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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CIRURGIÃO DE BATALHA / Frank G. Slaughter
CIRURGIÃO DE BATALHA / Frank G. Slaughter

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

CIRURGIÃO DE BATALHA

 

As cortinas que ocultavam por completo as janelas, devido ao black-out, não impediam que o bar do Royal George parecesse arrancado às páginas de Dickens. Nada lhe faltava. o mesmo lambril de madeira escura de carvalho, as mesmas gravuras desportivas, sem idade exacta, pregadas nas paredes, umas representando pugilistas de punhos nus, outras vencedores, há muito falecidos, de corridas de cavalos já no esquecimento. Também se podiam ouvir as mesmas canções, ricamente arrastadas pela pronúncia anasalada de East Anglia. Somente os uniformes dir-se-ia pertencerem a outro século. E a pistola automática de cano curto, dentro do coldre preso ao cinturão dum M.P.’, lembrava severamente que a guerra é hoje em dia uma ocupação de carácter internacional. Uma ocupação menos romântica do que outrora, mas sem dúvida muito mais eficiente.

 

O capitão, de cotovelos fincados no balcão, não se associara aos cantores. Mas ergueu o seu copo para as traves enegrecidas do tecto, num brinde silencioso, só dele conheciddo. Com esse gesto aliava-se à alegria dominante, sem sair do seu isolamento.

 

O copo, apenas meio de uísque, servia-lhe de espelho, e nele via reflectidas as bandas do seu uniforme, com o ouro do caduceu e as iniciais U.S., insígnias do Serviço de Saúde do Exército Americano. Mais acima das insígnias, divisava um rosto magro, de queixo pronunciado e boca contraída, apesar da juventude, num ricto de amargura, e uns belos olhos escuros a que sabia dar expressão ao mesmo tempo de reserva e simpatia.

 

Quando ouviu, à porta, alguém pronunciar o seu nome, voltou-se com um sorriso especial, que há muito conseguira tornar perfeito.

 

Um jovem alferes, acenando-lhe num gesto cordial, estugava o passo ao seu encontro, rompendo através da multidão. Era um rapaz de cabelos loiros, com todo o ar de estudante, apesar do uniforme em cuja banda a letra A se sobrepunha ao caduceu, a indicar que pertencia aos serviços administrativos.

 

- Porque diabo está sempre aqui metido, Rick?

 

M.P. - Polícia Militar.


O capitão esboçou um sorriso:

 

- Nunca ouviste a velha canção de caça inglesa: Entra onde a bebedeira for mais barata?

 

Este era um dos vários meios que Richard Winter usava para se defender de toda a gente. Conhecia o jovem Terry Adams precisamente há seis meses, desde que o rapaz fora incorporado na sua unidade, nos Estados Unidos. Mas a sua amizade possuía já esse valor sólido que só a guerra origina. No entanto, não podia dizer àquele jovem que estava ali há uma hora, convencido de que o seu destacamento deixaria o porto de embarque antes de escurecer uma outra noite e que encarava o facto sem a mínima emoção. Aliás, Rick Winter aprendera há muito a dominar a maior parte das suas emoções. Passara um ano em Espanha nas brigadas internacionais, depois outro ano num grupo canadiano que abrira a ferro e fogo o caminho da retirada desde as funduras das Ardenas até às praias homéricas de Dunquerque. Mas isso eram pesadelos muito pessoais e um homem sensato aprende a viver a sós com eles.

 

- Mais dois uísques - pediu Rick. E dirigindo-se ao amigo:

- Conseguiremos arranjar um canto em qualquer parte?

 

Pegaram nos copos e foram sentar-se num banco de madeira, de alto espaldar esculpido, próximo do fogão. Rick soltou um suspiro ao ver os olhos de Terry flamejarem de entusiasmo e excitação. Que palavras conviria dizer àquele garoto vestido de alferes que se preparava para enfrentar a guerra pela primeira vez?

 

- Quem te disse que eu estava esta noite fora do acampamento?

 

Terry Adams sorriu:

 

- Aprendi a seguir-lhe o rasto quando quero certificar-me dalgum rumor. Como está constantemente em contacto com o comandante, pode perguntar-lhe o que se passa...

 

- Cala-te! Tem cuidado! - murmurou Winter em francês, meio a sério, meio a brincar.

 

Terry baixou a voz e disse num sussurro:

 

- Ouvi dizer que partimos amanhã. E desta vez não é simples boato de caserna. Afirma-se que daremos um salto até África.

 

Rick respondeu serenamente:

 

- Lamento muito, Terry, mas sabes tanto como eu. Aqui para nós, também aposto na África, mas não passa dum palpite por enquanto.

 

A mão de Terry tremia um pouco; pegou no copo para beber e tornou a pousá-lo sem humedecer sequer os lábios. O seu rosto crestado por seis meses de vida militar mostrava-se abatido. Winter estudava-o atentamente, tentando avaliar a sua tensão interior. Os nervos de Terry tinham conhecido já toda a espécie de sacudidelas no caleidoscópio do último semestre. Primeiro, fora o trabalho árduo e monótono na escola militar; depois, uma vez obtido o grau de oficial, a passagem para uma existência sombria de papéis e mais papéis; finalmente, a excitação da transferência para a Europa, e de novo a inacção num porto de embarque, tendo por panorama as dunas inglesas... Winter julgou inoportuno dizer-lhe que a expectativa é o maior dos males da guerra. Essa era outra lição que o alferes Adams teria de aprender à sua própria custa...

 

Limitou-se a pronunciar:

 

- Ofereço-te outro uísque, meu rapaz. Bem o mereces.

 

- Um é a minha conta. Bem sabe porquê.

 

Rick riu com vontade. Tinham debatido muitas vezes esse problema durante os longos meses de vida em comum passados na base.

 

- Sempre com medo de fazeres seja o que for por causa dessa mulher que deixaste em casa?

 

- Censura-me por isso?

 

- Absolutamente. Não há lugar para Galaads nesta guerra. Quantas vezes terei de te repetir que com isso apenas fazes mal a ti próprio?

 

- Mas, Rick...

 

- Responde francamente à minha pergunta. Deixaste a tua Mary há quase seis meses. Há quanto tempo sentes tu o desejo de possuir uma mulher, uma qualquer?

 

Terry Adams contemplou o copo em silêncio. Como sempre, era-lhe extremamente penoso atacar assim, sem subterfúgios, o fundo da questão, e extremamente perturbador também. Desde que deixara Mary, já sentira de facto a tentação de ceder. Por vezes, quando não conseguia dormir, algumas recordações conduziam-no até ao limite da resistência. Ela surgia nos seus sonhos tal como na noite de núpcias a tivera nos seus braços. E repetia-lhe, num murmúrio, todas as palavras ternas da lua-de-mel. Na-Galaad - Um dos heróis da lenda medieval do Santo Graal. É o cavaleiro sem mácula e por isso teve o privilégio de descobrir o Graal perdido.


Estava outra vez ao seu lado, nua e sem pejo, num lago das Bermudas que o luar prateava...

 

Enquanto o capitão falava, o rosto de Terry tornava-se cada vez mais vermelho.

 

- Há certamente em qualquer parte uma rapariga disposta a ajudar-te, não como mercenária do amor, não por dinheiro, mas talvez por conhecer também as mesmas dificuldades. Quem sabe? Se procurares bem, és capaz de a encontrar até na nossa unidade. Não te importes com as razões do seu consentimento. Se ela se te oferecer, aceita-a, e não queiras saber de mais nada.

 

- Mas não seria justo...

 

- Para a tua mulher, queres tu dizer? Pois aí é que te enganas. Isso não tem nada que ver com os votos conjugais, nem nunca terá. Evidentemente, se acalentas a secreta esperança de voltar para casa vestido com uma camisa de forças... mas deixa-me calar; que tenho eu com isso? Sou cirurgião, não sou psicanalista.

 

Terry recuperara o sangue-frio. Bebeu o seu uísque em três grandes tragos.

 

- Continue, continue, doutor Freud.

 

- Há neste momento um baile no clube dos oficiais. Queres ir até lá? Poderemos explorar o terreno de caça...

 

- O senhor também, doutor?

 

- Eu também, meu pequeno! E porque não? Não sou casado... Não tenho portanto nenhum desses escrúpulos de consciência.

 

- Para falar verdade - declarou placidamente Terry - marquei um encontro com uma jovem no Railway Arms. Quer vir comigo?

 

- É melhor ires sozinho. Podia estragar-te a conquista.

 

- Não se trata duma conquista. É a minha irmã. Linda Adams. Nunca ouviu falar dela?

 

- Quem não ouviu falar dela? Mas porque guardaste esse segredo até agora?

 

- Porque sei que tem horror aos jornalistas. E sobretudo às mulheres dessa espécie. Mas, para lhe ser franco, não queria apresentá-lo a Linda sem saber primeiro se ela tinha ou não medo dos lobos...

 

Calou-se, confuso e perturbado com o olhar frio que Rick lhe lançou. E tão frio como esse olhar era a voz do capitão quando lhe observou:

 

- Não me digas que vem ser correspondente de guerra na nossa unidade.

 

- Pois digo-lhe isso mesmo. E ainda mais, que fará a viagem connosco no mesmo transporte, autorizada pelo Ministério da Guerra e pelos Serviços de Informação. Agora tenha a bondade de desfazer essa carranca que mete medo e venha daí falar-lhe.

 

- Se não te importas, prefiro ficar aqui sentado, Tenho de me habituar primeiro a essa ideia. Aliás, tu mesmo lhe podes pedir que não transforme esta guerra numa cruzada. Como bico-de-obra, este sabe defender-se muito bem sozinho. O maior bico-de-obra da história...

 

Ao ver o rosto de Terry pálido e magoado, Winter engoliu o resto da diatribe.

 

- Não faças caso, meu rapaz! Sei que a tua irmã é uma personagem importante. E tens todo o direito de te orgulhares dela. Queres levá-la ao clube esta noite?

 

- Se não estiver muito fatigada da viagem...

 

- É natural que esteja. Mas se for, cumprimentá-la-ei nessa altura. E esquece o meu conselho de há pouco. Como a maior parte dos conselhos, provavelmente não tem nenhum valor.

 

Ficou a ver a delgada silhueta de Terry desaparecer por trás das cortinas negras que ocultavam a porta do Royal George. Desta vez, estava disso convencido, a sua insignificante prédica ajustava-se de tal forma aos mais ardentes desejos de Terry que ele não a esqueceria. Qualquer noite, atrevia-se a beber um segundo uísque e, em seguida, quase inevitavelmente, se estivesse bem acompanhado, o resto sucederia sem dar por isso... Examinando as consequências, Rick concluía que o rapaz havia de se sentir depois melhor, se fosse bastante prudente para não contar nada à esposa.

 

O capitão encomendou outro uísque e continuou a meditar no facto surpreendente de Terry poder ter uma irmã como Linda Adams. Parecia-lhe no entanto uma criancice esse deliberado propósito de lhe ocultar circunstância tão natural como a de ter uma irmã, e ocultá-la durante seis meses... Felizmente nunca dissera diante de Terry o que pensava de Linda.

 

Seis anos antes, avistara-a de fugida em Espanha, quando ela passava a toda a velocidade num automóvel a transbordar de galões dourados e de cumprimentos latinos. A sua estrela principiava então a subir. Dois anos mais tarde, o seu nome era conhecido em todos os lugares onde se imprimem os best-seller e em toda a parte onde a rádio é livre. Linda Adams, a autora de O Enteado da Europa; Linda Adams, cuja emissão «O Ponto de Vista da Mulher» tinha quase tanta popularidade como os programas preenchidos com melodias de cantores sentimentais.

 

Como não havia de ter horror a uma tal mulher, mesmo sem nunca lhe ter falado?

 

Jamais contara a Terry que um dia atirara o último livro dessa jovem pela vigia do seu camarote, ao regressar de Barcelona para ir descobrir outra guerra. Em suma, nessa noite despedaçara um ídolo de Terry. No entanto, não faltaria à sua promessa e apareceria no clube dos oficiais. Por várias razões. Se Linda Adams estivesse lá com o seu caderno de apontamentos, mostrar-lhe-ia o género de delicadeza que reservava às intelectuais e petulantes da sua espécie.

 

Restava-lhe justamente o tempo necessário para engolir um último uísque, e apaziguar assim um pouco mais o espírito. Depois disso, talvez acabasse por admitir que não valia a pena gastar cera com ruins defuntos...

 

O ruído do chuveiro deixou de se ouvir e Gina Cole pôs os pés nos ladrilhos da casa de banho. Dobrou, torceu, estirou o corpo nu, com a alegria voluptuosa duma jovem pantera. O espelho da parede, embaciado pela humidade, assegurava-lhe que todas as suas curvas eram como deviam ser, proporcionadas e bem no seu lugar, desde os pomos firmes dos seios às linhas sedutoras das coxas, das pernas e dos finos tornozelos. Enxugou cuidadosamente um pé, meteu-o numa chinela, e interrompendo-se por instantes, ainda nua, interpelou a sua colega de quarto no lar das enfermeiras:

 

- Continuas a usar o teu roupão transparente, Carolyn? E se há fogo?

 

- Os meus pijamas cobrem-me de forma adequada - respondeu tranquilamente a outra.

 

Carolyn Rycroft era loira, dum loiro quase dourado. Naquele momento lavava as meias de seda numa bacia contígua.

 

- Pijama de seda, não é verdade?

 

- Não, de popelina.

 

A opulenta Vénus torceu o nariz e envolveu-se num macio roupão vermelho.

 

- Por minha parte, prefiro dormir nua. Quando muito, com um pijama de crepe da China.

 

- Mesmo em tempo de guerra?

 

Gina pegou num pente e pôs-se a tufar a cabeleira negra:

 

- Oh! A minha guerra nunca mais tem fim. É a eterna luta do macho pela conquista da fêmea. Estou alistada nela para toda a vida, ao passo que este emprego de auxiliar de radiologia é apenas temporário: o meu contrato dura enquanto durar a guerra. A guerra militar, bem entendido.

 

- E pelo que oiço dizer - observou Carolyn, sempre calma

- parece que triunfas facilmente.

 

- Sim, possuo uma boa colecção de admiradores, se é isso que queres insinuar. E dois deles levam-nos esta noite ao baile do clube. Agrada-te?

 

- Nem sei. Ando demasiado desnorteada para saber se me agrada qualquer coisa.

 

- Não te aflijas, a nossa promoção será um facto antes do fim da noite, sobretudo se o doutor Winter entrar em cena.

 

- O doutor Richard Winter?

 

Carolyn fez a pergunta sem levantar os olhos do seu trabalho.

 

- Sim, os amigos tratam-no por Rick - informou Gina. E será também teu amigo, minha bela, se valorizares um pouco mais a tua figura que tanto descuras.

 

Carolyn declarou modestamente:

 

- Mas eu conheço o doutor Winter. Trabalhei com ele esta tarde.

 

- Quando fez uma esplenectomia?

 

A enfermeira loira abanou afirmativamente a cabeça:

 

- Foi um trabalho perfeito. Nunca vi ninguém melhor do que o capitão Winter.

 

- Na sala de operações ou cá fora?

 

Carolyn procurou dissimular o aborrecimento. Chegara nessa manhã à unidade, como substituta, mas era enfermeira diplomada de cirurgia. Não imaginava que o Dr. Winter pudesse ser, fora das horas de serviço, um terrível conquistador. Fora tão agradável para ela nessa tarde... É verdade que lhe falara asperamente por causa da sua imperícia numa sutura... Mas isso sucedia com frequência nas salas de operações, quando os cirurgiões tinham os nervos tensos... Essa mesma tensão nervosa fazia-os às vezes esquecer quem eram os assistentes... Mas o capitão Winter, quando ela reunia os instrumentos cirúrgicos, passara junto de si e parara para lhe agradecer a colaboração, e isso raramente sucedia com outros médicos. Agora, pensava, desapontada, que ele só a vira com a máscara e touca e naturalmente não a reconheceria de rosto descoberto... Mas o riso de Gina despertou-a para as realidades do momento:

 

- Sentes-te uma Florence Nightingale, não é verdade? E ambicionas medalhas... Oxalá as possas usar durante toda a guerra sem as embaciares.

 

E dito isto desapareceu num frufru de sedas a arrastar nos ladrilhos.

 

Quando Carolyn, por sua vez, abandonou o chuveiro e entrou no minúsculo e atravancado quarto de cama, Gina tirava do armário um comprido vestido de noite de seda branca. E viu-a depois, com certo espanto, retorcer-se toda para fazer deslizar nas ancas o tecido muito justo ao corpo.

 

- Não vestes absolutamente nada por cima disso?

 

- Porque havia de vestir outra coisa? Isto cobre-me completamente.

 

- Mas é duma indiscrição tão... tão acentuada...

 

- Absolutamente de acordo. Em minha opinião, a mulher deve pôr bem em evidência os dons que possui.

 

E desarrolhando um frasco de perfume, passou várias vezes no vinco dos seios a pequena haste de vidro. Carolyn Rycroft pegara já na sua cinta.

 

- Não quero, obrigada! Como vou para a guerra, tenho de levar uma armadura.

 

No entanto, pusera de parte a primitiva ideia de ir ao clube de uniforme. Tinha um vestido de noite na mala. Era de seda branca, como o de Gina. E também uns preciosos sapatos de baile e umas divinas meias de nylon... Nenhum regulamento proibia as enfermeiras de andarem com vestidos de noite na bagagem... Quando já estava quase pronta, ajeitou bem a saia e submeteu-se à apreciação da colega:

 

- Não te contraria o facto de irmos as duas de branco, pois não?

 

- E porque havia de me contrariar? - perguntou Gina, muito afável. - O branco é a cor das virgens, ninguém o ignora, isso talvez impressione um pouco os nossos cavaleiros de escolta.

 

Carolyn ergueu as mãos para o céu, num gesto de protesto, mas não deixou de sorrir e voltou para junto do toucador. Era estranho. Gina Cole às vezes escandalizava-a e no entanto estava sempre disposta a ouvi-la...

 

A carreira de Carolyn fora, em todos os tempos e em todos os sentidos, uma carreira modelo. Nascera no Iowa, formara-se num colégio de Middle West e chegara a um hospital de Nova Iorque com um ideal intacto. Tinha já três anos de prática quando se alistou, logo após Pearl Harbour... Até àquele momento, a Inglaterra não lhe parecera um país estrangeiro: encontrara ali a familiar rotina do hospital e com facilidade se adaptara às diferenças.

 

Bastava-lhe saber que o seu trabalho era tão útil ao seu país como a si própria. Esperava, no fim da guerra, voltar aos Estados Unidos como assistente cirúrgica qualificada. Talvez mesmo, sonhava nos momentos de maior optimismo, e a sua respiração tornava-se mais e mais apressada, como esposa dum cirurgião. E se regressasse com o nome de senhora Winter, por exemplo? Se o que Gina contava era verdade, podia alimentar algumas esperanças. E tais sonhos não fazia também parte da atmosfera excitante da guerra?

 

Oh! Mas era muito possível que ela se enganasse a respeito do valor dos seus encantos. Nesse caso, restar-lhe-ia sempre o recurso de reconhecer que não os possuía e retomar o caminho das salas de operações na qualidade de enfermeira especializada. Antes de partir, tinham-lhe prometido um lugar quando regressasse do velho continente. Com o decorrer dos anos, subiria a enfermeira-chefe, cultivando simultaneamente o gosto das solteironas pelas empadas de frango e pelos encontros com Clark Gable no cinema mais próximo. Nessa altura, claro, com o galã que tivesse substituído Clark Gable...

 

- Acorda, minha bela, e regressa a este mundo! - exclamou Gina. - Quem quer que seja, não procures seduzi-lo em imaginação, persegue-o antes em carne e osso... E não abuses muito do rouge. E bom dar ao rosto a possibilidade de corar naturalmente, quando a ocasião se proporciona... Vamos, os nossos cavaleiros esperam-nos.

 

Carolyn nunca mais pôde lembrar-se do nome do seu alferes. Recordava-se somente que era atarracado e afável e tinha a doce pronúncia dos habitantes da Georgia.

 

Mal saíram do lar das enfermeiras, a noite do Outono saltou-lhes ao caminho, fria, enevoada e ressoante dos hediondos gemidos dos guindastes do cais, a carregarem os navios para o embarque próximo.

 

Do lar ao clube a distância era curta. A música de baile, coada através das pesadas e negras cortinas do black-out, flutuava no ar nocturno. Carolyn deu o braço ao seu alferes e correu para essa música, como uma adolescente corre para o seu primeiro passeio ao luar.

 

Agora havia uma prece nos seus lábios. Uma única prece. Que o capitão Winter aparecesse em campo e a reconhecesse sem a máscara e sem a touca.

 

Num quarto do Railway Arms, Terry Adams, depois de apagar a luz, afastou as cortinas e contemplou o porto, lá em baixo. O nevoeiro era agora menos denso. Para lá do tumulto da rotunda do caminho-de-ferro e dos armazéns dos cais, distinguia os vultos negros dos transportes e o casco luzidio dum torpedeiro ancorado. O conjunto assumia as formas irreais dum quadro de pesadelo. E o seu espírito pressentia, sabia, que no dia seguinte faria provavelmente parte desse comboio que se formava a toda a pressa. E esse mesmo espírito, no entanto, recusava-se a admitir o facto como uma certeza, até como uma possibilidade.

 

Uma voz feminina chamou-o da casa de banho; só então ele emergiu do oceano de angústia em que mergulhara, correu as cortinas e acendeu de novo a luz. A voz da irmã produzira-lhe o efeito habitual, o de um bálsamo sobre uma chaga. Mais exactamente nesse instante: o de uma onda de óleo num mar encapelado.

 

- Encomendaste alguma bebida, Terry? Eu estou quase pronta.

 

- Um minuto de paciência, Linda - respondeu, com forçada jovialidade.

 

Ele sabia perfeitamente que a irmã já adivinhara a sua perturbação, mas não sabia ao certo qual o sentimento que o dominava, se o desejo, a necessidade dos seus conselhos, ou o receio da conversa que ia iniciar-se.

 

Linda saiu da casa de banho, o vestido de noite a envolver-lhe os ombros como uma onda de espuma. Era um vestido branco, de crepe da China e tule. O irmão recuou um pouco, para a admirar, invadido, como sempre junto dela, dum misto de ternura e de medo. Linda era uma dessas mulheres altas e esbeltas para as quais dificilmente há termo de comparação. Um francês qualificá-la-ia defausse maigre, e essa expressão intraduzível mas significativa, definia-a com propriedade. A sua silhueta quase perfeita nada tinha de excitante nem de equívoco que sugerisse a volúpia. Era, em suma, demasiado positiva.

 

Nessa noite, desde o profundo decote em V, ao suave ondeado dos cabelos cor de cobre, dir-se-ia um Ticiano do século vinte. Mas bastava encontrar o seu firme olhar azul para logo se concluir que não era somente bela. E se o seu corpo seduzia, o inquieto dinamismo desses olhos aconselhava moderação.

 

- Não me admira que consigas todas as notícias que desejas - observou Terry. - Com semelhante indumentária, podes obter decerto as   confidências   de   qualquer   ditador,   sem exceptuar nenhum.

 

Linda deu-lhe uma leve palmada no rosto:

 

- Economiza os elogios. Esta é sem dúvida a minha última noite de gala! Ninguém muda de vestido para jantar a bordo dos transportes de guerra.

 

Instantaneamente, Terry tornou-se grave:

 

- Então, sempre é verdade, vamos embarcar? Obtiveste a informação em fonte segura?

 

- Não me teriam enviado para aqui a toda a pressa se o embarque não estivesse por horas. Baseando-me nesta intuição, ou para melhor, nesta dedução, já escrevi o meu primeiro artigo. Ao dizer isto acariciou a sua máquina de escrever portátil. É claro, só será transmitido mais tarde, pelo cabo submarino, quando estivermos no mar alto...

 

- Conheces o nosso destino?

 

- Nem mesmo o teu coronel poderia responder neste momento a tal pergunta. É, como as circunstâncias impõem, o segredo melhor guardado da história. Pega num mapa e pousa nele um lápis ao acaso; podes ter a sorte de acertar: Noruega, África, índia... - Linda tirou uma escova de cima do toucador e principiou a escovar-se, sorrindo. E acrescentou: - Também pode muito bem ser alguma praia no outro lado da Mancha.

 

Terry Adams respirou fundo:

 

- Fala claro e sem rodeios. Achas que serei capaz de suportar o chinfrim?

 

A escova continuava o seu tranquilo vaivém.

 

Não tenho dúvidas a tal respeito. Começarás por sentir medo. E eu também. Já espero isso mesmo. Mas suponho que nem tu nem eu o daremos a perceber.

 

- E se eu não conseguir disfarçar o medo?

 

- Queres tu dizer, se formos bombardeados?

 

- Não, durante a batalha.

 

- Pertences aos serviços administrativos, Terry. Certamente não andarás perto da frente.

 

- Pois enganas-te. A nossa unidade é uma das mais móveis de todo o exército. Somos um hospital de campanha. E levamos connosco tudo quanto possa ser preciso nas linhas de fogo.

 

A escova interrompeu o seu movimento e Linda fitou no irmão uns olhos inquietos.

 

- E é com um grupo desse género que vou embarcar? Conta-me o que sabes.

 

- Os espanhóis e os russos ensinaram-nos a técnica das unidades médicas móveis. Provaram que a mortalidade entre os feridos pode ser consideravelmente reduzida se os socorros forem prestados sem demora e o tratamento começar em acto contínuo. Trabalharemos provavelmente à frente da nossa artilharia.

 

Terry apertava os dedos uns contra os outros, ao ponto de tornar esbranquiçadas as articulações e olhava fixamente o vácuo.

 

- Soube isto pelo major Strang, o nosso cirurgião-chefe.

 

- E tu receias não poder estar à altura da situação?

 

- Ontem à noite houve um bombardeamento insignificante. Alguns Heinkels largaram as suas bombas e fugiram. Apenas meia dúzia. - O rapaz engoliu dificilmente a saliva e continuou:

- Pois meti-me debaixo da cama, como um coelho. Esta manhã ainda lá estava... e o mais aborrecido é que verdadeiramente não sinto medo. Simples questão de nervos. Não podes imaginar como eles se destrambelharam nos últimos meses. Se eu pudesse fugir de mim próprio... Nem que fosse só por uma noite...

 

Linda pousou a escova e acariciou-lhe os cabelos. Terry nunca deixara de ser criança, pensou. E sê-lo-ia sempre. De facto, pouco mais era ainda do que um garoto. Noutro tempo, bem se lembrava, livrara-o muitas vezes de apuros, acalmando-lhe os terrores, mas aquele problema somente ele podia e devia resolvê-lo, e resolvê-lo como um homem. Interrogou-o carinhosamente:

 

- Já examinaste essa questão com alguém?

 

- Não sou médico - disse Terry -, no entanto posso diagnosticar o meu mal. Chamemos-lhe depressão nervosa...

 

- Supunha a depressão nervosa uma consequência das explosões das granadas...

 

- Ouvi há dias uma conferência a esse respeito. Essa teoria está abandonada. As perturbações que resultam duma detonação próxima e que frequentemente são motivadas pela deslocação do ar, classificam-se hoje pela designação de «estado de choque». A depressão nervosa é apenas uma neurose acumulada pela própria vida de guerra, com as suas fadigas, desassossegos e privações diversas. Às vezes acaba por curar-se; outras vezes produz-se uma explosão, uma crise de nervos, porexemplo... E justamente neste momento sinto-me prestes a explodir... a não ser que encontre forma de me retemperar...

 

Um criado apareceu com as bebidas, pousou-as em cima da mesa, meteu no bolso o dinheiro que Terry lhe deu e foi-se embora olhando de soslaio.

 

Terry estava visivelmente perturbado e a sua mão tremia ao entregar o copo à irrnã.

 

- Receio bastante ter-me traído, Linda. Se não fôssemos tão perfeitamente amigos...

 

- Conta-me então tudo, idiota! Que entendes ao certo por retemperar!

 

De súbito, ele bebeu o seu uísque dum só trago.

 

- O que é que supões?

 

Antes de responder, Linda pesou a ideia com calma. Depois disse:

 

- E Mary, o que pensará a esse respeito?

 

- Dir-se-ia que compreendes tudo por meias palavras.

 

- Há sete anos que sou jornalista, e possuo uma boa estenografia mental.

 

- Então? Qual é o teu veredicto? Mas Linda esquivou-se à pergunta:

 

- Discutiste com certeza o problema com alguém. Não tentes fazer-me crer o contrário.

 

- O capitão Winter deu-me esta noite a sua opinião! .   - O capitão Richard Winter?

 

- Sim; conhece-lo?

 

- De nome. Não fez parte do estado-maior do cirurgião Trueta, na guerra de Espanha?

 

- É esse mesmo. Encontrá-lo-ás esta noite no clube.

 

E se eu não tiver nenhuma vontade de o encontrar? Como vês, já adivinhei o que ele te aconselhou.

 

- Tens razão, Linda. Rick aconselhou-me a não ir além das minhas forças e a fazer a corte à primeira jovem disposta a escutar-me .

 

Durante um momento, inquieta e perturbada, Linda ponderou essa estratégia masculina. Era exactamente o que esperava do capitão Richard Winter. Ouvira falar dele em várias capitais europeias, durante os últimos anos, desde Barcelona a Varsóvia. Em Espanha estivera envolvido numa espécie de escândalo com a filha dum alcaide. Outro em Paris, com uma estudante da Sorbona... Via Rick em imaginação e os seus lábios esboçaram um vago sorriso. Um desses lobos que a guerra alimenta...

 

- Tencionas seguir o seu conselho, Terry? De olhos fixos no tapete, o jovem respondeu:

 

- Não, a não ser que me aconselhes a segui-lo.

 

- Desde quando me consideras uma autoridade em tal assunto? Julgas que não há para mim limites em qualquer língua, incluindo as escandinavas?

 

Ficou satisfeita ao ouvir rir o irmão.

 

- Linda! Não me faças parecer ainda mais desastrado do que sou!

 

- Penso, pelo contrário, que és encantador com a tua franqueza. Espero no entanto que continues fiel às tuas opiniões e sincero para Mary.

 

- Rick diz que seria também melhor para Mary se eu...

 

- O teu amigo Rick tem todo o ar de um insuportável sofista.

 

- Não compreendo muito bem.

 

- Compreenderás melhor quando fores mais velho, querido. O seu sistema é sem dúvida excelente para ele. Mas tu sabes bem que nunca mais poderias olhar para Mary bem de frente se...

 

Mas Terry também já não a olhava de frente. E ela nunca chegaria a saber se de facto o ajudara ou lhe carregara apenas a consciência com um novo fardo. Teria parecido aos seus olhos uma pedante, repleta de fatuidade, com a sua moral de pataco? Linda encolheu os ombros, atirando para trás das costas essa nova inquietação, e pegou na capa.

 

- Vamos, senão chegaremos atrasados ao clube, Terry. Lembra-te que tenho de dançar várias vezes com os teus superiores, para abreviar a tua promoção.

 

Terry desceu, cambaleando, atrás dela, os degraus da escada escura: o Railway Arms observava escrupulosamente o black-out.

 

- Escuta, Linda, não fiques aborrecida comigo. Reparo agora que falei fora de propósito. Mas tinha necessidade de desabafar com alguém...

 

- O capitão Winter não bastava?

 

Um silêncio insólito estabeleceu-se entre ambos e a pergunta ficou sem resposta. O silêncio persistiu durante todo o caminho, no estreito carreiro de pranchas que atravessava um campo de exercícios lamacento, até atingirem a luz encarapuçada que iluminava veladamente a guarita da sentinela à entrada do aquartelamento do 95.° Hospital de Campanha do exército norte-americano.

 

Terry encontrou certo alívio em chalacear com o sargento da guarda. O segundo uísque zumbia-lhe aos ouvidos um estribilho sombrio e selvagem quando tomou o braço da irmã e a ajudou a atravessar uma espécie de caixa, feita dum duplo jogo de portas, que assegurava o black-out à entrada do clube.

 

Assim que apresentasse Linda ao coronel e adquirisse a certeza de que não lhe faltariam pares, principiaria então a sua caça nocturna. Estava decidido. E uma vez tomada uma decisão, tudo o mais era extremamente simples.

 

Uma imagem lhe atravessou o espírito. Mary, vestida de noiva, sorria-lhe por cima dos jasmins-do-cabo, no jardim da sua mãe. Depois outra visão: Mary, nos seus braços, valsava na coberta do vapor que os conduzira às Bermudas, em viagem de núpcias. Mas tais recordações eram insuportáveis naquele momento. Ia nessa noite desterrá-las para qualquer recanto onde nenhuma irmã, por mais esperta, fosse capaz de as descobrir.

 

Guiou Linda com mão firme até à porta do vestiário, e quando a deixou dirigiu-se à pressa para o bar, decidido a beber um terceiro uísque antes do baile começar.

 

O vestiário estava a transbordar de mulheres, a maior parte em vestidos de noite; mas no meio dessas rendas, tules e crepes, viam-se também uniformes: os azuis da Cruz Vermelha e o caqui claro de uma ou duas oficiais do W.A.A.C.1

 

Linda Adams parou um momento à entrada, envolvida num turbilhão cacofónico de conversas. Depois, aproximou-se do toucador, pendurou negligentemente a capa e abriu a malinha de mão. No entanto, não tirou de lá a borla do pó-de-arroz, mas sim

 

A.A.C. - Corpo Auxiliar Feminino do exército americano.

 

um caderno de apontamentos e um lápis, objectos indispensáveis a todos os jornalistas, tanto em Nova Iorque como em Moscovo...

 

Ia começar o artigo que tinha de enviar para o seu jornal e cujas linhas gerais já esboçara em pensamento. Pondo de lado Terry e os seus problemas, podia dedicar às suas obrigações profissionais toda a atenção. Congratulava-se por praticar, desde longa data, essa disciplina. Mas nessa noite ela aventurara-se num terreno proibido. Os costumes e a moral dum homem, tal como o seu gosto em matéria de gravatas, são coisas em que nenhuma mulher deve meter o nariz.

 

Duas jovens, ambas vestidas também de branco, aproximaram-se do grande espelho do vestiário, para um exame final. Uma era loira, delicada e atraente; a outra, alta, morena e com curvas de sereia. Antes mesmo de as ouvir falar, Linda adivinhou que as duas eram enfermeiras.

 

A das curvas de sereia dizia:

 

- Repito-te, Carolyn, já o vi debaixo do arco, qual caçador em emboscada, à espreita da presa. Já sabes de quem se trata, do nosso Rick Winter.

 

- Sim, e então?

 

A voz da loira era reservada.

 

- Desculpa, querida, se sei ler os pensamentos. Mas o melhor é deixar falar a natureza e ver depois o que sucede.

 

E afastaram-se, envolvidas nas ondas do riso da sereia. Linda guardou o bloco de apontamentos e seguiu-as.

 

O baile estava no auge, e apesar da nudez fria da grande sala do clube, criava por si próprio calor e alegria. Uma orquestra de mobilizados moía com dificuldade uma rumba, no meio dum rumor confuso de vozes humanas.

 

Linda viu as duas enfermeiras nos braços dos seus cavaleiros de escolta, dois alferes parecidos com as figuras que ilustram os cartazes de recrutamento. A loira não tardou a perder-se no meio dos outros pares, mas a morena agitou audaciosamente a mão para um capitão de elevada estatura, postado no outro extremo da sala, rosto magro e bronzeado, delgada silhueta entre dois pilares. Richard Winter em carne e osso.

 

Linda examinou-o durante algum tempo. O sangue afluía-lhe às faces, onda rápida que ela não podia deter nem compreender. Viu-o romper a direito pelo meio da multidão, e reclamar a loira ao seu par. Viu-o ainda rodopiar ao ritmo complicado da rumba.

 

Ergueu então a cabeça altiva, atravessou a sala e dirigiu-se para o bar, à procura de Terry.

 

Um pião lançado com mão de mestre não rodopiaria com mais vivacidade do que o capitão Richard Winter com Carolyn Rycroft nos braços. As cabaças de maracá, agitadas pelos músicos da orquestra, dir-se-ia marcarem o ritmo das suas pulsações. A sua face pousava nos cabelos loiros e tépidos, e aquele contacto apressava-lhe a circulação do sangue nas veias, numa cadência não menos imperiosa que a das maracás. Mas ele não fazia fosse o que fosse para acalmar pulsações tão desordenadas...

 

- Sabe que faz muito mal em dançar com um alferes? - interrogou .

 

Carolyn não ergueu os olhos, mas riu baixinho, denunciando bem o seu contentamento:

 

- Porquê, capitão?

 

- Por uma razão muito simples: como a sua patente é superior, ele tem de obedecer às suas ordens, o que é mau para qualquer homem, mesmo para um alferes.

 

- E convosco?

 

Rick percebeu que ela se amoldava ao seu humor com a mesma facilidade que o seu corpo se submetia aos movimentos e à cadência da dança.

 

- A resposta não é intuitiva?

 

- Quer dizer, tudo está bem, uma vez que a sua patente é superior à minha?

 

- É como diz, tenente.

 

Carolyn tornou a rir baixinho, um riso feliz.

 

- Quais são agora as suas ordens, capitão?

 

Por enquanto, podemos continuar assim. Mas quando tocarem uma valsa, venha comigo lá para fora fumar um cigarro e tomar um pouco de ar fresco.

 

  1. dito isto, fê-lo rodopiar como um dervixe.

 

Rick, não o podia negar, sentia-se plenamente satisfeito, e aquele instante da sua vida teria sido da mesma forma saboroso sem a resposta complacente da jovem. Atraiu-a mais a si e demorou os dedos, deliberadamente, na curva dos seios de Carolyn, numa leve carícia.

 

- A ordem foi entendida, Miss Rycroft?

 

- Perfeitamente, capitão. E fico contente por se lembrar do meu nome.

 

Mais do que uma simples frase, era uma confissão suspirada. Winter estava absolutamente senhor do terreno.

 

- As boas enfermeiras especializadas em cirurgia não brotam do chão como os cogumelos - disse Rick. - Nem mesmo durante uma guerra de primeira classe como esta. Há quanto tempo está na Europa?

 

- Somente há uma semana. Mas não se nota muito, pois não?

 

- Isto assemelha-se ao que imaginava?

 

- Absolutamente. E excede mesmo o que supunha.

 

- O trabalho também?

 

- Sobretudo o trabalho. Sempre o adorei. O de cirurgia, é claro. - E num arrebatamento, exprimiu o seu maior anseio:

- Poderei ficar integrada no seu grupo, como enfermeira? Pode conseguir isso?...

 

- Já consegui... - respondeu Rick, com sincera alegria. Arranjei as coisas com Strang esta tarde, logo após a nossa esplenectomia.

 

E esmagando contra o peito o seu arfar de contentamento, arrastou-a num último turbilhão frenético, ao som das maracás sacudidas com frenesim.

 

- Posso acrescentar - continuou - que foi um arranjo puramente, deliberadamente prático. Não uma recompensa. Nunca misturo o trabalho com o prazer.

 

- Isso também me agrada - observou Carolyn, sentindo a orla dum pesado reposteiro roçar-lhe os pés e o vestido de seda, enquanto rodopiava do calor e da luz do salão para a obscuridade fresca da varanda. Um outro par terminava igualmente ali a sua rumba. silhueta indistinta num fundo de estrelas. Dançando sempre, Winter arrastou Carolyn até à balaustrada.

 

Aos telhados do acantonamento, para lá do arame farpado, sucedia um extenso matagal selvagem. Mais adiante, uma súbita escarpa, vertiginosa, e depois o silêncio da Mancha. Não era a primeira vez que utilizava esse cenário para o primeiro acto de um drama eterno.

 

Carolyn não protestou quando ele diminuiu a pouco e pouco o ritmo da dança, tão gradualmente que seria difícil determinar

 

com precisão o momento em que os seus braços lhe envolveram o corpo e transformaram a rumba num verdadeiro amplexo. No entanto, ainda balouçavam os dois ao som abafado da música, quando ela sentiu uma boca apossar-se da sua. Primeiro brandamente, até que os lábios dela cederam e Rick se apercebeu do profundo estremecimento da sua resposta...

 

Quando findou o beijo, Carolyn Rycroft abriu os olhos, e, mesmo no escuro, Winter pôde ver que esses olhos brilhavam. A resposta da jovem era total. Com um cálido murmúrio, apertou-a novamente nos braços.

 

A orquestra estava agora silenciosa. Não podiam desculpar-se que terminavam a rumba, à maneira latina, com um beijo. Os lábios de Carolyn entregavam-se-lhe, e nem mesmo quando ele insinuou a mão na profunda abertura do decote, ela protestou. Reteve-a assim, em apertado abraço, durante toda uma eternidade perfumada, desafiando-a a romper o encanto que um e outro sentiam. Quando, finalmente, a libertou, viu-lhe os olhos embaciados por uma sombra de tristeza.

 

Et, dans I’ombre, je devinais tes prunelles... Et je buvais ton souffle...’

 

Os versos de Baudelaire dançavam-lhe no cérebro. Mas não os citou em voz alta. A poesia já algumas vezes o auxiliara em momentos semelhantes, mas agora não tinha necessidade da sua ajuda. Carolyn era por si só suficiente poesia. Pelo menos naquele instante. Sorriu ao vê-la recuar um pouco.

 

- Deseja recuperar tão depressa a dignidade?

 

- Se não se importa...

 

Não, não se importava absolutamente nada. Aproximou de novo, ao de leve, os seus dos lábios dela, desafiando-a uma vez mais a resistir a esse convite. Ela respondeu, num suspiro:

 

- Só um pequeno beijo, suplico-lhe. E depois leve-me para a sala.

 

Os seus lábios tocaram-se numa última carícia quase irreal. A orquestra principiara a tocar o Wienerblut. Carolyn Rycroft retirou a mão hábil de Rick de cima do seio e colocou-a na sua

 

Em francês no original: «E no escuro eu adivinhava as tuas pupilas.../ E bebia a tua respiração...»

 

cintura. Depois, inclinou-se para ele com um sorriso que mal disfarçava toda a emoção:

 

- Gosto de valsar, Rick.

 

Era a primeira vez que empregava aquele diminutivo, e não deixava de ser curioso depois do que se passara.

 

- Evidentemente, se deseja voltar para a sala...

 

- Não, não o desejo. E precisamente por isso é preferível. Sem proferir mais uma palavra, o capitão Winter arrebatou-a

 

nos passos da valsa iniciada. No fim de contas, tratava-se apenas do primeiro acto. Teria muito tempo, mais tarde, de atingir o ponto culminante.

 

Um major da Força Aérea meteu-se de permeio e tirou-lha dos braços, antes de poderem dar uma volta completa no salão. Rick aplaudiu-a em silêncio, ao vê-la afastar-se, com o seu novo par, calma e graciosa, sem qualquer sinal de perturbação. Apenas o brilho dos olhos a traía. Mas, claro, o major decerto estava já persuadido de que fora ele que acendera essas estrelas.

 

A atmosfera do baile atingia o ponto de ebulição. Em muitos outros olhos, além dos de Carolyn, flamejavam chispas. Eloquentes marcas de carmim decoravam as faces queimadas pelo sol de alguns militares. Sob uma aparência de decoro, o Exército, nessa noite, palpitava de alegria. Muda admissão de que no dia seguinte todos esses pares estariam dispersos por uma dúzia de frentes de batalha...

 

Terry Adams dançava com uma jovem vestida de branco que podia ter servido de modelo a uma Vénus de Rubens. Rick conhecia-a bem, quase bem de mais... Gina Cole, técnica especializada em raios X. Bem, os seus deliciosos encantos não fariam mal a Terry, mas...

 

Deu um passo em frente para os separar, mas reconsiderou a tempo ao lembrar-se do conselho que dera nessa noite ao jovem alferes. Talvez Gina fosse exactamente o récipe que o médico receitara ao paciente, se porventura era possível tornar com moderação um medicamento como Gina Cole! Winter viu o rosto do jovem, na altura em que invertendo o movimento da dança, fazia rodopiaro seu ágil parem sentido inverso. Terry estava um pouco vermelho, nada ofegante e absolutamente satisfeito...

 

«O que está bem, deixá-lo estar», pensou Winter, e afastou-se.

 

O olhar de Rick, vagueando pela sala, fixou-se noutra jovem vestida de branco. Alta, elegante, um par patrício, e cabelos cor de cobre. Rodopiava nos braços de Randall Strang, o chefe dos serviços de cirurgia da sua unidade. Winter inclinou-se um pouco, para lhe observar melhor o rosto, na altura em que o major a impelia num pomposo rodopio. Durante alguns segundos, sentiu vontade de ir tomar o lugar do chefe. O Dr. Strang era partidário duma disciplina rígida, no estilo da velha escola, com toda a superficial verbosidade da nova. Já mais de uma vez os dois tinham estado em conflito em questões de técnica cirúrgica. Seria, evidentemente, de péssima política, enfrentar Strang num terreno tão diferente, mas seria ao mesmo tempo bastante divertido... Rick ia já avançar, mas ouviu gritar o seu nome no outro extremo da sala, e renunciou à garotice. Era o coronel Amos Elaine, o paxá da unidade. Um Buda em grande uniforme e que ameaçava perigosamente estoirar as vestes com a sua gordura.

 

Na verdade, o coronel nunca fizera o menor esforço para adquirir uma linha aerodinâmica com vistas à Segunda Guerra Mundial, de cuja engrenagem era no entanto peça importante. A sua semelhança com Buda, adquirira-a no Oriente, após um ataque de icterícia. A última condecoração ganhara-a em Saint-Mihiel. A sua barriga devia-a a uma poltrona de governador. Oficial de reserva do exército regular, fora chamado de novo às fileiras para comandar aquela unidade médica.

 

A experiência ensinara Rick que o olhar plácido do coronel Blaine não ocultava fraqueza. Se o homem era de agradável convívio, possuía no entanto sob essa afabilidade uma segurança, uma decisão de ferro. Nos últimos meses, pusera a 95.a Companhia de Saúde nas condições devidas, com o máximo de eficiência e o mínimo de snafu’.

 

Toda a sua gente estava preparada para o embarque e o moral era perfeito. O seu estado-maior, à altura de todas as exigências da medicina moderna, não se limitava a cumprir.

 

- Sente-se, Rick, e ponha em dia o meu ficheiro. Quem é aquela dama que o senhor volatilizou há pouco para o ar livre da varanda?

 

Rick mostrou a sua expressão mais impassível de jogador de póquer:

 

Calão militar: trapalhada resultante de ordens contraditórias. Formado pelas miciais dum comentário irónico: «Situation normal, all fuddled up.» «Situação normal, todos bêbedos.»


- É a enfermeira Rycroft, meu coronel. Passou a fazer parte do meu grupo. Notável aquisição para a unidade.

 

- Terei ocasião de verificar - admitiu Elaine. - No entanto, é meu dever lembrar-lhe que, segundo o Regulamento

35-1440 do Exército, se arranja sarilhos, pode resultar daí uma perda séria de soldo.

 

- Recebeu alguma queixa, coronel? Amos foi sacudido pelo riso:

 

- Isso não! Pelo contrário. Mas não dê má reputação ao Exército. - E arredando da sua frente, na comprida mesa cheia de refrescos, um caos de copos vazios, acrescentou: - Sente-se aí ao lado de Miss Adams. Ela anda a dançar neste momento com Strang, mas deseja conhecê-lo.

 

O capitão Winter instalou-se na cadeira, com um sorriso irónico. Como lamentava agora não ter cedido pouco antes à tentação ! Mas a verdade é que esperara tanto tempo por poder apreciar Linda Adams, que não lhe custava aguardar com calma mais alguns minutos.

 

- Sentir-se-á um homem importante, Rick, se lhe disser que de ora em diante ela vai registar todos os nossos feitos?

 

- Posso dominar perfeitamente o meu entusiasmo, coronel. E essa história de o senhor nos ir proporcionar amanhã um passeio no mar, é verdadeira ou somente verosímil?

 

- Seja prudente, meu amigo. Por certo nem o próprio Quartel-General da divisão o sabe. Os bilhetes de viagem chegam por correio especial nestes tempos e vêm directamente de Washington.

 

- Estou convencido de que amanhã recebemos ordem de marcha. E agora que essa jornalista chegou, o meu convencimento é maior ainda.

 

- Como e porquê?

 

- Acredita que o editor dum jornal despachava uma Linda Adams para um simples campo de embarque se não houvesse qualquer coisa de importante no ar? - Winter estendeu a mão para apanhar um cigarro no outro lado da mesa e soltou um riso áspero. - Acredite-me, onde quer que aparecem jornalistas de primeira classe, soam logo os tambores da ofensiva. São uma espécie de corvos anunciadores de batalhas.

 

- Creia que lamento não estar vestida de negro - pronunciou uma voz feminina por cima da sua cabeça. - Corresponderia mais exactamente à sua comparação.

 

Rick levantou-se para oferecer uma cadeira à jovem. Atrás dela, imponente e maciço, de olhos semicerrados pela desconfiança, estava o major Randall Strang. O cirurgião-chefe era um dos médicos em voga na cidade de Boston quando foi forçado a meter a sua volumosa estatura num uniforme. Um cirurgião de palavra fácil e cortês, duma delicadeza extrema à cabeceira dos doentes ricos. Rick, no entanto, suspeitava que o pessoal da sua clínica o detestava tão cordialmente como agora o detestava toda a unidade. Mas não podia negar-se, nem mesmo discutir, a sua habilidade organizadora, a sua inabalável confiança. Rick pensou intimamente, e não pela primeira vez, que Strang se parecia de maneira curiosa a um touro bem alimentado e belicoso.

 

O major emitiu um ronco semelhante ao de um realejo manejado ao contrário:

 

- Não lhe parece que deve pedir desculpa?

 

- Absolutamente - respondeu Rick. - Miss Adams, considere retirada a palavra «corvo». Permita-me que a compare antes a um falcão. - E saudando-a, numa caricatura do aprumo gaulês, emendou: - Ou talvez melhor a um pombo-correio, portador dum ramo de optimismo.

 

Amos Elaine intrometeu uma exclamação:

 

- Não me digam que já se conhecem?!

 

- Há vários anos que sigo a carreira do capitão Winter explicou Linda. A sua voz era ligeiramente cortante, mas, à parte isso, a sua calma dir-se-ia intacta. - Agora que nos encontrámos, capitão, permita-me que lhe diga que valeu a pena esperar por si.

 

Rick replicou candidamente:

 

- Com a condição de me permitir que lhe devolva esse cumprimento .

 

A irmã de Terry pegou num cigarro, aceitou o lume que lhe oferecia Strang e retomou o diálogo:

 

- Foi uma pena, na verdade, que os nossos caminhos não se cruzassem em Espanha.

 

- Nunca supus que tivesse estado em Espanha, Winter admirou-se Strang. - De que lado combateu?

 

Linda esboçou um sorriso frio para Rick e não lhe deu tempo a responder:

 

- Não leu os nossos jornais nos últimos anos, major? O capitão trabalhou como cirurgião sob as ordens de Trueta.

 

- Um dos melhores médicos do mundo - acrescentou Winter.

 

- E não é horrível pensar que a maior parte dos homens que ele salvou apodrecem hoje por trás do arame farpado? - comentou Linda.

 

- Horrível, mas inevitável - opôs Rick.

 

O cirurgião-chefe, que conservava intacta, mesmo na Inglaterra, a sua pronúncia de Boston, julgou oportuno usá-la com a maior afectação:

 

- Verdadeiramente, meu caro, acha indispensável importar-se tanto com o que se passa hoje em Espanha? Não teremos agora muito melhor peixe para fritar?

 

- Fala como soldado ou como republicano?

 

- Falo como pessoa que pensa que a nossa tarefa é esmagar Hitler e voltarmos depois à nossa vida. Falo como homem prático e Deus sabe bem que não sou isolacionista!...

 

«Sim, somente Deus sabe o que és», pensou Rick. «E somente Deus será capaz de decifrar quais possam ser as tuas ideias sociais.»

 

- Admite que a América terá, uma vez terminada a guerra, um dever internacional a cumprir? - perguntou-lhe.

 

- Pois certamente, capitão. Creio numa Liga das Nações, se for possível filiarmo-nos nela sem por em perigo a nossa integridade nacional.

 

- Isso significa que amaria a paz se a pudesse adquirir sem esforço?

 

- Quero apenas dizer que a Europa, segundo todas as probabilidades, se balcanizará depois desta guerra, apesar dos nossos melhores esforços. E não desejo ver o meu Governo transformado em agente de polícia, com a missão de impor a democracia, à espadeirada, aos países atrasados. Creio que a América pode manter intacta a sua própria democracia, tratar dos seus negócios e prosperar ainda por cima.

 

Winter riu às gargalhadas; sabia bem quanto Strang se irritava ao ouvir um riso sonoro.

 

- E as quatro liberdades? E o século do homem da rua? E o leite gratuito para os hotentotes?

 

Desta vez sim, aquela discussão parecia agradar a Strang. Lançou a massa considerável do seu corpanzil contra a mesa, e depois duma breve pausa para dedicar a Linda um sorriso desconcertante, argumentou:

 

Aplique a sua inteligência, Winter. Como podem as quatro

 

liberdades, ou qualquer liberdade genuína, subsistir na política egoísta, «Eu acima de tudo», que sucede inevitavelmente a um armistício? Tome a Espanha como exemplo, uma vez que a conhece . Combateu lá, lembra-se desse povo. Deve reconhecer que Franco, ou qualquer outro do seu género, há-de infalivelmente dirigi-lo até ao dia do Juízo.

 

- Tudo é possível, major. Mas sejamos científicos a esse respeito. Procuremos compreender o que torna possível os Francos. Ataquemos as causas, não os efeitos. Falou há momentos em esmagar Hitler. Não esqueça que ele é o mais monstruoso efeito que até agora produziu este mundo doente. Um Napoleão de opereta, com miolos de quiromante, um paranóico nascido da cupidez, um fruto do desapontamento...

 

Strang teve um sorriso irónico:

 

- Não o sabia tão eloquente, Winter.

 

Rick estava lançado e continuou. O que o regozijava muito particularmente era ver o rubor que principiara a invadir o colo encantador de Linda Adams e ameaçava atingir as suas não menos encantadoras orelhas.

 

- A Espanha serve-me à maravilha para exemplo. Os germes da guerra abundavam lá muito antes de terem produzido Franco. O germe, de múltiplas cabeças como a hidra, da corrupção, da pobreza, da apatia social. Não vê que essa mesma semente começa a proliferar entre nós? Que, apesar de toda a nossa força, nos há-de destruir, a não ser que consigamos matá-la em devido tempo? A não ser que compreendamos enfim que nenhuma democracia pode dar-se ao luxo de fazer uma guerra em cada geração, desarmar nos intervalos e apesar de tudo subsistir?

 

Rick pronunciara a última frase num fôlego. Ao terminá-la, inclinou o busto uma vez mais para Linda e concluiu:

 

- E não me chame outra vez eloquente, major. Limitei-me a reproduzir de memória um artigo recente de Miss Adams. Se o quer ler todo, consulte a colecção do Record.

 

Linda perguntou então, sem embaraço aparente:

 

- E concorda com as minhas opiniões?

 

- Duma ponta à outra e convictamente - volveu Rick. Concordo também com os dez mandamentos. Mas como pode fazê-los adoptar por toda a gente?

 

A jornalista replicou:

 

- Dêem-me um século de paz; dêem-me um povo instruído, educado, que não conheça nem a fome nem o medo... Dêem-me alguns homens de valor na Casa Branca, em Downing Street,, no Kremlin... E os vossos netos hão-de conhecer um mundo melhor...

 

- A única pequena dificuldade consiste precisamente em poder dar-lhe todos esses pequenos nadas - declarou Rick sorridente. - Mas isso não tem importância! Está concedido! Concedido, senhores, à bela dama vestida de branco. Uma utopia no vinha em folha, cheia a mais não poder de tolerância e de fraternidade humana! Um canto do mundo onde o leão, sentado ao pé do cordeiro, se entretém com ele a traçar o plano da sociedade futura!

 

O coronel, porém, observou:

 

- Seja como for e apesar de tudo, o mundo marcha. Não sente isso, Rick? Oiça esta valsa que a orquestra está a tocar, é a Wienerblut. Na última guerra, seriam julgados em tribunal militar os músicos que a tocassem. Hoje o senhor dança ao som dos seus acordes...

 

- Talvez seja essa uma das nossas fraquezas - opôs Winter.

- Talvez sejamos demasiado sentimentais e demasiado lestos a esquecer o passado.

 

Linda interveio:

 

- Qual é o seu antídoto, capitão? Uma orgia de ódio?

 

- De maneira nenhuma. Mas devo observar que o ódio, dentro de certos limites, é um estimulante para o espírito. E não estou muito certo de que, mesmo agora, odiemos suficientemente os nossos inimigos para os esmagarmos duma forma radical. O nosso ódio verdadeiro anda muito misturado com o medo para poder ser eficaz; como, por exemplo, o Senado detesta a Casa Branca, os agricultores detestam os banqueiros, e os banqueiros a Rússia...

 

- Têm para isso excelentes razões - interrompeu Strang. «Parece que se picou», pensou Rick.

 

- De acordo, major. Mas então porque não temos a coragem de levar as coisas até ao fim e não detestamos todos os nossos aliados? Isso, ao menos, seria uma coisa positiva. Isso, ao menos, teria a vantagem, para si e para mim, de nos conservar em uniforme até ao final da vida... Se quer a minha opinião, valeria muito mais do que voltarmos para os nossos dividendos e as nossas garagens de dois automóveis.

 

Strang gritou o seu protesto:

 

- Defende os comunistas?

 

- Claro que não! - respondeu Rick. - Também pertenço à classe dos dividendos. E desejo que esses cheques continuem a chegar na altura devida. Mas na verdade gostava de fazer uma pequena ideia do que poderei comprar com eles daqui a alguns anos. Por isso preferia pagar hoje pesados impostos, e mesmo durante dez anos, se fossem precisos dez anos para matar o último cão danado.

 

- Os americanos nunca lançariam uma lei desse género!

 

- Tanto pior! Não adquirirá por menor preço a utopia de Miss Adams. - E voltando-se para Amos Blaine: - Estou dentro da razão, coronel? Ou mereço ser julgado em Conselho de Guerra?

 

Mas o velho Amos limitou-se a soltar uma pequena risada:

 

- Creio que o melhor que tem a fazer é ir dançar com Miss Adams, se ela desejar, bem entendido.

 

Linda ergueu-se graciosamente e todo o auditório lhe prestou a máxima atenção.

 

- Ordem de serviço, capitão. Não temos outra alternativa.

 

Leve como uma pena, Linda Adams era ainda mais agradável quando se tinha nos braços.

 

Rick rompeu numa série de rodopios artísticos, rápidos, complicados, e ela não deixou uma única vez de acompanhar o seu ritmo. O capitão ficou encantado por descobrir que um membro do «quarto estado» era capaz dum tal virtuosismo. E mais encantado ficou ainda ao sentir o corpo da jovem bem unido ao seu, num contacto perturbador.

 

- Responda à minha pergunta - disse Linda, passado um momento. - Em que acredita?

 

- Já lho disse: um ódio canalizado, um grande exército e nada de ilusões.

 

- No entanto, não é mais militarista do que eu. E não seria tão bom cirurgião se não acreditasse no seu semelhante.

 

- Quem lhe disse que sou bom cirurgião?

 

- Esquece-se que em mil novecentos e trinta e sete entrevistei Trueta? Infelizmente - acrescentou, lançando-lhe um rápido olhar - estava de licença nessa altura. Mas todo o seu grupo teve tempo de sobra para me explicar quanto o estimavam. Tudo muito espanhol e muito eloquente. - Linda dirigiu-lhe um novo sorriso afável e concluiu: - Ou terei também de lhe recordar os nossos amigos comuns de Londres e de Paris?

 

- Agora é a sua vez, Miss Adams, de me responder. Como conseguiu galgar, profissionalmente, tanto caminho em tão poucos anos?

 

- Isso também eu pergunto frequentemente a mim própria.

- Era uma resposta simples, sincera, sem presunção. - Talvez eu seja o produto lógico do avião e da rádio. Não concorda?

 

- Creio sinceramente que veio ao mundo e foi criada para muito melhor uso.

 

- Qual?

 

- Por exemplo, dançar... - E arrastou-a numa nova série de rodopios que deixou os dois um pouco ofegantes. - Porque não goza as alegrias desta vida enquanto é tempo? Porque não é suficientemente sincera e não reconhece que este mundo vai por água abaixo apesar de todas as suas preces?

 

- Mesmo se ganharmos a guerra?

 

- Mesmo assim. - E como ela o olhasse, um pouco desconcertada: - Vencedores, vencidos, ou empatados! - insistiu Rick, num tom alegre.

 

- Mesmo que eu consiga o meu século de paz?

 

- Isso, então, era uma desgraça para nós os dois. Pense bem o que seríamos se o mundo abrisse os olhos e se curasse sozinho. A senhora uma redactora de artigos de fundo sem cruzada para pregar. Eu, um cirurgião com bisturi ferrugento por falta de uso. Que horror! Evidentemente - acrescentou, rindo à gargalhada - eu podia tornar-me veterinário e você fazer as reportagens dos atropelamentos dos cães. Seria uma forma, como qualquer outra, de nos aproximarmos.

 

- Talvez não me desagradasse. E já que falou em reportagens, quero começar imediatamente. Vai dar-me a primeira entrevista.

 

Linda sentiu-o contrair-se e tanto que tropeçaram um no outro.

 

- Não a desencorajei ainda o bastante?

 

- Mesmo no início da minha carreira, eu já possuía a teimosia dum buldogue para descobrir uma história e não a largar. E o senhor tem uma história, com certeza. O homem que voltou de Espanha e de Dunquerque sem nenhuma finalidade na vida, e que no entanto ama a vida. O filósofo que aconselha os jovens maridos modelos a esquecer as esposas e a fruir o amor onde, quando e como as circunstâncias o proporcionem.

 

Rick observou-a um momento de silêncio. Depois disse:

 

Tinha esquecido que é irmã de Terry. Pelos vistos, ele não esperou muito tempo para lhe fazer confidências.

 

Creio que ele seguirá o meu conselho e não o seu.

 

Que quer dizer?

 

Há pouco citou os dez mandamentos. Pois recomendei ao meu irmão que não esquecesse o sexto, pelo menos.

 

- Portanto, é uma optimista tanto em política como em moral? Oiça-me, por favor.

 

- Sou toda ouvidos, capitão.

 

- Tem-se esfalfado há um bom par de anos a correr Ceca e Meca, em tarefas próprias da sua profissão. Com certeza não passou todo esse tempo metida nos grandes hotéis. E, assim, foi obrigada a descobrir que a política é «uma matilha de lobos a devorarem-se uns aos outros», e não se modificará enquanto o mundo for mundo; que a guerra é o inferno, e não deixará de o ser, que gera novas guerras e nunca utopias. Quanto aos homens nos quartéis, celibatários ou casados... bem, deve lembrar-se de Kipling...

 

Marcara primorosamente o compasso da sua tirada fazendo girar Linda como um pião em direcção à varanda. Quando ambos passaram pelas pesadas cortinas que impediam as luzes da sala de se filtrarem para o exterior, os pés da jovem continuaram a acompanhar, com exactidão, a cadência da dança. Rick ainda teve tempo de ver, antes da obscuridade lhe desvanecer por completo o rosto, os seus olhos chamejarem de furor.

 

- Obrigada, capitão, por ter completado a minha educação.

 

- Não está ainda completa - afirmou Winter.

 

E o seu beijo não teve nada de terno, nada de gracioso. Simplesmente se apossou dos seus lábios e os reteve, da mesma forma que as suas mãos lhe seguravam os ombros e os apertavam, como tenazes. Ela libertou-se do amplexo com a carne em fogo.

 

- É a primeira lição?

 

- Por hoje basta. A aula terminou.

 

Mas já de cabeça erguida, andar arrogante, Linda o deixava. A sua saída da varanda foi demasiado orgulhosa para poder considerar-se uma fuga. Mas o resultado era o mesmo. A jovem atravessou a sala de dança, entrou no vestiário, abriu a malinha de mão e pegou de novo no papel e no lápis.

 

Prometera, para Nova Iorque, na sequência dos seus artigos de fundo quotidianos, o envio duma história para o número de domingo. O momento era bem escolhido para principiar «O Meu Primeiro Dia Num Acampamento de Embarque». O editor aguardava um relato sensacional, recheado de anedotas, sugestões para desenhos à margem, em que Linda Adams era exímia.

 

Desta vez, ao contrário do que esperava, as palavras não lhe ocorriam. Fechou os olhos e invocou a musa dos jornalistas. Mas a musa permaneceu surda ao apelo. Em vez dela, a imagem de Rick Winter e do seu sorriso trocista invadia-lhe por completo o espírito, e também a insistente sensação duns lábios sobre a sua boca.

 

Fora por puritanismo que se furtara àquele beijo? Não teria sido preferível «deixá-lo avançar» um pouco, quanto mais não fosse para saber até onde podia ir um lobo fardado de capitão?

 

De súbito, fechou o bloco e recambiou-o para dentro da mala. Sem qualquer razão aparente, atirou o lápis para o outro extremo do vestiário. A orquestra tocava uma conga. Linda Adams voltou à sala de baile. Não conseguiu, no entanto, chegar até junto da sua mesa. Um tenente-coronel, duma outra unidade médica, arrastou-a consigo. Era um dos melhores diagnosticadores da América e a sua arte de dançar estava bem à altura da sua competência profissional. Como o seu novo cavaleiro a passeasse ao longo da extensa fila de homens, naquele momento simples espectadores em busca de par, Linda observava-os a um e um, ao passar, na esperança de poder desafiar com os olhos certo capitão em emboscada. Mas Rick não estava visível em parte alguma. E foi um major de engenharia que a arrebatou ao seu tenente-coronel, começando a iniciá-la, ao som da música, na técnica da aplicação de máscaras contra os gases nos animais de tiro.

 

«Enfim!», pensou a jovem. «A sorte sorri-me. Já tenho o meu artigo, mesmo que me falte a calma necessária para o escrever agora...»

 

Sentado no parapeito da varanda, o capitão Richard Winter balouçava maquinalmente os calcanhares no vazio, enquanto ia reflectindo no próximo movimento a executar na partida de xadrez em que figuravam como peões aquelas jovens diferentes mas igualmente sedutoras. Isso não constituía, porém, tarefa fastidiosa para um apaixonado jogador como ele.

 

Rick não era homem que lamentasse qualquer impulso; e agora que a pedra fora jogada, estava mais divertido do que vexado com a fuga de Linda. Era-lhe mesmo bastante agradável saber que não se enganara no seu julgamento. Uma virgem, tinha a certeza,

 

apesar de todo o seu brilho mundano. Ignorante como uma escolar, não obstante todos os seus contratos na imprensa e na rádio.

 

No entanto, havia miolos por trás daquele bonito rosto. E as mulheres com miolos tinham ocupado até então lugar muito limitado na vida do capitão Winter. Ficou um pouco irritado ao admiti-lo, mas não podia duvidar: por mais absurdamente optimistas que fossem as opiniões políticas daquela jovem, essas opiniões eram muito suas e não um amontoado de frases ouvidas algures. Tal descoberta pedia um antídoto imediato.

 

Caminhou ao longo da varanda, ignorando os pares enlaçados no escuro e por eles igualmente ignorado. Quando chegou ao bar, encontrou-o repleto de oficiais a conversarem em várias línguas: a cadência monótona do francês, o rebarbativo holandês, e mesmo o sedoso tagarelar do chinês... Como esperava, Gina Cole, flor deslumbrante e apetitosa no meio duma floresta de caquis, espargia por todos e a cada um a luz e o calor dum sorriso cuja força natural era considerável. Gina deu logo pela sua presença e ele, ao reparar nisso, dispôs-se a jogar a sorte até ao fim.

 

Abrindo caminho por entre os colegas, aproximou-se da capitosa jovem e pegou-lhe na mão. Carolyn fora o prólogo do drama, o último acto estava ali, preparado e pronto, para uma apoteose final. Há semanas que se entretinha a construí-lo, com um «continua amanhã» sempre que baixava o pano. Chegara desta vez a hora de concluir.

 

- Não é agora a minha dança, Miss Cole?

 

Gina entregou ao empregado o copo vazio e com uma palavra e um sorriso pediu desculpa aos seus admiradores. Não se mostrou muito impressionada ao entregar-se nos braços de Rick, para ele a conduzir no ritmo saltitante da conga. Tudo aquilo parecia bastante inocente, mas Winter naquele instante sentia-se bem senhor da presa, e de tal maneira que não se apressou, como bom jogador de xadrez.

 

- Há muito tempo que não nos víamos, capitão! - disse Gina.

 

- Há cinco dias, para ser bem exacto.

 

Rick notou que o rigor da sua memória produzira bom efeito. Tinham-se encontrado em Londres, por mero acaso, e jantado juntos, e bebido champanhe. Mais tarde dançaram num clube de Regent Street, guarnecido com sacos de areia. Depois, acompanhara-a à Victoria Station, certo de que, se lho pedisse, ela teria prolongado por sua conta a licença, para passar com ele o fim-de-semana. Mas limitara-se a dar-lhe um beijo de despedida à entrada da carruagem.

 

- Estou encantado por ver que sobreviveu à viagem - murmurou Rick.

 

Gina não respondeu, mas encostou mais o rosto ao dele.

 

- Oito lances e xeque-mate - sussurrou Winter.

 

- O que diz?

 

- Não faça caso, por favor. Estou a pensar muito em voz alta esta noite. Pensar é o pior entretenimento do mundo, depois do beber. Quer vir um momento lá para fora?

 

- Para quê?

 

- Para fumar um cigarro, por exemplo. Ou talvez... para uma surpresa...

 

- Combinado. Adoro as surpresas, desde que sejam de boa qualidade. Vou buscar a minha capa ao vestiário.

 

Durante alguns minutos seguiram o carreiro de pranchas que marginava o clube, num silêncio pleno de significado. Depois Gina parou. O seu demorado calafrio foi uma obra-prima do género. Rick não soube ao certo se era verdadeiro ou admiravelmente fingido.

 

- Está muito frio para si cá fora, não é verdade?

 

- Bastante, de facto. Não acha melhor irmos para a sala de jogos? Poderá lá fumar, se quiser.

 

- Vamos então.

 

Rick deixou-se conduzir. Agora eram dois a jogar, e o capitão tinha em Gina um parceiro tão experiente como ele. A porta da sala estava entreaberta. Lá dentro, escuro como breu, apenas se distinguiam, ao longo das paredes, no sítio dos sofás, os pontos luminosos dos cigarros que perfuravam a obscuridade.

 

- Este local não lhe parece exageradamente público? - perguntou Rick.

 

- Há uma galeria lá ao fundo. Não se afaste de mim, conheço o caminho.

 

A facilidade com que ela evolucionava no meio dos obstáculos invisíveis, mesas de brídege e de pingue-pongue, testemunhava bem a sua experiência; sem dúvida já não era a primeira vez que procurava refúgio nessa angra de paz, sem auxílio de luz. A galeria estava vazia, de persianas abertas para a noite estrelada.

 

Sem mais preâmbulos, Rick agarrou a jovem pelo cotovelo, fê-la dar meia volta e, atraindo-a a si, beijou-a. Levemente ao princípio, como mandava a boa táctica.

 

- Quem lhe permitiu isso?

 

- Continue - murmurou Rick. - Contrarie-me um bocadinho, se isso lhe agrada. Gosto de ser contrariado, com moderação.

 

Ela fingiu uma surpresa irónica:

 

- Dir-se-ia muito seguro de si...

 

- Seguro de saber ler no seu espírito, nada mais. Posso fazer a demonstração?

 

- Se for capaz...

 

- Vai empregar amáveis artifícios para me manter à distância durante mais algum tempo. Admitamos, cinco minutos, o máximo. Depois, permitir-me-á, digamos, que lhe faça a corte. Preciso também explicar porquê?

 

- Nunca ouvi ninguém tão insolente... Mas Rick destruiu logo a interrupção:

 

- Nós somos da mesma força, sabe-o bem. Sabemos o que queremos e não gostamos de perder tempo para o obter. Há cinco noites, desde que a acompanhei ao comboio, que desejo tê-la nos meus braços, que desejo amá-la e ser amado.

 

Procurou unir o gesto à palavra, mas Gina não correspondeu.

 

- E se eu não desejar isso que deseja?

 

- Mas, justamente, deseja-o também.

 

- Um pouco, não digo que não - ciciou ela, sorrindo.

 

Rick beijou-a violentamente na boca. Os lábios dela não cederam logo. Passados instantes moveram-se ligeiramente, como se esboçassem um sorriso de troça. No entanto, também não opunham resistência e Winter continuou a acariciá-la, sem insistir demasiado.

 

- Basta assim? - perguntou-lhe, algum tempo depois. Desta vez foram os lábios de Gina que procuraram os dele;

 

estavam húmidos e entreabertos... As mãos do homem eram hábeis e atrevidas, mas a jovem debateu-se e furtou-se à carícia.

 

- Não, Rick!

 

- Porquê?

 

- Aqui não.

 

- Estamos sós.

 

- Aqui não, já disse. É muito arriscado.

 

- Então onde?

 

- Não. Não deve perguntar isso!

 

- Onde, Gina?

 

- Não sei.

 

- Quando pode saber?

 

Lilith devia rir como ela, pensou Rick. Um riso baixo e profundo, da garganta, que lhe punha em desordem o sangue nas veias, fazendo-o bater violentamente nas têmporas. Tomou-a novamente nos braços, para a beijar uma vez mais. Xeque à rainha... sem demora...

 

- Esta noite - disse Gina Cole. - Depois do baile.

 

- Esperá-la-ei perto do lar das enfermeiras.

 

Ela dir-se-ia discutir a hora duma partida de ténis quando respondeu, numa voz absolutamente calma:

 

- E depois, para onde vamos?

 

- Tenho um quarto na cidade. Os donos da casa encontram-se em férias.

 

- É engraçado, não haj a dúvida, e o seu camarada de quarto ?

 

- Bill Coffin? Também por esse lado não há novidade. Está de serviço esta noite.

 

- De facto, pensa em tudo...

 

- Será pouco romântico para lhe poder agradar?

 

Rick tentou agarrá-la de novo, mas ela escapou-se-lhe agilmente. No entanto, ao tornarem a atravessar a escura sala de jogos, os dedos da jovem in traduziram-se, para um cálido aperto, nas suas mãos. Ainda desta vez ele lhe permitia dirigir o jogo à vontade. Nem ao próprio Casanova se exigiria uma entrega mais perfeita.

 

À entrada do vestíbulo, Gina parou:

 

- Preciso de ir ao vestiário. Devo ter o aspecto de quem foi muito e bem beijada e não é indispensável que isso se torne notório aos olhos mais cândidos.

 

- Posso esperar?

 

- É preferível não esperar. Não se esqueça que anda por aí, algures - e dizendo isto fez um gesto vago na direcção da sala de dança -, um cavaleiro de escolta. E se nos visse juntos...

 

Rick deu dois passos atrás e despediu-se com uma ironia:

 

- Assim, até à meia-noite, deixa-me completamente entregue a mim próprio?

 

- Procure não se aborrecer muito - respondeu Gina, imitando à maravilha as inflexões de Rick.

 

- Como posso ter a certeza de que não falta ao encontro?

 

- Precisa de ter a certeza de tudo?

 

Gina dirigiu-se para o vestiário e ele ja não tentou retê-la. Com a mão na maçaneta da porta, foi ela que se voltou e, com grande surpresa, Rick viu-lhe os olhos húmidos de emoção, a primeira emoção real que ela manifestava na sua frente, apesar de todo o seu abandono, momentos antes, na galeria.

 

- Diga-se uma coisa, Rick. Como é que um tipo da sua espécie pode ser solitário? E solitário ao ponto de atormentar quem quer que use saias?

 

Mas o tom de Rick não mudou, embora pensasse para si que aquilo era ir demasiado longe, muito longe mesmo para um simples jogo:

 

- Quem lhe disse que eu era solitário?

 

- Não é essa a única razão que o leva a marcar-me uma entrevista?

 

- Pode imaginar outra melhor?

 

O clarão de emoção extinguira-se. Gina estirou voluptuosamente o corpo, num gesto que lhe valorizava admiravelmente todas as curvas:

 

- Ganhou a partida. À meia-noite, portanto, se até lá não mudar de ideias.

 

Desta vez já não se voltou e a porta do vestiário fechou-se atrás dela.

 

Durante alguns instantes, Rick permaneceu sozinho em frente do recinto de dança. Não esperava por Gina, conhecia-a perfeitamente. Pensou primeiro em ir roubar Linda Adams ao seu par, quanto mais não fosse para ver a sua reacção, mas Linda não estava visível. Carolyn Ry croft também não. O baile continuava animado e a conga obtinha incontestável êxito: a farândola estirava-se, arrastando sem cessar, nas suas dobras e ondulações, novos convertidos, qual imensa serpente multicor que girasse, se inclinasse em curiosas e pequenas reverências, deslizando pela sala como que hipnotizada pelo rufo dos tambores.

 

Bruscamente, Rick voltou as costas ao espectáculo e à música, tirou de passagem o boné do cabide, e atravessando o átrio num passo rápido, saiu para o ar livre, sob um céu constelado de estrelas. Naquela noite já tinha brincado suficientemente com emoções que não sentia.

 

Uma vez transposta a entrada do acampamento, tomou a direcção das ruas da cidade, parando um instante para examinar os seus pensamentos e orientar-se. Segundo toda a verosimilhança, Gina esperá-lo-ia à meia-noite à porta do lar das enfermeiras, fruto maduro pronto para ser colhido. Ou então podia recapturar Carolyn Rycroft e continuar com ela a partida iniciada, até à sua conclusão, fácil de calcular. Podia também ir em demanda de Linda Adams, para um segundo duelo ideológico. No entanto, cada passo andado afastava-o mais dessas aliciantes perspectivas , sem despertar nele a vontade de voltar atrás. Por ora, sentia o desejo adormecido dentro de si. Não precisava de nada: nem comida, nem álcool, nem amor, nem sono.

 

Quando o invadira aquele torpor? É claro que não tinha a mínima disposição para uma neurose. O seu trabalho ocupava-o, duma forma plenamente satisfatória, longas horas por dia. Fisicamente, gozava de excelente saúde, atleta magro e rijo que adaptara o corpo à rotina do tempo de guerra. As noites, é certo, não as passava tão bem. Não podia continuar assim, a matutar sozinho diante do álcool de que nem sequer gostava, ou a fazer uma corte superficial a jovens que lhe excitavam o sangue mas não o coração. Se uma mulher tão leviana como Gina Cole podia perfurar a sua armadura e descobrir o vazio e a solidão da sua alma, então os sintomas deviam...

 

De repente, a calma noite de veludo foi rasgada ao meio, traspassada por um longo e fantasmal gemido. Logo a seguir, respondendo a esse sinal, a fraca claridade azulada dos candeeiros tremeluziu e por toda a parte e ao mesmo tempo se extinguiu. Rick parou um momento, procurando descobrir qualquer ponto de referência no negrume total. Pouco a pouco, as suas pupilas dilatadas reconheceram o Royal George, de janelas totalmente fechadas, silencioso, pois já passava da hora do encerramento obrigatório. Mais adiante, na esquina da rua seguinte, os vultos imponentes do Railway Arms e da igreja normanda, atarracada mas altiva como a própria Inglaterra em face daquela ameaça de morte vinda do céu.

 

Dois quarteirões mais além esperava-o o quarto que partilhava com Bill Coffin. Já calcorreara bastantes vezes aquele caminho para o poder percorrer às cegas. Além disso, não havia nenhuma necessidade de se precipitar. Aquela cidade não sofrera nem um só ataque aéreo nos últimos dias. E Jerry, sem dúvida, estava nesse momento bastante ocupado para proteger Colónia, Essen e a base de submarinos de Lorient. Naturalmente alguns bombardeiros tinham conseguido escapar às baterias antiaéreas do Norte e logo fora posto a funcionar o sistema de alarme que cingia Londres até ali, a ocidente.

 

Foi andando devagar, enquanto procurava, no fundo da algibeira, o cigarro que acenderia assim que se encontrasse entre as suas quatro paredes. Por cima do acantonamento, os compridos dedos dos projectores tacteavam cuidadosamente o céu. Lá muito em cima, em pleno zénite, cruzaram-se dois fusos luminosos, enquadrando uma móbil mancha prateada. Rick perguntou a si próprio se seria um Spitfire procurando atingir a cauda negra dum Messerschmitt. Mas a trajectória luminosa dos projécteis e o rápido matraquear dos canhões antiaéreos forneceram-lhe a resposta: lá em cima, talvez a uma milha do solo, um piloto inimigo fugia para a sua base. Levava informações suficientes para enviar em seguida uma esquadrilha suicida, decidida a procurar alvos no acampamento americano.

 

De olhos ainda fixos na cúpula opaca do céu, ouviu, não muito longe, um rápido tamborilar de saltos no passeio. Alguém avançava, às cegas, na sua direcção. O ruído cessou e ouviu um grito, mais de pavor do que de sofrimento.

 

- Ande devagar! - gritou-lhe. - Eu estou aqui.

 

O tamborilar acelerou-se numa série de passos rápidos e um vulto veio esbarrar com ele, mas não muito violentamente. Estendeu os braços para reter e amparar essa forma humana saída das trevas e reparou que abraçava mais uma vez uma mulher vestida de branco... Uma mulher embuçada até aos olhos num xaile ou numa capa que cobria mesmo os cabelos. Mal pôde tocar-lhe para adivinhar a contextura do vestido de noite ou a forma do seu rosto, pois ela agarrava-se-lhe com desespero.

 

- Esteja tranquila! - disse-lhe. - Tenha calma! Isto é apenas um alarme. Já ouviu bombas?

 

A noite, ainda desta vez, se encarregou da resposta, e a desconhecida escondeu o rosto no ombro de Rick quando um estrondo pagão e selvagem sacudiu a atmosfera com a sua mensagem de

 

Expressão depreciativa da gíria americana para designar o alemão, correspondente ao francês boche, que desde a Primeira Guerra Mundial entrou na nossa língua.

 

destruição, qual murro violento vibrado na terra pelo punho dum gigante furioso. O pavimento da rua onde estavam todo ele estremeceu. Na direcção do norte, pouco para lá do acampamento, o céu iluminou-se de reflexos vermelhos.

 

Rick inclinou-se, tentanto descobrir o rosto da jovem, para lhe acalmar o pânico, mas ela colava-se cada vez mais ao seu ombro.

 

«Tenho de a levar para qualquer parte», pensou Winter, enquanto a arrastava para debaixo da arcada da cervejaria, que oferecia relativo abrigo.

 

Mas já um fuso de luz azulada furava o escuro na sua direcção. Um A.R.P.’, com o seu capacete branco e a inevitável gabardina britânica, caminhava tranquilamente ao seu encontro.

 

- Quem está aí? - O seu tom abrandou ao descobrir as divisas no uniforme de Rick. - Queira desculpar, meu capitão, mas será melhor levar a dama para o abrigo. Jerry parece querer começar a sério esta noite, não acha?

 

- Há algum abrigo aqui perto?

 

- O mais próximo fica distante uns cinco quarteirões. O melhor é enfiar para dentro duma casa e ficar lá muito sossegado. Isto pode durar uma hora, bem sabe. Ou mais. Nunca se pode dizer ao certo.

 

- Eu moro logo adiante deste quarteirão. Pode ajudar-me a chegar lá?

 

- De acordo, capitão. Indique-me o caminho.

 

Guiados pela pálida claridade da lâmpada do homem da defesa passiva, Rick semiamparando e semitransportando a companheira, atingiram uma casa meio isolada ao fundo da rua estreita. O guardião deixou-os em frente da porta e com uma alegre saudação desapareceu no escuro.

 

Explodiu outra bomba. Um pouco mais perto desta vez. Mas não tanto que fizesse saltar o coração. Sacudida, a maçaneta da porta tilintou.

 

- Quer entrar comigo?

 

A desconhecida abanou freneticamente a cabeça. Mesmo quando ele a impeliu para o interior e fechou a porta atrás de si, ela manteve o rosto afundado no seu ombro.

 

- Não se aproxime da janela, vou forrar bem os vidros. Deixou-a perto do leito de colunas que atravancava por completo o pequeno quarto. Mas enquanto Rick se esforçava por tirar

 

Air Raid Precaution - defesa passiva.

 

os cobertores, ela precipitou-se loucamente para ele e agarrou-lhe na manga do uniforme.

 

- Sou louca por me conduzir assim?

 

A sua voz era ofegante, esbaforida pelo pânico. Podia ser a voz de quem quer que fosse, deformada pela mais primitiva das emoções. Seria alguém do seu conhecimento? Uma mulher que, mesmo naquele instante, não queria revelar a sua identidade? Tê-lo-ia seguido desde o clube? Não havia outra explicação para o facto de trazer um vestido de noite, em tempo de guerra e numa cidade tão pequena.

 

- Sou louca, capitão?

 

A desconhecida não empregara o seu nome. Apenas a patente, que as divisas lhe haviam podido revelar, tal como ao A.R.P. Não era impossível, em suma, que estivesse enganado ao supor que ela o conhecia. Então? Então... simplesmente um ser humano, mais um, arrebatado por uma crise de pânico, um ser humano aterrorizado e procurando às cegas, no escuro, qualquer mão amiga.

 

Rick abandonou as suas especulações e entregou-se ao trabalho de forrar hermeticamente a janela do lado do norte com uma espessura dupla de cobertores. Entretanto, a companheira continuava ainda agarrada à sua manga.

 

- Pelo menos - observou com bom humor-nada teremos a recear dos estilhaços dos vidros. A outra janela dá para a parede de tijolo duma garagem. A não ser que sejamos atingidos em cheio, depois do que, verosimilmente, já não havia mais problemas, estamos defendidos deste lado por uma protecção eficaz.

 

- E eles vão?...

