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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


COMEÇAR DE NOVO / Andrew Mark
COMEÇAR DE NOVO / Andrew Mark

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

 

   

A caligrafia era dela. Soubera-o ao abrir a caixa do correio mas forçou-se a esperar até se sentar para ler o postal. Como era seu hábito, sentou-se a uma mesa perto de uma das janelas das traseiras que dava para a estreita rua pavimentada, ladeada por depósitos e armazéns de embalagem de carnes. Saía todas as quartas-feiras à noite e vinha aqui quando o restaurante estava sossegado. Apreciava a sensação das ruas da Baixa, atravessadas pelos carris de aço dos carros eléctricos que cruzavam o asfalto gasto e, em certas noites, eram polidos por uma chuva azulada. O restaurante não tinha qualquer letreiro exterior e, de facto, nem tinha a certeza de que tivesse nome, mas era confortável e luminoso, tornando-se acolhedor. Estar aqui fazia-o sentir-se menos semelhante a uma solitária criatura da noite.

Talvez se chamasse Plant 609 mas não tinha realmente a certeza. Gravadas num disco de bronze enterrado no pavimento de cimento, à entrada, encontravam-se as palavras FÁBRICA 609 DE BATERIAS EUREKA. Imaginou as cubas de ácido esverdeado, os tanques de mercúrio tremeluzente e os rolos de aço. Mas tudo isso desaparecera e o que restava eram grandes correntes de ferro e calhas ao longo do tecto para movimentar equipamento pesado. Não interessava, na verdade, o que o espaço fora em tempos, zumbindo com aparelhos de carga, puro com o cheiro a ozono. Ainda servia para o mesmo efeito, no que lhe dizia respeito - tanto o acto de comer como o carregamento de baterias originavam reacções químicas.

As mesas eram de aço inoxidável pintado e a instalação eléctrica era estanque e de tipo industrial. O interior era de tijolos vermelhos com altos tectos abobadados e largas janelas chumbadas que deixavam entrar a luz pálida da rua. A empregada colocou uma cerveja na mesa e anotou o pedido: salmão grelhado e fofos de batata frita tostada.

Parecia ter passado todo o tempo do mundo e que nenhum tempo passara. A rotina fizera-o voltar-se de tal maneira para si próprio que receava o fluxo de memórias que as palavras dela no postal poderiam desencadear. Tinha receio de a querer de novo e de tudo o que isso significaria. Finalmente, leu o postal. Leu-o três vezes. Lembrou-se de como tudo acontecera.

 

 

 

 

 

 

Um sistema em equilíbrio responde a qualquer perturbação exterior com uma alteração que tende a contrariar a perturbação a que foi sujeito.

                         PRINCÍPIO DE Le CHÂTELIER

 

Quando a viu pela primeira vez, a rebentação batia na extensa praia, anunciando uma tempestade de Primavera e martelando como os pensamentos que já o impeliam havia milhares de quilómetros. O ar fresco misturava-se com bolsas de calor como se a Corrente do Golfo subisse da península da Florida e fustigasse uma frente fria do Nordeste. De certa forma, a tempestade seguira o caminho dele, perseguindo-lhe os passos e entrelaçando-se com ele na subida até à costa acidentada do Maine. Atingira a praia como um barco num recife. O motor da sua carrinha deixara finalmente de funcionar, obrigando-o a sair e a percorrer a pé os dois ou três quilómetros de praia que se encontravam no fim da estrada estadual. Não havia mais estrada por onde seguir.

 

O mar cinzento cuspia espuma para o céu enquanto ele deixava que os pés se enterrassem na areia húmida. Esta sugava-o como cimento molhado. Desejou ser engolido por inteiro. Nunca ninguém encontraria o corpo e, finalmente, as autoridades rebocariam a velha carrinha, sem saberem que fora alcunhada de Quark. Alguém deitaria fora as velhas fotografias que não tinham qualquer significado, excepto para ele. Agora estava só, um nome que ninguém conhecia, um rosto que ninguém reconhecia. Apenas a sua carta de condução revelava quem ele fora em tempos: Jackson Tate.

 

Barcos de pesca da lagosta apressavam-se ao longo do amplo canal que conduzia ao porto de abrigo de Rockpoint. Sentia-se no ar o cheiro acre de peixe em salmoura. Ouviu o som da sereia de um dos barcos pequenos ao passar sob a ponte móvel que atravessava o porto. Os barcos de recreio, os apetrechos de pesca de aluguer e os veleiros de mastro alto ainda estavam em hibernação sob cobertas azuis, esperando que as multidões de Verão voltassem a navegar. Mas os pescadores de lagosta tinham de pagar as contas todo o ano. Trabalhavam fustigados pelas águas do Atlântico.

 

Ela caminhava na sua direcção, envolta num casaco de lã cor de vinho. O cabelo cor de bronze era chicoteado pelo vento, soprado como pétalas em torno do seu rosto. Era o único salpico de cor no cinzento ósseo da praia e, mais tarde, ele pensaria que, naquele instante, fora como uma criança cujos olhos começam agora a ver algo mais do que o preto e o branco, começam a ver as cores primárias. De qualquer forma, foi atraído para ela, como uma criança que estende a mão para a primeira flor que distingue como amarela. E ficou surpreendido por esta atracção, surpreendido como se visse o amarelo pela primeira vez.

 

Tal como Jackson, parecia estar imersa nos seus pensamentos.

- Desculpe - disse ela quando levantou os olhos e viu que se desviara para um espaço que não lhe pertencia. Não quisera aproximar-se tanto naquela vastidão. Os seus olhos eram verdes, o verde das águas profundas. E enquanto ele a olhava, o rubor subiu-lhe às faces. Levou a mão ao pescoço como se o quisesse travar. - Nem reparei para onde ia.

 

Jackson espraiou o olhar pelo horizonte plano, pensando como a voz dela era agradável. Era musical e calma como a língua irlandesa. - Ê fácil perdermo-nos aqui - respondeu ele.

 

- Se, ao menos... - balbuciou ela, rindo-se e lutando com o vento, enquanto tentava afastar o cabelo dos olhos. Tinha tonalidades acobreadas, via-o agora, aquele cabelo brilhante. Parecia possuir a única luz no lusco-fusco do dia. - Se, ao menos...

 

Ele acenou. Se, ao menos...

 

E então separaram-se.

 

Jackson subiu o longo amontoado de rochas que formava um paredão de um dos lados da entrada do porto. Trepou até ao cimo, equilibrando-se nos enormes pedregulhos negros até não ficar nada entre ele e o mar. As rochas estavam repletas de lapas e pequenas conchas vermelhas de moluscos. A ondulação do mar fazia balançar, como árvores ao vento, um pequeno bosque subaquático de grandes algas verdes. Apanhados nas fendas das rochas, encontravam-se caranguejos mortos, descarnados pelas gaivotas que gritavam com deleite assassino enquanto desciam sobre as suas presas.

 

Assassínio. Lá estava, de novo, aquela palavra a penetrar, tão inocentemente, nos seus pensamentos. Inspirou fundo o ar do oceano. Podia saboreá-lo na língua como se fossem lágrimas. Era apenas sal - cloreto de sódio, destinado a hidratar o sangue e a saturar os tecidos, essencial à vida, mas só nos apercebemos desta salinidade amarga quando nos falta. Jackson não chorara desde que aquilo acontecera e agora sentia-se tão oprimido que até lhe custava engolir. Já não tinha lágrimas, apenas um vazio com eco semelhante ao sino maciço do edifício de um reactor nuclear.

 

Regressava à Quark quando a cor do céu começou a transformar-se de soro de leite coalhado em cinza. Noutros tempos, teria desejado pintar aquela cena do encontro do céu com o mar no horizonte e a extensão da praia. Teria até acrescentado a mancha cor de vinho do casaco da mulher, o brilho de moeda de cobre do seu cabelo. Mas já há muito tempo que não lhe apetecia pintar ou esboçar a carvão no seu caderno.

 

Estacionada na curva, estava a carrinha em que fizera todo o percurso: uma carrinha Econoline transformada, de cor ocre escura, com bastante uso, que trepidava muito quando passava dos noventa. Jackson não se importava com isso. Afinal, não tinha urgência em chegar a qualquer lugar. Comprara-a a um vendedor, a trezentos e cinquenta quilómetros a sul de Wendell, no Illinois, a sul de sua casa. O vendedor lera no jornal o sucedido com Jackson e abatera duzentos dólares no preço.

 

Era um veículo muito bem equipado, a Quark. Depois de conduzir algum tempo, Jackson podia parar para descansar, desligar o motor, correr as cortinas verdes das janelas traseiras, abrir o beliche e dormir umas horas, havia um fogão a gás onde se podia ferver água para a sopa ou para as papas de aveia instantâneas da manhã. Tinha uma mesa desmontável onde podia apoiar a cabeça e pensar apenas em átomos girando através do espaço. Pouco tempo depois, as memórias acabavam por voltar e tinha de continuar a conduzir, escolhendo estradas secundárias para evitar o ritmo entorpecedor da interestadual.

 

As estradas secundárias forçavam-no a concentrar-se na condução e permitiam-lhe relancear os olhos por cidades pitorescas, dando-lhe a ilusão reconfortante das vidas calmas de outras pessoas. Não se importava nada de ter de seguir atrás de um lavrador no seu tractor ou de uma família amish na sua carroça puxada por um cavalo. O antigo sistema de auto-estradas corria como veias sobre a paisagem. Construídas antes de os engenheiros de auto-estradas ousarem rasgar seis vias de asfalto a direito pela terra dentro, as antigas estradas pareciam-lhe suficientemente flexíveis para se virarem para a esquerda ou para a direita ou subirem em curva rodeando os obstáculos. As auto-estradas de duas vias eram o caminho que todos costumavam utilizar: sangue vital para aldeias distantes, ligações entre sedes de condado. Enquanto conduzia, gostava de imaginar como esta extensão de pavimento seria familiar a alguém, esta curva à sombra de um carvalho, aquele anúncio decrépito de refrigerante Fanta, a estação de serviço Phillips 66 com a sua velha bomba que ainda fornecia gasolina a carrinhas ferrugentas. Era um estranho nestes lugares onde as empregadas dos cafés chamavam as pessoas pelo nome, mas existiam aqueles que conheciam este mundo tão bem como as leiras dos seus campos de feno. Mesmo regozijando-se ao pensar na familiaridade que estas estradas tinham para os habitantes locais, apreciava a novidade que elas lhe apresentavam - as luzes de paragem inesperadas, as curvas apertadas e os cruzamentos mal sinalizados. Tais condições exigiam muito do condutor e isso correspondia perfeitamente às necessidades de Jackson.

 

Ao abandonar a praia e atravessar a curva, descobriu debaixo da Quark uma poça verde e escorregadia de líquido de refrigeração do motor. Abrindo o capot, viu um tubo do radiador com bolhas e fendido que pingava por uma fissura lateral. Qualquer outro teria praguejado e dado um pontapé no pára-choques mas Jackson sabia o que era amaldiçoar os céus por uma verdadeira tragédia e limitou-se a abanar a cabeça. A Quark trouxera-o até aqui apenas com algumas mudanças de óleo Jiffy-Lube e uma reparação dos travões numa estação de serviço nos subúrbios de New Jersey. Fechou o capot e, antes de entrar no veículo, caminhou pelas ervas esfregando os pés para tirar dos sapatos de borracha o viscoso líquido de refrigeração.

 

As primeiras grandes gotas de chuva salpicaram o tejadilho de metal da Quark logo que fechou a porta. Teria de esperar até de manhã para caminhar alguns quilómetros até à cidade a fim de adquirir um tubo sobresselente e alguns litros de líquido de refrigeração. Começava a escurecer e decidiu passar ali a noite.

 

Jackson escolheu uma lata de sopa de tomate e arroz da sua provisão. Tinha uma prateleira inteira de latas Campbell encarnadas e brancas - desde minestrone a estufado de castanholas à Manhattan - todas seguras por um cordão elástico. Despejou a sopa para um tacho esmaltado de pintas azuis que colocou sobre o bico de gás, acrescentando uma lata de água de um jarro de plástico. No armário que lhe servia de despensa, encontrou um pão integral que comprara numa padaria de uma cidade de New Hampshire. Estava tão recheado de aveia e sementes que daria para cultivar meio acre. Numa prateleira baixa, junto ao chão, estavam três grossos álbuns de fotografias para os quais não olhara desde que deixara a sua casa. Havia uma caixa de ferramentas cheia de tintas e pedaços de carvão, além de vários cadernos de esboços. Aberta no chão via-se uma brochura de Ideias e Opiniões, de Albert Einstein, muito manuseada como uma Bíblia de família. Pegou no livro para ir lendo enquanto a sopa aquecia mas ouviu-se uma pancada forte que parecia destacar-se da chuva.

 

Jackson virou-se e, no crepúsculo salpicado de chuva, tudo o que viu foi o seu próprio reflexo no vidro. O seu rosto era magro e anguloso, de traços acentuados pelo efeito tónico do ar salino. Tinha olhos castanhos escuros, invulgarmente grandes, que em tempos haviam olhado o mundo com demasiada confiança. Apresentava uma pequena cicatriz em arco no queixo bem definido. O cabelo era espesso e ondulado.

 

Os seus olhos voltaram a concentrar-se quando o som se repetiu e um jacto de adrenalina fez-lhe saltar o coração ao ver o polícia que batia levemente na janela com a ponta de borracha dura de uma lanterna. O sangue congelou nas veias de Jackson e teve de fazer um esforço para respirar. Se tudo tinha de terminar ali, com algemas cortando-lhe os pulsos e os olhos vítreos de lentes fotográficas atiradas à cara, que assim fosse. Aceitara até ali os golpes do destino e, se chegara ao fim da estrada e ao fim do tempo, não lutaria mais. No lapso de tempo que levou a dirigir-se para o lugar do condutor e a baixar o vidro da janela, decidiu não continuar a fugir.

 

- Desculpe - disse o polícia. O seu rosto era o de um adolescente com um sorriso misto de amabilidade formal e discreto desdém. Uma mancha destacava-se na sua face como o monte Vesúvio. - Não é permitido acampar aqui de noite. Sou obrigado a pedir-lhe que prossiga viagem.

 

Jackson acenou enquanto esperava que um tremeluzir de reconhecimento atravessasse os olhos do polícia. O seu estômago agitou-se e, lentamente, virou a cabeça para a frente de modo a permitir que o polícia o visse de perfil. Não houvera avisos de «procura-se» impressos com o retrato de Jackson ao alto no centro, a preto e branco desfocado, com a cicatriz quase imperceptível no queixo mencionada como sinal distintivo? É claro que não houvera instantâneos do rosto mas, durante aqueles poucos dias em que o seu mundo ruíra, o jornal tirara certamente fotografias suficientes para a polícia poder encontrar uma. Também podiam ter um instantâneo granulado extraído das notícias da TV local depois de se terem precipitado sobre a história durante um calmo dia noticioso de Verão. Certamente, imaginou, já teria sido emitido um boletim completo pela delegação do xerife através do país? Ou talvez o FBI tivesse enviado um fax com o seu cadastro de Washington para todas as delegações regionais? Fora perseguido pela preocupação durante toda a viagem, obedecendo a todos os limites de velocidade afixados para não correr qualquer risco de o mandarem parar. Talvez isso já não tivesse importância.

 

A maçã de Adão do polícia subiu e desceu, e ele continuou:

 

- Existe um parque à saída da cidade, na Estrada nº 18.

 

- Com certeza, vou encontrá-lo - disse Jackson, concluindo que não estava prestes a ser atirado sobre o capot do carro do polícia e revistado. Depois, recordou-se:

 

- Mas não posso movimentar o veículo. O tubo do radiador está inutilizado.

 

- Bem - retorquiu o polícia -, terá de encontrar outro lugar para passar a noite. Quanto ao seu veículo, posso chamar um pronto-socorro pelo rádio.

 

- Não é necessário. Eu trato do assunto.

 

- Sim, senhor, se assim prefere - concluiu o polícia com um breve aceno de cabeça que fez descair o boné com pala sobre a testa. Empurrou calmamente o boné para trás, desejou boa noite a Jackson e regressou ao seu carro. Jackson subiu o vidro da janela com a manivela. Olhou em volta. Certamente o polícia, depois de jantar um hambúrguer e um batido de chocolate, voltaria para verificar se ele se tinha ido embora. A cidade de Rockpoint seguia as regras conservadoras dos locais das antigas famílias abastadas que, provavelmente, não toleravam vagabundos como Jackson. Deveria ter calculado que não passaria despercebido por entre as vivendas de Verão de persianas cuidadosamente fechadas.

 

A fervura do tacho de sopa chamou-o com a sua tonalidade turva e dirigiu-se à parte de trás para desligar a pequena chama azul. Mexeu a sopa com uma colher de metal e retirou o tacho esmaltado azul do bico de gás. Jackson detestava ter de lavar um prato se o podia evitar e, como estava só, comeu directamente do tacho. A sopa aqueceu-o no interior da lata de estanho que era a sua carrinha. Na sua viagem, passara primeiro pelos estados temperados do Golfo, depois dera uma volta através da Florida no pior dos meses de Inverno e, por fim, fugira para a Costa Leste até ao Maine. Mesmo quando tentava serpentear, avançava depressa. A sua chegada fora, porém, decepcionante, pois atingira uma zona muito ao Norte a meio de uma Primavera fresca. Quando atravessara Washington, a última flor de cerejeira fora cortada por um frio intenso e não existia a explosão de Primavera exuberante que ele esperara.

 

No compartimento sob o beliche havia um saco de fim-de-semana onde meteu alguns objectos de primeira necessidade. Que rebocassem a carrinha para o parque da Polícia ou deixassem multas sob os limpa-pára-brisas. Deixara de se preocupar com essas pequenas coisas. A Quark não sairia dali até que ele próprio a conseguisse consertar. E se o polícia detectasse o número da sua carta de condução e descobrisse quem era, que podia ele fazer? Fechou a Quark e partiu, a pé, através de uma chuva constante em direcção à luz de uma pequena estalagem que se via à distância. Nas suas costas, a rebentação caía na praia. Desviou-se das poças da estrada, apressando-se em direcção ao amplo alpendre curvo da casa, situada no topo de uma elevação rochosa. Viam-se pequenos enfeites vitorianos sob as caleiras. O cedro oscilante, iluminado pela luz do alpendre, parecia desbotado num cinzento claro. A chuva começou a cair com maior intensidade e Jackson correu em direcção aos degraus do alpendre até ficar sob o tecto. Tocou a campainha uma vez, para se anunciar, e entrou no átrio aquecido. Na grande lareira de pedra, crepitava um pequeno lume. O pavimento de madeira polida estava coberto por grossos tapetes persas. Uma enorme parede curva envidraçada revelava a grande extensão de mar no exterior. Viam-se cadeiras confortáveis para ler ou jogar o gamão num dia chuvoso de Verão. Duas portas envidraçadas estavam abertas numa extremidade e conduziam à zona do bar e de um pequeno restaurante. O balcão do átrio era de carvalho e mostrava uma dúzia de chaves de quartos colocadas em pequenos cacifos na parede traseira. No balcão havia uma campainha de hotel, de bronze. Quando Jackson colocou a mão sobre ela, preparando-se para tocar, viu-a descer a grande escada curva.

 

- Lamento, a estação ainda não começou - comunicou ela, antes de o reconhecer. Era a mulher da praia. - Oh, olá! É a segunda vez que nos encontramos.

 

- A minha carrinha avariou-se - informou Jackson. - Estava só de passagem mas agora acho que estou à procura de um lugar para ficar.

 

- Não estamos realmente a funcionar - disse-lhe e depois pareceu hesitar interiormente. - Mas acho que posso abrir uma excepção. Tenho sempre alguns quartos preparados.

 

Dirigiu-se para trás do balcão e abriu o livro de registos. Não o fitara nos olhos. - Preciso do seu nome e morada.

 

- Obrigado - agradeceu Jackson, pegando na caneta que ela lhe entregava. - Não tencionava entrar assim por aqui dentro.

 

Passou a mão pelo cabelo e depois escreveu o nome no livro. Tentara evitar os hotéis na sua viagem, preferindo deter-se em paragens para camionistas para tomar um duche ou pagar alguns dólares para acampar uma noite num parque. Os quartos sombrios dos hotéis de beira de estrada faziam-no sentir-se demasiado isolado e, embora tivesse dinheiro, não sabia quanto tempo precisaria de o fazer durar.

 

Escreveu a sua morada do Illinois enquanto ela passava o cartão de crédito pela máquina e o simples facto de a escrever fez-lhe recordar a imagem daquela velha quinta na cidade universitária do Midwest onde vivera com a família. A casa encontrava-se no extremo leste da zona de plantação de cereais que se estendia através do eixo central do Missouri e do Kansas até atingir a fronteira do Colorado. No museu histórico de Wendell, existiam velhas fotografias de homens com fatos sujos de pó e de suas famílias com as melhores roupas do catálogo Sears em reunião familiar no que, mais tarde, fora o alpendre da frente de Jackson. Nessa altura, já as searas tinham sido substituídas por relvados e a quinta de família era apenas um pedaço de terra com um acre de superfície, rodeado de ranchos suburbanos circundados por carvalhos recém-plantados, enfezados pelo vento. A casa de Jackson parecia estar num plano mais elevado devido aos altos ramos das árvores adultas. Havia também um lago nas traseiras e uma cerejeira brava que, todas as primaveras, dava frutos suficientes para meia dúzia de tartes.

 

Fez um esforço para parar.

 

- Bem-vindo, Sr. Tate - disse a mulher quando Jackson lhe devolveu a ficha. Fitou-o nos olhos e desviou o olhar antes de acrescentar:

 

- Sou Olivia Faraday mas os meus amigos chamam-me Livvy.

 

- Prazer em conhecê-la, Livvy - respondeu ele. - E trate-me por Jackson, por favor. Só os meus alunos usam o Tate.

 

- Está bem.

 

Sorriu, deixando ver o brilho dos seus dentes brancos. Olhou de relance para a morada dele. - Wendell, Illinois. Já vivi em Chicago.

 

- A sério? - inquiriu Jackson. Reparou como era bela. O brilho do cabelo fora agora reduzido a um reflexo e estava apanhado num rabo-de-cavalo que tocava a gola da camisola. Os seus olhos eram mais escuros à luz eléctrica e pareciam tristes. Davam-lhe uma idade desmentida pelo pequeno nariz e por algumas ligeiras sardas nas faces. Devia ter aproximadamente a idade dele, pensou, ainda na casa dos trinta.

 

- Ensina lá na Universidade?

 

- Fiquei lá depois de fazer o doutoramento.

 

- Então, temos, hoje, um doutor cá em casa - exclamou ela com um riso breve e depois corou, repentinamente, como fizera na praia quando se tinham cruzado e ficara embaraçada com o encontro. Agora, o seu próprio riso parecia tê-la sobressaltado e desequilibrado, e esforçou-se por se recompor. Este embaraço comoveu-o enquanto Livvy dedicava a sua atenção à escolha do quarto.

 

- Quer vista para o mar. Toda a gente quer - afirmou. - Vou dar-lhe o número três. Penso que está pronto. De qualquer forma, é o melhor de todos.

 

Retirou a chave do cacifo. Agora dedicava-se inteiramente ao negócio.

 

- Deve ser sossegado nesta altura do ano - comentou Jackson, seguindo-a pela escada acima. Gostava daquela voz, com o seu tom suave, cadenciado e musical. Gostaria que não parasse de falar.

 

- Morto é a palavra mais apropriada mas começará a animar em breve.

 

- Nunca pensou em fechar durante o Inverno e ir para a Florida?

 

- O meu marido e eu costumávamos viajar todos os anos - respondeu Livvy. - Para a Europa ou as Caraíbas, conforme a disposição. Mas agora não vamos a lado nenhum.

 

- Nunca fui à Europa - afirmou Jackson. - Embora tenha passado alguns meses fascinantes fazendo investigação num observatório de uma ilha do Pacífico Sul infestada de ratos.

 

- Iria adorar a Europa - disse ela, apaixonadamente; depois, refreando-se, acrescentou:

 

- Quero dizer, não consigo imaginar que alguém não a adore. A comida, a arte. Tenho saudades.

 

Parou, soltando uma das suas risadas breves e embaraçadas. Meu Deus, não podemos ter tudo, não é?

 

- Parece o princípio do abismo em acção - respondeu Jackson.

 

- O princípio do abismo?

 

- É apenas uma das minhas teorias.

 

- Como as de Einstein? - zombou ela, deixando os seus olhos deslizar pelos dele e afastando-os depois.

 

Ele riu-se, quase às gargalhadas, e sentiu imediatamente como esse riso era desproporcionado para a pequena ferroada dela. Passara simplesmente muito tempo, não era? Forçou um largo sorriso e explicou:

 

- Não é uma teoria desse género, nem pensar, apenas algo que imaginei sobre o abismo tremendo, do tamanho da Terra, entre a vida que se deseja e a vida que se tem naquele momento. Por alguma razão, o abismo, ou o Grand Canyon, é directamente proporcional à dimensão da nossa vontade.

 

- Quanto maior o desejo, maior o abismo - assentiu Livvy, acenando. - Parece ser sempre assim. E é professor de...

 

- De Física - respondeu Jackson. - Professor da cadeira de Física Alfred W. Blauman.

 

De repente, sentiu-se embaraçado e pretensioso ao anunciar de forma tão fluente o seu título oficial, e justificou-se:

 

- A cadeira não tinha quaisquer outros candidatos no ano em que o meu nome foi apresentado.

 

- O princípio do abismo - repetiu ela. - Gosto disso.

 

Jackson seguiu-a ao longo do amplo átrio coberto de tapetes espessos. Ela abriu-lhe a porta do quarto e acendeu o candeeiro da mesa-de-cabeceira. Passou uma mão pela colcha para alisar uma pequena ruga do tecido, parecendo de novo repentinamente nervosa, como se lhe tivesse faltado a coragem para brincar com ele, para rir.

 

- Precisa de alguma coisa? - perguntou. Sentia-se nela uma brusquidão, uma retirada para a hospitalidade profissional. - Uma bebida ou uma sanduíche da cozinha?

 

- Não, estou bem - respondeu ele, não porque não tivesse fome... estava esfomeado... mas porque não queria torturá-la mais com a sua presença. O rubor que lhe subira do pescoço até às faces parecia quente e desconfortável como urticária. Era melhor manter a distância. Talvez o receasse. De qualquer forma, onde estava o marido? Estaria algures na casa ou Livvy encontrava-se sozinha e perturbada por ter um hóspede masculino? Mas então por que não se baseara ela na verdade, no facto de a estalagem estar fechada naquela estação? Precisaria assim tanto do dinheiro do quarto? Ou talvez fosse apenas tímida, talvez dirigir uma estalagem ferisse a sua personalidade. Talvez o marido fosse mais do género do estalajadeiro. De qualquer forma, Jackson deixá-la-ia sossegada. Colocara algumas bolachas no saco.

 

- Bem, então, o pequeno-almoço é às oito - informou ela.

 

- Mais uma vez, obrigado por me deixar ficar.

 

Ela acenou com a cabeça, atravessou o quarto e pousou a mão na maçaneta da porta. - Boa noite - disse. Tentou olhá-lo mas não conseguiu. Fechou a porta atrás de si.

 

E ele ficou de novo só.

 

Todos os corpos continuam no seu estado de repouso, ou de movimento uniforme em linha recta, a não ser que sejam impelidos a alterar esse estado por forças que lhes são aplicadas.

                   PRIMEIRA LEI DO MOVIMENTO DE NEWTON

 

De manhã, Jackson espreguiçou-se na enorme cama onde se encontrava deitado, tapado com uma colcha. Esta era feita de tiras coloridas que o fizeram pensar nos anéis de Saturno. Passou as pontas dos dedos pelas costuras e viu o Sol erguer-se do mar profundamente negro. A luz brilhou e pulsou através dos vidros martelados antigos das janelas chumbadas, enchendo o quarto e transformando o mar num cobalto brilhante. Pela primeira vez desde que fora forçado a dormir sem ela, dormira toda a noite. A sua mente não se revolvera como uma máquina, forçando-o a vaguear para dentro e para fora de sonhos tão aterrorizantes como as horas que passava acordado. Nos últimos meses, os seus pensamentos tinham-se transformado numa tira Mõbius, aprisionando-o na espiral vertiginosa daquele último dia e das sombrias semanas posteriores.

 

As manhãs nunca mais seriam as mesmas para Jackson. Atravessava com esforço a madrugada vazia, quando todas as esperanças que o impeliam durante o dia eram extintas pela escuridão sufocante.

 

De manhã, a esperança regressaria, estropiada e cambaleante, na sua direcção, permitindo-lhe inspirar uma única vez e acreditar por um momento que a vida era como sempre fora: o filho e a filha esfregando os olhos com sono, a respiração suave de Nancy fazendo cócegas no seu ouvido enquanto o acariciava. Aos fins-de-semana, os dois ficavam até tarde na cama e ouviam as crianças. Fogo e enxofre saltavam da TV em frente da qual se encontrava Nathan, que escolhera, inexplicavelmente, as descrições de um evangelista da TV Cabo do fogo do Inferno e da danação, semelhantes às de Jerónimo Bosch, em vez do Cartoon Network. Mandava calar a irmãzinha, Franny, ocupada a inventar o décimo quinto verso de «Sou um Bulezinho».

 

Apenas quando a consciência totalmente desperta de Jackson se intrometia, o murmúrio das suas vidas dispersava-se na cabeça dele como a poeira com biliões de anos que vagueava pelo sistema solar. E sentia-se, de novo, paralisado.

 

Depois do desaparecimento deles, ele começou a partir coisas. As suas coisas, não as deles. O rádio-despertador ao lado da cama, os óculos de sol e até a sua apreciada cana de pesca com mosca, tudo era alimento para a sua fúria. Uma noite, obcecado e amargurado, deu um pontapé no telescópio do alpendre da frente onde, algumas semanas antes, todos tinham observado a mancha vermelha de Marte quando a sua órbita elíptica se aproximara da Terra. Quando o telescópio caiu, as lentes do seu interior estilhaçaram-se com um estalido discreto e, ao apanhar o tubo de metal, os fragmentos de vidro caíram com um som semelhante ao da chuva. Não conhecia esta violência que parecia brotar de algures no seu íntimo como as explosões inflamadas que vira emanarem da superfície do Sol.

 

À medida que o tempo passava, a sua dor expeliu tudo até que se dissolveu como um pedaço de sal numa estrada molhada. Fê-lo sentir como se vivesse fora de si próprio, testemunhando a sua própria passagem para outro reino de tempo e espaço. Sentiu-se como se se estivesse a tornar bidimensional, transformado numa tira larga de carne. A dor dominava-o nos locais mais inesperados: num supermercado, empurrando um carrinho, tomava, de repente, consciência de algo - os cereais de chocolate dos miúdos, o champô de ervas da mulher. A dor rodopiava no seu interior como um tornado. Enquanto empurrava o carrinho até às caixas registadoras, a face contorcia-se-lhe devido à tristeza atroz que sentia, ouvia pessoas murmurar e algumas apresentavam pêsames. Conheciam a sua cara dos jornais e das câmaras do Canal 12 que se metiam à sua frente, procurando um desfalecimento pungente e choroso. Não parecia ter força emocional para se aguentar. E, finalmente, sucumbiu.

 

Acontecera durante as férias da Universidade, quando os colegas de Jackson leccionavam nos cursos de Verão para ganharem mais algum dinheiro ou quando faziam experiências fechados em laboratórios nas caves escuras. O próprio Jackson passara três semanas, naquele mês de Junho, investigando em Física de partículas num instituto da Califórnia. Durante catorze horas por dia, acelerava protões através de um longo tubo cilíndrico activado por um campo magnético. Tratava-se de um estudo sobre colisões entre matéria e antimatéria. A antimatéria comporta-se como a matéria vulgar mas ocorre uma reacção violenta quando se misturam. As colisões são assinaladas por uma explosão de radiações gama. Todos os dias, Jackson lançava uma chuva de quarks sobre antiquarks e utilizava uma placa fotográfica, especialmente protegida, para registar os resultados, deixando o ponto de um raio gama revelar o encontro trágico de partículas carregadas. A energia libertada é igual a mc2 (onde m é a massa e c a velocidade da luz) ou, como na simples equação de Einstein, E = mc2. Einstein teorizou que, quando a velocidade de uma partícula aumenta até à velocidade da luz, a sua massa aumenta também e, portanto, é necessária uma quantidade de energia continuamente maior para a impelir. Isto recordava a Jackson um sonho que costumava ter, antes de todos os seus sonhos terem sido desfeitos, em que nadava languidamente em águas azuis tropicais atravessadas de repente por barbatanas de tubarões. No sonho tentava nadar, mas não conseguia sair do mesmo sítio.

 

Jackson regressara da sua viagem à Califórnia com novos elementos para um artigo que planeava escrever, mas não tinha disposição para trabalhar. Os filhos tinham concluído o ano escolar e a mulher estava de férias. Adorava passar o Verão em casa com a família, levando-a a nadar na piscina do campus ou arrancando juntos ervas daninhas na horta. Não havia tanto tempo como ele pensava, embora fosse o Verão mais longo da sua vida.

 

Em Setembro, tudo mudara. A vida esvaíra-se de imediato da quinta cuja casa tinham cuidadosamente decorado com antiguidades rústicas. O próprio Jackson estava esvaído enquanto se sentava sozinho à longa mesa de pinho da cozinha, sem se barbear, fixando o vazio oleoso de uma chávena de café. Deixava as luzes acesas dia e noite até os fios do antigo candeeiro de pé do seu gabinete de trabalho - onde lera Dr. De Soto a Franny apenas uma vez mais antes de ela ir dormir - crepitarem e zumbirem numa manifestação de ressentimento eléctrico.

 

Não havia qualquer razão, parecia-lhe, apenas uma vontade cega que avançava sem hesitar. A flecha do tempo atravessava-lhe o grosso músculo do coração. A memória revela como uma película e podemos brincar com o passado, projectando-o para a frente e para trás, parando, aproximando e vendo a nossa história em câmara lenta como realizadores de cinema. O presente cede ao passado, logo que o pensamento o capta, momentos fugitivos que se afundam no âmbar dourado da memória. O futuro corre de frente para nós como os tubarões dos sonhos de Jackson, rápidos, imprevisíveis e com dentes semelhantes a lâminas cortantes.

 

Depois, pensava frequentemente na Terceira Lei do Movimento de Newton: para qualquer acção, existe uma reacção igual e oposta. A lei regulava tudo no Universo, desde a atracção da gravidade da Terra até aos planetas suspensos como contas a partir do Sol. E governava-o agora. Ele era a sua própria lição sobre aceleração de partículas. Tinha de se manter em movimento.

 

Fugiu com o que lhe era mais precioso - as fotografias da sua vida familiar. A mulher, Nancy, era a repórter fotográfica da família, registando aniversários, piqueniques e tardes de domingo sem planos quando faziam churrascos e limonada caseira. Em dias como aqueles, o tempo avançava aos arrancos irregulares. Uma hora durava uma eternidade mas, quando o fim do dia se aproximava, o tempo escoara-se como areia. Pensar em como segurara a mão dela com força, entrelaçando os dedos, era a única forma de se conseguir acalmar agora.

 

Quando finalmente deixara a casa e abandonara o emprego, estava desesperado. As memórias viviam dentro dele. A sua família era mais do que o sofá coberto de tapeçaria, os lençóis do Batman de Nathan ou os peixes vermelhos que nadavam no lago das traseiras. Eram a essência de como tinham vivido e de como se tinham amado. Jackson pensou ser esse o erro que as pessoas faziam ao julgá-lo. Era demasiado violento para ele continuar rodeado pelos seus ecos. E depois de tudo o que fizera tinha de fugir. O que fizera era puro instinto de sobrevivência para preservar o que restava do seu coração aniquilado.

 

Afinal, ninguém podia realmente esperar que ele vivesse fechado naquela casa, vagueando de quarto em quarto ao longo da horrível noite, revivendo as suas vidas na memória. Aquelas noites tinham passado em silêncio, com o garfo espetado no guisado aquecido que fora guardado no frigorífico por amigos que rivalizavam entre si como «Bons Samaritanos». Jackson conseguia ouvir apenas a preocupação deles como um zumbido dissonante. Agradeceu aos vizinhos, às mães das amigas de Franny na infantil e aos colegas da Universidade, mas eles não podiam compreender o que sentia. Como poderia partilhar os seus sentimentos encontrando-se aprisionado, sozinho, na solitária.

 

Para ele, o tempo não parecia sequer avançar. Nos dias que se seguiram a tê-los perdido, não se sentira em condições de planear outro ano de aulas de Mecânica quântica ou de Física newtoniana. Não podia continuar a ensinar as leis imutáveis que regem o Universo, quando a sua vida fora destruída pelo carácter fortuito daquelas. A Física explicava a mecânica da tragédia mas nada explicava o acto em si, o terrível resultado. Jackson sentia que não podia estar em frente de cem alunos numa sala de conferências, explicando as Leis do Movimento de Newton, porque sabia demasiado bem como tinham sido aplicadas à sua própria família. Testemunhara os efeitos da aceleração na direcção da força aplicada. E a forma como os corpos de peso desigual caem no espaço à mesma velocidade relativa. Sabia exactamente como ficavam aqueles corpos quando adquiriam por impacte uma posição fixa. Conhecia os seus rostos, os seus nomes, as suas idades. Sabia que a sua mulher, Nancy, gostava de levar Nathan e Franny a comprar roupa. E, quando chegavam a casa, anunciaria uma «passagem de modelos» e os miúdos mostrariam as suas novas roupas, desfilando pelos quartos do andar de cima. Era um momento de vaidade incontida mas não conseguiam resistir a exibir-se perante o pai que estivera fechado no seu laboratório, na Universidade. As cores das suas novas calças de ganga e as blusas brancas de Franny eram tão brilhantes que os seus olhos mal conseguiam suportar. Gabavam-se, exibiam-se e gritavam com uma energia que o deliciava e, ao mesmo tempo, o esgotava, pensando por um momento se a mulher não teria antes dado à luz dois brilhantes quarks.

 

Uma vez, ao chegar a casa, encontrou-os no pátio das traseiras, balançando na cama de rede, com um livro. Nancy tinha Franny no colo enquanto esta se contorcia procurando puxar o cabelo louro do irmão. Para ela, o cabelo devia parecer um halo brilhante que envolvia a cabeça do irmão. Jackson ficou de pé na relva fresca observando os três. Não o tinham ouvido chegar. Nancy ouvia Nathan tropeçando num trecho, soletrando lentamente, corrigindo-se quando se enganava, e acariciava Franny quando esta ficava impaciente. Naquele momento, ainda de pé, Jackson soube que aquele seria um instantâneo que sempre recordaria. Recordou-o repetidamente e agora a dor era tão palpável que conseguia senti-la apertando-lhe a garganta e queimando-lhe os olhos.

 

Jackson levantou-se, rígido, da cama da Estalagem de Rockpoint. O seu corpo estava tão habituado a dormir no beliche da Quark que quase não sabia como relaxar no conforto de um belo colchão. Isso era algo a que se podia habituar de novo, pensou. Lavou-se e vestiu-se rapidamente, escolhendo roupa limpa no seu saco. Nos últimos meses, tornara-se bastante eficiente em descobrir lavandarias públicas e em lavar a roupa. Colocar as moedas nas máquinas recordava-lhe os seus tempos de Universidade em que apenas lavava a roupa quando esta atingia um estádio incomodativo. Mas isso acontecera há anos, antes de Nancy começar a cuidar dele.

 

Enquanto saía do quarto, Jackson deu consigo a pensar em Livvy, na sua gentileza e bom humor, no rubor da sua pele quando tomava consciência da presença dele, no seu riso breve. Tivera muitas saudades disto no último ano, desta sensação de se ver na reacção de outra pessoa - interacção. Se alguma coisa Jackson aprendera nas suas viagens era que, aparentemente e com demasiada frequência, a amabilidade se escoara das pessoas como óleo velho de uma cambota. Quando alguma empregada de mesa ou funcionário de uma bomba de gasolina sorria ou conversava durante alguns minutos, isso tinha para ele algum significado. Penetrava no seu isolamento. Mas acontecia tão raramente. E, em termos de maldade pura, os outros condutores na estrada eram o pior. Cortavam a frente e brandiam o punho apenas por respirarem o mesmo ar. É claro que Jackson ao volante da Quark, com o centro de gravidade tão elevado como o Evereste, era o alvo ideal para a raiva na estrada. Conduzir por aquelas sinuosas estradas secundárias era um desafio às grandes velocidades, e Jackson encontrava sempre algum brutamontes num potente carro do último modelo ou carrinha de caixa aberta colados a ele até conseguir encostar e deixá-los passar.

 

Do topo das escadas, podia sentir o cheiro do café e dos muffins e o agradável aroma atraiu-o até ao átrio soalheiro e, através das portas envidraçadas, até à pequena sala de jantar das traseiras onde havia meia dúzia de pequenas mesas quadradas. Apenas uma mesa estava posta, com pratos de faiança lisa e uma pesada caneca. Um narciso acabado de colher erguia-se numa pequena jarra de cristal colocada no centro da mesa. Jackson sentou-se e leu a nota presa ao guardanapo. Examinou o bom papel de carta amarelado com pétalas de flores prensadas. Passou os dedos sobre uma pétala de violeta transparente e, perto dela, a mancha de um malmequer. A mensagem era-lhe dirigida e leu a bela caligrafia regular.

 

Caro Jackson,

Por favor, desculpe-me. Tenho de sair esta manhã. Saboreie os muffins de amora (a minha especialidade). Há muito café acabado de fazer (torrado à francesa). Beba todo o que lhe apetecer.

Livvy Faraday

 

Brotou nele uma sensação que reconheceu como desapontamento. Por pouco não a encontrara. O tempo parecia continuar para o resto do mundo, mas para Jackson pareceria sempre congelado nos momentos mais horríveis. Enfiou a nota de Livvy no bolso da camisa e tirou o guardanapo do cesto, revelando dois muffins do tamanho de softballs. Serviu-se de café de um jarro de vidro e colocou-o de novo no aquecedor. O muffin transbordava de amoras ao parti-lo e estava quente e ácido do limão e das natas sem açúcar. Eram os melhores que ele já tinha provado.

 

Nancy nunca se preocupara muito com o pequeno-almoço mas esta era a refeição preferida de Jackson. Costumava sair com Nathan de manhã cedo e comiam num restaurante com mesas de tampo de fórmica lascado e bebiam sumo de laranja diluído. Mas era pelas filhós que eles lá iam. Havia, pelo menos, uma dúzia de variedades e Jackson esperava prová-las todas. Geralmente, escolhia a variedade integral com farelo enquanto encorajava Nathan a comer algo divertido. Se Nathan escolhia um pequeno monte de filhós com pedaços de chocolate, Jackson sabia que podia tirar algumas garfadas do prato do rapaz. Isso bastava para ele. Quebrava as regras de Nancy quanto a açúcar em excesso ao pequeno-almoço mas via bem como o filho ficava feliz.

 

Tomar o pequeno-almoço fora uma tradição de domingo que iniciara com o seu próprio pai. Jackson recordava-se de ir cedo ao Joe’s, um pequeno restaurante nos subúrbios de Nova Iorque que tinha um bar e compartimentos estofados de vinil castanho. Sentavam-se para comer ovos estrelados, ensopando com pão torrado a gema que escorria. O pai de Jackson beberricava café e folheava o jornal que comprara à entrada, junto à caixa registadora. Mas, se tivessem ficado em casa e tomado um pequeno-almoço frio, iam de tarde, no Chrysler branco, buscar o jornal e Jackson sentava-se ao balcão para tomar um batido de leite com chocolate por uma palha grossa de papel encerado. O pai podia mesmo comprar-lhe um livro de banda desenhada do Super-homem por vinte e cinco cêntimos. Jackson sentia que aqueles pequenos rituais eram importantes na relação pai e filho. Talvez satisfizesse um instinto primitivo de caçador-recolector. Em vez de caçarem juntos um antílope selvagem, o pai ensinava o filho a perseguir e a apanhar um New York Times de domingo com 2,5 kg e a levá-lo à família. Artes e Lazer, Desportos e Negócios eram aquilo de que um homem precisava para vencer no mundo.

 

Jackson imaginara recentemente, durante as horas mais solitárias, o que pensaria o pai sobre o que ele fizera. O pai era um contabilista que seguia as regras de forma tão rígida que morrera, praticamente, no dia em que a tabela de mortalidade do seu seguro determinava que isso aconteceria, tendo em consideração as deduções regulares para um fumador de charutos com tensão arterial elevada e um sopro cardíaco. Nunca se reformara oficialmente da companhia petrolífera para a qual trabalhara e que era dirigida por um texano que gostava de estrear um novo par de botas de pele de cobra caminhando a passos largos, para cima e para baixo, no passeio da sede em Lexington Avenue, enquanto ditava a uma secretária. O pai de Jackson era um antigo marinheiro que tinha um guarda-fatos cheio de camisas brancas engomadas e dobradas em ângulos rectos pela lavandaria chinesa da cidade. Antes de se deitar, fazia trinta elevações, tal como fizera durante os três anos de serviço militar. Jackson testemunhava estes ritos e achava a ordem estranhamente reconfortante. O pai tinha uma caixa de madeira com pomada e escovas sob a tampa para engraxar sapatos e, nas noites de domingo, colocava os sapatos no suporte da caixa e puxava-lhes o lustro. Depois da sua morte, as pessoas recordavam-no como um homem tímido. Mas a mãe dizia, melancolicamente, que ele era um verdadeiro marinheiro.

 

- Tens de te defender - dissera-lhe uma vez o pai num momento sombrio quando a sua amargura viera à superfície. - Ninguém o vai fazer por ti.

 

Chamara-se David, o pai de Jackson, e organizara o seu mundo entre as linhas azuis verticais dos livros de contabilidade onde mantinha o registo das finanças domésticas. Havia um código que David Tate seguia, tão antigo como as regras babilónicas de Hamurabi, gravado na tabuinha de granito da memória de Jackson. Era um código patente na adição e na subtracção com os lápis amarelos Eberhard Faber número dois e canetas de cor que David alinhava na secretária como se estivesse a ordenar flechas para o combate. Uma borracha Pink Pearl encontrava-se ao lado pronta a estancar um raro erro de cálculo. A intervalos determinados por um calendário fiscal criado por ele próprio, David debruçava-se sobre uma pilha de recibos de mercearia que a mulher retirava das profundezas da sua mala. Guardava todos os pedaços de papel para ele conferir os números. Receava não o fazer.

