressão central que provavelmente, no verão, servia como piscina para crianças. Além do pátio corria uma das ruas da cida­de, e Martin viu um táxi que passava por ela.

Ouvindo aproximarem-se os passos acelerados, resolveu des­cer pela larga escada de cimento que ia do lado do balcão para o pátio. Foi então que, percebendo os passos cada vez mais próxi­mos, verificou que não poderia atravessar o espaço aberto antes que quem quer que fosse que o estivesse perseguindo alcançasse o balcão. Ele ficaria exposto.

Rápido, Martin enfiou-se no recesso escuro que ficava por baixo do balcão, sem se importar com o fedor de urina velha. Naquele momento sentiu passos que alcançavam a parte superior. Cambaleou às cegas até se chocar contra uma parede. Virando-se, abaixou-se lentamente até ficar sentado, procurando controlar o ruído da respiração.

As colunas que suportavam o balcão erguiam-se contra o fun­do da imagem indistinta do pátio de recreio. Na cidade, ao longe, podiam-se ver umas poucas luzes. Os passos pesados correram por cima e depois desceram pela escada. Subitamente, um vulto escuro maltrapilho cujo chiado da respiração ofegante chegava até Mar­tin se desenhou claramente como uma silhueta, enquanto o homem entrava aos tropeções no pátio, dirigindo-se para a rua mais além. No balcão acima soaram vários passos ligeiros. Philips ouviu palavras abafadas. Depois, o silêncio. Lá adiante o vulto estava atravessando em diagonal a piscina das crianças.

Por cima de Philips o fuzil pipocou agudamente e, ao mesmo tempo, o vulto que fugia pelo pátio foi atirado de cara no chão. Uma vez caído sobre o cimento, não se mexeu mais. O homem havia sido morto instantaneamente.

Martin resignou-se a seu destino. Fugir era impossível. Acha­va-se encurralado como uma raposa após uma caçada. Tudo o que lhe restava era o golpe de misericórdia. Se não estivesse tão esgo­tado, talvez tivesse pensado em resistir, mas, como estava, limitou-se a ficar quieto, escutando as passadas cruzarem o balcão e come­çar a descer as escadas.

Na expectativa de ver surgirem, de um momento para o outro, os vultos entre as molduras das colunas à sua frente, Philips aguar­dava, prendendo a respiração.

 

Denise Sanger acordou subitamente. Ficou deitada ali imóvel, mal respirando enquanto escutava os sons da noite. Podia ouvir as arté­rias pulsando nas têmporas, martelando devido à adrenalina que tinha sido lançada em seu sistema. Ela sabia que tinha sido des­pertada por um ruído estranho, mas que não se repetira. Tudo o que ela podia ouvir era o trepidar de sua antiga geladeira. Aos poucos sua respiração retornou ao normal. Até a geladeira, com um estalido final, desligou-se, deixando o apartamento em silêncio.

Rolando na cama, imaginando se não tivera um pesadelo, sen­tiu vontade de ir ao banheiro. A pressão interna de sua bexiga aumentava lentamente até que ela não pôde mais ignorá-la. Por mais desagradável que fosse a idéia, precisava levantar-se.

Saindo do leito quente, Denise pisou suavemente no banheiro. Apanhando a camisola num bolo e levantando-a, sentou-se no assento frio do vaso sanitário. Não acendeu a luz nem fechou a porta.

A adrenalina que circulava em seu sistema circulatório pare­cia ter inibido a bexiga, e Denise foi obrigada a ficar sentada durante vários minutos antes que pudesse urinar. Tinha justamen­te acabado, quando ouviu uma pancada surda que bem podia ser alguém batendo na parede do apartamento contíguo.

Denise apurou os ouvidos na esperança de ouvir mais alguma coisa, mas o apartamento estava quieto. Reunindo coragem, pas­sou silenciosamente para o vestíbulo até poder ver a porta da fren­te. Experimentou uma sensação de alívio quando constatou que a correntinha de segurança se achava no lugar.

Virou-se e começou a voltar para o banheiro. Foi neste mo­mento que ela sentiu a corrente de ar correr pelo chão e ouviu o farfalhar de algumas folhas de seu bloco de notas. Retornando ao vestíbulo, Denise relanceou o olhar pela sala de estar. A janela que dava para a escada de incêndio no poço de ventilação estava aberta!

Denise tentou desesperadamente não entrar em pânico, mas a possibilidade de um intruso tinha sido o seu maior medo desde que chegara a Nova York. Até quase um mês depois de ter-se mudado para a cidade, ela sentia grande dificuldade em dormir. E agora, com sua janela entreaberta, parecia que seu pior pesade­lo estava-se tornando realidade. Alguém estava em seu aparta­mento.

À medida que os segundos se escoavam, ela se lembrou de que tinha dois telefones. Um junto à cama, o outro na parede da cozinha bem à sua frente. De um salto, Denise atravessou o ves­tíbulo, sentindo o linóleo já gasto sob os pés. Ao passar pela pia, pegou uma pequena faca. Um lampejo muito fraquinho saiu da pequenina lâmina. A diminuta arma deu a Denise uma falsa sen­sação de proteção.

Ultrapassando a geladeira, a médica segurou o fone. Naquele instante, o compressor da velha geladeira entrou em ação com um ruído semelhante ao do Metrô, um ruído de descarga de algo que volta à vida. Assustada com o barulho, com os nervos tensos e à flor da pele, ela entrou em pânico, deixando cair o telefone e começando a gritar.

Antes, porém, que pudesse emitir qualquer som, uma mão segurou-a pelo pescoço e levantou-a com muita força, exaurindo toda sua energia. Seus braços penderam flácidos e a faquinha caiu tilintando no chão.

Foi rodada como uma boneca de pano e rapidamente jogada na direção do vestíbulo com os pés mal tocando o chão. Ao tropeçar pelo quarto de dormir percebeu vários clarões, experimen­tando uma candente sensação de calor ao lado da cabeça e ouvin­do os disparos de uma pistola com silenciador.

As balas se aninharam no monte de cobertores sobre sua cama. Por fim, com um brutal empurrão, enquanto os cobertores eram afastados, Denise foi posta de joelhos.

— Onde está ele? — perguntou um dos assaltantes. O outro estava abrindo os armários.

Agachando-se junto à cama, ela ergueu os olhos. De pé, em sua frente, achavam-se dois homens vestidos de negro com largos cintos de couro.

— Quem? — conseguiu ela articular com voz fraca.

— Seu amante, Martin Philips.

— Não sei. No hospital.

Um dos homens estendeu a mão para baixo e levantou Deni­se o suficiente para atirá-la sobre a cama.

— Neste caso, vamos esperar.

 

Para Philips, o tempo ia passando como num sonho. Após o últi­mo tiro de fuzil, ele nada mais ouviu. A noite readquirira sua cal­ma, exceção feita de um ou outro automóvel que passava pela rua da cidade além do pátio de recreio. Estava certo de que seu pulso voltara ao normal, mas ainda tinha dificuldade em reunir os pen­samentos. Somente agora, quando o Sol que nascia varria imperceptivelmente o pátio, sua mente começava a funcionar. À medi­da que a aurora ficava mais clara, ele podia discernir mais deta­lhes da paisagem, como uma série de cestas de cimento modela­das para parecerem rochas circundantes naturais. Os passarinhos haviam-se reunido de repente sobre a área, e vários pombos erra­vam por sobre o corpo estendido na piscina seca.

Martin tentou mover suas pernas enrijecidas. Aos poucos, percebeu que o corpo morto no pátio representava uma nova ame­aça. Logo alguém chamaria a Polícia, e após a última noite Mar­tin estava compreensivelmente com medo dela.

Pondo-se de pé, firmou-se de encontro à parede até sua cir­culação voltar. Seu corpo doía enquanto ele subia de novo as escadas de cimento, explorando a área. Pôde ver o caminho no qual dera seu terrível mergulho há apenas algumas horas. Fora do cami­nho alguém passeava com um cão. Não levaria muito tempo para que o corpo no pátio de recreio fosse descoberto.

Ele desceu as escadas e correu para o canto mais afastado do parque, passando por perto do corpo do vagabundo. Os pombos estavam-se regalando com pedacinhos de matéria orgânica que tinha sido espalhada pela bala. Martin desviou os olhos.

Saindo do parque, ele virou para cima as estreitas lapelas do sobretudo do vagabundo e atravessou a rua, que viu ser a Broad­way. Na esquina havia uma entrada para o Metrô, porém Mar­tin ficou com medo de ser atacado no subterrâneo, pois não fazia qualquer idéia, se as pessoas que o estavam perseguindo ainda se encontravam na área.

Encostou-se num portal e esquadrinhou a rua. A cada minu­to estava ficando mais claro, e o tráfego começava a crescer. Isso fez com que Philips se sentisse melhor. Quanto mais gente hou­vesse, mais seguro ele estaria, e ele não viu nenhum indivíduo suspeito ou sentado ociosamente num dos carros estacionados.

Bem à sua frente, um táxi parou num dos sinais de trânsito. Martin saiu correndo de dentro do portal e tentou abrir a porta traseira do carro. Estava trancada. O motorista voltou-se para olhar para Philips, e partiu acelerado a despeito do sinal fechado.

Martin ficou em pé, na rua, aturdido, vendo o carro desapa­recer desabalado na distância. Só ao voltar para o portal e ver o reflexo de seu vulto num vidro foi que compreendeu por que o motorista tinha ido embora. Martin parecia um verdadeiro vaga­bundo. Seu cabelo despenteado entrelaçava-se ao lado com sangue seco e pedaços de folhas. Seu rosto estava sujo e ostentava uma barba de 24 horas. O casaco esfarrapado completava a imagem do vadio.

Procurando por sua carteira, Philips ficou aliviado ao sentir-lhe a forma familiar no bolso de trás da calça. Tirou-a e contou c dinheiro. Tinha 31 dólares. Seus cartões de crédito seriam inú­teis naquelas circunstâncias. Tirou uma das notas de cinco dólares e recolocou a carteira no lugar.

Cerca de cinco minutos mais tarde parou outro táxi. Desta vez, Philips aproximou-se dele pela frente de modo que o motorista pudesse vê-lo. Tinha arranjado o cabelo o mais apresentável pos­sível e abriu o sobretudo de modo que sua condição esfarrapada não fosse imediatamente visível. Mais importante do que tudo, segurou na mão a nota de cinco dólares. O motorista acenou-lhe para que entrasse.

