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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


COISAS FRÁGEIS / Neil Gaiman
COISAS FRÁGEIS / Neil Gaiman

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

                             UM ESTUDO EM ESMERALDA

Acredito que seja a imensidão. O tamanho das coisas lá embaixo. A escuridão dos sonhos.

Mas estou devaneando. Perdoem-me. Não sou um literato.

Eu precisava de hospedagem. Foi assim que o conheci. Eu queria alguém para dividir o aluguel do quarto comigo. Fomos apresentados por um conhecido comum, nos laboratórios químicos de St. Bart's.

— Percebo que esteve no Afeganistão — foi isso que ele me disse, e meu queixo caiu e meus olhos se arregalaram.

— Incrível — comentei.

— Na verdade, não — continuou o estranho de jaleco branco que se tornaria meu amigo. — Olhando para o seu braço, vejo que o senhor foi ferido, e de modo peculiar. O senhor é bem bronzeado e tem postura de militar, e há poucos lugares do Império onde um militar pode se bronzear e também, considerando a natureza do ferimento no seu ombro e os costumes dos povos afegãos das cavernas, ser torturado.

 

 

 

 

 

 

Explicado assim, claro, parecia absurdamente simples e lógico. E realmente era. Eu tinha mesmo um bronzeado jambo. E de fato fora, como ele observou, torturado.

Longe de serem sensatos, os deuses e os homens do Afeganistão eram selvagens e se recusavam a ser governados por Whitehall, Berlim ou até Moscou. Eu fora enviado para aquelas colinas junto com o__º Regimento. Enquanto a luta ficou nas montanhas, combatemos em pé de igualdade, mas, quando descemos para a escuridão das cavernas, ficamos encrencados até o pescoço, em larga desvantagem.

Jamais vou esquecer a superfície espelhada do lago subterrâneo, nem a coisa que emergiu dele, seus olhos abrindo e fechando, e os sussurros melódicos que acompanhavam sua entrada em cena, envolvendo-a como o zumbido de moscas gigantescas.

Que eu tenha sobrevivido foi um milagre, mas sobrevivi, e voltei para a Inglaterra com meus nervos em frangalhos. O lugar onde aquela boca de sanguessuga me tocara ficou tatuado para sempre, uma pele branca feito barriga de sapo, no meu ombro, atualmente atrofiado. Eu já fora um exímio atirador. Agora não me restava nada além do medo do mundo subterrâneo, quase um pânico, que me fazia pagar de bom grado seis pence da minha pensão militar por uma charrete em vez de um penny para viajar de metrô.

Ainda assim, as névoas e a escuridão de Londres me confortavam, me acolhiam. Eu perdera minha moradia anterior porque gritava à noite. Eu estivera no Afeganistão, mas não estava mais lá.

— Eu grito à noite — contei.

— Já me falaram que eu ronco — ele disse. — Também tenho horários irregulares, e costumo praticar a pontaria na lareira. Vou precisar da saleta para receber clientes. Sou egoísta, reservado e me entedio facilmente. Indo bem para você?

Eu sorri, meneei a cabeça e estendi o braço. Selamos o acordo com um aperto de mão.

Os aposentos que ele encontrara para nós, na Baker Street, eram mais do que suficientes para dois solteirões. Lembrando o que meu amigo dissera sobre ter privacidade, evitei perguntar qual era a sua profissão. No entanto, muito havia para me instigar a curiosidade. Visitantes chegavam a qualquer hora, e então eu saía da saleta e me recolhia ao meu dormitório, perguntando-me o que eles poderiam ter em comum com meu amigo: a mulher pálida com um olho esbranquiçado, o homenzinho que parecia um caixeiro-viajante, o dândi corpulento de paletó de veludo, e o resto deles. Alguns faziam visitas freqüentes, vários outros só vinham uma vez, falavam com ele e iam embora, ora preocupados, ora satisfeitos.

Ele era um mistério para mim.

Certa manhã, quando estávamos nos fartando com um magnífico café-da-manhã servido pela proprietária, meu amigo tocou a sineta para chamar aquela boa mulher.

— Um cavalheiro se juntará a nós em aproximadamente quatro minutos inundou ele. — Vamos precisar de mais um lugar à mesa.

— Muito bem — ela disse -, vou pôr mais salsichas na grelha. Meu amigo voltou a ler o seu jornal. Esperei impacientemente por uma explicação, até que não agüentei mais.

— Não entendo. Como pode saber que daqui a quatro minutos receberemos uma visita? Não houve nenhum telegrama nem mensagem. Ele sorriu discretamente. — Não ouviu o barulho de uma carruagem há alguns minutos? Ela diminuiu a velocidade ao passar por aqui. Obviamente, o condutor identificou nossa porta, depois acelerou e seguiu rumo a Marylebone Road. Há um congestionamento de carruagens e táxis deixando passageiros na estação de trem e no museu de cera, e é para lá que iria alguém que quisesse desembarcar sem ser notado. A caminhada ate aqui leva apenas quatro minutos...

No instante em que ele olhou para o relógio de bolso, soaram passos na escada lá fora.

— Entre, Lestrade — gritou. —A porta está aberta, e suas salsichas já estão saindo da grelha.

Um homem, que deduzi ser Lestrade, abriu a porta, entrou e fechou-a cuidadosamente.

— Eu não deveria — ele disse. — Mas, para dizer a verdade, não tive oportunidade de fazer meu desjejum esta manhã. E certamente não poderia desperdiçar essas salsichas.

Ele era o homenzinho que eu observara em várias ocasiões, que tinha a fisionomia de um vendedor de bugigangas de borracha ou de elixires milagrosos. Meu amigo esperou até que a proprietária se retirasse antes de dizer:

— Obviamente, presumo que seja um assunto de interesse nacional.

— Pelos céus! — exclamou Lestrade, e empalideceu. — Não é possível que a notícia já tenha se espalhado. Diga que não é verdade. — Ele começou a encher seu prato com salsichas, filés de salmão, kedgeere[1] e torradas, mas suas mãos tremiam um pouco.

— Claro que não — respondeu meu amigo. — Acontece que, depois de tanto tempo, eu já reconheço o ranger das rodas de sua carruagem: um sol sustenido oscilante modulando um dó alto. E se o inspetor Lestrade, da Scotland Yard não pode ser visto entrando na sala do único consultor investigativo de Londres, e ainda assim ele entra, e antes de tomar o café, então sei que o caso não é de rotina. Logo, deve envolver aqueles que estão acima de nós e ser um assunto de interesse nacional.

Lestrade limpou a gema de ovo do queixo com o guardanapo. Olhei para ele. Não se parecia com a imagem que eu fazia de um inspetor de polícia — mas até aí, meu amigo tampouco se parecia com a imagem que eu tinha de um consultor investigativo, seja lá o que fosse isso.

— Talvez devêssemos discutir o assunto em particular — disse Lestrade, olhando para mim.

Meu amigo deu um sorrisinho maldoso e balançou a cabeça como sempre fazia quando estava se deleitando com alguma brincadeira secreta:

— Bobagem. Duas cabeças pensam melhor do que uma. E o que é dito para um de nós dois é dito para ambos.

— Se eu estiver atrapalhando... — comecei emburrado, mas ele acenou para que eu ficasse quieto.

Lestrade deu de ombros.

— Para mim, dá no mesmo — comentou, depois de um momento. — Se você resolver o caso, continuarei empregado. Caso contrário, estarei na rua. Só lhe peço que use seus métodos, porque as coisas não poderiam estar piores do que já estão.

— Se há algo que podemos aprender com a história, é que as coisas sempre podem piorar — disse meu amigo. — Quando iremos para Shoreditch?

Lestrade deixou cair o garfo.

— Assim não dá! — exclamou. — Você fica aí zombando de mim, quando já sabe tudo sobre o caso! Deveria se envergonhar...

— Ninguém me contou nada sobre o caso. Quando um inspetor da polícia entra em minha sala com barro amarelo-mostarda fresco em suas botas e calças, certamente posso ser perdoado por presumir que ele passou recentemente pelas escavações da Hobbs Lane, em Shoreditch, que é o único lugar de Londres, aparentemente, onde se pode encontrar barro dessa cor.

O inspetor Lestrade disse, constrangido:

— Agora que você explicou, parece tão óbvio. Meu amigo afastou o seu prato.

— Claro que parece — replicou, com certa irritação.

Eu e meu amigo pegamos um táxi para o East End, enquanto o inspetor Lestrade foi procurar sua carruagem na Marvlebone Road, deixando-nos a sós.

— Então você é realmente um consultor investigativo?

— O único em Londres, ou talvez no mundo — respondeu ele. — Eu não aceito casos, apenas faço consultas. As pessoas me contam seus problemas insolúveis com detalhes, e às vezes eu os resolvo.

— Então aquelas pessoas que procuram você...

— São, na maioria, policiais ou mesmo detetives, sim.

Naquela bela manhã, sacolejávamos nos arredores do cortiço de St. Giles, um covil de ladrões e assassinos que assola Londres como um cancro no rosto de uma bela florista. A luz que entrava na cabine era fraca e pálida.

— Tem certeza de que quer que eu o acompanhe? Em resposta, meu amigo me olhou sem piscar:

— Tenho a sensação de que nos conhecemos por algum motivo. Que já lutamos o bom combate, lado a lado, no passado ou no futuro, não sei. Sou um homem racional, mas aprendi a dar valor a um bom companheiro e, desde que o vi, percebi que confiava em você tanto quanto confio em mim mesmo. Sim, quero que me acompanhe.

Fiquei vermelho, ou falei algo sem sentido. Pela primeira vez desde o Afeganistão, senti que eu tinha valor no mundo.

 

                                           O QUARTO

Era uma hospedaria barata em Shoreditch. Havia um policial na entrada. Lestrade o cumprimentou chamando-o pelo nome, acenou para que entrássemos, e eu já ia entrar, mas meu amigo se agachou na soleira e tirou uma lupa do bolso do casaco. Ele examinou a lama no ferro de limpar solas, cutucando-a com o indicador. Só quando se deu por satisfeito nos deixou entrar.

Subimos as escadas. O quarto onde o crime fora cometido era óbvio: dois policiais corpulentos guardavam a porta.

Lestrade acenou para os homens e eles abriram caminho. Entramos.

— Não sou, como já disse, um escritor profissional, e hesito em descrevei aquele lugar, sabendo que minhas palavras não são suficientes para tal. No entanto, já comecei esta narrativa, e receio que seja preciso continuar. Um assassinato fora cometido no pequeno dormitório. O cadáver, ou o que restava dele, ainda estava lá, no chão. Eu o vi, mas a princípio, de alguma forma, não o vi. O que mais me chamou a atenção foi o que esguichara da garganta e do peito da vítima: a cor ia do verde-bílis ao verde-musgo. Tinha penetrado no carpete surrado e espirrado no papel de parede. Imaginei por um momento que fosse obra de algum artista pirado que tivesse decidido criar um estudo em esmeralda.

Depois do que pareceram cem anos, baixei os olhos para o corpo, aberto como um coelho sobre a bancada de um açougueiro, e tentei entender o que via. Tirei o chapéu, e meu amigo fez o mesmo.

Ele se ajoelhou e inspecionou o corpo, examinando os cortes e as lacerações. Depois, puxou sua lupa e foi até a parede examinar as manchas de linfa.

— Já fizemos isso — disse o inspetor Lestrade.

— É mesmo? — retrucou meu amigo. — O que acha disto, então? Creio que é uma palavra.

Lestrade foi até o lugar onde meu amigo estava e olhou para cima. Havia uma palavra, escrita em maiúsculas, em sangue verde, no papel de parede amarelado, pouco acima da cabeça de Lestrade.

— R-A-C-H-E...? — soletrou Lestrade, letra por letra. — Obviamente, ele queria escrever "Rachel", mas foi interrompido. Portanto, precisamos procurar uma mulher...

Meu amigo nada disse. Ele voltou para perto do cadáver e levantou-lhe as mãos, uma após a outra. Os dedos não estavam manchados de linfa.

— Acho que já determinamos que a palavra não foi escrita por Sua Alteza Real...

— Por que diabos diz que...?

— Meu caro Lestrade. Por favor, dê-me algum crédito por ter um cérebro. O cadáver, obviamente, não é de um homem: a cor do sangue, o número de membros, os olhos, a posição do rosto, todas essas coisas denunciam o sangue real. Embora eu não saiba precisar à qual linhagem ele pertença, arriscaria dizer que se trata de um herdeiro, talvez... não, segundo na linha de sucessão ao trono... de um dos principados germânicos.

— Impressionante. — Lestrade hesitou, depois continuou: — Este é o príncipe Franz Drago, da Boêmia. Estava aqui em Albion como convidado de Sua Majestade Vitória. Veio passar férias e mudar de ares...

— Visitar os teatros, as meretrizes e as mesas de jogo, você quer dizer.

— Se você diz. — Lestrade parecia irritado. — De qualquer forma, você nos deu uma ótima pista com essa tal de Rachel. Ainda que eu não duvide de que a teríamos encontrado por nossa conta.

— Sem dúvida — observou meu amigo.

Ele inspecionou o quarto mais um pouco, várias vezes comentando, irritado, que a polícia, com suas botas, apagara pegadas e mexera era coisas que poderiam ter sido úteis para quem quisesse reconstituir os fatos da noite anterior.

Mesmo assim, interessou-se por um pequeno torrão de lama que achou atrás da porta.

Ao lado da lareira, ele encontrou o que pareciam ser cinzas ou poeira.

— Viu isto? — perguntou a Lestrade.

— A polícia de Sua Majestade — replicou Lestrade -, não costuma se entusiasmar com cinzas numa lareira. E ali que elas costumam ficar. — E deu uma risadinha.

Meu amigo pegou uma pitada das cinzas e a esfregou entre os dedos, cheirando-a em seguida. Finalmente, coletou o que restava do material e o introduziu numa ampola de vidro, tampando-a e guardando-a num bolso interno do casaco.

Ele se levantou:

— E o corpo?

— O palácio vai mandar seu próprio pessoal — respondeu Lestrade. Quando estávamos indo em direção à porta, após meu amigo ter feito sinal para sairmos, ele suspirou:

— Inspetor. Sua busca pela senhorita Rachel pode provar-se infrutífera. Entre outras coisas, Rache é uma palavra alemã. Significa "vingança". Consulte o dicionário. Tem outros significados.

Chegamos ao pé da escada e saímos para a rua. Você nunca tinha visto a realeza antes, certo? — ele perguntou. Balancei a cabeça. — É, quando não se está preparado, pode ser uma visão perturbadora. Ora, meu bom amigo, você está tremendo! Não se preocupe, logo vou melhorar. Será que caminhar lhe faria bem? Eu fiz que sim, certo de que, se não caminhasse, começaria a gritar.

— Para o oeste, então — anunciou meu amigo, apontando para a escura torre do palácio. E começamos a andar.

— Quer dizer — continuou, depois de algum tempo — que você nunca teve um encontro pessoal com nenhuma das cabeças coroadas da Europa?

— Não.

— Mas acredito que você terá — ele me disse. — E, dessa vez, não com um cadáver. Muito em breve.

— Meu caro amigo, por que acredita...?

Em resposta, ele apontou para uma carruagem, pintada de preto, que parará uns 50 metros à nossa frente. Um homem de cartola preta e casacão estava de pé à porta, segurando-a aberta, esperando, em silêncio. Um brasão familiar para qualquer criança de Albion, em ouro, adornava a carruagem.

— Há convites que não se recusam — observou meu amigo. Ele tirou o chapéu para o lacaio, e acredito que estava sorrindo ao entrar na pequena cabine e relaxar sobre o estofamento macio.

Quando tentei falar durante o trajeto até o palácio, ele pôs um dedo sobre os lábios. Depois fechou os olhos e pareceu imerso em pensamentos. De minha parte, tentei lembrar o que sabia sobre a realeza alemã, mas, além do fato de o consorte da Rainha, o príncipe Albert, ser alemão, eu sabia bem pouco.

Enfiei a mão no bolso, tirei um punhado de moedas — marrons e prateadas, pretas e de cobre esverdeado. Fitei a imagem da nossa Rainha gravada em cada uma delas, e senti ao mesmo tempo orgulho patriótico e terror absoluto. Disse a mim mesmo que eu já fora um militar que desconhecia o medo, e consegui me lembrar de quando isso era a mais pura verdade. Por um momento, recordei uma época em que fora exímio atirador — até, eu gostava de pensar, um perito no assunto, mas minha mão direita tremeu como seu eu fosse parkinsoniano, as moedas chocalharam, e senti apenas arrependimento.

 

                                       O PALÁCIO

O consorte real, príncipe Albert, um homenzarrão calvo com um bigode curvo impressionante, era inegável e completamente humano. Ele nos encontrou no corredor, cumprimentou meu amigo e a mim com a cabeça, não perguntou nossos nomes nem nos estendeu a mão.

— A Rainha está muito nervosa — ele disse, com sotaque. Carregava nos erres: rrainha, nerrvosa. — Franz era um de seus favoritos. Ela tem tantos sobrinhos, mas ele a fazia rir muito. Vocês precisam descobrir quem fez isso com ele.

— Farei o impossível — enfatizou meu amigo.

— Li suas monografias — contou o príncipe Albert. — Fui eu quem sugeriu que consultassem você. Espero ter feito a coisa certa.

— Também espero — disse meu amigo.

E então a grande porta se abriu, e fomos levados à escuridão e à presença da Rainha.

Ela era chamada de Vitória porque nos derrotara em combate, 700 anos antes, era chamada de Gloriana porque era gloriosa e era chamada de Rainha porque a boca humana não conseguia dizer seu verdadeiro nome. Era enorme, mais imensa do que eu poderia imaginar, e estava agachada nas sombras, olhando-nos de cima, sem se mover.

— Izsszo prezcisa zser rezsolvido. As palavras vinham das sombras. — De fato, senhora — disse meu amigo.

Um membro se retorceu e apontou para mim. Um pazsso adiante.

Eu queria andar, mas minhas pernas não se moviam.

Meu amigo acorreu em minha ajuda, então. Pegou-me pelo cotovelo e me levou até Sua Majestade.

— Não rezeear. Mozstrar valor. Zser companheiro. Foi isso que ela me disse. Sua voz era um contralto muito doce, com um zumbido distante. Então o membro se desenrolou e se estendeu, e ela tocou meu ombro. Houve um momento, mas só um momento, da dor mais lancinante e profunda que já senti, e em seguida ela foi substituída por uma penetrante sensação de bem-estar. Eu podia sentir os músculos do meu ombro relaxando, e, pela primeira vez desde o Afeganistão, fiquei livre da dor.

Então meu amigo se adiantou. Vitória falou com ele, mas eu não ouvia as palavras dela. Perguntei-me se estariam indo, de alguma maneira, diretamente da sua mente para a dele, se esse seria o Colóquio Real sobre o qual lera nas histórias. Ele respondeu em voz alta.

— Certamente, senhora. Posso dizer que havia dois outros homens com seu sobrinho naquele quarto em Shoreditch, naquela noite. Embora apagadas, as pegadas eram inconfundíveis. — E depois: — Sim. Entendo... acredito que sim... Sim.

Ele estava calado quando saímos do palácio, e não me disse nada no trajeto de volta a Baker Street.

Já estava escuro. Eu não sabia quanto tempo havíamos passado lá.

Dedos de uma neblina quase negra trançavam-se entre a estrada e o céu.

Quando voltamos para a Baker Street, no espelho do quarto, observei que a pele esbranquiçada do meu ombro havia adquirido um tom rosado. Torci para que não fosse minha imaginação ou o efeito do luar através da janela.

 

                                   A APRESENTAÇÃO

Que meu amigo fosse um mestre do disfarce, não deveria ser surpresa, mas o que eu via ali era inacreditável. Nos dez dias seguintes, uma estranha variedade de personagens adentrou nossa porta em Baker Street — um ancião chinês, um jovem dissoluto, uma mulher gorda e ruiva sobre cuja ocupação anterior restava pouca dúvida, e um venerável negociador que trazia uma enorme gota num pé inchado e enfaixado. Cada um deles entrava no quarto do meu amigo e, com uma rapidez de dar inveja a um ilusionista, ele saía em seguida.

Ele não comentava o que havia feito nessas ocasiões, preferindo relaxar, olhar para o nada, ocasionalmente fazendo anotações no primeiro pedaço de papel que encontrava, anotações que eu achava, francamente, incompreensíveis. Ele parecia completamente absorto, tanto que cheguei a me preocupar com seu bem-estar. E então, num fim de tarde, apareceu vestindo suas próprias roupas, com um sorriso aberto no rosto, e perguntou se eu me interessava por teatro.

— Como a maioria das pessoas — respondi.

— Então pegue seu binóculo — ele disse. — Vamos para a Drury Lane. Eu estava esperando uma opereta ou algo do gênero, mas em vez disso me vi no que devia ser o pior teatro da Drury Lane, embora ostentasse o nome da corte — e, para ser sincero, nem bem ficava na Drury Lane, e sim na extremidade que dá para a Shaftesbury Avenue, quase no cortiço de St. Giles.

 

Seguindo o conselho do meu amigo, escondi minha carteira e, a exemplo dele, levei comigo uma bengala robusta.

Quando nos sentamos no camarote (eu havia comprado por três pence uma laranja de uma das jovens adoráveis que as vendiam na platéia, e a chupava enquanto aguardávamos), meu amigo disse baixinho:

Considere-se afortunado por não ter precisado me acompanhar aos covis de jogatina ou aos bordéis. Ou aos manicômios, lugares que o príncipe Franz também se deliciava em visitar, conforme apurei. Mas ele não visitou nenhum deles mais de uma vez. Nenhum, a não ser...

A orquestra atacou e o pano subiu. Meu amigo se calou.

Foi uma apresentação bastante boa, à sua maneira: três peças de um ato foram encenadas. Canções cômicas eram interpretadas entre os atos. O ator principal era alto, lânguido e cantava bem. A atriz principal era elegante e sua voz enchia o teatro. O comediante se saía bem nas canções mais ligeiras.

A primeira peça era uma comédia indecorosa de identidades trocadas: o ator principal interpretou gêmeos idênticos que jamais haviam se encontrado, mas conseguiram, por meio de uma série de cômicas desventuras, ficar noivos da mesma jovem — a qual, hilariamente, pensava ser noiva de um só. Portas se abriam e fechavam quando o ator mudava de identidade.

A segunda peça era a pungente história de uma órfã que passava fome na neve vendendo violetas de estufa — sua avó a reconheceu no final, e jurou que ela era o bebê levado dez anos antes por bandidos, mas já era tarde, e o anjinho, quase congelando, deu seu último suspiro. Devo confessar que mais de uma vez enxuguei os olhos com meu lenço de linho.

A apresentação terminou com uma instigante narrativa épica: toda a companhia interpretou os homens e as mulheres de uma aldeia litorânea, 700 anos antes de nossos tempos modernos. Eles viram vultos saindo do mar, ao longe. O herói anunciou com alegria aos aldeões que aqueles eram os Gigantes Antigos cuja chegada fora prevista, voltando a nós de R'lyeh, da sombria Carcosa e das planícies de Leng, onde eles dormiam, ou esperavam, ou passavam o tempo após sua morte. O comediante opinou que os outros aldeões haviam comido torta e bebido cerveja demais, e estavam imaginando aqueles vultos. Um cavalheiro corpulento, interpretando um sacerdote do Deus romano, disse aos aldeões que os vultos no mar eram monstros e demônios, e deviam ser destruídos.

No auge da peça, o herói matou o sacerdote com golpes da sua própria cruz e se preparou para dar as boas-vindas a Eles em Sua chegada. A heroína entoou uma ária fantasmagórica e, num assombroso uso de lanternas mágicas, parecia que estávamos vendo Suas sombras no céu do fundo do palco: a própria Rainha de Albion e o Ser Negro do Egito (quase na forma de um homem), seguidos pelo Bode Antigo, Pai de Mil Filhos, Imperador de toda a China, pelo Czar Irrefutável, por Aquele Que Preside o Novo Mundo, pela Dama Branca dos Rincões Antárticos e pelos outros. E quando cada sombra cruzava o palco, ou parecia cruzar, de cada garganta nas tribunas saía, espontaneamente, um vigoroso "Viva!", até que o próprio ar parecia vibrar. A lua surgiu no céu pintado, e então, no ápice de sua trajetória, num derradeiro momento de magia teatral, o amarelo pálido das narrativas antigas foi substituído pelo reconfortante escarlate do luar que brilha sobre nós todos hoje em dia.

O elenco deu as mãos e se curvou enquanto o pano caía e subia diante dos aplausos e das risadas do público. O pano caiu uma última vez, e a apresentação terminou.

— Pronto — disse meu amigo. — O que você achou?

— Muito bom, muito bom mesmo — respondi, com as mãos doendo de tanto aplaudir.

— Bravo, amigo — ele disse sorrindo. — Vamos para os bastidores. Saímos e enveredamos por um beco ao lado do teatro, rumo à entrada de serviço, onde uma mulher magra com um cisto na bochecha tricotava furiosamente. Meu amigo mostrou-lhe um cartão de visitas, e ela nos acompanhou para dentro do prédio até uma escada que levava a um pequeno camarim.

Lanternas a óleo e velas escorriam diante de espelhos ensebados, e homens e mulheres tiravam a maquiagem e as roupas sem aparentar nenhum pudor. Desviei o olhar. Meu amigo parecia imperturbável.

— Posso falar com o senhor Vernet? — perguntou em voz alta.

Uma jovem que interpretara a melhor amiga da heroína na primeira peça, e a provocante filha do dono da estalagem na última, apontou o fundo da sala.

— Sherry! Sherry Vernet! — ela gritou. O jovem que se levantou em resposta era magro, de beleza menos convencional do que parecera do outro lado da ribalta. Ele olhou para nós, intrigado.

— Acho que não tive o prazer...?

— Meu nome é Henry Camberley. — Meu amigo se apresentou arrastando um pouco a fala. — Talvez tenha ouvido falar de mim. — Confesso que não tive esse privilégio — disse Vernet. Meu amigo entregou ao ator um cartão de visitas. O homem olhou para o cartão com sincero interesse: — Um produtor de teatro? Do Novo Mundo? Ora, ora. E este é...? — Ele sorriu para mim.

— Um amigo meu, o Sr. Sebastian. Ele não é do métier. Balbuciei algo sobre ter apreciado imensamente a apresentação e apertei a mão do ator.

Meu amigo perguntou: — Já visitou o Novo Mundo?

— Ainda não tive essa honra — admitiu Vernet -, embora sempre tenha sido meu maior desejo.

— Bem, meu bom homem — disse meu amigo, com a informalidade de um cidadão do Novo Mundo -, talvez seu desejo se realize. Essa última peça... nunca vi nada parecido. Você mesmo a escreveu?

— Infelizmente, não. O autor é um grande amigo meu. Mas eu criei o mecanismo das lanternas mágicas que produz o truque das sombras. Não existe nada melhor nos palcos, hoje em dia.

— Poderia me dizer o nome do autor? Talvez eu devesse falar diretamente com esse seu amigo.

Vernet balançou a cabeça:

— Temo que não seja possível. Ele tem outra profissão, e não quer que sua ligação com o mundo artístico venha a público.

— Entendo. — Meu amigo tirou um cachimbo do bolso e o pôs na boca. Depois apalpou os bolsos. — Perdão. Esqueci de trazer meu porta-tabaco.

— O que eu fumo é preto, bem forte — apressou-se em dizer o ator -, mas se o senhor não se incomodar...

— Absolutamente! Ora, o meu também é forte. — Encheu o cachimbo com o tabaco do ator e os dois começaram a soltar baforadas, enquanto meu amigo descrevia a sua visão de uma peça que poderia excursionar pelas cidades do Novo Mundo, da ilha de Manhattan até a ponta do continente, no sul distante. O primeiro ato seria a última apresentação que vimos. O resto da peça poderia, talvez, narrar o domínio dos Gigantes Antigos sobre a humanidade e seus deuses, mostrando o que poderia ter acontecido se a humanidade não tivesse Famílias Reais para lhe servir de inspiração — um mundo de barbárie e trevas.

— Mas o seu misterioso amigo seria o autor da peça, e o que aconteceria só ele poderia decidir — exclamou meu amigo. — Nosso drama seria escrito por ele. Mas posso lhe garantir mais público do que imagina, e uma parte significativa dos proventos da bilheteria: 50 por cento, digamos!

— Isso é muito interessante — comentou Vernet. — Espero que não se revele uma viagem de ópio!

— Não, senhor. Afinal, isto é apenas tabaco, não? — disse meu amigo, puxando mais uma baforada e rindo da brincadeira. — Vá aos meus aposentos na Baker Street amanhã de manhã, após o desjejum, às dez, digamos, com seu amigo, o autor, e eu estarei esperando com os contratos prontos.

Com isso, o ator subiu em sua cadeira e bateu palmas, pedindo silêncio.

— Senhoras e senhores da companhia, tenho um comunicado a fazer — anunciou ele, preenchendo a sala com sua voz forte. — Este cavalheiro é Henry Camberley, o produtor teatral. Ele acaba de propor que cruzemos o Oceano Atlântico, rumo à fama e à fortuna.

Houve vários gritos de entusiasmo, e o comediante continuou:

— Bem, é melhor do que comer arenque com repolho em conserva — e toda a companhia riu.

E foi diante de todos aqueles sorrisos que saímos do teatro para a neblina das ruas.

— Meu caro amigo — eu disse. — O que você...

— Nem mais uma palavra — ordenou. — Esta cidade tem muitos ouvidos. E nem mais uma palavra foi dita até que paramos um táxi, entramos nele e começamos a sacolejar pela Charing Cross Road.

Antes de dizer qualquer coisa, meu amigo tirou o cachimbo da boca e esvaziou seu conteúdo semi-incinerado numa latinha, que, depois de fechada, foi colocada em seu bolso.

Pronto. Já achamos o Homem Alto, ou vou vender frutas na barraca da esquina. Agora só precisamos torcer para que a ganância e a curiosidade do Médico Manco sejam suficientes para trazê-lo até nós amanhã de manhã.

— O Médico Manco? Meu amigo riu.

— É assim que eu o chamo. Era óbvio, pelas pegadas e por muitas outras pistas deixadas na cena do crime, que dois homens estiveram no quarto naquela noite: um deles alto, o qual, a menos que eu esteja enganado, acabamos de conhecer, e outro mais baixo e manco, que estripou o príncipe com tal habilidade que nos deixa clara a profissão médica.

— Um médico?

— De fato. Detesto dizer isso, mas sei por experiência própria que, quando um médico se dedica ao mal, torna-se uma criatura mais hedionda e macabra do que o pior degolador. Tivemos Huston, o homem do banho de ácido, e Campbell, que levou o leito de Procusto a Ealing... — e ele continuou a enumerar casos durante o resto do trajeto.

O táxi parou ao lado da calçada.

— Um shilling e dez pence — informou o condutor.

Meu amigo lhe atirou um florim, que ele apanhou e jogou em seu velho chapelão.

— Muito obrigado aos dois — ele disse, deixando o cavalo se afastar na neblina.

Fomos até a nossa porta. Enquanto eu a destrancava, meu amigo comentou:

— Estranho. Nosso condutor não parou para aquele sujeito na esquina.

— Eles fazem isso no final dos turnos — expliquei.

— Fazem mesmo — concordou meu amigo.

Sonhei com sombras naquela noite, sombras imensas que encobriam o sol, e gritei para elas em desespero, mas elas não me ouviram.

 

                                   A CASCA E O CAROÇO

O inspetor Lestrade foi o primeiro a chegar.

— Posicionou seus homens na rua? — perguntou o meu amigo.

— Sim — respondeu Lestrade. — Com ordens expressas para deixar passar quem quiser entrar, mas prender qualquer um que tente sair.

— E trouxe as algemas?

Em resposta, Lestrade enfiou a mão no bolso e, sombriamente, exibiu dois pares de algemas.

— Agora, senhor — ele disse -, enquanto ninguém chega, por que não me conta o que estamos esperando?

Meu amigo tirou o cachimbo do bolso. Ele não o levou à boca: pousou-o na mesa diante de si. Depois, pegou a latinha da noite anterior e uma ampola de vidro que reconheci como aquela que ele usara no quarto em Shoreditch.

— Pronto — anunciou ele. — O último prego, acredito, no caixão do nosso Mestre Vernet — e fez uma pausa. Em seguida, sacou seu relógio de bolso e o colocou cuidadosamente sobre a mesa. — Temos alguns minutos antes que eles apareçam. — Ele se dirigiu a mim. — O que você sabe sobre os restauracionistas?

— Absolutamente nada — respondi. Lestrade tossiu:

— Se está falando do que estou pensando, talvez seja melhor parar por aí. Tudo tem limite.

— Tarde demais — observou meu amigo —, porque existem aqueles que não acham que a chegada dos Antigos tenha sido algo bom, como todos sabemos que foi. Anarquistas, todos eles, que gostariam de restaurar o sistema antigo: a humanidade controlando o seu próprio destino, se preferir.

— Recuso-me a ouvir esse discurso subversivo — retrucou Lestrade. — Devo avisá-lo...

— Devo avisá-lo que está reagindo como um imbecil — completou meu amigo —, porque foram os restauracionistas que mataram o príncipe Franz Drago. Eles assassinam, matam, numa tentativa vã de forçar nossos governantes a nos deixar sozinhos nas trevas. O príncipe foi morto por um rache, termo arcaico para cão de caça, inspetor, como o senhor saberia se tivesse consultado um dicionário. Também significa "vingança". E o caçador deixou sua assinatura no papel de parede no local do crime, como um artista que assina uma tela. Mas não foi ele que matou o príncipe.

— O Médico Manco! — exclamei.

— Muito bem. Havia um homem alto ali naquela noite. Presumi sua estatura pela altura em que a palavra fora escrita. Ele fumava cachimbo: as cinzas estavam na lareira, e ele batera o cachimbo com facilidade na moldura da lareira, algo que um homem mais baixo não faria. O tabaco era uma mistura incomum de diversos fumos. As pegadas no quarto haviam sido quase todas apagadas pelos seus homens, inspetor, mas várias delas ainda eram visíveis atrás da porta e perto da janela. Alguém esperara ali: pela passada, um homem mais baixo que apoiava seu peso na perna direita. Fora da casa, achei muitas pegadas visíveis, e as diferentes cores da argila no raspa-botas me deram mais informações: um homem alto, que acompanhara o príncipe até aquele quarto e que mais tarde saíra dele. Esperando pelos dois estava o homem que retalhou o príncipe de forma tão impressionante...

Lestrade produziu um grunhido de desconforto que não chegou a se tornar uma palavra.

— Passei vários dias refazendo o trajeto de Sua Alteza. Fui de covis de jogatina a bordéis, tavernas e manicômios buscando o homem de cachimbo e seu amigo. Não fiz nenhum progresso até que pensei cm consultar os jornais da Boêmia, procurando pistas das atividades recentes do príncipe por lá, e neles li que uma companhia teatral inglesa estivera em Praga mês passado, apresentando-se para o príncipe Franz Drago...

— Bom Deus — eu disse. — Então aquele tal de Sherry Vernet...

— É um restauracionista. Exatamente.

Eu balançava a cabeça, maravilhado com a inteligência e a capacidade de observação do meu amigo, quando alguém bateu na porta.

— Deve ser nossa presa! — alertou ele. — Cuidado agora!

Lestrade afundou a mão no bolso, onde eu não tinha dúvida de que carregava uma pistola. Ele engoliu seco. Meu amigo disse em voz alta:

— Por favor, entre! A porta se abriu.

Não era Vernet, tampouco o Médico Manco. Era um dos jovens árabes que viviam nas ruas, cujo ganha-pão era fazer entregas — "funcionários da calçada", como dizíamos na juventude.

— Por favor, senhores — ele disse -, há um senhor Henry Camberley aqui? Pediram-me que eu lhe entregasse este bilhete.

— Sou eu — respondeu meu amigo. — E, por seis pence, o que pode me contar sobre o cavalheiro que lhe deu o bilhete?

O rapaz, que se apresentou como Wiggins, mordeu a moeda antes de fazê-la desaparecer, e revelou que o tipo alegre que lhe dera o bilhete era alto, tinha cabelo preto e, acrescentou, fumava cachimbo.

Tenho o bilhete aqui, e tomo a liberdade de transcrevê-lo.

Caro senhor,

Não vou chamá-lo de Henry Camberley, pois esse é um nome ao qual o senhor não tem direito. Estou surpreso que não tenha se apresentado com o verdadeiro, pois é um bom nome, que lhe dá crédito. Li vários de seus textos, sempre que pude obtê-los. De fato, troquei proveitosa correspondência com o senhor há dois anos sobre certas anomalias teóricas em seu ensaio sobre a Dinâmica de um Asteróide.

Diverti-me ao conhecê-lo noite passada. Algumas sugestões que podem lhe poupar futuros aborrecimentos na profissão que o senhor exerce no momento: primeiro, alguém que fuma cachimbo pode até tirar um cachimbo novo em folha, sem uso, do bolso, e não carregar um porta-tabaco, mas isso é improvável demais no mínimo, tão improvável quanto um produtor de teatro que não faz idéia das formas habituais de pagamento numa turnê, acompanhado por um taciturno ex-oficial do Exército (Afeganistão, a menos que eu esteja enganado). A propósito: embora tenha razão ao afirmar que as ruas de Londres têm ouvidos, lembre-se, no futuro, de não tomar o primeiro táxi que aparecer. Condutores também têm ouvidos, quando decidem usá-los.

Mas o senhor está correto em uma de suas suposições: fui realmente eu que atraí a criatura bastarda ao quarto de Shoreditch.

Se isso lhe serve de consolo, depois de me familiarizar um pouco com os passatempos prediletos daquele ser, eu disse que lhe forneceria uma jovem, raptada de um convento na Cornualha, no qual ela jamais vira um homem, e que bastaria um toque dele, e a visão do seu rosto, para levá-la à mais completa loucura.

Se a tal jovem existisse, ele teria sorvido sua loucura ao possuí-la, como um homem que suga a polpa de um pêssego maduro, deixando apenas a casca e o caroço. Já vi a laia dele fazendo isso. Já os vi fazendo coisas bem piores. E esse não é o preço que pagamos pela paz e prosperidade. É um preço alto demais.

O bom doutor — que acredita nos mesmos ideais que eu e que de fato escreveu nossa singela apresentação, pois tem algum dom para o teatro — estava à nossa espera, com suas lâminas.

Eu lhe envio este bilhete não como provocação, como um "agarra-me se puderes", porque já estamos longe, o estimado doutor e eu, e o senhor não nos encontrará, mas sim para lhe dizer que foi bom sentir, ainda que apenas por um momento, que eu tinha um adversário de valor — mais valor, de longe, do que essas aberrações do outro lado do Abismo.

Temo que a Companhia Teatral Strand terá de procurar um novo ator.

Não assinarei como Vernet, e, até que a caçada termine e o mundo seja restaurado, rogo que pense em mim simplesmente como

Rache.

O inspetor Lestrade saiu correndo do quarto e chamou seus homens. Eles fizeram o jovem Wiggins levá-los até o lugar onde o homem lhe dera o bilhete, como se fossem encontrar Vernet, o ator, à sua espera, baforando seu cachimbo. Da janela, nós os observamos correr, meu amigo e eu, balançando a cabeça.

— Vão parar e vasculhar todos os trens saindo de Londres, todos os navios partindo de Albion para a Europa ou para o Novo Mundo — disse meu amigo —, procurando um homem alto e seu companheiro, um médico baixo e atarracado que manca levemente. Vão bloquear todos os portos. Todas as saídas do país serão fechadas.

— Acha que vão pegá-los, então? Meu amigo fez que não com a cabeça:

— Posso estar errado, mas seria capaz de apostar que ele e seu amigo estão neste exato momento a pouco mais de um quilômetro daqui, no cortiço de St. Giles, onde os policiais não entram senão aos montes. E os dois vão se esconder lá até a poeira baixar. Depois, seguirão com seu trabalho.

— Por que diz isso?

— Porque, se as posições estivessem invertidas, é o que eu faria. A propósito, é melhor você queimar o bilhete.

Franzi o cenho:

— Mas é uma prova importante.

— E uma bobagem subversiva — disse meu amigo.

E eu deveria tê-lo queimado. Aliás, eu disse a Lestrade que o queimara, quando ele voltou, e ele me congratulou pelo meu bom senso. Lestrade conservou seu emprego, e o príncipe Albert escreveu uma mensagem para o meu amigo, parabenizando-o por suas deduções, embora o culpado continuasse à solta, o que ele lamentava.

Ainda não capturaram Sherry Vernet, ou seja, lá qual for seu verdadeiro nome, e nem sequer um único sinal foi encontrado de seu comparsa assassino, provisoriamente identificado como um ex-cirurgião militar chamado John (ou talvez James) Watson. Curiosamente, soube-se que ele também estivera no Afeganistão. Eu me pergunto se chegamos a nos conhecer lá.

Meu ombro, tocado pela Rainha, continua a melhorar, a carne está preenchendo-o de novo. Logo serei capaz de atirar tão bem como antes.

Uma noite, quando estávamos a sós, há alguns meses, perguntei ao meu amigo se ele se lembrava da correspondência a que se referia o homem que se denominara Rache. Meu amigo disse que se lembrava bem dela, e que "Sigerson" (era assim que o ator se apresentava então, dizendo ser islandês) se inspirara numa equação do meu amigo para sugerir algumas teorias tresloucadas que aprofundavam a relação entre massa, energia e a hipotética velocidade da luz.

— Bobagens, é claro — disse ele, sem sorrir. — Ainda assim, bobagens inspiradas e perigosas.

O palácio, por fim, mandou dizer que a Rainha estava satisfeita com o desempenho de meu amigo no caso, e a coisa ficou por isso mesmo.

No entanto, duvido que ele vá deixá-la assim. Essa história só vai acabar quando um deles matar o outro.

Guardei o bilhete. Nesta reconstituição dos fatos, eu disse coisas que não devem ser ditas. Se eu tivesse bom senso, queimaria estas páginas todas. Porém, como meu amigo me ensinou, até cinzas podem revelar segredos. Então, guardarei estes papéis numa caixa de segurança no cofre do meu banco, Com instruções para que não seja aberta até bem depois de todos os que hoje vivem estarem mortos. Contudo, à luz dos recentes eventos na Rússia, temo que esse dia esteja mais próximo do que gostaríamos.

Major S__M (Reformado)

Baker Street, Londres, Nova Albion, 1881

 

                                             A VEZ DE OUTUBRO

ERA A VEZ DE OUTUBRO, por isso fazia frio naquela noite, e as folhas estavam vermelhas e alaranjadas e caíam das árvores que circundavam a clareira. Os doze estavam sentados ao redor de uma fogueira, assando enormes lingüiças espetadas em varetas — que estalavam e estouravam ao pingar gordura nos ramos incandescentes de macieira — e tomando sidra fresca, que lhes enchia a boca com seu gosto agridoce.

Abril deu uma mordidinha tímida em sua lingüiça, que lhe rebentou na boca e derramou gordura quente em seu queixo.

— Maldita porcaria! — exclamou ela.

Março, agachado ao lado dela, deu uma risadinha perversa e puxou um enorme lenço sujo.

— Tome — ele disse. Abril limpou o queixo.

— Obrigada. Este miserável saco de tripas me queimou. Vai fazer uma bolha amanhã.

Setembro bocejou.

— Você é tão hipocondríaca — alfinetou, do outro lado da fogueira. — E que linguajar. — Ele tinha um bigodinho fino e grandes entradas no cabelo, que faziam sua testa parecer ampla e sábia.

— Deixe-a em paz — pediu Maio, com seu cabelo preto escovinha e seus coturnos delicados. Ela fumava uma cigarrilha marrom com um forte cheiro de cravo. — Ela é sensível.

— Ora, por favor — retrucou Setembro. — Me poupe.