 

A voz da jovem alongou-se num queixume que anunciava a crise de nervos. Todavia, Rick notou que ela lutava com quantas forças tinha para a dominar. Continuava embuçada na comprida capa que lhe cobria os cabelos como uma mantilha. Mas, coisa estranha, envolvia-a uma espécie de auréola, que revelava a sua beleza aos sentidos experientes de Rick. Havia nela fosse o que fosse, proveniente talvez da nobreza da sua atitude, mesmo nesses minutos de completa desordem, ou então da elegância da sua silhueta, ou da sua elevada estatura. Uma vez mais, Winter amaldiçoou os nazis que lhe atiravam para os braços presa tão capitosa e ao mesmo tempo o impediam de a abraçar, obrigando-o a consagrar-se unicamente ao indispensável labor de cuidar da protecção de ambos. Não podia sequer interromper esse trabalho para encetar o diálogo que lhe permitisse um pretexto decente de lhe perguntar ao menos o seu nome. Ouviu-a dar um passo para o meio do quarto.

- Cuidado! - avisou. - Há aí uma mesa. Um baque surdo no escuro; depois um grito. Rick correu a socorrê-la, passou-lhe um braço em volta do corpo, equilibrou-a contra a pesada mesa de carvalho onde se empilhavam os seus objectos de uso pessoal e os de Bill Coffin. Ao longe, o mesmo gigante furioso continuava a esmurrar a terra com os seus pesados punhos. A casa estremeceu, mas Rick, depois de forrar bem com cobertores a última janela, andava agora dum lado para o outro, com facilidade, no aposento familiar. A morte pairaria por cima das suas cabeças? Os Heinkels teriam localizado o acampamento? Não podia dizer ao certo, e a sua experiência de bombardeamentos não ia tão longe.

 

- Foi mais perto desta vez - soprou a desconhecida, num murmúrio. - Sempre que deixam cair uma bomba, é mais próximo do que a anterior...

 

Estava agora afundada numa poltrona, para onde Rick a conduzira, uma mancha branca no escuro. Com quem se pareceria aquela voz quando absolutamente normal? Era inglesa, sem dúvida. Dicção clara, um pouco líquida, mas a esse respeito não podia formular senão conjecturas. Que poderia perguntar-lhe sem parecer impertinente ou malcriado? Ela procurava evidentemente guardar o segredo da sua identidade. Rick ia abrir a boca para fazer uma pergunta qualquer, mas em lugar duma palavra foi um suspiro precipitado que se lhe escapou dos lábios, pois um choque brutal sacudiu nesse momento a rua inteira. Um som que não era apenas audível mas também sensível feriu-lhe ferozmente os tímpanos.

 

Decididamente, o trajecto das bombas desviava-se na sua direcção. A próxima bomba de Jerry traria o seu endereço? Esta ideia absurda provocou-lhe o riso e a jovem tomou-lhe ambas as mãos, apertando-as com um terror que nada tinha de fingido, testemunhavam-no bem o latejar precipitado das suas veias, os dedos frios e crispados. Rick falou o mais negligentemente que lhe foi possível, tentanto afastar o pensamento da jovem dessa bomba que cairia a seguir... A seguir... e sem demora... dum segundo para o outro...

 

- Curioso, estas situações inesperadas que surgem numa guerra... A senhora e eu, por exemplo...

 

- Sim?

 

A palavra significava tudo quanto se quisesse: uma pergunta, uma aquiescência, uma simples resposta de cortesia.

 

- Dois estranhos ao pé um do outro, reunidos por um ataque aéreo. Mais próximos, sendo desconhecidos, do que se fôssemos amigos íntimos. - E, dizendo isto, acariciou-lhe levemente o ombro. - Penso na ponte que estes bombardeiros lançaram entre nós. Se fôssemos ingleses, por exemplo... ou se a senhora o fosse...

 

Fez uma pausa, à espera duma reacção qualquer. Mas ela não disse nada, nem sequer se mexeu. Também não se afastou quando ele lhe passou um braço protector em volta dos ombros.

 

- Não teríamos mesmo ousado principiar uma conversação sem sermos apresentados e...

 

Mas não pôde concluir: lá muito em cima, no céu, um longo lamento aumentava de volume e de intensidade, canto de morte lançado por nova bomba que caía, advertência que só se ouvia demasiado tarde. Instintivamente, Rick reconheceu esse gemido: nunca o ouvira tão perto, nem mesmo em Espanha, e agindo por reflexos, lançou-se para cima da poltrona onde estava a jovem, afundando-a nas almofadas e cobrindo-a com o próprio corpo.

 

Quando finalmente o estrondo se produziu, dir-se-ia que o mesmo gigante os esmagava naquela poltrona, enquanto do tecto caía nos ombros e nas costas de Rick uma chuva de estuque. Algures no quarto, uma garrafa tombou e partiu-se: o seu último frasco de loção para a barba! O facto provocou-lhe uma pena incongruente. O silêncio que se seguiu foi apenas quebrado pelo dripe-dripe do líquido a cair no soalho, gota a gota.

 

Instintivamente, Winter aproximou-se, às apalpadelas, da janela do lado do norte, para verificar a extensão dos estragos. Espreitou para fora por entre as pesadas cortinas e viu que a bomba caíra, lá longe, em pleno campo. Um pequeno bosque em chamas, perto do ribeiro, assinalava o ponto atingido. Nem na cidade nem no acampamento se notavam sinais de qualquer devastação.

 

- Continua aí? - perguntou Rick de longe. E a sua voz pareceu-lhe estranha, ressoante e trémula. Era inútil esconder o medo: de um medo como aquele ninguém tinha de ter vergonha.

 

Arrastou a jovem para fora da poltrona, e como ela caísse de joelhos perto da mesa, deixou-a aí ficar. Depois, arrancou do leito o colchão e impeliu-o para debaixo da mesa, desenvolvendo uma energia frenética para o colocar confortavelmente sob o pesado tampo de carvalho. Com a mochila de Bill Coffin, o seu saco de dormir e a roupa dos dois, construiu um parapeito.

 

Lá de cima, descia novamente o gemido fantasmal, torturando-lhe uma vez mais os nervos.

 

Empurrou a jovem para debaixo da mesa e meteu-se em seguida na improvisada toca, protegendo-a de novo com o corpo, à espera da explosão. Foi menos violenta do que a anterior. O colchão amorteceu a maior parte das vibrações. O parapeito erguido nos três lados do abrigo absorveu o ruído. A bomba nem por isso deixara de cair perto, mas ainda desta vez apenas abrira uma inofensiva cratera no campo. O madeiramento da velha casa estalou. Dir-se-ia que lá fora uma escavadora a vapor, em maré de fantasia, alvejava a frontaria do prédio com uma saraivada de torrões de terra. Rick ouviu os vidros estilhaçarem-se e agradeceu à Providência os cobertores que forravam as janelas.

 

A jovem comprimia-se, trémula, nos seus braços, em busca de conforto. Rick recuou um pouco o corpo, apenas para ver a reacção da desconhecida, e sorriu no escuro ao senti-la seguir o seu movimento, em união perfeita, de forma a ficar tão colada a ele como anteriormente.

 

- Não se aflija - murmurou. - Não a abandonaria, mesmo que tivesse coragem de sair daqui.

 

Aquelas palavras eram mais verdadeiras do que supunha. Uma emoção mais forte que o pensamento apossava-se de todo o seu ser, desde a ponta dos pés até à raiz dos cabelos, e as suas mãos fecharam-se de novo sobre aqueles ombros macios. Um desejo atávico lançou um e outro na Idade da Pedra. A mesma vaga os submergiu...

 

Durante muito tempo ele rira das teorias psicológicas que afirmam que todas as emoções são susceptíveis de transmutação: o ódio pode transformar-se em amor, o medo em coragem. Naquele instante, tudo isso lhe parecia bem simples, evidente. Sabia agora que nada como o medo aproxima tanto os seres humanos, no entanto só o tempo era capaz de mudar o medo em amor. Mas quando palpitam no firmamento as asas negras da eternidade, a mudança pode ser imediata...

 

Um outro gemido riscou a noite, um gemido uivante ao qual todos os outros tinham servido apenas de prelúdio. Desta vez, a intensidade terrivelmente crescente do som só podia indicar uma coisa, um golpe directo. Os braços da desconhecida enlaçavam-no agora. E assim abraçados, no escuro, esperaram a detonação. Mais tarde, muito mais tarde, quando pôde classificar com clareza as suas recordações daquela noite, lembrou-se que os lábios de ambos se uniram durante essa espera. Não se tratava já dum jogo de gracejos, nem dum duelo galante ao rodopio duma valsa, nem duma entrevista amorosa com qualquer Vénus condescendente. Tratava-se, sim, duma luta da vida com a morte...

 

E o ruído que mantinha os dois anelantes em suspenso produziu-se: a bomba acabava de atravessar o tecto da garagem vizinha e vazia. Mais nenhum rumor se seguiu, senão o do esboroamento da caliça. Então o silêncio caiu nos seus nervos como um bálsamo.

 

Winter suipreendeu-se a gritar aos ouvidos da companheira:

 

- Não explodiu!

 

Mas a jovem continuava agarrada a ele, os ombros agitados por estremecimentos convulsivos. Rick estreitou-a mais a si, sabendo que nada a poderia confortar e sossegar melhor do que os soluços. Passado algum tempo, moveu um pouco a cabeça, até a sua face encontrar a suavidade dos cabelos sedosos. Neles se afundou, beijando desatinadamente um rosto banhado de lágrimas por entre macias madeixas:

 

- Tudo corre bem! - assegurava-lhe, numa voz rouca:

- Tudo corre bem! Por agora, acabou o chinfrim. Esta noite alguém guardava lá em cima os nossos registos. Não teria mesmo graça nenhuma morrermos estupidamente no próprio momento em que nos encontrávamos.

 

Mas Rick tinha a certeza de que todas as palavras eram inúteis nesse instante. O abandono daquele corpo, bem unido ao seu, espalhava-lhe nas veias um ardente langor. Sim, era bem isso... langor e fogo. Os seus lábios deixaram a face abrasada e apoderaram-se duma boca que não resistia nem correspondia. Mais um instante e terminaram os soluços. E a boca da jovem animou-se por fim...

 

Com efeito, não houve mais bombas nem explosões, embora os projectores continuassem a perscrutar avidamente o céu. A trinta mil pés acima do solo, lá onde o oxigénio se rarefaz no espaço vazio, os pilotos inimigos ajustavam as suas máscaras e tomavam o rumo das suas bases, no outro lado da Mancha. No sopé da escarpa, três escaravelhos gigantescos manchavam a areia com a sua fuselagem meio carbonizada, incandescente ainda, e a silhueta desses bastidôres naturais, inviolados desde os tempos dos Normandos, aparecia coroada de clarões vermelhos. Num promontório, algumas metralhadoras deram uma última rajada, para logo emudecerem.

 

Justamente ao fim de High Street, a calma era absoluta no quarto de dormir duma casa isolada. Somente um romântico poderia atrever-se a quebrar com palavras esse mágico silêncio. Com versos de Browning. Foi aliás por puro reflexo que Rick os murmurou: vieram-lhe naturalmente ao espírito e aos lábios enquanto, enrolando nos dedos os cabelos da jovem, se afastava um pouco para saborear o êxtase:

 

And a voice said in mastery while I strove... Guess now who holds thee? - Death, I said. But, there, the silver answer rang...

 

Quando sussurrou o final do soneto, Rick soube que o encanto não se quebrara:

 

But, there, the silver answer rang... Not Death, but Love1.

 

O murmúrio extinguiu-se sob a sua boca ávida. Nesse instante, a noite dobrou-se sobre eles, submergiu-os, e todo o ruído emudeceu, salvo o do ritmo amoroso dos seus corações.

 

Um punho martelou vigorosamente a porta. Rick soergueu-se no colchão e praguejou com eloquência quando bateu com a cabeça na madeira rija do tampo da mesa. Ainda ensonado, levantou-se, caminhou aos tombos até ao cabide, onde devia estar pen-

 

1 E enquanto lutava, uma voz autoritária perguntou-me: / Adivinha agora quem te prende? - A morte, repliquei. / Mas então ressoou a resposta eloquente.../Não é a morte, é o amor.

 

durado o seu impermeável, e como não o encontrasse, enrolou-se no último cobertor que restava em cima da cama desfeita, dirigindo-se às apalpadelas para a porta, que alguém continuava a martelar com perseverança. Embora o quarto estivesse mergulhado em denso negrume, Rick pressentiu, antes mesmo de pôr a mão no trinco, a baça claridade que já reinava lá fora.

 

- Quem é?

 

- Não se zangue antes de saber porque o vim acordar tão cedo, capitão.

 

Winter reconheceu logo a voz do seu impedido, Manny Ebstein.

 

- Idiota chapado! Não tens bom senso suficiente para...

 

- A culpa não é minha, capitão! Mandaram-me cá.

 

Rick abriu a porta, esforçando-se por encobrir o quarto dos olhares de Manny e saiu para a rua.

 

Ebstein, em sentido, fazia a sua imitação mais conscienciosa duma continência. Acompanhava Rick Winter desde certa memorável jornada de Toledo, quando num edifício parcialmente disperso pelas imediações devido a uma explosão, os dedos hábeis do capitão tinham encontrado e laqueado, sob o fogo do inimigo, a artéria por onde se lhe esvaía a vida. Mais tarde, o próprio capitão pegara numa das extremidades da maca em que o ferido fora transportado para uma ambulância.

 

No ano anterior, portanto, nos Estados Unidos, esse mesmo Manny Ebstein assinara, como a coisa mais natural deste mundo, o seu alistamento no 95.° Hospital de Campanha. Rick não ignorava que, de vez em quando, ele suspirava por Brooklyn, pelos resultados dos desafios de basebol e pelas proezas dos seus jogadores favoritos. Com queixo de velha, corpo desengonçado, vagamente raquítico, evocava, segundo a proximidade do dia do pré e o nível do seu barómetro alcoólico, um ajudante de gato-pingado ou um comediante na disponibilidade. Todavia, naquele momento, Manny Ebstein tinha apenas uma honesta preocupação:

 

- Tem a certeza que isto caminha bem, patrão?

 

- Já devias saber há muito tempo que não é pergunta que me faças antes do meio-dia.

 

Com a mão no braço do impedido, Rick caminhou cambaleante para o meio da rua. Uma pálida claridade, com a pretensão de se assemelhar à aurora, varria já os telhados. Essa luz do dia era suficiente, ao menos, para se poder distinguir os campos vizinhos. Num bosque de faias, na outra margem do ribeiro, troncos meio calcinados apontavam para o céu, em volta duma cratera recentemente aberta. Lá adiante, junto ao passeio, onde a rua fazia um cotovelo antes de atravessar a via-férrea, na direcção do acampamento, estava parado um jipe carregado até mais não poder com equipamentos.

 

Antes mesmo de formular a pergunta, Rick já conhecia a resposta:

 

- Não me digas que levantamos hoje ferro?

 

- O comandante não me fez confidências - assegurou Manny, arvorando o seu melhor sorriso. - Mas se me perguntar o que penso, dir-lhe-ei que é muito provável.

 

- E para que é o jipe?

 

- Em primeiro lugar, tenho de o levar sem demora ao comando. Em seguida, vou descarregar no cais as máscaras contra gases. Porventura isto diz-lhe alguma coisa?

 

- Espera-me ao fundo do passeio - ordenou Rick. - Estarei lá daqui a cinco minutos.

 

Fechou a porta atrás de si e estendeu a mão para o interruptor. A guerra não consentia os fins de acto com graça nem os adeuses românticos. O estado lamentável do pequeno quarto apareceu de súbito à luz do globo pendente da instalação eléctrica meio arrancada do tecto. Abriu e fechou os olhos ao ver o montão de caliça, tijolos e estilhaços de vidro: a gruta improvisada debaixo da mesa salvara-lhe a vida e a da desconhecida.

 

Mas nesse quarto em desordem ele estava agora só. Da jovem que tivera nos seus braços, restava-lhe apenas uma melancólica capa. Compreendeu que ela a deixara ali somente para não o despertar, pois adormecera com o ombro em cima dessa peça de vestuário.

 

Meteu-se imediatamente dentro do abrigo, para o explorar bem; empurrou depois a mesa, que foi embater com fragor na parede, e pôs-se a rebuscar tudo à pressa, produzindo em sua volta uma espécie de ciclone que fazia andar pelo ar quanto lhe servira para construir o bastião, roupa interior, cobertores, sacos de dormir... Abriu a boca para chamá-la, mas lembrou-se que não sabia sequer o nome da ausente; não lhe vira tão-pouco o rosto nem a cor dos cabelos...

 

A campainha do telefone retiniu, restituindo-lhe a presença de espírito. Forçou a voz a mostrar-se clara e pausada e atendeu:

 

- Aqui, capitão Winter!

 

- Olá, Rick! - Era Bill, o seu camarada de quarto, o major William Coffin, especialista em cirurgia do cérebro. - Não tentes fazer-me acreditar que dormiste durante a visita de Jerry.

 

- Como uma pedra, podes crer!

 

Rick esperava que a sua voz parecesse absolutamente natural. Bill estava de serviço na véspera e não tinha nenhum meio de saber que o camarada de quarto não dormira sozinho.

 

- Manny está aí com o nosso carro?

 

- Espera-me lá fora enquanto me visto.

 

- Óptimo. Então dize-lhe que carregue a minha cangalhada juntamente com a tua. Já não ponho aí os pés.

 

Rick deitou um olhar para toda aquela desordem. E, fosse pelo que fosse, sorriu.

 

- Salvaremos o que pudermos, camarada. Podes dizer-me o que se passa?

 

- Faz uso da inteligência - disse do outro lado do fio Bill Coffin. - Esta linha pode estar ligada a uma mesa de escuta.

 

Bill desligou enquanto Rick aprovava a última observação. Na sua qualidade de cirurgião mais antigo, logo após o cirurgião-chefe, esperava-o um belo dia de trabalho! Tinha a responsabilidade de todo o equipamento cirúrgico da unidade. Mas, bem vistas as coisas, essa tarefa até seria bem-vinda, ajudá-lo-ia a esquecer... Entretanto, continuava a rebuscar e a pôr em desordem todo o quarto, virando e revirando o mínimo objecto, na esperança de encontrar algum sinal da desaparecida.

 

Mas tinha de se render à evidência: nenhum outro traço lhe restava dela senão aquela capa, nas dobras da qual afundou o rosto, procurando ainda o fantasma da sua presença, nem que fosse apenas o odor do seu perfume. Acabou por examinar atentamente à luz aquela peça de vestuário, como um detective cuja carreira estivesse em causa: quase nova, na gola uma orgulhosa marca dum estabelecimento da 5.a Avenida, e um lenço cuidadosamente dobrado na algibeira do forro. Depois de apalpar e examinar o tecido em todos os sentidos, o único sinal suplementar que descobriu foi um pequeno monograma bordado a ouro no interior da gola, três letras misturadas e entrelaçadas nun hieróglifo que o próprio Houdini1 não seria capaz de destorcer.

 

Deve tratar-se de Harry Houdini, célebre ilusionista americano, cuja maior habilidade consistia em libertar-se, em questão de minutos, depois de manietado e solidamente amarrado com correntes e cordas, de dentro duma caixa colocada por baixo da ponte dum rio.

 

Manny bateu outra vez à porta, desta vez com menos força.

 

- Está sozinho lá dentro, patrão?

 

- Absolutamente só - murmurou Rick.

 

Mas o seu suspiro era destinado a outros ouvidos, não aos de Ebstein.

 

- Parece que se prepara um grande dia. Então pensei... Rick atirou a capa para dentro da mala e colocou a sua roupa

por cima.

 

- Entra, Manny, e vem dizer-me o que pensaste. Será mais cómodo. Agora já estou completamente acordado.

 

Na noite anterior, em grande uniforme, o coronel Amos Blaine assemelhava-se mais ou menos a um pudim de Natal mascarado de Tio Sam. Agora, no seu uniforme usado, a águia a cintilar no boné das tropas do ultramar, era um soldado até à última polegada da sua vasta superfície. Se o seu gabinete forrado de madeira de pinho dava a ideia, nesse alvorecer pardacento, duma colmeia bem organizada, ele era a alma que dirigia as idas e vindas do enxame. Atrás de si, duas máquinas de escrever crepitavam como metralhadoras, uma estenodactilógrafa do W.A.A.C. em cada teclado.

 

A secretária ao lado era um caos ordenado. Devido aos uniformes dos estafetas que entravam e saíam, dir-se-ia uma estação dos Correios na véspera do Ano Novo.

 

Em frente da secretária do coronel estava o major William Coffin, na posição de sentido, espécie de mágico irlandês, o seu queixo rachado de lutador em singular contraste com uns olhos de cientista, a espreitarem por trás duns óculos de aros de tartaruga. Ao ouvir os calcanhares de Richard Winter baterem correctamente um no outro, esqueceu por completo o decoro e deu meia volta para aplicar uma amistosa palmada no ombro do camarada.

 

- Acorda, meu índio! Não sabes ainda a grande notícia?

 

- O coronel já não quer nada de ti?... - perguntou Rick, baixinho.

 

Bill lembrou-se então do uniforme e retomou a posição de sentido.

 

- Desculpe, coronel.

 

Amos Blaine lançou a cabeça para trás e riu a bom rir.

 

- Bem, vá ao seu trabalho, Bill. Conhece-o melhor do que eu.

 

E continuou a rir mesmo depois de Bill deixar o gabinete.

 

- E então, Rick? É preciso pô-lo ao corrente do que se passa? - Ordem de marcha, não é verdade? - Hoje mesmo, ao meio-dia. Marcha simples, mas nada de demoras. Pode embarcar-nos a essa hora?

 

- Se me dispensar o alferes Adams para a papelada e Manny para o que requeira músculo...

 

- Já lá andam os dois na tarefa - disse placidamente o coronel. - Adams está a bordo do nosso transporte a verificar o material. Manny organiza o seu esquadrão de carregadores de bagagem. Sente-se, Rick, as minhas dactilógrafas não reparam. Isto era de calcular e você já estava preparado para o salto desde ontem.

 

Rick anuiu com satisfação:

 

- Ao meio-dia, nem mais um minuto, coronel.

 

- De acordo. Tendo em conta o snafu, há muitas probabilidades de não levantarmos ferro antes do crepúsculo. Em minha opinião, estamos demasiado próximos das bases inimigas da Mancha, para partirmos em pleno dia.

 

- Sim, demasiado próximos para podermos navegar confortavelmente. Pensa que o ataque aéreo da noite passada?...

 

- Impulso nervoso. Jerry sente que anda qualquer coisa no ar, mas não sabe o quê...

 

- Houve alguns estragos no acampamento?

 

- Erraram o alvo, graças ao black-out. Arderam alguns armazéns dum depósito britânico, lá para o norte. Ouvi dizer que a cidade escapou por pouco. Por acaso as bombas fizeram-no saltar fora da cama?

 

- Pude dormir em paz, obrigado.

 

Como reagiria o velho Amos se lhe descrevesse a surpreendente magia dessa noite de sortilégio? E se lhe dissesse que a sua vida ia mudar duma vez para sempre? Que não teria mais repouso enquanto não conhecesse a mulher com a qual partilhara essa noite sem sossego, no seu comum refúgio de terror? O coronel falava agora de vacinas. O que diria ele ao certo? Rick repôs a toda a pressa o espírito na posição de sentido.

 

- As inoculações, coronel?

 

- Não me diga que não estão todas dadas.

 

- Falta uma meia dúzia de picadelas contra o tifo, mas podem dar-se facilmente a bordo.

 

O coronel anuiu com a cabeça:

 

- Todo o nosso grupo está em condições, claro. Eu perguntava é se Miss Adams também estará. Se bem compreendo, uma correspondente de guerra deve estar vacinada contra tudo. Queira no entanto verificar os seus papéis para ter a certeza.

 

Linda Adams... Ela também ia vestida de branco. Como a sua desconhecida do black-out. Delgada, esbelta, alta, patrícia. Tal como ela. Tê-lo-ia seguido depois de o abandonar tão bruscamente na varanda do clube? Era pouco verosímil essa suposição. Linda detestava-o nesse instante, não só pelo conselho que dera a Terry, mas ainda pela maneira como lhe roubara um beijo. Mas Rick conhecia bastante as mulheres para saber que não as conhecia completamente. E sorriu pela primeira vez nessa manhã.

 

- Estou convencido de que Miss Adams está imunizada...

 

- Diz isso com certo azedume. Até que enfim encontrou pela frente um adversário temível.

 

E o coronel foi sacudido por um ataque de riso ao recordar a discussão da véspera. Rick olhava-o com afectuosa admiração, lembrando-se que Wellington, em Waterloo, galhofava também com os oficiais. A guerra, no fim de contas, podia ser suportável quando se conservava o sentido do humor.

 

- Deponho a dama nas suas mãos, capitão. Não há mais perguntas?

 

- Mais nenhuma, meu coronel. Devo ir receber as ordens do major?

 

- O major Strang está aí ao lado. Eficaz e activo à sua maneira.

 

Apesar do barulho das máquinas de escrever, o coronel baixara um pouco a voz. Rick sentiu de novo a camaradagem que os unia, a despeito da diferença de patentes. Era o mudo entendimento de dois soldados contra um civil em uniforme.

 

- Depois da contenda de ontem à noite - acrescentou Amos

- aconselho-o a afastar-se do caminho do major Strang durante algum tempo. Nas docas de embarque terá bastante com que se entreter e gastar energias.

 

- Posso pedir-lhe a biografia do nosso transporte?

 

- Nos tempos da sua vida privada era a rainha das Bermudas. Fazia cruzeiros. Hoje, vestida de cinzento, terá o mesmo donaire ao passear as nossas tropas. Aliás, partilha a sorte dos seus passageiros. Cada um cumpre o seu dever, e se todos o cumprirem, tudo correrá bem.- Com a palma da mão, o coronel bateu na secretária. - Desta vez, meu rapaz, partimos para a guerra. E em grande estilo. Pode retirar-se.

 

A continência de Rick foi uma maravilha de rígida correcção. Um chefe de protocolo não encontraria nela nada a censurar. Chegado ao átrio, parou para considerar um importante problema. Devia ou não voltar atrás e pedir a Amos uma hora de licença? Terry e Manny podiam muito bem desenvencilhar-se sem a sua presença. E não precisaria mais de uma hora para explorar a cidade até encontrá-la.

 

Sim, se fosse inglesa. Mas se não fosse?

 

A marca indicava que a capa fora adquirida na melhor casa da 5.a Avenida, em Nova Iorque. Seria então uma americana? E se fizesse parte da sua própria unidade? Carolyn Rycroft, por exemplo. Ou Gina Colle, essa beldade obsequiosa e complacente? Ambas estavam vestidas de branco no baile do clube. Talvez alguma delas, nesse instante, o seguisse de longe, da janela do lar das enfermeiras, perguntando a si própria o que iria ele fazer. E talvez essa fosse justamente a mulher que nessa noite se cobrira com o seu impermeável e o escondia agora no fundo dalguma mala de viagem, como ele fizera à capa de veludo.

 

Rick Winter saiu num passo apressado e, em pleno sol, ladeou a fila de jipes estacionados em frente dos edifícios da Administração, sem se importar de parecer ridículo em público se isso de alguma maneira servisse os seus fins. Mas a desconhecida do black-out eclipsara-se deliberadamente. Se algum dia se desse a conhecer, seria quando e como quisesse e nas condições por ela escolhidas.

 

Uma W. A. A.C., impecável e correcta, estava perfilada junto da porta aberta dum jipe. Saudou-o com precisão e ele respondeu da mesma forma, saltando para a sua viatura com a jovialidade dum bombeiro que acorresse ao seu primeiro incêndio. Já instalado, reparou que Terry Adams ocupava o outro extremo.

 

- Ia precisamente dar-lhe conta do meu trabalho e pedir novas ordens, quando o vi no patamar - disse Terry.

 

A jovem W. A. A.C. inquiriu, segundo as normas aprendidas em Fort Dês Maines:

 

- Posso perguntar para onde vai, capitão?

 

- Para o cais número quatro, por favor-respondeu Rick. O alferes guiá-la-á em seguida.

 

O jipe sacudiu endiabradamente as vértebras e deixou a fila como uma bala. Rick pegou num cigarro, afectando uma serenidade que não correspondia de forma nenhuma ao seu estado de espírito.

 

- Que efeito te produziu esta notícia, meu rapaz?

 

- Creio - disse Terry - que o dia está bonito para uma viagem no mar. Não é muito frequente a Inglaterra oferecer-nos manhãs como esta.

 

Todo o vestígio da tensão nervosa da véspera desaparecera da sua voz. Rick, estudando-o de perto, perguntou a si próprio se ele teria seguido o seu conselho quanto à escolha dum calmante. Ou se, pelo contrário, estaria a exigir dos nervos um esforço muito maior, agora que terminara o período de espera. Lembrava-se de ter também exigido o mesmo aos seus, há seis anos, em Espanha. E dominara-os até ao fim da sua primeira campanha. Talvez Terry Adams os conseguisse dominar também. Decidiu por isso não perturbar com perguntas a boa disposição do rapaz.

 

- Recebi uma carta esta manhã - informou Terry. - Da minha mulher. Começou a trabalhar numa fábrica de material de guerra. Uma fábrica de fuselagens de aviões, em Bridgeport.

 

«Cá está a explicação!», pensou Rick. «Amando como ama a sua Mary, esforça-se por partir para a frente com um sorriso nos lábios, uma vez que ela está também ao serviço da guerra!» Apertou cordialmente o braço de Terry.

 

- Fixa-te bem nisto: tu talvez acabes por mudar, mas ela não. Possivelmente é o que esta guerra te reserva.

 

- E se eu não tiver vontade de mudar?

 

- Mudarás da mesma forma. A guerra prega essas partidas aos melhores.

 

Rick aspirou profundamente a atmosfera inglesa. Era estranho como a achava tão deliciosa agora que a ia deixar...

 

- Respira fundo, meu rapaz. Está uma bela manhã para uma mudança.

 

O jipe virou a esquina do acampamento e meteu a toda a velocidade pelo declive do macadame que conduzia ao cais. Lá em baixo, o espectáculo era estimulante. Mesmo um profano teria adivinhado que os germes da batalha se agitavam e remexiam nas profundezas. No ar reboavam as imprecações das gruas a reclamarem o seu lugar junto dos comboios de mercadorias. Os homens corriam dum lado para o outro, no meio dos grandes barracões, como coelhos em dia de caça. O jipe fez marcha atrás para dar passagem a uma longa formação de fardas de caqui: eram jovens magros, queimados do sol, nos olhos uma luminosa felicidade que teria escandalizado as gentes da terra nativa... escandalizado e entusiasmado também!...

 

Quando a jovem W. A. A. C. meteu o jipe pela extensa e rumorosa calçada que conduzia ao barracão, Rick levantou-se. O transporte destinado à sua unidade apareceu, aos seus olhos, em contraluz. Maciça e sólida dama cinzenta, pertencera outrora à boa sociedade e conservava ainda o gosto das aventuras que vivera ao longo das rotas dos cruzeiros; era, enfim, uma dama que gostava bastante de viajar e não mostrava nenhuma falsa vergonha em admitir que levava no seio um canhão.

 

Sem qualquer motivo aparente, enquanto se entretinha a ver a tripulação polir o cabrestante da corrente da âncora, lembrou-se duma gravura pendurada na parede do consultório do seu pai: Dan Boone1, num desfiladeiro da montanha, de carabina ao ombro, os olhos meditativamente voltados para a imensidade do deserto...

 

Dum salto abandonou o jipe e deixou para trás Terry na escada do portaló certo de que estava agora em condições de trabalhar. Expulsaria do espírito a desconhecida do black-out, pois era esse o meio mais simples e mais rápido de a esquecer, se alguma vez lhe fosse possível esquecê-la.

 

Como quase todas as manhãs inglesas de Novembro, também aquela depressa deixou de ser bela. Durante a tarde, um nevoeiro espesso envolveu o acampamento, justamente quando o

95.° Hospital de Campanha começou a transferir-se a toda a pressa para o transporte.

 

O capitão Richard Winter, enfarruscado até aos olhos como qualquer mecânico depois de passar horas e horas com Terry no porão, postara-se ao fundo da escada do portaló, para registar as últimas entradas. A sua unidade viajava com dois batalhões de infantaria. Os soldados estavam já a bordo. Ficariam alojados em filas sobrepostas de beliches, no reduzido espaço dos porões não ocupado pela carga, e por isso com grande dificuldade poderiam mover-se.

 

Depois de conferir todo o pessoal dos quadros e enfermeiras,

 

Daniel Boone, 1735-1820, pioneiro americano.


findaria para ele aquela fastidiosa tarefa: olhou para a lista que tinha na mão com uma careta de enfado. No outro lado da estreita passagem, Manny Ebstein, apoiado a um cabo, bocejava prodigiosamente. A vida militar sob diversas bandeiras ensinara muitas coisas a Manny Ebstein, mas não a arte de se conservar na posição de sentido. No entanto, como o ex-entusiasta dos desafios de basebol realizara já nesse dia consideráveis esforços, Rick conteve uma reprimenda, mesmo quando Randall Strang passou, como uma rajada de vento, fazendo uma breve continência. Os outros estavam ainda reunidos em volta do camião que lhes transportara a bagagem. Oficiais e enfermeiras eram autorizados a levar uma mala, já arrumada no porão do navio, e, além disso, apenas o que pudessem transportar consigo. Nada mais se admitia: os regulamentos eram rígidos a esse respeito. A um sinal de Rick, Manny sacudiu-se e endireitou-se ao ponto de parecer vagamente acordado quando o batalhão de enfermeiras começou a desfilar no plano inclinado que conduzia à coberta. Manny anunciava os nomes; Winter apontava-os.

- Adams, Linda.

 

O capitão ergueu a mão e toda a fila parou. Nunca a vira antes em uniforme. Devia tê-lo mandado fazer, pensou, em Bond Street, lugar das elegâncias militares. Automaticamente, o seu olhar percorreu-a desde os sapatos franceses, ao mesmo tempo femininos e práticos, ao boné das tropas do ultramar, impertinentemente colocado em cima das ondas acobreadas dos seus cabelos, passando pelas pernas bem feitas e a blusa bem talhada, tendo no ombro, no lugar das divisas, em letras prateadas, as palavras «Correspondente de guerra». «Um verdadeiro cartaz de recrutamento!», pensou Rick amargamente. Tivera de facto nos seus braços, na varanda do clube, aquela gravura de tricromia? Parecia-lhe agora inverosímil.

 

- Vai assobiar, capitão? Ou este exame também é oficial? Linda falava numa voz fria. Rick sentiu corar a pele crestada.

 

- Parece-me estar em regra, Miss Adams. Suba, por favor. Linda levava dois sacos iguais. Comprados também em Bond

 

Street, sem dúvida, e forrados com rótulos de diversos grandes hotéis, desde Estocolmo a Singapura... Rick notou em seguida que ela colocava uma caixa mais pequena ao lado de Manny.

 

- Volto ainda para levar a minha máquina de escrever- declarou. - O seu impedido pode entretanto olhar por ela?

 

O capitão abanou negativamente a cabeça:

 

- As jornalistas estão sujeitas ao regulamento geral, Miss Adams. Lamento muito. Só entra a bagagem que possa levar consigo.

 

Linda fitou-o sem dizer uma única palavra. Ele sentiu os seus olhos faiscarem de cólera e regozijou-se profundamente.

 

- Uma vez que insiste, capitão...

 

Desafivelara já o cinturão e passava a correia pela asa dum dos sacos, depois pela caixa que continha a máquina de escrever. E afivelando-o novamente, pôs a carga aos ombros, como os soldados, pegou na outra mala e subiu a escada. Uma risota sacudiu toda a fila que estava à espera e Rick voltou-se bruscamente, mas não surpreendeu nenhum sorriso nos rostos para ele voltados.

 

- Beathie, tenente Bárbara; Carson, tenente May; Cole, tenente Gina...

 

Mesmo metida na sua capa regulamentar e no uniforme branco das enfermeiras, Gina arranjava forma de parecer voluptuosa. Durante um breve segundo de malícia, os seus olhos fixaram os de Rick. Pedia-lhe sem dúvida uma explicação por não ter comparecido, na véspera à meia-noite, em frente do lar das enfermeiras. Mas de momento ele só podia apontar o seu nome, seguindo o ritmo de Manny, e fazer-lhe com a cabeça sinal para seguir.

 

- Rycroft, tenente Carolyn...

 

A sua cabeleira loira lançava no cais uma luz dourada. O seu sorriso era apenas encanto e doçura, após a provocante sedução que exalava Gina. Teria sido ela que se refugiara nos seus braços, numa rua da cidade, quando caiu a primeira bomba do ataque nocturno?

 

- Fraser, tenente Joan; Enfield, tenente Helen...

 

O ritmo cantante com que Manny continuava a sua chamada era estranhamente tranquilizador. Quando os dois terminaram a conferência, um pressentimento segredou a Winter que o seu futuro franqueara também aquela escada do portaló e que encontraria maneira de recuperar intacto o interlúdio da noite anterior, se soubesse mostrar-se paciente e conservasse o sangue-frio.

 

Gina Cole, que não escondia o mau humor ao subir lentamente para o navio, pôde enfim atirar as malas para a coberta, lançando ao mesmo tempo um olhar pouco amistoso à máscara de gás que lhe batia no peito.

 

- Podiam ao menos despachar-nos com música - resmungou . - Assim até parece que vamos a acompanhar um enterro...

 

Carolyn, que a seguia, perguntou-lhe:

 

- Reparaste no capitão Winter, junto da escada do portaló?

 

- Se reparei! - exclamou Gina. - E até fiquei muito satisfeita quando a jornalista o meteu na ordem. Ele começa a ter ares muito importantes.

 

Os seus olhos escuros examinaram a coberta e não lhe escapou o interesse manifestado pelos dois marinheiros de sentinela. No fim de contas, a vida a bordo talvez fosse suportável. O exército estaria um pouco enjoado durante certo tempo, mas havia uma compensação: era composto exclusivamente por homens.

 

- Vá! Anda! - ordenou Carolyn. - Não comeces a namoriscar antes mesmo de saberes onde ficas instalada.

 

A pouco e pouco Gina ia avançando.

 

- Não se trata de namoriscar - rectificou. - Simples exame de apreciação, se assim queres. Porque não estudas também o ambiente? Naturalmente estamos condenadas a passar muito tempo nesta casca de noz. O telégrafo clandestino dá como origem a Austrália, via Cabo.

 

- Eu ouvi falar na Noruega. E não me interessa o ambiente.

 

- Já escolheste o felizardo? É isso, não é?

 

- Talvez.

 

- Quer creias quer não, sei guardar um segredo. Não andará metido na aventura o nosso caro Rick?

 

Carolyn não respondeu por palavras, mas a sua respiração acelerou-se e disse o suficiente. Gina sorriu e avançou um pouco mais com a fila. O ar desprendido da enfermeira loira não a iludia. Carolyn ausentara-se do baile na noite anterior, durante bastante tempo, e Gina começava já a suspeitar o motivo. Seria possível que aquela gata borralheira, com os seus grossos sapatorros e o seu complexo de Florence Nightingale, tivesse feito a sua suprema dádiva na véspera à noite? Parecia-lhe incrível. Mas no fim de contas nada era impossível em tempo de guerra... Pois bem! Carolyn podia guardar à vontade o seu segredo. Gina nem por isso deixaria de ser sua amiga e por uma razão excelente: não havia qualquer perigo que a enfermeira loira lhe fizesse alguma vez concorrência nos seus amores volúveis.

 

Gina ergueu a cabeça, como um cavalo de guerra que pressentisse o combate próximo. A fila avançara um pouco mais e atingira o salão do barco, outrora brilhante local de diversões, com

colunas artísticas e paredes forradas de espelhos. A guerra roubara-lhe o esplendor antigo, mas mesmo assim restavam-lhe ainda bastantes sinais de riqueza para lembrar a Gina que aquele barco fora antigamente um paquete de luxo.

 

Talvez o seu encanto de outrora reaparecesse com o sortilégio das luzes nocturnas. Ou estava muito enganada ou encontraria ali chinela para o seu pé. Se não pudesse lançar mão a Rick Winter, contentar-se-ia com o seu belo camarada irlandês. Uma noite de luar e um canto isolado no tombadilho... As brochuras de publicidade para uso dos turistas falavam com frequência de escusos recantos atrás dos barcos salva-vidas.

 

Uma mala bateu-lhe no traseiro. Gina avançou na direcção dum vão de escada que se afundava nas cobertas inferiores. Uma enfermeira exclamou:

 

- Fora de brincadeiras. Não me digam que nos vão meter juntamente com os soldados.

 

- Seria uma bela oportunidade, não haja dúvida. Mas se fôssemos torpedeados?! - perguntou outra.

 

Gina retorquiu, muito serena:

 

- Ora, ora! Saías de lá a nado e reaparecias num submarino. Já pensaste nessa sorte? Nada menos de cinquenta homens para uma mulher! Mas, evidentemente, tu pertences à espécie das que não correm nenhum risco, nem mesmo sendo a única do teu sexo dentro dum submarino...

 

- Se não baixas a voz, ainda te levanto um processo por difamação !

 

Outra enfermeira interrompeu o diálogo:

 

- Não se preocupem com a natação, minhas filhas. Enquanto andarmos no mar, teremos de trazer os cintos salva-vidas.

 

A conversa diminuíra-lhes a tensão nervosa e já estavam todas com boa disposição quando se embrenharam no estreito corredor da coberta B, onde um sargento dava as necessárias indicações:

 

- Os oficiais em frente. As enfermeiras por aqui. Como sempre, Gina teve a última palavra:

 

- Ao menos, se formos a pique, morremos em boa companhia.

 

Em longa fila, as portas dos camarotes estavam abertas. Uma claridade pálida entrava pelas vigias com os últimos fulgores da tarde em declínio, mas essas vigias seriam hermeticamente fechadas mal o navio aproasse ao mar.

 

- Miss Adams, número vinte e dois.

 

Linda Adams, erguendo a máquina de escrever, sorria agradecida ao oficial de marinha que lhe indicava o seu domínio temporário, onde entrou de viés, como um caranguejo.

 

- Tenentes Cole e Rycroft, número vinte - continuou o oficial, acrescentando, depois de fixar Gina com olhar sabedor:

- Um número que preciso não esquecer!

 

- Já está muito saído da casca! - exclamou Gina.

 

Mas isso não a impediu de lançar ao adolescente um longo olhar de soslaio antes de seguir Carolyn e entrar no alojamento comum. Após seis meses passados no exército, já tomava aquele género de ditos como um cumprimento.

 

Se o camarote não era grande, também não era mais pequeno do que a cela que as duas partilhavam no lar das enfermeiras. Os beliches sobrepostos pareciam confortáveis e, coisa mais apreciável do que o resto, uma porta dava para uma casa de banho. Gina atirou a bagagem para cima do beliche e propôs:

 

- Vamos tirá-los à sorte. Naturalmente temos de partilhar a casa de banho com a jornalista.

 

- E porque não? Acho que já é uma grande coisa haver um chuveiro para partilhar com alguém.

 

Gina estiraçou-se no beliche, arrojando para longe os sapatos: essa sua atitude negligente instalava-a acto contínuo no seu novo modo de vida.

 

- Tal como Sadie Thompson na Chuva’ - observou Carolyn . - Espero que não tenhas a intenção de imitar o seu exemplo...

 

Mas os olhos de Gina estavam já fixos na porta da casa de banho, para lá da qual se ouvia o insistente crepitar do duche.

 

- A nossa jovem e brilhante jornalista já se sente como em sua casa.

 

- Sem dúvida quer chegar lá acima à coberta antes de levantarmos ferro - admitiu Carolyn, ocupada em desfazer as malas.

- Não te esqueças que tens de descrever todo este cenário. Nós a única coisa que precisamos fazer é vivê-lo.

 

Gina reflectiu:

 

- Vou entrar de repente ali dentro para a observar de perto. Fardada tinha na verdade o ar de ser um bom pedaço de mulher. Se em pêlo não desmerecer, sempre te digo que é uma lasca de se lhe tirar o chapéu.

 

Célebre novela de Somerset Maugha

 

- Medo da concorrência?

 

- Talvez... - E mudando de assunto: - Com guerra ou sem guerra, levo hoje o vestido de noite ao jantar.

 

- Sim? E os cintos de salvação? Que fazes com eles?

 

- Que vão para o diabo os submarinos! E enquanto aqui estiver que vão para o diabo também os cintos de salvação!

 

Gina libertou-se das suas vestes brancas, pôs um roupão pelas costas e entrou na casa de banho armada com o seu sorriso mais delicadamente felino.

 

- Olá! É apenas a nossa vizinha!

 

Obedecendo a impulso mais forte do que a sua boa educação, Carolyn aproximou-se da porta, logo atrás dela: «No fim de contas» , pensava, «agora quase podemos dizer que somos três companheiras de quarto. E se Gina fosse estragar tudo, arreganhando-lhes os dentes...»

 

- A invasão não a contraria? - perguntou a Vénus. Respondeu-lhe um riso claro por trás das cortinas do chuveiro.

 

Carolyn, mais tranquila, considerou que estava ali uma rapariga capaz de encarar a vida com espírito e boa disposição.

 

- A invasão é inevitável em tempo de guerra - volveu Linda. - Se quer tomar o seu duche a seguir, por minha parte já terminei.

 

Afastou as cortinas e saiu com uma indiferença tranquila, encantadora silhueta esguia, de ancas delicadas e seios erectos. Durante algum tempo, Gina apreciou-a em silêncio: no entanto, aquela auxiliar de radiologia poucas vezes se mostrava pobre de vocabulário. Carolyn reparou que o à-vontade de Linda Adams destruíra as últimas desconfianças. E uma vez admitida por Gina Cole, a jornalista passava a ser «uma do grupo».

 

- O meu nome é Cole. Se lhe agradar, chame-me Gina. E já agora vou tomar o seu lugar debaixo do duche.

 

Gina enxugou-se e tirou depois a bomba de borracha, sacudindo os cabelos ruivos.

 

- Temos de aproveitar enquanto é tempo. Já viajei neste barco há alguns anos. Podem crer, uma vez no alto mar, não teremos outros duches senão salgados.

 

Vénus entrou no banho; Gina estava agora atrás das cortinas. Linda sorriu para Carolyn.

 

- Venha até ao meu camarote. Parece-me que é ainda um pouco mais pequeno que o vosso.

 

Invejando no íntimo aquele à-vontade de viajante experimentada, Carolyn seguiu-a. Por sua parte, não conseguira ainda habituar-se àquela vida movimentada, apesar dos meses que passara já no exército. Uma certa timidez continuava a atormentá-la, muito embora fizesse todos os esforços para acertar o passo com Gina e as outras. Deviam ser os restos dos seus hábitos de solteirona, adquiridos nos tempos de enfermeira em Nova Iorque, quando vivia num quarto com uma cama-armário e se inquietava com o ferrolho de segurança.

 

Atrás delas, o duche tamborilava forte, mas dominando o crepitar da água, ouvia-se o contralto voluptuoso de Gina:

 

Oh! Madame, have you a daughter fair... Parlez-vom, parlez-vous?... Oh! Madame, have you a daughter fair? Parlez-vous, parlez-vous français?

 

E no corredor uma jovem voz masculina, a dum oficial que passava, começou a trautear o estribilho:

 

Parlez-vous, parlez-vous français?

 

O camarote de Linda estava perfeitamente arrumado como os de todos os vagabundos. Sentia-se o hábito dos grandes hotéis, a mulher que vive atenta ao horário dos caminhos-de-ferro e não desperdiça energias a desfazer inutilmente a bagagem: as suas duas malas eram armários em miniatura. Abertas naquele momento, os varões cromados puxados para fora, punham todo o guarda-roupa de Linda directamente ao alcance da sua mão. A máquina de escrever, já aberta, estava colocada em cima da mesa e ao lado via-se uma pilha de notas prontas para serem transcritas. Um cinzeiro das Galerias Lafayette servia de pisa-papéis.

 

- Recordação da minha primeira viagem a Paris - explicou a jornalista. - Trago-o sempre comigo, como se fora um amuleto.

 

Sem responder, Carolyn Rycroft, ligeiramente deprimida por aquela organização impecável, continuava apoiada à ombreira da porta da casa de banho. Linda Adams vivera até ali uma existência excitante, não tinha a menor dúvida a esse respeito. No entanto, a enfermeira suspeitava que uma tal vida havia de comportar algumas horas de solidão. Não havia possibilidade de se ganhar raízes, nem sequer de se contrair amizades duradoiras quando se percorria o mundo a essa velocidade, à caça de informações sensacionais para alimentar uma imprensa esfaimada. E interrogava-se vagamente se aquela jovem alguma vez teria estado apaixonada, apaixonada como ela própria, Carolyn Rycroft, o estava por Richard Winter.

 

Via Linda ir e vir no estreito camarote, reunir as peças do seu vestuário de noite, e um sentimento de culpa invadia-a, acompanhado duma inegável sensação de bem-estar. Era bom, na verdade, encarar a realidade frente a frente e admitir que o beijo de Rick imprimira um ritmo novo ao seu coração, bastante mais vivo... Era estranho que só lhe ocorresse tal ideia ao ver aquela insinuante criatura vestir-se para jantar.

 

E de repente lembrou-se e compreendeu: tinha visto Linda dançar com Rick no clube. Seria possível que sentisse ciúmes? E tão depressa? E por uma coisa tão normal? Viu, cheia de melancolia, embora nunca a assaltasse tal disposição, Linda vestir uma escandalosa e encantadora combinação parisiense e por cima um vestido de noite branco.

 

- Crê que podemos andar assim ainda hoje?

 

Linda riu ao ouvir a pergunta, a cabeça presa nas pregas do vestido:

 

- Sucede que este é o meu único trajo de sereia para a invasão. Porque não o hei-de vestir enquanto me é possível fazê-lo? Não sairemos o gargalo deste porto antes de soar a meia-noite.

 

Enquanto falava, o chão começou a vibrar debaixo dos seus pés, como se a quisesse desmentir imediatamente.

 

- Não se iluda com este barulho. Vamos lançar ferro mais ao largo, perto da rede de minas que defende o ancoradoiro e aí esperaremos a meia-noite e o torpedeiro de escolta para aparelhar. Se prefere, direi o mesmo por outras palavras: jantaremos esta noite sem cintos de salvação.

 

Carolyn sorriu: com ciúmes ou não, simpatizava com aquela jovem.

 

- Tem verniz para as unhas, Miss Adams?

 

- Diga antes Linda. Qual é o seu nome?

 

- Carolyn Rycroft.

 

A enfermeira loira estendeu-lhe a mão e a jornalista apertou-lha calorosamente.

 

- Sirva-se à vontade, Carolyn. - E indicava-lhe com um gesto uma boa provisão de frascos: - Foram quase todos comprados em Paris, nas vésperas da conquista da cidade por Hitler.

 

E tão depressa não tornaremos a adquirir outros iguais. Teremos de esperar que Paris seja libertada.

 

Carolyn esboçou um movimento de recusa:

 

- Mas se tudo isto é importado, com certeza estou a sonhar...

 

E corou um pouco, pensando no verniz barato que sempre utilizava. Linda Adams, no entanto, escolheu um frasco e atirou-lho do fundo do camarote.

 

- Tome lá! Durante algum tempo teremos quartos quase comuns. Ora isso é válido igualmente para o verniz das unhas.

 

Dez portas adiante, noutro camarote da coberta B, Terry Adams ouviu também vibrar as turbinas e interrompeu a arrumação das coisas.

 

Assim, pois, a aventura começava! Chegara o momento para o qual procurava um meio de dominar os nervos. E agora que o navio metia a proa à saída da barra, apercebia-se de que podia enfrentar o acontecimento quase com indiferença. Um novo tumulto lhe agitava o sangue nas veias e mantê-lo-ia em efervescência até tornar a ver Gina Cole.

 

O seu espírito deu um brusco salto no tempo para reviver o baile da véspera. Sentia ainda em todo o ser o calor daquele corpo flexível, tão bem moldado ao seu no isolamento da galeria. E quase podia ouvir a voz dela murmurar no escuro:

 

- Não, Terry. Aqui não, não é conveniente.

 

- Não posso deixar de a desejar a todo o instante.

 

- Muito obrigada pelo cumprimento. Mas...

 

- Mas o quê, querida?

 

Com que facilidade encontrara de novo o apropriado vocabulário amoroso! Desde que beijara a esposa pela última vez, na noite da despedida, seis meses antes, nenhuma outra mulher lhe ouvira pronunciar aquela palavra. Mas na noite anterior (o principal fora começar), as palavras saíam-lhe dos lábios quase sem querer.

 

Gina perguntara baixinho:

 

- Quando se decidiu a meu respeito?

 

- Sempre a desejei - respondera.

 

Deus sabia bem que era exacto, se a palavra «sempre» pudesse significar essa eternidade que ele vivera separado de Mary. Desejava alguma coisa... bastante parecida com Gina Cole, em suma... para acalmar esse desejo. E murmurara:

 

- Venha comigo à cidade.

 

- Já lhe disse que prometi esta noite a outro oficial; não se lembra?

 

- Bem, mas então quando?

 

- Talvez amanhã...

 

- Amanhã? A bordo do transporte? Sim, porque amanhã já vamos com certeza no mar alto.

 

- Combinado. Dê-me o número do seu camarote.

 

Nesse instante sentira o sangue circular impetuosamente nas veias. Ela dissera aquilo tão tranquila, com tanta naturalidade... Respondera-lhe num murmúrio abafado. Como pertencia aos serviços administrativos, conhecia já a organização dos alojamentos.

 

- Dorme sozinho?

 

Era uma pergunta do mesmo género, um pouco trocista, um pouco provocante.

 

- Durmo com os meus classificadores.

 

- Pobre Terry! Com efeito tem razão para se sentir abandonado e só...

 

Permitira então que ele a beijasse, um longo beijo, um beijo de enlouquecer, antes de voltar a correr para o clube e para o baile.

 

Terry Adams parou o seu passeio e deu um murro na almofada do beliche. Esqueceria ela essa meia promessa? E agora que fizera uma espantosa descoberta, desejaria de facto encontrá-la ali, naquele camarote? Que diria Gina se lhe contasse que nesse mesmo transporte de guerra, nos tempos em que era ainda um barco para cruzeiros de luxo, realizara a sua viagem de núpcias às índias Ocidentais?

 

Ele e Mary tinham dançado no salão de Inverno da coberta superior, há bem poucos anos!... E agora preparava-se para destruir a sangue-frio tais recordações! E porquê? Para mostrar ao mundo um rosto sem tormentos! Para executar o seu trabalho com mão firme... O desejo, nesse instante, permanecia nele tranquilo. Fera enjaulada que sabia estar próxima a sua hora. Nada mais contava senão a noite que se aproximava. A noite, sinónimo de Gina e de apaziguamento...

 

No corredor da coberta B estavam acesas as luzes dum azul muito velado. À claridade já crepuscular, o transporte avançava lentamente para o seu ancoradoiro.

 

Rick, após o embarque, passara longas horas às voltas com trabalhos de carácter administrativo. Ao abandonar os números, teve alguma dificuldade em habituar os olhos àquela claridade difusa. Strang ajudara-o algum tempo, com a sua habitual e rude eficácia, depois retirara-se para ir dormir o seu sono, habitual também, antes da refeição, como convinha a um cirurgião-chefe, cujo excelente estado físico e energia são duma importância absoluta. Ao princípio, Rick supôs que era o chefe que o esperava em frente da porta do camarote, mas depois viu que era Weldon, o cirurgião do navio, e imediatamente distendeu o rosto num sorriso cordial. O major Weldon, velho amigo dos seus tempos de estudante, acolhera-o de braços abertos à sua chegada a bordo.

 

- Bem me parecia que o encontrava mais depressa e mais facilmente se fizesse aqui um quarto de sentinela - murmurou o médico. - Não está demasiado fatigado para me dar uma ajuda?

 

- Às suas ordens, doutor. De que se trata?

 

- Uma perfuração, suponho.

 

Como um peso visível, o cansaço caiu dos ombros do Dr. Winter. Era justamente aquilo o que as suas mãos nervosas esperavam desde manhã: o seu verdadeiro trabalho. Uma nova batalha a travar com o velho inimigo, canalizando para ela todos os pensamentos e energias, um novo labor que apagasse a recordação obsessiva da desconhecida do black-out.

 

- E porque não?...

 

Weldon, sem o deixar ir mais longe, levantou o índex inchado.

 

- Dei-lhe ontem uma martelada. Receio não poder fazer nada de jeito.

 

Desceram, um atrás do outro, para o hospital do navio, bem isolado no meio do barco, facilmente acessível, no ponto mais afastado das bombas e dos torpedos. Todos os transportes na Segunda Guerra Mundial possuíam hospitais semelhantes, tão completamente equipados como qualquer outra instalação análoga em terra. Além de duas salas de operações gémeas, tinham um aparelho portátil de raios X e um laboratório com todos os utensílios necessários. De cada um dos lados deste «centro» técnico ficavam as cómodas enfermarias para os doentes, defendidas por paredes estanques. O caso não era ainda do domínio público, mas esses mesmos transportes serviriam de hospitais flutuantes na viagem de regresso. Se não fora o ligeiro balanço, Rick julgar-se-ia num verdadeiro hospital, em terra firme... Lançou em redor um olhar de vivo interesse e o seu sorriso indicava um elogio.

 

- Não me diga que tudo isto foi agora organizado para este caso de urgência.

 

- Estamos organizados para casos de urgência durante as vinte e quatro horas do dia - respondeu Weldon. - Quer ver o nosso homem?

 

O soldado estava instalado numa maca, na enfermaria de estibordo. Era um rapaz loiro, alto e magro, que outro ra podia ter sido um óptimo jogador de basebol. Agora, coberto pelas mantas do exército, debatia-se numa verdadeira agonia, contra a qual urgia defendê-lo. Os seus lábios estavam brancos, os olhos embaciados pelo sofrimento. Um simples relance bastou a Rick para verificar que pouco lhe faltava para perder a batalha.

 

- A história, major?

 

- Dor abdominal súbita há... - Weldon consultou o gráfico aos pés do leito - ...seis horas. Mas não disse nada para não perder o seu lugar a bordo.

 

Com expressão compreensiva, Weldon olhou para Rick e depois para o paciente, inerte diante deles.

 

- Esperou que o barco levantasse ferro e só então se queixou.

 

Rick abanou a cabeça. Era velha história esse heroísmo temerário, com o seu bafio a romantismo. Soldados mais idosos do que esse rapaz e, admissivelmente, mais sensatos, tinham morrido antes dele por demorarem voluntariamente a sua entrada no hospital.

 

Pousou a mão no abdome dorido, ao de leve, num contacto experiente que mal aflorava a pele e no entanto lhe dizia muito sobre os órgãos que ela recobria. Tratava-se apenas de estabelecer o diagnóstico. Aquela rigidez de tábua não podia de forma alguma significar senão uma perfuração e uma peritonite. E no entanto... no entanto parecia-lhe que não era o tipo habitual de perfuração, provocada por úlcera no estômago ou no duodeno.

 

- Onde começou a dor? - inquiriu.

 

Sem hesitar, a mão do doente apontou o umbigo:


- Aqui, em redor deste ponto, doutor. Julguei ao princípio que fosse provocada por alguma coisa que tivesse comido.

 

- Vómitos?

 

O soldado confirmou com leve aceno de cabeça.

 

- Sim, duas vezes, há talvez duas horas. Rick voltou-se para o major:

 

- Foi feita a análise ao sangue?

 

- Vinte mil glóbulos brancos - informou Weldon.

 

O quadro da peritonite estava patente. Precisava de mais uma prova, mas Weldon tinha pensado nela.

 

- Fizemos uma radiografia há poucos minutos. Vamos ver o que acusa.

 

Na câmara escura, o radiologista mostrou-lhes a chapa. Aquilo que procuravam estava bem à vista, uma pequena superfície clara, muito em cima, sob o diafragma. Uma superfície menos opaca que o tecido que a envolvia, pois continha ar, prova irrefutável de perfuração.

 

- Sou de opinião que se opere imediatamente, major.

 

- O caso está em boas mãos, Rick. Dê as suas ordens.

 

- O que há a respeito da luz?

 

- A sala de operações permite um black-out absoluto. Weldon seguiu Rick no corredor.

 

- Qual é o seu diagnóstico? Úlcera?

 

- É difícil de dizer ao certo. Inclino-me para um divertículo de Meckel.

 

Os olhos de Weldon brilharam e assobiou entre dentes:

 

- É um diagnóstico astucioso. Quer fazer uma aposta? Pararam os dois e Rick teve um trejeito de bom humor.

 

- Uma cerveja antes do jantar, valeu?

 

Enquanto se vestia para entrar na sala de operações, Rick pensava que aquele transporte não se parecia absolutamente nada com os transportes das outras guerras. Antigamente, uma perfuração semelhante ou mesmo uma simples apendicite significava para a vítima quase a morte certa. Hoje um hospital completo acompanhava os soldados ao combate e, qual refúgio flutuante, esperava-os ao largo. É claro, havia ainda alguns aspectos que nem mesmo a ciência podia prever, mas duma maneira geral a ciência mostrava-se verdadeiramente à altura da situação. E os homens que marchavam para a guerra bem o mereciam.

 

Estava ali um rapaz a quem a sorte traíra. A caminho da maior aventura da sua vida, fora de súbito detido por um simples acidente cirúrgico. E, na melhor das hipóteses, talvez nada simples. As perfurações dessas pequenas e estranhas bolsas que se desenvolvem no intestino delgado durante o crescimento embrionário não são muito vulgares. No embrião, há a comunicação entre o intestino e a membrana vitelina, donde o feto extrai o sustento até poder absorver o sangue materno. Sucede, por vezes, dizem os livros, que a primitiva comunicação não desaparece inteiramente, subsistindo um divertículo, minúscula bolsa em estado rudimentar que pode conter tecido gástrico, propensa a ulcerar primeiro e a perfurar-se depois, espalhando o seu conteúdo e provocando infecções na cavidade abdominal, caso este em que a vida do paciente corre perigo de momento a momento e em que somente a cirurgia aplicada a tempo o pode salvar. Weldon entrou e começou também a preparar-se.

 

- Não se importa que eu assista?

 

- Ia mandá-lo chamar, major.

 

- Uma enfermeira especializada ofereceu-se voluntariamente e assim sentir-se-á ainda mais à vontade - anunciou Weldon sorrindo e começando a esfregar as mãos. - Eu devia ser director das enfermarias em vez de cirurgião. O meu trabalho faz-se sem mim! Mesmo quando não posso pegar num bisturi!

 

Rick juntou-se-lhe em frente da bacia imaculada. Mal ouvira aquelas palavras, pois o seu espírito já se voltara completamente para a tarefa a realizar. Não levantou sequer os olhos quando um soldado deu volta aos interruptores da sala de operações, inundando-a duma luz dramática. Uma enfermeira, de rosto coberto até aos olhos pela máscara, arrumava os instrumentos em cima da mesa e preparava as agulhas de sutura. Ao estender-lhe os braços, para ela lhe passar a blusa esterilizada, saudou-a com gesto distraído.

 

E em seguida encontrou-se diante dum quadro familiar: um rectângulo de pele pintada de anti-séptico vermelho, quatro pinças de pensos cada uma colocada no seu ângulo, o peito do paciente a subir e a descer com regularidade, o fiozinho de cor amarelada a escorrer do reservatório de vidro do aparelho de plasma, e mais em baixo o fluido vital a deslizar do tubo para a veia.

 

Estendeu a mão coberta pela luva de borracha, a enfermeira colocou nela o escalpelo e recuou um passo. Num único golpe firme, Rick abriu cerca de oito polegadas de pele. Os pequenos vasos sanguíneos esguincharam o seu protesto, mas logo as suas bocas foram fechadas por compressas de gaze aplicadas na superfície da ferida.

 

Salvo uma palavra ou outra que o operador murmurava ao estender a mão para receber o instrumento necessário, reinava completo silêncio na sala. Ouvia-se distintamente o tinir de uma pinça hemostática colocada na sua posição. A enfermeira, autómato infatigável, movia-se com desembaraço ao seu lado, colocando quase por instinto os instrumentos ou as compressas exactamente no sítio devido.

 

Rapidamente, com a ajuda dum novo bisturi, Rick abriu a camada muscular, expondo o peritoneu: a sua superfície mostrava-se pardacenta e inflamada. Nenhum vestígio do seu brilho habitual. Olhou para Weldon, que abanou a cabeça em sinal de concordância:

 

- Perfuração certa.

 

- Dentro em pouco saberemos a causa verdadeira.

 

Rick ergueu o peritoneu, afastando-o dos órgãos que cobria. Cortou depois a delgada membrana com o escalpelo. O que distinguiu , fê-lo alargar a abertura para cima e para baixo, de modo a expor melhor a cavidade abdominal.

 

- Sucção!

 

Um fluido cor de palha, arrastando consigo bocados flutuantes de detritos brotou da ferida aberta: o motor do aparelho de sucção já zumbia. Weldon limpou a ferida e ambos viram os intestinos inflamados e vermelhos: aqui e além, nas suas dobras, aparecia um exsudado felpudo, sinal característico de perfuração nas proximidades.

 

Rick colocou um instrumento de lâmina achatada, um retractor, sob o bordo superior da ferida que o seu assistente levantou. Ele próprio, com o maior cuidado, ergueu a parte inferior do estômago e examinou de perto a extremidade fina e alongada, o piloro, que comunica com o intestino delgado. É nesse ponto, duma polegada quadrada apenas, que se situam a maior parte das úlceras perfuradas e não se via lá nenhum vestígio. Tudo estava límpido. Nenhuma aparência dum mal qualquer.

 

Weldon fez uma careta:

 

- Tenho a impressão de que ganhou a cerveja.

 

Rick seguiu a pista intestinal, procurando o divertículo deteriorado que, tinha agora bem a certeza, causava todo o mal. Quando o descobriu, soube ao mesmo tempo que a bolsa não seria muito fácil de libertar, por estar colocada num sítio que não podia ver. O organismo tentara, como sempre, uma defesa directa para obstruir a ruptura e com esse fim colocara em volta do divertículo uma ou duas ansas do intestino, o que podia bem provocar dentro de pouco tempo um estrangulamento de consequências imediatamente desastrosas. A espécie de avental que pende ao longo dos órgãos menos profundos, o epiploon, estava também soldado por aderências à bolsa que, apesar de tudo, não ficara completamente obstruída, como o volume do fluido acumulado na cavidade abdominal dava sinistro testemunho. Não havia a menor dúvida, mais umas horas e a balança inclinar-se-ia de forma decisiva contra o paciente.

 

Após alguns minutos de cuidadoso trabalho, o cirurgião pôde enfim encontrar o órgão causador de todo o mal e fazê-lo emergir no campo operatório. Era uma bolsa de larga base, situada na base inferior do intestino delgado, cujas paredes se tinham esfarrapado pela acção corrosiva dos sucos digestivos.

 

Rick endireitou-se com um clarão de triunfo nos olhos: era uma satisfação imensa verificar que as suas suspeitas se confirmavam. A intuição cirúrgica, para a qual não existe melhor explicação do que para o dom do matemático ou do poeta, continuava a ser sua auxiliar preciosa. Sabia que podia contar com ela noutras crises eventuais.

 

- Ressecção - pronunciou num tom breve e logo a respectiva pinça foi colocada ao seu alcance.

 

Mais uma vez Rick se maravilhou com a eficiência da organização militar que colocara uma pinça de ressecção na aparelhagem daquele hospital, onde possivelmente não tornaria mais a servir, mas onde naquele momento era absolutamente indispensável .

 

Depois de a fixar no seu lugar, pediu:

 

- Cautério.

 

Com movimentos cautelosos e precisos, extraiu o divertículo, com a ajuda do instrumento aquecido ao rubro, que esterilizava ao mesmo tempo as extremidades seccionadas do intestino.

 

- Sutura especial, por favor.

 

Soldada à agulha, essa sutura era preparada de forma a não alargar nem rasgar a abertura feita pela ponta. Rick fechou a superfície cortada do intestino, sem deixar qualquer excrescência, restabelecendo a continuidade de passagem sem nenhum afunilamento. Isto era uma questão técnica de grande importância, pois o mínimo estrangulamento podia provocar uma obstrução, a qual necessitaria de nova operação, e o paciente não estava em estado físico de a suportar.

 

Uma vez terminado, o trabalho ficou tão perfeito que podia servir para ilustrar um tratado.

- Sulfamidas, por favor.

 

Polvilhou com a droga maravilhosa a cavidade abdominal, pondo uma porção suplementar no local da infecção. Se aquele soldado podia salvar-se em qualquer outro local, salvar-se-ia ali também, naquele hospital dum transporte de tropas. E, pelas mesmas razões, as suas possibilidades seriam igualmente boas no hospital de campanha da unidade, quando as tendas estivessem montadas e os feridos começassem a afluir.

 

Quando o último ponto de sutura fechou por completo a epiderme do paciente, Rick pousou a agulha e principiou a tirar as luvas e a blusa. Voltou-se então para a enfermeira para lhe agradecer, como costumava, mas ficou de olhos abertos de espanto ao vê-la baixar a máscara e responder-lhe com um sorriso:

 

- Eu é que lhe agradeço, doutor. É sempre um prazer vê-lo trabalhar.

 

Rick corou um pouco. No fim de contas, tinha beijado, um tanto atrevidamente, aquela jovem há menos de vinte e quatro horas. O seu sexto sentido devia tê-lo prevenido que era Carolyn Rycroft quem trabalhava ao seu lado com toda a perfeição, sob o anonimato da máscara. Para esconder a confusão, voltou-se para o major e perguntou:

 

- Inclui Miss Rycroft nesta cerveja, Weldon?

 

- Pois sem dúvida! - anuiu o outro. - E gostaria bastante de a poder amarrar a esta mesa com carácter definitivo!

 

Rick fez uma careta jovial:

 

- Quer um lugar permanente a bordo, Carolyn?

 

- O meu lugar é em campanha - respondeu a jovem.

 

- E o meu também - acrescentou Rick. - Então, vamos a essa cerveja? Liquidemos imediatamente a aposta.

 

- Não, muito agradecida, capitão. Mas agora já mal tenho tempo de me vestir para o jantar. Bem sabe que é a minha última oportunidade de brilhar, pelo menos nos tempos mais próximos.

 

E fitava-o bem de frente, com um desafio nos olhos. Depois, foi a sua vez de corar, quando se voltou e se dirigiu ao lavabo, para a monótona e indispensável tarefa de lavar e escovar cuidadosamente as mãos.

 

Quando chegou ao tombadilho, Rick ficou de boca aberta: já não reconhecia a paisagem em sua volta. O porto dir-se-ia, à luz do sol-poente, um enorme espelho pardacento, onde se balouçavam, ancorados, dezenas de transportes, o seu bem na vanguarda de todos.

 

Ao longe, para as bandas do ocidente, o dia morria em chamas, afogando num clarão de incêndio essa Inglaterra que ele amava: vedações de madeira de verdes quintais, estacarias de lúpulo, secadoiros, o profundo silêncio dum caminho escuso, pedras cobertas de patina dos tempos em povoados que perderam a conta dos séculos na tranquilidade de milhares de crepúsculos estivais.

 

Mas a terra, agora, ficava para trás, uma recordação na penumbra nascente. Em frente, para lá da rede de minas que defendia a entrada do porto, a névoa descia sobre a Mancha, em rolos espessos. Uma luz, apenas uma ponta de alfinete luminosa, furou essa cortina cinzenta e logo lhe respondeu um torpedeiro a estibordo .

 

Bill Coffin, encostado à parede da sala dos mapas, ofereceu a sua cigarreira:

 

- Podemos fumar aqui? - perguntou Rick.

 

- Se não nos aproximarmos muito da amurada... Como correu a operação?

 

- Um caso muito especial. Porquê?

 

- Tive vontade de ir lá meter o nariz, mas Weldon disse-me que aquilo era só para ti.

 

Rick esboçou um gesto de agradecimento. Depois daquela hora vivida lá em baixo, compreendia bem toda a impaciência de Bill por pegar de novo nos instrumentos da profissão. Mas Bill era sobretudo um especialista de cérebro, por isso o divertículo pertencia a ele, Winter, de direito. Aliás, não faltariam ocasiões para o Dr. William Coffin fazer o gosto ao dedo. Qualquer que fosse o destino do comboio, uma coisa parecia certa: os cirurgiões, mesmo os especialistas, iam ter bastante que fazer.

 

Se Rick estivesse disposto para confidências, Bill seria a pessoa mais indicada para ouvi-las. Tinham sido colegas na Escola Médica, depois internos no mesmo hospital e a guerra acabara por juntá-los na mesma unidade. A sua amizade, reforçada no decurso de tantos anos, podia agora exprimir-se sem palavras. Bill via o amigo num estado de espírito que requeria solidão. Deixou-o com uma palmada cordial no ombro e disse-lhe em ar de advertência:

 

- Não esqueças o jantar! Talvez se dance depois, se Amos estiver de acordo.

 

Rick encostou-se àquela parede pouco hospitaleira e aspirou profundamente o fumo do seu cigarro. Não podia perceber muito bem a exultação que o possuía: era absurdo considerá-la como o resultado natural duma operação bem sucedida. Seria então derivada dessa espécie de silenciosa impaciência que se apoderara de todo o comboio? Conseguiria ele ir até ao fim, entregando-se sem reservas à tarefa que lhe competia? Acreditava realmente que fazia parte duma cruzada para a libertação da humanidade?

 

Sempre na mesma disposição de ânimo, mas sem perder mais tempo a analisá-la, caminhou para um canto por baixo da ponte do comandante, donde podia ver à vontade, num plano inferior, o jardim de Inverno. Oficiais e enfermeiras passeavam ali, tal como fariam, no mesmo lugar, antes das refeições, os viajantes dos cruzeiros. Viu que muitas jovens tinham desafiado pela última vez os regulamentos e andavam com os seus vestidos de noite. Eles e elas pareciam alegres, descontraídos, tranquilos, e a cena dir-se-ia não ter nenhuma relação com a sua causa, com essa guerra formidável e desesperada que todos se dispunham a vencer.

 

Passaram três jovens vestidas de branco e de braço dado. Pararam um momento junto da amurada, para lançarem um último olhar à Inglaterra e logo se afastaram no mesmo passo ligeiro. Seriam apenas, aos fulgores acobreados do sol-poente, três recordações? Gina, Carolyn, Linda, alguma delas guardaria consigo o segredo da felicidade que ele tão ardentemente desejava encontrar?

 

Enquanto as seguia com o olhar no seu passeio, a sua exultação desvaneceu-se. Voltou-se uma vez mais para a terra, que dir-se-ia agora uma miragem despedaçada. Entretanto, o Sol sumira-se por trás dum promontório, para não mais reaparecer. Num segundo, as quintas e os campos passaram do ouro róseo ao cinzento. Talvez ele deixasse a felicidade nessa ilha tranquila e obstinada. Talvez a sua desconhecida do black-out, a dama dos seus pensamentos, estivesse nesse mesmo instante naquele promontório que acabava de ocultar a luz do Sol, inscrevendo mentalmente a palavra «fim» naquele romance duma noite, enquanto os últimos reflexos que aureolavam o comboio se fundiam na água já sem brilho.

 

O caminho era longo até ao seu camarote na coberta B. Só depois de abrir a porta e entrar notou pela primeira vez a sua excessiva fadiga. Manny, como de costume, desfizera-lhe a bagagem com todo o cuidado. O uniforme de grande gala e as vestes de uso quotidiano pendiam, bem alinhados, no guarda-roupa. As botas, maravilhosamente luzidias, brilhavam como espelhos à claridade difusa das lâmpadas do corredor, filtrada através da porta aberta. O seu roupão de lã estava estendido aos pés da cama: tocou-lhe com satisfação, principiando a desabotoar a blusa do uniforme. Depois de tomar um bom banho e de fazer a barba sentir-se-ia de novo em forma.

 

Mas o tecido que a sua mão encontrou era muito mais flexível e macio do que o burel do roupão...

 

Os seus dedos sensíveis identificaram-no, mesmo antes de poder dar volta ao interruptor da luz. Na sua ausência, alguém entrara no camarote para lhe devolver o impermeável, o mesmo impermeável que a desconhecida do black-out levara consigo na noite anterior, ao fugir dos seus braços...

 

Saiu do seu camarote como louco. Na escada, dois soldados tiveram de se comprimir contra o corrimão para deixarem passar aquele oficial apressado que galgava os degraus à velocidade dum foguete. Uma enfermeira olhou-o cheia de espanto ao vê-lo interromper a correria, para a encarar bem, sacudiu depois violentamente a cabeça, recomeçando logo a desvairada carreira.

 

No jardim de Inverno, parou ofegante. Para onde teria ido toda aquela multidão que deambulava ali poucos minutos antes? Onde estavam as três jovens vestidas de branco? Deu três voltas completas ao recinto e só então compreendeu o significado do toque da corneta cujas notas se perdiam no ar: era o último chamamento para a refeição dos oficiais, na sala de jantar de bordo.

 

Rick caminhou para as escadas que davam acesso à coberta A. Ficou um momento indeciso, a mão na balaustrada da escadaria principal. Era a sua última oportunidade de jantar. Mas na verdade sentia, sim, necessidade de beber, não de comer. De beber sozinho, lentamente, durante muito tempo; talvez depois encontrasse maneira de desenredar aquele problema complicado. Encolheu os ombros e voltou para o seu camarote, declinando o convite. Felizmente toda a unidade sabia que ele operara nessa tarde. Se alguém reparasse na sua ausência e a comentasse, de certo haveria logo quem lhe respondesse, achando muito natural que estivesse ainda à cabeceira do doente.

 

De regresso ao camarote, não deu volta ao interruptor; tirou uma lanterna da mochila de Bill Coffin, diminuiu-lhe a luz envolvendo-a num pano, e rebuscou até encontar uma garrafa. Era de aguardente Armagnac. Pertencia a Bill. Substituí-la-ia no próximo porto de escala.

 

Bebeu o primeiro copo. Os dois seguintes, misturou-os com água da torneira. Em todos os seus anos de vagabundagem, nunca sentira uma necessidade tão violenta de álcool. Pelo menos, sem ser para fustigar o espírito. Mas dir-se-ia que a alquimia soberana lhe era favorável naquela noite: após o segundo Armagnac, ficou um pouco mais calmo. Depois do terceiro, já sabia qual a atitude a tomar.

 

Rememorando os acontecimentos e procurando os seus elos invisíveis, como qualquer amador de mistérios, estabeleceu um facto incontroverso: a desconhecida do black-out estava a bordo do transporte. Este ponto, sem dúvida, ficava definitivamente assente. Tão lógico, digamos, como a observação de Euclides sobre as linhas paralelas, mesmo admitindo que a linha da vida da jovem vestida de branco não se cruzasse nunca mais com a sua. Ela conhecia a sua identidade, doutra forma não teria colocado o impermeável em cima da sua cama. Essa era outra verdade incontestável. Quoderat demonstrandum. Enfim, e isso parecia-lhe o mais importante, fora ao seu camarote, deliberadamente, com o risco de ser surpreendida e trair a sua própria identidade. Daí apenas podia deduzir que desejava lembrar-lhe que se encontrava muito perto. A não ser que o quisesse torturar com um segredo que jamais conseguiria descobrir enquanto ela não se resolvesse a desvendá-lo...

 

Se na realidade conhecia as mulheres, tinha de sofrer essa tortura em silêncio.

 

Tornou a tapar a garrafa de cindo estrelas de Bill e colocou-a solenemente donde a tirara. A expectativa seria dolorosa, sobretudo para um combatente que até então tomara de assalto, com rapidez, todas as cidadelas. Mas não havia outra coisa a fazer. O acaso e o toque da corneta para o jantar tinham-lhe sido favoráveis: que cara ou que cena faria ele se se encontrasse frente a frente com os seus três enigmas vestidos de branco?

 

A mulher que procurava seria realmente uma delas, Linda, Carolyn ou Gina? Não havia a menor dúvida, era ali mesmo, naquele corredor, que teria de andar nas pontas dos pés e pôr à prova a sua argúcia policial. Incluindo as W.A.A C., o pessoal técnico e as enfermeiras propriamente ditas, iam a bordo umas quarenta mulheres. Todas elas estavam na noite anterior alojadas na cidade ou no acampamento e qualquer uma podia portanto ter-lhe caído nos braços durante o ataque aéreo... Certas circunstâncias demasiado evidentes limitavam porém um pouco a sua escolha. E havia ainda a marca da grande casa de Nova Iorque na capa e o monograma bordado a fio de ouro.

 

Rick enterrou as mãos na sua mala e retirou de lá a capa; à luz da lâmpada de Bill, examinou demoradamente as iniciais entrelaçadas. Mas... como pudera ser tão estúpido que não se lembrasse há mais tempo daquela pista?!... Se ela usava aquele monograma na gola da capa, era natural que o usasse também noutras peças de vestuário... Um gatuno experiente há muito teria dado resposta àquele problema inquietante.

 

Os corredores da coberta B pareciam completamente desertos. Nem por isso Rick deixou de ir em pontas dos pés até junto da escada para se certificar. Por sorte, conhecia como a palma das mãos aquela parte do navio: o último camarote dos oficiais ficava ao fundo, depois era o das duas oficiais do W.A.A.C. que comandavam as auxiliares instaladas mais em baixo. O resto da coberta B pertencia às enfermeiras. Carolyn e Gina partilhavam o número vinte. Linda, a única pessoa estranha à unidade, ocupava o número vinte e dois.

 

A maçaneta da porta do número vinte não deu a volta. Rick foi mais feliz com a porta do camarote de Linda. O estreito compartimento estava fracamente iluminado e arrumado com ordem impecável. Entrou nele afoitamente, fechou-se por dentro e começou a rebuscar tudo com um cuidado que o mais arguto detective lhe invejaria.

 

Em primeiro lugar, o guarda-roupa. Além do uniforme, encontrou um roupão de flanela, de rigoroso corte masculino, e alguns pijamas, bastante austeros, com marcas duma loja parisiense. Em nenhuma peça de vestuário o mínimo sinal de monograma. Sucedeu o mesmo com a roupa suspensa nos varões cromados das malas entreabertas. A gaveta superior da secretária continha lenços e meias, alinhados geometricamente, como se estivessem expostos numa montra.

 

Rick injuriou com eloquência a ausente. Uma jornalista internacional devia ter um pouco mais de imaginação! Corrigiu no entanto esse erro de julgamento quando a sua mão, avançando mais, encontrou a renda transparente do encaixe duma voluptuosa camisa de noite em crepe da China, destinada para tudo menos para dormir. «Naturalmente descobri o seu enxoval», pensou. «Deve pelo menos ser parcialmente humana, pois traz para a guerra roupa como esta.»

 

Mas não foi capaz de descobrir o hieróglifo, nem nada que se lhe assemelhasse. Linda Adams, a julgar pelas aparências, não apreciava a publicidade pessoal, nem sequer na roupa interior de origem francesa.

 

Em duas passadas atravessou o camarote, parando alguns momentos a ler as notas colocadas ao lado da máquina de escrever. A porta da casa de banho estava fechada por dentro. Durante uns segundos, teve a impressão absurda de que alguém, no outro lado, tomava banho de chuveiro; depois reflectiu que Carolyn, como rapariga prática e de bom senso, fechara aquela porta e a do seu camarote antes de descer para jantar. Amaldiçoava ainda tantas precauções quando ouviu alguém rir no corredor.

 

Esse riso chamou-o à realidade e compreendeu quanto era fútil aquela busca às cegas. As vozes afastaram-se: útil aviso de que o silêncio da coberta B seria em breve desfeito pelo zumbido das enfermeiras, pois o jantar terminara.

 

Mal o ruído dos passos se extinguiu, Rick saiu para o corredor e sem mais delongas desceu a escada de serviço que conduzia à sala de jantar da coberta C. Um soldado vestido de branco guiou-o para uma mesa na grande sala já quase vazia. Soube mais tarde que o grupo que ocupava essa mesa compreendia Strang, o coronel e Bill Coffin. Soube também que conversara com lucidez sobre vários temas, desde os resultados de basebol às tendas de abrigo. Lembrou-se mesmo de ter devorado, com apetite, o bife e o pudim. Mas tudo isso só o recordou num outro dia. Naquele instante, tudo se lhe apresentava envolto numa espécie de bruma confusa, através da qual o seu espírito procurava inconscientemente um caminho, meditando no próximo passo a dar.

 

Quando os sons asmáticos dum gramofone chegaram à sua mesa, Rick levantou-se, balbuciando vagas desculpas. Strang e o coronel prolongavam a conversa enquanto fumavam um cigarro; sentiu o olhar de Bill fixá-lo com insistência e compreendeu muito bem o seu pedido mudo para se demorar um pouco mais ali. Mas não se deixou convencer por esse olhar: nessa noite não estava disposto a desperdiçar tempo com frias demonstrações de cortesia militar.

 

Subiu a escada principal, sem sequer olhar para trás, unicamente preocupado em não deixar que os pés traíssem a sua impaciência...

 

Uma dúzia de pares dançavam no jardim de Inverno. Os espelhos das paredes reflectiam essa pálida tentativa de animação e alegria que o gramofone portátil, colocado em cima duma cadeira, exactamente no mesmo local onde outrora havia um estrado para a orquestra, mantinha tanto quanto lho permitiam as suas fracas forças. Mas a hora não era para comparações nem para simbolismos. Um vestido branco passou, turbilhonante, e Winter interpôs-se rapidamente entre o cavalheiro e a dançarina, só notando demasiado tarde que se tratava de Gina Cole.

 

A jovem acolheu-o com o ar mais natural deste mundo:

 

- Até que enfim, capitão.

 

- Devo pedir-lhe desculpa?

 

- Havia de facto razão para isso. Ou esqueceu-se dum certo encontro marcado para ontem, á meia-noite?

 

Rick admirou aquele sangue-frio. Mesmo quando se mostrava descontente, Gina conseguia emprestar ao comentário mais insignificante uma inflexão sensual.

 

Fora ela que o seguira até à cidade antes do ataque aéreo? Certamente não... Ele saíra do baile às onze horas e o encontro estava marcado para a meia-noite... Mas, por outro lado, sabia bem que, se a fantasia lhe desse para isso, Gina era muito capaz de o seguir. ..

