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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CIDADE SOLITÁRIA / Fernando Namora
CIDADE SOLITÁRIA / Fernando Namora

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

CIDADE SOLITÁRIA

 

                   TINHA CHOVIDO NA VÉSPERA

Havia duas semanas que se encontravam, todos os dias, ao fim da tarde, no cafezinho à beira do lago. Era um café giro. Pequeno, sim, mas animado: meia dúzia de mesas enfileiradas como num corredor, gente jovem e uma caixa de música que nunca deixava de tocar. Outras vezes, quando o pai se resolvia a ceder-lhe o automóvel, ele nem chegava a entrar na sala; batia com os nós dos dedos na porta envidraçada, fazia-lhe um sinal e iam por aí fora, não muito longe, até ao primeiro sítio onde pudessem beijar-se. Nunca tinham passado disso. Ela era uma tipa esquisita. Uns olhos demorados, de um verde subterrâneo, que não se podiam enfrentar por muito tempo; uma boca fina e passiva, que, ao ser beijada, não parecia uma boca. Isso humilhava-o: sempre soubera incendiar uma mulher.

Metera-se naquilo porque ela tinha umas lindas pernas e ele gostava, acima de tudo, de umas pernas assim, ágeis, excitadas, como as de uma corça que a todo o momento se prepara para saltar. Vira-a pela primeira vez na praia, e logo em fato de banho, a jogar uma espécie de voleibol improvisado; o corpo dela possuía a graciosidade de uma dançarina. Cada um dos seus gestos era um prenúncio de bailado. Ao pôr-se em bicos de pés, a lançar a bola sobre a rede, essas pernas contraíam-se, tornavam-se mais esguias e ávidas. Apreciara-a por muito tempo, testa franzida, até que a bola veio cair junto dele. Levantara-se de propósito para lha ir levar, queimando-a com os olhos. Ela, primeiro, pareceu muito espantada de o ver assim amável e atraído. Respondera-lhe, mesmo, com uma secura agreste. Tratei-te muito mal, querido, dissera ela mais tarde. Desculpa, preciso de compensar-te dessa rudeza. " A tal manhã na praia fora, pois, o começo de tudo. Começo de nada, pensava ele irritado, nos últimos dias. Para quê aquelas tardes de pasmo, olhando um para o outro, dizendo tolices (ela só tinha conversas desaparafusadas), beijando uma boca que se arrepiava, furtando-se tal um verme assustado? Nem sequer, ainda, Lhe acariciara as pernas, embora o corpo dela parecesse oferecer- se, mas como coisa desvaliosa, que se dá justamente porque não presta. Contudo, nem assim progrediam. Havia fosse o que fosse que o intimidava, que fazia respeitá-la.

- Que queres tomar?

Ela encolheu os ombros, seguindo, tristonha, o remoinho do lago, o par de namorados que caminhava vagarosamente do outro lado, rente à água, a luz do crepúsculo escorrendo, lenta e conformada, do casario. Encolhia sempre os ombros e punha-se a fitá-lo até ao fundo, como se quisesse arrancar-lhe um segredo. Ora ele não gostava que o olhassem assim. Ficava inquieto, inseguro.

- Um café

- Pode ser, um café.

Levantou dois dedos para o criado e pediu, ainda, que lhe trocasse uma nota em moedas de escudo.

- Queres ouvir um disco?

Ela riscou a palma da mão com as unhas, desinteressada. Era-lhe indiferente ouvir ou não o disco. Não se percebia essa indiferença! Enquanto ele era capaz de estar horas inteiras em casa, ou ali, a ouvir música, sem pensar em mais nada, um disco, outro disco, e o corpo a fundir-se com o ritmo da música, a adivinhá-lo, a exacerbá-lo, e a vida suspensa, e o tempo suspensoela encolhia os ombros, embora toda a gente à volta, rapazes e raparigas, viesse ao café sobretudo para ouvir discos.

- Não gostas de música?

- Gosto. - E dizia aquilo com uma condescendência fatigada ou desdenhosa, que arranhava os nervos. - Gosto, mas não destes discos.

- Então que discos te apetece ouvir?

- Outros.

E traçava as pernas, embaraçada com a insistência. Eram umas pernas maravilhosas, que não sabiam que o eram. E quando, como agora, a saia de pano grosso as cobria perfidamente e as arredondava, mais ainda lhe pareciam maravilhosas. Ela não merecia essas pernas. Apetecia magoá-las, dar-lhes dentadas. Mordê-las até se enjoar. O diabo é que não lhe bastava estar com uma mulher durante horas para que esse enjoo viesse esvaziar-lhe a fúria, libertando-o. Com a primeira vez, o desejo ficava mais acirrado. Ia para casa inflamar-se com a recordação do que se passara, as mãos ainda cheias do calor túmido dos seios, os lábios doridos dos beijos, o corpo e os nervos, ou lá o que era, mais impa cientes do que dantes, sôfregos da vez seguinte. Depois, sim, aquilo abrandava, extinguindo-se de repente. Depois, só fastio.

Essas conquistas não lhe davam muito trabalho. Havia uma porção de raparigas por aí que percebiam que as coisas eram assim mesmo: breves, cómodas, para que valessem a pena. E a maioria delas sabiam dar prazer, gostavam de dar prazer, não exigindo quase nada. O prazer bastava. Que raio, então, o impedia de esclarecer as coisas?

- Estás constipada.

- Estou, sim, e bastante. Rouca.

E o olhar escuro teimava em devassá-lo. Ele punha-se a fumar nervosamente, compassando a música com os pés e com a nuca. Dava-lhe sempre um trabalhão encontrar um fio de conversa entre os dois. Havia a necessidade de uma espécie de precaução, de escolher palavras que não a impressionassem. E tudo a impressionava. Ele dizia uma banalidade e ela pegava naquilo e complicava tudo. Falava-se de uma árvore e ela dizia logo que queria ser a árvore, ou o vento, ou assim uma tolice. É certo que aquelas tipas abelhudas eram quase sempre mulheres formidáveis, mas ele preferia umas telhas de outro género. Para dizer a verdade, a história nem começara na praia, mas sim uns dias mais tarde, quando ela, cabeça deitada sobre a palma da mão, como sobre o peito de um amante, ideias longe, desabafara, de chofre: Hoje, se tivesse uma faca, matava alguém.

Achara piada. Ela tinha umas belas pernas e um sal qualquer no temperamento. As duas coisas lhe haviam esporeado o desejo. Mas isso fora naquele dia, ou nos primeiros dias. Agora já era insuportável ouvir-lhe: A minha casa é fria, João, embora tenha um calorífero que ninguém acende para não se gastar dinheiro. Não, não é esse frio que julgas. Mas ainda que viesse um in ferno de calor, eu sentir-me-ia, lá dentro, a enregelar de frio. Quanto invejo as pessoas com um lar onde não há frio, e família, e pais, e tios! E eu tenho, afinal, tudo isso: mãe, pai, duas tias, a avó, o avô, uma casa grande e cheia. E não tenho coisa nenhuma. Um quartinho bastava-me, mas com bugigangas que eu soubesse e sentisse minhas. Possuir uma casa, fosse o que fosse.

A voz dela subia, esforçada e trágica, pela garganta, sufocando-se e sufocando quem a ouvisse. Agora ele estava farto dessas frases, da voz torturada, do seu ar ausente, das esquisitices. Ainda se ela facilitasse as coisas... Mas não: dava a ideia que isso não existia para ela. Estava farto e vexado. Enquanto, porém, não mergulhasse o desejo e a fúria nesse corpo vibrátil, como um ferro ao rubro numa tina de água, não podia largá-la, desoprimir-se desta obrigação de a ver, de a ouvir, de esperar. Sobretudo de a ouvir. Mas se não conversassem, seria bem pior: o silêncio, as mãos dela, era terrível; era no silêncio que ela devorava e digeria as pessoas e o mais que a cercava. Que o digeria a ele, depois de o esbulhar. Interrogava-o, violava-o, apenas com os olhos e o silêncio. Era preciso falar.

- Está uma linda tarde. Foi uma chatice não apanhar hoje o carro ao velhote. Tínhamos dado um belo passeio.

Ele impregnara de insinuações as últimas palavras.

- Não importa, João. Basta-me estar contigo. Aqui ou noutro lado.

Ela não percebia, a sonsa. Não percebia que não poderiam continuar assim, que era absolutamente necessário não adiar mais o momento de se deitarem juntos, de lhe sentir as pernas bravias, mordendo-as até as ensanguentar; de apaziguar esta lava.

- Ontem é que choveu a valer, quando saímos daqui.

Ela, sorrindo, acenou a cabeça. Parecia feliz de terem falado da chuva.

- Apanhei-a toda, João.

- O quê, a chuva?

Ela voltou a rir, em êxtase.

- Porque não te abrigaste?

- Gosto da chuva. E ontem gostei mais do que das outras vezes. Estava na paragem do eléctrico e cansei-me de esperar. Fui por ali fora e a chuva veio de repente.

- Foi. De repente, com trovões.

- Era uma chuva doida, João, e eu pus-me no meio da rua, de propósito. Encharquei-me toda. Depois fui até lá acima, ao miradouro. Estavam carros parados, muito luzidios, com gente fechada lá dentro. Eles não olhavam a chuva, como eu; não a sentiam, como eu. Não viam nada. Nem os anúncios luminosos e orvalhados, nem o rio tão negro. E tive tanta pena que eles não vissem nada disso!... que tivessem medo da chuva!...

- E agora estás rouca.

- Estou, mas não faz mal. Foi bom.

Ele pôs-se mais desassossegado ainda. Ia dizer-lhe que, mesmo que o velhote não lhe emprestasse o carro no dia seguinte, se encontrariam, finalmente, num sítio recolhido. Dir-lhe-ia até: num quarto. Ele conhecia vários e discretos.

- Tu não gostas da chuva, João?

- Depende. Espera aí, deixa- me ir pôr uma moeda. Preferes uma canção italiana ou jazz? Ainda não descobri o que preferes.

- Escolhe tu.

Tal qual se diz a uma criança. Escolhe tu. Aliás, era assim que ela às vezes o fitava: como a um homem rude, forte, que, no entanto, permanece criança.

Ele deitou a moeda, carregou no botão e esperou que o disco fosse apanhado pela haste. Esperou de cabeça baixa. Aquilo tinha de acabar. Mas não sem que antes essas pernas lhe pertencessem. Uma hora que fosse.

- Até a luz estava molhada. Os anúncios pareciam orvalho de fogo. E o rio tão preto! No meio daquilo, e da chuva, sentia-me uma coisa insignificante. Um bichinho que se pisa sem remorsos. Às vezes, é bom sentir isso. Não me ouves, João?

- Estou a pensar em que amanhã talvez consiga o carro.

Mais nada. Que cobardia lhe segurava as palavras? Quem lhe proibia de ir por diante?

- Oxalá.

Um par tinha-se sentado na mesa ao lado. Ela, loura, esguia, gestos disparatados. Chupava rapidamente o cigarro e enchia as narinas de fumo, um cavalo respirando numa tarde de gelo. Ele recostara-se na cadeira, vagamente alheado. Estavam os dois confusos, ou ressentidos, ou talvez nada disso. Havia de permeio uma atmosfera de incomodidade, de ressaca, ou de espera enervada, antes de começar um rito. Beberam o café sem o saborearem.

- Conheces o Pedro da Discoteca? - perguntou a loura; e, sem aguardar resposta, acrescentou de afogadiLho, em palavras que caíam sobre a mesa como lascas de madeira, cortadas à pressa, com nervosismo: - Convidou-me para um encontro no parque. E eu fui.

O companheiro nada disse. Abriu um livro e fechou-o logo a seguir. Ela acendeu outro cigarro e preparou uma moeda. Tinha as sobrancelhas cortadas pelo meio, antes de arquearem.

No lago, dois patos bicavam- se mutuamente. E depois os pescoços ficaram enganchados. Andavam à roda, bicando-se sempre, amorosos e briguentos. De qualquer modo, briga ou amor, aquilo tinha sensualidade.

- Se conseguir o carro...

E as narinas, como as da loura, fremiam.

- Está bem, virás aqui ter. Esperarei por ti.

- Não é isso.

Ela estendeu-lhe as mãos e ele aceitou-as, um tanto alarmado.

-João, ainda não te disse uma coisa.

Talvez ela agora fosse colaborar. Aquela frase podia ser o começo.

- Diz - incitou-a, revolvendo-se na cadeira.

- Sabes, João, foste a primeira pessoa que me achou bonita. Estou-te reconhecida por isso! Os outros sempre acharam que eu não prestava para nada. O pai, a mãe, os rapazes. Era por esse motivo que tinha medo deles, que não convivia. Às vezes, a mãe dizia-me: Você não é ninguém. " Ninguém E eu não queria ser ninguém. Queria ser muita coisa. E que ela não me tratasse por você, O pai, esse nem me fala, censura-me de ser como sou, censura-me de ser sua filha. Não me fala. E eu tenho medo dos homens que não falam. Ele entra em casa e senta-se. Para o obrigar a dizer qualquer coisa, aproximo-me e pergunto: Que lhe apetece, pai? " Ele aprecia chá e torradas e eu alicio-o: Quer uma chávena de chá, pai? " E ele acena com a cabeça, a responder que sim ou não, e toma o chá e come as torradas e não diz nada. Agora, desde que sei que gostas de mim, João, já não tenho medo.

O rosto dela, doloroso, pedia uma confirmação. Ele olhou para vários lados, desamparado.

- Tens um corpo jeitoso, um corpo que se deseja.

Já to disse.

- Pois já. Mas gosto que mo repitas de quando em quando. Toda a vida.

E, de súbito, ela riu no modo de garota a quem mostram um brinquedo. Um risinho fresco, confiado, divertido. E, também subitamente, pôs-se sombria. A tal expressão dos primeiros dias em que a conhecera, de bicho desconfiado. Ou mesmo agressivo. E lá vinham os olhos devassadores.

Ele sentia-se apanhado numa ratoeira.

- Achas então que eu tenho algum interesse?

- Claro. De contrário, não estava aqui. Não perdia tempo contigo.

- Perder tempo... - E ei-la a recolher-se na toca, para ruminar as palavras. De novo a sua face se amargou, carregando o silêncio de tempestades. Fez um jeito com os ombros como se estivesse arrepiada, com frio, e esperando que alguém lhe pusesse uma capa por cima. Os olhos dela dizem sem dizer: Os outros sempre acharam que eu não prestava para nada... O pai, a mãe, os rapazes... Um bichinho que se pisa sem remorsos...

Apetecia gritar-lhe que falasse. O silêncio era bem pior. Um silêncio que lhe levava as mãos à garganta. E uma vez mais ela estendeu-lhe os dedos. Dedos transidos, duros, que iam esmagar uma dúvida.

- Não me mintas, João. É muito importante para mim que fales verdade.

- Não te minto. Sabes bem que te desejo. Por que razão não ocultava ela as pernas? Porque era tão inconsciente da sua carne?

- Não é isso, João. Preciso que me desejes, sim, mas sempre, todos os dias. Preciso de ter a certeza que há alguém que gosta de mim. Se não me podes dar essa certeza, acabemos. Acabemos com tudo agora mesmo.

O queixo dela aguçava-se, desafiando. Havia mais crueldade do que ânsia no seu rosto. E ele, pela primeira vez, foi acometido de pânico. Pânico de mentir. E, num momento, aquelas pernas deixaram de o seduzir. Estava a acontecer-lhe alguma coisa nova, confusa, tremendamente inquietante. Pavor de dizer a uma mu lher que a desejava. Pavor de sentir o desejo - de não saber dominar o fastio do dia seguinte.

- Estás hoje muito zuca. Foi da chuva... - e tentou sorrir. Procurou outra moeda no bolso e escolheu um disco maluco. Destes que atordoam o cérebro, o sexo, os músculos, de tanto os excitarem. E pôs-se a bater com os dedos, furiosamente, no tampo da mesa. A contagiar-se de frenesi, de irreflexão, de delírio.

Mas foi por entre essa bebedeira que ele decidiu: será a última vez.

 

                   SABOTAGEM

Era já de madrugada. Uma luz indecisa e lívida vinha revelar o chão atapetado de folhas de castanheiros; as montanhas do leste apareciam contornadas de um incêndio distante, enquanto a fundura do rio, no sítio onde se abriam as bocas das galerias, permanecia dissolvida no denso negrume do vale. Os homens que iam e vinham eram mais altos e escuros na madrugada fria. Quando cheguei ao cimo das escadas, vim encontrar o dia subindo no horizonte como uma cortina de cenário. Sentia a boca amarga, empastada de tabaco, mas também um cansaço saboroso, irresponsável, como se já nada deste corpo me pertencesse. Mais uma noite perdida junto dos poços; e agora, após essas horas de vigília, de expectativa, de nervos saturados, parecia-me que era um estranho à mina, que iria adormecer irresistívelmente para o resto da vida.

Havia tempos que a mina andava embruxada, com sucessivos contratempos. Depois da falta de dinamite, a seca de meses, em que o rio minguava numa língua gretada e arenosa, com as lavandarias paradas, o pessoal de braços cruzados ou despedido; as chuvadas bruscas que se tinham seguido abriam feridas nas barragens e nas pontes, arrastando os salgueiros das margens e as reses desprevenidas, até ensoparem, por fim, os poços de extracção, enquanto ruíam os tectos podres das galerias. Era preciso recomeçar quase tudo de novo, recomeçar todos os dias. Nenhum de nós tinha um dedo de culpa em tudo isso, bem o sabíamos, mas quando o chefe, reunindo o pessoal técnico, escrevia as justificações da praxe no cimo das folhas protocolares, sentíamos que esses disfarces: ESTIAGEM, IRREGULARIDADES NA EXTRACÇÃO, AVARIAS NOS MOTORES, ETC. não iludiam ninguém - que, no fim de contas, a responsabilidade vinha, inteirinha, apontada a nós. Da sede da empresa, em Lisboa, não faziam comentários, nem sequer uma insinuação para reduzirmos as despesas. E essa revolta vexava muito mais do que a pior das censuras: cada um de nós se empenhava furiosamente em novos levantamentos, em análises de terrenos, em tudo aquilo que pudesse mascarar a apatia da mina e a nossa inutilidade.

Agora, que tudo marchava bem, que as esperanças num rendimento certo eram encorajadas pelos poços fecundos da Mosantela, as bombas avariavam-se diariamente. Os poços têm de manter um caudal próprio. Se a bomba deixa de trabalhar, há que resolver o assunto antes que o caudal atinja o nível da boca. Desce então um camarada pela corda do sarilho, com um chupado que mantenha a todo o custo o limite das águas. Estavam dois poços ameaçados pela mesma encrenca e, ao acaso, decidimo-nos por um deles, improvisando uma cuba estanque de recurso. O sarilho era impulsionado a braços, num esforço danado, feito sobretudo de raiva enquanto alguns mineiros, lá no fundo, regulavam a manobra.

Havia passado a noite junto deles, a pé firme, batendo os queixos de frio e nervosismo, à medida que os turnos se alternavam. Ali perto, como uma presença equívoca, um clarão alaranjado esgueirava-se pelas fendas da cabana do guarda. Parecia vigiar-nos, em vez de significar uma protecção. No entanto, durante as pausas dessa estafa, os homens procuravam ali uma chávena de café ou um dedo de aguardente, às vezes só para se divertirem com os resmungos do velho guarda que, da sua cama de feno, protestava contra essa violação dos seus domínios.

Mas não é por nada disto que recordo insistentemente esta história. Vivera na mina já muitas outras noites semelhantes e outras vieram ainda; confesso até que eram precisamente os imprevistos e a dureza do trabalho que tornavam a mina suportável. Todos, ali, nos sentíamos no cabo do mundo, ferozmente isolados, com hábitos, desejos e esperanças que necessitavam quase sempre de um pretexto de colisão para se manterem vivos, odiando, por vezes, estes companheiros vistos a todas as horas, sob as mesmas frases, sob os mesmos gestos. Aprisionadas, as nossas emoções tinham de explodir, antes que apodrecessem.

Nessa madrugada, já o disse, e embora o frio não fosse ainda soprado pelo vento agudo de Espanha, chegava e sobrava para me obrigar a enterrar as mãos no fundo das algibeiras da samarra ou a espevitar as pernas enregeladas, num vaivém sem nexo, em torno da bocarra do poço. Por fim, também resolvi associar-me ao calor brando da cabana. Os homens, lá dentro, fitaram-me com espanto e eu julguei que alguma coisa no meu rosto se modificara. Sentia os músculos arrepanhados.

Foi então que veio o Candolas. Pousou-me a mão no ombro, familiar, e sentenciou:

- Deixe, patrón. Esto es um modo natural de sabotar a coisa.

Não gostava do Candolas. A mina era um esgoto, Nela aparecia de tudo: o camponês faminto, fugido do salário degradante das quintas, na miragem de um trabalho dignamente retribuído; o artista desempregado que vinha de correr as oficinas das vilas e das cidades senhor ainda da sua miséria, não aceitando humilhações nem esmolas; e, então, os vadios, os meliantes e até os assassinos. O Candolas pertencia a esta última fornada Era, pelo menos, um refinadíssimo maltês. Eu procurava, dentro do meu raio de acção, que a mina fosse uma grande e solidária família; nada de injustiças, de servi lismos, de negociatas à custa dos mais ingénuos. A cada um o seu pão e o direito a testa levantada. Por esta ati tude, que em mim era talvez mais evidente e espontânea do que nos meus colegas, e ainda pelo prazer que sentia em escolher a companhia do pessoal das galerias ou dos poços, nas noites desmedidas, de preferência às bebedeiras e ao rádio no salão dos técnicos da mina, por tudo isso, ou sabe-se lá porquê, era o preferido dos mineiros. A sua estima era bem sincera. Não admirava pois, que o Candolas viesse para mim com esse ar compadrio, embora eu tentasse ser duro com tal espécie de gente. Perante os labregos broncos e embasbacados toda a escória da mina justificava o seu duvidoso apreço por mim com palavras como estas: Cá o engenheiro Rocha é dos nossos.

Eu era um deles. E os labregos curvavam a cabeça deglutindo, a custo, o enigma, meditando, talvez, se lhe caberia também um lugar nessa misteriosa confraria.

Deixei sem resposta o comentário sibilino do Candolas. O guarda tinha espetado uma boa fatia de toucinho num garfo de cabo comprido e levara-a à chama; o toucinho enrugava-se como uma folha de cartão em presença do lume e a gordura escorria pelo cabo do garfo, besuntando os dedos do homem.

- Isto é a melhor coisa que conheço da vida.

-Pois vossemecê já não pode conhecer outras!... Os homens aplaudiram, com risos, a brejeirice do camarada, enquanto eu, obcecado pelo que se passava lá fora, permanecia de olhos ausentes, fixos nas achas da fogueira.

- Oiga usted: eu, no seu lugar, deixava correr tornou o Candolas.

Tinha uma pronúncia arrastada, com um pícaro sotaque espanhol, e separava muito as sílabas, com os beiços espichados.

Não me ocorreu nada para Lhe retorquir, mas a minha expressão não foi animadora, pois ele retirou-se imediatamente.

Sentia-me muito bem na cabana: aquela mistura de odor humano, café forte e toucinho frito, criava uma atmosfera emoliente. Comecei a beber o café a pequenos goles, deixando, aos poucos, que a fadiga se apossasse de mim. Mas tinha de reagir e, por isso, levantei-me com brusquidão e fui até à porta. O Candolas estava ali encostado, do lado de fora, junto da janela. Fumava. Esperou que eu me aproximasse e disse numa voz segredada, cúmplice, como se não tivesse chegado a interromper a frase de há pouco:

-Bueno. Eu sei, chefe, que usted é dos nossos. A gente precisa de sabotá-los. Nada de esquecer que estamos a trabalhar para os Alemães, para os nazis. A gente começa a tomar ganas por isto, a enfiar a cabeça na mina como se esta choldra nos pertencesse, como se dissesse respeito à nossa causa. Bueno, chefe, nosotros...

Eu sabia que o Candolas era esperto, lúcido e, de certo modo, vivido. Ter-me-ia mesmo despertado interesse se não fosse viciado, brigão e madraço. Gabava-se de beber diariamente o salário, de prostituir as rapariguinhas que vinham das aldeias para as lavandarias, e às vezes chegavam até nós rumores de alguns dos seus roubos.

Enfrentei aqueles olhos enormes e estranhamente sedosos, a sua cara vermelha, e ainda dessa vez não respondi; mas as suas palavras deixaram-me pensativo e sacudiram-me a modorra. Voltei lá para dentro a ruminá-las. A verdade é que estávamos ali a alimentar canhões, morticínios, forças odiosas da opressão. Nada disso valia o nosso esforço, um segundo de vigília, o frenesi dos nervos, embora a mina representasse um mundo desligado dessa enxurrada turva que a todos ameaçava, uma coisa viva que nascia dos nossos braços e dos nossos cérebros, o fruto ardente das canseiras e do alvoroço de muitos homens. A mina era um ser humano. O ouro negro extraído do seu ventre deixava de nos interessar assim que os carris o encaminhavam para além dos limites da concessão. E certamente nenhum de nós teria ainda meditado a sério no seu destino, no uso que lhe seria dado, no que, enfim, significava a nossa missão. Só nos dias em que os directores alemães nos visitavam, sempre de improviso, deixando-nos por assim dizer estonteados, se poderia sentir, entre nós, um inquietante e indefinido mal-estar.

Quando pouco depois saí da cabana, de rompante, ia disposto a rever, na solidão do descampado, qual o meu papel na teia daquela engrenagem. A manhã tinha crescido no oriente luminoso. As folhas dos castanheiros eram perseguidas pelo vento. O casario em degraus parecia agora mais espesso à medida que o alvorecer ia dando forma às sombras e o rio rebrilhava já no sítio onde os salgueiros desenhavam uma curva. Um turno saía da galeria norte e, ainda de gasómetros acesos, avançava pela ponte. Ali estava eu, especado no alto do morro, dominando a mina, enquanto a aragem me enfunava as calças. Olhava em redor como se pela primeira vez conhecesse a mina, desnudada, verídica e absurda; como se tivesse esperado dois anos para descobrir que me era estranha. Senti que se me tornava necessário que a conversa do Candolas fosse até ao fim, por muito que a presença daquele valdevinos me desagradasse. A verdade é que as suas insinuações iam tomando, gradualmente, perante mim, novo sentido. Tornei a abeirar-me da cabana. Era irresistível. Parei a ouvir a voz dele, lá dentro, intercalada de grandes pausas, durante as quais a cabana era apenas silêncio. (O estralejar dos tocos de pinho era ainda silêncio.)

-Bueno - dizia ele -, quando o camarada-médico recebeu a carta e ma entregou, mirei o emissário, mirei-o bem, e vi-lhe aquela cara chapada de nazi. Um camarada verdadeiro tem tudo escrito nos olhos da cara. Voltei-me para o Pepe: Pepe, não te vás! Não te vás, Pepe, que esto es una ratoeira que os cerdos te armam. Tu mujer non está a parir coisa nenhuma. Non te marches, Pepe, eles te matam! São todos uns cerdos su jos e eu viro já este se tu me dejas. " Pepe ainda ficou meio acobardado com as minhas palavras e eu sacudi-Lhe os ombros. Se tu mujer está para parir, há outros doutores que eles podem chamar. Non vês esto, Pepe? Não te vás, amigo, que eu viro já este! " Pepe me pegou por um braço, com os ojos em sangue, capaz de um desatino. Tu não lhe tocas, Candolas, irei com ele ver minha mujer. " Bueno: eu encolhi os ombros e fiquei a ver o camarada-médico descer a ravina, a caminho da morte.

- E mataram-no mesmo?

- Conho, nem se pergunta! Essa léria de cartas escritas pelo punho das mulheres era já uma artimanha sabida de todo o mundo. Mas eu fiquei com o cara-de-cochino nestas meninas dos ojos. Ainda hoje aqui a tenho.

Abri repentinamente a porta. Um homem bocejou com tranquilidade e depois fez um comentário:

- Agora, senhor engenheiro, já é caso para se darem os bons-dias. O Sol vai nascer daqui a nada.

O Candolas ajeitava vagarosamente um cigarro e quando lambeu a mortalha dedicou-me um sorriso cínico.

- O nosso Candolas foi chefe de guerrilhas na guerra civil - disse outro, como se estivesse certo de que eu escutara a conversa.

- Chefe? - inquiri, sem convicção, apenas para dizer alguma coisa, enquanto aceitava outra xícara de café.

- Caudillo e de los buenos - sublinhou o Candolas, passando os dedos pelo nariz grosso e rubicundo.

Fui remexendo as cinzas, por entre as brasas esmorecidas, e espicacei-o, num tom de indiferença:

- Esteve então muito tempo por Espanha...

- Algum, patrão. Lá casei, lá tenho ainda a família. Não há muito que mandei umas regras a mi mujer, prà gente se reunir numa festa da Terra Fria. Eu não posso ir vê- los, chefe: tenho os caminhos tapados. Se passo a fronteira, tiram-me a pele.

Riu um risinho sacudido, dúbio, e pela primeira vez lhe reparei na boca quase desdentada.

- Contas a ajustar - insisti.

- Bueno, puede ser isso, chefe... Acabei por ter um encontro com o tal cochino. Eu tinha-lhe decorado o focinho de cerdo, aqui, na menina dos olhos, e depois topei-o em Vila Nueva. Ele também me reconheceu, porque foi badalar. Eu queria fugir de sarilhos, o tempo era outro, e disse- lhe: Tu te retiras daqui, cevado. Tu te retiras, que eu não respondo por mim. " E acenava-lhe com um pistolete. Tu te quitas daqui, que eu vejo a sombra do meu amigo Pepe por detrás de ti. Eu te pergunto: que fizeste do meu amigo Pepe? que fizeste de su mujer? que fizeste dos companheiros traídos, cochino, cara-de-cerdo? " Bueno, o pistolete saltou-me das mãos.

Uma insidiosa admiração por aquele homem desconcertante, que me contava uma história de sangue, ia crescendo dentro de mim. Mas custava-me ceder tão depressa. Tentei embaraçá-lo.

- Mas, se bem percebi, você tinha esquecido o seu amigo Pepe ou já não estava muito disposto a vingá-lo...

Candolas fitou-me com vagar e alguma sobranceria. Depois disse, como quem sacode as palavras:

- Oiga usted: um homem não deve cegar-se por uma satisfação pessoal. Há coisas que valem mais do que nós.

Não percebi se era uma resposta, se nova e pérfida alusão à conversa anterior. De qualquer modo, ia-me sentindo inferiorizado e sobretudo impaciente por confirmar-lhe com um gesto ou uma palavra que o meu ardor pela mina nada tinha que ver com a ganância e os desígnios dos seus exploradores.

Mas um homem alvoreado interrompeu-nos entrando de rompante, batendo com a porta atrás de si.

- Chiça! Não posso aguentar estas águas. Estou repassado. Outro que desça ao poço.

Esqueci num instante o Candolas e as suas histórias e ergui-me do banco. De súbito, nesse mesmo momento, um grito varou a madrugada. Acontecera que um dos rapazes do turno deixara escapar o eixo do sarilho e a cuba caíra, desamparada, sobre o mineiro que estava no fundo do poço. Uma nuvem roxa passou-me pelos olhos, a irritação acumulada nesses dias rebentou, irreprimível, e esbofeteei o rapaz. Senti, então, uns dedos furando a carne do meu braço, apertando-o, esmagando-o. Eram os dedos do Candolas.

- Patrón o senhor vai fazer deste hombre um infeliz

Ainda hoje julgo sentir a marca dos seus dedos. E quando recordo esta história tenho sempre o gesto de afagar o braço, como se continuasse dorido.

A mina foi para mim um tempo de dureza, de vida autêntica, e uma incomparável mestra da experiência humana. Devo ao Candolas uma das lições aprendidas. Só voltei a encontrá-lo três dias após aquela estafante madrugada, pois durante esse tempo ninguém me arrancou da cama, tendo sempre uma garrafa de gim à ca beceira. Dormia, embebedava-me, alternadamente. Isso era vulgar entre nós, nesse mundo insólito da mina. Sempre que a neurastenia ou o cansaço atingiam certo limite, era aquele o remédio. Dormir, atirar com o corpo para cima fosse do que fosse - e beber. Os sentidos fechavam-se, como ouriços enrolados perante uma agressão.

Nem sequer, nas noites que duravam anos, nos apercebíamos do martelar da geradora - um ruído que, noutras ocasiões, nos verrumava os miolos e os ossos, até os deixar ocos.

Vesti o surrobeco e o samarrão e entrei numa galeria. Diziam-me que os chamados "lisos de sabão", terra sem consistência e sebosa, tinham vindo ao encontro de alguns desmontes e, nesse caso, era sempre de atender o pior. Nada mais traiçoeiro que um liso de salbandas a servir de tecto. É terreno que não avisa: desaba num repente.

A carda das minhas botas ressoava pelos carris, o eco comprimia-se lá na extremidade insondável e negra; as luzes interpoladas dos quadros iam longe buscar a minha sombra e depois antepunham-ma aos próprios passos, sinistra, ampliada, até nova zona de luz. Aquilo tinha sempre um aspecto fantástico na solidão. Num desvio lateral, esbarrei com o Candolas. Ele pertencia aos trabalhos exteriores, nada tinha que ver com aqueles sítios. Por isso, e também porque me era necessário saber-me ainda livre dos seus enleios, desfechei-lhe, com brutalidade:

- Que anda você aqui a cheirar?

Ele não se alterou. Como se não tivesse ouvido, pediu, numa voz pausada:

- Me dê tabaco. Um cigarro de pacote. Achatou-o com os dedos e, enquanto eu lhe aproximava o isqueiro, remexeu os lábios numa mímica indecifrável, acabando por dizer:

- Creio que gosto do senhor, patrón. É um dos nossos, vê-se logo a uma distância de duas léguas. Eu era capaz de atirar esse sujeito do engenheiro Brás para o fundo de um desmonte, mas consigo, faça o que fizer, é outra coisa. Usted é dos nossos. Yo lo sé, comprende? Não precisa de negar. Sou um borracho, ando prà qui esfarrapado, meto nojo, chefe, mas tengo os olhos abertos.

Arregalava os olhos embaciados do álcool e erguia os dedos magros e sanguíneos como todo o resto da pele. A voz dele repetia-se pelas galerias laterais, parecia-me que dezenas de bocas a propagavam, numa ressonância enervante que era uma conspiração.

- Vamo-nos daqui - disse- lhe, angustiado. A sua sombra juntara-se à minha, a dele mais imponente e alongada, a todo o momento prestes a devorarem-se. Perto da saída da galeria, recebeu-nos uma rajada de vento húmido, arremessando-nos folhas mortas. Lá para o terreiro, buzinou um automóvel.

- Usted me perdone ter-me intrometido no caso do rapaz. Talvez não devesse fazê-lo. Mas usted, chefe, comprenderá que certos castigos, mesmo justos, podem liquidar uno. Aquele muchacho vai dormir, daqui em diante, com a morte do companheiro. Foi usted que lhe marcou, a ferro quente, a sua responsabilidade.

Senti as pernas vergarem-se ao peso do corpo. Gelara.

- Mas você - retorqui, com as palavras roucas -, mas, você, se tem assim uma moral tão severa e é um sujeito que apregoa certas coisas, como se permite ser um tipo sem vergonha?

Percebi que ele tinha fechado os punhos. Os olhos cintilaram-lhe de furiosa maldade, mas, contidos, foram minguando até esconderem a ira.

- Bueno, em cada homem há um poço de trampa E quando se dá por isso, chefe, muchas cosas podem acontecer. Mas é sempre bom que se ponha a porcaria vista. Quem não aguentar o fedor, que aperte o nariz.

Não pude deixar de sorrir.

Estávamos perto da geradora e o estremecimento dos motores propagava-se-me dentro das vísceras. O vento era cada vez mais rijo: vinha da Gardunha, gretava-me a pele chupada e ressequida. Eu devia ter emagrecido nos últimos dias. Fui andando pela borda do rio e acabei por sentar-me num cepo. O Candolas estacou na minha frente, coçando os olhos, bocejando, como se tivesse sono, e depois disse com brandura:

- Quando bateu naquele rapaz, chefe, senti que era a mim que batia. Coisas do diabo! Usted sabe que eu estive num reformatório? Era um ganapo deste tamanho, malandrete, quando lá me enfiaram. Deram-me porrada como é dado, mas quanto mais apanhava, mais sentia ganas de fazer pior. Bueno. Um dia apareceu no reformatório uma companhia de teatro e, como eu também era um pedaço carpinteiro, puseram-me a trabalhar na montagem dos cenários. Isso deu-me certa liberdade, usted comprende? Até nos faltava a respiração, só de pensar que tínhamos as portas abertas! Bueno, mas talvez nada disto tenha interesse para o senhor.

Neguei com a cabeça, impacientemente. Desde as primeiras palavras do Candolas que eu ficara ávido oprimido, numa atenção quase dolorosa; parecia-me que iria encontrar o esclarecimento para os recessos obscuros e fascinantes da sua personalidade, ao mesmo tempo que, enfim, justificaria a mim próprio essa fascinação.

- Continue, Candolas.

- Para quê, chefe? Usted tem ainda muita coisa agarrada à pele. Precisa de a botar fora, primeiro, antes que possa comprender.

De novo aquele tipo, com descaro, e decerto intencionalmente, me arranhava os nervos. Queria fazer-me sangrar. Um farroupilha! E como eu me dispunha a aturá-lo, como me oferecia para ser vexado!... Apetecia pô-lo dali para fora a pontapé. Em vez disso, porém, achei-me a dizer, ou, melhor, a imaginar que lhe diria: Deixemo-nos de conversas, Candolas. Nestes dias tenho pensado em toda esta choldra. Como havemos, então, de sabotá-los? "

Calculava a sua resposta, ambígua, matreira; Bueno, chefe: as entivações, às vezes, podem esbarrondar... o terreno dar à carga... Mas não farás nada disso, és um garoto presumido, medroso, e pertences-lhes... Não há modo de podermos contar com gente como vocês. Não tenho medo, Candolas. O que sinto é essa coisa que dizes agarrada à pele.

Isso. Coisas agarradas à pele. Não o que ele pensava, porém. Era a mina, a mina é que eu tinha agarrada à pele. Os poços da Mosantela haviam nascido das minhas sondagens, eu próprio fizera rebentar a primeira carga de fulminante, levando a cápsula aos dentes como qualquer mineiro de calo no ofício; tinha no meu quar to a primeira amostra de minério virgem saído das cu bas. Aquilo era a nossa carne, pertencia-nos, a mim e a todos os homens que tinham vindo de diferentes lugares e ofícios para erguer de barrancos, terreno bravio castanheiros decrépitos uma mina florescente. A min era eu, o Candolas, os carregadores de fogo, os pinches, as brocas e todas as máquinas de que conhecía mos as manhas e as mazelas, que auscultávamos como gente viva. Os contratempos apenas serviam para tornar mais intensa e funda essa adesão. O volfrâmio, o negócio, a guerra? Isso era com eles, os traficantes da cidade que vinham negociar com os estrangeiros o produto da nossa odisseia, reduzi-lo a cifras e conduzi-lo a meandros tenebrosos, pelos dois lados da fronteira. Desprezávamos uns e outros. Então a nossa indiferença por essa face torva da engrenagem, de que éramos o êmbolo vital, significava conivência, leviandade, traição? Sabotá-los? Mas os poços, as galerias, eram a minha carne e a daquele rapaz que eu esbofeteara. Sabotá-los seria decepar as nossas raízes. Precisava de tempo para meditar em tudo isso. Precisava ainda que...

- Bueno, chefe, logo que está disposto a lérias, vou até ao fim.

- Não sabia que tinha andado no reformatóriodisse eu, a destempo.

-Estive. Mas isso não tem grande importância, chefe. Me dá outro cigarro de pacote. Usted fuma bons cigarros. Na mina ganha-se bem.

Era uma insinuação? O Candolas continuava a aproveitar todo o ensejo, mesmo despropositado, de me ferroar os nervos

- Continue lá com isso, não me aborreça. E fique com o resto do maço, se lhe agradam.

Ele encolheu os ombros e aceitou os cigarros. Hesitou entre várias algibeiras, acabando por guardá-los no blusão, que abotoou depois cuidadosamente.

-Bueno, chefe. Estava a falar-lhe do tal teatro. Numa das cenas a representar, o comediante servia-se de cigarros (não eram destes, claro...) e de beatas guardadas no camarim. Mas, quando chegou a altura da cena, já lá não estavam os cigarros!... Comprende, hem? Fomos metidos na choça, claro. Não me ralei muito, acredite. A minha ideia de há meses era safar-me dali e

empregar-me.

- Vocês foram presos por tão pouco?...

