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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


COLETÂNEA DE CONTOS / Vários Autores
COLETÂNEA DE CONTOS / Vários Autores

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

COLETÂNEA DE CONTOS

Vários Autores

 

                   A Acha - Guy de Maupassant

Era um pequeno salão, todo forrado de reposteiros espessos, e discretamente perfumado. Um fogo vivo flamejava numa grande lareira, a cujo canto, uma só lâmpada derramava uma luz branda, suavizada por um abajur de renda antiga, sobre duas pessoas que conversavam.

Ela, a dona da casa, uma velhota de cabelos brancos, era uma dessas velhas adoráveis, de pele sem rugas, fina como papel de seda e perfumada, toda impregnada de perfumes, penetrada até à carne das essências finas, uma dessas velhas que exalavam, quando se lhes beija a mão, o mesmo odor suave que nos salta ao olfato quando abrimos uma caixa de pó de íris florentino.

Ele, era um velho amigo que ficara solteiro, um amigo de todas as semanas, um companheiro na viagem da existência. Só isso, aliás.

Haviam parado de conversar fazia um minuto pouco mais ou menos, e ambos olhavam o fogo, sonhando qualquer coisa vaga, num desses silêncios amigos da gente que não sente a necessidade de estar sempre falando para se lamentar mutuamente.

E, de súbito, uma grossa acha, um tronco eriçado de raízes inflamadas, ruiu. Pulou por cima das grelhas e, arrojado no salão, rolou pelo tapete, espalhando faíscas de fogo.

A velha deu um gritinho e levantou-se como para fugir, enquanto ele, com a ponta do pé, lançava outra vez na lareira o enorme pedaço de madeira, avivando a sola dos sapatos todos os carvões em brasa que o rodearam.

Evitando o desastre, sentiu-se um forte cheiro a chamusco. O homem sentou-se novamente diante de sua amiga e, olhando, sorrindo para ela, disse, apontando a acha, posta novamente no fogão: "Eis porque nunca me casei."

Ela observou-o, assombrada, com esse olhar curioso que têm as mulheres quando querem saber alguma coisa, esse olhar das mulheres já entradas em anos, de uma curiosidade refletida, complicada, às vezes maliciosa. E perguntou-lhe:

- Como assim?

- Ohh, é toda uma história, prosseguiu, uma história triste e feia.

Meus antigos camaradas mais de uma vez estranharam a frieza surgida de repente entre mim e um dos meus melhores amigos, Julien. Não compreendiam como dois íntimos, dois inseparáveis como nós, pudessem transformar-se de um dia para outro em duas pessoas quase estranhas. Eis o segredo de nosso afastamento.

Morávamos juntos. Nunca nos separávamos; e a amizade que nos ligava parecia tão forte que nada era capaz de quebrá-la.

Uma noite, ao entrar, anunciou-me seu casamento.

Senti um golpe no peito, como se me tivessem roubado ou traído. Quando um amigo se casa, é um amigo perdido, e para sempre. A afeição ciumenta de uma mulher, essa afeição desconfiada, inquieta e carnal, não tolera o apego vigoroso e franco, este apego de espírito, de coração e de confiança que existe entre dois homens.

Acredite, qualquer que seja o amor que os solde um ao outro, o homem e a mulher são sempre estranhos de alma, de inteligência; permanecem beligerantes; são de raças diferentes; deve haver sempre um domador e um domado, um senhor e um escravo; seja um ou outro; nunca os dois são iguais. Estreitam as mãos e as mãos estremecem de ardor; contudo, jamais as apertam numa larga e forte pressão leal, dessa pressão que parece abrir os corações, desnudá-los, num arranque de sincera, forte e viril afeição. Manda a sabedoria que, ao invés da gente se casar e procurar, como consolação, para os dias da velhice, filhos que nos abandonem, procuremos um bom e sólido amigo, e envelheçamos com ele nessa comunhão de pensamentos que não pode existir senão entre dois homens.

Enfim, meu amigo Julien casou. Sua mulher era bonita, encantadora, uma pequenina loura frisada, viva, rechonchudinha, que parecia adorá-lo.

A princípio ia pouco a casa deles, receando estorvar sua ternura, ao aparecer demasiado; e algumas vezes, quando regressava à casa de noite, cogitava em seguir seu exemplo, decidindo-me por uma mulher, tão triste e vazia me parecia a casa.

Parecia que se amavam; não se separavam nunca. Certa noite Julien escreveu-me, pedindo-me que fosse jantar com eles. Fui. "Meu velho, disse ele, levantando-se da mesa, tenho que me ausentar para tratar dum negócio. Não estarei de volta antes das onze; mas, às onze em ponto, estarei aqui. Conto com você para que faça companhia a Berthe."

A jovem esposa sorriu: "Fui eu, aliás, disse, quem teve a idéia de mandar chamá-lo."

Apertei-lhe a mão: "Você é muitíssimo amável." e senti em meus dedos uma longa e amigável pressão. Não dei importância ao caso. Sentamo-nos à mesa; e, às oito horas, Julien partiu.

Mal ele saiu, uma espécie de singular mal-estar surgiu bruscamente entre mim e a sua mulher. Nunca nos tínhamos visto sozinhos e, apesar de nossa intimidade, que crescia dia a dia, o tête-à-tête colocava-nos numa nova situação. Comecei por falar de coisas vagas, dessas coisas insignificantes com que se enchem os silêncios embaraçosos. Ela não me respondia nada e permanecia diante de mim, do outro lado da lareira, de cabeça baixa, o olhar indeciso, um pé estendido para o fogo, como que perdida numa difícil meditação. Quando esgotei todas as minhas idéias banais, calei-me.

É curioso como às vezes é difícil achar coisas que dizer. Pois bem; eu sentia que havia qualquer coisa de novo no ar, algo invisível, um não sei quê impossível de expressar, essa advertência misteriosa que nos previne das intenções secretas, boas ou más, de outra pessoa a nosso respeito.

Esse silêncio penoso durou algum tempo. Depois, Berthe disse-me: "Bote uma acha ao fogo, meu amigo; está-se apagando". Fui ao cesto da lenha, colocado justamente como o seu, e peguei uma acha, a mais grossa de todas, dispondo-a em pirâmide sobre os outros pedaços de madeira, quase inteiramente consumidos.

E fez-se novamente silêncio.

Passados alguns minutos, a acha ardia de tal modo que nos crestava o rosto. A jovem levantou os olhos para mim, dois olhos que me pareceram estranhos. "Faz muito calor aqui, disse; vamos para ali, para o canapé."

E eis-nos a caminho do canapé:

Depois, de repente, cravou-me os olhos no rosto: "Que faria você se uma mulher dissesse que o ama?"

Respondi, muito embaraçado: "Francamente, não considerei o caso, mas... mas, dependeria da mulher."

Então, ela começou a rir, com um riso seco, nervoso, agitado, um desses falsos risos que se diriam capazes de partir vidros finos e acrescentou:

"Os homens nunca são audazes nem maliciosos." Calou-se, para prosseguir pouco depois: "Você nunca esteve apaixonado, Paul?"

confessei-lhe que sim, já havia estado apaixonado. "Conte-me isso", pediu ela.

Contei-lhe uma história qualquer. Ela ouvia-me atentamente, com sinais freqüentes de reprovação e desprezo; e de súbito: "Não, não, você não entende nada disso. Para que o amor seja bom é preciso, penso eu, que nos perturbe o coração, torça os nervos, assole a cabeça, que seja - como diria? - perigoso, mesmo terrível, quase criminoso, quase sacrílego; que seja uma espécie de traição; quero dizer que deve romper os obstáculos sagrados, as leis, os laços fraternais; um amor tranqüilo, fácil, sem perigos, legal, será, realmente, amor?"

Não sabia que responder, e fazia para mim mesmo esta reflexão filosófica: Ó! Cérebro feminino, aí estás tu, em toda a tua nudez!

Tomara, ao falar, um ar indiferente, quase cínico; e, apoiada nos coxins, alongou e deitou a cabeça no meu ombro, o vestido um pouco levantado, deixando ver uma meia de seda vermelha que os lampejos do fogo inflamavam de quando em quando.

Passado um minuto, disse: "Tem medo de mim?" Protestei. Apoiou-se abertamente no meu peito e, sem olhar-me, continuou: "E se eu lhe dissesse, eu, que o amo, que faria você?" não me deu tempo para encontrar uma resposta; lançou-me os braços ao pescoço, e, atraindo-me bruscamente a cabeça, seus lábios juntaram-se aos meus.

Ah, minha queria amiga, acredite que aquilo não era nada divertido! Enganar Julien, eu, tornar-me o amante dessa pequena louca perversa e astuta, horrivelmente sensual, que decerto não se contentava com o marido? Trair constantemente, enganar sempre, brincar de amor pela simples atração do fruto proibido, do desafio ao perigo, da amizade traída! Não, isso não era para mim. Mas, que fazer? Imitar José? Papel estúpido e, além disso, muito difícil, porque ela estava ensandecida em sua perfídia, inflamada de audácia, palpitante e obstinada. Oh! Que quem nunca sentiu na boca o beijo profundo duma mulher disposta a entregar-se me lance a primeira pedra...

Enfim, um minuto mais... Você compreende, não é? Um minuto mais e eu era... não, ela era... perdão, ele é quem era!... ou melhor teria sido, quando um terrível ruído nos fez dar um salto.

A acha, sim, a acha amiga saltava para o salão, derrubando a pá, o guarda-fogo, rolando como um furacão de chama, pegando fogo ao tapete e caindo numa poltrona que ia infalivelmente incendiar.

Precipitei-me como um louco, e, ao lançar para a lareira o tição salvador, a porta abriu-se bruscamente! Julien entrou, todo jovial, gritando: "Já estou livre, o negócio terminou duas horas mais cedo!"

Sim, minha amiga, se não fosse a acha, eu teria sido apanhado em flagrante delito. E já imagina as conseqüências!

Conduzi-me daí para o futuro de modo a não me voltar a ver em situação semelhante, jamais, jamais, jamais! Apercebi-me, então, que Julien estava frio comigo. Sua mulher, evidentemente, solapara nossa amizade; e, pouco a pouco, afastou-me de sua casa; e deixamos de ver-nos.

E não me casei. Compreende, agora?

 

                   A célebre rã saltadora - Mark Twain

De acordo com o pedido de um amigo meu, que me escrevera do Leste, fui visitar o bondoso palrador que é o velho Simon Wheeler, e, como me fora pedido, perguntei-lhe por Leonidas W. Smiley, amigo de um meu amigo; e aqui conto do resultado. Tenho uma secreta desconfiança de que Leonidas W. Smiley é um mito; que o meu amigo jamais conheceu tal personagem; e que apenas conjeturou que, se eu perguntasse ao velho Wheeler por ele, isso lhe lembraria o seu infame Jim Smiley e faria com que ele me ocupasse e me aborrecesse mortalmente com alguma diabólica recordação do outro, tão enfadonha como inútil para mim. Se era essa a sua intenção, o caso surdiu efeito.

Encontrei Simon Wheeler dormindo junto ao fogão da sala do bar da velha e arruinada taberna do antigo campo mineiro de Angel; reparei que era gordo e calvo e que havia uma expressão de cativante gentileza e simplicidade nas suas feições tranqüilas. Despertou e cumprimentou-me. Disse-lhe que um amigo meu me encarregara de fazer algumas investigações acerca de um companheiro querido de sua infância, chamado Leonidas W. Smiley - Rev. Leonidas W. Smiley, - um jovem sacerdote de quem ele ouvira dizer que em tempos residira em Angel Camp. Acrescentei que, se Mr. Wheeler me pudesse dar algumas informações acerca desse Rev., lhe ficaria muito grato.

Wheeler fez-me recuar para um canto bloqueou-me ai com a sua cadeira, depois fez-me sentar e desenrolou a monótona narrativa que se segue a este parágrafo. Nunca sorriu, nunca franziu as sobrancelhas, nunca a sua voz mudou do tom suave e cheio com que, de princípio, a afinara, nunca mostrou o mais ligeiro sinal de entusiasmo; mas, através da infindável narrativa, havia um impressivo ardo e uma sinceridade que claramente me mostravam nem pela imaginação lhe passar que houvesse qualquer coisa de ridículo ou cômico na sua história; considerava-a como um assunto importante e encarava seus dois heróis como talentos de especial fineses. Para mim o espetáculo de um homem desfiando serenamente uma história tão original, sem nunca sorrir, era estranhamente absurdo. Como já disse, pedi-lhe que me contasse o que sabia do Rev. Leonidas Smiley e ele respondeu-me como se segue. Deixei-o prosseguir como bem quis, sem o interromper uma vez sequer.

Houve aqui um sujeito de nome Jim Smiley, no inverno de 49 - ou talvez na primavera de 50 - não me recordo bem, mas o que de qualquer forma me fez lembrar que foi ou em um ou em outra é porque me lembro que o grande canal ainda não estava terminado quando vim a primeira vez para aqui; mas, fosse como fosse, ele era o homem mais interessante que havia por essas bandas, sempre a apostar qualquer coisa que aparecesse, desde o momento que pudesse arranjar alguém que apostasse pela parte oposta; e, no caso de não poder, mudava ele de parte. O que conviesse ao adversário, convinha-lhe a ele - de qualquer forma ficava satisfeito, desde o momento que pudesse apostar. Apesar disso, tinha muita sorte, uma sorte invulgar - ganhava sempre. Estava sempre pronto a espera de uma oportunidade. Qualquer coisa a que nos referíssemos, esse homem oferecia-se logo para apostar nisso, dando-nos o partido que mais nos agradasse, como já tive ocasião de dizer. Se havia uma corrida de cavalos, no final ou o víamos cheio de dinheiro ou, então, arruinado; se havia um combate de cães, ele apostava; apostava se havia um combate de galinhas; até mesmo se dois pássaros estivessem pousados em uma cancela, apostava qual deles levantava vôo primeiro; ou, se havia uma reunião no campo de mineiros, lá estava para apostar no Padre Walker, que ele considerava a criatura com maior poder de persuasão dos arredores, o que ele era em verdade e, além disso, um bom homem. Se visse um percevejo partir para qualquer lugar, apostaria consigo próprio quanto tempo levaria ele para chegar ao seu destino e, se aceitasse a aposta, seguiria o bicho até o México, sem saber para onde se dirigia nem quanto tempo gastaria na viagem. Muitos dos rapazes aqui conheceram o Smiley e podem contar-lhes coisas acerca dele. Nada lhe importava - apostava em qualquer coisa, o raio do homem. A mulher do padre Walker esteve doente durante bastante tempo e parecia já não poder salvar-se; mas, uma manhã, Smiley encontrou-o e perguntou-lhe como ela estava. "Louvado seja o Senhor pela sua infinita misericórdia, melhorou tão rapidamente que se porá boa em um instante"; e Smiley, sem pensar, disse: "Pois bem, aposto dois dólares e meio como ela não melhorará".

Ora, este Smiley tinha uma égua - os rapazes chamavam-lhe uma pileca, mas de brincadeira, porque ela na verdade, era melhor do que isso - e ganhava dinheiro com aquele animal, embora tivesse asma, tuberculose ou outra qualquer doença. Costumavam dar-lhe duzentas ou trezentas jardas de avanço e, depois, a ultrapassavam. Mas, quase no fim da corrida, a égua excitava-se e, desesperada, vinha por aí fora atabalhoadamente, levantando uma poeira tremenda e fazendo uma barulheira com a tosse e os espirros - e o caso é que ganhava sempre por uma cabeça.

E tinha um cachorro buldogue que, ao olharmos para ele, parecia não valer meio tostão e que dir-se-ia servir apenas para vaguear por aí, a espera de uma oportunidade para roubar qualquer coisa. Mas logo que se apostava nele, tornava-se um cão diferente; o maxilar inferior distendia-se como castelo de proa de um navio e os dentes brilhavam como navalhas. E um cão qualquer podia desafiá-lo, e persegui-lo, e mordê-lo, e virá-lo de costas duas ou três vezes que Andrew Jackson - assim se chamava o cachorro - não se enfurecia; mostrava, mesmo, satisfação, como se não esperasse outra coisa. Dobradas e quadruplicadas as apostas, logo que todo o dinheiro estivesse apostado, o cachorro, de repente, agarrava-se à perna traseira do outro cão e não a largava - não dava dentadas, compreende, apenas o filava, e ali ficaria um ano, se fosse preciso, se não atirassem a esponja ao sr. Smiley, que sempre ganhou com aquele cachorro, até que um dia apostou contra um cão ao qual faltavam as pernas traseiras, que haviam sido cortadas por uma serra circular. Depois dos habituais preparativos e do dinheiro estar todo apostado, o cachorro, como era costume, tentou filar o adversário; mas de repente, viu que tinha sido intrujado e que o outro cão estava, por assim dizer, rindo dele. Dando mostras de muito surpreendido e desencorajado, já não tentou sequer ganhar a luta, tendo ficado bastante miltrado. Olhou para Smiley, para lhe dizer que se lhe despedaçava o coração e que a culpa era dele por lhe ter apresentado um cão a que faltavam as pernas traseiras, seu principal trunfo em um combate e, depois, coxeando durante um bocado, deitou-se e morreu. Era um bom cachorro aquele, e havia de tornar-se famoso se tivesse vivido, porque tinha qualidades para isso; era um gênio, tenho a certeza, embora ele nunca tivesse a oportunidade para falar nisso; mas, se assim não fosse, era impossível que um cão pudesse lutar como ele lutava. Sinto-me sempre triste quando penso no seu último combate e na maneira como decorreu.

Ora bem, esse Smiley tinha cães rateiros, e galos, e gatos, uma grande quantidade de bichos, que não deixava ninguém descansar e era a maneira de ele sempre ter qualquer coisa em que apostar. Um dia apanhou uma rã, levou-a para casa e disse que ia educá-la; e durante três meses não fez outra coisa, no pátio de sua cada, que não fosse ensiná-la a saltar. E, na verdade, ensinou-a bem. Dava-lhe um pequeno piparote, e era vê-la girar no ar, dar um salto mortal, ou mesmo dois, se tivesse tomado balanço e cair de pé, como se fosse um gato. Ensinou-a a apanhar moscas e mantinha-a em prática constante, de maneira que, mal ela via uma mosca, a caçava logo. Smiley dizia que uma rã do que precisava era de educação para fazer tudo o que quisesse - e eu acredito. Pois se vi por Daniel Webster aqui no chão - Daniel Webster era o nome da rã - e gritar "moscas, Daniel, moscas" e, mais depressa do que você leva a pestanejar, ela saltava e apanhava uma mosca ali no balcão, e tornava a pular para o chão, tão segura como se fosse um pedaço de lama, coçando o lado da cabeça com a pata traseira, tão indiferente como se estivesse convencida de que o que fazia era o que todas as rãs faziam. Nunca se vira uma rã assim; tão modesta, tão obediente, embora tão habilidosa. E, então, quando se tratava de saltar uma superfície lisa, podia ir mais longe, em um simples salto, do que qualquer outro animal da sua espécie. Saltar em terreno liso era a sua especialidade, compreende? E, quando era esse o caso, Smiley apostava nela todo o dinheiro que tinha. Smiley tinha um orgulho enorme desta rã e, diga-se de passagem, com razão, pois que pessoas viajadas diziam que ela batia todas as rãs que tinham visto.

Ora, Smiley guardava o animal numa gaiola e costumava trazê-lo aqui, à espera de apostas. Um dia, um estranho foi ter com ele e disse-lhe: "Que tem você nesta caixa?"

E Smiley respondeu com indiferença: "Podia ser um papagaio, um canário, mas não é - é apenas uma rã."

E o homem agarrou na gaiola e voltando-a de um e outro lado, observou o bicho cuidadosamente e disse: "Hum... pois é. Mas para que ela serve?"

- Ora, aí está - disse Smiley - para uma coisa serve ela, julgo eu, consegue saltar mais do que qualquer outra rã da cidade de Calaveras. O homem tornou a pegar a gaiola, pôs-se a olhar muito tempo e, com cuidado, devolveu-a e disse, intencional:

- Não vejo nada nesta rã que a torne melhor do que qualquer outra.

- Talvez - disse Smiley - você entenda e rãs, ou não; talvez tenha tido experiência, talvez não passe de um amador. Seja como for, fico na minha e aposto quarenta dólares em como ela pode saltar mais do que qualquer rã de Calaveras.

- Eu, aqui, sou apenas um estranho e não tenho rã, mas se tivesse uma, apostava - disse o homem depois de pensar um minuto.

Ao que Smiley respondeu:

- Não faz mal; se você me segurar a caixa, vou buscar-lhe uma rã. O homem segurou, então, na caixa, pôs quarenta dólares no lado dos de Smiley, sentou-se e esperou.

E ali esteve durante muito tempo a pensar e repensar; depois tirou a rã para fora, abriu-lhe a boca, agarrou uma colher de chá e encheu-a de grãos de chumbo - encheu-a quase até os queixos - e pô-la no chão. Smiley tinha ido ao pântano e por lá andou a mexer na lama um bom pedaço, até que, por fim, apanhou uma rã; trouxe-a, deu-a ao homem e disse:

- Agora, se você está de acordo, eu a coloco aqui ao lado de Daniel, com as patas dianteiras na mesma linha e dou o sinal de partida. Atenção: Um, dois, três, salta! E ele e o outro tocaram nas rãs, e a nova rã saltou, mas Daniel fez um esforço, contorceu-se toda, encolheu os ombros como um francês, mas nada, nada se podia mexer; estava ali pregada, como se fosse uma bigorna; era como se estivesse ancorada. Smiley ficou mui admirado e bastante desgostoso, mas, claro está, não fazia idéia alguma da razão daquilo.

O outro recebeu o dinheiro e afastou-se, ao chegar a porta, apontou o dedo para Daniel - assim - tornou a dizer:

- Não vejo nada nessa rã que a torne melhor do que qualquer outra.

Smiley ali ficou, coçando a cabeça e olhando para Daniel durante algum tempo, até que por fim, disse:

Mas que diabos é que teria acontecido à rã? Terá ela qualquer coisa? Parece estar muito inchada! Agarrou Daniel pelo pescoço, levantou-a e disse:

- Diabos me levem se ela não pesa, pelo menos, cinco libras!

E, voltando-a de cabeça para baixo, viu-a vomitar uma porção de escumilha. Quando viu o que aquilo era, ficou furioso, pousou a rã e foi atrás do outro, mas não chegou a apanhar. E...

Nesta altura, Simon Wheeler ouviu que o chamavam, e levantou-se para ver o que era. Voltando-se para mim, enquanto andava, disse:

- Deixe-se ficar onde está, descansando, que eu não me demoro um segundo.

Mas, com vossa licença, não achei que a continuação da história do empreendedor vagabundo Jim Smiley fosse de molde a fornecer-me grandes informações a respeito do Rev. Leonidas e, por isso, levantei-me para sair.

À porta encontrei o afável Wheeler, de volta; agarrou-me por um botão do casado e recomeçou:

- Ora, este Smiley tinha uma vaca amarela, só com um olho, sem cauda, ou, antes, só com um toco, como se fosse uma banana, e...

- Ora, diabos levem o Smiley mais as atribuições da sua candisse eu, jovialmente, e, despedindo-me do velho, fui-me embora.

 

                   A Mulher do Farmacêutico - Anton Tchecov

A cidadezinha de B., composta de duas ou três ruas tortas, dorme um sono profundo. No ar parado tudo é silêncio. Ouve-se apenas, ao longe, decerto além da cidade próxima, o tenorzinho ralo e rouco dos latidos de um cão. Aproxima-se a madrugada.

Há muito tempo que tudo dorme. Só não dorme a jovem esposa do farmacêutico. Tchornomordik, dono da farmácia de B. Por três vezes ela já se deitou - mas o sono teima em não vir - e não se sabe porquê. Ela sentou-se junto à janela aberta, de camisola, e olha para a rua. Está com calor, aborrecida, entediada - tão entediada que tem até vontade de chorar, mas por que - também não se sabe. Sente um bolo esquisito no peito, querendo subir para a garganta a toda hora... Atrás, a alguns passos da mulher, aconchegado junto à parede, ronca pacificamente o próprio Tchornomordik. Uma pulga voraz grudou-se-lhe ao nariz, mas ele não a sente, e até sorri, porque sonha que na cidade todos estão tossindo e compram-lhe incessantemente "Gotas do Rei da Dinamarca". Agora não é possível acordá-lo nem com picadas, nem com canhões, nem com carinhos.

A farmácia fica quase na beira da cidade, de modo que a mulher do farmacêutico pode ver campina, bem longe. Ela vê como pouco a pouco clareia a borda oriental do céu, e depois fica rubra, como que do clarão de um grande incêndio. De repente, de trás de uma touceira distante, aparece uma grande lua de cara larga. Está vermelha (em geral a lua, quando sai de trás dos arbustos, costuma estar, não se sabe porque, horrivelmente encabulada).

Súbito, no silêncio noturno, ressoam passos e o tinir de esporas. Ouvem-se vozes.

"Devem ser oficiais voltando do distrito policial, para o acampamento" - pensa a mulher do farmacêutico.

Pouco depois, aparecem dois vultos vestidos com as túnicas brancas de oficiais; um grande e gordo, o outro menor e mais esguio... Preguiçosamente arrastando os pés, eles vêm andando ao longo da cerca, a conversar em voz alta. Chegando até a farmácia, os dois vultos começam a andar ainda mais devagar e olham para as janelas.

- Cheira à farmácia... - diz o magro. - E é uma farmácia mesmo! Ah, já me lembro... estive aqui na semana passada, comprei óleo de rícino. De um farmacêutico de cara azeda e queixada de burro. E que queixada, homem! Foi com uma dessas que Sansão matava os filisteus.

- Hum... - diz o gordo com voz de baixo. - Dorme a botica. E o boticário também dorme. Aqui, Obtiossov, existe uma boticária bonitinha.

- Eu a vi. Ela me agradou muito... Diga-me, doutor, será possível ela amar essa queixada de burro? Será possível?

- Não, decerto ela não o ama - suspira o doutor com expressão de quem tem pena do farmacêutico. - E agora, dorme a belezinha atrás da janelinha! Hein, Obtiossov? Descobriu-se com o calor... a boquinha entreaberta... e a perninha pende para fora da cama... Vai ver, o burro do farmacêutico nem entende nada desta riqueza... Para ele, quiçá, uma mulher ou uma garrafa de ácido carbólico, é a mesma coisa!

- Sabe duma coisa, doutor? - diz o oficial, parando. - Vamos entrar na farmácia e comprar qualquer coisa. Quem sabe, vai dar pra ver a "farmacêutica".

- Que idéia! No meio da noite!

- E daí? Então eles não têm obrigação de atender também à noite? Vamos, amigão!

- Vá lá...

A mulher do farmacêutico, escondida atrás da cortina, ouve a campainha esganiçada. Com um rápido olhar para o marido, que ronca como dantes e sorri beatificamente, ela enfia o vestido, põe os sapatos nos pés descalços e corre para a farmácia.

Atrás da porta de vidro percebem-se duas sombras. A mulher do farmacêutico aviva o fogo da lâmpada e corre para abrir a porta, e já não está tão aborrecida, nem entediada, nem tem vontade de chorar, só o coração bate com muita força. Entram o gordo doutor e o esguio Obtiossov. Agora já dá para examiná-los. O barrigudo doutor é moreno, barbudo e desajeitado. Ao menor movimento, a túnica lhe estala no corpo e o suor lhe umedece o rosto. Já o oficial é rosado, glabro, efeminado e flexível como um relho inglês.

- O que desejam os senhores? - pergunta a mulher do farmacêutico, aconchegando o vestido sobre o seio.

- Dê-nos... eeehh... quinze copeques de pastilhas de hortelã.

A mulher do farmacêutico alcança sem pressa o pote na prateleira e põe-se a pesar. Os compradores, sem piscar, fitam-lhe as costas; o doutor franze o rosto como um gato satisfeito, mas o tenente está muito sério.

- É a primeira vez que vejo uma senhora trabalhando numa farmácia - diz o doutor.

- Isso não tem nada de extraordinário... - responde a mulher do farmacêutico, olhando de esguelha para o rosto rosado de Obtiossov. - Meu marido não tem auxiliares, e eu sempre o ajudo.

- Ah, é assim... pois a senhora tem aqui uma farmácia muito simpática... Que quantidade destes... diversos potes! E a senhora não tem medo de mexer com estes venenos! Brrr!

A mulher do farmacêutico fecha o pacotinho e entrega-o ao doutor. Obtiossov dá-lhe quinze copeques. Meio minuto passa em silêncio. Os homens se entreolham, dão um passo em direção à porta, entreolham-se novamente.

- Dê-nos dez copeques de bicarbonato! - diz o doutor. A mulher do farmacêutico, movendo-se preguiçosa e lentamente, torna a estender a mão para a prateleira.

- Será que não existe aqui na farmácia alguma coisa assim... - balbucia Obtiossov, mexendo os dedos - alguma coisa assim, sabe, alegórica, um fluido vitalizante qualquer... água de Seltzer, talvez? A senhora tem água de Seltzer?

- Tenho - responde a mulher do farmacêutico.

- Bravo! A senhora não é mulher, e sim uma fada. Arranje-nos três garrafinhas!

- A mulher do farmacêutico embrulha apressada o bicarbonato e desaparece na escuridão atrás da porta.

- Que fruto! - diz o doutor, piscando um olho. - Uma romã dessas, Obtiossov, nem na ilha da Madeira você encontra. Hein? Que acha? Entretanto... está ouvindo o ronco? É o próprio senhor farmacêutico que se digna repousar.

Um minuto depois, volta a mulher do farmacêutico e põe sobre o balcão cinco garrafas. Ela acaba de voltar do porão e por isso está corada e um pouco excitada.

- Pssst... mais baixo - diz Obtiossov, quando ela, abrindo as garrafas, deixa cair o saca-rolhas. - Não faça tanto barulho, senão vai acordar o marido.

- E que é que tem, se o acordar?

- Ela está dormindo tão gostoso... sonhando... com a senhora... À sua saúde!

- E depois - diz o doutor com sua voz de baixo, arrotando devido à gasosa - os maridos são uma historia tão cacete, que fariam bem se dormissem o tempo todo. É, com esta agüinha seria bom um vinhozinho tinto.

- Essa agora, que idéia! - ri a mulher do farmacêutico.

- Seria excelente! Pena que nas farmácias não vendam bebidas espirituosas! Entretanto... a senhora deve vender vinho como remédio. A senhora tem "vinum gallicum rubrum"?

- Tenho.

- Então! Traga-o aqui! Com os diabos, carregue-o para cá.

- Quantos desejam?

- "Quantum satis!" Primeiro a senhora nos dá uma onça para cada copo, e depois, veremos... Hein, Obtiossov? Primeiro, com água, e depois, per se...

O doutor e Obtiossov sentam-se junto ao balcão, tiram os quépis e põem-se a beber o vinho tinto.

- Mas este vinho, força é confessar, é o que há de péssimo! "Vinum ruinzissimum". Porém, na presença de... eeeh... ele parece um néctar! A senhora é encantadora, madame! Beijo-lhe em pensamentos a mãozinha.

- Eu pagaria caro para poder fazê-lo sem ser em pensamentos! - diz Obtiossov. - palavra de honra! Eu daria a vida!

- O senhor, por favor, deixe disso... - diz a senhora Tchornomordik, enrubescendo e fazendo uma cara séria.

- Mas como a senhora é coquete! - ri o médico em voz baixa, fitando-a de esguelha, com ar malandro. - Os olhinhos soltam chispas, dão tiros: pif! Paf! Meus parabéns! A senhora venceu! Fomos derrotados!

A mulher do farmacêutico observa os seus rostos corados, ouve a sua tagarelice e logo também fica animada. Oh, ela já está tão alegre! Ela entra na conversa, ri, coquete, dengosa, e até, após longas súplicas dos compradores, bebe umas duas onças de vinho tinto.

- Os senhores oficiais deveriam vir mais vezes para a cidade, lá do acampamento - diz ela - porque senão aqui é um horror de cacete! Eu quase morro.

- E não é para menos! - horroriza-se o doutor - uma romã assim... maravilha da natureza... neste deserto! Como tão bem o disse Griboiedov: "Para o deserto! Para Saratov!" Mas já é tempo de irmos. Muito prazer em conhecê-la... imenso! Quanto devemos?

A mulher do farmacêutico ergue os olhos para o teto e fica muito tempo movendo os lábios.

- Doze rublos, quarenta e oito copeques! - diz ela.

Obtiossov tira do bolso uma carteira recheada, remexe longamente no maço de notas e paga.

- Seu marido dorme deliciosamente... tem sonhos... - murmura ele, apertando a mão da mulher do farmacêutico em despedida.

- Não gosto de ouvir tolices...

- Que tolices são essas? Pelo contrário... não são tolices... Até Shakespeare já disse: "Feliz quem jovem foi na juventude!"

- Solte a minha mão!

Finalmente, os compradores, após prolongadas despedidas, beijam a mão da mulher do farmacêutico e, hesitantes, como que ponderando se não esqueceram alguma coisa, saem da farmácia.

E ela corre depressa para o quarto e senta-se junto da mesma janela. Ela vê como o doutor e o tenente, saindo da farmácia, preguiçosamente se afastam uns vinte passos, depois param e começam a cochichar entre si. Sobre o que será? Seu coração palpita, as fontes latejam, e por que - ela mesma não sabe... O coração bate com força, como se aqueles dois, cochichando lá fora, estivessem decidindo seu destino.

Uns cinco minutos depois, o doutor separa-se de Obtiossov e se afasta, ao passo que Obtiossov volta. Ele passa pela farmácia uma vez, outra... Ora se detém perto da porta, ora recomeça a caminhar... Finalmente, cautelosa, tilinta a campainha.

- O que foi? Quem está aí? - Ouve ela de repente a voz do marido. - Estão tocando lá fora, e você não escuta! - diz o farmacêutico, severo. - Que desordem!

Ele se levanta, veste o roupão, e, cambaleando meio adormecido, arrastando os chinelos, vai para a farmácia.

- O que... deseja? Pergunta ele a Obtiossiov.

- Dê-me... dê-me quinze copeques de pastilhas de hortelã.

Com infinito resfolegar, bocejando, adormecendo em pé e batendo com os joelhos no balcão, o farmacêutico escala a prateleira e alcança o pote.

Dois minutos depois, a mulher do farmacêutico vê Obtiossov sair da farmácia e, depois de alguns passos, jogar as pastilhas de hortelã na estrada poeirenta. Detrás da esquina, ao seu encontro, vem o doutor... Os dois se juntam e, gesticulando, desaparecem na névoa matinal.

- Como sou desgraçada! - diz a mulher do farmacêutico, olhando com raiva para o marido, que se despe apressado para voltar a dormir. Oh! Como sou desgraçada! - repete ela, debulhando-se, de repente, em lágrimas. - E ninguém, ninguém compreende...

- Esqueci quinze copeques sobre o balcão - balbucia o farmacêutico, puxando o cobertor. - Guarde, por favor, na gaveta.

E adormece imediatamente.

 

                    A partida de gamão - Prosper Mérimée

As velas pendiam, imóveis, coladas aos mastros; o mar estava liso como gelo; o calor era sufocante, desesperadora a calmaria.

Numa viagem por mar, os recursos em matéria de divertimento, que os anfitriões do navio possam oferecer, bem depressa se esgotam. Conhecemo-nos bem demais, ai de nós! depois de passarmos juntos quatro meses numa casa de madeira com o comprimento de cento e vinte pés. Quando o primeiro-tenente se aproxima já sabemos que, em primeiro lugar, ele falará do Rio de Janeiro, de onde procede; depois da famosa ponte de Essling, construída pelos marinheiros da guarda, de que fazia parte. Ao cabo de quinze dias conhecemos até suas expressões prediletas, até a maneira como pontua as frases e as diferentes entonações de voz. Nunca, desde que pela primeira vez contou suas narrativas esta palavra o imperador... ele deixou de interromper-se com tristeza e invariavelmente acrescentar: "Se o senhor o tivesse visto naquela ocasião!!! (três pontos de exclamação). E o episódio do cavalo do clarim e da bala de artilharia que ricocheteara, levando-lhe uma cartucheira onde tinha sete mil e quinhentos francos em ouro e jóias, etc., etc.! O segundo tenente gosta muito de política; comenta todos os dias o último numero do Constitutionnel, que trouxe de Brest; ou, se deixa as alturas da política para descer a literatura, é para regalar-nos com a análise da última comédia musicada que assistiu.

Os oficiais a bordo do navio em que eu embarcara eram as melhores pessoas do mundo, ótimos sujeitos, que se estimavam uns aos outros como irmãos, mas podia-se apostar qual seria o mais enfadonho. O capitão era o mais pacato dos homens, nada intrigante (o que constitui uma raridade). Era sempre a contragosto que impunha a sua autoridade ditatorial. Com tudo isso, como a viagem me pareceu longa! Sobretudo aquela calmaria que nos surpreendeu apenas alguns dias antes de avistarmos a terra!...

Um dia depois do jantar, que a inação nos fizera prolongar o máximo possível, estávamos reunidos no convés, aguardando o espetáculo monótono, mas sempre majestoso, do pôr-do-sol nas águas. Alguns fumavam, outros reliam pela vigésima vez um dos trinta volumes de nossa minguada biblioteca: todos bocejavam a ponto de chorar. Um oficial sentado a meu lado divertia-se com a gravidade digna de uma ocupação mais séria, como deixar cair nas tábuas da coberta, a ponta voltada para baixo, o punhal que os oficiais de marinha costumam usar com o uniforme. Era um divertimento como outro qualquer, e exige habilidade para conseguir que a ponta se enterre perpendicularmente na madeira. Como desejasse imitar o oficial e não dispusesse de punhal, experimentei pedir emprestado o do capitão, que me recusou. Explicou-me que se apegara singularmente à sua arma, e não gostaria de vê-la utilizada em tão fútil entretenimento. Aquele punhal pertencera a um bravo oficial infortunadamente morto na ultima guerra. Adivinhei a aproximação de uma história e não me enganava. O capitão iniciou-a, sem se fazer de rogado; quanto aos oficiais que nos rodeavam, já conheciam de cor e salteado os infortúnios do tenente Roger, e imediatamente operaram uma retirada discreta. A narrativa do capitão é a seguinte, mais ou menos:

"Quando conheci Roger, mais velho do que eu três anos, ele era tenente; eu, guarda-marinha. Asseguro-lhe que era um dos melhores oficias do nosso corpo; aliás, um excelente coração, inteligência, cultura, dotes artísticos, tudo possuía ele: em sua, um homem encantador. Um pouco orgulhoso e suscetível, infelizmente, o que derivava, suponho, do fato de ser filho natural; temia que seu nascimento lhe fizesse perder a consideração social. Porém, para dizer a verdade, o maior de seus defeitos era o desejo intenso e persistente de ser o primeiro em tudo. Seu pai, a quem nunca vira, dava-lhe uma pensão que teria sido mais do que suficiente para as suas necessidades se Roger não encarnasse a própria generosidade. Tudo que possuía pertencia aos amigos. Mal acabava de receber o seu trimestre, era bastante que alguém o procurasse com o rosto sério e preocupado, para indagar:

- Que é isso, colega, que tens? Pelo teu aspecto, teus bolsos não farão barulho se os sacudirmos; vamos, aqui está a minha carteira, tira o que precisares e vem jantar comigo.

"Chegou a Brest uma jovem atriz muito bonita, chamada Gabriela, e não tardou a conquistar marinheiros e oficiais da guarnição. Não se poderia dizer que fosse uma beleza clássica, mas tinha estatura, belos olhos, pés pequenos, expressão passavelmente descarada; tudo isso nos agrada muito quando estamos na altura dos 25 anos. Ainda por cima, diziam-na a mais caprichosa das criaturas do seu sexo, e a sua maneira de representar não desmentia tal reputação. Ora desempenhava maravilhosamente bem o seu papel, dir-se-ia uma atriz de primeira ordem; no dia seguinte, na mesma peça, mostrava-se fria, insensível; recitava a sua parte como uma criança recita o catecismo. Um caso, que lhe atribuíam, sobretudo, interessou os jovens oficias. Ao que parece fora, em Paris, mantida com muito luxo por um senador que fazia, como dizem, loucuras por causa dela. Um dia, estando ele em casa de Gabriela, pôs o chapéu na cabeça; ela lhe pediu que o tirasse, e chegou a queixar-se de que aquilo era falta de respeito. O senador pôs-se a rir, ergueu os ombros e disse, afundando-se numa poltrona: "Então não posso ficar à vontade na casa de uma rapariga paga por mim!" Uma bofetada de carregador, aplicada pela mão branca de Gabriela, foi o que sua resposta mereceu na hora, fazendo com que o chapéu do cavalheiro fosse parar no outro canto do quarto.

"Depois de vê-la e de inteirar-se dessa história, Roger achou que ela lhe convinha, e com a franqueza um pouco rude que censuram em nós, marinheiros, procedeu da seguinte forma para demonstrar a Gabriela que seus encantos o tinham impressionado. Comprou as mais belas e raras flores que conseguiu encontrar em Brest, fez um ramo que amarrou com uma bonita fita cor-de-rosa, e no laço prendeu de maneira artística um rolo de 25 napoleões; era tudo que possuía no momento. Lembro-me de que o acompanhei aos bastidores durante um intervalo. Dirigiu a Gabriela um cumprimento muito curto sobre a graça como usava suas roupas, ofereceu-lhe o ramo de flores e pediu licença para visitá-la. Tudo isso expresso em três palavras.

Enquanto Gabriela só viu as flores e o belo rapaz que as oferecia, sorriu-lhe, acompanhando o sorriso com uma reverência das mais graciosas; porém, quando o buquê passou as suas mãos ela sentiu o peso do ouro e sua fisionomia mudou mais rapidamente do que a superfície do mar tumultuado por um furacão dos trópicos; e, de certo modo, não se mostrou menos violenta, pois lançou com todas as suas forças o ramo de flores e os napoleões à cabeça do meu amigo, cujo rosto ficou marcado por oito dias. A campainha do regente soou, Gabriela voltou a cena e representou pessimamente.

Tendo apanhado o buquê e o rolo de dinheiro com um jeito muito vexado, Roger foi para o café e ofereceu o ramalhete (sem o dinheiro) à moça do balcão, e experimentou, bebendo ponche, esquecer a cruel dama. Não conseguiu; apesar do despeito nascido do fato de não poder mostrar-se com o olho contundido, apaixonou-se loucamente pela irascível Gabriela. Escrevia-lhe vinte cartas por dia, e que cartas! submissas, ternas, respeitosas, tais como se fossem endereçadas a uma princesa. As primeiras foram devolvidas sem terem sido abertas; as outras não obtiveram resposta. E Roger alimentava alguma esperança, quando descobrimos que a vendedoras de laranjas do teatro enrolava suas laranjas nas cartas de amor de Roger que, por um requinte de crueldade, Gabriela lhe entregava. Foi um golpe terrível para a altivez do nosso amigo. Contudo, nem por isso a sua paixão definhou. Falava em pedir a atriz em casamento e, como lhe diziam que o Ministro da Marinha nunca daria o necessário consentimento, protestava, afirmando que nesse caso estouraria os miolos.

Entrementes, aconteceu que o s oficiais de um regimento de linha, aquartelado em Brest, quiseram obrigar Gabriela a repetir uma copla de vaudeville e, por capricho, ela se recusou. Ambos teimaram, os oficiais e a atriz, a ponto de os primeiros fazerem baixar o pano com seus assobios e a segunda desmaiar. O senhor sabe o que é a platéia de uma cidade de aquartelamento. Ficou combinado entre os oficiais que no dia seguinte e nos subsequentes, a culpada seria vaiada sem remissão, não lhe sendo permitido representar um único papel, sem que antes de desculpasse. Roger não assistira ao espetáculo; porém na mesma noite inteirara-se do escândalo que pusera o teatro em rebordosa, e também dos projetos de vingança tramados para o dia seguinte. Não perdeu tempo em tomar uma decisão.

No dia imediato, quando Gabriela apareceu no palco, vaias e assobios de romper os tímpanos partiram do bando de oficiais. Roger, que se colocara propositadamente entre os desordeiros, levantou-se e interpelou os mais turbulentos em termos tão ofensivos que a fúria desses imediatamente se voltou para a sua pessoa. Então, com grande sangue-frio, puxou um caderninho do bolso e nele escreveu os nomes que lhe eram atirados de todos os lados; teria marcado duelo com o regimento inteiro se, por espírito de solidariedade, não surgisse uma boa quantidade de oficiais da marinha, que provocaram a maioria dos adversários de Roger. Foi realmente um pandemônio.

A guarnição inteira foi detida por vários dias; porém, ao serem os oficiais postos em liberdade, houve um tremendo ajuste de contas. Cerca de sessenta deles se encontraram no campo de honra. Roger, sozinho, bateu-se contra três; matou um e feriu gravemente outros dois, sem receber nenhum arranhão. Fui menos feliz: um maldito tenente, que fora mestre de esgrima, deu-me uma profunda estocada no peito, e esta quase me matou. Asseguro-lhe que foi um belo espetáculo aquele duelo, ou melhor, aquela batalha. A marinha obteve todas as vantagens e o regimento foi obrigado a deixar Brest.

Bem imagina que nossos oficiais superiores não esqueceram o responsável pelo tumulto. Durante 15 dias esteve de sentinela à porta.

Quando saí do hospital a sua penalidade já tinha sido suspensa, e resolvi visitá-lo. Qual não foi minha surpresa, ao entrar, defrontando com ambos, ele e Gabriela, que almoçavam juntos! Davam a impressão de estar há muito tempo em ótimas relações. Já se tuteavam e bebiam no mesmo copo. Roger apresentou-me à amante como sendo seu melhor amigo e contou-lhe que eu fora ferido na escaramuça de que ela constituíra a única causa. Isso me valeu um beijo da bela criatura. Tinha inclinações bastante marciais.

Viveram juntos três meses inteiramente felizes, não se largando um só momento. Gabriela parecia amá-lo com paixão e Roger confessava que antes de conhecê-la não sabia o que era o amor.

Uma fragata holandesa fundeou no porto. Os oficiais ofereceram-nos um jantar. Bebemos copiosamente toda espécie de vinhos; e, retirada a toalha, não sabendo mais o que fazer, pois aqueles senhores falavam muito mal o francês, começamos a jogar. Os holandeses pareciam muito endinheirados; sobretudo o primeiro-tenente fazia questão de jogar tão caro que nenhum de nos o aceitava para parceiro. Roger, que não costumava jogar, achou que naquelas circunstancias seria necessário defender a honra da sua pátria. Jogou, pois, e acompanhou as paradas do tenente holandês. Primeiro ganhou, em seguida perdeu. Depois de algumas alternativas entre lucros e perdas, separaram-se sem prejuízo. Retribuímos o jantar dos holandeses. Tornamos a jogar. Roger e o tenente reiniciaram a luta. Em suma, durante dias, ambos se encontraram, fosse no café, fosse a bordo, e experimentaram jogos de todo o tipo, voltando ao gamão, e sempre aumentando as apostas, a ponto de jogarem partidas de 25 napoleões. Representava uma enorme quantia para oficiais como nós; mais de dois meses de soldo. Ao cabo de 1 semana Roger perdera todo o dinheiro que possuía, e mais três ou quatro mil francos que pedira emprestado aqui e ali.

Já terão desconfiado, sem dúvida, que Roger e Gabriela haviam acabado por fazer vida comum e bolsa comum: isto é, Roger, que não havia muito recebera uma quantia avultada, contribuía para as despesas do casal numa proporção 10 ou 20 vezes maior que a atriz. Porém, considerava o acervo como pertencendo principalmente à amante e só reservara cinqüenta napoleões para as suas despesas particulares. mas fora obrigado a recorrer àquela reserva para continuar a jogar. Gabriela não fizera a menor observação.

O dinheiro das despesas do casal tomou o caminho já seguido pelo dinheiro dos gastos particulares. Chegou o momento em que Roger se viu obrigado a arriscar seus últimos 25 napoleões. Aplicou-se tremendamente no jogo; e, assim sendo, a partida foi longa e disputada. Em dado momento, só restou a Roger, que empunhava o copo de dados, uma última oportunidade para ganhar: creio que lhe seriam precisos 6 e 4. A noite avançara. O holandês parecia fadigado e entorpecido; além disso, bebera muito ponche. Roger era o único que se conservava alerta e presa do mais violento desespero. Tremia ao lançar os dados. Atirou-os com tanta força que com a sacudidela uma vela caiu no chão. O holandês primeiro voltou a cabeça na direção da vela, que acabara de salpicar de cera a sua calça nova, e depois olhou para os dados: marcavam 6 e 4. Roger, pálido como a morte, recebeu os 25 napoleões. Continuaram a jogar. A sorte voltou-se para meu amigo que, contudo, cometia descuidos sobre descuidos, como se quisesse perder. O tenente holandês obstinou-se, dobrou, decuplou as paradas; continuava a perder. Creio vê-lo ainda: era louro, alto, fleumático, e seu rosto parecia de cera. Finalmente se levantou, depois de ter perdido 40 mil francos; pagou-os sem que sua fisionomia deixasse transparecer a mínima emoção.

Roger disse-lhe

- O nosso jogo desta noite fica sem efeito; o sr estava dormindo, não quero seu dinheiro.

Respondeu-lhe o fleumático holandês:

- O senhor está gracejando: joguei muito bem, mas as cartas estavam contra mim. Tenho a certeza de que ainda ganharei, obrigando-o a restituir tudo quanto obteve hoje. Boa noite!

E retirou-se.

No dia seguinte soubemos que, desesperado com o prejuízo sofrido, depois de ter bebido uma tigela de ponche, ele estourara os miolos, no quarto.

Os 40 mil francos ganhos por Roger estavam espalhados sobre a mesa e Gabriela contemplava-os com um sorriso satisfeito:

- Estamos muito ricos. Que faremos com todo este dinheiro?

Roger nada respondeu; ficara como que estonteado depois da morte do holandês.

- Precisamos fazer uma porção de loucuras; - continuou Gabriela - dinheiro ganho tão facilmente, também deve ser gasto facilmente. Compremos uma caleça e façamos pouco do Prefeito Marítimo e sua mulher. Quero diamantes, casimira. Pede licença e vamos a Paris; aqui nunca conseguiremos gastar tanto dinheiro!

Deteve-se para observar Roger que, olhos cravados no soalho, cabeça apoiada à mão, não a ouvira, e parecia revolver na mente sinistros pensamentos.

- Que tens Roger? - indagou ela, apoiando a mão no ombro do rapaz. - Acho que estás amuado comigo; não consigo arrancar-te uma única palavra.

- Sinto-me muito infeliz - disse ele afinal, soltando um suspiro abafado.

- Infeliz! Deus me perdoe, estarias com remorsos por teres depenado aquele mynheer?

Ele ergueu a cabeça e fitou-a com olhos esgazeados.

- Que importa!... - prosseguiu ela - que importa que ele tenha levado a coisa ao trágico e estourasse os miolos? Não lamento os jogadores que perdem: e com toda certeza o dinheiro está bem melhor entre nossas mãos do que nas suas; ele o teria gasto bebendo e fumando enquanto que nós vamos fazer um milhão de extravagâncias, cada uma mais alinhada que a outra.

Roger passeava pelo quarto, a cabeça inclinada sobre o peito, os olhos rasos de lágrimas. Se o sr o visse, ter-se-ia apiedado dele.

Gabriela observou:

- Sabes que se não fosse conhecida tua sensibilidade, muita gente poderia acreditar que trapaceaste?

- E se fosse verdade? - indagou ele com voz surda.

- Ora! - respondeu ela, sorrindo - não és bastante inteligente para trapaceares no jogo.

- Sim, trapaceei; trapaceei como um canalha que sou.

Ela compreendeu que Roger falava a verdade, por causa da emoção com que se expressava. Sentou-se num canapé e permaneceu algum tempo em silêncio.

- Preferiria - disse finalmente - que a trapacear no jogo tivesses matado dez homens.

Houve um silêncio mortal, que durou meia hora. Estavam ambos sentados no sofá e não se olharam uma única vez. Roger foi o primeiro a levantar-se e deu boa noite à amante com voz bastante calma.

- Boa noite! - respondeu ela em tom seco e frio.

Roger disse-me mais tarde que se teria matado no mesmo dia, caso não receasse que seus companheiros adivinhassem a causa daquele suicídio. Não queria desonrar a própria memória.

No dia seguinte, Gabriela mostrou-se alegre como de costume; dir-se-ia que tivesse esquecido a confidência da véspera. Quanto a Roger, tornara-se sombrio, ríspido, mal saía do quarto, evitava os amigos e muitas vezes passava dias inteiros sem dirigir a palavra à amante. Eu atribuía sua tristeza a uma sensibilidade louvável, mas excessiva, e tentei por várias vezes consolá-lo; mas ele me desconcertava, afetando uma grande indiferença pelo seu infeliz parceiro. Certo dia, chegou mesmo a atacar violentamente a nação holandesa e sustentou que não havia na Holanda um único homem honesto. Entretanto, secretamente, se informava sobre a família do tenente holandês; mas ninguém conseguia dar-lhe qualquer notícia a respeito.

Seis semanas depois da infortunada partida de gamão, Roger encontrou em casa de Gabriela um bilhete escrito por um guarda-marinha no qual este parecia agradecer-lhe gentilezas recebidas. Gabriela era a própria desordem, e o bilhete em questão fora deixado sobre a lareira. Não sei se fora infiel, mas Roger acreditou-o, e teve um terrível acesso de cólera. Cobriu de injúrias a orgulhosa atriz; e, violento como era, não sei como não lhe bateu. Disse-lhe:

- Sem dúvida esse peralvilho te deu muito dinheiro? É a única coisa que amas e concederias teus favores ao mais sujo dos nossos marinheiros caso ele tivesse com que os pagar.

- Por que não? - respondeu a atriz. - Sim, eu permitiria que um marinho me pagasse, mas... não o roubaria.

Roger soltou um grito de raiva. Puxou o punhal, trêmulo e por um momento fitou Gabriela com olhos desvairados; depois, reunindo as suas forças, atirou a arma aos pés da moça e fugiu do apartamento para não ceder à tentação que o assaltara.

Era bem tarde, quando nessa mesma noite, passei pelo seu alojamento e, vendo a luz acesa, entrei para pedir-lhe um livro emprestado. Encontrei-o muito entretido em escrever. Não se moveu e mal pareceu perceber minha presença. Sentei-me junto à secretária e fitei-o: seus traços estavam de tal forma alterados que qualquer outra pessoa, a não ser eu, dificilmente o reconheceria. De repente, avistei sobre a escrivaninha uma carta já lacrada, e que me era dirigida. Apressei-me em abri-la. Roger comunicava-me que ia pôr fim aos seus dias, e delegava-me diversos encargos. Enquanto eu lia, ele continuava a escrever sem se preocupar comigo: era a Gabriela que dava adeus... Bem imagina qual foi a minha surpresa e tudo quanto devo ter-lhe dito, perturbado como me deixara a sua decisão.

- Será possível? Queres matar-te, tu que és tão feliz?

- Meu amigo - disse-me ele, lacrando a carta - de nada sabes. Não me conheces, sou um velhaco; sou tão desprezível que uma mulher da vida me insulta; e tão bem sinto minha baixeza que não me atrevo a bater-lhe.

Então me contou a história da partida de gamão, e o resto o sr já sabe. Ouvindo-o, senti-me pelo menos tão emocionado quanto ele; não sabia o que lhe dizer; tinha lágrimas nos olhos, mas não conseguia falar. Enfim, ocorreu-me a idéia de fazer-lhe ver que não devia censurar-se por haver voluntariamente causado a ruína do holandês, a quem, afinal, com a sua... trapaça... só fizera perder 25 napoleões.

- Ora! - exclamou ele com amarga ironia - sou um pequeno ladrão, e não um grande. Eu que era tão ambicioso! Não passar de um pequeno velhaco!

E soltou uma gargalhada.

Desmanchei-me em lágrimas.

De repente, abriu-se a porta. Uma mulher entrou e precipitou-se nos seus braços: era Gabriela.

- Perdoa-me - disse-lhe, cingindo-o estreitamente - perdoa-me. Amo unicamente a ti, bem o sinto. Amo-te mais agora. Se quiseres, roubarei, já roubei... Sim, já roubei, roubei um relógio de ouro... Que poderia fazer de pior?

Roger meneou a cabeça com incredulidade; mas seu rosto como que se aclarou.

- Não, minha pobre menina - respondeu - é absolutamente necessário que me mate. Sofro demais, não posso suportar a dor que me punge.

- Bem, se queres morrer, morrerei contigo! Sem ti, que me importa a vida! Sou corajosa, já atirei com espingardas; matar-me-ei tão bem quanto outra qualquer. Além disso, já representei tragédias, estou acostumada.

Tinha lagrimas dos olhos ao falar, mas aquela última idéia fê-la sorrir, e o próprio Roger deixou escapar um sorriso.

- Estás rindo, meu oficial! - exclamou ela, batendo as mãos e beijando-o - não te matarás!

Continuava a beijá-lo, ora chorando, ora rindo-se, ora praguejando. Entretanto, apossara-se das pistolas e do punhal de Roger. Disse-lhe:

- Meu querido, tens uma amante que um amigo que te querem. Acredita-me, podes ainda desfrutar alguma felicidade neste mundo.

Saí, depois de abraçá-lo, e deixei-o com Gabriela.

Creio que só teríamos conseguido protelar seu funesto projeto, caso não tivesse recebido do Ministro ordens para partir, como primeiro-tenente, a bordo de uma fragata destinada a cruzar o oceano Índico, depois de ter passado através da esquadra inglesa que bloqueava o porto. Era uma expedição arriscada. Fiz compreender ao meu amigo que seria preferível morrer gloriosamente, vitimado por uma bala inglesa, a pôr fim aos seus dias com suas próprias mãos, sem nobreza e sem proveito para a pátria. Ele prometeu viver. Distribuiu a metade dos 40 mil francos pelos marinheiros estropiados ou pelas viúvas e filhos de marinheiros. Entregou o restante a Gabriela, que jurou que só os gastaria em boas obras. Pretendia cumprir a palavra,pobre moça! Mas seus impulsos eram de curta duração. Soube mais tarde que deu aos pobres alguns milhares de francos. Comprou trapos com o resto.

Vagamos lentamente rumo aos mares da Índia, embaraçados por ventos contrários e por manobras infelizes do nosso capitão, cuja imperícia multiplicava os perigos da empresa. Ora tocados por forças superiores, ora perseguindo navios mercantes, não passávamos um único dia sem uma nova aventura. Mas nem a vida arriscada que levávamos, nem as fadigas do serviço conseguiram distrair Roger dos tristes pensamentos que o perseguiam. Ele, que já fora considerado o oficial mais ativo e mais brilhante do nosso porto, agora de limitava apenas a cumprir sua obrigação. Logo após terminar o serviço, fechava-se no quarto, sem livros, sem papel; o infeliz passava horas inteiras deitado no catre, sem nem mesmo conseguir dormir.

Certo dia, observando-lhe o abatimento, achei acertado adverti-lo.

- Com os diabos! Meu caro, afliges-te por pouco. Escamoteaste 25 napoleões a um holandês obeso, bem! - sentes remorsos por um milhão. Ora, quando eras amante da esposa do prefeito de... não sentias remorsos? Entretanto, ela valia mais do que 25 napoleões.

Voltou-se ao colchão, sem me responder. Prossegui:

- Afinal, teu crime, já que insistes em dizer que é um crime, tinha um motivo honroso, e vinha de uma alma elevada.

Ele virou a cabeça e fitou-me com irritação.

- É verdade - continuei - pois se tivesses perdido, que aconteceria a Gabriela? Pobre moça, teria vendido a última camisa para ajudar-te. Se perdesses, ficarias na miséria... Foi por ela, foi por amor a ela que trapaceaste. Há pessoas que matam por amor... ou se matam... Tu, meu querido Roger, fizeste mais. Para um homem da nossa fibra, há mais coragem em... roubar, para falar claro, do que matar-se.

- Talvez - disse o capitão, interrompendo a narrativa - agora eu lhe pareça ridículo. Asseguro-lhe, porém, que a minha amizade por Roger conferia-me naquele momento uma eloqüência de que não disponho; e que, o diabo me leve, ao assim lhe falar, fazia-o de boa-fé e acreditava em tudo o que dizia. Ah! naquele tempo eu era jovem!

Roger permaneceu algum tempo calado; depois me estendeu a mão, e parecendo fazer um grande esforço para dominar a emoção, disse-me:

- Meu amigo, julgas-me melhor do que sou. Sou um ladrão, covarde. Quando trapaceei com aquele holandês, só pensava em ganhar 25 napoleões, mais nada. Não pensava em Ga e aí está por que me desprezo... Eu, avaliar minha honra em menos de 25 napoleões!... Que baixeza! Sim, seria feliz se pudesse dizer a mim mesmo: "Roubei para tirar Gabriela da miséria... Não!... Não pensava nela... naquele momento não me sentia apaixonado... Era um jogador... era um ladrão... Roubei dinheiro para ficar com ele... e de tal maneira essa ação me embruteceu, me aviltou, que agora não sinto mais coragem nem amor... vivo e não penso mais em Gabriela... sou um homem acabado.

Parecia-me tão infeliz que se me tivesse pedido minhas pistolas para matar-se, creio que as teria entregue.

Uma determinada sexta-feira, dia de mau augúrio, divisamos uma grande fragata inglesa, Alceste, que começou a perseguir-nos. Possuía 58 canhões e nós só 38. Demos todo o pano para fugir; mas tinha maior velocidade e aproximava-se de momento a momento. Era evidente que antes da noite seríamos obrigados a entrar numa luta desigual. Nosso capitão chamou Roger ao seu camarote, onde ficaram deliberando um bom quarto de hora. Roger tornou a subir             à coberta, tomou-me pelo braço e levou-me à parte. Então me disse:

- Daqui a 2 horas, o caso estará resolvido. Esse pobre homem que se agita no castelo de popa, perdeu a cabeça. Só tinha dois partidos a tomar: o primeiro, mais honroso, seria deixar o inimigo aproximar-se, depois abordá-lo energicamente, lançando a bordo uma centena de rapazes resolutos; o outro partido, que não seria mau, apenas um tanto covarde, seria aliviar-nos, atirando ao mar uma parte dos nossos canhões. Então poderíamos contornar de muito perto as costas da África, que divisamos ao longe, a bombordo. O inglês, receoso de encalhar, seria obrigado a permitir que fugíssemos. Nosso... capitão, porém, não é nem covarde, nem herói; vai deixar que sejamos destruídos de longe, a tiros de canhão e, depois de algumas horas de combate, sem dúvida baixará honrosamente o pavilhão. Tanto pior para ti; esperam-te os pontões de Portsmouth. Quanto a mim, não pretendo vê-los.

- Talvez nossos primeiros tiros de canhão, acertando no alvo, causem ao inimigo avarias sérias para obrigá-lo a interromper a caça.

- Escuta, não quero ser feito prisioneiro, prefiro que me matem, estou em tempo de acabar comigo. Se por desgraça apenas ficar ferido, dá-me tua palavra de honra que me atirarás ao mar. É o leito onde deve morrer um bom marinheiro como sou.

- Que loucura! - exclamei. - E que incumbência me dás!

- Cumprirás um dever de bom amigo. Bem sabes que é preciso que eu morra. Só na esperança de ser morto é que consenti em não me matar. Promete-me, vamos; se recusares, vou pedir ao contramestre que me preste esse serviço, e garanto que não se negará a fazê-lo.

Disse-lhe, depois de ter refletido:

- Dou minha palavra que farei o que desejas, conquanto sejas mortalmente ferido, sem esperanças de cura. Nesse caso, consinto em poupar-te sofrimentos.

- Serei mortalmente ferido, ou então morto.

Estendeu-me a mão que apertei calorosamente. Daí por diante mostrou-se mais calmo, e uma certa alegria marcial chegou mesmo a iluminar-lhe o rosto.

Eram cerca de 3 horas da tarde quando os canhões de caça do inimigo começaram a atingir nossos massames. Então ferramos uma parte de nossas velas; apresentávamos o costado ao Alceste, e sustentamos um prolongado tiroteio contra os ingleses, que responderam vigorosamente. Depois de uma hora de luta, nosso capitão que não tomava uma decisão acertada, quis tentar a abordagem. Já tínhamos muitos mortos e feridos, e o restante da tripulação perdera o entusiasmo. No momento em que abríamos as velas para aproximar-nos do inglês, o mastro principal que mal se agüentava, caiu com um tremendo estrépito. O Alceste aproveitou a confusão do acidente. Passou junto a nossa popa, ponto um lado inteiro da nossa fragata ao alcance dos canos da sua artilharia, que a varou de proa a popa; só podíamos opor-lhe dois pequenos canhões. Encontrava-me junto a Roger, ocupado em mandar cortar as cordas que retinham o mastro derrubado. De súbito, sinto que me aperta o braço com força; volto-me e vejo-o caído no convés, todo coberto de sangue. Acabava de receber um tiro de metralha no ventre.

O capitão correu para ele:

- Que devo fazer, tenente? - indagou.

- Deve fixar o pavilhão neste toco de mastro e deixar-nos afundar.

Imediatamente o capitão se afastou, pouco satisfeito com o conselho.

Então Roger falou:

- Não te esqueças da tua promessa.

- Não é nada, podes sarar.

- Atira-me por cima da amurada! - exclamou, praguejando horrivelmente, e puxando a aba do meu casaco - bem vês que não escaparei; atira-me ao mar, não quero vê-los levar a nossa bandeira.

Dois marinheiros aproximaram-se a fim de carregá-lo para o fundo do porão.

- Voltem para os canhões, patifes! - ordenou - Disparem a metralhadora, apontem para a coberta, e tu, se faltares à tua palavra, eu te amaldiçoarei e te considerarei o mais covarde e vil dos homens!

O ferimento que recebera era evidentemente mortal. Vi o capitão chamar um aspirante e dar-lhe ordens para trazer a nossa bandeira.

- Dá-me um aperto de mão - disse Roger.

No próprio momento em que trouxeram a nossa bandeira...

- Capitão, uma baleia a bombordo! - interrompeu um guarda-marinha, correndo ao nosso encontro.

- Uma baleia! - exclamou o capitão, cheio de alegria e cortando a narrativa. - Depressa, chalupas ao mar! O iole ao mar! Todas as chalupas ao mar! Arpões,cordas! Etc., etc.

Não consegui saber como morreu o pobre tenente Roger.

 

                   A senhora Frola e o senhor Ponza - Pirandello

Mas, em suma, - não lhe parece? - é para enlouquecer o não poder saber, com certeza, qual dos dois seja o louco, se esta senhora Frola ou este senhor Ponza, seu genro. Coisas que só acontecem em Valdana, cidade infeliz, perdição de todos os estrangeiros excêntricos.

Ela ou ele; não há por onde fugir; um dos dois deve ser louco, por força. Trata-se, nada mias, nada menos que disto... Mas... é melhor começar pelo princípio, por ordem.

Confesso-lhes que me magoam seriamente os sobressaltos em que vivem, há três meses, os habitantes de Valdana, e pouco se me dá da Sra. Frola e do Sr Ponza, seu genro. Porque, se é verdade que uma grande desgraça pesa sobre eles, não é menos verdade que um dos dois, ao menos, teve a ventura de enlouquecer, no que, aliás, foi acompanhado e auxiliado pelo outro e de tal forma que - repito - não se consegue saber qual dos dois é realmente o louco. Aí está, sem dúvida, um consolo original, o melhor de quantos poderiam conseguir. Mas eu pergunto: Os senhores acham que é pouco trazer uma população inteira sob a ameaça deste incubo? Sem que ela possa, devido a uma completa perturbação do juízo, distinguir entre a fantasia e a realidade? É uma angústia, uma aflição. Cada habitante vê, todos os dias, aparecer, à sua frente, aqueles dois; observa-os, examina-os e, nada! Não consegue descobrir qual seja; onde está a fantasia, onde está a realidade. Nasce, naturalmente, no espírito de cada um a suspeita perniciosa de que tanto vale a realidade como a fantasia, e que, por conseguinte, toda realidade pode muito bem ser uma fantasia e vice-versa. Os senhores acham que é pouco? Eu, por mim, se estivesse na pele do senhor prefeito e a bem da saúde de espírito dos habitantes de Valdana, expulsava, antes de mais nada, a senhora Frola e o senhor Ponza, seu genro.

 

Mas comecemos pelo princípio, por ordem.

Este tal senhor Ponza chegou a Valdana, vai fazer agora três meses, como secretário da prefeitura. Tomou aposentos no casarão novo, que fica logo à saída da vila, e a quem chamam "Il Favo". Um apartamento no último andar. Três janelas abertas sobre a campina, muito altas, muito tristes (porque a fachada de lá, aberta para o poente, todos aqueles hortos pálidos, apesar de nova, entristeceu-me muito) e três janelas internas, do lado de cá, sobre o pátio, por onde corre o balaústre da varanda, dividido por tabiques de grades. Nesse balaústre pendem muitos cestos pequenos, prontos para serem puxados de uma corda, em caso de necessidade.

Ao mesmo tempo, porém, e com grande espanto de todos, o senhor Ponza alugou no centro da cidade, precisamente na Rua dos Santos n. 15, outro apartamento mobiliado, composto de três quartos e cozinha. E disse que era para a sua sogra, senhora Frola. Esta chegou, de fato, cinco ou seis dias depois. O senhor Ponza foi, sozinho, esperá-la à estação e conduziu-a para ali,onde a deixou, sozinha.

Compreende-se que uma filha, casando, deixe a casa da mãe para ir viver com o marido, mesmo que seja noutra cidade; mas que esta mãe, depois, não podendo suportar a ausência da filha, abandone a sua cidade, a sua casa e vá procurá-la e que, na cidade onde tanto a filha como ela são forasteiras, vá morar numa casa à parte, é o que não se compreende muito facilmente; ou, então, deve-se admitir que entre a sogra e o genro exista uma incompatibilidade tão grande que torna realmente impossível a convivência, ainda mesmo nestas condições.

Foi isso, naturalmente, o que, a princípio, se supôs em Valdana. E quem com isso saiu perdendo no conceito de todos foi, evidentemente, o senhor Ponza. Quanto à senhora Frola, ainda que alguém lhe quisesse reconhecer alguma culpa, ou por falta de tolerância, ou por causa de uma ou outra teimosia, o certo é que a todos comoveu o amor materno que a arrastava para perto da filha, condenada como estava a não poder viver junto dela.

O que em grande parte contribuiu para esta consideração pela senhora Frola e para o conceito que do senhor Ponza logo se firmou no espírito de todos - isto é, que fosse mau e cruel - foi também, verdade seja dita, o aspecto de ambos. Baixo, sem pescoço, negro como um africano, com espessos e grossos cabelos sobre a fronte pequena, densas e ásperas sobrancelhas unidas, grandes e luzentes bigodes de policial, e nos olhos profundos, fixos, quase que só pupilas, uma intensidade violenta, exacerbada, dificilmente contida, não se sabe se de tétrico pesar, se de despeito pela vida alheia, o senhor Ponza não fora feito, certamente, para conquistar simpatia e confiança. A senhora Frola é, ao contrário, uma velhinha pálida, graciosa, desde a nobreza dos seus traços finos até o seu ar melancólico, mas de uma melancolia sem peso, vaga e gentil, que não exclui a afabilidade para com todos.

