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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


COMPLEXO DE CINDERELA / Colette Dowling
COMPLEXO DE CINDERELA / Colette Dowling

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

COMPLEXO DE CINDERELA

 

                   O desejo de salvação

Estou só no terceiro andar de nossa casa, de cama, em razão de uma forte gripe, tentando evitar que a doença pas­se aos outros. Sinto o quarto grande e frio e, com o correr das horas, estranhamente inóspito. Começo a recordar a ga­rotinha pequena, vulnerável e indefesa que fui. Ao cair da noite já me sinto imprestável, não tanto pela gripe quanto pela ansiedade. "O que estou fazendo aqui, tão solitária, tão distanciada dos outros, tão... insegura", pergunto a mim mesma. Que coisa estranha ver-me tão perturbada, afas­tada de meus familiares e de minha vida tão ocupada e fre­nética... desligada...

O fluxo de pensamentos se interrompe e reconheço: eu sempre estou só. Cá está, sem aviso prévio, a verdade ignorada às custas de tanto dispêndio de energia. Odeio estar sozinha. Gostaria de viver como os marsupiais, dentro da pele de outrem. Mais que o ar, a energia e a própria vida, o que quero é estar segura, acalentada, cuidada. Espanto-me por descobrir que isso não é nada novo. Isso vem sendo par­te de mim há muito tempo.

Desde aqueles dias passados na cama, aprendi que há muitas mulheres como eu, milhares e milhares de nós, criadas de um modo tal que nos impossibilita encarar a realidade adulta de que toca a nós, apenas, a responsabilidade por nós mesmas. Podemos até verbalizar essa idéia, mas, no íntimo, não a aceitamos. Tudo na forma de sermos educadas conti­nha a mensagem de que seríamos parte de alguma outra pes­soa que seríamos protegidas, sustentadas, alimentadas pela felicidade conjugal até o dia de nossa morte.

É claro que, uma a uma, descobrimos cada uma de nós com os instrumentos respectivos a mentira dessa promessa. Porém, foi apenas nos anos 70 que se deu uma mo­dificação no cenário cultural, e as mulheres passaram a ser vistas, concebidas e tratadas de modo diferente. As expecta­tivas em relação a nós mudaram. Foi-nos dito que nossos velhos sonhos de infância eram débeis e ignóbeis, e que existiam coisas melhores a ambicionar: dinheiro, poder e a mais ilusória das condições, a liberdade. A capacidade de escolher o que faríamos de nossas vidas, como pensaríamos e a que daríamos importância. Liberdade é melhor que se­gurança, diziam-nos; a segurança aleija.

Logo descobrimos, contudo, que a liberdade assusta. Ela nos apresenta possibilidades para as quais não nos senti­mos equipadas: promoções, responsabilidades, oportunidades de viajarmos sozinhas sem homens a nos conduzirem, oportunidades de fazermos amigos por nossa conta. Todo tipo de perspectivas rapidamente abriu-se às mulheres; juntamente com isso, porém, vieram novas exigências: que cresçamos e paremos de esconder-nos sob o manto paternalista daquele que escolhemos para representar o ente "mais forte"; que comecemos a basear nossas decisões em nossos próprios va­lores, e não nos de nossos maridos, pais ou professores. A liberdade requer que nos tornemos autênticas e fiéis para conosco. Aqui é que repentinamente surge a dificuldade, quando não mais basta sermos "uma boa esposa", ou "uma boa filha", ou "uma boa aluna". Pois, ao iniciarmos o pro­cesso de separar de nós as figuras de autoridade a fim de nos tornarmos autônomas, descobrimos que os valores que julgávamos nossos, não o são. Pertencem a outrem — a pessoas de um passado vivo e demais abrangente. Por fim a hora da verdade emerge: "Realmente não tenho quaisquer convicções próprias. Realmente não sei no que acredito".

Essa experiência pode ser ameaçadora. Todas as coisas a respeito das quais tínhamos certeza parecem desmoronar tal como uma avalancha, enchendo-nos de incerteza em rela­ção a tudo — e aterrorizando-nos. Essa atordoante perda de estruturas de apoio antiquadas — crenças em que nem mes­mo cremos mais — pode marcar o início da verdadeira liberdade. Mas seu caráter assustador pode fazer-nos recuar para o conhecido, o familiar, aparentemente tão seguro.

Por que é que, tendo a chance de crescer, tendemos a recuar? Porque as mulheres não estão acostumadas a enfren­tar o medo e ultrapassá-lo. Fomos sempre encorajadas a evitar qualquer coisa que nos amedronte; desde pequenas fomos ensinadas a só fazer as coisas que nos permitissem sentirmo-nos seguras e protegidas. O fato é que não fomos jamais treinadas para a liberdade, mas sim para o seu oposto: a dependência.

O problema remonta à infância. Àquela época em que estávamos em segurança, em que tudo já se achava resolvido ou determinado, e podíamos contar com mamãe e papai para qualquer coisa de que necessitássemos. A hora de dormir não significava pesadelos, insônias ou a incessante e obsessiva compilação mental do que tínhamos feito de errado naquele dia ou poderíamos ter feito melhor. Significava, antes, ficar na cama ouvindo o vento acariciar as árvores até o sono vir. Aprendi que existe uma ligação entre a tendência feminina à domesticidade e aqueles devaneios sobre infância que parecem repousar logo abaixo de nosso consciente. O fator subjacente é a dependência: a necessidade de apoiar-nos em alguém ou, mais regressivamente, de sermos alimentadas, cuidadas e preservadas de males. Essas necessidades perdu­ram através de nossas vidas, clamando por satisfação, sem serem anuladas pela necessidade igualmente presente de auto­suficiencia. Até certo ponto a necessidade de dependência é normal tanto em homens quanto cm mulheres. Ocorre que, como veremos, desde pequenas as mulheres são incentivadas a uma dependência doentia. Qualquer mulher que se auto-análise sabe quão destreinada foi para sentir-se confiante perante a idéia de cuidar de si própria, afirmar-se como pessoa e defender-se. Na melhor das hipóteses, pode ter repre­sentado o papel de independente, intimamente invejando os meninos (e posteriormente os homens) por parecerem tão naturalmente auto-suficientes.

A auto-suficiência não é um bem agraciado aos homens pela natureza; é um produto de aprendizagem e treino. Os homens são educados para a independência desde o dia de seu nascimento. De modo igualmente sistemático, as mu­lheres são ensinadas a crer que, algum dia, de algum modo, serão salvas. Esse é o conto de fadas, a mensagem de vida que ingerimos juntamente com o leite materno. Podemos aventurar-nos a viver por nossa conta por algum tempo. Podemos sair de casa, trabalhar, viajar; podemos até ganhar muito dinheiro. Subjacente a isso tudo, porém, está o conto de fadas, dizendo: "Agüente firme, e um dia alguém virá salvá-la da ansiedade causada pela vida". (O único salvador de que o menino ouve falar é ele próprio.)

Devo dizer que meu conhecimento sobre a dependência feminina originou-se numa experiência pessoal — e isso é recente! Por muito tempo enganei a mim e aos outros com um tipo sofisticado de pseudo-independência — uma másca­ra construída durante anos a fim de ocultar meu assustador desejo de ser cuidada. O disfarce era tão convincente que eu bem podia ter continuado a crer nele indefinidamente, não fosse por um fato que produziu uma rachadura na frágil estrutura de minha auto-suficiência.

Aconteceu quando eu tinha trinta e cinco anos. Uma série de eventos levou-me à conscientização de sentimentos jamais reconhecidos antes, sentimentos de incompetência tão ameaçadores à minha segurança que eu faria qualquer coisa para, através de manipulação, conseguir que alguém to­casse o barco quando as coisas pioraram. Isto é, quando as exigências da vida começaram a assumir uma corporeidade real, conseqüencial e madura, diversa das incursões de uma menina precoce por um mundo de jogos ilusórios. Descasada havia anos, com três crianças pequenas a sustentar sozinha, eu estava para adentrar um período de crescimento notável. Estranhamente, a dor do processo foi redobrada pelo fato de eu estar apaixonada.

 

                   O Colapso da Ambição

Em 1975, deixei Nova York e o que fora uma solitária luta de quatro anos para sustentar a mim e às crianças, e mudamo-nos para uma pequena comunidade rural no vale do Hudson, cento e cinqüenta quilômetros ao norte de Man­hattan. Eu conhecera um homem que parecia ser um com­panheiro perfeito: estável, inteligente e incrivelmente en­graçado. Tínhamos alugado uma casa grande e aconchegante, com jardins e árvores frutíferas. Em minha nova euforia, acreditei que tanto poderia ganhar a vida escrevendo na aldeia de Rhinebeck quanto na metrópole de Manhattan. O que eu não havia previsto — o que eu não pudera prever — era o espantoso colapso de ambição que eclodiria assim que eu estivesse novamente vivendo com um homem.

Sem qualquer decisão consciente ou reconhecimento do fato, minha vida mudou radicalmente. Até então, todos os dias eu passava horas a fio escrevendo, desenvolvendo uma carreira iniciada dez anos antes. Em Rhinebeck, meu tempo parecia ser consumido em tarefas domésticas — e que feli­cidade eu auferia delas! Após anos de jantares à base de enla­tados, pois estava sempre ocupada demais para cozinhar, voltei a instalar-me na cozinha. Seis meses depois eu engor­dara cinco quilos. "Isso é saudável", pensava eu, estranha­mente satisfeita com a mudança. "Estamos todos bem mais à vontade." Comecei a usar camisas xadrez e macacões lar­gos. Estava sempre ocupada com pequenas coisas: trocando a terra de uma jardineira, acendendo a lareira, olhando pela janela. O tempo parecia voar. Os lindos dias de outono trans­formaram-se em inverno e, encapotada e com botas, passei a cortar lenha. Dormia bem, sem sonhar, embora achasse difícil levantar-me de manhã. Não havia nada que me com­pelisse a crescer.

Minha nova fuga para o lar deveria ter sido mais desconcertante do que foi — um sinal. Afinal de contas, eu era capaz de me sustentar; de fato, eu o vinha fazendo havia quatro anos. Ah, mas tinham sido quatro anos de sufoco; quatro anos em que, dia após dia, eu me sentia encostada contra uma parede. O pai das crianças estava doente demais para poder ajudar financeiramente, de modo que eu me acostumara a pagar todas as contas. Mas vivera assustada prati­camente todo o tempo, com medo da alta do custo de vida, com medo do locatário, com medo de não conseguir perma­necer lá e manter-nos vivos mês após mês, ano após ano. O fato de duvidar de minha competência não me parecia estra­nho nem incomum. Pois a maioria das "mães solteiras" se sentiam assim, não?

Portanto, a mudança para o campo naquele inesquecí­vel outono teve o sabor de moratória daquilo que eu con­cebia um tanto vagamente como "minha luta". A sorte me devolvera a uma outra espécie de lugar, um espaço interno não diverso daquele habitado por mim quando criança — um universo de tortas de cereja, colchas de retalhos e ves­tidos de verão recendendo a ferro de passar. Agora eu tinha um vasto terreno, flores, uma grande casa com vários cômo­dos, poltronas confortáveis, recantos aconchegantes. Sentindo-me segura pela primeira vez em anos, dediquei-me a preparar o tranqüilo domicílio segundo as "lembranças enco­bridoras" dos aspectos mais positivos de minha infância. Construí um ninho, forrando-o com o melhor algodão e a mais macia lã que pude encontrar.

À noite eu preparava grandes refeições e dispunha-as com orgulho sobre a alva toalha de uma verdadeira sala de jantar. Durante o dia lavava e passava, revolvia a terra e adubava-a. Depois do jantar, querendo sentir-me útil, dati­lografava os manuscritos de Lowell para ele. Interessante que, apesar de ser escritora profissional há dez anos, tinha a sensação de que a coisa certa para mim era secretariar o tra­balho de outrem. Aquilo era o... correto (agora sei que isso significava "confortável" e "seguro"). Isso durou meses. Lowell escrevia, dava telefonemas e conduzia seus negócios de sua grande escrivaninha em frente à lareira. Eu preenchia meu tempo aplicando papel de parede no quarto de minha filha. De vez em quando eu me sentava à minha mesa e tentava produzir alguma coisa, folheando papéis e esforçando-me por concentrar a atenção e organizar os pensamentos. Acabava sentindo-me frustrada, pois parecia-me ter perdido a inspiração, e replicava mentalmente: "Mais dia, menos dia isso tudo muda".

É óbvio que isso era falso. Sem que eu me apercebesse disso a nível consciente, minha auto-imagem havia se modi­ficado radicalmente. Idem quanto às minhas expectativas com relação a Lowell. Em minha cabeça, ele se tornara o provedor. E eu? Eu estava descansando daqueles anos de luta levada a cabo meio contra minha vontade pela responsabilidade de minha vida. Que mulher liberada po­deria imaginar uma coisa dessas? No momento em que a oportunidade de encostar-me em alguém se apresentou, parei de mover-me para a frente. Chegara a um beco sem saída. Não decidia mais nada, não ia a lugar algum, nem mesmo para ver amigos. Naqueles seis meses fui incapaz de entre­gar um só trabalho na data marcada, quanto mais batalhar por novos contratos com editores. Sem nem um adeus, eu me refugiara no papel tradicional da mulher: o de ajudante. Secretária. Copista. Datilografa dos sonhos de outrem.

 

                   Fugindo da Luta

Como Simone de Beauvoir observou tão astutamente há mais de um quarto de século, as mulheres aceitam o papel de submissas "para evitar a tensão decorrente da construção de uma existência autêntica". Evitar essa tensão tor­nara-se meu objetivo oculto. Eu regressara à vida doméstica ou melhor, mergulhara nela como numa banheira de água morna porque era mais fácil. Porque revolver terra, fazer supermercado e ser uma boa e sustentada "parceira" provocam menos ansiedade do que sair pelo mundo para lu­tar por si mesma.

Lowell, contudo, não era o que se chamaria um "ma­rido tradicional", pois não apoiava essa minha regressão. In­feliz com o que aparentemente desembocaria numa perma­nente injustiça (ele pagando as contas e eu fazendo as ca­mas), um dia ele apontou o fato de eu não estar pondo dinheiro em casa. Em termos financeiros ele estava sendo o provedor absoluto, sustentando a mim e a meus três filhos, bem como a si próprio, e eu nem parecia estar consciente dessa injustiça. Doía-lhe, disse, eu parecer tão satisfeita em empoleirar-me e tirar proveito de sua boa vontade em ajudar.

Sugeria que eu não estava cumprindo minha parte no trato, o que me encheu de ódio. Nenhum homem jamais su­gerira tal coisa antes. Então ele não ligava para tudo o que eu estava fazendo para ele? Quem é que cuidava do nosso lindo lar? E todos aqueles bolos e tortas? Será que ele não notava que, quando tínhamos hóspedes para o fim de sema­na, era eu quem trocava a roupa da cama e limpava o ba­nheiro de hóspedes?

Era verdade que, na organização doméstica, era eu quem fazia a maior parte do "trabalho chato". Também era ver­dade que fora eu quem assumira esse papel, jamais colocan­do-o em discussão. No íntimo, eu queria estar fazendo o trabalho chato. Ele é infinitamente seguro.

Quando Lowell e eu resolvemos mudar-nos de Nova York e montar uma casa no campo, combináramos que cada um continuaria a se sustentar. Como foi fácil "esquecer" isso! Cheguei a propor idéias para artigos de revista e livros, mas não estava emocional nem intelectualmente engajada no que fazia. Olhando para trás, agora, acho surpreendente eu não ter experimentado, na época, a necessidade de estar trabalhando. Em vez disso, lá estava eu comodamente tirando vantagem do papel de esposa. E Lowell dizia: "Não é justo". E eu pensava: "O que não é justo? Não é assim que deve ser?"

Algo em mim mudara. Enquanto estivera só e a ne­cessidade de cuidar de mim e das crianças era clara e não ambígua, eu fora capaz de exercer minha profissão e ao me­nos comportar-me de modo independente. Assim que Lowell e eu nos juntamos, todavia, regredi. Não precisei de muito tempo para "recuperar" os padrões de pensamento, senti­mento e ação dependentes exibidos durante os nove anos de meu casamento. Que ironia! Desfizera meu casamento por­que começara a detestar meus sentimentos de dependência. Minha vida tinha se tornado sufocante e restrita, e eu me libertara. E eis que, quatro anos depois, eu fazia tudo de novo — salvo os jardins e a casa grande, que só vieram dourar a pílula.

O aspecto econômico da situação era crucial para o que estava acontecendo. Como deixara a cargo de Lowell a responsabilidade do pagamento de todas as contas, escapei à ansiedade de ter que ganhar a vida. É constrangedor para mim admitir isso agora, mas minha atitude para com Lowell foi de exploração. Eu não queria o desgaste decorrente da responsabilidade por meu próprio bem-estar. Visceralmente, também sentia que era adequado que Lowell trabalhasse mais e assumisse maiores riscos, simplesmente porque era homem. Eu acreditava nisso, pelo menos parcialmente, porque fazia minha vida mais fácil. É aqui que aparece a parte explorado­ra. (Eu também sentia haver algo não inteiramente "femi­nino" em relação a um comprometimento real com o traba­lho — como se eu deixasse de ser mulher, se realmente saísse pelo mundo e cavasse e batalhasse no mercado comum da economia adulta. Mais tarde descobri que essa idéia, nunca questionada, desempenhava um papel importante em minha luta pela independência.)

Uma vez ao mês, Lowell punha no correio os cheques de pagamento do aluguel, da luz, da água e do combustível para o aquecimento central. Era ele também quem mantinha o carro. (Aliás, era ele quem dirigia o carro; eu tinha fobia de dirigir e não conseguia — nem desejava — aprender a fazê-lo.) Para demonstrar minha cooperação, eu não com­prava nada de uso pessoal, fossem roupas, maquilagem ou peças de decoração para a casa. Orgulhava-me de poder eu mesma criar enfeites a partir de velhos objetos que encontrava no porão. Esse arranjo me permitia permanecer distan­ciada do ponto crítico da situação. "Eu gostaria de traba­lhar", dizia a Lowell. "Se alguém me oferecesse um contra­to, eu ficaria feliz por poder escrever. É minha culpa se ando sem inspiração?"

"E se você continuar assim?", ele perguntou afinal, após um ano. "E aí?"

Seu "E aí?" enregelou-me. Para mim aquilo constituía prova de que seu amor não era muito profundo, senão ele não me pressionaria assim. Por que é que estava, na verdade, me dizendo: "Não quero cuidar de você"?

O fato de não estar realizando nenhum trabalho pro­fissional começou a corroer minha auto-estima. Em apenas três ou quatro meses de vida de Hausfrau, naquele ano, minha dependência começou a mostrar-se de forma inequí­voca. Aquela felicidade doméstica pareceu esvanecer-se da noite para o dia, dando espaço à depressão. Em primeiro lugar, eu sentia ter muito poucos direitos. Sem aperceber-me disso, passei a pedir a permissão de Lowell para fazer as coisas. Ele se incomodaria se eu ficasse em Manhattan até mais tarde para visitar uma amiga? Será que poderíamos ir ao cinema sexta à noite?

Inevitavelmente surgiu a deferência. Comecei a sentir-me intimidada pelo homem que me sustentava. Foi quando passei a achar todo tipo de falhas nele, criticando-o nas coisas mais ridículas. Sinal certo de quão impotente eu me sentia.[1]** Desgostava-me sua grande capacidade de ficar à vontade com as pessoas, a fluidez que permeava suas rela­ções, fossem elas sociais ou empresariais. Ele parecia tão autoconfiante! Subitamente percebi-me odiando-o por isso.

Ao passo que Lowell avançava, com o sucesso aparen­temente aguardando-o em cada esquina, eu ia me sentindo deprimida e ansiosa, e tendo dificuldade em dormir à noite. Percebia-me querendo mais e mais sexo ou melhor, o contato que o sexo proporcionava —, pois começara a duvi­dar de que fosse sexualmente desejável, além de tudo o mais. Se pudesse descrever aquele período, diria que, ao mínimo, minha auto-imagem era de total vulnerabilidade. Perdera a confiança em minha capacidade como escritora, como agente de meu destino e obviamente como amante.

Talvez o mais sintomático de tudo tenha sido o seguinte: não mais contar com a perspectiva que nos possibi­lita enxergar o humor nas coisas. Eu entrara num círculo vicioso; perdera o respeito por mim mesma e não conseguia analisar nada direito. Fiquei medrosa, achando que a única saída era contar com alguém que me levantasse. Queria que Lowell reconhecesse minhas dificuldades e empatizasse co­migo. Queria que ele visse que todos os acontecimentos de minha vida haviam conspirado contra a possibilidade real de eu viver por mim só. Eu acreditava nisso piamente, e sen­tia-me marcada de maneira tal que jamais poderia mudar nada.

"Veja só como fui criada", eu dizia. "Ninguém nunca esperou que eu tivesse de ganhar a vida. Como é que eu ia esperar isso"?

"Não é nada disso", ele retrucava. "Você se manteve bem durante todos os anos em que esteve só. Agora que está vivendo comigo, está paralisada. Deve haver algo de errado."

O pior de tudo era que, em termos intelectuais, ele e eu professávamos as mesmas idéias. Ambos acreditávamos que as mulheres deveriam ser responsáveis por si mesmas. Como eu pudera regredir tão rapidamente? O que tinha acontecido comigo?

Muitas coisas, na verdade. Boa parte das dificuldades com que eu estava me defrontando tinham base concreta em minha infância. O que não implicava que tivessem de ser eternas. Em meio a toda a dor e confusão, reconheci de algum modo que eu fazia por conservar as coisas como se apresentavam, que havia certas distorções na forma como eu considerava esses fatores; em outras palavras: que eu estava ativamente mantendo essas distorções.

Certamente minha relação com Lowell — ele sendo o protetor, e eu, a protegida — estava distorcida. Assim como minha relação comigo própria. Por alguma razão eu estava me vendo como menos forte e menos competente que Lowell. Essa era uma distorção básica da qual, conseqüente­mente, brotava outra: Lowell "deveria" tomar conta de mim. Sim, essa é a ética errônea dos fracos (ou daqueles que persistem em assim se conceberem). Cabe aos fortes arras­tar-nos para a frente; se não o fazem, afirmamos de mil maneiras que não sobreviveremos.

Assim que reconheci que tinha raiva da idéia de pre­cisar reassumir a responsabilidade por minha vida, raiva de Lowell por "forçar-me" a fazê-lo, senti-me envergonhada e profundamente isolada. Como era possível ter tanto medo da independência? No tocante ao feminismo, eu voltara à idade glacial. Quem mais, dentre todas as pessoas que conhe­cera, quem mais preferiria — como eu parecia preferir — ser dependente a ser independente?

 

Em todos os momentos de minha vida em que mais me senti amedrontada e solitária, vi-me compelida a escre­ver. Não houve exceção dessa feita. Quem sabe se, descre­vendo minha experiência, não descobriria outras pessoas como eu. Pensar que eu talvez fosse uma aberração, alguma espécie de "marciana" indefesa e dependente, e só no mun­do, aterrorizava-me.

Somente depois de entregar-me ao processo de escrever a respeito desses sentimentos é que consegui reunir coragem para discuti-los com alguém. Nunca ouvira qualquer pessoa mencionar tal experiência. Um complacente editor que conhecia decepcionou-me ao exibir seu desinteresse quando lhe expliquei o que escrevera. Respirei fundo e retomei meus argumentos; se aquele homem não compreendia de que se tratava, quem mais compreenderia? Quando comecei minha segunda narrativa do que ocorrera comigo desde minha mudança para o campo, e por que desejava escrever a esse respeito, aquele sentimento novamente me assaltou. Eu me cons­cientizara de algo, aprendera algo, e não ia permitir que minha experiência fosse desvalorizada pelo mero fato de outra pessoa não ver importância nela. Disse ao editor que o que experimentara e aprendera era importante. Pois era importante que as mulheres pudessem ter acesso aos proble­mas com que eu vinha me debatendo. Minha experiência mostrava algo real e mutilante, um fenômeno psicológico ainda intocado pelo movimento feminista; o artigo que eu queria que ele publicasse descrevia o que as mulheres obtêm em troca da manutenção de sua dependência, os proveitos que dela tiram. Em resumo, aquilo que em psiquiatria se denomina "gratificações secundárias".

"Acho que estou começando a perceber do que é que você está falando", disse o editor.

 

                     Outras mulheres, conflitos idênticos

Um mês depois a revista New York publicou em artigo de capa meu trabalho sob o título: "Beyond liberation: Confessions of a dependent woman" (O outro lado da libertação: Confissões de uma mulher dependente). O volume da correspondência sobre minha escrivaninha multiplicou-se de imediato. Havia anos que eu vinha recebendo cartas de leitoras, mas, aparentemente, nunca as tocara tão no íntimo. "Você não está só", diziam antes de, com evidente alívio, mergulharem em suas próprias-experiências.

Diariamente o carteiro chegava com um punhado de cartas, e eu as levava para um pequeno terraço atrás da casa, onde as lia e chorava. As cartas provinham de mulhe­res de todas as partes do país: mulheres de vinte e poucos anos, mulheres de quase sessenta, mulheres que trabalhavam, mulheres que nunca tinham trabalhado, mulheres que não mais trabalhavam. Todas sofrendo as mesmas ansiedades, lutando pela independência através de cursos de pós-gra­duação, bons empregos, melhores salários — e com o mesmo ressentimento subjacente a tudo. Ressentimento, raiva e uma terrível e dolorosa confusão, uma sensação de "Mas é assim que as coisas devem ser?"

"Depois de anos trabalhando num jornal, resolvi parar e entrar no esquema de free-lance", escreveu-me uma mulher de Santa Mônica, Califórnia. "Meu marido ganhava bem, eu podia dar-me esse luxo, não podia?" Uma correta atitude, ao menos potencialmente; todavia, essa atitude gerou um terrível conflito em relação ao homem em quem, no íntimo, ela se encostara para sentir-se capaz de promover o que de­sejava. Relata ainda que, desde aquela época, "tenho me dividido entre uma enorme culpa por depender dele e um profundo ódio à mera possibilidade de ele vir a refutar-me esse direito".

O conflito entre querer viver por si só e querer encos­tar-se em alguém "por via das dúvidas" (o mesmo tipo de motivação que leva algumas pessoas a freqüentarem a igreja aos domingos) cria uma ambivalência crônica que acarreta muito dispêndio de energia. Aos trinta e quatro anos, uma mulher que dizia ter "escapado à prisão de dois casamentos", criado dois filhos e retomado os estudos de advocacia, deu-se conta de ainda estar completamente enredada "num vínculo neurótico de simultaneamente odiar e temer tanto a dependência quanto a independência". Após trabalhar para o go­verno por breve período, decidiu montar seu próprio escritório de advocacia com um colega sem maior experiên­cia que ela. A diferença na forma com que cada um deles assumiu a nova responsabilidade, prossegue ela, foi gritante. "Desde o início, ele sempre acreditou que faria qualquer coisa que necessitasse ser feita. O que não se apli­ca a mim. Sempre que tenho de enfrentar uma nova situa­ção, vejo-me pesando os prós e os contras de 'meter a cara' ou correr a esconder-me por trás de algum homem que me proteja. É uma armadilha, e é muito fácil cair nela. É terrível como fico indolente e dependente sempre que conto com alguém que eu possa usar dessa maneira."

 

O desejo de salvação. Podemos nem sempre reconhe­cê-lo tão claramente quanto essa mulher, porém ele existe em todas nós, emergindo quando menos se espera, per­meando nossos sonhos, abafando nossas ambições. É pos­sível que o desejo feminino de ser salva tenha suas raízes nos primórdios da história, quando a força física masculina era necessária para proteger mulheres e crianças dos perigos naturais. Mas tal desejo não é mais adequado nem constru­tivo. Nós não necessitamos ser salvas.

As mulheres hoje se acham entre o fogo cruzado de velhas e radicalmente novas idéias sociais; a verdade porém é que não podemos mais refugiar-nos no antigo "papel". Ele não é funcional, nem uma opção verdadeira. Podemos crer que o seja; podemos desejar que o seja; mas não é. O prín­cipe encantado desapareceu. O homem das cavernas é hoje menor e mais fraco. Na realidade, em termos do que se requer para a sobrevivência no mundo moderno, ele não é mais forte, mais inteligente ou mais corajoso do que nós.

Todavia, ele realmente tem mais experiência.

 

                   O desmoronar da falsa autonomia

Esse estado de coisas vem-se anunciando há muito tem­po, sub-repticiamente, sim, tal qual, os fatores primeiros de precipitação de uma erupção vulcânica. As transformações sociais não ocorrem da noite para o dia. O "papel" da mu­lher estava em processo de mudança muito antes que se propusesse um nome à libertação das mulheres. O fato de que as coisas para nós não eram mais tranqüilas, de que o futuro à nossa frente agora se mostrava nebuloso, deve ter-nos assustado. Uma sensação pouco nítida, mas certamente presente enquanto crescíamos. Algo estava acontecendo, mas nem nós nem nossos pais sabíamos do que se tratava. Inadvertidamente, a maioria dos pais das décadas de 40 e 50 falharam na educação das filhas, pois não podiam prever para que as preparavam. Obviamente não era para a independência.

Como muitas meninas, na época de meu ingresso no colégio eu já construíra uma espécie de máscara dissimuladora — o que um psiquiatra rapidamente reconheceria como sendo uma "medida contrafóbica": a concha que disfarça o medo e a insegurança. Alguma coisa estava sabotando minha auto-confiança, originando profunda confusão com relação ao que eu era, ao que pretendia fazer de minha vida, e ao que significava ser mulher. Naturalmente nada disso foi percebido. Eu era insolente com os professores e sarcástica com os rapazes. Na faculdade, aprendi a argumentar com sofis­ticação e a debater. Anos depois, com o surgimento do Mo­vimento de Desenvolvimento Humano, tornei-me a estrela de meu grupo: durona, provocadora, consciente de minha "honestidade". Um negro do nosso grupo, um homem que crescera nas ruas e passara dezessete anos na cadeia por di­versos crimes, disse-me que até ele me temia durante as sessões de nosso grupo de encontro. Ah, que poder; que autonomia excitante!

Quando essa "autonomia" começou a desmoronar, as pessoas que me conheciam se espantaram. "Mas você sem­pre foi tão forte", comentavam, "tão integrada!"

Com o fim de meu casamento veio a fobia — mal con­seguia caminhar pelas ruas tais eram os ataques de ansieda­de e vertigens. A súbita transformação de minha velha (aparente) força novamente me deixou confusa. Então eu não era durona? Então eu não era "integrada"? Pois eu não havia mantido minha família intata, praticamente sem a participação de meu marido, durante anos?

Revendo tudo agora, parece-me claro sempre terem exis­tido sinais de uma potencialmente devastadora falta de congruência entre meu "eu" interno e meu "eu" externo. O "eu" externo era "forte" e "independente" (especialmente se comparado com as expectativas sociais de como as mu­lheres deveriam ser). O "eu" interno era um mar de dúvidas e auto-acusações. Houve um episódio peculiar em meus tempos de faculdade, algo que logo tratei de "esquecer". Um domingo, durante a missa, senti-me de repente compelida a fugir da capela. A pompa, o incenso e a formalidade do ritual provocaram-me suor, grande ansiedade e náuseas: meu primeiro "ataque de pânico". O que estava acontecendo co­migo?, perguntei-me, agarrando-me ao banco à minha frente, para não cair, inundada por ondas de tontura.

Parecia-me que levaria a vida inteira para reunir forças para sair da capela. Sair de lá, penso, foi um símbolo de uma saída maior, uma premonição de que os rituais do catolicismo nem sempre me serviriam de refúgio. Será que existia algu­ma coisa que me pudesse abrigar?

Posterguei analisar esse ponto por muitos anos. O pri­meiro homem de minha vida, meu marido, não podia cuidar de mim; não emocionalmente, ao menos. Seus problemas psicológicos impediam-no de contribuir para o estabelecimen­to de um relacionamento estável, quanto mais oferecer-me o tipo de segurança interna que eu tanto almejava — e acre­ditava poder encontrar a partir de outrem.

O segundo homem de minha vida, Lowell, recusou-se a cuidar de mim (ou melhor, recusou-se a desempenhar o tradicional papel de fingir fazê-lo). Ele deixava bem claro que queria uma mulher que cuidasse de si própria, e eu deixava bem claro que queria que ele o fizesse. O fato de não conseguir ajustá-lo a minhas velhas idéias preconcebidas sobre o que um homem "deveria" fazer criou um impasse psicológico, o qual, muito posteriormente, levou-me a modificar algumas atitudes destrutivas.

No futuro imediato, estendia-se à minha frente o tra­balho de reconstituição das bases primitivas de crença em mim mesma. Pode parecer estranho eu não ter crescido assim, mas tais são os fatos. Pode parecer estranho que uma menina privilegiada por ter nascido numa sociedade privi­legiada, com um pai que era professor universitário e uma mãe perfeitamente adequada, tenha desenvolvido uma veia de auto-desprezo tão aguda e profunda. No entanto, foi assim que cresci. Duvidando de minha inteligência. Duvidando de meus atrativos sexuais. Veja, aí estava o maldito duplo vínculo: não confiar em minha capacidade de vencer no mundo às minhas próprias custas (o novo papel) e, igualmente, duvi­dar de minha capacidade de ser bem sucedida no velho papel feminino, o de seduzir um homem com o propósito de fazer dele seu benfeitor e protetor. Assolada pela confusão comum a tantas mulheres contemporâneas, sentia-me incapaz de reconhecer o terreno que pisava. Durante todos aqueles anos em que fiz as coisas "certas", em que cursei a faculdade, trabalhei numa revista, casei-me, parei de trabalhar, tive filhos, criei-os, para lentamente retomar o trabalho enquan­to eles dormiam ou brincavam — atravessei tudo isso sob um estigma fundamental: o conflito. Enquanto os parentes me elogiavam e traziam-me bolos para mostrar sua aprova­ção à minha aparente aceitação de meu "papel" no mundo, durante todos aqueles anos de um modo de agir peculiar, conhecido somente pelas mulheres, ocultei de mim mesma a pessoa que eu era.