 

- Espera uma explicação? - perguntou Winter.

 

A voz da jovem tornou-se mais branda ao responder:

 

- Evidentemente que não, Rick. Você é do género dos que nunca explicam nada às mulheres. Ou estarei enganada?

 

- De facto assim é. Mas houve uma razão bastante poderosa.

- Reflectiu, porém, que não lhe serviria de nada cortar todas as amarras e prosseguiu num tom mais grave: - Decerto compreendeu que eu iria à cidade certificar-me que o meu quarto estava nas devidas condições... para nos receber...

 

- Realmente?

 

- Será preciso acrescentar que fui surpreendido pelo ataque aéreo? E, claro, a partir desse momento, ficaram canceladas todas as licenças no acampamento.

 

Ao falar, fitava-a bem nos olhos, mas Gina não pestanejou. Tentou então o ataque directo, a ver se obtinha qualquer resposta:

 

- Encontrava-se por acaso fora do acampamento nesse momento?

 

- Que ideia! Não aprecio nada esse género de perigo. Rick quase ficou contente quando alguém, abandonando o

grupo de homens que se formara a um canto da sala, avançou para ela e se intrepôs entre ambos. Era Terry Adams, sem tirar nem pôr! Um Terry Adams com um estranho ar de querubim, depois de lavado e barbeado. Um Terry vermelho até às orelhas e terrivelmente impaciente. Seria aquela a sua noite? Rick esqueceu-se de lhe perguntar enquanto procurava às cegas o caminho do tombadilho, onde se apercebeu que o barco iniciara já a sua derrota. De âncoras a espreitarem nos escovéns, o comboio deslizava a caminho da Mancha, ao sabor da maré.

 

A rede de minas à entrada do porto abriu-se, para lhe dar passagem. Minúsculos pontos luminosos piscavam as suas mensagens resvés à água. As máquinas principiaram a girar, unicamente para manter o navio na sua linha. Na ponte do comando, por cima da sua cabeça, Rick ouviu cochichar ordens:

 

- Um quarto para bombordo.

 

- Um quarto para bombordo, senhor.

 

- Reduza a velocidade, Gibbons. Espere instruções, Harrington.

 

- Velocidade reduzida, senhor.

 

O tombadilho estremecia e o transporte ia tomar o seu lugar na formação do comboio. Rick sentia em redor a presença dos outros barcos. Tanto a bombordo como a estibordo adivinhavam-se os torpedeiros de escolta pelo ritmo particular das suas máquinas; um gigante tossiu, adiante deles, no escuro, e Rick quase perdeu a respiração ao ver passar, à proa, um couraçado, de sinais luminosos a piscarem furiosamente no seu flanco esquerdo.

 

- Então, capitão Winter? Este espectáculo ajuda-o a encontrar a fé?

 

Era Linda Adams, embuçada até aos olhos num xaile e vestida de branco. Sempre fria e distante. Rick não fez caso da sua frieza e tomou-lhe o braço. E, coisa estranha, pareceu-lhe muito natural andarem assim os dois de braço dado a calcorrear o tombadilho.

 

- Ainda não me respondeu - insistiu Linda. - Não acha que vale a pena atravessar o oceano para ver semelhante espectáculo?

 

- Desta vez sim, entramos na dança.

 

Ouviu-a rir no escuro: a frase resumia tudo para ambos. Prosseguiu:

 

- Conheço o suficiente de navegação para saber que avançamos para o sul. A Noruega, pelo menos, não está em causa.

 

- Isso alegra-me bastante; com o Inverno a aproximar-se...

 

- Quando aqui cheguei estava sozinha?...

 

- Se lhe interessa saber, estava a imaginar como havia de começar o meu artigo de amanhã. Não me pergunte porque trabalho tanto, uma vez que não poderei transmitir tão depressa o que escrevo.

 

- A propósito da sua profissão, perdoou-me o episódio da máquina de escrever?

 

Linda respondeu com graça natural:

 

- Não devia ser eu antes a pedir-lhe desculpa?

 

Ele respirou profundamente, como para mergulhar, e mergulhou mesmo:

 

- Há uma hora fui ao seu camarote para lhe sugerir que nos tornássemos amigos... Receio bem ter entrado sem bater...

 

Na obscuridade, a voz de Linda conservava-se perfeitamente calma:

 

- Não peça desculpa por tão pouco, capitão Winter. Estou certa de que teve razões para o fazer.

 

- Pois claro. Mas talvez a minha oferta de amizade não passasse de um ardil. Talvez eu desejasse saber muito mais a seu respeito, e descobrir, se possível, qual é a força que põe em movimento uma caçadora de notícias.

 

Estavam os dois encostados à amurada de estibordo. Linda não se mexeu quando sentiu o braço dele enlaçá-la. Perguntou-lhe apenas, numa voz tranquila:

 

- E teve sorte? Descobriu alguma coisa? No camarote, é claro...

 

- Um artigo meio acabado na máquina de escrever. Creio bem que tive a indelicadeza de o ler. No fim de contas e sem o saber, não fui tão indelicado como à primeira vista se pode julgar, pois quase todo o texto se referia a mim...

 

- O senhor salvou esta tarde a vida dum homem na sala de operações. Não é um acontecimento importante para assinalar, quando se escreve o dia a dia?

 

- E precisava, para isso, desenvolver tanto o assunto? Quase que dá aos seus leitores a história da minha vida...

 

- Pois evidentemente. Na América, cem mil mães hão-de ler esse artigo. E ficarão mais animadas ao saberem que os seus filhos estão entregues em tão boas mãos.

 

Obstinado, Winter insistiu:

 

- Guarde o melaço para apanhar moscas, Miss Adams. Gostava que me dissesse como conseguiu saber tantas coisas a meu respeito.

 

Linda fixava os olhos ao longe, no mar invisível. Até então não dera mostras de ter percebido que um braço a retinha prisioneira.

 

- Veja o que posso citar de memória. Nasceu há trinta e quatro anos em Chicago. Durante várias gerações houve sempre um Dr. Winter na família e a maior parte deles triunfaram. Era filho único e, no entanto, decidiu ser pintor. O seu pai consentiu. Fez mais ainda, arranjou-lhe um importante depósito bancário sem quaisquer restrições. Durante um ano ou dois, divertiu-se em Paris, na margem esquerda do Sena, e por fim chegou à conclusão de que possuía mais entusiasmo que talento.

 

- Continue! - murmurou Rick. - Até agora deu no vinte.

 

- Enquanto não se decidia a respeito do seu futuro, resolveu empreender uma grande viagem, que compreendia Constantinopla, uma época no Cairo, e todos os recantos animados a leste do Suez. Incluía também um sortido variado de damas, em número suficiente para o tornar durante algum tempo a providência e o ai-jesus dos noticiaristas de jornais. No ano seguinte, decidiu voltar a Nova Iorque, pelos mares do Sul e Panamá. Não sei exactamente porque passou o Inverno de mil novecentos e trinta e dois nas Baamas. Uns asseguram que perseguia uma dama da alta sociedade. Outros afirmam que se divertira já bastante e tinha necessidade de repouso.

 

- Uns e outros laboram em erro - interrompeu Rick. Tencionava simplesmente comprar uma ilha, para fugir ao pagamento dos impostos e tornar-me canácar.

 

- Mas na realidade não fez nada disso. Alugou um automóvel em Nassau e foi dar um passeio até New Providence. Como era natural, o motorista levou-o a visitar a colónia de leprosos instalada no meio do pinhal de West End. É a grande atracção ritual de todas as expedições turísticas.

 

Sem demasiado azedume, Rick admitiu:

 

- Como escavadora, é admirável. Nunca perca semelhante dom.

 

- O senhor era então um rapaz de vinte e três anos - continuou Linda. - Provavelmente, nunca antes olhara bem de frente para uma miséria desesperada. Pelo menos no seu juízo perfeito.. . Fosse como fosse, voltou dessa visita com o futuro completamente traçado. No mesmo dia tomou o avião para Miami. Na semana seguinte estava matriculado na Escola de Medicina e Cirurgia de Columbia. Seis anos mais tarde, já com uma clientela brilhante, abandonou tudo e foi para Espanha trabalhar com Trueta. - A jovem esboçou um sorriso no escuro, depois acrescentou: - Eis os factos. Mostre-me o homem que está por trás destes factos e a minha obra ficará então perfeita. Rick comentou:

 

- Começo a compreender o seu sucesso, Linda. Quero dizer, o seu sucesso como jornalista. Posso chamar-lhe Linda, agora que recomeçámos a lutar?

 

- Sou um buldogue quando encontro uma história - respondeu a jovem. - Quer dar-me mais algumas informações?

 

- Mas se já sabe tudo quanto me diz respeito... Serve-lhe para alguma coisa revelar-lhe qual é o meu primeiro almoço favorito ou quais são as canções que prefiro quando estou bêbedo?

 

- Quero lá saber dos factos! - exclamou Linda. - Encontrei-os todos na nossa morgue, isto é, nos arquivos do jornal, em Nova Iorque. O que desejo de si é a exegese.

 

- Mas eu não compreendo esses termos bombásticos.

 

- Nasceu num berço doirado. Aos vinte anos divertia-se e tinha o mundo inteiro por palco do seu divertimento. Descobriu então o trabalho que lhe agradava e para o qual estava talhado. Que direito tem de ser cínico? - Linda voltou os olhos para a esteira de espuma que riscava a água negra atrás do navio e concluiu: - É isto o que lhe pergunto, Rick Winter.

 

- Mas é muito natural que não lho diga.

 

- Não tente fazer-me crer que perdeu todo o entusiasmo aos trinta anos, ou que sofreu alguma desilusão amorosa. Isso já não se usa. Não tem mesmo bom senso.

 

- Não falámos já sobre esses problemas?

 

- Talvez. Mas ficaram sem resposta. E eu quero fazer justiça à sua biografia. Lembre-se dos meus leitores...

 

- Quero lá saber dos seus leitores! Importo-me cá com a minha biografia! É melhor falarmos um pouco de si.

 

- Eu não passo dum dictofone para uso da nossa gente. E um dictofone não tem interesse.

 

- Não misture as suas metáforas. Acabou há pouco de me revelar que era um buldogue. Não seria uma notícia sensacional se um homem mordesse um buldogue? E se o entrevistador fosse entrevistado?

 

- Bata-me - redarguiu Linda. - Provavelmente bem o mereço.

 

- Fez sobre a minha vida, segundo parece, um estudo bastante completo. Interessa-lhe saber que fiz exactamente o mesmo a seu respeito, depois da publicação do seu livro sobre a guerra de Espanha?

 

- Espero que o escuro oculte o meu rubor. Rick prosseguiu:

 

- A senhora é no fim de contas o produto dum divórcio. O seu pai era um reputado financeiro de Wall Street, do modelo anterior à época de Roosevelt. Em mil novecentos e vinte e nove, na altura da Grande Depressão, uma manhã olhou para o seu aparelho teleimpressor e saiu do escritório pela janela. Nessa altura a sua mãe estava em Reno, reunindo os seus últimos papéis. Preparava-se para tornar a casar, suponho.

 

- Com um cow-boy chamado Buck Bradley - elucidou Linda. - Tempos depois conquistou certa fama em Hollywood como cantor sentimental. Continue, peço-lhe.

 

- Em mil novecentos e vinte e nove, estava no Smith College; Terry era ainda um garoto, e vivia em Andover. Algumas raparigas teriam seguido o caminho dos seus progenitores. Outras teriam ido parar ao consultório dum psicanalista. Mas você conservou intacta a sua personalidade e trabalhou como um castor na Universidade de Vassar. Creio que saiu de lá graduada magna cum laude. Isso facilitou-lhe, evidentemente, o início da sua carreira em Nova Iorque, no Record.

 

- Foi Terry quem lhe contou tudo isso?

 

- Não, não foi. Recolhi estas informações na morgue, ou para melhor dizer, nos arquivos do seu jornal quando fui consultá-los. Como lhe disse, acabava de ler o seu livro. E queria estar solidamente documentado a seu respeito para o caso de nos encontrarmos, o que me parecia muito possível. Quer que lhe descreva também os últimos oito anos? Caiu no jornalismo como um pato na água. Aprendeu tudo diligentemente, percorrendo todos os degraus da escala. Cães esmagados em Brooklyn, correrias para a secção de modas, frasco de cola e tesoura para a secção mundana, em resumo, teve de esperar muito tempo antes de ver publicado o seu primeiro artigo, mas uma vez dado esse primeiro passo, a ascensão foi rápida. O seu amigo, o editor de modas, mandou-a a Paris... e, no mesmo ano, Hitler ocupava a Renânia... Seis meses mais tarde, tinha uma coluna do jornal a seu cargo... Passados outros seis meses, terminavam para si os costureiros, estava lançada nas grandes reportagens... - Após uma pausa, inquiriu: - Devo dizer-lhe também a moral da história?

 

- Estou ansiosa por ouvi-la.

 

- Colocada nas encruzilhadas, viu mudar a face do mundo. Teve ocasião de conhecer por dentro toda a espécie de torpes negociações. Como pode continuar a representar o papel de Polyanna1 nos seus artigos? Ou falar aos microfones prometendo mundos e fundos para amanhã?

 

Desta fez as setas atingiram-na. Rick percebeu-o pela maneira como ela se esgueirou da curva do seu braço, e concluiu:

 

- Eis-nos chegados de novo ao ponto de partida.

 

- Somente porque se recusa a responder-me.

 

Linda era apenas uma mancha branca no fundo negro do céu. Durante um instante ele comparou essa fria discussão com o ardente episódio da noite anterior. Podia porventura ter tido aquela criatura tão racional nos seus braços e sentido o seu terror transformar-se em êxtase?

 

Ela continuou:

 

- Confio no homo sapiens nesta guerra. Você diz que ele a conduz com o queixo. Falta prová-lo. O homo sapiens já travou outros combates sem ficar vencido, não o esqueça.

 

- E se deixássemos o homo sapiens em paz durante algum tempo? Há no meu camarote um Armagnac de primeira ordem. Tem coragem de o vir saborear?

 

- Não, obrigada, embora a oferta dum cálice de aguardente seja muito mais original do que a de ir ver uma colecção de gravuras em cobre ou em madeira.

 

- É o seu único motivo de recusa?

 

- Não, não é. Mas sucede que tenho de escrever o meu artigo. A silhueta dum capitão que votou a existência a salvar os indivíduos duma espécie que despreza. Boa noite, Rick. Tenho a impressão de que é verdadeiramente digno de lástima.

 

E antes de se retirar, inclinou-se para ele e os seus lábios roçaram-lhe a face.

 

1 Personagem fictícia dum romance do século XX, tipo de optimista dos quatro costados.

 

Sem se voltar, Winter perguntou-lhe:

 

- Para quê essa diabrura?

 

- Ontem à noite impôs-me um beijo. Acabo de lho devolver para que saiba que não lhe guardo rancor.

 

Rick voltou-se rapidamente para a agarrar, mas ela já tinha desaparecido.

 

Terry Adams parou em frente da porta do seu camarote e tomou alento antes de dar volta à maçaneta. Atrás de si o corredor estava mergulhado numa semiobscuridade aqui e além desfeita pela luz difusa das lâmpadas azuladas. Por momentos teve a impressão infantil de que do fundo do claro-escuro alguma coisa ia saltar sobre ele. Era uma impressão evidentemente absurda, como a maior parte das fantasias infantis. O perigo, se algum existia, esperava-o lá dentro.

 

Ao entrar, nem sequer se atreveu a voltar os olhos para o beliche. Nem mesmo quando uma voz soou no escuro. Gina dizia:

 

- Bem sei que é o seu camarote. No entanto, podia dizer o santo e a senha ao entrar.

 

O ponto vermelho do seu cigarro brilhava entre os dois: ela aspirou-o profundamente e o clarão avivou-se, iluminando-lhe o rosto, um pouco acima dum roupão de seda branca, versão extremamente moderna de penteador, com uma estreita fita rematada num pudico laço por baixo do queixo. Terry admirou, uma vez mais, como aquela rapariga podia parecer ao mesmo tempo tão virginal... e tão condescendente...

 

- Ninguém...?

 

- ...me viu entrar no camarote? Não, alferes.

 

Aquela voz, ligeiramente trocista, era a mesma que lhe fizera ferver o sangue nas veias por ocasião do primeiro encontro.

 

- Lamento muito tê-lo contrariado por chegar primeiro... Preferia esperar por mim?

 

Terry não pôde responder. Nem uma palavra sequer. Caiu de joelhos e escondeu o rosto naquele colo tépido e perfumado. Não falaram durante bastante tempo.

 

«Pobre criança!», pensou Gina com um sorriso. «Como é possível que tenha tanto medo? Mesmo que seja a primeira vez...»

 

- Quer que me vá embora, Terry? - perguntou-lhe com meiguice.

 

O rapaz respondeu-lhe indirectamente:

 

- Sempre a desejei aqui... Se soubesse quanto me sinto infeliz... abandonado...

 

- Sei - afirmou Gina. - É curioso como uma pessoa possa sentir-se abandonada no meio de um exército...

 

Ao dizer isto levantou-se tranquilamente, lançou no lavabo o cigarro em meio, apagou a luz com o mesmo ar indolente e perguntou:

 

- É melhor assim?

 

Mas ele já lhe encontrara a boca. Seis meses de desejo frustrado dissiparam-se naquele beijo. Como ele tentasse em vão desatar-lhe o laço do roupão, Gina pousou as suas nas mãos do rapaz e desapertou-o ela facilmente:

 

- Espere, Terry. Não é tudo tão simples, bem sabe. Talvez eu não estivesse aqui se não sentisse pena de nós dois.

 

Só mais tarde, quando o seu cérebro retomou um equilíbrio normal, Terry se lembrou da profunda vibração que sentiu debaixo dos pés ao explodir a primeira granada submarina.

 

Um estremecimento semelhante ao arranco trémulo dum órgão monstruoso, e pleno de intenção. Algures no comboio um cruzador recolhera a vibração dum motor dum submarino. As cargas sucediam-se, granada após granada. Dir-se-ia que nessa noite o próprio Neptuno, de pé no fundo do oceano, sacudia o casco do navio com grandes pancadas do seu tridente.

 

Mas Terry desta vez limitou-se a rir, com Gina Cole nos braços: uma força mais velha do que o tempo erguia-o acima do medo e do amor.

 

- E se eu não quiser a sua piedade?

 

- O que quer então?

 

A sua boca respondeu sem palavras. Entre os dois, o leve roupão deslizara já para o sobrado, com um frufru ligeiro.

 

A trinta metros dali, ouvia-se no corredor o crepitar vigoroso duma máquina de escrever. Linda Adams tirou do rolo a última folha do seu artigo, acrescentou um comentário, dobrou o papel, meteu-o num sobrescrito, pronto a ser remetido à estação do cabo submarino do primeiro porto de escala. Em tempo normal, teria subido ao posto de T.S.F. do navio e expedido o texto para Londes ou Nova Iorque. Mas sabia que a rádio permanecia muda naquele comboio.

 

Insistentes e cada vez mais próximas, as granadas submarinas explodiam. Linda introduzira já no seu artigo um arrepiante parágrafo de terror e não podia desenvolvê-lo mais... Porque não sentiria medo? Era-lhe fácil imaginar o que se passava para além da vigia fechada. Em pensamento, via a ponte de comando do navio-chefe, ouvia os murmúrios do oficial a fazer o seu relatório a um almirante, cuja identidade por enquanto se desconhecia. Imaginava esse velho lobo do mar, de rosto anguloso, como os habitantes de Nova Inglaterra, a perscrutar a noite. Farejava o tempo e pedia a Deus nevoeiro ou uma enorme mancha de óleo à superfície do mar quando a próxima granada explodisse.

 

Algures nas profundidades obscuras e frias, um submarino permanecia muito quieto, confiando na sua dupla couraça de aço, capaz de suportar sem dano a explosão de todas as bombas, excepto alguma que o atingisse em cheio. Sem dúvida mergulhara a toda a pressa há algum tempo, com as silhuetas duma dúzia de barcos inscritos no seu diário de bordo. Quando o comboio passasse, enviaria para Lorient as suas informações através da rádio. E, ao longo da costa, todos os aeródromos seriam avisados. Se no dia seguinte não houvesse nevoeiro, era de esperar que o comboio fosse atacado pelos Stukas.

 

Já não havia tempo para mudar de rota. As ordens do almirante eram explícitas. «Arriscar todas as perdas de preferência a alterar o horário previsto.» Centenas doutros navios, nesse mesmo instante, navegavam do norte, do leste e do oeste para o local do encontro, todos prontos para o maior ataque naval da história.

 

Linda voltou com relutância da sua peregrinação no cérebro do almirante. O casco do navio estremecia de novo por baixo dos seus pés. Sentou-se no beliche e procurou um cigarro. Devia subir ao tombadilho para tomar algumas notas? Não. A marinhagem decerto não gostaria da sua presença lá em cima, na primeira noite passada no mar.

 

Subitamente, lembrou-se de Terry.

 

Vira-o durante o jantar, vira-o depois a dançar com as enfermeiras, como era próprio dum alferes modelo. Teria conseguido, enfim, dominar os nervos? Ao recordar a sua estranha confissão na noite anterior, ficou hesitante. Não faria bem em ir ter com ele ao camarote, como irmã solícita e afectuosa? E se quando lá chegasse o encontrasse trémulo, escondido a um canto, como durante os bombardeamentos na Inglaterra? Mais valia deixá-lo combater o seu medo da forma que melhor entendesse e pedir a Deus que do tratamento não resultassem cicatrizes...

 

Se Mary soubesse... Mas Mary, com certeza, nunca viria a saber.

 

Com a sua própria tranquilidade despedaçada, Linda surpreendeu-se a andar no camarote dum lado para o outro. Que outra coisa podia fazer um homem apanhado na torrente duma guerra? E como dominaria uma mulher um desejo veemente quando ele se torna demasiado intenso para se suportar?

 

Sem saber como nem porquê, Linda Adams achou-se estendida no beliche, de rosto afundado no travesseiro e sacudida por soluços convulsivos. Quando uma nova granada submarina explodiu por baixo do navio, saltou de súbito do leito e bateu com os punhos na parede de aço do camarote, com tal violência que sentiu o sangue escorrer nas falanges enquanto a mão lhe caía, sem firmeza, ao longo do corpo...

 

Estendido no seu beliche, a ler á luz da lâmpada de Bill Coffin uma novela policial, Rick perguntou a si próprio se tinha realmente medo. Nunca ouvira até então explodir granadas submarinas, mas reconheceu instantaneamente a sua detonação. Não houvera alarme nem correrias; por consequência, o perigo era ainda bastante indefinido e não reclamava uma acção precisa a bordo do transporte.

 

Mas mesmo assim levantou-se, ao lembrar-se da desconhecida do black-out. Ela estava algures a bordo daquele navio e tomava de novo contacto com a guerra. Talvez estivesse morta de medo, encolhida a um canto do seu camarote naquela mesma coberta. Tinha a convicção absurda de que se estendesse o braço lhe tocaria no escuro e essa impressão tornou-se uma certeza quando ouviu um leve rumor de passos no corredor.

 

«Volta para junto de mim», pensou Rick, exultante. «Volta para junto de mim! Das profundezas da obscuridade, tal como na outra noite... Ansiosa por unir o seu receio ao meu, por encontrar a paz no meu contacto...»

 

Lançou um roupão pelos ombros, abriu a porta e recuou com um riso triste. Carolyn Rycroft estava na sua frente, encostada à parede, de olhos muito abertos na penumbra. Vestia um penteador castanho-claro e um casto pijama de popelina azul tapava-lhe discretamente o decote. Pela primeira vez viu quanto ela era jovem e como tinha medo... Estendeu-lhe a mão, para a tranquilizar.

 

- Nada receie, peço-lhe... Não há razão para isso...

 

Um forte estremecimento da estrutura de aço do navio dir-se-ia querer dar um formal desmentido às suas palavras. A jovem já se precipitara para ele e agarrava-lhe impetuosamente a mão.

 

- Rick... este barulho terrível...

 

- São as latas dos despejos - disse o capitão ironicamente.

- Os cozinheiros estão a vazar o lixo. Há-de ouvir várias vezes esta barulheira antes de lançarmos ferro.

 

Carolyn parecia agora um pouco mais calma:

 

- Quer dizer, as granadas submarinas, não é verdade?

 

- Verifico com prazer que traduz facilmente a gíria marítima.

 

- E torpedos também? Ele sorriu:

 

- Não, não há a mínima possibilidade, depois do apressado mergulho que esse submarino foi obrigado a dar há pouco tempo. Mas agora reparo, hoje teve um duro dia de trabalho, Carolyn: o que faz levantada a estas horas?

 

A jovem não esboçou a menor tentativa de retirar a mão, húmida e trémula.

 

- Estava na coberta inferior a falar com uma amiga do W.A.A.C. Ia para o meu camarote quando... quando começaram a despejar as latas da cozinha... Fiquei cheia de medo.

 

- O bastante para lhe roubar a reflexão.

 

Nesse momento recomeçou o chinfrim. Uma nova sacudidela. Talvez um pouco mais próxima do que as anteriores. Carolyn estremeceu e apertou mais o roupão em volta dos ombros. Rick aproximou-se, tentando descobrir qualquer monograma na gola: uma convicção absurda acabava de se lhe instalar no espírito. Mas na verdade só conseguia distinguir no escuro o fulgor de dois olhos desvairados.

 

- Será suficientemente temerária para entrar no meu camarote e tomar uma bebida enquanto isto não acaba?

 

Carolyn acedeu e entrou, sem uma palavra. Rick fechou a porta e colocou a lâmpada eléctrica de forma a iluminar todo o pequeno aposento. Carolyn já se instalara numa cadeira, as mãos pudicamente juntas em cima dos joelhos. Quando quis esboçar um sorriso, ficou mais do que nunca com o ar duma aluna aterrorizada da escola dominical.

 

- Não me considero nada temerária, Rick. Estarei enganada? Ele deixou a pergunta sem resposta e rebuscou uma vez mais

na mochila de Bill Coffin, donde desta vez retirou um frasco bojudo cuja etiqueta arvorava a Union Jack.

 

- É capaz de beber isto sem água?

 

Carolyn abanou afirmativamente a cabeça e ficou a fitá-lo, de olhos muito abertos, enquanto ele vazava o conteúdo do frasco nos copos.

 

- Não se ponha a saboreá-lo, por favor - murmurou Rick.

 

Lembre-se que é apenas um medicamento contra... contra isto...

 

Precisamente nesse instante, nova detonação abalou todo o casco do navio. Não havia dúvida de que o capitão nazi estava a ser perseguido com grande eficiência.

 

Carolyn franziu o nariz e em duas goladas emocionantes tragou a sua ração de uísque sob o olhar aprovador de Winter. Quando devolveu o copo, já não tinha o mínimo ar de aluna da escola dominical. Os seus olhos brilhavam esplendorosamente.

 

- Mais um pouco?

 

- Não, obrigada. E agora realmente devo ir-me embora.

 

A sua intonação desmentia a prudente reserva das palavras, mas conseguiu pôr-se resolutamente de pé.

 

- Primeiro, responda-me a uma pergunta. Não é um pouco estranho que tenha uma amiga no W.A.A.C.? Elas só chegaram ao nosso acampamento esta manhã...

 

- Na verdade é estranho - admitiu Carolyn. - De facto é uma tremenda mentira.

 

- Com que propósito?

 

Os olhos da jovem não se desviaram.

 

- Vim aqui porque estava cheia de medo, Rick. E sabia que não poderia dormir sem lho dizer. Já está satisfeito agora?

 

Outra sacudidela estremeceu o navio. Carolyn inclinou-se para ele e a lâmpada de Bill iluminou em cheio a gola do roupão. Rick tomou-a carinhosamente nos braços, reprimindo a pergunta que não ousava fazer. Em vez de a formular, murmurou:

 

- Continua assustada?

 

- Agora não. Neste instante pode suceder seja o que for, já nada me inquieta.

 

Rick beijou-a com ternura, sentindo-lhe nas faces a humidade salgada das lágrimas. Durante um longo momento, os dois ficaram silenciosamente unidos nesse amplexo. Por baixo do puritano roupão, Rick sentia o bater apressado do coração da jovem e o tépido relevo duns seios palpitantes. Quando por fim ela se moveu, assaltou-o uma repentina e selvagem esperança. Mas Carolyn libertou-se sem lhe oferecer os lábios.

 

- Estou aborrecida, Rick. Aborrecida por ter sido tão... tão audaciosa... tão descarada... Mas tinha de lho dizer um dia ou outro.

 

- Tinha de me dizer o quê, querida?

 

- Que, comigo, só tudo ou nada. Ou melhor, connosco. Veja, Rick, desejo tão profundamente... - Interrompeu a frase deixando-a inacabada, e afirmou: - Agora tenho de me ir embora. Sim, tenho de me ir embora.

 

- E se eu não a deixar ir?

 

- Mas deixa, com certeza.

 

Rick atravessou o camarote, sem ousar fixá-la nos olhos, abriu a porta e lançou um olhar rápido para o corredor.

 

- O caminho está livre, Carolyn.

 

Então ela estendeu-lhe os lábios e beijou-o fervorosamente. Depois, saiu para o corredor, de cabeça erguida. Rick viu-a esboçar um leve sorriso para um segredo só dela conhecido. Pelo menos assim o julgava. Mas o segredo já não era só seu: ao voltar-se, a luz iluminou-lhe a gola do roupão, animando no sombrio tecido uns reflexos dourados...

 

Um monograma! Um monograma idêntico ao indecifrável hieróglifo escondido no fundo da mala de Rick Winter.

 

- Desculpe-me, capitão, mas de ora em diante devem usar-se sempre os cintos de salvação. É do regulamento, bem sabe...

 

Rick Winter anuiu com um aceno à observação do oficial de marinha e prendeu aos ombros a Mae West regulamentar.

 

No horizonte nublado, o Sol dir-se-ia um grande balão vermelho . Rick estava já farto de reflectir dentro dum camarote cheio de fumo e sentira necessidade de tomar ar. Trepara por isso ao tombadilho, mas depressa verificou que o ar puro é capaz de obscurecer tanto o entendimento como o próprio fumo.

 

Até àquele momento, ninguém do hospital de campanha saíra ainda dos seus camarotes. Mas um sussurro regular, subindo da entrecoberta, indicava que os soldados da infantaria tomavam já o primeiro almoço. Nos dois lados do tombadilho, os salva-vidas balouçavam-se preguiçosamente nos turcos, providos de mantimentos e preparados para todas as eventualidades que pudessem surgir dum momento para o outro. A vista do mar ficava quase obstruída pelas redes de camuflagem estendidas entre as amuradas e os canos dos canhões.

 

Rick Winter, ao percorrer em passo rápido o tombadilho, ia pensando que a calma daquele grande navio era a calma da confiança. Cada um conhecia a sua tarefa e o seu lugar, incluindo evidentemente certo oficial médico que acabava de resolver o maior problema de toda a sua existência.

 

Parou por baixo da ponte de comando para contemplar o mar. E foi como um tónico para o espírito, banindo, pelo menos provisoriamente, os seus miasmas pessoais. Todo o oceano era um imenso formigueiro de barcos até à linha do horizonte, onde os mastros duma corveta baloiçavam ao sol-nascente. Havia ali velhos calhambeques e modernos navios-cisternas e muitos Liberty de nariz achatado. Havia também luxuosos paquetes transformados em transportes, como aquele que lhe fora destinado. A meia milha de distância, escoltado por torpedeiros, um porta-aviões avançava laboriosamente, para ir ocupar o seu lugar.

 

Winter permaneceu muito tempo por baixo da ponte de comando: o espectáculo que contemplava seria capaz de encher de orgulho mesmo o coração mais indiferente. Aquilo era o resultado duma cuidadosa preparação. Todos os soldados que ali iam tinham-se sujeitado a um duro treino, em intermináveis manobras, durante as quais atravessaram torrentes geladas, suaram ao sol da Georgia, saltaram de aviões em pára-quedas, recalcitrando, resistindo, resmungando, mas avançando sempre e procurando evitar as bombas dum inimigo imaginário.

 

Agora as bombas existiam realmente, o inimigo também, mas esses rapazes cumpririam o seu dever com a mesma calma coragem.

 

Os Americanos são lentos na sua cólera. Jamais no decurso da sua história terminaram uma guerra na hora prevista: nunca venceram uma primeira, nem perderam uma última batalha. Agora iam ali ao encontro do inimigo, para lhe dar batalha no seu próprio terreno e em pé de igualdade. Não era um pigmeu, de força insignificante, destinado a ser repelido das costas dum novo Dieppe. Era sim um jovem gigante, confiado no seu poder e absolutamente sereno.

 

Rick Winter pôs-se a caminhar, um pouco curvado, e marcava a cadência da marcha batendo um punho na palma da outra mão. Faria tudo quanto estivesse ao seu alcance para manter intacta a força desse jovem gigante. De momento, os seus problemas pessoais deviam ser relegados para segundo plano.

 

Nessa manhã estava certo de que Carolyn Rycroft o amava. Amava-o o suficiente para ter ido ao seu camarote na última noite. Amava-o bastante para se lhe ter entregado na Inglaterra, durante o black-out, embora procurasse manter em segredo essa dádiva suprema... Uma coisa era evidente à fria claridade do dia: ela nunca mais se lhe entregaria com o mesmo abandono. Queria tudo ou nada. É certo que a amava e desejava, tanto que seria capaz de lhe oferecer o casamento. Mas o casamento era impossível enquanto durasse a guerra. Não lhe restava portanto outra alternativa senão a de ser prudente e esperar.

 

Porque se esquivava ela a falar do episódio do black-outl A pergunta deixava-o perplexo, embora a fizesse pela centésima vez. Saberia já que ele adivinhara o seu segredo? Levara aquele roupão vestido de propósito para lhe mostrar o monograma e ele poder compará-lo com o da capa que guardava? À primeira vista, parecia um clássico ardil feminino. Mas como sucede com a maior parte dos estratagemas femininos, não se descortinava bem o seu alcance. Era um outro problema que só o tempo esclareceria. No fim de contas, problema insignificante comparado com a magnitude da tarefa que a todos esperava para além da linha do horizonte.

 

Não eram ainda sete horas quando Rick desceu à sala de jantar, mas a mesa que lhe fora atribuída já estava bem repleta. Sorriu a Terry Adams, que olhava obstinadamente para uma chávena de café intacta.

 

- Não te deixes transtornar pelo enjoo, meu rapaz, pois já deixámos para trás o balance da Mancha. - Depois, lembrando-se da noite anterior, perguntou, baixando a voz: - Conseguiste dormir, apesar da ameaça do submarino e das granadas?

 

- Terry forçou um sorriso:

 

- Dormi bem, obrigado.

 

E ao dizer isto perguntava a si próprio como reagiria Rick se soubesse que ele, Terry, não dormira sozinho. Que vivia já à espera do minuto em que Gina voltasse... O que mais o surpreendia era não sentir a mínima vergonha. A recordação cegou-o durante um instante: bastava-lhe fechar os olhos para tornar a sentir, junto do rosto, o quente murmúrio dos lábios de Gina, o seu contacto... Falou, para se libertar da obsessão:

 

- E você, Rick?

 

Mas já Randall Strang se inclinava para o capitão:

 

- Antes de vir para aqui, Winter, visitei o seu doente.

 

- Estive lá às seis horas, major. Espero que entretanto o seu estado não tenha mudado.

 

- Weldon disse-me que tudo corre às mil maravilhas. Devo confessar-lhe, estou surpreendido.

 

- Porquê?

 

Strang respondeu sentenciosamente:

 

- Refiro-me   ao   seu tratamento pós-operatório,   capitão. Posso dar a minha opinião a esse respeito?

 

- Não a dá sempre?

 

O cirurgião-chefe aceitou o desafio com complacência. «Prepara-se para alguma coisa», pensou Rick. «Nunca mostra tanta delicadeza sem motivo.»

 

- Havia perfuração incontestável - admitiu Strang.

 

- Incontestável, sim, major. Um divertículo ulcerado.

 

- Weldon disse-me que não deixou um dreno.

 

- Não, com efeito. Polvilhei o peritoneu com sulfamidas e fechei tudo em seguida.

 

- Pessoalmente, fico mais tranquilo quando se deixa um dreno no local. No caso presente, deixarei as coisas como estão. Desde que, bem entendido, não haja recaída.

 

«Estás a passar-me a mão pelo lombo», cogitou Rick. «O que quererás pedir em troca?»

 

Esperou pacientemente, enquanto Strang, tirando do bolso a cigarreira de ouro, a fazia circular em redor da mesa, com o ar de um soberano distribuindo as suas liberalidades.

 

- Presumo que na guerra de Espanha não havia muito tempo para drenar, pois não, Winter?

 

- Para dizer moderadamente as coisas, não havia tempo, com efeito.

 

- Acabo de ler um artigo de Jolly sobre o Three-Point-Forward System, tal como o praticavam os médicos lealistas. Essa técnica é-lhe familiar?

 

- Um pouco - confirmou Rick. - Trabalhei numa unidade desse género perto de sete meses.

 

- Talvez dentro de poucos dias recorramos também a uma versão modificada desse sistema. Tenciono mesmo completar o artigo de Jolly com algumas notas e observações pessoais. É possível até que faça uma comunicação sobre o assunto à American Medical Association.

 

«Queres documentar-te junto de mim para te esqueceres depois de citar o meu nome», pensou Rick. Mas contentou-se em responder:

 

- Se os outros estiverem interessados em ouvir... Amos Elaine bateu na mesa com a palma da mão:

 

- Tem a palavra, Rick. A classe quer prestar atenção? Mas Strang não se dispunha a abandonar ainda a cátedra:

 

- Uma pergunta em primeiro lugar. Nós sabemos que o método dá resultado. Simplesmente, valerá a pena correr um tal risco?

 

- Vi os resultados com os meus próprios olhos - começou Winter. - Quanto aos riscos... bem, creio que a maior parte dos nossos cirurgiões andavam demasiado ocupados para terem tempo de pensar neles. - Hesitou um momento, perguntando a si próprio como havia de expor o assunto para o tornar bem perceptível. - O grande problema é este: a técnica hospitalar mais avançada só se torna eficaz e diminui consideravelmente a mortalidade dos ferimentos graves quando se reduz o tempo entre o acidente e o tratamento. Nalguns casos, conseguiu-se uma redução de várias horas...

 

- E qual a taxa de mortalidade do pessoal médico desses hospitais de campanha? Um soldado substitui-se facilmente. Um bom cirurgião não se improvisa só com a entrada em vigor duma lei de serviço selectivo.

 

Strang parecia encantado com a sua resposta, mas o argumento inflamou Bill Coffin:

 

- Desde quando nos importamos com os riscos que correm os cirurgiões militares? Morreram muitos na última guerra, bem sabe.

 

Rick levantou a mão:

 

- Bill tem razão, major. O dever de um cirurgião.,seja onde for, é salvar a vida dos outros e não de se preocupar com a sua.

 

- Porventura afirmei o contrário?

 

- Evidentemente que não. Sei que neste momento se contenta em elaborar... estatísticas...

 

Rick fez uma pausa, para dar maior importância às reticências, depois continuou:

 

- Eis, em poucas palavras, o que é o Three-Point-Forward System. Os feridos recebem os primeiros socorros nos postos do batalhão, exactamente como sucede entre nós. Em seguida são expedidos, em macas, para os postos de recolha. No sistema espanhol, chamavam-se a estes postos de classificação.

 

- Não me diga que classificavam assim os feridos tão rapidamente .

 

- Pois afirmo isso mesmo. Uma classificação tão perto quanto possível do imediato é a própria base do sistema.

 

- Urgentes e não urgentes?

 

- Avaliados rundimentarmente de harmonia com o progresso da ciência. Os casos «urgentes» incluem as feridas abdominais, as lesões torácicas, as fracturas complicadas...

 

Rick durante um momento fixou o olhar no tecto, recordando a angústia de semelhantes decisões. A expressão dolorosa, desesperada, do rosto dos feridos, diante dos quais o médico passava para designar o ocupante duma outra maca, cujo estado impunha uma mais rápida intervenção.

 

- Actualmente, o hospital de campanha deve ficar instalado tão perto quanto possível da linha de fogo. Todos os casos urgentes são para lá conduzidos sem demora. Os cirurgiões trabalham até não poderem mais, mas despacham todos os feridos. Em Espanha essas unidades eram completas e autónomas, exactamente como a nossa.

 

- Incluindo as enfermeiras?

 

- Enfermeiras de todas as categorias. Alguns dos nossos pacientes requeriam dez dias de tratamento antes de poderem ser evacuados para a retaguarda. Quando passámos a dispor de comboios-hospitais, as coisas simplificaram-se bastante. Eram ainda uma inovação recente. Mas os russos demonstraram o seu valor na prática. Enchíamos os vagões com os feridos que saíam das salas de operações, e quando o comboio estava cheio seguia viagem.

 

- Estou a ver o que é! - exclamou Bill Coffin. - Não conduziam o ferido até junto do cirurgião, mas sim o cirurgião até junto do ferido.

 

- Isso resume, com efeito, todo o método.

 

Os olhos de Rick percorreram os rostos atentos em volta da mesa, depois concluiu:

 

- E rogo a Deus que adoptemos a mesma técnica na presente aventura, com aperfeiçoamentos americanos. O que pensa a esse respeito, coronel?

 

Elaine limitou-se a abanar a cabeça:

 

- Não se cansem a dar à bomba sobre este assunto, rapazes. Asseguro-lhes que a fonte está seca.

 

- Não conto com muitas inovações, Winter - declarou Strang. - Em minha opinião, a nossa função é sobretudo experimental.

 

- Perdão - interrompeu Bill Coffin -, nós estamos classificados como uma unidade móvel.

 

- As nossas enfermeiras - acrescentou Rick - receberam um rigoroso treino de campanha em tudo quanto a guerra possa delas exigir. Trabalhamos juntos há alguns meses. E nos porões deste transporte há salas de operação rolantes, que podem ir até muito perto das linhas de fogo. Que diz a isto, major?

 

- Não creio na eficácia do pensamento em voz alta - atalhou Strang.

 

- Podemos deixar de o fazer uma vez que já chegámos a este ponto? Creio que seremos enviados para a frente de batalha, tão perto da linha de fogo quanto for possível. - Winter estava realmente divertido com a confusão do cirurgião-chefe. - Pessoalmente, não me importo de fazer qualquer experiência por uma boa causa.

 

O coronel ergueu-se da mesa. Winter fez outro tanto, rapidamente:

 

- O que pensa duma conversa com Weldon, major? Ele conduziu algumas unidades médicas para a Austrália. E dir-Ihe-á decerto que labora em erro.

 

O primeiro alarme soou ao princípio da tarde. Os aviões vinham do sul, aparentemente tão inofensivos como mosquitos, na brilhante claridade do dia. As sereias ulularam duma ponta à outra do comboio, e as baterias antiaéreas entraram logo em acção, com a precisão de aparelhos automáticos. Dos porta-aviões, os caças levantaram voo, um após outro, subindo no azul do firmamento. Não tardou que o céu estivesse todo salpicado de pequenas borlas de fumo, geometricamente dispostas. Os espectadores agrupados no tombadilho de transporte tinham a impressão de assistir a um filme fantástico de actualidades.

 

Rick preguiçava lá em cima ao sol quando soou o alarme.

 

Abrigou-se o melhor que pôde e pôs-se a observar a entrada em acção duma bateria antiaérea. O jovem tenente que a comandava dava as suas ordens com tanta calma como se se tratasse dum simples exercício. Cada pormenor gravava-se na retina de Rick com a nitidez duma água-forte: os canos esguios das metralhadoras, os dorsos bronzeados e luzidios dos serventes, a coleante huri tatuada no braço do sargento encarregado do telémetro.

 

Uns passos que se aproximavam distraíram-lhe a atenção. Linda Adams, completamente a descoberto, debruçava-se na amurada. Na sua excitação, esquecera-se mesmo de se proteger com o elmo.

 

- Ponha o capacete! - gritou-lhe Rick. - A não ser que a sua cabeça seja mais dura que os estilhaços. - E ficou a vê-la enterrar até às orelhas a absurda meia esfera metálica. Depois aproximou-se dela e tomou-lhe o braço. - Se quer ficar aqui, venha ao menos partilhar o meu abrigo.

 

Sem deixar de olhar para o céu, Linda deixou-se conduzir, perguntando:

 

- São Heinkels?

 

- Parece-me que são aviões de observação.

 

- Então não podem bombardear-nos.

 

Os aviões de caça americanos tinham já atingido, voando em espiral, a altitude do inimigo. Mesmo com o auxílio de binóculos, era difícil seguir, em todos os pormenores, o combate aéreo, e, à vista desarmada, dir-se-ia que o duelo se travava no meio do nevoeiro, como se uma massa de nuvens tivesse tragado igualmente os aviões americanos e nazis.

 

- Dêem-lhes tempo de radiotelegrafar as observações para o seu aeródromo em França, é tudo quanto eles desejam.

 

- Ao menos, sabemos agora que vão chegar dum momento para o outro...

 

Rick notou-lhe leve tremor na voz e observou-lhe:

 

- Quando deixámos a Inglaterra, já sabíamos que eles haviam de aparecer. Se tem medo, diga; não é vergonha nenhuma.

 

Linda respondeu pensativamente:

 

- É certo que já ouvi Stukas. Nos abrigos de Londres e do Cairo. Nunca ao ar livre, como hoje.

 

- Se imagina que a deixo ficar aqui...

 

- Mas não tenho outra alternativa, Rick. Lembre-se que preciso de ganhar o meu pão com manteiga... - Fixando-o bem nos olhos interrogou: - E você? Vão ser necessários todos os cirurgiões, bem sabe, e não é permitido...

 

- Mil desculpas, mas eu sou presbiteriano. Se uma bomba me for destinada, encontrar-me-á onde quer que esteja.

 

Outras sereias romperam a serenidade daquela tarde azul e ouro. Eram buzinas de som estridente. Linda aproximou-se mais de Rick. Ao longe, a bombordo, uma coluna de água enviou o seu jacto para as nuvens e tornou a cair antes que o ruído da explosão lhe chegasse aos ouvidos.

 

- Submarinos?

 

- Penso que sim. Jerry parece querer divertir-se com o seu jogo favorito: dispersar um comboio, ou pelo menos tentar dispersá-lo, com ataques simultâneos de aviões e submarinos.

 

As granadas de profundidade sacudiam agora o mar. A marcha do comboio prosseguia na mesma ordem. Se o comandante dum único navio perdesse a cabeça e tentasse uma fuga individual, a segurança de todos ficaria em perigo. O submarino contava talvez com essa possibilidade. Se conseguisse isolar um navio e romper a ligação com o torpedeiro de escolta, valeria então a pena aparecer à superfície para o afundar...

 

O transporte atravessava agora a própria zona onde momentos antes explodira a última série de granadas: o turbilhão aquietava a pouco e pouco o seu remoinho mas com uma horrível consequência. E Linda sentiu faltar-lhe o ar quando, subindo das profundidades, um vasto cogumelo de óleo se espalhou na superfície líquida como se lá em baixo um monstro estivesse em agonia.

 

- Mergulho demasiado tardio - observou Rick, cerrando os punhos. - E não desperdice a sua piedade, por favor. Quer voltar para dentro?

 

- Sim, desejava, mas continuarei cá fora.

 

Durante meia hora o comboio prosseguiu lentamente a sua rota sem haver novo sinal de alarme. Aparentemente, o perigo passara. Mas as guarnições dos canhões continuavam a postos e os aviões esquadrinhavam o céu para as bandas do oriente. No tombadilho, Rick notou que os marinheiros inspeccionavam os salvavidas, tirando-lhes as lonas da cobertura, verificando os mantimentos, examinando o funcionamento dos turcos. Ao longe, ouviu-se o crepitar duma metralhadora, prelúdio curiosamente pouco dramático duma batalha. À distância, produzia o efeito duma cana a tamborilar nos ferros duma grade, acordando na memória de Rick a recordação das suas brincadeiras de criança. O capitão Winter via o Sol a declinar e perguntava a si próprio se aquelas manchas negras que distinguia... Sim, não havia dúvida... Sentiu uma enorme simpatia pelos pilotos dos caças que levantavam voo da superfície plana do porta-aviões.

 

- Não é nenhuma parvoíce o que Jerry está a fazer. Nós esperávamos que ele nos saltasse em cima das bandas do oriente. Em vez disso, enviou a sua esquadrilha para o alto mar, contornando-nos de longe e ataca-nos pelo ocidente.

 

- Isso quer dizer que são fracas as nossas possibilidades de os abater?

 

- Muito fracas. Os pilotos dos nossos caças ficam com o sol a bater-lhes nos olhos e dificilmente poderão distinguir os seus alvos. É mesmo muito possível que só consigam ver o inimigo quando este estiver quase em cima deles.

 

O ar agora estremecia de estampidos por toda a parte. Enquanto Rick e Linda falavam, os aviões alemães tinham-se aproximado. Rick contou doze, escalonados, antes de principiar o primeiro embate. Indiferentes à ameaça das metralhadoras, os nazis passavam, estoicamente, por entre os estoiros. Mas já um deles, sombrio cometa, se separava da formação, cortava em dois o disco do Sol e descia a pique sobre o porta-aviões. Mas no próprio momento em que parecia ir endireitar-se, lançar as bombas e ganhar de novo altura, um obus antiaéreo atingiu-o em cheio.

 

O estrondo ouviu-se mesmo à distância. Mais uma fracção de segundo e o bombardeiro descia, rugindo, para o mar, já ferido de morte. Instantes depois, o Stuka estava transformado num destroço incandescente que terminava num lento remoinho a sua caminhada para o túmulo.

 

- Desta vez - disse Linda - não me deixarei arrastar pela compaixão.

 

Havia na sua voz uma espécie de alegre entusiasmo, primeiro sinal dessa loucura guerreira que Winter observara com frequência em Espanha. Instintivamente, arrastou-a para longe da amurada. É claro, o seu trabalho impunha-lhe que experimentasse aquelas emoções, mas ele estava absolutamente decidido a poupá-la ao pior, se pudesse.

 

O pandemónio era agora senhor absoluto de todo o espaço, despedaçado por contínuos uivos. Travavam-se meia dúzia de
combates, jogos de escondidas mortais no meio das nuvens. Um outro Stuka, mortalmente ferido, descia apertado movimento de verruma, qual preguiçosa gaivota negra, com uma faixa de fumo agarrada à cauda. Mergulhou por fim no mar, a menos de cem metros do transporte. Com um braço em volta do busto de Linda, o capitão arrastou-a para a escada que conduzia à coberta inferior.

 

- Mesmo para uma jornalista, isto é demasiado perto.

 

Uma diabólica chuva de invisível granizo tamborilou no tombadilho e picotou a superfície do mar; Rick elevou a voz para gritar:

 

- Desça, não ouve?! Já tem um bom fecho para o seu artigo: pode escrever, na última linha, que só procurou abrigo quando as primeiras rajadas de metralhadora começaram a saltar em nossa volta.

 

Mas ela libertou-se das mãos que a prendiam e correu outra vez para a amurada. Jornalista-nata em busca duma informação sensacional? Rapariga ridiculamente temerária obedecendo ao impulso dos nervos? Rick encolheu os ombros sem encontrar resposta e seguiu-a. Tal como ela, lamentaria também perder aquele espectáculo.

 

A batalha aérea decidia-se nitidamente contra o inimigo. Só seis Stukas se mantinham ainda no ar. Segundo todas as probabilidades, as perdas americanas não eram menos pesadas, mas o comboio prosseguia intacto a sua rota. A perseguição insistente dos aviões de caça e a precisão do tiro antiaéreo não deram tempo aos nazis para se organizarem e encontrarem uma aberta por onde pudessem introduzir-se para lançarem as suas bombas num objectivo escolhido.

 

No entanto, nesse mesmo instante, um avião alemão abandonou o combate e atravessou sozinho o céu, qual morcego atacado de loucura. Rick seguia de olhar fascinado essa corrida suicida. Uma vez, num jogo de futebol, nos seus tempos de estudante, atravessara igualmente o campo de lês a lês. E tornava a encontrar dentro de si, intacta, essa repentina sensação de liberdade que o invadira ao ver na sua frente, a menos de trinta metros, as balizas do Princeton e apenas um defesa para ultrapassar. Esse piloto, lá em cima, devia experimentar, em mais alto grau, a mesma embriaguez. Seguia-lhe os movimentos e compreendeu que o Stuka ia mergulhar. Somente um feliz acaso, o tiro certeiro dum canhão antiaéreo, poderia detê-lo. Mas não havia motivos para esperar dois milagres na mesma tarde.

 

Ouviu Linda ofegante ao seu lado. O Stuka estava precisamente por cima das suas cabeças e continuava a descer, direito ao transporte, a quinhentos quilómetros à hora. Teve necessidade de empregar toda a sua força para arrancar Linda Adams à amurada e estendê-la, de rosto para o chão, nas tábuas do tombadilho, sob o vago abrigo duma jangada. Nessa fracção de segundo, o Stuka transformara-se numa bala gigantesca, negra como a própria morte. Rick viu com estranha indiferença a bomba soltar-se do avião. Não teve tempo para baixar a cabeça, nem mesmo para rezar. O pássaro negro já ganhava outra vez altura e por baixo das suas asas duas grandes cruzes brancas pareciam olhá-lo impiedosamente, órbitas de pesadelo duma caveira.

 

A bomba atingira o transporte muito à proa, e teria sido fatal se não se desviasse o suficiente para perder parte da sua força no mar, poupando assim o navio a um tremendo desastre. Rick ergueu-se logo e correu ao longo do convés. Uma cratera hedionda substituía agora, à proa, a bateria antiaérea que momentos antes realizara tão bom trabalho. E desse enorme rombo viu sair a primeira língua de fogo, ao mesmo tempo que dois Condors, apanhando a cauda do Stuka no enfiamento da mira das suas metralhadoras, faziam pagar caro ao nazi o seu triunfo.

 

Rick não parou para ver o último e desesperado mergulho do inimigo. Lembrou-se de Linda e voltou atrás.

 

Apesar de toda a sua altivez patrícia, a jovem deixou-se transportar, inconsciente, nos braços de Winter. Rick levou-a para o salão, estendeu-a no meio das almofadas e, debruçado ansiosamente para ela, viu-a sair do desmaio com um aprumo perfeito. Com uma voz que depressa readquiria o timbre normal, desculpou-se:

 

- Lamento muito, Rick. Receio ser demasiado feminina, apesar de tudo... O que sucedeu? Preciso de saber.

 

- Não se importa de ficar aqui sossegada cinco minutos? Prometo vir informá-la.

 

Examinou-a atentamente, notando um fiozinho de sangue a escorrer-lhe pela testa: pequena escoriação provocada pelo capacete metálico, ao cair no tombadilho.

 

- Para a próxima vez lembre-se de apertar bem a correia. Mais nenhuma ferida? Nem qualquer bala perdida?

 

Linda sentou-se calmamente, ignorando o sangue na testa:

- Estou absolutamente intacta, obrigada. Quer então trazer-me esse comunicado?

 

Quando Rick voltou ao convés, o céu já estava limpo de inimigos. Os bombeiros moviam-se no meio de espirais de fumo que engrossavam e se sucediam à saída do porão da proa. Reteve a respiração ao ver um homem vestido de amianto meter-se no meio das chamas, como um habitante dum outro planeta. Os soldados de infantaria principiavam já a sair das entrecobertas. Não se notavam nenhuns sinais de pânico. De rostos carrancudos, sim, mas obedecendo todos às ordens recebidas.

 

Winter encontrou o comandante do navio.

 

- Pertenço ao Serviço de Saúde. Poderemos servir-nos do hospital?

 

O comandante mostrava-se preocupado, mas competente:

 

- Penso que sim, capitão. A bomba não nos atingiu em cheio, graças a Deus. As anteparas estanques devem resistir.

 

Linda esperava, obediente, o regresso de Rick.

 

- Temos de ir para os salva-vidas? - perguntou-lhe quando o viu.

 

- Desta vez não. Mas se está em condições de fazer alguma coisa, venha comigo para o hospital.

 

O rosto da jovem tornou-se grave:

 

- Mas o que posso eu...?

 

- Pode pelo menos escrever à máquina. Terei necessidade de si para fazer os relatórios... É a tarefa normal de Terry. Mas esta tarde, quer seja regularmente ou não, é promovido a médico assistente. Pode também preencher as fichas de urgência. Em resumo, documenta-se para o artigo que há-de escrever. Está pronta para a ofensiva?

 

Rick fê-la estugar o passo ao descerem a escada. E assim se incorporaram os dois na onda do pessoal, enfermeiras e oficiais, cada qual mais apressado em acorrer ao desempenho da sua missão.

 

Linda limitou-se a pedir:

 

- Indique-me o caminho, Rick.

 

- Não faço outra coisa.

 

Guiou-a até ao corredor da coberta antes de se lembrar de Carolyn.

 

Carolyn Rycroft! Fora para lá antes e fizera tudo quanto era preciso na sua ausência, enquanto ele andava no convés a ver o que se passava, como um garoto no circo. Carolyn Rycroft, a mulher amada. Carolyn Rycroft, a mulher com quem resolvera casar quando o mundo estivesse mais calmo.

 

Evidentemente, sabia-a em segurança. Estava de serviço nessa tarde, no próprio hospital, situado no bem protegido coração do navio.

 

Empurrou a porta de vaivém para dar passagem a Linda. Nesse instante, um grito dilacerou o are ambos trocaram um olhar cheio de piedade. Um grito que não era absolutamente humano, o grito desesperado dum homem cujo sofrimento se tornara insuportável.

 

- Os feridos começam a chegar. Se quiser, vá-se embora, saberá depois a história em segunda mão - aconselhou Rick.

 

- Mas não, não quero ir - declarou Linda. - E não é uma história o que pretendo, quero ajudar.

 

E libertando-se da mão que lhe amparava o braço, foi a primeira a entrar.

 

A sala de admissão do hospital era um quadro de pesadelo de Gustave Doré encaixilhado em fumo. A respeito do sistema de ventilação, dir-se-ia que um véu cinzento pairava no ar e sempre que a porta se abria para deixar passar outra maca, essa espécie de auréola sinistra tornava-se mais espessa. Rick parou um segundo, perguntando a si próprio se os bombeiros conseguiram extinguir o fogo antes das chamas atingirem as anteparas estanques a meio do navio.

 

Confiou Linda a um enfermeiro de serviço e dirigiu-se para a mesa central, onde Strang gritava ordens.

 

Era um espectáculo de dilacerar o coração. Soldados queimados e estropiados afluíam sem cessar ao hospital e já todo o pavimento da sala desaparecera por baixo das macas alinhadas lado a lado. Uns eram marinheiros, outros vestiam caqui. Homens cujos uniformes tinham sido quase totalmente devorados pelas chamas. Alguns mostravam já a peculiar tez de marfim anunciadora da morte; esses, via-se bem, eram casos desesperados. Rick notou que Strang os isolara num canto especial.

 

Bill Coffin parou na sua frente, armado duma seringa hipodérmica envolvida num pano esterilizado. O seu sorriso permanecia intacto.

 

- Graças a Deus que chegaste, meu velho - disse. - Estamos quase a deitar por fora. E vê se consegues afastar o chefe daquela mesa. Porque, com ele ali, deitamos por fora com certeza.

 

E dito isto, foi cuidar do homem que gritara momentos antes. Rick aproximou-se da mesa e tocou no cotovelo de Strang.

 

- Posso encarregar-me da separação dos feridos, major? A sua presença deve ser necessária na sala de operações.

 

Strang fixou-o com um olhar embaciado, depois anuiu:

 

- Tem razão, Winter. O meu lugar é na sala de operações. E saiu vagarosamente, passando com solenidade entreportas.

 

Mesmo nesse instante, o chefe arranjara maneira de conservar, como armadura inflexível, a sua aparência austera. Rick viu-o desaparecer com um suspiro de alívio. Era uma oportunidade magnífica para pôr em ordem aquele caos. E também uma ocasião excelente para experimentar a técnica em que matutava há muito tempo... Quando se lançou à sua tarefa, esqueceu mesmo Carolyn Rycroft. Esqueceu também que Linda colocara já uma máquina de escrever num canto da mesa e começava a dactilografar os primeiros relatórios.

 

- Podes chegar aqui por um instante, Bill? O major Coffin acorreu logo ao chamamento.

 

- O que desejas?

 

- Queria cinquenta comprimidos de morfina dum quarto de grão1, numa seringa de cem centímetros cúbicos. Enche-a de água quente esterilizada e mete mãos à obra.

 

- Entendido.

 

Com efeito, seria quase tão fácil dar injecções daquela forma como com uma seringa pequena e a dose única servia para cinquenta homens. Rick pusera já em ordem os registos de Strang dispersos em cima da mesa. Quando levantou a cabeça, Carolyn Rycroft estava na sua frente, vestida com a bata da sala de operações.

 

- O chefe mandou-me para aqui, capitão.

 

Um grão: 0,648 gramas.

 

O tom era absolutamente impessoal, verdadeiro autómato dum maquinismo perfeito, preparado para cumprir ordens. Rick adoptou, sem dar por isso, o mesmo tom:

 

- Como estamos a respeito de instrumentos esterilizados?

 

- Prontos desde o primeiro alarme.

 

- Muito bem. Será preciso gaze vaselinada, algodão em rama, e todas as ligaduras e sulfamidas que a sala de operações nos possa dispensar.

 

- Dentro de três minutos terá tudo quanto precisa, capitão. E desapareceu num relâmpago.

 

Na ponta da fila das macas, Bill começara já, metodicamente, a injectar um quarto de grão de morfina em cada braço estendido, passando logo para o braço seguinte. Terry Adams assomou à porta da sala dos raios X, e atrás dele o imponente arcaboiço de Manners, perito daquela secção.

 

- Prontos para o serviço, capitão.

 

A voz de Terry era perfeitamente calma. Onde teria ele arranjado tão depressa coragem?

 

- Os dois podem encarregar-se de ministrar o plasma. Terry, julgas possível convencer o chefe a dispensar metade do seu aprovisionamento?

 

- Posso tentar.

 

- O doutor Manners indicará quais os doentes que precisam. Quer começar esse exame imediatamente, Jim?

 

Linda chegou com as mãos cheias de fichas de urgência.

 

- Fique junto dos médicos - ordenou Winter. - Reúna todas as informações possíveis. O que dizem os primeiros relatórios?

 

- Noventa por cento dos casos admitidos são queimaduras, capitão.

 

Ela adaptara-se com facilidade ao ritmo geral. Dir-se-ia, verdadeiramente, que também fazia parte do grupo. E, na sua tarefa, funcionava com a mesma calma eficiência de Carolyn.

 

- Explodiu um reservatório de combustível à proa. Quinhentos homens estavam alojados no porão ao lado - informou Linda.

 

Não disse mais nada. Era inútil.

 

Rick abanou distraidamente a cabeça. O seu espírito estava preocupado com outro aspecto do problema. Nesse instante acabava de tomar uma decisão. Talvez lhe custasse a patente de capitão, ou mesmo a sua carreira como médico. Tanto pior; valia a pena correr o risco. Falou claro, um pouco secamente, numa voz decidida, e tanto técnicos como médicos, todo o pessoal o escutava com atenção, no desejo de compreenderem bem os seus intentos.

 

- Metade dos doentes devem ser enviados para a sala de operações, para desbridamento. Os outros ficam aqui.

 

E uma vez franqueado o seu Rubicon íntimo, ficou mais calmo.

 

O desbridamento, limpeza e cuidadosa excisão cirúrgica, com anestesia se fosse necessário, de todos os tecidos desvitalizados, constituía a técnica-tipo adoptada nos hospitais. Mas Rick nunca se convencera de que esse fosse o melhor tratamento. Vira muitos pacientes emergir dessa horrível tortura, o pulso a ceder, a pressão sanguínea a atingir um nível perigoso, a resistência nervosa enfraquecida, tudo isso exactamente quando a vítima mais precisava de todas as forças e de toda a coragem para lutar pela vida.

 

Bill perguntou serenamente:

 

- E com a segunda metade, o que contas fazer?

 

- Tratamo-los aqui. Nas mesas das duas salas. Sulfamidas e gaze vaselinada.

 

- Nada de desbridamento?

 

- Nada.

 

Parecia-lhe uma boa ocasião para provar que o desbridamento era sempre inútil e frequentemente perigoso. Se se enganasse, Strang agarraria pelos cabelos aquela oportunidade para cortar as pernas a um oficial de que não gostava. Se o resultado fosse o que esperava, então tudo correria bem. Strang, estava disso absolutamente convencido, usaria o método tradicional. Não podia pois arranjar melhor ensejo para medir o rígido major pela sua própria bitola.

 

Bill Coffin teve uma das suas expressões sorridentes. Winter ficou tão reconfortado como se, perdido no remoinho da dúvida, visse de repente brilhar uma luz de alegria e confiança.

 

- Ao teu triunfo - proferiu Bill, fazendo um brinde imaginário.

 

- É preciso que toda a gente ponha máscara. Enfermeiro, arranje uma para Miss Adams.

 

Voltou-se e viu Carolyn que chegava da sala de operações:

 

- Poderá começar não tarda nada, capitão. A gaze vaselinada vem a caminho.

 

- Obrigado, Miss Rycroft. Prepare-se.

 

Uma mesa rolante, onde se empilhava o material pedido, apareceu nesse instante.

 

Winter dirigiu-se para o homem estendido na primeira maca. A morfina tinha-o sossegado.

 

- Sala de operações - ordenou. Depois passou ao seguinte:

- Para a mesa da sala de estibordo.

 

A porta abriu-se de súbito e Manny Ebstein entrou. Um Manny ligeiramente tisnado, que se desembaraçava da blusa suja ao aproximar-se:

 

- Às suas ordens, patrão!

 

- Donde vens tu? De ajudar os bombeiros?

 

- Andei com a escada e com os ganchos. Agora já está tudo coberto com o toldo. Então disse para mim: «Vou ver se...»

 

- Bem, não gastes mais tempo a pensar em voz alta. Vai juntar-te a Miss Adams e separa os doentes como eu indiquei. Ela te explicará porquê, se porventura o caso te interessar.

 

E entrou para a sala de estibordo, acompanhado de Bill Coffin, de Carolyn Rycroft e da mesa rolante.

 

O Dr. Manners preparava o plasma diluindo em água esterilizada o pó acastanhado. Terry trabalhava junto dele, activo e aplicado. Rick dirigiu-se para a improvisada mesa de curativo.

 

- Eu trato o primeiro caso, Bill. Tu ocupas-te do segundo na outra mesa. Strang tem muito quem o ajude na sala de operações.

 

Bill anuiu, mas o seu rosto tornou-se grave:

 

- O tratado oficial de cirurgia é claro: ácido tânico e desbridamento das queimaduras, Rick. Estás absolutamente certo que o podes atirar pela borda fora?

 

- O suficiente para tomar as minhas responsabilidades. Como cirurgião mais antigo, tenho autoridade para decidir. Ficas ao meu lado?

 

O rosto de Bill Coffin abriu-se num sorriso:

 

- Estou ainda um passo atrás de ti. Mas não te dê isso cuidado, depressa te apanharei.

 

Pegou nas tesouras e começou a cortar o uniforme do soldado deitado na segunda maca.

 

Mal olhou para o seu paciente, Rick percebeu logo que ele estava horrivelmente queimado, com grandes extensões de pele calcinada nas costas e nos ombros. O tratamento habitual requeria, evidentemente, que se percorresse toda aquela superfície com a pinça e o bisturi. Uma vez removida a pele danificada, a ferida devia ser minuciosamente lavada e depois borrifada com soluto de ácido tânico ou qualquer substância similar, destinada a formar crosta.

 

Este tratamento era normal na maior parte dos hospitais. Todavia, ultimamente alguns autores tinham sugerido que esse método estava muito longe de ser ideal, insinuando mesmo que o desbridamento e a demorada lavagem que se seguia ocasionavam ao paciente um choque inútil. No laboratório tinham-se cultivado queimaduras, sem serem submetidas a esse tratamento para provar que poucas infecções se produziam, ou mesmo nenhumas. Em seguida, outras queimaduras com desbridamento, lavagem e ácido foram cultivadas, como as primeiras. Averiguou-se um resultado pelo menos estranho: visitantes imprevistos apareceram nessas feridas. Não os germes que é natural encontrar na sujidade e nos vestuários, mas os que pululam no nariz e na garganta das pessoas normais.

 

Chegados a este ponto, os pioneiros registaram os primeiros resultados dos seus ensaios: nada de bactérias quando a queimadura se produz e uma pululação abundante no dia seguinte, depois de o paciente ter passado para a câmara calorífera, após muitas personagens - dadores de sangue, médicos, enfermeiros - se terem para ele debruçado. Os germes provinham dessas pessoas sãs? Os pioneiros deslocaram então a sua frente de batalha e trataram os casos seguintes como tratavam os feridos na sala de operações, com blusa, máscara e luvas. Nenhuma infecção se registou nesse grupo; o choque fora reduzido ao mínimo. Verificou-se um progresso espantoso na percentagem de curas completas.

 

Mas os pioneiros tinham apenas principiado. Puseram-se a reflectir nessas espessas crostas negras que o ácido tânico formava sobre as feridas, por baixo das quais já tinham visto acumular-se a infecção, ao ponto de retrair por vezes os dedos dos pés e das mãos, bloqueando-lhes a circulação. Passavam-se dias e dias sem que essas crostas caíssem e, entretanto, a cura progredia com desesperadora lentidão na periferia da zona atingida. Não era sequer uma cura satisfatória, que reconstruísse uma pele sã e flexível; produzia, sim, um tecido cicatricial disforme, sempre irritado, fendido, dando origem a úlceras exsudantes.

 

Os pioneiros voltaram então aos princípios iniciais, e em lugar de provocar a formação de crostas, começaram a tratar as queimaduras como tratavam outras feridas, com pó de sulfamida para impedir a infecção local, e um penso de gaze vaselinada. Depois, e muito rapidamente, enxertavam no local novas camadas cutâneas, com a ajuda de pedaços de pele extraídos doutros pontos do corpo do paciente.

 

Ainda não tinham sido publicados os resultados de tais experiências e descobertas, pois esses cientistas não queriam desacreditar um processo há muito tempo usado sem a certeza absoluta de que o novo método era melhor e que com essa terapêutica se reduziria a mortalidade e diminuiriam muito as despesas de hospitalização.

 

No entanto, aqui e além já circulavam alguns rumores a esse respeito e Rick vira com os seus próprios olhos várias curas assim realizadas nos Estados Unidos. Sabia também que os britânicos tinham abandonado em grande parte o tratamento pelo velho método da formação de crostas. Aquela era pois uma excelente oportunidade, que talvez nunca mais se repetisse, para provar que os pioneiros estavam no bom caminho, e decidiu aproveitá-la.

 

Delicadamente, ia cortando e tirando as vestes do soldado, consciente da presença de Carolyn, vendo-lhe os olhos calmos por cima da máscara enquanto o ajudava a romper uma manga do uniforme.

 

Atrás dele, Bill Coffin perguntou:

 

- Que quantidade de sulfamida, Rick?

 

- Polvilha ligeiramente as queimaduras. São suficientes dez gramas para cada caso.

 

E, dizendo isto, desfez o invólucro duma caixa, tirou a tampa do crivo e espalhou meticulosamente na pele calcinada e empolada uma camada fina e regular de pó. Com a ajuda de pinças, colocou geometricamente alguns quadrados de gaze impregnada de vaselina até cobrir assim a última polegada de carne enegrecida, não deixando à mostra senão a epiderme intacta. Depois, estendeu sobre esse primeiro penso uma camada de gaze esterilizada e por cima uma boa espessura de algodão, tudo bem apertado com ligaduras e adesivo, de forma a manter uma pressão regular em toda a superfície queimada. A pressão era duma importância capital. Sob a epiderme destruída, a derme começaria a segregar um fluido bastante semelhante ao plasma, e a pressão era o único meio de impedir o excesso dessa exsudação.

 

Atrás de Winter, Bill falou de novo:

 

- Aponta o meu primeiro tratamento. O homem fica aqui?

 

- Com certeza. Diz aos maqueiros que o levem para uma cama e o conservem aquecido e de pés levantados.

 

Rick pegou no telefone interior e pediu a enfermaria de bombordo. Uma voz atenta respondeu-lhe:

 

- Daqui capitão Davis.

 

- Olá! Daqui Rick Winter. Queria que instalasse sem demora os nossos doentes, à medida que forem sendo tratados, e lhes desse, por via bucal, quatro gramas de sulfadiazina. Depois uma grama de quatro em quatro horas.

 

- Tomei nota, Rick. Mais alguma coisa?

 

- Um quarto de grão de morfina se for preciso. Mantenha-os numa temperatura bem quente. E dê-lhes plasma sempre que for necessário.

 

Ao voltar à sua tarefa, Rick pôs-se a examinar o soldado estendido na maca seguinte. Tomou-lhe rapidamente o pulso. Carolyn acorreu logo com um estetoscópio. Auscultou-o cuidadosamente, mas não ouvia nenhum som naquele peito. Quando se endireitou, puxou a manta e cobriu-lhe o rosto imóvel. O homem estava morto e, graças à morfina, tivera uma morte tranquila.

 

Ouviu então a voz de Linda, perto de si:

 

- Encontra aí o seu registo completo, capitão. - E indicava a ficha de urgência presa à camisa do soldado.

 

Rick ficou surpreendido ao vê-la correctamente preenchida.

 

- Como conseguiu isto?

 

A jovem estava na sua frente, pálida mas resoluta:

 

- Consultei as chapas de identificação...

 

Rick fixou-a um instante nos olhos e fez um aceno de aprovação. Era preciso na verdade ter coragem para afastar a camisa do morto e decifrar os discos de metal. Mas não havia tempo para grandes elogios.

 

- Bom trabalho! Continue. - E voltou para a mesa dos curativos, com Carolyn. - O doente seguinte, por favor!

 

Toda a unidade trabalhava agora num ritmo perfeito. Considerado a sangue-frio, aquele bombardeamento fora um bom ensaio geral para todos quantos viajavam no transporte. Para Rick, não passara dum incidente familiar. Vira queimaduras semelhantes nas planícies do Ebro e no espantoso holocausto do Alcazar. E nessa época era obrigado muitas vezes a ficar de braços cruzados, a ver os seus feridos morrerem, sem lhes poder dar plasma nem sequer aliviar-lhes a agonia com um pouco de morfina...

 

Meia hora mais tarde, Bill Coffin aproximou-se de Rick para lhe murmurar ao ouvido, entre dois tratamentos:

 

- Um facto evidente salta à vista: com este método, o choque é muito menor. Quando poderemos saber se isto pega ou não?

 

- Uma semana deve ser o suficiente para nos tranquilizar ou nos meter a pique.

 

- A propósito, preveniste o chefe? Rick encolheu os ombros:

 

- Para quê? Teria dito que não.

 

- E se dissesse?

 

- Não estou muito certo do que lhe faria. Talvez lhe desse um murro.

 

Bill assobiou brandamente entre dentes:

 

- Caramba! Creio bem que eras muito capaz disso. Ambos voltaram para o seu trabalho. A horrorosa procissão

continuou ininterruptamente durante muito tempo. Por fim, principiou a abrandar a pouco e pouco. Rick pôde ver então, ao fundo da sala, Terry Adams. O rapaz mostrara-se um precioso auxiliar de Jim Manners, preparando as agulhas e as seringas, ajustando os aparelhos de plasma, mal colocados, auxiliando o médico a encontrar uma veia colapsada com o choque. «Talvez tenha atingido hoje a maioridade», pensou Rick. «Se assim for, a guerra terá produzido ao menos um bom resultado secundário.»

 

Pelas cinco horas, houve uma interrupção no afluxo de doentes. Depois a torrente transformou-se num débil regato.

 

Por fim, Rick pôde tirar as luvas e voltar-se para Carolyn, mas havia gente a mais na sala para que qualquer significativa mensagem pudesse ser trocada entre os dois. Winter limitou-se a aceitar o convite que lhe lia nos olhos e a retribuí-lo com interesse.

 

- Vou à enfermaria de bombordo - disse - para ajudar Davis a pôr os registos em ordem.

 

Não pôde deixar de sorrir da insipidez da sua declaração, ao compará-la intimamente às palavras ardentes que lhe enchiam a alma.

 

Carolyn respondeu, com o seu tranquilo sorriso:

 

- Estou certa de que podemos agora arrumar tudo, capitão. Rick caminhou até um ventilador, tirou a cigarreira e estendeu-a a Carolyn, murmurando:

 

- Obrigado. Devo acrescentar mais alguma coisa?

 

- Obrigada, doutor.

 

Aceitou o cigarro, o lume e o cumprimento, com essa exacta mistura de decoro e prazer que todos os grandes hospitais ensinam às enfermeiras especializadas em cirurgia.

 

- E posso desejar-lhe boa sorte na sua tentativa? Com um gesto, ele afastou a pergunta:

 

- Fiquei contente de a saber cá em baixo quando... quando aquilo sucedeu, Carolyn...

 

- Porquê, doutor?

 

- As coisas não estavam muito agradáveis lá em cima, antes de a bomba aterrar. Espero - acrescentou, fixando-a bem nos olhos - que a sorte continue a sorrir-lhe.

 

E dizendo isto deixou-a, na esperança de que ela houvesse compreendido todo o seu pensamento. Não se atreveu, porém, a beijá-la ali mesmo, para dar maior expressão ao que dissera.

 

Na enfermaria de bombordo viu que a maior parte dos doentes pareciam sossegados.

 

Quanto a Davis, uma vez terminada a inspecção, não escondia o seu entusiasmo:

 

- Nunca vi casos de queimaduras graves com um ar tão... tão satisfatório. É um novo tratamento, Rick?

 

Winter riu com satisfação:

 

- Bem longe disso! É uma nova versão dum tratamento antigo. Mais «pó do Senhor», evidentemente - acrescentou, mostrando-lhe uma caixa vazia de sulfamida.

 

Na sala de operações, Strang e um outro membro do estado-maior cirúrgico afadigavam-se em redor de duas mesas. Antes de entrar, Rick parou uns momentos à porta, deprimido com o espectáculo que presenciava. Alguns doentes que já haviam deixado a mesa esperavam que os transferissem para a enfermaria. Deteve-se junto da primeira maca, tomou o pulso do homem nela deitado. Uma agulha de plasma alimentava a veia do braço do soldado, mas a sua pele estava húmida e fria, o seu pulso fraco e rápido. «Choque pó s-operatório», pensou Winter. E entrou na sala para enfrentar Strang.

 

O cirurgião-chefe lavava nesse momento as mãos com álcool. Franziu as sobrancelhas ao ver Rick.

 

- Porque não está a trabalhar, Winter?

 

- Acabei a minha metade de casos - respondeu gravemente o outro.

 

- O momento é mal escolhido para gracejos, capitão.

 

- Mas não estou a gracejar. Nunca senti menos vontade de o fazer. Enviei-lhe justamente metade dos feridos admitidos.

 

O major Coffin e eu tratámos os restantes com a ajuda do capitão Davis que os instalou na outra enfermaria.

 

- E como conseguiu esse milagre?

 

A voz de Strang era rouca e dura. A de Winter continuava calma:

 

- Com sulfamida e gaze vaselinada.

 

- E o desbridamento?

 

- Não fizemos desbridamentos.

 

Strang mergulhou duma só vez as duas mãos na solução de álcool. Era visível que quase sufocava para não gritar.

 

- Abusou da autoridade, Winter. Tanto quanto sei, pôs a vida desses homens em perigo.

 

- Examine-os. Encontrá-los-á quase todos em excelente forma.

 

- Não tenho dúvidas. Mas isso é agora. E amanhã, quando se declarar a infecção?

 

- Talvez não haja infecção.

 

Strang não se conteve mais e gritou furiosamente:

 

- Disse-lhe o que penso da sua experiência, Winter. Pois será bom que tome nota, suponho que isso é uma experiência, puramente uma experiência.

 

- Creio, major, que me coloquei num terreno muito mais sólido do que esse.

 

O chefe repeliu a interrupção:

 

- Contrariamente às instruções do tratado?

 

- O mais contrariamente possível.

 

- Obrigado por admitir ao menos isso. Pode voltar para os seus afazeres.

 

Rick fez-lhe a continência, tendo o cuidado de a fazer de forma impecável.

 

- Está certo de não precisar de mim aqui?

 

- Tão certo quanto é possível estar - respondeu Randall Strang, voltando-lhe as costas.

 

Rick voltou, pensativo, para a enfermaria. A escaramuça com Strang fora exactamente como receava que fosse. Se por infelicidade a sua tentativa falhasse, tinha-o à perna, armado de todos os textos possíveis e imagináveis. Mas havia de ser bem sucedido. E não era uma «experiência», como amargamente proclamara Strang. Claro que não teria aplicado aquele tratamento em tão larga escala se não conhecesse o assunto como os seus dedos, se não tivesse uma «certeza». Os factos não podiam deixar de lhe dar razão. O ácido tânico e o desbridamento haviam de ser atirados pela borda fora.

 

E com Strang ou sem Strang não desistiria. Estava resolvido a não incomodar os seus doentes durante alguns dias, resolução que incluía não lhes mudar os pensos. Rick conhecia os resultados da frequente renovação dos pensos nas queimaduras, o mal que daí podia advir às extensas superfícies privadas de epiderme, e até que ponto isso enfraquecia a resistência do paciente. A sua decisão estava firmemente tomada, nada o faria demover.

 

Manny Ebstein esperava-o no corredor, com um emplastro triangular a tapar-lhe uma vista. Rick sentiu voltar-lhe de repente a boa disposição.

 

- A situação parece estar dominada, pois já recebeste os primeiros socorros.

 

- Não faça caso desta picadela de pulga, patrão. O major Coffin tem entre mãos uma fractura que deseja mostrar-lhe. Todos os ortopedistas estão ocupados, por isso me mandou à sua procura.

 

Na sala de admissão um soldado acariciava maquinalmente o braço pousado em cima da mesa. Rick reconheceu um dos técnicos da unidade.

 

- Fractura do úmero - disse Coffin. - Deu-se quando o paciente ajudava a carregar uma maca.

 

- Um tecto desabou, patrão - murmurou Manny. - A minha tola por pouco não o apanhava em cima...

 

Os dedos de Winter palparam a fractura. Gina Cole saiu da sala de radiografia com uma chapa de urgência ainda húmida. «Pela primeira vez», pensou Rick ao vê-la, «tem um ar competente e não concupiscente.» Repeliu no entanto aquela maledicência mental e estendeu a mão para a chapa. Independentemente dos seus hábitos fora do serviço, Gina era para Manners uma preciosa colaboradora.

 

A radiografia mostrava o delgado osso fendido obliquamente numa fractura de algumas polegadas de comprimento.

 

- Felizmente o nervo radial não foi atingido - sublinhou Bill.

 

Rick anuiu com a cabeça: o seu exame confirmara já esse facto importante. O paciente podia dobrar e estender os dedos, portanto o nervo radial, que passa numa ranhura da face interna do úmero, estava intacto, embora situado na zona fracturada.

 

- Será preciso operar?

 

- Um gesso será o bastante. E novocaína, por favor - acrescentou, dirigindo-se a Carolyn que entrava nesse momento sem esperar que a chamassem.

 

O soldado contraiu-se quando a ponta aguçada penetrou na pele. Com a agulha flexível, Rick procurou o ponto preciso, até que um leve roçar o advertiu que estava em contacto com a superfície fendida do osso, envolvido pelos músculos do braço. Então puxou ao de leve o êmbolo e um fiozinho de sangue apareceu na seringa, mas não um afluxo igual ao que se seguiria à penetração numa veia.

 

- A agulha está no hematoma - disse.

 

Um hematoma é um pequeno depósito de sangue que se pode formar em volta das extremidades dum osso partido. Premiu o êmbolo, injectou a novocaína no local devido e retirou a agulha.

 

- Vamos esperar uns dez minutos para que se produza a anestesia.

 

Passado esse tempo, quando Rick lhe fez mover o braço doente, o rosto do soldado não traiu o menor sofrimento: a novocaína envolvera as extremidades do osso partido, adormecendo toda a sensação. Com a ajuda de Bill, o soldado ergueu-se e apoiou-se ao sólido ombro de Manny.

 

- Preciso duma ligadura de gesso com quatro polegadas de largura e duas vezes o comprimento do braço.

 

Já Carolyn Rycroft, na mesa ao lado, a preparava. Ao olhá-la atentamente, Rick perguntava a si próprio se seria o seu comum amor à cirurgia, sob os mais variados aspectos, o que os aproximara. Nesse dia, vira-a adivinhar cada um dos objectos de que precisava, quase por telepatia.

 

Enquanto esperava a ligadura, Rick exercia uma constante pressão para baixo no cotovelo do ferido, man tendo-o paralelo ao corpo. Depois, Bill Coffin enrolou habilmente a ligadura húmida, enquanto Rick segurava com firmeza o braço. Aquele era outro ensinamento aprendido em Espanha: a aplicação do gesso mole na parte que se deseja imobilizar, deixando-o depois endurecer na forma moldada. Expediente lógico que convertia centenas de «feridos deitados» em «feridos a andar».

 

- Astucioso - observou Bill. - E o que sucede ao osso?

 

- O peso do braço mantê-lo-á direito. É claro, colocaremos uma faixa a tiracolo, presa ao pulso, para lhe servir de apoio.

 

Rick sorriu para o soldado e perguntou a Ebstein:

 

- Achas que ele poderá lançar os dados só com uma das mãos, Manny?

 

- Não há nenhum movimento na fractura? - perguntou Bill.

 

- Muito leve. Mas isso não me parece que cause qualquer prejuízo. E a cura produz-se mais depressa com este sistema do que quando a fractura fica numa goteira.

 

Bill Coffin deixou escapar uma vez mais o seu inimitável assobio:

 

- És verdadeiramente o tipo das simplificações, Rick Winter. Peço-te que nunca metas o nariz na cirurgia do cérebro. Destruirias num abrir e fechar de olhos uma bela fonte de rendimentos!...