Ora, desta afabilidade, que é natural na sua pessoa, a senhora Frola deu logo provas na cidade, tendo feito crescer, no espírito de todos, a aversão pelo senhor Ponza. E isto porque apareceu, a cada um dos habitantes, a índole dela, não só meiga, conformada, tolerante, mas ainda cheia de indulgente compaixão pelo mal que lhe faz o genro; e ainda porque se conseguiu saber que ao senhor Ponza não basta o relegar para uma casa à parte aquela pobre mãe, senão que leva a sua crueldade ao ponto de lhe impedir que visite a filha.

Crueldade? Não, não, protesta imediatamente a senhora Frola nas suas visitas às senhoras de Valdana, estendendo as maozinhas pálidas, e verdadeiramente receosa de que se possa pensar isso a respeito do genro. E se apressa em decantar-lhe todas as virtudes, a dizer dele todo o bem possível e imaginável; a dizer do amor, dos cuidados, das atenções que ele não só dispensa à filha como também a ela, sim, a ela também; e, além de tudo, solícito, desinteressado... Ah, cruel, não, pelo amor de Deus! O que se dá é apenas o seguinte: o senhor Ponza quer a mulherzinha toda para si, ao ponto de exigir que, mesmo o amor que ela deve dedicar à mãe, o dedique indiretamente, por meio dele, através dele... Eis tudo. Sim, tem razão, a princípio pode parecer crueldade, mas não é; é coisa bem diferente, é uma coisa que ela, a senhora Frola, compreende mas não sabe explicar. Temperamento? Não. É uma espécie de doença... como dizer? Meu Deus, basta olhar para os olhos dele! À primeira vista causam péssima impressão; mas para quem, como ela, sabe ler neles, quantas coisas dizem! Dizem tudo: dizem de um mundo de amor, todo encerrado no seu íntimo, e onde a mulher deve viver sem nunca sair, nem um instante sequer, e no qual ninguém, nem mesmo a mãe, deve penetrar. Ciúme? Talvez; desde que se queira definir vulgarmente a plenitude exclusiva desse amor. Egoísmo? Mas um egoísmo que se dá todo, como um mundo, à própria esposa. Egoísmo, no fundo, seria talvez o dela querendo penetrar nesse mundo fechado, de amor, e nele introduzir-se à força, não obstante saber que a filha é feliz, sendo tão adorada... Para uma mãe é o quanto basta! De resto, não é verdade que não veja a filha. Duas ou três vezes por dia, ela a vê; entra no pátio da casa; toca a campainha e imediatamente a filha aparece lá em cima, à janela.

- Como estás Tildinha?

- Muito bem, mamãe, e tu?

- Como Deus quer, minha filha. Vamos, faze descer o cesto!

E no cesto, num pedaço de papel, sempre duas ou três palavras, com notícias do dia. Aí está. E é o quanto lhe basta.

Isto há quatro anos, e a senhora Frola já se conformou e habitual com essa vida. Resignou-se. E quase que não sofre mais.

 

Como é fácil perceber, a resignação da senhora Frola, o hábito do martírio, que ela diz ter adquirido, redundam em prejuízo ao senhor Ponza, seu genro, quanto mais ela, com as suas longas conversas, se cansa em desculpá-lo.

Com verdadeira indignação, portanto, e também com uma ponta de medo, as senhoras de Valdana, que receberam primeiro a visita da senhora Frola, acolhem, no dia seguinte, o aviso de outra visita inesperada, a do senhor Ponza, que lhes pede que concedam apenas dois minutos de audiência, para uma "declaração imperiosa", se não lhes causa incômodo.

Com o rosto afogueado, quase congestionado, com os olhos mais duros e mais tétricos que nunca, com um lenço que, de tão branco, realça tremendamente, bem como os punhos e o peitilho da camisa, sobre o preto da pele, dos cabelos e da roupa, o senhor Ponza, enxugando a todo instante o suor que lhe escorre da fronte e das faces, não tanto pelo calor como pelo esforço que faz sobre si mesmo, e devido ao qual até as mãos grandes, de unhas compridas, lhe tremem; neste ou naquele salão, diante daquelas senhoras que o olham, quase aterrorizadas, pergunta, antes de tudo, se a senhora Frola, sua sogra, as visitou no dia anterior; depois, com esforço, com agitação sempre crescente, pergunta se ela lhes falou da filha e se disse que ele a proíbe, absolutamente, de vê-la e de entrar em sua casa.

As senhoras, vendo-o tão agitado, se apressam, como é fácil de imaginar, em responder-lhe que a senhora Frola lhes falou, de fato, dessa proibição, mas que, ao mesmo tempo, disse dele todo o bem possível e imaginável, chegando mesmo a desculpá-lo, e, ainda mais, a não lhe reconhecer a menor sombra de culpa por causa disso.

Mas eis que, ao invés de se acalmar, ante as respostas, o senhor Ponza se agita ainda mias; os olhos se lhe tornam ainda mais duros, mais fixos, mais tétricos; as enormes gotas de suor mais abundantes; e por fim, fazendo um esforço ainda mais violento sobre si mesmo, formula a sua "declaração imperiosa".

E que é, simplesmente, a seguinte: que a senhora Frola, coitadinha, não parece, mas é louca.

A sua loucura data de 4 anos. E consiste, exatamente, em fazer crer que ele não lhe deixa ver a filha. Que filha? Morreu, há 4 anos, a filha; e a senhora Frola, de tanta dor que esta morte lhe causou, enlouqueceu. Enlouqueceu, sim, e por felicidade, porquanto a loucura foi, para ela, a consolação da dor desesperada. Naturalmente não a teria de outro modo suportado, senão assim, isto é, supondo que sua filha não morreu e que é ele, ao contrário, seu genro, que não lha quer deixar ver mais.

Por um simples dever de caridade para com uma infeliz, ele, o senhor Ponza, alimenta, há 4 anos, a custo de sacrifícios, essa piedosa loucura: mantém, com uma despesa superior às suas forças, duas casas: uma para si, outra para ela; e obriga a sua segunda mulher, que a isso se presta, felizmente, a alimentar também aquela loucura. Mas caridade, dever, vão até certo ponto: mesmo porque, devido à sua qualidade de funcionário público, o senhor Ponza não pode permitir que se suponha, na cidade, esta coisa cruel e inverossímil: que ele, por ciúme ou coisa que o valha, impeça a pobre mãe de ver a própria filha. Isto posto, o senhor Ponza se inclina diante das senhoras estupefatas, e se retira. Mas essa estupefação ainda não se desfez, e eis que aparece, de novo, a senhora Frola, com seu arzinho meigo de vaga melancolia, pedindo desculpas se, por sua causa, aquelas boas senhoras se assustaram com a visita que lhes fez o senhor Ponza, seu genro.

E a senhora Frola, com a maior simplicidade e naturalidade do mundo declara, por sua vez, mas debaixo da maior reserva, pelo amor de Deus! porquanto o senhor Ponza é um funcionário público e, exatamente por causa disso se absteve de dizê-lo, na primeira vez, visto como isso poderia prejudicá-lo seriamente na carreira: o senhor Ponza, coitadinho - ótimo, ótimo, meticuloso secretário da prefeitura, exato, preciso em todos os seus atos, em todos seus pensamentos, cheio de tantas qualidades boas - o senhor Ponza só não regula num ponto... O louco é ele, coitadinho; e a sua loucura consiste exatamente nisso: em acreditar que sua mulher morreu há 4 anos e em ir espalhando que ela é que é a louca, a senhora Frola, que ainda acredita que a filha está viva. Não, não é para pretextar engenhosamente, aos olhos dos outros, o seu ciúme quase maníaco e aquela proibição cruel; não; ele acredita seriamente que a mulher morreu e que esta, a que vive com ele, é uma segunda mulher. É um caso dolorosíssimo! Porque, em verdade, com seu excessivo amor, este homem correu, primeiro, o risco de destruir, de matar a sua mulher, jovem e delicada, tanto assim que foi preciso tirá-la dele às escondidas, e interná-la, sem que ele o soubesse, numa casa de saúde. Pois bem: o coitadinho, a quem aquele amor exagerado já havia alterado o cérebro, enlouqueceu; acreditou que a mulher tivesse morrido de verdade;e esta idéia se fixou de tal modo que não foi mais possível dissuadi-lo, nem mesmo depois que de novo lhe apresentaram a esposa, um ano mais tarde, mas formosa como sempre. Julgou que fosse outra; tanto que foi preciso, com o auxílio de parentes e amigos, simular um segundo matrimônio, que lhe devolveu plenamente o equilíbrio das faculdades mentais.

De uns tempos para cá, porém, a senhora Frola tem algumas razões para suspeitar que o seu genro tenha caído em si mesmo, e que esteja fingindo, unicamente fingindo acreditar que a sua mulher é uma segunda mulher, a fim de a possuir toda para si, sem contato com ninguém, porquanto, talvez de quando em quando lhe volte o receio de que lha possam roubar de novo, às escondidas.

Não pode ser outra coisa. Do contrário, como explicar todos os cuidados, todas as atenções que ele lhe dispensa, a ela, sua sogra, dada a hipótese de que ele ainda acredita que é, de fato, uma segunda esposa a que possui? Não se sentiria obrigado a ser tão atencioso para com uma mulher que, a ser assim, teria deixado de ser sua sogra, não é verdade? E não é para provar - note-se bem! - que o louco é ele, que a senhora Frola diz isso tudo; é, de preferência, para se convencer, a si mesma, de que as suas suspeitas são fundadas.

No entanto, conclui com um suspiro - no entanto a pobre da minha filha deve fingir que não é ela, que é outra; e também eu sou obrigada a fingir-me de louca, acreditando que minha filha está viva ainda. Custa-me pouco, graças a Deus, porque ela aí está, cheia de vida e saúde; vejo-a, falo-lhe; mas estou condenada a não viver com ela, a vê-la e a falar-lhe de longe, só para que ele possa crer, ou finja crer que a minha filha, Deus que a livre! está morta e que a que vive com ele é uma segunda mulher. Mas, repito, que me importa isso, se desse modo conseguimos viver em paz? Sei que minha filha é amada e feliz; vejo-a, falo-lhe e me resigno, por amor de ambos, a viver assim e a ser tida também por louca, minha senhora... Enfim, paciência...

Pergunto: não lhes parece que em Valdana todos têm razão de andar assombrados, boquiabertos, e de se olhar, uns aos outros, como insensatos? Quem é o louco? Dos dois, em quem acreditar? Onde está a realidade? Onde a fantasia?

Só a mulher do senhor Ponza é que no-lo poderia dizer. Mas não se lhe pode dar crédito, porque, diante dele, confessa que é sua segunda mulher, e diante da senhora Frola confirma ser sua filha. Seria preciso chamá-la à parte e exigir que dissesse, francamente, a verdade. Isto, porém, é impossível. O senhor Ponza - seja ele ou não o louco - é realmente ciumento e não mostra a mulher a ninguém. Conserva-a lá em cima, como numa prisão, debaixo de sete chaves; e este fato depõe, sem dúvida, em favor da senhora Frola; mas o senhor Ponza confessa que é obrigado a proceder assim, e que é a sua própria mulher que lho impõe, com medo que a senhora Frola lhe entre em casa, de surpresa. Pode também ser uma desculpa. Acrescente-se ainda que o senhor Ponza não tem nenhuma criada. Diz que o faz por economia, visto ser forçado a pagar o aluguel de duas casas; e que se sujeita a fazer, por si, a despesa diária; e que a sua esposa que, no seu dizer, não é filha da senhora Frola, se sujeita também, por piedade à sogra do marido, a cuidar de todos os serviços caseiros, mesmo os mais humildes, privando-se do auxílio de uma criada. Isto parece excessivo a quase todos. Em todo o caso, é também verdade que este estado de coisas pode ser explicado, se não pela piedade, pelo ciúme dele.

Todavia, o senhor Prefeito de Valdana contentou-se com a declaração do senhor Ponza. Como quer que seja, porém, o depoimento e o procedimento deste não depõem em seu favor, ao menos perante as senhoras de Valdana, mais inclinadas, quase todas, a dar fé à senhora Frola. Esta, de fato, lhes vem mostrar, solicitamente, todas as cartinhas que deita no cesto para a filha, e outros muitos documentos, aos quais, porém, o senhor Ponza pede que não dêem crédito, dizendo que foram deixados com ela a fim de contribuir com o piedoso engano.

Uma coisa, porém, é certa: ambos demonstram, um pelo outro, um admirável espírito de sacrifício, bastante comovedor; e que cada um tem pela presumida loucura do outro a consideração mais encantadoramente piedosa. Ambos raciocinam, magnificamente; tanto assim que, em Valdana, jamais passaria pela cabeça de quem quer que fosse a idéia de que um deles fosse louco, se eles mesmos não o tivessem dito: o senhor Ponza a respeito da senhora Frola, e a senhora Frola a respeito do senhor Ponza.

A senhora Frola vai, quase sempre, à Prefeitura, visitar o genro e pedir-lhe algum conselho, quando não o espera à saída para que ele a acompanhe em suas compras; e também, muitas vezes, por seu turno, à noite, nas horas vagas, o senhor Ponza vai visitar a senhora Frola, no apartamento mobiliado; e toda a vez que ambos se encontram, casualmente, na rua, com a maior cordialidade continuam andando juntos; ele lhe dá a direita e, se ela se cansa, lhe estende o braço, e vão assim, juntos, entre o despeito surdo e o espanto e a consternação do povo que os estuda, examina, observa e, nada! Ainda não consegue, de modo algum, compreender qual dos dois é o louco, onde está a fantasia, e onde a realidade.

 

                   Através do véu - A. Conan Doyle

Ele era um fronteiriço enorme, cabeludo e de rosto sardento, descendente direto de uma tribo dada ao roubo de gado em Liddesdale. Apesar de sua descendência, era um cidadão tão sensato e sóbrio quanto podia se desejar, vereador em Melrose, presbítero da Igreja e presidente da seção local da Associação Cristã de Moços. Seu nome era Brown - e se via impresso como "Brown and Handiside", sobre as grandes mercadorias da rua principal. Sua esposa, Maggie Brown, era Armstrong antes de se casar, e vinha de uma velha família de camponeses nos ermos de Teviothead. Era de baixa estatura, moreninha e possuía olhos negros, além de um temperamento estranhamente nervoso para uma mulher escocesa. Não se podia encontrar maior contraste entre o homem grande e trigueiro e a pequena mulher morena, porém ambos eram da terra, até onde podia alcançar a memória.

Um dia - era o primeiro aniversário de seu casamento - eles saíram juntos para ver as escavações do Forte Romano em Newstead. Não era um lugar particularmente pitoresco. Da ribanceira norte do Tweed, exatamente onde o rio forma uma curva, estende-se uma rampa suave de terra arável. Através desta corriam os valos dos escavadores, expondo, aqui e ali, velhos trabalhos de pedra, indicando os alicerces das antigas muralhas. Havia sido um lugar enorme, pois o acampamento possuía cinqüenta acres de extensão e o forte, quinze. De qualquer modo, tudo era fácil para eles, uma vez que o Sr. Brown conhecia o fazendeiro proprietário da terra. Sob sua direção, passaram uma longa tarde de verão inspecionando as valas, as covas, as muralhas e toda a estranha variedade de objetos que esperavam ser transportados para o Museu de Antigüidade de Edimburgo. A fivela de um cinturão de mulher havia sido desenterrada naquele mesmo dia e o fazendeiro estava discorrendo sobre isto, quando seus olhos se fixaram no rosto da Sra. Brown.

- Sua boa senhora acha-se cansada, disse ele. Talvez seja melhor descansar um pouco antes de continuar.

Brown olhou para a esposa. Ela estava pálida, certamente, e seus olhos escuros, luminosos e estranhos.

- O que é Maggie? Cansada? Acho que é hora de regressarmos.

- Não, não, John, continuemos. É maravilhoso. Igual a um país de sonho. Tudo parece estar tão chegado e perto de mim. Quanto tempo os romanos permaneceram aqui, Sr. Cunningham?

- Longo tempo, senhora. Se a senhora visse as covas de lixo das cozinhas, compreenderia que levaria muito tempo para enchê-las.

- E por que eles partiram?

- Bem, senhora, por todos os sinais, partiram porque tiveram de o fazer. O povo das vizinhanças não podia suportá-los mais, por isso levantaram-se e queimaram o forte. Pode ser a marca de fogo nas pedras.

A mulher estremeceu ligeiramente.

- Uma noite feroz... horrível, disse ela. O céu devia estar vermelho aquela noite... e estas pedras cinzentas também.

- Sim, acho que se encontravam rubras, disse seu marido. É uma coisa estranha, Maggie, e talvez fossem suas palavras que a ocasionasse; mas pareço ver este incidente mais claro do que jamais vi qualquer coisa em minha vida. A luz brilhava na água.

- Sim, a luz brilhava na água. E a fumaça agarrava-se à garganta. E todos os selvagens estavam gritando.

O velho fazendeiro começou a rir.

- A senhora escreverá uma história acerca do velho forte, disse ele. Eu o tenho mostrado a mais de um indivíduo, mas nunca ouvi explicação tão clara. Algumas pessoas têm o dom.

Haviam bordejado a margem do fosso, e um poço abria sua boca à direita deles.

- Aquele poço possui 14 pés de profundidade, disse o camponês. Imaginem o que retiramos do fundo? Bem, era somente o esqueleto de um homem com uma lança ao lado. Penso que a empunhava quando morreu. Ora, como pode um homem com uma lança achar-se num buraco destes? Não estava enterrado, porque eles queimavam seus mortos. Que conclui disso, senhora?

- Ele saltou ao fundo para livrar-se dos selvagens, disse a mulher.

- Bem, é plausível e um dos professores de Edimburgo não poderia apresentar melhor explicação. Gostaria que estivesse aqui, senhora, para responder às nossas dificuldades. Aqui está o altar que encontramos semana passada. Há uma inscrição. Disseram-me que é latim que significa que os homens deste forte agradecem a Deus por sua segurança.

Examinaram a velha pedra gasta. Havia dois VV largos e profundamente entalhados, no topo.

- Que significam estes dois VV, perguntou Brown.

- Ninguém sabe, respondeu o guia.

- Valeria Victrix, disse a senhora, suavemente. Seu rosto se encontrava mais pálido que nunca, os olhos muito distantes, como quem observa pelas passagens obscuras das abóbadas dos séculos.

- Que é isto? perguntou o marido, asperamente.

Ela estremeceu como alguém que acorda de um sono.

- Acerca de que falávamos? perguntou.

- Destes VV na pedra.

- Não há dúvida de que é somente o nome da legião que erigiu o altar.

- Sim, mas você lhe deu um nome especial.

- Realmente? Que absurdo! Como poderia eu saber qual era o nome?

- Você disse algo... Victrix, suponho.

- Acho que estava conjecturando. Este lugar me dá o sentimento singular de não ser eu própria, mas outra pessoa.

- Sim, é um lugar misterioso, disse seu marido, olhando ao redor com uma expressão quase de medo em seus olhos cinzentos e agressivos. Também sinto isto. penso que somente lhe desejaremos boa noite, Sr. Cunningham, e regressaremos a Melrose.

Nenhum deles pôde sacudir a estranha impressão que lhes havia sido deixada, pela visita às escavações. Era como se algum miasma houvesse subido daquelas valas úmidas e passado ao sangue deles. Toda a tarde permaneceram silenciosos e pensativos, mas os poucos comentários que faziam mostravam que o mesmo objeto ocupava a mente de cada um. Brown passou a noite sem repouso na qual teve um sonho estranho e bem concatenado, tão vívido que ele acordou transpirando e tremendo como um cavalo amedrontado. Tentou descrevê-lo à sua mulher quando se sentaram para o lanche, de manhã.

- Foi a coisa mais clara, Maggie, disse ele. Nada que me aconteceu quando acordado tem sido mais claro do que isto. sinto-me como se estas mãos estivessem pegajosas de sangue.

- Conte-me devagar, disse ela.

- Quando começou eu estava numa encosta. Encontrava-me deitado no chão. Este era áspero e havia moitas de urzes. Tudo ao meu redor era somente escuridão, mas eu podia ouvir o sussurro das respirações dos homens. Afigurava-se uma grande multidão em ambos os lados ao meu redor, mas não podia ver ninguém. Às vezes, havia um baixo tinido de aço, e então um número de vozes sussurrava "Silêncio!". Eu tinha uma clava nodosa na mão e esta era guarnecida de pontas de ferro na extremidade. Meu coração batia rapidamente, e eu sentia que pairava um momento de grande perigo. Uma vez deixei cair minha maça, e as vozes todas ao meu redor ordenaram na escuridão "Silêncio!". Apoiei minha mão no chão e toquei o pé de outro homem deitado à minha frente. Havia outros ao meu alcance de ambos os lados. Mas não disseram nada.

Então todos começamos a nos mover. A encosta inteira parecia estar rastejando para baixo. Existia um rio no sopé e uma ponte de madeira com arcos altos. Além da ponte viam-se muitas luzes - tochas numa muralha. Os homens rastejantes dirigiam-se todos em direção à ponte. Não houve som de espécie alguma, porém uma quietude aveludada. Então ouviu-se um grito na escuridão, o brado de um homem que era apunhalado no coração, subitamente. Aquele único grito elevou-se durante um momento e depois ouviu-se o rugir de mil vozes furiosas. Eu estava correndo. Todos corriam. Uma luz vermelha brilhou e o rio tornou-se uma faixa rubra. Podia ver meus companheiros agora. Eram mais demônios do que homens, figuras ferozes vestidas de peles, com o cabelo e a barba caindo em torrentes. Estavam todos furiosos de raiva, saltando enquanto corriam, as bocas abertas, os braços em agitação, a luz vermelha batendo em seus rostos. Corri também, e gritei maldições como os demais. Então ouvi um grande estralejar de madeira que soube que as paliçadas tinham caído. Percebi um silvo alto em meus ouvidos e eu me achava consciente de que as flechas voavam ao meu redor. Caí no fundo de um valo e vi uma mão estendida de cima. Segurei-a e fui puxado. Olhamos para baixo e vimos homens prateados segurando suas lanças para o alto. Alguns dos nossos saltaram sobre as pontas. Nós os seguimos e matamos os soldados antes que pudessem desenterrar as lanças dos corpos novamente. Eles gritavam alto em uma língua estrangeira, mas não tivemos misericórdia. Caminhamos sobre eles como uma onda, e os espezinhamos para baixo da lama, pois eram poucos e o número dos nossos infindável.

Encontrei-me entre edifícios e um destes estava incendiado. Vi as chamas ressaindo através do telhado. Corri e achei-me só entre os edifícios. Alguém cruzou correndo à minha frente. Era uma mulher. Segurei-a pelo braço e segurando-lhe o queixo, voltei seu rosto a fim de que a luz do fogo o iluminasse. Quem você pensa que era, Maggie?

A esposa umedeceu os lábios secos.

- Era eu, disse ela.

Ele olhou para ela, surpreso.

- É certo seu palpite, disse. Sim, era exatamente você. Não simplesmente parecida, você compreende. Era você, você própria. Eu vi a mesma alma nos seus olhos amedrontados. Você parecia branca e formosa, maravilhosa à luz do fogo. Eu tinha somente um pensamento na cabeça - levá-la para longe comigo; conservá-la toda para mim no meu lar em algum lugar nas colinas. Você arranhou meu rosto. Levantei-a sobre o ombro e procurei achar um caminho para fora da luz do edifício em chamas e de retorno à escuridão.

- Então aconteceu a coisa que relembro mais que tudo. Você está doente, Maggie. Devo parar? Meu Deus! você tem no rosto o mesmo olhar que possuía a noite passada no meu sonho. Você gritou. Ele veio correndo à luz do fogo. Sua cabeça estava desprotegida; seu cabelo era negro e encaracolado; e ele tinha uma espada nua na mão, curta e larga, pouco maior que uma adaga. Ele lançou-se contra mim, mas tropeçou e caiu. Segurei-a com uma das mãos, e com a outra...

Maggie havia saltado, ficando de pé, com feições contraídas.

- Marcus! Gritou ela. Meu belo Marcus! Oh, seu animal! Fera! bruto! Houve um estardalhaço de xícaras de chá, quando ela caiu para a frente, sobre a mesa, inconsciente.

Nunca falam daquele incidente isolado e estranho em sua vida de casados. Por um instante, a cortina do passado tinha sido afastada, e algum estranho lampejo de uma vida esquecida tinha sido mostrado a eles. Mas o véu caiu, para nunca mais levantar-se. Vivem em seu círculo estreito - ele na sua loja, ela no lar - e não obstante horizontes mais novos e amplos formaram-se vagamente em torno deles, desde aquela tarde de verão no fragmentado Forte Romano.

 

                   Belas de dia - Colette

A abelha comia a geléia de groselha da torta. Com uma pressa metódica e glutona, a cabeça abaixada, as patas viscosas, quase desaparecendo numa pequena depressão rósea, transparente. Espantava-me de não vê-la inchar, engordar, ficar redonda como uma aranha...

E a minha amiga não chegava, essa minha amiga tão gulosa, aquela que freqüentemente vem petiscar algo em minha casa porque me sabe seduzir com suas pequenas manias, porque sei escutar as suas futilidades, porque raramente sei estar de acordo com ela... comigo sente-se repousada; muitas vezes mo afirma, com um certo ar de gratidão, que eu não sou suficientemente coquete, que nunca examino com um olhar agressivo e feminino, seu chapéu ou seu vestido... Não se manifesta quando falam mal de mim na roda de suas outras amigas; por vezes chega mesmo a exclamar: "Ora, filhas, Colette é meio excêntrica, concordo, mas não tanto assim como vocês a pintam". Enfim, ela gosta de mim.

Experimento, ao contemplá-la, esse sentimento apiedado e irônico que é uma das formas da amizade. Jamais se viu uma mulher mais loura, mais branca, com mais roupa e chapéus do que ela! O matiz dos seus cabelos, de seus cabelos verdadeiros, parece hesitar suavemente entre a cor da prata e do ouro; seria necessário mandar vir da Suécia a cabeleira anelada de uma garotinha de seis anos, se acaso minha amiga desejasse usar os cachos artificiais e regulamentares de nossos chapéus. Sob esta coroa de um metal tão raro, minha amiga, para evitar o amarelado da tez, espalha sobre o rosto um pó cor-de-rosa; e os cílios, enegrecidos com um pincelzinho protegem um olhar vivo, um olhar cor de cinza, âmbar, talvez marrom, um olhar que sabe pousar-se terno e ávido, sobre pupilas masculinas, também essas ávidas e ternas.

Assim é minha amiga; e teria contado já tudo o que sei acerca dela, se não me faltasse acrescentar que se chama inteligentemente Valentine, dada a atual moda de diminutivos breves, e em que os pequeninos nomes de mulher - Tote, Moute, Loche -, tem sonoridades de soluço mal retido...

"Ela esqueceu", pensava pacientemente. A abelha adormecida ou morta de congestão, afundava-se, de cabeça para baixo, na deliciosa depressão... Ia reabrir meu livro quando a campainha soou e minha amiga surgiu. Num rodopio, enrolou a saia muito larga em torno das pernas e deixou-se cair a meu lado, a sombrinha atravessada nos joelhos, num gesto sábio de atriz, de manequim, quase equilibrista; um gesto cuja perfeição ela consegue sempre alcançar todas as vezes que o tenta...

- Bonita hora para se comer! O que é que você andou fazendo?

- Nada querida! Você é espantosa, você que vive apenas para o seu cachorro, a sua gata e os seus livros! Ou você acredita que Lelong consegue me fazer uns amores de vestidos sem que eu os prove primeiro?

- Vamos, coma e cale-se. Isso? Não, não é nenhuma porcaria. Apenas uma abelha. Imagine que ela abriu sozinha esse pequeno poço. Fiquei olhando para ela; comeu tudo isso em vinte e cinco minutos.

- Como você pôde ficar olhando? Você é tão sem graça! Não, obrigada, não tenho fome. Não, também não quero chá.

- Então posso mandar trazer um licor?

- Se é por minha causa, não vale a pena... Não tenho fome, já lhe disse.

- Então, é porque você já comeu noutro lugar, sua chatinha...

- Palavra que não! Estou meio chateada, não sei o que tenho...

Espantada, ergui os olhos para o rosto da minha amiga o qual eu ainda não conseguira isolar de seu insensato chapéu, grande como um guarda-chuva, e donde se levantava uma vasta espiga de plumas, um chapéu fogo de artifício, fonte luminosa de Versalhes, um chapéu tão gigantesco que teria premido a cabecinha de minha amiga até os ombros, não fossem os famosos cachos artificiais louros como a Suécia. As faces cobertas de um pó róseo, os lábios vivamente pintados, e os cílios esticados compunham sua fresca e pequena máscara habitual; mas algo, lá por baixo, me parecia modificado, extinto, ausente. Numa das faces onde o pó era mais escasso, um sulco traiçoeiro guardava o nácar, o verniz de lágrimas recentes.

Esta mágoa maquilada, esta mágoa de boneca corajosa comoveu-me de repente, e não pude conter-me em abraçar minha amiga pelos ombros, num movimento de solicitude muito raro entre nós.

Ela inclinou-se para trás, enrubescendo sob o rosado pó, mas não teve tempo de refazer-se e foi em vão que tentou reter os soluços.

Um minuto mais tarde estava chorando, enxugando o interior das pálpebras com a ponta de um guardanapo. Chorava com simplicidade, tendo o cuidado de não manchar de lágrimas seu vestido de crepe da China, de não sujar a pintura do rosto; chorava cuidadosamente, higienicamente, pequena mártir da maquiagem...

- Posso ajudá-la em alguma coisa? - perguntei-lhe docemente.

Ela fez "não"com a cabeça, suspirou, trêmula, e estendeu-me sua xícara que enchi de chá mais que frio...

- Obrigada - murmurou - você é muito gentil... peço-lhe perdão, estou nervosa.

- Pobrezinha! Você não quer me contar?

- Oh, meu Deus, sim. Não é nada especial. Ele não gosta mais de mim.

Ele... seu amante! Nunca pensara nisso. Um amante, ela? E quando? E onde? E quem? Poderia este manequim ideal despir-se todas as tardes, para um amante? Uma tal sucessão de imagens extravagantes passou por meus olhos que só pude afastá-las, exclamando:

- Ele não gosta mais de você? Não é possível!

- Oh, sim... Uma cena terrível... (Abriu seu estojo d'ouro, espalhou o pó, enxugou os cílios com um dedo úmido). Uma cena terrível, ontem...

- Ciúmes?

- Ele, ciúmes? Antes fosse! Estaria bem mais contente. Como ele é mau... Me censura tanto... E eu nada posso fazer, nada!

E baixou a cabeça amuada, o queixo colado ao colo alto:

- Enfim, você será o juiz! Um rapaz delicioso, nunca nos zangamos nestes seis meses, nem uma discussão, nada! Algumas vezes ficava nervoso, mas como é artista...

- Ah! Ele é artista?

- Pintor, minha querida. E pintor de muito talento. Se eu pudesse dizer o seu nome, você ficaria muito surpreendida. Fez vinte esboços de mim, de chapéu, sem chapéu, com todos os meus vestidos! É de uma graciosidade, de um vaporoso... O movimento das saias é maravilhoso.

Recobrava o ânimo, lentamente, seu pequeno nariz brilhando de lágrimas mal enxutas e de um resfriado mal curado... os cílios tinham perdido a goma negra e seus lábios, o carmim. Sob o grande chapéu elegante e ridículo, sob os cachos postiços, descobri pela primeira vez uma mulher, não muito bonita, mas de maneira alguma feia, insípida, se quiserem, mas tocante, sincera e triste.

Seus olhos ficaram subitamente vermelhos.

- Mas... o que é que aconteceu? - arrisquei.

- O que aconteceu? Nada. Querida, posso dizer-lhe que nada! Ontem recebeu-me com uma expressão meio vaga... um ar de médico... De repente, ficou amável e disse-me: "Querida, tira o chapéu. Vou reter-te aqui até jantarmos, queres? Prender-te para toda a vida se quiseres!" Era justamente este chapéu, e você sabe que é uma coisa terrível tirá-lo e pô-lo...

Eu não sabia, mas diz que sim com a cabeça, compenetrada.

- Fiz beicinho. Ele insistiu. Consenti, e comecei a tirar os alfinetes e um dos cachos postiços ficou preso no chapéu; foi isso, apenas. Pouco me importava; todo mundo sabe que eu tenho cabelo, e ele melhor do que ninguém! Mas corou, e desviou o rosto. Voltei a colocar o cacho como uma flor, abracei o meu querido pelo pescoço e segredei-lhe que o meu marido estava viajando na região de Dieppe, e que... você compreende! Ele não dizia nada. Depois jogou fora o cigarro e foi aí que tudo começou. O que ele não me disse! O que ele não me disse!...

E a cada exclamação ela batia nos joelhos, num gesto vulgar e desencorajado, como minha arrumadeira quando me conta que seu marido lhe deu mais uma surra.

- Disse-me coisas incríveis, querida! Às vezes parava, e depois começava a andar, e sempre falando... "Não estou pedindo outra coisa, minha querida, do que passar a noite contigo... (o cínico!) mas eu quero... quero aquilo que me devias dar e que nunca me poderás dar!

- Mas o quê, Santo Deus?

- Espere, você já vai ver... "Eu quero a mulher que tu és neste momento, a graciosa, a delgada, a pequena fada coroada por um ouro tão suave e tão abundante que sua cabeleira lhe atinge quase os supercílios. Eu quero essa tez de fruto maduro, e esses cílios paradoxais, e toda essa beleza anglicana. Quero-te, tal como és, e não aquela que a noite cínica me entregará. Porque tu transforma-te - bem o sei! - transforma-te num ser conjugal e insípido, sem a coroa desses cabelos ondulados, esses cabelos marcados pelos ferros, e agora lisos, enrolados em tranças. Sem saltos, transforma-te numa mulher pequena; com os cílios murchos, com o rosto lavado, sem pó, transforma-te numa mulher serena, segura de si mesma, e eu sinto-me estupefato diante dessa outra mulher!...

"E no entanto tu sabias disso - gritava ele - tu sabias! A mulher que desejo, tu, aquela que és neste momento, nada tem em comum com essa pobre e simples coitada que todas as noites surge de teu quarto de toalete! Com que direito me subtrais a mulher que amo? Se és ciosa de meu amor, como ousas afrontar o que amo?"

- O que ele não disse, o que não disse! Eu não me mexia, fiquei olhando para ele, sentia arrepios de frio... Não chorei! Você sabe, não podia chorar diante dele.

- Fizeste bem, querida; como foste corajosa!

- Muito corajosa - repetiu ela, baixando a cabeça. - Assim que pude, dei o fora... Ainda escutei outras enormidades sobre a s mulheres, sobre todas as mulheres; sobre a "inconsciência prodigiosa das mulheres, o seu negligente orgulho, o seu orgulho de estúpidas que intimamente pensam que tudo aquilo que dão é sempre demais para o homem..." O que você teria respondido? Diga-me.

- Nada.

Nada; é verdade. Que dizer? Estou quase concordando com ele, o homem grosseiro e exaltado... A razão está quase com ele. "Tudo aquilo que dão, é sempre demais para o homem!" Elas não têm desculpa. Elas deram ao homem todos os motivos para fugir, enganar, odiar, trocar... desde que o mundo existe, elas impuseram ao homem, sob todos os disfarces, uma criatura inferior àquela que ele desejava. Elas enganam-no com despudor, neste tempo em que as cabeleiras artificiais, os corpetes cheios de truques, fazem de uma coisinha picante e feia uma "baixinha tentadora".

Ouço falar minhas outras amigas, contemplando-as, e por sua causa fico confusa. Lilly, a encantadora, esse pajenzinho de cabelos curtos e frisados, impõe a seus amantes, desde a primeira noite, a nudez de seu crânio congestionado de caracóis marrons, caracóis oleosos e imundos dos bigoudis. Clarice, enquanto dorme, preserva a pele do rosto com uma camada de creme de pepino; e Annie arrepia os cabelos à chinesa, segurando-os com uma fita. Suzanne unta seu colo delicado com lanolina, e enfaixa-o com velhos panos usados... Minna jamais se deita sem os seus cremes destinados a retardar o advento de rugas nas faces e no queixo, e sobre cada têmpora coloca uma estrela de parafina...

Ao notar minha indignação, Suzanne encolhe os ombros engordurados e diz-me:

-Por acaso pensas que eu vou estragar a pele por causa de um homem? Não tenho outra pele de reserva. Se ele não suporta a lanolina, que dê o fora. Não forço ninguém. E Lilly declara, impetuosa: "Para começar, não fico feia de bigoudis. Até pareço uma menina de cachos numa distribuição de prêmios". Minna responde a seu amante, quando ele protesta contra o uso de cremes: "Queridinho, não sejas bobo. No Jockey ficas até muito contente, quando alguém comenta atrás de ti: "Essa Minna conserva eternamente o rosto oval de virgem!" E Jeannine que dorme com uma cinta para emagrecer? E Marguerite que... não, isso eu não posso escrever!

Minha pequena amiga, deslavada e triste, percebeu obscuramente meus pensamentos e adivinhou que eu não estava muito penalizada com a sua sorte. Protestou:

- E isso é tudo o que você me diz?

- Queridinha, que quer você que eu lhe diga? Creio que nada está perdido, e que o seu apaixonado pintor amanhã, ou talvez esta noite, voltará a bater à sua porta...

- Quem sabe ele já telefonou? Ele não é mau, no fundo... um pouco louco, uma crise, não é verdade?

Levantou-se, iluminada pela esperança.

E eu respondi "sim" a cada uma de suas perguntas, cheia de boa vontade e com o desejo de satisfazê-la... Olhei afastar-se pelo passeio,com seu passinho curto exigido pelos saltos altos... Na verdade, talvez ele a ame... E se ama, chegará a hora em que, apesar de todos os cosméticos e fraudes, ela tornar-se-á para ele, a presença sedutora, a helênica pagã de cabelos soltos, a ninfa de pés intatos, a bela escrava de quadris redondos, nua como o próprio amor...

 

                   O Casamento Enganoso - Cervantes

Saía do Hospital da Ressurreição, em Valladolid, além da Porta do Campo, um soldado que, por usar a espada como bordão e pela fraqueza de suas pernas e palidez do rosto, denotava claramente - embora a temperatura não fosse tão cálida - que ele deveria ter transpirado em vinte dias toda a disposição que, com toda a certeza, adquirira numa hora. Andava aos ziguezagues, tropeçando a cada momento, como um convalescente e, ao transpor a porta da cidade, percebeu aproximar-se da sua direção um amigo a quem não via há mais de seis meses. Este, benzendo-se, como se tivesse visto alguma assombração, aproximou-se e lhe disse:

- Que aconteceu, Senhor Alferes Campuzano? É possível que esteja por aqui? Imaginava-o em Flandres, de lança em riste e não por esses lados, arrastando a espada. Que palidez, que fraqueza é essa?

Campuzano respondeu:

- Se estou ou não nesta terra, Senhor Licenciado Peralta, a minha simples presença o diz. Quanto às outras perguntas, nada tenho a responder senão que estou saindo daquele hospital, onde sofri quatorze suadouros, por causa de uma mulher a quem escolhi para minha, quando jamais o devia ter feito.

- Quer vossa mercê dizer que se casou? - perguntou Peralta.

- Sim - respondeu Campuzano.

- Teria sido por amor? - disse Peralta, acrescentando: - tais casamentos trazem sempre o arrependimento.

- Não saberei se foi por amor - respondeu o Alferes - embora possa garantir ter sido por amargor, pois do meu casamento, ou cansamento, carrego tais coisas no corpo e na alma que as do corpo, para curá-las, me custaram quarenta suadouros, mas as da alma não encontro remédio sequer para aliviá-las. Mas vossa mercê me perdoará; não posso manter longas conversas neste lugar. Qualquer outro dia, mais comodamente, contar-lhe-ei minhas aventuras; são as mais novas e originais que vossa mercê terá ouvido em todos os seus longos dias.

- Não será assim - disse o Licenciado - pois desejo que venha à minha pousada, para ali desabafarmos nossas mágoas. Além disso, tenho lá uma comida própria para convalescentes. Embora tenha sido preparada para dois, meu criado se contentará com um pastel. E se a sua convalescença permitir, umas fatias de presunto servirão para nos abrir o apetite. A boa vontade com que lhe ofereço, não somente agora, mas todas as vezes que vossa mercê quiser, está acima de qualquer dúvida.

Agradeceu-lhe Campuzano, aceitando o convite e os oferecimentos. Foram ambos a São Lorente, onde ouviram missa, e depois Peralta levou o amigo à sua casa, dando-lhe o prometido e insistindo que repetisse. Mal Campuzano concluíra, pediu-lhe Peralta que narrasse os acontecimentos que tanto o haviam mortificado. Campuzano não se fez de rogado, pondo-se logo a falar.

- Vossa mercê bem se recorda, Sr Licenciado Peralta, como fui, nesta cidade, amigo do Capitão Pedro de Herrera, que agora está em Flandres.

- Bem me recordo - respondeu Peralta.

- Pois um dia - prosseguiu - quando mal acabávamos a refeição na pousada da Solana, onde vivíamos, entraram duas mulheres de belo porte, acompanhadas por dois criados. Uma delas pôs-se logo a falar com o Capitão, encostados ambos a um canto da janela. A outra sentou-se numa cadeira junto à minha, cobrindo-se com o xale até o pescoço, não deixando ver do seu rosto mais do que a transparência do xale permitia. Embora cortesmente lhe suplicasse que se descobrisse, não foi possível conseguir tal coisa. E, para completar a história - fosse de caso pensado ou por simples acaso - ela exibiu suas mãos muito brancas, cobertas por excelentes jóias. Por meu lado, estava importantíssimo com aquela grande corrente que vossa mercê terá, talvez, conhecido, o chapéu com plumas e cordões, o traje de cores e a arrogância de um militar, tão imponente aos olhos da minha vaidade que me julgava pairando no ar. Com tudo isto, roguei-lhe que se descobrisse, ao que ela respondeu:

- Não sejais importuno. Tenho minha casa; fazei com que um pajem me siga, pois embora seja mais honrada do que faz crer esta resposta, quero ver se vossa discrição corresponde à vossa galhardia. Folgarei, então, que me vejais.

Beijei-lhe as mãos pela grande mercê que me fazia, em paga da qual lhe prometi punhados de ouro. O capitão concluíra sua conversa. Elas se foram, seguidas pelo meu criado. O capitão disse-me que a dama lhe pedira para levar algumas cartas a outro capitão, em Flandres. Dizia serem para um primo, mas ele bem sabia não serem senão para o amante. Eu ficara abrasado pelas mãos de neve que havia visto e ansioso pelo rosto que desejava ver. E assim, no dia seguinte, guiado pelo meu criado, fui visitá-la. Encontrei uma bela residência e uma mulher de quase trinta anos, a quem reconheci pelas mãos. Não era bela ao extremo, mas era-o de maneira que nos podia render pelo trato, pois possuía um tom de voz tão suave e penetrante, que ia até a alma. Mantivemos longos e amorosos colóquios. Blasonei, garganteei, prometi, enfim, dei todas as demonstrações que me pareceram necessárias para tornar-me benquisto. Mas ela parecia ter sido feita para ouvir semelhantes ou maiores oferecimentos e razões. Era toda ouvidos e nenhuma surpresa. Para concluir: nossos colóquios duraram quatro floridos dias. Continuei a visitá-la sem que chegasse, porém, a colher o fruto ambicionado.

Nos momentos em que a visitei, encontrei a casa livre; jamais percebi traços de parentes reais ou fingidos. Servia-lhe certa moça, mais astuta que simplória. Tratando meus amores como soldado em véspera de partida, apertei finalmente a senhora Dona Estefânia de Caicedo - é este o nome de quem assim me deixou - que respondeu: "Tola seria, Senhor Alferes Campuzano, se quisesse vender-me à vossa mercê por santa. Pecadora tenho sido e ainda sou, embora não tanto que os vizinhos murmurem e os empregados comentem. Nem de meus parentes herdei coisa alguma, mas, apesar disso, o que tenho aqui em casa vale - bem contados - dois mil e quinhentos escudos. E isso em coisas que vendidas se converterão em bom dinheiro. Com esta fortuna procuro marido a quem entregar-me e a quem obedecer. A quem, juntamente com o arranjo da minha vida, entregarei uma incrível solicitude em agradar e servir. Príncipe algum terá cozinheiro mais cuidadoso ou quem melhor saiba dar o ponto nos guisados. Tanto sei dirigir uma casa como orientar uma cozinha ou receber visitas. Na verdade sei mandar e fazer com que me obedeçam. Nada desperdiço e muito economizo. O dinheiro não vale menos e sim mais, quando gasto sob minha orientação. A roupa branca que possuo, que é muita e da melhor, não foi adquirida em lojas ou vendedores ambulantes; esses dedos e os de minhas criadas fizeram-na, e se fosse possível, tê-la tecido em casa, assim teríamos feito. Digo estas coisas sem modéstia, pois não há mal quando a necessidade nos obriga a dizê-las. Acrescento, finalmente, que procuro marido que me ampare, dirija e honre, e não amante que se aproveite e depois vá falar por aí... Se vossa mercê souber apreciar a prenda que neste momento se lhe oferece, aqui estou à vossa disposição, sujeita a tudo quanto vossa mercê ordenar, e isso sem me pôr em leilão, que é a mesma coisa que andar em língua de casamenteiros. Não há nada para consertar o todo como as suas próprias partes.

Eu, que estava com o juízo, não na cabeça, mas nos calcanhares, julgando a felicidade ainda maior do que a imaginação me pintava e oferecendo-se-me tão à mão, quantidade tal de bens - já os contemplava convertidos em dinheiro! - sem fazer mais comentários do que aqueles a que dava lugar a ventura (que me entibiava o raciocínio), respondi-lhe que me sentia muito alegre e afortunado por haver-me dado o céu, quase por milagre, companheira tal, para fazê-la senhora da minha vontade e dos meus haveres, que não eram tão poucos que não valessem, junto com aquela corrente que trazia no peito e outra joiazinhas que estavam em casa, além das minhas galas de soldado, mais de dois mil ducados, os quais, junto aos dois mil e quinhentos dela, formavam quantia mais do que suficiente para vivermos na aldeia onde nasci e ainda possuía alguns bens. Tais haveres, convertidos em dinheiro, renderiam seus frutos com o tempo, permitindo-nos uma vida alegre e descansada. Em suma, naquela noite acertamos o nosso casamento e esclarecemos nossa vida de solteiros. E nos próximos três dias de festas que vieram logo pela Páscoa, fizeram-se os proclamas e no quarto dia nos casamos, encontrando-se presentes dois amigos meus e um rapaz que dizia ser primo dela. Tratei-o como a um parente, com palavras amáveis, como foram as que até então ele dirigira a minha nova esposa. Falava, no entanto, com intenção tão falsa e hipócrita que prefiro ficar calado. Embora esteja dizendo somente verdades, não são verdades de confessionário, dessas que não podem deixar de ser ditas.

O criado conduziu meu baú da pousada para a casa de minha mulher. Encerrei nele, diante dela, minha esplêndida corrente, mostrando-lhe outras três ou quatro, não do mesmo tamanho, porém da melhor qualidade, assim como três ou quatro cintos de diversos tipos. Mostrei-lhe, também as roupas e chapéus, entregando-lhe para as despesas da casa os quatrocentos reais que possuía. Seis dias desfrutei, calmamente, como genro pobre em casa de sogro rico, a lua de mel. Pisei custosos tapetes, amassei colchas de Holanda, alumiei-me com candelabros de prata. Almoçava na cama, levantando-me às onze horas, comendo as doze e sesteando as duas. Dona Estefânia e a criada excediam-se em agrados e cuidados. Meu criado, que até ali fora lerdo e preguiçoso, transformara-se num azougue. Os momentos que Dona Estefânia não passava ao meu lado, era fácil encontrá-la na cozinha, toda solícita em ordenar guisados que me despertassem o gosto e avivassem o apetite. Minhas camisas, colarinhos e lenços, pelo perfume que exalavam, pareciam um novo Aranjuez de flores, banhados como eram em água de flor de laranjeira.

Esses dias passaram voando como passam os anos sob o império do tempo. Por ver-me tão regalado e bem servido, transformara-se em boa a má intenção com que começara aquele negócio. Ao fim deles, certa manhã - quando ainda no leito com Dona Estefânia - chamaram com grandes batidas na porta. Ouço a criada dizer, assomando a janela:

- Oh! Seja bem-vinda! Vejam só, veio antes do que avisara em sua carta...

- Quem é que chegou, mulher? - perguntei.

- Quem? - respondeu ela - Minha Senhora Dona Clementa Bueso, acompanhada por Dom Lope Melendez de Almendárez, dois criados e Hortigosa, a ama.

- Corra, mulher, e abra-lhes a porta, que já vou - disse Dona Estefânia à criada, que parara sem saber que atitude tomar. - E vós, senhor, pelo amor que me tendes, não os assusteis nem respondais, em meu nome, a coisa alguma que contra mim ouvirdes.

- Mas, quem vos ofenderá, ainda mais em minha presença? Dizei. Que gente é essa que tanto alarma vos causa?

- Não tenho tempo para responder-vos - disse Dona Estefânia: - sabei somente que tudo o que aqui se passará é fingido e visa a certo desígnio o qual sabê-lo-eis depois.

Quis replicar, mas a Senhora Dona Clementa Bueso não permitiu, pois entrou no quarto, arrastando a cauda do longo vestido verde todo enfeitado com cordões de ouro, capinha da mesma qualidade, chapéu de plumas verdes, brancas e vermelhas, e rico cinto de ouro. Metade do seu rosto estava oculto por um véu leve. Em sua companhia entrou o Senhor Dom Lope Melendez de Almendárez, não menos bizarro nem menos ricamente ataviado.

Dona Hortigosa foi a primeira a falar, exclamando:

- Jesus! Que é isto? Ocupando o leito da senhora Clementa, e alem disso, com um homem? Milagres vejo hoje nesta casa! Não há dúvida de que Dona Estefânia tomou o pé pela mão abusando da amizade de minha senhora.

- Tendes razão, Dona Hortigosa, mas a culpa é minha. Que jamais me aborreça novamente por arranjar amigas que não sabem ser senão quando o desejam!

A tudo isto, Dona Estefânia respondeu:

- Não se aborreça, Dona Clementa, e creia que não é sem mistério que a senhora vê estas coisas em sua casa. Quando souber da verdade, sei que ficarei desculpada e vossa mercê sem nenhum motivo de queixa.

Nessas alturas eu já vestira as calças e a camisa e Dona Estefânia, tomando-me pelo braço, levou-me a outro quarto e ali me disse que aquela sua amiga desejava enganar Dom Lope, com quem pretendia casar-se. Que o engano era dar-lhe a entender que aquela casa e tudo quanto nela estava lhe pertencia, e disso tudo pensava fazer seu dote. Uma vez realizado o casamento pouco se lhe dava que descobrissem o engano, confiada como estava no grande amor de Dom Lope.

- E logo me devolverá tudo. Não se pode levá-la a mal, nem a nenhuma outra mulher que procure marido honrado, embora por meio de um embuste.

Respondi-lhe que era uma prova de grande amizade o que tencionava fazer, e que primeiro pensasse bem, porque poderia, depois, sem ter necessidade, precisar da justiça para readquirir seus haveres. Porém ela respondeu com tantas e tais razões, mostrando quantas coisas obrigavam-na a servir Dona Clementa - coisas de pouca importância, é verdade - que embora de má vontade e com remorso na consciência, concordei com o desejo de Dona Estefânia. Assegurou-me ela que a farsa duraria somente oito dias, durante os quais ficaríamos em casa de outra amiga sua. Acabamos de nos vestir e logo, despedindo-se de Dona Clementa e do Senhor Lope, disse a meu criado que carregasse o baú e a seguisse. Eu também a segui, sem despedir-me de ninguém.

Dona Estefânia parou em casa de uma amiga e, antes que entrássemos, esteve lá dentro um bom tempinho, falando com ela. Depois surgiu uma criada, mandando que entrássemos - eu e o criado. Levou-nos a um pequeno aposento, no qual havia duas camas tão juntas uma da outra que pareciam uma só. Não havia espaço para separá-las; as cobertas pareciam beijar-se. Ali estivemos seis dias e em todos eles não passou uma hora que não tivéssemos alguma discussão. Dizia-lhe da loucura que fizera em ter deixado a casa e seus pertences, embora fosse para a própria mãe. Durante as discussões, ia e vinha pelo quarto, tanto que a dona da casa, um dia em que Dona Estefânia fora ver em que pé estavam as coisas, quis saber qual a causa que me levava a discutir tanto com ela e o que fizera que tanto a ofendia, sobretudo insistindo em dizer que fora loucura notória e não amizade perfeita. Contei-lhe toda história, falei que me casara com Dona Estefânia e do dote que ela trouxera. Quando lhe disse da grande tolice que fizera em deixar a casa e pertences à Dona Clementa, embora fosse com a boa intenção de conseguir um marido da importância de Dom Lope, começou a benzer-se e a persignar-se com tanta pressa e com tantos "ai! Jesus, Jesus!" que não pude deixar de ficar grandemente perturbado. Ela então me disse:

- Senhor Alferes: não sei se vou contra a minha consciência ao contar-lhe o que também nela pesaria se permanecesse calada. Porém, por Deus e pelo Destino, seja o que for: viva a verdade e morra a mentira! A verdade é que Dona Clementa é a verdadeira dona da casa e dos haveres. Mentira foi tudo quanto lhe contou Dona Estefânia. Ela não possui casa nem bens, nem outro vestido a não ser aquele que traz no corpo. E, para tornar viável esse logro, foi que Dona Clementa andou a visitar parentes seus em Placêncio e dali esteve fazendo uma novena a Nossa Senhora de Guadalupe. Neste espaço de tempo deixou Dona Estefânia para cuidar de sua casa, pois são realmente grandes amigas. Está claro que não se deve culpar a pobre mulher, pois soube arranjar para marido uma pessoa como o Senhor Alferes.

Aqui ela deu fim à sua conversa e eu dei princípio ao meu desespero, e sem dúvida o teria prolongado se o meu anjo da guarda não acudisse, dizendo ao meu coração não esquecer que era cristão e que o maior pecado dos homens é o desespero, por ser pecado dos demônios. Esta consideração, ou boa inspiração, conformou-me um pouco, mas não tanto que deixasse de apanhar a capa e saísse à procura de Dona Estefânia, com intenção de dar-lhe exemplar castigo. Porém a sorte, que não saberei dizer se melhorava ou piorava as coisas, ordenou que em nenhum lugar onde pensava encontrá-la, ela estivesse. Fui a São Lorente, encomendando-me à Nossa Senhora; sentei-me, depois, num banco e com o desgosto fui tomado por um sono tão pesado que não despertaria tão cedo se não me sacudissem. Fui cheio de pensamentos e de aflição à casa de Dona Clementa, e encontrei-a tão à vontade, como senhora que era de seus bens; não ousei dizer-lhe nada porque Dom Lope estava presente. Voltei à casa de minha hospedeira, a qual me disse haver contado à Dona Estefânia como eu já sabia toda sua hipocrisia e falsidade e que ela lhe havia perguntado que cara fizera eu com a notícia. Havia-lhe respondido que uma cara muito má e que, segundo o seu modo de ver, eu saíra a procurá-la com ruim intenção e pior determinação. Disse, finalmente, que Dona Estefânia levara tudo quanto havia no baú, sem deixar nele uma só peça de roupa.

Aqui foi a coisa! Aqui teve-me Deus, de novo, em suas mãos. Fui ver o baú, encontrando-o aberto, como um túmulo à espera do cadáver. Com boas razões seria o meu, se não tivesse calma para sentir e ponderar tamanha desgraça...

- Bem esperta foi - disse neste momento, o Licenciado Peralta - por haver Dona Estefânia, levado tanta corrente e tantos cintos, pois, como se diz, todos os enterros... etc., etc.

- Nenhuma pena me deu essa falta - respondeu o Alferes - pois também poderei dizer: Pensou Dom Simueque que me enganava com sua filha caolha e, por Deus, coxo sou eu de um lado...

- Não sei a que propósito pode vossa mercê dizer isso - respondeu Peralta.

- O propósito é - disse o Alferes - de que aquele embrulho e aparato de correntes, cintos e brincos, poderia valer, quando muito, dez ou doze escudos.

- Isso não é possível - replicou o Licenciado - porque a corrente que o senhor trazia no pescoço parecia pesar mais de duzentos ducados.

- Assim seria - respondeu o Alferes - se a verdade fosse o que a aparência mostrava; porém, como nem tudo o que reluz é ouro, as correntes, cintos, jóias, brincos, não passavam de imitações. Estavam tão bem feitas que somente o toque ou o fogo poderiam descobrir sua qualidade.

- Dessa maneira - disse o Licenciado - entre vossa mercê e a Senhora Dona Estefânia, houve empate no jogo?

- E tão empate - respondeu o Alferes - que poderíamos voltar a baralhar as cartas. Mas o estrago está, Sr. Licenciado, em que ela poderá desfazer-se de minhas correntes, e eu não do laço em que caí. Sim, porque, embora muito me pese, ela é minha mulher.

- Daí graças Deus, Sr. Campuzano - disse Peralta - que ela se foi e que não estais obrigado a ir buscá-la.

- Assim é - respondeu o Alferes - porém, com tudo isto, embora não a procure, tenho-a sempre em pensamento, e onde quer que esteja está presente a desonra.

- Não sei o que responder - disse Peralta - senão trazendo-lhe à memória dois versos de Petrarca, que dizem:

Chi chi prende diletto di far frode,

Non sidè lamentar s'altri l'inganna.

O que significa em nossa língua: "aquele que tem o costume e o gosto de enganar a outros, não deve queixar-se, quando é enganado."

- Não me queixo - respondeu o Alferes - e sim me lastimo, pois o culpado, nem por reconhecer a culpa, deixa de sentir a pena do castigo. Bem sei que tentei enganar e fui enganado, feriram-me com as minhas próprias armas, mas não posso deixar que tais sentimentos deixem de subir à tona. Finalmente, o que mais importa no meu romance - que tal nome se pode dar à narrativa das minhas aventuras - é ter sabido que Dona Estefânia se fora com o primo, o mesmo que se encontrava em nosso casamento, e que tempos atrás fora seu amigo para todas as coisas. Não quis procurá-la, para não encontrar o mal que me faltava. Mudei pousada e cabelo, em poucos dias começaram a cair-me os pêlos das sobrancelhas e cílios, e pouco a pouco foram-se eles. Tornei-me calvo antes do tempo: deram-me uma doença chamada calvície. Achei-me verdadeiramente limpo: não possuía nem cabelos para pentear, nem dinheiro para gastar. A enfermidade caminhou ao mesmo passo da minha miséria, e como a pobreza atropela a honra e a uns leva a forca, a outros ao hospital e a outros ainda os faz bater nas portas dos seus inimigos com pedidos e súplicas, o que é uma das maiores desgraças que pode acontecer a qualquer infeliz, e por não ter podido cuidar das roupas que me protegeriam e assegurariam a saúde ao chegar o tempo em que se dão os suadouros no hospital da Ressurreição, para ele me dirigi e nele tomei quarenta suadouros. Dizem que ficarei bom, se me tratar. Espada ainda possuo; o resto, Deus remediará.

 

                   Catela no banho - Boccaccio

Em Nápoles, cidade antiquíssima e aprazível, como outra não há na Itália, existiu um jovem, claro por sua nobreza de sangue e esplêndido por suas riquezas, chamado Ricardo Minútolo, o qual, embora fosse casado com uma jovem belíssima, enamorou-se de outra que, de acordo com a opinião de todos, ultrapassava de muito em beleza, a todas as mulheres napolitanas. Chamava-se Catela e era mullher de um jovem igualmente nobre, Filipe Sighinolfo, e que ela, por ser honestíssima, amava sobre todas as coisas.

Ricardo Minútolo, amando-a e fazendo todas as coisas com que se podem obter as graças e o amor de uma mulher, e não chegando em nada a realizar os seus desejos, quase se desesperava. Não podendo ou não sabendo libertar-se do amor, tampouco morria, nem lhe aprazia o viver. E em tal estado aconteceu que, aconselhado por alguns parentes seus quis desistir de tal amor, posto que em vão se fadigava, já que Catela encontrava a sua felicidade apenas em Felipe de quem com tal ciúme vivia, que temia que até as aves que passavam pelo ar, quisessem tomar-lho.

Sabedor dos ciúmes de Catela, Ricardo, subitamente, tomou uma resolução, começando a aparentar que do amor de Catela desesperava e por isso colocava a sua ambição em outra mulher novre e por amor desta fazia em justas e torneios todas aquelas façanhas que soía fazer por Catela.

Não passou muito tempo que todos os napolitanos, Catela inclusive, se convenceram de que ele amava grandemente essa segunda dama, e tanto nisso perseverou que todos se convenceram de que a verdade era essa, e a própria Catela renunciou à esquivança com que o tratava, quando o sabia enamorado, passando a usar da intimidade que como vizinho lhe devia, saudando-o. Como fazia com os outros.

Ora, aconteceu que, sendo o dia de calor, muitas comitivas de homens e mulheres, de acordo com os costumes napolitanos, se transladaram para as praias e Ricardo, sabendo que Catela também havia ido com os seus, tomou parte em uma comitiva, tendo sido recebido no grupo de Catela não sem antes muito fazer-se de rogado.

Então Catela e as mulheres puseram-se a motejar de seu novo amor, do qual ele, mostrando-se muito aceso, dava ainda mais motivos para comentários.

Enquanto isso, umas iam para uma direção, outras para outra, como acontece por aquelas paragens, restando Catela com poucas outras onde estava Ricardo; esse fez logo alusão a certo amor de Filipe, seu marido, o que a fez acender-se de súbito ciúme e começou a arder, toda desejo de saber o que Ricardo queria dizer.

Depois de se ter dominado por algum tempo, e não podendo mais fazê-lo, pediu a Ricardo que, pelo amor da mulher que mais amava, a esclarecesse sobre o que dissera de Filipe. E Ricardo falou:

- Vós me conjurastes por pessoa tal que eu não poderia atrever-me a negar o que pedis, e por isso estou pronto a dizer-vos, desde que me prometais que não direis palavra do que eu disser depois de verificardes a verdade do que afirmo.

E quando quiserdes, eu vos ensinarei como podereis verificá-la.

A mulher ficou satisfeira com o que ele pedia e acreditou ainda mais que ele dizia a verdade, jurando-lhe que a ninguém o revelaria. Retirados para um lado em que ninguém os ouviria, Ricardo disse:

- Senhora, se eu vos amasse como já vos amei, não me atreveria a dizer coisa que acreditasse poder aborrecer-vos. Mas como aquele amor é passado, preocupa-me menos o descobrir-vos toda a verdade. Não sei de Filipe alguma vez se ultrajou com o amor que eu vos dediquei ou se abrigou a crença de que eu fosse por vós amado. Mas seja lá como for, nem uma nem outra coisa ele jamais deixou transparecer. Agora, esperando talvez uma ocasião, pois acredita que eu esteja menos desconfiado, dá mostras de querer fazer a mim o que eu duvido que ele não tema que eu lhe faça: ele quer, em suma, conquistar minha mulher. E pelo que eu tenho entendido, ele de pouco tempo para cá, secretissimamente a tem solicitado, em repetidas embaixadas, de todas as quais por ela mesma fui inteirado, e a quem ela deu a resposta que eu impus. Esta manhã, porém, antes de eu vir aqui, encontrei em minha casa uma mulher desassisada que vi logo muito bem quem era.

Chamei a minha esposa e perguntei-lhe o que pedia aquela mulher, ao que ela redargüiu:

- É a instigação de Filipe que a faz vir aqui em busca de respostas e esperanças e diz que a todo custo quer saber o que eu pretendo fazer e que ela, quando eu quiser, fará que eu vá secretamente a um banho com ele e para que eu consinta assaz me pede e importuna. E se não fosses tu que me meteste nesses enredos, não sei por que, eu me teria livrado dele de tal maneira que nunca mais se atreveria a pôr os olhos onde eu estivesse.

- Então, pareceu-me que Filipe avançava muito e que não era possível tolerar mais e resolvi dizer-vos, para que reconheçais a recompensa que a vossa completa fidelidade recebe, e pela qual eu já estive na iminência de ser levado ao sepulcro. E para que não penseis que o que digo são apenas palavras e fábulas, se não verdades de que, quando quiserdes, podereis certificar-vos, disse a minha esposa que à mulher que a esperava respondesse que estava disposta a aparecer amanhã às três da tarde, ao banho. Com isso, a criatura partiu contentíssima.

Não presumo agora que acrediteis que eu a enviasse. Mas se eu estivesse em vosso lugar, faria que ele se encontrasse comigo em lugar de encontrar-se com quem ele quer e, depois de curta permanência com ele, eu lhe faria ver com quem havia estado, tratando-o então como merece. E assim agindo, de tal sorte ele se envergonharia que ficará a um tempo vingada a ofensa que quis infligir a mim e a vós.

Catela, sem atender a quem lhe falava nem aos seus enganos, como soem fazer os ciumentos, subitamente deu fé as palavras e passou a ligar com este fato algumas coisas que haviam acontecido antes. E de súbita ira acesa, respondeu que ela assim certamente agiria e que, se ele aparecesse, ela o envergonharia de tal sorte que sempre que ele visse alguma mulher, o episódio lhe voltaria à imaginação.

Ricardo, contente com o que via e parecendo-lhe que a idéia havia sido boa e procedente, confirmou a sua perfídia com muitas outras palavras, fazendo-a acreditar mais, rogando-lhe todavia, que não dissesse a ninguém o que ele lhe havia falado, o que ela prometeu sob palavra.

Na manhã seguinte, Ricardo foi ao encontro da boa mulher que era a dona da casa de banhos, disse-lhe o que pretendia fazer e pediu-lhe que o favorecesse. A boa criatura, que o apreciava muito, disse que o faria de bom grado, combinando com ele o que teria de fazer ou dizer.

Na casa de banhos havia um quarto muito escuro, dada a falta de qualquer janela.

A conselho de Ricardo, a mulher, pôs ali uma cama em que ele se meteu à espera de Catela.

Dando às palavras de Ricardo mais fé do que mereciam, à tarde, Catela voltou aborrecida para casa, onde Filipe também voltava cheio de outros pensamentos, tendo tratado a esposa com menos familiaridade do que de costume, o que contribuiu para aumentar a sua desconfiança. Dizia consigo mesma: na verdade ele está pensando na mulher com quem pretende encontrar-se amanhã, o que com toda a certeza não irá acontecer. E passou a noite dominada por este pensamento e imaginando o que lhe deveria dizer na hora azada.

Chegada a hora, Catela, acompanhada de uma criada, dirigiu-se para a casa de banhos. E ali, encontrando a boa mulher, perguntou-lhe se Filipe havia aparecido, ao que a proprietária, industriada por Ricardo, respondeu:

- Sois a mulher que deverá encontrar-se com ele?

- Sim, respondeu Catela.

- Podeis entrar, redargüiu, pois ele está lá dentro.

Catela, que andava procurando o que não queria encontrar, dirigiu-se ao quarto.

Entrou com a cabeça coberta, e fechou a porta. Ricardo, à sua chegada, levantou-se feliz e acolhendo-a nos braços, disse, calmamente: - Vem, alma minha.

Catela, querendo mostrar ser outra que não ela mesma, abraçou-o e beijou-o, acariciando e sem dizer palavra, temendo, se falasse ser por ele reconhecida.

O quarto era escuríssiimo, o que foi de agrado de ambos. Nem mesmo a grande permanência ali dentro deu aos seus olhos o poder de verem claro.

Ricardo conduziu-a para o leito e aí, sem falar, de modo que a voz não o pudesse trair, por grandíssimo espaço de tempo ficaram, e com grande alegria de ambos.

Mas quando a Catela pareceu que era chegada a ocasião de desabafar-se, acesa de fervente ira, disse:

- Ah, quanto é mísera a sorte das mulheres e como é mal empregado o amor de muitas para com os maridos! Desgraçada de mim, há oito anos que eu te amo mais do que a minha vida e tu ardes e te consomes no amor de mulher estranha.

Criminoso e perverso, com quem acreditas que estejas? Estás com aquele que, com falsas lisonjas, enganaste e por muitas vezes, fingindo-lhe amor quando estavas enamorado de outra. Eu sou Catela, não sou a mulher de Ricardo, traidor desleal.

Escuta, para ver se reconhece a minha voz. Parece que mil anos que vivêssemos eu não te envergonharia como mereces, cachorro sujo e vituperável. Desgraçada de mim! A quem eu, por tantos anos, dediquei tanto amor? A este cão desleal que, acreditando ter nos braços mulher estranha, me fez mais carícias nas poucas horas que aqui me teve do que em todas as outras em que me possuiu. Estivesse hoje, cão renegado, bastante animoso enquanto em casa sóis mostrar-te débil, rendido e impotente. Mas Deus louvado, lavraste o teu campo e não campo alheio como acreditavas. Não é de estranhar que esta noite passada não me houvesses

procurado. Esperavas em outro lugar aliviar a tua carga e querias chegar, cavaleiro fresco à batalha. Mas louvado seja Deus assim como a minha precaução seja louvada, a água desceu para o mar como devia. E não me respondes, criminoso? Nada me dizes? Emudeceste só de ouvir-me? Palavra que não sei o que me impede de meter as mãos nos teus olhos, arrancando-os! Acreditaste fazer ocultamente esta traição? Por Deus, vês bem que tanto sabe um como o outro. Não o conseguiste. Saí-me melhor do que supunhas.

Ricardo gozava consigo mesmo aquelas palavras e sem responder nada, abraçava-a e beijava-a, e mais do que nunca fazia-lhe grandes carícias. E ela continuava dizendo:

- Pensas agora que as tuas carícias infinitas possam agradar-me e consolar-me, cão fastioso. Mas erras. Não me darei por consolada, enquanto eu não te vituperar em presença de quantos parentes e amigos e vizinhos tenhamos. Ora, não sou eu, perverso, tão bela como a mulher de Ricardo Minútolo? Não sou tão gentil dama como ela? Por que não me respondes, cão imundo? Que tem ela mais do que eu?

Aparta-te, não me toques que já fizeste o suficiente por hoje. Sei bem que de agora em diante, já bem sabes quem sou, forcejarás por fazer até esse momento espontaneamente não fizeste. Mas se Deus me der a sua graça, eu te farei padecer de ciúme; não sei o que é que me prende que não mando chamar por Ricardo, que me amou mais do que a si mesmo e jamais pôde orgulhar-se de eu tê-lo olhado, uma vez que fosse, e não sei que mal teria havido se eu o houvesse feito.

Acreditaste ter a mulher dele e é como se a tivesses possuído, pois não esteve em ti a culpa de não se tratar dela. Portanto, se ele me possuísse, não terias

por que me censurar.

As palavras foram bastantes e grande a amargura da mulher. Por fim, Ricardo, pensando que se saísse, deixando-a nessa crença, muitos males poderiam sobrevir, deliberou revelar-se, tirando-a do engano em que estava. E, segurando-a bem entre os braços, de modo que não pudesse escapar, disse: Doce amor meu, não vos perturbeis, aquilo que, simplesmente amando, não pude ter. amor, com enganos, ensinou-me a possuir. Eu sou o vosso Ricardo.

