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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


COMO DA PRIMEIRA VEZ / Mike Gayle
COMO DA PRIMEIRA VEZ / Mike Gayle

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

COMO DA PRIMEIRA VEZ

 

                   O Presente

                   Terça-feira, 16 de Janeiro de 2003

18h45

Com o controlo remoto numa das mãos e uma Budweiser na outra, estou esparramado no sofá, em frente do televisor de ecrã gigante, a ver Matrix, numa cópia em Dvd. Embora, na realidade não esteja a ver o filme; isto é, não estou a seguir a história do princípio ao fim. O que faço é apontar o controlo remoto para o leitor de DvD e escolher as melhores sequências do filme que, para mim, são sempre aquelas em que a banda sonora aumenta de volume, de preferência antes de uma explosão, um tiroteio ou uma cena de pancadaria em câmara lenta. Sei exactamente onde encontrar os melhores excertos dos meus filmes preferidos - desde a cena do assalto ao banco em Heat - Cidade Sob Pressão até à maior explosão de Missão Impossível (a última, a do comboio dentro do túnel) e à cena de tiros no final de Léon, o Profissional (quanto a mim, talvez o melhor tiroteio de sempre). Devo confessar que estou a apreciar a busca ainda mais do que é habitual, pois acabo de gastar um montão de dinheiro num sistema de cinema em casa, com sistema de som surround, de momento a funcionar tão alto que faz vibrar o espelho colocado por cima da lareira.

Mostro um sorriso ao procurar a minha cena favorita em Matrix, aquela em que a personagem encarnada pelo Keanu Reeves enfrenta o detector de metais com todo o arsenal pendurado ao pescoço. O barulho é tremendo. Os baixos da banda sonora parecem bater-me em cheio no peito. É fantástico. Sinto-me como se estivesse num ringue de boxe com Mohamed Ali e quando os tiros começam entro em verdadeiro êxtase. Nunca imaginei que o televisor pudesse ser tão bom. Nunca imaginei que houvesse formas de tornar ainda melhor a coisa que mais me agrada no mundo. Graças ao meu sistema de som surround, não são apenas as explosões que se tornam mais nítidas, pois há novos sons, mais subtis, que perdia ao ver os filmes no meu velho televisor normal. Ter o som separado em colunas colocadas à frente (à esquerda, ao centro e à direita), mais um sub-woofer para controlar as explosões é uma coisa, mas, juntando-lhes as duas colunas colocadas atrás, à esquerda e à direita, sinto-me quase como se estivesse no filme com Mr. Reeves. Consigo ouvir balas a assobiarem-me do lado esquerdo da cabeça, o som da queda dos cartuxos que são ejectados da arma e caem à minha direita, enquanto o ruído surdo das paredes a desmoronarem-se se faz sentir a toda a minha volta.

No entanto, com o desenrolar da cena apercebo-me de que algo está errado ou, melhor, que não bate absolutamente certo. Consulto o manual que acompanha o sistema de som surround. Depois de uma breve leitura, chego à conclusão de que tenho de aumentar ligeiramente o volume das colunas colocadas atrás de mim. Com o controlo remoto ajusto cuidadosamente os níveis sonoros e fecho os olhos, concentrando-me no som proveniente das colunas traseiras.

Isso mesmo, digo para mim próprio. Está perfeito.

Depois de a cena com o som ridiculamente elevado ter chegado ao fim, as sequências resumem-se a retalhos de conversa maçadora, que os sistemas de cinema em casa pouco fazem para melhorar; isto é, a aparelhagem apenas faz parecer que os actores estão a gritar uns com os outros, pelo que carrego no botão de pausa. Keanu fica petrificado no tempo e no espaço. Ainda penso em mudar para A Ameaça Fantasma e procurar a cena da corrida de naves (podrace), a única sequência que vi desde a compra do vw, no próprio dia em que foi posto à venda. No preciso momento em que estou a tirar o disco da caixa, o telefone toca e atendo:

- Estou!

- Olá, sou eu - responde a Helen.

- Viva. já estás no comboio?

- Estou. Tem sido um pesadelo. Seguimos com uma hora de atraso devido a avarias nos sinais.

- Nos dias que correm, os comboios não servem para nada - digo, apenas para a confortar.

- A única coisa boa é que posso ir trabalhando.

- É o melhor que fazes - concordo, ao estender a mão para a cerveja, pois apetece-me beber um gole.

- O que é que tens estado a fazer? - pergunta a Helen.

- Nada de especial - respondo, a observar a caixa em que o Dv veio embalado e os pedaços de plástico e de espuma espalhados à volta dela.

- Bem - concluiu. - É melhor desligar. Só quis ter a certeza de que estavas bem.

- Estou óptimo. Tu chegas por volta da meia-noite, não é?

- Com certeza. Então, até logo.

- Está bem, amor. Até logo.

Desligo e, com o Keanu ainda petrificado no filme em pausa, fico a olhar à volta da sala e a pensar na volta que a minha vida deu. No papel, para um homem de 32 anos, divorciado, contabilista com boa situação financeira, a vida não me poderia proporcionar mais do que isto - com isto" a querer dizer tudo o que está na sala: a minha nova aparelhagem de cinema em casa (obviamente), o meu televisor de grande ecrã, leitor de Dvd, vídeo, caixa digital de recepção, alta-fidelidade, leitor de cD, discos, livros e cassetes. Coisas. Coisas que me fazem feliz. Ou, pelo menos, costumavam fazer-me feliz.

A compra do sistema de som surround, feita hoje depois de sair do trabalho, foi uma experiência. Quis testar uma hipótese que tem vindo a preocupar-me desde há algum tempo. Terei eu chegado a um ponto em que as coisas, já não conseguem trazer-me felicidade? O sistema de som surround deixou-me, sem dúvida, satisfeito. Mas isto não é nada quando comparado com o facto de a Helen vir ter comigo esta noite. O que é esquisito, pois a Helen não se apresenta em qualquer das cores em questão, a saber: preto baço ou alumínio brilhante. Não ostenta a marca Hitachi, Sony ou Panasonic. Nem sequer tem um botão para ligar/desligar. É apenas uma mulher que me satisfaz a necessidade básica de não estar só.

E apercebo-me de que chegou a altura de voltar a crescer. Que chegou a altura de deixar de ser tão egoísta.

Que chegou a altura de pedir à Helen que venha viver comigo.

19h03

Acabo de chegar a casa, vinda do emprego. O apartamento encontra-se às escuras. Atiro com os sapatos para o corredor e dou uma vista de olhos pelo correio que apanhei no átrio comum do prédio. Há uma conta bancária com o meu endereço mas que ostenta o nome de Mrs. Alison Owen. Tiro uma caneta da bolsa e rabisco MS. ALISON OWEN, em maiúsculas garrafais e atiro o sobrescrito para cima de uma pequena mesa do corredor, onde chaves e correio desnecessário se acumulam até que alguém faça a limpeza. A restante correspondência (uma factura de gás e dois extractos de movimentos de cartões de crédito) está endereçada a Mr. Marcus Levy, o meu namorado. Ao avançar pelo corredor, chamo pelo nome dele mas não obtenho resposta; por isso, chamo a gata, Disco, mas o animal também não aparece. Sem detectar sinais de vida aparentes, encaminho-me para a sala de estar e vou verificar as mensagens registadas no aparelho.

- Olá, amor, sou eu. É provável que neste momento estejas na banheira. Só estou a ligar para te dizer que estou atrasado. Tive um dia verdadeiramente mau. Mas não tardarei a ir para casa e levo qualquer coisa para o jantar... Oh, e a minha mãe voltou a ligar-me por causa do casamento. Quer saber se pode convidar a tia Jean, pois, segundo parece, já não estão zangadas uma com a outra. Respondi-lhe que o casamento é só daqui a um mês e que ela estava a pôr o carro à frente dos bois, mas tu sabes como é a minha mãe. De qualquer forma, disse- lhe que não deixaremos de a informar.

Quando o nome da mãe de Marcus foi mencionado carreguei no botão de apagar. A máquina emite um sinal de satisfação, como se eu tivesse disparado uma arma de raios que provocassem a evaporação de Mrs. Levy. Deixando os sacos em cima do sofá, desloco-me na direcção da cozinha. Abro uma lata de Whiskas e chamo a Disco, a anunciar-lhe que tem o jantar pronto.

- Disco! Hora de jantar!

Nada.

- Disco! Hora de jantar!

Silêncio.

- Disco! Hora de jantar!

Continuo a não ouvir nada.

A Disco não é o tipo de gata que precise de ser chamada três vezes. Em condições normais, ainda antes de conseguir abrir a gaveta para tirar o abre-latas, já a teria à volta das pernas, a roçar-se como uma bola de pêlo ansiosa. Vou ao jardim e não consigo avistá-la. Volto a procurar dentro de casa e acabo por encontrá-la num dos seus esconderijos preferidos: o espaço entre a cama e o radiador, no quarto de hóspedes.

- Olá, doçura - cumprimento, naquele tom a que o Marcus chama a voz de mamã. - Está na hora do jantar.

A gata nem se mexe.

- Anda lá, meu amor - peço, a esfregar as mãos para lhe atrair a atenção. - A papa está pronta.

O animal continua quieto e, de repente, apercebo-me de que não está bem. Pego-lhe e sento-me na borda da cama. Fico com aquele corpo flácido nos braços e, ao passar-lhe a mão pelo pêlo, apercebo-me de que a gata tem a respiração acelerada.

- O que é que se passa, meu amor? - Mas a Disco nem olha para mim. Deito-a em cima da cama. Embora nunca a tivesse visto assim, receio que possa tratar-se de uma maroteira, que ela tenha comido qualquer porcaria num quintal da vizinhança. Só para ficar descansada ligo para a clínica veterinária, a perguntar se têm serviços de urgência. Têm, graças a Deus; assim, meto-a numa velha caixa de batatas fritas alkers que encontro no armário, aconchego-a com duas camisolas velhas do Marcus para a manter quente e dirijo-me à clínica veterinária.

Até que chegasse a minha vez, tive de esperar duas horas e meia, sentada numa cadeira de plástico duro. Quando vou ao veterinário, costumo indicar o nome do animal; por isso, toda a gente que se encontra na sala de espera desata a rir quando a enfermeira chama: Disco Smit T.

O veterinário, o Dr. Davies, é um homem grande, com uma espessa barba castanha. No Verão passado, vacinou a gata; mas não tenho a certeza de ele se recordar de mim. Leva-a dentro da caixa, coloca-a em cima de uma mesa e faz um ror de perguntas enquanto

a observa. No final do exame, não fala muito mas diz que seria melhor que a gata ficasse em observação durante a noite. Antes de sair meto a mão no bolso e pego numa bola de plástico das que se dão para os gatos brincarem.

- Importa-se que deixe isto aqui? - pergunto ao Dr. Davies. É o brinquedo preferido dela; pela manhã, se estiver melhor, vai ficar verdadeiramente satisfeita por ver a bola.

- É claro que não.

Coloco a bola na caixa, de maneira a que a gata possa vê-la, ergo-a nos braços e dou-lhe um beijo no alto da cabeça. - Até amanhã, meu amor - digo-lhe e dirijo-me ao veterinário. - Posso telefonar-lhe logo pela manhã para saber como ela está?

- Não há qualquer problema - responde-me, sorrindo. Agradeço ao veterinário, olho uma vez mais para dentro da caixa e sussurro junto ao ouvido da Disco: - Então, adeusinho.

A gata volta ligeiramente a cabeça e fareja o ar, o que me deixa feliz, pois não deixará de reconhecer o meu cheiro.

23h23

Estou na cama, a ver o noticiário da noite no televisor portátil. A apresentadora está a fazer a vida difícil a um membro da oposição, tudo por causa de uma nova declaração política, e parece estar a sair vencedora do confronto. Estou a ponderar qual poderá ser a pergunta seguinte, mas a minha atenção é desviada por Helen.

- Jim? - interroga, com uma certa angústia na voz.

- O que é?

- O que é que se passa?

- Nada.

- Não me parece - acrescenta. - Estiveste com uma disposição esquisita durante todo o serão.

- Ai estive? Pensei que estava apenas a ver televisão.

- Não estou a falar disso. Estou a falar do início da noite. Parece que a tua cabeça estava noutro sítio qualquer.

- Peço perdão - desculpo-me, enquanto desligo o televisor.

- Sentes-te bem? - pergunta a Helen ao estender a mão para entrelaçar os dedos nos meus. - Na última vez em que estive cá, tossiste muito durante a noite.

- De verdade?

- E estás um pouco quente - acrescenta, a rir-se. - Não quero que me interpretes mal, mas alimento uma certa esperança de que estejas doente.

- E qual seria o motivo para desejares uma situação dessas?

- Durante todo o tempo em que vivemos juntos, isto é, durante os últimos doze meses, nunca estiveste doente. Eu fiquei doente logo uma semana depois da nossa primeira saída, recordas-te? Tive aquela tremenda constipação, com espirros constantes, agitação e tosse; e tu foste ao meu apartamento e levaste uma sopa de vegetais feita em casa, que tinha um gosto maravilhoso e.

Quanto a isso, tenho um pecado a confessar. A sopa, bem, não foi feita em casa. Foi comprada no supermercado.

A fingir-se chocada, Helen aplica-me um soco no braço. - Sempre achei que o gesto era demasiado bonito para ser verdadeiro. Achei que havia algo que não estava certo quando te pedi para a fazeres de novo e me respondeste que só poderia comer sopa daquela quando voltasse a estar constipada.

- Pensei que nunca acreditarias em mim, nem que vivêssemos um milhão de anos. Olhando para mim, achas que sou um homem capaz de saber fazer sopa?

- Certamente que não - replica. - Mas tinha esperança de que fosses.

Respirei fundo. - Não estou doente. Acontece apenas que tenho estado a pensar... acerca de ti e de mim.

- Não parece nada de bom.

- Não, não é - respondo rapidamente. - Bem, pelo menos gostaria

que pensasses que é... Estava a pensar... bem, já andamos juntos há bastante tempo e, de qualquer modo, estás sempre por aqui...

- Quem te ouvir vai julgar que não tenho um sítio melhor para onde ir - contrapõe Helen, a rir-se.

- Não quis dizer isso. O que eu quis dizer foi que... estive a pensar se

te agradaria mudares-te para cá... vires viver comigo? O que é que pensas?

Se a ideia não te agrada, estás à vontade para o dizer.

Olha-me com uma certa tristeza, sorri e não responde.

- Então? - insisto.

- Adoro a ideia - responde. - Mas, tens a certeza?

- Tenho.

Helen franze a testa. - Só que...

- O que é?

- Nada... Tens a certeza?

- É claro que tenho a certeza. É por isso que estou a fazer-te a proposta.

- Então, está bem. Julgo que é uma excelente ideia. Acho que vai ser

realmente bom para nós - acrescenta, a morder o lábio, como quem está

a reflectir. - Devíamos fazer qualquer coisa para celebrar. Posso dar uma

saltada a casa para ver se tenho uma garrafa de qualquer coisa que borbuLhe. Embora reconheça que o mais provável é haver Pepsi Max no meu frigorífico, em vez de champanhe.

- Nesse capítulo estou mais adiantado do que tu - informei, a saltar

da cama e a dirigir-me para a porta, onde estava pendurado o meu casaco.

- Não é bem champanhe mas és capaz de gostar - acrescentei, ao pegar num sobrescrito para Lhe entregar.

- O que é isto?

- Recordas-te daquela semana de férias que pensámos tirar em

Fevereiro? - pergunto. Ela faz um gesto de assentimento. - Pois bem,

comprei duas viagens para Chicago. Recordo-me de teres dito que

passaste lá um ano, quando frequentaste a universidade, e que sempre

desejaste voltar lá para reveres os teus amigos. E eu pensei: Por que não?

Helen salta da cama, corre para mim e abraça-me. - Que coisa bonita! - exclama, a beijar-me. - Sabes que provavelmente és o melhor de todos

os namorados que há neste mundo?

- Pois sou - respondo com o máximo descaramento. - Também já marquei os lugares no avião. Por isso, sentamo-nos ao lado um do outro, tanto à ida como à vinda. Desse modo, podes servir-me de escudo protector.

- Escudo protector?

- Trata-se de um voo de oito horas - explico. - Preciso de ti para não deixares os malucos do costume meterem conversa comigo durante a viagem. Sou sempre eu o escolhido, como sabes. Não estou a exagerar. Se houver algum passageiro sem nada mais interessante para fazer do que contar a história da sua vida, essa pessoa será automaticamente colocada no assento ao lado do meu. Na minha última viagem profissional a Amesterdão tive de gramar a história ilustrada da vida de uma velha senhora holandesa. Chegado o momento de aterrarmos no aeroporto de Schiphol, eu estava ciente de todas as razões que a levavam a fazer a viagem: ia visitar o cunhado do ex-marido, em parte viagem turística, mas também a tentativa de fazer a ponte com a facção difícil da família; quanto à idade, tinha 71 anos, embora, segundo a sua própria avaliação, não parecesse ter um só dia a mais dos 60; e o seu terceiro filho nascera de uma gravidez difícil, o que ela atribuía ao facto de, na altura, o marido não saber que o filho era dele. É por estas e por outras que necessito de um escudo.

- Está bem - concorda a Helen, de olhos em alvo. - Serei o teu escudo. De qualquer maneira, voltemos ao que interessa, como o dia do início da viagem, por exemplo.

- Deve estar tudo aqui - esclareço, tirando-lhe o sobrescrito da mão para verificar os bilhetes. - Partimos na segunda feira, dia 10, às 10h45, e regressamos a Londres às 7h15, hora do Reino Unido, na sexta-feira...

- Sexta-feira, 14 - interrompe a Helen. - Dia de São Valentim.

- Pois é. Ainda não me tinha apercebido disso.

- Ora bem, és um génio, obviamente. Acho as datas perfeitas. Regressamos da nossa bela semana de férias e eu mudo-me para aqui nesse mesmo dia. Dessa maneira, quando se tratar de celebrar o aniversário da nossa vida em comum não terás qualquer desculpa para não te lembrares.

Sexta-feira, 17 de Janeiro de 2003

7h07

É manhã e estou deitada na cama, a ouvir rádio. Há dez minutos que o Marcus saiu para ir trabalhar e eu continuo a tentar reunir energia suficiente para saltar da cama e começar o dia. Acabo de ser promovida a directora de um departamento de publicidade; tenho muito trabalho à minha espera se quero manter o domínio da situação... e, além disso, tenho de telefonar ao veterinário. Olho para o despertador que está em cima da mesa-de-cabeceira do Marcus e fico a imaginar como se encontrará a gata. Decido fazer a chamada às oito horas, pois não faço ideia de qual seja o horário de abertura da clínica. Fecho os olhos com a intenção de dormitar um pouco mais, no momento em que o telefone da mesa-de- cabeceira toca. Atendo de imediato, a pensar que seja o Marcus, pois é frequente que me telefone no caminho para o emprego; a intenção dele é arrancar-me da cama e evitar que eu chegue atrasada ao trabalho.

- Está bem, já estou a pé! - exclamo, a rir-me. - Já me levantei há meia hora.

Como não ouço a gargalhada do Marcus, apercebo-me de que estou a cometer um grande erro.

- Por favor, posso falar com Alison Smith? - pergunta uma voz de mulher jovem.

- Sou eu, desculpe. Pensei que era outra pessoa. Sim, fala a Alison Smith.

- Bom dia. Fala da clínica veterinária de Hendon Road - continua a minha interlocutora. - Na noite passada deixou-nos a sua gata, a Disco.

- Pois deixei. Como é que ela está? Deve sentir-se esfomeada. Adora comer.

- Lamento ter de dar-lhe uma má notícia. A gata morreu durante a noite. O Dr. Davies crê que ela sofria de cancro, numa fase bastante avançada.

Há uma longa pausa, que julgo que a enfermeira fez para me permitir dizer qualquer coisa, mas não sou capaz de falar. Só consigo pensar que não fazia ideia de que os gatos pudessem ter cancro.

- Está?

Mantenho o silêncio.

- Miss Smith, ainda aí está?

Continuo calada, a tentar reunir coragem para falar; atarantada, deixo cair o auscultador e tacteio o chão à procura dele. Levo imenso tempo para o encontrar, parece que perdi o domínio do meu próprio corpo.

Está lá? - acabo por dizer. - Está? Ainda aí está?

- Estou - responde a enfermeira. - Lamento muito a perda que sofreu, Miss Smith.

- Obrigada. E agora, o que é que devo fazer? Nunca me... mas a voz falha.

- Quer encarregar-se do que há a fazer?

- Não sei.

- Talvez prefira passar pela clínica no final do dia para podermos falar das opções.

- Está bem, fica combinado.

Pouso o auscultador, depois de me ter despedido, dirijo-me ao toucador e arrasto a cadeira para o outro lado do quarto, para junto do guarda-vestidos. De pé na cadeira, pego numa velha mala castanha que conservo em cima do guarda- vestidos e coloco-a em cima da cama. Abro-a e vasculho por entre dezenas de cartas antigas, sobrescritos e fotografias, restos de bilhetes e outras recordações da minha vida, até que acabo por encontrar e tirar da mala aquilo que procuro. Trata-se de um maço de cigarros, vermelho e branco, de Marlóoro Ligbts. Abro o maço e tiro o único cigarro que contém, juntamente com um isqueiro. Volto para a cama e acendo o cigarro mas, mal o levo aos lábios, sou submergida por uma imensa onda de emoção e começo a chorar, como se o coração se me tivesse partido em dois.

7h15

- Surpresa! - exclama Helen, ao entrar no quarto.

Levanto os olhos do artigo do The Economist que estive a ler durante os últimos quinze minutos e fico a olhar para ela, enquadrada pela porta e vestindo apenas a camisa branca que eu usara no dia anterior. Traz uma travessa com dois ovos cozidos, três fatias de tosta, um cravo branco num copo de vodca e outra coisa que, vista de onde estou, me parece o Financial Times.

Olho para ela, incrédulo. - Isto é tudo para mim?

- Pois claro - responde. - Pequeno- almoço, na cama, para uma pessoa.

- Se não te tivesse já pedido para vires viver comigo, não deixaria de o fazer agora mesmo.

Helen ri-se: - Quando me mudar para cá, terei muita pena mas não haverá pequeno-almoço na cama todos os dias.

- A sério? - pergunto, a espicaçá-la. - Nesse caso, talvez tenha de repensar a minha oferta.

- Não podes - contrapõe ao pousar a travessa à minha frente. - É demasiado tarde. Mentalmente, já estou a criar uma nova decoração para a sala, a comprar novos sofás e a fazer o meu melhor para tirar o solteiro do caminho. Até estou a encarar a compra de roupões de banho para o meninoH e para a menina, para não ter de andar por aí sempre vestida desta maneira... - acrescenta, a apontar para a minha camisa, que, tenho de o confessar, nunca me ficou tão bem a mim como lhe fica a ela... - O que é que tu pensas?

- Dos roupões de banho para ele e para ela? Não vejo necessidade. Debruça-se para a frente e beija-me: - Logo veremos.

7h22

- Nem quero acreditar que ela morreu - digo, em lágrimas, ao Marcus, pelo telefone.

- Eu sei, meu amor. Deves estar verdadeiramente arrasada.

- Em parte, sinto-me culpada por estar tão em baixo - esclareço. - Por outro lado, sinto que não devia chorar a morte de uma gata quando há tantas outras coisas neste mundo com que devia preocupar-me. Mas, de momento, pouco me importo com elas. Era a minha gata. Tinha-a comigo desde que nascera... há quase dez anos.

- O que é que vais fazer agora? Vais à clínica veterinária, como disseste, para.

- Decidir o que devo fazer com o cadáver?

- Bem.

- Acho que vou já. Não vale a pena ir ao emprego num dia como este. Não teria qualquer utilidade. Vou telefonar e dar uma desculpa qualquer.

- Julgo que não ires trabalhar é uma boa decisão. Gostaria de te acompanhar à clínica, mas...

- Sei que não podes. Não faz mal.

- No entanto, não deves ir sozinha. Não podes pedir a uma amiga que te acompanhe? Jane, por exemplo?

- Está em Helsínquia com o novo namorado. Podes ficar descansado. Eu resolvo as coisas - responde a Alison. Faz uma longa pausa, antes de continuar: - Achas que devo telefonar ao Jim para lhe contar o que aconteceu? Tenho estado a pensar no assunto, mas não consigo decidir o que será melhor. Quero dizer, a Disco também era a gata dele. Mas não quero magoar-te.

- Magoar-me, porquê? - tranquiliza-a Marcus. - A única coisa que vais fazer é comunicar-lhe o que aconteceu.

- Tens razão. Mas não falo com ele desde... bem, tu sabes. A ideia parece bizarra. Ainda tenho o número do telemóvel dele, se é que continua a ser o mesmo; mas, se ele está a viver com outra pessoa e é ela quem atende o telefone? Não vai achar estranha a minha chamada?

- Espanta-me essa tua capacidade de analisar o mais pequeno pormenor do que pode dar para o torto. Escuta! Deixo isso ao teu critério. Faz exactamente o que julgares melhor.

7h38

No preciso momento em que estou a sair do duche, o ar enche-se com uma interpretação electrónica da Cavalgada das Valquírias.

- Helen? - chamo, da casa de banho. - Podes atender o telefone, meu amor? Pode ser da empresa.

Fico à espera até que o telefone cessa de tocar, a encher o chão da casa de banho com pingos de água, a aguardar que Helen me passe a mensagem.

- É uma mulher - anuncia ela ao entregar-me o aparelho. - Pretende falar contigo. Diz que é importante.

Pego no telefone e ela afasta-se em direcção à cozinha. Volto à casa de banho para evitar maiores prejuízos na alcatifa do corredor e fico em frente do espelho, a fazer o meu exame diário da cabeleira. - Estou! - exclamo, enquanto analiso o couro cabeludo.

- Jim, sou eu!

Ao ouvir o som daquela voz de mulher quase deixo cair o telefone. Segue-se um silêncio prolongado.

- Está. Consegues ouvir-me?

- Desculpa - respondo, passados momentos. - Continuo à escuta... só que... é a Alison quem está a falar?

- Sou.

- Como estás?

- Estou bem, obrigada. E tu, estás bem?

- Eu? Estou óptimo... mas...

- Escuta, só estou a telefonar-te porque, bem, achei que devias saber que a Disco morreu durante a noite passada. Segundo parece, sofria de cancro.

- Nem sabia que os gatos podem sofrer de cancro.

- Foi exactamente o que... - começou, mas a voz traiu-a. - Apesar de tudo, achei que devias saber.

- É um grande choque. Sinto-me mal por nem sequer a ter visto digo, com um riso nervoso. - Pode parecer uma estupidez, mas tenho a fotografia dela colada na porta do guarda-fatos do meu quarto... Estava a fazer dez anos, não é? A que correspondem dez anos na vida de um gato?

- Não sei. À velhice, suponho.

- Onde é que está agora?

- Na clínica veterinária, em Crouch End. Vou para lá dentro de momentos... Não sei... - responde a Alison, começando a chorar.

- Pensava reservar o dia de hoje para trabalhar em casa - informo -, mas, se quiseres, posso ir contigo.

- Não há necessidade. Eu fico bem.

- Mas eu quero. Afinal, a Disco também era a minha gata. Alison dá-me o endereço e combinamos o encontro em casa dela, em Crouch End, dentro de uma hora. Finalmente, pouso o auscultador.

Helen entra na casa de banho a cantar uma música que está a ser transmitida pela rádio. - Quem era?

- Era a Alison - respondo.

- Alison? A tua ex-mulher?

Rio-me. - Sinto sempre uma sensação esquisita quando lhe chamas isso. Julgo-me demasiado jovem para já ter uma ex-mulher.

- É o problema de se casar cedo - reflecte Helen. - De qualquer modo, os casamentos precoces parecem estar na moda, de acordo com o que se lê nos jornais de fim-de-semana. Todas as pessoas importantes: actores de Hollywood, estrelaspop, toda essa gente. E, segundo parece, eles podem significar uma maior estabilidade nas relações subsequentes, na medida em que se espera que as pessoas aprendam com os próprios erros

- acrescenta, ao dar me um beijo na ponta do nariz. - De qualquer maneira, como é que ela justificou o telefonema?

- Telefonou para informar que a nossa gata morreu.

- A Disco?

- Sim.

- Oh, meu querido! - exclama Helen, abraçando-me para me confortar. - Que coisa horrível. E eu para aqui a papaguear, feita idiota, acerca de casamentos precoces. Tenho muita pena. Como é que aconteceu?

- Cancro, segundo parece.

Oh, que triste notícia. Como é que te sentes?

- Na verdade, sinto-me esquisito. A gata tinha bom feitio. Sempre que me sentava em frente do televisor, o animal vinha sentar-se junto de mim. Era a companhia perfeita para eu assistir a um programa de televisão - recordo, antes de fazer uma pausa e acrescentar: - Sei que vai parecer te uma parvoíce mas concordei em acompanhar a Alison à clínica veterinária.

- Oh - é o único comentário da Helen.

- Não vais aborrecer-te por causa disso?

Helen suspira: - Tens de lá ir?

Fico a pensar uns instantes, antes de responder: - Não, não sou obrigado a ir. No entanto, quando da separação, o único motivo para ela ficar com a gata foi... Bom, para dizer a verdade, ambos queríamos ficar com ela. Julgo que é mais que justo... Não sei... que eu vá lá.

- Na realidade, nunca imaginei que fosses um gateiro.

- E não sou. Mas a Disco é... era diferente.

- Porquê?

- Porque era minha.

Helen sorri. - Se queres ir à clínica veterinária com ela não tenho nada a opor a isso. Não há motivo nenhum para ficar preocupada, pois não?

- É claro que não. Há anos que não a vejo. Nem sei se teremos muito de que falar. Tudo o que se passou na altura parece ter acontecido numa outra vida. É parecido com o que estavas a dizer acerca dos casamentos precoces. Cometemos um erro, a Alison e eu. Tão simples quanto isso. Contudo, éramos suficientemente jovens e conseguimos ultrapassar a situação.

 

               O PASSADO: 1989-1993

               1989

               Quarta-feira, 27 de Setembro de 1989

22h45

É a minha primeira noite na Universidade de Birmingham; na companhia de centenas de estudantes universitários acabados de chegar, estou numa festa. Segundo o que ouvi, a Noite dos Caloiros é o mais importante evento da nossa carreira universitária. É nessa festa que se criam amizades para toda a vida e se agarram homens que parecem saídos da série televisiva Reviver o Passado em Brideshead E faço tudo o que é possível para não me deixar ficar para trás. Cansada de ser, desde o secundário, a menina das roupas austeras, à Laura Ashley, e de ter de usar, durante o ano em que trabalhei para a Boots, uniformes quase de enfermeira, decidi fazer uma renovação. Hoje vesti as roupas mais estudantis, que encontrei: um casaco de cabedal, em segunda mão, que comprei num mercado de Cambridge, uma Tshirtcom os dizeres Comer carne é crime, (embora goste de frango), umas Levis 501 de bainhas enroladas acima dos tornozelos, sapatos Doc Marten, sem meias, que comprei há dois dias e que estão a magoar-me os calcanhares de tal maneira que um deles já está em sangue.

A Jane, a minha nova amiga preferida das últimas oito horas, e eu temos estado de olho num rapaz que se encontra sentado do outro lado do bar, na companhia de uns tipos de bom aspecto, cada um com o seu cigarro pendurado ao canto da boca, como se estivessem à espera de uma audição para o papel principal no filme A Leste do Paraíso. Contudo, aquele de quem gosto parece o mais interessante de todo o grupo e fiquei caída por ele logo que o vi. Gosto do seu cabelo castanho ondulado, do casaco de cabedal coçado, das calças com aspecto algo encardido e das não muito bem ajustadas botas Converse All Stars em suma, gosto de tudo. Temos passado o serão a trocar olhares de uma ponta à outra do bar. É como se não conseguíssemos tirar os olhos um do outro. E quanto mais olhamos um para o outro sem falarmos, mais vontade sinto de correr através da sala, apertá-lo nos braços e beijá-lo até ele se render.

- Agora, está a olhar? - pergunto, enquanto fixo os olhos na direcção oposta.

- Não sei - responde a Jane, com voz triste. - Queres que olhe para ele?

- Está bem.

A Jane roda a cabeça e eu perco a compostura: - Não! - grito.

- Não olhes!

- Óptimo, não olho.

Pausa prolongada.

A Jane suspira: - Sabes, por muito que gostasse de possuir uma espécie de radar que mo permitisse, na realidade, não posso fornecer-te a informação sem usar os olhos.

Respiro fundo. - Está bem, não olhes.

- Tens a certeza?

- Sim... julgo que sim.

- A certeza absoluta?

- Não, nada disso.

A Jane pega-me na mão e conduz-me em direcção ao bar. - Se vamos passar a noite a fingir que não olhamos para os homens, posso sugerir que comecemos por beber qualquer coisa?

23h00

- Então, já decidiste se vais tentar entender-te com ele? - pergunta Jane, no bar, enquanto beberricamos, muito emproadas, das nossas canecas de cidra.

- Não sei. Julgas que devia?

- Gostas dele, não gostas?

- Ele é uma brasa.

- Nesse caso, atira-te.

- Não posso atirar-me assim. Não sou o género de pessoa que se atira. Necessito de um plano de ataque.

- Os planos de ataque que conheço envolvem sempre cidra, groselha e uma quantidade de conversa fiada, própria para idiotas.

Por mútuo acordo, eu e a Jane acabámos por incluir os seguintes elementos no seu plano habitual:

 

           1) Eu devia aproximar-me dele.

          2) Perguntar-lhe se tinha isqueiro.

           3) E a seguir pedir-lhe um cigarro.

 

Estou convencida de que está perfeito.

É um pouco ousado.

É um bocadinho descarado. Não pode deixar de resultar.

- O nosso plano apresenta apenas uma falha - admite a Jane.

- Qual é?

- Tu não fumas, pois não?

Encolho os ombros. - Não, mas esta é uma altura tão boa como qualquer outra para começar. Deseja-me sorte - concluo, enquanto cravo os olhos no meu alvo.

- Não precisas de sorte - contraria Jane. - Ele é que está cheio de sorte por te dignares a gostar dele.

Estimulada pelas palavras da minha amiga, respiro fundo e começo a caminhar para o outro extremo do balcão. Porém, a meio do caminho, sou obrigada a parar repentinamente. Um tipo em que ainda não reparara está a bloquear-me a passagem. Calça sapatos castanhos, meias altas, bermudas de marca, camisa branca, gravata verde e casaco cinzento. Nunca, em toda a minha vida, vira alguém como ele.

- Olá - saúda o tipo ao estender-me a mão. - Sou o Jim.

Estou demasiado assarapantada para conseguir ser malcriada e, por isso, aperto-lhe a mão. - Eu... sou a Alison.

- Grande ambiente, não é? - pergunta o rapaz, com acentuado sotaque nortenho.

- Está agradável.

Longa pausa.

- De onde és? - pergunta.

- Norwich - respondo delicadamente.

- Sou de Oldham - acrescenta, sem esperar pela minha resposta. - Fica perto de Manchester, se isso te pode ajudar.

Olhando de novo para o conjunto, indago: - Lá em Oldham toda a gente se veste assim?

- Não - responde, muito orgulhoso. - Sou exemplar único... O que é que estudas?

- Inglês - respondo e olho de novo para o tipo que eu tencionava atacar, do outro lado da sala. Continua a fumar e a parecer bonito como sempre.

- Fixe - aprecia o Jim. - Isso significa que vais ser professora de inglês?

- Vou ser romancista - contraponho, o que, de certo modo, é verdade. Um dia, pretendo escrever um romance.

- Fixe - repete ele. - Eu estou a fazer economia e gestão. No entanto, não pretendo trabalhar em empresas.

- Então, para que te servem os estudos?

- Toda a gente precisa de um Plano B".

- E o que é que está no Plano A?

- Faço parte de uma banda. Sou o vocalista.

- Como é que se chama a banda?

- Ainda não tem nome.

- Estou a perceber. Bom, mas valem alguma coisa?

- De momento, sou o único elemento da banda.

Não consigo deixar de rir. - Nesse caso, como se pode dizer que é uma banda?

- Vou recrutar mais alguns músicos. Não tocas nenhum instrumento, pois não?

- Não. Nada. Não tenho ouvido para a música.

- É pena. Com uma guitarra nas mãos, serias uma maravilha. Sorrio mas não respondo. Pelo contrário, tenho a esperança de que o silêncio longo, desconfortável, que está a instalar-se entre nós se prolongue o tempo necessário para eu me poder escapar. Mas ele não parece ter ideias de se ir embora.

- Julgo que devias ser mais cuidadoso - aconselho, passados uns momentos, por me sentir mal, ali de pé, sem dizer nada.

- Devia ser cuidadoso com o quê?

- Com o Plano B.

- Porquê?

Brindo-o com um sorriso delicado: - Porque se tens um é meLhor que o ponhas em prática. Bom, gostei de te conhecer.

- Porreiro. Também gostei de te conhecer - responde. Inclina-se para a frente, como se fosse beijar-me na face, uma ideia esquisita. Decido que o melhor é aceitar aquele estranho comportamento sem qualquer comentário, mas, no último momento, ele roda a cabeça, de maneira a ficarmos de olhos nos olhos, e beija-me directamente na boca.

- O que é que estás a fazer! - exclamo, ofendida.

- Julguei que tinhas gostado de mim.

- E o que é que pode ter-te metido tal ideia na cabeça?

- Estiveste a falar comigo.

- E achas que qualquer rapariga fala contigo por gostar de ti?

- Não.

- Então, por que motivo fui escolhida?

- Estiveste a fazer-me sinais.

- Olha - admoesto-o, incapaz de acreditar no que estou a ouvir

-, vamos fazer de conta de que isto não aconteceu, pois, por muito embaraçoso que possa ser para ti, para mim ainda o é mais.

Jim concorda e dirige-se para a pista de dança: - Óptimo!

- Óptimo - concordo, ao rodar sobre os calcanhares para me dirigir para o outro lado da sala, onde se encontra o bonitão. Tarde de mais. Foi-se embora.

- Bom, acabou-se - concluo ao regressar para junto da Jane.

- Talvez ainda voltes a encontrá-lo.

- Oxalá - suspiro. - Mas, entretanto, parece que tenho de comprar os meus próprios cigarros.

11h05

Não deixo que a rapariga de Norwich me deite abaixo. Em vez disso, lanço os holofotes noutra direcção e as minhas propostas românticas são rejeitadas pela Liz Grey, de Huddersfeld, pela Mangit (Os meus amigos tratam-me por Manny") Kaur, de Colchester (que está por dentro" dos New Model Army e dos Levellers) e pela Christina Wood, de Bath (que está verdadeiramente feliz por não ter entrado em Cambridge e não se sente nada zangada pelo facto de a Katie, a sua melhor amiga da escola, ter sido admitida). Só consegui ter sorte, depois de ter encontrado a Linda Braithwaite, já no final da noite. A Linda é uma rapariga meio-gótica, de cast Midlands, que tem bom aspecto, gosta de música e se veste como deve ser, mas tem ainda de fazer a transição que lhe permita ser considerada uma gótica completa, com a maquilhagem branca, as unhas negras, a adoração de péssimos filmes de terror e a crença de se ter juntado à legião dos mortos-vivos. Tudo junto, quando nos beijamos a um canto do bar dos estudantes, considero-me bem sucedido.

Quinta-feira, 28 de Setembro de 1989

8h30

Na manhã seguinte, dirijo-me à faculdade para assistir à minha primeira aula como estudante universitário. Como se trata de uma ocasião importante para mim, e como procuro desesperadamente parecer um verdadeiro estudante, visto calças aos quadrados, botas Doc Marten, uma Tshirt de protesto, de confecção caseira (feita na semana anterior a partir de uma t-shirt barata, comprada na rua, e utilizando um marcador preto e capacidades artísticas bastante primitivas), um casaco comprado numa loja de caridade e uma boina. Acho que consegui um aspecto fantástico. A indumentária é completada pelo walkman que, graças à música que vou a tocar (um álbum de Billy Bragg), me proporciona a banda sonora perfeita para que me sinta na posse da quantidade necessária de idealismo político de esquerda.

- Bom dia, Jim - saúda uma voz atrás de mim, no meio de Tbe Wilkman of Human Kindness.

Volto a cabeça e dou de caras com um rapaz alto, de aspecto sombrio, em quem reconheço uma das muitas pessoas que, na noite anterior e para meter conversa, tentei deslumbrar com as minhas classificações. Juro pela minha saúde que não me recordo do seu nome e ele nota isso mesmo.

- Chamo-me Nick - apresenta-se, ao notar o meu embaraço. - Nick Constantinedes.

- Claro, Nick, recordo-me perfeitamente - minto. - Como é que estás, companheiro?

- Estou bem - responde, mas pelo aspecto espantado parece que não. - Vais a algum baile de máscaras?

Solto uma gargalhada por ser a única reacção que me ocorre para conseguir manter a compostura. Vejo que ele não quer dizer nada de especial. A incompreensão das pessoas vulgares, raciocino, tem o seu lugar no conceito de ser um visionário da moda.

- É a minha maneira de vestir - explico.

- Oh! - responde e, depois, ao aperceber-se do seu erro, acrescenta com ar soturno: - Gosto das tuas botas. Aonde é que as arranjaste?

- No Aftlecks Palace, em Manchester.

Gesto de assentimento. - São giras.

- Concordo.

- Divertiste-te na noite passada? - pergunta o Nick. - Notei que estavas a conversar com uma rapariga muito bonita.

- Tinha aspecto de gótica?

- Não. Trazia uma Tshirt da Smiths.

Encolho os ombros: - Ah, essa! Não é o meu género. Aspecto demasiado normal.

Acena com a cabeça, como se percebesse aquilo de que estou a falar; caminhamos juntos e começamos a falar da próxima reunião da Semana dos Caloiros. Paramos à porta do Barber Institute.

- A Faculdade de Engenharia Fica ali - informa, a apontar para o morro.

- A Faculdade de Economia é deste lado - respondo, a apontar para a torre sineira.

Despede-se com um gesto caloroso: - Adeusinho.

Deixo-o andar uns três metros e grito: - Julgo que não tocas qualquer instrumento, ou estou enganado?

- Viola baixo - responde. - No Sussex, tocava numa banda, mas não éramos muito bons.

- Excelente - exulto. - Gostavas de voltar a tocar numa banda? Fica a pensar durante uns momentos. - Por que não?

Quarta-feira, 18 de Outubro de 1989

2h00

Estou no interior da Revolution, uma loja de discos em segunda mão, no centro da cidade, a observar, através de uma caixa de plástico com discos, o rapaz de quem gostei verdadeiramente na Noite dos Caloiros. A Jane pretende comprar bilhetes para assistir ao espectáculo de um grupo qualquer, de que nunca ouvi falar, mas parece que estou num dia de sorte.

- Ele está a olhar? - pergunto à Jane.

- Não vamos começar tudo de novo - diz Jane com voz firme.

- Mexe-te e vai falar com ele.

Concordo com ela: - Tens razão. Vou falar com ele - decido. Faço uma pausa. - E se vires um rapaz de aspecto manhoso, vestido de maneira esquisita, mantém-no longe de mim.

Caminho para o rapaz, que veste o mesmo casaco de cabedal e as calças de ganga que trazia no dia em que o vi pela primeira vez e continua a ser bonito. Finjo estar à procura de um disco mas, em segredo, espio por cima do seu ombro, enquanto ele se entrega a uma busca sistemática em todas as caixas de discos usados que estão expostas na loja. Quando pega num disco de doze polegadas de Brown Girl In Tbe Ring, um êxito dos Boney M, e o coloca em cima de uma pequena pilha de discos junto de si, acho que encontrei o meu motivo para meter conversa.

- Não deves comprar isso - sugiro, a apontar para o disco pousado no chão. - É horrível.

Olhou para mim da sua posição agachada. - És a rapariga da Noite dos Caloiros! - exclama, ao endireitar-se.

Nem quero acreditar que ele me reconheceu. - Chamo-me Alison Smith - anuncio. - Estudo inglês.

- Sou o Damon - responde. - Damon Guest. E estudo ciências da vida.

- O que é isso?

- Não faço ideia, pois cheguei até aqui depois de ter feito o exame de acesso - acrescenta, fazendo uma pausa. - Então, diz-me cá, Alison Smith, por que motivo não devo comprar este disco?

- Porque é terrível. Os Boney M... são uma porcaria.

- Mas custa apenas 25 pence.

- Custa 25 pence a mais - acrescento. Tiro o disco da pilha e devolvo-o à prateleira.

Sexta-feira, 20 de Outubro de 1989

17h47

- Então, como é que correu a saída com o diabolicamente bonito Damon? - indaga a Jane, quando nos encontramos sentadas na borda da cama dela, a ver, com pouca atenção, a repetição de Vizinhos, um programa da tarde, no seu televisor portátil.

- Estupenda. Fomos beber um copo ao Varsity.

- Em Bristol Road?

- Sim. Bebemos Coca-Cola durante toda a noite, porque ele disse que não aprecia o sabor do álcool.

Jane solta uma gargalhada.

- Parece uma menina!

- Concordo, mas sabes uma coisa?

- O que é?

- Não sei por quê, mas isso só me fez gostar dele ainda mais. A Jane suspira. - Muito bem, então falaram de quê?

- De música, principalmente. É um apaixonado, literalmente apaixonado, pela música. Segundo parece toca muito bem guitarra. Na terra dele, fazia parte de uma banda, mas entretanto o grupo dividiu-se.

A Jane continua divertida. - Devias juntá-lo com aquele rapaz esquisito que tentou conquistar-te no início das aulas.

- Nem me fales desse - peço, sentindo-me estremecer. - Não consigo imaginar que a sua banda prestasse para alguma coisa - acrescentei, a sorrir e a pensar no Damon. - Adoro que ele seja um apaixonado pela música. Há algo de sexualmente fascinante num homem apaixonado por uma qualquer actividade. Como é óbvio, observar comboios, coleccionar selos e coisas do género são as excepções que confirmam a regra, mas, quando se trata de música, tens de ser uma pessoa muito mais interessante. Consegui não ficar mal de todo por ter ouvido na Radio One muitas das bandas que ele mencionou. Mais tarde, falámos do que tencionamos fazer das nossas vidas. Disse-me que pretende ingressar na produção musical e eu falei-lhe dos meus planos para me tornar romancista.

- Pois a mim parece-me uma conversa entre dois perfeitos idiotas - sentencia a Jane, sem deixar de rir.

- Eu sei, mas a situação está a piorar. Passo parte da noite a imaginar a nossa vida em comum. Eu a escrever romances numa divisão vaga da casa, ele na sala de estar, rodeado de centenas de discos.

- Queres, então, dizer que foi tudo conversa?

- Não. Trouxe-me a casa e beijámo-nos.

- Como é que foi?

- Fantástico!

1991

Sexta-feira, 11 de Janeiro de 1991

22h45

Há uma hora, com o Ed, do segundo ano de Biologia, na percussão, a Ruth, do primeiro ano de Matemática, na guitarra, e o Nick na viola baixo, todos os meus sonhos se realizaram. Captain Magnet, a banda com que sonhei e que consegui formar, tocou pela primeira vez no pequeno palco existente na sala do primeiro andar da cervejaria Jug of Ale, em Moseley, para uma multidão de dez pessoas. Foi fantástico. Melhor do que tudo o que eu ousara imaginar.

Acabou, por agora. Ed e Ruth já foram para casa e Nick ficou comigo na cervejaria. Desde que saímos do palco temos estado a falar sem descanso acerca do espectáculo e chegámos a um ponto em que o assunto começa a perder interesse; por isso, decido introduzir um novo tema de diálogo e escolho uma matéria que tem a ver com o coração. - É muito agradável ser o vocalista de um grupo musical - começo, em voz mais alta do que seria aconselhável num bar cheio de gente -, mas preciso de uma mulher. E preciso de uma mulher já.

- A necessidade não pode ser assim tão grande - comenta o Nick.

- É terrível. Julguei que a universidade seria um antro de depravação. Pretendo o meu quinhão. Fazes ideia do número de mulheres com quem estive envolvido desde que entrei na universidade?

- Não, mas tu vais dar-me essa informação, não vais?

- Só com uma - respondo. - Linda Braithwaite.

- Aquela meio-gótica manhosa da Noite dos Caloiros, com quem ainda conseguiste sair mais duas vezes?

- Eu sei - concordo, a abanar a cabeça com tristeza. - Não tenho vergonha - admito. Bebo mais um gole de cerveja.

- A tua vida amorosa é uma trapalhada, companheiro.

- Reconheço que é e isso acontece por.

Nesta altura engasgo-me, pois vejo a mais bela rapariga do mundo a entrar no bar. É um espanto. Absolutamente bela, segundo um milhão de conceitos diferentes. Uma deusa. Está acompanhada de um tipo alto, de aspecto taciturno, um homem que, na minha opinião, devia mostrar uma cara mais feliz por causa da companhia. A rapariga e o tipo caminham até à nossa mesa e param.

- Nick! - saúda a rapariga. - Como estás?

- Estou bem - responde ele, friamente. - E tu, como vais?

- Óptima - responde ela. - Realmente bem.

Nick e esta bela rapariga falam durante três minutos de trivialidades: trabalho, condições de vida, amigos comuns, da vida em geral. Então, ela olha para o tipo de aspecto taciturno que está a seu lado e diz: - Oh! é melhor irmos andando - e desaparecem para o outro lado do bar.

- Quem era? - pergunto logo que eles não me podem ouvir.

- Quem era o quê? - responde o Nick, só para me irritar.

- A rapariga. Aquela rapariga absolutamente espantosa. O Nick ri-se: - Oh, ela? Era a Anne Clarke. Durante o primeiro ano, viveu comigo numa residência universitária... Pode dizer-se que é bem bonita.

- Essa pode ser considerada a injustiça do ano. A miúda é fantástica. Por que diabo não nos apresentaste?

- Olha, companheiro, não te metas com ela - responde o Nick, enigmaticamente. - Se vais com ela apaixonas-te e, de certeza, ficas com o coração despedaçado.

Quinta-feira, 14 de Fevereiro de 1991

23h05

Vim à festa do dia de São Valentim, em Selly Park. Por norma, se o posso evitar não vou a festas em casa de estudantes. Durante o tempo passado na universidade descobri a primeira lei das festas em casas de estudantes: por cada mulher que assiste haverá, pelo menos, dez estudantes de engenharia, jogadores de râguebi sexualmente frustrados, que vão considerar todos os que não são estudantes de Engenharia nem jogadores de râguebi como ameaças às suas tentativas para saírem da festa acompanhados de um membro do sexo oposto.

Descobri esta lei na primeira semana do meu primeiro ano e, sem querer acreditar que tal comportamento próprio do homem de Neanderthal pudesse existir a este nível superior de educação, continuei a aprender a lição em casa do Sam Golden, na festa do seu décimo nono aniversário, na festa em casa da Elaine Doon, em que se celebrou o final dos exames, e na festa de Natal, em casa do Michael Greene. Não frequentei festas caseiras desde a do Michael Greene, em que vários jogadores de râguebi, todos estudantes de Engenharia, resolveram embirrar com a camisa de tecido às flores que eu usava e com o facto de eu ter enfiado a minha língua até à garganta da Linda Braithwaite, que, soube depois, é irmã do Gary Braithwaite, estudante de Engenharia e jogador de râguebi. Venho a esta festa do Nick por duas razões: primeiro, ele jurou-me pela sua saúde que não tinha convidado quaisquer estudantes de Engenharia; segundo, afirmou ter boas razões para crer que a Anne Clarke estivesse cá. E está.

Vejo-a a dançar com exuberância na sala de estar, copo de vinho numa das mãos e um cigarro na outra, ao som dos Happy Mondays. Quando a canção termina, dirige-se para junto de um grupo de rapazes que estão num canto da sala. Instantes depois, ouço-a rir às gargalhadas com eles. É evidente que os tipos estão tolamente enamorados dela. Uma visão estranha, pois ela parece tê-los todos hipnotizados. Seguem-na com os olhos para onde quer que vá. A mais óbvia das tentações. Embora me sinta desesperado por falar com ela, decido que não vou, de forma alguma, dirigir-me a ela com o intuito de meter conversa. Vou agir com inteligência. Não vou pôr-me a dizer que gosto dela e a perguntar-Lhe se gosta de mim; vou ser racional e insinuar que não estou muito impressionado com os seus encantos. Escolho o momento com todas as cautelas. Vejo-a deixar o grupo de rapazes e dirigir-se à cozinha, para ir encher um copo de água na torneira do lava-louça.

- Podes passar me um desses copos que estão a secar? - peço, por detrás dela.

- Com certeza - responde. Então, vira- se e acrescenta: - Bonita camisa.

Trago uma camisa de manga curta, de tecido barato cor de pêssego, com um grande colarinho ao estilo dos anos 70; se entrasse na cozinha uma forte rabanada de vento, eu talvez levantasse voo. - Obrigado - respondo, a sorrir, mas não muito. Ignoro os preliminares de um Como estás? que poderia originar uma conversa, volto a sorrir e afasto-me.

Duas horas mais tarde encontro-me a conversar com um grupo de pessoas dos cursos de História e de Geogra, tudo amigos do Nick. De súbito, a Anne aproxima-se do grupo. Noto a presença dela de imediato, mas não estabeleço contacto visual. Passado algum tempo a conversa passa a gravitar à volta de um projectado passeio ao campo e volto-me para o lado esquerdo para me dirigir à Anne que, para minha surpresa, vejo a sorrir para mim.

- Sou o Jim - apresento-me. - Parece-me que já te vi por aí.

- Sou a Anne. Conhecemo-nos na cozinha.

Iniciamos uma conversa que abrange assuntos de carácter geral, como, por exemplo, saber quais as pessoas presentes na festa que conhecemos, os cursos que frequentamos e os locais onde vivemos. Contudo, controlada pela Anne, a conversa não tarda a tornar-se menos genérica e mais pessoal. Espontaneamente, começa a falar-me da sua vida: um estranho episódio acerca do ex-namorado, pormenores sobre o divórcio dos pais e a existência de uma irmã com quem nunca se deu verdadeiramente bem. Ouço durante a maior parte do tempo e uma vez por outra vou respondendo com as poucas pérolas de sabedoria que recolhi durante a minha vida à superfície da terra. E que, pelos vistos, parecem surtir o efeito desejado de a animarem, ou de a fazerem rir.

Sábado, 27 de Abril de 1991

12h23

A Anne e eu temos estado no Varsity. Depois da festa de Fevereiro temos passado muito tempo juntos. As noites, na sua maioria, são passadas em casa, na minha ou na dela. Toda a gente, incluindo o Nick e o ex-namorado da Anne, acredita que temos um caso ou que, pelo menos, estamos prestes a ir viver juntos. Por mais vaidoso que me sinta, digo, a qualquer pessoa que queira ouvir, que não se passa nada e que somos apenas bons amigos. A reacção é sempre a mesma: as pessoas riem-se, como se pensassem que estou a mentir. Não me queixo de ninguém, pois, com a passagem do tempo, a situação também me parece cada vez mais inacreditável.

A Anne decidiu namorar me ostensivamente.

Caminhamos de mãos dadas.

Mas nunca acontece nada.

Posso passar a noite lá em casa e dormirmos na mesma cama, com ela vestida apenas com uma desbotada t-shirt dos Stone Roses e um sorriso.

Mas nunca acontece nada.

Beija-me nos lábios sem motivo aparente e uma vez até pôs a língua dentro da minha orelha.

Mas nunca acontece nada.

Porém, esta noite, como ambos bebemos demasiado, decido que vai acontecer qualquer coisa. Portanto, quando estamos sentados no sofá, em casa dela, a ver Central Wieekend Live só com um olho, a cair de sono, inclino-me e beijo- a na boca.

É melhor do que alguma vez poderia ter imaginado. Porém, no momento que eu começava a gozar a situação, Anne empurra-me e diz-me, com um ar espantado: -Jim, sabes que gosto de ti, não sabes?

Voltamos à mesma. - Sei.

- Mas há uma coisa, não gosto de ti assim.

Pois, voltámos à mesma. - Assim como?

- Assim - demonstra, a gesticular na minha direcção com ambas as mãos, indicando que o espaço entre nós é assim, - É realmente agradável - continua - e, se a situação fosse outra, adoraria que vivêssemos juntos, mas tenho uma quantidade de ideias na minha cabeça e esta não é uma boa altura para iniciar uma relação.

- Não há problemas - garanto, a encolher os ombros, como se a ideia de viver com a Anne me tivesse ocorrido naquele preciso momento.

- De verdade que não há qualquer problema. Tudo bem. Eu compreendo.

É claro que não compreendo. Não compreendo mesmo nada. O meu problema é não conhecer as regras do jogo dela, qualquer que ele seja.

Sábado, 4 de Maio de 1991

2h02

Estou a ouvir Strangeways Here tXe Come no meu gira-discos e a amadurecer a ideia de escrever uma canção sobre a Anne. Apesar dos esforços que fiz para fazer crer que as coisas entre nós continuavam tão bem como dantes, não a vi durante toda a semana que se seguiu ao nosso beijo. De repente, ela passou a ter as noites muito ocupadas e eu decidi que talvez precisemos de um certo período de afastamento. O Fio dos meus pensamentos é quebrado pelo som produzido pelo braço do gira- discos a voltar à posição de descanso, assinalando o final do lado número dois. Consulto o relógio e decido que são horas de ir para a cama, mas, depois de alguns momentos de hesitação, a pensar se devo ou não ir à casa de banho, desisto e vou mesmo. A bocejar, caminho para o patamar e dou de caras com a Anne.

- Jim!

Fico mudo porque, para além da Tshirt nova dos Inspiral Carpets, que o Nick comprou no concerto da banda da semana passada, ela não tem nada vestido. Fui eu que levei o Nick ao concerto.

Ficamos ambos encabulados, até que acabo por dizer: - Ia à casa de banho.

- Eu também, mas espero até tu acabares.

- Então, até amanhã - respondo, desamparado, ao entrar na casa de banho e ao fechar a porta.

10h02

Pela manhã, quando desço a escada, a Anne não está por ali e vejo o Nick sentado no sofá da sala de estar, com o ar de quem tem estado à minha espera.

- Bom dia - cumprimenta, enquanto me sento.

- Bom dia - correspondo. - Ela ainda cá está?

- Não, saiu logo pela manhã.

Instala-se um longo silêncio.

- Ora bem, nesse caso andas com ela, não é?

Ele nega com a cabeça. - Se isso te serve de consolo - acrescenta -, penso que ela gosta mesmo de ti.

Não posso crer no que estou a ouvir. - Se gosta tanto de mim, por que razão a encontro a sair do teu quarto a meio da noite?

Nick respira fundo. - Acredita que fiquei tão surpreendido como tu. Era absolutamente louco por ela quando vivemos na residência universitária. Também julguei que ela gostava realmente de mim. Costumava desafiar-me a toda a hora, mas nunca acontecia nada. De qualquer modo, numa noite em que estava com ela pensei que a situação estava a tornar-se ridícula, tentei beijá-la e ela pregou-me aquele sermão sobre o desejo de sermos amigos. Por isso, respondi: Óptimo, sejamos amigos e a partir daí começou a evitar-me como se eu fosse a peste, até que soube que a Anne andava metida com um colega do meu curso.

- Mas por que motivo faria uma coisa dessas?

Nick encolhe os ombros. -As mulheres são assim. Ninguém sabe o que lhes passa pela cabeça.

23h55

À noite, bastante tarde, deitado na cama com os versos de L'easer Pleaser" quase alinhavados, procuro perceber os meus próprios sentimentos. O mais engraçado é não atribuir qualquer culpa ao Nick. E também não culpo a Anne. Julgo que o culpado sou eu mais as minhas ideias parvas sobre o belo sexo. Este episódio vai ser a marca que diferencia as minhas futuras relações. A partir de agora, vou ser diferente. Não voltarei a apaixonar-me por mulheres inatingíveis.

Sexta-feira, 4 de Outubro de 1991

19h28

Estamos no início do primeiro período do nosso último ano na universidade e Nick, Ed e eu estamos em casa, à espera de um tipo que queremos ouvir com a ideia de o incorporarmos na banda. Até ao Verão, o grupo Captain Magnet fez uma época verdadeiramente notável. Demos mais de uma dezena de concertos e por duas vezes fomos mencionados pelos críticos do jornal local. Porém, fomos atingidos pela desgraça quando a nossa guitarrista, a Ruth, nos deixou, invocando diferenças artísticas, (queria que tocássemos umas canções que escrevera mas eu opus-me porque as músicas não tinham qualidade). A precisar desesperadamente de um substituto, indagámos entre os nossos amigos e só apareceu um tipo que se mostrou vagamente interessado, aquele de que agora estamos à espera. Íamos justamente estabelecer as características que gostaríamos de ver num guitarrista quando alguém bate à porta.

- Parece que estão a bater à porta - anuncia o Nick, a sorrir.

- Óptimo, eu vou lá.

Abro a porta e vejo um tipo alto, com um casaco de cabedal.

- Olá - saúda. - Chamo-me Damon. Venho para a audição do grupo Captain Magnet.

- Sou o Jim. Sou o vocalista. Entra.

Damon segue-me até à sala, liga a guitarra ao amplificador do Nick e toca duas canções e meia para mim, para o Nick e para o Ed. Toca o tema de uma canção dos Stone Roses, o tema de uma música dos Dinosaur Jr. e metade de uma canção da sua autoria, chamada The Girl From Inter Space, que ele, sem vergonha nenhuma, nos informa que fala da sua namorada. Como ele é muito melhor músico de que todos nós em conjunto, concluímos pela inevitabilidade da sua entrada para a banda.

- És brilhante - informo-o. - Foste admitido.