- Estou a falar-lhe da prisão do reformatório. Havia lá uma cela, para certos castigos, comprende? Fechavam-nos ali, como podia ser noutro sítio.

- Adiante.

- Usted duvida?

- Nunca sei quando você me está a intrujar.

- Chefe Usted.

Candolas não podia aperceber-se de quanto a minha frase fora um apelo, um pretexto para lhe rogar uma sinceridade que não estava naquele ridículo pormenor mas em tudo o que, ainda mal definido, nos ligara estranhamente.

- Bueno, eu tinha já umas perras de lado, ganhas num negócio com o cura da aldeia, a quem eu prometera fazer-lhe uma carroça azadinha. Era um tipo desconfiado, mas eu convencera-o a adiantar-me umas massas para o material. Assim, quando el moço nos levou comida, saltámos sobre ele, deixando-o fechado em nosso lugar. A coisa estava tão bem estudada que nos achá mos cá fora sem mais encrencas. Quando chegámos à estrada, o companheiro disse: Agora, com o teu dinheiro, a gente espera por uma camioneta. Vai ser uma viagem catita! Eu tinha mais calo das pessoas e dei-lhe para trás: Deixa-te de piadas, garoto; eles daqui a nada estão a filar-nos, que pensas tu? A gente tem de se pôr a mexer sem esperar por coisa nenhuma. Perdemo-nos nos pinhais, nenhum de nós já podia com as pernas. Depois abicámos num ponto em que se via o rico pomar de uma quinta. Nem olhámos um para o outro, corremos a saltar o muro. No melhor da festa, raios apareceu el guardilla. Esperou-nos à descida da árvore: "E lá! piratas", disse ele, a babar-se de gozo, nã gosto de fregueses como vocês. O companheiro foi escorregando da árvore e já não chegou ao chão em seu juízo. O guarda dera-lhe um porretazo na cabeça. Eu pulei de repente e consegui assustar o homem e quitar-Lhe o pau. Estendi-o ali, quietinho, a esguichar sangue da testa. Toda a cara do gajo era uma bolacha de sangue e o tipo gritava que estava cego. Cego nada, é claro: era o sangue que Lhe corria para o canto dos olhos.

O Candolas levantou-se, interrompendo a narrativa, ao ouvir o ronco de um camião que subia a colina. Era o camião negro que, a maioria das vezes, precedia o jipe do administrador da companhia. O alemão gostava de nos mandar à frente esse aviso da sua chegada, para cair então sobre a nossa expectativa, como um milhano sobre um coelho apavorado.

- Lá vêm eles, patrón.

- Deixe-os vir. Conte o resto.

- Devem precisar de usted...

- Que esperem.

Não o olhei durante esse breve diálogo. Se o fitasse, creio que teria encontrado razões para o odiar.

-Bueno, o caminho era fugir. Aquilo acabaria muito mal para mim, comprende? Foi a matutar nisso que corri a quinta à procura de água. Ensopei o lenço, enchi um caco velho e cuidei primeiro da cabeça do meu companheiro. Tinha um galo do tamanho de um ovo! Ainda me pus a caminho várias vezes, mas acabava sempre por voltar para junto deles. Estavam atordoados, a dizer parvoíces. Danava-me de os deixar para ali e danava- me de não me pôr ao fresco. Bueno. Acabei por arrastá-los como pude e, quando vi ao longe a aldeia, gritei para que alguém viesse buscar os feridos. Feridos! Coisa de nada, comprende, mas eu, nessa altura, sentia aquilo como um crime. Ainda hoje me arranho a pensar que me fui meter na boca do lobo.

O jipe, enfim. Parecia um brinquedo a trepar os lombos o Carroqueiro. Depois o vento mudou de rumo e a noeira escondeu-o. Estou certo de que o Candolas, como eu, não tinha pensado noutra coisa desde que aparecera o camião. Daí a pouco, viria alguém chamar-me. O homem do jipe, com o lápis a percutir na mesa do pessoal técnico, consultando os mapas, impaciente pela minha chegada. Isto vai mal, engenheiro. Mais genica, nada de perder tempo com entivações demoradas, hem? Mais genica. Mais volfro, mais canhões. A mina não servia para mais nada.

- Ananharam-no. não?

- Claro, chefe. Eu tinha-me deitado sobre uns fenos, estafado. Acordei aos pontapés e depois levaram-me ao gabinete do director do reformatório. Dêem-lhe reguadas até eu fazer um boneco neste quadro. O prefeito começou a cumprir a ordem. Os ojos me quedavam cor de tinta. Mas eu não poderia esperar ou tra coisa daqueles filhos de um lacrau. Devia ter deixado o companheiro e o patife do guardilla estendidos no chão. Comprende usted? O prefeito estava a ver-me desmaiar e perguntava: Então, senhor Marques, já chega? Ainda estou a desenhar os braços. Mas entretanto deslocara-se-me um osso do punho sem que eu já sentisse nadinha. As minhas mãos eram cortiça. Só um fascista podia fazer aquilo.

Contraí os músculos da face, roí os lábios até suportar a dor. Recordava agora estranhamente: Em cada homem há um poço de trampa. Em cada homem há um poço de trampa. " Eu, o director do reformatório, o alemão que me esperava, tantos, e todos os que julgávamos o Candolas pela sua vida de galdério, tínhamos vísceras inteiras desfeitas em podridão.

- Bamos, patrón, não vá agora lembrar-se daquela história da bofetada no rapaz. Uno hombre también precisa de ser duro. Acho que teria feito o mesmo no seu lugar - e apalpava o pulso do braço esquerdo, anafando-o num jeito talvez habitual. Depois, apontando-me um homem que corria na nossa direcção, disse:

-Vêm chamá-lo, chefe. Usted es mui necessário ao alemão.

Levei a mão ao braço, como se também o meu pulso sentisse ainda violências passadas. Queria falar e não podia. Por fim, a torrente foi irresistível. Era-me urgente transmitir àquele homem que eu era já outro, que estava com ele, que o compreendia, e tudo se escapou num grito que soou dentro de mim como o ranger de velhas raízes desventradas:

-Vamos a isso, Candolas. Temos de sabotá-los!

 

                   O HOMEM VESTIDO DE NEGRO

Bom, o que mais espantara os rapazes fora precisamente aquela frase. O meu pai é doente do coração, por isso regressámos a Lisboa. Ele não se dava bem com o clima de Paris. Mas vocês pensam que eu me ralava se alguém entrasse aqui para dizer que ele estava morto? Os rapazes tinham sentido um baque no peito e, dessa vez, olharam-no com uma inquieta e definitiva admiração. Ele era-lhes superior. Um tipo duro, sem peias. Um tipo a valer. E Joel? Ao dizer-lhes aquilo numa voz desprendida (ele falava sempre muito baixo e surripiava palavras ou sílabas inteiras) não parecia que fosse sua intenção socar ninguém; no entanto, lá dentro, minava-o ainda o pavor da própria coragem - o mesmo arrepio de quando, em miúdo, protestava contra as lições de catecismo soltando uma heresia.

Não havia sido ele a aproximar-se dos rapazes. Estes é que, tendo sabido umas coisas e sobretudo ao invejarem-lhe o ar provocante com que entrava no café e cuspia nas pessoas, só de olhá-las, rondavam à sua volta, cortejando-o de todos os modos, até lhe vencerem a misantropia. Efectivamente, Joel não mostrava qualquer interesse por conviver. Era fácil deduzir que se sentia ali como peixe na areia, à espera que a maré o recuperasse. Degredado, enfim, nesse bairro catita, de prédios com porteiros fardados, gente graúda muito bem protegida por enxames de polícias. Ora ele odiava os polícias. Eram um símbolo de convenções, de redes de arame farpado. Pressentia-os em todos os lados, a sitiá-lo, mesmo sem os ver. Lisboa, pois, era uma pasmaceira enclausurada, de aldeões bem-comportados, que iam ao cinema aos sábados, com as famílias, e aos domingos atravessavam o rio para comer mariscos nos restaurantes da Outra Banda. E os rapazes, rebentos tristes desses campónios vestidos de burgueses, eram uns fedelhos que se julgavam tesos e livres só porque começavam a desleixar os vincos das calças, bebiam uns copos e tinham uma chave da porta da rua. Tinham a chave, é certo, mas ao chegarem à rua pareciam galinhas a escapar-se, estonteadas, da buzina de um automóvel. Também, às vezes, decidiam safar-se das aulas, fanfarronando: Malta, vamos prà borga!

Isso de faltar às aulas e de chamar "borga" a um passeiozito com raparigas que tinham horas marcadas de entrar em casa ou a uma ronda pelos bairros das prostitutas era uma pobre farsa que ele cortara pela raiz. Decidira, muito simplesmente, acabar com o liceu e depois com essa treta da escola comercial onde o pai o enfiara agarrando pelos cabelos um assomo de autoridade em que ele era o primeiro a não acreditar. Não interessa - dissera Joel, e essa frase curta e rosnada, tão do seu uso, ninguém a faria torcer. O pai cedera. Cedia, afinal, em tudo, gasto da vida, gasto da doença, já indiferente às excentricidades ou à ruína da família. Encurralado no escritório, com os óculos frios remendando velhos papéis, a expectativa da morte, que viria daí a umas horas ou daí a uma eternidade, cansara-o e fizera-o egoísta. Parecia um actor decadente que, desde muitos anos, esperasse a sua vez de entrar em cena numa peça que o êxito eternizava. Joel fazia-lhe companhia, enquanto a mulher que ele trouxera para o convívio da sua agonia se pavoneava nos salões de chá ou noutros sítios onde fazia render a sua inconformada beleza. Não era bem isso: Joel passava também quase todo o dia em casa, mas o pai só lhe dava pela presença quando ouvia, lá das bandas do seu quarto, a tempestade de discos de jazz ou a fúria com que o filho arranhava as cordas da viola. Aquilo podia durar horas e terminar de chofre, como um cataclismo que tivesse completado a devastação, ou apenas breves instantes. O pai, uma vez por outra, batia-lhe à porta e os mesmos óculos frios, apreciando-o com surpresa, enleio e interrogação, pouco iam além das palavras: Acaba com isso.

Muitas coisas tinham ocorrido até chegarem a esse viver suspenso sobre o vazio do dia seguinte. O pai era um bom arquitecto, diziam, e ganhava dinheiro chorudo. Andava sempre arredio, num turbilhão de pessoas, interesses, ganâncias. O seu encontro com a família, à noite, de raspão, quando vinha jantar depois do filho, que nem chegava a vê-lo, significava um ritual que mais avivava a sensação de que se tratava de um hóspede irregular, com o seu quê de ilícito e fabuloso. Joel, durante anos, espreitara-lhe a chegada da janela do quarto e parecia-lhe sempre que ia acontecer fosse o que fosse de maravilhoso, que o pai lhe entraria pela porta para conversar consigo, para o acarinhar, para ser, finalmente, o seu companheiro. Mas não. Ele vinha e partia de novo, levando a mulher a um dancing ou a uma paródia em casa de amigos. Certo dia, num domingo, à mesa, ele encarara o filho com uma esquisita expressão, exclamando Como este rapaz está crescido O tio Ernesto quando regressara de África, depois de demorada ausência, dissera o mesmo.

A mãe não desgostava dessa vida. Dormia invariavelmente até tarde, retemperando-se das noitadas, e o resto do dia era pequeno para cuidar de si (alta como uma palmeira, altiva como um cavalo de raça) e cumprir alguns deveres de sociedade, Joel tinha-lhe uma estranha afeição: a mãe era bela e majestosa, os olhos sentiam-se felizes de a venerar. Garantia a si próprio que, quando fosse homem, fugiria com a mãe. A mãe só para ele, para os seus olhos extasiados, e não para aquela súcia de peraltas que a todo o momento lha extorquiam. Depois, um dia, um corredor de automóveis fez umas piruetas em frente da casa. A mãe foi à janela e acenou (onde o teria conhecido?); e o desportista veio outras vezes, fazendo roncar o seu torpedo vermelho, soberbo como um lagarto de fogo. Percebiam-se certas coisas em casa, mas lá entre os pais, uma tormenta surda donde Joel era arredado. Dava pontapés nos móveis, nem sabia porquê, rasgava lenços e camisas, e agora os seus olhos já não se compraziam em adorar a mãe. A mãe parecia-lhe não feia, mas de uma beleza enxovalhada, repugnante. Misturou-se então com a gandaia da rua, entrava e saía quando lhe dava na gana, sem prestar dez-réis de atenção à solicitude chorosa e desamparada da governanta. A atmosfera da casa era um punho fechado sobre o seu coração.

A mãe fugiu com o valentaço das pistas. Constava por aí, e ele sabia-o, que o pai propusera que continuassem juntos apesar de tudo, apesar do devaneio, desde que o campeão não voltasse a roncar na vizinhança e que as relações entre ambos respeitassem certa discrição.

A mãe fugira e, meses depois, o pai estava em Paris com o filho. Joel nunca culpara a mãe verdadeiramente; nem chegara, talvez, a pensar nisso a fundo. Ninguém falava no caso e Joel, em breve, sentira-se vazio como um boneco e, à superfície, apenas uma raiva sem objectivo, mas que pedia alguma coisa onde fincar os dentes. Encontrara então alguns companheiros com a mesma ferocidade e o mesmo vazio. Ainda que eles não o tivessem empurrado para o grupo, ter-se-ia visto obrigado a isso. Esperavam-no à saída de casa e seguiam-no irritantemente, passo a passo, parando quando ele parava, apressando-se quando ele se apressava, até lhe esgotar os nervos. De uma vez o pavor e a indignação prenderam-lhe os movimentos. Ficou encostado a uma porta, transido de frio, o estômago dilacerado por unhas. Que viessem, que tudo acabasse. Um deles puxou-o pelas golas da blusa, fê-lo bater com a cabeça de encontro à porta. Fechou os olhos para não assistir ao seu próprio martírio. Para lá do medo da carne, contudo, havia um estranho gozo pelo que se passava. Bom aquela noite representara a sua iniciação. Cada bairro tinha a sua malta organizada, com os mesmos ritos, " seu código de obediências e rebeldias. Fora da organização, porém, cada qual se sentia ainda mais condicionado, perseguido por delitos e suspeitas subterrâneas Quando dois grupos esbarravam, era a guerra, até que um deles fosse reduzido a um despojo.

Viera depois a doença do pai. O regresso. A agonia Os dias sem nada para lhes meter dentro. A mãe ainda lhe telefonara: Ouve, filho, queria que jantássemos juntos. - Onde? - Em minha casa. - Não, se quere: num restaurante. Jantara com uma estranha. Provavelmente, não voltariam a encontrar-se.

Desse tempo de Paris guardara algumas relíquias. A viola, uma faca que ele afiançava ainda tinta de sangue (os rapazes haviam-lhe rogado que a mostrasse, mas ele escusara-se), as calças de uma rapariga. Que eu nunca gostei de me meter com catraias. Achava indecente. Mas a gente apanhou-a mesmo à beira de um parque e ela mostrou-nos os dentes em vez de se assustar. Era como se nos desafiasse: vejam se são capazes! No fim, só dizia oh, meu Deus oh, meu Deus como uma galinha choca. Aquilo chateou-nos e ficámos-lhe com as calças. Foi o que mais Lhe custou.

Os rapazes, enfim, tinham compreendido que estavam ainda cheios de sarro. Não era com blusões, peúgas encarnadas e umas foliazinhas que eles poderiam sentir-se heróis num mundo algemado. Esse mundo queria violência, briga, audácias que rasgassem brechas. Tipo a valer - Joel. Por isso ele mostrava uma tal condescendência desdenhosa, queixo metido para dentro, mesmo quando os acompanhava nas correrias de automóveis, uma só mão a domesticar o volante, o perigo soprando-lhe as narinas e raparigas ao lado, gaforinas ao vento, sentindo-se violadas pela excitação. Por isso ele permanecia ensimesmado, à parte, enquanto os ou tros se atiçavam com arrogâncias, e os largava subitamente para se enfiar no quarto e tocar viola. Audácias. Ora Joel dizia que um tipo, em se vendo macambúzio, com horas desmedidas à sua frente, devia pegar num automóvel, mas para fazer coisa de jeito. Assaltar uma taberna, deixando-a como uma floresta depois de um furacão, amolgar os brios a um rufia ou, de preferência, a um burguês janota, e despi-los mais tarde num lugar desértico, onde só por milagre lhes chegasse uma alma compadecida. Coisas rijas. Não contara Joel que, de uma vez, tinham invadido uma casa de prostitutas, escavacando as portas de todos os quartos, enfileirando os clientes no corredor, eles de um lado, elas do outro, e todos nus, obrigando-os a cenas que o terror impossibilitava? As mulheres tinham acabado por se despenhar das janelas. Coisas dessas, sim, é que fariam estremecer a velhada.

Os rapazes, lá entre eles, haviam tomado uma decisão. Para começar, um automóvel e Joel que planeasse o resto. Estavam prontos para todas as provas.

Ei-los, nessa noite, reunidos no bar, à espera do companheiro que ficara de conseguir o automóvel. Entrava-se no bar pela loja de um antiquário, descia-se à cave e, para lá de umas abóbadas que poderiam ter sido celas de monges ou coito de malfeitores, aí estavam as mesas toscas, a chaminé transformada em balcão, os quadros abstractos que revestiam as paredes e, num recanto onde o fumo dos cigarros se espessava, o velho piano.

Havia quase sempre gente ao piano. As mãos corriam as teclas sem dono e vinha a música. A música aparecia porque tinha de ser, porque os cigarros, os corpos e os nervos expectantes a exigiam. Música qual quer, inesperada e inevitável como um raio que fende as nuvens electrizadas. E quando o pianista fortuito se levantava do banco era ainda a música que os jovens clientes do bar tinham nos dedos, nas vísceras e nos músculos, e não já os cigarros, nem os copos de brande, nem os desenhos que haviam esboçado no tampo das mesas; música era ainda uma frase interrompida, um olhar que não pretendia dizer coisa alguma e o silêncio que, de chofre, estrangulava o tenso rumor. Nessa atmosfera repleta, os sons, retidos na memória, eram como folhas de árvores que, desprendidas pelo vento, tivessem ficado presas nos fios telefónicos. Depois o doloroso encanto quebrava- se, também abruptamente. E os jovens desatavam a falar, a mexer-se à toa, formigas a repovoar, com pressa, um deserto.

Apenas as raparigas permaneciam lânguidas. A sua expressão era feita de olhos enormes e escuros, de cabelos cujas pontas pareciam chifres, de sombras que devoravam a magreza do rosto. Magras e ensonadas. Encostavam a cabeça sobre a mão oferecida à insónia ou a um ombro do companheiro, enquanto a outra mão se deixava arder com o cigarro. Henrique, diz tu um poema! E o poeta das barbas louras e olhar azul, puro como um céu de Verão, trepava para uma das mesas. Deixo-te uma mancheia de versos que não escrevi... E o seu rosto parecia torturado de o forçarem à súbita inspiração, embora o poema, em boa verdade, tivesse sido composto, dois anos antes, num café de Toulouse, durante um curso de férias para estrangeiros. Devia tratar-se de uma varonil exortação (por essa altura o poeta projectara alistar-se na Argélia, ao lado dos párias rebeldes) e os rapazes não gostavam de exortações. Foi assobiado. O poeta não se ralou com isso. Amparando-se às grades, tentava agora subir mais alto, ao balcão, para agradecer os sarcasmos. Pois fiquem sabendo que houve um tipo que plagiou estes versos. Escrevi um artigo contra o gajo.

Um novo pianista pretendeu afogar a chacota, desviando as atenções, enquanto o poeta, juntando-se ao seu grupo, dizia: A gabardina? Não faz mal. Às vezes deixo as coisas por aí. No dia seguinte, aparecem, tudo direitinho. Mas, se não aparecessem, seria o mesmo.

Joel começava a sentir os nervos eriçados. O companheiro do automóvel tardava e o ambiente do bar não podia suportar-se por muito tempo- Intelectuaizinhos de chá e torradas. Poemas e desmaios. Isto é o esquema de uma retrete que estou a conceber. - Pois concebe... mas sem cheiro- Frases assim, imberbes. Está ali um tipo ao piano que é da corda.

Joel raspou com o sapato na perna da mesa- Os outros rapazes liam-lhe o tédio na cara e repetiam-no

- Lá vem o Augusto - disse um deles, o que vigiava as escadas.

O pianista da corda" batia três teclas ao mesmo tempo, com força. Sempre as mesmas teclas.

- Olá, Augusto.

- Olá.

- Só agora.

- Tive uma encrenca - e o recém-chegado olhou Joel com precaução - Ouvi um estardalhaço no diferencial e fui ao mecânico saber do que se tratava.

Augusto tinha um perfil de ouriço, com o cabelo em hastes curtas, espetado para a frente. A testa en triângulo.

- Vamos, então.

Joel sentou-se ao volante sem esperar que o don do carro lho sugerisse- Também ele estava nervoso- Mas era uma espécie de nervos diferentes da dos companheiros.

Atravessaram o bairro que ia despenhar-se na beira

-rio. Curvas apertadas, súbitas, entre prédios que, sem espaço, se enfiavam no céu. Anúncios efémeros, apagando-se e acendendo-se numa nova cor, como olhos de gatos que reflectissem uma verbena de luzes. Casa Bom-Dia, verde; Casa, vermelho; Bom-Dia, outra vez verde. O meu bebé, azul. Azul, evidentemente. Na montra, um boneco com orelhas de lobo. É pá, um carro bestial! Tem umas traseiras que parecem uma borboleta.

Joel travou. E todos estenderam as cabeças para fora, apreciando, em êxtase, o imenso automóvel americano.

- Quanto dará aquilo?

- Aquilo não dá: voa.

- Só queria ter os meus pés sobre um pedal daqueles.

Outros carros doidos iam passando de rajada e o deles estremecia de cada vez, como um barco ancorado ao sopro de um tufão.

- E agora, que pensam vocês fazer?

Os rapazes consultaram-se com uma expressão aturdida.

- Tu é que sabes, Joel.

Ele arrancou de repente. A areia salpicava, por debaixo, os guarda- lamas. Os pneus pareciam rodar sobre um restolho de ervas secas. Três luzes vermelhas no céu turvo, balouçando-se sobre o cais. Aqueles dois queriam atravessar a estrada, punham nos gestos precipitados e simétricos a mesma hesitação. Apeteceu-lhe carregar no acelerador sem voltar depois a cara para os ver derretidos no asfalto. Era um desejo inventado, mas que lhe dava uma voluptuosa excitação. Vamos, para diante! - atiçava uma voz roxa dentro dele. Ou então ir de encontro ao pequeno Fiat que seguia na frente, num estertor de abelha engasgada. Tentou espevitá-lo com enfurecidos sinais do pisca-pisca. Virou para um largo ajardinado. Árvores faziam cerco a uma estátua. Lá vinha uma rapariga de gabardina. Miudinha, definhada, parecia uma criança. Não, não era uma criança. Face opada, murcha, sobre pómulos malaios. Uma pega. Sob a denúncia do candeeiro, que, solitário, junto da estátua, dir-se-ia um espectro, via-se agora cruamente o que ela era ou não era.

- E se levássemos esta?

- Não interessa.

O carro passou rente à rapariga, desdenhando-a. Depois outras árvores, mais rasteiras e podadas com brutalidade no justo momento em que os ramos se haviam preparado para engrossar. E, mais além, um longo tapume. Um homem vinha caminhando por ali, cabeça enfiada no chão. Joel, como um caçador alertado, afinou os olhos, sustendo a marcha. O tapume terminava num apeadeiro - um telhado de zinco sobre uma guarita. O homem dirigiu-se para lá. Joel abriu a porta do carro num gesto ríspido, e os rapazes, tomados de surpresa, nem souberam se deveriam apear-se também. Não percebiam.

Com os polegares dependurados dos bolsos das calças, Joel estava em frente do homem, que se sentara no banco da guarita. O desconhecido tinha agora os pés muito juntos, as mãos sobre os joelhos, como um beato numa sacristia. Quase não se lhe via o rosto, enterrado no chapéu preto. Tudo nele tinha essa cor: o fato, as meias, os sapatos.

-Eh, gajinho, estou a olhar para si.

O homem só instantes depois levantou a cabeça. A sua expressão absorta era a de um rafeiro que tivessem afeito ao castigo.

- Não ouvi bem.

- Repito lá dentro. Entre para o carro. Os rapazes haviam formado uma barreira por detrás de Joel. Assistiam, de peito arfante, a uma solenidade. O homem não compreendera.

- Que disse o senhor?

- Não se faça esperto. Entre para ali.

- ah, obrigado. Espero pelo comboio.

Um dos rapazes interferiu:

- Não precisa. Nós levamo-lo.

- Seria incómodo para os senhores.

Joel cortou

- Não gosto de fantochadas. A gente é que quer levá-lo. Percebeu?

-Já que querem, agradeço. Moro em Caxias. Assim não tinha piada. O homem era um lorpa. E os rapazes, com um íntimo alívio, calcularam que Joel não poderia fazer grande coisa de um tipo que morava em Caxias e estava grato de lhe apressarem o regresso a casa. Mas foi isso mesmo que enraivou o companheiro.

- Vá, despache-se - e empurrou-o, com um pé, para o automóvel.

O protesto do homem morreu-lhe na garganta. Joel deu-lhe um murro na nuca e metade do corpo caiu dentro do carro e ali se pôs a estrebuchar. Quando ele se viu sentado, porém, deixou logo de reagir. Disse, numa voz branda:

- Os senhores enganam-se: tenho pouco dinheiro comigo. O meu chapéu ficou lá fora. Se me dão licença.

- Espertalhão, é o que ele é. Deixa-te estar quietinho, sonso. Amanhã, se puderes arranjas outro chapéu.

- Faz bem refrescar a cabeça - troçou Augusto, num riso canino, satisfeito de ser o autor de uma boa laracha.

- É então em Caxias, hem?

E Joel levou o acelerador ao fundo, forçando os pneus a guincharem no asfalto lustroso. Os rapazes não sabiam que dizer ou fazer. O homem, dócil e ausente, não colaborava. Tudo aquilo era surpreendente, mas não chegava a ser terrível. Só Joel levava os dentes cerrados, a lava a encher o peito. O mar, saltando os molhes, tinha ido lamber os muros do outro lado da estrada.

- OH pá! cuidado, o alcatrão está molhado.

- Não interessa.

Não interessava: mesmo se a noite acabasse ali. O comboio que vinha da distância parecia prestes a atravessar-se-lhes no caminho; mas, já perto, desviou-se - uma cobra amarela e assustada.

O homem voltara à posição seráfica em que o tinham visto no apeadeiro. Dir-se-ia inconsciente de tudo. Ou disposto a tudo. Apesar disso, mais tarde, balbuciou

-Já passámos Caxias. Não sei o que os senhores querem de mim.

- Caluda. Assim bem- comportado é que gostamos.

- O tipo parece um malparido, não achas, Joel? Oitenta quilómetros, nada mais, prevenia o dístico da estrada. Joel, como réplica, violentou o acelerador. O olho sanguíneo de um farol e o homem lá atrás, visto pelo retrovisor, silencioso ou com um ruído esquisito na respiração de ave moribunda. Ia acabar com aquilo depressa. Logo por sorte apanhara um lorpa. Os rapazes iam ficar desiludidos. Não, essa humilhação não era com ele. Daí a pouco se veria.

Mais árvores, depois relva e os penhascos solitários sobre o mar. Cortou para ali. Augusto desconfiou da intenção e disse:

- Há tempos, encontrei neste sítio dois pescadores, dois lirus.

- Isso era há tempos. - E dirigiu-se ao homem:

- Vá, espertalhão, vamos tomar ar.

Saíram todos. O homem pôs-se a olhar para um e outro lado, mais tristonho do que surpreso. Vinha do automóvel, de portas abertas, uma melodia sedosaque enfurecia o rugido das ondas.

- Tapem a boca a esse rádio. Vai tu, Augusto.

Augusto, sôfrego, estrangulou a melodia. Agora era só o rosnar das águas, que repercutia debaixo dos pés. De súbito, com uma nova arremetida, toda a ressaca se partiu pelo meio e a briga foi continuar mais além, num marulhar cavo e exausto.

-Toca a despir. Despe-me essas asas de corvo. O tipo é negro de alto a baixo, já viram?

- Parece um cangalheiro.

- Despir-me... para quê?

- Pra não pareceres um cangalheiro. Vá, não percas tempo.

Os olhos do homem luziram pela primeira vez.

- Os senhores não são boa gente.

- Só agora percebeste...

- Pois não me dispo.

Joel atirou-lhe um pontapé ao estômago. Os rapazes iam ver como aquilo se fazia. O homem dobrou-se, gemendo, e depois foi recuando para o mar. Joel tinha o queixo todo recolhido, os cabelos desmanchados para a testa. Os rapazes iam ver. Agora, iam ver.

- Não deixem que o tipo tome um banho a estas horas.

Um dos rapazes obedeceu, cortando-lhe a fuga.

-Eh, malparido, aqui não passas!

Os outros, hesitantes, sondavam a expressão esgazeada do companheiro.

- Vá, despe-te, não me obrigues a chatices. O homem sentou-se num penhasco e, levando as mãos à cabeça, pôs-se a choramingar. Os rapazes coçaram o nariz, contrafeitos. Joel, ao percebê-los acobardados, sentiu, no fundo de si próprio, que era ele o responsável por essa cobardia. Não os soubera impressionar. O homem iria pagar tudo isso.

- Despachas-te ou não? - E, sacudindo-o violentamente pelo casaco, estoirou-lhe com os botões. - És ou não cangalheiro?

- Estou de luto.

A sua voz, lastimável, era uma lamúria.

- Todos os cangalheiros estão de luto.

- Morreu ontem o meu pai.

Joel abrandou a mão que se filara no casaco e retirou-a devagar. Morreu ontem o meu pai. Ontem. Fez-se um tão grande silêncio que o mar parecia ter furado as rochas e estar ali entre eles, ofegando. O longínquo farol, que deitava uma língua de fogo, breve e felina, sobre o dorso das águas, passou-lhes pelos corpos, incendiando-os. Os rapazes estavam transidos de frio ou de emoção.

- Mentes - recomeçou Joel, de punhos cerrados. O meu pai sofre do coração, por isso regressámos a Lisboa. Mas vocês pensam que eu me ralava se alguém.

- Deixa-o, Joel. Deixa-o ficar assim como está. Vai ter um trabalhão para chegar a casa.

Joel tinha um olhar de fera acossada. Os rapazes aproveitaram-se da pausa para insistir:

- Vai tudo dar ao mesmo. Deixa-o ficar como está.

- Não, ele mente. É um porco mentiroso. E de súbito atirou-se ao homem e os dois corpos rolaram sobre a areia. Joel esmurrava-o e abocanhava-o por todos os lados. E já não eram os ganidos do homem que se ouviam, nem o seu choro aturdido, mas sim os berros desesperados de Joel enquanto Lhe esfrangalhava o fato negro:

- Mentira! mentira! és um cangalheiro. O teu pai não morreu

 

                     O VISCONDE OU UMA HISTÓRIA QUASE HUMORÍSTICA

Embora lhes custe a acreditar, o Visconde, em pessoa, tinha a sua taberna no centro da vila. Café, chamavam-lhe no sítio, visto que uma taberna é poiso de malteses, e a vila, por muito que desse umas dentadas nas prosápias do Visconde, mostrava-se solidária em defendê-lo de mais enxovalhos. Duas ou três mesas de ferro, para resistirem aos punhos dos jogadores de sueca, uma espécie de bilhar que dava pelo nome de negus, ou coisa que o valha, atenuavam a sordidez do balcão manchado de vinho e petiscos, onde os fregueses pediam de tudo, cachaça, tinto ou caracóis, menos café. No entanto, nada custa evitar chamar-lhe taberna. Nos primeiros tempos, quando ainda era possível um disfarce para a derrocada, o Visconde pôde justificar por generosas razões aquele capricho de oferecer à vila uma casa de bebidas. Era, dizia ele, um pretexto para ocupar, num serviço cómodo, um afilhado inválido para a enxada. Tratava-se de um rapaz esgalgado, anémico, malandro, que convencera toda a gente, incluindo os médicos militares, de que o seu corpo tinha especiais direitos à preguiça.

O Visconde vinha por ali apenas para honrar com a austeridade da sua presença o ambiente vilão do afilhado. E vinha pela tarde, nas horas em que não se receava um encontro com qualquer grupo de bêbados ou batoteiros, arrastando consigo dois ou três lavradores, que pediam um refresco e encontravam as mesas ainda limpas e decentes. Na vila dizia- se muita coisa. Na vila sempre se diz alguma coisa, a propósito de qualquer acontecimento ou a propósito de nada. E como o café do Visconde fez, naturalmente, sensação, as mulheres do forno ou dos lavadouros, depois de alvitres demorados e bem discutidos, embora censurados pelo respeito que se devia ao Visconde, concluíram que a taberna era um desafio ao café dos Saraivas. A conclusão, é evidente, não colocava mal os pruridos do antigo suserano da vila. Os Saraivas eram negociantes do diabo. Monopolizavam o comércio do concelho, vendiam desde limonadas a chouriço e presuntos. Tinham começado como ganhões nas herdades do Visconde, e a poder de ganância, roubos, caminhadas de almocreve pela serra, construíram uma casa, um nome, acabando por sugar quase todo o dinheiro volante da região. Saraivas e Visconde não podiam entender-se. O Visconde via neles os ganhões, ofendendo-o com a impudica arrogância da sua prosperidade. E o choque deu-se, mais tarde, tremendo, quando os Saraivas, sabedores de umas dificuldades financeiras do Visconde, ousaram propor-lhe a venda de uma das herdades. Pouco faltou para que o lavrador ficasse gago do insulto.

Estou para aqui a falar em Visconde e reparo que não lhes disse ainda que ele não merecia tal distinção apesar da sua bengala de punho de prata, da barriga ampla, rica, caminhando à frente das botas lustrosas, e do porte majestoso de quem herdou sangue e estatura de algum herói das cruzadas. A sua nobreza tinha uma história: de uma das vezes em que ele viajara pelas termas do Norte, acompanhado de um servo que lhe transportava as malas e a manta de viagem para resguardo dos joelhos artríticos, alguém o confundiu com o verdadeiro visconde da terra - um velho fidalgo tonto que a família emparedara numa das granjas da província - e ele aproveitou a honrosa sugestão, adaptando-a à sua imponência, impondo-a aos registos dos hotéis onde se dignava aboletar. Alguém de bom faro correu como vento até à Beira, contando o abuso, ensaiando as línguas velhacas da vila.

Quando ele regressou, era já o Visconde. Muito à socapa, como seria de prever - mas, de qualquer modo, era significativo que, pela primeira vez, os miseráveis se atrevessem a zombar dele. Já então se rosnava que o café ou taberna, como os senhores lhe quiserem chamar, era um dos recursos para a trágica necessidade de dinheiro que mantivesse o aparato da sua existência. Derrocada? Talvez, mas ninguém pôde saborear a mais recatada mudança nos hábitos da família. O Visconde continuou perdulário como dantes, enfadado nas conversas e nos gestos, rouco na voz (para que nem esta fosse banal), e a mãe e a irmã solteirona convidavam ainda os ilustres da cidade para festejos que deixavam no paladar da vila um travo de inveja, esplendor e indigestões. Quem os visitasse, na sala vermelha de damascos, com retratos de guerreiros furibundos e de bispos anafados por cima dos cadeirões, onde cada membro da família tinha um lugar certo e inviolável, saía de lá subjugado; e raros acreditariam, enquanto durasse o sortilégio dos damascos e das alcatifas, que o Visconde roçava as bordas de um abismo.

Os cadeirões teriam certamente uma história magnífica, pois se as três pessoas da casa se achavam espalhadas, ao acaso, entre as visitas, quando o Visconde as incitava a sentarem-se, havia uma dança estranha pela sala   até cada membro da família ocupar o cadeirão que, desde a infância, e por imposição de algum secreto ritual, lhe estava destinado. Também se contava que a veneração pelo Visconde, único varão da família, podia considerar-se idolatria: de uma das vezes em que o médico indicara clisteres para a fidalga preguiça dos intestinos do Visconde, as duas senhoras haviam passado horas angustiosas, de joelhos, aos pés de S. António, até que o boticário, destacado para a operação, anunciasse que o Sr. Visconde tinha, enfim, defecado.

Não admirava, pois, que as pessoas da vila entrassem na taberna após limpos os sapatos no rebato e que se dirigissem ao afilhado do dono da casa com uma humildade que destoava do local e das circunstâncias.

O         Visconde não interferia, não tocava no dinheiro, não se mostrava interessado. Apenas nas proximidades de S. Martinho, dizia lá por fora, como quem se permite a uma laracha:

- Ó coiso! Já sabes que o meu vinho se vende no café do Faustino?.

Como os senhores já perceberam, o Faustino era o afilhado. Era essa, aliás, uma das justificações para a taberna: permitir que o povo saboreasse em primeira mão o vinho excepcional das videiras do Visconde, em lugar de este o vender, por grosso, como o faziam os          outros lavradores, a qualquer negociante da cidade.

-           Talvez por isso, pela excelência do vinho, ou por certas insinuações que o Visconde fazia, num sorriso manhoso, quando pagava as férias da semana: Já o foste no café do meu afilhado!... talvez por isso, como ia dizendo, os ganhões, receando perder a jorna, preferiam estar contrafeitos a jogar as cartas com compostura e a petiscar pedacinhos de febra na venda do Visconde, em vez de esmurrarem os balcões das outras bodegas, onde um homem era senhor de rogar duas pragas ou de discutir os dotes das bebidas. O Visconde, escusado seria dizê-lo, não se sujava em intimidades com os fregueses. ` Se calhava o afilhado ir lá fora, a um avio, o cliente esperava o tempo necessário, de modos tímidos, sem se atrever a insinuar os serviços do dono da casa, mesmo que a precisão fosse apenas de um pacote de velas, um carrinho de linhas - artigos que as vendas incluíam no seu mostruário -, enquanto os Saraivas, do outro lado, traziam para o balcão as mulheres, as crianças e a própria alma, enrodilhando o freguês com todas as artes, vasculhando-o até ao mais íntimo desejo.

Os representantes dos armazéns fornecedores eram recebidos em casa do Visconde. Só ali concedia ouvi-los, e uma simples factura de pirolitos e licores exigia rodeios e mesuras que um ministro não desprezaria. Por esse tempo, o Visconde vendia os últimos chaparrais que lhe restavam. A madeira rendia bem e iria tapar a boca de uns credores mais atrevidos. Ficavam as terras nuas e os outros lavradores gozavam, como danados, essa pública revelação da falência do Visconde. Mas ele tinha sempre uma justificação ardilosa:

- O futuro está nas searas, meus amigos. E as searas não querem sombra, querem campos rasos. Aquelas terras vão render-me o dobro, digo-vos eu.

Se ele o dizia, tinha de ser verdade. Quando os almocreves apareciam por ali, a oferecer-lhe dinheiro pelas ovelhas ou pelos queijos, o Visconde ainda usava as mesmas palavras do tempo em que o volume da sua produção decidia das tabelas do concelho.

- Dás mais - impunha ele, sacudindo a boquilha.

- Já ofereci o que paga toda a gente. Foi o que paguei ao senhor Medeiros.

Uma onda rubicunda inchava as bochechas do Visconde.

- Eu nada tenho com o senhor Medeiros. É preciso que vejas com quem falas.

O almocreve torcia o chapéu nos dedos, mordendo a resposta que saltava à boca - e o Visconde ficava com os produtos em casa, ao caruncho, preferindo enterrá-los na estrumeira a vergar-se à humilhação de um preço igual ao dos outros lavradores.

Com o tempo, o sabor do descalabro e dos ridículos do Visconde misturou-se nas coisas gastas da vila; e se algum dizia: Compadre! Vamos a um copo à venda do... ", era o nome do afilhado que aparecia à frente. Apesar de tudo, ninguém se arriscava a um atrevimento. O Visconde continuava a aceitar os magros cobres dos seus conterrâneos, a troco de fatias de paio e copos de tinto, como quem distribui esmolas. Continuava rouco, de nariz dobrado sobre a boca encrespada - dono de miseráveis.

Mas um dia chegou à vila um viajante de confeitarias, cafés, xaropes. Novato, sem apresentação. Vinha no rasto de colegas enraizados no ofício, explorando umas reles faltas que os taberneiros lhe atiravam como migalhas.

Procurou em primeiro lugar a casa dos Saraivas, atiçado pela fama de que se tratava de umacasa forte, que contentava todos os viajantes que lhe batiam à porta. Se o negócio mais uma vez lhe corresse mal, estava decidido a pôr a nu a sua vida, ameaçado de desemprego - e certamente ninguém, por solidariedade, iria deixá-lo sem uma encomenda. Como era verde no ofício, desconhecia que um lojista não gosta de ver lástimas a servi-lo; entre um viajante que implora uma factura de esmola, apenas para marcar a passagem" ou porque tem um filho no sanatório, e o espertalhão que se impõe pela sua segurança pessoal, bem vestido e imponente, o comerciante é logo intimidado pela suficiência deste último.