Catela subitamente quis atirar-se do leio mas não pôde. Quis gritar, mas Ricardo tapou-lhe a boca, dizendo:

- Senhora, é impossível que aquilo que aconteceu, deixe de ter acontecido, embora ficásseis a vida toda gritando. E se gritardes ou fizerdes que, de qualquer maneira, o que fizemos venha a ser do conhecimento de qualquer pessoa, duas coisas podem acontecer: uma (que não vos deve importar pouco) é que a vossa honra e boa reputação serão destruídas, pois se disserdes que eu aqui vos trouxe

por engano, terei que responder que não é verdade, antes que vos fiz vir por dinheiro e presentes prometidos e que, por não terem sido o que esperáveis, vós vos perturbastes, passando a fazer tão grande alarido. E vós sabeis que o povo está mais inclinado a acreditar no mal que no bem e por isso mesmo é que acreditará em mim, antes de acreditar em vós. Depois disso nascerá entre vosso marido e mim uma inimizade mortal e pode acontecer muito bem que um de nós acabe matando o outro, tal seja a marcha dos acontecimentos, coisa que de nenhum modo vos deve deixar contente. E, por isso, coração meu, não queirais a um tempo, desonrar-vos e pôr em perigo e briga a vosso marido e a mim. Não sois a primeira nem sereis a última a ser enganada, nem vos enganei para tirar-vos a honra, mas por um imenso amor que vos dedico e dedicarei sempre, dispondo-me a ser vosso humílimo servidor. E como há muito que eu e minhas coisas e tudo que eu possa e valha fiz vossos e pus a vosso serviço, acredito que de hoje em diante ainda mais o estarão. Ora, vós sois esclarecida em outras coisas e estou certo de que o sereis também nessa.

Catela chorava profusamente. E muito perturbada e amarga, deu razão às palavras de Ricardo. É que ela acreditava possível vir a acontecer o que Ricardo

prognosticava. E disse:

- Ricardo, eu não sei como Deus possa conceder-me que eu tolere a injúria e o engano que me fizestes. Não quero gritar aqui aonde fui conduzida pela minha ingenuidade e ciúme, mas vivei seguro de uma coisa, que eu não ficarei contente, enquanto não me vingar do que me fizeste. Já é tempo de me deixardes.

Deixai-me, imploro. Já possuístes o que desejastes e já muito me maltratastes.

Ricardo dispunha-se todavia a não a deixar, a não ser depois de reaver a sua paz. Por isso, começou com dulcíssimas palavras a apaziguá-la, tanto disse,

rogou e conjurou que ela, vencida, fez as pazes com ele e, postos enfim de acordo, permaneceram por muito tempo em amistosa companhia. E a mulher, conhecendo então que os beijos do amante são mais saborosos que os do marido, transformou em doce amor a sua dureza e, daquele dia em diante, ternissimamente o amou e, agindo, avisadissimamente, muitas vezes gozaram do seu amor. E que Deus nos faça gozar do nosso.

 

                   Congresso Pan-Planetário - Lima Barreto

De tal forma se haviam multiplicado dos congressos, que foi preciso ser original. Dentro de cada um dos oito planetas, desde o mais bronco, que parece ser Vênus, até o mais inteligente, que deve ser Netuno, não era possível reunir um que não fosse a milésima repartição dos outros anteriores. Congressos nunca foram coisas de primeira necessidade; mas a necessidade do espetáculo tem em todos nós fortes exigências como desvios convenientes.

Demais, Júpiter estava em tal estado de adiantamento que precisava mostrar-se ao sistema todo. Produzia por ano 200.000$000 toneladas de aperfeiçoadas farpas de bambus (específico contra as dores de dentes); e os seus filósofos e escritores, graças às modernas máquinas elétricas de escrever, abarrotavam os armazéns das estradas de ferro com bilhões de toneladas de papel impresso. Houve um que, narrando todas as conversas e atos do ano, dia por dia, hora por hora, minuto por minuto, segundo por segundo, escreveu uma obra de 68.922 volumes, com 20.677.711 páginas das quais 3.000.000 alvas e limpas - as melhores! - significavam as horas de seu sono sem sonhos.

O autor não omitiu nelas nem as ordens aos criados, nem tampouco as frases vulgares que trocamos ao cumprimentar. Tudo registrou porque, dizia ele, isso aumentava o peso da obra, portanto, o seu valor.

Era unicamente Júpiter que estava assim: o resto dos satélites do Sol vivia sofrivelmente... Como porém, houvessem descoberto que todos eles estavam ligados por uma força oculta que, embora influindo mutuamente sobre todos eles pesava mediocremente sobre os destinos particulares de cada um; e, como também fosse preciso ser original nos Congressos - Júpiter propôs, e todos os planetas restantes aceitaram, a reunião de um congresso Pan-Planetário. Era preciso, diziam os embaixadores de Júpiter, formar um espírito planetário, em contraposição ao espírito estelar. Com isso, eles escondiam o secreto desejo de vender aos outros planetas farpas aperfeiçoadas, remédio para calos, toneladas de um literário papel de embrulhos e outros produtos similares de sua atividade sem limites, não esquecendo o fito de conquistas alguns destes últimos ou parte deles.

Todos os outros não viram bem esse propósito de Júpiter; mas este lhes venceu a resistência, convencendo-os de que deviam ser originais e chamar a atenção do Universo... O mundo estelar não nos debocha? Altair não está sempre a rir-se sarcasticamente de nós? Aldebaran não nos ameaça com seu rubor? Sírios não nos desdenha? Havemos de lh´o mostrar.

A reunião - ficou decidido - teria lugar na Terra. Não porque a Terra fosse muito poderosa, mas porque nos últimos anos ela instalara nos seus pólos uma imensa buzina que gritava para as estrelas: - Sou o primeiro planeta do orbe, tenho estradas de milhões de metros, sou o paraíso do universo, etc. etc.

A buzina era indispensável, visto que os caminhos, palácios, jardins e teatros, etc., se destinavam aos extraterrestres e tinham por fim atraí-los, no pensamento de que os estranhos viessem trazer a segura prosperidade dela - a Terra.

O seu povo, todos conhecem-no: é uma gente cheia de uma nerventa poesia, terna, loquaz, um tanto indolente mas liberal, por ser relaxada e generosa, por ser liberal.

São defeitos e são qualidades, mesmo porque, para os povos, não há defeitos nem qualidades, há características, e mais nada.

Os de Júpiter não são assim: são rígidos, duros e frios, e têm dois sentimentos dominadores: o do enorme, que é o seu critério de beleza, e o do dourado.

Um habitante do grande planeta, uma vez na Terra, ao ver pelo crepúsculo o céu banhado de ouro liqüefeito, esperneou de tal modo e de tal modo subiu às montanhas para colhê-lo que nos antípodas houve um terremoto.

Em vendo a cor do ouro, eles saem bufando, com o olhar injetado, em estado de fúria; e saem matando, estripando a indiferentes, a amigos, a parentes e até aos pais; e - curioso - só querem ouro para construir caixões de seis léguas de altura e seis polegadas quadradas de base. Eis como sentem a beleza... A isso juntam um horror pelos gatos, um ódio idiota e histérico; no entanto, os gatos são bons; se velhos, têm a candura de criança; se crianças, uma grácil espontaneidade de encantar. Mesmo se não são melhores do que seus companheiros de Planeta, são perfeitamente iguais a eles. Contudo, são doridos e auditivos, o que lhes dá a faculdade de criar uma poesia e uma música próprias, das quais os de Júpiter se aproveitam, à míngua de poder eles mesmos criar essas manifestações artísticas, pois a sua insensibilidade não o permite.

Mas os jupiterianos não os toleram, porque podem os gatos votar, embora fossem os próprios algozes destes que lhes tivessem dado este direito.

Por qualquer dá cá aquela palha, os estúpidos jupiterianos se reúnem em praça pública e matam a pauladas, à foice, sem forma de processo alguma, sob o pretexto de que o gato queria casar ou namorava uma filha deles. Lá se chama banditismo e é coisa parecida com o linchamento ianque.

Um viajante, entretanto, que lá esteve, achou esses gatos excepcionalmente tímidos e doces, admirando-se que lá não houvesse mais crimes, provocados pelos sofrimentos e humilhações que eles sofrem.

Perseguem-nos de um modo bárbaro e covarde. Chamam-nos de poltrões, mas quando querem guerrear, socorrem-se deles e os gatos se portam bem. Vem a paz, oprimem-nos, encurralam-nos; mas, assim mesmo, eles crescem e multiplicam-se... Fraca raça!

Júpiter, como ia dizendo, acudiu ao grito da buzina e reuniu o Congresso na Terra.

Na primeira sessão, logo os jupiterianos falaram na fraternidade de todos os animais do Universo: homens e gatos, burros e jupiterianos, marcianos e raposos. Um principal de Júpiter até, a esse respeito, fez um discurso muito bonito.

É muito sediça a manobra de Júpiter falar sempre em liberdade, fraternidade, etc. Certa vez ele declarou guerra a Saturno para libertar-lhe os povos. Logo, porém, que o venceu, restabeleceu a escravatura que já estava absolvida. Tal e qual a América do Norte fez com o Texas, província do México, em 1837.

Como todos esperavam, os trabalhos do Congresso prosseguiram com grande atividade.

Além de tratar do estabelecimento de pontes pênseis que ligassem todos os planetas entre si, o Congresso votou as seguintes conclusões sobre a perfeita fraternidade animal, estabelecido nos seguintes pontos:

 

  1. a) Não se deveria comer qualquer animal (boi, carneiro, porco);
  2. b) As gaiolas dos pássaros deveriam ser aumentadas do dobro, no mínimo;
  3. c) Na caça, uma espingarda não poderia ser carregada com mais de seis grãos de chumbo;
  4. d) Generalizar os jogos de bola na sociedade dos cabritos.

 

O programa era vasto e piedoso; e até um principal de Júpiter, a esse respeito, orou e citou largamente a Bíblia, tanto o Antigo como o Novo Testamento, fazendo pena não haver ali muitas beatas que pudessem chorar com tal homem, tão digno de vir a substituir S. Vicente de Paula, porque não é próprio citar Çakia-Muni.

O povo da Terra - boa gente! - exultou e encheu-se de orgulho por poder mandar as estrelas este grito: não comemos mais bois!! Nada temos com as estrelas!

Houve festas, banquetes e bailes para alguns; luminárias para quem quisesse ver e fantasmagorias surpreendentes nos órgãos de publicidade.

No Céu, porém Sirius sorriu e Altair mais amarela se fez. Da Plêiade duas estrelas empalideceram de espanto, e Aldebaran quis avisar aos néscios, mas não pôde.

Júpiter vendeu a todos os seus irmãos toneladas de farpas, de remédios para calos, de papel literário; e isso com alguma violência, que me eximo de contar. De passagem, digo-lhes que ele ocupou um pedaço de Mercúrio...

Se tais produtos não estavam completamente envenenados, foram, no entanto, deletérios. A terra banalizou-se; Marte perdeu a inteligência; Vênus, o amor desinteressado; Netuno, a bravura generosa; os gatos de todos os planetas, contudo, vieram a gozar dos benefícios das instituições jupiterianas, isto é, foram expulsos da comunhão dos patrícios.

 

                    Davi Swan - Nathaniel Hawthorne

Nem os acontecimentos que em verdade influenciam a nossa passagem pela vida e nosso destino, nem esses conhecemos, exceto uma parte. Há, contudo, muitos outros fatos, se assim se pode chamá-los, que se desenrolam perto de nós e passam sem resultados efetivos, sem mostrar a sua proximidade nem mesmo algum reflexo de luz ou sombra em nossa mente. Se pudéssemos conhecer todos os percalços do nosso destino, e a vida seria tão demasiado cheia de esperança e medo, de louvor e decepção, que não nos deixaria uma única hora de paz verdadeira. Essa idéia pode ser ilustrada com uma página relativa ao segredo de Davi Swan.

Nada temos que ver com Davi até o instante em que, aos 20 anos, o encontramos na estrada entre sua cidade natal e Boston, onde seu tio, um pequeno comerciante de secos e molhados, pretendia empregá-lo como balconista. Basta dizer que era natural de New Hampshire, filho de pais respeitáveis e que recebeu uma educação razoável, com o clássico remate de um ano na Academia de Gilmanton. Tendo viajado a pé desde o nascer do sol até quase meio-dia, nesse dia de verão, o cansaço e o calor crescente determinaram-no a sentar no primeiro lugar com sombra e ali aguardar a chegada do correio. Como que plantada expressamente para ele, dentro em pouco apareceu uma pequena moita, com um delicioso abrigo no meio e uma nascente tão fresca como nunca parecia ter jorrado igual para qualquer outro andarilho. Fosse ela virgem ou não, Davi sorveu-a com lábios sedentos, e depois deitou-se à margem, repousando a cabeça sobre algumas camisas e uma calça, envoltas num lenço de algodão listrado. Os raios solares não o atingiam; a poeira ainda não se erguera, após a pesada chuva da véspera; e aquele refúgio coberto de erva convinha melhor do que um leito de penas. A nascente murmurava lânguida como num sonho, diante do céu azul, e um sono profundo, que talvez contivesse sonhos, baixou sobre Davi Swan. Mas vamos relatar fatos com os quais ele não sonhou.

Enquanto ficava à sombra, em sono profundo, outras pessoas continuavam acordadas, passavam de um lado para outro, a pé, a cavalo e em toda espécie de veículos, ao longo da estrada, soalheira de seu quarto de dormir. Alguns não olhavam nem à direita nem à esquerda, e ignoravam-lhe a presença; outros se voltavam para aquele lado, mas ocupados como estavam com seus pensamentos, não o viam; outros riam ao vê-lo dormir a sono solto; e mais de um, de coração transbordante de perversidade, destilava sobre Davi o excesso de seu veneno. Uma viúva de meia-idade, depois de notar que não havia ninguém por perto, meteu a cabeça entre a moita e jurou que o jovem dormia com um ar encantador. Um pregador de abstinência também o viu, e incluiu o rapaz no texto de sua oração daquela tarde, como horrível exemplo de embriaguez total, exibido à beira da estrada. Mas a censura, o elogio, o rio, o escárnio, a indiferença valiam o mesmo, isto é, nada, para Davi Swan.

Mal dormira alguns minutos quando uma carruagem castanha, puxada por uma bela parelha de cavalos, rolou perto dele. Quase em frente ao abrigo de Davi, teve de parar por se haver afrouxado uma cavilha de ferro, dando lugar a escapulir-se uma das rodas. Ligeiro transtorno, que produziu breve susto em um negociante de certa idade e em sua esposa, que voltavam a Boston na carruagem. Enquanto o cocheiro e um criado repunham a roda, a dama e o cavalheiro abrigaram-se na morta, onde descobriram a nascente e Davi dormindo à margem dela. Impressionados pelo medo que inspira um homem adormecido, por mais humilde que seja, o negociante recuou tão depressa quanto lhe permitia o reumatismo e sua esposa tratou de evitar o ruge-ruge do vestido para que Davi não acordasse em sobressalto.

- Que sono pesado! - murmurou o velho cavalheiro., - como é profunda essa respiração leve! Um sono assim, conseguido sem qualquer narcótico, teria maior valor para mim que metade da minha renda,pois significaria saúde e espírito despreocupado.

- E mocidade também - acrescentou a mulher - A idade sisuda e tranqüila não dorme assim. Dormindo ou acordados, pouco nos assemelhamos a este jovem.

Quanto mais o casal contemplava o moço desconhecido, para quem a beira da estrada e a moita constituíam um quarto secreto com a rica sombra de cortinas de damasco a protegê-lo, tanto maior interesse por ele sentia. Notando que um raio de sol lhe banhava o rosto, a dama lembrou-se de torcer um ramo para interceptá-lo. Mal executou esse pequeno ato de bondade, começou a experimentar em relação ao jovem sentimentos maternais.

- parece que foi a Providência que o fez deitar-se ai - cochichou ao marido - e nos fez encontrá-lo após a decepção que tivemos com o filho do nosso primo. Tenho a impressão de que parece com nosso pobre Henrique. Devemos acordá-lo?

- Para quê? - perguntou o negociante, incerto. - Nada sabemos sobre o caráter desse moço.

- Essa fisionomia aberta! - replicou a mulher, - Esse sono inocente!

Enquanto sussurravam, o coração do rapaz não palpitou com mais força, nem a respiração se lhe tornou mais agitada, nem as feições deram o menor sinal de interesse. Entretanto, a Ventura estava debruçada sobre ele, prestes a deixar cair uma carga de ouro. O velho comerciante havia perdido o filho único, e não tinha herdeiro para sua fortuna, salvo um parente distante, cujo modo de agir não lhe agradava. Em tais circunstâncias, a gente às vezes realiza coisas mais estranhas do que fazer de mágico, despertando para a riqueza um moço que adormeceu pobre.

- Devemos acordá-lo? - repetiu a dama em tom persuasivo.

- A carruagem está pronta, senhor - disse o criado, atrás deles.

O velho casal sobressaltou-se, corou, e foi-se às pressas, marido e mulher igualmente espantados de que pudessem cogitar coisa tão ridícula. O comerciante derreou-se na carruagem e entrou a refletir no projeto de um asilo magnífico para homens de negócio infelizes. Entretanto, Davi gozava sua soneca.

A carruagem não se teria afastado mais de uma ou duas milhas quando apareceu uma bela moça, avançando a passos ligeiros, que mostravam exatamente como o pequeno coração lhe dançava no peito. Talvez fosse este movimento alegre o que fez - haverá algum mal em dizê-lo? - que sua liga se desatasse. Percebendo que a presilha de seda - se era mesmo de seda - ia afrouxar, entrou na moita e deu com o jovem adormecido ao pé da nascente. Corando como uma rosa por se haver introduzido no quarto de dormir de um cavalheiro, e ainda mais com um intuito daqueles, ia escapulir-se na ponta dos pés. Mas pairava uma ameaça sobre o desconhecido. Uma abelha enorme esvoaçava por cima dele - zum, zum, zum - , ora entre as folhas, ora através dos feixes de luz solar, ora perdida na sombra escura, até que resolveu baixar sobre uma das pálpebras de Davi. A picada de uma abelha pode ser mortal. Tão generosa quanto inocente, a moça atacou a intrusa com o lenço, afugentou-a com energia, e enxotou-a do recesso da moita. Lindo quadro! Realizada essa boa ação, e com a respiração mais rápida e um rubor mais vivo nas faces olhou a furto para o jovem forasteiro, por quem acabara de bater-se com um dragão do ar. - "É bonito"- pensou, corando mais ainda.

Como pode ser que um sonho de felicidade não se tenha levantado dentro dele, tão irresistível que, desfeito pela sua própria força, lhe houvesse mostrado a rapariga entre as suas visões? Por que pelo menos um sorriso de boas vindas não lhe acendeu no rosto? Ela chegara, a jovem cuja alma, segundo a bela e antiga idéia, fora separada da sua, e a quem, em todos os seus desejos vagos e apaixonados, ele anelava encontrar. Somente a ela podia o rapaz amar com perfeito amor; somente a ele podia a moça receber no íntimo do seu coração; e agora a imagem dela corava de leve na fonte a seu lado. Se ela desaparecesse, nunca mais o seu brilho feliz lhe alumiaria a vida.

- Que sono profundo! - murmurou a moça.

E foi-se embora; mas já não ia com o passo lépido de antes.

Ora, o pai dessa menina era um próspero negociante dos arredores, e estava justamente procurando um jovem igualzinho a Davi. Se Davi houvesse conhecido a filha durante esse passeio, ter-se-ia tornado caixeiro do pai dela, e o resto teria vindo na ordem normal. Assim, mais uma vez, a ventura - a melhor das venturas - -passou tão perto dele que suas vestes o roçaram e ele nada soube sobre isso.

Mal a jovem se perdeu de vista, dois homens encontraram a sombra da moita. Tinham ambos o rosto escuro, realçados por gorros de pano puxados de través sobre os olhos. Traziam vestes andrajosas, porém não desprovidas de certa elegância. Era um par de marotos que viviam do que o Diabo lhes mandava, e agora, à espera de outro negócio, iam jogar a renda conjunta de sua última trapaça numa partida de cartas. Havendo encontrado Davi adormecido ao pé da nascente, um dos patifes cochichou ao outro:

- Psiu! Estás vendo a trouxa debaixo da cabeça dele?

O outro fez sinal com a cabeça e piscou os olhos, malicioso.

- Aposto um copo de aguardente - disse o primeiro - que o camarada tem uma carteira ou um tesourinho oculto dentro daquelas camisas, ou pelo menos no bolso da calça.

- Mas se acordar? - perguntou o segundo.

O primeiro puxou de lado o colete e mostrou o cabo de um punhal.

- Está certo! - sussurrou o outro velhaco.

Aproximaram-se de Davi e, quando um lhe apontava o punhal ao coração, o outro começou a remexer na trouxa. Seus rostos horríveis, suas frontes enrugadas, terríveis de maldade e medo, inclinavam-se sobre a vítima, e tinham uma aparência tão hedionda que Davi, se de repente acordasse, os tomaria por dois demônios. Se os malandros voltassem a vista para a nascente, eles mesmos, refletidos pela água, não se reconheceriam. Mas Davi, esse nunca tivera aparência mais tranqüila, nem sequer quando dormia no colo da mãe.

- Tenho de puxar a trouxa - cochichou um dos dois.

- Se ele se mexer, eu furo - o outro murmurou.

Nesse momento, porém, um cão, farejando o rastro, vinha entrando na moita e olhou alternadamente para os dois criminosos e para a quieta vítima. Depois, foi sorver uns goles da nascente.

- Bolas! - exclamou um dos patifes - não podemos fazer nada agora. O dono do cachorro deve andar por ai.

- Vamos beber um gole e sair daqui - disse o outro.

O do punhal escondeu a arma e sacou uma pistola, mas não daquelas que matam numa só descarga. Era um fraco de licor, com um copo de estanho servindo-lhe de tampa. Cada um tomou um bom trago, depois do que deixaram o lugar gracejando e rindo tanto do malogro da tentativa que quase pareciam alegres por terem partido. Em poucas horas esqueceram o caso, sem imaginar que o anjo da lembrança inscrevera contra suas almas o crime de assassinato, em letras douradas como a eternidade. Quanto a Davi Swan, continuava a dormir sereno, ignorando a sombra da morte quando esta o ameaçava, tanto quanto o brilho da vida renovava, depois de haver-se dissipado aquela sombra.

Dormia, porém, menos tranqüilo que antes. O repouso de uma hora bastou para livrar-lhe a compleição robusta do cansaço em que o tinham mergulhado várias horas de fadiga. Mexeu-se, moveu os lábios, falou baixinho com os espectros íntimos de seu sonho. Mas um ruído de rodas, na estrada, aproximava-se, até que dissipou a neblina da sesta de Davi: o correio havia chegado. Levantou-se num sobressalto, com todos os pensamentos a fervilharem em torno.

- Olá, cocheiro! Há mais um lugar? - gritou.

- Há um em cima! - respondeu o cocheiro.

Davi subiu e continuou alegre a sua viagem a caminho de Boston, sem ter ao menos lançado um olhar de despedida àquela fonte de sonial vicissitude. Não soube que o fantasma da Riqueza lhe lançara um matiz dourado sobre as águas, nem que outro, o do Amor, lhe acompanhara o murmúrio com um suspiro leve, nem que o um terceiro, o da Morte, ameaçara tingi-las com o carmesim do próprio sangue, tudo isso durante a breve hora que passara a dormir. Dormindo ou andando, não ouvimos os passos aéreos das coisas estranhas que por um fio não nos acontecem. Não será um argumento em favor de uma Providência vigilante o fato de, enquanto acontecimentos invisíveis e inesperados se atiram sem cessar em nosso caminho, haver contudo bastante regularidade na vida dos mortais para que a previsão tenha uma utilidade pelo menos parcial?

 

                   Frei Genebro - Eça de Queirós

Nesse tempo ainda vivia, na sua solidão nas montanhas da Umbria, o divino Francisco de Assis - e já por toda a Itália se louvava a santidade de Frei Genebro, seu amigo e discípulo.

Frei Genebro, na verdade, completara a perfeição em todas as virtudes evangélicas. Pela abundância e perpetuidade da Oração, ele arrancava da sua alma as raízes mais miúdas do pequeno, e tornava-a limpa e cândida como um desses celestes jardins em que o solo anda regado pelo Senhor, e onde só podem brotar açucenas. A sua penitência, durante vinte anos de claustro, fora tão dura e alta que já não temia o tentador; agora, só com o sacudir da manga do hábito, rechaçava as tentações, as mais pavorosas ou as mais deliciosas, como se fossem apenas moscas inoportunas. Benéfica e universal à maneira de um orvalho de verão, a sua caridade não se derramava somente sobre as misérias do pobre, mas sobre as melancolias do rico. Na sua humilíssima humildade ao se considerava nem igual dum verme. Os bravios barões, cujas negras torres esmagavam a Itália, acolhiam reverentemente e curvavam a cabeça a este franciscano descalço e mal remendado que lhes ensinava a mansidão. Em Roma, em S. João de Latrão, o Papa Honório beijara as feridas de cadeiras que lhe tinham ficado nos pulsos, do ano em que na Mourama, por amor dos escravos, padecera a escravidão. E como nessas idades os anjos ainda viajavam na terra, com as asas escondidas, arrimados a um bordão, muitas vezes, trilhando uma velha estrada pagã ou atravessando uma selva, ele encontrava um moço de inefável formosura, que lhe sorria e murmurava:

- Bons dias, irmão Genebro!

Ora, um dia, indo este admirável mendicante de Spoleto para Terni, e avistando no azul e no sol da manha, sobre uma colina coberta de carvalhos, as ruínas do castelo de Otofrid, pensou no seu amigo Egídio, antigo noviço como ele no mosteiro de Santa Maria dos Anjos, que se retirara àquele ermo para se avizinhar mais de Deus, e ali habitava uma cabana de colmo, junto das muralhas derrocadas, cantando e regando as alfaces do seu horto, porque a sua virtude era amena. E como mais de três anos tinham se passado desde que visitara Egídio, largou a estrada, passou embaixo do vale, sobre as alpondras, o riacho que fugiu por entre os aloendros em flor, começou a subir lentamente a colina frondosa. Depois da poeira e ardor do caminho de Spoleto, era doce e larga sombra dos castanheiros e a relva que lhe refrescava os pés doloridos. A meia encosta, numa rocha onde se esguedelhavam silvados, nas ervas úmidas, dormia, ressonando consoladamente, um homem, que decerto por ali guardava porcos, porque vestia um grosso surrão de couro e trazia, pendurada na cinta, uma buzina de porqueiro. O bom frade bebeu de leve, afugentou os moscardos que zumbiam sobre a rude face adormecida e continuou a trepar a colina, com o seu alforje, o seu cajado, agradecendo ao Senhor aquela água, aquela sombra, aquela frescura, tantos bens inesperados. Em breve avistou, com efeito, o rebanho de porcos, espalhados sob as frondes, roncando e fossando as raízes, uns magros e agudos, de cerdas duras, outros redondos, com o focinho curto afogado em gordura, e os bacorinhos correndo em torno às tetas das mães, luzidios e cor-de-rosa.

Frei Genebro pensou nos lobos e lamentou o sono do pastor descuidado. No fim da mata começava a rocha, onde os restos do castelo lombardo se erguiam, revestidos de hera, conservando ainda alguma seteira esburacada sobre o céu, ou, numa esquina de torre, uma goteira que, esticando o pescoço do dragão, espreitava por meio das silvas bravas.

A cabana do ermitão, telhada de colmo que lascas de pedra seguravam, apenas se percebia, entre aqueles escuros granitos pela horta que em frente verdejava, com os seus talhões de couve e estacas de feijoal, entre alfazema cheirosa. Egídio não andaria afastado porque sobre o murozinho de pedra solta ficara pousado o seu cântaro, o seu podão e a sua enxada. E docemente, para o não importunar, se àquela hora da sesta estivesse recolhido e orando, Frei Genebro empurrou a porta de pranchas velhas, que não tinha loquete para ser mais hospitaleira.

- Irmão Egídio!

Do fundo da choça rude, que mais parecia cova de bicho, veio um lento gemido:

- Quem me chama? Aqui, neste canto, neste canto a morrer!... A morrer, meu irmão!

Frei Genebro acudiu em grande dó; encontrou o bom ermitão estirado num monte de folhas secas, encolhido em farrapos e tão definhado que sua face, outrora farta e rosada, era como um pedaço de velho pergaminho, muito enrugado, perdido entre os flocos das barbas brancas. Com infinita caridade e doçura, o abraçou.

- E há quanto tempo, há quanto tempo, neste abandono, irmão Egídio?

Louvado Deus, desde a véspera! Só na véspera, à tarde, depois de olhar uma derradeira vez para sol e para a sua horta, se viera estender naquele canto para acabar... Mas havia meses que com ele entrara um cansaço, que nem podia segurar a bilha cheia quando voltava da fonte.

- E dizei, irmão Egídio, pois que o Senhor me trouxe, que posso fazer eu pelo vosso corpo? Pelo corpo, digo; que pela alma bastante tendes vós feito na virtude desta solidão!

Gemendo, arrepanhando para o peito as folhas secas em que jazia, como se fossem dobras dum lençol, o pobre ermitão murmurou:

- Meu bom frei Genebro, não sei se é pecado, mas toda esta noite, em verdade vos confesso, me apeteceu comer um pedaço de carne, um pedaço de porco assado... Mas será pecado?

Frei Genebro, com a sua imensa misericórdia, logo o tranqüilizou. Pecado? Não, certamente. Aquele que, por tortura, recusa ao seu corpo um contentamento honesto, desagrada ao Senhor! Não ordenava ele aos seus discípulos que comessem as boas coisas da terra? O corpo é servo; e está na vontade divina que as suas forças sejam sustentadas, para que preste ao espírito, seu amo, bom e leal serviço. Quando Frei Silvestre, já tão doentinho, sentira aquela longo desejo de uvas moscatéis, o bom Francisco de Assis logo o conduziu à vinha, e por suas mãos apanhou os melhores cachos, depois de os abençoar para serem mais sumarentos e doces...

- É um pedaço de porco assado que apeteceis? - exclamava risonhamente o bom Frei Genebro, acariciando as mãos transparentes do ermitão - Pois sossegai, irmão querido, que bem sei como vos contentar

E imediatamente, com os olhos a reluzir de caridade e de amor, agarrou o afiado podão que pousava sobre o muro da horta. Arregaçando as mangas do hábito, e mais ligeiro que um gamo, porque era aquele um serviço do Senhor, correu pela colina até os densos castanheiros onde encontrara o rebanho de porcos. E aí, andando sorrateiramente de tronco para tronco, surpreendeu um bacorinho desgarrado que fossava a bolota, e desabou sobre ele, e enquanto lhe sufocava o focinho e os gritos, decepou, com dois golpes certeiros do podão, a perna por onde o agarrava. Depois, com as mãos salpicadas de sangue, deixando a rês a arquejar numa poça de sangue, o piedoso homem galgou a colina, correu à cabana, gritou dentro alegremente:

- Irmão Egídio, a peça de carne já o Senhor a deu! E eu, em Santa Maria dos Anjos, era bom cozinheiro.

Na horta do ermitão arrancou uma estaca do feijoal, que, como podão sangrento, aguçou em espeto. Entre duas pedras acendeu uma fogueira. Com zeloso carinho assou a perna do porco. Era tanta a sua caridade que para dar a Egídio todos os antegostos daquele banquete, raro em terra de mortificação anunciava com vozes festivas e de boa promessa:

- Já vai aloirando o porquinho, irmão Egídio! A pele já tosta, meu santo!

Entrou enfim na choça triunfalmente, com o assado que fumegava e rescindia, cercado de frescas folhas de alface. Ternamente ajudou a sentar o velho, que tremia e se babava de gula. Arredou das pobres faces maceradas os cabelos que o suor da fraqueza empastara. E, para que o bom Egídio não vexasse com a sua voracidade e tão carnal apetite, ia afirmando enquanto lhe partia as febras gordas, que também ele comeria regaladamente daquele excelente porco se não tivesse almoçado à farta na Locanda dos três Caminhos!

- Mas nem bocado agora me podia entrar, meu irmão! Com uma galinha inteira me atochei! E depois uma fritada de ovos! E de vinho branco, um quartinho!

E o santo homem mentia santamente - porque, desde madrugada, não provara mais que um magro caldo de ervas, recebido por esmola à cancela de uma granja.

Farto, consolado, Egídio deu um suspiro, recaiu no seu leito de folha seca. Que bem lhe fizera, que bem lhe fizera! O Senhor, na sua justiça, pagasse a seu irmão Genebro aquele pedaço de porco!... E o ermitão, com as mãos postas, Genebro ajoelhado, ambos louvaram, ardentemente, o Senhor que, a toda necessidade solitária, manda de longe o socorro.

Então, tendo coberto Egídio com um pedaço de manta e posto, a seu lado, a bilha cheia de água fresca, e tapado, contra as aragens da tarde, a fresta da cabana, Frei Genebro, debruçado sobre ele, murmurou:

- Meu bom irmão, vós não podeis ficar neste abandono... Eu vou levado por obra de Jesus, que não admite tardança. Mas passarei no convento de Sambricena e darei recado para que um noviço venha e cuide de vós com amor, no vosso transe. Deus vos vele entretanto, meu irmão; Deus vos sossegue e vos ampare com a sua mão direita.

Mas Egidio cerrara os olhos, nem se moveu, ou porque adormecera, ou porque seu espírito, tendo pago aquele derradeiro salário ao corpo, como a um bom servidor, para sempre partira, finda a sua obra na terra. Frei Genebro pensava quanto era magnânimo o Senhor em permitir que o homem, feito à sua imagem augusta, recebesse tão fácil consolação duma perna decerto assada entre duas pedras.

Retornou a estrada, marchou para Terni. E prodigiosa foi, desde esse dia, a atividade de sua virtude. Através de toda a Itália, sem descanso, pregou o Evangelho Eterno, adoçando a aspereza dos ricos, alargando a esperança dos pobres. O seu imenso amor ia ainda para além dos que sofrem, até aqueles que pecam, oferecendo um alívio a cada dor, estendendo um perdão a cada culpa: e com a mesma caridade que tratava os leprosos, convertia os bandidos. Durante as invernias e a neve, vezes inumeráveis dava, aos mendigos, a sua túnica, as suas alpercatas; os abades dos mosteiros ricos, as damas devotas de novo o vestiam, para evitar o escândalo de sua nudez através das cidades; e, sem demora, na primeira esquina, ante qualquer esfarrapado, ele se despojava sorrindo. Para remir servos que penavam sob um amo feroz, penetrava nas igrejas, afirmando, jovialmente, que mais apraz a Deus uma alma liberta que uma tocha acesa.

Cercado de viúvas, de crianças famintas, invadia as padarias, açougues, até as tendas dos cambistas, e reclamava imperiosamente, em nome de Deus, a parte dos deserdados. Sofrer, sentir a humilhação eram, para ele, as únicas alegrias completas: nada o deliciava mais do que chegar de noite molhado, esfaimado, tiritando, a uma opulenta abadia feudal, e ser repelido da portaria como um mau vagabundo; só então, agachado nos lodos do caminho, mastigando um punhado de ervas cruas, ele se reconhecia verdadeiramente irmão de Jesus, que não tivera também, como têm sequer os bichos do mato, um covil para se abrigar. Quando um dia, em Perusa, as confrarias saíram ao seu encontro, com bandeiras festivas, ao repique dos sinos, ele correu para um monte de esterco, onde se rolou e se sujou, para que daqueles que o vinham engrandecer, só recebesse compaixão e escárnio. Nos claustros, nos descampados, em meio das multidões, durante as lides mais pesadas, orava constantemente, não por obrigação, mas porque na prece encontrava um deleite adorável. Deleite maior, porém, era, para o franciscano, ensinar e servir. Assim, longos anos errou entre os homens, vertendo seu coração como a água de um rio, oferecendo os seus braços como alavancas incansáveis; e tão depressa, numa ladeira deserta, aliviava uma pobre velha de sua carga de lenha, como numa cidade revoltada, onde reluzissem armas, se adiantava, com o peito aberto, e amansava as discórdias.

Enfim, uma tarde, em véspera de Páscoa, estando a descansar nos degraus de Santa Maria dos Anjos, avistou de repente, no ar liso e branco, uma vasta mão luminosa que sobre ele se abria e faiscava. Pensativo, murmurou:

- Eis a mão de Deus, a sua mão direita, que se estende para me colher ou para me repelir.

Deu logo a um pobre, que ali rezava a Ave-Maria, com a sua sacola nos joelhos, tudo o que no mundo lhe restava, que era um volume do Evangelho, muito usado e manchado de suas lágrimas. No domingo, na igreja, ao levantar a Hóstia, desmaiou. Sentindo então que ia terminar a sua jornada terrestre, quis que o levassem para um curral e o deitassem sobre uma camada de cinzas.

Em santa obediência, ao guardião do convento, consentiu que o limpassem dos seus trapos, lhe vestissem um hábito novo: mas, com os olhos alagados de ternura, implorou que o enterrassem num sepulcro emprestado, como fora o de Jesus, seu senhor.

E, suspirando, só se queixava de não sofrer:

- O Senhor, que tanto sofreu, por que não me manda a mim o padecimento bendito?

De madrugada pediu que abrissem, bem largo, o portão do curral.

Contemplou o céu que clareava, escutou as andorinhas que, na frescura e silêncio, começaram a cantar sobre o beiral do telhado e, sorrindo, recordou uma manhã com Francisco de Assis à beira do lago de Perusa, o mestre incomparável se detivera ante uma árvore cheia de pássaros e, fraternamente, lhes recomendara que louvassem sempre o Senhor! "Meus irmãos, meus irmãos passarinhos, cantai bem a vosso Criador, que vos deu essa árvore para que nela habiteis, e toda esta limpa água para nela beber, e essas penas bem quentes para vos agasalharem, a vós e aos vossos filhinhos!" Depois, beijando humildemente a manga do monge que o amparava, Frei Genebro morreu.

Logo que ele cerrou os olhos carnais, um grande anjo penetrou diafanamente no curral e tomou, nos braços, a alma de Frei Genebro. Durante um momento, na fina luz da madrugada, deslizou por sobre o prado fronteiro tão levemente que nem roçava as pontas orvalhadas da relva alta. Depois, abrindo as asas, radiantes e níveas, transpôs, num vôo sereno, as nuvens, os astros, todo o céu que os homens conhecem.

Aninhada nos seus braços, como na doçura do berço, a alma de Frei Genebro conservava a forma do corpo que sobre a terra ficara; o hábito franciscano ainda a cobria, com um resto de poeira e de cinza nas pregas rudes; e, com um olhar novo, que agora tudo trespassava e tudo compreendia, ela contemplava, num deslumbramento, aquela região em que o anjo parara, para além dos universos transitórios e de todos os rumores siderais. Era um espaço sem limite, sem contorno e sem cor. Por cima começava uma claridade, subindo espalhada à maneira de uma aurora, cada vez mais branca, e mais luzente, e mais radiante, até que resplandecia num fulgor tão sublime que nela um sol coruscante seria como uma nódoa pardacenta. E por baixo estendia-se uma sombra cada vez mais baça, mais fusca, mais cinzenta, até que formava como um espesso crepúsculo de profunda, insondável tristeza. Entre essa refulgência ascendente e a escuridão inferior, permanecera o anjo imóvel, esperando, com as asas fechadas. E a alma de Frei Genebro perfeitamente sentia que estava ali esperando também, entre o Purgatório e o Paraíso. Então, subitamente, nas alturas, apareceram os dois imensos pratos duma balança - um que rebrilhava como diamante e era reservado às suas boas obras, outro, negrejando mais que carvão, para receber o peso das suas obras más. Entre os braços do anjo, a alma estremeceu... Mas o prato diamantino começou a descer lentamente. Oh! contentamento e glória! Carregado com as suas Boas Obras, ele descia, calmo e majestoso, espargindo claridade. Tão pesado vinha, que as suas grossas cordas se retesavam, rangiam. E, entre elas, formando como uma montanha de neve, alvejavam as incontáveis esmolas que semeara no mundo, agora desabrochadas em alvas flores, cheias de aroma e de luz.

A sua humildade era um cimo, aureolado por um clarão. Cada uma das suas penitências cintilava mais limpidamente que cristais puríssimos. E a sua oração perene subia e enrolava-la em torno das cordas, à maneira duma deslumbrante névoa d'oiro.

Sereno, tendo a majestade de um astro, o prato das Boas Obras parou, finalmente, com a sua carga preciosa. O outro, lá em cima, não se movia também, negro, da cor do carvão, inútil, esquecido, vazio. Já das profundidades, sonoros bandos de serafins voavam, balançando palmas verdes. O pobre franciscano ia entrar triunfalmente no Paraíso - e aquela era a milícia divina que o acompanharia cantando. Um frêmito de alegria passou na luz do Paraíso, que um Santo novo enriquecia. E a alma de Genebro anteprovou as delícias da bem-aventurança.

Subitamente, porém, no alto do prato negro oscilou como a um peso inesperado que sobre ele caísse! E começou a descer, duro, temeroso, fazendo uma sombra dolente através da celestial claridade. Que Má Ação de Genebro trazia ele, tão miúda que nem se avistava, tão pesava que forçava o prato luminoso a subir, remontar ligeiramente, como se a montanha de Boas Ações, que nele transbordavam, fosse um fumo mentiroso? Oh! mágoa! Oh! desesperança! Os serafins recuavam, com as asas trementes. Na alma de Frei Genebro correu um arrepio imenso de terror. O negro prato descia, firme, inexorável, com as cordas retesas. E na região que se cavava sob os pés do anjo, cinzenta, de inconsolável tristeza, uma massa de sombra, molemente e sem rumor, arfou, cresceu, rolou como a onda duma maré devoradora.

O prato mais triste que a noite parara - parara em pavoroso equilíbrio com o prato que rebrilhava. E os serafins, Genebro, o anjo que o trouxera, descobriram, no fundo daquele prato que inutilizava um Santo, um porco, um pobre porquinho com uma perna barbaramente cortada, arquejando, a morrer, numa poça de sangue... o animal mutilado pesava tanto na balança da justiça como a montanha luminosa de virtudes perfeitas!

Então, das alturas, surgiu uma vasta mão, abrindo os dedos que faiscavam. Era a mão de Deus, a sua mão direita, que aparecera a Genebro na escada de Santa Maria dos Anjos, e que agora supremamente se estendia para o acolher ou para o repelir. Toda a luz e toda a sombra, desde o Paraíso fulgente ao Purgatório crepuscular, se contraíram num recolhimento de inexprimível amor e terror. E na estática mudez, a vasta mão, através das alturas, lançou um gesto que repelia...

Então o anjo, baixando a face compadecida, alargou os braços e deixou cair, na escuridão do Purgatório, a alma de Frei Genebro.

 

                   Horácio Sparkins - Charles Dickens

- Com efeito, meu querido, ele deu muita atenção a Teresa no último sarau - disse a Sra. Malderton dirigindo-se ao marido, o qual, após as canseiras do dia na City, sentado com um lenço de seda na cabeça, os pés sobre o guarda-fogo, bebia seu vinho. - Muita atenção, realmente; e repito que se deve dar-lhe todo e qualquer estímulo. Não há dúvida que ele deve ser convidado para jantar aqui.

- Quem? - perguntou o sr. Madelton.

- Bem, você sabe, meu querido, a quem estou me referindo: àquele moço de suíças pretas e gravata branca que há pouco veio ao nosso clube e de quem todas as moças falavam. É o jovem... meu Deus! como se chama mesmo?... Mariana, lembra-me o nome dele, - disse a Sra. Malderton voltando-se para a filha mais nova, que estava ocupada em fazer uma bolsa de tricô e olhar sentimentalmente.

- Sr. Horácio Sparkins, mamãe - respondeu Mariana com um suspiro.

- Isso mesmo! Horácio Sparkins - disse a Sra. Malderton.

- Decididamente é o jovem mais elegante que já vi na minha vida. No casaco tão elegante que ele usava a noite passada, parecia-se com... com...

- Com o príncipe Leopoldo, mamãe... tão nobre, tão cheio de sentimento! - sugeriu Mariana, entusiasmada.

- Você não deve esquecer, meu querido - resumiu a Sra. Malderton -, que Teresa tem agora 28 anos. É da maior importância que se faça alguma coisa.

A Srta. Teresa Malderton era uma jovem muito pequena, gorducha, de faces avermelhadas, mas de bom humor e ainda sem compromisso, embora - para fazer-lhe justiça - tal desgraça não decorresse absolutamente de sua falta de perseverança. Em vão tinha namorado durante 10 anos. Em vão o Sr. e a Sra. Malderton mantinham assiduamente relações com grande número de rapazes solteiros e elegíveis de Camberwell, e até de Wandsworth e Brixon, sem falar daqueles que ocasionalmente "caíam" na cidade. A Sra. Malderton estava tão conhecida como o leão do topo de Northumberland House e tinha a mesma probabilidade de "sair".

- Estou certa de que você gostará dele - continuou a Sra. Malderton. - Ele é tão galante!

- E tão hábil - acrescentou Mariana.

- E tão eloqüente - observou Teresa.

- Tem muito respeito a você, meu querido - disse a Sra. Malderton ao esposo.

Ele tossiu e olhou para o fogo.

- Sim, estou certo de que ele tem o maior interesse em conhecer papai - declarou Mariana.

- Sem a menor dúvida - ecoou Teresa.

- É verdade, ele me disse confidencialmente - voltou a Sra. Malderton.

- Está bem - replicou o Sr. Malderton, algo lisonjeado. - Se o encontrar amanhã no clube, talvez o convide. Naturalmente ele sabe que moramos em Oak Lodge, não, minha querida?

- Naturalmente. Sabe também que você tem uma carruagem de um cavalo.

- Vou ver isso - disse o sr. Malderton, dispondo-se a uma soneca.

O sr. Malderton era um homem cujo campo de idéias estava limitado ao Lloyd's, à Bolsa, à Indian Houve e ao Banco. Algumas especulações bem sucedidas o levaram de uma situação de obscuridade e relativa pobreza a um estado de abastança. Como tantas vezes acontece em tais casos, suas idéias e as da sua família foram-se exaltando em extremo, ao passo que lhe crescia a fortuna; todos afetavam elegância, bom-gosto, e outras tolices, imitando seus superiores, e tinham um horror muito decidido e característico a tudo quanto pudesse eventualmente ser considerado baixo. Era hospitaleiro por ostentação, liberal por ignorância, e cheio de preconceitos por presunção. O egoísmo e o amor à exibição faziam-no manter mesa excelente; a conveniência e o amor às coisas boas da vida asseguravam-lhe grande número de convivas. Gostava de ter à mesa homens hábeis ou que considerava tais, pois eram grande tema para conversação, mas nunca pôde suportar aqueles a quem chamava "camaradas espertos". Provavelmente conseguiu comunicar este sentimento a seus dois filhos, que nesse ponto não causavam nenhuma inquietação ao responsável progenitor. A família tinha a ambição de travar conhecimentos e relações em qualquer esfera social superior à sua, e uma das conseqüências de tal desejo, facilitada pela extrema ignorância em que estavam de tudo quanto ficava além de seu estreito círculo, era que toda pessoa pretendia conhecer gente da alta sociedade tinha seguro passaporte para a mesa de Oak Lodge.

O aparecimento do sr. Horácio Sparkins no clube provocou, entre os freqüentadores assíduos, extraordinária surpresa e curiosidade. Quem podia ser? Ele era evidentemente reservado e visivelmente melancólico. Um eclesiástico? Mas dançava bem demais. Um advogado? Mas dizia que ainda não fora chamado a praticar. Empregava palavras muito finas e era grande conversador. Seria algum estrangeiro distinto vindo à Inglaterra que freqüentava jantares e bailes públicos a fim de conhecer a alta-roda, a etiqueta, o requinte inglês? Mas não tinha sotaque. Era um cirurgião, um colaborador de revistas, um autor de romances, um artista? Não: a cada uma dessas suposições, como ao conjunto delas, havia alguma objeção válida. "De qualquer maneira - concordavam todos -, ele deve ser alguém.: - "Deve ser, com certeza - dizia com seus botões o sr. Malderton -, uma vez que percebe a nossa superioridade e nos dá tamanha atenção."

A noite seguinte a conversa que acabamos de relatar era noite de reunião. A carruagem recebeu ordem de estar à porta de Oak Lodge às nove horas em ponto. As srtas Malderton estavam vestidas de azul-celeste ornado de flores artificiais, e a Sra. Malderton (que era baixa e gorda), idem, idem, parecendo sua filha mais velha multiplicada por dois. O sr. Frederico Malderton, o filho mais velho, em traje de rigor, representava o beau idéal de um garçom elegante, e o sr. Tomas Malderton, o mais jovem, de gravata branca de gala, paletó azul, botões brilhantes e fita de relógio vermelha, de perto se parecia com Jorge Barnewll. Todos do grupo estavam interessados em cultivar a amizade do sr. Horácio Sparkins. A Srta. Teresa preparava-se para mostrar amável e interessante como em geral o são as moças de 28 anos à procura de um marido. A Sra. Malderton ia ser toda sorrisos e graças. A Srta. Mariana lhe pediria o favor de escrever alguns versos em seu álbum. O sr. Malderton tomaria sob sua proteção, o grande desconhecido, convidando-o a jantar em sua casa. Tom dispunha-se a averiguar a extensão de seus conhecimentos em matéria de rapé e charutos. O próprio Sr. Frederico Malderton, a autoridade da família em tudo o que dizia respeito à elegância do traje e das maneiras, e ao bom gosto; que possuía seu apartamento próprio na cidade; que tinha ingresso livre no teatro Covent Garden; que se vestia sempre com formalidade com a moda do mês; que ia às águas duas vezes por semana, durante a estação; que tinha um amigo íntimo que outrora conhecera um cavalheiro que tinha vivido no Albany - ele mesmo declarou que o sr. Horácio devia ser um sujeito famoso e que lhe daria a honra de desafiá-lo para uma partida de bilhar.

O primeiro objeto que feriu os olhos ansiosos da expedita família, ao entrarem no salão, foi o interessante Horácio, com os cabelos atirados sobre a fronte e os olhos fixos no chão, recostado numa das cadeiras em atitude contemplativa.

- Ei-lo, meu querido, - cochichou ao marido a Sra. Malderton.

- Como se parece com Lord Byron - murmurou Teresa.

- Ou com Montgomery - segredou a Srta. Mariana.

- Ou com os retratos do capitão Cook! - sugeriu Tom.

- Tom, não seja burro! - disse o pai, que o morigerava a cada passo, provavelmente com o intuito de o impedir de se tornar "esperto", coisa totalmente desnecessária.

O elegante Sparkins continuava em sua atitude afetada, de admirável efeito, até que a família cruzou a sala. Então se levantou precípite, com o ar mais natural de surpresa e enlevo, aproximou-se da Sra. Malderton com a maior cordialidade, cumprimentou as moças de modo encantador, inclinou-se perante o sr. Malderton, cuja mão apertou com respeito que raiava a veneração, e retribuiu a saudação dos dois rapazes com um jeito meio agradecido, meio protetor, que acabou convencendo-os que ele devia ser uma personagem importante mas condescendente ao mesmo tempo.

- Srta. Malderton - disse Horácio após os cumprimentos de praxe e inclinando-se profundamente - é-me lícito conceber a esperança de que me permitirá ter o prazer de...

- Não sei se já estou comprometida - disse a Srta. Teresa com terrível afetação de indiferença -, mas realmente... assim... tão...

Horácio ostentou uma expressão primorosamente lastimável.

- Terei muito prazer - externou por fim a interessante Teresa. O rosto de Horácio brilhou de repente como um velho chapéu sob a chuva.

- É realmente um moço muito distinto - declarou o sr. Malderton, quando o obsequioso Sparkins e seu par se dirigiram para a quadrilha que se formava.

- Ele tem, de fato, boas maneiras - observou o sr. Frederico.

- Sim, é um rapaz notável - interveio Tom, que não deixava passar oportunidade de meter os pés pelas mãos. - ele fala que só um leiloeiro.

- Tom, disse o pai com solenidade, suponho já lhe ter pedido que não seja tolo.

Tom ficou tão contente como um galo em manhã escura.

- Como é delicioso - dizia à sua dama o interessante Horácio - enquanto passeavam pela sala depois da contradança -, como é delicioso, repousante, abrigar-nos das tempestades nebulosas das vicissitudes, dos dissabores da vida, embora apenas por alguns instantes fugazes, e passar esses instantes por mais efêmeros e rápidos que sejam, no delicioso, no abençoado convívio de um ser - cujo franzir de sobrancelhas seria a morte, cuja frieza seria a loucura, cuja falsidade seria a ruína, cuja constância seria a ventura, e cuja afeição seria a recompensa mais brilhante e elevada que os Céus pudessem outorgar a um homem!

- Quanto ardor! Quanto sentimento!"- pensava a Srta. Teresa, apoiando-se com força no braço de seu cavalheiro.

- Mas basta, basta! - resumiu o elegante Sparkins com ar teatral. - Que foi que eu disse? Que tenho eu... que ver... com sentimentos como este? Srta. Malderton - aqui ele parou de repente -, posso esperar o consentimento para oferecer-lhe o humilde tributo de...

- Na verdade, Sr. Sparkins - retrucou a enlevada Teresa, corando na mais deliciosa confusão - tem que falar com papai. Eu nunca poderia sem o consentimento dele atrever-me a ...

- Decerto ele não fará objeção alguma...

- Ora, o Sr não o conhece ainda! - interrompeu-o a Srta. Teresa, bem sabendo que não havia nada a temer, mas desejosa de transformar a cena em um romance romântico.

- Ele não poderá fazer objeção alguma a que eu lhe ofereça um copo de sangria - volveu o adorável Sparkins com certa surpresa.

- "Era apenas isso? - pensou Teresa desiludida - Quanto barulho por nada!"

- Terei o maior prazer, senhor, em vê-lo a jantar em Oak Lodge, Camberwell, domingo próximo, às cinco horas, se não tiver compromisso melhor, - disse o sr. Malderton no fim da reunião, quando ele e os filhos conversavam com o sr. Horácio Sparkins.

Este curvou-se agradecendo e aceitando o convite.

- Devo-lhe confessar - continuou o pai, oferecendo rapé ao novo conhecido - que gosto muito menos destas reuniões que do conforto, ia quase a dizer do luxo, de Oak Lodge. Elas não têm grandes encantos para um homem de certa idade.

- Aliás, senhor, que é afinal o homem? - perguntou o metafísico Sparkins. - que é o homem? Digo eu.

- Ah, isso mesmo - disse o sr. Malderton -, isso mesmo.

- Sabemos que vivemos e respiramos - continuou Horácio - que temos aspirações e desejos, anelos e apetites...

- Sem dúvida - replicou o sr. Frederico Malderton com ar profundo.

- Sabemos que existimos, digo eu - repetiu Horácio, levantando a voz -, mas aí nos detemos; ai está o fim do nosso conhecimento, o limite do nosso alcance, o termo de nossos fitos. Que mais sabemos?

- Nada - respondeu o sr. Frederico.

E realmente ninguém tinha mais direito que ele de fazer tão afirmativa. Tom ia arriscar um reparo, mas, a bem de sua reputação, percebeu o olhar zangado do pai e escapuliu-se como um cão apanhado em flagrante de furto.

- Palavra de honra - disse o sr. Malderton pai quando a família voltava para casa na carruagem -, este sr. Sparkins é admirável. Quantos conhecimentos! Que amplidão de informações! Que maneira esplêndida de se exprimir!

- Para mim ele deve ser alguém disfarçado - declarou a Srta. Mariana. - Que encantadoramente romântico!

Tom arriscou:

- Ele fala forte e muito bem. Apenas não entendo exatamente o que ele quer dizer.

- Quase começo a desesperar de você entender qualquer coisa, Tom -, disse o pai, o qual, naturalmente, ficara edificadíssimo com a palestra do sr. Horácio Sparkins.

- Tenho a impressão, Tom - disse a Srta. Teresa -, de que você foi bastante ridículo esta noite.

- Sem a menor dúvida! - gritaram todos.

E o pobre Tom procurou reduzir-se ao menor volume possível. Naquela noite o sr. e a Sra. Malderton conversaram longamente sobre as perspectivas e o futuro de sua filha. A Srta. Teresa foi deitar-se perguntando a si mesma se, caso desposasse um aristocrata, devia incentivar as visitas de suas conhecidas atuais, e sonhou a noite inteira com gentis-homens disfarçados, grandes recepções, plumas de avestruz, presentes nupciais e Horácio Sparkins.

Na manhã do domingo se aventaram diversas conjecturas acerca da condução que o ansiosamente esperado Horácio iria adotar. Ia tomar um cabriolé? Montaria a cavalo? Preferiria a diligência? Tais e outras mais hipóteses de igual importância absorveram a atenção da Sra. Malderton e de suas filhas durante toda a manhã, depois do ofício divino.

- palavra de honra, minha querida, aborrece-me que o simplório do seu irmão tenha convidado a si mesmo para jantar aqui hoje - disse o sr. Malderton à mulher. - Por causa da visita do sr. Sparkins eu me abstive, de propósito, de convidar fosse quem fosse, além de Flamwell. E agora pensar que seu irmão... um lojista... não, é insuportável. Não gostaria que fizesse qualquer referência à loja diante do nosso convidado... não, nem por mil libras! Preferiria que tivesse o bom senso de esconder a desgraça que ele representa para a família, porém ele gosta tanto do seu horrível negócio que não deixará de falar a respeito.

O sr. José Barton, a pessoa em apreço, era dono de um grande armazém, homem vulgar e tão despido de sensibilidade que não tinha o menor escrúpulo em confessar que não estava acima do seu negócio; juntara seu dinheiro graças a ele, e não fazia questão de encobri-lo.

- Ah, Flamwell, meu caro amigo, como vai? - perguntou o sr. Malderton ao ver um homenzinho azafamado, de óculos verdes, entrar na sala. - Recebeu o meu bilhete?

- Recebi sim, e estou aqui às suas ordens.

- Não conhecerá de nome, por acaso, esse Sr. Sparkins? Você conhece todo o mundo.

Era o r. Flamwell um desses cavalheiros de relações extremamente vastas que a gente encontra de quando em quando na sociedade, os quais pretendem conhecer a todos mas na verdade não conhecem ninguém. Em casa dos Maldertons, onde qualquer história sobre gente distinta era acolhida com ouvidos gulosos, estimavam-no especialmente. Vendo com que espécie de pessoas tratava, levou ao extremo a paixão de exibir as suas relações. Tinha um modo peculiar de contar as suas maiores mentiras num parêntese, com ar de quem se desmente a si mesmo, como se estivesse receando parecer egoísta.

- Bem, não o conheço por esse nome -, replicou em voz baixa e com um jeito de imensa importância. - No entanto, devo conhecê-lo, sem a menor dúvida. É alto?

- É de estatura mediana - disse a Srta. Teresa.

- Cabelos pretos? - perguntou Flamwell, arriscando uma suposição arrojada.

- Sim - respondeu a Srta. Teresa ansiosamente.

- De nariz bastante arrebitado?

- Não - replicou Teresa com desaponto. - tem um nariz romano.

- Pois não foi o que eu disse, um nariz romano? - disse Flamwell. - Não é um moço elegante?

- É.

- De maneira excessivamente simpáticas?

- Sim - exclamou a família toda. - Naturalmente você o conhece.

- Foi o que pensei: naturalmente você o conhece, se ele é "alguém", - triunfou o Sr. Malderton. - Quem pode ser ele?

- Bem, pela descrição de vocês - disse Flamwell ruminando e baixando a voz até o cochicho -, ele se parece de modo estranho com o nobre Augustus Fitz-Edward Fitz-John Fitz-Ozborne. É um rapaz de muito talento e bastante excêntrico. É muitíssimo provável que tenha mudado de nome por algum motivo especial.

O coração de Teresa batia forte. Seria mesmo o nobre Augustus Fitz-Edward Fitz-John Fitz-Ozborne? Que nome para ser gravado elegantemente em dois cartões acetinados, atados com uma fita de cetim branco! A nobre senhora Augustus Fitz-Edward Fitz-John Fitz-Ozborne! Só o pensar nisso dava um êxtase!

- Faltam cinco para as cinco - disse o Sr. Malderton consultando o relógio. - Espero que ele não nos desiluda.

- Ei-lo! - exclamou a Srta. Teresa ao ouvir duas fortes pancadas à porta.

Todos procuraram assumir o ar de quem nem suspeitava a chegada de quem quer que fosse, como costumam fazer as pessoas que esperam ansiosas uma visita.

A porta da sala abriu-se.

- O Sr. Barton - anunciou a criada.

- Raios o partam! - murmurou Malderton - Ah, meu querido, como vai você? Que há de novo?

- De novo mesmo - retrucou o comerciante na sua habitual maneira rude - não há nada. Nada que eu saiba. Como vamos, meninas e rapazes? Sr. Flamwell, prazer em vê-lo!

- Eis o Sr. Sparkins - disse Tom, que estava olhando pela janela -, num formidável cavalo preto!

La vinha Horácio, bem seguro, montando um grande cavalo preto que curveteava e cabriolava como um surpanumerário de bufar, de empinar-se, de escoicear, o animal consentiu parar a umas cem jardas da porta. O sr. Sparkins apeou-se e o confiou aos cuidados do cavalariço do sr. Malderton. A cerimônia de introdução realizou-se com as devidas formalidade. O sr. Flamwell fitou Horácio por trás de seus óculos verdes com ar misterioso e importante ao mesmo tempo, e o galante Horácio olhou para Teresa com uma expressão indizível.

- É o nobre Sr. Augustus como-se-chama-mesmo? - perguntou baixinho o sr. Malderton a Flamwell, que o escoltava para a sala de jantar.

- Bem, não é ele... pelo menos não precisamente - volveu a grande autoridade -, não precisamente.

- Quem é, então?

- Psiu! - disse Flamwell abanando a cabeça com gravidade como para mostrar que o sabia bem, mas se achava impedido por alguma grave razão de revelar o notável segredo.

Podia ser um ministro que procurava inteirar-se das opiniões do povo.

- Sr. Sparkins - disse a encantadora Sra. Malderton -, queira dividir as senhoras. João, ponha uma cadeira para o cavalheiro entre as senhoritas.

Estas palavras foram dirigidas a um homem que, em condições normais, acumulava as funções de criado e jardineiro mas, como era necessário impressionar o sr. Sparkins, fora forçado a calçar sapatos e pôr um lenço branco no pescoço, e havia sido retocado e escovado até assemelhar-se a um segundo lacaio.

O jantar era excelente. Horácio dava a maior atenção à Srta. Teresa e todos estavam de bom humor, exceto o sr. Malderton, o qual, conhecendo as propensoes de seu cunhado, sofreu a espécie de agonia que, segundo as informações dos jornais, experimenta a vizinhança quando um servente de taverna se enforca num depósito de feno, agonia "mais fácil de ser imaginada que descrita".

- Flamwell, tem visto ultimamente o seu amigo sir Thomas Noland? - perguntou o Sr. Malderton, lançando a Horácio um olhar oblíquo para ver o efeito que sobre ele exercia o nome de tamanho homem.

- Bem, não muito... quer dizer, não ultimamente. Mas vi Lorde Gubbleton há três dias.

- Ah espero que S. Excia esteja passando bem - disse Malderton num tom de profundo interesse.

Desnecessário declarar que, até aquele momento, ignorava de todo a existência da personalidade em apreço.

- bem, estava passando bem... muito bem até. É um ótimo camarada. Encontrei-o na City, e tivemos uma longa prosa. Damo-nos muito. Mas não pude conversar com ele todo o tempo que queria, porque ele ia à casa de um banqueiro, um homem rico e membro do Parlamento, com o qual também me dou bastante... poderia até dizer - intimamente.

- Sei a quem você está se referindo - retrucou o hospedeiro, que o sabia tão pouco, na realidade, quanto o próprio Flamwell. - Ele tem um negócio formidável.

Era tocar em assunto perigoso.

- Por falar em negócios - interveio o sr. Barton, do centro da mesa - um cavalheiro que você conhecia muito bem, Malderton, antes de você ter dado aquele primeiro golpe feliz, passou outro dia na nossa loja e...

- Barton, permite-me que lhe peça uma batata? - interrompeu o infeliz dono da casa, na esperança de cortar a história pela raiz.

- Pois não! - respondeu o comerciante, insensível de todo ao objetivo de seu cunhado - E ele me disse sem rodeios...

- Mais farinhenta, por favor, - interrompeu Malderton outra vez, temendo o fim da anedota e a repetição da palavra loja.

- Ele me disse assim - continuou o culpado depois de passar a batata: - "Como vão os negócios?" Entoa eu lhe disse brincando - você conhece a minha maneira -, sim, eu lhe disse: "Eu nunca estou acima dos meus negócios, e espero que eles também nunca estejam acima de mim" Ah! Ah!

- Sr. Sparkins - disse o dono da casa, debalde procurando disfarçar a sua consternação - , um copo de vinho?

- Com o maior prazer, meu senhor.

- O prazer é todo meu.

- Obrigado.

- Uma dessas noites - resumiu o hospedeiro dirigindo-se a Horácio, em parte com a intenção de ostentar os dotes de conversador de seu novo conhecido, em parte com a esperança de abafar as histórias do cunhado -, uma destas noites conversamos sobre a natureza do homem. Sua argumentação me impressionou muito fortemente.

- E a mim também - disse o sr. Frederico.

Horácio inclinou a cabeça graciosamente.

- Por favor, sr. Sparkins, qual a sua opinião a respeito da mulher? - indagou a Sra. Malderton.

As moças sorriam tolamente.

- O homem - respondeu Horácio -, o homem, quer quando erra nos campos luminosos, alegres e floridos de um segundo Éden, quer quando percorre as regiões estéreis, áridas e, por assim dizer, vulgares a que somos forçados a nos habituar em tempos como estes; o homem, em qualquer circunstância ou em qualquer lugar, vergado sob as mortíferas rajadas da zona frígida ou comburido pelos raios de um sol vertical -, o homem sem a mulher, estaria sozinho.

- Estou muito contente de verificar que o senhor tem opiniões tão respeitáveis - declarou a Sra. Malderton.

- Eu também - acrescentou a Srta. Teresa.

Horácio fitou-a com olhar encantado, e a jovem corou.

- Pois bem, na minha opinião... - disse o sr. Barton.

- Eu sei o que é que você quer dizer - interveio Malderton, determinado a não dar oportunidade a seu parente -, e discordo de você.

- Como? - perguntou o comerciante, espantado.

- Sinto não estar de acordo com você, Barton - lançou o hospedeiro de modo tão positivo como quem deveras contradiz uma asserção feita por seu interlocutor -, mas não posso aprovar o que eu considero uma afirmação monstruosa.

- Mas eu queria dizer...

- Você nunca poderá me convencer - afirmou o sr. Malderton com obstinada determinação - Nunca.

- Pois eu - disse o sr. Frederico, a auxiliar o ataque de seu pai - não posso subscrever integralmente a argumentação do sr. Sparkins.

- Como! - exclamou Horácio, que se tornara mais metafísico e argumentador ao ver a parte feminina da família ouvi-lo com enlevada atenção. - Como! É o efeito conseqüência da causa? É a causa precursora do efeito?

- Aí está - disse Flamwell.

- Sem dúvida - concordou o sr. Malderton.

- Porque se o efeito é a conseqüência da causa e se a causa precede o efeito, parece que o senhor se engana - prosseguiu Horácio.

- Sem sombra de dúvida - acudiu o sicofanta Flamwell.

- Pelo menos esta deducao me parece lógica e justa.

- Sem dúvida alguma - repercutiu Flamwell - Com isso a questão está liquidada.

- Talvez esteja - disse o sr. Frederico. - Não o percebi logo.

- Eu nem agora o percebo - opinou o comerciante -, mas suponho que tudo esteja certo.

- Que inteligência maravilhosa! - segredou a Sra. Malderton às filhas quando se retiraram para o salão.

- É um amor! - disseram juntas as duas moças. - fala como um oráculo. Ele deve ter visto coisas.

Ficando a sós os cavalheiros, produziu-se uma pausa, durante a qual todos olharam com suma gravidade, como se exaustos com a profundidade da discussão. Flamwell, que resolvera elucidar quem era e o que era o sr. Horácio Sparkins, foi o primeiro a quebrar o silêncio.

- Desculpe-me, senhor - disse aquela distinta personalidade -, suponho que estudou para advogado, não? Eu mesmo já tive o desejo de adotar essa profissão... pois estou em relações bastante íntimas com algumas das glórias do nosso foro.

- N... não... - respondeu Horácio depois de hesitar um pouco. - Precisamente, não.

- Mas, ou muito me engano, ou o senhor tem tido contato com as becas de seda, - disse Flamwell com deferência.

- Quase toda a minha vida - replicou Sparkins.

Assim, a questão estava resolvida no espírito do sr. Flamwell. Tratava-se de um moço que entraria a advogar dentro em pouco.

- Eu não gostaria de ser advogado - disse Tom, falando pela primeira vez e olhando para todos a ver se alguém lhe prestava atenção.

Ninguém respondeu.

- Não gostaria de usar cabeleira postiça - insistiu o rapaz.

- Tom, peço que não se torne ridículo, - observou-lhe o pai. - Peço-lhe que preste atenção ao que está ouvindo, para aproveitá-lo, sem fazer a cada momento essas declarações absurdas.

- Está certo, papai, - respondeu o infeliz Tom, que não pronunciara nem uma palavra sequer depois que pedira outro bife, às cinco e um quarto; agora já eram oito.

- Bem, Tom - disse o tio bondoso -, não se aflija. Eu estou de acordo com você. Não gostaria de usar cabeleira postiça; prefiro um avental.

O sr. Malderton tossiu com violência. O sr. Barton quis concluir:

- Pois se um homem está acima dos seus negócios...

A tosse voltou com decuplicada violência, e não cessou antes que o seu infeliz motivo, de tão alarmado, houvesse de todo esquecido o que pretendia dizer.

- Sr. Sparkins - interrogou Flamwell, voltando a carga -, conheceu por acaso o Sr. Delafontaine, de Bedford Square?

- Trocamos os nossos cartões, e desde então já tive a oportunidade de servi-lo bastante, - replicou Horácio, corando um pouco, sem dúvida por haver sido forçado a fazer essa confissão.

- O senhor pode considerar-se feliz por haver tido ocasião de ser útil a esse grande homem - observou Flamwell com profundo respeito.

Depois, murmurou confidencialmente ao sr. Malderton, quando acompanhavam Horácio ao salão:

- Não sei quem é. Mas é certo que ele pertence à justiça e que é alguém de grande importância, com relações das mais altas.

- Não há dúvida.

O resto da noite decorreu de modo mais agradável. Aliviado de suas apreensões por haver o sr. Barton caído em sono profundo, o sr. Malderton ficou tão amável e gentil quanto possível.

A Srta. Teresa tocou A queda de Paris de maneira magistral, conforme declarou o sr. Sparkins, e ambos, assistidos pelo sr. Frederico, ensaiaram um sem número de canções e trios do começo ao fim, chegando à agradável evidência de que suas vozes se harmonizavam à perfeição. Por via das dúvidas, cantaram todos a primeira parte. Horácio, além da leve desvantagem de não ter ouvido, estava na mais perfeita ignorância de qualquer nota musical. Contudo, passaram o tempo deliciosamente. Era mais de meia-noite quando o sr. Sparkins pediu que lhe trouxessem o seu corcel com ar de cavalo de coche fúnebre, pedido esse que só foi satisfeito com a condição expressa de que ele repetiria a visita no domingo seguinte.

Quem sabe se o Sr. Sparkins não deseja fazer parte do nosso grupo amanhã de noite? - sugeriu a Sra. Malderton - O sr. Malderton quer levar as meninas a verem o pantomimo.

O sr. Sparkins inclinou-se e prometeu ir ter com elas no decorrer da noite, no camarote n. 48.