1992

Quarta-feira, 12 de Fevereiro de 1992

13h33

O Nick, o Damon e eu estamos sentados no bar da associação de estudantes com três canecas vazias e o último número da revista NME à nossa frente. A adaptação do Damon ao grupo foi perfeita. Desde que ele se juntou a nós, na maioria das noites, os ensaios, que eram efectuados em casa do Nick e na minha, tinham-se transformado em serões passados no Varsity. Estes, por sua vez, deram origem a grandes consumos de cerveja e a extensas discussões acerca da vida, de política, raparigas e música. O Damon é agora mais do que um membro da banda. É um amigo.

- Quem é que quer mais uma bebida? - pergunto, dirigindo-me a todos os que estão sentados à mesa.

O Damon recusa: - Não posso. Tenho uma aula de Química Orgânica dentro de dez minutos.

Volto-me para o Nick e imito o gesto de beber uma caneca. Ele consulta o relógio. - Tenho uma aula de três horas de Engenharia Mecânica dentro de dez minutos. Vou com certeza beber mais uma caneca.

Levanto-me e caminho para o bar. Uma rapariga de quem me recordo vagamente vem a entrar naquele preciso momento. Julgo que a conheço mas não consigo lembrar-me de onde. Chupa um cigarro com energia e olha à volta da sala, como se procurasse alguém; porém, como não consigo lembrar-me do nome dela, perco o interesse e concentro-me na tarefa de ir buscar as bebidas ao balcão. Na altura em que regresso à mesa onde estamos sentados, volto a pensar na rapariga, em especial por vê-la a beijar o Damon.

13h44

Devo ter estado a sonhar, pois só noto a presença do Rapaz que se veste de maneira diferente quando ele se senta ao lado do Damon. Rapaz que se veste de maneira diferente, é o nome que eu e a Jane lhe damos desde que ele tentou meter conversa comigo, na Noite dos Caloiros. O tipo é tema de conversas frequentes entre o meu círculo de amigas, pois faz parte de um selecto grupo de pessoas que toda a população universitária reconhece, quer se interesse por elas ou não, por sobressaírem no meio de qualquer multidão. Estes estranhos personagens incluem a Rapariga sem sobrancelhas, o Rapaz que usa maquilhagem", a Rapariga sempre lavada em lágrimas e, finalmente, o Rapaz que se veste de maneira diferente.

Nos tempos mais recentes, reparei que o Rapaz que se veste de maneira diferente levou o seu estilo de vestuário até ao zénite. Num dos dias da semana poderá ser visto com um fato da Oxfam com sapatiLhas; gravatas cor de salmão com uma Tshirt feita em casa e camisas dos anos 70 com colarinhos largos e desenhos tão berrantes que quase podemos ouvi-los gritar do outro lado do campus. Uma vez, durante a semana de exames, a Jane avistou-o com uma camisa de algodão grosseiro, cor de pêssego, tão incrivelmente horrenda que acabei por tomar parte em cinco conversas diferentes, só nesse dia, com diversos amigos, todas partindo da pergunta: Viste o aspecto com que o "Rapaz que se veste de maneira diferente" se apresentou hoje? Onde é que ele andará com a cabeça?

E agora está sentado à minha frente.

- Jim - diz o Damon, a dirigir-se ao Rapaz que se veste de maneira diferente", - esta é a Alison, a minha namorada.

- Viva! - responde ele. - The Girl From Inner Space [A Rapariga do Espaço Interior] és tu.

Cumprimento-o com um aceno de cabeça e sinto-me pouco à vontade, ao recordar a canção que o Damon escreveu para mim. Segue-se um silêncio embaraçoso. Alimento uma esperança insensata, espero que ele não me tenha reconhecido.

- Vocês já se conheciam? - indaga o Damon.

Digo que não com a cabeça e apago o cigarro, uma maneira de arranjar uma desculpa para evitar o contacto visual. - Não. De maneira nenhuma.

O Damon não parece convencido, mas também não me parece incomodado. - Tive a impressão de que se reconheceram um ao outro.

- Agora que dizes isso, pareço estar a conhecê-la - adianta o Jim.

Apresso-me a responder: - Nunca te vi em toda a minha vida.

- Enganei-me - concorda o Jim. - Estou a pensar numa rapariga que encontrei na Noite dos Caloiros. Ficou embeiçada por mim. Mas eu não demonstrei qualquer interesse.

Damon solta uma gargalhada. - Deve ter ficado fula.

- Pois ficou. Penso que era maluca.

18h05

- Nem posso crer que estiveste sentada à mesa com o rapaz mais esquisito da universidade - comenta a Jane, muito excitada, quando chego a casa e lhe conto a novidade.

- Foi realmente bizarro. É claro que sabia que o Damon tinha entrado numa banda (chamam-lhe Captain Magnet ou uma treta desse género), até sabia que um dos membros do grupo se chamava Jim, mas nem por um momento pensei que era o Rapaz que se veste de maneira diferente".

- E não lhe disseste nada sobre a tentativa de te beijar na Noite dos Caloiros?

- Não podia dizer nada disso, pois não? Não tinha a certeza de ele me ter reconhecido, não sabia se ele estava a apenas a gozar-me por causa dessa cena. Por isso, limitei-me a morder o lábio.

- Caramba! - exclama a Jane, que nunca considera nada importante até ao ponto de merecer tal exclamação. - O que é que vais fazer?

- Nada. Vou ignorá-lo. Lá por ele ser amigo do Damon não tenho de manter relações cordiais com ele... No entanto, o problema é...

- O quê?

- Tenho de admitir que estou um bocadinho curiosa acerca do Jim.

- De verdade?

- É. Achas estranho?

- Um rapaz bem-parecido, na tua opinião?

- Bastante e, com roupas relativamente normais, antevejo que muitas raparigas poderão considerá-lo atraente.

A Jane solta uma gargalhada: - Mas não tu?

- Não, não é bonito de uma maneira muito evidente. Não sabes que muitos homens têm uma certa beleza profunda e que, se os abrisses, até lhes acharias os ossos bonitos? - pergunto à Jane, que faz um gesto de assentimento. - Pois bem, Jim é o oposto. É bonito à superfície. Sem profundidade - acrescento e fico, por instantes, a procurar uma maneira eficaz de o descrever. - Parece o género de rapaz que as raparigas fáceis procuram.

A Jane sorri. - Até parece que ele vem a subir a minha rua.

22h17

Eu e o Nick estamos numa reunião de emergência da Comissão de Pesquisa Sobre o Que Fazer Para Endireitar a Vida do Jim". O número um da ordem de trabalhos (cujos pormenores acabo de comunicar ao Nick) é a minha tentativa, já antiga, de me meter com a namorada do nosso guitarrista.

- Pensas que ela te reconheceu? - pergunta o meu companheiro.

- É difícil de dizer. Pareceu-me um pouco esquiva, o que pode não significar muito, não achas? Não foi a atitude própria da rapariga que não gosta de mim à primeira vista. No entanto, para uma pessoa que não me reconheceu, estava a agir de um modo estranho.

- No que respeita ao Damon, não vejo que tenhas razões para estares preocupado - sugere o Nick. - Suponho que se lhe disseres que uma vez, muito bêbado, quando ainda eras um caloiro inexperiente, tentaste engatar a miúda dele, até poderá considerar o episódio muito divertido. Admitamos, porém, como base de discussão, que a namorada dele te reconheceu como o bêbado daquela noite; ora, o facto é que ela fingiu não saber quem tu eras. Portanto, o meu conselho é que te mantenhas calado.

- É um bom conselho, mas.

- Não digas.

- O quê?

- Sei o que vais dizer e peço-te que não o digas.

- Como é que podes saber aquilo que eu vou dizer?

- Porque já disseste tudo com os olhos.

- Não disse coisa alguma.

- Muito bem - admite o Nick. - Responde a esta pergunta: Quando se encontraram, durante a tarde, perguntaste a ti mesmo se ela te agrada?

- Sim, mas.

- Não há mas. Conheces as Normas, não conheces?

Respiro fundo e recito, com voz monótona: - Um tipo nunca deve analisar a namorada de outro tipo com o propósito de avaliar se ela é atraente, se o primeiro tipo considera que o segundo tipo é seu amigo.

- Exactamente.

- Mas...

- O que é que combinámos acerca do mas?

- Mas há certamente um argumento importante: eu tentei engatar a Alison antes de ela ser a namorada do Damon, pelo que as Normas não são aplicáveis.

O Nick ri-se. - Tens razão. Aí tens um enorme buraco legal, que não deixarei de levar em consideração se chegar o momento de me interessar por mulheres que te rejeitaram... Muito bem, quais foram os resultados dos teus demorados cálculos e observações?

- A Alison não está nada mal, é bonita, mas não é verdadeiramente o meu género.

- Dado o teu passado de envolvimento entre os góticos, não sei muito bem qual é o teu género.

- Suponho que se eu tivesse de escolher um género, seria o da Anne. Embora tenha decidido não me meter com mulheres inatingíveis.

- Referes-te a mulheres inatingíveis como a namorada do nosso guitarrista?

- Um bom argumento - respondo calmamente.

- Muito bem, tudo o que posso dizer é que não a cobiçares será uma boa ideia.

- É isso mesmo - respondo, a olhar para o copo vazio. - Acho que consigo viver com a ideia.

Sábado, 15 de Fevereiro de 1992

23h23

Em todas as noites de sábado, eu e alguns companheiros vamos a um serão de estudantes a que chamamos Menagerie (reunião de animais selvagens), que se realiza num salão cavernoso que ostenta o nome de Hummingbird. A característica mais notável do lugar reside na alcatifa muito espessa que rodeia a pista de dança. Nos cantos, onde é mais difícil chegar, a alcatifa ainda apresenta a cor original: um tom de tijolo; no restante, graças aos milhares de litros de cidra e cerveja servidos em pouco estáveis copos de plástico, foi adquirindo gradualmente um tom castanho sujo.

Estou precisamente a contemplar o aspecto repelente da carpete, quando o Nick me diz em voz ríspida: - Não olhes para o balcão do bar.

- Porquê?

- Faz como te digo.

- Mas, qual é o motivo de não poder olhar? - indago, ao voltar- me para olhar para o bar. - São a Alison e o Damon. Já me viram e dirigem-se para cá. Não devia ter olhado.

- Pois não. Por isso te avisei para não olhares.

Era raro vermos o Damon cá por fora nas noites de sábado, pois, segundo parece, essa era a noite da namorada, em que ele deveria passar o tempo com a Alison a fazer coisas especiais, como jantar fora ou ir ao cinema. Daí a minha surpresa ao vê-lo em companhia da Alison e de um punhado de colegas dela (uma das quais traz um balão em forma de coração, com a inscrição Menina Aniversariante"). As amigas da Alison desaparecem todas na direcção das casas de banho e ela e o Damon caminham para a mesa onde o Nick e eu estamos. O meu coração começa a bater tão acelerado que pareço ter corrido a maratona. É a primeira vez, desde quarta-feira, que vejo a Alison e, infelizmente, a rapariga transformou-se numa espécie de obsessão para mim. Se tiver de Lhe falar, receio não conseguir disfarçar que tenho um fraco por ela.

- Tudo bem, malta? - saúda o Damon, quando chega junto de mim e do Nick.

- Óptimo - responde o Nick, enquanto eu me limito a um gesto entusiasta de assentimento.

- E tu, Alison, estás bem? - cumprimenta o Nick.

A rapariga responde com um aceno tímido e eu repito o meu gesto entusiasta, o que leva o Damon a olhar para mim como se eu lhe parecesse um pouco mais esquisito do que é normal. - Vai uma bebida, companheiros? - indaga.

- Boa ideia, uma Carling - pede o Nick.

- Também acho, uma Castlemaine para mim - corroboro. A voz soa- me ridiculamente rouca e todos olham para mim, como se acabassem de ouvir falar o Harpo Marx. - Estou constipado - acrescento, como se sentisse necessidade de me explicar.

- Al, o que é que tu queres? - pergunta o Damon.

- Vodca com água tónica. Mas acompanho-te ao bar para te dar uma ajuda.

- Não é preciso - insiste o Damon. - Ficas aqui com os rapazes e eu estarei de volta antes de dares pela minha falta.

A Alison é deixada comigo e com o Nick.

- Vou fazer uma mija - anuncia o Nick, com crueza intencional. Não me demoro.

Agora, sou deixado sozinho com a Alison.

Olhamos à volta da sala por instantes e observamos as pessoas que evoluem na pista de dança. Estão a tocar uma canção chamada There No Love Between Us [Não Há Amor Entre Nós); não consigo decidir se o facto de estarem a tocar aquela canção é apropriado, irónico ou inconsequente.

- Uma grande canção, esta - insinuo.

Alison faz um sinal de concordância e consegue um ligeiro sorriso, mas não fala.

- Ora bem, como é que tens passado? - pergunto.

- Bem - responde, sem mais pormenores. Olha na direcção do bar, como se desejasse que a fila onde se encontra o Damon fosse mais curta.

Ao vê-la tão retraída comigo convenço-me de que acabou por me reconhecer. Numa tentativa de estabelecer a paz, decido esclarecer tudo e pedir desculpa. - Olha - começo, mas sou interrompido pelas amigas dela que regressam da casa de banho.

- Alison! - grita uma. - Corremos tudo à tua procura - e, dito isto, arrastam-na para a pista de dança.

Domingo, 16 de Fevereiro de 1992

1h00

Estou de pé na galeria por cima da pista de dança, a fumar um cigarro e a pensar no Jim. Quando a Jane me pediu sugestões sobre um clube onde fôssemos comemorar o seu aniversário, podia ter-lhe dado dezenas de nomes, mas sugeri este por saber que o Jim estaria cá, pois o Damon já me tinha dito que ele vem aqui todos os sábados. E agora que ele está aqui ignoro- o, por sentir que se não agir com normalidade o rapaz reconhecerá o quanto eu realmente gosto dele. Os sentimentos tornar-se-ão evidentes, tanto para o Jim como também para o Damon.

- Se tapares os ouvidos - diz uma voz por detrás de mim - e te limitares a observar, verás que os da pista de dança parecem seres realmente estranhos.

Volto-me e dou com o Jim; embora contrariada, sorrio.

- Sem o som da música - continua -, tudo o que vês são centenas de pessoas a agitar os braços e as pernas numa sala escurecida.

Jim tapa os ouvidos e incita-me, gritando-me para se fazer ouvir:

- Vá, experimenta!

Solto uma gargalhada e, enquanto ele mantém as mãos a tapar-me os ouvidos, sussurro: - Eu gosto de ti. Gosto muito de ti. Mas já tenho namorado. E, na verdade, não posso fazer isto.

- O quê? - pergunta o Jim ao destapar as orelhas.

- Nada.

- Pareceu-me que estavas a dizer qualquer coisa.

- Estava a perguntar se querias um cigarro - minto, a oferecer- Lhe o maço.

- Não fumo - responde. - Não é conveniente por causa da voz. Além disso, se não tiveres cuidado, essas coisas acabarão por matar-te.

- Estou disposta a arriscar - replico, enquanto trocamos sorrisos tímidos. Deixo passar uns instantes e pergunto: - Eu conheço-te, não é verdade?

O Jim acena que sim. - Noite dos Caloiros de 1989. Meti conversa contigo acerca das minhas classificações e tentei beijar-te. Peço desculpa, por mim e pelo meu orgulho.

Estou prestes a aceitar graciosamente as desculpas quando somos mais uma vez interrompidos, desta vez pelo amigo dele, o Nick.

- Companheiro, procurei-te por todos os cantos.

- Estava a falar com uma pessoa - replica o Jim.

Os olhos do Nick desviam-se do Jim e detêm-se em mim. - Oh!

- exclama. - Desculpa, puto.

Aquela frase tem muito que se lhe diga. Posso ter a certeza de que o Nick sabe que eu conheço o Jim, o que eu já adivinhava. Mas contém ainda uma nova informação. Algo que nem sequer me ocorrera.

Apresso a despedida. - Tenho de ir andando. Não tardo a vê-los

de novo.

11h35

Nem vais acreditar no que vou dizer-te. Tenho esta sensação estranha de que o Jim também gosta de mim.

A manhã vai a meio. Eu e a Jane encontramo-nos sentadas na sala de estar, a ver o programa das manhãs de domingo na televisão.

O Damon foi a casa do Jim, para um ensaio da banda, deixando-me à vontade para pôr a Jane ao corrente do que se passou na noite anterior.

- O que é que te leva a dizer isso?

- Foi o amigo dele, o Nick, que fez soar a campainha de alarme.

- Então, agora que sabes, o que é que vais fazer a respeito do teu fraquinho por ele?

- Não sei. Andei a fazer umas investigações acerca do homem.

- Queres dizer que fizeste perguntas sobre ele ao Damon?

- Quero - respondo, já a sentir remorsos. - Mas fui o mais subtil que pude. Tudo quanto consegui apurar é que ele teve uma grande paixão por uma rapariga chamada Anne. Segundo o Damon, ela é o tema da maioria das canções tocadas pelo grupo. Ouvir isto foi uma verdadeira surpresa para mim. Nunca me pareceu do género de se apaixonar.

- Também não me pareceu. Já não consigo pensar nele como o Rapaz que se veste de maneira diferente,

Estou de acordo com ela. - Tens razão. Agora é um rapaz como os outros. Um rapaz por quem começo a sentir uma paixão violenta.

Terça-feira, 3 de Março de 1992

15h42

Ando a vaguear sem destino pelo campus, a tentar matar o tempo que medeia entre a última aula, História Económica da Grã-Bretanha no Pós-Guerra, e a próxima, Aplicações da Economia Moderna. Sentado num banco, do lado de fora da biblioteca, a olhar para o céu, dou comigo a reflectir sobre a Alison. Não penso em nenhuma característica específica, penso nela em sentido genérico: aquilo de que gosta ou não gosta, o que ela poderá pensar. Coisas deste género. Para mim, isto está a tornar se uma espécie de hábito. Penso nela ao acordar. Penso nela quando vou dormir. E penso nela durante o intervalo. Já me ocorreu que não é a melhor ideia do mundo, esta de estar a pensar de modo tão intenso na namorada de um amigo. Então, ocorre-me que o coração tem razões que a razão desconhece. Por fim, decido que a melhor maneira de deixar de pensar na Alison é distrair-me com uma leitura da lista que o professor de História Económica da Grã-Bretanha no Pós-Guerra acaba de me fornecer. Segundo parece, um dos livros constantes da lista é essencial para este ano e sei que todos os exemplares existentes na biblioteca já devem ter sido requisitados pelos alunos mais conscientes do meu curso; não me resta alternativa, tenho de atravessar o campus para ir à livraria e comprar um exemplar. No preciso momento em que olho as prateleiras da livraria, dou de caras com a Alison, que está a observar-me.

- Belo dia, não achas? - digo ao chegar junto dela. Foi a primeira coisa que me veio à cabeça.

Ela ri-se. - Pois, está demasiado quente para esta época do ano.

- Porém, não nos podemos esquecer de que ontem à tarde choveu um poucochinho.

- É verdade. E dizem que deve chover lá para o Fim-de-semana.

- Pois é, e também ouvi dizer que volta a clarear no meio da semana.

É como ser lançado para dentro de um filme a preto e branco com a Katharine Hepburn e o Spencer Tracy. Um filme que fosse passado em Birmingham, protagonizado por Tracy na pele de um estudante de economia ligeiramente irritável e Hepburn no papel de uma estudante de inglês dotada de um amplo sorriso.

Continuámos no mesmo tom, a atirar banalidades meteorológicas para diante e para trás, durante uns bons vinte minutos, até que acabei por dizer uma coisa realmente estúpida.

- Chega de conversa sobre o tempo. Apetece-te uma bebida rápida, ou qualquer outra coisa?

O rosto de Alison ensombra-se de imediato, mas responde-me com toda a calma: - Não, obrigada.

- Tens trabalho a fazer?

Diz que não com a cabeça.

- Outros planos?

Volta a negar com a cabeça.

- Então, por que motivo estás a dar-me tampa?

- Tu conheces o motivo - replica.

Tem razão. Eu sei o motivo. E agora sei que ela sabe que eu também sei.

- Nem sequer podemos ser amigos? - acabo por perguntar.

- Penso que não.

Dito isto, pede desculpa e sai da livraria. Ao vê-la afastar-se, percebo com a máxima clareza que não me sinto apenas atraído por ela. Trata-se de algo mais profundo. Mais duradouro. E, apesar de toda a conversa, sinto que ambos percebemos que, mais cedo ou mais tarde, e digamos o que dissermos, vai acontecer algo de inevitável entre nós. É apenas uma questão de tempo.

Quarta-feira, 4 de Março de 1992

9h33

- O Jim pediu-me para ir beber um copo com ele - relato à Jane, na manhã seguinte, enquanto tomamos o pequeno-almoço e vemos televisão.

- O que é que respondeste?

- Ele sugeriu que podíamos ao menos ser amigos, mas eu disse que não e agora sinto-me horrorosa por causa disso.

- Sentes-te horrorosa, porquê?

- Porque desejava dizer que sim. Tenho de escolher entre o Jim e o Damon.

A Jane sorri. - Sabia que isso ia acontecer. Eu aposto no Jim. Na verdade, minha querida, não acho que o Damon seja o homem certo para ti.

- Porquê?

- Sempre o julguei demasiado encantador.

- Demasiado encantador?

- Demasiado encantador. Demasiado brando. Demasiado calmo. Já não existe qualquer chama entre vós. Nenhuma química. Nenhuma fricção. Vocês nunca discutem, pois não?

- Não.

- Nunca gritas nem berras?

- Não.

- Estás a ver? É demasiado normal. É simpático para ti. E tu és simpática para ele. É como estares a assistir a um filme que, depois de veres como começa, já sabes como vai acabar.

- Tens razão, mas...

- Sei que tenho razão. É um tipo amoroso. Mas não é o homem para ti. O que poderá vir a acontecer entre ti e o Jim não é para aqui chamado. O facto é que tens de te afastar do Damon.

- Não consigo.

- Porquê?

- Por estarmos juntos há muito tempo.

- Essa não é uma razão válida.

- Eu sei.

- Nesse caso, o que é que pensas fazer?

- Estamos perto do final do curso; depois de estarmos formados a tentação vai desaparecer do meu caminho, não é? Só netenho de evitar o Jim a todo o custo e ver se posso compor as coisas com o Damon.

Quinta-feira, 9 de Julho de 1992

21h03

É o dia do baile dos finalistas. Tenho na mão um canudo de papel que prova a toda a gente que sou licenciado em Gestão e Economia. Estou encostado ao balcão do bar, com o fato de tweed, à espera de que o Nick saia da casa de banho, quando ouço atrás de mim uma voz que reconheço de imediato, a dizer: - Estás muito elegante.

Volto-me e vejo a Alison à minha frente, a segurar um maço de cigarros numa das mãos e um copo de vinho branco na outra; traz um vestido comprido, de cor creme. Pousa o copo e os cigarros em cima do balcão, abraça-me e beija-me na face.

- Pareces quase normal - aprecia, a rir-se.

- Loja de Apoio à Investigação de Oncologia, em Kings Heath informo, a sorrir. - Cinco libras - acrescento, a olhar, propositadamente, a Alison dos pés à cabeça. - Pareces mesmo... que vais ao baile.

Ri-se. - Uma coisa ridícula. Não queria entrar nisto do vestido de baile, mas em minha casa todas as raparigas disseram que vinham assim, não quis ser a única a vir vestida normalmente. - Pega no maço de cigarros, tira um e acende-o. Sem querer, oferece-me um cigarro mas, antes que eu possa recusar, diz: - Oh, já me esquecia. Tu fazes parte da brigada dos que dizem que essa coisa acabará por te matar".

- E temos razão.

- Ainda tenho muito tempo para desistir.

Inala uma grande fumaça, aguenta a respiração, para depois, delicadamente, expelir o fumo na direcção do bar, para longe de mim. - Assim vestida, sinto-me uma verdadeira idiota.

- Pois, não devias - respondo. - Acho que estás linda. Não quisera dizer aquilo. Para disfarçar, mudo de assunto. - Há quanto tempo não te vejo!

- Há uns meses.

- Como é que te correram os exames finais?

- Muito bem. E os teus?

- Bem. Estou satisfeito por ter acabado. Os meus pais vieram assistir à cerimónia e hoje à tarde, enquanto almoçávamos no Varsity, o meu pai disse-me: Meu filho, tens o mundo à tua disposição". Nem me dei ao trabalho de lhe dizer que não estou verdadeiramente interessado em dispor do mundo, pelo menos por agora.

A Alison está de acordo. - Sei o que queres dizer. Toda a gente parece ter empregos de gente crescida, mas eu arranjei um lugar na Kenways, uma livraria da baixa.

- Concordo. Também não pretendo uma carreira no ramo financeiro, estou a trabalhar numa loja de discos.

- Em qual?

- Revolution. Conheces?

- Conheço. Talvez não acredites mas foi aí que o Damon me convidou a primeira vez para sairmos juntos.

- E como é que conseguimos fechar o círculo? Trabalho na loja de discos em que ele te pediu namoro. E aqui estamos nós, no Final dos nossos três anos de universidade, no lugar em que te vi pela primeira vez.

- Estranho, não é?

Deixo passar uns instantes, e pergunto: - Onde é que está o Damon?

- No bar - responde, a apontar com a mão.

Olho e cumprimento-o de longe. - Sei que não devia perguntar isto... mas como é que vão as coisas entre os dois?

- Vão bem - responde. - Temos os nossos altos e baixos.

- Muito bem - replico. Depois beijo- lhe as faces e saio dali.

Quarta-feira, 22 de Julho de 1992

21h46

Passaram algumas semanas desde o baile da graduação e o Nick, o Damon, o nosso baterista, o Ed, e eu estamos sentados no Varsity depois de um ensaio da banda. Temos estado a discutir uma viagem a qualquer lado, para celebrar a nossa nova liberdade e chegou a altura de irmos a votos.

Quem vota num fim-de-semana em Amesterdão?

O único braço erguido é do Ed.

- Ora bem, quantos votos para um Fim- de-semana em Dublin? Nenhum braço no ar.

Interpelo o Nick: - Como é que podes não votar se a ideia foi tua?

- Agora que penso nisso, parece-me uma asneira - replica.

- Muito bem, finalmente, quantos votos para o Festival de Reading? Nick, Damon e eu levantamos os braços.

- Então, está decidido - declaro para os rapazes sentados à volta da mesa. - O nosso grande regabofe de pós-graduação vai ser o Festival de Reading, no feriado seguido de Fim-de-semana de Agosto.

Sugeri que fôssemos, porque os Nirvana são cabeça de cartaz. Tínhamo-los visto em Setembro do ano anterior e achámo-los fantásticos. Estou convencido de que voltar a vê-los será um genuíno momento de rock-and-roll, capaz de tornar o fim-de-semana uma ocasião muito especial.

- Podíamos levar a nossa cassete de apresentação - alvitra o Nick. E depois da actuação dos Nirvana podíamos ficar pelos bastidores e tentar entregá-la ao Kurt Cobain. É capaz de a trazer no bolso durante uns tempos e, então, num dia em que se encontre chateado, pode pô-la a tocar no leitor portátil e.

- E será a glória - continua o Ed. - Pensará que somos o melhor grupo musical do mundo e afirmará que o futuro do rock and roll somos nós.

- Seremos cortejados por dezenas de editoras de discos - acrescenta o Damon - que nos darão a assinar contratos milionários.

Para não ficar atrás, digo: - E ganharemos um triplo disco de platina. Todos sabemos que é uma fantasia.

Todos sabemos que as hipóteses de o grupo Captain Magnet conseguir gravar um disco são escassas.

Todos sabemos que nunca seremos estrelas da música rock. No entanto, durante um breve momento, sentados à volta da mesa, sen timos que tudo era possível.

Terça-feira, 28 de Julho de 1992

12h55

Faltam cinco minutos para a hora do almoço e estou na caixa do sector de ficção da livraria, a contar cada segundo que passa, quando o Damon irrompe pela porta. - Viva! - saúda.

- Olá - retribuo, algo desconFiada. - A que devo o prazer?

- Tenho uma surpresa para ti. Porém, para que resulte, tens de estar livre entre os dias 28 e 30 de Agosto.

- O fim-de-semana prolongado de Agosto? - indago, já entusiasmada. - Trataste daquela viagem a Paris de que temos falado?

- Ainda melhor. Tenho bilhetes para o Festival de Reading. O desapontamento deve ser bem visível na minha cara, pois o Damon começa de imediato a esforçar-se para me convencer. - Vai ser fantástico!

- Vai ser húmido e lamacento.

- Vamos divertir-nos.

- Divertir? Terei de dormir numa tenda.

- Toda a gente vai.

- Quem é toda a gente?

- Bem, de início era para ser apenas a malta da banda. Mas depois o Nick fez finca-pé, porque a namorada também queria ir e o Ed, o nosso baterista, sentiu-se na obrigação de levar a namorada dele; por isso, pensei que poderias ir também.

- E o Jim? - pergunto, como por acaso. - Quem é que ele leva?

- Não leva ninguém. Na verdade, há séculos que não o vejo com uma rapariga. O Ed diz que o Jim está apaixonado por uma rapariga mas não é correspondido.

Não necessito de ouvir mais. Concordo, logo ali, naquele preciso momento.

Sexta-feira, 28 de Agosto de 1992

8h01

Estou a ver o programa da manhã da L'V quando o telefone toca. Espero que deixem a mensagem. - Bom dia, Jim, é o Damon. Amigo, jantei qualquer coisa estragada e passei a noite a vomitar. Vamos, mas eu e a Al poderemos chegar um pouco atrasados.

9h00

Estou na cozinha, a lavar a louça, quando o telefone toca. Mais uma vez, espero que deixem a mensagem. - Olá, Jim. Sou eu novamente. Continuo a sentir me realmente mal. Julgo que o mais certo é não poder ir. A Alison insiste que não quer ir sem mim, vou mandá-la para vos entregar os bilhetes.

10h45

Estou a vasculhar a sala, à procura dos ténis, quando alguém bate à porta. Abro e vejo ali, à minha porta, a Alison. Veste umas velhas calças militares e traz uma mochila às costas.

- Esse não é o teu vestuário habitual - aprecio, a olhá-la dos pés à cabeça.

- Segundo parece, vou a uma espécie de festival - diz ela.

- Sem o Damon?

- Ele insistiu que eu fosse - explica, e entrega-me um sobrescrito. Lá dentro, encontro o bilhete dele e uma nota escrita numa folha A4:

 

       Caro Jim,

Podes fazer me três favores?

  1. Vende este bilhete.
  2. Toma conta da Alison.
  3. Diverte-te.

           Saudações, Damon

  1. S. - Não te esqueças de entregar a nossa cassete de apresentação a Mr. Kurt.

 

Sábado, 29 de Agosto de 1992

3h30

O Jim e eu partilhamos a mesma tenda. Recolhemos à tenda há uns vinte minutos, depois de termos passado a maior parte das pri meiras horas da noite à volta de uma fogueira de campo feita pelo Nick. O entretenimento do nosso serão incluiu oito garrafas de dois litros de cerveja, dez latas de cidra forte e cinco maços de cigarros (sendo de notar que o Jim não fuma). E ainda não vimos a actuação de qualquer banda. O Jim já se meteu dentro do saco-cama e vejo que está preparado para adormecer a qualquer momento. A mim, pelo contrário, apetece-me conversar, de modo que lhe dou uma ligeira cotovelada nas costelas. - Estás a dormir?

- Estou.

- Muito engraçado.

- Não consegues dormir?

- Qualquer coisa do género.

- Nesse caso, acordaste-me para me informares de que não consegues dormir?

- Não. Apenas me apeteceu conversar com alguém e tu és o único que está acordado.

- Mas eu não estava acordado.

- Pois bem, agora estás.

- E pretendes conversar acerca de quê?

- E se fosse acerca do que está a acontecer?

- Onde?

- Aqui. Entre tu e eu.

- Muito bem, é mais ou menos assim - começa ele. - Gosto de ti.

- A sério?

- Sim, a sério. E julgo que também gostas de mim.

- Como é que sabes?

- Adivinho. Estou enganado?

- Não - respondo com ar brincalhão. - O teu palpite está certo.

- No entanto, tens um namorado que é meu amigo; em traços gerais, é este o ponto onde nos encontramos, não é assim?

- É. É mais ou menos aí que nos encontramos.

- Portanto, a questão é: O que é que vamos fazer?

- Pois, essa é a questão - concordo.

- Ideias?

- Nenhuma. Tu?

- Nenhuma.

Dá-se uma longa pausa.

- Então, boa noite - conclui o Jim, ao rodar para se deitar de lado.

- Dorme bem - respondo, num sussurro. E depois ponho um braço à volta do Jim e chego-me mais para ele.

Não acontece nada entre nós. Mas é confortável. E, à medida que vou caindo no sono, desejo que aquele conforto" dure o resto do fim-de-semana.

Domingo, 30 de Agosto de 1992

15h30

Estamos na última tarde do festival e os Teenage Fanclub estão no palco. Duas horas antes, todos tínhamos empreendido uma excursão ao supermercado de Reading, no centro da cidade, e comprámos o que poderia ser descrito como uma quantidade ridícula de álcool, que transportamos para o local do festival em dois táxis. Enquanto a maioria do grupo está a beber a um nível que Lhe permite manter-se próximo da marca de estar alegre", a Alison parece bem para lá desse ponto, o que me leva a pensar que, neste aspecto, não estou a fazer um grande trabalho para satisfazer o pedido do Damon para que eu tomasse conta dela.

- Não achas que estás a abusar um pouco? - pergunto à Alison, ocupada a tentar abrir uma garrafa de dois litros de cidra com os dentes.

- Não sejas parvo - balbucia. - Estás a ficar parecido com o Damon.

- Ah, sim. Mas tem cuidado contigo, está bem?

20h21

A penúltima banda a actuar no festival, Nick Cave and the Bad Seeds, estão agora no palco principal e Alison parece cambalear nitidamente.

- Sentes-te bem? - pergunto.

Mal equilibrada nas pernas, acena que sim.

- Tens a certeza de que estás bem?

Volta a acenar com a cabeça e, quase sem se ouvir, diz: - Estou óptima.

22h04

Kurt Cobain está a ser levado para o palco numa cadeira de rodas; veste um roupão de hospital e a assistência exulta. Claramente apostado em ridicularizar os rumores acerca de diversas hospitalizações, começa a cantar e depois cai no chão, a estrebuchar.

- Só isto vale o custo do bilhete - comento para a Alison, tentando sobrepor me à gritaria da multidão.

Acena que sim mas não diz nada. Vejo que não tarda a sentir-se agoniada.

22h37

Os Nirvana estão a tocar Smells Like 7'een Spirit. No preciso momento em que entra o coro, noto que a Alison começa a vomitar.

Mais parece uma fonte.

Ou talvez uma erupção vulcânica.

De qualquer forma, é violento.

Verdadeiramente horrível.

E de grande amplitude.

Olho à volta, à procura dos amigos, mas todos se tinham deslocado para mais perto do palco. Não tenho qualquer ajuda.

Olho para o palco, para o Kurt.

E depois olho para a Alison, que está de pés e mãos no chão, na ânsia de vomitar.

Noto que ainda tenho a cassete de apresentação na mão. Enfio-a no bolso traseiro das calças, levanto a Alison e levo-a para a tenda de primeiros-socorros.

Segunda-feira, 31 de Agosto de 1992

11h07

Estou numa cabina telefónica, a falar com a Jane e a contar-Lhe a trapalhada em que me meti.

- Então, qual era o teu grande plano? - indaga a Jane. Embebedares-te para conquistares o Jim?

- Precisava de um pouco da coragem dos bêbados - explico. Mas enganei-me nos cálculos e toda a cidra que bebi seria suficiente para dar coragem a uma cidade inteira.

- Presumo que ficaste com uma ligeira dor de cabeça?

- A dor de cabeça nem foi o pior. Sinto-me terrivelmente mal por ter obrigado o Jim a perder a actuação do conjunto que mais lhe interessava e a única oportunidade de que poderia dispor para entregar a cassete de apresentação ao vocalista.

- O quê?

- Segundo parece, os rapazes engendraram um plano louco para entregarem uma cópia da sua cassete de apresentação ao Kurt Cobain. Esperavam que o plano os conduzisse à fama e à riqueza.

- Pois bem, tal não irá acontecer.

- Eu sei, mas eles tinham um sonho, não é verdade? Estou tão mortificada que nem consigo dirigir a palavra ao Jim. Nem sou capaz de Lhe pedir desculpa. Quanto mais simpático ele é para mim, pior eu me sinto.

- O caso entre ti e ele não vai acontecer, é isso que estás a dizer- me? - pergunta a Jane.

- Tens razão - concordo, com tristeza. - Não me parece que

venha a acontecer.

13h33

Estamos no comboio, de regresso a Birmingham; vou deitada com a cabeça contra a janela e de olhos fechados, sem falar e, se o puder evitar, não me mexo. Nem fiz a minha excursão habitual à carruagem dos fumadores, pois sinto-me demasiado nauseada para fumar. Desde o início da viagem que o Jim tenta meter conversa comigo; pretende saber se está tudo bem, o que me deixa ainda mais triste.

14h45

Acabamos de entrar na estação de New Street. Depois de sairmos do comboio, todos decidimos ir para casa no autocarro de Selly Oak, mas, devido ao meu estado de fragilidade, o Jim insiste que vamos de táxi. Concordo e, vinte minutos mais tarde, estamos no banco traseiro de um Datsun Cherry, a caminho da minha casa.

Chegamos à Heely Road e o motorista pára passadas as primeiras portas. Pagamos e recolhemos as malas. O Jim também sai e acompanha-me no caminho até casa. Vasculho a mochila à procura da bolsa onde guardei as chaves. - Bom, obrigado por este interessante fim-de-semana - diz ele.

- Estraguei-te o fim-de-semana, não foi?

- Não - responde. - Foi fantástico.

- Obrigada - agradeço calmamente, para depois estender os braços para ele, como quem vai abraçá-lo; era o que tencionava fazer, mas suspendo o gesto no último instante. Em vez disso, avanço para os lábios dele e ele avança para os meus; ficamos a beijar- nos durante muito tempo, até que entro em pânico e, de imediato, sou dominada por um sentimento de culpa.

Quinta-feira, 3 de Setembro de 1992

17h00

- Viva, Alison, sou eu, o Jim. Podes ligar quando tiveres um mo mento disponível?

Esta será a milionésima mensagem que o Jim me deixa desde o nosso beijo, sem que eu responda a qualquer delas. Estou a evitá- lo de propósito porque não quero falar com ele acerca do beijo. Embora esse fosse o único motivo para eu me embebedar durante o festival, agora estou convencida de que se tratou de um impulso do momento. Um gesto sem repetição. Sem qualquer significado no mundo real. E mesmo sem ter certezas acerca do que sinto pelo Damon, sei perfeitamente que não tenho forças para me separar dele. Parece que estamos juntos há uma eternidade. É, até agora, a relação mais duradoura da minha vida. E, por muito infeliz que me sinta com ela, ainda não aceitei totalmente a ideia de que possa ter chegado ao fim.

Sábado, 5 de Setembro de 1992

17h00

A Jane e eu acabamos de regressar, depois de passarmos a tarde a fazer compras. O aparelho de recepção de mensagens está a piscar. Carrego no botão e ouço: Olá, Alison, fala o Jim. Reconheço a estupidez da mensagem que vou deixar-te, dado que as pessoas que moram contigo e o teu namorado poderão ouvi-la; podes até estar mesmo em frente do telefone, a pensar: "O que é que este tipo pretende? "; quero, porém, fazer-te saber que percebi a tua "mensagem". Mesmo que gostes de mim (e estou cem por cento convencido de que gostas), não só já tens um namorado, não só sou amigo do referido namorado como, ainda por cima, o Damon é um ser humano ridiculamente encantador. Não te posso censurar por o teres escolhido porque, no fim de contas, se fosse eu a tomar a decisão provavelmente também o escolhia a ele e não a mim. É tudo o que tenho a dizer. Adeus.

Sexta-feira, 18 de Dezembro de 1992

22h05

Depois do concerto, o Nick, o Ed, o Damon e eu viemos ao Jug of Ale beber uma caneca. Esta noite tivemos uma boa actuação. Tocámos bem e eu e o Nick temos estado a falar em mandar a nossa cassete de apresentação a algumas editoras de música. Estou a preparar-me para ir ao balcão buscar mais bebidas, quando o Damon pigarreia, como quem tem algo de importante a comunicar.

- Amigos, tenho algumas más notícias para vos dar - anuncia. Ofereceram-me um emprego em Londres.

- A fazer o quê? - pergunta o Nick.

- Consultoria em recrutamento.

- Quando é que partes?

- No fim do mês.

- E a banda? - pergunto, mesmo sabendo de antemão qual é a resposta.

- Lamento muito, meus amigos. Tenho mesmo de ir-me embora. Certamente que podem continuar sem mim.

- Bem, na verdade - começa o Ed, - tenho estado à espera da melhor oportunidade para vos dizer que volto para casa, para Portsmouth.

- Para fazeres o quê? - pergunto.

- Vou mudar-me, juntamente com a minha namorada.

- Mas, e todo o trabalho duro que fizemos até agora? - indago, a dirigir-me aos dois. - Não podemos desistir sem mais nem menos. Penso que poderíamos realmente vir a fazer qualquer coisa.

- São apenas sonhos - contrapõe o Ed. - Deixámos a universidade para trás. Temos de entrar no mundo real, companheiro.

22h45

Com os instrumentos da banda, o Damon e eu encontramo-nos do lado de fora do bar, à espera de irmos para casa. O Nick e o Ed ainda estão lá dentro, foram à casa de banho. Temos estado a falar da banda e ele já pediu desculpa um milhão de vezes por nos deixar; quanto a mim, não consigo contrariá-lo por verificar que a ideia de partir o deixa verdadeiramente pesaroso.

- Pensas fundar outra banda, em Londres?

- Não sei como começar, mas poderei juntar-me a uma. Concordo, com ar muito pensativo, e faço as perguntas que tenho na ponta da língua desde que ele anunciou a partida. - E quanto à Alison? Vai contigo para Londres?

- Espero que sim. As coisas entre nós correm bem. Chego a pensar que a Alison pode ser a eleita".

- Bom, desejo-te toda a felicidade e essas coisas todas - digo, ao apertar-lhe a mão. - Estou convencido de que ambos vão ter uma vida excelente lá em baixo.

- Adeus. Também acho que sim.

23h45

É tarde e estou sentado na cama, ainda vestido, a ler os versos da última das canções da minha autoria. Refere-se, como a maioria das canções que escrevi nos últimos meses, à Alison, embora, ainda que de forma indirecta, se refira também ao amor, ao amadurecimento, à complacência política, à desintegração do grupo musical, à necessidade de procurar um emprego e a tudo o resto que me enche a cabeça.

Esse Sorriso no Teu Rosto

Por que te chegas a mim

Com esse sorriso no teu rosto

A dizer que já ouviste tudo antes? Demasiado cheia de alegria de viver Para te preocupares com tudo o resto Pois és tu quem domina.

Por que me torturas

Com olhares que podem ser fatais?

O meu coração magoado já não aguenta muito mais. É irónico pensar que quem tudo tem

Tudo pode deitar fora.

CORO: Estamos de novo na crista da onda e não podes fazer-nos

parar

Por que pensas que o futuro está tão distante? És jovem, mas há outros maisjovens do que tu. Nuncapensei que o idealismofosse um crime Até teres conseguido destruir os meus sonhos.

Não acredites no patriota, Não acredites no passado,

Não acredites que há algo a ganhar com compromissos. Eu creio najuventude,

mas tu não crês em ti própria.

Estranho, mas antes de o perdermos nunca sabemos o que temos.

Despedaça os meus sonhos se quiseres mas não podes vender-me a alma

(repetido)

Leva tudo o que tenho e talvez me doa um pouco mas esse sorriso vai desaparecer do teu rosto.

1993

Sexta-feira, 26 de Fevereiro de 1993

20h15

Estou na loja da Blockbuster, em Kings Heath, com a Louise, a minha namorada, uma estudante do segundo ano de Medicina da Universidade de Birmingham. Conheci-a numa festa de estudantes, num clube nocturno chamado XLs, perto de Five Ways, há algumas semanas. É interessante, mas não se pode comparar com a Alison. Desde que andamos juntos, três meses ao todo, passo a vida a imaginar a Alison a dar de caras comig e com uma Louise de aspecto jovem, radiante e feliz. Alison ficaria tão devastada por haver escolhido o Damon que se iria abaixo e desataria a chorar.

Nos últimos quarenta e cinco minutos tenho estado à espera que a Louise se decida quanto ao vídeo que vamos ver, e qualquer pessoa disposta a gastar tempo para perceber a minha linguagem corporal, teria observado que, chegado a este ponto, estou contrariado, exasperado e deprimido, por esta ordem. - Vá lá, Lou - suplico. - Tens de tomar a decisão antes de a loja fechar - acrescento, a apontar uma cassete ao acaso. - O que me dizes deste: O Cabo do Medo?

- Demasiado assustador.

Escolho outra ao acaso. - Exterminador Implacável. O Dia doJulgamento?

- É um filme para rapazes.

- O meu Primeiro Beijo?

- É sobre o quê?

- É com o Macauley Culkin e uma rapariga de quem nunca ouvi falar.

- Não consegui suportá-lo em Sozinho em Casa.

- JFK?

- Do que é que trata?

- De JFK. Quem é?

- Quem é o JFK? Estás a dizer-me que conseguiste chegar à Faculdade de Medicina sem nunca teres ouvido falar de John Fitzgerald Kennedy? Foi Presidente dos Estados Unidos.

- Ah, sim?

- Sim.

- Deve ser chato.

- Thelma & Louise?

- Já vi.

Tenho de ser firme: - Muito bem. Chega. Sou eu quem vai escolher o filme que vamos ver. O Nick esteve a falar de um filme francês, que viu há muito tempo, chamado Betty Blue. Esperas aqui e continua a procurar, que eu vou ver se o filme vale alguma coisa; se achar que sim, vamos vê-lo, con cordas? - pergunto, a olhar à volta da loja. - Ora bem, onde é a secção de filmes de autor?

20h17

A secção de filmes de autor poderia chamar se com mais propriedade a prateleira de filmes de autor, que continha as seguintes caixas vazias: - Tampopo, Fellini 8 e /2, Ladrão de Bicicletas, La Dolce Vita, Jean de Florette e Betty Blue, 3 2 da Manhã. Escolho Betty Blue e estudo a capa, a tentar perceber o tema do filme. Passados cinco minutos e sem me sentir mais informado, cheguei, no entanto, à conclusão de que havia fortes probabilidades de a actriz principal, Béatrice Dalle, aparecer nua. Conhecido o facto de os autores franceses serem, porventura, os que melhor representam a nudez em cinema no mundo inteiro, mesmo assim, acabo por devolver a caixa à prateleira. Será uma boa ideia ver, com a Louise, uma película de carácter erótico assumido quando existe a possibilidade de eu pôr termo à relação antes de a noite chegar ao fim? Ainda indeciso, estendo a mão para voltar a pegar na caixa e voltar a ler a contracapa quando verifico que um estranho entrou no meu campo de visão, a tentar fazer o mesmo. Volto-me de modo abrupto para o olhar e tenho a surpresa de verificar que aquela mão pertence a alguém que conheço.

- És tu! - exclamo, ainda a segurar um dos cantos da caixa.

20h19

- És tu! - respondi, ainda a segurar um canto da caixa. Não via o Jim desde que nos beijámos, no dia a seguir ao Festival de Reading, embora tivesse imaginado milhões de vezes o que acon teceria se o encontrasse. Sempre que fantasiava um desses encontros, eu estava com um aspecto fabuloso. Nem num milhão de anos me imaginaria como estou neste momento: de ténis, um par de calças velhas de treino e uma camisola com capuz da equipa feminina de hóquei da Universidade de Birmingham, sem qualquer maquilhagem e com o cabelo preso atrás por um elástico, pois, quando me levantei esta manhã, não encontrei a bandelete; só pensara estar fora de casa uns dez minutos. Tenho estado todo o dia a espirrar; o Damon passa o fim-de-semana em Londres, a Jane foi visitar os pais e a minha outra companheira de casa foi namorar; por isso, o plano era vir alugar um vídeo e comprar um grande saco de pipocas, passar o serão em casa e ter pena de mim mesma.

- O que é que andas a fazer por aqui? - pergunta o Jim.

- Ia fazer-te a mesma pergunta.

- Eu e o Nick mudámo-nos para Kings Heath há duas semanas, quando terminou o contrato de aluguer da casa de Selly Oak - in forma, antes de fazer uma pausa. - Pensei que tinhas ido para Londres com o Damon.

- Não... bom, não arranjei trabalho por lá - respondo. - A Jane e eu mudámo-nos para aqui há quinze dias, quando acabou o aluguer da casa de Heely Road.

- Onde é que estás a viver? - pergunta o Jim.

- Milford Avenue.

- Em que número?

- 65 - informo, ao mesmo tempo que noto um grande sorriso a espalhar-se por. toda a cara dele. - Não me digas que és...

- Eu moro no 36. Acho que é mesmo à tua frente, do outro lado

da rua.

- Não me venhas dizer que estás na casa com a porta azul, a que tem um cartaz do Jim Morrison na janela da varanda.

- E tu vives na casa com a porta verde e a scooter no jardim da frente.

- É do Peter, o namorado da Jane. Deixa-a na nossa casa por pen sar ser menos provável que seja roubada neste sítio. Nem quero crer que somos vizinhos - concluo.

- Quanto a mim, custa-me a acreditar que ainda não tivéssemos chocado um com o outro. Como é que está o Damon?

- Está bem, obrigada - informo, enquanto coço a cara. - E tu... tens visto mais alguém?

- Não... bem, não... Acho que não.

De súbito, ambos tomamos consciência de que continuamos a segurar a caixa da cassete de vídeo. Sem sabermos o que devíamos dizer ou fazer de seguida, permanecemos quietos, como que empenhados num jogo de crianças, o jogo das estátuas.

- Vais alugar esse ou andas apenas a ver? - acabo por perguntar.

- Vou alugar - replica. E arranca-me a cassete da mão.

- Na realidade, acho que acabarás por reconhecer que eu lhe peguei primeiro - contraponho, e recupero- a. Fazemos isto a rir mas, ao mesmo tempo, sentimos que está a acontecer qualquer coisa séria. Estamos de novo a namorar.

O Jim agarra a cassete, afasta o cós das calças de ganga do estômago e enfia a cassete naquele espaço.

- És tão criança - comento, a olhar o volume que a caixa faz nas calças dele. - Um verdadeiro...

- Adolescente? - sugere o Jim, a rir-se como um idiota. - Diz-me qualquer coisa que eu não saiba.

- Dou-te o dobro do valor do aluguer se me devolveres a caixa

- ofereço, com voz firme.

- Faço-te uma proposta: que tal um compromisso? Deixo-te ver o filme, em minha casa. Mas com a condição de não lhe pores as mãos em cima - alvitra, a estender- me a mão para eu a apertar.

- De acordo?

Aperto-lhe a mão. Sinto a sua pele na minha. Consigo adivinhar o que vai acontecer e não quero mais lutar contra o inevitável. - De acordo.

20h25

Nem quero acreditar no que está a acontecer, imagino que será como se voltasse a beijá-la. Aqui estou eu, a deixar a loja da Blockbuster com a rapariga que mais adoro neste mundo, quando, menos de uma hora antes, entrei na mesma loja com uma rapariga de quem até não gosto muito... a Louise!

Raios.

Louise.

O que é que vou fazer?

Louise.

E se ela me viu?

Louise.

E se a Alison a viu?

Louise.

O que vou fazer?

Só posso fazer uma coisa.

Tiro o vídeo do cós das calças e entrego-o à Alison. - Podes ir pagar o aluguer?

- Tenho de reconhecer que sabes como agradar a uma rapariga

- comenta a Alison, a segurar o vídeo com a mão estendida e a torcer o nariz. - Por que é que não pagas tu?

- Tenho uma coisa para fazer.

Ela percebe que tento disfarçar qualquer coisa. - O que é que se passa?

- Vou verificar os finais felizes na secção de novos filmes - explico e, antes que ela possa dizer seja o que for, desapareço e vou à procura da Louise.

- Encontraste o Filme? - pergunta ela ao ver-me chegar. - Estive a olhar outra vez para o J FK; não me tinha apercebido de que um dos actores é o Kevin Costner. Gosto bastante do Kevin Costner.

Olho-a e digo-Lhe com voz firme: - Isto não está a resultar.

- O que é que não está a resultar?

- Tu. Eu. Isto. Nós. Não estamos a entender-nos.

- Não queres voltar a ver me?

- Tu não tens culpa. O culpado sou eu. Somos muito diferentes. Eu gosto de filmes franceses com legendas, tu gostas... bem, não penso que gostes seja do que for. É melhor que enfrentemos a situação; a ligação nunca iria resultar, pois não? Sigamos os nossos próprios caminhos e tentemos recordar os bons momentos, está bem?

- Não posso acreditar nisto - lamenta a Louise, quase a chorar. Tudo por eu não desejar ver aquele filme do Arnold Schwarzenegger?

- Não, claro que não. Não tem nada a ver com vídeos. Tem a ver connosco. O problema é que não somos compatíveis. Sinto-me muito mal. Mas, acredita, ter de dizer isto dói-me mais do que te dói a ti.

Impelida pela fúria, com a destreza de um lançador de disco, a Louise atira a cassete na direcção da minha cabeça. Com a rapidez do raio, abaixo-me para a evitar e a cassete continua o voo pela loja fora, até encontrar uma criança pequena que vem em sentido contrário e deslizar para o chão. A criança desata a chorar, enquanto a Louise sai da loja a correr e eu solto um grande suspiro de alívio.

- Viste aquilo? - indaga a Alison, que aparece ao meu lado instantes depois, trazendo na mão a arma do crime. - Uma rapariga lunática acaba de atirar isto contra uma pobre criança inofensiva.

- Eu sei - respondo. - Aonde iremos parar?

20h45

Eu e o Jim vamos a caminhar à chuva pela Kings Heath, uma rua com bastante movimento. Todos os bares e lojas de comida para levar para casa se encontravam à cunha com os pândegos de sexta-feira à noite o que, de certo modo, faz que o nosso serão de sexta-feira, passado a ver um filme francês com legendas, pareça bem estranho.

- Então, diz-me lá - começa ele, enquanto eu acendo um cigarro -, por que motivo acabaste por não ir para Londres?

- Nunca disse que ia - respondo, antes de engolir uma fumaça do cigarro. - O Damon perguntou-me várias vezes e respondi sempre que desejava ficar em Birmingham. Se não necessariamente para o resto da vida, pelo menos durante mais algum tempo. Não sabia o que pretendia fazer. Na verdade, ainda não sei. Portanto, não vi a utilidade de fazer todo o caminho até Londres para fazer o que faço aqui, que é andar à deriva. De qualquer forma, umas semanas antes da data prevista para a partida, de súbito esclareceu-se tudo: se eu o amasse, se o amasse de verdade, teria decidido ir com ele logo que se falou no assunto. É o género de coisa que se faz quando se está apaixonado, não é?

- Pois é - responde o Jim. - Suponho que se a paixão for verdadeira, a dúvida nem chega a existir.

- Estás a ver? - pergunto, a sorrir. - Percebeste. Sabes daquilo que eu estou a falar. O verdadeiro amor não é apenas a conversa romântica quando tudo corre bem, quando a parte mais difícil é inventar nomes carinhosos para chamar ao outro...

- Têm diminutivos um para o outro? - interrompe ele. Quais são?

- Ele chama-me Carranca; é que, por vezes, consigo ser uma namorada com muito mau feitio.

- E tu, chamas-Lhe o quê?

- Caseiro, porque o apelido dele é Guest [Hóspede). Não é grande coisa, pois não?

O Jim solta uma gargalhada. - Para dizer a verdade, não.

- De qualquer maneira - continuo -, estamos a chegar ao ponto da separação. O que eu estava a querer dizer é que não bastam as coisas bonitas...

- Como chamar ao outro nomes carinhosos e idiotas?

- Sim, como inventar nomes carinhosos e idiotas - concordo.

- É preciso contar com os tempos maus, quando as coisas se tornam difíceis. Quando não for tudo amor e flores. Quando o problema é manter duas pessoas juntas, aconteça o que acontecer. E, de facto, eu e o Damon não conseguimos criar esse clima. E se eu pretendo que a vida me dê alguma coisa, é isso, um amor de um gé nero especial. Um amor que consiga resistir a todas as contrariedades. É, sem dúvida, a única coisa que vale a pena ter.

Sábado, 27 de Fevereiro de 1993

13h05

A tarde está a começar e encontramo-nos, eu e o Nick, no Jug of Ale, em Moseley. Sentamo-nos em lados opostos da mesa, com duas canecas de cerveja meio bebidas entre nós, e estou a relatar-lhe o meu encontro com a Alison.

- Então, acabaste por ver o Betty Blue?

- Nem chegámos a tirar a cassete da caixa.

- Então, aconteceu o quê?

- Bem, voltámos para casa e penso que ambos sabíamos que não íamos ver o vídeo. E... bom, não quero entrar em pormenores mas começámos a beijar-nos na entrada e depois, antes de darmos por isso, estávamos no meu quarto. Podes imaginar o resto. Ora, fosse como fosse, esta manhã, quando acordei, ela estava deitada a meu lado. Por isso, cumprimentei-a: Bom dia, estranha, por pensar que seria uma saudação razoavelmente divertida. Não me respondeu. A modos que deslizou da cama para fora, pegou no maior número de peças de roupa que conseguiu apanhar do chão e saiu do quarto.

- Não me parece nada bem - comenta o Nick. - O que é que fizeste?

- Bem, deixei-me ficar deitado, a olhar o cartaz colocado na parede à minha frente.

- O do Bob Marley a fumar um grande cigarro de ervas,

- Esse mesmo. Foi assim que perguntei a essa grande lenda do reggae, que tinha observado tudo o que se passara no quarto durante as últimas doze horas, o que é que tinha corrido mal. Não me respondeu, claro, talvez por não haver necessidade. O que estava a acontecer era óbvio. O complexo de culpa da Alison por causa do Damon estava a manifestar-se em grande. Vesti-me, saí do quarto e sentei-me na escada no preciso momento em que ela estava a calçar a sapatilha do pé esquerdo. Levou um bocado mas acabou por resolver o problema e anunciou, de modo casual, que se ia embora. Não respondi. Não faço ideia da forma como se joga este jogo. Portanto, limitei-me a deixar a decisão para ela.

- E ela saiu?

- Saiu.

- Sem dizer mais nada?

- Pois.

O Nick solta uma gargalhada. - E levou o vídeo com ela?

- Não - respondo com um sorriso amarelo. - Talvez se sinta verdadeiramente culpada do que aconteceu; talvez não pretenda romper com o Damon.

- É provável que tenhas razão. Está com ele há muito tempo. Desde todo o tempo da universidade, até agora. É precisa muita coragem para acabar uma relação dessas, mesmo que não esteja a resultar.

- Uma boa ideia. Nesse caso, pensas que devo fazer o quê?

- Gostas dela?

Faço sinal que sim.

- Então tens de fazer qualquer coisa que lhe demonstre que os teus propósitos são sérios. Algo que lhe diga que não se tratou apenas de uma noite. Que se tratou da revelação de que ela é a mulher ideal para ti. Qualquer coisa que Lhe demonstre a tua vontade de ficares com ela durante muitos anos.

- Sei exactamente o que devo dizer-lhe - afirmo, ao pegar na minha caneca. - Ela vai adorar.

14h55

Estou deitada, ainda a pensar na trapalhada que arranjei, quando ouço bater à porta do quarto.

- Ally? É a Jane.

- Estou a dormir - respondo, de debaixo do edredão. - Volta mais tarde.

A Jane entra e senta-se na cama, junto de mim. - Onde é que ficámos na noite passada? Fiquei verdadeiramente preocupada quando regressei da visita aos meus pais.

Ponho a cabeça de fora das cobertas: - Oh, desculpa. Não pude deixar um bilhete, nem nada. Não foi nada planeado.

- De qualquer modo, achei que devias saber que o Damon telefonou esta manhã.

- Perguntou onde é que eu estava?

- Disse-lhe que tinhas sofrido uma intoxicação alimentar, que vomitaste durante toda a noite e que estavas a descansar.

- Não podias dizer-lhe apenas que tinha saído?

- Não fazia ideia de quando poderias regressar, pois não? - pergunta a Jane, com toda a razão.

Solto um longo suspiro para tentar sentir-me melhor. - És mesmo boa para mim, sabes disso, não sabes?

- Pois sei. Então, diz lá onde é que estiveste na noite passada?

- Em... casa... do Jim.

- Qual Jim? Do Jim Owen?

- Dei de caras com ele na noite passada. Um encontro absolutamente fortuito. Pretendíamos o mesmo vídeo. E adivinha? Ele vive do outro lado da rua. Conheces a casa que tem o cartaz do Jim Morrison na janela? Número 36. É onde ele e o Nick moram.

- E continuam a gostar um do outro passado todo este tempo?

- Acho que nunca deixei de gostar dele.

- Então, o que é que aconteceu?

- Sugeriu que fôssemos ver o filme a casa dele... e, bom, podes adivinhar o resto. O problema é que, esta manhã, estava verdadeiramente fula com ele. Senti-me culpada por causa do Damon e saí sem dizer palavra. Deve estar a odiar-me.

- Não te odeia, acredita em mim.

- Isso é que tu não sabes.

- Pois bem, posso deitar-me a adivinhar porque ele bateu à porta e deixou qualquer coisa para ti lá em baixo.

Deixo escapar um grito de contentamento. - O que é?

- Não sei, mas está na entrada, dentro de uma caixa das batatas fritas t-alkers, e mexe-se.

A Jane e eu corremos escada abaixo, para a entrada onde a nossa companheira, a Mary, está a observar a minha encomenda.