E, assim, o vendedor de xaropes foi despedido sem sorrisos do café dos Saraivas. Achou-se na praça, infeliz e aturdido, sem um apoio. Enquanto fumava ininterruptos cigarros, foi meditando na sua desventura. Alguma coisa, certamente, estava errada nos seus processos: era um tímido, um pobre diabo de falas melancólicas. Observara certos colegas de léria fácil, folgazõesque, mercê de duas anedotas, rompiam a obstinação da clientela. Talvez aí estivesse o segredo do êxito.

O viajante lançou fora o cigarro, encarando o sol acre, o céu e as ruas - como se desafiasse a vida. Foi quando reparou que o Visconde, do outro lado da rua, o fitava. O lavrador não admitia que alguém visitasse, antes do seu, o comércio dos Saraivas; era esse um dos rituais que os fornecedores não ousavam ofender. Saíam do gabinete do Visconde e compunham uma desculpa que sossegasse também os brios dos Saraivas:

- O raio do velho tem aquela presunção... Os senhores desculpem.

- Ó homem: àquele tipo não lhe resta mais nada do que prosápia e barriga. É uma obra de misericórdia que os senhores fazem nesse beija-mão.

Como ia dizendo, o olhar melindrado do Visconde fitava o desafortunado viajante, mas este já não podia perturbar-se com os obstáculos que teria de enfrentar. Sentia dentro de si vagas de confiança e inspiração: se os lojistas queriam brejeirice, cigarros, anedotas, antes que se rendessem ao mostruário, iria apresentar-se-lhes, daí em diante, como um destes vivaços de cara estanhada. Consultou a lista das casas ainda por visitar e, seguro de si, foi direito ao café do Visconde. Este, agora, ouvia com dignidade a conversa de um lavrador, dos que, com a sua presença, davam reputação a um café, e fingiu não reparar na entrada do viajante.

- Boas tardes, amigos - saudou o desconhecido, esfregando as mãos sem cerimónias, enquanto apreciava de queixo erguido a modéstia das prateleiras de vinhos.

- Então quem é o dono da tasca?

O marçano fez-se alternadamente rubro e lívido, malhado de assombro. Temia encarar a indignação do Visconde perante essa afronta que, na vila, teria de considerar-se sacrílega. O Visconde, por seu lado, de narinas abertas, ainda tentou distrair o lavrador, desviando-o para umas nespereiras do quintal da frente, na esperança de que ele não tivesse dado pelo insulto.

- O senhor Mateus já reparou na copa daquelas árvores? Lindas, viçosas, nem parecem criadas neste chão!

Mas o lavrador, com velhacaria, indicou-lhe o viajante: Parece que tem aí um fornecedor", não querendo perder aquela saborosa oportunidade de assistir à humilhação desse rival pelintra e emproado. O Visconde, então, alargou os pés sobre o pavimento, empinou-se e, numa voz cava, derreou o intruso:

- O dono sou eu.

Na sua boca, era uma resposta suficientemente decisiva. Mas o viajante não esperou mais para dar uma palmadinha no ventre farto do freguês.

- Então o dono é cá este rapaz? Ora viva, velhinho! O Visconde, atordoado com a inacreditável injúria, deixou ainda que o outro lhe tomasse a mão mimosa e a sacudisse com exuberância. Sentia-se incapaz de reagir, de esmagar o atrevimento do desconhecido, sobretudo tendo ali o lavrador Mateus como testemunha.

- Ora vamos lá então a negócios. - E o viajante continuou a rondar depreciativamente as falhas das prateleiras. E certo de que o comerciante estaria já bem impressionado, o alvoroço não lhe permitiu mais adiamentos - A respeito de bolachas, drops.

O marçano escondia-se por detrás das pipas. Imóvel, silencioso, sustinha o arfar do peito para que o patrão não tomasse consciência da sua presença ali. No cérebro do Visconde chocavam-se temporais de frases, todas elas tremendas, que arrasariam qualquer atrevido; mas, delas, apenas se escapou um frouxo:

- Não preciso de nada.

- Deixe-se de desculpas, velhinho! - e voltando-se para o outro lavrador, estimulou-o à colaboração, comentando com uma piscadela de olhos: - É um compincha, este nosso amigo. Um compincha, vê-se logo. Mas olhe que eu não o sou menos!

O lavrador Mateus baixou os olhos, segurando lá dentro o aplauso ao desconhecido.

- Ouça, senhor... - O viajante consultou o caderno de apontamentos, mas não encontrando o nome do Visconde, corrigiu - Ouça, amigo Eu sou dos que sabem fazer o jeito a um freguês em apuros. Falta de dinheiro, há em toda a parte. Não se envergonhe de o confessar.

E generoso, largo, insistiu na inspiração, prevendo que as suas palavras iriam traduzir-se numa boa encomenda, paralisando mais uma vez qualquer reacção do Visconde

- Se tem dificuldades, sou homem para lhe vender um bom lote de café com o valor de Outubro. Café e vinhos. Sei o que é a vida.

Fechava, assim, a saída ao dono da casa. A manha era essa: umas palhaçadas, animação e depois cercar a clientela com umas facilidades de encher o olho. Nenhum resistiria.

A bengala escorregava do braço trémulo do Visconde, e depois caiu com estrondo, no momento em que ele, enfim, decidira reagir; um camponês que ia a entrar agradeceu aos fados o ensejo de servir um senhor: levantou a bengala do chão, restituindo-a com religiosidade.

O viajante aproveitou o incidente para uma laracha:

- Isso da bengala é do reumático?

O Visconde, então, arrancou de vez sobre o infame. Medonho, soberbo, perante o pasmo do campónio e a ansiedade do marçano, ergueu a bengala; o viajante, surpreendido, antecipou-se, com uma voz já insegura:

-Não foi para ofender, meu amigo. Reumático não é doença de mulheres. Não envergonha ninguém.

- E, ainda mais inábil, procurou distrair o freguês do acontecimento: - Vou mostrar-lhe a bolacha. A sortida tem um preço de combate.

Curvou-se sobre a pasta, mas os dedos em espasmo do comerciante arrepelaram-lhe a manga do casaco.

- Não preciso de nada. E basta de me chamar amigo! Basta de sujar esta casa com a sua presença. Rua, seu malcriado.

A bengala ficou a dois dedos do viajante, que, meio tonto, de olhos esparvoados, recuou até à porta. Sentia-se incapaz de compreender - mas pressentia confusamente que algum deslize imprevisto lhe derruíra os planos. Tinha sido a última tentativa. A última. Depois dela, era entregar-se à desventura, à ameaça de desemprego.

O Visconde, por seu lado, continuava fora de si, as vísceras revoltadas, até que o estômago despejou con fragor uma bolsa de ar - aliviando-o dos nervos e náusea.

 

                   A FRAUDE

Aquilo era uma fraude e eles sabiam-no e, dos dois era o homem que menos a admitia. A sua carne sentia-se por vezes injuriada de ser o pretexto para uma ternura que não lhe pertencia. Ele não era um tipo esperto, mas o seu instinto, alertado, captava-lhe as fugas, o nojo, talvez ainda o desprezo, e então, pela brutalidade ou pelo carinho, procurava atordoar esse corpo que parecia tão ávido do seu e sempre insaciado e ausente.

Para ali estavam, pois, horas sem conto, esperando, inutilmente, ludibriarem-se a si próprios. Mas ele já não aceitava esse logro. As coisas tinham mudado.

Horas sem conto. Bocas presas, em ódio ou em pânico, sugando-se, mordendo-se, atiçando-se em cada prenúncio de uma quebra no furor; ou, por fim, saturadas, bastando-se com a mistura das respirações num só hálito, os ventres ofegando, as mãos a esmagar ainda um seio, um ombro, um sexo. O medo de que aquilo terminasse, que a fraude fosse evidente, não lhes dava tréguas.

- Tenho frio. Agasalha-me, querido - pedia ela, de olhos fechados, onde ficava retido o que ele, em vão, se esforçava por violar.

E ele aconchegava-lhe os lençóis que tinham o cheiro de outros corpos, apertava-a mais ainda, com delírio ou raiva, até a sufocar. Raiva, sobretudo. Por isso lhe afundava os dedos no rosto ossudo e transido, onde a amargura corria, por vagas, como nuvens espavoridas, forçando-a a aceitar a realidade de serem eles, e não outros, a estarem ali juntos, amantes ou náufragos, eles e mais ninguém, eles sem recordações, sem remorso, sem apelos, sem mais nada; forçando-a a esvaziar esses olhos oblíquos que, cerrados, fingiam sorrir, que estavam sempre longe mesmo quando o fitavam estonteados, como agora.

- Foges de me encarar. Porquê, Júlia?

Ela negava. E na sua expressão a amargura ficava sozinha. Que amargura? Se as suas mãos fortes bastassem para o saber, para, através da posse, lhe esvaziar os recessos ocultos, o melancólico mistério das reacções .

- Os teus olhos não olham, Júlia. Sorriem. São uma fenda.

Não sorriam, ele enganava-se: pareciam aflitos. Não queriam ver. Nem às coisas terrívelmente equívocas do quarto onde o amante a trazia e muito menos ao cretone da janela. Ela já vira esse cretone. Em casa dos pais, donde fora expulsa. Havia muito tempo, mas todo o passado era uma chaga purulenta. O pus sujava-lhe a memória. Cretones. O marido também lhe decorara a sala com cretones. Viera um sujeitinho com mãos de seminarista ajudá-lo a impor o seu gosto. Muito chique, não é, Júlia? " Claro: chique. Bastava que ele o dissesse. E o mesmo cretone de flores roxas, lembrando o vómito de um ébrio, repetia-se por esses quartos onde ela, com este, com aquele, aturdia a sua solidão.

- Beija-me, querido.

Beija-me. Sem uma pausa, na expectativa de serem interrompidos no minuto seguinte e fosse aquela a última oportunidade. Beija-me. O beijo e o resto, a sua carne dorida, massacrada, a prolongar uma agonia que a entorpecesse. E assim, quando ele se desprendia da sua boca e ficava cismático, vagamente amuado, a beijá-lo no peito, nos braços, no ventre, perseguindo-lhe o desejo por todos os esconderijos, atiçando uma foguei ra que, se murchasse, os mergulharia definitivamente no logro. Prendia-o nas coxas retesadas, corria-lhe os dedos subtis pela nuca, pelos cabelos, cingia-lhe a cabeça entre os braços finos, devorados pelo frenesi. Mas se era o amante a tomar a iniciativa, então o seu corpo rendia-se, oferecendo-se, oferecendo-se simplesmente, quieto e passivo, conquanto repetisse: Querido, querido.

Uma sabida, pensava ele, esforçando-se por desprezá-la. Uma histérica. A ternura dela, infatigável e desesperada, tinha por detrás minuciosa aprendizagem. De quem? De quantos? Porque, embora fosse aquela a quinta ou sexta vez, nem se lembrava, o mistério era maior do que no primeiro dia. Que pretendia Júlia? Apenas um homem? mas se ela se mostrava muito mais faminta de dar que de receber, se era o amor ao outro, talvez o marido, que lhe sentia - tanto nos silêncios, nas fugas, como no desejo?

Conhecera-a na rua, por acaso. Ela vestida com o mesmo casaco azul-marinho que trazia para aqueles encontros e reparara nela pelo andar - lento, com um ritmo fatigado e voluptuoso, que obrigava a segui-lo até perder de vista. O andar e esses olhos oblíquos, pisados, onde as coisas e as pessoas pareciam derretidas. Tinha sido muito fácil. Demasiado fácil. Quantos, então? Apenas o marido, que lhe repudiava a ternura? Em cada dia, de cada vez, a dúvida deixava de ser curiosidade para se transformar num protesto da sua carne, numa necessidade orgulhosa de ser esclarecido. Fazia-lhe perguntas capciosas

- Foste sempre assim meiga?

- Sempre. Essa meiguice, portanto não era ele que a despertava. Não lhe pertencia. Era dela, um hábito, uma fome, à procura de quem a justificasse.

Daí, insistia, vexado:

- Mas não lhe dás valor. Nem pensas, sequer, se me agrada, se me dá prazer.

- E não dá?...

- Dá, bem o sabes - e fincava- Lhe as unhas, cruelmente, no dorso.

Ela não tinha um queixume. Martiriza-me, é o que pretendo - parecia dizer o seu sorriso. Evitava as palavras. Apenas frases curtas, que adensavam a ambiguidade do que não chegavam a exprimir. Esse mutismo explicava-o ele, algumas vezes, de um modo que lhe envaidecesse o amor-próprio: Júlia sentia-se estúpida junto dele. As palavras eram um risco. Daí, por certo, lhe afogar cada palavra com um alude de ternura. No entanto, quando a amante lhe pressentia certo cansaço, inquiria, ansiosa:

- Gostaste?

- Gosto sempre. E tu?

- Eu também.

- De verdade?

- Não sei fingir.

Uma sabida. Pois se era um fingimento, de princípio ao fim, tudo o que ali se passava! Se ela, afinal, dele se servia continuando a ignorá-lo e sem parecer interessada em que as coisas decorressem de outro modo! Às vezes, nem é bem das pessoas que gostamos. Gostamos de gostar" - não tinha sido um dos seus desabafos?

- Tens a certeza de que não sabes fingir?

- Porque duvidas, querido?

- Da última vez que aqui estivemos chamaste-me querido de outro modo. Nessa altura acreditei. Era uma voz diferente.

Ela teve um risinho fresco, mas também impudico, enquanto Lhe desenhava a boca com a unha vermelha.

- Nem sempre as vozes são iguais. Mas deves acreditar, seja qual for a voz com que to diga.

Ele voltava-se de súbito para a amante, segurando-Lhe o rosto fugidio, obrigando-a a suportar a inspecção. Depois passava-lhe as mãos pelos olhos, afastando-Lhe a sombra que os escurecia. Os tais apelos, a angústia, a mentira, ou lá o que era.

- Começo a precisar de ti, Júlia. Da tua presença, de tudo isto.

- Eu também. Mas desde o primeiro dia. Depois ficaram em silêncio, um seio nas mãos dele. O Inverno alastrando pelo tecto. Os sofás com roupa atirada ao acaso. As bugigangas de mau gosto. Os cigarros amachucados no cinzeiro, ainda com nódoas de bâton. O cretone. Ela sabia muito bem o que era aquele quarto, aquela casa. Uma casa clandestina. As bugigangas, o bâton, a balbúrdia, o cretone eram os mesmos de outros quartos onde se entrava e donde se saía sentindo nas entranhas um asco irreparável. Quando ele, da primeira vez, lhe dissera, a medo: Achas que poderíamos ir aí a casa de uma senhora minha amiga? É uma refugiada, polaca. Deve-me alguns favores. Cede-nos um quarto de certeza. Pode ser? Pode. (Fácil. Tudo tão fácil.) Embora ele tivesse ido à frente, combinar as coisas, mascará-las, Júlia, soubera, logo à entrada, de que amiga, se tratava. Agradecera-lhe, no entanto, os esforços para a enganar. O quarto tinha uma porta independente, mas comunicava com um átrio onde a polaca, ou o diabo por ela, atendia os clientes. Uma vez por outra, tocavam a campainha da entrada. Homens. O telefone. Pedaços de frases suspeitas que ele amordaçava isolando-lhe os ouvidos ao apertar-lhe a cabeça de encontro ao peito. E dizia despropositadamente, com um embaraço infantil: Vive com umas sobrinhas, mais ou menos adoptadas. "

Aqueles silêncios desamparavam-na. No silêncio, os móveis, as roupas, o lavatório escondido por detrás do biombo faziam-lhe frio. Um frio todo por dentro. Talvez ele não tivesse fechado bem as janelas.

- Tenho mais frio, agora - e reduzia-se a uma coisa pequenina que pudesse caber-lhe, inteira, nos braços.

Batiam à porta do quarto.

- Posso entrar, senhor Almeida? - perguntou uma voz do outro lado. - A minha madrinha esqueceu- se aí de um casaco.

Ele teve uma expressão contrafeita. Dura, mesmo. Cobriu rapidamente o rosto da amante, fez-lhe sinal para se voltar para a parede.

- Um momento.

- Está só, senhor Almeida?

- Não. Abro já. Um momento.

Saltou da cama e correu o ferrolho, insistindo de mau modo

- Um momento.

A rapariga entrou de olhos no chão. Fez-se muito vermelha. Era loura, alta. Estivera com ela duas ou três vezes, apenas porque a vira um dia, muito graciosa, de calças. A rapariga foi ao guarda-fatos e depois pôs- se a procurar, à toa, qualquer outra coisa. Procurava por debaixo dos móveis por detrás do biombo, demorando mais do que desejava, e por isso dizia entre dentes:

- Não sei onde ela teria metido os sapatos. Acabou por encontrar um deles. O outro descobriu-o, por fim, dentro da mesinha-de-cabeceira. Mas, como os seus gestos continuavam atabalhoados, deixou cair o casaco.

- Desculpe.

Foi só ao encostar a porta que ela deitou um rabinho de olho à mulher que se cobrira com o lençol. E repetiu

- Desculpe.

- Não tem importância.

Ele levantou-se a fechar a porta, voltando rapidamente para a cama. Não gostava que o vissem nu, de pé. O ventre começava a tornar-se um nada obeso. Tão ridículo. Deitado, ainda podia disfarçá-lo sem custo.

A amante atirou com os lençóis para o fundo da cama e procurou-lhe a boca. Ele furtou-se para dizer:

- Viste a rapariga? É simpática, não é?

- É. - E fechou-lhe a boca. Aquilo não interessava. Mas interessava a ele: a interferência da rapariga tinha feito gorar uma oportunidade. Não saberia dizer que espécie de oportunidade, mas sentira que estivera perto de alguma coisa que poderia mudar as relações entre ambos. Agora, a oportunidade perdera-se, desviara-se, amolecera o ímpeto de não a deixar escapar-se. Pensava nisso enquanto lhe mordiscava as faces e o nariz.

- És tão meigo, Carlos, embora às vezes me magoes.

- Magoo-te para ter a certeza de que estás aqui comigo. Que sou eu a magoar-te.

- Dizes coisas tão estranhas.

- Tu é que és estranha.

- Achas, querido

- Nada sei de ti.

- Uma pobre mulher que tem necessidade da tua ternura. Não te basta sabê-lo? - E, de súbito, ela segurou-se-lhe aos ombros morenos. - Que são as pessoas sem carinho, Carlos? Um deserto. Vem a areia, a secura, e sepulta-nos. Fica só o deserto. Compreendes isto, não é verdade, querido? Tu és bom.

- Não me chames bom. Desagrada-me. Chama-me antes querido, Faz-me bem ouvi-lo. Chama-me de quando em quando.

- Hoje já foram muitas vezes. Querido, querido.

- Sabes que te amo? Interessas-me mais tu do que o teu corpo. Ou as duas coisas.

- Sério

- Duvidas

- Não sei.

- Nunca sabes nada.

- É verdade. Nunca sei nada. Ao certo, ao certo, não. Que horas serão?

Ele olhou para o despertador do móvel do espelho.

- Cinco. Cinco e dez. Porquê?

- Tenho de estar às cinco e meia no Saldanha. A testa dele franziu-se. O que havia entre ambos começava e terminava naquele quarto. Lá fora estavam as coisas autênticas, duradouras, mesmo que logradas. Ela percebeu-Lhe o desagrado e, com uma tristeza húmida, foi-lhe penteando, suavemente, os cabelos. Tinha uns dedos macios mas túrgidos, onde o sangue estagnava.

- Ficaste zangado?

- Não havia razão.

- Zangado por eu ter combinado para as cinco e meia.

- Talvez não pudesses fazer outra coisa. Dava-lhe um pretexto para qualquer espécie de confidência. Mentira que fosse. Atiçou-a, ainda:

- Isto não tem jeito.

- O quê?

- Achas que poderemos continuar assim por muito tempo

Por ela correu uma breve sombra de terror. Mas respondeu com frouxidão.

- Decerto. Se o quisermos.

- Mas tu queres verdadeiramente, Júlia?

- A minha vida é uma trapalhada.

Esquivava-se, fugia-lhe. Até que um dia fugiria de vez.

- Sou curioso, mas tenho procurado não te embaraçar com a minha curiosidade.

- Dominas-te, querido. Eu não.

- Nem por isso me tens feito perguntas.

- Hei-de fazê-las todas juntas, verás.

Lá dentro, a rapariga foi atender o telefone. O telefone não tinha descanso. - Sim, sou eu... - dizia ela. Não, agora não está mais ninguém para aquilo que o senhor quer...

-Júlia: faz-me agora as perguntas!

Quase gritava, para que ela não ouvisse a rapariga. Sim, pode vir. A minha madrinha saiu... Estou. Muito bem disposta mesmo, verá.

- Assim à força, ninguém consegue ser curioso... ah, isso era dantes... Emagreci um bom pedaço. Dieta, pois...

- Um dia, levo comigo um pedacinho do teu corpo (pedaço dissera a rapariga, àquele maldito telefone, ainda há um instante). Ouves-me, Júlia?

- Para quê, tonto?...

Sim, pois... Então até logo, obrigada. Cá o espero. Oxalá que Júlia não tivesse percebido. Ia desprezá-lo por a enlamear em tanta sordidez.

- Sabes que, anteontem, me esqueci de deixar aberta a porta do quarto... Tiveram de arrombá-la.

- oh, coitada da senhora. Polaca, disseste tu?

-Creio que sim. Fala uma língua de retalhos: francês, espanhol, talvez polaco e também português. Mistura de tudo. Viveu muito tempo em Espanha, casada.

Ela sorriu, repetindo:

- Coitada.

Era uma ironia?

- Coitada porquê?

- Deve ter-lhe custado ajeitar-se a tanta terra, a tanta gente diferente.

Bom, ela não desconfiava. E era estranho como isso lhe parecia tão importante.

- São horas de te vestires.

- Mais um bocadinho. Não penses nas horas. Há tanto tempo que não me beijas!

- Mas já que combinaste...

E, evitando-lhe os braços, sentou-se na cama, procurando os sapatos.

Ela agachara-se sobre a colcha enrodilhada. As coxas, nessa posição, pareciam mais gorduchas. Tinha uma pele tão sedosa! E os seios pequeninos. Cabiam-lhe na mão. De súbito ele esticou-se para lhe beijar os seios. Era irresistível. Ela sentara-se sobre os calcanhares e esperava que o amante tivesse um novo impulso. Se isso acontecesse, obrigá-lo-ia a prolongar a despedida. Sabia como consegui-lo.

- Podemos ficar mais um bocadinho.

Teria sido melhor não falar: ele empurrou-a rudemente.

- Veste-te. Agora não te importuno mais.

- Não fales assim. Afinal, estás zangado.

- Não estou.

- Vejo bem que sim. Está escrito na tua cara.

- ah, isto são ondas. Nada tem que ver contigo. E se fosse?

Júlia: faz-me perguntas

- Se fosse... ficaria pesarosa por te ter desgostado.

- Só isso?... Vou abrir já a porta, para que não tenham de arrombá-la outra vez. Não me posso fiar na minha cabeça...

- E se entram, antes de eu estar vestida?

- Veriam uma mulher bonita.

- És gentil, querido. Sempre gentil.

- Veriam a minha rapariga do casaco azul... Ainda não te disse que às vezes te confundo com outras. Vou atrás de todos os casacos com essa cor. Todos me parecem o teu.

- É bom ouvir-te, querido. É então verdade que pensas em mim?

Talvez uma palavra mais, uma nova tarde, ali, juntos, e muitas coisas seriam esclarecidas. Ali, não, noutro sítio; iria alugar um quarto só para os dois. Um quarto de que eles tivessem a chave. Entrava-se, saía-se, ninguém tinha nada com isso. Não se sentiriam enxovalhados com a presença lasciva de outros corpos, antes e depois deles. Aquilo deixaria de ter o aspecto de amor que se aluga, de um prazer fugaz que deixa o corpo imundo.

- Sempre. Ando sempre atrás da minha rapariga de casaco azul. - E puxou-lhe as golas do casaco para cima, ajustando-lhas ao pescoço.

-           Sou uma parva. em estar aqui?

- Em estar aqui.

Ele largou-lhe as golas para Lhe apertar o pescoço com o lenço. Apertava-o mais e mais. Era preciso que ela não repetisse coisas dúbias, medonhas, como aquela frase.

- Vais matar-me, querido. Sinto-me estrangulada. Ele, de narinas abertas, procurou-lhe vagarosamente a boca.

- Cuidado, Carlos. Já pus bâton.

Ele pousou-Lhe os lábios ao de leve.

- Para fixar o sabor. Estava com receio de me esquecer...

A porta abriu-se de novo e apareceu outra rapariga, Esta era morena, antipática, de óculos escuros.

- oh, desculpem. Julguei que já tivessem saído. Ele encostou a porta sem dizer uma palavra. Tinha os nervos destroçados.

- Vamos, então.

- Não podemos ir juntos. Vou tomar um táxi.

- Não te posso levar?

- Hoje, não.

- Como queiras. E agora, até quando?

- Não sei, querido. Depois telefono.

Abraçou-o ainda, por hábito, à pressa, e desapareceu sem ruído. O seu último olhar foi para os cretones.

Ele foi espreitá-la pelas vidraças. Curvada para a frente, o andar pausado, mole, de quem caminha, caminha, e sabe de antemão que não chega a parte nenhuma. Mas ali, na rua, ela era outra. Nada tinha que ver com ele. Uma mulher qualquer, vestida de azul, que entra num táxi para ir ter com o marido, ao Saldanha.

 

                   NÃO É DO CORAÇÃO

Foi numa madrugada de Julho, límpida mas friorenta, que o turista chegou à fronteira espanhola, depois de ter atravessado meia França na companhia amável de um casal belga, ele um ferroviário bonacheirão, de boas cores, ela uma mulherzinha branda e risonha, que fazia preceder todos os seus comentários, perguntas ou simplesmente os silêncios, com um meigo oh, Georges! " de rapariga enamorada. Até aos estranhos que iam entrando e saindo do compartimento era delicioso ouvir essa exclamação repassada de doçura, que, dita numa inflexão prolongada, parecia eternizar uma lua- de-mel que, pela idade aparente dos dois, provavelmente sexagenários, e pelo decorrer da conversa, o turista veio a saber que se dera havia mais de trinta anos. A mesma suavidade, a mesma cortesia, a mesma fascinação mútua a que ele assistira nos cafés e restaurantes de Paris, repetidas em todos os casais que nunca se sentiam intimidados pelo facto de, publicamente, darem voz ao seu carinho.

Os belgas iam alvoroçados com a viagem. Imaginem que, vivendo a dois passos da França, da Holanda, da Alemanha (e com os bilhetes de caminho-de-ferro quase de graça, insistia a senhora, abrindo depois uma pausa para que o marido prosseguisse), a sua primeira viagem (depois de velhos, Georges") era precisamente a Espanha, um longínquo e exótico país, destes que o europeu carregado de séculos de diligente civilização supõe escondido num continente semibárbaro. E, no entanto, nada de estranho na resolução do casal belga. Um motivo sentimental chamava-os, havia muito, a essa aventura (viaja-se por lá com segurança, meu caro senhor? "), pois que em frente da casa deles, numa aldeia flamenga, vivia há tantos anos uma família desse país fabuloso (é um clima um tanto africano, não? "), com um filho de uma beleza cigana, tão vivo, tão palrador, que, só por ele, tinha de se amar a pátria que o gerara.

- ah, como me sinto emocionada de já estar próximo

E os belgas, com efeito, não ocultavam o seu ardor por esse mundo excêntrico que, até aí, existia apenas na sua simpatia e imaginação. Sabiam, porém, que era um país de sol, laranjas, amplo, um país de gente altiva e exuberante. E como tal gente adorava a sua pátria! A belga repetia muitas vezes que os seus amigos lhe tinham pedido fervorosamente que lhes levasse uma mancheia de terra, terra quente e loura, a terra distante que, saudosa, lhes corria no sangue. E o Georges, fumando sem parança cigarros flamengos (obrigado, caro senhor, mas os cigarros portugueses são muito fortes"), confirmava com solenidade que cumpririam a promessa.

- E o seu país, é belo também? O turista sorria com indulgência.

- Os nossos países são sempre belos...

- Vês, Georges, que frase gentil! Um belga, tenho

de confessá-lo, nunca teria uma resposta tão, como dizer? tão delicada...

Quando chegaram a uns quilómetros da fronteira, sonolentos e amarrotados, os olhos de montanhês do lusitano descobriram, ao longe, uma crista branca, ainda misturada na lividez brumosa da manhã - e anunciou aos companheiros que, finalmente, estavam a dois passos de Espanha. Ei-lo, o país desejado, com as suas cordilheiras aguçadas, vigiando, arrogante, quem viesse violá-lo. Os belgas, gente da planura, daquela planura de um verde dócil, tristonha e sufocante, arregalaram os olhos: tinham na sua frente a montanha! Mas não, era impossível! Georges, como pode ser? Aquela nuvenzinha é realmente neve, neve no cimo de uma serra? Era neve, sim, concordou o turista num aceno divertido, e daí a pouco todas as dúvidas se desvaneciam.

Já dentro do novo mundo que os flamengos ansiavam por descobrir, após contornarem durante dezenas de quilómetros o mar azul e as praias douradas, que a solidão desperdiçava, as colinas de olivais cinzentos e murchos, os belgas emudeciam ante o imprevisto desordenado da paisagem. Estavam perplexos. Gostariam? Desiludiam-se?

Foi quase num apelo que inquiriram do companheiro de viagem:

- O senhor já conhecia... isto?

-Já, sim. Venho muitas vezes a Espanha. É um país cheio de personalidade. Não copia ninguém. Todo o seu rude encanto lhe pertence.

Eles silenciaram, encarando com reverência o céu alto e desimpedido, os campos virgens. Dir-se-ia que os homens dali, fartos ou apenas indolentes, desprezavam toda a generosidade da terra e do clima para não adulterarem com as suas mãos a telúrica grandeza da paisagem. Os belgas, agora, depois da resposta do português, já não pareciam ter dúvidas. E a senhora animou- se:

- Não é verdade, Georges? Levaremos um grande saco de terra aos nossos amigos!

A novidade das sensações, talvez ainda imprecisas, necessitava, para se identificar, de qualquer sugestão de contraste com o mundo macio e domesticado que ficara para lá da fronteira e, por isso, um tanto a despropósito, os belgas começaram a falar da guerra:

- Durante a ofensiva dos Aliados, abrimos as portas da nossa casa aos oficiais ingleses. Dormiram, comeram, fizeram o que muito bem lhes apeteceu. E, no fim...

- Mas sempre correctos, Georges.

- Sim, mas nunca tiveram um obrigado", uma palavra afável. Pareciam donos de tudo.

- ah, mas os Canadianos não são assim. Lembras-te?

Georges lembrava-se muito bem. Agora, porém, não valia a pena remexer no que ficara para trás. Coisas mortas, coisas para esquecer.

- Nunca poderei compreender por que os homens fazem uma guerra.

O turista assentiu, sem ter prestado grande atenção ao comentário. Ia a reparar numa certa intranquilidade da senhora belga, em cada instante mais manifesta. Ela franzia os olhos, semicerrando-os, como se fossem míopes e tivessem de fazer um grande esforço para verem longe, através da janela. Numa voz enervada, disse:

- Georges horroriza-se com violências. Nunca foi capaz de degolar uma ave doméstica. Nunca brigaste com ninguém, mesmo em pequeno, pois não, Georges?

E, coisa estranha, parecia censurar-lho.

Talvez as palavras, as reminiscências, fossem um desvio, uma tentativa aflita de não consentir que os sentidos se confessassem logrados com o país taciturno e indomável em que, definitivamente, iam penetrando. Esse país, que não descia das colinas para cortejar o visitante, tinha forçosamente de surpreender, mais cedo ou mais tarde, a senhora dos olhos afeitos aos prados calmos, às estradas floridas, aos restaurantezinhos, asseados e corteses, que interrompiam a todo o momento o cansaço das estradas para nos estender a mão. Ela fitava, já com um desagrado sem máscara, o descuido das estações da via-férrea, o vestuário das pessoas barulhentas que vinham junto do comboio, e nem a espontaneidade colorida daquele povo que olhava o sol de frente, retendo-o nas pupilas alegres, lhe desfazia a reacção desfavorável. Nada podia aproximar a civilizada dona de casa de uma aldeia belga da gente morena que calçava alpargatas com uma altivez de príncipes e não precisava de rogar desculpas a ninguém.

A sua loquacidade, autêntica ou de recurso, havia terminado. O comboio chocalhava nos carris, atirando sem cerimónia os passageiros uns de encontro aos outros, e a belga, por fim, cruzou as mãos no regaço, numa atitude em que havia resignação e martírio, enquanto a sua boca perdia a infatigável doçura que persistira durante a viagem. Trocava às vezes uns olhares furtivos com o turista, evitando dar-lhes voz, decerto para não feri-lo com as suas susceptibilidades, como se ele, um ibérico, fosse também responsável pelo logro.

Escolheram-horas diferentes para o almoço (não será preferível, Georges, que fique sempre alguém a olhar pela bagagem? "); e o português, ele próprio, ainda com o ambiente reverencioso dos vagões-restaurantes franceses demasiado próximo das suas recordações, se chocou com a familiaridade desastrada com que lhe era oferecida a paella valenciana. Mas não, pensou ele,          corrigindo-se, as finuras e pardons ficaram na fronteira,    num mundo postiço: estamos em casa. E sentiu-se como numa daquelas pensões domésticas da Beira, onde se repreende paternalmente o hóspede que não rapa o prato até ao fim; aos belgas, porém, tal intimidade devia parecer uma grosseria de primários. Além disso, o desalinho, a balbúrdia e aquele gorduroso arroz amarelo com gema de ovo, de festança aldeã, não podiam ser    digeridos pelos sóbrios hábitos dos flamengos.

            Daí em diante, depois de a senhora ter ido discretamente desembaraçar o estômago do almoço, regressando lívida e velha ao compartimento, tornava-se impossível a reconciliação. Só muito mais tarde indagou do Turista:

- A cozinha deste país é sempre assim tão, tão...

- Horrorosa...

- Não digo tanto, meu caro senhor...

Mas que vai ser de nós, Georges Santo Deus!antes

a neblina parda e acabrunhada da planura belga, o fumo e o silêncio, mas onde havia moradias, arrumação e, enfim, comida decente.

O companheiro de viagem ainda lhes acenou com as cidades prósperas que iriam admirar - lá onde, cidade ou campo, os esperava a terra cálida dos seus vizinhos, a terra que eles lhes levariam num relicário de amizade e devotas recordações. Essas cidades - assegurava o ibérico, para os confortar - tinham de tudo, contrastes, febre, singularidade, mas também, vá lá, muito do verniz europeu. E dizendo isto, o homem pensava: já que os belgas (aos 60 anos, enfiados até aí num cortiço disciplinado, onde a terra pede licença para crescer um metro e as pessoas temem a vibração de um grito... como poderiam vocês, Georges, amar um país de orgu lho e ravinas, de hortejos e também de desertos, onde nunca se prevê o dia seguinte? Pois não é, Georges?), já que os belgas não conseguiam desfazer-se da sua Europa, dessa Europa onde se cortam os cabelos às árvores e em que um grão de pó na paisagem é uma heresia, ele era forçado a trair esse país soberbo, valorizando-o precisamente naquilo que o poderia apoucar: a imitação. ah, mas nem assim, Georges; tão mal que ele imi- ta e tão depressa o irás verificar!

Ao aproximarem-se dos subúrbios da cidade, en- contraram um céu opaco, secura, abandono e janelas sem vidros, por onde julgar-se-ia ter passado, ainda na véspera, um bando de malfeitores. O amuo da senhora erra irremediável.

Chegara o termo da viagem. Os belgas sabiam que o português iria mudar de comboio uma hora depois, Nunca mais se veriam, decerto, e pouco mais havia que dizer.

- Mas escreva-nos. Toma nota do endereço, Georges! Seria difícil, no entanto, que o acaso fosse tão caprichoso que voltasse a reuni-los (não, caro senhor, quem espera tantos anos para sair da sua aldeia, não nasceu para viagens...) e era cedo para que os belgas pudessem confessar ao companheiro que tinham sido precipitados e injustos na sua desilusão. O turista ainda perguntou

- Os vossos amigos espanhóis viviam nesta cidade?

- Nos arredores. A uns vinte quilómetros. Estudámos tudo no mapa.

Na última despedida, a senhora repetiu, exausta, a devassa do ambiente sujo e tumultuoso que o cercava e, então, desabafou

- Falámos dos nossos amigos... Mas já não lhes levo terra, senhor. Não seria do coração.

 

                   O RAPAZ DO TAMBOR

Em casa havia um tambor. Tinham-Lho oferecido dois anos antes, pelo Natal. Mas o garoto não soubera regrar o entusiasmo, e as pessoas da casa e os vizinhos, = não suportando a barulheira, quiseram obrigar o pai a esconder-lho. O pai, porém, era um bom companheiro, um bom tipo: não lho escondera nem proibira; dissera assim

-Jenito: o tambor gasta-se com tanto uso. E, ainda que eu viesse a comprar-te outro, sei que seria sempre deste que tu gostarias. Acho que deverias tocar só de tempos a tempos, aos domingos. Desse modo, a pele do tambor poderá durar uma vida inteira.

-Tem razão, pai. Tocarei só aos domingos. Mas posso dormir com ele nos outros dias?

Claro que podia. O pai, aliás, facilitava os desejos de toda a gente.

E Jenito passou a dormir com o tambor, tal como a irmã dormia com a boneca de olhos verdes, depois de lhe despir o vestido de renda, para não o amachucar. Contudo, antes de haver um tambor lá em casa, verdadeiro, que se podia apalpar com as mãos, existia já outro, na gravura da parede da sala. Era uma pintura em tons sanguíneos, que representava uma grande batalha; soldados com uniformes napoleónicos, bandeiras enrugadas por um vento heróico, cavalos furiosos, com os nervos à flor da pele e as patas dianteiras erguidas sobre um inimigo que ia ser esmagado. E o rapaz do tambor ao centro, em corpo inteiro, soberbo, tendo na cabeça um barrete afunilado de um azul-turquesa. Uma luz incendiada, vinda não se sabia donde, caía- lhe em cheio sobre as mãos, enquanto o resto do quadro se dissolvia numa penumbra poeirenta. Mas se os cavalos erguiam as patas medonhas, se os soldados mantinham firmes as baionetas luzidias, se as bandeiras flutuavam, gloriosas, ao vento, era porque o tambor os inflamava. O tambor era um apelo, um contágio, uma labareda. E que som, que ritmo, que trovoada! Repercutia por toda a casa. Jenito tinha os ouvidos aturdidos pela sua voz poderosa e admirava-se muitas vezes, fitando o pai, a mãe, o tio, a irmã, que ninguém mais mostrasse ouvi-lo; que as pessoas não se levantassem das cadeiras, de repente, e, seduzidas, fossem praticar um acto de bravura.

Jenito fizera muitas perguntas ao pai sobre o significado da pintura. Quem eram os soldados, que país tinha aquela bonita bandeira; quem era, sobretudo, o rapaz do tambor. Um garoto poderia ser chamado a comandar uma batalha?

O pai não gostava de falar de guerras. E a gente podia admirar-se de como ele deixara ficar na parede aquele quadro que se referia a coisas detestadas. Jenito não sabia que essa gravura, um pouco desbotada já, pertencera ao avô, leitor dos feitos do general corso, e que o avô a estimara como se se tratasse de um brasão familiar. O avô, por certo, era dos que ouvira o rufar do tambor.

- E tu, não o ouves, Guida? - repetia Jenito, impaciente. A irmã poderia compreendê-lo. Também os sentidos de Guida eram sensíveis a um mundo interdito aos adultos.

Apuravam ambos o ouvido. E Guida, por fim, ouvia, lá muito ao longe, o tropear confuso dos cavalos e o incitamento grave e glorioso do tambor. De uma das vezes, pareceu-lhe mesmo que aqueles soldados se mexiam, que iam sair do quadro para dentro da sala, que o gume acerado das baionetas vinha espetar-se nos olhos que o fitavam. Muito pálida, chorosa, disse:

- Tenho medo. Não quero escutar mais o tambor. Deixá- lo: Jenito escutá-lo-ia sozinho. E não lhe dessem mais nada até ao fim da vida - mas dessem-lhe um tambor.