— Para onde, Mister?

— Siga em frente — disse Philips. — Siga apenas em frente. Embora o motorista olhasse Martin com uma certa suspeita pelo espelho retrovisor, engrenou a marcha quando o sinal mudou, e seguiu pela Broadway.

Philips virou-se no assento e olhou para trás. Fort Tryon Park e o pequeno playground afastavam-se rapidamente. Martin não sabia ainda ao certo para onde ir, mas sabia que se sentiria mais seguro no meio de uma multidão.

— Vamos para a Rua 42 — falou ele por fim.

— Por que não me disse antes? — queixou-se o motorista. — Poderíamos ter virado em Riverside Drive.

— Não — disse Philips. — Não quero ir por este caminho. Prefiro ir pelo East Side.

— Isso vai custar-lhe cerca de 10 dólares.

— Está bem!   — retrucou Martin,   puxando   da   carteira   e mostrando   10 dólares ao motorista, que o estava espiando pelo espelho retrovisor.

Quando o carro tornou a andar, Philips deixou-se relaxar. Ainda não podia acreditar no que havia acontecido nas últimas 12 horas. Era como se todo o mundo tivesse desabado. Teve de con­ter seu impulso natural de ir à Polícia pedir ajuda. Por que o tinham enviado ao FBI? E por que cargas-d'águas queria o Bureau aniquilá-lo, sem fazer nenhuma pergunta? Quando o carro passou correndo pela Segunda Avenida, sua sensação de terror retornou.

A Rua 42 oferecia o anonimato de que Philips necessitava. Seis horas antes a rua teria sido estranha e ameaçadora. Agora, o mesmo ambiente era reconfortante. Aquela gente usava suas psico­ses de frente. Não as escondiam por detrás de uma fachada de normalidade. A turma perigosa podia ser reconhecida e evitada.

Martin comprou um suco de laranja dos grandes e tomou-o todo. A seguir bebeu outro. Então caminhou pela Rua 42. Pre­cisava pensar. Tinha de haver uma explicação racional para tudo aquilo. Como médico que era, sabia que por mais absurdos sinto­mas que uma enfermidade apresentasse, podiam ser traçados e levar a uma única doença. Ao se aproximar da Quinta Avenida, Philips entrou no pequeno parque junto à biblioteca. Encontrou um banco vazio e sentou-se. Arrumando o casaco sujo à sua volta, pôs-se tão confortável quanto possível e tentou passar em revista os acontecimentos da noite. Tudo começara no hospital...

O Sol já ia bem alto, quando Martin acordou. Olhou em der-redor para ver se alguém o estava observando. Agora havia um bocado de gente no parque, mas ninguém parecia prestar-lhe aten­ção. Tinha esquentado e ele estava suando profusamente. Ao le­vantar-se tomou consciência de seu cheiro desagradável. Ao sair do parque consultou o relógio e ficou chocado ao ver que eram dez e meia.

Alguns quarteirões adiante, descobriu uma casa de café grego. Embolando o casaco velho, meteu-o debaixo da mesa. Ele estava faminto e pediu ovos, batatas fritas, bacon, torradas e café. Usou o pequeno lavatório dos homens, mas resolveu não se limpar. Vendo-o como estava, jamais alguém imaginaria que ele fosse um médico. Se estava sendo procurado, não poderia haver melhor dis­farce.

Depois de tomar o café, achou a lista amassada que tinha feito das cinco pacientes: Marino, Lucas, Collins, McCarthy e Lindquist. Seria possível que essas pacientes e suas histórias estivessem relacionadas com o estranho fato de ele estar sendo perseguido pelas autoridades? Mas, se assim fosse, por que estavam tentando matá-lo; e o que tinha acontecido àquelas mulheres? Haviam sido assassinadas? Poderia o caso ter alguma relação com o sexo e o submundo? Se tinha, onde entrava nele a radiação? E por que estava envolvido o FBI? Talvez se tratasse de uma conspiração nacional, afetando os hospitais em todo o país.

Tomando mais café, Martin estava certo de que a resposta ao enigma se encontrava no Centro Médico da Universidade Hobson, mas sabia que era um dos lugares para onde as autoridades esperavam que ele fosse. Em outras palavras, o hospital era o lugar mais perigoso para Martin e, no entanto, o único onde ele tinha uma oportunidade de calcular o que estava acontecendo. Deixando seu café, Philips dirigiu-se para o telefone público. Sua primeira chamada foi para Helen.

— Dr. Philips! Que prazer em ouvi-lo. Onde está o senhor? — Sua voz estava tensa.

— Estou fora do hospital.

— Eu já imaginava isso. Mas onde?

— Por quê? — indagou Martin.

— Só queria saber — respondeu Helen.

— Diga-me   —   falou   Martin.   —   Alguém   me   procurou... como... por exemplo... o FBI?

— Por que haveria o FBI de procurá-lo?

Agora Martin estava razoavelmente certo de que Helen se achava sob vigilância. Não era próprio dela responder uma per­gunta com outra, especialmente tão absurda quanto a que ele fi­zera sobre o FBI. Em circunstâncias normais ela teria simplesmente dito que Martin estava maluco. Sansone ou um de seus agentes tinha de estar ali com ela. Philips desligou abruptamente. Tinha de pensar num outro meio de obter os prontuários médicos e outras informações que queria de seu escritório.

A seguir, Martin telefonou para o hospital e pediu que cha­massem a Dra. Denise Sanger pelo sistema de alto-falantes. A última coisa que ele queria era que ela fosse à Clínica Ginecoló­gica. Não conseguiu, porém, localizá-la e teve medo de deixar um recado. Desligando, fez uma chamada final para Kristin Lindquist. A companheira de quarto de Kristin atendeu ao primeiro toque da campainha, mas quando Philips se identificou e perguntou sobre Kristin, a moça disse que não podia dar-lhe nenhuma informação e preferia que ele não telefonasse mais. E a seguir desligou.

Retornando à mesa do café, Philips desamassou a lista das pacientes, estendendo-a à sua frente. Tomando de uma caneta es­creveu: “Forte radioatividade nos cérebros das jovens (em outras áreas?); esfregaços de Papanicolau dados como anormais quando eram normais; e sintomas neurológicos de algum modo como os da esclerose múltipla.” Philips fitou o que havia acabado de escrever, com a mente girando em rápidos círculos. Depois escreveu: “Sintomas neurológicos — Ginecologia — Polícia — FBI”, e mais adiante “Necrofilia de Werner”. Não parecia haver qualquer meio possível de relacionar essas coisas, mas era como se a Ginecologia estivesse no centro. Se ele pudesse descobrir por que aqueles esfregaços de Papanicolau eram anotados como anormais, talvez achasse alguma coisa.

De repente, foi envolvido por uma onda de desespero. Era óbvio que estava lutando contra algo superior às suas forças. Seu antigo mundo com as dores de cabeça diárias não mais parecia tão terrível. Com muita satisfação, ele se contentaria com uma pequena rotina aborrecida, se pudesse ir para a cama à noite com Denise em seus braços. Não era religioso, mas viu-se procurando barga­nhar com Deus: se Ele o salvasse desse pesadelo, Martin nunca mais tornaria a se queixar da vida.

Baixou os olhos para o papel e viu que seus olhos tinham-se enchido de lágrimas. Por que, com tanta gente para perseguir, a Polícia estava em seu encalço? Não fazia sentido.

Voltou ao telefone e tentou de novo contactar Denise, porém ela não respondia ao chamado dos alto-falantes do hospital. De­sesperado, telefonou para a Clínica Ginecológica e falou com a recepcionista.

— Denise Sanger já compareceu à consulta marcada?

— Ainda não — retrucou a recepcionista. — Estamos espe­rando por ela a qualquer momento.

Martin pensou rapidamente antes de responder.

— Aqui fala o Dr. Philips. Quando ela chegar, diga-lhe que cancelei a consulta e que ela deve procurar-me.

— Direi — retrucou a recepcionista, e Martin sentiu que ela ficou bastante espantada.

O médico voltou para o pequeno parque e sentou-se. Achava-se incapaz de tomar qualquer decisão sensata. Para um homem que acreditava na ordem e na autoridade, não ser capaz de entrar em contato com a Polícia, depois de ter sido alvejado com um tiro, aquilo parecia o cume da irracionalidade.

A tarde passou-se num sono intermitente e uma vigília con­fusa. Sua falta de decisão tornou-se em si mesma uma decisão. Começou a hora do rush que foi crescendo. Depois, a multidão co­meçou a se dissipar e Martin voltou ao café para jantar. Passava um pouco das seis.

Pediu um prato de carne e tentou chamar de novo Denise, en­quanto a comida ia sendo preparada. Ainda desta vez a médica não foi encontrada. Quando terminou de comer, decidiu experi­mentar telefonar para o apartamento dela, imaginando se a Po­lícia sabia o bastante para mantê-la em vigilância.

Denise atendeu o telefone no primeiro toque.

— Martin? — Sua voz estava desesperada.

— Sim, sou eu.

— Graças a Deus! Onde você está? Martin ignorou a pergunta e disse:

— Onde você tem estado? Tenho chamado por você o dia todo.

— Não me tenho sentido bem. Fiquei em casa.

— Você não comunicou isso à telefonista do hospital...

— Eu sei que eu... — De repente, a voz de Sanger mudou:

— Não venha... — gritou ela.

Sua voz foi sufocada, e Philips pôde ouvir um ruído abafado de luta. O coração dele veio-lhe à boca.

— Denise! — gritou ele.

Todo mundo no café ficou estupefato; todas as cabeças se voltaram na direção do médico.

— Philips, aqui é Sansone. — O agente tinha pegado o tele­fone. Martin ainda podia ouvir Denise tentando gritar ao fundo.

— Espere um instante, Philips — pediu Sansone. Depois, afastan­do-se do telefone falou: — Saia daqui e fique quieta. — E retor­nando à linha, disse: — Escute, Philips...

— Que diabo está acontecendo aí, Sansone? — gritou Philips.

— O que você está fazendo com Denise?

— Acalme-se, Philips. A garota está muito bem. Estamos aqui para protegê-la. O que aconteceu a você no Mosteiro na noite pas­sada?