 

De cabelos ao vento, Terry Adams andava para trás e para diante no tombadilho, aspirando o ar fresco da noite. Meia hora antes a rotina voltara à sua normalidade nas enfermarias e Rick, com calorosos agradecimentos e uma palmada amigável na nuca, empurrara-o lá para cima. Era uma excelente oportunidade para reflectirem sossego nos seus problemas, mas não estava absolutamente certo de a acolher com satisfação.

 

O pôr do Sol perdera-se numa cortina de nevoeiro e chuviscos, mas essa frescura húmida, ao bater-lhe no rosto, revigorava-o. Pelo menos fisicamente. E também moralmente, pois o nevoeiro adensava-se cada vez mais, embora a chuva não parasse, e isso significava que não haveria outro ataque nessa noite. No dia seguinte, a dar crédito ao que se dizia, estariam já longe, nas costas da Espanha. Naturalmente, o inimigo não tornaria a aparecer-lhes até Gibraltar.

 

Parou à proa, para examinar os estragos. Os bombeiros trabalhavam ainda numa zona isolada por cabos, mas, embora à distância, Terry pôde verificar que tinham dominado o fogo e arranjado tempo para construir um sólido abrigo com encerados que defendia das vagas toda a parte interior posta a descoberto. Viu as altas e descomunais ondas aproximarem-se do navio, viu a proa cortá-las galhardamente e a espuma raivosa referver nos flancos do barco. Afastou-se, tranquilizado. Por esse lado, não havia perigo. Salvo se encontrassem algum furacão, atingiriam o Rochedo sãos e salvos. Mesmo assim, reparou que tremia um pouco, decerto devido ao frio fustigar da chuva.

 

O entusiasmo que o alentara durante todo o dia extinguia-se agora, mas sem dor. Sabia que trabalhara regular e ininterruptamente, e trabalhara bem, sem tempo sequer para ter medo. Sozinho, ali, na fria obscuridade, era outra história... De olhar fixo na sua frente, no escuro, lutava agora contra o medo de ter medo. Mas não conseguia esquecer as insondáveis e temíveis profundezas que o cercavam, a oculta ameaça dos submarinos, e essa outra ameaça, a pior de todas, o Mediterrâneo. Se os boatos que corriam eram verdadeiros, no dia seguinte, ou talvez no outro, o transporte tomaria o rumo de leste, procurando atingir, a todo o vapor, o estreito da Sicília, o famoso «triângulo de fogo». Os aeródromos donde partiam os Stukas ficariam então apenas à distância de trinta minutos de voo e Jerry podia lançar enxames de bombardeiros e de caças, para «arrasarem» metodicamente cobertas e baterias, prosseguindo ao mesmo tempo, metodicamente também, os seus combates aéreos.

 

Surpreendeu-se a dar murros na amurada com tal força que a dor o fez voltar a si brutalmente. Mas agora que conhecia o remédio para aquelas crises de melancolia, porque não ia procurá-lo? Gina, tal como ele, trabalhara também bastante durante toda a tarde. Sem dúvida estaria igualmente livre. E talvez ansiosa também por se divertir... Podia ir bater-lhe à porta e convidá-la a tomar uma bebida e a fumar um cigarro no salão.

 

Sim, mas... Não prometera a si próprio nunca mais se encontrar com ela a sós, depois das loucuras da noite anterior? Essa noite curara-o, por algum tempo, do que Maupassant chama o vício da continência. Não haveria nova queda.

 

Sem mesmo dar por isso, perdido no seu cogitar, Terry atingiu o jardim de Inverno e caminhou em direcção à popa. Porque não confessar que perseguia Gina e que procurava a sua pista? Ela era a chama e o esgotamento apaziguador, e nessa noite sentia necessidade dela mais desesperadamente do que nunca. A hora não era propícia para as mentiras íntimas: para que se hipnotizar com palavras enganadoras? Toma-a, sem nada perguntares, nem a ela nem a ti. Tal tinha sido na verdade o conselho de Rick em Inglaterra... A própria Gina tivera um comentário apropriado: Esta guerra não é uma guerra romântica, Terry Adams. Qual é o número do seu camarote?

 

Todavia, na noite anterior, nesse camarote, houvera mais alguma coisa do que paixão. Houvera ternura e risos abafados por beijos. A recordação chicoteava-lhe os sentidos com um látego afrodisíaco. Desceu, cambaleando, as escadas da coberta A com o nome de Gina nos lábios. Quando a encontrasse, prender-lhe-ia as mãos, suplicar-lhe-ia que se entregasse outra vez. Com certeza ela não esquecera tão depressa aqueles momentos de mútua embriaguez ...

 

A coberta B. A porta do «seu» camarote. O bater apressado do coração quase o sufocava quando bateu ao de leve, com os nós dos dedos. Mas ninguém lhe respondeu. Somente o crepitar duma máquina de escrever no camarote ao lado perturbava o silêncio do corredor. A máquina de Linda. Que pensaria a sua irmã mundana, se espreitasse e o visse ali, lobo de dentes arreganhados por ter de ir procurar mais longe a presa?...

 

Talvez Gina estivesse ainda a jantar. Nesse caso... E se entrasse no seu camarote e esperasse por ela? Não, Gina partilhava-o com Carolyn Rycroft, e não estava disposto a sujeitar-se às inevitáveis perguntas da sua companheira de quarto. Da mesma forma não podia demorar-se ali, naquele corredor, como um colegial louco de amor...

 

Vagueou um pouco por toda a parte, sem destino, sem saber onde encontrar Gina. Ao passar em frente do camarote de Bill Coffin deteve-o o som dum riso. Bill naturalmente estava a beber com alguns camaradas, agora que já passara o mau tempo. Sabia que seria bem recebido se batesse à porta, para se juntar aos bebedores. Bill mostrara-se sempre seu amigo. Erguia já a mão, decidido a entrar, quando ouviu nova risada... Era um riso feminino, sem dúvida possível... Um riso familiar, inconfundível, baixo e quente e que dizia muitas coisas... Um riso que lhe espicaçou a memória como uma agulha invisível...

 

Na noite anterior, Gina também rira assim nos seus braços. E, naquele instante, tinha a certeza, ela jogava com outro parceiro o mesmo jogo da véspera... Aos olhos da sua imaginação, a porta desapareceu, como traspassada por raios X, e viu Gina afastar-se de Bill, terna e travessa, após o primeiro demorado beijo. Tornou a ver a brancura da sua carne quando deixou entreabrir o roupão, acidente habilmente calculado para sublinhar a opulência dos seios, sem no entanto descobrir por completo os túrgidos pomos...

 

Por trás da porta fechada, Gina riu outra vez. E, subitamente, tudo ficou em silêncio.

 

Terry abriu a boca para gritar, mas o seu próprio silêncio juntou-se àquela pausa significativa. Ergueu o punho como para arrombar a porta, mas o braço não tardou a cair-lhe inerte ao longo do corpo...

 

Momentos depois fechava-se no seu camarote. Durante muito tempo ficou sentado, como bêbedo, na beira do beliche, em frente do espelho do guarda-roupa, demasiado fatigado para praguejar, demasiado indiferente para rir daquela cara de morto que via reflectida na sua frente.

 

Ao chegar ao fim da longa fila de leitos, Rick Winter parou e estendeu a papelada à enfermeira de serviço. Por uma vigia aberta, viu o sol matinal cintilar no Atlântico, liso qual azul espelho. Mal terminou o último dos monótonos exames, saiu um instante lá para fora e foi saborear o ar áspero e salino. Como podia o mar parecer tão enganosamente tranquilo nessa manhã, depois dos horrores a que assistira?

 

Os homens queimados estavam num estado surpreendente. É certo que isso podia ser apenas passageiro. Tinham resistido bem ao período inicial do choque, graças a uma combinação feliz de morfina, calor e plasma. Mas para os casos mais críticos era preciso contar com uma segunda fase, o período de enfraquecimento devido à perda considerável de sangue produzida pela exsudação das zonas atingidas. Sabia que esses casos requeriam um cuidado muito especial, pois a evolução da sua cura serviria de pedra de toque ao tratamento aplicado.

 

As injecções de plasma deviam continuar enquanto fossem necessárias e com a frequência que o estado dos doentes exigisse; além disso, os feridos deviam ser encorajados a tomar todo o alimento líquido que o organismo pudesse assimilar. A prova definitiva seria fornecida pelo período de infecção possível. Se as suas teorias estavam certas, a percentagem de infecções não se compararia, nem de longe, à que se iria registar nos doentes de Strang, tratados com a terapêutica clássica do desbridamento e da irrigação. Só o tempo ia pesar na sua balança o antigo e o novo método. Se no fim da semana nenhuma infecção se manifestasse, principiaria o período de cura. E Winter estava certo de que, graças ao processo adoptado, essa cura seria consideravelmente acelerada.

 

Voltou para a sala, refrescado pela brisa matinal, os olhos um pouco encandeados ainda pelo brilho ofuscante do mar. No fim de contas, tinha desculpa para se sentir fatigado; lançara-se ao trabalho muito antes da hora do primeiro almoço, principalmente para afastar do espírito problemas bastante importunos. Por exemplo, o que diria a Carolyn Rycroft se a encontrasse de serviço?

 

O oficial da enfermaria caminhou ao seu encontro com um sorriso ansioso.

 

- As coisas parecem correr bem, capitão.

 

- Qual é o seu veredicto?

 

- Já que me pergunta, dir-lhe-ei que estou um pouco admirado com resultados tão surpreendentes, especialmente nos casos mais graves.

 

- Tem vigiado as proteínas do sangue?

 

- Duas vezes por dia, além da contagem das hematias e doseamento da hemoglobina.

 

- Preparado para as transfusões se a anemia se declarar?

 

- Preparado e atento, capitão. Mas penso que com estes doentes não serão necessárias transfusões.

 

Rick agradeceu e caminhou para a sala de estibordo onde a maioria dos casos de Strang estava hospitalizada. Também tinham ao seu dispor todos os recursos da ciência, incluindo plasma e sulfadiazina. Nesse caso, pensou Rick com um ligeiro arrepio íntimo, se alguma diferença se manifestar, só pode ser atribuída ao tratamento inicial. Graças à perfeição militar, encontram-se agora em completa igualdade.

 

Talvez aquilo não passasse de imaginação, mas parecia-lhe sentir uma subtil diferença nas duas salas. Na de bombordo, os pacientes estavam tranquilos, descontraídos. Na de estibordo pareciam verdadeiramente mais doentes. Em vários rostos lia-se o desespero e em muitos punhos estendidos o pulso batia desenfreado .

 

Fosse pelo que fosse, voltou as costas àquela exibição do saber de Strang com maior confiança no seu próprio julgamento.

 

Uma ordenança cruzou-se com ele quando subia a escada e pôs-se em sentido: o coronel esperava-o no seu gabinete.

 

Desta vez teve de vencer um verdadeiro sobressalto. Seria possível que Strang tivesse ido tão depressa fazer queixas a Amos? O chefe era um cirurgião competente e bastante prudente para não dizer mal de ninguém sem a antífona, o versículo e toda a liturgia apropriada. Decerto agiria, no presente caso, como político avisado, esperando os resultados antes de dar largas ao ressentimento.

 

Winter uniu correctamente os calcanhares e fez a sua melhor continência no vão da porta, antes de entrar no gabinete improvisado de Amos Elaine. Descontraiu-se um pouco ao ver o coronel absorvido na leitura de velhos exemplos do Yank e a rir às gargalhadas com os desenhos de Breger1.

 

- Tire esse capacete em falso estilo de West Point, Rick. Sabe tão bem como eu que estamos aqui abrigados. Por minha parte, ainda não posso fechar os olhos sem me pôr a contar Stukas. E você?

 

- Palavra, meu coronel, estive ontem demasiado ocupado para ter tempo de contar.

 

- Sim. Não me custa a crer. O trabalho é a salvação dos tipos do seu género. A minha missão é manter-me no meu posto e esperar que todos cumpram o seu dever.

 

Amos ergueu uma sobrancelha: desde há muito tempo Winter reconhecia naquele gesto um sinal indicador de tempestade. Preparou-se para a enfrentar.

 

- Sim, esperar que todos cumpram o seu dever, mas em boa ordem. Por exemplo, essa experiência que ontem realizou na enfermaria...

 

Assim Strang tinha falado, apesar de tudo. Naturalmente limitara-se a fazer prudentes observações, mas nunca fiando. Isso permitir-lhe-ia, no caso de o método se revelar eficaz, tomar para si as honras, e lançar para cima dele as censuras se houvesse algum desastre.

 

Rick respondeu pausadamente:

 

- A responsabilidade é só minha.   Inteiramente minha. O major Strang não foi nisso havido nem achado. Tratei metade dos pacientes na enfermaria e ele tratou a outra metade na sala de operações.

 

- Disse que tratou?

 

- Com vaselina e pensos para assegurar a pressão, sim, senhor. Os do major tiveram o desbridamento regular, a irrigação e o ácido tânico para a formação de crostas.

 

- Não me diga que se serviu desses soldados como de cobaias...

 

Caricaturista americano de grande nomeada e assíduo colaborador de jornais e revistas.

 

- Claro que não. O tratamento é aplicado, e quase exclusivamente, há muito tempo, na Inglaterra, com resultados absolutamente satisfatórios. Porque não haviam de beneficiar também os nossos soldados da experiência já adquirida?

 

- Espero que possa vender essa ideia a Strang.

 

- Francamente, coronel, já abandonei a esperança de vender seja o que for ao chefe.

 

Era uma reflexão para além de todos os limites do respeito e Amos tinha o direito de franzir as sobrancelhas, como o fez. Mas foi um franzir rápido, como que aureolado de malícia.

 

- Posso dizer que aprecio... o vosso... o vosso dilema, Rick?

 

- Evidentemente, atirei a ideia para as mãos do chefe sem autorização nem aviso prévio. E, concordo, ele tem o direito de estar por isso um pouco transtornado. Sobretudo... (aqui a expressão de Rick igualou a do coronel) ...sobretudo se o novo tratamento for bem sucedido.

 

- Saia já da minha vista! - gritou o coronel. - Saia da minha vista antes que o mande prender!

 

Rick deu meia volta e o rosto de Amos abriu-se, sorrindo.

 

O capitão caminhou para o seu camarote, com o espírito considera velmente desanuviado. Gozava ainda essa sensação de alívio quando numa volta do corredor chocou com uma jovem loira em uniforme de enfermeira, Carolyn Rycroft, com o seu sorriso sereno como uma manhã de Primavera.

 

- Não lhe deram um período de repouso?

 

- Deram-me, sim, capitão. Mas hoje havia falta de gente. Sou voluntária.

 

Ele tomou-lhe o queixo, carinhosamente:

 

- Olhe para mim, por favor. Estamos sozinhos e a crise passou.

 

Ela ergueu os olhos e não fez menção de se libertar.

 

- Tem a certeza?

 

- Absolutamente. Pelo menos no que diz respeito aos doentes. Mas quanto a nós...

 

- Não sei nada, Rick.

 

- Que devo fazer? Terei de chamar em meu auxílio outro submarino?

 

O rubor agora traía-a. Ele retirou a mão do queixo e abriu-lhe os braços. Depois de olhar prudentemente em sua volta, Carolyn deixou-se abraçar. Os dilemas duma outra noite de insónia desvaneceram-se com aquele beijo.

 

- Porque veio ao meu camarote?

 

- Já lho disse, tinha medo.

 

Rick respondeu-lhe numa voz que não era absolutamente normal:

 

- Eu desejava-a nessa noite, e desejo-a agora, Carolyn. E sabe que não é simplesmente desejo, mas muito mais, sabe muito bem que a amo.

 

Beijou-a de novo, de modo mais insistente, procurando loucamente o mesmo êxtase da noite do black-out. Decerto ela já compreendera que ele adivinhara a sua identidade. Que a capa abandonada nessa noite inolvidável estava agora no fundo da sua mala. Se não fora para o atormentar, para que colocara o seu impermeável no beliche? E quereria continuar a atormentá-lo naquele momento com a sua dissimulação?

 

Procurou avançar um pouco mais e permitiu-lhe que se libertasse dos seus braços:

 

- Não podemos ser honestos a respeito dos nossos sentimentos, Carolyn?

 

Ela continuou com o rosto apoiado no seu ombro. Winter notou, exultante de alegria, que a jovem não se afastava, embora ele tivesse deixado cair os braços ao longo do corpo.

 

- Bem sabe o que desejo, Rick.

 

Durante alguns segundos ele sentiu a tentação de dizer alguma coisa, quanto mais não fosse para a obrigar a revelar-se. Esperaria ela que lhe propusesse casamento quando iam ambos a caminho da frente de batalha? Por Deus! Iria dali directamente ao gabinete de Amos e pedir-lhe-ia a sua bênção. Mas o instinto deteve-o, qualquer coisa o advertiu de que seria melhor deixar Carolyn fazer o seu jogo até ao fim. Deixá-la confessar que fora mais do que sua esposa nessa noite da Inglaterra. Quando a visse tirar a máscara, imediatamente tornaria as suas relações tão legais quanto ela o desejasse.

 

Carolyn rompeu aquele silêncio tenso; a sua voz tornara-se um modelo de decoro:

 

- Queira passar junto da cama doze, doutor. Tenho lá um homem com febre.

 

Rick seguiu-a até à enfermaria, perguntando a si próprio se aquilo não passaria dum jogo de palavras, mas o doente e a sua febre eram reais. Tratava-se dum rapagão esguio, do batalhão de infantaria, com os cabelos de estopa e envolvido desde o queixo aos sovacos num penso contínuo. Rick lembrou-se do caso no mesmo instante. Apesar da sua extensão, as queimaduras não eram graves. Aquela subida de temperatura podia significar várias coisas. Pensou na causa mais provável, talvez uma reacção à sulfadiazina. Era pouco frequente, mas por vezes originava perturbações quando não se descobria a tempo; o médico assistente podia ser levado, por exemplo, a atribuir a febre a um princípio de infecção, aumentando a quantidade da droga.

 

O gráfico indicava as temperaturas do doente, tiradas de duas em duas horas desde que lhe fora feito o curativo. Não havia uma subida regular. Simplesmente aquela flecha súbita. Não havia também qualquer sinal inquietante nas imediações das feridas.

 

Carolyn murmurou:

 

- Interrompe-se a sulfadiazina?

 

- Sabe ler o pensamento?

 

- Faço o melhor que posso, doutor Winter. - E baixando modestamente os olhos, acrescentou: - Em caso de urgência, pode ganhar-se tempo.

 

Quando Rick fixou de novo a atenção no gráfico, sentiu que Carolyn ganhara aquele assalto. Escreveu a observação na papeleta, pôs as suas iniciais e devolveu-lha.

 

- Interrompa a sulfadiazina. Nada mais a assinalar, tenente Rycroft?

 

- Nada mais, doutor.

 

- Isso quer dizer que está inteiramente satisfeita com a evolução do caso?...

 

Ela ergueu os olhos e fixou profundamente os do capitão. Rick ficou perturbado com o intenso fogo de paixão que neles viu brilhar.

 

- Completamente satisfeita... por agora.

 

- Gostaria de poder dizer outro tanto.

 

E dizendo isto bateu com os calcanhares, saudou-a com aprumo e enquanto ela continuava gravemente a examiná-lo, deu meia volta e abandonou a sala.

 

Rick foi o último da sua unidade a abandonar nessa tarde o transporte. O coronel, acompanhado de Strang, atravessara a baía na primeira barcaça. Depois principiara a habitual ronda aos sargentos e oficiais encarregados dos abastecimentos. Mas a rotina desta vez não lhe causara aborrecimento. A rapidez com que eram executadas todas as ordens indicava uma tensão interior, o perfeito conhecimento do perigo próximo.

 

Antes de os soldados começarem a abandonar o navio, já as gruas baloiçavam, por cima da amurada, o material do hospital. Centenas de caixas e fardos de todas as formas e tamanhos, contendo o equipamento necessário para salvar um sem-número de vidas nas tendas de campanha. Em cada caixa, uma letra e um número, enormes e bem visíveis, correspondiam aos inscritos no cimo duma lista onde se enumerava, em pormenor, todo o seu conteúdo: era assim possível saber ao certo onde estava o material de cirurgia, de medicina, de farmácia ou de enfermagem. Além disso, cada um desses grupos de sinais, letra e número, aparecia duplicado, em duas caixas, idênticas na composição e correspondendo a duas listas perfeitamente iguais. No caso de o hospital ter de se dividir em duas unidades em campanha, o equipamento já estava separado, o da lista A iria para uma, o da lista B para a outra. E tudo isto com o mínimo desperdício de tempo e a máxima eficiência.

 

Rick meditava nestes milagres administrativos ao transportar a sua própria bagagem, com a ajuda de Manny, para junto da escada do portaló. O hospital fora evacuado com a máxima economia de esforço e em perfeita ordem. A maior parte dos feridos graves estavam agora instalados em terra, na perspectiva de passarem ali uns quinze dias de repouso. Depois, seriam levados por outro transporte para uma convalescença no seu país, e talvez tornassem a encontrar, nessa travessia, o major Weldon...

 

Winter voltou-se e despediu-se com um aperto de mão do major, que fumava melancolicamente o seu cachimbo, encostado à amurada.

 

E meia hora mais tarde, depois de trepar a escada do portaló doutro navio, Rick depunha a sua bagagem no convés do transporte para o qual toda a unidade se transferira antes dele.

 

Tipo perfeito do navio de guerra do século vinte, galgo dos oceanos, construído para suportar todo o mar e atingir boas velocidades, esse transporte parecia estável e ao mesmo tempo rápido. As acomodações interiores, no entanto, diferiam totalmente das do confortável paquete que acabavam de deixar; a maior parte da unidade ficara alojada em dormitórios situados a meio do navio, salvo alguns oficiais a quem tinham sido atribuídos camarotes.

 

Rick não teve tempo de procurar Carolyn, mas tomou nota do local onde ficavam situados os seus alojamentos. Claro, pouco vagar havia agora para demonstrações de ternura e muito menos para lhe manifestar toda a que a sua alma ambicionava. Ela estava no seu direito de dissimular quanto se referia à noite do black-out. Da mesma forma ele estava no direito de tentar impedir o seu desembarque.

 

O toque da corneta para o jantar encontrou-o enterrado até aos olhos em papelada, juntamente com Terry Adams; os dois limitaram-se a comer uma sanduíche que um criado da cantina lhes levou numa bandeja ao gabinete da enfermaria. Às oito horas, apareceu a ordenança do coronel com uma comunicação. Rick leu-a e afastou para o lado o trabalho:

 

- Não te apetece ir à porta ao lado escutar uma ou duas palavras? Toda a unidade, sem faltar ninguém, parece que está à nossa espera...

 

- Não há maneira de evitar isso?

 

Winter verificou que Terry funcionava de novo como uma máquina bem regulada. Pelo menos aplicava-se ao trabalho como um castor inspirado! Talvez mantendo o rapaz constantemente ocupado...

 

Rick atirou para cima da mesa o bilhete do coronel e ajudou a erguer o seu assistente tocando-lhe no cotovelo.

 

- Ordens superiores, rapaz. Abotoa a blusa e vem daí.

 

A sala estava cheia, a deitar por fora, de oficiais e enfermeiras. Ao fundo sentavam-se Amos e Strang, em frente duma mesa coberta de mapas, e um terceiro oficial que Rick não reconheceu imediatamente. Alguns soldados colocavam um quadro negro encostado à parede. O coração de Rick parou por uns instantes de bater quando o oficial desconhecido se voltou: aquele rosto magro de guarda-livros pertencia ao capitão Hillary Somers, do Intelligence Service. Somers estava no navio apenas há uma hora, silencioso como uma sombra, mas toda a unidade sabia da sua presença e da sua missão.

 

Amos lançou um olhar por cima das cabeças reunidas do seu rebanho:

 

- Venha sentar-se cá à frente, Rick. Posso ter necessidade de si. - Depois, voltando-se para o inglês: - Desculpe-me a sem-cerimónia, capitão. Tem a palavra.

 

Somers ergueu-se, tossiu ligeiramente, pegou num bocado de giz e começou a desenhar um mapa no quadro negro. Para um homem tímido e reservado, desenhava com traços bastante vigorosos e decididos, e mesmo a mais ignorante das enfermeiras podia perceber o esboço duma costa e dum porto. Rick seguia-lhe os movimentos com a maior atenção, inclinando-se para a frente na cadeira. Reconhecia aquele quebra-mar, por detrás do qual se comprimiam as docas. Não havia engano possível, navegavam com rumo a Argel.

 

Somers atirou o giz para o lado. E quando se dirigiu aos assistentes, tinha todo o ar dum professor de geometria a expor um problema aos alunos duma classe superior, o ar ao mesmo tempo desconfiado e um pouco cínico de quem espera que a classe lhe atire bolas de papel mastigado antes do toque da sineta.

 

- Oficiais e enfermeiras, devo dizer-lhes em primeiro lugar que vos é conferida uma grande honra, a de fazerem parte da primeira expedição americana que vai enfrentar o exército alemão.

 

Fez uma pausa, verdadeiramente perturbado com os aplausos. O coronel deu uma palmada na mesa, chamando os subordinados à ordem. O oficial do Intelligence Service bebeu um copo de água, para se recompor, e prosseguiu:

 

- Por infelicidade, não estamos em situação de atacar o Huno directamente. Em vez disso, temos de tomar as possessões franceses do Norte de África, antecipando-nos a uma acção semelhante do inimigo. Para assegurar o êxito desta empresa, preparamo-nos para atacar simultaneamente em vários pontos e atacar forte. Entre esses pontos, figuram Casabranca, Orão e Argel. É Argel que acabo de desenhar neste quadro. - Pegou num ponteiro e com ele contornou o desenho: perdera já todo o ar dum professor de geometria. Adquirira mesmo um novo timbre de voz: - O Comando aliado está disposto a apoderar-se destes objectivos a todo o custo. Portanto, cada um de nós deve estar preparado para ir até ao fim. Cada unidade deve funcionar como uma equipa, como um elemento da grande estratégia de conjunto. Senão, tudo pode desmoronar-se. O objectivo indicado para o

95.° Hospital de Campanha é o de assegurar o apoio médico e cirúrgico durante o ataque a Argel. Devo avisá-los, insistindo neste ponto, que desembarcamos numa costa hostil. Não sabemos se as forças francesas se opõem ou não ao nosso desembarque e, em caso afirmativo, com que ardor nos resistirão. Mas é fora de dúvida que teremos baixas. Mais pesadas talvez do que supomos. É possível até que sejam forçados a agir na praia debaixo do fogo!

- Voltado para o auditório, Somers baloiçava levemente o ponteiro na mão. - E se vos peço que encarem essa perspectiva com calma, é justo e legítimo que vos exponha as linhas gerais do nosso plano de batalha.

 

E, dizendo isto, voltou-se novamente para o quadro e lançou-se ao trabalho com fervor. Era simples e perfeitamente claro. Mais uma vez forçou, mesmo a mais jovem das enfermeiras, a considerar-se parte responsável da expedição, ajudando-a a compreender que aquela ofensiva era apenas o princípio duma importante campanha. Os barcos, dizia o capitão, alinhariam em formação de combate, a coberto do escuro da noite. Enquanto as unidades navais varressem a costa com nutrido fogo de barragem, os destacamentos de desembarque atingiriam a praia. Estabeleciam imediatamente cabeças de ponte, a oriente e a ocidente da cidade, e uma vez conquistados esses pontos tinham de ser mantidos a todo o custo, até que o exército pudesse desembarcar em vagas compactas para assegurar as posições. Então os dois braços da tenaz, em ofensiva simultânea, fechariam a cidade por oriente e ocidente, neutralizariam os aeródromos, reduziriam ao silêncio as baterias defensivas. E quando todo este plano estivesse executado, a capitulação de Argel seria um facto.

 

Assim enunciado pelo capitão Somers, o ataque parecia de realização extremamente fácil. Rick deitou um olhar furtivo para os rostos atentos que o rodeavam. Sabia que cada um dos oficiais presentes punha a si próprio a mesma pergunta: se a ocupação das cidades-chaves da África era assim tão fácil, porque tinham esperado tanto tempo para as conquistar?

 

- Não preciso de vos lembrar - prosseguiu Somers - que vão penetrar mais profundamente na zona do Mediterrâneo do que qualquer das outras forças envolvidas neste ataque. Indubitavelmente, os perigos a que se expõem serão maiores. Há que contar com surpresas desagradáveis, de terra, do mar e dos ares. Mas por outro lado hão-de ter ocasião de verificar que as duas maiores armadas do mundo estão preparadas para fazer frente a essas surpresas, qualquer que seja a sua natureza. - Fez nova pausa para beber outro copo de água e envolver toda a assembleia num olhar. - Posso arriscar uma suposição? Presumo que a maior parte dos senhores procurou recordar, esta manhã, a geografia há anos aprendida. Não devem esquecer-se que o eventual objectivo desta ofensiva é a Tunísia e que as ilhas italianas se lhe seguirão na ordem cronológica. Do seu canto, Bill Coffin perguntou:

 

- Porque não se toma como objectivo imediato Tunes e Bizerta?

 

O capitão Somers olhou em redor. Agora que já transmitira as suas informações, refugiava-se de novo na sua calculada obscuridade. O ponteiro na sua mão era apenas um simples instrumento indicador, não a espada de Excalibur1.

 

- O capitão Winter quererá responder a esta pergunta?

 

- Receio que Bill Coffin se divirta a fazer perguntas de algibeira. Se alguma coisa esta guerra provou, foi que é preciso possuir a terra para dominar o ar e vice-versa. Se esta frota entrasse no Triângulo Siciliano, Jerry saltar-nos-ia em cima com todos os seus recursos. Mas se pudermos ocupar a Argélia com bastante rapidez, obtendo bases para a nossa aviação, antes do inimigo ter tempo de respirar...

 

Bill, obstinado, insistiu:

 

- Somos um hospital de campanha. Por que razão desembarca um hospital de campanha na Argélia, em vez dum posto de socorros?

 

Somers ofereceu ao auditório o seu sorriso oblíquo:

 

- Pergunta lógica. Gostaria de poder responder logicamente. Por agora, apenas lhe posso repetir o que já disse: não veja nesta acção senão o prelúdio duma verdadeira ofensiva contra o Huno, no seu próprio terreno. Exteriorizo, no entanto, a esperança de os ver a todos participar em breve na formação duma coluna volante que atacará em direcção à Tunísia, e atacará vitoriosamente. E acrescento ainda que espero encontrá-los na ceia de Natal, talvez em Palermo.

 

Saiu sob os aplausos da assistência, mensageiro activo, já a caminho doutras missões.

 

À saída da sala onde se realizara a conferência, Rick procurou em vão Carolyn no meio daquela onda apressada.

 

Avistara-a de longe momentos antes no grupo das enfermeiras vestidas de branco que escutavam atentamente a eloquência do capitão Somers. Agora, não a vendo no corredor repleto, experi-

 

A famosa espada do lendário Rei Artur.

 

mentava a vaga e desagradável impressão de que ela o evitava propositadamente.

 

Sentiu a mão de alguém no braço. O major Strang dizia-lhe:

 

- Pode dispensar-me um momento, capitão?

 

- Trabalho ou receio, major?

 

- Trabalho, infelizmente.

 

O chefe tomou-lhe a dianteira, abrindo o caminho até ao seu camarote, e fechou a porta quando ambos entraram. Rick notou que apesar do transporte ir a trasbordar, aquelas acomodações eram bastante amplas e confortáveis. Havia mesmo a um canto, entre o beliche e a vigia, uma poltrona estofada. Strang instalou-se nela, dirigindo a Rick um leve sorriso de desculpa. Colocou depois sobre os joelhos uma escrivaninha portátil e disse:

 

- Pode sentar-se no beliche, capitão. Está disposto a examinar comigo alguns pormenores da acção? Vai haver, evidentemente, uma reunião do estado-maior, quando navegarmos no alto mar, mas suponho que o senhor e eu... - A sua voz arrastava-se, e com a ponta dum lápis ia percorrendo uma lista que tinha na sua frente. - Vejamos, em primeiro lugar, o material operatório. Julgo inútil perguntar-lhe se estará imediatamente disponível.

 

Mal instalado na beira do beliche, Rick tinha a impressão de ouvir um zumbido monótono. Como sempre, agitava-o o vivo desejo de sacudir aquela fatuidade satisfeita, de deitar por terra aquela bela armadura blindada. Mas nessa noite Strang parecia bem-disposto e não seria fácil irritá-lo. «E, no fim de contas, talvez eu o tenha julgado mal», pensou Winter. «Agora que a acção está para breve é possível que ele abandone essa atitude farisaica, esse ar de eu-valho-mais-do-que-tu!»

 

Quase sem querer, exprimiu a sua esperança em voz alta, quando Strang fez uma pausa para tomar fôlego:

 

- Satisfeito por irmos fazer enfim alguma coisa?

 

- Foi precisamente por isso que eu lhe pedi para vir aqui. Gostaria imenso de poder estar junto de vocês no momento de agir!

 

Rick abanou a cabeça com convicção. Claro! Era de esperar aquilo mesmo. O chefe dirigiria as operações de longe, do transporte, enviando o pessoal cirúrgico para terra à medida que fosse preciso.

 

- Os meus sentimentos, major! Esqueci-me de que a sua presença era absolutamente indispensável a bordo.

 

Strang continuou, como se achasse muito natural o cumprimento de duplo sentido:

 

- Será desanimador ficar ao largo, a roer as unhas, enquanto vocês, os jovens, andam a cheirar a pólvora. De qualquer forma, devemos prever o pior. Isto é, um ataque directo sob o bombardeamento aéreo e o fogo das baterias. Já passou por isso em Espanha e em França, não é verdade? O senhor conhece o nosso pessoal. Partilha a minha confiança na sua qualidade?

 

- É o que há de melhor.

 

- Sem excepção? Faço-lhe a pergunta confidencialmente. Rick pensou em Terry Adams. Talvez uma palavra sua nesse instante o salvasse do futuro inferno. Mas repeliu a tentação.

 

- Temos um grupo verdadeiramente admirável, major. Não me importava de marchar amanhã, fosse com quem fosse, debaixo do fogo do inimigo.

 

Strang esboçou um leve sorriso.

 

- É talvez o que terá de fazer, Winter. - Folheou rapidamente os papéis e estendeu-lhe uma lista por cima da escrivaninha. - Como vê, inscrevi-o como chefe do nosso grupo de desembarque. Isto é evidentemente apenas um projecto. - Uma vez mais o seu lápis ficou suspenso. - Estão aqui os grupos cirúrgicos, incluindo as enfermeiras, que são voluntárias. A tenente Rycroft figura no seu...

 

- Porquê a tenente Rycroft?

 

- Foi a primeira enfermeira a inscrever-se. A sua folha de serviços é igual à das melhores da unidade. Tem alguma objecção pessoal a fazer?

 

Strang esperava, com o lápis amarelo a dançar entre os dedos médios. Os seus óculos octogonais adquiriam uma espécie de brilho místico. «Deus do Céu! Isto não é possível!», pensou Rick. «Ei-lo a representar de todo-poderoso, e muito ufano. Dar-se-á o caso de ter adivinhado qualquer coisa entre mim e Carolyn?. .. Tenho de me render à evidência: a justiça esta noite está do seu lado. Mesmo que fosse o meu melhor amigo, não podia pedir-lhe que dispensasse Carolyn.»

 

Respondeu portanto simplesmente:

 

- À enfermeira Rycroft é uma auxiliar de primeira ordem. Fico satisfeito por tê-la junto de mim.

 

Mas Strang insistiu:

 

- Se pensa na sua segurança...

 

- Verdadeiramente, não podia deixar de pensar.

 

- Na segurança de todas as enfermeiras, Winter? Ou na de Miss Rycroft em particular?

 

- Não atinjo bem o que quer dizer.

 

- Concorda, decerto, que ela deve correr todos os riscos, como qualquer de nós?

 

- Evidentemente que sim. Deseja fazer-me mais alguma pergunta?

 

- Apenas uma, mas bastante pessoal. O senhor e essa jovem estão apaixonados um pelo outro?

 

- Acha que essa pergunta merece resposta, major?

 

- Bem entendido se... se essa afeição influir no seu julgamento .

 

Por trás da escrivaninha, o anafado cirurgião-chefe sorria beatificamente como um ídolo. Balouçando-se na ponta dos pés, Rick ponderou por momentos as vantagens e inconvenientes dum sopapo bem dado naquela boca complacente. Imaginou os papéis a esvoaçar e Strang a erguer-se, vacilante, justamente a tempo de evitar novo tabefe. Um soco da esquerda no plexo solar e outro da direita para o arrumar de vez... A satisfação desse breve momento podia pagá-lo depois num Conselho de Guerra...

 

Contentou-se por isso em respirar fundo, para ganhar tempo, dizendo a seguir, numa voz branda:

 

- Perdão, major. Tem algum motivo para censurar o meu julgamento?

 

- Dir-lhe-ei isso mais tarde, Winter, dentro de poucos dias. Quando tiver em meu poder o relatório definitivo referente aos casos das queimaduras... Como sabe, os doentes ficaram hospitalizados em Gibraltar. - Juntou piedosamente os dedos, em forma de pirâmide: - Mas parece que a minha pergunta fica sem resposta.

 

- Ao contrário, major. Há algum tempo que amo Miss Rycroft. E tenciono desposá-la quando esta aventura terminar, se ela quiser, bem entendido. É tudo quanto deseja saber? Ou tem mais alguma pergunta a fazer-me?

 

Era um desafio directo e não dissimulado. De respiração suspensa mas perfeitamente calmo, Rick esperou que Strang medisse bem o alcance da frase. «Um minuto mais, e esmurro-o!», pensou Rick, decidido. O seu punho fechava-se no momento em que o chefe abriu a boca para responder:

 

- Creio que é tudo, capitão. Devo dizer-lhe que apreciei a sua franqueza...

 

No tombadilho, envolto em densa obscuridade, Rick encostou-se, sem forças, a um estai. Que impulso o forçara a anunciar como uma certeza - e principalmente a esse homem detestado - uma resolução apenas semiformulada no seu espírito? Teria sido muito mais simples esmurrar bem aquela boca trocista! Mas a psicologia tinha razão, como sempre. Muitas vezes confessamos sem custo a um inimigo aquilo que não ousaríamos confidenciar a um amigo, nem mesmo a nós próprios.

 

Sabia agora que uma necessidade interior, mais forte do que a sua vontade, o forçara a comprometer o futuro, a traçar um pequeno domínio de certeza no imenso isolamento que o submergia desde a noite do black-out.

 

As máquinas do navio começavam a estremecer ligeiramente debaixo dos seus pés, mas ele nem sequer se mexeu. Como um sonho, viu flutuar à proa, contra o fundo do céu estrelado, a sombra maciça dum porta-aviões. Emergiu por fim das suas cogitações e notou que toda a esquadra se pusera silenciosamente em movimento, revolvendo a baía em uníssono, como se uma única mão invisível fizesse girar uma centena de hélices.

 

Sempre presente no local devido, quando as coisas tomavam novo aspecto, Linda Adams lá estava à proa do navio. Naquele instante, Carolyn é que devia encontrar-se junto dele. Carolyn decerto precisaria do seu conforto, agora que a solidez do rochedo se desvanecia no negrume da noite. No entanto, decidiu-se a ir ao encontro daquela jovem, que parecia não ter nenhuma necessidade de conforto, para travar com ela novo duelo. E ia pensando que Linda Adams se parecia um pouco consigo, lobo solitário errando a seu bel-prazer pelo mundo. Talvez que sentados à proa do barco, um ao lado do outro, pudessem os dois uivar às estrelas.

 

Passou um oficial e murmurou uma seca advertência a um par cujos cigarros iluminavam o escuro dum salva-vidas. À popa, transportes e torpedeiros organizavam-se já nos seus escalões habituais. Rick, encostado à amurada, ficou por momentos a contemplar as miríades de esteiras em forma de V que riscavam as águas sombrias do porto com reflexos fosforescentes. Recordou a sua primeira partida de Gibraltar com igual destino. Mesmo tomando em conta a lenta marcha do comboio, atingiram o objectivo o mais tardar na manhã de domingo.

 

Encolheu os ombros, recusando-se a pensar no assunto e caminhou para junto de Linda Adams. Mas quando descia a escada, o transporte, ao entrar na corrente do estreito, ergueu a proa para as estrelas, mergulhando logo em seguida. Linda teve de estender um braço para o amparar:

 

- Cuidado, Rick, este lugar é reservado aos bons marinheiros.

 

- Tenho o ar dum tipo enjoado? - Mesmo à fraca claridade das estrelas, verificou que o rosto da jovem estava transtornado e acrescentou: - Naturalmente, vim importuná-la...

 

- Pelo contrário! Estou contente de o ver aqui. Esta manhã disse-me que ajudaria Terry se pudesse: agora tem de cumprir a sua palavra. - Rick ouviu-a respirar fundo. - Há cinco minutos desci... ao seu gabinete. Queria ver como ele vencera as dificuldades do dia... Encontrei-o espernegado entre duas poltronas, roncando como um magala, completamente bêbedo e com uma garrafa vazia junto dele... - Linda fazia um esforço considerável para falar calmamente. - E vim para aqui apanhar o fresco e reflectir. Como podemos transportá-lo para o camarote?

 

Rick rememorou rapidamente os acontecimentos. Deixara Terry, depois da conferência, morto de fadiga mas perfeitamente lúcido. Lembrou-se então da garrafa de conhaque que tinham encetado para celebrar o fim da fastidiosa tarefa.

 

- Pense bem, Linda. Nunca se sentiu tão cansada que não fosse capaz de dormir sem beber qualquer coisa?

 

- Não me parece que seja esse o caso. Mas pergunto a mim própria o que sucederá se alguém o encontra naquele estado? O coronel Elaine, por exemplo?

 

- Amos? Naturalmente levava dali o garoto e metia-o na cama com as próprias mãos. Não tenho dúvidas a esse respeito.

 

- E Strang?

 

- Sobre esse não digo nada. Quer ficar aqui sossegada, enquanto vou ver o que se passa?

 

Ao voltar, Linda esperava-o, ainda no mesmo sítio.

 

- Algum bom Samaritano descobriu-o primeiro. Já estava em segurança no seu camarote quando o encontrei. Roncando sempre, mas inofensivo. - Calou-se, analisou ajovem atentamente, depois concluiu: - Não há nenhum mal nisso. Ou será pedir demasiado a uma irmã um pouco de compreensão?

 

Linda bateu na amurada com o punho fechado, de olhar fixo em frente, na escuridão opaca:

 

- Temos de o ajudar nesta emergência, Rick.

 

- Deixei agora mesmo Strang. Terry está inscrito na lista duma barcaça de desembarque. Se me opusesse à sua inclusão, era natural que o deixassem em Gibraltar. Teria usado o lápis azul no meu lugar?

 

Linda não abandonou a sua contemplação quase hipnótica do mar:

 

- Provavelmente não... Suponho que continuaria a esperar que ele se portasse à altura das circunstâncias... - De súbito, deixou resvalar o corpo na amurada e sentou-se no chão, a coberto das ameaças exteriores: - Oiça-me, Rick, não quero acreditar de maneira nenhuma que Terry seja cobarde. Ou será verdade que todos os cobardes são apenas vítimas dos seus nervos?

 

- Dava talvez uma boa médica - respondeu Rick, já sentado naturalmente ao seu lado.

 

Quase lhe parecia confortável aquele estreito e obscuro santuário à proa do navio. O rumor do talha-mar impregnava esse minuto duma estranha nostalgia. Sem razão aparente, lembrou-se da sua primeira experiência na montanha-russa, em Coney Island, ao luar de Brooklyn. Havia uma jovem ao seu lado, evidentemente. Uma estagiária no hospital onde trabalhava. Quando a vagoneta mergulhou na primeira descida, passara-lhe um braço em redor da cintura, mais pelo medo do que por amor. Mas ocorreu-lhe de repente que Linda não pertencia ao número das jovens que precisam de conforto.

 

- Pode ser uma forma de distonia neurovegetativa.

 

- Isso parece qualquer coisa bastante respeitável.

 

- É tão respeitável como a vertigem, mas menos frequente. Teve alguma vez a ideia de tomar o pulso de Terry num desses... desses ataques?

 

- Lembro-me bem... Éramos ainda crianças... Um grande cão dinamarquês saltou uma sebe e foi ao seu encontro... Terry correu para mim, aos gritos... Tomei-lhe a cabeça entre as mãos e as suas têmporas latejavam duma forma absolutamente louca. Não podia mesmo contar-lhe as pulsações.

 

- Isso podia ser um sintoma.

 

- Há algum remédio?

 

- Esse tipo de distonia é muito difícil de localizar.

 

Podia tranquilizá-la com generalidades. Mas, sem saber porquê, sentia a necessidade imperiosa de ser franco naquela noite.

 

- O tempo de guerra produz milhares de casos semelhantes, eis tudo. Traz à superfície deficiências que normalmente não se manifestariam.

 

- Espero que seja esse o caso de Terry.

 

- O mal é profundo. O sistema nervoso vegetative comanda todas as funções vitais do corpo: pulsações, pressão sanguínea e assim por diante. O choque atira tudo isso ao ar tão naturalmente como um curto-circuito num dínamo. A partir de então, receio bem que não possamos fazer nada, a não ser que se consiga suprimir a causa.

 

- Isso significa que tais homens não prestam para a guerra? Rick não procurou poupá-la:

 

- Em geral, começam por ficar abatidos um dia ou dois antes de entrarem em acção. O importante, é claro, é separar as cabras dos carneiros, aqueles que perdem realmente o domínio dos nervos daqueles que fingem dominá-los para evitar o pior.

 

- Classifica Terry no número dos carneiros? Acredita que ele é capaz de fingir dominá-los?

 

- Sabe perfeitamente bem que não acredito nem deixo de acreditar. Aliás, parece-me que nenhum conselho de revisão aceitaria partilhar a minha crença. Duvido mesmo que conseguisse convencer Strang esta noite.

 

- O que sucederá se ele se comportar assim?

 

- É difícil de dizer. A maior parte dos asténicos estão a tal ponto preocupados consigo próprios que tomam o caminho dos hipocondríacos. O exército classifica-os então como psiconeuróticos. Os mais graves são abatidos ao efectivo, os outros são atirados para os serviços auxiliares. - Nisto, ergueu violentamente as mãos: - Para que me quer obrigar a falar mais nesse assunto? Com certeza procurou e encontrou há muito tempo o caso do seu irmão nos livros.

 

Linda respondeu numa voz amável:

 

- Acredite-me ou não, sempre pensei que Terry fosse pura e simplesmente um cobarde. Porque não lhe diz o que acabou agora de me contar?

 

- Terry sabe bastante de medicina para estabelecer o seu próprio diagnóstico.

 

- Não há realmente cura?

 

- Depende dele. Ou o seu mal é insuportável ou o pode dominar. No primeiro caso, será dado como inválido e mandam-no para casa. No segundo, acabará por vencer os nervos, tal como um homem que sofre de vertigens aceita escalar montanhas, como outro que sofre de agorafobia se treina a passear nas praças mais amplas que conhece, ou ainda como um que tenha um terror mórbido às serpentes consegue entrar na jaula duma cobra e desafiá-la, de olhos nos olhos. - Ergueu-se e com o mesmo movimento levantou Linda. - Se ele conseguir dominar-se, muito bem, terá construído o seu próprio futuro quando a guerra findar.

 

- Então crê que vale a pena correr o risco?

 

- Temos outra alternativa?

 

- E admitindo que ele enlouqueça?

 

- Neste desembarque, levá-lo-ei na minha barcaça, e farei o que puder, olharei por ele até onde me for possível. Pode também embarcar connosco, se tem coragem para tanto.

 

Linda riu baixinho:

 

- Sem querer veio ao encontro dos meus desejos. Quando pedi autorização ao coronel, ele respondeu-me que a decisão dependia de si.

 

A proa do transporte mergulhou profundamente no Mediterrâneo e o súbito impulso aproximou mais Linda de Rick. Demasiado perto para não perturbar a calma de qualquer homem, com a morte à espreita em cada recanto da escuridão. Os lábios dum encontraram os do outro e retiveram-nos, num longo beijo.

 

- Não tem medo de nada, Linda?

 

- Fale por si, capitão - murmurou ela.

 

Uma vez mais deixou-a libertar-se do seu abraço e afastar-se do seu beijo. E quando a viu subir para a coberta superior, admirou a firmeza do seu passo, a nobreza da sua silhueta, a maneira de manter os ombros direitos e a cabeça erguida. Não se sentia desleal para Carolyn. No fim de contas, não era de esperar que um lobo mudasse de hábitos dum dia para o outro. Sobretudo se a jovem que ama insiste em continuar fechada lá em baixo, na sua primeira noite do Mediterrâneo, esse Mediterrâneo a que nem a própria guerra conseguia roubar a perturbadora magia.

 

Pelo menos, estava certo de ter animado um pouco Linda, embora ela não fosse pessoa que precisasse que lhe incutissem ânimo.

 

Mas talvez se a tivesse seguido até ao camarote ficasse surpreendido ao vê-la, de olhos muito brilhantes, procurar no corredor o caminho às apalpadelas, como uma mulher em transe...

 

Vagarosamente, como a maior parte das armadas, o comboio continuava a sua rota no meio da noite.

 

No seu camarote, contíguo ao do capitão, o coronel Amos Blaine, impaciente, soergueu-se, sentou-se, deu um safanão irritado no travesseiro. Haja doze minutos, contados pelo relógio de pulso, que estava deitado, rígido e imóvel, no seu beliche, de olhos fixos no brilho e nas sombras dos rebites do tecto. Todos os seus esforços tinham sido vãos. Estava tão acordado como um quarto de hora antes. Vestiu o roupão, procurando às apalpadelas as mangas e o cinto, e foi para o convés contar as estrelas. Mas as estrelas tinham-se escondido num manto frio de nevoeiro. Apenas podia distinguir a silhueta do vigia de bombordo, encafuado até aos olhos na sua camisola.

 

Voltou para o camarote, fechou suavemente a porta e deitou-se no beliche, na expectativa de mais uma noite de insónia. Não é que a insónia em si mesma fosse desagradável. Os pensamentos é que ele receava, os pensamentos que enchem essas horas solitárias, enquanto a própria terra treme num vazio imenso. As dúvidas que se agitam como vermes no espírito dum homem abandonado por todas as suas defesas.

 

Somers dissera-lhe, em particular, que o ataque estava previsto para domingo, ao romper da aurora, a não ser que o tempo os obrigasse a uma brusca mudança no último minuto. E Somers avisara toda a unidade que seria necessário entrar em acção imediatamente se as perdas fossem pesadas... Pôs-se então a rememorar as suas recordações de guerra. Conduzira já muitas vezes homens ao combate, em Cuba, nas costas da China, mas a maior parte deles eram soldados experientes. Nunca comandara uma unidade daquele género. As raparigas, por exemplo... O seu próprio uniforme branco, tão claro e limpo, parecia demasiado militar para a sua juventude. Pela primeira vez nesse próximo domingo ouviriam explodir granadas numa praia hostil. Como conseguiria dominar o pânico se este se declarasse nas suas fileiras?

 

Voltou-se, agitado, para o outro lado. Com certeza não se registaria nenhum pânico... Essas raparigas eram americanas, executariam a sua tarefa e cumpririam o seu dever como os seus irmãos de armas. Essa jovem Adams, por exemplo... Devia retê-la a bordo do transporte até que o perigo passasse. E, no entanto, autorizara-a a acompanhar as outras... Era uma jornalista, e tinha de ganhar e merecer o artigo que escreveria em primeira mão.

 

O travesseiro, sob a sua face, dir-se-ia uma massa quente de algodão; mas mesmo depois de o atirar para longe não se sentiu melhor. Essa noite, entre todas as noites, tinha de ir até ao fim da insónia... A despeito dos seus argumentos e de todas as protecçoes de que se servira para voltar ao serviço activo, seria demasiado velho para a guerra? Oh! Não sentia nenhum medo por si. A sua memória saltou um quarto de século e reconduziu-o ao Marne, a uma ambulância do batalhão. Reconduziu-o junto dum jovem capitão, trémulo e pálido, incapaz de segurar na mais simples ligadura.

 

Lembrou-se do sargento que, sem dizer nada, o arrastara para uma tenda, tirara de qualquer parte uma garrafa e com gesto autoritário lhe chegara o gargalo aos lábios... Esse gole de fogo salvara-o. Salvara-o do revés e da vergonha. Depois disso, saíra-se sempre de apuros sozinho, andara com os outros, debaixo dos mais variados tiros, sem parar para reflectir.

 

Assim, esse jovem Adams... Perguntou a si próprio o que Terry pensaria e diria no dia seguinte de manhã, se soubesse que o seu próprio coronel tropeçaria nele no gabinete, encontrando-o bêbedo como um lorde e a roncar como um dorminhoco? O que pensaria e diria o rapaz se pudesse sair do seu estado de embriaguez e visse o seu próprio coronel empurrá-lo e arrastá-lo no corredor deserto até à sua tarimba?

 

Pensou que Terry precisava de ser vigiado. Randall Strang também, se alguma vez tivesse de avançar até à linha de fogo, coisa evidentemente muito pouco provável. Mas a respeito de qualquer dos outros, apostaria o seu último dólar com toda a tranquilidade. Fá-lo-ia da mesma forma se não os tivesse sujeitado nos Estados Unidos, durante meses, a um treino intensivo.

 

A parte mais importante do seu trabalho realizara-a na pátria, quando os modelara com as suas mãos, ao sol ardente do Sul. Desde que tinham subido a escada do portaló do transporte que os conduzira a Inglaterra, deixaram verdadeiramente de precisar de si. E esse domingo iria provar que podiam vi ver e morrer sem ele. O que precisava, nessa noite, era de dormir.

 

Amos Elaine, uma vez mais, olhou com ar feroz para o mostrador do relógio, sentou-se no beliche e depois, resignado, estendeu a mão para um pequeno tubo colocado em cima da mesa-de-cabeceira e engoliu um dos comprimidos brancos que continha.

 

Fenobarbital, o amigo dos velhos...


Capítulo décimo quarto

 

Enquanto durou a luz do dia, o Mediterrâneo podia ser tudo o que se quisesse menos romântico. Há quarenta e oito horas que o comboio seguia o rumo de leste sob um céu de chumbo e um mar estriado de escuma branca pela violência do mistral. Agora que morria a pálida claridade, os oficiais da expedição calcorreavam as cobertas dum lado para o outro, ou então, nos camarotes atravancados, debruçavam-se para os mapas e pediam a Deus que não clareasse o tempo. Aquelas nuvens e as violentas rajadas de chuva tinham até aí formado uma cortina perfeita, e não se assinalara ainda a presença do inimigo nem mesmo um rolo de fumo suspeito no horizonte. Os homens das guarnições das baterias antiaéreas, amontoados nos seus postos de combate, como patos submersos, esquadrinhavam em vão o céu. Nos torpedeiros, de ouvido atento aos aparelhos de detecção, as tripulações esperavam as vibrações submarinas que não se produziam.

 

A África, naturalmente, ocupava o primeiro lugar em todos os espíritos. A África, presença tangível a estibordo, não menos real por ser impossível distinguir-lhe o perfil à luz do sol-poente. Olhando pela vigia da sala dos oficiais, Rick Winter ia jurar que avistava minaretes e palmeiras. Pura miragem, com certeza, originada pela tensão duma longa jornada: nada se divisava naquele momento, na imensidade do mar, a não ser a chuva fustigada pelo mistral.

 

Winter passeou algum tempo debaixo do aguaceiro. Que fazer, senão esperar ordens? O último livro de contabilidade do 95.° Hospital de Campanha estava fechado, a última folha de serviço devidamente classificada nas pastas de Terry Adams, até que os acontecimentos do dia seguinte lhe acrescentassem um pós-escrito. «Amanhã é o grande dia», dizia com júbilo íntimo. «Aproamos ao sul e entramos em Argel.»

 

O jantar fora anunciado há mais de meia hora, mas havia pouco apetite nessa noite. Todos os componentes da unidade, em qualquer sítio que estivessem no bojo daquele transporte, arrumavam a bagagem, apertavam as correias, fechavam à chave lembranças queridas, ou escreviam, de cenho carregado, cartas à família, encerrados nos seus camarotes. Num momento como aquele, era uma espécie de calmante arrumar o conteúdo duma mala. Ou então escrever, com uma alegria forçada, a última mensagem à tia Marjorie, em Duluth... Rick passara por tudo isso no cargueiro que o conduzira a Espanha. Mas hoje sabia que o ar puro do alto mar era melhor antídoto do que a tia Marjorie... As suas próprias tias, em Chicago, contentar-se-iam em saber pela imprensa diária os seus eventuais feitos de heroísmo ou a sua morte. A única pessoa no mundo que desejaria ver ia a bordo e em todo esse dia fizera o possível para o evitar.

 

Reflectiu nisso um momento, depois voltou apressadamente ao gabinete onde, com Terry, suara as estopinhas desde manhã. O local estava agora vazio e tão arrumado como a gaveta da secretária duma velha solteirona. Rick sentou-se à escrivaninha e tocou a campainha. Trinta segundos mais tarde, uma ordenança, na posição de sentido, enquadrava-se no vão da porta.

 

- Procure a tenente Rycroft, no dormitório das enfermeiras, e diga-lhe que venha aqui sem demora. Despache-se que é urgente.

 

Como era possível não se ter lembrado mais cedo dum estratagema tão simples? E também porque esperara até à última noite para se decidir a falar-lhe? Continuava admirado da sua própria estupidez quando Carolyn entrou no gabinete. Calmamente, como sempre, com o clarão dourado dos cabelos a espreitar por debaixo do gracioso boné que usava.

 

Rick não se moveu:

 

- Queira fechar a porta, por favor, tenente Rycroft. - Ela obedeceu sem pestanejar. - E diga-me porque tem feito tudo nestes dias para me evitar?

 

- Mas não fiz nada...

 

Esta forma de se desculpar não era própria de Carolyn. Rick deu uma palmada tão forte na mesa que a jovem recuou um passo.

 

- Olhe bem para mim, Carolyn. Sei perfeitamente porque procura evitar-me.

 

Ela atirou para o lado a capa com violência igual à do capitão, e fez-lhe frente resolutamente, vibrante silhueta em uniforme branco.

 

- Tem razão, Rick. Não o nego. Mantive-me afastada desde Gibraltar e sabe bem porquê. Desembarco com o nosso grupo. Não conseguirá mover influências bastantes para o impedir. Pouco importa que... que nos amemos...

 

Mas a sua virulência desapareceu por completo quando Rick se aproximou. Com um pequeno grito abafado, voou imediatamente para os braços que se lhe abriam. Mais um segundo, e chorava, confortavelmente apoiada ao seu ombro, da forma mais feminina do mundo. Outro segundo ainda e oferecia-lhe os lábios.

 

- Se soubesse...

 

- Se soubesse o quê, querida?

 

- Há quanto tempo espero este instante.

 

Rick tornou a beijá-la. Mais perfeitamente do que a primeira vez, de maneira a compensá-la da longa espera.

 

- Podemos agora falar um pouco? Somente um pouco...

 

- Mas está decidido, Rick. Desembarcaremos juntos, não há mais nada a dizer.

 

- Não pensemos agora no desembarque. Discuti o caso com a minha consciência e está arrumado. - Resolutamente, ele pôs a escrivaninha entre os dois. - Esta é a sua guerra também, suponho eu. Aconselho-a a bater-se numa frente de cada vêz.

 

- Agora parece-me que não o compreendo...

 

Mas o estremecimento da sua voz denunciava que compreendia perfeitamente.

 

- Sabe bem que a amo, Carolyn. Quer ouvir-me repeti-lo?

 

- Se isso não o aborrece demasiado.

 

Desta vez foi ela que se dirigiu atrevidamente ao seu encontro, contornando a secretária para lhe oferecer os lábios e foi ele que com os braços a manteve à distância, lutando com quantas forças tinha por dominar as suas emoções. Nunca fizera antes aquela pergunta a nenhuma jovem, e era a pergunta mais difícil de todo o vocabulário masculino.

 

- Quando quer casar comigo, Carolyn?

 

Ela agarrou-se bruscamente a ele. Através da espessura dos dois uniformes, Rick sentia-lhe palpitar o coração.

 

- Mas... Rick... eu não imaginava que...

 

- Podemos ao menos pôr-nos de acordo sobre este assunto?

 

Winter verificou, com certo júbilo sardónico, que Carolyn recuperara já o equilíbrio. No fim de contas, pensou, esse é o grande momento duma mulher! E ela só tinha de se apoiar na sabedoria popular para se mostrar à altura das circunstâncias. Continuou, com um sorriso:

 

- Tudo ou nada, não é verdade? Foi isso que pediu, querida. Pois é isso que lhe ofereço.

 

- Mas... Rick... como podemos?...

 

- Não podemos, evidentemente. Quero dizer, não podemos casar neste momento. Temos de vencer primeiro a guerra. Ou, pelo menos, parte da guerra, custe o que custar. - Calou-se outra vez, para respirar fundo, como se fosse lançar-se à água. - Sei bem que a altura é mal escolhida para propor seja o que for a uma jovem, incluindo o casamento. Mas é talvez a minha última oportunidade, durante algum tempo, de lhe dizer... bem, de lhe dizer qualquer coisa de pessoal. - Tomou-lhe as duas mãos e apertou-lhas muito. - Para o diabo todo esse jogo das escondidas, Carolyn. Quer tomar boa nota da minha oferta, para consideração futura?

 

- Tenho de responder agora?

 

- Não, se não quiser- volveu Rick rapidamente. - Não me julgo no direito de lhe pedir um compromisso imediato.

 

Hesitou, de olhos fixos nos dela, sem ter bem a certeza de desejar ouvi-la infringir o seu veto.

 

- Quero unicamente afirmar-lhe um simples facto. De ora em diante, faz parte de mim próprio. Aliás, já fazia, desde a última noite passada na Inglaterra.

 

- Talvez eu possa dizer o mesmo, Rick.

 

Carolyn erguera altivamente a cabeça. Ele prosseguiu:

 

- Temos de ser um do outro. Para lhe dizer a verdade, nunca pensei casar. Mas sei que é isso o que deseja e desejo-a bastante para a querer com as suas condições.

 

Sabia que devia dizer-lhe muito mais, mas deixou o resto perder-se num longo beijo. Sabia que devia prometer-lhe coisas que as mulheres sonham na sua solidão. Uma quinta no fundo das encostas de Connecticut. Valiosos candelabros sobre uma mesa antiga assinada por um reputado ebanista. Um serviço de uísque numa bandeja, da época georgiana, para receber os hóspedes de Nova Iorque que fossem lá passar o fim-de-semana. Uma casa de velho lobo do mar em Nantuckect, para passar as férias do Verão, onde nada faltasse, galeria envidraçada, óculo de ver ao longe, uma barraca na praia. Nessa noite, sim, podia ter-lhe falado de todas essas coisas com o coração a transbordar de amor. Da vida que construiriam um dia ambos, quando um ao outro se unissem.

 

Mas como evocar uma felicidade futura com a África por horizonte? Tudo quando pôde dizer foi:

 

- Naturalmente serei o pior dos maridos. Mesmo sem os meus hábitos...

 

- Talvez corra o risco, quem sabe?

 

- Excelente ideia, querida. Lembre-se apenas de que a oferta está feita. Mas guarde os projectos na classe dos «talvez» e dos «quem sabe?» até que Amos nos apresente a Marte, com todas as consequências que isso comporta.

 

- Lembrar-me-ei, Rick - disse Carolyn, inclinando-se para ele com olhos húmidos. - Mas recompôs-se depressa e saudou-o militarmente: - Mais alguma ordem, capitão?

 

Rick seguiu-lhe o exemplo e respondeu no mesmo tom:

 

- Não, tenente, é tudo. Aconselho-a a deitar-se o mais cedo possível esta noite. É muito provável que tenha de acordar de madrugada.

 

Mas não prosseguiu, pois ela oferecia-lhe os lábios para um beijo:

 

- Obrigada por isto também - murmurou Carolyn.

 

Ia voltar-se para sair, mas Rick reteve-a ainda um momento junto de si. Pousou-lhe a mão no ombro e com os dedos da outra acariciou-lhe os cabelos de ouro. Poderia fazer renascer o instante que selara os seus dois destinos? Pelo menos poderia repetir os versos de Browning que tinham sublinhado a sua ardente entrega na noite do black-out:

 

Adivinha agora quem te prende? - A morte, repliquei Mas então ressoou a resposta eloquente... Não é a Morte, é o Amor.

 

É verdade, podia repetir esses versos, a boca colada ao seu ouvido. Podia obrigá-la a terminar o último, tal como o fizera na noite inolvidável. Obrigá-la enfim a admitir que se tinham possuído completamente um ao outro nessa última noite da Inglaterra. Mas uma vez mais o seu instinto lhe ordenou silêncio. Não, não era aquele o lugar nem o momento para ressuscitar o êxtase. Além disso, continuava a reconhecer-lhe o direito de escolher a hora e o local mais apropriados para semelhante confissão.

 

Beijou-a ternamente atrás da orelha.

 

- Pode sair agora, tenente. Queria simplesmente acrescentar isto. Para lhe lembrar...

 

Ao chegar à porta, Carolyn voltou-se para lhe enviar um beijo na ponta dos dedos. Apoiado à secretária, Rick viu-a partir, perguntando a si próprio como podia sentir-se tão tranquilo depois de dar o grande mergulho.

 

Até então sempre pensara no casamento como se pensa na prisão. Um sistema inventado para satisfazer legitimamente e legalmente o mais antigo desejo humano. O arrebatamento com-

primido num molde sintético e embotado pelo hábito. Nesse momento, não sentia nenhum ardor. Nenhuma pena também. Por muito incrível que pudesse parecer, sentia apenas alívio... um alívio semelhante ao que sente um homem mergulhado num banho quente depois dum dia de trabalho extenuante. Como todas as satisfações de qualidade, aquela, tinha de admiti-lo, era um pouco aborrecida.

 

Encarou de frente esta realidade, pensativamente, depois voltou-se com um ligeiro sorriso e pela última vez antes do desembarque pôs a secretária em ordem.

 

O seu futuro também estava agora em ordem. Pela primeira vez arrumado, regulado, definido...

 

E sentiu-se à altura fosse do que fosse, incluindo a guerra.

 

Ao caminhar vagarosamente pelo corredor, Rick ouviu, no camarote de Terry Adams, uma máquina de escrever a trabalhar fora de horas. Parou e bateu, desejoso de partilhar com alguém a sua tranquilidade recém-adquirida.

 

Mas, mal abriu a porta, estacou de repente. Era Linda quem escrevia. O irmão, sentado na beira do beliche, um cigarro apagado entre os lábios, esboçou um gesto de desespero fraternal e disse, apontando para Linda:

 

- Chega mesmo a tempo de interromper um inquérito. Quer creia quer não, Linda redigia as suas últimas vontades e o testamento .

 

Sem levantar os olhos do teclado, a jovem protestou:

 

- Não acredite, Rick. O meu testamento já está redigido desde a Primavera. Antes de partir para a Europa, tomei as necessárias disposições, legando tudo quanto possuo a Terry e a sua esposa. Isto é apenas uma carta para o meu notário, em Nova Iorque, a indicar-lhe quando deve proceder à abertura do documento. Bateu na tecla dos espaços e acrescentou com um sorriso:

- Entre, entre. Na verdade, esta conferência deve ser pública.

 

Rick entrou, inclinou-se para Terry, aproximou um fósforo do seu cigarro apagado e depois observou:

 

- Deve saber isto melhor do que eu, Linda, mas parece-lhe de boa psicologia?

 

- E porque não? Não posso ficar a discutir Alice no País das Maravilhas, para passar o tempo, como os dois heróis do Journey’s End. Isso está muito bem para os britânicos e não discuto o valor do método. É uma questão de temperamento. Nós, americanos, somos pragmatistas. Sentimo-nos sempre muito mais à vontade quando limpamos o nosso revólver ou quando redigimos o nosso testamento.

 

Rick viu-a continuar a matraquear nas teclas. «Talvez ela tenha razão», pensou. «Talvez esse mesmo impulso me levasse há pouco a amarrar o futuro numa reluzente fita vermelha com um nó corredio!» Em voz alta, no entanto, disse por entre o ruído do teclar:

 

- Se pensa que a deixo expor-se aos perigos do desembarque...

 

- Perdão! Não queira voltar agora com a sua palavra atrás.

 

- Combinado. Mas encarrego Terry de se sentar em cima da sua cabeça se for preciso, até que a nossa lancha chegue à praia.

 

- Parece-me que tanto um como o outro hão-de estar demasiado ocupados para se lembrarem que eu vou a bordo.

 

Aproveitando um segundo de distracção de Terry, trocaram os dois um olhar de inteligência. «Compreendeu?», disse-lhe Winter mudamente. «Obrigue-o a preocupar-se com a sua segurança, para não lhe dar tempo a preocupar-se consigo próprio. Talvez isso dê resultado.» E dando um piparote no queixo do jovem, perguntou:

 

- Em que pensas, meu rapaz? Achas que sou um idiota em consentir no desembarque desta dama jornalista?

 

- O senhor é verdadeiramente um homem, Rick, mas não pode fazer milagres. Seria preciso Houdini e mais uma camisa de forças para conservar amanhã a minha irmã a bordo deste barco.

 

Linda fechou a tampa da máquina:

 

- E agora que resumiste assim a situação, meu querido irmão, se não te importas vamos jantar os três e fingir que temos fome.

 

Saíram para o corredor, de súbito a abarrotar de gente que seguia na mesma direcção. Aparentemente, toda a unidade decidira ao mesmo tempo que a melhor forma de fazer descer a bola que cada um sentia na garganta era comer e engolir qualquer coisa. A mesa dos cirurgiões já estava bastante povoada quando Rick nela se sentou. Linda encaminhou-se para a mesa das enfermeiras. Carolyn não estava lá: como noiva obediente, decerto seguira o conselho e fora deitar-se cedo.

 

Ao lado de Rick, Bill Coffin resmungou:

 

- Não podias arranjar as coisas para eu ir também, em vez de ficar aqui com Randall Strang?!

 

- Quando começa a corrida de canoas? - perguntou Manners.

 

Hal Davis, por sua vez, gritou:

 

- Com quem vou eu? Contigo ou com a infantaria?

 

- Um de cada vez, meus amigos! - disse Winter, numa voz lenta e com o seu melhor acento do Sul. Agora tinha de se mostrar tão natural como se se tratasse dum piquenique de escuteiros.

 

- Acreditem, não sei de nada, e não lhes posso responder. A telegrafia secreta anuncia que atacamos amanhã. Mas a telegrafia secreta está sujeita a um curto-circuito como qualquer outra. Quem sabe se não vamos mudar de rumo e continuar até ao Cairo?

 

Mas Bill insistiu na sua ideia, interrompendo sombriamente o discurso do amigo:

 

- Estão a distribuir cartucheiras suplementares nas entrecobertas, meu velho, e os homens do batalhão de infantaria dormem todos com o equipamento completo esta noite. Por isso, repito-te, podias levar-me contigo...

 

- Para arriscar a pele dum dos melhores cirurgiões do cérebro dos Estados Unidos? Estás a gracejar, Bill. Não sejas criança, e olha pelos rapazes que ficam contigo. Acredita-me, será mais duro para ti do que para nós. - Lançou um rápido olhar a Terry Adams, que se esforçava por beber sem que lhe tremesse a mão que segurava o copo. - Acompanhas-me no bife, pequeno?

 

Terry esboçou um pálido sorriso ao ver Rick atacar a comida:

 

- Bem gostaria de conservar o apetite nestas montanhas-russas!

 

- Quando fizeres uma dúzia de viagens, saberás que nada é mais importante do que comer, antes e depois.

 

Mas ao verificar que em volta da mesa todos ou quase todos os pratos estavam intactos, não insistiu. A que propósito se punha a representar o papel de veterano diante daquele neófito atento e de boa vontade? Ele depressa aprenderia, e todos os outros igualmente, a dominar o apetite em ocasiões de crise. E a guerra é uma crise contínua desde que se ande longe da base. Masisso é outra lição que um homem só aprende por experiência própria.

 

Ficou bastante contente quando um oficial de marinha lhe tocou no ombro. Uma vez mais, Linda tinha razão. Mais alguns minutos e começaria a discutir Alice no País das Maravilhas ou a falar de porcos pretos e brancos como os heróis de Journey’s End.

 

- Pode vir ao camarote do coronel, capitão? Ele espera-o informou o oficial de marinha.

 

Encontrou Amos a devorar com grande apetite o jantar no estreito e atravancado camarote. Sentados na beira do beliche, tal como «fregueses à espera» no engraxador, três oficiais mostravam ar circunspecto: o capitão da administração que comandava o destacamento, o major que conduzia os regimentos de infantaria e o oficial de marinha que ia assumir a responsabilidade pela cobertura do desembarque. Rick sentiu os cabelos porem-se-lhe em pé diante de tantos mapas amontoados em cima da mesa.

Amos disse placidamente:

 

- Pode chamar a isto um ensaio geral. Deseja assistir, Rick?

 

- Se me é permitido...

 

O coronel alisou com a mão um papel bastante amarrotado. Por cima do ombro de Amos, Rick verificou que se tratava dum plano em grande escala da cidade de Argel e seus arredores, com legendas em inglês e francês. Munido dum punhado de alfinetes, o comandante aproximou-se e começou a marcar o local dos postos de combate.

 

- Continue a exposição, sem voltar atrás, Mickey. O capitão Winter não tardará a apanhar-nos.

 

O major grisalho olhou para o mapa placidamente:

 

- Ao romper do dia, teremos já desembarcado todos os homens e todo o material. Se não encontrarmos campos de minas, poderemos estabelecer imediatamente a ligação.

 

No ar principiaram a fervilhar números. Aqueles homens entregavam-se de corpo e alma à sua tarefa e falavam dela com perfeito conhecimento. Encostado à parede, Rick juntava o fumo do seu cigarro à atmosfera já saturada. Aquele zumbido regular de vozes tornara-o ainda mais calmo.

 

- E a resistência organizada, Mickey? - indagou Amos. O major esboçou um ligeiro sorriso ao responder ao coronel:

 

- Estamos preparados para enfrentá-la, é claro. Mas, se deseja saber a minha opinião, dir-lhe-ei que teremos os aeródromos em nosso poder antes mesmo de eles saberem que os atacamos.

 

- No entanto, as nossas unidades médicas têm um papel a desempenhar noutro campo. É a sua vez, Rick. O senhor está encarregado de dirigir o nosso desembarque. Diga-nos onde lhe parece que deve instalar-se o hospital de campanha.

 

Os oficiais mais velhos afastaram-se para o deixarem aproximar-se do mapa. Pertenciam a essa categoria de veteranos que escutam de boa vontade as ideias dos mais novos. Quando esse ponto, verdadeiramente importante, estivesse resolvido, passariam ao verdadeiro plano de batalha. Já o dedo de Winter pousara no mapa:

 

- Que pensam desta praia aqui, em Lorette?

 

- Conhece a costa, capitão? - inquiriu o major.

 

- Há oito anos passei alguns meses em Argel. Lorette é uma praia de banhos, a oeste do molhe e do porto. Uma arriba quase a pique eleva-se por trás, com uns bons cinquenta pés acima do nível do mar. A não ser que os franceses a tenham destruído, há uma rampa de cimento armado, ligando a praia à estrada que passa no cume da fraga.

 

Os outros escutavam-no atentamente. Sem dúvida que os vagamundos tinham ocasião de brilhar nesta guerra. Rick voltou-se para o oficial de marinha:

 

- Se bem compreendi, vão depor-nos na praia e depois ficamos entregues a nós próprios.

 

- Sim, com a devida protecção dos nossos canhões, ao largo, bem entendido.

 

- É claro, uma vez em terra este rochedo proteger-nos-á das baterias do inimigo. Com a permissão do coronel, penso instalar as nossas tendas de operação exactamente ao abrigo desse muro natural. Assim, com facilidade os feridos poderão ser enviados para lá e trabalharemos sem interrupção, a não ser que as próprias unidades de desembarque...

 

- Não se inquiete com isso, meu filho - disse o major com uma espécie de resmungo de aprovação. - Faremos por lhe conservar toda a liberdade de acção.

 

Rick agradeceu com um gesto e prosseguiu:

 

- Se não levássemos enfermeiras para a zona de combate...

 

- Para o diabo esse favoritismo! - interrompeu Amos. Agora está ao corrente dos factos, Rick. Se julga útil divulgá-los, pode fazê-lo; deixo isso ao seu critério. Não há nada pior para quem entra em combate, pela primeira vez, do que permanecer longo tempo na expectativa e na indecisão.

 

Já com a mão no puxador da porta, Rick teve uma leve hesitação, depois interrogou:

 

- Uma pergunta ainda, se porventura não é despropositada. Partimos com a primeira vaga de assalto?

 

- Não creio que sejamos heróicos até esse ponto - respondeu Amos. - Os destacamentos de infantaria terão antes, para começar, dois turnos de barcaças. Só então hão-de decidir se têm realmente necessidade de nós. - Lançou um olhar ao major de infantaria: - Gostaria que fosse para todos um simples passeio, mas duvido muito.

 

Rick voltou para o seu camarote num singular estado de descontracção. Agora que a hora H fora fixada, sentia-se apenas uma simples peça da máquina. Uma peça de certa importância se os dois primeiros destacamentos desembarcados tivessem feridos, mas perfeitamente substituível. E não se exige que a peça duma máquina pense ou sinta. Era na verdade bem agradável mandar para o diabo nessa noite pensamentos e sentimentos, e estender-se no seu beliche, lançando um sorriso a Bill Coffin, que na outra tarimba chupava o cachimbo apagado.

 

Bill proferiu, numa voz carregada de inveja:

 

- Manny acaba de arranjar a tua mochila. Queres verificá-la?

 

- Oh, não, se foi Manny quen a arrumou!...

 

- Todo o equipamento está em ordem?

 

- Desde o meio-dia.

 

Das dezenas de caixas alinhadas no porão tinham sido escolhidas cuidadosamente algumas que continham instrumentos cirúrgicos em quantidade e variedade suficiente para efectuar toda a espécie de pequenas operações. Nessa mesma manhã, Rick e Terry haviam assistido ao acondicionamento desse material em redes metálicas, que no momento oportuno seriam colocadas nas barcaças de desembarque. Talvez não pudessem abalançar-se à alta cirurgia, mas logo que o material chegasse a terra conseguiriam tratar, de forma adequada, os casos urgentes. As fracturas beneficiariam do emprego dos fios metálicos de Kirchner que se passam no calcanhar para assegurar a tracção. Disporiam apenas duma mesa de operações numa tenda de lona e dum jogo de instrumentos fervidos num esterilizador a gás. Em Dunquerque, trabalhara com menos do que isso. Podia fazê-lo de novo.

 

Bill sentou-se no beliche, de boca aberta, ao ver Rick tirar da mesa-de-cabeceira um revólver 45 do exército, metido no seu coldre, que prendeu ao cinto.

 

- Desde quando um médico vai armado para o campo de batalha?

 

- Desde que os Hunos aboliram a Convenção de Genebra. E, dizendo isto, Rick meteu na algibeira uma provisão suplementar de balas. - Já fui metralhado enquanto operava, umas vezes do ar outras de terra. Agora disse de mim para mim que talvez não fosse desagradável ripostar também.

 

- Pensas então, meu velho, que a coisa vai aquecer até esse ponto?...

 

Rick sorriu, dando uma palmada no ombro do camarada, que caiu no beliche:

 

- Não penso isso, Bill. Não tenho nenhuma intenção de parecer melodramático. O mais provável é nem sequer ouvir amanhã o sibilar duma bala. É uma simples precaução, sem dúvida inútil; mas já me sucedeu apanhar grandes cargas de água justamente quando não levava comigo guarda-chuva.

 

E estendeu-se ao comprido no seu beliche.

 

- Faço votos por te encontrar amanhã à noite, na Mesquita dos Pescadores, com uma Ouled-Nail nos meus braços.

 

- Uma Ouled-Nail! Espera, já li alguma coisa a esse respeito. Não representam a ideia que os Muçulmanos fazem do paraíso?

 

- Amanhã verás porquê.

 

- Como se distinguem das outras? Rick sorriu já meio a dormir:

 

- Por causa dos sapatos dourados e dos seus movimentos rotativos. Ou rotatórios, como queiras.

 

- Sempre ambicionei ver uma dessas danças - advertiu Bill.

 

- Pois prometo mostrar-te uma amanhã à noite. No Café Inglês, na Rua do Ouro. Custa caro, mas vale o preço. - E bocejando prodigiosamente: - E se deixássemos por agora dormir a Casbah e fôssemos fazer o mesmo? Estou morto de sono!...

 

- Mas és capaz de dormir esta noite?

 

- Se sou capaz? Olha para mim e verás. Dormir antes da batalha é um estratagema que Napoleão e eu aprendemos na juventude.

 

Três minutos mais tarde, Bill Coffin inclinou-se, incrédulo, para o beliche e verificou que Rick, na realidade, cumprira a sua palavra e dormia a sono solto.

 

Durante alguns instantes ficou hesitante perto do leito, a escutara respiração regular do camarada. Depois, em bicos dos pés, saiu para o corredor, à procura duma bebida e de Gina Cole.

 

Pouco depois das duas horas, a vibração das máquinas começou a abrandar até não ser mais do que simples murmúrio. Automaticamente, Rick acordou. Logo na plena posse das suas faculdades, consultou o relógio de pulso, saltou da cama e enterrou na cabeça o capacete que deixara em cima da mesa-de-cabeceira. Depois acendeu um cigarro, que iluminou a escuridão do camarote. Lá fora aumentava o burburinho, um vaivém contínuo nas escadas e no corredor.

 

O cigarro soube-lhe bem e aspirou-o avidamente. À chama do isqueiro, verificou que Bill Coffin não voltara para o beliche: aquilo era mesmo próprio de Bill, passar na coberta uma noite inteira só para não perder a primeira imagem da África do Norte. A não ser que andasse em qualquer parte a fazer de gato na companhia dalguma fêmea agradável...

 

Rick encontrou a sua mochila cuidadosamente suspensa aos pés da cama e lembrou-se, com um sorriso, que os sapatos da ordem estariam não menos cuidadosamente arrumados em baixo, como para uma inspecção que jamais se faria. «Muito militar até ao fim», pensou. «Muito militar, na verdade.» Porque não subir ao convés onde se concentrava agora toda a actividade? Se tivessem necessidade dele lá em cima, Manny com certeza já o teria vindo chamar. Mas isso não era razão para não ir tomar um pouco de ar fresco. Afivelou a mochila. Os seus dedos, habituados por longas horas de treino, encontraram com facilidade no escuro as correias e as fivelas. Tudo estava como devia, mesmo a sua pesada cantina de água. O revólver, esse, sim, não regulamentar, sentia-o bater na anca, dando-lhe maior confiança em si próprio. A sua caixa de «primeiros socorros» estava solidamente amarrada e não havia o perigo de a deixar cair ao mar quando saltasse da escada de corda para a barcaça.

 

Como tudo lhe pareceu perfeitamente em ordem, saiu para o corredor, onde flutuava uma claridade azulada e espectral. Manny Ebstein surgiu então dum recanto obscuro, qual humilde fantasma mas imensamente tranquilizador.

 

- Vinha agora mesmo acordá-lo, capitão. O velho perguntou por si há um minuto. Nada de urgente, mas...

 

Rick tinha já um pé num degrau... A enfermaria regurgitava de enfermeiras e pessoal técnico. Lançou-lhe, ao passar, uma vista de olhos, na esperança de ver ali Carolyn, mas ela não estava visível. Isso não lhe deu qualquer espécie de inquietação; sabia que não lhe faltaria a coragem necessária para momentos como aquele.

 

Quando surgiu, por fim, no tombadilho, verificou que o barco, ilha negra no meio do mar, conservava as hélices apenas com a potência suficiente para não andar à deriva. A despeito da obscuridade reinante, as cobertas estremeciam de animação. As barcaças esperavam apenas o sinal de serem lançadas à água. As suas equipagens eram constituídas por marinheiros escolhidos que nessa noite manobrariam os seus barcos com tanta perícia como nos exercícios realizados lá longe, nas águas do país natal.

 

Para lá da proa do navio a vogar em marcha reduzida, a noite estendia a sua cortina negra. Algures para o sul, ficava a Argélia, um território da França de Vichy, tecnicamente ainda em paz. Parecia incrível que as autoridades do porto ignorassem a presença daquela esquadra que avançava, qual frota fantasma, a tão pouca distância da costa. Nenhum som se elevava dos outros cascos maciços e sombrios que Rick sentia, sem os ver, nos dois flancos do transporte. Casualmente, um torpedeiro irrompeu da noite, falou na sua linguagem de rápidos sinais luminosos e desvaneceu-se logo no negrume, tão tranquila e silenciosamente como se mostrara.

 

Manny murmurou junto do ombro de Winter:

 

- Não esqueça o coronel, patrão!

 

Rick encontrou Amos Blaine no seu camarote, em frente da mesma mesa, tão aborrecido como uma galinha no choco, e só compreendeu o motivo dessa deslocação ao ver a um canto o vulto do major de infantaria, mais pesado ainda por causa da mochila. O major fumava um cigarro espetado numa longa boquilha de marfim, objecto verdadeiramente incongruente naquele lugar e com tal indumentária. O seu capacete estava pousado em cima do beliche do coronel, mas enterrara já até às orelhas o carapuço de malha que se usa por baixo. Sem dúvida nenhuma, daí em diante era o major quem tomava a responsabilidade das operações. O coronel, embora fosse o comandante da unidade, não passava dum útil segundo plano.

 

- Acho que não tenho necessidade de perguntar, Rick, se tudo está a postos - disse Amos.

 

- Tudo pronto para o desembarque, só esperamos ordens.

 

Amos fez um gesto largo e aborrecido:

 

- Tome então conta de nós, Mickey. Estamos todos ao seu dispor.

 

o major correspondeu à saudação de Winter:

 

- Continua ansioso por embarcar com a primeira vaga, capitão?

 

Rick endireitou-se, cheio de entusiasmo:

 

- Há alguma alteração nos planos?