 

David metia os números numa máquina de somar Burroughs cuja tecla do total encravava. Expelia uma fita de papel com todas as parcelas e Dave lançava-as no livro de escrita. As receitas eram registadas a preto, as despesas a vermelho. No final do ano, tudo estaria pronto para preencher os formulários do Imposto sobre o Rendimento. Conseguia preenchê-los numa tarde no dia 2 de Janeiro de cada ano. E o código era simples: a diferença tinha sempre de ser em preto. Era no vermelho que o desastre podia acontecer. Deitado no tapete, perto da secretária do pai, fazendo as somas dos problemas do seu livro de Matemática da escola, Jackson ouvia o pai avisá-lo sobre o destino fatal da execução de uma hipoteca, penhora e falência. Estas eram as coisas terríveis que podiam acontecer se se cometesse o erro de deslizar para a delinquência do vermelho.

 

Talvez Jackson esperasse demonstrar algo quando começou a fazer cálculos no caos previsível do mundo da Física. Encontrava uma familiaridade fácil na resolução dos problemas e tinha uma aptidão para os números que atingia a potência de dez. Os números inspiravam-lhe segurança. A visão de Jackson sobre o mundo era filtrada através dos dígitos vermelhos alinhados no visor da sua calculadora científica Texas Instruments. Mantinha-o afastado da vida.

 

Nancy deixava-o sempre sozinho. Jackson era o seu cientista maluco e, enquanto ela podia estar abraçada aos miúdos todo o dia, ele retraía-se. Algures no fundo do seu íntimo tinha receio da forma como o amor e a família revelam o interior da alma.

 

- É isso que tu és, Jackson - dissera-lhe ela uma vez, após uma discussão. - Compreendi há anos que és como uma daquelas pessoas que não suportam uma luz brilhante. Isso acontece-te emocionalmente, Jackson. Não suportas a intensidade dos teus próprios sentimentos. Sei que nos amas mas refugias-te no trabalho para nos olhares a todos a uma distância segura.

 

Ela tinha razão. Jackson não o conseguia evitar. Sentiu-se atingido. - Não fiques tão chocado - prosseguiu Nancy. - Um dia, conseguirei vergar-te.

 

De certa forma, acabara por fazê-lo.

 

Após o pequeno-almoço solitário na estalagem, Jackson levantou a mesa e lavou os pratos na pequena cozinha separada por uma dupla porta articulada. Num armário da cozinha encontrou um rolo de folha de alumínio e embrulhou o segundo muffin. Seria um bom lanche para outra hora. Desligou a máquina do café e foi ao átrio procurar uma lista telefónica. Não sairia dali enquanto não reparasse o tubo da Quark. Na cidade havia uma loja de peças de automóvel para onde telefonou pedindo informações.

 

O espesso relvado em frente da estalagem estava disposto em socalcos com canteiros de flores e pequenas veredas cobertas de saibro rosado, finamente moído. Os narcisos e os jacintos do início da Primavera erguiam-se com as flores raiadas e translúcidas tremeluzindo à luz da fresca manhã. Jackson desceu pelo caminho principal cuidadosamente limitado por pedras de calçada. Via-se um banco tosco de tábuas gastas que se encontrava entre dois cedros brancos meticulosamente aparados. Alguém esculpira um pequeno coração numa das toscas tábuas de cedro do banco.

 

Trinta minutos depois, tendo encontrado as peças de que precisava, Jackson regressou à Quark. Quando passara por ela a caminho da cidade, não encontrara quaisquer multas sob os limpa-pára-brisas e o animal não fora rebocado. Abriu o capot e começou a procurar na caixa de ferramentas a chave de fendas da medida certa. Arregaçou as mangas, retirou os parafusos que prendiam os restos do bojudo tubo de borracha do radiador e arrancou-o. Uns pingos de líquido de refrigeração caíram do tubo que embrulhou em algumas folhas de jornal. Colocou o tubo sobresselente no radiador e apertou-o antes de encher o reservatório do líquido de refrigeração. Enquanto arrumava as ferramentas e limpava o óleo das mãos com um trapo macio, olhou de relance para os bonecos da banda desenhada do Ursinho Puff que havia no tecido. Era um pedaço cortado de um dos velhos pijamas de flanela de Nathan. Jackson apertou o tecido na mão. Estivera na caixa de ferramentas durante algum tempo, um objecto vulgar, um trapo - até agora.

 

Foi atraído pelo som de um carro que abrandava e Livvy parou junto dele conduzindo uma carrinha Volvo prateada. Jackson dobrou o trapo cuidadosamente e colocou-o na caixa de ferramentas.

 

- Bom dia - saudou ela, descendo o vidro da janela. - Como vai o carro?

 

- Nada de importante - respondeu ele. - Apenas o tubo do radiador.

 

- Gostou do seu pequeno-almoço?

 

O sol batia-lhe na face e ela protegeu os olhos com a palma da mão. Esta parecia protegê-la também dele e fazia-a parecer hoje mais segura de si, menos perturbada com a sua presença.

 

- Talvez lhe peça a receita daqueles   muffins - retorquiu Jackson.

 

Ela riu-se. - Perderia muitos dos clientes habituais se lhes desse a receita em vez de uma boa razão para voltarem.

 

Agora foi a vez de ele se rir. - Ah, estou a ver, é uma mulher de negócios calculista!

 

- Regra geral - assentiu. - Lamento ter tido de deixá-lo sozinho hoje esta manhã. Habitualmente, sou melhor anfitriã.

 

Livvy pôs o carro em ponto morto, pareceu recompor-se e tornou-se séria. - Se precisar, há um óptimo mecânico na cidade. Conseguiu manter a andar o velho Fiat do meu marido, durante anos, quando já devia ter ido para a sucata.

 

- Obrigado, mas já está tudo resolvido.

 

Jackson retirou de uma unha uma gota de óleo escuro. Outra vez o marido.

 

- Então, vai voltar para a estalagem?

 

- Estarei lá dentro de alguns minutos - respondeu ele.

- Para fazer as contas.

 

Livvy acenou com a cabeça e, com a mão, subiu o vidro da janela e afastou-se lentamente pela estrada acima. Ele fechou a caixa de ferramentas que continha o pedaço do pijama do Puff. Colocou a caixa debaixo do assento do passageiro da frente.

 

Jackson entrou na carrinha, rodou a chave e o motor da Quark voltou à vida com um tossido, pronto a partir. A vibração regular fazia chocalhar os ventiladores soltos no painel de instrumentos. Acelerou um pouco para a bomba de água fazer circular o novo líquido de refrigeração. Em seguida, saiu e olhou para o motor, procurando alguma fuga. Estava completamente seco. Fechando o capot, engatou o carro e fez uma curva apertada. Pela primeira vez em muitos meses, conduziu em sentido contrário pelo caminho que o levara até ali.

 

A força, tal como o movimento, é um conceito relativo. A gravitação pode ser interpretada como uma distorção das propriedades do espaço em torno de uma massa no Universo.

     TEORIA DA RELATIVIDADE GENERALIZADA DE EINSTEIN

 

Livvy estacionara o Volvo junto à porta da cozinha. Jackson arrumou a carrinha na curva e viu-a a transportar sacos de artigos de mercearia pelo que se lhe dirigiu ao longo do caminho lateral.

 

- Eh, deixe-me ajudá-la! - disse Jackson, agarrando num saco de plástico que começava a romper-se na costura do fundo.

 

- Obrigada - suspirou ela. - Tem sido uma daquelas manhãs.

 

Via-se nos seus olhos. O brilho que notara neles no dia anterior parecia ter sido apagado pela desorientação.

 

- Não se esforce muito - pediu Jackson. - Um químico amigo meu descobriu uma fórmula para aumentar dez vezes a resistência destes sacos de plástico. Se a patente passar, em breve será capaz de transportar uma ou duas bolas de bowling do supermercado para casa.

 

- Ou, pelo menos, um pacote de leite - acrescentou ela. Havia algo na sua voz que ele reconheceu, um esforço para que soasse normal. Ouvia-se esse esforço.

 

Segurou o saco com uma das mãos e abriu-lhe a porta das traseiras com a outra. Ela passou-lhe por debaixo do braço e entrou.

 

- Ponho aqui? - perguntou, apontando para a mesa de preparação da carne com o saco na mão. Livvy acenou e ele pousou o saco.

 

Ela compôs uma madeixa de cabelo atrás da orelha e arrumou os artigos de mercearia na despensa. Jackson esgueirou-se para a pequena casa de banho próxima do bar onde lavou os vestígios de óleo e sujidade provenientes das reparações na sua carrinha.

 

- Vejo que deixou tudo limpo - disse ela, apontando para a casa de jantar, que ele arrumara depois do pequeno-almoço.

 

- Bem, achei que devia fazê-lo, sendo o seu único hóspede. Além disso, detesto deixar atrás de mim uma mesa cheia de pratos sujos.

 

- Siga essa norma e até podia dirigir esta casa - retorquiu ela.

- Então, o que o traz à costa do Maine?

 

Ele encolheu os ombros. O que poderia dizer para a fazer compreender? Tentou recordar a breve conversa da última noite quando se sentira tão confuso devido ao cansaço e à fome.

 

- Interrompi o trabalho por algum tempo. Voltarei a leccionar um destes dias.

 

- Os rapazes do departamento de Física costumavam assustar-me quando estava na Faculdade - afirmou ela. - Todos aqueles homens com óculos de aros negros de plástico.

 

- Por favor! - gracejou ele, fingindo-se ofendido. - Os meus colegas e eu temos trabalhado muito, durante anos, para levar todas as pessoas associadas à Física a usar lentes de contacto. Esqueça a pesquisa sobre partículas subatómicas, este foi o nosso maior desafio.

 

Livvy riu-se e, constrangidamente, levou a mão ao brinco para ajustar a pequena bugiganga prateada que se torcera. - Acho que fazia um juízo injusto. Mas esse mundo parece-me tão impenetrável. Talvez porque nunca fui muito longe nas Ciências.

 

- Muitos professores aborrecem os miúdos com fórmulas e números - acrescentou ele. - Mas se se limitarem a alguns elementos básicos, a maioria das pessoas acha muito fácil de compreender. E até lógico.

 

Jackson ensinava a Física do quotidiano, como o equilíbrio existente entre a velocidade e a força centrífuga que evitava que a Quark saísse da estrada numa curva.

 

- É difícil ultrapassar o sentimento de que a ciência pode resolver tudo - disse ela suavemente. - Acho que ficamos à espera disso.

 

De novo a tensão, a bolha subterrânea no seu tom de voz, que ameaçava rebentar com o que ela se sentia obrigada a esconder. Os seus olhos estudavam algo fora da janela.

 

- O cavaleiro branco da ciência - concordou Jackson, embora não tivesse a certeza de que ela estivesse a ouvir ou, pelo contrário, perdida, mergulhada no que se encontrava no seu íntimo profundo e que continuava a subir até aos olhos, à voz, aos ouvidos, abafando-a, cegando-a, ensurdecendo-a para tudo o que estava próximo, tudo a que pudesse estender a mão e mesmo tocar.

 

Mesmo assim, Jackson continuou a falar tanto para si próprio como para ela. Não queria quebrar a pequena ligação que se estabelecera, este fluxo de palavras entre eles. Nestes últimos nove meses, Jackson fugira a qualquer relação que durasse mais que o tempo necessário para um empregado de uma bomba de gasolina lhe dar o troco de uma nota de vinte. Respeitava a distância emocional como se se tratasse de um frasco de plutónio revestido de chumbo. Mas, pela primeira vez desde que perdera aqueles de quem mais queria estar perto, descobriu que precisava disto, por muito passageiro que fosse. Precisava disto. Algo nela atingira a sua velha parte que ansiava por companhia.

 

Prosseguiu:

 

- Levei muito tempo a compreender que as pessoas nem sempre sabem onde acaba a imaginação e começa a ciência. Nem faz ideia de quantos caloiros tenho, todos os anos, que querem construir uma espécie de feixe transportador de ficção científica que lançará moléculas através do Universo para se reunirem do outro lado. E quando lhes digo que as únicas pessoas que podem fazer isso trabalham para os Estúdios da Paramount, em Hollywood, ficam desapontados. Portanto, já não lhes digo isto. Em vez disso, temos tentado provar a ficção utilizando a ciência.

 

- Quer dizer fazendo experiências? - perguntou ela. O seu olhar deslocara-se para dentro e na direcção do dele.

 

- Claro, experiências, teorias, Química, Biologia, tudo o que conseguíssemos aplicar ao problema.

 

Agora, era ele que desviava o olhar. Aquele verde, aquela profundidade.

 

- E o que é que descobriram?

 

- Todo o tipo de coisas malucas - disse Jackson. - Mas foi a melhor forma de ensinar as teorias de Einstein. Embora o que descobri fosse, sobretudo, que algumas pessoas precisam realmente da fantasia para dar atenção ao quadro geral. Há um forte elo entre a ciência e a imaginação que provém dos filmes que vi e dos livros de banda desenhada que li quando era pequeno. Não é fácil esquecer esse mundo sonhador da possibilidade.

 

Ela suspirou e os seus olhos encontraram-se de novo. O telefone tocou, abruptamente, e Jackson viu Livvy ficar tensa.

 

- Desculpe - disse Jackson. - Estou a falar de mais.

 

Acenou com a mão em direcção ao telefone como se ela precisasse da sua autorização.

 

- Não, de maneira nenhuma. Deixe-me só atender.

 

Ele estava faminto disto, do alimento que a conversação fornecia. Nancy dissera-lhe, em tempos, que era um conversador reactivo esperando pela personalidade correcta que engrenasse na dele para poder conversar com facilidade. Sempre sentira que necessitava de um agente catalítico que o empurrasse para um movimento em roda livre, o que acontecia muito raramente. Mantinha próximos alguns amigos, Nancy e os filhos, que despertavam nele qualquer coisa que ligava os elos do curso do seu pensamento. De outra forma, deixava-se fechar com demasiada frequência e mantinha as pessoas à distância com modos recalcitrantes, quase taciturnos. Livvy era um agente catalítico e podia atraí-lo para fora da sua timidez. Esperou que ela acabasse o seu telefonema, folheando algumas brochuras sobre cruzeiros à região das baleias e sobre aluguer de bicicletas, esperando que a chamada não se prolongasse tanto que o seu falso interesse pelas atracções turísticas locais começasse a parecer fingido.

 

- Disse-lhe ontem à noite que estou bem, George - ouviu-a dizer, tentando esconder uma ligeira irritação. - Não quero que venha cá com risco da sua saúde. Pode esperar até ficar melhor. Se chover outra vez, arranjo uma brigada do balde. Não, por favor, estou a brincar. Descanse e deixe a Mary tomar conta de si. Está bem, George. Adeus.

 

- Algum problema? - perguntou Jackson quando ela desligou. Percebeu, imediatamente, como a pergunta era despropositada. O que é que isso lhe interessava?

 

Ela não pareceu reparar. - Apenas um trabalhador demasiado solícito - informou. - Caiu de uma escada na semana passada e partiu uma perna. Não devia subir a escadas, de qualquer maneira, pois tem quase oitenta anos. Mas tenho um telhado que deixa entrar água e ele estava preocupado com o que teria acontecido com a chuva ontem à noite.

 

- O que é que aconteceu?

 

- Nada de bom. Estive a pé toda a noite a despejar baldes.

 

- Podia tê-la ajudado - ofereceu-se Jackson.

 

- Nenhum hóspede pagante deveria ter de ajudar. É uma das regras da minha casa. - Riu-se e tocou-lhe no braço com um movimento ligeiro.

 

- Está a tentar lembrar-me de pagar a conta?

 

Ela corou. - Não.

 

Depois, ao ver que ele sorria, recuperou a segurança. - Tenho o número do seu cartão de crédito, lembra-se?

 

- Ah, sim, claro! - Riu-se e acrescentou: - Deixe-me dar uma vista de olhos a esse telhado. Talvez possa fazer qualquer coisa.

 

Fora um impulso. Não sabia se a convenceria, mas queria oferecer-se. Queria fazer algo por esta mulher que mal conhecia, que já fizera algo por ele, mesmo que fosse apenas o envio de um rendilhado de sensações para áreas da sua mente que já há meses estavam entorpecidas, atrofiadas.

 

Livvy parecia-lhe de alguma forma tão frágil, dada a forma como o sangue lhe subia às faces, fervilhando aí. Havia nela qualquer coisa de tão transparente, tão diáfano que as suas emoções se revelavam à superfície. Talvez a sua pele sensível ocultasse um esqueleto duro como aço, mas não a conhecia o suficiente para saber. Fora assim com a sua Nancy. Era sempre tão resistente. Recordar a sua força ajudara-o nestes últimos meses. Mas em Livvy, com um riso que se prolongava demasiado e os olhos magoados pelo desgosto, a força que tivesse parecia à beira de se desmoronar. Pelo menos podia fazer uma inspecção ao telhado que deixava entrar água. Se não conseguia tocar aquele olhar e resolver o desgosto que ela sentia, pelo menos podia cuidar do que era feito de madeira, alcatrão e telhas. Podia dar uma ajuda na casa, esta estalagem de traçado irregular.

 

Nancy sempre dissera a Jackson que era perito em ajudar os outros mas renitente em ajudar-se a si próprio. Era capaz de sair de casa com uma T-shirt no Inverno, depois de se assegurar de que as crianças estavam bem agasalhadas. E é claro que, quando cozinhava uma refeição, era para os outros visto que podia passar bem com uma sanduíche fria. O casamento com Nancy ensinara-lhe algumas difíceis lições sobre o seu lugar no mundo.

 

Jackson não teve grande dificuldade em convencer Livvy a deixá-lo dar uma vista de olhos ao telhado que deixava entrar água. Estava um pouco embaraçada mas o seu alívio era mais evidente. Cedeu rapidamente e subiram juntos ao andar de cima cujo tecto apresentava manchas amarelas. Havia ainda vários baldes no tapete.

 

- Há, realmente, aqui uma grande confusão - lamentou-se ela. - Não devia tê-lo incomodado.

 

- Não há problema - retorquiu Jackson. - Na minha quinta havia sempre qualquer coisa como canos congelados ou uma família de ratos nas paredes. Não tem ratos, pois não?

 

- Meu Deus, espero que não - estremeceu ela.

 

- Não se preocupe. Sei como acabar com eles.

 

- Penso que teria de me mudar se tivéssemos, sabe...

 

- Ratos?

 

Livvy encolheu-se. - Não suporto a ideia de pensar neles com aqueles olhinhos brilhantes como contas e os pequenos focinhos no ar.

 

- E as garras a arranhar as paredes.

 

- Por favor! - gritou ela, tapando os ouvidos.

 

- Está bem, está bem - riu-se Jackson. - Foi lá acima ao sótão dar uma vista de olhos?

 

- Não, estava a guardar isso para o George - respondeu ela.

- Já não vou lá acima há muito tempo. Podia encontrar, sabe... Mas pode lá ir espreitar, se quiser.

 

Jackson puxou a corda que pendia do alçapão de acesso ao sótão. Uma escada articulada abriu-se, rangendo, e Jackson fixou-a no chão atapetado. Subiu ao sótão e puxou uma corrente para ligar uma lâmpada. Livvy seguiu-o pela escada acima.

 

Ele deslocou-se cuidadosamente pelo sótão, ao longo das tábuas que ligavam as vigas. A água que pingara através do telhado deixara um rasto através das vigas e das traves. Jackson fez uma inspecção pormenorizada.

 

- Parece mau, mas um telhado que deixa entrar água nunca é muito grave - disse. - É apenas uma questão de remendar buracos.

 

- Eu sei - suspirou ela. - Mas o meu fundo de manutenção está bastante esgotado este ano. Pensei que George poderia fazer um conserto provisório. Sabe, pastilha elástica ou qualquer coisa - disse, sorrindo e tentando minimizar a seriedade do problema.

 

- Não sei se um velhote com uma perna engessada lhe serviria de muito num trabalho como este.

 

- Tem razão, tem razão - concordou, abanando a cabeça como se devesse ter calculado. - O meu marido saberia o que fazer mas o George quase veio com a casa.

 

- Por que não me deixa tentar?

 

- Não posso. É muito amável da sua parte, mas não poderia pedir-lhe isso.

 

- Não tem de pedir. Estou a oferecer-me. Tenho tempo de sobra e o trabalho de construção no Verão ajudou-me a pagar as despesas durante o tempo da Universidade.

 

- Faria questão em pagar-lhe - sublinhou ela.

 

- Se quer que lhe dê uma estimativa exagerada, com horas extraordinárias incluídas, posso fazê-lo. Sei exactamente como se faz. De outra forma, pense que está apenas a receber ajuda de um amigo.

 

Ela abanou a cabeça.

 

- Então, dê-me alojamento e alimentação.

 

Isto fê-la sorrir. - Não diga isso duas vezes. Livvy olhou-o em cheio nos olhos, não os desviando. Isto quase o enervou. Seguidamente, perguntou:

 

- Posso ficar com o mesmo quarto?

 

- Claro - assentiu ela. - Ou pode dormir numa cama diferente todas as noites, se quiser. Há doze à escolha.

 

- Então, está combinado.

 

Jackson estendeu a mão para fechar o acordo. Os dedos esguios de Livvy estavam frios quando os apertou, sentindo as suas unhas envernizadas roçarem na pele suave da parte de dentro do seu punho. Era o primeiro toque que recebia de uma mulher nos últimos meses.

 

O sótão era uma confusão de camas desmontadas, mobiliário velho e colchões atacados pelo bolor sob o telhado que deixava entrar água. Parecia típico como zona de armazenamento de um hotel. Mas, perto da escada, encontrava-se um suporte com fatos escuros de riscas colocados em cabides de madeira. Via-se um armário com vários pares de sapatos de pala arrumados em cima. Formas de madeira mantinham-nos prontos a calçar, mas uma grossa camada de pó ocultava o seu brilho. Jackson olhou para o suporte dos fatos à luz sombria que se filtrava através das portadas distantes.

 

- São do meu marido - comunicou ela, ao reparar no seu olhar. Sacudiu o pó das palmas das mãos, passando uma delas pelos fatos. Ele notou que a sua face se toldara.

 

- Calculo que não tenha muitas razões para se vestir a preceito para trabalhar em Rockpoint - comentou ele.

 

- Não, mas estava sempre preparado para regressar a uma sala de tribunal.

 

- O que o levou a abandonar tudo?

 

- Oh! Ele não queria sair, mas sabe como o mundo empresarial pode ser sujo. Há sempre baixas. Howard foi uma espécie de espectador inocente, acho eu.

 

- Lamento - disse Jackson. Ficou preocupado por estar a entrar em águas demasiado profundas para pessoas que não se conheciam há muito tempo. Mas suspeitava de que Livvy lhe daria a entender quando a curiosidade o levasse a exagerar.

 

- Howard é mais velho do que eu - informou ela. - Fará sessenta anos no próximo ano. Sempre achou que era engraçado ter feito o exame de Direito no ano em que eu nasci.

 

- Deve dar muito trabalho a ambos manter este lugar em condições - comentou Jackson. - Só os jardins parecem uma ocupação a tempo inteiro.

 

Sabia que estava a espicaçá-la. Mas queria saber mais, e não sobre a forma como os deveres de jardinagem e hospedagem eram divididos. De repente, deu por si a querer saber com quem, que tipo de homem. Interessava-se por saber.

 

- Quando comprámos a estalagem, há cinco anos - disse Livvy -, Howard adorava tratar dela. Passara os verões aqui na costa quando era adolescente e acho que queria regressar ao local onde se sentira mais feliz. Estávamos casados há poucos anos, mas eu estava preparada para abandonar Chicago por algo diferente.

 

Desceram a escada do sótão e Jackson dobrou-a de novo até ao tecto. Ela ficara silenciosa, com os grossos lábios cerrados e os olhos mostrando de novo a dor. Não a pressionou a qualquer outra revelação, dizendo apenas:

 

- Devia começar enquanto o tempo está bom.

 

Esperava levar a conversa novamente para um plano menos pessoal e estava mesmo envergonhado por tê-la conduzido naquele sentido. Ele sabia, melhor que ninguém, que as perguntas simples, por vezes, não o eram. Podiam detonar dentro de uma pessoa e rasgar qualquer semblante de estabilidade e calma. Fizera-lhe isso? Fizera-lhe esse mal?

 

Tentou olhá-la de lado para não chamar demasiado a atenção para o seu crime. Tinha os braços à volta da cintura para se controlar. Afinal, não a desfizera. Estava a aguentar-se.

 

- Detesto pensar em si lá em cima, naquele telhado escorregadio - disse ela. - Dou-lhe mais uma hipótese de desistir, sem fazer perguntas, se quiser que chame outra pessoa.

 

- De maneira nenhuma - ripostou Jackson. - Não posso dar quaisquer referências, mas sei o que é preciso fazer.

 

- Está bem, estou convencida - afirmou, soltando uma risada rápida, espontânea, cheia de energia, e pareceu recompor-se. Deliciou-o ser o causador desse riso. Especialmente agora que ousara invadir a sua privacidade, a dor que ela mantinha abafada.

 

- Bem, precisarei de fazer uma lista de materiais. Examinou o tecto do corredor danificado pela água. - E precisarei de algumas ferramentas.

 

- Vou buscar um bloco para fazer a sua lista - disse ela, descendo a escada apressadamente.

 

Jackson pensou no marido dela. Talvez estivesse fora, em negócios. Se assim fosse, então apareceria provavelmente no fim-de-semana. O telhado era trabalho para dois dias se conseguisse começar naquela tarde. Com sorte, podia fazer as malas e partir na noite de sexta-feira. De qualquer forma, Jackson esperava poder fazê-lo, esperava poder terminar o trabalho do telhado e voltar à estrada, conduzindo para longe do conforto da mulher de outro homem.

 

No Universo, cada partícula atrai qualquer outra com uma força directamente proporcional a ambas as suas massas e inversamente proporcional ao quadrado da distância entre elas.

         LEI DA GRAVITAÇÃO DE NEWTON

 

Jackson tinha uma ideia a que chamava a teoria do boomerang. Só se podia viajar uma certa distância antes de voltar para trás e enfrentar-se a si próprio. O Universo está a expandir-se quase à velocidade da luz e tem-se afirmado que um dia parará de se expandir e, como uma tira de borracha esticada ao máximo, voltará para trás bruscamente. A gravidade afirmar-se-á e atrairá tudo de novo para onde começou. Os físicos acreditam que, quando o Universo parar de se expandir e começar a contrair-se, o big bang tornar-se-á o big crunch. A teoria do boomerang de Jackson era paralela a esta ideia. Ele dissera sempre a Nancy que a vida só podia piorar até certo ponto, atingindo depois os limites do contínuo espaço-tempo e voltando rapidamente como uma bola numa corda, tornando-se cada vez melhor. Claro que Jackson nunca esperara chocar-se tão cedo com os limites exteriores bem definidos do seu universo emocional e, ultimamente, já não tinha tanta certeza acerca da sua teoria preferida.

 

De qualquer forma, ocorreu-lhe a teoria quando Livvy se ofereceu para ir com ele ao armazém de ferragens. Não havia nada mais vulgar que uma visita ao armazém de ferragens, mas ficou inesperadamente surpreendido com o prazer que a sua oferta lhe causara. Depois de ter passado tanto tempo sozinho, preso à repetição estonteante dos seus pensamentos, agradecia a companhia. Não a companhia de qualquer pessoa mas a dela. E Livvy, após um Inverno de isolamento, fechada na estalagem com os seus livros e a lareira, parecia também desejar companhia. Jackson podia certamente ter encontrado sozinho o caminho para a cidade, mas Livvy disse-lhe que preferia que não se perdesse por sua culpa.

 

- Jackson - dissera-lhe quando ele acabara de fazer a lista e pedira desculpa pela despesa que representava. - Tomar conta disto é o meu trabalho, tem sido um trabalho contínuo de amor já há anos. Para tomar conta de algo, tem de ser assim pois, de outra forma, não sei como alguém o poderia fazer.

 

Esta seria a sua primeira passageira na Quark e fez-lhe uma visita guiada. Desactivou o alarme, destrancou a porta lateral e convidou-a a entrar no que fora a sua casa desde o Verão anterior.

 

- É aqui que dorme? - admirou-se, apontando para o estreito beliche com colchão de espuma. O saco-cama azul estava desdobrado sobre o colchão.

 

- Não é tão confortável como a minha cama na estalagem mas quando se está cansado da estrada até se dorme no chão - comentou ele. - E tenho um aquecedor e um fogão de cozinha a gás.

 

- As cortinas dão um toque caseiro.

 

- Ou simples - corrigiu ele. - O verde vivo nunca foi a minha cor preferida mas aceita-se a carta que nos dão.

 

- Parece uma forma engenhosa de viajar - prosseguiu ela.

- Há alguma vantagem em ter à mão tudo o que se precisa. Quando viemos de Chicago, estávamos à mercê dos restaurantes de fast food e de qualquer motel de beira de estrada onde houvesse vaga.

 

- Afastei-me da interestadual sempre que pude - disse Jackson. - Geralmente, conduzia pelas auto-estradas estaduais. Antes de vir para Norte, andei pelo Sul por uns tempos.

 

- Foi a Nova Orleães? Adoro aquela cidade.

 

Jackson gemeu e acenou com a cabeça. - Passei por lá este Inverno. Era Terça-Feira Gorda, o trânsito estava inacreditável, e a Quark ameaçou sobreaquecer.

 

- É uma cidade tão romântica - exclamou ela. - Os eléctricos, as magnólias e os beignets.

 

- Ah, os beignets! - acenou Jackson com a cabeça. - E as sanduíches de ostras fritas. Isso compensou suficientemente os meus problemas.

 

- Costumava viver para viajar - recordou ela. - E, depois de conhecer o Howard, fomos a todo o lado: São Francisco, Nova Iorque, Londres, Paris, Roma - acrescentou, melancolicamente.

 

- Onde é que ainda não foi? - perguntou Jackson. - Diga-me um lugar que sempre tivesse querido conhecer.

 

Nunca conhecera o puro prazer de viajar. Tinha passado férias com a família mas de todas as vezes ficava ansioso por voltar para a familiaridade da sua casa. Agora, não sabia se alguma vez suportaria voltar para casa.

 

Livvy fechou os olhos por um momento e abanou a cabeça. - Não sei onde gostaria de ir - disse ela. - Nem sequer consigo agora imaginá-lo.

 

Inclinou-se para ler os títulos dos livros. - Einstein, Stephen Hawking, Carl Sagan - leu ela. - Leituras impressionantes.

 

- Ossos do ofício - disse ele. Livvy estava perigosamente perto do tesouro dos seus álbuns de fotografias arrumados na prateleira inferior.

 

- Bem, pode até ser uma das poucas pessoas que compreende buracos negros e todas essas coisas.

 

- Por vezes - admitiu ele. Embora passassem dias inteiros em que sentia que poderia ser a única pessoa no mundo a compreender isso realmente. Para Jackson, os buracos negros não existiam apenas teoricamente, sentia-se como se tivesse perdido a família num deles. Sabia que os buracos negros existiam apenas no mais profundo do espaço, a anos-luz de distância. Eram os restos de estrelas gigantescas que tinham implodido, deixando apenas os fantasmas dos seus campos gravitacionais que podiam ser detectados pelas anomalias que causavam no espaço à sua volta. Em teoria, uma nave espacial de passagem poderia ser inocentemente sugada para este encolerizado vórtice de gravidade e nunca mais se ouviria falar dela. Os passageiros seriam reduzidos às suas mais elementares partículas pelastremendas forças gravitacionais no seu interior. Jackson vira as provas e revira as teorias de cientistas muito mais eruditos do que ele próprio.

 

Talvez, pensou, nos seus dias de dor mais racional, a conjectura da Física pudesse explicar o que acontecera à sua família. Podia visitar as sepulturas, plantar flores e passar as mãos pelas pedras de granito polido, mas o que acontecera à essência dos seus filhos e da sua mulher? Imaginou inutilmente se teriam tombado numa espécie de buraco negro eclesiástico. Talvez fosse assim que tudo funcionava. Certamente não afastaria a hipótese de a Natureza destinar as coisas dessa maneira. Num Universo ordenado por leis rígidas e pontuado por interlúdios previsíveis de caos, tinha de acreditar que a essência de Nancy, Nathan e Franny sobrevivia de alguma forma, algures.

 

- São álbuns de fotografias? - perguntou Livvy, inclinando-se.

 

- Sim - assentiu Jackson. Sentiu um baque no estômago. Não estava preparado para dar resposta à sua curiosidade e antecipou o que imaginava ser a próxima pergunta exploratória seguida de outra até que o coração lhe explodisse como vidro.

 

Livvy passou os dedos pelas lombadas mas não lhe perguntou mais nada. Para ela, bastava saber o que eram, permitindo-lhe a distância da sua privacidade. Ele desejou ter demonstrado a mesma cortesia no sótão.

 

- Vamos? - sugeriu ela, parecendo satisfeita com o que vira da sua vida na Quark.

 

- Claro - respondeu ele. - Venha para o lugar da frente, se quiser.

 

- Por aqui?

 

- Sim - assentiu ele, guiando-a com a mão. Passou por cima da saliência da transmissão e sentou-se no lugar do passageiro.

 

Jackson fechou a porta lateral, caminhou até à porta do condutor e subiu. A Quark arrancou com um rugido rouco, lamuriento, que era o timbre normal da sua voz. Os ventiladores do painel de instrumentos zumbiam e Jackson sentiu as obturações dos seus dentes vibrarem. Bateu na alavanca das mudanças e partiram.

 

- Aqui está a Quark - disse ele. - Levo-a onde quiser... seja como for.

 

- Por que lhe chama Quark?

 

udo menos isso - disse ele, com um encolher de ombros. - Quark é uma partícula subatómica carregada que apresenta muitos tipos diferentes: encantada, estranha, em pé, deitada, no cimo e no fundo. Esta velha carrinha pode, por vezes, ter todos esses aspectos ao mesmo tempo. Além disso, tem apenas um rádio AM e precisava de me entreter de alguma maneira.

 

- Tem realmente um encanto dos tempos de liceu de meados dos anos 70 - gracejou ela, com um risinho sarcástico.

 

- Seja amável - aconselhou ele a brincar. - Transportou-me durante muitos quilómetros.

 

- Está bem, agora serei eu o guia turístico, se não se importa.

 

- Com certeza - replicou Jackson.

 

- Bem, qualquer pessoa lhe poderia dizer que ali é a praia pública.

 

- Perfeita para uma longa caminhada para desanuviar a cabeça - acrescentou Jackson.

 

- No último Verão, uma baleia deu à praia mesmo deste lado do molhe.

 

- Julgo que ouvi isso nas notícias - disse ele, recordando por momentos algo semelhante, algo familiar durante os dias perdidos a olhar para aquela parada entorpecedora de electrões que marchavam através do   ecrã. Depois de aquilo ter acontecido e de ficar sozinho, a   TV tornara-se o único meio de conseguir abrandar a terrível agitação da sua mente. Sentara-se, rígido, durante os relatos nas estações locais sobre o homem que destruíra a sua vida familiar: a prisão e a alegação repreensível da sua inocência. Por vezes, Jackson conseguia ouvir o eco surdo do desmentido daquele homem ressoando na sua própria cabeça, ver os olhos inertes cravados no crânio como pedras, a barriga que fazia esticar a camisa manchada. Aquele era o animal que causara a dor de Jackson. E a câmara da TV cortejara-o.

 

- Passou em todas as estações - informou Livvy. - Uma história de interesse humano, calculo.

 

- Oh? - disse ele, consumido pela sua desorientação.

 

- Nunca vi uma criatura tão gigantesca. Tinha olhos escuros, belos e inteligentes. Tentámos manter-lhe a pele húmida com água do mar e lembro-me de como era áspera quando seca, mas logo que a pele foi molhada escorregava debaixo das nossas mãos. Não era viscosa como a de um peixe no mercado, apenas sem fricção. Pode imaginar-se como deslizam suavemente através do oceano.

 

- Voltou para a água?

 

- Oh, sim! Foi necessário um rebocador que veio de Portland, mas conseguimos levá-la, de novo, para o mar. Foi muito emocionante.

 

Viraram na curva da Beach Road e seguiram ao longo de uma faixa de terra entre o pântano salgado e o porto. Havia um caminho para peões com uma passagem sobre um riacho que corria para o mar.

 

- E ali, a Estalagem Blue Gull, que estivemos para comprar - prosseguiu ela, apontando para uma pequena estalagem com campos de ténis fronteiros ao pântano salgado. - Howard achou que a propriedade junto à praia era um investimento muito melhor.

 

- Viram muitos locais?

 

- Até ficar tonta - respondeu ela. - Andámos para cima e para baixo ao longo da costa tentando encontrar, exactamente, o ideal. Ambos adorámos Rockpoint pelo que a escolha foi fácil. Foi apenas uma questão de encontrar o que nos fizesse felizes. Afinal, estávamos a apostar as nossas economias.

 

- Ficaram com um belo local - apreciou Jackson. - Só o trabalho em madeira, de estilo vitoriano, é magnífico.

 

- Acredita que estava todo pintado de branco quando comprámos a estalagem? Howard e eu retirámos toda a tinta e voltámos a dar os acabamentos. Nunca teríamos sabido como era belo se não tivéssemos retirado a tinta.

 

- Temos de fazer um esforço para imaginar o que estarão as pessoas a pensar quando cobrem pormenores como aquele.

 

Livvy disse a Jackson que virasse para a cidade. Atravessaram uma estreita ponte móvel à entrada do porto. Havia uma barraca, pintada de fresco, que vendia peixe frito e que estava prestes a abrir para a estação, na extremidade da ponte. Do outro lado, via-se um bloco baixo de lojas cujas montras exibiam T-shirts, faróis de porcelana e esculturas de plástico cor de marfim imitando osso de baleia.

 

- Apetece-lhe almoçar? - sugeriu Livvy, hesitantemente.

 

- Estava mesmo a pensar nisso.

 

- Devia ter feito sanduíches para nós, na estalagem - lembrou ela.

 

- Não, deixe-me levá-la a um sítio agradável. - Falou com uma rapidez que quase o surpreendeu. Lamentou-o por um momento e tentou moderar-se, mas era demasiado tarde. Deixara-se cair numa conversa fácil e agradável com ela. Era como se, de repente, se tivessem tornado velhos amigos. E isso preocupava-o.

 

O Dominick’s tinha uma excelente vista sobre o porto, vendo-se os barcos de pesca da lagosta e potentes barcos de pesca de aluguer. As mesas eram de pesadas tábuas de madeira, com uma espessa camada de verniz. Havia um enorme tanque com várias dúzias de lagostas empilhadas debaixo de água. Grossas cordas de marinheiro entrançadas formavam desenhos decorativos na parede. Uma rede de pesca esfarrapada pendia de uma extremidade do tecto. Um homem grisalho que usava um boné de pescador grego, com o rosto marcado por sulcos que pareciam esculpidos na face dura, recebeu-os à porta.

 

- Hoje são dois para almoçar, Sr.a Faraday? - perguntou ele, com voz áspera como cascalho.

 

- Sim, Dominick - respondeu Livvy. - Vai abrir a explanada em breve?

 

- A qualquer momento, Sr.a Faraday - disse ele, conduzindo-os a uma mesa junto à janela. - Logo que o tempo ajude.

 

- Acho que temos de esperar que a temperatura corresponda ao calendário.

 

- Como sempre - assentiu ele. - E como está o seu marido?

 

- Vai andando - disse Livvy. - Como todos nós.

 

- Ainda bem - concluiu ele, calorosamente.

 

- É um amigo - apresentou ela, mudando de assunto habilidosamente - Jackson Tate.

 

Dominick cumprimentou e retirou-se para a sombra fresca do restaurante.

 

Jackson comeu uma grossa sanduíche de eglefim grelhado num enorme pão de milho e melaço tostado, enquanto Livvy comia uma salada de peixe fumado sobre uma camada de alfaces miniatura. No porto, os barcos balanceavam-se nas amarras e o sol aquecia a mesa. A conversa deslizou sobre a superfície durante muito tempo como um esquiador aquático. Havia um fluxo natural de palavras e um à-vontade no riso que faziam Jackson sentir que, na verdade, eram velhos amigos.

 

Sem que ele sequer o tentasse, a conversa foi de encontro à sua curiosidade. Livvy disse-lhe que deixara a escola de jornalismo por um trabalho na revista Chicago, onde escrevia quando conhecera o marido.

 

- Entrevistei Howard para um artigo que estava a escrever para um número sobre os melhores advogados da cidade. Estávamos sempre a fazer números especiais como aquele porque se vendiam muito bem. Sabe como é, os melhores médicos, os melhores sítios para comer, os melhores locais para depilar as pernas.

 

- É bom para o consumidor - ironizou Jackson.

 

- Era uma verdadeira fraude, mas isso é outra história - acrescentou ela. - Seja como for, uma tarde fui entrevistar o grande consultor jurídico de empresas Howard Faraday no seu escritório. E achei que ele era encantador e muito distinto no seu fato escuro e com o cabelo prateado. Na altura, estava a trabalhar para uma firma e ganhara vários casos importantes. Acabara de ser convidado para dirigir o departamento jurídico de uma grande empresa e toda a gente o admirava muito. Bem, a nossa entrevista deveria durar uma hora mas ele continuou a falar até à hora do jantar e fiquei demasiado cansada para tirar mais notas. Voltei ao meu escritório, fiz algumas breves entrevistas telefónicas a alguns dos seus colegas para o enquadramento e o artigo saiu umas semanas mais tarde.

 

- Ele deve tê-lo adorado.

 

- Odiou-o - contrariou ela. - Odiou-o completamente.

 

- Dizem que algumas pessoas não gostam de ler a seu respeito.

 

- Bem, foi o caso de Howard - disse ela, com um rolar suave dos seus olhos verdes. - Disse que até a sua fotografia o fazia parecer-se com o bom velho tio de alguém.

 

- Houve qualquer coisa no artigo de que ele gostasse?

 

- De mim, acho eu - disse ela. - Na altura, disse-me na sua voz grave e potente, a mesma que utilizava para intimidar juízes:

 

«Olívia, peço-lhe imensa desculpa, mas o seu artigo fez-me recuar vinte e cinco anos.»

 

- Como é isso possível? - perguntou Jackson.

 

- Escrevi sobre ele como o via: um homem ponderado, intrigante, que apreciava a pesca com mosca e os vinhos franceses.

 

- Ah! Estou a perceber - disse Jackson. - Nenhum advogado quer ser visto como uma pessoa amável.

 

- Exactamente - concordou Livvy. - Consegui ver para além do artifício de advogado pretensioso que ele utilizava e escrevi sobre quem estava por detrás. E isso não era bom para o negócio. Mesmo nada. Queria ser visto como um tubarão.

 

- E quanto tempo passou depois disso até se casarem?

 

- Aproximadamente um ano - disse ela. - Dizia, a brincar, que era a única forma de me impedir de escrever sobre ele. Isso ou mandar-me-ia transferir para o Siberian Monthly.

 

- Pelo menos, deu-lhe a escolher.

 

- Oh! - exclamou ela. - Os invernos de Chicago são suficientemente maus. A Sibéria - estremeceu - nem pensar.

 

- Apoiado, apoiado.

 

- Há quanto tempo está casado, Jackson? - perguntou Livvy, pousando os olhos na aliança que ele ainda usava na mão esquerda.

 

O ambiente oscilou na direcção da sua cara, esbofeteando-o. Deu por si a engolir em seco. - Fui casado - respondeu Jackson, sentindo o sangue fugir-lhe da face.

 

- Divorciado? - inquiriu Livvy. Tentava espetar no garfo uma alface desobediente. Não estava a olhar para ele.

 

Jackson inspirou bruscamente. - Não, ela morreu - comunicou tão suavemente como pôde. Não havia outra forma de o dizer para suavizar o golpe e ele sabia que uma informação daquelas podia pulverizar o eixo motor de uma conversa.

 

De repente, Livvy reparou como estava pálido. - Lamento desculpou-se ela, obviamente horrorizada por ter tropeçado no seu desgosto de uma forma tão casual. - Lamento muito.

 

Ele ignorou as desculpas e disse a Livvy que conhecera Nancy quando andavam ambos na Universidade. Tinham formado uma família com dois graus académicos, explicou ele, o seu doutoramento em Física e o mestrado dela em Dança. Mesmo quando relatava estes simples factos, podia ver Nancy a dançar com um movimento fluido tão rápido como se fosse água a cair de uma fonte. Fora na escuridão de um teatro de estudantes que a vira dançar pela primeira vez sob as luzes coloridas do palco. O seu coração batera enquanto lhe seguia os movimentos. Quando se apresentara na prova de vinhos posterior, apaixonara-se por ela. Mas agora partira, perdida para ele, talvez dançando algures à luz das estrelas. Não podia dizer tudo isto a Livvy, claro, mas era a realidade da sua dor, da sua vida actual, o que ele não conseguia esquecer.

 

Livvy abanou a cabeça e beliscou o lábio inferior. - Que aconteceu?

 

- Um condutor embriagado - esclareceu, como se isso pudesse explicar tudo.

 

- Isso é terrível - lamentou ela. A mão moveu-se na direcção da dele, impulsivamente. Tocou-lhe ao de leve nos nós dos dedos e a seguir recuou.

 

- Que posso dizer? - prosseguiu ele. - A matéria choca com a antimatéria à nossa volta em biliões e biliões de colisões atómicas em cada segundo.

 

- No entanto, alguma matéria interessa mais, não é? - perguntou ela. - Quero dizer que tem mais significado?

 

Ele encolheu os ombros e concordou, acenando com a cabeça. É evidente.

 

- Foi por isso que deixou a sua casa?

 

- Sim - disse ele, suavemente. Senti-me como se estivesse a afogar-me em memórias. Acho que ainda me sinto assim.

 

- A dor - comentou ela com gravidade - pode dominar-nos.

 

Jackson esclareceu como quisera procurar explicações lógicas e soluções metódicas. Disse-lhe que um cientista precisa de ver uma causa e um efeito e ordenar a aparente casualidade do mundo.

 

- Por vezes, não há resposta - afirmou Livvy. - Ou penso que não existe...

 

Contou-lhe que, numa ocasião, o filho lhe fizera uma daquelas perguntas que os miúdos sempre fazem - por que é que o céu é azul? - e que ele se lançara numa explicação complicada. Dissera a Nathan que a luz do Sol se espalha e é absorvida por partículas de pó na atmosfera e vemos apenas o espectro azul da luz. E Nathan olhara para ele, desorientado, e Jackson compreendera que o filho não queria a ciência por detrás da coisa, queria saber, sim, a poesia da coisa. Era a ciência o que Jackson via mas era a poesia que o filho quisera compreender.

 

- E - acrescentou - penso nisso às vezes. Sei que tenho de aprender a ver as coisas dessa maneira em vez de ver, apenas, variáveis numa equação qualquer.

 

- O seu filho parece um miúdo esperto - observou ela.

 

Jackson mexeu-se no seu lugar, desconfortavelmente. Devia ter dito logo tudo de uma vez. Mas ainda não conseguia suportar todo o fardo, ainda tinha de o dividir, logicamente, em perdas individuais. Mesmo agora, não estava preparado para dizer o que precisava de lhe contar. Estava preso na sua garganta porque nunca dissera aquelas palavras em voz alta e tinham ressoado na sua cabeça durante todos aqueles meses como a onda de choque após uma detonação nuclear. Mas Livvy fora amável para com ele e sentia que devia ser honesto para com ela.