- Tem uma carta colada - nota a Jane, despegando-a de um dos lados da caixa para ma entregar. Abro o sobrescrito e leio em voz alta:

Querida Miss Smith,

Estive a pensar qual seria a prenda mais inadequada que Lhe poderia dar e julgo que a descobri.

Com muito amor,

Mr. Owen (do lado oposto da rua)

Abro a caixa com cuidado, pois, seja o que for que lá esteja, agita-se ruidosamente, e espreito lá para dentro. Nem quero acreditar no que vejo. A observar-me com uns grandes olhos verdes está uma gatinha minúscula.

- Que bonita! - exclama a Jane. - Disseste-lhe que gostavas de ter uma gatinha?

- Não.

- Deste-lhe a saber que gostavas de gatinhas?

- Não, tanto quanto consigo recordar as gatinhas nunca entraram em qualquer das nossas conversas.

- Então, qual o motivo de ele te dar uma? - pergunta a Mary.

- Não sei. Mas vou descobrir.

16h20

A gatinha torce-se nos meus braços enquanto atravesso a rua. E quando bato à porta do Jim quase me escapa das mãos. Passados instantes, o Jim aparece e vem vestido com uma Tshirt normal e calças de ganga. - Pensei que nunca mais cá chegava, Miss Smith - observa.

- Só pretendo fazer-te uma pergunta. Por que é que me deste uma gatinha?

- Não é apenas uma gatinha. Chama-se Alan. Tem seis semanas de idade. E é tua.

- Se é minha como é que pode chamar-se Alan?

- Chamei-lhe assim por não me lembrar de qualquer nome feminino adequado e não penso que ela se importe porque é uma gata. De qualquer modo - acrescenta -, não me pareceu que fosses o género de pessoa que se preocupa em dar nomes a gatinhas.

- Se não me julgas capaz de pôr nomes a gatinhas, por que motivo me deste esta?

Jim sai de casa e senta-se no degrau da porta. - Porque pensei que, se pudesse influenciar a tua opinião no sentido de ficares com a gata, talvez conseguisse mudar a tua opinião quanto às saídas comigo.

Perturbada, acabo por dizer: - Tudo isso é muito bonito mas não deves estar a pensar que eu posso Ficar com a Alan. Isto é, com a gatinha. Nem sequer sei se o senhorio autoriza animais de esti mação.

- Óptimo - responde ao estender as mãos -, devolve-me a Alan e eu vou à estação de serviço do fundo da rua e compro-te uma caixa de chocolates.

Instintivamente, puxo a gata para mim. - Não podes dar-me uma gatinha e tirar-ma alguns minutos mais tarde.

- Mas disseste...

- Escute, Mr. Owen, se vamos acabar por nos entender, o senhor tem de aprender a ler melhor nas entrelinhas. Quero a gatinha. Não a vai ter de volta. É minha. Só quis que soubesse que não pode andar por aí a distribuir gatinhas pelas raparigas de quem gosta, percebe? Uma gatinha não é como um presente de Natal, como sabe.

- Não estamos na quadra do Natal.

- Nem na quadra de andar a namoriscar mulheres.

- A namoriscar mulheres?

- Sim, a namoriscar mulheres. Os gatos não servem para isso, são para toda a vida. Não se esqueça disso.

- Eu sei - observa, com ar calmo.

Segue-se um breve silêncio embaraçoso, pois ambos nos apercebemos da implicação daquilo que acaba de ser dito.

- Adoro esta gatinha - esclareço, readquirindo a compostura,

- mas não quero chamar-lhe Alan por ser uma maneira estúpida de lhe chamar.

- Nesse caso, que nome é que vais pôr-lhe?

- Disco.

- Disco?

- Isso ou dar-lhe o nome completo de Best ofDisco Volume Two. Para mim é o melhor álbum de todos os tempos.

- É o teu álbum preferido?

- De facto, é o único que comprei.

19h30

Estou sentada na escada a olhar para o telefone. Acabo de ter a mais difícil conversa da minha vida com o Damon. Disse-me que, há muito tempo, esperava que acontecesse uma coisa deste género porque é praticamente impossível conseguir que as coisas funcionem à distância, A última coisa que me disse, mesmo antes de desligar, foi: Sempre te amei, como sabes."

Domingo, 28 de Fevereiro de 1993

17h01

No final da tarde de domingo, estou na ridiculamente austera divisão de entrada da minha casa, a olhar para o telefone.

- O que é que se passa, companheiro? - pergunta o Nick, que acaba de sair da cozinha. - Pareces um bocado esquisito.

- E estou. Acabo de falar com a Alison e... bom, chegámos a uma espécie de acordo que não é do meu agrado.

Que acordo?

- É assim - começo. - A Alison ligou para me dizer que telefonou ao Damon a informá-lo de que estava tudo acabado. Embora a sentir me imensamente satisfeito com a notícia, sabia que tem de se conservar um certo decoro nestas situações; por isso, em vez de soltar gritos de contentamento, limitei-me a diversos resmungos de simpatia, tudo para lhe dar a entender que não sou completamente desprovido de finura. Sinto muitos remorsos por fazer isto ao Damon. Sinto-me mesmo mal. Cheguei a pensar em telefonar lhe.

- O quê? Para Lhe pedires desculpa por lhe teres roubado a namorada? Não vejo qualquer razão de ser nessa conversa. Tu vês?

- Não é exactamente o que quero. Penso que o complexo de culpa deve ter-me perturbado a capacidade de julgamento, pois acabámos a chamada nestes termos:

Ela: - Queres sair amanhã à noite?

Eu: - Amanhã à noite, isto é, segundafeira?

- Sim, segundafeira, já tens alguma coisa combinada para amanhã?

- Não.

- Pensei que podíamos ir beber um copo ao Jug ofAle.

- Acho que é uma excelente ideia.

- Óptimo. Pode ser por volta das oito? Bato-te à porta e podemos ir de autocarro até Moseley.

- Óptimo. Até amanhã.

- Estás bem?

- O quê? Desculpa. sim. Estou óptimo. Até amanhã.

- O quê! - exclama o Nick. - Estás maluco?

- É isso mesmo que penso.

- OFicialmente, a noite de segunda-feira é a pior das noites para sair com uma nova namorada.

- Eu sei.

- Encontras tudo deserto e o contraste entre todo esse vazio e a atmosfera barulhenta da noite de sábado em que a conheceste será demasiado difícil de suportar.

- Eu sei.

- As terças-feiras não são más. As quartas são melhores que as terças. As quintas são provavelmente as melhores de todas. As de sexta-feira e sábado são noites boas para avançar mas, oficialmente, são fim-de-semana e, não tenhamos ilusões, as expectativas com que se encara um fim-de-semana são tão grandes que são poucos os que as conseguem satisfazer. Os namoros ao domingo são bons se preferires uma noite pacata e caseira; mas, segundas-feiras, nunca!

- Sei tudo isso - respondo. - O que é que hei-de fazer? Na verdade, queria que tudo corresse bem com a Alison. Se a saída de segunda-feira correr mal, sei que não teremos uma segunda oportunidade de sair em qualquer outro dia da semana.

Qual é o motivo de não lhe teres dito isso?

- Ela não compreenderia.

- Estás metido numa verdadeira trapalhada - resume o Nick. - Já saíste com uma rapariga numa noite de segunda-feira?

- Duas vezes. Uma foi em 1987, com uma moça chamada Katie Jones. Acabámos sentados num cinema vazio, a ver Lobijovem, que nenhum de nós apreciou, até porque ambos tínhamos um exame de Geografia na manhã seguinte. A segunda vez foi em 1988, com a Gina Marsh, que conheci numa festa e convidei para sair numa noite de segunda-feira porque o resto da semana estava ocupado. Acabámos por ir comer qualquer coisa numa churrasqueira, tão vazia que todos os empregados de mesa não tiveram mais nada que fazer durante o serão, a não ser observarem o nosso namoro desastroso a desenrolar-se ante os seus olhos, como se fosse uma telenovela do início da tarde, com o pior nível de actuações jamais visto.

O Nick ri-se: - Parece-me que foste lançado às feras. Não há qualquer maneira de se sair de um sarilho desses.

18h45

As minhas companheiras e eu encontramo-nos na sala de estar, numa tarde de domingo, depois de ouvirmos Songs ofPraise e antes de Last ofthe Summer tKine, enquanto brincamos com a Disco, que já faz parte da família; foi com grande prazer que fomos à loja da esquina comprar comida para gatos e vários brinquedos para a gata. Em contrapartida, a Disco entreteve-nos durante toda a tarde a rebolar-se de barriga para cima, a assustar-se, sem motivo aparente, com objectos inanimados, a usar as unhas para trepar pelos cortinados da sala até atingir altitudes elevadas e perigosas e entregando-se a outros divertimentos típicos de gatos, como brincar com um novelo de lã. No momento em que me preparo para ir buscar um brinquedo à mala que deixei em cima da mesa da cozinha, ouço bater à porta. - Estão à espera de alguém? - pergunto às minhas companheiras. - Porque, se assim é, não estou vestida para receber visitas.

Todas negam com movimentos de cabeça. É bastante frequente que o namorado de qualquer das minhas companheiras apareça sem ser esperado, o que não interessa desde que me encontre quase decente. O que não acontece de momento. Tenho vestida quase a mesma roupa que levei à loja Blockbuster na noite de sexta-feira, a ponto de conservar o mesmo elástico a prender-me o cabelo. A única diferença entre a aparência de sexta-feira e a de hoje é que já não tenho uma mancha de sumo de tomate na frente da camisola do fato de treino com capuz.

- É melhor ir abrir para ver quem é - resolvo. - Mas, seja quem for, não vai ser convidado a entrar, estamos de acordo?

Espreito pelo ralo e vejo o Jim especado no degrau da porta. Ao abrir a porta recebo o segundo choque: sou envolvida pelo cheiro de comida indiana que ele traz dentro de um saco de papel castanho.

- Viva! - cumprimento, a sorrir abertamente, enquanto tento evitar que ele repare no meu vestuário descuidado.

- Olá! - saúda o Jim. - Pela tua cara vejo que estás a tentar perceber qual é a minha ideia. Passa-se o seguinte: estou apenas de passagem com o indispensável para uma saída antecipada de segunda-feira.

Uma saída de segunda-feira?

- Sabes que nos nossos dias tudo é embalado - acrescenta o Jim.

- Pois bem, agora embalam saídas de namorados em caixas - continua, a olhar para as mãos. - Bom, isto é mais parecido com um saco do que uma caixa. Um saco que contém comida feita para dois e um vídeo.

- Continuo a não perceber.

- Escuta, devia ter explicado tudo isto pelo telefone. Não posso sair com namoradas à segunda-feira - comenta, o que é apenas o início de uma longa e retorcida explicação acerca das saídas de namorados às segundas-feiras. - É por isso - diz, à laia de conclusão,

- que me encontro à tua porta, a antecipar em vinte e quatro horas a nossa saída. Esta é uma altura difícil para as novas relações e nós não queremos que algo corra mal, pois não?

- Não - concordo, a rir. - Não queremos.

Assim, depois de profusas explicações às minhas companheiras, o Jim e eu tivemos o nosso primeiro namoro no sofá de veludo verde da sala de estar. Comemos galinha com arroz, com os pratos em cima dos joelhos, partilhámos um pão indiano com sementes e brincámos com a gatinha, depois de as outras se terem deitado há muito.

23h55

- O que é que pretendes fazer agora? - pergunto ao Jim. Há um profundo silêncio em casa e estamos aconchegados no sofá.

- Qualquer coisa - responde ele.

- Podíamos falar.

- Queres falar de quê?

- Estou muito satisfeita por te teres lembrado de passar por cá esta noite. Sei que tenho sido pouco útil quando se trata de ti e de mim.

- Bem podes dizer isso. Levámos... - começa, à procura das palavras -... muito tempo a encontrar-nos.

Rio-me. - Bom, tudo o que gostaria de dizer é que, apesar de todos os meus esforços para te afastar de mim...

- e foram muitos...

- estou satisfeita por não ter sido bem sucedida.

- Mas, que motivos tinhas para me afastar? É essa a tua maneira habitual de agires? O Damon também teve de trabalhar tanto como eu para te conseguir ou sonhaste este teste especial, preparado só para mim?

- Tirando o que aconteceu na Noite dos Caloiros, em que te tomei por um excêntrico, suponho que se tratou de um caso em que quanto mais se gosta de uma pessoa e durante quanto mais se gosta dela, mais valor se dá ao que está em jogo. E, sejamos francos, levámos o nosso tempo até chegarmos aonde estamos agora.

- Foi muito tempo - comenta o Jim -, mas valeu a pena.

Segunda-feira, 1 de Março de 1993

7h33

É manhã e acordo junto do Jim. Faço- lhe umas torradas e ele sai para ir a casa, do outro lado da rua, tomar duche e mudar de roupa. Regressa dez minutos mais tarde e apanhamos o autocarro que nos leva juntos até ao centro.

13h22

A livraria da Alison fica no lado oposto do centro da cidade em relação à Revolution Records. Mesmo assim, só para estar junto dela uns quinze minutos, durante a minha hora de almoço ando a pé todo o caminho até Kenway. No final, a pressa de chegar à loja é tanta que não tenho tempo para almoçar. Tive de sobreviver durante o resto do dia com três chávenas de café e um pacote de batatas fritas.

18h20

O Jim encontra-se comigo depois de sairmos dos empregos e vamos beber um copo à Cathedral Tavern. Está tão esfomeado que, quando vai buscar as bebidas para nós, regressa com duas canecas de cerveja e cinco pacotes de amendoins. Levo-o para minha casa e preparo-lhe cinco fatias de tosta com duas latas de feijões.

Terça-feira, 2 de Março de 1993

7h13

Sugiro à Alison que ambos devíamos faltar aos empregos alegando doença. Ela decide que vai ficar constipada, com períodos de febre que poderão significar que vai ter um ataque de gripe. Eu fico-me pela intoxicação alimentar e, para satisfazer a curiosidade do meu chefe, entro em explicações sobre a forma como o produto da intoxicação está a sair pelos dois extremos, como se fosse uma nascente. Depois dos telefonemas voltámos para a cama e dormimos até tão tarde que, quando acordámos, tínhamos perdido o episódio da hora do almoço da telenovela Vizinhos.

14h02

Fizemos uma conjugação confortável das duas refeições da primeira metade do dia, com cornflakes, tostas e doce, antes de assentarmos arraiais no sofá, para vermos o melhor da programação televisiva da tarde, enquanto engolíamos dois pacotes de batatas fritas e um grande saco de pipocas. Quando as companheiras da Alison chegam do trabalho descobrem-nos a dormir em frente de Countdown e rodeados de pacotes vazios de batatas fritas e de restos de pipocas.

Quarta-feira, 3 de Março de 1993

23h09

- Não quero que leves a mal o que te vou dizer - peço à Alison, no Final de outro serão que passámos juntos -, mas penso que seria melhor que passássemos a noite separados. Estou estafado; tu não estás? Desde que andamos juntos deitamo-nos a altas horas. Esta tarde adormeci encostado à caixa registadora. Foi apenas uma fracção de segundo, mas a única coisa que me acordou foi o Patrick, o meu chefe, ao pôr a tocar o novo álbum dos Napalm Death, com o volume muito alto. Soltei um grito tão forte que todas as pessoas que estavam na loja olharam para mim, como se eu fosse uma espécie de lunático. Precisamos de dormir. Portanto, vamos observar uma noite de repouso, concordas?

A Alison parece desapontada. - Tem mesmo de ser?

- Tem... não... sim... Eu, pelo menos, julgo que sim.

À porta, despede-se de mim com um longo beijo. - Queres que te leve a casa? - pergunta.

- Não há nada que te faça parar quando resolves seduzir me? Moro do outro lado da rua. Acho que consigo sobreviver.

23h37

Estou deitada há apenas cinco minutos quando me apercebo de que já tenho demasiadas saudades do Jim para conseguir dormir. Seria mais fácil se ele vivesse a quilómetros de distância, mas continuo a pensar nele, a tentar imaginar o que estará a fazer, a expressão do seu rosto, se está a dormir ou acordado. Quando faltam quinze minutos para a meia-noite volto a calçar os sapatos, meto na mala uma muda de roupa interior, desodorizante e uma camisola lavada para levar para o emprego. Quando a informo de que vou para casa do Jim por sentir saudades dele, a Jane solta uma gargalhada, ao mesmo tempo que abana a cabeça a mostrar pena de mim.

Quinta-feira, 4 de Março de 1993

0h02

Enquanto faço o caminho na direcção do portão da frente e atravesso a rua, estou a viver num mundo exclusivamente meu, até que uma voz me faz perder a concentração. - Grandes cabeças pensam da mesma maneira - anuncia o Jim.

Levanto os olhos e vejo-o à minha frente. - Aonde é que vais?

- Para tua casa - explica. - Não conseguia dormir. Acho que sentia a tua falta. Aonde é que ias, como se eu não soubesse?

- É realmente patético. Olha para nós. Parecemos um casal de adolescentes apaixonados. Temos vinte e dois anos. Não devíamos agir assim, pois não?

Jim olha para mim e encolhe os ombros. A seguir, de mãos dadas, regressamos a minha casa.

18h33

Depois do trabalho apanhamos o autocarro para Kings Heath mas, por capricho, decido cozinhar uma refeição para a Alison, usando o género de ingredientes que só conseguem encontrar-se num supermercado. Saímos em Moseley e vamos ao Kwik Save.

- Adoro isto - confessa a Alison, enquanto percorremos o primeiro corredor da loja, onde estão cereais, bolachas, sumos de frutas e outras bebidas. - Estou tão excitada.

- Bom, se o Kwik Save te excita, amanhã levo-te ao Poundland.

- Não estou excitada com o Kwik Save (pois como é que alguém pode ficar excitado num supermercado onde tem de comprar os próprios sacos? o que me excita é andar às compras na tua companhia. Normalmente faço as minhas compras com as outras raparigas. O que é bom. Mas acabo de descobrir que nunca tinha vindo a um supermercado com alguém com quem vou para a cama.

- Nunca foste a um supermercado com o Damon?

- Nunca aconteceu. Fazer as compras juntos é verdadeiramente interessante, não achas? É por ser tão familiar, não é? Adoro observar os casais que vêm juntos às compras; contigo não acontece o mesmo? - pergunta a apontar um casal em fnais da casa dos vinte anos: um homem de fato completo e uma mulher com calças de ganga e ténis. - Pessoas como eles. Passaram o dia separados e agora vêm buscar aquilo de que precisam: bananas, papel higiénico, detergente, cereais.

- Estás a falar do tipo de coisas que todos temos de comprar, todas as semanas?

- Sim, mas é diferente quando compramos essas coisas sendo uma metade do casal. A ida ao supermercado funciona como uma espécie de símbolo máximo da união conjugal. É bonito. É reconfortante... É agradável... É aconchegado.

- Viva a união conjugal! - exclamo, risonho, ao colocar um pacote de Kelloggs's Fruit no carrinho.

Domingo, 7 de Março de 1993

- É assim - explico à Jane, na cozinha, enquanto preparo a minha primeira chávena de chá do dia. - Apetece-me beijar o Jim constantemente. Quero levar-lhe o pequeno-almoço à cama. Desejo pegar-lhe na mão para darmos longos passeios pelo parque nas tar des soalheiras de domingo. Quero matar dragões por ele e defendê- lo de qualquer pessoa que pretenda fazer-lhe mal. Apetece-me gritar, a quem quiser ouvir: Estão a ver este homem maravilhoso, inteligente e bonito que está aqui ao meu lado? É o meu namorado o Jim".

 

               O PASSADO: 1994-1996

               1994

               Terça-feira, 4 de Janeiro de 1994

29h30

É a nossa primeira noite passada em Birmingham depois do Ano Novo. Estou em casa da Alison e, juntamente com a Disco, estamos a ver a série televisiva Coronation Street, um dos programas de um vasto conjunto que nunca tinha visto até andar com ela (onde estão incluídas outras telenovelas australianas, qualquer história onde entrem animais domésticos maltratados e as da hora do pequeno-almoço).

- Há quanto tempo estamos juntos? - pergunto casualmente.

- Dez meses.

- É muito tempo.

- Acho que sim.

Deixamos que ocorra uma longa pausa.

- Sabes uma coisa? - indago. - Sabes que, como namorada, estás aprovada.

- Aprovada?

- Sim, aprovada.

- Óptimo - replica. - Penso que também estás aprovado.

- Bem, é uma excelente notícia - respondo -, pelo que podemos continuar a ver televisão.

Quarta-feira, 5 de Janeiro de 1994

21h05

- Penso que o Jim está a tentar dizer que me ama - relato à Jane, na noite seguinte, quando nos encontramos no Jug of Ale.

- Como é que sabes? - pergunta, ao mesmo tempo que me oferece um cigarro.

Olho para o maço: - Estou a ver se deixo de fumar - respondo.

- Decisão tomada na passagem do ano e essa treta toda.

- Desculpa. Não sabia.

- O Jim está sempre a dizer-me... - aqui passo a falar mais baixo e adopto o tom de quem profere o Juízo Final... - ESSAS COISAS VÃO ACABAR POR TE MATAR.

Ambas nos rimos, mas eu estendo a mão e tiro um cigarro.

- Pensei que.

- É apenas um - interrompo, e sorrio. - Amanhã deixo de fumar - acrescento e paro para acender o cigarro. - Papagueou todas aquelas coisas de que os homens gostam, para depois dizer que eu estava aprovada.

A Jane ri-se: - Aprovada, é bom, mas quando é que os tipos vão aprender que não é suficientemente bom? O que é que lhe respondeste?

- Assegurei-lhe que ele também não estava mal de todo.

- Desapontada por ele não ter levado a conversa até ao fim?

- Um pouco. Há meses que me sinto apaixonada por ele. Mas estou decidida a não lhe dizer seja o que for até que ele esteja pronto para o dizer primeiro.

- Crê em mim, ele é um homem - comenta a Jane -, de modo que podes ter de esperar muito tempo. Prepara-te para uma espera bem longa.

Domingo, 1 de Maio de 1994

23h39

Estou na cama quando sou despertada pelo som de alguém que atira torrões de terra contra a janela do meu quarto. Abro a cortina, espreito para a rua iluminada pelo luar e vejo o Jim a gatinhar no jardim. Tinha-me dito que ia sair para beber uns copos com os rapazes.

Não esperava vê-lo antes da noite de amanhã, quando tínhamos com binado ir ao cinema.

Abro a janela, exasperada: - Jim! O que é que estás a fazer?

- Estou à procura de coisas para atirar à tua janela - balbucia na sua voz de ébrio.

- Estás bêbado - sussurro com voz rouca, só para o caso de ele ainda não se ter apercebido. - O que é que queres?

- Quero dizer-te uma coisa - anuncia. - Quero dizer-te... que... gosto de ti. Achei que devias saber.

Respiro fundo: - Obrigada. Até amanhã.

Finjo voltar para a cama, mas fico a observar pelo canto da janela, a vê-lo cambalear pelo jardim e enquanto atravessa a rua, para depois perder cinco minutos a procurar a chave da porta de casa. Ao voltar a deitar-me, pergunto a mim mesma se deveria aceitar a declaração de amor de um bêbado. Quando estou prestes a adormecer decido que qualquer declaração é melhor do que nenhuma.

Sábado, 4 de Junho de 1994

14h28

É uma tarde soalheira de Verão. O Jim e eu andamos a passear à volta do lago de Cannon Park. O tempo quente trouxe toda a gente para fora de casa: mães e pais que empurram carrinhos de bebé, miúdos pequenos que pedalam ao desafio em cima das bicicletas, miúdos mais velhos que jogam futebol. Parece que Birmingham em peso veio divertir-se para a rua.

- Vou fazer-te uma pergunta - começa o Jim -, mas não quero que depreendas seja o que for, concordas?

- Está bem. Faz lá a pergunta.

- Achas possível que se ame uma pessoa durante todo o tempo que nos resta de vida?

Respondo sem hesitar: - Sim. Próxima pergunta?

- Na verdade, não há mais perguntas. Esperava arrancar-te mais do que um simples sim. Estava mais preparado para uma discussão.

- Essa é mesmo de homem. Gostam de discutir só por discutir. Uma coisa é certa, Jim, acho possível amar uma pessoa durante toda uma vida. Porém, compreendo que seja bastante difícil.

- Também penso o mesmo.

Segue-se um longo silêncio.

- Então, que há mais? - indago. - Acabou a fase das perguntas?

- Ainda não. Tenho mais uma. Alguma vez disseste a qualquer pessoa que a amavas?

- Ora bem, a isto chamo uma verdadeira conversa. A primeira pessoa a quem o disse foi ao Michael Pemberton, quando tinha quinze anos e nos namorávamos havia três dias.

O Jim sorri: - Michael Pemberton? Gosto do som do nome.

- Era encantador. Fomos a Cambridge, numa excursão da escola, e o Michael resolveu comer as suas sanduíches comigo em vez de as comer junto dos colegas. Penso que isso me deu um ligeiro empurrão porque, naquele tempo, a pessoa com quem comias sanduíches numa excursão da escola era verdadeiramente importante. Lembro-me de nos termos escapado para uma curta sessão de beijos e de, pelo meio, lhe ter dito que o amava. Limitou-se a olhar-me com uma expressão de surpresa e, de seguida, continuou a beijar-me.

- Sabes o que isso significou, não sabes?

- É claro que desejava uma reacção qualquer, mas o facto de não a ter conseguido não me perturbou porque penso que gostei tanto da ideia de ter dito aquilo que nem dei importância à falta de resposta. Nesse dia, subi às estrelas. No dia seguinte ele deixou-me.

- Isso deve ter doído.

- Pois doeu. Nem me deu qualquer explicação. Limitou-se a dizer: Não quero voltar a ver-te.

- Um código para te dizer: Andaste demasiado depressa.

- Exactamente.

- Pobre menina de quinze anos.

- Obrigada. Andei triste durante algum tempo, mas o facto de ter dito a uma pessoa verdadeira que a amava compensou a minha nova solidão. Foi como se tivesse perdido a virgindade em relação às palavras, não foi a melhor das experiências da minha vida mas esperava que as coisas melhorassem à medida que crescesse. Além disso, a reacção do Michael tornou toda a situação mais trágica e isso era o que eu desejava naquela altura da minha vida: um pouco de tragédia e de drama.

- Quem veio a seguir?

- Depois dele julgo que foi o Andrew Jarrett, com quem namorei quando tinha dezassete anos.

- Não me agrada mesmo nada o som de Andrew Jarrett.

- Porquê?

- Soa a coisa rasteira. Ele era rasteiro?

- É claro que não. Era deslumbrante. Tão deslumbrante que pensei estar apaixonada mesmo antes de sair com ele. Era uma verdadeira obsessão, estava verdadeiramente apaixonada. É engraçado que agora possa rir-me da situação, mas recordo-me de chorar sem descanso, noite após noite, por não ser a namorada dele. Isto numa altura em que ainda nem sequer tínhamos falado um com o outro. Mas, digo-te, e não estou a brincar, que teria feito tudo por ele. Absolutamente tudo. Saí de uma festa com ele e disse-lhe que o amava, depois de o perseguir durante três horas. Não o vi muito depois desse dia porque ele evitava-me como se eu fosse a peste. Levou algum tempo, mas acabei por compreender que não é boa ideia declarar o meu amor antes de o rapaz declarar o dele.

- E quando é que encontraste um rapaz que fizesse isso?

- No Verão antes de entrar na universidade, numas férias em Lanzarote, conheci o Steven Sanderson. Tinha um aspecto fantástico, era moderno e passámos um tempo excelente. Estava tão satisfeita comigo que pedi a um amigo que gastasse um rolo inteiro com fotografias de mim e do Steve, para eu poder mandar fotografias a todas as amigas da escola e do liceu; sei que ele era superficial, mas era deslumbrante. O problema é que até o deslumbramento se gasta ao fim de algum tempo; suponho que nos tornamos imunes ao efeito. Não me apaixonei por ele, mas não tenho vergonha de dizer que esperava desesperadamente que o rapaz se apaixonasse por mim, quanto mais não fosse para me convencer de que exercia alguma influência sobre ele. Acabou por proferir a frase cerca de um mês e meio depois de iniciarmos a nossa relação. Levou-me a um restaurante italiano do centro da cidade e fizemos aquilo que ele pensou ser uma refeição romântica. A comida era horrível, o pessoal sem qualidade e as tentativas do Steven para parecer sofisticado foram uma caca, para não dizer pior. Por cima de um copo cheio de gressinos, pegou-me na mão e disse que me amava. Recusando aceitar as lições do passado, senti-me mal por tê-lo levado a dizer aquilo e disse que também o amava, o que pareceu deixá-lo feliz. Perdemos o interesse mútuo quase logo de seguida; não houve propriamente uma separação, foi mais um afastamento.

- E o número quatro?

- Esse foi...

- Deixa-me adivinhar... o Damon?

- Pois foi.

- Faz sentido. Quero dizer, afinal foi teu namorado. O Jim faz uma pausa. - Então, como é que ele fez? Foi uma declaração com baile, canções e orquestra?

- Para te ser franca, foi um pouco sacana. Apanhou-me completamente desprevenida. Andávamos juntos apenas havia seis semanas.

- Seis semanas?

- Sim, eu lembro-me. Íamos assistir a um concerto no Hummingbird e caminhávamos pela Bull Street quando ele pára, vira-se para mim e diz: Há muito que ando a pensar nisto. E quero que saibas que estou a ficar apaixonado por ti".

- E tu, respondeste o quê?

- Naquela altura ainda não me tinha ocorrido estar apaixonada pelo Damon, mas detesto ser bruta e não podia suportar a ideia de ele se sentir mal durante todo o serão por eu não ter correspondido. Por isso, sorri-lhe e disse: Também te amo e o rosto dele iluminou-se e esteve bem disposto durante toda a noite. Senti-me mal por ter dito uma coisa que não era verdadé na altura, embora depois acabasse por ser.

- Nesse caso, amaste-o verdadeiramente?

- Sim. Embora fosse diferente de todas as outras vezes. Foi um amor de pessoas crescidas.

- E o que é que se sente?

- É difícil de descrever por palavras. Mas, quando o sentes, percebes de imediato do que se trata - respondo, a rir, num esforço meio inconsciente para mudar de assunto. - Pronto, já confessei tudo. E quanto a ti? Quantas vezes é que já disseste Amo-te?

- Nenhuma.

- Palavra de honra?

- Um grande e gordo zero.

- Não percebo. Como é que conseguiste chegar aos vinte e três anos sem nunca teres dito a uma rapariga que a amavas?

- Na verdade, nunca me vi na situação de ter de dizer Amo-te

- responde o Jim. - Quero dizer, antes da idade de vinte e três anos não há muitas ocasiões para um tipo ter de proferir essas palavras.

Olho-o, incrédula. - Como é que podes dizer uma barbaridade dessas?

- Mas é verdade.

- Tu tiveste namoradas antes de mim. E nunca lhes disseste que as amavas?

- Tenho de admitir que gostei de muitas delas, mas nenhuma me inspirou o desejo, que sempre imaginei que é preciso termos dentro de nós mesmos, de proferir essas palavras.

- Nenhuma delas?

- Nenhuma delas.

- Alguma vez estiveste perto?

- Para dizer a verdade, não estive. Embora tenha conseguido que algumas raparigas me declarassem o seu amor.

- E o que é que fazias nessas situações?

- Dizia: Obrigado.

Olho para o Jim, horrorizada: - Diz-me que estás a brincar.

- Com a sabedoria trazida pelo tempo, agora consigo perceber que não era a melhor coisa a fazer, mas, lamento ter de o confessar, foi assim que aconteceu. Pensei que estava a ser delicado.

- Vamos lá esclarecer isto. Elas diziam: Jim, julgo que estou a ficar apaixonada por ti", ao que tu respondias: Obrigado, camarada.

- Não as tratava por camarada", isso seria repeli-las. Mas, tenho de reconhecer, o sentido era esse.

- Deves ter sido um verdadeiro conquistador. A única coisa boa que aproveitei de tudo o que acabas de dizer foi a certeza de não ter sido só eu a dizer que te amava para, em seguida, receber a mais idiota das respostas.

- O mais engraçado é que, quanto menos vezes disseres essas palavras, mais importantes elas se tornam para ti.

- Não percebo mesmo nada daquilo que estás a dizer.

- Pois bem, escuta, eu explico. Não estou a querer dizer que não acredito no amor. Acredito. Estou apenas a demonstrar que tenho maior respeito por ele do que a maioria das pessoas que se limitam a falar dele por tudo e por nada.

- Pessoas como eu, é isso que queres dizer? - gracejo.

- Exactamente. Quero que saibas que, para mim, as palavras Eu amo-te são como aqueles grandes sinais de alarme vermelhos, pro tegidos por uma porta com visor de vidro onde se lê: Partir em caso de emergência"; e, no meu caso, se não se tratár de uma emergência, e por emergência quero dizer o amor verdadeiro, não estou disposto a partir o vidro.

- Percebo que tudo isso possa fazer sentido, só para ti.

- Mas, o que é que hei-de dizer? Se não as sentir, não vou dizer as palavras só para que alguém se sinta melhor.

- Claro que não - digo com ar sarcástico. - Seria uma coisa horrível.

- De qualquer modo - continua o Jim, a medir as palavras -, isto leva-me ao cerne da questão.

- Que é?

- Bom, recordas-te de eu pedir que não tirasses conclusões apressadas desta conversa?

- Recordo.

- Pois bem, depois de pensar maduramente no assunto, julgo que estás à vontade para depreenderes o que te apetecer.

- Mas disseste-me que não o fizesse.

- Mas agora estou a dizer que podes fazê-lo.

- Porquê? Perdeste montes de tempo a pedir que eu não ftzesse conjecturas sobre o que estavas a dizer.

- Escuta, estou só a tentar dizer-te que julgo chegada a altura de partir o vidro.

- Não faço ideia daquilo que estás a dizer.

O Jim solta uma gargalhada. - Percebo o que estás a fazer, minha menina.

- Percebes?

- Estás a tentar que eu diga as palavras.

- Ai estou?

- Pois estás.

- Então, que motivo tens para não as dizeres?

- Pois bem, vou dizer...

Concentro toda a minha energia psíquica nele, a desejar que ele diga: - Estou pronta quando tu estiveres.

Diz!

Ouço o sujeito.

Diz!

Ouço o verbo.

Diz!

E, então, ouço o final.

Já está. Ele disse-o. Eu amo-te. Não restam dúvidas. Ele não tem maneira de voltar atrás.

Observo o Jim enquanto ele estuda a minha cara, à procura de uma reacção. Apresento-lhe a minha expressão mais inocente.

- Ouviste o que acabei de dizer-te? - pergunta.

Aceno que sim e sorrio-lhe, como uma idiota.

- Então, qual é a tua resposta à primeira vez em que disse tais palavras a alguém que não é a minha mãe?

- Obrigada - acabo por responder, antes de uma explosão de gargalhadas.

Domingo, 5 de Junho de 1994

22h45

O Jim e eu estamos sentados no Jug of Ale na altura em que o bar está a aceitar as últimas encomendas. O conteúdo dos bolsos dele foi colocado em cima da mesa: três bilhetes de autocarro, lenços de papel amarrotados, embalagens de pastilhas, um velho bilhete de um concerto e algumas moedas. A seguir, também esvazio a minha bolsa: uma mão-cheia de recibos, uma fotografia de mim e do Jim tirada no Woolworth, lenços de papel, batom, bálsamo para os lábios e algumas moedas.

- Uma situação deprimente, habitual nos estudantes - comento, enquanto remexo nas muitas moedas de cobre, a tentar juntar dinheiro para pagar bebidas para ambos. Pego no maço de cigarros e abro-o. Só me resta um, o que me leva a desabafar, desesperada: Só me resta uma chucha.

- Demasiado patético para ser posto em palavras - acrescenta

o Jim.

- Sinto que o tempo avança - digo, a acender o cigarro. - As minhas amigas, que foram direitas para os cursos de formação de professores, já estão formadas; todos os tipos que fizeram cursos de formação no Verão passado, estão a preparar o seu primeiro ano de trabalho. Até a Jane, está a trabalhar como ajudante na BBC, em Pebble Mill.

- O Nick trocou o emprego temporário por um lugar numa firma de construção, num centro comercial - anuncia o Jim ao escolher duas moedas de dez pence de entre as que estão em cima da mesa.

- E nós? Eu ainda trabalho na Kenway, tu continuas na Revolution - respondo a mim mesma e apanho várias moedas de vinte pence. - Parece que todos estão a avançar, excepto eu e tu. E sabes o que é pior?

- O que é pior?

- Já nem sequer somos recém- licenciados.

- Então, somos o quê?

- Jovens velhos.

Jim solta uma gargalhada. - Está a ser um pouco melodramática, meu amor. Falando a sério, falta ainda muito tempo para começarmos a pensar que fomos deixados para trás.

- Neste Verão haverá uma nova cabazada de licenciados no mercado. Um novo grupo à caça dos empregos que nós desejamos. Isto, sem contar com os que se licenciaram antes de nós. A verdade é esta: nos tempos que correm, um ano a viajar à volta do mundo, ou a trabalhar numa livraria ou numa loja de discos, é relativamente fácil de justificar no curriculum vítae entregue a um empregador. Na realidade, esta prática até é encorajada. Se acabamos por ter mais um ano à solta... bom, já não soa bem, já não parece bem, pois não? - acrescento, a olhar para a mão- cheia de moedas que consegui juntar. Valem uma libra e 45 cêntimos. - Já te dignaste pensar no que vamos fazer?

- Ora bem, se tivermos dinheiro suficiente, estou a pensar em beber mais uma Carling - replica o Jim.

- Sabes que não é disso que estou a falar. Estou a falar... como sabes... da tua vida.

- É o que tu pensas.

- Estou a pensar no regresso à universidade para obter um mestrado em Inglês. Falei com alguns dos meus tutores e um deles pensa que em Outubro haverá um lugar para mim.

- Mais estudos. Qual é o interesse?

- O interesse é que eu não sei o que hei-de fazer. E um mestrado soará melhor no meu currículo do que Trabalhei numa livraria porque gosto de ler.

O Jim ri-se. - Durante os primeiros vinte e três anos da minha vida nunca desejei ou tive necessidade de uma profissão e agora, de repente, a coisa mais importante do mundo é conseguir iniciar uma. Tudo o que sei é que não desejo ser contabilista.

- Quem disse que tinhas de ser isso?

- O meu pai é contabilista. O pai dele também foi contabilista. Uma boa parte dos meus colegas de curso estão em formação para serem peritos contabilistas, especialistas em impostos das empresas, consultores financeiros e gestores.

- E, em vez disso, pretendes fazer o quê?

- Não sei. Como, porém, me sinto agora bastante feliz, penso que, para já, fico com o que tenho.

Coloco o dinheiro que consegui na mão do Jim e ele junta-lhe o que pode reunir. - Apenas o suficiente para caneca e meia - cons tata, com ar desconsolado.

- Já não quero beber mais - decido.

- Também não me apetece - concorda o Jim. - Vamos para casa.

Segunda-feira, 13 de Junho de 1994

19h30

A Alison eu estamos na fila do Odeon para comprarmos bilhetes para o filme Quatro Casamentos e Um Funeral.

- Já decidi o que vou fazer - anuncio, enquanto ela vasculha a mala à procura do cartão de crédito. - Vou abrir uma loja de discos.

- Parece uma excelente ideia.

- Pensei que, se não posso gravar discos, poderei pelo menos vendê-los. Já pensei no nome. Ia chamar-Lhe Captain Magnet Record Shop mas achei que era demasiado pomposo. Por isso, assentei que seria Jimmy Jimmy Records.

A Alison olha para mim como quem não está a perceber.

- Do nome da canção dos Undertones: JimmyJimmy.

- Ah! - exclama ela, claramente baralhada.

- O que é que achas?

- Parece-me uma excelente ideia.

Terça-feira, 16 de Junho de 1994

18h45

A Alison e eu vamos a percorrer o corredor da comida para animais do supermercado Safeway.

- Lembras-te de eu ter dito que ia abrir uma loja de venda de discos?

- Lembro.

- Abandonei essa ideia. Mas arranjei outra ainda melhor. Vou ser professor - anuncio.

- Professor?

- Pensa bem. Faz perfeito sentido. Os professores têm férias fantásticas. Na prática, trata-se de um emprego para toda a vida. E o salário, embora não seja brilhante, é melhor do que nada.

- Parece uma ideia fantástica - apoia a Alison, enquanto pega numa lata de Felix e a põe no cabaz. - Ensino básico ou secundário?

- O quê?

- Que miúdos é que pretendes ensinar?

- Não suporto os miúdos do ensino básico. Iam fazer-me trepar pelas paredes.

- Então, preferes o secundário?

A perspectiva de poder vir a controlar uma sala de aulas cheia de adolescentes provoca-me arrepios. - Também não me agradam esses.

- Bom, nesse caso parece que estás encurralado, pois acho que é essencial que os professores estejam dispostos a ensinar miúdos.

Quarta-feira, 22 de Junho de 1994

21h12

- Consegui - informo a Alison, o Nick e a Jane, quando estamos todos sentados no bar do Jug of Ale, à espera de subir para ouvirmos actuar a banda do meu amigo, o grupo musical Pluto.

- Conseguiste o quê?

- Para quem não estiver a par das muitas conversas que eu e o Jim temos tido recentemente - esclarece a Alison -, o meu namorado está a referir-se ao seu último plano de carreira.

- Julgava que ias abrir uma loja de discos - diz a Jane.

- Isso está ultrapassado - respondo -, Não tenho estado parado. Tenho reflectido muito acerca da minha personalidade e da actividade mais adequada para mim e julgo que, finalmente, achei a solução. Vou ser assistente social.

Acontece o que pode descrever se como um silêncio espantado, até que a Jane pergunta: - Estás a brincar?

- Estou a falar a sério. Para mim, faz todo o sentido. O serviço social destina-se a ajudar os desprotegidos, trata-se de defender aqueles que não têm quem os defenda e, acima de tudo, é uma daquelas profissões sobre as quais, tal como acontece com os professores, toda a gente resmunga mas ninguém quer exercer. Pois bem, vou contribuir para a satisfação de uma necessidade.

- Desculpa que te diga, meu amigo - objecta o Nick -, mas tu serias um péssimo assistente social.

- Oh, não digas isso - contrapõe a Alison. - Acho que ele poderá ser fantástico em tudo a que se dedicar.

Olho para a Alison e sorrio. É muito bom saber que teremos sempre alguém do nosso lado. - Concordo com a Alison - respondo, dirigindo-me ao Nick. - Também penso que serei um excelente assistente social. E é o que vou fazer.

Sábado, 2 de Julho de 1994

11h30

É um daqueles raros sábados em que eu e o Jim podemos dispor de todo o dia. Jim passou a noite comigo, mas levantou-se cedo. Quando entro na sala, encontro-o sentado no sofá, junto da Jane, a verem filmes para crianças na TV Pela expressão dele, apercebo- me de imediato de que há qualquer problema.

Cumprimento-o com um abraço: - Bom dia.

Suspira e responde apenas: - Olá.

- Pareces mal-humorado e passaste a noite às voltas na cama. O que é que tens nessa cabeça?

- Não consegui dormir, porque na noite passada percebi, como se me tivessem atirado a ideia à cara, que vou acabar por ser conta bilista. Sinto-o. Vou acabar por sê-lo, não sou capaz de encontrar maneira de fugir a isso.

- O que é que estás para aí a dizer? - interrompe a Alison. - Podes fazer seja o que for. Não tens de fazer uma coisa que não queiras.

- O problema é mesmo esse. Não sei aquilo que não quero. Portanto, posso perfeitamente fazer gestão.

- Podes continuar na Revolution. Até gostas de lá estar. O Jim encolhe os ombros. - Não. É chegada a altura de mudar. Conheces o Darren e o grupo musical Pluto? - indaga. Aceno que sim. - Acabam de ser contratados por uma empresa editora de discos - acrescenta, com um suspiro. - Estou muito satisfeito por ele ter conseguido vencer. Como disse, acho que chegou a altura de mudar.

Segunda-feira, 4 de Julho de 1994

13h14

Na tentativa de dar um impulso à minha carreira, telefono à Trudy Lannagan durante o intervalo para almoço. Foi minha colega no curso de Economia e Gestão e trabalha para a firma de contabilistas Greene Lowe.

Depois de um pouco de conversa de circunstância, pergunto-lhe se na firma dela há algumas vagas para recém-licenciados. Consegui uma conversa interessante mas nenhum resultado. Portanto, telefono ao Richard Price, também do meu curso, que trabalha na firma Foster, Williams and Hayman. Uma vez mais, uma conversa interessante, sem resultado. Chegou a vez de Chris Dempsey, que trabalha na Future Finance Business Solutions. Repetição: conversa simpática, resultado nulo. Finalmente, ligo para o Paul Broughton, que agora trabalha para uma firma de especialistas em impostos, a Enterprise Four. Conversa agradável, resultado nulo. Como fiquei sem moedas para o telefone, regresso à loja, um pouco mais deprimido do que estava de manhã, ao entrar.

Quinta-feira, 7 de Julho de 1994

13h23

Durante a hora de almoço de hoje, na tentativa de encontrar emprego, telefonei para: Sheila Austin, Edwin Fowler, Lisa Smith e Trevor Thomas. Tudo pessoas de quem não gostava na universidade e que não me tinham em grande conta. Não obtive qualquer resultado.

Sexta-feira, 1 de Julho de 1994

16h30

Tendo pedido de antemão uma folga para esta tarde, fui encontrar-me com o conselheiro de carreiras da universidade. Fiz um daqueles testes de aptidão destinados a descobrir a profissão mais adequada para o sujeito. Os resultados foram os seguintes:

 

  1. Professor.
  2. Assistente Social.
  3. Contabilista.

 

Segunda-feira, 1 de Agosto de 1994

22h07

Estou no caminho de regresso a casa da Alison, depois de me despedir do Darren com uma última bebida, e vou a pensar no futuro. Desde Julho, mandei o meu currículo a diversas empresas de gestão, cinco por semana, todas diferentes. Até agora já fui a quatro entrevistas, mas nunca passei da segunda fase. E eu a pensar que tinha rejeitado a contabilidade; afinal, é evidente que a contabilidade é que está a rejeitar me.

Chego a casa da Alison e bato à porta. Ela responde de imediato:

- Viva. O Nick telefonou há pouco e diz que tens uma mensagem telefónica em tua casa. Uma rapariga chamada L'rudy Lannagan contou que uma vez lhe emprestaste os apontamentos de Economia Europeia. Disse que talvez tenha boas notícias para ti.

Ligo de imediato para a L'rudy. Não são boas notícias, são notícias fantásticas.

- Então, qual era a notícia? - pergunta a Alison.

- A Trudy trabalha para uma Firma chamada Greene Lowe, no centro da cidade. Uma empresa realmente importante no mundo da gestão. Têm escritórios por todos os lados. Seja como for, parece que um tipo foi despedido do estágio de formação e querem ocupar o lugar o mais depressa possível. Ela diz que se eu lhe mandar o meu curriculo me dará um empurrão.

- E é o que vais fazer?

- A Greene Lowe tem uma óptima reputação - respondo, muito excitado. - Há quem seja capaz de matar para conseguir entrar num dos seus estágios de formação.

- Bom, é tudo muito bonito, mas tens a certeza de que é isso que desejas?

- O que é que estás a pretender dizer-me?

- Ora bem, não tens desejos de conhecer o mundo? Podemos fazer uma viagem. Ver alguns dos espantosos lugares que o mundo tem para nos oferecer? Só não quero que, mais tarde, venhas a arrepender-te de aceitares este emprego. Só desejo que sejas feliz. É tudo.

Sexta-feira, 19 de Agosto de 1994

19h41

O Jim e eu estamos em minha casa a fazer o jantar. Ele tem estado verdadeiramente agitado desde a tarde. Não está bem desde a semana passada, quando recebeu a carta a marcar-lhe uma terceira entrevista na Greene Lowe. Dorme mal, rilha os dentes durante a noite e perdeu por completo o apetite. Sempre que lhe pergunto o que é que tem, encolhe os ombros e responde que está óptimo.

- Não me interessa ir à entrevista de segunda-feira - vai dizendo o Jim, enquanto rasga as folhas de uma alface, que acabou de lavar, e as põe numa tigela. - Não tenho possibilidades de ficar com o emprego. Na segunda-feira, pela manhã, vou telefonar a dizer que estou doente, ou arranjo outra desculpa qualquer. Sou uma desgraça nas entrevistas. Julgo que é por isso que não consegui qualquer dos empregos a que já concorri. Não lhes digo o que eles querem ouvir.

- Pois bem, isso resolve-se com facilidade. Faço-te uma entrevista fictícia.

- A altura não é nada boa para gozares comigo.

- Quem é que está a gozar? - respondo. - Estou a falar a sério. Arrumo as cadeiras da cozinha de forma a ficar uma de cada lado, depois ponho a garrafa de molho de tomate, o saleiro, o pimenteiro e os guardanapos noutro sítio.

Mostro-me firme: - Vamos fazer como eu digo, vamos fazer isto como deve ser. Vai a casa e veste o teu fato das entrevistas e eu vou vestir qualquer coisa um pouco mais formal. Recebo-te aqui às vinte horas em ponto.

20h00

Estou agora a bater à porta da Alison; visto o meu único fato, camisa branca, gravata azul-escura e os meus novos sapatos pretos.

- Escuta - começo por dizer logo que ela abre a porta -, só alinho nisto por teres sido tão insistente. Agora que me encontro aqui

tudo isto parece um pouco exagerado, como se estivéssemos a brincar aos médicos e enfermeiras, especialmente por usares essas roupasacrescento. A Alison veste casaco preto e uma saia comprida, também preta, e tem o cabelo preso na nuca. - Pareces uma espécie de mandona do escritório.

Ela presenteia-me com um olhar frio: - Desculpe. Disse alguma coisa, Mr. Owen?

- Ah! - exclamo ao perceber a piada. - Estás no teu papel. Com um ar desdenhoso e professoral, a Alison abana a cabeça. - Faça o favor de me seguir - comanda e, em silêncio, encaminha-se para a cozinha. Depois, aponta uma das cadeiras da cozinha: - Faça o favor de sentar-se, Mr. Owen.

Sento-me e encaro-a, do outro lado da mesa. Com aquelas roupas formais parece tão estranhamente bela que corro o perigo de me esquecer de que as companheiras dela podem chegar a qualquer momento. A última coisa de que precisam para acabar o seu dia é encontrarem- nos em flagrante, em cima da mesa da cozinha. Outra vez.

- Muito bem, Mr. Owen - começa a Alison com ar severo. - Vamos direitos ao assunto. Sou uma mulher ocupada, numa firma muito dinâmica. Prossigamos, portanto.

E, dito isto, começa a massacrar me, a tentar descobrir o que eu sei sobre planeamento de impostos, os meus conhecimentos da legislação financeira do Reino Unido, a actual e a que aguarda publicação, pede que sugira a solução do caso de um cliente difícil, põe-me à prova no que eu poderia fazer na criação de novas empresas e, finalmente, diz-me, em termos que não deixam lugar para dúvidas, que praticar badminton, não devia jamais ter sido incluído na secção Actividades Não Profissionais do curriculum vitae.

- Bom, muito obrigada por ter vindo, Mr. Owen - diz a Alison para completar a nossa entrevista fingida. - Não tardará a receber notícias nossas. Antes de terminarmos, deseja fazer me alguma pergunta?

Penso durante uns instantes. - O que é que estará a fazer dentro de quinze minutos?

- A presidir a uma reunião muito importante com uns clientes, cujo resultado poderá ser a entrada de milhares de libras de honorários na empresa. Por que é que pergunta?

- Estava a olhar para si, vestida dessa maneira - confesso - e, bom... A Alison ri-se, dá a volta até ficar atrás de mim e dá-me um beijo. - Não te esqueças de que, se acontecer algo de semelhante a isto na tua entrevista, és um homem morto.

Quarta-feira, 31 de Agosto de 1994

17h08

Estou em casa quando o teleFone toca e respondo de imediato.

- Estou!

- Alison, sou eu - anuncia o Jim, com voz de desesperado.

- O que é que se passa?

- Acabo de receber notícias da Greene Lowe.

Pela voz dele, percebo que não conseguiu o emprego. - Querido, não te preocupes. Há-de aparecer outro emprego.

- Não, não aparece.

- É claro que aparece. Prometo.

- Não - responde com voz firme. - Não, não haverá qualquer outro emprego como este. Porque este é meu. Consegui ficar com ele!

Sexta-feira, 23 de Dezembro de 1994

10h20

É a véspera da Noite de Natal e eu e o Jim, mais todas as nossas malas, encontramo-nos na estação de New Street. Passaram três meses desde o início do meu mestrado. É bom voltar a ser estudante. É bom voltar a usar o cérebro. De repente, senti que tinha um verdadeiro objectivo e um caminho a seguir. O primeiro período está passado e fiz novos amigos, aprendi coisas novas e comecei a pensar a sério no que quero fazer da minha vida. Decidi que desejo entrar na actividade editorial. O meu sonho é ser editora, embora esteja convencida de que não chego lá nem que viva um milhão de anos. Durante algum tempo, até escondi este desejo do Jim, pois pensei que ele poderia achá-lo estúpido. Quando o pus ao corrente, comentou: - Penso que poderás ser a melhor editora deste mundo.

Julgo que o disse sem fimgimento, o que me inspirou para começar a escrever a empresas editoras de Londres, tentando assegurar uma colocação para o ano seguinte.

O Jim anda igualmente excitado com o novo emprego. Entrou nele como se tivesse nascido para aquilo. Estou espantada com a transformação. Para além do que tem de Fazer para passar os exames da primeira fase de gestão, ainda traz trabalho para casa. - Este é o melhor emprego - assegurou- me, passados uns meses, quando desci a escada, a meio da noite, para o procurar. Estava sentado à mesa da cozinha, rodeado de pastas e de manuais. Eram duas horas da manhã.

- Não pode ser, se tens de trabalhar até tão tarde.

Jim olhou para o relógio. - Nem dei pela passagem das horas. Sorri. - Vens para a cama?

- Ainda não - respondeu. - Subo daqui a instantes. Não subiu dentro de instantes. Quando acordei, na manhã seguinte, a almofada dele estava vazia. E quando desci a escada encontrei-o deitado para cima da mesa, a dormir. Exactamente onde o havia deixado.

E agora encontramo-nos aqui, na estação de New Street, para irmos passar o Natal com as nossas famílias.

- Vais ver-me no dia de Natal? - pergunto.

- Levo muito trabalho para fazer - responde. - Esperava usar a paz e o sossego da casa dos meus pais para fazer umas coisas. Mas vejo-te na véspera do Ano Novo, sem falta - promete, enquanto consulta o relógio. - O meu comboio está mesmo a largar. Tenho de ir.

Beija-me, abraçamo-nos e ele diz-me adeus. Quando o vejo aFastar-se, embora reconheça que é uma estupidez, começo a chorar. Nem trocámos os presentes de Natal. O dele ainda está na minha mala e não tenho a certeza de ele se ter lembrado de comprar um para mim.

Sábado, 24 de Dezembro de 1994

23h20

É Noite de Natal e estou em casa dos meus pais. Acabo de regressar do bar, onde revi todos os meus antigos amigos. Estou a pensar em ir para a cama, quando o telefone toca, para grande desgosto da minha mãe. No seu mundo, as pessoas educadas não telefonam depois das dezanove horas, no máximo.

- Estou!

- Boa noite, posso falar com a Alison, por favor?

- Jim, sou eu. Estás bêbado, não é verdade?

- Muito. Feliz Noite de Natal, meu amor.

- Onde é que estás?

- Numa cabina telefónica, do lado de fora do bar onde estive a beber desde as três da tarde. Estive a falar de ti a todos os meus colegas de escola. Disse-Lhes que eras a melhor namorada do mundo e que eu sou o mais ordinário de entre todos os namorados.

- Por que motivo lhes disseste isso tudo?

- Porque me esqueci de te dar o meu presente de Natal. Perdoas- me?

- É claro que sim.

- Se quiseres, vou aí entregá-lo no dia a seguir ao Natal.

- Não há necessidade. Recebo-o quando nos virmos na véspera do Ano Novo, está bem?

O sinal de interrupção começa a tocar.

- Não tenho mais moedas - informa.

- Não te preocupes. Feliz Natal.

23h25

O condutor do carro alugado, que espera do lado de fora da cabina, faz soar a buzina.

- Para onde vamos, amigo? - pergunta quando regresso ao carro.

- Sei que é véspera de Natal - começo -, mas quanto é que me custaria se levasse uma encomenda a Norwich?

Está a brincar?

- De maneira nenhuma.

Pensa durante um minuto e diz-me um valor, que deve considerar ridiculamente elevado, para me fazer mudar de ideias. - Negócio fechado - respondo. Frankie, o motorista, e eu dirigimo-nos à caixa automática mais próxima e dou-lhe o dinheiro. A seguir, vamos buscar o presente a casa dos meus pais e continuamos a viagem de seis horas, ida e volta entre a casa dos meus pais e a casa da Alison. Quando chego junto da casa dela, ainda penso bater à porta mas não o faço. Em vez disso, abro a porta do alpendre e deixo a prenda no tapete. Ao fechar a porta com todo o cuidado, penso que nunca estive tão perto de parecer o Pai Natal.

Sábado, 31 de Dezembro de 1994

Eu e a Alison estamos numa festa, numa casa particular de Moseley, rodeados de todos os nossos amigos. Toda a gente está a fazer a contagem decrescente do tempo que falta para a entrada do Ano Novo. Quando atingimos o segundo zero, cada um grita o mais alto que pode.

- Feliz Ano Novo - desejo à minha companheira, ao abraçá-la.

- Feliz Ano para ti também.

- Alguma nova decisão para o ano que começou.

- Penso que vou voltar a fumar. Alguém tem de restabelecer o desequilíbrio provocado pelas pessoas que deixam de fumar. É preciso pensar nos fabricantes de cigarros. Não podemos permitir que vão à falência. E tu?

- Só uma. Que é?

- Ser mais atencioso para ti. Sei que ultimamente ando a dar te pouca atenção.

- Isso não é verdade.

- É. E tu sabes que é. Só pretendo que saibas que farei o que for justo.

- Pois bem, também vou tentar - promete a Alison. - Na verdade, penso que este vai ser o nosso ano.

1995

Terça-feira, 17 de Janeiro de 199 5

19h17

O novo ano ainda só tem umas semanas e a Alison veio até minha casa para jantar. Está sentada à mesa da cozinha, enquanto eu preparo uma versão da minha receita exclusiva: o mundialmente famoso empadão vegetariano caseiro de Jim Owen, que, no essencial, é o mesmo que o mundialmente famoso empadão caseiro normal de Jim OwenN, mas sem carne.

- Tenho uma prenda para ti - anuncia a Alison, enquanto procura na mala.

- Seja qual for o aniversário que estamos a comemorar, meu amor, além de não ter comprado nada para ti, também me esqueci da data.

Ela ri-se e os olhos fogem-lhe, mas apenas por breves instantes, para o presente que conserva na mão. É um olhar simultaneamente excitado e apreensivo. Entrega-me o pequeno presente e rasgo o papel de embrulho para encontrar uma pequena caixa das que se encontram nas embalagens com vários tipos de cereais. O rótulo da caixa diz que contém Coco Pops. Agito-a. Provoco um som metálico. Olho para a Alison, à espera da explicação.

- É um conjunto de chaves - esclarece.

- Um conjunto de chaves de quê?

- Da minha casa - acrescenta, timidamente.

Tiro as chaves da caixa e fico a olhar para elas. - Uma troca de chaves?

Sabes o que isso signiFica, não sabes?

- Para além de não teres necessidades de atirar pedrinhas à minha janela quando vais ao bar e pensas que estás em maré de sorte?

- Isto quer dizer que nunca conseguirás afastar-te de mim, mesmo que o queiras.

- Eu sei - responde. - Mas não consigo antever uma situação em que queira separar-me de ti.

Levo a mão à algibeira, pego nas minhas chaves e dou-lhas. - O seu a seu dono - esclareço. - A partir de agora, nenhum de nós disporá de um lugar para se esconder.

Terça-feira, 14 de Fevereiro de 1995

7h08

Dia de São Valentim. Recebo dois cartões pelo correio:

 

  1. A gravura de uma simples rosa - por dentro, na caligrafia de Alison, leio: Querido Jim, feliz dia de São Valentim. Amar-te tornou a minha vida mais feliz do que nunca. Com todo o meu amor, Alison."
  2. Um desenho de dois gatinhos a beijarem-se - por dentro, na cali grafia de Alison, lê-se: Querido homem do abre-latas, tenha um perfeito dia de São Valentim. Amores felinos, Disco.

 

7h17

Recebo dois cartões pelo correio:

 

  1. Um desenho de dois porcos a chafurdar na lama - lá dentro, tem uma citação: Vamos Fazer bacon. Escrito à mão, lê-se: Para a querida do meu coração, desejo-te um grande dia, muito amor, Jimmy, Jimmy "
  2. Um cartão com a reprodução de um quadro de Modigliani, Rapariga Com Vestido às Pintas. Escrito à mão, reconheço de imediato a caligrafia do Damon, lê-se: Nunca deixarei de te amar porque não consigo."

 

Sexta-feira, 14 de Março de 1995

19h04

Estou sentado na cozinha de Alison, a pensar na minha vida, quando ela entra com ar preocupado.

- Jim?

Para lhe responder tenho de suspender o movimento de levar à boca uma tosta coberta de feijões: - O que é?

- O que pensas fazer no segundo fim-de-semana, a contar de agora?

- Nada - respondo. - Porquê?

- Tenho de ir ver os meus pais.

Atiro os feijões para dentro da boca e fico a pensar no que a leva a considerar a informação tão importante, a ponto de perturbar o meu jantar.

- Isso é bonito - vou dizendo, sem deixar de mastigar. - Mas vou sentir saudades tuas.

- Bom, tenho esperança de que não sintas.