- Não o requisitamos para a parte da manhã - disse a Srta. Teresa num tom fascinante - porque mamãe nos leva a uma porção de lojas a fazer comprar. Sei que os cavalheiros têm horror a essa espécie de passatempo.

O sr. Sparkins inclinou-se outra vez e declarou que ficaria encantado, mas negócios de grande monta ocupavam-no durante a manhã. Flamwell olhou significativamente para o sr. Malderton.

- É dia de vencimento - sussurrou.

No dia seguinte a carruagem encontrava-se às 12 h à porta de Oak Lodge a fim de levar a Sra. Malderton e as filhas para a sua expedição. Deviam elas jantar e vestir-se para o espetáculo na casa de um amigo. Primeiro, carregadas de caixas de chapéus, tinham de fazer uma excursão à loja dos Srs. Jones, Spruggins and Smith, em Tottenham Court Road; depois, outra, à Casa Redmayne, em Bond Street; depois outras, a inumeráveis lugares de que nunca ninguém tinha ouvido falar. As meninas procuravam diminuir o tédio da viagem elogiando o sr. Horácio Sparkins, censurando a própria mãe por conduzi-las tão longe só para economizar um xelim, e perguntando se jamais chegariam a seu destino. Por fim o veículo parou em frente à loja de um fanqueiro, de aspecto sujo, com toda espécie de mercadoria e letreiros de todos os tamanhos na vitrina. Havia ali enormes setes com minúsculos "3 farthings ao lado, perfeitamente invisíveis a olho nu; cinqüenta mil e trezentos boás de senhoras, desde um xelim até um pêni e meio; sapatos franceses de legítima pele de cabrito, dois xelins e nove pence o par; sombrinhas verdes, a preço não menos módico; e "toda espécie de mercadorias cinqüenta por cento abaixo do custo", como diziam os donos, que o deviam saber melhor do que ninguém.

- Por Deus, mamãe, a que lugar a senhora nos trouxe! - exclamou a Srta. Teresa. - Que diria o sr. Sparkins se nos visse?

- Com efeito, que diria! - concordou a Srta. Mariana, horrorizada com a idéia.

- Sentem-se, minhas senhoras. Qual é o primeiro artigo? - perguntou o obsequioso mestre de cerimônias do estabelecimento, o qual, com seu grande lenço branco no pescoço e sua gravata solene, parecia um mau "retrato de um cavalheiro" numa exposição de Somerset House.

- Gostaria de ver sedas - respondeu a Sra. Malderton.

- Pois não, minha senhora! Sr. Smith! Onde está o Sr. Smith?

- Estou aqui, senhor! - gritou uma voz do fundo da loja.

- Tenha a bondade de apressar-se, Sr. Smith, - disse o mestre-de-cerimônias. - O senhor nunca está onde a sua presença é necessária.

Convidado assim a desenvolver a maior rapidez possível, o Sr. Smith pulou o balcão com grande agilidade e plantou-se diante das freguesas. A Sra. Malderton deu um grito abafado. A Srta. Teresa, que se tinha curvado para falar à irmã, levou a cabeça e viu - Horácio Sparkins!

"Encobriremos com um véu", como dizem os romancistas, a cena subsequente. O misterioso, filosófico, romântico e metafísico Sparkins - aquele que, aos olhos da interessante Teresa, parecia encarnar o ideal dos jovens duques e dos tafuis poéticos que vestiam chambre de seda azul e chinelos idem idem, os quais ela conhecia dos livros e com os quais sonhava, mas que nunca esperava ver -, transformara-se de repente no Sr. Samuel Smith, auxiliar de uma loja barata, o caixeiro mais moço de uma firma incerta, de 3 semanas de existência. O desaparecimento honroso do herói de Oak Lodge, em seguida a esse reconhecimento inesperado, não pôde senão ser comparado ao furtivo esgueirar-se de um cachorro com uma enorme chaleira presa ao rabo. Todas as esperanças dos Maldertons se derreteram de vez, como sorvetes de limão num banquete; Almacks era para eles mais distantes que o Pólo Norte.

 

                   Laura - Saki

- Você não está realmente agonizante, está? - perguntou Amanda.

- O médico deu-me permissão para viver até terça-feira, - retorquiu Laura.

- Mas hoje é sábado. Isso é sério! - exclamou Amanda.

- Não sei se é sério. Mas, sem dúvida alguma, é sábado.

- A morte é sempre séria - disse Amanda.

- Eu não disse que pensava em morrer. Provavelmente deixarei de ser Laura, mas viverei como outra coisa. Algum animal, suponho. Você sabe que quando alguém não foi muito bom durante a vida que acabou de viver, reencarna-se em algum organismo inferior. E, pensando bem, não tenho sido muito boa. Fui mesquinha, ruim e vingativa sempre que as circunstâncias pareceram justificá-lo.

- As circunstâncias nunca justificam tais coisas - disse Amanda, apressadamente.

- Se não a aborrece que seja eu quem o diga - observou Laura - Egbert é uma circunstância que justifica isso e muito mais. Você se casou com ele; o seu caso é diferente. Jurou amá-lo, respeitá-lo e suportá-lo. Mas eu não.

- Não vejo o que tenha Egbert de mau - protestou Amanda.

- Oh! Decerto a maldade era minha - admitiu Laura, desapaixonadamente. - ele foi simplesmente a circunstância extenuante. Dias atrás, por exemplo, provocou um mesquinho e absurdo escândalo só porque levei a passear os seus cães pastores.

- Sim, mas os cães espantaram os pintinhos e afugentaram de seus ninhos duas galinhas chocas, alem de pisarem os canteiros do jardim. Você sabe o carinho que ele tem por suas galinhas e pelo seu jardim.

- Mesmo assim, não havia necessidade de martelar nisso toda a tarde. E muito menos tinha ele que dizer: "Não falemos mais no assunto", justamente quando eu começava a tomar gosto pela discussão. Foi então que levei a cabo uma das minhas mesquinhas vinganças - acrescentou Laura, com um sorriso que nada tinha de arrependido. - No dia seguinte ao do episódio dos cães, coloquei toda a ninhada no coberto onde ele guarda as sementes.

- Como pôde fazer isso? - exclamou Amanda.

- Foi muito fácil - disse Laura. - Duas das galinhas fingiram estar chocando, mas eu me mostrei enérgica.

- E nós, que pensamos tivesse sido tudo um acidente!

- Já vê - continuou Laura - que tenho razoes para crer que minha próxima reencarnação terá lugar em algum organismo inferior. Serei um animal. Por outro lado, como não fui de todo má, segundo penso, tenho esperanças de me converter em algum animal bonito, elegante, vivaz, com certa inclinação para as brincadeiras. Uma lontra, talvez.

- Não posso imaginá-la convertida em lontra - disse Amanda.

- Tampouco me parece que você possa imaginar-se convertida em anjo.

Amanda ficou em silêncio. De fato, não podia imaginar.

- Pessoalmente creio que uma vida de lontra será bastante agradável - continuou Laura. - Comerei salmão o ano inteiro e terei a satisfação de pescar as trutas em seu próprio reduto, sem ter que aguardar horas e horas até que se dignem a reparar nas moscas que se agitam diante delas. Além disso, uma figura elegante e esbelta...

- Mas pense nos cães de caça - interrompeu Amanda. - Que coisa horrível, ser perseguida, acossada e finalmente martirizada até a morte!

- Será bastante divertido, se metade da vizinhança estiver olhando. De qualquer modo, não será pior do que esta morte a prestações, de terça-feira a sábado. E, uma vez morta, encarnarei em outro ser. Se tiver sido uma lontra moderadamente boa, suponho que poderei voltar sob forma humana, das mais primitivas, talvez; provavelmente reencarnarei num garoto núbio, negro e nu.

- Oxalá você falasse a sério - suspirou Amanda - É o menos que podia fazer, se realmente pensa em morrer na terça-feira.

 

Em verdade, Laura morreu na segunda-feira.

- Que transtorno horrível! - exclamou Amanda, falando com seu tio, o político Sr Lulworth Quayne. - Convidei muita gente para jogar golfe e pescar, e os rododendros nunca estiveram tão formosos.

- Laura sempre foi muita falta de consideração - disse Sir Lulworth. - Nasceu na semana de Goodwood, num dia em que havia chegado a nossa casa um embaixador que odiava bebês.

- Tinha as idéias mais loucas possíveis - disse Amanda. - O senhor sabe se havia algum antecedente de loucura em sua família?

- Loucura? Não, nunca ouvi falar disso. Seu pai vive em West Kensington, mas creio que, afora isso, é perfeitamente são.

- Laura havia metido na cabeça a idéia de que reencarnaria numa lontra.

- É tão freqüente encontrarem-se tais idéias de reencarnação, mesmo no Ocidente - disse Sir Lulworth - que não parece justo qualificá-las de loucura. E Laura foi, em vida, uma mulher tão imprevisível que não me atreveria a formular opinião decisiva sobre sua possível existência ulterior.

- Crê realmente que possa haver assumido uma forma animal? - perguntou Amanda. Era uma dessas pessoas que, com rapidez surpreendente, conformam seus juízos aos dos que as rodeiam.

Precisamente naquele momento, entrou Egbert, com um ar de aflição que a morte de Laura seria insuficiente para explicar.

- Quatro das minhas galinhas estão mortas! - exclamou. - As mesmas que, na terça-feira, deveria levar à exposição. Uma delas foi arrastada e devorada no centro desse novo canteiro que cravos que me custou tantos gastos e desvelos. Minhas flores mais queridas e minhas melhores aves, destruídas! Como se a besta que perpetrou o crime tivesse sabido exatamente qual era o pior desastre que poderia ocasionar em tão pouco tempo.

- Terá sido uma raposa? - perguntou Amanda.

- O mais provável é que tenha sido uma doninha - opinou Sir Lulworth.

- Não - disse Egbert. - Encontramos pegadas de patas membranosas por toda a parte e seguimos o rastro até o arroio no fundo do jardim. Evidentemente, era uma lontra.

Amanda lançou um olhar furtivo a Sir Lulworth.

Egbert estava por demais agitado para comer, e saiu para supervisionar as operações de reforço das defesas do galinheiro.

- Parece-me que, pelo menos, deveria esperar até que se realizasse o funeral - disse Amanda, escandalizada.

- É o seu próprio funeral, não se esqueça - retorquiu Sir Lulworth. - Não sei até que ponto se pode exigir de alguém que respeite seus próprios restos mortais.

O descaso pelas convenções fúnebres foi levado a extremos mais graves no dia seguinte. Durante a ausência a família, que estava assistindo ao funeral, foram massacradas as galinhas sobreviventes. A linha de retirada do predador parecia haver abarcado a maior parte dos canteiros do jardim, mas os canteiros de morangos, na horta, também haviam sofrido bastante.

- Vou trazer os cães de caça o mais breve possível - exclamou Egbert.

- De modo algum! Nem sonhe com isso! - replicou Amanda. - Quero dizer, não ficaria bem, tão perto assim do funeral.

- É um caso de força maior - disse Egbert. - quando uma lontra acha uma ceva, nunca mais põe fim às suas correrias.

- Talvez vá para outro lugar, agora que não restam mais galinhas - sugeriu Amanda.

- Qualquer um pensaria que você está tentando proteger esta maldita besta - disse Egbert.

- Há tão pouca água no arroio... - objetou Amanda. - Não me parece próprio de um bom desportista perseguir um animal que não tem possibilidade de refugiar-se em nenhuma outra parte.

- Santo Deus! - gritou Egbert. - Quem fala em esporte? Quero matar esse animal o mais cedo possível.

A oposição de Amanda enfraqueceu no domingo seguinte, quando, à hora em que todos estavam na missa, entrou a lontra pela casa adentro, roubou um salmão de despensa e o fragmentou em pedacinhos escamosos sobre o tapete do estúdio de Egbert.

- Qualquer dia desses se esconderá debaixo e nossas camas e nos morderá os dedos dos pés - disse Egbert, e Amanda, a julgar pelo que sabia daquela lontra, em particular, teve de admitir não ser muito remota essa possibilidade.

Na véspera do dia marcado para a caçada, Amanda andou sozinha durante mais de uma hora pelas margens do arroio, dando gritos que imaginava semelhantes aos latidos de um cão. Os que a ouviram acreditaram, piedosamente, que estava ensaiando imitações de gritos de animais para a próxima festa da vila.

No dia seguinte, foi sua amiga e vizinha, Aurora Burret, quem lhe trouxe notícias do acontecimento.

- Que pena que você não viesse conosco! Divertimo-nos a valer. Encontramo-la logo, escondida num açude vizinho ao jardim.

- Ma... mataram-na? - perguntou Amanda.

- Acho que sim. Uma bela lontra. Quando Egbert tentou agarrá-la pelo rabo, mordeu-o com fúria. Pobre bicho, fez-me pena. Tinha uma expressão tão humana nos olhos quando a mataram... você diria que sou uma boba, mas sabe a quem fazia recordar aquele olhar? Oh! querida, que tem você?

 

Depois que Amanda se recobrou, até certo ponto, do seu ataque de prostração nervosa, Egbert levou-a até o vale do Nilo, em viagem de descanso. A mudança de lugar trouxe rapidamente a desejada recuperação da saúde e do equilíbrio mental de Amanda. As correrias de uma lontra aventureira em busca de novo regime alimentício foram colocadas no lugar que competia: simples incidente sem importância. O caráter normalmente tranqüilo de Amanda prevaleceu, por fim. Nem sequer a tempestade de gritos e maldições, procedentes do quarto de vestir de seu esposo, e proferidos pela voz de Egbert, embora não em seu léxico habitual, conseguiu perturbar a sua serenidade, enquanto fazia sua maquilagem naquela tarde, num hotel do Cairo.

- Que se passa? - perguntou, com fingida curiosidade.

- Esse cretininho me atirou todas as camisas limpas dentro da banheira! Ah! Se te agarro, animal...

- Que cretininho - perguntou Amanda, reprimindo o riso. O vocabulário de Egbert era tão desesperadamente inadequado para expressar seus sentimentos ultrajados!...

- Essa maldita besta, esse garoto negro e nu; esse garoto núbio! - explodiu Egbert.

Atualmente, Amanda está muito doente.

 

                   Namorados - D.H. Lawrence

- Pois é verdade, minha querida - disse Henriqueta - se eu tivesse uma expressão assim enfastiada ao ir passar o fim de semana com o noivo (com quem se está para casar dentro de um mês) faria o possível para modificar, ou esconder sentimentos, ou qualquer coisa neste gênero.

- Cale-se - disse Ester em tom intimidativo. - E não me olhe.

- Vê lá, menina, não te dê alguma das tuas raivas! Mas se queres saber o que te quis notar, olha-te no espelho.

Henriqueta, que era a mais nova e não estava ainda prometida, pôs-se a assobiar uma música. Tinha vinte e um anos e não queria arriscar a sua paz de espírito aceitando um anel de noivado. Contudo, achava graça em ver Ester "lançar-se ao mar", segundo sua frase pitoresca. Esta é que já tinha vinte e cinco anos, circunstância de certa gravidade.

O pior é que Ester, ultimamente, apresentava sua famosa expressão de tédio em presença do simpático José: olheiras, testa enrugada, etc. Quando a irmã se mostrava assim, Henriqueta não podia evitar uma sensação de horror; confrangia seu coração, detestava aquilo. Chegava a se sentir amedrontada.

O que eu queria dizer - continuou ela - era isto: que parece deslealdade com José essa cara com que tu o recebes. Arranje outra, ou então...

Calou-se, porém. Ia dizer: "Ou então, desiste". Mas a verdade é que se interessava pelo casamento da irmã. Uma vez realizado, seria um peso que lhe tiravam da cabeça!

Sentou-se na cama, ergueu o queixo, e compôs uma face suave, de anjo meditabundo. Era deveras amiga da irmã, e o ar maçado desta afligia-a com maus prenúncios.

- Olha para mim, Ester. Queres que vá contigo a Markbury? Não me importo de ir, se quiseres.

- Minha querida, que vantagem haveria nisso? - exclamou a noiva, desesperada.

- Julguei que podia pôr obstáculo as intimidades, que tanto te maçam...

Ester ripostou como uma gargalhada falsa, motejadora.

- Não sejas criança, Henriqueta! - comentou ela.

E Ester foi sozinha para o Wiltshire, onde o seu José havia acabado de adquirir uma pequena fazenda, pensando no casamento. Depois de ter sido militar, sentira-se cansado e doente; além disso, Ester nunca havia estado em uma vila suburbana. Todas as mulheres idealizam o seu lar através do anel de casamento. Ester apenas o antevia de esguelha, e tão longe!

José construíra o seu bangalô de madeira, em grande parte com suas próprias mãos. Em um dos extremos do terreno passava um riacho, junto de dois salgueiros antigos. Aos lados havia telheiros pintados de castanho e capoeiras. Em um recinto vedado com arame ficavam os porcos e, mais adiante, duas vacas e um cavalo. Eram, enfim, trinta e tantos acres de terra e só com um rapaz para ajudá-lo. Já se sabe, contava também com Ester.

Tudo aquilo tinha um ar moderno e asseado. José era trabalhador. Ele mesmo transparecia juventude e limpeza, parecia saudável e satisfeito consigo próprio. Não chegava a ver a tal "expressão enfastiada". Ou, se a via, se limitava a dizer:

- Acho-te com certa fadiga, Ester. A vida da cidade te cansa mais que a mim. Quando vieres para cá, serás outra moça.

- É possível - respondia Ester.

Ela também gostava do lugar. Gostava das galinhas brancas e das amarelas, dos porcos e do resto. Os ramos dos salgueiros levavam até o chão as suas folhas de lâminas finas. Ester adorava isso, assim como a folhagem morta que se despregava das árvores.

Disse a José que tudo se lhe afigurava delicioso, belo, imponente. Ele ficou encantado. Adaptara-se plenamente a essa vida.

A mãe do ajudante serviu-lhes almoço. De tarde, Ester e o noivo gozaram o sol e fizeram mil e uma tarefas; depois, ela enxugou a louça que a mãe do rapaz havia lavado.

- Não falta muito! - repetiu Ester, cirandando na minúscula cozinha de paredes de madeira.

A mulher foi embora. Depois do chá, o rapaz também partiu, e José e Ester recolheram as galinhas e os porcos. Caía a noite. Ester entrou em casa e preparou a ceia, arranjando um pouco de fruta cozida. José acendeu o fogão da sala de estar e considerou-se uma pessoa importante e satisfeita.

Os dois deviam ficar sós no bangalô até que o ajudante regressasse, na manhã seguinte. Seis meses antes, Ester teria achado adorável. Sentiam-se tão bem juntos! Haviam sido amigos desde muito novos, as respectivas famílias davam-se bem. José era pacato, sério; nada se podia recear dele. Nem dela. Graças a Deus!

Mas agora, infelizmente, desde que lhe prometera casamento, José cometera o erro de se apaixonar por Ester. Antes nunca fora assim. E, se ela adivinhasse que tal aconteceria, teria dito com franqueza: "Continuemos amigos, José; isso é uma inferioridade." Uma vez ele pôs-se a acarinhá-la, a

Beijá-la. Ester achou a cena intolerável mas compreendeu que seu dever seria suportar.

- Tenho pena, Ester - disse ele - que não estejas enamorada de mim como eu estou de ti.

- Ora adeus! - exclamou ela - Se não estou, é caso para te regozijares. É tudo quanto te digo.

Ouviu esta observação certeira, mas não lhe deu todo o valor. Nunca encarava as coisas como deviam ser: abertamente. Atenuava-as, deixando-as no escuro, e achava que assim era melhor. Melhor para ele, é claro.

José era bastante competente em automóveis, em lavoura e noutros conhecimentos. E Ester devia ter um organismo tão complexo como um carro! Toda ela estava cheia de muitas e sutilíssimas válvulas e magnetes e aceleradores e de tudo mais que lhe constituía o ser. Se, ao menos, pudesse conduzi-la com cuidado com que guiava seu automóvel! Era preciso pô-la em marcha e dar um jeito certo ao guiador. A própria Ester sentia que necessitava de umas voltas a manivela, para seguir na estrada matrimonial com o seu José. Ele, no entanto - que insensato - sentava-se em um carro parado e supunha estar fazendo muitos quilômetros a hora.

Naquela noite, a moça ficou bastante desesperada. Trabalhara com ele toda a tarde e gostara de se sentir na sua companhia. Mas agora que estavam sozinhos - essa estúpida salinha, e o fogão confortável, e o José, e o cachimbo do José, e o ar asseado do José, tudo lhe pareceu insuportável.

- Vem sentar aqui, minha filha - convidou ele em tom persuasivo, indicando um canto do sofá a seu lado. E ela, porque acreditava que uma senhorita decente se consideraria contentíssima em aceitar, foi e sentou-se junto do noivo. Mas estava furiosa. Que desaforo. Que descaramento, isso de ter um sofá. Ester odiou a vulgaridade dos sofás.

Aturou-lhe em seguia o amplexo do braço, que lhe cingiu a cintura, e certa pressão que presumiu ser uma carícia. Ester pensou que nada haveria mais insípido do que a cara dele, agora que a sua franqueza e retidão estavam ausentes. Que ridícula a maneira de lhe afagar o pescoço! Que idiotice essa de quererem imitar pombinhos. Gostaria de saber que doces banalidades Lord Byron, por exemplo, teria murmurado ao ouvido das suas eleitas. Esse não havia de ter sido, com certeza, nem tão jovial nem tão incompetente. Que monstruosidade, beija-la daquela maneira!

- Preferia que tocasses qualquer coisa para eu ouvir, disse ela, esquivando-se.

- achas que é preciso tocar esta noite, minha querida?

- Por que dizes esta noite? Gostava tanto de ouvir Tchaikowsky... qualquer música que me desperte!

José levantou-se, obediente, e sentou-se ao piano. Tocou muito bem e ela ouviu-o. Tchaikowsky podia conservá-la desperta toda a noite. Se Ester já estava desesperada com o aspecto amoroso de José, depois da música é que então a coisa se agravou.

- Que lindo! - exclamou - Agora toca o meu noturno favorito.

Enquanto ele se concentrava a premer as teclas, Ester escapuliu para o ar livre.

Ah! Que suspiro de alívio ao respirar a atmosfera suave de outubro! A escuridão era intensa; a ocidente luzia um crescente de lua. Não mexia uma folha; as trevas jaziam sobre a terra como uma espécie de nevoeiro.

Ester sacudiu o cabelo e foi se afastando da casa, que ressoava toda, agora, com o seu noturno favorito. O que ela queria era por-se fora do alcance das notas.

Que noite adorável! Abanou outra vez a cabeça e sentiu-se disposta a arremessar-se ao infinito - embora o infinito fosse um campo pertencente a uma fazenda ao lado. Ester, porém, deliciava-se na contemplação da lua distante.

- "Oh, partir para longe, para o além! Reconheço que sou idiota" - disse para si.

Todavia, continuou embebida nas suas fantasias. Se houvesse outra solução, fora do romantismo de José! Sim, que noivo ridiculamente apaixonado!

Havia, contudo, cavalos soltos naquele campo, e ela, cautelosamente, voltou para acerca do noivo. Aquilo definia-o bem: ter um terreno tão acanhado que não podia fugir ao som do piano sem invadir a propriedade alheia.

Quando chegou junto do bangalô, o piano, de súbito, calou-se. Oh, céus! Ester olhou em roda, desnorteada. - Um dos velhos salgueiros inclinava-se para o riacho. Ela agachou-se, rastejou e, com a ligeireza de um gato, foi trepando no tronco até a espessura da folhagem.

Mal se havia colocado em posição razoável quando José surgiu de dentro de casa e se pôs a procurá-la. Que atrevimento! Ester manteve-se quietinha, como um morcego entre as folhas da árvore, espiando, vendo-o errar de cabeça nua e ar aparvalhado, em busca dela. Onde estava a sua suposta magia varonil? Por que se mostrava tão perplexo?

- Ester!- chamava ele, com voz meiga. Onde te meteste?

Começava a zangar-se. A moça conservou-se na árvore, afetando indiferença. Não tinha a menor intenção de responder. Era como se ele não existisse. E José prosseguia na busca, vagamente infeliz.

Ela, então, teve o seu escrúpulo de consciência. "Na verdade - pensou - é cruel a maneira como o trato. Coitado do José." E, dentro da sua alma, repercutiam-se essas vozes conciliadoras. Mas, apesar disso, não lhe agrava recolher a casa e passar a noite com ele, um frente ao outro.

"É absurdo admitir a possibilidade de me apaixonar por esse rapaz. Antes queria meter-me no chiqueiro. É tão aflitivamente vulgar! Na realidade, isso é prova que, no fundo, não me tem amor."

Este pensamento, uma vez suscitado, já não a largou. "O próprio fato da sua denguice prova que não me ama. Nenhum homem que ame uma mulher a namora desta maneira. Chega a ser insultante!"

Pensou assim e começou a chorar. Escorregou-lhe um pé e esteve quase caindo. Com isto, voltou a compenetrar-se na realidade.

Viu-o, então, à distancia, de regresso à casa, aquela imagem amargurou-a "Para que arranjou toda esta embrulhada? Eu jamais quis casar, fosse com quem fosse, e nunca dei ensejo a que se enamorassem de mim! Sou muito infeliz! Serei anormal? A maioria das moças passa por esta fase do namoro. A maioria deve ser normal. De forma que eu não sou, e além disso, trepei a uma árvore. Detesto-me. Quanto a José, estragou tudo o que existia entre nós e conta forçar-me ao casamento. É de perder a cabeça! Que vida a minha! Odeio essas confusões!"

Derramou algumas lágrimas, e entretanto ouviu fechar-se, com estrondo, a porta do bangalô. José entrara em casa, justamente ressentido. E novo receio de apoderou da moça.

O salgueiro era desconfortável. O ar da noite estava frio e úmido. Se apanhasse outra constipação haveria de fungar todo o inverno. Através da janela vinha a luz do interior e Ester disse entre dentes:

- Diabos me levem!

Aquilo significava que não se sentia muito à vontade.

Deslizou pelo tronco, esfolou um braço e rasgou decerto as meias - as suas meias mais bonitas. "Que raio!", exclamou com ênfase, preparando-se para ir fazer companhia ao noivo.

Neste momento ouviu-se o ruído de um carro na vereda e um toque de buzina. Os faróis projetaram-se no portão da fazenda.

- Que atrevimento! Que descaro! Isto é Henriqueta que vem ter comigo!

E correu pelo passeio como uma bacante.

- Olá, Ester! - gritou a voz juvenil de Henriqueta, vinda da obscuridade do carro. - Como vai isso?

"Que descaro! - murmurou a outra. - Que atrevimento!" E abriu o portão, arquejante.

- Como vai isso? - repetiu a irmã.

- Que queres dizer? - perguntou Ester.

- Não, filha, não te exaltes! Não julgues que viemos meter o nariz nos teus negócios. Vamos acampar na propriedade de Bonamy. O tempo está divinal.

Bonamy era companheiro de José e também antigo militar, que se instalara em uma herdade, mais adiante. José, sem dúvida, fazia figura de Crusoé, metido no seu bangalô.

- Como vão vocês?

- Menos mal - replicou Donaldo, irmão de José. Estava ao volante e Henriqueta ia ao lado dele.

- O mesmo para variar - acudiu Eduardo, colocando a cabeça fora do automóvel. Este era primo em segundo grau.

- Muito bem - resumiu Ester, acalmando-se - Agora, que estão aqui, suponho que hão de querer entrar. Já comeram?

- Comemos, sim - respondendo Donaldo. E não queremos incomodar. Não se preocupe conosco.

- Por que não? - replicou a moça, pronta para discutir.

- Temos medo do mano José - explicou Donald.

- Além disso, Ester - atalhou Henriqueta - bem sabes que não nos deseja aí.

- Henriqueta, não sejas tola! Entrem e deixem de pieguices.

- Não, Ester - disse Donald.

- Não, senhora - disse Eduardo.

- Que grandes parvos! Por que não? - insistiu Ester.

- Por causa do mano mais velho - repetiu Donald.

- Perfeitamente - rematou - Então eu é que vou com vocês.

- Posso espreitar? - indagou Henriqueta, estendendo uma perna fora do carro. Tenho curiosidade de ver isto.

A noite estava mais escura, porque a Lua havia desaparecido. As duas moças seguiram em silêncio o passeio que conduzia até a casa. Henriqueta ia ansiosa. O seu cerebrozinho perturbara-se e ela ambicionada qualquer coisa que a esclarecesse melhor. Ester não dizia nada, mas deixou que a irmã lhe tomasse o braço. Por fim, desembaraçou-se da outra e ordenou:

- Sê normal, minha querida.

Depois deus três passos para a porta do bangalô, que abriu e através da qual puderam ver a saleta alumiada e José em uma poltrona, de costas para elas. Não voltou a cabeça quando entraram.

- Aqui está Henriqueta - exclamou a noiva, em um tom que significava: "Que há de novo?"

José levantou-se e encarou-as com olhar zangado.

- Como chegou até aqui? - perguntou rudemente.

- De automóvel - respondeu a pequena, com o seu ar de inocência.

- Com Donald e Eduard, que estão lá fora - acrescentou Ester. A malta toda!

- Vão entrar? Inquiriu o dono da casa, preocupado.

- Suponho que não deixarás de lhes fazer o convite.

José ficou pensando, sem se mexer.

- Bem sei que é desagradável esta intromissão - disse Henriqueta, com entoação humilde - Íamos a caminho da herdade de Bonamy. - Mirou em volta da sala, sempre com olhos inocentes, e disse: - Isto é realmente delicioso, de muito bom gosto. Agrada-me imenso. Deixa-me aquecer as mãos?

José, que estava de chinelas, afastou-se para lhe dar lugar. Henriqueta estendeu as mãos, vermelhas de frio, na direção do lume.

- Não me posso demorar - declarou.

- Oh, não vás... - acudiu a irmã, sem grande convicção.

- Tenho que ir. Donald e Eduard estão à espera. Como a porta ficara aberta, viam-se além os faróis do automóvel.

- Oh! - continuou Ester, no mesmo tom. - Dize-lhes que ficas comigo esta noite. Preciso um pouco de companhia.

José olhou para ela.

- Que brincadeira é essa?

- Não é brincadeira. Já que a Henriqueta chegou, bem podia ficar...

- Oh, Ester! - bradou a outra. - Vou com Donald e Eduard à fazenda Bonamy.

- Não irás, se eu quiser que fiques comigo.

Henriqueta pareceu surpresa, mas já resignada.

- Que brincadeira é essa; - repetiu José - Vocês combinaram passar aqui a noite, de sociedade?

- Não, José, palavra de honra! - volveu Henriqueta, com alvoroçada inocência - Nem eu tinha idéia de sair, quando Donald se lembrou disso esta tarde, as quatro horas. Mas o tempo estava tão bom, apetecia-me sair...

- E, se tivéssemos combinado não seria nenhum crime - retrucou Ester - De qualquer maneira, já que vocês estão aqui, acho preferível acamparem aqui mesmo.

- Não, Ester! Donald não consentiria. Ficou zangado comigo por causa desta demora... Fui eu quem tocou a buzina. Não foi ele, fui eu. Curiosidade feminina, em suma. E agora, adeus. Boa noite!

Aconchegou o casaco e dirigiu-se lentamente para a porta.

- Nesse caso, vou contigo - declarou Ester.

- Oh, filha - replicou a irmã. E olhou para José.

- Sei tão pouco como você o que isto quer dizer... - começou, como que desculpando-se.

- Ester! - exclamou Henriqueta - Sê mais sensata. Há qualquer mal-entendido. Por que não explicas? E dizes-te pessoa normal. Parece que andas brincando com os outros.

Seguiu-se um silêncio teatral.

- Que sucedeu? - continuou Henriqueta , com os olhos muitos brilhantes, aflita.

- Nada - respondeu a irmã, com entoação irônica.

- E você, que diz? - inquiriu Henriqueta, voltando-se para o rapaz, pesarosa, qual uma segunda Pórcia.

Por momentos José considerou como Henriqueta era mais simpática do que a noiva.

- Só sei que ela me pediu que tocasse piano, e a seguir desapareceu de casa. Desde então parece que não regula bem do miolo.

- Ah! Ah! Ah! - E Ester rompeu em uma gargalhada falsa, melodramática - Gosto disso! Gosto dessa fuga. Fui lá para tomar ar fresco. Queria que eu explicasse o que é isso de não regular bem do miolo.

- A verdade é que fugiste de casa.

- Sim? E por que?

- Calculo que tiveste as tuas razões.

- Pois tinha, e de primeira ordem.

Houve uns instantes de espanto. José e Ester conheciam-se toa bem havia já tanto tempo. E agora uma coisa daquelas!

- Mas por que o fizeste? - perguntou Henriqueta, com a mais ingênua das entonações.

- Por que o fiz?

A buzina do automóvel começou a dar sinal de impaciência.

- Estão chamando por mim. Adeus! - disse Henriqueta, apertando o casaco e voltando-se para a porta.

- Se fores, irei contigo - declarou Ester.

- Mas por que? - insistiu a irmã, espantada.

A buzina continuava a dar sinal. A moça abriu a porta e gritou para fora:

- Só mais um minuto! - Fechou a porta, devagar, encarou outra vez a irmã, sempre perplexa.

- Mas por que, Ester?

Os olhos de Ester, com o desespero, até pareciam vesgos. Mal podiam suportar a cara de pau do indignado José.

- Por que?

- Sim, por que? - repetiu Henriqueta.

Toda a atenção recaía sobre Ester. Mas Ester mantinha-se impenetrável.

- Por que?

- Ela nem o sabe - sugeriu José, proporcionando uma evasiva.

A interpelada riu outra vez, de forma melodramática, sinistra.

- Não sabe não! - o rosto dela tomou uma expressão furiosíssima. - Pois bem, se pretendem saber, direi que não posso aturar esta espécie de namoro, se tal é o nome que isso tem.

Henriqueta largou a mão da porta e caiu numa cadeira, sem forças.

A coisa ia de mal a pior. O rosto de José tornou-se escarlate, e depois empalideceu até ficar amarelo.

- De maneira que não podes casar com ele - comentou Henriqueta.

- Não posso casar, se ele insistir em se mostrar apaixonado. Pronunciara esta palavra de forma insidiosa.

- E não há possibilidade de casamento, sem isso? - inquiriu o anjo da guarda Henriqueta.

- Não. Aceitei-o perfeitamente enquanto ele não se apaixonou. Agora o caso é diverso.

Houve uma pausa. Henriqueta daí a pouco, volveu:

- No fim das contas, Ester, é natural que o homem se enamore da mulher com quem está para casar.

- Então é melhor que guarde isso para si. Eis tudo quanto tenho a dizer.

Novo intervalo. José, silencioso, como sempre, olhava com expressão ainda estúpida e zangada.

- Mas ouve, Ester: não concebes que um homem se apaixone por ti? - indagou a irmã.

- Por mim, não. Não admito a hipótese.

Henriqueta suspirou, desanimada.

- Então não podes casar com ele. Evidente. Que pena!

Outra pausa.

- Não há nada mais humilhante para uma mulher do que um homem enamorado - declarou Ester - Detesto semelhante coisa.

- É porque talvez esse homem não te agrada - lembrou Henriqueta, com tristeza, relanceando a vista pelo pobre José.

- Creio que não toleraria nada disso, fosse com quem fosse. Henriqueta, fazes idéia do que é ser acariciada e beijada?

- Calculo - replicou a outra, pensativa. - Como se fôssemos um pedaço de carne e viesse um cão lamber-nos antes de nos engolir. É repugnante, concordo.

- E o que é pior é um homem decente, perfeito cavalheiro, enveredar por esse caminho. Nada mais terrível do que apaixonado! - exclamou Ester.

- Compreendo o que dizes - atalhou a irmã - É próprio dos cães.

A buzina do carro tocava desesperadamente. Henriqueta ergueu-se, abriu a porta e, chamando em voz alta pelos amigos, penetrou na escuridão.

- Vão andando, não esperem. Irei depois.

- Quanto tempo te demoras com eles? - ouviu-se uma voz perguntar, à distância.

- Não sei. Mas não deverei tardar.

- Vê se apareces antes de uma hora.

- Está bem.

A porta fechou-se. Então Henriqueta, desiludida, sentou-se e ficou calada. Faria companhia à irmã. E aquele idiota do José, pespegado ali junto a parede, como uma cabeça de veado.

Ouviram o automóvel partir, descendo a vereda.

- Os homens são imbecis - murmurou Henriqueta, em tom de desânimo.

- Seja como for, há um equívoco - disse José, de repente, com amarga entoação. - Eu não estou apaixonado por você, Miss Clever.

As duas moças olharam para ele como se fosse Lázaro ressuscitado.

- Nunca estive enamorado de sua pessoa, assim dessa maneira - prosseguia ele. Os olhos cintilavam-lhe com uma chama de cólera e vergonha... e de dura paixão.

- Então, foi mentiroso! Eis o que tenho a dizer - proclamou Ester.

- Quer dizer que tudo isto foi fingido? - perguntou Henriqueta, espantada.

- Julguei que ela me quisesse assim - replicou ele, com um sorrisinho indecente que paralisou completamente as duas.

Se José se houvesse transformado em cobra, o espanto delas não teria sido maior. Que sorriso escarninho! Grande patife!

- Pensei que ela quisesse que eu fosse assim - repetiu o rapaz, sempre trocista.

Ester sentiu-se horrorizada.

- Portou-se muito mal! - observou Henriqueta.

- Que mentiroso! - comentou Ester. - E comprazia-se em semelhante coisa!

- Crês que sim, Ester? - inquiriu Henriqueta.

- De certa maneira, é verdade - confessou ele. - Mas não o teria feito se soubesse que ela não gostava.

Ester levantou os braços ao ar.

- Henriqueta! - bradou ela - Por que não matamos?

- Que m dera poder - respondeu a outra. - E atreveu-se... sabendo como a moça é assim tão severa... e que você a amava por esse seu feitio... e que iam unir-se para toda a vida... você... você... você... aproveitar-se d'alguma forma... fazer-se de Rodolfo Valentino!

- Já morreu, coitado. E nunca simpatizei com ele - disse Ester.

- Não parecia... - atalhou José.

- De qualquer forma, o senhor não é Rodolfo Valentino... e eu detesto-o no papel de galã.

- Não apanha outra oportunidade. Detesto-a também.

- Que alívio ouvir confessar uma coisa dessas, meu amigo!

Houve um silêncio demorado, após o qual se ouviu Henriqueta declarar, com decisão:

- Bem, acabou-se. Queres vir comigo à fazenda Bonamy, Ester? Ou devo ficar aqui contigo?

- Não vale a pena - volveu Ester, em ar de bravata.

- Também acho que não vale a pena - acudiu José - Mas deixe-me dizer: da sua parte foi muito mal feito não ter me prevenido.

- Julguei que o senhor era sincero e não quis ofendê-lo.

- Fala de tal maneira que se pensaria nunca desejar ofender-me.

- Oh, agora o caso é diferente, visto que tudo foi fingido.

Calaram-se. O relógio, na sua qualidade de relógio da casa, fazia um tique-taque apressado.

- Seja como for - recomeçou José - a senhora desiludiu-me.

- Ainda bem! - gritou Ester - visto que esteve brincando comigo.

Fitaram-se. Conheciam-se ambos muito bem.

Porque havia experimentado ele representar este estúpido papel de apaixonado? Fora uma traição à intimidade que entre os dois existia. José compreendia isso, e arrependia-se.

Ela, por seu lado, lia nos olhos do rapaz o amor puro e paciente que ele lhe votada, e o seu desejo calmo, estranho, mas verdadeiro. Era a primeira vez que reparava neste desejo tranqüilo, paciente, sincero, do homem que havia sofrido durante os primeiros anos da juventude e que procurava o sossego presentemente. Subiu-lhe no coração uma onda de sangue. Sentia-se irmanada com ele.

- Que decidiste, Ester? - pergunta a irmã.

- Afinal, fico com José - respondeu ela.

- Bravo! - exclamou Henriqueta - Entoa vou eu à Bonamy.

Abriu a porta, muito devagar, sair.

José e Ester olharam-se a certa distância.

- Desculpe - disse o rapaz.

- Bem sabes, José - explicou ela - que não me importo com o que tu fazes - uma vez que goste de mim a valer.

 

                   O Ardil - Guy de Maupassant

O velho médico e a jovem doente palestravam ao pé da lareira.

Ela estava apenas pouco incomodada, com essas indisposições femininas que as mulheres bonitas têm, às vezes: um pouco de anemia, de nervos, um bocadinho de fadiga, dessa fadiga de que costumam sofrer os recém-casados ao fim do primeiro mês de união, quando se casam por amor.

Ela, estendida no sofá, conversava: "Não, doutor, nunca compreendi que uma mulher enganasse o marido. Admito mesmo que não goste dele, que não cumpra suas promessas, seus juramentos! Mas como ousar dar-se a o outro homem? Como esconder isso aos olhos de todos? Como poder amar com mentira e traição?"

O médico sorria.

"É fácil. Garanto-lhe que pouco nos detemos em todas essas sutilezas quando nos invade o desejo de pecar. Tenho mesmo a convicção de que uma mulher não está madura para o verdadeiro amor senão depois de ter passado por todas as promiscuidades e por todos os fastios do casamento, o qual não é, segundo um homem ilustre, senão uma troca de maus humores durante o dia e de maus odores durante a noite. Nada mais verdadeiro. Uma mulher só pode amar apaixonadamente depois de Ter sido casada. Se eu a puder comparar com uma casa, diria que ela não é habitável senão quando um marido já lhe fez a faxina.

"Quanto à dissimulação, todas a mulheres a têm para dar e vender nessas ocasiões. As mais simples são maravilhosas e livram-se com gênio das situações mais difíceis."

Mas a jovem senhora mostrava-se incrédula.

"Não, doutor, só se sabe, passado o momento, o que se devia ter feito nas ocasiões perigosas, e as mulheres, é certo, perdem mais facilmente a cabeça do que os homens."

O médico levantou os braços.

"Passado o momento, diz? A nós, os homens, a inspiração chega sempre tardia. Mas, a vocês!... A propósito, vou contar-lhe uma pequena história ocorrida a uma de minhas clientes, a quem eu daria absolvição sem confissão, como se costuma dizer.

"O caso deu-se numa cidade de província.

"Certa noite, em que eu dormia profundamente, nesse pesado primeiro sono tão difícil de perturbar, pareceu-me em um sonho confuso, que os sinos da cidade tocavam a incêndio.

"Acordei de súbito: era a minha campainha, a da rua, que tocava desesperadamente. Como meu criado parecia não responder, agitei, por meu turno, o cordão pendido na minha cama; e logo bateram as portas, e alguns passos quebraram o silêncio da casa adormecida. Depois, Jean apareceu, trazendo-me uma carta que dizia: "Mme Leliévre pede encarecidamente ao doutor Siméon o favor de passar imediatamente por sua casa."

"Refleti alguns segundos. Pensei: crise de nervos, vapores, bobagens, e estou muitíssimo cansado. E respondi: "O doutor Siméon, bastante indisposto neste momento, roga a Mme Liliévre o favor de chamar seu confrade, o Sr. Bonnet."

"Meia hora mais tarde, aproximadamente, a campainha da rua soou de novo e Jean veio dizer-me: "É uma pessoa, homem ou mulher, não sei, ao certo, de tal modo se oculta, que quer falar urgentemente com o senhor. Diz que vai nisso a vida de duas pessoas."

"Levantei-me. "Mande entrar".

"Esperei sentado na cama.

"Apareceu uma espécie de fantasma negro, que se descobriu quando Jean partiu. Era Mme Berthe Leliévre, uma senhora muito nova ainda, casada havia três anos com um gordo comerciante da cidade que passava por Ter desposado a mais linda moça da província.

"Estava horrivelmente pálida, com essas crispacoes de rosto da gente angustiada, e as mãos trêmulas; tentou falar duas vezes sem que um único som lhe saísse da boca. Por último, balbuciou: "Depressa... depressa... Doutor... Venha. Meu... meu... amante está morto no meu quarto..."

"Parou, arquejante, e depois prosseguiu: "Meu marido... voltará... em breve do clube."

"Saltei da cama, sem mesmo pensar que estava em camisa, e vesti-me em poucos segundos. Depois perguntei: "Foi a senhora quem esteve aqui, há pouco?" Ela, de pé como uma estátua, petrificada pela angústia, murmurou: "Não, era a minha criada... ela sabe..." E uma espécie de grito de dor horrível saiu-lhe dos lábios e, depois duma sufocação que a fez arquejar, chorou, chorou perdidamente entre soluços e espasmos durante um minuto ou dois; as lágrimas pararam, estancaram, como secas, dentro, pelo fogo, e tornou-se tragicamente alma: "Vamos depressa!", disse.

"Estava pronto, mas resmunguei: "Caramba! Não me dão tempo nem para atrelar o coupé." "Tenho lá embaixo um, - respondeu - o dele, que o esperava"; cobriu-se até os cabelos. Partimos.

"Sentada a meu lado, na escuridão da noite, agarrou-me bruscamente a mão e, triturando-a em seus dedos finos, balbuciou com abalos na voz, abalos saídos do coração lancinado: "Óh! Se o senhor soubesse como sofro! Amava-o, amava-o perdidamente, como uma insensata, havia seis meses."

"Perguntei-lhe: "Estão acordados, lá em casa?" Respondeu: "Não, ninguém, exceto Rosa, que sabe de tudo."

Paramos diante da sua porta; todos dormiam, com efeito; entramos sem fazer barulho e subimos na ponta dos pés. A empregada, consternada, estava sentada na primeira escada do alto, com uma vela acesa ao seu lado, sem coragem para ficar velando o morto.

Entrei no quarto. Tudo estava revolvido como depois duma briga. A cama amarrotada, machucada, desfeita, estava aberta, parecia esperar; um lençol arrastava-se até ao tapete; toalhas molhadas, com as quais tinham friccionado as fontes do rapaz, viam-se por terra, ao lado duma bacia e dum copo. E um singular cheiro a vinagre de cozinha, misturado com aromas de Lubin saía da porta, causando enjôos.

O cadáver, estendido de costas, jazia no meio do quarto.

Aproximei-me; observei-o, toquei-o, abri-lhe os olhos, apalpei-lhe as mãos; depois, voltando-me para as duas mulheres, que tiritavam como se estivessem geladas, disse-lhes: "Ajudem-me a deitá-lo na cama." E deitamo-lo com todo o cuidado. Auscultei-lhe, então, o coração e cheguei-lhe um espelho à boca. Depois, disse: "Nada a fazer; vistamo-lo depressa." E foi uma coisa horrorosa ver aquilo.

Peguei-lhe nos ombros um a um como se fossem dum enorme boneco, estendi-o sobre as roupas que as mulheres iam me dando. Calçamo-lhe as meias, vestimo-lhe as cuecas, os calções, o colete, depois o paletó, custando-nos muito enfiar-lhe os braços nas mangas.

"Para apertar as botas, as duas mulheres puseram-se de joelhos, enquanto eu alumiava; mas como os pés tinham inchado um pouco, foi espantosamente difícil.

Terminada a horrível toalete, examinei nossa obra e disse: "É preciso penteá-lo um pouco." A empregada foi buscar o pente e a escova da amante; mas como tremia e arrancava, em movimentos involuntários, os cabelos longos e amaranhados, Mme Leliévre apossou-se violentamente do pente, e arranjou-lhe a cabeleira com doçura, como que o acariciando. Fez-lhe a risca, passou-lhe a escova pela barba, retorceu-lhe suavemente os bigodes com os dedos, como costumava fazer, decerto, nas intimidades do amor.

E, de repente, soltando o que tinha nas mãos, agarrou na cabeça inerte do amante, e olhou longamente, desesperadamente, para essa face morta, que não lhe sorria mais; depois, deixando-se cair sobre ele, estreitou-o nos braços, beijando-o com furor. Seus beijos caíam, como golpes, na boca fechada, nos olhos extintos, nas fontes, na fronte. Depois, chegando-se ao ouvido dele, como se ele pudesse ainda ouvir, como para pronunciar a palavra que torna os abraços mais ardentes, repetiu, dez vezes seguidas, numa voz dilacerante: "Adeus, meu amor."

Mas no relógio soava a meia-noite.

Tive um sobressalto. "Ohh, diabo, meia-noite, é hora de fechar o clube. Vamos, senhora, coragem!

Levantou-se. Ordenei: "Levemo-lo ao salão." Pegamos os três nele e, levantando-o, sentei-o num canapé, acendendo depois os candelabros.

"A porta da rua abriu-se e fechou-se pesadamente. Era o marido que entrava. Gritei: "Rosa, depressa, traga-me as toalhas e a bacia; arrume o quarto. Mas despache-se, meu Deus! É o sr. Leliévre que chega."

Ouvia os passos que subiam, que se aproximavam.

E o marido, estupefato, parou à entrada da porta, de charuto na boca. Perguntou: "Que há? Quem é? Que é isso?

Fui-lhe ao encontro. "Meu bom amigo, estamos aqui num grande embaraço. Demorei-me até tarde em sua casa cavaqueando com sua esposa e este amigo, que me trouxe no seu carro. Mas, a certa altura, desmaiou, inesperadamente, e há duas horas que, apesar de todos os nossos esforços, ainda não conseguimos fazê-lo voltar a si. Não quis chamar gente estranha. Ajude-me, pois, a descê-lo; tratarei melhor dele em casa."

O esposo, surpreendido, mas sem desconfiar, tirou o chapéu; depois levantou nos braços seu rival inofensivo. Eu atrelei-me entre as pernas do morto como um cavalo entre dois varais e eis-nos descendo a escada, que agora a mulher alumiava.

Quando chegamos à porta, endireitei o cadáver e falhei-lhe, dando-lhe coragem, para enganar o cocheiro: "Vamos, meu bravo amigo, isso não é nada; já se ente melhor, não é verdade? Coragem, vamos, um pouco de coragem, faça um pouco de esforço e tudo passará."

Senti que caía, que me deslizava nas mãos; propinei-lhe um grande soco nas costas que o lançou para diante o fez balançar no carro. Subi depois, atrás dele.

O marido, inquieto, perguntava-me: "Será coisa grave?" Respondi-lhe: "Não", sorrindo e olhando para a mulher. Ela havia dado o braço ao esposo legítimo e mergulhava o olhar fixo no fundo escuro do coupé.

"Apertei-lhe as mãos e mandei tocar para casa do defunto. Durante todo o trajeto o morto se pendurou à minha orelha direita.

Quando chegamos à casa dele, anunciei que tinha perdido os sentidos no caminho. Ajudei a subi-lo ao quarto, depois dei a certidão de óbito; representava uma nova comédia diante daquela família inconsolável. Enfim, voltei para cama, não sem blasfemar contra os apaixonados."

O doutor calou-se, sorrindo sempre.

A jovem esposa, crispada, perguntou:

"Por que me contou o senhor essa espantosa história?"

Fez-lhe uma galante reverência!

"Para lhe oferecer meus serviços, se a ocasião de apresentar."

 

                   O Armário - Thomas Mann

O crepúsculo descera, fresco e nublado quando o expresso Berlim-Roma se deteve numa pequena estação. Num compartimento de primeira classe, de poltronas altas, forradas de pelúcia coberta de renda, ergueu-se um viajante solitário: Albert van der Qualen. Despertara. Tinha na boca um sabor adocicado e seu corpo era presa de sensações desagradáveis que, após uma longa corrida, provoca a parada do trem, o emudecer do seu ritmo barulhento, o silêncio em que se destacam de modo expressivo os ruídos exteriores, os gritos, os sinais. É como voltar a si de uma embriaguez, de um atordoamento. Aos nossos nervos são subitamente arrancados o apoio, o ritmo a que se tinham abandonado; e sentem-se abalados e desamparados. Tanto mais se nesse momento despertamos de um sono pesado de viagem.

Albert van der Qualen espreguiçou-se um pouco, aproximou-se da janelinha e abaixou o vidro. Olhou ao longo do trem. Na frente, junto ao vagão do correio, alguns homens afanavam-se, carregando e descarregando pacotes. A locomotiva apitou várias vezes, espirrou e gorgoleou um pouco, depois se calou e permaneceu imóvel, mas como está imóvel um cavalo que levanta os cascos, impaciente, agita as orelhas e espera avidamente o sinal para pôr-se em movimento. Uma senhora alta e gorda, vestida com um longo impermeável, carregava com ar de grande preocupação uma maleta que pesava algumas arrobas; impelia-a para a frente com um joelho, aos saltos, ao longo dos vagões, em ziguezagues; não dizia uma só palavra e tinha o olhar amedrontado de um animal acuado; o lábio superior, sobretudo, projetado para a frente e coberto de gotículas de suor, tinha algo de indizivelmente comovente. "Pobre criatura", disse consigo mesmo van der Qualen - "pudesse eu ajudar-te, arranjar um lugar, confortar-te, fosse apenas por amor ao teu lábio! Mas cada um por si: é a regra. E eu, que neste momento não tenho o menor motivo de preocupação, aqui estou a olhar-te, como olharia um escaravelho caído de costas."

A modesta estação estava imersa numa luz crepuscular. Seria manhã ou tarde? Não sabia. Dormira, e tanto podia ter dormido duas horas como cinco ou doze. Já não lhe acontecera dormir vinte e quatro horas e mais, mesmo, sem a menor interrupção, com um sono profundo, fora de propósito? Van der Qualen envergava um casaco de inverno, um tanto curto, marrom, com gola de veludo. Pelos traços de sua fisionomia seria muito difícil determinar-lhe a idade: podia oscilar entre vinte e cinco e quarenta anos. Tinha a cútis amarelada e seus olhos negros, cercados de sombras profundas, brilhavam como brasas. Diversos médicos a ele se dirigindo com gravidade e franqueza, sem rebuços, poucos meses de vida lhe haviam dado. Seus cabelos castanhos e lisos estavam repartidos do lado.

Em Berlim, porquanto não fosse Berlim a cidade de onde iniciara sua viagem - subira por acaso, com uma maleta de couro vermelho, no expresso que ia partir. Dormira e, agora ao despertar, sentiu-se tão inteiramente fora do tempo que foi invadido por uma sensação de bem-estar.

Não tinha relógio. Dava-lhe prazer a idéia de que à correntinha de ouro, que trazia ao pescoço, estava preso apenas um pequeno medalhão que enfiava no bolso do colete. Não lhe aprazia saber as horas, ou o dia da semana; e nem mesmo possuía um calendário. Durante muito tempo se subtraíra ao habito de estar a par do dia, dos meses ou até do ano. "Tudo deve flutuar no ar", costumava pensar; e com essa frase, na verdade um pouco obscura, ele abrangia muitas coisas. Envolto na sua ignorância, era raramente incomodado. Raramente, ou melhor, nunca; pois se esforçava para conservar longe de si tudo quanto pudesse incomodá-lo. Não lhe bastava saber em que estação do ano estava? "Estamos no outono, imaginou, olhando, lá fora, a estação úmida e baça; mais não sei! Onde estarei eu?"

E, subitamente, a essa idéia, a sua satisfação se transformou em súbito horror. Não, não sabia onde se encontrava. Estaria ainda na Alemanha? Sem dúvida. Na Alemanha do norte? Quem sabia? Com olhos ainda anuviados pelo sono vira a janelinha do seu compartimento deslizar diante de uma tabuleta iluminada, na qual provavelmente estaria escrito o nome da estação; nem uma só das letras lhe chegara ao cérebro. Ainda entorpecido ouvira o guarda gritar duas ou três vezes um nome, mas não distinguira uma única sílaba. Mas ali, sob o crepúsculo, não sabia se vespertino ou matutino, ali se oferecia um lugar desconhecido, uma cidade ignorada. Albert van der Qualen tirou da rede o chapéu de feltro, apanhou a maleta de couro vermelho, que apertava nas correias uma manta de lã macia, de xadrez branco e vermelho, dentro da qual estava também enfiado um guarda-chuva de cabo de prata, e embora tivesse passagem para Florença, deixou o compartimento, atravessou a estaçãozinha, depositou a bagagem no lugar adequado, acendeu um charuto, meteu as mãos nos bolsos do casaco - não levava bengala, nem guarda-chuva - e afastou-se da estação.

Fora, na praça escura e úmida e quase vazia, cinco ou seis cocheiros faziam estalar o chicote; e um homem com boné de galões, que se agasalhava trêmulo, num longo capote, disse interrogativamente: "Hotel Galantuomo?" Van der Qualen agradeceu-lhe cortesmente e continuou a andar. As pessoas que encontrava haviam levantado a gola; fez o mesmo e, afundando o queixo no veludo, prosseguiu a passo normal, fumando.

Passou diante de um muro escorado por estacas, de uma velha porta com duas torres maciças, e atravessou uma ponte; no parapeito desta havia duas estátuas, embaixo a água corria, turva e lenta. Passou uma barcaça decrépita; na popa um homem remava com uma longa vara. Van der Qualen deteve-se um momento e inclinou-se sobre o parapeito, pensando: "Vejo um rio: o rio. É bom não saber-lhe o nome". E prosseguiu.

Caminhou ainda um momento pela calçada da rua, nem larga, nem estreita, depois virou à esquerda. Anoitecia. As lâmpadas de arco oscilaram, piscaram duas ou três vezes, irrequietas, acenderam-se, silvaram, cintilaram na névoa. As lojas iam se fechando. "Podemos dizer que estamos no outono, sob todos os pontos de vista", pensou van der Qualen, e continuou a caminhar pela calçada úmida e negra. Não tinha galochas mas suas botinas eram muito largas, sólidas, resistentes, e nem por isso destituídas de elegância.

Virou à esquerda, outra vez. Transeuntes passavam a seu lado, friorentos. "E eu caminho no meio deles - pensou van der Qualen, sozinho e desconhecido como provavelmente nenhum homem jamais se encontrou. Não tenho negócios e não tenho objetivo. Nem mesmo uma bengala em que me apoiar. Não há uma só pessoa que possa sentir-se mais entregue a si mesma, mais livre, mais desembaraçada. Ninguém me deve nada e não devo nada a ninguém. Deus não pôs sua mão na minha cabeça, não me conhece de maneira alguma. Ter sido sempre um desgraçado sem nunca ter mendigado é uma bela coisa; é possível dizer-se: não tenho dívidas para com Deus.

Chegara ao limite da cidade. Provavelmente ele a atravessara por dentro, em diagonal. Encontrava-se numa ampla estrada periférica, com árvores e palacetes; virou à direita, percorreu três ou quatro vielas, que pareciam ruas de aldeia, iluminadas por lampiões de gás e finalmente se deteve numa rua um pouco mais larga, junto a uma porta de madeira; ao lado havia uma casa pintada de amarelo sujo, uma casa de aspecto vulgar e que, contudo, se destacava das outras, pois os vidros das janelas eram de cristal, fortemente convexos e bem escuros. À porta estava fixado um cartaz com os dizeres: "Nesta casa se alugam quartos no terceiro andar". "Ah, sim?" Murmurou van der Qualen. Atirou fora o toco do charuto, entrou, ladeou um tabique que separava a propriedade da vizinha, transpôs, à esquerda, a porta da casa, atravessou com dois passos o vestíbulo onde um miserável cobertor pardo fora estendido à guisa de passadeira, e começou a subir a modesta escada de madeira.

Também as portas dos alojamentos eram despretensiosas, com vidros opalescentes protegidos por redes metálicas; de quando em vez havia um cartão com um nome. Os patamares eram iluminados por lâmpadas de petróleo. E no terceiro andar - o último antes das águas-furtadas - também havia portas à direita e à esquerda da escada: singelas portas escuras, que davam diretamente nos quartos; não se via nenhum nome. Van der Qualen puxou a campainha de latão, junto à porta do meio. A campainha retiniu mas não se ouviu o menor movimento no interior do cômodo. Bateu na porta, à esquerda; nenhuma resposta. Bateu na porta, à direita; ouviram-se leves passos arrastados e a porta abriu.

Era uma mulher, uma senhora alta e magra, idosa e esguia. Usava uma touca com um grande laço lilás pálido e um vestido preto, desbotado e fora de moda. Tinha um rosto escarnado de pássaro e via-se-lhe na testa um tumor, uma excrescência fungosa e repulsiva.

- Boa noite! Disse van der Qualen. Os quartos... A velha senhora assentiu; assentiu e sorriu lentamente, muda e compreensiva; e com uma bela mão longa e branca, com gesto vagaroso, fatigado e fidalgo, indicou com a fronte a porta à esquerda. Retirou-se em seguida e tornou a surgir com uma chave. "Bem!" Disse van der Qualen consigo mesmo, ao vê-la reaparecer, sois como um pesadelo, como uma gravura de Hoffmann, gentil senhora". Ela tirou do gancho a lâmpada de petróleo e mandou-o entrar.

Era um quarto pequeno e de pouca altura, com um soalho escuro; tinha as paredes revestidas de cima a baixo com esteiras cor de palha. A janela, no fundo, à direita, estava velada por uma cortina de musselina branca, que caía em longas e graciosas pregas. À direita, uma porta branca comunicava com o quarto contíguo.

A velha senhora abriu-a e suspendeu a lâmpada. O quarto era terrivelmente descorado: três cadeiras de vime, envernizadas de vermelho-claro, destacavam-se como morangos em nata batida contra as paredes brancas e nuas. Um armário, um lavatório com espelho... Uma cama, móvel maciço de mogno, ocupava o centro do quarto.

- Tem qualquer objeção a fazer? Indagou a velha senhora, com a bela mão longa e branca apalpou o tumor fungoso da testa. Parecia ter falado por engano, como se no momento não conseguisse encontrar uma expressão mais adequada. Acrescentou em seguida: "posso falar assim?"

- Não, nenhuma objecao, respondeu van der Qualen. O aluguel do quarto é bastante razoável. Fico com ele... Gostaria que alguém fosse retirar a minha bagagem da estação; aqui está o comprovante... Tenha a bondade de mandar arrumar a cama e a mesa de cabeceira... e de entregar-me a chave da casa e a do apartamento... e também de arranjar-me duas toalhas. Vou me arrumar um pouco, depois cearei no restaurante e voltarei mais tarde.

Tirou do bolso um estojo niquelado, apanhou o sabão e começou a esfregar o rosto e as mãos no lavatório. Através dos vidros acentuadamente recurvos avistava, lá embaixo, as lâmpadas de arco e os palacetes, além da estrada enlameada da periferia, imersa na luz de gás.

Enquanto enxugava as mãos, aproximou-se do armário: era um móvel quadrado, pintado de marrom, um pouco oscilante, com uma cimalha muito simples; e estava embutido no meio da parede, à direita bem no vão de uma segunda porta branca; esta deveria abrir-se para os quartos que, no patamar, davam acesso à porta principal, e para a do meio. Abriu-o. O armário estava vazio e mostrava várias fileiras de ganchos pendentes do forro; percebeu, porém, que aquele móvel maciço não tinha parede de fundo; era apenas tapado por um tecido cinzento, um pano rígido e grosseiro, preso nos quatro quantos por pregos.

Van der Qualen fechou o armário, apanhou o chapéu, levantou a gola do casaco, apagou a vela e saiu. Ao atravessar o quarto da frente pareceu-lhe distinguir, por entre o rumor de seus passos, um som que provinha do quarto contíguo; era um som metálico, límpido e leve; mas podia ser que se enganasse: "Tal como um anel de ouro que caísse num copo de prata", pensou, ao fechar a porta do seu apartamento; desceu a escada e reencontrou a estrada que levava à cidade.

Entrou num restaurante iluminado, numa rua movimentada, e sentou-se a uma mesa, na parte da frente, voltando as coisas a todos os que chegavam. Tomou uma sopa de repolho com torradas, comeu um bife com ovos, compota de fruta, vinho, um pedacinho de gorgonzola e meia pêra. Enquanto pagava a nota e vestia o casaco, aspirou algumas baforadas de um cigarro russo, depois acendeu um charuto e saiu. Andou um pouco ao acaso, depois encontrou a estrada que o levava à casa, na periferia, e por ela enveredou sem pressa.

A casa dos vidros de cristal estava imersa no silêncio e nas trevas quando van der Qualen abriu a porta e subiu as escadas escuras. Acendeu um fósforo e, ao chegar ao terceiro andar, abriu a porta escura, à esquerda, que dava entrada ao seu quarto.

Colocou o casaco e o chapéu sobre o divã, acendeu a lâmpada pousada sobre a grande escrivaninha e avistou a maleta, e a manta enrolada com o guarda-chuva. Desdobrou a manta e tirou de dentro uma garrafa de conhaque, depois apanhou um cálice na maleta e, enquanto acabava de fumar o charuto, recostado na poltrona, sorveu a bebida. "É bom que no mundo sempre haja conhaque", pensou. Depois se dirigiu ao dormitório, acendeu a lâmpada do outro quarto. Colocou na cadeira junto à cama, uma a uma, as peças do terno cinzento; enquanto desapertava o cinto, lembrou-se de que o casaco e o chapéu tinham ficado em vima do divã; foi buscá-los, abriu o armário... Deu um grande passo para trás, estendeu a mão para segurar uma das grandes bolas de mogno vermelho escuro que adornavam os quatro cantos da cama, às suas costas.

O quarto com suas esquálidas paredes brancas, com as cadeiras envernizadas de vermelho que ressaltavam como morangos na nata batida, estava imerso na luz bruxuleante da vela. E la no fundo, o armário, com a porta escancarada, não estava vazio; havia alguém lá dentro, uma criatura, um ser vivo, tão linda, que o coração de Alberto estacou durante um momento, e depois recomeçou a pulsar com batidas lentas, suaves e cheias. Ela estava toda nua e conservava erguido o braço delicado, segurando-se com o indicador a um dos ganchos fixados no armário. A onda dos longos cabelos escuros caía-lhe nos ombros; e aqueles ombros infantis tinham um fascínio a que só se consegue responder com um soluço; nos olhos negros, oblongos, refletia-se a luz das velas. A boca era um pouco grande, mas tinha uma expressão meiga, como os lábios do sono quando se pousam na nossa testa, depois de um dia de sofrimento. Conservava os calcanhares juntos e as pernas esbeltas estavam apertadas uma contra a outra.

Alberto van der Qualen passou pelos olhos e viu... viu também que o pano cinzento, no fundo do armário, estava despregado, no canto à direita.

- Como? Indagou ele, não quer entrar?... como direi... sair? Não aceita um cálice de conhaque? Meio cálice?... - Mas não esperava e não obteve resposta. Aqueles olhos estreitos, cintilantes, estavam fixos nos seus, mas com um olhar vago, incerto, vazio, como se não o visse.

- Quer que te conte? Perguntou-lhe de chofre, com voz velada e calma.

- Conta, respondeu ele. Sentou-se pesadamente na beira da cama, conservando sobre os joelhos o casaco, no qual pousava as mãos juntas. Tinha a boca entreaberta e os olhos entrefechados. Mas o sangue corria-lhe quente e suave nas artérias e seus ouvidos zumbiam ligeiramente.

Ela se sentara no armário e com os braços delicados cingia um joelho, que conservava soerguido, ao passo que a outra perna pendia para fora. Os pequenos seios estavam comprimidos pela parte superior do braço e a pela esticada do joelho rebrilhava. Ela contou... contou em voz baixa, enquanto a chama da vela executava danças mudas...

"Um casal passava na charneca e a cabeça da mulher descansava no ombro do homem. As ervas exalavam um perfume acre, mas do horizonte já subiam névoas turvas da noite". Foi esse o começo. E muitas vezes eram versos, que tinham rimas doces e alegres, como costuma acontecer na sonolência de certas noites de febre. Mas não acabou bem. O fim foi triste, como quando dois entes estão estreitamente abraçados e, enquanto seus lábios se tocam, um deles crava no peito do outro um grande punhal, e talvez tenha boas razoes para fazê-lo.

Foi assim que terminou. E depois se ergueu com um movimento calmo, impregnado de modéstia, suspendeu o pedaço de tecido cinzento que compunha a parede de fundo do armário e desapareceu.

Daí por diante todas as noites ele a encontrou dentro do armário e ouviu contar. Quantas noites? Quantos dias, semanas ou meses terá permanecido naquela casa, naquela cidade? Seria inútil dizer quantas. A quem importaria um miserável número? E sabemos que vários médicos tinham concedido a Alberto van der Qualen apenas alguns meses de vida.

Ela continuava a contar. E eram histórias tristes e desoladas; mas pesavam suavemente no coração e faziam-no pulsar mais devagar, beatificamente. Às vezes ele não conseguia conter-se. O sangue lhe fervia, estendia as mãos para ela, que não lhe oferecia resistência. Depois, porém, por muitas noites não mais a encontrou no armário; e quando voltou, por muitas noites não contou coisa alguma; recomeçou a fazê-lo devagar, até que outra vez ele não se conteve...

Quanto tempo durou isso? Quem poderá dizê-lo? E quem poderá dizer que Alberto van der Qualen realmente despertou aquela tarde e desceu naquela cidadezinha desconhecida, ou se permaneceu no seu compartimento de primeira classe, e foi levado a grande velocidade para longe, além das montanhas, no expresso Berlim-Roma? Qual de nós será capaz de dar uma resposta certa a essa pergunta e de sustentá-la sob palavra? O fato é, na verdade, incerto. "Tudo deve flutuar no ar..."

 

                   O conto do Preboste - A.J. Cronin

Era noite de São Silvestre - véspera da maior festa da Escócia - e no Clube Filosófico de Levenford compacta assistência se preparava para ver entrar o Ano Novo. Os sócios tratavam sem cerimônia os convidados e, abandonando todo e qualquer pensamento de profundos debates, consentiam em passar aquelas horas em afável conversa. Muitas canções tinham sido cantadas e muitas histórias narradas, intercalando-se palestras espontâneas, até que, lá pelo meio do serão, caiu uma pausa na sala ruidosa e clara. É que John Leckie tinha falado.

Leckie, que fora preboste do burgo durante mais de 30 anos, era agora um velho taciturno, de 80 anos, e só aparecia no clube em ocasiões solenes - a fim de honrá-lo com sua presença de sócio mais antigo. Sentava-se então no seu canto especial, permanecendo calado, insigne e aparentemente distante.

Não deixaria de falar, porém, no momento adequado. Agora, por exemplo, interrompendo uma conversa, maldizia a recente mudança de tempo em Levenford:

-Vocês estão discorrendo sobre o degelo. Pois bem, posso contar uma história sobre determinado degelo que sobreveio há muito tempo,

história essa que tinha e não tinha nada a ver com o tempo.

-Não há aqui esta noite gente que lembre de Marta Lang, porém no meu tempo nenhuma mulher nesta freguesia era mais conhecida. No finzinho do século passado ela possuía uma pequena tabacaria na esquina da R. da Igreja com a Azinhaga Dobbie.

Essa propriedade extinguiu-se quando alargaram a estrada a fim de estender os bondes mais pela cidade - isso coisa de vinte anos passados; mas de qualquer forma era onde Marta mantinha sua loja.

Alguns a chamavam "Marta Trigueira", outros "Marta da Bíblia", porém somente nas suas costas, pois frente a frente ninguém ousaria tomar liberdade com Marta Lang.

Não era corpulenta, muito pelo contrário. Tinha cabelos pretos bem puxados, deixando exposta a testa; trajava com muita simplicidade um vestido de sarja preta, podendo-se julgar que fosse uma mulher que jamais atraísse o olhar duas vezes.

Pois se parecia uma sombra na escuridão de sua loja, contudo, isso de trevas era coisa que não pairava em seu espírito. Havia em seu rosto estreito e pálido uma expressão que nos feria e atordoava - uma espécie de chispa amarga e dura que saía como fogo de seus olhos pretos e profundos. Certas pessoas tinham medo dela e outras a detestavam, estando no entanto de acordo quanto a tratar-se de mulher correta e às direitas.