 

- Lamento muito, capitão, mas não posso confirmar a decisão de ontem à noite. Apenas partem com a primeira vaga de assalto os homens dos socorros de urgência da Companhia. Na segunda, vão os grupos do posto de socorros. A sua vez é a seguir.

 

- E o horário?

 

- Não houve também nenhuma alteração nesse ponto. Desembarcamos às três horas, isto é, exactamente daqui a vinte minutos.

 

O major tirou a ponta do cigarro da boquilha de marfim e guardou-a na algibeira.

 

- Como já visitou Argel pode recomendar-nos um bom bar?

 

- Na minha última visita, o Metro era o melhor.

 

- Pois bem, encontrar-nos-emos lá amanhã. Eu ofereço o champanhe.

 

O major em seguida apertou-lhe a mão, sem qualquer solenidade, e saiu do camarote, assobiando baixinho, quase sem fazer nenhum ruído, tão placidamente como um habitante dos arredores duma grande cidade ao tomar todos os dias o seu comboio.

 

Amos fungou e resmungou ao mesmo tempo:

 

- Saia da minha vista! Não vê que tudo isto me enche de tristeza?

 

Prudentemente, Rick respondeu:

 

- Quando vem juntar-se a nós, meu coronel?

 

- Não me pergunte agora! Naturalmente na última barcaça que chegar a terra. Quando se trate já dum simples passeio! Mas o coronel estendeu-lhe no entanto a mão, cordialmente. Baixe a cabeça no momento oportuno, Rick; lembre-se de que terei necessidade de si mais tarde e que isto é apenas o levantar da cortina.

 

Rick contemplou «o velho» nos olhos; apesar da forte tensão daquele momento, sentiu que o seu coração podia ainda vibrar numa palpitação absolutamente nova:

 

- A nossa guia de marcha indica a Tunísia?

 

- Pode arriscar todo o seu dinheiro nessa aposta. Vamos apertar a mão a Monty, algures entre Argel e Tripoli.

 

Rick atingiu o tombadilho a caminhar sobre nuvens. Amos tinha razão! Como era bom pensar que aquele desembarque seria o primeiro movimento dum plano muito mais vasto, duma invasão simultânea em diversos pontos que tornaria o Mediterrâneo num lago aliado. Quando chegasse o Natal, o pintor de tabuletas, o louco colador de cartazes estaria metido numa camisa-de-onze-

- varas, fechado num círculo de ferro e fogo. Com certeza gritaria ainda durante algum tempo, mas o seu destino estava traçado, as contas não tardariam a saldar-se.

 

No céu, lá muito em cima, ouviu o roncar de aviões gigantes. Percorreu-o um arrepio dos pés à cabeça e olhou para o ar. O inimigo teria sido informado? Enviaria bombardeiros da Sicília para destruir o comboio? Esteve alguns minutos sem se atrever sequer a respirar; depois tranquilizou-se quando os seus ouvidos identificaram o som... Uma voz feminina deu forma aos seus pensamentos íntimos, tão perto dele no escuro que a sentiu picar-lhe a pele.

 

- São transportes de tropas, capitão?

 

Linda estava ao seu lado, em uniforme de campanha, com uma monstruosa máscara antigas presa ao ombro por um cordão. Mas ao examinar o monstro, Rick verificou que se tratava da máquina de escrever portátil.

 

- Não faça essa cara, Rick - disse a jovem. - Concedeu-me ontem autorização para desembarcar; levo comigo a ferramenta.

 

- Mas isso não lhe faz abaular as costas?

 

- De maneira nenhuma. Esta máquina foi especialmente construída para registar notícias no próprio local. Já mais de uma vez os pára-quedistas a utilizaram.

 

Outra vaga de aviões roncou por cima das suas cabeças: agora que aproavam ao sul, podiam distinguir bem as suas silhuetas.

 

- A propósito de pára-quedistas, Linda...

 

- Não me vai dizer que estes vêm de Inglaterra?

 

- E porque não? Temos todos o mesmo horário esta noite. A jovem prendeu-lhe o braço. Como ela se aproximasse mais, o capitão viu brilhar os seus olhos no escuro.

 

- Quer convencer-me, Rick, de que não está impressionado, nem mesmo neste instante?

 

- Estou de facto um pouco excitado, mas isso não é razão para me pôr a gritar como um escuteiro. Suponho ter já passado a idade dessas manifestações.

 

Ela examinou-o durante algum tempo, com olhar perscrutador, depois afastou-se um pouco, de forma a ficar mergulhada na sombra. Rick recusou-se a ler a muda pergunta que aqueles olhos acabavam de formular e prosseguiu a sua caminhada ao longo do tombadilho. Naturalmente ela andava uma vez mais a preparar o seu artigo, a descrição do desembarque. Sempre a mover-se dum lado para o outro, qual abelha diligente, constantemente à procura de pormenores para citar. Fosse como fosse, pensou cheio de cólera, não lhe arrancara material para nenhum artigo.

 

Mas esqueceu o mau humor, ao ter de mudar repentinamente de direcção para evitar, num canto escuro, duas silhuetas enlaçadas em fervoroso abraço. Gina e Terry Adams. Pelo menos tinha quase a certeza de que era Terry. Quanto a Gina, mesmo naquela densa escuridão, era impossível confundir as suas curvas... Bem, o rapaz merecia decerto uma recompensa e precisava dum tónico. Se Gina estivesse disposta, podia oferecer-lhe uma coisa e outra. E ao recuar, intimamente satisfeito, por pouco não esbarrava com Bill Coffin, de aspecto extremamente marcial, de gabardina vestida e binóculo ao ombro.

 

- Nada de ditos de espírito, por favor!... - resmungou Bill.

 

- Tenho necessidade de me convencer que também sou soldado, embora só salte em terra sabe Deus quando. Reparaste nos dois pombinhos que estão ali a arrulhar?

 

- Espero que não tenhas ciúmes?

 

O rosto de Bill abriu-se num largo sorriso:

 

- Que ideia! Fui eu próprio que lhe disse para ir consolar o rapaz à sua maneira.

 

- Filantropo na tua idade?

 

- Sim, acredites ou não, é assim mesmo. Gosto de ver as pessoas libertas das suas rugas, mesmo das morais. O rapaz andou atrás de Gina na nossa última noite de Blighty. Não me perguntes até onde isso chegou.

 

- Davas um bom psicanalista.

 

- Contentava-se em ter lugar na tua lancha de desembarque - opôs Bill. - Nenhuma alteração, pois não?

 

Rick sacudiu a cabeça e ambos se dirigiram para a amurada de bombordo. Eram quase três horas. As barcaças balouçavam serenamente na água, ao lado do transporte. O rumor surdo que delas subia indicava que o horário era cumprido à risca. Quase todas as lanchas já estavam repletas de tropas de choque. E enquanto Bill e Rick olhavam, encheram-se as últimas.

 

Dentro de cinco minutos, todo aquele enxame, estendido em preguiçoso semicírculo, tomaria a direcção da terra. O seu carregamento humano dir-se-ia agora uma massa informe. Os próprios capacetes, recobertos de pano, assemelhavam-se a cogumelos irreais...

 

Soou um apito e os motores aumentaram a velocidade. Descoloridos duma dúzia de esteiras fundiram-se na noite. A primeira vaga partira sem mais complicações nem ruídos. Já outras embarcações vazias cavalgavam as ondas, tomando posição ao longo do barco, prontas a receber o segundo carregamento de tropas.

 

- Digam-me agora que esses meses de treino na Carolina foram tempo perdido... - observou Bill.

 

Não havia qualquer interrupção na manobra: os soldados desciam pelas escadas de corda quase antes de os marinheiros terem tempo de tomar posição, e faziam-no com grande destreza, caindo cada um no seu lugar. Era uma operação bem conduzida, tudo feito naturalmente, sem lances melodramáticos. Apenas uma ou outra palavra segredada se ouvia no escuro, um gracejo de tempos a tempos, uma praga de cinco letras, tão velha como a própria guerra. E nessa pressa ordenada não transparecia a mínima desordem ou tensão: fossem quais fossem as emoções íntimas de cada um, todos esses homens estavam suficientemente treinados para não as manifestar. E de súbito, sem nenhum prelúdio, as metralhadoras começaram a picotar a noite para os lados do sul. Pronta para a réplica, uma bateria costeira entrou em acção, esfarrapando o escuro com clarões de pesadelo. Estava no entanto demasiado longe para parecer absolutamente real: Rick teve a impressão de assistir a um 4 de Julho tornado louco furioso...

 

Bill exultou.

 

- Chegámos na altura própria, meu velho!

 

Mas o momento não era para exclamações de entusiasmo. Uma vez posta em movimento, toda a engrenagem principiou a funcionar. Por trás deles, as peças dum torpedeiro entraram no concerto. Instintivamente, Rick agachou-se. Outros canhões se juntaram e toda a frota de invasão emergia da noite, em silhueta, iluminada pelo vermelho de fornalha das contínuas salvas. A bombordo e a estibordo, a artilharia de três polegadas dos torpedeiros não se divertia mais nem menos do que, ao longe, os grandes morteiros que uivavam nas suas plataformas. Todo o horizonte refulgia de variegadas cores: amarelo-vivo quando a granada deixava a goela do canhão, vermelho quando a fosforescência marcava a passagem do projéctil no escuro da noite.

 

Rick e Bill tiveram verdadeiramente a sua primeira visão de África quando, nesse grandioso cenário, um tiro certeiro fez erguer em terra enormes labaredas, à luz das quais puderam ver as paredes brancas da cidade, as copas das palmeiras...

 

Quando Rick afastou os olhos desse espectáculo e os baixou de novo para o mar, as escadas de corda estavam vazias, a segunda vaga de ataque partira já para a linha de fogo. A seguir era a sua vez... Endireitou-se, apertou um furo ao cinturão e ajeitou melhor a mochila com um brusco movimento dos ombros. Nesse instante, aproximou-se um sargento, a pedir ordens.

 

- Destacamento sanitário, atenção!

 

Incrédulo, viu todos já no convés, até ao último homem. Sargentos e técnicos, bem aprumados sob as suas mochilas; enfermeiras activas e decididas nos seus uniformes e capas azuis. Percorreu a fila, espreitando um sinal de pânico, mas não descobriu nenhum. O próprio Terry Adams sustentou o seu olhar sem pestanejar, embora notasse que o ombro do rapaz, quando pousou nele a mão, ao passar, tremia ligeiramente.

 

Mais adiante, o material cirúrgico já estava a ser embarcado numa lancha. Um oficial de marinha surgiu, não se sabe donde, para lhe falar ao ouvido.

 

- Chegou a nossa vez - disse pausadamente Winter. - Partimos com a terceira vaga. Permaneçam nos seus lugares atentos às ordens dos sargentos.

 

Retribuiu a impecável continência dos subordinados e seguiu o oficial de marinha, transpondo sem a mais leve hesitação a amurada de bombordo. As coisas não corriam nada mal, uma vez que conseguira firmar os pés na escada de corda.

 

Como num sonho, vieram-lhe à memória as manobras em Fort Bragg, alguns meses antes... O muro de pranchas de pinho e o colchão lá em baixo, para amortecer qualquer queda. Então, ainda tinham o recurso dos colchões. Mas nessa noite não podia haver o mínimo passo em falso: com aquela pesada mochila, um homem ia imediatamente para o fundo antes que o pudessem pescar, admitindo que havia tempo para pescar fosse o que fosse, mesmo um homem.

 

Uma advertência feita em voz baixa, e saltou no escuro. Os seus pés encontraram a madeira flexível da embarcação e a mão do oficial de marinha evitou que esbarrasse num banco. E ambos foram logo tomar os seus lugares na proa da barcaça.

 

Terry Adams debruçou-se para observar a casca de noz que se balouçava lá em baixo, junto do costado do navio. Há algum tempo que os técnicos tinham começado a transpor a amurada. Sabia bem que devia ter sido o primeiro, tal como Rick, pois muitos desses homens estavam sob as suas ordens e esperavam nos barcos as suas indicações. E no entanto não podia mexer-se... O barulho do bombardeamento nos dois sentidos dir-se-ia estoirar-lhe na cabeça. A mochila que lhe pesava nos ombros empurrava-o para o mar como ao velho Simbad, o marinheiro. E pensou que seria fácil escapar-lhe um pé, mergulhar e afogar as suas perturbações para sempre.

 

O suor cobria-lhe a fronte quando por fim conseguiu passar uma perna por cima da amurada. Sim... lá em baixo... no fundo... podia repousar e não ser nunca mais incomodado... Um clarão vermelho inundou-lhe o cérebro enquanto a emoção lhe dilatava as pupilas. A água atraía-o como uma sereia, como Gina Cole que instantes antes o beijara com tanto ardor... Podia perder-se no mar como se perdera no beijo de Gina. E talvez fosse melhor para Mary se ele se atirasse agora dali, de cabeça para baixo.

 

A escada de corda arranhava-lhe as palmas das mãos. Os pés, metidos em pesados sapatorros, embaraçavam-se nos degraus. De olhos fechados ia descendo, degrau a degrau, às apalpadelas. De súbito, largou as mãos e tombou no espaço, o corpo tenso, à espera de sentir o contacto frio da água.

 

Duas mãos vigorosas agarram-no pelos ombros, equilibrando-o, quando pôs os pés na embarcação. Terry abriu então os olhos e viu-se rodeado de vultos com uniformes cor de azeite. Um dos sargentos segurava-o agora pelo braço e conduzia-o para a proa, dizendo-lhe:

 

- Isto é fácil, meu alferes. Para aproxima vez, quando saltar, tenha o cuidado de olhar para baixo. Não caiu em cima da minha cabeça por uma unha negra!

 

As enfermeiras foram as últimas a descer, depois de os oficiais terem estabilizado os quatro cantos da embarcação. Muito lestas, soltando pequenos gritos abafados, esforçavam-se cuidadosamente por fixar os olhos nos degraus da escada sem quererem saber do sussurro do mar lá em baixo.

 

Carolyn esperou até ao fim e desceu com o último grupo. Então, transpôs também a amurada, ficou um momento suspensa unicamente pelas mãos até os pés encontrarem o primeiro degrau e depois começou a descida. Muito desembaraçada no seu uniforme de campanha, ia a meio caminho quando sentiu gelar-se-lhe o sangue nas veias ao ver um obus cair no mar a menos de duzentos metros, mas a estibordo.

 

Dois braços anónimos amparam-na lá em baixo e ela tomou o seu lugar num banco a meio da embarcação. Até ali agira apenas por instinto, confiada na lembrança dos treinos do acampamento. Nem chegara a ter tempo de sentir medo. E uma vez a trabalhar na praia, com Rick ao seu lado, poderia então suportar fosse o que fosse.

 

De súbito, viu Rick na sua frente, prova bem tangível de que tudo aquilo não era um pesadelo mas sim a realidade. Sentiu o leve contacto da sua mão no ombro e isso confortou-a. Mas, ao mesmo tempo, quase lamentou que ele a tivesse visto no meio das outras: a proximidade daquela mão recordava-lhe êxtases demasiado ardentes.

 

- Coragem! Bem sabia que havia de chegar. Não lhe disse mais nada. E ela apenas respondeu:

 

- Cá estou, como tanto desejava.

 

Depois, a embarcação estremeceu ligeiramente. Saltara para bordo o último viajante. Os dois voltaram-se ao mesmo tempo. Linda Adams, com a sua máquina de escrever presa ao pescoço, acabava de embarcar. Carolyn compreendeu que, jornalista acima de tudo, Linda se deixara ficar propositadamente até ao fim, sendo a última a descer, para poder anotar todas as suas impressões antes de deslizar por sua vez pela escada vazia.

 

- Tudo completo, capitão?

 

O oficial de marinha, na sombra, informava-se. Os olhos de Carolyn seguiram os de Rick enquanto ele contava as cabeças: todos os oficiais e enfermeiras estavam naquela embarcação, juntamente com alguns técnicos. Numa outra, iam os soldados, furriéis e sargentos. A pouca distância, uma terceira, carregada com uma pirâmide de material, acabava de largar as amarras.

 

- Todos presentes - disse Rick.

 

- Preparar para largar!

 

Falavam ainda em voz baixa, embora há muito tempo o silêncio deixasse de ser útil. A rotina fora largamente repetida para que se produzissem variantes.

 

- Prontos para largar!

 

- Largar a amarra da proa!

 

- Largar a amarra da popa!

 

O motor da barcaça fremia preguiçosamente. Ainda presa por um cabo ao transporte, tomava já o seu lugar na formação. Carolyn inclinou-se e sentiu de novo a mão de Rick acalmar o frémito do seu ombro. O capitão dirigiu-se, em voz serena, a um marinheiro:

 

- Como correm as coisas?

 

- Não pergunte isso à marinha, capitão. Até agora fizemos os nossos desembarques exactamente segundo o horário. Uma coluna apoderou-se da estrada do aeródromo onde se bateu valentemente. O resto, protegido pelo fogo de barragem, escalou a arriba. Foi tudo quanto pude ver. As noites por estes sítios são na verdade escuras...

 

Para os lados de leste, o troar dos canhões não diminuíra ainda. Por cima deles, o ar tornou-se de repente calmo. Mas foi por pouco tempo. Aparentemente nenhuma bomba atingira a cidade. A estratégia consistia em contorná-la e cercá-la, ocupando as instalações do porto sem as danificar. Manobra possível se o ataque tentado naquela noite cumprisse à risca o plano previsto.

 

Carolyn surpreendeu-se a perguntar ao oficial de marinha, com uma voz que não reconheceu absolutamente como sendo a sua:

 

- Porque esperamos?

 

- Os outros transportes não concluíram ainda os seus carregamentos. E esta vaga actua como uma unidade. Olhe para a terceira coberta a estibordo, é de lá que será dado o sinal da partida.

 

Carolyn agradeceu, mas os seus olhos não conseguiam distinguir no escuro o transporte que acabava de abandonar. «As demoras deste género são o que há de pior na guerra», pensou. «Quando cheguei ao fim daquela escada de corda, estava demasiado entorpecida para poder pensar fosse no que fosse. E assim continuaria se Rick tivesse guardado as distâncias ou se largássemos imediatamente.»

 

Começou mesmo a detestar a calma que campeava naquele sector. Os gemidos dos obuses por cima da sua cabeça exasperavam-lhe os nervos. Mas, aos seus ouvidos civilizados, tinham dado uma sensação dramática que ora lhe faltava. Valia mais efectivamente ter medo do que esperar, ofegante, a próxima comoção.

 

Um sinal luminoso riscou o escuro, à direita, e ao nível da água respondeu-lhe o som dum apito. O sinal foi repetido ao longo da fila das barcaças. Quando por baixo dos seus pés começaram a vibrar intensamente as pranchas de madeira, o oficial de marinha gritou, com voz jovial:

 

- Baixem a cabeça! Vamos avançar!

 

Aquele desembarque não fugiu à sorte comum a todas as coisas durante muito tempo esperadas. Para a maior parte foi uma decepção. Muitos oficiais nunca tinham posto o pé em terra estrangeira antes de o exército os levar para Inglaterra. Exceptuando Rick e Linda, todos os outros imaginavam África como o cenário dum filme romântico, com Charles Boyer por protagonista, animados bazares, e músicas e danças exóticas... Mas nessa noite, envolvidas em densa obscuridade, as barcaças aproavam a uma praia em declive que bem podia ser de Long Island ou de Galveston. Os soldados baixaram as rampas, saltaram em terra e foram prender as amarras, antes mesmo de Rick ter tempo de compreender que aquela fase da invasão terminara.

 

Mas mal sentiu os pés pisarem a areia, as coisas tomaram logo um aspecto diferente.

 

No alto da escarpa, um reservatório de óleo em chamas derramava no litoral labaredas deslumbrantes. Um quarto de milha para leste, os seus olhos divisaram o pavilhão de banhos, de paredes carcomidas, e no local onde o declive cimentado principiava a subida para se ir unir lá em cima, à estrada costeira, o mesmo bar encostado ao talude.

 

Nessa combinação movediça de sombras e clarões, o resto da paisagem era tão indefinida como num sonho. Lembrou-se das longas manhãs tépidas passadas no cais, lá em baixo, à esquerda. E, no quartito do bar, as tardes vividas na companhia duma titular cujo título não recordava já e que talvez fosse tão ilusório como o seu amor. Mas o momento não era muito próprio para tais evocações e correu pela praia fora, gritando ordens ao seu principal adjunto. O pessoal desenvencilhar-se-ia perfeitamente sozinho. Para alguma coisa se tinham inventado os sargentos...

 

As duas primeiras vagas de assalto tinham realizado trabalho bastante completo. Na praia já estava instalado um posto de socorros onde se alinhavam várias macas. Rick verificou num relance que do terreno conquistado começavam a afluir os feridos. Um enfermeiro, transpirando por todos os poros, pôs-se em sentido quando Rick entrou e passou por entre as macas.

 

- O capitão Douglas comanda o posto. Já chegou o hospital de campanha?

 

- Estamos a instalá-lo aí atrás. Quer indicar-me onde está o capitão?

 

O jovem médico militar ergueu os olhos da tala Thomas que estava a colocar. Rick aproximou-se e instintivamente estendeu a mão para tomar o pulso ao ferido: um pouco rápido talvez, mas o estado geral do homem era bom.

 

- O meu nome é Winter. Como correm as coisas por aqui? A um sinal do comandante, foi o próprio ferido que respondeu:

 

- Preparávamo-nos para calar uma bateria. Mas eles ainda puderam atirar uma salva antes de lhes saltarmos em cima.

 

- Parece que aqui não houve muita balbúrdia - observou Rick.

 

- Sim, parece que não, graças aos marinheiros - volveu Douglas. - Mas teria sido outra história, com toda a certeza, se os franceses tivessem dinamitado a rampa.

 

E lançou um breve olhar para a escarpa, enquanto a um quarto de milha para oeste uma nova salva, explodindo a pouca distância da praia, fazia estremecer a terra argelina. O jovem oficial continuou:

 

- Não me vai dizer que monta aqui um hospital de campanha? Há muito tempo já que não acredito no Pai Natal.

 

- Dê-nos meia hora & trataremos de todos os feridos que nos

envie.

 

- E admita que preciso já de facto dos seus serviços?

 

- Algum caso de urgência?

 

- O mais urgente que é possível.

 

Rick acompanhou o capitão Douglas até junto da fila de macas. Na última, deparou-se-lhe o caso de urgência em questão. Ao olhar profano, para aquele homem inerte já não havia qualquer esperança: pele viscosa, respiração opressa, pulso galopante e fraquíssimo. No tronco, o uniforme estava completamente ensopado em sangue. Rick ajoelhou junto do ferido e logo todo o pessoal dos primeiros socorros se aproximou com um ardor fremente que noutra altura e num lugar mais tranquilo seria patético. Ali, infelizmente, tanta solicitude só embaraçava e foi obrigado a afastá-los, pois roubavam-lhe a pouca luz existente.

 

Um médico militar explicou:

 

- Perfuração abdominal, capitão. Penso de urgência.

 

- Há quanto tempo?

 

- Uns quarenta minutos.

 

A hora era mais para inspirações do que para diagnósticos. O caso estava nitidamente no último extremo... Nenhum cirurgião do mundo podia determinar uma regra para esse género de feridas abdominais. Os britânicos consideram que acima das cento e vinte pulsações não resta nenhuma esperança à cirurgia. Mas aquela ferida era recente, tinha muito menos de seis horas, prazo geralmente admitido pelos cirurgiões de campanha para riscos de tal natureza. Se a sua audaciosa afirmação correspondesse à verdade, isto é, se realmente o hospital estivesse pronto a funcionar dentro de meia hora, talvez fosse capaz de salvar aquela vida...

 

Entretanto, era preciso atenuar o estado de choque e parar a hemorragia na sua origem.

 

- Plasma?

 

Douglas transmitiu imediatamente a ordem e um assistente foi buscá-lo a correr.

 

- E ligaduras com abundância; jogamos tudo por tudo.

 

No seu espírito começava a definir-se o quadro clínico. As feridas perfurantes do abdome provocam a morte por três motivos: hemorragia, choque, peritonite. Qualquer tratamento destinado a dominar essas causas - enquanto a cirurgia não entra em acção - pode salvar muitas vidas. O seu plano obedecia pelo menos a esses requisitos e, dadas as circunstâncias, valia a pena correres riscos.

 

Dobrou um lençol e com ele cobriu completamente o ventre do ferido, e enquanto Douglas e o seu assistente erguiam um pouco o homem, Rick, tomando das mãos dum enfermeiro uma larga ligadura, passou-a por baixo dos rins e em volta do abdome do enfermo, apertando-a fortemente em sucessivas espirais e comprimindo tanto o lençol sobre a ferida que mesmo em estado de coma o homem gritava e torcia-se com dores.

 

Douglas perguntou timidamente:

 

- Isso vem no tratado?

 

- Que eu saiba, não. Naturalmente por ser demasiado simples.

 

Rick ergueu-se e os outros dois pousaram cuidadosamente o ferido na maca.

 

- O que tentou com este tratamento?

 

- Em primeiro lugar, comprimir os bordos das feridas internas e por consequência dominar a hemorragia.

 

- Até aí compreendo.

 

- Em segundo lugar, fixando as grandes veias do abdome, tornamos a lançar o seu sangue na circulação geral. Fornecemos assim aos centros vitais aquilo de que eles têm mais urgente necessidade.

 

O rosto mascarrado do jovem capitão abriu-se num sorriso:

 

- Noutros termos, isso equivale a uma espécie de autotransfusão.

 

Sem afastar os olhos do ferido, Rick anuiu com um aceno de cabeça. Um outro assistente chegava com o aparelho do plasma. Douglas enterrou a agulha numa veia e abriu a pequena torneira para deixar escorrer o líquido.

 

- Conserve-o bem quente - aconselhou Rick. - Vou à praia ver se a nossa instalação está adiantada.

 

O destacamento sanitário trabalhava com a regularidade dum relógio e já erguera uma ampla tenda-hospital, vulto confortante a recortar-se num fundo de incêndio. Rick recuou para dar passagem a duas enfermeiras que instalavam a geradora portátil. Cinco minutos mais e as lâmpadas suspensas por cima da mesa de operações permitir-lhe-iam trabalhar. Alguém, lá longe, na faixa de areia molhada, gritou-lhe uma saudação o menos militar possível. Winter voltou-se e acenou com a mão a Manny Ebstein, que conduzia o primeiro jipe pela rampa de desembarque duma barcaça recém-chegada. Depois dirigiu-se para a segunda tenda e por pouco não tropeçou em Terry Adams.

 

De rosto colado ao chão, o rapaz estava estendido à beira da água e os seus ombros agitavam-se convulsivãmente. Vindos do largo, os obuses zombiam ao passar, e Terry, ao ouvi-los, parecia querer enterrar-se na areia.

 

Neste caso também Rick não podia usar de meias medidas. Com um safanão brutal, pôs o rapaz em pé e fê-lo dar meia volta: viu-lhe então os olhos vítreos, agitando loucamente os lábios. Aquilo era mais do que simples medo. Terry parecia uma criança agitada por pavoroso terror infantil.

 

Ao longe, mas não tanto que a distância fosse tranquilizadora, uma metralhadora atacava uma barcaça acabada de chegar. Rick, inteiramente absorvido pela tarefa de reconduzir Terry a uma aparência de calma, quase nem notou esse novo ruído. Um ninho isolado, que não tardaria a ser reduzido ao silêncio pelas descargas de artilharia... Mas Terry, libertando-se das suas mãos, começou a correr a toda a velocidade na direcção dos tiros.

 

As balas riscavam o escuro em frente da barcaça, que respondia com rancor a essa impertinente isolada nas dunas. Rick nunca chegou a saber se o intento de Terry era lançar-se, de cabeça perdida, no meio do fogo. Agarrara-o demasiado depressa e demasiado brutalmente, rolando no chão por cima do fugitivo... Novamente de pé, a mão a prender a blusa do rapaz, tomou o caminho da tenda, mas a marcha na areia tornava-se difícil com aquele prisioneiro a procurar fugir-lhe. Por fim, Terry conseguiu libertar-se uma vez mais e voltou a correr em direcção aos tiros de metralhadora.

 

Desta vez Winter mudou de táctica. Deixou Terry tomar-lhe a dianteira, cercou-o num galope rápido, ultrapassou-o à beira da água, a boa distância ainda do fogo, e conseguiu agarrá-lo de novo.

 

O rapaz desviou-se bruscamente, num último esforço para prosseguir a sua correria louca. Rick tomou então a única decisão possível. Um directo da esquerda ao ombro fê-lo dar meia volta, ficando em boa posição para receber o golpe de misericórdia. Desta vez o capitão estava decidido a não perder mais tempo: o punho, lançado de baixo, com todo o peso do seu corpo, atingiu em cheio o queixo de Terry.

 

Dez segundos mais tarde, transportando aos ombros um corpo inerte, Winter caminhava em direcção às tendas, quando bruscamente deu um salto: Linda Adams, sem máquina de escrever e com o rosto enfarruscado, barrava-lhe o caminho.

 

- Não procure desculpar-se - observou-lhe. - Vi tudo quanto se passou.

 

- E oxalá que tenha sido a única pessoa a ver.

 

- Ponha-o no chão, por favor- pediu Linda, na mesma voz decidida. - Farei com que ele permaneça tranquilo.

 

- Mas há talvez o perigo de...

 

- Faça o que lhe digo, suplico-lhe. - A sua voz era seca e cheia de autoridade: - Desde os dez anos que o meu irmão sofre de ataques semelhantes. Creia-me, já várias vezes o tratei de crises piores.

 

Rick não protestou mais. Ambos estenderam o corpo ao abrigo duma saliência rochosa, acima da linha das águas vivas. Linda ajoelhou-se ao lado do irmão inconsciente, sem erguer os olhos para Winter.

 

- Receio tê-lo esmurrado com bastante força Ela não se voltou, mas respondeu:

 

- Não tinha outra coisa a fazer. Agora vá para o seu serviço, por favor. O senhor é cirurgião, não é ama seca.

 

Rick ergueu a mão e tocou-lhe no ombro; invadiu-o um desejo violento de a estreitar nos seus braços. Para a tranquilizar, a ela que não lhe pedia conforto. Mas a hora não era para ternuras... nem mesmo para cavalheirismo. Deu meia volta e dirigiu-se para o seu destacamento.

 

Carolyn Rycroft levantou o pano da entrada da tenda no momento em que ele procurava ainda a abertura. Lá dentro, duas enfermeiras armavam a mesa das operações. A um canto, o esterilizador portátil assobiava como um caldeirão do Diabo.

 

- Tem os olhos um pouco pisados. Chocou com alguma coisa no escuro? - perguntou Carolyn.

 

Rick começava já a despir a blusa do uniforme. Lá fora, os primeiros alvores da aurora eram glaciais; até o longo lamento dos obuses parecia agora mais frio. Mas como o seu trabalho ia começar, podia muito bem isolar-se de tudo quanto se passava no exterior.

 

Voltou-se para Carolyn e pronunciou:

 

- Vamos abrir um peritoneu. Provavelmente fazer uma ressecção. Está tudo organizado para isso?

 

Carolyn respondeu-lhe imediatamente no mesmo tom:

 

- Dê-me só mais dez minutos, capitão.

 

E de súbito ambos ficaram impressionados com o formalismo das próprias palavras. Rick baixou o pano da entrada da tenda e atraiu a si a jovem para um longo beijo.

 

- Poderá suportar isto?

 

- Esforçar-me-ei tanto quanto possa - murmurou ela.

 

- Muito bem, é assim que deve encarar as coisas. Agora, vou dar uma vista de olhos à outra tenda, volto já.

 

O grupo aí instalado tratava os casos de ortopedia e os cirúrgicos que não exigissem anestesia geral. Rick viu Chuck Walters e um enfermeiro já ocupados com uma fractura. Em duas macas próximas, outros feridos aguardavam a sua vez. Era aqui que Terry Adams devia assistir. Pois bem! Teria de passar sem Terry durante um quarto de hora, pelo menos. Saudou Chuck com um aceno e saiu, de rosto impassível.

 

Voltou ao posto dos primeiros socorros, onde o capitão Douglas acorreu logo ao seu encontro. Inclinaram-se ambos para o ferido da perfuração abdominal. Rick verificou num relance que se fizera ali óptimo emprego dos meios disponíveis. O homem estava enrolado em cobertores e um enfermeiro terminava precisamente naquele instante a segunda injecção de plasma.

 

- As pulsações são agora mais compassadas. As forças voltam claramente. Parece-me que teve boa ideia... - disse Douglas.

 

À meia claridade do dia nascente, os dois trocaram um sorriso de inteligência. «Este rapaz é verdadeiramente um médico», pensou Rick. «Só um médico digno desse nome poderia falar com tanta calma quando uma vida está em jogo.»

 

- Talvez seja do plasma - observou. Douglas sacudiu negativamente a cabeça.

 

- Nada podia reanimar assim um ferido do abdome, se não se dominasse primeiro a hemorragia. Mas esta forma de autotransfusão interna intriga-me apesar de tudo. Porque não faz uma comunicação sobre o assunto?

 

- Antes de se vender a pele do urso, é preciso ter a certeza de matar o animal.

 

O jovem oficial respondeu de bom humor:

 

- Receio bastante que tenha muitas outras ocasiões para provar a excelência do tratamento. E agora, esse hospital de campanha que nos prometeu há pouco?

 

- Estamos preparados para tratar do ferido logo que nos seja entregue.

 

Dois maqueiros adiantaram-se sem esperar qualquer ordem.

 

Douglas estendeu a mão a Rick Winter e apertou-a vigorosamente:

- Aqui tem o seu homem, capitão. E muitas felicidades!

 

Rick encontrou-se por fim na sua tenda, pronto a exercer a profissão a que votara por completo a vida.

 

Tirou a camisa, envergou um avental de borracha e começou a ritual lavagem das mãos. Carolyn abandonava naquele mesmo instante o improvisado lavabo. Era na verdade uma assistente de primeira ordem, de que qualquer cirurgião podia orgulhar-se. Todos os seus movimentos, seguros, calmos e precisos revelavam um absoluto alheamento de tudo quanto se passava no mundo exterior, apenas concentrada no seu trabalho, único e poderoso antídoto para as recordações e sonhos que ambos procuravam nesse instante esquecer... Sorriu-lhe vagamente quando ela se afastou da bacia de anti-séptico e estendeu as mãos para uma toalha esterilizada. Um subalterno aproximou-se para lhe atar os cordões da blusa e do avental.

 

Já vestido e de máscara posta, Hal Davis estava junto da mesa das operações. Era o assistente de Rick desde a formação do grupo, nos Estados Unidos. Havia também Bárbara Beathie, uma rapariga alta e bonita do Kansas, que com certeza viera ao mundo desprovida de nervos. E ainda o anestesista Dean, que à cabeceira da mesa mexia maquinalmente no aparelho de oxigénio. Winter saudou-os com ar grave, cada um por sua vez, mas sabia que por baixo das máscaras todas as bocas lhe sorriam quando reclamou o paciente. Era bom e reconfortante encontrarem-se ali, bem unidos, no verdadeiro trabalho em que se tinham treinado, mesmo que houvesse apenas uma oportunidade em duas de vencer aquela luta contra o eterno inimigo da vida.

 

Despido pelos enfermeiros, o paciente foi cuidadosamente examinado por Dean dos pés à cabeça: nenhuma ferida lhe passara despercebida; nenhuma outra lesão existia. A bala penetrara pelo lado esquerdo do abdome e saíra pelo lado direito, justamente acima da anca. Sob o ponto de vista clínico, era um caso sem complicações. Perfurações múltiplas, provavelmente. Talvez uma porção do intestino, danificado, exigisse umaressecção. Na pior hipótese, não eram danos do tipo explosivo. Sucedera-lhe já tratar alguns casos desses e suar por todos os poros, pois a bala arrancara, um pouco por toda a parte, pequenos fragmentos de osso.

 

Sob o efeito do éter, o soldado respirava agora tranquilamente. Rick aproximou-se e verificou que Davis pincelava já a zona operatória com mercurocromo adicionado a uma solução anestésica. Atrás dele, Carolyn e Bárbara avançaram para estender, por cima do corpo do ferido, um pano com uma abertura que deixava a descoberto toda a área onde ia trabalhar o escalpelo.

 

A um sinal de Dean, Rick traçou a sua incisão, a direito, dum lado ao outro do abdome, pouco mais ou menos desde o ponto de entrada do projéctil até ao seu ponto de saída. A lâmina de aço, de gume fino como uma navalha de barba, ia separando impiedosamente as sucessivas camadas, músculos, aponevroses, peritoneu, até que a cavidade abdominal ficou completamente aberta, permitindo uma inspecção minuciosa ao seu conteúdo.

 

O quadro correspondia à expectativa: havia, por baixo do peritoneu, sangue misturado com resíduos intestinais, que Rick limpou cuidadosamente. Era uma tarefa aborrecida, mas um preliminar essencial para o indispensável exame dos órgãos, clássico trabalho preparatório sem o qual não podia estabelecer-se o plano da operação. A mínima ferida, cada possível local atingido, devia ser reparado antes do bisturi tocar no intestino.

 

Os seus dedos sensíveis apalparam o fígado, o estômago, o baço e encontraram-nos intactos. Intacto também, graças a Deus, o cólon transverso. Passou ao baixo-ventre e ao intestino delgado. Este, numa extensão de dez polegadas, estava também incólume. O primeiro buraco, nitidamente recortado, em volta do qual se divisava uma mucosidade de má aparência, só o vislumbrou no segmento seguinte.

 

Um cirurgião menos experiente teria talvez parado nesse ponto para reparares estragos. Mas Rick cometera já uma vez esse erro e não o ia repetir. Sabia agora que nas feridas provocadas por balas existe geralmente toda uma série, mais ou menos numerosa, de buracos análogos, numa extensão de doze ou mais polegadas de intestino. Neste tipo de ferimentos, é quase impossível a reparação sucessiva das perfurações. O único caminho lógico a seguir então é a eliminação completa do segmento atingido.

 

Tal como receava, descobriu mais quatro rupturas nos oito anéis de intestino que se seguiam. E a última era um enorme rasgão em ziguezague que separava completamente o frágil tecido.

 

Carolyn, já preparada, esperava no outro lado da mesa.

 

- Temos ressecção, capitão? - perguntou. Com o olhar, Winter interrogou Dean:

 

- Ele poderá suportá-la...

 

- Corte o que quiser- respondeu fleumaticamente o anestesista. - Vai no terceiro frasco de plasma e faz tiquetaque como um cronometro.

 

De vez em quando, um obus zunia lá em cima e ia explodir ao longe, nos campos por trás da escarpa. Porém, uma dessas descargas caiu a pouca distância, e na lona das tendas desabou então uma chuva de terra. Mas lá dentro a operação prosseguiu no mesmo ritmo apressado e calmo que resultava duma superior competência cirúrgica aliada a um perfeito trabalho de conjunto. Tudo quanto era indispensável estava pronto no momento preciso, e passava de mão em mão sem precipitações: um cautério, cuja rubra lâmina de aço cindia a zona infectada, esterilizando o corte unicamente com a aplicação do seu calor; pinças Furness, munidas de finos estiletes para furar as extremidades do intestino após a ressecção; agulhas de sutura duma incrível finura para não romperem os frágeis tecidos.

 

Como sempre, Rick sentia ao seu lado a eficiente e silenciosa presença de Carolyn. A pinça pedida aparecia na sua mão como por obra de magia; as agulhas, enfiadas e prontas, esperavam o momento de serem necessárias. Nenhum movimento inútil, nenhum instante perdido...

 

Quando a anastomose findou e foi restabelecida a continuidade do tubo digestivo, Rick entendeu que merecia bem alguns segundos de repouso. Tirou as luvas, lavou as mãos na bacia e permitiu-se sorrir por cima da máscara a quantos o rodeavam.

 

- Isto correu bem, tenente Rycroft.

 

Ela corou e, pela primeira vez, enfiou mal uma agulha de sutura.

 

- Correu até muito bem, doutor.

 

- Graças a si, obrigado.

 

- Por favor! - protestou a enfermeira. E voltou de novo para a mesa.

 

Rick seguiu-a, com um largo sorriso encoberto pela máscara. Naquele instante, sentia-se estranhamente satisfeito, ridiculamente jovem. Quase acreditava ter voltado aos seus anos de estudante, ao seu primeiro idílio com uma estagiária na cozinha das dietas. Tornou a si ao sentir a areia de África ranger por baixo dos seus pés quando caminhavam para a entrada da tenda, e voltou novamente para junto da mesa de operações.

 

Hal Davis levantou as paredes do abdome, permitindo-lhe continuar a exploração. Não havia mais nenhum vestígio de qualquer ferimento: a bala atravessara em linha recta, perfurando de passagem apenas uma secção do intestino, nitidamente delimitada.

 

- Sulfamidas, por favor!

 

Espalhou o pó cristalino uniformemente em toda a cavidade abdominal. As suturas chegaram-lhe facilmente às mãos: delgados filamentos acinzentados de algodão, o mais simples material existente, perfeito para todo o género de feridas. A rotina guiava-lhe agora os movimentos e ele continha uma absurda vontade de assobiar enquanto trabalhava.

 

Quando, por fim, abandonou definitivamente a mesa, o seu relógio marcava sete horas. Alguém acendera com certeza uma fogueira deslumbrante no alto do talude, por cima da tenda. Chegou a pensar que o reservatório de gasolina que vira em chamas ao princípio da noite tivesse pegado fogo a outro depósito. Só quando saiu para o ar livre percebeu que não assistira ao famoso nascer do sol argelino.

 

Um grupo de palmeiras, semidesenraizadas pelo bombardeamento, em equilíbrio instável no cimo da arriba, desenhava-se, qual silhueta de ébrio, no céu matinal. Mesmo as velhas casuchas que se lobrigavam ao longo da estrada marginal adquiriam um ar de vida. Até o escandaloso estuque vermelho do estabelecimento de banhos ganhava um novo brilho naquela claridade ao mesmo tempo violenta e meiga. À direita, uma reentrância do rochedo permitia vislumbrar o porto, onde balouçava, preso à sua âncora, um enorme couraçado faiscando ao sol. Rick compreendeu porque ecoavam em toda a praia gritos de alegria ao ver, desfraldada à popa do barco, a mesma bandeira que flutuara um século antes naquela abra, quando outros marinheiros desembarcaram também na enseada. A bandeira contava hoje mais estrelas do que então, mas era a mesma, e os mesmos marinheiros a aclamavam nos degraus da Mesquita dos Pescadores.

 

Rick achou-se sem saber como mergulhado até aos joelhos nas águas do Mediterrâneo, associando-se às aclamações. Quando se voltou, viu Hal Davis sair da tenda com um braço a contornar o busto de Bárbara.

 

Quis perguntar por Carolyn Rycroft, mas havia na praia demasiado burburinho para as perguntas poderem ser ouvidas ou obterem resposta. Obedecendo a qualquer inexplicável impulso interior, decidiu de súbito dar uma volta pelo acampamento. No fim de contas, era tempo de inspeccionar todas as instalações.

 

Reinava já certa ordem quando entrou na tenda das admissões. Da praia até à estrada, os jipes circulavam em fila ininterrupta. Mas toda a importância da vitória se tornou bem evidente aos seus olhos quando teve de recuar um passo para dar passagem a um visitante ilustre, a Randall Strang em pessoa, barbeado, nutrido, o ar fresco de quem passou bem a noite, as botas reluzentes como espelhos a brilharem ao sol.

 

Acompanhavam-no quatro oficiais do Estado-Maior, que fizeram ouvir em uníssono os seus tacões em resposta à continência de Rick.

 

- Já desembarcou há muito tempo? - perguntou Winter.

 

- Desde que foi dada ordem de cessar fogo. - No olhar de Strang não havia a menor ironia. E prosseguiu: - Terminei agora a minha visita, Winter. Fez excelente trabalho aqui.

 

- Não me agradeça, major. Foi Walters quem fez tudo. Por minha parte, deixei agora mesmo a tenda das urgências.

 

- Algum caso urgente? Não ouvi falar de nenhum. Os nossos homens neste sector encontraram pouca resistência.

 

- Um deles encontrou uma bala.

 

- Abdominal?

 

«Diabos o levem!», pensou Winter ao ver o chefe franzir as sobrancelhas. «Ele sabe o que sucedeu antes de eu lho dizer!» Strang falou com autoridade:

 

- O melhore não lhe mexermos por enquanto. Espero ordens dum momento para o outro. Talvez o possamos hospitalizar em Argel.

 

Rick replicou por sua vez:

 

- Não é pressa, major. Acabei agora mesmo de o operar. As sobrancelhas de Strang quase se puseram em pé e protestou:

 

- Devia ter-me avisado, se o caso era desesperado.

 

- Operação bastante simples. Quatro perfurações na mesma zona e excelente resistência. Fiz uma ressecção.

 

Agora o rosto de Strang anunciava a tempestade. Os oficiais do Estado-Maior afastaram-se um pouco, para não darem a ideia de escutar às portas.

 

- Na verdade, Winter, dir-se-ia que quer obrigar-me a duvidar definitivamente da sua competência cirúrgica. Uma ressecção em condições semelhantes é um crime, nada menos.

 

- Então eu devia estar na cadeia já há muito tempo, pois em Espanha fiz pelo menos uma dúzia de vezes a mesma operação nas linhas de fogo...

 

- Mas agora está em Marrocos!... E debaixo das minhas ordens...

 

Strang abafou com dificuldade a explosão prestes a produzir-se. Rick observava, cheio de interesse, o pescoço do chefe, tumefacto, a saltar fora da gola do uniforme, pelo esforço de dominar a indignação. Nesse instante, Strang parecia um pombo de papo cheio que tivesse perdido as penas mas não o sentimento da sua importância. E não ficou surpreendido de o ver, deixando em suspenso a frase e a ameaça, juntar-se aos oficiais do Estado-Maior, muito senhor de si.

 

A saída da tenda, no entanto, voltou-se para lhe lançar uma última flecha.

 

- Discutiremos este assunto, em pormenor, no Hospital do Liceu, Winter. Entretanto, trate de organizar os transportes. Todos os outros casos devem ser enviados directamente para lá.

 

E desapareceu, ostentando o seu pingalim e as suas brilhantes insígnias.

 

Rick viu-o entrar na tenda das urgências e teve vontade de o seguir, sentindo o seu próprio pescoço apertado no colarinho. Lembrou-se a tempo de que Carolyn estava lá dentro, a limpar e a pôr os instrumentos em ordem.

 

Não quis dar a Strang a satisfação de prosseguir a contenda na presença dela. Retomou por isso o caminho da tenda de admissões.

 

Ao senti-lo entrar, Linda Adams ergueu os olhos da secretária em que trabalhava. Atrás dela, os enfermeiros andavam ocupados, silenciosamente, a transportar para um camião surgido não se sabia de onde, os últimos feridos estendidos nas suas macas. Era um camião sólido, com uma placa de registo local, tendo ao volante um soldado francês, cujo rosto se abria num largo sorriso. Ladeavam-no duas bandeiras brancas e dois enfermeiros também vestidos de branco.

 

- A votre service, man capitaine1 - disse Linda. - O que pensa da rapidez- norte-americana?

 

- Não me diga que eles vieram do Hospital do Liceu?

 

- Fica apenas a um quilómetro de distância, e parece que fomos lá recebidos de braços abertos, com transporte gratuito e tudo.

 

Linda ergueu-se, cambaleante. Rick susteve-a por um braço.

 

- Fique aí onde está. Vou arranjar um jipe para a transportar.

 

- Está a brincar, com certeza? Tenho uma vontade enorme de dar um pouco de exercício ao meu francês.

 

Foram os dois atormentar o magala instalado ao volante: o homem era natural de Nice e o seu rosto moreno de contrabandista abria-se num sorriso que lhe deixava todos os dentes à mostra. Lina tinha razão. Ao ouvirem-no arrastar os erres, como bom meridional, tiveram a sensação de se encontrar num país amigo, quase como na própria pátria. Os homens de Vichy podiam continuar a tramar conspirações até ao dia do Juízo, que os verdadeiros franceses haviam de encontrar sempre um gracejo para ridicularizar a traição, ou uma coragem especial para a vencer.

 

Rick, que já perguntara várias vezes a si próprio o que seria feito de Terry, hesitava em fazer a pergunta. Quando o camião por fim se afastou, subindo a íngreme rampa cimentada, Linda foi a primeira a falar no assunto:

 

- Já lhe agradeci por ter salvo a vida do meu irmão? Confesso-lhe que não sou capaz de me lembrar o que lhe disse nessa altura...

 

- O mesmo se dá comigo. Prometi olhar por ele e lamento ter sido forçado a abandoná-lo, deixando-lhe esse cuidado.

 

- Um quarto de hora depois, Terry já estava recomposto e reassumia as suas funções. E, o que é mais importante ainda, nem por sombras desconfia que o senhor lhe bateu. Quer deixá-lo nessa ignorância quando o tornar a ver?

 

- Era justamente isso que eu pensava. Ele não estava senhor de si nesse momento, nem na posse de todas as suas faculdades.

 

- Recorda-se de ter ouvido uma metralhadora e de cair no vácuo... Disse-lhe que embatera numa rocha e que com a pancada perdera os sentidos. Deixe-o nessa convicção...

 

- Onde está ele neste momento?

 

Em francês no original.

 

- Com o doutor Walters, a classificar os documentos do hospital de campanha. Fiz o que pude para os preencher. - E, dizendo isto, cambaleou um pouco, uma vez mais. - Entre dois casos, fui preparando o meu artigo. Uma coisa e outra tornaram esta manhã importante para o Quarto Estado’.

 

Bruscamente, Rick passou-lhe um braço em volta dos ombros:

 

- Vamos à cozinha de campanha, Linda. Creio que os dois ganhámos bem o nosso café.

 

- Permita-me que visite primeiro a sua tenda. Gostaria de colher elementos completos...

 

- Nunca se esquece do seu trabalho?

 

- Julgue por si próprio, capitão. No entanto, se vou meter o nariz onde não sou chamada...

 

Sem responder, Rick atravessou, amparando-a, a faixa de areia que os separava da tenda. Carolyn recebeu-os à entrada. Estava ainda vestida como na sala de operações e sob essa espécie de encanto provocado pela disciplina da tarefa pouco antes cumprida:

 

- O doente continua sob o efeito da anestesia, doutor, mas corre tudo bem.

 

O capitão inclinou-se para o ferido e fez aceno de concordância com o diagnóstico. Um hospital da metrópole não lhe poderia assegurar melhor tratamento. Em espírito, Rick acompanhou o soldado nas horas que iam seguir-se: logo que emergisse do sono do éter, transportá-lo-iam para Argel, na primeira ambulância. Evidentemente, era perigoso qualquer movimento, mas, por outro lado, ficaria melhor instalado numa cama, no Hospital do Liceu. Desde que desse lá entrada, a rotina hospitalar cuidaria do seu restabelecimento. Teria sulfadiazina e as transfusões de que precisasse para revigorar o sangue, embora estivesse certo de que o plasma restabelecera a indispensável percentagem de glóbulos vermelhos. Talvez durante algum tempo tivesse de se alimentar por um tubo através do estômago e do segmento suturado do intestino, técnica essa que impediria toda a distensão da zona seccionada. E, mais importante do que tudo isso, o hospital estaria preparado para lhe fornecer as necessárias injecções subcutâneas e endovenosas destinadas a hidratar suficientemente o sangue e a conservar normal a concentração de cloreto de sódio, até o paciente poder ingerir pela boca as suas refeições.

 

A designação da Imprensa, nos Estados Unidos.

 

- Não pense nisso, doutor- disse Linda. - Sabe bem que o doente já pertence ao número dos convalescentes.

 

- Não me julgo com poderes de mágico.

 

- Bem, mas sabe que ele está livre de perigo e que Strang não tem razão.

 

- Isso é um cumprimento? - Lembrou-se então de repente de franzir as sobrancelhas: - Por favor, não transforme esta conversa numa entrevista!

 

- Não é necessário, Rick. Enquanto estava aí a meditar, Carolyn deu-me todas as informações de que precisava.

 

Dirigiam-se os dois para a saída da tenda quando de súbito, para os lados do mar, ouviram o troar dos canhões antiaéreos. O ouvido de Rick depressa identificou donde provinham os estampidos , dum cruzador de batalha ancorado um pouco para além da muralha. Já outras unidades da frota se juntavam à primeira, num coro selvagem. Por enquanto, não conseguira ainda divisar o inimigo, mas a serenidade do céu salpicado de nuvens povoava-se de explosões.

 

Ajustando a capa em volta dos ombros, Carolyn saiu da espécie de toldo erguido à entrada da tenda, com a sua habitual expressão de calma segurança:

 

- Julgava que a guerra tinha acabado.

 

- Olhe para o norte, lá em baixo, ao nível do horizonte disse Linda.

 

Qual enorme e malfazejo pássaro negro, o bombardeiro quase saltava sobre as vagas, para se furtar ao fogo de artilharia. Àquela altura, os canhões antiaéreos eram ineficazes. O piloto empregava da melhor maneira o tempo enquanto não entravam em acção os canhões de três polegadas. Rick esquadrinhou o céu, em busca de outros assaltantes. Era de esperar que depois do nascer do Sol a calma não se prolongasse. Talvez os caças americanos tivessem dispersado ao largo algum ataque em forma. Talvez aquele Heinkel viesse incumbido dalguma missão suicida. Fosse como fosse, o bombardeiro metia agora o focinho em direcção à praia. Subitamente, Winter lembrou-se de que alguém lhe falara dum depósito de munições a menos de dois quilómetros de distância. Parecia incrível que o assaltante se dirigisse para lá. O que era certo é que se aproximava a toda a velocidade. Talvez não tivesse nenhum objectivo determinado, mas simplesmente o intento de se desfazer da carga mortífera sobre quem quer que encontrasse vivo


Em toda a extensão da praia ressoavam os apitos dos sargentos e os homens corriam para os abrigos. No alto da escarpa, uma sereia portátil juntou-se ao alarido. Rick teve a maior emoção dessa manhã quando viu Randall Strang, esquecido da sua dignidade, esconder-se desesperadamente debaixo do guarda-lamas dum carro parado. Só a falta de tempo o impediu de saborear esse espectáculo e, rir com satisfação. Mas já o seu braço envolvia Carolyn e, com a outra mão livre, atraía a si Linda, obrigando as duas jovens a estenderem-se com ele no chão, de rosto colado à areia, enquanto a sombra imensa das asas negras cobria a praia.

 

Distinguiu de relance um metralhador a manejar a sua arma, mas o vento produzido pelas hélices levantou uma porção de areia que lhe fustigou os olhos. Estava ainda ocupado a limpá-los quando ouviu por cima da cabeça o crepitar sinistro, crivando o mar de balas. Os soldados duma barcaça que chegava, abrigavam-se debaixo dos bancos, enquanto a morte arranhava as amuradas. O avião era já ao longe uma simples sombra movediça, a castigar com implacável precisão as dunas. Não tardou porém a voltar...

 

- Vão para dentro da tenda! - ordenou Winter.

 

Mal se tinham abrigado os três, as asas negras tornaram a passar e o bramido mortal encheu o ar uma segunda vez. Winter viu Dean tapar a mesa de operações com uma cobertura metálica e nesse mesmo instante as paredes da tenda ficaram espicaçadas com buracos tão precisos e bem alinhados como uma figura geométrica. O ronco dos motores passou. Rick inclinou-se para o operado ainda estendido em cima da mesa. Misericordiosamente fora poupado pela fuzilaria e continuava a dormir sob o efeito do éter.

 

No fim da praia explodiu então a primeira bomba. Rick estava já fora da tenda e juntou-se à aclamação geral ao ver que o Heinkel, tendo calculado mal a pontaria, lançara no Mediterrâneo metade do seu carregamento. Os canhões dum torpedeiro acertaram finalmente com a altura precisa e o piloto, aliviado duma boa parte do seu peso, lutava com todas as forças por atingir um buraco no céu que lhe permitisse escapar para as alturas... Mas agora os canhões antiaéreos cercavam-no e a fuga era impossível. Não havia para ele senão um caminho, o da morte... O piloto compreendeu isso rapidamente e fez a sua escolha: Winter engoliu a saliva e reteve a respiração ao ver o Heinkel tomar a direcção da rampa de cimento. Uma granada atingiu-o e arrancou-lhe uma asa, tal como uma criança arrancaria a asa duma borboleta. Soltou as bomas que lhe restavam, mas a sacudidela sofrida fez-lhe perder a pontaria. Mal deixou cair a última, o Heinkel começou a descer em espiral, indo afocinhar em chamas num campo próximo da escarpa, qual archote romano ao invés, a arder ao sol.

 

Mas na praia ninguém se interessou com a agonia do Heinkel: as bombas tinham explodido justamente à beira do talude, provocando o desmoronamento de algumas centenas de toneladas de terra e rocha.

 

Dir-se-ia que toda a fraga aluía e se esboroava sob o próprio peso, verdadeira cascata de terra vermelha que tragou num instanto o jipe que Manny Ebstein trazia, vazio, do hospital.

 

Antes mesmo que assentasse a nuvem de poeira vermelha produzida pelo desabamento, os homens saíram, qual enxame, do depósito de mantimentos à beira-mar. E quando Rick conseguiu abrir caminho através da multidão, já as pás e enxadas removiam a terra: começava a distinguir-se a capota do jipe. Imediatamente, embora o veículo estivesse ainda bem enterrado, Winter compreendeu que a capota salvara a vida de Manny e lançou aos cavadores uma advertência, aliás desnecessária. A cabeça e os ombros de Manny já estavam a descoberto e os soldados apressavam-se a libertar-lhe o resto do corpo da terra que o envolvia e comprimia.

 

Manny vivia ainda. Winter teve disso a certeza quando, ajoelhado na íngreme ladeira, lhe limpou as faces e o pescoço sujos de terra. Uma palidez anormal espalhara-se-lhe em todo o rosto, que parecia sem pinga de sangue, mas desde que voltara a ter ar respirava quase regularmente. Não tardou a abrir os olhos, olhando em volta com ar espantado.

 

- Estás ferido, Manny?

 

- Receio que sim, patrão. Tenho todo o peso do jipe em cima duma perna.

 

- Não tentes mover-te, vamos levantá-lo.

 

- Devo ter também o braço ferido, sinto-o húmido.

 

- Então deixa-te estar absolutamente imóvel. Não te inquietes, que chegaremos a tempo.

 

Mas Rick não se sentia muito tranquilo quando recuou alguns passos para deixar trabalhar a brigada de socorro. Devia demorar bastante tempo a libertar o jipe do solo revolvido; entretanto, se interpretara com exactidão aquela horrível palidez, Manny corria o perigo de morrer, esvaído em sangue, devido ao corte da artéria do braço. Tudo dependia no entanto da natureza da ferida: às vezes as grandes artérias, quando sofrem um golpe a direito, dominam elas próprias a hemorragia graças à sua elasticidade. Mas se se trata dum corte irregular, então é necessário um torniquete para fazer parar a perda de sangue.

 

Além disso, havia também a perna, pois mesmo estando a pele intacta nada o autorizava ainda a supor que não houvesse esmagamento ou apenas fractura e que por isso não fosse necessária a amputação.

 

De repente, Winter reparou que um dos cavadores era Terry Adams. A energia com que ele fazia voar a terra era extraordinária. A um gesto de Rick, um técnico tirou a pá das mãos do rapaz apontando na direcção do capitão.

 

Rick falou-lhe simplesmente. Se Terry porventura guardava alguma lembrança do incidente ocorrido na praia antes de nascer o Sol, não o deixou transparecer.

 

- Podes ir imediatamente ao barco e trazer contigo o major Coffin?

 

- Pensa que há ainda alguma esperança? - perguntou ansiosamente Terry.

 

- Há sempre esperança, e sobretudo se não perderes tempo. Diz a Bill que preciso duma solução intravenosa de bicarbonato de sódio, uma meia dúzia de ligaduras elásticas e todo o gelo que puder trazer... Há uma lancha nossa acostada ao cais. És capaz de a fazer andar depressa?

 

Mas já Terry corria em direcção à água. Rick viu a lancha afastar-se e ficou um momento irresolute: o instinto dizia-lhe que se juntasse à brigada de salvamento, enquanto o bom senso lhe demonstrava que havia demasiado ferro em movimento em volta da cabeça de Manny. Voltou-se e entrou na tenda das admissões, onde começou a preparar a toda a pressa uma injecção de plasma: cheio de angústia, lembrava-se que os olhos de Manny nem sequer o tinham seguido ao afastar-se. Aquele rapaz de Brooklyn perdia rapidamente as forças, sob o duplo efeito do choque e da perda de sangue.

 

Uma sombra obscureceu o pano móvel da tenda. Ergueu os olhos e encontrou os do capitão Douglas.

 

- Parece um caso bicudo, Winter. Ainda tem esperança de que o retirem dali com vida?

 

- Por ora, confesso-lhe, procuro não pensar nisso sequer.

 

- Em Inglaterra - prosseguiu Douglas - vi um tipo enterrado até aos ombros, depois de um bombardeamento aéreo. Escavámos tão depressa quanto nos foi possível. Mas o tipo apagou-se enquanto trabalhávamos... Desculpe a expressão, mas não encontro outro termo.

 

Rick abanou a cabeça. Os cirurgiões ingleses tinham chamado a atenção para muitos casos deste género: agora recomendava-se um tratamento imediato, destinado a prevenir as perturbações renais mesmo antes do paciente se libertar da pressão da terra. Ao sair da tenda com o plasma, Rick reparou que pelo rosto de Douglas escorriam bagas de suor. O sol absorvera rapidamente os últimos vestígios de frescura matinal. No fim de contas, ali era África. Manny fizera uma longa viagem para vir encontrar a morte...

 

- Não se importa de me dar uma ajuda?

 

Douglas pegou no frasco de plasma. Rick afastou dois dos cavadores e ajoelhou na estreita cavidade aberta ao lado do corpo de Manny. Um simples olhar foi o suficiente para compreender que o ferido estava já demasiadamente fraco para poder falar. Nesse pobre rosto sujo, apenas os olhos viviam ainda, confiados e implorantes.

 

Rick apreciou rapidamente a situação. Manny continuava coberto por uma camada de terra vermelha quase até ao queixo, mas os cavadores tinham conseguido libertar-lhe um braço, o braço são. Winter rasgou-lhe a manga da camisa e examinou-lhe as veias, ainda bem visíveis, mas apenas parcialmente cheias, sinal perigoso dum iminente colapso circulatório. O plasma conseguiria talvez evitá-lo, contrariando o desenvolvimento do choque devido à perda do fluido vital nos tecidos. No entanto, se dentro de meia hora Terry e Bill não estivessem ali, as possibilidades de salvar Manny seriam nulas por assim dizer. A solução alcalina era absolutamente necessária para estimular a secreção dos rins e interromper a concentração dos glóbulos vermelhos naquela zona.

 

Começou a injecção do plasma e viu as veias incharem a pouco e pouco. A presença do aparelho e dos tubos dificultava um tanto os trabalhos de escavação, mas os resultados que assim se conseguiriam valiam bem esse atraso.

 

O outro braço, o braço ferido, começava já a aparecer: um golpe irregular lacerava o tricípite. Liberto da pressão da terra, o sangue jorrava agora da ferida. Douglas estancou o fluxo com um torniquete que fixou solidamente com um cataglóssio.

 

- Ruptura da artéria - murmurou.

 

- Graças a Deus ainda tem o braço! A circulação colateral deve restabelecer-se rapidamente.

 

Um enfermeiro trepou ao montículo de terra, com uma tala Cramer, três pés duma espécie de escada de arame maleável. Com o cabo de madeira do torniquete bem firme por baixo da ligadura, não podia haver relaxamento da pressão que impedia a hemorragia. O enfermeiro deu a Rick suficiente algodão para almofadar a tala, depois ele dobrou-a num ângulo recto e colocou nela o braço de Manny. Ao fazê-lo, os seus dedos sensíveis de cirurgião perceberam o roçar característico dos ossos partidos. No entanto, a situação naquele ponto estava dominada, temporariamente pelo menos.

 

Quando recuou um pouco para deixar lugar aos escavadores, soltou um grande suspiro de alívio: Terry Adams, com os braços atravancados até mais não poder, corria ao longo do cais. Bill Coffin seguia-o de perto, e transportava um embrulho envolto em musselina, alegre e prazenteiro como um potro no seu primeiro dia de prado. Mas o rosto ensombreceu-se-lhe de súbito ao reparar nos olhos de Rick.

 

- Não me vais dizer que ele continua ainda soterrado?

 

- Só agora começam a pô-lo a descoberto. E está perdido se não conseguimos pôr-lhe os rins a funcionar.

 

Bill assobiou baixinho:

 

- Tu que não pensasses nisso, meu velho. E como vamos fazer esse milagre?

 

Rick subira já metade do montículo com o frasco de bicarbonato na mão. Respondeu-lhe sem se voltar:

 

- Pega numa pá e ajuda os outros. Isto é trabalho só para um.

 

Ao chegar junto do ferido, notou que a ampola de plasma estava quase completamente vazia. Era coisa bastante simples ajustar o tubo a uma segunda ampola sem retirar sequer a agulha da veia. E foi o que fez, dando uma ligeira massagem para que o novo líquido corresse mais facilmente. Douglas examinou a tala com toda a atenção e soltou um resmungo aprovador.

 

- Diagnóstico? - perguntou Rick.

 

- Hemorragia bem dominada... Mas, não há dúvida, há laceração da artéria braquial e fractura do úmero.

 

Rick deixou Douglas no fosso a vigiar o ferido e foi juntar-se ao grupo que rodeava o jipe já meio desenterrado. Quinze minutos depois, o carro voltado começou a ceder ao esforço combinado de tantos ombros. Mais dez minutos e rolou pelo declive, libertando por completo o corpo de Manny. A partir de então, os salvadores puseram-se a retirar a terra com as mãos, até que o rapaz de Brooklyn pôde ser retirado dali e transportado para a praia.

 

Manny estava agora quase completamente inconsciente. Rick, após um primeiro exame rápido à perna durante tanto tempo soterrada, não lhe encontrou qualquer fractura. Chamou então os maqueiros, que logo acorreram com uma maca onde se empilhavam cobertores, para conservar quente o corpo do ferido. Ao seu lado, Terry desfazia o invólucro dum pacote de ligaduras elásticas. Ajoelhou-se para rasgar as calças de Manny e lançou um rápido olhar em volta, para o círculo dos assistentes apaixonadamente interessados. Carolyn e Linda, tinha a certeza, encontravam-se algures misturadas naquela multidão. «A jornalista teria trazido consigo o seu inseparável caderno de apontamentos?» Mas logo deixou de pensar fosse no que fosse, concentrando-se por completo na sua tarefa.

 

A perna estava branca que nem cera, como se lhe tivessem tirado todo o sangue, até à última gota. Um pouco mais tarde, principiaria a inchar, atraindo a si o fluido da circulação sanguínea e originando perturbações renais, talvez sem possibilidades de cura. Felizmente, Winter tinha forma de impedir essa complicação, mas precisava de andar depressa.

 

Enquanto Douglas soerguia a perna de Manny, Rick envolvia-a rapidamente em ligaduras elásticas, procurando assegurar uma pressão uniforme desde o artelho até à coxa, contrariando assim o inchaço que devia ocorrer mais tarde. Quando acabou, estendeu a perna na maca e voltou-se para o braço partido. Os dedos estavam agora pálidos e frios, o que não era muito mau sinal se a cirurgia pudesse agir com rapidez.

 

Verificou que mãos voluntárias já tinham endireitado o jipe, cujo motor agora tossia e roncava, obedecendo aos intentos de o porem a trabalhar. Dois enfermeiros colocavam uma pedra de gelo no banco da retaguarda. Durante um momento, Rick considerou as probabilidades que teria se terminasse ali mesmo o trabalho, mas decidiu não o fazer. O hospital francês ficava a poucos minutos de caminho e a rampa que ligava a praia ao cimo do talude podia ser utilizada, apesar do desmoronamento.

 

- Que tal é o teu francês, Bill?

 

- Parece-me que muito mau.

 

Winter voltou-se então para a multidão dos assistentes:

 

- Onde está, Linda?

 

A resposta chegou-lhe do jipe; Linda instalara-se já no assento do motorista:

 

- Deixe-me conduzi-lo ao hospital, capitão. É um trabalho que posso fazer.

 

Rick examinou a proposta em face dos regulamentos e tomou rapidamente uma decisão. No fim de contas, aquela oferta libertava-lhe um homem, que poderia assim continuar a sua tarefa na praia, e era essencial que a unidade inteira se reunisse o mais depressa possível no Hospital do Liceu e que o material ali em serviço fosse desmontado e classificado sem perda de tempo.

 

A um sinal seu, dois maqueiros ergueram da areia a maca de Manny e transportaram-na para o jipe, onde a fixaram solidamente.

 

- Acompanha-o, Bill, e Carolyn também.

 

Não ficou nada surpreendido ao vê-la sair do meio da multidão, acorrendo ao seu chamamento. Ela sentou-se ao lado de Manny tão tranquilamente como se subisse em Nova Iorque para uma ambulância de Bellevue. Uma vez mais admirou a sua espantosa aptidão para achar tudo simples e natural.

 

- Fiquem os dois junto dele - recomendou - até que eu possa safar-me daqui. Ponham-lhe o braço em gelo logo que chegarem, e mantenham-no assim até encontrarem um cirurgião que lhe una essa artéria. Quando digo um cirurgião, refiro-me naturalmente a um dos nossos. Não deixem um francês tomar conta do caso, pois todos eles gostam muito de fazer amputações.

 

Viu o jipe subir a encosta íngreme e sentiu-se invadido por extrema depressão. O instinto segredava-lhe que acompanhasse o ferido e terminasse ele próprio a tarefa de salvar Manny. Mas a disciplina avisava-o de que era absolutamente necessário cumprir as ordens de Strang a empacotar o material sem perda de tempo.

 

Strang... Ao pensar nele, Winter olhou para o carro debaixo do qual o chefe se escondera com tanta perícia uma hora antes. Evidentemente, Strang estava já no Hospital do Liceu, mas a areia húmida conservava ainda a marca do seu corpo, eloquente testemunho do seu pavor. Rick olhou para aquela cova durante um momento antes de se decidir a trabalhar. E pensou de si para si: «Espero que tenha ao menos embaciado os seus brilhantes botões.»

 

Este pensamento desanuviou-lhe consideravelmente o espírito. Sorria ainda da sua própria poesia amarga quando entrou na tenda das admissões para ajudar os enfermeiros a desmontar a barraca.

 

Rick esperava que o destacamento não ficasse demasiadamente desapontado neste primeiro contacto com a França colonial. Gostaria de mostrar aos seus colaboradores os jardins cercados de muros brancos, onde floriam os hibiscos e buganvíleas; o deslumbramento duma fonte por baixo de qualquer arcaria com arabescos; um ou outro legionário, de barba comprida e calças largas, saudando a bandeira americana à passagem do primeiro jipe.

 

Mas nada disso encontraram em todo o caminho desde a praia até ao hospital.

 

Um soldado da Polícia Militar americana dirigia o tráfego numa encruzilhada, onde pouco antes estivera instalada uma metralhadora. Um árabe de fez e fato de trabalho corria as portas onduladas duma garagem exactamente igual às de Detroit ou de Omaha. Uma parede ostentava, em sítio bem visível, um anúncio que nem por estar traduzido em francês deixava de ser familiar: BEBA COCA-COLA!

 

- Ora aí está! - exclamou Chuck Walters. - Alistem-se no Exército e conheçam o mundo! Onde estão os camelos e as mulheres de rosto velado? Dormem durante o dia?

 

- Tem paciência, meu velho. Isto aqui ainda não é Argel. Lorette é um subúrbio cem por cento europeu.

 

- Nem sequer é europeu. Se fechasse um olho ia jurar que entrava em Miami.

 

O motorista do primeiro jipe pôs o pé no acelerador para vencer a íngreme rampa. O Hospital do Liceu ficava lá em cima, numa espécie de planalto, imponente edifício erguido no meio dum jardim nem por isso muito devastado pelo sol, com um amplo pórtico voltado para o mar. Era um prazer entrar naquela atmosfera familiar e ser recebido por uma rapariga simpática, num uniforme de extrema brancura, mesmo que falasse uma língua diferente. Pouco depois, Rick seguia um enfermeiro de grande bigodaças que lhe indicava o caminho da ala destinada aos americanos. Ao fundo do corredor, esperava-o Carolyn. Antes mesmo que ela falasse, compreendeu que estava iminente uma crise.

 

- Mandei-lhe um mensageiro à praia, Rick. Decerto se desencontraram no caminho. - Ela pôs-se a andar ao seu lado; Rick seguiu-a, obediente, e juntos viraram à direita, ao fundo do corredor: - O major prepara-se para operar Manny; já está no lavabo a escovar as mãos.

 

Winter respondeu no mesmo tom:

 

- É compreensível. No entanto, seria preferível deixar Manny recompor-se um pouco. Por isso recomendei a Bill que lhe conservasse o braço envolvido em gelo.

 

Carolyn baixou a voz:

 

- O major Strang não compreendeu a utilidade do gelo e mandou-o tirar.

 

«Deus lhe pedirá contas das suas idiotices», pensou Rick. Mas limitou-se apensá-lo, não o disse em voz alta. Randall Strang era um cirurgião competente na vida civil. Descontada a sua veneração pelos métodos preconizados nos tratados, estava suficientemente habilitado para as funções que desempenhava. No entanto, era bem evidente, pouco ou nada conhecia de cirurgia de guerra. Há anos que os cirurgiões militares tinham demonstrado que o emprego do gelo reduzia as necessidades de oxigénio nos tecidos bloqueados por um torniquete. O gelo conservava-lhes a vitalidade durante muito tempo. Desde Tobruk às Ardenas, já salvara numerosas vidas nesta guerra. Por isso tivera razões mais do que suficientes para envolver o braço de Manny em gelo, e agora tinha também motivos amplamente justificados para elucidar Strang sobre o assunto.

 

- Onde está Bill? - perguntou.

 

Dois coronéis passaram a pouca distância, muito importantes, com o ar de irem cumprir uma dessas missões que só os coronéis são capazes de desempenhar. Carolyn respondeu numa voz formal:

 

- O major Coffin vai operar uma subdural, capitão. Ferimento provocado por uma explosão.

 

Bill não perdia o seu tempo, pensou Rick; mal acabava de chegar e já tinha entre as mãos uma hemorragia do cérebro. O soldado estava bem entregue.

 

Seguiu Carolyn, transpôs um pórtico, depois passou por uma galeria envidraçada que ladeava um jardim. Ao fim, havia um edifício em forma de crescente, com uma luxuosa antecâmara cujo tecto refulgia de brancura.

 

- É o pavilhão das operações? - inquiriu.

 

Não precisava de fazer a pergunta, mas tinha necessidade de dizer qualquer coisa para não ouvir as furiosas pancadas do seu coração.

 

- É a sala de operações número três - volveu secamente Carolyn. - Está tudo a postos para uma amputação.

 

- Amputação?! - repetiu Rick e a sua voz acentuou a palavra com uma entoação de espanto. Nem mesmo Strang podia ser dogmático ao ponto de negar a própria evidência e preferir a letra ao espírito dos tratados.

 

Carolyn parou à entrada e premiu-lhe o braço ao murmurar:

 

- Estou de serviço lá em baixo, querido. Gostaria imenso de ficar aqui a ajudá-lo.

 

Mas Winter já transpunha a porta e caminhava a toda a pressa em direcção ao lavabo, onde Strang mergulhava agora as mãos em álcool. As sobrancelhas do major adquiriram a sua familiar e clássica curvatura ao ver o jovem oficial, que, sem ligar importância à sua presença, continuou a andar para a sala de operações. Winter reparou imediatamente que tudo estava a postos, à espera do cirurgião. À cabeceira da mesa o anestesista de Strang experimentava uma válvula. Duas enfermeiras passavam em revista o material cirúrgico alinhado na mesa dos instrumentos... Sob a luz dum projector, Manny aguardava a sua hora, mas ninguém lhe tinha tocado ainda. A ligadura que lhe envolvia a perna continuava intacta. Graças a Deus! Strang compreendera ao menos que era importante manter a pressão naquele sítio.

 

A familiar voz glacial murmurou atrás de Winter:

 

- Posso perguntar-lhe qual o motivo desta intrusão?

 

Rick respirou fundo. No fim de contas, era muito possível que Carolyn tivesse compreendido mal.

 

- Estava preocupado a respeito de Manny, major.

 

- O plasma reanimou-o bastante - proferiu Strang. - Está em condições de ser operado.

 

- Importa-se que eu assista?

 

Strang fixou-o durante algum tempo. Depois resmungou uma ordem para o técnico postado junto da porta:

 

- Uma bata para o capitão Winter!

 

Rick aprontou-se num abrir e fechar de olhos. Um enfermeiro polvilhava ainda as luvas do chefe e já ele se precipitava na sala de operações. O torniquete permanecia no seu lugar, no braço de Manny, e o quadro, tal como se apresentava, permitia alimentar as melhores esperanças. A carne estava pálida, é certo, mas ao pousar ligeiramente os dedos no braço doente sentiu a pele ainda fria do gelo e ficou satisfeito. Por outro lado, regozijou-se intimamente da lentidão dos métodos de Strang, graças à qual o braço de Manny continuava intacto.

 

Ao entrar na sala, finalmente preparado, o chefe perguntou numa voz solene:

 

- Então, Winter? Espero que não tenha nenhuma crítica a fazer.

 

- Quando examinei a ferida na praia, pareceu-me tratar-se dum corte da artéria braquial.

 

Strang fez um sinal ao técnico para acender o projector colocado por cima da mesa.

 

- Fractura complexa e artéria seccionada. Está indicada a amputação. - Fez outro sinal, desta vez ao anestesista. - Podemos começar, Jurgens.

 

Rick deu a volta à mesa e tornou a fechar a válvula.

 

- Mas não vamos amputar-lhe o braço, major, uma vez que o podemos salvar.

 

O rosto de Strang tornou-se vermelho por baixo da máscara:

 

- Fique onde está e veja se quiser. E abra imediatamente essa válvula.

 

Jurgens fez um gesto para cumprir a ordem, mas Rick não retirou a mão da válvula fechada.

 

- Entendamo-nos de uma vez para sempre, Strang. O senhor não vai amputar o braço deste rapaz. Nem aqui nem em parte nenhuma. Se o fizer, deporei contra si uma acusação em Conselho de Guerra. Acusação de incompetência.

 

O berro furioso de Strang quase lhe arrancava a máscara do rosto:

 

- Saia desta sala, Winter! Saia antes que eu chame um guarda...

 

- Posso tomar conta da ocorrência, major?

 

Ambos se voltaram ao mesmo tempo para a nova voz. Bill Coffin, ainda de bata, avançou alguns passos:

 

- Evidentemente que posso prender o médico em falta, mas...

 

- Conserva-te à margem deste assunto, Bill - aconselhou Rick. - Ou então, se queres realmente ser útil, vai procurar o coronel Blaine. Ele decidirá a questão.

 

- Isso é extremamente fácil, meu velho - respondeu Bill. Amos já vem a caminho, não tarda a chegar. - e, dizendo isto, desafiava Strang com o olhar. - Avisaram-me do que se passava há um instante...

 

- Posso perguntar-lhe quem o informou? - inquiriu o outro.

 

- Isso tem alguma importância?

 

Strang, sem responder, cruzou os braços e assim ficou à espera, ao lado da mesa. Um espectador iria jurar que as veias das suas têmporas não tardariam a rebentar de fúria. Bill, balançando ao de leve o corpo, equilibrado nas pontas dos pés, de mãos caídas, dir-se-ia um rolo de músculos prestes a saltar como uma mola. Rick continuou na mesma posição e no mesmo sítio, uma das mãos na válvula do aparelho de anestesia, a outra no pulso do paciente.

 

Enfermeiras e enfermeiros estavam petrificados como estátuas em redor da sala... Os olhos de Rick percorreram rapidamente aqueles rostos e sentiu que todos os assistentes se colocariam ao seu lado se tivessem coragem suficiente para o fazer. «É um pouco como estar na linha de fogo», pensou. Pelo menos, os mesmos valores estavam em causa. Se perdia aquela questão, ficava liquidado, tanto para a medicina como para o exército. Se fizesse a operação e fosse bem sucedido, mesmo assim Strang havia de arranjar forma de o inutilizar... Este pensamento teve o efeito de nova acha lançada na fogueira. Pois bem, decidira salvar o braço de Manny e nada a não ser a sua imediata prisão seria capaz de o deter.

 

O coronel Blaine entrou tranquilamente e parou à entrada dos lavabos. Quando Rick viu quem o acompanhava, teve um longo suspiro de alívio. Um oficial alto, de nariz aquilino, os cabelos sempre em desordem e olhos de falcão... o coronel Granby, o cirurgião da divisão. Amos, evidentemente, andara depressa para vir em seu auxílio. Mesmo um presunçoso como Strang aceitaria a decisão de Granby.

 

Quando Amos falou, a sua voz era calma:

 

- Esta é a sala de operações número três, coronel. Quer pôr uma máscara e assistir?

 

Granby respondeu afavelmente:

 

- Não quero interrompê-los, meus senhores.

 

A sua voz era a dum pacificador. «Estas duas velhas raposas», pensou Rick, «pretendem convencer-nos de que entraram aqui por acaso, para darem a Strang uma oportunidade de se retirar com elegância, se ele porventura souber ser elegante.»

 

Mas disse em voz alta:

 

- Receio bem, coronel, que tenha de lhe pedir que nos interrompa.

 

Granby voltou-se ao ouvir aquela voz familiar.

 

- Mas... Não é o capitão Winter? - E ia a estender-lhe a mão, mas logo se conteve. - Desculpe-me, não podemos apertar a mão, vejo que o senhor já está preparado para operar...

 

Amos interrompeu-os rudemente:

 

- Acabem com tantas cortesias. O que se passa de anormal, Strang?

 

O major estava agora mais calmo e explicou num tom de conversa:

 

- Simples divergência de opinião. Eu preparava-me para fazer uma amputação. O capitão Winter não estava de acordo. A discussão tornou-se um pouco... um pouco acalorada...

 

- É o menos que se lhe pode chamar -observou Bill.

 

- Quer expor as suas razões, capitão? Rick principiou calmamente:

 

- Enviei este homem da praia com uma artéria cortada. Granby prestava toda a atenção:

 

; - Artéria braquial?

 

- Exactamente. Além disso, uma fractura complexa. Enviámo-lo para aqui com um torniquete e a recomendação de lhe conservarem o braço envolvido em gelo e de lhe darem uma injecção de plasma caso fosse necessário.

 

Granby aprovou com a cabeça. ;

 

- Isso faz-nos lembrar as Ardenas, não é verdade?

 

- Com a diferença que lá nos faltava o gelo.

 

- E a anestesia também, nalguns casos. Granby dirigiu a Strang um olhar severo:

 

- Porque insiste na amputação, major? Strang aguentou o olhar sem tibieza, mas o seu tom de voz era agora mais brando:

 

- Bem entendido que acolherei com todo o prazer e estou disposto a seguir a sua opinião, coronel Granby.

 

- Os artigos do capitão Winter sobre a cirurgia dos vasos sanguíneos acreditam-no como uma autoridade no assunto. A sua opinião neste caso tem sem sombra de dúvida muito mais valor do que a minha.

 

Durante um breve segundo ninguém se mexeu. Foi Strang quem por fim desfez aquela atmosfera extremamente tensa dirigindo-se para o lavabo. Somente as mãos o traíram quando, ao tirar as luvas de borracha, arrancou um dedo a uma... Sem se voltar, propôs no tom de voz que empregava à cabeceira dos doentes ricos:

 

- Posso sugerir, nesse caso, que o capitão Winter faça a operação?

 

- Pois claro que pode - declarou Amos.

 

Apesar de tudo, Strang conseguia sair daquela situação embaraçosa tão aprumado como se tivesse recebido todas as honras:

 

- Se deseja visitar o hospital, coronel Granby, posso servir-lhe de guia.

 

Os passos dos oficiais perderam-se no corredor e durante algum tempo reinou completo silêncio na sala de operações.

 

- Naturalmente - disse Rick - isto é apenas o começo. Depois calou-se de súbito, lembrando-se de que talvez não

fosse conveniente exprimir ali os seus pensamentos em voz alta. Strang batera em retirada, sem dúvida para reunir as suas forças. Mas, entretanto, Rick marcara um ponto, e Manny salvara o seu braço.

 

- Estás disposto a servir-me de assistente, BOI?

 

- Para que pensas tu que me preparei?

 

Entraram os dois no compartimento onde estavam as bacias e as escovas e, longe dos ouvidos das enfermeiras, Bill disse baixinho:

 

- Ainda estou admirado como conseguimos este triunfo.

 

- A minha posição era sólida e Strang sabia-o. É suficientemente bom cirurgião, lembra-te disso, embora siga os métodos anteriores à guerra.

 

- Então porque insistiu na amputação?

 

- Porque é mais simples e porque vem no tratado. - Rick franziu as sobrancelhas ao vestir a bata branca de operador e acrescentou: - E vai tratar-me, a mim também, segundo a letra dos regulamentos, depois de ter besuntado Granby com suficiente manteiga.

 

- Esse velho espertalhão sabe da poda e tem consideração por ti. Não me digas que Strang o pode virar do avesso.

 

- Se a pressão for bastante forte, talvez seja obrigado a ceder. Ofereça-lhe Strang esta noite um daqueles saraus bem organizados, com todos os seus conhecimentos da melhor sociedade, e verás amanhã o teu amigo Winter ser posto na rua por uma orelha. Ou, na melhor das hipóteses, transferido para outra unidade.

 

- Amos não permitiria isso.

 

- Amos não teria outro remédio.

 

- Pensas então que Strang quer a tua pele?

 

- E se tu fosses Strang não estarias agora a afiar a navalha para ma tirar?

 

- Por falar em navalhas, não achas que é tempo de pensar no braço de Manny?

 

- Absolutamente, visto já não estar envolvido em gelo.

 

- Tratas-lhe também da perna ou deixas isso para mais tarde?