Outubro, ciente de sua posição de destaque, sorveu sua sidra, limpou a garganta e anunciou:

— Muito bem. Quem quer começar?

A cadeira na qual estava acomodado fora entalhada num enorme bloco de carvalho, decorado com freixo, cedro e cerejeira. Espaçados a intervalos regulares em volta da pequena fogueira, os outros onze se encontravam sentados em tocos de troncos, que, após anos de uso, estavam lisos e confortáveis.

— E a ata? — perguntou Janeiro. — Sempre fazemos a ata quando eu estou na cadeira.

— Mas você não está na cadeira agora, está, querido? — provocou Setembro, criatura elegante de fingida boa vontade.

— E a ata? — repetiu Janeiro. — Não podem ignorá-la.

— Ela que se ate sozinha — ralhou Abril, correndo a mão por seus longos cabelos louros. — E eu acho que Setembro deveria começar.

Setembro empertigou-se e assentiu:

— Com prazer.

— Ei! — interveio Fevereiro. — Ei-ei-ei-ei-ei-ei-ei. Não ouvi o presidente ratificando essa decisão. Ninguém se pronuncia enquanto Outubro não disser quem começa, e aí ninguém mais fala. Será que dá pra gente ter um mínimo de ordem aqui? — Ele os encarou, miúdo, pálido, todo vestido em azul e cinza.

— Tudo bem — conciliou Outubro. Sua barba era multicolorida, um bosque no outono, marrom-escura, laranja como o fogo e vermelha como o vinho, um emaranhado de fios na parte de baixo do seu rosto. Suas bochechas eram rubras como maçãs. Ele parecia um amigo, alguém que você conhece há uma vida. — Setembro pode falar primeiro. Vamos começar.

Setembro colocou o último pedaço de sua lingüiça na boca, mastigou delicadamente e tomou toda a sidra de sua caneca. Depois se levantou, curvou-se para o grupo e começou a falar.

— Laurent DeLisle era o melhor chef de toda Seattle. Bom, ao menos era o que ele mesmo pensava, e as estrelas do Guia Michelin na porta de seu restaurante confirmavam sua opinião. Era um chef notável, é verdade.

Seu brioche de carneiro ganhara vários prêmios, sua gralha defumada com ravióli de trufa branca havia sido descrita pela Gastronome como "a décima maravilha do mundo". Mas era a sua adega de vinhos... ah, aquela adega... o seu maior motivo de orgulho e sua paixão. Eu entendo isso. As últimas uvas brancas são colhidas em mim, e a maior parte das escuras. Eu aprecio vinhos finos, seu buquê, seu paladar, e seu sabor residual também. Laurent DeLisle comprava seus vinhos em leilões, de aficionados particulares, de comerciantes confiáveis: insistia em ver o pedigree de cada vinho, porque as fraudes são, infelizmente, muito comuns quando uma garrafa chega a valer 5, 10, 100 mil dólares, ou libras, ou euros. O tesouro, a jóia, o mais raro dos raros e o creme de Ia creme de sua adega climatizada era uma garrafa de Château Lalute 1902. Estava cotado em 120 mil dólares, embora na verdade não tivesse preço, por ser a última garrafa existente.

— Com licença — disse Agosto educadamente. Era o mais gordo de todos, seu cabelo ralo penteado em mechas douradas que aderiam à sua careca rosada.

Setembro fuzilou seu vizinho com o olhar: — Sim?

— Essa é aquela em que um cara rico pede o vinho pra acompanhar o jantar, e o chef decide que o prato que o ricaço pediu não é bom o suficiente pro vinho, daí ele serve um prato diferente, e o cara dá uma garfada, e ele tem, tipo, uma alergia rara e morre na hora, e no fim o vinho nunca é tomado?

Setembro não respondeu nada, apenas olhou profundamente.

— Porque, se for essa, você já contou. Há anos. Achei boba na época. Continua sendo boba. — Agosto sorriu. Suas bochechas rosadas brilharam à luz da fogueira.

Setembro, então, disse:

— Obviamente, pathos e cultura não são do agrado de todos. Algumas pessoas preferem churrasco e cerveja, ao passo que nós gostamos...

Fevereiro o interrompeu:

— Bem, odeio dizer isto, mas até que ele tem razão. A história tem que ser nova.

Setembro levantou uma sobrancelha e apertou os lábios.

— Acabei — anunciou abruptamente, e se sentou em seu loco. Eles se entreolharam por cima da fogueira, os meses do ano. Junho, hesitante e bem-educada, levantou a mão e disse:

— Eu tenho a história da operadora da máquina de raio X do Aeroporto La Guardiã que conseguia saber tudo sobre qualquer pessoa pelos contornos das bagagens na tela, e um dia ela viu um raio X de bagagem tão lindo que se apaixonou pela pessoa dona daquela bagagem, e ela precisava descobrir qual das pessoas da fila era aquela, mas não conseguiu, e aí ela sofreu por meses e meses. E quando a pessoa passou de novo, daquela vez ela soube, e era um homem, um indiano velho todo enrugado, e ela era bonita, negra e tinha, tipo, 25 anos, e ela viu que aquilo nunca daria certo, então ela o deixou passar, porque também conseguiu ver pelas formas das bagagens na tela que ele ia morrer logo.

Outubro aprovou:

— Muito bem, jovem Junho. Conte essa.

Junho olhou para ele como um animal assustado:

— Acabei de contar. Outubro assentiu.

— Contou mesmo — disse, antes que qualquer um dos outros pudesse falar algo. E continuou: — Vamos prosseguir com a minha história, então?

Fevereiro fungou:

— Fora da ordem, amigão. Quem está na cadeira só pode contar sua história depois que todos os outros acabam. Não dá pra passar direto à atração principal.

— Deixa o cara contar a história se ele quiser — pediu Maio, que estava colocando uma dúzia de castanhas na grelha, dispondo-as ordenadamente com um pegador. — Com certeza não será pior que a do vinho. E eu preciso voltar prós meus afazeres. As flores não desabrocham sozinhas. Todos a favor?

— Vai pedir um voto formal? — perguntou Fevereiro. — Eu não acredito. Não acredito que isso está acontecendo — e enxugou a testa com um punhado de lenços de papel que puxara da manga.

Sete mãos foram levantadas. Quatro meses ficaram imóveis: Fevereiro, Setembro, Janeiro e Julho.

— Não é nada pessoal —, justificou-se Julho em tom de desculpas. I, puramente pelo procedimento. Não deveríamos abrir precedentes.

— Está decidido, então — anunciou Outubro. — Alguém quer falar alguma coisa antes que eu comece?

— Hã. Sim. Às vezes — disse Junho —, às vezes acho que alguém está nos espiando na floresta, e aí eu olho e não tem ninguém. Mas mesmo assim continuo não achando isso.

Abriu retrucou:

— É porque você é louca.

— Hm — comentou Setembro, dirigindo-se a todos. — Esta é a nossa Abril. Sensível, mas também a mais cruel.

— Chega! — exclamou Outubro. Ele se espreguiçou na cadeira, quebrou uma avelã com os dentes, tirou o miolo, jogou os pedaços da casca no logo, onde eles chiaram e pipocaram, e começou.

 

Havia um menino, disse Outubro, que sofria muito em sua casa, embora não apanhasse. Ele parecia não pertencer à sua família, à sua cidade, nem mesmo à vida. Tinha irmãos gêmeos, mais velhos do que ele, que o magoavam ou o ignoravam e eram muito queridos pela vizinhança. Os dois jogavam futebol, e quase sempre um deles era o artilheiro e herói da partida. O caçula não jogava futebol. Eles tinham um apelido para ele: chamavam-no de Nanico.

Chamavam-no assim desde que ele era bebê, e de início seus pais os repreenderam por isso.

Os gêmeos disseram:

— Mas ele é nanico mesmo. Olhem pra ele. Olhem pra nós.

Os garotos tinham 6 anos quando disseram isso. Seus pais acharam bonitinho. Um apelido como Nanico pode ser contagioso, e assim, em pouco tempo, apenas a avó do menino — quando ligava no seu aniversário — e pessoas que não o conheciam ainda o chamavam de Donald.

Talvez pelo fato de que apelidos têm poder, ele era um nanico: magrelo, baixinho e nervoso. Nascera com o nariz escorrendo e, uma década depois, ele continuava escorrendo. Na hora das refeições, quando os gêmeos gostavam da comida, roubavam do seu prato. Quando não gostavam, davam um jeito de colocá-la no prato dele, e ele levava bronca por ter deixado sobrar comida.

O pai deles nunca perdia os jogos de futebol e, no final, comprava um sorvete para o gêmeo que marcasse mais pontos e um sorvete como prêmio de consolação para o outro. A mãe deles dizia que era jornalista, embora seu trabalho fosse, na verdade, vender anúncios e assinaturas: ela voltou a trabalhar em tempo integral assim que os gêmeos cresceram o suficiente para se virar sozinhos.

Os outros garotos da classe desse menino admiravam os gêmeos. Eles o chamaram de Donald durante várias semanas na primeira série, até que souberam que seus irmãos o chamavam de Nanico. Seus professores raramente o chamavam assim, embora, entre eles, às vezes comentassem que era uma pena o menino mais novo dos Covay não ter o porte, a imaginação ou a vivacidade dos irmãos.

O Nanico não seria capaz de dizer quando decidiu fugir de casa, nem quando seus sonhos se transformaram num plano. Quando admitiu para si mesmo que iria embora, ele já tinha escondido um grande tupperware debaixo de um plástico atrás da garagem, contendo três chocolates Mars, dois Milky Ways, um saco de nozes, um saquinho de pastilhas de alcaçuz, uma lanterna, vários gibis, um pacote fechado de carne-seca em conserva e 37 dólares, a maior parte em moedas. Ele não gostava do sabor da carne-seca, mas lera que exploradores haviam sobrevivido por semanas sem comer outra coisa. E foi quando pôs o pacote de carne-seca no tupperware e apertou a tampa, fechando-a, que ele soube que ia ter que fugir.

Ele havia lido livros, jornais e revistas. Sabia que, quando você foge de casa, às vezes encontra gente ruim que faz coisas ruins com você. Mas também lera contos de fadas, e sabia que havia pessoas boas no mundo, em meio aos monstros.

O Nanico era um menino magrinho de 10 anos, baixinho, com o nariz escorrendo e o semblante vazio. Se você tentasse apontá-lo num grupo de garotos iriam apontar errado. Ele seria o outro, o garoto ao lado, aquele pelo qual você passou batido.

Durante todo o mês de setembro ele adiou a fuga. Só numa sexta-feira especialmente ruim, quando seus dois irmãos sentaram em cima dele (e o que sentou no seu rosto soltou um pum e se matou de tanto rir), foi que chegou à conclusão de que quaisquer monstros que estivessem à sua espera no mundo seriam suportáveis, talvez até preferíveis.

No sábado, seus irmãos deveriam cuidar dele, mas logo foram para a cidade visitar uma garota da qual gostavam. O Nanico contornou a garagem, pegou o tupperware que estava debaixo do plástico e o levou para o seu quarto.

Ele esvaziou sua mochila em cima da cama e pôs nela os chocolates, os gibis, as moedas e a carne-seca, e encheu com água uma garrafa de refrigerante.

O Nanico foi a pé para a cidade e tomou o ônibus. Ele foi para o oeste até onde 10 dólares em moedas o levaram, um lugar que não conhecia, e que, pensou ele, seria um bom ponto de partida, e aí desceu do ônibus e seguiu lindando. Não havia calçada, por isso, quando os carros passavam, ele ia para a vala ao lado da estrada, por segurança.

O sol estava alto. Ele sentiu fome e mexeu na mochila até achar um chocolate. Depois de comê-lo, sentiu sede, e tomou quase metade da água da garrafa antes de se dar conta de que precisaria racioná-la. Ele achava que, assim que saísse da cidade, veria nascentes de água doce em toda parte, mas não encontrou nenhuma. Havia um rio, no entanto, correndo sob uma ponte larga.

O Nanico parou no meio da ponte para olhar a água barrenta lá embaixo. Ele se lembrou de algo que ouvira na escola: que todos os rios corriam para o mar. Ele nunca tinha ido para o litoral. Desceu até a margem e começou a seguir o rio. Havia uma trilha lamacenta ao lado da margem, e latas de cerveja e saquinhos de salgadinho vazios indicavam que já tinha passado (•ente por ali, mas ele não viu ninguém durante a caminhada.

Ele bebeu o que restava da água.

Ele se perguntou se já estariam à sua procura. Imaginou viaturas policiais, helicópteros e cães, todos tentando achá-lo. Ele os despistaria. Conseguiria chegar ao mar.

No rio havia muitas pedras, a água espirrava quando batia nelas. Ele viu uma garça azul, com as asas abertas, planando acima dele, algumas libélulas solitárias de fim de estação e, às vezes, pequenas nuvens de mosquitinhos aproveitando o veranico de outono. O céu azul se acinzentou no crepúsculo, e um morcego fez um vôo rasante para comer insetos no ar. O Nanico pôs-se a pensar onde iria dormir naquela noite.

Logo a trilha se bifurcou, e ele seguiu o caminho que se afastava do rio, torcendo para encontrar uma casa ou uma fazenda com um celeiro vazio. Andou por algum tempo enquanto escurecia, até que, no fim da trilha, encontrou uma estranha e semidemolida casa de fazenda. O Nanico andou em volta dela, ficando cada vez mais convencido de que nada neste mundo o faria entrar ali, e em seguida pulou uma cerca arrebentada e foi até um pasto abandonado, onde se deitou para dormir na grama alta, usando a mochila como travesseiro.

Ficou deitado de costas, vestido, olhando para o céu. Estava sem um pingo de sono.

— Já devem ter dado pela minha falta — disse para si mesmo. — Devem estar preocupados.

Ele se imaginou voltando para casa dali a uns anos. O prazer estampado no rosto dos familiares ao vê-lo chegar, as boas-vindas, o amor que...

Acordou horas depois, com a luz clara do luar no rosto. Conseguia ver o mundo todo — como em pleno dia, como diz a canção de ninar, mas pálido e sem cor. Acima dele, a lua estava cheia, ou quase, e ele imaginou um rosto que o olhava, não sem ternura, nas sombras e formas da superfície lunar.

Uma voz perguntou:

— De onde você veio?

Ele se sentou, sem medo, pelo menos até ali, e olhou ao seu redor. Árvores. Grama alta.

— Cadê você? Não estou te vendo.

Algo que parecia uma sombra se mexeu, ao lado de uma árvore no fundo do pasto, e ele viu um garoto da sua idade.

— Eu fugi de casa — contou o Nanico.

— Uau! — exclamou o garoto. — Precisa ter muita coragem pra isso.

 

O Nanico sorriu, orgulhoso. Não sabia o que dizer. — Quer andar um pouquinho? — perguntou o garoto. — Claro. O Nanico deixou a mochila perto da cerca para que fosse fácil encontrá-la depois.

Eles desceram a encosta e passaram bem longe do velho casarão. — Alguém vive lá? — quis saber o Nanico. — Na verdade, não — respondeu o outro garoto. Ele tinha cabelo claro e fininho, que ficava quase branco ao luar. — Umas pessoas tentaram há muito tempo, mas não gostaram e foram embora. Aí outras pessoas se mudaram pra — Mas ninguém vive ali agora. Como é o teu nome? De que chamam você?

O menino hesitou um momento antes de falar: — Anjo.

— Que nome legal!

— Eu tinha outro nome, mas não dá mais pra ler. Eles se apertaram para passar por um grande portão de ferro que a ferrugem emperrara semi-aberto, e se viram à margem de um riacho ao pé da encosta.

— Este lugar é legal — comentou o Nanico.

— Havia dezenas de lápides de todos os tamanhos no local. Algumas altas, maiores que os dois meninos, e outras pequenas, do tamanho certo para se sentar. Algumas estavam quebradas. O Nanico sabia que lugar era aquele, mas não sentiu medo. Era um lugar amado.

— Quem está enterrado aqui?

— Quase todos são gente boa — respondeu Anjo. — Tinha uma cidadezinha ali. Pra lá daquelas árvores. Aí a ferrovia veio e fizeram uma estação na cidade vizinha, e nossa cidade meio que secou, desabou e foi levada pelo vento. Agora tem mato e árvores lá. Dá pra se esconder nas árvores, entrar nas casas velhas e pular as janelas. O Nanico perguntou:

— As casas são como aquele casarão? — O menino não iria querer entrar nelas se fossem como ele.

— Não. Ninguém entra nelas, a não ser eu. E uns bichos, às vezes. Eu sou a única criança por aqui.

— Imaginei — disse o Nanico.

— A gente podia ir brincar nelas — sugeriu Anjo.

— Ia ser bem legal!

Era uma noite perfeita de outubro: quase tão quente quanto no verão, e a lua cheia do equinócio dominava o céu. Tudo estava visível.

— Qual destes é o seu? — perguntou o Nanico.

Anjo empertigou-se, orgulhoso, e pegou o outro garoto pela mão, puxando-o para um canto do cemitério cheio de mato. Os dois meninos afastaram a grama alta. A lápide jazia no chão, e tinha esculpidas datas de um século atrás. Boa parte dela estava gasta, mas sob as datas era possível ler as palavras

 

ANJO, DESCANSE EM PAZ JAMAIS SERÁ ESQU...

 

— Esquecido, aposto — disse Anjo.

— É, também acho — concordou o Nanico.

Eles saíram pelo portão, desceram um barranco e entraram no que restava da velha cidade. Arvores invadiam as casas, e os prédios haviam desmoronado, mas o lugar não era assustador. Eles brincaram de esconde-esconde. Exploraram. Anjo mostrou ao Nanico alguns lugares bem legais, inclusive um pequeno chalé que, segundo ele, era a construção mais antiga de toda aquela região. E até que estava bem conservado, considerando o quanto era velho.

— Consigo enxergar muito bem com a luz do luar — observou o Nanico. — Mesmo dentro das casas. Não sabia que era tão fácil.

— É. E depois de um tempo você começa a enxergar até quando não tem luar.

O Nanico ficou com inveja.

— Preciso ir ao banheiro. Tem algum lugar onde possa ir por aqui? Anjo pensou por um momento. — Não sei. Eu não faço mais essas coisas. Tem algumas privadas ainda inteiras, mas pode ser perigoso. E melhor fazer no mato mesmo.

— Como um urso — disse o Nanico.

Ele saiu pelos fundos, foi para a mata que parecia empurrar o muro do chalé, e agachou-se atrás de uma árvore. Nunca havia feito aquilo ao ar livre.

Sentiu-se um animal selvagem. Quando terminou, limpou-se com folhas do chão. Em seguida, voltou para o chalé e saiu pela porta da frente. Anjo estava sentado ao luar, esperando por ele.

— Corno você morreu? — perguntou o Nanico.

— Fiquei doente. Minha mãe chorou, ficou desesperada. Aí eu morri. — Pra ficar aqui com você — disse o Nanico —, eu preciso estar morto também?

— Talvez — respondeu Anjo. — Bom, precisa. Eu acho.

— Como é estar morto?

— Não me incomoda — admitiu Anjo. — O pior de tudo é não ter ninguém pra brincar.

— Mas deve ter um monte de gente perto daquele riozinho. Eles nunca brincam com você?

— Nunca. Estão sempre dormindo. E, mesmo quando saem andando, nunca querem saber de passear, ver coisas, fazer algo. Não querem saber de mim. Está vendo aquela árvore?

Era uma faia, com sua casca cinzenta e lisa rachada pelo tempo. Estava bem no meio do que devia ter sido a praça da cidade, 90 anos antes.

— Estou — respondeu o Nanico.

— Quer subir nela?

— Parece meio alta.

— É, sim. Muito alta. Mas é fácil subir. Eu te mostro. Era fácil subir mesmo. Havia lugares para se segurar na casca, e os garotos escalaram a grande faia como macacos, piratas ou guerreiros. Do alto da arvore dava pra ver o mundo todo. Um fio de luz começava a despontar no céu, ao leste.

Tudo esperava. A noite estava terminando. O mundo prendia a respiração, preparando-se para recomeçar.

Este foi o melhor dia da minha vida — comentou o Nanico.

— Da minha também — disse Anjo. — O que você vai fazer agora?

— Não sei.

Ele se imaginou viajando pelo mundo até chegar ao mar. Imaginou-se crescendo e ficando velho, cuidando da própria vida. Em algum momento, ficaria incrivelmente rico. E aí voltaria para a casa dos gêmeos, dirigindo seu maravilhoso carro, ou talvez fosse a um jogo de futebol (na sua imaginação, os gêmeos não tinham envelhecido nem crescido) e olhasse para eles do alto, com ternura. Ele convidaria todos, os gêmeos, seus pais, para jantar no melhor restaurante da cidade, e eles diriam que não souberam entendê-lo e o trataram muito mal. Pediriam desculpas e chorariam, e o tempo todo ele não diria nada, deixando aquelas desculpas passarem por ele. E, então, daria um presente para cada um deles, e era seguida sairia novamente da vida deles, dessa vez para sempre.

Era um belo sonho.

Na verdade, ele sabia que continuaria andando e que seria encontrado no dia seguinte ou dois dias depois, e voltaria para casa e levaria bronca, e tudo seria como sempre foi, e dia após dia, hora após hora, até o fim dos tempos, ele continuaria sendo o Nanico, a única diferença é que eles estariam furiosos com ele por ter ousado fugir.

— Preciso ir dormir daqui a pouco — disse Anjo. Ele começou a descer da grande faia.

O Nanico descobriu que descer da árvore era mais difícil. Não dava para ver onde você estava colocando o pé, era preciso ficar tateando para achar um lugar. Várias vezes ele perdeu o apoio e escorregou, mas Anjo estava abaixo dele e dizia coisas como "Um pouco mais pra direita, agora", e os dois conseguiram descer sem problemas.

O céu continuava a clarear, a lua estava sumindo, era mais difícil enxergar. Eles voltaram pela vala. Às vezes, o Nanico não tinha certeza de que Anjo ainda estava com ele, mas, quando saiu da fenda, viu que o garoto estava ali, à sua espera.

Eles não falaram muito enquanto subiam para o riacho. O Nanico pôs o braço no ombro de Anjo, e os dois caminharam juntos, — Bom — disse Anjo —, obrigado pela visita. — Eu achei divertido — comentou o Nanico. — Eu também. No meio da floresta, um pássaro começou a cantar. — Se eu quisesse ficar...? — perguntou o Nanico de repente, mas parou. Posso não ter outra chance de mudar minha vida, pensou o Nanico. Ele nunca iria ver o mar. Nunca iriam deixá-lo.

Anjo não disse nada por um longo tempo. O mundo estava cinza. Mais pássaros se juntaram ao primeiro.

— Não posso fazer isso — explicou Anjo, por fim. — Mas talvez eles possam.

— Quem?

— Aqueles que estão lá dentro. — O garoto pálido apontou para cima, para a casa de fazenda em ruínas, com as janelas estilhaçadas, cuja silhueta se destacava na aurora. A luz cinzenta não a mudara. O Nanico sentiu um calafrio.

— Tem gente lá dentro? Você não falou que estava vazia? — Não está vazia — respondeu Anjo. — Eu disse que ninguém vive lá. São coisas diferentes. — Ele olhou para o céu. — Agora preciso ir — acrescentou. Ele apertou a mão do Nanico, e simplesmente não estava mais lá.

O Nanico ficou sozinho no pequeno cemitério, ouvindo o canto dos pássaros no ar matutino. Depois, começou a subir o morro. Era mais difícil sozinho.

Ele pegou sua mochila no lugar onde a deixara e comeu sua última barra de chocolate, olhando para a construção em ruínas. As janelas vazias do casarão eram como olhos que o vigiavam.

Estava mais escuro lá dentro. Mais escuro do que tudo. Ele abriu caminho no quintal tomado pelo mato. A porta da casa praticamente se desintegrara. Ele parou na entrada, hesitante, perguntando-se se devia fazer aquilo. Sentia cheiro de umidade, podridão, e mais alguma coisa.

Pensou ouvir algo se mexendo dentro da casa, no porão ou no sótão. Uma agitação, talvez. Ou um salto. Era difícil saber. Finalmente, ele entrou.

Ninguém disse nada. Outubro encheu sua caneca de madeira com sidra, esvaziou-a e encheu-a de novo.

— É uma história — declarou Dezembro. — É o que posso dizer. — Ele esfregou seus olhos azul-claros com o punho.

A fogueira estava quase apagada.

— O que aconteceu depois? — perguntou Junho, nervosa. — Depois que ele entrou na casa?

Maio, sentada ao lado dela, pôs a mão no seu braço e disse:

— É melhor nem pensar nisso.

— Mais alguém quer falar? — perguntou Agosto. Silêncio. — Então acho que terminamos.

— Isso precisa ser oficializado — salientou Fevereiro.

— Todos a favor? — perguntou Outubro. Houve um coro de "Sim". — Alguém contra? — Silêncio. — Então declaro a reunião encerrada.

Eles se afastaram da fogueira, espreguiçando-se e bocejando, e desapareceram na floresta, sozinhos, aos pares, em trios, até que só ficaram Outubro e seu vizinho.

— Na próxima, será a sua vez — anunciou Outubro.

— Eu sei — disse Novembro. Era pálido, de lábios finos. Ele ajudou Outubro a se levantar da cadeira. — Eu gosto das suas histórias. As minhas são sempre sombrias demais.

— Não acho — discordou Outubro. — É que suas noites são mais longas. E você não é tão quente.

— Olhando por esse ângulo — comentou Novembro -, me sinto melhor. Afinal, não escolhemos ser quem somos.

— Esse é o espírito — disse o seu irmão.

E eles deram as mãos ao se afastarem das brasas alaranjadas da fogueira, levando suas histórias de volta para a escuridão.

 

                                 LEMBRANÇAS E TESOUROS

PODE ME CHAMAR DE CANALHA, se quiser. É verdade, por qualquer ângulo que se olhe. Minha mãe me teve dois anos depois de ser internada "para sua própria proteção". Isso foi nos idos de 1952, quando algumas noites de diversão com os rapazes da vizinhança podiam ser diagnosticadas ninfomania clínica, e a mulher podia ser internada "para proteger a ela própria e à sociedade" com o aval de apenas dois médicos. Um dos quais era o pai dela, meu avô, e o outro, seu sócio na clínica médica que os dois tinham no norte de Londres.

Portanto, eu sei quem foi meu avô. Mas meu pai foi só alguém que comeu minha mãe em alguma parte do prédio ou dos fundos do Sanatório St. Andrews. Palavra legal, não? Sanatório. Com todas as conotações de um lugar seguro: um santuário que te abriga da insanidade e dos perigos do mundo exterior. Nada parecido com a realidade daquela pocilga. Fui vê-lo antes que o demolissem no fim dos anos 70. Ainda fedia a mijo e desinfetante de pinho. Corredores compridos e mal iluminados com quartos pequenos, parecidos com celas, nas laterais. Se você estivesse procurando o inferno e encontrasse St. Andrews, não ficaria decepcionado.

A ficha médica diz que minha mãe abria as pernas para qualquer um, mas eu duvido. Ela ficava trancafiada, na época. Quem quisesse enfiar o pinto nela iria precisar da chave da cela.

Quando tinha 18 anos, passei minhas últimas férias de verão antes de ir para a universidade caçando os quatro caras que mais provavelmente podiam ser meu pai: dois enfermeiros, o médico da ala de segurança e o diretor do sanatório.

Minha mãe tinha só 17 anos quando foi internada. Tenho uma foto em preto-e-branco na carteira, tirada pouco antes da internação. Ela está encostada num carro esporte, um Morgan, parado numa estradinha de terra. Está sorrindo de um jeito provocante para o fotógrafo. Minha mãe era bem bonita.

Eu não sabia qual dos quatro era meu pai, por isso matei todos. Afinal, todos tinham trepado com ela: fiz com que confessassem antes de acabar com eles. O melhor foi o diretor, um velho gordo safado de rosto vermelho com um bigodão enorme e espesso, daqueles bem antiquados, como eu não via há pelo menos uns 20 anos. Eu o estrangulei com sua gravata. Saiu espuma de sua boca, e ele ficou azul feito uma lagosta crua.

Havia outros homens na região de St. Andrews que poderiam ser meu pai, mas, depois desses quatro, perdeu a graça. Eu disse a mim mesmo que tinha matado os candidatos mais prováveis, e, se saísse matando todo homem que poderia ter embuchado minha mãe, acabaria virando um massacre. Por isso parei.

Fui entregue ao orfanato local para ser criado. De acordo com a ficha médica da minha mãe, fizeram uma laqueadura nela imediatamente depois que nasci. Não queriam mais nenhum incidente desagradável como eu pra estragar a diversão de todos.

Eu tinha 10 anos quando ela se matou. Isso foi em 1964. Eu era garoto, ainda brincava de quebrar castanhas com os amigos e roubava lojas de doces enquanto ela, sentada no chão de linóleo da cela, estava cortando os pulsos com um caco de vidro que arranjou sabe Deus onde. Feriu os dedos, mas conseguiu. Eles a encontraram de manhã, lambuzada de vermelho e fria.

O pessoal do senhor Alice me encontrou quando eu tinha 12 anos. O vice-diretor do orfanato vinha usando a nós, garotos, como seu harém pessoal de escravos sexuais de joelhos ralados. Se você topasse, ficava com o eu dolorido e ganhava uma barra de chocolate. Se resistisse, ficava trancado por uns dias, com o eu bem mais dolorido e concussões. Nós o chamávamos de Velho Meleca, porque ele fuçava no nariz quando achava que não estávamos olhando.

Foi encontrado em seu Morris Minor azul, na garagem de sua casa, com as portas fechadas e uma mangueira verde saindo do escapamento e entrando na janelinha da frente. O legista disse que fora suicídio, e 75 meninos respiraram aliviados.

Mas o Velho Meleca fizera alguns favores ao senhor Alice ao longo dos anos, sempre que havia um chefe de polícia ou algum político estrangeiro com um fraco por garotinhos para ser atendido, e por isso ele mandou uns investigadores para ver se tudo conferia. Quando os caras chegaram à conclusão de que o único possível, culpado era um menino de 12 anos, quase se mijaram de rir.

O senhor Alice ficou intrigado e mandou me buscar. Naquela época, ele metia muito mais a mão na massa do que hoje em dia. Acho que ele esperava que eu fosse bonito, mas uma triste decepção o aguardava. Eu já era, então, como sou hoje: magro demais, com as faces fundas, ossudas, e orelhas que lembram um carro de portas abertas. Dele, me lembro principalmente de como era imenso. Corpulento. Acho que na época ele era bem jovem, mas eu não o via assim: era um adulto, portanto, o inimigo.

Dois capangas vieram me buscar depois da aula, quando eu voltava para o alojamento. Estava cagando de medo no início, porque os caras não pareciam ser da polícia — eu já fugia dos gambés fazia quatro anos, nessa época, e reconhecia um policial à paisana a cem metros de distância. Eles me levaram para um escritoriozinho cinza, com pouca mobília, perto da Edgware Road.

Era inverno, estava quase escuro do lado de fora, mas lá dentro as luzes eram fracas, com exceção da lâmpada de mesa, que produzia um clarão amarelo sobre a escrivaninha. Um homem enorme estava sentado, anotando algo com uma caneta numa folha de telex. Quando terminou, olhou para mim. Seus olhos me percorreram de alto a baixo.

— Cigarro?

Fiz que sim. Ele estendeu um maço de Peter Stuyvesant e eu peguei um.

Ele o acendeu para mim com um isqueiro preto e dourado.

— Você matou Ronnie Palmerstone — disse. Não falou em tom de interrogação.

Eu não disse nada.

— E então? Não vai dizer nada?

— Não tenho nada a dizer — respondi.

— Só suspeitei disso quando ouvi dizer que ele estava no banco do passageiro. Ele não sentaria no banco do passageiro se fosse se matar. Sentaria no do motorista. Eu acho que você deu um "Boa Noite, Cinderela" para ele, depois levou a Bela Adormecida para dar uma voltinha de carro (não deve ter sido fácil colocá-lo no carro, ele não era magro) até a casa dele. Estacionou na garagem, quando ele já dormia profundamente, e preparou a cena do suicídio. Não ficou com medo de que alguém visse você dirigindo? Um garoto de 12 anos?

— Está escurecendo cedo. E eu fui pelas ruas mais desertas.

Ele riu. Fez mais algumas perguntas, sobre a escola, o alojamento, quais eram os meus interesses, essas coisas. Aí os capangas me levaram de volta para o orfanato.

Na semana seguinte, fui adotado por um casal chamado Jackson. Ele era perito em direito comercial internacional. Ela era especialista em defesa pessoal. Acho que os dois nem se conheciam antes que o senhor Alice os unisse para que me criassem.

Gostaria de saber o que ele viu em mim naquele encontro. Deve ter sido algum tipo de potencial, acho. Potencial para lealdade. E eu sou leal, não duvide disso. Pertenço ao senhor Alice de corpo e alma.

Claro que o nome dele não é senhor Alice, embora eu pudesse usar seu verdadeiro nome aqui tranqüilamente. Não importa. Você nunca ouviu falar dele. O senhor Alice é um dos dez homens mais ricos do mundo. Vou contar uma coisa: você também nunca ouviu falar dos outros nove. Seus nomes não aparecem em nenhuma lista dos cem homens mais ricos do mundo. Nada de Bill Gates, nem do sultão de Brunei. Estou falando de dinheiro de verdade. Tem gente por aí que ganha mais dinheiro do que você vai ver na sua vida toda para garantir que não saia nada sobre o senhor Alice na TV ou nos jornais.

O senhor Alice gosta de possuir coisas. E, como eu disse, uma das coisas que ele possui sou eu. Ele é o pai que nunca tive. Foi ele que conseguiu a ficha médica da minha mãe e as informações sobre meus vários candidatos a pai.

Quando me formei (em Administração e Direito Internacional), como presente de formatura para mim mesmo, fui procurar meu avô, o médico. Eu tinha evitado ir vê-lo até aquele dia. Como uma espécie de motivação.

Ele estava a um ano de se aposentar, um velho com as faces fundas, ossudas, e paletó de tweed. Isso foi em 1978, quando alguns médicos ainda faziam visitas em domicílio. Eu o segui até um conjunto de apartamentos em Maida Vale. Esperei enquanto ele administrava sua sabedoria médica, e o detive quando saía, balançando sua maleta preta.

— Olá, vovô — eu disse. Inútil fingir ser outra pessoa. Não com a minha cara. Ele era eu dali a 40 anos. A mesma cara horrorosa, mas com o cabelo ralo e esbranquiçado, não espesso feito pêlo de rato, como o meu. Ele perguntou o que eu queria.

— Trancar a mamãe daquele jeito — respondi. — Não foi muito legal, foi?

Ele pediu para ficar longe dele ou algo assim. — Acabei de me formar — contei. — Você deveria estar orgulhoso.

Ele disse que sabia quem eu era, e que era melhor que eu sumisse, ou ele chamaria a polícia e mandaria me prender.

Enfiei o punhal no seu olho esquerdo até o cérebro e, enquanto ele tossia e sufocava, peguei sua carteira de couro de bezerro — como lembrança, na verdade, e para que parecesse um assalto. Foi nela que encontrei a foto da minha mãe, em preto-e-branco, sorrindo e flertando com a câmera 25 anos antes. Quem será que era o dono do carro?

Fiz alguém que não me conhecia penhorar a carteira. Comprei-a da loja de penhores quando não foi resgatada. Serviço limpo, sem pistas. Muitos caras espertos já foram pegos por causa de uma lembrança. Às vezes me perguntava se não matei meu pai naquele dia, além do meu avô. Acho que ele não me contaria, mesmo se eu tivesse perguntado. E, na verdade, o que importa?

Depois disso, comecei a trabalhar para o senhor Alice em tempo integral. Cuidei das coisas em Sri Lanka por dois anos, depois passei um ano em Bogotá fazendo importação e exportação, trabalhando como uma espécie de superagente de viagens. Voltei para Londres o mais rápido que pude. Nos últimos 15 anos, fui um pau para toda obra, cuidando das áreas mais problemáticas. Pau para toda obra. Essa é boa.

Como falei, é preciso ter dinheiro de verdade para garantir que ninguém ouça falar de você. Nada daquela bobagem de passar o chapéu entre os banqueiros, como Rupert Murdoch faz. Você nunca vai ver o senhor Alice nas páginas de uma revista chique, mostrando sua mansão para um fotógrafo.

Além dos negócios, o principal interesse do senhor Alice é o sexo, e era por isso que eu estava na entrada da estação Earl's Court com 40 milhões de dólares americanos em diamantes azulados no bolso interno do meu impermeável. Especificamente, e para ser exato, o interesse do senhor Alice em sexo se resume a ter relações com rapazes atraentes. Não me entenda mal: não quero que você pense que o senhor Alice é bicha. Ele não é frutinha, nada disso.

O senhor Alice é homem de verdade. É um homem de verdade que gosta de trepar com homens, só isso. Tem gente de todo tipo no mundo, é o que eu digo, e assim sobra mais do que eu gosto para mim. É como nos restaurantes, onde cada um pode escolher algo diferente no cardápio. Chacun à son goût,[2] e perdão pelo meu francês. Assim todos ficam felizes.

Isso foi há um par de anos, em julho. Lembro que eu estava na Earl’s Court Road, em Earl’s Court, olhando para a placa da estação de metrô Earl's Court e me perguntando por que a estação tinha apóstrofo e o lugar não, e depois olhando para os drogados e bebuns que ficam por ali, enquanto esperava que o Jaguar do senhor Alice aparecesse.

Não me preocupava por estar com os diamantes no bolso. Não tenho cara de alguém que possua algo que valha um assalto, e sei me cuidar. Portanto, eu estava olhando para os drogados e bebuns para matar o tempo enquanto o Jaguar não chegava (preso num engarrafamento nas obras da Kensington High Street, imaginei) e me perguntando por que drogados e bebuns se congregam na entrada da estação Earl's Court.

Eu até entendia os drogados: estavam esperando para comprar pó. E os bêbados, porra? Estavam ali por quê? Ninguém precisa disfarçar e te passar uma garrafa de cerveja Guinness, ou mesmo de álcool etílico, num saco de papel. E não é confortável ficar sentado no chão ou encostado no muro. Se eu fosse um bebum, num dia bonito como aquele, pensei, iria para o parque.

Perto de mim, um garoto paquistanês de uns 18 ou 20 anos estava enchendo uma cabine telefônica com cartões de prostitutas — TRANSEXUAL GOSTOSONA e ENFERMEIRA LOIRA DE VERDADE, COLEGIAL PEITUDA e PROFESSORA DURONA PRECISA DISCIPLINAR MOLEQUE. Ele me encarou quando percebeu que eu o estava olhando. Depois terminou e foi para a cabine seguinte.

O Jaguar do senhor Alice encostou no meio-fio, eu fui até lá e entrei. É um bom carro, deve ter apenas uns dois anos de uso. É classudo, mas não chega a chamar a atenção.

O motorista e o senhor Alice estavam sentados na frente. No banco de trás, comigo, estava um homenzinho atarracado, de cabelo escovinha e paletó xadrez berrante. Ele lembrava o noivo frustrado de um filme dos anos 50, aquele que a noiva troca por Rock Hudson no final. Ele estendeu a mão, e então, quando percebeu que eu ignorara o gesto, recolheu-a.

O senhor Alice não nos apresentou, o que para mim não era problema, porque eu sabia exatamente quem ele era. Eu o encontrara e o fisgara, de fato, embora ele nunca fosse ficar sabendo disso. Era professor de línguas antigas numa universidade da Carolina do Norte. Ele achava que havia sido emprestado ao Serviço Secreto Britânico pelo Departamento de Estado dos listados Unidos. Pensava isso porque foi o que alguém do tal departamento lhe dissera. O professor tinha dito à esposa que ia apresentar uma monografia numa conferência sobre estudos hititas em Londres. E a conferência existia. Eu mesmo a havia organizado.

— Por que você pega a droga do metrô? — perguntou o senhor Alice. Não pode ser para economizar.

— Acho que o fato de eu ter esperado vocês naquela esquina por 20 minutos explica exatamente por que não vim de carro — respondi. Ele gosta quando não viro de barriga para cima, abanando o rabinho. Sou um cão com personalidade. — A velocidade média de um veículo nas ruas do centro de Londres durante o dia não mudou em 400 anos. Continua abaixo de 15 quilômetros por hora. Quando o metrô funciona, prefiro andar de metrô, obrigado.

— O senhor não dirige em Londres? — perguntou o professor do paletó berrante. Deus nos proteja do vestuário dos acadêmicos americanos. Vamos chamá-lo de Macleod.

Dirijo à noite, quando as ruas estão vazias. Depois da meia-noite. Eu gosto de dirigir à noite.

O senhor Alice baixou o vidro e acendeu um charuto curto. Não pude deixar de notar que suas mãos estavam tremendo. Pela expectativa, imaginei.

E nós rodamos por Earl’s Court, passando por centenas de sobrados altos de tijolos vermelhos que se diziam hotéis, por centenas de prédios decrépitos transformados em albergues e pousadas, por ruas bonitas e ruas feias. Às vezes Earl’s Court me parece uma daquelas senhoras que você encontra de vez em quando, que são todas certinhas, pudicas e elegantes, até que tomam umas e outras e começam a dançar em cima da mesa e falar aos quatro ventos sobre quando eram jovens e bonitas e faziam boquete por dinheiro na Austrália, no Quênia ou algum outro lugar.

Na verdade, falando assim, parece que eu gosto de lá, mas, francamente, não gosto. É efêmero demais. As coisas e as pessoas chegam e vão embora muito rápido. Não sou um cara romântico, mas ainda prefiro o lado sul do Tâmisa, ou o East End. O East End é um lugar legal: é onde as coisas começam, as boas e as más. É o cu e a buceta de Londres, sempre juntinhos. Já Earl’s Court é... sei lá o que é. A analogia anatômica perde completamente o sentido quando chega naquela parte. Acho que é porque Londres é louca. Múltipla personalidade. Um monte de cidadezinhas e aldeias que cresceram, se trombaram e formaram uma metrópole, mas não esqueceram suas antigas fronteiras.

Então o motorista parou numa rua como outra qualquer, em frente a uma casa alta, com terraços, que podia já ter sido um hotel. Algumas janelas estavam lacradas com tábuas.

Esta é a casa — anunciou.

— Certo — disse o senhor Alice.

O motorista deu a volta no carro e abriu a porta para o senhor Alice. O professor Macleod e eu saímos sozinhos. Corri os olhos pela calçada. Nada com que se preocupar.

Bati na poria, e nós esperamos. Balancei a cabeça e sorri para o olho mágico. As bochechas do senhor Alice estavam vermelhas, e ele mantinha as mãos sobre a virilha para evitar qualquer constrangimento. Velho tarado.

Bem, eu já passei por isso. Todos passamos. Só que o senhor Alice pode se dar ao luxo de se satisfazer.

No meu modo de ver, algumas pessoas precisam de amor e outras não. Acho que o senhor Alice é mais do tipo não, no fim das contas. Eu também sou um não. Você aprende a reconhecer os tipos.

E o senhor Alice é, acima de tudo, um connoisseur.[3]

Ouviu-se o estrondo da tranca sendo puxada, e a porta foi aberta por uma velha de aspecto repulsivo. Usava uma túnica preta inteiriça e larga. Seu rosto era enrugado e pelancudo. Vou dizer como ela era. Já viu a foto daqueles pãezinhos de canela que dizem parecer a Madre Teresa? Ela parecia um daqueles, um pãozinho de canela, com duas uvas-passas no lugar dos olhos.

Ela me disse algo numa língua que não reconheci, mas o professor Macleod respondeu, hesitante. Ela olhou para nós três com ar desconfiado, depois fez uma careta e acenou para que entrássemos, batendo a porta atrás de nós. Fechei primeiro um olho, depois o outro, encorajando-os a se adaptarem à penumbra dentro da casa.