Sua loja não era muito atraente. A janela era pequena com gelosias de vidro esverdeado, parecia demasiado baixa para conter a imagem dum brigue das Índias Orientais, que balouçava em cima dele e tudo quanto suportava eram 3 cofres dispostos em fileira solene. A porta dura rangia ao ser aberta.

Interior lôbrego. Parecia a loja de um boticário, com seu balcão, sua pequena balança de metal e sua fileira de jarras azuis e brancas; mas reinava certo silêncio severo, sendo local demasiado frio no inverno e sobremaneira quente no verão. Não era ponto para a gente se demorar, não.

Parede e meia com a loja era a cozinha da casa de Marta; dispunha duma janela que dava para a Azinhaga Dobbie, sem contar outra parede divisória, espécie de escotilha, digamos assim, deixando que da cozinha se observasse a loja e vice-versa.

No tempo a que me estou referindo, o marido de Marta jazia morto e enterrado havia quinze anos. Um tempão! Ela ficara com um filho, um menino chamado Geordie. Quando Marta enviuvou, a criança estava com três anos, de modo que teve de criá-lo. E olá se o criou! O termo "severo" não basta para qualificar o modo pelo qual ela o tratava. Jamais um lampejo de afeição humana cintilou naqueles olhos pretos. Para quantos se atreviam a censurá-la a tal respeito, Marta dispunha de resposta a calhar atirando-lhes nas fuças capítulos e versículos do Eclesiastes. Sim, era rude e ríspida com o filho, em tudo e por tudo.

La iam vivendo portanto Marta e seu filho, e ao tempo em que aconteceu a coisa medonha que vou contar, Geordie completara 18 anos. Era um rapaz robusto, de ombros largos, braços desenvoltos rematando em grandes mãos avermelhadas. E que rosto agradável e franco! Ainda assim, uma espécie de expressão simples e plácida se acomodara em seu rosto como se o viço lhe tivesse sido esfolado dali quando era criançola. Era aprendiz de maquinista e aprendia o ofício no estaleiro.

Ora, no inverno de 1895, uma geada brava caiu sobre a região. As estadas ficaram como ferro, a represa congelara, certas noites fazia -12oC, de manhã pairava uma camada de gelo no jarro e o mingau esfriava antes que a gente o tomasse.

Dois dias antes do Natal, achava-me por volta das 18h30min na loja de Marta quando Geordie apareceu vindo da cozinha. Logo que Marta deu com os olhos nele, tapou com estrépito o boião, e perguntou-lhe com aquele seu feitio ríspido:

- Onde vai?

- Pensei em dar um giro lá pela represa - respondeu ele com sua notória humildade. Balançava os patins, segurando-os na mão pelas correias.

- Já não saiu a noite passada? - retrucou ela - Não pode descobrir um trabalho mais proveitoso para entreter-se?

Geordie desculpou-se aludindo à vantagem de fazer exercício, mas durante todo o tempo ela o ouviu sem erguer o cenho. Por fim levantou de repente os olhos e foi como se a vista do filho a amainasse.

- Pois então trate de entrar antes que o relógio bata 9 horas - declarou em tom seco - E tome cuidado com a companhia...

Geordie demandou a rua e, como seu caminho coincidia com o meu, descemos juntos a estrada. Apesar do frio, a noite era excelente. Os lampiões na rua tinham círculos brancos em redor de seus globos, como cãs; a luz estava em seu primeiro quarto crescente e parecia encravada no alto veludo do céu como um broche; o tinido dos patins de Geordie - tinham sido do pai, imaginem vocês e só assim podia tê-los - produziam clangor agradável e nítido.

Gostava muito de patinar, vocês compreendem, e era mesmo um patinador exímio. A verdade é que ninguém o igualava. Na esquina do Rocio nos dissemos boa-noite; lá se foi ele para o gelo e eu rumei para casa, para junto da lareira.

Durante dois ou três dias não vi Geordie. O Natal passou e o inverno áspero. O povo dizia que isso não podia continuar; e enquanto conversava breves segundos na encruzilhada, batia com os pés no chão, asseverando que o gelo tinha que se quebrar sem demora como em outras geadas piores. Mas olá se durou! Durou encarniçado e rijo e no meado de semana mandaram comunicar de Darroch que a baía estava toda congelada, coisa que não acontecia desde 7 anos.

Ora, naquele mesmo dia estive na loja de Marta; aliás, mais cedo do que o habitual; lembro-me que a trombeta do quartel soara cinco horas e meia. Eu já me munira de minha dose de tabaco, já o guardara no bolso e pagara, estava apenas trocando dois dedos de prosa com Marta, não que sentisse prazer nisso, mas na minha qualidade de preboste convinha mais do que nunca me conservar resguardado de sua língua mordaz.

Ela estava atras do balcão e eu em pé, no canto extremo, quando de súbito a porta se escancarou e Geordie irrompeu. Quedou-se na escuridão relativa e estava tão preocupado com o que ia dizer que nem sequer me viu. Bradou logo:

- Mãe, a baía está gelada numa extensão que vai até a ilha Ardmurren.

- E que benefício advém disso para mim ou você?

Geordie baixou o olhar para as botas, aparvalhando-se. E retrucou:

- Vai haver corrida!

- Corrida! - repetiu ela de modo agudo, como se duvidasse dos próprios ouvidos. Largou o tricô e dirigiu ao filho um olhar sombrio. Mas Geordie prosseguiu:

- Pois não sabe, mãe? Corrida para disputar o troféu Winton. Estão à minha espera, para que eu participe. A senhora não se importa que eu tome parte?

Agora eu sabia o intento de Geordie: a corrida em cima do gelo, saindo de Markinch, contornando a ilha de Ardmunren e voltando ao início. Tratava-se de uma corrida histórica, facultada ao pessoal da região e instituída pelo conde de Winton há tempos... alguns afirmavam que se realizara pela primeira vez quando Rob Roy estava em pleno viço... O conde oferecera uma espécie de troféu como prêmio - uma cabeça esgalhada de veado montada sobre carvalho, no alto dum escudo de prata. Conquanto a corrida se realizasse raramente, o velho costume ainda se mantinha e alguns lhe davam grande apreço.

De qualquer forma eu podia ver que Marta desconfiava do que o filho queria dizer, pois o encarou de modo furioso e exclamou:

- Perdeu o juízo?

Geordie explicou:

- Mas me consideram o melhor da cidade, e será sábado o dia de São Silvestre, de maneira que não precisarei faltar ao serviço. Será... será uma honra.

- Honra, pois sim! - bradou Marta. - Negra desonra devia você dizer. Acaso ainda é um garoto que ignora o que significa isso? Um ponto de encontro para os ímpios das imediações. Brigas e bebedeiras entre homens corruptos e pecadores. E, acima de tudo, uma corrida com os empreiteiros da iniquidade, apostando estupidamente no vencedor! Preocupei-me com isso em meus tempos de jovem, antes da divina graça me bafejar.

Fez um esforço e acalmou-se.

- Não! Não! Não tomará parte em semelhante despautério, em plena luz à face de Deus!

- Mas mãe, não apostarei nem beberei uma gota - garantiu Geordie. - Tudo quanto desejo é apenas patinar representando a cidade.

- Acaso julga que pode pegar em piche sem se sujar? - refutou Marta.

O beiço de Geordie revirou para baixo como o duma criança. Ele resmungou:

- Por que vive assim a humilhar-me? Trata-me como um cão.

O rosto de Marta contraiu-se.

- Volte lá para dentro! - gritou, apontando a cozinha. - Não irá a nenhuma corrida! E cubra-o o ardente e negregado opróbrio já que se atreveu a erguer a voz contra sua mãe!

Ele volveu-lhe um olhar desalentado e, apesar de seu tamanho, baixou a cabeça e se retirou. Marta sorveu o ar por entre os dentes. Seu rosto estava lívido, conquanto algo triunfante, como a fisionomia duma mulher que castiga e extrai disso um amargo arroubo.

Ora, muito bem, continuou a semana assim como o frio. Na véspera de São Silvestre caíram alguns flocos de neve, desprendendo-se dum céu nublado. Gente profetizava um fim de ano velho com nevasca, porém a manhã do último dia rompeu clara e tudo quanto ficou da neve foi um resto que polvilhava cantos e fendas, feito açúcar. O sol surgiu, redondo e vermelho, como que envergonhado de ter permanecido tanto tempo ausente. E à medida que ia subindo no céu, se tornava mais brilhante e vigoroso.

Notem vocês que esse era o dia da corrida. Ainda que eu não tivesse grande interesse pelo caso, o dia estava tão vistoso que quando o corregedor Weir me convidou para seguir com ele até Markinch respondi que iria, sim. Saímos portanto após o jantar e chegamos cedo a Markinch. A única rua da aldeia - geralmente tão vazia que um cão poderia dormir no meio dela com a maior segurança - estava negra de gente, rindo e rumando em conjunto para a rija camada de gelo alvo que marginava a praia. Nas imediações da enseada congelada haviam colocado algumas tendas e a multidão apinhava-se em redor daquelas barracas, bastante animada, como se deve supor.

Quase duzentas pessoas estavam agrupadas sobre o gelo; uma assistência compacta, considerando-se bem, à qual não faltava gente de importância.

Quando se aproximou a hora da corrida, recrudesceu sobremodo a excitação geral. Às 3 horas os competidores saíram de sua tenda dirigindo-se para o espaço claro que formava o ponto de saída; eram 6 moços - os patinadores selecionados do distrito - e principiaram a patinar por ali, traçando círculos e dando curtos arremessos pela pista.

Devo dizer-lhes sem rebuços que quando os vi meus olhos quase caíram de minha cabeça, pois entre eles dei com Geordie. Por incrível que fosse, assim era. Geordie Lang estava lá! Percebia-se nele certo ar esquisito e nervoso, como se estivesse alegre e ao mesmo tempo triste por se encontrar ali. Já lhes disse que era um rapaz taludo porém plácido, e agora se notava nele um ar assustado e zonzo, como se não soubesse por nada deste mundo como viera parar em Markinch.

A verdade é que o corregedor e eu fomos até lá perto e falamos com Geordie.

Weir indagou:

- Então, como se sente a respeito, Geordie?

Eu não contara a Weir nada do que sabia, e além disso ele não era freguês de Marta.

- Sinto-me bem disposto, obrigado Sr. Weir - respondeu Geordie.

- Como é? Estão todos empolgados e em ordem? Dia melhor para isso não poderiam ter.

- Melhor ou não, tanto faz, pois não ganharei nunca - retrucou Geordie com o mesmo feitio descorçoado.

O corregedor riu e bateu nas costas de Geordie.

- Já é meia vitória você haver convencido sua mãe - ponderei - Receava que ela não o deixasse vir.

Geordie não deu resposta. Ouviu o que eu disse mas fingiu que não escutara. Notei rápido movimento em suas sobrancelhas ruivas. Compenetrei-me então de que ele se safara de suas engrenagens abalando para a corrida contra a vontade materna. E foi o que se deu, mesmo.

Enquanto isso, Weir continuava falando.

- Tome tento quando estiver contornando a ilha - aconselhou - Não faça curva muito larga senão perderá distancia, ouviu?

Nós 3 olhamos para Ardmurren, que se erguia qual negrejante outeiro na ampla planície erma. Distava 3 milhas, lá no meio da enseada, mas na claridade intensa se mostrava tão nítida que podíamos ver os racimos escarlates sobre os distantes azevinhos.

- E conserve-se sempre no meio - continuou o corregedor, gesticulando como se conhecesse tudo a respeito. - Assim disporá de gelo mais liso.

Geordie fez que sim com a cabeça, de modo indiferente, como a dizer: "Seja lá como for, agora estou metido nisso".

Mas o que disse foi:

- Empenhar-me-ei a fundo. É o máximo que posso fazer.

- Boa sorte então, rapaz - bradou Weir. - E como Geordie se afastasse, que haveria eu de dizer senão o mesmo?

Bem, a essa altura eles já se preparavam para a partida, todos 6 em linha, em seus lugares, marcados por palhas.

Dois dos outros patinadores eu conhecia de nome. O homem do meio - chamavam-no Big Callum - era um atleta que havia ganho medalhas em arremessos de mastro, o que não é pouco, nos Jogos de Luss, e parecia não estar sequer apreensivo. Junto dele estava Dewar, um rapagão reforçado que apertava o cinto e mascava tabaco a fim de retemperar-se. O outros 3 rapazes na extremidade da linha não inspiravam muita chance, mas pelos respectivos modos davam impressão de que iam tentar.

Afinal, ficaram prontos. Colquhoun, o guarda, que devia dar o sinal de largada, pôs a espingarda de caça no ombro e ergueu o rosto para o céu. A multidão reteve a respiração. Colquhoun berrou: - Estão prontos, rapazes?

Vi Geordie cerrar os dentes, entrelaçar as enormes mãos vermelhas e nisso, pum! a espingarda disparou. Os patins puseram-se a esmagar o gelo. O bando partiu.

A multidão deu em gritar. A partida foi boa e os 6 rapazes arremetiam pela pista em fileira. Arremetiam por sobre aquela vastidão, adejando qual bando de pássaros através dum mar de vidro; e o retinir de seus patins tinha tal zunido de asas que parecia uma assobio.

- Ótima, excelente partida! - exclamou alguém - Não há o que criticar.

De fato, nada ocorreu de anormal na primeira milha; depois, numa espécie de vantagem gradual, Callum principiou a destacar-se. Não era um patinador gracioso, mas tinha muito vigor e avançava mediante selvagens arremessos de suas pernas fortes.

Callum na frente! Distanciou-se 10 jardas! - bradava o guardião assistindo de binóculo.

- Dewar em segundo - bradou outra vez Colquhoun. - Os outros formam uma penca.

Assim continuaram durante outra milha. Depois aproximaram-se de Ardmurren, dirigindo-se para lá como um arco para um alvo. Estavam em longa coluna, agora, e os 6 zarparam, contornando a ilha. Uma espécie de suspiro, como um sopro de vento, irrompeu da multidão assim que os patinadores sumiram. Depois houve um brado de alento quando o primeiro homem reapareceu.

- Callum deu a volta primeiro! Callum vem na frente!

Ao meu lado Weir soerguia-se na ponta dos pés. Em seus bons tempos tinha sido um homem sangüíneo; pois bem, parecia púrpura agora. Gritou para mim:

- Reparou? Lang entrou bem na curva. Vem agora do lado de dentro, como aconselhei.

Distante, bem longe, Geordie - segundo pude ver - vinha em terceiro. A velocidade era demasiada para os restantes. Arrastavam-se atrás, a grande distância. Mas Geordie vinha bem, com fácil ímpeto de suas pernas esguias. Não havia dúvida que se tratava dum patinador gracioso, esplêndido,

Durante o tempo todo a multidão se manteve em alvoroço; mas eu, a bem dizer, não me sentia excitado. Pesava-me qualquer coisa; não podia explicar o que fosse nem como me sentia, mas sem dúvida era certo receio e alguma apreensão.

Lá vinham eles, cada vez se aproximando mais. Na metade do percurso se podia ver, mesmo a certa distância, que Callum estava cansando. Dewar dera em forçá-lo, rente aos seus calcanhares. Dewar e Callum irrompiam, quase paralelos. Depois Callum começou a fraquejar. A multidão mantinha-se em febre, metade gritando o nome de Callum, outra metade instigando Dewar, tão empolgada com ambos que se esqueceu de Geordie. Mas o corregedor estava atento em Lang.

- Olhe para ele, repare só! - bradou-me. - Está vindo!

E indubitavelmente Geordie encompridava suas já longas pernas e vinha como uma rajada de vento.

O pessoal de Levenford principiou a fazer grande escarcéu, vociferando:

- Geordie! Venha!

Claro que Geordie não podia escutá-los, mas lá vinha; e antes que se pudesse pestanejar, eis que ele passou tão depressa por entre Callum e Dewar que estes pareceram recuar distanciados dele que já estava a duas, cinco, dez mil jardas na frente. Sim, a uma milha de chegada ele se achava cerca de 20 jardas na dianteira.

- Geordie! Geordie Lang! - bramia a multidão, aplaudindo aos gritos e atirando os bonés para o ar.

Pois, conforme já lhes disse e é a pura verdade, no meio de todo aquele berreiro eu sentia uma opressão desagradável. E quanto maior a gritaria, pior o meu mal-estar. Não sei dizer se acaso se tratava da idéia de Marta ou da expressão esquisita no rosto de Geordie; mas, e invoco o testemunho de Deus, eu sentia medo que alguma coisa medonha pudesse acontecer. E aconteceu mesmo.

A meia milha da chegada, quando Geordie já se encontrava bem na dianteira dos outros, de repente e sem aviso sobreveio um estrondo capaz de paralisar o coração da gente, um ruído pavoroso, semelhante ao estouro do Juízo Final e que interrompeu o alarido como se o cortasse de chofre.

Só Deus sabe o número infinito de história a respeito da quebra de gelo e submersão de patinadores; mas esta difere de tudo mais como inferno difere do céu.

Vi com estes meus olhos e a recordação me dá calafrios. O gelo rompeu-se e Geordie intrometeu-se na fenda como uma pedra. Um segundo antes adejava como um pássaro... no segundo imediato era sorvido por um buraco hiante que despejava água escura como fluido canceroso. Os outros, que viam atrás dele, desviaram-se como coisas amalucadas. Apenas Geordie foi sorvido.

Tudo isso aconteceu um segundo antes que pudéssemos respirar. Subiu da multidão uma espécie de arquejo, depois um lamento e por fim um grito de horror. O rosto sangüíneo de Weir ficou branco feito um sudário.

-Deus Onipotente! - bradou Colquhoun; atirou para trás a espingarda e saiu a correr por cima do gelo. Estabeleceu-se certo pânico, houve grande disparada na praia, porém alguns dentre nós seguiram o guarda.

Oh! Foi um caso terrível, horrendo! Quando atingimos o local não havia sequer sinal de Geordie e ao tentarmos chegar rente à orla quebrada principiou tamanha crepitação que o desmoronar apavoraria o coração mais intrépido. Veio gente da aldeia com cordas e uma escada, porém não conseguíamos ver indício ao menos de Geordie. Então Callum, que participara da corrida, arrancou fora os patins. Conhecia muito bem Geordie e estava desesperado de aflição. Exclamava:

- Hei de tirá-lo! Hei de tirá-lo!

Eis que amarraram uma corda em redor de Callum, após o que ele resvalou escada abaixo e se meteu pela água gelada adentro. Foi a coisa mais corajosa que já vi. Desceu uma, duas, três vezes. E na última, ao subir com o rosto lívido, rilhando os dentes, os cabelos empastados sobre a fronte, vinha com Geordie nos braços.

Jamais vocês ouviram um clamor como o que se ergueu então. E o mais angustiante foi ser um brado inútil. Geordie estava morto. Tentamos uma porção de recursos quando o estendemos no dique. Todas as coisas possíveis durante uma hora; porém tudo foi em vão. Ele deve ter triturado a cabeça contra o bloco de gelo na praia da enseada. Foi um negócio medonho e houve terrível lufa-lufa. Este dizia uma coisa, aquele propunha outra. Levantou-se uma celeuma contra Colquhoun que se responsabilizara pelos preparativos e arranjos e divulgara que a corrida era viável. O guarda ficou aflitíssimo e não cessava de jurar diante de mim, que naquela manhã mesmo tinha ido duas vezes até Ardmurren. Verdade, sim! Mas não pensou em rodear a ilha e voltar pelo meio, onde o gelo era mais tênue, compreendem? E o calor do sol dera cabo dele.

Ora, o que sucedeu sucedeu, não havia remédio. Muito menos havia tempo e lugar para lançar apodos. E eu, na qualidade de preboste, tinha direito de opinar. Reduzi-os ao silêncio, e a conclusão do que colocasse o corpo do pobre Geordie numa carroça da herdade, cobrindo-o com a devida consideração. Depois, com o cabriolé de Weir na frente, iniciamos o regresso a Levenford.

Santo Deus! Imaginem nosso percurso sacolejante à luz do sol, e se compenetrarão de quanto foi exaustivo e molesto o nosso trabalho. Eu e o corregedor não trocamos uma única palavra durante o trajeto de volta. Pois claro: tínhamos que pensar agora em Marta, e no que ela iria dizer-nos. Não que eu temesse seu sofrimento. Não. Hoje já sou homem idoso, e posso falar franco. Temia era a negregada mordacidade de sua língua.

Quando nos aproximamos de Levenford, o céu estava nublado e uma chuva miúda nos atacou. Devem vocês calcular que minha missão não era do meu agrado, absolutamente; de modo que quando entramos na Rua da Igreja, meus olhos saltaram quando vi o pároco caminhando devagar pelas lajes. Era exatamente a hora habitual em que nos sábados ele se dirigia à tabacaria de Marta. Chamei-o alto assim que o vi, fazendo-o parar.

O pároco era um homenzinho de óculos, meio corcunda, sempre às voltas com seus livros, porém excelente criatura apesar de tudo, tanto no púlpito como fora dele. Não sabia tergiversar e logo viu ser do seu dever acompanhar-nos até a casa de Marta.

Ora, não sei fingir aquilo que não sou. Estava acabrunhadíssimo com o que havia visto na praia e não tinha estômago para aturar mais. Quando o pároco e eu entramos na botica, meu coração batia martelando minhas costelas.

Marta achava-se lá dentro, em pé atrás do balcão, à espera do filho que lhe desobedecera. Podia-se ver pela expressão de seu olhar que estava disposta a castigá-lo... não com relhos, mas com escorpiões. Vendo-nos juntos, desconfiou em sua cachola que viéramos implorar a respeito de Geordie. Bradou logo:

- Não adianta, ministro. Inútil vir rogar-me que o perdoe. Ele próprio traçou seu destino.

Percorreu-me um calafrio ao ouvir tais palavras.,

- Marta, ouça, mulher - disse o ministro com voz plácida. - Deve perdoar seu filho.

- Não o perdôo enquanto ele não se ajoelhar... enquanto não implorar meu perdão. - Seus olhos fitaram-no, dardejando. Mas o ministro não vacilou.

- Concito-a a perdoar seu filho - insistiu ele - Ou trata de fazer isso já ou se arrependerá pelo resto de seus dias.

Um repelão contraiu o rosto de Marta, que retrucou com veemência:

- Só depois de havê-lo castigado.

- Puni-lo é que noa fará - declarou o ministro com voz acabrunhada - ... pois está tudo acabado.

E em seguida contou o que havia sucedido.

Houve uma espécie de constrição no queixo de Marta, que ainda assim disse alto:

- Não acredito. Está mentindo para assustar-me e livrá-lo. Hei de punir meu filho.

Mal estas palavras lhe saíram da boca, a porta se abriu. Os homens haviam chegado com a carroça e, ante a multidão que se juntara ali, ante a chuva e tantas outras coisas, acharam preferível largar lá dentro, sem demora, a carga que traziam.

Quando entraram, cambaleando um pouco, pois o peso era muito e o chão desigual, fiquei como se estivesse fulminado, sem conseguir tirar os olhos de cima de Marta. Num vislumbre ela vira tudo. Seu rosto estava como pedra, seus olhos pareciam feridas no meio daquela estranha lividez e sua expressão era a de uma mulher atônita. Não se moveu, absolutamente. Mesmo quando passaram por ela em direção à cozinha, Marta permaneceu rígida, de cenho preso na parece como se lutasse com a própria respiração. Eles estavam tentando levar o pobre Geordie para o quarto em cima, porém não conseguiam subir direito a escada. Foi então que ela de repente abriu os lábios, dizendo em voz alta e apontando para o sofá da cozinha:

- Deponham-no ali.

Colocaram-no onde ela ordenou.

- Agora deixem-me sozinha - exclamou com uma voz apavorante.

Deus do Céu! Afirmo-lhes que bem aliviado me senti em zarpar dali. O ministro foi o último a deixar a loja. Ficou parado durante algum tempo, a olhar para ela, ergueu o braço, depois o deixou cair, fez menção de falar mas permaneceu calado; finalmente saiu para a chuva.

Quem viu aquele São Silvestre em Levenford não o esquecerá. Pessoas andavam pelas ruas como se estivessem na igreja e falavam sussurrando. E quando passavam pela loja da rua da Igreja, não se atreviam a falar, absolutamente.

No Clube, aquela noite, éramos pouquíssimos. Conforme vocês sabem, sempre foi hábito entre os sócios assistir a entrada do Ano Novo de maneira pomposa, como estamos fazendo esta noite. Por uma vez tal costume se interrompeu. O mesmo ocorreu na cidade. Quando o relógio bateu as doze pancadas, expulsando o Ano Velho, recebendo o Ano Novo, não se viu outro único som. Nem de sinos, nem de trombetas, nem de coro na Encruzilhada... Apenas um silêncio mortal. E quando a última badalada se extinguiu, todos nós pusemos nossos capotões de três palas e fomos para casa.

Quanta umidade, tristeza e escuridão! Era um degelo interminável; enquanto íamos aos pulos ao longo da rua empoçada, ouvíamos o gotejar da água dos beirais e o escorrer da chuva como lágrimas ao longo das vidraças.

Éramos 4 ou 5, todos seguindo a mesma estrada e quando passamos pela esquina da Azinhaga Dobbie, vimos estreita barra de luz emergindo da escuridão. Não era uma luz clara e tépida que pudesse vir duma casa alegre e plácida; era uma luz pálida e frouxa. Sabermos que ela emanava da cozinha de Marta, tornava-a mais assustadora.

Estava conosco John Grierson, homem que não se deixava facilmente assustar, e ainda por cima um tanto sarcástico. Por escandaloso que parecesse, não houve quem o contivesse de ir até a janela dar uma espiada para saber o que se passava lá dentro. Assim, pois, muito a contragosto, o seguimos pela azinhaga abaixo e espreitamos aquela misteriosa janela.

Bem, o que vimos jamais vocês acreditarão, mas pelos Evangelhos, juro que é verdade. A peça estava imersa em sombras, mas a frouxa luz duma vela nos permitia ver Marta Lang andando dum lado para outro, feito criatura demente. Sim, era ela, embora fiando-me pelo hábito, não devesse reconhecê-la então: tinha uma expressão desvalida, como se houvesse caído em si mesma, e seus cabelos haviam tomado cor da neve em flocos. Retorcia as mãos como se estivesse lutando com alguma coisa e durante o tempo todo dizia entre lamentos o nome de seu filho Geordie.

A Bíblia estava aberta em cima da mesa da cozinha, e uma ou duas vezes ela fez menção de apanhá-la para ler. Mas não podia. Não podia, não!

Geordie! Geordie! - não cessava de exclamar alto. Até que se repente se voltou e se jogou de joelhos junto ao catre baixo. Passou um braço em redor do pescoço do filho morto, de maneira que a cabeça dele revirou e pendeu como a cabeça duma criança sobre o peito murcho da mãe; e com a outra mão, principiou a acariciar-lhe a face fria e rija e a alisar-lhe os cabelos.

O rosto do defunto, batido pela luz da vela, olhava para cima com um esgar de fantasma que horrorizaria vocês. Marta, sim, Marta Trigueira, começou a embalar-se para frente e para trás sobre os joelhos, desesperada de aflição.

- Geordie! Geordie! - bradava em tom desesperado - Jamais vim a saber, como sei agora, quanto o amava, meu filho! Mas amei-o sempre, sempre.

E não parava mais.

Nenhum de nós mexeu mão ou pé. Arraigados ali no chão estávamos, tamanho medo e dó. Por entre o gotejar da chuva vinha aquele som esquisito e oscilante que nunca esquecerei enquanto for vivo. Ahn! Era o tétrico arfar dos soluços de Marta.

 

                   O Diabo e o Relojoeiro - Daniel Defoe

Vivia na paróquia de S. Bennet Fynk, perto da Bolsa Real, uma viúva pobre e honesta, a qual, tendo perdido o marido, aceitou inquilinos em sua casa, isto é, alugou algumas peças desta a fim de reduzir a despesa do aluguel. Entre outras, cedeu a água-furtada a um fabricante de maquinarias de relógio, ou que fazia peças do gênero, e, segundo o hábito da época, trabalhava para as relojoarias.

Certo dia, um homem e uma mulher subiram para falar com o relojoeiro sobre alguma coisa relacionada a sua profissão. Chegando perto da escada, e vendo a porta inteiramente aberta, conseguiram enxergar o pobre infeliz (o fazedor de relógios ou de seus mecanismos) enforcado numa viga que saía da parede, um pouco abaixo do teto. Surpreendida com o espetáculo, a mulher parou e gritou para o homem que a seguia pela escada para que corresse e cortasse a corda do infeliz.

Naquele momento, de um canto do quarto, que da escada não era possível ver, corre outro homem, trazendo na mão um banco dobradiço, como quem vinha com muita pressa, e coloca-o no chão debaixo do pobre enforcado, e, apressado sempre, sobe ao banco, tira do bolso uma faca e, segurando a corda com uma das mãos, acena com a cabeça para o casal que se achava na porta, como para dizer-lhes que parassem, que não subissem, e mostra-lhes a faca na outra mão, como se estivesse a ponto de cortar a corda do enforcado.

Nisso a mulher estacou, mas o homem que estava no banco dobradiço continuava a remexer na corda com a mão e com a faca, como procurando o nó, mas sem dar o corte. Então a mulher gritou outra vez, e o homem que vinha atrás dela falou:

- Vamos subir - disse ele - supondo que havia algum obstáculo - e ajudar o homem que está no banco.

Mas o homem que estava no banco fez-lhe de novo sinais para ficarem quietos e não subirem, como a dizer: - Faço isso num instante. Deu dois cortes com a faca como se cortasse a corda e parou outra vez. Entretanto, o pobre continuava enforcado e, consequentemente, morrendo. Nisso a mulher pergunta:

- Que há? Por que não corta a corda duma vez?

E o homem que estava atrás dela, esgotada a paciência, empurrou-a para o lado e disse-lhe:

- Deixe que resolvo isso!

E sobe correndo e invade o quarto.

Mas, quando ali chegou, vejam, o mísero lá estava enforcado, porem não se via nenhum homem com faca, nem banco dobradiço, nem outra coisa qualquer. Tudo isso não passara de espectro e ilusão, destinados, sem dúvida, a deixar perecer e expirar o pobre infeliz que se tinha enforcado.

O homem ficou tão surpreso e aterrado que, não obstante a coragem de que dera mostra, caiu no chão como morto. E a mulher viu-se na obrigação de cortar a corda ao enforcado com uma tesoura, só o conseguindo com grande esforço.

Como não tenho motivo para duvidar da veracidade desta história, que soube por pessoas em cuja honestidade posso confiar, penso que não nos será nada difícil saber quem podia ser o homem do banco: era o Diabo, que lá se pusera a fim de acabar o assassínio do homem, a quem, na sua condição de Diabo, havia tentado e levado a ser o carrasco de si mesmo. O fato, aliás, corresponde tão bem a natureza do Diabo e ao seu ofício, o de assassino, que nunca o pus em dúvida. Nem me parece injustiça com o Diabo acusá-lo desse crime.

 

                   O Guardanapo dos poetas - Guillaume Apollinaire

Situado no limite da vida, nos confins da arte, Justin Prérogue era pintor. Uma amiga vivia com ele e poetas o visitavam. Cada um, por sua vez, jantava no atelier, onde o destino colocara, no teto, percevejos, à guisa de estrelas.

Havia quatro convivas que nunca se encontravam na mesa.

David Picard vinha de Sancerre; descendia de uma família judaica cristianizada, como há tantas na cidade.

Léonard Delaisse, tuberculoso, escarrava sua vida de inspirado com uma expressao que era para se morrer de rir.

George Ostreole, os olhos inquietos, meditava, como outrora Hércules, entre as entidades do beco.

Jaime Saint-Félix sabia muitas histórias; sua cabeça era capaz de fazer a volta dos ombros, como se o pescoço fora parafusado no corpo.

E seus versos eram admiráveis.

As refeições não acabavam mais e o mesmo guardanapo servia, um por um, aos quatro poetas, mas, sobre isso, nada se lhes dizia.

O guardanapo, pouco a pouco, foi ficando sujo.

Eis o amarelo de ovo junto a um rastilho sombrio de espinafre. Sta é a curva de uma boca avinhada e estas cinco marcas cinzentas foram deixadas pelos dedos de uma mão em repouso. Uma espinha de peixe rasgou o tecido como se fosse uma lança. Um grão de arroz secou, colado, num ângulo. E a cinza de cigarro escurece certas pares mais que outras.

 

David olha o teu guardanapo - dizia a amiga de Justin. - é preciso comprar guardanapos - dizia Justin - Pensa nisso, quando recebermos.

- O teu guardanapo está sujo, David - dizia a amiga de Justin. - Eu o mudarei da próxima vez. A lavadeira não apareceu esta semana.

- Leonard, olha o teu guardanapo - dizia a amiga de Justin. - Podes escarrar no caixão de carvão. Como o teu guardanapo está sujo! Eu o mudarei logo que a lavadeira trouxer a roupa.

- Leonard, quero fazer o teu retrato escarrando - dizia Justin. - Gostaria até de fazer uma escultura.

 

- George, tenho vergonha de te dar sempre o mesmo guardanapo - dizia a amiga de Justin. - Não sei que fim levou a lavadeira, que não há jeito de me trazer a roupa.

- Jaime Saint-Félix, sou obrigada a te dar ainda o mesmo guardanapo. Não tenho outro hoje - dizia a amiga de Justin.

E o pintor fazia rodar a cabeça do poeta durante todo o jantar, escutando muitas histórias.

 

Passaram-se as estações.

Os poetas se serviam, um por um, do guardanapo e seus poemas eram admiráveis.

Léonard escarrava sua vida mais comicamente ainda e David Picard começou também a escarras.

O guardanapo venenoso infectou um a um; depois de David, George e Jaime, mas eles não o sabiam.

Semelhante a um trapo ignóbil de hospital, o guardanapo se manchava do sangue que vinha aos lábios dos poetas, e os jantares não terminavam.

 

Na entrada do outono, Léonard escarrou o resto de sua vida.

Em diferentes hospitais, sacudidos pela tosse, como mulheres excitadas pela voluptuosidade, os outros poetas morreram, com poucos dias de intervalo um do outro. E os quatro deixaram poemas tão belos que pareciam encantados.

Atribuíram as mortes, não à alimentação, mas à fome excessiva e às vigílias líricas. Pois, poderia verdadeiramente, um único guardanapo matar em tão pouco tmpo quatro poetas incomparáveis?

 

Mortos os convivas, o guardanapo tornou-se inútil.

A amiga de Justin quis guardá-lo na cesta de roupa suja.

Dobrara-o pensando: - Está mesmo muito sujo e começa a ter um cheiro ruim.

Mas, o guardanapo desdobrado, a amiga de Justin surpreendeu-se e chamou o amigo, que se maravilhou:

- É um verdadeiro milagre! Este guardanapo, tão sujo, que se exibe com tanta complacência, apresenta, graças à sujeira coagulada e às diversas cores, os traços de nosso amigo que morreu, David Picard.

- Não é? - murmurou a amiga de Justin.

Ambos em silêncio, examinaram por alguns instantes a imagem miraculosa e depois, docemente, viraram o guardanapo.

Mas imediatamente empalideceram, vendo aparecer o espantoso aspecto de morrer de rir de Léonard Delaisse, esforçando-se por escarras.

E os quatro cantos do guardanapo ofereceram o mesmo prodígio.

Justin e sua amiga viram George Ostreole indeciso e Jaime Saint-Félix a ponto de contar uma história.

- Largue o guardanapo - disse, bruscamente, Justin Prérogue.

O pano caiu e desdobrou-se no chão.

Justin e sua amiga circularam muito tempo ao redor do guardanapo como astros em torno de seu sol e esta Santa Verônica, com seu quádruplo olhar, incitava-os a fugir, além dos limites da arte, até os confins da vida.

 

                   O Jejuador - Franz Kafka

O interesse pelos jejuadores profissionais decresceu sensivelmente nos últimos decênios. Antes, convinha aos empresários organizar tais espetáculos, mas atualmente isto se tornou quase impossível. Vivemos num mundo diferente. Houve época em que a cidade inteira sentia viva curiosidade pelo artista da fome, aumentando a excitação à medida que o jejum se prolongava, querendo todos vê-lo ao menos uma vez por dia. Havia mesmo pessoas que compravam bilhetes para os últimos espetáculos, sentando-se desde manhã até a noite diante das grades da jaula. As exibições noturnas eram realçadas por archotes e, quando a temperatura era amena, levavam a jaula para o ar livre, sendo o jejuador mostrado às crianças como divertimento especial. Os adultos, muitas vezes consideravam aquilo pilhéria, aceita por estar em moda, mas as crianças ficavam boquiabertas, de mãos dadas para se sentirem mais seguras, maravilhando-se ante o homem pálido, de costelas salientes, que vestia justas calças negras e não tinha sequer uma cadeira, sentando-se na palha espalhada no chão. Às vezes ele inclinava a cabeça cortesmente, ou respondia com um sorriso constrangido às perguntas que lhe eram feitas, estendendo de vez o braço através das grades, para que verificassem como estava magro. Recolhia-se depois ao seu mutismo, não prestando atenção a nada nem a ninguém, nem mesmo ao relógio para ele tão importante e que era a única peça de mobília na jaula. Ficava a olhar o vazio, de pálpebras semicerradas, de vez em quando alcançando um pequeno copo d'água e tomando um golezinho para umedecer os lábios.

Além dos espectadores comuns, havia permanentemente vigias escolhidos pelo público, que se revezavam. Por estranho que pareça, em geral eram açougueiros, em grupos de três, que tinham por obrigação observar o jejuador dia e noite, para evitar que ingerisse disfarçadamente algum alimento. Mera formalidade, instituída para tranqüilizar o povo, pois os iniciados sabiam perfeitamente bem que, fossem quais fossem as circunstâncias, nem mesmo a força o artista se resolveria a quebrar o jejum, durante a prova. A honra da profissão o impedia. Nem todos os espectadores, naturalmente, eram capazes desta compreensão. Freqüentemente havia grupos de vigilantes noturnos que relaxavam o cumprimento do dever, retirando-se para um canto, onde se deixavam empolgar por um jogo de cartas, com a evidente intenção de dar ao jejuador ensejo de tomar alimento, que eles supunham existir em algum esconderijo. Nada aborrecia mais o artista que semelhantes vigias. Faziam-no sentir-se infeliz e tornavam a abstinência insuportável. Às vezes conseguia dominar suficientemente a fraqueza para cantar, o mais que lhe era possível, tentando provar a injustiça de tais suposições. Isto de nada adiantava, pois os homens apenas admiravam a habilidade que lhe permitia comer enquanto cantava. Apreciava mais os guardas que se sentavam perto das grades e que, não se contentando com a parca iluminação do local, lançavam sobre ele o clarão direto das lanternas elétricas que o empresário pusera à sua disposição. A luz dura não o incomodava.

De qualquer maneira, não podia mesmo dormir, mas conseguia cochilar, sob qualquer luz, fosse qual fosse a hora, mesmo quando a sala se achava repleta de espectadores ruidosos. Ficava satisfeito por poder passar uma noite insone em companhia de tais vigias, estando sempre disposto a pilheriar com eles, contendo-lhe histórias de sua vida nômade, qualquer coisa que os conservasse acordados para demonstrar que não tinha comida na jaula e era capaz de uma abstinência que nenhum deles suportaria. Mas o momento mais feliz era quando chegava a manhã e vinham servir aos guardas, a suas expensas, um farto desjejum, ao qual eles se atiravam com feroz apetite de homens robustos, após cansativa noite de vigília. Naturalmente havia quem alegasse ser tal refeição uma desleal tentativa de suborno, mas isso era ir longe demais. Quando essas pessoas eram convidadas a participar de uma noite de guarda, apenas por amor a arte, sem a expectativa do café da manhã esquivavam-se, embora continuassem teimosamente a manter suas dúvidas.

Tais suspeitas, no entanto, eram inevitáveis na profissão. Impossível, naturalmente, ficar uma pessoa e observá-lo continuamente, dia e noite, e ninguém poderia garantir, por experiência própria, que o jejum fora rigoroso e ininterrupto. Somente o artista sabia disso, sendo, portanto, o único realmente convicto. Mas, por outros motivos, nunca estava verdadeiramente satisfeito. Talvez não fosse apenas o jejum que o tivesse reduzido àquele estado de magreza que fazia com que muitas pessoas se afastassem, embora a contragosto, por não poderem suportar o espetáculo. A insatisfação para consigo mesmo talvez fosse a verdadeira causa de seu depauperamento. Só ele sabia o que não era dado a saber nem mesmo a outros iniciados: como era fácil jejuar. A coisa mais fácil do mundo. Não fazia segredo disto, mas o povo não lhe dava crédito. Quando muito, consideravam-no modesto, mas a maioria achava que ele estava querendo fazer publicidade, ou, então, que se tratava de um trapaceiro que descobrira meio de tornar fácil o jejum e cinicamente o confessava.

Ele vira-se obrigado a aceitar tal reação e, com o tempo, a ela se habituara, mas a íntima satisfação persistia e nunca, justiça seja feita, deixara a jaula por espontânea vontade, quando chegava o término da prova. O prazo máximo fora fixado em quarenta dias pelo empresário, que não lhe permitia ir além, nem mesmo nas grandes cidades. Havia boas razões para isso. A experiência demonstrara que, durante 40 dias, a curiosidade do público podia ser mantida pela pressão de anúncios, mas depois disso o povo começa a se desinteressar, diminuindo o numero de simpatizantes. Isto variava, naturalmente, de uma cidade a outra, entre este ou aquele país, mas em geral 40 dias era o limite.

Assim, no 40o dia abria-se a porta da jaula engrinaldada de flores. Entusiásticos espectadores enchiam o local, entravam na jaula, para verificar o resultado da prova, que era anunciado por meio de alto-falante. Finalmente apareciam duas moças, felizes por terem sido escolhidas para tal honraria. Iam ajudar o artista a descer os poucos degraus que levavam à mesa onde se achava a refeição cuidadosamente preparada para um homem em suas condições físicas. Neste momento, o jejuador sempre se mostrava obstinado. Verdade que entregava os braços descarnados às duas moças que sobre ele se inclinavam para auxiliá-lo, mas não queria saber de levantar. Por que interromper o jejum especialmente neste instante, após 40 dias? Agüentara por muito tempo.: por que desistir agora, quando se achava em plena forma, ou, para ser exato, ainda não estava em sua melhor forma? Por que negar-lhe a fama que teria, se continuasse, a glória de ser, não apenas o recordista da fama de todos os tempos (o que talvez já fosse) mas a de sobrepujar seu próprio feito, com uma demonstração que ninguém julgaria possível? Ele sabia não haver limite para sua resistência. Já que o público parecia admirá-lo tanto, por que não se mostrava mais paciente? Se ele podia suportar uma abstinência prolongada, por que não agüentavam eles o espetáculo? Além do mais, estava cansado, achava-se sentado confortavelmente sobre a palha, e agora lhe viam exigir que se levantasse para comer! Só de pensar nisto sentia náusea e somente a presença das moças o impedia de manifestá-la e, assim mesmo, com esforço. Fitou-as, aparentemente tão amigas, mas na realidade cruéis; e sacudiu a cabeça que lhe pesava no pescoço enfraquecido. Aconteceu então, o que sempre acontecia. O empresário adiantou-se sem dizer palavra - a banda impossibilitava qualquer espécie de discurso - ergueu os braços acima do artista, como que a convidar o céu a olhar para aquela pobre criatura ali na palha, mártir que em verdade era, embora noutro sentido. Com exageradas precauções, agarrou-lhe a cintura emaciada, para que pudessem apreciar devidamente a sua frágil condição, e entregou-o as moças, muito pálidas, dando-lhes disfarçadamente uma sacudidela que fez vacilarem suas pernas trôpegas. O artista submeteu-se agora totalmente, a cabeça tombada sobre o peito, como se ali tivesse ido parar por acaso. O corpo foi puxado para fora, os joelhos tentavam firmar-se um no outro, no instinto de conservação, as pernas se arrastavam como se ele não pisasse terreno firme e, apesar disso, o procurasse. Leve como pluma, tentou apoiar-se a uma das moças. Ofegante, ela olhou à volta em busca de socorro, parecendo achar que o posto de honra não correspondia à expectativa, e espichou o pescoço o mais que pôde para livrá-lo do contato desagradável. Vendo que era impossível e que sua mais feliz companheira não lhe vinha em auxílio, limitando-se a segurar na mão trêmula o feixe de ossos que era a mão do artista, rompeu em pranto, com grande gozo dos espectadores. Teve que ser substituída por um funcionário, que ali se achava de prontidão. Chegou a hora da comida e o empresário conseguiu enfiar alguma coisa por entre os lábios de seu protegido, que parecia a ponto de desmaiar. Falava ao mesmo tempo, alegremente, para que ninguém notasse o estado do jejuador. Depois, foi feito ao público um brinde, aparentemente instigado por um murmúrio do artista ao ouvido do empresário. A banda confirmou-o com um vigoroso rufar de tambores e o povo foi-se dissolvendo, parecendo todos satisfeitos com o que tinham visto, com exceção do homem que se exibira, que nunca se sentia satisfeito.

Assim viveu muitos anos, com pequenos intervalos de recuperação, em plena glória, admirado pelo mundo, mas apesar disto infeliz, tanto mais que ninguém parecia levar a sério seu desgosto. Que palavras de conforto precisaria ele ouvir? Que mais poderia desejar? Quando uma pessoa de boa vontade, dele se apiedando, tentava consolá-lo, dizendo que o jejum devia ser a causa de sua tristeza, acontecia ver-se ele tomado de cólera, principalmente quando a prova já ia adiantada. Com alarme geral, punha-se a sacudir as grades da jaula, tal animal selvagem. Mas o empresário tinha meios de pôr cobro a essas explosões, com as quais o artista gostava de se exibir. Desculpava-se publicamente por tal procedimento. Devia ser relevado, dizia ele, por causa da irritabilidade provocada pela abstinência, que pessoas bem alimentadas não estavam em condições de compreender. Depois, numa transição natural, mencionava a também incompreensível jactância do homem que se dizia capaz de jejuar por prazo maior ainda, elogiava-lhe a ambição, a boa vontade, o espírito de sacrifício implícitos em semelhante declaração. Dava em seguida o contragolpe, trazendo os fotógrafos que iriam vender ao público retratos onde se veria o jejuador, no quadragésimo dia, caído na palha, quase morto de exaustão. Essa distorção da verdade, embora conhecida do artista, tirava-lhe a coragem, deixando-o mais abatido ainda. Aquilo que era apenas conseqüência do precoce término do jejum era apresentado como causa! Impossível lutar contra a geral incompreensão. Inúmeras vezes, com o máximo da boa vontade, ficava perto das grades, ouvindo palavras do empresário, mas, assim que chegavam os fotógrafos, caía de novo na palha, com um gemido, e o público, tranqüilizado, podia de novo aproximar-se para contemplá-lo.

Anos mais tarde, quando testemunhas de tais cenas as relembravam, não podiam às vezes compreendê-las. É que, neste meio-tempo, o interesse por essas exibições esmorecera, tendo acontecido quase que da noite para o dia. Talvez houvesse razões profundas para o fato, mas quem iria se preocupar em analisá-las? De qualquer maneira, o mimado artista da fome viu-se um belo dia abandonado pelas pessoas ávidas de divertimento, que iam agora em busca de espetáculos mais atraentes. Num derradeiro esforço, o empresário correu com ele metade da Europa, a ver se a antiga simpatia poderia ser reavivada. Em vão. Em toda a parte, como que por secreto acordo, havia positiva repulsa pelos jejuadores profissionais. Naturalmente isto não poderia ter surgido assim tão de repente. Muitos dos sintomas ominosos, aos quais eles não tinham dado suficiente atenção, ou que haviam mesmo sido ignorados na embriaguez do triunfo, voltavam agora à memória, embora fosse tarde demais. O interesse pelos jejuadores certamente teria o seu recrudescimento, um dia, mas isto não era consolo para os que atualmente viviam. Que poderia então fazer o artista da fome? Fora aplaudido por milhares de pessoas e não queria agora conformar-se com exibições em barracas de feira, nas aldeias. Quanto a adotar outra profissão, não somente estava muito velho, como era fanático pela sua. Assim, despediu-se do empresário, companheiro de uma carreira inigualável, e firmou contrato com um grande circo. Para não ferir a própria susceptibilidade, evitou ler-lhe as cláusulas.

Um circo importante, que está continuamente contratando e substituindo homens, animais e aparelhamento, sempre pode utilizar um artista, até mesmo um jejuador, contanto que não exija muito. No caso presente, não estavam os diretores interessados somente no artista, como em sua fama, durante longos anos adquirida. Considerando-se a peculiaridade de seu ofício, que não se prejudicara com a idade, não se podia dizer que ali estivesse um artista que, tendo ultrapassado a maturidade e não se achando mais em plena forma, viera buscar refúgio num circo. Pelo contrário, o jejuador afirmava ser capaz de suportar a abstinência tanto quanto antes e disso não se poderia duvidar. Chegou mesmo a declarar que se lhe dessem carta branca, o que lhe foi imediatamente prometido, poderia assombrar o mundo, estabelecendo um recorde jamais alcançado. Tal declaração provocou risos nos outros profissionais, pois não estava sendo levada em conta a frieza do público, fato que o jejuador, em seu zelo, parecera ter convenientemente esquecido.

No íntimo, ele não deixava de perceber a verdadeira situação. Conformou-se em ver sua gaiola colocada, não no meio da arena, como principal atração, e sim fora, perto das jaulas dos animais --local, afinal de contas - bastante acessível. Cartazes grandes e vistosos emolduravam a jaula, anunciando o tipo de espetáculo. Quando o público vinha, nos intervalos, ver as feras, tinha de passar pelo jejuador e algumas pessoas paravam, por momentos. Talvez se demorassem por mais tempo, não fossem os empurrões dos que vinham atrás, pela estreita passagem, e que não compreendiam o motivo pelo qual eram detidos. Isto impedia que os primeiros o examinassem com calma. Foi esta a razão que fez com que o artista que aguardara tais visitas como o maior acontecimento de sua vida, começasse a temê-las. A princípio, mal podia esperar pelos intervalos. Era excitante ver a multidão escoar para o seu lado, até que (tarde demais!) apesar do obstinado e quase consciente desejo de iludir-se, teve que se render à evidência. Convenceu-se de que aquelas pessoas, a julgar pela sua atitude, procuravam apenas visitar os animais. A sensação mais agradável sempre fora vê-los de longe. Quando se aproximavam, ficava aturdido com os gritos e insultos dos dois grupos dissidentes, sempre renovados, constituídos, um, pelos que desejavam parar para observá-lo (não por real interesse e sim por teimosia) e o segundo, por aqueles que ansiavam por ver as feras. Logo começou a detestar mais os primeiros. Depois que passava o maior número, vinham os retardatários. Embora pudessem contemplá-lo à vontade, apressavam-se, sem nem mesmo olhá-lo, tal o medo de chegarem atrasados às jaulas dos animais. Raramente acontecia ter ele um golpe de sorte, quando um pai de família parava com os filhos, apontando-o e explicando o fenômeno, contando histórias de anos passados, quando ele próprio assistira a espetáculos mais emocionantes. As crianças, sem nada entender, pois nem na escola e nem em casa haviam sido preparadas para isto (que lhes importava o jejum?) indicavam, pelo brilho dos olhos, que dias mais auspiciosos estavam para vir. Talvez as coisas corressem melhor, pensava o artista, se não o tivessem colocado tão perto dos animais. Isto tornava ao povo fácil a escolha, mesmo não se levando em consideração que ele sofria com o cheiro desagradável, a inquietação das feras à noite, a passagem dos pedaços de carne crua, o ruído na hora de serem alimentados, coisas que o deprimiam profundamente. Mas não ousava queixar-se. Afinal de contas, devia aos animais a afluência de tantas pessoas e sempre podia haver alguém que o notasse e lembrasse de sugerir lugar mais isolado para a gaiola, caso ele chamasse atenção para sua existência e para o fato de, na realidade, nada mais ser do que um obstáculo à passagem do público.

Pequeno obstáculo, não havia dúvida, e que cada vez menor se tornava. As pessoas familiarizavam-se com a estranha idéias de que delas se esperava, nestes tempos, que se interessassem pelo artista da fome, e esta familiaridade era justamente o veredito contra ele. Poderia jejuar à vontade e era o que fazia, mas nada agora o salvaria. O povo passava, indiferente. Fosse alguém explicar a arte do jejum! Quem não a apreciasse espontaneamente, jamais chegaria a compreendê-la. Os belos cartazes foram tornando-se sujos e ilegíveis e acabaram sendo em parte arrancados. A pequena tabuleta indicando o número de dias, havia muito marcava a mesma data, pois nem mesmo este pequeno esforço parecia útil aos funcionários. Assim sendo, o artista continuava jejuando e jejuando, como antes fora seu sonho. Isto não o incomodava, como ele soubera, que não o incomodaria. Mas ninguém mais contava os dias, ninguém.; nem mesmo o artista sabia que recorde estaria ele batendo e seu coração se confrangia. Quando, de vez em quando, um passante se detinha e zombava do velho deitado ali no chão, falando em fraude, tratava-se da mais estúpida mentira jamais inventada pela indiferença e malícia humanas. Não era o artista que estava trapaceando. Ele trabalhava honestamente; o mundo, sim, o lograva, privando-o da merecida recompensa.

Muitos dias se passaram e também aquilo chegou ao fim. Um fiscal apareceu ali e perguntou aos funcionários por que se desperdiçava uma jaula que continha apenas um monte de palha suja. Ninguém soube responder até que um deles, notando o cartaz com o número de dias, lembrou do artista da fome. Enfiaram um pau na palha e o descobriram.

- Ainda está jejuando? - perguntou o inspetor. - Quando, em nome dos céus, pretende parar?

- Perdoem-me todos - murmurou o artista. Somente o fiscal, que tinha o ouvido perto das grades, conseguiu entendê-lo.

- Claro que o perdoamos - respondeu, batendo na testa, como a indicar aos empregados o estado mental do jejuador.

- Sempre desejei que admirassem minha resistência.

- Claro que a admiramos - disse o fiscal, amavelmente.

- Mas não deviam admirar.

- Está certo, não admiramos, então, mas por que diz isto?

- Porque tenho que jejuar, não posso evitá-lo.

- Que tipo você é! - exclamou o inspetor - Por que não pode evitá-lo?

- Porque não consegui encontrar comida a meu gosto - respondeu o artista, erguendo um pouco a cabeça e falando junto ao ouvido do outro, para que não se perdesse uma sílaba. - Se a tivesse encontrado, creia que não teria feito nada disto e me empanturraria como o senhor ou qualquer outro.

Foram estas suas ultimas palavras, mas não olhos apagados restava a firme, embora não mais orgulhosa, certeza de que continuaria a jejuar.

- Pois bem, limpem isto aqui! - ordenou o fiscal.

Enterraram o artista da fome, com palha e tudo. Em seu lugar, puseram uma jovem pantera. Até mesmo as pessoas mais insensíveis acharam agradável ver o animal selvagem pulando na jaula que durante muito tempo tão lúgubre parecera. A pantera ia muito bem. A comida que lhe convinha era trazida pontualmente pelos empregados e ela nem mesmo dava impressão de sentir a ausência de liberdade. Aquele nobre corpo, provido ao máximo de todo o necessário, parecia trazer em si a própria liberdade. A alegria de viver fluía de suas faces com tal ardor, que aos espectadores não era difícil suportar o choque. Mas enchiam-se de coragem, comprimindo-se à volta da jaula, e acabavam não querendo mais se afastar.

 

                   O mendigo ou o cachorro morto - Bertolt Brecht

Um portão. À direita, sentado, um mendigo, pálido, roupas esfarrapadas. Segura um realejo, escondido na roupa. É de manha, bem cedo. Um tiro de canhão soa. Entra o Imperador, cercado de soldados. Seus cabelos são longos e sua cabeça está descoberta. Usa roupa de lã. Os sinos tocam.

 

IMPERADOR - No momento em que vou celebrar meu triunfo sobre o meu mais importante inimigo, quando o país mistura meu nome com o fumo negro do incenso, há um mendigo sentado diante da minha porta, fedendo a miséria. Mas, com tantos acontecimentos importantes, pode-se conversar sobre o Nada. Os soldados retrocedem. Homem, você sabe por que os sinos dobram?

MENDIGO - Sim. Meu cachorro morreu.

IMPERADOR - Isso foi uma insolência?

MENDIGO - Não. Foi por velhice. Mas agüentou bem. Pensava eu: por que as suas patas tremem? Ele tinha apoiado as da frente no meu peito, e ficamos deitados assim a noite toda, mesmo quando começou a esfriar. Mas, de madrugada, ele já estava morto e eu o afastei de mim. Agora não posso voltar para casa, porque ele está apodrecendo, cheirando mal.

IMPERADOR - Por que você não o enterra?

MENDIGO - Não é da sua conta. Agora você tem o peito oco como um buraco de esgoto, pois dez uma pergunta tola. Todos fazem perguntas tolas. Perguntar já é bobagem!

IMPERADOR - Mas mesmo assim vou continuar perguntando: quem cuida de você? Porque se não há ninguém que o cuide, vai ter que ir embora, aqui não se admite carne podre nem gritos.

MENDIGO - estou gritando?

IMPERADOR - agora é você quem está perguntando, embora com um certo sarcasmo que não entendo.

MENDIGO - sim, isso eu não sei, pois se trata de mim.

IMPERADOR - não faço caso de você. Mas quem cuida de você?

MENDIGO - de vez em quando, um menino, que um anjo fez na sua mãe enquanto ela colhia batatas.

IMPERADOR - você não tem filhos?

MENDIGO - foram embora.

IMPERADOR - como o exército do Imperador Ta Li, que as areias do deserto engoliram?

MENDIGO - ele atravessava o deserto e seus homens falaram: é muito longe, volta, Ta Li. E ele respondia: esta terra precisa ser conquistava. Marchavam diariamente até gastar os sapatos, então sua pele rachou e continuaram marchando de joelhos. Uma vez um tufão derrubou um cavalo. Ele morreu diante dos olhos de todos, uma vez chegaram a um oásis e disseram: é assim a nossa pátria. Aí o filho do Imperador caiu numa cisterna e se afogou. Guardaram sete dias de luto, a dor que sentiam era infinita. Uma vez viram os cavalos morrerem. Uma vez as mulheres não puderam mais segui-los. Uma vez chegaram o vento e a areia, e a areia cobriu todos, e então tudo terminou, e voltou o silêncio, e a terra foi deles, e eu esqueci o nome dele.

IMPERADOR - como é que você sabe disso? Está tudo errado. Foi bem diferente.

MENDIGO - quando ele era tão forte que eu parecia seu filho, fugi, porque não permito que me dominem.

IMPERADOR - de que você está falando?

MENDIGO - passavam nuvens perto da meia-noite apareceram estrelas. Depois, tudo foi silêncio.

IMPERADOR - As nuvens fazem barulho?

MENDIGO - é verdade que morreu muita gente nas cabanas perto do rio que transbordou semana passada, mas não conseguiram atravessar.

IMPERADOR - já que sabe tudo isso, você nunca dorme?

MENDIGO - Quando me deito em cima das pedras, a criança que acabou de nascer chora. E então sopra um vento novo.

IMPERADOR - Ontem à noite o céu estava estrelado, ninguém morreu perto do rio, não nasceu criança alguma, não soprava vento.

MENDIGO - então você deve ser cego, surdo e ignorante. Ou é maldade sua.

Pausa

IMPERADOR - O que você faz o tempo todo? Nunca vi você. De que ovo saíste?

MENDIGO - Percebi que este ano o milho está ruim, porque não choveu. Um vento escuro e quente sopra nos campos.

IMPERADOR - é verdade, o milho não está bom.

MENDIGO - assim aconteceu há 38 anos. O milho torrou no sol e, antes que morresse, caiu uma chuva tão forte que apareceram ratos e devastaram os campos. Depois entraram nos povoados e morderam as pessoas. Este alimento matou os ratos.

IMPERADOR - Nunca soube nada disso. Deve ser também invenção, como o resto. A história não fala nada disso.

MENDIGO - Não existe história.

IMPERADOR - E Alexandre? E César? E Napoleão?

MENDIGO - Histórias! Quem é esse tal de Napoleão?

IMPERADOR - Aquele que conquistou metade do mundo e sucumbiu pela própria soberba.

MENDIGO - Isso é coisa que só dois podem crer: ele e o mundo. É falso. A verdade é que Napoleao era um homem que remava numa galera e tinha uma cabeça tão grande que todos diziam: não podemos remar porque sobra muito pouco espaço para os nossos cotovelos. Quando o barco afundou, porque não remavam, ele encheu a cabeça de ar e se salvou, só ele, e como estava acorrentado teve que continuar remando, lá de baixo, não via para onde e que todos tinham se afogado. Então, pensando no mundo, abanou a cabeça e, como era muito pesada, ela se desprendeu.

IMPERADOR - essa é a maior tolice que escutei na vida. Você me decepcionou muito com essa história. As outras pelo menos estavam bem contadas. Mas que opinião tem você do imperador?

MENDIGO - Não existe Imperador. Só o povo pensa que existe um, e só um único homem pensa que é Imperador. Quando tiverem construído bastantes carros de guerra e os tambores estiverem treinados, haverá guerra e vão procurar um adversário.

IMPERADOR - Mas agora o Imperador derrotou seu adversário.

MENDIGO - Matou, não derrotou. O idiota matou o idiota.

IMPERADOR - com esforço - Era um inimigo forte, acredite.

MENDIGO - Um homem bota pedrinhas no meu arroz. É esse meu inimigo. Ele se vangloria porque tinha a mão forte. Mas morreu de câncer e quando fecharam o caixão, a mão dele ficou presa e não perceberam quando levaram o caixão, de modo que a mão ficou pendurada, vazia, desamparada, nua.

IMPERADOR - Você nunca se aborrece de ficar deitado?

MENDIGO - Antes as nuvens passavam no céu, sem parar. É a elas que contemplo. Não param nunca.

IMPERADOR - Agora não há nuvens. Portanto estás delirando. Isso é claro como o sol.

MENDIGO - O sol não existe.

IMPERADOR - Você talvez seja até perigoso, paranóico ou louco furioso.

MENDIGO - Era um cachorro bom, não um cachorro qualquer. Merecia o melhor. Até me trazia carne, e à noite dormia no meio dos meus trapos. Uma vez houve uma grande gritaria na cidade, todo mundo tinha algo contra mim, porque não dou nada de importante a ninguém, e até os soldados vieram atras de mim. Mas o cachorro afugentou todos.

IMPERADOR - Por que me conta isso?

MENDIGO - Porque acho você burro.

IMPERADOR - Que mais pensa de mim?

MENDIGO - TEM uma voz fraca, portanto é medroso; pergunta demais, portanto é lacaio; procura me preparar armadilhas, portanto não está seguro de si, nem nas coisas mais seguras; você não acredita em mim mas fica me escutando, portanto é um homem fraco; e por vim pensa que o mundo toda gira em torno de você, quando há pessoas muito mais importantes, eu por exemplo. Além disso, você é cego, surdo e ignorante. Os outros defeitos, não conheço ainda.

IMPERADOR - Não é um quadro muito animador. Não vê nenhuma virtude em mim?

MENDIGO - Você fala em voz baixa, portanto é humilde; pergunta muito, portanto tem ânsia de saber; examina tudo, portanto é cético; escuta o que imagina ser mentira, portanto é indulgente; acredita que tudo gira em torno de você, portanto não é pior que os outros homens e sua crença não é mais tola que a dos outros. Além disso, ver demasiado não o confundiu; não se preocupa com o que não lhe interessa; não está paralisado pelo saber. As outras virtudes, você deve saber melhor que eu e qualquer outro.

IMPERADOR - Você é espirituoso.

MENDIGO - Toda adulação merece pagamento. Mas agora não vou pagar nada pelo meu pagamento.

IMPERADOR - EU pago todos os serviços que me fazem.

MENDIGO - isso está claro. O fato de esperar aprovação revela a sua alma comum.

IMPERADOR - Não guardo nenhum rancor de você. Isso também é comum.

MENDIGO - É. Porque você não pode me fazer mal.

IMPERADOR - Posso mandar jogar você num calabouço.

MENDIGO - É fresco lá?

IMPERADOR - O sol não entra nunca.

Mendigo - Sol não existe. Você deve ter memória ruim.

IMPERADOR - Também posso mandar matar você.

MENDIGO - Então já não vai chover na minha cabeça, os insetos vão embora, meu estômago vai me deixar em paz e haverá o maior silêncio que já conheci.

Um mensageiro entra e fala em voz baixa com o imperador.

IMPERADOR - diga que não me demoro. Sai o mensageiro. Não vou te fazer nada disso. Pondero as coisas que faço.

MENDIGO - Não diga isso a ninguém, senão vão tirar conclusões observando teus atos.

IMPERADOR - Não creio que me desprezem.

MENDIGO - Diante de mim todos se curvam. Mas isso não me impressiona. Só os insistentes me incomodam com suas conversas e perguntas.

IMPERADOR - Incomodo-te?

MENDIGO - essa é a pergunta mais boba que você fez hoje. Você não tem vergonha. Não respeita a intangibilidade de um ser humano. Não conhece a solidão, por isso procura a aprovação de um desconhecido como eu. Você depende do respeito de cada homem.

IMPERADOR - Eu domino os homens. Por isso me respeitam.

MENDIGO - A rédea também pensa que domina o cavalo, o bico da andorinha pensa que orienta seu vôo e a ponta da palmeira pensa que arrasta a árvore em direção ao céu!

IMPERADOR - Você é um homem mau. Eu o faria eliminar, se depois não tivesse que pensar que foi minha vaidade ferida.

 

O mendigo apanha o realejo e toca. Um homem passa rapidamente e faz uma reverência.

MENDIGO - guardando o realejo - Esse homem tem uma mulher que rouba dele. À noite ela se inclina sobre ele para lhe tirar dinheiro. Às vezes ele acorda e a vê inclinada sobre ele. Entoa pensa que ela o ama tanto, que não pode passar uma noite sem o contemplar. Por isso perdoa os pequenos roubos que descobre.

IMPERADOR - Vai começar outra vez. Nem uma palavra disso é verdade.

MENDIGO - Pode ir. Você está ficando vulgar.

IMPERADOR - É inacreditável. O Mendigo toca o realejo. Terminou a audiência?

MENDIGO - Agora todos vêem outra vez o céu mais bonito e a terra mais fértil, por causa desse pouquinho de música, e prolongam sua vida e perdoam a si mesmos e a seus vizinhos, por esse pouquinho de som.

IMPERADOR - Diga-me, pelo menos, por que não me suporta mas me contou tanta coisa?

MENDIGO displicente - Porque você não foi orgulhoso demais para escutar minha conversa, única coisa que eu precisava para esquecer a morte do meu cachorro.

IMPERADOR - Agora vou embora. Você estragou o dia mais belo da minha vida. Não devia ter parado. Piedade não leva a nada. a única coisa que vale em você é a coragem de falar comigo nesses termos. E foi por isso que fiz todos esperarem.

Parte, escoltado pelos soldados. Novamente tocam os sinos.

MENDIGO percebe-se que é cego - Agora ele foi embora. Deve ser de manhã, pois o ar está tão quente. O garoto hoje não vem. Há festa na cidade. Aquele idiota também foi para lá. Agora tenho que pensar outra vez no meu cachorro.

 

                   O Modelo Milionário - Oscar Wilde

De que vale ser um jovem encantador se não tiver bastante dinheiro? O romance é privilégio dos ricos e não profissão de desempregados. O pobre deve ser prático e prosaico. Vale mais uma renda permanente do que o dom de fascinar. Eram essas as verdades da vida moderna que o jovem Hughie Erskine não conseguia compreender. Pobre Hughie! Apesar de não ser de grande valor intelectual, nunca, em toda sua vida, havia feito ou dito alguma coisa de realmente relevante ou verdadeiramente reprovável. Era, contudo, extremamente simpático com seus cabelos castanhos ondulados, seu perfil de nítidos contornos e seus olhos acinzentados. Era tão bem sucedido com os homens como o era com as mulheres, e possuía todas as habilidades, menos a de ganhar dinheiro. Seu pai deixara-lhe por herança, seu sabre de cavalaria e quinze volumes sobre a História da Guerra Peninsular. Hughie pendurou o sabre acima do seu espelho de quarto; encaixotou os livros numa estande entre o Ruff's Guide e o Bailey Magazine e passou a viver com a renda de 200 libras, abonadas por uma velha tia. Tentou todos os meios de ganhar a vida. Durante 6 meses arriscou a sorte na bolsa; mas que podia fazer um louva-a-deus entre ursos e touros? Passou algum tempo vendendo chá aos atacadistas mas cansou-se logo do "pekoe" e do "souchong". Em seguida tentou negociar "dry sherry", mas desistiu logo pois o "sherry" era seco demais. Finalmente entregou-se à deliciosa arte de não fazer absolutamente nada e tornou-se um jovem encantador e inútil, com um perfil impecável e sem profissão alguma.

Para complicar as coisas, Hughie amava. Sua eleita era Laura Merton, filha de um coronel reformado que deixara na Índia seu bom-humor e seu bom estômago e nunca mais encontrara nem um nem outro. Laura amava loucamente o jovem Hughie e ele, por sua vez, teria sido capaz de beijar com paixão até os cordões dos seus sapatinhos. Laura e Hughie formavam um dos pares mais combinados de Londres e entre ambos não havia sequer um real. O coronel estimava muito o jovem Hughie mas opunha-se a qualquer compromisso de casamento.

- Meu caro jovem - dizia o velho - Volte quando tiver acumulado com seus próprios esforços umas dez mil libras. Então, poderemos conversar. - Quando ouvia essas palavras, o jovem Hughie, acabrunhado, buscava conforto nos braços da sua amada.

Certa manhã, quando se dirigia para Holland Park onde moravam os Mertons, Hughie resolveu visitar um grande amigo seu, chamado Alan Trevor, que era pintor. A arte de pintar tornou-se epidêmica em nossos dias. Mas além de pintor, Trevor era também um grande artista, e os grandes artistas são muito raros. Trevor era uma estranha criatura um tanto rude; tinha o rosto salpicado de sardas e usava uma barbicha ruiva, sempre emaranhada. Contudo, quando empunhava o pincel, tornava-se um autêntico mestre e todos os seus trabalhos eram muito requestados. Desde o princípio fora fortemente atraído pela sedutora personalidade de Hughie. "Os pintores só deviam conhecer criaturas obtusas e encantadoras. Criaturas que ao contemplar, nos proporcionem um real prazer artístico e ao conversar, um verdadeiro repouso intelectual. Os janotas e as coquetes governam o mundo, ou pelo menos deviam "governar", dizia Trevor freqüentemente. Entretanto, depois de conhecer melhor Hughie, apreciou-o tanto pela sua jovialidade e bom caráter quanto pela sua natureza generosa e espontânea, permitindo-lhe livre acesso ao seu estúdio.

Hughie, ao entrar, encontrou Trevor dando os retoques finais num magnífico quadro que representava um mendigo em seu tamanho natural. O mendigo em pessoa posava sobre um estrado num dos ângulos do estúdio. Era um ancião encarquilhado com o rosto enrugado como um pergaminho e cuja fisionomia expressava infinita tristeza. Um velho manto rústico, rasgado e esfarrapado, recobria seus ombros e seus sapatos remendados estavam rotos em diversos lugares. Tinha uma das mãos apoiada num grosseiro bastão e a outra segurava um chapéu velho, estendido à caridade pública.