 

- O meu filho... - começou, tentando desfazer o nó da garganta. - O meu filho morreu também. No mesmo acidente de automóvel. E a minha filha. Tinha dois anos.

 

- Oh! - exclamou Livvy, embora fosse mais uma exalação do que a formação de um verdadeiro som. - Lamento. Que horrível para si, Jackson. Lamento tanto.

 

Bateu com a mão no peito como se as palavras verdadeiramente sentidas de que precisava se tivessem alojado ali e não pudessem sair dela para o consolar. A verdade deixara-a emudecida.

 

Ele não conseguia olhá-la nos olhos. A simpatia era perigosa para ele. - A polícia disse que foi um acidente. O choque matou-os a todos instantaneamente.

 

- Lamento tanto, Jackson - disse Livvy. - Como pôde deixar-me continuar a falar sobre Howard?

 

- Realmente, neste momento prefiro ouvir falar sobre a vida de outra pessoa. - Tentou rir mas não conseguiu. - Quero dizer, já viajei mais do que o suficiente a pensar no que aconteceu...

 

- Que idade tinha o seu filho?

 

- Nathan tinha seis anos.

 

- Eram tão novos.

 

- A minha mulher, Nancy, pensou duas vezes antes de dar ao nosso filho o nome de Nathan - considerou ele, recordando a piada da forma que Nancy costumava contá-la. - Dizia que não queria que ele viesse a ser um minorca.

 

Livvy parecia confundida.

 

- Sabe, como os cachorros-quentes miniatura Nathan? - esclareceu ele.

 

Livvy tentou rir mas também não conseguiu. E com razão. Já não tinha graça.

 

Jackson encolheu os ombros. - Nancy conseguia achar graça a tudo. E sei que ela encontraria, de qualquer forma, algum humor no que aconteceu. Sabe Deus como, mas era assim. Era uma graça salutar - suspirou Jackson. - Que confluência de acontecimentos. A lei das probabilidades. O alinhamento dos vectores... Não sei que pensar.

 

- Quer dizer que tem o coração despedaçado? - interrogou Livvy.

 

- Sim - respondeu ele, acenando lentamente com a cabeça. - Sim.

 

Em todas as transformações de energia, parte da energia original é sempre transformada em energia calorífica não susceptível de novas transformações.

             SEGUNDA LEI DA TERMODINÂMICA

 

Sentiu-se aliviado quando deixaram o Dominick’s e saíram para o passeio à luz do Sol da Primavera. Sentia-se, certamente, mais leve. Ficou surpreendido por saber que, apenas com palavras, palavras banais, conseguia transferir parte do seu fardo para ela - um momento, o tempo suficiente para respirar.

 

Era alívio mas impregnado de culpa. Era o mesmo tipo de aceitação culposa que se instalara nele e revestira o seu estômago de penas quando o pai morrera após anos de doença cardíaca. A mãe, mulher de emoções contidas, sentiu uma dor profunda e prolongada pelo marido. Apesar de terem sido infelizes juntos, parecia ter saudades dele, tendo passado a viver num pequeno apartamento de cor pastel na Costa do Golfo da Florida. Jackson estivera com ela durante algum tempo, quando a sua viagem o levara para o Sul. Surpreendeu-se ao ver como a sua face envelhecera rapidamente e como as rugas vincavam a sua pele. O cabelo estava mais cinzento que castanho e tornara-se áspero. Atordoava-se com uma rotina simples - o cabeleireiro, o supermercado, uma aula de ginástica. Os minutos e as horas de cada semana moviam-se em espiral até à seguinte, onde a espiral começava de novo. Uma hora não programada podia atrair pensamentos não programados e o aperto da dor podia voltar e fazê-la sucumbir.

 

Formavam um belo par, Jackson e a mãe. Perdidos num eco de suspiros enquanto circulavam ruidosamente pela comunidade dela, chamada Paradise Cove. Jackson comprava comida chinesa e sentavam-se no sofá, espalhando a comida pela mesa de café e vendo episódios antigos do Columbo e do Kojak na TV Cabo. Noutras noites, ela cozinhava para os dois, como sempre fizera, preparando refeições desequilibradas - massa com alho cru, galinha temperada com demasiada pimenta ou um bife, quando ele deixara de comer carne de vaca anos antes do primeiro ataque de coração do pai. Apegavam-se a assuntos ligeiros como se caminhassem evitando pedras à superfície da conversa.

 

A partir do seu próprio poço escuro de emoção, temia por ela. Esta nova dor de perder os netos e a nora num rápido instante podia fazê-la sossobrar. Movia-se com uma fragilidade que não estava habituado a ver. Foi descobri-la, uma noite, no quarto da lavandaria, esperando que o programa acabasse. Estava encostada à máquina de costas para ele e, quando viu os ombros da mãe tremerem, pensou por um momento que era a máquina a agitar-se. Mas era ela quem estava a chorar. Queria aproximar-se ou dizer-lhe algo que a confortasse, mas não o fez. A sua dor era pessoal, e ele deixou-a só, não porque não a quisesse confortar mas porque teria que lhe contar o que fizera. Jackson teria de admitir que houvera algo mais na tragédia; que o seu filho, que ela nunca pensara ser capaz de errar, era em parte responsável. Estava imobilizado pela culpa.

 

Algumas famílias vivem como se participassem numa ópera italiana, espalhando os seus problemas em todas as direcções. Os Tate, porém, procuravam distanciar-se do impacte dos problemas da vida. Os pais nunca falavam do problema cardíaco de David Tate e, quando este fora hospitalizado pela última vez, Jackson sabia que ele não voltaria para casa. Mas a mãe nunca reconheceu esse facto. Mesmo no funeral, após trinta anos de casamento, revelou uma capacidade sobre-humana para se dominar. Pura e simplesmente, nunca derramou uma lágrima em frente de alguém.

 

Haveria quem pensasse que não sofria o suficiente, mas isso não era verdade. As emoções fortes sempre os tinham comprometido, quer se tratasse de uma cena dramática nos filmes quer dos noticiários da TV focando os traumas das pessoas. A emoção era uma linguagem estranha que sempre se tinham recusado a aprender.

 

Jackson recordou-se de que, quando tinha sete anos e passeava com o pai em Manhattan, depararam com uma mulher que acabara de saltar da janela de um andar elevado. O corpo estava atravessado obliquamente no passeio, de lado, com o sangue a escorrer da cabeça e um olho aberto com uma expressão que Jackson podia apenas descrever como de surpresa. O pai arfara mas não fizera qualquer tentativa para tapar os olhos do seu rapaz perante aquele horror inesperado. Devia ter acabado de cair e, de facto, Jackson recordava-se de ter ouvido uma pancada surda antes de dobrarem a esquina.

 

- Oh, meu Deus! Oh, meu Deus! - gritou um porteiro enquanto saía a correr do edifício com os seus pés chatos. Parou à beira da crescente poça de sangue e olhou para Jackson e seu pai. - Oh, meu Deus! - repetiu.

 

Juntou-se uma multidão, o trânsito parou e os taxistas debruçaram-se das janelas dos táxis. Fora chamada uma ambulância e, passado algum tempo, ouviram-se as sirenes. O pai de Jackson permaneceu imóvel, como se estivesse dominado por uma estranha inércia. O suor acumulou-se na pele por cima do lábio. A mulher, depois de composta, foi levada para a ambulância. Um agente da polícia cuja barriga passava por cima do cinto tomou nota da declaração do porteiro. Quando, finalmente, um funcionário da limpeza ligou uma mangueira para lavar o sangue e os miolos do passeio, Jackson puxou o braço do pai. Não houve qualquer reacção e ele puxou de novo.

 

- Que é? - perguntou o pai com brusquidão. Olhou indignado para Jackson, com um olhar que quase o fez murchar por completo como um dente-de-leão esmagado. O espectáculo tinha acabado e a multidão dispersara, mas David Tate continuava de pé, rígido. Resfolegou e comprimiu os lábios com tanta força que deixaram de se ver. Um momento de medo, tristeza ou horror era o suficiente para fechar as sinapses dos Tate. A extremidade da vida apanhava-os desprevenidos e colocava-os, de olhos arregalados, num isolamento incoerente. Esta sensibilidade ao brilho do projector emocional era talvez aquilo que unia os Tate, até Jackson conhecer Nancy.

 

- Não sei se sentem as coisas mais intensamente que qualquer outra pessoa ou se não sentem nada - recordou que ela dissera enquanto se afastavam do hospital onde o pai estava a morrer.

- Mas se fossem os meus pais que estivessem ali, a despedir-se, não os conseguirias separar por nada deste mundo.

 

- Apenas não sabem expressar os seus sentimentos - disse Jackson, procurando qualquer explicação possível.

 

- Mas como te tornaste como és? - inquiriu Nancy. - Estás sempre a dizer que me amas.

 

- Talvez seja um gene modificado - respondeu ele. - Sou o primeiro Tate a descontrair-se. - Riu, surdamente. - Só que eu compreendo o mundo deles e posso viajar para lá e para cá.

 

- Bem, não suportaria que qualquer de nós estivesse envolvido menos que cem por cento.

 

Nancy aproximou-se dele no carro. Estavam casados há menos de um ano e tinham viajado através do país durante as férias de Inverno da Universidade para estarem com a mãe dele após o coração do pai ter falhado.

 

Nancy tentara, repetidamente, deslindar a apertada espiral emocional dos Tate mas nunca o conseguira. Após a morte de David Tate, a mãe de Jackson vivia ainda como se o marido fosse voltar para casa no comboio das 5h52, deixando queimar grandes refeições de carne assada com batatas para o jantar. Mas a dor que ela abafara escapava-se de formas insidiosas. Começou a cair, tropeçando no caminho e magoando os joelhos, ou escorregando nos degraus de granito dos Correios. Feria-se, magoava-se, fazia entorses e, finalmente, partiu um pulso correndo atrás de um carro de compras fugitivo no estacionamento do supermercado. Foi então que a convenceram de que precisava de começar uma nova vida. Escolheu a Florida porque gostava do tempo quente.

 

Jackson não conseguia chorar a sua Nancy e Nathan e Franny numa depressão tão discreta. Essa sua faceta que Nancy reconhecera e pela qual o amara não lho permitia. A fúria motivada pelas suas mortes criava um fogo de raiva no seu íntimo. Tentou viver segundo os ritmos da mãe enquanto estava com ela, mas sentia-se como se estivesse a ser abafado. Finalmente, tivera de ficar de novo sozinho.

 

- Por vezes, não sei pura e simplesmente como saíste de lá vivo - dissera-lhe Nancy uma vez quando deixavam a sua mãe após uma visita. - É como viver no vácuo do espaço.

 

Jackson não discutiu. Dada a sua educação, era natural que ele gravitasse para a segurança de um mundo de planos inclinados e forças de van der Waals previsíveis. Se não fosse Nancy, nunca teria conhecido outra maneira de viver. Sabia que ela o tinha feito compreender o que significa agarrar alguém e ser agarrado. O amor fluía entre eles como um líquido e mantinha-os aos dois patinando nele como insectos num pequeno lago.

 

Nancy dissera-lhe uma vez:

 

- Toda a gente tem de procurar algo em que sinta conforto.

 

E Jackson replicara:

 

- Então, tenho-te a ti.

 

Mas agora ela partira.

 

Em frente do restaurante, entraram para a Quark e Livvy começou a dar-lhe indicações até ao armazém de materiais de construção na Estrada nº 1. Avançavam lentamente através da cidade calma, que Livvy lhe dissera ficar tão engarrafada no Verão que preferia andar de bicicleta. Na ponte móvel, perto da barraca das castanholas fritas, a Quark fez algo que já fizera mil vezes antes: começou a crepitar. Jackson acelerou um pouco para impedir o motor de parar e, de repente, deu-se um estralejar que soava como líquido inflamável sobre carvões incandescentes num grelhador. Saiu fumo negro, em ondas, do capot e uma chama alaranjada lambeu o pára-brisas. Jackson olhou atordoado por um momento até Livvy o despertar.

 

- Saia - gritou ela acima do rugido constante das chamas. Saltou do lugar do passageiro e recuou para o passeio.

 

Jackson ignorou o pânico dela e correu pelo interior da Quark. Partiu bruscamente o cordão elástico que atravessava a prateleira inferior onde tinha os álbuns de fotografias. Juntou os três grossos álbuns nos braços e levou-os para a segurança, abrindo o trinco da porta lateral. As chamas e o fumo envolveram o tejadilho da Quark. Colocou os álbuns no passeio e voltou-se para recolher outros artigos de primeira necessidade.

 

- Jackson! - gritou Livvy. Agarrou-lhe o braço.

 

- Só mais algumas coisas - disse ele, erguendo um braço em frente da cara para se proteger do calor intenso.

 

Ela não lhe largou o braço. - Espere, por favor! Já tem o mais importante.

 

As suas mãos rodearam-no com força para o segurar.

 

- Eu sei, eu sei - anuiu ele, mas as palavras prenderam-se-lhe na garganta enquanto via a Quark envolta em chamas.

 

Os bombeiros voluntários de Rockpoint regaram o veículo com espuma grossa para retardar as chamas. Não queriam correr o risco de espalhar as chamas oleosas usando água. Globos de espuma, como natas batidas, caíam através da grade de aço da ponte móvel para as águas do porto em baixo. Um pneu da frente rebentou e esvaziou-se devido ao calor. Jackson segurava os álbuns contra o peito e olhava em silêncio. Livvy, que tinha o braço enfiado no seu, encostou-se a ele. Jackson apoiou-se na suavidade do seu ombro e acalmou a adrenalina que lhe percorria o corpo, acelerando-lhe o coração. Um paramédico voluntário, que Jackson reconheceu como o empregado do restaurante, perguntou se estavam todos bem.

 

- Parece que tem aí algumas pequenas queimaduras - observou o paramédico.

 

Jackson olhou para as costas das mãos. Havia manchas de fuligem e algumas marcas vermelhas que lhe doíam. O paramédico conduziu-o às traseiras da ambulância e Jackson sentou-se num degrau baixo na porta de trás enquanto as queimaduras eram limpas e enfaixadas com um penso esterilizado. Não eram nada de extraordinário, mas deixou o paramédico praticar.

 

As chamas foram finalmente extintas e os bombeiros começaram a enrolar de novo as mangueiras nos carros. O chefe veio entrevistar Jackson acerca do fogo.

 

- Não há nada a dizer, na verdade - informou, com a voz tensa devido ao choque. - Aconteceu sem mais nem menos. Chame-lhe combustão espontânea.

 

O chefe dos bombeiros falou pelo rádio para a estação de serviço do outro lado da rua, pedindo um reboque. - Temos de abrir esta via ao tráfego - avisou. O capacete descaíra-lhe para os olhos e a gola do pesado casaco estava levantada.

 

- Não há nada como assistir à termodinâmica em acção - disse Jackson a Livvy, abanando a cabeça. O condutor do reboque parou e colocou algumas alavancas para levantar a Quark até à plataforma. O condutor entrou na cabina para a curta viagem de regresso à estação de serviço. Jackson e Livvy andaram meio quarteirão em silêncio. A humilhação doía-lhe mais do que as queimaduras na mão. A sua vida encontrava-se já em queda livre e pensava que fazia algum sentido deturpado que tudo o que com ele entrasse em contacto acompanhasse o seu colapso.

 

Na estação de serviço, a Quark foi colocada nas traseiras da garagem. Jackson começou a saltar através dos destroços ainda quentes para recolher os seus bens. Empilhou alguns livros chamuscados e agarrou nos seus apetrechos artísticos. Procurando, debaixo do banco da frente queimado, a caixa de ferramentas, queimou novamente a mão no metal quente. O fumo do plástico derretido flutuava e o trapo cortado de um velho pijama de flanela do filho ficara enegrecido.

 

O chefe dos bombeiros deu-lhes boleia para a estalagem. Sammy era um homem entroncado, de face vulgar e inexpressiva, que só se animava quando ria com um riso rouco de fumador. Para Jackson, assemelhava-se a um volumoso Buster Keaton. Iam os três na sua carrinha de caixa aberta, pela Beach Road, com Jackson equilibrando os restos dos seus bens no colo.

 

No interior da estalagem, Jackson seguiu Livvy até ao bar, onde esta serviu dois copos de vinho.

 

- Acho que ambos precisamos agora de uma bebida - disse ela, estendendo-lhe um copo.

 

- Não sei o que aconteceu - comentou ele. - O tubo do combustível pode ter-se deteriorado. Sei que devia tê-lo substituído. Viajei na Quark trinta e dois mil quilómetros e já não estava bem.

 

- Bem, fosse o que fosse, calculo que era em Rockpoint que a Quark queria entregar a alma ao Criador - concluiu ela.

 

- Nem posso acreditar que o calor e as chamas destruíram tudo tão rapidamente. Se os bombeiros não tivessem sido tão rápidos, podia ter sido pior.

 

- Terei de me lembrar de aumentar o donativo do Natal este ano - disse Livvy, secamente.

 

- Não gostaria de ter mais do que a minha mão enfaixada por um empregado de restaurante - acrescentou Jackson.

 

- Esse é o encanto de uma brigada só de voluntários. A pessoa que nos penteia de manhã é a mesma que trabalha no Garras da Vida para nos tirar do carro.

 

Jackson bebeu uma grande golada de vinho. Por momentos, enquanto aquelas chamas se erguiam em torno deles na Quark, tivera um vislumbre do que poderia ter sido para a Nancy e para os miúdos. O pânico quase o imobilizara. Se Livvy não estivesse lá para o arrancar ao entorpecimento, poderia ter ficado sentado no lugar do condutor da Quark. Poderia ter-se deixado consumir pelas chamas. Lembrou-se de como o painel de instrumentos começara a derreter e a deformar-se devido ao calor. O pára-brisas despedaçara-se formando um reticulado semelhante a um mapa de estradas transparente através do céu.

 

Sentira o calor nas pernas, encaracolando os finos pêlos escuros sob as calças de algodão. O fumo entrara-lhe no nariz e cobrira-lhe as roupas como se ele próprio estivesse ensopado em gasolina. Imaginou como as suas roupas podiam ter ardido e o cheiro de tudo isso elevando-se no ar. Ter-se-ia agarrado com força ao volante quando a dor o atingisse finalmente. A aliança de ouro na mão esquerda, que não tirara desde que Nancy lha colocara no dedo há sete anos, ter-se-ia derretido numa pequena poça da cor do Sol. Eram tão novos quando se casaram, parecia-lhe agora, e estavam tão embrenhados nos estudos que não puderam ter mais do que uma apressada lua-de-mel de um fim-de-semana. Para compensar, tinham tentado viver como se estivessem perpetuamente em lua-de-mel. Por vezes, se se mostravam particularmente ternos em público, alguns estranhos perguntavam-lhes se eram recém-casados. Isto acontecera muitas vezes depois de os seus dois filhos terem nascido. Eles eram, simplesmente, assim.

 

Que Deus o ajudasse, mas teria ficado naquele maldito veículo até que as chamas lhe fritassem a gordura até aos ossos. Tal como as fotografias de monges com trajos cor de açafrão que ele vira a imolarem-se na Ásia. Imaginou que teria deixado o fogo consumir cada centímetro inflamável da Quark, engolindo as suas estimadas fotografias e, finalmente, a ele. O banco de costas direitas, de vinil castanho, com a mola que lhe empurrava as costas, reteria as cinzas oleosas de Jackson. Tornar-se-ia a sua pira funerária e o fumo dos seus ossos a arder erguer-se-ia a direito no ar como uma bala, ganhando velocidade sobre vilas e cidades. Correria como uma névoa supersónica sobre as estradas secundárias pelas quais viajara. Rodopiaria através da sua casa no Illinois com as bicicletas no caminho de entrada e a horta nas traseiras. E, de alguma forma, esta essência atómica fumarenta de Jackson Tate seria impelida para o negro carregado do espaço para regressar à família que tanto amava.

 

O telefone tocou, abruptamente, fazendo-o abandonar os seus negros pensamentos. Livvy correu para o átrio para atender. Ouviu-a falar em voz baixa, mas a ansiedade da sua voz era evidente. Os seus olhos frágeis pareciam feridos quando regressou.

 

- Está tudo bem? - perguntou Jackson.

 

- Isto está a tornar-se um dia e pêras - suspirou, olhando para o relógio. - Volto daqui a pouco. Esteja à vontade.

 

Ele queria insistir numa resposta mais satisfatória sobre a sua preocupação, mas desistiu. Não tinha ânimo para desvendar esses mistérios. Estava ainda a tentar deslindar o seu. Mas já arquitectara um enquadramento flexível de possibilidades que pendia no espaço como aqueles modelos de moléculas que utilizavam no departamento de Química da Universidade. No centro de tudo, suspeitava ele, estava o marido de Livvy, Howard.

 

Mas não era da sua conta, recordou-se. Estava apenas de passagem pela cidade. Porém, o seu coração lamentava Livvy. Os telefonemas inesperados, a preocupação que lhe demonstravam na cidade - tudo conduzia a um local de dor. E ele não estava tão perdido na sua própria tristeza que não conseguisse ver a dela. Preocupava-o o facto de se afligir por sua causa e de conseguir ver que ela necessitava de algum tipo de conforto, tal como ele próprio.

 

Era uma preocupação que competia com os seus pensamentos sobre Nancy e os filhos. E desejava apenas poder afastá-la visto implicar que se interessava por Livvy quando pensara que nunca mais se interessaria por ninguém.

 

Através das cortinas de renda da janela, Jackson viu o carro dela partir. Acenou com um breve movimento da mão enfaixada.

 

Existem apenas duas possibilidades: ou acreditamos no determinismo e vemos o livre-arbítrio como uma ilusão subjectiva ou nos tornamos místicos e vemos a descoberta das leis naturais como um jogo intelectual sem sentido. As pessoas vulgares aceitaram sempre a dupla natureza do mundo.

                 MAX BORN (1882-1970)

 

Sozinho naquela tarde, Jackson sentia-se incomodado com os seus pensamentos e caminhou até à praia atravessando a rua para tentar desanuviar a cabeça. Aprendera a viver com a sua agitação, caminhando para afastá-la ou distraindo-se quando podia. Porém, nos piores momentos, em momentos como este, pensava que talvez nunca pudesse perdoar a Nancy. Talvez nunca lhe perdoasse por tê-lo ensinado a reconhecer os seus sentimentos mais profundos, deixando-o depois sozinho com eles. Precisara mais dela quando a perdera para sempre. Precisava dela agora.

 

És insignificante, disse para consigo. És pequeno. Pensou no Universo à sua volta, expandindo-se como um grande sopro. Imaginou o tempo, daqui a dezenas de biliões de anos, quando o Universo parasse de se expandir e começasse, lentamente, a encolher numa prolongada contracção. A flecha do tempo que nos impeliu para o futuro giraria e voltaria para trás, trazendo-nos de regresso ao passado. Seria um fim teórico para o desordenado desaparecimento entrópico do Universo. Com o tempo, meditou, a sua família poderia ficar de novo intacta, vivendo as suas vidas para trás morrendo antes de terem nascido, ficando mais novos em vez de irem envelhecendo. Imaginou voltar a viver a sua dor, com as lágrimas a rolarem pelas faces acima e regressando aos olhos. Mas, num desordenado sentido teórico, isso significaria que poderia voltar a ter a sua família.

 

Encontrou um tronco na praia, trazido pelo mar, e sentou-se, deixando que a areia caísse da ponta dos sapatos. Sobre a cabeça, ouvia o grito penetrante das gaivotas e o gemido do vento que lhe despenteava o cabelo. Havia sempre vento na praia, em todas as praias. Tinham chegado ao oceano com os miúdos para verem a cidade situada numa enseada da Baía de Chesapeake onde Nancy crescera. Sabia que ela tinha saudades do ritmo das marés. Talvez, pensava por vezes, fosse daí que ela retirava inspiração para a dança. Nas suas coreografias, os bailarinos pareciam mover-se como ondas através do palco. Cruzavam-se em ritmos ondulantes e deslizavam como charcos cheios pela maré.

 

Durante umas férias em família, tinham penetrado no Oeste, atravessando a grande extensão ventosa dos Dakotas até aos picos elevados do Montana. O vento soprava com força aqui também, roçando por um lago límpido que reproduzia o reflexo das Rochosas nevadas que cercavam as suas margens como uma coroa. Nadaram nas águas cristalinas de um lago, no Parque Nacional Glaciar. A água era tão límpida que Jackson conseguia ver a mulher mergulhar por baixo dele para retirar do fundo um punhado de seixos lisos. Enquanto nadavam, Nathan estava sentado na margem, empilhando pedras com os seus pequenos dedos. Franny ainda não era nascida, era apenas um nome que tinham planeado usar um dia. A água estava fria como neve derretida e o ar estivera tão abafado nesse dia que calcularam que até os ursos estavam demasiado preguiçosos para deixar a sombra das suas grutas.

 

A intensidade do vento aumentava e começaram a ouvi-lo no topo dos pinheiros. E, lentamente, desceu fazendo ondular a água do lago. Enquanto nadavam para a margem, o vento formava carneirinhos na água. As toalhas que se encontravam na margem rochosa agitavam-se como bandeiras no ar. Acima, no céu, as nuvens marchavam através do azul. Abrigaram-se no carro, pingando e tremendo. Ali, desembrulharam umas sanduíches e almoçaram enquanto o redemoinho de uma tempestade que se aproximava abanava o carro. Recordou ter sentido que eram uma família, um círculo completo, protegendo-se uns aos outros, unidos contra os elementos.

 

Para ele, os dois tinham construído algo de novo e maravilhoso. Instintivamente, sabia que ser uma família era mais do que partilhar o mesmo apelido, mas levara muito tempo a compreendê-lo. Precisava de deixar para trás uma grande parte de si próprio, contaminado pela radiação psíquica da sua família natal fracassada.

 

Os seus pais tinham-se contentado com o conforto da Nova Iorque suburbana. Para eles, tudo de que precisavam estava contido nalguns quilómetros quadrados da sua cidade, ligada a Manhattan pelos vasos capilares do caminho-de-ferro e da estrada. O pai utilizava o comboio e Jackson ficava em casa com a mãe. As suas vidas apenas se cruzavam à hora das refeições e seguiam uma rotina que quase nunca se alterava. Nas noites de domingo, quando a mãe estava farta de cozinhar, Jackson ia com o pai, de carro, comprar uma piza ao Mario’s. O restaurante estava revestido de estuque branco, tinha individuais de papel com o mapa de Itália nas mesas e luzes coloridas iluminavam um tanque com peixes cinzentos que pareciam barrigudos e preguiçosos. O pai e ele já tinham comido no Mario’s algumas vezes, abrindo lentamente uma crosta de queijo derretido que cobria um prato de lasanha ou parmigiana. Outras vezes, ao voltarem para casa no carro, Jackson segurava a caixa com a piza quente no colo, sentindo-a queimar-lhe as coxas. Quando não conseguia suportar mais o calor, erguia a caixa e segurava-a alguns centímetros acima das pernas. O cheiro a levedura, orégãos e manjericão enchia o carro. O vapor embaciava a janela. Uma vez, de regresso a casa de uma dessas saídas, com a piza quente no colo, Jackson fizera, inocentemente, uma pergunta ao pai:

 

- Pai, quanto ganhas?

 

O pai virara-se lentamente para ele, com os olhos ardentes como a piza no colo de Jackson. - O quê?

 

- Nada - respondeu Jackson, compreendendo que pisara o risco.

 

- O que eu ganho não te diz respeito - disse o pai, bruscamente. Riu-se, incrédulo, perante a situação. - Que razão podes ter para me fazeres esse tipo de pergunta?

 

- Esquece - disse ele. - Não pensei.

 

Os pais viviam as suas vidas com um secretismo rastejante que se tornava sufocante. Era evidente que David Tate ganhava um ordenado confortável numa empresa reputada, mas talvez fossem os anos em que tivera de se proteger num escritório competitivo que o tinham modificado. Havia um traço de paranóia, tão largo como o rio Hudson, que tornava alguns aspectos da sua vida não mencionáveis. Jackson nunca sabia quando um comentário ou pergunta inocente inspiraria o seu vitríolo. David Tate era bem conhecido pelos seus extremos, a amabilidade ou a fúria vulcânica. Ouviam-se as suas reclamações sobre as vedações dos vizinhos ou uma explosão de mau-humor para com um caixa de supermercado. Mas existia também o David Tate que se conseguia comportar com bondosa amabilidade e Jackson tinha saudades disso. Com o tempo, a mãe de Jackson assimilara totalmente a ansiedade do pai e talvez tivesse até contribuído com alguma da sua. Insistia em que os relatórios sobre as notas, as medidas de vestuário e o QI de Jackson eram segredos de família protegidos. Jackson descarregava a frustração nos estudos mas, mesmo quando trazia para casa «Excelentes» e pontuações máximas nos exames de entrada para a Universidade, sentia que não havia ninguém a quem contar.

 

Deu consigo timidamente num estágio durante o seu segundo ano de Universidade que lhe proporcionou uma saída de emergência. Através do Departamento de Ciências da sua Universidade, candidatou-se a um trabalho num grande laboratório de pesquisas da cidade. Não conhecia ainda o carácter intricado da Física, mas contentava-se em fazer tudo o que pudesse. Durante a semana, depois das aulas, viajava de comboio trinta minutos até à cidade e dirigia-se a um hospital de investigação. Jackson trabalhava com um radiologista que coordenava um projecto de pesquisa a longo prazo. O estágio garantia-lhe um subsídio para as despesas de deslocação, mas o trabalho era monótono, cheio de números e gráficos. Às seis horas, encontrava-se com o pai no seu escritório e caminhavam até ao Terminal Grand Central.

 

Numa noite em que nevava, David Tate telefonou para o laboratório para informar Jackson de que teria de trabalhar até tarde. Jackson já saíra e o seu chefe, o Dr. de Leon, atendeu o telefonema. O Dr. de Leon era argentino e tinha as feições suavemente atraentes de um astro de cinema. Devia ter falado bastante com o pai de Jackson porque, quando chegou ao escritório de David, este ainda estava entusiasmado com a conversa.

 

- Acabei de falar ao telefone com o teu chefe - disse-lhe o pai. Resplandecia enquanto se levantava da sua secretária cinzenta de aço. Uma estante, na parede, exibia os últimos relatórios da empresa e fotografias de Jackson e da sua mãe. Via-se uma ponta de charuto num pesado cinzeiro de vidro sobre a secretária. - O Dr. de Leon tem-te em grande consideração.

 

- Não sei porquê - replicou Jackson, modestamente. - Tudo o que faço é procurar dados e fazer gráficos.

 

- É mais do que isso - afirmou, fazendo sinal a Jackson para que se sentasse numa das cadeiras forradas de vinil azul. - Em primeiro lugar, ele diz que estás a fazer um trabalho óptimo. Em segundo lugar... e espero que saibas receber um elogio, acha que és um rapaz bastante inteligente. Claro que isso ter-lhe-ia dito eu - acrescentou o pai, com um largo sorriso.

 

- Ainda tenho muito que aprender.

 

- E ele diz que o fazes muito bem. Queria saber se planeavas prosseguir nas Ciências. Continuou a elogiar-te e claro que isso me agradou.

 

- Não sei.

 

Jackson não estava certo do ramo das Ciências em que se especializaria. Tudo o que sabia era que as belas palavras do pai o irritavam.

 

- No próximo ano, devias pedir-lhe uma recomendação para a Universidade - sugeriu David Tate. - Umas palavrinhas de um homem importante como ele devem ter algum peso.

 

- Claro, pai - assentiu.

 

O pai estava tão feliz com este momento de elogio inesperado como se as palavras tivessem vindo do seu próprio chefe. Isto fez com que Jackson se sentisse bem, embora por uma razão diferente, não devido às coisas que de Leon dissera a seu respeito, mas pela forma como o pai lhe estava a falar.

 

- Isso é bom - afirmou David Tate. - Sempre te disse que tens de te defender e dar o máximo que puderes. Continua a fazer exactamente o que tens vindo a fazer e tudo correrá bem.

 

Jackson telefonou à mãe para lhe dizer que jantariam na cidade. Depois, pondo de lado o trabalho, David Tate levou o filho a comer um bife num restaurante com ar de clube, revestido de madeira escura, com toalhas de mesa de linho encarnado. Sentaram-se em banquetas de couro numa mesa a um canto. Os bifes eram tão grandes como os pratos e vinham acompanhados de batatas do tamanho de softballs. Era uma comemoração, já que a nova opinião do pai sobre ele abria a porta à autonomia de Jackson. Finalmente, podia começar a afastar-se.

 

Jackson estava na costa do Maine. Sacudiu a areia das calças de algodão e trepou de regresso à estalagem. O pôr do Sol lançava uma luminosidade cor de laranja rósea através do céu. Retirou o adesivo e a gaze que o paramédico lhe enrolara em torno da mão e viu que a ferida não era pior que uma queimadura solar. Fez uma bola com o penso e meteu-a no bolso.

 

A Quark dera a Jackson a liberdade e agora estava destruída. Ele estava preso. Mas, de qualquer forma, Jackson não encontrara qualquer conforto nas suas viagens. Tentara seguir as instruções do pai. Olhara por si próprio. Mas mesmo ele conseguia reconhecer que os restaurantes de fast food por onde passara e as paragens para descanso onde dormitara não eram lugares para alguém atolado na dor.

 

Na estalagem de Livvy, investigou a cozinha apertada. Era do tamanho de uma cozinha de avião, mas dispunha de todos os utensílios necessários. Tinha um pequeno fogão, de tipo industrial, e uma prateleira que continha um trem de cozinha. Livvy estava ainda ausente e ele olhou em torno, cuidadosamente, como se ela pudesse regressar a qualquer momento. O frigorífico, de dimensões reduzidas, estava recheado de géneros suficientes para preparar um pequeno banquete. Fez um rápido inventário dos artigos de mercearia que ela comprara naquela manhã e deixou a imaginação trabalhar. Passara muito tempo desde que cozinhara qualquer coisa que exigisse algo mais do que uma taça e um abre-latas. Mas ele e Nancy adoravam cozinhar juntos. Revitalizava-os da exaustão dos dias de trabalho cozinhar uma refeição juntos. Por vezes, ela fazia de ajudante de cozinheiro e, frequentemente, invertiam os papéis, passando Jackson a preparar os ingredientes para as criações dela. Talvez uma volta por uma cozinha bem abastecida fosse o alimento por que a sua alma ansiava.

 

Havia uma galinha no frigorífico e lavou-a no lava-louças de porcelana. Desmembrou-a com perícia e colocou uma frigideira de saltear no fogão Viking, ajustando a chama para aquecer os lados. Fritou os pedaços de galinha, reduziu o calor e tapou a frigideira. Enquanto a galinha cozia, foi ao bar e seleccionou um vinho branco da Califórnia para o jantar, colocando-o em gelo. Na cozinha, retirou um saco de camarão do frigorífico e um pote de barro com azeitonas pretas gregas. Na despensa encontrou os restantes ingredientes de que precisava. Quando a galinha ficou pronta, retirou os pedaços da frigideira e começou a fazer o molho com cebola, vinho, suco da galinha, ervas aromáticas e pasta de tomate. Em frente do fogão, mexeu o molho que fizera para a galinha e inalou o aroma estonteante do vinho e das ervas. Recuperara a mão para a química de combinar ingredientes. Quase esquecera o prazer suave de picar cebola e ervas mas voltou-lhe facilmente. Os aromas quentes da cozinha despertaram as suas memórias. Tivera muitas saudades disto.

 

Cozinhara para Nancy pouco depois de a conhecer. Aprendera por si próprio a cozer pão, experimentando leveduras e massas e amassando pães compactos de centeio e trigo. A cozinha era simples, apenas um cubículo num pequeno apartamento de estudante pós-graduado perto da Universidade, mas a sua técnica compensava o que lhe faltava em equipamento. Abordava aquilo como um cientista. Quando os pães saíam demasiado compactos, duplicava o tempo de fermentação e vigiava a temperatura do forno com um termómetro resistente que trouxera do laboratório. Pensava realmente naquilo como uma experiência, mas uma experiência calmante e, a certa altura, sentira também o mesmo acerca de Nancy.

 

Durante um mês, tinham-se seguido um ao outro, mas timidamente. Tinham feito longas caminhadas e passeios de bicicleta por estradas rurais ladeadas de searas. Tinham assistido a concertos no parque e almoçado no relvado perto da biblioteca. Mas não houvera qualquer contacto físico. Era estranha para ele uma relação que se baseava no que tinham a dizer e não na sensação da sua pele ou no sabor da sua boca. Assim, quando Jackson decidiu cozinhar uma refeição para Nancy, não sabia o que se iria passar, sabia apenas que se dirigia para um tipo de amor que nunca conhecera antes, nem nunca esperara sequer que pudesse existir. Convidou-a para jantar porque já tinham visto todos os filmes num raio de trinta e cinco quilómetros e não queria passar uma noite de sexta-feira sem a ver e porque já sabia que ela ia significar algo para ele, ia ser algo para ele.

 

Supôs que Nancy devia ser vegetariana - não o eram todos os bailarinos? Mas não tinha a certeza e sentia-se demasiado embaraçado para perguntar, visto que já devia ter reparado antes, mas tinham sempre comido piza ou partilhado queijo fundido ao fim da noite, depois do cinema. Assim, jogou pelo seguro. Fez uma massa de pão de trigo integral com mel e deixou-a levedar enquanto dava uma aula de duas horas, no laboratório, a uma classe de estudantes universitários de Física. Dividiu a massa e estendeu-a. Em cada rodela, colocou tomate, pimento, cebola, brócolos e alho que refogara salteando-o em azeite e dando-lhe um último retoque com umas gotas de vinho. Ralou queijo parmesão e mozzarella fresco por cima, dobrou a massa pelo meio e apertou as pontas para a fechar. Depois colocou a calzone no forno.

 

Nancy chegara no momento em que derretia o chocolate para a sobremesa que ia preparar para ela. Caminhara alguns quarteirões desde a Universidade e ele conseguia sentir o cheiro do vento outonal no seu cabelo e vê-lo no brilho das suas faces.

 

- Chocolate! - exclamou ela, fungando e captando o aroma apesar do cheiro da cebola e da massa de pão da calzone que estava a cozer. - Como sabias que eu gostava?

 

Ele não sabia. Ela trouxera uma garrafa de vinho tinto vulgar da Argélia ou de outro local mais conhecido pela sua polícia secreta do que pelos seus vinhedos e riram-se acerca disso enquanto o serviam com o jantar. E, embora ela aplaudisse a refeição, em especial a cobertura, continuava a perguntar, ansiosamente, pela sobremesa. O aroma do chocolate espalhara-se por toda a parte, tentadoramente. Quando retirou os pequenos bolos das formas untadas com manteiga, ela abraçou-o repentinamente, animando-o com a sua própria expectativa. O chocolate era uma paixão para Nancy. Polvilhou com açúcar as duas sobremesas do tamanho de chávenas e levou uma colher cheia à boca dela. - É como comer uma nuvem de chocolate - elogiou ela. - Como se chamam estes bolos?

 

- Bolos de mousse de chocolate e framboesa - respondeu.

 

- És delicioso - acrescentou ela, suspirando de contentamento.

 

- O prazer é meu - disse ele. E fora. Havia um pouco de chocolate no canto da boca dela. Jackson inclinou-se e, antes de perder a coragem, beijou-a ali. Ela voltou a cabeça, surpreendida, e beijou-o também. Beijaram-se de novo.

 

Mais tarde, quando já estavam casados, Nancy brincava dizendo-lhe que fora naquele momento que as coisas tinham mudado. Estava nervosa, com receio de se comprometer mas, quando ele cozinhara para ela, tudo mudara. Tinha de casar com Jackson, dissera mais tarde aos filhos, porque ele não lhe dava a receita de que tanto gostava. Parte dos votos de casamento secretos que tinham feito na lua-de-mel assegurava que partilhariam aquela sobremesa em todos os aniversários. E não tinham falhado um único. Ele fazia sempre os bolos de mousse de chocolate e framboesa, ela dizia sempre:

 

- Oh, que bom! Cá estão as nuvens de chocolate.

 

Livvy entrou pela porta da cozinha quando ele estava a descascar o camarão. Os seus olhos pareciam desanimados e vencidos. Os lábios tinham uma expressão solene. Logo que viu o que Jackson estava a fazer, a vivacidade voltou ao seu rosto.

 

- Oh, não é possível! - exclamou.

 

- É o mínimo que posso fazer depois de quase termos ido pelos ares - disse Jackson. - Além disso, não vi qualquer aviso proibindo os hóspedes de se servirem da cozinha.

 

- Pode usar a cozinha sempre que quiser se a deixar com um cheiro tão bom - disse Livvy. - O que está a cozinhar? Estou a morrer de fome.

 

- O cozinheiro de Napoleão chamou-lhe galinha à Marengo. Eu chamo-lhe uma das poucas receitas que sei de cor.

 

- Galinha à Marengo - estranhou ela. - Estou espantada.

 

- Tenciono pagar o que usei, claro.

 

- Não seja ridículo - objectou ela.

 

Jackson salteou o camarão e colocou-o de lado. - Estou a chegar ao fim.

 

- Posso ajudar em alguma coisa?

 

- Pode preparar-se apenas para comer.

 

Jackson cortou algumas fatias de pão francês estaladiço e fritou-as no resto do óleo que utilizara para cozinhar o camarão. Em água a ferver, escalfou quatro ovos. Deitou os pedaços de galinha na frigideira de saltear, para os aquecer, com o molho de tomate e cebola, e dispôs tudo num prato. Rodeou a galinha com os quatro camarões grandes colocados a intervalos iguais, depois entre os camarões posicionou fatias tostadas de pão francês e, finalmente, depôs um ovo escalfado em cada pedaço de pão tostado. Parecia um sistema solar num prato, com os ovos e os camarões na órbita de uma galinha da cor do Sol.

 

- Voilà! Galinha à Marengo - apresentou Jackson. Levou o prato para a sala de jantar, onde Livvy pusera a mesa com uma toalha e duas velas. Os talheres de prata cintilavam. Ele serviu os dois e sentou-se.

 

- Como correu o seu dia? - perguntou ele, tentando disfarçar a sua melancolia. - Sem contar com a morte inflamada da minha carrinha, claro.

 

- Devo dizer que este é o ponto alto - riu-se Livvy, começando a comer. - Está óptimo. Cozinha assim na estrada?

 

Ele abanou a cabeça e riu-se. - Na verdade, não cozinho há muito tempo - esclareceu. - Tenho preparado muitas refeições na estrada mas nada a que pudesse chamar-se cozinhar.

 

- A comida é o meu maior consolo - disse ela.

 

Jackson assentiu com a cabeça e levantou o copo em concordância.

 

- Há algo de tão reconfortante numa refeição maravilhosamente cozinhada - disse, pousando o garfo. - Obrigada, Jackson. É a coisa mais amável que alguém fez por mim, desde há muito tempo.

 

- Obrigado - agradeceu ele. - Pela companhia. E pela cozinha bem equipada.

 

- Sempre às ordens - retorquiu Livvy. - Há poucos prazeres na vida superiores ao de cozinharem para nós.

 

- Concordo - anuiu. Cozinhara para ele próprio mas estava contente por ter estimulado também o estado de espírito de Livvy.

 

- Howard iniciou-me na gastronomia - informou ela. Sempre que viajávamos, adorava centrar um dia em torno de uma refeição. Visitaríamos a catedral de Chartres e voltaríamos a Paris a correr para a inauguração de qualquer lugar maravilhoso classificado com uma constelação de estrelas Michelin.

 

Deu um longo suspiro. Havia amargura nele.

 

Mas Jackson compreendeu que não devia fazer perguntas.

 

Comeram, em silêncio, durante algum tempo. Ela bebeu um gole de vinho e sorriu-lhe, fitando-o tão profundamente nos olhos que os sentiu doer. De certo modo, sentiu-se envergonhado. Cozinhara esta noite para se sentir mais próximo de Nancy e acalmar-se mas, de repente, ficou preocupado com o facto de Livvy ter compreendido mal, de poder magoá-la ainda mais do que já estava. Desejava aconselhá-la a afastar-se, fazer-lhe ver que ela interferira numa corrente no seu interior que estava viva com a sua família perdida. Ela era um mero agente catalítico. - Livvy - disse Jackson, lentamente -, hoje, a pior coisa não foi o fogo da carrinha.

 

- Então, o que foi? - indagou ela. Os seus olhos eram ternos, sem defesa.

 

- Tenho tentado escapar - começou Jackson, apanhado de surpresa pela profundidade da sua emoção. - Mas já não posso mais. Não falei deles com ninguém desde que aquilo aconteceu. Até o fazer consigo, hoje.

 

Ela olhou para a mesa e abanou a cabeça muito ligeiramente.

 

- De alguma forma - prosseguiu ele -, sinto que vivem em mim novamente. Porque é a primeira pessoa que deixei entrar nos mesmos lugares. Não a quero embaraçar, mas a sua bondade... Há muito tempo que não os sinto tanto. E não sei se o que sinto, recordar, é uma bênção ou uma maldição...

 

Após um longo momento, os olhos dela prenderam-se nos seus, de novo. Havia neles uma resolução, uma inflexibilidade. - É uma bênção - disse, enfaticamente. - O meu marido não consegue recordar nada dos anos que passámos juntos. Não consegue recordar o meu nome ou como se chama a cor dos meus olhos.

 

Foi nesse momento que Jackson colocou a mão sobre a dela. Ou ela moveu-a na sua direcção, não tinha a certeza. Foi um reflexo. Duas pessoas quase estranhas, com os seus futuros dominados pela dúvida e os seus passados cheios de dor, tinham procurado o conforto uma da outra. Enquanto estavam ali sentados, sem palavras, uma das velas chegou ao fim até que uma gota de cera desceu pelo candelabro de cristal. A chama tremeluziu loucamente, por fim deslizou até à cera derretida na base do candelabro e apagou-se, crepitando. Livvy apertou a mão de Jackson e este entrelaçou os dedos nos dela. À luz da restante vela, ele conseguia ver a forma como o verde dos seus olhos brilhava como se estivesse prestes a chorar. - Esmeralda - pensou ele. - Esmeralda é a cor dos seus olhos.

 

A aceleração que um objecto adquire pelo facto de sobre ele aplicarem uma força é directamente proporcional à força aplicada e inversamente proporcional à massa do objecto, verificando-se a aceleração na direcção da força aplicada.