Quando, na manhã de Natal, ao acordar, se Lhe deparou o tambor à cabeceira da cama, o seu coração quase não teve forças para a surpresa. Num momento, deixou de bater. Jenito correu à sala, afogueado, e experimentou copiar, com o maior escrúpulo, o porte, a expressão, a energia do rapaz do tambor. Acordou meio mundo a tocar o brinquedo durante a manhã. Enfureceu meio mundo a tocá-lo todos os dias, a toda a hora, até que o pai o preveniu:

-Jenito: o tambor gasta-se com tanto uso. O pai era um bom pai. Um homem viril, de cabeça bem erguida. E os cabelos! Fartos, grisalhos, majestosos. Quando ele, a fazer valer uma opinião, levava os dedos à cabeça a domesticar uma madeixa indócil que lhe caía para os olhos, que gesto soberbo! Como apetecia dizer-lhe: Faz isso outra vez, pai! " O pai era o mais poderoso dos homens. Trabalhava numa fábrica de plásticos, nos arredores, e tinha de sair cedo de casa para apanhar o comboio. Jenito só o via pelo fim da tarde. O pai, ao regressar, sentava-se na cadeira de verga, cachimbo na boca, uma ruga áspera na testa, um livro na mão. Jenito, acocorado no tapete, seria capaz de estar ali horas a fio, apenas a olhá-lo.

Por isso mesmo, odiava aqueles sujeitos desconhecidos que vinham visitar o pai à noite, fechando-se com ele lá dentro, numa saleta onde havia uma máquina de costura, uma secretária e uma mesa redonda que servia, em certos serões, para a família jogar as cartas. E muitos livros, claro. O pai nunca se fartava de livros.

- Quem são aqueles senhores, mãe?

- Amigos do pai.     

- Porque não vêm para aqui e falam com a gente?    

- Não pode ser, Jenito. O pai dá-lhes explicações.      .

Precisam de sossego.

- E nós não podemos ouvir explicações?         

- São coisas só deles. Coisas de estudo. Para exames

- Mas eu também tenho exames.

- Aqueles são exames mais adiantados.

Como o mundo dos adultos era esquisito e intrigante!

Jenito espreitava suspeitosamente esses companheiros do pai. Espreitava-os da janela, cerca da hora em que eles deveriam chegar. Não gostava deles. Não se pareciam com os soldados do quadro, nem com o pai, nem com o tio. Não sorriam. E roubavam-lhe quase todo o tempo em que ele poderia conversar com o pai.

- Quando eu for grande, poderei ouvir as explicações

O pai dizia que sim. Ainda se o tempo passasse depressa! O tempo, no entanto, estava sempre no mesmo sítio.

Os domingos, porém, pertenciam aos dois. Domingos bons. Iam a um jardim ou ao campo escolher folhas exóticas para um álbum, ao futebol e, com frequência, aos bairros humildes de certas zonas da cidade. Jenito sentia uma espécie de intimidação, ou de nojo, ou de culpa, ao aproximar-se dessas casas sujas, agachadas na bruma, onde morava gente ainda mais suja. Para que teimava o pai em vir ali, em conviver com desconhecidos? Que tinha para lhes dizer? Havia coisas misteriosas no procedimento do pai e Jenito enciumava-se de não participar de todas elas.

-Agora brinca com estes meninos, enquanto eu me entretenho com uns amigos.

Eles entravam num bar e Jenito e os rapazelhos, depois de uma sondagem cautelosa, acabavam por inventar um jogo divertido. Afinal, eram companheiros reinadios. E Jenito deixava mesmo de reparar que eles tinham as mãos sebentas e os calções esfrangalhados,

- Pai: posso mostrar-lhes o tambor?

- Podes. Mas não lhes fales de soldados. Ninguém deve gostar de guerras.

- Porquê, pai? Então os soldados não são valentes?

- As pessoas devem mostrar- se valentes de outro modo.

- Como?

- Sendo boas umas para as outras. Sacrificando-se, se for preciso.

Jenito não lhes levou o tambor. Um tambor sem ba talhas não servia para nada.

Em outros domingos, o pai ia cedo para a rua, mas combinavam, de véspera, encontrarem-se num certo café. Jenito ficava muito orgulhoso dessas combinações de homem para homem, e ainda orgulhoso por deixarem-no ir sozinho até ao local do encontro. Era um cafezito na praça do município, donde partiam os comboios que levavam para a montanha os burgueses fugidos da neblina. Havia lá uma caixa de música. Vinham rapazes e raparigas, sentavam-se, turbulentos, a uma dessas mesas, com o ar de quem estava em casa ou de quem alugara o café só para eles, e iam deitando moedas na máquina. Cada moeda, cada música. Maravilhoso. Por isso, Jenito mentia quando a Guida se queixava: Só a ti é que o pai convida para irem ao café", e ele respondia: Ao café não vão raparigas. Iam, já se vê. E deitavam moedas na caixa de música e batiam as palmas, desengonçando o corpo, e faziam um chinfrim de quem não ligava mesmo nada às outras pessoas presentes.

Ia encontrar o pai na companhia de alguns desconhecidos, falando-lhe num tom grave e secreto, ou a escrever nuns cadernos e sempre com dois ou três livros empilhados ao lado da xícara de café. Que escrevia o pai, que livros eram aqueles, que gente o visitava ao serão? Roía-o por vezes o pressentimento incómodo e revoltado de que o pai tinha uma vida dupla, de que havia nele duas pessoas: a que lhe falava docemente de coisas próximas, visíveis, que se misturava à mesa com a família, que era real e acessível, e outra obscura, clandestina, que se temia.

Até que uma noite aconteceu aquilo. Ouviu-se um automóvel travar de repente, ali na rua. Os pneus chiaram no piso orvalhado. Passos na escada e alguém bateu à porta. A mãe adivinhara fosse o que fosse: no meio da sala, sem um gesto, parecia assombrada. E depois dirigiu-se à janela, afastando, a medo, as cortinas.

- Vem aqui ver, Arnaldo.

O pai espreitou por detrás dela e, de súbito, correu à tal saleta dos fundos e veio de lá com tantos papéis que não lhe cabiam nos braços. O tio pegou neles e preparou-se para saltar pela janela das traseiras, que dava para o quintal dos vizinhos. Antes, porém, ainda disse:

- Vem também, Arnaldo!

O pai tinha a ruga da testa muito funda e a madeixa a escurecer-lhe os olhos. Mas estava sereno. Acenou vigorosamente que não.

- Vem, não percas tempo!

- Não adiantava. Agora já não há perigo. Batiam à porta com mais força e insistência. O tio, de expressão esgazeada, desapareceu. Esperaram que batessem ainda uma, duas vezes, e a mãe, por fim, foi abrir. Jenito, de coração apertado, sentia o mesmo que naquele dia ao ouvir pela primeira vez o granizo esma gar-se abruptamente de encontro às vidraças, antes da trovoada. A expectativa de um acontecimento informe e terrível.

- Vai para o quarto, depressa, Jenito! O granizo, o granizo. Ele ainda viu os homens a passarem a porta, de chapéu enterrado na cabeça, o rosto na sombra. Jenito foi à outra janela espiar a rua: lá estava o automóvel. Parado, sinistro. Faz medo um au tomóvel negro imóvel, dentro da noite. E por detrás dele, um jipe. Viu uns guardas saírem do jipe e dividirem-se pelos dois lados do passeio até que a névoa os sorveu. Tinham espingardas, espingardas verdadeiras.

O pai esteve uns meses ausente. E era estranho que ; as visitas da casa, de um dia para o outro, tivessem deixado de aparecer. Como se toda a gente soubesse ou adivinhasse que o pai andava em viagem.

- Onde está o pai? Quem eram aqueles homens? Para onde o levaram?

E a mãe respondia:

- Foi para uma viagem.

- Então aqueles homens eram amigos?

- Homens daqueles não são amigos. E o tio intervinha, com ódio na voz:

- São bichos.

Mas por que razão as pessoas grandes não explicavam as coisas de modo que se percebesse? Que se passava com o pai, com o tio, que se passava naquela casa? Muita coisa mudara desde a partida do pai. Desde a noite em que os homens de chapéu na cabeça, ou os bichos (como dizia o tio), tinham vindo buscá-lo no automóvel sinistro.

A", mas isso não voltaria a acontecer! Jenito olhava com fervor para a gravura da parede, para o rapaz de barrete azul a inflamar com a sua exortação a coragem dos soldados, e ficava certo de que, se tivesse pegado também no seu tambor, naquela noite, os homens (ou os bichos) que haviam entrado pela porta sem tirar o chapéu da cabeça teriam fugido de medo. Jenito não se iludira: o pai não saíra de casa por sua livre vontade, não andava em viagem. Mas que fizera o pai para que alguém lhe quisesse mal? E por que motivo a mãe, o tio, os vizinhos e ele próprio, Jenito, não o haviam defendido? Faltara a todos qualquer coisa - um tambor.

E durante todos os meses pardacentos em que o pai estivera longe da família, Jenito, com um sentimento de culpa, não tirou o tambor de cima da prateleira.

Quando o pai voltou, era outro. Mais cabelos grisalhos e desmanchados. E magro, então! O dorso velho, uma face triste. Jenito foi esconder-se algumas vezes no quarto para chorar. Tinham-lhe roubado a alegria viril e jovem do seu pai. Não lhe fez perguntas. Lá no íntimo acusava o pai de não partilhar com ele o mundo nebuloso onde morava a outra metade da sua vida.

O tempo, por fim, foi recuperando os hábitos antigos. Os mesmos passeios, as mesmas visitas, o café de certos domingos. Nem uma palavra, porém, do que acontecera. Sentiam-se ambos, nesse silêncio espesso como mutuamente cúmplices de um ressentimento longínquo, mas sempre presente.

Num dia, contudo, em que foram à praia, logo que

o pai saiu da barraca com as costas nuas, lhe varou os olhos uma cicatriz, ainda túmida, que cortava em diagonal a sua carne musculada. Jenito ficou de gestos suspensos.

- Que foi isso, pai?

- Caí há tempo sobre uns estilhaços de vidro.

            - Mas eu não te vi o casaco rasgado!

- Nessa ocasião estava despido.

- Despido

O pai mentia-Lhe. O pai era mentiroso. Jenito dobrou-se todo para a frente, escondendo os olhos, e pôs            -se a soluçar. Mordia a boca, arranhava o rosto, mas não podia sofrear o choro.

O pai esperou que ele acalmasse, enquanto as suas mãos fortes e hesitantes lhe acariciavam os ombros.

Mais tarde, levou-o praia fora, a caminho dos rochedos, onde às vezes iam apreciar algum pescador solitário.

- Ouve, Jenito... Esta cicatriz que tu viste não foi de nenhuma queda. Mas eu não sabia como dizer-to. Jenito pôs-se de novo a soluçar e logo, enervadamente, enxugou os olhos com as mãos, perguntando numa voz decidida:

- Quem te fez isso?

- Lembras-te daquela noite em que... saí de casa?

- Foram eles, então?

- Foram.

- E tu... deixaste? Deixaste que eles te levassem

- Não havia outro remédio. Ouve, filho: há coisas que só um homem pode entender.   

Jenito baixou a cabeça e disse, triturando as palavras, quase imperceptívelmente:

- Eu sou um homem.         

O pai decerto não o ouvira; de súbito, apontando um barco que entrava na barra, desconversou:      

- O navio vai a caminho do farol. Estará lá daqui a um instantinho. Vamos ver se chegamos primeiro do            que ele !

Jenito acompanhou-o sem entusiasmo e, a meio da 

corrida, sentou-se na areia, amuado e taciturno. O pai           mentira. O pai deixara-se prender. Deixara que Lhe fizessem uma cicatriz infame nas costas. Não era valente            como os soldados da gravura da sala.         

Jenito nunca se sentira tão longe e tão arredado do mundo dos grandes como naqueles dias em que bastava que fosse à rua, ou à janela, ou se visse entrar em casa alguém da família, para que os sentidos ficassem impregnados de uma agitação contagiosa e sufocada que precisasse de romper a crosta que a fechara numa prisão. As pessoas não tinham parança. Eram como as formigas que ele, certa vez, soprara à boca de um formigueiro e que tinham desvairado para um e para o outro lado à procura do motivo que as fizera desvairar. Os desconhecidos, na rua, ao olharem-se, pareciam com prometidos numa vasta e idêntica conspiração. Até a alegria da gente grande, das palavras aos gestos, era ambígua, densa, terrível. O pai, o tio, e ainda a mãe, dantes tão discretos nas conversas à mesa, falavam agora animadamente, apenas pelo desejo de falar e de se ouvirem, como garotos palradores na véspera de um acontecimento. Jenito foi captando alguns pormenores. O pai comprava três e quatro jornais ao dia e discutia-os, a punho           fechado, com os amigos. E os vizinhos, saudando-se por tudo e por nada, faziam o mesmo: vinham da rua e saíam de casa a ler jornais, puxavam- nos, com sofreguidão, dos braços dos ardinas. Que acontecera? Quem    eram esses nomes que andavam na boca de toda a gente e que os jornais repetiam todos os dias? Escusado perguntar. Não lho diriam. E que intenso desejo, que inquietação tinham modificado as pessoas - o pai, a mãe, os vizinhos, a rua, a cidade inteira? Quando alguém respirava - e Jenito sentia o mesmo -, o ar era espesso, vibrátil, quente, embora se pressentisse que essa opressão iria terminar num imenso alívio. Jenito apercebia-se bem de que não era uma coisa que acontecera - mas sim que iria acontecer. Numa das noites, o pai saiu de casa com o tio, demorou-se por lá umas horas e, ao regressar, nem reparou que nenhum dos filhos se deitara ainda. Alvoreado, disse de rompante para a mãe de Jenito: - As ruas estão cheias de polícias. E, nas margens do canal, há tanques. O pai dissera tanques? ah, Tanques agora compreendia todo aquele desassossego! Ia dar-se uma batalha.

Bandeiras, tambores, soldados. O pai devia acautelar-se, ao menos com uma espingarda.

No dia seguinte, o pai não foi ao emprego. Andava pela casa como um bicho enjaulado. Bicho, não! Bichos eram os outros, os homens que lhe haviam entrado em casa de chapéu na cabeça. Almoçou mais cedo do que habitualmente e, antes de vestir o casaco, puxou o filho de lado

- Não deves ir hoje à rua, Jenito. Promete-me. Jenito não respondeu.

- Prometes

- Porquê?

- Hás-de ouvir muita gente na rua. Gritos, talvez, ou, pelo menos, gente aos berros, como no futebol. Fica em casa, aconteça o que acontecer.

- Gente aqui, na nossa rua?

- Em todas as ruas. Mas talvez mais nesta do que nas outras. Prometes?

- E à janela, posso ir?

- Talvez, com cuidado.

- Que aconteceu, pai? Uma festa?

- Muitas pessoas vão esperar alguém que chega no comboio. E depois acompanham-no. Devem passar por aqui.

Afinal, não era a guerra. Não havia tanques nem soldados. Algum senhor importante regressava dos albergues da montanha.

- Quem é, pai? Um jogador de futebol? De que clube?

- Não é um jogador de futebol. Prometes? O pai já vestira o casaco. Jenito concedeu, sem convicção

- Prometo.

Daí a segundos foi para a janela. A mesma atmosfera que parecia enrolar-se na garganta. A rua estava deserta e nela se sentia o arfar de multidões. Uma faca poderia cortar, como um pedaço de pão, o ar que se respirava. O pai dissera que havia polícias por todo o lado. Afinal, sempre deviam preparar uma batalha e o homem do comboio viera para a dirigir. ah, como seria formidável, uma batalha!

Uma hora depois, Jenito ouviu um rumor grosso crescente, lá longe. Uma enxurrada que se aproximava.

E o ar fez-se ainda mais encorpado. A ansiedade de Jenito tornara-se dolorosa. Apetecia-lhe correr pela casa, partir coisas, rasgar coisas, ir ao encontro da enxurrada.

Prometes? Vieram alguns polícias para os dois lados do passeio, em jeito de emboscada. E depois mais outros. Por fim, eram dois cordões a todo o comprimento da rua.

- Guida! Guida! Chega aqui para ver!

Guida trepou para uma cadeira e pôs-se também à janela. A mãe não aparecia, estava na cozinha, ou no pátio, ou quem sabe se também se escapara para a rua.

Só ele estava ali prisioneiro. Prometes? Tinha de cumprir a promessa. Polícias, sempre mais polícias e gente que, sem olhar, corria para os lados da enxurrada.

            Mas estes polícias não tinham espingardas, a guerra não era com eles. Os que, na tal noite, lhe haviam roubado o pai, esses, sim, tinham espingardas.

- Não vejo nada, Jenito.

-           Já vais ver.

Pois. Ele sabia que iriam esperar um homem ao comboio, um homem mais fabuloso do que um jogador de futebol. O pai dissera-Lho.

E foi então que uma imensa turba surgiu, de chofre, no extremo da rua. Em silêncio. E quanto mais se aproximava, maior o silêncio. Um silêncio medonho, denso, orquestrado, que batia de encontro às paredes, de encontro aos tímpanos e os deixava obstruídos. Pessoas. Muitas pessoas. Daquela distância e dentro da névoa pareciam iguais. Marchavam num passo certo, predestinado, e dir-se-ia que se um dique se levantasse na sua frente elas passariam da mesma forma, com o mesmo passo, tal como um punho atravessa uma folha de papel. A polícia recuava. Quem eram eles? Qual o seu destino - onde terminaria a sua força solidária e bárbara? Era aquilo uma guerra? Uma guerra sem bandeiras e sem gritos? Mas, sem bandeiras, sem canhões e sem gritos, Jenito sentia- lhes o mesmo incêndio dos homens da gravura da sala e, de súbito, percebia que toda a vida secreta dos adultos acabara de se desvendar.

E, nisto, viu o pai entre eles.

- O pai, Guida Olha o pai

Viu-o, antes de mais, pelo gesto de domar o cabelo revolto. Era ele. O pai era um soldado. Não tinha medo.

-Eh, pai! - gritou.

Qualquer grito, porém, era logo sorvido pelo silêncio. Ninguém o ouviria.

E, também abruptamente, a enxurrada quebrou. Ou melhor: correu sobre ela um vento contrário, vergando-lhe as cristas, como acontece às hastes das searas quando uma brisa doida muda de direcção. Lá ao fundo, a polícia formara uma parede. E, por detrás, ainda outra parede, eriçada de espingardas hirtas, à espera que os corpos, passivamente, viessem oferecer-se. Afinal, eram os mesmos que tinham vindo na tal noite.

Da multidão partiu uma voz, um ronco surdo, uma onda que rebenta e logo se põe em movimento. ah, como Jenito, de coração transido, desejava que a sua febre pudesse comunicar-se à enxurrada e robustecer-lhe a raiva e o ímpeto! E quando a multidão acometeu de novo, como um touro ferido, de novo a parede eriçada de espingardas a fez recuar. A enxurrada desmantelara-se. Dela desprendiam-se pessoas que corriam sem destino, logo absorvidas pela muralha de polícias. Reses que desertam e são devoradas. Eles iam ficar vencidos. Não atravessariam a parede.

Jenito passou as mãos pela testa gelada e húmida. Quase o gesto do pai. O pai não podia ser vencido. De súbito, olhou a gravura da sala. Os cavalos heróicos, os soldados, o tambor. Era de um tambor que eles precisavam. Prometes? " Não, pai, não posso prometer. "

Começou a tocar o tambor ainda antes de chegar à rua. E sempre a tocar foi abrindo caminho na multidão hesitante e esboroada. Até lá à frente. Onde a enxurrada poderia morrer ou vencer.

Horas depois, os curiosos que vieram observar os buracos que as balas tinham aberto nas fronteiras dos prédios procuravam ainda a mancha de sangue que, ao centro da rua, marcava o lugar onde outra das balas acertara no peito do rapaz do tambor. Mas alguém a fizera desaparecer. E os curiosos iam-se embora concluindo que os homens das espingardas, quando matam, não deixam nódoas. Apenas buracos.

 

                   A PIEDOSA OFERENDA

Ora um dia ia eu rua adiante e de certo grupo de malteses saiu um homem alto, de boné, que me atirou de lá:

- Cá estou eu, senhor professor.

Vinha aí o anoitecer, sem estrelas e sem petróleo nos candeeiros das esquinas, e por isso não reconheci logo o vulto esganiçado do Crispim. Mas ele insistiu:

- Então, professor, esse abraço!

Começavam as intimidades. De modo nenhum me convinha a presença do Crispim naqueles sítios, onde eu recompunha, mercê de um casamento oportuno, o meu abalado prestígio de mestre-escola que passara por vários e obscuros ofícios. Tínhamos histórias em comum, que, farejadas, poderiam desmoronar-me a frágil reputação. E, no entanto, o Crispim vinha decentemente vestido. Na vila passaria muito bem por um dos ricaços que interrompiam o veraneio nas termas da raia para se embasbacarem de perto com a bravura da montanha.

- Olá, Crispim.

Ele, porém, não era amigo que se deixasse com um aperto de mão. Nem chegara à vila por acaso: pressentira-me a vinte léguas e resolvera explorar uma vez mais o meu interesse pelas suas odisseias. Mas agora, que eu assentara na vida, não podia esquecer que o Crispim, além de personagem fabulosa, era ainda, e sobretudo, um gatuno, um vigarista e um assassino. Já verão. Nesses tempos do volfrâmio ninguém exigia dos estranhos que acorriam de todas as estradas aos eldorados do ouro negro um passaporte de bom comportamento. O volfro pedia trapaceiros, gente dura, ambição. E nós, burgueses com um sarro de convenções morais, acabámos por verificar que não era assim tão incómoda a mistura com tais meliantes que se vangloriavam do seu passado sujo. Aliás, em toda essa escória, havia uma saborosa ou mesmo edificante dignidade. O Crispim fascinava ainda por outras razões: ao lado do campónio medroso e pacato, que só pegava nas trouxas e mudava de pele quando acossado pela fome, ele, como alguns outros, era instável e corajoso por íntima necessidade de risco gratuito, de acaso, de aventura sem mais nada.

Tinha conhecido o Crispim seis anos atrás: ele aparecera na mina, onde a cupidez também me levara, à frente de uma onda de oportunistas. Descarado, gabarola, alternando sorrisos com atitudes de fria maldade, subiu rapidamente. Em pouco tempo, impôs-se à legião de labregos que pediam um pulso sem transigências e ei-lo num lugar de mando, como chefe dos vigilantes. Fazia correr pela mina o seu rasto de lenda, maravilhando os aldeões que tinham trocado a enxada pelas picaretas, maravilhando-os com as suas narrativas de sangue e com a machadinha que lhe caía da ilharga. Acabou por ser respeitado e temido mesmo pelos vagabundos que, até aí, não conheciam o medo. Tudo isso convinha aos donos da mina. Certa ocasião a machada serviu para rachar a testa de um pai ultrajado que o abordara na bodega da aldeia; e o Crispim, cuspindo no homem estendido nas lajes, convidou todos os presentes a acompanharem-no numa garrafa de rum. A coisa estava arrumada. Quando a história chegou aos ouvidos do tio Alonso, gerente da companhia, o espanhol fechou-se no gabinete com o Crispim e todos ficá mos à espera que dessa vez o tratante prestasse contas das suas crueldades. Mas sucedeu aquilo que, para quem estivesse afeito à mentalidade dos graúdos da mina, deveria ter sido logo previsto: o Crispim, revelado um tipo sem peias, saiu desse tribunal para tomar as rédeas das transacções de minério com os contrabandistas, trepando assim para um dos poleiros mais invejados.

Foi desde aí que o Crispim se chegou aos nossos serões. Quase sem nos apercebermos da manobra, tão sabiamente ele e o tio Alonso a conduziam, tornou-se um parceiro certo na batota e nas nossas bebedeiras. E devo confessar que era ele o grande animador dessas reuniões da aristocracia da mina, nas quais, com álcool e fanfarronadas, iludíamos o desespero, a irritabilidade eaté as degradações que o ambiente nos impunha. O Crispim, herói de arrojos e desventuras, era o meu pólo de atracção e um dia confessei-lhe, de caras, que o iria fechar nas páginas de um livro. (Já todos sabiam que eu tinha veleidades literárias, coisa muito mais difícil de concretizar do que eu supunha, e, por isso, outras seduções vieram salvar-me, a tempo, de ter sido mais um medíocre a roer uma estrela e uma côdea de pão.) Receei que o Crispim fosse protestar; receei mesmo que ele, agastado, fizesse uma das suas, e nunca se previa onde as reacções desse tipo terminavam. Mas não: sentiu-se lisonjeado. E desde aí, em toda a parte, ele vinha plantar-se ao meu lado, pimpão, acrescentando mais um pormenor sombrio às suas extraordinárias proezas. Até que um dia o Crispim deu o primeiro sinal de que tencionava explorar a minha bolsa e a minha boa-fé. E o entusiasmo esfriou-se-me.

O Crispim chegava a esperar-me nos caminhos da serra, quando eu regressava das concessões de volfro acoitadas nas abas da floresta, e o nosso diálogo, invariavelmente, tinha por começo uma cilada:

- Ainda não lhe contei aquela passada em Marrocos. Ele fungava, aceitando o cigarro, e antes de ir mais longe sorria-me com velhacaria:

- Eu conto-lhe, professor, embora um homem sem dinheiro perca o gosto pelas conversas. O raio do jogo tem-me comido as algibeiras.

Abria a carteira e despedia- me. A história já não me interessava. Pretendia apenas safar-me do Crispim e da vaga ameaça que se desprendia da sua convivência.

Por essa altura, pressentia-se já o descalabro da mina. Quase todos, como hienas, procuravam abocanhar à pressa as vísceras apodrecidas daquele mostrengo. Os roubos saíam da noite para a luz do dia. Numa segunda-feira demos pela falta das correias dos motores e a mina ficou parada. Roubar minério, fogões ou dinheiro - vá lá; mas partir as pernas à gigantesca engrenagem, deixá-la ridiculamente imobilizada como um leão agrilhoado por formigas, revoltava-nos. Mexia-nos com a carne. O administrador da mina, um sujeito que tinha os nervos à flor da pele, reuniu os responsáveis à porta fechada e, com o argumento de um revólver apontado à testa de quem se lembrasse de um protesto, berrou:

- Um de nós roubou a mina. Não era qualquer ratoneiro que podia arrombar as portas do barracão, afastar os guardas e desaparecer com umas arrobas de cabedal. Se foi um de nós, aposto no Crispim. - E voltando-se ostensivamente para o aventureiro: - Onde estão as correias, patife?

- No cu da tua mãe.

Um tiro foi a resposta. Um tiro que derreou o braço direito do larápio.

- Onde estão as correias, Crispim? Pois tu pensas que eu vinha para aqui sem ter a certeza de que tu e os teus sócios andaram toda a noite com a furgoneta a caminho de Val Prazeres?

O Crispim, empurrado por uma força da Guarda Republicana, acompanhou o administrador a casa de certo sapateiro da aldeia e, enquanto faziam a busca, segredava ao cúmplice: É agora? "

Queria dizer com a pergunta que mal o administrador se aproximasse do sítio das correias, ele, perdendo o amor à pele, havia de degolá-lo com uma navalhada. O sapateiro aconselhava calma. É que, para bem de todos, as correias não poderiam ser encontradas: os sócios da trapaça já as tinham negociado na fronteira.

A mina morreu, enfim. E agora, anos depois, aí tinha o Crispim à perna.

Como ia a dizer, fui obrigado a sair do meio da rua e a aproximar-me do cumprimento do meliante. Os ganhões estavam de olhos e ouvidos gulosos, suspensos da recepção que eu faria àquele valdevinos que atravessara a charneca para me dar uma palmada nas costas.

- Pois cá estamos, professor. Entende-se a dar lições aos fedelhos destes compinchas? `

E voltava-se para aquela sociedade, a confirmar a intimidade das nossas relações. Fiz umas perguntas engasgadas e o Crispim esclareceu que fazia agora vida de técnico de máquinas de costura (!), oferecendo os seus préstimos de aldeia em aldeia, e que torcera caminho para vir abraçar-me. Os camponeses mostravam-se aturdidos e o Crispim, de súbito, deixou cair um pingo de manha:

- Onde se pode comer nesta terra?

A pergunta levava intenções bem definidas.

-Talvez aqui - disse eu, entrando na taberna.

- Há sempre uns petiscos preparados.

Ele esfregou o nariz, enquanto o taberneiro, não esperando por ordens, começara a ataviar umas postas de peixe frito. Fiz-lhe sinal de que a conta seria comigo.

Depois, cá fora, a prolongarmos uma obtusa conversa, o Crispim falou-me de si. Miséria, má sorte. Precisava de encontrar velhos amigos e recompor a vida.

- Não haver outra guerra!... Lá estaríamos outra vez na mina, carago! Vinha até a lembrar-se que o senhor professor, com os seus conhecimentos, poderia valer-me. E esse livro?

- Não pensei mais nisso. Estava em boa idade de tomar juízo. E tomei-o, Crispim, não se esqueça disso.

-Agora livro, professor - e ele arregalou os olhos fingindo não perceber as minhas insinuações -, livro fazia o senhor se eu Lhe contasse toda a minha vida. Inteirinha. Ficarei em sua casa o tempo que for preciso.

Estava caçado. Não me veria livre do Crispim com duas lérias. E entre o risco de me negar à hospedagem e o de apresentá-lo à minha família, escolhi o segundo. Iria crismá-lo de técnico de engenharia ou coisa parecida, na esperança de que ele, bem-falante e aperaltado, não se desmascarasse.

Todos, em minha casa (ou mais propriamente: em casa do meu sogro, que fazia por mim as despesas do passadio), foram muito amáveis para com esse companheiro dos tempos de perdoável estroinice. Minha tia (tia de minha mulher) vestiu o seu vestido preto engalanado com rendas seculares, empoou-se e levou todo o jantar a sorrir; meu sogro honrou- o com as bebidas excepcionais que havia na despensa, mostrou-lhe a quinta e a sua apregoada criação de coelhos, desvendando-lhe mesmo o segredo de certos cruzamentos de raças, e por fim, esgotados os mais acessíveis pretextos de cordialidade, ficou sentado na sala, transpirando por todos os poros. Deu-se ainda um pormenor que decidiu das boas disposições daquela crédula gente: depois das refeições, recatadamente, para que não destoasse dos costumes do nosso hóspede, homem do mundo, minha tia e minha mulher fizeram as suas rezas com a maior discrição. Pois o Crispim, com os olhos redondos filados nas subtilezas do ambiente, persignou-se com tal ênfase que ninguém poderia duvidar das suas crenças e terminou com um beijo piedoso e sonoro na ponta dos dedos, sendo o último a retomar a galhofa interrompida.

Ao serão, desgastando o pato com arroz no melhor sofá da sala, tendo a seu lado biscoitos e licores, o Crispim levou-nos à sua infância. Tinha-lhe recomendado fervorosamente que deixasse em branco certos incidentes mais reprováveis - roubos, violências, porcarias; mais tarde, a sós, ele preencheria essas lacunas.

Ouvimo-lo emocionados. Órfão de mãe, sofrera as primeiras durezas pela mão de uma madrasta odiosa, sob a complacência cobarde ou preguiçosa do pai, que preferia sair de casa, batendo com a porta, a intervir com a sua autoridade. Nessa altura ainda viviam todos juntos: ele, os dois irmãos mais velhos e uma irmã. Mas a madrasta projectara livrar-se dos filhos do marido, e, assim, sob vários pretextos, a rapariga e um dos irmãos foram viver com os padrinhos. Ficou o mais velho e era nele que o Crispim procurava apoio e ternura. Tempo depois, o irmão, que se empregara como torneiro, morria tuberculoso. Faltava apenas expulsar o Crispim.

Embora o nosso hóspede contasse todas essas amarguras com um sorriso de quem soube esquecer ou perdoar, desvalorizando-as, senti-me abalado. Nunca mais poderia julgar o Crispim pelas amoralidades que Lhe conhecia; a sua infância triste redimia-o. Minha tia, do seu canto, soluçava com o resguardo que punha em todas as lamentações.

O Crispim, ao tomar consciência do seu êxito, carregou repentinamente nos pormenores sombrios da história, ampliou-os, estragou-os - mas como era eu o único a pressentir-lhe as manhas, a narrativa terminou em apoteose. Enquanto eu insistia noutro cálice, forçando uma pausa, meu sogro aliviou a sua revolta com um murro na mesa:

- Malandros! Torturarem uma criança!

O Crispim estava a compor a história. Mais uma vez me ludibriava. Metia ali uma madrasta, um irmão tuberculoso, boas premissas para, depois, lhes ajustar umas saborosas e já desculpáveis vigarices. Mas se me vira coagido a apresentá-lo como alguém que, embora singular e contraditório, merecia hospitalidade, ao menos que os seus azares na vida o prestigiassem ante a minha família. E a verdade é que o Crispim o conseguia. Meu sogro, para lhe transmitir uma urgente simpatia, tinha ido lá dentro, num instante, descobrir certa ginja da sua lavra.

Quando o Crispim, consolado com a ginja, descreveu o plano da madrasta de enclausurá-lo numa espécie de tutoria, o êxito foi retumbante. A madrasta servira-se de testemunhas que afiançavam as tendências malvadas do rapaz e as suas fugas da escola. Aprendera ali a sentir-se réu de odiosas e injustas culpas; e, por isso, aprendera também a desafiar os castigos.

É claro que o Crispim tinha ainda o mérito de não tirar conclusões dos seus dramas. Deixava os factos despidos, a sangrar. Relembrou, por exemplo, esta cena: num dia de Natal deram uma festa na Misericórdia de Lisboa para os garotos da tutoria. As crianças, de olhos arregalados para o brinquedo preferido, iam desfilando ao encontro da sorridente comissão de senhoras. O Crispim havia oito dias que sonhava com uma bola. Uma bola autêntica, de borracha, que fizesse sensação entre os companheiros. Quando chegou a sua vez, porém, uma dama enorme como um balseiro, de

chapéu de plumas, disse:

- Este é um rapagão. Há-de gostar de um automóvel.

Ele, de olhos gentios, negou com a cabeça.

- Aceita - intimou a professora. Mas o Crispim persistiu na recusa.

- Queria uma bola.

- Não és tu que escolhes, malcriado. - E a professora justificou a desobediência para as caridosas e amáveis senhoras: - É incorrigível, este garoto.

As senhoras perderam o sorriso. Os olhos do Crispim pareciam ter recuado, como um gato que se encolhe, antes de agredir. E, de súbito, estendeu as mãos para o automóvel, amachucando-o com a raiva de que foi capaz. A professora quis bater-lhe, mas ele, esquivando-se na confusão, refugiou-se no andar de cima. Havia ali um grande caixote com a reserva de brinquedos. Enquanto a festa prosseguia no piso inferior, o Crispim foi transportando bonecos, comboios, aviões lá para fora, bem ocultos no bibe, para vendê-los depois aos ganapos que encontrasse nas imediações. Até que um guarda o prendeu. Foi esse o primeiro empurrão para o roubo e para a vagabundagem das ruas. Dormira nos bancos dos jardins ou nas escadas dos prédios sem vigias, disputando biscates à saída dos espectáculos, furoando comida nos lixos das portas. Um lobinho assanhado por uma matilha de cães.

- E isso era no Inverno? - perguntou minha mulher, angustiada.

-Inverno, minha senhora? Foi no ano em que Lisboa se cobriu de neve.

A minha família estava amachucada. Todos desejavam desagravar o Crispim de tamanhas provações. Ali à mão, porém, só havia os licores e a ginja de que o nosso hóspede não se esquecia de fazer um uso lisonjeiro.

A vadiagem do Crispim durou um mês. Julgado num tribunal de menores, levaram-no para uma casa de correcção, no cabo do mundo, arrebanhado com outros relapsos. Na estação ninguém os esperava, embora lhes tivessem prometido uma carroça. Acompanhados de dois guardas, fizeram a caminhada a pé. Desde manhã que não comiam e os três mais novos desmaiaram de fome. Foram despertados à bofetada. Quando chegaram ao internato, tiveram de aguardar instruções num corredor cujas paredes e chão dir-se-iam revestidos, havia séculos, de gelo. Os rapazes internados vinham espreitá-los de longe.

- E"! malta! Já chegaram mais piões!

E esse alarme correra pátios, oficinas e camaratas. Alguns sujeitavam-se ao castigo para serem os primeiros a bisbilhotar o acontecimento.

- Ena, pá, aquele das sardas é da minha rua!

- E o grandalhão esteve comigo na tutoria!

Os caloiros, como resposta àquelas negaças, cuspiam para o lado ou olhavam, aturdidos, as paredes altas, os tectos abobadados. Ninguém ali falava em comida - e era isso que lhes interessava. Nauseados de fome, indiferentes já, por fim lá foram escutar as boas-vindas do director. Era um homem de boas falas, jesuítico. Meteu-os no coração. Mas nenhum deles conseguiu entender uma frase do discurso. Queriam apenas deitar-se, mesmo sobre uma pedra, e um naco de pão. A cada um foi distribuído um número. Ao Crispim calhou o 57, herança de um ganapo que o tifo levara ao cemitério.

Na casa de correcção, o nosso herói correu todas as oficinas, demorando-se na de funileiro. Eles escolhiam o ofício que os pudesse associar aos companheiros adeptos do mesmo grupo de futebol. Ora todos os funileiros eram benfiquistas. Mais tarde, como se revelasse um dos alunos mais vivaços para o estudo, mandaram-no para o liceu do distrito. Tinha de usar, porém, o uniforme da casa de correcção. Um dia, esfrangalhou-o com raiva e vestiu um fato igual ao de todos os companheiros, roubado a um deles, para experimentar o gosto de ir rua fora sem esse ferrete a queimar-lhe a pele. De novo castigado, voltou ao internato. Temiam-no e admiravam-no. De pernas ágeis e espigadas, músculos afeitos a qualquer excesso, tornou-se campeão de várias modalidades de atletismo. Também eram celebradas as suas proezas de conseguir negociatas rendosas entre colegas, e pela sua mão, não se sabia como, passavam artigos do contrabando fronteiriço. O certo é que tinha sempre dinheiro para cigarros e guloseimas. Mas o seu prestígio junto do pessoal da casa de correcção já era outro. Odiavam-no. Certa vez, um dos criados mandou-o varrer o pátio, apesar de o Crispim usufruir algumas regalias concedidas aos alunos das classes mais adiantadas. Negou-se, é claro.

- Hás-de varrer!

- Aqui não há filhos nem enteados. Sou o aluno mais antigo, ninguém me pode obrigar a isso.

O empregado atirou-lhe com a vassoura à cabeça. O Crispim ripostou com o escadote. Daí, encerraram-no numa velha cavalariça, a pão e água, enquanto o ferimento não sarou na testa do criado.

Meu sogro não se atrevia a interromper a narrativa, mas começara a consultar o relógio. Era serão demasiado para os hábitos da casa - além de que, teria ele dito, o Crispim, moído da cansativa viagem da cidade à nossa vilória, e esgotado, decerto, por tão infelizes recordações, merecia que não abusássemos da sua complacência. Minha tia, essa, apesar de interessada até às lágrimas, acabara por ter os olhos tão esbugalhados e fixos que me pareceu ser aquela uma nova forma de dormitar. Enfim, lá nos recolhemos, noite alta, e o Crispim foi encontrar a sua cama aquecida com botijas. O frio nocturno das Beiras é de imprevistos.

Na manhã seguinte, apareceu- nos sorridente, fresco e limpo - enquanto a minha família tivera um sono atormentado de pesadelos. Almoçou com um apetite que nos desvaneceu. Receava essa euforia do Crispim, que era homem para já ter feito cálculos largos sobre a sua estada na vila. Levei-o a um demorado passeio pelos arredores, evitando os olhares metediços da gente da terra. Quando passámos à beira da taberna, lá estavam os compinchas da véspera e o Crispim, nesse momento, passou-me um braço pelos ombros.

Em casa tinham-me feito assegurar que a história só continuaria com todos os ouvintes reunidos e, por isso, falámos apenas do nosso tempo na mina. Fiquei a saber, por exemplo, que ele, quando se escapara da mina após novo assalto ao armazém, de parceria com um malandrim algarvio, fora levado por este rumo ao Norte de África, num barco clandestino, e que o malandrim o deixara sem vintém nas ruas de Argel.

- Mas pagou-mas, mais tarde.

- Você matou o homem? - indaguei, com um arrepio.

-Bom... matar, não matei. Mas preguei-lhe um susto danado.

-Já sabe que coisas dessas, logo à noite, nem pio.

- Nem por sombras, professor. Sei com quem lido. E mostrou-me, a propósito, uma oferta que minha tia Lhe fizera à socapa: a pobre senhora não encontrara outro meio mais decisivo de o desafrontar de tantos desgostos do que presenteá-lo com uma medalha benta, em relevo, ainda com o hálito espiritual da arca de madeira do Oriente onde estivera guardada, e o respectivo terço. No sorriso do Crispim, ao mostrar-me a medalha, havia a ternura humilde de quem pela primeira vez recebe um afago ou apenas a malícia de um velhaco?