- Que extraordinário modelo! - exclamou Hughie, apertando a mão do amigo.

- Extraordinário - bradou Trevor - que dúvida! Um modelo como este não é encontrado todos os dias. Um achado, meu amigo, um verdadeiro achado. Um Velasquez em pessoa! Céus! Que         água-forte teria Rembrant com um modelo como esse!

- Pobre velho - disse Hughie - parece tão miserável. Suponho que para vocês, pintores, uma fisionomia dessas vale uma fortuna.

- Meu caro Hughie, respondeu o pintor, como quer que um mendigo irradie felicidade?

Acomodando-se no sofá, Hughie perguntou:

- Quanto ganha um modelo para posar, Trevor?

- Um shilling por hora.

- E quanto ganha você com o quadro?

- Esse ai me dará uns dois mil.

- Libras?

- Não, guinéus. Pintores, poetas e doutores só recebem guinéus.

- Pois olhe, Alan, na minha opinião os modelos deveriam receber uma porcentagem. O trabalho deles é quase tão árduo quanto do artista.

- Tolices, Hughie! Veja só o trabalho que dá aplicar a tinta na tela e ficar o dia todo em pé, na frente do cavalete. Falar é fácil, mas pode estar certo que há momentos em que a arte atinge a dignidade de um trabalho braçal. Mas deixe de tagarelar. Estou trabalhando e preciso de sossego. Sente e fume.

Depois de algum tempo o criado entrou para avisar o pintor que o fabricante de molduras queria falar-lhe.

- Fique aí, Hughie. Voltarei em minutos - disse Trevor.

O velho mendigo aproveitou a ausência do pintor para descansar numa banqueta ao lado do estrado. Sua fisionomia era uma imagem de dor e tristeza e Hughie, comovido, procurou nos bolsos para ver se encontrava alguma moeda. Encontrou apenas uma libra e alguns pences. "Pobre velho", pensou ele, "precisa mais desse dinheiro do que eu e não me custa nada ficar sem condução quinze dias", e atravessando o estúdio depositou timidamente as moedas na mão do velhinho.

O velhinho assustou-se e, depois, um leve sorriso esboçou-se nos seus lábios murchos.

- Muito obrigado, senhor. Muito obrigado.

Trevor chegou e Hughie, enrubescendo um pouco pelo seu gesto, despediu-se e saiu. Passou o resto do dia em companhia de Laura, foi gentilmente censurado pela sua prodigalidade e voltou a pé para casa.

Naquela noite, eram mais ou menos onze horas, Hughie foi para o Pallete Clube e encontrou Trevor sozinho no salão, bebendo vinho branco com água de seltzer.

- Então, Alan, conseguiu terminar o quadro?

- Terminar e emoldurar, meu caro! - respondeu Trevor. - E a propósito sabe que você fez mais uma conquista? O velhinho que serviu de modelo falou muito de você. Fui obrigado a descrevê-lo na íntegra. Ele quis saber quem é você, onde mora, de que vive, quais são seus planos para o futuro...

- Meu caro Alan - exclamou Hughie - Com certeza quando chegou em casa vou encontrá-lo me esperando. Mas, escute, Trevor. Você parece que está brincando. Saiba que tive muita pena do pobre infeliz. queria poder fazer alguma coisa por ele. Deve ser horrível ser tão desgraçado. Tenho muitas roupas velhas lá em casa. Acha que ele as aceitaria? Estava tão esfarrapado!

- Seus farrapos são a sua magnificência - disse Trevor. - Por dinheiro algum pintá-lo-ia envergando um fraque. O que você chama de farrapos eu chamo de romance. O que para você representa miséria, para mim representa pitoresco. Todavia, falar-lhe-ei de sua oferta.

- Vocês pintores não têm coração - disse Hughie num tom de censura.

- O coração do artista é a sua cabeça - respondeu Trevor - Aliás, o objetivo do artista é compreender o mundo como ele o vê e não reformá-lo como o compreendemos. A chacun son métier. Bem, e agora, diga-me como está Laura. O velho modelo está vivamente interessado nela.

- Quer dizer que ela também foi assunto de conversa entre vocês? - exclamou Hughie.

- Sim. Contei-lhe toda a história do implacável coronel, da formosa Laura e das 10 mil libras.

- Você contou todas essas particularidades ao velho mendigo? - bradou Hughie, enrubescendo vivamente e bastante exaltado.

- Meu caro Hughie - disse Trevor sorrindo - Esse pobre homem que você classifica de mendigo é um dos mais ricos da Europa. Se quiser, pode comprar amanhã toda a Inglaterra sem desfalcar seu crédito bancário. Possui propriedades em todas as capitais, faz suas refeições em baixelas de ouro e pode, quando lhe aprouver, impedir a Rússia de entrar em guerra.

- Que baboseiras está contando, Alan?

- Baboseiras? O ancião que você encontrou hoje no meu estúdio é o barão Hausberg. Um dos meus grandes amigos e admiradores e um dos meus melhores clientes. Compra quase todos os meus quadros e outras coisas mais. Há mais ou menos um mês pediu-me para retratá-lo na caracterização de um mendigo. Que voulez-vous? La fantasie millionnaire! Não posso negar que fez bela figura nos seus farrapos - ou melhor, nos meus farrapos. Comprei-os na Espanha.

- O barão de Hausberg! - murmurou Hughie, perplexo. - Santo Deus! E eu lhe dei uma libra - tartamudeou ele, afundando numa cadeira com ar profundamente consternado!

- Você lhe deu uma libra? - perguntou Trevor rindo. - Nunca mais a verá, meu caro amigo. Son affaire c'est l'argent des autres.

- Devia ter-me avisado, Alan - disse Hughie visivelmente aborrecido. - Teria evitado o ridículo papel que fiz.

- Bem, para começar, Hughie - disse Trevor - nunca me passou pela cabeça que você pudesse distribuir esmolas de maneira tão insensata e tola. Compreendo que se beije um modelo bonito, mas quanto a dar uma libra a um modelo feio - poxa, isso não. Além disso, hoje tinha intenção de não receber ninguém e quando você entrou no estúdio não sabia se o barão Hausberg queria que mencionasse o seu nome. Você compreende, com aqueles trajes...

- Deve julgar-me um idiota.

- Ao contrário. Quando você saiu ficou muito jovial e murmurava baixinho esfregando as mãos enrugadas. Fiquei um pouco atônito quando o vi tão interessado em você. Agora compreendo. Com certeza vai aplicar a libra que você lhe deu, Hughie, pagando-lhe os juros de seis em seis meses e terá uma história interessante para contar depois do jantar.

- Sou mesmo um desastrado - murmurou Hughie. - Acho que a melhor coisa a fazer é ir para a cama e, por favor, Alan, não conte o que aconteceu a ninguém.

- Tolices Hughie. Esse seu gesto prova o seu elevado espírito filantrópico. Fique aí, não vá, fume um cigarrinho e vamos conversar um pouco sobre Laura.

Hughie, aborrecido, não quis ficar e foi para casa. Sentia-se acabrunhado e deixou Alan rindo a mais não poder.

Na manhã seguinte, quando estava se preparando para o primeiro almoço, o criado fez-lhe entrega de um cartão com os seguintes dizeres: "Mousieur Gustave Naudim, de la part de M. le Baron Hausberg". Com certeza vai pedir uma satisfação, pensou Hughie, mandando o criado introduzir o visitante.

O homem já idoso, de cabelos grisalhos e óculos de armação dourada, entrou na sala e disse com ligeiro sotaque francês: "Tenho prazer de falar com Mr. Erskine?"

Hughie fez um sinal afirmativo com a cabeça.

- Venho da parte do barão Hausberg - disse ele.

- Peço apresentar minhas sinceras desculpas ao senhor barão - disse Hughie.

Sorrindo, o visitante prosseguiu:

- O senhor barão incumbiu-me de lhe entregar esta carta.

Hughie pegou o envelope e leu:

- A Hughie Erskine e Laura Merton, como presente de casamento de um velho mendigo". Dentro do envelope havia um cheque de 10 mil libras.

Na ocasião do casamento o barão Hausberg pronunciou um bonito discurso em homenagem aos nubentes e Alan Trevor foi um dos padrinhos.

- Modelos milionários são muito raros - observou Alan - mas milionários modelos são mais raros ainda.

 

                   O prisioneiro do Cáucaso - Leon Tolstoi

m nobre servia no Cáucaso como oficial. Chamava-se Giline.

Um dia, recebeu uma carta com o remetente de sua casa. Sua mãe escrevia-lhe: "Estou velha e desejo antes de morrer, abraçar uma vez mais meu filho querido. Vem dizer-me adeus. Quero que sejas tu a sepultar-me. Depois, com a ajuda de Deus, voltarás ao teu serviço. Encontrei uma boa noiva para ti. É inteligente, bondosa e tem alguns haveres. Talvez ela te agrade, talvez cases com ela, talvez possas ficar por aqui..."

Giline teve um momento de hesitação: de fato, sua velha mãe não teria muito tempo de vida; talvez não voltasse a vê-la. Era necessário partir e, se a noiva lhe agradasse, era bem possível que se realizasse o casamento.

Dirigiu-se então ao coronel, obteve uma licença, disse adeus a seus camaradas, comprou de seus soldados quatro cantis de aguardente com que festejou a despedida, e dispôs-se a partir.

Estava-se então em pé de guerra, no Cáucaso. Ninguém viajava sozinho, nem de dia, nem de noite. Assim que um russo saía e se afastava das fortalezas, os tártaros matavam-no ou levavam-no prisioneiro para as montanhas. Duas vezes por semana os viajantes iam de fortaleza em fortaleza protegidos pelos soldados da escolta.

Estava-se então em pleno verão. De madrugada, formou-se a caravana fora da fortaleza; os soldados da escolta saíram e iniciaram a marcha. Giline ia a cavalo; uma carroça levando suas bagagens, seguia com a caravana.

Tinham 20 verstas de caminho. A caravana deslocava-se lentamente. Ora se detinham os soldados, ora se soltava uma roda ou parava um cavalo da caravana, parando todos para aguardar o retardatário.

Giline pensou: "Por que motivo não hei de ir só, sem os soldados? O meu cavalo é esplêndido; mesmo que encontre os tártaros, fugirei, galopando."

Parou a montada. Estava incerto do que fazer... Mas eis que para ele se dirige Kostiline, outro oficial, também a cavalo, que lhe diz:

- Vamos embora, Giline. Não agüento mais. Estou com uma fome danada. Estou em brasas. Tenho a camiseta ensopada.

- Tens o fuzil carregado?

- Sim.

- Bom, então vamos. Apenas com uma condição: não nos separaremos, aconteça o que acontecer.

E partiram, deixando a caravana para trás. Cavalgaram pela estepe, conversando e vigiando o horizonte. Os olhos perdiam-se ao longe, na imensidão plana.

Finalmente foi interrompida a continuidade da estepe. O caminho seguia entre duas montanhas, através de um desfiladeiro. Giline disse:

- Vou dar uma espiada, lá do alto da montanha.

O seu cavalo era um animal treinado para caçadas. Parecia ter asas, escalando a encosta abrupta. Quando chegou ao alto, Giline desceu e olhou: à frente deles, a cem metros, tártaros a cavalo. Trinta homens.

Quis regressas. Mas os tártaros também o tinham avistado; lançaram-se sobre ele e, saltando de um lado para outro, foram retirando os fuzis dos coldres. Giline fez seu cavalo lançar-se pela encosta, e gritou para Kostiline:

- O teu fuzil! Segura o teu fuzil!

Mas Kostiline, em vez de esperar, deitou-se sobre o cavalo, como é habito dos soldados das fortalezas. Com o chicote, açoitou-o, fazendo saltar para a esquerda e para a direita.

Giline compreendeu que a situação se tornava perigosa. O fuzil tinha desaparecido com Kostiline; apenas um sabre não poderia enfrentar os inimigos. Dirigiu a montada pelo caminho que levava até os soldados. Essa, a única salvação que poderia esperar.

Viu que 6 tártaros de desviavam para lhe cortarem caminho. O seu cavalo era bom, mas os dos outros eram ainda melhores e eles galopavam, firmemente decididos a interceptá-lo. Reduziu a marcha; quis voltar, mas lançado já na carreira, não pôde sofrear o cavalo. Voou direto aos tártaros.

Viu que um deles se aproximava; distinguiu-lhe uma soberba barba vermelha e reparou que montava um cavalo cinzento. Gritava. Seu fuzil ainda estava no coldre.

Giline, apesar de sua pequena estatura, era um homem corajoso. Empunhou o sabre e lançou o cavalo sobre o tártaro vermelho. Pensava: "Ou o derrubo com o cavalo, ou o abato com o sabre". Mas os tártaros que galopavam à sua retaguarda, fizeram fogo, e atingiram o cavalo. O animal tombou e Giline ficou com a perna presa sob a montada.

Quis levantar-se, mas já dois tártaros mergulhavam sobre ele. Deu um salto e desembaraçou-se dos inimigos; mas outros 3 saltaram dos cavalos e começaram a espancá-lo com a coronha dos fuzis. Os tártaros aprisionaram-no. Tiraram das celas algumas cilhas de reserva, puxaram-lhe os braços para trás das costas, amarraram-nos firmemente e prenderam-no a uma sela. Tomaram-lhe o chapéu de peles e as botas e rasgaram-lhe todo o vestuário.

Giline contemplou o seu cavalo; tal como tinha caído o pobre animal, assim jazia pelo chão, agitava espasmodicamente as patas que não podia firmar no solo; tinha um buraco na cabeça do qual jorrava um tal jato de sangue negro que, numa superfície de cerca de 1 m2 a terra estava toda ensopada.

Um tártaro aproximou-se do cavalo, tirou-lhe a sela. O animal ainda esperneava. O tártaro empunhou um punhal e cravou-lho no pescoço. As narinas contraíram-se num relincho abafado; um estremecimento e logo depois o animal expirou.

Então, o tártaro de barba vermelha montou sobre o seu cavalo. Os outros escarrancharam Giline na garupa e, para evitar de caísse, amarraram-no à cintura do tártaro com uma correia. Dirigiram-se depois para as montanhas.

Giline nada mais via a sua frente, o sangue coagulara-se sobre os olhos; não podia nem manter-se direito sobre a montada, nem limpar o ferimento; seus braços estavam tão apertados que as clavículas ameaçavam quebrar.

Chegaram ao aoul (aldeia tártara).

Os tártaros apearam-se; surgiram as crianças; cercaram Giline e riram e gracejaram; lançaram-lhe pedras.

Um artesão dispersou os meninos; retirou Giline de cima do cavalo e chamou um companheiro.

Depois, um Nogai (os tártaros Nogaís habitam as estepes ao norte do Cáucaso) com as maçãs do rosto muito salientes avançou. Vestia uma camisa esfarrapada que lhe deixava o peito totalmente desnudo. O tártaro ordenou-lhe algo. O artesão voltou mais tarde com um cepo para os pés: duas pesadas pranchas de carvalho jungidas com anéis de ferro. Um dos anéis terminava numa argola menor na qual era encaixado um cadeado.

Colocaram o cepo nos seus pés e o arrastaram até a entrada de uma cabana. Empurraram-no para dentro e fecharam a porta. Giline caiu sobre um monte de esterco. Arrastou-se, tateou na escuridão em busca de um local mais fofo e deitou.

Giline não conseguiu adormecer; viu a luz do dia por uma fenda. Sentia sede. Escutou passos e pouco depois abriram a porta da cabana. O tártaro vermelho entrou, acompanhado por outro, de estatura menor e mais escuro; tinha feições alegres e ria constantemente. O tártaro moreno estava bem vestido: capa curta de seda azul-escuro estava ornada com um galão. Na cintura, um grande punhal de prata e sobre os sapatos de pele finíssima, calçava outros mais resistentes. Usava um enorme chapéu de pele de carneiro branco.

Giline levando as mãos à boca, indicou que tinha sede.

O moreno compreendeu; começou a rir, olhou pela porta e chamou:

- Diná!

Acorreu uma mocinha franzina, talvez uns 13 anos e feições semelhantes ao tártaro moreno. Era evidente que era sua filha. Tinha, como ele, uns olhos negros e brilhantes e rosto sempre alegre. Vestia um longo roupão azul, com mangas largas e sem cintura. Nas abas, no peito e mangas, seu roupão estava ornado com fitas vermelhas. Usava calças compridas e uns sapatinhos; e sobre esses sapatinhos, uns outros de salto alto; em volta do pescoço, um colar feio de moedas russas de meio rublo. Tinha a cabeça descoberta; sua cabeleira negra estava presa com uma fita da qual pendiam pequenos adornos de metal e um rublo de prata.

Seu pai lhe deu uma ordem qualquer. Ela se retirou, voltando pouco depois com um cântaro de latão. Deu-lhe de beber, agachando-se; curvara-se de tal forma que seus olhos ficavam mais altos do que os ombros. Abriu os olhos, espantada; observava Giline bebendo, como se ele fosse um animal.

Giline devolveu o cântaro. Ela saltou para trás, como uma cabrita. Seu pai riu. Levou o cântaro, correu, trouxe pão sem levedura numa pequena bandeja circular, sentou-se de novo com a cabeça mais baixa que os joelhos. Não baixava os olhos; fitava sem timidez.

Os tártaros retiraram-se; fecharam a porta. Pouco depois entrou um Nogaí que disse:

- Aída! Senhor Aída!

Mas também ele não falava russo. Giline entendeu apenas que lhe ordenava que o seguisse.

Giline saiu com o cepo; mancava; mal podia caminhar, de tal forma seu pé estava preso. Giline seguiu o Nogaí, viu então que se encontrava numa aldeia tártara com dez casas e a respectiva mesquita com uma torre. À porta de uma das casas, 3 cavalos selados. Um rapazinho segurava-os. O tártaro moreno saiu dessa casa; acenou para que Giline caminhasse até ele.

Giline entrou na casa. A sala era bonita. As paredes estavam cobertas com uma argila uniforme. Reparou nas almofadas pintadas, nos ricos tapetes sobre os quais repousavam os fuzis; reparou nas pistolas e nos sabres. Sobre uma das paredes, um pequeno véu. O chão era terra batida, mas limpo como uma eira; um dos cantos estava todo forrado de feltro; sobre o feltro, tapetes e sobre estes, travesseiros de penas...

Era nesse canto que se tinham sentado os tártaros; o moreno, o vermelho e três visitantes. Recostavam-se nas almofadas de pena. Diante deles sobre uma pequena mesa redonda, bolos de milho, manteiga de vaga e um cântaro com buza (bebida de farinha fermentada). Comiam com os dedos e tinham as mãos empastadas de manteiga.

Conversavam; então um dos visitantes voltou-se para Giline e disse-lhe, em russo:

- Kazi Mahommed aprisionou-te - apontou o tártaro vermelho - e deu-te a Abdoul-Mourat - apontou o moreno - Abdoul Mourat é agora o teu senhor.

Giline conservou-se em silêncio.

Abdoul tomou a palavra. O tradutor disse:

- Ele ordena que escrevas uma carta para tua casa, para que daí enviem um resgate. Quando chegar o dinheiro, ele deixará que partas.

Giline refletiu e perguntou:

- Ele quer um resgate muito grande?

Os tártaros voltaram a conversar e o tradutor precisou:

- Três mil moedas.

- Não - argumentou Giline - não posso pagar tal soma.

Abdoul levantou-se bruscamente; gesticulou e disse algo a Giline, acreditando que ele o entenderia. O intérprete traduziu:

- Quanto queres tu dar?

Giline guardou silêncio por um instante, e ofereceu:

- Quinhentos rublos.

Os tártaros voltaram a discutir. E o interprete transmitiu a resposta:

- para o teu senhor, é pouco. Ele mesmo pagou por ti 200 rublos. Kazi Mahommed devia-lhe essa importância. Ele recebeu-te como pagamento da dívida. Não poderás partir por menos de 3000 rublos. E se não escreveres, serás lançado a uma fossa e açoitado.

"Olá! - pensou Giline - com essa turma, o pior é mostrar medo!". Levantou-se e gritou:

- E tu, diz a esse cachorro que se ele me quer amedrontar, não lhe dou sequer um copeque, não escreverei uma única linha. Nunca tive nem terei medo de vocês, cachorros!

O intérprete traduziu; de novo os tártaros voltaram a falar ao mesmo tempo. Discutiram muito; depois o moreno levantou-se bruscamente de Giline:

- Orusse Dgiguitte - disse - Orusse Dgiguitte (para eles, significa jovem corajoso).

E riu. Disse algo ao intérprete, que o aconselhou:

- Dá mil rublos!

Giline repetiu:

- Não darei mais do que 500. E se me matarem, nem os 500 tereis.

Os tártaros voltaram a discutir; mandaram o artesão embora e ficaram olhando ora para Giline, ora para a porta.

O artesão regressou pouco depois; atrás dele caminhava um homem, descalço e esfarrapado, também com um cepo num dos pés.

Giline suspirou. Reconhecera Kostiline. Também ele tinha sido aprisionado. Obrigaram-nos a sentar-se um ao lado do outro. Kostiline contou que seu cavalo tinha sido abatido, que seu fuzil falhara e que o próprio Obdoul o alcançara e aprisionara.

Obdoul levantou-se bruscamente; apontou Kostiline e disse algo. O intérprete explicou que ambos tinham agora o mesmo senhor e que aquele que fosse o primeiro a entregar o dinheiro seria o primeiro a ser libertado. E argumentou com Giline:

- Tu, tu estás sempre zangado; o teu companheiro é um homem mais razoável; já escreveu uma carta para os seus; pede cinco mil peças. Será bem alimentado e bem tratado.

- Meu companheiro - respondeu Giline - procede como quer; talvez seja rico, mas eu não sou. É como eu disse. Matem-me se quiserem, mas nada ganham com isso. Escreverei apenas para 500 rublos.

Os tártaros nada responderam.

De repente, Abdoul levantou-se, irritado, abriu um cofre, pegou uma caneta, um pedaço de papel e tinta; aproximou-se de Giline, deu-lhe um safanão e disse:

- Escreve!

Giline concordou.

- Espera - disse Giline ao intérprete; - fala-lhe que é preciso que nos alimente bem, que nos vista e calce e que nos deixe partir juntos - será mais divertido para nós - e que nos tire os cepos.

Olhou para o tártaros seu senhor, e riu. O tártaro riu também e concordou com tudo, exceto no que dizia respeito aos cepos.

- Não é possível tirá-los, eles fugiriam. Apenas de noite o farei.

Giline redigiu uma carta, mas nela escreveu um falso endereço. Raciocinava: "tratarei de fugir, e assim não obrigarei minha mãe a um sacrifício tão pesado."

Foi assim que ele viveu com seu companheiro um mês inteiro. Depois, resolveu evadir-se e comunicou sua intenção a Kostiline.

Este refletiu demoradamente e decidiu-se:

- Pois bem, vamos!

Giline abriu na parede um buraco suficientemente largo para passarem; depois, aguardaram que o silêncio envolvesse a aoul. Evadiram-se, e depois de fazerem o sinal da cruz, puseram-se a caminho, pensando não terem levantado qualquer suspeita.

O nevoeiro era frio. Giline calçou as botas. Kostiline os pés ensangüentados, caminhava gemendo; vinte vezes pediu ao companheiro que o abandonasse, mas este acabou por transportá-lo sobre os ombros, parando somente junto a uma pequena fonte que brotava de uma rocha. Giline depôs Kostiline no chão e disse-lhe:

- Bebe e permite que descanse um pouco.

Acaba de se deitar quando escutou passos. Com seu companheiro, correu para a direita, ocultando-se num matagal, sobre uma escarpa.

Distinguiram vozes de tártaros; estes, tinham parado no local onde ambos tinham abandonado o caminho. Falaram demoradamente; depois, incitaram os cães. Giline e Kostiline ouviram algo se quebrando no valado. Um cão avançava sobre eles, farejando. Súbito, deteve-se e uivou.

Logo surgiram os tártaros; aprisionaram-nos, garrotaram-nos, colocaram sobre os cavalos e partiram.

A sua existência tornou-se horrível. Jamais lhes retiraram os cepos, jamais os deixaram sair. Do alto da fossa, lançavam-lhes, como cães, bolos de farinha crua, e a água era descida num cântaro. A fossa era pestilenta, quente e úmida.

Uma vez, Giline, agachado na fossa, sonhava com a vida livre e estava triste. De repente, a frente de seus joelhos, tombou um bolo frito, e logo um outro, e depois cerejas. Olhou para cima e viu Diná.

Ela sorriu e fugiu.

E Giline pensou: "Talvez Diná possa ajudar-me."

Arrancou do chão da fossa um pedaço de argila e entreve-se a modelar alguns bonecos. Homenzinhos, cavalos e cães; pensava: "Quando vier Diná, dou-lhe estes brinquedos".

Porém, no dia seguinte, Diná não apareceu. E Giline escutou os homens correrem e o tropel dos cavalos. Os tártaros reuniram-se na mesquita; discutiram, gritaram e falaram dos russos. Não compreendeu tudo o que ouviu, mas pressentiu que os russos aproximavam-se e que os tártaros receavam que chegassem a aldeia e vissem o que tinham feito com os prisioneiros.

Conferenciaram e retiraram-se. De repente, escutou um ruído lá em cima. Olhou. Diná estava agachada, os joelhos mais altos que a cabeça. Debruçada, seus colares balançavam dentro da fossa. Os olhos brilhavam como estrelas. Tirou da manga dois bolinhos fritos e atirou-os a Giline.

Giline pegou-os e disse:

- Há quanto tempo não te via! Olha, arrumei-te uns brinquedos. Toma aí, vai.

E atirou um.

Ela abanou a cabeça:

- Não era preciso - disse.

Calou-se, ficou sentada por alguns instantes e falou:

- Ivan, eles querem matar-te.

E com a mão mostrava o próprio pescoço.

- Quem quer me matar?

- Meu pai; os velhos assim mandaram. Mas eu tenho piedade de ti.

Giline disse então:

- Se tens piedade de mim, então traz-me uma vara comprida.

Ela abanou a cabeça para dizer que era impossível e desapareceu.

À noite, sentiu que lhe jogavam terra sobre a cabeça. Olhou para cima. Uma longa vara estava apoiada na borda da fossa. Empinada, começou a descer; por fim, rolou para dentro da fossa.

Voltou a olhar para cima; as estrelas resplandeciam longe, no céu; e no alto da fossa, os olhos de Diná brilhavam na obscuridade como os de um gato. Debruçou-se sobre a fossa e murmurou:

- Ivan! Ivan!

E, com as mãos sobre o rosto, fazia sinal para que evitasse fazer barulho. Giline despertou o companheiro:

- Ei, Kostiline, vamos! Tentemos uma última vez, te ajudarei.

Kostiline não o quis ouvir.

- Não - respondeu - nem sequer posso sair daqui. Onde iria eu, quando nem forças tenho para arrastar-me?

- Bem, então, adeus! Não me guardes rancor!

Beijaram-se.

Firmou-se na vara, pediu que Diná a segurasse, e iniciou a escalada. Duas vez caiu. O cepo prejudicava-o. Kostiline susteve-o e, bem ou mal, chegou ao alto. Com suas pequenas mãos,Diná puxava-o pela camisa; ela ria.

Giline retirou a vara e disse:

- Põe-na no lugar, Diná, se a vêem aqui, batem-te.

Ela arrastou a vara e Giline desceu a montanha. Para poder caminhar livremente, tomou uma pesada pedra e tentou quebrar as cadeias do cepo. Não conseguiu, e as pequenas mãos da fiel Diná que entretanto o alcançara, também nada puderam fazer. Giline, convencido que era imperioso alcançar o desfiladeiro antes que surgisse a lua, deixou fora a pedra e resolveu caminhar, apesar o cepo.

- Adeus, pequena Diná! - disse ele - lembrarei de ti eternamente.

Diná começou a chorar. Abraçou-o desesperadamente e correu pela montanha, saltando como uma cabritinha. No meio da noite, escutava-se apenas a fita de moedas que prendia seus cavalos, tilintando de encontro as suas costas.

Giline fez o sinal da cruz, segurou o cadeado do cepo, a fim de evitar qualquer barulho e iniciou a caminhada. Arrastava a perna, olhando constantemente para o lado avermelhado do céu de onde deveria surgir a lua.

Já conhecia o caminho. Caminhou sem hesitações durante 8 verstas. Porém, conseguiria alcançar a floresta antes que a lua aparecesse?

Atravessou o ribeiro; quando brilhou a luz, acabava ele de entrar na floresta.

Novamente tentou abrir o cepo. Feriu as mãos, mas não o conseguiu abrir. Levantou-se e continuou a caminhar. Percorreu uma versta; suas forças estavam esgotadas; mal se sustinha em pé. Andava dez passos e parava.

Caminhou durante toda a noite; encontrou apenas dois tártaros a cavalo; porém, ouviu-os de longe e ocultou-se atras de uma moita.

Já então a lua começava a empalidecer; caía o orvalho; o dia estava próximo e Giline não chegara ao fim da floresta.

- Pois bem! - disse - ando mais trinta passos, escondo-me na floresta e sento-me!

Caminhou os 30 passos e viu que a floresta terminava um pouco mais à frente. Ao alcançar a orla da floresta, já era dia. À sua frente, a estepe e a fortaleza; à esquerda, bem próximo, no sopé da montanha, ardiam ou extinguiam-se fogos, o fumo subindo, homens rodeando as fogueiras.

Olhou fixamente e viu os fuzis que brilhavam: eram os cossacos e os soldados.

Giline sentiu-se invadido pela alegria; reuniu as últimas forças e iniciou a descida da montanha. Mas dizia: "Deus me guarde que um tártaro me veja: não conseguirei passar".

Mal lhe aflorara este pensamento quando olhou à esquerda. Sobre uma colina, 3 tártaros ocupando duas deciatinas (medida de superfície russa). Viram-no e galoparam em sua direção.

Sentiu que desfalecia. Agitou os braços e gritou o que lhe veio ao espírito:

- Irmãos, socorro, irmãos!

Os russos escutaram-no e montaram. Correram em sua direção, tentando cortar caminho aos tártaros.

Os cossacos estavam longe e os tártaros bem perto. Mas Giline apelara já para as derradeiras forças; segurou o cepo com as mãos e correu em direção aos cossacos; fazia sinais da cruz e gritava:

- Irmãos! - Irmãos! - Irmãos!

Os soldados cercaram-no. Um deles ofereceu-lhe pão, um outro cerveja, outro vodca, outro cobriu-o com uma capa e outro ainda libertou-o do cepo.

Os oficiais reconheceram-no e conduziram-no para a fortaleza. Ai Giline contou toda a sua aventura, e disse:

- E aqui está como eu fui a casa e me casei! Certamente não era esse o meu destino.

E continuou servindo no Cáucaso. Kostiline foi resgatado apenas um mês mais tarde, por 5mil rublos. Estava mais morto do que vivo...

 

                   O reflexo perdido - Hoffmann

Uma tarde de inverno, à espera do último dia do ano, senti de repente o sangue queimar-me nas veias e o coração gelar-se-me no peito. Lá fora, rafadas de tempestade agitavam a noite. Esta crise do céu transmitia-me descargas elétricas ao corpo; meu cérebro fervia como metal em fusão. Quando todos os meus nervos ficaram saturados desse fluido desconhecido, a que se dá o nome de febre ou delírio, não pude mais ficar em casa e corri para fora, sem manto, os cabelos ao vento. Os cata-ventos das casas guinchavam como gatos enfurecidos e parecia-me distinguir, entre as vozes confusas da tempestade, o tiquetaquear do relógio que assinala a queda das horas no abismo da eternidade.

Coisa bizarra! A véspera de Ano Novo que é, para toda gente, uma data alegre, encontrava-me presa de fundas dores morais. Seria porque, a cada festa de Natal, contando os dias que haviam decorrido e sentindo-me envelhecer, eu entrevisse mais de perto a aproximação do fim? Pressentia-o apenas e não podia evitar que um terror misterioso de mim se apoderasse; tanto mais quanto o diabo sempre teve o cuidado de reservar-me, para o São Silvestre, qualquer nova desventura.

Ontem, por exemplo, ao entrar num salão, deparei, sentada em companhia de um grupo de damas, com uma figura de feições angelicais... Sim, era Ela! Ela, a quem eu não via há cinco anos!... "Deus seja bendito", exclamei no fundo da alma; "Ela voltou para mim". Fiquei interdito, como se a varinha de um mágico me houvesse tocado. Nesse instante, o dono da casa tocou-me levemente o ombro:

- Então, caríssimo Hoffmann - disse-me ele - em que pensas?

Voltei a mim, muito envergonhado de minha inépcia, e aproximei-me da mesa de chá para sair do embaraço.

Nesse momento, Ela me viu, levantou-se e veio dizer-me, num tom de voz cheio de indiferença:

- Tu aqui? Encantada de ver-te. Como tens passado?

Depois, sem esperar resposta, sentou-se novamente, dirigindo à sua vizinha estas palavras, que me trespassaram o coração:

- Teremos, então, na semana que vem, um belo concerto no palácio?

Um raio, caindo a meus pés, não me teria perturbado tanto. Figurai-vos que experimentaria um homem que, ao aproximar-se de uma rosa cultivada com amor, para respirar-lhe o perfume, sentisse uma vespa sair do cálice da flor e picar-lhe o nariz. Recuei de modo tão brusco, os olhos turvados pelo sangue que me subira à cabeça, que derrubei ao chão uma travessa de sorvetes. Rolou tudo sobre o tapete; nesse instante, desejaria estar enterrado a cem toesas de profundidade. Por sorte, um artista célebre acaba de entrar. Fui esquecido e pude contemplar Ela, Júlia, em todo o esplendor de sua beleza.

Pareceu-me mais alta, mais cheia de formas, mais sedutora do que nunca. Suas vestes, de imaculada brancura, ondeavam, em pregas, sobre seu corpo. Suas espáduas e seu pescoço se destacavam, como um bloco de neve, contra o decote enfeitado de rendas; seus cabelos de um negro de ébano, desatavam-se em cachos cambiantes, que lhe davam à face um caráter seráfico. Ao passar perto de mim, voltou-se e acreditei ter lido, no seu olhar de um azul tão doce, não sei que expressão zombeteira.

Minha razão sumiria se o maestro, que acabara de iniciar uma cantata, não me houvesse refrescado a alma com uma cascata de harmonias. Apenas terminou a execução, o auditório cumulou-o de felicitações. Mas, nesse turbilhão de diletantes, vi-me separado de Júlia por alguns instantes. Reencontramo-nos pouco depois, diante de uma poncheira. Então, ó ventura inaudita! ela ofereceu-me um copo, sorrindo celestialmente e dizendo-me, com uma voz cuja lembrança nada poderá jamais apagar de minha memória:

- Quer aceitá-lo de minhas mãos, como antigamente?

Ao recebê-lo, rocei-lhe os dedos; mil faíscas abrasaram-me o sangue. Bebi o licor dourado até a última gota e pareceu-me que chamas azuladas voavam sobre meus lábios. Meus sentidos nadavam numa embriaguez deliciosa e quando voltei a mim, estávamos, eu e Ela, lado a lado, sobre os coxins de um divã rosa, ao fundo de um gabinete iluminado pela luz sonhadora de uma lâmpada de alabastro, suspensa por cadeias de prata.

Júlia a meu lado, Julia sorridente, afetuosa como outrora; não seria tudo um sonho? Ai! Sonho ou realidade, a ele me entregava inteiramente. Parecia-me ouvi-la dizer as palavras mágicas:

- Meu Teodoro, amo-te, não vivo senão por ti. És a minha poesia e a minha felicidade!

E eu lhe respondia:

- Deus nos reuniu e nem todas as potências do inferno poderão nos separar!

Subitamente um pequeno manequim, com olhos de rã, sustentado por patas de aranha, apareceu tropeçando no meio do gabinete.

- Onde, com todos os diabos, te meteste, Júlia? - disse, esticando um nariz pintalgado de tabaco de Espanha.

Júlia levantou-se e despertou-me atrozmente com estas palavras:

- Então, não achas que devemos voltar à festa? Como vês, meu marido está à minha procura. És bem divertido, tanto quanto outrora, meu caro Teodoro; entretanto, não deves beber tanto ponche.

Soltei um grito de desespero.

- Perdida para toda a eternidade!!!

- É como diz, meu bravo senhor - respondeu o odioso animal, a quem ela chamava seu marido.

Era demais para as minhas forças. Sentia-me enlouquecer. Num átimo, vi-me fora do salão, correndo pela escada abaixo. Na rua, a chuva que tombava em cascatas molhava-me o rosto. Eu corria desabaladamente, sem direção nem consciência. E teria continuado a correr se a taverna de mestre Thiermann não me detivesse a fuga com suas portas abertas. Por elas adentro me precipitei, a respiração ofegante, a goela seca e os olhos dilatados. Julgaram-me bêbado; não há freguês melhor que um bêbado. Dessarte, malgrado a falta de chapéu e casaco, o hospedeiro, ao me ver elegantemente trajado, perguntou-me polidamente que desejava eu.

- Um canecão de cerveja e um cachimbo!

Fui servido imediatamente.

Os freqüentadores da taverna me olhavam pelo canto dos olhos e o hospedeiro ia talvez me interrogar sobre a aventura, que a minha visita, em semelhante desalinho, fazia suspeitar, quando três batidas nas vidraças da taverna seguidas de um grito: "Abra depressa, sou eu!", desviou-lhe a atenção. Ele acorreu à porta, com um castiçal, e logo depois um homem alto, descarnado como um esqueleto, entrou na sala e encaminhou-se, andando de lado, com as costas voltadas para a parede, para uma pequena mesa, onde se sentou.

Esta personagem tinha aparência distinta, mas pensativa. Pediu, como eu, cerveja e tabaco; encheu o cachimbo com impaciência e envolveu-se em seguida em espessa nuvem de fumaça. Em meio a fumaceira, tirou o chapéu de feltro e o casaco; pude então notar, com surpresa, que sobre as botas trazia chinelas. Continuando a fumar, passou em revista uma pilha de ervas, que retirou de uma caixa de metal semelhante às usadas pelos botânicos.

Atrevi-me, para iniciar conversa, a fazer-lhe algumas perguntas sobre as ervas que pareciam interessá-lo tanto.

- O senhor não é muito forte em botânica - respondeu-me ele à meia voz. - Senão, teria visto logo que são plantas exóticas; estas foram colhidas na América, nas cercanias do famoso vulcão Chimborazo.

A entonação de sua voz produziu em mim uma espécie de comoção magnética. Senti que as palavras morriam-me à flor dos lábios e pareceu-me que, por desconhecidos que fossem, os traços deste homem haviam aparecido nos sonhos de minhas noites agitadas.

Minha preocupação foi interrompida pelo ruído de novo golpear ansioso nas vidraças da taverna. O hospedeiro abriu a porta, mas o recém-chegado gritou de fora, antes de entrar:

- Não se esqueça de cobrir bem o espelho!

- Bem, bem - disse o hospedeiro, prendendo uma toalha ao caixilho do espelho - eis que chega o general Suwarow.

O general nada tinha de belicoso. Entrou saltitante, com passos pesados, descrevendo uma série de ziguezagues. Era baixinho, todo envolto num capote pardo de mangas largas, dentro do qual parecia, contudo, tremer de frio. Veio sentar-se à nossa mesa, colocando-se entre o botânico de Chimborazo e eu. Mas as nossas cachimbadas o incomodavam e, voltando-se alternadamente para cada um de nós, queixou-se da fumaça e lamentou ter esquecido seu rapé.

Eu trazia comigo uma tabaqueira de aço polido, muito nova e brilhante. Apressei-me a oferecê-la a ele, delicadamente. Apenas a viu, cobriu o rosto com ambas as mãos e gritou:

- Com todos os diabos! Esconda este maldito espelho!

Sua voz era convulsa e todo o seu corpo tremia. Julguei-o louco. Serviram-lhe vinho do norte. Eu o espiava furtivamente quando, de súbito, vi seu rosto mudar de expressão e cor, como as imagens de uma lanterna mágica. Desta vez, um suor gelado inundou-me a fronte; senti um medo terrível, não me pejo de confessá-lo.

- "Este general Suwarow - disse comigo mesmo - não será Satã disfarçado, que vem me tentar?"

Enquanto eu dava curso às suposições mais fantástica, o ilustre personagem das ervas passava o seu tempo a espevitar a candeia com extremo cuidado e o pequeno se levantara para arrumar melhor o pano que velava o espalho. Essa bizarria não era de molde a tranqüilizar-me, quanto às suas faculdades mentais. Ambos se puseram em seguida a conversar sobre um jovem pintor que expusera recentemente um magnífico retrato de mulher.

- Sem dúvida alguma - dizia o magricela - é uma obra maravilhosa; pode-se dizer que o retrato é o reflexo do modelo.

- Reflexo? Reflexo? Que animal estúpido poderia se apoderar de um reflexo, a não ser o diabo em pessoa? - gritou o general, dando um pulo na cadeira. - Mostre-me um reflexo roubado a um espelho - desafio-o a fazê-lo - e darei um pulo de quinhentas toesas de altura!

Nesse instante o magricela, pouco lisonjeado com a tirada de seu interlocutor, levantou-se e, passando a mão sob o queixo, disse com um sorriso amargo:

- Calma, meu pequeno, não te faças violento. Os movimentos muito bruscos me impacientam facilmente e eu poderia atirar-te pela janela...

O general, pestanejante, apanhou o chapéu, ergueu-se e recuou até a porta.

- Peste de homem! - disse, fazendo reverências e saltitando de maneira cômica - diabo raivoso, passa bem. Se não posso ver-me ao espelho, conservarei, ao menos, minha sombra, enquanto tu, meu caro... Bem, aqui ficam meus cumprimentos!...

Dito isso, desapareceu, deixando o botânico num estado de consternação difícil de descrever.

A idéia de um homem sem sombra me causava espécie. Vi-o partir também em seguida. Ao atravessar a sala, seu corpo não projetava sombra alguma. Lembrando-me então do famoso Peter Schlemihl, esse Judeu Errante da Alemanha, corri atras dele. Mas apenas atravessara a porta quando o hospedeiro me deu um empurrão, gritando:

- Que o diabo leve todos os fregueses de vossa espécie e Deus permita que nunca mais vos veja!

Quanto ao magricela, não consegui alcança-lo. Com três passadas, desaparecera rua abaixo.

Eu havia esquecido minha chave no bolso do casado. Era-me, pois, impossível entrar em casa. Decidi a pedir asilo a um de meus amigos, o proprietário do Águia de Ouro. O porteiro não me fez esperar e fui conduzido a um belíssimo aposento, enfeitado com um grande espelho recoberto por uma cortina de sarja verde. Não sei porque me veio o capricho de levantar a cortina. Vi-me refletido no espelho, tão pálido e tão desfeito que mal consegui me reconhecer; depois, parecendo-me que, do fundo do espaço refletido pelo espelho, vinha avançando para mim uma forma indecisa e vaporosa.

Ao fixar os olhos nessa aparição, acreditei ver... sim, era Ela mesma, a figura adorada de Júlia.!

- Ó, minha querida, voltas para aquele que não pode viver sem ti?

Um profundo suspiro me respondeu. Tal suspiro saiu das dobras do cortinado que escondia a alcova. Corri para o leito e deixo à vossa imaginação a tarefa de figurar o que devo ter sentido ao encontrar nele deitado, o homenzinho a quem o hospedeiro da taverna chamara general Suwarow.

Esse bizarro personagem sonhava em voz alta e seus lábios, contraídos por uma emoção penosa, pronunciavam um nome que me fez bater o coração mais depressa:

- Giulietta!... Giulietta!

Sacudi vivamente o homenzinho até acordá-lo.

- Com quantos diabos resolveu ocupar - disse-lhe - o quarto que me havia sido destinado?

- Ah! senhor - retorquiu, abrindo os olhos e estirando os braços - como lhe sou grato por haver interrompido o pesadelo que me oprimia!

Uma rápida explicação foi quanto bastou para eu descobrir que o porteiro havia-se enganado ao levar-me para aquele aposento. Pedi desculpas ao general e começamos a conversar.

- Devo ter-lhe parecido - disse o desconhecido - bem inconveniente ou louco esta noite, na taverna. Mas o senhor será indulgente para comigo se alguma vez lhe aconteceu experimentar sensações inexplicáveis.

- Ah! meu caro senho - repliquei - poder-se-ia dizer de mim outro tanto; pois olhe, não faz muito tempo que revendo Júlia...

- Júlia! Que nome acaba o senhor de pronunciar! - gritou o homenzinho, jogando-se sobre o travesseiro. - Oh! cale-se, pelo amor de Deus, deixe-me dormir e não esqueça de cobrir o espelho.

- Mas como - continuei - o nome de uma mulher que o senhor certamente não conhece pode impressioná-lo tanto? Quer-me parecer que a expressão do seu rosto altera-se a cada instante. Vamos, acalme-se e consinta que eu repouse, até o amanhecer, ao seu lado. Tratarei de não incomodá-lo.

- Não, pode ficar com o quarto todo. Vejo que para mim não existe calma nem repouso possíveis. O senhor pronunciou o nome de Júlia... Júlia! Giulietta!... É muito estranho. Estaremos unidos pela fatalidade, sem sabê-lo, no mesmo infortúnio?... Embora eu tenha talvez de afligi-lo mortalmente, não posso evitá-lo. Devo confessar a causa do meu infortúnio. Acho que isso me aliviará.

O homenzinho deslizou para fora do leito e dirigiu-se para o espelho, do qual retirou a cobertura. Todos os objetos e luzes do quarto, assim como minha figura, nele se refletiram nitidamente. Mas o reflexo do general Suwarow nele não aparecia.

- Veja - continuou ele com voz plangente - se sou ou não muito infeliz? Pedro Schlemihl vendeu sua sombra ao Diabo; pois bem, eu, eu dei meu reflexo a Giulietta, que nunca mais mo devolverá! Meu Deus! Meu Deus! que fatalidade!

Fiquei estupefato com a narrativa. Em meu coração, o horror se misturava à piedade.

O homenzinho, entregue completamente à sua dor, jogara-se no leito convulsivamente; mas, dali a pouco, estava roncando. O ruído que fazia acabou por me fazer mergulhar numa sonolência irresistível. Apaguei as luzes e estendi-me ao seu lado, sem despir-me, decidido a esperar o amanhecer.

A excitação do meu sistema nervoso atingira o máximo; meu espírito turbilhonava num labirinto povoado de fantasma indescritíveis. Pareceu-me, de repente, que o mundo diminuía, como aquelas casas de bonecas. Vi todos meus amigos mudados em homúnculos de açúcar. Depois todas essas figuras cresceram desmesuradamente e, no meio delas, apareceu Julia, que me estendia um copo cheio de ponche, dizendo:

- Bebe, meu anjo, bebe este licor divino!

Vi pequenas chamas azuladas tremularem à borda do copo. Estava prestes a agarrá-lo quando uma voz gritou atras de mim:

- Não beba! Não beba! É o veneno de Satã!

Voltei-me e reconheci o general Suwarow, que se ria debaixo do meu nariz. Julia continuava com suas provocações; seu olhar me queimava, o timbre de sua voz me dava vertigens.

- Por que tens medo? - dizia ela - Não nascemos um para o outro por toda a eternidade? Não me deste teu reflexo em troca de um beijo?

Eu me sentia morrer e estendi o braço para receber a taça mágica no fundo da qual desejava afogar minha alma.Mas o pequeno Suwarow gritava, em voz mais forte ainda:

- Não beba! Não beba! Essa bela moça que lhe sorri é o diabo em pessoa; se tocar os lábios a taça, o sortilégio desaparecerá, restando somente a realidade da perda.

Julia continuava a insistir e a embriagar-me com sua sedução; não sei o que iria me acontecer quando, de súbito, todas as figuras de açúcar cândi se puderam a dançar em torno de mim, com uma tal rapidez que não discerni mais nada. Esse pesadelo não terminou senão às onze horas da manhã, quando um criado do Águia de Ouro veio despertar-me para avisar que o desjejum estava servido. O general Suwarow se levantara muito cedo, pagara sua despesa e deixara, endereçado a mim, um pacote lacrado dentro do qual havia um manuscrito, de letra miúda e de difícil decifração, no qual se narrava a singular história que se segue. Era, talvez, a sua história.

 

Numa bela manhã, mestre Erasmo Spickherr viu-se, pela primeira vez, em condições de satisfazer a mais ardente paixão de sua vida. Acabara de juntar uma pequena herança, da qual retirou uma soma suficiente para cobrir os gastos de uma viagem à Itália. Na hora da partida, sua jovem esposa acompanhou-o, com o filho nos braços, até a carruagem:

- Adeus! - gritou ela, os olhos úmidos de lágrimas - querido Erasmo! Pensa sempre em mim, que ficarei em casa, e tem cuidado para não perder a boina de viagem, dormindo com a cabeça para fora da janela da carruagem.

Em Florença, Erasmo travou conhecimento com um alegre grupo de compatriotas seus, que jogavam dinheiro fora e levavam a vida mais desvairada que qualquer artista ou filho-família jamais viveu sob o tépido sol da Itália. Eram festas e banquetes, noite e dia, em mansões esplendorosas, com mulheres trajando costumes fantásticos, cuja elegância e riqueza de cores emprestava-lhes o aspecto de flores animadas. Somente Erasmo, fiel à lembrança de sua esposa legítima, não se arriscava, malgrado seus 27 anos, a nenhuma excursão além do círculo da fé conjugal.

Certa noite, quando esses pândegos estavam reunidos numa orgia regada a vinho, um deles, Frederico, o mais fogoso do grupo, rodeando com o braço o talhe esguio da amante, e erguendo seu copo onde brilhava um líquido dourado, ergueu um brinde incandescente à beleza das rainhas da noite, acrescentando:

- Quanto a ti, meu pobre Erasmo - disse a Spickherr - entristece-nos profundamente com essa fisionomia fúnebre. Bebe e cantas como um coveiro e portas-te de modo lamentável para com nossas damas.

- Juro-te, meu caro - respondeu Erasmo - que é meu dever permanecer indiferente ao encanto dessas damas. Deixei na pátria minha digna esposa e, quando se é, como eu, pai de família...

A estas palavras, ditas pelo pobre Erasmo com solene gravidade, os presentes caíram num frouxo de riso. A amante de Frederico, depois de lhe terem dito em italiano o que dissera Erasmo, voltou-se para o frio alemão e disse-lhe:

- Toma cuidado. Se visses Giulietta a neve do teu coração se fundiria como gelo ao sol.

No mesmo instante um ligeiro roçagar de sedes por entre a folhagem anunciou a aparição de uma jovem de esplendorosa beleza. Um vestido branco, que lhe punha a descoberto as espáduas níveas e a garganta magnífica, caía em dobras sedutoras sobre seu talhe de fada. Sua cabeleira, perfumada, desnastrada em ondas de ébano, enquadrava, com um encanto inefável, o oval admirável de um rosto de madona. Pedrarias cintilantes adornavam-lhe os braços e o colo.

- É Giulietta - exclamaram as raparigas.

- Sim, sou eu - disse, com um sorriso angélico, a bela desconhecida. - Permitis que vos faça companhia por um instante? Bem, vou sentar-me ao lado deste alemão carrancudo que não diz uma palavra.

Em meio aos sussurros de suas rivais em beleza, a recém-chegada tomou lugar ao lado de Erasmo, que pensava sonhar. A vista de tantos encantos, sentia o coração pular-lhe; seu olhar se fixava em Giulietta como que aterrorizado. A bela florentina apanhou da mesa uma taça cheia e entregou-a a ele dizendo:

- Aprazer-te-ia, severo estrangeiro, que eu fosse a senhora dos teus pensamentos?

Erasmo enrubesceu; todo o seu ser vibrava; erguendo-se, como que impelido por uma mola, caiu diante dela, numa postura de adoração:

- Sim! - exclamou - é a ti que eu amo, anjo dos céus! Tua imagem morava em meus sonhos; tu me trazes a felicidade dos eleitos.

Esta explosão fez crer aos presentes que Erasmo enlouquecera. Giulietta ergueu-o, pedindo que se acalmasse, e a alegre conversa recomeçou, mais animada. Solicitada a cantar, ela concordou, com graça esquisita. Sua voz magnética provocava sensações inéditas. As horas passaram como se fossem minutos.

Ao amanhecer, Giulietta decidiu retirar-se. Erasmo queria acompanhá-la mas ela recusou e, indicando os lugares onde ele poderia reencontrá-la, desapareceu como uma sílfide. O pobre apaixonado não ousou segui-la e dirigia-se tristemente para casa quando, a uma esquina, encontrou um personagem alto e magro, trajando um costume escarlate pontilhado de botões de aço.

- Oh! Oh! - fez o desconhecido - que cara desconsolada tem o senhor Spickherr esta manhã! Os moleques da cidade vão correr atrás do senhor! Trate de esconder-se.

- Ei! Quem és tu, imbecil, para me falares dessa maneira? Segue teu caminho! Respondeu-lhe Erasmo.

- Devagar, meu valente - continuou o homem de escarlate. - Mesmo que tivesses asas de águia, não alcançarias Giulietta esta manhã!

- Giulietta! Que quer dizer? - retorquiu Erasmo, fazendo meia volta para agarrar seu interlocutor.

Este, porém, desembaraçando-se com uma pirueta, eclipsou-se como um fogo fátuo.

Erasmo viu novamente Giulietta. A bela rapariga o recebeu de bom grado, mas sem lhe permitir quaisquer liberdades. Entretanto, quando ele lhe falava, fogoso e apaixonado, ela lhe lançava, às furtadelas, olhares cheios de fascínio. Ele abandonou a companhia ruidosa dos amigos para segui-la por toda a parte, como se não pudesse viver senão do mesmo ar que ela respirava. Certo dia, reencontrou Frederico; não pôde escapar-lhe, e este lhe disse:

- Meu caro Spickherr, eis-te enfeitiçado pelos filtros de uma nova Circe! Ainda não compreendeste que Giulietta é a mais dissoluta das criaturas? Ignoras então a fieira de histórias que se contam sobre ela? É preciso que sejas muito tresloucado para esqueceres tão depressa aquela boa esposa de que falavas com tanta ternura.

Erasmo escondeu o rosto entre as mãos e não pôde conter as lagrimas.

- Vamos - continuou Frederico - deixa essa paixão que te perde e vem comigo. Deixemos Florença sem perda de tempo!

- Sim, sim, imediatamente - exclamou Erasmo. Partamos hoje mesmo.

Os dois amigos caminhavam apressadamente quando o homem de escarlate cruzou-lhes, de súbito, o caminho:

- Vamos, senhor - disse a Spickherr - apresse-se pois a bela Giulietta espera-o com ansiedade.

- Vá para o diabo, animal! - exclamou Frederico - Este é o signor Dapertuto, muito conhecido como doutor em milagres; um charlatão maldito que vende a Giulietta drogas infernais...

- Quê! - interrompeu Spickherr - então este imbecil freqüenta a casa de Giulietta?

Antes que seu amigo pudesse replicar, ouviu, ao passarem sob um balcão, a voz argentina de Giulietta que o convidava a subir. A magia desse apelo perturbou a resolução de Erasmo. Mais embriagado do que nunca apela paixão, deixou-se de novo prender pela amorosa algema e acompanhou a bela cortesã a uma vila de recreio para onde ela se dirigia em busca de prazeres. Um jovem italiano, notavelmente feio de rosto e grosseiro de maneiras, se achava lá e perseguia Giulietta com seus galanteios. Erasmo sentiu todas as serpentes do ciúmes morderem-lhe o coração e afastou-se com ar sombrio. Giulietta correu atrás dele:

- Vamos, querido - disse-lhe languidamente - não és todo meu?...

Ao mesmo tempo em que falava, aproximou-se dele e roçou-lhe a face com um beijo.

- Para sempre! - exclamou Erasmo, abraçando-a inflamado de amor.

A florentina escapou-lhe habilmente e lançou-lhe um olhar cuja expressão quase o fez perder o pouco da razão que lhe restava. Voltaram ambos para a festa. O jovem italiano havia os acompanhado com os olhos e, fazendo-se de rival ofendido, vingou-se com amargos sarcasmos contra os alemães. Erasmo, que se irritava facilmente, ameaçou o italiano de rude correção. Este fez brilhar um punhal. Não podendo mais se conter, Erasmo saltou-lhe à garganta, derrubando-o por terra e assentou-lhe na cabeça um pontapé tão violento que o desgraçado perdeu os sentidos. Mas o estupor que esse acontecimento lhe causou deu-lhe também vertigens.

Quando voltou a si estava no boudoir de Giulietta.

- Meu pobre e querido alemão - dizia ela - quero salvar-te. Mas é preciso que abandones Florença o mais depressa possível. É preciso que me deixes para sempre, a mim que te amo tanto! Não nos veremos mais.

- Ah! - exclamou Spickherr - antes morrer de mil mortes. Mesmo que eu devesse perder a alma, sou teu para sempre!

- Oh! - continuou Giulietta - voltarás para tua esposa, a quem também amas e, ao lado dela, me esquecerás logo.

Ambos se achavam sentados diante de um magnífico espelho veneziano. A florentina prendeu Erasmo dentro de seus braços ebúrneos.

- Ah! se ao menos - disse ela com olhos úmidos - se ao menos me deixasses teu reflexo, enquanto esperássemos que o amor nos reunisse novamente...

- Meu reflexo!... que queres dizer?... Meu reflexo!... - balbuciou Erasmo, desconcertado. - Mas como poderias guardá-lo, se ele é inseparável de mim?

- Recusas, então? - disse ela, com um suspiro fundo. - Nada me restará da lembrança, nem mesmo esta fugitiva imagem que me sorri do fundo do espelho!

E as lágrimas tombavam como gotas de fogo, sobre o rosto do jovem alemão.

- Choras, Giulietta, minha adorada! - exclamou - Ah! já é preciso fugir para subtrair-me à desgraça que nos separaria para toda a vida, que, ao menos, eu te possa deixar, para a eternidade, esse reflexo cuja presença adoçará tuas recordações!...

Apenas acabara de falar, quando, lançando um olhar ao espelho, não mais viu a sua imagem. A mesma Giulietta, que ele apertava ao coração, esvaneceu-se como nuvem. Vozes fantásticas ressoavam no silêncio do apartamento deserto. Erasmo, transido de espanto, sentiu um véu gelado descer-lhe sobre os olhos; procurou a porta aos tateios, como um embriagado, abriu-a com dificuldade e desceu a escada num silêncio cheio de horror. Apenas alcançara a rua quando braços o agarraram no meio das trevas e o meteram numa carruagem, que partiu velozmente.

- Não tenha medo - disse-lhe uma voz. - Giulietta confiou-o aos nossos cuidados. Sabe que aquele estúpido italiano recebeu uma de que jamais se esquecerá? Esse acidente me entristece, pois Giulietta amava o senhor. No momento, não lhe resta alternativa senão escapar às garras da justiça e, se realmente insistir em não deixar Florença, sei de um meio de escondê-lo de todos os olhares...

- Oh! caro senhor - respondeu Erasmo, soluçante - como poderia fazê-lo?

- Nada mais fácil - continuou o desconhecido. - Tenho um segredo para tornar as pessoas irreconhecíveis, alterando-lhes os traços fisionômicos. Quando amanhecer, faremos uma tentativa e, olhando-se no espelho, o senhor mesmo será o juiz.

- Deus! - exclamou Erasmo - que horror!

- Não vejo nada de horrível - replicou o homem oculto. - Arranjar-lhe-ei um reflexo muito delicado.

- Ah! Devo confessar que ... que...

- Que houve?... Terá por acaso esquecido seu reflexo em casa de Giulietta? Se assim for, não há o que fazer senão voltar à sua pátria. Creio que sua querida esposa se importará pouco com o que perdeu, desde que o tenha de volta em carne e osso.

A certa altura, a carruagem cruzou com um bando de alegres convivas, que voltavam para casa a luz de tochas. Erasmo olhou para seu companheiro de viagem e reconheceu nele o homem de escarlate, a quem seu amigo Frederico chamava Dapertuto. Num átimo, saltou do veículo e correu à toda velocidade atrás dos condutores de tochas, entre os quais estava Frederico.

- Salva-me! - disse-lhe ao ouvido, com voz opressa - fiz uma loucura!

Mas não acrescentou que perdeu seu reflexo. Frederico levou-o para casa e, sem perda de tempo, arranjou-lhe meios de deixar Florença a cavalo, ao amanhecer.

O infeliz Spickherr escreveu a história dessa triste viagem. Suas aventuras são comoventes. Certo dia em que, morto de fadiga, desejava repousar numa hospedaria, cometeu a imprudência de se colocar diante de um espelho. O garçom, que servia a mesa, olhando por acaso para o vidro e não vendo refletido nele a imagem do freguês, comunicou esse fato surpreendente a um vizinho; este contou-o a outro e logo vários dos presentes começaram a gritar:

- Quem é este homem sem reflexo? É um maldito, um enfeitiçado, ou o Diabo em pessoa!

Erasmo salvou-se fechando-se no quarto onde contava poder passar a noite. Todavia, logo depois vieram agentes da polícia dizer-lhe que, em nome dos magistrados, deveria ou mostrar seu reflexo ou deixar a cidade sem perda de tempo.

Forçado a fugir através dos campos, para evitar as caravanas que cruzavam o caminho, ele não entrava nos albergues senão ao cair da noite; pedia ao proprietário para cobrir os espelhos; foi por isso que recebeu a alcunha de general Suwarow, porque, ao que se dizia, este general tinha a mesma mania.

Chegou, por fim, à sua cidade natal. A esposa o recebeu de braços abertos e ele acreditou, por um momento, que sua desgraça chegara ao fim. Tomando toda sorte de precauções, conseguiu dissimular a perda do seu reflexo. Conseguiu mesmo esquecer Giulietta. Mas, certa noite em que brincava com o filho, este tendo sujado as mãos na chaminé do fogão, comprimiu-as contra o rosto do pai, gritando alegremente:

- Veja, papai, como senhor ficou lambuzado!

Depois, escapando-se dos braços do pai, apanhou um espelho, colocando-o diante dele e espiando por cima do seu ombro. Antes que Spickherrr pudesse se erguer, o pequeno, não vendo no vidro o reflexo do pai, deixou cair o espelho e fugiu, chorando. Ao ruído, apareceu a mãe.

- Que é que me diz a criança? - perguntou ela.

- Ei! Por Deus - respondeu Spickherr, com um riso forçado - ele te diz que não tenho reflexo. Pois bem! Que importa? Um reflexo não é mais que uma ilusão, minha querida; quem se olha ao espelho, peca por vaidade; Deus me livre desse pecado!

A pobre mulher agarrou o marido pela mão, arrastou-o, como se arrasta um culpado, até diante do espelho e, dando-se conta da horrível verdade, transformou-se numa megera furiosa.

- Vai embora - gritou - vai para bem longe daqui, maldito; deves ter feito algum pacto com o Demônio! Ou talvez nem sejas meu Erasmo: és um espírito do inferno!

Persignou-se inúmeras vezes. Erasmo, desesperado, abandonou a casa a correr e foi se refugiar numa campina deserta. Enquanto errava ao azar, roído de mil angústias, a imagem de Giulietta lhe apareceu de repente, mais bela do que nunca.

- Ai - disse ele - que te fiz para que me persigas? Minha mulher me abandonou, não tenho mais nenhum afeto sobre a terra; tem piedade, Giulietta, tem piedade de mim. Onde te reencontrarei agora?

- Bem perto daqui, meu caro, pois ela está ansiosa por revê-lo - respondeu uma voz atrás dele. Voltou-se, muito surpreso, e deu de cara com o odioso Dapertuto, que o mirava com olhar sardônico.

- Sou seu humilde servidor - continuou o homem - e afirmo-lhe que tão logo Giulietta esteja certa de poder possuí-lo em pessoa, terá imenso prazer em devolver-lhe o reflexo que, evidentemente, não pode saciar seu amor.

Erasmo estava fora de si.

- Leve-me a ela - exclamou - e lhe pertencerei sem qualquer reserva...

- Perdão - disse Dapertuto - isso exige o cumprimento de uma formalidade. O senhor está comprometido por ligações que devem ser rompidas, visto que Giulietta quer possuí-lo sem partilha. Ora, sua mulher e seu filho...

- Ah! minha mulher... meu filho...

- É preciso desembaraçar-se deles; oh! mas de uma maneira muito simples, que não o comprometerá. Tenho aqui, dentro de um pequeno frasco, um elixir, do qual duas gotas apenas livram a pessoa de toda sorte de importunos. Estes não farão, garanto-lhe, sequer uma careta. Tome, meu caro, isto exala um ligeiro perfume de amêndoas que provoca um sono... um sono definitivo.

- Miserável! - urrou Erasmo - Ousas então propor-me tal crime?

- Éh! Quem fala de crime? - replicou Dapertuto. - O senhor deseja rever Giulietta e lhe ofereço o meio, eis tudo. Tome logo o frasco e não banque a mulherzinha.

Erasmo, preso de vertigens, achou-se de súbito com o frasco na mão e diante do leio no qual sua mulher se agitava nas aflições de um pesadelo. O pobre marido sentiu o coração partir-se-lhe no peio ante este espetáculo. Abriu a janela, jogou o frasco bem longe e foi-se fechar no quarto vizinho, para chorar seu destino. A lembrança de Giulietta veio atormentá-lo.

- Anjo ou demônio - gritou ele - causa da minha desgraça. Pois bem! Aceito meu destino: aparece mais uma vez diante de meus olhos; quero morrer revendo-a!

Nesse instante, soou meia-noite. À última pancada do relógio, Giulietta apareceu.

- Meu bem amado - disse-lhe - guardei fielmente teu reflexo: ei-lo!

O véu que cobria o espelho tombou e Erasmo viu sua imagem enlaçada a da bela florentina.

- Oh! se me amas, devolve-me o reflexo; devolve-me, por piedade! - disse ele, caindo de joelhos. - Mas não posso comprá-lo ao preço do crime que me exige Dapertuto!

- Escuta - continuou Giulietta - não podemos nos unir senão quando teus laços estejam rompidos. Um padre os atou; somente tu podes renunciar a eles. Mas não é preciso que o faças pessoalmente; toma apenas este papel e escreve em cima que renuncias à tua família terrestre para me pertencer eternamente...

Erasmo tremia. Giulietta o beijava ardentemente. Subitamente, viu erguer-se de trás dela a figura de Dapertuto, que lhe apresentava uma pena de ferro. Nesse mesmo instante, uma veia de sua mão esquerda rebentou e o sangue começou a jorrar.

- Escreve! Escreve! - dizia Dapertuto, com voz metálica.

- Escreve meu bem-amado! - dizia Giulietta, cujos véus haviam caído para oferecer aos olhares fascinados de Erasmo todos os tesouros da mais voluptuosa das belezas.

Ele tomou da pena, molhou-a no sangue e ia assinar, quando um fantasma pálido entrou no quarto e pronunciou estas palavras, com voz sepulcral:

- Erasmo! Erasmo! Queres dar tua alma ao Diabo? Em nome de Jesus, pára...

Erasmo reconheceu a voz de sua esposa.

Ao ser pronunciado o nome sagrado, Giulietta mudou de aspecto e transformou-se num espectro de fogo.

- Para trás, Satã! - gritou Spickherr - volta ao inferno de onde saíste!

Logo em seguida um tremor de fazer medo estremeceu a casa; o chão se abriu e Giulietta e Dapertuto desapareceram numa nuvem de vapor sulfuroso. Depois, tudo voltou ao silêncio.

Quando Erasmo, aturdido, conseguiu coordenar as idéias, a luz do dia penetrava no quarto. Voltou para junto da esposa. Esta já estava desperta e brincava com o filho na cama.

- Meu amigo - disse-lhe ela com doçura - agora sei da aventura que tiveste na Itália. Estou contristada; vê como são astutas as partidas pregadas pelo Demônio, que te roubou o reflexo que eu tanto gostava de ver sorrindo para mim, no espelho! De hoje em diante não podes mais continuar a ser um respeitável chefe de família; todos de apontarão com o dedo. Sugiro que te ponhas a caminho e comeces a viajar em busca do teu reflexo. Tão logo o encontres, conforme espero, apressa-te em voltar. Esperar-te-ei com impaciência e rever-te-ei com alegria. Beija-me e parte com Deus. Lembra-te de enviar, de vez em quando, algum confeito ou brinquedo ao teu filho, para que ele não te esqueça.

Spickherr, o coração opresso, beijou a esposa e o filho, apanhou o bordão e pôs-se a caminho. Encontrou certo dia o famoso Pedro Schlemihl, que havia perdido a sombra. Os dois desafortunados propuseram-se viajar juntos; Spickherr entrava com a sua sombra e Schlemihl com seu reflexo. Mas não conseguiram chegar a nenhum acordo e, até hoje, ninguém sabe o que lhes aconteceu.

 

                  O Senhor Diabo - Eça de Queirós

Como está provado que sou redondamente inapto para escrever Revistas, dizer finamente das Modas, e falar da literatura contemporânea herdeira honesta do defunto sr. Prudhomme, é justo, ao menos, que de vez em quando conte uma história amorosa, uma daquelas historias femininas e macias, que nos seroes de Trieste faziam adormecer nas suas cadeiras douradas as senhoras arquiduquesas de Áustria.

 

         Conhecem o Diabo?

 

Não serei eu quem lhes conte a vida dele. E, todavia, sei de cor a sua legenda trágica, luminosa, celeste, grotesca e suave!

O Diabo é a figura mais dramática da História da Alma. A sua vida é a grande aventura do Mal. Foi ele que inventou os enfeites que enlanguescem a alma, e as armas que ensangüentam o corpo. E todavia, em certos momentos da história, o Diabo é o representante imenso do direito humano. Quer a liberdade, a fecundidade, a força, a lei. É então uma espécie de Pã sinistro, onde rugem as fundas rebeliões da Natureza. Combate o sacerdócio e a virgindade; aconselha a Cristo que viva, e aos místicos que entrem na humanidade.

É incompreensível: tortura os santos e defende a Igreja. No século 16 é o maior zelador da colheita dos dízimos.

É envenenador e estrangulador. É impostor, tirano, vaidoso e traidor. Todavia, conspira contra os imperadores da Alemanha; consulta Aristóteles e Santo Agostinho, e suplicia Judas que vendeu Cristo e Bruto que apunhalou César.

O Diabo ao mesmo tempo tem uma tristeza imensa e doce. Tem talvez nostalgia do Céu!

Ainda novo, quando os astros lhe chamavam Lúcifer, o que leva a luz, revolta-se contra Jeová e comanda uma grande batalha entre as nuvens.

Depois tenta Eva, engana o profeta Daniel, apupa Jó, tortura Sara e em Babilônia é jogador, palhaço, difamador, libertino e carrasco. Quando os deuses foram exilados, ele acampa com eles nas florestas úmidas da Gália e embarca expedições olímpicas nos navios do imperador Constâncio. Cheio de medo diante dos olhos tristes de Jesus, vem torturar os monges do Ocidente.

Escarnecia S. Macário, cantava salmos na igreja de Alexandria, oferecia ramos de cravos a Santa Pelágia, roubava as galinhas do abade de Cluny, espicaçava os olhos de S. Sulpício e à noite vinha, cansado e empoeirado, bater à portaria do convento dos dominicanos em Florença e ia dormir na cela de Savonarola.

Estudava o hebreu, discutia com Lutero, anotava glosas para Calvino, lia atentamente a Bíblia e vinha ao anoitecer para as encruzilhadas da Alemanha jogar, com os frades mendicantes, sentados na relva, sobre a sela do seu cavalo.