— O que aconteceu comigo? Você está maluco? Sua gente quis acabar comigo.

— Isso é ridículo, Philips. Nós sabíamos que não era você que estava no pátio. Pensamos que eles já o tivessem pegado.

— Quem são eles? — perguntou Philips, assustado.

— Philips! Não posso falar sobre isso pelo telefone.

— Basta dizer-me que diabo está acontecendo.

As pessoas que se achavam no café ainda estavam imóveis. Eram nova-iorquinos e acostumados a todos os tipos de eventos es­tranhos, porém não em seu café de bairro.

Sansone estava frio e indiferente.

— Lamento, Philips. Você tem de vir aqui, e agora. Entregue a si   mesmo,   você   está   apenas   complicando   nosso problema.   E você já sabe que há uma porção de vidas inocentes em jogo.

— Duas horas — berrou Philips. — Estou a duas horas da cidade.

— Está bem, duas horas, mas nem um segundo a mais. Seguiu-se um estalido final, e a ligação foi cortada.

Philips entrou em pânico. Em um segundo, sua indecisão havia desaparecido. Atirou uma nota de cinco dólares sobre o balcão e saiu correndo para a rua na direção da entrada do Metrô na Oi­tava Avenida.

Ia ao Centro Médico. Não sabia o que faria uma vez que chegasse lá, mas ia para o hospital. Dispunha de duas horas e pre­cisava de algumas respostas. Havia uma chance de Sansone estar falando a verdade. Talvez pensassem que ele fora tomado por al­guma força desconhecida. Philips, porém, não tinha certeza, e a incerteza o aterrorizava. Sua intuição dizia-lhe que agora Denise estava em perigo.

O trem que vinha da cidade só tinha lugar em pé, muito em­bora já houvesse passado a hora do rush, mas a viagem fez bem a Philips. Atenuou seu pânico e permitiu-lhe usar sua inteligência essencial. Quando saltou do trem, já sabia como entrar no Centro Médico e o que faria quando estivesse lá dentro.

Martin acompanhou a multidão do trem até à rua, e encami­nhou-se para sua primeira parada: uma loja de bebidas. O cai­xeiro deu uma olhadela na aparência desalinhada de Philips, saiu de detrás do balcão e tentou pôr o médico para fora. Deteve-se, quando Martin lhe mostrou dinheiro.

Levou 30 segundos para pegar e pagar uma garrafa de meio litro de uísque. Saindo da Broadway para uma rua lateral, Martin descobriu uma alameda cheia de latas de lixo. Ali, ele destampou a garrafa de uísque, tomou um bom gole da bebida e gargarejou com ela. Engoliu uma pequena porção e cuspiu a maior parte no chão. Usando o uísque como água-de-colônia, borrifou o rosto e o pescoço, e depois enfiou a garrafa meio cheia no bolso do ca­saco. Cambaleando, passou pela maior parte das latas de lixo, pe­gando uma que estava por trás. Achava-se cheia de areia, prova­velmente para ser colocada na alameda durante o inverno. Cavou um buraco nela e enterrou sua carteira, pondo o resto do dinheiro no mesmo bolso em que se achava o uísque.

Sua próxima parada foi numa pequena porém movimentada mercearia. Ao entrar, as pessoas se afastaram dele. A casa estava muito cheia, e Philips teve de abrir caminho por entre os fregueses até achar a um local mais vazio de onde podia ver as caixas re­gistradoras e o balcão.

— Ai — gritou Philips, tossindo sufocado. Cambaleou, caindo ao chão e derrubando uma pilha de latas de feijão em conserva. Ele se contorcia como se estivesse sentindo uma dor terrível, en­quanto as latas de feijão rolavam em todas as direções. Quando um freguês se curvou sobre ele para perguntar se estava bem, Martin falou com uma voz dissonante:

— É a dor. É o meu coração!

Momentos depois, chegou a ambulância. Colocaram-lhe uma máscara de oxigênio no rosto e um cabo de ECG foi ligado ao peito dele durante a curta viagem até o Centro Médico da Univer­sidade Hobson. Seu ECG normal já havia sido preliminarmente analisado pelo rádio, e tinha sido decidido que não havia necessi­dade de drogas cardíacas.

Quando os auxiliares de enfermagem o empurraram para den­tro da Unidade de Emergência, Martin viu de relance vários po­liciais em pé na plataforma, porém eles mal se dignaram olhá-lo. Ele foi carregado para um dos principais quartos da Unidade de Emergência e transferido para um leito. Uma das enfermeiras deu uma busca em seus bolsos à procura de uma identificação enquanto o residente fazia outro ECG. Uma vez que o traçado se revelou normal, a equipe dos cardiologistas começou a se dispersar, dei­xando o interno para tomar conta do caso.

— Como vai a dor, companheiro? — perguntou ele, debruçando-se sobre Philips.

— Preciso de um pouco de Maalox — engrolou Martin. — Às vezes, quando tomo bebida barata preciso de Maalox.

— Isso me parece bom — disse o médico.

Philips recebeu o antiácido Maalox de uma empedernida en­fermeira de cerca de 35 anos que fez tudo menos esbofeteá-lo pelo miserável estado em que ele se encontrava. Ela redigiu uma pe­quena observação clínica, e Martin disse que se chamava Harvey Hopkins. Tinha sido seu companheiro de quarto na faculdade. De­pois, a enfermeira disse que lhe dariam uma oportunidade para relaxar durante alguns minutos a fim de ver se a dor do peito vol­tava. E puxou a cortina que cercava o leito.

Philips aguardou vários minutos, e a seguir saiu da cama por uma de suas extremidades. Sobre uma maca de rodas da Unidade de Emergência encostada na parede descobriu um aparelho de gi­lete e uma pequena barra de sabão usados para a limpeza de fe­ridas. Pegou também várias toalhas, um gorro e uma máscara ci­rúrgica. Assim armado, espreitou para fora das cortinas.

Como de hábito àquela hora da noite, a Unidade de Emergên­cia era um desesperado mar de confusão. A fila de pacientes a serem registrados no balcão em frente ia quase até a entrada, e as ambulâncias continuavam a chegar a intervalos regulares. Nin­guém reparou em Martin, quando ele passou pelo corredor central e abriu rapidamente a porta cinzenta que ficava do outro lado do balcão assediado pela multidão. Na sala de estar havia apenas um médico, e este se achava absorto no exame de um ECG, quando Philips passou na direção dos chuveiros.

Rapidamente, tomou uma ducha e barbeou-se, deixando suas roupas no canto da sala. Junto a uma das pias, encontrou uma pilha de material e roupas cirúrgicas que consistiam o vestuário favorito da turma da Emergência. Vestiu uma camisa e uma calça, cobrindo a cabeça molhada com um gorro cirúrgico. Chegou até a amarrar uma máscara no rosto. Não era raro que o pessoal do hospital usasse máscaras fora das salas de operação, principalmente quando sofriam de um resfriado.

Mirando-se no espelho, Philips convenceu-se de que era pre­ciso que alguém o conhecesse muitíssimo bem para identificá-lo. Não somente tinha conseguido entrar no hospital, como parecia pertencer a ele. Quanto a Harvey Hopkins, os pacientes da Uni­dade de Emergência estavam sempre escapulindo e dando o fora. Ele já havia gasto uma hora.

Saindo da sala de estar, Philips atravessou a Unidade de Emergência e passou correndo por mais dois policiais. Usou as escadas que ficavam por trás do restaurante para atingir o segundo andar. Ele queria um detector de radiação, mas achou que era muito perigoso buscar o que estava em seu gabinete, e teve de sair procurando pela seção de radioterapia até encontrar um outro. Depois, desceu para o andar principal e partiu correndo para o edifício das clínicas.

Os elevadores eram antigos e precisavam de cabineiros para ser manobrados, cabineiros que já haviam completado a jornada de trabalho, de modo que Martin teve de subir quatro lances de escadas para a Ginecologia. Enquanto se achava no Metrô, ensanduichado entre dois infelizes comerciantes, ele havia decidido que a radiação podia estar relacionada com a Clínica Ginecológica, mas, agora que havia chegado com o detector de radiação na mão, sua resolução começou a claudicar. Ele não fazia idéia do que estava procurando.

Passando pela sala de espera principal da Ginecologia, Philips virou e entrou na clínica menor da universidade. A turma da lim­peza ainda não havia chegado, e a área estava cheia de cinzeiros transbordantes e de papéis. Tudo parecia muito inocente e normal naquela luz mortiça.

Philips experimentou a mesa da recepcionista mas estava tran­cada. Tentando as duas portas que ficavam por trás da mesa, viu que toda a área se achava trancada. Mas as fechaduras eram de tipo simples, das que exigiam que a chave fosse inserida na própria maçaneta. Um cartão de plástico que se achava sobre a mesa da recepcionista foi suficiente para abrir uma delas. Martin entrou, fechou a porta e acendeu as luzes.

Encontrava-se no vestíbulo onde tinha falado com o Dr. Harper. À esquerda, havia duas salas de exame, e à direita o labora­tório ou sala dos aparelhos. Martin escolheu primeiro as salas de exame. Controlando o detector com muito cuidado, entrou em cada uma das salas, introduzindo o aparelho em todos os armários, nos recessos dos mesmos, chegando até a testar as próprias mesas de exame. Nada. O local estava limpo. No laboratório fez o mesmo, começando pelos armários que ficavam por cima dos balcões, abrindo gavetas, e espiando dentro de caixas. No fim da sala di­rigiu-se para o armário dos grandes instrumentos. Tudo estava ne­gativo.

A primeira reação veio da cesta de lixo. Era uma leitura muito fraca e totalmente inofensiva, mas não obstante tratava-se de radiação. Relanceando os olhos por seu relógio, Philips notou que o tempo estava-se escoando rapidamente. Dentro de meia hora teria de chamar o apartamento de Denise. Decidiu que só se apre­sentaria depois de ter certeza de que Sansone não a estava pren­dendo.

Com a leitura positiva obtida na cesta de lixo, Martin re­solveu passar pelo laboratório mais uma vez. Nada encontrou até retornar ao armário embutido. As prateleiras inferiores estavam cheias de roupas de cama e aventais do hospital, enquanto as su­periores abrigavam uma mistura de utensílios de laboratório e de escritório. Debaixo das prateleiras havia um cesto cheio de roupas sujas, que registraram outra fraca leitura positiva, quando ele levou o detector quase até o chão.