O prédio cheirava a especiarias úmidas. Eu não estava gostando nada daquela história toda — há algo nos estrangeiros, quando são tão estrangeiros assim, que me dá arrepios. Quando a velha coroca que abriu a porta e a quem eu batizara mentalmente de Madre Superiora nos fez subir lance após lance de escadas, vi mais mulheres de túnica preta, espiando-nos detrás das portas e mais à frente no corredor. O carpete das escadas estava desgastado, e a sola dos meus sapatos parecia grudar nele. O reboco das paredes caía aos pedaços. Aquilo era um labirinto, e estava me deixando puto. O senhor Alice não deveria freqüentar lugares assim, onde não podia ser adequadamente protegido.

Mais e mais velhotas estranhas nos vigiavam em silêncio enquanto subíamos as escadas. A bruxa velha com cara de pãozinho de canela falava com o professor Macleod, algumas palavras aqui, outras ali, ele, por sua vez, arfava e ofegava com o esforço da subida, respondendo-lhe o melhor que podia.

— Ela quer saber se vocês trouxeram os diamantes — balbuciou.

— Diga que falaremos disso depois de vermos a mercadoria — disse o senhor Alice. Ele não estava ofegante, e, se havia algum tremor em sua voz, era pela expectativa.

O senhor Alice comeu, que eu saiba, metade dos principais astros do cinema das últimas duas décadas e mais modelos masculinos do que o suficiente para organizar vários desfiles. Ele possuiu os rapazes mais bonitos dos cinco continentes. Nenhum deles sabia ao certo quem os estava comendo, e todos foram muito bem pagos pelo incômodo.

No alto das escadas, depois de um último lance de degraus de madeira sem carpete, havia a porta do sótão e, de cada lado dela, como dois troncos de árvore, uma mulher enorme vestida de preto. Ambas pareciam capazes de enfrentar um lutador de sumô. As duas seguravam, juro por Deus, cimitarras — estavam protegendo o "Tesouro dos Shahinai" — e fediam feito éguas velhas. Mesmo na penumbra, dava para ver que suas roupas eram remendadas e sujas.

A Madre Superiora aproximou-se delas, um esquilo encarando dois pitbulls, enquanto eu olhava para aqueles rostos impassíveis e me perguntava de onde teriam vindo. Poderiam ser samoanas ou mongóis, ou ter sido trazidas de um circo de aberrações da Turquia, Índia ou Irã.

A uma palavra da velha, as duas se afastaram da porta, e eu a abri. Não estava trancada. Dei uma olhada lá dentro para ver se não havia problema, entrei, vasculhei ao meu redor, e fiz sinal de que estava tudo em ordem. Portanto, fui o primeiro homem desta geração a pôr os olhos no "Tesouro dos Shahinai".

Ele estava ajoelhado ao lado de um catre de campanha, com a cabeça baixa.

Lendários é um bom termo para se referir aos Shahinai. Significa que eu nunca tinha ouvido falar deles e não conhecia ninguém que tivesse, e, quando comecei a procurá-los, até quem tinha ouvido falar não acreditava que existissem.

— Afinal meu caro amigo — disse o meu acadêmico russo favorito, ao entregar seu relatório, você está falando de um povo de cuja existência as únicas provas são meia dúzia de versos de Heródoto, um poema das Mil e uma Noites e um discurso do Manuscrit Trouvé à Saragosse.[4] Fontes não exatamente confiáveis.

Mas os rumores chegaram ao senhor Alice, e ele ficou interessado. E, quando o senhor Alice quer uma coisa, dou um jeito de conseguir para ele. Naquele momento, olhando para o "Tesouro dos Shahinai", o senhor Alice

Estava tão feliz que pensei que ele fosse explodir.

O rapaz se levantou. Um penico era visível debaixo da cama, com um pouco de urina de um amarelo vivo no fundo. Sua túnica era de algodão branco, leve e muito limpa. Ele usava pantufas de seda azul.

O quarto estava muito quente. Dois aquecedores a gás ardiam, um de cada lado do sótão, Sibilando baixinho. O rapaz não parecia sentir calor. O Professor Macleod começou a suar em bicas.

De acordo com a lenda, o rapaz de túnica branca — de uns 17 anos, acho, 18 no máximo — era o homem mais bonito do mundo. Eu não duvidava disso.

O senhor Alice se aproximou do garoto e o inspecionou como um fazendeiro que examina um bezerro numa feira, olhando em sua boca, degustando sua pele, investigando seus olhos e suas orelhas, pegando suas mãos e analisando seus dedos e suas unhas. Em seguida, sem rodeios, levantou sua túnica branca e inspecionou seu pinto não circuncidado, antes de virá-lo de costas e verificar o estado do seu cu.

E, durante todo o processo, os olhos do garoto brilhavam alegres em seu rosto, que exibia um sorriso largo e branco.

Finalmente, o senhor Alice puxou o rapaz para si e o beijou, lenta e suavemente, na boca. Em seguida, passou a língua pelos lábios e acenou, dirigindo-se a Macleod:

— Diga-lhe que ficamos com ele.

O professor Macleod disse algo à Madre Superiora, e o rosto dela se transformou num pãozinho feliz. Ela estendeu as mãos.

— Ela quer ser paga agora — explicou Macleod.

Enfiei as mãos, lentamente, nos bolsos internos do meu impermeável, tirei primeiro um, depois outro saquinho de veludo preto e os entreguei a ela. Cada saquinho continha 50 diamantes grau D ou E sem defeitos, perfeitamente lapidados, cada qual pesando mais do que 5 quilates. A maioria fora comprada a preços baixos na Rússia em meados da década de 90. Cem diamantes: 40 milhões de dólares. A velha derramou alguns na palma da mão e os cutucou com o dedo. Depois os devolveu ao saquinho e balançou a cabeça.

Os saquinhos sumiram em sua túnica, ela foi até o alto da escada e, a plenos pulmões, gritou algo em sua língua estranha.

De todo o andar de baixo da casa veio um uivo, como de uma legião de banshees,[5] que continuou soando enquanto descíamos as escadas daquele labirinto sombrio, com o jovem de túnica branca à nossa frente. Sinceramente, aquele som me arrepiava os cabelos, e o fedor de mofo e especiarias me dava ânsia de vômito. Que porra! Odeio estrangeiros!

Antes que saíssemos da casa, a mulher o embrulhou em alguns cobertores, temendo que ele pegasse um resfriado, apesar do sol quente de junho. Entramos no carro.

Fui com eles até o metrô e de lá segui sozinho.

Passei o dia seguinte, que era uma quarta-feira, resolvendo uma treta em Moscou. Caubóis demais. Eu rezava para conseguir acertar tudo sem ter que ir para lá pessoalmente — comida russa me dá prisão de ventre.

Quanto mais velho eu fico, menos gosto de viajar, eu que já não gostava muito mesmo. Mas ainda meto a mão na massa, quando é preciso. Eu me lembro quando o senhor Alice disse que achava necessário tirar Maxwell de campo. Falei para ele que eu mesmo faria o serviço e que não queria ouvir mais nada. Maxwell sempre foi uma bomba-relógio. Um peixinho de boca grande e péssimo comportamento.

Nunca foi tão bom jogar algo dentro d'água.

Quarta à noite, eu estava mais tenso do que uma panela de pressão esquecida no fogo, por isso liguei para um cara que eu conheço, e ele mandou Jenny para o meu apartamento na Barbican. Aquilo melhorou o meu humor. Jenny é uma boa menina. Não tem jeito de vadia. Sabe ser elegante.

Fui bem carinhoso com ela, naquela noite, e lhe dei uma nota de 20 libras depois.

— Mas não precisa. Já está tudo acertado.

— Faça alguma loucura — eu disse. — É dinheiro de louco. — Mexi no seu cabelo, e ela sorriu como uma menininha.

Na quinta, recebi uma ligação da secretária do senhor Alice, dizendo que tudo fora satisfatório, e que eu deveria pagar o professor Macleod.

Nós o havíamos hospedado no Savoy. Bem, a maioria das pessoas iria de metrô até Charing Cross ou até a beira do rio e andaria pela Strand até o Savoy. Eu não. Fui de metrô até a estação Waterloo e segui para o norte sobre a ponte Waterloo. Demora uns minutos a mais, mas o panorama é imbatível.

Quando eu era criança, um dos meninos do alojamento me disse que, se você prendesse a respiração até o meio de uma ponte sobre o Tâmisa e fizesse um pedido ali, o que você pedisse se tornaria realidade. Eu não tenho nem nunca tive nada para pedir, então faço isso como exercício de apnéia.

Parei na cabine telefônica no fim da ponte Waterloo (COLEGIAIS PEITUDAS PRECISAM DE DISCIPLINA. ME AMARRA, ME BATE, ME XINGA. LOIRA INICIANTE NA CIDADE). Liguei para o quarto de Macleod no Savoy. Pedi que ele viesse me encontrar na ponte.

O terno dele era, se isso é possível, de um xadrez mais chamativo do que aquele que ele usara na terça. Ele me deu um envelope grosso cheio de folhas impressas: uma espécie de glossário shahinai-inglês caseiro. "Está com fome?" "Agora você precisa tomar banho." "Abra a boca." O suficiente para que o senhor Alice se fizesse entender naquela situação.

Meti o envelope no bolso do impermeável.

— Quer dar um passeio pelas redondezas? — perguntei, e o professor Macleod disse que era sempre bom conhecer uma cidade acompanhado de um local.

— Este trabalho é uma curiosidade filológica e um prazer lingüístico — comentou Macleod enquanto andávamos pela beira do rio. — Os shahinai falam uma língua que tem pontos em comum com o aramaico e a família de línguas fino-húngaras. É a língua que Cristo poderia ter falado se tivesse escrito a epístola aos estonianos primitivos. Tem bem poucos barbarismos, aliás. Minha teoria é que eles devem ter sido forçados a vários êxodos abruptos no passado. Trouxe o meu pagamento?

Fiz que sim. Saquei minha velha carteira de couro de bezerro do bolso do paletó e tirei um cartãozinho de cores vivas.

— Tome.

Estávamos chegando à ponte Blackfriars.

— É autêntico?

— Claro. Loteria estadual de Nova York. Você o comprou por impulso, no aeroporto, antes de partir para a Inglaterra. O sorteio será no sábado à noite, Acho que vai ser uma ótima semana. O prêmio já está acumulado em mais de 20 milhões de dólares.

Ele guardou o bilhete de loteria na carteira, preta, brilhante e cheia de cartões, e a colocou no bolso interior do paletó. Suas mãos sempre perambulavam na direção dela, alisando-a, disfarçadamente se certificando de que estava ali. Era o alvo perfeito para qualquer trombadinha que quisesse saber onde ele guardava o dinheiro.

— Precisamos brindar a isso — ele disse.

Concordei, mas salientei que um dia como aquele, com o sol brilhando e uma brisa fresca vindo do mar, era bonito demais para ser desperdiçado num pub. Por isso fomos até uma loja de bebidas. Peguei uma garrafa de Stolichnaya, um suco de laranja em caixinha e um copo descartável para ele, e umas latas de Guinness para mim.

— São os homens, entende? — comentou o professor. Nós nos sentamos num banco de madeira com vista para a margem sul, do outro lado do Tâmisa. — Parece que não são muitos. Um ou dois a cada geração. O "Tesouro dos Shahinai". As mulheres são as guardiãs dos homens. Elas os alimentam e os mantêm em segurança. Alexandre o Grande, dizem, comprou um amante dos shahinai. Além de Tibério e pelo menos dois papas. Parece que Catarina a Grande também teve um, mas acho que é só boato.

Eu disse a ele que parecia uma fábula:

— Pense nisso. Um povo cuja única riqueza é a beleza de seus homens. Assim, uma vez a cada cem anos, eles vendem um de seus exemplares do sexo masculino e ganham dinheiro suficiente para manter a tribo por mais um século. — Tomei um gole de cerveja. — Você acha que aquilo era a tribo toda, as mulheres naquela casa? — Duvido. Ele derramou mais uma dose de vodca no copo de plástico, completou com suco de laranja e ergueu-o num brinde:

— O senhor Alice deve ser muito rico.

— Tem lá suas economias.

— Eu sou hétero — disse Macleod, mais bêbado do que pensava estar, com gotas de suor se formando na testa —, mas eu comia aquele garoto. É a coisa mais linda que já vi.

— É, não é feio.

— Você não comia?

— Não é a minha praia.

Um táxi preto passou na rua atrás de nós. O luminoso laranja escrito "Livre" estava apagado, embora não houvesse ninguém no banco de trás.

— Qual é a sua praia, então? — perguntou o professor Macleod.

— Menininhas.

Ele engoliu seco:

— De que idade?

— Nove anos. Dez. Onze ou doze, no máximo. Quando têm tetinhas e pêlos, meu pau já não fica duro. Não acho mais graça.

Ele me olhou como se eu tivesse dito que gostava de trepar com cachorros mortos, e não falou nada por algum tempo. Tomou sua vodca.

— Sabe — disse, por fim —, no meu país, esse tipo de coisa é ilegal.

— Bom, eles também não gostam muito por aqui.

— Acho melhor eu voltar pro hotel.

Um táxi preto virou a esquina, com o luminoso aceso. Fiz sinal para ele, e ajudei o professor Macleod a se sentar no banco de trás. Era um dos nossos "táxis particulares". Do tipo que você entra e não sai mais.

— Para o Savoy, por favor — pedi ao taxista.

— Pois não, chefia — ele disse, e levou o professor Macleod embora.

 

O senhor Alice cuidou bem do garoto shahinai. Sempre que eu ia lá para uma reunião ou para fazer um relatório, o rapaz estava sentado aos pés do senhor Alice, que ficava acariciando e enrolando nos dedos aquele cabelo preto retinto. Dava para ver que os dois se adoravam. Era piegas e, devo admitir, tocante — até mesmo para um canalha sem coração como eu.

Às vezes, à noite, eu sonhava com as mulheres shahinai — coisas pavorosas, parecidas com morcegos ou bruxas, esvoaçando e ciscando numa enorme casa em ruínas, que era, ao mesmo tempo, a história da humanidade e o Sanatório St. Andrews. Algumas carregavam homens, aos pares, batendo as asas e voando. Os homens brilhavam como o sol, e seus rostos eram bonitos demais, não dava nem para olhar.

Eu detestava aqueles sonhos. Sempre que eu tinha um, o dia seguinte seria péssimo, você podia contar com isso.

O homem mais bonito do mundo, o "Tesouro dos Shahinai", durou oito meses. Aí pegou gripe.

Sua temperatura chegou a 41 graus, seus pulmões encheram-se de água, e ele estava se afogando em terra firme. O senhor Alice chamou os melhores médicos do mundo, mas o rapaz oscilou e se apagou como uma lâmpada velha, e foi só.

Acho que eles não são muito fortes. Afinal, são criados para outra coisa, não para serem fortes.

O senhor Alice sofreu muito. Ficou inconsolável — chorou feito um bebê durante todo o funeral, as lágrimas corriam pelo seu rosto, como uma mãe que acabara de perder seu filho único. Estava chovendo muito, portanto, se você não estivesse ao lado dele, não perceberia. Estraguei um par de sapatos excelentes naquele cemitério, e isso me deixou de péssimo humor.

Voltei para o apartamento da Barbican, pratiquei arremesso de punhal, fiz macarrão à bolonhesa, vi um jogo de futebol na TV.

Naquela noite, fiquei com Alison. Não foi agradável.

No dia seguinte, reuni alguns caras fortes e fomos até a casa de Earl’s Court, para ver se os shahinai ainda estavam lá. Devia haver mais garotos shahinai em algum lugar. Parecia o mais lógico.

Mas o reboco das parceles decrépitas estava recoberto de cartazes de bandas de rock roubados, e o lugar cheirava a maconha, não a especiarias.

O labirinto de quartos estava cheio de australianos e neozelandeses. Sem-teto, ao que parece. Surpreendemos uma dúzia deles na cozinha, aspirando fumaça narcótica da boca de uma garrafa de refrigerante quebrada.

Vasculhamos a casa do sótão ao porão, procurando algum sinal das mulheres shahinai, algo que elas tivessem esquecido ali, alguma pista, qualquer coisa que deixasse o senhor Alice contente.

Não encontramos nada.

E tudo o que eu levei da casa de Earl’s Court foi a lembrança do seio de uma garota, chapada e fora de órbita, dormindo nua num dos quartos de cima. No 10 havia cortinas na janela.

Fiquei parado na porta, olhei para ela por um tempão, e ele se desenhou em minha mente: um seio farto, de mamilo escuro, que se curvava perturbadoramente à luz de sódio amarela da rua.

 

OS FATOS NO CASO DA PARTIDA DA SENHORITA FINCH

PARA COMEÇAR PELO FINAL: eu dispus a fina fatia de gengibre, rosada e translúcida, sobre o pálido pedaço de olho-de-boi, mergulhei o conjunto todo — gengibre, peixe e arroz branco — no molho de soja, com o lado do peixe para baixo, e o devorei em duas mordidas.

— Acho que deveríamos avisar a polícia — observei.

— E dizer o quê, exatamente? — perguntou Jane.

— Bem, poderíamos denunciar um desaparecimento ou algo assim. Não sei.

— E onde o senhor viu a jovem pela última vez? — perguntou Jonathan, em seu tom mais policial possível. — Ah, entendo. Sabia que, normalmente, fazer a polícia perder tempo é considerado desacato?

— Mas o circo todo...

— São pessoas nômades, senhor, e maiores de idade. Elas vêm e vão. Se soubesse o nome delas, acho que eu poderia lavrar uma ocorrência...

Desanimado, comi um sushi de pele de salmão:

— Bem, então, por que não falamos com a imprensa?

— Brilhante idéia — comentou Jonathan, com um tom de voz claramente irônico.

— Jonathan tem razão — Jane disse. — Não vão nos dar ouvidos.

— Por que não acreditariam? Somos pessoas confiáveis. Cidadãos honestos e tudo mais.

— Você escreve livros de fantasia — pontuou ela. — Inventar coisas assim é o seu ganha-pão. Ninguém vai acreditar em você.

— Mas vocês dois também viram. Vão confirmar meu testemunho.

Jonathan vai estrear uma nova série sobre filmes cult de terror no outono. Vão dizer que só quer fazer propaganda barata do programa. E eu vou lançar mais um livro. Mesma coisa.

— Então vocês acham que não podemos contar pra ninguém? — perguntei, e tomei um gole do meu chá verde.

— Não é isso — respondeu Jane, ponderadamente. — Nós podemos contar pra quem quisermos. É fazer com que acreditem que vai ser problemático. Ou, a meu ver, impossível.

O gengibre ardia na minha língua.

— Você pode estar certa — concordei. — E provavelmente a senhorita Finch está muito mais feliz onde quer que esteja agora do que aqui.

— Mas o nome dela não é senhorita Finch — interveio Jane -, é........ - E ela enunciou o verdadeiro nome da garota que havia pouco estava conosco.

— Eu sei. Mas foi o que me ocorreu quando a vi — expliquei. — Como num daqueles filmes. Vocês sabem. Quando a garota tira os óculos e solta o cabelo. "Ora, senhorita Finch. Que linda!"

— Ela era mesmo — comentou Jonathan -, pelo menos no fim. — E ele estremeceu com a lembrança.

Pronto. Agora você sabe: foi assim que tudo terminou, e foi como nós três deixamos o caso, há vários anos. Agora só faltam o início e os detalhes.

Só para constar, não espero que você acredite em nada disto. Não mesmo. Afinal de contas, sou um mentiroso profissional, embora goste de pensar que sou um mentiroso honesto. Se eu pertencesse a um clube de cavalheiros, contaria o caso tomando um ou dois cálices de vinho do Porto, tarde da noite, vendo o fogo se apagar, mas não sou membro de nenhum clube desses, e escrevo melhor do que falo. Portanto, aqui você ficará sabendo quem era a senhorita Finch (que, na verdade, não se chamava Finch, nem nada parecido, já que mudei os nomes para proteger os culpados) e por que ela não pôde ir comer sushi conosco. Acredite ou não, como preferir. Eu mesmo já não tenho mais certeza de que acredito. Tudo parece muito distante.

Eu poderia começar de várias maneiras. Talvez seja melhor começar num quarto de hotel, em Londres, há alguns anos. Eram 11 da manhã e, para minha surpresa, o telefone tocou. Corri para atender.

— Alô?

Era cedo demais para alguém me ligar dos Estados Unidos, e não tinha dito a ninguém na Inglaterra que eu estava no país.

— Olá — disse uma voz conhecida, numa péssima imitação de um sotaque americano. — Aqui fala Hiram P. Muzzledexter, da Colossal Pictures. Estamos trabalhando num remake de Os Caçadores da Arca Perdida, mas com mulheres peitudas no lugar dos nazistas. Ficamos sabendo que você tem uma ferramenta poderosa no meio das pernas e que poderia aceitar o papel de Minnesota Jones, o protagonista...

— Jonathan? — interrompi. — Como foi que me encontrou aqui?

— Ah, você sabia que era eu — ele disse, contrariado, e sua voz perdeu completamente o falso sotaque, voltando ao seu normal londrino.

— Bem, reconheci sua voz. Mas você não me respondeu. Ninguém deveria saber que estou aqui.

— Tenho meus informantes — ele revelou, sem fazer mistério. — Escute, se Jane e eu convidássemos você pra comer sushi (algo que lembro ter visto você fazer como um leão-marinho sendo alimentado no Zoológico de Londres) e ainda rolasse um teatro antes da comida, o que você diria?

— Não sei. Eu diria "Sim", acho. Ou poderia dizer "Qual é a condição?" também.

— Não é exatamente uma condição — explicou Jonathan. — Eu não chamaria de condição. Não é uma condição, na verdade. Não é bem isso.

— Você está mentindo, não está?

Alguém falou algo perto do telefone, e aí Jonathan disse:

— Um momento, Jane quer falar com você. Jane é a esposa de Jonathan.

— Como vai? — ela perguntou.

— Bem, obrigado.

— Olhe, você nos faria um favor imenso... Não que a gente não adore ver você, claro que adoraríamos, mas veja bem, tem alguém...

— Ela é sua amiga — murmurou Jonathan, lá no fundo.

— Ela não é minha amiga. Mal a conheço — ela retrucou, longe do telefone, e depois, falando comigo: — Olhe, despejaram uma pessoa em cima da gente. Ela não vai ficar no país por muito tempo, e eu acabei concordando em levá-la pra passear e cuidar dela amanha à noite. Ela dá medo, na verdade. E Jonathan ouviu alguém da produtora dizendo que você estava na cidade, e nós achamos que você seria a pessoa certa pra tornar a situação menos horrível, então, por favor, diga "sim".

E eu disse "sim".

Analisando agora, acho que tudo pode ter sido culpa do falecido Ian Fleming, criador de James Bond. Um mês antes eu lera um artigo em que Ian Fleming aconselhava todo aspirante a escritor que não estivesse conseguindo escrever seu livro a se trancar num quarto de hotel. Eu não tinha um livro, mas um roteiro de cinema para escrever, e não estava conseguindo, por isso comprei uma passagem de avião para Londres, prometi à produtora que o roteiro estaria pronto em três semanas e me hospedei num excêntrico hotel em Little Venice.

Não contei a ninguém na Inglaterra que eu estava lá. Se as pessoas soubessem, em vez de ficar olhando para o monitor do computador e, ocasionalmente, escrevendo, eu passaria meus dias e minhas noites na companhia delas.

A verdade é que eu estava enlouquecendo de tanto tédio e acolheria de bom grado qualquer interrupção.

No começo da noite seguinte, cheguei à casa de Jonathan e Jane, que ficava perto de Hampstead. Havia um carrinho esporte verde estacionado na frente. Subi as escadas e bati na porta. Jonathan atendeu — ele usava um terno elegante. Seu cabelo castanho-claro estava mais comprido do que quando eu o vira da última vez, ao vivo ou na televisão.

— Olá — cumprimentou ele. — A peça que íamos ver foi cancelada. Mas a gente pode escolher outra coisa, se você não se importar.

Eu ia dizer que não sabia que peça iríamos ver e que, portanto, uma mudança de planos não faria diferença para mim, mas Jonathan já tinha me levado para a sala de estar, me oferecido água mineral, me garantido que ainda iríamos comer sushi e que Jane desceria assim que pusesse as crianças para dormir.

Eles haviam acabado de redecorar a sala de estar num estilo que, segundo Jonathan, lembrava um bordel mouro.

— A princípio, não era pra ser um bordel mouro — ele explicou. — Aliás, nenhum tipo de bordel. Mas acabou dando nisso, um visual de bordel.

— Ele contou tudo sobre a senhorita Finch? perguntou Jane. Seu cabelo, ruivo da última vez que a vira, eslava castanho-escuro, e seu corpo tinha mais curvas que uma metáfora de Raymond Chandler. — Quem?

— Estávamos falando do estilo de arte-final de Ditko — desculpou-se Jonathan. — E dos números de Jerry Lewis que Neal Adams desenhou.

Mas ela vai aparecer a qualquer momento. E ele precisa saber antes que ela chegue.

Jane é jornalista por profissão, mas se tornou uma escritora de sucesso quase acidentalmente. Ela escreveu um guia sobre um seriado de televisão com uma dupla de investigadores de fenômenos paranormais, e o livro alcançou o topo da lista dos mais vendidos e por lá se manteve.

Jonathan ficou famoso como o apresentador de um talk show noturno, depois disso exportou seu charme desajeitado para várias outras áreas. Ele é a mesma pessoa com as câmeras ligadas ou desligadas, o que não ocorre com freqüência no ramo da televisão.

— É uma espécie de obrigação familiar — esclareceu Jane. — Bem, não exatamente familiar.

— Ela é amiga da Jane — disse o marido, alegremente.

— Não é minha amiga. Mas eu não podia dizer não pra eles. E ela só vai ficar no país por uns dias.

Para quem Jane não podia dizer não e que obrigação seria aquela, eu nunca ficaria sabendo, porque naquele momento a campainha tocou, e me vi sendo apresentado à senhorita Finch. Que, como já falei, não era seu verdadeiro nome.

Ela estava usando uma boina e um casaco, ambos de couro preto, e seu cabelo era preto, retinto, preso num pequeno coque apertado, amarrado com um medalhão de cerâmica. Sua maquiagem, aplicada com perfeição, dava uma impressão de severidade que uma dominadora sexual invejaria. Seus lábios estavam apertados, e ela via o mundo através de marcantes óculos de armação preta — que caracterizavam seu rosto muito mais do que simples óculos costumam fazer.

— Então — começou ela, como se estivesse lendo uma sentença de morte -, nós vamos ao teatro.

— Bem, sim e não — informou Jonathan. — Isto é, sim, ainda vamos sair, mas não vamos mais ver The Romans in Britain.

— Ótimo — comentou a senhorita Finch. — Achei de péssimo gosto. Não sei como alguém pôde ter pensado que aquela bobagem daria um bom musical.

— Por isso vamos ao circo — assegurou Jane. — E depois vamos comer sushi.

A senhorita Finch apertou os lábios:

— Não aprovo os circos.

— Mas este não tem animais — salientou Jane.

— Que bom — disse a senhorita Finch, e fungou. Eu estava começando a entender por que Jane e Jonathan quiseram que eu fosse.

A chuva caía quando saímos da casa, e a rua estava escura. Nós nos apertamos no carrinho esporte e rumamos para Londres. A senhorita Finch e eu sentamos no banco de trás, desconfortavelmente perto um do outro.

Jane contou a ela que eu era escritor, e me contou que ela era bióloga.

— Biogeóloga, na verdade — corrigiu a senhorita Finch. — Você falou sério sobre comer sushi, Jonathan?

— Er... sim. Por quê? Você não gosta?

— Eu só como alimentos cozidos — ela disse, e começou a enumerar para nós todo tipo de trematódeo, verme e parasita que vive na carne dos peixes e os quais só o cozimento mata. Ela falou de seus ciclos de vida enquanto a chuva caía torrencialmente, borrando a noite de Londres em manchas vivas de néon. Do banco do passageiro, Jane me dirigiu um olhar de solidariedade, e em seguida ela e Jonathan voltaram a examinar as instruções para chegarmos ao circo. Cruzamos o Tâmisa pela Ponte de Londres enquanto a senhorita Finch discursava sobre cegueira, loucura e insuficiência hepática. Ela estava descrevendo os sintomas da elefantíase com tanto orgulho que parecia tê-los inventado quando paramos numa ruazinha escura, perto da Catedral Southwark.

— Bem, onde está o circo? — perguntei.

— Em algum lugar por aqui — respondeu Jonathan. — Eles querem aparecer no especial de Natal. Tentei comprar os ingressos para esta noite, mas Insistiram em nos dar como cortesia.

— Vai ser divertido, tenho certeza — comentou Jane, esperançosa. A senhorita Finch fungou. Um homem gordo e careca, vestido de monge, correu em nossa direção:

— Aí estão vocês! Eu estava esperando. Estão atrasados. Já vamos começar. Ele virou e correu de volta na direção de onde viera, e nós o seguimos.

A chuva molhava sua careca e escorria por seu rosto, transformando sua maquiagem de Tio Chico da Família Addams em listras brancas e marrons. Ele abriu uma porta lateral.

— Por aqui.

Entramos. Umas cinqüenta pessoas já estavam lá dentro, pingando e fumegando, enquanto uma moça alta, mal maquiada de vampira, segurando uma lanterna, andava no meio do público verificando entradas ou vendendo-as para quem ainda não as tinha e destacando canhotos. Na nossa frente, uma mulher baixinha e gordinha agitava o guarda-chuva encharcado e olhava ao redor, com raiva.

— É melhor que isso preste — disse ao jovem que a acompanhava, seu filho, imagino. Ela pagou as entradas de ambos.

A vampira se aproximou, reconheceu Jonathan e perguntou:

— Este é o seu grupo? Quatro pessoas, né? Vocês estão na lista de convidados — o que provocou outro olhar desconfiado da gordinha.

Uma gravação do tique-taque de um relógio começou a tocar. O relógio bateu meia-noite (no meu, não eram nem 8 horas) e, do outro lado da sala, uma porta dupla de madeira se abriu, rangendo. Uma voz espetaculosa ecoou:

— Entrem... por sua conta e risco! — E gargalhou loucamente. Passamos pela porta rumo à escuridão. O cheiro era de tijolos úmidos e mofo. Foi então que entendi onde estávamos: existe um labirinto de porões antigos por baixo de algumas linhas de trem da superfície — salas grandes, vazias, interligadas, de diversos tamanhos e formas. Algumas são usadas como depósitos por comerciantes de vinhos e revendas de automóveis, outras são ocupadas por vários sem-teto, até que a falta de condições os leva de volta para a luz do dia. A maioria delas está vazia, à espera da inevitável demolição, quando todos os seus segredos e mistérios serão enterrados para sempre.

Um trem passou, acima de nós.

Seguimos em frente, levados pelo Tio Chico e pela vampira para uma espécie de área isolada onde ficamos esperando.

— Tomara que depois possamos sentar — alfinetou a senhorita Finch. Quando todos já estávamos reunidos, as lanternas se apagaram e holofotes brilharam.

Eles entraram. Alguns pilotavam motos e buggies. Outros corriam, gargalhavam, saltavam e gritavam. Quem fez o figurino andou lendo gibis demais, pensei, ou vendo Mad Max repetidas vezes. Havia punks, freiras, vampiros, monstros, strippers e mortos-vivos.

Eles dançavam e davam saltos mortais enquanto o mestre-de-cerimônias — identificável porque usava cartola — cantava muito mal "Welcome to My Nightmare", de Alice Cooper.

— Eu conheço Alice Cooper — resmunguei, tentando parafrasear algo de que não me lembrava direito -, e o senhor não é Alice Cooper.

— Que coisa mais brega! — comentou Jonathan.

Jane nos mandou ficar quietos. Os últimos acordes da canção foram sumindo, e o mestre-de-cerimônias ficou sozinho debaixo dos holofotes. Ele se aproximou do semicírculo feito pelo público enquanto falava:

—Bem-vindos, bem-vindos todos ao Teatro dos Sonhos Noturnos.

— O cara é seu fã — murmurou Jonathan.

— Acho que essa fala é do Rocky Horror Show — respondi.

— Hoje, todos vocês verão monstros inimagináveis, aberrações e criaturas da noite, e testemunharão proezas que arrancarão gritos de pavor. E também gargalhadas. Vamos percorrer — disse ele -, sala após sala, e em cada uma destas cavernas subterrâneas um pesadelo, um deleite, uma maravilha diferente estará à sua espera! Por favor, para sua própria segurança, preciso insistir! Não saiam da área reservada para o público, sob pena de serem amaldiçoados ou arderem para sempre no fogo do inferno! Também devo salientar que o uso de máquinas fotográficas com flash ou de qualquer tipo de dispositivo de gravação é estritamente proibido.

Depois disso, várias jovens segurando pequenas lanternas nos levaram para a sala seguinte.

— Então não vamos sentar — observou a senhorita Finch, impassível.

A Primeira Sala

Na primeira sala, uma loura sorridente, de biquíni coberto de paetês, com marcas de seringa nos braços, foi acorrentada por um corcunda e pelo Tio Chico a uma grande roda.

A roda girou lentamente, e um gordo vestido com um daqueles hábitos vermelhos de cardeal arremessou facas em volta do corpo da mulher. Depois, o corcunda vendou os olhos do cardeal, que lançou as três últimas facas, com precisão, ao redor da cabeça dela. Ele tirou a venda. A mulher foi solta e retirada da roda. Eles se inclinaram em agradecimento. Nós aplaudimos.

Aí o cardeal tirou uma faca falsa de seu cinto e fingiu cortar a garganta da mulher. O sangue correu pela lâmina. A platéia soltou algumas interjeições de espanto, e uma garota mais impressionável deu um gritinho, enquanto seus amigos riam.

O cardeal e a mulher dos paetês agradeceram uma última vez. As luzes diminuíram. Seguimos as lanternas por um corredor de tijolos aparentes.

A Segunda Sala

O odor de umidade era pior. A sala cheirava a porão mofado e esquecido. De algum lugar vinha o ruído da chuva. O mestre-de-cerimônias nos apresentou a Criatura:

— Costurada nos laboratórios da noite, a Criatura é capaz de assombrosos feitos de força física.

A maquiagem de Frankenstein do monstro não era tão convincente, mas ele levantou uma pedra com o gordo Tio Chico sentado nela e manteve no lugar um buggy (pilotado pela vampira) acelerado ao máximo. Como pièce de résistance, soprou numa bolsa de água quente até estourá-la.

— Que venha o sushi — resmunguei para Jonathan.

A senhorita Finch informou baixinho que, além do perigo de parasitas, o atum, o peixe-espada e a perca-do-mar chilena estavam todos ameaçados de extinção pela pesca predatória, já que não se reproduziam rápido o suficiente.

A Terceira Sala

era tão alta e escura que não conseguíamos enxergar o teto. O forro original havia sido retirado, assim como o chão do depósito que ficava acima da sala e deixava o ambiente com um pé-direito altíssimo. Com a visão periférica era possível notar o violeta-azulado da luz negra, que de tão forte parecia fazer a sala zumbir. Dentes, camisas e fiapos brancos nas roupas brilhavam na escuridão. Uma música baixa e sincopada começou a tocar. Olhamos para cima e vimos, bem no alto, um esqueleto, um alienígena, um lobisomem e um anjo. As cores de suas fantasias reluziam na luz negra, e eles pareciam personagens de sonhos, acima de nós, em trapézios. Balançavam para lá e para cá, no ritmo da música, e então, todos ao mesmo tempo, soltaram os trapézios e se precipitaram em nossa direção.

Houve um momento de aflição, mas, um pouco acima de nós, eles quicaram no ar e subiram de novo, como ioiôs, voltando para os trapézios. Percebemos que estavam presos ao teto por cordas elásticas, invisíveis na escuridão, e eles saltaram, mergulharam e cortaram o ar lá em cima, enquanto nós aplaudíamos, ofegantes e boquiabertos.

A Quarta Sala

era pouco mais do que um corredor, com pé-direito bem baixo. O mestre-de-cerimônias andou por entre o público e escolheu duas pessoas — a gordinha e um jovem negro, alto, de casaco de pele de ovelha e luvas de couro —, levando-as para a frente de todos. Ele anunciou que demonstraria seus poderes hipnóticos. Fez alguns gestos no ar e dispensou a gordinha. Depois, pediu que o rapaz subisse numa caixa.

— É armação — murmurou Jane. — Ele faz parte da trupe.

Uma guilhotina foi trazida. O mestre-de-cerimônias cortou uma melancia para demonstrar como a lâmina era afiada. Depois, fez o homem enfiar a mão na guilhotina e soltou a lâmina. A mão enluvada caiu no cesto, e sangue espirrou do seu pulso.

A senhorita Finch deu um gritinho.

Depois, o homem pegou sua mão no cesto e saiu correndo atrás do mestre-de-cerimônias no meio do público ao som da música tema do Benny Hill Show.

— Mão falsa — disse Jonathan.

— Eu já sabia — observou Jane. A senhorita Finch assoou o nariz num lenço de papel.

— Estou achando tudo de gosto bem duvidoso — comentou. Aí eles nos levaram para

A Quinta Sala

e todas as luzes se acenderam. Havia uma mesa improvisada numa das laterais, com um jovem careca vendendo cerveja, suco de laranja e água mineral, e placas indicando os toaletes na sala ao lado. Jane foi pegar bebidas, Jonathan foi ao toalete, e eu, constrangido, puxei conversa com a senhorita Finch.

— Então — comecei -, ouvi dizer que você não vai ficar na Inglaterra por muito tempo.

— Eu estava em Cômodo — ela me disse —, estudando os dragões. Sabe por que eles ficaram tão grandes?

— Er...

— Eles se adaptaram para caçar os elefantes anões.

— Existem elefantes anões? — Fiquei interessado. Esse assunto era bem mais divertido do que a aula sobre os trematódeos no sushi.

— Ah, sim. Isso é biogeologia insular básica: os animais tendem naturalmente ao gigantismo ou ao nanismo. Veja bem, existem equações... — À medida que a senhorita Finch falava, seu rosto se iluminava, e, enquanto ela explicava como e por que alguns animais cresciam ao passo que outros encolhiam, comecei a achá-la simpática.

Jane trouxe nossas bebidas. Jonathan voltou do banheiro, alegre e perplexo porque lhe pediram um autógrafo enquanto mijava.

— Escute — disse Jane -, estou lendo muitas publicações de criptozoologia para o próximo Guia do Inexplicável que estou escrevendo. Como bióloga...

— Biogeóloga! — exclamou a senhorita Finch.

— Sim. Na sua opinião, quais são as chances de animais pré-históricos estarem vivos hoje, em segredo, sem que a ciência saiba?

— E bem pouco provável — explicou a senhorita Finch em tom de reprimenda. — Com certeza não há um "Mundo Perdido" em alguma ilha, cheio de mamutes, Smilodons e Aepyornis...

— Isso parece palavrão — interveio Jonathan. — A o quê?

— Aepyornis. Um pássaro pré-histórico gigante que não voava — respondeu Jane.

— Na verdade eu já sabia — ele disse.

— Embora, é claro, ele não seja pré-histórico — continuou a senhorita Finch. — Os últimos Aepyornis foram mortos por marinheiros portugueses cm Madagascar há cerca de 300 anos. E há relatos bastante confiáveis de um mamute anão que foi apresentado à corte russa no século XVI, e de um grupo de animais que, pelas descrições que temos, quase certamente eram algum tipo de tigre-dentes-de-sabre, o Smilodon, e foram levados do norte da África por Vespasiano para morrer no circo romano. Portanto, esses animais não são todos pré-históricos. Muitas vezes eles são históricos.

— Eu queria saber para que serviam os tais dentes de sabre — eu disse.

— Deveriam mais atrapalhar do que ajudar.

— Claro que não. O Smilodon era um caçador muito eficiente — explicou a senhorita Finch. — Pelo menos deve ter sido, já que os dentes de sabre aparecem várias vezes em registros fósseis. Eu queria, de todo coração, que ainda existissem alguns exemplares hoje em dia. Mas não existem. Conhecemos o mundo bem demais.

— O mundo é bem grande — comentou Jane, em tom de dúvida, e aí as luzes piscaram, e uma voz sombria e fantasmagórica nos mandou entrar na sala seguinte, avisando que a segunda parte do espetáculo era desaconselhada para quem tinha coração fraco, e que mais tarde, naquela noite, somente naquela noite, o Teatro dos Sonhos Noturnos orgulhosamente apresentaria o Gabinete dos Desejos Realizados.

Jogamos fora nossos copos de plástico e fomos para

A Sexta Sala

- Eu apresento — anunciou o mestre-de-cerimônias — o Mestre da Dor!

O facho do holofote virou para cima e revelou um jovem absurdamente magro, de calção de banho, pendurado em ganchos pelos mamilos. Duas garotas punks o ajudaram a descer e lhe entregaram suas ferramentas. Ele enfiou um prego de 20 centímetros no nariz, levantou pesos com o piercing da língua, colocou várias doninhas em seu calção de banho e, como truque final, deixou que a mais alta das garotas punks usasse sua barriga como alvo para seringas hipodérmicas lançadas com precisão.

— Ele não apareceu no seu programa há alguns anos? — perguntou Jane.

— Sim — respondeu Jonathan. — Muito simpático. Estourou uma bombinha presa nos dentes.

— Vocês não disseram que eles não usariam animais? — questionou a senhorita Finch. — O que pensam que aquelas pobres doninhas acharam de serem enfiadas nas partes pudendas do rapaz?

— Acho que depende. Será que são doninhas meninos ou doninhas meninas? — disse Jonathan alegremente.

A Sétima Sala

continha um show de rock'n'roll humorístico num tom de pastelão meio sem graça. Uma freira mostrou os seios e o corcunda abaixou as calças.

A Oitava Sala

estava escura. Esperamos na escuridão que algo acontecesse. Eu queria me sentar. Minhas pernas doíam, eu estava cansado, com frio, e já não tinha vontade de ver mais nada.

Então alguém apontou uma luz em nossa direção. Nós piscamos, ofuscados, e cobrimos os olhos.

— Esta noite — anunciou uma irritante voz de taquara rachada. Não era o mestre-de-cerimônias, disso eu tinha certeza. — Esta noite, um de vocês terá seu desejo realizado. Um de vocês será presenteado com tudo o que sempre sonhou no Gabinete dos Desejos Realizados. Quem será?

— Ooh. Deixe-me adivinhar: mais um membro da trupe disfarçado no meio do público? — sussurrei, lembrando o maneta da quarta sala.

— Quieto! — exclamou Jane.

— Quem será? O senhor? A senhora? — Um vulto saiu da escuridão e veio em nossa direção meio que arrastando os pés. Como carregava um refletor portátil, era difícil vê-lo. Dava a impressão de estar usando uma fantasia de macaco, porque sua silhueta não parecia humana e ele andava como um gorila. Talvez fosse o homem que interpretara a Criatura. — Quem vai ser, hein? Nós protegíamos os olhos e fugíamos dele. E então ele atacou.

— Arrá! Acho que já temos nossa voluntária — anunciou, pulando o cordão de isolamento que separava o público da área do espetáculo. Ele puxou a senhorita Finch pela mão.

- Não, não, acho melhor não — pediu em vão a senhorita Finch, que já estava sendo arrastada para longe de nós, nervosa demais, educada demais, fundamentalmente inglesa demais para dar um escândalo. Ela foi puxada para a escuridão, sumindo de vista.

Jonathan praguejou:

— Acho que ela não vai nos deixar esquecer isso tão cedo.

As luzes se acenderam. Um homem fantasiado de peixe gigante, montado numa motocicleta, começou a dar várias voltas pela sala. Depois ficou de pé sobre o selim. Em seguida sentou de novo e fez a moto subir e descer pelas paredes da sala, e aí bateu num tijolo, derrapou e caiu, com a moto sobre si.