 

                   O fundo do poço

Como foi evidenciado pelas respostas ao artigo da New York, havia outras como eu: mulheres que se sentiam de­pendentes, frustradas, zangadas. Mulheres que ansiavam pela independência, mas viviam receosas do que ela poderia significar. O medo nelas chegava a paralisar seus esforços para se libertarem. Levantava-se a questão: por que ninguém fa­lava sobre o assunto? Quantas mulheres podiam estar sofren­do em confusão e silêncio? Será que o medo da independên­cia ê epidêmico entre as mulheres?

Eu queria fatos. Eu queria teorias. Eu queria ouvir mulheres falarem sobre suas vidas, agora que, supostamente, somos livres para ser livres. Eu sentia que algo estava acontecendo, algo sobre o que não se falava nem se escrevia, algo negligenciado por todos os artigos e pesquisas.

A necessidade psicológica de evitar a independência o "desejo de salvação" me parecia um ponto importante, provavelmente o mais importante no que concerne às mulheres hoje. Fomos criadas para depender de um homem e sentirmo-nos nuas e apavoradas sem ele. Fomos ensinadas a crer que, por sermos mulheres, não somos capazes de viver por nossa conta, que somos frágeis e delicadas demais, com abso­luta necessidade de proteção. De forma que agora, na era da conscientização, quando nossos intelectos nos ditam a autonomia, o emocional não-resolvido nos derruba. A um só tempo almejamos libertar-nos dos grilhões e ter quem (cuidando de nós) os recoloque.

Nossas propensões à dependência encontram-se em ge­ral profundamente enraizadas. A dependência é ameaçadora. Ela nos enche de ansiedade, pois remete-nos à infância, quan­do realmente éramos indefesas. Fazemos o possível para esconder essas necessidades de nós mesmas. Especialmente agora, com toda essa pressão social para a independência, torna-se tentador mantermos essa outra parte de nós abafa­da, reprimida.

Essa parte enterrada e negada é o problema. Ela se anuncia em fantasias e sonhos. Por vezes assume a forma de fobia. Ela afeta o modo pelo qual as mulheres pensam, agem e falam e não apenas algumas mulheres, mas virtualmente todas. As necessidades ocultas de dependência estão causan­do dificuldades à dona-de-casa sustentada, que precisa pedir ao marido permissão para comprar um vestido, bem como à profissional bem-sucedida que tem insónia quando o aman­te sai da cidade. Alexandra Symonds, psiquiatra de Nova York, estudiosa do fenômeno da dependência, diz que ele afe­ta a maioria das mulheres que ela conheceu. Mesmo as mu­lheres aparentemente vitoriosas em suas carreiras e vidas pri­vadas, segundo ela, tendem a "subordinar-se aos outros, a se tornar dependentes e, inadvertidamente, devotar a maior parte de suas energias em busca de amor, ajuda e proteção contra o que é visto como difícil, ou desafiante, ou hostil no mundo".

 

                   O complexo de Cinderela

Existe somente um instrumento pelo qual podemos obter a "libertação": é emancipar-nos interiormente. A tese deste livro é a de que a dependência psicológica — o desejo inconsciente dos cuidados de outrem — é a força motriz que ainda mantêm as mulheres agrilhoadas. Denominei-a "complexo de Cinderela": uma rede de atitudes e temores profundamente reprimidos que retém as mulheres numa espécie de penumbra e as impede de utilizar plenamente seu intelec­to e sua criatividade. Como Cinderela, as mulheres de hoje ainda esperam por algo externo que venha transformar suas vidas.

Usando minha experiência pessoal como ponto de par­tida, entrelacei as teorias psicológicas e psicanalíticas que embasam este livro com as histórias reais das entrevistadas. (Onde se fez necessário, nomes e certos detalhes foram mu­dados.) Nas páginas que se seguem você conhecerá mulhe­res solteiras, mulheres casadas, mulheres que partilham um lar com seus amantes. Algumas delas dedicam-se a uma car­reira, algumas jamais se aventuraram fora de casa, algumas aventuraram-se, mas acabaram se refugiando nela novamente. Há mulheres sofisticadas de grandes metrópoles e campone­sas cortadoras de lenha; viúvas, divorciadas e mulheres que desejam o divórcio, mas não têm coragem de pedi-lo. Há mulheres que amam seus homens, mas morrem de medo deles. Várias das mulheres com quem conversei tinham edu­cação superior, algumas não; entretanto, praticamente todas elas estavam funcionando muito abaixo do nível de suas capacidades potenciais, vivendo num tipo de limbo por elas mesmas construído. Esperando,

Boa parcela das mulheres entrevistadas no curso da pesquisa para este livro desconhecem o "problema". Suas mentes lhes dizem que tudo o que desejam ou já dese­jaram é a liberdade. Emocionalmente, contudo, mostram sinais de sofrimento por conflitos internos profundos.

Outras lutam intermitentemente, com vislumbres do que é que as está fazendo ansiosas e freqüentemente de­primidas.

Outras ainda, felizmente, encaram o problema e reco­nhecem por completo seu profundo desejo de serem prote­gidas e cuidadas, conseguindo então criar nova força e um senso realista de quem são e do que realmente são capazes de realizar. Estas mulheres se tornam, como as denomina um terapeuta, corajosamente vulneráveis. Em vez de continuarem uma vida de repressão e negação, confrontam as verdades de seu íntimo, triunfando afinal sobre os temores que as mantinham presas a suas cozinhas. Essas são as mulheres que verdadeiramente se libertaram. Com elas temos muito o que aprender.

 

                   Recuando: como as mulheres fogem aos desafios

Às vezes é mais fácil enfrentar um desafio externo, uma crise ou uma tragédia, do que responder ao desafio que vem de dentro de nós o impulso de arriscar-se, de crescer.

Eu sempre me considerara uma lutadora, alguém que, se convocada à batalha, atirar-se-ia à lama do campo intrepidamente. Houvera ocasiões que tinham requerido coragem e firmeza, e eu vencera. Logo após a dissolução de meu casamento, ficara evidente que caberia a mim sustentar as crianças. Meu marido estava mentalmente doente, padecen­do de crises maníacas que sempre culminavam em interna­ções. Durante nove anos (até morrer de uma úlcera não tratada) ele foi hospitalizado cerca de uma vez por ano. Entre as crises, medicado com lítio, permanecia relativamen­te equilibrado. Sua doença era tão debilitante, porém, que, apesar de seu alto grau intelectual, ficou incapacitado para quaisquer serviços que não os braçais: barman, lavador de pratos e, nos últimos cinco anos de sua vida, mensageiro. Tomei duas decisões cujas conseqüências por vezes se revelaram problemáticas. Não o abandonaria durante os períodos de maior gravidade de sua doença, e não impediria as crianças de visitá-lo, exceto quando ele estivesse agudamente maníaco e delirante.

A psicose maníaco-depressiva é ardilosa e enganosa. Os surtos de mania parecem ser cíclicos, porém a precipitação de qualquer crise é imprevisível. Ed costumava chegar corren­do a nosso apartamento, convencido de estar prestes a ganhar alguma grande eleição nacional. Então, como não dormia há semanas, movimentando-se loucamente sem cessar, arremetia para as ruas, onde em breve entrava em depressão e para­nóia. Eu o visitava em enfermarias de hospitais que ecoa­vam a solidão e o desespero. Aprendi, se é que algum dia aprendi algo, que neste mundo há coisas sobre as quais não temos controle.

Ao mesmo tempo coexistia em mim uma parte, secreta e bem oculta, que sentia pena de mim. Passar tão rapidamen­te em um ano -— da condição de "esposa" protegida e sustentada para a de "mãe solteira" de três crianças, só, des­protegida e insegura quanto à minha capacidade de susten­tar-nos a todos, era aterrorizante. Meu único talento era escrever, um talento a duras penas desenvolvido. No início, o desafio concreto de ter que pagar o aluguel todos os me­ses fascinou-me. Eu recebia muito apoio pelo que estava fazendo. No espaço de um ano, metade das mulheres que eu conhecia bem tinham deixado os maridos e estavam vi­vendo sós em apartamentos grandes e caros como o meu, com filhos de idades aproximadas às dos meus e preocupa­ções semelhantes às minhas. Ficamos muito íntimas. Víamo-nos todos os dias e conversávamos ao telefone todas as noi­tes. Sem dúvida, constituíamos uma rede de apoio mútuo, e sabe Deus como qualquer uma de nós teria se virado sem ela.

Mas estávamos também negando algo essencial. Pare­cíamos estar mais interessadas em conservar nossas vidas exa­tamente como tinham sido antes da partida da figura paterna do que em confrontar o desafio de fazer algo novo. O sur­preendente é eu ter conseguido viver tanto tempo sem deci­dir nada! Não queria ser só, experimentar a condição de ser só; assim, continuei a dividir minhas responsabilidades com os outros, como sempre o fizera. Nenhuma de nós real­mente desejava tomar decisões por si própria. Consultávamo-nos o tempo todo particularmente sobre coisas relativas às crianças. Emprestávamos dinheiro umas à outras e nos en­contrávamos de manhã cedinho em esquinas de nossos bair­ros. Às vezes, ali mesmo na rua, abraçávamo-nos e choráva­mos. Não nos envergonhávamos de exprimir abertamente nossas fraquezas, mas também achávamos nossas vidas hila­riantes. Passávamos madrugadas bebendo vinho e fumando maconha, e recomeçamos a namorar como adolescentes. Eu não tinha idéia de que tipo de homem me interessava ou seria bom para mim. Comportava-me como uma garotinha ao escolher homens com quem sair: este era engraçado, aquele era sério e altivo, o terceiro era sexy, mas atrevido demais. Sair com homens punha-me em pânico. Sentia-me como uma menina de catorze anos presa dentro do corpo de uma mulher de trinta e três. Passei a encaracolar os ca­belos, afinar demais as sobrancelhas e preocupar-me com meu hálito.

Estávamos crescendo, só isso. Voluptuosas, sabidonas, com aquela aparência de astúcia e sofisticação que só os habi­tantes de Manhattan têm assim nos víamos. Na verdade éramos púberes com chiclete preso em nossos aparelhos corretivos de dentes. O fato de estarmos descasadas, isto é, sem homens em casa, desvelava o que éramos: crianças assustadas, inseguras e incrivelmente atrasadas em termos intelectuais e psicológicos. Estávamos contentes por nos ter­mos libertado da jaula, mas por dentro recuávamos frente à nova liberdade de dirigir nossos destinos. À nossa frente es­tendiam-se caminhos escuros que conduziam à selva sombria.

Sintomática de meu descomprometimento com o mun­do dos adultos era minha ambígua atitude com relação ao di­nheiro. Precisava ganhar mais, mas não conseguia fazer nada a esse respeito. O que recebia como escritora garantia-nos a sobrevivência todos os meses, porém eu prosseguia con­tando com alguma solução mágica que me "abrisse uma brecha". Durante os primeiros anos, nunca avaliei as reali­dades financeiras de minha vida; nunca pensei em retornar aos estudos; jamais elaborei algum plano que ajudasse a estabilizar minha situação. Tal como um avestruz, mantinha minha cabeça firmemente enterrada na areia, com os olhos cerrados, torcendo para que "tudo desse certo". A dura rea­lidade se impingia à medida que as contas mensais tinham de ser pagas, mas a isso eu reagia com passividade. Nenhum progresso quanto à condução de minha vida; eu estava sim­plesmente evitando a forca.

Por outro lado, estava convencida de não querer casar-me de novo. Quando casada, não encontrara a força necessá­ria para combater essa avassaladora necessidade de depen­dência; sozinha, era forçada a fazê-lo. Em certo sentido, meu instinto era correto. Embora a dependência subjazesse à minha frenética luta como mulher descasada, pelo menos eu não a sentia o tempo todo, reforçando a cada dia o desam­paro em que me encontrava quando casada.

E no entanto uma parte inconsciente de mim sonhava com a prisão. Como uma adolescente, deliciava-me com mi­nha nova liberdade; contudo, ao primeiro evento perturba­dor eu me via fantasiando a proteção ilusória dos velhos tempos. No fundo, eu havia estabelecido uma moratória a meu crescimento. Devido ao medo, vivia dentro de limites rígidos que me impediam a aprendizagem, a melhor çxplo­ração de meu potencial mental e a descoberta de novas ca­pacidades de que não era cônscia.

Psicologicamente falando, o problema abrangia mais do que meros sentimentos de inferioridade e timidez. Eu osci­lava entre a megalomania e os mais degradantes sentimentos de incompetência. Embora me apercebesse visceralmente dis­so, não conseguia imaginar como quebrar essa estrutura. "A mulher é uma perdedora", segundo Janis Joplin. Fiquei fascinada com o surgimento da concepção da mulher como oprimida. Infelizmente, os aspectos mais tendenciosos do movimento feminista corroboravam e reforçavam minha própria paralisia pessoal. Eu usava o feminismo como uma racionalização para me manter na mesma situação. Em vez de concentrar-me em meu próprio desenvolvimento, minha atenção se focalizava "neles". "Eles" me deixavam na pior. As mulheres não conseguiam ser felizes porque os homens não lhes permitiam a felicidade, e ponto final.

Algo de especial ocorreu. Minha produção literária me­lhorou e minha carreira começou a ter expressão. Isso tam­bém me assustava, e eu era incapaz de valer-me de incen­tivos a mim mesma. Em vez de me contentar com o desa­brochar de meu talento literário, comecei a sentir que não era muito inteligente, mas apenas hábil e manipuladora. Via-me como uma jornalista que "se virava". Uma manche­te aqui, outra acolá, mas um dia eu seria desmascarada como a fraude que eu sabia ser.

Nesse ponto eu deveria ter começado a perceber que alguma coisa eu conseguia com uma tal visão negativa de mim mesma. Na verdade eu não queria ser bem sucedida; se assim não fosse, o mundo saberia que eu de fato não precisa­va de ninguém para cuidar de mim. "Eu cuido de mim so­zinha." Proferir essas palavras, e com sinceridade, seria o mesmo que estar sifilítica. Seria o mesmo que entregar o trunfo escondido. "Eu cuido de mim sozinha!" Quanta pre­sunção! Seria quase como igualar-me aos deuses. Admitir isso seria renunciar a todos os resíduos do desamparo que reivindicava ajuda.

O jogo então transformou-se em: "Cuido de mim sozi­nha... quando posso". Infelizmente, contudo, é impossível ficar sentado e andar ao mesmo tempo. Minha vida tornou-se ainda mais restrita. Aprendi as formas mais trapaceiras de evitação. Passava quase todo o meu tempo livre e mui­to do não-livre com outras pessoas. A justificativa que me dava era que estava precisando disso após os longos e solitários anos de meu casamento. O que era provavelmente verdadeiro, só que estava usando as pessoas para evitar o desenvolvimento de minha consciência de mim mesma. Tornei-me uma borboleta social, a rainha da West End Avenue. Trabalhava até tarde da noite e acordava no final das ma­nhãs. Até o ato de escrever tornou-se uma espécie de válvula de escape. Através dele eu cutucava o centro do vulcão, fazendo-o expelir um pouco de fumaça, e depois ia dormir, mais uma vez ignorando a causa do fogo destrutivo que rugia dentro de mim.

Como a tarefa de nos sustentarmos parece exigir um esforço hercúleo, as mulheres não percebem que o comodis­mo é tudo, menos sinal de dignidade. É uma perda de tem­po. Em última análise, é uma fuga ao desafio. As mulheres precisam fazer mais. Temos que descobrir do que é que temos medo, e ultrapassá-lo.

 

                   A menininha dentro de cada mulher

É muito difícil para mim fazer qualquer coisa sozinha.

Sempre senti que meu lugar era 'por trás' de alguém. Eu tinha um irmão mais velho que era perfeito. Em muitos aspectos eu me sentia feliz por crescer à sua sombra. Isso me proporcionava uma sensação de segurança.

Freqüentemente sinto-me inadequada por não ser ca­sada nem ter filhos, apesar de saber que isso é considerado legal e moderno, especialmente aqui em San Francisco. Mas não foi assim que fui criada, e não é assim que quero ser. Nunca senti querer realmente ser independente.

 

Essa admissão de dependência foi extraída de uma entrevista gravada com uma bem-sucedida psicoterapeuta solteira de trinta e dois anos, com doutorado em psicologia. Feminista, ela pratica a profissão na Califórnia; é irônico notar, contudo, como está confusa em relação a seu papel no mundo — a aguda contradição entre sua necessidade básica de estar seguramente "por trás" de alguém e sua ambi­ção de êxito, de progredir, de viver por sua própria conta.

"Sempre que a vida fica muito difícil, a possibilidade de desistir e refugiar-se sob a proteção masculina faz-se pre­sente, num golpe mortal à determinação de sobreviver independentemente", escreve Judith Coburn em Mademoiselle. "Nas ocasiões em que deixo as contas atrasadas se amontoa­rem, o carro praticamente cair aos pedaços e coisas desse tipo, o que estou anunciando é: veja, sozinha não dá, preciso que alguém venha me salvar."

Outra mulher, uma talentosa compositora que se diz "feminista militante", está tentando entender por que não consegue reunir energias para se lançar na indústria da música. "Talvez eu simplesmente esteja querendo que um homem tome conta de mim", conclui.

Basta ouvir conversas de mulheres hoje e logo fica claro que a "nova mulher" na realidade não é nada nova; ela é uma mutante. Ela vive numa espécie de Terra do Nunca, numa gangorra entre dois conjuntos de valores, o velho e o novo. Emocionalmente, ela não está em paz com nenhum dos dois, nem acha meios de integrá-los. "Todas as portas estão abertas", escreve Anne Fleming Taylor na Vogue; a questão, porém, é decidir qual porta adentrar: "Se so­mos boas mães, podemos trabalhar? Se trabalhamos bem, podemos amar? Devemos competir lá fora ou não? Podemos ficar em casa e não nos sentirmos culpadas, inúteis e estra­nhamente feridas?"

Confusas e ansiosas, as mulheres recuam frente à possibilidade de vivência total de suas potencialidades. Uma agen­te turística que conheci no verão passado disse: "Ainda não somos capazes de firmar-nos em nossos próprios pés e dizermos 'Sim! Posso fazer isso. Sou competente'. O medo ainda impera entre nós".

Por que as mulheres têm tanto medo? A resposta a essa pergunta se acha na raiz do complexo de Cinderela. A experiência tem algo a ver com isso. Se você não sair e agir, permanecerá para sempre temerosa dos negócios do mundo. Contudo, várias mulheres alcançam certo grau de sucesso em suas carreiras e profissões e ainda assim se mostram no fundo inseguras. De fato, como veremos nos capítulos a seguir, é espantoso nos dias de hoje que tantas mulheres retenham um núcleo oculto de dúvida, em relação a si mes­mas, enquanto externamente se comportam como se fossem monumentos de autoconfiança. Recentes pesquisas em psicologia demonstram que esse núcleo de dúvida é característico das mulheres de hoje. "Descobrimos que os atributos 'passi­vidade', 'dependência' e, principalmente, 'auto-estima rebai­xada' são as variáveis que repetidamente diferenciam as mu­lheres dos homens", relata a psicóloga Judith Bardwick, a partir de estudos conduzidos na Universidade de Michigan.

Poucas mulheres precisam de pesquisas para se con­vencerem disso. A falta de autoconfiança parece perseguir-­nos desde a infancia, e com intensidade tão palpável que, às vezes, temos a sensação de tratar-se de algo com existência própria. Miriam Schapira, uma pintora de Nova York, conta ter passado a vida inteira com a sensação de que dentro dela vive uma criança desprotegida, uma "criatura frágil e inde­fesa, tímida e auto-recriminadora". Somente quando pinta, diz ela, a criança "consegue tornar-se mais assertiva, viva... e mais livre em seus movimentos".

Independentemente do vigor investido em nossa tentati­va de viver como adultas — flexíveis, potentes e livres —, a menininha dentro de nós sobrevive, assombrando nossos ouvidos com murmúrios assustados. Os efeitos de tal insegurança são amplos e resultam num fenômeno social incômodo: as mulheres em geral tendem a funcionar muito abai­xo do nível de suas habilidades básicas. Por razões culturais e psicológicas — um sistema que na realidade não espera muito de nós, em combinação com nossos receios de afirmarmo-nos e enfrentarmos o mundo —, as mulheres estão se mantendo por baixo.

 

                   A famosa "situação de desvantagem" da mulher

Para começar, consideremos a história de nosso pro­gresso econômico nos últimos vinte anos. Apesar do movi­mento de conscientização dos anos 60 e 70, as mulheres atualmente se encontram em situação mais desfavorável do que nos tempos das saias-balão e dos espartilhos. Em com­paração com os homens, hoje ganhamos menos dinheiro que há duas décadas. Em 1956, a média salarial das mulheres constituía sessenta e três por cento da dos homens. Agora ganhamos menos de sessenta por cento do que percebem os homens. Não obstante o desenvolvimento de cursos e ação política que enfocam o problema da mulher, a maioria de nós ainda adentra o mercado de trabalho com salários e po­sições inferiores aos dos homens. Dois terços das mulheres que trabalham ganham menos de dez mil dólares anuais. Mal ganhamos o suficiente para sobreviver, quanto mais para garantir o futuro. Aumento do capital, participação nos lu­cros, uma boa aposentadoria estes são termos empresa­riais da alçada dos homens. Metade das mulheres trabalha­doras não tem direito à Previdência. Constituímos apa­rentemente por nossa própria vontade um exército de parasitas malpagas tão maciço e tão característico que os cientistas sociais atribuíram-nos nova denominação: "os oitenta por cento". Com isso referem-se à porcentagem de mulheres que ocupam posições braçais ou semi-especiaiizadas, percebendo salários ínfimos mulheres que, ao menos eco­nomicamente, rastejam como vermes no fundo de um poço.

Até recentemente, as pessoas que trabalham com esta­tística abominavam a expressão "mulheres no mercado de trabalho", como se fôssemos um exército de amazonas pron­to a dominar o mundo. A noção do crescimento da força e da mobilidade femininas está no ar há pelo menos um quarto de século. Entretanto, como os sociólogos finalmente começam a reconhecer: "Para cada profissional mulher bem-sucedida há outra cuja 'participação no mercado de trabalho' consiste em manipular uma máquina de fábrica oito horas ao dia, e outra cujo trabalho esgota-se em arrumar camas e limpar banheiros, e outra ainda que passa o dia datilografando car­tas e arquivando correspondência nos grandes e impessoais escritórios da burocracia americana". (Essa afirmação foi fei­ta por James Wright, da Universidade de Massachusetts, que, a partir da informação levantada em seis pesquisas a ní­vel nacional, concluiu que o grau de satisfação das mulheres que trabalham fora de casa não é maior do que o das mu­lheres que trabalham dentro dela. É fácil ver-se por que, estatisticamente, as mulheres demonstram pouco entusiasmo por seus empregos, uma vez que oitenta por cento delas deixam o conforto do lar apenas para faxinar escritórios e/ou arquivar papelada por baixos salários e sem direito à Previdência.)

Num nível superficial, pode parecer que o problema da mulher não é nem um pouco diverso do do homem; pouquíssimas são as pessoas (de ambos os sexos) que chegam um dia ao topo do mundo dos negócios. Mas com as mulhe­res a história é diferente. Vários estudos consistentemente demonstram que, entre os homens, o QI guarda relação mais ou menos estreita com o nível de desempenho, ao passo que, entre as mulheres, essa relação é essencialmente nula. Essa chocante discrepância foi revelada pela primeira vez por um estudo sobre crianças bem-dotadas conduzido em Stanford. Mais de seiscentas crianças com QI superior a 135 (isto representa um por cento da população) foram identifi­cadas nas escolas da Califórnia, e seus desempenhos foram seguidos até se tornarem adultas. As ocupações das mulhe­res cujos QI’s, na infância, equiparavam-se aos dos homens eram, na maioria, insignificantes. Aliás, dois terços das mu­lheres com QI de 170 ou mais (gênios) ocupavam-se como donas-de-casa ou escriturárias.

O desperdício de talento feminino é um escoadouro de cérebros que afeta o país inteiro, e por isso vem sendo examinado atentamente por diversos psiquiatras. Surpresa com o número de mulheres em conflito com o tema "realização" que a vem procurando nos últimos anos, a Dra. Alexandra Symonds percebeu que as talentosas freqüentemente mos­tram-se adversas a avançar para posições de auto-suficiência. Entravam o processo ou tornam-se excessivamente ansiosas diante da possibilidade de obter promoções. Muitas delas gravitam ao redor de mentores, preferindo trabalhar como brilhantes (e não reconhecidas) assistentes dos homens no poder — rejeitando tanto o crédito quanto a responsabilida­de por suas próprias contribuições. Em terapia, aferram-se a essa subordinação. "Cada passo em direção à auto-asserção sadia é consciente ou inconscientemente reprimido", diz Symonds. "Algumas mulheres afirmam explicitamente que gostam de ser cuidadas e não tencionam modificar essa posi­ção. Outras vêm... com a aparente resolução de mudar isso, porém, quando confrontadas com a realidade de tal modifi­cação e as inevitáveis opções entre separação e auto-emergência, entram em pânico."

Em seu consultório em Manhattan, a Dra. Symonds tra­ta várias mulheres bem-sucedidas; entre elas, constatou que o problema era de auto-confinamento. Com relação a suas habilidades inatas, uma grande porção delas parecia incapaz de exercitar por completo seu potencial.

Por quê? O que é que "segura" essas mulheres?

O medo, responde a Dra. Symonds. As mulheres não querem experimentar a ansiedade intrínseca ao processo de crescimento. Isso tem relação com a forma como foram criadas. Quando crianças, as mulheres não aprendem a ser assertivas e independentes; pelo contrário, são ensinadas a ser não-assertivas e dependentes. O fato de que o sinal verde foi aberto para elas, "permitindo-lhes" ser indepen­dentes, só veio confundi-las. Ao redor desse "núcleo de de­pendências" brotando na infância, explica Symonds, desenvol­ve-se "uma constelação de traços de caráter inter-relacionados e que se reforçam mutuamente". Esses traços se cristalizam com os anos. "Como qualquer estrutura de caráter estabele­cida, é impossível rompê-la sem ansiedade."

Portanto, é o rompimento de uma estrutura de caráter — ou a perspectiva de fazê-lo — que leva as mulheres de hoje a se sentirem tão perdidas. A estrutura dependente foi visualizada como sendo apropriadamente "feminina" pelos psicanalistas mais influentes. A seguinte passagem do texto clássico The psychology of women (Psicologia feminina), de Helene Deutsch, pode parecer antiquada (foi publicado em 1944). Mas não se iluda; ela reflete as mesmas idéias de nossos pais e mães no tocante à educação de suas filhas. Conseqüentemente, sua noção da mulher como "a companheira ideal" casa-se perfeitamente com a nossa auto-imagem.

Deutsch assegurou ao mundo que a maior felicidade da mulher é subordinar-se a seu homem.

"Elas parecem ser facilmente influenciáveis, adaptar-se a seus companheiros e compreendê-los. São companheiras adoráveis e não-agressivas, e desejam permanecer nesse pa­pel; elas não insistem em ter seus próprios direitos muito pelo contrário."

 

Quanto à capacidade feminina para a originalidade e a produtividade, Deutsch faz lembrar uma superiora de convento:

 

"... estão sempre prontas a renunciar a suas próprias realizações sem se sentirem lesadas por isso, e rejubilam-se frente às realizações de seus companheiros... Elas têm uma extraordinária necessidade de apoio quando engajadas em qualquer atividade dirigida para fora do lar".

 

Atualmente, psiquiatras menos cegos reconhecem o nú­mero contorcionista exigido das mulheres numa idade em que se espera que reprimam seus impulsos mais sadios. Symonds observa que as mulheres não nasceram com esse protótipo "ideal"; elas tiveram que dar duro para atingi-lo. "Para que se consiga renunciar às próprias realizações sem sentir-se lesado, deve-se despender constantes esforços. Para ser adorável e não-agressiva, a mulher passa a vida inteira contendo seus impulsos hostis ou agressivos. Até a auto-asserção sadia é costumeiramente sacrificada, pois pode ser confundida com hostilidade. Portanto, freqüentemente elas reprimem sua iniciativa, renunciam a suas aspirações e in­felizmente acabam excessivamente dependentes, com uma profunda sensação de insegurança e incerteza quanto a suas capacidades e seu valor."

 

Tendo em mente a enorme mudança ocorrida no que a sociedade considera um comportamento feminino "adequado", retomemos a questão das atuais atitudes femininas quanto ao trabalho e ao dinheiro. (Como veremos, essas atitudes são vitais no processo do que chamamos "situação de desvantagem da mulher".)

Certas tendências recém-emergentes (ou recentemente reconhecidas) começam a evidenciar o fato de que as mulheres não têm sido simplesmente mantidas economicamente dependentes; elas mesmas contribuem para isso. Por exem­plo, entre 1960 e 1976 o número de formandas de faculda­des cresceu quase quatrocentos por cento. E, no entanto, mais de metade das meninas americanas na segunda série do segundo grau ainda afirmam desejar empregos em uma dentre apenas três categorias profissionais: secretariado e ati­vidades de escritório afins, serviço social e magistério, e enfermagem.

"A discriminação de sexos no mercado de trabalho é uma realidade, porém a principal razão da falta de pro­dutividade profissional das mulheres é sua má vontade em assumir um compromisso profissional a longo prazo", escreve Judith Bardwick em The psychology of women: A study of biocultural conflicts (Psicologia feminina: Um estudo de conflitos bioculturais). Relacionando os dados obtidos pelo National Manpoker Council, pela President's Commission on the Status of Women e pelo Radcliffe Committee on Graduate Education, Bardwick conclui: "Tomando-se a população de moças e rapazes academicamente talentosos, no­ta-se que o número de calouros e formandos de faculdades entre as primeiras é significativamente menor que entre os segundos. A mesma relação se dá no tocante a cursos avançados. Aquelas que chegam a completar o doutorado usam-no menos que os homens. Elas são menos produtivas que os homens, mesmo que completem o doutorado, permaneçam splteiras e continuem a trabalhar em período integral".

As mulheres continuam a escolher carreiras malpagas. Em 1976, quarenta e nove por cento dos bacharelados, se­tenta e dois por cento dos mestrados e cinqüenta e três por cento dos doutorados outorgados a mulheres eram relativos a seis áreas tradicionalmente "femininas" e mal-remuneradas. "Se as mulheres continuarem a abraçar profissões cos­tumeiramente ditas femininas", diz Pearl Kramer, economista-chefe do Long Island Regional Planning Bard, "a di­ferença entre o que ganham e o que seus colegas homens ganham persistirá indefinidamente."

Essa é a famosa "situação de desvantagem da mulher". Há muito se sabe que as mulheres não estão realizando aqui­lo de que são capazes. O que não foi reconhecido é o papel que as mulheres desempenham na manutenção dessa situação desvantajosa. As mulheres não estão apenas sendo excluídas do jogo do poder (embora isso seja sistematicamente efetuado). Estão também evitando-o ativamente. "Como estamos ficando independentes!", pensamos, exultantes, vendo quantas mulheres estão deixando a vida de "domésticas" para trabalhar fora. Mas se lermos entre as linhas dos resul­tados estatísticos do recenseamento, notaremos que muitas dessas mulheres não apreciam o fato de estarem trabalhando. Elas se sentem sobrecarregadas por isso; mais: às vezes sen­tem-se até exploradas por fazê-lo. Bem no íntimo, ainda crêem que as mulheres realmente não deveriam ter de ganhar a vida. Ao deixarem o conforto e a segurança de suas co­zinhas para tornarem-se força de trabalho, várias delas são motivadas não pelo sentido de responsabilidade por si mes­mas ou por uma questão de justiça para com seus maridos, mas principalmente por uma crise externa. Acontece que perdemos as rédeas sobre a inflação, e Charlie não está ganhando o suficiente.

Ou então não existe nenhum Charlie. Charlie se casou novamente, ou morreu, ou simplesmente sumiu de uma hora para outra nos braços de uma mulher mais nova e menos problemática. Viúvas ou divorciadas, as esposas abandonadas dispõem de pouco ou nenhum dinheiro com que sustentar a si e às crianças. Sob essas circunstâncias, o sentimento advindo do "voltar a trabalhar" não é tão construtivo e libertador quanto poderíamos imaginar. De início pode haver contentamento, como a alegria experimentada pelo adolescente que recebe o primeiro pagamento por algum trabalho, mas a excitação da libertação é logo suplantada por uma horrível suspeita: "Isso pode durar para sempre".

 

                   Sinais do recuo

Há indicações de que pelo menos algumas mulheres não estão apenas paralisadas, como também envolvidas numa reação contra sua nova liberdade — enfim, fugindo dela. Um estudo efetuado pelo Wall Street Journal relata que vá­rios executivos de indústrias se queixam da recusa de suas empregadas em cursar programas de especialização elabora­dos especialmente para elas. "Temos que arrastá-las aos gri­tos e chutes", desabafou um executivo da General Motors. (Com menos irritação, mas igual presunção, um diretor de relações industriais concluiu: "É um condicionamento so­cial. As mulheres nunca tinham aspirado a esses empregos. Fica difícil convencê-las a aspirar a eles agora".)

Algumas mulheres casadas estão abandonando seus em­pregos sob a alegação de que o trabalho cria mais cansaço e ansiedade do que podem suportar. "É como se sentissem o Grande Sonho Americano escorregando por entre seus dedos", afirma Better Homes and Gardens a respeito de um questionário (respondido por trezentas mil leitoras) sobre suas reações ao trabalho. A maioria dessas mulheres, casa­das e com filhos, tende a deslocar as ansiedades relativas a seu desenvolvimento para o argumento — mais seguro — de que "são mais necessárias em casa". Na verdade, tendo perdido o sentido de "serem necessárias", tão importante em sua organização psíquica, elas haviam projetado essa perda sobre suas famílias, convencendo-se de que os fami­liares se sentiam "abandonados" devido à sua ausência. Algu­mas dessas esposas contam terem persuadido seus maridos a mudar para casas menores e em vizinhanças menos agra­dáveis porque desejavam parar de trabalhar e "voltar a se dedicar" à família — decisão essa que, segundo elas, as encheu de sentimentos de "extremo alívio".