Martin retirou a roupa suja do cesto e passou o detector por cima dela. Introduzindo o detector no cesto vazio, de novo Philips obteve uma fraca resposta perto da base. Chegou até o fundo e correu a mão em derredor do cesto. As paredes e o fundo do objeto eram de madeira pintada e pareciam sólidos. Com o punho bateu no fundo e sentiu uma vibração. Agindo com calma passou o detector em derredor da área. Ao atingir o canto mais distante, o fundo inclinou-se levemente e retornou a seu lugar. Insistindo no mesmo local, Martin levantou o fundo do cesto e olhou embaixo. Havia duas caixas para guardar material com o familiar logotipo de advertência contra a radiação.

As duas caixas tinham rótulos indicando que provinham dos laboratórios Brookhaven, que eram a fonte de todos os tipos de isótopos usados em Medicina. Só um dos rótulos era inteiramente legível. A caixa continha 2-[18F] fluoro-2 deoxy-D-glucose. O outro rótulo estava parcialmente rasgado, embora se tratasse tam­bém de um isótopo da deoxi-D-glucose.

Depressa, Martin abriu as caixas. A primeira, a de rótulo le­gível, era moderadamente radioativa. Era a outra cai^a que tinha uma significativamente espessa camada protetora de chumbo que botava o detector de radiação maluco. Fosse o que fosse, era muito quente. Philips fechou e selou o recipiente. Depois tornou a em­pilhar a roupa de cama dentro do cesto e fechou a porta.

Martin jamais ouvira falar dos dois compostos, porém o sim­ples fato de estarem na Clínica Ginecológica era motivo suficiente para torná-los altamente suspeitos. O hospital mantinha controles extremamente estritos no que dizia respeito ao material radioativo que era empregado na radioterapia, em alguns trabalhos de diagnós­tico e pesquisas controladas. Mas nenhuma dessas categorias se apli­cava à Clínica Ginecológica. O que Philips precisava saber era para que se usava a deoxy-glucose radioativa.

Transportando o detector de radiação, Philips desceu as es­cadas da clínica para o porão. Uma vez no sistema de túneis, teve de andar mais devagar para não assustar os grupos de estudantes de Medicina. Mas, ao atingir a nova Escola de Medicina, acelerou seus passos, chegando à biblioteca totalmente sem fôlego.

— Deoxy-glucose — falou ele, ofegante. — Preciso ver isso. Onde?

— Eu não sei — respondeu o bibliotecário, espantado.

— Merda! — exclamou Philips, virando-se e dirigindo-se para o catálogo das fichas.

— Tente a seção de referências — disse o homem.

Tomando a direção oposta, Philips foi até a seção dos perió­dicos onde a mesa de referências era ocupada por uma garota que parecia ter cerca de 15 anos. Ela havia ouvido o tumulto e obser­vava a aproximação de Martin.

— Rápido... — exclamou Philips. — Deoxy-glucose. Onde posso pesquisar isso?

— De que se trata? — indagou a moça, olhando Martin alar­mada.

— Deve ser algum tipo de açúcar, feito da glucose. Olhe, não sei o que é. É por isso que preciso pesquisar e fazer uma consulta.

— Acho que o senhor podia começar pelo Sumário de Quí­mica e tentar o Índice de Remédios, depois...

— O Sumário de Química! Onde está isso?

A moça apontou para uma longa mesa que se apoiava numa estante de livros. Philips correu para lá e puxou o índice. Estava com medo de olhar para o relógio. Encontrou a referência como um subtítulo da glucose, que lhe dava o volume e o número da página. Quando achou o artigo, seu arrebatamento transformava as palavras numa mistura sem sentido. Precisou acalmar-se e con­centrar-se, e ao fazê-lo aprendeu que a deoxy-glucose era tão se­melhante à glucose, o combustível biológico do cérebro, que era transportado através da barreira sanguínea do cérebro e colhida pelas células nervosas ativas. Uma vez, porém, dentro das células nervosas ativas ela não pode ser metabolizada como a glucose, e armazenada. Bem no fim do artigo lia-se: “... radioativamente marcada, a deoxy-glucose tem-se revelado uma grande promessa para a pesquisa cerebral.”

Martin fechou o livro com força, com as mãos tremendo. Todo o caso agora estava começando a fazer sentido. Alguém no hospital estava realizando experiências com pesquisas cerebrais em seres humanos que de nada suspeitavam! “Mannerheim!”, pensou Mar­tin, tão cheio de raiva que era capaz de sentir o gosto do rancor.

Martin não era químico, mas se lembrava o bastante para saber que, se um composto como a deoxy-glucose fosse suficientemente radioativado, poderia ser injetado numa pessoa e usado para es­tudar sua absorção pelo cérebro. Se fosse muito radioativo, como era o material guardado na caixa que estava na seção de Gineco­logia, então mataria as células cerebrais que o absorvessem. Se alguém desejasse estudar uma passagem de células nervosas no cé­rebro, podia destruí-las seletivamente com este método, e fora na destruição dos caminhos dos nervos nos cérebros animais que se fundara a ciência da neuroanatomia. Para um cientista suficiente­mente cruel, bastava apenas empregar o mesmo método nos seres humanos. Philips estremeceu. Somente alguém tão egocêntrico quanto Mannerheim poderia ser capaz de ignorar os aspectos morais envolvidos neste procedimento.

Martin ficou esmagado por sua descoberta. Não tinha idéia de como Mannerheim conseguira a colaboração da Ginecologia, mas eles precisavam ser investigados. E o Diretor do Hospital tinha de saber também de alguma coisa. Por que outra razão iria Drake defender Mannerheim, o cirurgião considerado a prima-dona, o semideus do hospital? Martin titubeou ante as apavorantes impli­cações.

Sabia que Mannerheim era fortemente apoiado pelo governo; milhões e milhões de dólares do dinheiro público iam para seus trabalhos de pesquisas. Seria aquilo o motivo da intervenção do FBI? Teria sido Martin acusado de pôr em perigo um grande pro­jeto apoiado pelo governo? O FBI podia muito bem não saber que o grande projeto implicava experiências com seres humanos. Martin não era nenhum ingênuo, mas admitia que, às vezes, a mão direita não tinha idéia do que a mão esquerda estava fazendo. Mas era terrivelmente lamentável que o sacrifício de vidas humanas para a pesquisa médica pudesse ser apoiado sem o saber pelo governo.

Lentamente, Martin virou o pulso para ver o mostrador do relógio. Faltavam cinco minutos para que ele chamasse Denise. Philips não tinha certeza de que os agentes não a machucariam, mas depois do tratamento que tinham dado aos vagabundos não estava disposto a arriscar nada. Pôs-se a imaginar o que poderia fazer. Sabia que, se conseguisse arranjar uma pessoa poderosa para intervir, toda a trama poderia desfazer-se. Mas quem? Tinha de ser alguém fora da hierarquia do hospital, mas bem informado sobre o hospital e sua estrutura. O Secretário de Saúde? Alguém do gabinete do Prefeito? O Chefe de Polícia? Martin estava com medo que esta gente já houvesse ouvido tantas mentiras a seu respeito que seus avisos cairiam em ouvidos moucos.

De repente, Philips pensou em Michaels, o garoto maravilha. Ele poderia entrar em contato com o Reitor da universidade! Sua palavra seria suficiente para propiciar um inquérito. Poderia fun­cionar. Martin correu para um dos telefones e pediu uma linha externa. Enquanto discava o número de Michaels, rezava para que ele estivesse em casa. Quando a voz familiar do cientista atendeu, Martin criou novo alento.

— Michaels, estou numa terrível enrascada.

— O que há de errado? — perguntou Michaels. — Onde você está?

— Não tenho tempo para explicar; descobri a existência de uma horrorosa pesquisa aqui no hospital que, segundo parece, o FBI está protegendo. Não me pergunte por quê.

— O que posso fazer?

— Chame o Reitor. Diga-lhe que há um escândalo envolvendo experiências com vidas humanas. Isso será o bastante, a menos que o Reitor se ache implicado. Se assim for, que os céus nos ajudem a todos nós. Porém, o problema mais imediato é Denise. Ela está sendo detida pelo FBI em seu apartamento. Dê um jeito para que o Reitor da universidade fale com Washington e consiga sua libe­ração.

— E quanto a você?

— Não se incomode comigo. Estou bem. Estou no hospital.

— Por que não vem aqui para o meu apartamento?

— Não posso. Estou indo para o laboratório da Neurocirurgia. Encontro-o no seu laboratório de pesquisa de computadores em quinze minutos. Apresse-se!

Philips desligou e discou para o apartamento de Denise. Al­guém tirou o fone do gancho mas não falou.

— Sansone — gritou Martin. — Sou eu, Philips.

— Onde está você, Philips? Estou com a desagradável sensa­ção de que você não está levando sua situação a sério.

— Mas estou. Encontro-me ao norte da cidade. Estou indo. Preciso de mais tempo. Vinte minutos.

— Quinze minutos — disse Sansone. A seguir, desligou.

Martin saiu correndo da biblioteca com uma sensação de aper­to. Agora estava mais do que certo de que Sansone mantinha De­nise como refém para que ele se apresentasse. Queriam matá-lo e, provavelmente, a matariam para pegá-lo. Tudo dependia de Mi­chaels. Tinha de conseguir uma autoridade alheia ao caso. Porém, Martin sabia que   Michaels precisava de mais informações para sustentar suas denúncias. Com toda a certeza Mannerheim tinha uma história para despistar. Martin queria ver quantos espécimes de cérebros na Neurocirurgia estavam radioativos.

Martin tomou um elevador vazio para o andar da Neurocirur­gia no edifício de pesquisas. Havia tirado o gorro cirúrgico e corria nervosamente os dedos por seu cabelo emaranhado. Restavam-lhe apenas minutos para apresentar-se no apartamento de Denise.

A porta do laboratório de Mannerheim achava-se trancada, e Martin olhou em derredor à procura de alguma coisa com que que­brar o vidro. Sua atenção foi atraída por um pequeno extintor de incêndio. Destacando-o da parede, atirou-o contra o painel de vidro da porta. Com o pé, arrancou alguns cacos restantes, e a seguir, estendendo a mão, girou o fecho.