O corcunda e a freira seminua correram, tiraram a moto de cima dele e o levaram para fora.

— Quebrei a perna, porra — reclamou, num fio de voz, enquanto eles o carregavam. — Tá quebrada. Minha perna, porra!

— Você acha que isso foi combinado? — perguntou uma garota perto de nós.

— Não — respondeu um homem ao lado dela.

Um tanto abalados, Tio Chico e a vampira nos conduziram para

A Nona Sala

onde a senhorita Finch esperava por nós.

Era uma sala enorme. Eu sabia disso, mesmo naquela escuridão. Talvez a escuridão intensifique os outros sentidos, talvez seja simplesmente porque sempre processamos mais informações do que imaginamos. Ecos de nossos passos e pigarros voltavam até nós de paredes a dezenas de metros de distância.

E então eu tive a certeza, uma certeza beirando a loucura, de que havia grandes animais na escuridão, e que, famintos, eles nos observavam.

Gradualmente, as luzes foram aumentando,vimos a senhorita Finch. Até hoje me pergunto onde arranjaram aquela roupa.

Seu cabelo preto estava solto. Os óculos haviam desaparecido. O pouquíssimo pano que a cobria aderia perfeitamente ao seu corpo. Ela segurava uma lança, e olhava para nós sem emoção. Então os grandes felinos avançaram para a luz, ao lado dela. Um deles levantou a cabeça e rugiu.

Alguém começou a chorar alto. Eu podia sentir o cheiro acre, animal, de urina.

Os bichos eram do tamanho de tigres, mas sem listras, e sua cor lembrava a areia da praia à noite. Seus olhos pareciam topázios, e seu hálito recendia a carne fresca e sangue.

Olhei para suas mandíbulas. Os dentes de sabre eram, de fato, dentes, não presas: dentes enormes, agigantados, feitos para rasgar, dilacerar, arrancar carne dos ossos.

Os grandes felinos começaram a andar a nossa volta, rodeando-nos lentamente. Nós nos agrupamos, acossados, cada um de nós lembrando visceralmente como era na antigüidade, quando nos escondíamos em cavernas à noite e as feras saíam para caçar — lembrando de quando éramos presas.

Os supostos Smilodons pareciam tensos, alertas. Suas caudas se moviam como chicotes, de um lado para o outro, impacientemente. A senhorita Finch não dizia nada, apenas olhava para os seus animais.

E então a gordinha levantou seu guarda-chuva e o agitou na direção de um dos felinos, dizendo:

— Sai pra lá, bicho feio!

Ele rosnou e se retesou como um gato prestes a pular.

Em vez de sair correndo na penumbra das tochas por baixo da cidade, a gordinha ficou pálida, mas manteve o guarda-chuva em riste, como uma espada.

E então ele pulou, jogando-a no chão com uma das suas enormes patas aveludadas. Ficou em cima dela, triunfante, e rugiu tão profundamente que senti a vibração no meu estômago. A gordinha parecia ter desmaiado, o que, dadas as circunstâncias, poderia ser uma bênção: com sorte, ela não sentiria aqueles dentes afiados como lâminas rasgando sua velha carne como duas adagas.

Olhei ao redor procurando alguma saída, mas o outro tigre estava nos rondando, mantendo-nos arrebanhados dentro do cordão de isolamento, como ovelhas assustadas.

Eu podia ouvir Jonathan balbuciando os mesmos três palavrões sem parar.

— A gente vai morrer, não vai? — ouvi minha voz dizendo.

— Acho que sim — respondeu Jane.

Aí a senhorita Finch transpôs o cordão, pegou, o felino pelo cangote e o puxou de volta. Ele resistiu, e ela bateu em seu focinho com a ponta de sua lança. Ele pôs o rabo entre as pernas e se afastou da mulher caída, encolhido e obediente.

Não parecia haver sangue, e torci para que ela estivesse apenas desmaiada.

No fundo da sala, a luz estava aumentando aos poucos. Era como se a aurora estivesse chegando. Eu podia ver a névoa da selva envolvendo enormes samambaias e trepadeiras, e ouvir, lá longe, o chilrear de grilos e o canto de pássaros estranhos, acordando para saudar o novo dia.

E uma parte de mim — o escritor em mim, o mesmo que notou o reflexo peculiar da luz nos cacos de vidro caídos numa poça de sangue quando saí cambaleando de um acidente de carro, e que observou em detalhes requintados meu jeito próprio de sofrer, ou não sofrer, em momentos de tragédia real, profunda, pessoal -, foi essa parte de mim que pensou: Dá pra conseguir esse efeito com uma máquina de fumaça, algumas plantas e uma fita de áudio tocando. E um iluminador dos bons, é claro.

A senhorita Finch arrumou o seio esquerdo despreocupadamente, depois nos deu as costas e andou em direção à aurora naquela selva subterrânea, ladeada por dois tigres-dentes-de-sabre.

Um pássaro grasnou e crocitou.

E então a luz da aurora deu lugar à escuridão, a névoa se dissipou, e a mulher e os animais desapareceram.

O filho da gordinha a ajudou a se levantar. Ela abriu os olhos. Parecia assustada, mas sã e salva. E, quando tivemos certeza de que estava bem, porque ela pegou o guarda-chuva, se apoiou nele e olhou para nós, ora, então começamos a aplaudir.

Ninguém veio nos buscar. Eu não via nem o Tio Chico, nem a vampira. Assim, sozinhos, todos fomos para

A Décima Sala

Estava tudo preparado para o que seria, obviamente, o gran finale. Havia até cadeiras de plástico para assistirmos ao show. Nós nos sentamos e esperamos, mas ninguém do circo apareceu, e, depois de algum tempo, ficou claro para todos nós que ninguém apareceria.

As pessoas começaram a ir para a sala seguinte. Ouvi uma porta se abrindo e o barulho do trânsito e da chuva.

Olhei para Jane e Jonathan, e nós nos levantamos e saímos. Na última sala, havia uma mesa com lembranças do circo, e ninguém para vender: cartazes, CDs e broches, e uma caixa de guardar dinheiro aberta. A luz de sódio amarelada vinha da rua por uma porta aberta, e o vento soprava os cartazes, balançando vigorosamente suas pontas.

- Vamos esperar por ela? — Um de nós falou, e gostaria de poder dizer que fui eu. Mas os outros balançaram a cabeça, e fomos embora, sob a chuva, que já se reduzia a uma garoa fina, levada pelo vento.

Depois de uma breve caminhada por ruas estreitas, sob a chuva e o vento, chegamos ao carro. Fiquei parado esperando que a porta de trás fosse destravada para mim, e em meio à chuva e ao barulho da cidade pensei ter ouvido um tigre, porque perto dali um rugido grave fez o mundo todo estremecer. Mas talvez tenha sido apenas um trem passando.

 

                               O PROBLEMA de SUSAN

ELA TEM O SONHO de novo naquela noite.

No sonho, ela está de pé, com seus irmãos e sua irmã, à margem do campo de batalha. E verão, e a grama tem um tom peculiarmente viçoso de verde: um verde saudável, como um campo de críquete ou a encosta convidativa dos South downs,[6] para o norte, vindo do litoral. Há cadáveres na grama. Nenhum deles é humano: ela pode ver um centauro, com a garganta cortada, no chão, ali perto. A metade cavalo é de um castanho vivo. Sua pele humana está tostada pelo sol. Ela olha fixamente para o pênis do cavalo, pensando nos centauros se acasalando, e imagina um beijo daquele rosto barbado. Seus olhos correm para a garganta cortada e a poça vermelho-escura ao redor, e ela sente um calafrio.

Moscas voam em volta dos corpos.

As flores silvestres misturam-se à grama. Desabrocharam ontem pela primeira vez em... quanto tempo? Cem anos?Mil? Cem mil? Ela não sabe.

Tudo isto era neve, ela pensa, olhando para o campo de batalha.

Ontem, tudo isto era neve. Sempre inverno e nunca Natal.

Sua irmã a puxa pela mão e aponta. No alto da verde colina, eles estão conversando. O leão é dourado e está com os braços cruzados atrás das costas. A feiticeira está toda vestida de branco. No momento, ela está gritando com o leão, que simplesmente escuta. As crianças não conseguem distinguir nenhuma palavra, nem a raiva fria da feiticeira, nem as respostas graves do leão. O cabelo da mulher é preto e lustroso, seus lábios são vermelhos.

Em seu sonho, ela percebe essas coisas.

Logo eles terminarão sua conversa, o leão e a feiticeira...

Existem coisas que a professora despreza em si mesma. Seu cheiro, por exemplo. Ela exala o mesmo cheiro que sua avó exalava, o cheiro que as velhas exalam, e não consegue se perdoar por isso. Assim, ao acordar, toma banho com água aromatizada e, nua, depois de se enxugar, aplica várias gotas de eau de toilette Chanel debaixo dos braços e no pescoço. Essa é, ela acredita, sua única extravagância.

Hoje ela veste seu tailleur marrom-escuro. Ela o vê como sua roupa de dar entrevistas, em contraste com sua roupa de dar palestras ou sua roupa de trabalhar em casa. Agora ela está aposentada, e usa cada vez mais sua roupa de trabalhar em casa. Ela passa batom.

Depois de tomar o café-da-manhã, ela lava uma garrafa de leite e a coloca ao lado da porta dos fundos, fora da casa. Descobre que o gato do vizinho deixou uma cabeça e uma pata de rato no capacho. O rato parece estar nadando no capacho de fibra de coco, como se a maior parte do seu corpo estivesse submersa. Ela aperta os lábios, depois dobra o Daily Telegraph do dia anterior e pega a cabeça e a pata do rato com o jornal, sem tocá-las com as mãos.

O Daily Telegraph do dia está esperando por ela no corredor, junto com várias cartas, que ela inspeciona, sem abrir nenhuma, apoiando-as em seguida na escrivaninha de seu pequeno escritório. Desde que se aposentou, vai ao escritório apenas para escrever. Ela entra na cozinha e se senta à velha mesa de carvalho. Seus óculos de leitura pendem do seu pescoço, presos a uma corrente de prata, e ela os apóia sobre o nariz e começa pelo obituário.

Ela não espera realmente encontrar ninguém conhecido ali, mas o mundo é pequeno, e ela observa que, talvez com um toque cruel de humor, os responsáveis pela seção publicaram uma fotografia de Peter Burrell-Gunn como ele era no início dos anos 1950, e não como estava da última vez que a professora o vira, numa festa de Natal do Literary Monthly, alguns anos antes, narigudo, trêmulo e enfermo de gota, lembrando nada além da caricatura de uma coruja. Na fotografia, ele está muito bonito. Parece impetuoso e nobre.

Certa vez, ela passou uma noite beijando-o numa casa de veraneio: lembra-se disso muito claramente, mas de jeito nenhum consegue se lembrar em que jardim a casa ficava.

Era, ela imagina, a casa de campo de Charles e Nadia Reid. Ou seja, aconteceu antes que Nadia fugisse com aquele artista escocês e Charles levasse a professora com ele para a Espanha, embora ela certamente ainda não fosse professora na época. Foi muitos anos antes que as pessoas começassem a ir normalmente para a Espanha nas férias — era então um lugar exótico e perigoso. Ele a pediu em casamento, também, e ela não lembra mais ao certo por que recusara, aliás, nem mesmo se recusara. Ele era um jovem agradável, e tirou o que restava da virgindade dela numa praia espanhola, numa noite quente de primavera. Ela estava com 20 anos e se achava tão velha...

A campainha toca, ela larga o jornal, vai até a porta e a abre.

A primeira coisa que pensa é como a garota parece jovem.

A primeira coisa que ela pensa é como a mulher parece velha.

-- Professora Hastings? — ela pergunta. — Sou Greta Campion. Vou escrever o perfil da senhora. Para o Literary Chronicle.

A mulher mais velha a encara por um momento, vulnerável e antiquada, e aí sorri. É um sorriso amigável, e Greta simpatiza com ela.

— Entre, querida — pede a professora. — Vamos ficar na sala de estar.

— Eu trouxe isto — diz Greta. — Eu mesma assei. — Ela tira a forma de bolo da bolsa, torcendo para que o conteúdo não tenha se despedaçado no caminho. — E um bolo de chocolate. Li na internet que a senhora gosta.

A velha senhora balança a cabeça e pisca:

-- Gosto mesmo. Quanta gentileza. Por aqui.

Greta a segue até uma sala confortável, é convidada a se sentar numa poltrona e, com firmeza, a não sair dali. A professora sai apressada e volta trazendo uma bandeja com xícaras e pires, um bule, um prato de biscoitos de chocolate e o bolo de chocolate de Greta.

O chá é servido, e Greta faz um comentário sobre o broche da professora, depois puxa um caderno, uma caneta e uma cópia do último livro da anfitriã, A Busca de Significada na Ficção para Crianças, um exemplar recheado de post-its e tiras de papel. Elas falam dos primeiros capítulos, nos quais é apresentada a hipótese de que antigamente não havia um ramo distinto da ficção direcionado apenas às crianças, até que as idéias vitorianas sobre a pureza e a santidade da infância exigiram que a ficção infantil se tornasse...

— Bem, pura — a professora diz.

— E santificada? — pergunta Greta com um sorriso.

— E santimonial — corrige a velha. — E difícil ler The Water Babies[7] sem torcer o nariz.

E aí ela fala sobre os desenhos que os artistas costumavam fazer das crianças — retratadas como adultos em miniatura, desproporcionais — e conta que as histórias dos irmãos Grimm foram publicadas para adultos, e, quando os irmãos perceberam que os livros eram lidos por crianças, lançaram versões mais adequadas a elas. Ela fala de "A Bela Adormecida no Bosque", de Perrault, e do final original, no qual a mãe do príncipe, uma ogra canibal, tenta acusar a Bela Adormecida de ter comido seus filhos, e o tempo todo Greta balança a cabeça e faz anotações, e, ansiosa, faz de tudo para que a professora perceba que aquilo é uma conversa ou, ao menos, uma entrevista, e não uma palestra.

— De onde — pergunta Greta — a senhora acha que veio o seu interesse por ficção infantil?

A professora balança a cabeça.

— De onde vêm os interesses? De onde veio o seu interesse por livros infantis?

Greta diz:

— Eles sempre me pareceram os livros mais interessantes. Aqueles que realmente importavam. Quando eu era criança, e também depois que cresci. Eu era como Matilda, de Roald Dahl... Sua família lia muito?

- Não muito... é que eles morreram há muito tempo. Foram mortos, eu deveria dizer.

— Sua família toda morreu ao mesmo tempo? Foi na guerra?

— Não, querida. Fomos evacuados na guerra. Foi num acidente de trem, vários anos depois. Eu não estava lá.

— Como nas Crônicas de Nárnia, de Lewis — comenta Greta, e imediatamente se sente uma tola, e uma tola insensível. — Desculpe. Foi terrível eu ter dito isso, não?

— Foi, querida?

Greta sente que está corando e diz:

— É que me lembro tão claramente daquela parte. Em A Ultima Batalha. Quando você fica sabendo que houve um acidente de trem na volta da escola, e todos morreram. Exceto Susan, é claro.

A professora pergunta:

— Mais chá, querida?

Greta percebe que deveria mudar de assunto, mas insiste:

— Sabe, aquilo me dava tanta raiva.

— O quê, querida?

— Susan. Todas as outras crianças vão para o Paraíso, e Susan não pode ir. Ela não é mais amiga de Nárnia só porque gosta demais de batons, collants e convites para festas. Até falei com minha professora de inglês sobre isso, sobre o problema de Susan, quando eu tinha 12 anos.

Ela vai mudar de assunto, falar sobre o papel da ficção infantil na criação do sistema de crenças que adotamos como adultos, mas a professora pergunta:

—Conte-me, querida, o que a sua professora disse?

— Ela disse que, embora Susan tivesse rejeitado o Paraíso na época, ainda teria tempo, enquanto vivesse, para se arrepender.

— Se arrepender do quê7.

— De não acreditar, imagino. E do pecado de Eva.

A professora se serve de uma fatia de bolo. Ela parece perdida em lembranças. E então diz:

— Duvido que tenha havido muitas oportunidades de usar meias de nylon e batom depois que a família dela morreu. Para mim certamente não houve. Um pouco de dinheiro, menos do que se possa imaginar, do espólio dos pais para moradia e alimentação. Sem luxos...

 

— Devia haver alguma outra coisa errada com Susan — comenta a jovem jornalista —, algo que não nos contaram. Senão ela não teria sido punida assim, banida do Céu, do lugar mais alto, mais interno. Quero dizer, todas as pessoas que ela amava foram receber sua recompensa num mundo de magia, de cachoeiras e de alegria. E ela ficou para trás.

— Não sei como foi com a garota dos livros — diz a professora —, mas ficar para trás também significaria que ela estaria disponível para identificar os cadáveres dos irmãos e da irmãzinha. Muitas pessoas morreram naquele acidente. Fui levada a uma escola próxima. Era o primeiro dia de aula, e eles tinham levado os corpos para lá. Meu irmão mais velho estava inteiro. Parecia estar dormindo. Os outros dois estavam um pouco mais desfigurados.

— Imagino que Susan iria ver os corpos e pensar: eles estão de férias agora. As férias escolares perfeitas. Correndo por riachos com animais falantes por toda a eternidade.

— Ela pode ter pensado isso. Eu só me lembro de ter pensado no tamanho do estrago que um trem consegue fazer, quando bate em outro, com as pessoas viajando dentro dele. Imagino que você nunca tenha precisado identificar um cadáver, não é, querida?

— Nunca.

— Isso é uma bênção. Lembro que olhei para eles e pensei: E se eu estiver enganada, e se esse não for ele? Meu irmão mais novo estava decapitado, sabe? Um deus que me pune por gostar de meias de nylon e de festas fazendo-me andar pelo refeitório daquela escola, em meio às moscas, para identificar Ed, bem... Ele está se divertindo um pouco demais, não? Como um gato, tirando até a última porção de divertimento de um rato. Ou pitada de divertimento, acho que se diz assim hoje em dia. Eu realmente não sei.

Sua voz some. E então, depois de algum tempo, ela diz:

— Sinto muito, querida. Acho que não vou conseguir continuar com isto hoje. Talvez, se o seu editor me ligar, possamos marcar outra hora para terminar nossa conversa.

Greta faz que sim e responde que entende, mas sente em seu coração, com uma certeza peculiar, que elas não voltarão a conversar.

 

Naquela noite, a professora sobe as escadas de sua casa, lenta e pesadamente, degrau por degrau. Ela tira lençóis e cobertores do armário e faz uma cama num quarto sem uso nos fundos. O quarto está vazio, a não ser por uma velha penteadeira do tempo da guerra, com espelho e gavetas, uma cama de carvalho, e um guarda-roupa empoeirado feito com madeira de macieira, que contém apenas cabides e uma caixa de papelão. Sobre a penteadeira, ela coloca um vaso com azaléias roxas, viscosas e vulgares.

Ela tira da caixa que está no guarda-roupa uma sacola plástica com quatro velhos álbuns de fotografia. Depois, deita na sua cama dos tempos de criança e fica ali, entre os lençóis, olhando as fotos em preto-e-branco, as fotos em sépia e as poucas e mal acabadas fotos coloridas. Ela olha para seus irmãos, sua irmã e seus pais, e se pergunta como podiam ser tão jovens, como qualquer um podia ser tão jovem.

Logo ela nota que há vários livros infantis ao lado da cama, o que a intriga um pouco, porque ela não se lembra de ter deixado livros sobre o criado-mudo naquele quarto. Nem havia um criado-mudo ali, aliás. No alto da pilha está uma velha brochura — deve ter mais de 40 anos: o preço na capa está em xelins. Ela mostra um leão e duas meninas trançando uma guirlanda de margaridas em sua juba.

Os lábios da professora começam a formigar com o choque. E só então ela entende que está sonhando, porque não tem esses livros em casa. Debaixo da brochura há um exemplar de capa dura, com sobrecapa, de um livro que, no sonho, ela sempre quis ler: Mary Poppins Traz a Aurora, que P. L. Travers nunca escreveu em vida.

Ela pega o volume, abre-o no meio e lê a história que está à sua espera: Jane e Michael seguem Mary Poppins em seu dia de folga, até o Céu, e encontram o menino Jesus, que ainda sente um pouco de medo de Mary Poppins porque ela já foi sua babá, e o Espírito Santo, que reclama que seu lençol nunca mais ficou tão branco depois que Mary Poppins foi embora, e Deus o Pai, que diz:

— Ninguém consegue obrigá-la a fazer nada. Ela não. Ela é Mary Poppins.

— Mas você é Deus — responde Jane. — Você criou tudo e todos. Todos têm que fazer o que você diz.

— Ela não — repete Deus o Pai, coçando sua barba dourada permeada de fios brancos. — Ela, eu não criei. Ela é Mary Poppins.

E a professora se agita no sono, e depois sonha que está lendo seu próprio obituário. Foi uma boa vida, ela pensa enquanto lê, descobrindo a sua história contada em preto-e-branco. Todos estão ali. Até as pessoas que ela esqueceu.

Greta dorme ao lado do namorado, num pequeno apartamento em Camden, e ela também está sonhando.

No sonho, o leão e a feiticeira descem juntos da colina.

Ela está de pé no campo de batalha, segurando a mão da irmã. Ela olha para cima, para o leão dourado e para o âmbar ardente de seus olhos.

— Não é um leão manso, é? — sussurra para a irmã, e as duas tremem de medo. A feiticeira olha para todos eles, depois se dirige ao leão e diz, friamente:

— Estou satisfeita com os termos do nosso acordo. Você fica com as garotas, eu pego os rapazes.

Ela entende o que deve ter acontecido, e foge, mas a fera a alcança antes que ela dê dez passos.

O leão a come inteira, menos sua cabeça. Ele deixa a cabeça e uma de suas mãos, como um gato deixa as partes que não quer de um rato, para mais tarde ou para dar de presente.

Ela gostaria que o leão tivesse comido sua cabeça. Aí não teria que olhar. Pálpebras mortas não podem se fechar, e ela vê, sem piscar, as coisas retorcidas que seus irmãos se tornaram. A grande fera come sua irmã menor mais lentamente e — ela pensa — com mais delícia e prazer do que quando a comeu. Mas, também, sua irmãzinha sempre foi a favorita dele.

A feiticeira tira suas vestes brancas, revelando um corpo não menos branco, com seios altos e pequenos, e mamilos tão escuros que são quase pretos. Ela se deita na relva, abre as pernas. Por baixo de seu corpo, a grama fica coberta de geada.

— Venha — ela diz.

O leão lambe a fenda branca com sua língua rosada, até que ela não agüenta mais e puxa a grande boca em direção à sua, trançando suas pernas alvas naquele pêlo dourado...

Por estarem mortos, os olhos da cabeça sobre a grama não podem se desviar. Por estarem mortos, não deixam de ver tudo.

E quando os dois terminam, suados, lambuzados e saciados, somente então o leão se aproxima da cabeça na grama e a devora com sua bocarra, esmigalhando o crânio com suas mandíbulas poderosas, e é então, somente então, que ela acorda.

Seu coração bate forte. Ela tenta acordar o namorado, mas ele ronca e resmunga, não quer levantar.

E verdade, Greta pensa, irracionalmente, no escuro. Ela cresceu. Ela continuou. Ela não morreu.

Ela imagina a professora, acordando no meio da noite e ouvindo os ruídos que vêm do velho guarda-roupa feito de madeira de macieira: o farfalhar de todos aqueles fantasmas flutuantes — que pode ser confundido com o ir e vir de camundongos ou ratos —, os passos de enormes patas aveludadas e a música distante e perigosa de uma trompa de caça.

Ela sabe que isso é ridículo, mas não se surpreenderá quando ler sobre a morte da professora. A morte vem à noite, ela pensa, antes de voltar a dormir. Como um leão.

A alva feiticeira cavalga nua sobre o dorso dourado do leão. O focinho da fera está manchado de sangue fresco, escarlate. E então sua grande língua rosada o percorre, e ele volta a ficar perfeitamente limpo.

 

                                     GOLIAS

ACHO QUE POSSO AFIRMAR sempre ter suspeitado que o mundo fosse uma farsa barata e tosca, um péssimo disfarce para algo mais profundo, mais esquisito e infinitamente mais estranho, e de alguma forma sempre ter sabido a verdade. Mas acho que isso é apenas o que o mundo sempre foi. E mesmo agora que sei a verdade — como você vai saber, meu amor, se estiver lendo isto — continuo achando o mundo barato e tosco. Um mundo diferente, tosco diferente, mas é o que me parece.

Eles dizem: Esta é a verdade, e eu pergunto: E só isso?E eles respondem: Mais ou menos. Basicamente. Até onde sabemos.

Bem. Foi em 1977, e o mais perto que eu já tinha chegado de um computador foi quando comprei uma calculadora grande e cara, mas perdi o manual de instruções, portanto, não sabia o que ela fazia. Eu somava, subtraía, multiplicava e dividia, e dava graças a Deus por não precisar calcular senos, co-senos, tangentes ou usar funções gráficas, ou sei lá o que mais a engenhoca fazia, porque, tendo sido recentemente rejeitado pela RAF,[8] estava trabalhando como guarda-livros num pequeno depósito que vendia tapetes a preços populares em Edgware, no norte de Londres, perto do fim da Linha Norte. Eu fingia não me incomodar sempre que via um avião no céu, não me importar com a existência de um mundo do qual o meu tamanho me impedia de fazer parte. Eu simplesmente anotava números num grande livro contábil. Estava sentado nos fundos do depósito, à mesa que eu usava como escrivaninha, quando o mundo começou a derreter.

Sério. Era como se as paredes, o teto, os rolos de carpete e o calendário do News of the World[9] com uma moça seminua fossem todos feitos de cera, começassem a escorrer, misturando-se em uma coisa só. Eu podia ver as casas, o céu, as nuvens e a estrada lá fora, e tudo aquilo escorria e gotejava, e por trás só havia escuridão.

Eu estava de pé sobre a pocinha do mundo — uma coisa esquisita, um emaranhado de cores vivas —, que não chegava a cobrir os meus sapatos de couro marrom. (Meus pés são do tamanho das caixas de sapatos. Sou obrigado a mandar fazer botas sob medida. Custam uma fortuna.) A pocinha emitia uma luz estranha.

Numa história de ficção, acho que teria me recusado a acreditar que aquilo estava acontecendo, teria me perguntado se tinha sido drogado ou se estava sonhando. Na realidade, caramba, eu estava lá e aquilo era real, então olhei para cima na escuridão e depois, como nada aconteceu, comecei a andar naquele mundo líquido, gritando para ver se havia mais alguém ali.

Algo piscou na minha frente.

— E aí, cara? — disse uma voz. O sotaque era americano, embora a entonação fosse estranha.

— Olá — respondi.

A imagem continuou a piscar por alguns momentos, e em seguida assumiu os contornos de um homem elegantemente vestido, com óculos grossos.

— Você é bem grandão, sabia? — observou ele

Claro que eu sabia. Na época, eu tinha 19 anos e já media mais de 2,10 metros. Meus dedos parecem bananas. Eu assusto criancinhas. Dificilmente chegarei aos 40 anos: pessoas como eu morrem novas.

— O que está acontecendo? — perguntei. — Você sabe?

— Um ataque inimigo atingiu uma unidade de processamento central — contou ele. — Duzentas mil pessoas, conectadas em paralelo, viraram churrasco. Temos um mirror[10] preparado, é claro, e tudo estará funcionando novamente num instante. Você só está flutuando aqui por alguns nanossegundos, até que Londres volte a processar.

— Você é Deus? — perguntei. Nada do que ele dissera fazia o menor sentido pra mim.

— Sim. Não. Não exatamente — ele explicou. — Pelo menos não como você imagina.

E aí o mundo estremeceu e me vi indo para o trabalho de novo naquela manhã: tomei uma xícara de chá e tive o mais longo e estranho ataque de déjà vu da minha vida: vinte minutos durante os quais eu sabia tudo o que todos iam fazer ou dizer. E aí passou, e o tempo voltou a correr normalmente, um segundo após o outro, como se espera que eles façam.

E as horas passaram, e os dias, e os anos.

Perdi o emprego na loja de tapetes e arrumei outro, como guarda-livros de uma empresa que vendia máquinas de escritório. Casei-me com uma garota chamada Sandra, que conheci na piscina do clube, e tivemos um casal de filhos, os dois de estatura normal, e eu achava que tinha um casamento que poderia sobreviver a qualquer coisa, mas não tinha, e, assim, um dia ela foi embora e levou as crianças. Eu estava com 20 e tantos anos, já era 1986, e arrumei emprego numa lojinha na Tottenham Court Road como vendedor de computadores, e descobri que era bom nisso.

Eu gostava de computadores.

Ficava admirado com tudo o que eles podiam fazer. Era uma época empolgante. Eu me lembro da nossa primeira remessa de ATs, alguns com discos rígidos de 40 megabytes... Bem, eu me impressionava facilmente na época.

Ainda morava em Edgware, ia para o trabalho pela Linha Norte. Estava no metrô uma noite, voltando para casa — o trem acabara de passar por Euston e metade dos passageiros descera —, e, por cima do meu Evening Standard, eu olhava para as outras pessoas no vagão e me perguntava quem elas eram, quem realmente eram, lá no íntimo: a garota negra e magrinha que, ansiosa, escrevia em seu caderno, a velhinha com um chapéu de veludo verde, a moça com o cachorro, o homem barbado de turbante...

O trem parou no túnel.

Bem, foi o que pensei que tivesse acontecido: pensei que o trem tivesse parado. Tudo ficou silencioso.

E aí o trem passou por Euston e metade dos passageiros desceu.

E aí o trem passou por Euston e metade dos passageiros desceu. E eu olhava para os outros passageiros e me perguntava quem eles realmente eram, lá no íntimo, quando o trem parou no túnel e tudo ficou silencioso.

E aí tudo estremeceu tão forte que eu pensei que outro trem tinha batido no nosso.

E aí o trem passou por Euston e metade dos passageiros desceu, e aí o trem parou no túnel, e aí tudo ficou...

(O serviço voltará à normalidade assim que for possível, sussurrou uma voz dentro da minha cabeça.)

E dessa vez, quando o trem diminuiu a velocidade e começou a se aproximar de Euston, eu me perguntei se tinha enlouquecido: senti que estava preso num loop de vídeo. Eu sabia que aquilo estava acontecendo, mas não podia fazer nada para mudar, nada para sair daquele estado.

A garota negra sentada ao meu lado me passou um bilhete: A GENTE MORREU?

Dei de ombros. Não sabia. Parecia uma boa explicação.

Lentamente, tudo foi ficando branco.

Não havia chão sob meus pés, nada acima de mim, nenhum referencial de distância ou de tempo. Eu estava num lugar branco. E não estava só.

O homem usava óculos grossos e um terno que parecia ser um Armani.

— Você de novo? — perguntou. — O grandalhão. Acabei de falar com você.

— Acho que não — eu disse.

— Foi há meia hora. Quando o ataque nos atingiu.

— Na fábrica de tapetes? Foi há anos. Muito tempo atrás.

— Foi há cerca de 37 minutos. Estamos processando em modo acelerado desde então, tentando ajeitar as coisas, enquanto pensamos em soluções potenciais.

— Quem desferiu o ataque? — perguntei. — A União Soviética? Os iranianos?

— Alienígenas — ele respondeu.

— Está brincando?

— Pelo que me consta, não. Já estamos mandando sondas há uns duzentos anos. Parece que algo seguiu uma delas na volta. Ficamos sabendo quando aconteceu o primeiro ataque. Levamos bem uns vinte minutos para preparar e implementar um plano de retaliação. Por isso estamos processando em modo acelerado. A última década pareceu passar voando?

— Sim. Acho que sim.

— Foi por isso. Nós a passamos bem depressa, tentando manter uma realidade comum enquanto co-processávamos.

— E o que vocês vão fazer?

— Contra-atacar. Acabar com eles. Mas vai levar algum tempo: ainda não temos o equipamento. Precisamos construí-lo.

O branco começou a sumir, transformando-se em manchas rosa-escuro e de um vermelho sem brilho. Abri os olhos. Pela primeira vez. Sufoquei. Era informação demais.

Então. O mundo era acre, cheio de tubos entrelaçados, estranho, escuro, um lugar inacreditável. Não fazia sentido. Nada fazia sentido. Era real, e era um pesadelo. Durou trinta segundos, e cada segundo frio pareceu uma pequena eternidade.

E aí o trem passou por Euston e metade dos passageiros desceu...

Comecei a conversar com a garota negra do caderno. Seu nome era Susan. Algumas semanas depois, ela veio morar comigo.

O tempo estremeceu e avançou. Acho que eu estava ficando sensível a ele. Talvez soubesse o que eu estava procurando — sabia que havia algo a se procurar, mesmo sem saber o que era.

Certa noite, cometi o erro de contar a Susan uma parte do que eu acreditava — que nada daquilo era real. Que na verdade estávamos todos pendurados, plugados, conectados, unidades centrais de processamento ou apenas chips baratos de memória em algum computador do tamanho do mundo, vivendo numa alucinação consensual que nos mantém contentes, que nos proporciona a comunicação e o sonhar usando a pequena fração do nosso cérebro que não era utilizada por eles — sejam lá quem eles fossem — para processar números e armazenar informações.

— Somos memória — conclui. — É isso que nós somos. Memória.

— Você não acredita nisso de verdade, não é mesmo? — ela disse, perplexa, — É uma história.

Quando fazíamos amor, ela sempre queria que eu fosse bruto, mas nunca me atrevi. Eu desconhecia a minha força, e sou tão desajeitado. Não queria machucá-la.

Eu nunca quis machucá-la, por isso parei de lhe contar minhas idéias, tentei fazer o mal-estar passar, fingir que fora só uma piada, mas uma piada sem graça...

Não adiantou. Ela se mudou no fim de semana seguinte.

Senti falta dela, profunda e dolorosamente. Mas a vida continua.

Os momentos de déjà vu aconteciam mais freqüentemente. Momentos gaguejavam, soluçavam, falhavam e se repetiam. Às vezes uma manhã inteira se repetia. Uma vez, perdi o dia todo. O tempo parecia estar desmoronando por completo.

E, então, acordei certa manhã e era 1975 de novo, eu tinha 16 anos, e depois de um dia infernal na escola, saí e fui até o escritório de recrutamento da RAF, ao lado do restaurante turco da Chapel Road.

— Você é bem alto — comentou o oficial de recrutamento. De início, achei que fosse americano, mas ele afirmou ser canadense. Usava óculos grossos.

— Sim — eu disse.

— E você quer voar?

— Mais do que tudo. — Eu parecia ter uma vaga lembrança de um mundo no qual eu esquecera que queria ser piloto de avião, algo que eu achava tão estranho quanto esquecer meu próprio nome.

— Bem — explicou o homem de óculos grossos -, vamos precisar ignorar algumas regras. Mas vamos pôr você no ar bem rápido. — E ele estava falando sério.

Os anos seguintes passaram muito depressa. Tive a sensação de viver todos eles em aviões de vários tipos, apertado em cabines minúsculas, em assentos onde eu mal cabia, mexendo em botões pequenos demais para os meus dedos.

Deram-me acesso ao nível de confidencialidade Secreto, depois ao nível Nobre, que deixa o Secreto a ver navios, e aí passei para o nível Gracioso, a que o próprio primeiro-ministro não tem acesso, e àquela altura eu já estava pilotando discos voadores e outras aeronaves que se deslocavam sem nenhum meio de propulsão visível.

Comecei a namorar uma garota chamada Sandra, e nós nos casamos, porque assim teríamos direito à moradia de casal, que era uma bela casa geminada perto de Dartmoor. Nunca tivemos filhos. Avisaram-me que existia a possibilidade de eu ter sido exposto a radiação suficiente para fritar minhas bolas, e parecia sensato não ter filhos nessas circunstâncias: não queríamos criar monstros.

Foi no ano de 1985 que o homem dos óculos grossos entrou na minha casa.

Naquela semana, minha esposa estava na casa da mãe. As coisas tinham ficado meio tensas, e ela saíra de casa para poder "respirar". Sandra disse que eu lhe dava nos nervos. Mas, se eu estava dando nos nervos de alguém, acho que era nos meus mesmo. Parecia que eu sabia o que ia acontecer o tempo todo. Não só eu: parecia que todos sabiam o que ia acontecer. Como se fôssemos sonâmbulos, vivendo a vida pela décima, vigésima ou centésima vez.

Eu queria contar para Sandra, mas sabia que não deveria fazê-lo, que eu a perderia se abrisse a boca. No entanto, parecia que eu ia perdê-la de qualquer maneira. Assim, eu estava na sala de estar, vendo The Tube no Channel Four e tomando chá, e sentia pena de mim mesmo.

O homem dos óculos grossos entrou na minha casa como se fosse a dele e olhou para o seu relógio.

— Muito bem — disse. — É hora de ir. Você vai pilotar algo bem parecido com um PL-47.

Nem quem tinha o nível Gracioso deveria saber do PL-47. Eu pilotara um protótipo algumas vezes. Parecia uma xícara e voava como uma daquelas naves de Guerra nas Estrelas.

— Não seria melhor deixar um bilhete para Sandra? — perguntei.

— Não — ele respondeu secamente. — Agora sente-se no chão e respire profunda e regularmente. Inspire, expire, inspire, expire.

Nunca me ocorreu discutir com ele ou desobedecer-lhe. Sentei no chão e comecei a respirar, lentamente, inspirando e expirando e expirando e inspirando e...

Inspirando.

Expirando.

Inspirando.

Um espasmo. A pior dor que já senti. Eu sufoquei.

Inspirando.

Expirando.

Eu estava gritando, mas podia ouvir minha voz, e não estava gritando. Só conseguia ouvir um gemido fraco, borbulhante.

Inspirando.

Expirando.

Foi como nascer. Nem confortável, nem prazeroso. Foi a respiração que me fez suportar toda a dor, a escuridão e o borbulhar nos pulmões. Abri os olhos. Eu estava deitado num disco de metal de cerca de 2,5 metros de diâmetro. Estava nu, encharcado, e rodeado por um feixe de cabos. Eles se recolhiam, se afastavam de mim, como vermes assustados ou cobras nervosas, de cores vivas.

Olhei para o meu corpo. Nenhum pêlo, nem cicatrizes, nem rugas. Eu me perguntei qual seria a minha verdadeira idade. Dezoito anos? Vinte? Não dava para saber.

Havia uma tela de vidro embutida no chão do disco de metal. Ela piscou e se acendeu. Eu estava olhando para o homem dos óculos grossos.

— Você se lembra? — ele perguntou. — Você deveria ser capaz de acessar a maior parte da sua memória, pelo menos por enquanto.

— Acho que sim — respondi.

— Você vai pilotar um PL-47 — ele disse. — Acabamos de construí-lo. Tivemos que voltar para boa parte dos princípios e avançar novamente. Modificar algumas fábricas para construí-lo. Outro lote deles estará pronto amanhã. No momento, só temos um.

— Então, se esse não funcionar, vocês vão ter mais para eu pilotar.

— Se sobrevivermos até lá. Outro ataque começou há 15 minutos. Arrasou a maior parte da Austrália. Calculamos que ainda seja só uma amostra do verdadeiro ataque.

— O que eles estão jogando? Bombas nucleares?

— Pedras.

— Pedras?

— Arrá. Pedras. Asteróides. Dos grandes. Achamos que amanhã, a menos que nos rendamos, vão jogar a Lua em nós.

— Você está brincando.

— Quem dera. — A tela se apagou.

O disco de metal sobre o qual eu estava começou a navegar através de um emaranhado de cabos e um mundo de pessoas nuas, adormecidas. Ele deslizou sobre angulosas torres de microchips que acabavam em pontas de silicone de brilho suave.

O PL-47 estava à minha espera no alto de uma montanha de metal. Pequenos caranguejos metálicos percorriam sua superfície, polindo e verificando cada rebite e cada porca.

Entrei nele andando com pernas que, por falta de uso, tremiam e cambaleavam, sem agilidade alguma. Sentei no assento do piloto e fiquei feliz ao ver que fora feito sob medida para mim. Servia. Afivelei o cinto. Minhas mãos começaram a realizar a seqüência de aquecimento. Cabos serpentearam sobre meus braços. Senti alguma coisa se plugando na base da minha espinha, e outra coisa entrando e se conectando no alto do meu pescoço.

Minha percepção da nave expandiu-se radicalmente. Eu via em 360 graus, acima e abaixo. Eu era a nave e, ao mesmo tempo, estava sentado na cabine, ativando os códigos de lançamento.

— Boa sorte — disse o homem dos óculos grossos numa pequena tela à minha esquerda.

— Obrigado. Posso fazer uma última pergunta?

— Não vejo por que não.

— Por que eu?

— Bem, a resposta mais objetiva é que você foi projetado para fazer isso. Melhoramos um pouco o design humano básico no seu caso. Você é maior. É muito mais rápido. Sua velocidade de processamento e seu tempo de reação são mais desenvolvidos.

— Não sou mais rápido. Sou grande, mas desajeitado.

— Não na vida real. Você só é assim no mundo.

E eu decolei.

Não cheguei a ver os alienígenas, se é que havia alienígenas, mas vi a nave deles. Parecia um fungo ou uma alga: era toda orgânica, uma coisa enorme, cujo brilho pulsava como um coração, orbitando a Lua. Parecia algo que você espera ver num tronco podre, semi-submerso no mar. Era do tamanho da Tanzânia.

Tentáculos pegajosos, de 300 quilômetros de comprimento, arrastavam asteróides de vários tamanhos. Eles me lembravam um pouco os tentáculos de uma caravela-portuguesa, aquela estranha criatura marinha composta: quatro organismos inseparáveis que sonham ser um só.

Eles começaram a jogar pedras em mim quando eu estava a uns 300 mil quilômetros de distância.

Enquanto meus dedos ativavam o compartimento de mísseis e eu mirava em um núcleo que flutuava dentro da nave, me perguntei o que estava fazendo. Não estava salvando o mundo que conhecia. Aquele mundo era imaginário: uma seqüência de zeros e uns. Se eu estava salvando alguma coisa, era um pesadelo...

Mas se o pesadelo morresse, o sonho morreria também.

Havia uma garota chamada Susan. Eu me lembrava dela de uma vida fantasma, perdida fazia muito tempo. Será que ainda estava viva? (Teria sido algumas horas antes? Ou algumas vidas?) Imaginei que ela estivesse pendurada por cabos, careca, em algum lugar, sem nenhuma lembrança de um gigante miserável e paranóico.

Eu estava tão perto que conseguia ver os detalhes da pele da criatura. As pedras estavam ficando menores e mais precisas. Eu fugia delas em ziguezagues e manobras radicais. Uma parte de mim estava simplesmente admirando a economia daquela coisa: nada de explosivos que custavam uma fortuna, nada de lasers, nada de ogivas nucleares. Apenas a boa e velha energia cinética: pedras enormes.

Se uma daquelas atingisse a nave, eu morreria. Era simples assim.

O único jeito de evitá-las era ser mais rápido do que elas. Então eu continuava fugindo.

O núcleo olhava para mim. Era um tipo de olho. Eu tinha certeza.

Eu estava a menos de cem metros dele quando disparei a carga. Depois fugi.

Ainda pude ver quando a coisa implodiu. Era como fogos de artifício — bonito, de um jeito meio fantasmagórico. E não sobrou nada senão um fraco rastro de brilho e pó...

— Consegui! — gritei. — Consegui! Consegui, caralho!

A tela piscou. Os óculos grossos estavam me olhando. Não havia mais um rosto de verdade por trás deles. Apenas um semblante de preocupação e interesse, como um desenho animado borrado.

— Você conseguiu — ele concordou.