 

- Peço a Deus que não seja preciso tocar-lhe na perna. Nem agora, nem mais tarde. Se os pressentimentos significam alguma coisa, tenho a impressão de que Manny, aí, teve muita sorte. Estou convencido de que não há nenhum osso fracturado. Creio que as contusões são apenas superficiais. O principal é manter o funcionamento dos rins e restabelecer a circulação, gradualmente, à medida que se atenue o estado de choque.

 

Tinham voltado para junto da mesa. Rick fez sinal ao anestesista e apertou a mão sã de Manny no momento de ordenar a descida do cone da luz. Quando pegou no escalpelo, sentiu-se outra vez no seu elemento. Todas as circunstâncias exteriores tinham deixado de existir. As suas mãos moviam-se automaticamente e com destreza, ora separando os tecidos danificados, ora retirando uma pequena pedra que se alojara na carne. De vez em quando parava para banhar a ferida com uma solução salina quente, limpando-a assim de vários detritos e coágulos de sangue. Na base da incisão, a artéria ficou por fim visível - o torniquete impedira a retracção -, estrutura esbranquiçada e brilhante, aberta na extremidade, parecendo-se com um pequeno tubo.

 

Bill mostrou-se um pouco surpreendido quando ouviu Rick pedir fio de laqueação.

 

- Não fazes a anastomose? Winter sacudiu a cabeça.

 

- É mais simples ligar. Arriscávamo-nos a formar coágulos com a linha de sutura e não temos necessidade disso.

 

Trabalhavam agora no fundo da ferida e fechavam, com a ajuda dum fio forte de algodão, as duas pontas da artéria cortada.

 

- Podes desapertar o torniquete?

 

Não houve nenhum jacto de sangue, prova de que a artéria estava bem unida. Apenas se produziu uma ligeira ressumação sanguínea que uma ou duas ligaduras suplementares logo fizeram desaparecer. Uma vez mais Rick banhou a ferida com a solução salina. Depois, explorando o fundo da incisão, descobriu o contorno azul duma veia. Soergueu-a, passou-lhe por baixo dos fios ligeiramente distanciados um do outro e cortou-a no meio. Em casos semelhantes, é geralmente admitido que este corte conserva o sangue nos tecidos. Por outro lado, é aconselhável, sempre que é preciso laquear uma artéria, neutralizar a veia correspondente, para evitar um desequilíbrio entre a circulação arterial e a venosa.

 

- Como se mantém ele, Jurgens?

 

- Está melhor do que quando começámos - respondeu o anestesista.

 

Era um fenómeno bastante corrente na cirurgia: este género de tratamento atenua com frequência o estado de choque.

 

- Penso que podemos arriscar-nos a pôr-lhe uma placa no osso - disse Winter.

 

Imediatamente a broca chegou às suas mãos. Era uma coisa extremamente simples para os seus dedos hábeis brocar as duas extremidades do úmero partido e prendê-las numa placa de metal, depois fixá-las solidamente com a ajuda de parafusos através do osso. Quando terminou esse delicado trabalho de marceneiro, Rick lavou a ferida uma vez mais, verificando com cuidado as mínimas pregas, para que nenhum fragmento de osso ou de qualquer outra substância estranha aí ficasse alojado.

 

- Sulfamida? - perguntou Bill.

 

Recuou dois ou três passos para permitir que o major polvilhasse uniformemente toda a ferida. Depois, voltou para junto do ferido, recebeu das mãos duma enfermeira algumas tiras de gaze vaselinada e colocou-as com cuidado na cavidade, até a encher.

 

- Goteira?

 

Rick abanou novamente a cabeça:

 

- Uma tala de gesso é mais conveniente. Mas antes de o deixarmos em paz, temos de lhe fazer ainda outro tratamento.

 

A compreensão do papel que desempenham os ramos mais profundos do sistema nervoso simpático, denominado o sistema autónomo, especialmente nas lesões dos vasos sanguíneos, é uma das mais brilhantes conquistas da cirurgia moderna. Há sempre o perigo, na maior parte das feridas desse género, de se estabelecer um círculo vicioso de reflexos, do qual resulta a contracção de todos os outros vasos das vizinhanças, o que provoca por sua vez a oclusão dos pequenos ramos colaterais que têm de suportar o fardo da circulação na zona situada em redor da ferida. Todo o processo que consiga romper esse círculo vicioso permite um relaxamento dos vasos e aumenta, por consequência, o afluxo sanguíneo aos tecidos famintos. Rick sabia que o método mais simples para obter esse efeito consistia em injectar novocaína em determinados centros do sistema nervoso autónomo que rege a área ameaçada. No caso de Manny, esses centros ficavam situados numa curiosa série de nódulos perto da coluna vertebral e conhecidos pelo nome de gânglios cervicais simpáticos.

 

O êxito da sua terapêutica, sabia-o bem, dependia desse pormenor, e embora o êxito fosse para si duplamente importante, dadas as circunstâncias particulares em que se realizara a operação, a sua voz mostrou-se calma quando disse:

 

- Temos necessidade duma agulha comprida e novocaína a um porcento.

 

Deu a injecção com extremo cuidado, enterrando profundamente a fina agulha até ficar em contacto directo com o tecido nervoso. Entretanto, Bill moldava o aparelho de gesso. Sem pronunciarem uma única palavra, instalaram nele confortavelmente o braço de Manny. No quarto de hora que se seguiu, permaneceram em silêncio, os nervos demasiado tensos para poderem falar. Não existe novocaína capaz de anestesiar o cérebro dum cirurgião quando na mesa de operações está em jogo não só a vida dum homem mas a sua própria carreira médica.

 

A esgotante operação teria restabelecido convenientemente a circulação sanguínea do braço? Quando, após vinte minutos de ansiosa espera, Rick tomou o pulso do ferido, soube que a resposta era afirmativa. O braço de Manny estava salvo, pelo menos por enquanto. As pulsações, embora fracas, eram precisas e regulares, prova de que o sangue retomava o seu curso nos vasos secundários, levando o oxigénio aos tecidos frios, restituindo-lhes a temperatura normal, inundando enfim todo aquele braço com a maré vermelha e quente da vida.

 

Decorreram mais dez minutos, já plenos de certezas tranquilizadoras, e Manny começou a emergir a pouco e pouco do sono do éter. O seu pulso estava agora quase normal e a pele do braço adquirira um tom rosado. Se desse a Randall Strang a possibilidade de agir como queria, aquele mesmo braço estaria agora no recipiente onde o enfermeiro de serviço juntava os despojos da operação.

 

O oficial encarregado da enfermaria aproximou-se para proceder à transferência do doente e Rick afastou-se.

 

- Bill, vens comigo beber qualquer coisa? Tenho a impressão de que hoje merecemos bem uma bebida.

 

Bill já se lavara e se desinfectara há bastante tempo. Estava encostado à ombreira da porta do lavabo, com um cigarro apagado entre os lábios. Respondeu com convicção:

 

- O champanhe parece-me indicado. Champanhe rosado algeriano, com uma boa ponta de brande. Já o encomendei pelo telefone há bocado. Deve estar à nossa espera no quarto do hotel.

 

- Porquê lá?

 

- Porque jantamos também no hotel - respondeu Bill. Compreenderás a razão quando chegares ao átrio.

 

Rick esboçou um sorriso e despiu a bata húmida de suor.

 

- Talvez eu tenha merecido também um pouco de repouso. Deixa entrar a Polícia Militar, meu velho. Se Strang me mimoseia com uma notificação, que saber imediatamente do que se trata.

 

Bill encolheu os ombros:

 

- Seja feita a tua vontade.

 

E abriu a porta que dava para o corredor. O oficial que entrou no pequeno compartimento era jovem mas muito compenetrado do seu papel. Entregou a Rick, com o maior aprumo militar, uma carta. Atrás dele, à pálida luz do crepúsculo tropical, Winter distinguiu as silhuetas de dois soldados M.P. com o seu uniforme de campanha. Sorriu de novo e abriu o sobrescrito. Ao menos o exército prendia-o com todos os efes e erres.

 

Bill espreitou ansiosamente por cima do ombro.

 

- Detido nos seus aposentos? Isso não é muito mau.

 

- Especialmente com champanhe ainda por cima. O tenente M.P. sempre aprumado, disse:

 

- Se o capitão Winter nos quer dar a palavra de honra que irá ter connosco, esperamo-lo lá em baixo.

 

Depois saudou correctamente, deu meia volta impecável e retirou-se, qual personagem dum livro infantil. Bill estava já à janela a perscrutar a obscuridade que começava a invadir o pátio.

 

- Quer creias quer não, vão-nos levar num automóvel do Estado-Maior.

 

- Cheira-me a trabalho de Amos - observou Rick. - Ao que nos conduzirá tudo isto?

 

- Punição disciplinar ou Conselho de Guerra. Escolhe o que quiseres.

 

Rick pegou na blusa do uniforme.

 

- Lamento muito, mas recuso-me a pensar no assunto até amanhã. Fica junto de mim, Bill. Talvez possas acompanhar-me, como passageiro clandestino, nessa viúva alegre.

 

O h:otel de Marselha e do Universo era simplesmente magnífico e sumptuoso. Uma visão de Argel imaginada por Hollywood, no próprio seio de Argel... Enquanto o carro do Estado-Maior, coberto de poeira, percorria a alameda do jardim, Rick notou que o jardineiro e o arquitecto se tinham esforçado por oferecer ao turista de antes da guerra exactamente a imagem que ele esperava da África do Norte. O hotel elevava-se no cimo duma colina escarpada e os seus jardins desciam, numa sucessão de terraços, até às primeiras avenidas da cidade, junto ao porto de azuis reflexos. Pérgolas a transbordarem da púrpura luxuriante das buganvíleas rodeavam um vasto pátio de mosaicos luminosos a sugerir Alhambra ou um foro romano, embora não fosse a cópia nem dum nem doutro. O próprio hotel, habitualmente disposto entre tufos verdes, era imponente sem ser formidável. Segundo a disposição do momento, podia comparar-se a uma mesquita ou a um bangaló duma estrela de cinema... Um porteiro, de albornoz vestido, saiu dum minarete para os introduzir no átrio, réplica perfeita dum hotel de luxo parisiense.

 

Ao Hospital de Campanha, ou pelo menos ao seu estado-maior, tinham sido atribuídos os quartos dum andar da ala direita. Rick Winter e Bill Coffin, ladeados pela patrulha da Polícia Militar, pisavam com serenidade um fofíssimo tapete. O jovem tenente, que fazia consideráveis esforços por se mostrar expedito e conservar ao mesmo tempo todo o aprumo militar, empurrou a porta dum quarto amplo e alto, de paredes imaculadas, ao fundo do qual se abriam os arcos moiriscos duma janela de sacada, donde se avistava um panorama de surpreendente beleza. Bill exclamou, maravilhado:

 

- Dir-se-ia que alguém nos oferece as chaves da cidade. As ordenanças já lhes tinham arrumado a bagagem e os seus uniformes de gala estavam agora estendidos sobre as camas. Entre os arcos via-se uma mesa, com um serviço de cintilantes cristais e porcelanas para duas pessoas. Depois entrou um criado, muito solene, rodando uma grande garrafa num balde de gelo.

 

- As honras de anfitrião ficam por minha conta - declarou Bill. - E tu vê se dizes ao preboste que estás satisfeito...

 

Rick ria ainda quando a porta se fechou atrás do último M.P.

 

- Com razão nos acusam de amimarmos os criminosos... Bill, entretido já a adicionar uma boa porção de brande ao seu champanhe, ergueu os olhos:

 

- Não fiques assim tão ofendido, meu velho. Naturalmente um M.P. vai passar aí toda a noite sentado diante da porta, com ordens formais para te furar dum lado a outro se tentares sair. Mas tudo isto para quê? Amos tira-te daqui amanhã de manhã.

 

- Gostava de poder acreditar nisso. - Pegou no copo que lhe oferecia Bill. - Viste como as coisas começaram. O que sabes mais a este respeito?

 

- Sei somente que Strang, desde que saímos de Inglaterra, procura uma ocasião para te tramar.

 

- De certo modo, esta oportunidade até foi bem-vinda.

 

- E se tu desejasses também as boas-vindas ao meu champanhe?

 

Tocaram os copos, numa saúde.

 

- Porque bebemos? - perguntou Bill. - Abaixo o cirurgião-chefe!

 

- Strang que vá para o diabo! Este champanhe é demasiado bom para ele, nem mesmo para o amaldiçoar. Digamos antes: La France ne mourra jamais1.

 

- Jamais de la vie2 - confirmou Bill, com entusiasmo, en-

 

1 e 2 Em francês no original.

 

chendo um segundo copo. - Deixa-me cheirar uma ou duas rolhas e verás como começo a falar francês.

 

Depois pôs-se a percorrer o quarto em grandes passadas, de olhar torvo e ameaçador.

 

- Quem enviou a Polícia Militar? Foi Amos?

 

- Strang tem autoridade suficiente para forçar a isso o velho.

- Rick teve um sorriso triste. - Já várias vezes me ameaçara com a detenção quando lhe dizia o que pensava. Mas, não sei porquê, nunca acreditei que falasse a sério.

 

- O que se segue agora?

 

- Naturalmente, Strang apresenta a queixa no Quartel-General.

 

- Talvez mude de opinião quando vir o braço de Manny.

 

- Creio que não. Bem viste, desautorizei-o na frente de Granby e isso ele nunca me perdoará.

 

- E admitindo que ele siga para a frente com a queixa?

 

- Então, naturalmente serei julgado, a não ser que ele se contente com qualquer outro procedimento disciplinar. Por exemplo, demissão imediata, perda de comando. Ou, melhor ainda, transferência para outra unidade. - Interrompeu-se e bebeu a segunda taça de champanhe. - E que dizes se esquecermos agora tudo isso para falarmos noutra coisa?

 

Bill respondeu sombriamente:

 

- Esse velho chibo que faça a queixa, e depois verá! Parto-lhe a cara, tão certo como dois e dois serem quatro, e então serei julgado contigo em Conselho de Guerra. E Hal Davis e todos os outros fazem o mesmo. - Aproximou-se da sacada com ar lúgubre e avistou, lá em baixo, a cidade de Argel, branca como leite à luz do crepúsculo. - Dá-me vontade de sair e de fazer circular uma petição imediatamente

 

- Não faças nada, meu velho. Isto não é uma guerra de petições. Cumpre o teu dever e cala o bico. Eu abri o meu, agora sofro-lhe as consequências. Enche-me outro copo. Como remédio, isto é maravilhoso!

 

- Está bem, mas tenho de fazer alguma coisa.

 

- Já fizeste tudo o que podias ter feito, ajudando-me a salvar o braço de Manny. Isso era o principal. Agora auxiliar-me-ás melhor se te mantiveres fora da questão e ficares muito quietinho.

 

- Sim, e supõe que ele te separa de Carolyn Rycroft? Podes aceitar isso?

 

Rick ergueu para ele bruscamente os olhos:

 

- Que significa essa alusão a Carolyn?

 

- Ela ama-te. Já o sabias?

 

- Quem to disse?

 

- Gina Cole. E Gina é uma autoridade no assunto...

 

Rick olhou para o fundo do copo. O champanhe começava a subir-lhe à cabeça, a cantar-lhe aos ouvidos. Sentiu-se subitamente temerário e pateticamente ansioso de fazer confidências a alguém. E, no entanto, não podia revelar a Bill Coffin, nem a ninguém, o seu segredo da noite do black-out. Por isso disse apenas:

 

- Talvez o amor seja recíproco. Mas parece-me que não desejo falar no assunto. Ou será demasiada indelicadeza visto que me pagas o jantar?

 

Bill puxou uma cadeira, colocou-a em frente da mesa e arguiu com o seu melhor sorriso:

 

- Senta-te, meu velho. Daria tudo por possuir o teu autodomínio.

 

- Com as mulheres ou com o Conselho de Guerra? Se um dia a coisa te tocar pela porta, depois verás.

 

E dizendo isto, pegou no garfo. O jantar foi tão esplêndido como o próprio hotel. Às entradas, sucederam umas empadas divinas, acompanhadas dum Chablis que fazia lembrar Beaune, meio adormecida ao sol, entre vinhedos. Seguiu-se um pato corado, acompanhado de Chambertin. A apoteose foi um soberbo creme de chocolate e Chateau d’Yquem em grandes copos de cristal filigranado.

 

- Em Gibraltar, chamei à nossa aventura uma viagem turística da Agência Cook - disse Bill. - E ainda não mudei de opinião.

 

- Sim? E como surgiu nessa digressão a subdural desta tarde?

 

- Oh, por favor, não me lembres que sou cirurgião! Esta noite estou decidido a beber os melhores vinhos do mundo e a acreditar que tenho vinte anos. Queres tomar o café na sacada?

 

Lá em baixo, ao nível do mar, Argel dir-se-ia uma mancha de mistério iluminada pela ténue claridade das estrelas. Como acreditar que um exército atravessara nesse mesmo dia aquelas ruas e que no porto havia um verdadeiro enxame de navios invasores? Nessa noite, a cidade reencontrara a sua paz secular. Quando o criado servia o conhaque, chegou até eles o gemido duma flauta de bazar, talvez a única coisa que faltava ainda no ambiente.

 

- Isto agora está melhor? - perguntou Bill.

 

- Já estava muito bem antes.

 

A música, lá em baixo, abandonava o tom brando e transformava-se em agudo frenesim. Bill foi até à janela num esforço vão para localizar a flauta.

 

- Isto é lá fora ou faz também parte do ambiente do hotel? perguntou.

 

- Porque não sais e não vais ver? - redarguiu Rick.

 

- E deixo-te aqui sozinho, a matutar, nesta gaiola doirada?

 

- Bem sabes que não sou do género de perder tempo a matutar. Além disso, estou a pé desde as duas horas da manhã. Com Strang ou sem Strang, tenho vontade de dormir... E sei que estás ansioso por contemplar pela primeira vez uma Ouled-Nail.

 

O major principiou a andar para trás e para diante, no quarto invadido pelo crepúsculo, hesitante, indeciso.

 

- Pois bem, já que falaste nisso, lembro-me que de facto combinei com Hal Davis passar a noite em qualquer parte.

 

Rick levantou-se, bocejando voluptuosamente:

 

- Então vai! Mas toma cuidado, não queiras juntar-te a mim amanhã por trás das grades. Essas damas são intransigentes a respeito dos seus véus.

 

Somente depois de Bill, embora relutante, ter decidido ir-se embora, Rick reconheceu que na realidade estava bastante cansado. Havia um telefone à cabeceira da cama. Hesitou ainda durante uns segundos: devia ou não chamar Carolyn? Repeliu por fim a tentação. Também ela tivera um dia esgotante de trabalho. Bill podia dar-lhe a notícia no dia seguinte. Escusava naquela altura de a inquietar.

 

Despiu rapidamente o uniforme e correu para o santuário de mármore branco destinado a casa de banho. Chafurdou na água como um búfalo sonolento, perguntando a si próprio como organizaria o futuro se Strang conseguisse quebrar-lhe as pernas. Mas o seu espírito, tonto de fadiga, recusou-se a encontrar qualquer resposta.

 

Em pijama e roupão de banho e sem objectivo determinado, encaminhou-se para a janela. Uma música de dança afogava agora os lamentos da flauta. Viu alguns pares rodopiarem no terraço por baixo da sacada e uma vez mais o oprimiu estranhamente todo esse luxo, como um peso que o sufocasse. De certa maneira, aquele hotel, demasiado perfeito, era um símbolo de tudo quanto eles combatiam, representava uma era prodigiosamente insensata, que dera origem a Hitler e a toda a sua tribo... Não é que o

95.° Hospital de Campanha não merecesse gozar um pouco as delícias da vida. Mas desgostava-o ver os seus camaradas a dançar no meio daquela multidão internacional de duas caras, lado a lado com os homens de Vichy, que duma noite para a outra tinham mudado a cor da sua bandeira.

 

Voltou para dentro do quarto e estendeu-se mesmo em cima da colcha duma das fofas camas, tentando uma vez mais pensar no futuro. Carolyn esperá-lo-ia se fosse transferido? Não tinha a esse respeito a menor dúvida. Voltaria à sua clientela se fosse afastado do Exército? Por Deus, nem pensar nisso! Alistar-se-ia de novo, mas desta vez na infantaria. Ganharia a guerra, senão por causa de Carolyn, por si próprio. Construiria para ela a casa em Connecticut com móveis antigos e valiosos candelabros... Sim, construí-la-ia em qualquer altura... provavelmente quando terminasse a guerra...

 

E assim adormeceu, a sonhar que ela descia durante a noite por uma escada e vinha à sua janela banhada pelo luar. O seu sorriso era tranquilo. E nos seus braços encontrava finalmente a felicidade há tanto tempo procurada...

 

A primeira conferência na presença do pessoal do hospital realizou-se no dia seguinte à tarde no refeitório do Liceu. Bill Coffin deixara o serviço uma hora antes, sentindo ainda nas têmporas um latejar demoníaco que lhe recordava as loucuras da noite anterior. Parou no átrio para consultar o boletim aí afixado e o seu semblante logo se ensombreceu. Entre os relatórios cuja discussão se anunciava, figurava um de Randall Strang sobre o tratamento das queimaduras.

 

- Que espécie de tramóia é esta?

 

- Costuma pensar em voz alta, major?

 

Voltou-se e viu Linda Adams, bem vestida, fresca, tranquila. Esboçou um sorriso:

 

- Tenho a impressão de que descansou mais do que eu ontem à noite.

 

- Acredite ou não, consegui transmitir cinco mil palavras e preparar uma emissão radiofónica.

 

- Não me vai dizer que podemos utilizar tão depressa a Emissora de Argel?

 

- O Serviço de Informações concedeu-me as ondas curtas para as nove horas desta noite. - E olhando outra vez para a pauta onde estava afixado o boletim: - Não está ansioso por apreciar os dotes oratórios do major Strang? Bill permitiu-se então falar-lhe a sério:

 

- Não sabe que Strang declarou guerra de morte a Rick?

 

- Pois sei. E Rick inquieta-se muito com isso?

 

- Strang move todas as influências para o deitar a perder. Se esse relatório sobre as queimaduras for desfavorável, usá-lo-á como argumento decisivo. Bem, mas se for favorável, verá Randall Strang atribuir a si próprio a maior parte do mérito.

 

Linda pousou-lhe a mão no braço:

 

- Prometa-me uma coisa, major Coffin. Sei que é amigo do capitão Winter. Sei que está preocupado com essa ameaça do Conselho de Guerra...

 

- Quem falou em Conselho de Guerra?

 

Linda sorriu, deu-lhe o braço e entraram juntos na improvisada sala de conferências.

 

- Deve surpreendê-lo a forma como consigo obter as minhas informações. Mas prometa sentar-se ao meu lado e não perder a cabeça. Se tiver vontade de gritar, não o faça; deitaria tudo a perder... - Bill ainda abriu a boca para falar, mas ela impôs-lhe silêncio, segredando-lhe: - Chegou esta manhã um relatório de Gibraltar. Felizmente vi-o antes de Strang. Não me peça que lhe explique tudo agora. Aliás, já falta pouco tempo para poder compreender melhor todas as coisas.

 

E dizendo isto levou-o para as cadeiras vagas da primeira fila. Bill declarou em tom de queixa:

 

- Passei uma noite extenuante, Miss Adams. Para lhe dizer a verdade brutal, passei-a em libações de que o próprio Nero se envergonharia. Não venha agora enzonar a minha pobre cabeça com mistérios.

 

Teve de engolir o resto do discurso, pois o coronel Amos Blaine, o mais graduado dos oficiais presentes, levantou-se e declarou aberta a sessão.

 

Strang era o terceiro orador. Apesar da sua dor de cabeça, Bill depressa se apercebeu do nervosismo do chefe que, sentado a pouca distância, folheava e tornava a folhear os seus papéis. Nunca lhe notara a menor perturbação durante as conferências anteriores. Seria por causa da presença dos novos oficiais? Bill voltou-se na cadeira e viu em sua volta muitos rostos desconhecidos. Eram os rapazes dos serviços de evacuação, há pouco chegados no transporte auxiliar. Lá estava o velho Morty Quill que comandava, na Inglaterra, o hospital da base...

 

A porta abriu-se mais uma vez e o coronel Granby entrou silenciosamente e sentou-se ao fundo da sala. Bill inclinou-se um pouco para segredar a Linda:

 

- O que significa isto tudo? Não se esqueça que desde que desembarcámos nunca mais tive contactos com o telegrafo oculto.

 

Muito próximo do seu ouvido, os lábios de Linda sussurraram uma resposta que aumentou ainda mais a sua perplexidade:

 

- Não pode deixar-me montar à vontade a minha própria peça?

 

Mas os auditores da segunda fila começaram a pedir silêncio. Randall Strang já estava de pé, pegando nos papéis com a mão sapuda. O olhar que dirigiu a ambos era um modelo no seu género: glacial e autoritário, olhar frio dum mestre-escola a reclamar a atenção dos alunos.

 

O chefe começou solenemente:

 

- Durante um recente ataque aéreo ao nosso transporte tivemos ocasião de tratar numerosos casos de queimaduras. Alguns membros da nossa unidade devem lembrar-se de que foi então adoptado, numa parte desses feridos, um tratamento pouco vulgarizado ainda. Devo acrescentar que só consenti no emprego do novo método na esperança de que a ciência pudesse ao menos tirar algum benefício desta calamidade.

 

Bill ia abrir a boca para protestar, mas encontrou a tempo os olhos de Linda. Limitou-se por isso a cruzar os braços e a fitar o chefe ameaçadoramente. Strang continuou:

 

- Três conclusões principais tirámos da experiência. Em primeiro lugar, é essencial que quando casos deste género se apresentem em grande número, o mesmo oficial de admissão os examine a todos. Uma avaliação perfeitamente exacta é da maior importância quando o tempo é factor decisivo. Não se pode desperdiçá-lo sem proveito com um paciente já moribundo.

 

Strang percorreu os seus apontamentos. Bill Coffin empertigou-se de novo na cadeira ao ver o chefe pousar por momentos os olhos em Linda, antes de prosseguir. O seu espírito estalava de curiosidade, formulando a si próprio perguntas para as quais não encontrava resposta. Mas tinha de se calar e escutar, não havia outro remédio.

 

- A nossa segunda conclusão - prosseguiu Strang – diz respeito à morfina. Dissolvemos os quartos de grão numa seringa de cem centímetros cúbicos e isso permitiu-nos dar cinquenta injecções consecutivas, sem interrupção.

 

Bill Coffin soltou um grunhido reprovador, e o chefe fez uma breve pausa, lançando-lhe um olhar frio.

 

- A terceira conclusão, a mais importante, diz respeito ao tratamento propriamente dito.

 

Aqui Strang falou detidamente do método do desbridamento em oposição ao emprego de sulfamida, gaze vaselinada e ligaduras Mesmo quando o via tergiversar, Bill era forçado a admitir que o chefe descrevia com clareza os dois tratamentos.

 

- Todos os doentes receberam precisamente os mesmos cuidados para combater o estado de choque. Tiveram as mesmas quantidades de plasma, as mesmas injecções calmantes, quando necessário, e desfrutaram de iguais condições de repouso. A única diferença consistiu no tratamento das zonas queimadas. Os resultados parecem-me suficientemente surpreendentes para merecerem consideração.

 

A sua voz era duma sinceridade absolutamente convincente quando descreveu a evolução da cura dos vários pacientes de cada um dos grupos. Não havia possibilidade de negar a diferença dos resultados obtidos. Quando completou o seu último quadro clínico, Strang atirou os apontamentos para cima da mesa e sentou-se.

 

- O assunto apresentado é posto à discussão.

 

Vários oficiais se pronunciaram, uns a favor, outros contra. Era evidente que a reputação de Strang dava peso às suas palavras. Ao mesmo tempo, a sua sanção tácita a um método radicalmente novo com dificuldade podia aceitar-se sem esclarecimentos. Mas a mão de Linda mantinha-se firme no braço de Bill e reteve-o quando ele quis levantar-se para se dirigir à presidência. Em vez disso, foi ela que se ergueu e levantou o braço, a reclamar atenção. Bill ficou mais calmo ao ver Strang apertar com as duas mãos os rebordos da mesa. O familiar inchaço já entumecia o pescoço do chefe por cima da gola do uniforme. Linda falou numa voz pausada:

 

- Uma pessoa que não pertence ao Exército pode acrescentar algumas palavras, coronel?

 

- Sem dúvida, Miss Adams.

 

- Queria simplesmente dizer que tive o prazer de observar esse novo tratamento, aplicado pelo capitão Winter, que me parece não estar hoje aqui presente. - Relanceou o olhar pela sala e sorriu ao murmúrio de aprovação dalguns membros da unidade.

- Como os senhores sabem - prosseguiu - o capitão Winter trabalhou nos Estados Unidos, em Lakeview, quando este tratamento estava ainda na fase experimental. Creio que o major Strang foi favorecido pelo facto de possuir no transporte um oficial de admissão do seu valor quando foi necessário, devido a um ataque aéreo, tratar numerosos casos de queimaduras. E creio também que o major Strang foi bastante generoso ao reconhecer ao capitão Winter a sua importante participação no triunfo da experiência em causa, quando me concedeu uma entrevista sobre o assunto que acabo de transmitir para o meu jornal, em Nova Iorque. - Ao dizer isto, fez um gesto significativo com as duas mãos. - Posso pedir os vossos aplausos para estes dois oficiais?

 

Sentou-se no meio de enorme ruído de palmas entusiásticas e sorriu de novo a Bill Coffin.

 

- Começa a compreender agora?

 

Mas Bill não podia afastar os olhos de Randall Strang. Sabia bem que o rosto do chefe era um enigma que ele nunca conseguira decifrar. O inchaço acima do colarinho desaparecera; o sorriso fixo que lhe distendia os lábios era um modelo no género. Mesmo para salvar a própria vida, Bill não seria capaz de dizer ao certo se o major estava prestes a rir ou a chorar. Renunciou felizmente a pensar mais no assunto quando Walters se ergueu para apresentar o seu relatório sobre ortopedia...

 

Lá fora, uma vez terminada a reunião, Linda escapuliu-se para a alameda dos automóveis, e dirigia-se já para um táxi que a esperava quando Bill a obrigou a parar junto do portão e a conduziu, sem-cerimónias, para um pavilhão que ladeava o caminho.

 

- Supunha que a deixava ir assim embora?

 

- Mas, major, estão à espera do meu artigo na emissora...

 

- E eu estou à espera que me explique a sua estratégia. Como diabo   conseguiu   fazer   recuar   o   grande   Randall   Strang?

 

- Deu-me uma entrevista exclusiva esta manhã - respondeu Linda com desconcertante doçura, que não foi contudo suficiente para desarmar Bill, o qual insistiu:

 

- Isso já eu sei.

 

- Prometi-lhe uma larga difusão no país, com duas condições: a primeira é que devia desistir de qualquer acusação contra Rick; a segunda é que devia partilhar com ele todas as honras da experiência realizada.

 

- Não me quer convencer que ele cedeu assim tão facilmente?

 

- Ouviu-o falar agora mesmo. O que concluiu?

 

Bill agarrou-lhe ambos os cotovelos e beijou-a vigorosamente na boca.

 

- Quer dizer então que Rick está livre de sarilhos? - Depois, vendo-a corar, recuou um passo: - Desculpe-me por ser tão impulsivo. Mas bem sabe que Rick é também meu amigo.

 

Linda encarou-o e respondeu-lhe numa voz tensa:

 

- Então deve dizer-lhe que Strang mudou de parecer por sua livre vontade. Diga-lhe que Granby e Elaine conseguiram acalmar-lhe a ira. Diga-lhe tudo o que quiser, menos a verdade. Se ele vier a saber que o auxiliei, arranco-lhe o coração.

 

- Mas porquê? Linda baixou os olhos:

 

- Tenho de responder também a essa pergunta?

 

Bill exteriorizou a sua surpresa com um prolongado assobio:

 

- As coisas sucedem hoje com demasiada rapidez para a inteligência dum soldado... Não se importa que lhe deseje felicidades?

 

- Não é necessário. Já estou resignada com a minha sorte, qualquer que seja.

 

- Porque há-de estar resignada? - disse Bill prudentemente.

- Posso fazer-lhe mais uma pergunta?

 

- Experimente. Verei depois se devo responder-lhe ou não.

 

- Todos nós sabemos que Strang corre atrás da publicidade, como o cão atrás da lebre. Mas sabemos também que o seu rancor é vigoroso e, confesso-lhe, custa-me a acreditar que só por causa dum artigo na primeira página, mesmo com um título muito negro, ele tenha encolhido as garras.

 

Linda recuperara já todo o domínio e numa voz natural explicou:

 

- E de facto não as encolheu logo. Mas rendeu-se depressa quando o ameacei escrever um artigo sensacional. Nada menos do que a descrição do seu mergulho para debaixo dum camião, quando um avião sobrevoou a praia. E ainda a forma como ele teria sacrificado estupidamente o braço de Manny se Rick não aparecesse a tempo de o salvar. É claro, nenhuma destas informações passaria na censura. Mas isso não lhe disse eu...

 

Linda voltou o rosto. Bill estendeu instintivamente a mão para a amparar, pois viu-lhe os olhos marejados de lágrimas, apesar do à-vontade com que falava.

 

- Se puder fazer alguma coisa... bem... para impelir Rick na sua direcção...

 

- Não prossiga, major! Só é pena que não possamos falar mais vezes verdade durante a guerra. Desculpe-me... por me ter excedido...

 

E dizendo isto saiu apressadamente do pavilhão, sem levantar mais os olhos para Bill. E o major ficou a fitá-la, de boca aberta, até que a porta do táxi se fechou e a viu partir.

 

Carolyn Rycroft, sentada à secretária e rodeada de fichas, preparava as indicações para o boletim da meia-noite. Quando Bárbara Beathi a viesse render, preencheria os espaços em branco e passaria tudo depois para o livro dos doentes. Podia deixar toda aquela tarefa para Bárbara, que dela estava encarregada, mas tinha a impressão de que o trabalho a ajudava a esperar com mais calma o assobio de Rick na alameda exterior. Nunca antes compreendera o conforto e a segurança que podem desprender-se do familiar modelo 55-a, espécie de âncora americana num mundo exótico.

 

Não levantou sequer a cabeça quando ouviu, no átrio, Rick falar em francês à empregada de recepção. Há muitas horas que só a rodeavam conversas em francês e ao ouvi-lo empregar a mesma língua não distinguiu a sua voz das demais. No entanto, há muito tempo que o esperava, ansiosa, com os ouvidos do amor...

 

- Porque não estás já preparada para sair?

 

Rick estava de pé na sua frente, uma fingida reprovação no olhar. Em grande uniforme, parecia muito mais alto do que o Rick de que ela se recordava; um incongruente embrulho de papel debaixo do braço destoava um pouco daquela elegância militar.

 

Já esquecida do modelo 55-a, Carolyn abandonou a secretária e voou para os braços do bem-amado.

 

- Há quanto tempo não te via, querido!

 

- Passaram-se trinta horas completas desde que me desejaste boa sorte à porta da sala de operações número três.

 

Manteve-a um momento afastada de si, para a ver bem, antes de a abraçar e beijar com tal efusão que Carolyn, num sorridente protesto, lhe indicou a porta aberta.

 

- Deixa a empregada da recepção pensar o que quiser. Como é francesa, naturalmente pensará o pior. Mas que necessidade temos nós de lhe dizer que estamos noivos?

 

Carolyn conseguiu por fim furtar-se ao amplexo e foi fechar a porta. Depois, voltou, submissa, para ser de novo abraçada e beijada.

 

- Conta-me tudo, querido. Porque foste preso? Porque te puseram em liberdade?

 

- Para a primeira pergunta, encontras facilmente resposta. Quanto à segunda, nem o próprio Amos sabe responder. Parece que Strang rasgou a queixa no último momento. Mas porquê? Mistério impenetrável... A não ser que tenha ido ver esta manhã o braço de Manny...

 

- Mas falaste com o coronel? Rick esboçou um leve sorriso:

 

- Falou-me como um pai. Começou por me dizer que escapei por um cabelo ao Conselho de Guerra, e deu-me alguns conselhos sobre a forma como me devo comportar com os superiores. Claro que Amos tem cem por cento de razão. No entanto, em iguais circunstâncias, voltaria a proceder da mesma maneira se fosse necessário salvar um único membro dum tipo como Manny. Cada um de nós sabia que o outro tinha razão e por aí ficámos. Winter atravessou a minúscula dependência e abriu a porta:

- Acabemos com as efusões nesta cela anti-séptica, querida. Temos um encontro marcado.   A África espera-te para te envolver num manto bordado de estrelas...

 

Voltaram-se ao mesmo tempo quando ouviram Bárbara Beathie tossir discretamente à entrada. Depois avançou num passo ligeiro e foi pôr a secretária em ordem. Com os olhos no modelo

55-a, proferiu:

 

- Tem toda a razão, capitão. Nada de tristezas esta noite. Apenas alegria, pois deve ser a sua última oportunidade durante algum tempo.

 

Rick ficou de repente sério:

 

- Não me digam que também receberam ordem de marcha.

 

- Esta tarde, às três horas. Todas as enfermeiras a postos e devidamente uniformizadas às quatro horas da manhã. Se isto não significa um passeio turístico no deserto...

 

Rick permaneceu meditativo. Tencionava revelar aquela notícia a Carolyn durante a noite, quando julgasse oportuno. Amos dissera-lhe, confidencialmente, que o 95.° Hospital de Campanha recebera ordem para se juntar à coluna avançada que partira em direcção à Tunísia antes mesmo da conquista de Argel. Corriam até rumores de que os tanques tinham atravessado já a fronteira. Dizia-se também que uma coluna móvel atingira Bizerta, auxiliada por tropas pára-quedistas... Dizia-se... Em tudo quanto se dizia era a guerra tal como a sonhavam os civis. E Rick sentiu-se, nesse ponto, ao mesmo tempo civil e militar, até ao momento em que se lembrou que Carolyn participaria na acção, ao seu lado. Era outro pensamento que decidira afastar até ao dia seguinte. Mas, a julgar pela sua expressão naquele instante, Carolyn acolhia tão bem como ele tal perspectiva.

 

Falou depressa para afastar do espírito tais pensamentos:

 

- Pense o que quiser, tenente Beathie, mas o facto é que Carolyn merece bem uma pândega esta noite.

 

- Ave atque vale, Caesar! E é tudo... É assim que entende, não é verdade?

 

Bárbara Beathie frequentara a universidade antes de se alistar como enfermeira. Às vezes a sua erudição irritava um pouco Rick. Dizia de si para si que as mulheres escolhiam sempre os momentos menos próprios para mostrarem a sua cultura.

 

- Pois é, já que tanto insiste - suspirou, arrastando Carolyn para a porta.

 

- Gostaria que viesse também, Bárbara - murmurou Carolyn.

 

- Mas irei! - volveu a enfermeira, já sentada à secretária. - Vou à meia-noite, com o capitão Davis. Há reunião geral no Café Inglês. Talvez ainda não saiba, capitão Winter, mas o senhor é o convidado de honra.

 

- O que disse?...

 

- O major Coffin teve a ideia de festejar a fortuna de o vermos fora dos ferrolhos - explicou Bárbara sempre calma. - Antes e depois façam o que quiserem, mas à meia-noite não faltem. Se não aparecesse, o major ficaria desgostoso.

 

No corredor, passada a secretária de recepção, reinava uma misericordiosa obscuridade. Rick obrigou Carolyn a dar meia volta e atraiu-a a si até sentir-lhe a cabeça apoiada ao seu ombro.

 

Reteve-a assim um momento, acariciando-lhe com os lábios os cabelos loiros.

 

- Alguma coisa me diz - murmurou - que vamos deixar Bill desgostoso esta noite.

 

- Não vejo porquê! Sempre desejei conhecer o Café Inglês.

 

- Foi Bárbara quem te ensinou a lição? - observou Rick, irónico. - Mas olha que isso não te fica bem, querida.

 

- Talvez eu pressinta que é perigoso andar sozinha contigo. Especialmente em África.

 

Ele cedeu momentaneamente:

 

- És capaz de ter razão nesse ponto. Agora, por favor, vai mudar de vestido.

 

- E onde nos encontramos?

 

- À cabeceira do leito de Manny. Vês como posso também ser prático?

 

Um enfermeiro guiou-o até ao quarto de isolamento, ao fim da enfermaria, onde tinham instalado Manny após a operação. Rick assobiou, admirado, quando abriu a porta e viu o cabo de Brooklyn recostado nas almofadas, com um exemplar de Lê Rire em cima do joelho são.

 

- Olá, patrão! - exclamou alegremente o ferido. - O que diz a esta ressurreição?

 

- Então o chefe da enfermaria não sabe que fazes subir a tensão arterial com essa literatura?

 

Manny atirou a revista para o lado e indicando com o queixo o molde de gesso que lhe imobilizava o braço e o ombro:

 

- Mesmo que conhecesse a língua, que mal podia eu fazer assim?

 

Rick examinou o aparelho e manifestou a sua satisfação pela técnica do hospital. Com o braço pendente, o sangue podia irrigar os tecidos. Alguns anos antes, ter-se-ia aplicado àquele braço, com a circulação sanguínea alterada, o método da elevação, baseado na teoria de que assim se facilitava o regresso do sangue ao coração. Posteriormente, a medicina redescobriu esta simples verdade: o sangue não deve circular a uma velocidade superior ao ritmo normal, em especial quando há enfraquecimento causado por uma hemorragia. Muitos braços e pernas foram assim salvos da gangrena, sobretudo com a ajuda da injecção no simpático que Rick utilizara na véspera para prevenir os espasmos nos pequenos vasos sanguíneos.

 

Inclinando-se para Manny, obrigou-o a dobrar e estender os dedos. Tudo corria às mil maravilhas.

 

- Bem, daqui a duas semanas ficas livre disto - disse-lhe, apontando para o aparelho de gesso. - E se arranjas alguma tramóia para passar a patacos o tempo de convalescença, afianço-te que te tiro as divisas.

 

Manny voltou o rosto para o lado e a sua voz rude não conseguiu esconder toda a sua emoção:

 

- Sei bem que devia agradecer-lhe, patrão, pois salvou-me a barbatana. Mas, já me conhece, não sou forte no vocabulário.

 

Rick cortou-lhe a palavra, bem-humorado:

 

- Para que podias servir-me só com um braço?

 

O rosto perturbado de Manny descontraiu-se num sorriso:

 

- Então embarcamos juntos?

 

- Desta vez não. O velho deu-nos ordem de marcha para esta madrugada.

 

- Para leste? Contra os prussianos?

 

- Exactamente, Manny. E nesta dança não tomas parte. Pelo menos no princípio. E agora dá um pontapé na roupa da cama. Deixa-me ver a cor dessa perna.

 

Rick viu imediatamente que as suas apreensões eram infundadas. A pele estava, é certo, bastante danificada nalguns sítios, mas a articulação funcionava perfeitamente bem, e os ossos nada tinham sofrido... Uma injecção salina, um hábil afrouxamento da ligadura que a comprimira, tinham salvo também a situação nesta zona. Rick tapou-o novamente com os cobertores e deu-lhe uma forte palmada nas bochechas:

 

- Porque será que um tipo de Flatbush custa tanto a morrer? Mas Manny ficara verdadeiramente desanimado:

 

- Será a primeira fase duma campanha a que não assisto, patrão. Não gosto nada disso...

 

- Estarás presente na próxima. Em minha opinião, Hitler vai agarrar-se à Tunísia com todos os recursos de que dispõe e que são ainda bastantes, apesar de todos os editoriais publicados pelas nossas gazetas.

 

- Tanto pior, patrão! Suponha que lhe sucede alguma coisa! E eu aqui, a morder-me todo, diante do aparelho de rádio do médico...

 

Carolyn apareceu nesse instante à porta e perguntou:

 

- Não tem confiança em mim para olhar por ele, Manny?

 

O enfermo fez uma careta, de mais gentileza do que de convicção:

 

- Não é como se eu lá estivesse, tenente. Mas pode tomar a seu cargo a tarefa.

 

A jovem entrou no quarto, graciosa, admiravelmente bela no seu branco vestido de noite, os cabelos de ouro reunidos atrás num rolo. Nos olhos brilhava-lhe um fulgor de incontida felicidade. Um fulgor que Rick aprendera há muito a reconhecer nos olhos das mulheres. Outrora, teria sido para ele uma indicação preciosa, um prelúdio dos definitivos adeuses, de preferência sem lágrimas. Mas, nessa noite, abençoava esse sorriso reservado. Parecia-lhe que num universo turbilhonante, era a única coisa a que podia unir-se, a única coisa estável sobre a qual podia fundar a sua vida e o seu futuro quando findasse a louca cavalgada.

 

Depois, repeliu deliberadamente todos os projectos dum amanhã desconhecido, voltou às realidades do presente e desfez o embrulho de papel:

 

- As noites são frias, mesmo em África, Carolyn. Pensei que pudesses precisar disto...

 

Era um xaile espanhol, uma mantilha bordada a fio de ouro, e com pequenas rosas negras estampadas. Envolveu com ela os ombros nus da jovem e fê-la revoltear sobre si mesma.

 

- Virei ver-te outra vez antes de nascer o dia, Manny. Agora, o tenente e eu temos muito que dizer um ao outro e o tempo escasseia.

 

Carolyn atravessou o átrio de recepção em sucessivas piruetas, como uma colegial em férias.

 

- Oh, Rick, nunca possuí nada tão amoroso!

 

Podia ele revelar-lhe a sua estratégia naquele momento? Dizer-Ihe que comprara o xaile para a compensar da perda da capa? Não teria sido mais dramático levar-lhe nessa noite a própria capa e obrigá-la a admitir tudo quanto se passara? O sangue latejava-lhe violentamente na garganta, enquanto a seguia no escuro. Talvez pouco faltasse para ela lhe confessar voluntariamente os factos, mas doutra forma... Para pôr à prova essa esperança, tomou-a nos braços por baixo do frondoso arco de buganvíleas que recobria o portão do hospital. Nada encontrou que censurar no seu beijo casto. Foi um beijo longo e ardente, e os lábios da jovem estavam ternamente entreabertos. Seria um simples agradecimento pela oferenda, como boa noiva que se prezava ser?

 

- Rick, por favor... Vamos para o Café Inglês... Já estamos atrasados...

 

- E se eu... se te desejasse para mim só, durante todo este tempo?

 

- E se eu... se eu tivesse medo de ser desejada?

 

- Ainda tudo ou nada?

 

Apertou-a novamente contra si, encontrando a resposta na maneira como os lábios dela procuravam os seus no escuro.

 

- Lembro-me que concluímos um acordo, querido.

 

- Também me lembro - murmurou-lhe Rick ao ouvido. Mas uma noite em Argel é mau sítio para se respeitarem acordos.

 

- Parece-me que tens razão, Rick - respondeu a jovem, respirando agitadamente nos seus braços. Depois, de repente, com esse domínio de si própria de que só as mulheres conhecem o segredo, pôs-se a andar calmamente, transpôs o portão e abriu a porta do táxi parado junto do passeio. - Café Anglais, s’U vous plait1 - disse, fazendo uso do seu melhor francês.

 

- Mais out, monsieur et madame2.

 

Rick instalou-se ao seu lado, sem proferir uma única palavra. E quando o táxi descia a íngreme ladeira que conduz ao centro da cidade, procurou-lhe a mão no escuro e beijou-lhe a ponta dos dedos.

 

- Venceste este assalto, querida. Mas o combate não terminou. E eu continuarei a atacar.

 

Quando se ofuscavam as luzes suspensas do tecto, até parecerem apenas carvões em brasa, o Café Inglês podia passar por uma tenda no deserto. A espécie de pálio que servia de toldo às mesas muito juntas umas às outras, já estava negro do fumo do tabaco de toda uma geração. As colgaduras da entrada davam para uma rua fétida, consagrada a antros semelhantes e também a essas maisons spéciales1” onde todas as excitações da carne se satisfazem e

 

1 Em francês no original.

 

têm um preço. No entanto, coisa curiosa, lá dentro tinha-se a ilusão de se estar sentado ao ar livre. Mesmo o estrado de dança, num nível um pouco superior, não destoava do ambiente. Quando a orquestra indígena rompia com os seus gemidos sibilantes, podia imaginar-se que iriam surgir, dum momento para o outro, dromedários e palmeiras no deserto árido e abrasador.

 

Rick sentiu Carolyn estremecer nos seus braços ao afundarem-se os dois no sofá encostado à parede. Estavam ali há uma hora, naquela reunião ruidosa, sem participarem do espírito da festa, apesar de todo o champanhe local que Bill Coffin prodigamente lhes servia. Rick sentia crescer a tensão no espírito de Carolyn. Podia dar-se ao luxo de esperar um pouco mais e deixar a temperatura subir. No fim de contas, fora ela que quisera ir ao Café Inglês.

 

O resto da unidade não se mostrava reticente. Bárbara Beathie rodopiara como um inspirado dervixe nos braços do seu par, enquanto durara a música; agora os dois emborcavam a quarta garrafa. Ao canto, num sofá, Terry Adams aproveitava a obscuridade para enlaçar Gina Cole num fogoso amplexo. Durante algum tempo, Rick observou o rapaz: Terry bebera bastante naquela noite e misturara o brande ao champanhe com temerária prodigalidade. Bem, ele merecia todos esses antídotos. E teria no deserto tempo suficiente para curar a bebedeira.

 

Os projectores concentraram-se no estrado de dança. A sombra tragou os sofás encostados à parede. E os pares aproveitaram a circunstância para se aproximarem mais, para se abraçarem com maior fervor, para se beijarem ardentemente. Rick despertou da sua observação atenta quando Carolyn lhe ofereceu os lábios para um beijo. Também nela a magia principiava a circular-lhe nas veias, antes mesmo de o espectáculo começar. Aquele era na realidade o domínio das Ouled-Nail...

 

- Sentes-te feliz? - perguntou-lhe Rick em voz baixa.

 

- Faço por isso, querido... Mas tenho tanto medo... Ele acariciou-a amavelmente no escuro.

 

- Não de mim?... depois de tantos dias?...

 

- De mim talvez. - E roçando-lhe o rosto com os lábios, corrigiu: - Não é de nós, eu sei... É do lugar... Há aqui positivamente uma atmosfera...

 

- De cortar à faca - concordou Rick. - O que não quer dizer um ar irrespirável...

 

- É dissoluto, primitivo, inconveniente... - Aconchegou-se mais a ele, como se saboreasse o próprio medo. - Isto aterroriza-me . E no entanto não quero ir-me embora sem saber do que tenho medo.

 

- Lembra-te que fiz tudo quanto pude para te convencer a beber champanhe lá fora... ao ar livre...

 

Uma algazarra de címbalos abafou-lhe o murmúrio. Carolyn agarrou a mão de Rick quando o foco vermelho dum projector percorreu todo o estrado de dança. Descontraiu-se de novo ao ver um nativo, pequeno e magro, os rins cingidos por uma espécie de tanga, começar a fazer cabriolas. Um homem esguio e moreno, flexível como um vime, sacudia o corpo num ritmo bárbaro e demoníaco.

 

- O dervixe contorcionista - informou Rick. - Não te assustes; isto é apenas o começo.

 

O pretenso homem santo lançara-se já numa exibição que só por si justificaria um diagnóstico de epilepsia. Quanto mais depressa soavam os tambores, mais complicadas eram as suas piruetas e contorções. Por fim, atingido o ponto culminante do seu espasmo, arrojou-se ao solo, aparentemente em estado de coma. Outro homem santo avançou, à luz do projector, e ajudou-o a sentar-se. Os olhos do dervixe estavam vítreos. Com grande ênfase, o companheiro brandiu um punhado de alfinetes e furou-lhe as faces e os lábios. O dervixe nem sequer estremeceu. Vários espectadores subiram ao estrado para se certificarem da veracidade daquele «trabalho», mas nenhuma dúvida era possível: os alfinetes eram verdadeiros e tinham realmente traspassado a pele e a carne. Por fim, o homem santo foi dali retirado, sempre em transe e movendo-se como um autómato.

 

Sucedeu-lhe um encantador de serpentes. Ao som da sua flauta, uma enorme cobra ergueu-se duma cesta, balouçando a pouca distância do rosto do dono a cabeça ameaçadora. Carolyn seguia a cena com uma atenção ofegante. Na sala, todos os espectadores estavam inclinados para a frente, atentos e fascinados como ela. Rick sorriu e recostou-se no divã para acender um cigarro. Assistira já àquele espectáculo numa dúzia de bazares e conhecia-a de cor até ao último gesto ritual. Porque havia de estragar o prazer dos seus amigos explicando-lhes que os dentes venenosos do ofídio há muito tinham sido arrancados? E que, surda como todas as serpentes, aquela seguia unicamente o balancear da flauta, não o ritmo da música?

 

O encantador bateu com a tampa do cesto, fechando nele a cobra enrolada e abandonou o estrado a correr, antes que se extinguissem os aplausos. Carolyn estendeu a Rick a mão húmida.

 

- Creio que posso suportar agora seja o que for- murmurou, enquanto os rufos dos tambores atingiam o frenesim.

 

- Espera - respondeu Rick. - Aí tens o que viemos aqui ver.

 

- A Ouled-Nail?

 

- A única coisa digna de ser vista.

 

Uma jovem ondulante saiu do escuro para a luz do estrado. No mesmo instante, o rufo dos tambores esmoreceu até não ser mais do que uma espécie de murmúrio sensual.

 

Rick olhou-a atentamente e meneou a cabeça, num gesto de aprovação, ao reconhecer a artista.

 

- Repara nas suas ancas, elas são o capital do seu negócio. A dançarina estava descalça. Em redor dos finos tornozelos, uma dúzia de braceletes entrechocavam-se em sonidos discordantes. Os homens murmuraram o seu desapontamento ao verem-na generosamente envolvida em véus de várias cores, encoberta até aos olhos.

 

A vibração dos tambores tornou-se mais profunda, embora o ritmo continuasse lento. De pé, no meio do estrado, a rapariga começou a mover-se vagarosamente; ergueu os braços, em ânfora, acima da cabeça, os dedos flácidos primeiro, depois torcendo-os, dobrando-os, endireitando-os, em preguiçosos movimentos de serpente. Gradualmente, a ondulação percorre-lhe os braços, atinge-lhe os ombros. O rufo dos tambores aumenta e morre pouco depois numa lenta e insistente vibração. Nesse instante, o movimento ondulante comunica-se aos seios opulentos da bailarina que não tardam a mostrar-se erectos sob a protecção dos véus, como animados de força oculta.

 

- Macacos me mordam - comentou Bárbara Beathie - se isto não é a nossa velha dança burlesca.

 

Bárbara não tinha razão: aquilo era muito mais. A dança burlesca limitava-se a ser vigorosa e afrodisíaca, enquanto aquele deslizar sinuoso possuía toda a perversa subtileza da arte. Cada músculo animava o músculo seguinte, e todos eles tinham o seu movimento próprio, contribuindo para a harmonia do conjunto. Agora o dorso e as ancas moviam-se em uníssono, lentamente, graciosamente, apenas a sugestão do próximo abandono. Em menos dum minuto, todo o corpo entrou em vibração, instrumento tão perfeitamente afinado que correspondia à mínima indicação dos tambores.

 

Durante algum tempo dançou assim. Depois, a música adquiriu maior intensidade e o ritmo dos movimentos acelerou-se também. O próprio Rick não podia dizer quando a arte se fundiu na excitação sensual, mas já a Ouled-Nail, ancas em movimento, seios selvajamente ondulantes, pés ainda bem firmes no chão, se lançava na dança do ventre, a imitar um acto conhecido e praticado no mundo inteiro. E à medida que mais e mais a ele se abandonava, ia desfazendo-se dos véus que a cobriam.

 

A música insistia, doidamente, numa única nota... A flauta lançava um apelo estridente ao prazer. Uma tensão, quase palpável, apoderava-se de toda a sala. De respiração ofegante, muito atentos ao círculo de luz, os homens e mulheres da unidade médica dir-se-iam absolutamente presos ao encanto maléfico daquele instante.

 

A dança aumentava cada vez mais de intensidade. A Ouled-Nail, pondo de lado toda a pretensão de graça, concentrava-se no ritmo, um ritmo tão velho como o mundo, tão velho como o tempo. O estrado estava agora juncado de véus. A luz fulgurava na pele trigueira percorrida por estremecimentos, arrancava chispas à jóia incrustada no umbigo da bailarina, acariciava-lhe a renda prateada, presa a um fecho de brilhantes nos rins. Quando caiu o último véu, os seios nus vibraram, túrgidos pela excitação da música, os mamilos pintados de vermelho.

 

Com as palmas das mãos, a bailarina bateu nas coxas palpitantes e a renda prateada desprendeu-se, o minúsculo tecido dourado que lhe cobria o sexo deslizou para o estrado... Durante um instante extático, a Ouled-Nail permaneceu de pé, vibrante sob o incitamento dos tambores, nua, qual sombria Lilith, e, como ela, consciente do seu poder. Depois, deixou-se cair, a cabeça inclinada para os braços dobrados. Os ajudantes acorreram logo para a cobrir com os véus.

 

Rick regressou ao café cheio de fumo com um sobressalto de culpa. Há bastante tempo já que Carolyn retirara a mão da sua. Verificou então que, como os outros, também estava inclinado para a frente, atraído como eles pelo bárbaro exotismo da dança

 

do ventre. Voltou-se para murmurar uma humilde desculpa, mas Carolyn não estava lá.

 

     Um obsequioso criado acorreu ao seu chamamento.

 

     - Onde está a senhora?

 

- Foi-se embora, capitão.    

 

- Durante a dança?

 

- Creio que sim.

 

Rick meteu na mão do homem uma nota de cem francos e saiu sem se atrever sequer a olhar para trás. Um corpulento negro acabava de chegar ao círculo de luz, ao som dos tambores, transportando aos ombros uma esbelta escrava. Rick vira já também esse número em vários recantos do globo. O hércules negro ia despir a sua vítima como um indiano desfolha uma espiga de milho. Ao princípio, ela debater-se-ia. Depois animar-se-ia nos seus braços... Rick ficou satisfeito por Carolyn ter partido a tempo de não ver aquele...

 

Encontrou-a a um canto do táxi, a empoar o nariz e a esforçar-se por mostrar uma aparência natural e calma.

 

- Sou muito cobarde, querido? Mas não pude, absolutamente, chegar até ao fim...

 

Rick beijou-a carinhosamente e fechou a porta do táxi. O motorista pôs o carro em movimento e partiu pela ruela sórdida em direcção à avenida.

 

- Um pouco escabroso para uma filha de Iowa, pelos vistos?

 

- Não insistas.

 

- Não, não insisto. Serei um cavaleiro de escolta modelo e vou levar-te a um bom antídoto. Pelo menos, assim espero. E dirigindo-se ao motorista, indicou: - Rua N’Fissa.

 

Carolyn aconchegou-se mais ao seu ombro quando o carro aumentou de velocidade:

 

- Para a próxima vez terei mais confiança em ti, Rick.

 

- Provavelmente não há próxima vez em Argel. O melhor será passares a obedecer às minhas ordens o resto da noite.

 

- Não voltamos para o Hospital do Liceu? Isto é, eu...

 

- Não, mil vezes não.

 

- Mas amanhã nós...

 

- Na guerra não há amanhã. A tua licença é válida até de madrugada.

 

- Deve ser isso que me perturba - admitiu ela, contemplando-o de olhos húmidos.

 

- E foi por isso que fugiste da Ouled-Nail? Carolyn respirou a plenos pulmões o ar fresco da noite:

 

- Não fales como um velho sultão... Não é decente.

 

Ele sorriu, deixando-a esconder o rosto no seu ombro. Assim, a sinuosa huri do Café Inglês simbolizara o próprio desejo da loira Carolyn. Ter-se-ia refugiado no táxi apenas pelo medo de encarar o desejo frente a frente?

 

- Vamos, sossega, Carolyn. Iowa deve colocar-se gradualmente ao nível da África, bem sabes.

 

- Acho-te abdominável! - exclamou a jovem, afagando-o carinhosamente.

 

Rick não tornou a falar até que o táxi parou junto duma cancela, numa rua estreita. Estava bastante escuro, mas ali a obscuridade parecia não ocultar qualquer ameaça. Por trás das grades, figueiras e pimenteiros erguiam as suas silhuetas num fundo de estrelas.

 

- Onde estamos? - perguntou a jovem. Rick saltou lesto do táxi:

 

- No cemitério de Ben Ali. Queres dar um passeio? Ela hesitou uma fracção de segundo, mas logo decidiu:

 

- É este o anunciado antídoto?

 

Sem responder, Rick passou-lhe o braço em volta da cintura e, muito unidos, desceram o carreiro que conduzia ao pequeno cemitério. A despeito da hora tardia, não havia ali nada de fantasmal: dir-se-ia uma tranquila ilha de verdura, um santuário profundamente engastado nas pedras da cidade. Um local de encontro para os apaixonados, um lugar de repouso para os mortos, mas nunca um sítio próprio para espectros.

 

Na curva duma vereda já calcorreada por milhares e milhares de pessoas, Rick parou. Viam-se ali dois túmulos, lado a lado cobertos por pedras idênticas.

 

- O vulgo chama a este lugar o Cemitério das Princesas. Estás a ver porquê?

 

Carolyn baixou os olhos para os sepulcros gémeos:

 

- Repousam as duas aqui?

 

- Há muitos séculos. Viveram felizes até ao dia em que ambas se apaixonaram por um príncipe que as amava, mas não podia casar com elas por ser maometano. O Corão é inflexível nesse ponto: um homem pode ter todas as mulheres que quiser desde que sejam de diferentes famílias.

 

- Mas o príncipe podia casar só com uma...

 

- E deixar a outra infeliz? A própria felicidade ficaria para sempre envenenada. E, repara bem, elas amavam-no com fervor, mas estimavam-se muito uma à outra. Por isso, tomaram a única resolução que lhes pareceu tudo conciliar e suicidaram-se. E aqui estão sepultadas, lado a lado.

 

Carolyn fechou-se mais na curva do braço que a envolvia:

 

- Que pena que já não haja hoje essa falta de egoísmo.

 

- Com as nossas leis, deves concordar que seria pouco prático.

 

E dizendo isto levou-a para um banco, por baixo dos ramos torcidos duma figueira. As suas sombras fundiram-se na pálida claridade coada através das folhas.

 

Estou a dormir ou acordado? No seu pescoço, Beijado com ardor, uma mancha vermelha dura ainda. Onde o sangue dorido hesita e corre Devagar, docemente magoada, a nódoa branqueia.

 

- De quem são esses versos, Rick?

 

- De Swinburne - ciciou. - Gostavas de ouvir alguns de Browning?

 

Ela não deu mostras de entender a alusão. Rick, no entanto, supôs sentir a sua respiração acelerar-se. Uma voz interior clamava dentro de si: «Deixa cair a máscara, querida. Admite que foste para min mais do que uma esposa na Inglaterra. Sê de novo esta noite o que foste então. Ajuda-me a esquecer os perigos que ambos vamos correr amanhã.»

 

De olhos sempre fixos nos túmulos das princesas, Carolyn disse meigamente:

 

- Podes beijar-me quando quiseres. Não precisas da cumplicidade da poesia. - Pouco depois, acrescentou: - Pergunto a mim própria porque me trouxeste aqui. Eu não sou nada romântica. ..

 

- Tolices! Correspondes admiravelmente ao ambiente.

 

- Ainda não vi...

 

- Olha para esta velha figueira, por exemplo. Se consultares o teu «Baedeker», ele dir-te-á que algumas destas árvores chegaram à África com os turcos. Não é emocionante e tranquilizador ao mesmo tempo pensar que esta árvore, ou uma sua antepassada, já estendia os seus ramos verdes por cima destas tumbas, quando um dos avós dos teus avós pregava a Primeira Cruzada contra os infiéis ou ia defender a Cruz na terra onde nascem as figueiras?

 

Como ela lhe oferecesse os lábios para um beijo, deixou o discurso em meio. Quando se desprenderam do amplexo, Carolyn riu baixinho:

 

- É sempre assim que fazes a corte?

 

- Nunca na minha vida! - declarou-lhe solenemente. Mas acho que tu precisas dum tratamento especial.

 

- Disse há pouco que não sabia porque me trouxeste aqui. Creio agora que começo a compreender...

 

- Acabarás por compreender por ti própria. Quando nos sentimos perplexos sobre o próximo passo a dar, não há nada mais repousante do que um cemitério. Especialmente quando fica situado no meio de um bosque.

 

Desta vez ela riu a bom rir:

 

- Deves ser adivinho, Rick. Acredites ou não, a verdade é que recebi o primeiro beijo num cemitério. - Ele viu-a corar à pálida luz das estrelas. - Foi no Cemitério Protestante de Cedar Falls, em Iowa, para ficares a saber tudo. Estávamos sentados na campa dum senador...

 

- Não me digas o nome dele. Sou muito ciumento.

 

- Também não poderia dizê-lo; já o esqueci.

 

- Nenhuma rapariga esquece o primeiro beijo.

 

- Pois eu esqueci-o - disse Carolyn com firmeza. - E, o que é mais importante, tomei uma decisão a nosso respeito... Onde pensavas levar-me, Rick?... - E ao dizer isto pôs rapidamente os dedos nos lábios do capitão. - Não respondas. Não digas nada. Irei para onde for...

 

Rick levantou-se do banco e encostou-se à figueira. Era estranho como podia sentir-se tão calmo agora que estava absolutamente senhor dela e do seu amor.

 

Sem proferir uma única palavra, acendeu um cigarro e meteu-Iho entre os lábios.

 

- Olha bem antes de saltar, Carolyn.

 

- Já olhei. Durante muito tempo e afincadamente. Precisamos de falar mais no assunto?

 

Ele ergueu-a do banco, amparando-a pelos cotovelos. O cigarro aceso luzia-lhe ainda entre os lábios quando ela o encarou, em ar de desafio. O seu olhar adquirira uma estranha expressão de abandono. Uma jovem tímida a tomar atitudes provocantes para prender um homem. Mas ele estava já bem preso. E ia provar-lho imediatamente.

 

- Como posso beijar-te se pretendes imitar Mata-Hari?

 

O lume do cigarro morreu na relva. Foi um longo beijo, mas estranhamente terno... Rick guiou-a de novo pelo carreiro, transpôs depois o portão do cemitério, instigado por um impulso que não sabia bem definir...

 

Ao chegar à beira do passeio, deu um pontapé no guarda-lamas do automóvel para acordar o motorista, profundamente mergulhado no sono, e disse em francês:

 

- Acorde, homem! E ande depressa para o Hospital do Liceu. Carolyn deixava-se guiar sem uma palavra. Quando o táxi se pôs em movimento na íngreme ladeira, inclinou-se para Rick e beijou-o carinhosamente:

 

- Então... sempre me levas para o hospital?

 

- Fico satisfeito por saberes o francês suficiente para compreenderes o que disse.

 

Deixou-a chorar baixinho encostada ao seu ombro, enquanto o táxi corria pela estrada de Lorette. Mas muito antes de pararem em frente do respeitável toldo da entrada do hospital, ele verificou que Carolyn reencontrara o seu sorriso de sempre. Isso significava que ele se retirava naquela noite com todas as honras. Dera-lhe, por fim, uma prova de amor que ela podia compreender.

 

- Um ou dois copos, capitão?

 

- Um é suficiente.

 

O chefe dos criados ficou muito ufano com o seu inglês. No entanto, hesitou na pergunta seguinte:

 

- Mas o capitão encomendou a ceia para duas pessoas?

 

- Anule a encomenda. Traga apenas o vinho. Contento-me com isso.

 

Sentou-se à mesa, no terraço, donde avistava simultaneamente a sala de dança e o vestíbulo. O hotel nessa noite transbordava de alegria militar. Havia pelo menos uma dúzia de grupos aos quais Rick podia juntar-se, certo de ser bem acolhido, mas não pensava nisso sequer, e enquanto o criado lhe deitava o vinho, olhava para a toalha sem a ver.

 

Evidentemente, devia ir dali directamente para o seu quarto e descansar até ao dia seguinte. A essa hora, Carolyn dormia decerto em segurança no seu leito, no lar das enfermeiras. Possivelmente sentir-se-ia muito melhor depois desse casto repouso, porque ela era Carolyn e não a rapariga que os sonhos da sua solidão tinham idealizado.

 

E justamente porque era Carolyn, ele não devia arrepender-se do impulso que o induzira a ficar só naquela noite. Na verdade, ela oferecera-se-lhe porque o amava, mas ele sabia que lamentaria essa oferta no dia seguinte. E sabia também que ela passaria a amá-lo ainda mais por a ter recusado... Na Inglaterra, na noite do black-out, entregara-se-lhe sob o efeito dum cego terror. Uma nova entrega, em Argel, teria sido coisa muito diferente, apesar de todas as tentações daquele ambiente romântico no mais alto grau... Só para lhe agradar, ela dispusera-se a calar a consciência e a ceder... Teria alcançado decerto uma entrega total se executasse o seu plano, tão cuidadosamente delineado, de passar ali três horas duma lua-de-mel estritamente ilegal.

 

Um pedaço das suas leituras de estudante veio-lhe à memória, ligeiramente deformado pelo tempo: «Nada (afirma o filósofo Jurgen) é tão desagradável como a lembrança duma tentação a que se resistiu.» E no entanto, nessa noite, sentia-se imensamente satisfeito com a sua boa acção. Regozijava-se por não ter trazido Carolyn para ali, para uma ceia que encomendara durante a tarde... Gostaria de saber se o criado do andar superior teria deixado a garrafa de champanhe à porta do quarto. Provavelmente, esse balde prateado com a garrafa mergulhada no gelo impressionaria Carolyn mais do que tudo. A pobre criança (admitia o facto com calma absoluta) era facilmente impressionável, apesar de toda a sua coragem na frente de batalha.

 

Mas tudo isso não o impedia de continuar comprometido com Carolyn Rycroft; a sua lua-de-mel, absolutamente legal, celebrá-la-ia quando a guerra findasse. Aí estava outro facto que precisava de encarar com toda a calma. Pertencia agora por completo a essa jovem fresca e loira; a sua atitude de Galaad nessa noite selara melhor o acordo existente entre ambos do que todos os êxtases de paixão. E lamentaria ele, no fim de contas, esse acordo? Eis uma pergunta a que deveria responder honestamente. Mas isso exigia outra garrafa.

 

Chegara justamente a essa conclusão quando viu uma sombra alastrar em cima da mesa. O criado chegara mesmo no momento preciso. Ergueu os olhos para lhe pedir outra garrafa e viu na sua frente Linda Adams. Uma Linda patrícia, num vestido de noite cor de vinho, um vestido dernier cri[, desde os folhos deslumbrantes até ao amplo decote, e os cabelos cor de cobre penteados pelas mais hábeis mãos francesas de Argel. Durante a eternidade dum minuto fitaram-se um ao outro, olhos nos olhos, como se se

 

Em francês no original.

 

encontrassem pela primeira vez. Rick levantou-se, sentindo os pés pouco firmes. Sempre soubera que Linda era bela, mas nunca até então a achara tão perturbadora.

 

- Quer acompanhar-me numa bebida?

 

- Obrigada, Rick; a minha bagagem desce neste instante. Vi-o e vim dizer-lhe adeus.

 

- Veio dizer-me adeus?

 

- Por algum tempo, pelo menos. Acredite-me ou não, vou voar para Casabranca, tal como estou. Nem sequer posso mudar de vestido...

 

- Diga isso outra vez, mas mais devagar...

 

- Só tenho cinco minutos. Sou por isso obrigada a falar depressa. Quer dançar comigo?

 

Rick contornou a mesa, atraído por um encanto que não sabia explicar, e nesse instante os olhos de ambos não deixaram de se fitar. Só compreendeu quando ela lhe deu o braço e ambos abriram caminho por entre a multidão até ao recinto de dança.

 

- Wienerblut!

 

- É curioso, não acha, que a orquestra toque essa mesma valsa?

 

Ele fez-lhe dar uma série de voltas que deixou os dois quase sem fôlego. Lembrava-se bem, ela era leve como uma pena e acompanhara-o sem dificuldade nessa noite, no baile do clube, em Inglaterra... Agora rodopiavam ao som da mesma música, com à-vontade igual, apesar da inconfessada tensão que entre ambos existia. Com um sobressalto, como se despertasse, Rick regressou ao que Linda lhe dizia:

 

- ...esta música fez-me pensar em si... Caminhei até ao recinto de dança... Foi então que o vi... E aqui estamos... - E ao dizer isto ria, o rosto muito colado ao dele. - Lembra-se como nos guerreámos nessa noite?

 

- Sim, mas agora acabaram-se as guerras entre nós. Como vão essas emissões de rádio?

 

- Demasiado bem até - respondeu Linda. - Por isso tenho de voar para Casabranca. Agora que a cidade já caiu, querem outra história transmitida desse posto. Telegrafaram-me de Washington há seis horas e eis-me a caminho. Esta época é absolutamente mágica, desde que não nos importemos de ser arrastados pela corrente.

 

Rick via bem que ela expunha apenas factos, sem a mínima afectação. Andava sempre em demanda das frentes de batalha: era correspondente de guerra, e tinha uma missão a cumprir. Podia por isso desembarcar dum bombardeiro à meia-noite com tanta naturalidade como se tomasse o comboio das 17.15 à saída do emprego. Mas porque batia o seu coração com tanta insistência quando ele a fazia girar ao som das derradeiras notas da valsa? A orquestra francesa atacou uma espécie de boggie, um arranjo inspirado no Five by five. Num abrir e fechar de olhos o recinto foi invadido por uma nuvem de gatos em uniforme. Linda soergueu com os dedos a ponta da sua saia tufada e com a outra mão prendeu firmemente a de Rick.

 

- O nosso instante findou?

 

- Não, se pudermos afastar-nos do ruído. Tenho ainda muitas coisas a dizer-lhe.

 

Winter deixou-se conduzir. Atravessaram o átrio e caminharam até um recanto debruado de flores, na alameda dos automóveis, justamente em frente do portão. Um carro do Estado-Maior passou por eles, cheio de uniformes de três estrelas. Depois, na calma que se seguiu, apenas se ouvia, à distância, a música do salão. Rick viu que o táxi de Linda já a esperava, a máquina de escrever e uma pequena mala de viagem arrumadas ao lado do motorista. Este preparava-se para abrir a porta, mas a jovem deteve-o com um gesto e arrastou Rick para um pouco mais longe.

 

- Não me julgue completamente louca, por favor. Quero apenas dar-lhe um beijo de despedida sem testemunhas.

 

Ele nunca soube como ela lhe caiu nos braços nem qual dos dois começou a beijar. Tudo sucedeu tão rapidamente... Durante um incrível momento, sentiu-a bem unida a si, e tanto que dir-se-ia ser aquele adorável corpo apenas o prolongamento do seu. Depois, ela afastou-se, já completamente calma; apenas os olhos a traíam...

 

- Obrigada pela cooperação...

 

Pela primeira vez, Rick não encontrou palavras para responder.

 

- Linda, eu nunca...

 

- Claro que nunca... Porque havia eu de admitir que estava apaixonada por si... antes de ter a certeza?

 

- Linda!

 

- Não diga nada. Não diga sequer que sou louca. Serei sensata agora. Tenho de ir para o meu trabalho.

 

Mas com pulso firme ele reteve-a ainda um momento.

 

- Há quanto tempo está?...

 

Ela fixou-o, olhos nos olhos, e apenas disse: Como quer que o saiba?...

 

Ele fitava-a ainda, como que alucinado, e já o táxi rolava na estrada. O seu espírito continuava a tactear, às cegas, em busca de qualquer coisa que lhe escapava ao entendimento, quando atravessou o átrio, de olhos sempre fixos na sua frente, para guardar intacta, sem que nenhuma outra imagem a perturbasse, a magia da sua descoberta.

 

Simplesmente, não estava absolutamente certo do que descobrira.

 

As últimas notas do toque de recolher fundiram-se no crepúsculo azul. Rick, na posição de sentido, fazia os maiores esforços por se conservar acordado e ao mesmo tempo dava graças a Deus por sentir que a fadiga o invadia e o submergia lentamente. Nessa noite, ao menos, dormiria um sono profundo. Para estar bem seguro disso, trabalhara com afinco durante a tarde, sob um sol abrasador. E agora o acampamento e todo o seu pessoal estavam preparados para o que desse e viesse. Nenhum caso de urgência, fosse de que natureza fosse, os apanharia desprevenidos: era a altura de respeitar o toque de recolher...

 

Nos últimos três dias, nem sequer se tinham despido, sempre a rolarem por caminhos bravios, que os próprios jipes com dificuldade venciam, e a suportarem tempestades de areia que lhes molestavam os pulmões e os olhos. As cidades a leste de Argel, rechinando ao sol, tinham-se diluído numa impalpável miragem cinzenta. Bougie, Philippeville, Bone eram apenas nomes inscritos nas flechas de madeira das encruzilhadas dos caminhos, imagens desvanecidas de paredes brancas dormindo à beira-mar...

 

A coluna de tanques que encontraram num atalho era muito mais real. Assim como a pronúncia de Oxford do oficial inglês que transmitira as ordens a Amos e as entusiásticas e reconfortantes aclamações dos soldados britânicos quando viram os jipes tomar o caminho do sul...

 

Depois, sucederam-se as rações frias, comidas em plena marcha, e que só conseguiam engolir com o auxílio de goles de água que o cloro dos sacos Lister tornava ácida. Não havia tempo para parar e preparar uma refeição quente, pois as colunas avançadas que os precediam estavam já muito para além das fronteiras da Tunísia. Às dunas do deserto seguiram-se infindáveis planíceis de alcali, sulcadas de barrancos ressequidos. Depois, a pouco e pouco, o deserto alcalino interrompia-se aqui e além, dando lugar a terras verdes e acastanhadas; por fim, estas ocuparam todo o espaço, dum extremo ao outro do horizonte: lombas de colinas, vales onde serpeavam ribeiros, pequenas fazendas, tortuosos trilhos de gado. Após uma extenuante jornada de pesadelo, aquela terra singularmente tranquila, ominosamente calma, à espera a todo o momento do fragor da batalha.

 

Agora estavam ali acampados, naquele abrigado vale, no meio dum bosque de pimenteiros que os muros em ruínas duma quinta abandonada dominavam lá de cima. Para os lados do oriente, o vale abria-se numa planície aparentemente infinita que, à vista desarmada, dir-se-ia tão vazia como a própria Lua. Mas ainda nessa tarde Amos Elaine, subindo ao pátio calcinado da quinta, donde fizera posto de observação, vira avançar, com o auxílio dum binóculo de longo alcance, uma coluna de blindados britânicos.

 

Essas colunas volantes encontrariam inevitavelmente escolhos no caminho, uma vez que o elemento surpresa estava agora de todo dissipado. Já corriam rumores de que a ponta-de-lança anglo-americana se amolgara e retorcera nos arredores de Tunes. A esse respeito, saberiam a resposta antes do amanhecer, quando ali chegasse o primeiro comboio de feridos.

 

O coronel Granby indicara aquele ponto no mapa para se estabelecer o hospital de campanha, e Granby soubera escolher. As lombas das colinas protegê-los-iam das granadas se os alemães atacassem as colunas de flanco. Além disso, o acampamento ficava bastante próximo da estrada que corria no vale, sem dúvida a principal artéria de evacuação.

 

Em poucas horas tinham-se erguido as tendas e fora descarregado o material. Quando a bandeira deixou de flutuar no mastro de honra, recolhida pelo sargento da guarda, Rick abandonou a posição de sentido e abrangeu com o olhar toda a instalação geométrica do acampamento. Na sua frente via as tendas dos oficiais: as do pessoal médico e administrativo à esquerda, as das enfermeiras à direita. O depósito do material ficava situado mesmo junto do mastro da bandeira. Winter sabia que Terry Adams ainda lá estava, a pôr a papelada em ordem e a preparar tudo para a chegada dos primeiros feridos. Estes seriam transportados desde o campo de batalha até ao hospital sem mudarem de maca. E nesse longo trajecto, em todos os escalões, compreendendo, evidentemente o hospital de campanha como primeiro ponto importante de centralização, o material tinha de ser permutado: uma nova maca e cobertores limpos, em troca dos que se recebiam com o soldado ferido. Ora essa manobra de vaivém, o registo das entradas e saídas, exigia uma contabilidade, tarefa de que se desempenhava Terry.

 

No outro lado do carreiro que circundava aquele pequeno mundo de lona, o primeiro grupo de tendas, num total de quinze, estava disposto em quadrado perfeito. Compreendia, especialmente, duas enfermarias, com vinte leitos cada uma; a sala de admissão, onde os feridos seriam classificados, segundo a natureza dos seus ferimentos, e devidamente identificados com todas as indicações necessárias; uma tenda de banhos, na qual os feridos que pudessem andar pelo seu pé seriam despiolhados e vestiriam roupas limpas; uma outra para o tratamento dos casos ligeiros que não exigissem alta cirurgia. Da sala de admissão, era fácil o acesso à tenda de operações, que possuía duas mesas, ao laboratório, à farmácia, à secção de otorrinolaringologia, ao dentista, e a uma secção de aparelhos de gesso, pois tais tratamentos já tinham dado boas provas na guerra moderna. Completavam o conjunto a tenda dos raios X, duas outras para isolamento dos feridos em estado de choque e uma para fracturas.

 

O pessoal que desempenhava as diferentes funções não atribuídas aos cirurgiões, enfermeiros e demais técnicos ficava alojado em grandes tendas, junto das quais se erguia a cozinha.

 

O acampamento formava uma cidade em miniatura, completa até ao último pormenor, perfeitamente ordenada e prática, e que, para começar a viver, apenas esperava a chegada dos destroços do campo de batalha.

 

Um outro quadrilátero de terreno, das mesmas dimensões, ao lado do primeiro, estava já devidamente preparado e permitiria, se fosse necessário, duplicar a capacidade do hospital num espaço de tempo incrivelmente curto.

 

Mais além, Rick distinguia os vultos dos enormes toldos que abrigavam o material e os mantimentos armazenados, assim como os encerados que protegiam as viaturas contra as inclemências do tempo.

 

O pessoal já formava bicha junto da cozinha. Rick sorriu quando o cheiro do guisado lhe chegou ao nariz. Era de bom augúrio saber que o forno funcionava, após três dias de marcha e de rações frias. Todos teriam comida quente nessa noite, mesmo que fosse apenas uma mistura desidratada espalhada nas caçarolas e aquecida no fogão de campanha. Aliás, bastava o cheiro para lhe abrir o apetite.

 

O sargento da guarda, depois de dobrar a bandeira, meteu-a debaixo do braço e fez a continência. Rick correspondeu e toda a guarda de honra deu meia volta e se afastou na direcção do quartel-general. A cerimónia findara e um capitão faminto podia agora ir buscar o prato e tomar o seu lugar na forma para o rancho.

 

Bill Coffin e Carolyn acenaram-lhe ao verem-no aproximar-se. Carolyn vestia calça e blusa e trazia uma capa cor de azeitona por cima dos ombros. Durante toda a tarde fizera bastante calor, mas o ar da noite principiava já a arrefecer. Rick sabia que dentro de uma hora o frio traspassá-la-ia até aos ossos. Perguntava a si próprio como passaria ela a noite, na sua tenda, com as outras três enfermeiras, quando chegou a sua vez de se apresentar diante da mesa do cozinheiro. E deixou a pergunta sem resposta, pois sentia-se demasiado fatigado.

 

Serviram-lhe o guisado e o café. Rick engoliu logo o café dum só trago e estendeu de novo o copo para segunda dose. A bebida escaldante dera-lhe justamente o estímulo de que precisava. Já se sentia com forças para enfrentar Carolyn, com a condição de se portar com muito juízo, isto é, de conservar bem longe de si os sentimentos, pelo menos à distância dos seus braços.

 

Ela estava sentada sobre uma pilha de madeira, no meio dum grupo jovial. Vários oficiais, vencidos pela fadiga, tinham-se estendido na relva. Toda a aparência de decoro se desvanecera nessa esgotante viagem de Argel até ali.

 

- Fatigada?

 

Os olhos de Carolyn brilharam no seu rosto enfarruscado.

 

- Quando penso que vou dormir numa cabana esta noite!

 

- Encontrarás lá uma surpresa. Com certeza hás-de precisar dela de manhã.

 

Carolyn corou e fingiu concentrar toda a sua atenção na comida.

 

- Já a vi - volveu. - Mas tu também precisarás dela. Rick forçou um sorriso:

 

- O pior é que o meu nome está marcado em tudo quanto me pertence, incluindo o saco-cama. Pensas que isso vai dar origem a murmurações?

 

Carolyn corou ainda mais.

 

- Já deu mesmo. Se ouvisses o que disse Bárbara...

 

- Bárbara é muito maliciosa. Mas eu não quero que passes frio.

 

«Assim mesmo», considerou mudamente. «Continua a ser um noivo atencioso e mantém o diálogo nesse tom ligeiro, embora te custe muito...»

 

No escuro, a mão de Carolyn procurou a sua; retribuiu-lhe carinhosamente a terna pressão.

 

- Obrigada, Rick. Servir-me-ei dele esta noite, sem me importar com o que possam dizer.

 

Ao longe, no fundo do vale, reboou o troar dos canhões. Era um rumor surdo que impregnava toda a atmosfera como trovoada distante. Os canhões alemães respondiam da planície. A polémica travava-se bastante longe. Os ouvidos experientes de Rick podiam assegurá-lo. Mas se se aproximasse, a unidade estava preparada para tudo, incluindo a retirada. Duma maneira ou doutra, Rick não julgava oportuno preocupar-se com o assunto antes de Amos regressar da sua visita às linhas de fogo.

 

Lembrou-se de súbito que aquela experiência era absolutamente nova para Carolyn e passou-lhe um braço em volta dos ombros.

 

- Sossega! Isto é apenas uma pequena escaramuça de patrulhas.

 

«Ou talvez seja o início dum contra-ataque», ponderou para si mesmo. «Uma coisa é certa, meu rapaz, teremos de operar ao romper do dia.»