- Querida, não tens lá nada que te preocupe. Vou mesmo ter saudades tuas.

- Não, não estás a perceber-me - replica a Alison. - Espero que não sintas saudades porque quero que vás comigo.

Pouso o garfo e tento dar um ar de seriedade àquilo que vou dizer. O meu gesto pretende demonstrar: Vê, pus de parte os meus instrumentos de alimentação. É sinal de que não estou a brincar. - É simpático da tua parte, mas, na realidade, não visito pais.

- Sei que estou a pedir-te um enorme favor - suplica ela -, mas eles foram claros, querem conhecer-te pessoalmente.

- Al, sem ofensa, mas os teus pais sempre me pareceram um bocado emproados.

- Pois são. Cento e dez por cento. E agora querem conhecer-te. E também tenho a certeza de que não vão aceitar uma resposta negativa. Já tentei. Portanto, o que é que dizes?

Penso durante uns momentos e respondo: - Não.

- O que é que queres dizer com isso?

- Quero dizer que não vou. Como costuma dizer-se: Obrigado por me ter convidado a passar o Fim-de-semana em casa dos seus pais, mas não quero ir. É um não desse género.

- Mas não podes limitar-te a dizer não, assim sem mais nada. Sou a tua namorada.

- Tens razão. Desculpa. O que é que eu tinha na cabeça? Não devia ter-me limitado a dizer Não, Devia ter dito: Não, meu amor.

Só consigo exasperar a Alison: - Isso não melhora nada as coisas.

- Ora bem, depois de me elucidares sobre a maneira de eu dizer não sem te zangares, eu direi como tu queres.

Mas, porquê?

- Acontece apenas que não sou bom nesse tipo de situações.

- Que situações?

- Ser apresentado aos pais.

- É claro que és.

- Não, não sou. De todas as vezes que conheci os pais das namoradas, foi uma tragédia.

- Não acredito.

- Não estou a brincar. Os pais da Samantha Gough convidaram-me para jantar. O pai dela não me dirigiu uma única palavra e limitou-se a olhar para mim, do outro lado da mesa. Os pais da Natalie Moore convidaram-me a passar um fim-de-semana na sua casa de férias, no Sul de Gales; a mãe dela embebedou-se e tentou atirar-se a mim. E, na pior das situações, conheci os pais da Christine Taylor numa noite em que fui buscar a filha deles para sair. Foram simpáticos até ao momento de estarmos de saída; nessa altura, o pai apertou-me a mão, mas notei que ele escondia uma coisa na palma da mão, algo que acabou na minha.

- O que era?

- Adivinha. Costuma vir em embalagens de três, mas ele deu-me apenas uma.

As gargalhadas da Alison enchem a casa: - Não!

- Sim. E, além disso, sussurrou-me: Se não conseguir portar-se bem, seja cuidadoso. Uma preocupação que não seria exagerada, mas eu tinha apenas catorze anos e era a primeira vez que saía com a filha dele. Acredita no que te digo, estou amaldiçoado.

Sábado, 25 de Março de 1995

20h20

Apesar dos meus protestos, a Alison recusa-se a aceitar um não como resposta. Em vez disso, persegue- me até não me deixar alternativa que não seja ceder. Ocorre-me que, de entre todas as fases iniciais de uma relação, conhecer os pais da namorada tem lugar no topo da lista de Coisas Que Prefiro Não Fazer Se Puder Escapar-me". Contudo, permanece o facto de eu não dispor de maneira de me livrar. Como ela diz, já consegui safar-me durante o tempo suFiciente.

Tenho mesmo de ir.

E, desde o momento em que resolvo ir, a Alison começa a descrever me os pais como se estivesse a preparar uma operação militar, o que, em muitos aspectos é correcto. Sou instruído sobre o que devo fazer, sobre o que não posso fazer e sobre aquilo que se espera de mim. E como se isto não fosse suficiente, sou posto à prova todos os dias.

Domingo, 26 de Março de 1995

10h35

A primeira pergunta a que tenho de responder de manhã, bem cedo, logo depois daquilo a que costumamos chamar a cambalhota dominical em cima do feno, é: - Qual é o tema de conversa que está absolutamente fora de questão?

- O tema da política, em geral - respondo, com cuidado.

- Correcto. E quanto a assuntos políticos específicos?

- O Partido Trabalhista posterior a 1979.

- Nada mau - aceita a Alison com frieza. - Não está mesmo nada mal.

Quarta-feira, 29 de Março de 1995

17h45

Estamos no Final da tarde, a percorrer o corredor dos congelados do Safeway. Estou a tentar decidir se levo ou não um pacote de pizas congeladas de pão francês da marca Findus, quando a Alison se volta para mim e dispara: - Qual é o segundo tema de conversa que está absolutamente fora de questão?

Preciso de uns momentos para pensar. - O tema da religião, em geral.

- Bem. e?

- Especificamente a situação da Igreja de Inglaterra.

- Ainda mais específico do que isso?

- A. a. - sei a resposta, tenho-a na ponta da língua. Acabo por descobrir: - O ordenamento de mulheres.

- Muito bem - aplaude a Alison. - Muitíssimo bem.

Sábado, 1 de Abril de 1995

20h00

A Alison e as companheiras, Jane e Mary, estão na sala a debater uma possível ida à loja de vídeo. A Mary não se importa com o Filme, desde que não tenha legendas. A Jane vê qualquer Filme desde que tenha legendas.

A mim tanto me faz qual seja o filme, desde que tenha explosões. A Alison não se importa com nenhumas destas questões, pois tem a cabeça ocupada com assuntos de outro género.

Qual é o terceiro tema de conversa que está absolutamente fora de questão? - sussurra-me.

Esta sei. É fácil. - É a luta constante com o vizinho do lado, o da esquerda, acerca das dimensões do quintal de cada um.

- Brilhante - responde. E a seguir anuncia que vê qualquer filme, desde que tenha explosões.

Quarta-feira, 5 de Abril de 1995

6h55

Fiquei em casa da Alison. Acabo de tomar um duche e caminho pelo patamar quando ela passa por mim, em camisa de dormir e a transportar várias toalhas e os artigos de maquilhagem, mas vinda em sentido contrário.

- Bom dia, meu amor - saúdo.

- Qual é o tema número quatro a evitar?

Outra resposta fácil. - O piercing que a tua irmã mais nova fez recentemente. Um tema duplamente intocável.

- Brilhante - admite ao entrar na casa de banho, fechando a porta.

Quinta-feira, 6 de Abril de 1995

8h08

Estamos na entrada, eu a Jane e a Mary, à espera que a Alison desça para seguirmos todos para o Jug of Ale. Finalmente, ela desce a escada e, antes que ela consiga abrir a boca, eu declaro: - Acabaram-se os testes.

- Mas...

- Também sucede o mesmo com os mas.

Sabida, sorri. - Só mais um. Até vou escolher um que não envolva qualquer armadilha.

- Óptimo.

- Ora bem, qual é o quinto e último tema a que nunca se pode aludir durante as conversas com o meu pai?

- Queijos franceses - respondo, numa tentativa de a deixar satisfeita.

- Não - contrapõe, chocada.

- Jardinagem - alvitro, a virar-me para sair. Ela abana a cabeça. - Uma última tentativa.

Penso durante uns momentos: - O teu vício de fumar?

- Agora sei que não estás a levar isto a sério - responde -, porque eu sei que sabes, pois é um dado adquirido, que nem é necessário dizer que nunca tocamos nesse assunto. Para Ficar chalado, bastava que o meu pai suspeitasse que eu fumo.

Solto uma gargalhada: - Eu sei, eu sei. - Mas não sabes que essas coisas acabarão por matar te, pois não?

- Owen, estás apenas a tentar ganhar tempo - continua a Alison, sempre a sorrir.

- Não, não estou - replico. - A resposta à tua pergunta é o papel da América na Segunda Guerra Mundial. A libertação da Europa, especiFicamente. Segundo parece, é um assunto que o faz exaltar-se. Contudo, devo informar-te de que nenhum desses temas fez parte de qualquer conversa em que eu entrei, em toda a minha vida. Precisas apenas de te acalmares, meu amor, vai correr tudo bem.

Sábado, 2 de Abril de 1995

12h23

O Jim e eu chegamos ao portão da frente da casa dos meus pais e a minha mãe já está na escada, preparada para nos receber. É óbvio que montou guarda desde há algum tempo, à espera de ter a primeira visão oficial do novo namorado da filha.

- Viva, mamã - cumprimento, a agitar a mão direita e sem deixar de, com a esquerda, segurar com firmeza a mão do Jim. - Diz-me que tudo vai correr bem - sussurro ao ouvido dele, enquanto percorremos o carreiro de acesso à casa.

- Vai correr tudo bem - assegura ele. - Optimamente. O meu pai aparece subitamente junto da minha mãe. Estudo-lhe a expressão com cuidado, a tentar descobrir qual será a sua primeira impressão acerca do Jim. Está com a expressão que usa quando lê o jornal. Como o Jim não é um exemplar do Daily Telegraph, não faço ideia do que a expressão significa neste caso. Vou à mala, procuro a embalagem de pastilhas de menta extrafortes e enfio uma na boca, a tentar esconder os vestígios dos dez cigarros que fumei durante a viagem para cá.

- Olá, minha querida - cumprimenta o papá, envolvendo-me num grande abraço. - Como é que estás?

- Estou bem, papá - respondo, a apertar a mão do Jim com tanta força que receio esmagá-la.

- E calculo que esse é o jovem de quem tanto tenho ouvido falar?

- pergunta o meu pai, ao estender a mão para apertar a do Jim. O meu coração parece parar um instante.

De repente, convenço-me de que o Jim vai cumprimentar o meu pai com uma palmada na mão, como aquele cumprimento dos basquetebolistas americanos. Não faço ideia do motivo que me leva a pensar assim, pois nunca vi o Jim cumprimentar alguém dessa forma.

O Jim sorri abertamente, como se estivesse a participar num concurso da televisão, e aperta a mão do meu pai como uma pessoa normal, enquanto eu respiro fundo.

- Muito prazer em conhecê-lo - cumprimenta o Jim. - Como é que se sente hoje, Mr. Smith?

- Estou bem - responde o pai. - Obrigado pelo seu cuidado. Os cumprimentos continuam na entrada. A mãe sorri muito e encarrega-se dos casacos e dos sacos. O pai também sorri, embora menos do que a minha mãe, e está a observá-la. Ao abrir a porta para entrar na sala de estar, imagino que as próximas horas vão passar-se assim: a mamã vai contar-me tudo o que lhe tem acontecido desde a última vez em que nos vimos; o papá arranjará uma conversa com o Jim acerca de automóveis; iremos sentar-nos à mesa, onde haverá comida que quatro pessoas nem imaginam poder comer; o Jim e eu tentaremos comer o mais possível e no menor espaço de tempo; e, então, por volta das seis da tarde, eu fingirei que estou extremamente cansada. O papá chamará um táxi para nós, tomaremos o comboio de regresso a casa e estarei eternamente grata ao Jim por ele ser talvez o melhor entre todos os namorados do mundo.

No preciso momento em que entro na sala, apercebo-me de que estou completamente enganada.

- Surpresa! - exclama a minha irmã mais velha, a Emma.

- Olá - cumprimenta o Eduardo, marido da Emma.

- Tia Ally! - grita a Molly, a filha deles, apenas com três anos. A minha irmã mais nova, a Caroline, que tem dezassete anos, cumprimenta-me com normalidade: - Estás bem, mana?

- Olá, querida - saúda a avó Smith.

- Olá, querida - repete a avó Graham.

Fico sem fala. Três gerações da família sentadas à volta da mesa, toda a gente com a intenção deliberada de conhecer o Jim. Fico aparvalhada com a cena e não posso deixar de mostrar o meu desamparo e o meu horror. Agora, também eu estou amaldiçoada.

Olho para ele uma vez mais. Não parece homem para me deixar, mesmo quando a minha mãe anuncia, da porta da sala: - Atenção a todos, este é o Jim, o novo parceiro da Alison; é esta a palavra moderna, não é?

Sinto-me mortificada. A minha mãe, que nunca tinha usado uma palavra como parceiro, começa, de súbito, a usar terminologia politicamente correcta. Decido que, a partir deste momento, as coisas só podem piorar.

Mas tal não acontece.

A minha família adora o Jim.

O papá conversa com ele sobre a forma actual da equipa do West Ham, música, política e religião.

Com a mamã conversa acerca dos exames de gestão e da família que vive em Oldham.

A minha irmã mais nova, sempre mal-humorada, mostra-se extremamente alegre e namora-o com descaramento.

A minha irmã mais velha ri-se a bandeiras despregadas, a ponto de se engasgar, com todas as piadas dele.

Tal como acontece com o meu cunhado.

E com a avó Smith.

E com a avó Graham, depois de a minha irmã mais velha lhe repetir a piada junto do ouvido bom.

Até a minha sobrinha, a quem quase não consigo dirigir a palavra sem que comece a chorar, se senta ao colo dele ainda antes de terminarmos a sobremesa.

18h34

- Não correu mal de todo - conclui o Jim quando já vamos enterrados no banco traseiro de um táxi, a caminho da estação.

- Tenho quase a certeza de que o meu pai quer adoptar-te - comento, a apertar a mão dele com muita força. - Julgo que só não o faz por causa da mamã. Ela diz que ele sempre desejou ter um rapaz. Penso que a minha irmã mais nova existe por eles terem tentado o rapaz uma última vez. És o filho que ele sempre desejou. Depois do que se passou hoje, cada telefonema será o Jim para aqui, o Jim para ali, e o Jim para acolá. Se, por ser a filha do meio, já me era difícil captar a atenção dos meus pais, a partir de agora será quase impossível. Mas não me importo. Passaste o teste dos pais, meu amor. Fiquei orgulhosa por ti.

Domingo, 6 de Agosto de 1995

15h45

O Jim e eu, mais duas grandes malas, acabamos de entrar em minha casa, depois das nossas primeiras férias a sério no estrangeiro: uma viagem de sete dias a Malta. O tempo esteve bom e passámos bastante bem, mas acho que ambos tivemos dificuldades em nos descontrairmos. Os meses mais recentes não têm sido fáceis para nós. O Jim continua apaixonado pelo emprego e parece estar sempre em revisões com vista ao exame seguinte. Entretanto, continuo a gostar imenso do meu mestrado e tenho trabalhado intensamente na minha tese. Durante as férias devemos ter sido considerados o casal mais estranho da praia. Enquanto as outras pessoas ficavam deitadas durante todo o dia, todos os dias, o Jim lia tratados sobre planeamento de impostos, enquanto eu despachava as obras de Charles Dickens.

Olho, descontraída, para o correio: - Lar, doce lar.

- Está alguém em casa? - grita o Jim, do fundo da escada. Devem andar todas por fora. Não há comissão de boas-vindas?

Continuo a ver o correio: uma conta do gás, uma carta da empresa de crédito a estudantes, duas ofertas sem interesse, relacionados com cartões de crédito e um envelope de um branco imaculado, com a marca dos correios de Londres, que abro a toda a pressa.

- O que é? - indaga o Jim.

- Recordas-te de que no início do ano escrevi a diversas empresas, a pedir trabalho à experiência? - murmuro, já excitada. - Pois bem, a firma Cooper and Lawton está a responder-me.

- Excelente! - exclama o Jim. - Umas semanas em Londres parecem uma boa paródia.

- Pelos vistos, é melhor do que isso - esclareço. - Na realidade, é melhor do que alguma vez ousei imaginar; estão a marcar-me uma entrevista para um emprego na área editorial. Não achas fantástico?

20h59

O Jim, eu e as minhas companheiras viemos até ao bar. Ele tem falado muito pouco durante todo o serão. De facto, tem parecido estranho" desde que recebi a boa notícia. Já Lhe perguntei por diversas vezes qual era o problema mas, de cada vez que o faço, desmente que haja algum.

- O que é que ele tem? - pergunta a Jane quando o Jim vai à casa de banho.

- Tem estado toda a noite com péssima disposição - acrescenta a Mary.

- Tiveram alguma zanga? - indaga a Jane.

Respiro fundo: - Não, está amuado.

- Por que é que os rapazes estão sempre a amuar? - interroga-se a Mary.

- Eu até gosto do Jim quando ele está amuado - respondo. Faz-me lembrar um miúdo pequeno. Um menino que tem medo de dizer o que lhe vai na cabeça. Embora eu saiba o que o preocupa, não há muito a fazer, a menos que ele queira discutir o assunto.

- O que é? - pergunta a Mary.

- Dou-te duas oportunidades de acertares.

- Não se trata da tua entrevista?

- Não podes desperdiçar a oportunidade - afirma a Jane com voz decidida.

- Eu sei, mas se a aproveito sinto que a minha vida pode tomar um rumo totalmente diferente.

A Mary intervém: - E isso é bom, não achas?

- O problema é o seguinte: gosto da vida que tenho de momento. Gosto de estar com o Jim. Todavia, se aceitar o emprego em Londres, o que é que vai acontecer? Se o emprego nos obrigar a seguir caminhos divergentes? Além disso, ele mal começou com o novo emprego.

Tenho de me interromper de repente; o Jim regressou da casa de banho.

- Meu amor, acho que não vou esperar pelas últimas bebidas que encomendámos - diz ele, a espreguiçar-se. - Estou a sentir-me realmente cansado. Vou para casa.

- Para a tua ou para a minha?

- Para a minha.

- Mas pensei que... - não acabo a frase. - Está bem. Vemo-nos amanhã à noite.

Despede-se com um aceno de cabeça e vai- se embora. Nem me beijou.

- No fundo - comento, ao vê-lo sair -, sei que ele tem razão para estar preocupado acerca de nós, porque eu também estou. Não sei como é que as relações funcionam. Não sei como sobrevivem. Parece que todos os dias aparece qualquer coisa para nos perturbar a paz de espírito.

23h07

As raparigas e eu acabamos de chegar a casa. Sentamo-nos, bebemos chá e ficamos um bocado a conversar na cozinha, até que, uma a uma, nos despedimos e vamos para a cama. Sou a última a usar a casa de banho. Quando estou a retirar a maquilhagem e a lavar a cara, a Disco entra por aLi dentro e olha-me com ar acusador. Devo ser a única pessoa capaz de se sentir culpada graças ao olhar de uma gata, pois, de súbito, decido ir ter com o Jim. Está deitado quando eu deslizo para dentro do quarto. Dispo-me no escuro, deixando as roupas em monte no chão, perto da cama e subo para debaixo do edredão, para perto dele.

- Estás acordado? - sussurro.

- Estou - responde calmamente. - Escuta... esta noite... a maneira como tenho estado a agir. peço desculpa, está bem?

Adoro a maneira que ele tem de falar comigo, como se eu soubesse de que é que ele está a falar; é claro que sei. Não nos custa nada começarmos a falar de um assunto ao acaso, que nada diz a quem não estiver por dentro da nossa relação, ou continuar uma conversa que começámos horas antes.

- Pensei que ficasses satisfeito por mim.

- Estou satisfeito por teres conseguido. Porém, sei aonde isto nos vai conduzir e não me agrada a ideia.

- Contudo, trata-se apenas de uma entrevista. É provável que eu não consiga.

- Vais conseguir. Eu sei que vais.

- Mas não sou obrigada a aceitar - sugiro. É claro que pretendo

o emprego. Desejo-o mais do que tudo. Mas não me pareceu correcto dizer outra coisa. Nunca diria o que qualquer de nós gostaria de ouvir. Desta forma, conseguimos uma solução temporária.

Domingo, 20 de Agosto de 1995

13h20

A Alison deve partir para Londres amanhã, para ir à entrevista. Passou tempos infinitos a preparar as roupas. Eu encontro-me no bar, com o Nick. Precisei de sair de casa durante algum tempo. Nick é bom para estes períodos de distracção. Não falamos de coisas que interessem. De resto, nada parece interessar. Estou a começar a sentir me bem, quando ele dispara: A Al vai amanhã à entrevista.

- Pois vai.

- Queres falar sobre isso?

- Não.

Ele encolhe os ombros. - Pronto, limitei-me a perguntar.

- Há uma certa tensão entre nós - esclareço, sem mais pormenores.

- Existe desde que ela anunciou a viagem. Admito que a culpa é minha. Só que não consigo deixar de me sentir um pouco...

- Desiludido?

- Pois, é isso. A relação termina.

Sexta-feira, 8 de Setembro de 1995

7h02

Todos os dias desde a data da entrevista, a Alison tem esperado por notícias do emprego na Cooper and Lawton. Passada a primeira semana, deixou de dormir e até a festa do seu 25. aniversário se transformou num não-evento por ela estar tão preocupada. Depois da segunda semana, tive de me empenhar para que ela não telefonasse e para a arrancar da depressão. Finalmente, na noite passada, disse-Lhe que quando a carta chegasse, a qualquer hora, me ligasse para a abrirmos juntos. Por isso, quando estou a preparar o pequeno-almoço e ouço o telefone tocar fico a saber que ela recebeu notícias.

- Estou!

- Acho que a carta chegou - responde a Alison.

Estou aí dentro de um minuto - prometo e pouso o auscultador.

7h10

Quando chego, a Alison está na entrada, acompanhada da Jane e da Mary.

- Bom dia, amor - saúda ela, dando-me um beijo.

- É essa? - pergunto, a apontar para o sobrescrito que ela tem na mão.

Acena que sim. - Tem o carimbo do correio deles.

- Pois bem, avança - sugere a Jane. - Ele já cá está, podes abrir a carta.

- Não consigo. É demasiado para mim.

- Estou cem por cento convencida de que conseguiste o que querias - declara a Mary. - Abre.

A Alison dá-me o sobrescrito. - Faz isso por mim.

- Na verdade, penso que devias ser tu a fazê-lo.

- Não consigo. Jim, por favor, faz isto por mim.

Devolvo-Lhe a carta e recuso com firmeza. - Não. Abre-a tu. Ficarei aqui ao teu lado.

Abre o sobrescrito e dá uma vista de olhos pela carta. A expressão dela diz tudo.

- Então? - indaga a Jane.

- Não consegui. Dizem que fui uma excelente candidata, mas deram o emprego a alguém mais experiente.

Aconchego-a nos meus braços quando começa a chorar. A Jane e a Mary efectuam uma retirada estratégica. - Lamento, meu amor. Na verdade, pensei que ias conseguir. Há-de aparecer outro emprego. No fim, acabará tudo por se compor.

- Não - replica a Alison. - Penso que não haverá. Senti que não estive bem e tinha razão... De qualquer forma, julgo que tu, pelo menos, ficarás contente. Nunca quiseste que eu conseguisse este emprego. Eu notei.

- Se me perguntas se estou satisfeito por não ires viver para Londres, a resposta é sim. É evidente que estou, pois a tua ida tornaria a situação difícil para nós. Contudo, se me perguntas se fiquei contente por não teres conseguido o emprego, a resposta é não, não fiquei. Tinha a certeza de que o conseguias. Quis que o conseguisses, por ti. Quis que ficasses feliz, pois é suposto que quem ama se compraz na felicidade do outro. Se tivesses obtido o, emprego, por causa de ti teria feito tudo o que fosse possível para me mostrar contente, mesmo que isso me dilacerasse por dentro. E sabes porquê? Porque fazer-te feliz é o que se espera de mim. É a minha obrigação. E, se não te sentires feliz, eu também não estou contente.

Quinta-feira, 5 de Outubro de 1995

19h13

O Jim e eu encontramo-nos em Moseley, no quarto de tamanho médio de uma enorme casa delapidada. É um bom quarto, com uma cama de solteiro num dos cantos, um fogareiro com duas bocas, colocado numa mesa perto da janela, um grande guarda-fatos junto à porta e uma alcatifa de cor verde-limão, com manchas já antigas.

Estamos aqui por termos decidido viver juntos. Faz todo o sentido. Passamos a maior parte do tempo juntos e, agora que já não vou mudar-me para Londres, não há razão para não vivermos na mesma casa. Porém, ao examinar as quatro paredes que nos rodeiam, consigo enunciar diversas razões para não o fazermos. O quarto exala um fedor a fumo de cigarro e a casa de banho é no corredor partilhada com outros moradores. A única qualidade visível é ser barata.

- O que é que acha? - pergunta Mr. Mebus, senhorio da casa da Fenchurch Avenue, n. o 11 C, quando vamos a sair.

- Temos outros sítios para ver - responde o Jim alegremente

-, mas se o quisermos telefonaremos logo à noite.

Logo que ele já não consegue ouvir-nos, a verdade vem à superfície.

- Aquilo era demasiado mau para poder descrever-se por palavras - comenta o Jim.

- Senti-me suja só de entrar naquele quarto - acrescento. Não é necessário dizer que à noite não telefonámos a Mr. Rebus.

Nem a Mrs. Rawsthorne de Rickman Road, n. o 23 A (uma baiúca)

20h23

Nem a Mr. Shaukat, de Lake Road, n. o 455 (uma baiúca pior que a outra).

Terça-feira, 10 de Outubro de 1995

18h45

Nem a Mr. Dixon, de Abington House, casa n. 2, 11. o andar (demasiado deprimente).

19h33

Nem a Mr. e Mrs. Cimoszewicz, de Howard Street, n. o 4 (uma armadilha mortal feita de tabiques forrados a papel).

19h58

Nem a Mr. Potts, da casa A, de Duke Street (o senhorio tinha todo o ar de um assassino em série e mencionou por diversas vezes o pormenor de possuir chaves de todas as casas).

Sexta-feira, 20 de Outubro de 1995

18h22

Nem a Mr. Dixon (outra vez) do apartamento n. o 5, Warwick House, 13. o andar (caganitas de rato no chão da cozinha).

18h49

Nem aos irmãos Ruddard, de Warwick Crescent, n. o 545 (o inquilino anterior desaparecera misteriosamente e deixara todos os seus pertences).

19h47

Nem a Mr. Ho, de Able Road, apartamento n. o 1 (intenso cheiro a Ajax e a desespero).

Segunda-feira, 13 de Novembro de 1995

20h38

Estamos no meu quarto, a ver televisão no aparelho portátil, depois de uma das mais deprimentes experiências de procura de casa que empreendemos até agora. Esta noite fomos ver um apartamento de uma assoalhada, no último andar de um grande prédio de Valentine Road, em Kings Heath. Tinha fungos a crescer de uma racha no tecto da cozinha e, quando os apontei ao agente de alugueres, ele limitou-se a rir-se e a declarar que não nos cobraria qualquer suplemento se tivéssemos animais de estimação.

- Parece que nunca vamos conseguir nada - comento para o Jim, que está deitado, meio a dormir, a ver a série castEnders.

- Achas que é uma espécie de sinal para que não nos mudemos ambos para uma nova casa?

- Julgo que é apenas um sinal de que, na verdade, não sabemos os preços das coisas no mundo real.

Dá-se uma pausa e ficamos a ver o Pat Butcher na televisão, numa zaragata com lan Beale.

- Então, o que é que vamos fazer? - pergunto, mesmo sem tirar os olhos do ecrã. - Ficamos como estamos? Ou... parece que descobri a solução.

- Qual é?

- Podias viver comigo e com as outras raparigas... ou podia eu ir viver com os rapazes do outro lado da rua.

O Jim faz uma careta. - Não sei se resulta. Há pessoas que não gostam de viver com um casal, não é verdade?

Tomo uma decisão. - Nesse caso, é melhor perguntar-lhes agora mesmo. O pior que pode acontecer é dizerem que não.

22h13

A Alison acaba de me ligar para compararmos as reacções.

- Então o que é que se diz do teu lado? - pergunta.

- O Nick não se importa que venhas para cá. Todavia, deves refrear o entusiasmo. Aceita, mas com reservas.

Quais?

- Não estás autorizada a resmungar com ele para manter a casa arrumada. No fundo, julgo que ao viveres aqui tens de baixar os teus padrões... e bastante.

- Só isso?

- Ah, o Nick diz que prefere que não tragas arranjos florais para casa porque, e estou a citar, as pétalas de flores mortas numa jarra são a maior de todas as fraudes,

- O que é que o leva a pensar que iria levar flores comigo?

- Não faço ideia. Na melhor das hipóteses, ele tem um conceito bastante vago do que são as mulheres. A propósito, o que é que as raparigas disseram?

- De início manifestaram algumas reservas. Acho que pensam que nunca mais poderão andar nuas pela casa.

Solto uma gargalhada. - Diz-Lhe que só tenho olhos para ti e que podem sentir-se à vontade se lhes apetecer andar nuas. De facto, até aplaudo isso.

- Também julgo que sim. O outro óbice que mencionaram é não quererem que nos entreguemos a discussões de qualquer espécie nas áreas comuns da casa.

- Bom, de qualquer modo não discutimos muito. Com excepção de alguns amuos passageiros, como o da semana passada, quando estávamos a fingir que lutávamos e te deixei cair de cabeça para baixo, somos bastante delicados um com o outro.

- Eu sei, mas elas falaram nisso.

- Óptimo. Podemos concordar com isso. O que há mais?

- É tudo. No final, pensam que será agradável ter um homem em casa para matar as aranhas, levar os sacos do lixo para fora de casa nos dias certos e programar o vídeo. Dito isto, nesta última parte não penso que estivessem a falar inteiramente a sério.

- Bem, está feito - concluo, passados instantes. - Ambos os lados aprovaram... Qual é o quarto que escolhemos? O teu ou o meu?

- Bom, não quero que leves isto a mal, mas eu preferia que fosses tu a mudar-te para o meu. A minha casa é mais bonita. Importas-te?

- Por acaso, importo-me. O vosso televisor é pequeno.

- É esse o teu único motivo?

- O que é que eu posso dizer? Odeio televisores pequenos.

- Então, o que é que fazemos?

Meto a mão no bolso e tiro uma moeda de cinquenta cêntimos. - Se sair cara vens viver para minha casa, se for coroa vou viver para a tua.

Atiro a moeda ao ar e apanho-a na palma da mão.

- O que é? - indaga a Alison.

Ao destapar a moeda vejo claramente o busto da Rainha. Ganhei. Porém, de repente, apercebo-me de que não quero sair vencedor. A Alison tem razão. A casa dela é milhões de vezes mais agradável do que a minha, além de que a Disco gostará mais de viver na casa dela do que na minha. E desejo que a Alison seja feliz.

- Coroa - minto. - Vamos viver em tua casa.

Quarta-feira, 15 de Novembro de 1995

9h02

Chegou a manhã da mudança e ambos pedimos dispensa de um dia nos empregos. Na noite passada desocupei espaço no meu guarda-vestidos, para a roupa do Jim. Despejei duas gavetas no meu quarto e até arranjei um espaço para ele pôr os discos. Ficou tudo preparado para a mudança. Agora, passadas doze horas, estou de pé no que vai passar a ser o nosso quarto comum, rodeada de todos os bens materiais do Jim: várias centenas de discos, duas malas de roupas, diversas caixas de sapatos cheias de cassetes, uma guitarra, duas caixas a abarrotar de livros, dois sacos com sapatos e ténis, mais um televisor. Não penso que qualquer de nós pudesse adivinhar que ele tinha tantas coisas. O engraçado é que, em vez de falarmos disso, decidimos enfrentar a questão mais importante, mais excitante e bastante mais adulta.

- Qual é o lado da cama que preferes? - pergunto, quando o Jim está sentado numa das malas de roupa, a observar o quarto.

Aponta para o lado mais afastado da porta. - Fico com aquele lado.

- Só por curiosidade, porquê?

- Pelo seguinte motivo - explica. - Se um louco assassino, armado de um machado, entrar na casa com a intenção de matar todas as pessoas que cá estão, quem é que ele vai tentar matar primeiro?

- Quem estiver mais perto da porta... Que sou eu! Nem quero acreditar numa coisa dessas! - protesto, a rir-me. Agarro numa almofada e passo ao ataque. O Jim agarra a outra e segue-se uma tremenda batalha de almofadas. Usando a força bruta, ele consegue obrigar-me a soltar a almofada e derruba-me, segundo o esquema que, parece, usava com a irmã quando ambos eram pequenos.

- Se me tivesses deixado acabar - prossegue, enquanto me debato debaixo dele e tento morder-lhe o pulso -, teria explicado o meu raciocínio.

- Ah, então continua.

- Pois bem, se fosses a primeira a ser atacada pelo louco assassino do machado eu teria tempo para saltar da cama e salvar o que restasse de ti. Podíamos fazer tudo ao contrário, se assim quisesses, mas não creio que fosses capaz de enfrentar assassinos loucos e armados de machados.

Resolvo responder com sarcasmo: - És o meu cavaleiro de armadura ferrugenta. Agora, sai de cima de mim e deixa-me beijar-te como deve ser.

O Jim liberta-me os pulsos e vamos para nos beijar quando ouvimos o telefone tocar.

- É melhor ir atender.

- Deixa tocar - sugere o Jim. - Deixa que o aparelho registe a mensagem.

- Pode ser a minha mãe. Telefonou na noite passada e esqueci-me de lhe falar, entretida que estive a preparar tudo para a tua mudança. Não demoro nada e depois recomeçamos no ponto exacto da interrupção.

9h43

A Alison está ao telefone há tanto tempo que liguei o televisor e fiquei a ver um daqueles horríveis programas de conversa que passam durante o dia. O debate de hoje tem por tema: A Pena de Morte Deverá Ser Restaurada?

Estou embrenhado no debate quando a porta do quarto se abre e a Alison regressa. Vejo de imediato que a disposição dela mudou. - O que é que se passa? - indago. - A tua mâe não está bem?

- Era a mulher que me entrevistou na Cooper and Lawton. Segundo parece, têm uma vaga de estagiária no departamento de publicidade e, como a entrevista correu tão bem, querem saber se estou interessada no lugar.

- Pensei que desejavas trabalhar na área editorial.

- Não posso dar me ao luxo de ser demasiado esquisita. Quero mesmo trabalhar para uma editora e tenho de agarrar o que puder.

- Nesse caso, estás decidida a aceitar o lugar?

Segue-se um longo silêncio que, presumo, é a única resposta que vou obter.

- Quando é que tens de começar? - interrogo.

- Depois do Natal.

Novo silêncio demorado, até ela acrescentar: - Podias ir também. Podias candidatar-te a um emprego em qualquer firma de Londres. Estou certa de que há montes de oportunidades para ti... Não tem nada a ver contigo... ou connosco... ou qualquer coisa do género. Vivemos muito bem juntos. Só ambiciono mais do que posso conseguir aqui.

- Mas eu não quero mudar-me - replico. - Sinto-me bem aqui. É aqui que vivem todos os meus amigos. Não quero desistir de nada disto. E não posso aceitar uma relação de longa distância. Não posso, ponto final. Pensei que pedir-te para viveres comigo fosse uma maneira de nos mantermos juntos. Contudo, é óbvio que vamos por caminhos diferentes. Talvez devêssemos separar-nos imediatamente, de forma a podermos continuar amigos.

- Pois bem, não penso que possamos continuar amigos - responde a Alison, com amargura. - Julgo que seria demasiado doloroso. Por isso, talvez seja melhor que te vás embora.

22h01

O Jim diz que vai voltar a viver com o Nick e sai, batendo com a porta. Segundos depois, a tampa da caixa de correio chia ao ser aberta e ele deixa cair as chaves para dentro de casa. Apanho-as e fico a olhá-las. A Disco aparece, vinda da sala de estar, e desata a miar alto porque tem fome. E, com a gata aos meus pés, desato a chorar de tal maneira que parece que nunca mais vou parar.

Sábado, 23 de Dezembro de 1995

18h47

Alguém tocou à campainha. Vou abrir e deparo com a Alison, que traz consigo a Disco. Umas semanas antes, tinha-me telefonado a perguntar se não me importava de ficar com a gata, até ela ter a vida organizada em Londres. Agora traz um saco cheio de latas de Uhiskas, alguns pacotes de comida desidratada, todos os brinquedos da gata e um pequeno cartão com o endereço do veterinário e a data da próxima dose de vacinas. A gata parece contente por me ver: outro tanto não poderei dizer da Alison. Não diz praticamente nada e mal olha para mim. Não consigo perceber o motivo que a leva a não encarar as coisas de acordo com o meu ponto de vista.

A minha namorada está de partida e vai viver para outra cidade. As relações à distância nunca funcionam.

Estes são os factos e nenhum deles acontece por minha culpa.

- Amanhã, partes a que horas? - pergunto, quando ela já está preparada para se ir embora.

- O meu pai veio cá no fim-de-semana e levou as coisas maiores do meu quarto - responde. - Não sei. Cedo, provavelmente, pois os comboios irão cheios de gente que vai passar o Natal a casa. E tu?

- Apanho o comboio para casa, durante a tarde.

Faz um aceno e instala-se novo silêncio.

- Bom, suponho que é melhor ir andando - decide, ao agachar-se para acariciar a gata, que está a esgadanhar o saco de transporte pousado junto dos nossos pés. - Eu e as raparigas vamos ao Jug para uma festa de despedida. Queres ir?

- Adorava, mas tenho muito trabalho para acabar.

- Muito bem, desejo-te um óptimo Natal.

- Obrigado, o mesmo para ti.

Domingo, 24 de Dezembro de 1995

8h55

Véspera de Natal.

Mais importante do que isso: é o dia em que a Alison sai definitivamente de Birmingham. É por isso que estou a bater à porta dela. Não quero que ela parta, não quero que nos separemos. E tenho de Lhe dizer isso, agora

mesmo.

- Quem é? - pergunta a Jane, sem abrir a porta.

- Jane, abre depressa. Sou eu. Tenho de falar com a Alison antes de ela sair.

Jane abre a porta e olha para mim. - Para isso, chegaste um pouco atrasado.

- Não me digas que já se foi embora.

- É claro que já partiu - responde a Jane com voz firme. - Por que diabo haveria de andar por aqui à espera de que tivesses juízo?

- Mas...

- Não há mas, Jim. Não há quaisquer mas. A Alison adora-te. E a verdade é que tu a abandonaste.

Mesmo sem fazer a mínima ideia de qual é o comboio que vai apanhar, convenço-me de que há ainda uma possibilidade de ver a Alison antes de ela sair de Birmingham. Corro para a paragem do autocarro da rua principal precisamente no momento em que o número 50 está a parar. Acotovelando a multidão de pensionistas e carrinhos de compras, conquisto o meu direito a entrar e desejo apenas que o motorista carregue a fundo no acelerador. É óbvio que o homem não está a receber as minhas mensagens telepáticas, pois conduz tão devagar que, quando atingimos o centro da cidade, decido que chegarei mais depressa se contar só com as minhas forças. Convenço-o a deixar me sair junto do terminal de autocarros de Digbeth e depois corro como se a minha vida dependesse da velocidade, o que, em certos aspectos, é verdade. Corro da estação de autocarros e, sem diminuir a velocidade, atravesso os mercados, passo por St. Martin e entro na estação.

Consulto os horários expostos nas paredes, partindo do princípio de que a Alison vai para casa dos pais, em Norwich. Uma vez de posse das informações relevantes, descubro que o comboio para Norwich parte da plataforma número onze dentro de cinco minutos. Salto as barreiras de validação de bilhetes, corro escada abaixo e encontro-me na plataforma, onde me apercebo de uma deficiência fatal do meu plano: procurar alguém num comboio superlotado não é tarefa nada fácil. Especialmente quando esse comboio parece cheio de gente que pretende participar no Concurso de Mulheres Parecidas Com Alison". Há Alisons gordas, Alisons baixotas, Alisons que se parecem com a Alison quando vistas de costas e não são nada parecidas com ela quando vistas de frente, Alisons que da Alison só têm o aspecto do cabelo. Alisons que têm o corpo da Alison mas não o cabelo (até há, acredite quem quiser, uma Alison chinesa, que tem todos os atributos da Alison, se nos esquecermos de que a Alison não tem quaisquer chinesices"). Portanto, aqui ando eu, a encontrar todas estas Alisons falsas, enquanto os ponteiros do relógio não param. Finalmente, alcanço a carruagem e lá está ela, ocupada a ler uma revista. Bato na janela e ela volta-se de um salto. Espero pacientemente que ela apareça junto da porta da carruagem, o que, graças a Deus, consegue fazer; baixa a janela no preciso momento em que o expedidor sopra o apito.

- Desculpa - grito, a tentar que a voz não seja abafada pelo resmungar profundo do motor diesel da locomotiva. - Não quero que nos separemos.

- Também te peço desculpa - responde-me, igualmente aos gritos.

- Acho que podemos fazer isto funcionar - consigo dizer, a correr pela plataforma e pouco afastado do comboio -, e não me importa o que possas dizer, não aceito negativas.

1996

Sexta-feira, 9 de Fevereiro de 1996

7h33

Estou no meu quarto, em Highbury, a verificar se meti na mala tudo aquilo de que vou precisar para passar o fim-de-semana em Birmingham. Quatro pares de cuecas", leio, em voz alta, da minha Lista de coisas necessárias para passar um fim-de-semana fora". Está lá tudo.

Dois sutiãs (um, pelo menos, a condizer com as cuecas), Tudo bem.

Saco de artigos de maquilhagem e tampões de emergência. " Sim.

Um pacote inteiro de Marlóoro Ligts."

Sim.

Três pares de meias (um par, pelo menos, escuro). Não.

Procuro as meias nas gavetas da cómoda, mas apercebo-me de que estão todas na cesta da roupa suja, à espera de serem lavadas.

Vou junto da secretária que tenho no quarto, pego numa caneta e escrevo COMPRAR MEIAS NA HORA DO ALMOÇO nas costas da mão.

18h45

Acabo de descer do metropolitano na estação de Victoria e esperam-me dez minutos de caminhada a pé, até ao terminal de camionagem. A viagem no National Express leva quatro horas, com paragens em Oxford, Coventry, Birmingham International e Birmingham Digbeth. De automóvel, gastam-se cerca de duas horas para chegar a Birmingham, enquanto no autocarro são precisas mais de quatro. Detesto-o mais do que a qualquer outro meio de transporte inventado pelo homem.

Está a chover quando saio. De súbito, a minha mochila parece pesar uma tonelada, os braços parecem prestes a destacar-se do corpo e agora me recordo de ter esquecido a compra das meias durante a hora do almoço. Enquanto percorro a Wilton Street não deixo de olhar para o relógio, a pensar que posso perder o autocarro. O próximo só sai daqui a três horas. Sinto a tentação de deixar-me escorregar para o chão e desistir.

23h09

O autocarro está prestes a entrar na estação de Digbeth, em Birmingham, e toda a gente se prepara para desembarcar. Olho pela janela, à procura do Jim, mas não consigo vê-lo. Ele vem sempre buscar-me. Desço do autocarro e espero que o motorista descarregue a minha mala. É então que o descubro, sentado num banco, a ler o jornal. Levanta os olhos, vê-me e todo o rosto se lhe ilumina. Estamos quase a fazer aquela cena de corrermos para os braços um do outro, mas dispomos de autodomínio suficiente para nos contermos. Em vez disso, caminhamos rapidamente para o outro e abraçamo-nos, um abraço bem apertado. Deixamo-nos ficar assim durante muito tempo.

23h35

- Jim! - exclamo, ao subirmos para a sua cama de uma só pessoa, coberta pelo edredão verde debotado -, isto é ridículo. Que uma pessoa tente uma noite decente de sono numa cama da largura de uma lâmina de barbear já é difícil, mas se forem duas estamos perante uma perfeita loucura.

Há cerca de um mês que o Jim está a viver numa casa partilhada por várias pessoas. O pior é que a casa dispõe do mobiliário básico habitual dos senhorios, com peças horríveis, incluindo uma cama de pessoa só em cada um dos três quartos. A do Jim é especialmente desconfortável, com as molas a saltar em todas as direcções, tão velhas e ferrugentas que gemem e estalam logo que eu faço o mais ligeiro movimento, fazendo uma barulheira tal que parece estar a acontecer uma orgia de quatro pessoas no mesmo leito. Fico verdadeiramente deprimida.

- Não há qualquer problema com a cama - contraria o Jim. Está óptima.

- É evidente que não está óptima - replico. - Olha para nós. Vais ter de dormir sobre o lado esquerdo, com o braço por debaixo de mim e as costas apoiadas metade na cama e a outra metade contra a parede, enquanto eu tenho de me enroscar no espaço que resta. Na prática, se não queremos acabar no chão, teremos de sincronizar os movimentos respiratórios. Julgo que tens de arranjar uma cama de casal.

- Talvez tenhas razão.

- Pede ao senhorio que troque a cama.

- Não sei se posso fazer isso. Já viste Mr. McNamara? Diz-se que foi lutador profissional.

Solto uma gargalhada. - Ah, sim?

- Não interessa se é ou não verdade - insiste o Jim. O problema é que Mr. McNamara tem o tamanho de uma baleia, ferve em pouca água e é capaz de Fazer perder a casa é a própria cabeça a um homem como eu.

- E depois?

O Jim inspira proFundamente: - Peço-lhe, da próxima vez que ele aparecer por cá.

Quarta-feira, 14 de Fevereiro de 1996

7h02

Recebo um cartão: uma fotografia a preto e branco de um coração feito com seixos, numa praia. Lá dentro, lê-se: Feliz Dia de São Valentim. És a minha perfeição. Todo o meu amor, sempre, Alison.

7h38

Recebo dois cartões:

 

  1. Um grande postal forrado de cetim, tem um gato desenhado num bolo com o formato de um coração. Lá dentro, lê-se: Este ano quis fazer algo de diFerente. Este foi o postal menos bonito que consegui encontrar. Não é fácil viver longe de ti, mas se este postal, como o afastamento de nós ambos, representa o ponto mais baixo, então a situação só pode melhorar. Com muito amor, Jim."
  2. Um cartão enviado de casa dos meus pais. Trata-se de um postal branco, normal, com uma pétala de rosa verdadeira na frente. Lá dentro, escrito à mão pelo Damon, vê-se um A e nada mais.

 

Quinta-feira, 7 de Março de 1996

19h24

Acabo de fazer uma visita a Mr. McNamara. A conversa decorreu nestes termos:

Eu: - Boa noite, Mr. McNamara. Desculpe incomodá-lo. É que o meu quarto tem uma cama para uma pessoa só e quando a minha namorada cá vem não há espaço para os dois. Gostaria de saber se o senhor poderia fornecer-me uma cama de casal. A minha namorada não tarda e vai fazer me a vida difícil. L'enho a certeza de que compreenderá a diferença que faz dispor de uma cama maior.

Ele: - Aluguei o quarto a si, não o aluguei à sua namorada. Não vi qualquer interesse em prosseguir a discussão, dado que Mr. McNamara não poderia ir mais além em termos de debate racional. E, cinco dias em cada sete, a cama satisfaz-me plenamente; por isso, decido deixar o senhorio descansado.

Sexta-feira, 8 de Março de 1996

22h22

O Jim veio a Londres para ficar comigo. Não falou da cama, o que me leva a presumir que é assunto arrumado. Não quero perguntar-lhe para ele não pensar que estou a pressioná-lo. A minha companheira de casa, a Viv, está sempre a importunar o namorado e nunca o deixa levar a melhor seja no que for. Não pretendo ser assim. Desejo ser uma namorada inteligente.

Domingo, 10 de Março de 1996

18h35

- Então, vemo-nos no próximo fim-de-semana? - pergunto quando nos preparamos para a despedida na estação.

A resposta vem acompanhada de um grande beijo: - Pois vemos!

- Conseguiste resolver aquele pormenor da cama, ou não?

- É claro que sim - responde, com ar seguro.

- Sabia que conseguias. Não estava a querer apanhar-te em falso.

- Eu sei. Óptimo. Está tudo resolvido.

Sexta-feira, 15 de Março de 1996

23h57

A Alison e eu acabamos de chegar a minha casa.

- Sabes o que é que realmente me apetece fazer? - ronrona, quando ainda estamos na entrada.

- O que é? - pergunto, embora tenha quase a certeza de qual vai ser a resposta.

- Julgo que devíamos dar um nome à nova cama de casal - sugere, antes de me mordiscar a orelha. Antes de me dar conta disso, já vamos pela escada acima, em direcção ao meu quarto. Beijamo-nos furiosamente mal chegamos ao cimo da escada, manobramos para entrar no quarto a recuar e deixamo-nos cair em cima da cama. E é este o momento em que a Alison descobre que não existe cama para baptizar. Se eu fosse dotado de um mínimo de senso, teria comprado uma mal a. deixei, no último Fim-de- semana. Não o Fiz, contudo, pois senso é coisa que não tenho, e ignorei o problema, na esperança de que ele se resolvesse por si. Ontem, quando me lembrei de fazer qualquer coisa, já passava das nove e meia da noite e todas as lojas de móveis que encontrei nas Páginas Amarelas estavam fechadas havia várias horas.

- Onde é que está a cama nova? - pergunta a Alison.

Arranjo uma resposta imediata: - Há um pequeno problema com a cama.

- Mas pensei.

- Menti. Pedi ao senhorio mas não consegui convencê-lo.

- Por que é que não me disseste?

- Por saber que ias Ficar zangada.

- Então, quando é que tencionavas dizer me?

- Alimentei uma certa esperança de que não notasses.

Segue-se um longo silêncio. Convenço-me de que a Alison vai explodir. Mas não. Tudo o que diz, com absoluta calma, é: - Amanhã vamos às compras.

14h05

Andamos pela loja que vende camas, a Beds, perto de Stirchley. Analisamos dezenas durante a tarde. Sentamo-nos nelas, deitamo- nos, e praticamos todos os gestos habituais. Finalmente, cerca das quatro da tarde, tomamos a decisão: compramos uma Sleepnite, com gavetas. Na caixa, concordo pagar um acréscimo de dez libras para entrega no próprio dia e procuro o cartão de crédito. Mas a Alison interrompe a busca e puxa do livro de cheques.

- O que é que estás a fazer? - pergunto.

- A passar um cheque, estúpido.

- Isso vejo eu, mas para quê?

- É para ti. Estás a comprar a cama por minha causa. Eu consigo o benefício de não me tornar uma deficiente crónica. E, ainda melhor, sempre que vier cá sei que me espera a melhor noite de sono que se pode arranjar. O mínimo que posso fazer é pagar metade.

- Mesmo percebendo o que isso significa?

- O que é?

- Que esta cama é a nossa primeira compra conjunta.

- Jim, é apenas uma cama.

- Não, não é. Depois da cama virão os talheres, os aspiradores, os guarda-fatos, os televisores, os frigoríficos, as máquinas de lavar, os microondas e as hipotecas. Tudo.

- E então?

- Então, nada. Só estou a querer que percebas que se trata de um momento especial. Por exemplo, se nos separássemos...

-. o que não vai acontecer.

-... é claro que não; porém, se o Fizéssemos, poderíamos chegar ao ponto de discutir a quem ficava a pertencer esta cama que acabamos de comprar.

- E depois, pretendes que eu faça o quê? Que não pague a minha metade?

- Não estava a dizer que não a pagasses. Estava apenas a expressar a minha opinião de que este é um momento especial.

- Jim, tu perdeste o juízo. Contudo, se isso te faz sentir melhor, se alguma vez nos separarmos...

-. o que não vai acontecer.

-... é claro que não, eu ficarei com esta cama.

- Porquê?

- Porque é isso que vamos acordar neste preciso momento.

- E qual seria a razão para eu entrar num acordo desses?

- É um incentivo para nunca te separares de mim.

Solto uma gargalhada. - Mas eu não vou separar me de ti.

- Nesse caso, não te importas de renunciar a todos os teus futuros direitos sobre esta cama, pois não?

- Estás a magoar-me.

- Foste tu quem começou.

- Está bem, vamos pagar e sair daqui.

- Não saímos enquanto não renunciares a todos os teus futuros direitos sobre esta cama. Jim, estou a falar a sério. Não vou andar a comprar camas com jovens que não me prometam manter-se comigo.

- Mas eu mantenho-me.

- Nesse caso, paga a tua metade da cama.

- E a seguir podemos ir-nos embora?

- Podemos.

- Muito bem. Por este meio, na presença de. - espreito o nome da funcionária da caixa... - Becky Collins, declaro que, se alguma vez me separar de Alison, a cama que comprámos hoje pertencerá na sua totalidade à dita Alison - recito. volto-me para ela e pergunto:

- Satisfeita?

Beija-me no queixo. - Absolutamente.

Domingo, 17 de Março de 1996

4h03

Estamos a meio da noite e encontro-me deitada junto do Jim, na nossa cama novinha em folha, quando sou acordada pela campainha do telefone. Olho para o relógio, bocejo e abano o Jim.

- Hum? - resmunga, meio a dormir.

- É o telefone - respondo.

- A mensagem fica registada - replica; e, dito isto, põe uma almofada em cima da cabeça e recomeça a dormir.

4h19

O teleFone está novamente a tocar. Desta vez, é o novo telemóvel que a empresa entregou ao Jim. Abro os olhos e acendo a luz da mesa de cabeceira, mas não Faço ideia do sítio onde devo procurar o telefone. Torno a abanar o Jim. - Hum? - volta a perguntar, meio a dormir.

- Desta vez é o teu telemóvel.

- Não ligues, amor. Devem ser aqueles tipos lá do emprego que

querem divertir-se.

- Gostaria que escolhesses melhor os amigos - escarneço, mas ele não responde pois já está de novo a dormir. Por isso, como o Jim fez, ponho uma almofada em cima da cabeça e tento voltar a dormir. O telefone continua a tocar e eu continuo deitada, esperando que o sistema de recepção de registo de mensagens entre em funcionamento. Logo que isso acontece, volto-me para o outro lado e procuro o calor do corpo dele.

4h23

Uma vez mais, sou arrancada do sono por um telefone a tocar. Levo algum tempo a perceber que, agora, se trata do meu telemóvel. Nem procuro acordar o Jim, salto da cama e começo a procurar o telemóvel nos sítios habituais. Procuro nos bolsos das calças, que estão caídas no soalho, na mala, nos bolsos do casaco e continuo a não o achar, mas as minhas andanças pelo quarto acabam por acordar o meu companheiro. - E agora, o que é que se passa? - resmunga.

- Estou a ver se encontro o telemóvel.

- Quem é que está a ligar-nos a uma hora destas?

- Não sei - respondo, já impaciente -, porque não consigo encontrar o telefone.

- Está no bolso do meu casaco, pendurado atrás da porta - informa o Jim. - Entregaste-mo na noite passada, para eu o guardar.

Tem razão. Quanto mais me aproximo do casaco, mais forte se torna o toque. Tiro o telemóvel do bolso dele e atendo.

- Estou!

- É a Alison?

É a Kirsty, a irmã do Jim. Parece preocupada. - O que é que se passa?

- Peço desculpa por ligar a meio da noite. Em condições normais, nunca o faria. Mas aconteceu uma desgraça.

Sinto o coração bater mais depressa: - O que foi?

- Foi o meu pai. Teve um ataque cardíaco. Morreu. Já estou a chorar quando ouço a última parte e o Jim, agora desperto, salta da cama para saber o que se passa. - Quem é? - pergunta.

Passo-lhe o telemóvel e abraço-o com quanta força tenho. Quando pousa o telefone, ele desata a chorar de uma maneira que parece não ir acabar nunca.

Sexta-feira, 22 de Março de 1996

É o dia do funeral e a casa dos meus pais está repleta de familiares de todo o género, desde tios e tias a namorados de primos em segundo grau, sem esquecer o quarto ex- marido da ex-cunhada do meu avô.

Uma senhora idosa aproxima-se de mim, abraça-me e beija-me na face. Não faço ideia de quem é. - Lamento muito a perda que sofreu - diz ela, com sotaque de Yorkshire.

- Obrigado - respondo.

- O seu pai era um homem encantador.

- Sim. Pois era.

Este tipo de conversa foi acontecendo ao longo de todo o dia. As pessoas aparecem a informar que, na última vez que me viram, eu ainda era bebé, ou que eu me tinha tornado um jovem excelente ou, no caso desta senhora, que faço justiça ao meu pai. Começa a descrever me, com grande pormenor, o parentesco por parte da minha mãe. Do que consigo depreender, é a mulher de um segundo primo da minha mãe. Segundo parece, vimo-nos uma vez quando eu tinha onze anos de idade e, noutra ocasião, pelo Natal, ela deu-me um comboio. Não me recordo de nada disto e nem sei como libertar-me desta conversa sem parecer mal-educado, quando a Alison aparece a meu lado.

- Peço perdão por vir interromper - desculpa-se perante a idosa senhora -, mas a mãe do Jim precisa de falar com ele, na cozinha.

- Oh, não tem importância - responde a senhora, ao mesmo tempo que a Alison me agarra a mão e me leva pelo corredor em direcção à porta da frente, deixando-me confuso.

- Pensei que disseste que a minha mãe estava na cozinha.

A Alison sorri. - Menti. Estava do outro lado da sala a observar a tua expressão de sofrimento e pensei que precisavas de ser salvo.

- Muito inteligente, Miss Smith - comento, a rir. - Fui salvo a tempo.

- Importas-te de vir até lá fora, para eu fumar um cigarro? - pergunta ela.

- Está bem. Por que não? - pergunto, ao abrir a porta da frente para me sentar no degrau, com a Alison encostada a mim. - Quando era miúdo, este era o lugar preferido para me sentar - informo, a vê-la acender o cigarro. - Era daqui que via o mundo girar.

A Alison dá uma grande passa e exala o fumo com um suspiro. Fica olhar para as pernas e, com ar ausente, tira um bocadinho de pêlo agarrado à saia.

- Estás a aguentar-te? - pergunta, enquanto procura mais pêlos do tecido.

- Estou bem. Ainda não consigo acreditar que isto aconteceu. Durante a manhã nunca deixei de pensar que, apenas com 25 anos, sou demasiado jovem para já não ter pai. Esta é uma situação que se julga reservada às pessoas na casa dos trinta ou dos quarenta, não aos jovens na casa dos vinte. Pessoas que ainda não deixaram de ser crianças.

A Alison tenta consolar-me: - Parece tão injusto. Odeio que isto te tenha acontecido!

- Sinto a falta dele, Al. Faz-me mesmo muita falta. Tenho estado a tentar recordar tudo aquilo que ele me disse, cada momento que passámos juntos. É como se pretendesse ver tudo repetido várias vezes, como quem vê um vídeo, mas não posso porque nunca repeti esses momentos as vezes suficientes enquanto ele foi vivo. Nunca me habituei a olhar para trás porque quem olha o passado é quem não tem futuro. E, só agora, quando ele já cá não está, me apercebo de que temos de pensar regularmente no passado. É preciso voltar atrás, rever as coisas, tentar percebê- las, pois elas poderão já não estar cá quando as quisermos.

11h31

O pessoal da agência funerária acaba de chegar para levar a família mais chegada até St. Mary, onde se realizam os serviços fúnebres, e nota-se grande azáfama. Foi decidido que a mamã, a minha irmã, a Alison e eu iremos no primeiro carro, com os outros parentes mais próximos nos segundo e terceiro carros. A Alison aceita a minha decisão com relutância. - Tens a certeza? - pergunta. - Não seria melhor que um parente mais próximo seguisse no primeiro carro, como uma das tuas tias, uma pessoa dessas? É que me sinto uma espécie de impostora ao ver-me ali. Não sou verdadeiramente da família, pois não? Arranjo uma boleia com um dos teus tios, ou com qualquer outra pessoa.

Recuso com Firmeza e abraço-a. - Não. Estás redondamente enganada. Tanto quanto sei, fazes parte da família. Não julgo que pudesse aguentar tudo isto sem ti. Tens estado presente em cada passo, sempre. Trataste de tudo, desde fazeres a minha mala até comprar os bilhetes de comboio. Fizeste tudo o que eu não poderia fazer. Foste tu quem viu o que era necessário fazer e que o fizeste. Tu compreendeste tudo. E isso é que é

importante, não é assim? É nestas alturas que se pode avaliar a justeza de uma decisão. É assim que se entra numa família.

Depois, sem dizer mais nada, tomo-lhe a mão e conduzo-a para fora, para onde a restante família nos espera. Um a um, entramos no carro da frente: primeiro a minha mãe, a seguir a minha irmã, depois eu e, por último, a Alison.

A minha família.

 

             QUARTA PARTE

             O PASSADO: 1997

             1997

             Sexta-feira, 17 de Janeiro de 1997

 

9h34

Finalmente, o Jim e eu vamos hoje mudar-nos e passar a viver juntos. Uns meses antes do Natal, deu-se uma vaga nos escritórios da Greene Lowe, em Blackfriars. A posição é mais elevada do que a anterior, passa a ter mais responsabilidades e também a ganhar mais dinheiro. Vamos mudar-nos para um apartamento no rés-do-chão de uma casa reconvertida, em Muswell Hill. Tem uma sala de estar, uma pequena cozinha e casa de banho. Não é brilhante, é demasiado cara mas julgamos que nos servirá durante algum tempo. A melhor coisa é ter alguma mobília, o que nos dispensa de ir comprar montes de trastes caros; só precisamos de algumas coisas, como uma mesa de pinho e quatro cadeiras. Comprámo-las em saldo, na Habitat, e tratou-se da nossa segunda compra a meias. Estou tremendamente excitada perante a possibilidade de ter a minha própria mesa e as minhas cadeiras, pois isso significa que posso convidar pessoas para jantar: podemos receber. Finalmente, estamos a libertar-nos da condição de semiestudantes. Sinto que podemos começar a ser um casal comum.

10h00

A Alison e eu, com boa parte dos nossos bens materiais na caixa de carga de uma furgoneta que aluguei para o Fim-de-semana, acabamos de entrar na nossa nova casa. Ao parar a furgoneta e depois de abrir a porta traseira, Fico a olhar os sacos de plástico preto, as malas e as caixas. É esquisito termos todos os nossos pertences, tudo o que nos distingue, assim empacotados. Se metade das coisas são propriedade da pessoa com quem decidimos partilhar a nossa vida, o caso torna-se ainda mais estranho.