                 SEGUNDA LEI DO MOVIMENTO DE NEWTON

 

Do alto do telhado, Jackson conseguia ver desde uma extremidade da Beach Road até à outra. Conseguia mesmo distinguir a estrutura de aço atarracada da ponte móvel da cidade, pintada de um branco suave da época colonial. No mar, via-se uma embarcação que não era mais do que uma elevação escura no horizonte, talvez o casco baixo de um petroleiro. Um veleiro contornou o cabo com as velas principais bolinando com o vento variável. Livvy mostrara-se reservada naquela manhã, com uma atitude profissional, tendo saído à pressa para tratar de assuntos, quase sem dirigir palavra a Jackson, e depois haveria quartos para preparar para a reabertura no Memorial Day. Estava atarefada.

 

Ao acordar, Jackson desejara que as coisas não se tornassem incómodas entre eles depois daquele momento à luz das velas na noite anterior. Desejara que aquele entrelaçar das mãos e partilhar de histórias não tivessem criado expectativas. Fora uma intimidade tão espontânea, tão súbita. Deitado na cama na manhã seguinte, lamentou o sucedido.

 

Aquele sentimento foi rapidamente extinto pelo ar reservado de Livvy, pelo seu desaparecimento logo a seguir ao pequeno-almoço. Na verdade, não queria que ela esperasse nada dele. Mas ele já começara a esperar algo dela: aquela companhia agradável do dia anterior, o calor da sua presença, o alívio de encontrar alguém que o ouvisse. Não queria desistir de tudo isso. Não depois de tanto tempo sem o ter.

 

Era egoísta, reconheceu-o. Mas também há muito tempo que não satisfazia os seus desejos. Muito tempo desde que algo ou alguém o tivesse sequer tentado a satisfazê-los. O que existia em Livvy que o fizera querer estar junto dela quando passara tantos meses fugindo de outras pessoas?

 

Pelo menos, havia trabalho a que deitar a mão. Talvez a sua mente seguisse o exemplo. Estava em cima de uma escada extensível que arrastara da garagem e examinava as placas de ardósia danificadas no telhado. A ardósia cinzenta podia aguentar décadas sólida e estanque mas, em certas condições, era tão frágil como o vidro. Um ramo de um velho ácer retorcido caíra no telhado durante uma tempestade e embatera com força na ardósia em meia dúzia de pontos. Aquela ficara suficientemente frágil para lascar e rachar. Mas Jackson sabia que podia consertá-la. Estava habituado a reparar casas.

 

No Verão, após o seu último ano no liceu antes de ingressar na Universidade, Jackson trabalhara durante dois meses com a equipa de um construtor local. O trabalho era bem pago e ele precisava de dinheiro para os estudos. Queria trabalhar mas não num estágio num laboratório, trabalho que conseguiria obter com facilidade, mas onde o salário simbólico que lhe pagariam dificilmente lhe cobriria as despesas. Além disso, preferia trabalhar ao ar livre, que não era filtrado para descobrir partículas nem purificado através de carvão activado. Acima de tudo, queria ganhar uma quantia substancial antes de partir para a Universidade.

 

Naquele Verão, habituou-se a suar através da roupa e a emborcar latas de cerveja barata para se refrescar ao fim do dia. O trabalho era mais duro do que qualquer outro que tivesse feito até ali, mas fora a primeira hipótese que Jackson tivera de ganhar o salário de um trabalhador. Após o primeiro dia a manejar o martelo, mal conseguia mexer os braços. Após a primeira semana, notou que os bíceps e os ombros se tinham desenvolvido tanto que as T-shirts lhe ficavam mais justas. Era o que desejava fazer, sabendo que entraria no mundo académico no Outono. O pai opusera-se, claro, a este trabalho manual de Jackson.

 

- A ciência é a aprendizagem de como as coisas funcionam dissera-lhe Jackson, enquanto devorava um monte de filhós numa manhã de domingo no Neptuno, um restaurante grego com uma ementa de seis páginas onde agora costumavam ir juntos. De dia ou de noite podia encomendar-se qualquer coisa, desde ovos a lagosta à Newburg. Fora construído onde em tempos se erguera o bar amarelo de bebidas gasosas do Joe’s.

 

- Então, aprende como as coisas funcionam onde possas obter alguma experiência relevante - disse o pai. - Posso ajudar-te com algum dinheiro quando estiveres na Universidade.

 

- Não é por isso - retrucou ele. - A única forma de conseguir aprender é fazendo-o eu próprio. No próximo Verão, poderei querer trabalhar com carros numa garagem. É a ciência aplicada.

 

- Meu Deus, Jackson! - exclamou o pai. Bateu na testa com as pontas dos dedos.

 

- Não estou a pensar fazer isto toda a vida - prometeu ao pai. - Só não quero ser uma daquelas pessoas que sabem apenas fazer uma coisa.

 

David Tate apertou os lábios e pegou na caneca de café. Franziu a testa. Jackson sabia que o génio do pai se agitava interiormente, fervendo como uma máquina a vapor. Sabia como podia tornar-se explosivo pois já vira reflexos desse mesmo génio em si próprio. Não disseram mais nada sobre o trabalho de construção.

 

Durante todo o Verão, Jackson equilibrara pesados feixes de ripas sobre os ombros e subira a escadas, martelara juntas ou suportara a monotonia de pintar casas. Jackson era o estudante universitário que recebia todo o trabalho sujo mas não se importava. Dava-lhe a perspectiva necessária para observar. Via como os electricistas colocavam os fios nas instalações e nas caixas de derivação. Ajudava o canalizador a colocar canos de cobre nas casas de banho e a soldar as pontas. Foi uma aprendizagem que absorveu.

 

O empreiteiro proprietário do equipamento era um brutamontes atarracado, de cabeça grande e cabelo castanho emaranhado. O bigode caía-lhe preguiçosamente sobre os lábios e mantinha a sua volumosa barriga cheia à base de Donuts de cidra, piza pronta-a-comer e cerveja Bud. Fora assentador de telhados durante anos e era essa a sua especialidade. Arruinara os joelhos, porém, rastejando a martelar pregos em ripas e a revestir contraplacado. Por causa disso, passara para o trabalho de reparação que podia fazer de pé, ainda que com dificuldade. Os seus joelhos estavam tão doentes que parecia não conseguir estar a pé firme senão por breves momentos. Inclinava-se e balançava, apoiando-se à parede para se equilibrar, depois exibia os longos traços cor-de-rosa das cicatrizes cirúrgicas semelhantes a parêntesis em torno das suas rótulas. Passado algum tempo, Jackson pensou se a falta de firmeza do patrão não provinha apenas de mergulhar no frigorífico recheado do seu camião sempre que a sede o atingia.

 

Jackson aprendeu muito naquele Verão, além de como salpicar uma conta. Foi essa experiência que lhe deu a confiança, alguns anos depois, para empreender a remodelação da sua quinta no Illinois e, enquanto subia a escada encostada à estalagem de Livvy Faraday, no Maine, os seus próprios músculos pareciam reter a memória do último trabalho daquele tipo que fizera, o trabalho que fizera na sua própria casa. A sensação do martelo duro na palma da mão, recordava-se, a planta dos pés nos degraus cilíndricos da escada e a tensão ao longo de toda a coluna. Recordava-se de trabalhar com Nancy.

 

Os dois tinham pintado as portas laterais de ripas de amarelo-pálido e realçado as janelas com azul-céu. Ele reparou e retocou o soalho de madeira maciça. De início, o telhado deixava entrar água como um chapéu de palha e ele trabalhara durante algumas semanas, suando, praguejando e pregando ripas novas sobre as velhas. Retirou um ninho de andorinhas da caleira e consertou a canalização defeituosa da casa de banho dos hóspedes antes de os pais de Nancy os irem visitar. Renovar a quinta foi um esforço que durou quase um ano e drenou a sua conta bancária até ficar tão seca como o velho poço por detrás do celeiro.

 

Enquanto Jackson fora capaz de fazer o trabalho, tinham conseguido poupar dinheiro, mesmo que por vezes parecesse que o gastavam mais depressa do que ele entrava. Chamar um construtor teria sido admitir a derrota. Jackson podia trabalhar no exterior durante todo o Verão enquanto no Inverno remendava, lixava e pintava no interior. Quando Nancy estava grávida de Nathan naquele segundo Verão, lamentou-se, sentindo-se culpada por não ser capaz de ajudar mais. Falava com a barriga à hora de dormir e dizia ao bebé que, logo que nascesse, devia estar pronto a trabalhar para ajudar o pai.

 

Agora, com a fresca brisa marítima a soprar-lhe por cima, Jackson estava de pé na escada encostada às altas caleiras da estalagem, ouvindo os sons do alto das árvores e recordando as horas que tinham investido na sua casa. Por que razão algumas coisas permaneciam tão claras nele, tão vívidas? Houvera um momento, um momento de Verão em que ele olhara para baixo e vira Nancy deitada numa manta no pátio, langorosa com o bebé dentro dela e o calor da pradaria a pairar no ar. A sombra da casa dividia-a. A face estava ao Sol, com o cabelo a brilhar. Dos ombros para baixo, porém, a sombra cobria-a como um cobertor. Ficara quieto e olhara para ela durante um longo minuto. Era uma visão tão estranha desde o ângulo elevado em que estava, a sua mulher tão pequena lá em baixo, dividida pela sombra e pela luz, tão vulnerável. Fora estranhamente comovedor.

 

A sua casa estava agora vazia, a casa dele e de Nancy, embora ele a pudesse sentir nas pontas dos dedos aqui no telhado de ardósia e a conseguisse sentir na dor da barriga da perna esquerda, que suportava o seu peso. E sabia que, durante o resto da sua vida, sempre que estivesse numa escada recordaria como ficara quieto, tão alto, sobre aquela terra de argila vermelha com o Sol nos olhos e um pincel na mão contraída, enquanto Nancy abria os olhos e os protegia com as mãos da luz ardente, chamando-o lá de baixo.

 

- Eh! Como vai isso aí? - perguntou Livvy.

 

A surpresa agitou-o. Não ouvira o carro na estrada nem os seus passos no caminho de pedra através do jardim. Num reflexo, apertou as mãos em torno dos degraus da escada para manter o equilíbrio. - Vai indo - respondeu ele.

 

- Vou precisar de um telhado novo?

 

Jackson deslizou pelos lados da escada como um miúdo. - Não, mas há alguns problemas.

 

Ela sorria-lhe com a franqueza da noite anterior restaurada na sua atitude. Os seus olhos não se afastaram dele como tinham feito naquela manhã. Tinha as mãos nas ancas. Uma pose, pensou ele, a atitude que ela pensava que as pessoas deviam ter quando vigiavam um trabalho a realizar. Era tão séria nas suas atitudes. - Deve ter sido aquela terrível tempestade de gelo em Janeiro - alvitrou ela. - Deitou abaixo o topo daquele ácer.

 

- Deve ter sido isso.

 

- O George trouxe a sua serra articulada e cortou-o para lenha. Quase partiu também a perna durante esse trabalho.

 

Jackson encostou-se à casa, surpreendido com o calor que fizera lá em cima, com os seus olhos ofuscados e sentindo-se tonto. O Sol estava agora alto no céu, subindo para o solstício quente e afastando-se do escuro. Inclinou-se para a sombra das caleiras, descansando a mão no parapeito de uma janela. A tinta estava estalada. Passou as pontas dos dedos sobre ela. - Este adorno não se oporia a uma nova camada de tinta - opinou Jackson.

 

- O George ia fazer isso antes de ter de ficar em repouso - disse ela, encolhendo os ombros enquanto os olhos mediam a altura da estalagem. Estava de pé a alguns passos dele, mesmo fora da sombra da casa. Usava uma blusa branca que lhe descobria os braços.

 

Era de pequena estatura, pensou Jackson. O que quer que suportasse devido ao estado do marido era um acto de força emocional, não física. Era frágil como as mulheres dos quadros antigos. Os ossos não chamavam a atenção, nem apresentava músculos de tipo atlético. O corpo não tinha as características do de Nancy, aqueles braços flexíveis e fortes e as pernas rijas. Em Livvy era a pele o que atraía, a sua cor rosada, macieza e frescura. A beleza de Livvy era quase antiga. Havia algo de antiquado na forma como movimentava o corpo, tão suavemente. Todos os seus gestos eram graciosos e calmos sendo, no entanto, premeditados. No conjunto, a aparência exterior reflectia quem vivia no interior.

 

Quem vivia no interior?

 

Livvy apanhou-o a fitá-la.

 

Ele desviou o olhar.

 

- Deve estar com sede.

 

Jackson assentiu com a cabeça.

 

- Venha para dentro, então.

 

Ele seguiu-a. Livvy serviu-lhe um copo de chá gelado e sentaram-se juntos sob o alpendre, contemplando o oceano, contentes por deixarem que o som das ondas substituísse a sua conversa.

 

Livvy insistiu em ajudar. Ele encarregou-a de segurar a escada, embora pensasse que ela não conseguiria aguentar o seu peso e o da escada contra a força da gravidade. E ia passando os materiais enquanto ele trabalhava. Estava de pé no chão com as suas roupas de trabalho, que consistiam num fato-macaco desbotado e num top de algodão branco bastante cavado debaixo dos braços de forma que ele conseguia ver uma pequena elevação dos seios tom de pérola. Tomou consciência do que via, mantendo os olhos afastados daquelas cavas e o pensamento daquela pele opalina. Recordou como os seus dedos tinham sido suaves na noite anterior, tão quentes e secos. Não conseguia esquecer.

 

Agora, usava um par de luvas de cabedal grossas. Jackson fez um esforço para se concentrar. O seu primeiro trabalho consistia em introduzir uma lâmina de serra para metais por debaixo da ardósia para cortar os pregos velhos. A seguir, poderia remover os pedaços danificados da ardósia cinzenta. Colocou esses pedaços num balde que levara para cima para esse fim. Uma vez as peças partidas removidas e a tela alcatroada pregada de novo no lugar, tirou as medidas do que precisaria de cortar. Desceu apressadamente a escada, segurando-se com uma das mãos e transportando o balde pesado com a outra. Talvez estivesse a mover-se com demasiada confiança, talvez estivesse a pensar que ela o olhava mas, alguns degraus antes do chão, tentou agarrar a escada e em vez disso apanhou um punhado de ar. A queda não seria muito grande, talvez cerca de um metro, mas atrapalhou-o.

 

- Jackson! - gritou Livvy, tentando amparar a queda.

 

Ele caiu de costas na relva, arfando espantado. Ela estava a seu lado, também lançada ao chão.

 

- Está bem? - perguntou Jackson. Levantou a cabeça para verificar se ela estava inteira. Livvy mostrava preocupação. Mas, ao ver que não partira a coluna e que não existiam fracturas expostas, começou a rir. - O que aconteceu? Nunca vi nada assim.

 

- Não sei. Talvez o possa fazer outra vez, em câmara lenta.

 

- Não! - Deu uma risada. Voltou-se e colocou uma daquelas mãos macias no peito dele. - Não quero que parta o pescoço a tentar consertar o meu telhado.

 

Jackson começou a sentar-se. - Isto só prova que a gravidade ainda funciona, calculo.

 

- Bem, espero que encontre outra maneira de o provar.

 

Uma madeixa do cabelo castanho de Livvy, levemente perfumado, roçou-lhe o nariz. Conseguia ver fios de ouro, assim de perto, e de cobre também. Ela virou-se para Jackson e o seu riso abrandou, a sua expressão suavizou-se. Inclinando-se para ele, fitou-o nos olhos e a seguir fechou os seus. Passou os lábios pelos dele.

 

A respiração dele parou ou então ainda não recuperara o fôlego após a queda. E também ela arfou quando se separaram, tudo num só movimento. - Desculpe - deixou ela escapar.

 

Ele inspirou. - Tudo bem.

 

Aproximou um dedo da sua face, afagando-lhe o contorno. Estava pálida ao tomar consciência do que fizera.

 

Levou as mãos ao rosto, escondendo-o. - Não queria... murmurou ela. Afastou-se de Jackson e tentou levantar-se. Ele tentou agarrar-lhe a mão e segurou-a com força. Enquanto olhava, o rubor subiu-lhe pelo pescoço até às faces.

 

- Eu disse que estava tudo bem - reafirmou, vendo que ela estava em pânico e pronta a fugir. E, na verdade, ele também. Sentia-se embaraçado, envergonhado e confuso. Tinha a sensação plena de ter traído alguém... ele próprio ou ela ou talvez Nancy? Ou os três juntos?

 

Mas aquele beijo fora apenas casual, disse para si próprio. Partira, desaparecera no passado e esbatia-se já na memória. Acontecera e acabara. Tal como tudo o resto. Acabara. - Não - disse-lhe.

 

Mesmo assim, ela tentou levantar-se e afastar-se.

 

Ele não podia deixá-la ir. Existira outra coisa também. Calor. Uma sensação de segurança, de pertença. Existira algo que encontrara nele, redescoberto embora efemeramente. Não podia deixar isso partir completamente. - Não.

 

Ela parou de lutar. Mas ele manteve os dedos em torno do seu pulso delgado, agarrando-a.

 

- Por vezes, não sei o que faço - disse ela. - Fervilho de emoções. Talvez esteja a ficar um pouco louca. Quem não ficaria? Tenho-me sentido reprimida há tanto tempo e quando chegou e o vi cozinhar e ajudar na estalagem... Desculpe.

 

- Tem sido bom - afirmou Jackson. - Fazer estas pequenas coisas por si recorda-me quem eu era.

 

- Mas... - Ela olhou para o céu com espanto e voltou o olhar para ele. - Sou casada, Jackson.

 

- Ninguém sabe como funciona um casamento - disse ele. - Mas está a passar um mau bocado e está só. Naturalmente, sente-se emotiva. Quem não se sentiria?

 

Jackson segurava-lhe o pulso porque ela deixava. Independentemente das palavras, parecia agradar-lhe. A relva fresca roçava-lhe os tornozelos e ouviu o ruído de um camião a passar na estrada em frente da casa. As costas estavam hirtas e aliviou o seu peso contra o tronco de um carvalho, a alguns passos de distância, arrastando-a com ele. Podia ouvir-lhe a respiração levemente. Não se apercebera de como tivera saudades de sentir o calor de outra pessoa.

 

Ela falou com uma voz que não lhe era habitual, deprimida e ténue.

 

Sem melodia, apenas fragilidade e sofrimento. - Levou-me muito tempo a conseguir dizer a palavra. Ainda sinto que não sou capaz.

 

Ele acenou com a cabeça, sem compreender ainda o que ela queria dizer, mas querendo encorajá-la.

 

- Howard sempre se preocupou por ser mais velho do que eu - disse Livvy. - Mas eu esperava que vivêssemos mais tempo juntos. Ele costumava dizer, a brincar, que era o meu primeiro marido.

 

- Foi um ataque de coração? - perguntou Jackson. - É por isso que está sozinha aqui?

 

- De certa forma, antes tivesse sido pois talvez houvesse algum progresso ou qualquer coisa. É pior. - Caiu no silêncio, olhando para um renque de cedros ladeando o caminho.

 

Ele falou, apenas para preencher a ausência das suas palavras, apenas para manter a porta aberta entre eles. - Deve ser difícil para si dirigir a estalagem e ambas as vossas vidas.

 

- Tomar conta deste lugar é, por vezes, a única coisa que me mantém lúcida - retorquiu ela. - Claro que o queria manter em casa tanto tempo quanto possível, mas como podia eu?

 

Ele assentiu. Compreendia a culpa estranha, quase inconsciente, que se sente quando somos o único sobrevivente de uma família. É o sentimento de desejar que o desastre leve todos de uma vez.

 

- Howard requeria um cuidado extraordinário - prosseguiu Livvy. - Entrava no chuveiro dos hóspedes. Ou sentava-se às mesas e comia o pequeno-almoço de alguém. Ou expulsava os hóspedes quando não conseguia perceber o que faziam ali. Embora fosse um pesadelo para mim, deve ter sido muito pior para ele não ser capaz de compreender o mundo que o rodeava.

 

- Quando notou pela primeira vez que ele estava a ter problemas?

 

- É difícil dizer - respondeu ela. - Lembro-me de que, há cerca de quatro anos, logo depois de termos acabado as obras de renovação, Howard estava a pendurar alguns quadros no átrio e não conseguia descobrir como pegar no martelo. Era uma coisa muito estranha. Batia na parede com o lado errado ou virava o martelo ao contrário, segurando-o pela cabeça. Não conseguia perceber. Foi então que começámos a preocupar-nos.

 

Mesmo enquanto revelava os pormenores da doença de Alzheimer que afectava o marido, Livvy mantinha as emoções à distância, esquivando-se aos seus golpes como um lutador de boxe. Por vezes, ria-se com o que lhe estava a contar como, por exemplo, o trabalho que tivera para fazer o marido calçar o sapato no pé certo. Era capaz de vestir um fato e colocar o pé direito no sapato esquerdo e o pé esquerdo no sapato direito.

 

- Não havia maneira de o fazer calçá-los correctamente - referiu ela. - Conseguia ser tão teimoso comigo como em tempos fora amável.

 

Depois disso, banira toda a roupa difícil de vestir, levando-a para o sótão, e substituíra-a por fatos de desporto e sapatos de borracha com velcro.

 

Não havia medicamentação que actuasse, comunicou a Jackson. Tinham tentado todas as pistas prometedoras. Um amigo enviara-lhe vitaminas e líquidos com nomes polissilábicos, em cápsulas de gel, mas também não deram resultado.

 

- E acabou por agredir um hóspede - concluiu Livvy. - Um pobre hóspede inglês muito pálido e obeso.

 

Nada provocara a discussão, o hóspede apenas roçara os ombros de Howard a caminho do pequeno-almoço.

 

- Howard não controla o génio - disse ela. - Recuou simplesmente o punho e deixou-o voar até à garganta do inglês.

 

- Foram processados? - perguntou Jackson.

 

- Não, as pessoas são bastante compreensivas se formos honestos com elas. Deixaram-me flores quando saíram e o nome de um médico, em Inglaterra, que estava a fazer pesquisa sobre a doença. Sentei-me na borda da cama e chorei com aquela simples delicadeza. E foi também quando compreendi que tinha de mudá-lo para outro lado.

 

Encolheu-se perante a recordação. - Ajudaram-me aqui mas era demasiado para mim. Felizmente, consegui-lhe um quarto aqui no lar da cidade. É pequeno, mas é um bom local onde o posso visitar facilmente. Uma enfermeira conhecida telefona-me quando está agitado e fica mais calmo se eu estiver algum tempo com ele. Conhece a minha cara mesmo que não consiga recordar o meu nome cada vez que me vê. Nestes últimos dias tem andado agitado - suspirou.

 

Jackson acenou com a cabeça. - Lamento - disse. - Gostaria de poder dizer mais do que isto. Mas não há mais nada, pois não?

 

Ela virou-se e olhou-o profundamente. - Vê, é isso que me está a causar problemas. Eu vejo que sabe. Não há palavras. Não há ciência. Nenhuma resposta. Nenhuma salvação. Sabe isso.

 

Jackson olhou para a sua mão que lhe segurava o pulso. Uma veia azul corria-lhe sob o dedo e pressionou-a, sentindo-lhe a pulsação.

 

Livvy suspirou:

 

- Viver assim perturba realmente o meu raciocínio.

 

Jackson acenou afirmativamente. Sabia como a dor explodia na cabeça como uma granada, lançando estilhaços de fúria, medo e dor violenta e profunda sobre cada pensamento. Lembrava-se de que a razão nada significava, de que vivia obcecado em perseguir o bêbedo inconsciente que matara a sua família. Confessar os seus desejos apenas os inflamara e, quando tudo acabara, não sentira nada e fugira. Até agora, pensou.

 

Então, uma carrinha de caixa aberta da cor dos pinheiros com a porta do lado do condutor amolgada entrou no caminho. A mulher que ia ao volante virou lentamente e entrou no relvado enquanto Livvy se levantava, embaraçada por ter sido apanhada desta forma. Sacudiu com força a relva que se agarrava ao fato-macaco e caminhou na direcção da carrinha. Jackson levantou-se e seguiu-a. Um homem de face redonda, curtida pelo fumo do cigarro e pelos ventos invernais do Maine, debruçou-se da janela do passageiro e fitou Jackson. - É o homem da carrinha que explodiu? - perguntou.

 

- Acho que sim - respondeu Jackson, rindo por entre dentes para eliminar qualquer tensão.

 

- Jackson - disse Livvy. - Este é o homem que me salva a vida pelo menos uma vez por semana. É o George. E a sua mulher, Mary.

 

Jackson cumprimentou ambos. George apertou-lhe a mão com toda a força. - Queria apenas ver quem era este indivíduo - esclareceu George. - Não pode ser má pessoa se lhe está a consertar o telhado.

 

- Não é nada mau - concordou Livvy.

 

Mary aprovou com um aceno de cabeça.

 

- Não, calculo que não - concluiu George. Libertou finalmente a mão de Jackson.

 

- Como vai a perna, George? - perguntou Livvy.

 

- Prende-me quando persigo a Mary à volta da cozinha - disse, com uma piscadela de olho.

 

Mary abanou a cabeça.

 

George olhou longa e fixamente para o telhado. - Não é assim que eu o faria, com certeza - observou ele. - Espero que a ardósia aguente o Inverno. Certamente estarei lá em cima eu próprio quando surgir a próxima tempestade.

 

Mary assentiu.

 

- Jackson está a fazer um belo trabalho - assegurou Livvy, tentando ser agradável.

 

George encolheu os ombros. - Pelo menos, não abandonará o trabalho, pelo que me disse o Sammy, na garagem.

 

- Não, se for a algum lado, terei de ir a pé - concordou Jackson.

 

Mary franziu a boca e meneou a cabeça.

 

- Bem, volto ao trabalho daqui a seis semanas, diz o médico. Excepto se eu tiver alguma palavra a dizer - concluiu George, reivindicando os seus direitos anteriores.

 

- Haverá muito que fazer - garantiu-lhe Livvy. - Howard disse sempre que este lugar podia manter uma equipa de dez empregados.

 

Despediram-se enquanto Mary ligava o motor e começava a recuar pelo caminho. Moeu as mudanças quando terminou a marcha atrás, procurando e conseguindo, finalmente, que a velha carrinha avançasse.

 

- A mulher dele nunca fala? - indagou Jackson.

 

- Só quando atende o telefone em vez dele - respondeu Livvy, soltando uma risada. - Nunca a ouvi dizer outra palavra além de «olá».

 

- Calculo que aquela perna partida não o irá atrasar muito mais - disse Jackson.

 

- Deve mantê-lo afastado de escadas durante um tempo.

 

Livvy fitou-o, deslizando os olhos de forma cautelosa.

 

- Desculpe tê-la colocado em posição difícil - disse ele, enquanto acenava na direcção do tronco da árvore onde tinham estado apoiados.

 

- Vai pôr toda a cidade a falar de si, mais do que já se fala avisou ela.

 

- Não seria a primeira vez - admitiu Jackson, tristemente.

- Já estou a ficar habituado.

 

Partilharam sorrisos forçados perante esta ironia e ficaram lado a lado na relva alta marcada por trilhos de pneus. Os olhos de Jackson pousaram naquelas impressões, coisas tão simples, duas linhas paralelas vincadas no relvado. Mas não existia nada - simples como os trilhos de pneus ou complicado como as agitações do amor - que pudesse acontecer de novo que não lhe recordasse Nancy vigiando Nathan a equilibrar-se na bicicleta no dia em que tinham retirado as rodinhas ou Franny a abanar o seu pequeno boné amarelo enquanto montava o São Bernardo dos vizinhos como se fosse um pónei. Não havia nada que, de alguma forma, não lhe recordasse o que perdera e como. E de pé, ali com Livvy, naquele momento, estava também consciente de um aviso, algo que, no seu íntimo, lhe dizia que ainda era vulnerável à perda.

 

O curso da Natureza...

parece deleitar-se com as transmutações.

                   SIR ISAAC NEWTON (1642-1727)

 

Jackson tomou um duche, esfregando as manchas de tinta plástica seca como se estivesse a pelar camadas até ao âmago. Acabara de reparar e pintar de novo a zona do tecto danificada pela água, lá em cima. Os duches eram um bom momento para descontrair e sabia como deixar a água correr sobre a face enquanto uivava como um animal na direcção do jacto pulverizador. Tornara-se um ritual que lhe dava um escape momentâneo para a sua raiva. Mas algo aconteceu desta vez, alguma ligação se estabelecera e, ao desligar o chuveiro, começou a chorar. As lágrimas começaram repentinamente, inundando-lhe a face. Os joelhos dobraram-se e caiu no chão de mosaico, ficando ali com as pernas encostadas ao peito. Não chorava assim desde que aquilo acontecera. Durante todos estes meses, a sua tristeza revolvera-se e pulsara dentro dele, presa sob o génio que herdara do pai.

 

Passado algum tempo, dominou-se embora ainda se sentisse em carne viva. Saiu do chuveiro e vestiu um roupão de turco grosso que estava pendurado num cabide da casa de banho. Sentou-se na cama do quarto com uma toalha à volta do pescoço, tentando recuperar o domínio das suas emoções. Os álbuns de fotografias estavam empilhados na pequena secretária, perto de um candeeiro de porcelana. Endurecendo-se, passou os dedos pelas capas de vinil colorido e, corajosamente, abriu a capa do álbum de cima. Na primeira folha, coberta de plástico, via-se uma fotografia de Nancy junto a um rio nas Montanhas Blue Ridge. Afastou o olhar da fotografia enquanto recordava a cena. Tinham feito as suas primeiras férias juntos no cenário daquelas montanhas, no Outono. Tinham percorrido um trajecto incrivelmente longo apenas para estarem sós e longe do trabalho.

 

Ficaram num calmo bed-and-breakfast dirigido por uma família menonista e fizeram amor pré-matrimonial de todas as formas na enorme cama antiga do quarto. Comiam em pequenos cafés que cheiravam a batatas fritas e biscoitos. E iam ao cinema de um centro comercial que não conheciam mas isso não interessava visto parecer igual ao da sua cidade. Seguindo a Blue Ridge Parkway, visitaram as Montanhas Great Smoky, perdidos numa aveludada nuvem de amor.

 

Saíram do carro para percorrer a pé um caminho que atravessava a floresta. Jackson levava uma pequena mochila aos ombros para transportar a máquina fotográfica e algumas refeições leves. Não tinham ainda andado quinze minutos quando chegaram a um ribeiro que corria sobre pedras cobertas de musgo. Nancy pôs uma folha a flutuar na água e viu-a ser levada pela corrente. Refrescou as mãos no ribeiro e levou-as à face.

 

- Quero vulcanizar-me com isto - disse ela.

 

- Vulcanizar-te? - admirou-se ele. - Vais entrar no negócio da borracha?

 

- Quero apenas fazer parte de tudo o que há aqui - disse ela, insistindo. - Tu, eu, as folhas e este ribeiro. E como se quisesse ser capaz de me dividir nas moléculas mais elementares e misturar-me com tudo, só por um momento, e depois voltar a reunir-me. Então saberia o que era ser a água, o ar e tu - prosseguiu, abraçando-o.

- Quero estar dentro da tua pele.

 

Ele beijara-lhe a testa e sentira as frescas gotas de água nos lábios. Depois, moveu os lábios para lhe acariciar o pescoço e roçar-lhe as orelhas. Por fim, juntou os lábios aos dela e beijaram-se ardentemente. Continuaram na vereda até uma elevação atapetada por terra musgosa e uma camada de agulhas de pinheiro. Nancy deitou o corpo sobre o dele, movendo as ancas. Num momento eram um só.

 

Ela ensinara-lhe como a devia amar. Era tudo uma questão de cronometragem, tinham eles descoberto. Aprendiam um com o outro e tinham encontrado o ritmo certo. Mas o tempo enganara-os e esgotou-se nas suas vidas mais depressa do que qualquer deles alguma vez esperara.

 

Inspirou profundamente e foi passando as folhas do álbum de fotografias. Nancy ordenara todas as fotografias e não havia muitas dela porque estava quase sempre atrás da máquina.

 

Tinha um rosto simpático, de curvas suaves e lábios que se erguiam num sorriso provocante, e a imagem colorida da Kodak era tudo o que ele alguma vez teria para se recordar. Passou as folhas das fotografias de Nancy e Jackson separados e juntos, as fotografias do seu casamento em família na casa de Verão de um amigo na costa de South Jersey, e contemplou longamente uma fotografia sua em que se inclinava para beijar a pele macia do filho. As memórias pulsavam no cérebro de Jackson mas não o faziam chorar ou enraivecer-se até sentir vontade de arrancar a cabeça dos ombros. Estas folhas de papel exposto à luz eram como recordações de um sonho que em tempos tivera.

 

Jackson estivera no telhado no dia em que os perdera. Tinha estado a instalar uma estação meteorológica electrónica para que ele e Nathan pudessem vigiar os ventos e a temperatura acima das árvores. Montou o indicador da velocidade do vento e os sensores electrónicos da temperatura numa extremidade do telhado de empena alta. Colocaria os fios dentro de uma consola onde poderiam ler as principais estatísticas do estado do tempo. Jackson ia ensinar Nathan a ler as flutuações da pressão barométrica e as alterações da humidade relativa para que pudessem prever as tempestades de Verão. Podiam fazer gráficos dos seus resultados e depois compará-los com as próprias tempestades e, no fim da estação, teriam uma boa ideia da sua exactidão.

 

Lembrou-se da forma como Nancy rondara nervosamente enquanto ele trabalhava, receosa, como sempre, de ouvir o som surdo do seu corpo ao cair da escada sobre o lilás. Jackson também não se sentia feliz por estar lá em cima, com os braços doridos e os músculos das pernas a tremer como agulhas de máquina de costura. Equilibrou-se cuidadosamente na escada e fixou os instrumentos com fortes parafusos, fazendo a seguir um orifício na porta lateral para passar os fios pela parede do átrio.

 

- Prometes ficar cá em baixo enquanto eu não voltar? - perguntara-lhe ela, antes de partir. Baixou a janela do carro e ele inclinou a cabeça, beijando-a de novo.

 

- Nada de escadas - tranquilizou ele. - Volta depressa.

 

Acenara com a mão a Nathan e Franny, segura na sua cadeirinha, e vira o carro descer pelo longo caminho de cascalho através do pátio da frente, suficientemente amplo para permitir cultivar algumas leiras de cereais. Não sabia então que nunca mais voltariam. Era um sábado muito quente, ainda cedo, antes de a temperatura se elevar o suficiente para fazer murchar o jardim de ervas aromáticas. Abriu uma garrafa de chá gelado, bebeu-a de um trago e ficou com dor de estômago.

 

Quando acabou de puxar os fios através da parede interior, montou a consola e ligou a estação meteorológica para a experimentar. Os ponteiros giraram e os números brilharam nos díodos verdes. O vento soprava suavemente de Sudoeste a doze quilómetros por hora e a pressão mantinha-se estável. Nathan ficaria deliciado com tantos botões para carregar e com os números que poderiam registar. Era muito pequeno mas havia nele o germe do cientista curioso e Jackson queria encorajá-lo.

 

À hora do almoço, Jackson preparou para si uma sanduíche de queijo suíço fundido e esperou o regresso da família como se estivessem a deslizar em ondas até à praia. Quando o Sol começou a baixar, as primeiras pontadas de preocupação atacaram-no e, para se distrair, ligou a TV e viu parte de um jogo de basebol. Bebeu uma cerveja e, à medida que o tempo passava, o medo cercava-o como um tubarão movendo-se em círculos cada vez mais fechados.

 

Einstein afirmou que todas as observações são relativas à perspectiva do indivíduo. E, enquanto a percepção da passagem do tempo permanece constante para um astronauta num foguetão que acelera até perto da velocidade da luz, para observadores em Terra o relógio da consola da nave espacial pareceria estar a atrasar-se. Este era um fenómeno conhecido como dilatação do tempo e Jackson sentiu-o duramente. Olhou para o relógio de parede na cozinha. Os ponteiros pulsavam como o bater de um coração mas parecia que nunca avançavam. Pensou em telefonar a alguém, a um amigo, ou à polícia. Era como se o resto do mundo tivesse, de repente, avançado quase à velocidade da luz, deixando-o para trás, suspenso no vácuo sem peso e feito de geleia. O Sol continuava a sua mudança de turno com a Lua mas, para Jackson, o tempo retinha a sua respiração sufocante.

 

Quando o carro da polícia entrou lentamente no caminho, ele soube. Enquanto o agente fardado subia o caminho de pedra para tocar à campainha e apresentar a notificação, Jackson fechou os olhos com força. Sabia que a velocidade linear era a tendência para um corpo em movimento continuar em andamento ao longo de uma linha recta. Podia ver na sua cabeça as marcas paralelas de borracha negra de pneus que atravessavam as quatro vias da Rangeline Drive em frente do Republic Bank como se fosse uma experiência em movimento que falhara terrivelmente. E sabia que a velocidade era uma grandeza vectorial, movendo-se, portanto, na direcção do corpo em movimento. Os três corpos. Podia vê-los presos nos destroços dos ferros retorcidos. Sabia que eles tinham morrido.

 

O som que se lembrava de ouvir a seguir foi a pancada surda do jornal de domingo aterrando pesadamente à porta da frente da quinta. Nunca estivera sozinho durante muito tempo naquela casa e o som pareceu ainda mais forte por estar rodeado pelo silêncio dos mortos. À luz azul da madrugada, caiu de joelhos no relvado ao ler os títulos pretos e baços como os olhos do assassino na fotografia colorida por cima da dobra. Jackson deu um pequeno grito. A polícia classificava o acidente como homicídio rodoviário pelo facto de o homem que conduzia a carrinha de caixa aberta que ultrapassara a divisória central a cento e quinze quilómetros por hora e caíra em cima da família de Jackson estar embriagado.

 

Jackson contorceu-se no chão, fincando os dedos na terra. Deixou o jornal voar e espalhar-se pelo relvado, como pombas soltas no ar. Anúncios da Wal-Mart, suplementos com cupões, banda desenhada, Parade e a secção do Lar voaram através do pátio. Rastejou para a casa e o silêncio detonou nos seus ouvidos como uma onda de choque sónica.

 

O gravador de chamadas gemeu enquanto rebobinava metros de fita apitando e guinchando. Ignorara o telefone que tocara sem parar durante toda a noite. Na máquina havia mensagens de repórteres do jornal e da estação de TV. Havia condolências tímidas de colegas da Universidade ou de amigos que tinham ficado atordoados com as últimas notícias. As pessoas choravam, pediam-lhe justificações e exigiam explicações. Não havia interpretações que Jackson pudesse fornecer. Era apenas outra série de um bilião de acções e reacções ao acaso que ocorriam no Universo naquele momento temporal. Mas acontecera com ele.

 

Porém, não esperara os choques seguintes: o frenesim dos jornalistas e das equipas de filmagens enquanto atacavam o abismo crescente da sua dor nos momentos dolorosos posteriores, mesmo antes de Nancy, Nathan e Franny baixarem à quente terra argilosa. No funeral, três dias depois, o cortejo fúnebre tropeçou e seguiu o seu caminho por entre os longos cabos coaxiais que partiam dos camiões afastados. A história da sua família ganhara um ímpeto frenético e o locutor dos noticiários locais implorara a Jackson que concedesse as entrevistas sentado onde a câmara pudesse dar uma terna panorâmica das fotografias da família expostas em molduras de prata na mesa de café da sala de estar. Esperavam que Jackson, que sofrera tão profundamente, explicasse esta colisão de massas a alta velocidade com alguns adjectivos escolhidos?

 

Falou com os homens da imprensa citadina no pátio da frente, mas não os convidou a entrar em casa. E distorceram este facto, tornando-o vagamente suspeito e extraordinariamente excêntrico. Fora apenas porque a sua dor era totalmente privada. Os desenhos das crianças e de Nancy tinham sido pendurados por Jackson nas paredes da casa. Fizera os esboços com traços pretos no papel, arranhando a caneta ao longo da folha. E as fotografias de Nancy estavam expostas em molduras de prata antiga ou de madeira pintada, artesanal. Não queria as fotografias familiares materializadas no canto superior direito por detrás de cada locutor da TV do estado. Queria privacidade para chorar a família, fechado na casa onde ainda conseguia sentir a sua presença.

 

À luz sombria do fim do primeiro dia sem eles, enraiveceu-se repentinamente. A raiva apanhou-o como um carro a acelerar, invadindo-lhe o corpo e correndo-lhe pelas veias como nitroglicerina. Varreu com um braço o balcão da cozinha e atirou uma fila de copos ao chão. Parecia ouvi-los partir no chão de tijolo mexicano antes de ver a explosão do vidro estilhaçado. Apetecia-lhe deixar-se cair no chão e rolar-se naqueles estilhaços, sentindo-os cravarem-se na sua pele como facas. O impacte dos copos lascara os tijolos de argila mole que ele poderia ter arrancado com as unhas, mastigando a argamassa arenosa com os dentes. Desejava encontrar aquele bêbedo e cortar-lhe a garganta com uma adaga de vidro. Queria sentir o sangue do homem cobrir-lhe as mãos. O seu desespero era quase incontrolável.

 

Havia muito a fazer, desde preparar o funeral até consolar parentes ao telefone. A dor tê-lo-ia incapacitado mas a fúria ajudava-o, impelindo-o nas suas tarefas. Fervilhava mesmo à flor da pele e libertava-se como um animal raivoso quando estava sozinho.

 

- Que se passa? - indagou o reverendo Fitzhume quando o visitou naquele dia. Michael Fitzhume tornara-se indispensável a Jackson, lidando com a imprensa, fazendo telefonemas e outros preparativos. O sacerdote de cabelo ruivo entrara e saíra durante todo o dia, enquanto Jackson sossobrava.

 

Jackson estivera sozinho e empurrara vários livros de uma prateleira, deixando-os cair ao chão. Com um pontapé, atirara vários volumes pesados à parede oposta. - Não consigo compreender disse ao sacerdote.

 

- Ninguém consegue dar sentido a isto, Jackson - retorquiu Fitzhume. O sacerdote católico endurecera nas ruas de Chicago, prestando auxílio aos mais pobres da cidade e dirigindo um abrigo nos bairros mais perigosos. Fora roubado vinte e sete vezes sob ameaça de armas ou facas e tinha orgulho nisso. Aceitar um cargo no campus da Universidade de Wendell, numa zona rural tranquila, a duas horas e meia a Sul de Chicago, era o seu golpe para uma reforma antecipada.

 

- Jackson, deixe a polícia resolver o assunto - aconselhou Fitzhume. - Dar-lhe-ão as respostas de que precisa.

 

- Não preciso de respostas - gritou Jackson. - Preciso deles.

 

Fitzhume pôs-lhe a mão no ombro. - Eu sei - disse. A sua voz fraquejou e Jackson acalmou-se. Depois, o sacerdote forte e atarracado baixou-se para ajudar a apanhar os livros que Jackson tinha atirado ao chão.

 

Mas Jackson não podia esperar pacientemente enquanto a polícia investigava. Foi à procura de respostas, alimentado pela fúria e pelo café que o sustentava pelo segundo dia consecutivo. Queria reunir informações e, embora soubesse que a sua primeira paragem deveria ser na cena do acidente, conduzia por outras ruas para a evitar. Não sabia se alguma vez suportaria ver o troço de rua, entre o centro comercial e os cinemas, onde tinham morrido.

 

A polícia ofereceu-se para ir a sua casa mas Jackson insistiu em ir ele próprio à esquadra. Preocupava-se com a tendência para a recusa que existia em todos os Tate porque, de alguma forma, era a confirmação da tragédia ter um detective sentado no sofá onde ele e Nancy tinham visto filmes e partilhado uma Coca-Cola com gelo e limão depois de os miúdos irem para a cama. Mas Jackson conhecia-se demasiado bem para cair no sonambulismo dos pais após um choque emocional. Eriçava-se como o conjunto de antenas no deserto varrendo o cosmos à procura de um fraco sinal de rádio de uma inteligência distante. Queria ficar totalmente imerso na investigação policial do acidente.

 

Havia dois detectives destacados para o caso e tudo o que lhe ofereciam eram desculpas e condolências. Sentou-se com eles à sua secretária enquanto lhe explicavam que existia um suspeito e que tinham depoimentos de testemunhas mas que não dispunham ainda de respostas para Jackson. Depois, acompanharam-no à porta. Não tinham nada para ele.

 

Jackson atravessou a esquadra à procura do suspeito, o homem que vira nos jornais e na TV. Recordava o cabelo escuro, oleoso e desgrenhado que pendia da sua cabeça calva como uma cortina de franjas de contas. Procurou-o na sala de identificação munida de um vidro que só permitia ver de um lado. Não havia sinais dele junto ao balcão do sargento onde os novos suspeitos tiravam as impressões digitais e eram fotografados. E na prisão da cave também não o conseguiu encontrar.

 

- Jackson - chamou-o o seu amigo Levi Bloom quando ia a caminho do estacionamento. Era franzino, de barba ruiva bem cuidada e cabelo castanho-claro comprido que passava por cima dos óculos de aros redondos. Vestia uma camisa azul com uma gravata extravagantemente colorida que, segundo dizia, a mulher lhe comprara da colecção desenhada por Jerry Garcia. - A Kate e eu fomos visitar-te ontem à noite. Temos deixado mensagens...

 

- Desculpa - disse Jackson. - Tenho passado todo o tempo a tratar de tudo com Fitzhume.

 

- Sim, eu sei - assentiu o amigo, fixando os olhos intensamente no novo asfalto, brilhante e oleoso, que cobria o estacionamento da esquadra da polícia. Quando levantou os olhos para Jackson, parecia comovido até às lágrimas. - O que aconteceu foi um choque para todos nós. A Nancy era uma grande amiga da Kate. Está completamente arrasada e eu mal consigo acreditar.

 

- Obrigado - disse Jackson, sentindo-se distante. Colocou a mão no ombro de Levi e apertou. Que mais podia ele dizer? Durante todo o dia, Jackson consolara os amigos que o tentavam consolar. Na lavandaria, quando foi buscar o fato, confortou uma longa fila de clientes de lábios trémulos e olhos húmidos e fugidios. No banco onde visara um cheque para a agência funerária, a gerente saiu do seu gabinete e Jackson ofereceu-lhe o conforto do seu ombro para ela chorar. Todos tinham lido no jornal a notícia do acidente, tinham visto as imagens nos noticiários da   TV e alguns tinham mesmo deixado flores e pequenos animais de pelúcia no local. Talvez fosse isto o que afastava as suas lágrimas e alimentava a fúria no seu peito. Nancy, o seu único conforto, desaparecera.

 

- Provavelmente não te disseram mas o juiz marcou a audiência para amanhã de manhã - informou-o Levi com um suspiro profundo.

 

- O funeral é amanhã - comunicou Jackson.

 

- É melhor assim - disse Levi. - Pelo menos, é o que o juiz pensa. Vieste aqui à procura dele, não foi?

 

- Sim - disse ele. - Mas não me disseram nada.

 

- Podemos ir conversar para algum sítio? - indagou Levi. A sua voz tinha um tom aflautado que dava sinceridade a tudo o que dizia.