Naquele exato momento, as portas na extremidade distante do vestíbulo abriram-se bruscamente e dois homens avançaram cor­rendo pelo corredor, ambos portando pistolas. Não pertenciam à segurança do hospital; envergavam ternos comerciais de poliéster.

Um dos homens agachou-se, segurando sua arma com ambas as mãos enquanto o outro gritava:

— Pare, Philips!

Martin jogou-se para frente, pelo vidro quebrado, para dentro do laboratório, e fora das vistas no vestíbulo. Ouviu o ruído aba­fado de um silenciador, enquanto a bala ricocheteava na moldura de metal da porta.

Ao entrar no laboratório, Martin ouviu passos pesados que ressoavam pelo vestíbulo. A sala estava às escuras, mas ele se lem­brava da disposição do aposento e correu por entre os compartimentos divididos pelo balcão. Chegou à porta do biotério, quando seus perseguidores alcançavam a porta externa. Um dos homens tocou o comutador da luz, enchendo o laboratório com um brilho fluorescente.

Martin agia excitadamente. Dentro do biotério, agarrou a gaiola que abrigava o macaco que tinha os eletrodos implantados no cé­rebro e que o transformavam num monstro furioso. O animal tentou pegar a mão de Martin e mordê-lo através da confusão dos fios. Empurrando com toda a sua força, Martin levou a gaiola para a porta do laboratório de onde podia ouvir seus perseguidores que se aproximavam. Prendendo a respiração, Martin soltou o trinco da gaiola.

Com um guincho que fez tilintar o material de vidro do labo­ratório o macaco se lançou para fora da prisão. Com um único salto alcançou as prateleiras por cima dos balcões, espalhando os instrumentos em todas as direções. Assustados com o aparecimento da fera raivosa arrastando os fios dos eletrodos, os dois homens hesitaram. Era tudo o que o animal precisava. Impulsionado por sua fúria contida, o macaco pulou da prateleira sobre o ombro do perseguidor mais próximo de Martin, rasgando a carne do homem com seus dedos poderosos, e mergulhando os dentes em seu pescoço. O outro homem tentou ajudar, mas o macaco foi rápido demais.

Martin não ficou para observar os resultados. Em vez disso, disparou pelo biotério, passando por longas fileiras de cérebros conservados, e entrou pela escadaria do poço. Desceu o mais de­pressa que pôde, saltando para os patamares, virando-se, e tornando a descer mais e mais, num esforço estonteante.

Ao ouvir a porta da escadaria que penetrava no poço abrir-se com estrépito, ele se colou à parede mas não diminuiu a veloci­dade de sua descida. Embora não tivesse a certeza de poder ser visto, não parou para comprovar. Ele devia ter sabido que o labo­ratório de Neurocirurgia de Mannerheim tinha de ser guardado. Martin ouviu fortes passos que começavam a descer as escadas, porém estavam muitos andares acima, e ele alcançou o porão e entrou pelo túnel sem ouvir mais tiros de pistola.

As dobradiças das velhas portas duplas de vaivém da antiga Escola de Medicina gemeram quando Philips passou a toda por elas. Depois de subir correndo as escadas curvas de mármore, Philips entrou em desabalada carreira pelo corredor parcialmente demolido até alcançar a entrada do velho anfiteatro. Então parou abruptamente. Estava escuro, o que significava que Michaels ainda não tinha chegado. Atrás de si reinava o silêncio. Ele deixara seus perseguidores para trás. Mas agora as autoridades sabiam que ele se achava no complexo do Centro Médico, e era apenas uma questão de tempo para que fosse encontrado.

Martin prendeu a respiração. Se Michaels não chegasse logo, ele precisava ir ao apartamento de Denise, por mais impotente que se sentisse. Ansioso, empurrou a porta do anfiteatro. Para surpresa sua ela se abriu. Ele entrou e foi envolvido pela escuridão fria.

O silêncio foi quebrado por um estalido em tom baixo, fami­liar a Philips desde os seus dias de estudante. Era o som que fazia o sistema de iluminação quando ativado. E justamente como na­queles velhos dias, o aposento se iluminou. Percebendo um movi­mento com o canto do olho, Martin baixou o olhar para o fundo do anfiteatro. Michaels estava acenando para ele.

— Martin. Que alívio vê-lo.

Philips agarrou o corrimão à sua frente a fim de prosseguir pela passagem horizontal que corria por entre as fileiras de assen­tos, quando o anfiteatro fora usado como sala de palestras. Mi­chaels havia-se colocado na base da escada e acenou para que Philips descesse.

— Conseguiu encontrar o Reitor? — gritou Philips. A visão de Michaels dava-lhe o primeiro   lampejo   de   esperança que ele tinha há horas.

— Tudo está bem — berrou Michaels. — Desça até aqui. Martin começou a descer a escada que era estreita e entrecruzada com os cabos dos componentes eletrônicos que ficavam onde outrora tinham estado os assentos. Três homens esperavam junta­mente com Michaels. Aparentemente, ele já havia conseguido au­xílio.

— Temos de fazer alguma coisa por Denise imediatamente, pois, eles...

— Ela está sendo cuidada — gritou Michaels.

— Ela está bem? — perguntou Martin, interrompendo por um instante sua descida.

— Está ótima e em segurança. Desça até aqui.

Quanto mais se aproximava do fundo do anfiteatro, mais equi­pamento havia, e mais difícil se tornava evitar os fios.

— Mal consegui fugir de dois homens que atiraram em mim no laboratório de Neurocirurgia. — Martin ainda estava ofegante e sua voz saía aos arrancos.

— Aqui   você   está   seguro —   disse   Michaels, observando o amigo à medida que este descia a escada.

Quando chegou no final da escada, atravancada, Martin olhou para o rosto de Michaels.

— Não tive tempo para descobrir nada na Neurocirurgia — disse Martin.

Agora, ele podia ver os outros três homens. Um era o sim­pático jovem estudante, Carl Rudman, que ele havia encontrado em sua primeira visita ao laboratório. Não pôde identificar os outros dois.   Envergavam macacões inteiriços e negros de pára-quedistas

Ignorando o último comentário de Martin, Michaels virou-se para um dos estranhos.

— Está satisfeito agora? Eu não disse que conseguiria trazê-lo aqui?

O homem, que não tinha tirado os olhos de cima de Philips, falou:

— Você o trouxe, mas vai poder controlá-lo?

— Acho que sim — disse Michaels.

Martin observava aquele estranho diálogo, com os olhos indo de Michaels para o homem que envergava o macacão negro. De repente, ele reconheceu o rosto. Era o homem que havia matado Werner!

— Martin — falou Michaels com toda a calma, quase que paternalmente. — Tenho algumas coisas para lhe mostrar.

— Dr. Michaels, posso garantir que o FBI não agirá precipi­tadamente — interrompeu o estranho. — Porém, o que a CIA fizer não está   sob   meu   controle.   Espero   que   compreenda   isso,   Dr Michaels.

— Sr. Sansone — disse Michaels, virando-se. — Estou certo de que a CIA não c jurisdição sua. Preciso de mais algum tempo com o Dr. Philips. — Tornando a voltar-se para Philips, falou: — Martin, quero mostrar-lhe uma coisa. Vamos. — E deu um passo na direção da porta que levava ao anfiteatro vizinho.

Martin estava paralisado. Suas mãos agarravam com força o corrimão que rodeava o anfiteatro. O alívio se transformara em perplexidade, e com esta havia retornado um medo profundo.

— O que se está passando aqui? — perguntou ele, com uma sensação de terror. Falava devagar, pronunciando cada palavra uma a uma.

— É isso o que lhe quero mostrar — prosseguiu Michaels. — Vamos!

— Onde está Denise? — Philips não movia um músculo.

— Ela está perfeitamente segura. Acredite-me. Venha. — Michaels recuou uns passos até Philips e agarrou seu punho a fim de encorajá-lo. — Deixe-me mostrar-lhe umas coisas. Relaxe. Você verá Denise dentro de poucos minutos.

Philips deixou-se levar, passando por Sansone e entrando no outro anfiteatro. O jovem estudante tinha ido na frente deles e acendera a luz. Martin viu um outro anfiteatro cujos assentos tam­bém tinham sido removidos. Havia ali uma enorme tela feita de milhões de células fotorreceptoras sensíveis à luz cujos fios entra­vam numa unidade de processamento. Deste primeiro processador emergia um significativo número menor de fios, que se reuniam em dois cabos que entravam em dois computadores. Destes saíam fios para outros computadores que se uniam, entrecruzando-se. O con­junto enchia a sala.

— Faz alguma idéia do que você está olhando? — perguntou Michaels.

Martin meneou a cabeça.

— Você está olhando para o primeiro modelo computadorizado do sistema visual humano. É grande, primitivo segundo nossos pa­drões atuais, mas surpreendentemente funcional. As imagens são Iampejadas na tela e os computadores que você vê aqui associam a informação. — Michaels fez um largo gesto com as mãos. — O que você está vendo, Martin, se assemelha com aquela primeira pilha atômica que eles construíram em Princeton. Esta vai ser uma das maiores descobertas científicas da história.

Martin olhava para Michaels. Talvez o homem estivesse louco.

— Nós criamos o computador da quarta geração! — disse Michaels, dando um tapa nas costas de Philips. — Escute. A pri­meira geração constituiu-se dos primeiros computadores que não eram senão meros calculadores. A segunda geração surgiu com os transistores. A terceira geração valeu-se da   microminiaturização.

Fizemos nascer a quarta geração, e aquele pequeno processador que você tem em seu escritório é uma de nossas primeiras aplicações. Sabe o que fizemos?

Philips tornou a menear a cabeça. Michaels estava todo exci­tado.

— Criamos a verdadeira inteligência artificial.   Fabricamos computadores que pensam. Eles aprendem e raciocinam. Tinha de acontecer, e nós o fizemos!

Michaels agarrou o braço de Martin e puxou-o para o saguão que unia os dois velhos anfiteatros. Ali, entre as duas salas de con­ferências, achava-se a porta que dava para os antigos laboratórios de Microbiologia e Fisiologia. Quando Michaels a abriu, Martin viu que o interior tinha sido reforçado com aço. Atrás, havia uma segunda porta. Estava também reforçada e bem segura. Michaels destrancou-a com uma chave especial e abriu-a. Foi como entrar numa abóbada.