Felizmente, o Nick e a Jane apareceram e, enquanto levamos as caixas, sacos e malas para o apartamento, estranho que a Alison tenha tão poucas coisas. Nunca foi pessoa de se preocupar muito com a posse de objectos. Possui o que é normal para uma rapariga: os livros de leitura obrigatória, as velas, as mantas ao estilo dos índios, almofadas, fotografias dos amigos e da família, um mau televisor a preto e branco, um velho leitor de vídeo com introdução da cassete por cima, uma sacada de produtos de beleza (que inclui milhões de frascos de champô e de amaciador, apesar de, na última vez em que reparei, ela ter apenas uma cabeça a necessitar de cuidados com estes dois produtos), e, como não podia deixar de ser, as roupas. É tudo. Coisas normais para uma rapariga. Coisas pequenas de raparigas. Não objectos grandes como os meus. Não tem as centenas de CD, as prateleiras para CD, a alta-fidelidade, o televisor portátil que não é um objecto de museu, o leitor e gravador de CD, as malas de roupas, de sapatos, de ténis, dezenas e dezenas de números atrasados de FiHM, The Econonist e Spiderman Monthly, uma figura de cartão, em tamanho natural, de Chewbacca, * diversos suplementos de jornais de domingo que podem ter artigos que um dia talvez volte a ler, a consola de jogos de vídeo, o suprimento alcoólico de emergência (quatro cartões de Carlsberg, uma garrafa de Jack Daniels, uma garrafa meio cheia de vodca Absolut Citrus) e mais coisas... muitas mais.

19h33

A nossa primeira noite no apartamento. Só eu, o Jim e a Disco. Uma pequena unidade familiar urbana. Vimos televisão, mandámos vir comida chinesa e bebemos seis garrafas de cerveja Becks. E, melhor do que tudo, quando a comida chinesa chegou sentámo-nos a comê-la na nossa nova mesa de cozinha.

- Sinto-me tão feliz neste momento - desabafo, ao empunhar os pauzinhos. - Está perfeito. Quando acabarmos de comer na nossa mesa comprada a meias, que tal retirarmo-nos para o nosso leito comprado a meias?

 

* Personagem de A Guerra das Estrelas. (NT)

 

O Jim sorri de orelha a orelha. - Parece-me uma excelente ideia, minha querida.

Sexta-feira, 14 de Fevereiro de 1997

7h31

Estou no átrio do prédio a ver o correio. Por entre o lixo habitual, há um sobrescrito que foi enviado do endereço dos meus pais. Como tenho quase a certeza do que é, abro-o com um misto de curiosidade e de culpa. Dentro do sobrescrito há um postal de cor bege com um pequeno coração dourado no centro. Na parte de dentro, lê-se: Feliz Dia de São Valentim, ainda sinto a tua falta, D. Sei que devia deitar o postal fora, mas não o faço. Fico com ele e com o sobrescrito e, depois de o Jim sair para o emprego, guardo tudo numa velha caixa de sapatos.

Quinta-feira, 13 de Março de 1997

6h43

Faz um mês que a Alison e eu começámos a viver juntos e tudo tem corrido às mil maravilhas. Dá a ideia de que passamos a maior parte do nosso tempo a rir e a comer coisas agradáveis. Os nossos amigos pensam que desaparecemos da face da Terra, pois deixámos de sair. Não se trata de não podermos. Não saímos, porque não nos apetece. Sentimo-nos um pouco como o Tom e a Barbara, da telenovela Good Life: totalmente auto-suFicientes em relação ao mundo exterior. Contudo, neste momento estou deitado na cama, junto da Alison, a ouvir o programa Today e a pensar em levantar-me quando, de súbito, sinto um cheiro completamente desconhecido... um cheiro que, pelo menos, nunca sentira com esta origem bem determinada.

- Foste tu? - pergunto à Alison, dando-Lhe uma ligeira cotovelada nas costelas.

- Fui eu o quê? - responde, claramente a fingir que dorme.

- És uma péssima mentirosa - insinuo, a farejar o ar de forma sub-reptícia. - Sei que não fui eu e a Disco não está aqui no quarto; quem é que poderia ter sido? - acrescento, a pôr lhe um braço à volta dos ombros e a adoptar um ar incrivelmente paternalista. - Não faz mal, como sabes. Podes fazer sair os gases. É autorizado.

- Estive a conter-me durante toda a noite - explica a Alison, deixando escapar um sorriso que tem nove partes de riso e uma parte de vergonha.

- Peço muita desculpa, Jim. Sou uma rapariga detestável, não sou?

- Porquê?

Faz uma cara de desgosto: - Por fazer uma coisa destas... ao pé de ti.

- Nem quero acreditar! - exclamo. - Tens razão. Estamos juntos há tanto tempo e é a primeira vez que te ouço dar um traque. Como é que não consegui ouvir antes? De vez em quando, toda a gente dá o seu traque. Até tu. Aonde é que tens andado a fazer isso?

Envergonhada, a Alison esconde a cara: - Quando estás em casa, faço-o de preferência na casa de banho, às vezes na entrada, ocasionalmente à porta da frente; em qualquer local de frequência comum, de forma a poder culpar qualquer outra pessoa.

- Estás maluca. Já sabias disso?

Diz que sim com a cabeça e dá-me um beijo.

Sexta-feira, 28 de Março de 1997

19h07

No princípio da noite, a Alison e eu estamos a ver televisão com a gata estendida entre nós.

- Sabes que ela se parece contigo? - indaga a Alison.

Quem?

- A Disco.

- Estás a dizer que me pareço com uma gata?

- Não é bem isso. Só digo que, a ter de se parecer com um de nós, ela parece-se contigo. Afinal, és o pai.

Olho para a gata, que está deitada de costas e boceja de boca toda aberta. - Acho que tens razão - observo. - Ela parece-se comigo.

Sexta-feira, 4 de Abril de 1997

3h45

- Estás acordado?

Na escuridão do quarto, volto-me para poder encarar a Alison, e depois para o despertador, colocado no chão, junto de mim.

Respiro fundo: - Não.

A Alison ri-se. - Não consigo dormir.

- Porquê?

- Algo que não me sai da cabeça.

- Não vais deixar me voltar a dormir antes de termos uma conversa, certo?

- Pois não.

- Vá lá, diz o que tens a dizer.

- Há três meses que passámos a viver oficialmente juntos - afirma a Alison com orgulho. - Só quero ter a certeza de que tudo está a correr bem.

- Só uma pergunta: sabes que horas são, não sabes?

- Sei.

- E, mesmo assim, continuas à espera de uma resposta para essa pergunta?

- Sim.

- Mesmo sabendo que ambos temos de ir trabalhar pela manhã?

- Claro.

- Óptimo. Não tenho reclamações. Na verdade é... pode viver-se contigo.

Ela ri-se. - Como? Sabes que mereço mais do que isso.

- Está bem. Então direi que não és má de todo.

Sei que me julgas um pouco transtornada; e pensas isso porque é verdade. Mas só pretendo que tudo corra bem entre nós - replica; depois de uma curta pausa, acrescenta: - Numa relação o que mais interessa é comunicar e é isso que estou a fazer: a comunicar.

- Obrigado pela informação. E agora, podemos ir dormir?

- Vamos - conclui com ar ensonado, ao beijar me no queixo. Cai no sono quase imediatamente mas, agora que estou acordado, fico a magicar sobre a doença que posso ter para fazer que os roncos, assobios e fungadelas da mulher que dorme a meu lado me pareçam sons mágicos.

Domingo, 25 de Maio de 1997

15h00

Estou ao telefone, a conversar com a Jane. O Jim está a ver televisão na sala e a Disco está em cima da cama, perto de mim, a rebolar de barriga para cima e a arranhar a colcha de vez em quando.

- Então, como é a vida em comum? - pergunta a minha amiga.

- Não tenho de que me queixar - proclamo. - Sinto que ele aprecia verdadeiramente a vida comigo.

- Penso em todo o tempo que temos estado juntos, passando por todas as fases, desde a fase do loucamente apaixonado para o estádio em que não se vive uma verdadeira relação, quando vivíamos em cidades diferentes e havia toda aquela pressão. Contudo, agora estamos mesmo a viver juntos e eu... Bem, o problema é...

- Qual?

- Sinto que é tudo demasiado perfeito.

- Como uma lua-de-mel?

- Exactamente. Sinto que nos comportamos da melhor maneira durante todo o tempo. Tenho a certeza de que não poderemos manter as coisas assim. Mais cedo ou mais tarde, a lua-de-mel tem de acabar.

Sábado, 5 de Julho de 1997

18h33

Estamos à espera de uns amigos que convidámos para a nossa primeira festa; devem chegar dentro de cerca de uma hora, mas, de momento, estou a ver, em vídeo, a série transmitida durante o fim-de-semana: Blind Date. Torço para que o concorrente número três ganhe, mas sei que a estudante da blusa brilhante vai escolher o número dois, pois conseguiu introduzir numa das suas respostas a informação de que é loura. De súbito, noto algo de anormal. Farejo o ar de forma sub- reptícia, apenas para confirmar se o pior dos meus pesadelos vai ou não tornar-se realidade.

Farejo. Farejo. Farejo. Farejo.

Tornou-se realidade.

Há um nítido cheiro a galinha à provençal" esturrada. Salto do sofá e passo pela gata que vem a fugir a toda a velocidade da cozinha. A divisão está cheia de fumo. Enfio as luvas Bem-vindo a Norwich" que a Alison me

comprou pelo Natal e abro a porta do forno. Sou saudado por uma massa fumegante e negra dentro de uma travessa de pyrex.

Matei a galinha à provençal.

Volto-me para ver a Alison, meio vestida, a olhar da porta. Dou uma nova vista de olhos à galinha à provençal.

A galinha está morta e, de momento, eu também estou.

- Peço muita desculpa - começo, mas ela não fica ali a ouvir as minhas explicações. Gira sobre os calcanhares e sai da cozinha.

18h36

Estou sentada na borda da cama, a pensar no que acaba de acontecer. De certa maneira, também me sinto responsável pela catástrofe que se abateu sobre o jantar. Deixei o destino da galinha à provençal nas mãos do Jim. Sabia que haveria de me arrepender. Eu sabia. Contudo, também não pretendo que a nossa nova vida sofra por eu o tratar como um idiota incapaz de seguir as mais simples instruções. E, de qualquer forma, preciso de um duche, de pentear-me e de maquilhar-me um pouco.

- Escuta, peço mil perdões - suplica o Jim, da porta do quarto.

- Varreu-se-me por completo da cabeça.

- A única coisa que tinhas a fazer era apagar a porra do fogão quando ouvisses o sinal - disparo, indignada. - Qualquer criança poderia fazer isso. Ou um macaco amestrado.

- Desculpa - insiste o Jim. Não consigo dizer-lhe nada.

- Lamento muito. Escuta. Vou resolver isto, meu amor. Continua a preparar-te e eu vou tratar de toda aquela trapalhada na cozinha. Quando chegarem, direi a todos que a culpa foi minha.

- Óptimo - contraponho, mas perco qualquer esperança num serão de conversas sofisticadas ao ouvir o Jim pegar no auscultador, marcar o número e dizer: - Gostaria de encomendar o Jantar do Jardim de Pequim", para seis pessoas.

Domingo, 6 de Julho de 1997

1h1

O Jim e eu estamos deitados na cama. Não nas nossas posições habituais que propiciam toques e carícias; em vez disso, estamos em silêncio, irritados um com o outro. Afinal, tudo acabou por correr bem. A comida era boa, os nossos amigos pareceram divertir-se e o Jim esteve ao seu melhor nível, interessante e conversador. A maioria das pessoas não consideraria o jantar um êxito. Não é o meu caso. Deitada na cama, ao pé do Jim, bem gostaria de não me ter referido ao forno da cozinha como a porra do fogão, Sinto que essa palavra, só por si, mudou tudo entre nós. Desde que passámos a viver juntos tenho tentado desesperadamente manter escondida essa parte de mim, imaginar que, de qualquer maneira, me teria visto livre dela.

Espera-se que estejamos loucamente apaixonados.

Espera-se que sejamos jovens e evoluídos, como o sabão em pó com poder de limpeza acrescentado.

Não se espera que gritemos palavrões um ao outro.

Bem gostaria de recuar no tempo e anular os convites aos nossos amigos, para o Jim poder incinerar quantos jantares quisesse. Assim, poderia estar deitada e sem preocupações. Poderia rir, mesmo perante o pior dos desastres. Porém, eu quebrei o encanto e agora penso ser inevitável que voltemos novamente a falar do assunto.

- Jim! - sussurro para o corpo deitado a meu lado. - Estás zangado comigo?

- Hum! - murmura, sem se comprometer.

- Então, estás mesmo zangado comigo. Bem, escuta... peço mil perdões.

- Não faz mal - responde em voz baixa. - Eu também peço desculpa.

- Amigos? - pergunto, a esfregar-lhe a barriga da perna com o meu pé.

- Pois - responde. - Continuamos amigos.

Sexta-feira, 22 de Agosto de 1997

8h01

Vamos para Norwich, eu e o Jim, passar o fim-de-semana e comemorar os meus 27 anos com os meus pais. Ligaram-lhe e disseram que queriam fazer-me uma surpresa, uma festa para a qual tinham convidado um exército de parentes afastados que eu já não vejo há muitos anos. Quando o Jim me deu a novidade, fiquei tão furiosa com ele, por ter prometido levar- me lá, que mal conseguia falar. Estou agora mais calma, mas só à superfície; nem quero crer que o Jim me fez perder meio dia de férias só para chegarmos a tempo.

- Ora bem! - exclamo para o Jim enquanto fecho a minha bolsa de viagem. - É melhor irmos andando se queremos chegar a casa dos meus pais antes da hora de almoço.

- Ainda não podemos seguir - contraria o Jim, a remexer a gaveta da minha mesa de cabeceira. - Não consigo encontrar o teu passaporte.

- Porque ele está numa gaveta da cozinha... - paro abruptamente e olho-o sem pestanejar. - Por que motivo andas à procura do meu passaporte?

- Porque não podes sair do país sem ele.

- Mas, se vamos para casa dos meus pais.

Jim abana a cabeça.

- Mas tu...

- Menti.

- Nesse caso, vamos exactamente para onde?

- Nova Iorque.

- Nova Iorque?

- Três dias em Nova Iorque, com partida esta tarde e regresso na noite de segunda-feira.

- E o emprego?

- Falei com a tua chefe e combinámos tudo.

- Calculei que havia qualquer coisa no ar. Tentei várias vezes marcar uma reunião com ela na segunda-feira, mas brindava-me com um sorriso enigmático e mudava de assunto.

- Trabalho meu - elucida o Jim, ao abrir um sobrescrito para me mostrar os bilhetes.

- Não temos dinheiro para isto - lamento.

- Pois não - admite -, mas precisamos de uma pausa e esta é a maneira de a fazermos.

- Mas não fiz as malas a pensar em Nova Iorque. Juntei as coisas para um fim-de-semana monótono em casa dos meus pais.

- Eu sei. Não sou uma pessoa com grande sentido prático, pois não? Ora bem, o táxi que nos vai levar a Heathrow estará aqui dentro de hora e meia; por isso, é conveniente que faças a mala de novo.

Por falar nisso. não me lembro de ter visto as minhas bermudas de ganga, e tu? Não as encontro em lado nenhum e lá pode estar calor.

- Não sei delas - respondo. - Há séculos que não as vejo. Não as terás perdido durante a mudança? De qualquer maneira, são umas coisas de aspecto horrível.

- Talvez - graceja o Jim. - Contudo, agradam-me.

Sábado, 23 de Agosto de 1997

10h23

O chão à volta da cama está cheio de pedaços de papéis que vieram a embrulhar as prendas de aniversário com que surpreendi a Alison: uns brincos de pérolas, uma agenda debruada a ouro e um par de livros que ela desejava O( Deus das Pequenas Coisas e O Regresso do Soldado). Agora estamos deitados na cama, de janelas abertas, a ouvir os sons de Nova Iorque.

- Até o tráfego tem um som diferente do de Londres - observa a Alison. Cala-se e olha para mim: - Foi uma observação mesmo estúpida, não foi?

- Não - respondo. - Foi uma observação bastante pertinente. Alison ri-se: - Aí está uma das grandes razões para estar contigo. Posso dizer coisas estúpidas e não me sentir estúpida.

15h03

O Jim e eu estamos a comer um almoço tardio no Dean and DeLuca, um restaurante perto do Rockefeller Center. Ficámos sentados perto da janela para observarmos as pessoas que passam. De vez em quando, os nossos olhares encontram-se e sorrimos, como se partilhássemos um segredo só nosso.

22h34

Sentimo-nos desfeitos. Uma noitada a saltitar pelos melhores bares e clubes nocturnos de Manhattan foi trocada por um serão de televisão americana, no quarto. De momento, porém, entregamo-nos à tarefa da escolher, na ementa do serviço de quartos do hotel, o que queremos para o pequeno- almoço.

- Sumo de laranja ou de toranja?

- Toranja.

- Chá ou café?

- Prefiro café.

- Flocos de cereais? Têm muesli, cornflakes e aveia.

- Não quero.

- Fruta?

- Vou limitar-me a coisas que exijam faca e garfo.

- Muito bem, quantos ovos?

- Dois.

- Como é que os queres?

- Têm de ser bem passados.

Não consigo reprimir o riso. - Sempre gostaste dos ovos bem passados. Muito bem, adiante. Salsichas de carne?

- São salsichas como as outras? - pergunta o Jim. Encolho os ombros e ele acrescenta: - Manda vir algumas.

- Bacon canadiano?

- Também quero um pouco. Na verdade, marca tudo o que vier a seguir. Adoro o pequeno-almoço.

- Muito bem - concordo, enquanto vou marcando tudo. Uma última pergunta acerca do pequeno-almoço: gostas de mim? As opções são: primeira, um pouco; segunda, bastante; terceira, a distância de ir à Lua e voltar.

O Jim olha para mim e sorri. - Escolho as três.

Domingo, 24 de Agosto de 1997

9h47

Encontramo-nos no topo do Empire State Building. A Alison está a observar Manhattan através dos binóculos que funcionam com moedas. Quanto a mim, entretenho-me a ler o guia de Nova Iorque.

- De acordo com o guia, o Empire State Building tem cento e três andares - esclareço.

- A sério? - pergunta, com ar vago.

- São 449 metros de altura, medidos entre o chão e a ponta da antena de televisão.

- Fascinante.

- O volume do edifício atinge os mil e cinquenta milhões de metros cúbicos.

- Espantoso.

- E foram precisos sete milhões de horas de trabalho para o construir.

- Esmagador.

Repreendo-a: - Agora estás a ser sarcástica. Devias mostrar te impressionada com os factos que estou a apontar.

- E estou. Mas, e quanto a um outro facto? Há uma rapariga a quem, para facilitar a discussão, vamos chamar Alison Smith.

- Um nome suposto.

- Pois bem, esta rapariga, a Alison Smith está, e sempre estará, apaixonada por ti. O que é que tem a dizer acerca disso, Mr. Owen?

- Interessante - respondo, a rir. - Mas se resolves mostrar-te doentiamente bonita, deixa que te aponte um outro facto. Há um tipo a quem, para facilitar a discussão, vamos chamar Jim Owen...

- Um nome suposto.

- Bem, este Jim Owen pensa que és a melhor coisa que apareceu desde a descoberta do pão às fatias. Que tal, quanto a factos?

- Brilhante - replica a Alison. - Uma rapariga nunca se cansa de ouvir factos desse género, sempre que tenham um certo significado.

16h35

Viemos visitar a Grand Central Station. Digo ao Jim que, na minha opinião, este deve ser o mais belo edifício do mundo. Ficamos de pé, a observar os jorros de luz que entram pelas janelas altas e pergunto-Lhe o motivo que leva as centenas de pessoas presentes a não estarem de olhos pregados no tecto, como nós, ao que ele responde: - Porque, quando tens de enfrentar a vida real quotidianamente, os aspectos práticos sobrepõem-se a estes. O mesmo se passa com o amor. Julgamo-lo garantido e, passado algum tempo, torna-se invisível.

Segunda-feira, 25 de Agosto de 1997

13h15

Encontramo-nos em Central Park, sentados num banco colocado em frente da entrada para o jardim zoológico. Já aqui estamos há cerca de uma hora, apenas a observar as pessoas, antes de regressarmos ao hotel para começarmos a fazer as malas.

- Pensas que alguma vez teremos filhos? - pergunto ao Jim, ao ver um casal que passa a empurrar um carrinho de bebé.

- Um... um dia - responde. - Quantos queres?

- Dois, um rapaz e uma rapariga. E tu?

Não me responde. Em vez disso quase parece encolher os ombros, como se estivesse perdido num mundo muito seu.

18h45

Ainda estamos no aeroporto JFK. Já devíamos ir com duas horas de viagem, mas o voo para Londres está atrasado devido a tempestades eléctricas. Nunca tinha visto uma tormenta igual. Espessos lençóis de água caem sem cessar e batem de encontro às grandes vidraças das janelas de onde se vê a pista de aterragem e, a espaços, vê- se um raio brilhante e ouve-se um enorme estalo seguido de um ribombar profundo. Jim está a leste de tudo isto. Está num dos quiosques de jornais, à procura de revistas de alta-fidelidade para ler durante a viagem. Observo-o a vasculhar as estantes e, de súbito, ao olhar para ele sinto uma sensação estranha. É quase como um daqueles momentos em que as pessoas falam, mas nos livros... Pareço aperceber-me de que, para além dele, não existe em todo o mundo outra pessoa com quem gostasse de estar. E sei que este é o momento em que tudo se ajusta nos seus lugares. Tenho um sorriso nos lábios quando me decido a caminhar em direcção a ele para lhe comunicar a novidade.

- Qual é a piada? - pergunta o Jim.

- Nada... bem, não é bem isso; na realidade... é tudo. Acabo de perceber que desejo... não, que necessito de casar contigo. Falo a sério. Amo-te. Desejo que vivamos juntos o resto das nossas vidas.

O Jim olha para mim e diz: - Para te ser franco, tenho andado a sentir quase o mesmo. Acho que devemos casar-nos.

- Casar parece-me uma boa ideia - respondo. - Embora não devamos fazer disso um bicho de sete cabeças. Não pretendo um grande casamento nem nada que dê nas vistas. Casamo-nos, simplesmente.

- Estás a sugerir que fujamos?

- Jim, somos demasiado velhos para fugir. Devemos apenas ir a qualquer sítio, dar o nó e deixarmos as explicações para quando o casamento for um facto consumado.

- Então, onde é que pretendes casar-te?

- Só consigo pensar num local. Na cidade onde tudo começou.

Terça-feira, 4 de Novembro de 1997

12h03

Hoje é o dia do casamento; eu e a Alison acabamos de chegar a Birmingham. Só teremos de estar na conservatória do Registo Civil dentro de duas horas. Por isso, tal como combinámos durante a viagem de comboio, apanhamos um táxi para Selly Oak e almoçamos no Varsity, que, para nosso desgosto, foi remodelado. A seguir, vamos a pé até à universidade e sentamo-nos num banco do lado de fora da biblioteca. À nossa esquerda temos o belo edifício, coberto de hera, da Faculdade de Letras, em frente fica a torre do relógio e a University Square, onde, no Verão, eu e os meus amigos nos sentávamos, a tentar perceber os manuais de Economia Quantitativa. Estar aqui traz-nos de volta todas estas memórias.

- Já percorremos um longo caminho - comenta a Alison, com ar pensativo.

Resolvo gracejar: - Que caminho? O que vem do centro da cidade até à universidade?

- Não, desde o nosso primeiro encontro na universidade até ao ponto onde estamos agora. Quero eu dizer que 1989 parece ter sido ontem. Consigo recordar-me do que pensava acerca do mundo, de como pensava que iria ser a minha vida, daquilo que, de início, senti a teu respeito. Todas estas memórias se encontram ainda bem frescas na minha cabeça. Custa a perceber que o tempo tenha passado tão depressa, não custa? Olha para nós. Estamos para aqui, anos mais tarde, tu um gestor, eu a trabalhar numa editora e ambos prestes a casarmo-nos - continua, só parando para acender um cigarro. - Se a estudante que tenho dentro de mim pudesse ver me agora, penso que ficaria satisfeita - nova pausa para dar uma passa.

- Ficaria um tanto desapontada por eu nunca ter iniciado o grande romance que pensava trazer dentro de mim, mas não ficaria menos impressionada por eu estar a trabalhar em livros. Quanto a relações, ficaria contente por eu ter encontrado o amor. Penso que, embora procurasse corajosamente encontrar a pessoa certa para ela, sempre pensou não vir a encontrá-la ou, se a encontrasse, a outra não perceberia nada. Penso que ficaria surpreendida por saber que ela encontrou a pessoa certa no Rapaz que se veste de maneira diferente, pois ela teria partido do princípio de que ele não era o seu género. E quanto a ti?

- Penso que o meu estudante interior ficaria um pouco desapontado. Julgo que ele tinha planos para toda a vida. Um montão de coisas que queria conseguir, sonhos que desejava prosseguir. Tenho a certeza de que não quereria acabar os seus dias na gestão.

- Oh, é realmente uma pena - zomba a Alison.

- É, em parte. Mas, por outro lado, acho que ficaria muito agradado com o salário que ganho.

- Pensaria que te vendeste?

- É um estudante. É claro que pensaria que me vendi. Penso que ficaria deveras chateado durante algum tempo... pelo menos até que eu lhe explicasse que ele nunca chegaria a ser uma estrela do rock. Penso que perceberia que fiz o melhor que pude com as aptidões de que ele dispunha.

- E quanto a mim? O que é que ele pensaria de, ao fim de quatro anos, ainda andares com a namorada do Damon?

- Ficaria surpreendido por o namoro ter durado tanto. Acho que poderia sentir-se algo amedrontado com a ideia de estar com a mesma pessoa durante todo esse tempo. Contudo, ao mesmo tempo poderia sentir-se aliviado, pois não penso que ele quisesse passar a vida sozinho.

- Pois, mas quanto a mim?

- O que pensaria ele de ti? Pensaria que sim, que serves.

- Só isso?

- Sim. Penso que analisaria a questão friamente.

- Mas o que é que ele pensaria realmente acerca de mim? - indaga a Alison, a sacudir a cinza do cigarro com todo o cuidado. - Naquelas alturas, à noite, em que está sozinho, a pensar na vida.

- Pensaria que tinha tido mais sorte do que a que merecia.

13h37

O Jim e eu encontramo-nos na sala de espera da conservatória do Registo Civil, a aguardar que chegue a nossa vez para nos casarmos. Pensámos que teria a sua graça vestirmo-nos de maneira especial para o casamento; por isso, voltámos ao hotel para mudarmos de roupa. Eu venho de calças de ganga, ténis e o casaco espesso de um fato de treino preto, fechado até ao pescoço. Como surpresa especial, ao entrarmos na conservatória ele mostra-me as peúgas: as mesmas meias de xadrez, até ao joelho, que usava na Noite dos Caloiros. Ao vê-las, não consigo reprimir o riso. Não sei onde poderão ter estado escondidas durante todos estes anos. Pensei que tinha deitado fora todas as peças de roupa esquisita que ele costumava usar.

- Não quero crer que estaremos casados dentro de menos de meia hora - confessa o Jim.

- Nem eu.

- Achas que vamos sentir alguma diferença depois do acto consumado?

- Acho que sim - admito com convicção. - Penso que vamos sentir a diferença. As pessoas têm de sentir-se diferentes depois de estarem casadas; a não ser assim, por que motivo continuariam a casar-se? Acho que já me sinto diferente.

O Jim ri-se. - Ainda nem decidimos o que vais fazer acerca do teu apelido. Vais continuar a ser Miss Smith ou apreciarás ser tratada por Mrs. Owen?

- Ainda não pensei nisso - admito. Pigarreio de forma teatral.

- Alison Elizabeth Owen, o que é que achas?

- Alison Owen não soa mal. Tenta um nome duplo.

- Hum! Não tenho a certeza se Alison Smith-Owen funciona,

e tu?

- Não me parece. Forçando um pouco, talvez Alison Owen-Smith, mas parece encher demasiado a boca. Sendo um homem dos anos 90, talvez devesse mudar o meu nome para Jim Smith.

Aqui reajo com firmeza: - Nem penses. Se deres um nome tão insípido, as pessoas ficarão logo a pensar que é um nome falso. Decido-me por Alison Owen. Afinal, já estou um pouco cansada da Alison Smith. Era uma rapariga encantadora, mas muito resmungona. Alison Owen, pelo contrário, é uma mulher muito mais simpática.

- Mr. Jim Owen e Miss Alison Smith? - chama uma mulher de meia-idade, de aspecto simpático, que veste um fato de casaco e calças.

Jim e eu levantamos a cabeça. - Presentes.

- Entram a seguir - explica a funcionária.

14h00

Encontramo-nos na sala onde vamos ser casados. É uma divisão pintada de cores claras, com longas cortinas de veludo de cada lado da janela que está à nossa frente. A sala está mobilada com cadeiras de plástico suficientes para sentar quarenta ou cinquenta pessoas, pelo menos. Parece um pouco vazia por só lá estarem três pessoas.

- Peço desculpa - explico à conservadora. - Não trouxemos testemunhas.

A conservadora sorri. - Não se preocupem. Não são os primeiros e tenho a certeza de que não serão os últimos. Vou já buscar as pessoas certas.

Sai e regressa, momentos depois, com um jovem que veste o uniforme de segurança e uma senhora idosa, bem vestida e de chapéu.

- Este é o Daniel, o nosso segurança - explica a conservadora. Numa ou noutra altura, todas as pessoas que aqui trabalham já serviram de testemunhas, mas o Daniel é novo nisto e julgo que vai apreciar a experiência.

A Alison e eu apertamos a mão do homem.

- Nunca Fiz isto - desculpa-se ele.

- Nem eu - replico.

- E esta senhora que se ofereceu - acrescenta a conservadora -, vai casar-se a seguir.

- Tratem-me por Marjorie - pede ao estender nos a mão.

- Obrigada pela ajuda - agradece a Alison. - Espero que o seu marido não se importe.

- Ele acha toda a situação muito cómica. Só por curiosidade, por que motivo não trouxeram testemunhas?

- Bem, é uma daquelas coisas - replica a Alison.

- Ora bem - começa a conservadora. - Agora que as testemunhas estão presentes, podemos começar.

Dá-me um ataque de tosse nervosa e a Alison olha para mim. Sei apenas que não consigo prosseguir com isto. Sinto, até nos ossos, que estamos a lavrar num enorme erro.

- Importa-se de aguardar um momento? - peço, dirigindo-me à conservadora. - Antes de irmos mais além, preciso de falar com a minha namorada.

Agarro na mão da Alison, trago-a até ao fundo da sala e respiro fundo:

- Sabes que te amo, não sabes?

- Pensaste voltar atrás, não é? - inquire a Alison. - Eu sabia que ia acontecer.

- De maneira nenhuma - sossego-a. - Só pretendo ter a certeza de que queres prosseguir com a cerimónia desta forma. Os teus pais não estão aqui. Nem os teus amigos. Só tu e eu, a conservadora e duas pessoas que nunca tínhamos visto.

- Para mim serve perfeitamente. Nunca pretendi um grande casamento. Antes de te encontrar, nem tinha a certeza de que queria casar me. Contudo, sei uma coisa: amo-te e casar contigo é provavelmente a melhor coisa que poderia fazer.

- Há algum problema? - pergunta a conservadora, que entretanto se deslocou para perto do sítio onde estamos.

- Não - respondo. - Só estávamos a acertar uns pormenores - explico, a olhar para a Alison e a sorrir. - Estamos prontos quando a senhora estiver.

Dito isto, voltamos para a parte da frente da sala, a conservadora faz o que tem a fazer, a Alison e eu respondemos Sim, nos momentos apropriados da cerimónia. E acabou-se. Estamos casados.

 

           QUINTA PARTE

           O PASSADO: 1998

           1998

           Domingo, 4 de Janeiro de 1998

 

12h23

Estamos no início de um novo ano e a família e os amigos acabaram por perdoar o pecado de nos termos casado em segredo. Na noite passada, fomos jantar a casa da minha amiga Shezadi, em Tufnell Park. Tivemos preguiça de chamar um táxi para regressar mos a casa mas, felizmente, os vizinhos do andar de cima têm a chave e concordaram em dar comida à Disco; assim, resolvemos passar lá a noite e dormimos no futon colocado na sala da frente. Hoje está um belo dia de sol. Aquele género de dia que põe toda a gente bem-disposta, de modo que proponho ao Jim uma caminhada até Camden, onde, segundo me disse a Shezadi na noite passada, há um pequeno café adorável, onde podemos tomar o pequeno-almoço.

Cá fora, vêem-se montes de pessoas a vadiar por ali e a conversar; enquanto caminhamos não deixo de reparar nas janelas de uns espantosos prédios de três pisos e tento imaginar como será a vida das pessoas que ali vivem. Nem consigo conceber a ideia de vir a viver com o Jim numa casa daquelas.

Ao aproximarmo-nos de Chalk Farm passamos pela montra de um agente de venda de propriedades. Está cheia de fotografias de apartamentos altos com soalhos de madeira, enormes janelas e mobílias de qualidade. Volto-me para o Jim e interrogo: - Se o dinheiro não fosse problema, qual era o apartamento que compravas?

Ele solta uma gargalhada: - Primeiro as senhoras. Aponto para um dúplex de construção recente, em Islington: O que é que me dizes deste?

- Demasiado pequeno - comenta. - Se esta nossa conversa é uma fantasia, temos de pensar em grande.

- Muito bem - concordo, enquanto analiso outros. - E este?

- Não tem espaço interior suficiente. Quase não há espaço para brincar com a Disco na sala de estar.

- Mas é enorme.

- Bem, pensa numa maior.

Volto a esquadrinhar a montra e, finalmente, encontro o apartamento dos meus sonhos, em Belsize Park. É tão caro que o preço nem é indicado nas características. - Encontrei o vencedor - proclamo, a apontar outro, mal podendo conter a alegria.

O Jim segue a direcção do meu dedo. - Bonito. Agora sim. É fantástico.

- Consegues imaginar uma coisa assim? Deve ser fantástico viver numa casa destas. Como é que será na realidade?

- Mais ou menos como as fotograFias mostram.

- Adorava que tivéssemos uma casa nossa - comento, soltando um suspiro e agarrando na mão do Jim. - Anda daí, está a fazer-se tarde para tomarmos o pequeno- almoço.

O Jim não se mexe. - Pois bem, vamos fazer isso mesmo.

- O quê?

- Comprar uma casa só para nós.

- Não temos dinheiro.

- Não temos dinheiro para esta - concorda, a apontar para o apartamento dos nossos sonhos -, mas podemos certamente comprar uma casa mais simples.

- Tens a certeza?

- É claro que tenho. Adoro a nossa casa mas parece-me que está a ficar pequena para nós, não achas? Allém do mais, há dias, quando vinha no metro a caminho de casa, o título da primeira página do Evening Standarddizia mais ou menos o seguinte: Os preços das casas vão bai xar, ou A bolha formada pelo custo da propriedade em Londres pode rebentar nos próximos quinze minutos", ou Se não comprar uma casa neste momento é porque nunca vai conseguir comprá-la e será eternamente inquilino" - acrescenta, sem conseguir conter o riso. - Devo admitir que, na minha cabeça, a ideia de alugar casa sempre foi considerada uma solução temporária. Parece-me ridículo pagar centenas de libras, em cada mês, por uma coisa que não é minha. Embora não me tivesse apercebido de que pensavas o mesmo. Julguei que poderias pensar que eu estava a tentar amarrar-te.

- Agora somos casados. Julgo ser chegada a altura em que temos de lançar raízes - respondo. - Isto é, temos de assentar. Acho que temos de o fazer - acrescento, a olhar uma vez mais aquele espantoso apartamento. - Imaginas como seria, se tivéssemos montes de dinheiro e pudéssemos comprar este?

- Seria fantástico - replica o Jim. Cala-se por momentos, antes de dizer: - E se...

- Se, o quê?

- E se fingíssemos que podíamos comprá-lo?

Sem me dar tempo para lhe responder, o Jim abre a porta da agên cia de venda de propriedades e entra por ali dentro.

12h45

A Alison e eu sentamo-nos na sala de espera. Na nossa frente estão três secretárias com tampo de vidro, cada uma com um telefone sem fios e um computador portátil. Atrás de cada uma senta-se um vendedor de óculos, fato escuro e um estranho e intrigante corte de cabelo. Cada um deles conversa com um casal sentado à sua frente. O do fundo do escritório faz lembrar um casal de advogados; o do meio, lembra um casal de cabeleireiros, enquanto os que estão mais próximos de nós dão a ideia de trabalharem em publicidade. Têm uma coisa em comum: todos parecem ganhar rios de dinheiro.

- Vamos sair daqui - sussurra a Alison. - Não pertencemos a este meio.

- É claro que pertencemos - replico, conFiante. - Deixa a conversa comigo.

Passados cinco minutos o casal que parece trabalhar em publicidade levanta-se e despede-se da agente de vendas. A mulher de cabelo escuro que estivera a atendê-los levanta os olhos dos papéis e dá de caras comigo. Tenho a impressão de que a conheço, a minha dúvida dura uma fracção de segundo, mas ela fica de olhos esbugalhados, o que me leva a ter a certeza.

- Não posso crer! - exclama, levando a mão ao peito. - Jim. Jim Owen!

Mal consigo acreditar no que vejo: - Tu não és a Anne, pois não? A agente acena que sim: - Anne Clarke.

Continua com o mesmo aspecto fantástico que tinha na universidade. Na verdade, está ainda melhor. Tudo nela é interessante e sofisticado.

- Como é que estás? - pergunta-me, levantando-se da secretária para me vir beijar na face.

- Óptimo, obrigado. E tu?

- Estou bem. Realmente bem. Há quanto tempo?

- Seis anos.

- Não pode ser.

- Mais mês, menos mês.

A Anne ri-se.

- Estás com um excelente aspecto - aprecio. - Fantástica.

- A sério? Obrigada.

- Anne - começo, voltando-me para a Alison -, apresento-te a minha mulher, a Alison. Alison, apresento-te a Anne Clarke... Fomos bastante amigos na universidade.

Toda a gente se ri e a conversa sofre uma ligeira interrupção.

- Então, o que é que te trás por cá? - indaga a Anne.

- Andamos à procura, queremos comprar uma casa - respondo, muito convicto.

- Não queremos nada - interrompe a Alison.

- É claro que queremos.

Confusa, a Anne olha para um e depois para o outro.

- Estamos verdadeiramente interessados no apartamento cuja fotografia está na montra, em Belsize Park.

A Anne consulta o computador portátil. - Estão a referir-se a este? - pergunta, voltando o ecrã para nós. - Uma propriedade encantadora. Há apenas umas semanas que está nos nossos catálogos. Encontra-se em condições de conservação impecáveis.

- Excelente! - exclamo. - É disso que andamos à procura, percebes? - continuo. Faço uma pequena pausa, antes de acrescentar: - Com as minhas frequentes deslocações. É que faço parte de um grupo musical. Acabamos de assinar um contrato com uma editora de discos americana.

- Que excitante! É a mesma banda em que tocavas quando andávamos na universidade?

- Não. Esta chama-se... - faço uma pausa, à procura do nome mais adequado para uma banda que consigo encontrar -. Sidewalking.

- E tu és o vocalista?

Aceno que sim.

- Nem quero acreditar que és famoso.

- Bem, não diria tanto...

- Estou tão impressionada - acrescenta a Anne. - E pensar que te conheci na universidade. Deves andar tão entusiasmado com tudo o que tem vindo a acontecer-te!

- Pois estamos - intervém a Alison, com voz dura. - Andamos na Lua.

- Ora bem - anuncia a Anne. - Tenho boas notícias para vocês. As chaves estão aqui, no escritório, de modo que podemos ir visitar a propriedade agora mesmo.

- Não temos nada de importante para fazer. É uma óptima ideia.

- Excelente. Têm transporte?

- Não trouxemos o carro.

- Não faz mal, vamos no meu. Bom, deixem-me tomar nota dos vossos elementos para os inserir no computador. Depois, só preciso de uns momentos para ir buscar o casaco e podemos seguir. O meu carro está arrumado nas traseiras; encontramo-nos lá fora dentro de minutos.

A Anne toma nota dos elementos fingidos e desaparece por uma porta que ostenta a indicação EEscritório", deixando a Alison a olhar para mim, sem querer acreditar no que via.

- Sabes quem ela é?

- Segundo me parece, deve ser um pouco mais do que uma amiga da universidade.

- Significou vários meses de torturas e mágoas.

- Tudo muito bonito, mas não és uma estrela milionária do rock, és um contabilista. Tudo o que ela tem de fazer é procurar o conjunto musical na Internet, ficará de imediato a saber que estás a mentir.

- Não vai fazer nada disso. Crê em mim. Ela quer acreditar.

- Acreditar o quê?

- Que um tipo dos seus dias da universidade, que costumava cortejá-la, agora faz parte de um famoso conjunto musical. Vai alimentar se desta história durante muitos anos.

E, dito isto, levantamo-nos e saímos rapidamente.

Domingo, 11 de Janeiro de 1998

15h56

A Alison e eu estamos sentados à mesa da cozinha, entregues a uma profunda análise da nossa situação financeira para sabermos que possibilidades temos de pagar uma hipoteca. Por isso, estou rodeado de recibos de cartões de crédito, contas de fornecedores, extractos de contas bancárias e milhões de outros pedaços de papel. Do meu lado, a situação é boa. Do lado da Alison, contudo, as coisas não andam lá muito bem. Quanto ao emprego, está a correr Lhe bem; já conseguiu dois aumentos desde que entrou para a Cooper and Lawton, mas as suas capacidades de gestão do dinheiro deitam tudo a perder. A situação financeira da Alison é medonha.

- Não posso acreditar nisto - comento, ao estender a mão para o que resta de um pacote de donuts em miniatura, comprados no supermercado durante a expedição de ontem.

- No quê? - pergunta ela.

- No teu endividamento - continuo, a pegar num dos cinco bolos cobertos de açúcar que restam. Levo-o à boca e desaparece com três dentadas, o que me deixa a boca livre para resmungar com a Alison: - Quero dizer, sempre soube que eras um desastre com o dinheiro, mas não pensei que estivesses tão mal.

- Não se trata de um montão de dívidas - defende-se ela. - Trata-se de uma soma razoável.

- Alison, tu deves milhares de libras.

- Eu sei.

Olho para os donuts, pego num e é como se o inalasse. - De acordo com os extractos de conta, cinco dias antes de receberes o ordenado, costumas ter já umas centenas de libras de levantamentos adiantados.

- É quando tenho de pagar a minha metade da renda.

- Atingiste o limite em três dos teus quatro cartões de crédito e tens de pagar, todos os meses, uma enorme soma de juros. Quando é que Fizeste a última tentativa de pagares uma das tuas dívidas?

Instala-se um longo silêncio que aproveito para engolir mais dois donuts, um a seguir ao outro.

- Oh, Alison! - exclamo, em desespero, logo que acabo de mastigar. - não me digas que a resposta é nunca.

- Pensei que era para isso que serviam os cartões de crédito; para fazermos débitos com eles.

- Mas também atingiste os limites em dois cartões de fornecedores.

- Oferecem-nos nas lojas enquanto estás na fila para pagar. Não é injusto? Dão a impressão de que trazemos as coisas de graça.

- Contudo, a história não acaba aí. Ainda tens de pagar o teu empréstimo para os estudos... e como se não fosse ainda suficiente, pediste um empréstimo bancário de quatro mil libras.

- Mas isso foi para comprar o carro. Um carro é essencial.

- Alison, mas tu nem tens carro!

- Eu sei, tive o dinheiro à minha disposição na conta, durante várias semanas, e pouco a pouco parece ter desaparecido.

- Alison, o problema é que, qualquer que seja o ângulo de análise da situação, estás falida.

Fica assustada: - Terrível, não é? Há tanto tempo que tencionava pôr tudo em ordem. Estou arruinada? Estou em má situação?

- Na verdade, não me parece muito boa.

- Mas ainda poderemos conseguir o empréstimo para a casa, não podemos?

- Quando pedirmos o empréstimo vão ter em conta todos estes débitos, o que significa que nos emprestarão pouco dinheiro.

Alison esconde o rosto entre as mãos e eu aproveito a oportunidade para apanhar o último donut. - Não vão emprestar-nos nada de jeito e acabaremos a viver numa parte má de Londres, num daqueles bairros aonde os polícias não vão sem espingardas e carros blindados, com um fornecedor de droga de um lado e um bordel do outro; e tudo isso acontecerá por eu ter comprado uns pares de sapatos no Selfridges - lamenta-se e suspira. Não deixes que volte a aproximar me de uma loja, está bem? Se me vires a pegar no livro de cheques sem ser para pagar uma factura, mata- me.

Não posso deixar de ter pena dela e tento confortá-la: - Vamos resolver isto. Significa apenas que vamos ter de apertar um pouco mais o cinto e que eu terei de usar as minhas poupanças como garantia.

- Mas esse é o dinheiro com que ficaste depois da morte do teu pai...

- Não há mas - interrompo. - Vou fazê-lo, ponto Final. De uma maneira ou de outra, havemos de ter uma casa nossa.

A Alison mostra-me um sorriso amarelo, que eu retribuo no mesmo tom. Ambos olhamos o pacote vazio dos donuts. De súbito, sou assaltado por um sentimento de culpa. A Alison não comera nenhum, embora fosse ela quem pôs a embalagem no carrinho das compras. Tem todo o direito de se irritar comigo. Mas não o faz, pois não nos podemos irritar com quem come um pacote inteiro de donuts enquanto faz o que eu acabei de fazer. Não seria justo. Mas também não teria sido asneira nenhuma.

Sexta-feira, 6 de Fevereiro de 1998

20h07

Regressamos de metro, pela linha de Piccadilly, depois de termos ido ver a primeira casa. Vimos um apartamento num segundo andar num prédio remodelado de Green Lanes. Fiquei apaixonada por ele só de ver as características que nos mostraram na agência. Ambos concordámos que a casa tinha potencial. Porém, logo que saímos da estação do metro de Manor House, soube que o Jim iria detestar aquela

zona por ver um velhote a urinar contra um candeeiro. Como dispúnhamos de um orçamento muito limitado, a despeito

de estarmos a contar com as poupanças do Jim, foi-nos difícil iniciar a procura de casa para comprar. O problema adicional é decidirmos a zona de Londres em que gostaríamos de viver. Não sou esquisita, mas o Jim não admite ir para qualquer lado que não seja a parte norte da cidade. Tomada a decisão, concentrámo-nos na busca. Concordámos irmos sempre juntos ver as casas e ficou assente que ambos dispúnhamos do direito de veto. Até inventámos um sistema: eu vou visitar todos os agentes imobiliários que conseguir e marco as entrevistas, enquanto o Jim se concentra na parte financeira e na negociação do empréstimo junto de mediadores e de bancos. Parece que formamos uma verdadeira equipa.

- Continuo a pensar que estamos a lançar a rede num espaço demasiado vasto - opina o Jim. - Julgo que devíamos concentrar a procura na parte norte de Londres propriamente dita.

- O que é que pretendes dizer com parte norte de Londres propriamente dita?

Pensa por momentos. - Qualquer coisa na Linha do Norte, ou zonas adjacentes.

- Não estarás a inventar dificuldades? - pergunto, incrédula. Nunca te tinha visto ser tão picuinhas com qualquer outra coisa.

- Não sou picuinhas. Sou apenas cauteloso.

Tiro o mapa reduzido na zona central de Londres da minha agenda Filo, fax e leio alto os nomes dos lugares por onde passa a Linha do Norte e das zonas vizinhas. O Jim rejeita Camdem por ser demasiado turística e com preços exagerados, Kentish Town por ser não muito turística mas com preços nitidamente exagerados, Primrose Hill por preços tão exagerados que fazem lacrimejar, Tufnell Park por demasiado repugnante, Archway por demasiado perigosa, Highgate por ser ideal mas demasiado cara, Muswell Hill por ser absolutamente perfeita, Crouch End por ficar a milhões de anos-luz de qualquer estação do metropolitano, e, finalmente, cast Finchley por não ser má, mas na verdade não é Muswell Hill, pois não?

- Portanto, resumindo - concluo ao dobrar o mapa -, queres dizer que Muswell Hill é o sítio ideal, que Highgate serve se ganharmos a lotaria nas próximas semanas e que cast Finchley só por sacrifício.

O Jim solta uma gargalhada: - Parece obra de um picuinhas mas faz todo o sentido.

Sábado, 14 de Fevereiro de 1998

8h34

Estou a pensar em levantar-me quando ouço o carteiro a entregar o correio. Olho para o Jim, que está profundamente adormecido, deslizo sem ruído para fora da cama e vou à entrada buscar a correspondência. Hoje é dia de São Valentim e, embora saiba que não estou a proceder bem, alimento a curiosidade de saber se o Damon ainda vai escrever-me este ano ou se acabou por decidir esquecer-me. Logo que me aproximo da porta vejo um sobrescrito de dimensão média a emergir de uma pilha de facturas. Abro-o imediatamente. Encontro um postal de cartolina rígida com a palavra Amor, gravada em letras douradas. No interior do cartão lê-se: Espero que estejas feliz. Não deixo de pensar em ti, D.

Terça-feira, 17 de Fevereiro de 1998

16h00

Estou sentada no meu local de trabalho, a analisar uma montanha de propostas de compra de casas que chegou esta manhã, pro veniente de meia dúzia de agentes imobiliários. Até agora, já convenci o Jim a observar umas casas em cast Finchley, pois são bastante mais baratas do que as de Muswell Hill, mas ele encontra-lhes sempre um defeito qualquer: um telhado com infiltrações, vizinhos malucos, ruas barulhentas, tudo o que quiserem. Por sua vez, ele persuadiu-me a ver um apartamento em Highgate, nos limites de preço a que podemos chegar, uma casa minúscula só com um quarto, num prédio horroroso dos anos sessenta do século XX, que odiei. Como solução de compromisso, uns dias mais tarde, fomos ver algumas casas numa zona do Norte de Londres que pretende fazer parte de Highgate, embora não passe de uma versão mais emproada de Archway. Vamos ver alguns apartamentos interessantes mas o Jim rejeita-os todos. Também estudamos umas possibilidades em Muswell Hill. São caras mas, pela cara do Jim, consigo perceber que aquele é o local onde ele deseja realmente morar.

Sábado, 7 de Março de 1998

12h47

Acabamos de ver uma casa com jardim, em Broadway. Pertence a um casal australiano. A vida correu-lhes muito bem, mas vão regressar à Austrália e informam-nos de que pretendem uma decisão rápida sobre a compra. Deixam alcatifas, cortinas e até o fogão, além de quererem vender-nos outras coisas a preços verdadeiramente baixos. Acho a solução perfeita. É como a resposta a uma oração. Tenho uma impressão na boca do estômago, sinto que esta é a solução ideal, embora não faça ideia daquilo que o Jim pensa, pois ele afivela a máscara de zangado para manter os agentes imobiliários na ordem.

- O que é que achas? - pergunto quando o agente não nos pode

ouvir.

- E tu? O que é que pensas? - responde.

- Não podes responder com outras perguntas. Jim solta uma gargalhada: - Acabo de o fazer.

Decido esconder o meu entusiasmo para o caso de o Jim pretender assumir o papel de advogado do diabo, o que ele adora fazer e me faz saltar a tampa. - Bem... acho que tem possibilidades - começo, com ar céptico. - Como é óbvio, precisa de melhorias e não reparei bem nas dimensões do segundo quarto...

- Estás a brincar? - pergunta o Jim. - A casa é perfeita. Adoro-a. Dois quartos. Decorada com gosto. Uma cozinha enorme. E um jardim onde a Disco pode brincar. Não é possível melhorias. Não vais exercer o teu direito de veto, pois não?

Recorro aos meus ardis: - Ainda não sei. Talvez não... - mas a minha cara desmente o que digo. - Não consigo continuar a fingir, meu amor. Adoro a casa. Gosto mais dela do que de todas as outras que vimos. Acho que devíamos aceitar de imediato o preço que pedem.

- De imediato?

É sábado. Pensa na quantidade de casais que estão na lista para a ver.

- Mas, o preço total? Somos compradores pela primeira vez, não temos nada para vender. Podemos utilizar isso como meio de pressão para conseguirmos um preço mais baixo.

- Jim, não quero saber de meios de pressão, só pretendo que Fiquemos com este apartamento. Até já estou a ver-nos lá dentro. Não acontece contigo? Este deve ser o nosso lar. A casa onde poderemos ter o nosso primeiro filho. A casa que nos pode proporcionar as melhores recordações da nossa vida.

O Jim ri-se. - Ora bem, não se pode argumentar contra o destino, pois não? Vamos fazer a oferta agora mesmo - decide. Pega no telemóvel e contacta o agente imobiliário. Estou tão nervosa que tenho de me afastar um pouco.

- O que é que disseram? - pergunto ansiosamente, logo que me apercebo do fim da conversa.

- Disseram que nos telefonam no final do dia.

16h56

Estamos na WHSmith, na Broadway, a procurar um cartão de aniversário para o Nick, três semanas depois de ele ter feito anos, quando nos apercebemos de que o telemóvel do Jim está a tocar dentro do bolso das calças de ganga. Ele pega no aparelho e ambos ficamos a olhar para o mostrador, até o Jim ter o bom senso de atender. Uma vez mais tenho de me afastar para manter a compostura, de modo que me deixo Ficar no sector das revistas, de onde posso observar tudo em relativa segurança. Embora seja uma constatação algo fútil, tenho a impressão de que o Jim está outra vez de mau humor. A conversa parece nunca mais acabar e não tenho maneira de saber se as notícias são boas ou más. Passados uns minutos, o Jim termina a conversa e eu aproximo-me. O ar carrancudo desapareceu. O seu lugar foi ocupado pelo sorriso mais aberto e mais alegre que lhe vejo desde há muito tempo.

- Boas notícias - anuncia. - Aceitaram a proposta. Vou contactar o nosso solicitador para tratar dos pormenores, pois uma das condições é a necessidade de os contratos serem assinados dentro de seis semanas.

Ainda não ultrapassei totalmente a minha incredulidade. - Achas que vai mesmo acontecer?

- Parece que sim.

E ali mesmo, no meio da loja WHSmith, perto de um mostruário com a revista Good Housekeeping, beijamo-nos.

Segunda-feira, 6 de Abril de 1998

13h34

Vim ao departamento de mobiliário da John Lewis, em Oxford Street, e comprei um sofá de cor creme. Durante as últimas semanas, passei as minhas horas de almoço a visitar lojas de mobílias na parte central de Londres, tenho a impressão de as ter visitado todas, à procura do sofá perfeito (em matéria de cor, tonalidade, dimensões e tecidos) que me parecesse feito de propósito para a sala de estar da nossa nova casa. A minha excitação acerca da casa está a aumentar de uma forma que não me permite pensar em nada que não sejam revistas de decoração e programas sobre interiores de casas transmitidos pela televisão. Estou obcecada, mas é uma obsessão que me deixa feliz.

Sexta-feira, 24 de Abril de 1998

13h31

Ontem, à tarde, o Jim e eu fomos ao escritório do solicitador para assinarmos os contratos. Esta tarde, está combinado um encontro com o casal que nos vende a casa. Vou a caminho do almoço num snack- bar quando encontro uma pequena tipografia. Não consigo resistir. Decido, logo ali, encomendar cinquenta cartões a participar a mudança de residência. Dizem que posso vir buscá-los durante a tarde de amanhã. Quando regresso do almoço, noto que tenho uma mensagem do Jim. Ligo-lhe imediatamente.

- Telefonaram da agência imobiliária - informa ele.

Noto qualquer coisa na voz dele. Percebo que há problemas. - I O que é que pretendem?

- Retiraram a casa do mercado.

- Quem?

- O casal a quem íamos comprá-la. - Não compreendo. - Perdemos a casa. Dizem que mudaram de ideias e já não vão viver para a Austrália.

Não quero acreditar no que estou a ouvir. - Devíamos telefonar- lhes - sugiro, quase a chorar. - Explicar-lhes que não podem fazer isto. Que não podem tratar assim as pessoas. Talvez eles percebam e voltem atrás.

- A casa é deles. Podem fazer o que Lhes apetecer.

- E todo aquele dinheiro que já gastámos?

- É dinheiro perdido.

- Mas. eu até mandei fazer cartões a participar o novo endereço. Eles têm de nos deixar comprar a casa.

- Compreendo, meu amor. Mas não há nada que possamos fazer.

14h02

É estranho, mas o certo é que eu não estava preparada para a notícia que me atingiu. Comecei a chorar logo que pousei o auscultador, depois de falar com o Jim. Estou inconsolável. Eu e o Jim a tentarmos preparar o futuro e o presente nem sequer nos deixa levantar a cabeça. Na verdade, não me lembro de me ter sentido tão deprimida em toda a minha vida. Os colegas do emprego não param de me dizer que casas há muitas, que tudo isto faz parte da vida, mas eu não consigo ver as coisas assim. Jim é o único que consegue compreender. Penso eu. Ele é o único que sabe quanto isto custa.

Sábado, 9 de Maio de 1998

9h07

- Penso que eu e o Jim nos aproximámos um pouco mais - admito, ao falar ao telefone com a Jane. - Que nos aproximámos mais do que nunca. Parece que somos só os dois contra o mundo.

Ela pergunta: - E agora? Vais fazer o quê?

- Concordámos em interromper as buscas por algum tempo. Penso que nenhum de nós tem cabeça para continuar. O fracasso do último negócio deixou-nos um pouco abalados financeiramente. Todo o processo foi muito desmoralizante. Uma das consequências, como não pode deixar de ser, é sentirmos que estamos amarrados a esta casa. Pormenores que conseguíamos ignorar, como a infiltração na cozinha, ou a porta da frente que só se abre com a aplicação da força bruta, ou os tipos do andar de cima que deixam as bicicletas de montanha no átrio comum, agora deprimem-nos. Pior ainda: descobriu-se que o casal estava a mentir acerca da mudança para a Austrália. O Jim descobriu que a casa voltou a ser posta à venda na semana passada, numa imobiliária diferente, só que agora pedem mais uns milhares de libras por ela. Foi tudo uma questão de avareza. Quando o Jim me contou isto, limitei-me a dizer-lhe: - Para quê preocupar-nos? Tudo parece estar contra nós.

- E ele, respondeu o quê?

- Nada. Abriu os braços para mim e abraçou-me.

Sexta-feira, 22 de Maio de 1998

6h37

A depressão provocada pela perda da casa já pertence ao passado. Conseguimos ultrapassar a situação. De facto, agora parece-nos que todo o episódio concorreu para nos unir ainda mais. Juntos um do outro, a felicidade que eu e o Jim sentimos quase parece ridícula. Passamos o tempo a brincar e a rir; nem a própria casa consegue pôr-nos tristes. Um entendimento perfeito. Hoje, o Jim tem uma reunião em Leeds, motivo por que teve de levantar-se mais cedo. E eu levantei-me cedo porque nesta manhã acordei com o desejo de ser uma esposa perfeita. Fiz-lhe o pequeno-almoço enquanto ele se preparava, embora tivesse o direito de ficar na cama durante mais uma hora, pelo menos. Julgo que o amor nos obriga aos gestos mais extraordinários.

- Muito bem - começa o Jim, enquanto veste o casaco. - É melhor ir andando, se não quero perder o comboio.

Caminha para a entrada e eu vou atrás dele, em camisa de dormir e a bocejar. - Não faço ideia do tempo que vou estar em Leeds; por isso, não te preocupes com o jantar para mim. É provável que jantemos por lá. Até logo - despede-se, dando-me um beijo.

Quando se afasta de mim noto vestígios de creme de barbear no queixo dele. Humedeço um dedo e, com um só movimento certeiro, limpo-os. - Creme de barbear - explico.

- Obrigado. Se não tivesses reparado nele, ficaria aí durante todo o dia.

- Ora bem, não podemos correr o risco de dares nas vistas, pois não?

- Pois não, não podemos. Até logo à noite, meu amor - despede-se, beijando-me de novo; pega na mala e sai. De súbito, ao fechar a porta, apercebo-me do que tenho para fazer, das tarefas que considero serem da minha responsabilidade: lavar umas peças no lavatório, toda a roupa que está no quarto vago a aguardar ser passada a ferro, na caixa da gata que precisa de ser despejada e, durante uns segundos, penso com os meus botões: Desde quando é que me tornei uma mulher assim?"

Segunda-feira, 1 de Junho de 1998

7h05

Acabo de tomar duche e olho o espelho parcialmente embaciado que tenho à minha frente. Estou assim há mais ou menos dez minutos e, a cada segundo que passa, sinto-me mais e mais deprimido.

Ouço a voz abafada da Alison a perguntar: - O que é que estás aí a fazer? Preciso de usar a sanita.

Abro a porta para ela entrar.

- Já acabaste o que estavas a fazer?

- Vou fazer-te uma pergunta - respondo, voltando ao espelho -, e quero que me digas a verdade. Não doures a pílula. E não te preocupes com os meus sentimentos. Diz-me apenas a verdade, combinado?

A Alison observa-me com uma mistura de zombaria e curiosidade: Está combinado.

- Estás preparada para a pergunta? Então, responde: estou a ficar careca?

Baixo a cabeça para ela poder examinar-me melhor o couro cabeludo.

- Está óptimo - responde a Alison, passados momentos. - É uma preocupação sem sentido.

Torno a olhar para o espelho. - Tens a certeza?

Baixo a cabeça e ela volta a olhar. - A certeza absoluta.

- De certeza que não estás a dizer isso só para eu me sentir melhor? Ela mantém-se firme: - De certeza.

Aceito, mas consulto de novo o espelho, olho a cabeça dos ângulos mais esquisitos que me permitam uma melhor visão do couro cabeludo.

- Estou a perder cabelo, não estou?

- Não. O cabelo está óptimo.

- Não te retraias, podes dizer me sem rodeios.

- Não há qualquer problema com o teu cabelo. Está óptimo. Fantástico.