 

Conduziram até uma zona de piqueniques à beira da estrada num relvado junto de um riacho escuro fora da cidade. Jackson seguiu a velha carrinha Subaru de Levi com autocolantes onde se lia IMAGINE ERVILHAS A RODOPIAR e PARTA MADEIRA, NÃO ÁTOMOS. Há algum tempo que Jackson e Levi se tinham tornado amigos. As mulheres eram grandes amigas, trabalhavam juntas e faziam planos para todos eles. Os filhos tinham aproximadamente a mesma idade. No Inverno, tinham-se reunido no montículo coberto de neve do parque de Wendell, a que chamaram Montanha do Suicídio, tendo deslizado todos num tobogã de plástico cor-de-rosa pelo monte abaixo. No 4 de Julho, grelhavam burgers de vegetais para a vegetariana família Bloom e empanturravam-se de gelado de leite-creme e baunilha, feito em casa. Levi tinha reputação de ser o advogado mais heterodoxo da cidade e leccionava na Faculdade de Direito sobre trabalho pro bono e advocacia para indigentes. Não se desculpava por querer ser o William Kunstler do Midwest. Mas os Chicago Seven e os agitadores radicais não precisavam de defesa no centro da América semi-rural. Levi ganhava a vida redigindo testamentos, defendendo casos de dentadas de cão e trabalhando num ocasional julgamento de violação de direitos. A sorte quis que o julgamento do século em Wendell fosse o próprio julgamento de Levi Bloom por posse de pouco mais de trinta gramas de marijuana. Arriscou-se a fazer má figura e defendeu o seu próprio caso, conseguindo a absolvição com base numa questão técnica. Passara a ter menos trabalho desde então.

 

Sentaram-se a uma das mesas de piquenique profusamente gravada com iniciais e obscenidades. Levi lutou contra um fecho partido da sua usada pasta de couro e remexeu nuns papéis.

 

- Sumo? - perguntou ele, oferecendo-lhe uma bebida. A Kate compra-os para o almoço dos miúdos, mas rapo sempre alguns.

 

Jackson deixou Levi colocar um dos pacotes à sua frente. - Para que me trouxeste aqui, Levi?

 

- Temos de falar - esclareceu ele. - Sei que está tudo ainda fresco mas penso que temos de agir rapidamente neste caso.

 

Beberricou o seu sumo. - Jackson, precisas de alguém que te ajude. Richard Polk tem um bom advogado que vai usar todos os truques para o livrar.

 

- Onde queres chegar, Levi? - inquiriu Jackson. - Tenho recebido chamadas de advogados desde a noite em que aquilo aconteceu. Se estaciono na cidade, amontoam cartões profissionais no pára-brisas.

 

Jackson levantou-se da mesa de piquenique. - Vou enterrar a minha família amanhã e não estou a pensar em processar.

 

- Ouve, o ânus do advogado de acusação está apertado e o juiz tenta fazer o que é certo, mas precisas de mais. A verdade é que precisas de alguém que te represente, descobrindo os podres, falando à imprensa. Todos querem ver Richard Polk na prisão durante muito tempo.

 

Jackson mal conseguia suportar nos ouvidos a ferroada do nome do assassino da sua família. - Que podemos fazer? - perguntou. Fervia e tudo o que queria era ver Polk morto à maneira medieval: lapidado, espetado em paus aguçados, fervido em azeite.

 

- Uma vez o julgamento iniciado, quero pôr uma acção civil contra Polk. Basicamente, quero estar lá a alimentar o fogo por ti, Jackson. Está em curso a escolha do júri e nunca é demasiado cedo para iniciar as declarações preliminares. Influencia-os desde o princípio, deixa-os sentir a tua dor.

 

- Se pudesses falar à imprensa por mim... é tudo o que preciso. Nada de fogo de artifício. Responde apenas às perguntas deles. Não consigo ter forças para os enfrentar - disse Jackson. Colocou a mão na testa. - Não sei o que querem de mim. Por que não o incomodam a ele?

 

- Acham que sucumbirás mais facilmente - respondeu Levi. - Um homem que chora a sua família fornece uma boa reportagem. Assim, de agora em diante, deixa-me tratar deles e começarei a investigar para pôr uma acção por danos por morte dolosa.

 

- Não é por causa do dinheiro - replicou Jackson, sentindo as palavras saltarem do mais profundo do seu íntimo. - Ele não devia estar vivo depois do que fez à minha família.

 

- Não precisas de mo dizer, Jackson. Além disso, um júri tem tanta simpatia por um bêbedo como por um molestador de crianças. Mas sei que tens tido despesas. O Polk tem um negócio. Devia pagar.

 

Jackson passara cheques para os preparativos do funeral durante toda a manhã.

 

- Sofremos com o que estás a passar - disse Levi. - Sofremos, de facto.

 

Parecia querer aproximar-se de Jackson e oferecer-lhe algum conforto. Tirou os óculos de aros metálicos da cana do nariz e esfregou os olhos. - Deixa-me fazer algo por ti. Foi para isso que quis ser advogado.

 

- Deus sabe que preciso de fazer alguma coisa - admitiu Jackson. - Que mais há agora?

 

Assustava-o a perspectiva de alguma vez regressar à vida quotidiana de ensinar e chegar a casa cedo nas tardes de sexta-feira. A sua vida terminara com a deles e não sabia como começar a ter outra para si próprio.

 

- Tem calma - aconselhou Levi. - Agora, estás em estado de choque profundo. Todos estamos. Deixa-me apenas ser os teus ouvidos e olhos por aí.

 

Jackson concordou mas não tinha esperança em nada. Como podia tê-la? Toda a esperança desaparecera, substituída por uma nuvem indistinta e tóxica que lhe abafava a vida. As teorias vêm e vão, podendo determinar-se a atmosfera de um planeta distante como sendo de amoníaco numa semana e de gás clorado na seguinte. Se é uma confusão dos instrumentos ou dos sentidos, ninguém sabe. Mas ele sabia que as ideias sobre os canais de Marte são rapidamente anuladas por dados de sondas não tripuladas, para de imediato serem substituídas por histórias do Enquirer sobre a face de Elvis crescendo como uma borbulha na superfície do planeta vermelho. A realidade é um conceito demasiado escorregadio para se alcançar, coberto por um tipo de composto redutor da fricção e ultraliso criado no laboratório DuPont. Jackson não sabia como agarrar-se a ela. Em vez disso, deixava-a correr num fluxo que se metamorfoseava em medo humano e não em esperança.

 

Quando Livvy bateu à sua porta, estava deitado com a cabeça enterrada na duna da almofada, apenas com a luz púrpura decrescente do crepúsculo a iluminar-lhe o quarto. Sentia-se tonto e um suor febril humedecia-lhe o cabelo contra a face. Ela bateu novamente.

 

- Jackson - chamou. - Está bem?

 

Nunca mais estaria bem, é claro, mas a pergunta era-lhe feita tantas vezes que já não conseguia dar uma resposta ponderada.

 

- Está com fome? - insistiu ela, alterando a interrogação para algo a que ele pudesse reagir genuinamente. Compreendia melhor que ninguém a falta de significado da sua pergunta. Ele tinha a certeza de que ela ouvira as mesmas perguntas dos que a rodeavam e acabara por compreender, tal como Jackson, como era absurdo que se esperasse que alguém exprimisse a sua dor de forma coerente. Livvy continuou, com a voz hesitante, atenta ao facto de poder estar a perturbar um momento de tristeza. - Fiz-lhe uma sanduíche para o jantar.

 

Jackson dirigiu-se à porta e abriu-a, olhando de esguelha para o corredor iluminado. - Desculpe, estava apenas a descansar disse, alisando o cabelo.

 

Livvy estava à entrada segurando um tabuleiro com uma sanduíche de peru e chá gelado. Ele convidou-a a entrar e, verificando que o quarto estava escuro, cambaleou até à mesa de cabeceira para ligar um candeeiro. Sobre a cama estavam abertos os álbuns de fotografias. Nancy, Nathan e Franny olhavam-no, sorrindo, encantadores, vivos.

 

- Pensei que tivesse fome - insinuou ela. Surpreendeu-a a olhar de relance para as fotografias enquanto se dirigia à secretária. Fechou-os e arrumou-os enquanto ela pousava o tabuleiro. - Nem acredito no que conseguiu fazer hoje. Deve estar exausto.

 

- Bastante - concordou ele. - Tomei um duche e a seguir ferrei-me a dormir.

 

Não lhe contou como se deitara a soluçar nem como se sentira totalmente perdido. Reparou que ainda estava de roupão e ajustou-o melhor.

 

- Obrigada - agradeceu Livvy, caminhando em direcção a ele. - Sabia que precisava de ajuda mas, por vezes, não se imagina quanto.

 

- Precisava mesmo. Tenho uma lista tão comprida como a minha perna esquerda de coisas a fazer amanhã. - Estava a tentar dizer uma piada. Mas não resultou.

 

- Não exagere. Este lugar podia mantê-lo ocupado durante anos - retorquiu ela, rindo-se para preencher a pausa seguinte. Mordeu os lábios, constrangida. - Olhe, desculpe o que aconteceu lá fora quando acabou de trabalhar no telhado.

 

- Por favor... - levantou a mão para a calar. Jackson não ia alimentar o remorso dela por um beijo. Não tinha força para tanto. As suas emoções pareciam amontoar-se numa massa crítica. Sentia-se suficientemente instável para poder derreter-se. Queria que ela parasse. Não queria analisar demasiado o que acontecera ou bani-lo da memória ou ridicularizá-lo. Acontecera. Para o melhor ou para o pior, ela fizera-o ter sentimentos de novo, e profundamente. Sentia a sua perda, a terrível perda que lhe penetrava nos ossos e, pior que tudo, o começo da esperança. Estava dividido entre ambas, esfrangalhado pelos seus próprios sentimentos, pelo seu conflito interior. Como podia ele continuar, como podia ele não continuar?

 

- Estamos ambos vulneráveis - prosseguiu Jackson. - Quero dizer, a Livvy com a doença do seu marido e eu... não sei. O que estamos a atravessar curto-circuitou-nos. É o que eu penso, pelo menos.

 

- Eu sei mas, até agora, tenho sido capaz de lidar com tudo sozinha - concordou ela. - Não costumo encarar nada na minha vida de forma ligeira.

 

- Não deve - disse Jackson. Suspirou.

 

Ela observou-o e puxou-o para o círculo de luz projectado pelo candeeiro. Ele resistiu. Mas agora ela podia vê-lo. Podia ver-lhe o vermelho dos olhos e a tristeza neles. - Jackson - murmurou, passando a palma da mão pelo seu braço e nada mais.

 

- Fica comigo enquanto como? - perguntou ele, dirigindo-se para uma cadeira.

 

Ela assentiu.

 

Jackson sentou-se e comeu a sanduíche. Não se sentia na obrigação de falar e, de certa forma, confiava na disponibilidade dela para suportar os seus silêncios. Contentava-se em estar sentada a seu lado. Reconhecendo isto e sentindo gratidão, um impulso íntimo atingiu-o como uma onda inesperada. As lágrimas correram-lhe pela face e caíram no prato. E isto era exactamente do que precisava.

 

Numa reacção química, a massa dos produtos da reacção é igual à massa dos reagentes.

                 LEI DA CONSERVAÇÃO DA MASSA

 

Naquela noite, Jackson sonhou que a sua tristeza era semelhante a pedras lisas de um rio que ele polia com as suas lágrimas. Três dessas pedras tinham-se transformado em jóias encastoadas na palma da sua mão. Depois, no sonho, viu a pele fechar-se sobre os diamantes na palma da mão até não haver nada além das linhas entrecruzadas e variadas que contavam a sua própria história.

 

Não se recordou do sonho até falar com o perito de seguros na Mobil de Rockpoint, onde a casca quebradiça da Quark estava oculta sob uma lona azul. Algo na banalidade da transacção libertou a sua mente que começou a vaguear. Pensou em Livvy na estalagem, a sacudir as poeirentas teias de aranha do Inverno, antes do fim-de-semana em que os primeiros hóspedes estavam previstos. Fizera-lhe sentir alguma coisa. O seu próprio tormento, sem dúvida. Mas mais ainda.

 

- Assine só aqui, Sr. Tate. Vou tirar algumas fotografias Polaroid para o arquivo - disse Bromley, o perito. Era um homem franzino que transpirava. Limpou a testa húmida com um lenço axadrezado.

 

Jackson pegou na pasta dos formulários e assinou em triplicado. Bromley tirou fotografias em três ângulos e colocou-as sobre o capot do seu carro para secarem.

 

- Acha que me pode tirar uma fotografia? - perguntou Jackson. - Uma espécie de recordação.

 

- Uma não terá importância - respondeu o perito, levando a máquina aos olhos. Jackson mudou de posição. - Não, estava melhor antes de posar - sugeriu Bromley. - Basta pôr-se com naturalidade ao pé do carro.

 

Jackson voltou a colocar-se junto à porta lateral aberta. Podia ainda cheirar o odor acre do plástico queimado. Imaginou como Livvy acharia estranho que ele estivesse a ser fotografado com o que poderia ter sido a sua armadilha mortal. Sabia, porém, que isso teria agradado ao humor negro de Nancy. Esta ter-se-ia rido se tivesse uma fotografia dele com os restos da Quark.

 

- Já está - disse Bromley, premindo o obturador. A Polaroid expeliu a fotografia e ele segurou-a na mão enquanto a imagem se materializava por detrás do claro filtro químico.

 

Jackson encontrou o seu caderno de esboços preferido debaixo do banco traseiro da Quark. Escapara ao fogo embora as extremidades estivessem manchadas pela espuma seca utilizada para apagar as chamas. Folheou alguns desenhos da casa que fizera a carvão no caderno de espiral e um pirata que rabiscara para Nathan. O pirata tinha uma venda sobre um olho e usava um pano amarrado à volta da cabeça. Desenhara esta personagem para que o filho se distraísse a brincar sozinho o tempo suficiente para deixá-lo acabar uma pilha de trabalho que trouxera para casa. Em vez disso, Nathan conseguira levá-lo a dar-lhe atenção. Jackson afastara o computador portátil e os gráficos de dados para pegar num caderno de esboços. Nathan desenhava com um marcador num pedaço de papel, copiando o esboço do pai. Entreter o filho antes da hora de dormir era algo a que nenhum pai conseguia resistir.

 

Havia naquele esboço qualquer coisa que atraiu outra recordação de Jackson. Lembrou-se do tempo em que tinha a idade de Nathan, no comboio de regresso, com o pai, aos verdes relvados suburbanos, deixando a fuligem film-noir do centro da cidade em Manhattan. Um grupo de quatro homens tinha colocado sobre os joelhos uma caixa de cartão voltada para baixo para jogarem póquer. O fumo dos charutos e cigarros enevoava o ar envolvendo-os desde os fatos de lã feitos por medida até aos sapatos de pala. Recordou o próprio pai fazendo deslizar um lápis número dois num pedaço de papel colocado sobre a sua pasta. Desenhara um pirata, com um penso na face, um papagaio no ombro, e saíra bem. Jackson tinha seis anos e estava encantado, sentado ao lado do pai, ouvindo a alegre voz de tenor do condutor a anunciar a paragem seguinte.

 

- Sempre tive jeito para desenhar - dissera-lhe o pai. Mostrou a Jackson como esboçar o desenho, traçando ovais para a cabeça, o corpo, os braços e as pernas, depois aperfeiçoando-o, acrescentando pormenores, construindo a imagem. - Mas não se pode sustentar uma família fazendo desenhos sem interesse.

 

Na gaveta da secretária do pai, que cheirava a lápis acabados de afiar, Jackson descobriu o esboço e a sua própria cópia infantil. O pai morrera há uma semana e encontrou-os quando a mãe lhe pedira que procurasse os papéis do seguro. David Tate conservara o monte de papéis na gaveta da secretária, junto das coisas importantes - a declaração de imposto do ano anterior, um registo das despesas caseiras e o conjunto de canetas de prata Cross com o antigo símbolo de ferramenta da Loja Maçónica a que pertencera o seu próprio pai.

 

O que é que os pais apreciam nos seus filhos? Quando o trabalho de casa estava concluído e a batalha da hora de dormir terminara num empate, Jackson podia sentar-se ouvindo a respiração constante de Nathan e Franny durante a noite. Como adorava a doçura da sua respiração! Recordava-lhe a doçura delicada do ar numa manhã de Primavera. Habituara-se ao grito agudo de prazer que Nathan dava ao ver o pudim de chocolate ao jantar. Acedera a ler a Franny Green Eggs and Ham uma vez mais. O primeiro ano em que ele e Nancy não conseguiram dormir valera a pena quando Nathan fez um gorgolejo semelhante a um arrulho que talvez tivesse soado como «pa-pá». Seguiu-se a explosão de primeiras vezes, enquanto crescia tornando-se um rapaz que tomava as suas próprias decisões e se interessava pelo mundo de uma forma que recordava a Jackson a sua própria infância.

 

Aos oito anos, Jackson montara modelos complexos, incluindo navios de guerra da marinha britânica e um McDonnell Douglas DC-3 da década de 1930. Não tinha interesse em brincar a não ser que isso envolvesse adquirir uma nova capacidade, quer isso significasse completar um modelo de complexidade crescente quer se tratasse de imaginar um método de injectar uma gota de cola num local apertado debaixo de uma asa. No seu nono aniversário, poupara parte da mesada para comprar um ferro de soldar barato. Isto permitiu a Jackson trabalhar em projectos electrónicos, construindo aparelhos de rádio ou simples alarmes contra roubo que podia programar para se desligarem se alguém, como a mãe, entrasse no seu quarto.

 

- Pelo menos, desliga essa coisa quando estás na escola para eu poder entrar e fazer a limpeza - pedira-lhe.

 

- Mãe, essa é a razão de ser de um alarme contra roubo - argumentou ele. - Manter as pessoas afastadas.

 

- Muito bem, meu senhor - ripostou ela. - Ficas responsável por limpar a tua própria confusão.

 

Isso convinha a Jackson. Não estava a esconder qualquer coisa ilícita, nem livros de banda desenhada nem sacos de Double Bubble que tivesse roubado do quiosque de jornais, como os amigos faziam. Tinha uma dúzia de experiências e projectos em estádios parciais de acabamento. A entrada no seu quarto requeria o cuidado de um funâmbulo para navegar em torno da rede de fios e transístores.

 

Jackson também construía equipamento por encomenda. Uma vez, o seu primo mais velho, Freddy, queria ter o seu próprio programa de entrevistas como o de Johnny Carson. Freddy, um adolescente com brilhantina no liso cabelo louro cortado à Pompadour e uma colecção de casacos de veludo de cerimónia, pediu ajuda a Jackson. E este começou a trabalhar, construindo um aparelho que faria o que Freddy queria. Depois do jantar de Acção de Graças, Jackson mostrou o seu aparelho numa caixa negra a Freddy, que o levou para o seu quarto. A secretária e um sofá adjacente foram colocados de frente para a porta, tal como o cenário do Tonight Show. A família ajudava Freddy no seu passatempo e era sempre a vítima voluntária da entrevista enquanto ele ajustava os microfones de cada convidado. Com a mistura correcta, podia sair uma verborreia, enquanto Freddy tentava convencer a tia Midge e o tio Philip a revelar um segredo precioso do seu tempo de namoro com o gravador de bobinas em funcionamento. Freddy precisava de prática mas, com a caixa negra que Jackson construíra, podia levar o seu espectáculo a uma audiência maior.

 

Era apenas um transmissor miniatura preparado para se sintonizar na mesma frequência em que a rádio NBC transmitia. Não tinha a potência suficiente para causar interferências nos rádios para além dos da vizinhança imediata, mas o impacte seria tremendo. Freddy levaria o espectáculo do seu quarto para as salas de estar da maioria das casas da Lily Drive. Escolheu os convidados cuidadosamente: a mãe de Jackson, o primo de Freddy, Marty, que estava em casa vindo da Universidade, e Harry Burns que, em tempos, começara a coxear até verificar que tinha uma pedra no sapato.

 

Jackson sintonizou o rádio na sala de estar dos tios a tempo de ouvir Freddy fazer soar os acordes de três notas da NBC num xilofone de brinquedo. Freddy acolheu os convidados e ofereceu um anúncio gratuito a um dos seus produtos preferidos, a gasosa Orange Crush. O pai de Jackson foi o primeiro a notar.

 

- Eh! É o Freddy na rádio?

 

- Sim - disse alguém. - Que diabo está o Freddy a fazer na rádio?

 

O telefone tocou enquanto Freddy perguntava ao primo Marty quantas raparigas beijara na Universidade. Alguém telefonava para comunicar que Freddy estava na rádio. O que era isto? A NBC dera-lhe o seu próprio espectáculo?

 

- Não, claro que não! - gritou o pai de Freddy ao telefone. - Não sabemos como apareceu na rádio. Estava aqui a comer uma fatia de tarte e, de repente, aparece na rádio.

 

Não esteve muito tempo no ar. Um condensador sobreaqueceu no transmissor de Jackson e, antes de Freddy poder perguntar à mãe de Jackson quando beijara pela primeira vez o pai dele ou se Harry Burns alguma vez beijara alguém, a programação dos quarenta maiores êxitos regularmente prevista regressou à WNBC com um estalo forte, um estalido e uma nuvem de fumo azulado.

 

- Era naquelas coisas felizes da sua infância que Jackson pensava e depois atingiu-o a compreensão de que o filho nunca teria os seus próprios triunfos. Nathan nunca saberia o que era pregar uma partida a uma sala cheia de parentes ou construir um aparelho que pudesse alterar as ondas etéreas mesmo que por poucos minutos.

 

A sua dor concentrava-se toda no que não aconteceria. No que Nathan e Franny nunca teriam, nunca fariam, nunca sentiriam. Todas as memórias de Jackson pareciam maculadas e, uma a uma, todas sucumbiram à realidade tóxica, de aço temperado, de que os seus filhos, tão cheios de possibilidades na sua consciência em botão e nas suas personalidades específicas e na força dos seus próprios dedos, estavam mortos. Nathan nunca encontraria este desenho do pirata nos pertences do seu pai nem pensaria na hora de dormir em que tinham desenhado juntos e na história que Jackson lhe contara sobre a sua própria infância, sobre o esboço de pirata do seu próprio pai. O futuro estava parado no passado.

 

- A polícia não encontrou marcas de derrapagem de pneus que coincidissem com os da carrinha de Polk - viera Levi Bloom dizer-lhe na noite anterior ao funeral. Jackson andara lentamente, repetidas vezes, da cozinha para a sala de estar e vice-versa. A cerveja que segurava pelo gargalo ficara quente.

 

- Não sei o que isso quer dizer - resmungou Jackson. Sabia, claro, mas não conseguia levar os seus pensamentos nessa direcção.

 

Levi tocou no ombro de Jackson e permaneceram de pé, quietos. - Significa que ele estava tão embriagado que nem sequer se deu ao trabalho de travar.

 

Jackson afastou-se do amigo e caminhou até à cozinha. Despejou a cerveja no lava-louças. De costas para Levi, bateu com o punho no peito com tanta força que sentiu o coração saltar.

 

Jackson voltou sozinho da cidade para a estalagem. Decidiu deixar Livvy a fazer o seu trabalho e sentou-se, à brisa fresca do pátio, sob o ácer rugoso. Estava de frente para a estalagem e, abrindo o caderno de esboços que recuperara, começou a desenhar os contornos da casa com rápidos traços de carvão no papel.

 

Daí a algum tempo, enquanto preenchia os pormenores dos decorativos suportes do alpendre, Livvy abriu uma das grandes janelas duplas que davam para o relvado e começou a escavar num dos vasos ali colocados. Revolveu a terra do vaso, misturando algumas pás de adubo que trouxera do recipiente de plástico preto colocado perto da porta traseira da cozinha. Finalmente, quando achou que a mistura estava pronta, plantou amores-perfeitos de brilhantes tonalidades de cobre e púrpura. As suas mãos eram tão meigas naquele trabalho como se estivessem a cuidar de uma criança.

 

Jackson começou uma nova folha do seu caderno, desenhando Livvy desde o seu ponto de observação oculto no canto da frente da propriedade. Trabalhou com o pedaço fino de carvão, seguro com perícia nas pontas dos dedos, traçando a curva delicada do queixo. Esboçou o pescoço delgado, o oval delicado dos olhos e o ligeiro trejeito dos lábios. Ela estava a concentrar-se nas flores que plantava, assegurando-se de que ficavam direitas e firmes nos vasos das janelas. Com alguns traços, Jackson captou as pequenas rugas de preocupação na pele franzida acima do nariz. Era evidente que até os poucos momentos que tinha para si própria eram recheados com um tumulto de pensamentos. Pousou as ferramentas de jardinagem na extremidade do vaso da janela e tirou as luvas de lona. Ele estava ainda a desenhá-la, impulsivamente, quando reparou que chorava. Livvy limpou as lágrimas dos olhos com as palmas das mãos. Jackson levantou-se, deixando cair na relva o bloco de esboços. Ela olhou para ele.

 

- Há tanto tempo que não chorava - confessou ela, desde a janela aberta. - Agora, parece que não consigo parar.

 

Era assim mesmo. Sofrer era um processo tão misterioso como apaixonar-se. Algures, bem no interior do cérebro, o sofrimento e o amor estavam casados e enrolados sinuosamente em torno um do outro. Não havia uma componente de sofrimento em amar alguém? Implícito no contrato emocional entre duas pessoas estava o facto de um dia terminar - um choraria pelo outro. Jackson duvidava de que o amor pudesse exigir as mesmas atenções urgentes do coração se os homens e as mulheres não sentissem a sua mortalidade nas sombras de cada dia que passa. Queremos tanto que o amor nos arraste para braços imortais, para sempre! Que dure eternamente, que dure muito para além dos corpos se terem transformado em pó nas urnas de pau-rosa. Lemos Romeu e Julieta para retirar algum conforto da crença de que os amantes morreram para poderem, finalmente, ficar juntos em paz, deixados em paz por um mundo que queria apagar o seu mundo como se apaga a chama de uma vela. Mas onde e como poderiam eles estar juntos?

 

O céu, como Jackson o imaginava, não era lugar para amantes. Era frio, negro como tinta-da-china, salpicado pela luz das estrelas, metralhado por detritos cósmicos e atravessado por cometas precipitando-se através do vácuo pela luta violenta de forças gravitacionais opostas. Como crente fervoroso no método científico, não via quaisquer provas do contrário - a vida que vivemos no momento é, muito provavelmente, tudo o que teremos.

 

Talvez, pensou, seja por isso que os apaixonados sentem uma dor que os acompanha. Porque é inevitável que um dia terão que se despedir. Nascendo sozinhos, morrendo sozinhos, fazemos o que podemos para o tempo intermédio não ser tão solitário.

 

- Já há anos que tento despedir-me - dizia Livvy. Agora, ele estava de pé sob a janela, olhando para cima. A sua pele delicada estava manchada pelas emoções. Os olhos pareciam mais verdes sob as pestanas húmidas. - Já não tenho a certeza de saber quem ele é.

 

Jackson esperou que ela descobrisse as palavras certas. Ela procurou para além da cabeça dele como se as pudesse descobrir no jardim que se estendia até à vedação de rocha ou, para além desta, até às extensões do mar azul em movimento ou do horizonte longínquo.

 

- Há nele alguns reflexos - reconheceu ela. - São como sombras no fundo. Talvez ele diga alguma coisa de certa forma que me parece muito familiar. E, nos seus bons momentos, quando aparenta estar lúcido, quase espero que se vire para mim e diga: «Livvy, com os diabos, tira-me daqui.»

 

- É cruel.

 

- É, sim - concordou ela, suspirando suavemente. - Sei que nada se pode fazer. A esperança pode ser uma maldição, por vezes.

 

Ambos ouviram ao mesmo tempo o carro no caminho e viraram-se, ela na janela, ele no solo. Livvy anunciou:

 

- Vou ver quem é.

 

Quaisquer ideias que Jackson tivesse sobre a vida calma de um estalajadeiro no campo foram rapidamente afastadas por algumas histórias das lutas de Livvy. Esta contara-lhe histórias de hóspedes que se comportavam como se o facto de pagarem uma noite na Estalagem de Rockpoint lhes desse o direito de serem servidos como se pertencessem à realeza. Ou de hóspedes que nunca tinham toalhas suficientes. Ou água quente suficiente. Ou muffins de amora suficientes. Mas existiam, claro, outros hóspedes que se tinham tornado amigos e voltavam ano após ano.

 

Jackson encontrou Livvy no átrio a falar com um homem de cabelo escuro, de vinte e poucos anos, que vestia uma camisa de ganga usada sobre os ombros descaídos. O cabelo estava em desalinho e pendia encaracolado em torno da sua face. Era de tez pálida e tinha um aspecto balofo e untuoso, semelhante a um pedaço de queijo demasiado mole. Abaixo da linha do queixo tinha uma porção de pêlos escuros na zona do pescoço que se esquecera de barbear.

 

- Jackson - apresentou Livvy. - E Mitch Faraday. O filho de Howard.

 

Pôs-lhe a mão no ombro e empurrou-o para a frente como uma mãe nos bastidores nervosa com o espectáculo de Natal do filho. Jackson estendeu a mão a Mitch.

 

- Olá - cumprimentou Mitch.

 

- O Jackson está a ajudar-me para a abertura da época - explicou Livvy. - Lembras-te do George? Partiu uma perna.

 

Mitch acenou com a cabeça. A timidez parecia irradiar dele como uma interferência de rádio devida à actividade das manchas solares. Era alguns centímetros mais alto que Jackson. Olhava em volta, rapidamente, como um mamífero assustadiço e tímido, escondido numa lura. Pareceu grato quando Livvy o conduziu a um quarto no extremo do átrio. Colocou ao ombro a alça do saco de nylon preto e seguiu-a.

 

Jackson retirou-se, sozinho, para o bar onde trepou para um banco e terminou os seus esboços. Ouvia o murmúrio das vozes enquanto Livvy instalava o filho.

 

- Acho que nunca lhe disse que era madrasta - informou Livvy quando voltou. Estava irritável e apertava as mãos com força.

 

- Parece um rapaz bastante simpático - observou Jackson.

 

- E é. Especialmente para alguém que tem sofrido tanto - comentou, contornando o bar e retirando do suporte dois copos de pé alto. Tirou a rolha de uma garrafa e encheu os dois copos.

 

- À nossa saúde - brindou, erguendo o seu copo.

 

Jackson acenou com a cabeça. Deixou que os seus olhos seguissem os movimentos rápidos de Livvy. Havia nela, de repente, algo tão semelhante a um pássaro, tão volúvel.

 

- Que se passa, Livvy? Já vi físicos mais calmos no laboratório na noite anterior ao anúncio dos Prémios Nobel.

 

- Não sei - respondeu ela. - O Howard está muito pior desde a última vez que Mitch o viu. Não parece justo. Mitch tem sofrido com isto e, embora goste de o ter aqui para acompanhar o Howard, sei que não é fácil para ele.

 

- O meu pai teve um ataque cardíaco - contou Jackson. - Conduzi durante toda a noite até Nova Iorque para o ver. Cheguei pouco antes de ele morrer. O meu pai soube que eu estava lá e penso que isso significou alguma coisa para ele, mas não foi fácil.

 

- Ficou contente por vê-lo?

 

- Fiquei aliviado, acho eu, e triste, claro - respondeu Jackson. - Mas sei como é importante dizer adeus. E tenho a certeza de que Mitch sabe isso, apesar de ser novo. E um longo adeus com a doença de Alzheimer, não é?

 

Dirigiu-lhe um olhar significativo que ela devolveu, reconhecendo a triste verdade das suas palavras. Livvy inclinou-se sobre o balcão do bar e tocou-lhe no braço.

 

- Pobre rapaz!

 

- Se não quisesse, não estaria aqui.

 

- Isso é verdade - concordou ela. Beberricou o seu vinho. - O Howard foi casado durante vinte e dois anos antes de me conhecer - acrescentou. - Quando a mulher de Howard se divorciou, foi mais duro para Mitch do que para qualquer outra pessoa. Saltou de uma escola preparatória para outra. Mas, de qualquer forma, conseguiu chegar à Universidade.

 

- Não houve uma prova de fim de período ou um exame final em que não me ajudasses - disse Mitch com gratidão. Entrou na sala. Parecia mais à vontade agora, embora ainda não olhasse directamente para Jackson.

 

- Sabia como o teu pai se preocupava contigo - lembrou Livvy, secando uma zona húmida do balcão com um pano. Mitch mudou de posição, constrangido, ajeitando as calças de ganga preta.

 

- Deu-me explicações à distância para a aula de francês - comunicou Mitch a Jackson.

 

- Tentei - acrescentou Livvy, rindo. - Mitch enviava-me por fax uma cópia das lições que revíamos vezes sem conta.

 

- Reprovei de qualquer maneira - acrescentou Mitch. Sentou-se perto de Jackson no bar. - C’est la vie, n’est-ce pas?

 

- C’est vrai, mon ami - assentiu Livvy.

 

- Não apanhei essa - confessou ele, sorrindo largamente.

 

- Queres beber alguma coisa? - convidou Livvy.

 

- Uma cerveja, por favor - pediu Mitch, dirigindo-se ao balcão. Livvy abriu uma cerveja fresca e colocou-a diante dele. Este deitou a mão ao gargalo e levou a garrafa à boca.

 

- Como vai o trabalho? - perguntou Livvy.

 

- O meu editor diz que eu não conseguiria cumprir um prazo mesmo que estivesse a escrever o meu próprio obituário.

 

- Que costuma escrever? - indagou Jackson.

 

- Tenho escrito para uma revista não convencional de Los Angeles - disse Mitch. - É um começo, sabe. Tenho viajado com este grupo, escrevendo uma história sobre concertos vistos do lado de dentro. Agora, estamos a passar algum tempo em Boston, antes dos concertos de Verão. Assim, pedi emprestado um carro e vim até aqui. Nem pensei, sabe. Quando dei por mim, estava praticamente a chegar. - Bateu com o polegar, nervosamente, no balcão e tomou um rápido gole da sua bebida.

 

- Estou contente por teres vindo - comentou Livvy.

 

- Sim - disse ele. - Mas devia ter telefonado primeiro, a avisar.

 

- Estás a brincar? - perguntou Livvy. - Se soubesse que estavas aqui tão perto, em Boston, teria lá ido buscar-te eu própria.

 

Mitch esboçou um sorriso com os lábios finos e começou a raspar o rótulo da garrafa com a unha do polegar. - Como está o pai?

 

- Tem perguntado por ti - informou ela.

 

- Gostava de poder vir mais vezes - prosseguiu Mitch.

 

- Se há coisa que ele compreenderia é que tu estás a trabalhar - objectou Livvy.

 

- Por falar em trabalho - lembrou Mitch. - É melhor dar notícias antes do fim-de-semana comprido.

 

- Podes usar o telefone que está atrás da secretária, se quiseres - informou Livvy enquanto ele se dirigia ao átrio.

 

- Ele gosta de si - disse Jackson a Livvy quando o filho de Howard abandonou a sala.

 

- Fazemos por isso - retrucou ela. - Afinal, ambos gostamos do Howard. Mas o Mitch tem a sua própria vida.

 

Pela primeira vez, olhou para o caderno de esboços de Jackson, aberto sobre o bar, e viu a sua cara. Olhou fixamente para as linhas negras e o espaço branco que constituíam os seus traços. - Quando é que fez isto?

 

- Quando a vi a trabalhar nos vasos das janelas - esclareceu Jackson.

 

- Pareço cansada - disse ela.

 

- Então, acertei - sorriu-lhe, trocista. Ela deu um estalo com a língua.

 

- É autêntico mostrar as nossas experiências na expressão.

 

- Sim - afirmou Livvy - Sempre pensei que era triste as pessoas tentarem mudar a sua aparência, fazendo uma operação plástica ao rosto ou aos olhos para tentar apagar as rugas. Como se fossem algo de que ter vergonha. Lembro-me da primeira vez que notei rugas nos cantos dos olhos e de como fiquei espantada. Pus-me em frente do espelho e fiz todas as expressões, alegre, triste, zangada, para tentar ver onde as tinha obtido. E era do riso - prosseguiu. - Provinham do riso. E calculei que as obtivera ao longo de muitos momentos felizes. Pertenciam-me.

 

Jackson riu-se.

 

- Portanto, quando olho agora e vejo como mudei nestes últimos anos, penso que isso também está certo e tem algo de belo. Estou a perder o meu marido. Por que razão não se notaria isso na minha cara?

 

- É bela - elogiou-a, prendendo-lhe os olhos nos seus.

 

Ela manteve esse olhar por um momento, depois atenuou a gravidade da ocasião, dizendo:

 

- Mas um cientista que desenha? Isso não é uma espécie de sacrilégio?

 

- É apenas algo que faço quando me apetece, é tudo. O meu pai costumava desenhar para me manter quieto no comboio ou na estrada.

 

Jackson herdara o talento do pai, transmitido pelo sangue, e usara-o, em primeiro lugar, na ciência. Começara em adolescente, explicou a Livvy, desenhando referências visuais nas margens dos seus apontamentos de Química e Física. Era uma forma de compreender as complexidades das ligações moleculares e os caprichos das teorias gravitacionais. Na Universidade, tivera um caderno sem linhas para os seus desenhos, procurando neles, em primeiro lugar, compreender a expansão do espaço e do tempo. A visualização era a tarefa mais difícil do físico e a visão dos resultados de cálculos longos ilustrados no papel tornava-os reais. Por vezes, a compreensão do movimento do Universo parecia fora das capacidades da imaginação humana, até ser revelada pelo lápis e papel. Desenhar fazia que Jackson se sentisse como Leonardo da Vinci quando este esboçava os seus estranhos desenhos de máquinas voadoras e metralhadoras do século XVI. A imaginação é a melhor ferramenta do cientista.

 

Teria sido só isso, a arte escrava da ciência. Se não tivesse sido a influência de Nancy. Desenhara-a por insistência dela. Os resultados foram um pouco forçados. Colocara-a numa pose tão formal que parecia apenas uma prima afastada. Passado algum tempo, Jackson encontrara, porém, o seu próprio estilo ligeiro, autodidacta e simples. Era suficientemente hábil a captar as imagens dos que lhe eram próximos. Libertou a mente das restrições da lógica e aprendeu a amar a libertação, sabendo intuitivamente que este passatempo o ajudava a «ver» o Universo físico com mais clareza. E distraíra os miúdos de uma forma que o seu trabalho de laboratório certamente nunca poderia fazer.

 

Por Livvy, colocou o carvão no papel e começou a deslizá-lo de um lado para o outro. Ela via como os dedos dele se moviam e faziam surgir a sua imagem na folha branca e lisa. Os seus movimentos eram rápidos e os olhos saltavam da face dela para a sua própria mão, movendo-se, fluindo, movendo-se. E, em breve, a imagem começou a emergir do espaço em branco, a face que Jackson comparava a um camafeu, tão clássica na sua beleza suave, a que a tristeza permanente emprestava apenas um ar de resolução, calma e dignidade. Ao levantar os olhos para Livvy, pela última vez, os olhos dela brilhavam.

 

É impossível conhecer, simultaneamente, a posição exacta de uma partícula e o instante em que essa posição é conhecida.

                         O PRINCÍPIO DA INCERTEZA

 

Jackson estava estendido de barriga para baixo para apertar os pequenos parafusos que prendiam a barra inferior da grade vacilante do alpendre. Girou com força a chave de parafusos e sentiu o cabo redondo fazer-lhe uma bolha na palma da mão. Há anos que não trabalhava tanto.

 

Virou-se, sentando-se encostado à casa. Sucediam-se os problemas nesta velha estalagem e ele continuava a descobri-los como se tivesse necessidade deles. Uma vez descoberto um problema, não o conseguia abandonar e deixar Livvy a braços com ele. E, após o abandono de um Inverno, até os pequenos trabalhos tinham aumentado exponencialmente. Os parafusos soltos quase tinham conseguido sair dos seus orifícios, as fendas tinham surgido do nada, o caruncho rastejante recomeçara sob uma parte da caleira descaída e a tinta encaracolara-se como o cabelo em dia húmido de Verão.

 

Mitch saiu para o alpendre e acendeu um cigarro. Olhou para Jackson após uma longa fumaça. Tirou o cigarro da boca com ar culpado.

 

- Reduzi para três por dia - justificou-se. - Além disso, Livvy não aprecia que eu fume dentro de casa.

 

- É um hábito difícil de abandonar - concordou Jackson. - A química opõe-se.

 

- Tenho a teoria de que, se reduzir o suficiente, talvez um dia me esqueça simplesmente de fumar e terei abandonado o hábito sem sequer dar por isso.

 

Deu outra fumaça. - Provavelmente não resulta, hã?

 

- Acho que não me conseguiria enganar assim.

 

Mitch acenou com a cabeça e olhou em redor. - Onde foi ela?

 

- Foi fazer compras para o jantar.

 

- Gostava que não se incomodasse tanto - observou Mitch.

 

- Queria fazer algo especial.

 

Jackson colocou a chave de parafusos na caixa de ferramentas.

 

- Quer sempre - concluiu Mitch.

 

Jackson acabou o trabalho e pegou na caixa de ferramentas.

 

- Bem, acho que vou arrumar isto na garagem. Levantou-se e passou por Mitch nos degraus.

 

- Sabe - disse Mitch, serenamente -, Livvy era a pessoa mais feliz que eu conheci.

 

- Era?

 

- Por vezes, pensava que enlouqueceria de tanto rir. Entrava na onda e nada a fazia parar. E o meu pai ia puxando, incitando-a. Aqueles dois...

 

- Conheci alguém assim em tempos - recordou Jackson.

 

- É curioso como a vida pode simplesmente tirar-nos isso. Mitch apagou o cigarro, esmagando-o com força com a ponta do sapato de borracha.

 

Jackson acenou com a cabeça a Mitch, energicamente, em sinal de concordância e despedida e, sentindo um nó surgir-lhe na garganta, virou-se e dirigiu-se à garagem. Pelo menos, o rapaz estava a aprender bastante cedo a endurecer um pouco perante os choques da vida. O próprio Jackson fora simplesmente apanhado de surpresa. O riso e a felicidade tinham parecido uma protecção contra o mal, uma barreira. Ele soubera mais do que isso. Conhecera as leis do Universo. Apenas não acreditara que elas se lhe aplicassem, quando chegava a casa vindo do laboratório e encontrava a mulher e os dois filhos encharcados na casa de banho, perdidos de riso. Inacreditavelmente felizes.

 

Por vezes, o exame científico esgotava Jackson. Havia um ponto em que os pormenores se esbatiam perante o olhar e confundiam o cérebro. Era possível estar demasiado concentrado e ver apenas dados que jorram da bela Via Láctea, semifluida com o rodopiar dos sistemas solares distantes. E não havia um cientista presente que não precisasse de abandonar o microscópio passado algum tempo e voltar a concentrar-se em algo exterior ao ágar-ágar frio de um prato de cultura. Jackson ainda se maravilhava com a imaginação humana, capaz de envolver os neurónios em torno de ideias que não tinham mais substância do que o ar, mas ainda não encontrara o ponto de equilíbrio. Onde os olhos não conseguiam ver, os algoritmos e o cálculo permitiam a visão. As trevas da superstição tinham sido derrotadas pelo raio laser da ciência. Sabia que era praticamente uma heresia que um cientista pensasse assim mas, por vezes, interrogava-se se não haveria uma certa paz em não saber. Este impulso para procurar, saber e compreender, para onde nos conduziria? De onde nos afastava? Mas, pensou ele, talvez não precisássemos de ter ido tão longe para aprender tão pouco. De facto, enquanto aprendíamos, estávamos também a esquecer.

 

Não fora apenas o Howard de Livvy que revelara a Jackson aquela doença do esquecimento. Vira-a em acção num colega da Universidade. Um professor de Economia com uma óptima batida de squash, de repente, não conseguia descobrir como se jogava. E atingira a mulher de outro professor, que não reconhecia os filhos, forçando o marido a reformar-se cedo para cuidar dela. Fora da estratosfera da enclausurada família universitária de Jackson, sabia que existiam muitas outras vítimas da doença, que circulavam na sua própria vizinhança tentando encontrar as suas próprias casas ou inutilizando uma receita favorita de tarte de cereja com uma chávena de sal em vez de açúcar. Jackson vira como destruía as pessoas neurónio a neurónio.

 

Na escuridão fresca da garagem, colocou a caixa de ferramentas na bancada. Havia algumas velhas ferramentas de madeira numa grade debaixo da mesa. Jackson pegou numa plaina e reteve-a na mão. O cabo estava escurecido e gasto por anos de uso. Havia outras ferramentas antigas para talhar e afagar a madeira. Encontrou uma tábua velha e retirou-lhe uma longa tira com a plaina. As lâminas precisavam de ser afiadas, a ferramenta escorregara e saltara-lhe da mão, mas alguém cuidara dela em tempos. Anos atrás, um carpinteiro não dependia da electricidade ou da habilidade manual para usar estas ferramentas, tinha simplesmente de praticar. Tinha de trabalhar até a ferramenta se mover destramente nas suas mãos para conseguir criar objectos de encanto.

 

Jackson olhou para fora na direcção da estalagem através do enquadramento formado pelas portas duplas da garagem. Não devia ter sido fácil manter todos os hóspedes satisfeitos enquanto Livvy via Howard perder-se cada vez mais, dia a dia. Tinha de atender, alegremente, os hóspedes em férias apesar do que estava a acontecer. Era um acto notável de representação e Jackson fizera-o também. Embora a dor pela sua família tivesse sido imensa e tivesse desejado chorá-la em privado, tivera, de qualquer forma, de receber os convidados que tinham comparecido no funeral. Lembrou-se do modo como as três urnas de tamanho decrescente tinham ficado junto das covas abertas no Cemitério Mount Hope. Fazia um calor abrasador quando o cortejo fúnebre chegara ao local escalvado coberto de relva castanha, queimada. Tinha havido tão pouco tempo para pensar em decisões que deveriam ter sido tomadas ao longo de toda uma vida.

 

Depois do que acontecera, fora sozinho à agência funerária onde escolhera aquelas urnas enquanto o gerente esgalgado, com um ricto amargo, dava conselhos sombrios. - Vai querer pensar neles repousando sempre confortáveis - dissera o Sr. Olsen a Jackson.

 

E, deste modo, Jackson examinara-as como se estivesse a apreciar um novo carro. Olsen encorajara-o a tocar o cetim cor de alfazema e a sentir o conforto da pelúcia delicada. E a madeira também era importante, acrescentara. Uma madeira maciça suportava os elementos deteriorantes da terra melhor que o pinho macio. E uma urna de cobre, topo de gama, aguentava melhor que qualquer outra. De facto, Olsen garantia que o cobre era estanque durante cem anos. Olsen salientou as dobradiças de bronze de qualidade superior e as paredes bem acolchoadas dos modelos de madeira maciça. E, evidentemente, o acabamento era excelente, com dez camadas de verniz polido à mão para a proteger. Jackson gastou o fundo universitário dos filhos. Ele e Nancy tinham-no acumulado cuidadosamente depositando cem dólares todos os meses na associação de crédito da Universidade.