Existe também a síndrome do "ter outro filho" — uma forma socialmente aprovada de permanecer no lar ou de para ele retornar. De acordo com Ruth Moulton, uma psiquiatra feminista que pertence ao corpo docente da Columbia University, mesmo mulheres muito talentosas en­gravidam para evitar a ansiedade resultante do desenvolvi­mento de suas carreiras. Um exemplo característico, diz ela, é o caso de uma artista sua conhecida que "acidentalmen­te" engravidou duas vezes num espaço de cinco anos; toda vez que a oportunidade de montar uma exposição se lhe apresentava, ela "escolhia" uma gravidez. Conseqüentemen­te, suas exposições foram adiadas até bem depois de seus cinqüenta anos, o que, escreve Moulton, "reduziu conside­ravelmente o tempo de desenvolvimento e reconhecimento de seu talento".

Revendo os prontuários de suas pacientes nos últimos anos, a Dra. Moulton contou vinte mulheres entre as idades de quarenta e sessenta anos que haviam usado a gravidez como forma de escapar ao mundo externo. "Em ao menos cinqüenta por cento desses casos", acrescentou, "uma terceira ou quarta criança foi concebida exatamente quando os filhos mais velhos estavam no ginásio ou no colégio e a mãe se achava mais livre para devotar mais energia a algum tipo de trabalho externo."

"Compulsão de criar filhos" é como Moulton chama esta síndrome; com isso ela indica que a maternidade não está a serviço da gratificação intrínseca da mulher, mas cons­titui uma substituição à ação no mundo. (Num relatório de 1977 sobre a "Avaliação das mulheres no exército", M. Kathleen Carpenter afirma que "as mulheres estão usando a gravidez como veículo para sair" do exército.)

O fenômeno da "gravidez para evitar a tensão" certa­mente não tem efeito positivo sobre a mais reverenciada das instituições americanas, a vida em família. Quando se tem filhos para evitar a ansiedade que se segue ao desenvolvimento pessoal, está-se perpetuando um ciclo destrutivo. Tais mulheres se ressentem do papel restrito e auto-limitador que escolheram como saída, e por vezes tornam-se fóbicas e hi­pocondríacas. E, talvez o mais importante de tudo, elas não criam filhos independentes. Moulton alerta que a depen­dência da mulher se reflete sobre seus filhos, "interferindo no crescimento independente e na individualização deles".

 

Uma noção que se vem impondo atualmente (e parece ser atraente a todo mundo: feministas, não-feministas, ho­mens) é que, acima de tudo, as mulheres devem poder optar. Elas deveriam poder optar, por exemplo, se devem ou não trabalhar, se devem fazê-lo em esquema de período integral ou não, se ficam em casa para se dedicar à família ou não. Ninguém deveria nos pressionar, dizendo-nos que "temos que" ou "não podemos" fazer isto ou aquilo. Sugerir que as mulheres são covardes por ficarem em casa é tão arbi­trário, avisam as feministas, quanto insistir em que elas lá permaneçam quando seu desejo é de trabalhar fora. Cuidar das crianças, limpar a casa, prover o marido dos meios para que ele possa manejar as ansiedades decorrentes do ganho do pão — são contribuições sociais supostamente importan­tes, das quais qualquer mulher pode sentir-se justificadamen­te orgulhosa. Porem, este "direito à opção" contribuiu fortemente para a situação de desvantagem da mulher. Por terem a opção socialmente legitimada de ficar em casa, faz-se possível — e até costumeiro — o recuo feminino frente à assunção de responsabilidades pessoais.

A verdade é que muitas mulheres que não "precisam" trabalhar, já que seus maridos se dispõem a sustentá-las e têm meios de fazê-lo, não trabalham. O crescente número de mulheres trabalhadoras guarda estreita correlação com o aumento do número de casamentos dissolvidos. Quarenta e dois por cento das mulheres que trabalham são "chefes de família". É espantoso que atualmente, dentre as mulheres casadas que vivem com os respectivos maridos, metade ainda prefira refugiar-se nas lides domésticas.

Alguma coisa está errada. Isso se torna perceptível quando se atenta para a situação econômica das mulheres idosas neste país. Quando todo mundo discorre sobre opções, lucraremos mais perguntando-nos: "Quem toma conta das mulheres quando envelhecem"? A resposta, na­turalmente, é: ninguém. À época em que seus cabelos pas­sam a ficar grisalhos, o velho sistema "mulheres e crianças, primeiro" há muito caiu por terra. A realidade as atinge em cheio quando o companheiro morre. As últimas estatís­ticas governamentais mostram que a média de idade em que as mulheres americanas enviúvam é de cinqüenta e seis anos. Em cada duas mulheres nos Estados Unidos, uma deverá enviuvar com aproximadamente cinqüenta e seis anos. E mesmo aquelas que desde adultas sempre trabalharam não se vêem protegidas na velhice; uma entre quatro delas será pobre — muito mais pobre do que homens na mesma faixa etária. Em 1977 a renda média anual das mulheres idosas era de três mil e oitenta e sete dólares (cinqüenta e nove dólares semanais), ao passo que a renda média dos homens idosos era quase o dobro disso. (A principal razão pela qual essa discrepância ocorre é que a Previdência Social ameri­cana se define pelo sistema salarial, e já vimos que as mu­lheres percebem apenas sessenta por cento do que ganham seus colegas homens.)

Esta, pois, é a triste verdade a que as mulheres jovens — ainda românticas, ainda apaixonadas, ainda acomodadas no sonho de que as mulheres podem com segurança deixar que outros tomem conta delas — dão as costas. O mito dita que a segurança, para as mulheres, está em viverem eternamente ligadas, presas, enfurnadas "no seio da famí­lia", tal como moluscos. Mas quando essas mesmas mulheres envelhecem, descobrem-se totalmente à mercê do mundo econômico em que se recusaram a entrar. A desolação da velhice é a resultante mais pungente, se não a mais destru­tiva, do complexo de Cinderela. Esse ponto cego que man­temos — a incapacidade (ou recusa) de vermos a conexão entre a falsa segurança do casamento e a solidão e a pobreza das mulheres mais velhas (muitas vezes viúvas) —, esse ponto cego assemelha-se a uma doença mental. Queremos tão desesperadamente crer que alguém cuidará de nós! Que­remos tão desesperadamente crer que não temos de nos responsabilizar por nosso próprio bem-estar!

 

                   Confusão em Atlanta

Esse mito é particularmente prevalecente entre mulheres da classe média. Com lentes cor-de-rosa nos olhos, continuam a procurar empregos como que numa espécie de experimento, como que de brincadeira. Languidamente, acomodam-se em empregos de tempo parcial, empregos destinados a "alar­gar seus horizontes" ou a permitir-lhes "sair de casa e co­nhecer gente". Destacam-se certas donas-de-casa da classe média alta que absolutamente não sabem o que fazer com as oportunidades que se abrem à sua frente, e aleatoria­mente "decidem" cultivar sua beleza e seu conforto o má­ximo possível, pois o futuro — por mais interessante que possa parecer — mais as atemoriza do que fascina. Tive ocasião de conhecer um grupo de donas-de-casa assim num jantar em Atlanta, Geórgia.

Eram mulheres esguias e elegantes, de seus trinta e poucos anos. Atraentes e vivazes, tinham por maridos homens bem-sucedidos: corretores do mercado de ações, um burocrata do governo estadual, um professor de psicologia de uma universidade local. Uma das mulheres, a quem cha­marei Paley, ainda correspondia à imagem das joviais re­beldes sulistas da Secessão. Outra, Helen, imigrara recen­temente para o sul, vinda de Cambridge. Lynann sempre vivera em Atlanta, e assim era feliz. Essas mulheres diziam sentir certo grau de frustração em suas vidas — os filhos já estavam na universidade, ou prestes a ingressar nela. Mostravam-se, contudo, letárgicas quando vinha à baila o assunto trabalho. Falavam sobre seus desejos de obter empre­gos "fáceis": empregos de poucas horas de trabalho e que pagassem bem. Os jogos de bridge já as tinham enfastiado, diziam (embora ainda freqüentassem o clube).

Até então, Paley era a única dentre elas que chegara a conseguir um emprego. "Trabalho num pequeno restaurante naturalista no fim da rua de minha casa", contou. "São poucas horas por semana, mas com as gorjetas acabo ganhan­do por hora mais do que meu marido!"

As outras riram. Dinheiro nunca fora problema para Paley. Ela vinha de uma pequena cidade da Geórgia onde todos se conheciam e todos eram ricos. Agora vivia em Atlanta com a mesma disposição "intrépida" de seus tempos de faculdade na velha Universidade do Estado da Geórgia.

Após o jantar, o tom da conversa pareceu mudar. As mulheres deixaram os homens sentados na sala de jantar com mobília tipicamente sulista e reuniram-se em um canto da sala de estar, onde passaram a falar sobre a aridez de suas vidas. Constrangidas, faziam piadas sobre como tudo o que discutiam girava em torno de "detergentes, cera para o chão e goma para os colarinhos das camisas dos maridos". Não havia diferença alguma entre essas mulheres e as des­cobertas por Betty Friedan vinte anos antes em seu estudo com as formandas do Smith College que desesperavam com a vida levada nos subúrbios requintados do nordeste do país. Só que não estávamos em 1960, mas em 1980. E aquelas mulheres ainda não estavam enlouquecendo de frustração. No mínimo levavam vidas confortáveis demais: almoços no clube de campo, carros modernos, inúmeras festas. Apenas um resíduo de seus dias de faculdade recor­dava-lhes terem tido um dia uma diferente visão de si mes­mas, terem se sentido livres, terem "curtido a vida" e se imaginado fazendo coisas.

A comodidade de suas vidas de casadas dificultava-lhes "começar de baixo". "Trabalhar para alguém não é comi­go", comentou Lynann, acrescentando que o maior pro­veito que tirara de trabalhar fora o reconhecimento de que não desejava empregar-se como subordinada. "Quero algu­ma coisa a nível de gerência. Quero ser eu a dar as ordens." (Ao que as demais riram novamente.)

E ela consideraria a hipótese de fazer pós-graduação a fim de realizar seu sonho? Bem, não, nem tanto. Estava inte­ressada num "cursinho" de que ouvira falar e que lhe pro­porcionaria "certos instrumentos e formas de me apresen­tar de modo a parecer sabida". (Mais risadas.)

Paley não era cega quanto à estrutura social em que estavam entrincheiradas. "Para muitas mulheres de Atlanta, a questão de honra é ainda quanto o marido ganha e quanto ele pode oferecer a ela", disse. "O que conta é: que tipo de carro ele lhe dá? Você tem empregada ou babá? Vocês têm dinheiro para viajar?"

Ainda pairava o problema da aridez e do tédio. O que faziam para preencher as horas vazias em que não estavam fazendo compras ou levando os filhos ao colégio? Liam romances. Em tom de gozação (para mascarar o embaraço geral), começaram a classificar os autores dos romances mais vendidos na época por seu mérito literário. Todas mergulharam no jogo.

"Quanto tempo vocês realmente passam lendo?", perguntei.

Paley — de cabelo tingido de ruivo e frisado, unhas impecavelmente manicuradas — respondeu: "Leio sem parar. Passo diversas horas por dia lendo. Fico tão absorta que nem percebo quando minha filhinha entra na sala. Às vezes ela chora e nem a ouço".

 

Essas são as representantes das mulheres "bem-cuidadas": jovens, atraentes, "felizes" — e seguras. Presumem que a dependência financeira é um direito seu por serem mulheres. Em troca, devotam-se à casa, orgulham-se de sua habilidade em limpar, organizar, receber e criar filhos. Mas no íntimo, sem se darem conta, têm que se reportar à "agen­da" auto-estabelecida: evitar, quase ritualisticamente, qual­quer reconhecimento da esterilidade de suas vidas. Não pensam sobre o que aconteceria se seus casamentos se desfi­zessem. É claro que o divórcio existe. Ele é tão comum à sua volta! E, pensam elas, as mulheres vítimas dele mos­tram-se muito corajosas no modo com que tentam reunir os cacos de suas vidas. Mas, para mulheres que se resguardam dentro de um papel definido, o divórcio está longe de ser realidade. O divórcio é para as outras, para mulheres que são... bem, não tão afortunadas...

... Como o câncer. Ou a morte.

 

                   Depressão em todo o país

Originando-se diretamente da confusão de donas-de-casa como aquelas de Atlanta, surge um fenômeno cultural relativamente novo: a "esposa desativada". Representando uma vasta subcultura de mulheres que enviuvaram ou fo­ram abandonadas pelos maridos e que jamais desenvolve­ram habilidades com que se sustentarem, as esposas desati­vadas constituem uma classe emocionalmente deficiente de vinte e cinco milhões de mulheres. Levadas a crer que a sociedade as recompensaria por serem, boas esposas e mães e por manterem seus lares reluzindo de limpeza, essas mu­lheres se vêem completamente perdidas frente ao desaba­mento de suas relações conjugais. Acreditam-se incompe­tentes; os talentos possuídos na época em que saíram da faculdade ou do colégio há muito se atrofiaram. Seus músculos estão inativos; suas mentes, idem. São essas as mulheres que passaram a vida crendo no mito de Cinderela, isto é, que sempre teriam um homem a seu lado. Os dados estatísticos do Centro para Esposas Desativadas de Maryland mostram a realidade cruel desse sonho. Somente de­zessete por cento das mulheres atendidas nesse centro rece­biam pensão, por ínfima que fosse, dos ex-maridos. Um terço delas vivia em extrema pobreza. E essas mulheres não eram idosas. Suas idades variavam entre trinta e cin­qüenta e cinco anos.

Ao apoiar (mais ou menos) o divórcio — e simultanea­mente a importância do trabalho da mulher que tem filhos —, a sociedade abala a segurança dessas mulheres. Como resultado, segundo Milo Smith (fundadora da organização Esposas Desativadas e dirigente do centro que tem esse nome em Oakland, Califórnia), as mulheres que a procuram mostram-se agressivas. Não lhes agrada a idéia de que tudo tenha mudado subitamente. Elas se ressentem de ter de deixar suas cozinhas, aprender um ofício e trabalhar fora.

Vivem também muito deprimidas. "O suicídio é nosso maior problema", disse Milo Smith. "Já tivemos quatro tentativas de suicídio neste ano, só aqui neste centro."

No dia em que visitei esse centro em particular (há dezenas deles espalhados pelo país), as mulheres que lá che­gavam para pedir ajuda vestiam-se bem e usavam batom vermelho-vivo. Umas tantas, obesas, usavam longas túnicas. Enquanto aguardavam a entrevista, era-lhes servido café por simpáticas recepcionistas e outras empregadas do cen­tro, todas elas esposas desativadas. Tal como ex-presidiá­rias, as ex-esposas sustentadas tentavam ajudar-se mutua­mente. As recém-chegadas tinham os olhos brilhantes e pa­reciam ansiosas por agradar. A insegurança reluzia em seus olhos como febre.

"Muitas delas chegam aqui num estado lamentável", contou a Sra. Smith, uma mulher de cerca de sessenta anos que iniciou esse trabalho porque havia alguns anos ela mesma fora uma viúva assustada e sem ofício. "Tornam-se uns lixos ambulantes, viciadas em Valium — e pensar que seus médicos dormem com a consciência tranqüila!"

Desoladas desde a partida dos maridos, arrasadas por um sentimento de perda não apenas dos maridos, mas de um estilo de vida que lhes dava a consciência de identidade, essas mulheres buscavam em seus médicos mais do que eles poderiam lhes oferecer — e tudo o que recebiam eram tranqüilizantes. O desespero das esposas desativadas é pal­pável. A sociedade não sabe o que fazer com elas, e elas — tendo perdido a raison d'être para a qual nasceram e foram criadas — igualmente não sabem o que fazer consigo mes­mas. Sua auto-estima parece desaparecer da noite para o dia. Apontando para a entrada do centro, Milo Smith disse-me: "Praticamente toda mulher que cruza aquela porta assimilou a idéia de que agora é feia, velha, gorda e inútil".

Pior que isso: sentem que essa nova auto-imagem pro­cede de alguma ação concreta contra elas, o que as faz vin­gativas. "Estas mulheres desperdiçam suas energias fazendo tudo assumir um colorido negativo, destrutivo", afirma a Sra. Smith. "São terrivelmente rígidas e inflexíveis. Isso tudo faz parte do quadro depressivo. Você sugere que façam algo por si próprias e armam-se de desculpas. A típica esposa desativada arranja cinqüenta razões para explicar por que é incapaz de fazer aquilo que lhe seria útil. Isso tudo deriva do medo."

"A mulher deprimida é alguém que perdeu", diz Maggie Scarf, falando do "preocupante nível de depressão" que vem se evidenciando em diversos estudos recentes sobre mulheres., bem como da tendência ascendente a tentativas de suicídio entre elas (especialmente entre as mais jovens), e da descabida quantidade de pílulas que são tomadas para abafar a dor emocional. Uma pesquisa conduzida pelo Na­tional Institute of Mental Health, terminada no início da década de 70, revela que um terço da população feminina entre trinta e quarenta e quatro anos usa tranqüilizantes fortes para combater a depressão. Ocorre que oitenta e cinco por cento delas confessam jamais terem consultado um psiquiatra.

O que exatamente a mulher deprimida perdeu? "Uma coisa de que dependia vitalmente", responde Scarf. "O que tenho visto emergir com uma regularidade quase assombro­sa é que a 'perda' em questão é a perda de um relaciona­mento emocional crucialmente importante e freqüentemente auto-definidor."

As mulheres voltam-se para os outros para obter uma auto-definição — o sentido do que são. A extensão com que se vêem através dos olhos do outro é tal que, se algo acon­tece ao outro — se ele morre, ou a deixa, ou apenas se mo­difica de modo significativo —, elas não mais conseguem ver-se a si próprias. Como disse uma mulher que perdera o homem que fora seu amante por três anos (e não tenho dúvidas de que falava por milhões de outras mulheres): "Co­meço a ter a sensação de não existir".

 

                 Como o complexo de Cinderela afeta o trabalho feminino

Essa necessidade do "outro", e fixação nele, inibe de uma vez a capacidade feminina de trabalhar produtivamente — de ser original, de comprometer-se com a atividade e dela auferir prazer. O mito que diz que nossa salvação reside em estarmos ligadas a alguém carrega consigo o corolário não explícito de que não seremos nunca chamadas a tra­balhar. Quando de repente acontece algo que transforma o trabalho numa necessidade, muitas de nós inflamam-se com uma extrema fúria interna. Precisar trabalhar é um sinal de que, de algum modo, falhamos como mulheres.

Ou é um sinal de que o sonho em si era uma fraude.

"Pelo pouco prazer que eu tirava de meu trabalho, tanto faria se, em lugar dele, eu estivesse trabalhando na linha de montagem de uma fábrica de grampos", relatou-me uma curadora de museu. Ela estava com trinta e um anos, não era casada e ocupava uma excelente e invejável posição no mundo das artes em Washington, quando subitamente tudo o que antes lhe parecera tão excitante despojou-se de co­lorido e interesse. Isso começou no dia de seu trigésimo pri­meiro aniversário, pois essa era a data que ela elegera no íntimo para desobrigar-se de sua independência. "Tarde de­mais", anunciou uma voz dentro dela. "Você não deveria ter de trabalhar mais. Mulheres de sua idade deveriam ter a opção de não trabalhar; deveriam poder ficar em casa e pintar quadros, ou dedicar-se a obras de caridade, ou criar filhos."

Ela sentia ter perdido uma oportunidade única; ridículo, talvez, mas isso a deixava zangada e a insensibilizava. Achava que estava fazendo o serviço mecanicamente, como que por inércia. Perdera o prazer de fazer experiências e desenvolver sua criatividade. Muitos anos mais tarde, ela me disse: "Eu me sentia fútil, como se estivesse desem­penhando uma infindável série de tarefas que nada signifi­cavam além de meras obrigações. Isso reduziu minha efi­ciência pela metade. Por que envolver-me com uma ativi­dade específica, se em seu lugar instantaneamente aparece­ria alguma outra exigência despropositada?"

Conheço uma mulher com curso superior que trabalha como faxineira, limpando apartamentos em Nova York porque, explica, "Não quero ter a sensação de estar tra­balhando em algo permanente, que escolhi, algo que sugira: 'Muito bem, este é o tipo de serviço que você vai abraçar, é assim que você vai garantir sua vida'".

Essa mulher tem vinte e quatro anos e é extraordi­nariamente inteligente. Além das faxinas, ela trabalha como free-lancer criando textos de propaganda pelo correio — e o faz com brilhantismo. Seu chefe a considera excelente, o que é verdade — descontando-se o fato de que a cada dois ou três meses ela se "atrapalha" e começa a falhar na data de entrega dos trabalhos. Fica "bloqueada". Não con­segue escrever nada. Tal ocorre sempre que ela começa a ganhar um pouco a mais do que necessita para pagar o alu­guel e demais contas de sua minúscula kitchenette em Greenwich Village. "Se não estou a ponto de ter minha luz cortada por falta de pagamento, tenho a sensação de que minha vida não é real", diz ela. "Ter de trabalhar o sufi­ciente para sobreviver mês a mês é uma coisa. Ter de tra­balhar porque é isso que os adultos fazem, e é nisso que sua vida vai consistir... simplesmente não consigo enca­rar isso. Sei que é completamente neurótico e infantil, mas bem no fundo não quero ter que cuidar de mim mesma; quero que alguma outra pessoa o faça."

Existem inúmeros sinais de que as mulheres estão so­frendo problemas funcionais devido a suas atitudes em rela­ção ao tema trabalho. Algumas persistem em continuar no mesmo emprego ano após ano, muito embora se entediem terrivelmente. Algumas protestam contra a competitividade do mundo masculino, dizendo que "se recusam" a partici­par dele. O curioso é que em geral são essas mesmas mu­lheres que invejam os homens por sua capacidade de fazer coisas que elas mesmas se sentem incapazes de realizar, ou encontram enorme dificuldade para delas se desincumbirem. Assim, por exemplo, negociar. Iniciar seus próprios pro­jetos. Pedir e conseguir mais dinheiro. Em resumo, assumir um papel ativo com relação a seu próprio bem-estar. Há toda uma rede de problemas psicológicos cujos sintomas perma­necem confortavelmente enterrados até que as mulheres saiam em busca de empregos ou tentem concretamente entrar num campo profissional. Aí sobrevêm a tempestade.

A ansiedade revelada nos testes, por exemplo, é noto­riamente mais acentuada nas mulheres do que nos homens. Se, para obter um emprego, mudar de profissão ou alcançar uma posição mais desejável em dada empresa, for preciso um teste, grande parcela da população trabalhadora do sexo feminino desiste de seus planos e ambições profissionais. (Algumas delas entram em pânico diante de qualquer tipo de teste, seja o vestibular, exame de motorista ou teste de qualificação para o ramo imobiliário.)

Falar em público também é mais difícil para as mulhe­res. Numa pesquisa cujos sujeitos eram duzentos pós-graduandos da Columbia University, o investigador concluiu que cinqüenta por cento das mulheres não conseguiam falar em público, contra vinte por cento dos homens. Para algu­mas delas, a ansiedade produzida por essa situação era tão avassaladora que se fazia acompanhar de ataques de tontura e até de desmaios.

A comunicação em geral é um empecilho para mulheres cuja auto-estima é baixa, provocando uma necessidade inter­na de serem cuidadas. Certas mulheres ficam confusas, esquecem-se do que queriam dizer, não acham a palavra certa, não conseguem fitar as pessoas nos olhos. Ou enru­bescem, gaguejam, ou suas vozes tremem. Ou então perdem o poder de argumentação no momento em que alguém dis­corda delas. Podem ficar desconcertadas ou chegar às lágri­mas — especialmente se seu oponente for um homem.

Diversas mulheres com quem conversei descreveram a experiência de diminuição de sua consciência de saberem o que sabem, de sua autoridade, no instante mesmo em que o pêndulo da conversação se desloca delas para o homem.

Todos esses problemas na realidade são formas sinto­máticas da "ansiedade de desempenho", a qual se associa com outros temores mais gerais (indicativos do sentimento de inadequação e desamparo no mundo). Assim, temos medo da retaliação por parte daquele de quem discordamos; medo de sermos criticadas por fazermos algo errado; medo de dizer "não"; medo de colocar nossas próprias necessidades clara e diretamente, sem manipulação. Esses são os tipos de temores que afetam as mulheres em particular, pois fomos criadas de modo a acreditar que cuidar de nós mesmas, afirmarmo-nos, é não-feminino. Desejamos intensamente ser atraentes para os homens: não-ameaçadoras, doces, "fe­mininas". Tal desejo tolhe a alegria e a produtividade com as quais poderíamos estar dirigindo nossas vidas.

Para não dizer que nos leva a nos comportarmos como bebezinhos.

 

                   Aparência e linguagem da "filhinha de papai"

Numa reunião da Academia Americana de Psicanálise, em Beverly Hills, Alexandra Symonds assombrou seus cole­gas com a seguinte colocação: "Não é adequado que uma executiva de um banco caia em lágrimas quando seu supe­rior a critica por algo que fez. É inaceitável que uma editora-chefe que ganha trinta mil dólares por ano aja de modo sedutor para obter a aprovação de um plano seu já rejeitado. É incabível que uma professora universitária se mostre amuada por lhe terem programado poucas aulas, esperando, com tal comportamento, chamar a atenção do reitor e fazê-lo mudar de opinião. Esses são padrões com­portamentais de 'filhinhos de papai', e não de mulheres libertadas atuando autonomamente".

A dra. Symonds não inventara casos fictícios de "filhi­nhas de papai" bem-sucedidas em suas carreiras. Estava relatando casos reais de pacientes que a tinham procurado pedindo-lhe ajuda "supermulheres" em profundo con­flito com seus sentimentos de dependência.

À medida que as mulheres ascendem profissionalmente, certas afetações e maneirismos flagram a confiança que elas tentam aparentar. Aquelas que, no íntimo, não renuncia­ram à sua condição de "filhinhas de papai" podem de fato enviar mensagens muito desconcertantes a colegas e pessoas com quem fazem negócios. Tanto quanto o atual estilo de indumentária da "mulher de sucesso" uma mistura de angelical e provocador —, a apresentação dessas profis­sionais freqüentemente sugere algo de esquizoide. Elas pa­recem tão firmes — até que começam a piscar, revolver os cabelos e sorrir de modo sedutor.

Tais comportamentos não são sempre apreciados pelos homens com quem elas negociam. Recentemente tive uma reunião com um jornalista financeiro, um corretor de ações da Wall Street e um executivo de propaganda. O objetivo era recolher suas impressões sobre a maneira como as mu­lheres se apresentam, agem e falam quando tratam de ne­gócios. Aqui estão alguns excertos da conversa:

 

Jornalista: Há alguns meses entrevistei uma mulher numa ótima posição no mercado de ações de Nova York. Ela usava uma camisa de seda branca, muita maquilagem, brincos de ouro que não paravam de balançar, e tinha unhas compridas e pintadas de vermelho-vivo. Eu mal conseguia olhar para ela, de tão chamativa que era sua aparência. Seu modo de falar era pontuado por diferentes estilos. Mostra­va-se por algum tempo séria e extremamente segura de si; de repente, entremeava o discurso com risadinhas, dava de ombros e levantava as sobrancelhas de modo provocador, para depois reassumir a seriedade e a compenetração.

 

Corretor: Também vejo isso nas mulheres com quem trabalho. A gente fica totalmente desnorteado, como que aguardando o momento em que a próxima "personalidade" vai aparecer. Começa-se a procurar sinais que indiquem quando e quem vai emergir da próxima vez.

 

Jornalista: A dicção daquela mulher era super-lenta. Ela era muito cuidadosa na escolha das palavras, sempre observando a forma como falava, o que comunicava. Aí fazia uma coisa que já presenciei em diversas mulheres com bons empregos. Elas terminam as sentenças "amaciando" as pala­vras e acenando ligeiramente a cabeça.

 

Publicitário: Ah, já vi isso. É uma espécie de jactân­cia mascarada; elas finalizam as frases com um ar de superioridade mascarada. E encobrem aquilo de que se podem gabar porque não desejam mostrar-se realmente "venden­do" a coisa.

 

Jornalista: É como se as mulheres tivessem medo de se posicionar concretamente por trás da força de uma afir­mação. Elas vão falando, falando, criando uma boa linha de argumentação, e, de repente, é como se se vissem ganhan­do terreno. Aí têm que recuar. Acho que elas temem o poder.

 

Corretor: Essa diminuição do tom da voz e o aceno são muito comuns.

 

Publicitário: O aceno tem o propósito de fazer-nos concordar.

 

Corretor: Exato.

 

Publicitário: Notei que as mulheres são muito rígi­das quando falam de trabalho. Elas nunca dizem algo como: "Você está ficando louco?" É muito freqüente ver-se homens de negócios deixarem suas personalidades se expri­mirem abertamente. Eles não se preocupam em ser aquilo que acham que deveriam ser. São o que são e fazem negó­cios. Já as mulheres são polidas e formais. Entram na sala empunhando a bandeira da etiqueta. Elas me lembram me­nininhas de ginásio que são as primeiras da classe.

Corretor: É por isso que as mulheres se adaptam tanto a empregos como vendedoras ou chefes de departa­mentos de reclamações. As pessoas podem chegar e falar alto, esnobar ou berrar, e elas simplesmente permanecem tranqüilas por trás da base e do blush meticulosamente apli­cados todas as manhãs. É como se elas, pessoas, não estives­sem presentes. As roupas, a maquilagem e a feminilidade são anteparos entre elas e o mundo.

 

Jornalista: Existe um protótipo na adolescência se­gundo o qual a garota passa a enxergar o mundo de dentro do carro do namorado. Esse protótipo parece persistir por toda a vida. A mulher passeia pelo mundo do homem. Ao entrar no carro dele — ou seja, em suas instituições —, a mulher está meramente excursionando. Ela não tenta sentar-se no banco do motorista, fazer as coisas do jeito dela, provocar mudanças. Ela jamais tenta alcançar o poder. É assim que vejo a dependência feminina: a eterna pas­sageira do automóvel do macho.

 

As mulheres não se sentem à vontade sendo incisivas, pedindo diretamente o que desejam, vendendo aquilo em que acreditam, especialmente quando isso implica passar por cima das opiniões dos outros. Sempre à espreita às vezes nos momentos mais inesperados —, a tentação de reassumir o papel de ingénua, ou o de sedutora, ou o de menininha mimada volta a atacar. Basta um olhar ou um gesto para fazê-lo — "um aceno de cabeça, ou um dar de ombros", segundo as palavras do jornalista.

Em Women, money and power ("Mulheres, dinheiro e poder"), a psicóloga Phyllis Chesler sugere que as mu­lheres fazem tudo isso deliberadamente (ainda que nem sempre conscientemente), a fim de permanecerem confor­tavelmente no banco do passageiro. "Mulheres de todas as classes, dentro de casa e em público, utilizam uma lingua­gem corporal básica para comunicar deferência, inconse­quência, desamparo... uma postura teoricamente destina­da a pôr os outros à vontade, e os homens 'por cima'. "

Há outras maneiras pelas quais as mulheres colocam os homens ou melhor, quaisquer outras pessoas que não elas mesmas "por cima". Ultimamente, vários estu­dos têm sido levados a cabo com a finalidade de analisar os padrões de linguagem femininos. Eles indicam que o medo e a insegurança modelam o modo como falamos: nossa dicção, nossa escolha de palavras, nossa entonação, nosso tom costumeiro de hesitação, até mesmo a altura de nossas emissões sonoras (em algumas mulheres, elas são tão agudas e infantis que parecem apelar por ajuda). O lingüista Robin Lakoff verificou que as seguintes carac­terísticas aparecem consistentemente na fala feminina:

 

- Uso de adjetivos "vazios" ("maravilhoso", "divi­no", "terrível", etc.), que denotam pouco significado e des­tituem o discurso de qualidade concreta. As pessoas cuja fala é entremeada de adjetivos vazios em geral não são levadas a sério.

- Uso de comentários interrogativos ao final de afir­mações. ("Está mesmo quente, você não acha?")

- Uso de entonação descendente ou interrogativa ao final de uma frase, o que lhe retira a ênfase.

- Uso de expressões modificadoras tais como: "tipo", "uma espécie de", "acho", que dão ao discurso uma quali­dade descomprometida.

- Uso de um vocabulário por demais correto e exces­sivamente polido (por exemplo, evitando a gíria e expres­sões populares).

 

Por gerarem altas controvérsias, as descobertas de Lakoff acionaram nova onda de pesquisas, conduzidas por estu­diosos de todo o país. Muito do que eles verificaram refor­çava as observações de Lakoff: as mulheres realmente utili­zam formas não-assertivas de fala. Sally Genet, da Cornell University, elaborou o termo "declarativo difidente" para descrever nossa tendencia a "amaciar" asserções.

Falando do jeito que falamos, nós, do sexo feminino, estamos definitivamente fazendo com que algo aconteça ou não aconteça em termos de nossa eficácia na comuni­cação com outrem. "A fala pode não somente refletir dife­renças de poder", nota Mary Brown Parlee, uma das psicó­logas da redação da revista Psychology Today. "Ela pode ajudar a criá-las."

Em outras palavras, as profissionais que se utilizam do estilo "declarativo difidente" para se comunicar possivel­mente jamais "chegarão lá".

 

Há uma nova crise na feminilidade, qual seja: o con­flito sobre o que é e o que não é "feminino", que impede muitas mulheres de agir de maneira integrada e feliz. Há anos a feminilidade vem sendo associada mais: identificada com dependência. Sucumbindo ao que cha­mo o "pânico do gênero feminino", as mulheres temem que um comportamento independente seja não-feminino (ver capítulo VI). Podemos não chegar a visualizá-lo como masculino; ao mesmo tempo, porém, não o sentimos como feminino. Numa expressão vívida desse novo pânico do gênero feminino, uma jovem corretora do mercado de ações me disse: "Penso que alguém pode ser homem ou mu­lher me ensinará a ser como um homem, ganhar dinhei­ro como um homem, ser confiante e capaz como um homem. Quando isso tiver sido realizado, voltarei a ser mulher, engravidarei e cuidarei do bebê por uns seis anos. Aí volta­rei a ser homem".