- Aos quinze anos, voltei para casa e empreguei-me numa oficina de electricidade - começou o Cris- pim nesse segundo serão.

(Devo intercalar aqui um pormenor: ao fim da refeição, no momento das rezas, o Crispim deixara escorrer o terço dos dedos, num gesto desastrado de quem procura esconder um delito. Era o triunfo definitivo. Minha tia, enternecida, olhara-o como um amante.)

Estive nesse emprego cinco meses - prosseguiu -, e um dia calhou mandaram-me a uma pastelaria da Avenida consertar um candeeiro. Era a primeira vez que entrava numa casa de tanto luxo, só de freguesia da alta-roda. E que roda! Estiquei o trabalhinho para apreciar mais tempo as senhoritas que vinham tomar chá. Uma delas, desculpem-me! era um destes traços!... - E o Crispim, embalado, deu um estalo com a língua. Minha mulher e minha tia esboçaram o primeiro sinal de perplexidade, sondando-se antes de acertar numa reacção. - Precisava de cortar um fio e mudar o comutador em derivação. Mas como não arredava os olhos da garota, distraí-me e zás, cortei também o cordão que segurava o candeeiro. Antes que o dono da pastelaria tivesse tempo de me pôr a vista em cima, saltei do escadote e raspei-me. Nunca mais apareci na oficina. E assim desempregado, também não era tão tolo que voltasse a casa.

- Nem mais tarde?... - Não procurou mais a família?... interferiu, intencionalmente, minha mulher.

- Para quê?

Ninguém insistiu e eu tive o pressentimento de que, nessa noite, o Crispim, já seguro do ambiente, ia pôr de lado a réstia de diplomacia de que seria capaz.

Uns amigos disseram-me então que no Patronato de Justiça distribuíam ferramentas, ou coisa parecida, aos rapazes que quisessem dar um jeito à vida. Fui lá e disse: Preciso de ganhar dinheiro. - Que oficio aprendeste? - Muitos. - Então escolhe o que mais te agradar. Fiquei zaranza e pedi uma semana para resolver. Fui pelas ruas, distraído, e dei comigo na Praça da Figueira. Tinha ouvido dizer que vender caça, repolhos, e assim por diante, rendia sempre. E era uma vida santa. Corri ao Patronato: Já resolvi. - Resolveste depressa moço... Compraram-me então um burro e as cangalhas para vender fruta e hortaliça. Pagaram-me também a primeira carga fornecida por um negociante. Mas o burreco era tão pequeno e ia-se tantas vezes abaixo das pernas, nas ladeiras, que me enfastiei daquilo. E nem o dinheiro chegava para os dois; pouco sobrava para alimentar a besta. Vai daí, certa manhã, ele já não teve forças para se levantar. Tive de lhe acender uma fogueira junto da barriga para o obrigar a sair da palhota.

- Isso não faria eu! - gritou meu sogro, incapaz de segurar o protesto. Orgulhava-se de possuir os animais mais lustrosos da vila, os porcos rojavam a pança pelo chão, o cavalo precisava de ser passeado todas as manhãs para abater as enxúndias, galinhas e coelhos pareciam grávidos de tanta abastança - e o descaro que o nosso hóspede pusera na descrição revoltara-o.

Tive de ir em auxílio do Crispim para lhe restabelecer o crédito

- Isso é bom de dizer. É preciso passar por certas coisas antes de compreender que o estômago tem mais exigências do que o coração.

- Pois, não deixo de concordar... - assentiu meu sogro, refreando-se.

O Crispim pareceu surpreendido com este jogo de comentários. Pela primeira vez desde que chegara a nossa casa, captei-lhe o olhar impaciente, desorientado e cruel dos tempos da mina. Desviei-o, sem demora, para a sua narrativa:

- Afinal de contas, que destino deu ao jerico?

- Fui entregá-lo ao Patronato e disse-lhes que não era vida para o meu gosto. Deram-me então uma trompeta para entrar numa orquestra.

- Você sabia tocar?

- Não, mas isso era o menos. Eu tinha jeito para a música, de qualquer coisa fazia um instrumento. E en tão a trompeta!... Gostava daquilo à brava. O pior foi que não arranjei emprego. Queriam já tipos práticos. Tive de vender a trompeta para comer umas semanas. E um dia, sem dar por isso, vi-me metido numa agência de boxe.

- O senhor é homem danado! - exclamou meu sogro, sorridente, para corrigir o desabafo anterior.

Dessa vez, não havia emoção nas senhoras. Em todo o caso, minha tia sentia-se reconfortada por ver a medalhinha reluzir na camisa do Crispim. Crente, era ele! A má vida que levara não lhe endurecera a alma.

- Homem danado, não, senhor Albuquerque. O que nunca tive foi um guia. Um pai, um amigo.

Ele tinha manha de sobra. Foi a grande tirada do serão. Um incentivo excepcional para que minha tia abrisse uma arrojada fresta na sua timidez:

- Podia ter procurado um sacerdote.

O Crispim baixou os olhos. De mãos cingidas num jeito de prece, lamentou-se:

- Não foi lembrança. - Mas logo se inflamou:

- Havia padres na tutoria, havia padres na casa de correcção, minha senhora; isso é verdade. Estão sempre em toda a parte. Mas, às vezes, eram eles que atiçavam os outros a castigarem-nos. E não são os castigos que nos levam ao bom caminho.

- Também há disso, há - anuiu meu sogro. - Minha mulher que Deus haja...

Não justificou, porém, o a-propósito da evocação, talvez porque reparasse que minha tia, assim que ouvira a resposta do hóspede, se recolhera para a sombra, onde ruminava as suas emoções.

- Bem, como ninguém me dava trabalho, comecei a vadiar pelas docas. Ali armavam-se, de quando em

quando, uns negócios.

E o Crispim contou que o cheiro da maresia, a largada dos barcos, as gaivotas, a gente exótica que vinha e partia, o iam chamando para outros mundos e outros destinos. Nascera com um fado de vagabundo: tinha de cumpri-lo. Fez então a primeira tentativa de embarcar clandestinamente para a América do Sul. Escondeu-se numa das baleeiras de um navio, para a qual transportara, com a conivência de um marujo, um cobertor e uma sacola com bolachas de água-e-sal. Já perto da Madeira, porém, a sede torturava-o de tal modo que largou pelo convés a gritar por água. Preso, foi recambiado para Lisboa noutro barco. Alguma coisa, no entanto, tinha lucrado da aventura frustrada: experiência para um novo rasgo. Da próxima, não haveria improvisações.

Quando saiu da cadeia, só lhe restava mendigar.

- De facto, sofreu bastante - interpôs minha mulher, para quem a ideia de um pedinte sempre a fizera

sentir-se culpada.

- Comecei a pedir esmola, com outros, no sobe-e-desce. Dividíamos a cidade em bairros e cada um ficava com o exclusivo de algumas ruas.

- No sobe-e-desce?... - inquiri.

- Uma maneira de dizer. Como tínhamos de levar

os dias a subir e a descer escadas... Era assim: quando um compincha precisava de umas coroas e não havia outro modo de as empalmar, dizia para os outros: Esperem-me aqui que eu vou ao sobe-e-desce. "

Durante esse período, o Crispim fizera, pois, vida de mendigo, sem telhado que o abrigasse. Certo dia, bateu à porta de um palacete do Campo Grande (ele derretia os corações duros com o relato de dois irmãos tuberculosos e um pai entrevado) e, quando ia já a sair do jardim, a dona da casa espreitou-o por entre os cortinados. A senhora era velha, tinha um pescoço de toura, mas parecia lamecha e fê-lo repetir a história. Dias depois, a miséria do Crispim transformara-se numa vida limpa e abastada. Fatos, dinheiro, automóvel e o regaço farto da anfitriã, onde ele repousava como um bebé infeliz. Daí a um bom emprego, era só estender a mão.

- E conseguiu-o? - antecipou-se meu sogro, enquanto eu pigarreava, aflito com o desenrolar da novela.

- Não era preciso. O emprego dependia dela e... de mim.

- A dama tinha lojas, fábricas, não?

- O emprego era outra coisa.

Minha tia levou as mãos ao coração. Eu fui acomedido de tão brusco e ruidoso espasmo de tosse que obriguei o Crispim a suspender o deslize. Depois da tosse, queixei-me de uma pontada.

- Estou a sentir calafrios. O sol da tarde deu-me certo abalo. Vou deitar-me.

-Vai, vai, que nós ficamos mais um bocado - despediu-me meu sogro, talvez guloso de ouvir as minúcias que tinham ficado por dizer.

- Isso é abusar do Crispim. Ele também apanhou sol.

- Cá por mim... - disse ele.

- Não, temos tempo amanhã.

E arrastei-o antes que o tema escabroso fosse desenvolvido sem o meu travão.

Ainda madrugada, meu sogro bateu-me à porta do quarto

-Pareceu-me que o teu amigo é um indecente.

- Então?...

- Não ouviste ontem?

- O indecente não foi ele. Foi a tal matrona.

Apesar do meu argumento, ao pequeno-almoço esqueceram-se de torrar as fatias de pão ao nosso conviva.

Disse ao Crispim que me contasse, só a mim, o capítulo interrompido e que nunca esquecesse um freio na língua nas situações melindrosas da sua história. Preferia que ele falasse de burros e trompetas, mesmo que os ouvintes se enfastiassem. Mas o Crispim andava excitado (todos, aliás, andávamos excitados). Ele era suficientemente finório para compreender que a sua presença nas nossas vidas paradas, a desfaçatez em confessar indignidades, por muito que nos repugnassem, eram também uma garantia de sedução, e, daí, uma garantia de que lhe prolongaríamos a hospedagem. Além de que ele tinha a sua vaidade e não seria com historietas mornas que ela poderia ser satisfeita. Meu sogro, num pedaço em que nos acompanhara pelas ruas da vila, apertara-o despropositadamente de encontro aos seus gigantescos ombros, apesar de o considerar um indecente, Por tudo isso, a resposta do Crispim foi um tanto agastada:

- Está bem, professor. Deixe-se de sermões. O senhor mudou muito...

O Crispim falava de um modo como se já não dependesse de mim a estada dele em nossa casa.

- E a tal ricaça, como foi isso? - disse eu, a estimular uma reconciliação, visto que não me convinham azedumes com aquele marau.

- O melhor tempo da minha vida, professor. Pelos vistos, o Crispim frequentara a melhor sociedade. A amásia apresentava-o como neto de um nababo alentejano, mas nem todos engoliam a hóstia, o que, aliás, lhe abria novas oportunidades. Teve assim, simultaneamente, várias e ricas protectoras, cada uma pagando melhor preço do que a anterior. Uma delas, orgulhosa de exibir a conquista, lançou-o no cinema. Representou pequenos papéis e, verificando que esse negócio era uma espécie de roubalheira sancionada pelos usos e vítimas, em que a glória estava do lado de quem chegasse ao local do saque antes dos competidores, fez-se assistente de realização. As coisas corriam bem. Dinheiro e mulherio. Gastava como se fosse, de facto, o tal neto de um suserano da charneca. Mas, descautelado pela voragem do êxito, deixou que as amantes dessem conta das suas infidelidades. Ou talvez já o tivessem enjoado. Restava-lhe o cinema, o golpe de ir vender uma vedeta a um capitalista libidinoso, mas por essa altura a empresa faliu. Foi empenhando as boas roupas e convencendo os amigos a uns empréstimos. Até que um dia, numa sessão de boxe, encontrou um camarada com ideias: Tu, que és conhecido como tipo lá do cinema, podias ajudar-me. Ofereço-te sociedade.

O plano era uma agência para figurantes de filmes. Nos anúncios dos jornais prevenia-se de que todo aquele que sonhasse com um futuro no cinema teria de se registar na agência, pois era nesse nabal que os produtores iriam escolher os intérpretes. As inscrições choveram às centenas. Cada pretendente deixava dois retratos e os cem escudos da inscrição. As cinéfilas mais jeitosas eram depois convidadas a uma selecção especial, para que o Crispim e o sócio as apreciassem escrupulosamente. Elas, meio despidas, deixavam medir o peito, as ancas, os braços - e estavam quase sempre dispostas a ir mais longe para que as favorecessem numa oportunidade.

- E como acabou isso?

- Descobriram o vigário, alguém fez queixa e tivemos de cerrar as portas. Belo tempo, professor. O cinema ainda é uma grande coisa.

- Ouça, Crispim, você, logo à noite, não se esqueça de enfiar nas suas recordações um curso de agente técnico. Senão, ainda passo por mentiroso.

O Crispim ergueu a palma da mão, como quem presta uma fiança. Mas, por mais fianças que me desse, eu só ficaria tranquilo quando o visse longe da vila.

Meu sogro pediu ao Crispim que esperasse um pouco mais antes de reatar a sua narrativa. Coçava o nariz para esconder um risinho matreiro e assim que ouvia passos na rua ficava alerta, dizendo para a criada:

- Vai lá ver quem é.

Estávamos intrigados. E pareceu-me que no Crispim havia ainda um vago receio, o receio dos esquilos que pressentem o perigo antes de os sentidos o revelarem. Por fim, bateram à porta. Meu sogro levantou-se logo e instantes depois ei-lo a entrar na sala, triunfante, acompanhado de dois lavradores. A glória de albergarmos uma personagem da estirpe do Crispim, um homem que povoara a monotonia da vida com o acaso fabuloso, tinha de ser exibida. Meu sogro espalhara na vila o suficiente para que a odisseia do Crispim alvoroçasse as gentes. Em face daquela surpresa, eu só fazia angustiosos votos por que os lavradores não chegassem a saber que relações antigas havia entre mim e o meliante. Mas o meu sogro era um linguareiro.

Um dos lavradores, velha raposa, com umas gargalhadas silenciosas que mordiam as pessoas, entrou logo de risinho voraz. Vinha assistir a um espectáculo, O outro, muito sólido de opiniões, sempre do lado oposto ao que dissessem ou pensassem os demais, era de uma presença provocante. Meu sogro, enfim, não podia ter escolhido pior.

Ele contara-lhes, decerto, o capítulo da dama viciada em rapazes atraentes, pois assim que distribuímos os lugares, e vigiando de esguelha a expectativa dos convi dados, deu o lamiré:

- Ficámos então na tal senhora...

Minha mulher reprovou com um olhar melindrado tal insinuação. E eu ajudei-a sem demora:

- Isso já foi dito. O Crispim vai recordar-nos uma das suas viagens.

Meu sogro teve, para os lavradores, uma expressão humilde, como a pedir-lhes desculpa de se gorar uma promessa feita. Eles haviam ficado sisudos, ou talvez enfadados. O tal do riso sem cor e sem ruído, percebi-o logo, antegozara peripécias lúbricas, bem apimentadas, e afinal não era preciso sair da vila para encontrar tipos imaginosos e atrevidos que tivessem feito viagens arrojadas. E seriam, ao menos, arrojadas as do nosso hóspede? Ver-se-ia.

- Pois bem, senhores - preparou-se o Crispim -, deu-me para magicar no Brasil, mas dessa vez não haveria de morrer de fome ou sede na viagem.

- É que o senhor Crispim já tinha sido apanhado, no barco, de outra ocasião. A sede obrigara-o a sair do esconderijo - explicou meu sogro aos lavradores, simplificando-lhes a compreensão.

- Foi. Mas na segunda tentativa uns camaradas fixes esconderam-me dentro de um grande caixote, no depósito de carvão. Não me deixaram passar fome. E nas horas em que não seria notado, passeava pelo barco. Juro-lhes que não é difícil ir-se clandestino num barco. Escondia-me bem quando atracávamos nos portos. Quando chegámos ao Brasil, pisguei-me para terra numa lancha da polícia marítima. Aqueles camaradas

foram fixíssimos.

- E não se temeu de chegar ali ao deus-dará? perguntou o lavrador das ideias e projectos firmes.

- Temer o quê? Fome e pontapés já eu tinha passado. Não me podia acontecer pior do que já experimentara. O amigo não é da mesma opinião?

Meu sogro confirmou com acenos graves de cabeça, de quem podia testemunhar as desventuras precedentes, mas, entretanto, ferrou-o aquela intempestiva familiaridade de o amigo, dirigida a um homem importante e severo como o lavrador, e então remexeu-se na cadeira, evitando excessivas exuberâncias no apoio ao aventureiro.

- O Brasil é bonito. Gostei daquilo logo que pisei uma avenida larga, junto ao mar, com prédios que fazem de Lisboa uma cidade de anões. Sentei-me num banco. Sabia-me bem respirar em sossego e sem pressas um ar tão vasto, imaginando o que iria ser a minha vida numa terra onde não conhecia ninguém. E por acaso tudo começou nesse banco.

- Um namoro, não? - arriscou o outro lavrador ainda esperançado em que as façanhas do Crispim enveredassem por um tema mais saboroso.

- Uma mulher só me poderia valer se pagasse bem. O lavrador riu, estremecendo as banhas. O Crispim não o enganara desde os primeiros gestos, e, no íntimo, gozava a ingenuidade pasmada da minha família.

- Assim é que é falar.

Quem se sentou ao meu lado, no banco, foi um tipo sabido, que me disse: Você chegou agora ao Rio, não? - Agorinha mesmo, respondi, para imitar os gajos. - Vem trabalhar? - Venho para alguma coisa que dê dinheiro. - Qualquer coisa? - perguntou ele, carregado de ronha. E disparou-me: Quer trabalhar comigo? E tudo começou assim. Ele era médico, mas a profissão não lhe cheirava. Vivia de comprar votos aos políticos.

E o Crispim contou que, desde aí, os dois correram vários estados, no seu ofício de arautos de certos políticos profissionais. Adaptado à engrenagem, já podia escolher os salões, os bares ou as reuniões mundanas onde se sentisse mais afoito. Ele e o parceiro hospedavam-se nos melhores hotéis, donde se escapuliam sem pagar. Trocavam os nomes no livros dos registos: o médico, por mal clarificadas razões, preferia trespassar para o Crispim o seu título de doutor, adoptando o nome do português, embora juntando- lhe um apelido aristocrático. Aconteceu, daí, que, em certo hotel do interior, adoecendo o dono da casa durante a noite, este mandou o sobrinho rogar os préstimos do Crispim.

- O meu tio está muito mal, senhor doutor!

- Vou já, vou já. Mas que tem o seu tio?

- Uma grande dor na barriga.

- Vá indo, que eu visto- me depressa.

O Crispim ganhava tempo, a fim de se aconselhar com o sócio.

- Então, que hei-de fazer?

- Não fazes nada.

-Nada? Mas eles julgam que eu sou doutor...  

- Perguntas-lhe o que lhe dói e apalpas nesse sítio. O resto é comigo. Pergunta-lhe tudo muito bem.            

- Foi um momento giro como o diabo. Eu apalpava a barriga do doente e insistia: Onde é que Lhe doi?

E carregava, à bruta. Aqui dói-lhe mais, não? E o tipo                      gemia, concordando. Depois peguei-lhe no pulso. Assim. - E o Crispim, para dar objectividade à narração, segurou no pulso do lavrador sisudo e imitou o semblante grave que teria usado nessa palhaçada com o hoteleiro. O lavrador sacudiu-lhe a mão, mas acabou por colaborar na espectacularidade do narrador. - Bom.

Depois daquilo, não me lembrando de mais nada que          pudesse fazer ou perguntar, acenei com a cabeça, como se visse o caso feio. Vou ao meu quarto passar a receita.             

Descrevi as queixas do homem ao meu sócio. Parece-me que o tipo abusou da feijoada. Doem-lhe os intestinos. - Então escreve aí o que eu ditar. Pois, com a tua letra. Fiz a receita e o homem, no dia seguinte, estava fino.                    

Todos riram. Minha tia, com o lenço abafando a boca, trocou um olhar apaziguado com minha mulher.

O Crispim resolvera escolher, das suas memórias, o que não ofendesse ouvidos cristãos.     

-... Claro está que o dono do hotel nos ofereceu uma estada de um mês. O pior é que nos apareceram outros doentes. Criados, hóspedes, amigos do dono da        casa, todos me olhavam com respeito e admiração. Um       deles, estragou-nos a vidinhaa. Era um velhote enfrenesiado, coronel, chamavam-lhe, que sofria dos... – Nisto o Crispim interrompeu-se, ruborizando-se como uma donzela. Olhava as senhoras, coçando os cabelos significativamente.

Ninguém sabia como resolver a dificuldade. As senhoras não compreendiam e esperavam interessadamente o remate da frase. Foi o lavrador manhoso que, farejando uma pouca- vergonha e não querendo desta vez deixá-la escapar, atiçou o Crispim:

- Você está embuchado, homem! Afinal o coronel sofria de quê?

O Crispim hesitou ainda um momento. E de olhos fitos nas senhoras, segredou recatadamente aos ouvidos do lavrador:

- Dos testículos.

O lavrador engasgou-se de tanto rir. Tossia e gargalhava, babando-se. Foi necessário que o outro lhe apertasse um cotovelo, chamando-o à compostura.

- Enfim, a medicina acabou mal - concluí, desejoso que o Crispim passasse à frente.

- Acabou o pior possível. O meu sócio ditou-me a receita à pressa, enganei-me nas doses e queimei... o homem. O farmacêutico disse que atendera a receita por julgar que viesse de um veterinário. Tivemos de fugir. O azar levou-nos para Belo Horizonte, onde a polícia já nos procurava. Estivemos numa prisão política. Os malandros mandavam-me pôr um dedo numa coisa carregada de electricidade e moíam-me com perguntas: Conheces fulano? - Não conheço ninguém. Sou português. E vai de carregar. Conheces ou não conheces, ca panga?

- O homem passou coisas, passou - anuiu o outro lavrador. - Sempre é melhor ficarmos quietos no nosso cantinho. - E, estendendo uma cigarrilha ao herói, sentenciou: - Mas não sei como o senhor não procurou outro modo de vida mais seguro.

O Crispim sorveu uma grossa fumaça e, sentindo de novo o ambiente predisposto à emoção, retorquiu:

- Eu não estava em condições de procurar. Tinha de viver. Mas procedi sempre com limpeza. Desonestidades não eram comigo.

- ah, pois - aceitou meu sogro, embora a meditar por que bitola de honestidade se regulava o hóspede.

- Bom - prosseguiu o Crispim -, o melhor foi daí em diante...

Acomodámo-nos nas cadeiras, concentrando os sentidos nessa perspectiva que ele nos oferecia. Minha tia sorriu para toda a gente e depois, sem darmos por isso, apareceu com um prato recheado de amêndoas e figos secos.

- Querem da tal? - perguntou meu sogro aos lavradores.

Referia-se, evidentemente, à ginja.

- Vamos a ela - dispôs-se o lavrador das risadas carnívoras, e no seu piscar de olhos parecia dizer-nos: Grande noitada vamos ter! "

O único inquieto era eu.

- Bom, saí do Brasil, noutro barco, com uma fisgada. Quando chegasse a um porto do Norte de África, daria uma saltada à Legião Estrangeira. Já tinha cheirado a coisa da outra vez.

- oh, isso por lá é medonho. E perigoso como diabo - anotou o lavrador das prudências.

- É. Duro. Mas eu ainda não tinha experimentado como uma pessoa se sente com uma espingarda nas mãos. Lera uns livrecos de cow-boys, em catraio, e sempre que imaginava aqueles tipos com os coldres descaídos da ilharga, a limparem um bar enquanto o Diabo esfrega um olho e saírem dali tesos e de alma leve como se nada tivesse acontecido, percebia que uma arma é grande coisa. Um homem sente-se dono de si próprio.

- Ora, eu também me sinto dono de mim próprio, e nunca usei armas - filosofou o mesmo lavrador.

- Cada um tem as suas armas.

Não soube ao certo se o outro teria percebido a insinuação, mas ela revelara-me, uma vez mais, que o Crispim não era tolo nenhum.

Eis, pois, o Crispim na Legião Estrangeira. No entanto, embora essa faceta não fosse de todo novidade para mim, à medida que ele ia descrevendo as batalhas com a moirama, as travessias do deserto, as miragens, os abutres pairando sobre as árvores isoladas à espera de um festim, fui concluindo que ele nunca estivera alistado. Ouvira contar essas coisas, vira-as no cinema, lera-as nos romances de cordel e impingia-as como lhe era possível. A Legião Estrangeira do Crispim era uma convenção cinematográfica. Autênticas, ou quase, seriam as façanhas sórdidas que ele, já à pressa, situava em certos antros corrompidos. Mas como essa sordidez, enroupada na cor local, não era facilmente destrinçável pela candura dos ouvintes, só fez aumentar o deslumbramento da minha família. O lavrador bolachudo

era o único, além de mim, que a filtrava. Havia bailarinas enigmáticas, mouros de penumbra, faquistas e raptores, nas personagens do Crispim. E uns saquezinhos aos turistas, com ele como protagonista, mas que, no cenário exótico da história, até pareciam irreverências de um Robin medieval.

De Marrocos a Espanha, por altura da explosão da guerra civil, foi um passo coerente na saga do Crispim.

Que eu estava-me nas tintas para o que acontecesse a vermelhos ou a brancos! Aquilo, sim, era um campo de manobra!

- Manobra ofensiva ou defensiva? - inquiriu meu sogro, que fizera a guerra de 1918 a chocar o seu reumatismo numa trincheira de França das linhas mais recuadas, e desde aí se sentia perito em estratégia militar.

- Conte-me isso em miúdos, senhor Crispim.

Havia solenidade no porte e nas palavras de meu sogro. E os lavradores perceberam, com manifesto melindre, que a conversa se desviara para um campo em que seriam esmagados pela experiência do anfitrião.

- Manobra de outro género, senhor Albuquerque. Aqueles mouros que vinham de África para estoirar com os republicanos eram bem pagos e traziam a bolsa recheada. - E, sem reparar na agastada desilusão do interlocutor, adiantou animadamente: - A gente fazia assim: pilhávamos uma camioneta e íamos pelas estradas, à cata de patrulhas de marroquinos. Subam, que a gente leva-os! Era um sol danado, caminhadas que nunca mais acabavam. E eles subiam. Ninguém ia desprezar uma boleia. Viam-nos com a farda e confiavam. Mais adiante, zás, um tirinho na nuca e venham para cá as reservas.

- O senhor fez isso?

O Crispim interpretou mal a admiração do meu sogro e achou que devia explorá-la até ao cabo.

- Eu não lhes disse que um homem com uma arma tem tudo o que quer à mão A gente em começando a matar... Nunca mais se acaba. O sangue ferve, a cabeça zune, e depois tudo se passa como um caçador que vai a uma coutada. Cada lebre morta pede outra lebre e mais outra e sempre mais outra. Quanto mais sangue, mais sangue é preciso para apagar as nódoas que nos ficam nos dedos.

Tínhamos em casa um assassino. Em casa: debaixo do nosso tecto, à nossa mesa, deitado numa cama onde se haviam deitado os nossos parentes e amigos. E, subitamente, todos nos sentimos assassinos também. Sangue, sangue por todo o lado. E já não era apenas a nossa casa o palco de uma chacina. Era a vila. A vila tinha um assassino dentro das suas portas.

No curto mas denso silêncio que se seguiu ouviam-se as veias de todos nós latejarem como vermes enlouquecidos.

- É assim que se começa a matar. E foi assim que, mais tarde, quando nos chamaram para acabar com uma greve de mineiros do Norte que se haviam entrincheirado nas galerias, eu fui daqueles que os esperaram por detrás das rochas, depois de lhes terem prometido tréguas e negociações. Eles saíam dos buracos e eram como coelhos fugidos da toca perseguidos pelos furões. Nem Lhes sobrava tempo para berrar.

Pusemo-nos de pé. Ainda hoje não sei bem como a sala se esvaziou. Achei-me a sós com o Crispim e mo mentos depois fixei-lhe a expressão confusa. Ele não percebia - ou iria perceber tarde de mais.

- Você excedeu-se.

O Crispim passou os dedos pelos cabelos, recuperando, aos poucos, a consciência da sua solidão.

- Não gosto de beatas falsas, professor. Vou-me embora.

Sacudiu o fato, como se quisesse purificar-se do ranço do nosso ambiente burguês e os seus gestos procuraram ainda uma violência. Mas o espectáculo dos restos dos figos e das amêndoas, da garrafa de ginja, sugestões da boa galinha tostada que comêramos ao jantar - enterneceram-no. E corrigiu o rompante:

- Vou-me embora amanhã. Mas sempre lhe digo que o seu livro é que paga as favas. O melhor ainda eu não lhe contei.

- A gente combina um dia...

- Ou eu Lhe conto o resto desta vez, ou não me apanha mais por dinheiro nenhum.

- É consigo - disse eu, frio.

Fui para o meu quarto como um colegial que se escapou saltando pela janela e espera ir encontrar, no regresso, o director a aguardar a sua chegada. Minha mulher, de olhos fechados, fingia ter adormecido de repente. E quanto a meu sogro, decerto iria bater-me ao ferrolho no minuto seguinte para me pedir contas de os ter intrujado: Como te atreveste a enfiar-me em casa um criminoso ?

Aconteceu, porém, coisa muito diferente. Algum tempo depois de ter apagado a luz, ouviu-se um rebuliço dos diabos, lá para o fundo do corredor, onde se encaravam, suspeitosamente, as portas dos quartos do Crispim e da minha tia, o fragor de móveis revolvidos e de vidraças estilhaçadas. Encontrei meu sogro no corredor, em ceroulas, com os nastros atados à pressa.

- Que raio vem a ser isto Pouca coisa, responderiam os senhores, porque não conhecem a minha tia. Mas pelo que já sugeri, poderão imaginar a audácia e o heroísmo do sucedido. Minha tia assaltara o quarto do Crispim, um facínora, para reaver a medalha do seu santo de estimação. A medalha é que esse renegado não lhe levaria de casa! E o Crispim, despertado intempestivamente pelo ruído de alguém que lhe apalpava os haveres e o pescoço, e não sendo tão corajoso como se poderia supor, na pressa de se escapar do assaltante amolgara a cabeça de encontro ao espelho.

Ele partiu nessa mesma noite. E nunca mais se falou da sua passagem pela vila. Mas entre nós, lá em casa, às vezes minha tia suspirava nos silêncios vazios daqueles serões que não tinham acontecimento nem fim.

 

                   UMA AVARIA NO AUTOMÓVEL

O entardecer, sombrio, veio de longe ao encontro do carro. Depois desses meses de secura, a atmosfera agitou-se, nuvens correram alarmadas de todos os lados, como se farejassem uma catástrofe, e a chuva então caiu de súbito, esmagando-se com raiva nos vidros do automóvel. O homem teve de refrear a marcha e a ansiedade. Previra com minúcia o horário da viagem, o momento da chegada, à hora em que a vila fecha o comércio e junta a sua modorra nos bancos da praça ou dos cafés - e este temporal imprevisto acabaria certamente por obrigá-lo a chegar já de noite.            

Regressava depois de um desterro de dez anos; mas           sabia exactamente, como ontem, como sempre, as pessoas que encontraria no largo dos plátanos, na farmácia, em cada mesa do clube, ou então nos grupos familiares, da gente grada, que repetia diariamente, como       um ritual inviolável, aqueles lentos passeios desde a grande faia do cruzamento das estradas até ao palácio        do comendador. Não esquecera um hábito, um gesto     - hábitos e gestos que a vila eternizava como se a tivessem condenado a uma hibernação perpétua. O homem guardara-os consigo, desesperadamente, como escudo contra os ambientes estrangeiros que suportara durante esses anos. As recordações defendiam-no da solidão, embora a avivassem mais ainda, e eram a raiz onde a sua personalidade se apoiava, nutrindo-se do veio contemplativo que imprimia um modo de ser à gente da sua terra.

Uma inquietação vagabunda empurrava as pessoas dali para o mundo; todas elas tinham uma alma cigana. Mas para onde as levasse a aventura ia também a presença do que haviam deixado para trás. Quase todas regressavam, como reses que vêm aninhar-se na sua verdadeira toca.

O homem fora um dos que não resistira a tal sortilégio. Dez anos! Que importava, porém - se ele não desperdiçara, durante esse tempo, nada do que, perten cendo-lhe, pertencia também à vila? Dez anos a imaginar, com volúpia, a alegria comprometida dos amigos, o espanto dos primeiros dias. Entraria no café, embuçado, disfarçando a voz:

- Serve a dose, Chico.

- Qual dose? - como se pergunta a um desconhecido que pretende fazer-se engraçado.

- Já te esqueceste?... - E descobriria então o rosto ansioso.

- Olha, olha... quem ele é, gente! É o senhor Alípio! É... ele mesmo!

E a gagueira do Chico, perturbada pela comoção, já não o deixaria ir mais longe. Era um bom moço, o Chico! Na sua mão, aquele pano de limpar as mesas de mármore desfazia-se do ardor profissional que ele punha em todos os gestos. Tinha sido o primeiro criado da vila a vestir um casaco branco e dois anos depois, embora já lhe ficasse quase pela cintura, ainda Lhe sacudia amorosamente as abas sempre que um cliente atravessava a rua para entrar no café. Apetecia diluir a lembrança do Chico Gago com duas lágrimas piegas.

O grito do rapaz seria o alarme. Uma bomba que estoirasse no centro do café. Ele regressara! - pensariam ou diriam todos. E, daí em diante, o problema seria libertar-se dos amigos e dos ciúmes do Meneses, que o ia filar para o resto da noite. Nos dias seguintes não lhe chegariam as horas e a sofreguidão para correr todos os lugares da sua preferência. As várzeas, os pinhais, as lagoas, saciando-se como um potro que retorna ao prado. Voltaria a ser ele próprio, despido, espontâneo, farto como uma cobra ao sol, desfeitos os sarros de desconfiança e ressentimento que os ambientes estranhos lhe haviam imposto. A chuva é que viera modificar essas perspectivas: com o atraso, chegaria à vila a uma hora morta, e, dado o mau tempo seria obrigado a procurar os amigos em casa. De tudo o que imaginara, só ficaria de pé a cena do Chico, mas com o café já deserto.

- Quanto devo, Chico?

O rapaz, porém, não aceitaria um tostão. Ou talvez ainda por ali estivesse um velho amigo, viciado ao café, que não cederia a ninguém o gosto de lhe pagar o aperitivo.

Enfim, regressar. Era o que importava. Foi então que            sentiu, inesperadamente, o soluçar dos pistões transmitindo ao pedal do acelerador, e, logo depois, como um pulmão engasgado, o carro começou numa marcha sacudida, até se ficar rendido, à mercê da chuva. Tinha sido descuido deixar abertos os respiradores do carro: as velas estavam encharcadas. Mais um atraso enervante. Só a custo chegaria à vila. Mesmo enxugando os fios e as velas com todos os trapos que tinha à mão, o motor acabava sempre por se esganar. E, de soluço em soluço, a cinquenta metros da vila negou-se a ir mais longe. O Meneses dissera-lhe, numa carta, que havia por ali, perto da grande faia do cruzamento das estradas, uma nova oficina de reparações, do Júlio Santos, ao lado da fábrica de moagem. Devia ser aquele casarão amarelo, a espreitar à entrada do burgo os carros que vinham do Sul. Mas não era apenas o casarão que se via ali mais. Custava a identificar a faia de hoje com a árvore gigante de outros tempos, especada com severa majestade no meio desses braços que prolongavam a vila para o aceno de outros lugares. A faia" - como diziam ali era um ermo que acoitava revolucionários e ladrões. Lembrava-se que seu pai, sempre que afoitava a família a um passeio a desoras por esse arrabalde suspeito, escondia a mão no bolso da pistola. A árvore, desgrenhada, livre, enorme, era um covil. Agora a encruzilhada tinha canteiros de malvas e viam-se, à roda, moradias ajardinadas e pacíficas.

O pessoal da oficina era-lhe desconhecido. Um velho Ford veio rebocar o automóvel para dentro e em seguida dois ou três pimpões enfiaram o pescoço nos abismos do motor, num silêncio agoirento, de aves gulosas de tragédias.

- A corrente é fraca. E este disjuntor já não serve. - A cabeça do distribuidor está avariada - acrescentou outro, numa voz azarenta.

- Mas será arranjo demorado?

- O melhor é não pensar em seguir hoje viagem. Estávamos a fechar quando o senhor chegou. Vai para longe?

Precisava que eles soubessem que falavam com alguém da terra. Que mudassem de voz. Que perdessem aquele aspecto displicente, rufião, de quem não precisa de cativar um cliente que só o acaso trouxe às mãos. Queria sentir já ali o ambiente familiar a que tinha direito. O pessoal da oficina viera da cidade, certamente, e era bom que soubessem desde já que os estranhos eram eles. Agora, porém, uma daquelas caras aproximava-se das suas recordações. Era o marçano do Berto, com certeza. Mas o rapaz estava um homem! Espantoso. Então um dardo fino, de veneno e angústia, traspassou-Lhe o entusiasmo: dez anos poderiam ter mudado as pessoas, a vila, os próprios afectos. O marçano do Berto surgia aos seus olhos deformado e repelente. E a si - como o achariam os outros?

Sentiu o corpo frio. Esfregou as mãos com furor e disse, ainda na intenção de que todos o pudessem relacionar com o burgo:

- O Júlio Santos tem aqui uma boa oficina.

O mecânico, seco, de boina vasca, olhou-o pela primeira vez sem enfado.

- A oficina não é do Santos. Passou a dele lá para

cima. Conhece esse tipo?

Baixou a cabeça, para esconder o enleio, e respondeu num esforço de naturalidade desinteressada, prevendo a reacção exuberante do outro:

- Eu sou daqui.

O mecânico raspava a cabeça do distribuidor e ficou indiferente. Parecia não ter ouvido.

- No meu tempo, quando vivia cá na terra, quem tinha fama era o Rocha - insistiu, desorientado. "

- Um bêbado - disse o outro. - Os tipos desta terra vão-se abaixo. Viemos nós de Coimbra e nem o Sousa nem o Rocha levantaram mais a cabeça.

O que fora marçano do Berto chegara-se, enfim, ao grupo. O homem sorriu-lhe veladamente, com cumpli cidade, preparando-se para aceitar o cumprimento. O rapaz, contudo, permaneceu alheado da sua presença, e então encarou-o no fundo dos olhos, como se o intimasse a corrigir, sem demora, a frieza da besta do patrão.

- O Meneses está por aí? - perguntou-lhe, para o estimular a qualquer aproximação.

- Julgo que sim, senhor Alípio. Ele, agora, tem um armazém em Alfarelos. Mas aparece por aí quase todos os dias.

O patife, afinal, conhecera-o - mas nem se dignara levar dois dedos ao boné. O mecânico, ao ouvir falar em Alípio, naquele tom familiar, levantara lentamente a cabeça.

- Se o senhor Alípio fosse para os lados da quinta do seu pai, pedia-lhe que me levasse. Casei para aqueles sítios - tornou o marçano.

Casado! Que acontecera na vila? Que acontecera nesses dez anos? O tempo ultrapassara-o. A vila era já outra e afinal tão estranha, tão hostil, tão esquiva, como as terras estrangeiras que ele não consentira que o tivessem possuído.

- Levo o carro cheio - respondeu, despeitado. E o homem foi até ao portão da oficina, por onde o rapaz saíra sem se despedir. Através da penumbra húmida, fitou a vila com desafio. Era como se nesse momento o apoio Lhe viesse dos ambientes que ele repudiara. Como se eles o tivessem acompanhado até ali, a fim de protegê-lo. Os álamos das bermas da estrada haviam sido brutalmente arrancados; prédios altos a esmagar nos seus alicerces as palhotas dos ferreiros; um céu de fumo, um horizonte fechado em tijolos, em chaminés, sem aqueles espaços vazios com choupos líricos, com verdura de um macio orvalhado, que ele, durante a ausência, tivera presos na retina.

O mecânico decidira-se por um arranjo de ocasião.

Mas desta vez falou com deferência:

- É pena que tenha pressa. O carro não pode aguentar muitos quilómetros.

Estrada acima, o homem não teve coragem para verificar as transformações na casa que fora sua e dos seus durante meio século. A porta do café do Chico tinha sido rasgada, sacrificando as montras laterais. O Rocha e o Belarmino sapateiro (como este engordara com a fábrica de calçado!) estavam ainda por ali, a beberricar.

O Belarmino parecia mordido por abelhas. O homem bateu no mármore do balcão deserto. Apetecia gritar no meio daquele silêncio feito de sono, tristeza e penumbra:

- Aparece, Chico de uma cana!

Bateu uma vez mais. Então um rapaz com ar fadista, de bigode louro e casaco branco, saiu da retrete. Vinha sem pressas. Um novo criado     

- O Chico Gago está por aí?         

- Não conheço.       

O homem mordeu os lábios e emborcou rapidamente o cálice de conhaque. Sentia-se desorientado.