 

A grossa pedra de mármore que encomendou teria gravado o nome da família juntamente com os nomes e datas dos dois filhos e da mulher. Ficaria rente ao solo como exigiam os novos regulamentos para os encarregados poderem aparar facilmente a relva à sua volta. Os elementos de Jackson seriam gravados quando a sua altura chegasse, embora no funeral, quando se encontrava de pé sob o toldo, ouvindo-o bater com o vento, desejasse deitar-se imediatamente com eles e sentir o peso da terra lançada por cima como uma âncora.

 

Recebera visitas nessa manhã e seguira-se uma cerimónia na capela da Universidade, em que ninguém, nem mesmo o reverendo Fitzhume, conseguira dominar a tristeza e falar. As três urnas encontravam-se sobre suportes com rodas diante do oficiante, cujo cabelo era tão branco como as pétalas dos lírios e a face de uma tonalidade vermelho-brilhante que apenas um irlandês de pele clara poderia ter. Conseguiu dizer apenas algumas palavras antes que a sua voz se quebrasse. Mordeu os lábios com força e procurou na Bíblia inspiradas palavras de conforto.

 

- Deus ensina-nos... - começou Fitzhume antes de a voz se lhe embargar novamente. Correu o olhar pela congregação até que os seus olhos azuis se fixaram nos de Jackson. A face desfez-se como um artefacto antigo retirado demasiado brutalmente da terra. Recuou no púlpito e fez sinal ao organista para tocar. Após o primeiro compasso de «Mais perto, meu Deus, de Ti», voltou-se para recuperar algum domínio. Jackson viu-lhe os ombros a tremer e ficou embaraçado pelo homem que tinha sido tão bom amigo da sua família. Fitzhume e Nancy tinham trabalhado juntos na recolha de fundos para o restauro das janelas de vitral da capela da Universidade. Estas tinham sido construídas por um colega do famoso Louis Comfort Tiffany. Mas agora Nancy nunca veria completado o trabalho que restauraria as esplêndidas cores. Nem as crianças que o padre conhecera durante longos jantares de trabalho lá em casa, em que Fitzhume e Nancy ficavam à mesa muito depois de o café ter esfriado, discutindo e planeando.

 

Jackson e Nancy não eram católicos e nem sequer eram particularmente religiosos, mas Jackson não queria outra pessoa senão o seu amigo a presidir à cerimónia. Fitzhume devia ter pensado que conseguiria dominar a dor e manter o equilíbrio, mas essas emoções abafadas jorraram quando se viu perante os corpos de uma família que apreciava. Finalmente, após uma pausa interminável, Fitzhume voltou de novo ao púlpito.

 

- Esta é uma tragédia que dificilmente poderemos ultrapassar - foi tudo o que conseguiu dizer para concluir a cerimónia. Limusinas alugadas seguiram os carros funerários de Olsen.

 

Uma escolta policial fora solicitada para abrir caminho ao cortejo até ao cemitério. A fila de carros seguiu em marcha lenta até à auto-estrada estadual, com os faróis dianteiros acesos e as luzes da polícia a girar silenciosamente. Jackson sentou-se no banco traseiro da limusina que seguia atrás do carro funerário com o reverendo Fitzhume a seu lado. Fitzhume segurava-lhe a mão, afagando-a.

 

- Lamento tanto - murmurou. Tinha a cabeça curvada. - Nunca me tinha acontecido isto. Estraguei tudo. Lamento tanto, do fundo do coração, Jackson.

 

- Não... - murmurou Jackson. A voz soava estranha e irreal aos seus ouvidos.

 

- Mas é minha obrigação consolar os aflitos - lamentou Fitzhume. - Dizer-lhe que foram para um lugar melhor.

 

- A minha compreensão do Universo e das suas leis rígidas não deixa muito espaço para um Deus que recompensa e castiga - argumentou Jackson. - Não acredito muito num lugar melhor.

 

O reverendo Fitzhume recostou-se lentamente enquanto ordenava os seus pensamentos. - Que me disse sempre? - perguntou.

 

- Que disse Einstein?

 

Jackson suspirou. - Disse que «A ciência sem a religião é coxa, a religião sem a ciência é cega».

 

- Procure uma forma de isto fazer sentido, Jackson. Seja através de Deus ou de Einstein.

 

A face de Fitzhume relaxou-se com a calma desta sóbria epifania. Levou ao nariz um lenço de algodão pardo.

 

Jackson viu as novas lojas junto ao centro comercial e os restaurantes de fast food passarem um a um pela janela. Pararam num semáforo e um polícia reteve o tráfego em sentido contrário. Passaram um troço de uma curva degradada, com sinais de um único par de marcas de derrapagem de pneus. Ali estava a parede do banco marcada pelo fogo, onde o reboco ficara destruído pelo impacte dos veículos a alta velocidade. Fitzhume soltou um lamento de simpatia.

 

- Meu Deus! Não nos podiam ter levado por outro caminho? - exclamou o reverendo, erguendo as mãos.

 

Os olhos de Jackson prenderam-se ao local. Sabia que não havia outro caminho sem fazer um desvio de sete quilómetros pela estrada interestadual mas não estava preparado para ver onde a sua família fora abandonada pelas cruéis leis do movimento. Quando a limusina entrou pelos portões de Mount Hope, passando pela inscrição «Para Sempre no Céu», estava a chorar.

 

Uma inovação científica importante raras vezes abre caminho conquistando e convertendo gradualmente os seus adversários...

O que, na realidade, acontece é que os seus adversários desaparecem gradualmente e que a geração seguinte está familiarizada com a ideia desde o início.

                       MAX PLANCK (1858-1947)

 

Jackson lutou com a lagosta no prato a ponto de pensar que teria de ficar com fome. Arrancara-lhe a cabeça, seguindo a orientação de Livvy, mas era tudo o que conseguia fazer sozinho. Concentrou-se, portanto, intensamente na salada de couve.

 

- Deixamo-lo com fome ou ajudamo-lo? - perguntou Livvy a Mitch. Estavam sentados no pátio, numa mesa de piquenique construída com tábuas de abeto em bruto. O tempo mudara decididamente para o Verão, guinara, na verdade. Estava um tempo ameno e não conseguiam ficar lá dentro. O Sol no ocaso brilhava no oceano e tingia tudo da cor da manteiga derretida na pequena taça junto ao prato.

 

- É melhor dar-lhe algumas indicações - acedeu Mitch. Partiu uma grande pata vermelha com um quebra-lagostas.

 

- Eh, há já algum tempo que não como isto! - exclamou Jackson. - Tenham pena de mim.

 

- Dou-lhe uma lição e nunca mais uma lagosta lhe dará trabalho - disse Livvy.

 

- Olhe para ela - aconselhou Mitch. - Consegue descascar uma coisa destas como nunca vi. A lagosta parece sair da casca como se despisse um casaco de Inverno.

 

- Está bem, mostre-me como se faz - pediu Jackson.

 

- Bem, já separou a cabeça, é um bom começo. Livvy levantou a lagosta do prato. - Faça como eu.

 

- Cá vai - imitou ele, levantando o corpo da sua lagosta. Ela cortou as patas e colocou-as de lado. Depois, partiu as barbatanas caudais e puxou a carne da cauda inteira com um dedo. Jackson fez uma careta e repetiu a operação.

 

- Tem de se concentrar e sujar-se - disse Mitch. - Podemos regá-lo depois.

 

- Vai bem, agora comece a trabalhar nas patas - prosseguiu Livvy, escavando nas patas à procura da carne tenra. - Agora, mergulhe-a assim num pouco de manteiga, salpique-a com limão e coma.

 

- É só isso? - perguntou Jackson com a boca cheia. - A carne sabe ao próprio mar.

 

- Pode tirar também das patas pequenas - comunicou Mitch, chupando uma pata.

 

- Há algo de muito carnívoro nesta experiência - concluiu Jackson, acenando com uma pata. - Quebrar a carapaça, desfazer e dissecar.

 

- Não continue com isso, professor - pediu Livvy. - A única coisa que o ajuda a comer uma lagosta é não prestar nenhuma atenção ao que realmente está a fazer.

 

- Nunca olhe para a coisa verde dentro da cabeça - advertiu Mitch.

 

- Está a brincar - replicou Jackson, levantando a cabeça da lagosta e fazendo uma careta.

 

Livvy fizera uma tarte de maçã para sobremesa. Era bastante recheada mas acrescentou ainda uma bola de gelado de baunilha a cada fatia. Os três ficaram sentados com as taças em frente e os dedos pegajosos segurando as colheres, vendo a noite dominar o dia numa calmante exibição de todas as tonalidades de vermelho.

 

Mais tarde, quando Livvy lavava a louça e Jackson a secava com um pano macio, ouviu-se o carro de Mitch a descer o caminho. Jackson olhou através da janela da cozinha.

 

- É um pouco tarde para ir beber uma cerveja - estranhou Jackson.

 

- Vai ver o pai. Tem estado a preparar-se para isso todo o dia - informou Livvy. Fez escoar a água do lava-louças e atou o saco do lixo que continha os restos das lagostas. - Diz que é mais fácil quando vai de noite. É mais sossegado.

 

Livvy serviu o pequeno-almoço, no dia seguinte, a um casal de Albany que se instalara para o fim-de-semana. E, a seguir, tentou adiantar algumas tarefas. Jackson começou a pintar o adorno na frente da casa. Trouxe a escada da garagem e estendeu um pano. Livvy arrastou um tapete para o exterior e sacudiu-o por cima da grade do alpendre da frente.

 

- Não tem de fazer tudo isso, Jackson - disse ela.

 

- Não custa nada - afirmou Jackson, abrindo uma lata de galão de tinta com uma chave de parafusos e mexendo-a. - Não pode deixar isto desaparecer. Cada vez ficaria pior.

 

- Se o George não estivesse fora de serviço... - lamentou-se.

 

- Assim, só estou a obrigá-lo a trabalhar - prosseguiu.

 

- Eu aguento - retrucou Jackson. - Além disso, tenho de fazer alguma coisa para justificar a minha estada, não é?

 

- Jackson! - disse ela, levando o tapete para dentro.

 

Até a forma como aquela palavra soava dita por ela era suficiente para desejar ficar. Jackson. O seu nome. Como um par de notas de música, uma canção de embalar, um tão grande conforto.

 

Devia ter partido há dias, sabia-o bem. Teria sido melhor se tivesse feito as malas após uma noite de descanso. Livvy sabia o suficiente da sua história e o que faltava não ousara dizer a ninguém. Devia ter estado longe dela quando a Quark ardera e podia ter esperado pelo cheque do seguro num motel de beira de estrada com uma cortina de chuveiro bolorenta e queimaduras de cigarro na mesa-de-cabeceira. Era aí que realmente devia estar, dando voltas na mente à culpa do que fizera, como um cão atrás da própria cauda. Em vez disso, estava com Livvy, confortado pela conversa e distraído dos seus próprios pecados.

 

Havia algo mais, porém. Sentia-o e tentava ignorá-lo. Mas estava ali em recordações tão simples como a forma como ela dizia o seu nome. Livvy exercia alguma influência sobre ele, atraindo-o para um lugar de felicidade. Recuperara algo nos últimos dias que haviam passado juntos e era como descobrir um tesouro de piratas enterrado na praia. Mas não estava preparado para compreender por que razão ficava com ela, nem mesmo para admitir que não estava tão só. Tinha havido uma dúzia de cidades ao longo de trinta e cinco mil quilómetros onde Jackson se podia ter perdido entre a multidão.

 

Jackson mergulhou o pincel na tinta e começou pelo adorno das janelas que davam para o alpendre. Trabalhou com pinceladas deliberadas e experientes, aplicando a tinta uniformemente. Quando acabou, apoiou a escada com precaução contra as telhas do lado da casa e trepou. Começou pelas janelas da esquina do segundo andar, trabalhando cuidadosamente com um pequeno pincel para que o trabalho ficasse perfeito. Passado algum tempo, desceu a escada para passar à janela seguinte.

 

Havia para ele algo de significativo neste trabalho simples. Talvez, se tivesse vivido noutra época, se tivesse tornado membro da Sociedade dos Shakers e prosseguido a sua vida como um viúvo que tem o trabalho como forma de culto. Podia ter dedicado os dias a construir caixas de madeira para ninhos com ferramentas portáteis.

 

Talvez o trabalho o acalmasse assim porque o fazia recordar a sua própria casa e os cuidados que ele e Nancy lhe tinham dedicado. Adorara torná-la sua apenas com tinta e massa de vidraceiro e muito trabalho. Nunca se sentira tão bem como naquela velha quinta. O tanque de lousa azul da lavandaria com as torneiras de bronze, o rectângulo de vitral que lançava luz do Sol colorida nas escadas de madeira maciça. Mas aquela sensação de estar em casa desaparecera com a sua família.

 

Acabara por selar a casa como o túmulo em que se transformara. Agora, pensava nela como uma pirâmide egípcia destacando-se na planície. Os armários estavam cheios de vestuário de cores alegres. Frascos de especiarias alinhavam-se nas prateleiras da cozinha. Brinquedos coloridos envelheciam em cima de almofadas. Algum arqueólogo aventureiro, como Howard Carter, que escavara o túmulo do rei Tut na década de 1920 e que se dizia ter morrido devido à sua maldição, poderia chegar, séculos mais tarde, e percorrer aquela casa situada no meio de um campo de cereais. Mas Jackson não lançara qualquer maldição sobre a casa. Em vez disso, sentia como se a maldição, caso existisse, viajasse com ele.

 

Nem Levi Bloom nem o reverendo Fitzhume sabiam para onde ele tinha ido. Levi telefonara à mãe de Jackson, uma semana depois de o seu amigo desaparecer, apenas para ter a certeza de que não estava «morto numa vala». Esta fora exactamente a irónica frase que Levi utilizara ao telefone e perturbara a sua mãe. Jackson falara com ela de uma cabina telefónica numa paragem de autocarros para a sossegar e dizer-lhe que a ia visitar. Perturbou-o aquela mensagem que ela lhe transmitiu, visto que não compreendia se Levi estava a tentar avisá-lo de que sabia e de que a polícia sabia também. A frase específica de Levi descrevia exactamente aquilo de que Jackson era culpado.

 

Se Levi Bloom sabia, realmente, o que Jackson fizera, então era provável que toda a gente em Wendell soubesse também. Depois de receber a mensagem de Levi, Jackson conduzira toda a noite sem parar para descansar. Porém, foi-se acalmando gradualmente, o suficiente para relaxar e serpentear por um caminho sinuoso e labiríntico que conduzia à sua mãe na Florida. Estava atento a operações stop e a carros-patrulha com as luzes vermelhas e azuis a brilhar. O seu coração parava quando passavam por ele na estrada em perseguição de outros criminosos.

 

Jackson ouviu vozes por baixo dele no alpendre. A escada estava encostada à extremidade traseira da estalagem, oculta por um abeto cerrado. Não era sua intenção ouvir. Estava apenas a pintar o adorno exterior de uma janela com cortinas de renda do andar de cima. Talvez pensassem que fora à garagem buscar outro balde de tinta mas conseguia ouvir claramente Mitch em animada conversa com Livvy.

 

- Ouve-me apenas por um minuto - pediu Mitch.

 

- Está bem, está bem - acedeu Livvy. Tinha a voz tensa de impaciência e irritação.

 

- Lembro-me da primeira vez que te vi com o meu pai. Iam buscar-me ao apartamento da minha mãe e vi-os da janela quando atravessavam o parque de estacionamento.

 

- Quando fomos ao jogo dos Bulls? - perguntou Livvy.

 

- Não - respondeu Mitch. - íamos a uma peça na Baixa, recordo-me perfeitamente. Mas tu e o pai estavam a rir e ele tinha o braço à tua volta. E não creio ter visto alguma vez o meu pai tão feliz.

 

- Passámos sempre bons tempos juntos - afirmou Livvy.

 

- Depois de tudo o que ele passou quando a minha mãe o deixou - concluiu Mitch. - Sabes, parecia sentir-se bem contigo.

 

- Nunca falámos muito da tua mãe - observou Livvy.

 

- Tens sorte - disse ele, com uma risada curta. - Mas quando te vi com ele, pensei, sabes, que podia ter uma atitude completamente pateta acerca disso. Podia ficar aborrecido por o meu pai estar com uma mulher que não era a minha mãe. Sabia que podia estragar tudo, se quisesse.

 

- Se tu e eu não nos tivéssemos dado bem, não teria resultado - asseverou ela. - Howard sempre te deu atenção naquilo que era importante para ti.

 

- Quando abri a porta, naquele dia, tinha decidido que, se o meu pai era finalmente feliz, não interessava, de facto, como eu me sentia a respeito disso - recordou Mitch. - Descobriria uma maneira de ser feliz também.

 

- Obrigada - disse ela.

 

- Sabes, Livvy? - confidenciou Mitch. - Sei que o pai quereria que fosses feliz outra vez.

 

Seguiu-se um longo silêncio e Jackson apertou as mãos com força em torno de ambos os lados da escada de alumínio. Estava pronto para descer e passar à janela seguinte, mas não os podia interromper. Finalmente, Mitch falou de novo.

 

- Não quero meter o nariz onde não sou chamado - comunicou a Livvy. - Mas tens de seguir a tua vida. O que quer que isso signifique para ti.

 

- Mitch... - gemeu ela como se ele não pudesse de maneira nenhuma compreendê-la.

 

- Tomaste conta dele quando precisava. Agora, está num bom lugar, bem tratado. Sei que ele não quereria que a tua vida parasse por sua causa.

 

- Mitch - disse Livvy, erguendo a voz. - Nunca parei, nem por um momento. Há que dirigir esta estalagem.

 

- Sabes o que quero dizer.

 

- Não, não sei - ripostou ela, irritando-se. - E não preciso que me digas que estou a desperdiçar a minha vida.

 

- Não era isso que eu estava a dizer - replicou Mitch.

 

Jackson ouviu a porta de rede bater com força.

 

- Tudo bem! Não voltarei a falar disso - gritou Mitch.

 

Por fim, Jackson deslizou, timidamente, pela escada. Mitch estava prostrado numa cadeira do alpendre, vestindo um roupão vermelho com ratos estampados e calçando meias de ginástica brancas. Suspirou e passou as mãos pelo cabelo. Jackson mergulhou o pincel numa lata de diluente.

 

- Bem, é o que acontece por abrir a boca antes de ter tomado o café - disse Mitch, finalmente.

 

- Há café feito lá dentro - informou Jackson. - Pelo menos, havia às sete da manhã.

 

- Agora também diz piadas?

 

- Estou só a tentar ajudar - explicou Jackson, recuando para a escada.

 

- Sim, como pode ver, isso é bastante perigoso por aqui - disse Mitch.

 

- Tudo o que pode fazer é dizer o que sente - aconselhou Jackson. - Por vezes resulta, outras vezes não.

 

Inclinou-se para mexer o pincel na lata do diluente. Trabalhou em silêncio durante um minuto e depois perguntou:

 

- Como estava o seu pai ontem à noite?

 

Mitch suspirou. - Tudo o que posso dizer é que me matem antes que eu me esqueça de como se come.

 

- Não consigo imaginar uma doença mais cruel.

 

- Quando lá estive ontem à noite, lembrei-me de uma vez que estive doente em casa - contou Mitch. - Talvez tivesse seis ou sete anos e estava com febre e dor de ouvidos. Doía como tudo. Bom, quando o meu pai chegou a casa naquela noite, veio ver como eu estava. Pôs-me a mão na testa e puxou-me os lençóis até ao queixo, sabe, todas aquelas coisas boas. E depois leu-me A Ilha do Tesouro. Estive doente três dias e, depois do trabalho, todas as noites, lia um pouco mais.

 

- Parece que sabia realmente ser bom para si - afirmou Jackson.

 

- Sabe, ontem à noite, estava à procura da casa de banho e encontrei uma biblioteca que eles têm lá. E A Ilha do Tesouro estava numa prateleira. Resolvi levá-lo comigo.

 

Mitch olhou para o céu durante longo tempo. - Li-o para ele. Fi-lo porque, agora, também ele está doente, sabe. E, embora seja como tentar falar com alguém debaixo de água, penso que gostou.

 

- Estou certo de que significou algo para ele. Estou certo disso.

 

Jackson já não tinha tinta e sentiu-se aliviado por ter de voltar à garagem para abrir outra lata. Não lhe competia tentar ensinar ao rapaz algo sobre o sofrimento. Talvez o rapaz tivesse uma ou duas coisas para lhe ensinar a ele. Era apenas a velha tendência de Jackson. Parte dele tinha saudades de explicar coisas aos seus alunos.

 

Abriu a tampa e os pensamentos voltaram-se para a dinâmica dos fluidos e para os pesos atómicos. Examinou os corantes sólidos mais pesados que se tinham depositado no fundo da lata e a base oleosa que flutuava à superfície. Imaginou como se evaporariam os componentes voláteis da tinta enquanto esta secava nos peitoris das janelas, deixando o corante aderir à madeira. Havia também componentes que determinavam se os componentes portadores se evaporavam e a tinta secava rápida ou lentamente. Tudo isto era tido em consideração quando o branco para exteriores Sherwin-Williams era criado por engenheiros químicos na fábrica.

 

Estes eram exercícios em que Jackson utilizava o cérebro pela única razão de se convencer de que compreendia o mundo, quando afinal não o compreendia. Além disso, reduzir objectos comuns à soma das suas partes individuais era o que um físico fazia, mas apenas à escala dos átomos. Conseguia desmanchar electrodomésticos enquanto falava ao telefone e repará-los antes de a conversa ter acabado.

 

Ultimamente, porém, sentia-se rejeitado pela ciência e abandonado pela razão que em tempos tanto apreciara. Preocupava-o agora que o seu amor analítico pela mecânica do Universo fosse talvez uma terrível fraqueza. Nos recantos escuros e duros como pedra do seu coração, sabia que usara a ciência como forma de se separar das suas emoções. Havia uma raiva que sempre sentira, profunda e primária, que lhe atravessava o corpo como um relâmpago. O seu temperamento era alimentado pela frieza dos pais. E a ciência abraçara-o, envolvera-o nos seus longos braços e acalentara a sua curiosidade ao longo dos anos da Guerra Fria com lançamentos de satélites espiões, ensaios de armas nucleares e vaivéns espaciais transportados às cavalitas de 747. Quisera simplesmente saber como tudo funcionava.

 

A ciência não era, porém, estudada como passatempo. Precisava de dar respostas. E, no fim do caminho, na costa do Atlântico, Jackson começou a compreender que não ia encontrar as respostas onde em tempos tinham estado. Não havia nada no alfabeto grego da Física que alguma vez ajudasse o seu coração a curar-se. Em tempos, encontrara conforto na constante de Planck ou em acelerar o ciclotrão da Universidade e contar as partículas tau e teta. Mas não lhe ofereciam quaisquer respostas quando mais precisava delas.

 

- Eh! - chamou Livvy, surgindo atrás dele. Riu-se tristemente. - Acabei de fazer camas que ainda nem sequer tinham sido utilizadas. Por vezes, a forma como os dias e as noites se sucedem faz-me sentir tão frágil que receio ir pelo cano abaixo uma destas manhãs.

 

Ele ergueu a cabeça, fixou-a nos olhos e sorriu. Não o conseguiu evitar.

 

- Lamento, talvez seja algo de que devia ter guardado segredo - afirmou, encolhendo os ombros.

 

- Não - disse ele. - Simplesmente nunca consegui descobrir uma forma de descrever esse sentimento. Fê-lo mesmo bem.

 

- É engraçado como nos conseguimos tornar peritos em descrever a nossa própria loucura.

 

- A quem o diz - desabafou Jackson, encolhendo os ombros.

 

- É melhor vir para dentro e comer qualquer coisa - aconselhou ela, dirigindo-se para a casa.

 

- Sim, depois de limpar isto - respondeu. Depois de ela ter voltado para a casa, as suas palavras ainda lhe ressoavam nos ouvidos. Não era perito em descrever a sua própria loucura. Cometera um acto tão brutal que, só de pensar nele, ficava enojado. Nem sequer chorara convenientemente a sua família. Enfurecera-se. E quando, por vezes, tinha um relance de si próprio visto do exterior, envergonhava-se. Ultrapassava a ciência. Ultrapassava-o a ele.

 

Após a cerimónia do funeral, Jackson dirigira-se para a escuridão dos vidros fumados da limusina alugada, rodeado de jornalistas. O reverendo Fitzhume encontrava-se a seu lado, tentando heroicamente enxotar os microfones como se fossem abelhas. No relvado, Jackson conseguia ver Levi Bloom que se apressava na sua direcção, com o pequeno telemóvel encostado ao ouvido. O cordão da imprensa apertou-se.

 

- Sr. Tate - gritou uma jornalista loura. - Como se sente hoje?

 

- Como se sente? - repetiu Fitzhume, incrédulo perante a pura estupidez da pergunta. - Este homem acabou de enterrar a família. Está despedaçado e perdido e nunca voltará a ficar bem - invectivou Fitzhume, abanando furiosamente a cabeça. - É assim que ele se sente.

 

- E quem é o senhor? - perguntou outro jornalista, de impermeável. Um operador de TV encontrava-se atrás dele registando a cena, movendo-se numa lenta coreografia.

 

- Sou o reverendo Michael Fitzhume - respondeu. - E pode citar-me. Não vê que o Sr. Tate não está em condições de responder a perguntas? Nenhum de nós está.

 

Jackson sentia-se estranhamente sem vida, rodeado por aqueles jornalistas. Era como se o coração tivesse deixado de bater mas o corpo continuasse de pé e o sangue fluísse ainda, de alguma forma, até ao cérebro. Não sentia a respiração entrar e sair dos pulmões. Mas permanecia completamente consciente. Naquele dia, usava óculos de sol contra o olhar fixo dos espectadores como se aquelas lentes escuras fornecessem alguma protecção à sua privacidade.

 

- Qual é a sua reacção à alegação de Polk? - perguntou um jornalista que usava um chinó atirado para o lado.

 

- A alegação dele? - respondeu Fitzhume por Jackson no mesmo tom de voz fulminante. - A não ser que peça perdão, não quero ouvir falar disso - reagiu, olhando para Jackson que ergueu a cabeça quase involuntariamente, esperando ouvir mais informações.

 

Levi Bloom irrompeu, de repente, por entre a multidão e agarrou Jackson pelo braço. Abriu caminho, puxando-o. A imprensa virou-se e seguiu-os, instintivamente, como uma matilha.

 

- Para trás! - rosnou Levi.

 

- Quem pensa ele que é? - ouviu a jornalista queixar-se.

 

- É o advogado dele - respondeu alguém.

 

- Oh! - exclamou ela. - Podemos apanhá-lo depois.

 

Os carros estavam alinhados ao longo de uma curva perto de uma placa de ferro forjado que assinalava o cruzamento entre a Eternal Way e a Peaceable Drive. Levi abriu a porta e fê-lo entrar.

 

- Que se passa? - indagou Jackson enquanto Levi se esgueirava ao seu lado.

 

- Aconteceu esta manhã - informou Levi. - Acabei de falar com o Promotor de Justiça.

 

- O quê? - perguntou Jackson. Tirou os óculos de sol, segurando-os nas mãos.

 

- Polk diz-se inocente - disse o amigo, tentando amortecer o golpe que estava prestes a desferir. - Não tem antecedentes e por isso o juiz estabeleceu uma fiança. Saiu, Jackson.

 

- Inocente? - admirou-se Jackson, deixando cair o queixo.

 

- Mas ele estava lá, no local. A polícia tirou-o do carro. Encontraram uma garrafa vazia de licor de café ao lado dele.

 

- Afirma que costuma distribuir licores no seu trabalho - disse Levi, abanando a cabeça. - Devia ter previsto isto, Jackson. Não é costume...

 

- Ele vai safar-se, não vai? - perguntou Jackson, virando-se para Levi. A sua voz tremia com uma fúria que lhe apertava as cordas vocais como uma píton enrolada em torno da garganta.

 

- Vai simplesmente ultrapassar tudo isto.

 

- Não penses assim, Jackson - aconselhou Levi. - Ainda falta todo o julgamento. Com muitas provas contra ele. E então apresentaremos a acção civil e obteremos o controlo dos seus bens.

 

- Eu não quero os seus bens! - vociferou Jackson. Partiu, de repente, os óculos de sol ao meio e atirou as peças para o chão do carro. - Raios!

 

Ao chegar a casa no fim do dia, tendo faltado à reunião que o reverendo Fitzhume organizara na cave da igreja, encontrou um cartaz escrito à mão pregado na porta da frente. Na varanda havia vários ramos de flores, três engraçados cartões com a forma de ursinhos e uma boneca Barbie rígida como um cadáver. «Vamos ter saudades tuas, Nathan», dizia o cartaz escrito com marcador vermelho grosso. Continha os nomes, cuidadosamente inscritos, dos colegas de Nathan da primeira classe.

 

Jackson sentiu-se oscilar, de pé, nos degraus da frente. Por momentos, pensou que iria desmaiar. Pegou na chave com a mão como se fosse uma faca. Uma fúria negra cresceu e subiu por ele. Insistira em regressar a casa sozinho. Não precisava de ser acarinhado. Mas, naquele momento, compreendeu como se conhecia mal. Com um repentino movimento explosivo, baixou a chave ao longo do cartaz esticado na porta. Cortou-o em dois.

 

O objectivo habitual do meu pensamento não fornece qualquer conhecimento sobre os locais negros da vontade e do sentimento humanos.

                       ALBERT EINSTEIN (1879-1955)

 

Naquela noite, enquanto Jackson colocava de novo as tampas nas latas de tinta, Livvy reapareceu sob a ofuscante luz amarela das lâmpadas nuas da garagem. Parecia preocupada. A sua face estava acinzentada e dura como betão.

 

- Pode ajudar-me? - perguntou.

 

Ele sorriu de esguelha e limpou as mãos a um trapo ensopado em diluente. Estivera a ajudá-la todo o dia, apenas com uma pausa para comer sanduíches de salada de atum.

 

Ela sorriu debilmente, reconhecida, e disse:

 

- Agora é o Mitch.

 

Jackson descobriu o rapaz sentado no carro com as janelas fechadas. O motor estava a trabalhar, as luzes dos travões brilhavam e Mitch estava sentado, quase mumificado, no lugar do condutor. O escape do carro matraqueava como uma nuvem de insectos primaveris cantando guturalmente. Jackson tamborilou na janela e o anel de ouro, simplesmente trabalhado, que nunca retirava do dedo bateu contra o vidro. Livvy ficou no alpendre, observando.

 

- Mitch! - chamou Jackson. Bateu outra vez.

 

- Que é? - respondeu ele, finalmente.

 

- Está bem?

 

- Quando fico assim, sei que é altura de partir - disse Mitch.

 

- Apetece-lhe conversar?

 

- Já o fiz - respondeu. - Não ajuda.

 

Livvy desceu até ao carro. Mitch saiu, desligando o motor. Encostou-se ao capot do carro e relaxou abraçando-se a si próprio.

 

- Desculpa, Livvy - murmurou. - Tenho de me ir embora.

 

- Eu sei. Está bem.

 

Caminharam de regresso ao alpendre ao longo das lajes de lousa colocadas sobre a relva escorregadia. Livvy pôs um braço sobre os ombros de Mitch, talvez para lhe reafirmar que compreendia as suas razões. Mitch entrou para fazer as malas enquanto ela e Jackson esperavam juntos no alpendre.

 

- É melhor deixá-lo partir - esclareceu Livvy. - Howard é apenas meu marido, mas para Mitch... é mais difícil.

 

Quando Mitch voltou, caminharam os três em direcção ao carro. Mitch atirou o saco para o assento. Jackson colocou a mão no tejadilho do Chevy-Nova, último modelo.

 

- Tem a certeza de que quer partir tão tarde? - indagou Jackson. - Podia ir descansado de ma...

 

Mitch cortou-lhe a palavra com um olhar fixo capaz de congelar e secar todo o café da Colômbia. Abanou a cabeça. - Não posso ficar - prosseguiu, voltando-se para Livvy. - Acho que, de modo deformado, somos família.

 

- Não de modo deformado - disse ela. - Nós somos família. Mitch inclinou-se para a frente, de repente, e rodeou-a com os seus braços magros. - Desculpa se disparatei esta manhã. É só...

 

- Eu sei - murmurou-lhe ao pescoço, afagando-lhe as costas. - Tem cuidado contigo. E telefona-me.

 

Ele soltou-a e entrou de novo no carro. Estendeu a mão para se despedir de Jackson. - Obrigado por ter tentado.

 

O motor ribombou ao começar a trabalhar e Mitch fez recuar o carro pelo caminho. Livvy acenou com a mão enquanto ele partia, vendo as luzes traseiras reflectir-se brilhantes no nevoeiro da noite que os rodeara. Jackson ficou junto dela até a luz ser absorvida pela escuridão.

 

- Ele pode partir - disse Livvy suavemente. - Embora lhe custe muito, tem de ir e continuar a sua vida. É a sua obrigação como filho de Howard. Continuar. Viver a sua própria vida.

 

- E a sua?

 

Ela apertou os braços com força à sua volta e abanou a cabeça.

 

Jackson olhou-a e compreendeu que leis estava a aplicar a si própria. Olhou-a e viu-se a si próprio.

 

As leis que sempre o tinham guiado eram as leis imutáveis que governavam o Universo físico. Sabia que a sua atenção sempre tinha gravitado no mundo invisível das partículas subatómicas. Ainda se sentia culpado pelas horas que passara, longe da família, fazendo experiências no laboratório da Universidade. Tinha havido mais noites do que desejara em que chegava a uma casa adormecida, com o cérebro mergulhado em fórmulas da Mecânica quântica. Tudo para quê? Para registar a minúscula partícula excitada ao saltar como uma pulga enfurecida através de uma placa fotográfica. Não sabia então como a sua família partiria rapidamente, desaparecendo no éter como aquelas partículas radioactivas raras, apagando-se numa pulsação.

 

Alguns elementos só podiam sobreviver no vácuo protegido de uma câmara laboratorial. Era como se as condições do seu mundo tivessem de ser perfeitas antes de poderem cinzelar aquela luz brilhante através de chapas revestidas de nitrato de prata para serem reveladas no laboratório. Passou meses a pesquisar e a escrever artigos sobre o modo de excitar dessa forma uma determinada partícula para demonstrar uma teoria que não seria compreendida por mais de 99,9% da população em geral.

 

Não conseguia evitar reduzir as coisas aos seus elementos essenciais. Há muito que ensinara os seus alunos a pensar nos pequenos intangíveis; afinal, eram todas aquelas minúsculas partículas que compunham o todo. Dois corpos movimentam-se através de um espaço físico, os seus caminhos cruzam-se e depois continuam nas suas órbitas elípticas. Mas não conseguia imaginar qualquer fórmula para planear um rumo para ele próprio, tendo apenas de confiar na lei natural.

 

Os físicos, excepto o humanista Einstein, não eram vistos com bons olhos por muitos. Isto acontecia graças aos filmes de ficção científica sobre insectos irradiados até atingirem o tamanho de camiões e ao físico J. Robert Oppenheimer, que ficara tão horrorizado com o poder da bomba que ajudara a criar em 1945 que se comparara a Shiva, deus hindu da destruição. Mas o físico médio, benigno, não estava interessado na ruína do mundo, apenas em medir fenómenos subatómicos.

 

E como quantifica um físico o torvelinho de emoções no seu próprio coração? As emoções fazem tanto parte do mundo invisível como os átomos mas não podem ser extraídas, centrifugadas ou terem as suas partículas aceleradas através do espaço. Jackson sentia-se como se estivesse preso numa equação algébrica vertiginosa, elevado ao quadrado e ao cubo e deslumbrado até à décima potência. Talvez nunca conseguisse calcular uma resposta.

 

O mundo já estava cheio de factos conhecidos, resultado de uma dúzia de séculos de suposições inspiradas e observações acidentais. Havia forças constantes em acção. A água congela a zero graus Celsius, ferve a cem. A luz viaja sempre a 298 000 quilómetros por segundo, e as vidas daqueles que amamos têm sempre de chegar ao fim.

 

Livvy suspirou na escuridão, perto dele, e depois dirigiu-se para a casa. Subiu os degraus lentamente, afastando-se de Jackson. Este ouviu o som pesado, resignado, dos seus passos nos degraus do alpendre. Depois apareceu como silhueta negra contra a luz amarela de uma janela. Parecia terrivelmente sozinha.

 

No Universo, cada partícula atrai qualquer outra com uma força directamente proporcional a ambas as massas e inversamente proporcional ao quadrado da distância entre elas.

                   LEI DA GRAVITAÇÃO DE NEWTON

 

Livvy estava demasiado calma ao pequeno-almoço e ele não lhe ficava atrás. Praticamente as únicas palavras ditas foram a sua sugestão de irem dar um passeio. Ela alegrou-se com as suas palavras e, embora tivessem acabado de comer omeletas de três ovos e doses duplas de muffins quentes, preparou um piquenique improvisado enquanto ele subia para calçar sapatos desportivos.

 

Na extremidade sul da praia havia um caminho estreito que partia da areia através de arbustos em flor que se baixavam com o vento. Ali, Jackson seguiu Livvy à beira de um penhasco rochoso, ao longo de um trilho que rodeava o cabo. Este subia aos socalcos e tinham de procurar apoios para as mãos entre as raízes nodosas que saíam da terra e apoios para os pés entre as rochas lisas colocadas como degraus. O caminho corria junto ao penhasco como o elemento decorativo de mau gosto que ornamentava os cantos das grandes casas que começavam a vislumbrar no amplo planalto acima deles, onde frequentemente aparecia uma grande empena ou torreão através da densa vegetação. Arbustos cerrados, ornamentados com botões primaveris, protegiam os relvados e davam privacidade aos residentes de Verão.

 

Abaixo de Jackson e Livvy, o claro mar verde subia e batia contra a rocha coberta de algas. As ondas vinham em grandes torvelinhos que salpicavam e depois recuavam, movendo-se lentamente com a maré e deixando poças pouco profundas nas fendas. Por vezes, Livvy parava e ficava a olhar, espraiando os olhos pela imensidão. Depois, voltava-se de novo para o caminho, parando apenas para salientar coisas que não queria que ele perdesse.

 

A certa altura, surgiu um renque de plantas que crescia à sombra de um abeto enfezado e transformado pelos elementos num bonsai natural. Livvy passou os dedos pelas folhas verdes rentes ao solo e apanhou uma pequena baga vermelha-clara.

 

- É uma baga saborosa, apenas um pouco madura de mais - informou Livvy, estendendo-a a Jackson. - Quer prová-la? Esta coisinha corajosa aguentou todo o Inverno.

 

Jackson levou a baga carnuda à boca e mastigou-a. - Pirola?

 

- Mais suave, porém, não lhe parece?

 

- Hum! - acenou Jackson com a cabeça. - Recorda-me o sabor daqueles lábios de cera que os miúdos costumavam usar no Halloween.

 

A expressão dela transformou-se.

 

- Lamento - atalhou ele rapidamente. - Não queria trazer...

 

Livvy interrompeu-o. - Não, eu é que lamento. Lamento muito ter-lhe recordado.

 

Ele suspirou. - Tudo me recorda. Poderia pensar-se que estar num lugar onde eles nunca estiveram seria diferente. Mas não é.

 

- Eu sei - concordou ela.

 

- Eu sei que sabe, Livvy. - Fitou-a nos olhos ao falar mas ela desviou-os, olhando de novo para o oceano revolto. Reflectia-se nos seus olhos, em movimento.

 

Por que pensara ele que um passeio à brisa do mar desvaneceria a sua disposição, os seus passados, a sua tristeza?

 

- Continue - disse ele com ligeireza, batendo-lhe no ombro. Livvy virou-se, iniciando facilmente a subida. Jackson olhava para as suas costas, seguindo-a. Ela insistira em levar a mochila que continha o piquenique e batera-lhe nas mãos das duas vezes que tentara tirar-lha. Mesmo agora, especialmente com esta inclinação, não parecia capaz deste tipo de esforço físico, tão estreita era a sua cintura. Os pulsos e os tornozelos eram tão pequenos. Mas a respiração nem sequer estava a ficar ofegante.

 

Se sabia algo sobre Livvy era que apenas parecia frágil. Começara a compreender que era semelhante a uma daquelas mulheres enterradas em todos os cemitérios musgosos da Nova Inglaterra existentes ao longo das estradas, as Elizabeth Morgan e Hannah Libby e Charity Mather, mulheres que tinham enterrado tantos filhos como os que tinham dado à luz, que tinham adorado um deus bizarro e implacável, que tinham perdido os maridos neste mesmo mar revolto. O seu nome, Olivia Faraday, ficaria bem, gravado em granito, ao lado dos delas. Duradouro.

 

Quando os dois tinham caminhado bastante ao longo do cabo, avistaram a costa norte. - Olhe, pode ver o Farol Edison daqui - apontou para uma elevação rochosa distante numa pequena língua de terra onde um farol alto e branco quebrava o horizonte recortado. - É um dos faróis mais fotografados do mundo.

 

- Esteve a ler os seus folhetos turísticos outra vez.

 

- Podemos ir até lá um dia, se quiser - sugeriu ela. - Tem muita história. - Tentou olhá-lo nos olhos, casualmente, ao dizê-lo, mas não conseguiu. Preferiu observar o farol.

 

- Sim? - disse Jackson, pensando no que esperavam um do outro. Quanta distracção, por quanto tempo? Com que é que ele contava? E ela?

 

- Queria mostrar-lhe uma coisa daqui - disse Livvy, reajustando a mochila. Esta parecia cada vez mais pesada, especialmente entre as pequenas asas das suas omoplatas.

 

- Deixe-me levar isso agora - pediu ele. - É a minha vez.

 

- Deixe de tentar ser tão cavalheiresco, Jackson, e goze a vista.

 

- É o que estou a fazer.

 

Ela riu-se. - Não, aposto que está a pensar na luz a fazer isto ou aquilo à água do mar ou algo acerca da Lua e da maré. Quero que goze apenas a vista. A beleza.

 

- Posso apreciá-la de várias maneiras - retrucou ele, captando o seu olhar enquanto falava.

 

A cor subiu-lhe às faces. - Venha - pediu ela. - Está a atrasar-me.

 

Contornaram a ponta do cabo e, a cerca de quilómetro e meio da praia, erguia-se do mar um baixio rochoso. Numa extremidade, as vigas e os mastros apodrecidos de uma pequena escuna estavam encostados às rochas. As ondas faziam espuma branca quando se quebravam contra os restos do convés do navio. - Oito homens perderam a vida no nevoeiro na noite em que se afundou - informou Livvy. - Toda a linha da costa está cheia de destroços. Por vezes, nem mesmo o farol da costa é protecção suficiente numa tempestade. Que se pode fazer quando o vento sopra para onde não queremos ir? - Olhou para ele, prendendo atrás da orelha uma madeixa de cabelo esvoaçante.

 

- Deixar-nos ir - sugeriu Jackson.

 

Ela olhou-o atentamente. - Que vou eu fazer consigo? - indagou, movendo-se repentinamente e estendendo os braços. - Ou sozinha?

 

Ele sobressaltou-se e voltou os olhos para os dela que os sustentaram. Jackson habituara-se à forma velada como falavam, à comunicação cifrada, aos significados duplos.

 

- Podia perguntar-lhe o mesmo - retorquiu.

 

Ela acenou com a cabeça. - Podia. - Olhou de novo para os destroços do navio. - Estaremos a ser justos um com o outro?

 

- Não - disse ele. - Mas a vida não é justa, pois não?

 

- Não. Não é.

 

Jackson desejava segurá-la pela cintura, apertá-la contra ele para poder afundar os pensamentos e as emoções contraditórias na macieza do seu cabelo, no calor da sua pele rosada. Sentiu que ela o desejava também mas, por muito que o quisesse, o braço não obedeceu. O vento vergastava à sua volta, açoitando o tecido dos seus casacos.

 

- Acha que desejar é o mesmo que rezar, Jackson? - perguntou Livvy.

 

- Pode ser - assentiu ele, contemplando o mar junto dela. - Envolve, certamente, o mesmo tipo de concentração mental num...

 

Ela interrompeu-o. - Porque às vezes desejo com tanta força que a minha cabeça anda à roda. Sinto-o no sangue. Martela-me os ouvidos. Vejo cores.

 

- Eu não desejo - murmurou ele suavemente. - Já não desejo.

 

- Não acredito nisso - replicou Livvy, olhando-o intensamente. - Então, não estaria aqui hoje. Comigo. Penso que tudo isto significa desejar. É outra maneira, estarmos aqui juntos neste penhasco.

 

Ele estudou uma onda que avançava, a forma como se encurvava e rolava, ficando depois com uma crista branca. - Tem razão afirmou. - Porém, não lhe chamo desejar mas sim esperar.

 

Ela assentiu com a cabeça.

 

Jackson prosseguiu:

 

- Tentar ver que o nosso futuro pode tornar-se melhor que o nosso passado, tentar ter um vislumbre de que qualquer coisa de melhor é, pelo menos, uma possibilidade.

 

- As primeiras estrelas do crepúsculo, as estrelas cadentes, atirar moedas ao ar e bater três vezes - referiu ela. - Conheço tudo isso. E não sei porquê, mas faz-me sentir como se tivesse alguma influência, ainda que ténue. Provavelmente, acha que isto é uma loucura. Não é científico, certamente.

 

- Não - concordou ele. - Gostava de ter um pouco disso, um pouco dessa crença em alguma coisa, desejar ou rezar ou esperar, o que lhe quiser chamar. Há alguma ciência na questão, quer acredite quer não. As pessoas que rezam e acreditam vivem mais tempo. É o que dizem. De qualquer forma, mal não pode fazer.

 

Livvy observou:

 

- Por vezes, não tenho a certeza de estar a desejar a coisa certa.

 

Jackson desviou-a do trilho para as rochas e sentaram-se. Livvy colocou os braços em torno dos joelhos e apertou-os contra o peito. Ele estendeu as pernas e recostou-se, apoiando-se nos braços hirtos. A anfractuosidade da rocha era áspera, quente e sólida sob as palmas das mãos.

 

- Precisava disto - disse-lhe. - Atravessei o país fazendo estas perguntas a mim próprio e dando a mim próprio as respostas que conseguia imaginar. Nenhuma delas minimamente satisfatória. Mas qual poderia sê-lo?

 

- Mas qual poderia sê-lo? - ecoou ela, concordando.

 

- E não se trata de obter de si as respostas, Livvy. Não espero que as tenha. É apenas agradável ter alguém que faça as mesmas perguntas, que procure o que quer que eu procuro, tentando encontrar um caminho para além da dor.

 

Ela acenou com a cabeça.

 

- Há uma atracção entre nós, como electrões que giram em torno de um átomo. O resultado é um equilíbrio semelhante à força gravitacional que impede a Lua de girar pelo espaço fora.