A terrível confusão que as mulheres estão experimentando em relação à feminilidade relaciona-se intimamente com nossa escolha de não viver como nossas mães. Os psi­quiatras têm verificado que, quanto mais confinadas e de­pendentes são nossas mães, maior será nossa ansiedade com relação à adoção de atitudes e comportamentos diversos. "A mãe que se auto-anula, a mãe que sofre em silêncio, ainda que diga à filha: 'Não se deixe aprisionar como eu; lute por alguma coisa', pode entretanto sentir-se ressentida e ameaçada pelo fato de sua filha não imitar seu papel auto-restritor", diz Alexandra Symonds.

O fato de se ter uma mãe revoltada produz um de três padrões característicos nas filhas. O primeiro é a depressão leve e crônica — uma tristeza ou depressão que parecem eternamente presentes. Segundo a Dra. Symonds, isso é típico da mulher intensamente envolvida com seu trabalho e que dá muito aos outros, deixando de se nutrir emocio­nalmente.

A segunda síndrome passível de manifestação nas mu­lheres que tentaram divergir do modelo da mãe é a insegu­rança na área da identidade feminina (o tipo de confusão expressa pela jovem corretora de ações). "Fico atônita com o pânico, terror mesmo, que assalta essas mulheres perante os aspectos de suas personalidades que elas consideram masculinos", assinalou a Dra. Symonds, acrescentando que, até hoje, as mulheres que lutam por uma vida independente ainda estão ao sabor das ondas ditado pelas expectativas culturais em relação a elas.

O terceiro padrão é representado pelo núcleo oculto de dependência, tão negado e geralmente disfarçado por trás de máscaras de auto-suficiência admiravelmente con­vincentes. A mulher pseudo-independente pode trabalhar fora em período integral, cuidar bem da família, organizar e desempenhar com esmero as lides domésticas e, em geral, mostrar uma necessidade compulsiva de ser "perfeita" tanto no lar como no serviço. Ela também pode chorar a noite inteira quando o marido está fora de casa.

É comum, atualmente, a tendência feminina a tentar resolver os próprios problemas modificando o rumo das coisas externas: casando-se (ou separando-se), mudando de emprego, mudando de casa, associando-se a um sindicato ou lutando pelos direitos da mulher. Entretanto, o fato é que, caso ela não haja resolvido seus conflitos relativos à dependência, sua vida nunca mudará em função de ter achado o homem "certo", ou o emprego "certo", ou o estilo de vida "certo". Seu trabalho na luta pelos direitos da mulher pode aliviar sua sensação de isolamento. Mas nenhuma dessas modificações externas poderá desatar o nó subjacente a atitudes confusas e autodestrutivas.

As mulheres que desejem começar a se sentir melhor a respeito de si mesmas devem partir da confrontação com o que ocorre dentro delas. Após conversar com psicoterapeutas e psiquiatras de diferentes regiões do país, entrevistar mulheres e simplesmente observar a vida daquelas que vi­viam a meu redor, cheguei à seguinte conclusão: a primeira coisa que as mulheres têm que reconhecer é o grau em que o medo governa suas vidas.

O medo, irracional e caprichoso — um medo sem qualquer relação com capacidade ou mesmo com a realida­de —, é epidêmico entre as mulheres de hoje. Medo de ser independente (que pode significar acabar sozinha e desamparada); medo de ser dependente (que pode significar ser engolida por algum "outro" dominador); medo de ser competente e boa no que faz (que pode significar ter que continuar sendo boa no que faz); medo de ser incompe­tente (que pode significar ter que continuar a sentir-se inútil, deprimida e inferior).

O medo é uma armadilha presente em todos os está­gios da vida da mulher, desde que ela se torna adolescente e desejosa de exercer atração sobre os homens. Armadilha, porque talvez ela não consiga atrair o homem e, por outro lado, talvez o consiga, o que irá aprisioná-la e limitá-la pelo resto de sua vida. O medo é palpável nas "esposas desativa­das", que foram abandonadas pelos maridos, e nas viúvas que se vêem perdidas devido à morte de seus maridos. Ele está presente em mulheres que tentam lançar-se numa pro­fissão, em mulheres que querem desfazer seus casamentos, mas não têm coragem de dar o primeiro passo, em mulhe­res que os desfizeram mas se acham totalmente paralisadas diante da perspectiva de viverem por sua conta.

Talvez o mais doloroso de tudo seja que ele está pre­sente inclusive em mulheres que ascenderam muito em suas carreiras — e achavam terem ultrapassado esse problema — apenas para descobrirem que, no ponto X de suas car­reiras, num nível no qual a atuação verdadeiramente inde­pendente não mais poderia ser evitada se quisessem vencer por completo, são subitamente assaltadas pela ansiedade e não conseguem prosseguir. A fobia acha-se tão infiltrada na experiência feminina que assume as proporções de uma peste secreta. Ela se desenvolve ao longo de muitos anos e através do condicionamento social, e é ião insidiosa justa­mente porque tão aculturada que nem chegamos a reconhe­cer o que foi que nos aconteceu.

As mulheres não se libertarão enquanto não pararem de temer. Não começaremos a experimentar uma mudança real em nossas vidas, uma emancipação real, até iniciarmos o processo — quase que de lavagem cerebral — de diluição das ansiedades que nos impedem de nos sentirmos compe­tentes e inteiras.

 

                   A reação feminina

No colégio eu me tornei um problema para as freiras, que viam em mim uma personalidade paradoxal. Eu era a um só tempo indisciplinada e líder. Eu agia de modo pro­vocador, menosprezando aquelas estranhas criaturas de hábi­tos negros que, contudo, me intimidavam. Já na segunda série eu era representante da turma, e freqüentemente tinha problemas por gozar os professores sempre que havia opor­tunidade. Não conseguia resistir ao impulso de exibir-me como a sabichona. Mesmo agora, ao relembrar aqueles dias, recupero a deliciosa sensação de desafiar um sistema que qualificava de ridículo, e professores a quem não podia respeitar.

Minha confusão era genuína. Dentro do meu invólu­cro de sabichona existia uma menininha — não uma jovem a caminho de tornar-se uma mulher —, uma menininha assustada e confusa, uma menina a quem, acima de tudo, perturbava o fato de aparentemente ninguém saber como cuidar dela. Enquanto meus pais achavam que eu estava em boas mãos, as freiras pareciam estragar minha educação a cada ano que passava. Eu estava sendo forçada a amadurecer rápido demais. Entrara no segundo grau aos doze anos de idade e partira para a faculdade aos dezesseis. Todo mundo se maravilhava com minha precocidade, porém ninguém pa­recia saber do que eu necessitava emocionalmente, muito menos eu. Eu era uma contrafóbica em potencial: por fora durona, por dentro assustada e tentando desesperadamente, a todo custo, ocultar meu medo.

 

Terminei a faculdade aos vinte anos. Em menos de duas horas após o término de minha formatura eu estava no aeroporto de Washington, D.C., pronta para partir para uma nova vida. Meu futuro fora brilhantemente selado (assim eu pensava) por um acontecimento afortunado. Eu participara de um concurso da revista Mademoiselle para universitárias, e de repente descobrira ser uma das vence­doras. Dezenove outras jovens e eu — as "editoras convi­dadas" — íamos passar um mês trabalhando na edição espe­cial sobre faculdades. O que ia acontecer após esse mês excitante? Quem sabia? Quem ligava? Para pessoas espe­ciais como nós, obviamente o mundo já tinha planos.

Quinze anos mais tarde, quando Sylvia Plath publicou o pungente relato de sua deprimente experiência como edito­ra convidada em The bell jar, fiquei tão incomodada que não consegui terminar o livro na época. Mas enquanto passava pela mesma enganosa introdução ao deslumbrante mundo da editoração de revistas, tinha os olhos totalmente fechados ao que estava acontecendo dentro de mim. Em termos emocionais, nenhuma de nós sabia realmente o que estava ocor­rendo. Jovens talentosas e inteligentes, produto dos anos 50, estávamos na realidade avançando para a beira do precipício. Não fazíamos idéia de quanto nossas vidas mudariam, de quanto "quebraríamos a cara" devido às profundas modifi­cações que ocorriam na cultura. Muito se esperava de nós, contrariamente às coisas que, até então, se esperavam das mulheres em geral. Coisas novas para as quais não tínhamos sido preparadas.

No final do mês, como editora convidada, fui solicitada a permanecer na revista. Eu nunca dedicara muito tempo a reflexões sobre trabalho ou sobre o planejamento de minha própria vida. Esperando de algum modo "ser cuidada" de novo, aceitei a proposta de emprego e montei um apartamento com três amigas da faculdade, no East Side de Nova York.

Depois de um ou dois anos, cansada de fazer a mesma coisa dia após dia, a fascinação pelo emprego começou a desvanecer-se, e a tensão por mal ganhar o suficiente para sobreviver começou a enervar-me. Eu me dizia estar muito melhor do que minhas companheiras de apartamento, moças em cujas vidas os pais sempre interferiam, suplicando-lhes que lhes permitissem pagar suas contas dentárias e comprar-lhes roupas. Com um salário de cinqüenta dólares semanais, eu levava uma vida pobre, orgulhosa e totalmente confusa. Não me ocorreu tentar mudar alguma coisa: um novo emprego, diferentes companheiros de apartamento, talvez até um companheiro.

No terceiro ano minha cabeça fervilhava de contro­vérsias, e passei a beber demais nos fins de semana. O que estou fazendo aqui? Será que a vida vai ser sempre isto? Será que nada de novo irá acontecer? Conhecerei algum homem legal? Será que um dia eu me casarei?

Finalmente uma coisa aconteceu. Quatro anos depois de ter descido no aeroporto de La Guardia (Nova York), proveniente de Washington, D.C. — meus sonhos recepcio­nados e acalentados pelas luzes de Nova York —, aconte­ceu: fiquei com medo.

E foi sem aviso prévio. Havia mais de três anos eu vinha desempenhando o mesmo trabalho sem futuro de re­pórter. Nunca tivera coragem de tentar escrever um artigo, embora meu orgulho estivesse ferido e eu achasse que de­veria estar fazendo alguma coisa. (Recolher artigos de jor­nais de estudantes universitários e fazer entrevistas uma vez por mês estava longe de ser fazer alguma coisa.) Sei agora que o que eu realmente queria era ser salva, transpor­tada em asas mágicas para uma nova vida, na qual eu seria confiante, criativa, potente e, acima de tudo, estaria segura. O insípido e infindável cotidiano de jovem solteira traba­lhando em Nova York, sem um homem nem perspectivas, estava diminuindo minha auto-estima a cada dia que pas­sava. Eu não estava conscientemente "procurando um homem". Por outro lado, não estava tentando criar uma nova vida. Não fazia idéia de como poderia preencher o futuro que assomava à minha frente, imenso, exigente e potencialmente obliterador.

Lá estava ele, o complexo de Cinderela. Antigamente ele atacava meninas de dezesseis ou dezessete anos, impedin­do-as muitas vezes de cursarem uma faculdade e empurrando-as para o casamento. Agora ele tende a atacar as mu­lheres já com curso superior, após terem experimentado o gosto do mundo. Quando as primeiras sensações inebriantes de liberdade se dissolvem e a ansiedade toma-lhes o lugar, as mulheres começam a ser incomodadas pelo velho anseio de segurança: o desejo de serem salvas.

Nem todas as mulheres sofrem o medo em seu grau agudo ou fóbico. Para a maioria delas ele é um coisa difu­sa e amorfa, algo que vai corroendo as bases imperceptivelmente. Eu, no entanto, era extremamente vulnerável. Nas épocas em que o desejo de ser salva me assaltou com mais força (em meu último ano de faculdade, após alguns anos de trabalho sem perspectiva futura, e depois que meu casamento se desfez), fiquei com medo.

Uma tarde, enquanto fazia uma pesquisa no Museu do Brooklin, fui atingida por uma onda de vertigem tão forte que precisei sentar-me com a cabeça entre os joelhos. Como nunca tinha sentido tontura nem desmaiado, a experiência me aterrorizou. Vivi seis meses com pavor de ser assaltada por outro daqueles ataques, e não me iludi. A vertigem me subia à cabeça quando entrava no ônibus de manhã para ir trabalhar, ou quando entrava nas lojas, ou quando descia as escadas do metrô. Massas de pessoas cruzavam comigo, um só corpo de formas embotadas, dando-me a estranha sensa­ção de estarem sem ligação com o chão que pisavam. O que aconteceria se eu desmaiasse no meio da multidão ou no meio da rua? Durante seis meses esses sintomas bizarros tiveram preponderância sobre tudo o mais. Era como se constituíssem uma metáfora para uma questão não pronun­ciada, mas central: Quem me segurará se eu cair?

Ao fugir da faculdade para Nova York, eu pensava estar escapando à sufocante opressão do meio escolar de meninas católicas em que crescera. O problema era que eu não acreditava em minha capacidade de talhar um lugar para mim no mundo. Com o passar do tempo, onde os dias eram preenchidos com os mesmos rituais imutáveis, minha auto-imagem começou a se deteriorar, e suas velhas bases de sustentação foram substituídas por uma sensação de falta de raízes. A realidade de meu relacionamento com meus pais, minha religião, todo o meu background estavam enter­rados num passado cuja influência eu continuava tentando ignorar. Na mesma medida em que eu tinha me rebelado contra a segurança e as restrições de minha infância — as freiras, as regras, as idas semanais ao confessionário, o instinto cruamente infalível de meu pai de cortar relações sempre que eu ameaçava resolver algo por mim mesma, o apoio silencioso de minha mãe às atitudes dele —, na me­dida em que eu desejava não ter mais nada a ver com tudo isso, simultaneamente dependia de tudo isso. Eu crescera com a Igreja ditando minhas decisões nas questões morais e com meus pais me dizendo como resolver as questões seculares de minha vida. Se por acaso as coisas ficavam confu­sas, eu deixava que a Igreja tomasse as decisões práticas; e meu pai, as decisões morais. Aparentemente não fazia dife­rença quem decidia o quê por mim, contanto que alguém o fizesse.

Em setembro daquele quarto ano em Nova York, as crises de pânico desapareceram tão misteriosamente quanto tinham chegado. Por diversos meses, vivi em guarda, re­ceosa de que, caso olhasse por cima do ombro, a "coisa" — as terríveis palpitações de medo — ainda estivesse lá. À certa altura do terceiro ano eu fora a um médico, que me assegurara nada haver de errado fisicamente em mim. Agora que os sintomas debilitantes tinham sumido, agradeci a Deus pela suspensão de minha sentença. Resolvi "esque­cer" a experiência, preferindo pensar nela como um inter­ludio inusitado, a vê-la como um sinal de que algo esta­va fundamentalmente errado. Nunca ouvira ninguém des­crever uma experiência como aquela pela qual eu tinha pas­sado, o que a fazia parecer mais horrível e ameaçadora. É característico da personalidade dependente ignorar os sinais de problemas, examiná-los o mínimo possível, "agüen­tá-los". ("Quem sabe um dia tudo mudará", Cinderela pen­sava, varrendo as cinzas do borralho.)

 

Em abril conheci um homem. Ele era católico e in­telectual. Vivera em Paris durante três anos, com uma bolsa de estudos na Sorbonne. Agora trabalhava como re­pórter de uma revista, escrevia poesias e cozinhava muito bem. Achei-o fascinante. Quase imediatamente decidi colo­car meu destino em suas mãos.

Em um mês eu estava grávida e, pouco mais tarde, casada. Essa foi uma das últimas decisões que meu pai me ajudou a tomar. Não pedi sua intervenção; porém, por outro lado, não a rejeitei. Meu pai me disse que, naquelas circuns­tâncias, a única atitude moral compatível era casar-me. "Você tomou essa decisão no ato mesmo da concepção", declarou.

Eu não estava realmente envolvida com a moralidade das coisas. Para se ser moral deve-se ser autêntico. Não sabia distinguir verdadeiramente o que era certo e o que era errado, a não ser segundo os ditames do catecismo. Sempre vivera segundo regras estabelecidas para mim pelos outros. Agora, como anteriormente, segui-as. Mergulhei no casa­mento como quem desaba sobre um colchão de penas, so­mente para adiar os temores da rua e os terrores noturnos por mais de dez anos.

 

                   Os primeiros sinais

Psiquiatras que trabalham com mulheres complexadas observaram certas similaridades em suas origens. Elas ten­dem a revelar na infância a necessidade de se mostrarem autoconfiantes e controladoras de seus sentimentos. Enquan­to crianças, esforçam-se por desenvolver as habilidades e qualidades que lhes oferecerão a ilusão de força e invulnerabilidade. Quando adultas, em geral procuram empregos que reforcem a imagem de auto-suficiência. Muito do que as meninas pré-fóbicas tentam realizar em suas vidas é perfeita­mente normal mais: admirável em e por si. O atri­buto neurótico surge quando o impulso para a realização se transforma numa compulsão elas não podem não realizar.

A raison d'être de tais jovens é construir uma fortaleza por trás da qual possam esconder seu núcleo de insegurança e medo. A mãe de uma amiga minha até hoje gosta de re­cordar-lhe o seguinte: "Você sempre agiu como se ninguém pudesse lhe dizer nada. Desde seus catorze ou quinze anos você deixou bem claro não haver nada que eu pudesse fazer ou dizer que de algum modo lhe fosse útil".

O azar foi que a mãe levou a sério a farsa de auto­confiança da filha. Ela sentira medo por ela, perplexa, perguntando-se como sua garotinha repentinamente se tornara uma sabe-tudo. Mas ao proclamar a mensagem: "Não preciso de ninguém; sei cuidar de mim mesma", sua filha adoles­cente estava exibindo um sintoma evidente. Toda aquela autonomia era um engodo, uma tentativa de super-compensação de uma profunda falta de confiança.

Não é incomum que pré-fóbicos exibam modos desa­fiantes quando adolescentes. Eles podem ser fisicamente ativos, assumindo riscos e sendo agressivos nos esportes, ou podem provocar aqueles que têm autoridade sobre eles. Independentemente do estilo pessoal, diz Alexandra Symonds, que estudou fobias em mulheres, a mensagem é a mesma: "Não preciso de ninguém; eu tomo conta de mim". Passo a passo, ano a ano, a fachada contrafóbica é meticulosamente desenvolvida. Os detalhes podem variar de uma pessoa para outra, mas o quadro caracterológico básico per­manece o mesmo: o de alguém dominador, mandão, seguro de si próprio. Pode haver uma atraente exuberância acober­tando o velho núcleo, uma constrangedora energia parcial­mente provinda dos esforços (do contrafóbico) em controlar seu meio ambiente imediato. Por exemplo, os contrafóbicos costumam ser bons companheiros de conversa, compelidos que são pela necessidade de articular e definir tudo. Em fes­tas e reuniões eles em geral têm uma presença marcante. Quem é que poderia adivinhar que aquela vistosa assistente governamental de vestido de seda verde que está sendo o centro de atenções na festa pondo todos perplexos com suas anedotas e seu decote ousado é uma fóbica disfarça­da, insegura quanto à sua inteligência, seu poder de atração, o tamanho de seus seios?

Mulheres contrafóbicas têm dificuldade em se relacio­nar positivamente com homens. Elas têm uma imperiosa necessidade de se sentir superiores, de estar "com o controle nas mãos". Em seus relacionamentos amorosos, acabam invariavelmente se queixando dos homens com os quais se envolveram. Após a lua-de-mel, começam a agir de modo frio e arredio. Seus homens ficam aturdidos, sentindo-se estranhamente culpados, sem saber o que fizeram de errado. O que fizeram de errado foi acreditar na imagem de autoconfiança projetada por uma mulher basicamente do­minada pelo medo. Se levadas a sério, essas mulheres nunca chegarão a encostar-se em seus homens, o que, secretamen­te, é na verdade o que sempre desejaram. Prevalece um sistema de duplas mensagens, onde elas agem de maneira audaciosa, impudente e independente, mascarando seus sen­timentos básicos de insegurança e desamparo. Seus homens não compreendem que foram enganados por uma falsa fa­chada de auto-suficiência. Eles podem até ter desejado o mesmo que suas mulheres: um "outro" forte e independente em quem se encostar. Então, quando a verdade das neces­sidades das mulheres emerge e os homens ou não se dispõem, ou são incapazes de preenchê-las, sobrevêm terríveis confli­tos. Foi esta a dinâmica no primeiro relacionamento afetivo de uma jovem californiana a quem chamarei Jill.

 

O pai de Jill era um advogado bem-sucedido e espiri­tuoso. A mãe, embora "apagada" em situações sociais, obtinha muita satisfação de sua carreira como ilustradora free-lancer de revistas. Jill, filha primogênita, sempre se sentia desnorteada por suas discrepantes imagens masculina e feminina: a mulher, um ser silencioso mas bem-cuidado; o homem, vivaz e extrovertido, porém só e desprotegido dentro de um mundo de competitividade. Aos vinte anos, Jill começou a exteriorizar seu conflito interno. Foi viver com um carpinteiro, jovem inteligente mas inculto, que não tinha certeza do que desejava fazer de sua vida. Logo Jill passou a se sentir infeliz, frustrada, e começou a atormentar o companheiro. Resolveu fazer psicoterapia, e queixava-se de sua incapacidade de decidir se queria ser psicóloga, advo­gada, ceramista ou música. Não obstante ter finalmente aberto uma loja de cerâmicas, o conflito vocacional era o menor de seus problemas.

Para começar, Jill era sexualmente insegura; era o tipo da pessoa que precisava ser o centro de atrações em festas, e vivia temerosa de que seu namorado conhecesse alguém mais atraente e a abandonasse. As queixas de Jill com rela­ção a dinheiro também eram sintomáticas. Ela queria uma casa maior e sentia-se confusa quanto a quem cabia essa responsabilidade, a ela ou ao namorado. No íntimo, guar­dava rancor contra ele por não ganhar o suficiente para comprar o tipo de casa que ela desejava. Teimava, contudo, em ignorar a profundidade de seu rancor, que contrastava tão agudamente com seus ideais feministas.

"O interessante é", recorda a terapeuta de Jill, "que Jill sempre dava a impressão de ser terrivelmente respon­sável. Era pontual em nossas sessões terapêuticas, e as finali­zava por si, em vez de esperar passivamente que eu as encer­rasse. Ela parecia eficiente, parecia controlar tudo. Aí, em algum ponto entre o segundo e o terceiro ano de terapia, tudo desmoronou."

Sem qualquer aviso, numa manhã, Jill começou a sofrer de hiperventilação, tonturas e palpitações cardíacas: toda a panóplia dos sintomas de ansiedade. Tinha medo de sair de casa. Sua "súbita" insegurança se manifestava de todas as formas. Por exemplo, ligava para a casa da terapeuta num sábado à noite para avisar que se atrasaria para a sessão de quinta-feira. "Não há nenhum problema em ser chamada em casa numa emergência", revela a terapeuta, "mas aquilo não era emergência. De repente aquela pessoa super-responsável estava me tratando como sua mãe. Eu devia estar à sua disposição sempre que ela quisesse. Acabamos descobrindo que seu antigo comportamento contradependente fora uma gran­de manobra defensiva. E a manobra fora executada com tanto êxito que depois de dois anos eu pensava: 'Por que esta mulher ainda vem aqui?' Ela aparentava ser tão competente!

"Agora Jill está começando a expressar sua raiva. Vejo que ela está furiosa, porque se sentiu insatisfeita comigo durante dois anos e eu nunca lhe disse nada a esse res­peito. Eu lhe mostrei que a questão era: Por que ela nunca me falou do problema? Agora, repentinamente, ela teme sair e fazer coisas por sua conta. Teme tirar férias, pois não consegue se desprender da rígida estrutura de sua vida. Com o cair da fachada, estamos descobrindo que ela ainda é muito dependente dos pais, e que era isso que ela aco­bertava com aquele comportamento contradependente. Sua dependência está emergindo sob a forma de raiva do na­morado e de mim. Ela está zangadíssima com ele porque não vai ser advogado e cuidar dela adequadamente. E co­migo porque não quero ser sua mãe."

Jill havia sobreposto a imagem do pai, forte e dinâ­mico, à do amante, esperando que este trouxesse para casa tanto o pão quanto a estimulação social, exatamente como o pai sempre fizera. Dinheiro, exaltação, amigos políticos estimulantes tudo isso fora proporcionado a Jill e à sua mãe por "papai". Em comparação com o pai, o homem com quem ela estava vivendo perdia longe. "Ele é um rapaz simpático, sensível e doce, muito apreciado pelos pais dela", conta a terapeuta, "mas é evidente que Jill está insa­tisfeita com ele. Durante a faculdade ela namorou um homem que estava incerto sobre o que desejava ser, e eles terminaram porque Jill não pôde tolerar a ambivalência dele. Ela não consegue se sentir forte a menos que seu homem se sinta forte."

Jill não quer ser como a mãe, reclusa e passiva. Iden­tifica-se principalmente com o pai. Porém ela certamente não deseja ser uma figura tão poderosa, provedora de tudo em sua própria vida. O homem é que deveria fazer isso por ela. Quando não o faz, ela se sente enganada e furiosa. "Jill é o tipo da mulher muito sensual no início de um relacionamento, mas que, depois de algum tempo, vê todo o seu entusiasmo e excitamento se esvaírem devido ao ódio", diz sua terapeuta.

 

                   Tocando o medo

Os sintomas fóbicos de Jill chegaram precisamente no momento em que ela se deu conta de que jamais conseguiria o que realmente desejava fazer com que outra pessoa assumisse os riscos de sua vida. "Ela agora se encontra no ponto em que tem que tomar decisões realmente cruciais e maduras", prossegue sua terapeuta, "tendo que renunciar à figura do pai que resolveria toda a sua vida. Ela talvez tenha de voltar a estudar, a fim de aprender algo que lhe seja intelectualmente mais satisfatório do que sua lojinha de cerâmi­cas algo que também a sustente como na verdade deseja ser sustentada. Agora, aos vinte e sete anos, ela possivel­mente terá que resolver essas coisas por si mesma, sem espe­rar que o companheiro lhe proporcione tudo. Ela está co­meçando a enfrentar tudo isso, e o que está emergindo é puro medo. Ela está em pânico."

Se conseguir olhar-se através desse puro medo, Jill poderá se encaminhar para uma vida mais livre, menos tensa e mais gratificante. Antes da "quebra", ela estava fazendo tudo o que podia para evitar experimentar esse medo. Sua principal estratégia foi tentar reproduzir o mesmo ambiente protetor que tivera quando criança, manipulando o amante na esperança de levá-lo a agir como o pai. Em parte, foi a recusa do namorado em desempenhar o papel de pai que precipitou sua crise com relação ao tema da dependência. Conquanto essa crise possa ser dolorosa e assustadora, ela agora tem chance de se libertar de seus velhos hábitos e amadurecer. Ela enxergou mais: ela viveu a experiência sua máscara contrafóbica, e dispôs-se a tentar seguir por si, sem a concha, sem escudo, desprotegida, vulnerável.

 

Não tão afortunadas são. as mulheres cujos padrões contrafóbicos passam despercebidos ou não são reconhecidos. Estas provavelmente passarão a vida inteira construindo defesas cada vez mais impenetráveis. São as mulheres que fariam qualquer coisa, privar-se-iam de qualquer coisa amor, satisfação, felicidade —, a fim de jamais terem que experimentar aquilo por que Jill passou: pânico, confusão, raiva.

As mulheres contrafóbicas escolhem certas profissões reforçadoras da auto-imagem; profissões sobre as quais muitas mulheres mais abertamente inibidas poderiam afir­mar: "Ah, eu nunca poderia fazer isso; eu teria medo de­mais disso". O que, naturalmente, é o ponto crucial da questão. Para essas mulheres, sentir-se indefesas e assusta­das é tão ameaçador que as faz despender todas as suas ener­gias na construção de uma vida e de um estilo desti­nada a pôr todo mundo (inclusive elas) fora do caminho certo. Podem se tornar pilotos de carros de corrida. Ou atrizes. Ou prostitutas. (Jane Fonda fez o papel de uma personalidade contrafóbica típica em Klute.)

Ou, como Abigail Fletcher, podem ansiar por apanhar criminosos. Assim como existem diferentes objetos fóbicos, também existem diferentes modos pelos quais uma pessoa basicamente amedrontada desenvolve uma personalidade contrafóbica. No caso de Abigail, a jactância e o cinismo se desenvolveram para formar uma concha dura. Ela acre­ditava em sua auto-imagem forte, exceto quando um namo­rado a deixava para desposar e ter filhos com outra. Então Abigail se sentia péssima e derrotada durante semanas, talvez meses, mas por fim punha-se de pé, erguia a cabeça, e sua índole vingativa e recriminadora retornava redobrada. De vez em quando, só para provar quão infinitamente dis­pensáveis eram os homens, ela tinha um caso com uma mulher.

Estava tudo lá, essa "durona", afiada como a ponta de um estilete, na época em que Abigail se tornou mãe, aos dezoito anos de idade. Isso ocorreu em 1976. Ela engra­vidou para fugir dos pais pessoas inseguras que, por mi­marem e superprotegerem a bela filha, a tinham levado a sentir-se sufocada e assustada. A fim de negar esses senti­mentos incômodos, ela se tornara uma versão durona da princesa judia-americana. Acreditava com todas as forças que lhe cabiam por direito as melhores coisas da vida. Tam­bém suspeitava profunda, amargamente que nenhum príncipe encantado jamais chegaria para lhe proporcionar aquelas coisas, que não tinham sido proporcionadas por aquele seu marido maconheiro, o homem com quem se ca­sara aos dezessete anos e que a deixara um ano depois com uma filha.

 

                   A ocultação do medo: o estilo contrafóbico

A história de Abigail lhe dará um vislumbre do que constitui a defesa contrafóbica, um comportamento pseudo-independente pelo qual a pessoa finge possuir auto-suficiência quando, na verdade, por dentro é tímida, insegura e te­merosa demais de perder a identidade, a ponto de nem ser mais capaz de se apaixonar.

Apesar de os detalhes desta história serem específicos do caso de Abigail Fletcher (seu nome é fictício), o estilo pseudo-independente pode ser reconhecido em muitas mu­lheres. É o estilo das pessoas em estado de absoluto terror, como a mulher tão inundada por sentimentos de vulnerabili­dade (por causa de seu sexo) que quase preferiria ser homem.

Um anúncio do Globe de domingo pedia: "dete­tive, homem ou mulher", e fora colocado pelo departa­mento de pessoal de uma loja da área do Quincy Market, no centro de Boston. Esse "detetive" chamou a atenção de Abigail Fletcher. Ela precisava muito de um emprego; com um ano cursado na Boston University e sua boa apa­rência, provavelmente lhe seria fácil achar emprego como recepcionista em algum lugar, mas quem queria ficar sor­rindo tolamente o dia todo? De uma ou outra forma, Abi­gail conseguira até então evitar essa espécie de serviços monótonos, e não tinha intenção de deixar-se engolir por eles agora. Ultimamente estivera trabalhando numa distri­buidora de filmes com o namorado; o negócio, apesar de ter rendido bastante, fracassara, e ela se viu às voltas com a carência de dinheiro. Ah, mas não era por isso que ia trocar sua inteligência por uma mesa de recepção, de jeito nenhum! Ela costumava dizer que tinha um bom nariz e uma boca grande, o que significava sem rodeios que gostava de imiscuir-se na vida dos outros, e que era capaz de falar bem e cruamente, dependendo da ocasião. Abigail gostava de imaginar-se uma detetive do lado da lei e da justiça. Costumava fantasiar estar trabalhando para o Departamento de Proteção ao Consumidor. Na fantasia, via-se em sua jaqueta de camurça e seu jeans sofisticados, com os longos cabelos castanhos cortados ao estilo de Farrah Fawcett, enfrentando os açougueiros bostonianos com relação à quantidade de gordura em cada porção de carne vendida.

"Desnecessária experiência prévia", dizia o classificado. Tratava-se de uma colocação na equipe de segurança da Towne & Country, uma loja grande e requintada. Abigail pensou: "É comigo mesma"; estava na hora de agir. Ela era pequena, mas bastante valente para esse serviço; de quebra, tinha um corpo razoavelmente bem preparado graças, em parte, às aulas de jiu-jitsu que tomara algum tempo atrás no porão de uma igreja budista, e em parte aos genes de sua doce e querida mãe. "Sim, definitivamente esse serviço é comigo mesma."

Abigail divertiu-se por ocasião da seleção na Towne & Country. Notou de imediato que o entrevistador, um tal de Hollis, queria cantá-la. Uma vez encerradas as perguntas essenciais ("Você usa drogas?" "Puxo fumo." "Já roubou alguma coisa de algum empregador?" "Não." "Algum outro tipo de droga?" "Nããão." "Tem dívidas grandes?" "Claro, quatrocentos dólares no cheque especial."), ele reclamou da equipe inadequada que tinha e explicou o programa de treinamento oferecido pela loja.

"Você foi aceita", disse-lhe o Sr. Hollis ao telefone no dia seguinte. "Bem-vinda ao corpo de segurança da Towne & Country."

Abigail teve de conter uma gargalhada ao descobrir que um dos sujeitos com quem teria treinamento era o medroso do Mário, um de seus ex-colegas do curso de jiu-jitsu. Um bebezão chorão, ela o classificara mentalmente. Quando lutavam juntos e ela tentava chutá-lo, ele instintivamente dobrava os joelhos para proteger os testículos e acabava sem­pre levando o chute nas canelas. Ela o chamava de "Esconde-Ovos".

Não escapou a Abigail a diferença entre ela e os treinandos do sexo masculino: só eles recebiam aulas de cara e técnicas de "vem-comigo". ("Vem-comigo" é o golpe pelo qual se torce o braço do ladrão por trás das costas, de tal modo que ele possa ser levado para a sala da segurança sem criar problemas.) Imediatamente Abigail dirigiu-se a Hollis: "Quando é que eu vou começar a ter essas aulas?" Ele se limitou a um falso sorriso paternal e malicioso e disse: "Assim que você fizer sua primeira detenção".

"Merda", pensou Abigail. "Eu já sou faixa verde, coisa que o babaca do Esconde-Ovos nem sonha conseguir."