— E agora, como é que eu pouso esta coisa? — perguntei. Houve uma hesitação, e então:

— Não vai pousar. Não projetamos a nave para voltar. Era um recurso do qual não precisávamos. Dispendioso demais em termos de materiais.

— E o que eu faço, então? Acabei de salvar o planeta. E agora vou morrer asfixiado aqui?

Ele fez que sim:

— Basicamente, é isso. Sim.

As luzes começaram a diminuir. Um a um, os controles estavam se apagando. Perdi a percepção em 360 graus da nave. Era apenas eu, amarrado numa cadeira no meio do nada, dentro de uma xícara voadora.

— Quanto tempo me resta?

— Estamos desligando todos os seus sistemas, mas você ainda tem pelo menos umas duas horas. Não vamos evacuar o ar que lhe resta. Isso seria desumano.

— Sabe, no mundo de onde vim, eu ganharia uma medalha.

— Obviamente, estamos gratos.

— E não conseguem pensar numa forma mais palpável de expressar sua gratidão?

— Na verdade, não. Você é uma peça descartável. Uma unidade. Não podemos lamentar sua morte mais do que um vespeiro lamentaria a morte de uma única vespa. Não é sensato nem viável trazer você de volta.

— E não querem todo este poder de fogo voltando para a Terra, onde ele poderia ser usado contra vocês, não é mesmo?

— É você quem está dizendo.

E então a tela se apagou, sem nem um adeus. Não ajuste o seu televisor, pensei. O problema é com a realidade.

Você fica bem consciente da sua respiração quando só restam duas horas de oxigênio. Inspira. Segura. Expira. Segura. Inspira. Segura. Expira. Segura...

Fiquei sentado ali, no meu assento, na penumbra, e esperei e pensei. Aí eu disse:

— Alô? Tem alguém aí?

Uma pausa. Linhas apareceram na tela.

— Sim?

— Eu tenho um pedido. Escutem. Vocês, pessoas, máquinas, sei lá o que são, me devem uma, certo? Afinal, salvei todos vocês.

— Prossiga.

— Ainda tenho umas duas horas, certo?

— Cerca de 57 minutos.

— Vocês podem me conectar de volta à... à realidade? Ao outro mundo? Aquele de onde vim?

— Hm? Não sei. Vou verificar. — A tela se apagou de novo.

Fiquei ali, respirando, inspira e expira, inspira e expira, enquanto esperava. Eu me sentia muito tranqüilo. Se não fosse pelo fato de que me restava menos de uma hora de vida, estaria ótimo.

A tela brilhou. Não havia imagem, nem desenho, nem nada. Só um brilho suave. E uma voz, meio na minha cabeça, meio fora, anunciou:

— De acordo.

Senti uma dor aguda na base do crânio. Depois, escuridão, por vários minutos.

E depois, isto.

Tudo isso foi há 15 anos: em 1984. Voltei a trabalhar com computadores. Tenho uma loja na Tottenham Court Road. E, agora que nos aproximamos do novo milênio, estou escrevendo isto. Desta vez, casei-me com Susan. Levei alguns meses para encontrá-la. Nós temos um filho.

Estou com quase 40 anos. Pessoas como eu não vivem muito mais do que isso, de maneira geral. O coração pára. Quando você ler isto, já estarei morto. Você saberá que estou morto. Terá visto um caixão grande o suficiente para duas pessoas entrando num buraco.

Mas saiba de uma coisa, Susan, meu amor: meu verdadeiro caixão está orbitando a Lua. Parece uma xícara voadora. Eles me devolveram o mundo, e você, por um tempinho. Da última vez que contei a você, ou a alguém como você, a verdade, ou o que eu sabia dela, você me abandonou. E talvez aquela não fosse você, e eu não fosse eu, mas não me atrevo a arriscar de novo. Portanto, escrevo isto, e você vai recebê-lo junto com o resto dos documentos quando eu me for. Adeus.

Eles podem ser uns canalhas sem coração, insensíveis, computadorizados, vampirizando as mentes do que resta da humanidade. Mas não posso deixar de me sentir grato a eles.

Eu vou morrer logo. Mas os últimos vinte minutos foram os melhores anos da minha vida.

 

                 COMO CONVERSAR COM GAROTAS EM FESTAS

— VAMOS — DISSE Vic. — Vai ser legal.

— Não, não vai — discordei, embora soubesse que era uma briga perdida.

— Vai ser demais — insistiu Vic, pela centésima vez. — Garotas! Garotas! Garotas! — Ele sorriu com dentes brancos.

Ambos cursávamos uma escola para rapazes no sul de Londres. Embora fosse mentira dizer que não tínhamos nenhuma experiência com garotas

— Vic parecia ter tido muitas namoradas, e eu beijara três amigas da minha irmã -, acho que seria a mais pura verdade dizer que ambos quase só falávamos e interagíamos com outros rapazes — para nós, as meninas eram quase incompreensíveis. Bem, comigo era assim, pelo menos. É difícil falar por outra pessoa, e não vejo Vic há trinta anos. Não tenho certeza de que saberia o que dizer a ele se o encontrasse agora.

Estávamos andando pelas ruazinhas cheias de fuligem que se entrelaçavam num labirinto atrás da estação East Croydon. Um amigo falara a Vic de uma festa, e ele estava determinado a ir, quer eu gostasse, quer não — e eu não estava gostando. Mas meus pais tinham viajado para uma conferência e eu estava hospedado na casa de Vic, portanto, era obrigado a acompanhá-lo.

— Vai ser como todas as outras vezes — protestei. — Depois de uma hora, você vai sumir pra dar uns amassos na garota mais bonita da festa, e eu vou ficar na cozinha ouvindo a mãe de alguém falar sobre política, poesia ou qualquer outra coisa.

— Você só precisa conversar com elas — argumentou Vic. — Acho que é aquela rua ali no final. — Ele apontou alegremente, balançando a sacola com a garrafa.

— Você não sabe onde é?

— Alison me explicou e eu anotei num pedaço de papel, mas esqueci na mesa do corredor. Mas tudo bem. Eu me viro.

— Como? — A esperança cresceu lentamente dentro de mim.

— A gente anda pela rua — ele disse, como se estivesse falando com uma criança retardada —, e procura a festa. Fácil.

Eu procurei, mas não vi nenhuma festa: só casas estreitas com carros enferrujados ou bicicletas em quintais cimentados, e as vidraças empoeiradas das bancas de jornal, que cheiravam a especiarias estrangeiras e vendiam de tudo, de cartões de aniversário e gibis usados a revistas pornográficas, daquelas que vinham lacradas em plástico. Certa vez, Vic enfiou uma dessas revistas por baixo do suéter, mas o proprietário da banca o pegou na calçada, do lado de fora, e o obrigou a devolver.

Chegamos ao fim da rua e viramos a esquina de uma viela cheia de casas com varandas. Tudo parecia muito silencioso e vazio na noite de verão.

— Pra você é fácil — eu disse. — Elas te curtem. Você não precisa conversar com elas. — Era verdade: um sorrisinho safado do Vic, e ele podia escolher qualquer uma.

— Não. Não é assim. Você só precisa conversar.

Nas vezes em que beijei as amigas da minha irmã, eu não conversara com elas. Elas estavam ali, minha irmã estava fazendo alguma coisa em outro lugar, e foram elas que se aproximaram, então eu as beijei. Não me lembro de ninguém ter dito nada. Eu não sabia o que dizer para uma garota, e falei isso para Vic.

— São só garotas — ele retrucou. — Não são seres de outro planeta.

Ao seguirmos pela curva da rua, minhas esperanças de que a festa não pudesse ser encontrada começaram a desaparecer: um pulsar grave, de música abafada por paredes e portas, vinha de uma casa logo em frente. Eram oito da noite, não muito cedo para quem ainda não tem 16 anos, e a gente não tinha. Não mesmo.

Meus pais gostavam de saber onde eu estava, mas acho que os pais de Vic não se importavam muito. Ele era o mais novo de cinco irmãos, todos homens. Só isso já me parecia mágico — eu só tinha duas irmãs mais novas, e me sentia único e solitário. Sempre quis ter um irmão, desde que me conheço por gente. Quando completei 13 anos, parei de fazer pedidos para estrelas cadentes ou para a primeira estrela da noite, mas, na época que ainda fazia, eu sempre pedia um irmão.

Andamos pelo passeio no jardim, um mosaico de cacos que passava por uma cerca viva e uma roseira solitária e levava até a fachada revestida de pedra. Tocamos a campainha e a porta foi aberta por uma garota. Eu não saberia dizer a idade dela, e isso era uma das coisas que eu começava a detestar nas garotas: no começo, todos éramos meninos e meninas, e o tempo passava na mesma velocidade, e todos tínhamos 5, 7 ou 11 anos juntos. Até que, de repente, todas as garotas correm para o futuro e te deixam para trás, e sabem tudo sobre todas as coisas, menstruam, têm seios, usam maquiagem e só Deus sabe mais o quê — porque eu certamente não sabia. Os livros de biologia não explicavam, de um jeito realista, o que era ser um jovem adulto. E as garotas da nossa idade eram.

Vic e eu não éramos jovens adultos, e eu estava começando a suspeitar que, mesmo quando precisasse fazer a barba todo dia, e não a cada duas semanas, ainda estaria muito atrasado.

A garota disse:

— Oi?

Vic anunciou:

— Somos amigos da Alison.

Tínhamos conhecido Alison — sardenta, muito ruiva, dona de um sorriso maroto — em Hamburgo, num intercâmbio. Os organizadores do intercâmbio haviam mandado algumas garotas conosco, de uma escola para moças da região, para dar uma equilibrada. As garotas, mais ou menos da nossa idade, eram bagunceiras e engraçadas, e tinham namorados mais ou menos adultos, com carros, empregos, motos e — no caso de uma garota de dentes tortos e casaco de pele, que me contou isto tristemente num fim de festa em Hamburgo, na cozinha, é claro — esposa e filhos.

— Ela não está — disse a garota da porta. — Nada da Alison. Sem problemas — respondeu Vic, com um sorriso espontâneo. — Meu nome é Vic. Este é o Enn. — Uma pausa, e aí a garota sorriu para ele. Vic trazia numa sacola de plástico uma garrafa de vinho branco, roubada do armário da cozinha dos pais. — Onde é que eu ponho isto?

Ela abriu passagem e nos deixou entrar: — A cozinha é lá no fundo. Deixe em cima da mesa, junto com as outras garrafas. — Ela tinha cabelo dourado, ondulado, e era muito bonita. O corredor estava escuro, mas eu podia ver que era bonita.

— E qual é mesmo o seu nome? — perguntou Vic.

Ela disse que era Stella, e ele abriu um sorrisão torto e branco e comentou que era o nome mais lindo que já tinha ouvido na vida. Que cara-de-pau! E o pior é que dizia isso como se estivesse falando sério.

Vic foi para os fundos deixar o vinho na cozinha, e eu olhei para a sala de estar, de onde vinha a música. Tinha gente dançando ali. Stella entrou e começou a dançar, deixando-se levar pelo ritmo da música, sozinha, e fiquei observando-a.

Isso foi no início da época do punk. No nosso toca-discos, a gente tocava lhe Adverts, The Jam, The Stranglers, The Clash e Sex Pistols. Nas festas dos outros, você ouvia ELO,[11] lOcc ou até Roxy Music. Um pouco de Bowie, talvez, se tivesse sorte. Durante o intercâmbio na Alemanha, o único LP que agradava a todos era Harvest, de Neil Young, e a canção "Heart of Gold" se tornara o refrão da viagem: I crossed the ocean for a heart of gold...[12]

Eu não consegui reconhecer a música que estava tocando naquela sala. Parecia um pouco um grupo alemão de pop eletrônico chamado Kraftwerk, e lembrava também um LP que eu ganhara no meu último aniversário, de sons estranhos produzidos pelo Laboratório Radiofônico da BBC. Mas a música tinha um ritmo, e as poucas garotas dançavam ali graciosamente, embora eu só tivesse olhos para Stella. Ela brilhava.

Vic passou por mim segurando uma lata de cerveja lager e entrou na sala.

— Tem bebida lá na cozinha disse. Ele foi até Stella e começou a conversar com ela. Eu não conseguia ouvir o que eles diziam por causa da música, mas sabia que não havia espaço para mim naquele papo.

Naquela época eu não gostava de cerveja. Fui ver se havia algo que me apetecesse, e encontrei na mesa da cozinha uma garrafa grande de Coca-Cola. Sem me atrever a dizer nada para as duas garotas que estavam conversando na penumbra, enchi um copo de plástico. Elas estavam animadas e eram completamente adoráveis. As duas tinham pele muito negra, cabelo brilhante, roupas de estrela de cinema, sotaque estrangeiro, e eram muita areia pro meu caminhãozinho.

Saí de lá com a Coca na mão.

A casa era mais comprida do que parecia, maior e mais elaborada do que normalmente são os sobrados, com dois cômodos embaixo e dois em cima. Os quartos eram mal iluminados — duvido que houvesse uma lâmpada de mais de 40 watts lá — e cada quarto em que eu entrava tinha gente: nas minhas lembranças, somente garotas. Não fui para o andar de cima.

Só havia uma garota no jardim de inverno. Seu cabelo era tão claro que chegava a ser branco, era comprido e liso, e ela estava sentada à mesa de tampo de vidro, com as mãos unidas, contemplando o jardim e o crepúsculo. Parecia tristonha.

— Você se incomoda se eu sentar aqui? — perguntei, apontando com o copo. Ela balançou a cabeça, e depois deu de ombros, para indicar que para ela tanto fazia.

Vic passou pela porta do jardim de inverno. Estava conversando com Stella, mas me viu sentado à mesa, envolto em timidez e constrangimento, e abriu e fechou a mão, imitando uma boca. Fale. Certo.

— Você é daqui mesmo? — perguntei.

Ela fez que não. Usava uma blusa prateada decotada, e eu tentei não ficar olhando para o volume dos seus seios. Eu disse:

— Qual o seu nome? O meu é Enn. Ao que ela respondeu:

— Wain de Wain — ou algo parecido. — Sou uma segunda.

 

— Nossa, que nome diferente. Ela me encarou com olhos enormes e cristalinos.

— Ele indica que quem me gerou também se chamava Wain, e que sou obrigada a me reportar a ela. Eu não posso procriar.

— Ah. Bom, também, ainda é meio nova pra isso, né?

Ela separou as mãos, levantou-as sobre a mesa, esticou os dedos.

— Está vendo? — O dedo mindinho de sua mão esquerda era torto, e se bifurcava na ponta, dividindo-se em duas pontas menores. Uma pequena deformidade. — Quando fui concluída, era necessária uma decisão. Eu seria mantida ou eliminada? Tive sorte, a decisão me favoreceu. Agora viajo, enquanto minhas irmãs mais perfeitas ficam em estado de êxtase. Elas foram primeiras. Eu sou uma segunda. Logo terei que retornar para Wain, e lhe contar tudo o que vi. Todas as minhas impressões sobre este lugar de vocês.

— Na verdade, eu não moro em Croydon — expliquei. — Não sou daqui.

— Eu me perguntei se ela era americana. Não estava entendendo nada do que ela dizia.

— Como você diz — ela concordou -, nenhum de nós dois é daqui. — Ela fechou sua mão de seis dedos por baixo da outra, como se quisesse escondê-la.

—Eu esperava que fosse maior, mais limpo e colorido. Mas, mesmo assim, é uma jóia.

Ela bocejou, cobriu a boca com a mão direita, só por um segundo, antes de pousá-la novamente sobre a mesa.

— Começo a ficar cansada destas jornadas, e às vezes desejo que terminem. Numa rua do Rio, no carnaval, eu os vi numa ponte, dourados, altos, com olhos e asas de insetos, e, deleitada, quase corri para saudá-los, antes de perceber que eram apenas pessoas fantasiadas. Eu perguntei a Hola Colt: "Por que eles se esforçam tanto para parecer conosco?". E Hola Colt respondeu: "Porque se detestam, todos em tons de rosa e marrom, e tão pequeninos". E o que eu percebo, até eu, e não sou crescida. Parece um mundo de crianças, ou de elfos. — Então ela sorriu. — Ainda bem que nenhum deles podia ver Hola Colt.

— Hum... quer dançar? — perguntei - Ela balançou a cabeça imediatamente:

— Não é permitido. Eu não posso fazer nada que possa causai danos à propriedade. Eu sou de Wain.

— Quer beber alguma coisa, então?

— Água — ela disse.

Fui para a cozinha, peguei mais Coca para mim e enchi uma caneca com água da torneira. Da cozinha, passando pelo corredor, voltei para o jardim de inverno, que então estava totalmente vazio.

Eu me perguntei se a garota teria ido ao banheiro e se, mais tarde, mudaria de idéia sobre dançar. Voltei para a sala de estar e dei uma olhada. Estava enchendo de gente. Havia mais garotas dançando e vários caras que eu não conhecia, e que pareciam alguns anos mais velhos do que eu e Vic. Os caras e as garotas mantinham distância, mas Vic estava segurando a mão de Stella e dançando, e, quando a música terminou, ele pôs o braço em seus ombros, casualmente, com ar quase de dono, para garantir que ninguém a levaria embora.

Pensei que a garota do jardim de inverno podia estar no andar de cima, porque no térreo ela não estava.

Entrei no living, que ficava do outro lado do corredor, em frente à sala onde as pessoas dançavam, e me sentei no sofá. Já havia uma garota sentada ali. Ela tinha cabelo preto, curtinho, espetado, e um jeito nervoso.

Fale, pensei.

— Hum, esta caneca d'água está sobrando — disse. — Você quer?

Ela fez que sim, esticou a mão e pegou a caneca, com extremo cuidado, como se não estivesse acostumada a pegar coisas, como se não pudesse confiar nem em sua visão, nem em suas mãos.

— Adoro ser turista — ela comentou, e sorriu com hesitação. Tinha os dentes do meio separados, e tomava a água da torneira como se fosse uma adulta degustando um vinho fino. — Na última viagem, fomos para sol, e nadamos nos lagos de fogo com as baleias. Ouvimos suas histórias e nos arrepiamos no frio dos lugares externos, depois nadamos para o fundo, onde o calor brotava e nos confortava. Eu queria voltar lá, queria mesmo. Havia tanta coisa que eu não vira. Em vez disso, viemos para mundo. Você gosta?

— Do quê?

Ela fez um gesto vago mostrando a sala — o sofá, as poltronas, as cortinas, a lareira a gás apagada.

— É, acho legal.

— Eu disse a eles que não queria visitar mundo — ela contou. — Meu progenitor-professor não se impressionou. "Você aprenderá muita coisa", ele disse. Eu insisti: "Eu aprenderia mais voltando para sol. Ou indo para as profundezas. Jessa tecia teias entre galáxias. Quero fazer isso." Mas não houve como convencê-lo, e eu vim para mundo. Progenitor-professor me absorveu, e eu apareci aqui, incorporada num monte de carne em decomposição grudado numa estrutura de cálcio. Ao encarnar, senti coisas dentro de mim, remexendo, bombeando e esguichando. Foi minha primeira experiência empurrando ar para fora da boca, fazendo as cordas vocais vibrarem, e eu as usei para dizer a progenitor-professor que queria morrer, e ele reconheceu que essa era a inevitável estratégia para sair de mundo.

Ela usava uma pulseira de contas pretas, e mexia nelas enquanto falava.

— Mas conhecimento há, sim, na carne — continuou a garota —, e estou resolvida a aprender com ela.

Estávamos sentados perto do meio do sofá. Decidi que devia pôr o braço em seus ombros, mas como quem não quer nada. Eu ia estender o braço pelo encosto do sofá e depois abaixá-lo devagar, quase imperceptivelmente, até tocá-la. Ela disse:

— Essa coisa do líquido nos olhos, quando o mundo fica embaçado. Ninguém me contou, e eu ainda não entendo. Eu toquei as dobras do Sussurro, pulsei e voei com os cisnes taquiônicos, e mesmo assim não entendo.

Ela não era a garota mais bonita da festa, mas não era feia, e, afinal, era uma garota. Deixei meu braço escorregar para baixo, cuidadosamente, até encostar nos seus ombros, e ela não falou nada.

Aí Vic me chamou da porta. Segurava Stella pela cintura, com ar protetor, acenando para mim. Tentei fazê-lo entender, balançando a cabeça, que eu estava me dando bem, mas ele repetiu meu nome. Contrariado, levantei do sofá e fui até a porta.

— Que é?

— Er. Olha. A festa — começou Vic, em tom de desculpas — não é a festa que eu pensava. Conversando com Stella acabei me dando conta disso. Bem, ela meio que me explicou. Estamos na festa errada.

— Meu Deus! Deu algum problema? Precisamos ir embora? Stella fez que não. Ele se curvou e beijou sua boca suavemente.

— Você gostou que eu vim, não gostou, amor?

— Você sabe que sim — ela disse.

Ele olhou para mim de novo e abriu seu sorriso branco: maroto, adorável, meio Artful Dodger,[13] meio Príncipe Encantado da malandragem.

— Não se preocupe. Elas são turistas também. É um intercâmbio, né? ('orno a vez que a gente foi pra Alemanha.

— É?

— Enn. Você tem que falar com elas. Isso significa que precisa escutar o que elas dizem também. Entendeu?

— Eu falei. Já conversei com duas.

— E tá dando certo?

— Estava, até você me chamar.

— Foi mal. Olha, eu só quis te deixar a par. Certo?

Ele deu um tapinha no meu braço e foi embora com Stella, escada acima.

Entenda, todas as garotas daquela festa, na penumbra, eram adoráveis, tinham rostos perfeitos. Mas, mais importante do que isso, tinham aquela estranheza de proporções, de esquisitice ou de humanidade que faz uma garota bonita ser mais do que um manequim de vitrine. Stella era a mais linda de todas, mas ela, é claro, era do Vic, e eles estavam indo para o andar de cima — e era assim que as coisas sempre seriam.

Várias pessoas tinham se sentado no sofá, falando com a garota dos dentes espaçados. Alguém contou uma piada e todos riram. Eu teria que me acotovelar para sentar ao lado dela de novo, e ela não parecia estar me esperando, nem se importar que eu tivesse ido embora, por isso fui para o corredor. Os convidados continuavam dançando, e me perguntei de onde viria aquela música. Eu não via nenhum toca-discos, nem alto-falantes.

Do corredor, voltei para a cozinha.

Cozinhas são legais em festas. Você nunca precisa de um pretexto para estar lá, e a vantagem era que nessa festa eu não estava vendo nem sinal da mãe de alguém. Inspecionei as diversas garrafas e latas sobre a mesa e derramei um dedo de Pernod no fundo do meu copo descartável, enchendo-o depois de Coca. Coloquei dois cubos de gelo e tomei um gole, curtindo o gosto adocicado da bebida.

— O que você está bebendo? — Uma voz feminina.

— É Pernod — respondi. — Tem gosto de bala de anis, só que é alcoólico. — Eu não contei que só tinha experimentado porque ouvira alguém da platéia pedir Pernod num show do Velvet Underground.

— Posso tomar também?

Servi mais Pernod, completei com Coca e passei para ela. Seu cabelo era ruivo acobreado, em cachos que envolviam sua cabeça. Não é um penteado muito comum hoje em dia, mas na época era.

— Qual é o seu nome? — perguntei.

— Triolé.

— Nome bonito — eu disse, mesmo duvidando daquilo. Mas ela era bonita.

— É um tipo de poesia — explicou a garota, com orgulho. — Como eu.

— Você é um poema?

Ela sorriu e desviou o olhar, talvez com vergonha. Seu perfil era quase reto — um nariz grego perfeito que descia da testa em linha reta. Encenamos Antígona no teatro da escola no ano anterior. Eu interpretei o mensageiro que leva a Creonte a notícia da morte de Antígona. Usamos meias-máscaras que pareciam o rosto dela. Pensei naquela peça, olhando para ela na cozinha, e também nas mulheres desenhadas por Barry Smith nos gibis do Conan. Cinco anos depois, eu teria pensado nos pré-rafaelitas, em Jane Morris e Lizzie Siddall, mas eu só tinha 15 anos.

— Você é um poema? — repeti. Ela mordeu o lábio inferior:

— Se você quiser. Sou um poema, ou um padrão, ou uma raça cujo mundo foi tragado pelo mar.

— Não é difícil ser três coisas ao mesmo tempo?

— Qual o seu nome? -Enn.

— Então você é Enn — ela disse. — E você é do sexo masculino. E é um bípede. É difícil ser três coisas ao mesmo tempo?

— Mas não são coisas diferentes. Quero dizer, não são contraditórias. — Era uma palavra que eu havia lido muitas vezes, mas nunca dito em voz alta antes daquela noite, e acentuei a sílaba errada. Contradítorias.

Lia usava um vestido leve, feito de um tecido branco, sedoso. Seus olhos eram de um verde-claro que hoje me faria pensar em lentes de contato coloridas, mas isso foi há trinta anos, as coisas eram diferentes naquela época. Lembro que pensei em Vic e Stella lá em cima. Aquela altura, eu tinha certeza de que eles estavam num dos quartos, e invejei Vic com uma intensidade quase dolorosa.

No entanto, eu estava conversando com aquela garota, ainda que só falando coisas sem pé nem cabeça, ainda que o nome dela não fosse mesmo Triolé (minha geração não tinha nomes hippies: todas as Luanas, Mels, Sois e Ceumares tinham apenas 6, 7 ou 8 anos, na época). Ela disse:

— Sabíamos que o fim estava próximo, por isso pusemos tudo num poema, para contar ao universo quem éramos, por que estávamos aqui e o que dizíamos, fazíamos, pensávamos, sonhávamos, desejávamos. Embrulhamos nossos sonhos em palavras e moldamos as palavras para que vivessem para sempre, inesquecíveis. Depois, enviamos o poema como um padrão de fluxo, para aguardar no coração de uma estrela, emitindo sua mensagem em pulsos, erupções e chiados por todo o espectro eletromagnético, até que, em mundos a mil sistemas solares dali, o padrão fosse decodificado e lido, e se tornasse um poema de novo.

— E aí o que aconteceu?

Ela me olhou com seus olhos verdes, e foi como se ela estivesse me olhando através de sua meia-máscara de Antígona, mas como se aqueles olhos verde-claros fossem apenas uma parte diferente, mais profunda, da máscara.

— É impossível ouvir um poema sem que ele mude você — observou ela. — Eles o ouviram, e o poema os colonizou, tomou posse deles, e os habitou. Os ritmos do poema passaram a fazer parte do modo de pensar deles. Suas imagens transformaram para sempre as metáforas deles. Seus versos, seu modo de ver, suas aspirações se tornaram a vida deles. Depois de uma geração, as crianças já nasciam sabendo o poema, e logo, porque essas coisas são assim, já não nasciam mais crianças. Não havia necessidade delas, não mais. Só havia um poema feito carne que andava e proliferava por toda a vastidão do conhecido.

Eu me aproximei até sentir minha perna encostando na dela. Ela pareceu gostar: delicadamente, pôs a mão no meu braço, e um sorriso se abriu no meu rosto.

— Há lugares onde somos bem-vindos — continuou Triolé -, e outros onde somos vistos como ervas daninhas ou como doenças, algo a ser imediatamente posto em quarentena e eliminado. Mas onde termina o contágio e começa a arte?

— Eu não sei — falei, ainda sorrindo. Eu podia ouvir a estranha música pulsando na sala de estar, se espalhando e ressoando pela casa toda.

Então ela se inclinou na minha direção e — acho que foi um beijo... acho. Bem, ela pressionou seus lábios contra os meus, e depois, satisfeita, recuou, como se tivesse me marcado como sua propriedade.

— Você quer ouvir? — perguntou, e fiz que sim, sem saber direito o que ela estava oferecendo, mas convencido de que precisava de qualquer coisa que ela estivesse disposta a me dar.

Ela começou a sussurrar algo no meu ouvido. Isso é o mais estranho na poesia — dá pra saber que é poesia, mesmo quando é numa língua que a gente não conhece. Você pode ouvir Homero sem entender uma palavra, e mesmo assim sabe que é poesia. Já ouvi poesia polonesa, poesia inuíte, e eu sabia o que era sem saber. Seu sussurro era assim. Eu não entendia a língua, mas suas palavras me atravessavam, perfeitas, e em minha mente eu via torres de vidro e diamante, pessoas com olhos do verde mais pálido, e, por baixo de cada sílaba, sentia o avançar sem trégua do oceano invencível.

Talvez eu a tenha beijado de verdade. Não me lembro. Só sei que eu queria.

E aí Vic me chacoalhou com violência.

— Vamos! — ele gritava. — Depressa. Vamos!

Na minha cabeça, comecei a voltar de mil quilômetros de distância.

— Idiota. Vamos! Anda logo! — esbravejou ele, me xingando. Havia fúria em sua voz.

Pela primeira vez naquela noite, reconheci uma das músicas tocadas na sala de estar. Um triste uivo de saxofone seguido por uma cascata de acordes líquidos, uma voz de homem cantando versos recortados sobre os filhos da era silenciosa. Eu queria ficar e ouvir a canção.

Ela disse:

— Eu não terminei. Ainda tem mais de mim.

— Desculpa, amor — interveio Vic, mas não estava mais sorrindo. — Haverá outra ocasião. — Ele agarrou meu cotovelo com força, me obrigando a sair da sala. Não tentei resistir. Eu sabia, por experiência, que Vic podia me encher de porrada se quisesse. Não fazia isso a não ser que estivesse alterado ou furioso, e estava furioso ali.

Seguimos para o hall de entrada. Enquanto Vic abria a porta, olhei para trás uma última vez, sobre o ombro, esperando ver Triolé na porta da cozinha, mas ela não estava lá. Vi Stella, porém, no alto da escada. Estava olhando para Vic, e vi o rosto dela.

Tudo isso aconteceu há trinta anos. Esqueci muita coisa, e vou esquecer mais, e no fim vou esquecer tudo. No entanto, se eu tenho alguma certeza de vida após a morte, ela está envolta não em salmos ou cantos religiosos, mas apenas nisto: sei que jamais vou esquecer aquele momento, ou a expressão no rosto de Stella quando ela viu Vic se afastando às pressas. Até depois de morto vou me lembrar.

Suas roupas estavam amarrotadas, sua maquiagem estava borrada, e seus olhos...

Nunca deixe um universo furioso. Aposto que um universo furioso olharia pra você com aqueles olhos.

Nós corremos, então, eu e Vic, para longe da festa, das turistas e do crepúsculo, corremos como se uma tempestade elétrica estivesse nos perseguindo, num ímpeto louco e desesperado por aquela confusão de ruas, vencendo o labirinto, e não olhamos para trás, nem paramos enquanto podíamos respirar. E então paramos, ofegantes, incapazes de correr mais. Sentimos dor. Eu me apoiei no muro, e Vic vomitou muito, por muito tempo, na sarjeta.

Ele limpou a boca.

— Ela não era uma... — Ele parou.

Balançou a cabeça. E então ele continuou:

— Sabe... acho que tem uma coisa. Sabe quando você vai até onde ousa ir? E, se você fosse mais longe, não seria mais você? Você seria a pessoa que fez aquilo? Lugares aonde não se pode ir... Acho que isso aconteceu comigo hoje.

Achei que sabia o que ele queria dizer:

— Transar com ela, é isso?

Ele esfregou os nós dos dedos com força na minha têmpora, girando-os com violência. Eu me perguntei se ia ter que brigar com ele — e apanhar —, mas, depois de um momento, ele abaixou a mão e se afastou de mim, engolindo seco, silenciosamente.

Olhei-o com curiosidade e percebi que ele chorava: seu rosto estava vermelho, e lágrimas escorriam dos olhos. Vic estava soluçando na rua, descontroladamente, como um menininho. Era de cortar o coração. Então ele se afastou de mim, com os ombros tremendo, e saiu correndo pela rua para que eu não visse seu rosto. Eu me perguntei o que acontecera no andar de cima que o deixara daquele jeito, que o assustara tanto, e não consegui nem imaginar.

As lâmpadas da iluminação pública foram se acendendo, uma a uma. Vic caminhava na minha frente, trôpego, enquanto eu o seguia pela rua, no crepúsculo, marcando com os passos a métrica de um poema que, por mais que tentasse, não conseguia lembrar e jamais seria capaz de repetir.

 

                                    O PÁSSARO-DO-SOL

O CLUBE EPICURIANO, NAQUELA época, era uma turma divertida e barulhenta. Eles sabiam mesmo farrear. Eram cinco:

Havia Augustus DuasPenas McCoy, que tinha o tamanho de três homens, comia por quatro e bebia por cinco. Seu bisavô fundara o Clube Epicuriano com a renda de uma tontina1[14] da qual se esforçara muito, à maneira tradicional, para ser o beneficiário.

Havia o professor Mandalay, baixinho, nervoso e cinza como um fantasma (e talvez fosse um fantasma — coisas muito estranhas já aconteceram), que só bebia água e comia porções minúsculas em pratos que pareciam travessas. Tudo bem, para isso não é preciso ter interesse em gastronomia, e Mandalay sempre chegava ao âmago de cada prato colocado à sua frente.

Havia Virgínia Boote, a crítica de restaurantes, que já fora dona de grande beleza, mas agora era uma ruína solene e magnífica, e se deliciava em sua derrocada.

Havia Jackie Newhouse, descendente (de maneira duvidosa) do grande amante, comilão, violinista e duelista Giacomo Casanova. Assim como seu famoso ancestral, Jackie Newhouse já tinha partido um sem-número de corações e devorado um sem-número de grandes pratos.

E havia Zebediah T. Crawcrustle, o único epicuriano que não tinha um tostão: ele vinha da rua para as reuniões do grupo, com a barba por fazer e uma garrafa de bebida barata num saco de papel pardo, sem chapéu, sem, sobretudo e, muitas vezes, quase sem camisa, mas comia com mais apetite do que todos os outros.

Augustus DuasPenas McCoy estava falando...

— Já comemos tudo o que pode ser comido — disse Augustus DuasPenas McCoy, e havia tristeza e um leve sofrimento em sua voz. — Comemos abutre, toupeira e morcego frugívoro.

Mandalay consultou seu caderno:

— O abutre tinha gosto de faisão podre. A toupeira tinha gosto de caramujo da carniça. O morcego frugívoro, surpreendentemente, lembrava porquinho-da-índia doce.

— Comemos kakapo,[15] aye-aye,[16] e panda gigante...

— Oh, aquela bisteca grelhada de panda — suspirou Virgínia Boote, e sua boca se encheu d'água com a lembrança.

— Comemos várias espécies há muito extintas — observou Augustus DuasPenas McCoy. — Comemos mamute e preguiça gigante da Patagônia congelados.

— Se tivéssemos conseguido o mamute um pouco antes — queixou-se Jackie Newhouse. — Mas deu para entender por que os elefantes peludos sumiram tão rápido depois que as pessoas os provaram. Sou um homem de gosto refinado, mas, depois da primeira mordida, só conseguia pensar no molho barbecue de Kansas City e no sabor que a costela daquele bicho teria se estivesse fresca.

— Não há problema nenhum em ficar no gelo por um ou dois milênios — comentou Zebediah T. Crawcrustle. Ele sorriu. Seus dentes podiam ser desalinhados, mas eram afiados e fortes. — Mesmo assim, se você quer sabor de verdade, precisa degustar o bom e velho mastodonte. As pessoas comem mamute apenas porque não conseguem um mastodonte.

— Já comemos polvo, polvo gigante e polvo descomunal — continuou Augustus DuasPenas McCoy. — Comemos lemingues e tigres da Tasmânia. Comemos ave-do-paraíso australiana, sombria[17] e pavão. Comemos o peixe golfinho (que não é o golfinho mamífero), a tartaruga marinha gigante e o rinoceronte de Sumatra. Já comemos tudo o que há para comer.

— Bobagem. Há muitas centenas de coisas que ainda não provamos — retrucou o professor Mandalay. — Milhares, talvez. Pense em todas as espécies de besouros que existem e ainda não comemos.

— Oh, Mandy — suspirou Virgínia Boote. — Quem já provou um besouro, já provou todos. E todos nós degustamos várias centenas de espécies. O rola-bosta, pelo menos, tinha um gosto bem marcante.

— Não — interveio Jackie Newhouse -, as bolinhas de bosta é que tinham. O besouro mesmo era particularmente sem graça. Mas aceito o seu argumento. Nós escalamos os píncaros da gastronomia, mergulhamos nos abismos da degustação. Tornamo-nos cosmonautas, explorando mundos jamais sonhados de sabor e comilança.

— E verdade, é verdade — concordou Augustus DuasPenas McCoy. — As reuniões mensais dos epicurianos vêm acontecendo há mais de 150 anos, desde a época do meu pai, do meu avô e do meu bisavô, e agora temo que seja necessário parar, porque não resta mais nada que nós, ou nossos antecessores no clube, já não tenhamos comido.

— Eu queria ter vivido nos anos 1920 — lamentou-se Virginia Boote -, quando a lei permitia que Homem constasse do cardápio.

— Mas só depois de ter sido eletrocutado — observou Zebediah T. Crawcrustle. — Já estava meio frito, chamuscado e crocante. Não deixou em nenhum de nós uma predileção especial pelo leitão bípede, a não ser em um sujeito que já tinha essa inclinação, e, de qualquer forma, nós acabamos com ele em poucos minutos.

— Oh, Crusty, por que você sempre finge que estava lá? — perguntou Virginia Boote, bocejando. — Qualquer um pode ver que você não é tão velho assim. Não deve ter mais de 60 anos, mesmo levando em conta os efeitos do tempo e da vida ao relento.

- Os efeitos são profundos, sim — respondeu Zebediah T. Crawcrustle -, mas não tão profundos quanto você imagina. De qualquer forma, existe uma infinidade de coisas que ainda não comemos.

— Cite uma — pediu Mandalay, com seu lápis pronto sobre o caderno.

— Bem, há o Pássaro-do-Sol da Cidade do Sol — revelou Zebediah T. Crawcrustle. E ele abriu seu sorriso desalinhado, com seus dentes irregulares, porém afiados.

— Nunca ouvi falar — comentou Jackie Newhouse. — Você que inventou.

— Eu já ouvi falar — intercedeu o professor Mandalay -, mas em outro contexto. Além disso, é um ser imaginário.

— Unicórnios são imaginários — observou Virginia Boote —, mas, meu Deus, aquele lombo de unicórnio ao molho tártaro estava delicioso. Lembrava um pouco cavalo, um pouco bode, e ficou ainda melhor com alcaparras e ovos crus de gralha.

— Há uma menção ao Pássaro-do-Sol numa das minutas do Clube Epicuriano de muitos anos atrás — disse Augustus DuasPenas McCoy. — Mas não lembro mais o que dizia.

— Falava do sabor dele? — perguntou Virginia.

— Acredito que não — respondeu Augustus, franzindo o cenho. — Eu precisaria verificar nos tomos encadernados, é claro.

— Isso está nos volumes chamuscados — lembrou Zebediah T. Crawcrustle. — Nos tomos encadernados você não vai encontrar nada sobre ele.

Augustus DuasPenas McCoy coçou a cabeça. Ele tinha realmente duas penas, que atravessavam o coque de cabelo preto com fios prateados em sua nuca, e as penas já tinham sido douradas, embora agora parecessem meio normais, amarelas e esgarçadas. Ele as recebera quando criança.

— Besouros — contou o professor Mandalay. — Uma vez, calculei que, se um homem como eu resolvesse comer seis espécies diferentes de besouro por dia, levaria mais de vinte anos para provar todas as espécies já identificadas. E, nesses vinte anos, novas espécies de besouro teriam sido descobertas em número suficiente para mantê-lo comendo por mais cinco anos. E, nesses cinco anos, novas espécies seriam descobertas para mantê-lo comendo por mais dois anos e meio, e assim por diante. E um paradoxo de inesgotabilidade. Eu o chamo de Besouro de Mandalay. Mas seria preciso gostar muito de besouros — acrescentou -, senão seria péssimo.

— Não vejo nenhum problema em comer besouros, se forem do tipo certo — comentou Zebediah T. Crawcrustle. — No momento, estou com vontade de comer vaga-lumes. O brilho de um vaga-lume dá um frisson que pode ser o que estou precisando.

— Embora o vaga-lume, ou pirilampo (Photinus pyralis), seja mais um besouro do que uma larva luminosa — observou Mandalay -, ele não é de forma alguma comestível.

— Pode não ser comestível — retrucou Crawcrustle. — Mas deixa você no ponto pra outras coisas que são. Acho que vou assar alguns. Vaga-lumes com pimenta de Havana. Delícia.

Virgínia Boote era uma mulher fundamentalmente prática. Ela disse:

— Suponham que quiséssemos comer o Pássaro-do-Sol da Cidade do Sol. Por onde deveríamos começar a procurá-lo?

Zebediah T. Crawcrustle coçou a barba de sete dias que estava despontando em seu queixo (não crescia mais do que aquilo — a barba de sete dias nunca cresce).

— Se fosse eu, iria pra Cidade do Sol numa tarde de verão, procuraria um lugar confortável pra sentar, o café de Mustafá Stroheim, por exemplo, e esperaria que o Pássaro-do-Sol aparecesse. Aí eu o capturaria do jeito tradicional e o assaria do jeito tradicional também.

— E qual seria o jeito tradicional de capturá-lo? — perguntou Jackie Newhouse.

— Ora, o mesmo que seu famoso ancestral usava para caçar gralhas e tetrazes selvagens — respondeu Crawcrustle.

— Não há nada nas memórias de Casanova sobre caçar gralhas — retrucou Jackie Newhouse.

— Seu ancestral era um homem ocupado — observou Crawcrustle. — Era impossível que ele anotasse tudo. Mas caçava muitas gralhas mesmo assim.

— Com milho seco e passas de mirtilo embebidas em uísque — lembrou Augustus DuasPenas McCoy. — Minha família sempre fez assim.

— E Casanova também — disse Crawcrustle —, só que ele usava grãos de cevada misturados com uva passa, e embebia as passas em conhaque. Ele mesmo me ensinou.

Jackie Newhouse ignorou essa declaração. Era fácil ignorar muito do que Zebediah T. Crawcrustle dizia. Jackie Newhouse perguntou:

— E onde fica o café de Mustafá Strolicim na Cidade do Sol?

Ora, onde sempre ficou, no terceiro beco depois do velho mercado no bairro da Cidade do Sol, um pouco antes de chegar à velha vala de drenagem que já foi um canal de irrigação. E, se você chegar à loja de tapetes de Khayam Caolho, quer dizer que já passou do lugar — começou Crawcrustle. — Mas, pela expressão irritada no rosto de todos, vejo que vocês esperavam uma descrição menos detalhada e prolixa. Muito bem. Fica na Cidade do Sol, e a Cidade do Sol fica no Cairo, no Egito, onde sempre ficou, ou quase sempre.

— E quem pagará uma expedição à Cidade do Sol? — indagou Augustus DuasPenas McCoy. — E quem participará dessa expedição? Pergunto isso, embora eu já saiba a resposta e não goste dela.

— Ora, você vai pagar, Augustus, e nós todos iremos — respondeu Zebediah T. Crawcrustle. — Pode descontar das nossas mensalidades do Clube Epicuriano. E eu levarei meu avental de cozinheiro e meus utensílios de cozinha.

Augustus sabia que Crawcrustle não pagava sua mensalidade havia tempo demais, mas o Clube Epicuriano o perdoava. Crawcrustle era epicuriano desde os tempos do pai de Augustus. Ele simplesmente perguntou:

— E quando partiremos?

Crawcrustle o encarou com um olhar tresloucado e balançou a cabeça, desapontado:

— Ora, Augustus. Estamos indo para a Cidade do Sol, capturar o Pássaro-do-Sol. Quando deveríamos partir?