- Mas, Al, neste sítio vê-se o couro cabeludo. Não há dúvida de que está a ficar mais ralo.

Alison faz nova inspecção. - Talvez tenham caído uns quantos cabelos nesse sítio que estás a apontar, mas é tudo - afirma, antes de me examinar a parte de trás da cabeça. - Tens montes de cabelo aqui. Montes!

- Mas estão no cachaço, num sítio onde não posso vê-los. O que me preocupa é esta zona aqui... - lamento-me, a apontar a coroa -... a parte que reflecte a luz. Escuta, admite isso, em nome da minha paz de espírito, de modo a que possa conformar-me com a perda da minha juventude. Estou a perder cabelo, não estou?

Alison acena que sim: - Lamento dizer- te que sim.

- É grave?

Ela baixa a tampa da sanita. - Senta-te aqui para poder fazer-te um diagnóstico mais completo.

Descoroçoado, faço como ela diz e fico à espera do veredicto. - Que te parece? - interrogo.

- Bastante mau - responde. -Algumas perdas na testa. Na coroa está mais ralo. No conjunto, não parece lá muito bem. Não restam dúvidas sobre isso, estás a ficar careca - conclui. Após uma pausa, ainda acrescenta: - A calvície atrai as mulheres. Pensa nisso. O Bruce Willis está careca e continua a ser uma das maiores vedetas de Hollywood e a Jane gosta realmente dele... - aqui começa a rir-se -... e o Homer Simpson da série Os Simpsons é calvo e a Marge adora-o, tal como eu te adoro.

Inclina-se para diante e beija-me a coroa e, embora deteste admiti-lo porque estava decidido a lamentar-me por causa da situação, em menos de cinco minutos ela fez que me sentisse bastante melhor e aceitasse a ideia de me despedir da cabeleira.

Domingo, 21 de Junho de 1998

22h30

O Jim e eu estamos na cama, a ler, o que é agradável, por nos sentirmos aconchegados, mas pode tornar-se extremamente monótono quando um casal não pratica sexo. O Jim está a meio do último número da revista Thbat Car? porque lhe prometeram um carro da empresa, enquanto eu leio a Cosmopolitan.

- Jim?

- O que é?

- Achas que fazemos sexo suficiente, agora que somos casados?

- Perdão?

- Perguntei se achas que fazemos sexo sufìiciente, agora que somos casados. É que estou a ler um artigo e, de acordo com este quadro - e ponho-Lhe a revista à frente dos olhos -, estamos abaixo da média para duas pessoas casadas.

- Não temos de nos preocupar.

- Bom, isto poderá parecer uma paranóia, mas trata-se de uma média, percebes?

Ele acena que sim e eu continuo: - Ora bem, isso significa que há por aí pessoas que andam abaixo da média nacional de actos sexuais. E que há pessoas que têm mais do que seria justo.

- É verdade.

- Nesse caso, há por aí pessoas casadas que praticam sexo mais vezes do que nós.

- E então?

- Não te preocupa saberes quem são? Quem são essas pessoas casadas que praticam sexo mais vezes do que nós?

- Contudo, não é justo que elas tenham mais do que a conta, pois não? E não é o facto de essas pessoas estarem acima da média que nos obriga a não praticarmos sexo mais vezes. Na verdade, é exactamente o contrário. Significa que podemos praticar menos, não que essa seja uma situação desejável - acrescenta, à pressa. - No entanto, praticam mais, o que significa que há mais no pote, digamos, para ser partilhado pelos restantes casais.

- Não quero o sexo de outra pessoa qualquer - contraponho, quase ofendida. - Isso é horrível. A vida sexual de uma pessoa totalmente estranha a influenciar a nossa própria estatística. Não! exclamo, a fechar a revista com força. - Se vou fazer sexo, desejo que, pelo menos, seja da nossa quota-parte.

- Escuta, Alison, não achas tudo isto um pouco ridículo? A este ritmo arriscas-te a provocar um ataque cardíaco a ti mesma.

- A este ritmo? Qual ritmo? Quando é que foi a última vez que o fizemos?

- No último fIm-de-semana.

- Nada disso. Foi no fim-de-semana anterior.

- Mas eu estive a trabalhar.

- E eu também tive muito que fazer, mas o trabalho não serve de desculpa. Não te preocupa o facto de não sermos normais?

O Jim encara-me com um ar de surpresa. - Óptimo. Vamos a

isso.

Sábado, 27 de Junho de 1998

9h37

Estou na cama, a ver televisão para os mais pequenos no aparelho portátil, ao mesmo tempo que tento encontrar motivação para me levantar, quando vejo a Alison regressar ao quarto, depois de uma viagem à casa de banho.

- Penso que sou capaz de estar grávida - anuncia.

Só de ouvir aquelas palavras sinto um aperto nos músculos do estômago e levanto-me de um salto. - Pensas que talvez estejas o quê?

- Grávida.

- Estás atrasada?

- Não. Só deverá chegar dentro de dois dias.

- Então, esqueceste-te de tomar a pílula?

- Não, nunca me esqueço.

- Nesse caso, o que é que te leva a pensar que podes estar grávida?

- Não sei. É apenas uma sensação.

- Uma sensação?

- Bem, tenho mesmo uma sensação. Não sei de onde vem, mas está cá, e não tem nada que ver com amor ou dinheiro. É um pesadelo. É como se estivesse possessa.

Olho para a barriga da Alison, à procura de qualquer diferença. - Vais ter de deixar de fumar, não é assim?

- Se estiver grávida.

- Mas acabas de me dizer que pensas que estás.

- Disse que poderia estar, o que não é bem a mesma coisa.

- No entanto, se pensas que estás, não deverias deixar de fumar, atendendo a que pode ser verdade?

- E se não estiver?

- Terás deixado de fumar.

A Alison não me responde. Limita-se a suspirar, pega no robe e sai do quarto.

Domingo, 28 de Junho de 1998

6h06

Acabo de acordar e estou a fazer todas as tentativas para voltar a adormecer, mas apercebo-me de que o Jim também está acordado, tal como a Disco, deitada aos pés da cama.

- Já chegou? - pergunta o Jim.

- O quê?

- O teu... tu sabes.

- Não.

- Oh!

15h30

O Jim e eu viemos almoçar com alguns dos meus colegas do emprego. Acabo de regressar de uma excursão à casa de banho, para inspeccionar a maquilhagem, quando ela me sussurra qualquer coisa ao ouvido.

- Perdão?

Sussurra de novo.

- Jim, não faço ideia do que estás a dizer. Fala como deve ser. Ele tosse e, de súbito, parece alheado. - Estava a pensar se... bom... tu sabes... ainda não há sinais?

- Do meu...

- Sim, disso.

Desesperada, faço rolar as órbitas: - Não.

- Oh!

- Jim?

- Diz.

- Vais ficar a perguntar-me constantemente, até aparecer? Por momentos, fica a pensar. - Vou. Acho que sim. Há algum problema?

Respiro fundo. - Logo que tiver a certeza seja do que for serás tu o primeiro a saber.

18h01

Vou a Brighton, para assistir à conferência anual da empresa, e a Alison decide acompanhar me à estação.

- Bom, é melhor despedir-me.

Ela beija-me. - Até quarta-feira. Boa viagem.

Pego na bagagem e consigo dar três passos, antes de me voltar para trás:

- Antes de perguntares - responde a Alison -, a resposta é não. Não há qualquer sinal. Nada de nada. Não há qualquer sinal biológico a indicar que o meu período está para chegar.

Nada de nada?

- Convence-te de que te mato se continuas a massacrar-me com essa pergunta.

Mesmo assim, não consigo resistir: - Mas tens a certeza?

Quarta-feira, 1 de Julho de 1998

21h15

Arrastei o Nick, que se mudou para Londres há uns meses, para o bar com o pretexto de bebermos uns copos e conversarmos. Durante todo o serão mal toquei na minha caneca e mal abri a boca para falar.

- Bom, vamos lá a saber - começa o Nick. - Vais dizer-me qual é o problema? Tens estado toda a noite tão alegre como um cadáver. Brighton estava assim tão mal?

- Tenho uma coisa para te dizer - replico -, mas não podes esquecer-te de que a informação é secreta.

Fica a rir-se para mim. - Excelente, adoro segredos. A Al não está grávida, pois não?

- Como é que tu...

O Nick deixa escapar uma sonora gargalhada. Continua a rir-se, sem conseguir parar e quase a engasgar-se. - Foi apenas uma piada - consegue dizer, entre duas gargalhadas. - Não está. quero dizer. ou está? O que é que pretendes dizer com isso? - pergunta, ao ver me encolher de ombros.

- O problema são os pressentimentos das mulheres - explico. Só por terem um mecanismo biológico um pouco mais complicado do que o nosso, julgam-se em sintonia com a Lua, as marés e todos os elementos. Qual o motivo que leva as mulheres a pensar que têm poderes psíquicos latentes? Só por terem um útero? É ridículo e todas essas tretas dos horóscopos só servem para alimentar a mania. É que, sem qualquer prova, a Alison conseguiu convencer-se a si própria de que está grávida.

- Mas não existe qualquer prova?

- Tenho tentado convencer me de que não existe a mais insignificante das provas; contudo, perante a onda esmagadora de propaganda da Alison, perdi a coragem. É aquela forma que ela tem de continuar a insistir de que se trata apenas de uma sensação sua. Que diabo de prova é essa? A ciência não se baseia nas sensações de cada um. Baseia-se na posse de provas completas, cem por cento irrefutáveis.

- Bom, pelo que consigo lembrar-me da física do primeiro ciclo, uma boa parte da ciência começa por se basear numa sensação, que depois é comprovada por meios científicos.

- Não estás a ajudar-me nada, como sabes.

- Pois sei. Esquece isso. Pode ser que não esteja grávida.

- O problema é este: a Alison é eficiente na propagação da paranóia. Quanto mais fala do assunto mais preocupado fico, a pensar que os meus espermatozóides conseguem, de mãos nuas, derrotar a pílula...

- Caudas.

- O quê?

- Os espermatozóides não têm mãos, têm caudas. Se puderem derrotar a pílula só poderão fazê-lo com a cauda.

- Estás a adorar isto, não estás?

- Qual é o pior resultado possível? Se ela estiver grávida, vocês tornam-se pais e eu serei o padrinho.

- Não se trata apenas da questão do bebé, por mais importante que ele seja; é...

- É o quê?

Respiro fundo: - Não sei. Não consigo pensar como deve ser. Tenho andado a dormir mal e irrita-me falar destas tretas. Vamos beber outra ca neca, alinhas?

O Nick encolhe os ombros: - Por que não?

Sexta-feira, 3 de Julho de 1998

8h01

A Alison está no chuveiro e eu continuo na cama, a pensar se ela estará ou não grávida. Mal consegui dormir durante toda a semana e todas as conversas entre nós começam com as palavras: Antes de perguntares... Existe apenas um óbice, pois não estou totalmente convencido de, para já, pretender um filho. Embora não possa deixar de sentir que poderei estar a ser egoísta; se a Alison quer realmente um filho, porquê evitá-lo? Afinal, estamos casados, somos felizes... Um filho talvez fosse o melhor que nos poderia acontecer nesta altura... Salto da cama quando a ouço sair da casa de banho; a despeito de me sentir francamente indisposto, estou decidido a dar-lhe conta do meu novo estado de espírito.

- Bom dia, amor - saúdo, logo que ela entra no quarto, só com a camisa de dormir vestida.

- Podes pôr o teu medo de lado - anuncia. - Chegou.

- Aquilo?

Acena que sim.

- Tens a certeza, a cem por cento? - novo aceno. - Como é que te sentes?

- Aliviada... e talvez um pouco desapontada. A vida é um processo de construção e criação, não é?

- Suponho que sim - respondo.

- Por que motivo não pomos isso na lista?

Qual lista?

Os olhos dela brilham: - Na grande lista. Na lista da vida. Na longa lista de todas as coisas que pretendemos fazer com as nossas vidas. Temos andado bem, até agora. Estamos juntos, vamos bem nas profissões, estamos casados e, no caso de conseguirmos uma casa, teremos conseguido mais um objectivo.

Ouço de testa franzida e pergunto, casualmente: - Qual é a prioridade que lhes atribuis nessa tua lista?

Que me dizes a um bebé do milénio?

- Óptimo - respondo, embora pense que dois anos é um espaço de tempo demasiado curto. - Mas, por agora, vamos concentrar-nos no presente.

Sábado, 4 de Julho de 1998

11h09

A Alison e eu viemos ver o apartamento 4A, em Crescent Gardens. Trata-se de uma casa com jardim, a meio caminho entre Muswell Hill e Crouch End. A Alison descobriu-a na montra da agência imobiliária e obteve pormenores, embora saiba que a casa não fica propriamente junto do metropolitano. Persuadiu-me a vir ver o apartamento e agora que estou aqui, adoro-o. Pertence a uma senhora de idade avançada, que decidiu ir para um lar de idosos, e precisa de grandes obras: nova instalação eléctrica, casa de banho e cozinha feitas de novo, pinturas de alto a baixo, mas acho que tem, sem sombra de dúvida, possibilidades. É muito maior do que a maioria das casas que vimos da última vez e, sendo uma casa com jardim, existe a possibilidade de a aumentar, talvez de conseguir mais uma divisão. A meio da visita já vi que a Alison começa a ficar excitada, mas digo-lhe que, desta vez, não vamos embandeirar em arco e fazer uma oferta, sem que tenhamos a certeza de ver satisfeitas todas as nossas expectativas. Ela concorda e parece afivelar a sua máscara mais severa até vermos a cozinha pela segunda vez.

- Olha - sussurra-me, de maneira a que o agente de vendas não nos ouça.

- Olho para quê?

Está a apontar-me a porta que conduz ao jardim das traseiras. - Agora temos de a comprar - comenta. - Já tem uma gateira de segurança.

- E depois?

- Bom, já não teremos de instalar uma para a Disco, pois não?

- Queres comprar esta casa em vez de qualquer outra só por ter uma abertura para a gata?

- Não, mas tens de admitir que é um sinal positivo. É uma casa amiga dos gatos.

- Está bem - respondo. - Julgo que devemos fazer uma oferta. Porém, amiga dos gatos ou não, devemos estar preparados para receber uma negativa porque eles estão a pedir demasiado dinheiro pela casa.

A Alison ri-se. - Fantástico! - exclama, a imitar um mau sotaque americano. - Vamos a eles!

Quinta-feira, 9 de Julho de 1998

12h45

Estou sentada à secretária, a pensar no que vou escolher para o almoço, quando o telefone toca.

- Boa tarde. Publicidade.

- Olá, sou eu - responde o Jim. - Boas notícias.

- Telefonaram da agência imobiliária?

- Sim.

- E?

- E... os tipos...

- Os tipos, o quê? - pergunto, já exasperada.

Jim solta um grito de triunfo: - Aceitaram!

Quinta-feira, 6 de Agosto de 1998

12h45

Pediram a nossa comparência no escritório do solicitador para assinarmos os contratos. Agora que tudo terminou, ficamos uns momentos em frente do escritório da firma Gray and Hampton.

- Qual é a sensação de se ser devedor de centenas de milhares de libras? - pergunto.

- Acho que não é má - responde a Alison, a rir-se.

- Não estás arrependida?

Nega com a cabeça. - De maneira nenhuma!

Ao regressarmos a casa, passamos por uma loja de bebidas e compro uma garrafa de Moet et Chandon. Quando chegamos ao apartamento bebemos toda a garrafa, a acompanhar o nosso primeiro jantar de comida indiana de comprar e levar para casa, enquanto a Disco come um manjar especial para gatos, de galinha, o mais caro que havia no supermercado.

Sábado, 22 de Agosto de 1998

10h00

Estamos em casa. Na nossa nova casa. Quando, há meia hora, o agente imobiliário nos entregou a chave, pensei que a Alison ia começar a chorar. Contudo, agora sente-se deliciosamente feliz. Vagueia pelas divisões da nossa casa pobremente mobilada e guincha de prazer. - Estas paredes são nossas! - grita na cozinha, tão alto que a gata foge espavorida.

- Estes interruptores são nossos! - grita da entrada.

- Estás a ver esta horrível alcatifa castanha dos anos setenta? - pergunta, a apontar para o chão. - Pertence-nos!

- E quanto ao cheiro a senhoras idosas? - indago. - A quem é que pertence?

A Alison fareja o ar. - Tens razão. Não cheira apenas a senhoras idosas, cheira mesmo mal - admite. Sai da cozinha e vai cheirar o papel de parede da sala. - Acho que está impregnado nos tijolos. Penso que os próprios tijolos de que é feita a nossa casa estão impregnados do cheiro a senhoras idosas. Nunca conseguiremos ver-nos livres deste cheiro. Vai viver contigo, comigo e com a Disco durante o resto das nossas vidas.

Sexta-feira, 28 de Agosto de 1998

9h09

Estou no emprego, a pensar no apartamento. Durante o serão de ontem, eu e o Jim não falámos de outra coisa. Só agora, depois da mudança, é que conseguimos avaliar o trabalho que há a fazer para que a casa tenha um aspecto apenas decente. Não é tarefa para nós, teremos de contratar profissionais. A única coisa que nos detém é o dinheiro. Não o temos. No entanto, acabo de ter uma ideia que talvez nos resolva o problema.

10h03

- Jim, sou eu! - exclamo logo que ele levanta o auscultador.

- Olá, amor. O que é que se passa?

- Tenho estado a pensar no apartamento e talvez tenha encontrado a solução - alvitro, fazendo uma pausa para aumentar o efeito dramático. - Pedi ao meu pai que nos emprestasse o dinheiro.

- Fizeste o quê?

- Ele concordou e receberemos o cheque no final da semana.

- Gostaria que me tivesses consultado antes disso.

- Porquê?

- Para poderes ouvir-me dizer Não, Por mais simpático que o teu pai seja, não quero que nos empreste dinheiro. Ele pensará que não sou capaz de te tratar como deve ser.

As objecções do Jim obrigam-me a reflectir. Ainda não me tinha ocorrido que ele pretende olhar por mim de acordo com o antigo significado da frase. Fico a pensar que aquela foi talvez a coisa mais adorável que ele me disse até agora. Mas não Lhe digo nada disso, pois sei que ia embaraçá-lo e obrigá-lo a dizer qualquer coisa que estragasse o momento.

- Tens razão - admito. - Queres que lhe telefone a dizer para não enviar o cheque?

- Pensas que a minha reacção é um exagero?

- Não, tens razão. Sou uma mulher crescida. Não deveria precisar de pedir dinheiro emprestado aos meus pais.

O Jim solta uma gargalhada. - Pois, mas isso não evita que a alcatifa da sala esteja muito suja e pareça ser dos anos setenta do século XX...

nem o cheiro a senhoras idosas - admito.

e que se não substituirmos a instalação eléctrica rapidamente é provável que sejamos assados durante o sono - adianta o Jim.

e o Inverno está a chegar e as correntes de ar que as janelas deixam passar são tremendas... - acrescento eu.

e não dispomos de aquecimento central - ainda diz o Jim, a rir-se. - Penso que acabo de me convencer a pôr de lado todos os meus princípios.

Sábado, 12 de Setembro de 1998

11h01

Estou prestes a abrir a porta para pôr os sacos do lixo na rua, quando tocam à porta. Mas sei de quem se trata. É o mestre-de-obras que pensamos contratar. Não conseguimos que nos recomendassem mestres-de-obras; tivemos de procurar, pois, entre os nossos conhecidos, todos os que já recorreram aos serviços de mestres- de-obras nos afirmaram que não os recomendariam ao seu pior inimigo. Consegui seis nomes nas Páginas Amarelas para me apresentarem orçamentos, de modo a que eu os pudesse ver cara a cara. Dos seis que eu esperava, só se apresentou este.

- Olá - cumprimento ao abrir a porta a um tipo alto e barbudo, com olhos de furão.

- Sou Mr. Norman, da Firma Al Plus Building Construction Ltd. - apresenta-se, a falar com um forte sotaque de Essex e a estender-me a mão.

Apertamos as mãos e convido-o a entrar na sala onde está a Disco que, mal o vê, se esconde atrás do sofá. A Alison e eu mostramos a casa e dizemos o que pretendemos que ele faça: uma nova cozinha, deitar abaixo a parede entre as salas de estar e de jantar, refazer a camada de estuque dos dois quartos, uma nova casa de banho e afagar e polir todos os soalhos.

Nada disto parece impressioná-lo.

Ao conduzir Mr. Norman à porta, depois de termos acordado um primeiro orçamento para as obras, pergunto-lhe: - Então, quanto tempo pensa ser necessário para este trabalho?

Olha para o bloco de notas, como quem está a fazer um cálculo por alto. - Seis semanas - conclui.

- Seis semanas? - indago. - Tem a certeza?

- Absoluta. Não brincamos em serviço, Mr. Owen. Devemos terminar dentro de quatro semanas, só falei em seis por uma questão de segurança.

- Mas, aconteça o que acontecer, a casa fica pronta dentro de seis semanas?

- Pela saúde da minha mãe!

- Sei que já lhe Fiz a pergunta, mas tem a certeza, a cem por cento, de que todo o trabalho ficará pronto, de alto a baixo, em seis semanas? Acontece que temos muitos amigos que contrataram trabalhos de construção civil e, bom, as seis semanas deles acabaram por ser um pouco mais compridas.

- É provável que tenham utilizado cowboys - responde Mr. Norman. - Andam por aí muitos. E, para lhe falar francamente, são a vergonha da nossa profissão. Mas garanto-lhe, Mr. Owen, quando digo que uma obra leva seis semanas, ela fica pronta em seis semanas... ou em menos.

Eu e a Alison trocamos olhares enquanto ele guarda o bloco de notas. Encolho os ombros, a Alison acena que sim e o acordo está firmado.

Pigarreio, como quem vai anunciar algo de importante: - Mr. Norman, tenho o prazer de lhe anunciar que Ficou com a obra.

- Óptimo - responde ele. - Até segunda-feira, bem cedo.

Segunda-feira, 14 de Setembro de 1998

19h33

O Jim e eu acabamos de regressar dos empregos e ficamos espantados. A nossa casa parece ter sido bombardeada. Tiveram um bom começo, às sete horas desta manhã, quando dez homens chegaram a nossa casa em quatro camionetas e, segundo parece, o trabalho continuou a toda a velocidade, durante todo o dia, pois temos agora um grande contentor, cheio até ao cimo, em frente da casa. O Jim ficou boquiaberto. - Não posso crer que tenham feito tudo isto. Foi uma excelente ideia a de termos posto a Disco no hotel para gatos. O animal não suportaria isto.

Concordo. - Tens razão. Porém, vendo as coisas pelo lado positivo, a gata não tardará a voltar para casa. Não vejo maneira de precisarem de seis semanas para terminarem a obra. A este ritmo, vão acabá-la sem quase darmos por isso.

Terça-feira, 15 de Setembro de 1998

12h17

O telefone toca quando estou prestes a sair para um almoço com a autora de um novo livro de cozinha.

- Boa tarde, publicidade - anuncio.

- Posso falar com Mrs. Owen, por favor?

Percebo de imediato que estou a falar com Mr. Norman.

- Viva - cumprimento com alegria. - Sou a Alison Owen, Mr. Norman. Quer falar comigo porquê?

- Ah, sim, é só para a informar de que aconteceu um ligeiro aci dente.

- Que tipo de acidente?

- Um dos rapazes fez um furo num dos canos da casa de banho.

- O quê?

- Não é nada de preocupante, Mrs. Owen, apenas um certo prejuízo provocado pela água, mas esse não é o verdadeiro problema.

- Em primeiro lugar - replico -, quanto é que vale o prejuízo provocado pela água? Em segundo, qual é o verdadeiro problema?

- Vou ser honesto consigo. Na casa de banho a água atingiu uma altura de quase três centímetros mas apanhámo-la toda, embora os vizinhos da cave possam vir a pedir-lhe satisfações. Conseguimos es tancar a saída da água mas, antes de podermos continuar o nosso trabalho, precisamos de um canalizador.

- E quanto tempo é que isso leva?

- Bem, o problema é esse. O canalizador que trabalha para nós está comprometido durante as próximas três semanas, o que, como é evidente, se reflectirá negativamente no nosso restante trabalho; por isso, decidimos arrumar tudo e só voltaremos daqui a três semanas.

- Mas só trabalharam dois dias - grito, desesperada. - E disse que estaria tudo pronto dentro de seis semanas.

- Bem, o que fiz foi uma estimativa grosseira. Para lhe ser franco, Mrs. Owen, estamos a apontar para um pouco mais.

Segunda-feira, 2 de Novembro de 1998

23h00

Os colchões em que a Alison e eu estamos deitados são de momento o que temos de mais parecido com uma cama, pois tudo o resto está guardado. A Alison anda tão irritada por causa dos pedreiros que temo pela minha vida. A data que eles próprios estabeleceram, seis semanas para a conclusão das obras, há muito que se esgotou e agora, lentamente, estes

homens estão a conduzir nos à loucura. Não ouvem nada do que lhes dizemos, instalaram coisas de pernas para o ar e viradas ao contrário, têm feito o que lhes apetece. O pior é que, há semanas, a Alison e eu temos estado a viver, a dormir e a comer (e também morrer interiormente) numa divisão da casa, o quarto dos fundos. Durante a última semana e meia não existiu casa de banho, de modo que tivemos de tomar duche no ginásio. Há ainda mais tempo que estamos sem fogão, o que nos tem obrigado a comprar comida feita ou a prepará-la no microondas. Há quinze dias, comprei um fogão de campismo, mas depois de demasiados jantares de feijões em tostas, a Alison desata a gritar logo que vê o abre-latas. E como se tudo isto não fosse suficientemente mau, todos os trabalhos necessários já estão a custar o dobro do orçamento original. Há um mês voltámos à instituição Financeira onde temos a hipoteca e praticamente tivemos de lhes suplicar que nos emprestassem mais dinheiro. Durante algum tempo não tivemos a certeza de conseguirmos o financiamento.

- Vou dormir - digo para a Alison e desligo o candeeiro do meu lado. Não me responde. Mesmo assim, aproximo-me para lhe dar as boas-noites e um beijo, mas sou repelido.

Estou com os nervos à flor da pele: - O que é que se passa contigo?

- Nada - sibila Alison.

- Óptimo!

- Sinto que os pedreiros nos estão a tirar a vida - acrescenta, no mesmo tom.

- É certo que estão.

- Pois bem, tu és o único culpado de tudo o que tem acontecido.

- Sou o culpado?

- Deixas que eles te pisem. És um homem, devias enfrentá-los.

- Espera aí. O que é que aconteceu à igualdade entre os sexos? Como é que queres que lhes faça frente se sou um maricas como tu dizes?

- Só estou a dizer que devias enfrentá-los. Eu própria o faria mas eles nunca me tomam a sério. Não sei por que razão devo ser eu a fazer tudo.

- Mas tu não fazes seja o que for.

- Essa é boa - replica Alison. - Tu preferes estar aqui deitado comigo do que a discutir com os pedreiros.

- Deixa que te diga que estás enganada. Neste preciso momento, preferia estar na cama com um dos pedreiros, em vez de estar contigo. Poderão ser um pouco brutos na aparência mas, pelo menos, têm a decência de não serem apenas uma cuspideira com duas pernas.

23h11

Uma vez mais, não estamos deitados nas nossas posições habituais, que envolvem carinhos e o ajustamento dos dois corpos um ao outro; em vez disso, cada um se entrega a uma irritação silenciosa.

- Jim? - sussurra Alison.

Lá vamos nós outra vez. É o nosso ritual pós-guerra, que antecede a reconciliação, só que desta vez...

- Hum! - resmungo, sem me comprometer.

- Não queres falar comigo?

Não respondo, porque não quero falar com ela.

- Então, cortaste relações comigo?

Permito-me encolher os ombros porque não estou realmente a pensar.

- Pois bem, escuta - diz ela, em voz suave. - Desculpa.

- Não faz mal. Também te peço desculpa.

- Amigos? - pergunta, a esfregar o pé na barriga da minha perna. Fico calado, mas a Alison considera o meu silêncio como uma resposta afirmativa.

- Odeio os parvos dos pedreiros - acrescenta, vingativa. - Não são apenas palavras. Odeio-os, de verdade. Sempre à procura de desculpas para deixarem de trabalhar: escassez a nível nacional de estucadores qualificados, fornecedores que mandam o material errado, condições de tempo adversas, demasiado frio, demasiado calor, demasiada humidade, vento a mais, misteriosas avarias eléctricas... A lista não tem fim. Sabes uma coisa? Esta noite, ao chegar a casa, pareceu-me que a única coisa em que tinham mexido fora na chaleira, para terem o seu chá.

- Penso que não fazem mais nada em todo o dia: bebem chá e lêem a porcaria do Daily Star.

- O que eu daria para os ter cinco minutos de mãos atadas atrás das

costas e eu armada com um objecto contundente.

- Isso é um pouco violento - contraponho friamente. É assim que me fazem sentir. Sinto que se apoderaram do nosso sonho e estão a destruí-lo. Para te ser franca, acho que são como as crianças naquele conto do Graham Greene em que os miúdos vandalizam sistematicamente uma casa só para sentirem prazer. Como é que se chama? Se não me lembro do nome, vou pensar nisto durante toda a noite.

- Não faço ideia daquilo de que estás a falar. Nunca li qualquer livro do Graham Greene.

- Julguei que toda a gente era obrigada a ler esse conto na escola. É como Shakespeare. Não o leste?

- Lamento, não li. De qualquer modo, é tarde. Vamos tentar dormir. Boa-noite - despeço-me, dando-lhe um beijo.

Mas ela é teimosa. - Tenho este conto algures. Vou procurá-lo para saber o nome.

Ao vê-la vestir a camisa de dormir e sair do quarto, começo a duvidar se será apenas uma piada quando ela diz que os pedreiros nos estão a levar à loucura. Está ausente durante mais de meia hora. Estou a pensar ir procurá-la, embora aqui em casa estejamos a suportar temperaturas abaixo de zero, quando ela acaba por voltar ao quarto.

- The Destructors [Os Destruidores] - anuncia ao deixar-se cair no colchão.

- Oh! - respondo. - Bem, boa noite, amor.

Segue-se um longo silêncio e penso que ela poderá ter adormecido; por isso, rodo o corpo para o meu lado.

- Jim? - chama, a tentar controlar um bocejo.

- O que é?

- Ao menos, terminadas as obras, teremos tempo de arrumar tudo antes de tentarmos o bebé, não é verdade?

- Hum! - respondo, antes de adormecer.

Sexta-feira, 4 de Dezembro de 1998

16h02

Os pintores foram-se embora, os últimos pedreiros já tinham saído durante a manhã e já limpámos a caliça em todo o apartamento que, agora, brilha. A casa voltou a ser nossa e tem um aspecto maravilhoso.

- Chegámos - comento para o Jim, de pano do pó na mão, quando nos encontramos na nossa cozinha totalmente nova.

- Aonde? - pergunta ele.

- Tu sabes. Ao lugar certo. Ao lugar onde é suposto que estejas. Ao lugar onde tudo se conjuga. Onde tudo funciona. Onde tudo está certo e colocado exactamente onde deve estar.

- E o que é que tens a dizer das rachas no estuque da casa de banho?

- Depois de tudo o que passámos nestes últimos meses, umas quantas rachas no estuque da casa de banho são o menor dos nossos problemas. Está tudo como deve ser. Tudo aquilo de que precisamos a partir de agora é viver felizes.

Quinta-feira, 31 de Dezembro de 1998

23h59

Nós os quatro encontramo-nos na Prince Street a ver o fogo de artifício, pois decidimos partir no novo carro da empresa do Nick, para fazermos a passagem do ano em Edimburgo. Quando se aproxima a meia- noite, começa a contagem decrescente a partir de dez. Quando se ouve a última das doze badaladas, um milhão e mais um foguetes estalam no ar, enchendo o céu de cores. Todos nos desejamos um Feliz Ano Novo e juntamo-nos aos presentes a cantar Auld Lang Syne, embora eu esteja convencido de que não conhecemos a letra toda.

- Pensem bem - diz a Jane -, por esta altura, daqui a um ano,

estaremos no ano 2000. Num novo milénio.

- Em termos técnicos - contrapõe o Nick -, como não houve

um ano zero, o novo milénio só começará em 2001.

A Jane e eu ficamos de olhos esbugalhados.

- Deixa-te de criancices - admoesta a Jane. - O facto é que

os habitantes de todo o mundo, excepto o Nick, estarão a celebrar a

entrada do milénio a esta hora do próximo ano.

O Nick solta uma gargalhada. - Aposto que haverá também um enorme aumento do número de nascimentos. As pessoas costumam tomar grandes decisões nos momentos decisivos.

- O Jim e eu decidimos que, em 2000, vamos começar as tentativas para termos um filho - anuncio, sem tirar os olhos do Jim.

No entanto, ele não corresponde ao meu sorriso. Não tira os olhos do chão.

- Uma ideia brilhante! - exclama a Jane. - Estou à espera de ser convidada para madrinha - acrescenta. - Vou ser a madrinha do teu filho, não vou?

- Naturalmente - respondo. - Eu e o Jim não aceitaríamos que não fosses.

- E eu vou ser o padrinho do filho deles - interrompe o Nick.

- O Jim já me disse que está de acordo. Por isso, abandona quaisquer ideias que possas ter de assumir toda a responsabilidade pela educação espiritual do filho deles, porque eu terei também umas palavras a dizer.

- Acerca de quê? - desafia a Jane. - Tu mal consegues ler os signos que vêm nos pacotes de bolachas.

- Então, então, meninos - interrompo - Se continuam com esse género de disputa, nenhum de vós terá o privilégio, entendidos? De qualquer modo, o bebé Owen ainda não chegou e temos um ano inteiro à nossa frente, antes ainda de pensarmos se ele vai chegar ou não; por isso, vamos gozar este ano de 1999. De acordo?

Vai ser a última oportunidade de o Jim e eu sermos temerariamente jovens, antes de assentarmos e sermos pais para o resto das nossas vidas. Portanto, voltemos ao hotel, assaltemos o minibar e bebamos até cairmos para o lado.

Todos se riem, excepto o Jim, o que me leva a aproximar-me dele e a pôr-Lhe os braços à volta da cintura.

- O que é que se passa, meu querido? Apanhaste a febre do Ano Novo?

- Não sei como é que hei-de dizer-te isto - começa.

Pelo ar dele, sei que se trata de um problema grave. - Dizer o quê?

- Isto. Tudo. Tenho muita pena que já não funcione. Para mim, pelo menos. Julgo que devemos afastar-nos durante algum tempo. Nem posso crer no que estou a ouvir. - Jim, estás a ser insensato.

Segue-se um longo silêncio.

- Só preciso de algum tempo para pôr a minha cabeça em ordem, nada mais.

- Não podes fazer isso - replico, a lutar para conter as lágrimas. - Construímos o nosso lar. Somos felizes. Tudo o que sentes deverá ser passageiro... Tudo acabará bem.

Rodeio-o com os braços e aperto com muita força, deixando que as lágrimas me escorram pelas faces. - Ainda nos amamos - garanto-lhe. - Eu ainda te amo.

- Pois, esse é o problema - replica. - Já não tenho a certeza de te amar.

 

               O PASSADO: 1999

               Sexta-feira, 1 de Janeiro de 1999

2h10

Eu e o Nick vamos de regresso a Londres no carro dele. A Alison e a Jane voltaram ao hotel e presumo que amanhã apanharão o comboio para King's Cross. Não falámos do que está a acontecer e não é provável que o façamos durante alguns dias porque eu próprio não tenho a certeza. Está quente dentro do carro, levamos o aquecimento ligado, e lá fora está escuro como breu, o que, combinado com o ronronar constante do motor e a música que sai do leitor de CD, me faz sentir no lugar mais seguro do mundo. Enquanto nos embrenhamos na noite, vou pensando na Alison. Estou devastado por tê-la magoado desta maneira e eu não sou o género de pessoa que usa o adjectivo devastado, com ligeireza. Não fico devastado quando o leitor de vídeo enrola a fita e não grava o Seinfeld. Não fico devastado quando ao sair do metro ponho o pé num buraco e fico com as calças sujas numa poça de água da chuva. Todavia, sinto-me devastado por perceber que já não amo a mulher na companhia de quem tencionava envelhecer.

Aconteceu no lugar onde menos se esperaria, no supermercado, umas semanas atrás. Foi numa manhã de domingo em que a Alison e eu fomos ao Sainsbury, em Moswell Hill. Parecia povoado de casais bonitos, modernos, harmoniosos e vários anos mais jovens do que nós. Encontrava-os em qualquer ponto para onde olhasse, com as suas calças de ganga desbotada e as Tshirts com logotipos, bem penteados e com o indispensável ar de presunção. Andavam por ali com pequenos cestos de compras, enquanto eu tinha de pilotar um carro informe, onde carregava apenas um exemplar do The Independent e um grande saco de agriões, e pensei para comigo: A Alison e eu costumávamos ser como vós. Costumávamos levar as compras nos cestos. Costumávamos ser modernos. Costumávamos ter estilo. Até fui vocalista num conjunto musical. É verdade que fui.

Enquanto estávamos no corredor das frutas e hortaliças, notei a entrada de uma rapariga extraordinariamente bonita. Era espantosa. Absolutamente bela de mil maneiras. Uma deusa. Devia andar na casa dos vinte anos e tinha cabelo castanho. Não vestia nada de especial: blusão de ganga, uma camisola sem mangas e decote em V, calças de ganga e botas, mas, por qualquer razão, tinha transformado o conjunto no traje mais atraente que alguma vez vira numa mulher. Fiquei convencido de que poderia continuar a ter estilo mesmo que viesse metida dentro de um saco. Para cúmulo, vinha acompanhada de um tipo alto e de ar melancólico, que parecia um modelo nas horas vagas.

Passaram sem reparar em mim. Não sei qual o motivo que me levou a virar o carrinho e a segui-los. Enquanto percorriam os diversos corredores, sempre de mãos dadas, ela parecia rir-se de tudo o que o companheiro lhe dizia. Para mim, era óbvio que se tratava de uma relação recente. Também me pareceu evidente que estavam apaixonados. E não consegui deixar de sentir inveja por isso. Este tipo que está à minha frente tem aquele género de rapariga que os homens põem num pedestal. Ao segui-los pelo corredor ladeado de embalagens de cereais, dei comigo a pensar se sentia a falta de tudo aquilo. A Alison não estava num pedestal. Nem sequer tinha os pés ligeiramente acima do chão. Era como eu, imperfeita, com pés de barro.

Eu sabia tudo acerca dela. Não havia mais segredos a desvendar.

Não sabia se aquela rapariga rapava as pernas no banho, utilizando a máquina de barbear do namorado, ou se ia a um salão para ser depilada

com cera. Não sabia se por vezes vestia cuecas que não condiziam com o sutiã. Não sabia se ela não se importava de lavar os dentes enquanto o namorado estava sentado na sanita. Mas sabia tudo isto acerca da Alison. Tal como ela sabia tudo a meu respeito. Deixáramos de ser diferentes um do outro. Algures, num qualquer ponto do percurso, tínhamo-nos misturado. Tornáramo-nos menos do que nós próprios. Tinham desaparecido todos os mistérios que podíamos alimentar, todas as dúvidas sobre aquilo que chegaríamos a ser. Pois, para além da questão do nosso futuro Filho, já tínhamos experimentado tudo o que se supõe que os casais devem fazer.

Em muitos aspectos, tinha orgulho de todos os obstáculos que tínhamos conseguido ultrapassar nos anos em que vivemos juntos: as discussões, as incertezas, os arrufos temporários, a separação imposta pela distância, a morte do meu pai e tudo o resto, porque cada um de nós parecia trazer um valor acrescentado à relação. Muitas das dificuldades que enfrentámos poderiam ter feito descarrilar outras relações, mas não a nossa. Na realidade, em vez de uma ameaça, elas foram a razão para que nos mantivéssemos juntos tanto tempo. Ajudaram a moldar-nos. Obrigaram-nos a olhar bem de perto a nossa relação. Serviram-nos de orientação. Contudo, o que é que acontece quando se atinge o destino que procurámos durante toda a vida e se descobre que, aFinal, não era para ali que queríamos ir?

Sábado, 13 de Março de 1999

12h03

Estou na cozinha a preparar um chá quando tocam à porta. Depois de respirar fundo, vou até à entrada e saio para abrir a porta principal do prédio. Abro-a e vejo o Jim à minha frente, verificando desde logo que ele não vem com disposição para outra coisa que não seja proporcionar-me a pior experiência de toda a minha vida. Só pela forma como se apresenta à porta, de pernas ligeiramente afastadas, como quem se prepara para um combate. Traz as Levis de tecido azul-escuro que lhe dei quando fez anos, os ténis Adidas que lhe comprei no Natal, uma Tshirt com os dizeres Beatnik Revolution, que lhe comprei no Verão passado, numa loja de Endell Street e uma parca pesada, que comprei no Selfridges para Lhe dar no último aniversário. Suspeito que a única peça que usa sem ter sido comprada por mim devem ser as cuecas, porque nunca gostei verdadeiramente de comprar roupa interior para homem, pois acho-a demasiado feia.

Em três meses, é a primeira vez que aqui vem. Depois do regresso de Edimburgo, julgo que passámos uma noite sob o mesmo tecto. O Jim dormiu no quarto de hóspedes e quando acordei vi-o a meter alguma roupa em dois sacos. Ao ver o que ele estava a fazer, deixei o apartamento e fui dar um passeio: Acabei por entrar na loja de bebidas de Broadway e comprei um maço de cigarros. Depois de ele sair senti-me mal e a Jane passou algumas noites comigo. Felizmente, o meu chefe mostrou-se verdadeiramente simpático e consegui obter uma semana de férias em Madrid, com a Jane. O fim-de-semana depois do regresso foi o mais difícil. Os fins-de-semana são para os casais e, de repente, deixei de ser parte de um casal e tomei consciência de que não tinha nada para fazer. Quando fazemos parte de um casal, não nos preocupa o facto de não termos que fazer. Na verdade, essa é a situação que procuramos.

O Jim e eu reunimo-nos para falar do que estava a acontecer.

Quanto a ele, durante o tempo que durou a nossa separação, concluíra que o melhor seria a separação definitiva. Disse que ainda não sabia

O que pretendia da vida, embora tivesse a certeza de não querer a que tivéramos. Chegou a pedir desculpa por me fazer passar por isto, o que interpretei como uma forma de se mostrar simpático, mas que me fez chorar. Pela minha parte, disse-lhe que não sabia o que tinha acontecido para o fazer mudar subitamente de ideias.

Respondeu sem sequer conseguir olhar para mim. Disse que durante algum tempo sentira que a nossa vida era uma espécie de correia de transmissão a que estava preso e que os nossos planos de termos um filho mais haviam concorrido para aumentar o medo que o dominava.

Disse que não conseguia ultrapassar a sensação de que tinha cometido um tremendo erro. Que não quereria acordar numa manhã e perguntar: Então, é isto? Foi nisto que a minha vida se transformou? ". Que pensava que ainda me amava, mas que o amor já não era suficiente.

Perguntei-lhe se havia alguma coisa que eu pudesse fazer para ele mudar de ideias, mas respondeu-me que não. Tudo o que ele disse, e especialmente a maneira como o disse, me fez zangar. Por fim, embrenhámo-nos numa discussão, chamei-lhe cobarde e pedi-lhe que saísse.

Em parte, gostaria de saber se poderia convencer o Jim a continuar a viver aqui, quer conseguíssemos ou não sair da situação que criámos. Porém, com os dois a levarmos vidas separadas, quanto mais longe vivermos um do outro mais fácil será organizarmos a nossa vida.

Dois meses passados, acabei por perceber que, mesmo sem o Jim, a minha vida não iria desmoronar-se. O essencial foi ter perdido o medo de estar só. Certa manhã, acordei e percebi que o medo desaparecera. Não chorei quando vi que o espaço da cama, ao lado do meu, se encontrava vazio. Não chorei perante a certeza de que não haveria ali ninguém a quem dizer bom-dia, Não chorei ao veriFicar que a Disco andava à procura do Jim pela casa toda. Uma vez chegada àquele ponto, tudo passou a doer menos. E como o Jim saiu de casa, senti-me mais amarga e, por me sentir mais amarga, também ele se tornou amargo. E, por ambos sentirmos amargura, zangávamo-nos sempre que falávamos pelo telefone e por nos zangarmos começámos a falar menos; e como falávamos menos, passados três meses parecíamos duas pessoas totalmente desconhecidas. E agora, por sermos dois seres totalmente estranhos, parece lógico que desmantelemos o que resta da nossa vida em comum. É por isso que ele está aqui. Entramos em casa em silêncio; ele é quem fecha a porta.

- Queres um café ou uma chávena de chá? - pergunto.

- Quero. Por que não?

Quando regresso da cozinha, o Jim está de pé, em frente da estante, a olhar intensamente.

- Parece que pretendes começar pela estante dos livros, não é?

- É um lugar tão bom como qualquer outro - responde ele. Vamos lá acabar com isto.

12h17

A Alison pega numa pilha de livros da estante e começa a ler os títulos: A Importância de Ser Ernesto.

- É teu - replico e ela põe o livro no chão, junto aos pés, e pega noutro.

- Abaixo de Zero? - pergunta a Alison.

- Teu.

Coloca-o em cima do primeiro.

- O Palácio da Lua? Quem é o autor?

- Paul Auster.

- Nesse caso deve ser teu.

- Nem aqui nem ali: a Europa de Estocolmo a Istambul.

- De Bill Bryson?

- Sim.

- Tem de ser meu - afirmo, ao tirar Lhe o livro da mão. A Alison pega noutro: -Jogos Quase Perigosos - lê e entrega-mo.

- Nunca na vida li um livro de Elmore Leonard.

- Eu sei.

- Então como é que pode ser meu?

- Comprei-o para te oferecer no teu aniversário por ser o meu livro preferido.

Abre a capa e lê; lá dentro eu tinha escrito; Feliz Aniversário, Alison, beijos e abraços do Jim.

Ela lê e devolve-me o livro. - Toma, podes ficar com ele. Por que razão hei-de ficar com ele?

- Tenho outro exemplar.

- Pois bem, também não o quero. Não gosto de Elmore Leonard. Nunca me disporei a ler Elmore Leonard. Por isso, não há qualquer motivo para conservar um livro dele, pois não?

- É mesmo necessário que mostres sempre ser uma pessoa odiosa?

- É, sem dúvida! - exclama a Alison ao pegar noutro livro. - O Álbum Negro, de Hanif Kureishi. - É um exemplar autografado.

- Então é meu.

- Por acaso, até vais acabar por descobrir que é meu - contraria ela.

- Tu não aprecias a Guerra das Estrelas. Afirmaste que era o filme mais estúpido que alguma vez tinhas visto. O que é que te poderia levar a comprar o livro?

- É uma estupidez, mas foi-me oferecido na compra de uma revista de cinema. Olha - pede, ao mostrar-me a capa. E era verdade, tinha vindo de graça com a revista.

- Pois bem, posso ficar com ele? - pergunto.

- Não.

- Não?

- Não, quer dizer que não podes ficar com ele.

- Mas se não o queres.

- Eu sei.

- Nesse caso, o que é que vais fazer com ele?

- Vou dá-lo à Oxfam, juntamente com o Elmore Leonard. Foi um golpe baixo. Estou prestes a retorquir com qualquer coisa igualmente maliciosa, mas detenho-me. - Escuta, não vim aqui para armar zaragata. Vim cá para tentarmos dividir as nossas coisas... E já gastámos... cinco minutos e ainda estamos a começar. Não será possível mostrarmo-nos razoáveis e dividir isto como fariam duas pessoas crescidas?

13h08

- O televisor é meu - declara o Jim. - Andei séculos há procura de um aparelho assim. Percorri a Tottenham Court Road nos dois sentidos, durante um dia inteiro, a entrar em todas as lojas de artigos eléctricos até conseguir o melhor preço. Não há dúvida de que tem de ser meu. Além disso, não vês muita televisão.

- Não quero o televisor - informo. - Acho-o grande de mais. Disse-o logo na altura, mas não me deste ouvidos... como sempre. E penso que é feio, mas é preciso atender ao facto de que eu paguei a maior parte dele.

- Isso é irrelevante.

- Acho que é muito relevante - contraponho. - Já te digo como vai ser: levas o televisor mas eu fico com o vídeo e a máquina de lavar.

- Podes fcar com a máquina de lavar mas podes ter a certeza de que não abro mão do vídeo - replica o Jim.

- Penso que se trata de uma troca justa. O televisor custa uma fortuna.

Ele acaba por anuir: - Óptimo. Fica com ele. Compro outro para mim

13h23

- Julgo que devo ficar com o sofá - digo, dirigindo-me à Alison. - É a peça mais valiosa que temos em casa e, se bem me lembro, também o paguei.

Ela discorda. - O sofá é meu. Poderás tê-lo pago mas fui eu, sozinha, que vasculhei todas as lojas de mobílias do centro de Londres para o encontrar. Em todas as ocasiões em que te pedi que me acompanhasses inventaste desculpas, que tinhas o trabalho atrasado ou coisa do género. Este sofá é resultante de todo esse sangue, suor e lágrimas. Fui eu que seleccionei todos os aspectos, que escolhi o mais pequeno pormenor. Deve ficar para mim.

- Que diabo de negociação é esta?

- Não há negociação. É meu.

13h45

- Retirei-te de todas as fotografias que tirámos em férias - explico, a desafiá-lo.

- Fizeste o quê?

- Cortei as fotografias de férias, de maneira a desapareceres. Foste apagado de Creta, Verão de 1996, de Lake District, Verão de 1998 e Nova Iorque, 1997. Peguei nas miniaturas de ti e deitei-lhes fogo. Uma operação muito terapêutica. Na verdade, foi uma pena, pois, quando falei nisso a uma colega do emprego, à Lucy, do departamento gráfico, ela disse-me que deveríamos ter inserido as fotografias no computador; nesse caso, ela poderia colocar alguém mais bonito no teu lugar. Sugeriu o Keanu Reeves, com a roupa molhada, em Ruptura Explosiva, mas respondi-lhe que preferia pôr lá um cão, um animal bastante mais fiel.

O Jim fica furioso. - Sabes o que é pior em tudo isso? Não foi o trocares-me por um cão, um gesto que não me surpreende minimamente. Mas o facto é que a porcaria das fotografias não eram tuas. Eram minhas! Tiradas com a porra da minha máquina! Com a porra do meu rolo de películas!

- As tuas fotografias, as minhas fotografias, que interesse tem isso?

- Isto é estúpido. Estúpido e inútil. Estamos a andar devagar para ir a lado nenhum. Até agora, só conseguimos separar uns quantos livros e alguns CD e destruíste as nossas fotografias de férias. Temos toda uma casa a dividir.

15h03

Estou ao telefone com a Jane, que me pergunta:

- Como é que correu?

- Nada bem. Não conseguimos separar muita coisa. Ele não estava com a melhor das disposições e eu também não. Em parte, continuo a pensar que o Jim anda a atrasar deliberadamente este assunto da separação e a dar à questão maior importância do que ela merece. Tudo o que ele tem a fazer é reclamar o que é dele, para eu poder reclamar o que me pertence, para então decidirmos o destino a dar às coisas.

- Conseguiram decidir quem é que fica com a Disco? Sei que isso te preocupa.

- Nunca mencionou a gata, mas sei que tenciona fazê-lo. Ele adora-a. E a gata pensa que ele é a melhor coisa que se inventou a seguir ao pão às fatias.

- Pensei que os homens não se interessavam por gatos. Quando muito julga-se que devem gostar de cães e de animais perigosos como cobras, aranhas venenosas e tubarões, isto é, animais com capacidade para matar ou estropiar sempre que a oportunidade se lhes apresente, que são actuações viris. Os gatos não são viris. São os mais femininos dos animais.

- Eu sei, mas o Jim adora a Disco. E a gata também o adora. Se puder, escolherá sempre o colo dele em detrimento do meu. Não que não goste de mim. Mas é um facto que o amor entre eles é silencioso. Enquanto eu, se tiver oportunidade, faço um grande alarido à volta dela, o Jim fará o possível para ignorar a gata e esta paga-lhe na mesma moeda, mas, no final do dia, em frente do televisor, acabam por se juntar. É o casamento perfeito.

Domingo, 21 de Março de 1999

19h00

Novo fim-de-semana e, na realidade, conseguimos algum progresso. O Jim chegou ao apartamento por volta do meio-dia e, embora levasse tempo, separámos quase tudo, mesmo alguns dos objectos mais controversos.

A sala de estar já não se parece nada com uma sala. Parece o lugar para onde se atiram as embalagens vazias. Há caixas por todo o lado: no aparador, na mesa de café, nos dois cadeirões e no sofá. E todas estão cheias de coisas nossas. Das coisas que eu e o Jim fomos juntando durante a nossa relação. E cada um dos objectos tem uma etiqueta que diz: Dele, ou Dela, A princípio, de acordo com a minha ideia, as etiquetas deveriam dizer Jim, e Alison, mas ele achou mais fácil escrever apenas um J, nas coisas dele e um A, nas minhas. Não gostei que fosse feito assim, mas acho que foi apenas por a ideia ter partido dele. Por conseguinte, propus um compromisso e sugeri Meu, e Dele, por assim ele permanecer convenientemente anónimo. A sua contraproposta foi Dele e Dela, que foi aceite, embora contra a minha vontade. Achei que me sentia demasiado cansada para continuar a argumentar acerca de algo que não me interessava. Colocámos as etiquetas, porque algumas coisas são demasiado volumosas para ele levar para casa do Nick, onde continua a viver; por isso, decidimos que a maioria das coisas ficaria no quarto das arrumações, até que vendêssemos o apartamento.

A única coisa cujo destino ainda temos de decidir anda neste momento a caminhar à volta das caixas que passámos a tarde a eti quetar, além de cheirar todos os cantos com suspeição.

- E então, o que é que vamos fazer com ela? - pergunto, enquanto a gata se esfrega nos meus tornozelos.

- Não sei - responde o Jim. - Tenho estado a tentar esquecer o assunto. Gostaria de a levar comigo, mas a gata é tua. Isto é... afinal fui eu quem te deu a gata.

- No entanto, a gata é verdadeiramente nossa, não é? Não poderíamos partilhar a tutela, como se faz com os filhos?

O Jim solta uma gargalháda, a primeira que lhe ouço há muito, parece que há anos. - Sabes o que acontece aos gatos provenientes de lares desfeitos, tornam-se maliciosos - sentencia. - Iria lançar-nos um contra o outro.

- E qual é o mal disso?

- Estás a falar a sério?

- Não vejo razões para não se poder fazer.

O rosto dele torna-se sombrio. - Porque isso significaria que continuarias a fazer parte da minha vida e eu ainda faria parte da tua - declara. - Acho que será melhor que fiques com a gata; vou agora mesmo despedir-me dela.

E, quando ele pega na gata e a leva para a cozinha, não consigo conter as lágrimas, a pensar: É este o amor que ele tem por mim."

Sábado, 3 de Abril de 1999

10h57

A nossa separação oficial está a aproximar-se. Terry Mortimer, da firma Merryweather, agentes imobiliários, está aqui porque eu pedi uma avaliação do apartamento. Quando Lhe abro a porta, fico espantada por ele não parecer ter mais de 20 anos de idade. E por vestir um fato completo, às riscas, e ter deixado crescer uma pequena pêra de bode, parece ainda mais jovem. Como esperava esta visita, arrumei tudo e as caixas com as minhas coisas e as do Jim estão todas no quarto das arrumações, a alcatifa foi limpa e não tem vestígios de cotão e até limpei o pó. Terry percorre as divisões uma por uma e vai tomando notas no seu bloco. Aprecia o que fiz na cozinha, os quartos de dormir são de boas dimensões (embora o segundo quarto parecesse maior se não estivessem lá as caixas).

Ouço o veredicto dele com simpatia porque, suponho, é sempre agradável ouvir alguém falar bem da nossa casa, mesmo que seja uma casa que estamos a tentar vender em condições difíceis. Os seus comentários fazem sentir-me bem disposta em relação a ele, o que me leva a oferecer-lhe um chá. Pergunta-me se há café, mas o que tenho é descafeinado e está no armário há muito tempo. Ambos examinamos a embalagem para tentarmos ver o prazo de validade, mas os números parecem ter desaparecido. O rapaz diz-me que não faz mal se o prazo estiver ligeiramente excedido, pelo que abro o frasco e consigo arranjar pó suficiente para um bule de café. Ficamos de pé na cozinha, à espera de que a água ferva na cafeteira e, por momentos, pareço ter esgotado os meus temas de conversa. Penso que sucede o mesmo com ele.

- Posso perguntar o motivo da mudança?

- Estou a separar-me do meu marido.

Um fenómeno esquisito para observar pessoalmente, mas noto que os olhos de Terry ficam com um brilho mágico, como se a primeira coisa que intento fazer com a minha liberdade, a seguir ao fim da mais longa relação da minha vida, seja meter-me num tórrido caso de amor com um agente de vendas adolescente e presumido.

- Não parece ter idade suficiente para falar de um ex-marido comenta, com voz doce.

- E você não parece ter idade suficiente para negociar esta casa em meu nome. A propósito, quantos anos tem?

- Vinte e dois. Tenho cara de menino. E a senhora, que idade tem?

- A suficiente para ser a sua irmã mais velha.

Terça-feira, 6 de Abril de 1999

10h58

Estou prestes a sair para uma reunião quando o telefone toca. Penso deixar que a mensagem fique registada na caixa de correio, mas receio que possa ser o jornalista do Times com quem tenho tentado contactar nos últimos dias, aquele que pretende publicar um artigo acerca de um dos livros de cozinha em que estou a trabalhar. Levanto o auscultador.

- Bom dia. Publicidade.

- Bom dia, por favor, posso falar com Alison Smith. É o Terry, da agência imobiliária Merryweather.

- Viva - saúdo, bem-disposta. - É a Alison quem fala.

- Como está?

Consulto o relógio. - Óptima.

- Achei que gostaria de saber que já avaliámos a sua propriedade. Sustenho a respiração para ouvir melhor. E ele continua, a informar-me de uma soma que nunca imaginara que um apartamento pudesse valer. Fico demasiado espantada para poder responder-lhe.

- Que lhe parece?

- Tem a certeza? - interrogo. - Parece-me um valor muito alto:

- As casas da sua zona estão a vender- se muito bem e, dado o estado impecável do apartamento, até penso estar a ser um pouco cauteloso. Deseja que ponhamos a casa à venda?

Respondo afirmativamente mas, de súbito, sinto as lágrimas a escorrerem- me pelas faces. Limpo-as, respiro bem fundo e olho à minha volta para ver se alguém reparou. - Terry, lamento mas tenho de desligar.

Mostra-se desconsolado. - Oh! Posso fazer-lhe só uma pergunta, antes de desligar? Julgo que isto não tem nada de ortodoxo, é algo que nunca me passaria pela cabeça, mas não consigo deixar de sentir uma certa ligação entre nós.

Mesmo com as faces ainda húmidas das lágrimas, não consigo conter o riso. - Ai sente?

- Sinto. Tenho estado a pensar se não gostaria de ir jantar comigo. Talvez na próxima sexta-feira, cerca das sete da tarde. Conheço uns lugares interessantes aonde poderíamos ir.

Por momentos, fico a pensar no Jim.

Por momentos, penso na forma como desperdicei os últimos seis anos.

Por momentos, penso no futuro.

E, então, dou comigo a responder sim.

- Fantástico! - exclama, como se sentisse dificuldade em aceitar aquela felicidade. - Ligo-Lhe um dia desta semana.

Pouso o auscultador e imediatamente lamento ter dado ao adolescente Terry a mais ligeira esperança. Rabisco uma nota na minha agenda da Cooper and Lawton: Deixar passar dois dias, depois cancelar por estar constipada.

12h09

A reunião correu mal. Devia apresentar à minha chefe um relatório sobre o resultado da campanha publicitária de um dos nossos títulos de referência. Desnorteei-me várias vezes e tropecei nas minhas próprias palavras. Fiquei na dúvida se ela não julgaria que eu

estava a pensar na conversa que iria ter com o Jim nessa tarde. Nem sei se ela está a par das diligências que me levarão à venda da casa.

Da casa onde vivi com o Jim. Do nosso lar.

13h17

- Jim! - exclamo para o bocal do telefone -, sou eu.

- Olá!

- O agente imobiliário já avaliou o apartamento.

- Quanto?

Informo-o da avaliação do Terry.

- Estás a brincar? Não posso crer que os preços tenham aumentado tanto num ano. Estamos ricos.

- Julgo que sim - concordo, com toda a calma.

- Já contrataste um advogado?

- Não - respondo. - Preciso de um advogado?

- É claro que precisas. Eu já tenho um.

A minha vontade é soltar uma gargalhada. - Como é que chegámos a uma situação em que temos de contratar advogados para falarmos um com o outro?

- Porque estamos legalmente casados - replica o Jim com frieza.

- A decisão é tua, mas, no que respeita ao casamento, julgo que o melhor que temos a fazer é esperar dois anos para fazermos entrar o pedido de divórcio, desde que estejamos de acordo, para, seis semanas mais tarde, a separação se tornar efectiva e ficarmos legalmente divorciados.

- Fizeste o teu trabalho de casa, não foi? Já tens tudo preparado?

- Só estou a tentar fazer o que for melhor para ambos - replica o Jim, e eu tenho de pousar o auscultador para que ele não me ouça chorar.

13h29

- Pois bem, também precisas de um - recomenda a Jane quando Lhe conto a surpresa que o Jim me pregou.

- Porquê?

- Para teres a certeza de que ele não te prejudica quando o apartamento for vendido - responde ela. - Devias contratar o que defendeu a minha irmã Kate, quando ela se separou daquele namorado horroroso, o Paul. Dou-te já o número de telefone.

O telefone fica mudo e ouço apenas uma restolhada de papéis, até que ela volta à linha: - Achei. Chama-se Graham Barnet e faz parte de uma firma de nome Fitzsimmons and Barclay.