Abigail passou a ir trabalhar de jeans e tênis. A atmos­fera de cilada e ação rápida deliciou-a desde o início. Foi ensinada a "extinguir", que significava seguir suspeitos tão de perto que se acabava por fazê-los sair da loja, amedron­tados, antes que pudessem pegar qualquer coisa. Ela apren­deu a "forçar a devolução", isto é, tentar forçar alguém que parece ter pegado algo a "disfarçar" e jogar a mercadoria numa mesa ou em outro lugar qualquer e ir embora.

Abigail era uma aprendiz viva. Assimilou depressa todas as dicas e truques, as seções da loja mais passíveis de serem roubadas, as posições dos espelhos e sistemas de alarma ocultos. No começo ela passou bastante tempo rastejando pelos soalhos carpetados das espaçosas cabinas de prova. Essa era a parte do serviço de que mais gostava, bem como a que mais produzia resultados. Carregava consigo uma cai­xinha de pílulas cheia de alfinetes e, quando lhe dava na veneta, metia-se numa cabina vazia e fechava as cortinas com os alfinetes, com o propósito de espionar em paz. Em seguida deitava-se no chão e olhava pela abertura do cano de ventilação, tentando enxergar o mais possível. Era diver­tido ver as mulheres fazendo poses, suspirando de orgulho e eliminando gases. Às vezes via uma delas arrancar as etique­tas dos artigos e colocar coisas na bolsa, na sacola de com­pras ou dentro da calcinha ou meia-calça. "Metedoras" — assim eram chamadas aquelas que utilizavam esse terceiro método, e em geral eram profissionais.

As profissionais podiam ser extremamente assustado­ras. Costumavam ser grandalhonas e negras (combinação que, desde seus tempos de colegial no lado sul da cidade, o South Side, sempre aterrorizara Abigail), e especialista em desnortearem os outros. Um dia uma dessas, com um corpanzil enorme, percebeu que Abigail a seguia, virou-se, aproximou-se quase a ponto de tocá-la e disse, num murmúrio rouquenho com bafo alcoólico: "Se quiser aprender a seguir a gente, faça isso bem de perto, esqueça os espe­lhos". "Tá querendo ensinar o padre-nosso pro vigário, dona?", retrucou Abigail, mas seus joelhos tremiam como geléia.

Após duas semanas de treinamento, Abigail fez sua pri­meira "detenção". A experiência foi chocante para ela. A mulher que flagrou não era nem negra nem porto-rique­nha, como Abigail imaginara, nem estava vestida com farra­pos. Era simplesmente a Sra. Hansen, baixinha e pequena, com um coque grisalho bem preso à nuca e um olhar de puro pânico.

Nervosa, Abigail teve que levar a sra. Hansen à sala do sr. Hollis. Todos os volumes das sacolas de compras da mulher foram espalhados sobre a grande escrivaninha de mogno. A sra. Hansen não carregava drogas consigo. Quanto a armas, o que tinha era apenas um porta-agulhas e alguns carretéis de linha, do tipo que mulheres meticulosas costu­mam levar consigo para o caso de perderem um botão da roupa na rua. O porta-agulhas e os carretéis foram confiscados.

Encerrada a revista, Abigail (que inusitadamente se identificara com a mulher) experimentou uma queda abrupta em sua taxa de adrenalina. A cena toda era por demais deprimente. Desempenhou o resto do trabalho automaticamente. Parte de seu dever era acompanhar a mulher até o elevador e conduzi-la ao andar térreo. A sra. Hansen agar­rava-se às suas sacolas, com a cabeça baixa. Abigail seguiu com ela através da seção de perucas, luvas e lingerie, depois cruzaram a seção de perfumaria, onde se fazia sentir forte­mente o odor de patchuli, até alcançarem a porta de entra­da. Lá, sem olhar para trás, a sra. Hansen deixou Abigail e, como um animal assustado, rapidamente fugiu por entre a multidão na Market Street.

Sentindo-se culpada e com o coração apertado, como sempre, Abigail tentou recuperar sua frieza. Ridículo depri­mir-se com aquilo. Era um emprego, nada mais. Afinal de contas, se não precisava, por que aquela louca estava rou­bando? Abigail sabia o que faria. Assim que chegasse a casa, tomaria um bom banho quente de banheira. Depois poria a menina na cama, colocaria um disco dos Rolling Stones na vitrola e enrolaria uns baseados.

Por estranho que pareça, no dia seguinte Abigail foi bem sucedida de novo duplamente, aliás: pegou dois rapazes negros, um de quinze e um de dezesseis anos. Dessa vez realizou seu trabalho eficientemente, sem remorsos. Estava "à toda". Forte, invulnerável, sentia-se como numa "viagem" de intensas proporções. Controlar a própria vida era fácil se assim se resolvesse, pensou. O trabalho não apre­sentava complicações. Sua vida amorosa estava também "numa boa". Os homens acorriam para ela como abelhas para o mel. Em poucos anos abriria sua própria firma de segurança e daria o fora do South Side.

Só havia uma falha em seu plano. O que Abigail não sabia o que ela não podia prever era que nunca seria capaz de apaixonar-se profunda e irrevogavelmente. A me­nos que acontecesse algo que penetrasse seu núcleo tão bem oculto. Ela teve inúmeros namorados, homens que, de início, eram atraídos por seu charme e autoconfiança, mas poste­riormente eram repelidos pela viscosidade com que se agar­rava a eles. Mal começava a sair com um homem e já estava lhe oferecendo "uma comidinha caseira", bem como desfi­lando suas novas roupas íntimas. Devia estar tudo bem, o homem pensava consigo mesmo. Mas não estava. Aquela Abigail oscilava de um extremo a outro. Era perceptível que estava tecendo uma teia para enredá-lo. Era boa de cama; porém, de um modo indefinível, ficava claro que não estava presente. Uma doida metida a durona. Uma narcisista. Mais ou menos como uma puta.

 

A característica surpreendente da personalidade contra-fóbica é sua eficácia no tocante à defesa. Mulheres contra-fóbicas raramente experimentam o medo, de maneira que não têm idéia do grau em que ele domina suas vidas.

A fobia nas mulheres pode ser associada a um temor de abandonar a repressão sexual e ao sentimento de desam­paro e vulnerabilidade. Esse temor por vezes se expressa através de fantasias de prostituição e dominação. Abigail gostava de visualizar-se como uma "rainha do sexo", uma mulher do tipo "ame-os e deixe-os", a quem nunca faltavam belos presentes e namorados charmosos, mas que jamais se "amarrava". Essa fantasia era um complexo acobertamento de uma terrível e profunda solidão — uma solidão provinda de sua incapacidade de soltar-se e entregar-se a outro ser humano. A entrega era demasiadamente ameaçadora. Provo­cava-lhe a sensação de poder perder as fronteiras de sua própria personalidade.

Tais temores têm raízes numa profunda solidão infantil. A necessidade de amor não preenchida na infância pode fomentar um desejo passivo e potencialmente destrutivo de entregar-se a qualquer um. Os pais de Abigail lhe tinham proporcionado todos os cuidados de que eram capazes, po­rém ela jamais se sentira apoiada como carecia. E nunca sentira que seus pais se importassem verdadeiramente com ela; se assim fosse, eles não teriam alimentado sua neces­sidade de crescimento?

Era dessa maneira que Abigail protegia sua necessidade íntima e inconfessável. Contudo, ela também nutria desejos agressivos de libertar-se dessa necessidade — de libertar-se dos homens, cuja força tanto invejava e de que tanto precisava jogava essa agressividade sobre os homens no emprego. Desdenhava o sr. Hollis, Esconde-Ovos, e qual­quer outro que não lhe despertasse interesse romântico. Seu real pavor dos homens em geral era expresso em lin­guagem "masculina" em todo o seu comportamento, aliás. Seria bom ser forte (como os homens), segura (como os homens), não facilmente explorável. Não vulnerável e inse­gura. Como as mulheres.

 

                     A reação feminina

O medo há muito vem sendo considerado um compo­nente natural da feminilidade. Ter medo de ratos, do escuro, de ficar só são temores considerados normais em mu­lheres, mas não em homens. Finalmente os psicólogos e cientistas sociais começaram a sustentar que a fobia, ou medo irracional, não é mais "normal" ou sadia nas mulheres do que nos homens.

E no entanto ela aparece mais freqüentemente entre as mulheres. Perplexa pelo número de pacientes fóbicas que procuram seu consultório em Nova York, Alexandra Symonds diz que, se por um lado dão a impressão de teme­rem ser controladas por outrem, na realidade essas mulheres receiam é tomar o controle de suas vidas nas próprias mãos. Temem dar um cunho e uma direção pessoais à vida. Temem o movimento, a descoberta, a mudança qualquer coisa incomum e desconhecida. E o que mais as debilita é seu medo da agressividade normal e da assertividade.2

As mulheres experimentam muito mais medo do que deveriam. Como ele caminha lado a lado com a dependên­cia, faz-se essencial uma boa análise do que constitui a rea­ção fóbica. As mulheres perdem muita coisa simplesmente com a finalidade de evitar e reduzir o medo. Vivian Gold, uma psicóloga que clinica em San Francisco, conta ser procurada por pessoas do sexo feminino com todo tipo ima­ginável de temores. "Elas têm fobia de sair, fobia de envolvimentos interpessoais, fobia de tomar iniciativas em seus relacionamentos — fobia em relação a toda espécie de coisas."

A intensidade do medo que assalta as pacientes da Dra. Gold nem sempre transparece de imediato, o que se deve a dois fatores. O primeiro deles é o fato de considerar-se apropriado certo grau de medo e evitação nas mulheres; o segundo, a dor inerente ao manejo do medo e da evitação. "Em geral eles não aparecem durante o primeiro ano de tratamento", diz ela. "No começo, as pacientes preferem falar de problemas em seus casamentos, ou da tomada de decisões quanto à carreira. Somente bem mais tarde é que vem à luz seu pavor da solidão. Algumas nem conseguem passar uma noite sozinhas."

"A fobia de muitas mulheres tem raízes no fato de elas terem tido pais super-protetores", diz Ruth Moulton, "pais que atemorizavam as filhas projetando sobre elas suas próprias ansiedades. Pais que diziam às filhas que não de­viam sair com homens desconhecidos, que deviam voltar para casa cedo, que, se não tomassem cuidado, seriam estu­pradas." (É óbvio que existem motivos concretos pelos quais se deve ensinar as meninas a serem cautelosas; todavia, os efeitos patológicos de todos os avisos e ameaças feitos na infância indicam que uma educação de massa com vistas à auto-defesa seria um instrumento mais construtivo do que fomentar a crença de que a jovem tem que estar constante­mente em guarda se quiser sobreviver.)

A vida da mulher fóbica tende a ser levada em círculos concêntricos cada vez menores. Aos poucos, amigos e atividades são abandonados. Aquela que nos tempos de escola adorava esportes transforma-se numa matrona totalmente sedentária. Esquiar é muito arriscado. ("Pode-se quebrar a perna", diz ela consigo mesma, acreditando estar sendo sensata.) Até o tênis fica fora, pois certas jogadas podem ser agressivas demais. Viajar pode se tornar um problema. Os aviões são um perigo. "Os pilotos costumam estar embriagados", diz ela, acenando com os mais recentes dados estatísticos de acidentes aéreos. Qualquer um com a cabeça no lugar teria medo de voar. (É claro que não ocorre à mulher fóbica que voar é um símbolo de separação do prín­cipe encantado, seja ele quem for, com quem ela conta para cuidar dela.)

Às vezes a reação fóbica força as mulheres a evitarem atividades aparentemente inócuas, tão inócuas que mais se adivinharia que o medo estava no fundo do problema. Muitas das mulheres com quem conversei contaram que pararam de ler depois de terem tido filhos. "Simplesmente não dava mais tempo", era a explicação usual. "Depois tor­nou-se uma espécie de hábito. Meu marido passava o tempo todo lendo, mas eu não; meus filhos cresceram, saíram de casa, e, sei lá por que, nunca mais retomei o hábito da lei­tura. Em lugar disso, tricô e televisão."

Essas mulheres evitavam ler porque a leitura é uma viagem — uma viagem para longe de casa e do marido, um viajar só. Ler era uma das diversas atividades "abandona­das", mas experimentadas pelas fóbicas como tendo mera­mente desaparecido de suas vidas. Algo que acabou sem ser questionado.

As formas menos agudas de fobia são bem mais co­muns — e também mais dificilmente identificáveis como irracionais. Exemplo delas é o modo como as mulheres se refugiam no lar. É fácil usar a alternativa doméstica como proteção contra as vicissitudes de um mundo que nos assusta. "Gente demais me inquieta", diz a escritora Anne Fleming, justificando por que prefere ficar em casa. "A idéia de estar numa redação de jornal cheia de máquinas de escrever tinin­do me intimida. Não quero sentir o medo dos outros ten­tando sobreviver num circo profissional. E certamente não quero que ninguém veja o meu medo."

Uma mulher que conheci e que se sustentou até os trinta e três anos, idade com que se casou (e abandonou o emprego como se tivesse recebido um seguro de vida inex­tinguível), agora está pensando em voltar a trabalhar e cons­truir uma nova carreira. Está igualmente considerando deixar o marido — idéia que vem acalentando há anos, mas que aparentemente a aterrorizava. Ela me disse o seguinte: "À noite fico deitada na cama, olhando para o teto. E aí me assalta um temor de que ele vá se abrir e me aspirar, engolindo-me".

A simples idéia de voltar a viver por sua conta a apa­vora. Andando pela rua, ela às vezes tem a sensação de que os edifícios vão tombar sobre ela.

Ao passo que o casamento parece provocar o surgi­mento da fobia em algumas mulheres, o divórcio efetua o mesmo em outras. "Descobri que tinha um número enorme de pacientes que passaram a isolar-se e mostrar-se atemori­zadas após um divórcio pedido por elas", disse-me Ruth Moulton, que prossegue dizendo que essas mulheres sofrem de "uma necessidade compulsiva de ter um homem". De fato, todas as suas pacientes que apresentavam fobias compartilhavam a mesma ilusão: "Se ao menos houvesse um homem em casa — mesmo que dormindo, bêbado ou doente —, seria melhor do que estar só".

 

                   A fuga à independência

Uma vez chegada a idade em que supostamente estão aptas para o casamento, muitas jovens excessivamente de­pendentes acham difícil, se não impossível, manter a farsa do ser forte. Elas podem ter sido grandes vencedoras na adolescência, mas agora anseiam por jogar fora a máscara e alimentar sua dependência. Sem disso se conscientizarem, procuram uma situação na qual possam abandonar sua fa­chada de auto-suficiência e retornar àquele estado aconche­gante da infância tão sedutor às mulheres: o lar. Que outra circunstância é mais ideal para uma "vencedora" brilhante, que outra motivação a levará a deixar tudo avidamente, senão a de ser dona-de-casa? E quando subitamente se entedia das lides domésticas, ela se surpreende.

 

Seguramente ninguém se surpreendeu mais do que Carolyn Burckhardt ao perceber quão bem-vinda era a como­didade da vida doméstica no bem-aventurado dia em que se tornou a Sra. Helmut Anderson. "Esse era um componente meu que jamais imaginei existir", ela me contou doze anos mais tarde, rememorando a época (apenas entrara na casa dos vinte) em que "decidira" ter alguns filhos antes de enfronhar-se de vez em sua carreira de música. Agora, aos trinta e tantos anos, Carolyn (tanto o seu nome quanto o do marido foram mudados) estava tentando reordenar sua vida. Todos os planos de sua juventude tinham ido por água abaixo, cedendo sob o peso de um casamento opres­sivo. Era uma situação sobre a qual ela não detinha qualquer controle.

Quando jovem, Carolyn fora um contralto de primeira ordem, uma das mais jovens cantoras a serem convidadas a participar da Santa Fe Opera Company. Esforçada e talen­tosa menina de Shaker Heights, Ohio, ela crescera partici­pando de caçadas e corridas de cavalo e acima de qual­quer outra coisa treinando, treinando, treinando, o que resultou numa voz admirável para a sua idade. Todos os que a conheciam ficavam impressionados com sua disciplina, sua maturidade, seu profundo senso de objetivo. "Carolyn sem­pre soube o que queria, desde bem pequena", sua mãe costumava comentar em sua roda de amigas do clube de campo. Elas concordavam silenciosamente, no íntimo inve-jando-a, já que, enquanto suas filhas se ocupavam em "bolar" penteados sofisticados e engomar suas blusas e saias, Carolyn ia-se envolvendo em algo... significativo.

A menina trabalhava febrilmente, estivesse desmazelada e com os cabelos desgrenhados, ou elegantemente vestida em seu traje completo de equitação. Por fim, nos últimos anos da adolescência, desistiu da equitação e passou a pra­ticar o canto durante duas, três, quatro horas diárias. Na primavera de seu último ano na faculdade, Carolyn foi a Santa Fé para concorrer a uma vaga na companhia de ópera e, para alegria e satisfação de seus familiares, foi aceita. Imediatamente fizeram-lhe as malas e despacharam-na para o ingresso no mundo da música. Quem é que iria imaginar que apenas seis meses mais tarde, mandada pela mamãe para uma semana de apresentações em Nova York, ela iria conhecer e se apaixonar pelo elegante Helmut Anderson?

Se isso não tivesse ocorrido, Carolyn provavelmente teria entrado para uma companhia de ópera de Nova York; contudo, quando Helmut a pediu em casamento, ela resol­veu facilitar as coisas para o marido "ficando em casa algum tempo". Helmut, aos vinte e quatro anos, estava terminan­do seu doutorado. Ele precisava da paz e da quietude de um lar enquanto escrevia a tese de doutorado.

Em resumo: precisava de uma esposa.

 

                   A esposa secretamente fóbica

Sem prestar muita atenção ao fato ("Quem é que presta­va muita atenção a essas coisas?", comentou, suspirando), Carolyn engravidou de imediato, e novamente oito meses após o nascimento do primeiro filho. Jovem, cheia de ener­gia, loucamente apaixonada e com toda uma história de vitó­rias atrás de si, Carolyn imaginou que seria fácil retomar a carreira quando as crianças entrassem no jardim de infância. Enquanto isso ela seria dona-de-casa, mãe e secretária, papel — e que choque descobri-lo — que adorava. "Eu nunca brinquei de casinha quando pequena", contou-me. "Depois dos seis ou sete anos, nunca mais dei a mínima a bonecas. Mas quando Helmut e eu nos casamos, senti-me encantada por ficar em casa, encantada por cuidar de uma casa, encan­tada, enfim, por ser esposa e dona-de-casa. O que me pegou de surpresa. Era como se algo dentro de mim tivesse dado um giro de cento e oitenta graus e de repente tudo tivesse entrado no lugar certo."

Helmut, que logo obteve aulas numa universidade pró­xima, adotou como seu um dos cômodos do apartamento, a sala de jantar. Por ser esse o melhor cômodo da casa, já que contava com mais luz e ventilação, rapidamente a sala tornou-se seu escritório.

Para Helmut, a situação era bastante satisfatória. Através das portas envidraçadas da sala, ele podia observar todas as atividades e o curso de vida de sua pequena fa­mília. Carolyn sempre garantia que as crianças brincassem em silêncio quando Helmut estava em casa. "Psiu, papai está trabalhando", era o que os filhos ouviam dia após dia desde bem pequenos. Aquele arranjo era inconveniente em alguns aspectos, porém Carolyn o considerava um preço insignificante a pagar em troca do resto do grande e desorganizado apartamento de Brooklin Heights. Exceto, é claro, quando Helmut saía do escritório, apossando-se de todo o apartamento.

Era uma daquelas pequenas cotas de realidade de­sagradável que tão freqüentemente preferimos ignorar: Carolyn não tinha nada de verdadeiramente seu. Tudo o que eles possuíam era de Helmut. O cachorro era de Helmut; no contrato do apartamento, era Helmut quem figurava como inquilino; a comida sobre a mesa, até mesmo o veículo de fuga a tudo isso (o talão mensal de bilhetes do trem para New Haven, onde ele lecionava) — tudo era de Helmut.

Na época em que afinal compreendeu isso, Carolyn bei­rava os trinta. Acordou certa manhã (assim lhe pareceu, como se tivesse acabado de despertar) para o fato de que Helmut era um "eu tenho", e ela, que durante toda a infân­cia sempre "tivera" e fizera por ter coisas, de algum modo fora rebaixada à humilhante posição de "eu não tenho". Bastava Helmut pigarrear por trás das portas de vidro de seu escritório e a família automaticamente passava a ca­minhar na ponta dos pés e a sussurrar. As crianças brigavam (interminavelmente, parecia-lhe), e lá vinha ela voando da cozinha para aquietá-las. Quando uma das crianças estava doente e a outra não, ela contratava uma pajem para levar a que não estava doente à escola, pois Helmut jamais a auxiliava nessas "coisas triviais". Nos dois dias da semana que passava em casa, ele escrevia — e só, independente­mente do que ocorria à sua volta. Lá pelo fim de cada inverno, época em que os vírus já tinham feito sua visita à casa, Helmut reclamava incessantemente do dinheiro gasto com pajens. Estavam em 1978; Helmut lecionava em uma das universidades de maior prestígio do nordeste americano. Foi nessa época que a administração dessa universidade teve que se curvar às exigências de mudanças feitas pelas estu­dantes, inconformadas com a discriminação na educação. No entanto, na casa de Helmut nada se modificou: ele, Helmut, era o astro brilhante da constelação familiar. Carolyn não passava de um satélite.

O caso é que assim oito anos se passaram. A ópera assumira contornos vagos na imaginação de Carolyn: ofus­cante demais para ser visualizada com clareza ou em deta­lhes, e fugaz demais para emergir em sua consciência por mais de um momento. Era coisa do passado, coisa de uma menina cheia de sonhos e sem percepção do mundo real. Uma menina com a idéia louca e infantil de que a vida po­deria ser vivida no centro de um palco.

Carolyn já não era mais uma cantora. Estava magra e tensa, seus cabelos haviam perdido o volume. A pele avelu­dada da infância começara a perder o viço. "Mas, querida!", exclamava a mãe pelo interurbano quando Carolyn tentava desabafar com ela. "Eu não compreendo. Helmut está indo tão bem! Professor adjunto nessa idade não é de se des­prezar, hein? Em breve vocês terão mais dinheiro e as coisas ficarão mais fáceis."

Carolyn não podia dizer à mãe que dinheiro não era a solução. Não achava as palavras para explicar que já não era nem menina nem mulher; que, vivendo no limbo atemporal do servir a outro, era apenas uma criatura inteiramente sem autonomia. Aquilo com que sonhava — mas somente durante o sono — era a possibilidade de estar no controle. Sonhava que era uma cirurgiã, a quem a equipe de assisten­tes respondia tão destramente que lhe bastava pedir com os olhos os instrumentos operatórios.

 

Quando Timothy, o filho mais novo, entrou na escola, Carolyn começou a falar em "fazer alguma coisa". "Helmut, realmente acho que tenho de fazer alguma coisa", dizia.

"Por Deus, por favor, faça alguma coisa", ele respondia. "Você está me enlouquecendo."

Acontece que Carolyn perdera a combatividade e o âni­mo que a tinham amparado durante os anos de adolescência. A reação de Helmut fazia-a sentir-se abandonada, como se ele não quisesse cuidar dela, como se tudo o que ele quises­se dela fosse ser deixado em paz. Carolyn desejava a opção de sair e fazer alguma coisa, mas certamente não queria sentir a obrigação de fazê-lo. Ela deveria poder ter alguma escolha quanto ao modo de conduzir sua vida.

Entretanto, a atenção dada por Carolyn ao tema da es­colha era superficial e falsa. Ela preferia viver sem opções — como vinha fazendo desde o dia de seu casamento — a assumir o risco de experimentar sua própria individuação. Por isso se submetia. Quando Helmut começou a resmungar das contas ao mesmo tempo que insistia em que ela passasse a receber em melhor estilo, Carolyn tomou suas palavras como uma ordem. Ocorre que ele estava se tornando conhe­cido no mundo acadêmico. "Chega dessa droga de bolachinhas e patê", reclamava. "Chega desse vinhozinho barato. Isso é para alunos de pós-graduação. O pessoal com quem lido está acostumado com scotch."

Nesse ponto, o que Helmut realmente desejava era uma segunda fonte de renda na família, algo que ajudasse a melhorar um pouco o nível econômico de suas vidas. Ele estava além do nível em que viviam. Seus escritos agora eram pu­blicados regularmente; falava-se dele no mundo acadêmico. Em vez de apoiá-lo — queixava-se ele com vários dos cole­gas mais íntimos de Yale —, a esposa e os filhos o estavam atrapalhando.

 

                   A evitação como fuga de si mesma

A evitação fóbica de Carolyn foi se tornando cada vez mais aparente, pois ela nada fazia para desenvolver um novo curso de ação para si mesma. Respondendo não a algum ditame interno no sentido do crescimento e do desenvolvi­mento, mas apenas reagindo à pressão de Helmut pela criação de um palco iluminado por seu brilhantismo, ela ten­tou desesperadamente arranjar fórmulas mais inteligentes de controlar a despesa familiar. Fez um curso de extensão uni­versitária grátis sobre seleção de vinhos. Ampliou seu re­pertório culinário, especializando-se na produção de refeições exóticas que requeriam pouca carne. Quando recepcionavam, em lugar das bolachinhas com patê, ela passou a servir ca­napés requintados, feitos com pão integral preparado por ela mesma, regados com o melhor bordeaux, comprado por menos de quatro dólares a garrafa nas mais longínquas e nojentas lojas de bebidas que escarafunchava. A fim de melhorar a aparência do apartamento, ela começou a freqüentar lojas de artigos de segunda mão, em busca de tapetinhos, abajures de bronze e bandejas recobertas com finíssima camada de prata — enfim, coisas que a ajudassem a criar um ambiente de conforto e sucesso. Carolyn nunca lera O segundo sexo. Se o tivesse feito, teria que duelar com as observações de Simone de Beauvouir sobre os perigos oferecidos às mulheres pelo excessivo envolvimento com a casa. "Nessa insanidade... a mulher se ocupa tanto que se esquece da própria existência", expunha De Beauvoir. "De fato a vida doméstica, com suas tarefas meticulosas e ilimitadas, permite à mulher uma fuga sado-masoquista de si mesma..."

Se Carolyn estava ocupada demais para se aperceber das implicações de tanta ocupação, o mesmo não se dava com Helmut, que começava a achar a esposa um fracasso total. As esposas de seus colegas faziam coisas, mesmo que isso significasse apenas retomar os estudos. "Puxa, Carolyn, torta de frango de novo?", dizia, cinco minutos antes de suas visitas chegarem. "Tenho a impressão de que os Aronsons comeram esse negócio no mínimo nas três últimas vezes em que estiveram aqui!"


"Eu precisaria de um ano", Carolyn dizia consigo mes­ma. "Eu precisaria de um agente, um empresário, um acom­panhante. Eu teria de viajar ao menos quatro meses por ano, às vezes durante semanas seguidas, e aí, no fim das contas, sei lá se não ia descobrir que não sou mais capaz de cantar na ópera."

Pensou em fazer medicina, mas essa era uma idéia absur­da demais para receber muita atenção. Levaria dois anos apenas para preparar-se para os exames, depois quatro anos de curso, durante os anos de internato e residência... Com horror, Carolyn se deu conta de que estaria com mais de quarenta ao iniciar a profissão de médica, e que a vida até lá seria difícil — terrivelmente difícil, impossível mesmo. Helmut simplesmente jamais se ajustaria aos problemas que sua volta aos estudos criaria.

Sempre, neste ponto da fantasia, os olhos de Carolyn se enchiam de lágrimas. "Eu provavelmente nem conseguiria entrar na faculdade de medicina."

Era mais fácil para Carolyn julgar-se "insuficientemen­te inteligente" do que enxergar seu grau de dependência de Helmut. O resultado dessa dependência foi levar Helmut a matá-la simbolicamente. Ele, um tirano cruel que tinha todos os desejos satisfeitos, não estava mais sendo-lhe fiel.

Somente nas horas solitárias daquelas noites em que Helmut permanecia em New Haven é que Carolyn se per­mitia refletir sobre a freqüência daquelas noites fora de casa. Com que facilidade isso se tornara rotineiro! Uma ou duas vezes por semana ele telefonava com uma desculpa: o tempo estava ruim e ele ia dormir na casa de um amigo; ou então teria que usar a biblioteca até tarde, e não com­pensava tentar pegar o trem da madrugada para logo depois retornar.

Quanto fingimento! E há quanto tempo isso vinha acontecendo! Excetuando o sucesso acadêmico, que parecia aumentar a cada ano, Helmut desapontara Carolyn em quase tudo. Ele era pai das crianças apenas no tocante ao suprimento de suas necessidades físicas. Embora passasse mais tempo em casa do que a maioria dos homens, ele rara­mente via os filhos, a não ser nos passeios ritualísticos das tardes de sábado.

Quanto ao relacionamento com ela... bem, Helmut dificilmente poderia ser considerado um companheiro, já que só se dirigia a Carolyn para falar do estritamente essencial (para ele): que fosse buscar suas camisas na lavanderia; que tratasse de livrá-lo da obrigação de comparecer àquelas chatíssimas reuniões de pais da nova escola de Timothy. Será que ela não podia conseguir que sua mãe não viesse visi­tá-los até depois do ano-novo? Pois naturalmente a mãe dela nada tinha a ver com os convidados para a ceia do 31 de dezembro (os convidados eram seus amigos do depar­tamento).

Aos trinta e dois anos, onze depois de se ter casado, Carolyn começou a apresentar súbitas e prolongadas crises de choro. O mero pensamento de mudança um emprego, umas curtas férias sozinha, a menor escapada que fosse do pesadelo em que sua vida se tinha transformado a fazia sentir-se intoleravelmente cansada e apática. Sua vida era uma roda-viva sempre igual: a escola das crianças, o açou­gueiro, a cozinha, a loja de bebidas. Perdeu peso, mal se importando com o efeito disso sobre sua aparência, pois seu corpo era-lhe agora um estorvo. Veio a insónia, povoada com a memória de estranhos sonhos, com imagens de violência e de morte. Helmut a estava pressionando a sair e arrumar um emprego. Estava insatisfeito com ela. Isso a enraivecia, mas ela não ousava expressar seus sentimentos. Quem é que ele pensava que era, exigindo que ela se modificasse depois de tudo a que renunciara por ele? Ela renunciara à própria vida! E ele? Ele não renunciara a nada. Ele estava tentando expulsá-la do ninho antes que ela estivesse pronta para voar. Não, ela não estava pronta. Alguém havia cortado suas asas. Alguém se esquecera de ensiná-la a voar.

 

Quando afinal Helmut decidiu deixá-la, Carolyn contava quarenta anos e ainda não aprendera a lição. O divór­cio quase a destruiu. Ela levou muito, muito tempo para reunir os cacos de sua vida. Para descobrir que fora ela, e não ele, o instrumento de seu martírio. Levou muito tempo para aprender aquilo a que ninguém pode fugir nesta vida: a responsabilidade. Todas as ocupações e preocupações com as coisas da família tinham-na feito sentir-se responsável, o que foi um enorme engano. Desde o dia em que Carolyn Burckhardt conheceu Helmut Anderson, ela não mais to­mara uma única decisão independente em relação à sua pró­pria vida. Ela se tornara uma auxiliar e adulta somente de nome. Após uns tantos anos de casada, sua evitação fóbica crescera a ponto de fazê-la renunciar a toda a autoridade e outorgá-la a Helmut, na esperança de que ele a sal­vasse.

São as mulheres com mais de trinta anos as mais pas­síveis de serem pegas de surpresa. Fomos criadas e modela­das para sermos dependentes — para sermos mães e esposas somente; para, em última análise, o que na realidade con­siste numa infância infinitamente extensa. Com a dissolução de seus casamentos, as mulheres costumam ficar profunda­mente chocadas ao se verem com as rédeas de suas vidas nas mãos pela primeira vez. Porque, bem no fundo, elas sempre acreditaram ter o direito de serem sustentadas e cuidadas por outrem.

A questão que se coloca a esta altura é: o que fez as mulheres assim?

 

                     O desamparo feminino

Todo o mimo e toda a proteção que recebi como pri­mogênita duraram cinco anos. Foi aí que meus pais me ma­tricularam na pequena escola católica do outro lado da linha férrea. Minha vida escolar iniciou-se cedo, em parte porque eu já sabia ler, o que convenceu a escola Sagrado Nome de Maria a me aceitar com tão pouca idade, e em parte devido ao nascimento de meu único irmão.

Sentindo-me confusa e um pouco rejeitada, lá fui eu receber ensinamentos de freiras austeras, membros de uma instituição onde jamais, da primeira à décima segunda série, senti-me à vontade. Eu tinha facilidade para aprender, e em geral me entediava, enquanto outras crianças precisa­vam se esforçar muito, vendo e revendo as mesmas coisas vezes sem conta. Ocasionalmente minha rapidez e prontidão me conduziam à afetação; em geral, porém, faziam-me sen­tir-me peculiar.

Pulei metade da segunda série e metade da quinta, en­trando na sexta série na São Tomás de Aquino, uma escola desorganizada dos arredores de Baltimore. Contava então nove anos de idade. Essa era a escola católica mais próxima de onde morávamos. As crianças lá eram pobres, hostis e, se espertas, não gostavam de mostrar-se inteligentes. Pas­sei a maior parte do tempo tentando evitar apanhar ao tér­mino do período escolar. Ao fim da oitava série, nossos QI’s foram testados. O diretor da escola, na melhor tradição antieducacional, anunciou os resultados à turma. Meu escore foi o mais alto; desse momento em diante, os colegas pas­saram a me fitar como se eu fosse o inimigo em suma, um elemento alienígena. "Ela acha que é muito inteligente", as meninas sussurravam entre si às minhas costas, quando eu passava por elas para ir à lousa resolver equações.