 

- Uma espécie de química? - indagou Livvy. Olhou-o através das pestanas.

 

Jackson sorriu de esguelha e acenou com a cabeça, olhando para os destroços do navio que se desfaziam. O mar levava a madeira apodrecida, em pequenos pedaços, desfazendo os altos mastros com o vento e o sal. Com o tempo, nada restaria do navio. A memória ir-se-ia apagando de geração em geração e tudo o que se saberia do naufrágio viria dos fragmentos amarelecidos de relatos jornalísticos preservados nas bibliotecas e das sinalizações em velhos mapas.

 

- Pensei, Livvy... - disse ele, tão suavemente que ela teve de se inclinar para o ouvir. - Pensei que tinha morrido com eles. E, pela primeira vez, tenho a sensação de estar vivo. - Desejava abraçá-la enquanto falava. Mas, mais uma vez, não o fez, deixando o vento bater-lhe na cara.

 

- Parte de mim - confessou ela, com os olhos lacrimosos, talvez devido ao vento -, parte de mim sente isso também. Mas receio que seja uma coisa estranha, o que nos está a acontecer... ou a tentar acontecer. Devido ao que passou e ao que eu estou a passar. Receio que não estejamos a pensar bem?

 

- Ou a esperar bem ou a desejar bem? - continuou ele.

 

- O que quer que seja - afirmou ela.

 

- O que quer que seja, não acho que possa estar errado. Não senti nada durante muito, muito tempo, nada de bom. E sinto-a a si. - Olhou-a até ela o olhar também.

 

Livvy acenou com a cabeça. - Mas não consigo definir o que sinto, Jackson, não consigo ter a certeza de que seja assim tão bom para mim. Ou para si - observou. - E não o pode pôr num tubo de ensaio.

 

Ele riu-se. - Está bem, eu próprio penso que isto escapa à análise - concordou. Estavam juntos e isso era suficiente, falando e desabafando assim. Colocou a mão na de Livvy e esta apertou a dele. Os dedos entrelaçaram-se. E, durante longos minutos, apenas olharam para o mar que avançava e recuava, olharam a espuma em torno dos destroços e das rochas em que estavam sentados. Olharam as gaivotas que flutuavam, descendo e subindo.

 

Quando Livvy finalmente falou, Jackson quase não a ouviu devido ao ruído do oceano. Nem sequer teve a certeza de que ela lhe estava a falar, talvez apenas rezando em voz alta, pedindo, implorando uma saída. - Só porque o meu marido não consegue viver a sua vida, isso significa que não posso viver a minha? - perguntou com voz de quem já sabia a resposta, de quem já sabia a triste verdade.

 

As leis da Natureza são as mesmas e a velocidade da luz é a mesma em todos os sistemas de referência que se movem relativamente um ao outro a uma velocidade uniforme. Todo o movimento é relativo e as medidas de tempo, espaço e massa dependem da velocidade relativa entre o observador e o que ele observa.

                   TEORIA DA RELATIVIDADE ESPECÍFICA DE EINSTEIN

 

Um raio rubro de luz do Sol acordou Jackson de manhã e, enquanto abria os olhos, o seu primeiro pensamento foi para Livvy. Apetecia-lhe voltar a andar com ela, passear pelo litoral de rochedo em rochedo. Queria lá ir tantas vezes até que ficassem a saber onde nasciam todas as plantas. Poderiam preparar piqueniques sucessivos e limonada fria num jarro térmico. Imaginou-os a passarem juntos os dias, uns atrás dos outros, tal como os anos. Haveria tempo para explorarem velhas livrarias ou para se sentarem na escuridão de cinemas em dias de chuva. Viajariam através do campo. Ou seguiriam o velho trilho de Santa Fé em bicicletas de montanha. Sempre quisera fazê-lo. Poderiam velejar numa daquelas escunas gigantes que partiam do porto de Rockpoint com lugar para oito pessoas além da tripulação. Ou andar de caiaque observando todos os vestígios de naufrágios que existiam ao largo. Ou deixarem-se ficar em casa, vendo o cabelo um do outro ficar grisalho.

 

Naquele momento, desejava descer e ir ter com ela, encontrada de pé junto do fogão preparando talvez o pequeno-almoço e rodear-lhe a cintura com os braços por detrás, encostar-lhe o nariz ao pescoço e beijar-lhe a orelha.

 

Mas, num instante, tudo se desvaneceu. O seu coração pareceu afundar-se. Então e Nancy? E os filhos? Esquecera-os tão depressa? Esquecera o que fizera em sua defesa? Jackson deixou-se cair de novo na cama. Sentiu a cabeça febril. Estava envergonhado porque a sua mente se tinha tornado tão imprudente. O sangue circulou mais lento nas veias, ficando indolente perante a realidade.

 

Tentou recordar Nancy e quase entrou em pânico quando tudo o que conseguiu ver foi Livvy. Esta obscurecia-lhe a mente como denso fumo de incenso. Sentiu-se abafado. Não conseguia respirar.

 

Dirigiu-se à janela e abriu-a à frescura salina do ar desta ponta do continente. O Sol ainda brilhava com baixa inclinação sobre o mar e estendia-se à sua frente - uma luminosidade em movimento. A relva tinha aquele verde da madrugada, cada folha aparentemente iluminada a ouro. No jardim, Livvy estava inclinada sobre um canteiro, dispondo plantas vivazes. Trabalhava com gestos cuidadosos e depois parava, parecia sentir os seus olhos nela. Olhou sobre o ombro para cima e sorriu ao vê-lo ali, observando-a. - Bom dia - gritou.

 

Jackson acenou-lhe com a mão, retribuindo o cumprimento e sentindo-se estranhamente desligado de si próprio. - Bom dia - respondeu.

 

Ela olhou-o zombeteiramente. Mas ele apenas acenou de novo com a mão, tranquilizando-a, e afastou-se da janela. Um momento depois, quando voltou a olhar de relance, Livvy retomara a sua plantação.

 

Tinha de se ir embora. Era evidente que fora longe de mais. Ontem, ela tivera razão. Não estavam a ser justos um com o outro, não o podiam ser. O pensamento de ambos tinha de estar deformado pela dor, tal como a casa dos seus colegas, no Illinois, no ano das grandes inundações. Os belos pavimentos de pinho tinham sido lisos e macios outrora, mas depois as águas escureceram-nos e, quando finalmente recuaram, havia apenas lama e, sob esta, madeira inchada, enegrecida e deformada, como que a imitar as ondas que tinham passado por cima dela. As águas que tinham subido mais alto tinham-na mudado para sempre.

 

Jackson acreditava que o seu coração estava seriamente deformado. Tinha provas de que se transformara numa versão negra de si próprio, indigno de confiança e assassino. Não podia impor-se a Livvy. Fosse o que fosse que desejasse para si próprio ou que esperasse, não a podia deixar envolver-se mais profundamente com alguém capaz de fazer o que ele fizera. Não podia.

 

Parara na estalagem para descansar uma noite e conversar um pouco mas não esperara mudar o curso da sua vida de forma alguma. Por Livvy, tinha de seguir o seu caminho. Por Nancy e pelos filhos. Guardara, tivera de guardar, a memória da sua família como se fossem cinzas. Transportava-a como os nómadas primitivos tinham transportado os seus fogos, cuidadosamente, soprando-lhes vida de novo, mantendo-os para que os mantivessem. Só ele podia guardá-la e, se eles abandonassem os seus pensamentos, mesmo só por um instante, podia perdê-los para sempre. Podiam transformar-se em carvão, frio e duro.

 

O carro, pensou. Fugir.

 

O seu espírito abateu-se. A Quark tinha ardido. Vestiu-se rapidamente e atravessou o vestíbulo. Parou no alpendre da frente e ela olhou-o do jardim.

 

- Há café lá dentro - lembrou Livvy.

 

Ele caminhou na sua direcção. - Está bem - disse. - Vou à cidade.

 

- Precisa de boleia?

 

- Obrigado, mas vou a pé - informou ele. - Vou ver se encontro uma nova carrinha.

 

Era algo que tinha de fazer e esperava que ela compreendesse. Sabia que uma certa compreensão corria no sangue dela tal como no seu: a angústia inexorável.

 

- Uma nova carrinha - observou ela. Tentou ocultar a sua surpresa. Seria também mágoa?

 

Jackson partiu rapidamente, sem a olhar de perto ao despedir-se. Deixou-a a cuidar dos seus jardins. Estavam a nascer lupino vermelho, erva-pombinha e túlipas. Mostrara-lhe os canteiros que cavara no relvado soalheiro e a variedade que plantara. Os jardins tinham sido tudo o que a mantivera a respirar, nestes últimos anos, dissera-lhe. - Lançar uma semente é para o amanhã, não para ontem. - Fora assim que pusera a questão. Ao curvar-se sobre o solo, com as mãos sujas de terra, ao pegar numa semente verde na palma da mão para a colocar onde criasse raízes e crescesse, nesses momentos pensava na próxima Primavera, no próximo Verão, no que poderiam vir a ser dias melhores. Podia esquecer então que Howard vestia o pijama ao contrário e tinha a face mal barbeada porque se esquecera de como se fazia. Podia esquecer-se de si própria.

 

Jackson passou por todas as esperanças que ela espalhara enquanto caminhava até à rua, preparando a sua partida. Uma trepadeira tinha um tom rosa-avermelhado em explosões de cor leves como penas. Havia cachos de lupino anão cor de fúchsia, e uma planta delicada e fina com flores azul-pálido do tamanho da unha do mínimo de uma criança. Havia de lhe perguntar o nome desta quando voltasse.

 

Falariam apenas de pequenas flores azuis, da forma correcta de cozer um ovo, de como uma orla de nuvens se ia formando no horizonte. Mostrar-lhe-ia o mapa e pediria conselho sobre as melhores rotas a seguir para o Canadá, para as ilhas ao largo da costa, para outro lugar. Não falariam mais de desejar ou de esperar ou de rezar. Ele colocaria as mãos no volante e conduziria até ao amanhã. Ela ajoelhar-se-ia e plantaria qualquer coisa que florescesse quando chegasse, quando o amanhã chegasse.

 

Caminhando pela estrada da costa, calculou o dinheiro que tinha no banco. Poderia com facilidade comprar um veículo usado sem esperar pelo cheque da companhia de seguros. De qualquer forma, era provável que não lhe dessem muito pela velha Quark. Ao contrário do outro cheque. O da companhia de seguros de vida dera-lhe o suficiente para não ter de trabalhar durante muito tempo. Mas não compensara a sua perda. Nada mesmo. Quando recebera o dinheiro do seguro de vida, após o funeral, depositara-o na sua antiga conta conjunta e deixara, desde então, o saldo baixar como a areia numa ampulheta.

 

Na estação de serviço da cidade, despediu-se da Quark com uma última palmada na porta do condutor.

 

- Penso que está pronta para o triturador - comentou Sammy, o dono da estação. A sua face esfíngica abriu-se, de repente, num riso breve e seco. - Aquele motor não vale nada, agora nem mesmo para peças.

 

- Foi bom enquanto durou - disse Jackson. Lançou a lona azul de novo sobre a Quark, como uma mortalha.

 

- Podia levar o espelho retrovisor como lembrança. - Sammy piscou-lhe o olho.

 

- Tudo bem, eu tenho as minhas recordações - sorriu Jackson, afectadamente.

 

Sammy começou a rir às gargalhadas. Quando se acalmou o suficiente, acendeu o cigarro preso entre os lábios, segurando o isqueiro com ambas as mãos para travar a sua tremura.

 

- Vou chamar a Yankee Salvage e vêm buscá-la esta tarde - anunciou ele, exalando fumo como um motor a queimar óleo. Tossiu com força, revolveu qualquer coisa na boca e engoliu. - O que vai fazer agora?

 

- Não sei - respondeu Jackson. - Foi por isso que vim ter consigo.

 

- Deixe-me mostrar-lhe o que tenho aqui ao lado.

 

Jackson seguiu Sammy até um pequeno terreno perto da estação de serviço. Estacionados junto da extremidade do porto, perto do portão das traseiras do Mercado de Peixe de Rockpoint, estavam cinco carros. Podiam ver-se desde a estrada com bandeirolas vermelhas, brancas e azuis colocadas nas antenas. As bandeirolas ondulavam com a brisa.

 

- Do que anda à procura?

 

- Ainda não pensei bem - disse Jackson. As gaivotas gritavam por cima e mergulhavam para debicar no depósito de lixo aberto por detrás do mercado do peixe.

 

- Um carro fechado ou desportivo? - perguntou Sammy, tentando imitar um vendedor fluente. O facto de não existirem carros fechados ou desportivos no seu terreno não parecia preocupá-lo. Existiam apenas três modelos diferentes de carrinhas de caixa aberta, um   Camaro amarelo com a porta do lado do condutor amolgada e um enorme camião do lixo.

 

Jackson olhou primeiro para o Camaro, ficando imediatamente enregelado. Tinha o pára-brisas estilhaçado formando uma teia de aranha onde a cabeça de alguém embatera. A porta tinha marcas de tinta azul-brilhante do veículo que o atingira.

 

- Tem poucos quilómetros e um motor potente - explicou Sammy. - Posso encarregar-me de todo o trabalho de bate-chapa.

 

- Parece aziago ter um carro que sofreu um acidente destes - observou Jackson. - Além disso, não sou o tipo de pessoa que conduz um Camaro.

 

Sammy riu-se entredentes e o muco passou-lhe pela garganta. - Sei exactamente o que quer dizer.

 

Jackson subiu para a cabina da carrinha branca Ford de caixa aberta. Era espaçosa e tinha um assento rebatível onde podia colocar os seus álbuns de fotografias e os cadernos de esboços. A caixa da carrinha estava coberta por uma capa cinzenta com janelas de vidro fumado.

 

- Quanto custa esta?

 

Sammy encolheu os ombros. Pigarreou de novo, esperando que Jackon fizesse uma oferta.

 

- Que tal o preço oficial? - ofereceu Jackson.

 

- Vou pensar nisso - disse finalmente Sammy, abrindo a boca para soltar um riso semelhante a um arroto.

 

Não havia beliche no interior como existira na Quark mas podia sempre trocar a cabina com assento por uma com um compartimento para dormir. Poderia, assim, parar em qualquer parque de campismo e passar para trás durante a noite.

 

Ocorreu-lhe que já não queria, realmente, continuar assim. Mesmo enquanto andava à volta da carrinha, apreciando-a, pensou naquelas noites solitárias em que o sangue lhe latejava nos ouvidos com um ruído que se misturava com o do movimento do tráfego na estrada. Tinha havido demasiadas manhãs em que acordara com o guincho dos travões dos grandes camiões que partiam, durante os seus primeiros momentos de consciência em que tentava recordar a região onde se encontrava. Já bastava de pequenos-almoços de fazer parar o coração em zonas de paragem de camiões, sentado num compartimento sozinho em frente de um prato de ovos e batatas fritas, sem bacon. À sua volta, os camionistas cochichavam com as mulheres e ralhavam com os filhos em telefones de cartão pregados na parede de cada compartimento. Ou discutiam com os expedidores, batendo com os talheres quando os punhos caíam sobre a mesa. Mas Jackson nunca tinha ninguém a quem quisesse telefonar. Durante quanto tempo pode um homem continuar a atravessar a vida quando se sente tão perdido?

 

- Não sei para onde vou, mas fico com ela - comunicou a Sammy.

 

- Não quer dar uma volta ao quarteirão? - indagou Sammy. - Leve-a até à auto-estrada. Acelere. Até lhe dou um dólar para pagar a portagem.

 

- Disse-me que a tinha verificado - argumentou Jackson.

 

- Por dentro e por fora - assegurou Sammy.

 

- Isso chega-me.

 

- Deixe-me ser eu a pô-la a trabalhar - pediu Sammy. - Ficarei mais descansado.

 

Pôs o motor a funcionar e depois levantou o capot para mostrar o interior. - Sessenta e sete mil quilómetros. Mas tenho de lhe contar a história. Esta carrinha é do meu irmão. Teve agora o terceiro filho e a mulher disse-lhe que era melhor comprar qualquer coisa em que a família pudesse andar ou corria de vez com ele.

 

Lamentando-se, prosseguiu:

 

- Conseguiu que o meu irmão mais novo conduza agora uma carrinha mista.

 

Enquanto Sammy preenchia alguma papelada, Jackson tratou do pagamento. Registou o veículo na sua morada do Illinois, mas não sabia realmente para onde iria. Apertaram as mãos e Sammy acendeu outro cigarro. Inspirou profundamente.

 

- É amigo da Sr.ª Faraday há muito tempo?

 

- Há bastante - respondeu Jackson.

 

- É boa pessoa - comentou Sammy. - O que ela está a passar... - lamentou, abanando a cabeça.

 

- Eu sei - concordou Jackson.

 

- Custa a crer que uma mulher como aquela consiga aguentar.

 

- É mais forte do que parece.

 

E, ao dizê-lo, esperava que fosse verdade. Esperava que ela fosse suficientemente forte para suportar tudo, incluindo a sua partida. Não tinha a certeza de conseguir suportá-la ele próprio.

 

Jackson conduziu a sua nova carrinha de regresso pela estrada da praia, parando longo tempo no sinal de stop antes de virar. Não sabia qual seria a reacção de Livvy mas planeava despedir-se rapidamente. Tinha de se ir embora. Não importava para onde mas, embora fosse duro partir, não tinha escolha. Finalmente, engrenou a mudança e voltou à estalagem para ir buscar as suas coisas.

 

Os físicos conheceram o pecado e é um conhecimento que não podem esquecer. Nenhuma vulgaridade, nenhum humor, nenhum exagero pode verdadeiramente extingui-lo.

  1. ROBERT OPPENHEIMER (1904-1967)

 

Livvy rodeou a carrinha três vezes como se estivesse a lançar um feitiço. Tinha os lábios cerrados e Jackson podia ver-lhe a pele clara do pescoço, através da blusa desabotoada, corar gradualmente até ficar vermelha. Descalçou as luvas de jardinagem, agarrou-as com força numa das mãos e bateu com elas na palma da outra. Finalmente, fincou os pés no caminho de forma que o cascalho rangeu como vidro triturado.

 

- Então, vai partir? - perguntou.

 

- Estou a pensar nisso - confirmou Jackson.

 

- Bem, não lhe posso pedir que fique - concluiu Livvy. - Sou uma mulher casada - disse, pousando as mãos nas ancas.

 

- Já fiz as malas - informou ele. Não tinha escolha. As regras da afeição tinham iludido Jackson. Talvez se tivesse transformado na sua solidão, evoluindo para aquilo que o consumia.

 

- Para onde vai? - perguntou Livvy.

 

- Não sei - disse ele. Era verdade, estava apenas a seguir cegamente em frente. - Talvez para o Canadá. Pensei que talvez fosse uma ideia, um passeio agradável.

 

Ela olhou-o, incrédula, com os lábios entreabertos. - Bem, que posso dizer? - afirmou, encolhendo os ombros e cruzando os braços sobre o peito, excluindo-o o mais depressa que podia.

 

- Livvy, sinto apenas que tenho de continuar a andar - esclareceu ele. - Se parar, sou apanhado.

 

Não queria magoá-la, mas sentia que o estava a fazer. Queria dizer-lhe que ela, realmente, não o conhecia, não sabia do que ele era capaz. Não sabia o que ele fizera e por que razão abandonara a sua casa. Torturava-o a ideia de lhe dizer que tinha sangue nas mãos e que este passara pela sua pele, circulara pelo seu corpo, manchara o seu coração.

 

- Olhe, se eu não partir, o que está a sentir agora sentirá mais tarde, mas pior, muito mais intensamente. Tal como eu. A Livvy tinha razão ontem. Somos dois estranhos. Como não podemos deixar de o ser?

 

- Bem, volte de novo e venha visitar-nos - convidou ela, não escondendo a amargura da voz e as lágrimas. - É o que digo a todos os meus hóspedes.

 

- Tem uma ocupação que vai exigir tudo de si dentro de algumas semanas. Tem uma vida de que não faço parte. E... Jackson hesitou.

 

- Por favor - interveio ela, lutando por controlar as suas emoções. - Não tem de me recordar o Howard. Eu amo-o. É mais do que o meu dever. É o meu marido. Faço o que faço por amor. Nada mais, nada menos.

 

- Eu sei. Não queria dizer isso - murmurou, tomando-a nos braços. Encostou a face ao calor suave do seu cabelo. Ela consentiu por um momento e depois recuou. - Não quero que seja assim - disse ele. - Não podemos apenas ter um almoço agradável juntos e conversar sobre o nome daquelas pequenas flores azuis do seu jardim, e depois não a posso beijar na testa e dizer obrigado com convicção; não podemos separar-nos assim?

 

- Adeus, Jackson - despediu-se Livvy, pondo as mãos nas dele.

 

Jackson entrou na carrinha branca e baixou a janela.

 

Ela não se aproximou.

 

- Livvy - murmurou ele.

 

- Chamam-se miosótis.

 

Ele ficou confuso. Interrogou-a, erguendo o sobrolho.

 

- As florinhas azuis - esclareceu ela. - Chamam-se miosótis.

 

Virou-se e caminhou em direcção à casa, subiu os degraus e colocou as mãos no parapeito.

 

Pelo espelho retrovisor, enquanto se afastava, viu-a de pé ali. Foi ficando cada vez mais pequena e só. Não se mexeu.

 

Jackson viajou para o Norte seguindo pela Estrada nº 1. Estava cansado de fugir. Mas talvez não merecesse outra coisa. Num Universo composto de luz e sombra, não é razoável presumir que a alma de um homem tem idênticas qualidades? Não apenas um pouco de cada, mas ambas em toda a sua força, equilibrando-se e compondo o todo. O brilho das estrelas é, afinal, tornado tão evidente pela escuridão que as rodeia.

 

Acções e reacções correspondentes eram a forma como o Universo se mantinha em equilíbrio, sendo a única verdade em que Jackson confiava. Partia agora porque não queria esquecê-la - à sua família - receando que ficasse eclipsada pelo seu próprio movimento, por continuar? Ou partia porque escolher Livvy - escolher o amor - significaria não esquecer mas recordar tudo? Falara-lhe da escuridão que o engolfara. Mas não lhe falara da escuridão que causara - um crime apenas seu.

 

Desejava ter-lhe confessado como vigiara o homem. Richard Polk, liberto sob fiança, retomara as actividades da sua miserável vida. E Jackson dedicara o seu dia a vigiá-lo, movimentando-se entre bares e cafés baratos. O assassino, Jackson soube através de um artigo no jornal, era também pai. Tinha um filho da idade de Nathan que vivia com a mãe em Pittsburgh.

 

Polk regressou ao seu trabalho de venda de produtos a restaurantes, deslocando-se de carro para visitar os clientes. Com carta apreendida ou não, ia continuar atrás do volante. Não fingia respeitar a lei enquanto estava sob fiança até ao julgamento pelo «homicídio rodoviário» da família de Jackson. Estava completamente embriagado quando colidira com o carro de Nancy. Levi dissera-lhe que Polk estava tão embriagado que mal se conseguia aguentar de pé encostado à sua carrinha para urinar enquanto os polícias apareciam finalmente para retirar do carro os corpos da família de Jackson.

 

- Os julgamentos não interessam - dissera Jackson a Levi. O mal estava feito e não era preciso ser um Einstein para saber que não é possível voltar atrás no tempo.

 

O assassino conduzia um carro emprestado, um Camaro castanho-amarelado que parecia demasiado pequeno para o seu volume. Jackson sabia que o podia mandar prender por conduzir com a carta apreendida, mas de que serviria? O advogado de Polk libertá-lo-ia numa hora. Não fazia diferença aos clientes de Polk que este tivesse morto uma família. Nem um só dos gerentes de restaurantes seus clientes recusou continuar a comprar-lhe.

 

- Continua a fazer a tua vida - aconselhara Levi a Jackson. Deixa-me tomar conta das coisas por ti.

 

Mas a vida de Jackson evaporara-se, transformada numa réstea de luz prateada que viajava por entre as nuvens. Sentia-se levado a procurar o que podia fazer e, assim, apanhou o rasto da vida do assassino. Nos terríveis dias calmos após a tempestade do funeral, Jackson seguiu Polk, como uma sombra, para toda a parte. Estacionou à porta do bangaló alugado de Polk que tinha no pátio alguns móveis de jardim ferrugentos e depois seguiu-o, passando despercebido, enquanto ele visitava clientes oferecendo fornos para piza, máquinas de lavar loiça industriais ou peças de carne. A sua empresa fornecia géneros aos bares e restaurantes mexicanos da cidade de Wendell. Polk recebia as encomendas e a empresa enviava um camião para fazer as entregas. Jackson seguiu-o até ao Silver Saddle, ao Mandarin Mae’s e ao Casa Grande, locais onde Jackson jantara com a família quando saíam à noite. Agoniava-o pensar que os seus caminhos já se poderiam ter cruzado. Enquanto ele e Nancy encomendavam um jantar antes da hora habitual, afastavam as azeitonas para que Nathan não se engasgasse, Polk poderia ter andado a rondar a cozinha, de barriga encostada a uma mesa auxiliar de aço inoxidável, a atacar um prato grande de enchilada coberta de queijo.

 

Depois do trabalho, sempre seguido por Jackson, Polk parava sempre numa loja de conveniência para comprar uma ou duas embalagens de seis cervejas e ia para casa. Jackson observava-o do seu carro enquanto o assassino bebia até adormecer sozinho em frente da imagem colorida da sua TV. A face inchada, a boca frouxa e os olhos lacrimosos e porcinos de Polk estavam marcados por anos de tristeza e alcoolismo, mas Jackson não podia esquecer o que ele fizera a Nancy e aos filhos.

 

Numa sexta-feira à noite, Polk conduziu até ao Rusty Wheel, um bar seu cliente. O parque de estacionamento estava cheio de estróinas, a noite agitava-se e o terreno exalava carrinhas de caixa aberta e carros do último modelo numa longa e constante corrente semelhante a um suspiro. Polk não ia lá para vender. Ia para beber e ficar embriagado. Um ébrio em casa já era mau, mas um ébrio que pensava conduzir até sua casa constituía uma arma mortífera. Polk só saiu quando o parque estava quase vazio. Jackson lutava contra o sono.

 

Sob as luzes de vigilância brancas e intensas do parque de estacionamento, Jackson viu Polk tropeçar na porta. Cambaleando pelo terreno de cascalho, Polk entrou no seu Camaro. Jackson parou ao lado e baixou a janela.

 

- Não pode conduzir nessas condições - avisou Jackson.

 

- Vá à merda! - gritou-lhe Polk. Olhou para Jackson com os olhos vermelhos coruscantes e, de repente, houve um vislumbre de reconhecimento.

 

Sim, queria gritar Jackson, sou eu. Matou a minha família nas mesmas condições em que está agora. E pode facilmente voltar a matar esta noite. Jackson tentou atravessar-se à frente para o bloquear, mas Polk girou, conduzindo bem para um embriagado, e partiu. Jackson manobrou e seguiu-o.

 

A estrada de regresso à cidade era tão recta como o acelerador linear de partículas que experimentara em Princeton, mas Polk conduzia como se seguisse por um sinuoso desfiladeiro de montanha. Um carro que passava encostou-se à berma enquanto ele guinava para a outra via, adquirindo velocidade. Jackson estava determinado, batendo no volante, gritando pela janela aberta. Cortou a frente a Polk no local onde a estrada fazia um ângulo recto à entrada da cidade, atirando-o para a berma até um bueiro escuro. Não queria saber se qualquer deles seria atirado através do pára-brisas.

 

Jackson travou com força, saindo da estrada. Saltou do carro e desceu apressadamente a vala inclinada até ao Camaro, que se voltara. As rodas ainda giravam no espaço enquanto o motor crepitava. Polk saíra do carro e encostava-se a este enquanto levava a mão ao único arranhão que lhe sangrava na face.

 

- Seu filho da mãe! - gritou a Jackson.

 

Polk trepou pelo talude para desferir um murro que acertou nos ossos duros da face de Jackson. Este cambaleou para trás com a surpresa. Oscilou por um momento para recuperar o equilíbrio e, finalmente, caiu de joelhos. A fúria tirou-lhe as palavras da boca e endureceu como aço contra o solo. Sentiu o metal do sangue na boca.

 

- Merda para si! - gritou Polk. - Vou matá-lo, seu pulha maldito!

 

Estava ao pé de Jackson e girava os braços no ar numa série de socos ferozes e oscilantes.

 

Jackson sentiu que uma sombra lhe eclipsava o coração. Rolou para longe e pôs-se de pé quando Polk socava de novo. A fúria explodiu dentro de Jackson e quase lhe apagou a razão. Existia apenas uma raiva sanguinária. Atirou-se a Polk, que cambaleou para a frente, com os olhos negros brilhantes pelo desafio. Jackson ainda avançava quando Polk tropeçou, ouvindo-o bater com o ombro durante a descida. Ouviu um baque e voltou-se, vendo Polk estendido nas pedras de drenagem que marcavam o talude profundamente cavado, com o corpo enrolado de forma pouco natural e gemendo debilmente. O sangue corria-lhe da cabeça sobre os recortes da pedra calcária esbranquiçada em que o seu crânio embatera.

 

Jackson ficou junto do corpo sem sentir nada. Não tinha a menor sensação de alívio, alegria, fim. Tinha apenas sangue a correr-lhe do nariz e um gosto amargo na boca que lhe provocava vómitos. Trepou pelo declive da vala e, ignorando o toque das sirenes que se aproximavam, conduziu até casa num pânico frio e selvagem. Agora, era também um assassino.

 

Jackson parou num desvio da auto-estrada costeira, com o rádio sintonizado, com o volume baixo, numa estação universitária que tocava uma lenta melodia de saxofone de Jack Coltrane, tentando reunir forças para se controlar. Pensou na última vez que fugira e não conseguiu deixar de pensar nisso. Naquela noite, matara Polk em desesperada legítima defesa ou seguira-o e assassinara-o a sangue frio? O próprio Jackson não tinha a certeza. Fosse como fosse, Jackson era responsável. Polk estaria vivo e a cumprir a sua pena se Jackson não o tivesse morto.

 

Não sentira qualquer satisfação em ver extinta a vida que lhe roubara a sua família. A vingança era tão estranhamente oca. Não havia qualquer ressonância ou profundidade no acto, apenas a dor que infligia a Jackson. A verdade que o perseguia era que roubara um pai a um filho. O rapaz de Polk precisava dele, por muito defeituosa ou fracturada que fosse a sua relação. Talvez a pudessem ter salvo, um dia, quando o rapaz fosse mais velho. O filho acabara de fazer uma visita de fim-de-semana prolongado de Verão antes de Polk se lançar na sua cega bebedeira e matar a família de Jackson. Quem, pensou Jackson, tivera de contar ao rapaz que o pai estava agora morto?

 

O amor de um pai, Jackson sabia-o, fluía dentro de nós como o sangue. E os filhos, com a sua enorme capacidade de perdoar, podiam fechar os olhos àqueles rasgões no tecido da alma de um pai - ou de uma mãe. Jackson sabia quantas saudades tinha do próprio pai, apesar das suas imperfeições. Era reconfortante o tempo que tinham partilhado bem como os ovos que tinham comido ao pequeno-almoço ao longo dos anos. Sempre recordara a rudeza daquela face masculina encostada à sua bochecha de menino. E o cheiro a Chiclets e a Old Spice quando o pai se inclinava para lhe dar uma palmadinha na cabeça depois de arrumar o casaco e o chapéu no armário do vestíbulo ao regressar a casa vindo do trabalho. E também os blocos de papel de registo de cor verde repousante que tirava da sua mala preta Samsonite para Jackson escrevinhar com lápis. Jackson roubara aqueles momentos a Polk e ao filho. Por isso, sofreria sempre.

 

Após a morte de Polk, não esperara pelo nascer do Sol. A extremidade negra da noite estava ainda corrida sobre o alvorecer quando fechou a casa, transportou alguns pertences e as suas preciosas fotografias, e partiu a toda a velocidade. Conduziu sem objectivo na direcção de Saint Louis, sem parar de tremer. Talvez fosse do ar fresco da noite mas, mais provavelmente, era medo ou remorso. De manhã, depois de tomar um bagel e um café numa loja de uma zona comercial, Jackson trocou o carro familiar pela Quark. De qualquer forma, precisava de ser auto-suficiente para não ter de alugar um quarto de motel, com tecto de estuque, para dormir uma noite. Como toda a gente, lera em criança Travels with Charley, de Steinbeck, e agora, com o seu desespero, aquilo de que mais precisava, e que mais o atraía, era essa forma de viagem independente.

 

Jackson calculava que, se era procurado por assassínio num estado, correria risco em qualquer outro. Durante semanas, conduziu apenas de noite, dormindo de dia como um fugitivo, tomando banho em tanques nas paragens para descanso, comendo em apinhados restaurantes de camionistas onde se podia esconder num compartimento em frente de uma chávena de café. Passado algum tempo, começou a correr alguns riscos, ficando ocasionalmente num motel, viajando durante o dia quando era mais fácil e seguindo uma rota a caminho do Sul para poder visitar a mãe na Florida.

 

À medida que o tempo passava, compreendeu que nem sequer era seguido. Não viu afixado qualquer cartaz com a sua descrição. Uma vez, chegou a entrar numa estação de Correios para o verificar. E ali, na parede, havia uma dúzia de cartazes referentes a assassinos, violadores e ladrões de bancos, mas nenhum lhe dizia respeito. Isso não alterou, porém, os seus sentimentos. Apagar a vida de outro ser humano mudara-o, tornara-o reticente em relação a locais públicos, fazia o seu coração acelerar quando um carro-patrulha passava por ele na auto-estrada com as sirenes a apitar e expunha uma tendência paranóica traçada no seu íntimo como um veio de quartzo. Durante alguns meses, sofrendo o silêncio e a solidão da estrada, Jackson começou a acreditar que o FBI o estava a seguir. Suspeitava de que alguma brilhante equipa táctica planeava a sua prisão a partir de um centro de comando subterrâneo nas Montanhas Rochosas. Quando compreendeu como isto era ridículo, a sua culpa voltou, decuplicada, imobilizando-o durante dias a fio, enrolando-o numa bola fetal de tristeza e remorso.

 

Era pior safar-se. Era pior.

 

Não quisera matá-lo. Ou quisera? Não sabia. Jackson não era violento em relação a outrem e, exceptuando uma escaramuça no colégio, nunca participara sequer numa luta. O acidente que provocara a queda de Polk passava na memória de Jackson como um pesadelo. Polk atirara-se primeiro, é verdade, mas Jackson incitara à violência. Perseguira-o. Não havia dúvida de que quisera ver Polk morto, mas o momento em que uma fantasia irada se torna uma realidade inesperada é gélido.

 

Polk teria voltado a matar, Jackson tinha a certeza disso. Não havia dúvida de que estava embriagado e, embora o tráfego fosse reduzido naquela noite, podia ter atingido alguém a grande velocidade. Porém, nesses choques, os embriagados pareciam sempre sair ilesos. Contudo, mais tarde ou mais cedo, a bebida tê-lo-ia morto. Ainda assim, Jackson sabia que errara. Entrara em pânico e fugira, quando deveria ter ido à polícia. Certamente, Levi Bloom conseguiria convencer um júri de que a morte de Polk fora acidental. Não havia nada de premeditado nela - excepto o facto de Jackson o ter seguido, os dois terem discutido e a seguir Jackson ter fugido. Era tão culpado como Polk e a compreensão desse facto alimentava a sua ansiedade geral.

 

A única paz que lhe fora concedida desde esses dois terríveis golpes que lhe tinham tirado tudo - a mulher, os filhos, a imagem de si próprio como alguém dirigido pelas sensatas regras da ciência - proviera de Livvy. A ela revelara a sua angústia por ter tido de enterrar o que mais amara. E havia nisso um lenitivo. Sentira-o imediatamente. Ficara assustado, é verdade, com a sua força e as suas implicações. Mas precisara disso. Como precisara disso! Como precisava ainda!

 

Havia algo mais que ele tinha de dizer. E precisava também de algo mais dela.

 

Inverteu a marcha. Se ela conseguia enfrentar a sua tristeza com aceitação e mostrar-lhe o caminho para além dela, talvez também conseguisse enfrentar a sua culpa. Pelo menos, ele estava pronto a admitir que receava o futuro devido aos erros que cometera no passado. Estava pronto a admitir que não queria deixar Livvy. Ainda não. Não deste modo.

 

De início, devemos aceitar que o mundo é semelhante a uma esfera, quer por esta forma ser a mais perfeita de todas, pois é um todo integral e não necessita de junções, quer por ser a figura com o maior volume, e assim seria especialmente adequada para compreender e conservar todas as coisas.

                   NICOLAU COPÉRNICO (1473-1543)

 

Jackson sentia a areia da praia, fria e húmida, nas suas mãos. Fez-lhe recordar a testa de Nathan quando tinha febre. Nathan estava na idade em que apanhava todas as infecções que passavam pela escola. Nancy dizia que parecia que as crianças trocavam germes como quem troca cromos de basebol. Jackson encostou-se a um grosso tronco de madeira arremessado à praia. O céu estava carregado de camadas de nuvens cinzentas que lhe passavam sobre a cabeça como tráfego na estrada. Sentiu-se bem ali sentado, esperando por ela.

 

Sabia que não podia perder duas vezes a sua família. Estariam sempre com ele, enchendo-o de recordações dos anos que tinham passado juntos. Mas tinha de sobreviver e continuar pois, de outra forma, quem teria força suficiente para os recordar como deveriam ser recordados, com alegria, com festa: o facto de o cabelo de Franny nunca mais crescer e eles pensarem que ela teria sempre uma penugem de pêssego. Ou a repentina comunicação de Nathan de que desejava conduzir um táxi para ganhar a vida. E Nancy que sabia exactamente o que devia dizer para tudo ficar bem depois de ele ter tido um dia mau. Estariam sempre com ele, continuando as suas vidas como se ainda as tivessem, o que o acalmava. Não ia perdê-los outra vez.

 

De alguma forma, sentia-se como um dos electrões vagabundos que registara no laboratório, sibilando pelo espaço em busca de outro elemento instável cuja órbita poderia completar. Gradualmente, foi compreendendo que talvez tivesse tido necessidade desta instabilidade, para a sentir na totalidade. Cada partícula em movimento no Universo está a tentar encontrar o lugar certo onde ficar estável e completa nas suas ligações. Jackson tinha de encontrar a forma de deixar os electrões em órbita em torno dos átomos que compunham as moléculas, que formavam as células, que criavam as reacções químicas para que o seu corpo e a sua mente trabalhassem, dando tempo a estes elementos para encontrarem uma nova orientação.

 

Caminhando na sua direcção na praia vinha toda a sua esperança, envolta no casaco de lã cor de vinho e andando contra o vento. De certa forma, juntos encontravam uma frágil estabilidade emocional. Sentia-se atraído por ela, pelo fulgor do cabelo, pela intensidade do rubor à flor da pele, pelo modo de rir tão natural apesar da forma como a vida a tinha despedaçado. Sentia-se atraído para a parte dela que conseguia continuar a desejar e não conseguia fugir-lhe mais. Ela fazia-o sentir-se completo de novo.

 

- Sei que não podemos ficar juntos - disse Jackson, levantando-se quando ela se aproximou.

 

Livvy parou, fitando-o nos olhos. Nunca os vira tão profundamente verdes. Ela nada respondeu e, por um momento, Jackson pensou que estava zangada. Por fim, caminhou simplesmente para o seu abraço. Abraçaram-se durante longo tempo, mais apertadamente do que alguma vez tinham ousado. Ao separarem-se, Livvy pegou-lhe na mão e beijou-lhe os dedos um por um. Beijou o anel que usava no quarto dedo. Depois, colocou-lhe a mão sobre o coração dela. - Não sabia o que ia fazer sem si - murmurou. - Entrei em pânico.

 

Jackson entrelaçou os dedos nos dela e ergueu-lhe a mão até à sua boca, tocando com os lábios a pele sobre as delicadas veias azuis. Livvy olhou-o, com o cabelo esvoaçando e batendo sobre os olhos. Ele afastou as madeixas com os dedos e beijou-lhe a pele macia atrás da orelha. O calor que emanava dela fê-lo notar como o ar ficara frio.

 

- Venha para a estalagem - sugeriu ela. - Parece que voltámos ao Inverno. Mas, apesar do ar frio, ele sentiu a Primavera enquanto a seguia pela rua para o interior e, através do vestíbulo e da sala de jantar, até ao quarto dela. O quarto era pequeno, mobilado com simples antiguidades dos Shakers, tão diferente das zonas públicas da casa.

 

Livvy fechou a porta entre eles e o resto do mundo.

 

- Tem a certeza? - murmurou Jackson, desejando que ela estivesse certa e desejando-a. Os seus lábios brincaram com o lóbulo da orelha dela.

 

Acenando com a cabeça, Livvy inclinou-se para trás para o beijo dele. Pressionando a boca contra a dela, sentiu um suspiro que a atravessou e lhe chegou ao íntimo mais profundo. Livvy mantinha-se encostada a ele, agarrando-se como se a força da gravidade a sustivesse. Seguindo o contorno do seu queixo com as pontas dos dedos, prosseguiu com os lábios, movendo-os como num murmúrio demasiado fraco para se entender. Ele sabia apenas o que este lhe dizia sem palavras.

 

Deitaram-se na cama, uma grande cama de madeira com quatro colunas que se estendiam como braços abertos no ar. Jackson passou-lhe as mãos pelo belo cabelo. Parecia seda contra a sua pele. Teve de fazer um grande esforço para se afastar. Isto não estava certo. Primeiro, precisava de lhe dizer o que fizera, como era negro o seu coração, como era imperfeita a única dádiva que tinha para oferecer.

 

- Livvy, eu devia... - começou, parando para respirar.

 

Ela selou-lhe a boca com um beijo. - Chiu - fê-lo calar. - Tudo o que quero agora é este momento, aqui. É tudo.

 

Os seus beijos aumentaram de intensidade e ele abraçou-a. Ela passou-lhe as mãos por dentro da camisa, dedilhando com as unhas ao longo das costas. Tudo nele a desejava. Então, ela afastou-se, encontrando os seus olhos mesmo enquanto procurava os botões e os desabotoava um por um. Jackson despiu-lhe lentamente a camisola de lã, tremendo ao ver surgir o estreito busto, as curvas suaves, a sua ondulação cor de pérola.

 

Deitaram-se e, quando a tocou, ela arqueou-se com urgência. Os dedos de Jackson afagaram os pequenos mamilos cor-de-rosa que coroavam os seus seios redondos. Beijou a pele ruborizada, ligeiramente sardenta, das suas clavículas. Ela apertou-lhe as costas com as mãos. Enquanto se moviam juntos, Livvy murmurava o seu nome. - Jackson - dizia, transformando em notas musicais aquelas duas sílabas. - Jackson.

 

A sua mente fechou-se a qualquer som, a qualquer pensamento, excepto àquelas notas, excepto a ela.

 

Depois, ficaram deitados vendo cair as sombras do fim da tarde, vendo o que acontecia quando a Terra se afastava do Sol. Ele pensou no amor, no calor e na conservação da energia. Imaginou que a primeira lei da termodinâmica poderia ser alterada apenas o suficiente para se aplicar ao amor. - Se o amor - disse-lhe - se comportasse como a energia, não poderia ser destruído, pois não? Apenas transferido para outrem.

 

Ela sussurrou, sonolenta, desde o vale suave do seu ombro.

 

- É apenas uma teoria - murmurou Jackson.

 

- Soa bem - respondeu Livvy.

 

- Vou fazer umas experiências e ver o que descubro.

 

- Por favor, professor - implorou ela.

 

Conseguia senti-la a sorrir encostada a ele e depois sentiu a sua face descontrair-se no sono. Jackson amparou-a e começou a cabecear ele próprio até que, durante o sono, a perna de Livvy se mexeu e o empurrou.

 

Em queda livre, todos os corpos perto da superfície da Terra, caem com a mesma aceleração e, portanto, o peso dos corpos, que é a força da gravidade exercida sobre eles, é sempre proporcional à sua massa.

                       GALILEU GALILEI (1564-1642)

 

Ao formular uma hipótese científica, é importante escolher o postulado mais simples que melhor explique um conjunto de factos. Para a maioria dos alunos de Jackson, formular uma hipótese era visto como um exercício tão difícil como atravessar o rio Hudson com uma caixa de cem palitos de madeira. E, para eles, provar uma teoria requeria a paciência e a dedicação sobrenatural de um Einstein. Mas Jackson sabia que apenas requeria tomar as medidas certas na altura certa.

 

O método científico requer que o processo de recolha de dados seja exacto, permitindo que pressentimentos conduzam a teorias generalizadas que, por seu lado, formam hipóteses. Uma hipótese requer prova palpável para se tornar uma lei física. Jackson pensou, extravagantemente, nalgumas da sua própria autoria: corpos que viajam em direcções opostas na mesma órbita colidirão; ou mesmo, quando dois corpos se atraem apenas outra força pode quebrar as suas ligações ou, humoristicamente, um corpo continuará a cair através do espaço até ficar sem espaço.

 

Por vezes, Jackson pensara no paralelismo entre as leis do Universo e as leis do coração. Encontrar uma ligação dependia da perspectiva do observador. Um astrónomo mal conseguirá ver a Terra se apenas olhar para o céu, tudo o que verá será uma sombra ocasional na Lua. E pode perder de vista um cometa espectacular se estiver a observar a parte errada do Universo. O coração de Jackson teria sido governado pelas mesmas leis que mantêm os planetas alinhados mas deixara, com demasiada frequência, a sua cabeça atravessar-se no caminho. Jackson estivera a combater a natureza, a sua natureza. Sentia-se como uma testemunha de acontecimentos que tinham um ímpeto fora do seu alcance. A vida era como o magnetismo, movia-se com uma força que lhe era própria.

 

Quando acordou, Livvy não estava. Encontrou-a no jardim usando apenas uma camisa de dormir de algodão. Era pouco depois do nascer do Sol, embora a luz estivesse amortecida por nuvens baixas. O ar estava calmo e suave. Estava ajoelhada no meio de um dos seus canteiros. Remexia freneticamente nas flores.

 

- Lagartas - disse ela, num tom de voz cortante e tenso. Tirava as lagartas que encontrava e deitava-as num jarro que enchera de cerveja. - São vorazes. Comem tudo. Olhe para isto. Só desde ontem - protestou, com a face muito corada. Pensou em levar-lhe a mão à testa para ver se tinha febre.

 

Ela mostrou-lhe uma folha crivada de marcas de dentadas semicirculares. - Vão dar cabo de tudo. Ajude-me! - suplicou, lançando-lhe um olhar frenético.

 

- Que quer que eu faça? - indagou Jackson, ajoelhando-se ao seu lado.

 

- O que eu estou a fazer.