Martin cambaleou ante o impacto do que viu. Os velhos la­boratórios com seus pequenos compartimentos e mesas de expe­riência de mármore tinham sido removidos. Philips encontrou-se dentro de um aposento com cerca de 30 metros de comprimento e sem janelas. No centro havia uma fileira de enormes cilindros de vidro cheios de um líquido claro e límpido.

— Esta é nossa preparação mais valiosa e produtiva — disse Michaels, batendo de leve ao lado do primeiro cilindro. — Agora sei que sua primeira impressão será emocional. Assim aconteceu com todos nós. Mas, acredite-me, as recompensas valem o sacrifício.

Martin começou a andar devagar em torno do recipiente. Media pelo menos 1,80 m de altura e cerca de 90 cm de diâmetro. Dentro dele, imerso no que Martin mais tarde soube ser fluido cérebro-espinhal, estavam os restos vivos de Katherine Collins. Ela flu­tuava numa posição sentada, com os braços suspensos por sobre a cabeça. Um aparelho de respiração funcionava indicando que ela estava viva. Mas seu cérebro tinha sido completamente exposto Não havia crânio. A maior parte do rosto tinha desaparecido exceto os olhos, que haviam sido dissecados, liberados e protegidos com lentes de contato. De seu pescoço, projetava-se um tubo endotra­queal.

Seus braços também tinham sido cuidadosamente dissecados para se exporem as terminações dos nervos sensoriais. Essas ter­minações nervosas se entrelaçavam atrás como os fios de uma aranha em conexão com eletrodos enterrados dentro do cérebro.

Philips deu uma volta completa em torno do cilindro. Uma tremenda sensação de fraqueza o envolveu e suas pernas ameaça­ram ceder.

— Provavelmente você sabe — disse Michaels — que signi­ficativos progressos na ciência dos computadores, como a retroalimentação, nasceram do estudo dos sistemas biológicos. É realmente nisso que se resume a cibernética. Bem, nós demos o passo natural e fomos ao próprio cérebro humano, sem estudá-lo como a Psico­logia, que o considera como se fosse uma misteriosa caixa preta.

Philips lembrou-se, de repente, de que Michaels havia empre­gado o mesmo termo enigmático no dia em que havia presenteado Martin com o programa do computador. Agora, ele compreendia.

— Nós o temos estudado como qualquer outra máquina terri­velmente complicada. E obtivemos sucesso, além do que sonháva­mos. Descobrimos agora como o cérebro armazena suas informa­ções, de que modo realiza o processamento paralelo da informação em vez do ineficiente processamento seriado dos computadores de ontem, e como o cérebro é organizado num sistema funcionalmente hierárquico. Melhor ainda,   aprendemos como planejar e construir um sistema mecânico que reflete o cérebro e tem as mesmas fun­ções. E funciona, Martin! Funciona além de tudo que imaginamos!

Michaels tinha cutucado Philips para que continuasse a per­correr a fileira de cilindros, olhando para os cérebros expostos das jovens, todos em diferentes níveis de vivissecção. Philips parou junto ao último cilindro. A criatura em seu interior achava-se no estágio inicial da preparação. Philips reconheceu os restos do rosto. Era Kristin Lindquist.

— Agora escute — disse Michaels. — Sei que isso é chocante quando se o vê pela primeira vez. Mas esta descoberta científica é tão grande que é inconcebível contemplar os benefícios imediatos. Somente na Medicina, vai revolucionar todos os campos. Você já viu o que o nosso programa muito preliminar fará com uma radiografia de crânio. Philips, não quero que tome quaisquer decisões precipitadas, entende?

Eles haviam terminado a viagem em torno da sala, que era um casamento entre um hospital e uma instalação de computadores. No canto achava-se o que parecia ser um complicado conjunto de apoio vital, como uma unidade de tratamento intensivo. Sentado em frente dos monitores estava um homem que vestia um longo casaco branco. A chegada de Michaels e de Philips não perturbara sua concentração.

Novamente em pé diante de Katherine Collins, Philips encon­trou as palavras pela primeira vez:

— O que se estará passando no cérebro dessa criatura? — Sua voz era inexpressiva, destituída de qualquer emoção.

— Aqueles são os nervos sensoriais — dizia Michaels, agitado. — Já que o cérebro é ironicamente insensível ao seu próprio es­tado, juntamos os nervos sensoriais periféricos de Katherine aos eletrodos de modo que ela nos pode dizer quais as seções de seu cérebro que estão funcionando num dado momento. Construímos um sistema de retroalimentação para o cérebro.

— Quer dizer que esta coisa se comunica com você? — inda­gou Philips realmente surpreso.

— Claro. Aí reside a beleza de todo este conjunto. Temos usado o cérebro humano para estudar-se a si mesmo. Vou mos­trar-lhe.

Do lado de fora do cilindro de Katherine Collins, mas na mesma linha de visão de seus olhos, achava-se um aparelho que parecia um terminal de computador. Tinha uma grande tela verti­cal e um teclado, que estava eletricamente conectado a uma uni­dade dentro do cilindro bem como a um computador central no lado da sala. Michaels, pressionando as teclas, inseriu uma per­gunta no aparelho e na tela surgiu: COMO ESTÁ SE SENTINDO, KATHERINE?

A pergunta desapareceu e em seu lugar foi escrito: ÓTIMA. ESTOU IMPACIENTE PARA COMEÇAR A TRABALHAR. POR FAVOR ESTIMULE-ME.

Michaels sorriu e olhou para Martin.

— Esta moça não pode receber o suficiente. Eis por que tem estado tão bem.

— O que quis ela dizer com “estimule-me”?

— Nós implantamos um eletrodo em seu centro de prazer. É assim que a recompensamos e a encorajamos a cooperar. Quando a estimulamos, ela experimenta a sensação de cem orgasmos. Deve ser sensacional, porque ela o quer a toda hora.

Michaels digitou no aparelho: “Apenas uma vez, Katherine. Você deve ser paciente.” Em seguida, comprimiu um botão ver­melho ao lado do teclado. Philips pôde ver o corpo de Katherine arquear-se levemente e estremecer.

— Sabe — disse Michaels — foi demonstrado agora que o sistema recompensador do cérebro é a mais poderosa das forças motivadoras,   maior   ainda   do   que a autopreservação. Chegamos mesmo a descobrir um meio de incorporar este princípio em nosso mais moderno processador. Ele faz com que a máquina funcione com mais eficiência.

— Quem concebeu tudo isso? — perguntou Philips, sem acre­ditar muito em tudo o que estava vendo.

— Ninguém pode assumir o crédito ou a culpa — disse Mi­chaels. — Tudo aconteceu em etapas. Uma coisa levou à outra. Porém as duas pessoas mais responsáveis são você e eu.

— Eu? — falou Martin, como se tivesse recebido uma bofe­tada.

— Sim — prosseguiu Michaels. — Você sabe que sempre me interessei pela inteligência artificial; eis por que fiquei interessado em trabalhar com você inicialmente. Os problemas que você apre­sentava sobre a leitura das chapas de raios X cristalizaram todo o tema central chamado de “reconhecimento do padrão”. Os huma­nos eram capazes de reconhecer os padrões, porém os computado­res os mais sofisticados apresentavam uma tremenda dificuldade em fazê-lo. Pela cuidadosa análise da metodologia que você usava para avaliar as radiografias, você e eu isolamos os passos lógicos que tinham de ser solucionados eletronicamente, se desejávamos dupli­car sua função. Parece complicado, mas não é. Precisávamos saber certas coisas sobre como um cérebro humano reconhece os objetos familiares. Associei-me   com   alguns   fisiologistas   interessados em neurociência e iniciamos um estudo muito modesto usando a deoxy-glucose radioativa, que podia ser injetada em pacientes que eram, então, submetidos a um padrão específico. Empregamos as cartas E freqüentemente usadas na Oftalmologia. A glucose radioativa análoga provocava então microscópicas lesões nos cérebros dos in­divíduos, matando as células que tinham sido envolvidas no reco­nhecimento e associação do padrão E. Foi então apenas uma ques­tão de mapear essas lesões para determinarmos como funcionava o cérebro. Há anos que a técnica de destruição seletiva vem sendo usada para a pesquisa no cérebro de animais. A diferença consistiu em que, empregando-a em seres humanos, aprendemos tanto tão depressa que nos impeliu a realizar maiores esforços.

— Mas por que com mulheres jovens? — perguntou Martin. O pesadelo estava-se tornando realidade.

— Simplesmente por causa da facilidade. Precisamos de uma população de criaturas sadias que possamos chamar todas as vezes que delas necessitarmos. As pacientes da Ginecologia serviam aos nossos propósitos. Perguntam muito pouco sobre   o   que estamos fazendo com elas, e simplesmente alterando o relatório do esfre­gaço do teste de Papanicolau podemos fazê-las voltar à consulta tantas vezes quantas necessárias. Há anos que minha mulher está encarregada da Clínica Ginecológica. Ela escolhia os pacientes e então injetava na veia o material radioativo, quando retirava sangue para os exames de laboratório de rotina. Era tudo muito fácil.

Martin teve uma súbita visão da austera mulher de cabelos negros da Clínica Ginecológica. Sentiu dificuldade em associá-la com Michaels, mas então percebeu que era muito mais crível do que tudo o mais que tinha visto.

A tela em frente de Katherine Collins tornou a se ativar:

Michaels escreveu no teclado: “Você conhece as regras. Mais tarde, quando começarem as experiências.”

E, virando-se para Martin, disse:

— O programa era tão fácil e tão bem-sucedido que nos en­corajou a expandir os objetivos da pesquisa. Mas isto vinha acon­tecendo gradativamente durante vários anos. Fomos estimulados a aplicar enormes doses de radiação para delinear as áreas associa­tivas finais do cérebro. Infelizmente, isso provocou o aparecimento de certos sintomas em algumas das pacientes, especialmente quan­do começamos a trabalhar nas conexões do lobo temporal. Esta parte do trabalho tornou-se muito complicada, porque tínhamos que equilibrar a destruição que estávamos causando com o nível de sintomas toleráveis para as pacientes. Se a paciente apresentasse muitos sintomas, tínhamos de interná-las, o que deu início a esta etapa da pesquisa. — Michaels fez um gesto na direção da fileira dos cilindros de vidro. — E tem sido aqui dentro desta sala que têm sido feitas todas as principais descobertas. Mas, naturalmente, jamais imaginamos isso quando começamos.