Felizmente fui mandada para um colégio particular do interior, muito embora as meninas de lá fossem quase tão desinteressadas no aprendizado quanto as da escola anterior. Apesar de ser provocadora e rebelde (conseqüência de nunca me ter ajustado a escola alguma), eu era vista como uma .líder. Fui eleita representante da turma, editora do livro anualmente publicado pelas estudantes, e baliza dos desfiles da escola. Logo transpus esse recém-descoberto poder para minha vida em família, usando-o para combater meu pai, que repentinamente passara a se interessar por meu desenvolvimento intelectual. Eu estava sempre tentando mostrar-lhe que era inteligente, que sabia coisas, que estava começando a pensar. E ele sempre tentando me mostrar que melhor se­ria para mim se eu simplesmente reconhecesse quão pouco sabia sobre qualquer coisa e aceitasse sua doutrinação. Seu campo era a ciência a ciência e a matemática. À medida que crescia nossa disputa, menor era minha motivação para a matemática. Quando entrei na faculdade, minha ansiedade relativa à ciência assumira tais proporções que quase fui re­provada em química.

Por muitos anos pensei que meus problemas se origi­navam de meu pai. Somente quando cheguei à casa dos trinta é que comecei a suspeitar que meus sentimentos em relação à minha mãe eram parte do conflito interno em desenvolvimento desde tenra idade. Minha mãe era uma pessoa tran­qüila, avessa a gritos e repentes nervosos, sempre lá, sempre aguardando que meu irmão e eu regressássemos da escola. Matriculou-me numa escola de balé quando eu era bem pe­quena, e mais tarde até a metade de minha adolescência sutilmente forçou-me a estudar piano. Todos os dias ela se sentava a meu lado e contava os compassos, com a regu­laridade e a previsibilidade de um metrônomo. Igualmente regular era sua sesta vespertina, sua escapadela da realidade do cotidiano. E também era freqüentemente acometida de uma variedade crônica de doenças: dores de cabeça, bursite, fadiga.

A nível superficial, aparentemente nada havia de incomum em sua vida: ela era a típica dona-de-casa da época. No entanto... persistiam aquele esquivar-se, aquelas peque­nas moléstias, das quais muitas, penso agora (e ela concorda), se relacionavam com uma raiva não expressa. Ela evitava confrontações com meu pai, levando-nos a crer que estava inteiramente a seu favor. Quando chegava a tomar posição em algum assunto, a tensão originada pelo ato era sensível. Ela o temia.

Comparado com minha mãe, meu pai aparecia como um ente muito grande e marcante o pai todo-poderoso com uma voz alta, gestos expansivos, rude e de maneiras por vezes embaraçosas. Ele era autoritário, professoral; ninguém que o conhecesse podia facilmente ignorá-lo. Antipatizar, sim; esse sentimento podia seguramente ser causado por ele. Mas era impossível fingir não perceber sua presença. Ela forçosamente abria caminho até a consciência daqueles com quem ele entrava em contato; sua personalidade se impunha a todos. Tinha-se a impressão de que ele devotava atenção àqueles em cuja companhia estava; na verdade, em geral as conversas pareciam brotar essencialmente de alguma necessidade oculta dele mesmo.

Eu o amava muito. Adorava sua vivacidade e sua auto­confiança, seu idealismo, sua energia vibrante. Seu laboratório na Faculdade de Engenharia da Johns Hopkins University era calmo; todo aquele equipamento, grande e frio, me impressionava. Ele era o mestre. Falando com outras pessoas, minha mãe se referia a ele chamando-o de "Dr. Hoppmann". E apresentava-se como a sra. Hoppmann. Ao atender o telefone, dizia: "Aqui é a Sra. Hoppmann", como se de algum modo se refugiasse na formalidade da frase e no uso do nome de meu pai. Éramos, de fato, uma família bastante formal.

No trabalho que era a sua vida —, meu pai lidava com giz, números e aço. Em seu laboratório havia máquinas. Sobre sua mesa havia um peso de papéis maciço que lhe fora presenteado por alguém do Departamento de Metalurgia. Era um pedaço de aço prensado, com uma cruz fria e traça­da com extrema precisão bem ao centro. Agradava-me sentir-lhe o peso em minha mão. E me perguntava como é que alguém poderia admirá-lo, pois não era nem belo nem ins­pirador.

Face à personalidade forte de meu pai, era aparente­mente difícil para minha mãe afirmar-se como pessoa. Ela se mantinha quieta e a tudo acedia. Somente aos sessenta e poucos anos ela, a décima quarta de dezesseis filhos de uma família de fazendeiros de Nebraska, começou — silen­ciosa e determinadamente — a viver a própria vida, quase que à revelia de meu pai. Com a idade minha mãe foi se tornando mais incisiva e interessante, diversamente de todo o período de meu desenvolvimento; naquela época ela era totalmente submissa. A mesma submissão que eu via em praticamente todas as mulheres que conheci durante meu crescimento. O que, em outros termos, consistia numa ne­cessidade de deferência ao homem que "cuidava" dela, o homem de quem ela dependia para tudo.

 

Quando entrei para o curso secundário, comecei a tra­zer minhas idéias da escola para casa não para minha mãe, mas para meu pai. Sentados à mesa do jantar, ele dis­secava tais idéias com desprezo passional. Depois prosseguia um pouco sobre o ponto em questão, entrava em digressões — abstrações que pouco tinham a ver comigo —, mas sem­pre infundindo grande energia à conversa. Sua energia tornava-se minha própria energia era o que eu pensava.

Meu pai considerava seu dever (atribuído por Deus) assinalar-me a direção da verdade especificamente falando, corrigir as atitudes errôneas que me eram impingidas pelos "intelectuais de terceira categoria", isto é, meus professores. Seu papel de professor fascinava-o bem mais, penso agora, do que seu senso de obrigação para com o desenvolvimento de minha aprendizagem. Com a idade de doze ou treze anos comecei a perseguir aquilo que iria ser uma das ambições de toda a minha vida: fazer meu pai calar a boca. A dependência que tínhamos era mútua e peculiar: eu queria a atenção dele; ele queria a minha. Ele acreditava que, se eu simples­mente me dispusesse a ouvi-lo compenetradamente, ele po­deria me entregar nas mãos o mundo, por inteiro e sem fa­lhas, como uma pêra descascada em uma bandeja de prata. Eu não desejava ouvi-lo compenetradamente, e não queria uma pêra descascada. Eu desejava descobrir a vida por mim mesma, por meus próprios meios, tropeçando sobre ela, como uma surpresa eu queria a maçã rubra, ainda que disfor­me, que cai de uma árvore não podada.

Quando eu me queixava a meu pai a respeito de seus métodos de argumentação e de sua aparente necessidade de ter a razão acima de tudo o mais, ele ria e dizia que minha percepção dele era falsa. Apenas simulávamos um jogo de esgrima, explicava ele, o que era uma excelente forma de "afiar" meu espírito. O fato de eu me envolver no jogo, dizia, apenas confirmava seu respeito básico à minha capa­cidade de "absorção".

As mensagens que comecei a receber de meu pai a partir da idade de doze anos me confundiam. Eu acreditava que meu pai estava me treinando para batalhar no mundo tumultuado e abrasivo dos adultos e das idéias. (Ele não afir­mava ser isso o que estava fazendo?) Entretanto, ele parecia estar pessoalmente interessado nesse ganhar ou perder. Mes­mo naquela época, eu já começava a perceber que havia pouca relação entre combate e persuasão.

Quando comecei a escrever isso foi na casa dos vinte —, não me dei conta de estar adentrando um campo completamente oposto ao do meu pai. Comecei escrevendo sobre aquilo que classificava como "coisinhas”: relatos curtos so­bre estados de espírito, artigos ditados pelo subjetivis­mo nada muito temerário, pensava eu. Certamente nada que requeresse um Pensar Real. O Pensar Real era para homens. O Pensar Real era para professores, pais, padres.

Afora algumas contendas verbais extenuantes com alguns dos professores da faculdade, adquiri pouca experiên­cia no aprendizado do desenvolvimento de uma posição ra­cional fosse em relação ao que fosse. Ainda na faculdade, eu mais competia do que produzia qualquer pensamen­to independente. Amedrontava-me muito o tipo de desenvolvimento mental e emocional originado no isolamento, quando enfrentamos a nós mesmos. Tanto que levei quase vinte anos para me entregar a ele. Eu tentava clarificar, obje­tivar as coisas, e minha posição quanto a elas diferenciava-me de algum Outro forte e poderoso homem ou mulher, quem quer que fosse, sobre quem eu pudesse projetar a imagem interiorizada de meu pai. Desnecessário dizer que essa "objetivação" tinha vida curta. Eu me distanciava do Outro como um elástico esticado, "curtia" minha diferen­ciação por um breve momento e depois entregava-me nova­mente, assim que a tensão da separação se tornava insupor­tavelmente opressiva.

 

                   Intimações ao desamparo

Há já algum tempo que os psicólogos sabem que as necessidades de afiliação femininas são mais fortes do que as masculinas, mas só recentemente desvendou-se a razão disso graças aos estudos realizados sobre as meninas. Por causa de uma dúvida intensa e profundamente assentada quanto à sua própria competência (desenvolvida desde o iní­cio da infância), as meninas se convencem de que precisam ter proteção, sob pena de não sobreviverem. Esta crença é incutida nas mulheres pela ação de expectativas sociais de base enganosa e pelos temores dos pais. Como veremos, uma ignorância monumental modela a forma de pensar dos pais sobre suas filhas, a forma como eles se sentem em relação a elas e de como interagem com elas. As meninas têm sua capacidade de se fazerem seres humanos independentes cortada pelas atitudes protetoras dos pais tal como se tivessem os pés atados.

O treinamento oferecido às meninas é diverso do ofere­cido aos meninos. O delas leva-as a se transformarem em adultas que se submetem indefinidamente a empregos de nível inferior ao de suas capacidades.

Leva-as a se sentirem intimidadas pelos homens que desposam, e a acatar-lhes todas as palavras na esperança de serem protegidas.

Leva inclusive, como veremos, à debilitação das faculda­des intelectuais femininas.

Elogiadas pelos professores por nossa diligência e bom comportamento na escola, nós, confiantes em que tais qualidades nos ajudarão a vencer no mundo profissional, logo nos apercebemos de que somos tratadas como se não fôssemos tão crescidas assim. Virtuosas, talvez. Legais, talvez (do tipo: "Que legal a Mary encarregar-se de todas aquelas futuras chatas por nós, não é?"). Mas infantis. Não merecedoras de sermos levadas a sério. E, como os bons escravos nas antigas plantações, facilmente exploráveis.

Desde tempos imemoriais os homens vêm demonstran­do que, na grande ordem das coisas, as mulheres realizam muito pouco. Onde, perguntam eles, estão as físicas que revolucionaram o conhecimento científico? Como é que inexistem Bartoks do gênero feminino? ("Tais questões são geralmente levantadas no intento de se abafar quaisquer sugestões no sentido de as mulheres serem tão inteligentes quanto os homens.) Novos estudos evidenciam cada vez mais que as mulheres se impedem de progredir. Nós sabo­tamos nossa própria originalidade. Andamos em segunda evitando as marchas mais altas, que possibilitam maior velocidade —, como se tivéssemos sido programadas para fazê-lo.

E na realidade o fomos.

A psicologia vem investigando de perto como as mu­lheres agem e se sentem com relação ao modo como foram ensinadas a se comportar e forçadas a se sentir quando crian­ças. É chocante saber que o quadro mudou bem pouco nos últimos vinte anos? A forma pela qual as meninas são socia­lizadas continua a predeterminar um doloroso conflito quanto à independência psicológica necessária para que as mulheres se libertem e assumam seu lugar ao sol.

 

                     O aprendizado

Gostamos de pensar que, como pais, estamos fazendo tudo diversamente — que nossas filhas não sofrerão os efei­tos da criação discriminatória e super-protetora a que fomos sujeitas. Contudo, pesquisas indicam que a maioria das crianças de hoje estão sendo desvirtuadas pelos mesmos ti­pos de papéis fixos (e artificiais) com que você e eu nos identificamos.

A dominação masculina — e seu equivalente feminino — podem ser observados já nas crianças das escolas maternais.

"Você fica aqui com as mamães e os bebês. Eu vou pescar", diz o pequeno Gerald à pequena Judy, e afasta-se correndo.

"Eu quero ir também", grita Judy, correndo atrás dele.

Gerald vira-se e repete: "Não, você fica aqui com as mamães e os bebês".

"Mas eu quero ir pescar!", grita Judy.

"Não", insiste Gerald. "Mas quando eu voltar eu levo você a um restaurante chinês."

Esta cena foi observada entre duas crianças de quatro anos de idade, na sala de brinquedos de um jardim de infân­cia, e relatada na revista Harper's pela supervisora do grupo de crianças, Laura Carpenter.

"Outra cena que observo de vez em quando é mais ou menos a seguinte", escreveu ela. "Três ou quatro meninos pequenos se sentam em volta de uma mesinha na cozinha de brinquedo. Os meninos começam a requisitar coisas: 'Me dá uma xícara de café!', ou 'Me passa a manteiga!', ou ainda: 'Mais torrada!', enquanto as meninas se põem a correr fre­neticamente entre o fogão e a mesa, cozinhando e servindo. Numa dessas situações os meninos se mostraram impossíveis de contentar, pedindo um café atrás do outro, levando a única menina da brincadeira a correr desvairadamente pela cozinha para atendê-los. Finalmente ela ganhou o controle da situação, anunciando que não havia mais café. Aparentemen­te não lhe ocorreu sentar-se à mesa e pedir café a um dos meninos."

As meninas desse jardim de infância estavam represen­tando um antigo sistema de troca: servir o amo em troca de proteção. Professores, terapeutas e demais profissionais que trabalham ou estudam com jovens do sexo feminino deplo­ram a continuidade da existência do complexo de Cinderela — a crença, por parte das meninas, de que sempre haverá alguém que irá cuidar delas. "Apesar de toda a ênfase que hoje se dá à ampliação de papéis femininos, não houve mudanças significativas na preparação das meninas para a ida­de adulta", disse Edith Phelps, diretora executiva do Girls Clubs of America, numa recente conferência. "Sua prepara­ção continua no máximo destrutiva — e no mínimo cheia de conflitos."

Estudando adolescentes na University of Michigan, a psicóloga Elizabeth Douvan descobriu que, até a idade de dezoito anos (e às vezes além dela), as meninas praticamente não mostram nenhum impulso para a independência, não se rebelam nem confrontam a autoridade, e não defendem "seus direitos de formar e preservar crenças em mecanis­mos de controle independentes". Com respeito a todos esses aspectos, elas diferem dos meninos.

E os dados mostram que a dependência nas mulheres cresce à medida que elas ganham mais idade.

Também revelam, surpreendentemente, que, desde bem pequenas, as meninas são treinadas para a dependência, ao passo que os meninos são treinados para se livrarem dela.

 

                   Como começa tudo isso?

As meninas iniciam o jogo da vida um passo adiante dos meninos. São mais habilitadas verbal, perceptual e cognitivamente. Desde o nascimento contam com uma vantagem, em termos desenvolvimentistas, equivalente a quatro ou seis semanas de vida. Quando entram na primeira série do pri­meiro grau, as meninas se encontram um ano à frente dos meninos nesses aspectos.

Então por que é que, já aos três ou quatro anos de idade, elas desempenham com tanta "naturalidade" o papel de serviçais?

Eleanor Maccoby, uma psicóloga de Stanford com especialização em fatores psicológicos da diferença de sexos, res­ponde que "a chave do problema reside em se, ou quão cedo, a menina é encorajada a assumir a iniciativa, a responsabili­dade por si mesma, e a resolver sozinha seus problemas, em vez de, para isso, depender de outrem".

Os psicólogos afirmam que a estrutura independente é montada antes de a criança atingir os seis anos de idade. Alguns deles crêem agora que as meninas são incapazes de dar a virada crucial em seu desenvolvimento emocional precisamente porque seu trajeto lhes é demasiadamente facilitado porque são superprotegidas, exageradamente ajuda­das, e ensinadas no sentido de que tudo o que têm a fazer para manter a continuidade da ajuda é serem "boas".

Acontece que os comportamentos reforçados nas me­ninas não são reforçados nos meninos. Muito do que se con­sidera "bom" em garotinhas é considerado extremamente re­pulsivo em garotinhos. Timidez e fragilidade, ser "bem-comportada" e quieta, e depender dos outros para obter auxílio e apoio são comportamentos julgados naturais se não desejáveis nas meninas. Os meninos, em contra­partida, são ativamente desencorajados a apresentar formas dependentes de relacionamento elas os tornam maricas. Gradualmente, diz Judith Bardwick, "o filho é forçado a apresentar comportamentos independentes e recompensado por isso"...

Por que os meninos (e não as meninas) crescem apren­dendo a ser independentes, por que eles não têm medo de se arriscar sozinhos (ou melhor, por que o fazem apesar de seu medo), e por que começam a desenvolver padrões pes­soais de auto-estima virtualmente antes de deixarem as fral­das essas são questões que estão sendo examinadas por pesquisadores como Bardwick e Douvan. Com isso desen­volveu-se uma teoria relacionada com os efeitos construtivos da tensão. Aos olhos dos pesquisadores, ao garotinho não resta escolha senão a de lidar com a tensão produzida pela repressão de seus "comportamentos instintivos" (aqui alude-se às proibições de atos como morder, bater e masturbar-se em público), e pelo processo "masculinizante" de extinção de seu comportamento dependente. Essa tensão, crêem eles, é, em última análise, benéfica: a experiência de ter que lidar com restrições, e eventualmente ter que se bastar sem a aprovação adulta, ajuda a guiar o menino pelo caminho correto — o caminho da descoberta de viver segundo suas próprias inspirações.

Via de regra o processo de adotar um modo de ser independente se inicia, nos meninos, ao dois anos. Durante os três anos seguintes, eles aos poucos se alienam da necessi­dade de aprovação externa e passam a desenvolver critérios independentes através dos quais se sintam bem consigo próprios. A maioria dos meninos atinge esse ponto vital do pro­cesso de maturação antes de completar seis anos de idade.

Com as meninas a coisa é bastante diferente. Em estu­dos desenvolvimentistas importantes e freqüentemente cita­dos, Jerome Kagan e H. A. Moss descobriram que tanto a passividade quanto uma orientação dependente em relação aos adultos apareciam consistentemente nas meninas, desde a infância até a idade adulta. Mais: descobriu-se que estes dois traços de personalidade eram os mais estáveis e previsíveis entre todos os traços de caráter feminino. A menina que é passiva nos três primeiros anos de vida seguramente (ou quase) continuará a ser passiva no início da adolescência; da mesma forma, pode-se esperar da adolescente passiva um comportamento excessivamente dependente de seus pais também quando atingir a idade adulta.

À medida que crescem, as meninas tendem a aumentar o seu grau de dependência dos outros. Numa espécie de aberração do desenvolvimento normal, as crianças do sexo feminino utilizam suas precoces habilidades perceptivas e cognitivas não para apressar o processo de separação da mãe, não para se envolverem na satisfação de realizar por realizar (elas em geral perseguem as realizações em nome da apro­vação conseqüente), não para efetuar uma crescente independência, mas sim para aprender e antecipar as exigências adul­tas — e a elas se conformar.

Bardwick e Douvan acreditam que a problemática das meninas em parte se origina de uma insuficiência de tensão quando pequenas. Já que seu comportamento costuma agra­dar aos adultos desde o início (em geral elas não mordem, nem tiram sangue de ninguém, nem se masturbam em públi­co), elas não necessitam fazer nada mais desafiante, em ter­mos desenvolvimentistas, do que continuar a ser como são — verbal e perceptualmente hábeis, não-agressivas e extremamente precisas no adivinhar o que desejam delas aqueles de quem dependem.

Os adultos, por seu lado, não interferem nem se opõem ao comportamento "instintivo" das meninas — exceto às suas ações tateantes rumo à independência. Estas eles blo­queiam sistematicamente — como se suas filhinhas, ao esten­derem os braços para fora e se arriscarem, estivessem corte­jando a própria morte.

 

                   Ajuda excessiva e "mutilação" feminina

O treinamento à dependência tem início bem precoce­mente na vida da menina. Os bebês do sexo feminino são carregados freqüentemente e menos vigorosamente manu­seados do que os bebês do sexo masculino. Apesar de se­rem mais adiantadas em termos de maturação, as meninas são consideradas mais frágeis. Recebendo menos estimulação física, elas podem não obter a mesma espécie de encoraja­mento dado aos meninos, por suas precoces explorações aven­tureiras. É comum os pais de meninas exibirem apreensão quanto à sua segurança antes mesmo de elas deixarem o berço.

Um estudo efetuado em 1976 indicou que os pais fa­zem uma distinção de sexo ao interpretarem o significado do choro dos bebês. O choro de uma mesma criança foi interpretado por pais como medo, se achavam que a criança era do sexo feminino, e como raiva, se pensavam que era do sexo masculino. Além do mais, as mães respondem diferentemente ao choro. Quando suas filhinhas choram, elas estão mais prontas a interromper o que fazem e a correr para confortá-las do que quando se trata de meninos. (Aparentemente é mais fácil para os pais ignorar o choro de bebês do sexo masculino.)

Outra diferença notável é que a mãe aumentará o contato com o bebê-menina se esta estiver irritada, mas o diminuirá se o bebê for um menino — ainda que o filho esteja mais irritado ou mais aflito que a menina.

De acordo com o psicólogo Lois Roffman, da University of Michigan, esse condicionamento precoce pode bem significar "o início de um padrão de interação... no qual as filhas rapidamente aprendem que a mãe é uma fonte de conforto e que o comportamento materno é reforçado pelo cessar do choro".

Em outras palavras, os bebês do sexo feminino aprendem que o auxílio vem depressa se choram por ele, e as mães desses bebês aprendem que o choro terminará se correrem para ajudá-los. Precisamente o contrário acontece quando a interação é entre mães e filhos. Porque pensa que os bebês do sexo masculino são mais fortes, a mãe não vai voando pela casa, arriscando-se a tropeçar no aspirador, para confortar o filhinho que chora. Por conseguinte, ele não é tão sistematicamente reforçado na idéia de que "basta chorar, que serei ajudado imediatamente". Há horas em que ele tem que consolar a si próprio. Ocasionalmente, descobre, isso funciona. Ele é capaz de consolar-se. Pouco a pouco ele aprende a fazer isso em base mais regular. Pouco a pouco ele aprende a se tornar seu próprio provedor emocional.

Após alguns meses a criança começa a engatinhar, levanta-se no berço pela primeira vez e finalmente dá os primeiros passos. E a ansiedade paterna começa a desfigurar sua própria alegria. O feito da criança enche os pais de orgulho, combinado com uma nova ambivalência, pois agora o "nenê" passará a correr novos riscos: tomadas de eletricidade, objetos quebráveis nas prateleiras baixas da estante, tombos resultantes de uma audácia desmedida. Tal como ciganos que lêem tudo numa bola de cristal, mamãe e papai começam a prever essas catástrofes no momento mesmo em que o bebê começa a engatinhar.

Só que essas catástrofes potenciais não assumem caráter tão trágico e vívido nas mentes dos pais se o bebê é um menino. Pesquisas indicam que a ambivalência relativa aos primeiros movimentos infantis em direção à independência é maior quando a criança é do sexo feminino. Billy, esse (pequeno) garotão valente, está com tudo. Deborah precisa ser muito vigiada, precisa de muita ajuda. Quando Billy dá os primeiros passos, mamãe e papai não cabem em si de tanta felicidade. Quando a pequena Deborah dá os primeiros passos, a felicidade é obscurecida pela preocupação. Infelizmente, a pequena Deborah levanta os olhos e vê a ansiedade nos olhos da mãe.

Essa primitiva indicação de ansiedade por parte da mãe — por alguns pesquisadores, denominada "super-solicitude apreensiva" — leva a criança a duvidar de sua competência. "Se mamãe está com medo de eu não conseguir fazer isso, ela deve saber de algo que não sei", pensa a pequena Deborah.

Um derivado de seu imenso temor pelas filhas é a tendência dos pais (um termo mais apropriado talvez seja "compulsão") a proteger — saltar e pegar o bebê antes que tropece e caia: é preciso garantir que aquela coisinha não se machuque. Mas se o menininho se machuca, isso é considerado parte do processo de maturação. "Tudo bem, tudo bem, Billy", a mãe murmura, abraçando-o. "Você logo aprende." Se Debbie, a pequena Deborah, bate a cabeça, é hora de pânico — e culpa. Mamãe não devia ter desviado os olhos naquele instante. Mamãe devia ter garantido que nada acontecesse à pequena Debbie. Afinal de contas, a pequena Debbie é apenas "uma menininha".

É nessa altura que os pais começam a inculcar nas filhas pequenas a idéia de que, no que concerne a assumir riscos e à avaliação de sua própria segurança, elas não devem confiar em si mesmas.

E, como sabemos, a autoconfiança é crucial no desenvolvimento da independência.

Em geral o medo se instala em meninas pequenas devido às atitudes de suas mães. Mães ansiosas instruem os filhos a evitar comportamentos que as possam deixar — a elas, mães — ansiosas. Ao ensinar a filhinha a evitar o risco, a mãe ansiosa inadvertidamente impede a criança de aprender como lidar com o medo.

O único método de que tanto os seres humanos quanto os animais dispõem para aprender a controlar o medo em novas situações é aproximar-se e retirar-se da situação amedrontadora repetidamente. "A repetida estimulação da resposta de medo em doses pequenas e controladas acaba por produzir a extinção dessa resposta", explica Barclay Martin em Anxiety and neurotic disorders (Ansiedade e distúrbios neuróticos).

A mãe não deseja que Debbie sequer se defronte com a situação causadora de medo, de sorte que a criança não reúne experiências de modo a aprender a controlar sua resposta a ele. Crianças sem experiência no manejo da resposta de medo são passíveis de se tornarem adultos cujas vidas serão governadas por ele. Em essência, a pequena Debbie permanecerá propensa a ter medo durante todo o primeiro grau escolar, depois no segundo, na faculdade, até sair para o gélido mundo terrificante dos adultos. Lá, tentará "virar-se, controlando-o". O medo — e a subjugação a ele, ou, melhor dizendo, sua total evitação — por fim se transformará no determinante básico da vida de Debbie. Conseqüentemente, é claro, ela terá grande dificuldade em desenvolver autoconfiança.

Vários estudos revelam que meninas — especialmente as mais inteligentes — possuem graves problemas na esfera da auto-confiança. Elas sistematicamente subestimam suas próprias capacidades. Quando se lhes pergunta como acham que se sairão em diferentes tarefas — sejam tarefas novas ou já experimentadas por elas —, elas oferecem estimativas mais baixas do que as dos meninos, e em geral subestimam também seu desempenho real. Um estudo chegou a revelar que, quanto mais inteligente é a menina, menores são suas expectativas de ter sucesso em tarefas intelectuais. Meninas menos inteligentes têm expectativas mais altas sobre si mesmas do que as inteligentes.

Um baixo grau de auto-confiança é uma praga entre muitas meninas, e leva a uma extensa gama de problemas inter-relacionados. As meninas costumam ser altamente sugestionáveis e tendem a mudar de opinião quanto a seus julgamentos perceptivos se alguém discorda delas. Estabelecem para si mesmas padrões mais baixos do que os meninos. Se para os meninos tarefas difíceis representam desafios, as meninas geralmente tentam evitá-las. Inclusive em idade pré-escolar, os meninos demonstram maior envolvimento nas tarefas, maior autoconfiança e são mais capazes de obter incrementos em seus QI’s.

Por volta dos seis anos, o quadro de probabilidades relativas ao desenvolvimento intelectual, bem como à independência, já se acha configurado. Por essa época já se podem fazer previsões. A criança de seis anos, cujo QI provavelmente crescerá nos anos seguintes, é aquela já competitiva, assertiva, independente e dominadora entre outras crianças, de acordo com Eleanor Maccoby. A criança de seis anos cujo QI decrescerá nos anos futuros é passiva, tímida e dependente. "Com base nesta evidência", aponta Maccoby, "as características daquelas cujos QI’s crescerão não parecem muito femininas."

Tudo isso, nas meninas, é associado a exageradas "necessidades de afiliação", quer dizer, necessidades, acima de tudo, de participação em relacionamentos. Dado seu sentimento de incompetência, não é de admirar que a garotinha fosse plantar-se ao lado do outro mais próximo e a ele agarrar-se por toda a vida.

Lois Hoffman descreve abaixo a seqüência desenvolvimentista que faz das meninas adultos necessitados de excessivo apoio dos outros.

Pelo fato de a menina contar com: a) menor encorajamento para os comportamentos independentes; b) maior proteção paterna; c) menos pressão cognitiva e social no sentido de estabelecer uma identidade separada da mãe; d) menor conflito na relação mãe-filha — e o conflito é um dos elementos essenciais no processo de separação; — por tudo isso ela se envolve menos na exploração independente do seu ambiente. Resulta que ela não desenvolve as habilidades necessárias para manipular seu ambiente, nem a confiança em sua capacidade para fazê-lo. Ela persiste em sua dependência dos adultos para a solução de seus problemas, e, por causa disso, necessita de seus laços afetivos com os adultos.

Como podemos ver, os problemas da dependência exces¬siva seguem as meninas até a idade adulta. E, no entanto, dificilmente as mulheres se conscientizam de terem tido uma infância dominada por restrições e super-proteção. Sua auto-percepção não lhes fala de uma infância onde seus esforços pela independência foram reprimidos — e, quando assaltadas por problemas relativos à dependência na vida adulta, elas se espantam. As que fazem psicoterapia acabam rememorando as estranhas proscrições dos pais, as quais se revestiam de caráter tão ameaçador: os avisos, os estritos horários para chegar em casa, as súplicas para não se "cansarem" — pobres borboletas frágeis, cujas asas podem deixar de sustentá-las a qualquer momento.

Ruth Moulton diz que os maiores problemas psicológicos de várias de suas pacientes originam-se da "inibição (iniciada bem cedo) de toda e qualquer asserção e, às vezes, de toda a atividade física, considerada ou perigosa ou não-feminina". Duas das pacientes da Dra. Moulton haviam sido literalmente amarradas às camas, à noite, quando pequenas. Diz ela que as histórias da infância de suas pacientes revelam diversos desses exemplos de "excessivas restrições e super-proteção". Todas as histórias desembocam no fato de que, quando crianças, essas mulheres foram levadas a se sentirem fracas — incapazes de usarem seus corpos, incapazes de se defenderem física e verbalmente. Produz-se o que Moulton chama "síndrome da boa menina". Crescidas, essas mulheres agem de modo a continuarem a sentir-se seguras. Elas agora se auto-restringem.

A prova comportamental mais concludente no treinamento das meninas é a ajuda excessiva — a tendência dos pais de correrem para auxiliar as filhas quando elas não precisam realmente disso, ou quando estão aprendendo a recuperar o equilíbrio após terem cambaleado (processo fundamental para o desenvolvimento da confiança e da auto-estima). Elas acabam não tendo chance de se reerguer. São apanhadas no colo, e recolocadas no chão, seus vestidos são rearranjados, lembrando bonecas a que se dá corda para efetuarem os mínimos (e mais estudados) gestos.

Por que a ajuda excessiva é tão destrutiva? "A perícia e o poder requerem a capacidade de tolerar frustrações", explica Lois Hoffman. "Se o pai ou a mãe respondem depressa demais com um auxílio, a criança não desenvolverá tal tolerância."

"A independência é resultante do aprendizado de que se pode realizar coisas por si mesmo, de que se pode contar com as próprias capacidades e confiar no próprio julgamento", escreve Judith Bardwick em seu livro The psychology of women (Psicologia feminina). As meninas são sistematicamente reforçadas na noção de que só podem realizar coisas com a ajuda de outrem. No fim interiorizam a idéia de que não estão à altura de sobrepujar os desafios da vida por sua própria conta.

Certas "doenças" de fundo dependente afetam apenas pessoas do sexo feminino. Uma delas é a anorexia nervosa, a bizarra síndrome da morte por inanição, doença na qual adolescentes do sexo feminino se recusam a comer até a morte, numa tentativa tristemente paradoxal de alcançar algum controle de suas vidas. Anualmente, uma em cada cem adolescentes se entrega a um desses regimes anoréxicos debilitantes. Aproximadamente dez por cento delas acabam se matando por falta de alimentação.

"Meninas com personalidades conformistas sentem-se obrigadas a fazer algo que requeira um alto grau de independência a fim de serem respeitadas e reconhecidas. Quando tudo o mais falha, a única independência que sentem ter é a que reside no controle de seus corpos", disse a Dra. Hilde Bruch, uma autoridade nessa moléstia.

A maioria dos casos de anorexia nervosa é representada por jovens do sexo feminino — raramente do masculino — entre os doze e os vinte e um anos de idade, com educação esmerada, alto nível de motivação e provindas de lares com situação financeira confortável. Segundo a Dra. Bruch, seu tratamento pode ser bastante longo e trabalhoso. "A convicção de ser inadequada e não ter valor como pessoa está tão profundamente assentada, tão fortemente enraizada, que (a jovem anoréxica) se retrai por trás da máscara de superioridade sempre que experimenta a menor dúvida acerca de si mesma ou se defronta com alguém que dela discorde. Ela precisa ter certeza de que é um indivíduo de valor antes de poder ser curada".

Outras vítimas da dependência neurótica são as esposas espancadas. O fato de tão freqüentemente serem financeiramente dependentes dos homens que as espancam configura a armadilha estagnante. Mas é a dependência emocional que tranca a fechadura da armadilha. “Muitas mulheres são vítimas de uma espécie de pânico frente à idéia de sobreviverem de outra maneira que não dependendo dos maridos", disse Kenneth McFarlane, do extinto Departamento de Saúde, Educação e Bem-Estar. "A vida inteira ensinaram-lhes que isso é impossível. É um processo de condicionamento.

Em situações nas quais não detêm nenhum controle sobre seu ambiente, os animais começam a desistir de lutar. Novos estudos indicam que o mesmo se dá com os seres humanos. Passe um dado período numa situação sobre a qual sente não ter qualquer controle, e você simplesmente parará de reagir. Esse fenômeno foi denominado por Martin Seligman de desamparo aprendido. Diane Follingstad, da University of South Carolina, passou a empregar alguns dos princípios de Seligman a respeito do desamparo aprendido num programa de tratamento que ela elaborou para esposas espancadas. Follingstad ensina essas mulheres a desaprender, num período relativamente curto de tempo, aquilo que seus pais e a sociedade levaram anos para inculcar nelas. As mulheres sentem não terem controle sobre nada, pois os fatos de suas vidas são causados pelo acaso, pelo azar, pelo destino. Não percebem que se trata de 'Se eu fizer X, obterei Y', diz a Dra. Follingstad. Tendo sido "modelada" para acreditar que não tem meios de dominar a situação, a esposa espancada continua sendo espancada. Somente após começar a desembaraçar-se de sua crença em seu desamparo é que ela pode romper o ciclo vicioso de dependência e seu efeito brutal sobre ela.