— Domingo! — cantarolou Virgínia Boote. — Queridos, vamos partir num domingo![18]

- Ainda há esperança para você, minha jovem — comentou Zebediah T. Crawcrustle. — De fato, partiremos num domingo. Daqui a três domingos. E iremos para o Egito. Passaremos vários dias caçando o fugidio Pássaro-do-Sol da Cidade do Sol, e, no fim, cuidaremos dele da maneira tradicional.

O professor Mandalay deu uma piscadela de constrangimento:

Mas eu dou aula na segunda. Toda segunda dou aula de mitologia, toda terça, de sapateado, e, toda quarta, de marcenaria.

— Arrume um substituto para dar a sua aula, Mandalay Ó Maudalay. Segunda você estará no encalço do Pássaro-do-Sol — disse Zebediali T. Crawcrustle. — E quantos outros professores podem vivenciar isso?

Eles foram, um por um, ver Crawcrustle, para discutir a jornada que os esperava, e para expor suas dúvidas.

Zebediah T. Crawcrustle era um homem sem moradia fixa. No entanto, se você resolvesse procurá-lo, havia lugares onde ele podia ser encontrado. De madrugada, ele dormia no terminal de ônibus, onde os bancos eram confortáveis e os guardas de trânsito geralmente o deixavam em paz. No calor das tardes, ficava no parque, perto de estátuas de generais abandonadas, na companhia de bêbados de todas as espécies, compartilhando o conteúdo de suas garrafas e oferecendo a sua opinião, que era, como a de todo epicuriano, sempre considerada e sempre respeitada, ainda que nem sempre bem-vinda.

Augustus DuasPenas McCoy procurou Crawcrustle no parque. Ele estava com sua filha, Hollyberry SemPenas McCoy. Ela era pequena, mas sua mente era afiada como o dente de um tubarão.

— Sabe — começou Augustus -, há algo de muito familiar nisto.

— Nisto o quê? — perguntou Zebediah.

— Tudo isto. A expedição ao Egito. O Pássaro-do-Sol. Parecia que eu já tinha ouvido tudo isso antes.

Crawcrustle apenas fez que sim com a cabeça. Ele estava mastigando algo que tirava de um saquinho de papel pardo. Augustus disse:

— Consultei os anais encadernados do Clube Epicuriano. E lá estava, no índice, o que deduzi ser a referência ao Pássaro-do-Sol, de quarenta anos atrás, mas não pude ler nada mais.

— Por que não? — indagou Zebediah T. Crawcrustle, engolindo ruidosamente.

Augustus DuasPenas McCoy suspirou:

— Encontrei a página que queríamos nos anais, mas estava queimada, e depois houve alguma grande confusão na administração do Clube.

— Você tá tirando vaga-lumes desse saquinho e comendo — disse Hollyberry SemPenas McCoy. — Eu vi você comendo.

— Estou mesmo, mocinha — admitiu Zebediah T. Crawcrustle.

— Você se lembra da época da grande confusão, Crawcrustle? — perguntou Augustus.

— De fato, me lembro — respondeu Crawcrustle. — E me lembro de você. Tinha a idade da jovem Hollyberry. Mas sempre haverá confusão, Augustus, e depois ela passa. É como o nascer e o pôr-do-sol.

Jackie Newhouse e o professor Mandalay encontraram Crawcrustle naquela noite, atrás dos trilhos de trem. Ele estava assando algo numa latinha sobre um pequeno braseiro de carvão.

— O que você está assando, Crawcrustle? — perguntou Jackie Newhouse.

— Mais carvão — respondeu Crawcrustle. — Limpa o sangue, purifica o espírito.

Havia madeira de tília e nogueira, cortada em pequenos pedaços, no fundo da latinha, preta e fumegante.

— E você vai realmente comer esse carvão, Crawcrustle? — indagou o professor Mandalay.

Em resposta, Crawcrustle lambeu os dedos e pegou um pedaço de carvão da latinha. Ele chiou e fumegou em sua mão.

— Um belo truque — observou o professor Mandalay. — E assim que os engolidores de fogo fazem, eu acho.

Crawcrustle pôs o carvão na boca e o mastigou com seus velhos dentes desiguais:

— E, sim. É, sim.

Jackie Newhouse limpou a garganta:

— A verdade, é que o professor Mandalay e eu temos muitas dúvidas sobre a jornada que nos espera.

Zebediah apenas mastigou o carvão.

— Não está quente o bastante comentou. Ele pegou um graveto do fogo e mordiscou a brasa alaranjada na ponta. — Este sim está bom.

— É tudo ilusão — disse Jackie Newhouse.

— Nada disso — discordou Zebediah T.. Crawcrustle, com ares de quem entendia do assunto. — É olmo espinhoso.

— Tenho sérias dúvidas sobre tudo isso — continuou Jackie Newhouse. — Meus ancestrais e eu sempre tivemos um instinto de autopreservação multo apurado, que várias vezes nos fez percorrer telhados ou mergulhar em rios fugindo da lei ou de cavalheiros com armas e reivindicações legítimas. E esse instinto está me dizendo para eu não ir à Cidade do Sol com vocês.

— Eu sou um acadêmico — expôs o professor Mandalay -, e, portanto não tenho nenhum instinto especialmente desenvolvido que seja compreensível para quem nunca precisou dar notas a monografias sem ler as benditas. No entanto, acho a coisa toda bastante suspeita. Se esse Pássaro-do-Sol é tão saboroso, por que nunca ouvi falar dele?

- Você já ouviu, Mandy, velhinho. Você já ouviu — disse Zebediah T. Crawcrustle.

- E eu sou, além disso, um especialista em geografia, de Tulsa, Oklahoma, até Timbuktu — continuou o professor Mandalay. — Mas nunca vi menção em livro algum sobre um lugar chamado Cidade do Sol no Cairo.

— Menção? Ora, você deu aulas sobre ele — assegurou Crawcrustle, e salpicou um pedaço de carvão fumegante com molho de pimenta, antes de colocá-lo na boca e mastigá-lo.

— Eu duvido que esteja comendo isso de verdade — desafiou Jackie Newhouse. — Mas, só de ver o truque, já estou incomodado. Acho que é hora de ir embora.

E ele se foi. Talvez o professor Mandalay tenha ido com ele — aquele sujeito era tão cinza e fantasmagórico que era sempre difícil saber se ele estava ou não em algum lugar.

Virgínia Boote tropeçou em Zebediah T Crawcrustle quando ele descansava na porta da casa dela, de madrugadinha. Ela estava voltando de um restaurante sobre o qual ia escrever uma resenha. Desceu do táxi, tropeçou em Crawcrustle e caiu esparramada no chão, perto dele.

— Uiii! — exclamou ela. — Que tropeção!

— Foi mesmo, Virgínia — concordou Zebediah T. Crawcrustle. Por acaso você não teria uma caixa de fósforos, teria?

— Tenho fósforos de papel em algum lugar. — Ela começou a fuçar em sua bolsa, que era bem grande e bem marrom. — Tome.

Zebediah T Crawcrustle trazia na mão uma garrafa de álcool de metila avermelhado, líquido com o qual encheu um copo descartável.

— Metila? — observou Virgínia Boote. — Nunca imaginei que você fosse um bebedor de metila, Zebby.

— E não sou mesmo. É um treco nojento. Apodrece as tripas e estraga as papilas gustativas. Mas não consegui achar fluido de isqueiro a esta hora da noite.

Ele riscou o fósforo, encostou-o na superfície do copo com álcool, que começou a queimar com uma luz bruxuleante, comeu o fósforo, e em seguida fez gargarejos com o líquido flamejante e cuspiu um jato de fogo na rua, incinerando uma folha de jornal que o vento levava.

— Crusty, esse é um ótimo jeito de você se matar — comentou Virgínia Boote.

Zebediah T Crawcrustle sorriu com dentes negros:

— Mas eu não bebo. Só gargarejo e cuspo fora.

— Você está brincando com fogo!

— É assim que eu me sinto vivo — explicou Zebediah T Crawcrustle. Virgínia disse:

— Oh, Zeb. Estou tão entusiasmada. Que gosto você acha que o Pássaro-do-Sol tem?

— Mais encorpado que codorniz e mais suculento que peru, mais gorduroso que avestruz e mais saboroso que pato — discorreu Zebediah T. Crawcrustle. — Uma vez comido, jamais é esquecido.

— Nós vamos pro Egito. Eu nunca fui pro Egito. — Ela fez uma pausa. — Você tem algum lugar pra passar a noite?

Ele tossiu, uma tossezinha que chocalhou dentro do seu velho peito:

— Estou ficando velho demais para dormir em soleiras e sarjetas. Mesmo assim, tenho o meu orgulho.

— Bem — ela disse, olhando-o -, você poderia dormir no meu sofá.

— Não que eu não esteja grato pelo convite, mas há um banco tom o meu nome no terminal de ônibus.

E ele desencostou do muro e saiu cambaleando majestosamente pela rua.

Havia, realmente, um banco no terminal de ônibus com o nome dele. Ele doara o banco ao terminal quando ainda tinha dinheiro, e seu nome fora colocado atrás do encosto, gravado numa plaquinha de latão. Zebediah T. Crawcrustle não era sempre pobre. Às vezes era rico, mas tinha dificuldade em manter sua riqueza, e, sempre que ficava rico, descobria que o mundo desdenha de ricos que gostam de comer em companhia de andarilhos em meio a trens de carga, ou que confraternizam com os bêbados no parque, então ele fazia o que podia para torrar sua fortuna. Sempre havia partes dela aqui e ali que ele esquecia, e às vezes ele esquecia até que não gostava de ser rico, e então saía procurando sua fortuna e a encontrava.

Fazia uma semana que ele não se barbeava, e os pêlos de sua barba de sete dias começavam a ficar brancos como a neve.

Os epicurianos partiram para o Egito num domingo. Os cinco estavam ali, e Hollyberry SemPenas McCoy foi se despedir deles no aeroporto. Era um aeroporto bem pequeno, onde ainda era possível despedir-se acenando.

— Tchau, pai! — gritou Hollyberry SemPenas McCoy.

Augustus DuasPenas McCoy acenou para ela enquanto andavam pelo asfalto, rumo ao pequeno bimotor no qual fariam o primeiro trecho da viagem.

— Parece — disse Augustus DuasPenas McCoy -, que me lembro, embora vagamente, de um dia como este há muito, muito tempo. Nessa lembrança, sou um menininho dando adeus. Acredito que foi a última vez que vi meu pai, e mais uma vez sou de repente acometido por um péssimo pressentimento. — Ele acenou uma última vez para a menina na outra ponta da pista, e ela acenou de volta.

— Naquela época, você acenou tão entusiasticamente quanto ela — observou Zebediah T. Crawcrustle -, mas acho que ela o faz com um pouco mais de elegância.

Era verdade.

Eles viajaram num avião pequeno, depois num maior, depois num menor, num dirigível, numa gôndola, num trem, num balão e num jipe alugado.

Ides chocalharam pelas ruas do Cairo no jipe. Passaram pelo velho mercado e viraram no terceiro beco (se tivessem seguido em frente, teriam chegado a uma vala de drenagem que já fora um canal de irrigação). Mustafá Stroheim em pessoa estava sentado na rua, empertigado sobre uma velha cadeira de vime. Todas as mesas e cadeiras ficavam na rua, que já não era particularmente larga.

— Bem-vindos, meus amigos, ao meu Kahwa — alegrou-se Mustafá Stroheim. — Kahwa, em egípcio, quer dizer café, a bebida ou o local onde é vendido. Querem um chá? Ou um jogo de dominó?

— Queremos ir para os nossos quartos — disse Jackie Newhouse.

— Eu não — discordou Zebediah T. Crawcrustle. — Vou dormir na rua. Está quente, e aquela soleira ali parece muito confortável.

— Quero um café, por favor — pediu Augustus DuasPenas McCoy.

— É claro.

— Vocês têm água? — perguntou o professor Mandalay.

— Quem perguntou? — disse Mustafá Stroheim. — Oh, foi você, homenzinho cinza. Desculpe. Eu tinha visto você, mas achei que fosse a sombra de alguém.

— Eu quero Shay Sokkar Bosta — solicitou Virgínia Boote, perfeitamente ciente de que havia pedido um copo de chá quente com açúcar à parte. — E jogarei gamão com quem quiser me enfrentar. Não há vivalma no Cairo que eu não derrote no gamão, se conseguir lembrar as regras.

Augustus DuasPenas McCoy foi levado até o seu quarto. O professor Mandalay foi levado até o seu quarto. Jackie Newhouse foi levado até o seu quarto. Não foi algo demorado — afinal, eles iam ficar todos no mesmo quarto. Havia outro quarto nos fundos, onde Virgínia iria dormir, e um terceiro para Mustafá Stroheim e sua família.

— O que você está escrevendo? — perguntou Jackie Newhouse.

— São os processos, os anais e as minutas do Clube Epicuriano respondeu o professor Mandalay. Com uma pequena caneta preta, ele escrevia num grande livro encapado em couro. — Relatei nossa jornada até aqui e todas as coisas que comemos no caminho. Vou continuar anotando quando comermos o Pássaro-do-Sol, e registrar para a posteridade todos os sabores e texturas, todos os aromas e essências.

— Crawcrustle contou como vai assar o Pássaro-do-Sol? — perguntou Jackie Newhouse.

— Contou — respondeu Augustus DuasPenas McCoy. — Ele disse que vai esvaziar uma lata de cerveja até que só reste um terço do líquido. Depois vai pôr ervas e temperos na lata. Vai colocar a lata dentro do pássaro e deixá-lo sobre a churrasqueira para assar. Ele diz que esse é o jeito tradicional.

Jackie Newhouse fungou:

— E um pouco moderno demais, pra mim.

— Crawcrustle diz que esse é o jeito tradicional de assar o Pássaro-do-Sol — repetiu Augustus.

— Digo mesmo — confirmou Crawcrustle, subindo a escada. A casa era pequena, a escada não ficava longe e as paredes não eram espessas. -A cerveja mais antiga do mundo é egípcia, e os egípcios já assam o Pássaro-do-Sol com ela há mais de 5 mil anos.

— Mas a lata de cerveja é uma invenção relativamente moderna — argumentou o professor Mandalay quando Zebediah T. Crawcrustle entrou. Crawcrustle trazia uma xícara de café turco, preto como alcatrão, que fumegava como uma chaleira e borbulhava como um caldeirão de piche.

— Esse café parece estar muito quente — comentou Augustus DuasPenas McCoy.

Crawcrustle virou a xícara, tomando metade do conteúdo.

Não — ele disse. — Não está, não. E a lata de cerveja não é uma invenção tão nova. Antigamente, nós as fazíamos usando um amálgama de cobre e latão, às vezes com um pouquinho de prata, às vezes sem. Dependia do ferreiro e do que ele tivesse à mão. Precisávamos de algo que agüentasse o calor. Vejo que vocês todos me olham incrédulos. Cavalheiros, considerem: claro que os egípcios antigos tinham latas de cerveja. Senão, onde iriam guardá-la?

Pela janela, chegavam várias vozes lamuriosas das mesas na rua. Virgínia Boote, que havia convencido os nativos a jogar gamão a dinheiro, estava acabando com eles. Aquela mulher era fera no gamão.

Nos fundos do café de Mustafá Stroheim havia um quintal com uma churrasqueira velha, arrebentada, feita de tijolos de barro, com uma grelha de metal semiderretida, e uma velha mesa de madeira. Crawcrustle passou o dia seguinte consertando e limpando a churrasqueira e lubrificando a grelha de metal.

— Parece que não usam isso há quarenta anos — comentou Virgínia Boote. Ninguém mais queria jogar gamão com ela, e sua bolsa estava repleta de piastras encardidas.

— Mais ou menos — disse Crawcrustle. — Talvez um pouco mais. Ginnie, faça algo de útil. Fiz uma lista das coisas de que preciso do mercado. Sobretudo ervas, temperos e lascas de madeira. Pode levar um dos filhos de Mustafá Stroheim para servir de intérprete.

— Com prazer, Crusty.

Os outros três membros do Clube Epicuriano estavam ocupados, cada um à sua maneira. Jackie Newhouse fazia amizade com muitas pessoas da região, atraídas por suas roupas elegantes e sua habilidade ao violino. Augustus DuasPenas McCoy saía para longas caminhadas. O professor Mandalay passava seu tempo traduzindo os hieróglifos que descobrira nos tijolos da churrasqueira. Ele disse que alguém mais tolo poderia achar que esses tijolos provavam que a churrasqueira no quintal de Mustafá Stroheim já fora consagrada ao Sol.

— Mas eu, que sou inteligente — continuou -, entendi imediatamente o que aconteceu: tijolos que fizeram parte, há muito tempo, de um templo foram, com o passar dos milênios, reutilizados. Duvido que essa gente saiba o valor do que tem aqui.

— Oh, eles sabem sim — discordou Zebediah T. Crawcrustle. — E esses tijolos não faziam parte de templo nenhum. Estão aqui há 5 mil anos, desde que construímos a churrasqueira. Antes disso, a gente se virava com pedras.

Virgínia Boote voltou com uma sacola cheia de compras:

— Pronto. Macieira vermelha de sândalo e patchuli, sementes de baunilha, paus de lavanda, sálvia, folhas de canela, nozes-moseadas inteiras, cabeças de alho, cravo e alecrim. Tudo o que você queria, e mais algumas coisas.

Zebediah T. Crawcrustle sorriu, deliciado:

— O Pássaro-do-Sol vai ficar tão feliz.

Ele gastou a tarde toda preparando um molho barbecue. Disse que era uma questão de respeito, e que, além disso, a carne do Pássaro-do-Sol era meio seca.

Os epicurianos passaram aquela noite sentados às mesas de vime na rua, enquanto Mustafá Stroheim e sua família lhes serviam chá, café e suco quente de hortelã. Zebediah T. Crawcrustle dissera aos amigos que eles comeriam o Pássaro-do-Sol da Cidade do Sol no almoço de domingo, e que seria bom não comer nada na noite anterior para que tivessem apetite.

— Estou com pressentimento de algo terrível — revelou Augustus Duas-Penas McCoy, aquela noite, numa cama pequena demais para ele, antes de dormir. — E temo que esse algo venha acompanhado de molho barbecue.

Todos estavam muito famintos na manhã seguinte. Zebediah T Crawcrustle usava um avental engraçado, com a frase BEIJE O COZINHEIRO escrita em verde chamativo. Ele já tinha espalhado as uvas passas embebidas em conhaque e os grãos debaixo do abacateiro anão que ficava atrás da casa e, no momento, estava dispondo as madeiras aromáticas, as ervas e os temperos sobre o carvão. Mustafá Stroheim e sua família tinham ido visitar parentes do outro lado do Cairo.

— Alguém tem fósforo? — Crawcrustle perguntou.

Jackie Newhouse tirou do bolso um isqueiro Zippo e o passou a Crawcrustle, que acendeu as folhas secas de louro e de canela debaixo do carvão. A fumaça subiu no ar do meio-dia.

— A fumaça de canela e sândalo trará o Pássaro-do-Sol — explicou Crawcrustle.

—Trará de onde? — quis saber Augustus DuasPenas McCoy.

— Do Sol — respondeu Crawcrustle. — E lá que ele dorme. O professor Mandalay pigarreou discretamente:

— No ponto mais próximo da órbita, a Terra fica a 146 milhões de quilômetros do Sol. O mergulho mais rápido já registrado de um pássaro é o do falcão peregrino, a 440 quilômetros por hora. Voando nessa velocidade, vindo do Sol, um pássaro levaria pouco mais de 38 anos para nos alcançar, isso se pudesse voar na escuridão, no frio e no vácuo do espaço, é claro.

— É claro — concordou Zebediah T. Crawcrustle. Ele protegeu os olhos, semicerrando-os, e olhou para cima: — Aí vem ele.

Quase parecia que o pássaro estava saindo do sol, mas não podia ser. Afinal, não se pode olhar diretamente para o sol do meio-dia.

Primeiro era uma silhueta negra contra o sol e o céu azul, e então a luz do sol bateu em suas penas, e os espectadores, no chão, perderam o fôlego. Não existe nada igual à luz do sol refletida nas penas do Pássaro-do-Sol. Ver algo assim é de tirar o fôlego.

O Pássaro-do-Sol bateu suas grandes asas, depois começou a planar em círculos cada vez mais baixos sobre o café de Mustafá Stroheim.

O pássaro pousou no abacateiro. Suas penas eram douradas, púrpuras e prateadas. Ele era menor que um peru, maior que um frango, e tinha as pernas compridas e a cabeça alta de uma garça, embora sua cabeça lembrasse mais a de uma águia.

— É muito bonito — observou Virgínia Boote. — Vejam as duas penas grandes que tem na cabeça. Não são lindas?

— De fato, é muito lindo — opinou o professor Mandalay.

— Há algo familiar nessas penas da cabeça dele — comentou Augustus DuasPenas McCoy.

— Nós arrancamos as penas da cabeça antes de assá-lo — esclareceu Zebediah T. Crawcrustle. — Sempre fizemos assim.

O Pássaro-do-Sol empoleirou-se num galho ensolarado do abacateiro. Parecia quase brilhar discretamente ao sol, como se suas penas fossem feitas da luz do astro, iridescentes, púrpuras, verdes e douradas. Ele se alisou, estendendo uma asa na luz. Bicou e ajeitou a asa até que todas as penas estivessem endireitadas e lubrificadas. Depois estendeu a outra asa e repetiu o processo, finalmente, emitiu um chilreio satisfeito e voou do galho até o chão. Ele andou pela lama seca, olhando com cuidado para OS lados. — Olhem! — exclamou Jackie Newhouse. — Ele achou os grãos. Parecia que estava procurando — observou Augustus DuasPenas McCoy, — Como se soubesse que haveria grãos ali.

— É que eu sempre deixo ali — explicou Zebediah T. Crawcrustle.

— Ele é tão lindo — repetiu Virgínia Boote. — Mas agora, olhando mais de perto, vejo que é muito mais velho do que eu pensava. Seus olhos estão opacos e suas pernas tremem. Mas mesmo assim é lindo.

— O pássaro Bennu é o mais lindo dos pássaros — disse Zebediah T. Crawcrustle.

Virgínia Boote se virava bem com egípcio em restaurantes, mas não passava disso.

— O que é um pássaro Bennu? — ela perguntou. — Isso é Pássaro-do-Sol em egípcio?

— O pássaro Bennu — explanou o professor Mandalay -, empoleira-se na árvore Persea. Ele tem duas penas na cabeça. Às vezes é representado como uma garça, outras, como uma águia. Há mais dados a respeito dele, mas são inverossímeis demais para que valha a pena continuar.

— Ele comeu os grãos e as passas! — exclamou Jackie Newhouse. — Agora está cambaleando, bêbado, de um lado pro outro... Mesmo bêbado, é tão majestoso!

Zebediah T. Crawcrustle andou até o Pássaro-do-Sol, que, com grande força de vontade, conseguia não trançar as longas pernas, trôpego, andando na lama sob o abacateiro. Ele parou diante do pássaro, e então, muito lentamente, curvou-se para ele. Dobrou o corpo com toda a dificuldade e esforço de alguém muito velho, lentamente. E o Pássaro-do-Sol também se curvou diante dele, e caiu deitado na lama. Zebediah T. Crawcrustle o levantou com reverência e o carregou em seus braços, como se fosse uma criança, levando-o para a área atrás do café de Mustafá Stroheim. Os outros o seguiram.

Primeiro ele arrancou as duas majestosas penas da cabeça e as pôs de lado.

E então, sem depenar o pássaro, retirou suas vísceras e as colocou sobre os gravetos fumegantes. Depois enfiou a lata de cerveja na cavidade e pôs o pássaro sobre a churrasqueira.

— O Pássaro-do-Sol cozinha rápido — avisou Crawcrustle. — Preparem seus pratos.

Como os antigos egípcios não tinham lúpulo, suas cervejas eram aromatizadas com cardamomo e coentro, o que as tornava encorpadas, saborosas e refrescantes. Dava para construir pirâmides depois de tomar uma cerveja assim, e às vezes eles faziam isso mesmo. Sobre a churrasqueira, a cerveja vaporizou-se dentro do Pássaro-do-Sol, mantendo-o suculento. Quando o calor do carvão alcançou as penas, elas queimaram, incendiando-se com um clarão, como um fogo de magnésio, tão brilhante que os epicurianos tiveram que desviar o olhar.

O cheiro de ave assada preencheu o ar, mais encorpado do que pavão, mais apetitoso do que pato. Os epicurianos ficaram com a boca cheia d'água. Parecia que não tinha se passado mais do que um instante desde que Zebediah o colocara no fogo, mas ele tirou o Pássaro-do-Sol das brasas e o pôs sobre a mesa. Então, com uma faca afiada, fatiou a carne fumegante e a distribuiu nos pratos, salpicou um pouco de molho barbecue sobre cada fatia e pôs a carcaça diretamente no fogo.

Os membros do Clube Epicuriano sentaram-se nos fundos do café de Mustafá Stroheim, ao redor de uma velha mesa de madeira, e comeram com as mãos.

— Zebby, é inacreditável! — comentou Virgínia Boote, falando enquanto comia. — Derrete na boca. Tem gosto de paraíso.

— Tem gosto de sol — disse Augustus DuasPenas McCoy, comendo feito gente grande. Segurava uma coxa numa mão e um pedaço de peito na outra. — E a melhor coisa que já comi, e não me arrependo de comê-la, mas acho que vou sentir saudades da minha filha.

— É perfeito! — opinou Jackie Newhouse. — Tem gosto de amor, de boa música. Tem gosto de verdade.

O professor Mandalay escrevia nos anais encadernados do Clube Epicuriano. Estava registrando as reações dos epicurianos — inclusive as suas — à carne do pássaro, do pássaro, tentando não respingar na página enquanto anotava, porque com a outra mão segurava uma asa e, delicadamente, mordiscava sua carne.

— É estranho — observou Jackie Newhouse —, porque, à medida que eu como, minha boca e meu estômago vão ficando cada vez mais quentes.

— É. É assim mesmo — explicou Zebediah T. Crawcrustle. — É melhor treinar antes. Comer brasa, fogo e vaga-lumes pra ir se acostumando. Senão fica meio difícil digerir.

Zebediah T. Crawcrustle comia a cabeça do pássaro, mastigando seus ossos, seu bico. À medida que ele mordia, os ossos produziam faíscas contra seus dentes. Ele apenas sorria e mastigava mais.

Os ossos do Pássaro-do-Sol ardiam, alaranjados, sobre a churrasqueira, e então seu brilho se tornou branco. O calor produzia uma névoa espessa no quintal dos fundos do café de Mustafá Stroheim, e nela tudo ondulava, como se as pessoas sentadas à mesa estivessem vendo o mundo debaixo d'água ou num sonho.

— E tão gostoso! — repetiu Virgínia Boote, enquanto comia. — É a melhor coisa que já comi. Tem gosto da minha juventude. Tem gosto de para sempre.

— Ela lambeu os dedos e pegou o último pedaço de carne do prato. — O Pássaro-do-Sol da Cidade do Sol. Ele tem algum outro nome?

— É a Fênix de Heliópolis — respondeu Zebediah T Crawcrustle. — E o pássaro que morre no fogo e nas cinzas, e renasce, geração após geração. É o pássaro Bennu, que voou sobre as águas quando só havia escuridão. Quando chega a época, ele é queimado numa fogueira de madeiras raras, especiarias e ervas, e renasce das cinzas, toda vez, por toda a eternidade.

— Fogo! — exclamou o professor Mandalay. — Sinto como se estivesse queimando por dentro! — Ele tomou um gole d'água, mas não pareceu melhorar.

— Meus dedos — disse Virgínia Boote. — Olhem para os meus dedos.

— Ela levantou as mãos. Os dedos estavam brilhando por dentro, como que iluminados por chamas internas.

O ar já estava tão quente que poderia cozinhar um ovo. Houve uma faísca e um crepitar. As duas penas amarelas no cabelo de Augustus DuasPenas McCoy acenderam como busca-pés.

— Crawcrustle — perguntou Jackie Newhouse, em chamas —, responda sinceramente. Há quanto tempo você come a Fênix?

— Há pouco mais de 10 mil anos — revelou Zebediah. — Alguns milênios a mais ou a menos. Não é difícil, depois que você pega o macete. Pegar o macete de comer é que é difícil. Mas esta é a melhor Fênix que já preparei. Ou devo dizer: "Nunca assei melhor esta Fênix"?

— Os anos! — alertou Virgínia Boote. — O fogo está queimando seus anos!

— Queima mesmo — admitiu Zebediah. — Mas você precisa se acostumar com o calor, antes de comê-la. Senão pode virar cinza.

— Por que não me lembrei disso? — lamentou-se Augustus DuasPenas McCoy, através das chamas brilhantes que o envolviam. — Por que não lembrei que foi assim que meu pai se foi, e o pai dele antes dele, que cada um deles foi a Heliópolis comer a Fênix? E por que só estou me lembrando disso agora?

— Porque seus anos estão queimando — explicou o professor Mandalay. Ele fechou o livro de capa de couro assim que a página na qual estava escrevendo pegou fogo. As laterais estavam chamuscadas, mas o resto se salvaria.

— Quando os anos queimam, as lembranças daqueles anos voltam. — Ele parecia mais sólido naquele momento, através das ondas de calor, e estava sorrindo. Nenhum deles jamais havia visto o professor Mandalay sorrir.

— Vamos queimar até virar nada? — perguntou Virgínia, incandescente.

— Ou vamos queimar de volta à infância, depois virar espíritos, anjos, e começar tudo de novo? Não importa. Oh, Crusty, tudo isto é tão divertido!

— Talvez — comentou Jackie Newhouse, em meio ao fogo -, o molho pudesse ter um pouco mais de vinagre. Sinto que uma carne assim pede algo mais encorpado. — E ele se foi, deixando somente uma sombra.

— Chacun à son goût — observou Zebediah T. Crawcrustle, que é "cada um com seu gosto" em francês. Ele lambeu os dedos e balançou a cabeça.

— Nunca ficou melhor — disse, com enorme satisfação.

— Adeus, Crusty — despediu-se Virgínia. Ela estendeu sua mão envolta em chamas brancas e apertou a mão escura dele por um instante, ou talvez dois.

E então não restou nada no quintal atrás do Kahwa (ou café) de Mustafá Stroheim em Heliópolis (que já foi a cidade do Sol, e agora é um subúrbio do Cairo) senão cinzas brancas — que foram sopradas pela brisa momentânea e caíram como açúcar de confeiteiro ou como neve — e ninguém além de um jovem de cabelos bem escuros e dentes retos da cor do marfim, usando um avental com a frase BEIJE O COZINHEIRO.

Um passarinho dourado e roxo agitou-se na grossa camada de cinzas que cobria os tijolos de argila, como se estivesse acordando pela primeira vez. Ele soltou um "piu!" agudo e olhou diretamente para o sol, como um recém-nascido olha para os pais. Esticou suas asas como que para secá-las e, finalmente, quando estava bem preparado, voou para o alto, em direção ao sol, e ninguém o viu partir além do jovem no quintal.

Duas longas penas douradas estavam aos pés do jovem, sob as cinzas que já tinham sido uma mesa de madeira, e ele as recolheu, limpou o pó branco que as cobria e as guardou, com reverência, dentro de seu paletó. Em seguida, tirou o avental e seguiu o seu caminho.

Hollyberry DuasPenas McCoy já é adulta e tem filhos. Tem fios de prata na cabeça, em meio ao cabelo preto, por baixo das penas douradas em seu coque. Pode-se ver que as penas já devem ter sido muito especiais, mas isso foi há muito tempo. Ela é presidente do Clube Epicuriano — uma turma divertida e barulhenta — cargo que, há muitos anos, herdou de seu pai.

Ouvi dizer que os epicurianos começaram a resmungar de novo. Estão comentando que já comeram de tudo.

 

                                         O MONARCA DO VALE

SE QUER SABER — o homenzinho disse a Shadow -, acho que você é uma espécie de monstro. Estou certo?

Eles eram as únicas pessoas, além da garçonete, no bar de um hotel numa cidade na costa norte da Escócia. Shadow estava sentado ali, sozinho, tomando uma cerveja lager, quando o homem se aproximou e se sentou à sua mesa. Era o fim do verão, e Shadow achava tudo frio, apertado e úmido. Ele tinha diante de si o livrinho Caminhadas - Locais Agradáveis, e estava estudando o itinerário que planejava seguir no dia seguinte, ao longo do litoral, rumo ao Cabo Wrath.

Ele fechou o livro.

— Sou americano — respondeu Shadow -, se é isso que quer dizer.

O homenzinho inclinou a cabeça para um lado e piscou, de forma um tanto teatral:

— Bem, talvez seja isso mesmo que eu queira dizer. — Ele tinha cabelo acinzentado, um rosto cinza, usava um casaco cinza, e parecia um advogado de cidade pequena.

Shadow vinha tendo problemas para entender o sotaque escocês em sua curta estada no país — os erres puxados, as palavras estranhas, os sons arrastados —, mas não teve dificuldade para entender aquele homem. Tudo o que o homenzinho dizia era conciso e claro, cada palavra era tão perfeitamente enunciada que fazia Shadow se sentir como se estivesse falando com a boca cheia de mingau.

O homenzinho tomou um gole de sua bebida e continuou:

— Então você é americano. Escolado em sexo, escoltado por dinheiro e passeando pela Escócia, hein? Trabalha nas plataformas?

— Perdão?

— É petroleiro? Das plataformas petrolíferas. O pessoal que trabalha nelas vem aqui, de vez em quando.

— Não. Não trabalho nas plataformas.

O homenzinho tirou do bolso um cachimbo e um pequeno canivete e começou a limpar o resíduo do bojo. Depois bateu o cachimbo no cinzeiro.

— Tem petróleo lá no Texas, sabe — disse, depois de um momento, como se estivesse revelando um grande segredo. — Fica nos Estados Unidos.

— Sim — respondeu Shadow.

Ele pensou em dizer que os texanos acham que o Texas, na verdade, fica no Texas, mas desconfiava que seria preciso explicar o que aquilo queria dizer, por isso ficou calado.

Shadow estava fora dos Estados Unidos havia quase dois anos. Não estava no país quando as torres gêmeas caíram. Às vezes dizia a si mesmo que não pensava em voltar mais, e às vezes quase conseguia acreditar nisso. Fazia dois dias que chegara à Escócia, aportando em Thurso com a balsa que vinha de Orkneys, e fora de ônibus para a cidade onde ficaria hospedado.

O homenzinho estava falando:

— Tem um trabalhador petroleiro texano em Aberdeen, o cara está conversando com um camarada que ele conheceu num pub, meio como a gente se conheceu aqui, e o texano diz: "Lá no Texas eu levanto de manhã, entro no meu carro..." desculpe, não vou tentar imitar o sotaque "... viro a chave na ignição, piso no acelerador", que vocês chamam de... de...

— Pedal da gasolina — completou Shadow, prestativo.

— Certo. "Piso no pedal da gasolina no café-da-manhã, e na hora do almoço ainda não saí da minha propriedade". E o escocês, quietinho, só faz que sim e diz: "Pois é, eu também já tive um carro assim".

O homenzinho riu loucamente — para mostrar que tinha acabado de contar a piada. Shadow sorriu e balançou a cabeça para mostrar que tinha entendido que era uma piada.

— O que está tomando? Lager? Traz uma pra mim também, Jennie, meu amor, Uma Lagavulin. — O homenzinho tirou tabaco de uma bolsa e socou no cachimbo. — Sabia que a Escócia é maior do que os Estados Unidos?

Não havia ninguém no bar do hotel quando Shadow descera naquela noite, só a garçonete magrinha, lendo jornal e fumando. Ele tinha descido para se sentar perto da lareira, porque seu quarto estava frio, e o aquece dor de metal na parede estava mais frio do que o quarto. Ele não esperava ter companhia.

— Não — respondeu Shadow, sempre disposto a fazer o papel de coadjuvante. — Não sabia disso. Como assim?

— É tudo fractal — explicou o homenzinho. — Quanto mais de perto você olha, mais as coisas se expandem. Se você fizer do jeito certo, demora o mesmo tempo cruzar os Estados Unidos ou a Escócia de carro. Tipo, você olha num mapa, e o litoral é uma linha reta. Mas, quando você o percorre a pé, é todo recortado. Outro dia vi um programa inteirinho na TV que falava disso. Muito bom.

— Certo — disse Shadow.

O homenzinho acendeu o cachimbo com seu isqueiro, aspirou e soltou baforadas até ficar satisfeito com a brasa, e então guardou o isqueiro, a bolsa e o canivete no bolso do casaco.

— Bem, bem. Imagino que planeje passar o fim de semana aqui — comentou.

— Sim — disse Shadow. — Você... trabalha no hotel?

— Não, não. Pra falar a verdade, eu estava no saguão quando você chegou. Ouvi você falando com Gordon na recepção.

Shadow assentiu. Ele pensou que estava sozinho no saguão quando fez o check-in, mas era possível que o homenzinho tivesse passado despercebido. Mesmo assim... havia algo errado naquela conversa. Havia algo errado em tudo.

Jennie, a garçonete, pôs as bebidas no balcão.

— Cinco libras e vinte — anunciou. Ela pegou o jornal e voltou a ler. O homenzinho foi até o balcão, pagou e trouxe as bebidas.

— Então, quanto tempo vai ficar na Escócia? Shadow deu de ombros:

— Eu queria ver como era. Fazer umas caminhadas. Visitar os pontos turísticos. Talvez uma semana, talvez um mês.

Jennie largou o jornal.

— Aqui é o cu do mundo — comentou ela, alegremente. — Você deveria ir pra algum lugar interessante.

— E aí que você se engana — discordou o homenzinho. — Só é o eu do mundo se você olhar do jeito errado. Está vendo aquele mapa, amigo? — Ele apontou para um mapa encardido do norte da Escócia pregado na parede oposta ao bar. — Sabe o que há de errado nele?

— Não.

— Está de cabeça pra baixo! — exclamou o homem, triunfante. — O Norte está no alto. Está dizendo ao mundo que é aqui que as coisas param, que não dá pra seguir adiante, que o mundo acaba aqui. Mas, veja bem, antes não era assim. Aqui não era o norte da Escócia. Era a extremidade sul do mundo viking. Sabe como se chama a segunda cidade mais ao norte da Escócia?

Shadow olhou para o mapa, mas estava longe demais para ler. Ele balançou a cabeça.

— Sutherland! — anunciou o homenzinho. Ele mostrou os dentes. — A Terra do Sul. Não era isso pra mais ninguém no mundo, mas prós vikings era.

Jennie, a garçonete, se aproximou e disse:

— Não vou demorar. Chamem a recepção se precisarem de alguma coisa até eu voltar. — Ela pôs mais lenha na lareira e foi para o saguão.

— Você é historiador? — perguntou Shadow.

— Boa — comentou o homenzinho. — Você pode ser um monstro, mas é engraçado, tenho que admitir.

— Não sou um monstro — retrucou Shadow.

— Eu sei, todo monstro diz isso. Eu já fui um especialista. Em St. Andrews. Agora sou clínico geral. Bem, era. Estou quase aposentado. Vou pra cirurgia uns dois dias por semana, só pra não perder o contato.

— Por que diz que eu sou um monstro?

— Porque — respondeu o homenzinho, levantando seu copo de uísque com o ar de quem apresenta um argumento irrefutável -, também sou uma espécie de monstro. Um reconhece o outro. Somos todos monstros, não somos? Monstros gloriosos, chafurdando nos pântanos do irracional... Ele tomou um gole de uísque e continuou: — Me diz uma coisa: gratidão desse jeito, você já foi leão-de-chácara? Tipo "Desculpa, amigo, não vai poder entrar hoje, uma festa particular, vai dando o fora daqui".

— Não.

Mas já deve ter feito algo do tipo.

— Sim — disse Shadow, que já tinha sido guarda-costas de um velho deus. Mas aquilo tora em outro país.

— Você, uh, me desculpe perguntar, não me entenda mal, mas está precisando de dinheiro?

— Todos precisam de dinheiro. Mas eu estou legal. — Isso não era totalmente verdade, mas era verdade que, quando Shadow precisava de dinheiro,

O mundo parecia se esforçar para providenciar.

— Quer ganhar algum pra gastar? Como leão-de-chácara? É moleza.

Dinheiro a troco de nada.

— Numa discoteca?

— Não exatamente. Numa festa particular. Eles alugam um casarão perto daqui, vem gente de tudo quanto é canto no final do verão. Ano passado, todo mundo estava se divertindo pra valer, tomando champanhe no jardim, tudo isso, e rolou uma treta. Um pessoalzinho chato, a fim de estragar o fim de semana de todos.

— Eram locais?

— Acho que não.

— Tinha a ver com política? — perguntou Shadow. Ele não queria se envolver na política local.

— Nem um pouco. Arruaceiros, cabeludos e idiotas. Bem. Provavelmente não vão voltar este ano. Devem estar no mato, no meio do nada, fazendo manifestações contra o capitalismo internacional. Mas, só por segurança, o pessoal da casa me pediu pra procurar alguém que fosse capaz de intimidar. Você é grandão, é o que eles estão procurando.

— Quanto?

— Sabe brigar, se for preciso?

Shadow não disse nada. O homenzinho o olhou de alto a baixo e sorriu de novo, mostrando dentes manchados de fumo:

— Mil e quinhentas libras por um fim de semana prolongado. E uma boa grana. E em dinheiro vivo. Não vai nem precisar pagar imposto.

— Neste fim de semana?

— Começa sexta de manhã. É um casarão. Parte dele já foi um castelo. A oeste do Cabo Wrath.

— Não sei — disse Shadow.

— Se você topar — argumentou o homenzinho cinza -, vai passar um fim de semana fantástico numa mansão histórica, e garanto que conhecerá todo tipo de gente interessante. E o trabalho perfeito para as férias. Quem dera eu fosse mais jovem. E, uh, bem mais alto, é claro.

— Tudo bem — concordou Shadow, mas no mesmo instante pensou se não iria se arrepender.

— Bom garoto. Depois dou mais detalhes. — O homenzinho cinza se levantou e deu um tapinha no ombro de Shadow ao passar por ele. Depois saiu, deixando-o sozinho no bar.

 

Shadow estava na estrada fazia uns dezoito meses. Tinha viajado pela Europa e pelo norte da África como mochileiro. Tinha colhido azeitonas, pescado sardinhas, dirigido caminhão e vendido vinho em beira de estrada. Finalmente, alguns meses depois, voltou de carona até a Noruega, mais precisamente a Oslo, onde nascera 35 anos antes.

Ele não sabia direito o que estava procurando. Só sabia que ainda não tinha encontrado, embora houvesse momentos, nas terras altas, nos penhascos e nas cachoeiras, nos quais aquilo de que ele precisava parecia estar por perto — atrás de um bloco de granito ou no bosque de pinheiros mais próximo.

Ainda assim, fora uma visita profundamente insatisfatória, e quando lhe perguntaram em Bergen se toparia ser metade da tripulação de um iate a motor que estava sendo levado até seu proprietário em Cannes, ele disse que sim.

Eles navegaram de Bergen até as Sherlands, e depois até Orkneys, onde passaram a noite numa pousada em Stromness. Na manhã seguinte, ao sair do porto, os motores pilaram, definitiva e irrevogavelmente, e a embarcação foi rebocada de volta.

Bjorn — que era o capitão e a outra metade da tripulação — ficou por lá, para falar com a companhia de seguros e atender as ligações furiosas do proprietário. Shadow não viu motivos para ficar: pegou a balsa até Thurso, na costa norte da Escócia.

Ele estava inquieto. À noite, sonhava com rodovias, sonhava que chegava aos limites iluminados em néon de uma cidade onde todos falavam inglês. Às vezes era no Meio-Oeste, às vezes na Flórida, outras na Costa Leste, outras na Oeste.

Quando desceu da balsa, ele comprou um livro de passeios turísticos, pegou uma tabela com o horário dos ônibus e caiu no mundo.