Tomo nota do nome e do número de telefone.

- O advogado do Jim é uma mulher - informo a Jane. Chama-se Penny Edwards, da firma Saunders and Elcroft. Pois bem, graças a nós, dois advogados, um homem e uma mulher, nada menos, que nunca se encontraram, irão trocar cartas em legalês, e cobrar-nos uma fortuna pelo privilégio.

- Talvez se desenrole uma espécie de comédia romântica, em que os advogados das partes em litígio acabem por se juntar - zomba a Jane. - Afinal, diz-se que os opostos se atraem, não é?

- Certamente que se atraem - concordo, muito calma -, mas julgo que no Final Lhes falta um certo poder de sustentação.

Segunda-feira, 26 de Abril de 1999

13h12

Agora que o apartamento foi posto à venda, decido que chegou a altura de procurar uma casa para mim. Partilhar a casa com o Nick é excelente mas, depois de viver tanto tempo com a Alison, o que me interessa verdadeiramente é ter um espaço próprio. Quatro paredes que me pertençam.

Durante a hora do almoço viajo pela Internet e vou deixando o nome em algumas agências imobiliárias de cast Finchley e zonas limítrofes, pois sei que, sozinho, não tenho posses para um apartamento em Muswell Hill. Mesmo em cast Finchley mal posso acreditar no dinheiro que se pede por um apartamento de uma assoalhada. Chego a ter a tentação, breve, de sair de Londres e regressar a Birmingham. Esta solução permitiria o acesso a um lugar decente para morar. Do lado dos inconvenientes, reconheço que deixei de viver lá há alguns anos. Os tempos mudaram. A vida continuou. Nada seria como nos velhos tempos.

Sábado, 1 de Maio de 1999

Fui ver a primeira casa em cast Finchley. Um apartamento no rés-do-chão de um prédio reconstruído, num recanto calmo de High Road. Pelo telefone, o agente de vendas informou-me de que a casa ficava a poucos minutos da estação do metropolitano. Levei quase dez minutos a chegar lá. A única maneira de os converter nuns minutos" seria fazer uma corrida, a toda a velocidade, desde a estação, o que não me parece uma actividade viável para todos os dias.

O nome do agente de vendas é Sourav. Veste um fato mal-alinhavado e usa sapatos baratos, é o seu primeiro dia neste emprego. Sei isto não por que ele mo tenha dito, mas o homem está nitidamente fora do seu elemento, a não ser que a pergunta não vá além de O sr. é o funcionário da agência imobiliária? Tento não ser duro com ele, embora sinta vontade de o tratar mal.

Em vez disso, decido concentrar a atenção no apartamento; mas a cabeça parece estar noutro sítio. Procurar uma casa sozinho é esquisito. É esquisito não ser obrigado a ter em conta a opinião de outra pessoa, de sermos os únicos a decidir. Excitante, de certa maneira. Esta é uma das primeiras ocasiões em que não faço parte de um casal; a ideia de que posso fazer o que quiser, quando quiser, é excitante, pois, nos seis anos recentes não tomei uma única decisão que não envolvesse, por pouco que fosse, a Alison, mesmo nos casos em que decidia fazer o contrário daquilo que ela desejava. É muito tempo para se estar sem tomar uma decisão exclusivamente nossa.

Passados mais ou menos cinco minutos, estou razoavelmente convencido de que detesto a casa. Não só por ficar longe do metropolitano mas também por o agente de vendas me ter informado de que não há televisão por cabo naquela zona; além disso, poderia haver problemas com a instalação de uma antena parabólica, que teria de ser montada num ponto alto, numa zona do prédio que tecnicamente não poderia considerar como minha. A televisão por cabo, ou por satélite, é um dos elementos essenci ais do meu novo plano de vida. Sem ela, não haverá forma de me tornar o solteirão feliz que pretendo ser. No entanto, ando por ali mais cerca de dez minutos, pois não quero pôr de parte o apartamento a não ser por critérios exclusivamente meus. Em certos pontos, enquanto percorro a casa com o Sourav a seguir-me as passadas, dou comigo a dizer: o corredor é demasiado estreito e a sala de estar tem uma forma engraçada, ou o quarto não recebe luz natural suficiente. Ora bem, desde quando é que a luz natural, se tornou importante para mim? Não é. A pessoa que se preocupava com esse género de coisas, não era eu; sinto que ela me persegue. Começo a perguntar me se não andarei também a persegui-la. Como é possível não se ser perseguido depois de se viver tantos anos com uma pessoa quantos os que vivi com a Alison?

Terça-feira, 4 de Maio de 1999

14h29

Terry, o agente de vendas adolescente, telefona-me para o emprego para falar do apartamento. Ouço-o com toda a atenção, para ver se noto na voz dele algum sinal de despeito por eu ter cancelado o nosso jantar. Construí uma mentira, que estava severamente constipada e até fimgi vários espirros. Porém, o rapaz não entendeu a mensagem e continuou a insistir em sair comigo logo que eu estivesse melhor. Por fim, tive de lhe dizer que era demasiado cedo para andar com outro homem, pois ainda tinha diversas feridas por sarar. Disse que compreendia e ofereceu ajuda, que bastava uma chamada telefónica, se eu alguma vez precisasse de alguém com quem desabafar. Hoje, felizmente, ele parece muito alegre, o que me leva a sentir menos remorsos do que antes. Diz que, pelas 18 horas, a casa vai ser vista por três casais. - Poderá lá estar? - pergunta.

- Não, trabalho até tarde.

- Oh, que pena. Talvez para a próxima.

- Hum! - murmuro. - Talvez.

Quarta-feira, 5 de Maio de 1999

19h38

Acabo de chegar a casa e dou uma volta para verificar se noto alguma mudança. É esquisito saber que andaram estranhos em minha casa, a formarem opiniões acerca do apartamento e de mim própria. Gostaria de saber o que pensaram das cores da cozinha. Deixo os sapatos na entrada, dirijo-me ao frigoríFico e tiro uma embalagem de sumo e encho um copo. A beber e a caminhar para a sala, ouço o aparelho que está na mesa perto do radiador a receber uma mensagem. É do Terry - Um dos casais, um Mr. Blake, designer gráfico, e Miss Quilliam, assistente de fotografia, tinham marcado uma segunda visita ao apartamento. Decidi ser forte e, desta vez, esperar por eles.

Quinta-feira, 6 de Maio de 1999

19h30

Tocaram a campainha.

Enquanto caminho para a porta, vou a pensar que talvez devesse espalhar no o ar o cheiro a café ou a pão cozido para tornar o apartamento mais acolhedor. Não deixo de sorrir ao farejar o ar e pensar que os visitantes vão ter de se contentar com o odor do meu arroz de marisco, aquecido no microondas, que emana da cozinha.

Abro a porta e deparo com um Terry sem a pêra, o que o faz parecer ainda mais jovem. Junto dele está o casal que vem ver o apartamento. Têm ar de artistas e, mesmo que quisessem, não conseguiriam esconder a juventude. Ele tem o cabelo comprido penteado em rabo-de-cavalo e usa calças militares verde- azeitona, ténis e um casaco de couro artisticamente envelhecido; ela veste-se exactamente da mesma maneira, ao ponto de também usar o cabelo ruivo penteado em rabo-de-cavalo. Parecem duas daquelas figuras usadas como suporte para livros.

- Apresento-lhes o David e a Amanda - anuncia o Terry. Sem dúvida que adoram o seu apartamento.

- Achamo-lo fascinante - interrompe a Amanda. - Gosto do que fez na casa de banho.

- É fantástico - corrobora o David. - É exactamente aquilo que procuramos.

David e Amanda dizem-se preparados para pedir muito dinheiro emprestado aos pais e a endividarem-se eles próprios até ao pescoço para poderem comprar a casa. Parecem tão bonitos e tão desesperadamente jovens que me levam a informá-los de que, se a proposta deles for adequada, podem ficar com o frigorífico e com o fogão de borla. Não me preocupo com a provável objecção do Jim. Pudesse ele observar o brilho nos rostos deles quando lhes dei a notícia, talvez até o coração frio do Jim se derretesse. Volto a chorar depois de eles saírem porque sei, do fundo do coração, que este casal vai ser bastante mais feliz nesta casa do que eu e o Jim fomos.

Quarta-feira, 9 de Junho de 1999

23h35

Encontro-me sentada no sofá, com a Disco no colo, por ser o meu o único colo disponível. Ao meu lado tenho um prato, que já con teve uma batata cozida com a casca e feijões cozidos. O televisor está ligado, mas sem som, enquanto vou lendo a secção dos corações solitários do Guardian do passado fim-de-semana. Leio todos os anúncios de mulheres. Não os dos homens. As mulheres! São as mulheres que me interessam nestas páginas. Por detrás da mensagem de cada trintona esquerdista, com grande sentido de humor, que procura uma alma gémea, está uma mulher atractiva, inteligente e solvente em termos financeiros, que gosta de teatro, música e longos passeios pelo campo, e todas procuram o amor. E fico a pensar como é que eu vou consegui-lo, quando a fria realidade da vida obriga mulheres belas e inteligentes a exporem-se em anúncios de jornal.

Pego numa caneta e passo os minutos seguintes a escrever a minha própria mensagem para a secção dos corações solitários. O melhor que consegui, foi:

Anda à procura da felicidade? Estou no final da casa dos vinte. Sou romântica, leal, de bom feitio, ex- esquerdista, gosto de cinema, teatro e badminton. Procuro: indivíduo alto, alegre e perito na arte da conversação. Juntemo-nos e vejamos o que dá."

Escrever o anúncio fingido obrigou-me a pensar em mim e no Jim. Continuo a não admitir o facto de que está tudo realmente acabado entre nós. Estivemos juntos tanto tempo, pensei que seria para sempre. E, agora, a relação mais prolongada de toda a minha vida desfez-se. Não consigo pensar no trabalho, não consigo pensar seja no que for. Só desejo enroscar- me e chorar. Tenho chorado tanto durante estes últimos meses que começo a ficar farta de lágrimas. A quantidade de lágrimas disponíveis também tem limites. Uma vez que o atingimos, tudo o que resta é a raiva, a amargura e uma incrível sensação de se ter sido magoada.

O problema é que não consigo compreender como é que chegámos a este ponto. Não percebo mesmo nada. Tenho estado a viver com o Jim desde 1993. E não consigo perceber como é que uma situação tão boa pôde deteriorar-se a este ponto. Não tenho pensado noutra coisa, de dia e de noite. E regresso sempre às mesmas perguntas. Como é que isto nos aconteceu? Por que motivo nos aconteceu? Quando é que isto nos aconteceu? Repito a mesma pergunta vezes sem conta, a falar comigo mesma: O que é que correu mal? " É evidente que também converso com amigos, especialmente com a Jane. Porém, por mais amigos que sejam, na realidade jamais conseguirei que me falem verdade; porque estão do meu lado. Chegam sempre à conclusão de que a culpa foi do Jim. E, se em parte estou de acordo com eles, a constatação do facto não me parece suficiente. Provoca-me um vazio. Não me dizem nada que eu ainda não saiba. Quero... preciso de saber, sem sombra de dúvida, que o afastamento dele não foi provocado por mim.

Pelo canto do olho, avisto o telemóvel.

Pego-Lhe. Pouso-o.

Volto a pegar-lhe.

E largo-o, uma vez mais.

Finalmente, pego-lhe, percorro a agenda, encontro o número do Jim e ligo. Toca várias vezes, até se ouvir o clique do gravador. Respiro fundo e deixo-lhe uma mensagem.

23h56

É tarde. E Londres é barulhenta. O ar está cheio de sons de táxis, de autocarros, de vendedores ambulantes de cachorros- quentes, a que se juntam as conversas dos noctívagos que vão saindo dos bares mais próximos. Ainda estou com o fato de trabalho. A gravata está no bolso do casaco e, mesmo não sendo fumador, cheiro a tabaco. Estive a beber uns copos com o Nick. Falámos de programas de televisão, de trabalho, das razões que os levam a servirem sempre aquela cerveja belga branca, em canecas para meninas, dos discos que comprámos nas semanas mais recentes e um pouco de política. Agora, enquanto eu e o Nick estamos na Tottenham Court Road à espera do autocarro para cast Finchley, sinto-me agoniado e cheio de pena de mim mesmo.

O telemóvel toca. Tiro-o do bolso para ver de que se trata. Segundo parece, não atendi quatro chamadas e tenho diversas mensagens por ler.

Mensagem n. 1: Jim, sou eu. Longo suspiro, exagerado, e pausa para respirar. Escuta, sei que ambos dissemos um ao outro uma série de barbaridades depois... bem, depois de nos separarmos... mas agora que o apartamento está à venda e já contratámos advogados, parece-me que... que devíamos dar uma última oportunidade à nossa relação. Julgo que uma conselheira matrimonial nos poderia ajudar verdadeiramente...

Mensagem n. o 2: Jim, sou eu, a Alison, outra vez. Longo suspiro, exagerado, e pausa para respirar. Acho que a chamada caiu. Pausa. Já nem recordo o que estava a dizer. Longa pausa. Ah, já me lembro, a conselheira. Jim, a verdade é que necessitamos de ajuda. Sei que desististe da nossa relação, mas eu ainda não desisti. Pausa. Escuta, venhas ou não, eu tenho de ir visitá-la daqui a duas semanas. É uma das autoras de um livro em que estamos a trabalhar. Escreveu aquele livro de auto-ajuda que uma vez levei para casa: Como Fazer o Amor Desabrochar De qualquer forma, chama-se Caroline Roberts e tem consultório em Crouch Ends, logo à saída da Broadway. O pagamento das sessões Fica inteiramente por minha conta. Por favor, vem pelo menos uma vez, está bem? Só precisas de aparecer. Não é tão fácil? Tudo o que tens a fazer é voltar...

Mensagem n. o 3: Isto está a tornar se ridículo. Longo suspiro, exagerado, e pausa para respirar. Por que será que estas coisas não funcionam? " Outro longo suspiro, exagerado, e nova pausa para respirar. Não estou num concurso de perguntas e, ao telefone, ninguém me apressa". Suspiro ainda mais exagerado e pausa para respirar. No caso de quereres saber, fala a Alison, uma vez mais. Na verdade, julgo que precisamos de esclarecer o que se passa entre nós e não posso fazê-lo sozinha. Certamente que poderemos esquecer o que se passou sem..."

Mensagem n. 4: Este aparelho é uma desgraça! Sou eu. Agora, já sabes o que pretendo. Escuta, por favor, liga para mim e dá-me a tua opinião. Logo que possas.

Mesmo bêbado, sei que o melhor é não responder às mensagens. É preferível que fique tudo como está. Não consigo perceber a razão que a leva a insistir nos conselheiros matrimoniais. É provavelmente a pior coisa que ela alguma vez me disse. A ideia de envolver uma terceira entidade que analise os problemas existentes entre nós faz-me estremecer. Nem consigo perceber como seria doloroso começar a falar disso. Se eu nem consigo ler os problemas pessoais do Mail on Sunday's, na última página da revista You sem torcer o nariz perante a falta de vergonha das pessoas.

Quarta-feira, 7 de Julho de 1999

17h34

Encontro-me perto da ponte de Blackfriars e está a chover. Ainda penso em tirar o chapéu-de-chuva da mala, mas a chuva tem algo de doce, de afirmação de vida, pelo que continuo a andar e a apreciar o bater dos pingos de água contra o meu rosto. Dentro de minutos, chego ao meu destino: o emprego do Jim. Não espero encontrar-me com ele. Em vez disso, alimento a esperança de que a minha presença na vizinhança seja captada pelo seu radar psíquico e que isso seja suficiente para o envergonhar, para o obrigar a agir. Não posso acreditar que não me tenha telefonado depois de todas aquelas mensagens. Não posso crer que ele não deseje dar-nos uma segunda oportunidade. Ou, pelo menos, encontrar uma maneira de esclarecer as coisas entre nós. Meto a mão no bolso, agarro o telemóvel e percorro a agenda até encontrar o número do Jim. Então, pressiono o botão de ligar. Não fico nada surpreendida quando a chamada é desviada directamente para o voice-mail, como vem sucedendo há semanas.

- Sou eu outra vez - começo, com voz cansada. - Há séculos que não me telefonas. Sei que ainda estás por cá, porque te vi, acom panhado do Nick, no Yorkshire Grey, na Langham Street e, antes que o penses, sou eu quem te diz que fui lá de propósito, embora não se tratasse de andar a vigiar-te... Queria apenas falar contigo, mas acabei por decidir que não seria boa ideia ter a conversa contigo num bar, em frente dos teus amigos. Será demasiado pedir-te um simples favor? Por nós? Marquei uma consulta com Mrs. Roberts. Vai lá, por favor. Na verdade, penso que esta é a nossa última oportunidade.

23h33

É tarde. Sinto-me cansada e preciso de ir para a cama. Em vez de o fazer, fico sentada na sala com a gata, a ouvir a música mais triste que consegui encontrar. Dado que tenho apenas dois CDs: The Best ofDisco Volume 2 e The Man Jho, dos Travis, a escolha não foi muito difícil. O álbum dos Travis satisfez-me. Adapta-se na perfeição ao meu estado de melancolia, além de ser a música ideal para ouvir enquanto bebo três quartos de uma garrafa de Merlot e fumo quase um maço de Marlóoro Ligbts, a acender os cigarros uns nos outros, tudo em menos de uma hora. Quando o álbum está a chegar ao fim, olho para a garrafa de vinho que está à minha frente, despejo o que resta num copo e pego nos cigarros e no isqueiro. Só me resta um cigarro. Tiro-o do maço e levo-o aos lábios. Estou prestes a acendê-lo mas suspendo o gesto. Isto é uma estupidez, penso para mim própria. Nem sequer sinto sede e tenho um casamento falhado e um vício de fumar que provavelmente me leva à morte num dia destes. Ponho o cigarro e o isqueiro dentro da embalagem vermelha e branca dos Marlboro Lights. A seguir caminho para o quarto dos hóspedes, ajoelho-me aos pés da cama, pego numa velha mala de viagem castanha e abro- a. Lá dentro guardo cartas antigas de amigos e da família, fotografias dos meus tempos de jovem, velharias sentimentais e recordações de dias mais felizes. Deixo cair o maço de cigarros lá dentro, fecho a mala e guardo-a debaixo da cama.

Acabou-se, penso com os meus botões. Jamais voltarei a fumar

um cigarro.

Sexta-feira, 6 de Agosto de 1999

9h54

Hoje é o dia da venda do apartamento. Através dos advogados, a Alison e eu concordámos estar ambos presentes no escritório da firma Fitzsimmons and Barclay, em Highgate, para assinarmos o contrato. Não tínhamos de nos encontrar cara a cara. De facto, a minha advogada tentou dissuadir me de o fazer, considerando que o acto poderia causar me um enorme stress emocional. Não Lhe dei ouvidos, como seria de esperar. Julgo que um certo grau de stress emocional é o mínimo que a minha relação com a Alison merece. De outra forma, seria tudo demasiado higiénico. Demasiado cirúrgico. Desejo dizer adeus a esta relação. Desejo pôr-lhe fim. E este vai ser o acto final. Não sei se a Alison pensa o mesmo. Presumo que sim, pois deu o seu acordo.

Fitzsimmons and Barclay é tudo o que eu espero de uma firma de advogados. Há uma recepcionista, algumas palmeiras fingidas em vasos e uma sala de espera onde estão duas pessoas sentadas: a minha ex-mulher e o seu advogado. Alison vem de blusa preta, calças de ganga azul-escuras e botas pretas, de salto. Cortou o cabelo e usa uma nova cor de batom. Pelo meu lado, pareço um pouco desalinhado. Pedi um dia de dispensa no emprego, pois, ao acordar pela manhã, senti-me muito perto de perder a vontade de viver. Visto uma Tshirt com a legenda Northern Soul, que comprei numa loja de Covent Garden por ter visto numa revista a fotografia de um músico com uma igual, um casaco de riscas, bermudas de cor bege e um par de ténis Converse All-stars. A escolha tem a sua razão de ser. Não pretendo o aspecto de um contabilista trintão com uma longa relação fracassada. Quero mostrar-me um homem livre, interessante e mo derno que tem o mundo a seus pés.

- Olá! - cumprimenta a Alison, pondo-se de pé para me olhar directamente. - Como estás?

Cumprimento-a com um curto sorriso. - Bem.

- Não respondeste aos meus telefonemas.

- Tenho andado realmente atarefado.

- Também não interessa. Cancelei a consulta. Mas é provável que faça nova marcação e vá sozinha.

O meu instinto mais profundo quer perguntar lhe a razão de ir sozinha a uma consulta de aconselhamento matrimonial. Mas não pergunto, pois a resposta teria de envolver a minha recusa. Em vez disso, introduzo um novo tema de conversa, um assunto menos propício a terminar em discussão. Como é que está a gata?

- Chama-se Disco.

- Pois bem, como é que está a Disco?

- Está bem.

- Óptimo. Dá-lhe um abraço felino da minha parte.

O advogado da Alison levanta-se logo que a minha advogada entra na sala. Muitos sorrisos e apertos de mão, e depois percorremos um pequeno corredor até a um gabinete. A minha advogada diz qualquer coisa em linguagem técnica e, entretanto, a Alison e eu ficamos a olhar como se percebêssemos aquilo que eles estão a dizer.

Acaba por chegar a altura em que temos de assinar os papéis necessários. A Alison assina primeiro, sem olhar para mim. Não sei o que esperava dela, mas era certamente mais do que aquilo. Agora, é a minha vez. Três contratos e uma caneta de tinta permanente preta. Felizmente, puseram umas etiquetas vermelhas a marcar os sítios onde temos de assinar. As marcas vermelhas fazem me sentir demasiado estúpido para saber o que está ali a passar-se. Sinto-me como um miúdo de seis anos a praticar caligraFia. Olho para a assinatura da Alison. Parece muito mais bem feita do que a minha. Assento o aparo no papel e o coração começa a bater me mais depressa. Ao sair da ponta do aparo o meu nome parece acelerar. Quase esperava que a Alison deixasse escapar um suspiro, desmaiasse ou Fizesse qualquer gesto igualmente dramático. Mas ela não faz seja o que for.

Uma já está. Só faltam duas.

Observo as assinaturas completas, a minha e a da Alison lado a lado. O meu estômago resolve juntar-se à cerimónia e executa movimentos bruscos. Não consigo deixar de pensar que, nos próximos sessenta segundos, vai acontecer algo que faça parar todo o processo. Porque sei que, depois de assinar o meu nome mais duas vezes, haverá menos um elo a ligar nos. Será o início do processo que vai fazer nos voltar a ser duas pessoas separadas. Eu voltarei a ser o Jim. Ela voltará a ser a Alison.

Assino o segundo documento.

Duas já estão. Falta uma.

Finalmente, assino o terceiro papel.

Não há mais nada para assinar.

Porque tudo está quase acabado. Não tarda que o par Alison + Jim deixe de existir.

 

                 O PRESENTE

                 2003

                 Sexta-feira, 17 de Janeiro de 2003

10h45

Estou em casa à espera do toque da campainha. É estranho pensar que, dentro de minutos, vou ver o Jim pela primeira vez, quase quatro anos depois. Tenho estado a tentar imaginar como é a vida dele sem mim e cada tentativa acaba num miserável fracasso. Quando resolvemos seguir caminhos separados, foi quase como se ele deixasse de existir. Como se tudo não passasse de um sonho. Estou a pensar em ir buscar o casaco quando a campainha toca. Pego no auscultador do telefone interno.

- Quem é?

- Sou eu - responde o Jim.

- Já te abro a porta.

Enquanto ele sobe a escada, chego à porta da frente e fico à es pera.

- Viva! - saúdo. - Queres entrar por uns momentos? Entra atrás de mim no apartamento e fecha a porta.

- Tens uma bela casa - comenta, ao sentar-se no sofá. - Muito tua. Há quanto tempo é que moras aqui?.

- Há cerca de seis meses - respondo-lhe.

- Sozinha?

- Perdão?

- Desculpa... Só estava a perguntar se compraste o apartamento sozinha.

- Não, comprei-a a meias com o Marcus... o meu namorado - esclareço, a apontar uma fotografia colocada sobre a lareira.

- São os dois juntos?

- Foi tirada na Nova Zelândia, no Verão passado.

- Vão casar-se?

- No dia de São Valentim. E tu? De momento, tens alguma relação? Acena que sim.

- Continuas a ser o grande comunicador. Ela tem nome?

- Chama-se Helen.

- É uma ligação a sério?

- Estamos a pensar viver juntos, se é isso que queres perguntar. Consulto o relógio e ponho-me de pé. - É melhor irmos. Só vou buscar o casaco e dar um jeito no cabelo.

Não me demoro, deixamos o apartamento e começamos a andar pela rua. À medida que caminhamos, vamos falando das nossas vidas em termos genéricos e pouco sobre aquilo que tencionamos fazer. Falo-lhe dos preparativos para o meu casamento. Ele, por sua vez, fala-me da estranha paixoneta entre ele e a Helen. Quando chegamos à clinica veterinária já não somos exactamente estranhos um para o outro, mas também não somos velhos amigos. Seremos uma espécie de velhos conhecidos que perderam o contacto.

11h07

- Nunca Fiz nada de semelhante - informo, quando ainda estamos do lado de fora da clínica veterinária. - Como é que devemos agir?

- Não sei - responde a Alison. - Quando era miúda tivemos uma rafeira, a Clara, que morreu, mas eu tinha apenas onze anos.

- Quais são as opções?

- Julgo que podemos levá-la connosco e enterrá-la algures ou pagar à clínica para eles tratarem de tudo.

- Achas que devíamos ser nós a enterrá-la?

Ela encolhe os ombros. - Não sei. O que é que tu preferes?

- Não sei. Ela nunca foi uma gata que gostasse muito de andar por fora, pois não?

A Alison responde-me com um sorriso ao abrir a porta da clínica. Sigo-a e Fico um passo atrás enquanto ela se dirige ao balcão e fala com uma enfermeira.

Querem levar a. - baixa os olhos para o papel para ver o nome. a Disco convosco?

A Alison olha para mim.

- Não tenho a certeza de conseguir olhar para ela no estado em que está - admito, dirigindo-me à Alison.

- Nem eu.

Penso que será melhor que se encarreguem de. - não consegue acabar a frase. - Sei que pode parecer uma estupidez, mas importa-se de trazer a caixa onde eu a trouxe, para nos podermos despedir?

A enfermeira acena que sim e desaparece por detrás de uma porta. Reaparece momentos depois com a velha caixa de Ialkers e pousa-a em cima do balcão. A Alison começa a chorar e acaricia a caixa, enquanto eu me limito a olhar. Aquela estúpida caixa. E também estou quase a chorar.

Foi assim o nosso adeus.

12h04

O Jim e eu estamos agora em frente da clínica veterinária, sem sabermos muito bem o que fazer.

É ele o primeiro a quebrar o silêncio: - Estou realmente satisfeito por me teres chamado.

- Obrigada por teres vindo - respondo. - O problema é que... não quero criar nenhum mal-entendido, mas... quando disse ao Marcus o que tinha acontecido ele ficou triste por causa de mim e também triste porque gostava da Disco; apesar disso, não consegui afastar a ideia de que ele não estava a sentir o mesmo que eu.

- Julgo que aconteceu o mesmo com a Helen. Mostrou-se compreensiva mas não é a mesma coisa quando se trata de um animal nosso.

- Não achas estranho? Que de todas as pessoas do meu mundo: o Marcus, a família, os meus amigos, a única pessoa que sabe exactamente o que sinto neste momento és tu? Há muito que não fazemos parte da vida um do outro e, no entanto, estamos aqui, duas pessoas que já se amaram, a dizer o último adeus à sua gata.

Segue-se outro silêncio prolongado, que agora é interrompido por mim:

- É melhor eu ir indo.

- Eu também.

Instintivamente, rodeio-o com os braços e aperto-o com força, enquanto ele faz o mesmo. Ficámos abraçados durante o que me pareceram minutos, mas o mais provável é terem sido apenas uns segundos. E acabou-se.

- Realmente, tenho de ir-me embora - acabo por dizer. Sorrio e acrescento: - Que tenhas uma vida feliz. Desejo que sejas verdadeiramente feliz.

- O mesmo para ti. Que tudo corra pelo melhor no dia do teu casamento.

Começo a caminhar em direcção a Crouch End Broadway, mas paro e volto-me para trás: o Jim continua no mesmo sítio onde me despedi dele. Caminha para mim e eu caminho para ele, para nos encontrarmos a meio do caminho.

- Não quero parecer presunçoso - começa -, mas não estarás a pensar o mesmo que eu?

Solto uma gargalhada: - Nem mais!

- É que... bem, não te vejo há muito tempo. Parece esquisito que nos separemos desta maneira.

- Sei o que pretendes dizer. Também sinto o mesmo.

- Por que é que não vamos beber um copo? Só um para... bem para podermos conversar.

- Parece-me uma excelente ideia - replico. Vamos apenas conversar.

12h11

A Alison e eu estamos agora sentados num canto do Red Lion. O bar está relativamente vazio, embora se vejam pequenos grupos de pessoas à volta do balcão. A música ambiente é popular. Suspeito que um dos empregados do bar pôs a tocar um arranjo em cD com músicas de há cerca de dois anos, pois muitas das canções parecem-me conhecidas. Desde que saímos da clínica veterinária, a Alison tem estado conversadora, mas não em demasia. Falamos do trabalho (está a correr muito bem), dos pais dela (também estão muito bem), da minha mãe (também está bem). Estou a pensar em pedir outra bebida quando a Alison pigarreia, a preparar-se para falar.

12h12

- Não quero ser mal interpretada - começa -, mas tenho estado aqui a magicar: costumas pensar em nós?

- Por vezes - respondo. - Quando acabou, foi uma grande complicação.

- Foi, não foi? - concorda a Alison. - Mas o que sucedeu hoje leva-me a pensar no passado. A Disco fazia parte da nossa história. Do nosso passado comum. E o problema é que, quando as coisas dão para o torto, como aconteceu connosco, acabamos por nunca conhecer os verdadeiros motivos.

de tudo ter corrido mal - interrompo.

- Exactamente.

- Pois. Também pensei nisso algumas vezes.

- A minha pergunta é: não tens curiosidade de saber? - acrescenta ela. - Vivemos mais de seis anos juntos. Quando é que a relação deixou de funcionar? Por que razão deixou de funcionar? Teremos mostrado o pior de nós ambos? Não serão estas as perguntas que qualquer pessoa gostará de ver respondidas quando se separa de alguém?

Rio-me. - Acho que inicialmente estamos convencidos de que a culpa é do outro.

- Oh, absolutamente. Quando nos separámos, era bem capaz de te acusar de teres iniciado a Segunda Guerra Mundial.

- E agora?

- Bem, agora a minha apreciação é um pouco mais justa. E a tua?

- A minha apreciação sempre foi cem por cento justa - afirmo, provocando-lhe um franzir da testa. - Estou a brincar. Concordo contigo. Agora consigo analisar a situação de outra maneira. Há coisas que lamento.

- Também eu.

- Queres falar sobre isso? Sobre nós? Um assunto algo estranho, não achas? Mas eu gostaria de tentar.

- Por que não? Ambos temos novas relações.

- Ambos estamos felizes com os nossos parceiros.

- Então, vamos a isso - sugere a Alison. - Vamos lá descobrir onde é que errámos.

12h27

- A primeira pergunta que desejo fazer-te é a seguinte - começa a Alison. - Pondo de lado as coisas importantes, de que certamente falaremos mais cedo ou mais tarde, quando vivíamos juntos, de entre tudo o que eu fazia, o que é que te desagradava?

- Vais achar estranho, mas sabes a primeira coisa que me veio à cabeça quando fizeste a pergunta?

- Não.

- Vais rir-te.

- Não me surpreende nada.

- Amaciador capilar.

- Amaciador capilar? Como é que uma pessoa normal pode aborrecer-se com a outra por causa de um condicionador para o cabelo?

Não consigo conter o riso. - Tinhas sempre toneladas, como se estivesses a precaver-te para o caso de haver uma guerra e uma falta generalizada de amaciadores caros para tratamento de cabelos secos e doentes - explico. - A tua noção de poupança consistia em comprar tudo o que estivesse em promoção no supermercado, género pagar duas embalagens e levar três. O que significava teres sempre à mão umas seis marcas diferentes de produtos para o tratamento capilar. Não sei se alguma vez reparaste nesse pormenor, mas tens apenas uma cabeça - acrescento, provocando gargalhadas à Alison. - E já que estamos a falar disso, não sei para que servem esses produtos. O champô percebo. O champô é útil, serve para lavar o cabelo. O condicionador não serve para nada, é uma treta. Eu sei, usei-o por diversas vezes enquanto durou a nossa relação e nunca senti qualquer diferença. Depois de o aplicar, o meu cabelo ficava exactamente na mesma, era apenas cabelo. Portanto, se levas três frascos de um líquido que não beneficia nada o teu cabelo mas só pagas dois frascos de um produto inútil, não estás a poupar dinheiro, estás, isso sim, a deitar dinheiro à rua.

Faço uma pausa para recuperar o fôlego e desatamos ambos a rir, até que acrescento: - Mas tirando isso eras óptima.

- Costumava, por vezes, desejar que fosses um pouco mais vulnerável - recordo. - Quero dizer, não quereria que te pusesses a soluçar a cada cinco segundos, só por estares a ver os últimos cinco minutos do programa de televisão Pet Rescue. De facto, até gostava

que fosses machão. E gostava pelo facto de o teu comportamento ser tão estranho e diferente do meu. Mas, por outro lado, e aqui tenho a certeza de que vais estar em desacordo comigo, penso que, na realidade, tu possuis um pouquinho daquelas características femininas em que poucas pessoas reparam; e não me teria importado de que possuísses um pouco mais.

O Jim solta uma gargalhada, que assumo seja uma maneira de se mostrar muito viril. - Não tenho nada de feminino. Estás a inventar.

- Não digo que seja muito evidente, porque não é, mas em ti há coisas que me surpreendem.

- Tais como?

- Pois bem, este é apenas um pequeno exemplo, mas fascinava-me a maneira como secavas as pernas quando saías do banho.

- O quê?

- Costumavas sair do duche com movimentos delicados, como se fosses uma daquelas damas afectadas da era vitoriana, depois sen tavas-te na borda da banheira e secavas os pés. Mas não aproximavas os pés do corpo, como faz a maioria dos homens, estendia-los como se fosses uma bailarina e depois inclinavas-te para diante. Não fizeste isso apenas uma vez. Agias sempre da mesma maneira. É uma verdade que confirmei.

- Não quero crer que dedicasses a tua massa cinzenta à análise desse género de disparates. Sabes uma coisa? Não posso defender- me da tua acusação porque não faço ideia da forma como seco os pés quando saio do banho.

- Falas assim porque nunca dás importância aos pormenores. No entanto, numa relação os pormenores são o mais importante, pois podem recordar-nos, precisamente quando mais necessitamos de ser recordados, as razões que nos levaram a apaixonar-nos por alguém.

- Estás a dizer que te apaixonaste por mim por causa da maneira como seco os pés?

- Apaixonei-me por mil razões diferentes. A maneira como secas os pés foi apenas uma delas.

- Sei que estavas apenas a dar um exemplo, mas ainda não percebeste que os pormenores foram uma parte do nosso problema? Se estiveres sempre a reparar nas minúcias, vais sempre reparar em qualquer coisa que as outras pessoas não notam.

- É exactamente isso.

- Ora bem, é tudo muito bonito quando as minúcias são positivas: aquelas coisas que consideras bonitas e adoráveis. E quando se tratava de pequenos pormenores negativos, as mil e uma coisas diferentes que eu fazia todos os dias e tu detestavas, mas das quais eu não tinha consciência?

- Como a tua mania de mudares de canal sempre que surgiam anúncios, embora soubesses que eu os apreciava.

- Quem é que vê a publicidade?.

- Ou a de pensares que de certa maneira me fazias um grande favor ao levares o lixo para o contentor que estava ao lado da casa.

- Mas nunca o fizeste durante o tempo em que vivemos juntos.

- E tu nunca ligaste a máquina de lavar. Como é que pensas que as tuas roupas apareciam lavadas? Por magia? E estás a distrair-me pois tento lembrar-me da coisa que mais me irritava de entre tudo o que fazias.

Faço uma pausa para passar em revista toda uma lista de razões de queixa, até que a descubro. - Já sei. O pormenor que mais me irritava era tu comeres doze donuts, uma embalagem inteira do supermercado, antes que eu pudesse meter o dente num único.

- Contudo, se estivesse à espera de que abrisses a caixa, os bolos acabavam por estragar-se e eram atirados para o lixo.

Rio e abano a cabeça. - Tens razão quanto a uma coisa - admito. - Os pormenores são perigosos. Podem levar uma mulher a amar num dia e a detestar no dia seguinte.

12h56

O Jim está a olhar-me com curiosidade.

- O que é? - interrogo.

- Há uma pergunta que sempre quis fazer-te.

- Avança.

- Cerca de quatro meses depois de nos termos separado, sentei-me para ver a série The Projessionals (Os Profissionais).

- Os Profissionais?

- Sim, tu sabes do que estou a falar. É uma série dos anos 70, com Bodye e Doyle, um Ford Capri e grandes perseguições a criminosos.

- Ah, já estou a ver.

- Bom, então recordas-te? Repetiram a série num canal por cabo. Lembras-te?

- Recordo-me de quase me fazeres chorar de tédio a vê-la.

- Eu disse-te que ia gravar os episódios todos.

- Lembro-me disso, mas apenas por me dizeres que não ias vê-los.

- Pois bem, estava em casa e pus a primeira cassete no leitor, premi o botão para começar, à espera de ver o primeiro episódio da primeira série. Sabes o que continha a cassete?

- Não.

- Eu digo-te. Era um episódio de Ricki Lake.

- E pensas que fui quem fez a troca?

- Penso, deves ter sido tu, depois de uma discussão e por saberes que assim evitarias que eu visse a série.

- Não podias ver os outros episódios?

- Não. Queria vê-los todos, por ordem cronológica. Era importante para mim.

- Bem, é provável que tenhas razão e tenha sido eu - admito com uma certa ligeireza. - Não te imaginaria a gravares um episódio de Ricki Lake, nem que vivesses um milhão de anos. Era um bom episódio?

- Fizeste aquilo de propósito, não foi?

- Bem, é provável que me tivesse agradado ver-te mais chateado do que era costume, mas não o fiz de propósito. Não sou assim tão vingativa. Suspeito de que tenhas deixado a cassete no gravador e que eu partisse do princípio de que era uma cassete virgem.

- Não verificaste? Não foi uma irresponsabilidade?

- Sou muito irresponsável - admito, a tentar esconder um sorriso. - Ainda estás muito zangado por causa disso, não estás?

- Só um bocadinho - responde o Jim, a tentar desvalorizar o incidente.

Mostro um ar humilde. - Bom, considero que recebi uma repreensão completa.

13h05

- Quando se tornou evidente que íamos separar-nos, alguma vez pensaste que nos manteríamos em contacto? - pergunto.

- Sabia que não - responde.

- Eu também. Depois de vivermos juntos todo aquele tempo, não me pareceu possível continuarmos a fazer parte da vida um do outro.

- Tínhamos ido demasiado longe para isso.

- Como poderíamos ser apenas bons amigos depois de termos sido tudo um para o outro? Preferia nunca mais te ver do que considerar-me tua amiga. Preferia que desaparecesses da minha vista. Ou que deixasses de respirar.

- E se eu morresse?

- Se tivesses morrido naquela altura, iria ao teu funeral. E penso que provavelmente estaria triste e choraria sem parar.

- Porquê?

- Porque é difícil alimentar rancores em relação aos mortos. Segue-se um prolongado silêncio e, de súbito, sem razão aparente, ambos desatamos a rir.

13h10

- Nem posso acreditar que tenhamos estado a conversar assim durante mais de uma hora - explico. - Julgo que há muito que desejas ir-te embora.

- Na verdade, não quis. Gostei mesmo muito de conversar contigo.

- Mas agora tens de ir?

- E tu, não tens?

- Hoje deveria estar a trabalhar em casa, mas não estou muito preocupado. E tu?

- Não tenho nada que fazer.

Queres outra bebida?

- Bebo um copo de vinho branco, se não te importas - diz a Alison.

- Seco.

- Tens fome? Posso arranjar uma ementa.

Ela ri-se. - Mas isso seria almoçarmos juntos, ou não? E seria um pouco estranho, não achas?

- Estou a ver aonde queres chegar. Nesse caso, trago amendoins? Ninguém pode interpretar erradamente um pacote de amendoins, pois não?

- Está bem. Venham os amendoins.

13h17

Ao regressar à mesa com os amendoins, um copo de vinho branco e uma caneca de cerveja, comento: - Ali ao balcão, estava a pensar que nos primeiros dias da nossa relação tu eras céptica em relação a tudo.

- Ai era? - indaga a Alison.

Pois eras.

Não tinha consciência disso.

- Iria até mais longe para dizer que, nos primeiros tempos da nossa relação, tu eras mais machista do que eu. Estou pronto a admitir, e não o faço de ânimo leve, que nos primeiros tempos da nossa relação eu era o mais inseguro. Nunca consegui compreender como em certas ocasiões

conseguias ser tão dura. Uma coisa é certa, quando nos juntámos estava maluco por ti. Nunca pensara que tal coisa pudesse vir a acontecer-me. Por isso, nos primeiros tempos, como muitas vezes te mostravas muito reticente, julgo que impunhas mais respeito do que qualquer outra mulher com quem já tinha estado envolvido. Quero dizer, já tive mulheres que não

estavam interessadas em mim, uma situação que deve ter sido vivida pela maioria dos homens. Mas ter uma mulher que está interessada em nós, mas continua a dominar perfeitamente as suas emoções, é outra coisa.

- Estás a dizer que muitas das mulheres não se dominam? É que estás a meter-te por caminhos difíceis.

- Não estou a dizer isso. Estou a apenas a dizer que eras... equilibrada. É assim que te descreveria. Equilibrada. Porém, quanto mais aprofundávamos a relação, mais as tuas defesas iam cedendo. E, de início, isso foi positivo, porque signiFicou que já não era necessário superar o outro. Éramos iguais, com o mesmo empenhamento na relação. O problema é o seguinte: se nessa altura tivesses elaborado um gráfico, em que a linha vertical medisse o empenhamento e a horizontal representasse o tempo, se o meu traço fosse o azul e o teu o cor-de-rosa...

Gargalhada da Alison: - Cor-de-rosa! Está a querer que o meu traço seja cor-de-rosa? Nem gosto da cor. Já me viste com alguma coisa cor-de-rosa? Nem quero acreditar que estejas a ser tão primitivo.

- Qual é a cor que preferes?

- O verde.

- Óptimo. Seja verde. O importante é que no início o meu traço estaria alto e o teu estaria baixo; mas, com a continuação da relação, os dois traços, o azul e o verde, acabariam por encontrar se. Ficariam sobrepostos. De facto, iriam manter se nessa posição durante algum tempo, até que, subitamente, enquanto o meu traço se mantinha à mesma altura, o teu subiria de forma acentuada, como se fosse uma espécie de foguetão lançado para a Lua. Foi assustador. Desconcertante.

- Não que eu concorde com uma única das tuas palavras, mas ocorre-me perguntar: por que é que isso te preocupou?

- Porque senti que o meu traço permanecia exactamente igual. Não subia nem descia. Eu era o mesmo.

- No entanto, admitiste que, no início, estavas por cima e eu por baixo, o que não te pareceu tão mau como isso, pois não? Na verdade, disseste que me respeitavas. Então, por que motivo, subitamente, as regras mudaram?

- Não sei. É que... como hei-de dizer... bem... as mulheres não entendem nada de equilíbrios, pois não? São tão preto e branco; é assustador. Para elas é tudo ou nada, dentro ou fora, nada interessada em ti ou vou dedicar te toda a minha vida, e, embora qualquer das duas disposições seja útil numa dada ocasião, o exagero de uma ou de outra pode pôr um homem maluco.

- Encara a verdade, Jim; és um exemplo vivo - pois respiras, comes e dormes - do maior machão tradicional. Desejas o que não tens e quando o consegues obter já não estás interessado.

- Não estás enganada. É verdade que desejei enquanto não tinha, mas quando consegui ter apenas pretendi que tu fingisses, nem sempre, só uma vez por outra, que também não querias.

- Porquê?

- Para me recordares.

- Para te recordar de quê?

- Para me recordares... dos motivos que me levaram a apaixonar-me por ti.

13h41

- Discutir o amor é algum crime? - interroga o Jim. - Quando dissemos que nos amávamos, tenho a certeza de que ambos falávamos verdade. Mas não seria que estávamos a falar daquilo que sentíamos nesse momento? É o tipo de sentimento que se pode prever? Não acontecerá um pouco ao acaso? Uma mistura subtil entre nós e o desconhecido? Como é que poderemos saber se vamos sentir sempre o mesmo em relação ao outro? Será que a obrigação de amar faz morrer o incentivo para amar voluntariamente? É melhor suportarmo-nos um ao outro, só porque prometemos fazê-lo, ou será preferível libertarmo-nos para amarmos a pessoa que queremos amar, amá-la sem qualquer sentimento de obrigação? - Jim faz uma pausa e ri-se. - Estou a fazer perguntas em demasia? Ou isto é próprio de mim?

- Não sei responder a qualquer delas - admito. - Julgo que ninguém sabe. Penso que essa é a causa de o amor ser o que é: a emoção mais complicada, intensa e indefinível. E, no entanto, sem ela... bem, a vida não teria qualquer interesse, pois não?

13h45

- Penso que muitos dos nossos problemas começaram quando fomos viver juntos - confessa a Alison.

Concordo. - Pois. Foi estranho cairmos naquela rotina dos papéis tradicionais dos homens e das mulheres. Quero dizer, vê isto assim: ambos éramos adultos e ambos tínhamos vivido sozinhos durante bastante tempo. Eu sei cozinhar. Posso limpar uma casa sem ser mandado. Contigo acontece o mesmo e até consegues safar-te com uma mobília comprada para montar em casa.

- Sim, mas não tenho a certeza de como fazê-lo, pois nunca percebo as instruções.

- Nem eu. Mas isso não é importante. O que importa é que fui esquecendo gradualmente essas capacidades e tornei-me igual ao meu pai - respondo. Faço uma pausa para beber um gole e continuo: - Nunca te pedi que o fizesses mas, numa altura qualquer do nosso segundo ano de vida em comum, começaste a encarregar-te de tudo o que era lavar e passar a ferro. E eu comecei a fazer todas as coisas que vi o meu pai fazer lá em casa. Tudo o que tinha a ver com mecânica dizia-me respeito. A gestão financeira Ficou por minha conta. Tudo o que era prático ficou a meu cargo.

- Isso perturba-te assim tanto? Porquê?

- Porque... não sei. Porque imaginei que entre nós tudo se passaria de maneira diferente. Tinha crescido num mundo em que as mulheres podiam fazer e ser tudo. O mais longo mandato de primeiro-ministro a que assisti foi o de Margaret Thatcher. Foi-nos ensinado que existia igualdade entre os sexos. Aprendemos ciências domésticas na escola e as raparigas foram autorizadas a trabalhar a madeira e os metais. Foi esse o mundo em que fui criado. Por isso, foi algo desmoralizador aperceber- me de que... oh, não interessa.

- Nunca te tomei por feminista - comenta a Alison, a rir se. - Só lavei e passei a tua roupa a ferro porque te amava e queria fazer tudo por ti.

- Afinal, mais um motivo para toda essa conversa acerca do machismo. nada disso te fez sentir um pouco desapontada?

Ela medita um pouco. - De início, não. Bem, nem sempre. Costumava oscilar entre o desejo de fazer tudo porque te amava e a ideia de me sentir estúpida e abusada. Contudo, na altura queria fazer tudo porque te amava. Desejava que precisasses de mim. Não há nada no mundo que se assemelhe a essa sensação de sermos necessários a outro ser humano.

- Mas foi isso. Foi o que fizeste. Tornaste-te indispensável. Preencheste todos os espaços. Por exemplo: sou uma desgraça quando se trata de me lembrar de aniversários e esqueço-me sempre de mandar o cartão. Tu tens um sexto sentido para os recordares e, pouco a pouco, começaste a comprar os postais por mim; depois passaste a comprá-los, a preenchê-los e a apresentá- los já prontos a assinar; por Fim, já os compravas, preenchias e imitavas a minha assinatura. Gradualmente, eu, a parte não fiável, fui completamente eliminado do processo.

- Por vezes, irritava-me com a tua inutilidade. Sei que estou a dizer uma barbaridade mas fazia certas coisas porque o facto de não serem feitas tinha reflexos negativos para mim. O pior foi chegar à situação em que lamentava tanto o ter de fazer essas coisas e te levava a mal não as fazeres; por vingança, e por estar irritada, costumava sair de propósito para comprar cartões feios. Nem reparaste quando enviei à tua mãe um horroroso postal almofadado e com letras cintilantes.

- Porém, se lamentavas tanto por que é que o fazias?

- Porque não tinha escolha entre fazer e não fazer. A escolha era entre ser eu a fazer as coisas ou seres tu a fazer asneira.

- Mas era impossível aguentar a tua pedalada. Costumavas comprar postais de Natal em meados de Outubro. Como é que eu poderia competir contigo? O Natal só se fazia notar dentro da minha cabeça uns dias antes da Noite de Natal.

15h09

- Parece uma coisa estúpida para ser dita em voz alta, mas as mulheres são realmente muito diferentes - explico à Alison. - Como sabes, eu sempre pensara que, por debaixo da pele, homens e mulheres eram bastante semelhantes, incluindo os processos mentais e tudo isso. Para nos apercebermos até que ponto as mulheres são diferentes dos homens é preciso ter vivido com uma.

- Fala-me disso. Qual foi a maior surpresa que a vida em comum provocou em ti? - pergunta a Alison.

- Para mim, foi não seres capaz de definir prioridades.

- Que prioridades?

- Bem, a título de exemplo, o facto de ainda não termos um televisor em condições quando começámos a viver juntos.

- Chamas a isso não definir prioridades? Tínhamos um televisor. Na realidade, até tínhamos dois.

- Pois, mas o meu era minúsculo e o teu era a preto e branco, além de só apanhares três canais com ele.

- Então, estás a repreender-me por termos dois televisores marados?

- Não, estou a repreender-te porque os suportaste durante séculos. Quando te conheci tinhas um leitor de vídeo do tamanho de um tanque,

nem tinhas um leitor de cD até te mudares para Londres. Tudo o que possuías eram milhões de cassetes que os amigos te tinham oferecido. Não quero dizer que estas coisas façam de ti uma pessoa detestável. Só pretendo demonstrar que não percebo como podias viver assim.

- E só reparaste nisso depois de começarmos a viver juntos? E quanto a todos os outros fins-de- semana que passaste em minha casa?

- Nessa altura era fantástico.

- Fantástico?

- Em termos relativos.

Ela faz uma pausa, antes de dizer: - Eu sabia. Sempre soube que querias modificar me.

- Bem, isso é interessante, pois eu sempre tive a impressão de que tu pretendias modificar me.

- Não era nada de evidente ou horrível. Eram apenas coisas que escolhias ao acaso. Suponho eu. Julgo, sem dúvida, que te convenceste de que eu não poderia sobreviver sem ti. Com isto pretendo dizer que, para ti, a minha vida antes de vivermos juntos era equivalente à de um qualquer país do terceiro mundo e que, só por teres ido viver comigo, me tinhas trazido para os tempos modernos. Se preferes uma metáfora, poderei dizer-te que pensavas que eu era a Índia durante a ocupação britânica. Sabes que os historiadores nos gabam sempre os caminhos-de-ferro com que a Grã-Bretanha dotou a Índia, como se os pobres indianos, por poderem apanhar o comboio das 9h15 para Calcutá, se devessem mostrar gratos por verem o seu país ilegalmente ocupado. Eu era assim. Sempre senti que pensavas estar a introduzir melhorias na minha maneira de viver, que estavas a instalar um caminho-de- ferro que eu não tinha pedido.

- Dá-me lá um raio de um exemplo dos tais caminhos-de-ferro? peço-lhe a rir.

- Muito bem. Podemos falar da maneira como estavas sempre a dar- me livros a ler, cD para ouvir e filmes para ver, como se tivesses chamado a ti a obrigação de me educares. Por exemplo: num Natal, ofereceste-me A Quadrilha Selvagem. Embora eu odeie filmes violentos e westerns.

- Pensei que gostarias do filme.

- Julgo que pensaste que eu devia gostar do filme. Tal como julgo que pensaste que devia apreciar romances de Elmore Leonard, Os Simpsons, The Fast Sbow, Stereolab, Northern Soul e qualquer outra banda, livro, programa de TV ou género musical que julgasses útil para a minha educação

- conclui, a rir. - No entanto, se quiser ser honesta, tenho de admitir que também tentei modificar-te. Por exemplo: lembras-te daquelas bermudas horríveis que usaste nas primeiras férias que passámos juntos? Recordas-te do motivo por que não pudeste usá- las nas férias que passámos em Nova Iorque?

- Não consegui encontrá-las. Perderam-se durante a mudança para tua casa.

- Não.

Sinto-me escandalizado: - Não me digas que as deitaste fora? Acena que sim. - Embora nunca tivesses reparado, quando da mudança para passarmos a viver juntos deitei fora muitas das tuas coisas. A tua colecção de anuários de TV dos anos setenta, que nunca consultavas? Oxfam. Todos os sapatos que não usavas mas também não deitavas fora? Pesquisa do Cancro. A guitarra acústica a que faltavam as cordas? Para a minha sobrinha de 13 anos. Se não me tivesse visto livre de metade do lixo que trouxeste de Birmingham, precisaríamos de um palácio para viver.

- Não quero acreditar que tenhas uma mente tão tortuosa.

- Está bem. Fui tortuosa mas, pelo menos, fui subtil. E tudo o que fiz foi para teu bem.

15h32

- Então, onde é que pensas que tudo começou a correr mal? pergunto.

- Quando nos casámos - responde o Jim, sem qualquer hesitação.

- Pareces muito seguro do que dizes.

- Não que eu pense ter sido essa a única razão para o casamento não resultar - esclarece. - O mal foi termos decidido o casamento tão cedo. Julgo que, na altura, soube que estávamos a cometer um erro.

Olho-o de testa franzida: - Nesse caso, por que é que Ficaste calado?

- Poderia fazer-te a mesma pergunta?

- Eu pensei que era a forma de nos mantermos juntos. A verdade é que nos juntámos demasiado cedo. Ainda havia coisas que querias fazer na tua vida e, em retrospectiva, é provável que houvesse coisas que eu ainda tinha de arrumar dentro da minha cabeça, antes de pensar em algo de tão sério como é o casamento. Penso que fizemos um bom trabalho a esconder as mazelas. Agora consigo perceber isso.

16h00

Queres outra bebida?

- Não, estou bem - responde ela. - Queres que te vá buscar outra?

- Não. Esta é suficiente.

- Tens a certeza?

- Sim, tenho a certeza.

- E quanto a amendoins? - pergunto. - A tua embalagem está vazia.

- Não, estou bem. Não gosto de abusar destas coisas.

Eu sei, mas gosto da maneira como, sempre que chegas ao fim de um pacote, molhas a ponta do dedo para retirares o pó que se forma no fundo. É um gesto que tem algo de infantil. Sempre imaginei que se tivéssemos tido um filho ele faria o mesmo.

A Alison solta uma gargalhada e consulta o relógio. - Tenho de ir.

- Pois é - replico. - Suponho que também tenho de ir. Brinda-me com um sorriso. - Foi agradável, não foi?

- O quê?

- Esta tarde.

- Sim, foi.

Ela põe-se de pé e veste o casaco, enquanto eu despejo o meu copo. E caminhamos para a saída. Uma vez chegados à porta, verificamos que está a chover.

- Uma última questão - pergunto, enquanto procuramos abrigar-nos. - Ainda continuas a ter algum contacto com o Damon?

A Alison ri-se. - Antes de responder a essa pergunta, tenho uma confissão a fazer-te. Durante alguns anos, depois de termos acabado o namoro, ele continuou a mandar me postais no dia de São Valentim, a jurar um amor eterno.

- E nunca me disseste?

- Na verdade, foi uma estupidez. Não quis aborrecer te.

- No entanto, guardaste os cartões.

- Como é que sabes se eu os guardei?

- Estavam metidos numa velha caixa de sapatos com a etiqueta Contas da Casa". Dei com ela um dia em que andava à procura, nem vais acreditar, de contas da casa.

- Por que razão não me contaste?

- O que é que havia a dizer?

- Não sentiste ciúmes?

- Nem por sombras. Fui eu que fiquei com a rapariga, não fui? É certo que a perdi. Mas conservei-a durante algum tempo.

A Alison mostra um sorriso embaraçado. - Costumava jurar-me um amor eterno naqueles cartões. Mas julgo que o amor deve ter-se desviado do seu caminho algures, pois os cartões deixaram de aparecer em 1998. Até Abril deste ano não voltei a ouvir falar dele, até ter chegado a casa dos meus pais um convite para assistir ao casamento de Damon Guest e Camilla Forsythe. Não consegui perceber muito bem a razão do convite, especialmente por nunca nos termos visto desde a separação, mas a curiosidade venceu-nos, a mim e ao Marcus, e fui.

- Como é que foi? Ele mudou?

- Foi o casamento mais estapafúrdio a que assisti. Ele continuava a ser o mesmo Damon. Absolutamente amoroso e adorável. Nunca conseguiu singrar no negócio musical, como queria. Trabalha num banco francês. Mas nem vais acreditar que a sua Camilla, a mulher com quem casou, era exactamente como eu.

- Estás a brincar.

- Bem, não seria fácil passarmos por gémeas mas podíamos, sem sombra de dúvida, ser consideradas irmãs. Tínhamos a mesma cor de cabelo. Até éramos mais ou menos da mesma altura. Se nesse dia eu levasse um vestido branco, o Damon sentiria dificuldade em distinguir-nos. Eu nem sabia onde meter-me. De verdade. O pior foi que tínhamos sido convidados para o copo-d'água e, ao colocar-me na fila para entrar, de repente apercebi-me de que a mesma fila era também para apresentar cumprimentos à noiva, ao noivo e à família de ambos. Ao apertarmos as mãos ficaram todos boquiabertos. Toda a gente a fazer-me a mesma pergunta: Como é que conheceu o Damon e a Camilla? ", ao que eu respondi que tinha sido colega do Damon na universidade.

- Portanto, pensas que ele nunca te esqueceu?

- Não precisou de me esquecer, pois não? Apenas encontrou uma versão melhor de mim.

- Melhor? Porquê?

- Porque esta versão não se apaixonou por outra pessoa.

16h10

- Acho que vou apanhar um táxi para casa - informo. - Se quiseres, posso deixar te em tua casa.

Sorri. - Vou a pé. Afinal, sou à prova de água.

Por momentos, ambos sentimos um certo embaraço, até que ela diz: Então, despeço-me - e abraça-me. - Obrigada por esta tarde.

- Se tivéssemos conversado mais enquanto vivemos juntos, talvez tivesse resultado - sugiro.

- Talvez - admite. - Na verdade, o que esta tarde teve de agradável foi recordarmos os velhos tempos, todos aqueles pequenos momentos que foram nossos. Nunca os apreciámos quando os vivemos, porque havia abundância deles. Mas eram momentos especiais. E só sabemos que não vão durar para sempre quando reparamos que está tudo acabado. A questão é esta: por mais que eu ou tu expliquemos como é que as nossas estúpidas piadas tinham tanta graça para nós, ninguém conseguirá perceber como é que, por causa de ti, nunca saí com o Marcus a uma segunda-feira; e ninguém conseguirá perceber como é que a morte da Disco foi para nós a maior desgraça do mundo. Não podem perceber isto nem mil e uma outras coisas que nos aconteceram, porque não estavam lá. Esses momentos são só nossos. E, por vezes, tudo o que é preciso para considerarmos que o mundo está bem é saber que outra pessoa estava connosco nesses momentos.

- Como agora - admito e, sem pensar, beijo-a e ela retribui o beijo. Porém, acabado o beijo, ficamos a olhar um para o outro. Desejo dizer qualquer coisa mas não sei o quê. Contudo, antes que eu possa dizer qualquer coisa, ela põe-me um dedo nos lábios, diz que não com a cabeça e afasta-se.

 

               DEZASSEIS HORAS

               ANTES DO CASAMENTO DA ALISON

               2003

               Quinta-feira, 13 de Fevereiro de 2003

 

16h00 (nos EUA)

22h00 (no Reino Unido)

- Vamos perder o avião!

Observo o trânsito parado à volta do nosso táxi amarelo, olho para o motorista, que parece ter desistido da vida, e a seguir consulto o relógio e deixo escapar um profundo suspiro. A Helen tem razão. Vamos perder o voo. Conseguir lugar noutro avião vai ser um sarilho dos diabos. O pessoal dos aeroportos, em especial o dos aeroportos americanos, detesta os passageiros que se atrasam. Os funcionários olham para nós como se nos considerassem perfeitos idiotas, fazem mil perguntas acerca das razões do atraso, como se estivessem a falar com uma criança de seis anos. Concordo com a Helen: - Acho que tens razão.

- O que é que vamos fazer?

- O que é que podemos fazer?

Exasperada, a Helen olha-me de frente: - O que é que se passa hoje contigo?

- Estás a pretender dizer me o quê?

- Gostava de saber o que é que tens.

Durante uns momentos hesito se devo dizer lhe a verdade. Porém, uma vez mais reconheço que teria de lhe contar a história toda. Contar-Lhe tudo, sem qualquer omissão. E gostaria ela de ouvir tudo, sem qualquer omissão?