O conceito do desamparo aprendido atraiu a atenção de muitos psicólogos, que se puseram a procurar sinais dele ao longo do processo desenvolvimentista. Carol Jacklin, do Departamento de Psicologia de Stanford, me falou da existência de novos estudos que assinalam que o desamparo está sendo ensinado à nossas filhas por suas professoras de primário. "As professoras elogiam os meninos por seu trabalho escolar e censuram-nos por seu mau comportamento — barulho e coisas desse tipo. E às meninas tocam os cumprimentos por seu trabalho não escolar — como estão limpas e arrumadinhas, como são bem-disciplinadas e daí por diante."

Esse tipo de reforço, diz Jacklin, faz com que as meninas experimentem o fracasso no trabalho escolar, ainda que estejam se saindo bem nos estudos. E é notório que as meninas são mal equipadas para o manejo de situações onde pensam que fracassaram ou podem vir a fracassar. "Todos nós já passamos por situações que ao menos parecem marcadas pelo fracasso. A questão é: você persevera, você se esforça mais ou desiste? A conclusão, e acho que é uma conclusão triste", prossegue Jacklin, "é que as meninas desistem."

Uma vez criada, a dependência da garotinha é sistematicamente apoiada por todo o período de sua infância. Por ser "boazinha" — não-desafiante, não-provocadora, não-queixosa —, ela é recompensada com boas notas, com a aprovação dos pais e professores e com a afeição de seus colegas. Que razões ela tem para se tornar rebelde? Tudo vai bem, de modo que ela segue conformando-se às expectativas externas. Reforçada por pouco mais que um bom comportamento e uma memorização competente, a menina vai acumulando êxitos. A vida é boa — e essencialmente fácil.

Até a puberdade. É aí que as coisas começam a mudar de figura para a média das meninas americanas.

 

                   Adolescência: a primeira crise na feminilidade

No jargão dos psicólogos do desenvolvimento, uma "crise" é um período de tensões e rupturas, marcado pela instabilidade, durante o qual a ansiedade relativa às próprias capacidades e/ou à própria identidade aumenta. No processo de resolução de nossas crises desenvolvimentistas, crescemos em maturidade e saúde psicológica.

A adolescência reserva às meninas um estágio desenvolvimentista particular — aquilo a que Bardwick e Douvan se referem como sendo "a primeira crise na feminilidade". Até os doze ou treze anos, as meninas se acham mais ou menos livres para se comportarem como bem entenderem. Com a puberdade, contudo, a porta da armadilha começa a fechar-se. Agora espera-se da jovem um repertório comportamental novo e bastante específico. De maneira sutil (mas muitas vezes não tão sutil) ela passa a obter reforço por seu "sucesso" com rapazes. Independentemente do quanto a filha possa estar realizando em outras áreas da vida, a mãe de uma menina de quinze anos que não esteja namorando começa a se preocupar. Gentil mas firmemente, pressiona a filha a arranjar um namorado. E inevitavelmente isso se faz acompanhar de uma mensagem inequívoca: não é bom ser demasiadamente competitiva com os homens. Bom é agradar-lhes, "dar-se bem" com eles.

É nesse ponto que as meninas se defrontam com o que certamente se afigura o problema central da feminilidade em nossa cultura: o conflito entre dependência e independência. Qual o meio-termo ideal entre ambas? O que é "certo"? O que é "apropriado"? Uma menina extremamente dependente, sem opinião própria e sem "personalidade", é considerada boboca e chata, mas uma menina extremamente independente também não é um bom negócio. Pode até ter vários amigos, mas, nos assuntos românticos, eles se retraem.

Nenhuma garota que cresceu em nossa sociedade precisa ser avisada disso: ela o sabe. E, portanto, passa a modificar suas prioridades. Na adolescência, sua tarefa desenvolvimental básica torna-se conseguir relacionamentos "bem-sucedidos" com os outros. De acordo com seu aprendizado na infância, ela prossegue dependendo das reações dos outros como sua fonte básica de auto-estima. Perto do final do curso colegial ou então na faculdade, diversas jovens repentinamente mandam seus valores individuais às favas, rejeitando o fator realização pessoal em favor de uma alarmante corrida à aceitação social. A conseqüência é evidente: uma interrupção abrupta na tarefa de desenvolver meios individuais de obter o desejado e fazer-se autônoma. Devido ao enquadramento que lhes reserva a sociedade, as mulheres deixam de experimentar a necessidade de desenvolver a autonomia, até que alguma crise posterior faça ruir sua complacência, mostrando-lhes quão tristemente indefesas e frágeis elas se permitiram ser.

 

                   A oposição de obstáculos à filha adolescente

Dentre os fatores determinantes da vida da adolescente, um dos mais significativos é a família específica a que ela pertence. Ali, entre as quatro paredes da sala de estar de mamãe e papai, ela será encorajada a romper com o enquadramento e tornar-se um indivíduo único, ou aprenderá a montar o jogo da segurança.

Examinando as histórias da infância das pacientes que se tornaram profissionais bem-sucedidas, Ruth Moulton percebeu certas tendências fundamentais na forma como cresceram. Em geral o pai aparece como agente repressor dos atos independentes da filha, e a mãe se cala. Das conflitantes expectativas dos pais emerge a mulher inteligente, ávida por realizações e em geral desempenhando atividades abaixo do nível de seu potencial.

Primeiramente, tomemos a mãe do tipo "indefinido". Ela própria há muito tempo restringiu seu desenvolvimento, assumindo uma posição de inferioridade perante o marido. Sua postura submissa recobre-a com o que uma filha descreve como "um ar de insignificância e efemeridade". Um número espantoso de mulheres a quem entrevistei concluiu, quase se desculpando: "Não sei dizer muito sobre minha mãe. Há nela algo de vago que me impossibilita uma definição concreta".

Uma mulher que está fazendo pós-graduação em psicologia e em terapia, após consideráveis progressos na dissolução de sua dependência, ainda se vê às voltas com a aparente falta de substância com que sua mãe se lhe afigura. "É estranho, considerando que ela ainda vive e que nos vemos com relativa freqüência. Simplesmente não consigo uma visão clara do que ela é — ou daquilo em que consiste nosso relacionamento. Acho que nunca consegui isso."

Outra mulher descreveu o "vazio" experimentado durante seu crescimento, a lacuna em seu relacionamento consigo própria enquanto entidade feminina. "Meu pai era a pessoa que dirigia minha vida. Agora que tenho filhos, muitas vezes olho para trás e me pergunto: Onde é que minha mãe estava naquela época? Por que ela deixou meu pai dominar tudo? Será que ela não se importava, ou era simplesmente uma pessoa fraca?

"Meu pai era o centro", conta uma pintora do Missouri que sempre fracassa quando se compromete a apresentar seus quadros em exposições. "Minha mãe era definida por ele. Se ela se comportava bem, ele lhe dava amor, presentes e cuidava dela — ela era uma rainha. Ele realmente cuidava dela. Ela se comportava bem; ela era uma ótima dona-de-casa. E ele cumulava-a de presentes o tempo todo."

"Ela era inteligente?", perguntei.

"Não sei", a mulher respondeu. "Penso que deve ter sido, em alguma época anterior de sua vida. Mas ela parou de pensar."

Uma das razões pelas quais a mãe persiste sendo uma figura obscura é o fato de ter sido intimidada pela personalidade vivaz e poderosa do marido. A mediadora — uma espécie de meia pessoa que escolhe a segurança de participar como um dos elementos de propriedade do marido — assim se protege dos aspectos mais abrasivos da vida no mundo. Grandes lutas, a disputa aberta pelo poder — estas não eram características do relacionamento da menina com a mãe indefinida. Pode até ter existido algum tipo de calma estagnada, uma aura de paz (falsa, pois mascarava o paralisante paradoxo nuclear: "Mamãe sempre estava presente — ah, sempre, eternamente presente. Mas ao mesmo tempo ela não estava presente!"). Sem consciência disso, a menina produto de uma família assim cresce desligando-se cada vez mais do que os psicólogos rotulariam como seu "núcleo feminino".

"Sentia-me culpada todo o tempo", foi o que me contou uma executiva de uma agência de publicidade nova-yorkina. "Eu vivia com culpa por jamais me sentir feminina. Meu pai me encorajava a levantar o nariz, a usar sapatos de salto alto e me dar ares de 'dama', mas eu não queria parecer uma dama. Tinha algo a ver com o fato de minha mãe ser uma 'dama', e acontece que ela não passava de uma apaziguadora. Mamãe não exige nada; ela não questiona nada; não quer saber de nada."

A cisão, portanto, tem lugar numa distinção básica que a filha efetua: o pai é ativo, a mãe é passiva. O pai é capaz de cuidar de si mesmo, a mãe é indefesa e dependente.

Às vezes observa-se um vínculo especial entre a filha e o pai. Eles são amigos. Ele lhe fala de como ela se parece com ele. Ela se enche de orgulho e satisfação, imaginando-se alguém muito especial. Pamela Daniels, uma socióloga de Wellesley, recorda "o ritualzinho retórico desempenhado por meu pai e por mim diante das visitas. Ele perguntava: 'Quando o papai lhe diz pra fazer alguma coisa, o que é que você faz?' E minha resposta era: 'Faço!' Não havia no mundo pai mais orgulhoso, nem filha mais obediente".

Imagine então o choque quando repentinamente o pai se distancia, assim que seu "orgulho e alegria" tenta viver a própria vida.

 

                   A traição do pai

"Comumente o pai estimula a filha até o ponto em que ele começa a temer que os conhecimentos dela sobrepujem os seus", assinala Ruth Moulton. "Ou então ele receia sentir-se sexualmente atraído por ela. Freqüentemente, o pai que se distancia da filha na adolescência é o mesmo pai que lhe ofereceu todo tipo de estimulação intelectual quando ela era mais nova."

A seguinte história me foi relatada por uma jovem mãe de Washington, D.C.: "Desde os cinco anos de idade todos davam por certo que eu iria ser uma virtuose no piano. Aí, subitamente, eis-me de malas prontas para partir para a faculdade, e meu pai me pergunta em que estava planejando me especializar. 'Em música, é claro', eu lhe disse. 'Não', retrucou ele; a música era um campo onde dificilmente se conseguia sobreviver. 'Faça pedagogia. Assim, no mínimo, você estará garantida dando aulas.'"

A mulher seguiu o conselho do pai e formou-se em pedagogia, especializando-se em pré-escolares. Após o término do curso, lecionou por alguns anos, depois casou-se e teve filhos. Durante o curso colegial, ela fora eleita a aluna "mais capaz de vencer" — eleição essa feita a nível estadual. Hoje, a carreira ambicionada, a música, há muito assoma apenas em seus sonhos, como um fantasma.

Com tristeza, ela me disse: "Há doze anos que não toco piano". Aliás, ela nem tem um piano.

Muitas jovens que começam a vencer em áreas da intelectualidade ou criatividade vêem-se — sem aviso, de súbito — despojadas de todo o apoio do pai. É um choque, experimentado profundamente como uma traição.

"Eu cumpria à risca todos os seus conselhos e desejos", escreveu Simone de Beauvoir, falando de seu relacionamento com o pai na adolescência, e aquilo parecia irritá-lo. Ele havia projetado para mim uma vida de estudos e, no entanto, censurava-me por enterrar o nariz nos livros o tempo todo. A julgar por seu ar carrancudo, pensar-se-ia que eu o estava contrariando ao seguir o caminho que ele escolhera para mim.

Falta à menina a compreensão com que objetivar o que está acontecendo com o pai. "Eu ficava me perguntando o que fizera de errado", ressalta De Beauvoir. "Sentia-me infeliz e pouco à vontade, e aninhava ressentimento em meu coração."

Seguramente o ressentimento está presente, porém a jovem filha fica perplexa com isso, pois acredita no pai e na descrição que ele faz da situação, isto é, que ele se preocupa com ela. Ou deseja treiná-la para a vida. Ou pensa que, para ela, o melhor é casar-se e alimentar suas ambições como um hobby, já que, de qualquer modo, ela não conseguiria sustentar-se apenas a partir de seus talentos.

Por vezes nota-se que o pai está competindo com a filha com o mesmo vigor com que competiria com um filho. Contanto que ele ocupe a posição dianteira na corrida, tudo bem; ele se sente seguro e a camaradagem persiste. Contudo, assim que a menina começa a dar sinais de ultrapassá-lo, iniciam-se os problemas. O pai pode tornar-se abertamente hostil, criticando-a "para seu bem" ou, sob forma mais insidiosa, pode ficar sorumbático e alimentar auto-compaixão. Fala-se muito da mãe causadora de culpa, e praticamente nada a respeito do pai que age da mesma forma. Entretanto, na constelação familiar específica que aqui descrevemos, pode bem ser o pai quem tenta reprimir os esforços da filha, fazendo-a sentir-se culpada.

No ano em que terminou o colegial, Hortense Calisher confessou ao pai seu desejo de ser escritora — em particular (na época), poetisa. Qual a reação dele? Ela conta que ele tirou um caderno com os próprios poemas, caderno esse "jamais mencionado antes, folheou-o muito rapidamente diante dos meus olhos e disse: 'Olhe aqui. Eu já quis fazer isso. Mas não se pode ganhar a vida com poesia, querida'".

Como é que ela ousava tentar o sucesso onde ele próprio fracassara?, era a implicação subjacente. Pondo-se na posição distanciada necessária à mulher que deseja ativamente romper a estrutura da síndrome da filha indefesa, a jovem Hortense retorquiu: "Eu não quero ganhar a vida com poesia!" E a partir daí pôs-se a fazê-lo.

Coisas estranhas podem acontecer quando os pais sentem que as filhas estão fugindo ao seu controle. Em suas várias décadas de prática psiquiátrica, Ruth Moulton viu uma incidência assustadora de pais que, por vingança, se afastavam das filhas no momento em que elas tentavam quebrar a estrutura. Um seu conhecido tentou convencer a filha a casar-se tão logo terminasse a faculdade. "A moça não queria casar-se na época; queria, sim, fazer direito", conta a Dra. Moulton. "Apesar do fato de saber o que desejava, no início foi-lhe quase impossível consegui-lo."

Para esta mulher, o que papai pensava dela era demasiadamente importante. O risco de ser rejeitada por ele era potencialmente devastador. "Ela teve que atravessar uma grande depressão, numa terapia bastante longa", narra a Dra. Moulton, "antes de finalmente conseguir enfrentar o pai e seguir o próprio caminho." Ainda assim, em todos os momentos cruciais de sua vida, lá estava o pai metendo o bedelho. Exatamente quando ela pensava ter "elaborado" sua relação emocional com ele, algo acontecia para relembrar-lhe o grau pernicioso de sua necessidade da aprovação dele.

"Um dia essa mulher recebeu a oferta de uma bolsa de estudos na Europa. Novamente seu pai se enfureceu", prossegue a Dra. Moulton. "Ele queria que ela ficasse em casa e estudasse na universidade estadual; ela, por seu lado, desejava ir à Europa e acabou fazendo isso, malgrado o pai."

Depois disso, seu relacionamento nunca mais foi o mesmo. "Dez anos mais tarde, quando o pai morreu, a mulher percebeu que na verdade o perdera no ponto em que começara a desobedecer-lhe."

Para algumas mulheres, o momento da partida ou da separação do pai, e do que o pai deseja, não ocorre senão bem mais tarde. Meredith, uma mulher que lutara arduamente no mercado de trabalho de Nova York por dezoito anos, recentemente teve que enfrentar o relacionamento infantil que mantivera com o pai; isso foi ocasionado pela perda do emprego que detinha havia alguns anos numa grande companhia editora.

Ela perdera o emprego por questões de politicagem interna. "Boa colaboradora", Meredith jamais imaginara deixar "O Grande Pai" (como atualmente chama a estrutura paternalista da corporação). Todavia, quando O Grande Pai a deixou, ocorreram-lhe diversas alternativas, todas elas aptas a fomentar crescimento pessoal. Ela poderia estabelecer-se como free-lancer; ou procurar um emprego em outra editora; poderia, igualmente, voltar a estudar e especializar-se em algo totalmente novo.

"Senti que era uma hora boa para ao menos considerar abraçar uma nova profissão", disse Meredith. Ela contava trinta e nove anos na época. Achava que poderia tirar proveito do que lhe acontecera, transformando o aspecto negativo da situação num trampolim para a mudança. Mas seu pai — que vinha lhe ditando o que fazer desde seus catorze anos, quando teve que recusar o primeiro convite para sair com um rapaz, pois ele não era "bom o suficiente" para ela — tinha outras idéias. "Papai ficou horrorizado por sua filha ter sido despedida, e queria 'fazer alguma coisa a esse respeito e já'. Ele conhecia alguém que conhecia alguém que conhecia o dono da empresa — esse tipo de coisa."

Consciente da longa história de intromissão de seu pai em sua vida, Meredith resistiu aos esforços paternos no sentido de lhe solucionar o impasse. "Quem sabe?", ela comentou com ele. "Talvez eu volte a estudar e vire uma psicoterapeuta."

Muito bem, se era uma nova profissão que a filha almejava, ele até concordava. Mas... psicoterapia? A advocacia era a profissão certa para a sua cria.

"Se você fizer direito, eu pago o curso", anunciou.

Se, por outro lado, ela insistisse em se tornar uma terapeuta, ele não lhe pagaria o curso. Psicoterapia não era algo "adequado" para ela.

"Mais uma vez", disse-me Meredith, "era: 'Se você fizer as coisas a meu modo, cuidarei de você'. É realmente nisso que consiste meu relacionamento com meu pai durante todos estes anos. Quando penso nisso, tenho vontade de chorar."

Embora pensar a respeito sempre tivesse o efeito de provocar-lhe sentimentos de desamparo e vontade de chorar, Meredith afinal chegou a uma conclusão: ou permanecia sendo a garotinha do papai pelo resto de sua vida, ou, apesar da ansiedade, começava a dar passos no sentido de dirigir a própria vida.

"Após todos estes anos, por fim admito que sou uma princesa", ela confessa. "Meus pais me diziam o que fazer, o que pensar, que roupa usar. Em nossa família nunca se fazia nada separadamente ou diversamente dos outros. Fazia-se tudo conjuntamente. íamos às compras juntos. Eles escolheram minhas roupas até eu sair de casa, aos vinte e um anos. Até hoje em minha carta de motorista consta o endereço de meu pai, em Rhode Island. Sempre que ela tem de ser renovada, tenho que ir lá para fazê-lo."

Cônscia da conexão entre sua dependência dos pais e o enorme abalo sentido quando da perda do emprego, Meredith diz: "Eu tinha medo de não poder existir sem a empresa. Eu não tinha quaisquer economias. Nada de caderneta de poupança, pois a companhia sempre me proporcionara 'mordomias' — igualzinho a papai. De repente, a influência que meu pai tivera sobre minha vida tornou-se dolorosamente clara. Vi que, se quisesse modificar esse estado de coisas, teria de esquecer o que ele desejava e ir em frente, fazer o que eu desejava".

Pela primeira vez em sua vida, Meredith se tornou realista e dona de si. Concluiu que, naquela altura, a situação econômica geral era instável demais para favorecer uma mudança de carreira. Assim, abriu uma firma de consultoria editorial. Alugou um pequeno escritório numa ótima localização em Manhattan, contratou uma equipe pequena, mas competente, e foi à caça de clientes importantes — e obteve êxito. Hoje, dois anos mais tarde, ela está bem, tanto profissional como financeiramente. "Agora", diz ela, "tenho o dinheiro e a confiança necessários para mudar de área de atuação, se o desejar. Pela primeira vez na vida, sei o que sou capaz de fazer por minha conta, porque pus os pés no chão e agi!"

 

                   A traição da mãe

Em geral as filhas encaram os problemas de suas vidas como sendo originados na relação com seus pais, homens altivos e dominadores. Na realidade, contudo, ambos os pais contribuem para a dificuldade feminina em crescer e libertar-se. A mãe indefinida tende a ser quase tão dependente da filha quanto o é do marido. Ela peca por omissão, por não apoiar os esforços da filha no sentido de viver por sua conta.

A Dra. Moulton relata o caso de uma profissional brilhante que durante anos sofreu fortes conflitos por causa das exigências da mãe, mulher dependente. De qualquer modo, essa mulher foi obstinadamente levando sua vida, chegando a completar o doutorado. Casou-se, teve filhos e continuou a trabalhar em regime de período parcial. Apesar de ter passado por um longo e penoso trabalho terapêutico com o fim de libertar-se das garras opressivas de uma mãe dependente, agora que estava confortavelmente ajustada a uma vida em que casa e trabalho se harmonizavam, quanta mágoa sentia dos atos vingativos da mãe! E pudera! A mãe atacava a filha com todo tipo de reprovação: ela não deveria estar trabalhando; coisas terríveis aconteceriam às crianças; seu lugar era no lar; e assim por diante. O coup de grâce, no caso, foi que a mãe causou um tumulto familiar de tais proporções que o pai da mulher em questão ofereceu-se para pagar-lhe um salário se ela acedesse em ficar em casa com os filhos e "descansar". Dessa forma, disse a mulher à Dra. Moulton, "minha mãe não mais se preocuparia e pararia de encher a paciência dele".

"Desde pequena, sempre me preocupei vagamente com minha mãe", contou-me outra filhinha de papai. "Eu sempre tinha a impressão de que ela não estava obtendo tanta atenção de meu pai quanto eu. Durante o café da manhã, era sempre comigo que ele discutia os editoriais do jornal. Minha mãe estava sempre lavando a louça ou tirando biscoitos recém-preparados do forno."

Nesses triângulos, por vezes as mães disputam abertamente com as filhas a atenção de seus maridos. Em geral o que comunicam é uma esperança lentamente deteriorante em relação a seu próprio futuro, mesclada com inveja. Sentem-se ansiosas e ignoram a razão disso. Ficam desapontadas com o movimento de avanço (das filhas) para o mundo maior; no íntimo experimentam esse movimento como uma rejeição.

Não é apenas a passividade da mãe que fere a filha. De modo similar funciona a enorme inquietação materna pelo "bem-estar" da filha — o que constitui um instrumento de redução de seus esforços pela independência. A mãe tenta restringir as atividades da filha, a fim de que esta não "passe das medidas". Pede, pois, ao pai maior severidade na observação do horário de chegar em casa. Empurra a moça para o namorado "certo" (o filho da vizinha), para a faculdade "certa". Em suma, diz a Dra. Moulton, a mãe "muitas vezes fica claramente enciumada do impulso para a liberdade e a individuação exibido pela filha; teme revelar-se inadequada e ser sobrepujada pela filha; e necessita defender seu próprio estilo de vida limitado, ainda que ele não lhe tenha sido satisfatório ou gratificante".

 

                   O resultado

Com todo este treinamento em dependência, como se encontram as mulheres adultas atualmente? Não muito bem, como você pode imaginar.

Na última década, psiquiatras, psicanalistas e cientistas sociais devotaram grande atenção ao estudo da mulher: a fase de bebê, a infância, a adolescência, a fase de jovem adulta, a transição para a meia-idade. Emerge daí um quadro psicossocial totalmente novo no tocante ao significado de ser mulher. Certos estudos mostraram, por exemplo, que as mulheres não aceitam facilmente outras mulheres como líderes. Pelo contrário. Veja: pesquisadores da University of Delaware apresentaram a um grupo misto de pessoas um slide onde aparecem homens e mulheres sentados a uma mesa de conferências, com um homem à cabeceira. Seguiu-se um slide com a mesma composição, salvo o fato de ser uma mulher a ocupar a cabeceira da mesa. Nessa segunda exposição, tanto as pessoas do sexo masculino quanto as do feminino apontaram um homem como líder do grupo. (Apenas num slide com um grupo composto unicamente de mulheres é que a mulher foi apontada como líder.

Competição é um tema que tende a apresentar maiores dificuldades às mulheres que aos homens. Basta nos vermos numa situação competitiva e nossa confiança cai. Reforços positivos aumentam a confiança das mulheres, mas, retirado o apoio verbal, somos zero à esquerda. Inclusive em tarefas ditas "femininas", como criar filhos, vê-se que as mulheres se sentem inadequadas, a menos que saibam exatamente o que fazer. Devido ao medo de se comportarem incorretamente, tornam-se rígidas demais para se sentirem à vontade em circunstâncias não totalmente dominadas e improvisarem uma solução.

Executou-se um estudo com o propósito de averiguar como homens e mulheres reagem numa situação de emergência (no caso, quando achavam que alguém sofrera um ataque epiléptico). As mulheres mostraram muito mais incerteza sobre o que fazer do que os homens. Elas se preocupavam em estar ou não fazendo "a coisa certa". Mesmo durante a situação, essas mulheres ficavam obcecadas com a idéia de não conseguirem responder à altura.

Uma amiga minha ilustrou este mesmo fenômeno com uma vívida anedota relativa à morte do marido. "Desde o momento em que ele morreu até o final do enterro", contou, "tudo em que eu pensava era se estaria agindo certo — avisando as pessoas 'certas', escolhendo os salmos 'certos'. Preocupava-me morbidamente com saber se as pessoas iriam ou não gostar do velório, como se existisse um juízo de certo ou errado com relação à decisão de como velar e enterrar o homem a quem se amou e com quem se viveu durante vinte e cinco anos."

No que tange às mulheres, mesmo o êxito concreto nem sempre fomenta ulteriores êxitos. Pesquisas revelam que tendemos a não tirar proveito dos benefícios psicológicos de nossas realizações porque uma peculiar ruptura interna nos impede de assimilar o sucesso. Quando, por exemplo, uma mulher soluciona um problema de matemática, ela tem a opção de atribuir seu sucesso à sua capacidade, ou à sorte, ou ao fato de ter "se esforçado", ou à "facilidade" do problema. Segundo a "teoria da atribuição" — que analisa os efeitos, sobre as vidas das pessoas, daquilo que elas vêem como causa das coisas —, as mulheres tendem a atribuir o êxito a fontes externas. A "sorte" é uma de suas favoritas.

Se é certo que evitamos assumir o sucesso, não é menos verdadeiro que, dada a oportunidade, nos sentimos responsáveis pelo fracasso. Os homens tendem a colocar fora de si as razões do fracasso, jogando-o sobre algo ou alguém. As mulheres, porém, absorvem a culpa, como se nascessem para ser os capachos da sociedade. (Algumas mulheres gostam de anunciar sua disposição para assumir culpas como se se tratasse de alguma forma de altruísmo. Não é. As mulheres assumem as culpas porque receiam enfrentar aqueles que, na realidade, são os verdadeiros culpados.)

Dada nossa socialização para a dependência, não é de admirar que nos arrisquemos tão pouco. Desgosta-nos estar na posição em que o risco se apresenta, ainda que seja como mera possibilidade. Detestamos testes precisamente porque constituem uma situação de risco. Evitamos novas situações, mudanças de emprego, mudanças para outras partes do país. As mulheres temem ser punidas se cometerem algum engano ou fizerem "a coisa errada".

Comparativamente aos homens, as mulheres têm menos confiança em sua capacidade de julgamento; em seus relacionamentos, comumente outorgam a tarefa de tomada de decisões aos parceiros — situação que, com o passar do tempo, apenas faz com que se tornem menos confiantes em seu poder de julgamento.

O que mais impressiona é verificar que as mulheres são menos capazes do que os homens de realizar seu potencial intelectual. Num importante estudo sobre diferenças sexuais no tocante ao funcionamento intelectual, a Dra. Eleanor Maccoby, de Stanford, concluiu: "Na idade adulta... os homens realizam substancialmente mais do que as mulheres em quase todos os aspectos da atividade intelectual onde é possível a comparação: livros e artigos publicados, produções artísticas e feitos científicos". De fato, à medida que avançam em idade (a partir da adolescência), as mulheres obtêm resultados gradativamente decrescentes quanto ao item "inteligência total", devido à sua tendência em utilizar a inteligência cada vez menos, a partir do momento em que se formam.

Outros estudos revelam que a capacidade intelectual pode mesmo chegar a se debilitar por traços de uma personalidade dependente. O tipo de personalidade dependente ou conformista apóia-se fortemente nas "dicas externas" — ou dicas dos outros —, e isso pode enfraquecer o processo interno de análise seqüencial.

 

                   Inveja e competitividade: o círculo vicioso

Um estudo levado a cabo há vários anos revelou algo muito interessante sobre o que acontece às mulheres quando trabalham em colaboração com outrem. A soma de auto-confiança possuída pelas mulheres acha-se em proporção inversa ao nível de desempenho de seus cooperadores. Incrível, mas quanto maior o desempenho do colaborador, menor a atribuição dada péla mulher à sua própria competência.

A confiança e auto-estima são pontos em primeiro plano no panorama das dificuldades femininas quanto à realização. A falta de confiança submerge-nos nas águas turvas da inveja. Cremos que os homens funcionam sem problemas — e, como garotinhas invejosas da liberdade incondicional dos irmãos mais velhos, achamos mais fácil enfocar a "sorte" masculina e o "azar" feminino. Isoladas numa situação injusta, nada temos que fazer para promover a competência e a auto-estima que tanto admiramos nos outros.

Ao mesmo tempo, sentimo-nos competitivas. Há trinta anos atrás, a psiquiatra Clara Thompson assinalava que as mulheres realmente se encontram desprivilegiadas vivendo numa cultura competitiva cuja atmosfera favorece em nós o surgimento do sentimento da menos-valia. Em tal circunstância, atitudes competitivas para com os homens são inevitáveis. Entretanto, como advertia a Dra. Thompson, a inveja deve ser reconhecida, vista e completamente compreendida; ela pode ser muito facilmente usada como um meio de acobertar algo muito mais fatal à independência feminina: nossos sentimentos mais íntimos de incompetência. Estes devem ser trabalhados, de forma direta, se queremos algum dia conseguir confiança e força.

 

Quando a conheci, Vivian Knowlton, uma jovem advogada, estava aprisionada num círculo vicioso de inveja que a mantinha ignorante dos conflitos que a "amarravam".

"Fico atônita frente a tudo o que está acontecendo em minha vida agora", disse-me Vivian. (Como fiz com outras mulheres citadas neste livro, o nome e certos detalhes identificadores aqui foram trocados.) Estávamos sentadas na sala de estar de sua bela casa em Berkeley, Califórnia. "Ganho um bom salário e aprecio o trabalho jurídico. O problema é que não me sinto bem. Saio para o trabalho todos os dias com uma espécie de nuvem de ansiedade pairando sobre minha cabeça.

"Há três anos, quando comecei a trabalhar", recorda, "acordava todas as manhãs cheia de vida. Saía toda feliz, praticamente saltitando até o ponto de ônibus.

"As coisas começaram a perder a graça após cerca de um ano. Achava que estava indo bem no serviço, mas, vejo agora, isso acontecia principalmente porque eu era boa em aceitar incumbências e fazer o que me mandavam fazer. Não passava de uma ingênua prestativa. Sempre que algum trabalho chato precisava ser feito, acabava em minhas mãos."

Vivian raramente se mostrava assertiva frente aos donos do escritório de advocacia em que trabalhava, dizendo a si mesma estar apenas iniciando e que aquela era uma experiência de aprendizagem. (Quem era ela para desafiar pessoas que praticavam a advocacia havia vinte anos ou mais?) Durante o segundo ano, ela passou a admitir não estar trabalhando segundo o nível de sua capacidade. "Nas reuniões eu me fechava como um caramujo, tímida demais para expressar minhas idéias. Se, porém, alguma outra pessoa precisasse de apoio, minha oratória se tornava espantosa."

As coisas se arrastaram por mais três anos. Vivian nunca chegou a ser reprovada, mas também jamais recebeu um elogio. "Eu me tornara uma pessoa nota 5, e estava acostumada a ser nota 10. Aquilo me entristecia. Onde estava a mulher inteligente e integrada que fora uma das primeiras da turma na faculdade?"

Havia outra mulher no escritório, empregada lá há bem mais tempo. "Natalie era extremamente segura de si. E que tentação a de enquadrar-me em seu estilo! Surpreendia-me inclusive imitando sua voz rouca. Era uma loucura! Tinha a sensação de haver perdido todo o senso de quem eu era, e ficava me agarrando a pequenos trejeitos e maneirismos de outra pessoa só para seguir em frente."

 

                   "Por que tudo é tão mais fácil para os homens?"

Vivian era ambivalente em relação aos dois jovens advogados contratados mais ou menos à mesma época em que fora empregada. "Paul e Hurf começaram a abrir caminho para si próprios desde o início. Paul pôs-se a pesquisar coisas com que nossa firma jamais se envolvera antes. Isso não o atrapalhava. Simplesmente meteu-se na coisa, aprendeu e então convenceu a Hodgkins e Pearl, os chefes, que tínhamos de expandir a área de nossa atuação."

A disposição de Paul em tomar iniciativas incomodava Vivian. "Ele parece visualizar o escritório como uma base de operações para suas arremetidas individuais dentro do mundo dos negócios", disse amargamente. "Tem-se a impressão de que ele não dá a mínima ao escritório, ou mesmo à advocacia, pela forma como age."

Para Vivian, Hodgkins e Pearl tornaram-se o equivalente do Adulto. Sente-se revoltada em relação a seus empregadores e, ao mesmo tempo, inveja Paul, que não precisa se rebelar, que é suficientemente independente para conseguir enfrentar cara a cara "o escritório". Não intimidado pelos "patrões", Paul é bem mais inovador e objetivo que Vivian, e, por conseguinte, muito mais valioso à firma.

Hurf não é tão impetuosamente agressivo quanto Paul, mas também assume o tipo de riscos pessoais que encheriam Vivian de pânico.

"O negócio de Hurf é julgamentos em tribunais", prossegue ela em sua narrativa. "Em geral eles não deixam uma pessoa inexperiente representar a firma num tribunal, mas Hurf os pressionou. Tanto pediu para ser mandado que, após algum tempo, senti-me envergonhada por ele."