Quando se dirigiu de novo para a porta, roçou a mesa           do Rocha. Havia sido um dos amigos íntimos do seu            pai. Neste momento, o Rocha ou qualquer outro lhe  serviriam para neles concretizar o seu regresso à vila, à terra que o vira nascer. O Rocha e o companheiro ergueram para ele uns olhos opacos.

- Boas noites - disse por fim o Belarmino, numa voz neutra. Cumprimentava um estranho. E logo depois os dois bebedores afundaram o queixo no vidro da mesa.

- Então não me conhecem? - berrou o homem. O Rocha conservava a sua expressão estúpida, de borracho. Foi ainda o Belarmino a responder:

- Estou a lembrar-me agora. O senhor está mais gordo, mais homem.

Nada mais. Gordo e homem.

Saiu para o ar livre, nauseado. Sobretudo nauseado de si próprio. Acácias jovens na praça, armazéns, a avenida soalhada de vivendas, no sítio onde o milho, dantes, recebia a seiva do rio. Mais gordo, mais homem. Outro, afinal. A vila não tinha lugar para recordações. Toda ela entregue à fúria do tempo, renovando-se em cada instante. Só aqueles que haviam caminhado a seu lado, que a haviam empurrado para o futuro, a sentiriam como sua e a mereciam. Não valia a pena iludir-se e humilhar-se. De raízes cortadas, soltas, era um estrangeiro em toda a parte. Nada tinha que fazer ali. Até o Meneses iria repetir, como os outros, forjando um abraço cerimonioso

- Custa a conhecer-te! Mais gordo, mais homem. E ficariam embaraçados, como dois estranhos que se espiam.

Correu para o automóvel, mordido de angústia, e carregou furiosamente no acelerador até ao fundo, impaciente, desesperado - fugindo.

 

                   PIQUENIQUE

Gosto do Piquenique e vou lá algumas vezes. Não sei se conhecem o Piquenique: é um restaurante com muita piada que fica no Rossio. Entra-se e depois do bar há umas escadas, uma espécie de esconderijos e criados alvoreados que se esquecem de nós, dando-nos tempo para mastigar aquele pedacinho de intimidade

que nos é oferecido pela atmosfera aconchegada. Gosto, acabou-se, mesmo quando a balbúrdia é tanta que nem já os criados podem enfiar-se por entre os clientes que se atulham ao balcão: é que, mesmo nessas horas ou nesses dias, tudo aquilo tem um certo ar recolhido e segredado. As mesinhas esgueiram-se para os tais recantos e ali pode-se deitar a cabeça para trás e imaginar que as pessoas nos pertencem. E que lhes pertencemos também.

Adiante verão como comecei a gostar do Piqueni- que. Já antes, porém, gostava do Rossio, quer de dia, quer de noite. Por mais que o movimento da praça atordoe, eléctricos, automóveis, anúncios, pregões, mirones que são pedras onde tropeçamos, e a gente corra em todos os sentidos, de regresso ou a caminho de uma catástrofe, quem se chegue para o centro e se deixe borrifar pelos espirros dos Neptunos, tem ali um oásis tranquilo, onde a luz é suave e dormente e onde se pode gozar este anónimo e incomparável afago que é receber a paz das mãos da multidão.

Não reparem no modo como falo destas coisas.

Vêm-me à toa, ora daqui, ora dali, e só mais tarde, digerindo-as, as junto como deve ser. Dizem que tenho uma aduela a menos. Uma ou várias... Chamo-me Cristina e não sei pentear-me, nem falar com as pessoas, nem ser amável, nem cativá-las. Por isso, fogem de mim. Por isso ou, sobretudo, porque penso e digo o que, para os outros, é tolice. O meu pai - que também não gosta de mim ou tem vergonha de eu ser como sou - diz-me, por exemplo: Preciso que me escrevas hoje uma carta em alemão. Quero-te no escritório às dez horas. - Às dez não pode ser, pai. Só estarei livre às dez e meia. - Dez horas, Cristina. Ele é sovina nas palavras, mas essas poucas são peremptórias. A gente sabe que não pode deixar de obedecer. E eu faço o possível por estar lá às dez horas. Dessa vez, quase o consegui. Eram dez e uns minutos. Um atraso pequenino, que nem se dá por ele. Verifiquei tudo isso, logo à entrada, olhando o relógio niquelado que está por cima da secretária do Sr. Sousa, o guarda-livros (a quem os outros empregados, por irreverência ou carinho, chamam o Tio Sousa). Meu pai, porém, tinha dito dez horas. E já não quis a carta.

Vou ao escritório do pai por coisas como esta: escrever cartas. Ou, quem sabe, para me certificar se o sorriso fugaz, medroso, do Tio Sousa, é de quem me estima ou apenas tem compaixão de mim. E quando entram os clientes, cumprimento-os com afabilidade.

Todos os desconhecidos são para mim um renovo de esperança nas pessoas. Eles, porém, não me respondem ao cumprimento e muito menos à afabilidade. Rosnam, apenas. São clientes. Não precisam de saudar ninguém.

Têm carros lá fora, vermelhos e esguios, ou cor de marfim, motores com reluzentes cromados, esperando-os.

Talvez ainda os espere o motorista. Ou as esposas. Ou tudo isso. Um isso que dispensa cumprimentos e a gentileza espontânea de uma desconhecida. Vão ao estrangeiro nas férias, com o motorista e as tais esposas. Paris. ah, Paris! Que viste em Paris? O Folies-Bergere.

As Galerias Rivoli. Que sedas. Que perfumes. Perfumes, então! Os que chegam cá, de contrabando ou pelas vias legais, são grosseiramente falsificados. Vão a Paris, os clientes de meu pai. Compram montes de coisas. E quando entram no escritório, sou uma Cristina I tão insignificante que não me vêem, não me ouvem,

não dão pelo meu desejo de comunicar confiadamente com as pessoas.

Eu também queria ir a Paris. Ir, simplesmente. Andar de metro, andar pelas ruas e jardins e meter-me com quem olhasse para mim. Metro Credo Isso é para as midinettes. Mas eu não me ralo: queria ir de metro. Se eu tivesse o dinheiro deles! Não para comprar perfumes, vestidos, arranjar o cabelo; dinheiro para comprar tudo o que desejo, sair do meu buraco e deslaçar estes anseios enovelados, ora sob este sol, ora sob aquele, procurando sempre um sol diferente.    

O meu dinheiro serviria para coisas tão boas! Eles não as conhecem.

Pois os clientes, quando os cumprimento, olham para mim, apreciam-me como uma excentricidade ou            um objecto, e perguntam a meu pai: Senhor Alves: é esta a sua filha? - É - confessa meu pai, com o ar de quem não pode esconder o delito. E eles fazem uma exclamação A" ...

É um a"! que diz tudo.

Talvez lhes pareça que nada disto tem que ver com Piquenique. Pois tem, sim senhor. Não se gosta do Piquenique, tal como eu gosto, por acaso. É preciso várias razões importantes que se prendem com uma data de coisas. Com as pessoas, pais, clientes e todos os outros, e com os acontecimentos que eles desperdiçam ou adulteram.

Comecemos pelos pais. Minha mãe nunca desejou ter filhos. Sei-o bem. Talvez não me odeie, a mim, à Cristina, mas sim à filha que teve (fui a primeira, a grande distância, de um surto tardio de fecundidade) e a quem, por escolha da avó, se pôs o nome de Cristina. Nunca sentiu por mim qualquer espécie de ternura, nem sequer o carinho indulgente e instintivo que se tem por uma criança. Ou, então, estou eu enganada e a sua aversão seja realmente à Cristina, que é feia. Há tempo, foi há anos, ainda não tinham nascido os meus irmãos, ela disse-me: Tu não és minha filha. És filha de uma preta. Fui ao espelho e vi-me com esta cor escura, beiços moles, cabelos eriçados, que parecem escovas. Mas não me vi preta. Preta, não. Não e não. E corri para a tal avó que me escolheu o nome e me afirma, às vezes, fazendo um sorriso murcho, que eu sou bonita: Avó sou filha de uma preta - Credo, minha pomba, que ideia foi essa? - Diz-me, avó, eu quero saber! Queres saber o quê, tolinha? Tua mãe é branca, teu pai é branco. Louro, quase. E tu és branca também. E eu, nesses momentos, acreditava e sorria, não como a avó, que sorri comprometida, mas como um anjo a quem entregam, à socapa, uma guloseima. (Se dessem aos anjos um embrulhito com amêndoas, todos eles sorririam   por mais maçadoras que fossem as procissões; sem    amêndoas,como poderão as procissões, que lembram funerais, ser procissões a valer?)      

Mas acreditava por pouco tempo - enquanto durasse a guloseima. Durante anos, perguntei àquela Cristina que se escondia pelos cantos: serás realmente filha deles? Serás preta? E quando metiam medo às outras meninas, ameaçando-as com os pobres negros, parecia-me que era de mim que falavam, que era eu o espantalho. Ainda hoje me sinto bastarda, não pela cor negrusca, nem pelos cabelos, nem pelos beiços, mas por muitas outras razões.  

Às vezes, estou no quarto e ouço-a. (Falo da minha

mãe.) Conversa na escada com a vizinha. Queixa-se de mim. Fulana é uma rapariga cheia de qualidades. Faz       tricot, sabe cozinhar, é alegre, enche a casa. Vai casar.      

Esperou dez anos pelo noivo. Será uma esposa modelo, como tem sido boa filha, todos a acham uma simpatia.      

Terá filhos exemplares. Tudo exemplar. Menos eu, claro. É a minha mãe que o diz. Sou esparvoada, distraída, tímida, um bicho que não põe os cornitos fora do seu       casulo. Sou má, obstinada, irascível.

Ouço-a e, de repente, saio do quarto e apareço-lhes.

A vizinha não disse nada durante todo aquele tempo e, ao ver-me, dá mais umas voltas na fechadura do seu silêncio. Nem ela nem qualquer outra dizem nada quando minha mãe lhes faz queixa de mim.            

Noutras ocasiões, minha mãe não procura as vizinhas para desabafar o seu veneno; desabafa-o comigo:

- Não prestas para coisa nenhuma. Nunca terás um marido, filhos, uma casa. Ninguém te quer.       

É horrível. Ouço aquilo como quem me espeta um ferro pela carne dentro. Tanto que eu quero tudo isso! Marido, filhos, a casa, tudo. Não pode ser verdade o que ela diz. Meu Deus, não pode ser verdade!

E o pai é quase na mesma. Se é bom ou mau, nunca cheguei a saber ao certo. Guarda as palavras, os gestos, a linguagem, para os amigos. Para mim, é só ríspido. Está no escritório às dez horas! Nem mais um minuto. Somos, para ele, um fardo. Embora conserve toda a liberdade de solteiro, e nem sequer a discuta, parecemos-lhe certamente uns hóspedes longínquos que lhe entrámos pela casa e ali ficámos sem falar mais na data da partida. Daí, ou nem sei porquê, nunca em minha casa ter havido uma festa. Nem de Natal, nem de outros acontecimentos que as pessoas celebram apenas pelo gosto de celebrar. Por isso, ainda, não tive até hoje uma prenda. Mesmo no meu dia de anos. Mas ofereço-as eu e isso já me dá prazer. Sempre que apanho uma deixa, dou uma bugiganga ao pai (apesar de tudo, amo-o tanto!): Gostas, pai? Preferias outra coisa? E ele encolhe os ombros. Somos os hóspedes que, abusivamente, arrumaram as malas a um canto. É-Lhe indiferente o meu afecto; é-lhe indiferente tudo o que vem de mim. Que bom, meu Deus, se eu estivesse enganada! (Falo de Deus e já não creio n'Ele. Mesmo naquelas minhas fúrias de misticismo, dirijo-me a Ele como quem corre a uma porta que se sabe estar fechada e acho-me a bater com os punhos, a ensanguentá-los, abre, abre, apenas para me flagelar.)

Mas um dia fomos a uma festa, da passagem do ano. Em casa de uns amigos do pai. Toda a gente estava alegre, de uma alegria frívola mas clara como um sino numa atmosfera de neve e urgente e verdadeira como um berro na garganta de um estrangulado. Todos tinham muitas coisas que dizer uns aos outros, menos eu. Nada tinha que dizer. Sentia-me mal, leprosa, indesejada. E um amigo disse para meu pai. Que tem a sua filha? É uma rapariga tão estranha! E depois dirigiu- se-me directamente, lá para o fundo da mesa: Que tem esta Cristina? Não fala, não dança, não se diverte como as raparigas da sua idade. Sorri, apatetada. (Eu sei que pareço sempre apatetada quando me interrogam sem eu esperar.) Então não quer dançar? Neguei com a cabeça, sorrindo, ainda. Pois vai dançar mesmo E chamou pelo filho, que andava por ali num grupo reinadio, intimando-o: Alfredo, vem dançar com a Cristina. O rapaz pôs-se a coçar o nariz e, nuns passos que pareciam de chumbo, foi-se aproximando do lado onde estava a Cristina. Quando ele ainda distava de mim uns metros, gritei: Não quero, não quero dançar. Toda a gente me encarou com espanto e reprovação. Mas ninguém olhou para ele e Lhe viu o rosto de foca a quem obrigam a saltar fora da água apenas para apanhar um carapau.

Depois esqueceram-me. Eu, porém, não os esqueci. Observava-os. Continuavam a repetir amabilidades uns aos outros. E ofereciam-se amizades, préstimos, taças de vinho. E dançavam e gritavam e eram todos pessoas excelentes. Não, não eram. Recordo-os agora um por um, nesta mesita do Piquenique onde vos escrevo, e estou certa de que não eram excelentes. Não sentiam nada do que diziam. Eram porcos, cruéis e cínicos. Sei agora isso muito bem. Ofereciam lembranças para encobrirem o seu egoísmo, para comprarem a simpatia alheia e, sobretudo, para se julgarem mais poderosos do que aqueles que as aceitavam. E quando riam, riam com ferocidade. Como não devia eu sentir-me ali a mais, comprometida e intrusa, se eu desejava amar os outros sem prevenções, amar verdadeiramente e ser amada, se eu não podia dizer as coisas que eles diziam e rir como eles e pensar como eles? Um dos amigos do pai gabarolava: Sim, um descapotável. No Verão, é formidável viajar num automóvel descapotável. Ora eu não pensava em Estios, nem em automóveis, nem em coisas boas. Era Inverno e no que eu pensava era no homem que, nessa manhã enregelada, vendia castanhas numa das esquinas do meu bairro, enquanto dava passinhos saltitados e esfregava as mãos para espevitar o sangue tolhido. Pensava nele e na sua família, se a tinha, e no seu frio, e no céu enevoado e em outras recordações tristes. Dê-me cinco tostões de castanhas. Mas não das podres! Como podia o homem adivinhar que as castanhas seriam podres?

Pois esta vossa Cristina é assim. Não reparem. Vêm-me à cabeça histórias, pessoas, factos desligados, e de uma coisa de nada faço um novelo que não caberia num bolso. É o meu mundo. E eu própria me enrolo dentro dele, inventando figuras e diálogos donde ninguém me espante. Aquela senhora que acaba de entrar, por exemplo. Parece um papagaio. Nem é bem pela voz, mas pelo resto. Cada gesto dela é um sacudir de penas amarelas. Entrou no Piquenique com uma amiga, mais um menino de nariz birrento e uma garotita que não sabe onde pôr as mãos e os olhos. A garotita é a serva. A serva do menino de nariz birrento. Pois o pa pagaio, que logo monopolizou o empregado que cuida das mesas desta fila, disse numa voz para se ouvir, embora roufenha, que irá comprar uns sapatos novos à criadita, àquela zé-ninguém de dez anos. Que rica! diz a amiga. Que rica! Criada aos dez anos. Um cãozito a mais lá em casa. Agora ponho-me a tecer o meu novelo. A criadita é dócil. Porque, se não o for, chama-se a tia (todas as criaditas de dez anos têm uma tia) e previne-se: Veja como ela responde. Veja como é malcriada. E a tia implora: Desculpe, minha senhora. São crianças e já ingratas. Mas eu a endireito, mas eu a endireito! Desculpe por esta vez, minha senhora.

O papagaio (quer dizer, a senhora) desculpa. E a criadita vestirá um uniforme, uma bata azul com rendas no pescoço e nos punhos. O uniforme da servidão. Veio para casa do papagaio a fim de tratar dos meninos, servir de capricho e divertimento dos meninos. Veio para ser beliscada e injuriada pelos meninos. E sempre de rosto contente. Senão, é refilona, estupor, tira-se-lhe o uniforme e ameaça-se com a porta da rua.

Dez anos, que rica! mas nunca teve brinquedos. E, por isso, entra no quarto dos meninos e põe-se a brincar com uma boneca. Larga a boneca! As brincadeiras são minhas. Deu-mas a mamã. E a zé-ninguém obedece, para voltar mais tarde, como um malfeitor. Mas o menino apanha-a de novo no quarto com a boneca. Maria! (trata-se da outra criada, já antiga na casa, muitos anos de diligente escravatura), Maria! A Josefa anda com os meus brinquedos. E eu não quero! Eu não deixo. O menino faz as queixas e choraminga. E a Maria, um fiel cão de guarda, indigna-se: Josefa! Como te atreves a mexer nos brinquedos do menino! Quando a tua tia vier, eu lhe direi das boas. Vais para o olho da rua. E a zé-ninguém perderá o uniforme e o resto. Que é o resto?

A tia, porém, mais uma vez conserta as coisas, pedinchando a generosidade da senhora. Que boa, esta senhora! E por isso, a Josefa, no Verão, vai para a praia com os meninos. São da sua idade, que ricos! ou mais pequenos ainda. Poderiam brincar com ela, se a Josefa não vestisse aquele uniforme que o Estio exige que seja branco. Não brincam. Beliscam, empurram-na, afastam-na de tudo o que se deseja ver, palpar, experimentar. Os meninos despem-se, enfiam-se nas ondas. Que bom, as ondas. E a Josefa nunca tinha visto o mar. Tanto que Lhe apetece banhar-se também, soltar aqueles guinchos, sufocar-se com a espuma que lembra uma água de neve! Não pode ser. O mar é dos meninos. Tudo é dos meninos. Até a infância é exclusiva dos meninos

E agora, que o papagaio falou muito, sacudiu as asas, comeu os bolos e saiu, acabou-se a história. No entanto, continuo a pensar na Josefa, talvez porque também eu adoro os brinquedos que nunca tive. Tal como a Josefa, nunca os tive. Já vos tinha dito que ninguém me ofereceu, até hoje, um presente. Nem um brinquedo. É por isso que os ofereço aos outros e que adoro brinquedos. Gasto-me junto das montras a ver automóveis, bonecas, palhaços e sobretudo comboios eléctricos. Se eu tivesse um comboio eléctrico!... As horas que passo em casa, no meu quarto, a ler, a escrever, a fazer coisa nenhuma, enrolada num cobertor como um caracol gelado por dentro, um livro sobre os joelhos, estou certa de que seriam bem diferentes se me dessem um comboio eléctrico. Não me perguntem porquê.

Daí a razão de eu ter vindo parar no Piquenique. Foi há meses, no Natal. Na véspera, já todos andavam num grande bulício, eu descera ao bar da empresa onde     trabalho (é uma grande organização, que tem fábricas, armazéns, uma chusma de empregados e, consequentemente, um refeitório e um bar, onde se vende doçaria, cigarros, meias e futilidades); fui ao bar, dizia eu, e nas prateleiras estavam brinquedos de Natal. Entre eles, um palhaço. Pedi à empregada que mo mostrasse e pu-lo em cima do balcão. Carregava-se nas costas do boneco, num dado sítio, e ele dava cambalhotas e mais cambalhotas, desengonçando-se, levantando e baixando os braços, enquanto o beiço carmim, e tão grosso como o         meu, tremia ridiculamente de medo. Deixei arrefecer o café e tão alheada me senti que me parecia estar no meu quarto, sozinha; livre de estranhos, a brincar com o palhaço. E veio o chefe da secção de expediente e atirou-me com uma graçola: Parece impossível. Na sua idade a interessar-se por uma infantilidade dessas! - Eu, furiosa, carreguei com toda a gana no botão mágico e o palhaço deu mais cambalhotas, e tão depressa, com tamanha violência, que o engenho se estragou. O boneco, de repente, ficou de pescoço dobrado, um braço mole descaído, morto. - Vê, o que dá brincar como as crianças         A", odiei o chefe da secção. Odeio-o ainda hoje.

Nunca odiei tanto. E na noite de Natal fui ao Piquenique procurar o meu mundo de palhaços e comboios eléctricos.     

Mas antes de vos dizer como isso aconteceu, e já      agora que falei do meu emprego, desejo explicar: meu    pai não me quer no escritório, tem vergonha das minhas negligências e do meu ar atoleimado. Tem vergonha de mim. E arranjou-me aquele emprego na grande empresa. Trabalho na secção de ficheiro. Ficheiro de clientes, ficheiro de gravuras, ficheiro de fornecedores, ficheiro de matérias-primas. Ficheiros, ficheiros. Na minha cabeça já não há outra coisa: papéis catalogados. Em certos dias, olho seja para o que for e imagino as árvores, os gatos, as vozes, através de uma classificação, de uma ficha. E defendo-me dessa deformação vindo aqui para o Rossio, deitando os olhos para cima e garantindo a mim própria que o vento, os pombos, a luz tão serena e vasta e a minha alegria de os ver libertos não cabem nos papéis alfabetados da empresa onde trabalho.

Os mandões entram-me na secção e pedem-me fichas. Eu sei o que eles querem. Sei tudo, adivinho- lhes os desejos logo que chegam à porta. Cá por dentro, sou uma funcionária lúcida e expedita. Mas quando essa lucidez precisa de ser traduzida em obras, em actos, não sei o que se passa: baralho tudo. Eles pedem-me o esclarecimento mais simples e a Cristina fica estonteada, confusa, sem uma certeza. O meu chefe (25 anos sem uma gripe que desculpasse uma ausência ao emprego) está-me sempre a dizer que eu troco as fichas, que devo ter os olhos vesgos. Terei, meu Deus? A verdade é que eles me pedem um relatório sobre os artigos referidos nas fichas e eu nem lhes entendo a pergunta. Temo-os. Tenho medo das pessoas, medo de que não gostem de mim. E quando vou para escrever à máquina a lista do que existe em armazém, eles, que me espreitam os embaraços, acabam por me tirar as fichas das mãos. Preferem dispensar a minha ajuda. E, na vez seguinte, mais baralhada me sinto.

É assim, não sei que se passa com eles e comigo. No entanto, estou certa de que tudo poderia ser diferente, que poderíamos confiar uns nos outros e tudo ser fresco e leve como os borrifos dos Neptunos quando atravesso o Rossio para me refugiar no Piquenique.

Por falar nisso: há pedaço, quando vinha do Cais do Sodré para aqui, e estava na paragem do autocarro, passou um tipo giro, num automóvel. Viu-me e parou. Espera alguém Quer vir comigo Horrível, horrível. Os homens são tão imundos! Ele poderia muito bem ter dito: Está um bonito dia. Apetece-me conversar com alguém. Consigo, por exemplo. E talvez o tivesse acompanhado.

Que eu sou uma rapariga como as outras. Seria tão bom ter um companheiro, um noivo, um homem que se interessasse um poucochinho por mim! Mas como, se eu apenas roço pelas pessoas e elas por mim e ficamos depois, eu e elas, como ouriços de cabelos arrepiados Ainda há dias, fui ao cinema, à tarde, ver uma fiteca qualquer. Uma tragédia, afiançava o reclamo. Um drama. A meu lado, sentou-se um rapaz fardado, cadete ou lá o que era. Pelo garbo, dir-se-ia um almirante. Jeitoso. Em certo momento, deu por mim e ei-lo a fixar-me, a fixar-me. Comecei a sentir-me nervosa. Aquele olhar era uma língua de fogo, rubra, na minha pele. Não precisava de certificar-me para saber que ele deixara de ligar ao filme apenas para ter os olhos postos em mim, até que eu o olhasse também. E então, achei-me a compor disfarçadamente a blusa, a sorver os lábios para que não lhe parecessem tão apretalhados, a ralar-me com o facto de os meus olhos, no escuro, não terem aquele brilho esmeralda que as minhas colegas invejam. E, no entanto, eu estava fula por ele me fitar. Fulamas tão inebriada! Era delicioso. Ele troçava, fitava-me provavelmente porque me via só, porque eu tinha as pernas traçadas e o peito muito espichaçado (os seios são a única coisa que se aproveita no meu corpo) e por- que, enfim, aos homens qualquer mulher serve quando lhes parece acessível. E uma mulher sozinha, para eles, é sempre acessível. E então pus-me a rir. Uma dama que estava à frente e pelos vistos impressionadíssima com as vicissitudes dos actores, voltou-se para mim, indignada, quando ri pela segunda vez. E ao intervalo, porque eu tivesse rido de novo ao ver o meu almirante desdenhar a passeata pelo átrio, o cigarro, a parada de raparigas jeitosas como ele, a música, apenas para insistir na sua corte, a dama fulminou-me: É indecente que se venha ao cinema para rir com coisas sérias! Ela tinha razão. O meu riso e os olhares do almirante eram coisas sérias. Os olhares, sobretudo. Tão importantes para mim, e ao mesmo tempo tão cómicos!

O almirante, quem sabe, deveria estar agora aqui a meu lado, no Piquenique - se eu, sem forças já para me sentir ludibriada, não tivesse saído bruscamente da sala, nem lhe dando tempo para me farejar o paradeiro. A Cristina desconfia de todos e parece-lhe que os almirantes só por troça a fixam no cinema.

Só por troça. Pois não é isso que minha mãe e meu pai me fazem ver a todo o momento? Eles bem me previnem - não por amor, mas por desprezo. Eles, eles.

Tenho medo deles. Deles e de todos. Do chefe da secção, dos colegas, dos almirantes. Ultimamente, quando vejo meu pai ou minha mãe, à mesa, com uma faca, julgo que irão ferir-me, matar-me. Devo estar maluca. E chegam-me de longe reminiscências que eu supunha esquecidas, que até me parecem que não aconteceram comigo, mas com uma das minhas personagens efabuladas. Lembro um corredor muito comprido e tanto mais comprido quanto penso nisso. E a minha mãe, lá do outro extremo a atirar-me com uma faca. Porquê? Que lhe teria eu feito? Uma desobediência, por certo, uma destas desobedienciazitas de todas as crianças. Como é possível que ela tivesse querido ferir-me, matar-me, a mim, uma criança, sua filha? Minha mãe, em certas horas, e com uma estranha melancolia que me comprime o coração, confessa que tem mau génio. E, ao dizê-lo, parece desculpar-se humildemente ou condenar-se. Tudo tão complicado!       

E aproximam-se, ainda, outras recordações. O liceu, aquele ano em que reprovei. Cheguei a casa e disse-lhes serenamente: O exame correu mal. Paciência.

Paciência? O que eles me disseram, o que eles me insultaram! Os filhos dos outros não reprovam. São inteligentes e estudiosos. Disseram-me tais injúrias, magoaram-me tanto, que desejei morrer. A princípio, veio-me à ideia afogar-me no lagozinho do jardim que havia em frente da nossa casa. Mas afogar-me, não, custava. Depois pensei no comboio. Seria fácil deitar-me nos trilhos e esperar. Não daria por nada. Fui logo dali à linha dos comboios que vêm do Estoril. Qualquer pessoa podia atravessar os arames que separam a via-férrea da avenida marginal. Não precisava de ir mais longe ao encontro do comboio. Passei uma cancela que se abrira e pus-me a caminhar à beira da linha, por aí fora, pois enervava-me estar ali quieta, parada, deixando que uma hesitação, ou o medo, viessem acobardar-me. Caminhando, sentia-me mais corajosa. Não daria pela expectativa. Ei-lo, o comboio. Ei-lo, apressado e alegre, como quem vai para uma romaria. Alegre como uma           pessoa. São bonitos, aqueles comboios. Não têm fumo.

Limpos, travessos, metálicos, parecem um brinquedo           fabuloso e correm como as crianças. Ei-lo, Cristina, já     tão perto. E deixei-o vir e deixei-o ir. Vinha muito apressado. Tive pavor de que ele, assim tão descuidado, me matasse de repente - e que eu, morrendo, lhe matasse a alegria.

Pois é. Tenho de vir para o Piquenique se me quero sentir numa atmosfera familiar e carinhosa. Aqui não preciso de me enrolar no cobertor. Os criados já me conhecem, sorriem-me e eu sorrio-lhes, e quando entra um destes papagaios, como há pedaço, trocamos umas olhadelas cúmplices. Apesar de ser uma cave e de se fumarem muitos cigarros durante o dia, cigarros, um zunzum de palavras, bafos de tanta gente, apesar disso, respiro. Nunca senti no Piquenique aquela mordaça a atabafar-me os brônquios. E este ruído baralhado e indistinto, que acaba por não ser ruído, também é bom. Lá em casa, não. O silêncio da minha casa! Meto-lhe a mão como dentro de uma coisa pastosa, que tem forma, cheiro, dimensão, que se espreme tal qual uma esponja. Ninguém pode simpatizar comigo com este feitio. Eu sei. E esforço-me por ser como as outras. Quero mesmo ser como as outras. Ir ao cinema porque é um filme do Gregory Peck, porque o actor é bonito e a música doce como um pastel, e debruçar-me do balcão e espreitar outros homens bonitos e discutir com a amiga que veio comigo tentando convencê- la que o Cary Grant é, afinal, muito mais pêssego do que o Peck. Ilu sões. Lá em casa não as têm. Vou ao cinema só e regresso só. E compro bilhetes dos mais baratos. E escolho filmes que me digam coisas verdadeiras, coisas da vida, autênticas, desesperadas ou em que a esperança é um punho fechado contra o presente. Eu queria, porém, ser como os outros. Não me canso de o dizer. Queria do fundo da minha alma. E queria também entrar num eléctrico e ter coragem para dizer bons-dias ao condutor e pedir-lhe por favor o bilhete.

E foi assim, com estas tontices, que vim parar ao Piquenique. Era dia de Natal. Lá em casa não havia Natal, como já sabem. E decidi procurá-lo nas ruas. Nas montras, nas luzes, naquela agitação que põe as pessoas fora de si como um formigueiro que, pressentindo a tempestade, corre a levar tudo para o celeiro antes que a enxurrada lhe bloqueie a saída. Era isso que as pessoas faziam. Levavam, numa azáfama nervosa, o Natal para casa. Não me deixavam nenhuma sobra. Era já tarde e as ruas foram-se esvaziando. As ruas eram desertos. O deserto, nessa altura, estava fora e dentro de mim. E então, não sei porquê, entrei no Piquenique. Havia nas paredes e nas mesas pequenos ramos de azevinho. Bagas vermelhas e as folhas tão verdes! Como nas casas onde havia Natal. Era ali o meu Natal. Fiquei a gostar do Piquenique só porque, naquele dia, tinha o azevinho dos lares onde se dão festas. Jantei no Piquenique, a olhar os azevinhos, a afagá-los, e os criados desejaram-me boas-festas. E voltei lá no outro dia. E no outro. Até que as bolas vermelhas desapareceram.

Mas, entretanto, habituara-me às pessoas e a sentir ali o meu Natal de todos os dias. Essas pessoas que vinham muitas vezes eram a minha família. Nenhuma delas me disse até hoje que a vida me pôs de lado.

 

                   CIDADE SOLITÁRIA

Olhou-se demoradamente ao espelho, antes mesmo de se barbear, e disse para si: não estás tão acabado como isso; é sempre tempo de recomeçar.

Foi assim que as primeiras felicitações pelo seu aniversário, ditas como lhe agradaria ouvir, partiram dele próprio. Estava impaciente por que esse dia decorresse de um modo extraordinário. Era um dia muito importante. Não que um aniversário fosse coisa de festejar, tanto mais agora que se ia aproximando de uma idade em que os pensamentos, os hábitos e os apelos recuam em vez de olhar adiante, mas porque nos últimos tempos, mais concretamente nas últimas semanas, fizera um corajoso inventário do que desperdiçara até aí, dos seus amuos e desencontros com o mundo, e concluíra que era urgente uma reconciliação. Se a adiasse, seria tarde de mais.

Reconciliaçã Oh era a palavra justa. Pois tudo se passava como se entre ele e as pessoas tivesse acontecido uma coisa difícil de perdoar ou a expectativa, sempre presente, de que isso viria a acontecer. Porquê? interrogava-se, cada vez mais a miúdo, e nenhuma das explicações lhe servia. Certo, era aquilo: após quarenta e dois anos de uma vida tão usada, ou mesmo tão solidária com a dos outros, era um homem repelido e ignorado. Nem mesmo aqueles que haviam compartilhado do seu dia-a-dia o conheciam além das aparências, pois o seu feitio severo, de quem guarda rancores, os seus altos e baixos de nevrótico, não eram estimuladores de uma aproximação. Ou antes: parecia- lhe que as pessoas se aproximavam, mas em bicos dos pés, a medo ou com um propósito escuro, forçando-o a enroscar-se mais ainda no seu antro de ressentimentos, dentro do qual os esperava como se espera um assalto.

De armas na mão.

Mas tudo ia mudar. Nesse mesmo dia. Como? Meditara muito nisso, não lhe escapando um pormenor nem uma oportunidade. Aí estava o espelho a justificar-lhe o optimismo. Um rosto confiante, desenrugado. Um rosto de quem dormiu uma noite sem ferroadas na consciência.

O", esta máquina de barbear tinha manias! Em certas manhãs, a geringonça soluçava, como se perdesse o fôlego, deixando-lhe os pêlos apenas machucados. Ou então, tufo aqui, tufo além. Tinha de a sacudir com gana, espevitá-la. Era a Ti Filomena que, ao pequeno-almoço, com uma autoridade maternal, Lhe chamava a atenção para a vergonha de uma barba tão desleixadamente escanhoada. Na sua posição, senhor Raimundo! As engenhocas eléctricas não se davam bem nas suas mãos. Aquela era a terceira máquina de barbear, em dois anos. Os candeeiros andavam sempre avariados, os interruptores chegavam a deitar fumo. Se não eram os fios, eram as tomadas. Curtos-circuitos nos fusíveis do corredor, quase todas as semanas. Tão inábil para essas coisas! Faltava ali a presença de uma mulher. Conforme a mulher, bem entendido. A Ti Filomena era uma boa governanta, dedicada, briosa, mas não passava de uma aldeã. Não a tirassem da cozinha. Ali, sim, era mestra, mas justamente onde menos lhe interessava que o fosse, pois ele chegava ao fim das refeições sem se lembrar de como as havia começado. E ela, coitada, bem se ofendia com tal desprezo. Não é desprezo, Ti Filomena! Não sou de raça de me ralar com a comida. Mas aprecio os seus pitéus. Se não os saboreasse, é que reparava, percebe? Por falar na Ti Filomena: também ela merecia um lugar na tal reconciliação, visto que não era só o seu desinteresse pela comida tão desveladamente preparada que feria a pobre mulher. Melindrava-a muito mais a carranca do patrão. Que diabo, sempre eram duas pessoas numa casa. Duas. E duas pessoas tinham forçosamente emoções, novidades, desejos e boca para os transmitir. Ora ele vinha à noite, mal se servia do gui sado, e depois estendia-se num sofá a ler e a tresler, empestando a atmosfera com dúzias de cigarros enervados. Quem ali entrasse, agoniava- se. Senhor Raimundo. - Diga, diga. Um diga a despachar. Esta casa parece uma tumba. Case-se, faça como os demais. Uma velha não é companheira para um homem novo como o senhor. A Ti Filomena dizia aquilo de um jacto, antes de se arrepender do tom deliberadamente agastado, e depois escapava-se para o seu reduto, a cozinha, evitando percerber-lhe a ruga de mau humor. Só rugas, credo! Nem um remoque que, mesmo ofendendo, alivia quem o diz e quem o ouve. Case-se. Bom de aconseLhar. De resto, a Ti Filomena sabia que ele fora casado. Há muito. Há uma eternidade. Vivera ali, naquela mesma casa, uma mulher: espontânea, de uma jovialidade fútil, e capaz de consertar os candeeiros ou impedir que eles se avariassem; uma mulher que, durante algum tempo, bem tentara fundir-se no mundo remoído e recôndito do marido. Fundir-se com uma leviandade crédula e por isso mesmo malograda. Há muito.

Mas lá estavam as cicatrizes. Todo o passado, aliás, lhe deixara essas feridas mortiças, que nunca, porém, chegavam verdadeiramente a sarar, arreganhadas, obrigando-o a esquivar-se dos que, mesmo sem intenção, vinham roçar-lhe com os dedos. Onde parava a mulher? Ainda em África? Nem já amargura, ou vexame, essa nebulosa evocação lhe provocava, embora às vezes Lhe corresse o cérebro como navalha. Queria admitir, no entanto, que tivesse sido ele o culpado. Deixava as pessoas entregues a si próprias. Roídas ou solitárias. O surdo nervosismo que o perseguia sem uma pausa, isolando-o, era o mesmo daquele tempo. A mesma incapacidade de dizer: Vamos dar um jeito à nossa vida, Maria. Pôr tudo cá fora, às claras. Deixar que a luz nos faça uma barrela. O que sentimos, de mal ou de bem, um pelo outro, ruge num subterrâneo. Como a fúria do mar quando se esconde numa gruta. Ao premeditar esse desanuviamento, sorria- lhe, acarinhava-a, mas as palavras decisivas ficavam por dizer. Ela correspondia-lhe com uma expressão céptica, desencorajada. Punham-se-lhe os nervos em sangue ao vê-la assim. Culpava-a, afinal, da frustração, de não saber romper-lhe a timidez. E tais tentativas goravam-se antes de ter voz. Quando recebera aquela carta - A sua mulher vai todos os dias à praia, sabia? mas sempre acompanhada... " - fora por assim dizer com alívio que a relera. Está aqui uma carta que te diz respeito. E pronto. As coisas tinham-se arrumado sem melodrama. Com uma terrível simplicidade. Constrangidas, mudas - tal como haviam sido geradas. Parecera-lhe até que ficara mais liberto para ser compreendido e estimado, pois era lá fora que deveria procurar essa compreensão: entre os amigos, os companheiros de trabalho, entre os que poderiam sentir as mesmas dúvidas e ralações. Não fora necessário, porém, esperar muito para verificar que não tinha verdadeiramente amigos e que os companheiros não tardariam a considerá-lo importuno. Nas atitudes deles, nas meias frases, nas insinuações sem alvo definido, nos olhares que chamejavam e logo se cobriam, farejava, até, uma conjura. Tudo contra ele, todos contra ele. Nessa altura, ainda era empregado numa firma industrial, a Lusolândia. Empregado de confiança. Ninguém podia deixar de reconhecer-lhe um misto de astúcia e audácia, servidas por uma tenacidade que escaqueirava qualquer obstáculo. E amava as tarefas, mesmo que o resultado final da sua apaixonada actividade não lhe pertencesse. Os colegas, daí, temiam-no, expostos a confrontos. Todas as vezes que o gerente da firma, reunindo os colaboradores mais qualificados, dizia, acintoso: Este ano, se não fosse o Raimundo ter conseguido o negócio de Benguela, seriamos obrigados a restringir despesas. E os senhores sabem quanto isso Lhes toca, não é verdade? ou então, com a fúria a inchar-lhe o rosto rechonchudo: Copiem-lhe, ao menos, os métodos, sigam-lhe as pistas, seus lorpas! - ele, Raimundo, embora naturalmente lisonjeado, sabia que o seu triunfo tinha o gosto do fel: o isolamento. Os outros evitavam-no, tecendo-lhe armadilhas e ignomínias, raspando no fundo de ele próprio, até lhe encontrarem podridões. Chegara a desleixar-se no trabalho, a esconder ou apoucar os êxitos, apenas para que a ciumeira dos colegas não fosse acirrada. Tarde, porém. E quando reconhecera que podia lutar contra tudo menos contra essa animosidade, contra a calúnia e o desdém, que redobravam quando ele lhes adulava a simpatia, sentira que nada é verdadeiramente importante sem o amor dos outros. E quanto mais o sentia mais se via incapaz de fazer despertar esse amor. Regressar ao ponto de partida, reconstruir tudo de novo, parecia-lhe, então, a única porta de saída. Mudar de emprego, de temperamento. Sob muitos aspectos, quase o conseguira. Como é que os outros não tinham dado por isso?

Hoje a barba ia ficar bem feita. A geringonça percebera que era o seu dia de anos. E uma manhã de sol, reparem, em pleno Fevereiro grisalho e resmungão. Depois o banho. Uma pitada de fixador no cabelo. A camisa de seda, a creme, que ficava estupendamente sob a gravata de bolinhas azuis que trouxera de Itália. Cada vez refinas mais no mau gosto. Quanto te conheci eras diferente. Diferente, diferente - a palavra peçonhenta que Maria usava em todas as circunstâncias. As frases dela é que refinavam de ano para ano, num propósito acerbo de o beliscar, provocando um desfecho. Mas que importava isso agora? Maria nunca existira. Naquela casa só houvera uma presença com autenticidade, que entrara para ocupar um espaço definido e criar raízes - a Ti Filomena, e essa estimava-o, pois os velhos não precisam de sorrisos para saberem o que está no coração das pessoas. O que não obstava a que, nesse dia, também ela merecesse uma palavra bonita. A primeira de uma mudança em que lhe cabia um generoso quinhão.