 

Levantou-se lestamente:

 

- Para a cama, minha jovem! Lembra-te de que estamos todos num serviço de urgências.

 

Ela aconchegou-se mais a ele no escuro, ao ouvir de novo as detonações. Rick olhou na direcção do oriente. O cume da colina não deixava ver os clarões da batalha.

 

- Boa noite, querida - murmurou.

 

A sua proximidade era um convite que dificilmente podia ignorar: no fim de contas, ela era sua noiva.

 

Viu-a afastar-se em direcção à tenda das enfermeiras. Invadido, dominado completamente pela fadiga, esperava que o seu beijo de despedida tivesse sido convincente. Carolyn aninhara-se nos seus braços com absoluta confiança. Porque não teria sentido outra emoção senão uma vaga piedade?

 

Era outra pergunta a que devia responder no dia seguinte, se porventura os destroços da batalha lhe deixassem algum tempo para a introspecção.

 

Quase era capaz de jurar que mal pousara ainda a cabeça no travesseiro, e no entanto o seu relógio marcava já três horas. Arrancado ao sono por um ruído pouco familiar, Rick sentou-se bruscamente no leito. Continuou a ouvir o mesmo rumor no exterior da tenda. Sacudindo para longe os últimos resíduos de sono, conseguiu por fim identificá-lo: o motor duma ambulância resfolegava na íngreme ladeira que unia o vale ao acampamento.

 

Lá fora, estava uma noite fria e límpida e no céu brilhavam as estrelas. Mais uns minutos, e as ambulâncias começariam a alinhar-se em frente da tenda de admissão. O som forte duma corneta cortou o ar frio da noite, mas já um bando de homens se reunira em volta do mastro, advertidos, tal como Rick, pelo sexto sentido que previne duma urgência todo o pessoal hospitalar experiente.

 

Rick abotoou a camisa, para se defender melhor do frio, e correu com os outros. Uma torrente ininterrupta de macas principiava já a escoar-se das ambulâncias para a tenda de admissão. Passados poucos segundos, apareceu Randall Strang. O chefe fez uma continência breve mas correcta. Após três dias de viagem fatigante, apresentava-se incrivelmente limpo, até mesmo as calças de lã tinham um vinco tão perfeito como o que lhe faziam as lunetas no rosto bem nutrido.

 

- Eu ocupo-me desta tarefa, Winter. É melhor ir trabalhar com o seu grupo.

 

Rick engoliu a saliva e uma bola que se lhe formara na garganta. Lembrou-se de certa conversa com Amos Elaine pouco antes da unidade deixar Argel. Não podia esquecer também que escapara por uma unha negra a um Conselho de Guerra. Não havia a mínima parcela de bom senso em hostilizar Strang nessa noite sem motivo.

 

- Como desejar, major - respondeu.

 

E saiu sem lhe fazer continência, apenas para lembrar a esse soldado civil que estavam agora na frente de batalha.

 

Ao entrar na sua tenda de operações, encontrou-a já devidamente iluminada. As negras cortinas de camuflagem, presas no cimo das estacas, dir-se-iam asas dum morcego pré-histórico. Verificou, com pesar, que Carolyn estava já lavada e preparada, e só recuperou o respeito por si próprio quando o jovem Hal Davis entrou muito apressado, lhe fez continência e lhe pediu desculpa. A sala estava perfeitamente em ordem e qualquer caso de urgência podia ser admitido sem demora. Winter tivera o cuidado na véspera de inspeccionar tudo, até os mínimos pormenores. Enrolou as mangas da camisa e estendeu os braços para uma bata esterilizada, sentindo dissipar-se a sua irritante sonolência, ao executar esse primeiro movimento familiar dum trabalho que tanto amava.

 

- Bem, rapazes, onde está o nosso primeiro cliente?

 

O primeiro cliente estava branco como a cera, mas ainda capaz de sorrir, apesar de tudo. Rick examinou-o rapidamente e debruçou-se para ele, correspondendo ao seu sorriso. Enquanto o interrogava, Dean, que lera as indicações de Strang na ficha presa à maca, ia enchendo uma seringa com pentotal sódico.

 

- Como aconteceu isto, rapaz?

 

- Foi uma patrulha, capitão. - Os seus lábios estavam muito brancos, mas os seus olhos encontraram os de Carolyn e conservou o seu sorriso intacto. - Lamento falar assim diante duma dama, mas Jerry queimou-me as penas do rabo.

 

Estremeceu ao sentir a agulha picar-lhe o braço.

 

- Conta! - ordenou Dean.

 

O ferido obedeceu numa voz sonolenta, como se ele próprio antecipasse o efeito da anestesia. Depressa as palavras se fundiram numa espécie de ressonar. A um sinal de Dean, os enfermeiros principiaram a despi-lo, rasgando, quando era preciso, as roupas sujas. Rick examinou a ferida cuidadosamente. Um rasgão irregular, mesmo por baixo das nádegas, como se a explosão duma granada tivesse feito saltar a carne nesse ponto, continuando depois o seu caminho. O osso da anca, embora a descoberto, estava intacto.

 

Quando a zona atingida foi lavada e coberta, Rick principiou pela ferida propriamente dita. Os princípios de Trueta era os que devia seguir naquele caso, a mesma técnica que empregara já mais de cem vezes nos campos de batalha. O quadro clínico apresentava-se-lhe tão claro como o texto dum tratado, à medida que ia desbastando os tecidos irremediavelmente deteriorados. Todo o músculo ferido, não o ignorava, deve satisfazer três exigências formais antes de o cirurgião o abandonar e seguir para diante: ter uma aparência sã, contrair-se quando se corta e sangrar. Tudo quanto não corresponda a estas três condições, deve ser considerado como provável meio de cultura dos germes da fatal gangrena gasosa.

 

Profundamente enterrado na ferida, estava um estilhaço metálico, provavelmente um bocado do próprio projéctil. Rick extirpou-o com destreza e sondou a ferida mais adiante, para descobrir qualquer possível bolsa duma infecção. Espalharia ali depois pó de sulfamida, certamente; estava na ordem do dia. Mas nenhuma terapêutica podia igualar a supressão de todos os tecidos desvitalizados e por conseguinte isolados do afluxo sanguíneo.

 

Uma vez terminada a operação de limpeza, polvilhou a ferida com sulfamida e cobriu-a com gaze vaselinada. Num rápido olhar dum extremo ao outro da tenda verificou que Hal Davis e Bill Coffin estavam ocupados nas mesas contíguas com outros tantos feridos e que uma quarta maca esperava a sua vez perto da porta. Não tinha portanto tempo de envolver o seu homem num aparelho de gesso: deixaria esse trabalho para a secção especial.

 

- Conduza este doente à tenda de ortopedia - disse ao maqueiro de serviço. - Diga que neste caso está indicada uma ligadura em espiral.

 

Carolyn e um enfermeiro começaram logo a limpar a mesa quase antes de o homem ser dali retirado.

 

- Quando podemos principiar com o outro ferido? - inquiriu Rick.

 

- Dentro de cinco minutos estará tudo pronto, doutor.

 

A sua voz era calma por trás da máscara. A enfermeira loira voltava a ser o autómato perfeito, tão completamente entregue ao seu trabalho que nem se lembrava que noutros momentos tinha uma existência própria fora daquelas paredes de lona.

 

- Os instrumentos cirúrgicos estão já no esterilizador.

 

O outro paciente era um caso de queimaduras, em estado muitíssimo grave. O plasma corria-lhe já nas veias, mas a ambulância que o transportara ficara retida no caminho após um preliminar compasso de espera no posto de recolha, lá longe, na planície disputada. A ficha presa à maca indicava que lhe tinham ministrado uma primeira dose de sulfamida. Rick polvilhou por isso ao de leve as feridas com o medicamento e cobriu-as com gaze vaselinada. Desta vez não tinha muitas esperanças nos resultados do tratamento: mesmo um método revolucionário não pode fazer milagres.

 

Bill Coffin, entretanto, chegou junto da sua mesa, ainda de bata e luvas:

 

- O que se passa na tenda de admissão? - perguntou. Acabam de me enviar um ferido abdominal, já moribundo. Recusei-me a operar.

 

Rick abanou a cabeça. Já esperava aquilo mesmo, e era natural que sucedesse enquanto se permitisse a Randall Strang o uso da sua antiquada bitola.

 

- Vou ver o que se passa. Substitui-me aqui por algum tempo.

 

Na tenda de admissão viu quatro macas à espera de vez. Strang, depois de examinar uma laceração superficial, pronunciou em tom breve:

 

- Sala de operações número três.

 

Não dera ainda pela presença de Rick e passou ao doente seguinte. O jovem cirurgião saiu rapidamente da tenda para assistir ao descarrego da ambulância seguinte.

 

- Quantos feridos traz? - perguntou ao motorista.

 

- Não sei ao certo, capitão, talvez uma dúzia.

 

- Alguns casos graves?

 

- Possivelmente. Pelo menos dois feridos no abdome. Rick voltou à tenda de admissão, absolutamente decidido. Ia

 

correr o risco uma vez mais, apesar da promessa feita a Amos. Mas, em suma, não tinha o direito de pensar na sua situação oficial quando algumas vidas estavam em perigo.

 

- Desculpe-me interrompê-lo, major... Strang contemplou-o com o seu olhar frio:

 

- O que há, Winter?

 

- O major Coffin gostaria de discutir um caso consigo na tenda número dois.

 

A expressão de Strang não se alterou, nem mesmo quando se endireitou rapidamente. Era evidente pela sua atitude que a reputação de Bill Coffin chegara a Boston.

 

- Está bem, capitão. Pode orientar a distribuição durante um momento?

 

Rick já estava ajoelhado junto dum ferido na fila dos esperados. Examinava uma laceração irregular na coxa.

 

- Sulfamida? - perguntou.

 

O homem respondeu, na semi-sonolência provocada pela morfina:

 

- Eu próprio a pus. Imediatamente... Puseram-me depois mais no posto de recolha...

 

- Tenda de choque - disse Rick. - Ocupar-nos-emos deste caso mais tarde.

 

O enfermeiro inscreveu a indicação na respectiva ficha.

 

O caso seguinte era uma fractura complexa grave, mas em bom estado geral. Aqui uma limpeza completa era essencial e urgente antes que a cirurgia pudesse tentar alguma coisa. Rick deu as suas ordens nesse sentido e prosseguiu o exame dos feridos. Deteve-se um momento mais junto da terceira maca: outra ferida abdominal de mau aspecto, em grave estado de choque. Pulso rápido e fraquíssimo. A decisão era dura de tomar, mas tomou-a com rapidez:

 

- Tenda de choque.

 

Ergueu os olhos ao ouvir, ao seu lado, Jim Manners dar um estalo de desaprovação com a língua.

 

- Não acha que ele devia ter também a sua oportunidade, como os outros, Rick?

 

- Lamento muito, Jim...

 

- Mas se o puder operar?

 

- Há lá fora uma dúzia de ambulâncias à espera. Outros feridos vão chegar dum momento para o outro com muito mais possibilidades de vida. Se este resistir, depois de tratado do estado de choque tentaremos então. - Respirou fundo e acrescentou, como se falasse consigo mesmo: - Isto é um hospital de campanha, Manners. Não podemos transformar as nossas mesas de operação em mesas de autópsia.

 

As macas desfilavam agora rapidamente na sua frente. Na maior parte dos casos, bastava a Rick um rápido exame para uma justa classificação. E nesse exame, tal como na apreciação do estado do pulso, entrava toda a sua experiência, duramente adquirida em duas frentes de batalha. Ele não podia mostrar a bitola que usava, não podia explicar o seu método a Jim Manners nem mesmo a Bill Coffin. E no entanto sabia que era correcto.

 

Quando Randall Strang voltou da sua inventada missão, a tenda de admissão estava quase vazia. A última ambulância deixará já a zona de descarga para ir juntar-se às outras, no posto de recolha do vale.

 

Strang disse, com ar paciente:

 

- Com franqueza, não vejo por que razão o major Coffin tinha necessidade de mim. O seu problema era elementar...

 

Rick esforçou-se por suprimir o sorriso que lhe aflorava aos lábios. Felizmente Bill saíra-se da dificuldade com todo o aprumo. As sobrancelhas de Strang arquearam-se quando viu a tenda quase vazia. Mas o chefe limitou-se a sentar-se à secretária, absolutamente desnorteado. «Teria visto as palavras escritas na parede?», pensou Rick. «Talvez esteja disposto a deixar-me encaminhar estes feridos, contanto que a sua autoridade e o seu prestígio não sejam atingidos, podendo depois tomar para si o crédito do que correr bem...»

 

Mas prudentemente disse apenas:

 

- Estou certo de que o major Coffin apreciou a sua opinião. Posso voltar para junto do meu grupo?

 

- Pois decerto. Eu completarei as suas fichas. Ao entrar na tenda, Rick sorriu para Bill:

 

- Pensaste com rapidez, meu velho. Que te disse o nosso Randall?

 

- Pretendi que tinha necessidade da sua opinião a respeito duma fractura do crânio. Ele ficou para explodir?

 

- Quer queiras quer não, ficou lisonjeado.

 

- E com razão; barrei-o suficientemente de manteiga... Agora, antes de começar a anestesia, é melhor examinares bem esse rapaz.

 

Carolyn pegou na ficha de urgência e pô-la em frente dos olhos de Rick enquanto ele lavava e escovava outra vez os braços e as mãos. O próprio Strang admitia que uma lesão torácica era um caso de urgência e o seu lápis sublinhara a palavra a vermelho... Rapidamente transportado da frente de batalha, o ferido conseguira chegar à mesa de operações num tempo notavelmente breve. O efeito produzido pelo plasma era excelente. Mas apesar de todos esses factores favoráveis, os riscos ultrapassavam cinquenta por cento.

Rick pediu a Dean:

 

- Arranje-me um tubo traquial.

 

O pior era a hemorragia, pensou, uma hemorragia do pulmão dilacerado que enchera de sangue toda a cavidade torácica, ameaçando a vida do rapaz. Além disso, para complicar mais as coisas, o ar escoava-se pelo tecido pulmonar despedaçado, ocasionando uma pressão que ameaçava sufocar o infeliz.

 

- Há algumas esperanças? - perguntou Carolyn.

 

- Muito poucas.

 

- Farás bem em operá-lo?

 

Era a primeira vez que ela lhe fazia semelhante pergunta. Olhou-a um instante e compreendeu que a jovem tentava evitar-lhe o profundo pesar duma tentativa desesperada.

 

- É a sua única possibilidade de se salvar. Vamos a ver. Uma vez colocado o tudo no interior da traqueia, Dean forçou o oxigénio a entrar nos pulmões do rapaz, dilatando-os, reconstituindo-lhe o sangue com esse gás vital. E enquanto envolvia a ferida com panos esterilizados, Rick notou que o soldado reagia favoravelmente. Um golpe do escalpelo pôs a descoberto a parede torácica. Carolyn e Hal Davis já estavam ao seu lado, armados de pinças, para dominarem a hemorragia. Na cavidade torácica, o sangue coalhado envolvia os pulmões numa espessa cobertura negra.

 

Com todo o cuidado e delicadeza, Winter removeu os coágulos, e em seu lugar espalhou-se uma onda dum vermelho mais vivo, o sangue fresco do pulmão dilacerado. Ouviu um breve suspiro, com o qual Carolyn assinalava a sua surpresa e a sua angústia. Mas nem por isso os pensos de gaze deixaram de chegar às suas mãos com a rapidez necessária.

 

- Vou fazer parar o sangue por meio da pressão - disse.

 

E meteu profundamente a mão por trás do pulmão, para procurar o hilo, essa raiz em forma de cunha que contém os vasos sanguíneos e os grandes brônquios. Os seus dedos encontraram e comprimiram a mole estrutura da artéria pulmonar, fazendo parar o afluxo de sangue ao pulmão.

 

- Esponja, por favor.

 

O objecto pedido depressa chegou à sua mão livre. Secou bem a superfície do pulmão até lhe ser possível examinar o rasgão que o dilacerava.

 

- É possível repará-lo? - perguntou Hal Davis.

 

- Infelizmente não. Temos de fazer a ressecção. Prepare-me uma ligadura forte.

 

Um espesso cordão de seda, atado firmemente, devia ser o bastante, pois não havia tempo para arranjar uma ligadura mais complicada.

 

Com a sutura já na mão, Rick ainda hesitou uma fracção de segundo. Como sempre, Carolyn previra e preparara o que era preciso: a agulha curva, rigidamente segura na ponta duma pinça, e o longo cordão escuro de seda pendente do furo.

 

- Dará resultado, doutor?

 

Rick respondeu com ar distraído. Daria resultado se ele conseguisse colocar perfeitamente a agulha. Carolyn e Hal não precisavam que os instruísse em anatomia e os dois também sabiam que naqueles momentos ele trabalhava sobre dinamite. Por trás da artéria que queria ligar, situavam-se os grandes vasos que reenviavam o sangue ao coração, as veias cavas. O mais leve erro na colocação da agulha provocaria uma ruptura nas suas delicadas paredes com um novo dilúvio de sangue na caixa torácica. Uma coisa é ver fugir diante dos olhos uma vida que se tenta salvar e outra é perdê-la por imperícia.

 

E sentiu-o ainda mais ao perceber que Carolyn retinha a respiração ao vê-lo passar profundamente a agulha por trás do pulmão, procurando às cegas, guiado apenas pelo tacto, pelos dedos tensos que comprimiam a artéria dilacerada, ao longo dos quais passaram os dedos da outra mão que seguravam a agulha.

 

A agulha penetrou no tecido e a ponta apareceu do outro lado entre os dedos de Rick, onde Hal a prendeu, puxando-a para si. Depois, atou solidamente a ligadura. Rick, então, cortou o pulmão.

 

Ficaram alguns minutos em silêncio, os três a olharem para aquele pobre coto decepado, à espera... Mas não se produziu nenhuma hemorragia. A sutura de emergência mantinha-se bem apertada. A vida do soldado estava salva.

 

Rick suturou a caixa torácica, deixando lá o tubo para permitir a saída do ar que ameaçava exercer perigosa pressão no pulmão são. Nessa noite não sentia qualquer desejo de assobiar enquanto trabalhava, e quando por fim abandonou a mesa cambaleava um pouco, apesar dos seus nervos de aço.

 

Aquele ferido era o último. Toda a unidade funcionara verdadeiramente como um só homem, sob a pressão da batalha que precisava vencer.

 

No dia seguinte leria o livro de registos e prepararia o seu relatório sobre as vidas salvas na sua tenda. Randall Strang poderia utilizá-lo como melhor lhe parecesse. A sua brigada portara-se à altura naquela primeira prova.

 

Carolyn olhou-o interrogativamente ao sentir a mão dele no seu braço. Mas a outra mão de Rick também pousara no braço de Hal Davis. Winter esperava que o seu sorriso disfarçasse de alguma maneira o seu cansaço.

 

- Bom trabalho, não há dúvida! Sinto-me orgulhoso da vossa colaboração.

 

E saiu da tenda, sabendo que o olhar da jovem o seguia com ternura, como um apelo. Mas nessa noite, era bem evidente, ele não podia corresponder a nenhum apelo dos seus olhos. Estava demasiado fatigado para pensar no amor.

 

A praia começava a menos de trezentos metros ao norte do acampamento, no local onde a colina se quebrava numa série de barrancos que por sua vez se perdiam nas dunas de areia branca. A estrada costeira, aberta a dinamite, serpenteava para leste, entre dunas e outeiros; as tropas de engenharia tinham cavado ali abrigos para as baterias antiaéreas, para o caso de o inimigo tentar algum ataque de surpresa pelo lado do mar.

 

O mar e as dunas ocultavam-se num nevoeiro difuso quando Rick e Terry Adams chegaram à praia; visto assim, o Mediterrâneo era tal qual outros mares que conheciam. A mais, apenas o arame farpado, mas esse servia-lhes de óptimo cabide. Naquela luz baça que os raios do Sol tentavam atravessar, a própria guarita duma sentinela solitária podia passar por um posto de salva-vidas.

 

Chegaram à beira-mar, mergulharam na linha da rebentação das ondas, e Rick rolou sobre si mesmo e nadou para o largo, num crawl rápido. Terry manteve-se corajosamente na sua esteira. A boa distância da costa, pararam, aspirando profundamente a frescura matinal. Esses poucos minutos bastaram para o sol de África queimar por completo a neblina. O mar apresentava-se agora aos seus olhos dum verde-jade de maravilhosa transparência no sítio onde nadavam, cromado de amarelo para o lado da praia, e dum azul que escurecia para cobalto na linha do horizonte. Lá muito em baixo, através das águas transparentes, apercebiam a própria sombra nas areias estriadas do fundo.

 

- Isto faz-me lembrar uma manhã nas Bermudas. Não me pergunte porquê - observou tranquilamente Terry.

 

- E não sentes vontade de contar?

 

- Mary e eu começámos a nadar, em Coral Beach, justamente pouco antes da alvorada. Queríamos ver o nascer do Sol por cima do Crow’s Nest. O Crow’s Nest era o nosso ninho da lua-de-mel, compreende... Nadámos até ao recife, onde nos sentámos, de costas voltadas para a praia, à espera que o sol dissipasse a bruma matinal. Lembrar-me-ei sempre dessa manhã...

 

Rick contemplou-o com um sorriso. Naquele momento o rapaz parecia transpirar vitalidade por todos os poros. Rick lembrou-se da orgia do Café Inglês e voltou a sorrir. Uma vez mais dir-se-ia que o rolar na valeta fortificava a alma dum homem.

 

- Devo dizer-lhe que já estou curado? - indagou Terry. Só ontem tive a certeza quando fui levar abastecimentos à linha de fogo.

 

O espírito de Rick estava meio atento à voz do rapaz que lhe descrevia a cena na frente de batalha. Não era a velha frente do tempo das trincheiras e da terra de ninguém, mas nem por isso deixava de ser bem tangível. O jipe de Terry andara dum lado para o outro nos postos avançados, durante uma tarde abrasadora, bem ao alcance dos canhões alemães. Ouvira passar por cima de si as granadas, mas conseguira dominar os nervos e nem sequer parara para se abrigar. Na verdade, não ganharia muito em abrigar-se debaixo dum jipe.

 

- Porque seria isto, Rick? Mesmo nas manobras, nos Estados Unidos, ficava cheio de medo. E ontem bebi chá encostado a um tanque inglês, enquanto a barragem do crepúsculo estava no auge. Estarei curado do medo para sempre?

 

- Talvez seja um milagre sem ninguém saber.

 

- Com certeza houve outros homens que também venceram o medo...

 

- Suponho que tu nunca tiveste medo, nem mesmo ao princípio. Parece-me, sim, que os teus nervos estavam em curto-circuito. Agora estão já afinados para a batalha, e é tudo. Vi o mesmo em Espanha. Vi também centenas de casos semelhantes nas Ardenas e em Dunquerque. Não há nada que explique isso. Mas talvez até seja bom para a ciência encontrar alguma coisa que não possa explicar.

 

Pensou no assunto ainda alguns momentos, enquanto os dois, lado a lado, vogavam tranquilamente ao sabor das ondas. O rapaz abandonara o hotel de Argel, no fundo dum camião, mais morto do que vivo, após dias e dias de bebedeira. Depois trabalhara sem desfalecimentos, só parando ao fim do dia, para algumas horas de torpor que em campanha se consideram repouso. Naturalmente, fora essa a sua salvação quando chegou a prova decisiva. Decerto não há nada pior para o sistema nervoso do que pensar demasiado. Os excessos mais nefastos ao equilíbrio nem sempre são os excessos físicos. Quando abandonou o seu cogitar, Rick disse apenas:

 

- E não te atormentes muito se sentires medo outra vez. Isso pode suceder.

 

- Não duvido - respondeu Terry jovialmente. Depois, baixando um tanto a voz, embora não fosse necessário falar ali em segredo: - A propósito, já lhe agradeci o conselho que me deu em Inglaterra? A respeito da descontracção, claro...

 

- Foi um mau conselho. E espero que não o tenhas tomado à letra.

 

- Mas segui-o...

 

Terry rolou sobre si mesmo, mergulhando para esconder o rubor. Rick, com os braços em cruz à superfície, viu o corpo moreno do rapaz descer em espiral, tocar depois no fundo com a ponta dos pés e voltar outra vez para cima, no meio dum turbilhão branco de areia.

 

- Desculpe-me o simbolismo - disse ao emergir. - Mas foi isto justamente o que senti ontem ao voltar da linha de fogo... Fui até ao fundo e reapareci de novo à luz do dia... Tudo isto, claro, nada tem que ver com Gina... - Sorriu timidamente, depois perguntou: - Serei indelicado por falar nela? E julga que Mary compreenderia se soubesse?

 

- Para as duas perguntas, a resposta é negativa. Há um certo número de coisas que as mulheres nunca compreendem, especialmente essa dum homem não poder ser monógamo em tempo de guerra.

 

- Sim, não há dúvida - confirmou Terry. - E uma vez que assentámos nisso, talvez fosse melhor irmos andando. Tenho de estar no quartel-general do batalhão, daqui a uma hora, para trazer Arnos.

 

- Então vai à tua vida. Eu fico aqui mais um bocado a contemplar as sereias.

 

Terry desaparecera já há muito no carreiro por entre as dunas e Rick continuava ainda a flutuar descansadamente. Pela primeira vez nas últimas semanas tinha uns momentos de verdadeiro repouso. E sentia-se satisfeito. Sabia que esse bem-estar e essa paz interior se desvaneceriam mal deixasse o campo livre às divagações do espírito. Se pensasse por exemplo numa pergunta que ficara sem resposta em Argel... Mas por enquanto bastava-lhe flutuar preguiçosamente entre a terra e o céu, entretendo-se com a lembrança do beijo de Linda e a declaração que o acompanhara. Mas procurava conservar tais recordações a certa distância, pois sabia-as perigosas em extremo.

 

E teve imediatamente a prova desse perigo quando, ao voltar-se para nadar em direcção à praia, viu a própria Linda no cimo duma duna, recortada em silhueta no fundo rubro do sol-nascente...

 

Mas não, não podia ser ela! E dizendo isto a si próprio, esforçava-se por atingir rapidamente a terra firme... O sonho e a realidade não podiam fundir-se tão perfeitamente no meio duma guerra... Antes de sair da água, olhou de novo. Sem dúvida tomara a silhueta duma sentinela pela mulher amada...

 

A mulher amada! Sim, a pergunta à qual recusara dar resposta, acabava de se resolver automaticamente ao vislumbrar aquela miragem. Era Linda quem ele amava e desejava, não Carolyn. Era de Linda que dependia a sua alegria, era ela que significava para si a felicidade, apesar do seu ar frio e distante. E com a mesma clareza de percepção compreendeu que a desejava há muito tempo, apesar da recordação de Carolyn na noite do black-out. Mas enquanto esse episódio não era já mais do que obscura lembrança dum êxtase remoto, Linda era a realidade viva e palpável, o desejo e a esperança... O seu futuro aguardava-o no cimo duma duna, aureolada pela claridade da manhã.

 

Atreveu-se a olhar para a praia e viu que a sua visão não fora um sonho, que Linda estava realmente lá e descia para a orla de areia húmida, caminhando ao seu encontro como se ignorasse o facto de ele estar tão nu como Adão. Continuou a avançar com a água a cobri-lo até à cintura, e ao atingir a linha da ressaca pôs as mãos em concha em volta da boca para gritar. Mas foi a voz de Linda que primeiro se ouviu:

 

- Não me olhe assim tão admirado, Rick. Sabia bem que eu o havia de seguir.

 

E dizendo isto subiu a um destroço de naufrágio, mais aerodinâmica do que nunca no seu uniforme impecável, os olhos protegidos pela mão enluvada, a esforçar-se por vê-lo melhor à luz tremulado Mediterrâneo. Winter pôs-se de joelhos, aproveitando a misericordiosa cortina duma vaga.

 

- Vá para trás duma duna e espere lá por mim - gritou-lhe.

- O uniforme de campanha não inclui fato de banho.

 

Ficou satisfeito por poder refugiar-se no seu acanhamento masculino, permanecendo ali mais uns instantes a recompor-se, com o tronco meio submerso, até que ela por fim se decidiu a voltar o rosto.

 

- É isto que quer que eu faça?

 

Rick resmungou uma resposta afirmativa, saiu da água e correu para o arame farpado. Quando momentos depois emergiu das dunas, Linda tinha ainda os olhos voltados para o oriente. Contemplou-a durante algum tempo sem proferir uma única palavra, passando o pente pelos cabelos molhados, corrigindo o nó da gravata, demorando, enfim, o mais possível o instante em que teria de lhe falar. Tal como estava, Linda era extraordinariamente bela e perfeita, e também muito desejável...

 

Claro, ele sabia bem o que devia dizer-lhe; as palavras já tinham adquirido no seu pensamento a sua forma inevitável, como a cena bem ensaiada duma peça de teatro.

 

E, por fim, não disse absolutamente nada... Caminhou até ao destroço de naufrágio e tomou-lhe um abraço. Na primeira duna, a sentinela reocupara o seu posto. Mais adiante, os canhões antiaéreos projectavam para o céu as trombas dos seus canos, e nas imediações havia alguns artilheiros... Lado a lado, Linda e Rick tomaram o atalho que conduzia ao acampamento. Um súbito enxame de soldados poupara-os, pelo menos de momento, a qualquer intimidade.

 

- Quando chegou?...

 

- Esta manhã, de jipe - respondeu Linda. - Desde a estação de caminho-de-ferro que fica a vinte milhas daqui, em La Crevette.

 

- Terry partiu para as linhas. Espero que...

 

Mas ela parecia decidida a terminar serenamente todas as frases que ele começava:

 

- Cheguei na altura precisa em que ele partia, mas ainda o vi. O que lhe fez? Achei-o com um ar tão calmo e despreocupado como qualquer veterano.

 

- Lamento muito - disse Winter - não poder reivindicar para mim o mérito dessa transformação. Mas sucede que esse género de triunfos só podem ser conseguidos pelo próprio interessado...

 

- Isso significa que ele está curado?

 

- Responder-lhe-ei com mais segurança daqui a oito dias. Mas desde já estou pronto a apostar na sua cura.

 

- Decerto sabe como isso sucedeu.

 

- Em Argel, conservou os nervos permanentemente adormecidos com álcool. Aqui encarreguei-me de lhos adormecer com trabalho. Não é mau processo. Mas é preciso ser-se bastante jovem para o poder suportar.

 

Sempre ao lado um do outro, desceram o caminho de pranchas que servia de rua principal ao acampamento, contornaram o mastro da bandeira e dirigiram-se para a tenda de admissão. Rick retribuiu a continência da sentinela e continuou a falar de coisas superficiais:

 

- O que é feito da máquina de escrever? Sem ela a sua indumentária até parece incompleta.

 

- Não é permitido tomar notas tão perto da frente. E, aliás, não foi para isso que consegui o meu salvo-conduto.

 

Rick ergueu o pano da tenda de admissão e parou à entrada para deixar passar Linda. Àquela hora matinal, o local estava deserto. Já esperava isso mesmo. No entanto, sentiu faltar-lhe a respiração quando a seguiu. O mergulho que se preparava para dar era mais difícil do que qualquer outro no mar...

 

Sem se voltar, Linda interrogou:

 

- Quando começamos a falar de nós, Rick?

 

- Agora, se assim quiser. Estamos sós.

 

- Vim cá para uma explicação. Bem o sabe.

 

Ele fê-la dar meia volta bruscamente e tomou-a nos braços. O beijo que respondeu ao seu foi igual àquele de que se lembrava, igual àquele que desejava e aguardava.

 

- Não esperava isto?

 

Mas os lábios de Linda recusaram-se a abandonar os seus e abafaram as palavras que ele tão cuidadosamente preparara. O sangue correu, ferveu-lhe nas veias, e ele apertou-a ainda mais a si, todos os planos esquecidos, todos os projectos abolidos, apagados no prazer mais forte do que a vontade. Acabou no entanto por libertar-se do amplexo e imediatamente passou para o outro lado duma respeitável mesa.

 

- A mãe natureza, Linda... Como é hábito, mais uma vez dominou o espírito...

 

E, dizendo isto, sentou-se, lutando por reencontrar o domínio de si próprio. A sua mão tocou num papel dobrado, um bilhete que lhe era endereçado, escrito por Terry. Afastou-o para o lado e ofereceu uma cadeira a Linda.

 

- Posso falar claramente?

 

- Se não se importa, prefiro.

 

- O outro dia, em Argel, disse que me amava. Posso assegurar-lhe que sucedeu o mesmo comigo?

 

Ela inclinou-se para ele através da mesa. Todo o céu que Rick podia sonhar esperava-o naqueles olhos. Afastou, no entanto, os seus para poder prosseguir:

 

- Não me pergunte como isso sucedeu. Suponho que me esforcei por repeli-la do meu coração durante muito tempo.

 

- Isso sucedeu também comigo - observou Linda numa voz terna.

 

- Evidentemente, nunca se sabe como nem porquê. Sobretudo quando é real. Imagino que a luta se trava sempre no fundo do subconsciente. E, de repente, a verdade fere-nos, como um clarão... Lamento não poder mostrar-me muito original, mas quando a vi esta manhã sobre a duna tive a certeza absoluta de que não se tratava duma sensação superficial, mas sim dum sentimento profundo, verdadeiro... Recebi o golpe directamente, sem ter tempo sequer para pensar... Pode compreender isto?

 

Linda riu baixinho, um riso de contentamento:

 

- É engraçado, como começámos por nos detestar...

 

A pergunta que Rick fez a seguir foi absolutamente involuntária. Não tinha a intenção de a fazer. Dadas as circunstâncias, não era muito elegante:

 

- Quando se decidiu a meu respeito?...

 

- Não sei. Talvez durante a viagem, quando o vi pela primeira vez entregue ao seu trabalho.

 

O seu riso tinha agora intonações estranhas, era o riso impudico das mulheres que vêem desfeitos todos os seus receios.

 

- Não, não é verdade, não foi na viagem. De facto fiquei louca por si desde o momento em que me roubou um beijo na varanda do clube, em Inglaterra. Mas não o queria confessar, nem mesmo a mim própria.

 

Rick decidiu-se, ou agora ou nunca:

 

- Isso coloca-a um pouco à minha frente. Eu estava apaixonado por alguém quando deixámos a Inglaterra...

 

Numa voz serena ela observou:

 

- Suspeitava isso mesmo. Trata-se de Carolyn?...

 

- Sim, eu e Carolyn Rycroft estamos noivos. - E continuou, sem retomar fôlego, esforçando-se por ignorar a pergunta que lhe lia nos olhos. - Estamos noivos, desde Gibraltar.

 

Ele poderia suportar aquilo melhor se Linda gritasse ou se se desse ao luxo duma lágrima ou duas. Mas não, limitou-se a olhá-lo fixamente durante algum tempo, antes de responder:

 

- Se a amava... porque me deixou?...

 

- O que podia eu fazer?

 

- Podia ter-me dito isso antes.

 

- Deu-me tempo para lho dizer em Argel?

 

Linda considerou que ele tinha razão neste ponto, depois observou:

 

- Beijou-me ainda há pouco. Disse que me amava. Agora diz que ama mais...

 

- Não disse nada disso. Afirmei-lhe, sim, que prometi casar com ela. E não falto ao que prometo. - Olhou-a com um sorriso forçado e ajuntou: - Talvez tivesse sido melhor para si, ou provavelmente pior, um mês antes, quando eu era ainda um verdadeiro lobo. Tê-la-ia cortejado com fervor, levando-a até onde quisesse seguir-me. Mas agora não posso nem devo entregar-me a esse jogo. Ensinou-me melhores maneiras.

 

Linda respondeu-lhe com um sorriso tão forçado como o dele:

 

- Obrigada ao menos por isso, Rick.

 

Mas ele continuou, ignorando a interrupção:

 

- Parece-me que todo o homem tem de pagar o seu tributo à honestidade, para que a raça humana possa sair intacta de toda esta embrulhada. Estou a pagar o meu agora, ou não?

 

- Que quer que eu faça?

 

- Não tenho nenhuma ideia. Se soubesse onde a encontrar em Casabranca, tê-la-ia avisado para não vir cá.

 

Linda conservava o mesmo sorriso:

 

- Devia saber que eu não demoraria muito tempo sem correr no encalço do meu homem. Admitindo, claro, que ele estivesse ainda...

 

Rick não podia acompanhá-la naquele tom ligeiro. As mulheres, na verdade, não tinham o direito de rir em tais momentos... A tradição era formal: deviam chorar, bater no peito. A escolha das suas manifestações estava de há muito estabelecida pelos costumes...

 

- Não pode manter esta conversa num plano mais elevado? Ou imagina por acaso que me diverte ter de renunciar à mulher que amo?

 

- Manter-me-ei num plano tão baixo quanto me agrade, Rick Winter. E tome as coisas tal como lhas digo. E, para começar, uma pergunta antipática: o que é que o seduz ao certo em Carolyn Rycroft?

 

- Apaixonei-me por ela em Inglaterra...

 

Mas não pôde dizer mais nada. Nem mesmo a Linda. Essa noite de black-out com Carolyn era sagrada, segundo o seu código de honra. Alguma coisa de que não falava, a respeito da qual não permitiria comentários a ninguém, nem mesmo à mulher que lhe revelara a diferença que existe entre a simples paixão e o verdadeiro amor. Ou, mais exactamente, a estranha síntese que uma mulher pode realizar da paixão e do amor, se é suficientemente inteligente para a conseguir... Carolyn nunca realizaria essa síntese, admitia-o agora com certa tristeza. Durante o black-out, toda ela fora chama e selvagem abandono. Extravasara nessa noite o molde do puritanismo, mas regressara naturalmente a ele no alvorecer do novo dia. Agora que eram noivos, não haveria mais abandonos. Nem mais nenhum êxtase... Rick limitou-se por isso a dizer:

 

- Talvez haja coisas que eu não possa explicar, nem mesmo a você.

 

- Carolyn é boa rapariga, Rick. Bastante delicada, realmente.. . - Linda fez uma pausa. Ele nunca a vira antes lutar com falta de palavras. Mas, desta vez, ela procurava dizer o que pensava sem parecer ciumenta: - Sim, muito gentil, na verdade... Mas não posso compreender como você e ela... - Uma vez mais hesitava na frase a empregar: - Foi o trabalho em comum que vos aproximou?

 

- Se assim prefere.

 

- Não, não pretendo tornar-me antipática, procuro apenas compreender.

 

- E admita que nem eu próprio compreendo. Mas o certo é que não desejo falar nesse assunto.

 

Linda caminhou até à entrada da tenda e olhou para o exterior. Lá fora o sol da manhã começava a flamejar. Os canhões tinham principiado o seu diálogo ao fundo do vale. Mas nem um nem outro os ouvia. Quando ela por fim se voltou, ele viu que chorava. Lágrimas silenciosas, que facilmente se dominam. Winter deu alguns passos ao seu encontro, bateu-lhe amigavelmente no ombro e esboçou um sorriso, pensando ao mesmo tempo na ridícula ineficácia do seu gesto.

 

- É justo, Rick. Seja o noivo perfeito, está no seu direito. E não me julgue mordaz, nem impertinente, estou longe de querer sê-lo. Diga-me simplesmente o que devo fazer. Quer que felicite Carolyn?

 

- Se isso não a contraria, prefiro que não faça nada, o noivado ainda é segredo.

 

- Não me contraria de forma nenhuma. Talvez prefira que eu descubra outra guerra e marche para lá a toda a pressa?

 

Rick fixou-a com um olhar triste:

 

- Isso devia ser o mais simples para nós os dois.

 

A voz que lhe respondeu testemunhava que as lágrimas de Linda tinham secado há muito:

 

- Ir-me-ei embora tão depressa quanto o aconselhe a decência. No fim de contas, vim aqui buscar elementos para um artigo. Pelo menos foi essa a desculpa que dei em Argel. Poderei aproximar-me um pouco da frente?

 

Rick juntou-se-lhe à entrada da tenda e tomou subitamente consciência do importante combate que fazia estremecer a terra e o céu para os lados de leste.

 

- Com uma batalha de tanques em pleno desenvolvimento? Amos tirava-me a pele se a deixasse sair do acampamento.

 

- Mas tenho pelo menos de o cumprimentar. Pode indicar-me um canto sossegado e uma máquina de escrever enquanto espero o seu regresso?

 

Desta vez ele olhou-a bem nos olhos:

 

- Creio que é proibido tomar notas aqui. Linda deu um passo na sua direcção:

 

- Rick, por favor... Não vê que tenho de ocupar a manhã em qualquer coisa para não enlouquecer?

 

- Há uma máquina portátil na tenda de Terry. Diga à ordenança dele que vai para lá. - Como ela se voltasse para sair, Rick deteve-a. - Evidentemente, não devia ter-lhe dito que a amava. Detestar-me-ia menos se eu guardasse para mim essa confissão?

 

De súbito ela caiu-lhe nos braços, abraçando-o como para a eternidade.

 

- Beije-me, Rick... Só mais uma vez... Depois irei ao meu trabalho.

 

Ele beijou-a: meigamente primeiro, depois sentiu sob os seus lábios os da jovem tornarem-se perdidamente ternos...

 

- Obrigada - disse ela por fim, numa voz rouca. - Quem me dera que isto pudesse durar sempre...

 

Depois saiu, de ombros orgulhosamente direitos, muito elegante no seu uniforme, o barrete posto no mesmo ângulo atrevido. «Devia usar um capacete, assim tão perto da frente», pensou estupidamente Rick e estendeu a mão para a deter, mas ela já tinha partido...

 

Durante algum tempo permaneceu à entrada da tenda, irresoluto, a ouvir-lhe os passos no carreiro de pranchas que conduzia às tendas dos oficiais. Só lhe restava voltar para a sua mesa de trabalho...

 

Ao sentar-se à secretária, a sua mão tocou no bilhete de Terry. Ao princípio, olhou-o vagamente, sem o ver. Um homem não diz adeus ao seu amor e à sua felicidade sem perder um pouco o equilíbrio.

 

Quando por fim leu e digeriu as palavras, voltou-lhe de súbito a lucidez do espírito. Terry escrevera:

 

Apenas uma palavra, Rick, no caso de chegar tarde ao acampamento. Strung vai comigo à frente de batalha, e isto deve ser suficiente para lhe dar uma ideia de como as coisas correm. É bem possível que, sem aviso prévio, tenhamos de mudar de poiso antes da alvorada. BUI assumiu o comando e suponho que está ao corrente de tudo... Se Linda manifestar a intenção de ficar, queira remetê-la para a estação de caminho-de-ferro, e pronto!

 

Naquele calmo aviso transparecia uma verdade clara. Strang, bem colocado para saber tudo, recebera sem dúvida a informação de que a retirada estava iminente. Essa ameaça fora suficiente para forçar o chefe a deslocar-se às primeiras linhas para receber ordens de Amos Elaine... Terry limitara-se a transmitir a informação, de amigo para amigo. Cumpria a Rick tomar as decisões que julgasse mais aconselháveis.

 

Winter percorrera já metade do carreiro de pranchas quando se lembrou que não estava em posição de dar ordens a Linda. Se existia o risco de se romperem as linhas, ou mesmo de uma derrota importante na planície, o hospital de campanha tinha a obrigação, a necessidade absoluta de retirar na melhor ordem possível, para se ir estabelecer noutra zona de maior segurança. Se Linda soubesse o perigo que corriam, nunca consentiria em sair dali, antes da unidade retirar. Era demasiado boa jornalista para isso.

 

Dentro da tenda de Terry, Winter ouviu o matraquear rápido da máquina de escrever. Era uma forma pessoal de isolamento. E refugiava-se nela, fugindo assim, pelo trabalho, à obsessão de amar e de perder o seu amor. Seria uma crueldade inútil privá-la dessa evasão, antes de possuir informações seguras.

 

Voltou num passo firme para as tendas do hospital, tendo tomado uma decisão, pela segunda vez nessa manhã.

 

Nas enfermarias tudo estava tranquilo. Ao percorrer as vastas tendas, onde dançavam os raios do Sol, Rick viu a maior parte dos leitos vazios. É claro, as ambulâncias tinham podido evacuar quase todos os doentes para a nova estação de reabastecimento estabelecida a ocidente. Alguns feridos continuavam ali hospitalizados, mas não lhe parecia que qualquer deles estivesse em perigo de vida. Parou uns momentos junto do rapaz que na véspera operara ao pulmão. Dormia tranquilamente graças a um ligeiro sedativo; agora que o tubo traqueal igualara a pressão na cavidade torácica, a sua respiração era quase normal, assim como o pulso. Sucedesse o que sucedesse, pensou Winter, aquele soldado podia ser salvo se porventura saíssem ainda comboios-hospitais de La Crevette.

 

Dirigiu-se para a tenda de operações. Bill Coffin, quase deitado sobre a única mesa iluminada, tratava uma fractura do crânio, aliviando com mãos hábeis a pressão que paralisava um lado do corpo do ferido. Visto à distância, dir-se-ia um trabalho de simples rotina para Bill Coffin. Rick teve disso a certeza quando viu o amigo, depois de polvilhar com sulfamida todo o interior da ferida, recuar alguns passos e deixar ao assistente o cuidado de fechar a laceração.

 

- Tens tempo para fumar um cigarro, Bill?

 

O major bocejou prodigiosamente e seguiu-o para o ar livre. Sentaram-se um ao lado do outro numa mesa operatória desmontada:

 

- Parece-me que terei tempo de passar pelo sono se a ambulância não nos visitar esta manhã.

 

Mas o sorriso cansado de Bill desvaneceu-se ao reparar na expressão grave de Rick.

 

- Estás muito sério, meu velho! Que se passa?

 

Sem comentários, Winter mostrou-lhe o bilhete de Terry. Bill examinou-o cuidadosamente:

 

- O telégrafo oculto propaga isso mesmo desde ontem. Mas o que saberá Terry de positivo?

 

- Provavelmente, apenas o que Strang lhe disse antes de partirem, e deve ter sido bastante. Como sabes, Strang sempre desabafou com o rapaz. Se queres saber a minha opinião, parece-me que não tardaremos a desmontar este acampamento e a tomarmos outra direcção...

 

Inclinou-se para trás e atirou um anel de fumo para o ar imóvel do meio-dia. Uma descarga de artilharia ecoou ao fundo do vale.

 

- Não me digas que a refrega se aproxima - comentou Bill.

- Eu também posso imaginar as coisas. Dá-me a tua opinião, meu velho. Ou, melhor, considera-te no comando e dá-me as tuas ordens. Segui-las-ei.

 

Antes de responder, Rick considerou bem o pedido. A extrema mobilidade do hospital permitia deslocá-lo facilmente para a retaguarda, em caso de perigo iminente. Desde que dispusessem duma hora para despacharem os feridos em estado mais desesperado, podiam partir em seguida sem receio de que as balas lhes assobiassem aos ouvidos. Todo o equipamento de reserva podia carregar-se desde já em metade dos veículos e ficar aguardando ordens; o resto seria evacuado nos transportes postados em frente das tendas. Tudo seria simples se Bill desse as ordens necessárias. Apenas as usuais precauções, sem quaisquer indícios de nervosismo.

 

Rick pensou de novo em Linda. Bastaria uma palavra de Bill para ela ser enviada imediatamente para a retaguarda; como comandante da unidade, agora tudo quanto ele ordenasse era lei. No entanto, não faltariam comentários se um civil fosse evacuado antes dos feridos. Mais uma vez estava perante um caso preciso em que o dever e o amor se opunham.

 

Disse numa voz segura:

 

- Creio que devemos preparar tudo para a retirada. Se alguém perguntar porquê, expõe-lhe os factos tal como são. O grupo já viu o suficiente para ter experiência.

 

- E o que se faz da jornalista que está connosco?

 

- Linda pode seguir numa ambulância, quando algum condutor tiver lugar para ela. E que pensas dos homens hospitalizados esta manhã?

 

- A maior parte deles seriam evacuados, duma maneira ou doutra, para um hospital da retaguarda. Em caso de emergência, correrei o risco de mandar todos.

 

- Incluindo o rapaz que operaste agora?


- Sim, esse também, está em boa forma, e não recearia transferi-lo se pudesse viajar ao seu lado.

 

- Nesse caso não há dificuldades. No teu lugar, entrava já em contacto com o chefe do serviço das ambulâncias e dava-lhe ordens para apressar o tráfego com essa estação de caminho-de-

- ferro. Em seguida, punha todo o pessoal a acondicionar e a carregar o equipamento. E finalmente chamaria um jipe e iria ver com os próprios olhos como corriam as coisas.

 

Rick já estava instalado ao lado do condutor do jipe quando Bill saiu da tenda do comando depois de dar as suas ordens. Era bom sentir de novo as rodas do veículo calcarem o pó do caminho; era bom corresponder aqui e além às continências dos soldados e correr a toda a velocidade em direcção a leste... É claro, esta maneira de meter o nariz em certos assuntos era tudo o que havia de menos oficial. Nada, absolutamente nada, nos regulamentos autorizava o Corpo Médico a fazer perguntas à Infantaria, nem mesmo por dedução. No entanto, ambos experimentaram um delicioso sentimento de participação quando o jipe, metendo-se atrás dum carro do Estado-Maior, se lançou no macadame a todo o gás.

 

- O que diremos se nos mandarem parar? - inquiriu Bill.

 

- Mostra cara de pau e pergunta por Amos. Justamente pouco antes de a estrada atingir a planície, fazia um pronunciado cotovelo, desviando-se para o norte, e evitando assimo leito fundo dum ribeiro, ressequido pelaestiagem e àespera das primeiras chuvas do Outono. A curva, situada num plano elevado, constituía excelente posto de observação natural, donde se avistava toda a região em volta. A engenharia aproveitara-a para instalar no flanco da colina plataformas de canhões, meias-luas de cimento ainda fresco que esperavam silenciosamente o próximo embate. Rick murmurou uma ordem ao motorista ao reparar no enxame de silhuetas vestidas de caqui agrupadas em volta dum camião à beira da estrada. E com o cotovelo chamou a atenção de Bill.

 

- Corrige-me se porventura me engano, mas não estão a descarregar munições?

 

- E carretas giratórias para a artilharia.

 

Saltaram os dois para os tijolos vermelhos da berma da estrada. O motor do jipe soava agora apenas como um murmúrio e os seus ouvidos reagiram vivamente ao silêncio. Não precisaram de olhar para leste para saberem que o fogo findara. A nuvem de poeira vermelha que redemoinhava na planície contava toda a história. Algures, nas funduras do plaino, entre oliveiras de troncos retorcidos, um batalhão de tanques dava meia volta e recuava, para retomar alento após um ataque frustrado. Quando viram chegar um canhão, rolando encosta acima, tiveram então uma imagem bem nítida da retirada. Os artilheiros já estavam na berma da estrada antes de o veículo parar, e começaram logo a retirar as coberturas de oleado do cano.

 

- Desta vez parece que não é difícil adivinhar o que se passa - asseverou Bill. - O melhor que temos a fazer agora é voltar para trás a toda a velocidade e pôr a trabalhar a brigada de ambulâncias.

 

Um capitão de engenharia, coberto de pó, escalava o flanco da colina com uma pergunta no olhar.

 

- Que se passa, doutor? Não os mandámos chamar... Bill respondeu afavelmente:

 

- Parece que espera visitas, capitão. Quer que instalemos aqui um posto de recolha?

 

O oficial esboçou um sorriso.

 

- Por enquanto não, major. Estamos a dispor as coisas para um piquenique, até recebermos novas ordens. No entanto, já que falámos em recolha, podem ir pescar um dos vossos um pouco mais abaixo. Parece que o motor do carro não anda.

 

O motorista pôs o jipe em movimento e desceram a íngreme ladeira a uma velocidade temerária, patinando quando pararam na curva seguinte. O outro jipe do Corpo Médico estava parado na berma, num ângulo inquietante; o vapor tremulava, qual pluma, por cima do radiador, e o motorista praguejava com eloquência. Sentado no banco, uma figura encurvada escondia a cabeça nos braços encostados ao espaldar do assento da frente. Quando essa figura se endireitou, Rick reconheceu Randall Strang. Um Randall Strang já sem aprumo, toda a sua soberba esfrangalhada, em ruínas, a cabeça envolta num penso manchado de sangue.

 

O chefe reconheceu-os e agitou um braço. Rick correu para ele, e Strang conseguiu esboçar um leve sorriso, embora os lábios lhe tremessem.

 

- Que sucedeu? Onde está o coronel Elaine?

 

O major tentou falar, mas todo o seu rosto se torceu nervosamente. Quando por fim conseguiu articular algumas palavras, não eram mais do que rouco balbuciar:

 

- Lá em baixo... bombardeados... todos nós...

 

- O coronel está ferido?

 

- Não gravemente. Deixei-o num camião e...

 

O esforço era demasiado; Strang deixou cair a cabeça nos braços e rompeu em soluços.

 

A um sinal de Rick, Bill foi agarrar o outro braço do chefe. Os dois retiraram-no dali, deixaram-no descansar um pouco e retomar alento na berma da estrada e instalaram-no depois no seu próprio jipe. No caminho, Rick tomou-lhe o pulso. As pulsações eram rápidas, mas fortes e regulares. Era evidente, o homem tinha direito ao rótulo familiar de sinistrose, ou psicose traumática, ou neurose de guerra, como agora se chamava. Mas, qualquer que fosse o nome, uma coisa era certa: seria riscado do serviço até nova ordem.

 

A primeira ambulância passou por eles quando retomavam o caminho do acampamento. Outras se seguiam, na longa subida, desde o fundo da planície, arranhando o macadame com quanta força tinham.

 

Bill Coffin amparou o chefe durante todo o trajecto. Rick examinou-lhe o penso da cabeça: tal como supunha, a ferida era apenas superficial; fora o colapso mental e não a perda de sangue que lhe esfrangalhara toda a compostura.

 

Rick percebeu que Bill estava de acordo com o seu irreverente diagnóstico quando o jipe parou em frente da tenda de admissão. A solene piscadela de olho que o amigo lhe dirigiu confirmou a sua opinião de que Randall Strang pertencia já ao número das dores de cabeça do passado.

 

- Pode fazer o trajecto numa ambulância?

 

- Creio que sim - respondeu Strang numa voz débil. - Se ao menos pudesse tomar um pouco de brande...

 

- Não é muito aconselhável com uma ferida na cabeça. Bill voltou-se para trás e deu instruções a uma ambulância para transportar o chefe.

 

- Pessoalmente, major, estaria muito mais satisfeito se o soubesse já em La Crevette.

 

- Não quer que lhe diga como há-de encontrar o coronel? Bill respondeu jovialmente:

 

- Parece-me que tenho de deixar esse cuidado aos rapazes das ambulâncias. Neste momento estamos cheios de trabalho.

 

Apertou-lhe a mão fria. - Desejo-lhe boa sorte. Voltaremos a ver-nos em Blighty1.

 

Ninguém disse nada quando Strang, em passo vacilante, caminhou para uma ambulância. Um enfermeiro ajudou-o a subir. Qualquer manifestação de regozijo seria despropositada naquele instante, mas traduziria às mil maravilhas os verdadeiros sentimentos dos dois jovens oficiais, que a prudência e a disciplina mantiveram mudos. Bill Coffin limitou-se a tocar com o cotovelo nas costas de Rick, quando os dois entraram na tenda de admissão.

 

- E falavas tu em levantar ferro...

 

Depois Rick despiu a blusa e a camisa e correu para a tenda de operações.

 

A partir desse momento recomeçou a rotina familiar.

 

Durante toda a tarde tratou uma torrente contínua de feridos. Alguns soldados esboçavam um sorriso e pediam um cigarro; outros pertenciam a essa categoria de heróis obstinados que insistem em esperar, para que os feridos mais graves possam ser atendidos sem demoras; muitos estavam lívidos devido ao estado de choque ou semidelirantes por causa da infecção; finalmente alguns eram casos francamente desesperados e falavam sem descanso do complexo horror moderno que tinham enfrentado pela primeira vez.

 

Tudo isto era para Rick uma rotina bastante familiar: fazer parar hemorragias, tratar estados de choque, reparar os estragos causados pela guerra, acrescentando o menor sofrimento possível ao fardo já muito pesado que os corpos suportavam.

 

Os pacientes tratados na véspera iam agora a caminho da via-férrea; as ambulâncias andavam numa roda-viva, levando os feridos menos graves de cada fornada e dando trabalho e sempre mais trabalho às mesas de operações, que eram ocupadas de novo quase antes de estarem vazias.

 

Duas enfermeiras andavam em sua volta, mas Rick não chegou a reparar qual delas era Carolyn, tal era a febre daquela tarde... As duas eram «especializadas em cirurgia» e as duas se mostravam atentas e hábeis: isso é que importava. Transformara-se voluntariamente numa máquina. Nenhuma outra solução, na verdade, lhe permitiria dar conta de tanto e tanto trabalho continuamente renovado.

 

Nome familiar com que os militares designam a Inglaterra.

 

Quando por acaso teve um instante de pausa para poder respirar, congratulou-se pela sua atitude impessoal a respeito de Linda Adams. Bill prometera despachá-la para La Crevette assim que tivesse um lugar vago numa ambulância. Naturalmente ela partira sem ter tempo sequer de lhe dizer adeus. E congratulava-se por isso, pois dificilmente conseguiria despedir-se de novo com a mesma calma aparente que mostrara de manhã.

 

Pelas cinco horas, o movimento diminuiu um pouco. Às seis horas pôde enfim dispor de três minutos para ir fumar um cigarro e tomar um pouco de ar fresco: precisava bastante duma coisa e doutra. O Sol declinava e desaparecia por trás da colina e o céu perdia aos poucos os seus reflexos rosa e ouro. Uma ambulância isolada chegava do vale, subindo a custo a encosta antes de atingir o pequeno planalto onde se erguia o acampamento.

 

Rick não viu a jovem que, mal a ambulância parou, saiu a correr da sombra das tendas, e só deu verdadeiramente pela sua presença quando a mão dela segurou o punho da porta um segundo antes da sua.

 

- Pensou que me ia embora assim tão facilmente? - perguntou Linda.

 

Rick limitou-se a olhá-la em silêncio, na semiobscuridade do crepúsculo. Ela aparecia-lhe vestida como uma enfermeira, o mesmo trajo com que vira Carolyn na última noite perto do refeitório.

 

Instintivamente, recuou um passo, quando Linda abriu a porta da ambulância para permitir que os enfermeiros retirassem as macas.

 

- No caso de estar perplexo, capitão - admitiu Linda com calma impertinência -, devo dizer-lhe que embarquei esta tarde. Mas felizmente tomei primeiro a precaução de pedir emprestado este uniforme à sua noiva.

 

Rick permitiu aos nervos fatigados que se distendessem num sorriso:

 

- Eu já devia saber a sua força e por isso adivinhar que duma maneira ou doutra arranjaria forma de ficar aqui. Tem procurado ser útil?

 

- Fiz o que pude.

 

A primeira maca saía da ambulância e Rick afastou-a. Antes que Linda o visse ali estendido, Rick Winter quis saber a gravidade dos ferimentos de Terry Adams.

 

A voz de Terry era bastante confiante:

 

- Olá, Rick! Não me olhe assim com ar tão surpreendido. Corre tudo bem. Uma pequena sacudidela, sem importância.

 

Os dedos de Rick apertavam-lhe já o pulso. As pulsações eram bastante regulares e não muito precipitadas. Mas a sua palidez de cera inquietava-o, embora à primeira vista não lhe descobrisse nenhuns sinais de choque. O caso tinha todo o aspecto duma perturbação de circulação em desenvolvimento. O seu espírito estabelecia um rápido diagnóstico, enquanto com a mão livre impedia Linda de se aproximar.

 

Mas Linda mostrou-se bastante calma quando ele por fim lhe permitiu inclinar-se para a maca onde repousava o irmão:

 

- O que tens, Terry?

 

- Uma pequena sacudidela, sem importância.

 

Repetia maquinalmente a frase. Rick notou que ele contraía os lábios e levava a mão ao abdome. Já examinara aquela área e não encontrara nenhum sinal de contusão. Inquieto, franziu as sobrancelhas no escuro.

 

- Sossega, meu rapaz. O que é que te dói agora?

 

O espasmo passara e os lábios de Terry distenderam-se num sorriso.

 

- Nada. Absolutamente nada, Rick. Apenas uma pequena sacudidela, sem importância. Vá ver o coronel...

 

Winter afastou do caminho a jovem para deixar passar os enfermeiros que desciam da ambulância com uma segunda maca. Depois, lado a lado, seguiram os feridos até à tenda de admissão.

 

Amos Elaine estava dolorosamente mas não gravemente ferido. Assim que viu aquele indomável sorriso, Rick compreendeu logo que Amos continuaria a viver para ocupar o seu lugar, se fosse preciso, ainda noutra guerra. o exame revelou-lhe um úmero fracturado, mas já protegido por uma tala de urgência. Depois de levar uma injecção calmante, e de se lhe envolver o braço ferido numa volumosa ligadura, o coronel ficou em condições de se sentar na maca.

 

Terry fora levado, em observação, para a tenda de choque e nele se concentravam agora todas as preocupações de Winter. Sempre aquela palidez de cera, uma espécie de contracção em volta dos lábios, o pulso fraco e nenhuma ferida visível. O breve espasmo de dor aguda que Terry tentara dissimular à saída da ambulância não passara despercebido ao cirurgião.

 

Mandou dar-lhe uma injecção e administrar-lhe plasma. Depois, deixou inda ao pé do doente e voltou para a tenda de admissão.

 

O afluxo de feridos cessara definitivamente. Pela primeira vez depois de várias horas tomava consciência de que os canhões prosseguiam algures o seu furioso diálogo, para os lados de leste, ao fundo do vale. Não tinha bem a certeza, mas parecia-lhe que o rumor se deslocara um pouco para o norte. Talvez a maré da batalha tivesse por fim assolado a estrada do vale, e, se assim fosse, estariam cortados, por esse lado, todos os caminhos da retirada. Mas essa ideia dificilmente a concebia o seu cérebro fatigado; o facto de ter realmente um pouco de tempo para respirar parecia-lhe muito mais importante...

 

Na tenda do comandante do acampamento, Amos e Bill Coffin estavam confortavelmente instalados em duas camas vizinhas. O coronel parecia agora menos dorido, graças a uma ligeira dose de morfina; duas ordenanças colocavam-lhe um travesseiro atrás das costas para nele se recostar, enquanto Bill se inclinava e lhe acendia o cigarro.

 

- Como está Terry?

 

Rick abanou melancolicamente a cabeça.

 

- Não me agrada nada o seu estado, coronel. Pode contar-me o que sucedeu?

 

Amos falou devagar:

 

- A granada abriu um buraco na estrada, justamente na nossa frente, do lado esquerdo. Fomos todos projectados para longe...

 

- O major Strang também?

 

O comandante esboçou um sorriso na semi-sonolência provocada pela morfina:

 

- Já o viu, portanto?

 

- Vai agora a caminho de Argel, por minha ordem - esclareceu Bill.

 

- Fico contente em sabê-lo - declarou Amos. - A sacudidela transtornou-o por completo. Por isso o mandei embora mais depressa num jipe.

 

- E o meu coronel?

 

- Terry ficou comigo até aparecer uma ambulância. Instalei-me confortavelmente...

 

Rick imaginava o que podia ser esse conforto, sem morfina, cada movimento a fazer penetrar na carne do braço as pontas aceradas do osso partido. Randall Strang, muito menos atingido, mostrara-se pusilânime de todo. Bem, ao menos podiam agora correr uma cortina sobre Strang. Bill Coffin sucedera-lhe no comando. Mesmo que Amos ficasse inválido, Bill seria capaz de acabar a tarefa por ele iniciada.

 

- Pode continuar, meu coronel.

 

Os olhos sonolentos de Amos agitaram-se.

 

- Terry apanhou a sua conta justamente depois de a ambulância parar para eu entrar nela. Um desses negros escaravelhos de Berlim desceu a menos de duzentos metros para pôr um ovo. Creio que nem mesmo chegou a ver-nos. Possivelmente visou a cruz vermelha da ambulância, mas visou mal. Eu já estava lá dentro, Terry saíra em busca da minha caixa medicinal. A bomba explodiu ao lado da estrada. Parecia ter sido a uma boa distância e, no entanto, atirou-o ao ar como uma bola...

 

Rick susteve a respiração. Agora o quadro parecia-lhe suficientemente claro. Terry fora vítima desse estranho tipo de acidentes que sucediam com frequência durante os bombardeamentos. Ninguém pudera ainda descrever exactamente a patologia, mas era coisa bem conhecida que a força da explosão podia romper os vasos sanguíneos em qualquer parte do corpo, sobrevindo assim uma hemorragia: cerebral, pulmonar, abdominal...

 

- E ficou inanimado?

 

- Por pouco tempo. Voltou à ambulância pelos seus próprios meios. Não queria mesmo deitar-se numa maca e tive de lho ordenar. ..

 

Bill exprimiu o próprio pensamento de Rick ao sugerir:

 

- Talvez tenha sofrido lesões internas motivadas pela deslocação do ar.

 

Rick ergueu-se bruscamente:

 

- É exactamente isso o que eu penso. Vou examiná-lo de novo.

 

Na tenda de choque, sentou-se ao pé do leito de Terry. O rapaz repousava, tranquilo, sob o efeito da morfina. O seu pulso era agora fraquíssimo e o volume duma pobreza inquietante, apesar da injecção de plasma. Isso significaria que o coração acelerava o seu ritmo, esforçando-se por manter o afluxo sanguíneo nos vasos já dilatados? Era um sinal de choque, do choque na sua forma mais profunda, do tipo que se produz nas hemorragias. E, no entanto, não havia nenhum indício de hemorragia... Lesões internas, era sem dúvida o diagnóstico mais indicado, mas não tinha ainda a certeza. Só lhe restava vigiar e esperar.

 

Quando findou o exame, teve consciência da presença de Linda ao seu lado.

 

- Já não chegam mais feridos - observou ela. - Isso significará alguma coisa?

 

- A frente de batalha pode ter-se deslocado. Linda aceitou a ideia absolutamente calma.

 

- E foi por isso que me mandou embora, não é verdade?

 

- Talvez fosse uma das razões - admitiu Rick. - Lamenta não ter ido?

 

Os olhos de Linda pousaram em Terry e não respondeu à pergunta:

 

- Se a unidade retiraresta noite, ele poderá ser transportado?

 

- Não lho posso dizer neste momento.

 

- Fale-me sinceramente e sem rodeios. Se Terry está em perigo, tenho o direito de saber.

 

- Enquanto durar o estado de choque não posso responder à sua pergunta. Por agora, gostaria de lhe dar algum sangue, seria uma espécie de seguro de vida. O sangue fresco e completo é melhor do que o plasma para combater a hemorragia. Fornece as células vitais indispensáveis, assim como os elementos coagulantes.

 

- Somos do mesmo grupo sanguíneo - informou Linda em voz calma. - Posso dá-lo?

 

- De que letra?

 

- B.

 

Rick esperava poder dá-lo ele próprio, mas o seu grupo era diferente.

 

- Tenho de verificar - asseverou ele. - Não pode haver qualquer perturbação.

 

A partir desse instante, tudo passou a ser estranhamente impessoal e prosaico, como se se tratasse duma visita a um posto de dadores de sangue. Linda não vacilou quando ele lhe picou o dedo. Depois, uma vez estabelecida satisfatoriamente a identidade, a jovem estendeu-se numa maca e viu o seu sangue, vermelho-escuro, correr das suas veias para o frasco com uma solução de citrato, donde seria em seguida lançado, por meio de sifão, na circulação sanguínea de Terry. Quando tudo terminou, sentou-se muito tranquilamente, recusando o uísque que Winter lhe oferecia. Por momentos dir-se-ia querer falar, mas a mão de Rick apoiou-se docemente no seu ombro.

 

- Repouse, repouse - disse-lhe. - Eu vou sair agora. Enquanto Hal Davis trabalhava na transfusão, Rick deu uma

volta pelas outras tendas. As ambulâncias continuavam à espera para conduzir para a retaguarda os casos menos graves. Ele estava disposto a arriscar também o transporte dos outros, se fosse necessário. De todos, excepto de Terry Adams. Nada podia decidir relativamente a Terry antes de saber os resultados daquela transfusão.

 

Quando entrou na tenda do comando, encontrou Bill Coffin todo entregue ao seu trabalho. Logo à primeira vista, o volume e a natureza desse trabalho deram-lhe a resposta de que precisava. Nem por isso deixou de fazer a pergunta:

 

- Realmente vamo-nos embora?

 

Bill abanou a cabeça sem erguer os olhos:

 

- A ordem acaba de chegar. Temos de preparar tudo e partir imediatamente.

 

- Estás agora satisfeito por havermos começado os preparativos com a necessária antecedência?

 

- Algumas vezes pergunto a mim próprio o que faria eu sem ti.

 

- Pois farás bem em encontrar imediatamente a resposta. Creio que não sairei daqui.

 

Bill atirou o lápis para cima da mesa:

 

- Por causa de Terry?

 

- Estou a fazer-lhe uma transfusão. Desmontavam-se as tendas em todo o acampamento quando

 

Rick deixou Bill e se afundou outra vez na noite. Viu nesse instante com satisfação que o gerador que fornecia a corrente eléctrica às lâmpadas da sala de operações estava montado num camião próximo da sua tenda. Isso significava que podia ficar até ao último momento.

 

Quando voltou à tenda de choque, a transfusão estava no fim. Retirou a agulha e entregou o aparelho à enfermeira que esperava. Da maca ao lado, Linda Adams seguia-lhe todos os movimentos atentamente. Tinham-lhe voltado as cores ao rosto, por isso Rick não se opôs a que ela se sentasse.

 

- Oiço desmontar as tendas. Vamos partir? - inquiriu.

 

- Simples precaução, por enquanto - respondeu em voz tão jovial quanto lhe foi possível. - Como está agora Terry?

 

Linda abanou a cabeça:

 

- Tem estado calmo, mas não lhe noto grande diferença. Rick olhou para a enfermeira, ao fundo da tenda; ela meneou a cabeça, em sinal de concordância, enquanto ele tomava o pulso do doente. após a transfusão, evidentemente, as pulsações eram mais firmes, mas a cor do rosto não se lhe alterara. Enquanto contava, sentiu Terry mexer-se e viu os dedos do rapaz apalparem o abdomen.

 

Linda observou:

 

- Faz isso muitas vezes.

 

- Espasmos de dor - explicou a enfermeira.

 

Do fundo da sua fadiga, Rick piscou os olhos ao vê-la aproximar-se da luz. Quase não queria acreditar, mas estava ali Carolyn Rycroft. Era bem próprio do seu feitio aparecer para trabalhar sem esperar que a chamassem e adivinhar que ele nessa noite teria necessidade dela mais do que nunca.

 

Voltou firmemente as costas a essa nota pessoal e sentou-se ao pé de Terry. A primeira vez que lhe examinara o abdome não encontrara nenhuma resistência à pressão. Agora, ao mais leve contacto dos seus dedos, Terry torcia-se e gemia e os músculos abdominais tinham adquirido uma rigidez de tábua. Isso significava qualquer irritação violenta dos tecidos profundos, particularmente do sensível peritoneu, que forra a parede interior da cavidade.

 

Uma vez liberto da pressão, Terry distendia-se de novo no torpor provocado pela morfina. Rick despediu-se de Carolyn com um aceno de cabeça e saiu da tenda. Linda foi atrás dele. No carreiro de tábuas, agarrou-o por um cotovelo e obrigou-o a voltar-se, a olhar para ela à pálida claridade das estrelas.

 

- O que pensa, Rick?

 

- Sucedeu qualquer coisa... não sei ao certo... Não posso dizer nada sem ver primeiro...

 

- Quer dizer que o vai operar?

 

- Não há outro meio.

 

Teve de a amparar, pois ela cambaleava um pouco. Linda vira bastantes feridos nessa tarde, para saber já o suficiente a respeito do estado de choque. Abrir o abdome dum paciente em estado de choque era uma tentativa arriscada. Em tais circunstâncias, a intervenção cirúrgica podia mesmo ser considerada uma autêntica lotaria. Winter não ficou no entanto surpreendido quando ela anuiu lentamente:

 

- Faça o que julgar melhor, Rick.

 

- Falarei primeiro com Bill Coffin. Quer que seja ele a operá-lo?

 

- Não, quero que seja o senhor, Rick. Terry diria o mesmo, se porventura pudesse decidir.

 

Ele deixou-a aninhar-se nos seus braços e beijou-a longamente e violentamente enquanto permaneceram assim enlaçados no escuro.

 

- Suponho que estragámos agora as nossas despedidas. Fique aí e não deixe entrar mais ninguém. Vou mandar preparar tudo imediatamente.

 

Rick voltou à tenda do comando. Encontrou aí Amos e Bill Coffin verdadeiramente perturbados, o primeiro já instalado numa maca, que dois enfermeiros se aprestavam para colocar na ambulância.

 

Amos informou-se:

 

- O que é isso da operação, Rick?

 

- Lamento muito, meu coronel, mas preciso de explorar o abdome de Terry Adams. Sem isso, não posso formular qualquer diagnóstico.

 

Bill ouviu a afirmação sem manifestar a mínima surpresa. Rick sentiu-se melhor depois de os dois terem trocado em silêncio um ligeiro aceno. No fim de contas, sabia bem que Bill tomaria a mesma decisão, se estivesse no seu lugar.

 

- Lesão abdominal, deve ser o diagnóstico exacto, não achas? - arriscou Bill.

 

- Sim, hemorragia ou perfuração.

 

- Deixo-o precisamente daqui a três minutos - disse Amos.

- Esperava que pudesse vir connosco. Nunca pensei - acrescentou, estendendo-lhe a mão - que nos despedíssemos desta maneira, Rick.

 

- Talvez ainda estejamos aqui quando voltar...

 

- Desta vez não - respondeu o comandante. - Voltaremos, claro, e com todas as forças. Mas mais tarde. Desta vez tínhamos ferrado os dentes num bocado que não nos cabia na boca, daí termos de recuar. Mas isto muda. E se querem a minha opinião, valeu a pena, mesmo assim.

 

Ergueu-se, não muito dorido, e os enfermeiros ajudaram-no a estender-se na maca. Quando o levaram para fora da tenda, a mão do coronel fez uma impecável continência.


- Repara bem! - disse Rick. - Vai ali um soldado!

 

Rick saiu rapidamente da tenda sem esperar que Bill lhe respondesse. Ao ver Amos afastar-se, convencia-se pela primeira vez da gravidade da sua posição.

 

Caminhou a toda a pressa para a tenda de operações, ansioso por apagar aquele quadro do seu espírito. Carolyn lá andava, dum lado para o outro, com a sua calma habitual, em volta da mesa dos instrumentos. Ao entrar, Rick declarou-lhe:

 

- Dei ordem a um enfermeiro para a vir substituir... Mas Carolyn nem sequer ergueu os olhos.

 

- Sê razoável, querido. Habitualmente sou a tua enfermeira-assistente.

 

E ia dispondo geometricamente as pinças hemostáticas. Os seus gestos eram como sempre precisos, sem precipitação. Winter reparou que ela atingira já esse isolamento de todas as coisas exteriores tão necessário ao desempenho da sua função. Impulsivamente deu um passo ao seu encontro, mas recuou a tempo ao lembrar-se que ela vestira já a sua bata esterilizada.

 

- Se pensas que te vou deixar...

 

- O major Coffin é agora o comandante e autorizou-me a ficar- respondeu Carolyn numa voz solene.

 

- Arriscas-te a ser feita prisioneira.

 

- O mesmo sucede contigo...

 

Os seus olhares cruzaram-se, mas foi Winter quem os baixou primeiro:

 

- Trabalhamos bem juntos, não é verdade?

 

- Demasiado bem para mudarmos agora. - E Carolyn, voltando-se para a mesa, perguntou na sua voz habitual: - Que suturas desejas?

 

- De algodão, como é costume - respondeu Rick, sempre de olhos baixos.

 

Claro, acima de tudo era médico, e a segurança de Carolyn, tal como a sua própria, tinham menos importância do que o êxito da operação. No entanto esse pensamento era para ele naquele instante um bem magro conforto. O seu desejo de a proteger tornara-se muito maior agora que sabia que amava Linda.

 

Voltaram-se ambos quando Bill Coffin apareceu no triângulo de luz à entrada da tenda.

 

- Tudo preparado, minha gente? - perguntou numa voz que se esforçava por parecer natural.

 

- Dá-me só mais cinco minutos, para me lavar- respondeu Rick.

 

- Concedidos os cinco minutos. O teu paciente vem já a caminho.

 

E dito isto afastou-se um pouco para o lado e deu passagem a Dean, o anestesista.

 

Rick estava ainda a desinfectar-se bem com álcool quando os maqueiros depuseram Terry em cima da mesa. Havia agora duas enfermeiras dentro da tenda. Ao aproximar-se da luz, Rick corrigiu essa ideia falsa; a rapariga alta que estava ao lado de Carolyn, de bata branca e máscara, era Linda Adams.

 

- Posso assistir?

 

Ele encontrou o seu olhar e inclinou a cabeça em sinal de assentimento. «Ela ficaria sozinha lá fora, no escuro, agora que a unidade começava a retirar. E sempre seria preferível estar ali do que sozinha à espera de notícias...»

 

Carolyn entregou-lhe um escalpelo; a zona operatória estava já preparada. Até então tudo se passara com demasiada rapidez para poder pensar. Agora, com o bisturi suspenso sobre o abdome pintado de mercurocromo, sentiu a dúvida assaltá-lo como uma impressão física. Era uma reacção frequente num cirurgião no minuto que precedia a primeira incisão. Mas nessa noite, talvez por causa do troar dos canhões no vale, da azáfama febril que reinava no próprio acampamento, essa reacção adquirira uma força invulgar.

 

E se o seu empírico diagnóstico estivesse errado? E se não descobrisse nenhuma das complicações de que suspeitava, nenhuma parede intestinal perfurada, nenhuma víscera lacerada? E se expusesse inutilmente o seu pequeno grupo a ser capturado pelos alemães?

 

Olhou para o fino traço de sangue na pele: a sua mão, muito melhor disciplinada do que o seu espírito, traçara já uma incisão recta e segura. Carolyn passou-lhe a primeira série de pinças hemostáticas. Foi então que o seu espírito se dispôs a seguir o ritmo das suas mãos... A tenda, a noite, o troar distante dos canhões, tudo isso foi atirado para o esquecimento. O seu mundo concentrava-se agora no estreito rectângulo de pele através do qual ia penetrar no mistério duma vida em perigo...

 

À medida que tornava mais profunda a incisão, iam aparecendo as camadas argênteas do forro protector dos músculos. Parou um momento para injectar novocaína antes de cortar esse tecido fibroso e resistente e expor a curva vermelho-escura do músculo que cobria. Com toda a precaução foi separando as fibras e inseriu entre elas as lâminas ainda unidas do distensor, que um parafuso depois afastaria. Carolyn principiou logo a rodar a pequena tarraxa. As lâminas metálicas separaram-se, dividindo os músculos e pondo a descoberto o peritoneu alojado por baixo. Pela primeira vez, Rick ergueu os olhos e encontrou os de Linda. Como ela se afastasse um pouco para o escuro, baixou de novo o olhar e entregou-se ao trabalho.

 

- Hemorragia - disse.

 

Nenhuma causa podia dar ao peritoneu, habitualmente transparente, aquela inquietante tonalidade azulada.

 

- Era o que supunha, não é verdade?

 

- Uma hemorragia ou uma ruptura do intestino.

 

- Isso é melhor?

 

- Sim, se não for muito extensa.

 

Respondera à pergunta duma forma absolutamente automática. No mesmo tom categórico deu ordem para ser aplicado o éter. Até aí a anestesia local tinha evitado qualquer sofrimento a Terry, mas daí em diante a operação exigia que ele estivesse completamente adormecido.

 

Durante alguns instantes, a ferida coberta por uma esponja de gaze embebida numa solução salina, Rick esperou que o éter produzisse os seus efeitos. Não tardou que o poderoso cheiro invadisse toda a tenda. Depois, a um sinal de Dean, introduziu uma pinça na ferida e ergueu o peritoneu azulado. Carolyn erguia-o também no ângulo oposto, separando assim dos órgãos que cobria uma porção da membrana que Rick cortou para poder examinar bem o que se passava no interior do abdomen.

 

Com a ponta dos dedos delicados retirou um grande coágulo de sangue; faltava-lhe espaço paratactear à vontade, inconveniente, aliás, que as circunstâncias tornavam mínimo. Na realidade, mesmo que dispusesse de tempo suficiente diante de si não podia pôr-se à caça de todos os coágulos. Arriscar-se-ia a desalojar um que, colado a uma laceração, impedisse precisamente nova hemorragia nesse local. E o paciente estava já no limite das suas forças.

 

Winter limpou cuidadosamente o sangue que há várias horas corria para a cavidade abdominal, absorvendo-o com uma esponja de gaze. Não havia naquele momento nenhuma nova hemorragia, mas o factor tempo era duma importância capital e o cirurgião não podia permitir-se nenhuma paragem, senão a hemorragia manifestar-se-ia de novo... Sem se interromper, perguntou a Dean:

 

- Como está ele agora?

 

- Regular. Cento e dez pulsações.

 

Estava melhor do que esperava. Se pudesse localizar rapidamente o mal...

 

- Distensor Deaver, por favor.

 

O instrumento não tardou a chegar à sua mão. Inseriu a larga superfície curva sob o bordo da parede abdominal e segurou-o até que os dedos de Carolyn pudessem cingir-lhe o cabo. Este género de afastamento é uma das funções mais importantes do assistente numa operação. O distensor mecânico nunca pode substituir a pressão da mão firme e bem comandada. O instrumento não teve o mínimo estremecimento quando a enfermeira loira o segurou com firmeza na posição indicada.

 

- Coloquem bem a luz, por favor.

 

Dean pegou no projector e puxou-o para a frente até iluminar todo o fundo da incisão. O cirurgião examinou um após outro os anéis do intestino. Por este lado as coisas não se apresentavam de forma particularmente favorável. Aqui, como no peritoneu, açor era dum azul-acinzentado, o que significava, sem qualquer espécie de dúvida, uma interrupção na circulação sanguínea.

 

Lentamente, de ansa em ansa, Rick tacteou toda a extensão do intestino, procurando a perfuração ou a pressão que bloqueava o fluxo do sangue no mesentério, essa dobra do peritoneu, semelhante a um avental, que liga as entranhas à parede abdominal. À medida que prosseguia no seu exame, verificava que ia piorando o estado do intestino, a cor azulada tornava-se mais escura, a aparência mais doentia. Um murmúrio quase imperceptível indicou que Carolyn também notara a mudança para pior.

 

- Um pouco mais baixo, por favor.

 

Ela deslocou o distensor, obedientemente. Rick podia agora distinguir as artérias no avental do mesentério. Um fraco latejar, mal perceptível, e no entanto quando os seus dedos tocaram a aorta, esse grande canal central do corpo, sentiu o ritmo apressado da pulsação de Terry. As coisas apresentavam-se-lhe piores do que supunha. O intestino estava quase negro, em vias de ser atingido pela mortal complicação da gangrena...

 

Os seus dedos exploraram os vasos e, embora possuísse grande domínio sobre si mesmo quando operava, faltou-lhe de súbito o ar: os coágulos que enchiam as veias e as artérias eram agora absolutamente perceptíveis ao tacto. Sentia-os, obstruindo por completo todo o intestino tão eficientemente como se o coração estivesse morto.

 

Era a trombose mesentérica, a mais temível complicação da cirurgia.

 

Rick sentiu necessidade de rever os seus planos. Afastou-se da mesa, para se concentrar. Já lera alguma coisa a respeito dessa consequência dramática da deslocação de ar provocada pelas explosões. Aparentemente, a explosão atingia os delicados tecidos que envolviam os vasos sanguíneos. A irritação por tal forma originada provocava a formação desses coágulos chamados trombos. Era a primeira vez que tinha diante dos olhos a prova visível dessa evolução do mal. Um coágulo assim colocado agia evidentemente da mesma forma que um torniquete numa perna ou num braço, mas era muito mais perigoso, pois ao contrário do torniquete, não se podia tirá-lo quando se queria.

 

Da penumbra, a voz de Linda inquiriu: - o que se passa, Rick?

 

Ele compreendeu que readquirira o domínio de si próprio ao ouvir a sua voz responder num tom categórico, quase profissional:

 

- Há aqui alguns coágulos. Vasos sanguíneos danificados pela deslocação do ar...

 

A mão de Carolyn estremeceu e o distensor deslizou ligeiramente. Winter soube assim que ela compreendera toda a gravidade da situação, a dificuldade da intervenção cirúrgica que ia realizar, embora Linda mal se apercebesse. Durante uma fracção de segundo, pousou na mão de Carolyn a sua mão enluvada:

 

- Okay, soldado?

 

Carolyn sorriu ligeiramente e respondeu com um aceno afirmativo da cabeça:

 

- Okay, capitão. Vamos começar?

 

Ele voltou ao trabalho; tomara já uma decisão. Aliás não tinha muito por onde escolher nem se lhe ofereciam quaisquer alternativas. A porção de mesentério bloqueada estava perdida, não podia salvar-se. E essa secção do intestino tinha de ser suprimida. Uma ressecção de tal amplitude, acrescida da anastomose das extremidades seccionadas, era uma operação extremamente problemática. Não podia tomar a responsabilidade, a não ser que Linda compreendesse verdadeiramente do que se tratava e anuísse com perfeito conhecimento de causa. Afastou-se outra vez da mesa e procurou-lhe o olhar.

 

- Terei de fazer a ablação duma parte do intestino - disse-lhe

 

- Muito?

 

- Um bom pedaço. Talvez seis pés.

 

- Tem algumas esperanças de o salvar?

 

Ele falou então lentamente, pesando bem as palavras:

 

- Poucas... Haverá talvez uma possibilidade en dez...

 

- E se não o operar?

 

Rick abanou a cabeça. Na realidade, não havia outra alternativa. Apresentara-lhe o quadro clínico, não podia dizer mais nada.

 

Linda respondeu pausadamente:

 

- O melhor então é tentar.