Jennie, a garçonete, voltou e começou a limpar as mesas com um pano. Seu cabelo, quase branco de tão louro, estava preso à nuca num coque.

— Então, o que as pessoas fazem aqui pra se divertir? — perguntou Shadow.

— Bebem. Esperam a morte — respondeu ela. — Ou vão pro sul. Isso praticamente esgota todas as alternativas.

— Tem certeza?

— Bem, pense. Não tem nada aqui além de ovelhas e colinas. A gente vive do turismo, é claro, mas nunca tem turistas suficientes. Triste, não?

Shadow deu de ombros.

— Você é de Nova York? — perguntou Jennie.

— De Chicago. Mas estou vindo da Noruega.

— Você fala norueguês?

— Um pouco.

— Você precisa conhecer uma pessoa — ela disse de repente. Depois olhou para o seu relógio. — Alguém que veio pra cá da Noruega há muito tempo. Venha.

Ela largou o pano, desligou as luzes do bar e foi até a porta.

— Venha — repetiu.

— Você pode fazer isso? — perguntou Shadow.

— Posso fazer o que eu quiser. Este é um país livre, não?

— Acho que sim.

Ela trancou o bar com uma chave de latão. Eles foram até o saguão.

— Espere aqui — pediu ela. Entrou numa porta onde se lia "PRIVATIVO" e reapareceu alguns minutos depois, usando um casaco marrom longo. — Certo. Siga-me.

Eles saíram para a rua.

— Bem, isto é um vilarejo ou uma cidadezinha? — perguntou Shadow.

— É a porra de um cemitério. Por aqui. Vamos.

Eles andaram por uma estradinha estreita. A lua estava enorme, de um marrom amarelado. Shadow ouvia o mar, embora ainda não pudesse vê-lo.

— Seu nome é Jennie?

— Isso. E o seu?

— Shadow.

— É o seu verdadeiro nome?

— É como todos me chamam.

—Venha, então, Shadow.

No alto da colina, eles pararam. Estavam quase fora do vilarejo, e havia um chalé de pedra cinza ali. Jennie abriu o portão e levou Shadow por um caminho que subia até a entrada. Ele esbarrou num pequeno arbusto na lateral, e o ar se encheu de perfume de lavanda. Nenhuma luz estava acesa no chalé.

— De quem é esta casa? — perguntou Shadow. — Parece vazia.

— Não se preocupe. Ela já vai chegar.

Jennie empurrou a porta, que estava destrancada, e eles entraram. Ela acionou o interruptor da luz. A maior parte do interior do chalé era ocupada por uma copa. Uma pequena escada levava para o que Shadow presumiu ser um quarto no sótão. Havia um aparelho de CD sobre o balcão de pinho.

— Esta casa é sua — disse Shadow.

— Lar, doce lar — ela concordou. — Quer café? Ou uma bebida?

— Nada — respondeu Shadow. Ele se perguntou o que Jennie queria. Ela mal olhara para ele, nem mesmo sorrira.

— Eu ouvi certo? O doutor Gaskell pediu que você trabalhasse numa festa no fim de semana?

— Acho que sim.

— E o que você vai fazer amanhã e sexta?

— Caminhar. Comprei um livro. Tem uns passeios lindos.

Alguns são lindos. Outros são traiçoeiros. Ainda tem neve do inverno aqui, nas sombras, no verão. As coisas duram muito tempo nas sombras.

Vou tomar cuidado.

Foi isso que os vikings disseram — ela observou, e sorriu. Tirou o casaco e jogou-o no sofá roxo. — Talvez eu te encontre por aí. Gosto de fazer caminhadas. — Ela puxou o coque e seu cabelo claro se soltou. Era mais comprido do que Shadow havia imaginado.

— Você mora aqui sozinha?

Ela tirou um cigarro de um maço sobre o balcão e o acendeu com um fósforo.

— Que diferença faz pra você? — perguntou. — Não vai passar a noite aqui, vai?

Shadow balançou a cabeça.

— O hotel fica ao pé do morro — explicou ela. — Não há como errar. Obrigada por me acompanhar até em casa.

Shadow lhe desejou boa noite e voltou para a estrada, sentindo o ar perfumado de lavanda. Ficou ali por um tempo, olhando para o luar sobre o mar, intrigado. Depois desceu o morro até o hotel. Ela tinha razão: não havia como errar. Ele subiu as escadas, abriu a porta do seu quarto com uma chave presa a um bastãozinho e entrou. O quarto estava mais frio do que o corredor.

Ele tirou os sapatos e se esticou sobre a cama, no escuro.

O navio era feito das unhas de mortos, e avançava pela neblina, enfrentando as ondas enormes e incertas do mar agitado.

Havia silhuetas sombrias no convés, homens do tamanho de morros ou casas, e, ao se aproximar, Shadow pôde ver seus rostos: homens altivos e enormes, todos eles. Pareciam ignorar o movimento do navio, cada qual esperando no convés, como se fosse uma estátua.

Um deles deu um passo à frente e agarrou a mão de Shadow com aquela mão descomunal. Shadow subiu no convés cinza.

— Bem-vindo a este lugar maldito — disse o homem que segurava a mão de Shadow, em voz grave e rouca.

— Salvei — gritaram os homens no convés. — Salve, arauto do sol! Salve, Baldur!

O nome na certidão de nascimento de Shadow era Balder Moon, mas ele balançou a cabeça.

— Eu não sou ele — disse. — Não sou quem vocês estão esperando.

— Estamos morrendo aqui — anunciou o homem de voz rouca, sem soltar a mão de Shadow.

Estava frio no lugar enevoado entre os mundos da vigília e da morte. A espuma salgada castigava a proa do navio cinza, e Shadow estava ensopado.

— Leve-nos de volta — pediu o homem que segurava sua mão. — Leve-nos de volta ou deixe-nos ir embora.

Shadow disse:

—Não sei como fazer isso.

Ao ouvir isso, os homens começaram a gemer e uivar. Alguns batiam com as hastes das suas lanças no convés, outros golpeavam os lados de suas espadas curtas contra as cúpulas de latão no centro de seus escudos de couro, criando um pandemônio rítmico acompanhado por gritos que iam da agonia a um ulular desenfreado a plenos pulmões...

Uma gaivota gritava no ar da madrugada. A janela do quarto fora aberta pelo vento durante a noite e estava batendo. Shadow estava deitado na cama, em seu apertado quarto de hotel. Sua pele estava úmida, talvez de suor.

Mais um dia frio do fim do verão começava.

O hotel lhe preparou um tupperware contendo vários sanduíches de frango, um ovo cozido, um pacote de salgadinhos sabor queijo e cebola e uma maçã. Gordon, da recepção, que lhe entregou o recipiente, perguntou a que horas ele voltaria, explicando que, se ele se atrasasse mais de duas horas, o hotel avisaria os serviços de resgate, e pediu o número do celular de Shadow.

Shadow não tinha celular.

Ele começou a caminhada indo em direção à costa. Era linda, uma beleza desolada que encontrava eco nos espaços vazios dentro de Shadow. Ele havia imaginado a Escócia como um lugar de paisagens lisas, com colinas verdejantes, mas ali, na Costa Norte, todas as coisas pareciam recortadas e protuberantes, até as nuvens cinzentas que rasgavam o céu azul-claro. Era como se os ossos do mundo estivessem à mostra. Ele seguiu o roteiro do seu livro cruzou regatos cheios de arbustos e passou por córregos caudalosos, subindo e descendo encostas pedregosas.

Às vezes imaginava que estava parado e o mundo se movia debaixo dele, que ele simplesmente o empurrava com as pernas.

O roteiro era mais cansativo do que o esperado. Ele planejava comer à uma hora da tarde, mas ao meio-dia suas pernas estavam cansadas e ele já queria parar. Shadow seguiu a trilha até a encosta de uma colina, onde um rochedo formava um conveniente quebra-vento, e se agachou para comer seu almoço. Olhando à sua frente, podia ver o Atlântico ao longe.

Ele pensou que estivesse sozinho.

Ela disse:

— Você me dá essa maçã?

Era Jennie, a garçonete do hotel. Seu cabelo loiro esvoaçava ao redor da cabeça.

— Olá, Jennie — cumprimentou Shadow.

Ele lhe passou a maçã. Ela tirou um canivete do bolso de seu casaco marrom e se sentou ao lado dele.

— Obrigada.

— Então — disse Shadow -, pelo seu sotaque, você deve ter vindo da Noruega ainda menina. Pra mim, você fala como alguém daqui.

— Eu disse que vim da Noruega?

— E não veio?

Ela espetou uma fatia de maçã e a comeu, delicadamente, da ponta da lâmina, tocando-a somente com os dentes. Olhou para ele:

— Foi há muito tempo.

— Tem família?

Ela deu de ombros, como se qualquer resposta que pudesse dar não fosse satisfatória.

— E você gosta daqui?

Ela olhou para ele e balançou a cabeça.

— Eu me sinto uma hulder.

Ele já ouvira aquela palavra na Noruega.

— Elas não são uma espécie de troll?

— Não. São seres das montanhas, como os trolls, mas vêm da floresta, e são muito bonitas. Como eu. — Ela sorriu ao dizê-lo, como se soubesse que era pálida, tristonha e magra demais para ser bonita. — Elas se apaixonam por fazendeiros.

— Por quê?

— Sei lá. Mas se apaixonam. Às vezes o fazendeiro percebe que está falando com uma mulher hulder, porque ela tem um rabo de vaca nas costas, ou, pior ainda, às vezes não tem nada atrás, é oca, vazia, como uma concha. Aí o fazendeiro faz uma prece ou sai correndo, volta pra sua mãe ou pra sua fazenda. Mas às vezes o fazendeiro não foge. Às vezes ele joga um punhal por cima do ombro dela, ou simplesmente sorri, e se casa com a mulher hulder. Aí o rabo dela cai. Mesmo assim, ela é mais forte do que qualquer mulher humana. E sente falta de seu lar nas florestas e nas montanhas. Nunca será feliz de verdade. Nunca será humana.

— E depois, o que acontece com ela? — perguntou Shadow. — Ela envelhece e morre com seu fazendeiro?

Ela fatiara a maçã até o caroço. Então, com um movimento do pulso, atirou o caroço num arco, de cima da encosta.

— Quando o seu homem morre... acho que ela volta para as colinas e as florestas. — Ela olhou para a encosta. — Tem a história de uma que era casada com um fazendeiro que não a tratava bem. Gritava com ela, não ajudava a cuidar da fazenda, chegava do vilarejo bêbado e furioso. Às vezes batia nela. Bem, um dia, ela está na casa da fazenda, acendendo a lareira, de manhã, e ele chega e começa a gritar com ela porque a comida não está pronta, e ele está furioso, e ela não faz nada direito, e ele não sabe por que se casou com ela. Ela ouve o que ele diz por uns momentos e então, sem falar nada, se abaixa e pega o atiçador da lareira. Um negócio pesado, pulo, de ferro. Ela pega o atiçador, sem esforço, curva-o num círculo perfeito, como a aliança dela. Não geme nem transpira, apenas o dobra, como você dobraria um graveto. E o fazendeiro vê isso e fica branco feito um lençol, e não diz mais nada a respeito do café-da-manhã. Ele viu o que ela fez com o atiçador e sabe que, nos últimos cinco anos, poderia ter feito o mesmo com ele quando bem entendesse. E, até morrer, ele nunca mais encostou ura dedo nela, nunca mais disse uma palavra ríspida. Agora, me diz uma coisa, senhor todos-me-chamam de Shadow, se ela podia fazer isso, por que deixava que ele a surrasse? Por que quis ficar com alguém assim? Me diz você. — Talvez se sentisse solitária. Ela limpou a lâmina do canivete no seu jeans.

— O doutor Gaskell ficou falando que você é um monstro — disse. — É verdade?

— Acho que não.

— Que pena. Com um monstro, a gente sabe o que acontece, não?

— Sabe?

— Com certeza. No final, você vira o jantar. Por falar nisso, vou te mostrar uma coisa. — Ela se levantou e o levou até o alto da montanha. — Olhe. Ali, do outro lado daquela colina, na encosta que desce pro vale, dá pra ver a casa onde você vai trabalhar no fim de semana. Está vendo ali?

— Não.

— Vou apontar. Olhe na direção do meu dedo.

Ela se aproximou dele, estendeu a mão e apontou para a encosta de uma cordilheira distante. Ele podia ver o sol, alto no céu, refletindo em algo que imaginou ser um lago — ou um loch, ele se corrigiu, afinal, estava na Escócia — e acima dele, uma formação cinza na encosta de um morro. Ele havia pensado que fossem rochas, mas era regular demais para não ser uma construção.

— Aquele é o castelo?

— Eu não o chamaria assim. É apenas um casarão no vale.

— Você já foi a uma dessas festas?

— Eles não convidam os locais. E não me chamariam. De qualquer forma, você não deveria ir. Deveria recusar.

— Estão pagando bem — ele disse. Ela o tocou, então, pela primeira vez, pondo seus dedos pálidos nas costas da mão escura dele.

— E de que vale o dinheiro para um monstro? — perguntou e sorriu, e Shadow queria morrer se não achava que talvez ela fosse bonita, na verdade.

E então ela tirou a mão e se afastou:

— Bem. Não é melhor continuar sua caminhada? Não falta muito tempo até que você tenha que voltar. Quando começa a escurecer, a luz some rápido nesta época do ano.

E ela se levantou e ficou olhando enquanto ele pegava sua mochila e começava a descer o morro. Ele virou, ao chegar lá embaixo, e olhou para cima. Ela ainda estava olhando. Ele acenou, e ela retribuiu.

Quando ele olhou de novo, ela havia ido embora.

Ele pegou a pequena balsa que atravessava o estreito até o cabo e andou até o farol. Havia um microônibus do farol até o atracadouro da balsa, e ele o tomou.

Naquela noite ele voltou para o hotel às 8, exausto, mas sentindo-se satisfeito. Chovera um pouco no final da tarde, mas ele se abrigara numa cabana em ruínas, e lera um jornal de cinco anos antes enquanto a chuva tamborilava no telhado. Parou de chover depois de meia hora, e Shadow ficou feliz por ter calçado um bom par de botas, porque a terra havia se transformado em lama.

Ele estava faminto. Foi até o restaurante do hotel, que estava vazio. Shadow chamou:

— Olá?

Uma senhora apareceu na porta entre o restaurante e a cozinha e disse:

— Sim?

— Ainda estão servindo o jantar?

— Sim. — Ela o olhou com desaprovação, das botas enlameadas até o cabelo despenteado. — O senhor é hóspede?

— Sim. Estou na suíte 11.

— Bem... é melhor se trocar antes do jantar — sugeriu ela. — Em respeito aos outros hóspedes.

— Então vocês estão servindo.

— Sim.

Ele foi para o quarto, largou a mochila em cima da cama e tirou as botas. Calçou os tênis, passou um pente no cabelo e desceu de novo.

O restaurante não estava mais vazio. Duas pessoas haviam sentado a uma mesa no canto, duas pessoas que pareciam diferentes de todos os jeitos possíveis: uma mulherzinha que deveria ter uns 50 anos, encurvada sobre a mesa, parecendo um passarinho, e um jovem, alto, desajeitado e totalmente careca. Shadow concluiu que eram mãe e filho.

Ele se sentou a uma mesa no meio do salão.

A velha camareira trouxe uma bandeja. Ela serviu a cada um dos dois outros hóspedes uma tigela de sopa. O homem começou a soprar a sopa para esfriá-la. A mulher bateu com força nas costas da mão dele com a colher.

— Pare com isso — ralhou. Ela começou a tomar a sopa, sorvendo as colheradas cora barulho.

O careca correu os olhos pelo salão, tristemente. Seu olhar cruzou com o de Shadow, e Shadow o cumprimentou baixando levemente a cabeça. O homem suspirou e voltou à sua sopa fumegante.

Shadow olhou para o cardápio sem entusiasmo. Já sabia o que ia pedir, mas a camareira desaparecera novamente.

Num vislumbre acinzentado, o doutor Gaskell assomou à porta do restaurante. Ele entrou no salão e se aproximou da mesa de Shadow.

— Importa-se se eu me sentar com você?

— De jeito nenhum. Por favor, sente-se. Ele se sentou diante de Shadow.

— Passou bem o dia?

— Maravilhosamente bem. Caminhei.

— É o melhor jeito de abrir o apetite. Bem, amanhã bem cedo vão mandar um carro aqui para pegar você. Prepare suas coisas. Alguém vai te levar até a mansão e explicar o serviço.

— E o dinheiro? — perguntou Shadow.

— Eles cuidarão disso. Melado adiantado, metade no final. Mais alguma coisa que queira saber?

A camareira estava na lateral do salão, olhando-os, sem fazer menção de se aproximar.

— Sim. O que eu preciso fazer pra pedir comida aqui?

— O que vai querer? Recomendo a costela de carneiro. O carneiro é daqui mesmo.

— Boa idéia.

Gaskell pediu em voz alta:

— Com licença, Maura, desculpe incomodar, mas pode trazer costela de carneiro para nós?

Ela apertou os lábios e voltou para a cozinha.

— Obrigado — agradeceu Shadow.

— Não há de quê. Mais alguma coisa em que eu possa ajudar?

— Sim. Essas pessoas que vêm para a festa. Por que elas mesmas não contratam os seguranças? Por que me contratar?

— Elas vão fazer isso, não tenho dúvida — explicou Gaskell. — Vão trazer seus próprios seguranças. Mas é bom ter um talento local.

— Mesmo quando o talento local é um turista estrangeiro?

— Mesmo assim.

Maura trouxe duas tigelas de sopa e as pôs diante de Shadow e do médico.

— Faz parte do pedido — disse.

A sopa estava quente demais e seu gosto lembrava tomate reconstituído e vinagre. Shadow estava tão faminto que tomou quase a tigela inteira antes de perceber que a sopa não o agradara.

— Você disse que eu era um monstro — Shadow falou para o homem cinza-aço.

—Eu disse?

—Disse.

— Bem, há muitos monstros nesta parte do mundo. — Ele acenou com a cabeça para o casal no canto. A mulherzinha pegara seu guardanapo, molhara a ponta em seu copo d'água, e estava esfregando vigorosamente as manchas de sopa vermelha da boca do queixo do filho. Ele parecia constrangido. — Aqui é longe de tudo. Não aparecemos no noticiário, a não ser quando um turista ou um alpinista se perde ou morre de fome. A maioria das pessoas esquece que estamos aqui.

A costela de carneiro chegou, numa travessa com batatas cozidas demais, cenouras cozidas de menos e algo marrom e úmido que Shadow presumiu um dia já ter sido espinafre. Ele começou a cortar a costela com a faca. O medico pegou a sua com os dedos e começou a mordê-la.

— Você já esteve lá — disse o médico. — Lá?

— Na prisão. Você já esteve preso. — Não era uma pergunta.

— Sim.

— Então sabe brigar. Pode machucar alguém, se for preciso.

— Se precisa de alguém pra machucar pessoas, acho que não sou o cara ideal.

O homenzinho sorriu com lábios engordurados.

— Tenho certeza de que é. Eu só perguntei. Perguntar não ofende. Bem. Ele é um monstro — disse, apontando para o outro lado do salão com a costela toda mordiscado. O careca estava comendo um tipo de pudim branco com uma colher. — A mãe dele também.

— Não me parecem monstros — comentou Shadow.

— Desculpe, só estou provocando você. É o senso de humor local. Deveriam avisar quem chega ao vilarejo sobre o meu jeito. "Cuidado, médico velho e doido em serviço. Fala de monstros." Perdoe este pobre velho. Não dê ouvidos a nada do que eu disser. — Ele mostrou os dentes manchados de fumo por um instante, depois limpou as mãos e a boca com o guardanapo. — Maura, pode trazer a conta. O jovem é meu convidado.

— Sim, doutor Gaskell.

— Lembre-se — advertiu o médico a Shadow. — Amanhã de manhã, às 8hl5, esteja no saguão. Não se atrase. Eles são gente ocupada. Se você não estiver lá, vão procurar outro, e você vai perder 1.500 libras por um fim de semana de trabalho. Com direito a um extra, se eles ficarem contentes.

Shadow resolveu tomar seu café no bar. Afinal, havia uma lareira lá. Esperava que ela aliviasse o frio de seus ossos. Gordon, da recepção, estava atrás do balcão.

— Jennie está de folga? — perguntou Shadow.

— O quê? Não, ela só estava dando uma mão. Sempre nos ajuda quando temos muito movimento.

— Posso pôr mais lenha na lareira?

— À vontade.

Se é assim que os escoceses tratam o verão, pensou Shadow, lembrando algo que Oscar Wilde dissera uma vez, eles não merecem ter essa estação.

O jovem careca entrou. Ele cumprimentou Shadow nervosamente com a cabeça. Shadow respondeu ao cumprimento. Shadow não conseguia ver nenhum pêlo nele: nada de sobrancelhas, nada de cílios. Isso lhe dava uma aparência infantil, incompleta. Shadow se perguntou se seria alguma doença, ou efeito colateral de quimioterapia, talvez. Ele cheirava a umidade.

— Ouvi o que ele disse — gaguejou o careca. — Disse que sou um monstro. Disse que minha mãe é um monstro também. Meus ouvidos são bons. Pouca coisa passa despercebida.

E suas orelhas eram boas também. Eram de um rosa translúcido e saltavam de sua cabeça como as barbatanas de um grande peixe.

—Você deve ouvir bem mesmo — comentou Shadow.

—Tá tirando pêlo de mim? — O tom de voz do careca se alterou. Parecia disposto a brigar. Ele era só um pouco menor do que Shadow, e Shadow era muito alto.

— Se isso significa o que imagino que signifique, de jeito nenhum. O careca assentiu.

— Ainda bem — disse. Ele engoliu seco e hesitou. Shadow se perguntou se não deveria dizer algo reconciliador, mas o careca continuou: — Não é culpa minha. Fazer tanto barulho. As pessoas vêm pra cá pra fugir do barulho. E tantas pessoas. Tem gente demais aqui, na verdade. Por que vocês não voltam pro lugar de onde vieram e param de fazer tanto barulho?

A mãe do homem apareceu à porta. Ela sorriu nervosa para Shadow e se aproximou rapidamente do filho. Puxou-o pela manga.

— Ora, ora disse. Não fique todo exaltado a troco de nada. Está tudo bem. — Ela olhou para Shadow, tímida, apaziguadora. Desculpe. Ele não falou por mal. Um pedaço de papel higiênico estava grudado na sola do seu sapato, e ela não percebera.

Está tudo bem — apaziguou Shadow. — É bom conhecer gente nova. Ela assentiu.

— Tudo bem, então — concordou. Seu filho parecia aliviado. Ele tem medo dela, pensou Shadow.

— Vem, querido — a mulher disse para o filho. Puxou-o pela manga, e ele a seguiu até a porta.

Então ele parou, teimosamente, e se virou.

— Diz pra eles — pediu o jovem careca —, pra não fazer tanto barulho.

— Eu vou dizer — respondeu Shadow.

— É que eu consigo ouvir tudo.

— Não se preocupe — disse Shadow.

— No fundo, ele é um bom menino — explicou a mãe do jovem careca, e puxou seu filho pela manga corredor afora, arrastando a flâmula de papel higiênico.

Shadow foi até o saguão.

— Com licença — chamou.

Eles se viraram, o homem e sua mãe.

—Tem uma coisa grudada no seu sapato.

Ela olhou para baixo, pisou no papel e levantou o outro pé, soltando a tira. Acenou com a cabeça para Shadow, agradecida, e foi embora. Shadow foi até o balcão da recepção.

— Gordon, você tem um bom mapa local?

— Como o da Ordenance Survey?[19] Claro. Vou pegar pro senhor.

Shadow voltou para o bar e terminou de tomar seu café. Gordon trouxe um mapa. Shadow ficou impressionado com a quantidade de detalhes: parecia indicar até as trilhas usadas pelos bodes. Ele o inspecionou meticulosamente, traçando o percurso de sua caminhada. Encontrou a colina onde parará para almoçar. Ele correu o dedo para o sudoeste.

— Não tem muitos castelos por aqui, certo?

— Infelizmente, não. Tem alguns ao leste. Tenho um guia dos castelos da Escócia, se o senhor quiser...

— Não, não. Tudo bem. Tem algum casarão nesta região? Que poderia ser chamado de castelo? Ou alguma mansão bem grande?

— Bom, tem o Hotel Cabo Wrath, aqui — e o apontou no mapa. — Mas é uma área bem deserta. Tecnicamente, quanto à ocupação humana, como chamam isso? Densidade populacional. Aqui é um deserto. Não tem nem ruínas interessantes, infelizmente. Nenhuma que dê pra visitar a pé.

Shadow agradeceu e pediu para ser acordado bem cedo. Ele queria ter conseguido encontrar no mapa a casa que vira do alto do morro, mas talvez tivesse procurado no lugar errado. Não seria a primeira vez.

O casal no quarto ao lado estava brigando ou transando. Shadow não sabia o que estavam fazendo, mas, a cada vez que ia pegar no sono, alguém falava em voz alta ou gritava, e ele acordava, sobressaltado.

Mais tarde, ele não tinha certeza se acontecera mesmo, se ela fora realmente procurá-lo ou se aquele fora o primeiro dos sonhos daquela noite, mas na realidade ou em sonhos, pouco antes da meia-noite, de acordo com o rádio-relógio de cabeceira, alguém bateu na porta do seu quarto. Ele se levantou e perguntou:

— Quem é?

— Jennie.

Ele abriu a porta, ofuscado pela luz do corredor.

Ela estava envolta em seu casaco marrom, e olhou para ele com hesitação.

— Sim? — perguntou Shadow.

— Você vai para aquela casa amanhã? — ela disse.

—Sim.

- Achei melhor vir me despedir. Caso eu não veja você de novo. Caso você não volte pro hotel. Caso você vá pra algum outro lugar e a gente nunca mais se veja.

—Bem, adeus, então — despediu-se Shadow.

Ela o olhou de alto a baixo, examinando a camiseta e a cueca que ele usava para dormir, seus pés descalços, depois o seu rosto. Parecia preocupada.

— Você sabe onde eu moro — ela disse, finalmente. — Se precisar, me chame.

Ela tocou delicadamente os lábios dele com o indicador. Seu dedo estava gelado. Depois, deu um passo para trás no corredor e ficou ali, de frente para ele, sem fazer menção de ir embora.

Shadow fechou a porta do quarto e ouviu os passos dela se afastando no corredor. Ele voltou para a cama.

O próximo sonho, ele tinha certeza de que era um sonho. Era a sua vida, confusa e distorcida: uma hora ele estava na prisão, treinando truques com moedas e pensando que seu amor por sua esposa o ajudaria a suportai aquilo. Depois Laura estava morta e ele estava em liberdade, trabalhando como guarda-costas de um velho estelionatário que queria ser chamado de Wednesday. E então seu sonho se encheu de deuses: deuses velhos e esquecidos, mal-amados e abandonados, e novos deuses, coisas assustadas e transitórias, iludidas e confusas. Era um emaranhado de absurdos, uma cama-de-gato que virou uma rede que virou uma teia que virou um novelo do tamanho do mundo...

Em seu sonho, ele morreu na árvore.

Em seu sonho, ele voltou da morte.

E depois disso houve escuridão.

 

O telefone ao lado da cama tocou às 7 horas. Ele tomou banho, fez a barba, vestiu-se, pôs seu mundo na mochila. Depois desceu ao restaurante para o café-da-manhã: mingau salgado, bacon mole e ovos fritos encharcados de óleo. Mas o café estava surpreendentemente bom.

Às 8hl0, estava no saguão, esperando.

Às 8hl4, um homem vestindo um casaco de couro de ovelha entrou. Estava tragando um cigarro feito à mão. O homem estendeu a mão alegremente.

— Você deve ser o senhor Moon. Meu nome é Smith — apresentou-se. — Eu vou levá-lo até a mansão. — Seu aperto de mão era firme. — Você é grande mesmo, não?

Ele não disse: "Mas eu dou conta de você", embora Shadow soubesse que isso estava implícito. Shadow respondeu:

— É o que dizem. Você não é escocês.

— Eu não, amigo. Só estou passando a semana aqui pra garantir que tudo corra a contento. Sou de Londres. — Dentes apareceram rapidamente em sua cara ossuda. Shadow supôs que o homem tivesse 40 e tantos anos. — Vem pro carro. Eu explico tudo no caminho. Aquela é a sua bagagem?

Shadow levou sua mochila para o carro, um Land Rover enlameado, com o motor ligado. Ele a colocou no banco de trás e sentou no lugar do passageiro. Smith deu uma última tragada em seu cigarro, então pouco mais que uma bituca de papel branco, e o jogou na estrada pela janelinha aberta.

Eles saíram do vilarejo.

— Como eu pronuncio seu nome? — perguntou Smith? — Bal-der, Borl-der, ou de outro jeito? Por exemplo, Cholmondely, na verdade, se pronuncia Chumley.

— Shadow — respondeu Shadow. — Todos me chamam de Shadow.

— Certo. Silêncio.

— Então, Shadow. Não sei quanto o velho Gaskell explicou sobre a festa no fim de semana.

— Um pouco.

— Certo. Bom, a coisa mais importante que você precisa saber é a seguinte: aconteça o que acontecer, boca fechada. Seja o que for que você vir, gente se divertindo um pouco, não diga nada a ninguém, mesmo se reconhecer alguém, se é que me entende.

— Eu não reconheço ninguém — disse Shadow.

— Esse é o espírito. Só estamos aqui pra garantir que todos se divirtam sem serem incomodados. Eles vieram de longe pra ter um fim de semana legal.

— Entendi.

Eles chegaram ao atracadouro da balsa que cruzava o lago até o cabo. Smith estacionou o Land Rover do lado da estrada, pegou as malas e trancou o carro.

Do outro lado da travessia, um Land Rover idêntico esperava por eles. Smith o destrancou, jogou as malas no banco de trás, e os dois enveredaram pela trilha de terra.

Eles pegaram uma bifurcação antes de chegar ao farol, percorreram em silêncio uma estradinha de terra que logo se tornou uma picada estreita. Várias vezes, Shadow teve que descer e abrir porteiras. Ele esperava o Land Rover passar e as fechava de novo.

Havia corvos nos campos e nos muros baixos de pedra, grandes pássaros negros que olhavam para Shadow com olhos implacáveis.

— Então você esteve no xadrez? — perguntou Smith de repente.

— Perdão?

— Prisão. Cadeia. Cana. Outras palavras que lembram comida ruim, nenhuma vida noturna, saneamento básico inadequado e pouquíssimas oportunidades de viagem.

— Sim.

— Você não é de falar muito, certo?

— Pensei que isso fosse uma virtude.

— Tem razão. Só quero conversar. O silêncio está me dando nos nervos. Está gostando daqui?

— Acho que sim. Cheguei há poucos dias.

— Essa porra me dá calafrios. Aqui é escondido demais. Conheço partes da Sibéria que são mais acolhedoras. Já esteve em Londres? Não? Quando você for pro sul, te levo pra passear. Ótimos pubs. Comida de verdade. E tem todos aqueles troços turísticos que vocês americanos adoram. Mas o trânsito é um inferno. Pelo menos aqui dá pra dirigir. Não tem nenhuma merda de semáforo. Tem um no final da Regent Street, juro por Deus, você fica cinco minutos esperando no vermelho, depois tem uns dez segundos de verde. Dois carros no máximo. E ridículo. Dizem que é o preço do progresso. Certo?

— É — assentiu Shadow. — Acho que sim.

Eles estavam bem longe da estrada, sacolejando num vale cheio de mato entre dois morros altos.

— Os convidados vão chegar de Land Rover? — perguntou Shadow.

— Não. Nós temos helicópteros. Eles virão pro jantar hoje à noite. Os helicópteros os trazem e os levam embora na manha de segunda. É como morar numa ilha. Eu gostaria que estivéssemos numa ilha. Aí os malucos locais não causariam problemas, certo? Ninguém reclama do barulho vindo da ilha vizinha.

— Essa festa de vocês faz muito barulho?

— A festa não é minha, parceiro. Eu sou apenas um facilitador. Faço tudo correr direitinho. Mas... sim. Parece que eles fazem bastante barulho quando estão a fim.

O vale verdejante virou uma trilha e a trilha virou um caminho calçado quase reto, morro acima. Depois de uma curva suave e outra fechada, eles se aproximaram de uma casa que Shadow reconhecia. Jennie a apontara no dia anterior, no almoço.

A casa era velha. Isso ele percebeu na hora. Partes dela pareciam mais velhas: havia um muro numa ala, feito de pedras e seixos acinzentados, grosso e opressivo. Esse muro acabava perpendicularmente em outro, feito de tijolos marrons. O telhado que cobria toda a construção, ambas as alas, era urna laje cinza-escura. A casa dava para um caminho de cascalho, e para o loch ao pé do morro. Shadow saiu do Land Rover. Ele olhou para a construção e se sentiu pequeno. Sentia que estava voltando para casa, e não era uma sensação boa. Havia vários outros veículos 4x4 estacionados no cascalho.

— As chaves dos carros estão penduradas na despensa, caso você precise manobrar algum. Eu te mostro no caminho.

Passaram por uma grande porta de madeira e entraram num pátio central, parcialmente pavimentado. Havia uma pequena fonte no meio do pátio, e uma área gramada, entremeada de capim, cercada por pedras cinzentas.

— É aqui que a festa vai rolar no sábado à noite — explicou Smith. — Vou mostrar onde você vai ficar.

Eles entraram numa ala menor através de uma porta comum, passaram por uma sala cheia de chaves etiquetadas penduradas em ganchos e outra saiu repleta de prateleiras vazias. Andaram por um corredor decrépito e subiram com o qual Shadow começava a se familiarizar — mais frio dentro de casa do que fora. Ele se perguntou como faziam isso, se era um segredo das construções britânicas.

Smith levou Shadow para a parte superior da casa e o conduziu até um quarto escuro, onde havia um guarda-roupa antigo, uma cama de ferro de solteiro, que Shadow percebeu num olhar ser pequena demais para ele, uma pia velha e uma janelinha que dava para o pátio interno.

— Tem um lavabo no fim do corredor — disse Smith. — O banheiro dos empregados fica no andar de baixo. Dois banheiros, um pros homens, outro pras mulheres, sem chuveiros. O fornecimento de água quente para esta ala da casa é bem limitado, infelizmente. Seu uniforme de pingüim está no guarda-roupa. Experimente, veja se serve em você direitinho, depois deixe guardado até a noite, quando os convidados vão chegar. Não temos muito acesso à lavanderia. É como se estivéssemos em Marte. Se precisar de mim, estou na cozinha. Lá é menos frio, quando o Aga está aceso. Desça as escadas, vire à esquerda, depois à direita. Se você se perder, grite. Não vá pras outras alas sem ser chamado.

Ele deixou Shadow sozinho.

Shadow vestiu a camisa social branca, a gravata borboleta e o paletó preto do smoking. Também havia sapatos pretos muito lustrosos. Tudo serviu perfeitamente, como se tivesse sido feito sob medida. Ele colocou o traje de volta no guarda-roupa.

Ele desceu as escadas e encontrou Smith no térreo, irritado com um pequeno celular prateado.

— Fora de área. O negócio tocou e, agora que estou tentando retornar a ligação, não tem sinal. Parece que estamos na Idade da Pedra. Que tal o smoking? Tudo certo?

— Perfeito.

— Esse é o cara. Pra que usar cinco palavras se uma só dá conta do recado, hein? Já conheci gente morta que falava mais do que você.

— Mesmo?

— Brincadeira. Venha. Quer comer algo?

— Claro. Obrigado.

— Certo. Siga-me. Isto aqui parece um labirinto, mas logo você pega o jeito.

Eles comeram na cozinha grande e vazia. Shadow e Smith empilharam, em pratos de ágata, fatias finas de salmão defumado sobre pão branco crocante e fatias de queijo picante, tudo acompanhado por canecas de chá doce e forte. O Aga era, Shadow descobriu, uma grande caixa de metal, parte forno, parte aquecedor de água. Smith abriu uma das suas muitas portas laterais e enfiou nela várias pás cheias de carvão.

— E onde está o resto da comida? E os garçons, os cozinheiros? — perguntou Shadow. — Tem que ter mais gente além de nós.

— Muito observador. Tudo virá de Edimburgo. Vai funcionar como um relógio. A comida e os criados da festa vão chegar às 3 horas, e eles vão preparar seus apetrechos. Os convidados serão trazidos às 6. O jantar, estilo bufê, será servido às 8. Todos vão conversar bastante, comer, dar risada, nada muito extenuante. Amanhã, o café-da-manhã será das 7 ao meio-dia. Os convidados vão fazer caminhadas, passeios turísticos, tudo isso à tarde. Fogueiras serão preparadas no pátio. Quando anoitecer, as fogueiras serão acesas e todos vão ter um sábado à noite bem louco no norte, sem serem incomodados pelos nossos vizinhos, espero. Domingo de manhã, vamos andar na ponta dos pés, em respeito à ressaca de todo mundo, e à tarde os helicópteros chegam, e nós mandamos todos pra casa. Seu pagamento será entregue e eu o levo de volta pro hotel. Ou você pode ir pro sul comigo, se quiser mudar de ares. Está bom assim?

— Está ótimo — respondeu Shadow. — E o pessoal que pode aparecer no sábado à noite?

— Só uns estraga-prazeres. Locais que querem atrapalhar a diversão de todos.

— Que locais? Aqui só tem ovelhas por quilômetros.

— Locais. Estão em toda parte. Você só não os vê. Se escondem, como Sawney Beane e sua família.

— Acho que já ouvi falar dele. O nome me é familiar...

— É uma figura histórica — disse Smith. Ele tomou um gole de chá e reclinou-se na cadeira. — Isso foi, tipo, há 600 anos, depois que os vikings já tinham se mandado de volta pra Escandinávia, ou se miscigenado e se convertido até virarem só mais um bando de escoceses, mas antes de a rainha Elizabeth morrer e de James descer da Escócia pra governar os dois países. Mais ou menos nessa época. — Ele tomou outro gole de chá. — Então. Viajantes sumiam a toda hora na Escócia. Não era tão fora do comum. Isto é, quando você fazia uma viagem longa, naquela época, nem sempre você voltava. Às vezes se passavam meses até alguém se dar conta de que você não voltaria mais, e aí todos punham a culpa nos lobos ou no mau tempo, e resolviam viajar em grupos, e só no verão. Um viajante, porém, estava cavalgando com vários companheiros por um vale, quando do outro lado da colina, das árvores, do chão, surgiu um enxame, uma matilha, um bando de crianças, armadas com adagas, punhais, bastões de osso e porretes enormes, e elas derrubaram os viajantes dos cavalos, caíram em cima deles e acabaram com iodos. Todos, menos um camarada, que estava viajando um pouco atrás dos outros e conseguiu escapar. Foi o único, mas basta um, não? Ele chegou à cidade mais próxima, deu o alarme, e o povo reuniu uma tropa de cidadãos e soldados e voltou pra lá com cães. Levaram dias pra achar o esconderijo. Já estavam pra desistir quando, na entrada de uma caverna perto da praia, os cães começaram a uivar. E eles entraram. Descobriram que havia cavernas no subsolo, e na maior e mais funda delas estava o velho Sawney Beane e sua ninhada, e carcaças penduradas em ganchos, defumadas e assadas em fogo lento. Pernas, braços, coxas, mãos e pés de homens, mulheres e crianças estavam pendurados, enfileirados, feito carne-seca suína. Havia membros em conserva, salgados, como carne-de-sol. Havia montes de dinheiro, ouro e prata, relógios, anéis, espadas, pistolas e roupas, riquezas inimagináveis, porque eles jamais gastavam um tostão. Só ficavam nas suas cavernas, comiam, se multiplicavam e alimentavam seu ódio. Ele morava ali fazia anos. Rei do seu pequeno reino particular, o velho Sawney, ele e sua esposa, e seus filhos e netos, e alguns dos netos também eram seus filhos. Povinho incestuoso.

— Isso realmente aconteceu?

— Foi o que ouvi dizer. Existem atas do julgamento. Eles levaram a família pra Leith pra ser julgada. O veredicto da corte foi interessante: eles decidiram que Sawney Beane, em virtude de seus atos, não podia mais ser considerado humano. Assim, eles o sentenciaram como um animal. Não o enforcaram nem decapitaram. Só acenderam uma grande fogueira e jogaram os Beanies nela, pra queimar até morrer.

— A família toda?

— Não me lembro. Talvez tenham queimado as crianças, talvez não. Provavelmente queimaram. Nesta parte do mundo eles costumam lidar com monstros de maneira bastante eficiente.

Smith lavou os pratos e as canecas na pia e os deixou no escorredor para secar. Os dois homens saíram para o pátio. Smith enrolou um cigarro com destreza. Lambeu o papel, alisou-o com os dedos e o acendeu com um Zippo.

— Vejamos. O que você precisa saber sobre hoje à noite? Bem, o básico é simples: só fale quando lhe dirigirem a palavra, não que isso seja um problema pra você, hein?

Shadow não disse nada.

— Certo. Se um dos convidados pedir alguma coisa, faça o que puder para providenciar, pergunte pra mim se estiver em dúvida, mas faça o que os convidados pedirem, contanto que não atrapalhe o que você estiver fazendo nem viole a regra principal.

— Que seria?

— Não. Coma. As gostosinhas ricas. Depois de tomar meia garrafa de vinho, com certeza algumas mocinhas vão enfiar na cabeça que estão precisando levar um amasso. Caso isso aconteça, dê uma de Sunday People.

— Não faço a menor idéia do que isso quer dizer.

— Nosso repórter pediu licença e se retirou. Certo? Você pode olhar, mas não tocar. Entendeu?

— Entendi.

— Garoto esperto.

Shadow notou que começava a gostar de Smith. Ele disse a si mesmo que isso não era sensato. Conhecera outras pessoas como Smith, pessoas sem consciência, sem escrúpulos, sem coração, e todas eram igualmente perigosas e agradáveis.

No início da tarde, os criados chegaram, trazidos por um helicóptero que parecia militar. Eles descarregaram, com eficiência assombrosa, caixas de vinho e caixotes de comida, cestos e contêineres. Havia caixas cheias de guardanapos e toalhas de mesa. Havia cozinheiros e garçons, garçonetes e camareiras.

Mas os primeiros a descer do helicóptero foram os seguranças: homens enormes, robustos, com fones de ouvido e o que Shadow não duvidava que fossem armas sob os paletós. Eles se apresentaram, um por um, a Smith, que os mandou inspecionar a casa e o jardim. Shadow estava ajudando a carregar caixas cheias de hortaliças do helicóptero para a cozinha. Conseguia levar o dobro dos outros. Ao passar por Smith, ele parou e disse:

— Se vocês têm todos esses seguranças, o que eu estou fazendo aqui?

Smith sorriu, afável.

— Olha aqui, filho. Tem gente vindo pra esta festa que tem mais dinheiro do que você ou eu vamos ver em toda a nossa vida. Eles precisam ter certeza de que serão bem cuidados. Seqüestros acontecem. As pessoas têm inimigos. Muita coisa pode acontecer. Mas com estes sujeitos por aqui, nada vai acontecer. Só que pedir que eles cuidem de moradores locais revoltados seria como colocar minas terrestres pra evitar penetras. Certo?

— Certo — concordou Shadow. Ele voltou para o helicóptero, pegou outra caixa onde se lia baby aubergines, cheia de pequenas berinjelas negras, colocou-a em cima de um caixote de repolhos e levou os dois volumes para a cozinha, certo de que mentiam para ele. A resposta de Smith fazia sentido. Era até convincente. Mas simplesmente não era verdade. Não havia nenhum motivo para a sua presença ali ou, se havia, não era o motivo que lhe apresentaram.

Ele ruminou isso, tentando entender por que estava naquela casa, e torceu para que suas dúvidas não ficassem muito evidentes. Shadow guardava tudo dentro de si. Era mais seguro.