— E quanto a essas pacientes recentes como a Marino, Lucas e Lindquist?

— Ah, sim. Elas provocaram um bocado de agitação. Foram as pacientes que receberam a dose mais alta de radioatividade, e seus sintomas apareceram   tão   depressa   que   algumas procuraram médicos antes que as pudéssemos pegar. Mas os médicos jamais se acercaram de um diagnóstico, especialmente Mannerheim.

— Você quer dizer que Mannerheim não está envolvido nisso? — perguntou Martin, surpreso.

— Mannerheim? Você está brincando. Não se pode ter filhos da mãe egoístas como aquele envolvido num projeto desta magni­tude. Ele haveria de querer ter a seu crédito todas as descobertas, por menores que fossem.

Philips correu o olhar em torno da sala. Estava horrorizado e oprimido. Não parecia possível que aquilo pudesse acontecer, em especial bem no meio do Centro Médico de uma universidade.

— O que mais me espanta — disse Martin — é que vocês tenham conseguido tocar isso para frente. Quero dizer que, se um infeliz na Farmacologia maltrata um rato, o animal tem em sua defesa a liga protetora dos animais.

— Nós temos tido um bocado de ajuda. Você deve ter repa­rado que aqueles homens lá fora são agentes do FBI.

Philips olhou para Michaels.

— Você não precisa lembrar-me disso. Eles tentaram matar-me.

— Lamento. Eu não fazia idéia do que estava ocorrendo até que você me telefonou. Há mais de um ano que você vem sendo mantido sob vigilância. Mas me disseram que era para sua pro­teção.

— Eu estive sob vigilância? — indagou Martin, incrédulo.

— Todos nós estamos. Philips, deixe-me dizer-lhe uma coisa. Os resultados desta pesquisa vão alterar todo o complexo da so­ciedade. Não estou sendo dramático. Quando começamos, era um pequeno projeto, mas logo alcançamos alguns resultados, que pa­tenteamos. Isto fez com que as grandes companhias de compu­tadores nos dessem todo o auxílio e nos enchessem de dinheiro para   pesquisas. A elas não   importava como estávamos fazendo nossas descobertas. Tudo o que queriam eram os resultados, e lu­tavam entre si para nos concederem favores. Mas então aconteceu o inevitável. A primeira grande aplicação para o nosso computador de quarta geração foi no Departamento de Defesa. Ele revolucio­nou todo o conceito do armamento em geral. Usando uma pequena unidade de inteligência artificial combinada com um sistema de armazenamento de memória holográfico molecular, projetamos e construímos o primeiro sistema de orientação de míssil realmente inteligente. O Exército dispõe agora de um protótipo de “míssil inteligente”. É a maior descoberta de uma arma defensiva desde a descoberta da energia atômica. E o governo está menos interessado na origem de nossas descobertas do que as companhias de compu­tadores. Quer gostemos ou não, eles nos protegeram com o mais alto nível de segurança jamais criado, maior ainda do que o do Projeto Manhattan quando foi fabricada a bomba atômica. Nem o Presidente poderia vir aqui. Assim, todos nós temos estado sob vigilância. E aqueles caras são um bando de paranóicos. Todos os dias eles acham que os russos estão para estourar o local. E na noite passada disseram que você ficou furioso e constituía um risco para a segurança. Mas eu posso controlá-los, até um certo ponto. Muito depende de você. Vai ter que tomar a decisão.

— Que tipo de decisão? — perguntou Martin, cansado.

— Você vai ter que decidir se é capaz de viver com todo esse caso. Sei que isso representa um choque. Não lhe ia contar como estávamos fazendo nossas descobertas. Mas desde que você desco­briu o suficiente para ser quase liquidado, tinha de saber. Escute

Martin. Estou certo de que a técnica da experimentação com seres humanos sem o consentimento deles, especialmente quando devem ser sacrificados, vai contra qualquer conceito tradicional da ética médica. Mas acredito que os resultados justificam os métodos. De­zessete jovens tiveram sacrificadas suas vidas sem o saber. É ver­dade. Mas isso foi feito para a melhoria da sociedade e futura garantia da superioridade de defesa dos Estados Unidos. Do ponto de vista de cada indivíduo, é um grande sacrifício. Do ponto de vista de duzentos milhões de americanos, é um sacrifício muito pequeno. Pense em quantas mulheres jovem tiram suas vidas vo­luntariamente todos os anos, ou em quantas pessoas se matam nas auto-estradas, e com que objetivo? Aqui, essas dezessete mulheres acrescentaram algo à sociedade, e têm sido tratadas com com­paixão. Têm sido bem tratadas e não têm sentido dores. Pelo con­trário, têm experimentado o prazer puro.

— Não posso aceitar isso. Por que você não deixa que eles me matem? — disse Philips, numa voz cansada. — Então você não teria que se preocupar com a minha decisão.

— Eu gosto de você, Philips. Trabalhamos juntos durante quatro anos. Você é um homem inteligente. Sua contribuição ao desenvolvimento da inteligência artificial foi e pode ser enorme. A aplicação na Medicina, em especial no campo da Radiologia, é a capa para toda esta operação. Nós precisamos de você, Philips. O que não quer dizer que não possamos passar sem você. Nenhum de nós é indispensável, mas precisamos de você.

— Vocês não precisam de mim — disse Philips.

— Não vou discutir. O fato é que precisamos de você. Deixe-me enfatizar um outro ponto. Não precisamos mais de seres hu­manos. De fato, este aspecto biológico do projeto está para ser encerrado. Já obtivemos as informações de que necessitávamos e agora está na hora de refinarmos os conceitos eletronicamente. As experiências com seres humanos estão terminadas.

— Quantos pesquisadores foram envolvidos? — indagou Philips.

— Aí reside uma das belezas de todo o programa — retrucou Michaels, orgulhosamente. — Em relação à sua magnitude, o nú­mero de pessoal   tem sido bem pequeno. Temos uma equipe de fisiologistas, uma equipe de técnicos em computadores e várias en­fermeiras práticas.

— Nenhum médico? — perguntou Philips.

— Não — respondeu Michaels, com um sorriso. — Espere. Não é bem verdade. Um dos fisiologistas da neurociência é doutor em Medicina e em Filosofia.

Durante alguns momentos, os dois homens se olharam em silêncio.

— Outra coisa — acrescentou Michaels. — É óbvio que você, muito merecidamente aliás, vai receber todo o crédito pelos pro­gressos médicos que serão imediatamente alcançados com a apli­cação desta nova tecnologia de computador.

— Isto é um suborno? — perguntou Philips.

— Não. É um fato. Vai torná-lo um dos mais famosos pes­quisadores médicos nos Estados Unidos. Poderá programar todo o campo da Radiologia de modo que os computadores serão capazes de realizar o trabalho de diagnóstico com cem por cento de efi­ciência. Isso será um enorme benefício para a humanidade. Você mesmo me disse uma vez que os radiologistas, inclusive os bons, só são eficientes em cerca de setenta e cinco por cento dos casos. E por fim... — Michaels baixou os olhos e fitou seus pés, como se estivesse constrangido. — Conforme eu disse, só posso controlar os agentes até um certo ponto. Se eles acharem que alguém oferece um risco para a segurança, isso escapa às minhas mãos. Infeliz­mente, agora, Denise Sanger acha-se envolvida. Ela desconhece os pontos específicos desta pesquisa, mas sabe o bastante para pôr em perigo o projeto. Em outras palavras, se você preferir não aceitar continuar no programa, não apenas você, mas também Denise será liquidada. Sobre isso não tenho qualquer controle.

Ante a menção de uma ameaça contra Denise, outra emoção se abateu sobre o sentido de ultraje moral de Philips. O ódio pe­netrou-o. Só com muita dificuldade ele se conteve impedindo a explosão de uma crise de fúria. Exausto como estava, todos os seus nervos se encontravam a ponto de romper. Foi preciso toda sua força mental para ele poder pensar racionalmente. Quando o fez, estava subjugado por um sentimento de futilidade ante o tre­mendo poder e impacto que jaziam por trás do projeto. Philips teria sido capaz de se sacrificar, mas não podia sacrificar Denise. Uma triste sensação de resignação desceu sobre ele, abafando-o como um cobertor.

Michaels pôs a mão sobre o ombro de Philips.

— Bem, Martin. Acho que lhe disse tudo. O que você tem a dizer?

— Creio que não tenho escolha — retrucou Martin, lenta­mente.

— Claro que tem — disse Michaels. — Mas é muito pequena. Obviamente, tanto você quanto Denise vão ficar sob vigilância. Você não poderá comunicar a história quer ao Congresso ou à imprensa. Há planos feitos para qualquer eventualidade. Sua es­colha está meramente entre a vida para você e Denise ou uma morte instantânea e sem sentido. Odeio ser tão rude. Se você fizer a escolha que espero, será dito a Denise apenas que nossa pes­quisa vinha tendo o apoio do Departamento de Defesa, que você ignorava e se tornou por engano um risco para a segurança. Ela jurará guardar segredo, e tudo acabará aí. A você competirá impe­dir que ela tome conhecimento das origens biológicas.

Philips inspirou profundamente, afastando-se da fileira dos cilindros de vidro.

— Onde está Denise?

— Siga-me — respondeu Michaels, com um sorriso.

Voltando por onde tinham vindo, através das portas que pare­ciam abóbadas duplas e passando pelos anfiteatros, os dois homens caminharam pelo corredor cheio de cascalho, dobrando para o escritório da administração da velha Escola de Medicina.

— Martin! — exclamou Denise, pulando de uma cadeira e correndo entre dois agentes. Lançando os braços em torno de Phi­lips, ela rompeu em lágrimas.

— O que está acontecendo? — perguntou ela, soluçando.

Martin não podia falar. Suas emoções contidas transborda­ram com alegria ao deparar com Denise. Ela estava viva e em segurança! Como poderia ele assumir a responsabilidade por sua morte?

— O FBI tentou convencer-me de que você havia-se tornado um perigoso traidor — disse Denise. — Não acreditei nisso um só instante, mas diga-me que não é verdade. Diga-me que tudo isso não passa de um sonho mau.