Intentava processos contra a Virgem; e era o pontífice da missa negra, depois de ter inspirado os juízes de Sócrates. Nos seus velhos dias, ele que tinha discutido com Átila planos de batalha, deu-se ao pecado da gula.

E Rabelais, quando o viu assim, fatigado, engelhado, calvo, gordo e sonolento, apupou-o. Então o demonógrafo Wier escreve contra ele panfletos sanguinolentos e Voltaire criva-o de epigramas.

O Diabo sorri, olha em roda de si para os calvários desertos, escreve suas memórias e num dia enevoado, depois de ter dito adeus aos seus velhos camaradas, os astros, morre enfastiado e silencioso. Então Ceranger escreve-lhe o epitáfio.

O Diabo foi celebrado, na sua morte, pelos sábios e pelos poetas. Proclus ensinou a sua substância, Presul as suas aventuras da noite, S. Tomás revelou seu destino. Torquemada disse a sua maldade, e Pedro de Lancre a sua inconstância jovial. João Dique escreveu sobre sua eloquência e Jacques I de Inglaterra fez a corografia de seus estados. Milton disse a sua beleza e Dante a sua tragédia. Os monges ergueram-lhe estátuas. O seu sepulcro é a Natureza.

O Diabo amou muito.

Foi namorado gentil, marido, pai de gerações sinistras. Foi querido, na Antigüidade, da mãe de César e na Meia Idade foi amado da bela Olímpia. Casou no Brabante com a filha de um mercador. Tinha entrevistas lânguidas com Fredegonda, que assassinou duas gerações. Era o namorado das frescas serenatas das mulheres dos mercadores de Veneza.

Escrevia melancolicamente às monjas dos conventos da Alemanha.

Feminae in illius amore delectantur, diz tragicamente o abade César de Helenbach. No século 12, tentava com olhares cheios de sol as mães melodramáticas dos Burgraves. Na Escócia havia grande miséria sobre os montes: o Diabo comprava por 15 shillings o amor das mulheres dos highlanders e pagava com o dinheiro falso que fabricava em companhia de Filipe I, de Luís VI, de Luís VII, de Filipe, o Belo, do rei João, de Luís XI, de Henrique II, com o mesmo cobre de que se faziam as caldeiras onde eram cozidos vivos os moedeiros falsos.

 

Mas eu quero só contar a história de um amor infeliz do Diabo, nas terras do Norte.

Ó mulheres! Vós todas que tendes dentro do peito o mal que nada cura, nem os simples, nem os bálsamos, nem os orvalhos, nem as rezas, nem o pranto, nem o sol, nem a morte, vinde ouvir essa história florida!

Era na Alemanha, onde nasce a flor do absinto.

AA casa era de pau, bordada, rendilhada, cinzelada, como a sobrepeliz do senhor arcebispo de Ulm.

Maria, clara e loura, fiava na varanda, cheia de vasos, de trepadeiras, de ramagens, de pombas e de sol. No fundo da varanda havia um Cristo de marfim. As plantas limpavam piedosamente com as suas mãos de folhas, o sangue das chagas, as pombas, com o calor do seu colo, aqueciam os pés doloridos. No fundo da casa, o pai dela, o velho, bebia a cerveja de Heidelberg, os vinhos da Itália, e as cidras da Dinamarca. Era vaidoso, gordo, sonolento e mau.

E sempre a rapariga fiava. Preso à roca por um fio branco, sempre o fuso saltava; preso ao seu coração por uma tristeza, sempre pulava um desejo.

E todo o dia fiava.

Ora debaixo da varanda passava um lindo moço, delicado, melodioso e tímido. Vinha e encostava-se ao pilar fronteiro.

Ela, sentada junto ao crucifixo, cobria os pés de Jesus com os seus grandes cabelos louros.

As plantas, as folhagens, em cima, cobriam de frescura e de sombra a cabeça da imagem. Parecia que toda a alma de Cristo estava ali - consolando, em cima, sob a forma de planta, amando, em baixo, sob a forma de mulher.

Ele, o branco moço, era o peregrino daquela santa. E o seu olhar procurava sempre o coração da doce rapariga e o olhar dela, séria e branca, ia procurar a alma do caro bem-amado.

Os olhos investigavam as almas. E vinham radiosos, como mensageiros de luz, contar o que tinham visto: era um encanto!

- Se tu soubesses! - dizia um olhar. - A alma dela é imaculada.

- Se tu visses! - dizia o outro. - O coração dele é sereno, forte e vermelho.

- É consolador, aquele peito onde há estrelas!

- É purificador, aquele seio onde há bênçãos!

E olhavam ambos, silenciosos, extáticos, perfeitos. E a cidade vivia, as arvores rosnavam sob o balcão dos eleitores, a trompa de caça soava nas torres, os cantos dos peregrinos nas estradas, os santos liam nos seus nichos, os diabos escarneciam na grimpa das igrejas, as amendoeiras tinham flor e o Reno cantigas de ceifeiras.

E eles olhavam-se, as folhagens aninhavam os sonhos, e Cristo aninhava as almas.

Ora, uma tarde, as ogivas estavam radiosas como mitras de arcebispos, o ar estava meigo, o sol descido, os santos de pedra estavam corados, ou dos reflexos da luz, ou dos desejos da vida. Maria na varanda fiava a sua estriga. Jusel, encostado ao pilar, fiava os seus desejos.

Então, no silêncio, ao longe, ouviram gemer a guitarra de Inspruck que os pastores de Helyberg enroscam de hera, e uma voz robusta cantar:

 

         Os teus olhos, bem-amada,

         São duas noites cerradas.

         Mas os lábios são de luz

         Lá se cantam alvoradas.

 

         Os teus seios, minha graça,

         São duas portas de cera,

         Fora a minha boca um sol

         Como ele as derretera!

 

         Os teus lábios, flor de carne,

         São portas do Paraíso:

         E o banquinho de S. Pedro

         É no teu dente do siso.

 

         Queria ter uma camisa

         De um tecido bem fiado

         Feita de todos os ais

         Que o teu peito já tem dado.

 

         Quando nos formos casar

         Canta missa o rouxinol

         E o teu vestido de noiva

         Será tecido de sol!

 

         A bênção nos deitará

         Algum antigo carvalho!

         E por enfeites de boda

         Teremos gotas de orvalhos!

 

E ao cimo da rua apareceu um homem forte, de uma bela palidez de mármore. Tinha os olhos negros como dois sóis legendários do país do Mal. Negros eram os cabelos, poderosos e resplandecentes. Tinha presa ao peito do corpete uma flor vermelha de cacto.

Atrás vinha um pajem perfeito como uma das antigas estátuas que fizeram da Grécia a lenda da beleza. Andava convulsivamente como se ferisse os pés no lajedo. Tinha os olhos inertes e fixos dos Apolos de mármore. Dos seus vestidos saía um cheiro de ambrosia. A testa era triste e serena como as dos que têm a saudade imortal de uma pátria perdida. Trazia na mão uma ânfora esculpida em Mileto, onde se sentia a suavidade dos néctares olímpicos.

O homem da palidez de mármore veio até junto a varanda e, entre as súplicas gemidas da guitarra, disse sonoramente:

- A gentil moça, a linda Yseult da varanda, deixa que estes beiços de homem vão, como dois peregrinos corados de sol, em doce romaria de amor, das suas mãos ao seu colo?

E olhando para Jusel, que desfolhava uma margarida, cantou lentamente, com grandes risadas frias e metálicas:

Quem depena um rouxinol

E rasga uma triste flor,

Mostra que dentro do peito

Só tem farrapos de amor.

E ergueu para a varanda os seus olhos terríveis e desoladores, como blasfêmias de luz. Maria tinha levantado a sua roca e só havia na varanda as aves, as flores e Jesus.

- A toutinegra voou - disse jovialmente.

E indo para Jusel:

- É que talvez sentisse a vizinhança do abutre. Que diz o Bacharel?

Jusel, com os olhos serenos, desfolhava a margarida.

- No meu tempo, senhor Suspiro - disse o homem dos olhos negros, cruzando lentamente os braços - já havia aqui duas espadas, a fazer rebentar na sombra flores de faíscas. Mas os heróis vão-se, e os homens nascem cada vez mais da dor das mulheres. Vejam isso! É um coração com gibão e gorra. Mas coração branco, pardo, alvacento, de todas as cores, menos vermelho e sólido. Pois bem! Aquela rapariga tem uns cabelos louros que dizem bem com os meus cabelos pretos. As cintas delgadas querem braços fortes. Os lábios vermelhos de desejam gostam as armas vermelhas de sangue. É minha a dama, senhor Bacharel!

Justel tinha descido as suas grandes pálpebras elegíacas e via as pétalas arrancadas da margarida caírem como desejos assassinados, desprendidos do seu peito.

O homem dos olhos resplandecentes tomou-lhe rigidamente a mão.

- Bacharel Ternura - disse - há aqui perto um lugar onde os goivos nascem expressamente para os inocentes que morrem. Se tens alguns bens a deixar, recomendo-te este excelente Rabil. - Era o pajem. - É necessário proteger as aves da noite. Os abutres bocejam desde que findou a guerra. Vou-lhes dar ossos tenros. Se queres deixar o coração à bem-amada, à moda dos trovadores, eu me encarrego de lho trazer, bem embalsamado, em lama, na ponta da espada. Tu és formoso, amado, branco, delicado, perfeito. Vê-me isto, Rabil. É uma farsa bem feita ao Compadre lá de cima dos sóis, dilacerar-lhe esta beleza! Se namoravas alguma estrela, eu lhe mandarei por bom portador os teus últimos adeuses. Enquanto aos sacramentos, são inúteis; eu me encarrego de te purificar pelo fogo. Rabil, toca na guitarra o rondoó de defuntos: anuncia no Inferno, o Bacharel Suspiro! A caminho, meus filhos! Ah! Mas em duelo secreto, armas honradas!

E batendo heroicamente nos copos da espada:

- Eu tenho aqui esta debilidade, onde está a tua força?

- Ali! - respondeu Jusel, mostrando Cristo na varanda, entre a folhagem, agonizante entre as palpitações das asas.

- Ah! - disse cavamente o homem da flor de cacto. A mim, Rabil! Lembras-te de Actéon, de Apolo, de Derceto, de Íaco e de Marte?

- Eram os meus irmãos - disse lentamente o pajem, hirto como uma figura de pedra.

- Pois bem, Rabil, para a frente, através da noite. Cheira-me aqui às terras de Jerusalém.

Na noite seguinte havia pela Alemanha um grande luar purificador. Maria estava debruçada na varanda. Era a hora celeste em que os jasmins concebem. Em baixo, o olhar de Jusel, que estava encostado aopilar, suspirava para aquele corpo feminino e branco, como nos jardins a água que sobe em repuxo suspira para o azul.

Maria disse suspiradamente:

- Vem.

Jusel subiu à varanda, radioso. Sentaram-se ao pé da imagem. O ar estava tão sereno como na pátria das armas. Os dois corpos dobraram-se, um para o outro, como se estivessem aproximando os braços de um Deus.

As folhagens escuras que envolviam Cristo estendiam-se sobre as duas cabeças louras com gestos de bênção. Havia na moleza das sombras um mistério nupcial. Jusel tinha as mãos dela presas como pássaros cativos e dizia:

- Queria bem ver-te, assim, ao pé de mim. Se soubesses! Tenho receios infinitos. És tão loura, tão branca! Tive um sonho que me assustou. Era num campo. Tu estavas de pé, imóvel. Ouviu-se um coro que cantava dentro do teu coração! Em redor andava uma dança nebulosa de espíritos. E diziam uns: "Aquele coro é dos mortos: são os amantes infelizes que choram no coração daquela mulheres." Outros diziam: "Sim, aquele coro é de mortos: são os nossos deuses queridos que choram ali no exílio." E então adiantei-me e disse: "Sim, aquele coro é dos mortos, são os desejos que ela teve por mim, que se lembram e que gemem." Que sonho tão mau, tão mau!

- Por que estás tu - dizia ela - todos os dias encostado ao pilar, com as mãos quase postas?

- Estou a ler as cartas de luz que os teus olhos me escrevem.

Calaram-se. Eles eram naquele momento alma florida da noite.

- Quais são os meus olhos? Quais são os teus olhos? Dizia Jusel. - Nem eu sei!

E ficaram calados. Ela sentia os desejos que se desprendiam dos olhos dele, virem, como pássaros feridos, que gemem, cair no fundo da sua alma, sonoramente.

E inclinando o corpo:

- Conheces meu pai? - disse ela.

- Não. Que importa?

- Ai, se tu soubesses!

- Que importa? Estou aqui. Se ele te quer bem, há de gostar deste meu amor, sempre aos teus pés, como um cão. És uma santa. Os cabelos de Jesus nascem do teu coração. O que quero eu? Ter a tua alma presa, bem presa, como um pássaro esquivo. Esta paixão toda, deixa-te tão imaculada, que se morresses podias ser enterrada na transparência do azul. Os desejos são uma hera: queres que os arranque? Tu és o pretexto da minha alma. Se me não quisesses deixava-me andar esfarrapado. Tens lá a fé de Jesus e a saudade de tua mãe: deixa estar: damo-nos todos bem, lá dentro, contemplando o interior do teu olhar, como um céu estrelado. Que quero de ti? As tuas penas. Quando chorares, vem a mim. Farei a alma em farrapos para tu limpares os olhos. Queres tu? Casemo-nos no coração de Jesus. Dá-me essa agulheta, que tu prende o cabelo. Será a nossa estola.

E com a ponta da agulheta, gravou sobre o peito de Cristo as letras dos dois nomes enlaçadas - J. e M.

- É o nosso noivado - disse ele. O céu atira-nos os astros, confeitos de luz. Cristo não se esquecerá deste amor que chora aos seus pés. As exalações divinas que saírem do seu peito aparecerão, lá em cima, com a forma das nossas letras. Deus saberá este segredo. Que importa? Eu já lho tinha dito, a ele, às estrelas, às plantas, aos pássaros, porque, vês tu? As flores, as constelações, a graça, as pombas, tudo isso, toda esta efusão de bondade, de inocência, de graça, era simplesmente, ó adorada, um eterno bilhete de amor que eu te escrevia.

E ajoelhados, extáticos, calados, sentiam misturar-se ao seu coração, às suas confidências, aos seus desejos, toda a vaga e imensa bondade da religião da graça.

E as suas almas falavam cheias de mistério.

- Vês tu? - dizia a alma dela - Quando te vejo, parece que Deus diminui, e se contrai, e se vem aninhar todo no teu coração; quando penso em ti, parece-me que o teu coração se alarga, se estende, abrange o céu, e os universos, e encerra por toda a parte Deus!

- O meu coração - suspirava a alma dele - é uma concha. O teu amor é o mar. Muito tempo esta concha viverá afogada e perdida neste mar. Mas se tu expulsares de ti, como numa concha abandonada se ouve ainda o rumor do mar, no meu coração abandonado se escutará sempre o sussurro do meu amor!

- Olha - dizia a alma dela - eu sou com um campo. Tenho árvores e relvas. O que há em mim de maternidade é árvore para te cobrir, o que há em mim de paixão é relva para tu pisares!

- Sabes tu? - dizia a alma dele - No céu há uma floresta invisível de que apenas se vêem as pontas das raízes que são as estrelas. Tu eras a toutinegra daqueles arvoredos. Os meus desejos feriram-te. Eu, há muito que te vejo vir caindo pelo ar, gemendo, resplandecente, se o sol te alumia, triste, se a chuva te molha. Há muito que te vejo descendo - quando cairás tu nos meus braços?

E a alma dela dizia: "Cala-te". Não falavam.

E as duas almas, desprendidas dos corpos bem-amados, subiam, tinham o céu por elemento, os seus risos eram os astros, a sua tristeza a noite, a sua esperança a madrugada, o seu amor a vida, e sempre mais ternas e mais vastas envolviam tudo o que do mundo sobre de justo, perfeito, casto, as orações, os prantos, os ideais, e estendiam-se por todo o céu, unidas e imensas - para Deus passar por cima!

E então à porta da varanda houve uma risada metálica, imensa e sonora. Eles ergueram-se resplandecentes, puros, vestidos de graça. À porta estava o pai de Maria, hirto, gordo, sinistro. Atrás, o homem de palidez de mármore balançava vaidosamente a pluma escarlate da gorra. O pajem ria, fazendo uma claridade na sombra.

O pai lentamente foi para Jusel e disse, com escárnio:

- Onde queres ser enforcado, vilão?

- Pai, pai! - E Maria, aflita, com uma convulsão de lágrimas, enlaçava o corpo do velho. - Não. É meu marido, casamos as almas. Olhe, ali está. Veja! Ali, na imagem!

- O quê?

- Ali, no peito, veja. Os nossos nomes enlaçados. É meu marido. Só me quer bem. Mas seja, sobre o peito de Jesus, no lugar do coração. Mesmo sobre o coração. E ele, o doce Jesus, deixou que lhe fizessem mais esta ferida!

O velho olhava as letras como uns esponsais divinos que se tinham refugiado no seio de Cristo.

- Raspa, meu velho, que isso é marfim! - gritou o homem dos olhos negros.

O velho foi para a imagem com a faca no cinturão. Tremia. Ia arrancar as raízes daquele amor, até ao peito imaculado de Jesus!

E então a imagem, sob o justo e incorruptível olhar da luz, despregou uma das suas mãos feridas, e cobriu sobre o peito as letras desposadas.

- É ele, Rabil! - gritou o homem da flor de cacto.

O velho soluçava.

E entoa o homem pálido, que tocava guitarra, veio tristemente junto da imagem, enlaçou os braços dos namorados, como se vê nas velhas estampas alemãs, e disse ao pai:

- Abençoa-os, velho!

E saiu batendo rijamente nos copos da espada.

- Mas quem é? - disse o velho apavorado.

- Mais baixo! - disse o pajem da ânfora de Mileto - É o senhor Diabo... Mil desejos, meus noivos.

 

Pelas horas da madrugada, na estrada, o homem dos cabelos negros dizia ao pajem:

- Estou velho. Vai-se-me a vida. Sou o último dos que combateram nas estrelas. Os abutres já me apupam. É estranho: sinto nascer cá dentro, no peito, um rumor de perdão. Gostava daquela rapariga. Lindos cabelos louros, quem vos dera no tempo do céu. Já não estou para aventuras de amor. A bela Impéria diz que me vendi a Deus.

- A bela Impéria! - disse o pajem. - As mulheres! Vaidades, vaidades.! As mulheres belas foram-se com os deuses belos. Hoje os homens são místicos, frades, santos, namorados, trovadores. As mulheres são feias, avaras, magras, burguesas, finadas de cilícios, com uma pouca de alma incomoda, e uma carne tão diáfana que se vê através do lodo primitivo.

- Vou achando risível a obra dos Seis Dias. As estrelas tremem de medo e de dor. A Lua é um sol fulminado. Começa a escassear o sangue pelo mundo. Eu tenho gasto o mal. Fui pródigo. Se eu no fim da vinha tinha de me entreter perdoando e consolando - para noa morrer de tédio. Fica-te em paz, mundo! Sê infame, lamacento, podre, vil e imundo, e sê, todavia, um astro no céu, impostor! E todavia o homem não mudou. É o mesmo. Não viste? Aquele, para amar, feriu com uma agulheta o peito da imagem. Como nos tempos antigos, o homem não começa a gozar um bem, sem primeiro rasgar a carne a um Deus! É esta minha última aventura. Vou para o meio da Natureza, para junto do livre mar, pôr-me sossegadamente a morrer.

- Também os diabos se vão. Adeus, Satã!

- Adeus, Ganímedes!

E o homem e o pajem separaram-se na noite.

A poucos passos, o homem encontrou um cruzeiro de pedra.

- Estás também deserto - disse, olhando para a cruz. Os infames pregaram-te e voltaram-te as costas! Foste maior que eu. Sofreste calado.

E sentando-se nos degraus do cruzeiro, enquanto vinha a madrugada, afinou a guitarra e cantou no silêncio:

 

         Quem vos desfolhou estrelas,

         Dos arvoredos da luz?

 

E com uma risada melancólica:

 

         Chegará o Outono ao Diabo?

         Virá o Inverno a Jesus?

         O substituto

         Guy de Maupassant

 

- Mme Bonderoi?

- Sim, Mme Bonderoi.

- Não é possível.

- Posso garantir-lhe.

- Mme Bonderoi, a velha dama das coifas de renda, a devota, a santa, a respeitável Mme Bonderoi de cabelinhos revoltos e falsos que parecem colados em volta do crânio.

- Ela mesma.

- Você está doido?

- Juro-lho.

- Conte-me lá isso com todos os pormenores!

- Então, ouça. No tempo do Sr. Bonderoi, o antigo notário, Mme Bonderoi utilizava-se, ao que se diz, dos escreventes, para seu serviço particular. É uma dessas respeitáveis burguesas de vícios secretos e princípios inflexíveis, como há muitas. Gostava dos moços bonitos. Que há nisso de estranho? Não gostamos nós, também, de moças bonitas?

Morto o velho Bonderoi, a viúva começou a viver dos seus rendimentos, pacata e irreprochável. Freqüentava assiduamente a igreja, falava desdenhosamente do próximo e não dava pasto às más línguas.

Depois envelheceu, e é hoje essa pequenina e respeitável senhora que você conhece, toda dengosa, quizilenta, má.

Eis aqui a inverossímil aventura ocorrida na última quinta-feira.

Como você sabe, o meu amigo Jean d'Anglemare é capitão de dragões, aquartelado no faubourg de La Rivette.

Chegando outro dia de manha ao quartel, soube que dois homens de sua companhia se tinham propinado uma formidável surra. A honra militar tem leis severas. Houve duelo. Depois, os soldados reconciliaram-se; e, interrogados por seu oficial, contaram-lhe o motivo da questão. Tinham-se batido por Mme Bonderoi.

- Oh!

- É o que lhe digo, me amigo, por Mme Bonderoi.

Mas demos a palavra ao cavalariano Saballe:

"Vou contar-lhe tudo, meu capitão. Há cerca de dezoito meses, passeando pela avenida, entre as seis e sete horas da tarde, abordou-me uma paisana.

"Disse-me, como quem me pergunta o caminho: "Militar, quer ganhar honradamente dez francos por semana?"

Respondi-lhe sinceramente: "Pois não, Madame! Às suas ordens."

Então ela acrescentou: "Procure-me amanhã, ao meio-dia. Sou Mme Bonderoi, Rua de La Tranchés, 6.

- Não faltarei, madame; esteja descansada.

Depois, deixou-me com um ar de muito satisfeita, acrescentando: "Agradeço-lhe muito, militar."

- O agradecido sou eu, Madame.

Não descansei, de impaciência, até o dia seguinte.

Ao meio-dia, chamei à sua porta.

Ela mesma veio abrir, em pessoa. Tinha um molho de fitas pequeninas, na cabeça.

"Despachemo-nos, disse, porque pode entrar a empregada.

Respondi-lhe: "Despachar-me? Com muito gosto, mas que devo fazer?"

Então, ela se pôs a rir e redargüiu: "Não te faças de sonso, grande finório!"

Palavra de honra, meu capitão, que não compreendi nada.

Sentou-se pertinho de mim, e disse-me: "Se repetes uma palavra de tudo isto, vais dar com os ossos numa prisão. Jura que serás mudo."

Jurei-lhe o que queria. Mas ainda não compreendia nada. Suava em bica. Tirei o capacete e, de dentro, o lenço. Ela pegou no lenço e secou-me os cabelos das fontes. Nessa altura, pregou-me um beijo e disse-me ao ouvido:

"Aceitas?"

Respondi: aceito tudo o que a senhora quiser. Não estou aqui para outra coisa."

Fez-me então, compreender abertamente por meio de outras manifestações. Quando vi do que se tratava, pus o capacete em cima duma cadeira e demonstrei-lhe que um dragão não pode recuar nunca, meu capitão.

Verdade seja dita, o caso não me sorria muito, porque a paisana não estava, digamos, na primeira juventude.

Mas a gente não pode ser muito exigente no ofício, porque a grana anda muito escassa. E depois, temos que sustentar a família. Eu dizia comigo: "São cem soldos para o papai."

Feito o frete, meu capitão, preparei-me para me retirar. Queria que eu ficasse um pouco mais.

Mas eu disse-lhe: "Tratos são tratos, madame. Um cálice custa dois soldos, e dois, quatro."

Compreendeu bem o meu raciocínio e meteu-me na mão um pequeno napoleão de dez francos. Não gosto muito dessa moeda. Corre para o fundo do bolso e, quando as calças estão mal cosidas, vai parar às botas, ou não se encontra mais.

E, pensando nisto, não tirava os olhos dessa placa dourada. Ela contemplou-me, corou, interpretou mal minha expressão e perguntou-me:

"Achas pouco?"

Respondi-lhe:

"Não é precisamente isso, madame, mas se não lhe faz grande diferença, gostaria de ter duas peças de cinco."

Deu-mas e retirou-se.

Há ano e meio que isso dura, meu capitão. Vejo-a todas as terças-feiras, à noite, quando meu capitão tem a bondade de me dar licença. Prefere de noite, porque a empregada já está deitada.

Na última semana senti-me um tanto indisposto e baixei à enfermaria. Na terça-feira, não houve meio de sair, e eu me remoía os fígados por aqueles dez francos, a que já estava habituado.

E pensei: "Se não vai lá ninguém, estou frito; pegará, com certeza, num artilheiro." E a idéia revoltava-me.

Então, mandei chamar o Paumelle, que é da minha terra, e disse-lhe a coisa: "Cinco para ti e cinco para mim, está feito?"

Concordou e partiu. Tinha-lhe dado todas as indicações. Chamou; veio ela abrir; mandou-o entrar; não lhe olhou para a cabeça, e não reparou logo que não era o mesmo.

O senhor compreende, meu capitão, um dragão de capacete parece-se com outro dragão.

Mas, de pronto, descobriu a transformação, e perguntou com ar colérico:

"Quem é você? Que quer daqui? Não o conheço!

Então Paumelle lhe explicou. Disse-lhe que eu estava adoentado e que o havia mandado para me substituir.

Olhou-o de alto a baixo, fez-lhe jurar o segredo, e aceitou-o depois, como é natural, visto que o Paumelle também é bem parecido.

Mas quando aquele sabido voltou, meu capitão, não me quis dar os cinco francos. Se fossem para mim, não teria dito nada, mas eram para o meu pai, e quando me tocam nisso não admito brincadeiras.

Eu, então, disse-lhe:

"Não são processos muito delicados para um dragão; estás desonrando o uniforme."

"Levantou-me a mão, capitão, dizendo-me que um frete desses valia mais do que o dobro.

Cada qual tem a sua opinião, não é verdade? Ninguém o obrigou a aceitar. E preguei-lhe um soco no nariz. O meu capitão já sabe o resto."

O capitão d'Anglemare ria a bandeiras despregadas, quando me contava a história. Mas fez-me também jurar o segredo a que se havia comprometido com os dois soldados. Espero, pois, que você não me traia; prometa-me guardar isso para você?

- Não tenha receio. Mas que solução teve o caso?

- É muito simples. Há mil como esse! A velha Bonderoi conserva os seus dois dragões, marcando dia certo para cada um. Assim todo o mundo está contente.

- Formidável! Extraordinária essa história!

- E aos velhos pais não falta o pão na mesa. A moral está satisfeita.

 

                   O Tesouro - Eça de Queirós

Os três irmãos de Medranhos, Rui, Guanes e Rostabal, eram então, em todo o Reino das Astúrias, os fidalgos mais famintos e os mais remendados.

 

Nos Paços de Medranhos, a que o vento da serra levara vidraça e telha, passavam eles as tardes desse Inverno, engelhados nos seus pelotes de camelão, batendo as solas rotas sobre as lajes da cozinha, diante da vasta lareira negra, onde desde muito não estalava lume, nem fervia a panela de ferro. Ao escurecer devoravam uma côdea de pão negro, esfregada com alho.

 

Depois, sem candeia, através do pátio, fendendo a neve, iam dormir á estrebaria, para aproveitar o calor das três éguas lazarentas que, esfaimadas como eles, roíam as traves da manjedoura. E a miséria tornara estes senhores mais bravios que lobos.

 

Ora, na Primavera, por uma silenciosa manhã de domingo, andando todos três na mata de Roquelanes a espiar pegadas de caça e a apanhar tortulhos entre os robles, enquanto as três éguas pastavam a relva nova de Abril - os irmãos de Medranhos encontraram, por trás de uma moita de espinheiros, numa cova de rocha, um velho cofre de ferio. Como se o resguardasse uma torre segura, conservava as suas três chaves nas suas três fechaduras. Sobre a tampa, mal decifrável através da ferrugem, corria um dístico em letras árabes. E dentro, até às bordas, estava cheio de dobrões de ouro!

 

No terror e esplendor da emoção, os três senhores ficaram mais lívidos do que círios. Depois, mergulhando furiosamente as mãos no ouro, estalaram a rir, num riso de tão larga rajada que as folhas tenras dos olmos, em roda, tremiam... E de novo recuaram, bruscamente se encararam, com os olhos a flamejar, numa desconfiança tão desabrida que Guanes e Rostabal apalpavam nos cintos as cabos das grandes facas. Então Rui, que era gordo e ruivo, e o mais avisado, ergueu os braços, como um árbitro, e começou por decidir que o tesouro, ou viesse de Deus ou do Demônio, pertencia aos três, e entre eles se repartiria, rigidamente, pesando-se o ouro em balanças. Mas como poderiam carregar para Medranhos, para os cimos da serra, aquele cofre tão cheio? Nem convinha que saíssem da mata com o seu bem, antes de cerrar a escuridão. Por isso ele entendia que o mano Guanes, como mais leve, devia trotar para a vila vizinha de Retortilho, levando já ouro na bolsilha, a comprar três alforjes de couro, três maquias de cevada, três empadões de carne e três botelhas de vinho. Vinho e carne eram para eles, que não comiam desde a véspera: a cevada era para as éguas. E assim refeitos, senhores e cavalgaduras, ensacariam o ouro nos alforjes e subiriam para Medranhos, sob a segurança da noite sem lua.

 

- Bem tramado! - gritou Rostabal, homem mais alto que um pinheiro, de longa guedelha, e com uma barba que lhe caía desde os olhos raiados de sangue até á fivela do cinturão.

 

Mas Guanes não se arredava do cofre, enrugado, desconfiado, puxando entre os dedos a pele negra do seu pescoço de grou. Por fim, brutalmente:

 

- Manos! O cofre tem três chaves... Eu quero fechar a minha fechadura e levar a minha chave!

 

- Também eu quero a minha, mil raios! - rugiu logo Rostabal.

 

Rui sorriu. Decerto, decerto! A cada dono do ouro cabia uma das chaves que o guardavam. E cada um em silêncio, agachado ante o cofre, cerrou a sua fechadura com força. Imediatamente Guanes, desanuviado, saltou na égua, meteu pela vereda de olmos, a caminho de Retortilho, atirando aos ramos a sua cantiga costumada e dolente:

Olé! Olé!

Sale la cruz de la iglesia,

Vestida de negro luto...

 

Na clareira, em frente à moita que encobria o tesouro (e que os três tinham desbastado a cutiladas) um fio de água. brotando entre rochas: caía sobre uma vasta laje escavada, onde fazia como um tanque, claro e quieto, antes de se escoar para as relvas altas. E ao lado, na sombra de uma faia, jazia um velho pilar de granito, tombado e musgoso. Ali vieram sentar-se Rui e Rostabal, com os seus tremendos espadões entre os joelhos. As duas éguas retouçavam a boa erva pintalgada de papoulas e botões-de-ouro. Pela ramaria andava um melro a assobiar. Um cheiro errante de violetas adoçava o ar luminoso. E Rostabal, olhando o Sol, bocejava com fome.

 

Então Rui, que tirara o sombreiro e lhe cofiava as velhas plumas roxas, começou a considerar, na sua fala avisada e mansa, que Guanes, nessa manhã, não quisera descer com eles à mata de Roquelanes. E assim era a sorte ruim! Pois que se Guanes tivesse quedado em Medranhos, só eles dois teriam descoberto o cofre, e só entre eles dois se dividiria o ouro! Grande pena! Tanto mais que a parte de Guanes seria em breve dissipada, com rufiões, aos dados, pelas tavernas.

 

- Ah! Rostabal, Rostabal! Se Guanes, passando aqui sozinho, tivesse achado este ouro, não dividia conosco, Rostabal!

 

O outro rosnou surdamente e com furor, dando um puxão às barbas negras:

 

- Não, mil raios! Guanes é sôfrego... Quando o ano passado. se te lembras, ganhou os cem ducados ao espadeiro de Fresno, nem me quis emprestar três para eu comprar um gibão novo!

 

- Vês tu? - gritou Rui, resplandecendo.

 

Ambos se tinham erguido do pilar de granito, como levados pela mesma idéia, que os deslumbrava. E, através das suas largas passadas, as ervas altas silvavam.

 

- E para quê - prosseguia Rui. - Para que lhe serve todo o ouro que nos leva? Tu não o ouves, de noite, como tosse? Ao redor da palha em que dorme, todo o chão está negro do sangue que escarra! Não dura até ás outras neves, Rostabal! Mas até lá terá dissipado os bons dobrões que deviam ser nossos, para levantarmos a nossa casa, e para tu teres ginetes, e armas, e trajes nobres, e o teu terço de solarengos, como compete a quem é, como tu, o mais velho dos de Medranhos...

 

- Pois que morra, e morra hoje! - bradou Rostabal.

 

- Queres?

 

Vivamente, Rui agarrara o braço do irmão e apontava para a vereda de olmos, por onde Guanes partira cantando:

 

- Logo adiante, ao fim do trilho, há um sítio bom, nos silvados. E hás-de ser tu, Rostabal, que és o mais forte e o mais destro. Um golpe de ponta pelas costas. E é justiça de Deus que sejas tu, que muitas vezes, nas tavernas, sem pudor, Guanes te tratava de "cerdo" e de "torpe", por não saberes a letra nem os números.

 

- Malvado!

- Vem!

 

Foram. Ambos se emboscaram por trás de um silvado que dominava o atalho, estreito e pedregoso como um leito de torrente. Rostabal, assolapado na vala, tinha já a espada nua. Um vento leve arrepiou na encosta as folhas dos álamos - e sentiram o repique leve dos sinos de Retortilho. Rui, coçando a barba, calculava as horas pelo Sol, que já se inclinava para as serras. Um bando de corvos passou sobre eles, grasnando E Rostabal, que lhes seguira o roo, recomeçou a bocejar, com tome, pensando nos empadões e no vinho que o outro trazia nos alforjes.

 

Enfim! Alerta! Era, na vereda, a cantiga dolente e rouca, atirada aos ramos:

 

Olé! Olé!

Sale la cruz de la iglesia,

Vestida de negro luto...

 

Rui murmurou: - Na ilharga! Mal que passe! - O chouto da égua bateu o cascalho. uma pluma num sombrero vermelhejou por sobre a ponta das silvas.

 

Rostabal rompeu de entre a sarça por uma brecha, atirou o braço, a longa espada - e toda a lâmina se embebeu molemente na ilharga de Guanes, quando ao rumor, bruscamente ele se virara na sela. Com um surdo arranco, tombou de lado, sobre as pedras. Já Rui se arremessava aos freios da égua - Rostabal. caindo sobre Guanes, que arquejava, de novo lhe mergulhou a espada, agarrada pela folha como um punhal, no peito e na garganta.

 

- A chave! - gritou Rui.

 

E arrancada a chave do cofre ao seio do morto, ambos largaram pela vereda - Rostabal adiante, fugindo, com a pluma do sombrero quebrada e torta, a espada ainda nua entalada sob o braço, todo encolhido, arrepiado com o sabor do sangue que lhe espirrara para a boca: Rui, atrás, puxava desesperadamente os freios da égua, que, de patas fincadas no chão pedregoso, arreganhando a longa dentuça amarela. não queria deixar o seu amo assim estirado, abandonado, ao comprido das sebes.

 

Teve de lhe espicaçar as ancas lazarentas com a ponta da espada - e foi correndo sobre ela, de lâmina alta, como se perseguisse um mouro, que desembocou na clareira onde o sol já não dourava as folhas. Rostabal arremessara para a relva o sombrero e a espada; e debruçado sobre a laje escavada em tanque, de mangas arregaçadas, lavava, ruidosamente, a face e as barbas.

 

A égua, quieta, recomeçou a pastar, carregada com os alforjes novos que Guanes comprara em Retortilho. Do mais largo, abarrotado, surdiam dois gargalos de garrafas. Então Rui tirou, lentamente, do cinto, a sua larga navalha. Sem um rumor na relva espessa, deslizou até Rostabal, que resfolegava, com as longas barbas pingando. E serenamente, como se pregasse urna estaca num canteiro, enterrou a folha toda na largo dorso dobrado, certeira sobre o coração.

 

Rostabal caiu sobre o tanque, sem um gemido, com a face na água, os longos cabelos flutuando na água. A sua velha escarcela de couro ficara entalada sob a coxa. Para tirar de dentro a terceira chave do cofre, Rui solevou o corpo - e um sangue mais grosso forrou, escorreu pela borda do tanque, fumegando.

 

Agora eram dele. só dele, as três chaves do cofre! E Rui, alargando os braços, respirou deliciosamente. Mal a noite descesse, com o ouro metido nos alforjes, guiando a fila das éguas pelos trilhos da serra, subiria a Medranhos e enterraria na adega o seu tesouro! E quando ali na fonte, e além rente aos silvados, só restassem, sob as neves de Dezembro. alguns ossos sem nome. ele seria u magnífico senhor de Medranhos, e na capela nova do solar renascido mandaria dizer missas ricas pelos seus dois irmãos mortos... Mortos como? Como devem morrer os de Medranhos - a pelejar contra o Turco!

 

Abriu as três fechaduras, apanhou um punhado de dobrões, que fez retinir sobre as pedras. Que puro ouro, de fino quilate! E era o seu ouro! Depois foi examinar a capacidade dos alforjes - e encontrando as duas garrafas de vinho, e um gordo capão assado, sentiu uma imensa fome. Desde a véspera só comera uma lasca de peixe seco. E há quanto tempo não provava capão!

 

Com que delícia se sentou na relva, com as pernas abertas, e entre elas a ave loura, que recendia, e o vinho cor de âmbar! Ah! Guanes fora bom mordomo - nem esquecera azeitonas. Mas porque trouxera ele, para três convivas, só duas garrafas? Rasgou uma asa do capão: devorava a grandes dentadas. A tarde descia, pensativa e doce, com nuvenzinhas cor-de-rosa.

Para além, na vereda, um bando de corvos grasnava. As éguas fartas dormitavam, com o focinho pendido. E a fonte cantava, lavando o morto.

 

Rui ergueu à luz a garrafa de vinho. Com aquela cor velha e quente, não teria custado menos de três maravedis. E pondo o gargalo à boca, bebeu em sorvos lentos, que lhe faziam ondular o pescoço peludo. Oh vinho bendito, que tão prontamente aquecia o sangue! Atirou a garrafa vazia - destapou outra. Mas, como era avisado, não bebeu, porque a jornada para a serra, com o tesouro, requeria firmeza e acerto. Estendido sobre o cotovelo, descansando, pensava em Medranhos coberto de telha nova, nas altas chamas da lareira por noites de neve, e o seu leito com brocados, onde teria sempre mulheres.

 

De repente, tomado de urna ansiedade, teve pressa de carregar os alforjes. Já entre os troncos a sombra se adensava. Puxou uma das éguas para junto do cofre, ergueu a tampa. tomou um punhado de ouro... Mas oscilou, largando os dobrões, que retilintaram no chão, e levou as duas mãos aflitas ao peito. Que é, D. Rui? Raios de Deus! Era um lume, um lume vivo, que se lhe acendera dentro, lhe subia até às goelas. Já rasgara o gibão, atirava os passos incertos, e, a arquejar, com a língua pendente. limpava as grossas bagas de um suor horrendo que o regelava como neve. Oh Virgem Mãe! Outra vez o lume, mais forte, que alastrava, o roía! Gritou:

 

- Socorro! Alguém! Guanes! Rostabal!

 

Os seus braços torcidos batiam o ar desesperadamente. E a chama dentro galgava - sentia os ossos a estalarem como as traves de uma casa em fogo.

 

Cambaleou até à fonte para apagar aquela labareda, tropeçou sobre Rostabal; e foi com o joelho fincado no morto, arranhando a rocha, que ele, entre uivos, procurava o fio de água. que recebia sobre os olhos, pelos cabelos. Mas a água mais o queimava, como se fosse um metal derretido. Recuou. caiu para cima da relva. que arrancava aos punhados, e que mordia, mordendo os dedos, para lhe sugar a frescura. Ainda se ergueu. com uma baba densa a escorrer-lhe nas barbas: e de repente; esbugalhando pavorosamente os olhos, berrou, como se compreendesse enfim a traição, todo o horror:

 

- É veneno!

 

Oh! D. Rui, o avisado, era veneno! Porque Guanes, apenas chegara a Retortilho, mesmo antes de comprar os alforjes, correra cantando a uma viela, por detrás da catedral, a comprar ao velho droguista judeu o veneno que, misturado ao vinho, o tornaria a ele, a ele somente, dono de todo o tesouro.

 

Anoiteceu. Dois corvos, de entre o bando que grasnava além nos silvados, já tinham pousado sobre o corpo de Guanes. A fonte, cantando. lavava o outro morto. Meio enterrado na erva negra, toda a face de Rui se tornara negra. Uma estrelinha tremeluzia no céu.

O tesouro ainda lá está, na mata de Roquelanes.

 

                   O Tiro - Alexandre Puchkin

Paramos na cidade de ***. Sabe-se o que é a vida de um oficial: de manhã, exercícios, instruções e manejo de armas; almoço na casa do comandante ou na taverna do judeu; à tarde, ponche e cartas. Em *** não havia nenhuma casa hospitaleira, nem jovem casadoura; assim, nos reuníamos uns nas casas dos outros, além dos nossos próprios uniformes, não víamos nada.

Um único civil freqüentava nosso grupo. Teria uns 35 anos e por isso era tido como velho. Dava-lhe a experiência, ao nossos olhos, grande prestígio. Além disso, sua habitual carranca, modos ríspidos e língua maldizente exerciam forte impressão em nossos espíritos juvenis.

Algum mistério envolvia o seu destino. Parecia russo, mas usava nome estrangeiro. Servira na cavalaria, com brilho até; mas, por motivo desconhecido, de repente pediu baixa e veio se estabelecer naquele lugarejo miserável, onde vivia, a um tempo, pobremente e com prodigalidade. Andava sempre a pé, trajando um velho casaco preto, mas, ao mesmo passo, mantinha mesa franca para todos os oficiais de nosso regimento. É verdade que o seu jantar consistia de dois ou três pratos preparados por um veterano; o champanha, porém, corria a jorros. Ninguém lhe conhecia a fortuna, nem as rendas, mas ninguém se atrevia a interrogá-lo a respeito. Tinha regular número de livros, na maioria obras militares, mas também alguns romances, que emprestava de boa vontade sem nunca os pedir de volta; tampouco devolvia os livros que lhe emprestavam. Seu principal exercício era o tiro de pistola. As paredes de seu quarto estavam crivadas de balas, todas fendilhadas, como favos de mel. Preciosa coleção de pistolas era todo o luxo da pobre casa em que vivia. Chegou a adquirir tão incrível habilidade que, caso se propusesse abater com uma bala o penacho de um capacete, nenhum de nós vacilaria em pôr a cabeça debaixo deste. Freqüentemente se falava em duelos. Sílvio (chamá-lo-ei assim) nunca tomava parte na palestra. Quando interrogado sobre se já lhe acontecera bater-se em duelo, respondia com secura, sem entrar em minúcias: via-se que tais perguntas não lhe agradavam. Supúnhamos que talvez lhe pesasse na consciência alguma infeliz vítima de sua terrível habilidade; porém, não nos passava pela cabeça que nele pudesse haver algo parecido com timidez. Há pessoas cujo aspecto basta para afastar suspeitas dessa ordem. Um acontecimento inesperado surpreendeu-nos.

Certo dia, almoçávamos uns dez oficiais em casa de Sílvio. Bebemos como de costume, isto é, muitíssimo. Após o almoço começamos a persuadir o dono da casa a que bancasse. Silvio, que não jogava quase nunca, resistiu algum tempo; afinal, mandou trazer o baralho, atirou à mesa cinqüenta ducados e sentou-se para distribuir as cartas. Rodeamo-lo e principiou o jogo. Tinha ele por hábito manter-se em completo silêncio durante a partida, sem nada perguntar nem dar qualquer explicação. Se a um dos parceiros acontecia errar nos cálculos, ele de pronto lhe restituía o que recebera em excesso, ou anotava o excesso recebido pelo outro. Já sabíamos disso, e não o impedíamos de jogar conforme seu sistema, como bem entendesse. Havia entre nós, porém, um oficial transferido pouco antes para o nosso regimento. Este, jogando distraído, anunciou um tresdobro errado. Silvio pegou o giz e acertou a conta, segundo o seu hábito. Pensando que o banqueiro se enganara, o oficial entrou a explicar-se. Sílvio, sem responder, continuava a distribuir as cartas. Perdendo a paciência, o oficial tomou a esponja e apagou o que lhe parecia escrito a mais. Silvio retomou o giz e reproduziu a mesma anotação. Esquentado pelo vinho, pelo jogo e pelo riso dos colegas, o oficial julgou-se gravemente ofendido, agarrou com raiva um castiçal de cobre posto sobre a mesa, e arremessou-o contra Sílvio, que mal teve tempo de evitar o golpe, desviando-se com rapidez. Houve uma algazarra geral. Pálido de furor, Sílvio levantou-se e disse com os olhos cintilantes:

- Tenha a bondade de sair, senhor, e agradeça a Deus que isso haja acontecido na minha casa.

Não tínhamos a menor dúvida acerca das conseqüências e julgávamos nosso camarada um homem morto. O oficial saiu dizendo que estava pronto a responder pela ofensa como o senhor banqueiro julgasse conveniente. O jogo continuou ainda por alguns minutos; mas, sentindo que o dono da casa não tinha disposição para jogar, deixamo-lo, um após outro, e dispersamo-nos em direção aos nossos alojamentos, a conversar sobre a próxima vaga.

No dia seguinte, no manejo, já perguntávamos uns aos outros se o pobre tenente ainda vivia, quando ele próprio surgiu em nosso meio. Entramos sem demora a interrogá-lo. Respondeu que não tivera notícia de Silvio, o que muito nos espantou. Fomos à casa deste, e o encontramos no quintal atirando uma bala sobre outra numa carta de ás colada no portão. Recebeu-nos como de costume e evitou comentar sobre o acontecido da véspera. Três dias se passaram, e o tenente ainda vivia. Todos se perguntavam, admirados: - "Será que Silvio não quererá se bater?" Pois não se bateu. Deu-se por satisfeito com uma explicação fútil e reconciliou-se.

Esta atitude o prejudicou sobremodo na opinião da mocidade. O que os moços menos perdoam é a falta de coragem, pois geralmente vêem na ousadia a principal das virtudes viris e a desculpa de todos os defeitos. Tudo, entretanto, aos poucos foi sendo esquecido e Silvio tornou a adquirir sua influência.

Só eu não pude reaproximar-me dele. Dotado de imaginação romântica, sentira-me atraído mais que os outros por aquele homem cuja vida constituía um mistério e que se me afigurava o herói de alguma história misteriosa. Ele gostava de mim; pelo menos eu era a única pessoa com quem ele punha de lado seu habitual tom áspero e sarcástico e palestrava sobre assuntos diversos, cordialmente e com graça. Porém, após aquela noite infeliz,, a idéia de que sua honra estava manchada e por sua própria vontade não fora lavada, essa idéia me largava e impedia-me de tratá-lo como dantes. Silvio, que muito inteligente e experimentado, não podia deixar de notar o meu procedimento e adivinhar-lhe os motivos, parecia magoado com ele. Ao menos duas vezes observei que desejava dar-me uma explicação, mas evitei as ocasiões e ele desistiu de procurá-las. Daí por diante, víamo-nos apenas em presença dos meus camaradas, e as nossas cordiais palestras de outrora nunca mais se repetiram.

Os habitantes da capital, viciados em distrações, não fazem idéia de muitas impressões bem conhecidas dos habitantes das aldeias e pequenas cidades, como, por exemplo, a espera do dia do correio. Às segundas e sextas-feiras o escritório de nosso regimento se enchia de oficiais: um aguardava dinheiro, outro cartas, outro jornais. De ordinário, as encomendas eram abertas ali mesmo, as notícias comunicadas aos colegas, e o escritório ficava muito animado. Silvio também mandava dirigir a sua correspondência para o nosso regimento e regularmente vinha buscá-la. Certa vez foi-lhe entregue uma encomenda, cujo lacre ele quebrou com visível impaciência. Percorrida a carta, seus olhos fuzilaram. Os oficiais, cada qual preocupado com a própria correspondência, nada perceberam.

- Senhores - disse Silvio -, há negócios que exigem a minha partida imediata. Partirei esta noite. Espero que não recusem meu convite para jantar comigo pela última vez. Aguardo-o também - acrescentou, dirigindo-se a mim. - Aguardo-o sem falta.

Com essas palavras saiu apressado, enquanto nós, ajustado que nos reuniríamos outra vez na casa dele, fomos cada qual para seu lado.

Cheguei à casa de Silvio na hora combinada, e ali encontrei quase todo o regimento. Tudo que Silvio tinha já estava empacotado; restavam apenas as paredes nuas, ostentando os buracos feitos pelos tiros. Sentamos. O dono da casa estava de muito bom humor, que em pouco tempo se comunicou a todos. Espocavam rolhas a cada minuto, copos espumavam, o vinho crepitava sem parar, e todos nós com a maior cordialidade desejamos ao amigo boa viagem e todas as venturas. Levantamos da mesa já noite alta. Quando da procura dos quepes, Silvio, despedindo-se de todos, segurou-me pelo braço e reteve-me no momento exato que eu ia sair.

- Preciso lhe falar - disse-me.

Fiquei.

Os outros se foram e nós dois permanecemos sós, sentados um diante do outro a cachimbar em silêncio. Silvio parecia embaraçado. Da alegria convulsiva de pouco antes não havia o menor vestígio. Sua sinistra palidez, seus olhos fuzilantes e a espessa fumaça que lhe saía da boca davam-lhe um ar diabólico. Passaram-se alguns minutos, até que ele quebrou o silêncio.

- Talvez nunca mais nos vejamos - disse-me -, mas, antes de nos separarmos, queria-lhe dar uma explicação. Há de ter notado que ligo pouco ao que os outros pensam de mim. Mas gosto de você e sinto que me seria penoso deixar subsistir em seu espírito uma impressão injusta.

Interrompeu-se a fim de reencher o cachimbo. Eu mantinha-me calado, de olhos baixos.

- Achou estranho - continuou - que eu não houvesse pedido satisfação àquele bêbado estouvado. Mas você há de convir que, tendo eu o direito de escolher a arma, a vida dele estava em minhas mãos e a minha quase fora de perigo. Poderia dar-se como causa dessa moderação a minha generosidade, porém não quero mentir. Se pudesse castigá-lo sem arriscar de modo nenhuma minha vida, não lhe teria perdoado.

Olhei Silvo com surpresa. Semelhante confissão acabou por me perturbar. Ele voltou a falar:

- É isso mesmo. Não tenho o direito de me expor à morte. Há seis anos recebi uma bofetada, e o meu inimigo ainda está vivo.

Espicaçou-me a curiosidade:

- Então não se bateram? Algum obstáculo terá impedido o encontro?

- Batemo-nos - retrucou Silvio -, e eis a lembrança do nosso duelo.

Levantou-se e tirou de uma caixa um gorro vermelho com a borla e os galões de ouro e o pôs na cabeça. O gorro estava atravessado por uma bala uma polegada acima da fronte.

- Você sabe que servi no regimento de hussardos de *** - continuou ele. - O meu caráter lhe é conhecido. Tenho o costume de ser o primeiro, e quando moço isto chegava a ser uma mania. Naquele tempo a briga estava na moda, e eu era o mais brigão do Exército. Nós nos vangloriávamos de grandes bebedeiras; cheguei a vencer em duelo o famigerado B***, cantado por D***. Os duelos ocorriam em nosso exército um por minuto: eu era testemunha ou participante ativo de todos eles. Meus colegas me admiravam; quanto aos comandantes, substituídos a cada momento, me consideravam um mal inevitável. Assim vivia gozando tranqüilamente (ou antes, inquietamente) a minha glória, quando um jovem oficial, de abastada e conhecida família, foi transferido para o nosso regimento. Nunca em minha vida vi tamanho felizardo. Imagine mocidade, espírito, beleza, a alegria mais louca, a mais despreocupada coragem, um nome conhecido, tanto dinheiro que ele nem chegava a contá-lo e que nunca lhe faltaria, e poderá calcular a impressão que ele produziu em nós. A minha hegemonia foi abalada. Seduzido pela minha fama, o jovem quis se fazer meu amigo, mas recebi-o friamente e ele se afastou de mim sem o menor pesar. Comecei a odiá-lo. Seu êxito no regimento e na sociedade feminina levou-me a completo desespero. Entrei a provocá-lo, mas o moço respondia a meus epigramas com epigramas que sempre me pareciam mais picantes e agudos que os meus, e era, pelo menos, mais alegres, pois ele brincava e eu estourava de raiva. Enfim, certo dia, vendo-o no baile oferecido por um proprietário polaco, ser objeto da atenção de todas as damas, principalmente da dona da casa - a qual já tivera ligação comigo -, cheguei-me a ele e disse-lhe ao ouvido alguma vulgar insolência. Enfureceu-se e deu-me uma bofetada. Pegamos da espada; várias damas desmaiaram. Fomos, porém, separados. Na mesma noite devíamos encontrar-nos em duelo.

Amanhecia. Eu, no lugar combinado, em companhia de três testemunhas, aguardava meu adversário com indizível impaciência. O sol da primavera já surgira e principiara a nos aquecer quando ele apareceu. Vi-o de longe. Vinha a pé, o capote sobre a espada, acompanhado de uma testemunha. Fomos ao seu encontro. Ele se aproximava segurando na mão o quepe cheio de cerejas. As testemunhas mediram os doze passos. Eu devia atirar primeiro, mas a emoção da raiva me era tão forte que não confiava na exatidão do meu tiro e, para ter tempo de me acalmar, cedi-lhe o direito de atirar primeiro. Meu adversário não concordou. Ficou resolvido recorrermos à sorte. O primeiro tiro coube a ele, sempre favorito do destino. Apontou, e furou-me o gorro. Depois, foi a minha vez. Enfim, eu tinha sua vida em minhas mãos. Fitava-o com avidez, procurando descobrir pelo menos a sombra de uma inquietação. Ele estava diante de minha pistola, tirava do quepe as cerejas maduras e cuspia os caroços, que voavam até mim. Essa indiferença me exasperava. - "Que me importa? - pensei - tirar-lhe a vida agora que ele a aprecia tão pouco?" Um pensamento perverso atravessou-me o cérebro. Baixei minha arma. - "Parece-me - disse-lhe eu - que está pouco disposto a morrer agora, pois resolveu tomar a merenda; não quero incomodá-lo". - "Você não me incomoda, absolutamente - respondeu ele - Tenha a bondade de atirar. Aliás, faça como entender. Fique com seu tiro; por mim, estarei sempre à sua disposição." Dirigi-me às testemunhas e declarei que por enquanto não fazia questão de atirar. Assim, terminou o duelo. Renunciei à minha patente e exilei-me neste lugarejo. Desde então, porém, não decorreu um dia sem que eu pensasse na vingança. Afinal, chegou minha hora.

Tirou do bolso a carta recebida e passou-a às minhas mãos. Alguém informava-o de Moscou que "a pessoa em apreço" ia casar com uma rapariga jovem e bonita.

- Você já suspeita - continuou - quem é a "pessoa em apreço". Vou partir para Moscou. Veremos se ele receberá a morte agora, na véspera de suas núpcias, como quando ia acolhê-la com cerejas na mão.

Com estas palavras, levantou-se, atirou o gorro ao chão e pôs-se a andar pelo quarto como um tigre em sua jaula. Eu, que o tinha ouvido sem me mexer, sentia-me agitado por estranhos sentimentos contraditórios.

Entrou um criado e anunciou que os cavalos estavam prontos. Silvio me apertou a mão com força. Abraçamo-nos. Sentou-se no carro, onde já se viam duas malas, uma com suas pistolas e outra com a sua bagagem. Despedimo-nos mais uma vez, e os cavalos partiram a galope.

 

Correram alguns anos. Negócios de família me obrigaram a estabelecer-me numa aldeia no distrito de N***. Ocupado com meus bens, não parava de suspirar em silêncio pela minha antiga existência, ruidosa e despreocupada. O mais penoso para mim foi me acostumar a passar as noites de primavera e de inverno na solidão mais completa. Até o jantar, conseguia matar o tempo desta ou daquela maneira, conversando com o estarote, fiscalizando os trabalhadores, visitando as obras; mas, apenas começava a baixar a noite, não sabia o que fazer. Os poucos livros que achei debaixo dos armários e na despensa, já os sabia de cor; as fábulas que Kirilovna, a despenseira, conhecia, fizera-a contá-las várias vezes; as canções das camponesas só me despertavam saudades. Reconheço que havia ali um licor excelente, porém ele me dava dor de cabeça; aliás, confesso que receava tornar-me um beberrão, um desses ébrios inveterados de que tantos tipos havia em meu distrito. Vizinhos próximos, não os tinha, a não ser dois ou três daqueles ébrios, cuja conversação se constituía principalmente de soluços e suspiros. Preferível a solidão.

A quatro verstas de mim havia uma rica propriedade, pertencente à Condessa B***, porém só o administrador vivia ali. A Condessa não visitara a sua propriedade senão uma vez só, no primeiro ano de seu casamento, e mesmo então não passara lá mais de um mês. Mas durante a segunda primavera do meu isolamento correu a notícia que ela viria com o marido veranear na sua aldeia. Chegaram os dois, no começo de junho.

A chegada de um vizinho rico é um acontecimento na vida dos aldeãos. Os fazendeiros e sua criadagem comentam-na dois meses antes e três anos depois. De mim, confesso que a notícia da chegada de uma vizinha jovem e bonita me provocou forte impressão. Ardia de impaciência por vê-la, e logo no primeiro domingo seguinte à sua vinda, após o almoço, pus-me a caminho da aldeia para me apresentar a ela como seu vizinho mais próximo e seu mais humilde criado.

Um lacaio me introduziu no gabinete do Conde e saiu para me anunciar. O gabinete era ornado com o maior luxo possível. Ao longo das paredes viam-se estantes com livros, um busto de bronze sobre cada uma delas; sobre a lareira havia um grande espelho; o chão estava coberto de estofo verde e tapetes. Havendo perdido, no meu cantinho pobre, o hábito do luxo, e não tendo contemplado, desde muito, a riqueza alheia, fiquei acanhado e aguardei o Conde com a timidez dum solicitante provinciano à espera do ministro. Abriram-se as portas. Entrou um rapaz dos seus trinta e dois anos, de bela aparência. Aproximou-se de mim com fisionomia aberta e amiga. Peguei a retomar coragem, e ia dar os cumprimentos de praxe, porém ele me precedeu. Sentamo-nos. A sua palestra, fluente e cortês, logo me dissipou a reserva de solitário, e já voltava a adotar minhas maneiras normais, quando de repente entrou a Condessa, tornando-me ainda mais enleado. Era realmente de uma grande beleza. O Conde fez a apresentação. Eu queria mostrar-me à vontade, mas quanto mais procurava assumir um ar desembaraçado, tanto mais crescia em mim o sentimento de minha bronquice. Meus hospedeiros, para me darem tempo de reassumir uma atitude e de me acostumar aos novos conhecidos, puseram-se a falar entre si, tratando-me sem constrangimento como a um bom vizinho. Nesse ínterim, pus-me a passar pela sala, observando os livros e os quadros. Não sou conhecedor de pintura, mas um destes me atraiu a atenção. Representava alguma paisagem da Suíça, porém o que me surpreendeu não foi a arte do pintor, e sim o fato de estar o quadro furado por duas balas, alojadas quase no mesmo ponto.

- Um belo tiro - disse eu, dirigindo-me ao Conde.

- Sim - respondeu -, um tiro notável. O senhor atira bem?

- Regularmente - repliquei, contente de ver enfim a conversa tomar um rumo que me era familiar. - A trinta passos de distância não erro a dama de uma carta; bem entendido, quando atiro com pistola que já conheço.

- É verdade? - perguntou a Condessa com visível atenção.

- E tu, meu amigo, acertarás também uma carta a trinta passos?

- Temos de experimentá-lo uma vez - respondeu o Conde.

- Tempos atrás eu não era mau atirador, mas agora já faz quatro anos que não pego uma pistola.

- Assim sendo - observei -, aposto que V. Excia. Já não acerta na carta nem sequer a vinte passos. A pistola exige exercício cotidiano. Eu o sei por experiência própria. No regimento, passava por um dos melhores atiradores. Aconteceu-me certa vez não pegar na pistola durante um mês inteiro; as minhas estavam em conserto. Acreditarão que quando voltei a atirar pela primeira vez, errei quatro vezes sucessivas uma garrafa a vinte e cinco passos de distância. Havia entre nós um capitão, homem espirituoso, gracejador, que estava presente nessa ocasião e que me disse: - "Até parece, amigo, que a tua mão é incapaz de fazer mal a uma garrafa." Não, Excelência, não devemos descuidar do exercício; sem ele, a gente perde totalmente o hábito. O melhor atirador que tive oportunidade de encontrar atirava todos os dias pelo menos três vezes antes do almoço. Para ele, isto se tornara um hábito como o copo de vodca.

O Conde e a Condessa pareciam contentes de me ouvir.

- Como é que ele atirava? - perguntou o Conde.

- Fazia assim. Via, por exemplo, uma mosca pousada na parede... está rindo, Sra. Condessa? Palavra de honra, estou dizendo a verdade. Bem, via uma mosca pousada na parede. Gritava: - "Kuzka, uma pistola!" Kuska trazia a pistola carregada. Pum! E lá estava a mosca achatada contra a parede!

- É incrível! - disse o Conde. - Como se chamava ele?

- Sílvio, Excelência.

- Sílvio! - exclamou o Conde, levantando-se d um pulo. - O senhor conheceu Silvio?

- Como não o teria conhecido, Excelência? Éramos amigos. Ele era recebido em nosso regimento como um camarada. Há cinco anos, porém, que não tenho nenhuma notícia a respeito dele. Então V. Excia. também o conhecia?

- Conheci-o bastante. Ele não lhe terá falado de certo incidente estranho?

- V. Excia. Alude à bofetada que ele levou num baile, de certo doidivanas?

- Ele disse-lhe o nome desse doidivanas?

- Não, Excelência, não me disse... Ah, Excelência - continuei, começando a suspeitar a verdade -, perdoe... eu não sabia... será que foi V. Excia?

- Fui eu mesmo - respondeu o Conde com ar muito perturbado. - O quadro atravessado de balas é a lembrança do nosso último encontro.

- Meu querido - interrompeu-o a Condessa -, não o conte, pelo amor de Deus; tenho medo de ouvi-lo.

- Não - objetou o Conde -, vou contar tudo. Ele sabe como eu ofendi o seu amigo, deve saber também como Silvio se vingou de mim.

Nisto, puxou uma poltrona e fez-me o seguinte relato, que escutei com a mais viva curiosidade.

- Casei-me há cinco anos. Viemos passar nesta aldeia o primeiro mês, a lua-de-mel. Devo a esta casa os minutos mais belos da minha vida, mas também uma das minhas recordações mais penosas. Uma tarde fomos dar um passeio a cavalo. Não sei por quê, a montaria de minha mulher empacou; ela assustou-se, entregou-me o cabresto e voltou para casa a pé. Fui na frente dela. No quintal vi uma caleça de viagem, e o criado anunciou-me que havia no meu gabinete um rapaz que não queria dizer o nome, mas insistia em falar comigo. Entrei aqui, nesta sala, e vi na escuridão um homem coberto de poeira, com a barba crescida. Estava aqui, perto da lareira. Aproximei-me dele, procurando lembrar-me dos seus traços. - "Não me reconheces, Conde?" - disse-me com voz trêmula. - "Sílvio!" - exclamei, e confesso que senti os cabelos arrepiarem-se. - "Exatamente - replicou -, vim para descarregar a minha pistola. Estás pronto?" A arma lhe emergia de um dos bolsos. Medi a distância de doze passos e parei lá no canto, pedindo-lhe que atirasse logo, antes de minha esposa voltar. Mas ele se demorou, pediu luz. Mandei trazer velas, fechei as portas, ordenei que não entrasse ninguém e pedi outra vez a Sílvio que atirasse. Ele ergueu a pistola, aprontou... Eu contava os segundos... pensava nela... Passou-se um minuto horrível. Silvio baixou o braço. - "Sinto muito - disse - que a minha pistola não esteja carregada de caroços de cereja... a bala é pesada. Parece-me que o que estamos praticando não é um duelo, mas um assassinato. Não estou acostumado a atirar contra pessoas desarmadas. Principiemos outra vez, vamos decidir pela sorte quem deverá atirar primeiro." A cabeça rodava-me... parece que não quis consentir. Por fim, carregamos outra pistola, ele enrolou dois bilhetes e colocou-os no gorro atravessado outrora pelo meu tiro; outra vez o primeiro lugar coube a mim. - "Tens uma sorte dos diabos, Conde", - disse-me com um sorriso de escárnio que jamais esquecerei. Não compreendo o que me aconteceu, como ele pôde obrigar-me a isso... o fato é que atirei e a minha bala furou aquele quadro. (O Conde apontou-me com um dedo o quadro furado. Tinha o rosto em brasa. A Condessa estava mais pálida que o seu lenço; por mim, não pude conter uma exclamação.) Atirei - prosseguiu o Conde -, e, graças a Deus, errei o alvo; entoa Silvio, que naquele momento foi deveras terrível, pôs-se a mirar-me outra vez. De súbito abriu-se a porta, Macha entrou correndo e com um grito lançou-se-me ao pescoço. A presença dela restituiu-me a coragem. - "Querida - disse -, não vês que estamos brincando? Como te espantaste! Vai, bebe um pouco d'água e volta aqui; vou apresentar-te um velho amigo e camarada." Macha porém continuava intranqüila: - "Diga-me, senhor: meu marido está falando a verdade? - perguntou, voltando-se para o terrível Sílvio. - É verdade que os dois estão brincando?" - Ele brinca sempre, Condessa, - respondeu Silvio. - Certa vez, por brincadeira, deu-me uma bofetada; outra vez, por brincadeira, furou-me este gorro com uma bala. Agora mesmo, brincando, por um triz não acertou em mim. Mas agora sou eu que tenho vontade de brincar..." A esta palavra, fez menção de alvejar-me na presença dela! Macha atirou-se-lhe aos pés. - "Levanta-te, Macha! - gritei, furioso. - Tem vergonha! E o senhor não vai deixar de atormentar essa pobre mulher? Quer atirar ou não?" - "Não quero - respondeu Sílvio - Estou satisfeito. Vi a tua confusão, o teu medo. Forcei-te a atirar em mim, estou satisfeito. Lembrar-te-ás de mim. Entregou-te à tua consciência." Nisto ia sair, mas se deteve à porta, olhou para o quadro furado pelo meu tiro, atirou contra ele quase sem apontar, e desapareceu. Minha mulher tinha desmaiado; os criados não se atreviam a detê-lo e miravam-no estupefatos. Ele saiu pela escadaria, chamou o cocheiro e desapareceu antes mesmo que tivesse tempo de tornar a mim.

O Conde calou-se. Destarte vim a saber o fim de uma história cujo começo me enchera outrora de espanto. Quanto ao herói dela, nunca mais o encontrei. Contam que Sílvio, no momento da expedição de Alexandre Ypsilanti, comandava destacamento de heteristas e morreu na batalha de Skuliani.

 

                   O Vingador - Anton Tchecov

Logo depois de haver surpreendido sua mulher em flagrante, encontrava-se Fedor Fedorovich Sigaev na loja de armas de Schmuks e Cia, a escolher o revolver que melhor lhe pudesse servir. Seu rosto expressava ira, dor e decisão irrevogável.

"Bem sei o que devo fazer!", pensava. "Quando os fundamentos de uma família são profanados, e a honra é arrastada pela lama e triunfa o vício... eu, como cidadão e como homem honrado, devo ser o vingador. Matarei primeiro a ela, depois ao amante e finalmente suicidar-me-ei".

Não havia ainda escolhido o revolver e nem sequer assassinara alguém, mas na imaginação já se lhe apresentavam três cadáveres ensangüentados, de crânios triturados, os miolos a flutuarem... Barulho, ruído de curiosos e autópsia.

Possuído pela insensata alegria do homem ofendido, calculava o horror dos parentes e do público, a agonia da traidora e até lhe parecia poder ler em pensamento os artigos da primeira página, a comentarem a decomposição dos fundamentos da família.

O empregado da loja, tipo inquieto, afrancesado, de ventre pequeno e colete branco, apresentava-lhe os revólveres e juntando os calcanhares dizia, sorrindo respeitosamente:

- Eu aconselharia a Mousieur que levasse este magnífico modelo do sistema Smith & Wesson. É a última palavra na ciência das armas. Possui três propulsores e pode-se dispará-lo a uma distância de seiscentos passos. Chamo também a atenção de Mousieur para a limpeza do acabamento. Seu sistema é que está mais em moda. Vendemos diariamente dezenas deles, que são utilizados contra os bandidos, os lobos e os amantes. Seu tiro é preciso e forte, alcança distâncias enormes e mata, atravessando-os, a mulher e o amante. Quanto aos suicidas, Mousieur, não conheço, para eles, melhor sistema.

E o empregado, apertando e soltando o gatinho, soprando o cano e fingindo mirar, parecia próximo a afogar-se de puro entusiasmo. A julgar-se pela expressão extasiada de seu rosto, poder-se-ia pensar que ele mesmo, de boa vontade, pregaria um tiro na testa, se possuísse uma arma tão maravilhosa quanto aquela.

- E qual o preço? - perguntou Sigaev.

- Quarenta e cinco rublos, Mousieur.

- Hum! É muito caro, para mim.

- Neste caso, Mousieur, posso oferecer-lhe algo mais em conta. Aqui está. Tenha a bondade de examinar. Temos estoque variado e de todos os preços... Este, por exemplo, do sistema Lefrauché, que custa somente 18 rublos. Porém... - o empregado fez um muxoxo de pouco caso - é um sistema, Mousieur, demasiadamente antiquado. Quem o compra são os pobres de espírito e os psicopatas. Suicidar-se ou matar a própria mulher com um Lefauché é considerado atualmente de mau gosto. O bom-tom admite somente uma Smith & Wesson.

- Não necessito matar-me ou a alguém - mentiu, com acento sombrio, Sigaev. - Compro-o simplesmente para a minha casa de campo... Para assustar os ladrões.

- No nos interessa o seu motivo -sorriu o empregado, baixando modestamente os olhos - Se, em cada caso, buscássemos as razões, já deveríamos ter fechado a loja. Para espantar os corvos, Mousieur, o Lefauché não serve, pois produz ruído um tanto surdo. Eu lhe proponho uma pistola Mortimer, das chamadas para duelos.

"E se eu o provocasse para um duelo?", passou pela cabeça de Sigaev. "Porém... não... Seria honra demasiada. A essas bestas, devemos matá-las, como cachorros..."