 

Mais helicópteros pousaram à noitinha, quando o céu estava ficando rosado, 20 ou mais pessoas elegantes saíram deles. Várias sorriam e gargalhavam. A maioria estava na casa dos 30 ou 40 anos de idade. Shadow não reconheceu ninguém.

Smith ia casual, mas gentilmente, de um para outro, cumprimentando todos com segurança.

— Certo, siga por ali, vire à esquerda e espere no salão. Tem um belo lago lá. Alguém vai levá-lo ao seu quarto. Sua bagagem já deve estar lá. Caso não esteja, me chame, mas vai estar. Olá, milady, a senhora está fenomenal. Quer que eu chame alguém para levar a sua bolsa? Não vê a hora que amanhã chegue? Como todos nós.

Shadow observava, fascinado, Smith falando com cada um dos convidados, seus modos, a exata mistura de familiaridade e deferência, de amabilidade e charme cockney: a entonação dos agás, das consoantes e das vogais se transformava de acordo com o interlocutor.

Uma mulher morena, de cabelo curto, muito linda, sorriu para Shadow quando ele levou suas malas para dentro.

— Gostosinha rica — resmungou Smith, ao passar por ele. — Não encosta.

Um homem corpulento que, Shadow calculou, devia ter 60 e poucos anos, foi o último a descer do helicóptero. Ele se aproximou de Smith, apoiou-se numa bengala de madeira barata e disse algo em voz baixa. Smith respondeu da mesma forma.

Ele está no comando, pensou Shadow. A linguagem corporal indicava isso. Smith não estava mais sorrindo, bajulando. Estava relatando, discreta e eficientemente, tudo o que o velho precisava saber.

Smith apontou para Shadow, que andou rapidamente até eles.

— Shadow — apresentou Smith. — Este é o senhor Alice.

O senhor Alice estendeu a mão e apertou a de Shadow, grande e escura, com a sua, gordinha e rosada.

— É um grande prazer conhecê-lo — ele disse. — Ouvi falar boas coisas a seu respeito.

— O prazer é meu — respondeu Shadow.

— Bem — continuou o senhor Alice —, prossiga, Smith dispensou Shadow com um movimento de cabeça.

— Se você concordar — Shadow pediu a Smith -, gostaria de dar uma olhada nos arredores enquanto ainda está claro. Pra ver de onde os locais podem vir.

— Não se afaste muito — recomendou Smith. Ele pegou a valise do senhor Alice e conduziu o velho até a casa.

Shadow percorreu o perímetro da casa. Ele tinha sido enganado. Não sabia por quê, mas estava certo disso. Coisas demais não batiam. Por que contratar um forasteiro para fazer a segurança e ao mesmo tempo trazer seguranças profissionais? Não fazia sentido, não mais sentido do que Smith apresentá-lo ao senhor Alice depois que duas dúzias de pessoas haviam tratado Shadow como se ele fizesse parte da decoração.

Havia um muro de pedra baixo diante da casa. Atrás dela, uma colina que era quase uma pequena montanha e, na frente, uma encosta suave que descia até o loch. Para um lado ficava o caminho por onde eles haviam chegado naquela manhã. Ele andou na direção oposta e encontrou o que parecia ser uma horta, com um muro alto de pedra e mato atrás dele. Ele desceu um degrau até a horta e foi inspecionar o muro.

— Fazendo um reconhecimento? — perguntou um dos seguranças, de smoking preto. Shadow não o vira, o que significava, pensou, que ele era muito eficiente. Como a maior parte da criadagem, seu sotaque era escocês.

— Só dando uma olhada.

— Sondar o terreno, ótima idéia. Não se preocupe com este lado da casa. Cem metros pra lá tem um rio que corre pro lago, e pra lá dele, apenas rocha úmida por uns 30 metros, bastante íngreme. Bem perigosa.

— Oh. E os locais, os que vêm reclamar, chegam de onde?

— Não faço a mínima idéia.

— Eu deveria ir lá e dar uma olhada. Pra ver se identifico os caminhos.

— Se eu fosse você, não faria isso. É muito perigoso. Se você estiver andando por ali e escorregar, vai rolar nas pedras até cair no lago. E, se cair lá, nunca mais acham seu corpo.

— Entendo — disse Shadow, que tinha entendido mesmo.

Ele continuou andando em volta da casa. Avistou mais cinco seguranças, agora que estava atento a eles. Tinha certeza de que havia outros que ele não vira.

Na ala principal da casa ele via, através das portas-janelas, um salão de jantar amplo, revestido em madeira, e os convidados sentados à mesa, conversando e rindo.

Ele voltou para a ala dos empregados. Depois que cada prato era servido, as travessas que voltavam eram colocadas numa mesa lateral e os empregados se serviam, empilhando montes de comida em pratos de papel. Smith estava sentado à mesa de madeira da cozinha, devorando um prato de salada e bife malpassado.

Tem caviar ali — ele disse a Shadow. — É Golden Osetra, de primeira, muito especial. Aquele que os figurões do partido costumavam guardar pra si próprios, antigamente. Nunca fui muito fã desse troço, mas sirva-se.

Shadow pôs uma porção do caviar em seu prato, só por educação. Pegou ovinhos cozidos, macarrão e um pouco de frango. Sentou-se ao lado de Smith e começou a comer.

— Não sei de onde poderiam vir os tais locais — comentou. — Seus homens estão vigiando a entrada. Quem quisesse chegar aqui teria que vir pelo lago.

— Você deu uma boa olhada, então?

— Sim.

— Encontrou alguns dos meus rapazes?

— Sim.

— E o que você achou?

— Eu não me meteria com eles.

Smith deu um sorrisinho:

—Um cara grandão como você? Saberia se cuidar.

— Eles são assassinos — disse Shadow, sem rodeios.

— Só quando é preciso — ressalvou Smith.

Ele não estava mais sorrindo.

— Por que não vai ficar no seu quarto? Eu dou um berro quando precisar de você.

— Claro — concordou Shadow. — E, se você não precisar de mim, este fim de semana vai ser moleza.

Smith o encarou:

— Você fará por merecer seu dinheiro.

Shadow subiu as escadas dos fundos até o longo corredor na parte superior da casa e entrou no quarto. Podia ouvir o ruído da festa, e olhou pela janelinha. As portas-janelas em frente estavam escancaradas, e os convidados, agora de casaco e luvas, segurando suas taças de vinho, haviam invadido o pátio interno. Ele ouvia fragmentos distorcidos de conversas. O ruído era audível, mas as palavras e o sentido se perdiam. Uma frase aqui, outra ali se desprendiam do burburinho. Um homem disse: "Falei pra ele, juízes como você, eu não possuo, eu vendo...". Shadow ouviu uma mulher dizendo: "É um monstro, querida. Um verdadeiro monstro. Fazer o quê?". E outra comentando: "Bem, eu queria que o do meu namorado fosse assim!". E, então, gargalhadas.

Ele tinha duas alternativas. Podia ficar ou tentar ir embora.

— Eu vou ficar — falou para si mesmo em voz alta.

 

Foi uma noite de sonhos traiçoeiros.

No primeiro sonho de Shadow, ele estava de volta aos Estados Unidos, perto de um poste de iluminação pública. Deu alguns passos, empurrou uma porta de vidro e entrou numa lanchonete, daquelas que já foram o vagão-restaurante de um trem. Ele podia ouvir um velho cantando, numa voz grave e rouca, com a melodia de "My Bonnie Lies Over the Ocean":

"Vovô vende preservativos

Com furos nas pontas, porém

Vovó faz abortos num beco

Meu Deus, quanta grana eles têm."

Shadow percorreu o vagão-restaurante. Um homem grisalho estava sentado a uma mesa na ponta do vagão, segurando uma garrafa de cerveja e cantando: "Meu Deus, meu Deus, meu Deus, quanta grana eles têm". Quando viu Shadow, seu rosto se abriu num grande sorriso de macaco. e ele fez um gesto com a garrafa de cerveja.

— Senta aqui, senta aqui — disse.

Shadow sentou-se de frente para o homem que ele conhecera como Wednesday.

— Então, qual o problema? — perguntou Wednesday, morto fazia quase dois anos, ou tão morto quanto esse tipo de ser conseguia estar. — Eu te ofereceria uma cerveja, mas o serviço aqui é péssimo.

Shadow disse que não tinha problema. Ele não queria cerveja.

— E então? — repetiu Wednesday, coçando a barba.

— Estou num casarão na Escócia com uma caralhada de gente muito rica, e essa gente está armando alguma coisa. Estou encrencado e não sei qual é o tipo da encrenca. Mas acho que é das grandes.

Wednesday tomou um gole de cerveja.

— Os ricos são diferentes, meu filho — comentou ele, depois de um instante.

— Que diabos quer dizer com isso?

— Bem. Pra começar, a maioria deles provavelmente é mortal. Algo com que você não precisa se preocupar.

— Não me venha com essa merda.

— Mas você não é mortal! Você morreu na árvore, Shadow. Morreu e voltou.

— E daí? Nem lembro como fiz aquilo. Se me matarem desta vez, morro do mesmo jeito.

Wednesday terminou sua cerveja. Depois balançou a garrafa, como se estivesse conduzindo uma orquestra invisível com ela, e cantou mais uma estrofe:

"Meu maninho e um missionário,

Que salva vadias e faz o bem

Por três paus te salva uma ruiva,

Meu Deus, quanta grana ele tem."

— Você não está ajudando — observou Shadow. A lanchonete se transformara num vagão de trem que chocalhava em meio a uma nevasca noturna. Wednesday largou a garrafa e olhou para Shadow com seu olho de verdade, o que não era de vidro.

— São padrões — disse. — Se eles acham que você é um herói, estão enganados. Depois que você morre, não pode mais ser Beowulf, Perseu ou Rama. Todas as regras mudam. Xadrez, não damas. GO, não xadrez. Entendeu?

— Nem um pouquinho — respondeu Shadow, frustrado.

 

Pessoas andando pelo casarão, bêbadas, fazendo barulho e pedindo silêncio umas às outras enquanto cambaleavam e davam risadinhas corredor adentro.

Shadow se perguntou se seriam empregados ou fugitivos da outra ala, explorando a parte pobre da mansão. E os sonhos o envolveram de novo...

Ele estava outra vez na cabana onde se abrigara da chuva no dia anterior. Havia um cadáver no chão: um menino de no máximo 5 anos. Nu, de costas, braços e pernas abertos. Houve um clarão de luz intensa, e alguém passou por dentro de Shadow, como se ele não estivesse lá, e mudou a posição dos braços do menino. Mais um clarão.

Shadow conhecia o homem que batia as fotografias. Era o doutor Gaskell, o homenzinho de cabelos cinza-aço do bar do hotel.

Gaskell puxou um saquinho de papel branco do bolso, tirou algo dele e enfiou na boca.

— Jujubas sortidas — disse para a criança no chão de pedra. — Delícia. Seu doce favorito.

Ele sorriu, agachou-se e tirou mais uma foto do menino morto.

Shadow atravessou a parede da cabana, fluindo através das fendas nas pedras como o vento. Ele deslizou para o litoral. As ondas explodiam contra os rochedos e Shadow continuou avançando sobre a água, naquele mar cinzento, subindo e descendo com os vagalhões, rumo ao navio feito de unhas de mortos.

O navio estava muito longe, em alto-mar, e Shadow deslizava na superfície da água como a sombra de uma nuvem.

O navio era enorme. Ele não havia percebido, antes, o quanto era grande. Uma mão desceu e agarrou seu braço, puxando-o para cima, do mar para o convés.

— Leve-nos de volta — pediu uma voz tão forte quanto o estrondo do mar, desesperada e feroz. — Leve-nos de volta ou deixe-nos ir embora. — Só um olho ardia naquele rosto barbado.

— Não estou mantendo vocês aqui.

Havia gigantes naquele navio, homens enormes, feitos de sombras e cristas congeladas de ondas, criaturas de sonho e de espuma.

Um deles, maior do que todos os outros, de barba ruiva, deu um passo à frente.

— Não podemos desembarcar — trovejou. — Não podemos ir embora.

— Vão para casa — disse Shadow.

— Viemos com nossa gente para esta terra do sul — explicou o homem de um olho só. — Mas eles nos deixaram. Procuraram outros deuses mais mansos e renunciaram a nós em seus corações, nos entregaram.

— Vão para casa — repetiu Shadow.

— Tempo demais se passou — informou o homem de barba ruiva. Shadow o reconheceu pelo martelo ao seu lado. — Sangue demais foi derramado. Você tem nosso sangue, Baldur. Liberte-nos.

E Shadow quis dizer que não era deles, que não era de ninguém, mas o cobertor fino caíra da cama, e seus pés não cabiam nela, e um luar fraco enchia o quarto do sótão.

Àquela hora, tudo era silêncio no casarão. Algo uivava nas colinas, e Shadow sentiu um calafrio.

Deitado numa cama pequena demais, ele imaginou o tempo como algo que se represava e empoçava, e se perguntou se haveria lugares onde o tempo pesava, lugares onde ele ficava amontoado e preso — cidades, pensou, devem ser cheias de tempo: tantos lugares onde as pessoas se congregam, aonde vão e levam tempo consigo. E se isso era verdade, Shadow ponderou, então devia haver outros lugares, onde as pessoas eram frágeis sobre a terra, e a terra esperava, amarga e rochosa, e mil anos eram um piscar de olhos para as colinas — uma revoada de nuvens, um ondular de juncos e nada mais, nos lugares onde o tempo era tão frágil quanto as pessoas sobre a terra...

— Eles vão matar você — sussurrou Jennie, a garçonete.

Shadow estava sentado ao lado dela, sobre a colina, ao luar.

— Por que fariam isso? — perguntou. — Eu não me importo.

— É isso que fazem com monstros. É o que precisam fazer. É o que sempre fizeram.

Ele esticou a mão para tocá-la, mas ela lhe deu as costas. Vista por trás, era vazia, oca. Ela virou de frente de novo.

— Vá embora — sussurrou.

— Você pode vir me encontrar — ele disse.

— Não posso. Há coisas no caminho. O caminho ali é difícil, e está vigiado. Mas você pode chamar. Se me chamar, eu irei.

Então veio a aurora, e com ela, uma nuvem de mosquitos do pântano ao pé da colina. Jennie os espantou com seu rabo, mas foi inútil: desceram sobre Shadow como uma nuvem, até que ele estava respirando mosquitos, seu nariz e sua boca se encheram daquelas coisinhas minúsculas, zumbindo e picando, e ele sufocava com a escuridão...

Ele se desvencilhou e voltou para sua cama, seu corpo e sua vida, para a vigília, com o coração pulando no peito, ofegante.

 

O café-da-manhã foi salmão defumado, tomate grelhado, ovos mexidos, torradas, duas lingüiças grossas e pequenas, e fatias de algo escuro, redondo e liso que Shadow não conseguiu identificar.

— O que é isto? — perguntou Shadow.

— Morcela preta — respondeu o homem sentado ao lado dele. Era um dos seguranças, e estava lendo o Sun do dia anterior enquanto comia. — Sangue e ervas. Eles cozinham o sangue até coalhar e formar uma espécie de casca de ferida escura, cheia de ervas. — Ele pôs algumas garfadas de ovo mexido sobre uma torrada e comeu-a com a mão. — Sei lá. Como é que dizem? A gente nunca deve querer saber como são feitas as leis e as salsichas? Alguma coisa assim.

Shadow comeu o que estava no prato, mas não tocou na morcela preta.

Havia um bule de café de verdade, quente e forte, e ele tomou uma caneca, para acordar e desanuviar a cabeça.

Smith entrou.

— Shadow, meu velho. Posso te pegar emprestado por cinco minutos?

— Você está pagando — disse Shadow.

Eles foram para o corredor.

— É o senhor Alice — explicou Smith. — Ele quer ter uma conversinha com você.

Eles passaram da esquálida ala caiada dos empregados para a vastidão revestida em madeira da velha mansão. Subiram a enorme escadaria de madeira e entraram numa ampla biblioteca. Não havia ninguém ali.

— Ele já vem — informou Smith. — Vou avisar que você está esperando. Os livros da biblioteca eram protegidos dos ratos, do pó e das pessoas por portas trancadas, de vidro reforçado com arame. Havia um quadro na parede, de um veado, e Shadow foi até lá olhar. O veado era altivo e imponente: atrás dele, um vale cheio de neblina.

— O Monarca do Vale — disse o senhor Alice, entrando vagarosamente, apoiando-se em sua bengala. — O quadro mais reproduzido da era vitoriana. Esse não é o original, mas foi copiado por Landseer no fim da década de 1850 de seu próprio quadro. Eu o adoro, embora com certeza não devesse. Foi Landseer quem fez também os leões da Trafalgar Square.

Ele foi até a sacada e Shadow o acompanhou. Abaixo deles, no pátio, empregados arrumavam mesas e cadeiras. Perto do laguinho no centro do pátio, outras pessoas, convidados, preparavam fogueiras com troncos e tábuas.

— Por que não mandam os empregados prepararem as fogueiras? — perguntou Shadow.

— Por que só eles deveriam se divertir? — questionou o senhor Alice. — Seria como mandar seu empregado entrar no mato, uma tarde, e caçar faisões para você. Quando você pega toda a lenha e a coloca no lugar perfeito, há algo de muito especial em fazer uma fogueira. Bem, é o que dizem. Eu nunca fiz isso. — Ele desviou o olhar da janela. — Sente-se — pediu. — Vou ficar com torcicolo de olhar para você aí no alto.

Shadow se sentou.

— Ouvi falar muito de você — continuou o senhor Alice. Já queria te conhecer faz tempo. Disseram que é um jovem esperto, que vai longe. Foi o que me disseram.

— Então o senhor não contratou apenas um turista para manter os vizinhos longe da sua festa?

— Bem, sim e não. Tínhamos alguns outros candidatos, obviamente. É que você era perfeito pro serviço. E, quando me dei conta de quem você ê... Bem, você foi realmente uma dádiva dos deuses, não foi?

— Não sei. Fui?

— Com certeza. Veja bem, esta festa acontece há muito tempo. Vem ocorrendo há quase mil anos ininterruptamente. E a cada ano há uma luta, entre o nosso lutador e o deles. E o nosso lutador vence. Este ano, nosso lutador é você.

— Quem... Quem são eles? E quem são vocês?.

— Eu sou o anfitrião — explicou o senhor Alice. — Acho que... — Ele parou por um momento e bateu com sua bengala no chão de madeira. — Eles são os que perderam, há muito tempo. Nós ganhamos. Nós éramos os cavaleiros e eles eram os dragões, nós éramos os matadores de gigantes e eles eram os ogros. Nós éramos os homens e eles eram os monstros. E nós ganhamos. Agora eles sabem qual é o seu lugar. E, esta noite, o mais importante é não deixar que se esqueçam. É pela humanidade que você vai lutar hoje. Não podemos deixar que eles saiam em vantagem. Nem um pouquinho. Somos nós contra eles.

— O doutor Gaskell disse que eu era um monstro.

— Doutor Gaskell? — perguntou o senhor Alice. — Amigo seu?

— Não — respondeu Shadow. — Ele trabalha pro senhor. Ou pras pessoas que trabalham pro senhor. Acho que ele mata crianças e tira fotos delas.

O senhor Alice deixou cair sua bengala. Ele se abaixou com dificuldade para pegá-la. Então disse:

— Bem, não acho que você seja um monstro, Shadow. Acho que você é um herói.

Não, pensou Shadow. Você acha que eu sou um monstro. Mas acha que eu sou o seu monstro.

— Olhe, se você se sair bem hoje à noite — continuou o senhor Alice —, e sei que se sairá bem, pode dizer o seu preço. Já se perguntou por que algumas pessoas são estrelas de cinema, ricas ou famosas? Aposto que você pensa: Ele não tem talento. O que ele tem que eu não tenho? Bem, às vezes a resposta é: ele tem o apoio de alguém como eu.

— Você é um deus? — perguntou Shadow.

O senhor Alice riu, então, uma gargalhada profunda, gutural.

— Muito boa, senhor Moon. De jeito nenhum. Sou só um rapaz de Streatham que deu certo na vida.

— E com quem vou lutar?

— Você vai conhecê-lo hoje à noite. Olhe, precisamos descer umas coisas do sótão. Por que não dá uma mãozinha ao Smithie? Para um cara grandão como você, vai ser moleza.

A audiência estava encerrada e, como se aquela fosse a sua deixa, Smith entrou.

— Eu acabei de dizer — continuou o senhor Alice —, que nosso rapaz aqui iria te ajudar a descer as coisas do sótão.

—Maravilha — disse Smith. — Vem, Shadow. Vamos lá pra cima.

Eles subiram, pelo interior da casa, uma escadaria de madeira escura, até uma porta fechada com cadeado que Smith destrancou e que dava para um sótão de madeira, empoeirado, cheio de pilhas do que pareciam ser...

— Tambores? — perguntou Shadow.

— Tambores — repetiu Smith.

Eram feitos de madeira e de couro de animais. Cada tambor tinha um tamanho diferente.

— Certo, vamos levá-los lá pra baixo.

Eles desceram os tambores pelas escadas. Smith carregava um de cada vez, segurando-o como se fosse precioso. Shadow carregava dois.

— Então, o que vai realmente acontecer hoje à noite? — perguntou Shadow na terceira viagem, ou talvez na quarta.

— Bem — respondeu Smith. — A maior parte, pelo que sei, é melhor que você tente entender sozinho. Quando acontecer.

— E você e o senhor Alice, qual o papel de vocês nisto?

Smith lhe dirigiu um olhar penetrante. Eles puseram os tambores ao pé da escada, no grande salão. Havia vários homens ali, conversando diante da lareira.

Quando subiram de novo já não podiam ser ouvidos pelos convidados,

Smith disse:

— O senhor Alice vai nos deixar no final da tarde. Eu vou ficar.

— Ele vai embora? Ele não faz parte disto?

Smith pareceu se ofender.

— Ele é o anfitrião — respondeu -, mas... — E parou.

Shadow entendeu. Smith não falava sobre o seu patrão. Eles carregaram mais tambores pelas escadas. Depois de levá-los todos para baixo, carregaram sacolas pesadas de couro.

— O que tem dentro delas? — perguntou Shadow.

— Baquetas — explicou Smith. E continuou: — São famílias antigas. Aquele pessoal lá embaixo. Fortunas muito antigas. Eles sabem quem é o chefe, mas nem por isso o aceitam como um dos seus. Entendeu? Só eles vão estar na festa hoje à noite. Não querem o senhor Alice. Entendeu?

E Shadow entendera. Ele preferia que Smith não tivesse lhe falado do senhor Alice. Achava que Smith não teria dito nada se pensasse que ele poderia viver para comentar.

Mas ele se limitou a responder:

— Baquetas pesadas.

 

Um pequeno helicóptero levou embora o senhor Alice no fim daquela tarde. Land Rovers levaram os empregados. Smith dirigia o último. Somente Shadow ficou para trás, e os convidados, com suas roupas elegantes e seus sorrisos.

Ficaram olhando para Shadow como se ele fosse um leão que tivesse sido capturado para diverti-los, mas não falaram com ele.

A mulher morena, aquela que sorrira para Shadow quando chegara, lhe trouxe comida: um bife, quase malpassado. Ela o trouxe num prato, sem talheres, como se esperasse que ele o comesse com as mãos e os dentes. Como estava com fome, ele fez exatamente isso.

— Não sou o herói de vocês — disse, mas ninguém o olhava nos olhos. Ninguém falava com ele, não diretamente. Ele se sentiu um animal.

E então anoiteceu. Eles levaram Shadow para o pátio interno, perto da fonte enferrujada, e o despiram, sob a mira de um revólver, e as mulheres besuntaram seu corpo com uma espécie de gordura amarela espessa, esfregando com força.

Puseram um punhal na grama diante dele. Um gesto do revólver, e Shadow pegou o punhal. O cabo era de metal preto, áspero e fácil de segurar. A lâmina parecia afiada.

Então eles abriram o grande portão, que dava do pátio interno para o exterior, e dois dos homens acenderam as duas grandes fogueiras, que crepitaram, iluminando o ambiente.

Eles abriram as sacolas de couro, e cada um dos convidados tirou um único bastão preto, entalhado, como um porrete, rústico e pesado. Shadow se viu pensando nos filhos de Sawney Beane, surgindo da escuridão armados de clavas feitas de fêmures humanos...

Então os convidados se posicionaram em volta do pátio e começaram a bater nos tambores com os bastões.

Começaram lentamente, baixinho, um pulsar palpitante e profundo, como um coração batendo. Depois, com mais energia, passaram a bater em ritmos estranhos, golpes em staccato que se modulavam e se entrelaçavam, cada vez mais fortes, até que preencheram a mente de Shadow e o seu mundo. Parecia-lhe que a luz das fogueiras tremulava acompanhando o ritmo dos tambores.

E então, de fora da casa, o uivo começou.

Havia dor naquele uivo, e angústia. O grito ecoava nas colinas, encobrindo as batidas dos tambores, um gemido de dor, perda e ódio.

A figura que cambaleou na entrada do pátio tinha as mãos na cabeça, cobrindo os ouvidos, como se tentasse parar a batida dos tambores.

A luz das fogueiras o iluminou.

Era enorme, agora: maior que Shadow, e nu. Não tinha pêlo algum, e estava encharcado.

Ele tirou as mãos dos ouvidos e olhou ao redor, seu rosto contorcido numa careta insana.

— Parem! — gritou. — Parem com este barulho!

As pessoas, com suas roupas bonitas, bateram mais forte nos tambores, e mais rápido, e o barulho invadiu a cabeça e o peito de Shadow.

O monstro andou até o centro do pátio. Olhou para Shadow.

— Você — ele disse. — Eu te falei. Falei do barulho — e uivou, um uivo fundo e gutural de ódio e desafio.

A criatura chegou mais perto de Shadow. Ela viu o punhal e parou.

— Lute comigo! — gritou. — Lute limpo! Não com ferro frio! Lute comigo!

— Não quero lutar com você — retrucou Shadow.

Ele jogou o punhal na grama e levantou as mãos, para mostrar que estavam vazias.

— Tarde demais — disse o ser careca que não era um homem. — Tarde demais pra isso.

E se jogou em cima de Shadow.

Mais tarde, quando Shadow pensou na luta, só se lembrou de fragmentos: lembrou-se de ser atirado ao chão e de rolar para fugir do ataque. Lembrou-se do pulsar dos tambores e da expressão nos rostos dos convidados, que olhavam, famintos, entre as fogueiras, para os dois homens iluminados pela luz.

Eles lutaram, agarrando-se e batendo um no outro.

Lágrimas salgadas escorriam pelo rosto do monstro, enquanto lutava com Shadow. Eles se equivaliam, pensou Shadow.

O monstro bateu com o braço no rosto de Shadow, e Shadow provou o gosto do próprio sangue. Ele podia sentir sua fúria começando a aumentar, como uma onda vermelha de ódio.

Ele esticou a perna, atingindo o monstro atrás do joelho, e, quando este caiu para trás, o punho de Shadow atingiu seu estômago em cheio, fazendo-o gritar e urrar de raiva e de dor.

Uma olhada nos convidados: Shadow viu a sede de sangue no rosto deles, enquanto batiam nos tambores.

Ventava, um vento frio, vindo do mar, e Shadow achou que havia grandes sombras no céu, silhuetas enormes que ele vira num navio feito de unhas de mortos, e que elas olhavam para baixo, para ele, que aquela luta era o que as mantinha imobilizadas em seu navio, sem poder desembarcar, sem poder ir embora.

Aquela luta era antiga, Shadow pensou, até mais antiga do que o senhor Alice imaginava, e ele estava pensando nisso mesmo quando as esporas da criatura raspavam em seu peito. Era a luta do homem contra o monstro, tão amiga quanto o tempo: era Teseu enfrentando o Minotauro, era Beowulf e Cirendel, era a luta de cada herói que já esteve entre o fogo e a escuridão e limpou o sangue de algo inumano de sua espada.

As fogueiras ardiam, e os tambores retumbavam, ressoavam e pulsavam como mil corações.

Shadow escorregou na grama molhada quando o monstro o atacou, e caiu. Os dedos da criatura estavam em seu pescoço, apertando-o. Shadow podia sentir que tudo começava a ficar distante, embaçado.

Ele fechou a mão em volta de um tufo de grama e o agarrou, cavou fundo com os dedos, pegando um punhado de grama e terra barrenta, e jogou o torrão de terra na cara do monstro, cegando-o momentaneamente.

Ele se ergueu e ficou por cima do ser. Deu uma forte joelhada em sua virilha, ele se encurvou numa posição fetal, uivando e soluçando.

Ao perceber que as batidas haviam parado, Shadow olhou para cima.

Os convidados largaram os tambores.

Estavam se aproximando dele, em um círculo, homens e mulheres, ainda segurando suas baquetas, mas agora como se estas fossem porretes. Não olhavam para Shadow, porém fitavam o monstro caído, erguiam seus bastões negros e se aproximavam dele à luz das duas fogueiras.

Shadow disse:

- Parem!

O primeiro golpe atingiu a criatura na cabeça. Ela gemeu e se contorceu, erguendo o braço para se defender do golpe seguinte.

Shadow se jogou na frente do monstro, protegendo-o com seu corpo. A mulher morena que sorrira para ele desferiu um golpe em seu ombro, friamente, e outra clava, dessa vez de um homem, atingiu com toda a força a sua perna, e uma terceira pegou em seu flanco.

Vão nos matar, ele pensou. Primeiro ele, depois eu. É o que eles fazem. É o que sempre fazem. E então lembrou: Ela disse que viria. Se eu a chamasse.

Shadow sussurrou:

— Jennie?

Não houve resposta. Tudo estava acontecendo tão devagar. Outro porrete desceu, dessa vez em direção à sua mão. Shadow desviou dele com dificuldade e viu o pesado bastão afundar na terra.

— Jennie — ele disse, mentalizando seu cabelo claro, seu rosto magro, seu sorriso. — Estou chamando você. Venha agora. Por favor.

Uma lufada de vento frio.

A mulher morena erguera seu porrete bem alto e o descia velozmente, Com força, em direção ao rosto de Shadow.

O golpe não atingiu o alvo. Uma pequena mão aparou o pesado bastão como se fosse ura graveto.

O cabelo claro esvoaçava ao redor de sua cabeça no vento frio. Ele não saberia dizer que roupa ela usava.

Ela olhou. Shadow achou que ela parecia decepcionada.

Um dos homens mirou um golpe de porrete na cabeça dela, por trás. Não conseguiu atingi-la. Ela virou...

Um som rasgado, como se algo estivesse se estraçalhando...

E então as fogueiras explodiram. Foi o que pareceu. Havia lenha em chamas por todo o pátio, até na casa. E as pessoas gritavam no vento cortante.

Shadow ficou de pé, cambaleando.

O monstro jazia no chão, ensangüentado, contorcido. Shadow não sabia dizer se ele estava vivo. Levantou-o, jogou-o sobre o ombro e saiu tropegamente do pátio, carregando-o.

Ele cambaleou até o caminho de cascalho, e os portões pesados de madeira se fecharam com estrondo atrás deles. Ninguém mais sairia. Shadow continuou descendo a encosta, um passo de cada vez, rumo ao lago.

Quando chegou à margem, parou, ajoelhou-se e deitou o careca na grama tão delicadamente quanto podia.

Ele ouviu um estrondo e olhou para a colina.

A casa estava em chamas.

— Como ele está? — perguntou uma voz de mulher.

Shadow virou. Ela estava no lago, com água até os joelhos, a mãe da criatura, vindo para a margem.

— Não sei — respondeu Shadow. — Está ferido.

— Vocês dois estão feridos. Você está todo ensangüentado e roxo.

— Sim.

— Mesmo assim, ele não está morto. E isso é uma mudança para melhor. Ela chegara à margem. Sentou-se na grama, com a cabeça do filho no colo. Tirou um pacote de lenços de papel da bolsa, cuspiu num lenço e começou a esfregar furiosamente o rosto do filho, limpando o sangue.

A casa da colina rugia. Shadow não imaginava que uma casa em chamas fizesse tanto barulho.

A velha olhou para o céu. Fez um barulho com a garganta, um estalo, e balançou a cabeça.

— Sabe — ela disse —, você os deixou entrar. Estavam confinados há tanto tempo, e você os deixou entrar.

— Isso é bom? — perguntou Shadow.

— Não sei, meu bem — respondeu a mulherzinha, e balançou a cabeça de novo. Ela cantava para o filho como se ele ainda fosse um bebê, e limpava suas feridas com cuspe.

Shadow estava nu, à margem do lago, mas o calor da mansão em chamas o aquecia. Ele via o reflexo das chamas nas águas calmas do lago. Uma lua amarela surgia na paisagem.

Ele estava começando a sentir dor. No dia seguinte, sabia que sentiria muito mais.

Passos na grama atrás dele. Ele olhou para trás.

— Olá, Smithie — cumprimentou Shadow.

Smith olhou para os três.

— Shadow — disse, balançando a cabeça. — Shadow, Shadow, Shadow, Shadow. Não era assim que as coisas deviam ter acontecido.

— Desculpe.

— Isso vai causar constrangimento ao senhor Alice — explicou Smith. — Aqueles eram seus convidados.

— Eles eram animais — retrucou Shadow.

— Se eram — argumentou Smith —, eram animais ricos e importantes. Será preciso cuidar de viúvas, órfãos e só Deus sabe o que mais. O senhor Alice não vai gostar. — Ele disse isso como um juiz pronunciando uma sentença de morte.

— Você o está ameaçando? — perguntou a velhinha.

— Eu não ameaço — enfatizou Smith, sério.

Ela sorriu:

— Ah, mas eu sim. E, se você ou aquele gordo canalha para quem você trabalha fizerem mal a este jovem, vai ser pior para vocês dois. — Ela sorriu, então, com dentes afiados, e Shadow sentiu um arrepio na espinha. — Há coisas piores do que a morte — continuou ela. — E eu conheço a maioria delas. Não sou jovem e não sou de falar à toa. Portanto, se eu fosse você — ela disse, fungando —, cuidaria bem deste rapaz.

Ela levantou seu filho com um braço, como se fosse uma bonequinha, e apertou sua bolsa junto ao corpo com o outro.

Depois acenou para Shadow e entrou nas águas escuras e calmas, e logo ela e o filho desapareceram sob a superfície do lago.

— Porra — resmungou Smith.

Shadow não disse nada.

Smith remexeu nos bolsos. Tirou a bolsa de tabaco e enrolou um cigarro. Depois o acendeu.

— Certo — ele disse.

— Certo? — perguntou Shadow.

— É melhor a gente limpar você e achar umas roupas. Senão vai morrer de pneumonia. Você ouviu o que ela disse.

 

Naquela noite, o melhor quarto do hotel estava preparado para Shadow. E, menos de uma hora após ele regressar, Gordon, da recepção, trouxe uma nova mochila, uma caixa com roupas novas e até botas novinhas. Ele não fez perguntas.

Havia um envelope grande por cima da pilha de roupas.

Shadow o abriu. Continha seu passaporte, levemente chamuscado, sua carteira e dinheiro: vários maços de notas novas de 50 libras, presos com elásticos.

Meu Deus, quanta grana ele tem, ele pensou, sem alegria, e tentou, em vão, lembrar onde já ouvira aquela canção.

Ele tomou um longo banho para aliviar a dor.

E depois dormiu.

De manhã, ele se vestiu e andou pela estrada ao lado do hotel, que levava para a colina e para fora do vilarejo. Antes, havia um chalé no alto da colina, ele tinha certeza, com lavanda no jardim, um balcão de pinho e um sofá roxo, mas, por mais que ele olhasse, não via chalé nenhum, nem sinal de que jamais houvera alguma coisa ali a não ser grama e um espinheiro.

Ele gritou o nome dela, mas não houve resposta, apenas o vento vindo do mar, trazendo consigo as primeiras promessas de inverno.

No entanto, ela estava à sua espera quando ele voltou para o quarto, estava sentada na cama, vestida com seu velho casaco marrom, olhando suas unhas. Ela não olhou para cima quando ele destrancou a porta e entrou.

— Olá, Jennie — cumprimentou ele.

— Olá — respondeu ela.

Sua voz era bem baixinha.

— Obrigado. Você salvou minha vida.

— Você chamou — explicou ela, monotonamente. — Eu vim.

Ele perguntou:

— O que foi?

Então ela olhou para ele.

— Eu poderia ter sido sua — disse, e havia lágrimas em seus olhos. — Achei que você poderia me amar. Talvez. Um dia.

— Bem, talvez a gente possa descobrir. Podíamos fazer uma caminhada juntos amanhã. Mas não muito longa, porque estou detonado ainda.

Ela balançou a cabeça.

O mais estranho, pensou Shadow, era que ela não parecia mais humana — naquele momento parecia o que era, uma coisa selvagem, da floresta. Seu rabo se retorcia na cama, sob o seu casaco. Era muito linda, e ele se deu conta de que a desejava muito.

— O mais difícil de ser uma hulder — revelou Jennie, mesmo uma hulder bem longe de casa, é que, se você não quer ficar solitária, precisa amar um homem.

— Então me ame. Fique comigo — pediu Shadow. — Por favor.

— Você — ela disse, triste e categoricamente —, não é um homem. Ela se levantou. — No entanto — continuou -, tudo está mudando. Talvez eu possa voltar para casa, agora. Depois de mil anos, nem me lembro se ainda sei falar Norsk.

Ela tomou as mãos dele nas suas, mãos pequenas, capazes de dobrar barras de ferro, de transformar pedras em areia, e apertou os dedos dele bem de leve. E foi embora.

Shadow ficou mais um dia no hotel e depois pegou o ônibus para Thurso, e o trem de Thurso até Inverness.

Ele cochilou no trem, mas não sonhou.

Quando acordou, havia um homem no assento ao seu lado. Um homem com rosto ossudo, lendo um livro de bolso. Ele fechou o livro quando viu que Shadow estava acordado. Shadow olhou para a capa: The Difficulty of Being, de Jean Cocteau.

— O livro é bom? — perguntou Shadow.

— É legal, sim — respondeu Smith. — São só ensaios. Deveriam ser pessoais, mas, cada vez que ele olha pra cima inocentemente e diz "Este sou eu", você fica com a sensação de que ele está blefando duplamente. Mas eu gostei de Belle et la Bete. Me senti mais próximo dele vendo aquilo do que lendo qualquer um destes ensaios.

— A capa diz tudo — observou Shadow.

— Como assim?

— A dificuldade de ser Jean Cocteau.

Smith cocou o nariz.

— Veja — disse, passando para Shadow uma cópia do Scotsman[20] — Página nove.

Embaixo, na página nove, havia uma pequena matéria: médico aposentado se mata. O corpo de Gaskell fora encontrado em seu carro, estacionado numa área para piqueniques na estrada do litoral. Ele engolira um belo coquetel de analgésicos com a maior parte de uma garrafa de Lagavulin.

— O senhor Alice odeia que mintam pra ele — explicou Smith. — Especialmente seus empregados.

— Tem alguma matéria sobre o incêndio? — perguntou Shadow.

— Que incêndio?

— Ah. Certo.

— Mas não ficarei surpreso se houver uma tremenda maré de azar pros ricos e poderosos nos próximos meses. Acidentes de carro, de trem. Talvez caia um avião. Viúvas, órfãos e namorados chorando. Muito triste.

Shadow fez que sim.

— Sabe — continuou Smith -, o senhor Alice anda pensando muito na sua segurança. Ele se preocupa. Eu também me preocupo.

— É?

— Com certeza. Por exemplo, se alguma coisa acontecer com você enquanto está no país. Talvez você olhe pro lado errado ao atravessar a rua. Ou mostre um bolo de dinheiro no pub errado. Sei lá. A questão é: se você se machucar, aquela mulherzinha estranha, a mãe do Grendel, pode entender mal.

— E daí?

— Daí que a gente acha que você deveria ir embora do Reino Unido. Seria mais seguro pra todos, não?

Shadow ficou calado por uns momentos. O trem diminuiu a velocidade.

—Tudo bem — disse Shadow.

— Esta é a minha estação — informou Smith. — Vou descer aqui. Providenciaremos a passagem, na primeira classe, é claro, pra qualquer lugar aonde você queira ir. Só de ida. É só me dizer.

Shadow esfregou o hematoma em sua bochecha. Havia algo na dor que era quase reconfortante.

O trem parou completamente. Era uma estação pequena, aparentemente no meio do nada. Havia um grande carro preto estacionado ao lado do prédio da estação, no sol pálido. Os vidros eram escurecidos, e Shadow não podia ver quem estava dentro dele.

O senhor Smith baixou a janela do trem, esticou o braço para abrir a porta do vagão e desceu para a plataforma. Ele olhou para Shadow pela janela aberta.

— E então?

— Acho — respondeu Shadow -, que vou passar umas semanas conhecendo o Reino Unido. E vocês terão que rezar para que eu olhe pro lado certo quando atravessar a rua.

— E depois?

Shadow sabia, então. Talvez já soubesse o tempo todo. Chicago — ele disse a Smith, e o trem estremeceu e começou a se afastar da estação. Ele se sentiu mais velho ao dizê-lo. Mas não podia adiar para sempre.

E então ele murmurou, tão baixinho que só ele poderia ter ouvido:

— Acho que vou voltar para casa.

Logo depois, começou a chover: pingos grossos, pesados, que tamborilavam nas janelas e borravam o mundo em manchas cinzentas e verdes. Trovoadas distantes acompanharam Shadow em sua jornada para o sul: a tempestade resmungava, o vento uivava e os relâmpagos projetavam sombras enormes no céu, e na companhia delas Shadow começou, pouco a pouco, a se sentir menos só.

 

                                                                Neil Gaiman

 

 

[1] Prato típico da índia, preparado com arroz, peixe e ovos. (N. E.) 

[2] "Cada um com seu gosto", em francês no original. (N. T.) 

[3] "Profundo conhecedor em determinado assunto", em francês no original. (N. E.) 

[4] Manuscrito encontrado em Saragoça", em francês no original. (N. E.) 

[5] No folclore gaélico, espírito de mulher que pressagia com seu uivo a morte de um familiar. (N. T.) 

[6] Área de grande beleza natural, constituída por colinas de calcário e localizada no sudeste da Inglaterra. (N. T.) 

[7] Conto de fantasia moralista sobre as aventuras de um limpador de chaminés que cai em um rio e é transformado numa "criança aquática", de autoria do reverendo Charles Kingsley (1819-1875). (N. T.) 

[8] Royal Air Force — Força Aérea inglesa. (N. T.)

[9] Tablóide sensacionalista inglês. (N. T.) 

[10] Cópia exata de um conjunto de dados, muito usada principalmente em sites da internet como redundância, em caso de falha no site principal. (N. T.) 

[11] Electric Light Orchestra. (N. T.) 

[12] Atravessei o oceano procurando um coração de ouro..." (N. T.)

[13] Apelido de Jack Dawkins no romance Oliver Twist, de Charles Dickens. "Artful Dodger" poderia ser traduzido como "Trapaceiro Astuto". (N. E.) 

[14] Espécie de associação mútua em que o capital dos sócios que morreram passa para os sócios sobreviventes. (N. E.) 

[15] Papagaio noturno da Nova Zelândia. (N. E.)

[16] Tipo de lêmure de Madagascar. (N. E.)

[17] Pássaro canoro presente em diversos países europeus. É considerado uma iguaria fina (e proibida) da gastronomia francesa. Deve ser degustado inteiro e de uma só vez. (N. E.)

[18] Em inglês, Pássaro-do-Sol é Sunbird, Cidade do Sol é Suntown e domingo é Sunday. (N. T.) 

[19] Órgão cartográfico governamental do Reino Unido, criado originalmente com fins militares. (N. T.)

[20] Jornal escocês. (N. E.) 

                                                                 

 

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