É provável que não. Se estivesse na situação dela, será que eu gostaria de ouvir a história, sem qualquer omissão? Decerto que não. Sempre pensei que a expressão ignorância é felicidade, tem muito que se lhe diga. Já vivi muitas situações em que as pessoas me disseram coisas que eu preferia que tivessem guardado para elas. A verdade é que necessito de conversar sobre o que me enche a cabeça, pois a agitação constante nos meus processos mentais não está a produzir resultados. Tal como a outra estra tégia: levares a namorada numa viagem de surpresa a Chicago, gastares uma pipa de massa que te faz falta, em coisas de que não precisas, com a esperança de esqueceres o assunto.

Por mais que deteste admiti-lo, conversar é a única maneira de me libertar do problema. Mas conversar com quem? Não com a Helen, de certeza.

- Estás a lamentar a decisão, não estás?

Qual decisão?

- A de irmos viver juntos.

Desato a rir. - Julgas que o pedido feito à minha namorada para ir viver comigo faz parte de um qualquer plano demoníaco, só para eu depois odiar cada minuto que passarmos juntos?

Helen não se sente à vontade. - Tens estado tão calado. Pensei que tivesse alguma coisa a ver comigo.

Dou-lhe um beijo para a sossegar. - Sabes que te amo.

Mostra-me um sorriso de orelha a orelha. - Seis.

- O quê?

- Só disseste que me amavas em seis ocasiões.

- Verdade? Tens a certeza?

- Absoluta. A primeira aconteceu três meses depois de nos termos juntado. Estávamos na estação de Tottenham Court Road na plataforma da Linha do Norte, depois de uma noitada em companhia do Nick e da namorada dele. Abraçaste-me e disseste isso. A segunda vez sucedeu umas semanas depois, quando estávamos em minha casa a ver televisão. A terceira foi durante o Verão, durante um passeio em Clapham Common. A quarta foi quando ficámos em casa da tua mãe e eu adormeci no sofá. A quinta vez foi na segunda-feira, no quarto do hotel, depois de... E a sexta foi agora.

E tu, quantas vezes é que me disseste o mesmo?

- Milhões. Mas eu sou assim.

- Vou passar a dizer mais vezes, mas não quero gastar a palavra.

- Não foi uma crítica. Foi apenas uma observação.

- Nesse caso, preferes que eu o diga mais vezes?

- Como uma foca amestrada? - interroga a Helen, a negar com a cabeça. - Não. Até gosto que sejas poupado. Torna ainda mais especiais as ocasiões em que o dizes. Mas tem a sua graça que esta seja a primeira semana em que o disseste duas vezes. Estou a magicar se haverá aí algum significado especial.

- Outro significado, além de te amar?

A Helen sorri. - Estou outra vez a abusar das análises, não estou?

- Apenas um poucochinho.

Neste ponto, ela solta uma gargalhada.

- Onde é que está a piada?

- Na maneira como disseste um poucochinho. Adorei. Promete-me que, a partir de agora, vais dizer um poucochinho, todos os dias.

- Vou tentar.

Ficamos em silêncio durante alguns momentos, até a Helen fazer uma pergunta ao motorista. - Quanto tempo vamos levar até ao aeroporto?

- Não falta muito - responde ele. - Serão poucos minutos. Ela volta-se para mim e pergunta: - De quanto tempo é que precisamos até chegarmos ao balcão de check-in?

- Temos tempo suficiente - respondo, ao fechar os olhos. - Dá- me um toque quando chegarmos.

16h 10 (nos EUA)

22h10 (no RU)

A Helen e eu chegamos ao aeroporto apenas com vinte minutos para corrermos até ao balcão de check-in. Havia quatro grupos de pessoas à nossa frente, com aquilo que estimei serem uns milhões de peças de bagagem e apenas três funcionários a atender. Estou a ponderar a ideia de perdermos o avião mas, na mesma altura, todas as pessoas que estavam à nossa frente verificaram que estavam na fila errada. Um minuto e meio antes da hora marcada, conseguimos chegar ao balcão. A funcionária faz-nos as perguntas obrigatórias: Foram os senhores que fizeram as malas? Alguém vos entregou qualquer coisa para transportarem nas vossas malas? " Tudo parece estar a correr bem até me serem devolvidos os bilhetes e os passaportes, e a funcionária nos desejar uma boa viagem.

- Desculpe! - exclamo, ao examinar os dois cartões de embarque.

- Parece-me que cometeu um erro. De acordo com isto - e aceno com os cartões de embarque -, a minha namorada e eu não vamos sentados ao lado um do outro.

- Pois não, senhor passageiro.

- Mas eu confirmei a marcação dos lugares antes de sairmos de Inglaterra. Especificámos que viajaríamos em bancos contíguos, de preferência a seguir à divisória entre classes, ou perto das saídas de emergência, e que um de nós ficaria do lado da coxia.

- Correcto, senhor passageiro.

- Então, por que motivo não nos foram reservados esses lugares?

- Foram, senhor passageiro, há duas horas. Lamento informá-lo de que a política da companhia determina que os lugares atribuídos de antemão podem ser alterados se os passageiros não fizerem o check-in uma hora e meia antes do fecho do voo.

Não posso acreditar no que ouço. - Atribuiu os nossos lugares a outras pessoas?

- Correcto, senhor passageiro.

A Helen está a ver-me a ficar verdadeiramente aborrecido, pois não pára de me puxar pela manga. - Vá lá, Jim, vamos embora. Não vale a pena.

- Mas confirmámos os lugares antes do início da viagem!

- Vamos esquecer isto.

- Óptimo! - exclamo, brindando a funcionária com um olhar mau. Retribui-me com um sorriso, sem sombra de malícia, e volta a desejar-nos uma boa viagem.

- Lamento muito que isto tenha acontecido - desculpo-me perante a Helen, quando nos encaminhamos para a sala de embarque.

- Não tiveste culpa.

Examino melhor os cartões de embarque: - Nem quero acreditar. Um de nós fica no 3B e o outro no 36B. Até que número vão os lugares? Não podíamos ficar mais afastados, não achas?

- Jim, isto nem parece teu - interrompe a Helen. - Estás a ferver por uma coisa sem importância.

- Talvez consigamos uma troca com outra pessoa - admito, ignorando a observação dela.

- Os nossos lugares são no meio, meu amor. Ninguém quer os lugares do meio - assegura, soltando um suspiro. - De qualquer forma, não creio que possa ser um bom escudo. Na Grã-Bretanha são agora sete horas da tarde de quinta- feira e serão sete da manhã quando chegarmos. Por isso, sugiro que nos limitemos a entrar no avião e tentar dormir.

Concordo, mas com relutância: - Também acho. Mas aposto que vou ter de aturar um tonto qualquer.

23h00 (no RU)

17h00 (nos EUA)

Estou deitada na cama do meu quarto do Great cagle Hotel, em Warwickshire, com o telefone na mão e a olhar para o meu vestido

de noiva. Daqui a menos de vinte e quatro horas estarei casada pela segunda vez. Marcus, o meu namorado é, de momento, a única pessoa com quem me apetece conversar. Uma ideia excelente, se fossem outras as circunstâncias.

Apesar de tudo marco o número dele e fico à espera. - Marcus

- sussurro para o bocal, logo que ele atende -, sou eu.

- Claire, és tu? Fico verdadeiramente satisfeito por teres ligado.

- Quem é a. - não prossigo logo que me parece estar a ser confundida com outra pessoa. Mas Marcus explode numa profunda e sonora gargalhada. - É bom que estejas a brincar acerca dessa tal Claire.

- Vamos casar-nos pela manhã - responde ele. - Alison, é evidente que só tenho olhos para ti. De qualquer forma, não tens qualquer razão para te preocupares. O que se passa? Não querias deitar-te cedo? Ou não consegues dormir?

- Não.

- Estás demasiado excitada por causa do grande dia? Fico uns segundos a pensar, e embora saiba que não é aquela a resposta correcta, dou comigo a dizer: - É, acho que sim.

- Já experimentaste contar carneiros?

- Já tentei contar carneiros, elefantes, zebras, porcos, gerbos e, não sei como isto apareceu, ursinhos oala. Antes tinha tentado a bebida. Comecei com a água engarrafada que havia no minibar do quarto. Depois, bebi umas cervejas com baixo teor de álcool e um sabor horrível. Para tirar o gosto da cerveja, preparei um gin tónico duplo, a que se seguiu um duplo vodca com sumo de laranja, mais um copinho de Baileys acompanhado de uma Cola de dieta, mais outro duplo gin tónico.

- Então, deve ser esse o teu problema.

- A bebida?

- O álcool é um estimulante; com uma carga dessas vais ficar acordada toda a noite.

- Mas eu adormeço sempre que bebo. É a minha rábula mais conhecida: a Alison bebe uns copos e adormece no bar. Consegues recordar alguma altura em que eu tenha bebido muito e não tenha adormecido?

- Não recordo, agora que falas disso.

- Então, por que é que não estou a dormir? - pergunto, a sentir que vou chorar. - Vens ter comigo?

O Marcus ri-se. - É apenas o álcool a falar?

- Não, nada disso - replico. - Desculpa. Vê o que estou a fazer, a gritar-te quando procuras ser simpático. Como é que podes desejar casar com alguém como eu?

- Porque te amo. Adoro tudo o que te diz respeito. E adoro especialmente o facto de teres ligado e de me teres acordado para dizeres que não conseguias dormir. Foi isso que sempre procurei numa mulher.

- Qual é o motivo de estares a ser tão razoável?

- Não sei. Suponho que é natural em mim.

- Mas tu és sempre razoável, não és? Nunca ficas de mau humor ou aborrecido sem razão. Tu nunca gritas, nem resmungas, nem fazes qualquer das outras coisas que as pessoas normais fazem. És mesmo simpático. Sempre simpático e não mereces uma mulher como eu.

- Ally, deixa-te disso, sabes que consigo ser bastante agressivo, quando é preciso.

- Não, nunca. Nunca és agressivo. És sempre adorável. Lembras-te da cena da Branca de Neve, de Walt Disney, quando todos os animais a ajudam a lavar a roupa? A Branca de Neve é tão radiosamente maravilhosa que quase parece cintilar e todos os animais se atropelam para a ajudar. Pois bem, é como tu fazes. E eu? Eu sou a rainha maléfica, que espreita lá do fundo, empunhando a maçã envenenada.

- O que te vale é eu considerar as rainhas maléficas muito, muito atraentes.

- Nesse caso, não vens? - pergunto, procurando dar à voz o tom patético mais ajustado.

- Não se diz que dá azar ver a noiva na noite anterior ao dia do casamento?

- Julgas então que vamos ter azar?

Ele reage de imediato: - Não, não disse tal coisa. Disse que é voz corrente que dá azar ver a noiva na noite anterior ao dia do casamento. Mas tu sabes que é apenas um dito de velhas comadres.

- Um dia serei uma mulher velha.

- E eu continuarei a amar-te porque serei o teu velho marido.

- Isso é mesmo verdade?

- Absoluta.

- E amas-me, não é verdade?

- Cento e dez por cento e mais qualquer coisa.

- E eu também te amo. E amo-te tanto que não sei o que hei-de fazer de mim.

- Se queres que vá ter contigo, eu vou. Não levarei mais de vinte minutos a chegar aí.

- Não - recuso, com voz resignada. - Tens razão. Fico bem. Estou apenas um pouco toldada, a sentir pena de mim mesma e nervosa por causa de amanhã... Realmente, quis apenas conversar com alguém.

- Se assim o desejares, podes conversar comigo durante toda a noite, mas acho que te seria mais útil falar com uma mulher que te conheça. Porque não tentas falar com a mamã? Está no quarto ao lado do teu, não está?

Tento imaginar-me a contar à minha mãe aquilo que tenho dentro da cabeça. Não consigo. A minha mãe nunca perceberia, nem num milhão de anos.

- A minha mãe está a dormir - respondo passado algum tempo

-, só iria acordar o meu pai.

- E as tuas irmãs?

Tento imaginar-me a acordar a Emma para uma conversa a altas horas da noite. Também não consigo. Quando éramos miúdas a Emma nunca mostrou desejos de ser noctívaga e, agora que tem filhos que a obrigam a deitar-se tarde, aprecia mais o sono do que qualquer outra coisa. Quanto à minha irmã mais nova, não vejo que pudesse ajudar muito. Preciso de um bom ouvinte e a Caroline sempre foi melhor a falar do que a ouvir.

- Não penso que qualquer membro da minha família esteja à altura da tarefa.

- E a Jane?

- A Jane ainda está em Londres. Só chega pela manhã.

- Bem, se eles não servem - decide o Marcus -, sigo para aí agora mesmo e podes conversar comigo.

- És mesmo um querido - respondo -, mas prometo-te que ficarei bem. Só necessito de dormir: até amanhã. Não te atrases, ouviste?

- Chegarei a horas. Preocupa-te apenas contigo. A última coisa que desejo é levar as pessoas a pensar que obriguei a minha noiva a estar acordada até tarde.

Com as lágrimas a rolarem-me pelas faces, deixo escapar uma pequena gargalhada. - Adoro-te! - exclamo, a tentar de todo o coração que seja verdade. - Amo-te mais do que tudo. Dorme bem.

Pouso o telefone, estendo a mão para a mesa de cabeceira, pego nos lenços de papel e assoo-me com força. Com o lenço agora reduzido a uma bola na minha mão, tento pensar no que vou fazer. O pequeno-almoço com a minha família está combinado para as nove horas. O cabeleireiro está marcado para as onze. Jo, a amiga da Jane que se ajeita na maquilhagem, vem ao meio-dia e a cerimónia do casamento está marcada para as duas da tarde. Tempo. Não tenho o suficiente. Preciso de mais. Porque, dentro de poucas horas, serei uma mulher casada.

19h22 (nos EUA)

1 h22 (no RU)

Estamos com duas horas de voo. Os saquinhos de amendoins já foram distribuídos, juntamente com as miniaturas de latas de refrigerantes e de garrafas de bebidas alcoólicas. O lixo resultante acabou de ser recolhido e a calmaria que normalmente se regista num avião repleto, a viajar ao longo de vários fusos horários, já invadiu a cabina. Na sua maioria, os passageiros estão, tal como eu, sentados no escuro, com os joelhos tapados pelas mantas e os altifalantes de plástico enfiados nos ouvidos, a ver o espectáculo de bordo que, por agora, consiste num noticiário da cNN. Guerra, morte, as andanças presidenciais. E a estranha gala das celebridades.

Ainda não adormeci, nem sequer fechei os olhos. Com tantas ideias na cabeça, sei que não vale a pena tentar dormir. De certa maneira, estou satisfeito por a Helen ir sentada tão longe de mim. Se agora estivesse ao meu lado, eu não teria onde me esconder dos olhares dela.

Estou sentado entre duas pessoas. À minha esquerda, um jovem inglês na casa dos vinte anos, que usa um boné de basebol e uma camisa grossa. Logo que se sentou, ligou-se ao leitor portátil de cD, procurou na mochila e encontrou um aparelho de jogos de computador. Do outro lado, no lugar da coxia que eu preFiro por causa do espaço extra para estender as pernas, vai uma senhora de meia-idade e cabelo castanho-claro, com ar afável. Veste calças de ganga e camisola de lã e calça sandálias Scholl. Ao sentar se deu-me as boas-noites e sorriu. Por momentos, pensei ter uma máquina falante sentada junto de mim, mas ela tirou um grosso livro do saco que tinha aos pés, ligou o interruptor por cima da sua cabeça e começou a ler. A partir daí, não lhe ouvi mais nada.

Até agora.

- Pauly the Talking Parrot [Pauly, o Papagaio Que Fala). Mesmo com os altifalantes nos ouvidos, ouço claramente as palavras. Tiro-os e volto-me para ela. - O quê?

- Desculpe... Não queria falar tão alto. Estava apenas a fazer uma pausa na leitura e a observar uma pessoa que olhava para o ecrã. Aponta para o espectáculo de bordo. - E ia a tentar lembrar me do último filme completo que vi num avião.

- E foi Pauly tbe Talking Parrot.

- Na verdade é ridículo mas, depois de começar, tive de o ver até ao fim. Sorrio delicadamente e volto a colocar os altifalantes nos ouvidos; porém, pelo canto do olho, observo que a senhora continua a olhar para mim. Torno a tirá-los.

- Negócios ou divertimento? - pergunta.

- A viagem? Divertimento.

- Eu também. O mais velho amigo que eu tenho mudou-se para Chicago em 1974 e fazemos turnos para nos vermos.

Eu sabia. Uma faladora. Ainda penso voltar a colocar os auscultadores, mas não vejo maneira de o fazer sem ser indelicado. Por cortesia, pergunto o motivo que levou o amigo a mudar-se para Chicago, o que a conduz a um longo monólogo sobre as vantagens e os inconvenientes de se correr o mundo por causa do trabalho. Ora, isto leva-nos a uma conversa sobre a informação no Reino Unido e a outra, ainda mais longa, sobre o livro que está a ler e, ainda, à constatação de que a disciplina nas escolas já não é o que era.

No entanto, a sucessão de conversas fez que começasse a apreciá- la melhor. Conheci mulheres como ela na escola. Eram sempre as mamãs sofisticadas dos alunos mais sofisticados, como a mãe da Kate Raddick, da escola elementar, que, quando eu fui jantar a casa dela, nos autorizou que comêssemos a sobremesa antes do prato principal, o que nunca teria acontecido em casa da família Owen. Ou a mãe do Nigel Ross, da escola secundária, que conseguia combinar o facto de ser apenas um nadinha bonita demais para ser uma mãe como deve ser com o facto de deixar que o Nigel levasse raparigas para o quarto e fechasse a porta. São coisas que só podem ser devidamente notadas por alguém que teve uma mãe como a minha.

1h55 (no RU)

7h55 (nos EUA)

Decidi acender a luz principal do quarto, como a querer afastar qualquer possibilidade de poder adormecer miraculosamente. Pego no livro que está na mesa de cabeceira, Harry Potter e a Câmara dos Segredos, abro-o na página onde está a marca e começo a ler. Dentro de minutos, a minha cabeça começa a vaguear, não estou a entrar neste livro com a facilidade com que entrei nos outros. Isto leva-me a pensar no emprego. Gostaria de saber quem cuida dos meus autores quando eu estiver em lua-de-mel, o que me recorda que vou casar-me pela manhã, o que me leva de volta às razões que me provocaram a insónia.

Olho à volta do quarto, a tentar encontrar uma alternativa. Trata-se de um vulgar quarto de hotel, onde já terão dormido milhares de homens de negócios e de mulheres. Na parede, junto à porta, encontra-se o famigerado aparelho Coróy para passar as calças a ferro. Duvido de que alguém o tenha utilizado para passar calças. Para a direita, encontra-se uma pequena mesa com espelho, depois uma cadeira de forro vermelho e uma mesa reduzida com uma pequena chaleira e algumas chávenas e pires. É tudo. Vou preparar uma bela chávena de chá e tudo me parecerá melhor.

Salto da cama e, já a caminho da mesa, visto o robe. Pego na chaleira e dirijo-me à casa de banho para a encher de água. Coloco a chaleira no lugar, pressiono o interruptor e fico a ouvi-la soprar até a água fazer borbulhas. Preparo a chávena e o pires e pego numa embalagem de açúcar. Mas há um problema. Procuro entre todas as saquetas que há na bandeja. Vejo café, chocolate para aquecer, açúcar amarelo, açúcar refinado e até adoçantes artificiais; só não encontro o chá. Em condições normais, não ligaria e passaria adiante. Faltam apenas umas saquetas de chá, digo para mim mesma, não é o fim do mundo. Porém, por qualquer razão, aquela é a última gota. Agora, não vou mesmo conseguir adormecer. Nunca. E a culpa não é minha. O hotel é que está em falta. Mais especificamente, a pessoa que não fez a reposição de saquetas de chá no meu quarto.

Ligo para o serviço de quartos e ninguém atende. Agora sim, estou mesmo irritada. Querer fazer uma chávena de chá a meio da noite é pedir demasiado? pergunto a mim mesma, ao começar a despir o pijama para vestir a roupa de sair. Quem é que pensam que são estes tipos do Great cagle Hotel, que me cobram uma fortuna por um quarto sem chá? E sem terem ninguém do serviço de quartos para atender as chamadas. Se não conseguem resolver o problema das saquetas de chá, como é que vão tratar do meu copo-d'água? Irão faltar as entradas? Será que os convidados que pedem peixe vão ter de aceitar comida vegetariana? Será que os apreciadores de carne vão ter de contentar-se com rodovalho? E aos vegetarianos, será servida uma perna de carneiro? Uma situação impensável.

Bem ataviada, com calças de ganga, ténis (sem meias), uma Tshirt pedida emprestada ao Marcus e uma camisola grossa, faço uma pausa para prender o cabelo com um gancho e afastá-lo do rosto e saio disparada do quarto, à procura de alguém com quem possa gritar.

20h01 (nos EUA)

2h01 (no RU)

- Chamo-me Jim - informo a mulher sentada ao meu lado. - Jim Owen.

- Prazer em conhecê-lo. Eu sou a Marian. Marian McCarthy - responde. Pega no livro que tem no colo e põe-no de novo no saco de plástico, como a querer dizer que está pronta a dedicar-me toda a sua atenção. Foi a sua primeira viagem a Chicago?

- Foi. Quis fazer uma surpresa à minha namorada.

- De verdade? Que simpático. Por que motivo escolheu Chicago?

- Ela passou lá um ano, na universidade, quando tinha vinte anos mas nunca mais lá voltara. Estava sempre a dizer me que gostaria de lá voltar e resolvi fazer lhe a vontade. Passámos a semana a visitar a cidade e a ver os velhos amigos dela.

- Encantador! Onde é que a sua namorada está agora? Aponto para a parte da frente da cabina. - Lá adiante. Não conseguimos lugares juntos.

- Oh, que pena. Se quiserem, não me importo de trocar.

- É um lugar do meio - explico. - Não gostaria de um lugar do meio... De qualquer forma, ela disse que ia tentar dormir, uma coisa que não conseguirei neste voo.

- Não ando a dormir muito bem.

- Julgo que começou antes de chegarmos aos Estados Unidos.

- Hum! Posso perguntar-lhe qual é a sua profissão?

- Sou contabilista.

- Tem um trabalho muito cansativo?

Não acha que todos o são?

Sorri. - E que mais está a acontecer na sua vida, neste momento? pergunta, perante o meu olhar incrédulo. - Não estou a ser coscuvilheira; li numa revista que o stress é a principal causa das insónias.

- É provável que seja do trabalho - respondo.

- Não me parece muito convencido. Não haverá outra causa? Rio-me devido ao nervoso. - Isto é muito estranho, se me permite que lhe diga.

- Bem, lá isso é - reconhece. - Mas o que é estranho é bom, não é? Quem é que deseja uma vida sempre certinha? O senhor? Duvido. Ora bem, quanto à insónia... o que é que lhe vai na cabeça?

2h05 (no RU)

8h05 (nos EUA)

- Quero falar com o gerente! - exclamo, com voz firme.

- Lamento não poder ajudá-la - diz o homem que está atrás do balcão de recepção do hotel. - Sou o porteiro da noite. A gerente não chega antes das sete horas da manhã. Mas é uma simpatia e terá todo o gosto em falar consigo.

- Pois bem, isso não chega - replico, sem pensar. Estou irritada e quando tal acontece não consigo pensar. No meu estado normal e em circunstâncias correntes sou bastante mais civilizada. - A maneira como este hotel é gerida é absolutamente vergonhosa - continuo. - Um verdadeiro ultraje. Exijo falar com alguém que tenha poder de decisão.

- Compreendo - responde o porteiro da noite. - A senhora parece muito... perturbada, se me permite que o diga.

- Sim, estou - replico, e então, como se acordasse subitamente de um sonho, sinto-me muito mal por ter berrado a este homem de meia-idade, de rosto amistoso e sardento, com cabelo que já foi ruivo e agora vai ficando branco. Não lhe terei detectado também um sotaque? Polaco, possivelmente. Ou russo? Eslovaco? Talvez algo parecido com isso. O que me faz sentir ainda pior. Aqui está este homem, longe da sua terra, e eu a portar-me pouco melhor do que um inglês grosseirão e bebedor de cerveja ou um hooligan do futebol. Não tenho qualquer razão para berrar a este pobre homem que, na melhor das hipóteses, nada tem a ver com a distribuição de saquetas de chá pelos quartos.

- Permite que lhe pergunte o que se passa? Talvez possa dar uma ajuda.

- Escute, lamento muito, muito sinceramente.

O porteiro da noite mostra-se intrigado. - Lamenta, o quê?

- Ter sido malcriada consigo. Não lhe devia ter falado daquela maneira. Foi muito feio da minha parte.

- Mas a senhora parece perturbada.

- Estou, um pouco.

- Qual é o problema?

- É... bem... no meu quarto não há chá.

Faz um sinal de assentimento. - Já reparei que o chá é muito importante para os britânicos... Então, sente-se infeliz por não haver saquetas de chá?

- Bem... não será bem isso.

- Nesse caso não está perturbada devido à falta das saquetas de chá?

- Queria as saquetas para fazer uma chávena de chá para poder dormir.

- Mas o chá tem cafeína, que provoca insónias.

- E tem muita?

- Li isso uma vez, numa revista.

Rio-me. - Parece o meu noivo. Acaba de me dizer que qualquer coisa que eu beba para dormir vai manter-me acordada.

A minha conversa faz sorrir o porteiro da noite. - Vai casar- se?

- Amanhã.

- E vai casar-se aqui?

- Na Hampton Suite.

- Parabéns - responde e estende-me a mão. Embora me sinta esquisita, aperto-a. Tem mãos grandes, sardentas, ligeiramente húmidas, mas o aperto é forte e transmite confiança. - Vai ser muito feliz - proclama, com ar alegre.

- Como é que sabe?

- Percebo destas coisas. Não sente que vai ser feliz? Uma pergunta simples. Certamente não merecedora de lágrimas. E, no entanto, elas aparecem pela segunda vez no espaço de uma hora. Uma após outra, rolam-me dos cantos dos olhos, descem pelas faces e pelos sulcos ao lado do nariz e pelos bordos dos lábios, de forma a que quando passo a língua por eles sabe-me a sal. - Desculpe - peço, virando-lhe as costas.

- Fiz alguma coisa que a perturbasse?

- Não, o problema sou eu. Estou a ser parva.

- Não pretendi perturbá-la. Estava apenas a dizer umas banalidades acerca do seu casamento - desculpa-se, mas a menção da palavra casamento, faz que o fluxo de lágrimas aumente dez vezes.

- Ainda fiz piorar a situação.

- Não, não fez - sossego-o, a tentar estancar as lágrimas. - O problema sou eu. Ignore-me. Se puder encontrar-me umas saquetas de chá, deixo-o descansado.

- Não, não, não. Não posso dar saquetas de chá a uma senhora tão perturbada. Tenho de lhe fazer o chá.

- Não vale a pena. Francamente, já passou. Não quero incomodá-lo.

- Por favor. Não é incómodo nenhum.

Por momentos encaro o porteiro da noite que me olha com tanta simpatia e só me apetece chorar ainda mais. - Adoraria beber uma chávena de chá consigo - consigo dizer por entre os soluços.

- Aguarde aqui. Estarei de volta dentro de momentos.

20h10 (nos EUA)

2h 10 (no RU)

Consulto o relógio e calculo o tempo que falta para chegarmos a Inglaterra. Não me sinto nada cansado e, a despeito da distracção proporcionada pela Marian, o problema continua às voltas dentro da minha cabeça. - Trata-se de uma mulher - esclareço. - Há uma mulher que não me sai da cabeça.

- Mas não é a sua namorada?

Baixo a voz. - Não, não é a minha namorada.

- É a mulher com quem anda actualmente?

Instintivamente, olho para a frente da cabina, para o lugar onde a Helen vai sentada. - Não... mas é complicado. Já fui casado com ela. Foi a relação mais prolongada que tive. Mas não correu bem.

- Assim sendo, qual a razão de ela não lhe sair agora da cabeça?

- Se a informasse de que ela vai voltar a casar se amanhã, a senhora diria que essa é a razão, não diria? Mas estaria a lavrar num erro; se há uns meses descobrisse que ela estava para casar, não me sentiria minimamente afectado. Nem por um segundo.

- Então, o que é que mudou?

- Encontrei-a. Há um mês.

- Por acaso?

- Ela telefonou-me... e... bem, não tenho uma boa explicação para isto, mas aconteceu qualquer coisa... bem, tudo o que sei dizer é que o encontro deixou uma semente dentro da minha cabeça. Não sei se cometi um grande erro ao deixá-la ir-se embora. E, bem, amanhã, depois de ela se casar, estará tudo acabado. Nunca chegarei a ter a certeza.

A Marian parece intrigada e pergunta: - O que é que o fez mudar de ideias?

- Podia contar-Lhe, mas não faria grande sentido.

- Porquê?

- Porque teria de conhecer a história na totalidade. Tinha de ter lá estado.

- E por que não me conta a história na totalidade? Ainda temos umas horas antes da aterragem. O senhor não consegue dormir e eu adoro ouvir.

- Repare, eu não sou assim. Não costumo contar estas coisas.

- Não se trata apenas de contar. Diz-se que um problema partilhado passa a ser um meio problema. Mas, quem sabe? Ao falar-me desta mulher...

- Alison.

- Ao falar me da Alison tem de esclarecer o imbróglio consigo próprio. Mantenho as minhas reservas, embora o que ela diz faça todo o sentido. Porém, por não ter uma solução melhor e ela me parecer boa pessoa, decido avançar. - Tem a certeza de que não vai aborrecer-se? - pergunto.

- Absoluta. Adoro ouvir as histórias das pessoas.

Pigarreio para aclarar a voz. - Muito bem. Vou-lhe falar de mim e da Alison.

2h15 (no RU)

20h 15 (nos EUA)

Quanto ao chá, o da chávena que conservo na mão foi provavelmente o melhor de toda a minha vida. Enquanto o bebia fui sabendo uma série de coisas acerca do porteiro da noite. Chama-se Anatoly, tem cinquenta e cinco anos e vive em Warwick há cinco, depois de ter saído de Londres. É natural da Sibéria, tem duas filhas adultas (uma da minha idade, a morar em Moscovo, outra mais nova, que vive em Otava); quanto à ex-mulher continua na Sibéria. Adoro ouvi-lo discorrer sobre a sua vida, toda a sua maneira de ser é repousante. Não posso deixar de notar que este homem tem alguma sabedoria, que é uma pessoa em quem se pode confiar.

- Já se sente melhor?

- Sim, muito melhor, obrigada.

- Mas não está cansada?

Rio. - Deve ser do chá.

O Anatoly também se ri mas, de seguida, mostra-se sério: - Quer falar-me do que a fez chorar? Tem a ver com o casamento?

Aceno que sim.

- Ele não é um bom homem?

- É amoroso.

- Mas, então, não ama este homem?

- Amo-o perdidamente.

- Mas?

Sorrio. Ele tem razão. Existe um mas, - É complicado.

- O amor é sempre complicado - sentencia o Anatoly. - Por isso é o amor.

- O motivo de não conseguir dormir é ter qualquer coisa aqui dentro da cabeça... ou talvez seja mais exacto dizer que tenho alguém em mente.

- Que não é o homem com quem vai casar amanhã?

- Um homem do meu passado.

- Percebo.

- Percebe? - interrogo. - Percebe mesmo? Eu não. Não percebo mesmo nada.

- Este outro homem, também o ama?

- Não sei.

- E ele? Ama-a?

Deixo escapar uma curta gargalhada. - Outra coisa que não sei. É mais provável que não. Tudo o que sei é que, há um mês, vi-o pela primeira vez em quatro anos e que aconteceu qualquer coisa que me. bem, que me tornou insegura. Como é que posso não ter a certeza de amar um homem com quem vou casar daqui a poucas horas? Não estou a ser leal com o Marcus. Parecerá sempre que ele ficou apenas em segundo lugar.

- Por que não contacta esse outro homem?

- Esta noite? Não consegui. Não seria correcto, pois não? Na manhã do casamento.

- No entanto, tem a certeza de querer falar com ele.

- Não, tenho pensado muito nele, mais nada. Vivemos juntos durante muito tempo, percebe? Até fomos casados. Foi a relação mais prolongada da minha vida.

- E isso que aconteceu, foi o quê?

- Sem lhe contar tudo, é difícil de explicar.

O Anatoly sorri. - Nesse caso, é melhor contar-me tudo.

- Tudo?

- Ora bem, não consegue dormir. E eu tenho de estar aqui sentado durante toda a noite. Por que não?

- Porque... bem, porque não quererá ouvir a minha história e a do meu ex-marido.

O Anatoly ergue as sobrancelhas. - Mas se sou eu o primeiro a dizer-lhe que sim.

- Quer mesmo?

- Sim, não quero outra coisa. Vou fazer outro chá e depois conta-me tudo acerca desse outro homem. Como é que ele se chama?

- Jim. O nome dele é Jim.

21 15 (nos EUA)

3h 15 (no RU)

- Desejam uma refeição ligeira? - interrompe a assistente de bordo.

- O que é que tem aí? - indago, apesar de tê-la ouvido, menos de vinte segundos antes, informar a Marian das opções.

- Sanduíches de queijo, de atum ou de fiambre.

- Que tipo de queijo?

- Cheddar.

- Prefiro o fiambre - decido.

A assistente passa-me uma travessa e depois tem de começar do princípio, pois o homem sentado ao meu lado continua com os altifalantes nos ouvidos.

- Como é que está a sua comida? - pergunto à Marian, que se decidiu pelo atum.

- Está boa - responde. - Adoro a comida das companhias de aviação. Que tal Lhe parece a sua?

Tiro o celofane da minha sanduíche. Parece tão infeliz quanto eu. - Não me desperta o apetite.

A Marian ri-se. - Tudo bem, então, se a comida é assim tão má, não tem desculpa para não contar o resto da história.

3h17 (no RU)

9h17 (nos EUA)

- Táxi em nome de Perkins! - exclama um homem forte, de óculos, que veste uma grossa camisola de lã verde, a interromper a minha conversa com o Anatoly.

- Qual é o quarto? - pergunta o porteiro.

O taxista encolhe os ombros e obriga o Anatoly a procurar o nome no computador.

- Quarto 20 - acaba por dizer. - Chamo- os pelo telefone - acrescenta, já a pegar no auscultador e a marcar o número. - Têm o táxi à espera - informa. Segue-se um longo silêncio, enquanto o Anatoly ouve a resposta. - Dizem que não mandaram vir o táxi - conclui, a dirigir-se ao taxista.

O taxista não se desconcerta: - Vou confirmar com a base. O Anatoly sorri-me como a pedir desculpa pela interrupção. O motorista de táxi regressa segundos depois.

- O nome não é Perkins. É Hodgkins.

Cansado, o Anatoly limita-se a respirar fundo e a repetir o processo de busca. Desta vez, é a pessoa certa. - Descem dentro de momentos.

- Espero no táxi - informa o motorista.

O Anatoly volta-se para mim. - Desculpe a confusão. Eu sorrio. - Não tem de que pedir desculpa. Está a cumprir a sua obrigação.

- Mesmo assim, estas interrupções não são agradáveis. Cortam a sequência da sua história.

- Pois é - concordo, a sorrir. - Ora bem, onde é que nós íamos?

22h01 (nos EUA)

4h01 (no RU)

- Desculpe - pede o tipo sentado ao meu lado, a interromper a minha narrativa.

Noto que chegámos àquela altura curiosa durante os voos, em que as pessoas começam a acorrer em massa às casas de banho, como se todas tivessem as bexigas sincronizadas. Desaperto o cinto de segurança. A Marian faz o mesmo com o dela e desvia-se para a coxia para o deixar passar.

- Sabe bem ficar um pouco de pé - comenta a Marian.

- Pois - concordo, com ar ausente. Estou a olhar para a parte dianteira da cabina, a tentar ver a Helen.

- Está à procura da namorada?

Aceno que sim. - De súbito, senti remorsos por estar a contar-lhe todas estas coisas. Quero dizer, neste momento a senhora sabe coisas a meu respeito de que a Helen não faz a mais pequena ideia.

- Tem de ver isto segundo este ponto de vista: aconteça o que acontecer, a nossa conversa vai beneficiá-la. Se decidir ficar junto dela, pelo menos tem a consciência de que analisou toda a situação. Se decidir que a Alison é para si, estará a fazer um grande favor à Helen, pois é melhor deixá-la agora do que mais tarde.

Fico uns momentos a reflectir. - Acha que é inevitável que a atraiçoe?

- Só no caso de estar apaixonado por outra mulher.

De súbito, sinto-me mal. - Mas eu amo a Helen, percebe... É melhor ir ver como ela está.

Caminho pela coxia em direcção ao lugar dela, à espera de ver lhe a cabeça quando estou a aproximar-me. Não a vejo e só percebo por quê quando já estou ao lado da fila dela: a Helen dorme profundamente. Tem a cabeça pendente para um ombro e as pernas protegidas por uma manta. Mostra uma paz perfeita. A mulher sentada ao lado dela olha-me com suspeição. Retribuo com um sorriso de esguelha e volto para o meu lugar.

4h07 (no RU)

22h07 (nos EUA)

- Quer mais chá? - pergunta o Anatoly, quando faço uma paragem para pôr as ideias em ordem.

- Por mim, estou bem.

- Não se importa de que eu beba mais uma chávena? - pergunta.

- Não, por amor de Deus, continue - aconselho e fico a vê-lo desaparecer.

Aborrecida, começo a folhear o livro de entradas, à procura de algo de interessante. Estou a começar a ver a lista das saídas quando ouço alguém atrás de mim.

- Boa noite - saúda uma rapariga na casa dos vinte anos. Poderiam dar-nos a chave do quarto número 18?

- Sem dúvida - respondo e levanto-me para a tirar do chaveiro. Porém, neste preciso momento reparo que a rapariga não está só.

- Alison, és tu?

É o meu primo Martin. É mais ou menos da minha idade e trabalha como solicitador em Barkirig.

- Viva - saúdo com ar estúpido. - Aposto que estão a procurar saber o motivo de eu estar atrás do balcão do recepcionista do hotel a esta hora - acrescento e só então olho para a rapariga. Viva, sou prima do Martin. Calculo que estejam cá hospedados para assistirem ao meu casamento.

- Eu... sou a Jessica. A namorada do Martin.

- Tenho muito prazer em conhecê-la - cumprimento, e volto-me para o Martin, que se mostra espantado. - Tenho muito gosto em ver-te, Martin. Estás com um excelente aspecto.

- Obrigado - responde, claramente divertido. - O que é que estás a fazer na recepção?

- Não havia chá no meu quarto - explico. - Por isso, o simpático porteiro da noite, que estava aqui sentado há menos de um minuto, fez chá e temos estado a conversar.

O Martin solta uma gargalhada. Saio de detrás do balcão e dou-Lhe um beijo. - Bons olhos te vejam! - exclama. - O problema é que nos apanhaste de surpresa. Fomos jantar com uns amigos que não via há anos; é por isso que viemos tão tarde. De qualquer forma, vamos já para a cama. Até amanhã.

- Estou de volta - anuncia o Anatoly, ao regressar do escritório com dois bules de chá. - De qualquer forma, também fiz mais...

- não completa a frase ao ver que não estamos sós.

- Anatoly, o meu primo Martin e a sua namorada, a Jessica - apresento. Depois, apontando-o aos outros, acrescento: - Martin e Jessica, Anatoly, o porteiro da noite.

- Prazer em conhecê-lo! - exclamam, em simultâneo, e Martin simula um bocejo. - De qualquer maneira, temos de ir.

- Parece gente simpática - sentencia o Anatoly.

- Pois são, mas, depois disto, vou ser a anedota do dia entre os membros da família do meu pai... Prosseguindo, onde é que nós íamos?

22h53 (nos EUA)

4h53 (no RU)

Estou pronto a contar a Marian uma nova fase da minha saga, quando vejo a Helen na coxia, a dirigir-se para nós.

- É a Helen - aviso, em pânico -, a minha namorada. Vem para cá.

- O que é que o preocupa? - pergunta a Marian. - Ela não dispõe de audição electrónica, pois não?

- Bem observado - concordo, a tentar acalmar-me, mesmo que ela esteja mesmo a chegar junto de mim. - Que história é que lhe vamos contar? Será a seguinte. A senhora estava sentada ao meu lado, perguntou-me as horas e eu respondi- lhe - acrescento, enquanto a Marian desata a rir.

- Pois, ria-se. A Helen vai perceber que está a rir e então... Demasiado tarde, ela aí está.

- Olá, amor - saúda a Helen, da coxia. - A turbulência acordou-me e resolvi vir estender as pernas e ver como estás.

- Já fui até ao teu lugar mas estavas a dormir profundamente. Reparo que a Marian está na expectativa, à espera da apresentação. Hesito antes de fazer lhe a vontade: - Apresento- te a Marian.

- O seu namorado tem estado a fazer me companhia - explica. Conheço toda a história da vida dele.

A Helen ri-se e olha-me de soslaio, como a dizer: Oh, coitado, sempre foste caçado por uma tola. Depois, volta-se para a Marian e observa: Aposto que sabe mais do que eu...

Por sorte, é interrompida pela voz do comandante que pede o regresso dos passageiros aos seus lugares porque o avião vai entrar em nova zona de turbulência.

- É melhor ir sentar me - obedece a Helen. Manda-me um beijo e diz lamentoH, só com o movimento dos lábios. Despede-se em voz alta: - Até logo.

Solto um profundo suspiro de alívio.

4h55 (no RU)

22h55 (nos EUA)

A história da minha relação com o Jim é, uma vez mais, interrompida. Uma mulher jovem, com um casaco comprido de cor creme, dirige-se à recepção. Vem acompanhada de um homem bastante mais velho que veste um casaco azul-marinho e calças cinzentas. Ambos me olham com curiosidade, talvez por eu estar sentada numa cadeira do pequeno escritório existente por detrás do balcão e o meu aspecto não ser muito cuidado. Devolvo-Lhes o sorriso, como a dizer: Metam-se na vossa vida", embora gostasse de saber por onde é que eles andaram até esta hora.

- Faz o favor de me dar a chave do número oito? - pede a jovem.

- Com certeza, minha senhora - responde o Anatoly ao entregar- Lhe a chave. - Boa noite.

O casal deita-me um último olhar e ambos franzem a testa, como se pensassem haver aqui algo de impróprio, mas não soubessem exactamente o quê.

- Lamento - desculpa-se o Anatoly ao voltar a sentar-se. Onde é que estávamos?

- Não interessa. Qual será a história deles? Aquele homem tem idade suficiente para ser meu avô. O que andariam a fazer? É quase manhã.

- Um bom porteiro da noite sabe quando não deve fazer perguntas - constata o Anatoly. - Ora bem...

23h 13 (nos EUA)

5h13 (no RU)

- Desejam toalhetes quentes? - interroga a assistente de bordo, interrompendo uma vez mais a minha narrativa. Por sorte, tinha praticamente terminado de contar a história do meu relacionamento com a Alison. O que faltava era o que acontecera depois da venda do apartamento e o nosso en contro de há um mês.

- Não, obrigado - respondo, mas a Marian aceita uma e, sem razão aparente, mudo de ideias. - Na verdade, também quero uma - peço ao ver a assistente, com umas pinças de plástico, entregar uma toalha ao tipo que vai ao meu lado. A seguir, entrega-me uma toalha tão quente que quase consigo ouvir a minha mão a cozer.

- Posso dizer que neste momento conheço a história na sua totalidade? - indaga a Marian.

- Nem toda - respondo. - Na verdade, falta contar-lhe um último episódio. É por causa dele que tenho insónias e não consigo raciocinar como deve ser. É a razão de lhe ter contado a minha história.

- Aconteceu o quê?

- Decerto que poderei fornecer mais detalhes, se quiser, mas, em concreto, foi apenas isto. A gata, que eu oferecera à Alison dez anos antes, morreu. E ela telefonou para me informar do sucedido. Acompanhei-a à clínica veterinária, só para lhe fazer companhia, e depois fomos beber um copo. Durante aquela tarde de conversa tive a sensação de que éramos as duas únicas pessoas que estavam na zona norte de Londres, senti que tínhamos voltado a ligar nos um ao outro, como se os últimos quatro anos não tivessem existido. Despedimo-nos com um beijo, o que para ela terá sido apenas uma escorregadela momentânea, mas para mim foi tudo. É por isso que não consigo dormir. Continuo apaixonado pela minha ex-mulher.

5h15 (no RU)

23h 15 (nos EUA)

O Anatoly e eu estamos agora na cozinha do hotel. Para além de assegurar a recepção durante a noite, uma das tarefas do Anatoly é atender os pedidos feitos a partir da limitada ementa oferecida pelo serviço de quartos. Enquanto ele prepara uma sanduíche para o quarto número nove, eu preparo uns pãezinhos para nós comermos na recepção. Faço-lhe companhia quando ele vai entregar a sanduíche e voltamos juntos para a recepção. Apesar de ainda estar escuro lá fora, já se ouvem os passarinhos. E começo a sentir-me cansada.

Começo a preocupar-me com a forma como vou ultrapassar o dia que me espera. No entanto, sei que, mesmo que vá deitar-me agora, não conseguirei adormecer. Pelo menos até ter contado ao Anatoly as razões das minhas insónias.

- Então, em que ponto da sua história é que estamos? - pergunta o Anatoly quando nos sentamos.

- Penso que está quase tudo dito, só falta o evento principal. Um encontro com o Jim, ao fim de quatro anos de separação, que acabou num beijo que virou todo o meu mundo do avesso.

23h21 (nos EUA)

5h21 (no RU)

Então, o que é que vai fazer? - pergunta a Marian, agora que a minha narrativa chegou ao fim. - Admitiu que continua a amá-la. E se ela vai casar-se hoje, não terá outra oportunidade.

- Para fazer o quê? - interrogo, no preciso momento em que o homem sentado ao meu lado levanta a cortina da janela. - Para lhe dizer que não case com o homem com quem tem estado a viver feliz? - pergunto, e faço uma pausa para olhar pela janela. - Marian, vamos analisar o que realmente aconteceu. A Alison e eu passámos uma tarde juntos e ficámos um pouco sentimentais por causa da morte da nossa gata.

- Mas beijou-a.

- Mas não aconteceu mais nada, foi apenas um beijo. Não posso modificar toda a minha vida por causa de um beijo. Combinámos que a Helen se muda hoje para minha casa. Na realidade, não consigo imaginar que depois de sair deste avião vou fazer todo o caminho até Warwickshire só por ter sentido uma espécie de renascimento. Marian, não estamos a viver em Hollywood. Moro em cast Finchley. E coisas dessas não acontecem em cast Finchley.

- Talvez fosse conveniente que acontecessem - contrapõe a sorridente Marian. - Afinal, hoje é o dia de São Valentim. Se tais coisas puderem acontecer na vida real, o dia destinado aos amantes deve ser o melhor dia para tentar pô-las em prática.

Antes que lhe possa responder, o comandante, através do sistema interno de comunicação, informa que aterraremos em Heathrow dentro de vinte minutos.

- O arrependimento é uma coisa terrível - acrescenta a Marian. Não consigo imaginar nada pior do que ter a possibilidade de alterar um episódio triste e decidir nada fazer.

Segue-se um prolongado silêncio e ao olhar para fora do avião consigo vislumbrar o primeiro raio de sol.

- Tem razão - respondo, com tristeza. - Tem absoluta razão. Mas não se trata de mim, pois não? Estamos a falar do dia do casamento da Alison. No seu primeiro casamento havia apenas mais três pessoas presentes e não funcionou. Hoje casa-se novamente e, por esta vez, vai fazer tudo como deve ser. Sei que vai. E, quanto ao tipo com quem vai casar, tenho a certeza absoluta de que a ama. E que tomará conta dela. E que nunca a vai abandonar, que é o mais importante de tudo.

5h37 (no RU)

23h37 (nos EUA)

- Bom dia, Anatoly - cumprimenta uma das serventes de limpeza ao passar em frente da recepção.

- Bom dia, Anna - responde ele.

- Quanto falta para te pores a mexer?

O Anatoly olha para o relógio que está atrás de si. - Ainda falta um bocado - anuncia, a rir-se. - Uma vez por outra adianto o relógio uns minutos.

- Faz isso de maneira que eles não percebam, está bem? - responde a servente, antes de desaparecer pela porta de molas do bar.

O porteiro volta-se para mim e fica à espera.

- Já Lhe contei tudo. Vai perguntar-me o que é que eu decidi fazer, não vai?

- Julgo que sabe o que deve fazer - replica o porteiro. - Penso que está apenas a reunir coragem para o fazer.

- Mas eu amo o Marcus - repito.

Ele ri-se. - Está a ver? Não lhe disse o que devia fazer e a senhora partiu logo do princípio de que eu estou do lado do Jim. É por isso que penso que sabe o que deve fazer. O seu coração está a dizer-lhe como é que deve agir. Só tem de o ouvir.

- Mesmo assim, será normal ir a correr para junto do meu ex-marido só por causa de um beijo? Só há dois anos é que conseguimos o divórcio definitivo. Não faz sentido. Julgo que se trata de um caso de perturbações pré-matrimoniais. Sob pressão, o cérebro prega-nos parti das. Faz-nos pensar e sentir de forma diferente do que seria normal admito ao pôr-me de pé para dar um beijo na face do Anatoly.

- Obrigada por ter-me ouvido. Nem sei como hei-de agradecer-lhe.

- Não tem de quê. Na verdade, tive muito prazer em falar consigo.

- Bom, foi simpático para uma mulher perturbada. Sei que pode parecer esquisito e obviamente deve preferir um bom sono; por isso, não estará interessado em assistir ao casamento, pois não? Gostaria de o ver lá, seria mais do que bem-vindo.

O Anatoly acena que não. - Obrigado. Seria bonito, mas não posso. Necessito de ir para casa.

- É claro.

- Desejo-lhe felicidades, qualquer que seja a sua escolha. Sorrio para ele mas não lhe respondo e começo a subir a escada, rumo ao meu quarto.

 

                   UM MÊS DEPOIS

                   2003

                   Sábado, 15 de Março de 2003

 

8h32

Vou sentado no banco traseiro de um táxi preto, a caminho da casa da Alison. Passou um mês sobre a data do casamento e, embora não tenha sabido nada dela desde o dia da morte da Disco, parto do princípio de que já terá regressado da lua-de-mel. Alimento a esperança de que a Alison ainda continue a apreciar uma mentira de sábado de manhã. Vou entregar-Lhe um presente de casamento, uma maneira singela de lhe dar os parabéns e de lhe desejar felicidades. Já decidi que recuso, mesmo que me convidem a entrar por delicadeza. Não quero dar muita importância à questão. Só pretendo entregar o presente e regressar, em especial por temer que qualquer conversa que possam ter comigo acabe por incluir uma qualquer variante da pergunta: Como é que te tem corrido a vida? À qual, para ser sincero, terei de responder que tenho passado bastante bem, sem deixar de agradecer por terem perguntado.

A Helen e eu separámo-nos. Aconteceu no próprio dia em que regressámos de Chicago. Não foi agradável. Não me fez sentir bem. Mas foi, sem dúvida, a decisão correcta. Disse-lhe que ela merecia alguém melhor do que eu. E ela respondeu que não desejava alguém melhor do que eu. Foi só então que lhe expliquei que, mesmo não desejando alguém melhor do que eu, ela devia pelo menos preferir um homem que não estivesse apaixonado pela ex-mulher. Como ela já tinha desistido do seu apartamento, deixei-a ficar no meu, até encontrar outra casa. Felizmente, encontrou-a uma semana mais tarde. Não voltei a vê-la e duvido que venha a ter notícias dela, pois alimento fortes suspeitas de que, pelo menos na mente dela, nunca deixarei de ser o homem que abandonou a namorada no dia de São Valentim. Quando Lhe relatei o que tinha acontecido, o Nick ficou a olhar para mim como se me considerasse estúpido, e comentou: - Não podias ter esperado pelo dia seguinte?

- Não, porque a melhor altura para fazermos o que tem de ser feito é no próprio momento em que se decide - respondi. Vi bem que ele não percebeu e nem eu tinha a certeza de ter compreendido. Só percebi que a Marian tinha razão. Mesmo que os finais de Hollywood não aconteçam em cast Finchley, o mundo seria um lugar mais aprazível se acontecessem. E, embora à chegada a Heathrow não tivesse saltado para um táxi que me levasse a Warwickshire por querer evitar que um casamento se realizasse, tive de agir de qualquer maneira. E tenho quase a certeza de que, sem os eventos dos últimos meses (a morte da Disco, o meu encontro com a Alison e, mais importante ainda, a nossa conversa no bar), estaria bem mais feliz a viver com a Helen. Tenho a certeza de que a nossa vida a dois seria fantástica. Talvez até nos casássemos e tivéssemos filhos. Mas os factos aconteceram realmente. E mudaram-me para sempre. É que, no momento em que beijei a Alison, no dia da morte da gata, compreendi que o maior erro da minha vida fora deixá-la. A Alison era a melhor das mulheres que alguma vez poderia encontrar. As comparações seriam sempre desfavoráveis à pessoa com quem eu estivesse a viver.

9h05

- É nesse quarteirão, à esquerda - informo o taxista, para que ele pare. Salto do carro, e verifico se tenho o presente comigo. - Pode esperar um pouco por mim? - peço, ao mesmo tempo que consulto o relógio, depois de lhe dar uma nota de vinte libras. - Só me demorarei uns minutos - acrescento. O motorista faz um sinal de assentimento, desliga o motor e pega no Daily Mirror.

Voltando a concentrar-me no que tenho de fazer, respiro fundo, caminho para a porta da casa da Alison e toco a campainha. O ritmo cardíaco acelera ante a perspectiva de ver o Marcus pela primeira vez. Bem gostaria de saber o que ele poderá pensar ao ver o ex-marido da mulher à sua porta, com uma prenda de casamento, um mês depois de a cerimónia se ter realizado. Decido que não há nada que valha a pena pensar. Acontecerá o que tiver de ser.

O intercomunicador faz-me chegar uma voz conhecida: - Quem é?

- Bom dia - respondo. - É a Alison?

- Não, é a Jane. Sou uma amiga da Alison. Ela saiu, foi às compras. Quem é? Parece-me que reconheço a sua voz.

- Ninguém importante - respondo apressadamente, a olhar de soslaio para o presente de casamento que tenho na mão. - Volto noutra altura.

Não, não voltas - diz uma voz por detrás de mim. Volto-me e vejo a Alison a uns passos de mim. Traz um kispo encarnado, calções de treino já muito usados, ténis e, na cabeça, usa um barrete de lã verde que, é evidente, já conheceu melhores dias.

- Como tens passado? - pergunta.

- Estou bem. E tu?

Não estou muito mal - responde, a rir-se para mim. Olha para baixo, para os calções. - Desculpa, devo parecer um verdadeiro monstro. A Jane insistiu que queria uma omeleta para o pequeno-almoço. Só saí de fugida, para comprar os ovos - acrescenta a mostrar me a caixa que tem na mão. - Não estava à espera de visitas.

- Não se trata propriamente de uma visita - esclareço, a olhar para o táxi. - Não fico. Só cá vim para desejar as maiores felicidades, a ti e ao Marcus, e para te entregar um presente.

A Alison sorri. - Jim, não era preciso estares a incomodar te.

- Eu sei. Mas tive vontade de o fazer.

- Quanto ao presente, é aquilo que eu penso?

- Não sei - replico. - Depende do que achas que deve ser. Ela observa a caixa, de rosto aberto num grande sorriso. - Bom, podemos dar uma olhadela às pistas: um, a caixa que tens na mão foi usada para embalar batatas fritas, pelo que não me diz nada se não quiseres oferecer-me batatas fritas. Dois, seja o que for que trazes na caixa, parece mover se com uma certa rapidez e ter vontade própria. E três... - Chegada aqui não consegue continuar e desata a rir-se às gargalhadas, depois a chorar, para acabar a rir e a chorar ao mesmo tempo, um fenómeno a que eu nunca tinha assistido. - Desculpa - consegue dizer -, é por ainda sen tir tanto a falta da Disco.

Lentamente, a Alison caminha na minha direcção, sem ousar ver o que está dentro da caixa. Quando estamos em frente um do outro estendo a mão, tiro-Lhe a caixa dos ovos e entrego-lhe a minha caixa. Ela põe-na no chão, abre as abas laterais e olha lá para dentro.

- Só tem oito semanas - informo, ao vê-la tirar um gatinho da caixa e a pô-lo no colo. O bicho tem uns grandes olhos verdes, que parecem ainda maiores quando ele boceja e olha para a Alison. Vejo imediatamente que, para ambos, foi um amor à primeira vista.

- É deslumbrante! - exclama a Alison. - Absolutamente deslumbrante. Jim, não precisavas de fazer isto. Não precisavas.

Respondo em voz baixa: - Eu sei. Fi-lo por minha vontade, mais nada. E sei que a Lucy nunca a pode substituir, mas... sabes, pode ser diferente, não pode? Pode constituir um novo princípio.

A Alison sorri, embora as lágrimas continuem a rolar-lhe pelas faces.

- Quem é a Lucy?

- O gatinho.

- Mas não disseste que era um macho?

- Pois disse.

- Então, como é que pode chamar se Lucy?

- Sabes como eu sou - replico. - Sempre fui uma desgraça a dar nomes a gatos. Tenho a certeza de que tu e o Marcus arranjarão qualquer nome mais adequado.

Ela mostra-me um sorriso triste e fica calada durante algum tempo.

- Se ficasse com ele, nunca lhe chamaria Lucy - acaba por dizer, com os olhos fixos no gatinho. - Nem que vivesse um milhão de anos lhe chamaria Lucy. Tem cara de Harry. É assim que acho que devias chamar lhe - conclui. Levanta a cabeça e os nossos olhares encontram-se. Mesmo depois de uma separação tão demorada, basta-me olhar para ela para perceber que algo não está bem, notar as dezenas de pequenos sinais que aprendemos a decifrar quando conhecemos alguém tão bem como a nós próprios. - O que é que se passa? - indago. - Por que motivo não queres ficar com o Harry? Já tens um gatinho, é isso?

Nega com um movimento de cabeça.

- Não posso ficar com ele, ponto final - diz, enquanto volta a colocar o gato dentro da caixa; fecha as abas laterais e põe a caixa aos meus pés. - Tenho muita pena. Tenho mesmo muita pena - lamenta, ao caminhar para a porta de casa.

- Não percebo. Al, não vim aqui para te aborrecer, acredita-me. Vim cá a tentar um gesto simpático porque... não sei... tu obrigas-me a querer fazer coisas bonitas. Querer oferecer um presente de casamento à ex-mulher é um pecado assim tão grande?

A Alison volta-se para mim; tem lágrimas nos olhos. - É, se ela acabou por não se casar.

Fito-a, embasbacado: - O quê? Mas estava marcado para o dia de São Valentim, não estava?

Ela acena que sim. - Mas não aconteceu?

Novo aceno. Deixo passar uns instantes, até lhe fazer a pergunta final:

- Mas continuam juntos?

- É uma história muito comprida.

- Ai é? Bom, também eu te posso contar uma história bem comprida. Separei-me da Helen.

- Julgo recordar me de que a consideravas a mulher ideal.

- Todos nós cometemos erros, suponho - respondo, mas sem tirar os olhos da caixa que tenho aos pés, que mexe de acordo com os movimentos do Harry, claramente frustrado por o terem separado da nova dona. - Alguns fazem asneiras maiores do que outros. É a vida, não é? Ninguém é perfeito. Por vezes, as coisas levam algum tempo a compor-se mas, no final, acabamos por perceber.

Ajoelho-me, abro a caixa e pego no Harry. - No entanto, com ou sem casamento - começo, a caminhar para a Alison -, com histórias compridas ou curtas, desejo que fiques com o Harry. É teu. Só de olhar para ambos, já compreendi que vai ser a história de amor desta década.

A Alison pega no gatinho e aperta-o contra o peito; sem tirar os olhos do táxi, pede calmamente: - Não te vás embora.

- Realmente, tenho de ir - respondo. - No caminho para cá prometi a mim mesmo que vinha entregar te o presente e desaparecia.

Dou um passo para ela, beijo-a na face e recomendo: - Porta-te bem. Vive feliz - antes de sussurrar ao ouvido do Harry: - Toma conta dela por mim. E tenta mantê-la afastada dos cigarros, porque aquelas coisas vão acabar por matá-la.

- Jim, não podes ir te embora! - exclama a Alison quando já vou a meio do caminho do táxi.

- Al, deixa-te disso, tenho de ir.

Não podes - diz ela, a rir-se às gargalhadas. - Sem ti, como é que vou fazer a omeleta para a Jane?

Olho para as mãos e reparo que ela tem razão. - Desculpa - respondo, ao caminhar na direcção dela -, não me tinha apercebido.

- A história do costume - comenta a Alison quando procuro entregar Lhe a caixa dos ovos.

Suspira de modo exagerado: - Não vês que tenho as mãos ocupadas?

- pergunta, indicando com o olhar o gato que tenta trepar pela parca. - Por vezes, és um bruto.

- E devo fazer o quê?

- Leva-me os ovos lá para dentro, Fica para tomares o pequeno-almoço comigo e com a Jane; pela tarde, podemos ir os dois até ao bar e contarmos um ao outro aquelas compridas histórias de que falámos.

- Gostaria de ir - confesso, a sentir um certo desconforto -, mas sabes o que aconteceu na última vez em que tivemos conversas num bar.

- Pois sei - admite, a mostrar um sorriso travesso. Com isto, coloca o Harry dentro da caixa, pesca as chaves de casa de um dos bolsos e abre a porta da frente.

Não arredo pé.

- Vens ou não vens? - pergunta a Alison.

Olho para ela, depois para o táxi e novamente para ela. E, ao acenar ao taxista para se ir embora e ao caminhar na direcção da Alison, tenho a certeza de que os passos seguintes vão fazer que a minha vida tome um rumo completamente distinto. O rumo certo.

Finalmente.

 

                                                                                Mike Gayle  

 

                      

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