Raimundo estendeu-se na banheira, quase flutuando, como gostava. Mandara-a fazer mais comprida do que o usual, para que nela coubesse o corpo esticado.

Apoiava a nuca no rebordo, cerrando os olhos. Tão bom, a água tépida. Entrava uma brandura pelos músculos, uma lassidão feita de esquecimento e de paz. Eram aliás aqueles os momentos em que sentia afrouxada, ou interrompida, a tensão dos nervos. Nem de noite os nervos dormiam. Algures, vigilante, soava, sem descanso, uma campainha de alarme. Nas horas de lazer, ou que fingiam sê-lo, infiltrava-se o rescaldo tu multuoso das outras horas: sobretudo aquela sensação de que toda a sua actividade era um logro. Pois que lhe ficara nas mãos, aos 42 anos, depois de as ter enchido com uma vida densa? Uma casa habitada por uma velha aldeã perita em fazer petiscos, horas longas e ruminadas, nem mulher, nem filhos, nem amigos. Em nenhuma parte um gesto que lhe dissesse: os outros estimam-te, existes para eles; fizeste pelos outros alguma coisa e eles sentem-no, sabem-no. Tinha dinheiro, posição, uma firma comercial que andava na boca do público. E depois? De tudo isso resultava a tranquilidade íntima, o gosto da vida, a segurança em si próprio, a comunhão com os outros? Nada. As mãos vazias. Talvez se passasse o mesmo com o gerente da Lusolândia. Quando era lá empregado, ao ouvir-lhe o fraseado tortuoso, ao vê-lo humilhar-se, intrigar, conduzir sadicamente as pessoas aterradas a envenenar-se entre si, conscientes desse veneno, mas impotentes para se lhe escaparem, dizia consigo: Pois é, mas se os outros pudessem, enforcavam-te ali em frente, no plátano da avenida; se te vissem perdido de noite, num descampado, nenhum deles te salvaria de uma ratoeira. É essa a nossa vingança, a pior de todas: o ódio que te há de esvaziar as entranhas. E, evidentemente, ao imaginar-se no lugar desse homenzinho de falas premeditadas, um polvo que a todo o momento se preparava para os sorver, via-se o chefe de uma grande e solidária família. Não era ele, Raimundo, um sujeito prestável, generoso, mais preocupado com os outros do que consigo? Como, então, se traíra a si próprio? Seria do modo áspero, contrariado, com que punha em prática essa solidariedade e que não era mais do que uma irreparável timidez? Ele fazia o que podia pelos outros, é certo, mas como se os acusasse de ser forçado a isso. Eis o segredo: a falta de limpidez, de espontaneidade nas relações com os demais. Por aí iria começar. Nada mais talhado que um dia de anos para uma viragem decisiva. É um dia de tréguas, de renovação. Mesmo com o gerente da Lusolândia, no seu aniversário, o pessoal tinha sempre uma lembrança a oferecer e nessa data todos eles apresentavam um rosto desoprimido. O gerente é que não sabia aproveitar essa atmosfera fraterna. Os empregados quotizavam-se, consoante as posses. Às vezes prendas caras. Iam, em grupos, cumprimentá-lo ao gabinete da administração. E havia sorrisos, frases corteses, uma emoçãozinha receosa nos olhos do Sr. Baptista. Ele agradecia-lhes manifestamente perturbado. E todos pressentiam que tinham estado à beira de uma mudança.

Que o Sr. Baptista era um homem como eles e não um patrão, um símbolo de cobiça e egoísmo, duro como as lajes da avenida.

Nunca se sabia como os empregados adivinhavam a data de aniversário dos chefões; a verdade, porém, é que jamais o acontecimento se passava em falso. Por um instinto de adulação? ah, mas desculpável. Defen diam-se. Eles, os patrões, que soubessem aproveitar-lhe o significado. Por isso, Raimundo se intrigava que os seus empregados nunca tivessem feito a pergunta: afinal, quando é que o casaca faz anos? Havia muitos meios de serem elucidados. Podiam telefonar à Ti Filomena: diga-nos quando é o aniversário do Sr. Raimundo. Ela não sabia, por acaso, nem lhe parecia importante sabê-lo (essas futilidades não são para a gente do campo), mas a pergunta passaria de mão em mão, até lhe chegar aos ouvidos. Uma conspiraçãozinha inocente, saborosa, da qual fingira não perceber o objectivo. Parabéns, senhor Raimundo. Nesta data festiva, queremos exprimir-lhe o nosso reconhecimento. Etc. Qualquer lugar-comum desse género. E um embrulho atado com uma fita escarlate. Gostava de fitas escarlates. Aqueciam os olhos. Ele, depois, faria um discurso muito mais convincente do que o Sr. Baptista. Reconhecimento de quê, bons amigos? Convidá-los-ia para jantar. Vivo só, como sabem, vocês são toda a minha familia. Digam o restaurante que preferem. Não, vamos aos arredores. Qualquer coisa de diferente nos hábitos de cada um de nós. É dia de festa.

Era assim mais ou menos que as coisas se iriam passar. Tudo bem planeado. A certa altura, um pedaço depois de entrar no escritório, chamaria o chefe da contabilidade: Há uns assuntos urgentes a apreciar esta tarde, meu caro Fonseca. (Meu caro Fonseca.) Mas deixo-os para si. Faço hoje anos. Apetece-me dar umas pequenas férias a mim próprio. - Faz anos, senhor Raimundo? De verdade - Infelizmente. Na minha idade já começamos a espreitar o outro lado da encosta. O Fonseca, nervoso, corria lá dentro. Segredinhos, um formigueiro de passos de secretária em secretária. Uma das raparigas, depois, iria passar palavra à secção de expediente e, depois ainda, à fabricação. E ele a regalar-se com as manobras. De novo o Fonseca. Se me permite, senhor Raimundo, necessitava de ir à rua tratar de um assunto pessoal. Não me demoro. O tempo de comprar o inevitável estojo com uma caneta de tinta permanente. O nome gravado. O Fonseca teria de se demorar, claramente pois a gravação não se fazia num rufo. Regressaria, porém, antes da hora do almoço, visto o patrão o ter prevenido de que não viria ao escritório de tarde. Dá licença? O Fonseca, a Maria Cândida, a Flora, o João Carlos. Nesta data festiva, queremos exprimir-Lhe...

Enfim, o jantar nos arredores. Chegariam ao fim do dia unidos como nunca tinham julgado possível até aí. Sem a nódoa de um agravo. E daí em diante, ao entrar no escritório, era como entrar na sua verdadeira casa.

Afectuosamente esperado. Em vez de transpor a porta já com a testa retalhada de rugas de mau humor e de os acautelar com uns bons-dias que pareciam dizer: vá, cambada, preparem-se para ajustar contas - desanuviá-los-ia com um semblante aberto, convivente, impregnando-os da ideia de que estavam ali para realizar uma tarefa agradável e de interesse comum. Claro: eles mereciam uns safanões, eram preguiçosos e desleixados.

Sobretudo desleixados: tanto lhes fazia que as coisas corressem para a direita como para a esquerda e tudo se passava como se o seu único objectivo fosse esconder negligências. Uns safanõezitos de quando em quando eram oportunos. Alto, Raimundo: isso era dantes.

Nunca te deu resultado esse azedume. Daqui em diante, irás conduzi-los de tal modo, com afabilidade, que verão em ti não o espalha-brasas, o inimigo, o que vem apenas com o fito rancoroso de descobrir incúrias ou trapaças, mas o companheiro que sabe fazer-se estimar e obedecer.

Um toque mais na gravata, um sorriso apreciativo ao espelho, e ei-lo pronto a iniciar o seu dia extraordinário. Encontrou-se com a governanta no corredor:

- Dormiu bem, Ti Filomena? Está hoje com um rico aspecto. Qual a sua receita para que a gente a jul gue cada vez mais nova?

A Ti Filomena ia a dispor a chávena e o bule em cima da mesita onde ele tomava o pequeno-almoço - e ficou em meio. Assombrada. Nunca o patrão lhe dissera uma brejeirice daquelas. Incapaz de uma graçola. E apesar dos seus 60 anos um tanto empedernidos, ruborizou-se. O estranho é que Raimundo a sentiu um poucochinho escandalizada. Vá lá a gente prever as reacções das pessoas! O Amorim, sempre que vinha procurá-lo a casa, tinha uma brincadeira desse género para a velhota: Ora venha de lá o abraço da mais pêssega governanta destas redondezas Ou Se eu fosse mais novo, Ti Filomena, a senhora não me escapava... E benzia-Lhe os pitéus, com um latinório da mais pura cepa. Ela nunca se mostrava amuada. Pelo contrário: Um homem daqueles, patrão, mesmo mentindo, mesmo troçando, dá-nos alegria para uma semana. Então por que motivo a Ti Filomena se agastara? Adiante. Aos poucos, a velhota se adaptaria à sua nova maneira de ser e conviver.

- Também eu dormi bem, Ti Filomena. Por isso me vê bem disposto.

- Se é esse o remédio, senhor Raimundo, vou dar-Lhe todas as noites um chazinho de limão.

Ao sair de casa, Raimundo foi direito à tabacaria. Uma caixa de cigarrilhas. Muito especiais. Carotas. Não as fumava mais vezes porque, enfim, sabia o preço do dinheiro. Esbanjar parecia-lhe criminoso. Perante si próprio, que conhecera o pão que o Diabo amassou, e perante os outros, os que nem logravam o suficiente para subsistir. Sempre respeitara a pobreza. Intimidava-o; e hoje, que poderia considerar-se um homem farto e próspero, essa intimidação tinha mesmo as suas expressões inibitórias. O dinheiro não podia ser gozado à custa da amargura dos espoliados. Quanto ganharia esta empregada? Magrizela, uma voz que parecia liquefazer-se de submissão e doçura. Mas estranhamente simpática e, mais do que isso, atraente.

- A montra está muito vistosa. Foi você que a arranjou

- Fui.

- Vê-se logo que tem bom gosto.

Não custa nada lisonjear as pessoas. Fazê-las acreditar em si próprias.

Há tempos, conhecera uma rapariguinha como aquela. Os mesmos dentinhos de coelho. Feitos para morder. Mais uma que tinha vindo e passado, como todas até aí. Sem deixar vestígios. Precisamente há um ano, no seu aniversário, convidara-a para jantar, sem a prevenir que se tratava duma data festiva. Dir-lho-ia mais tarde, de surpresa. Ou talvez nem chegasse a dizer: o que lhe interessava era ter nesse dia alguém a seu lado,

alguém capaz de ternura, mesmo inventada. Mesmo fugaz - com a brevidade de um serão. Telefonara-lhe marcando a hora e o local do encontro. Reservara, no seu restaurante predilecto, certa mesa junto à varanda que dava sobre o parque. O restaurante tinha uma orquestrá que não era má de todo; pelo menos a gente podia deixar de ouvi-la quando quisesse estar a sós com as árvores líricas e repousadas que contornavam o restaurante. Note-se: reservara a mesa, mas sem uma firme certeza em que ela não faltaria ao encontro. Nunca tinha certezas. A vida ensinara-o: não confies. Prevenia-se sempre com uma dúvida. Entre o pavor de mais um desengano e a necessidade de acreditar - interpunha a dúvida. Era essa, talvez, a raiz da sua solidão. Um encontro, por exemplo: começava por se precaver insinuando: ela não virá. Prepara-te para isso, meu velho; vai imaginando a maneira de preencheres o tempo desperdiçado. E noutros assuntos a linguagem tinha quase idêntica modulação e o mesmo rilhar de dentes: este tipo vai trair-te; não te exponhas.

A dúvida, porém, era mais corrosiva que a desilusão. Quantos haviam feito dele um tipo enjaulado e mesquinho Quantos Muitos ou nenhum Não lhes perdoava.

Pois há um ano esperara inutilmente pela rapariga. Telefonara-lhe de novo, um bom pedaço depois da hora marcada. Ela já não estava em casa. Vem a caminho. Sento-me aqui na esplanada, tomo mais uma xícara de café. Vou lendo o jornal. Jornal, não: ela pode vir por esta rua e não dar por mim. Sou eu que tenho de estar atento. Sou eu que faço anos, que preciso da sua companhia. Aquela que desceu agora do eléctrico... A gabardina é parecida. E as pernas, o jeito cadenciado e seguro de pisar o chão. Não era ela. Não virá. Outro eléctrico. Este, tão rançoso, não deixa ver as pessoas que seguem do outro lado. Passa depressa, eléctrico. oh, lesma. Não virá. O outro estorvou-lhe o programa, ou ela o preferiu. (Isso do outro era uma história complicada. Conheci-o antes de ti e, depois, faltou-me coragem para pô-lo a mexer. Tem paciência, espera algum tempo, hei-de fazer-Lhe tantas que há-de ser ele a irpelo seu pé. Espera, espera. Todos lhe diziam para esperar.

Que havia de verdade naquilo? As mulheres são espantosas a mentir. Toda a mulher é, potencialmente, uma actriz genial.)

No entanto, mesmo sem convicção, esperara-a muito para lá do razoável. Procedia assim para se poupar à ideia de que se tivesse sido um nada mais paciente, acabaria por vê-la chegar. As ruas tinham já esvaziado as pessoas que iam do emprego para casa. As cidades atulhavam-se de gente, aos milhares, aos milhões, mas se alguém precisava de companhia, onde se metia essa gente? Era ele, por fim, o único cliente sentado nas mesas da esplanada. Apenas ele - e muitas mesas vazias, dezenas de cadeiras e um criado à porta do café, encostado à ombreira, coçando as orelhas de fastio. E agora, que fazer dos seus anos? Ir sozinho ao restaurante do parque e, depois, uma aventura nocturna? Não, seria ludibriar-se estupidamente. Aceitar os ovos mexidos, de emergência, que a Ti Filomena lhe prepararia com alguns resmungos acerca da sua vida nua e desordenada? Seria outra espécie de malogro. Pôs-se a caminhar ao acaso por uma rua ribeirinha. A brisa fresca, saturada de humidade, batia-lhe na testa, deixando-a dorida. Pequenos restaurantes baratos, a esconder-se da clientela desconfiada. Uma porta como qualquer outra, um buraco espesso e depois, então, uma sala repartida em reservados. Restaurante de marujos, de prostitutas. Entrou num deles, já meio deserto. Os criados tinham deixado para mais tarde a limpeza das mesas; em algumas delas viam-se ainda restos de pão, bagos de arroz, nódoas de vinho. E aquele odor enjoativo que permanece onde, pouco antes, esteve alguém a comer. Numa dessas mesas, porém, havia outra coisa além das migalhas e das nódoas: uma flor, um cravo murcho e desmaiado que uma mulher, decerto, amachucara nas mãos distraídas. Escolheu essa mesa e pôs o cravo dentro do copo meio de água. Não, não o deite fora. Gosto de cravos. Como o galego o olhava imbecilmente! Pediu um prato que já não comia há muito: feijão branco com carne de porco. Não era a mãe que preparava esse manjar nas ceias de domingo? A mãe, viúva, fugira com o vendedor de máquinas de costura, renegando os dois filhos. Essa página da infância era com ele? Podia lá ser! Então, Raimundo, deixa-te disso; és hoje uma destas pessoas que têm o direito de enterrar o passado. Já ninguém se lembra que se riam de ti quando passavas nas ruas da vila. Que te deu hoje o teu irmão a comer?

- Bifes. Bifes de cornos de caracol. Começou a misturar os feijões com a orelheira, mas quando a comida lhe chegou à boca soube-lhe a vomitado.

Foi dali para casa e enfiou-se na cama depois de ter ingerido duas pastilhas para dormir. Não sem que, previamente, tivesse colocado a flor na jarrinha da mesa-de-cabeceira e de ter imaginado, com um sorriso mole, que alguém lha tinha oferecido como lembrança de aniversário.

Desta vez tudo iria correr de modo diferente. Estava na sua mão. Acelerou o passo a caminho do escritório. Bela manhã, de facto. O ar tão lavado. Só o diabo das bombas da garotada. Bum . Bum . O rapazio não perdia tempo. O Carnaval, para eles, começava assim que as lojas se abasteciam de carantonhas, estalinhos, bichas-de-rabear. Bum! E embora aquilo o irri tasse, cada petardo a estoirar-lhe no coração sempre sobressaltado, olhou-os com simpatia. Vá, divirtam-se!

            Não vos resta muito tempo. Mas, caramba, deixem em paz os mais velhos.

Foi com ansiedade que subiu ao primeiro andar da sua empresa comercial. Mobiliário e artigos de decoração. Tapeçarias. Bugigangas importadas. No primeiro andar era o escritório. No rés-do-chão, a sala de exposições e de venda ao público. A fábrica", designação um tanto ambiciosa, ficava no segundo piso: ali apenas se poliam os móveis, e nem sempre, e se talhavam certos estofos e alcatifas à medida desejada pelo cliente.

O cliente, esse estúpido reizinho! A fábrica, propria' mente dita, era nos arredores da cidade.

Como o acesso às escadas que ligavam os diferentes pisos era feito por uma porta ao lado, ele podia trepar aos escritórios sem ser visto pelo pessoal da loja. Com este, tinha pouco contacto. Nem o queria ter. Embaraçava-o, mesmo, ser visto no local das vendas. A fascinação do negócio era ali em cima, discutir modelos

projectos, campanhas de publicidade, novos conceitos de decoração, métodos audaciosos de alargamento de mercados. O cérebro de uma perturbante engrenagem. Quando empurrou a porta envidraçada, comprimiu- se-lhe o coração. Como nos tempos de estudante, ao entrar na sala de exame (devia o que era hoje à generosidade tardia e pomposa de um tio regressado de Moçambique que o obrigara a frequentar o liceu. Depois, a outra porta, passado o átrio. Transposta esta, tudo iria começar.

- Bons dias a todos!

Por entre uma bruma dourada, como quem encara o sol de chapa e fica ofuscado, percebeu vários rostos surpresos. Era de prever: um cumprimento com aquela ardorosa afabilidade apanhara-os desprevenidos. Quis olhá-los todos, um por um, confirmando o carinho da saudação, mas quedou-se pela segunda secretária. Aí baixou os olhos, não ainda vencido, mas refreado. A Flora parecia ter ficado com o seu nariz de esquilo mais franzido do que nos outros dias e logo se pôs a catalogar papéis, no seu ar ao mesmo tempo condescendente e atento de quem não se ilude sobre a desvalia do que está a fazer. Talvez ela, afinal, tivesse correspondido com uns bons-dias cautelosos, mas o Sr. Raimundo não os distinguiu. A Maria Cândida, por seu lado, tinha erguido da máquina os seus olhos azuis, que nunca se sabia se eram crédulos ou matreiros, e se correspondera ao cumprimento fora como das outras vezes: de raspão, inquieta, solicitada por tarefas prementes. Curioso como ela batia as teclas da máquinacom furor e uma atenção aflita, como se estivesse à beira de um deslize e este fosse inevitável por muito que se esforçasse por preveni-lo. Quando o Sr. Raimundo lhe falava, ouvia-o com doçura e humildade (e os olhos sempre de uma limpidez serena!) - mas ele tinha boas razões para crer que, nas suas costas, o anavalhava imiedosamente.

E a Palmira, até essa, desenroscando o pescoço esgalgado, enfrentara-o com um espanto provocante. Diabo de rapariga, como se fizera tão arisca. Não podia perceber. Quando ela se levantava da cadeira para ir junto do chefe do escritório, se passava à sua beira, era como se ele, patrão, não existisse. Ou fosse ali um intrometido. Ao menos, vá lá, punha cá fora o que sentia. Mas porquê, santo Deus, se ele achando piada ao seu ar agarotado, a trouxera do nada para ali - que sempre era uma aprendizagem valiosa e um abrigo? (A Palmira vendia pentes, sabonetes, quinquilharias nas imediações da barbearia que ele frequentava e, palavra hoje, dichote amanhã, acabara por admiti-la no escritório.) A confiança brincalhona entre ambos terminara, contudo nesse dia. Nada de intimidades com os empregados, era uma divisa que ele herdara do gerente da Lusolândia, e que a experiência (ou a sua inabilidade?) lhe demonstrava em cada dia. Eu é que não sei dosear as coisas. Estrago tudo.

O Sr. Raimundo, como fugindo de concretizar desi' lusões, entrou sem mais demora no gabinete ao lado donde o Fonseca dirigia as intrincadas operações contabilísticas. Estava ele, a Rosinda e o Alcides.

- Bons dias - repetiu, ainda com a mesma jovialidade.

O Fonseca tinha sido interrompido no meio de qualquer laboriosa conferência de contas. Talvez por isso, rosnou um tanto enfadado:

- Bons dias.

Os outros nem levantaram os olhos das facturas. Em silêncio, aguardavam que a pausa não se prolongasse demasiado. O Alcides, abúlico, soletrava entre dentes uma cifra para não esquecê-la. Grosseirões. Era tudo isso, gaita, que Lhe dava a sensação de ser ali um indesejado. Um inimigo. Um importuno que se permitia entrar portas dentro sem pedir licença aos que pertenciam à casa.

- Desejava alguma coisa, senhor Raimundo?

O Fonseca a tentar encurtar a intromissão. Delicadamente, sim, mas com desassossego nos gestos, o rosto saturado de paciência desperdiçada à beira de estoirar, um nervosismo perante o qual se quebravam todos os propósitos de diálogo. Raimundo sabia que ele dizia por detrás coisas como estas: Que vem o jarreta cá fazer?

Ou: Isto caminhava dez vezes melhor se ele não pusesse cá os pés. Só nos chateia. Apesar disso, Raimundo não resistia, uma vez por outra, a telefonar-lhe para casa, à noite ou nos dias de descanso: Tem algum programa para hoje, Fonseca? - Bem, senhor Raimundo, eu, se me fosse permitido. - Deixe, era só para saber se Lhe apetecia ir ao futebol. O tipo não compreendia que ele desejava simplesmente um companheiro, um interlocutor. Estar só, ir só a toda a parte, sufocava-o. Punha-o à beira de clamar por socorro. As reticências servis do Fonseca, a esses convites, eram de quem receia que o patrão lhe esbulhasse as horas de lazer com os assuntos da empresa.

O Fonseca coçava a testa, à espera de uma resposta. Raimundo fixou-o absorto, melancolicamente, e disse:

- Nada, continuem.

Atravessou a sala, de novo, na direcção do seu gabinete. De caminho, porém, reparou num sobrescrito intrigante, meio oculto entre a orgia de papelada, com ou sem préstimo, que aquela malta deixava em todo o lado. Era uma carta de Cuba e fechada ainda! E, é claro, com a data de oito dias antes. Aquilo acontecia a cada passo. Quantas cartas se teriam perdido já naquela casa?

- Quem deixou aqui esta carta?

A mesma reacção do costume: afocinhados nas secretárias, com esse ar de quem é acusado levianamente de um delito que não cometeu. Ia a glosar as observações de outras vezes, as narinas já frementes de cólera, mas ainda foi a tempo de conter-se. Naquele dia, não, Raimundo. As pessoas levam-se de outra maneira. São de carne e osso. Tu barafustas todos os dias, sempre os mesmos reparos, as mesmas advertências, os olhos correndo, gulosos, danados, para o que merece censura e não tens uma palavra estimuladora para quando as tarefas são cumpridas. Que olhos tem o senhor Raimundo!

Parece bruxedo, só vêem o que está mal feito. É da

ruindade que lhe vai por dentro. Cada um só vê o que tem na alma. Não é isso o que eles dizem? Hoje, não, Raimundo. É o teu dia de anos, o dia em que concluíste serem outras as vias para que as pessoas se entendam contigo.

Mas que deveria fazer? Como e quando aquela gente perceberia que ele os estimava, por muito intolerante que parecesse? Que lhe era urgente a sua afeição, ser um deles? Em certos dias de sol, ao fechar das portas, lembrava-se de convidar duas ou três das raparigas:

Vamos daí tomar uma bebida a uma esplanada. " Ir com elas, elas e também o Fonseca ou o Alcides, como bons camaradas. Sugerir-lhes, afinal, que ele não era um patrão, tal como o julgavam, mas um companheiro, no trabalho e no prazer, nas agruras e no riso, como qualquer deles. Nunca o fizera, porém. Ou antes: chegara a dizer à Rosinda, um dia, à socapa, encontrando-a nas escadas: Se vai para casa, posso levá-la. Vou tomar um táxi para esses lados. Havia nisso outra intenção, é certo: soubera que a rapariga tinha uma vida atrapalhada, mãe e irmã doentes, e decidira melhorar-lhe a situação no escritório, não sem apurar capciosamente a verdade, pois não queria ser logrado por informações falsificadas. Aquilo não era conversa para o escritório, onde logo todas as colegas iriam proceder a uma inquirição cerrada - que te queria o patrão, Rosinda?

A rapariga, enleada, replicara ao convite com um

maldoso: Não tenho licença da minha mãe. Estivera vai não vai para esbofeteá-la. No entanto, não soubera bem porquê, abrira a carteira e dera-lhe algum dinheiro, como para lhe abafar as desconfianças ou a resposta. Quanto se arrependera! Durante uns tempos farejara uma atmosfera melíflua à volta da Rosinda. Uns olhares untados de malícia sempre que tinha de se dirigir à rapariga. Ela, provavelmente, contara tudo, e a seu modo.

Agora mesmo, mal ele acabara de lhes fazer a pergunta sobre a carta de Cuba, e ao virar costas, surpreendera imediatamente esse fogo cruzado de troças, enxovalhos, protestos.

Sentou-se à secretária com a respiração oprimida, abriu muito a boca, forçando o ar a distender os alvéolos tolhidos por mãos retesadas. A opressão do costume. Domina-te, Raimundo. Esqueceste-te de que a Maria Cândida tem o filho com bronquite. Ela teria gostado que lhe perguntasses pelo estado do garoto. E já reparaste como ela passa o dia inteiro à máquina? As costas devem doer-lhe como se os músculos estivessem em ferida. É trabalho para duas. E talvez a situação do Fonseca mereça uma revisão. Tu só exiges. Assim era, de facto. Mas na primeira oportunidade, aumento para todo o pessoal! Oportunidade? Isso diria o Sr. Baptista, ferrando-te os olhos com o anel brasonado que lhe justificava os achincalhos a que vos sujeitava. As oportunidades só dependem de ti.

Vamos por partes, cos diabos! Antes de mais, urgia pôr em prática o seu plano, chamando o Fonseca. Não, mais devagar. Ainda há pouco o deixara. Era preciso evitar aborrecê-los. Devia até fazer-se esquecido, dar-lhes a impressão de que estava ausente do escritório. Por outras palavras: provar-lhes que era capaz de estar ali sem que a sua presença estorvasse ou irritasse os de mais. A que ponto chegara, caramba! Só lhe faltava pôr-se de cócoras junto deles. ah, não, Raimundo, tens de insistir no teu exame de consciência. A sementeira não foi tua. Não te lembras das perfídias do Sr. Baptista e do quanto achavas inevitáveis as reacções dos que ele trazia presos pela coleira? A ti compete voltar isto do avesso. Para bem deles; e sobretudo para o teu bem.

Daí a cinco, não, daí a quinze minutos chamaria o Fonseca. Há uns assuntos urgentes a apreciar esta tarde. Deixo-os para si. Faço hoje anos e apetece-me... Faltava uma coisa: meu caro Fonseca. Muito importante. Que aranzel e que comédia ele ia provocar! Aranzel fazia a garotada, lá em baixo. Cada bomba parecia estoirar ali mesmo, nos ouvidos. Lembrou-se de ir à janela e de lhes atirar com uns escudos. Pisguem-se daqui, vá! Seria pior: daí a pouco toda a pandilha do bairro, ao cheiro de lhe vender o sossego, estaria ali debaixo das janelas. Cinco minutos. Faltavam dez. Pôs-se a coscuvilhar nervosamente os papéis que estavam na pasta dos assuntos pendentes, E, de súbito, uma ruga fendeu-se, como uma incisão, entre as sobrancelhas. Chega a ser inacreditável que uma firma com as responsabilidades da vossa se engane nas medidas encomendadas. vamos devolver imediatamente a encomenda e exigir a respectiva indemnização por não terem cumprido os prazos, etc. Que era aquilo, santo Deus? Quê, com a Sociedade

Decoradora do Norte? Com esses

Foi à porta e berrou, esquecendo que podia utilizar

a campainha:

- Senhor Fonseca!

Toda a gente suspendeu o trabalho. Apeteceu-lhe

gritar: que têm vocês com isto, suas bestas?

O Fonseca veio a correr do outro gabinete.

- Diga, senhor Raimundo.

- Olhe, Fonseca, eu nunca me zango por gosto. Nunca! dou-lhe a minha palavra de honra. Mas como posso ficar indiferente a tanta asneira que se faz nesta casa?

- Que aconteceu, senhor Raimundo?

- Que quer isto dizer? - E as suas mãos tremiam ao estender-Lhe a carta.

Bum! Bum!. Maldita canalha. Não se admiraria que tivesse sido o Fonseca, ou uma das empregadas, a estimulá-los àquela inferneira.

- ah, a carta da Decoradora. Foi um mal-entendido, senhor Raimundo. O Tavares veio cá e disse...

- Olhe, Fonseca, hoje não me interessa averiguar o que o Tavares veio cá dizer ou fazer. Arrume o senhor o assunto. Mas porque não me preveniu?

- Sabe, senhor Raimundo... Eu queria falar primeiro com o Tavares. Ele...

- Sente-se aí, Fonseca. Estou cansado. Farto, cansado, moído com tudo isto. E hoje... Sente-se. Não gosto de conversar com os outros vendo-os de pé.

- Obrigado, senhor Raimundo. Estou certo de que o Tavares.

- Deixe isso. Deixe isso por agora. Tem um fósforo? Há aqui outros assuntos urgentes... para esta tarde... Hoje, porém...

Interrompeu-se, a acender o cigarro. Mas sobretudo para que, no silêncio, apanhasse algum rumor que viesse da outra sala. Eles estavam de ouvido alerta. Bem o sabia. Farejavam a discussão.

- Não quer fumar um destes? São fracos, não irritam a garganta. Tabaco colonial, sem misturas. Ou então, se prefere, uma cigarrilha.

- Agora não me apetece, senhor Raimundo. Mas, se me permite, guardo um para daqui a bocado.

- Não, fique com dois, os que quiser. E não volte a dizer se me permite, Peço-lhe.

O Fonseca devia estar perplexo, conquanto já afeito às suas súbitas mudanças de disposição.

- Pois esta tarde você ponha-me estes casos a limpo. Não conto vir depois do almoço. Faço anos e...

- Faz anos, senhor Raimundo?

- Mais um, embora não me agrade muito que isso aconteça.

- Sim, tem razão... Não agrada a ninguém. O Sr. Raimundo descansou os antebraços sobre a secretária, esperando. O Fonseca permaneceu muito direito na cadeira, esperando. E recomeçou lá dentro o matraquear das máquinas de escrever.

- Precisa de mais alguma coisa, senhor Raimundo? Olhou-o com censura e espanto. O Fonseca não teria mais a dizer senão aquilo Nada mais O Fonseca deveria ter pensado que ele estava distraído, pois repetiu

- Precisa de mais alguma coisa?

Não podia acreditar em tamanha indiferença. Num tal fracasso dos seus planos.

- Não... não... pode ir.

Ainda se demorou meia hora no gabinete, mãos apertando a fronte, dedos rolhando os ouvidos aos estoiros da garotada. Talvez os empregados, ao menos, viessem felicitá-lo. Mesmo sem prendas. Nesta data festiva... Mesmo sem prendas. Venham, santo Deus, rogo-Lhes. Convido-os a todos para jantar. Na Outra Banda, no Guincho, onde quiserem. Ná, o Fonseca é que era um cabeça no ar. Esquecera-se de avisar o pessoal. Esquecera-se. Todos esqueciam. Talvez à hora do almoço.

Começou a sentir um pouco de frio. Fevereiro, mesmo com sol, é Inverno. Vestiu o sobretudo. Tinha ali sempre, para as surpresas, um sobretudo e uma gabardina. A sua casa continuava ali: um armário, um sofá-cama, um pequeno bar com uísques e licores. Ou não chegava a ter casa, nem esta nem a outra onde dormia?

Abriu a porta, atravessando a sala sem os encarar. Teriam galhofado de ele aparecer com sobretudo vestido?

A rua. Frio, na verdade. Mas era um frio medular. Levantou a gola enfiando as mãos nos bolsos. Bum!... Bum! A canalha não o largava. Um dos fedelhos, o

mais atrevido, tentara mesmo pregar-Lhe um rabo de papel. Sacudiu-o com um sopapo. Bum! Até que, mais adiante, já na Avenida, se misturou na multidão densa e atordoadora. Que era ele no meio dessa multidão que o acotovelava sem o olhar? Um homem que, friorento, resguardava as mãos no sobretudo e ocupava mais espaço de que os outros lhe haviam destinado.

 

                   O COMPANHEIRO DE VIAGEM

O engenheiro chegou à estação a meia tarde, ainda a uma hora afogueada. Doíam-lhe os olhos de encarar a paisagem lisa de secura, um corpo que se tivesse crestado durante sestas infindáveis e pelo qual já não pudesse romper uma haste verde, um rio, uma colina, que lhe molestassem a ardência e a monotonia. Paisagens danadas. Sempre que tinha de repetir a viagem de Lisboa a Paranhos, lançava uma baforada de alívio ao descer nessa estaçãozinha degredada na campina e espreguiçava os músculos para se desentorpecer da fadiga e do tédio acumulados na moleza da jornada. Embora dali a Paranhos fossem mais oito léguas de poeira, azinhos, pasmo, com a camioneta a saltar à bruta nas covas, por já não valer a pena fugir das ciladas da estrada, a mudança de transporte, a meia hora de espera e a perspectiva de se aproximar do fim daquele martírio, animavam-lhe a disposição.

Logo que mestre Jerónimo, estafeta do correio, lhe pegava na mala para o conduzir à paragem da camioneta, o engenheiro protegia os olhos com óculos foscos, e era como se ficasse de algum modo fortalecido para vencer as últimas agruras da viagem, do clima e do penoso contacto com os homens. Paisagens danadas e também uma gente que exigia um cansativo esforço de adaptação.

Mestre Jerónimo, homem de falas medidas, cigarreava o trajecto com uma beata entalada nos beiços; a mula, assomadiça, ia bem segura pelas rédeas, de focinho no ar, abespinhada de a contrariarem. O carroceiro deixava para trás um ou outro estranho que também se apeara do comboio e quando se via a sós com o viajante mudava a beata de poiso, e dizia:

- Então cá o temos, senhor engenheiro.

- É verdade, mestre.

- Consta que a barragem será desta vez.

- Ainda não é desta, mestre Jerónimo. Venho fazer umas obras à Câmara de Paranhos.

-Obras... - rosnou o homem, com desprezo.

-Obras que não governam ninguém. A barragem sempre era outra louça.

E calou-se. Não se sentia obrigado a esmiuçar o comentário. Mestre Jerónimo começava e terminava as conversas conforme as suas conveniências, nem que o interlocutor fosse engenheiro ou um dos maiorais da campina.

Na subida da rampa, deu largas à mula, espevitando-lhe as rédeas aos repelões e o engenheiro não sabia ao certo se tais gestos de mau humor se relacionavam com a besta se com o desengano da conversa. Engelhava os olhitos sardentos, numa economia de modos e palavras, quando algum camponês, descendo a ladeira, os cumprimentava.

- Será na altura das mondas? - inquiriu de novo, sem encarar o engenheiro.

- O quê, mestre?

- Lá isso da barragem.

- É melhor não contarem com isso - desiludiu o engenheiro, ajeitando os óculos e fungando de nervosismo. Mestre Jerónimo conhecia a significação dessas fungadelas. Na vila sabia-se que o engenheiro era um tipo melindroso e que, se o moíam com certas coisas, até as pernas se lhe dobravam.

Foi só na altura de se separarem, em frente do comércio do Pires, que mestre Jerónimo atirou a beata ao chão a fim de ter os beiços livres para um remate justo do diálogo

- São intrujões, é o que é. Falaciosos.

Aceitou os vinte e cinco tostões da boleia como quem não Lhes dá valor e seguiu a pé ao lado da mula para que esta não se perturbasse com o passadiço da rua.

O engenheiro Jorge Reis ficou de lérias com o pessoal da loja. Era ali bem conhecido, como, aliás, em todos os burgos da região. Dirigira várias obras públicas do distrito, hospedara-se nas estalagens durante Invernos e Estios, acamaradara nos cafés com os ganhões, dando trabalho tanto a jornaleiros como a madraços, que o rondavam por todo o lado, ao faro de biscates.

- Vai a Paranhos, não, senhor engenheiro?

-Já chegou a gazeta?... - gracejou.

Daí a pouco a camioneta de Paranhos desembocava no largo. O condutor conseguiu-lhe um lugar mais cómodo, lá à frente, e viu-se cumprimentado, sem afectação, pela maioria dos ocupantes. A gente daqueles sítios habituara-se aos seus modos excêntricos, aceitando-os já sem desconfiança e azedume, e, além disso, viam nele o prenúncio de trabalhos públicos, que poderiam valer aos braços desocupados.

A camioneta, minutos depois, roncando como uma besta pesada e exausta, atravessava a ponte da ribeira das Lajes. Era um pedaço da Beira, de uma ternura verde e calma, exilado na campina nua. O tufo de arbustos reflectia-se, tristonho, nas águas repousadas. Mas logo a estrada se empinava entre os planaltos de um vermelho desmaiado; terras que se repetiam ao longo de quilómetros, vigiadas, a espaços, pelos azinhos de cor suja, ou pela brancura solitária dos casais ou pelos rebanhos que percorriam sucessivos montados até encontrar uma erva mais farta. À beira de um casinhoto, a camioneta parou. Viu-se o bafo do motor escapar-se, numa fumarada cinzenta, por entre as frinchas da capota. O engenheiro ia de olhos fechados quando sentiu o banco ceder ao peso do viajante que acabara de subir. Ao encolher-se no lugar, o estranho assentou-lhe a mão no joelho:

- Não se incomode, cavalheiro.

Vários passageiros saudaram o desconhecido. A todos ele correspondeu com um aceno amistoso e exuberante. O condutor ajudou-o a arrumar as duas maletas no cesto das bagagens e, esgotadas as possibilidades de ser prestável, disse-lhe ainda:

- O senhor Lopes deseja que lhe reserve um lugar para amanhã?

- Não sei ainda quantos dias me demoro, Francisco. Já cá não venho há meses e talvez o trabalho me atrase o regresso.

O condutor teve um sorriso baboso, continuando de pé junto do recém-chegado, com o ar de quem pedincha uma ordem.

O engenheiro Reis ajeitara-se de novo a uma sonolência que encurtasse a viagem, mas o companheiro de banco virou-se de súbito para trás, fincando-lhe um cotovelo na ilharga.

- Desculpe, meu caro senhor. Estes assentos foram talhados para enfezados. Vossa Excelência é da região?

- Viajo, apenas. - E o engenheiro limpou enfaticamente os óculos, voltando a cara ao homenzinho roliço para quem, na verdade, o espaço disponível era escasso.

- Viajante... É uma bela profissão, oh, se é! Permite conhecer terras, pessoas, viver em cada dia um pequeno mundo diferente, semear amigos! Viajar é a minha paixão, senhor... não tenho a honra de Lhe saber o nome... Eu chamo-me Adérito Piedade Lopes. Ao dispor de Vossa Excelência.

O engenheiro fez um contrariado gesto de agradecimento e tornou a recostar a cabeça. O desconhecido pareceu momentaneamente perturbado com o mutismo do interlocutor, mas logo se refez, reatando o contacto com os passageiros mais afastados. Ao reparar melhor num deles, um lavrador de chapeirão largo, festejou:

- Olha quem ele é, o senhor Caeiro! Então como passou, meu amigo?

- Muito bem, senhor Lopes. - E o outro descobriu a cabeça.

O engenheiro sabia que um lavrador alentejano não vai desbarretar-se por qualquer farroupilha. E pela primeira vez sondou o esfuziante desconhecido com um misto de interesse e consideração. As manifestações de reverência dos companheiros de viagem foram-se repetindo, até que o homem, talvez enjoado dessa corte fácil, tão em contraste com a indiferença do vizinho, se preparou para nova tentativa de Lhe romper o silêncio. Numa volta da estrada mais sacudida, o engenheiro foi atirado de encontro ao outro e mal esboçou uma desculpa. Mas o Sr. Lopes nem por isso desistiu. Foi ele mesmo a levar mais longe a sua invulnerável cortesia:

- Vossa Excelência acomode- se à vontade. Não se rale comigo. Percebi que vai fatigado e precisa de descansar. O que eu lamento é que a camioneta não tenha mais lugares disponíveis de modo a que Lhe deixasse o banco livre.