 

Jackson procurou as carnudas lagartas verdes. Pareciam macarrão demasiado cozido entre as pontas dos seus dedos. Deitou-as no jarro da cerveja onde se contorceram por um momento e depois desfaleceram num coma alcoólico.

 

- Veja como a terra está seca - observou Livvy. - Há dias que não cai uma boa chuvada. Onde é que já se viu não chover na Primavera?

 

Enquanto observava o céu para ver se havia sinais de chuva (o que era quase certo, pensou Jackson) ela levantou-se e correu para a mangueira para ligar um aspersor. - Veja se as apanha todas - ordenou.

 

Jackson pousou o jarro da cerveja com as lagartas mortas e virou-se para ela. - Livvy, passa-se alguma coisa? Isto é como fazer jardinagem com os Boinas Verdes.

 

Estava de costas para ele. Continuou a trabalhar na ligação da mangueira, pondo finalmente o aspersor a funcionar no máximo. Enquanto este começava a deitar gotas de água e depois a borrifar, ela foi à garagem. Quando voltou, arrastava um saco de adubo composto.

 

- Livvy - disse Jackson. - Pelo menos, vista-se. Não pode estar aqui a trabalhar em camisa de dormir.

 

- Por que não?

 

- Que aconteceu? Ontem à noite...

 

- Ontem à noite... - repetiu, levantando as mãos. - Ontem à noite, traí o meu marido. O Howard. Ele está indefeso. Sou tudo o que ele tem. E traí-o. Tem alguma ideia de como isso me faz sentir?

 

- Livvy! - exclamou Jackson, aproximando-se dela.

 

- Deixei-me levar - confessou. Tirou as luvas de jardinagem e atirou-as ao chão. - Bolas!

 

- Lamento, Livvy. Lamento muito - disse, aproximando-se mais. Ela vacilou perante o seu gesto. Então, ele recuou um passo. - Devia ter calculado. Disse-me que podíamos estar a ver mal as coisas. Eu também sabia. Fui eu. Devia ter resistido. Devia ter continuado, devia tê-la deixado. Nunca quis fazer-lhe isto, levá-la a isto. Oh, Livvy! Por favor, culpe-me a mim, não a si.

 

Era o seu negro coração, sabia-o. Levara-o ainda a cometer outro crime. E cometera-o voluntariamente. Contra ela.

 

Livvy subiu os degraus até à casa e entrou sem olhar para trás. E, lentamente, ele afastou-se, sentindo a distância entre eles aumentar de centímetros a quilómetros, a anos-luz. As suas vidas, compreendia-o agora, tinham-se enrolado na noite anterior como arame farpado. Causara-lhe mal com um acto de amor. Não devia ter deixado que se envolvessem tanto. A paixão fizera-os actuar tão impulsivamente que agora os remorsos dela o enchiam de uma auto-aversão que forçava lágrimas ardentes do fundo dos olhos.

 

Caminhou em direcção à cidade. A luz estava mortiça e o dia parecia já a acelerar para a noite. Estava a escurecer devido à tempestade que se aproximava. Seguiu até à extremidade do porto. Nas docas, um veleiro estava a ser colocado na água por uma grua. Parou para ver o barco balouçar lentamente no ar, seguro por dois largos cintos de forte lona industrial, deixando a quilha maciça espetada como a perna de um bebé saindo da fralda. Um homem fez sinal com a mão ao operador da grua e, quando o barco deslizou completamente na água, ergueu ambas as mãos para sinalizar o fim da operação.

 

Para lá do estaleiro, do outro lado da entrada do porto, havia um longo pontão de pedra que se estendia pelo mar dentro como um dedo indicador. Jackson caminhou pelas grandes pedras rectangulares. Parecia uma estrutura mais sólida do que o pontão oposto, formado de uma mistura de pedras cinzentas pontiagudas para protecção da praia. Em conjunto, formavam uma calma enseada no porto, quebrando a força das ondas que atravessavam a baía.

 

Um homem que usava um boné manchado de óleo puxado sobre os olhos beberricou de uma garrafa metida num saco de papel e deitou uma linha de pesca à água. Jackson sentou-se na extremidade da parede de pedra, deixando as pernas pendentes e sentindo a áspera rocha raspar-lhe a barriga das pernas. Um caranguejo, que parecia feroz e pré-histórico, chocou contra um emaranhado de longas tiras de algas, arqueou a cauda farpada e mergulhou na água.

 

Qualquer que fosse a ligação que ele e Livvy sentissem, estava marcada pelo desgosto e pelo anseio. Com Nancy, o amor fora tão fácil para ele, a forma como se tinham unido era natural e não comportava esta dor. Fora ingénuo da sua parte pensar que as coisas alegres da vida voltariam tão facilmente. A vida agora era um trabalho tão suado e sujo como partir pedra.

 

Jackson conhecia bem as estranhas aparições causadas pelo tempo. A luz leva tempo a atingir o olho humano a partir de um objecto distante em movimento, curva-se, tremeluz e esbate-se. Os objectos traçam órbitas na escuridão e, enquanto a sua luz reflectida viaja durante anos através do tempo e do espaço, prosseguem as suas órbitas elípticas. O que atinge o nosso olho, ao espreitar pelo telescópio de qualquer observatório situado no topo de um monte afastado das luzes da cidade, é um fantasma. Tal como uma fotografia, é apenas um registo do que em tempos existiu. De qualquer forma, os nossos sentidos são tão imprecisos para medir as nossas experiências que falham quando estão sob o cerco das emoções. Assim, temos de confiar nas imagens fantasmagóricas do que parece ser. Se a força que actuava no coração de Jackson era tão poderosa como sentia, então talvez as suas emoções tivessem distorcido o que ele pensava ver tal como a refracção da luz através da água.

 

Queria voltar a seguir em frente e encontrar consolação. Em algum lado. Algum dia. Sentia que, com Livvy, vira pelo menos a luz para além da sombra.

 

O ar parecia húmido como se a chuva iminente estivesse a infiltrar-se lentamente. Pensou voltar à carrinha e partir pela estrada, mas virou-se e viu o pescador tirar da água uma cavala, lisa e azul. O homem sorriu a Jackson enquanto a retirava do anzol e a lançava para um balde de plástico branco. Jackson conseguiu retribuir o sorriso e voltou a olhar para o oceano.

 

Precisava de ir para casa. Ao limpar o seu nome, limparia o caminho para o seu futuro, qualquer que ele fosse. Já não importava que tivesse de passar vinte e cinco anos fechado numa cela suja. Ao enfrentar a sua culpa, talvez conseguisse dominar parte dela ou, pelo menos, acalmá-la. Nunca estivera tão errado na vida como quando fugira. Veja-se onde isso o levara, levara-o a esta mulher que lhe mostrara que o calor ainda existia no mundo, que ele ainda o conseguia sentir.

 

Precisava de ponderar outras coisas para além da sua própria tristeza. Não tinha outra solução senão deixar Livvy para trás. Passado todo este tempo, Jackson compreendeu que a sua viagem era apenas um começo. Tinha muitos quilómetros a percorrer. Ainda tinha de viajar durante anos.

 

E a Livvy, pobre Livvy, continuava também a sua viagem. A distância estendia-se à sua frente. Tinha de ir. Howard era apenas a concha do homem que ela amara mas, agora, Jackson conseguia ver como ela ainda se importava profundamente com o marido. Howard tinha as mesmas mãos. Tinha os mesmos olhos. E, mesmo que não se conseguisse lembrar da devoção que devia a Livvy, esta não podia esquecer o que lhe devia. Livvy ainda amava o marido, como Jackson amara a sua mulher. Mas havia mais do que uma memória para ela cuidar.

 

O pescador chegou ao fim e levou o balde de cavalas até à sua carrinha. Jackson observou um barco desportivo às riscas vermelhas que dava voltas estonteantes ao largo da praia. O zumbido do motor cortava bruscamente o ar.

 

- Tenho andado às voltas à sua procura - ouviu Livvy dizer ao seu lado. Os seus olhos fitavam também o barco.

 

- Tenho estado aqui.

 

Ela sentou-se na pedra lisa e fria. Uma gaivota mergulhou para debicar uma porção de isco viscoso que o pescador deixara ficar.

 

- Lamento, Jackson - murmurou ela. - Lamento mesmo muito.

 

- Não - objectou ele. - Não diga isso.

 

Livvy enfiou o braço no dele e ficaram a olhar a água, com a brisa lançando o seu cabelo contra a face de Jackson. Este conhecia, ambos conheciam a forma como a bala de ponta oca da dor penetra com limpeza ricocheteando nos ossos e nos tecidos até não deixar nada no interior. Conheciam o modo como a pele se mantém unida enquanto tudo no interior se dissolve numa polpa trémula. Pensou no esforço que fora necessário para se manter de pé junto das sepulturas abertas para a sua família. Ultrapassar o sentimento de que devia ficar com eles fora o golpe mais cruel. Quer Jackson se tivesse enroscado na terra verminada perto da sua família quer não, era indiferente - vivia como se o tivesse feito. Mas Livvy parecia não ir cometer o mesmo erro. Tinha de acompanhar o marido, era tudo. Estava a meio da sua dor, enquanto se estendia ano após ano, chorando uma lágrima de cada vez. Parecia-lhe excruciante.

 

Mesmo assim, não podia negar que o beijo dela dera vida ao seu corpo e transformara a sua dor em algo que ele controlava, em vez de um nó corredio em torno do pescoço. A tragédia aproximara-os. Mas também os manteria afastados.

 

- Vai-se embora? - perguntou finalmente Livvy.

 

- Sim - respondeu ele. - Vou regressar. Tenho de ir, mesmo que seja apenas para explicar por que parti. A minha vida nunca se recomporá se não voltar agora.

 

Ela acenou com a cabeça. - Por vezes, voltar é a única forma de podermos avançar - suspirou.

 

- Ficará bem? - perguntou ele.

 

Livvy fitou-o com olhos tristes. Mas acenou com a cabeça. - Só tenho de me lembrar de que esta doença é do Howard, não minha. Vou ultrapassá-la. Por ele.

 

- Tome conta de si. Prometa-me apenas isso.

 

Ela sorriu. - Prometo. Recordou-me que existem boas razões para ultrapassar esta provação - afirmou, apertando-lhe o braço. - Sabe, perguntou-me onde eu gostaria de ir, um local onde nunca tivesse estado?

 

Ele assentiu com a cabeça.

 

- À Grécia - informou ela. - Nunca lá estive e sempre desejei conhecê-la. Mas tinha-me esquecido. Não tinha qualquer outra realidade a não ser este lugar, estas circunstâncias, e então ontem à noite sonhei com aquele azul. Sabe aquele azul que mostram sempre nos anúncios de cigarros com a Grécia como cenário. Sonhei com aquele mar Egeu, azul. E agora consigo imaginar-me numa daquelas ilhas rodeada daquelas ruínas antigas e daquela cor azul.

 

- Recordá-la-ei assim - afirmou Jackson. - Recordar será como desejá-lo para si.

 

- Acredita em rezar agora, hã?

 

- Começo a acreditar - respondeu, pegando-lhe na mão e beijando a pele clara e macia.

 

- Talvez possamos fazer isto noutra vida? - disse Livvy enquanto as primeiras gotas de chuva caíam sobre eles.

 

- Rezarei por isso.

 

Jackson conduziu para Sul ao longo da costa. Estava um bom dia para viajar, embora a maioria das pessoas não pensasse assim. A chuva batia contra a janela e os limpa-pára-brisas trabalhavam freneticamente. O vento sacudia a carrinha. Mas conduzir assim era um trabalho absorvente. E o vento fazia a cabina da carrinha parecer o lugar mais confortável, mais seguro, para viajar. Gostava da sua nova carrinha e da forma como ia sentado muito acima do tráfego. A cabina estava recheada de superfícies macias e moldadas e de instrumentos de fácil leitura. Enquanto passava a zona plana e húmida das castanholas e os pântanos salgados da costa norte do Massachusetts, decidiu dar à carrinha o nome da estrela Cygnus.

 

Jackson tornara-se semelhante à Cygnus X-1, uma estrela gigantesca presa numa órbita em torno de uma companheira invisível que, segundo os astrónomos, poderia ser o que restava da sua gémea há muito desaparecida - um buraco negro. A sua órbita contornava o espaço vazio que era a sua família. Embora tivesse chegado tão longe, mantinha-se ainda na sua órbita.

 

Saiu da interestadual e recordou a sua viagem para Norte quando não tinha tanta pressa de chegar aos sítios. Viu uma construção que lhe atraiu a atenção, um restaurante de beira de estrada que acabara de abrir para a época. Estacionou a Cygnus no parque de cascalho do Clam Box, um restaurante de Verão numa tranquila estrada costeira perto de Ipswich. O local era um autêntico exemplar histórico de castanhola frita, em forma de caixa de cartão em pé a abarrotar de anéis dourados de castanholas fritas. As castanholas fritas congeladas de Howard Johnson não eram nada ao lado destas fatias frescas e finas, cobertas de pão ralado. Jackson comeu uma boa dose e, através de uma névoa de molho tártaro, sentiu os últimos farrapos de melancolia a esfumarem-se. Apesar de estar a prejudicar as suas artérias, fazia o que estava certo para a sua alma e esse era o primeiro passo para aprender a ser bom para si próprio.

 

Uma estranha mistura de nervosismo e excitação flutuava no seu estômago e era mais do que uma barriga cheia de castanholas. Marcou o número de Livvy de um telefone público num posto de gasolina. A sua voz no aparelho saudou-o e acalmou-o.

 

- Amo-a, Livvy - comunicou-lhe. - Era tudo o que queria dizer.

 

Desligou o telefone. Deixara uma fotografia para Livvy na sua mesa de cabeceira. Era a fotografia Polaroid que o perito de seguros tirara a Jackson, de pé, junto da carcaça da Quark. Pensou que talvez fosse essa a forma como ela gostaria de o recordar.

 

Pareço ter sido apenas um rapaz a brincar na praia, divertindo-me a encontrar, de vez em quando, uma pedra mais macia ou uma concha mais bonita do que o normal, enquanto o grande oceano da verdade se estendia todo por descobrir à minha frente.

                    SIR ISAAC NEWTON (1642-1727)

 

Duas noites mais tarde, Jackson chegou à entrada da sua casa. Estava exausto. Quebrara a viagem com breves pausas mas, de resto, conduzira sempre em frente. Agora que sabia o que tinha a fazer, estava impaciente por começar.

 

Os faróis varreram a relva cuidadosamente cortada, que brilhava sobre a frente da casa e ficou ali com o motor a trabalhar. A casa parecia tão perfeita que quase esperava ver uma luz acender-se repentinamente no quarto do andar de cima, e Nancy à sua espera.

 

A casa ainda tinha o mesmo cheiro ao abrir a porta. Era um cheiro a limpo, abafado, de pavimentos de madeira polida e o odor suave e a espuma de crianças. Passou bastante tempo antes de entrar no vestíbulo depois de subir os degraus da frente. Sentiu o impulso de chamar e anunciar que estava em casa, mas sabia que não havia ninguém para responder. Alguém tomara conta da casa enquanto ele estivera ausente. O relvado estava tratado, as sebes podadas e as folhas retiradas das caleiras do telhado. Dentro de casa, a madeira brilhava. Não havia teias de aranha poeirentas pendentes do tecto, como esperara. A luz ainda estava ligada, embora não tivesse pago uma só conta desde que partira. Foi de sala em sala acendendo as luzes. Até o candeeiro antigo da sala de estar, que nunca tivera a oportunidade de reparar, recebera fios novos. Na cozinha, alguém retirara toda a comida do frigorífico mas deixara o congelador cheio.

 

Eram os cozinhados de Nancy que enchiam o congelador. Ravioli feitos em casa, recheados com beterrabas e cebolas, caixas de plástico com suco de carne de galinhas do campo que ela fervera, e tomates que cozera até fazer um molho grosso. Havia pãezinhos doces atrás num saco e Jackson embrulhou dois em folha de alumínio, colocando-os no forno.

 

Abriu a torneira do lava-louças da cozinha e lavou as mãos. Salpicou a cara e secou-se com um pano de cozinha limpo, tirado da gaveta onde estavam habitualmente. Quando os pãezinhos ficaram prontos, achou-os secos devido ao efeito do congelador. Comeu-os mesmo assim e desfizeram-se na boca como uma hóstia.

 

No andar de cima, todas as camas estavam feitas e os brinquedos e as roupas cuidadosamente arrumados. Apetecia-lhe chamar de novo Nathan ou Franny ou Nancy, mas para quê? Esperaria que eles respondessem e ouviria apenas o silêncio. No quarto grande, a manta preferida de Nancy estava estendida aos pés da cama. Estava artificialmente colocada, como uma peça de museu destinada a dar a impressão de que as pessoas que ali tinham vivido haviam saído apenas por um momento um século antes.

 

Jackson deixou-se cair na cama. Estava demasiado cansado para se importar com quem tinha tomado conta da casa. De qualquer forma, no seu estado de espírito, não se teria importado se tivesse chegado a uma casa cheia de ratos roendo os fios eléctricos. Era evidente que alguém ainda se importava com o local que em tempos dera à sua família tanto conforto, mas estar outra vez naquela casa, com todas as memórias pululando na sua alma, fazia parecer que as suas emoções estavam em curto-circuito como o velho candeeiro.

 

Podia ter-se deitado sem mudar de roupa, estirado em cima da colcha, mas desejava o conforto da casa por que ansiara. Quando se deitou entre os frescos lençóis, compreendeu como almejara a suavidade da cama que ele e Nancy tinham partilhado. Os lençóis de algodão estavam gastos de tanto serem lavados, ficando aveludados. Puxou a manta fofa até ao queixo. Quantas horas tinham passado nesta cama, recostados na cabeceira de ácer, lendo até tarde nas noites de sábado, dormindo até tarde aos domingos, concebendo o Nathan e a Franny. Quando os filhos eram bebés, dormiam entre Nancy e Jackson, aprendendo os seus próprios ritmos de respiração e sono. Nancy podia voltar-se e amamentá-los quando choravam e Jackson podia embalá-los até adormecerem de novo. Deitados naquela cama tinham aprendido a ser uma família, a protegerem-se uns aos outros do mundo exterior. Mas Jackson não fora capaz de os proteger do pior do mundo.

 

Deitou a cabeça na almofada e o pulsar da estrada abrandou na sua cabeça. A respiração acalmou e em breve estava dominado por um sono profundo e sem sonhos.

 

De manhã, quando saiu do duche, encontrou o reverendo Michael Fitzhume na sua casa de banho. Atirou uma toalha a Jackson, que a enrolou em torno da cintura. Fitzhume abanou a cabeça. Vestia roupa de trabalho e um boné de basebol dos Cubs.

 

- Pensei que aquela carrinha seria sua - disse ele. - Chegou mesmo a tempo de me ajudar a acabar de aparar o seu relvado.

 

- Então tem tratado disto? - indagou Jackson.

 

- O mérito não é todo meu. Millie, a minha governanta, vem uma vez por semana limpar o pó e regar as plantas.

 

- Não me recordo de lhe ter deixado uma chave - estranhou Jackson, pegando noutra toalha para secar o cabelo.

 

- Nem era precisa - replicou Fitzhume. - Os rapazes da minha paróquia, em Chicago, ensinaram-me algumas das suas manhas.

 

- Oh! - admirou-se Jackson, sem saber se devia ficar agradecido ou aborrecido. Procurou roupas que ainda estavam no saco e vestiu-se, decidindo que só devia estar agradecido. - Obrigado.

 

- É para isso que servem os amigos - concluiu Fitzhume, de forma lapidar. Fitou Jackson longamente. - Suponho que já sabe que Polk morreu.

 

Jackson acenou com a cabeça enquanto uma flecha de nervos lhe atravessava o estômago.

 

- Aconteceu na noite em que se foi embora - informou Fitzhume, arqueando uma sobrancelha enquanto fixava os seus olhos azuis em Jackson. Pareciam dois pedaços de céu a olharem para ele - como os olhos do próprio Deus.

 

A barriga de Fitzhume estava maior e a sua pele clara parecia corar mais facilmente com o afluxo de sangue que enchia os vasos capilares irregulares do seu nariz bolboso, mas ainda sabia como lidar com Jackson. Resfolegou para quebrar a tensão e bateu nas costas de Jackson. - Sabia que voltaria para casa quando estivesse preparado. Vamos beber um café e vai contar-me onde é que, em nome de Deus, se tem escondido.

 

Fitzhume comunicou que tinha uma caixa de Donuts no carro e, enquanto saía para os ir buscar, Jackson fez café na cozinha. Sentiu um pedaço de papel no bolso da camisa e tirou-o. Era a nota que Livvy lhe deixara na primeira manhã para explicar que tivera de sair. Deixou os olhos seguirem as voltas delicadas da sua caligrafia. O papel quebradiço enrugou-se nos seus dedos. Imaginou como ela o devia ter escolhido cuidadosamente. Talvez tivesse encontrado as folhas vasculhando numa loja especializada de uma rua calcetada da zona antiga de uma daquelas cidades costeiras por que ele passara no Maine. Desejava prendê-la de novo, silenciosa e ternamente. Ansiava por aqueles sentimentos de esperança e conforto que tinham partilhado juntos.

 

- O café já está pronto? - gritou Fitzhume enquanto voltava à cozinha.

 

Jackson dobrou a nota de Livvy e voltou a colocá-la no bolso.

 

- Está quase.

 

- Então, que se passa? - perguntou Fitzhume. Era mais uma exigência do que uma pergunta. Fitzhume sempre desfechara golpes directos quando estava impaciente por obter respostas.

 

- O princípio do abismo - respondeu Jackson.

 

- O quê?

 

- A minha própria invenção para explicar o abismo que nos separa das coisas que fazem as nossas vidas correr bem.

 

Fitzhume passou os dedos pelo espesso cabelo branco e abanou a cabeça com grande desapontamento. - A minha paciência esgotou-se há meses, Jackson - irritou-se, fazendo soar a força do púlpito. - Sabe que não brinco. Por isso, não me tente. Foi-se embora sem dizer uma palavra e fiquei estonteado de fúria. As pessoas confiam em mim cem vezes por dia, por que não me deixou ajudá-lo?

 

- Não podia - replicou Jackson. - Tinha de fugir e tentar ultrapassar esse abismo. Mas isso apenas me levou a regressar.

 

Jackson levou a mão à testa. Fitzhume já sabia o que acontecera naquela noite. - Estava apenas a pensar em ciência, é tudo.

 

- Ciência! - explodiu o reverendo. - A ciência não explica o que acontece aqui! - acrescentou Fitzhume, batendo no peito. As suas faces ficaram coradas como uma maçã. - Vi os olhos sem vida de homens que não sentiam qualquer remorso pelos seus actos. Ouvi confissões no corredor da morte sem estremecer. Podia ter-me procurado, Jackson.

 

- Eu sei - disse Jackson, calmamente. - Mas, por vezes, um homem não precisa de um confessor. Eu precisava apenas de tempo para acertar as coisas comigo próprio.

 

Fitzhume soltou um grande suspiro e deu uma palmada na coxa com a mão carnuda e calejada. Abanou a cabeça. Virou costas e depois voltou-se de novo, tremendo de emoção e procurando as palavras certas. Finalmente, deu um salto e deitou café em duas canecas, empurrando uma para Jackson.

 

- Não quero dizer que fosse obrigado - explicou Fitzhume. - Mas ambos perdemos algo aqui. E depois, pensar que o tinha perdido... É claro que rezei mas Deus não nos dá respostas directas nem endereços.

 

- Lamento - disse Jackson.

 

Fitzhume resfolegou e estendeu a mão para tirar metade de um Donut coberto de açúcar. Deglutiu-o com um gole de café. - Posso imaginar o que aconteceu naquela noite, Jackson - prosseguiu, arqueando de novo uma sobrancelha. - A vingança não compete ao homem.

 

- Não me pregue sermões. Agora não.

 

- Isso é como pedir-me que não respire - retorquiu Fitzhume.

 

- Não estava a pensar em vingança naquela noite - falou precipitadamente Jackson, sentindo as cordas da emoção pressionarem a sua voz. - Estava desfeito.

 

- E a intenção, Jackson - frisou o reverendo. - Apenas a intenção me interessa.

 

- Mas depois do que ele lhes fizera...

 

- Fazer espectáculo agora não os fará regressar - criticou Fitzhume, colocando uma palma robusta sobre a mão de Jackson. - Tem simplesmente de aceitar e continuar.

 

- É tudo o que quero - afirmou Jackson, com a voz insegura. - Por isso, deixe-me chegar lá da única forma que sei.

 

Fora com Livvy que aprendera a ver para fora de si próprio. Mostrara-lhe que a dor podia ser canalizada, fundida na busca persistente de um objectivo. Sabia, por Livvy, que a aceitação da sua responsabilidade e dor era a única forma de poder esperar retomar a vida entre os vivos. Talvez nunca ficasse inteiro mas agora sentia que sabia onde estavam as peças.

 

- Está aqui por causa deles? Ou por causa de Polk? - interrogou Fitzhume, inclinando-se para a frente e apoiando o seu peso na mesa com os seus grandes braços.

 

- Voltei por mim - confessou Jackson.

 

Na manhã seguinte, procurou Levi Bloom no seu escritório. Era cedo e ele estava sozinho, afastado da tagarelice dos clientes e da sua secretária. Estava a usar a ponta de um lápis para retirar as passas de um muffin de farelo, colocando-as de lado sobre um exemplar do jornal não convencional da Universidade, aberto à sua frente.

 

- Levi - interpelou Jackson.

 

Levi sobressaltou-se e quase entornou o chá de ervas sobre a secretária. - Merda! Jackson Tate, o homem que desapareceu sem deixar rasto.

 

Levi limpou as mãos com um guardanapo e foi apertar a mão do amigo. Puxou Jackson para um breve e desajeitado abraço.

 

- Como estás?

 

- Estou bem - respondeu Jackson, afundando-se numa das poltronas de couro, compradas em segunda mão e colocadas em frente da secretária de Levi.

 

- Bem? É tudo o que tens a dizer? Quanto tempo passou? Um ano?

 

- Quase - suspirou Jackson. Já não conseguia conter-se por mais tempo e as palavras brotaram. - Vim aqui para te dizer que o matei, Levi.

 

- Alto, vamos parar por um minuto - interrompeu Levi, levantando-se da sua cadeira e fechando a porta do escritório. Agora, que diabo estás a tentar dizer?

 

- Deixei Richard Polk a morrer naquela noite e depois abandonei a cidade - confessou.

 

Levi inclinou-se sobre a extremidade da secretária e olhou fixamente Jackson. - Espera, espera, espera - atalhou. - Richard Polk estava embriagado na noite em que saiu da estrada. Os exames sanguíneos provaram que tinha bebido mais seis cervejas do que o limite legal. O impacte cuspiu-o completamente para fora do carro. Quando caiu na vala, partiu o pescoço. É a versão oficial, a versão oficiosa, e tudo o mais.

 

- Não quero isto encoberto - afirmou Jackson lapidarmente.

- Fi-lo. Devia cumprir pena ou ser executado ou seja o que for que este estado faz aos assassinos. Não posso fugir mais.

 

Levi bebeu mais um gole de chá. - Descontrai-te por um segundo, está bem? Posso oferecer-te alguma coisa? Chá? Sumo? Injecção letal?

 

- Não brinques com isto - pediu Jackson. - Compreendes o que estou a tentar dizer-te?

 

- Claro - assentiu Levi. - Tentei contactar-te para saberes que estava tudo bem. Calculava que a culpa te atingiria a certa altura. Conheço-te, e não queria que te fosses entregar ao FBI. A quem mais contaste isto?

 

Jackson pensou em Fitzhume mas a conversa fora tão privada como se tivesse ocorrido na escuridão do confessionário. E pensou em Livvy, mas mantivera-a no desconhecimento e nunca lhe contara os pormenores sujos e incriminadores. Tudo o que ela sabia era que ele tinha de voltar para casa para resolver a sua vida. - Mais ninguém sabe.

 

- Ainda bem, porque se soubesses os favores que devo para que o teu nome e o de Polk não fossem associados neste caso, não farias nada em contrário.

 

- Levi, estou preparado para enfrentar as consequências. Posso dizer-te exactamente como Polk e eu lutámos, como ele se atirou a mim, como caiu para trás naquela vala e eu o deixei ali a morrer.

 

- Com o que acabas de me contar - afirmou Levi - podia argumentar legítima defesa de cinquenta maneiras diferentes. Que se passa realmente?

 

- Sou responsável por pôr termo a uma vida, tal como ele matou... - Jackson recostou-se, desleixadamente, na cadeira e levou as mãos à cara. - Ele matou-os e eu estava só a tentar...

 

- Estavas a segui-lo, esperando que se embebedasse e voltasse a conduzir - afirmou Levi. - Uma testemunha, fora do bar, ouviu alguém a segui-lo. Tu, calculo eu.

 

- Que devo fazer, Levi? Talvez esteja livre da lei, mas não de mim próprio.

 

- Tentar que te prendam não mudará as coisas - replicou Levi. - Tenho andado à tua procura porque estou cem por cento certo de que conseguiria que o tribunal considerasse tudo inadmissível - explicou, inclinando-se sobre a secretária na direcção de Jackson.

 

- Olha, não sei se alguém merece mais do que tu voltar a ser feliz. E sei que é assim que toda a gente nesta comunidade pensa.

 

Jackson estava abalado. Esperara ser levado do escritório de Levi algemado pelo próprio chefe da polícia. Confessara um acto que o atormentava, que o afastara da sua casa e dos seus amigos, e ninguém queria prestar-lhe atenção. Nenhuma solução o satisfazia. Não haveria nada que soltasse o açaimo do seu coração?

 

- Não é suficientemente duro que eles tenham partido? questionou Levi. - Porque queres fazer isto a ti próprio? Despedaçares-te assim? Esquece tudo. Richard Polk era um bêbedo, sempre foi, sempre seria. Tudo o que fizeste foi apressar o inevitável. Chama-lhe um serviço público.

 

- Um serviço público? Levi, ele tinha um filho.

 

- Jackson, estás a levar isto longe de mais.

 

- Estou?

 

Levi estendeu a mão e folheou o calendário de secretária. - Vamos para algum lado falar sobre isto. Vou telefonar à Kate, ela arranja uma baby-sitter para as crianças e esta noite vamos os três jantar.

 

- Não posso - respondeu Jackson. Levantou-se e dirigiu-se para a porta.

 

- Bem, então e amanhã?

 

- Depois falamos - despediu-se Jackson, fechando a porta atrás de si. Tinha de fazer o que o seu coração lhe ditava.

 

O Promotor de Justiça convocou uma audiência do júri de instrução logo que Jackson se entregou. Levi estava ao lado de Jackson, sentados a uma longa mesa, numa sala do tribunal pequena e acanhada. Enfrentavam um grupo de homens e mulheres que constituíam o júri. Na sala, havia um murmúrio de conversação sob o zumbido grave de um aparelho de ar condicionado próximo que enviava suaves ondas de vibração através da superfície da água do jarro de vidro colocado sobre a mesa à sua frente.

 

- Olha, Jackson, vamos ter de usar tudo o que aqui temos - murmurou-lhe Levi. - Lembra-te de que isto não é um julgamento, é apenas uma forma de o Promotor de Justiça determinar, a partir de uma audiência com júri, se há razão para te acusar oficialmente de um crime. Mas este é um caso emotivo e, se te sentires emocionado quando estiveres a testemunhar, mostra-o. Isso contribuirá muito para esclarecer o teu estado de espírito naquela noite.

 

- Não vou chorar quando for a minha vez, Levi - objectou. - Só quero dizer-lhes o que aconteceu.

 

Levi levantou os olhos dos papéis espalhados em frente da sua pasta. - É para isso que estamos aqui, não é?

 

O Promotor de Justiça, Marty Reynolds, era um homem corpulento que gemeu enquanto se levantava com esforço da cadeira e começava a interrogar Jackson. Era o mesmo que tinha acusado Polk de homicídio em menor grau e fixara uma fiança suficientemente baixa para ele sair da prisão. Reynolds tinha uma cabeleira grisalha, espessa, cuidadosamente penteada, e os sapatos chiavam enquanto se movimentava em frente de Jackson.

 

- Sr. Tate - indagou Reynolds, a certa altura, pousando a mão na madeira escura e envernizada da mesa. - Seguir Richard Polk, fazê-lo sair da estrada e iniciar uma luta mortal não é qualquer escaramuça de bar que eu saiba. Seguiu Richard Polk, naquela noite, com intenção de o matar?

 

- Estava furioso com ele - respondeu Jackson. - Desejava, certamente, vingar-me. Como me poderia sentir de outra forma? Ele matou a minha família e, como Promotor, o senhor deixou-o sair daqui em liberdade - declarou, vendo pelo canto do olho Levi a encolher-se.

 

- Por favor, responda apenas à pergunta, Sr. Tate - intimou Reynolds.

 

- Não, nunca foi minha intenção matá-lo. Talvez quisesse impedi-lo de matar outra pessoa na estrada.

 

- Porque ele estava embriagado? - perguntou Reynolds.

- E porque o senhor é tão bom cidadão?

 

- Bem, de certa forma, sim - respondeu Jackson. - Penso que... Sei que a minha razão para o fazer parar naquela noite foi o facto de ele estar demasiado embriagado para conduzir. E, quando começou a atacar-me, com palavras e com os punhos, não me consegui conter. A fúria dominou-me - confessou Jackson, mexendo no nó apertado da gravata e virando-se na direcção dos homens e mulheres do júri. - Na Física newtoniana, os corpos reagem com uma acção igual e oposta. E, naquela noite, foi tudo o que fiz, reagir.

 

- Parece quase bíblico, como uma Regra de Ouro - disse Reynolds com sarcasmo.

 

- Calculo que, de certa forma, seja assim - aceitou Jackson, tentando não reagir. - Pelo menos, para mim. Depois do que ele fez à minha família, não sei como me poderia ter comportado de maneira diferente.

 

Após o intervalo do almoço, seguiram-se os testemunhos do médico e de vários polícias antes que o júri estivesse pronto a deliberar. Ao terminar o dia, Jackson acompanhou Levi a um bar escuro do outro lado da rua, em frente do tribunal. Tinham combinado encontrar-se ali com Fitzhume. E este esperava-os num compartimento com um copo de cerveja à sua frente. Sentaram-se a seu lado e pediram bebidas.

 

- Acho que correu bem - comunicou Levi, incisivamente, a Fitzhume. - O Promotor de Justiça pode mesmo acusar Jackson de assassínio.

 

- Sabes que não é isso o que quero - contrapôs Jackson.

 

- Não estás a deixar-lhes muito por onde escolher - observou Levi, soltando o nó da gravata como se fosse o cabo de abertura de um pára-quedas.

 

- Estou preparado para aceitar aquilo de que me quiserem acusar.

 

- Padre, já viu um mártir maior? - interrogou bruscamente Levi.

 

- Bem, na verdade, conheço outro...

 

- Não estou a tentar ser mártir - interrompeu Jackson.

 

- Meu Deus - gemeu Levi. - Da forma como Reynolds o estava a sondar, prepara-se para o levar a julgamento e estripá-lo. Para mim, isto não é novidade. Tens de estar pronto para isto correr mal, Jackson.

 

- Não posso mudar o que fiz.

 

- Claro que não - concordou Levi. - Mas não tens de rastejar e receber uma sova. Algumas das coisas que disseste hoje abriram várias brechas no teu caso.

 

- Basta - rugiu Fitzhume. - E o advogado dele. Não o pode condenar por defender os seus princípios. Deve acompanhá-lo durante todo o processo.

 

Levi bebeu um grande gole de cerveja. - Eu sei.

 

Um jornalista aproximou-se, ousadamente, da mesa com o seu bloco de apontamentos aberto na mão. - Algum comentário sobre a forma como correu hoje a sessão?

 

Levi atacou. - Não estamos autorizados a fazer comentários enquanto o júri de instrução não deliberar.

 

- É verdade que planeou o assassínio de Polk com antecedência, Sr. Tate? - perguntou o jornalista.

 

Levi levantou-se e enfrentou-o. - Não foi assassínio. Ao longo de todos os meus anos de advogado, nunca vi um caso mais evidente de legítima defesa.

 

- Calma, Levi - aconselhou Fitzhume. Puxou Levi de novo para o compartimento. O jornalista recuou para as sombras do bar.

 

Quando o júri de instrução deliberou, Jackson estava certo de ter cometido um erro. Fora realmente a coragem que o forçara a voltar a Wendell e a admitir o que fizera, ou ficara apenas cansado de fugir? Não sabia. Porém, durante o tempo que passara desde que deixara Livvy, sabia como desejara frequentemente contactá-la. Tinha saudades do seu bom-senso, da sua perspectiva sobre a vida e da sua bondade. Nunca precisara de nada mais.

 

O júri de instrução deliberou que a morte de Polk fora acidental e que Jackson apenas podia ser acusado de condução perigosa. Reynolds afastou a acusação com um aceno da mão. E, na sala silenciosa, Jackson ficou sentado, atordoado, enquanto o júri saía.

 

- É tudo - disse Levi. Pôs a mão nas costas de Jackson. - Acabámos.

 

- Mas eu confessei.

 

Do átrio exterior, Jackson conseguia ouvir Reynolds falando aos jornalistas.

 

- Ninguém aqui achou que tivesses feito algo de errado - declarou Levi. - Vai para casa e começa a tua vida de novo.

 

Fitzhume entrou e sentou-se perto de Jackson. Olhou para ele durante longo tempo.

 

Jackson abanou a cabeça. - Libertaram-me.

 

- Existe uma coisa chamada justiça, Jackson, e deves aceitá-la quando surge no teu caminho - frisou Fitzhume. E, a seguir, levou Jackson a casa.

 

O veredicto do júri conspirava contra o sono e Jackson ficou na escuridão da sua cama, inquieto e zangado. Tinham ignorado as provas forenses e a sua confissão nada significara. Por que o tinham libertado? Podiam ter recomendado que ele fosse acusado de homicídio involuntário, no mínimo. Mas não o tinham feito.

 

Não era um mártir. Jackson pensara apenas que entregar-se à justiça lhe poderia trazer alguma paz. Ao tentar assumir a sua responsabilidade, pensou que poderia curar-se. Tudo o que quisera fora reparar a cisão que destruíra a sua vida. Mas as coisas não tinham funcionado assim. Que um júri declarasse a morte de Polk como acidental ou como assassínio não era realmente o que interessava. O tormento de Jackson era que ele pensava ter morto um homem, nada mais. Pagar pelo seu crime era a única forma que ele conhecia de acalmar a tempestade no seu íntimo.

 

Jackson agitou-se e virou-se de lado. Estava mais irrequieto do que alguma vez estivera quando fugia do seu acto. A sua mente corria como um carro descontrolado, rodopiando ao máximo na sua exaustão emocional.

 

E então sentiu-a. Uma mãozinha quente encostada à sua cara. O cheiro a pó-de-talco e a champô No More Tears. Imaginou que sentia uma gota de água cair na sua face como se fosse sacudida do cabelo ainda húmido de Nathan. Ouviu o risinho de Nathan e pensou nas suas brincadeiras ruidosas a caminho da cama, depois do banho. Recordou o seu corpo brilhante e corado, quente da água do banho e cheirando a limpo e perfumado devido ao sabonete. Sentiu aquela mãozinha quente e húmida na face, tão nítida na escuridão, tão acariciadora. Sentiu o peito encher-se de um calor suave que o acalmou. E depois desapareceu.

 

- Nathan - murmurou.

 

Não houve qualquer resposta. O único som que atravessava a noite era o zumbido abafado do frigorífico a trabalhar na cozinha no andar de baixo.

 

O cheiro a café acabado de fazer acordou-o. Fitzhume voltara a entrar e trouxera bagels. Na manhã calma, sentaram-se os dois juntos, ouvindo o zumbido dos insectos no relvado orvalhado. O Verão estava quase no fim. Passara um ano completo desde o acidente.

 

- Não tenho respostas - confessou Jackson. - Não consigo explicar o que se passa no meu coração.

 

- Nenhum de nós pode - garantiu Fitzhume.

 

- Eles ainda têm poder sobre mim - replicou Jackson. Desde que partiram, aconteceram coisas que escapam às leis da Física.

 

Fez uma pausa durante o tempo suficiente para olhar o balouço de corda suspenso dos ramos baixos de um sicómoro no pátio das traseiras. Parecia imobilizado no ar calmo. - Senti Nathan tocar-me na face ontem à noite. É impossível, não é?

 

- Será? O Jackson é que é o homem de ciência - sorriu Fitzhume.

 

- Não me venha com essa.

 

Fitzhume encolheu os ombros. - O perdão chega-nos de muitas formas, meu amigo.

 

Desta vez, Jackson decidiu aceitá-lo.

 

A vida de Jackson regressou em breve a uma órbita própria. Decidiu passar grande parte do seu tempo sozinho, deixando os lábios recortados das suas feridas cicatrizarem. Mas havia saídas ocasionais com Fitzhume, e Levi convidava-o regularmente para jantar em sua casa. Não era fácil, porém. Fitzhume tinha a sua congregação e Levi Bloom tinha a sua mulher, Kate, e duas lindas filhas. Jackson tinha-se a si próprio.

 

Agora que fora capaz de deitar os seus crimes para trás das costas, por vezes sentia um certo prazer em estar sozinho. Sentia saudades da família a cada momento, é claro, mas o sofrimento suavizara-se numa dor surda que conseguia superar com uma actividade realizadora. Hoje, encontrara exactamente essa folga. Acabara um novo quadro nessa tarde e saboreava a satisfação da criação e da conclusão. Também estivera a antegozar o prazer de uma refeição no seu restaurante preferido, concretamente o salmão grelhado com rosmaninho e as batatas habituais. E então, de repente e sem a menor esperança de que alguma vez pudesse acontecer, surgira o postal na sua caixa do correio.

 

A cozinha do Plant 609 abria para a sala de jantar e podia ver-se a sua actividade frenética enquanto o cozinheiro chamava as empregadas pelos nomes para que fossem buscar os pratos pedidos. Era como uma representação ao jantar encenada em torno de um grelhador a lenha. Sabia que Livvy o teria apreciado também, e surpreendeu-o - entusiasmou-o - pensar tão casualmente nela. Mas agora podia fazê-lo. Repentinamente. Tinha licença, tinha o seu postal na mão, podia afagar-lhe o contorno recortado com as pontas dos dedos como prova, como garantia. Passara tanto tempo desde que permitira à sua mente pensar nela. Tornara-se uma mera pedra-de-toque. Nos piores momentos, para seu consolo, permitia-se, ocasionalmente, a sua recordação passageira - a recordação momentânea de vê-la a trabalhar no vaso da janela, a expressão da sua face quando o oceano se lhe reflectia nos olhos, os seus dedos na pele dele. Mas depois fazia um esforço para passar a outras questões, questões práticas. Tratou de todas as suas obrigações.

 

Como último acto na qualidade de advogado de Jackson, Levi Bloom encontrara o filho de Richard Polk, Steven. Este e a mãe ainda viviam em Pittsburgh e nada tinham herdado além da dívida relativa ao enterro de Polk. Jackson pediu a Levi que redigisse os documentos necessários à abertura de uma conta-poupança. Steven Polk nunca teria falta de artigos escolares, de refeições quentes ou de roupas novas. Levi explicar-lhes-ia que a conta-poupança tinha sido criada por um dos sócios da firma do pai. O filho não deveria ter de pagar pelos pecados do pai.

 

De regresso a Wendell, Jackson sentiu que algo tinha mudado no seu íntimo, irrevogavelmente, e até determinar o que tinha sido ou como viver com isso de forma sensata, teve de se pôr à prova. Dessa forma, talvez aprendesse com os seus erros. Não havia dúvida de que voltaria de novo à Física. Esta estava presente na sua mente como poesia memorizada. E tinha novas ideias para tornar as complexidades rígidas das leis que governam o Universo mais compreensíveis para os seus alunos. Talvez ele próprio tivesse mesmo começado a compreendê-las melhor. Mas por agora precisava de olhar para o todo e não apenas para os átomos.

 

O seu interesse voltou-se para a arte que em tempos servira apenas a sua ciência. Pouco depois de voltar para casa, deslocara-se ao Instituto de Arte de Chicago para tomar conhecimento da forma como os grandes pintores tinham utilizado a luz e a sombra nas suas telas. Sabia que as ondas e as partículas compunham a luz mas pouco conhecia sobre o jogo da luz no mundo. Num estúdio, começou a dominar as técnicas de que precisava para expor a luz e a sombra do seu próprio coração.

 

Dentro de algum tempo, reunira uma colecção de trabalhos que revelavam, com segurança, o que ele pensava nunca poder ver por si próprio. Fez vários quadros onde o perigo parecia manchar uma cena familiar aparentemente simples. Num outro, uma quinta, pintada com ousadas cores circenses, dominava uma paisagem que se atrofiara. E havia muitos desenhos de uma estalagem costeira envolta num nevoeiro isolante, além de outros estudos de uma mulher caminhando sozinha ao longo de uma extensa praia.

 

Embora o trabalho lhe agradasse profundamente, não o sustentava no plano financeiro. Apresentava-o em exibições conjuntas e, se lhe faziam uma oferta por um quadro ou um desenho, não a aceitava. Não estava preparado para os deixar partir. Ela ainda não os vira.

 

Jackson não esquecera Livvy. Deixara apenas o tempo passar. O seu postal inesperado fê-lo pensar que talvez agora o destino e o tempo fossem melhores colaboradores. Enquanto jantava no Plant 609, os seus pensamentos voltaram-se para Livvy. Bastava-lhe olhar para o seu postal que mostrava uma ilha do Egeu, azul, para saber que se poderia ir mais longe. Ela encontrara a cor azul dos seus sonhos, encontrara-se ali, no meio dela. Fosse o que fosse que lhe tivesse acontecido, encontrara mesmo assim o caminho para os seus próprios sonhos. Seguindo os traços grossos da caneta com a ponta do dedo, sentiu as peças da Terra voltarem a unir-se sob os seus pés. Viu as mesmas cores que ela via, as mesmas possibilidades de começar de novo.

 

Caro Jackson,

Pode uma vida começar de novo? Tenho tido saudades suas.

Livvy

 

E, em letras pequenas no fim do postal, dizia que se encontrava numa ilha grega com um nome mágico - Miconos.

 

Recordou como a vira pela primeira vez envolta num casaco de lã e luminosa contra o cinzento da praia do Maine, a forma como se tinham encontrado, sós com a sua dor secreta. Fora encantadora para ele na sua fragilidade e também na sua determinação. Durante o tempo em que tinham estado separados, a memória da sua ternura comovera-o frequentemente. A sua mente leria as palavras dela, seguindo-as como as curvas, e as espirais da sua caligrafia. Analisaria e ponderaria os seus próximos passos. Avançaria cautelosamente, maravilhando-se sempre com este facto comprovado, com este facto em que podia acreditar - já não tinha de fugir.

 

                                                                               Andrew Mark 

 

 

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