 

Winter voltou logo para junto da mesa. A pinça de ressecção, aquela de que precisava, já estava na sua mão. Ergueu o intestino com todo o cuidado e colocou as pesadas mandíbulas da pinça de través, apertando bem o manipulo até não haver nenhuma possibilidade de deslize. Paralela a esta, colocou uma segunda, e cortou depois entre as duas. Em tempo normal, teria empregado a lâmina rubra dum cautério, mas o estado do doente não lho permitia. O trabalho tinha de ser feito a toda a pressa, ou não se fazer. Levantou a extremidade cortada, esticando o mesentério a ela ligado.

 

- Ponha agora a pinça - disse a Carolyn, que com destreza colocou o instrumento no local devido, fixando-o com a firme pressão dos seus dedos. Winter cortou então a direito, separando o intestino do mesentério. Depois, manejando rapidamente uma agulha, traspassou o coto do mesentério e ligou-o solidamente para prevenir qualquer ulterior hemorragia.

 

Durante vinte minutos trabalharam ambos intensamente, removendo a pouco e pouco o órgão danificado, até ultrapassarem a zona da trombose e o tecido começar a aparecer com a cor rósea normal. Uma vez mais colocou as duas pinças e cortou entre elas. Finalmente, retirou da cavidade abdominal toda a porção deteriorada do intestino.

 

Agora punha-se uma questão de processo. Normalmente, as duas extremidades cortadas deviam ser unidas e cosidas, tal como uma mangueira de regar o jardim que se consertasse com agrafos, aproximando camada a camada até se restabelecer a continuidade do canal. Mas, nessa noite, Rick sabia que se prolongasse a operação com a técnica clássica isso podia ser fatal ao operado.

 

- Não podemos arriscar uma anastomose - declarou a Carolyn. - Vamos puxar para fora, através da incisão, as duas extremidades seccionadas, numa dupla enterostomia.

 

O dreno artificial evitava a necessidade da anastomose imediata. Esta poderia fazer-se mais tarde com maior segurança. Pediu as suturas de retenção para fechar dum extremo ao outro a parede abdominal.

 

- A tensão arterial está a baixar - anunciou Dean.

 

Mas Rick não tinha necessidade daquele aviso. A pele de Terry estava agora mais pálida ainda do que antes da operação. Trabalhou pois tão depressa quanto um cirurgião pode ousar fazê-lo, lançando largas suturas com uma agulha curva qual cimitarra, reunindo numa só as camadas sucessivas, para ganhar alguns preciosos minutos.

 

Findo o trabalho, ergueu os olhos e viu Bill Coffin ao lado da mesa.

 

- Quando poderá o doente ser transportado?

 

- Não deve sair daqui por enquanto, bem sabes - respondeu Winter, tirando as luvas.

 

Transportar numa ambulância um doente logo após uma grave operação abdominal, era a forma mais rápida de decidir a sua sorte e duma maneira fatal.

 

No escuro, a voz calma de Linda interrogou:

 

- Quando parte, major?

 

- Partimos imediatamente - redarguiu Bill.

 

E afastando para o lado o pano da entrada da tenda, apontou para o exterior, em reforço da sua afirmação. O acampamento estava vazio. No local onde se erguera o quadrângulo das tendas, apenas uma subsistia, à sombra dos pimenteiros, perto da estrada, a lembrar que estivera ali um hospital de campanha.

 

- Os vossos alojamentos - disse Bill. - Quem fica?

 

- Eu, claro - declarou logo Carolyn.

 

Mas a voz de Rick cortou-lhe secamente a palavra:

 

- É somente necessário um médico, e o médico sou eu. Olhando severamente para a enfermeira loira, desafiava-se a transgredir a rígida disciplina dos hospitais militares. Carolyn baixou os olhos e recuou. Foi então a vez de Linda falar:

 

- Eu fico também. Quando ele despertar do sono do éter quererá ver-me com certeza...

 

Bill Coffin aprovou com a cabeça. Mais do que ninguém, ela tinha o direito de ficar ao lado de Terry. Rick, no entanto, fez ainda uma última tentativa:

 

- Eu olharei por ele, Linda. Prometo-lhe.

 

Mas sabia, e os outros sabiam-no também, que a decisão dela estava tomada e nada nem ninguém a faria modificá-la. Rick fez sinal aos maqueiros, depois voltou-se novamente para Bill:

 

- Que equipamento nos deixas, além da tenda?

 

- Uma caixa de urgência e um lampião a gasolina. Pensei que precisarias doutra transfusão e mandei tirar o sangue. Está já preparado.

 

- Bom trabalho, meu velho. Quando te pões a caminho?

 

- Agora mesmo, tenho receio...

 

Logo que a maca deixou a tenda de operações, os soldados principiaram a desmontá-la. O gerador de emergência não tardou a extinguir-se. Bill acendeu um dos pequenos faróis do guarda-lamas do camião.

 

- Isto deve ser o suficiente - asseverou.

 

Depois entregou a sua lâmpada de algibeira ao sargento que conduzia os maqueiros para a pequena tenda isolada, lá ao fundo, na obscuridade, sob um céu negro e salpicado de estrelas.

 

- Que te posso dizer agora, senão desejar-te «boa sorte»?

 

- Ou então «até à vista, em Berlim». Creio que a frase se usava com grande sucesso na última guerra.

 

- Não sejas tão pessimista - advertiu Bill. - Eu próprio virei aqui buscar-te amanhã.

 

Apertaram as mãos no escuro. Bill tinha razão, como sempre. As despedidas apenas serviam para despertar ecos vazios de sentido naquele deserto.

 

- Toma cuidado em ti, meu velho. E não demores essa transfusão.

 

Bill afastou-se discretamente, confundindo-se na sombra, ao ver Carolyn sair da tenda de operações quase desmontada com uma caixa de instrumentos cirúrgicos em cada braço. A enfermeira loira deixou-as cair e correu para Rick.

 

- Querido, porque não me deixaste ficar ao teu lado?

 

- Esqueces que és minha noiva?

 

- O mesmo se dá contigo. E se te prendem...

 

- Exactamente. Se me prenderem, saberei ao menos que estás em segurança.

 

Rogava ao céu que a sua voz parecesse tão sincera como a paixão que naquele instante fingia. Carolyn nunca devia saber que o sentimento que nele dominava todos os outros era o receio pelo que pudesse suceder a Linda... mas sobre ela não tinha nenhum direito, nem mesmo o de a proteger...

 

- Bem, vai, tem de ser!... - exclamou com rudeza. - Alguém terá de arrendar a nossa casa em Connecticut, quando isto acabar.

 

Mas, agarrada a ele, Carolyn dir-se-ia inconsolável. Um dos soldados que estavam a transportar para o camião a tenda desmontada aproximou-se, tocou-lhe num braço e conduziu-a para a ambulância parada a pouca distância. Mas ela depressa se desenvencilhou de tudo, voltando para os braços de Rick. O soldado apanhou as caixas dos instrumentos e ficou à espera, encostado ao guarda-lamas.

 

- Vai-te embora! - disse Rick. - É uma ordem. Carolyn subiu para a ambulância sem necessidade de ajuda e nem sequer se voltou. Durante alguns instantes, Rick permaneceu no mesmo sítio, a ver a luzinha vermelha da ambulância distanciar-se, não tardando a juntar-se às muitas outras luzes semelhantes que lá em baixo, na estrada, tremeluziam, em caudal ininterrupto.

 

Um soldado aproximou-se com o aparelho de transfusão. Rick pegou nele e mandou o homem para junto dos seus camaradas. Em menos de cinco minutos, a tenda de operações ficou desmontada e colocada em cima do camião... O motor roncou forte e pouco depois outra luz vermelha se sumia ao longe... Rick endireitou então o busto e tomou o caminho da tenda.

 

Estavam sozinhos agora, Linda e ele, sozinhos com um moribundo, até que o inimigo os viesse prender...

 

Terry repousava, imóvel, na sua maca, quando Rick entrou na tenda. Sem olhar para Linda, pois desejava concentrar-se totalmente na tarefa que ia executar, ajoelhou-se junto dele para dar início à transfusão. O sangue fora recolhido num frasco contendo o indispensável citrato de sódio. A chancela do Exército Americano é que dir-se-ia bastante deslocada naquela tenda nua...

 

- Pode alcançar-me o garrote?

 

Linda foi buscar o tubo de borracha e segurou no frasco enquanto ele inseria a agulha numa veia. Até àquele momento ela não falara ainda. Tal como ele, parecia desejosa de evitar as ilações que as mais simples palavras podiam sugerir.

 

Enquanto procedia à transfusão, Rick lançou um olhar em sua volta. O lampião a gasolina projectava nas paredes de lona uma impiedosa claridade, que punha bem a nu um vazio aflitivo. Além da maca, apenas havia ali uma cadeira de lona e uma mesa dobradiça sobre a qual se alinhavam algumas drogas e instrumentos essenciais. A sua mochila estava atirada para um canto, em cima duma pilha de cobertores. Enquanto Linda segurava no frasco, ele foi ver tudo quanto a mochila continha.

 

- Graças a Deus, Bill teve o bom senso de levar o meu revólver.

 

Ela respondeu no mesmo tom desprendido:

 

- Eu sei. Em teoria, o mundo continua a ser civilizado. Os próprios nazis devem saber que os oficiais dos serviços médicos andam desarmados.

 

- Talvez se tenham esquecido...

 

- Eles não gostaram nada do meu livro... - arriscou Linda. Rick procurou conservar uma voz calma:

 

- Pois bem, ficarão contentes se nos apanharem os dois. Lembre-se que eu combati contra eles em Espanha...

 

Mas ela afastou-se resolutamente desse pensamento:

 

- Admitindo que cheguem dum momento para o outro, Rick, autorizá-lo-ão depois a tratar Terry?

 

- Estou convencido que sim.

 

Não veria ela que ele apenas falava por falar, para quebrar aquele silêncio que os submergia? Nesta guerra, as cruzes azuis e brancas das instalações médicas eram, muitas vezes, não uma protecção, mas sim um alvo para os bombardeiros.

 

Lá no alto, por cima dos restos do acampamento, roncou um avião, como eco a esse pensamento que não exprimira. Rick apressou-se a apagar a luz; através do tecto da lona, aquele clarão ofereceria um excelente alvo ao pirata. Foi com a sua lâmpada de algibeira que continuou a vigiar a transfusão. Tudo corria bem e Terry estava calmo. Puxou a cadeira de lona e ofereceu-a a Linda:

 

- É melhor sentar-se. Podemos ter de esperar bastante tempo. Ouviram ao longe o estrondo duma explosão. Um estremecimento sacudiu o mastro da tenda. Rick caminhou até à abertura e olhou para fora. Todo o planalto agora vazio estava banhado pela claridade das estrelas. Subitamente, a lembrança dum outro bombardeamento, do roncar doutros motores no céu nocturno, invadiu-o como uma onda de quentura. A recordação duma outra mulher que correra cegamente para os seus braços em busca de abrigo e protecção, e neles se perdera... Como lhe fora fácil, minutos antes, mandá-la seguir o seu caminho, e com que naturalidade! Voltou-se para Linda, cuja mão o procurava no escuro:

 

- É um bombardeiro?

 

- Parece-me que sim. Mas não muito próximo.

 

Ela agarrou-lhe a mão quando uma segunda bomba despedaçou o silêncio no fundo do vale.

 

- Procuram impedir a retirada?

 

- Tenho a impressão que sim. Oxalá que Bill e todo o grupo tenham tempo de se safar.

 

Bastante curioso, o seu espírito não chegava a imaginar a retirada em pormenor. Sabia que Carolyn estava em perigo, e era tudo... E entristecia-o que esse pensamento não o fizesse sofrer mais. Apertou desesperadamente a mão de Linda.

 

- Eles não nos vão bombardear, Rick?

 

- Não merecemos que estraguem uma bomba connosco. Além disso, não há suficiente luz na tenda para nos poderem descobrir lá de cima.

 

Notou então que ela tiritava e procurou às cegas, no escuro, um cobertor. A sua mão, porém, tocou primeiro num desses casacos de peles que usam as enfermeiras. A lâmpada portátil permitiu-lhe ler, na gola, o nome da proprietária: Carolyn Rycroft, 2° tenente, A.N.C. Era bem próprio dela ter deixado ali o abafo para Linda o utilizar.

 

- Vamos, vista esta capa do Exército.

 

Depois de a envolver no casaco de peles, passou-lhe um braço em volta da cintura: não dispunha de nenhum outro meio para a confortar. Mas não dispunha também de força bastante para lhe resistir quando ela se voltou lentamente, o envolveu com os seus braços e lhe ofereceu os lábios. As estrelas, o planalto, a tenda, as explosões das bombas, o troar dos canhões, tudo se esfumou e desapareceu como por encanto ao colar os seus aos lábios dela, primeiro ternos, depois ardentes. Quando Linda se libertou por fim daquele amplexo, Rick estava tonto.

 

- Obrigado pelo conforto, Rick. Mas será melhor não recomeçarmos.

 

Ele não protestou, nem mesmo ao vê-la voltar para dentro da tenda. E ficou por muito tempo ainda encostado à estaca que servia de umbral, olhando ao longe a crista da colina a ressair dum fundo de estrelas. Algures, para as bandas do oriente, as linhas aliadas tinham cedido. Um rumor surdo e contínuo enchia a noite e um clarão vermelho iluminava o céu. «Um depósito de gasolina», pensou. «Isto quer dizer que as coisas caminham depressa.» Não tardou a ressoar por todo o vale o ronco dos carros de combate. O tropear de botas cardadas, lá em baixo, na estrada, assinalava a passagem das vagas dos combatentes.

 

Pouco lhe importava como se desenvolvia o ataque ou a retirada: ele nada mais podia fazer senão esperar... Deu meia volta e foi para dentro da tenda. Linda olhou-o com os olhos marejados de lágrimas. «Bonitos olhos», pensou, e sorriu como se descobrisse isso pela primeira vez. Ela retribuiu-lhe o sorriso, encafuada no capuz do casaco de Carolyn.

 

- Está mais quente agora?

 

Linda abanou afirmativamente a cabeça.

 

- Suponho que devia sentir-me duplamente desavergonhada com este casaco, mas...

 

Ele não a deixou prosseguir e apertou-lhe a mão vivamente, sem responder; depois, à luz da lâmpada de algibeira, foi examinar Terry. O seu pulso batia agora mais rápido, mas mais fraco. Não podia ser efeito da transfusão. Adivinhou em Linda uma súbita angústia, mas esperava que ela não se apercebesse bem da mudança para pior.

 

- Devíamos talvez economizar a luz - sugeriu Linda docemente .

 

Rick sacudiu a cabeça:

 

- Há outra lâmpada na caixa de urgência. Esta deve durar até ao romper do dia.

 

- Até eles chegarem... é o que quer dizer? Ele teve de súbito uma inspiração:

 

- O nome de Carolyn está na capa que traz vestida. Dir-lhes-emos que é a minha enfermeira-assistente. Que ficou comigo para tratar do ferido.

 

- Gostaria tanto de ser Carolyn... - murmurou Linda.

 

E apoiou-se a ele, os olhos cheios de lágrimas. Rick amparou-a, admirado do seu próprio domínio, que o impedia de se apossar, uma segunda vez, daqueles lábios ternos e ardentes.

 

- Vamos, coragem, Linda!

 

- Está bem, Rick. Esta noite serei Carolyn Rycroft, se acha que é melhor assim.

 

Como se principiasse a desempenhar o seu papel, inclinou-se para Terry e afastou-lhe os cabelos da fronte. A sua testa estava seca e quente. Rick poderia dizer-lhe que era a subida normal da febre nos últimos momentos de vida. Mas não disse nada, deixou-se cair na cadeira, apertando a cabeça entre as mãos. Mesmo sem olhar, via com suficiente clareza o que se passava no interior da tenda. Sentira já noutras ocasiões igual depressão invadir-lhe o espírito. Uma vez, ainda interno, num apartamento de Nova Iorque, vira uma jovem parturiente consumir-se no fogo da infecção que uma parteira negligente deixara penetrar e desenvolver. Outra vez, tivera de assistir, sentado e impotente, ao lado dum leito, ao firme avanço do vírus da poliomielite pela espinal medula duma criança, expulsando a vida dos centros respiratórios até parar o próprio coração...

 

- Talvez o levem para o hospital de Tunes.

 

Rick ergueu os olhos quando a voz de Linda quebrou o silêncio e desbaratou as suas recordações. Depois, respondeu:

 

- Bem sabe que têm também hospitais de campanha como os nossos.

 

- Para que havia de lhe dizer que Terry não sobreviveria a uma viagem, nem mesmo para um hospital inimigo?

 

Na sua maca, o rapaz mexeu-se ligeiramente. Os dois procuraram pô-lo numa posição mais confortável.

 

Quase nenhum ruído perturbava agora lá fora a calma da noite. Somente, de longe em longe, o troar distante do canhão. Rick ergueu-se e estendeu outro cobertor por cima de Terry. Linda sentou-se ao lado do irmão.

 

- Não tem frio? - perguntou ela.

 

- Agora que penso nisso, parece-me que tenho. Sinto-me de facto gelado.

 

Procurou um cobertor para pôr por cima dos ombros, mas logo o deixou cair, pois Terry na sua agonia começara a gemer como se lhe faltasse o ar.

 

À luz da lâmpada, o rosto do rapaz mostrava agora uma tez azulada, invadido pela sombria cor cianótica que a carência do oxigénio provoca. Com leves toques dos dedos, Winter auscultou-lhe a caixa torácica. O ritmo da respiração acelerava-se, o som tornava-se mais rouco, mais estertoroso, os pulmões a lutarem com a falta do ar. O tom da percussão, que devia ser ressonante, se os pulmões tivessem ar suficiente, era débil, quase inaudível.

 

O diagnóstico não oferecia dificuldades: colapso pulmonar. Enquanto Terry se conservara deitado de costas, os dois pulmões bem distendidos e livres nos seus movimentos, isso não se tornara notado. Mas logo que pedira para mudar de posição, sem dúvida atormentado por alguma dor violenta, o pulmão que ainda respirava quase normalmente ficara comprimido e o ataque cianótico manifestara-se imediatamente.

 

Na esperança de estimular uma inspiração profunda, capaz de desalojar o muco que se formara nos brônquios, Winter deu-lhe algumas palmadas no peito. Finalmente a inspiração produziu-se, soluçante, mas ressonante... Rick estendeu a mão e pegou no estetoscópio, não perdendo tempo a pedi-lo. Quando retirou as pontas dos ouvidos, Linda, ansiosa, perguntou-lhe:

 

- Quantas?

 

- Cem!

 

Mentia. Contara apenas sessenta. Mas não queria destruir completamente, até ao último minuto, a fraca mas obstinada esperança a que ela se aferrava.

 

O estado de choque progredia, o último estado de choque, o que significava uma fatal interrupção na circulação sanguínea. Alguns minutos mais tarde, inclinando-se de novo para o corpo deitado, Winter não ficou surpreendido de ouvir o ruído característico do edema que invadia os pulmões, esse rumor que os profanos chamam, com alguma razão, o anúncio da morte. Por cima do corpo do irmão, Linda lançou-lhe um olhar implorante. Mas ele nada mais pôde fazer senão afastar-se com um gesto que significava o irremediável. Nada do que pudesse dizer ou fazer naquele instante destruiria a sensação angustiosa de inutilidade que o invadia, essa sensação que, em momentos semelhantes, submerge e aniquila qualquer médico. O desejo de deitar fora, para longe, o estetoscópio, ou qualquer outro instrumento, de deitar fora os longos e vãos anos de estudo e de prática, tudo em que acreditara antes e se mostrava agora absolutamente inútil...

 

Misericordiosamente o desfecho foi breve.

 

Quando tudo acabou, Rick deixou Linda junto da maca, a mão de Terry, abandonada, inerte, entre as suas.

 

Ela nem mesmo o viu sair da tenda, pegar numa pá e numa enxada e atravessar o planalto em direcção ao pequeno bosque.

 

Escolheu uma superfície plana entre duas palmeiras, na orla do pequeno bosque, e pôs-se a cavar. O esforço físico insuflou energia ao seu espírito vacilante. Conseguiu mesmo formar alguns planos, enquanto abria a cova, manejando agilmente a pá. A terra era branda naquele local e não precisou de muito tempo para terminar o trabalho.

 

Quando voltou à tenda, viu que Linda continuava imóvel junto da maca. Olhou-o como se ele fosse um estranho a quem encontrasse pela primeira vez. Compreendeu toda a extensão do seu alheamento quando ela afastou violentamente a mão que ele lhe pousara no ombro, como se inconscientemente se revoltasse contra essa intrusão na sua dor.

 

- Temos ainda uma possibilidade - disse-lhe. - Está pronta para partir?

 

- Partir?

 

As sílabas foram repetidas mecanicamente, mais murmúrio do que palavra.

 

- É meia-noite, a maré está baixa. Se caminharmos depressa, podemos atingir, através da praia, La Crevette, ao romper do dia. Talvez os nossos conservem ainda esse ponto de reabastecimento.

 

A boca da jovem tremeu, mas não conseguiu articular nenhuma palavra. Rick compreendeu que ela nem sequer tinha forças para encontrar consolo nas lágrimas .-Acabou, no entanto, por responder:

 

- Devo ficar ao pé de Terry... Ele respirou fundo, depois disse:

 

- Já fiz o necessário... Abri uma sepultura na orla do bosque. Conseguiu no entanto mostrar-se insensível ao seu grito de dor, inclinou-se e ergueu o rapaz da maca. A hora não era para crises de nervos nem mesmo para choros. Agora que Terry já não precisava de nenhuma ajuda nem socorro, Winter não permitia a si próprio qualquer hesitação. Maquinalmente, Linda pegou na lanterna e seguiu-o quando ele saiu da tenda.

 

Era um estranho cortejo. Atravessaram lentamente o local do acampamento, Rick transportando o corpo de Terry nos braços, Linda a balouçar a lanterna na mão, sem energia, as duas bandas do casaco a flutuarem ao ar frio da meia-noite. À beira do túmulo, ficou estranhamente calma. Não teve sequer um soluço enquanto o companheiro empurrava a terra e com a enxada a amassava e aplanava, cravando depois no solo uma improvisada cruz.

 

- Preguei na cruz a sua chapa de identidade - explicou. Isto facilitará mais tarde as buscas. Aliás, marquei o lugar no mapa.

 

Atirou para o lado a enxada e pegou na mão da jovem como para se desculpar da insipidez das suas palavras. Mas reparou que ela nem sequer o ouvira. Voltou então à tenda e reuniu o necessário para a longa jornada que os esperava. Dois cobertores dobrados. Na sua mochila, as rações de urgência. Dobrou mais um cobertor para pôr aos ombros de Linda e encheu os cantis com água esterilizada, tirada dum Lister pendurado na lona da tenda.

 

Quando voltou, Linda estava ajoelhada junto da tumba. Esperou que ela se levantasse antes de lhe pôr aos ombros a sua parte da carga. Ela não resistiu, deixou-o apertar em volta da cintura o largo cinturão ao qual estava preso o cantil. Não podiam carregar peso a mais. Tinham de caminhar o mais rapidamente possível se queriam escapar às patrulhas inimigas que não deixariam de avançar até àquela zona antes do romper do dia. Se fossem presos, deviam confiar um pouco na circunstância de pertencerem aos serviços de saúde. Para maior segurança, Rick pegou em duas braçadeiras com as letras M.C.; pregou uma no braço de Linda, verificando com satisfação que a cruz branca era visível mesmo à luz das estrelas. Quando tentava colocar a outra no seu braço, a jovem aproximou-se e foi ela que lha pregou à manga. Mesmo através da espessura do caqui, sentiu os seus dedos gelados.

 

- Beba isto, por favor.

 

Linda recuou ao ver o frasco de uísque, mas Rick segurou-a solidamente pelos ombros e introduziu-lhe o gargalo entre os lábios.

 

- Precisa de beber isto, e eu também. Vamos partir, pela praia. A maré está baixa. Com um pouco de sorte, poderemos cobrir as vinte milhas antes do nascer do dia.

 

- Eu devia ficar aqui com ele, Rick...

 

- Acha que seria esse o desejo de Terry?

 

Ela cedeu completamente e caiu de joelhos ao lado da tumba, numa torrente de lágrimas. Rick permaneceu uns instantes de pé ao seu lado, dando-lhe tempo para acalmar os nervos, depois ajudou-a a erguer-se. Desta vez ela já não protestou e deixou-se conduzir ao longo do carreiro que ia ter às dunas. Durante um segundo, no sítio em que o atalho virava para o mar, parou e olhou de longe a cruz que ficava entre as palmeiras.

 

Rick viu-a depois endireitar o busto, decidida, e juntos caminharam em direcção às dunas. De ombros bem direitos, ela seguiu-o sem uma palavra até à praia. A areia dura, deixada a descoberto pela maré, estirava-se para ocidente, via luminosa na noite.

 

Nesse minuto preciso, numa base avançada americana, muito para lá de La Crevette, o pessoal do 95.° Hospital de Campanha descia dos camiões que o tinham transportado sem perigo até ali. Sucedera um mau momento em plena estrada, quando os aviões sobrevoaram o comboio, mas depois retomaram o seu caminho para o ocidente, defendidos por intenso fogo de barragem da artilharia móbil que lhes protegia a retirada. Um outro mau momento ainda viveram-no em La Crevette ao saberem da demolição da via-férrea para impedir que o inimigo se apossasse dela. Camiões e ambulâncias prosseguiram a sua caminhada na noite, sem quererem saber do fragor da batalha, que diminuía a pouco e pouco, sentindo-se mais animados quando a última salva de artilharia se perdeu na distância, tragada pelas colinas.

 

Esperava-os comida quente em marmitas e tendas para as enfermeiras. A maior parte dos oficiais tinham sacos de dormir e instalaram-se aqui e além onde quer que encontraram um canto tranquilo. Na margem oposta dum ribeiro próximo, estava instalada outra unidade médica, aguardando feridos, que não viram, prova certa, no entender de Bill Coffin, que a frente da batalha se deslocara nitidamente para o norte, encontrando-se assim cortadas todas as ligações com os hospitais de campanha.

 

Após uma segunda ração de guisado e de café, Bill dirigiu-se à tenda de admissão para ver como estava Amos. O coronel levara há muito uma injecção de morfina, graças à qual dormia tranquilamente. Bill aceitou um cigarro que lhe ofereceu o oficial de serviço e ao sentar-se verificou até que ponto estava fatigado.

 

O capitão, um pouco hesitante, fez uma tentativa para entabular conversa:

 

- Terei o ar dum estudante a olhar para as grandes personagens, se confessar que o invejo?

 

Bill sorriu do fundo do seu esgotamento. O cigarro era nesse instante a única coisa do mundo que o separava do abatimento total.

 

- A propósito do nosso grupo, Randall Strang conseguiu cá chegar?

 

O capitão sorriu:

 

- Chegou há duas horas. Abatido pelo estado de choque. Expedi-o para o aeródromo de Rivière Sec. Se a sorte lhe sorriu, vai a caminho de Argel, de avião... Houve mais algumas baixas?

 

Bill contemplou a ponta rubra do cigarro:

 

- Três.

 

- Alguém importante?

 

- Nunca ouviu falar de Linda Adams? Vivamente impressionado, o capitão respondeu:

 

- Pois claro que ouvi, lia os seus artigos. Não me diga que está ferida.

 

- Antes estivesse. Tê-la-íamos trazido connosco... Mas o seu irmão estava na agonia e quis ficar junto dele. Rick Winter é o terceiro. Terry Adams era seu doente, e ficou também.

 

- Pensa que os prussianos os fizeram prisioneiros?

 

Bill permaneceu longo tempo de olhar perdido na noite. No fim de contas, aquele jovem oficial, muito limpo e bem alimentado, não tinha nenhum interesse pessoal naquela aventura e podia permitir-se falar dela com desinteresse:

 

- O que pensa a esse respeito, capitão?

 

O jovem oficial soltou um ligeiro suspiro e disse:

 

- Encontrei uma vez Rick Winter. Era verdadeiramente alguém.

 

Mais uma vez a cólera se apoderou de Bill Coffin: os verbos mudavam rapidamente de tempo durante a guerra, mas nesta quase valia o mesmo estar morto ou prisioneiro. Os alemães mostrariam alguma complacência para um oficial médico? Bill sacudiu a cabeça em resposta à sua pergunta: esperança infundada. Rick não era homem para ser um bom prisioneiro, não se submeteria ao regime dum campo de concentração. Era demasiado orgulhoso para o servilismo, demasiado franco para se adaptar a um mundo clandestino.. Provavelmente tentaria evadir-se... Bill imaginava o corpo do amigo pendente do arame farpado, do exterior dos muros duma prisão, todo crivado de balas de metralhadora...

 

Bruscamente endireitou-se, mordeu a ponta do cigarro e deitou para o lado as migalhas do tabaco.

 

- Parece que vou recolher-me - resmungou. - Se houver alguma novidade, é capaz de me avisar?

 

- Pode estar descansado - asseverou o jovem capitão, bem lavado e escanhoado.

 

A algumas milhas de distância dali, para os lados de leste, a hóstia da Lua, ao erguer-se, espalhara a sua luz sobre um planalto entre duas colinas. A claridade tombou numa chapa de identificação pregada numa cruz grosseira. Um homem apareceu na orla da encosta, um soldado de capacete e botas cardadas. Um explorador de rosto coberto de poeira, avançando cosido com as sombras, qual rafeiro pouco certo do acolhimento que o esperava.

 

Durante um momento observou a tenda solitária e nua erguida no meio das árvores. Pé ante pé, aproximou-se, deslizando com prudência duma árvore para outra. Quando estava suficientemente próximo para ter a certeza de não errar a pontaria, desfechou três vezes a sua arma contra a lona da tenda. Não houve mais nenhum ruído. Então, deixou tombar o cano da pistola-metralhadora, avançou e foi esquadrinhar tudo lá dentro.

 

A um sinal seu, outras silhuetas avançaram no planalto banhado pelo luar, falando baixo, numa linguagem gutural. Pararam a observar a chapa de identidade pregada na cruz, mas não tocaram em nada.

 

Depois, tão rapidamente como tinham chegado assim desapareceram: a sombra da colina, listrada pela luz do luar, absorveu-os no caminho do ocidente.

 

O túmulo de Terry Adams continuou solitário, à beira do pequeno bosque.

 

O seu corpo acabara por ser vencido pelo sono. E ao roçar numa aresta viva da rocha, sentiu um terror pânico invadir-lhe o cérebro, antes mesmo de despertar com a dor duma canela esfolada. Durante alguns instantes agitou-se, num protesto, por baixo do cobertor, por fim ergueu-se bruscamente: o sol inundou-lhe então o rosto. O seu espírito, despertando primeiro que o corpo cansado, repeliu para longe o pânico. Linda continuava a dormir no ninho de ramagens que para ela construíra. O seu refúgio, no cimo da vertente daquela colina rochosa, mantinha-se inviolável.

 

O fogo que tinham ateado ardia ainda entre duas pedras. Rick aproximou-se dele, cambaleando, para abafar o delgado penacho de fumo que desprendia. Prometera a si próprio uma dúzia de vezes apagar aquele fogo, embora lhes fizesse bastante falta, na última meia hora que antecedera a alvorada. E não o fizera. A noite tornara-se extremamente fria depois de abandonarem as ruínas de La Crevette para se embrenharem nas colinas.

 

Afastou para o lado o biombo de ramos e ficou a observar o rosto de Linda. Estava profundamente mergulhada no sono. Rick sorriu ao ver que continuava enrolada no cobertor suplementar que a obrigara a aceitar apesar dos seus protestos. Obedecendo a um impulso que não conseguiu reprimir, inclinou-se e roçou-lhe ao de leve a face com os lábios. As olheiras de fadiga tinham desaparecido. Sucedesse o que sucedesse, dera-lhe a possibilidade de se recompor. Só por isso valera a pena terem-se metido naquele buraco, após a fatigante caminhada ao longo da praia.

 

Olhou para o relógio de pulso e viu então que já passava do meio-dia. Saiu na ponta dos pés do abrigo de rochedos e, com as articulações ainda entorpecidas, desceu a vertente abrupta até ao sítio onde uma fonte jorrava duma fenda da rocha. Depois de mergulhar a cabeça na água gelada, abriu completamente os olhos e examinou o terreno em sua volta.

 

Para o sul, corriam colinas escalvadas até se unirem, ao longe, a uma respeitável cadeia de montanhas. Lá em baixo, a estrada de macadame, de via dupla e paralela ao mar, aparecia deserta à luz crua do dia. Ao norte, a planície espreguiçava-se até à beira da água. O Mediterrâneo dir-se-ia jóia de puro azul, que nem a sombra duma nuvem perturbava, nem sequer o penacho de fumo dum cruzador vogando ao largo. Era difícil conceber que um exército em retirada tivesse passado por ali na noite anterior. Difícil de conceber também que aquilo era um campo de batalha em África e não um trecho tranquilo da costa da Califórnia.

 

Lembrou-se a tempo de se baixar quando ouviu, para os lados de leste, uma trepidação de motores na estrada.

 

O esquadrão de motocicletas roncou na curva e desapareceu a caminho do ocidente. Rick observou-os lá de cima com um estranho sentimento de indiferença que durou pouco. Eram aqueles, na verdade, os homens que tinham marcado encontro com o destino e a ele permaneciam fiéis em obediência a um horário nunca alterado. O terror frio que inspiravam atingia já metade da terra. Mas naquele momento assemelhavam-se a autómatos resolutos e nada mais. Perguntou a si próprio se verdadeiramente existiria um pensamento por trás daquelas máscaras cobertas de pó; se a delgada linha dos seus lábios se abriria alguma vez num sorriso.

 

Ergueu-se e ao vê-los desaparecer na curva da estrada brandiu na sua direcção um punho ameaçador. Sentia-se gelar desde a ponta dos pés à raiz dos cabelos. Sentiria sem dúvida o mesmo arrepio se o céu se abrisse e deixasse cair na Terra os habitantes de Marte...

 

A patrulha sumiu-se ao longe e não restou nenhum outro som a vibrar no espaço... No entanto, quando Rick se pôs a caminho do abrigo onde dormira pressentiu que estava a ser observado. O seu sexto sentido advertira-o demasiado tarde. Atento apenas àquela tropa de pesadelo, esquecera-se de inspeccionar bem o terreno em redor. Deixou-se cair sobre as mãos e os joelhos, ficando assim acocorado, sem se atrever a esboçar o mais leve movimento .

 

O cano da arma para ele apontada saía dum tufo de juncos, a menos de cem metros de distância, à sua esquerda. Era o cano brilhante duma metralhadora: o sol fazia-o cintilar. Durante um segundo, Rick fechou os olhos, à espera da detonação que não se produziu. Quando os abriu, o homem da metralhadora levantara-se por trás da moita de juncos. Era baixo e tinha a cabeça envolvida numa ligadura... Rick soltou um suspiro de alívio ao ver o seu uniforme britânico.

 

- Olá, americano! - exclamou o homem. E avançou com passo prudente. Depois, ao reparar na insígnia na gola do uniforme de Rick, a coronha da metralhadora bateu no solo e o homem pôs-se rapidamente em sentido. - Desculpe-me. Não o queria assustar. Mas, bem sabe, todo o cuidado é pouco.

 

- Quem és tu?

 

- Cabo Horace Toler. Do Primeiro Exército Britânico. Com o camião avariado, o que podia fazer?

 

Indicava lá em baixo, no sopé da vertente, um pequeno bosque de oliveiras, a pouca distância da estrada.

 

- Arrumei-o ali e no mesmo instante o motor deixou de trabalhar. Transpirei e esfalfei-me toda a manhã para o pôr a andar novamente.

 

- Estás só?

 

- Completamente só - respondeu Toler. - E o senhor? Era quase absurdo, mas absolutamente real. Os anjos vestidos

 

de caqui não tinham o costume de aparecer assim tão oportunamente, sobretudo antes do primeiro almoço. Rick sentou-se atrás dum rochedo e examinou o pequeno cockney um bom momento, sem dizer nada. Por fim falou:

 

- Uma enfermeira do meu grupo está ali escondida. Certamente ainda dorme. Fala baixo, não a quero acordar.

 

Não tinha nenhuma necessidade de lhe explicar que Linda só trazia a braçadeira dos serviços de saúde para maior segurança. Toler perguntou humildemente:

 

- Posso pôr-me à vontade?

 

Rick sorriu e empurrou o soldado para trás do pedregulho que os ocultava da estrada.

 

- Descansa, meu rapaz. Não estamos na Horse Guards, bem sabes.

 

- Preferia estar lá...

 

- Antes de mais nada, mostra-me essa cabeça. Seriamente ferido?

 

- Pouca coisa. Um simples arranhão de bala...

 

As mãos experientes de Rick verificavam já a asserção. Substituiu o penso, inabilmente colocado por um profano, por outro limpo e polvilhado de sulfamida que tirou da mochila.

 

- Poderás guiar o camião se nos atrevermos a sair daqui?

 

- Pois claro que posso.

 

- O que tens no camião?

 

- Tinha munições. Descarreguei-as ontem à noite, na altura ” da retirada.

 

- Podes então levar-nos?

 

- Certamente. É como lhe disse. E para onde quer ir?

 

- Isso depende do sítio onde nos leve a estrada.

 

- Vai dar a Rousse, se a seguir muito tempo.

 

Rousse estava a perto de cem quilómetros à retaguarda das primeiras linhas. Rick pensou que não deixariam de entrar em contacto com forças americanas ou inglesas se pudessem pôr o camião a funcionar. Subitamente, lembrou-se da patrulha motociclista que vira há pouco passar lá em baixo.

 

- Esses batedores não teriam descoberto o camião?

 

- Não creio. Está enterrado nas silvas até à capota e camuflado até aos olhos!

 

- Quanto tempo será preciso para o pôr novamente em estado de rolar?

 

Os olhos de Toler brilharam:

 

- Ele agora já está fino. Para alguma coisa havia de servir eu ter sido mecânico... A verdade é que vim aqui buscar um pouco de água a esta fonte quando o descobri. Creio que podemos atribuir isso à Providência.

 


Rick observou atentamente o homem. Sob aquela luz implacável, não tinha nada a aparência duma boa fada.

 

- Eras capaz de andar nesta estrada com patrulhas inimigas a circularem?

 

- Aquela foi a primeira que passou e para falar verdade ainda não tinha pensado no assunto. Evidentemente, mesmo com a melhor sorte deste mundo, arriscamo-nos a encontrá-la no regresso. - Dizendo isto percorreu a colina com um olhar circunspecto . - A não ser que ache melhor não correr o risco com uma enfermeira a reboque...

 

Rick disse rapidamente:

 

- Fica aí um momento. Vou buscá-la.

 

Trepou à pressa a colina, fazendo rolar atrás de si numerosos calhaus: não tinha de se preocupar em esconder-se, agora que um raio de esperança lhe mostrava uma porta bem visível... Linda abriu os olhos com uma espécie de contentamento sonolento quando ele se inclinou para ela. Durante um breve instante, Rick teve a louca convicção de que tudo aquilo era um sonho. E ficou absolutamente certo disso ao ouvi-la murmurar o seu nome, estendendo-lhe os lábios para um beijo. Mas foi apenas um breve instante. Subitamente, ao beijá-la, sentiu que a memória lhe voltava e a cobria como um véu de dor.

 

- Perdoe-me, Rick. Devia deixar-me dormir... Corria tudo esplendidamente... E agora...

 

Ele amparou-a, ajudando-a a erguer-se, vagamente sonolenta ainda, no seu leito de ramos. Apesar de tudo, pensou Rick, merecera bem aquele minuto de proximidade.

 

- Vamos, sossegue - disse-lhe. - Está disposta a adiar um pouco mais a hora das meditações e a voltar depressa para casa?

 

Ela olhou em redor, absolutamente desorientada:

 

- Onde estamos nós?

 

- Na estrada de Argel. E, quer creia quer não, um camião está escondido além, naquele bosque de oliveiras, à nossa espera para nos levar.

 

Não se referiu à patrulha alemã. Era um ponto que poderiam discutir mais tarde.

 

Linda apertou a cabeça entre as duas mãos:

 

- Sem dúvida estou a sonhar ainda, Rick. Disse um camião?

 

- E um motorista cockney, a não ser que ele se tenha entretanto evaporado.

 

- Estamos assim tão próximos das linhas?

 

- O suficiente para podermos dar um salto até lá e...

 

Mas não pôde acabar a frase. Empurrou rapidamente Linda para o abrigo de ramos que lhe construíra na véspera. Não fora necessário desta vez o seu sexto sentido para identificar o crescente bramido que se ouvia na estrada. Aquelas sapatadas metálicas no macadame não podiam significar outra coisa senão um MarcklV nazi. Mesmo as boas fadas tinham de se esconder nesse momento.

 

Viram primeiro a flâmula, agitando-se loucamente na extremidade duma antena de rádio. Depois, a sombria massa de aço avançou bem de frente para a subida. Os canhões estavam apontados para cima, as vigias de observação insolentemente abertas, e o homem do volante carregava no acelerador. O observador, um oficial trigueiro, de braços cruzados, o binóculo a balouçar na ponta duma correia, ia de pé no torreão, descoberto até meio corpo. Rick viu-o baixar-se para dar uma ordem ao condutor. Durante um curto instante, quando o carro abandonou a estrada, teve a certeza de que os seus ocupantes tinham descoberto o camião de Toler. Mas o tanque evitou o bosque de oliveiras e continuou a rolar na planície que se lhe seguia. Já um outro March IV surgia à vista, obliquava na esteira do primeiro, indicando o caminho a um terceiro, seguindo todos para o sul, e desaparecendo nessa direcção depois de galgarem a colina que lhes ficava mesmo em frente.

 

Um após outro, seis carros de combate franquearam esse cume e perderam-se de vista antes que a calma e o silêncio voltassem a reinar na estrada. Rick ergueu-se com prudência e procurou Horace Toler. Mas o homem havia desaparecido da paisagem acastanhada.

 

Linda pronunciou em voz baixa:

 

- Não teria sonhado com esse condutor de camião?

 

- Talvez. Mas não me atreveria a utilizá-lo agora.

 

Na vertente duma montanha, algures para o sul, relampejou uma luz alaranjada. A granada passou, com o seu característico zunido, por cima das cabeças de ambos e foi explodir na estrada, muito para lá da curva. Como se respondesse a um sinal, todo o flanco da montanha começou a vomitar chamas. A salva caiu precisamente sobre a colina, fazendo saltar um negro montão de terra, num estampido que lhes abalou os ouvidos. Uma outra chegou, com terrível rapidez, bloqueando a estrada com uma chuva de macadame e de estilhaços de aço; mas antes desta explosão, a segunda vaga de carros de assalto atingira já a crista do monte. Os torreões iam agora fechados, as aberturas de observação dos condutores reduzidas a estreitas fendas. Mas continuavam a rugir pela estrada fora, com a mesma esmagadora velocidade, blocos gigantescos de metal movido pelo imã da guerra. Antes de Rick ter tempo de tomar fôlego, toda a segunda vaga seguira o caminho da primeira.

 

- Estou contente por ver que a nossa bateria tem o tiro bem regulado - disse Linda, sempre calma.

 

Winter olhou-a sem responder, perguntando a si próprio como encararia ela a situação que se desenrolava lá em baixo. Saberia que estavam numa espécie de terra-de-ninguém, presos na tenaz duma batalha de carros? Os observadores do posto de artilharia tinham deixado passar a patrulha motociclista. Com certeza mais adiante estaria uma unidade para a receber condignamente. Mas com as vagas de tanques, a história era outra.

 

Linda perguntou:

 

- Não podemos encontrar o nosso condutor, Rick? E procurar sair daqui enquanto é tempo?

 

- Se pensa que me atrevia a levá-la através duma dupla barragem...

 

Mas não havia necessidade de explicações: a realidade estava bem patente aos seus olhos. No ar ressoou um hediondo uivo metálico quando os canhões de grosso calibre entraram em acção para os lados do oriente: o inimigo tinha, evidentemente, passado a noite a cavar as altas colinas para nelas instalar plataformas de artilharia. Mas depressa se tornou bem claro que não realizara o trabalho em condições, pois logo que os canhões americanos acertaram com a distância exacta, as salvas vindas de leste extinguiram-se umas após outras. Rick não chegou a saber se as baterias inimigas tinham sido de facto reduzidas ao silêncio ou se se calaram apenas por prudência. Fosse como fosse, meia hora depois de principiar, o duelo de artilharia terminara e o ar recuperou a sua calma. Se não fora a ameaçadora passagem dos tanques, poder-se-ia dizer que a batalha findara.

 

Uma vez mais, Winter tentou em vão avistar Horace Toler. Talvez o homem tivesse aproveitado um instante de tréguas para se ir esconder no seu camião, embora o pequeno bosque de oliveiras fosse atingido por algumas granadas. Mas com Horace ou sem Horace, era preciso arranjar forma de encontrar outro abrigo. Aquela calma não duraria muito, não alimentava a esse respeito grandes ilusões. Mesmo que as duas vagas de tanques não servissem de escudo a um avanço da infantaria, sabia bem que a sua posição se tornaria insustentável no caso dum contra-ataque: os grandes canhões no flanco da montanha tinham atingido a estrada com demasiada precisão para lhe permitir qualquer esperança.

 

Linda falou muito perto dele... Teve de bater nos ouvidos para fazer sair de lá o zumbido, mas só conseguiu decifrar as palavras da jovem pelo movimento dos seus lábios.

 

- Não podemos pensar em sair daqui agora? Ele forçou um sorriso:

 

- E qual o caminho que escolheria? Os nossos vigiam a estrada com os telescópios. Se nos vissem descer a colina, tomavam-nos decerto por colocadores de minas...

 

O zumbido de abelhas gigantes por cima das suas cabeças cortou-lhe a frase em duas: uma esquadrilha de Messerschmitts projectava as suas sombras na colina, formação cerrada de aviões que iam, eles também, desempenhar o seu papel na grande batalha em desenvolvimento.

 

A mão de Linda apertou a do capitão:

 

- Tem razão, Rick; estamos colocados na tribuna de honra; seríamos tolos se partíssemos antes de terminar o espectáculo.

 

Ele maravilhou-se uma vez mais com aquela calma:

 

- Sabe que adquiriu o ar dum verdadeiro veterano? Ela fixou os olhos na distância:

 

- Terry viu tudo isto, eu também posso ver.

 

Rick não quis comentar aquele pensamento, mas ficou contente por saber que a ardósia de Terry ficara limpa. Podia quase regozijar-se pelo facto de o rapaz ter desaparecido envolto numa auréola de coragem. Sofrera o último calvário da guerra, mas morrera deixando uma recordação intacta. Nem todos os rapazes presentemente envolvidos naquele inferno teriam a mesma sorte. Alguns seriam impiedosamente esmagados pelo cilindro monstruoso, sentiriam a vida comprimir-se até ao esgotamento, e pediriam a Deus uma morte que tardava em chegar...

 

Ele próprio e Linda teriam também de pronunciar essa prece antes de findar o dia? Nuvens de poeira elevavam-se lá em cima, na colina à esquerda, e repararam que a batalha se deslocava nessa direcção. Os seus ecos chegavam até eles, cada vez mais distintos, agora que a dupla barragem de artilharia cessara. Rick abafou um grito quando a primeira flâmula apareceu no topo da colina a ocidente. Desta vez agitava-se no alto da torre dum Churchill e não dum Marck IV. Durante um instante, o carro britânico parou e dir-se-ia suspenso no cimo da crista: Rick viu o tommy do posto de observação sair como um diabo da sua caixa e examinar toda a planície com o binóculo. Depois a tampa da torre fechou-se e o carro Churchill, dando uma volta sobre si mesmo, foi embrenhar-se de novo na refrega.

 

Era uma Ilíada moderna, que nem por se encobrir num manto de poeira parecia menos terrível. O ar vibrava outra vez com o contínuo trovão produzido pelo homem; e para lá dos montes quase se adivinhava o turbilhão de areia que as evoluções dos contendores provocavam. Rick mais uma vez abafou um clamor de alegria quando viu um bombardeiro de estrela branca romper duma massa de nuvens e despejar a sua carga. Nunca soube se o avião americano atingira ou não o alvo; viu somente os tanques inimigos aparecerem de novo no alto da colina, mas desta vez em vertiginosa fuga. Com o motor a todo o gás, corriam desvairadamente para a estrada; de súbito, foram obrigados a obliquar para a planície, avançando aos ziguezagues, sob o fogo ininterrupto da montanha que entrara em acção com todos os seus canhões. Salva após salva, faziam tremer a terra estarrecida; a estrada e a planície encontravam-se envolvidas num verdadeiro anel de aço.

 

Rick há muito tempo que lançara Linda de rosto contra o chão e cobria-a com o próprio corpo. A colina explodia de todos os lados. Quando se ergueu, hesitante, não tinha bem a certeza se o fogo cessara ou não. O terreno plano, lá em baixo, estava crivado de crateras no sítio por onde os carros tinham passado. O último fugia, em chamas, subindo o monte, qual demónio atingido por cegueira. Um rochedo obrigou-o a resvalar, precisamente no momento em que as chamas atingiam o seu depósito de gasolina. Por muito abalado que estivesse, Rick não pôde reprimir um clamor de alegria, saudando a morte do último Mark IV que se desfazia em negros destroços diante dos seus olhos.

 

Voltou então para o seu abrigo entre troncos e rochedos, mas Linda tinha desaparecido.

 

Começou logo a descer a vertente, pois acabava de vê-la, correndo em direcção à estrada arruinada e a um muro de aço que avançava. Parou para aclamar a patrulha motociclista vestida de caqui. Mesmo lá de cima, podia distinguir as cores americanas a tremular ao vento. E aos seus ouvidos torturados chegou o eco dos gritos amigos que saudavam Linda à beira da estrada.

 

O ronco asmático do camião de Horace Toler dir-se-ia uma antítese. Rick quase se esqueceu de lhe fazer sinal quando o camião saiu do bosque de oliveiras meio destruído e desceu a encosta até à estrada. Parecia-lhe tão inútil partir, agora que as linhas se tinham deslocado... Considerava muito mais importante aclamar aqueles rapazes, de rosto resoluto, a caminho do triunfo...

 

Os Messerschmitts batiam também em retirada. Voltavam, acossados por um enxame de caças americanos. E Rick teve tempo de erguer o punho para os bombardeiros em fuga... Mais tarde, havia de reconhecer que ao olhar para o céu salvara a vida de Linda... e a sua...

 

Quando o chefe da esquadrilha inimiga se separou da formação e desceu para varrer a estrada, Rick ainda olhava para o ar, a boca aberta num grito de insulto e de cólera. O Messerschmitt planou por cima do macadame num voo rassante; então, um instinto mais rápido que o pensamento, reconduziu Winter às realidades.

 

O resto sucedeu muito depressa, embora ele tivesse a impressão de que se passaram horas e horas antes de poder atingir com Linda a vala cheia de lama onde se enterraram até aos joelhos. Juntos rolaram no fosso. Mas antes que a sombra negra passasse por cima deles, mais uma vez Rick cobriu com o seu o corpo da jovem. O ronco formidável do motor, o grito de aviso de Toler, o crepitar das balas em sua volta, tudo isso se fundiu num único estrondo vermelho diante dos seus olhos. Depois, sentiu uma humidade lamacenta e Linda mexer-se por debaixo de si... Mesmo nesse instante soube que a tinha defendido duma bala.

 

Duma grande distância, de muito longe, viu-a debruçar-se para ele. Os seus lábios estavam abertos e os seus olhos alucinados de horror, enquanto pronunciava o seu nome. Estaria a gritar? Talvez... Mas a sua voz era também tão distante... Tentou levantar-se, ir ter com ela, mas uma dor lancinante atravessou-lhe todo o corpo... Lutou ainda, cego, com todas as forças que lhe restavam, para tentar afastar a pesada cobertura de obscuridade que o envolvia...

 

Mas era muito mais simples e mais fácil ceder, abandonar-se, embora sentisse os doces braços de Linda envolvê-lo quando tombou para trás, no esquecimento...

 

O véu de obscuridade ergueu-se ligeiramente. O bastante para deixar penetrar no seu cérebro uma flecha de luz doirada. Uma luz que, pouco a pouco, lhe permitiu distinguir dois olhos vagamente familiares. Depois de certo período de perplexidade, Rick acabou por ter a consciência de que aqueles olhos pertenciam ao coronel Granby, o cirurgião da divisão. Mal teve tempo de perguntar a si próprio por que milagre Granby, que devia estar em Argel, arranjara maneira de saltar tão rapidamente até à frente de batalha; já não teve tempo de encontrar resposta, a luz extinguiu-se, a imagem apagou-se...

 

Quando a consciência se lhe reanimou uma segunda vez, Granby continuava inclinado para ele. «É original da parte do coronel», pensou, «ficar aqui ao pé de mim... Ele bem sabe que não tenho assim tanta importância...» Rick estendeu a mão para fazer sinal a Granby que o deixasse, mas encontrou uma superfície lisa e dura... De repente compreendeu que estava num hospital e metido numa tenda de oxigénio. Algures, atrás de si, um tubo defeituoso assobiava. Abriu a boca para se queixar e sentiu o peito traspassado como por um punhal. E o seu espírito iluminou-se de súbito... Aquele assobio saía do seu próprio tórax. «Pneumotórax aberto», pensou. «A pressão está indicada...» Tentou outra vez falar; era absurdo que Granby não o notasse... Um homem com a sua experiência... Então reparou que o som provinha dum tubo de ar, cuidadosamente colocado por baixo do esterno. Uns dedos frescos surgiram de qualquer parte e pousaram ao de leve em cima do seu travesseiro. Olhou sem a mínima surpresa para o rosto de Bill Coffin que aparecia ao lado do de Granby. Bill empunhava uma seringa hipodérmica, com ar ausente de alguém que sofre dum amor sem esperança. Sim, claro, ele teria a mesma expressão se o seu melhor amigo estivesse a morrer à sua vista.

 

A morfina correndo-lhe nas veias trouxe-lhe uma espécie de paz sonolenta que o fez afundar no travesseiro. A morte podia tomar posse duma pessoa assim tão insidiosamente, sem lhe deixar sequer forças para pedir notícias da mulher amada? Mas sem nada perguntar, sabia bem que Linda estava sã e salva. Lembrava-se com que firme vigor ela o abraçara e amparara lá longe, nas colinas tunisianas. Lembrava-se que o seu próprio corpo lhe servira de eficaz escudo contra o ataque da metralhadora que do avião apontaram para eles. Era um bom pensamento para o acompanhar na morte, se na realidade ia morrer...

 

Esquadrinhou a memória, à procura das palavras que ela lhe murmurara ao ouvido antes de se afundar por completo numa densa obscuridade... Encontrou-as no segundo preciso em que de novo se esvaiu num vazio de algodão... e tornou a perdê-las nessa mesma noite no seu delírio, enquanto a chama a que os médicos denominam vontade de viver, ora palpitava ora se extinguia, para brilhar de novo na aurora seguinte...

 

Linda perguntava:

 

- Mas não será muito arriscado operar? Granby respondia:

 

- Ou agora ou nunca, Miss Adams. Dir-lhe-ei que há poucas probabilidades, no estado em que aqui chegou.

 

- Posso esperar até que tenha terminado?

 

- Naturalmente.

 

- Bem sabe que ele foi ferido ao proteger-me.

 

- Sei tudo isso, Miss Adams. Ele falou bastante durante toda a noite. Posso acrescentar que o fim que ele propunha valia o risco que correu?

 

As palavras chegaram até Rick no meio dum nevoeiro branco, um torpor através do qual a sua consciência tão depressa emergia como se afundava, qual balão cheio de água. Muito embora se esforçasse, muito embora estivesse certo de que Linda se encontrava ao seu lado, não conseguia evocar claramente a sua imagem.

 

Agora umas mãos erguiam-no com doçura. Sentiu o corpo flutuar no espaço e deu conta que estava em cima duma mesa montada sobre rodas e atravessava sucessivos quadrados de luz. Abria-se uma porta, entrava numa sala imensa, de tecto todo branco. Depois, atravessava uma parede de corpos também vestidos de branco, rostos escondidos em máscaras, implacáveis. A voz de Granby chegou-lhe de novo aos ouvidos, mesmo por cima dele. Nesse amálgama de brancura, só lhe pareciam reais os olhos do cirurgião e as luvas amarelas que ele usava.

 

Um riso, uma tentativa de riso, rolou-lhe dolorosamente na garganta. «Repara, repara bem, Winter. Lembra-te que desta vez é por baixo que olhas para o bisturi.» A ironia perdeu-se quando o cone de éter desceu, mas todo o seu corpo estremecia ainda nesse riso silencioso.

 

Quando despertou, a mão fresca de Carolyn estava pousada na sua fronte. Regressara ao leito do hospital. Regressara ao branco cubículo que sentia, sem ver, em sua volta. Exactamente como reconhecia Carolyn pelo seu afago, pelo seu murmúrio baixo e doce.

 

- Não fales, querido, não tentes mesmo fazê-lo.

 

O nevoeiro da febre dissipou-se durante uns instantes e viu-a então distintamente, uma jovem alta e loira, muito senhora de si, no seu uniforme de enfermeira. Assim, portanto, Carolyn também atravessara a tormenta sem perigo de maior. Isso era importante e interessava-lhe saber, pois Carolyn era sua noiva. A jovem que fora tudo para ele, há infinito tempo, numa noite de black-out na Inglaterra... Tinha absolutamente de lhe fazer compreender que essa noite de black-out ficara para sempre gravada na sua alma, no seu ser... e representava para ele tudo na vida... Tinha de forçá-la, enfim, a confessar que tomara parte nessa noite de amor... Se pudessem ressuscitar essa recordação, reviver essa noite, ele seria capaz mesmo de esquecer Linda, e repelir para bem longe, duma vez para sempre, a ideia de que pedira Carolyn em casamento apenas por causa desse êxtase e não por amor...

 

Era curioso na verdade como o seu espírito conseguia estabelecer claramente a distinção entre essas duas emoções confusas. Vejamos... podia decerto expor as coisas em termos claros... imediatamente... ali mesmo... não devia perder um minuto sequer... Mas, era absurdo, não conseguia elevar a voz acima do simples murmúrio. E sentiu toda a sua admirável lógica fundir-se em algodão em rama, mal pronunciou as primeiras palavras...

 

- Carolyn... vou... experimentar...

 

Sim, era isso, era bem aquele o verbo apropriado. Prometera, cumpriria. Estava pronto a dedicar toda a sua vida à felicidade de Carolyn e a fechar os olhos a tudo o mais. Se soubesse dominar-se, ela nunca suspeitaria. Felizmente, tinha suficiente prática de mulheres...

 

- Voltei, Carolyn... Dize-me que estás contente.

 

- Sabes bem que estou contente, Rick. ; -Vou pôr-me bom. Depressa.

 

- Pois com certeza, querido.

 

- Mas agora preciso de te explicar.

 

- Não fales mais, suplico-te.        

 

Ela procurava acalmá-lo com a ponta dos dedos. Como estavam frios aqueles dedos! Ao seu contacto, percebeu que tinha os lábios crestados e empolados, a arderem na febre que o devorava. Agora sentia a febre subir-lhe ao cérebro. Precisava absolutamente de lhe transmitir a sua mensagem enquanto estava lúcido, dizer-lhe que a amava, esquecer a ideia de que lhe falava apenas com os lábios, não com o coração...

 

Em lugar disso murmurou:

 

- Depressa... disse depressa... ficarei bom depressa... sairei daqui dentro de poucos dias... Pergunta a Granby... Ele dirá a verdade... é honesto...

 

- Calma, querido. Sossega um pouco.

 

- Não te vais embora? Nunca?

 

- Não, Rick.

 

- Está bem, Carolyn. Está bem. Lembrei-me de te dizer que casaríamos durante a minha licença de convalescença.

 

Dito isto, toda a sua energia se esvaiu por completo. Aquilo custara-lhe um esforço enorme, mas valera a pena. O clarão que brilhava nos olhos de Carolyn ao ouvir as suas últimas palavras, era um clarão real, um clarão de alegria e não apenas uma miragem provocada pela febre. Ele sabia que os seus belos olhos ainda brilhavam através das lágrimas, mesmo depois de os esconder, para os limpar com um pouco de algodão hidrófilo.

 

Foram as suas últimas palavras razoáveis durante muitos dias. Depois disso, num longo período, nada mais disse de compreensível. Quando o seu espírito parecia querer voltar à realidade, estava demasiado fraco para poder falar, mesmo que sentisse ao lado do leito a presença de Carolyn. Por vezes tinha a consciência de estar dentro duma tenda de oxigénio. Mas nunca teve a noção suficiente do seu estado para saber que combatia, com quantas forças lhe restavam, a febre da pneumonia.

 

Durante duas semanas, duas semanas completas, foi uma batalha antecipadamente perdida. As toxinas geradas no pulmão afectado invadiam-lhe o corpo e o cérebro. Torturado por alucinações, dava conta por vezes que mãos vigorosas o retinham no leito. Noutros momentos, sabia que Carolyn o vigiava, e repousava então calmamente, durante várias horas, a mão abandonada entre as suas, murmurando-lhe recordações dessa noite inolvidável do black-out... A visão duma casa em Connecticut surgia com frequência nessas deambulações, com muitas secretárias e cómodas e mesas dos bons tempos antigos, e um terraço de pedra engrinaldado de trepadeiras... Ele sabia que lhe prometera tudo isso, magra recompensa dessas horas inesquecíveis de êxtase... E numa noite em que ela velava junto do seu leito, ouvindo-o sonhar em voz alta, reparou que apesar da rígida disciplina hospitalar rompera em soluços, debulhada em lágrimas... e fora obrigada a sair, Bill Coffin a ampará-la, um braço em redor do seu busto... Mais tarde, sozinho, sorrira docemente a essa lembrança.. . Como era absurdo imaginar que ele não sobreviveria a uma bala no pulmão... Pois fora decerto esse receio que a fizera chorar. Mas mais absurdo seria ainda se chorasse por pensar que ele era capaz de não cumprir a sua promessa...

 

A partir dessa noite tudo se modificou e Rick principiou uma difíciel mas obstinada ascensão para a cura. Era um caso complicado que lhe exigia intensa concentração de todos os meios físicos e morais. Durante algum tempo quase nem notou que outra enfermeira substituíra Carolyn no serviço de noite. Depois soube que por ordem formal do major Coffin, Carolyn partira de licença. Acolheu a notícia com um sorriso fatigado. Quando voltasse, esperava-o uma grande surpresa: em lugar da morte, oferecia-lhe a sua vida e uma aliança de casamento. Teriam uma lua-de-mel absolutamente no estilo da guerra, durante a sua licença de convalescença. Levá-la-ia para um hotel que conhecia na costa: o Hotel de la Plage, alcandorado num rochedo, dominando o mar. A pequena construção, já desbotada pelo sol, erguia-se no meio de desgrenhadas palmeiras batidas pelo vento, num sítio conhecido por Vale dos Macacos. Em seguida, com essa exótica sensação de invadir o campo interdito das coisas nunca realizadas, iria tocar a todas as campainhas, pedir aos superiores, mover influências, para conseguir embarcá-la no primeiro transporte e ficar com a certeza de que ela o esperaria em segurança no terraço de pedra de Connecticut.

 

Isto era o bastante para manter nele a necessária firmeza de espírito, enquanto dia após dia o seu corpo magro mas resistente ia adquirindo novo vigor. O bastante para o ajudar a suportar a sua fome duma só palavra de Linda... de algumas linhas com notícias suas.

 

A sua terceira semana no hospital de Argel estava quase a terminar quando uma manhã despertou banhado em suor. E foi nessa manhã que teve a certeza que ia curar-se. O radiologista, ao parar no vão da porta para lhe dar os bons-dias, confirmou-lhe esse diagnóstico.

 

- Muito bem, Winter, desta vez parece-me que as coisas entraram no bom caminho.

 

- As chapas já não deixam dúvidas a esse respeito?

 

- Quer vê-las?

 

- Troco de boa vontade a oferta por um jornal. Gostava de saber se a guerra já acabou.

 

O radiologista olhou-o atentamente:

 

- Talvez amanhã lhe faça a vontade. Por agora, tenho a impressão de que isso seria demasiado para as suas forças...

 

Depois de se lavar e tomar o pequeno-almoço, Rick permaneceu por muito tempo de olhos fixos nas estrias de luz que as persianas projectavam no tecto. Não se atrevera a pedir deliberadamente notícias de Carolyn nem de Linda. Por enquanto já era alguma coisa repousar em paz, após uma verdadeira refeição de homem, e sentir outra vez o sangue a palpitar nas veias. Saber que seria somente uma questão de dias, depois dos quais poderia estender-se ao sol, nadar sobre as vagas, andar ao vento, sim, e voltar para a guerra... se a guerra durasse ainda.

 

Adormeceu com essa certeza e acordou ao anoitecer, sabendo que a febre o abandonara definitivamente. Bill Coffin estava ali, ao seu lado, com um jornal dobrado debaixo do braço esquerdo. Vestia uma bata branca de mangas curtas, como as que usam os cirurgiões nos países quentes. A sua tez atirava para cinzento e o sombreado duma barba feita na véspera dava-lhe um acentuado ar de fadiga.

 

- Há quanto tempo estás aqui colocado?

 

- Desde que para cá vieste - respondeu alegremente Bill. Os trépanos são frequentes, bem sabes. Há três dias que nem sequer me dispo. - Inclinou-se um pouco, atirou o jornal para os joelhos de Rick e concluiu: - Tens quinze minutos para ler os títulos, enquanto vou ver um doente na enfermaria.

 

E saiu sem ruído. Rick lançou-se avidamente à primeira página.

 

Era um jornal de Nova Iorque, o Record, de há três dias. Uma página inteira dedicada à guerra, com títulos negros. As unidades britânicas e americanas tinham reconquistado a Tunísia. As linhas atingiam outra vez Medjez-el-Bab. Nos Estados Unidos começara a mobilização dos jovens de dezoito anos. O subsecretário da Guerra anunciara em Washington que mais dum milhão de homens se encontravam agora no ultramar. Na Nova Guiné, as linhas de assédio dos japoneses tinham cedido.

 

Deu uma vista de olhos aos títulos principais e embrenhou-se logo na leitura do artigo de Linda. Encontrou-o no seu habitual lugar de honra: um milhar de palavras datadas de Londres, entrevistas com diversas personalidades responsáveis pelo desembarque e ocupação do Norte de África. Do fundo dum mar de caracteres de imprensa, a imagem da jovem sorria-lhe. E o resto do jornal perdeu para ele todo o interesse...

 

Rick estava todo ocupado a sorrir a esse sorriso quando Bill voltou e fechou silenciosamente a porta atrás de si. Sem comentários, tirou-lhe o jornal das mãos e pô-lo de lado.

 

- Sentes-te suficientemente bem para registares alguns factos?

 

- Creio que sim. Experimenta.

 

- Facto número um: amanhã levam-te até ao terraço para o teu primeiro banho de sol. Ou me engano muito, ou no domingo estarás numa cadeira de rodas e dentro de oito dias poderás andar. Facto número dois: Carolyn está em Lorette, em cura de repouso, por minha ordem. Será necessário acrescentar que ela continua disposta a casar contigo logo que Granby te declare apto para a lua-de-mel?

 

Rick abriu e espalmou as mãos sobre o lençol branco. Era um gesto de renúncia, mas que não deixava de ter qualquer coisa de patético.

 

- Parece que disse nas últimas semanas um ror de coisas de que não me lembro.

 

- E não disseste pouco!

 

Bill sentou-se aos pés da cama. Rick sorriu do visível contentamente do amigo:

 

- Esperavas que eu opusesse alguma resistência? Mas, claro, desejo casar com ela. Estou pronto a afirmá-lo por escrito, aqui mesmo e imediatamente, se assim o entenderes, mas tens de me emprestar uma caneta.

 

- Acreditei-te desde a primeira hora - murmurou jovialmente Bill. - E Carolyn também. Poderás escrever-lhe amanhã se assim desejares. Queres que passemos ao facto número três?

 

- Se insistes...

 

- Refere-se a Horace Toler, cabo do Primeiro Exército de Sua Majestade. Foi condecorado por te ter conduzido no seu camião para o hospital de campanha. Uma medalha e um mês de licença em Londres. O facto número quatro diz respeito a Linda.

 

Rick continuava a olhar para o lençol, de dedos abertos. «Pobre actor, este Bill», pensou. Aquela pausa não deixava de ser dramática. Por fim observou:

 

- Linda também recebeu uma medalha?

 

- Apaga esse sorriso! - resmungou Bil. - Sei bem que lhe salvaste a vida quando Jerry vos atacou. Mas ela salvou a tua dez minutos depois ajudando Toler a transportar-te para o camião e fazendo parar a hemorragia dessa tua ferida perfurante do tórax com um penso compressor da sua caixa de primeiros socorros.

 

Rick continuou a ouvir a voz amiga sem a interromper. Era já alguma coisa saber que Linda aproveitara bem o curso elementar sobre os primeiros cuidados a dispensar aos feridos que mesmo uma correspondente de guerra é obrigada a seguir. Sob certo aspecto, o seu caso era apenas mais um mosaico no edifício da moderna medicina de guerra. Um conjunto que, sob a égide do exército, funcionava admiravelmente, a despeito mesmo dalgumas insidiosas calúnias aparecidas nos jornais de Nova Iorque.

 

Forçou o pensamento a concentrar-se nesse aspecto da questão. No fim de contas, não tinha nenhum interesse em perguntar a si próprio o que sentiria ela ao ajudar o condutor a retirá-lo da lama do fosso. Tudo isso pertencia já ao passado. O futuro de Linda estava traçado e o seu também. Mas estava satisfeito por dever a vida ao simples facto de Linda ter-se sentado, em determinada altura, numa aula de primeiros socorros, o tempo suficiente para assimilar a técnica dum penso de urgência. Graças a isso, ele, Rick Winter, não fizera subir a percentagem das perdas na frente de batalha. Uma percentagem que continuava a ser tão baixa que os leitores, no país, não podiam deixar de abrir os olhos de espanto e recusavam-se a acreditar e comentavam: Mais uma história de propaganda para uso dos ingénuos. Não me comem as papas na cabeça, meu velho. Nenhum cirurgião do mundo podia salvar tal quantidade deferidos. Nem mesmo com drogas miraculosas.

 

Rick sorriu preguiçosamente, baixando as pálpebras sonolentas.

 

O estudo das estatísticas era uma actividade calmante para ocupar um espírito desejoso de esquecer a mulher amada... Fora Trueta, realmente, que começara tudo... E depois vieram os russos com os seus banhos quentes na frente de batalha e os seus comboios-hospitais. Agora, nos desertos da Tunísia, as forças americanas e britânicas escreviam uma nova página dum milagre sem fim. E, o que era mais, poderiam provar tudo quanto afirmavam, em conjunto e em pormenor, quando a campanha terminasse, quando os navios-hospitais, cheios a transbordar, transportassem para o país os homens salvos pelos cirurgiões nas linhas de fogo.

 

Rick saiu do seu sonho quando Bill Coffin lhe tocou no ombro.

 

- Eu disse que ela te salvou a vida. Não sentes ao menos gratidão?

 

Era verdade... O esforço era demasiado e vão: no fim de contas, não lhe seria possível fechar eternamente o espírito à pergunta de Bill.

 

- Queres que lhe escreva também para Londres e que lhe testemunhe o meu reconhecimento?

 

A sua voz, que ele desejaria irónica ou pelos menos indiferente, deixou transparecer sem querer certa emoção. E reconheceu que não seria capaz de suportar aquele diálogo difícil por muito mais tempo. Feliz por poder usar dos seus privilégios de convalescente, enterrou o rosto na almofada e disse:

 

- Se não te importas, Bill, falaremos nisso amanhã...

 

- Combinado. Durante três dias tiveste quarenta e um graus de febre. Talvez ficasses surpreendido se soubesses tudo quanto o calor fez evaporar do teu cérebro.

 

E, batendo amigavelmente no ombro do amigo, foi-se embora.

 

Na manhã seguinte, depois do primeiro almoço, a enfermeira trouxe-lhe uma escrivaninha portátil. Já rasgara três cartas para Linda e começava uma para Carolyn, quando a própria Carolyn entrou, muito fresca e branca nas suas vestes de enfermeira, arvorando um belo sorriso como bandeira.

 

Rick espalhou o papel de carta e os sobrescritos pelo quarto ao afastar a escrivaninha para o lado e estendeu as duas mãos para Carolyn. O seu gesto teria sido espontâneo para a convencer? Fosse como fosse, ela beijou-o convictamente e depois sentou-se na beira da cama, conservando entre as suas as mãos de Rick. Ele fixou-a longamente nos olhos antes de falar. Aquele momento era muito importante, agora que se tratava de provar a sua sinceridade.

 

- Estou contente por te tornar a ver - disse-lhe por fim. Ela sorriu e ao mesmo tempo baixou os olhos.

 

- Isso significa que a oferta se mantém?

 

- Lembras-te da última coisa que te disse... antes... antes de perder o meu perfeito juízo?

 

Ela apertou-lhe a mão que continuava entre as suas:

 

- Estás bem certo de que não tinhas perdido já o teu perfeito juízo quando mo disseste?

 

Ele atraiu-a a si para um beijo mais eloquente do que muitas palavras. A cena, até então, desenrolara-se uma maravilha. Os gestos e as palavras engrenavam-se uns nos outros num movimento perfeito de relojoaria. Ele agarrara pelos cabelos, no momento preciso, a primeira oportunidade e tirara dela o melhor partido:

 

- E isto próvá-te que recuperei todo o bom senso?

 

A enfermeira de serviço entrou, trazendo o chocolate. Carolyn mal teve tempo de se libertar do amplexo e a sua voz era absolutamente calma quando reuniu de novo os fios da conversa interrompida, os fios da sua promessa. Rick não pôde deixar de admirar o sangue-frio e a tranquila autoridade duma mulher que se sentia segura do terreno que pisava.

 

- Estou contente por nos entendermos bem, querido. Agrada-te que Bill Coffin seja o padrinho?

 

A enfermeira saiu com um sorriso malicioso nos olhos. Mas já Rick agarrara de novo a mão de Carolyn sobre o lençol liso e fresco.

 

- Quando? - perguntou.

 

- Quando o doutor Granby te der liberdade - disse ela com ar digno. - E, se não te importas, o casamento pode realizar-se no Hotel de la Plage. Chega-se lá facilmente de automóvel.

 

A despeito de todo o seu aprumo, Rick engoliu com dificuldade a saliva.

 

- Não me recordo de ter falado no Vale dos Macacos. Carolyn corou até à raiz dos cabelos. Pela primeira vez ele

 

percebeu uma certa emoção na sua voz:

 

- Há com certeza muitas coisas de que não te lembras, querido. Deliravas, mas eu senda que exprimias verdadeiramente os teus desejos. Parece que já lá estiveste. E querias mostrar-me que estavas completamente mudado.

 

«Discurso de mau gosto...», pensou rapidamente Rick e procurou mudar o curso da conversa:

 

- Hão-de dar-me pelo menos um mês de licença. Vou remover o céu e a terra para te mandarem imediatamente para os Estados Unidos.   Poderemos casar na Inglaterra, fica em caminho...

 

Carolyn abanou a cabeça:

 

- Aqui é melhor... E, além disso, não volto agora para a América.

 

- Nem mesmo para construir a nossa casa em Connecticut?

 

- Nem mesmo para isso. Construiremos mais solidamente o nosso futuro se continuarmos ambos aqui.

 

Deixou-a fazer projectos à vontade. No fim de contas, teria muito tempo de a convencer a agir doutro modo quando ela fosse a senhora de Richard Winter. Seria então altura de lhe afirmar que ganhara o direito de protegê-la. Era o menos que podia fazer por ela, já que não podia dar-lhe amor.

 

- Vejo que estás fatigado, querido. Não faças mais planos. Por agora, que seja eu a fazê-los. - Depois, corando como um tomate, voltou os olhos e prosseguiu: - Bem sei que não me fica bem marcar um apartamento... para uma lua-de-mel... em lugar do noivo... mas...

 

Ele sorriu-lhe e com a mão afagou-lhe o queixo e obrigou-a a olhá-lo:

 

- Vai hoje mesmo ao Hotel de la Plage, se isso te agrada, e reserva o nosso apartamento. Vivemos em tempos modernos e este é um casamento moderno.

 

Carolyn voltou-se então resolutamente para ele:

 

- Combinado, querido. E obrigada pela carta branca.

 

- Convidamos todo o bando para o jantar da boda?

 

- Não para esta - disse Carolyn, fitando-o demoradamente. Em seguida pronunciou uma frase que a ele pareceu estranha:

- És um amante maravilhoso, querido, mas um péssimo D. Quixote.

 

- Dize isso outra vez, por favor.

 

- Pensa nisso, querido. Talvez compreendas aqui a alguns dias. - Inclinou-se e beijou-o: - Então, até sexta-feira?

 

Ele tornou a sua voz o mais vibrante que pôde:

 

- A não ser que o velho Granby me deixe sair mais cedo.

 

- Sexta-feira está bem - respondeu Carolyn.

 

Durante alguns instantes, ela errou em volta do leito, como se não pudesse decidir-se a dizer qualquer coisa, como a procurar uma desculpa para prolongar a visita. De súbito, deixou-se cair de joelhos ao lado dele, sufocou-o num longo abraço, tapou-lhe a boca num beijo de fogo.

 

- Esperei por isto tanto tempo, doutor Winter... Desculpe-me se faltei às boas regras profissionais.

 

E fugiu, com os olhos marejados de lágrimas. Depois de ela partir, Rick esboçou um ligeiro sorriso. Segundo toda a aparência, as suas qualidades de mentiroso tinham-lhe voltado com a saúde. A não ser que ele já não soubesse ler e interpretar os sintomas, ia fazer o seu primeiro casamento em grande estilo.

 

Entre bosques de oliveiras a estrada serpenteava até ao mar, e o mar dir-se-ia turquesa pálida, lá em baixo, na nesga aberta entre as colinas. A tarde longa e quente morria no crepúsculo. Rick encostou-se ao estofo gasto do velho Packard e gritou ao condutor que diminuísse a velocidade antes da curva. Como era bom sentir de novo no rosto o ar livre e o sol. Como era bom sentir que, sob o uniforme limpo e fresco, o corpo estava quase refeito! Quando o carro descoberto abrandou a marcha, parando a seguir à curva, inclinou-se para afundar a vista naquele oceano de palmeiras, um vale que permanecia tão perfeito como um poema, um oásis ali plantado pelo homem, com os muros brancos do hotel brilhando vagamente à luz do crepúsculo.

 

- As palmeiras dos símios, senhor capitão - indicou o motorista. - É belo, não é verdade?

 

Rick fez um sinal de aquiescência e sem dizer nada mandou-o seguir. Naquela tarde, era mais o seu espírito que o seu coração que apreciava a beleza. O vale era uma lembrança que ele gostaria de partilhar com a mulher amada. Agora, e a seu pedido explícito, ia partilhá-lo com Carolyn Rycroft. Tinha de se lembrar, velar por que cada um dos seus desejos obtivesse satisfação e de preferência acto contínuo. Nisto e em muitas outras coisas. Sucedesse o que sucedesse, a lua-de-mel não devia decepcioná-la e não a decepcionaria. Estabelecera os seus planos com toda a atenção e com a ajuda do major Coffin.

 

O champanhe seria bebido na grande sala do apartamento nupcial, um copo cada um, para adquirirem coragem antes de se encontrarem em face do capelão da divisão no pequeno santuário perto do mar. Bill ocupar-se-ia primeiro da bagagem de ambos e esperá-los-ia depois no automóvel, diante do hotel, para os conduzir à capela. Era talvez menos romântico, mas sem dúvida muito mais prático. Assim, quando regressassem, já o conteúdo das suas malas estaria devidamente arrumado. Bill voltaria então para Argel, e eles ficariam sós. Jantariam em seguida na pequena varanda do apartamento, donde se avistam os jardins. E, na escuridão do parque, ressoariam os acordes duma música sentimental, quando bebessem o champanhe. Bill também organizara todo esse cenário com Baptista, o mordomo do hotel.

 

E Baptista lá estava de facto para o receber com enfáticas saudações, sob o grande jasmim-do-cabo que embalsamava toda a avenida da entrada do hotel, até ao portal. Baptista, príncipe dos mordomos, que por vezes se parecia um pouco aos saguins que chilreavam nos ramos das árvores. Rick entrou atrás das suas malas, lisonjeado como sempre pela torrente de francês suave que se esforçava por atender a mínima necessidade, o mínimo desejo.

 

- A senhora?

 

- Pode subir, senhor capitão. Está lá em cima, a sua espera. O gordo mordomo premira já o botão do decrépito ascensor. Não parecia nada próprio de Carolyn esperá-lo no quarto. Rick

 

contraiu firmemente os lábios sobre a pergunta não formulada e seguiu o guia ao longo do corredor, branco de cal, do primeiro andar. Com um gesto largo, Baptista abriu a porta do apartamento. O quarto estava já mergulhado na penumbra e uma única lâmpada o iluminava, colocado ao lado do leito em estilo Império.

 

Mais além, o pequeno balcão enriquecia-se com os arabescos dourados do sol-poente. E enquanto Rick se detinha, olhando em volta, o Sol em poucos segundos desapareceu atrás do morro, lampião que se apaga e deixa em cena as feiticeiras da noite...

 

Rick encolheu os ombros e avançou no quarto, as duas mãos estendidas. Atrás de si, Baptista, suma essência de discrição, fechara já a porta e deslizava sem ruído pelo corredor fora.

 

De mãos sempre estendidas e sempre vazias, Rick, levemente desconcertado, circundou o olhar pelo aposento deserto. Em três passos atingiu a luz velada do candeeiro, junto da qual viu um sobrescrito. Um pequeno quadrado branco, bem alvo, colocado em cima duma capa branca dobrada. O seu nome estava lá escrito. A letra era de Carolyn.

 

Rick, meu bem-amado:

 

Posso ainda chamar-te assim, agora que te deixo viver sem mim a tua noite de núpcias?

 

Ele voltou-se, desnorteado, inspeccionou o quarto vazio, abriu a boca para chamar Baptista que sem dúvida estava ao corrente da conspiração. Mas em vez disso sentou-se no leito e continuou a leitura:

 

Não podes imaginar tudo quanto disseste enquanto lutavas com a febre. Não te lembras certamente de me teres chamado a «tua querida desconhecida do black-out». Perdoa-me se fui estúpida, Rick, mas precisei de algum tempo para compreender o que essa frase significava para ti. E precisei de mais tempo ainda para compreender que essa era a verdadeira e mesmo a única razão pela qual me pediras em casamento.

 

Ele sentiu a cabeça andar à roda enquanto procurava descobrir a verdadeira intenção que aquelas palavras ocultavam. Mas as próprias palavras o chamaram de novo a si. Teria muito tempo para explicar a Bill e ao capelão que a sua noiva puritana se escondera em qualquer parte. E também de a procurar e encontrar.

 

Porventura te dou a impressão de falar ao acaso e de não chegar a nenhuma conclusão, querido? E queres-me perdoar ter-me mostrado tão boa comediante aquando da minha última visita ao teu quarto de hospital? Vê bem, eu tinha necessidade de ter a certeza de que estavas decidido a ir até ao fim e a não voltares atrás. E vi-te pronto a representar o papel de D. Quixote, na minha frente pelo menos. Eu ia obrigar-te a cumprir uma promessa à qual não tinha nenhum direito.

 

Mas não me contentei a sair da cena que tinhas preparado para mim. Oh, faria todo o possível por representar o papel que me destinavas até ao fim se o meu desejo de ser a senhora de Richard Winter fosse maior do que o meu amor pelo próprio Richard Winter! Em vez disso, rememorei o começo de tudo. Rememorei essa noite da Inglaterra, essa noite terrível em que com Gina Cole, no lar das enfermeiras, vivi a tremer o terror do meu primeiro ataque aéreo.

 

Rick olhava para o papel esperando que as letras regularmente desenhadas readquirissem forma diante dos seus olhos perturbados. Depois continuou a ler:

 

Devo ser melhor investigadora do que tu, querido. Não precisei mais de trinta segundos, uma vez prevenida, para decidir quem devia ser a «tua tão adorada desconhecida do black-out». E apenas dois dias para a persuadir que o seu dever era vir para junto de ti.

 

Como vês, deixo aqui a sua capa e tirei a minha da tua mala, com a permissão de Bill Coffin, isto para não teres de a procurar mais tarde. Lembra-te: ela levou por engano nessa noite a minha capa do vestiário do clube... A única coisa que me restava fazer era ficar com a sua à espera que alguém se manifestasse ou que eu pudesse descobrir a quem correspondiam aquelas iniciais e identificar a proprietária. Mas a família tornou-me a tarefa difícil ao baptizá-la com o nome de «Belinda».

 

Rick agarrou logo na capa. Durante uma pequena eternidade examinou as duas iniciais bordadas a fio de prata no forro da gola. Contemplava-as ainda quando ouviu um leve rumor de passos, lá fora, na varanda, agora mergulhada na escuridão. Soube assim que o francês Baptista não mentira ao dizer-lhe que alguém estava ali, naquele quarto, à sua espera, embora não fosse a pessoa que ele imaginava.

 

Não se mexeu nem levantou os olhos quando a sentiu de pé atrás de si, no escuro. Não se moveu também quando sentiu os seus dedos roçarem-lhe os cabelos, acariciarem-nos, pousarem na sua cabeça.

 

De respiração suspensa, esperava. Esperava o sinal que, finalmente, a revelaria sem erro possível.

 

Os lábios dela afloram-lhe a face e murmuraram:

 

Adivinha agora quem te prende?

 

E de todo o seu longo desejo, de toda a sua longa espera, surgiu o final da estrofe:

 

... - A morte, repliquei

 

Mas então ressoou a resposta eloquente...

 

A voz de Linda juntou-se à sua. A mesma voz que, no frio terror dum black-out inglês, o fizera estremecer num profundo êxtase, a voz de Linda, agora vibrante de certeza:

 

Mas então ressoou a resposta eloquente... Não é a morte, é o amor...

 

                                                                                Frank G. Slaughter  

 

                      

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