-Vou perfeitamente, senhor...

- Lopes. Adérito Lopes. Aqui e em todo o lado... O engenheiro Reis passou os dedos pelo colarinho, enquanto os músculos da face se arrepiavam, num evidente tique nervoso.

Lopes, o mais gorducho da família dos Lopes de Alfeizerão, meu caro senhor - chalaceou o homem, insistindo. - Creia que tenho muito prazer em me ter encontrado com um viajante. É gente que sabe conversar. Vêem mundo.

- Sou engenheiro.

- A"! - E o outro, varado, mudando de cor, quase se levantou do assento. - Engenheiro, meu Deus! E Vossa Excelência deixou-me persistir num erro verdadeiramente ofensivo

- Não tem importância.

- Tem importância, sim senhor! Vossa Excelência não é um qualquer. É uma coisa que se vê logo.

O pessoal da camioneta seguira o diálogo com uma atenção tensa, todos parecendo ansiosos por que o engenheiro aceitasse as desculpas do Sr. Lopes.

- Não tem importância - repetiu o engenheiro, com uma sequidão que desanimou a assistência.

Uma camponesa, ali ao lado, entendeu oportuno reforçar as credenciais do desconhecido, advertindo:

- O senhor Lopes é um homem que tem valido à gente. Não foi por mal que ele disse aquilo.

- Decerto - concedeu o engenheiro Reis, afogando o riso com as mãos. Comprometido, pôs-se a vasculhar os bolsos, à procura nem ele sabia de quê.

- Tem aqui cigarrilhas, senhor engenheiro - ofereceu imediatamente o de Alfeizerão.

- Agora não fumo.

O outro, enfim amuado, aconchegou o casaco sobre o bojo do ventre e emudeceu.

A paisagem ia escurecendo nos vales. O crepúsculo deitara-se sobre as colinas, lento, ondulado, enquanto o poente se afogueava desses tons incendiados, túrgidos, do entardecer alentejano. O engenheiro Reis humedecia os lábios secos da poeira e dos muitos cigarros devorados na viagem. Boca, pulmões, estômago, pareciam-lhe cobertos de um sarro amargo. Nunca a viagem o impacientara tanto. O vizinho do banco continuava a ser solicitado daqui e dali e as suas respostas eram sempre amáveis e prolixas. Aos ouvidos do engenheiro aquilo era a zoada de um moscardo. Este homem é pior do que uma grafonola, pior do que um locutor de publicidade", ia pensando, e talvez nesse fastio houvesse uma ponta de ciúme por verificar, pela primeira vez, que esses campónios, em confronto com o tal Sr. Lopes, o atiravam para um lugar secundário. Quem seria o fala-barato, que até um lavrador se via na obrigação de o saudar respeitosamente? Intrigava-o o enigma sobretudo por saber que a gente da planura se enjoa com tipos de léria fácil. A ronceirice enervante da camioneta juntava-se agora, pois, esse parlapatão, metediço, untuoso, que não tinha parança no lugar, e mais o alvoroço que ele provocara. Ainda bem que, pelo menos, ele desistira de o maçar.

- Sete horas - anunciou o homem, puxando do relógio. O engenheiro abriu os olhos e verificou também, como se o facto de se falar em horas os aproximasse do fim da viagem. O desconhecido enrubesceu de entusiasmo, dando ao gesto do vizinho uma interpretação de afabilidade. Por isso, confirmou, radiante:

- Sete horas, pode ver.

Toda a camioneta silenciou, de repente, sob a solene sugestão de horas autenticadas por duas pessoas importantes.

- Sete horas - interveio o condutor, estendendo o pulso. O desconhecido pulou no assento, comovido, enquanto o engenheiro Reis fechava uma vez mais os olhos com desespero, receando que todos os passageiros se sentissem no dever de afiançar a pontualidade do relógio do Sr. Lopes.

- Para o senhor engenheiro a viagem está quase pronta - disse ainda o condutor. - Agora para nós .

O Sr. Adérito Lopes voltou-se numa prazenteira surpresa:

- ah, Vossa Excelência fica em Paranhos? Folgo imenso

Ao engenheiro apeteceu retorquir: Não me vás dizer, meu tagarela, que ficas também em Paranhos e que terei de encontrar-te de novo", mas, ao mesmo tempo, sentiu-se divertido com tão inesgotável solicitude.

A camioneta chegou a Paranhos com o rasto de poeira ainda a persegui-la para lá do macadame. Entrava- se na vila subindo uma rua larga, calcetada havia pouco, ao longo da qual as casinhas baixas e brancas pareciam agachar-se mais ainda para não serem violadas. As pessoas corriam das portas para o largo da paragem das camionetas e cada viajante que descia era submetido a uma inspecção meticulosa.

O engenheiro Reis foi dali para a pensão, sem esperar pela bagagem. Havia uma vasta sala à entrada de paredes pintadas de um azul berrante; ao canto, à lareira, estavam dois hóspedes. O engenheiro foi direito à cozinha e as garotas da dona da pensão e as duas criadas vieram recebê-lo com o ruído festivo de outras ocasiões.

- O jantar demora?

Não aguardou por resposta, ergueu a tampa de uma das panelas, provando um naco de chouriço.

- Uh, que riqueza! Mas agora o que preciso é de me deitar um pedaço. Quando a comidinha estiver pronta, vocês chamam-me, combinado? Tenho o corpo partido.

- Tem de esperar um bocadinho, senhor engenheiro. Não tínhamos o seu quarto preparado.

O seu quarto era a sala do primeiro andar, vedada aos hóspedes de acaso, onde a estalajadeira recolhera devotadamente uns móveis com história, mas sempre tinha certo conforto, luz, atmosfera e uma cama na qual se podiam estender os pés sem encontrar o vácuo; era ainda o único compartimento da casa onde não chegara o pincel azul ou cor-de-rosa do pintor da terra. A dona da pensão afirmava de cada vez que só o engenheiro Reis tinha o direito a usufruir essa regalia.

O engenheiro tirou finalmente os óculos, descalçou-se no cadeirão de verga, enquanto a hospedeira e as filhas lhe faziam sôfregas perguntas. Ele, embora gentio a familiaridades, apreciava esse ar caseiro da pensão, onde era recebido como parente exótico, suportando-Lhe, mesmo, a sua intimidade coscuvilheira. Ali não se sentia tão degredado.

A criada tinha ido preparar-Lhe o quarto. E foi precisamente quando a rapariga descia as escadas para lhe anunciar que já terminara a arrumação de emergência que o Sr. Adérito Lopes fez a sua entrada na sala.

- Vivam, senhores. - Passou o lenço pela face lustrosa e repetiu: - Vivam. Um homem chega aqui desfeito de uma viagem por caminhos de cabras.

Ainda não afeiçoara os olhos à penumbra do ambiente e, por isso, não deu logo pela presença do engenheiro. Quando o reconheceu, pediu desculpa do deslize com uma veemência quase implorativa.

- Que distracção a minha, senhor engenheiro! Saiba que é uma honra para mim vir reencontrá-lo na pensão onde costumo instalar-me. Queira Vossa Excelência desculpar mais esta falta.

E só então atendeu as saudações da gente da casa. O engenheiro Reis ia preparar-se para subir as escadas, mas a criada barrou-lhe o caminho. Viu-a embaraçada, trocando olhares aflitos com a hospedeira.

- Senhor engenheiro: antes de subir, creio que a minha senhora precisa de lhe falar.

- Conversa tu com o senhor engenheiro, rapariga - e, de mãos postas sobre o ventre, comprometida, foi-se esgueirando com o Sr. Lopes para o refúgio da lareira. A criada olhava para uns e outros, a esmolar um auxílio que lhe negavam. O engenheiro, intrigado, franzia o nariz e o colarinho começou a sufocá- lo.

- Que há, afinal Vamos, Madalena, desembucha

-É que a gente tinha-se esquecido... O quarto grande estava preparado para este senhor que chegou.

- Que vem a ser isto? - interferiu o Sr. Lopes, de gestos desordenados. - Não posso admitir um mal-entendido destes! O quarto é de Vossa Excelência, senhor engenheiro.

O engenheiro fingiu desconhecer-lhe a benevolência e insistiu com a criada:

- Mas tu disseste que tinhas ido prepará-lo. Então estava ou não arranjado?

- Eu não queria dizer isso. Eu...

- É um lamentável mal-entendido, senhor... O engenheiro cortou-lhe a verborreia com um gesto irado e, dando um murro numa parede da chaminé, pôs à escolha:

- Ou fico no meu quarto, ou vou-me embora. Diz isso à tua senhora!

E subiu para o primeiro andar.

Uma cena burlesca. E agora, no quarto, assistindo à agonia do poente, que ainda teimava em ensanguentar a brancura das paredes, o engenheiro Reis admirava-se de como pudera tornar-se tão ridículo. A verdade é que ele reagira por ciúme. Fosse quem fosse aquele palhaço pançudo, tão importante que o destronava no conceito da dona da casa, não admitia que, por causa dele, o vexassem. No entanto, era forçoso concordar que se ridicularizara bem mais ao manifestar tão histericamente o seu melindre. Inferiorizara-se. E logo que ficara na pensão - e teria sido preferível sair imediatamente, sem uma palavra - nada mais lhe restava do que zombar das circunstâncias. Era o que iria fazer.

Mal começara a dormitar, vencido pela fadiga, percutiram na porta com discrição. Chamavam-no para o jantar.

Quando entrou na sala de mesa, os outros hóspedes baixaram os olhos. Apenas o Sr. Lopes lhe sorriu, sem enleios, decerto para lhe acentuar que esquecera o incidente. Dentro em pouco, porém, os hóspedes já trocavam galhofas e confidências. O engenheiro deixara a sopa em meio. Um prurido impertinente, desaparecendo daqui para reacender acolá, obrigava-o a esgadanhar a nuca, as faces, os cabelos, numa perseguição frustrada e irritante. Foi então que o Sr. Lopes, alisando o guardanapo que lhe cobria o peito como um avental, lhe fez uma pergunta desastrosa:

- Vossa Excelência padece de alguma doença? O engenheiro Reis fungou várias vezes, dilatando o nariz, e o prurido, nesse momento, enfiou-se-lhe por todas as veias do corpo. Seguiu-se um silêncio melindroso, durante o qual outro hóspede, que era um javardo a comer, raspou o fundo do prato.

- Interessa-se pelas doenças das pessoas que não conhece?

- Bem... Vossa Excelência há- de estranhar... mas a minha pergunta não foi de todo descabida. - E o homenzinho tossicou, cacarejando como uma galinha. - Sou um modesto curioso da medicina.

E enquanto permanecia de olhos pudicos, de modéstia ofendida, a serviçal, ali presente, confirmou com a cabeça, num devoto sorriso.

Mas afinal quem é este gajo? Desde o começo que o engenheiro Reis devia ter farejado um mistério, no fundo do qual estaria uma pitoresca comédia aldeã, e porventura havia sido um tolo em não se prestar ao papel que o acaso lhe oferecia. Mas estava a tempo, embora a disposição não fosse das melhores. Iria fazer zangar o herói de Alfeizerão, abrindo-lhe uma brecha na amabilidade.

- Não gosto de curiosos em coisa nenhuma, meu caro senhor. E sobretudo em medicina.

O homem ergueu resignadamente as sobrancelhas.

-Tudo depende do que entendemos por curioso, não é assim?

-Perdão, neste assunto não há duas interpretações Ah, o prurido e aquele incontrolável espasmo dos cantos da boca, quando alguém lhe arranhava os nervos E logo naquele momento O outro observava-o com mal dissimulado triunfo.

-Reparo que Vossa Excelência, ao reagir desse modo, mostra preocupar-se com qualquer sofrimento. Alguma coisa o incomoda...

- Engana-se - replicou o engenheiro, já repeso de ter ido longe na confiança dada ao sujeito. - Se padeço de alguma coisa, deve ser daqueles achaques de todas as pessoas saudáveis.

O Sr. Lopes levou aos beiços uma ponta do guardanapo. Era um gesto meticuloso, mas desafectado.

- Vossa Excelência, assim dessa maneira desprendida, disse uma grande verdade. Todo o homem saudável esconde um vulcão de doenças à espreita de uma fenda. E se a encontra...

Na sua expressão afável havia uma ameaça, enquanto as mãos gorduchas, cruzadas, à frente do talher, se ergueram no espaço como se quisessem figurar o crescer de uma invisível tragédia. O hóspede comilão, que terminara a limpeza metódica do seu prato com pedacinhos de pão que lhe tinham sobejado, investigou as reacções do engenheiro e teve um risinho equívoco. Um outro conviva, macilento e sorumbático, fez um esgar de lástima e apoiou:

- É isso mesmo. Eu, por exemplo...

Mas o engenheiro, embora o interessassem os relatos de mazelas, quase sempre coincidentes com os seus próprios incómodos, não lhe ouviu a história. A sua atenção fora solicitada pelos gestos da serviçal, que enfeitava amorosamente uma das travessas individuais alinhadas no guarda-loiça e que, de repente, de um modo furtivo, a colocou ao lado do Sr. Lopes, quando lhe pareceu que os outros hóspedes estavam suficientemente distraídos com a conversa. A travessa tinha o melhor pedaço de carne, o quinhão mais generoso de ovos mexidos - e tudo isso era bem significativo nos hábitos da casa, em que as rações vinham da cozinha miseravelmente distribuídas. O engenheiro lembrava-se de uma cena do Verão anterior: um viajante de quinquilharias arribara ali para almoçar, sujeitara-se sem comentário às famélicas sardinhas com salada e, no final, declarara que só pagaria a conta no posto da guarda, quando uma autoridade lhe provasse que tal miséria merecia a designação de almoço. Fora encontrar depois o viajante numa taberna, preenchendo o vazio do estômago com fartas rodelas de paio. Diga-me, caro senhor, se vim parar àquela pensão num dia de abstinência. O engenheiro assistira a essa e quejandas cenas e sentira-se muitas vezes envergonhado de que, para ele, não faltassem os peitos de perdiz, o peixe assado, servidos ostensivamente, sem rebuço, ao lado do pratito de açorda impingido aos outros clientes. Ora essas gentilezas da dona da casa haviam transitado para o Sr. Lopes ` e, como ela costumava distinguir os estômagos pelo prestígio social, forçoso seria concluir que a insignificância lasciva daquele sujeito era apenas aparente. Mordia-o agora, mais do que até aí, a curiosidade por saber quem era tão dúbia personagem, embora lhe custasse fazer perguntas de um modo directo. Iria intercalar na conversa umas breves atenções, a fim de lhe espevitar a loquacidade para além das mexpressivas contumélias. - O senhor Lopes é uma pessoa cativante, apraz-me reconhecê-lo. Este jantar teve uma atmosfera agradável, e a si o devemos.

O homenzinho quase se levantou da cadeira para inclinar a cabeça. A sua face opada fez-se escarlate.

- Não podia deixar de mostrar a minha satisfação por ter Vossa Excelência como companheiro de estalagem. Nem todos os dias, por estes lugares, se encontram pessoas distintas. - Reparou, sem demora, que era urgente reabilitar os outros hóspedes de os ter desdenhado e logo ampliou o cumprimento: . como nem sempre encontramos companheiros de mesa tão amáveis.

Mas os companheiros amáveis" não se mostraram muito lisonjeados, pois levantaram-se sem mais vénias.

Era pois inegável, e ridiculamente enternecedor, que o Sr. Lopes o distinguia entre a gente avulsa que topara nesta sua viagem. Viagem de negócios, por certo. Um destes poderosos feirantes de gado ou industrial de cortiças. Tinha de ser coisa graúda. Se assim era, enfim, já lhe perdoava que ele o tivesse destronado no conceito da dona da pensão. E por uma daquelas viragens de humor, que o identificavam, dispôs-se a ser ilimitadamente tolerante para com o desconhecido, para com a volúvel gente da casa, para com a serviçal que, de gestos agora mais recatados, reforçara a dose de queijo fresco que o Sr. Lopes saboreava com o café. E o engenheiro sorriu, entregando-se, já sem protesto, às délícias da atmosfera ambígua. Aliviara-o a ausência dos outros convivas. Reclinou-se na cadeira, a preparar uma cachimbada.

- Vossa Excelência é fumador de respeito...

- Sim, é verdade - assentiu, prazenteiro.

- Talvez o tabaco seja responsável por esses tiques nervosos.

O tipo, sem o saber, raspara-lhe numa ferida. Logo sentiu as vísceras contraídas. E também, bruscamente, uma náusea gástrica, um prenúncio de vómito, um regurgitar de gorduras, enchidos, temperos, rescaldo do dia arrasante ou da jantarada alentejana.

-Já mo têm dito - disse, devolvendo ao esófago uma aguadilha azeda que lhe subira à boca. Empalidecera. Nos últimos tempos, essas crises, sempre por distúrbio dos nervos, diziam, eram mais frequentes. Lembrava-se, a propósito, que no ano anterior a dona da pensão lhe acudira com um infuso de ervas. Dera resultado. Se ela tivesse ainda um restito...

- Mas perdoa o mal que lhe faz...

pelo muito bem que me sabe. Exacto. O tabaco, porém, iria avivar-lhe a agonia. Esteve para desistir do cachimbo, mas conteve-se. Depois de se mostrar tão pimpão, desde o encontro da camioneta, não iria dar espectáculo ao Sr. Lopes, que, previamente, já o julgava um débil nevrótico. oh, aquele danado es tômago! Aquilo vinha sempre de chofre, embora os tiques da face servissem de prelúdio. Parecia-lhe que uns dedos de ferro lhe desciam às vísceras para as transformar em novelo. E as tonturas? Se não estivesse sentado, tudo lhe dançaria à roda.

- Olha, Madalena, não tens por aí outro pacotinho daquelas ervas que...

A serviçal, antes que ele rematasse a frase, levou os dedos à boca, aflita; olhava alternadamente, como parva, os dois hóspedes. Que se passara, com mil diabos? A rapariga parecia desculpar-se, ou tentar desculpá-lo a ele, fosse do que fosse, junto do poderoso Sr. Lopes. E, de facto, era lamentável que ele, um civilizado, se comportasse como uma velha aldeã. Ervas! Tentou justificar-se

- Estou a sentir-me agoniado, senhor... desculpe...

- Adérito Lopes.

- Coisa passageira, claro, mas perturba. Tenho um estômago sensível às comezainas da nossa cozinheira... Às vezes, um chá caseiro... Não que eu me deixe enrolar com intrujices, com mezinhas de curandeiros (com esses, uma praga, exploradora da boa-fé dos ignorantes, nem ameaçado de morte!), mas o povo tem a sua sabedoria. Nessa, confio.

- Compreendo perfeitamente, senhor engenheiro. Ainda mesmo que certos remédios simples sejam ilusórios, quando o doente acredita...

O homem era inteligente, cordato, educado. Acabaria por simpatizar com ele. Envergonhava-se de ter sido tão grosseiro durante a viagem. Raio de feitio, o seu.

- Ó Madalena, então tu... O Sr. Lopes interrompeu:

- Por acaso, senhor engenheiro, tenho comigo as ervas que deseja. Madalena, tira um pacote da minha maleta. E traz depois outro para o senhor engenheiro guardar para um imprevisto.

O engenheiro Reis olhou-o, suspeitoso. Mas a náusea, agora, era mais importante que todos os enigmas. Cerrou as pálpebras, encostando a cabeça ao cadeirão, indiferente à presença do Sr. Lopes e ao modo como ele interpretasse as suas fraquezas.

Esses minutos de imobilidade fizeram-Lhe bem. O de Alfeizerão, entretanto, solícito, não o abandonara, conservando-se num paciente silêncio, e ajudando-o mesmo, depois, a tomar a chávena do infuso.

- E agora, repouso, senhor engenheiro. É do que precisa. Assim eu pudesse deitar-me também!... A camioneta, a estrada, ou as duas coisas, arrombaram-me os rins.

- Mas quem o estorva?

- O trabalho, senhor engenheiro.

- A esta hora?

O Sr. Lopes ergueu os braços, num gesto significativo.

- Que remédio! É a vida.

E abriu a porta da sala. O engenheiro ia para aceitar o convite de lhe passar à frente, mas, de súbito, ficou imobilizado num gesto de agradecimento: todo o amplo átrio da casa estava repleto de gente. Gente escura, muda, de pé ou sentada, com o ar beato e resignado de pessoas num ofício fúnebre. Alguns tinham um lenço a apertar-lhes a testa, outros haviam trazido os filhos e mesmo estes pasmavam numa solenidade absurda. A dona da pensão, à porta da rua, grave também, parecia presidir à insólita conjura, da qual o engenheiro ouvira, ou antes, pressentira, lá dentro, a pastosa vizi nhança. Foi então que o senhor Adérito, por detrás de si, lhe tocou delicadamente no ombro:

- Dá-me licença, senhor engenheiro...

E, assim que o engenheiro recuou para o deixar passar, todo esse povo soturno e maciço se ergueu, à uma, como perante um sacerdote que tivesse chegado ao templo.

-Mas que é isto? - inquiriu, assombrado, da criada.

Esta ferrou os olhos no chão.

- O senhor Lopes... é um homem de virtude.

O engenheiro levou as mãos ao bolso onde guardara o pacote das ervas. O impulso que teve foi de o atirar aos pés do vigarista, mas bastou-se com espremê-lo nos dedos furiosos, enquanto o Sr. Lopes lhe suportava o olhar interrogativo, indignado e absorto. Suportava-o com um sorriso em que havia escárnio e também humildade e que se prolongou até o engenheiro desaparecer, num passo meio tonto, pelo portal que conduzia à escadaria do primeiro andar.

 

                   FEIRA DE CHUVA

A vila fica numa cova. Uma cova onde o Inverno descansa e se espreguiça, deixando rugas de lodo, humidade, velhice. As águas vão alastrando até Abril, os campos melancólicos e o céu pardo olham-se, soturnos, antes que a Primavera desfaça o pesadelo, renovando a vida, como rapariga sacudindo cabelos ensopados. Das lamas, germinam flores amarelas e lilases - que Leónidas aproveita para os seus quadros.

A vila bem pretende desembaraçar-se desse fosso, trepando colinas, fugindo à beira da estrada real, em casinhotas de madeira, apressadas, quase todas oficinas de ferreiros. Os que vêm do campo com a enxada a reparar deixam-na no primeiro artista que estiver à mão; por isso os ferreiros vão ao seu encontro, seguindo à frente na marcha do burgo.

Terças e sextas são dias de feira. O comércio estende as flanelas às portas; os repolhos, as olarias, o peixe do mar e os aldrabões da banha de cobra disputam o dinheiro do povo nas duas praças da vila. A vila reanima.

O Sr. Custódio está à sua porta, firme. Abriu a loja às oito horas em ponto, como há trinta anos. Nesses dias agitados esfrega as mãos, impaciente, até que a freguesia aqueça. Às vezes, quando uma língua de sol rompe a penumbra do céu, a medo, espreitando as nuvens que a ameaçam, é um consolo espetá-la do lado de fora do balcão. É uma casa solheirenta, privilegiada, a primeira que salta à frente de um freguês que venha do sul. Mas na força do Inverno há semanas inteiras de aguaceiros e todas as casas gelam.

Agora que passaram os bons tempos e as lojas rebentam como tortulhos, apenas o apuro das feiras dá para as sopas dos dias mortos. Passaram os bons tempos" - em que na loja do Sr. Custódio caía o povo endinheirado do concelho; hoje, qualquer tasca vende bonés e riscados; o comércio está nas mãos de rapazelhos sem barba e vergonha na cara, e as tendas, de ciganagem que não paga dez-réis de décimas, deram o último golpe. Ficaram meia dúzia de fiéis, gente honrada, para se fingir que as velhas lojas ainda fazem negócio. Mas se alguém desistir, não será ele! A sua vida começou dentro de um balcão e ali acabará. A loja foi a sua enxada, o seu clube, com um banco especialmente destinado aos lazeres dos amigos (e o caixote do calçado servindo de mesa nos serões de jogo, enquanto as velhas rolas esvoaçavam, tontas, pelas estantes, numa ilusão de liberdade); foi o berço, a prisão e o túmulo da sua família. A mulher e o filho viveram e morreram ouvindo o regatear dos fregueses no rés-do- chão.

Às nove horas começou a compor a montra: sarjas, xailes e lenços de lã, de um padrão já sem idade. O boneco de corda, cabeçudo e descarado, está ali para chamar a atenção do povo para esses trapos velhos, a preço fixo. O boneco é um sinal dos tempos felizes, comprado numa época em que o luxo de um manequim chegava a ser caricato. Mas os feirantes, agora, troçam da montra e dessas peças desbotadas; só a gente antiga, que ganhou amor à loja e às graças do Sr. Custódio, acredita ainda nos desplantes do boneco.

Dez e meia no Longines do dono da casa. Anos atrás teria de se romper à força até ao balcão. Era por favor que alguém era atendido. Os viajantes dos armazéns ajudavam na arrumação das peças, esperando humildemente que o Sr. Custódio pudesse dar-lhes atenção. Não havia tempo para lérias; era pegar ou sujeitar-se a dois encontrões de um apressado. Feiras valentes!

Já vão feirantes de regresso. Os pés nus chapinham no asfalto da estrada molhada. O Sr. Custódio sonda os camponeses, um por um. Velhacos, manhosos, dantes traziam-lhe ovos e perdizes, sentindo-se honrados em entrar na sua casa. Mulher que olha para a montra é uma esperança: talvez uma saia de flanela, que leva cinco panos - dez escudos de lucro. Tudo ajuda; e hoje em dia nada se pode desprezar.

- Como está, senhor Custódio?

A mulher quer apenas conversa; comprar, é na casa dos outros. A gente nova já não sabe apreciar uma vida honrada de balcão: preço fixo, o seu a seu dono, sem cantigas. Querem ser enganados! Entre esse homem alto e ossudo, sem uma nódoa no guarda-pó, mas sem luxos de estantes e balcões cromados e os badamecos das outras lojas, com berloques de encher o olho, preferem a intrujice.

Não entram. Há a loja do Sousa Brasileiro, a do Lúcio, que põe as filhas pintadas ao balcão, como manequins, há uma rede escandalosa de comerciantes que trepam por cima de tudo para conquistar um freguês.

Mas aquela velhota não engana: essa, vai entrar, é das sérias. O Sr. Custódio alisa o cabelo ainda negro, apartado ao meio, como para uma entrevista.

- Senhora Emília, há muito que a não via.

- É verdade, senhor Custódio, não tem calhado. E estou a achá-lo mais magro. Anda doente?

- Vai-se vivendo, vai-se vivendo.

- Tem agulhas

Agulhas Gastar saliva para vender agulhas Num tempo destes, com a azeitona a pedir peças de linhagem, cobertores para as camas!

- Isto é um Chiado, senhora Emília, bem sabe... A freguesa apalpa um escocês entre os dedos. O comerciante está sôfrego, aperta os beiços para não se trair. Mas a mulher sacode a fazenda com desinteresse.

- Dê-me então as agulhas.

- Uma carta delas?

- A como são?

- Quinze tostões a carta.

- Credo, senhor Custódio.

- É a guerra. Ganha-se hoje menos vendendo mais caro.

A guerra. Quando da outra, a loja dera o pulo decisivo. Metera calçado, chapelaria, cabedais. Que tempos! Viajantes solícitos, a oferecerem cervejas e metros de sarja, a convidarem para uns passeios ao Buçaco. Que tempos

Onze e meia - e uma feira de cartas de agulhas, uma feira de chuva.

Passou o marçano do Lúcio. Foi à loja do Outeiro com uma amostra nos dedos; voltou daí a dois minutos, olhando com desprezo a lojeca do Sr. Custódio. Mas o velho fixou-o de tal maneira que o ganapo viu-se obrigado a perguntar:

- Terá disto, senhor Custódio?

- Deixa ver.

- Era para servir um freguês. A fazenda acabou-se ao meu patrão.

- Tenho.

Era assim que se achatava o nariz àqueles fedelhos. O marçano fungava como se se sentisse enjoado do mofo da loja.

- Tem? O meu patrão pede que Lhe ceda metro e meio.

- Parece que duvidavas que eu tivesse...

- Eu não sabia, senhor Custódio... - disse o rapazelho, atrapalhado.

- Foste à loja do Outeiro e a minha ficava-te em caminho.

- Fui aonde me mandaram.

- Pois fica sabendo que eles todos juntos nem sabem vender bacalhau, quanto mais fazendas! Conheci-os de ranho nas ventas!

- Quanto é, senhor Custódio?

- Diz ao teu patrão que lhe faço o desconto inteiro. Preço de armazém. Que ganhe ele toda a percentagem.

- Mas o senhor Lúcio não quererá isso.

- Quero eu.

Para que soubessem. Aquilo tinha-lhe sabido melhor do que uma feira com dois enxovais de baptizado. Malandro! Felizmente ainda estava a tempo de lhes fazer ver. ah, se pudesse recuar os anos, recuá-los até à sua sociedade com o Silva! Custódio & Silva. Armazém de mercearias, retalho de fazendas e miudezas. Os peraltas do burgo a caírem ali, a honrarem-se com a sua presença nos piqueniques, em que os croquetes eram acompanhados a pão-de-ló. Dinheiro, amigos, o filho no liceu Apetecia morder a vila de raiva, por ter esquecido tudo isso. Toda essa malandragem fingia agora desconhecê-lo.

Foi lá dentro renovar a alpista das rolas. Um casal depenado, velho como as suas recordações. Tinham-se adaptado à humidade e à escuridão do pátio, esperando a hora em que o dono, depois de trancadas as portas, lhes dava um arremedo de liberdade, permitindo que elas esvoaçassem, meio tontas, no espaço exíguo da loja. Mas os anos, os frios e a tristeza desse túmulo haviam-nas tolhido: conformavam-se já com a prisão. Definitivamente mudas e resignadas.

- Senhor Custódio

- Lá vou, lá vou.

Correu à loja. Noutros tempos, essas chamadas eram a toda a hora. Não tinha uma refeição descansada.

- Que deseja?

Palpitava-lhe um guarda-chuva.

- Queria para aí um cotinzito, a modos que da cor desta jaqueta.

- Deixe ver.

Desmanchou uma estante para trazer duas peças.

- Tem aqui um que dá na cor.

- É para o meu rapaz.

- Este é bom. De dura. Quantos metros?

- O senhor deve saber.

Era isso: dantes entregavam-se à sua escolha; media os metros que entendia, sugerindo feitios, dispondo do gosto e da bolsa dos fregueses.

- Que idade tem o rapaz?

- Vai para treze.

- Dois metros.

O camponês saiu e deixou uma nódoa de lama no soalho.

O Sr. Custódio abriu a gaveta: uma feira de vinte mil réis. Sentou-se no banco comprido do fundo da loja, deixando o tronco curvado ao desânimo. Anos atrás, no Inverno, o chão da loja era um lamaçal: liam-se-lhe as cardas, os pés coriáceos das mulheres, um sujo e confuso sinal de multidão, de prosperidade. A contagem do dinheiro obedecia a um guloso ritual: vinha a Sr.a Custódia dispor as notas em montes de vinte, cinquenta, cem, enquanto o marido gritava para o compadre taberneiro do outro lado da rua:

-Já cá cantam três quilos!...

- O compadre dá rebuçados à freguesia...

- Não sei delas .

Quando a criada, a fiel Luísa, vinha com o almoço abafado numa toalha branca, ele dizia:

- Põe aí no escritório. Não tenho tempo.

- Mas arrefece, senhor Custódio.

-Já vou, deixa-me.

Ia por fim, numa aberta, engolir uma colher de sopa, mas logo um punho caía sobre o balcão.

- Lá vai, tiazinha.

Uma saia de sarja azul, bem rodada, quase uma peça de pano. Que tempos!

Agora a Luísa era velha e seca. O declínio daquela casa azedava-lhe o sangue. No mercado, bisbilhotava rancorosamente as blusas e as saias das mulheres e sabia distinguir se eram dos padrões da loja do patrão.

Luísa chamou lá de cima.

- O almoço.

Já não precisava de trazer o tabuleiro cá abaixo, para que o Sr. Custódio atendesse, ao mesmo tempo, a freguesia apressada.

- Lá vai.

Aquela frase era um estribilho de pessoa que não tem mãos a medir. Fazia-se demorado. Mais um cigarro, raspando as unhas, mais uma olhadela às peças da montra. Demorava como nos dias grandes do comércio. Por fim, olhando melancolicamente, pela estrada, os ranchos dos feirantes, subia os degraus.

- Vai guardar a loja.

A Luísa sabia de cor essa ordem. Sentava-se nos bancos dos antigos amigos do patrão, ruminando coisas.

O Sr. Custódio comia na mesa deserta. Sopa de ossos, umas sardinhas ou outro peixe barato. Comia cercado de sombras do passado.

- Senhor Custódio, está cá gente.

- Lá vai.

Limpou a boca ao lenço, alvoroçado, e apareceu na loja ainda a mastigar.

- Viva, senhora Carmo.

Também estava o Felismino, palitando os dentes. Era rente depois de almoço; enquanto não abria a repartição, namorava a filha do juiz. A loja do Sr. Custódio era um ponto estratégico.

A Sr.a Carmo queria uma blusa de riscado, ligeira. Luísa foi almoçar. A camioneta de Lisboa roncou na subida, parando em frente do Alves dos jornais. Despejou malas e um caixeiro-viajante. O Sr. Custódio fez um gracejo para o Felismino.

- Então isso caminha?

- Isso o quê, senhor Custódio? - perguntou, ruborizado.

O comerciante gostaria que o derriço pegasse, apesar de ser um amor sem esperança, falado nos lavadouros.

Era um modo de segurar o rapaz à sua loja; que ao menos ficasse ele da roda de gente moça e graúda, que tinha trocado a sua casa por outros lugares de peralvilhos.

O caixeiro-viajante chamou o garoto da graxa para regatear o frete das malas para a loja do Lúcio. Era isto que ofendia a dignidade do Sr. Custódio. Aqueles vigaristas, antigamente, corriam à vila apenas para o servir: ofereciam-lhe o exclusivo em troca de uma factura de dúzias de contos. Venho só por sua causa, meu amigo. "

Separavam-se os artigos, à mistura com cervejadas. Quando a Luísa saiu para a fonte, disse-lhe:

- Hás-de-me saber quem foi o caixeiro que chegou na camioneta.

Custódio, agora que Felismino se fora e que Luísa ia ao recado, passeava de cá para lá, sobre brasas. Mal deu pela entrada de Leónidas. Entre os dois, aliás, já não havia cumprimentos. Aquele não renegara o seu lugar na vida do comerciante. Um artista. Alfaiate por imposição da vida; um pintor de génio, perdido nesta piolheira. Cansava-se do dedal e vinha à loja fumar um francês. Leónidas, além disso, valia duzentos mil réis de preparos, por mês; botões, linhas, forros, apenas comprados na loja do amigo. O melhor pincel do concelho. Pintava aguarelas das casas brasonadas, pátios, trepadeiras, e os choupos das ribeiras. Se vivesse noutro meio, cada quadro poderia render seis meses de agulha. Mas ali não lhe perdoavam o talento; e atiravam-se, como leões, ao corte dos seus fatos.

- Que tal de feira, senhor Custódio?

- Uma miséria.

- O ofício também vai manhoso. Mas deixe vir os Aliados por aí abaixo... Nem o Hitler se aproveita. Isto há-de mudar.

- Lá tesos...

Leónidas tinha certas ideias que não convinha discutir.

- Verá.

O alfaiate procurava o tabaco nos bolsos vazios, exagerando a decepção.

- Querem lá ver que me ficou a onça em casa? O Sr. Custódio, com um sorriso malicioso, foi ao escritório e trouxe a lata. Já conhecia a léria do amigo.

- Obrigado. Se calhar, deixei-a em cima da máquina.

O comerciante ia a dizer um gracejo, mas, nisto, lembrou-se que a criada ainda não chegara com a notícia. Ficou sorumbático. Leónidas, por seu lado, pela força do hábito, e com um olhar de tédio, foi observando as estantes. Mas todo ele, de súbito, se pôs numa atenção hirta: coando a luz com a palma da mão, reduziu as pálpebras a uma fenda de alvoroço.

- Viste lobo, Leónidas? - E o Sr. Custódio reviu as velhas prateleiras, com cobertores desdobrados a ocultar os espaços vazios, sem nada descobrir que justificasse o pasmo do amigo.

- Ele há cada uma...

- Desembucha, homem

- Chegue-se aqui, veja do meu lugar. Repare nas duas peças de estambre com o boné por cima. Mesmo na direcção do meu dedo. Que pena o senhor não conhecer!

- Conhecer o quê?

- O Discóbolo.

- Estás doido, Leónidas?

- Discóbolo, o lançador de disco. Uma obra de arte. Aquele conjunto, com esta luz e visto daqui, lembra O Discóbolo. Palavra.

O Sr. Custódio não soube que dizer. Leónidas era um artista: via o que os outros não viam. Mas uma daquelas.

Luísa interrompeu-os. Baixou o cântaro na passagem da porta e informou, secamente:

- Não sei quem é o homem.

- Está bem.

A chuva arrastou o entardecer. Nesses dias curtos, as ruas eram iluminadas mais cedo: ainda o Sr. Custódio tinha as portas abertas e já a lâmpada da frente balouçava ao vento. Poupava-lhe cinco tostões de carboneto. A sua casa era a única, na vila, sem electricidade: a instalação ficava pelos olhos da cara, valia o dinheiro de uma letra de respeito. Vivera trinta anos com o gasómetro, dispensando luxos, assim continuaria.

Leónidas retirou-se, depois da última baforada do cigarro.

A escuridão entrava na loja às rajadas, aprofundando bruscamente os ângulos e os buracos, fazendo a sua tristeza tenebrosa. O Sr. Custódio sentou-se de novo, absorto, pernas cruzadas, a olhar a chuvinha cintilando através da luz da rua. Às vezes, anos atrás, àquela hora de cerrar portas, ainda aparecia um bom freguês, dos que gostam de comprar recatadamente; em minutos, vendia-se um xaile de merino, um gabão, um enxoval, e enchia-se a gaveta. Precisava angustiosamente de ter hoje uma sorte dessas: por muitos motivos e ainda para satisfazer a letra do Castro & Oliveira, já protestada. Os armazéns, agora, vendiam-lhe as coisas por favor: tinha de escrever, de implorar. Vissem aquele malandrete do viajante a mandar as malas para a loja do Lúcio!

            Mas se ainda conseguisse uma boa época de apuros, que lhe levasse os monos, eles veriam! Agarrava-se a um armazém e impunha: Amigos: venho aqui para fornecer a minha casa em condições. Compro só aos senhores, mas quero um viajante a visitar-me todos os meses e em exclusivo.

            Por essa não esperavam os sapateiros da vila!

            Sentia-se tão confiado no futuro que mal deu pela chegada de um camponês da serra. O homem estava ali no meio da rua, indeciso, sondando todos os lados, e, por fim, avançou direito à montra. O peito do comerciante arfava como se estivesse asfixiado. O Sr. Custó       dio rondava o olhar do homem com a avidez de um caçador. O camponês quase encostou o nariz aos vidros da montra e voltou ao meio da rua. A cacimba escorria-Lhe do chapéu. Minutos depois, como se tivesse tomado uma resolução desabrida, rompeu pela loja.

- Boas noites.

            Uma pena não ter o gasómetro aceso!

- Deseja alguma coisa? Eu acendo já a luz...

-Deixe. Estou aqui à espera de um compadre.

O Sr. Custódio mordeu a boca. Malandros. Faziam

da sua casa uma taberna para passar o tempo!

O homem encarou as trevas da loja e disse, fatigado:

- Talvez aproveite para ver aí um cotinzito...

- Tenho cotins.

O outro não merecia mais. Se aquilo era para conversa, que fosse para o Diabo.

- Se o meu compadre demorasse ainda, comprava-lhe aí uns metros.

- Isso é um negócio que se arruma em dois minutos, ora essa. Acendo já uma luz. Sente-se, esteja à sua vontade

Riscou um fósforo e procurou uma vela, para evitar demoras.

- Quantos metros? Umas calças?

- Não, eu até queria pra mim e pro meu rapaz.

- Sete metros, o mínimo

- Senhor Custódio, o jantar.

Era a voz monocórdica da Luísa.

- Lá vou, rapariga. Não vês que estou com gente? Não tinha vagar. A Luísa e a sopa que esperassem - como noutros tempos!

 

                                                                                Fernando Namora  

 

                      

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