O empregado, revoluteando graciosamente e em pequenos passos, sem deixar de sorrir e de conversar, apresentou-lhe todo o monte de revólveres. O Smith & Wesson era o de aspecto mais sólido e justiceiro. Sigaev tomou um destes nas mãos, fixou-o e quedou ensimesmado. A imaginação desenhava-o destroçando um crânio, o sangue a escorrer como um rio sobre o tapete e o assoalho, a traidora, moribunda, agitando um pé convulso... Para a alma indignada, aquilo era pouco. O quadro de sangue, os soluços e o estupor não o satisfaziam. Deveria pensar em algo mais terrível.

"Isto é o que farei", pensou. "Matarei a ele e a mim em seguida, porém ela... deixaria viver. Que morra do arrependimento e do desprezo dos que a cercam! Para natureza tão nervosa quanto a sua, será martírio maior que a morte!"

Começou a imaginar o próprio funeral: ele, o ofendido, estendido no ataúde, com um sorriso bondoso nos lábios... Ela, pálida, torturada pelos remorsos, caminhando atrás do féretro, como uma Níobe, sem poder escapa aos olhares depreciativos e aniquiladores, lançados pela multidão indignada...

- Vejo, Mousieur, que lhe agrada o Smith & Wesson - comentou o empregado, interrompendo o devaneio - Se o acha muito caro, posso fazer uma redução de cinco rublos, embora tenhamos outros mais baratos.

A figurinha afrancesada girou graciosamente sobre os próprios tacões e alcançou na prateleira outra dúzia de estojos com revólveres.

- Aqui está outro, Mousieur. O preço, trinta rublos. Não é caro, se lembrarmos que o câmbio está baixo e que os direitos alfandegários sobem cada dia mais... Juro-lhe, Mousieur, que sou conservador, porém já começo a protestar! Imagine que o câmbio e a tarifa da alfândega são o motivo de que somente os ricos possam adquirir armas! Para os pobres nada mais resta que as armas de Tula, e os fósforos. E as armas de Tula são uma desgraça! Se alguém pretender disparar uma arma de Tula sobre a própria mulher, apenas consegue atingir a própria omoplata...

Repentinamente Sigaev entristeceu-se com a idéia de morrer e não contemplar os sofrimentos da traidora. A vingança unicamente é doce quando existe a possibilidade de ver e tocar seus frutos. Pois, que sentido encontraria em estar deitado no ataúde, se nada poderia perceber?!

"E se eu fizesse isto?... matá-lo, ir a seu enterro, ver tudo e depois me suicidar?... Sim. Porém... antes do enterro eu seria preso e me tirariam a arma... Bem... O que farei será matá-lo e deixar que ela viva. Eu... enquanto não decorra um certo tempo, não me matarei. Serei preso. Para suicidar-me, sempre terei ocasião. Estar preso será melhor, pois que ao prestar declarações, terei possibilidade de demonstrar, ante o poder e a sociedade, toda a baixeza do seu comportamento. Se eu morresse, ela, com seu caráter desavergonhado e embusteiro, jogaria a culpa sobre mim, e a sociedade acabaria por absolvê-la.... de outro lado, talvez caçoe de mim, se continuo a viver... Então....

Um minuto depois, pensava:

"Se... Talvez me acusem de sentimentos mesquinhos se eu me matar... E, depois, para que suicidar-me? Isso em primeiro lugar. Em segundo... o suicídio é covardia. Então, o que farei será matá-lo, deixá-la viver e eu irei para o cárcere. Serei julgado e ela figurará como testemunha... Veremos seu sobressalto e vergonha, quando precisar enfrentar meu advogado! Por certo que as simpatias do tribunal, do público e da imprensa estarão ao meu lado!..."

Enquanto assim devaneava, o empregado continuava a expor a mercadoria e considerava de seu dever, entreter o comprador.

- Veja aqui, outros, ingleses, de sistema novo, que recebemos há pouco. Porém, previno-o, Mousieur, de que todos os sistemas empalidecem diante do Smith & Wesson. Por certo, terá lido, há poucos dias, acerca de um militar que comprara um Smith & Wesson em nossa casa, e que o usou contra o amante... E que imagina tenha acontecido? A bala atravessou primeiro o amante, alcançou, depois o abajur de bronze, em seguida o piano de cauda e deste, como uma carambola, matou um cachorro pequinês e roçou a esposa... As conseqüências foram brilhantes e honraram nossa firma. O militar está preso agora... Por certo o condenarão a trabalhos forçados!... Em primeiro lugar, porque temos leis muito antiquadas , em segundo, porque já se sabe que o tribunal sempre toma o partido do amante. Por quê? Muito simples, Mousieur. Porque também o jurado, os juízes, o procurador e o advogado de defesa se entendem com esposas alheias e mais tranqüilos estão quando sabem de que um marido há na Rússia. A sociedade se encantaria, caso o Governo desterrasse todos os maridos para a ilha de Sajalin. Ah! Mousieur! Não pode o senhor imaginar a indignação que me desperta este desmoronar dos costumes morais contemporâneos!... Nestes tempos, cortejar mulheres alheias causa tanto prazer quanto filar cigarros os outros ou pedir livros emprestados! Cada ano que passa, o nosso comércio declina, porém não significa que haja menos amantes... Significa que os maridos reconciliam-se com a situação e temem os trabalhos forçados - e o empregado, olhando em torno de si, sussurrou: - E quem é o responsável, Mousieur? O Governo!

"Acabar em Sajalin, por causa de um porco... não, não é razoável", refletiu Sigaev. "Se me condenam aos trabalhos forçados, somente conseguirei dar à minha mulher a possibilidade de casar-se outra vez e de enganar também ao segundo marido. O lucro será todo dela! O que farei então será isto: deixá-la viver, não me matar e nem matar a ele... Devo imaginar algo mais prudente e sentimental. Castigá-los-ei com meu desprezo e encetarei escandaloso processo de divórcio..."

- Aqui está, Mousieur, um sistema novo - comentou o empregado, recolhendo de outra prateleira mais uma dúzia de revólveres. - Chamou-lhe a atenção para o mecanismo original do cão...

Porém, uma vez tomada aquela decisão, Sigaev não mais necessitava de revólver. Em compensação, o empregado, cada vez mais inspirado, não cessava de mostrar-lhe os artigos que tanto elogiava. O marido ofendido envergonhou-se de que, por sua causa, o sujeito estava trabalhando em vão, a entusiasmar-se e a perder tempo.

-Bem - balbuciou. - Será melhor que eu volte mais tarde ou mande alguém...

Conquanto não visse a expressão do rosto do empregado, compreendeu que, para suavizar a violência da situação, não havia outra saída que comprar algo. Porém, o que? Seus olhos percorreram as paredes da loja, em busca de uma coisa barata, e se detiveram numa rede de cor verde, pendurada junto à porta.

- E isso? Que é isso? - perguntou.

- É uma rede para caçar codornas.

- Qual o preço?

- Oito rublos.

- Pois pode mandar embrulhar.

O marido ofendido pagou os oito rublos, passou a mão na rede para levá-la e, cada vez mais ofendido, saiu da loja.

 

                   O xale de Selim (Gaudissart II) - Honoré de Balzac

Saber vender, poder vender, e vender! O público não desconfia de todas as grandes coisas que Paris deve a essas três faces do mesmo problema. O luxo de lojas tão ricas quanto os salões da nobreza antes de 1789, o esplendor dos cafés que freqüentemente supera, e muito facilmente, no do neo-Versailles, poema das exposições nas vitrines, destruído todas as noites, reconstruído todas as manhãs; a elegância e a graça dos jovens em contato com as compradoras, as fisionomias sedutoras e a toalete das moças que devem atrair os compradores; e, por fim, recentemente, as profundezas, os espaços imensos e o luxo babilônico das galerias, onde negociantes monopolizam as especialidades, reunindo-as - tudo isso não é nada!... Trata-se, ainda, apenas de aprazer ao mais ávido e mais gasto órgão que se desenvolveu no homem, desde a sociedade romana, e cuja exigência tornou-se ilimitada, graças aos esforços da refinadíssima civilização. Esse órgão é o olho dos parisienses! Esse olho consome fogos de artifício de cem mil francos, palácios de dois quilômetros de comprimento por sessenta pés de altura, em vidros multicores, luminosos em catorze teatros todas as noites, panoramas renascentes, contínuas exposições de obras-primas, mundos de dores e universos de alegrias, em passeio pelas avenidas ou errando pelas ruas; enciclopédias de frioleiras no carnaval, vinte obras ilustradas por ano, mil caricaturas, dez mil vinhetas,litografias e gravuras. Esse olho absorve cerca de quinze mil francos de gás todas as noites; finalmente, para satisfazê-lo, a cidade de Paris despende anualmente alguns milhões em propagandas e em decorações. E isso ainda não é nada... Isso não é senão o lado material da questão. Sim, quanto a nós, é pouca coisa, em comparação com os esforços de inteligência, de astúcia, dignas de Molière, empregadas pelos sessenta mil caixeiros e as quarenta mil moças penduradas aos bolsos dos compradores, como os milhares de peixinhos nos pedaços de pão que flutuam nas águas do Sena.

O Gaudissart do lugar é pelo menos igual em recursos, em espírito, em chiste, em filosofia, ao ilustre caixeiro-viajante que se tornou o protótipo dessa tribo. Fora de sua loja, de sua função, ele é como um balão sem gás; não deve as faculdades senão ao seu meio de negociantes, como o ator que não é sublime senão no seu teatro. Se bem que em relação aos outros caixeiros da Europa, o francês tenha mais instrução, para que possa, numa emergência, falar de asfalto, de Bal Mabille, polca, literatura, livros ilustrados, estradas de ferro, política, câmaras e revolução, ele é excessivamente tolo quando deixa seu trampolim, seu poleiro, suas graças de encomenda; mas ali, na corda tensa do balcão, a palavra nos lábios e o olho na freguesia, o xale na mão, ele eclipsa o grande Talleyrand; tem mais espírito que Désaugiers, mais finura que Cleópatra, vale Monrose multiplicado por Molière. Talleyrand caçoaria de Gaudissart na própria casa deste; mas em sua loja, Gaudissart teria caçoado de Talleyrand.

Expliquemos esse paradoxo por um fato.

Duas bonitas duquesas tagarelavam ao lado deste ilustre príncipe, queriam um bracelete. Esperavam, da casa do mais célebre joalheiro de Paris, um caixeiro e os braceletes. Um Gaudissart chega munido de três braceletes, três maravilhas, entre as quais as duas mulheres hesitam. Escolher! É o lampejo da inteligência. Hesitais?... Já sei, errastes. O gosto não tem duas inspirações. Por fim, depois de dez minutos, o príncipe foi consultado; vê as duas duquesas assoberbadas com as mil facetas da incerteza entre as duas jóias mais notáveis; porque, logo de início uma foi rejeitada. O príncipe não deixa sua leitura, não olha para os braceletes, examina o caixeiro.

- Qual escolheria o senhor para a sua amiguinha? - pergunta-lhe.

O rapaz mostra uma das jóias.

- Nesse caso, pegue a outra, e fará a felicidade de duas mulheres, - disse o mias fino dos diplomatas modernos - e o senhor, rapaz, faça a felicidade de sua amiga. - As duas belas mulheres sorriem, o caixeiro se retira, toa lisonjeado pelo presente que o príncipe acaba de lhe fazer, quanto da boa opinião que o mesmo tem dele.

Uma mulher acompanhada de outra, desce de sua brilhante carruagem, parada na rua Vivienne, diante de um desses suntuosos magazines onde se vendem xales. As mulheres são quase sempre duas para esta espécie de expedições. Todas, em circunstâncias semelhantes, passeiam em dez lojas, antes de se decidirem; e, no intervalo entre uma e outra, zombam da comediazinha que os caixeiros representam. Examinemos quem desempenha melhor o seu papel: a compradora ou o vendedor? Qual dos dois leva vantagem nesta pequena encenação?

Quando se trata de descrever o maior feito do comércio parisiense, a Venda! Deve-se criar um tipo sintetizando nele a questão. Ora, aqui o xale ou a correntinha de mil escudos, causarão mais emoções que a peça de cambraia, que o vestido de trezentos francos. Porém, ó estrangeiros dos dois mundos! Se apesar de tudo tomastes conhecimento da fisiologia da fatura, sabei que esta cena se desenrola nas lojas de novidades, pela barege (espécie de lã), de dois francos ou pela musselina estampada, de quatro francos o metro!

Como ireis desconfiar, princesas ou burguesas, desse belo rapazinho de rosto aveludado e colorido como um pêssego, de olhos cândidos, vestido quase tão bem quanto o vosso... o vosso primo, e dotado de uma voz tão doce como a lã que vos desdobra? Há três ou quatro assim: um de lhos negros, semblante decidido, que vos diz: "Aqui está!" com um ar imperial. Outro tem olhos azuis, maneira tímidas, frases submissas e de quem se diz: "Pobre criança! Não nasceu para o comércio!..." Este, castanho claro, olhos amarelos e sorridentes, a frase aprazível, e dotado de uma atividade, de uma alegria meridionais. Aquele, vermelho fulvo, barba em leque, angustiado como um comunista, severo, imperioso, de gravata fatal, e com discursos breves. Essas diferentes espécies de caixeiro, que respondem aos principais caracteres de mulheres, são os braços de seu patrão, um gordo bonachão, de alegre figura, meio calvo, com ventre de deputado ministerial, às vezes condecorado com a Legião de Honra por ter mantido a superioridade da indústria francesa, oferecendo linhas de uma rotundidade satisfatória, tendo mulher, filhos, casa de campo e conta no banco. Esse personagem desce à arena, à maneira do deus ex machina, quando a intriga muito embaralhada exige uma rápida solução. Assim, as mulheres são cercadas de bonomia, de juventude, de graças, de sorrisos, de delicadezas, disso que a humanidade civilizada oferece de mais simples, de mais enganadoramente sedutor, de perfeitamente arrumado por nuanças, para todos os gostos.

Uma palavra sobre os efeitos naturais de ótica, de arquitetura, de decoração; uma palavra curta, decisiva, terrível; uma palavra que é a história feita no próprio local. O livro em que ledes esta página instrutiva é vendido na r. de Richelieu, 76, num elegante bazar, branco e ouro, forrado de veludo vermelho, que possuía uma peça na sobreloja, onde a luz se expande amplamente da Rua Ménars, e vem, como uma pintura, franca, pura, limpa, sempre igual a si mesma. Que passante não admirou o persa, o rei da Ásia que se posta na esquina da rua da Bolsa, encarregado de dizer urbi et orbi; - "Eu reino aqui mais tranqüilamente que em Laore". Em quinhentos anos, essa escultura na rua poderia, sem esta imortal análise, ocupar os arqueólogos, fazer escrever volumes in-quatro com figuras, como o de M. de Quatremère sobre o Júpiter Olímpico, e onde se demonstraria que Napoleão foi um pouco sofi (sofi - título do xá da Pérsia) em alguma região do Oriente, antes de ser imperador dos franceses. Pois bem, esse rico magazine se estabeleceu na pobre sobrelojazinha, e, a golpes de cheques bancários, tomou-a para si. A COMÉDIA HUMANA cedeu lugar à comédia das casimiras. O persa sacrificou alguns diamante de sua coroa para obter esse dia tão necessário...

Voltemos aos jovens, àquele quadragenário condecorado, recebido pelo rei dos franceses à sua mesa, àquele primeiro-caixeiro de barba ruça e ar autocrático. Esses Gaudissarts eméritos são medidos com mil caprichos por semana e conhecem todas as vibrações da corda-casimira do coração das mulheres. Quando uma prostituta, uma dama respeitável, uma jovem mãe de família, uma elegante, uma duquesa, uma inocente senhorinha, uma estrangeira inocentíssima se apresentam, cada uma delas é bem depressa analisada por aqueles sete ou oito homens, que a estudam no momento em que ela pôs a mão na maçaneta da porta, e que se postam junto às janelas, ao balcão, à porta, num ângulo, no meio da loja, tendo um ar de pensar nas alegrias de um domingo arrebatador; examinando-os, perguntamos mesmo: - Em que podem eles pensar? A bolsa de uma mulher, seus desejos, intenções, fantasias, são então melhor dissecados, num minuto do que em sete quartos de hora uma carruagem suspeita, na fronteira, é revistada pelos empregados da alfândega. Esses inteligentes espertalhões, sérios como os pais nobres da tragédia, viram tudo, os pormenores do arranjo, uma invisível marca de lama na botinha, uma copa de chapéu antiquada, uma fita de chapéu suja ou mal-escolhida, o corte e o feitio do vestido, o estado de conservação das luvas, o vestido cortado pelos inteligentes costureiros de Vitorina, a jóia de Froment-Meurice, a bijuteria da moda, enfim, tudo que pode, numa mulher, trair sua qualidade, sua fortuna, seu caráter. Tremei! Esse sinédrio de Gaudissarts, presidido pelo patrão, jamais se engana. Além disso, as idéias de cada um são transmitidas ao outro com uma rapidez telegráfica, por olhares, tiques, sorrisos, movimentos de lábios que, observando-os, diríeis o súbito iluminar-se da Av dos Campos Elíseos, onde o gás voa de candelabro para candelabro, como aquela idéia alumia o fundo dos olhos de caixeiro para caixeiro.

E, bem depressa, se se trata de uma inglesa, o Gaudissart sombrio, misterioso e fatal avança, como um personagem de lorde Byron.

Se é uma burguesa, designa-se o mais velho dos caixeiros; ele lhe mostra cem xales num quarto de hora, deslumbra-a com as cores, os desenhos, desdobra tantos xales quantas voltas descreve um milhafre em torno de um coelho; e, ao fim de meia hora, maravilhada, e não sabendo o que escolher, a digna burguesa recorre ao caixeiro, que a coloca entre os extremos deste dilema, e as iguais seduções de dois xales: - "Este, senhora, é mais vantajoso, é verde-maçã, a cor da moda; mas a moda muda, enquanto este aqui (o negro ou o branco do qual a venda é urgente), não verá seu fim, e combina com todas as toaletes."

Isto é o a b c da profissão.

- Vocês não podem imaginar de quanta eloquência se precisa nesta profissão ingrata - dizia ultimamente o primeiro Gaudissart do estabelecimento, falando a dois de seus amigos, Duronceret e Bixou, vindos para comprar um xale, e confiando-lhe a escolha. - Vejam bem, vocês são artistas discretos e posso falar-lhes das astúcias do nosso patrão, que certamente é o homem mais forte que já vi. Ele inventou o xale-Selim, um xale impossível de se vender, e que vendemos sempre. Guardamo-lo numa caixa de cedro, muito simples, forrada de cetim, um xale de quinhentos a seiscentos francos, um desses xales enviados por Selim a Napoleão. Este xale é a nossa Guarda Imperial, fazemo-lo avançar em desespero de causa: ele se vende e não morre.

Naquele momento uma inglesa saiu de uma carruagem e se mostrou no belo ideal de sua fleuma, particular à Inglaterra e a todos os seus produtos pretendidamente animados.

- A inglesa - disse ele ao ouvido de Bixou - é a nossa batalha de Waterloo. Temos mulheres que nos escorregam das mãos como enguias, apanhamo-las na escada; meretrizes que caçoam de nós, rimos com elas, as seguramos pelo crédito; estrangeiras indecifráveis, a cuja resistência levamos diversos xales e com as quais nos entendemos; mas com a inglesa é lutar com o bronze da estátua de Luís XIV. Essas mulheres acostumam-se a uma ocupação, a um prazer de pechinchar... Elas nos fazem de otários, veja só!...

O caixeiro romanesco avançara.

- A senhora deseja seu xale das Índias, ou da França, a preços alto, ou...

- Eu ver.

- Quanto a senhora quer despender?

Voltando-se para apanhar os xales e expor sobre o cabide, o caixeiro lançou aos seus colegas um olhar significativo (Que estopada!), acompanhado de um imperceptível movimento de ombros.

- Eis aqui as nossas mais belas qualidades em vermelho das índias, em azul, em alaranjado; todos são de dez mil francos... Eis os de cinco mil e os de três mil.

A inglesa, com uma indiferença profunda, olhou de soslaio ao seu redor, antes de olhar para as três exibições, sem dar sinal de aprovação ou reprovação.

- O senhor ter outras? - pergunta ela.

- Sim, minha senhora, mas a senhora talvez não esteja muito decidida a comprar um xale?

- Hô! Muito decidido.

E o caixeiro foi procurar xales de preço inferior; porém, exibe-os solenemente, como dizendo: "Atenção para essas magnificências!"

- Estes são muito mais caros, - disse ele - não foram despachados, vieram por mensageiros e são comprados diretamente de Laore.

- Hô! Eu compreende - disse ela - ser para mim muita melhor.

O caixeiro permaneceu sério, malgrado sua irritação. A inglesa, sempre fria como uma planta aquática, parecia feliz com sua fleuma.

- Que preço? - perguntou ela, mostrando um xale azul-celeste, coberto de pássaros.

- Sete mil francos.

Ela tomou o xale, envolveu-se nele, olhou no espelho e disse, devolvendo-o: "Non, eu não gostar nada."

Um bom quarto de hora transcorre nesses ensaios infrutíferos.

- Não temos mais nada, minha senhora, disse o caixeiro, olhando o patrão.

- A senhora é difícil como todas as pessoas de bom gosto - disse o chefe do estabelecimento, avançando, com aquelas graças de lojista, onde o despretensioso e o chocarreiro se misturam agradavelmente.

A inglesa tomou o seu lornhão e mediu o fabricante da cabeça aos pés.

- Só me resta um único xale, mas eu nunca o mostro; - retornou ele - pessoa nenhuma o achou de seu gosto, é muito extravagante; e esta manhã eu pensava em dá-lo à minha mulher.

- Vejamos, senhor.

- Vá buscá-lo! Disse o patrão a um caixeiro - está na minha casa...

- Eu ser muita mais satisfeita de ver - respondeu a inglesa.

A resposta foi um triunfo, porque essa mulher cacete parecia a ponto de ir embora.

- Custou sessenta mil francos na Turquia, minha senhora.

- Hô!

- É um dos sete xales enviados por Selim ao imperador Napoleão. A imperatriz Josefina, muito caprichosa, trocou-o por um desses trazidos pelo embaixador turco e que meu predecessor tinha comprado; mas nunca alcançou preço; porque em França, nossas mulheres não são tão ricas quanto na Inglaterra... Este xale vale sete mil francos que, certamente, representam catorze ou quinze, pelos interesses compostos...

- Compostas de que? - disse a inglesa.

- Aqui está, senhora.

E o patrão, tomando precauções de demonstradores do Grune-gewelbe (museu histórico e artístico), abriu com uma chave minúscula uma caixa quadrada, feita de cedro, cuja forma e simplicidade causaram profunda impressão na inglesa. Dessa caixa saiu um xale de cerca de mil e quinhentos e francos, amarelo ouro, com desenhos negros, em que o colorido não era ultrapassado senão pela bizarria das invenções indianas.

- Splendid! - disse a inglesa - é verdadeiramente belo... Eis my ideal de xale, it is very magnificent...

O resto foi perdido na pose de madona que ela tomou para mostras seus olhos sem calor, que acreditava belos.

- O imperador Napoleao admirava-o muito, serviu...

- Muita - repetiu ela.

Tomou o xale, envolveu-se nele, examinou-o O patrão retomou o xale, veio à luz do dia esfregá-lo, manuseou-o, fê-lo brilhar; dedilhou como Liszt dedilha o piano.

- É very fine, beautiful, sweet - disse a inglesa com a expressão tranqüila.

Duronceret, Bixiou, os caixeiros trocaram olhares de prazer que significavam "o xale está vendido".

- E então, senhora? - perguntou o negociante, vendo a inglesa absorta numa espécie de contemplação.

- Decididamente -disse ela - eu amar melhor uma carruagem!

Um mesmo sobressalto animou os caixeiros silenciosos e atentos, como se algum fluido elétrico os tivesse tocado.

- Tenho uma linda, senhora, - respondeu o patrão - ela me veio de uma princesa russa, a princesa Narzicoff, que me deixou em pagamento de fornecimentos; se a senhora quiser vê-la, ficará maravilhada; é nova, não rodou dez dias e não tem igual em Paris.

A estupefação dos caixeiros foi contida por uma profunda admiração.

- Quero muito - respondeu ela.

- A senhora pode conservar o xale - disse o negociante - verá que efeito tem na carruagem.

O negociante foi buscar as luvas e o chapéu.

- Como acabará isso? - disse o primeiro caixeiro.

Isto, para Duronceret e Bixiou teve o atrativo de um fim de romance, ou por outra, o interesse particular de todas as lutas, mesmo mínimas, entre Inglaterra e França. Vinte minutos depois o patrão voltou.

- Vá ao Hotel Lawson, eis o cartão. Miss Noswell. Leve a fatura que lhe vou dar, há seis mil francos a receber.

 

- Como o conseguiu? - perguntou Duronceret, saudando o rei da fatura.

- Ora, senhor, reconheci essa natureza de mulher excêntrica; ela adora ser notada; quando viu que todo o mundo olhava para seu xale, disse-me: "Decididamente, guarde a sua carruagem, senhor, fico com o xale."- Enquanto o senhor Bigorneau - disse ele, mostrando o romanesco caixeiro - lhe desdobrava xales, eu examinava a nossa mulher, que lhes dirigia o lornhão, para saber que idéia tinham dela, ocupava-se mais de vocês que dos xales. As inglesas têm uma falta de gosto particular (porque eu não posso dizer um gosto), não sabem o que querem e se decidem a comprar uma coisa, mais por uma circunstância fortuita do que pelo seu valor. Reconheci uma dessas mulheres entediadas do marido, de seus moleques, virtuosa a contragosto, em busca de emoções e sempre fantasiadas de carpideiras...

Eis, literalmente, o que disse o chefe do estabelecimento.

Isso prova que no negociante de qualquer outro país não há senão um negociante; enquanto que na França, e sobretudo em Paris, há um homem egresso do colégio real, instruído, que ama as artes, ou a pesca, ou o teatro, ou devorado pelo desejo de ser sucessor do senhor Cunin-Cridaine, ou coronel da guarda nacional, ou membro do Conselho Geral do Sena, ou Juiz do Tribunal do Comércio.

- Senhor Adolfo, - disse a mulher do fabricante ao seu pequeno caixeiro louro - encomende uma caixa de cedro no marceneiro.

- E, - disse o caixeiro, reconduzindo Duronceret e Bixiou, que tinham escolhido um xale para a senhora Schontz - nós vamos escolher entre nossos velhos xales aquele que poderá desempenhar o papel do xale de Selim.

 

                  Três Quadros - Virgínia Wolf

         PRIMEIRO

É impossível não encontrar quadros por toda a parte, pois o simples fato de meu pai haver sido ferreiro, por exemplo, e o vosso, Par do Reino, leva-nos uns para com os outros, a assumir o aspecto de personagens de quadro, o que possivelmente não poderíamos evitar se saíssemos da moldura que as circunstâncias criaram para nós, por mais que procuremos expressar-nos com toda naturalidade.

Ao lembrarem-se de mim, certamente me imaginarão à porta da forja, com uma ferradura na mão, e hão de comentar: "Que coisa mais pitoresca!". De minha parte, não posso evitar as fantasias que me assaltam de ver-nos comodamente reclinados num luxuoso carro, cumprimentando o povo, e tal visão a meus olhos, é o símbolo da Inglaterra aristocrata. Certamente, nem uma, nem outra destas duas imagens corresponderá à realidade, mas, que posso fazer?

Ora, acontece que, há pouco, numa curva da estrada, divisei um desses quadros que poderia intitular-se "O regresso do marinheiro", ou coisa parecida. Tratava-se de um marinheiro jovem, simpático, transportando um saco na mão e de uma moça agarrada ao seu braço; em volta dele, alguns vizinhos e, ao fundo, uma pequena casa rodeada de um jardim florido.

Ao passar, via-se que aquele marinheiro acabava de chegar da China e que, no interior da casa, a sala fora cuidadosamente preparada para recebê-lo. Adivinhava-se também que, no saco que ele transportava, trazia um presente para a jovem esposa, e que esta ia dar-lhe o primeiro filho. Tudo estava certo, tudo parecia perfeito nesse quadro, e contemplar tamanha felicidade tornava a vida mais suave e agradável de viver.

Pensando assim, segui adiante, completando o quadro, de memória, o mais que pude, com pormenores que conseguia observar, a cor do vestido dela, a expressão dos olhos deles, o gato amarelo enroscado à porta da casa.

Durante certo tempo o quadro fixou-me nos olhos, tornando tudo em volta mais brilhante, mais quente e mais simples do que é habitual, e fazendo com que certas coisas se me apresentassem como loucuras, outras como tolices e outras ainda exatas, perfeitas, e com muito mais sentido do que sempre imaginara. Naquele dia e no dia seguinte, nos momentos mais singulares, o quadro voltou-me à memória, pensando com inveja, mas também com ternura, no marinheiro e na esposa, perguntava-me o que estariam fazendo e dizendo, naquele instante.

A minha imaginação, aos poucos, foi acrescentando ao primeiro, outros quadros que, por assim dizer, o completavam. Via o marinheiro rachando lenha, tirando água do poço do jardim; ouvia-o conversar com a esposa sobre o que vira na China, imaginava ela colocando cuidadosamente o presente que o marido trouxera sobre a lareira da sala, depois imaginava a moça costurando roupinhas de crianças enquanto todas as portas e janelas se encontravam abertas para o jardim, onde pássaros cantavam e abelhas zumbiam. Rogers - era o nome dele - não encontrava palavras para expressar o prazer que tudo lhe causava, depois de ter percorrido os mares da China, e detinha-se a fumar cachimbo, fora da porta, admirando o jardim.

 

         SEGUNDO

No meio da noite, um grito dilacerante rompeu o silêncio; depois, ouviu-se como que um vozear, a seguir um silêncio de morte dominou tudo. O que pude divisar, da minha janela, foi uma haste do lilás do jardim, pendendo imóvel sobre a estrada. Era ainda noite escura. Não havia luar. O grito emprestara às coisas um aspecto singular. Quem gritara? Por que gritara ela? Tratava-se de uma voz de mulher, quase inexpressiva, quase assexuada, pela violência da emoção.

Dir-se-ia a natureza humana gritando contra qualquer inexplicável iniquidade, contra qualquer indescritível horror. Seguiu-se ao grito um silêncio de morte. As estrelas cintilavam nítidas, serenas, os campos dormiam tranqüilos e as árvores continuavam imóveis; no entanto, por toda a parte se espalhara um sentimento de culpa, todas as coisas se sentiam responsáveis por não sei que tremendo crime. Tinha-se a sensação de que era imprescindível tentar qualquer coisa. Devia, forçosamente, aparecer alguma luz agitando-se, movendo-se, inquieta, numa e noutra direção. Alguém devia aparecer correndo pela estrada. As janelas da casinha curva do caminho iluminar-se-iam e então talvez um outro grito se fizesse ouvir menos desesperado, no entanto, já não inarticulado e repleto de tão indescritível horror.

Contudo, nenhuma luz apareceu, nenhum rumor de passo se ouviu, e não houve segundo grito. O primeiro extinguira-se, desapareceram dele os derradeiros ecos, e seguiu-se-lhe um silêncio mortal.

Deitada no escuro do quarto, inutilmente eu escutava. Fora uma voz apenas. Uma voz sem sentido. Não era possível imaginar qualquer quadro que com esse grito tivesse relação e que pudesse ajudar a interpretá-la ou a torná-lo inteligível. A manhã começava a romper quando avistei uma forma humana, meio diluída em treva, indefinida, informe, erguendo em vão um braço gigantesco contra qualquer intransponível iniquidade.

 

         TERCEIRO

O tempo permanecia suave. Se não tivesse ouvido aquele grito durante a noite, teria a impressão de que, finalmente, o mundo aportara a porto seguro, que vida deixara de ser agitada pelo vendaval, que o mundo alcançara, enfim, uma enseada tranqüila, onde repousaria quase imóvel. Entretanto, nos meus ouvidos, o som persistia. Onde quer que me dirigisse e, mesmo ao dar um passeio pelas colinas, qualquer coisa me parecia existir sob a superfície serena das coisas, fazendo-me descrer da estabilidade, da segurança, que à minha volta pareciam existir. Pela vertente, um rebanho pastava tranqüilo e o vale, ao fundo, estendia-se, ondulado como um mar calmo de verão. Passei por uma herdade solitária. No pátio um cachorro brincava e borboletas voltejavam sobre a urze. Tudo parecia gozar uma felicidade serena e pura. Contudo, na noite anterior, ouvira-se aquele grito e toda a beleza, toda a serenidade, que eu tinha ante os olhos, fora cúmplice. Sim, pelo menos consentira, e tudo continuava sereno, belo, embora aquele grito se tivesse feito ouvir e pudesse voltar a repetir-se. Toda a serenidade, toda a segurança eram aparência falaz...

E então, para alegrar-me, para dominar esta opressiva disposição, recordei a chegada do marinheiro. Tornei a ver o quadro, enriquecendo-o ainda com mais alguns pormenores - o vestido azul que ela trazia, a sombra que a árvore florida projetava sobre o jardim - que não notara até ali. Tornei a avistá-los junto da porta da casa, ele com seu saco, ela enfiando-lhe o braço, o gato amarelo enroscado à porta. E desta maneira, rememorando o quadro em todos os seus pormenores, pude, aos poucos, convencer-me de que realmente existiam calma e bem-estar para além da superfície das coisas e não nos esperava sempre qualquer surpresa traiçoeira e sinistra.

O rebanho pastando, espalhado pelo ondulado das colinas, a herdade longínqua, guardada pelo cão, e as borboletas pousando aqui e ali, eram realmente fatos e nada havia oculto sob tais aparências. E assim regressei à casa, pensando no marinheiro e na mulher, desenhando, um após outro, vários quadros de felicidade perene e de alegria, de modo a silenciar o desassossego que o tremendo grito deixara dentro de mim.

Alcancei finalmente a aldeia, atravessando o adro, por onde é forçoso atravessar; e, como sempre me acontece de cada vez que passo naquele local de paz, atentei na tranqüilidade das cinzas, repousando dentro do túmulo de pedra, ou em covas onde não existe sequer um nome a recordar. Quando por aqui passo, tenho sempre a impressão de que a morte é uma coisa alegre.

Eis então que um quadro mais se me apareceu.

Um homem abrindo uma cova e um bando de crianças merendando ao lado da sepultura. A mulher do coveiro, gorda e bonita, encostada a um túmulo, estendera o avental na relva, mesmo ao lado da cova que acabava de ser aberta, fazendo-o de toalha. De vez em quando, algum torrão caía no meio do serviço de chá. "Quem vai ser enterrado", perguntei, "morreu finalmente o velho Mr. Dodson?" "Não, não, respondeu-me a mulher. "É para Rogers, o marinheiro. Morreu a noite passada de uma febre que apanhou na viagem. Não ouviu a mulher? Veio à estrada e gritou..." Depois, virando-se para um dos pequenos, "tem juízo, Tommy, estás te sujando de terra!"

Que quadro tremendo que não me atrevo sequer a esboçar...

Um convidado à mesa

Luís Pirandello

Será muito ou será pouco? - perguntaram, na cozinha, umas às outras, as três irmãs, Santa, Lisa e Angélica Borgianni, que há dois dias se dedicavam em preparar um jantar de grandes proporções.

Santa, a menor, era mais alta que Angélica; e esta, de Lisa, a mais velha das três. Ademais, todas bem favorecidas de seios e de quadris, podendo rivalizar com os irmãos em estatura elevada e em força hercúlea.

- Família Borgianni: oito colunas! - gostava de dizer Mauro, o menor dos irmãos e de toda a família.

Três irmãs, portanto, e cinco irmãos: Rosário, Nicolau, Tita, Lucas e Mauro, segundo a ordem de idade.

Rosário e Nicolau viviam no campo; Tita trabalhava na mina de enxofre, junto ao bairro de Aragona; Lucas era empreiteiro de serviços públicos, na redondeza; Mauro era apaixonado pela caça e era só do que se interessava.

Rosário Borgianni era famoso pelos seus impulsos juvenis de besta selvagem. Contavam-se dele as mais audaciosas aventuras, nos tempos abomináveis do banditismo, naturalmente aumentadas e enriquecidas pela imaginação popular. Dizia-se até, que certa ocasião andara à frente de um magote de bandidos, e que depois os matara a todos.

Havia muito exagero nesses relatos. Apenas quatro: dois no próprio sítio e outros dois pela mesma estrada que desce de Comitini a Aragona.

Igualmente de Mauro se contavam muitas proezas. Um dia, por exemplo, indo à caça, rolou do alto do Monte Delle Forche; rolando, saltou três vezes pelos espigões agrestes, e de cada vez, saltando com a espingarda em punho, exclamava:

- Graças a Deus, eu sei dançar!

Contudo, quebrou a perna direita e, - como se há muito tempo não tivesse a cabeça fora do lugar! - uma leve congestão cerebral.

Outra ocasião, durante uma caçada, divisou três ou quatro tordos pousados no lombo de alguns bois, que pastavam por uma ladeira. Aproximou-se, quieto, curvado, e apontando a arma, deu um disparo de espingarda. O boiadeiro encolerizado, saiu-lhe ao encontro.

- Alto lá! - gritou-lhe Mauro, em postura de guarda. Se dás mais um passo, viro-te de pernas para o ar!

- Mas senhor Mauro! Os meus bois...

- E tu não sabes, animal, que eu atiro onde vejo caça?

- Até no lombo dos animais

- Até na cabeça do Menino Jesus se eu confundir o Espírito Santo com um pombo!

O jantar parecia preparado para trinta convidados, no mínimo. Contudo, o convidado era um só, e nem sequer o conheciam.

Apenas sabiam que chegaria no dia seguinte, de Comitini, e que lhe deviam esse jantar em agradecimento ao refúgio que oferecera ao irmão Lucas, o empreiteiro, que estava escondido há quinze dias.

Homicídio? Sim... isto é, não; quase... A coisa aconteceu assim: Lucas tomara, de empreitada, a construção da estrada entre Favara e Naro. Uma tarde, ao voltar do serviço, a cavalo, a certa altura viu uma sombra estender-se ameaçadora sobre a areia do caminho, iluminada pelo luar. Alguém certamente estava ali à espera. Lucas, por sorte, percebeu-o; ou melhor, percebeu o capuz. E desconfiou que o bandido estivesse acocorado para fugir ao clarão da lua que vinha do outeiro, à esquerda.

- Quem está aí?

Nenhuma resposta.

Carregou a arma, por cautela. Nisto, ouviu-se um grilo.

Entao Lucas perguntou, detendo o cavalo:

- Quem está aí?

Silêncio. Só o grilo continuava a trilar.

- Vou contar até três! - gritou, afinal, Lucas, tornando-se pálido. - Se não respondes, poder fazer o sinal da cruz. Um!

A sombra não se mexeu. E silêncio à volta.

- Dois!

Só o grilo trilando.

- Três!

E um disparo. Alguma coisa saltou pelo ar; e Lucas no cavalo a rédea solta, chegou à casa, quase sem ar. Os irmãos e irmãs acorreram ao seu encontro.

- Escondei-me! Escondei-me!

- Por que? Ferido?

- Não... morto...

- Tu! Quem?

- Um... não sei... com a espingarda... Escondei-me.

Os irmaos pegaram-no e o levaram, provisoriamente, para a adega. Entrementes, Mauro saiu de casa afim de certificar, pela aldeia, se sabia do homicídio. Ro sário e Tita aguardavam, impacientes, que Lucas, escondido na adega, recobrasse um pouco as forças para levá-lo a lugar mais seguro; haviam pensado já no esconderijo, em Comitini, na casa de um compadre, para onde ele se poderia transferir nessa mesma noite, a cavalo. Nicolau, muito bem armado, dirigiu-se ao lugar indicado pelo irmão, para saber quem fora a vítima. Lucas, por fim, pusera-se a caminho.

No dia seguinte, de madrugada, apareceu Nicolau.

- Então?

- Nada! Ecnontrei apenas um capote, com o capuz, por terra. O ferido certamente se arrastou até a aldeia e deixou o capote, varado. Que pontaria a de Lucas. Deve tê-lo ferido mortalmente, a julgar pelo capote... Palavra que não entendo; dois furos no capote e, portanto, na cabeça. Não há dúvida, matou-o .

Decorreram três dias, atormentados pela espera. Na aldeia não se sabia de nada; nem nas aldeias próximas nenhuma notícia de ferimento ou morte violenta. Finalmente, dezesseis dias depois, conseguiu-se saber que um camponês, trabalhando naqueles arredores, se servira para cabide, de um marco de pedra, à beira da estrada. Cobrira-o com o capote, do qual se esquecera, à tarde, quando retornou à aldeia. Lucas atirara naquela coluna, julgando-a um encapuçado à espreita.

Agora o jantar ali estava, pronto desde a véspera, sobre a mesa comprida, no meio da sala; um pálido leitaozinho, coberto de folhas de louro, e recheado de macarrão, numa forma; sete lebres assadas rodeadas de tordos, mortos por Mauro, numa de suas caçadas; dois perus peitudos; um cabrito; tripa e fatias de carne; gelatina de pés de boi; um grande peixe, ao vinagre; depois, uma coleção de garrafas e muitas frutas.

- É pouco! É pouco!

Tita dizia que sim; Mauro, que não; fazia os cálculos:

- Nós oito; com o convidado, nove; o criado e a criada, onze; graças a Deus cada um de nós come por quatro, e... e...

- Não tenhas medo; o convidado não passará mal - assegurava Tita.

Essa conversa se realizou à meia-noite, em torno da mesa: irmãos e irmãs, os sete, tinham-se levantado, devagar, impelidos pelo memso desejo de ver o efeito que produzia o jantar preparado; e estavam todos em camisola, com uma candeia em punho, como sombras notívagas. Entre Tita e Mauro, pouco depois se iniciou a discórdia. Mauro agarrou numa lebre e ameaçou o irmão. Chegaram a engalfinhar-se.

- Mazurca! Mazurca! - exclamou, de súbito, Angélica, ouvindo por acaso e, providencialmente os bandolins e a guitarra de uma serenata, pela noite a dentro.

- A noturna! - exclamou Santa, ao mesmo tempo, batendo as maos e puxando a irmã para o meio da sala, onde se puseram a dançar em camisola.

Os outros, entao, imitaram-nas; Lisa atirou-se aos braços de Tita. Rosário juntou-se a Nicolau, e Mauro, que ficou só, também saiu dançando com a lebre de orelhas voejantes, e rindo jovialmente.

 

Por entre os apertos de mao, os abraços, os beijos e as perguntas ao irmão Lucas, ninguém reparou num homenzinho de idade incerta, sob um imenso chapéu que lhe afundava até a nuca, amparado, de lado a lado, pelas orelhas recurvadas sob o peso das abas. O homenzinho estava emocionado com as expansoes de afeto daqueles oito colossos, que não lhe dirigiam sequer um olhar, por sua natureza acanhada e por ser tão pequeno que nem chegava (incluindo o chapéu) aos ombros de Lisa, a mais baixa de todas.

-Ah, um momento. Apresento Dom Diego Filinia, mais conhecido como Schiribillo, - disse, afinal, Lucas, notando a falta. E pôs-lhe a mao no ombro, sorrindo, tomando ares protetores.

- Meu Deus, como é pequeno... - exclamaram em coro, as três irmãs.

- Compleição, minhas senhoras, disse Dom Diego tirando o chapéu e sorrindo com uma humildade um pouco vexada.

Que desilusão! Era esse o convidado? E entao... se soubessem antes!...

- Por que chora? Perguntou Angélica, depois de observá-lo atentamente, com inequívocas demonstrações de náusea e de pesar.

- Chora? - interrompeu Lucas, virando-se para aliviar-se logo e olhar de perto o rosto do minúsculo convidado.

- Não choro não, respondeu D. Diego, quando pretendia passar no olho direito um enorme lenço de algodão. - Pelo caminho entrou-me uma palhinha no olho... Não estou chorando.

- Ah!... - exclamaram os colossos tranquilizados.

- É melhor o senhor tirar a capa, sugeriu Santa.

- Não! Não... pelo amor de Deus, quero ficar com ela! Se começo a espirrar, que Deus me livre, não paro mais. É por isso que sempre trago a capa.

Ninguém se animava a falar, e aquela perplexidade se tornava cada vez mais insuportável.

- É de nosso dever - começou finalmente a dizer Lucas, - agradecer a Dom Schiribillo o grande favor e as cortesias com que me distinguiu durante a minha estada em Comitini.

- Nós lhe agradecemos de todo o coração! - disse entao Rosário, estirando a mao ao hóspede.

Esteja a vontade, como em sua casa, acrescentou Nicolau, apertando, por sua vez, a mao do hóspede, e olhando para os outros irmãos, como que a dizer-lhes: - "Agora vocês; eu já disse o que me competia."

Tita e Mauro, um após outro, seguiram o exemplo, e disseram algumas palavras, dando um passo a frente, militarmente, e apertando a mao de Dom Diego, o qual só soube dizer como resposta: - "Por favor, muito obrigado".

Mas dos lábios das três irmãs decepcionadas, nem uma só palavra foi possível arrancar.

Foram revividas as circunstâncias que obrigaram Lucas homisiar-se.

- Qual pedra, qual nada! Exclamou este, indignado. - Homem sim, de carne e osso, à espreita. Tanto é assim que logo depois do tiro, ouvi um grito, ouvi com estes meus ouvidos... Gostaria, em primeiro lugar de saber quem foi o safado que andou espalhando essa anedota. Eu ia mostrar que não se ri impunemente de Lucas Borgianni.

- Basta! Disse Rosário. Seja quem for, já está dito. Não falemos mais nisso. Tratemos de nos divertir, por hoje.

Dom Diego concordou com a cabeça, não porque esperasse se divertir, coitado, entre aqueles oito gigantes, mas para evitar discussoes. Ninguém sabe o que pode acontecer.

Atendendo ao convite para o jantar, Rosário e Niccolau começaram a discutir com o convidado sobre o campo, as colheitas boas e más. D. Diego, com humildade, confiava-se sempre, às maos de Deus; mas esta humildade acabou por subitamente arrancar Nicolau do silêncio.

- Que maos de Deus, que nada! Para a terra, só braços de homem! Como esses, por exemplo!

E exibiu a Dom Diego os braços hercúleos estendidos, com os punhos fechados, como se ele costumasse dar sopapos na terra, para obrigá-la a render, anualmente, mais do que devia.

Tita e Mauro quiseram também mostrar os seus, e arregaçaram as mangas do paletó e da camisa. O pobre D. Diego viu-se, de repente, entre oito braços musculosos, próprios para domar oito bois.

- Estou vendo... estou vendo...

- Apalpe! Apalpe! Convidaram os Borgianni. E D. Diego devagar, foi apalpando, com um dedo tremulo, enquanto a outra mao passava o lenço pelo nariz, temeroso de que alguma gota caísse, santo Deus, sobre aqueles braços.

- À mesa, - veio anunciar Santa.

- Schiribillo, à mesa! Gritou Mauro - Deixe tudo por nossa conta. O senhor há-de crescer... Há de comer tanto que depois não poderá sair pela porta. Nós o jogaremos pela janela, empanturrado e cheio.

- Eu não sou muito de comer, - adiantou Dom Diego, com intenção.

- Qual é o lugar do convidado? - perguntou em voz baixa, Tito às irmãs.

- Entre Rosário e Lisa - propôs Mauro.

Lisa rebelou-se.

- Nós, as mulheres, queremos ficar ao lado, à parte.

Dom Diego sentou-se entre Rosário e Nicolau. Os oito Borgianni, logo que sentaram, encheram de vinho os grandes copos.

- É para fazer o sinal da cruz! - disse Rosário com gravidade. E maos à obra!

- O senhor não bebe, D. Diego? - perguntou Tita.

- Muito obrigado, antes das refeiçoes, nunca, - Excusou-se o hóspede, timidamente.

- Ora, deixe-se disso, é para abrir o apetite, - sugeriu Nicolau, passando-lhe um copo.

  1. Diego levou-o à boca, por gentileza, e mal e mal o tocou, bebendo cautelosamente um gole.

- Mais! Mais, até o fundo! - incitavam-no os oito Borgianni.

- Não posso... muito obrigado, não posso...

Mauro levantou-se:

- Esperem que vou pô-lo no bom caminho!

Com umam das maos, segurou o copo, com a outra a cabeça de D. Diego e, à proporção que ia dizendo:

- Deixe-me servi-lo! - o esvaziou todo na boca do coitado, que inultimente lutava.

- Meu Deus! - soluçou, erguendo-se, Dom Diego, meio afogado, comm os oolhos cheio de lágrimas.

- Oh, vejam só, saiu vinho até pelos olhos! Observou Angélica, gracejando.

Trouxeram o leitãozinho recheado. Rosário levantou-se; destrinchou-o e deu o maior pedaço a D. Diego.

- É muito... é muito... - disse ele com o prazo na mão.

- Qual muito! Exclamou Nicolau. - O senhor não começa?

- Basta a metade, por favor... - insistiu Dom Diego. - Não é possível... Eu sou parco...

- Parco? Pois bem, isto é carne de porco! Coma! Gritou Mauro, erguendo-se outra vez.

  1. Diego, espantado, baixou a cabeça sobre o prato e principiou a comer, quieto, quietinho.

Comeram aquele primeiro prato, em silêncio. Só o convidado é que de vez em quando fazia timidamente menção de depor os talheres.

- Coma! Repetiam-lhe os colossos. - Até o último pedaço.

- Chega, não posso mais, não quero mais nada! - Protestou Dom Diego, pondo nas palavras alguma energia, depois de ter dado conta da sua parte, e dando um grannde suspiro de alívio. - Fiz, como se costuma dizer, como Carlos em França.

- Que é que o senhor está dizendo! - retrucou Mauro, - Não vê que estamos apenas começando.

- Quanto aos senhores, está certo... - Observou, sorrindo Dom Diego - os senhores têm grande capacidade.. Eu falo de mim...

- Mas que é que o senhor está pensando de nós? - interrogou Tita, alterando-se. - Então o senhor acredita que nós o convidamos para jantar apenas um prato e basta! Trate de comer, que ée a sua obrigação. Temos de agradecer-lhe tudo o que fez pelo nosso irmao.

- Mas não é ofensa - Apressou-se em desculpar-se D. Diego. - Estou dizendo que eu...

- Que o senhor há de comer! - interrompeu Rosário. - Aqui está uma caça de Mauro.

- Uma lebre e cinco tordos? - exclamou aterrorizado D. Diego. - Será possível? Não tenho mais lugar. Os senhores não hão de querer que eu deixe aqui a pele...

- Que pele? Perguntou Rosário. - O senhor não tem que deixar nada. A lebre está preparada.

- Falo da minha, falo da minha! Onde querem que eu encontre lugar para uma lebre?

- Uma lebre e cinco tordos...

- Mais essa! Sofresse eu de... Bem, como apenas os tordos.

- Tome! Irrompeu Mauro, brandindo uma anca da lebre. - Esta caça é minha. Pelo senhor, cansei-me durante três dias seguidos. Se não comer tudo, será uma ofensa dirigida a mim, pessoalmente.

- Não se altere... não se altere, por favor! Vou fazer um esforço...

E em si mesmo, o pobre Diogo encomendou a alma a Deus misericordioso.

Mastigando, o suor começou a escorrer-lhe pela fronte. De vez em quando erguia os olhos; via aqueles oito demônios saídos do inferno, que nunca terminavam de encher os copos de vinho, de vinho e mais vinho. E:

- Cristo, ajudai-me! - Implorava ele, baixo consigo mesmo.

O jantar não terminava mais. D. Diego desejava chorar, atirar-se ao chão de tanto desespero, arranhar o rosto com as unhas, desarticular a boca de tanta raiva. Que suplício aquele! Neros! Neros! Sentia-se exausto, sem forças até para empurrar o prato: talheres, copos, garrafas bailavam diante dos seus olhos, sobre a mesa; sentia um rumor nos ouvidos, e as pálpebras fechavam-se por si, enquanto os oito Borgianni, já embriagados, uivavam, gesticulavam como possessos, levantando-se, sentando-se e injuriando-se reciprocamente.

Agora, se D. Diego empurrava um pouco o prato, dizendo como que a si mesmo: - Não quero mais... não quero mais... - os oito gigantes erguiam-se, com as facas de mesa em punho, e os dois mais próximos, ameaçando-o, uivavam:

- Coma senhor Bebo! Por sua causa é que fizemos toda esta despesa!

  1. Diego não se sentia mais deste mundo. De repente, entre as pálpebras semi-cerradas, pareceu-lhe descobrir, sobre a mesa, como que uma grande roda de moinho. Fez, entao, um esforço inútil para levantar-se e fugir.

- Oh! Deus do céu, amarraram-me na cadeira! - Gemeu ele, e começou a chorar.

Não era verdade: era o que parecia ao pobre D. Diego!

Rosário ergueu-se, com a faca na mão. A D. Diego parecia que a cabeça de Rosário tocava no forro da casa e que empunhava um chicote para justiçá-lo.

- A metade é para D. Diego! - gritou Rosário, cortando pelo meio o enorme bolo, que o coitado supôs fosse uma roda de moinho.

- A outra metade é para os que estão mais perto! Propôs Angélica.

- E nós, perguntou Mauro? - Nós nada! Eu queroa minha parte!

Lucas manifestou-se a favor da proposta de Angélica.

- Para os que estão mais perto! Para os que estão mais perto!

A vida de D. Diego dependia daquele conflito.

- Pois bem, eu quero a minha parte, à força! - exclamou Mauro, erguendo-se e estirando a mão para o bolo.

Lucas, porém, foi mais rápido: agarrou o bolo e, acompanhado pela família inteira, entre gritos, empurrões e arrancos, atirou-o pela janela. Seguiu-se uma briga tremenda, irmãos e irmãs se agarraram pelos cabelos: berros, socos, sopapos, arranhaduras, cadeiras derrubadas, garrafas, copos, pratos quebrados, vinho derramado sobre a tolha; um inferno. Rosário subiu numa cadeira e gritou, com voz tonitroante:

- Que vergonha! Que espetáculo! Temos um convidado à mesa!

Diante deste apelo, os furiosos se acalmaram, como por encanto. Procuraram o convidado: onde estava? Onde se escondera?

A capa estava sobre a cadeira, e no chão um par de botinas. O desgraçado fugira descalço mesmo, para correr mais depressa.

- No fim das contas, tudo andou muito bem - diziam uns para os outros, pouco depois, os oito Borgianni, já quietos. - Tudo, menos as frutas, que ainda não foram servidas!

 

                   Uma árvore de Natal e um casamento - Dostoievski

Um dia destes, vi um casamento... mas não, prefiro falar-vos de uma árvore de Natal. Achei o casamento bem bonito, mas a árvore de Natal me agradou mais. Nem sei como, olhando para o casamento, me lembrei da árvore. Eis como o caso se passou.

Há cerca de cinco anos fui convidado, na véspera de Natal, para um baile infantil. A pessoa que me convidou era um conhecido homem de negócios, cheio de relações e maquinações, e, assim, não se há de estranhar que o baile infantil servisse apenas de pretexto para os pais se reunirem e, no meio da multidão, se ocuparem de seus interesses materiais com ar inocente e surpreendido.

Como houvesse chegado ali por acaso e não tivesse nenhum assunto comum com os outros, passei a noite de maneira muito independente. Havia mais um cavalheiro que, como eu, não tinha, decerto, conhecidos no grupo, e participava casualmente da felicidade familiar. Ele deu-me na vista antes de todos. Era um homem alto, magro, muito sério, vestido muito decentemente. Notava-se que a felicidade da família não lhe comunicava a menor alegria; mal se retirava a um cantinho, cessava de sorrir e franzia as sobrancelhas espessas e negras.

Afora o dono da casa, não conhecia vivalma em todo o baile. Via-se que ele se entediava horrivelmente, mas que resolvera manter até o fim o papel do homem que se diverte e é feliz. Soube depois que era um provinciano vindo à capital a algum negócio importante e complicado. Trouxera carta de recomendação para o nosso hospedeiro, que o protegia, porém, não con amore, e o convidara, por cortesia, para o baile infantil. Não jogavam cartas com o provinciano, ninguém lhe oferecia um charuto nem com ele entabulava conversação, talvez porque reconhecessem de longe o pássaro pela plumagem, e, deste modo, o meu cavalheiro via-se obrigado, para ter que fazer das mãos, a alisar a noite inteira as suas suíças. Eram, aliás, umas suíças realmente belas - porém ele as acariciava com tanto zelo que a gente, ao fitá-lo, sentia-se inclinada a pensar que primeiro vieram ao inundo as suíças e só depois o homem, para cofiá-las, inserido entre elas.

Além desse personagem, que tomava parte na felicidade do dono da casa, pai de cinco garotos bem nutridos, do modo que acabo de relatar, outro conviva caíra no meu agrado. Mas este era de aspecto completamente diverso. Era um personagem a quem os outros chamavam Julião Mastakovitch. Percebia-se à primeira vista que era ele o convidado de honra. Estava para o dono da casa como este para o cavalheiro que afagava as suíças. o dono e a dona da casa falavam-lhe com amabilidade extraordinária, cortejavam-no, enchiam-lhe o copo, amimavam-no, e lhe apresentavam, recomendando-os, vários convidados, ao passo que a ele não o apresentavam a ninguém. Notei até uma lágrima nos olhos do hospedeiro quando Julião Mastakovitch observou que raras vezes passara o tempo de maneira tão agradável como naquela noite. Comecei a sentir-me acabrunhadíssimo em presença de semelhante figura, e, depois de haver admirado as crianças, retirei-me a um pequeno salão, totalmente vazio, e fui sentar-me sob o florido caramanchão da dona da casa, o qual ocupava quase a metade de toda a peça.

Eram as crianças incrivelmente gentis, e não queriam, apesar de todas as exortações das mamães e das governantas, parecer-se com as pessoas grandes. Num piscar de olho desmontaram toda a árvore de Natal, e conseguiram quebrar a metade dos brinquedos antes mesmo de saber a quem eram destinados. Achei particularmente engraçado um menino de olhos pretos e cabelos frisados que à viva força me queria matar com a sua espingarda de pau. Entretanto, mais que todos, atraía-me a atenção sua irmã, menina de onze anos, um amor de criança, meiga, cismativa, pálida, com grandes olhos sonhadores à flor do rosto. Parecia que os amiguinhos a tinham ofendido, pois veio ao salão onde eu estava sentado e, a um cantinho. pôs-se a brincar com as suas bonecas. Os convidados apontavam, com respeito, um rico negociante, pai da menina, e alguém observou, cochichando, que ela já tinha trezentos mil rublos reservados como dote. Voltei-me para ver quem se interessava por esses pormenores, e o meu olhar caiu sobre Julião Mastakovitch o qual, de mãos cruzadas atrás das costas e inclinando a cabeça para um lado, parecia acompanhar com particular atenção o mexerico de alguns senhores. Pouco depois, não pude furtar-me a admirar a sabedoria dos anfitriões na distribuição dos brindes às crianças. A menina que já tinha seus trezentos mil rublos de dote ganhou uma boneca suntuosíssima

Desde então os presentes foram diminuindo de valor, de acordo com a diminuição da importância dos pais daquelas crianças felizes. Afinal, a última' um menino de dez anos, magrinho, baixinho, sardento e ruivo, ganhou apenas um livrinho de contos sobre as maravilhas da natureza, DS lágrimas da sensibilidade, etc., sem estampas e até sem vinhetas. Filho da governanta dos meninos da casa, uma pobre viúva, era um pequeno muitíssimo encolhido e tímido, metido num pobre paletozinho de nanquim. Recebido o seu livrinho, andou muito tempo à volta dos brinquedos dos outros. Tinha uma vontade imensa de brincar com as outras crianças, mas não se atrevia; claro, já sabia e compreendia a sua situação. Gosto muito de observar crianças. São sobremodo curiosas as suas primeiras manifestações independentes na vida. Notei, pois, que o menino ruivo se deixava seduzir pelos brinquedos dos outros, sobretudo pelo teatro, em que ele se empenhava para representar um papel qualquer, a ponto de aviltar-se. Pegou a sorrir para os outros, a cortejá-los, deu a sua maçã a um pequeno gordo que já tinha o lenço cheio de presentes. e até se ofereceu para carregar outro, só para que não o afastassem do teatro. No entanto, poucos minutos após um rapazinho arrogante deu-lhe uma boa surra. o ruivinho nem teve coragem de chorar. Logo apareceu sua mãe, a governanta, e ordenou-lhe não se intrometesse nos brinquedos alheios. O menino retirou-se para o salão onde estava a menina bonita. Esta o deixou aproximar-se, e as duas crianças entraram a enfeitar a suntuosa boneca.

Fazia já meia hora que eu estava sentado no caramanchão de hera, e quase adormecera ao zunzum da conversa entre o ruivinho e a menina dos trezentos mil rublos de dote, que se entretinham a respeito da boneca, quando de repente vi entrar no salão Julião Mastakovitch. Aproveitando a distração dos presentes com uma briga surgida entre as crianças, saíra do salão principal sem fazer barulho. Notara eu, poucos minutos antes, que ele mantinha animada palestra com o pai da futura noiva rica, a quem mal acabara de conhecer, explicando-lhe as vantagens de qualquer emprego público sobre os demais. Parou à porta, tomado de hesitação, e parecia calcular alguma coisa nas pontas dos dedos.- Trezentos. . . trezentos - murmurava.- Onze.. . doze.. . treze... até dezesseis, são cinco anos... Façamos de conta que sejam quatro por cento, são doze... cinco vezes doze, sessenta; estes sessenta... bem, calculados por alto, ao cabo de cinco anos serão quatrocentos. Está certo... Mas naturalmente o malandro não os terá colocado a quatro por cento! Talvez receba oito ou até dez por cento. Suponhamos que sejam quinhentos, no mínimo, sim, quinhentos mil, na certa. .. o excedente gasta-se no enxoval, hum...Acabou a meditação, assoou-se, e, indo a sair do salão, súbito avistou a menina e estacou. Como eu estivesse assentado atrás dos vasos de flores, não me pôde ver. Tive a impressão de que o homem se achava muito excitado. Seria o cálculo que operava esse efeito sobre ele, ou outro motivo qualquer? Não sei. seja como for, o certo é que esfregava as mãos e não conseguia permanecer no mesmo lugar. Quando a sua agitação chegou ao cúmulo, parou um instante e lançou um segundo olhar, muito resoluto, à futura noiva. Quis aproximar-se dela, mas primeiro olhou em redor. Depois, como quem tem sentimentos criminosos, aproximou-se da criança nas pontas dos pés. Com um sorrisinho nos lábios, inclinou-se para ela e beijou-a na testa. A menina, não esperando a agressão, gritou assustada.- Que é que você está fazendo aqui, bela menina?-perguntou ele em voz baixa.E, olhando em torno de si, deu-lhe uma palmadinha no rosto.- Estamos brincando...- Com ele? - disse Julião Mastakovitch fitando o menino de esguelha.E logo acrescentou:- Escuta, meu amigo, por que não vais para o salão?O menino fitava-o sem falar, de olhos arregalados. Julião Mastalovitch olhou de novo em redor e aproximou-se outra vez da pequena:- Que é que você tem aí bela menina? Uma bonequinha?- Uma bonequinha - respondeu a criança de cara fechada, cabisbaixa.- Uma bonequinha... Mas você sabe, gentil menina, de que é feita a bonequinha?- Não sei... - cochichou a pequena, abaixando ainda mais a cabeça.- De trapos, minha alma... Mas tu, meu filho, deverias ir para o salão brincar com os teus camaradas, - disse Julião Mastakovitch encarando o menino com severidade.As duas crianças franziram a testa e agarraram-se pela mão. Não queriam separar-se.- Sabe você por que lhe deram essa bonequinha? - perguntou Julião Mastakovitch baixando cada vez mais a voz.- Não.- Porque você é uma criança boa e se comportou bem a semana toda.Perturbado a mais não poder, Julião Mastakovitch lançou mais uma vez um olhar em roda, e baixou a voz de modo que a sua pergunta, formulada em tom impaciente e embargada pela emoção, saiu quase imperceptível:- Diga-me, gentil menina: você gostará de mim se eu fizer uma visita a seus pais?Havendo proferido tais palavras, Julião Mastakovitch quis beijar a pequena mais uma vez; mas o menino, vendo-a prestes a romper no choro, puxou-a pela mão e, compadecido, começou, ele próprio, a choramingar.Dessa vez Julião Mastakovitch aborreceu-se deveras.- Vai-te embora - disse ao menino - Vai para a sala brincar com os teus camaradas.- Não vá, não - protestou a menina. - Você é que deve ir-se embora. Deixe-o aqui, deixe-o - disse quase soluçando.Alguém fez barulho à porta. Assustado, Julião Mastakovitch ergueu no mesmo instante o corpo majestoso. O menino ruivo, porém, assustou-se ainda mais do que ele, largou a mão da menina e, devagarinho, roçando a parede, caminhou do salão à sala de jantar. Para não despertar suspeitas, Julião Mastakovitch também passou à sala de jantar. Estava vermelho feito uma lagosta e, mirando-se ao espelho, parecia até envergonhado de si mesmo, talvez arrependido da sua sofreguidão. Teria sido o cálculo feito na ponta dos dedos que o arrebatara a ponto de inspirar-lhe, apesar de toda a sua seriedade e gravidade, um procedimento de criança? Aproximava-se de chofre do seu objetivo, embora este não viesse a tornar-se um objetivo real antes de cinco anos, no mínimo.Acompanhei o respeitável cavalheiro a sala de jantar, e ali testemunhei um espetáculo curioso. Rubro de raiva e despeito, Julião Mastakovitch perseguia o menino ruivo, o qual, recuando cada vez mais, já não sabia para onde correr:- Sai daqui! Que diabo vens fazer aqui, velhaco? Vieste roubar frutas, hem? Vieste? Fora daqui, patife! Vai, fedelho, procura os teus camaradas!Espantado, o pequeno recorreu a um expediente extremo: foi esconder-se debaixo da mesa. Então o seu perseguidor, no auge da excitação, puxou do bolso o grande lenço de batista e, brandindo-o, procurou enxotar o menino do seu esconderijo. Este se encolhia caladinho, sem se mexer. Cumpre observar que Julião Mastakovitch era um tanto gordo: rapaz bem nutrido, corado, barrigudo, de pernas robustas, - em uma palavra, como se costuma dizer, redondo e forte como uma noz. Suava, enrubescia, arfava terrivelmente. Estava exasperado por um sentimento de indignação e, quem sabe, de ciúme.Não pude conter uma gargalhada. Julião Mastakovitch virou-se e, a despeito de toda a sua importância, ficou mortalmente acanhado. Nesse instante, na porta oposta, apareceu o dono da casa. O ruivinho saiu logo do esconderijo e pôs-se a limpar os joelhos e os cotovelos. Julião Mastakovitch, com um gesto rápido, levou ao nariz o lenço que tinha na mão, seguro por uma das extremidades.O dono da casa fitava-nos aos três, perplexo, mas, como homem que conhece a vida e a considera pelo lado sério, resolveu aproveitar a circunstância de encontrar-se quase a sós com o seu hóspede.- É este o menino - disse indicando o ruivinho - que tive a honra de lhe recomendar...- É? - respondeu Julião Mastakovitch, que ainda não voltara inteiramente a si.- É filho da governanta de meus filhos - prosseguiu o dono da casa em tom de solicitação -, uma senhora pobre, viúva de um funcionário honesto; portanto, Julião Mastakovitch... se for possível. . .- Mas não é!-exclamou sem demora Julião Mastakovitch. - Perdoe-me, Filipe Alexeievitch, é totalmente impossível. Pedi informações... No momento não há vaga, e, ainda que houvesse, já se tem dez candidatos, cada um mais qualificado que este.. . Sinto muito... muitíssimo..- É pena - disse o dono da casa. - É um menino bonzinho, modesto . . .- Pelo que vejo, é um grandíssimo vadio, - estourou Julião Mastakovitch, com uma careta histérica. - Sai daí, menino. Que é que tu queres aí? Vai brincar com os teus camaradas - disse ainda, voltando-se para o ruivinho.Não conseguindo mais conter-se, olhou para mim de soslaio. Por minha vez, não pude deixar de lhe rir deliberadamente nas barbas. Ele desviou de mim os olhos, e em voz bem alta perguntou ao dono da casa quem era aquele rapaz esquisito. Saíram os dois da sala cochichando. Vi que Julião Mastakovitch, ouvindo as explicações de seu hospedeiro, abanava a cabeça, meio desconfiado.Ri a bom rir com os meus botões, e voltei ao salão. Rodeado de mamães, de papais e dos donos da casa, o grande homem explicava alguma coisa com muito calor a uma senhora a quem acabavam de apresentá-lo. Esta segurava pela mão a menina com quem, dez minutos antes, Julião Mastakovitch representara a sua cena no pequeno salão. Agora ele estava-se derramando em extáticos elogios à beleza, aos talentos, à graça e à boa educação da gentil menina. Manifestamente engodava a mamãezinha, que o escutava quase com lágrimas de enlevo. Os lábios do pai sorriam. o dono da casa alegrava-se com essas alegres efusões. os próprios convidados tomavam parte no júbilo; até os brinquedos das crianças foram suspensos para não se perturbar a conversa. Era uma atmosfera quase religiosa. Logo depois, ouvi a mãe da interessante pequena, comovida até o fundo da alma pedir a Julião Mastakovitch, com expressões escolhidas, que lhe desse a subida honra de distinguir-lhe a casa com sua preciosa visita, e ele aceitou o convite com entusiasmo; enfim, ouvi os demais convidados, no momento da de despedida, expandirem-se, como o exigiam as conveniências, em louvores comovidos ao rico negociante, a sua mulher e a sua filha, e principalmente a Julião Mastakovitch.- É casado esse cavalheiro? - perguntei em voz quase alta a um conhecido que estava mais perto dele.Julião Mastakovitch enviou-me um olhar indagador e feroz.- Não - disse-me o meu conhecido, profundamente penalizado com a leviandade que eu de propósito cometera.Passava eu, há pouco tempo. em frente à igreja de ***, quando um grande ajuntamento me despertou a atenção. Em redor falava-se de um casamento. O dia estava nublado, começava a chuviscar; entrei na igreja abrindo caminho através da multidão. Logo avistei o noivo. Era um rapaz baixo, gordo, bem nutrido, de ventre ponderável, muito enfeitado, que corria para todos os lados, se agitava sem parar, dava ordens. Enfim, levantou-se um murmúrio de vozes anunciando a chegada da noiva. Fendi a turba de curiosos e vi uma jovem de admirável beleza, para quem a primavera apenas começava. Mas estava pálida e parecia triste a linda noiva. Olhava distraída e tinha os olhos vermelhos, o que me deu impressão de lágrimas recentes. A severidade clássica de suas feições emprestava-lhe à beleza uma expressão algo solene. Através daquela severidade, daquela gravidade, de toda aquela tristeza, transpareciam os traços de uma criança inocente, algo de incrivelmente ingênuo, juvenil e ainda não formado, que parecia, sem palavras, implorar piedade.

Ouvi observar que ela mal acabava de completar dezesseis anos. Examinando atento o noite, nele reconheci Julião Mastakovitch, que eu não via desde cinco anos. Olhei para ela... Meu Deus! Fendi a multidão outra vez para sair da igreja o mais breve possível. Ainda ouvi um espectador dizer que a noiva era rica, que tinha quinhentos mil rublos de dote... e não sei mais quanto para o enxoval.

- "Então o cálculo era justo" - disse comigo.

- E saí para a rua.

                                                                               

 

                      

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