Philips fechou os olhos. Ao abri-los achou sua voz, e falou lentamente, escolhendo as palavras com grande cuidado, pois sabia que a vida de Denise estava em suas mãos; haviam-nos algemado por enquanto, mas ele encontraria um meio de se livrar dos gri­lhões, nem que levasse anos para isso.

— Sim — disse Philips. — Tudo é um sonho mau. Foi um terrível engano. Mas agora acabou.

Martin levantou o rosto de Denise e beijou-a na boca. Ela retribuiu o beijo, certa de que o que sentia por ele era correto, que enquanto confiasse nele estaria segura. Por um instante, o médico enterrou o rosto no cabelo dela. Se a vida do indivíduo era importante, então o era a dela. Para ele mais do que a de qualquer outra pessoa.

— Agora acabou — repetiu ela.

Philips relanceou o olhar para Michaels por sobre o ombro de Denise, e o perito em computadores assentiu afirmativamente com a cabeça. Porém, Martin sabia que jamais estaria terminado...

 

               THE NEW YORK TIMES

               CIENTISTA ABALA A

               COMUNIDADE CIENTÍFICA;

               PEDE ASILO POLÍTICO

               NA SUÉCIA

               ESTOCOLMO (AP)

 

O Dr. Martin Philips, o médico cuja pesquisa o alçou recentemente ao estado de celebridade internacio­nal, desapareceu ontem à noite sob circunstâncias misteriosas na Suécia. Aguardado para realizar uma confe­rência à uma hora da tarde no fa­moso Instituto Carolinska, o neuro-radiologista deixou de comparecer frente a uma compacta audiência. Juntamente com o cientista, desapa­receu também a Dra. Denise Sanger, com quem está casado há quatro meses.

Inicialmente pensou-se que o ca­sal procurara isolar-se das atenções com que tem sido cumulado desde que o Dr. Philips começou a revelar sua série de espantosas descobertas e inovações médicas feitas há seis meses. No entanto, esta hipótese foi abandonada, quando se soube que o casal tinha tido surpreendentemente a maciça proteção do Serviço Se­creto e que seu desaparecimento de­pendia definitivamente da coopera­ção das autoridades suecas.

As investigações feitas junto ao Departamento de Estado esbarraram num intenso silêncio, que se tornou mais curioso quando se soube que o caso tinha despertado uma febril atividade em muitos níveis do Go­verno dos Estados Unidos, aparente­mente desproporcionais ao evento. A curiosidade internacional, já espicaçada, atingiu o cume com a libera­ção da seguinte declaração prepara­da à noite passada pelas autoridades suecas:

 

O Dr. Martin Philips pediu e lhe foi concedido asilo político na Sué­cia. Ele e sua mulher foram coloca­dos num isolamento político. Dentro de 24 horas será liberado para a co­munidade internacional um documen­to escrito pelo Dr. Philips denun­ciando um grande desrespeito aos direitos humanos perpetrado sob a égide da experimentação médica. Até agora o Dr. Philips tem sido impe­dido de emitir suas opiniões em face de amplo jogo de interesses, inclu­indo o Governo dos Estados Unidos. Após a liberação do documento, o Dr. Philips convocará a imprensa para uma conferência pela televisão sob os auspícios da TV sueca.

 

Não se sabe exatamente o que im­plica o “grande desrespeito aos di­reitos humanos”, embora a estranha seqüência de acontecimentos que cer­cam o desaparecimento do Dr. Phi­lips tenha estimulado uma séria es­peculação. A área de especialidade do Dr. Philips envolve a interpreta­ção computadorizada de imagens médicas, o que dificilmente parece abrir uma flagrante violação da ética experimental. Contudo, a reputação do Dr. Philips (os mais notáveis pes­quisadores consideram inevitável que ele será o ganhador do Prêmio Nobel de Medicina deste ano) garan­tem-lhe uma grande e atenta audiên­cia. É evidente que o affaire deve ter ofendido profundamente o senso moral do Dr. Philips, para que ele arrisque sua carreira tomando esta decisão drástica e dramática. Insinua ainda que o campo da Medicina também pode ter o seu próprio Watergate.

 

 

NOTA DO AUTOR

Desde a Segunda Guerra Mundial que a experimentação humana criou certos problemas difíceis com o crescente emprego de pacientes como objetos de experimentação, quan­do se torna aparente que eles não se disporiam a isso se tivessem consciência de como seriam usados.

Esse comentário foi feito por um apreciado Professor de Pesquisa em Anestesia, da Escola de Medicina de Harvard. no início de um artigo descrevendo 22 exemplos de experiências que ele acha­va que violavam a ética médica. Ele selecionou esses exemplos de um grupo de 50, e citou um Professor na Inglaterra, o Dr. M. H. Pappworth, que reuniu uma relação de 500. O problema não constitui um episódio isolado, raro. É endêmico, propagando-se do sistema de valor básico inerente à imagem do médico/experimentador difundida pela atual corrente da comunidade médica orientada para a pesquisa.

Consideremos alguns exemplos...

Uma experiência que foi recentemente focalizada pela impren­sa e objeto do programa de televisão Sixty Minutes (Sessenta Minutos) envolvia várias agências do Governo dos Estados Uni­dos que “realizavam” experiências com funcionários, sem que eles o soubessem, numa tentativa para determinar os efeitos das dro­gas alucinatórias. Talvez mais perturbadora e próxima   à história deste livro foi uma experiência na qual células cancerosas foram injetadas em pacientes idosos sem seu consentimento. Na época desse estudo os pesquisadores não sabiam se os cânceres se repro­duziriam ou não. Aparentemente, eles assumiram a decisão de achar que os pacientes já estavam tão velhos que isso não impor­tava!

Existem inúmeros exemplos de pessoas, principalmente de deficientes mentais, que sem o saber recebem injeções de mate­riais radioativos, e até de recém-nascidos que têm sido submetidos a esta prática. Não há como justificar o uso desses métodos sob a alegação de que vão beneficiar a humanidade, e não há dúvida de que esta gente se submete ao risco de adquirir lesões ou doen­ças, para não mencionar o desconforto e a dor. Acima de tudo, freqüentemente os resultados dos estudos desse tipo são irrelevan­tes, servindo mais para aumentar as bibliografias dos pesquisado­res envolvidos do que o progresso da ciência médica. Sabe-se que muitos desses estudos são “apoiados” pelos departamentos do Go­verno dos Estados Unidos.

Outra experiência implicou a injeção proposital, em 700 a 800 crianças mentalmente retardadas, de soro infectado com o objeti­vo de produzir hepatite. Aparentemente, este estudo foi aprovado e apoiado pelo Conselho Epidemiológico das Forças Armadas, entre outros departamentos. Dizia-se que tinha sido obtido o con­sentimento dos pais, mas as circunstâncias levam a imaginar como foi conseguido esse consentimento e até onde os pais foram “infor­mados” para dá-lo; e, ainda assim, este consentimento dado pelos pais protege os direitos dos menores? A questão permanece de pé; teria algum dos pesquisadores permitido que um membro de sua família, mentalmente retardado, participasse do estudo, ou no caso das outras experiências mencionadas, que os membros de sua família ou eles mesmos se envolvessem com objetos do estu­do? Sinceramente, duvido. O elitismo intelectual que a Medicina e a pesquisa médica adota cria um sentimento de onipotência, e com ele, dois pesos e duas medidas.

Seria irresponsável sugerir que a maioria das pesquisas envol­vendo os seres humanos nos Estados Unidos se baseie em padrões não éticos, porque definitivamente não é verdade. No entanto, o fato da existência de uma pequena minoria é assustador e exige a atenção do público. A pressão para a pesquisa em nossos centros acadêmicos é tão forte quanto sempre o foi, e o entusiasmo subse­qüente e o ar de competição profissional podem fazer com que as pessoas percam a visão das conseqüências negativas para os paci­entes. Além disso, a confusão de valores entre paciente/risco indi­vidual e possível benefício social não tem sido estabelecida ine­quivocamente. E a idéia de que o consentimento do paciente ata­lha os abusos provou ser falsa. Tome-se por exemplo o caso de 51 mulheres usadas como pacientes num estudo de uma droga para induzir experimentalmente o trabalho de parto. Todas elas assina­ram declarações de consentimento, mas aparentemente sob condi­ções inferiores às ideais. Uma investigação sobre o estudo relatou que muitas deram seu consentimento durante a coação dos proce­dimentos para admissão ou na própria sala de parto. Após o fato, as pacientes foram entrevistadas e quase 40% não tinham idéia de que tinham sido objeto de pesquisa, mesmo que “pretensamente” houvessem dado “o consentimento formal”. Um dos métodos sutis para obter o consentimento consistiu em dizer que o estudo envolvia uma “nova” droga, não uma droga “experimen­tal”, sabendo o pesquisador muito bem que o adjetivo “novo” era melhor do que o de “velha” droga.

Não é necessário recorrer-se a subterfúgios para se obter o consentimento. Sutis insinuações, sugerindo que a pessoa não será tão bem cuidada se não “cooperar”, são a evasiva mais freqüente. A seguir, e freqüentemente em relação ao pesquisador, vem a clara implicação de que o procedimento pode ser benéfico para o indi­víduo, mesmo que essa possibilidade seja ínfima. Por fim, há o método pelo qual o pesquisador deixa de informar ao sujeito em potencial que existem alternativas e, freqüentemente, meios de tra­tamento já estabelecidos.

Tudo isso não constitui novidade. Há mais de 20 anos que vêm sendo feitas denúncias nas revistas médicas sobre violações da ética envolvendo experiências com seres humanos. O fato de que isso ainda exista na quantidade em que “existe” é uma tragédia de grandes proporções. E agora que chegou a década de 80 com a Medicina começando um novo caso de amor com a Física, as oportunidades para os abusos atingem um potencial novo e horrí­vel. O palco principal para o casamento da Medicina com a Físi­ca é a neurociência, e o principal ator vai ser o cérebro humano, considerado por muitos como a mais espantosa e misteriosa cria­ção do universo. As questões morais e éticas que envolvem a expe­rimentação com seres humanos têm de ser resolvidas antes que... antes que a ficção e a fantasia se tornem um fato.

 

                                                                                Robin Cook  

 

                      

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