Não é incomum às mulheres sentirem que os homens com quem trabalham são "insensíveis" e "pressionadores". No entanto, Vivian notava que todo mundo parecia apreciar a agressividade profissional de seus colegas. "Toda vez que Hurf se aproximava dos chefes, ele dispunha de uma razão melhor para receber o encargo que desejava. Finalmente ele abriu o jogo numa reunião."

Hurf fez o que muitas mulheres, no início de uma carreira, consideram uma enorme temeridade. Arriscando-se a enfrentar discordâncias ou, Deus nos livre!, rejeições, Hurf levantou-se perante todos na reunião bissemanal de Hodgkins e Pearl e "vendeu seu peixe". "Tenho condições ótimas para lidar com o caso Wilkinson", anunciou. Continuou contando como seu cunhado era maníaco-depressivo e como ele mesmo estava familiarizado com os fatores bioquímicos da doença, bem como com os precedentes, em termos de direitos civis, em casos relativos a surtos psicóticos. Após revelar sua experiência pessoal, expressou a certeza de que Hodgkins e Pearl economizariam dinheiro se lhe permitissem representar Wilkinson no tribunal.

"Não posso tirar o mérito de Hurf", Vivian me disse. "Ele sozinho é o responsável por ter obtido um emprego e por seu êxito no tribunal. Ele foi perfeitamente franco sobre o que estava fazendo. Ainda assim, quando coisas desse tipo acontecem, pergunto-me por que não estou progredindo.

Continuo com a sensação de que, de algum modo, estou sendo negligenciada.

 

                 "Não é justo!"

Porque a justiça — ou melhor, a injustiça — vem sendo um problema tão central para as mulheres, a questão de "o que é justo" pode facilmente ser usada como mecanismo de defesa — e ocultação — de sentimentos de inadequação. Tal qual o caçula obcecado com o tratamento negativo recebido da família, as mulheres usam a injustiça com que vêm sendo tratadas historicamente para se aquartelarem contra posteriores tratamentos negativos. Isoladas por seus sentimentos de "vítimas", permanecem enclausuradas. Similarmente às esposas desativadas, nelas atua um sistema de reforço negativo. É um ciclo doloroso. Num sentido clínico, objetivo, as mulheres são menos autoconfiantes que os homens. Fomos criadas de um modo que nos impede de executar a separação psicológica que conduz à autoconfiança. Culturalmente isso pode ser uma realidade, mas parar aí é auto-derrotar-nos. E, contudo, é precisamente neste ponto que muitas mulheres desistem.

"Não é justo eu ter me colocado entre os cinco melhores no exame de qualificação e agora me limitar a tirar o pó dos relatórios deles, e fazer pesquisas para os casos deles", diz Vivian Knowlton. "Não é justo ter vivido praticamente sem vida social durante os três anos em que fiz especialização, me matando para tirar aquelas notas 10, e agora passar horas a fio sob uma lâmpada fluorescente examinando velhos códigos jurídicos."

As coisas não estavam correndo segundo nenhuma das normas que tinham governado a vida de Vivian até então. Sua vida profissional estava exigindo um grau de independência de que ela nunca necessitara para tirar seus 10 na faculdade. De forma muito concreta, as normas haviam mudado. "Isso faz que eu me sinta trapaceada, como se tivesse sido destinada a algo grandioso e excitante — todo o mundo da lei estava lá à minha disposição para ser devorado —, e, agora, esta horrível decepção."

Vivian realmente acredita que tudo o que seus colegas do sexo masculino fazem de alguma maneira prescinde de "esforços". Ela se sente competindo com os homens e com inveja deles; porém, sente-se assim também com Natalie, a outra advogada do escritório. Aparentemente "eles" possuem alguma coisa que ela não possui, algo que utilizam para vencer. Esta ê a isca mais traiçoeira na psicologia feminina contemporânea. Vivian se vale da posição de desvantagem cultural para mascarar muitas de suas emoções mais dolorosas — emoções essas que a impedem de construir a verdadeira autoconfiança e a auto-estima sem as quais não tem chances de se libertar.

 

As mulheres mantêm suas necessidades de dependência muito além do ponto do desenvolvimento em que tais necessidades são normais e sadias. Escondemos dos outros — e, pior que isso, escondemos de nós próprias — o fato de carregarmos a dependência dentro de nós como alguma doença auto-imune. Carregamo-la conosco desde o maternal até a faculdade, ou até a pós-graduação, e depois em nossas carreiras e no conveniente "arranjo" de nossos casamentos. Tal como um punhal cravado no coração, a dependência se enterra profundamente no centro de nossos relacionamentos com nossos maridos, nossos amigos e até nossos filhos. Grande parte do tempo — para várias de nós, todo o tempo —, nossa má vontade em erguer-nos sobre nossos próprios pés passa despercebida porque é esperada. As mulheres são seres "relacionais". Elas se dedicam a cuidar, e necessitam de cuidados. Essa, aprendemos por tantos e tantos anos, é a natureza feminina.

E, embora ela nos mutile, não a questionamos.

 

                   Dedicação cega

Cinco anos de casamento. Desde o princípio, meu objetivo fora o de levar meu marido a conduzir-se num nível que me permitisse sentir-me segura no mundo. Sua competência era a minha competência; seus fracassos, porém, eram unicamente seus. Sem dúvida um arranjo cômodo, ainda que injusto. Nunca questionei essa atitude — nunca, aliás, identifiquei-a.

No verão de 1967, minha ambição pelo sucesso de meu marido rejubilou-se quando ele recebeu a primeira oportunidade de fazer sua tão cobiçada reportagem de revista. The Atlantic Monthly estava interessada em que ele traçasse a relação entre o aumento dos custos alimentícios e a quantia de dinheiro gasta com propaganda — conta naturalmente paga pelo consumidor, sem o saber. A aprovação de The Atlantic Monthly ao projeto de Ed deu a ele o ímpeto para a sua execução, muito embora não houvesse garantias de que o artigo fosse um dia publicado.

Naquele verão, ele passou praticamente todas as horas em que não se encontrava no escritório pesquisando e escrevendo o artigo. Essa mudança no estado de coisas me animou sobremaneira (devo ter previsto algum futuro grandioso e cheio de glórias originando-se ali). Vi-me polarizada por meu novo papel de ajudante e revisora. Fazia um calor horrível em Nova York naquele verão, mas o suor que se derramava em nosso pequeno apartamento era como uma purgação saudável. Adeus às toxinas do fracasso e da frustração! Assim que Ed chegava a casa, eu servia o jantar. Em seguida levava os bebês ao parquinho e lá ficávamos até escurecer. Às oito e meia ou nove horas, após banhá-los e pô-los na cama, eu ia para a sala de jantar para revisar o que Ed escrevera até aquela hora. Essa era uma atividade aprendida em Mademoiselle: examinar as sentenças e parágrafos de outras pessoas, a fim de melhorar-lhes a estrutura e a clareza. Eu começara a produzir meus próprios artiguinhos sobre ser mãe e dona-de-casa; todavia, sentia-me constrangida diante das importantes idéias que Ed estava tentando alinhavar — associadas ao governo, à indústria e ao recém-surgido movimento dos consumidores. Quando as idéias de Ed estavam redigidas de forma obscura, eu conseguia reconhecer e assinalar a necessidade de uma clarificação, porém conhecia pouco sobre o assunto e acreditava que precisava contar com algo extra — uma pós-graduação? um cérebro maior? ter nascido homem? — a fim de manipular material tão complexo.

Parte de meu problema, obviamente, era o fato de eu estar com vinte e nove anos e ainda não ter desenvolvido o hábito de ler jornais. Qualquer peão de obra da cidade, assistindo ao noticiário da televisão às cinco da tarde, durante a cervejinha do fim de expediente, sabia mais de economia e política do que eu. De algum modo, essas coisas não pareciam relevantes para a minha vida pessoal. Quem governa o país, e como, e por quê; quanto dinheiro corria e como isso funcionava — não eram coisas de importância visceral para uma mulher com três filhos pequenos e que, para o bem-estar próprio e o deles, dependia dos esforços de um outro indivíduo. O movimento feminista estava apenas começando na época, mas não enfatizava a idéia de que cabia às mulheres assumir maior responsabilidade por si mesmas. Pelo contrário: parecia sugerir que elas precisavam receber determinadas coisas — coisas que, tradicionalmente, lhes haviam sido sempre negadas: profissões, salários igualitários, direito de opinar a respeito de suas vidas atuais e de seus sonhos futuros. A ironia é que, ao passo que começamos almejando mais, continuamos dependendo de outrem (de homens, em particular) para consegui-lo. Aparentemente as mulheres tinham entrado na adolescência; queríamos liberdade, mas ainda não desejávamos a responsabilidade que a segue. Presentes, sim, mas nem tanto.

É claro que não percebíamos isso. O fato de Ed e eu nunca termos dinheiro suficiente era um problema que eu pensava estar solucionando. E o que estava fazendo? Ajudando-o. Abrindo caminho e fortalecendo sua auto-imagem, de modo que ele conseguisse fazer mais. Uma possível nova carreira como redatora free-lancer parecia uma saída em comparação com o emprego sem futuro representado pelos escassos sete mil e quinhentos dólares anuais pagos por revistas a seus colaboradores constantes. De qualquer maneira, eu ganharia pouco demais para uma família de cinco pessoas morando em Manhattan; mas parecia não haver saída — a menos, é claro, que Ed se encarregasse disso.

É verdade que as mulheres se achavam aprisionadas pela regra social da responsabilidade integral pela criação dos filhos. Estávamos enjaulados em nossos lares — presas do assustador conhecimento de que ninguém mais, além de nós, cuidaria de nossos filhos. Não existiam creches quando comecei a promover minha campanha para que Ed passasse a trabalhar num nível mais alto e mais bem remunerado. Certamente teria sido difícil arrumar uma babá e, no fim do mês, contar com um dólar que fosse. Olhando retrospectivamente, porém, agora sei que poderia ter feito alguma coisa. Eu poderia ter montado um plano, começado de baixo, e gradualmente ir melhorando (o que acabei tendo de fazer de qualquer modo). A causa de minha inércia não era a falta de creches. Eu não desejava realmente assumir a responsabilidade por mim mesma, e por isso nada fiz para iniciar o processo. Fugira à independência aos vinte e quatro anos, e não tinha motivos para querer abraçá-la agora. No fundo eu ainda ansiava por ser cuidada, e estava disposta a trabalhar muito, muito duro, e a agüentar horrores em troca. Estava, de fato, disposta a ser uma escrava.

 

Naturalmente não gostávamos de encarar a situação dessa maneira — nem ele, nem eu. Preferíamos imaginar-nos como pessoas atualizadas e avançadas. Eu não era mulher de frescuras, das que vomitam durante a gravidez e desmaiam quando algo as assusta. Meus sintomas fóbicos haviam desaparecido. O casamento tinha me dado poder e força. Eu tinha energia bastante para cuidar de três crianças com menos de quatro anos de idade, da casa, da comida, das roupas, e ainda para telefonar para secretários de senadores para marcar uma hora para Ed falar com eles. Eu tinha energia bastante para me tornar um alter ego para ele, apoiando-o com minha falsa força.

Aparentemente, Ed necessitava de minha ajuda naquele verão, porque só podia dedicar as noites ao projeto da Atlantic Monthly. A verdade era que ele estava com medo — com medo de começar (bem poderia fracassar), com medo de pedir entrevistas a senadores e deputados (eles bem poderiam dizer não), com medo de começar a trabalhar num nível novo e mais desafiante, onde sua capacidade seria testada, pondo em risco a sobrevivência de suas fantasias onipotentes. Eu não sabia disso na época, pois jamais enfrentara meus próprios "demônios internos". Achava os temores de Ed "irracionais". Ao mesmo tempo gostava de pensar que acreditava em Ed, que sabia que ele poderia "vencer". Contando muitas bravatas, numa tarde ao telefone consegui que metade dos congressistas de Washington concedesse uma entrevista a Ed.

"Meu marido está preparando um artigo sobre os custos dos gêneros alimentícios", eu dizia aos secretários e assistentes. Sentia-me eficiente e calma. Não me abalava estar-me associando ao poder da imprensa (as portas dos senadores se abriam de imediato) porque, na verdade, não se tratava de meu poder, mas do de meu marido. Sentia-me forte e eficiente precisamente porque estava agindo em nome de meu marido; minha imagem continuava protegida, e meus talentos pessoais, não testados. Eu poderia ter sido uma excelente secretária executiva, agente eficaz da burocracia, montando planejamentos, cuidando de todos os detalhes e garantindo que o outro — meu chefe, meu protetor — sempre conseguisse o que desejava.

Colocar a vida à disposição do amo pode acabar sendo imensamente decepcionante. Como recurso para evitar a ansiedade que acompanha a autonomia, nem sempre funciona. Havia dias — muitos dias — em que Ed dava vazão à própria frustração entregando-se à bebida. Esses episódios me punham desesperada, pois traziam consigo o reconhecimento de meu próprio desamparo — quão vulnerável eu era, quão completa e futilmente dependente, quão falha era minha capacidade de fazer qualquer coisa!

Na sombria manhã seguinte, eu sentia um misto de depressão e uma obscura sensação de alívio. O fundo do poço fora alcançado, e, com isso, o reconhecimento da mentira vivida e da energia desperdiçada. O roupão amarrotado, a barba por fazer, o odor enjoativo de álcool ofereciam um feio vislumbre da verdade: o casamento não estava dando certo. Nós dois estávamos usando esse arranjo para evitar os temas centrais de nossas vidas particulares.

Naturalmente eu tratava de fugir a esse vislumbre como que em pânico, como que correndo de uma visão fantasmagórica. Queria o terreno familiar do conhecido, do seguro; assim, no fim da tarde do dia após a bebedeira, nós dois mergulhávamos na culpa, nas desculpas, nos votos de mudar e, por fim, no perdão.

Durante nove anos vivi a vida de uma criança casada brincando de ser adulta. Batizei e vacinei meus filhos. Paguei as contas e, quando a situação apertava, implorava — diversas vezes — empréstimos aos bancos. Lavava, passava e tentava fazer tudo certo — e acreditava nisso. Qualquer pessoa menos ingênua teria rido, se conhecesse de perto a situação real. Pois não lhe teria escapado que meus esforços eram regressivos. Eram unicamente dedicados à manutenção das paredes de minha prisão.

 

                   A válvula de escape do casamento

A visão que as mulheres têm do casamento parece não haver realmente se modificado muito com os anos. Num estudo que culminou em seu recente livro Husbands and wives (Maridos e esposas), o Dr. Anthony Pietropinto e Jacqueline Simanuer descobriram que muitas mulheres ainda concebem o casamento como uma fortaleza. Ao escolher marido, estão procurando o príncipe, alguém que venha resgatá-las da responsabilidade. Boa vida sexual, companheirismo estimulante — isso é secundário. Dê-lhes um pedestal bem acima dos perigos do viver autêntico, e elas serão felizes por simplesmente se sentarem lá.

O nível educacional das mulheres que figuram no estu¬do mantém pouquíssima relação com suas atitudes no que se refere a amor e casamento. Uma dona-de-casa que tinha feito um curso de pós-graduação disse aos autores que escolhera seu homem porque "Eu era o centro de sua vida. Ele fazia tudo para me ver feliz. Senti que ele poderia ser um bom provedor e dar-me segurança financeira". (Segurança financeira era um dos itens no topo da lista do que as mulheres, nesse estudo, desejavam de um marido.)

Disse outra mulher com grau superior de educação sobre o homem que conseguiu conquistar: "Ele realmente é meu melhor amigo; sempre foi e sempre será. Eu dei em cima dele até que ele se apaixonou por mim e decidiu desposar-me".

Uma sulista contou-me que, ao casar-se, procurava "um relacionamento amoroso intenso, romântico, sexy e estimulante". Numa compreensão tardia, porém, percebeu a falácia romântica de suas expectativas. "Eu queria poder ficar em casa em segurança, com as crianças, e fazer com que ele nos trouxesse estímulo, amor e aventura."

Desconcertante nas respostas dessas mulheres é a quantidade mínima de auto-envolvimento por elas expressa. As esposas parecem obcecadas por terem provas de quanto são amadas. Sobretudo julgam ter direito de exigir dos maridos o provimento da segurança.

Dentre aquelas que assim se comportam, sobressai a mulher que procura para marido um médico. Acima de quaisquer fatores, as esposas de médicos afirmam colocar a "segurança" como elemento decisivo no que esperam do casamento. No fim das contas, porém, o conflito e a hosti¬lidade que exibem em relação aos homens que lhes provêem toda essa segurança são espantosos. A revista Medical/Mrs. publicou os resultados de uma pesquisa efetuada com a finalidade de se averiguar as experiências da vida real de mulheres que haviam desposado médicos. Às suas centenas de milhares de assinantes, a revista perguntava: "A vida de esposa de médico está correspondendo a todas as suas expectativas anteriores?" e "Ela corresponde realmente ao que você imaginava e ao prometido pela sociedade?"

De jeito nenhum, respondem as mulheres que tinham construído para si mesmas essa existência sofrida. "A esposa de um médico sofre pressões muito maiores do que as demais esposas, e conta com menos apoio emocional ou reforço positivo do que elas", queixou-se uma mulher. "Não podemos contar com nossos maridos para nada, nem mesmo para pregar um prego na parede."

A frustração experimentada por uma esposa de médico de Maryland estampava-se claramente em sua utilização do tipo itálico.

"A impossibilidade de fazê-lo compreender que horas extras não aumentam seu salário nem seu status, mas apenas o subtraem à família, impede-me de ter tempo para uma vida só minha, pois cabe unicamente a mim dirigir a casa e manter três crianças em paz!"

"O triste é", escreveu outra mulher, uma veterana (vinte e nove anos) no casamento com um médico, "que fui forçada a criar uma vida própria, separada e isolada da dele." (Diversas mulheres mais idosas, e não poucas das mais jovens, acreditam que ser "forçada" a levar uma vida só sua é, na verdade, um sinal de patologia no relacionamento. A mulher cujo marido não lhe preenche "adequadamente" a vida, ofertando-lhe tanto uma razão de ser quanto um meio de escapar a seus problemas de desenvolvimento, é um fracasso.)

Para seu grande desapontamento, as esposas de médicos descobrem haver uma razão inversa entre a quantidade de segurança financeira que recebem dos maridos e o que almejam ainda mais: a segurança emocional. "Reforços", "apoio", "amigos e vida familiar" — são itens aos quais o médico-provedor não retribui na medida em que os recebe, segundo a pesquisa. Nessa linha, não são poucas as esposas de médicos que acham os maridos indivíduos entediantes e limitados. Diferentemente delas, eles não têm "interesses não-profissionais" iluminando sua existência. Eles realmente não fazem nada. (Por não possuir uma existência própria, a esposa acha difícil, se não impossível, compreender que o marido aprecia essa parte da vida não associada à dela.) Para completar o quadro, há ainda o marido médico que age como um tirano demagogo dentro de casa.

Um tanto levianamente, a revista inquiriu suas leitoras: "Você sofre devido ao status 'de divindade' atribuído a seu marido?", ao que quarenta e oito por cento delas gritaram: "Sim"! Uma esposa, obviamente exasperada e desnorteada, comentou: "O maior problema é a incapacidade de meu marido perceber que, embora possa ser um deus no hospital, onde sua palavra é lei, espera-se coisa diferente num relacionamento familiar sadio. Ele costuma dar ordens a mim e a nossos filhos, o que nos desgosta a todos... Ele é um neurocirurgião, e eu realmente entendo as pressões com que ele se defronta na sala de cirurgia, mas já estou com trinta e seis anos, meus filhos com onze e doze, e estou me cansando dessa rotina toda. De agora em diante, até conseguir achar uma saída melhor, pretendo ignorá-lo".

Como essas mulheres parecem ludibriadas! Elas desejam segurança, sim; para elas, contudo, segurança significa muito mais do que ter alguém que lhes pague as contas. Significa carinhos, afagos. Alguém que se sente a seu lado durante os jogos do time juvenil do Júnior e os recitais de piano de Alice. Alguém que colabore na preparação da horta caseira e lhes faça parceria em ocasionais jogos de golfe. Em lugar disso, lucraram tão-somente um sobrenome para apresentar ao mundo. Uma casa, móveis — enfim, objetos que, por direito, são dele.

"Ele é uma pessoa muito controladora — da comida a ser servida, da casa e sua conservação, do dinheiro, é claro, é do meu tempo", prosseguiu a esposa do neuro-cirurgião. O médico sem dúvida sente-se justificado em sua dominação da cena doméstica, pois tem consciência, no íntimo, de estar pagando pela segurança da esposa com a própria vida. Quanto mais ela reclama de suas ausências, mais tempo ele passa "no hospital", evitando-a. Ele se mostra orgulhoso, convencido mesmo, da forma como vive. Tende a isolar-se de seus sentimentos mais ameaçadores, como a raiva que o domina em relação à mulher exigente e infantil com quem mora. Ele prefere deixar atuar sua raiva, frustrando intencionalmente as tentativas dela em domá-lo e domesticá-lo. Afinal de contas, ele está em posição de grande vantagem, pois a esposa não pode fazer nada, ir a lugar algum, sem ele. Tudo o que tem a fazer para circunscrever as atividades dela é cancelar seus cartões de crédito. A simples ameaça da privação econômica é suficiente para manter a maioria das esposas que não trabalham em seu lugar. E assim, sentindo a injustiça de ter que suportar tanto, a esposa do médico, com um profundo suspiro de tristeza e depressão (pois, afinal de contas, ela não merece mais do que isso?), acaba resignando-se e, por fim, começa a "trilhar a própria vida".

 

Na década de 50, a concepção vigente de um casamen¬to ideal era dada por um relacionamento íntimo e aconchegante, no qual o casal compartilhava tudo: idéias, opiniões, sonhos, planos. Nos anos 60 essa concepção teoricamente caiu por terra, entendida que foi como uma interdependência doentia, já que não permitia nem ao marido nem à esposa o crescimento, a mudança ou o desenvolvimento. (As revistas femininas, em particular, foram alvo de forte repúdio, por terem historicamente defendido a posição de que as mulheres deveriam querer e promover aquele "compartilhar" sufocante.)

Ou porque a humanidade deu um passo atrás desde então, ou porque, no fundo, as mulheres nunca desejam romper a estrutura do "compartilhar", o fato é que, aparentemente, o casamento ainda oferece a muitas de nós uma válvula de escape — um refúgio da autonomia, selado com a aprovação da sociedade. Externamente podemos dar a impressão de ser mais liberadas, mas o profundo medo experimentado pelas mulheres empurra-as para uma existência simbiótica, não fundamentalmente diversa do panorama dos anos 50, no qual o devotado casal seguia de mãos dadas em direção ao róseo horizonte de seu futuro.

O tema de que tratamos aqui é o que os psicólogos chamam de "separação-individuação", e tem a ver com a possibilidade de qualquer pessoa — homem ou mulher — tolerar a experiência de ser básica e fundamentalmente só: um ser que caminha com os próprios pés, desenvolve os próprios valores e possui uma concepção da vida única e pessoal. É a falta de separação-individuação que destrói grande parte dos casamentos.

 

                   Há segurança na fusão

"Fusão" é o termo empregado na literatura da psicologia de casais para descrever um relacionamento no qual um ou os dois parceiros, temerosos da realidade do ser só, renunciam à identidade individual em favor de uma "identidade amalgamada". Afirmações como: "Posso ler a mente dele", "Pensamos tudo igualmente" e "Chegamos a sentir os sentimentos um do outro" não refletem intimidade; refletem medo — o medo do crescimento e do viver por si só.

O desejo de se fundir simbioticamente no outro tem suas origens na infância e no profundo desejo de se "reincorporar" à mãe. Psicologicamente falando, a primeira fase da separação é uma época crucial no desenvolvimento da criança pequena, que, ainda incerta de sua identidade e ansiosa com respeito à separação, vê-se tentada a regredir a um período da primeira infância no qual ela não tinha qualquer consciência de existência independente; ao contrário, estava fundida com a mãe, absorvente e excessivamente protetora. Joan Wexler e John Steidl, professores de serviço social psiquiátrico de Yale, crêem que os adultos que tentam fundir-se com seus companheiros estão deixando atuar um impulso regressivo similar ao da criança pequena. "Ambivalentes quanto à autonomia, assustadas frente à separação e sentindo-se carentes e sós", dizem Wexler e Steidl, tais pessoas "almejam e tentam recapturar com os companheiros o intercâmbio primitivo e empático do pequeno ser pré-verbal com sua mãe. Esta tentativa de amalgamação... é uma tentativa de permanecer fundido, de nunca estar só e de negar a separação ou diferenciação".

Em casamentos onde a fusão persiste ano após ano, marido e mulher estão firmemente fixados num nível de desenvolvimento psicologicamente infantil. Wexler e Steidl descrevem o fenômeno de forma deprimente, como sendo "duas figuras cinzentas, trancadas numa dança mortal, repetitiva".

Como os casais promovem isso?

Muito calculadamente. Eles têm formas de se proteger, "dando passos medidos e tomando escrupuloso cuidado" para não enxergar a perturbadora realidade: as coisas mudaram de modo radical, e o casamento transformou-se em algo amargamente decepcionante.

Naturalmente os homens são em parte responsáveis pela manutenção desse vínculo, mas as mulheres se sentem em maior perigo e chegam a ser brilhantes na perpetuação dessa situação. Quanto mais dependentes são, mais vigorosos os esforços que despendem para (por exemplo) estruturar uma vida familiar "apropriada" — refeições em conjunto, horários fixos para acordar e deitar, e em geral uma insistência um tanto destituída de humor no sentido de que a família faça "o que é certo" (que pode ser traduzido por: "faça do meu jeito"). A esposa espera que Hubby seja confiável e previsível. Quando ele sai da cidade a negócios, responde à estrutura familiar telefonando para casa todas as noites. Em graus variáveis de exagero, as esposas dependentes tentam fazer da "vida familiar" uma complexa rede social, uma trama de filhos e parentes, de amigos meticulosamente selecionados, na qual o marido é enleado, uma mosca de asas duras e brilhantes.

Algumas mulheres exercem o controle através de uma insistência crítica em manter todos os membros da família "na linha". Outras o fazem através da dedicação cega. As cegamente dedicadas se fazem indispensáveis aos maridos, que, elas crêem genuinamente, não poderiam viver sem elas. Há muitas maneiras de se garantir a continuidade do equilíbrio de um casamento amalgamado. A solicitude e a excessiva preocupação pelo bem-estar do companheiro constituem uma delas.

 

                   Dedicação cega

A história mais pungente que já ouvi sobre o tema da dedicação cega refere-se a uma mulher a quem chamarei Madeleine Boroff. Pela natureza da história, precisei modificar grande número de detalhes a fim de proteger a privacidade daqueles nela envolvidos. Mas o que você lerá aqui é verdadeiro em seus aspectos mais importantes: os sonhos, as ilusões, o auto-logro.

Madeleine é uma mulher cujo poder específico de atração reside em sua aparente competência, sua capacidade de permanecer calma em situações de crise. Foi para ela uma sorte possuir essa qualidade, dada a reviravolta havida em sua vida quase desde o dia em que se casou. Brilhante e cheia de energia, Madeleine deixara de ser uma menina para se casar e tornar-se uma mulher quando tinha dezoito anos. Um ano e meio mais tarde, deu à luz o primeiro filho; foi quando começou a delinear-se todo o cenário de sua vida adulta — uma luta quase picaresca contra a adversidade.

"Toda aquela confusão com a Previdência em que Manny e eu nos metemos há alguns anos de repente voltou", disse ela ao telefone a uma amiga, numa chuvosa manhã de inverno. Isso ocorreu logo após seu quadragésimo aniversário. "Você acredita que recebi uma intimação judicial? Meu advogado me disse que posso inclusive acabar na cadeia."

Para todos os que a conheciam, a idéia de Madeleine Boroff ser presa parecia absurda. Com quatro filhos e um marido longe de ser estável emocionalmente, ela sempre fora o esteio da família. Durante anos de conflitos, ela fora a competente, uma mulher não-impulsiva com a responsabilidade de manter a família bem e em paz. Espalhara-se o boato de que os Boroffs estavam vivendo do auxílio-desemprego

(Manny perdera o emprego de novo), e meses mais tarde todos comentavam se eles não estariam vivendo muito mais às custas dos favores previdenciários do que suas inteligências e formações acadêmicas podiam justificar... Mas, a cadeia! A prisão era uma instituição para criminosos, não para batalhadores, não para membros da classe média, tão esforçados, tão emocionalmente subjugados! E não para mães.

Entre as mulheres suas conhecidas, a reação imediata foi de raiva. Madeleine dera duro para manter as coisas funcionando e garantir a educação das crianças? Agora, depois de vinte e dois anos, ela estava só, tentando reconstruir a vida trabalhando como recepcionista e estudando à noite para terminar o curso abandonado havia tanto tempo, quando fugir para Roma com Manny parecera uma aventura emocionante.

Os detalhes do que acontecera durante o período no qual os Boroffs viveram do auxílio-desemprego nunca tinham sido totalmente esclarecidos; uma coisa, porém, era óbvia: se alguém devia ser mandado para a prisão, não era Madeleine. Madeleine Boroff era uma boa mulher. Atravessando agruras que teriam derrubado a maioria das esposas, ela conseguira fazer das quatro crianças adolescentes relativamente tranqüilos. Aos quarenta anos ela ainda era atraente, esguia e cheia de esperanças. Dera demais de si aos outros. Será que agora ela não deveria ter a chance de viver feliz?

Diversas semanas após o alarma inicial, Madeleine constatou com tristeza ter previsto corretamente o futuro. "Você não vai acreditar", disse à amiga, "mas fui condenada. Vinte e um dias na penitenciária de Hartford. Manny já cumpriu sua pena. Ele pegou só duas semanas." Deu uma risada engasgada. "Acho que o juiz achou que tenho mais tempo livre que Manny."

Naturalmente, descobriu-se que o juiz não havia se preocupado em saber quem tinha mais tempo livre. O juiz apenas se ocupara com a prova de fraude, e concluíra que a Madeleine cabia a maior culpa. Sim, ela era mais culpada que o marido. Fora ela, afinal de contas, quem assinara o formulário do auxílio-desemprego em Massachusetts, quando eles já constavam da lista de beneficiados segurados em Connecticut.

Inicialmente, não foi fácil às amigas de Madeleine compreenderem a sentença. A idéia de uma mulher que se conhece ser forçada a deixar os filhos e ir para a prisão era tão pavorosa que escapava a qualquer princípio de justiça conhecido. A velha idéia da santidade da maternidade mais uma vez vinha nublar o quadro circunstancial e implicava um padrão duplo de ética. Aborrecidas com o fato de Madeleine ter que "suportar" mais uma injustiça, suas amigas negligenciaram completamente as questões relevantes. No que de fato consistira a vida de Madeleine até então? Durante todos aqueles anos, será que ela realmente se devotara aos filhos, ao marido e a si mesma? Ou simplesmente fora movida pelo desespero, obcecada pela insegurança?

 

                   Cenas de um casamento

Vários anos antes de ser despedido de seu último emprego, Manny Boroff se mudara com a família do apartamento em Springfield, Massachusetts, para uma grande e velha casa em Thompsonville, uma cidadezinha à margem do rio Connecticut. Havia um ano Manny era o contador-chefe de um dos bancos mais respeitados de Massachusetts, e recebia um salário tão alto que resolvera tirar a família de Springfield e alojá-la numa casa incrível — um pouco dilapidada, mas encantadora.

Corroborando seu estilo de vida até então, Manny logo se viu novamente sem emprego. Os empregadores inicialmente se impressionavam com a esperteza e a boa aparência de Manny, mas logo se desapontavam com sua incapacidade de corresponder a suas responsabilidades. Ele era o tipo de pessoa que, no princípio, se excedia no cumprimento do dever. Aí, tendo marcado condignamente sua presença, punha tudo a perder, faltando arrogantemente a compromissos, atrasando-se para o trabalho e, finalmente, quando repreendido, mentindo para acobertar suas falhas. Era o fato de ser pego numa mentira — ou numa série de mentiras — que o encrencava. Porém, ao relatar o caso a Madeleine, ele sempre jogava a culpa sobre "eles", desenvolvendo formas cada vez mais sutis de alinhá-la a seu lado contra empregadores insensíveis e retardados.

Dessa vez, todavia, as coisas pareceram diferentes a Madeleine. Com o passar dos meses na casa de Thompsonville, uma rotina com gosto de segurança se estabeleceu. Manny se fechava no escritório do terceiro andar da casa, trabalhando, dizia, num romance. Madeleine se encheu de esperanças. Para suplementar os pagamentos, ela vendia pão feito em casa e trabalhava como pajem. Era uma vida nova e, em alguns aspectos, revigorante. Com Manny em casa, era divertido planejar, esquematizar e preparar a horta há muito sonhada. Todas as manhãs Manny acordava cedo, assobiando, e ocupava-se dos consertos da casa. As tardes, ele as passava no terceiro andar, escrevendo o romance.

Por um ano tudo se cobriu de uma aparência peculiarmente idílica. Quem não gostaria de uma vida de jardinagem e ficção no exuberante vale do rio Connecticut? Contudo, após cinqüenta e seis semanas, o fundo de garantia dele se esvaiu por completo e o orçamento dos Boroffs repentinamente quebrou. Resolutamente, Manny procurou a Previdência de Connecticut. Procurar um emprego, isso ele não fez. Apenas escrevia (ou ao menos tentava), e Madeleine o encorajava. Trabalhar em contabilidade sempre frustrara Manny e o fizera beber demais. Toda a vida ele desejara ser escritor, queria-o desesperadamente. Madeleine punha fé na mudança que o marido estava aparentemente tentando levar a cabo. Esperava que essa mudança trouxesse uma existência mais estável a todos. Ela bajulava, analisava, "apoiava" o marido — no mínimo tão interessada na própria segurança quanto na dele.

À medida que os meses passavam tornava-se cada vez mais difícil viver dos míseros, embora constantes, cheques da Previdência. A hipoteca da casa dos Boroffs custava trezentos e cinqüenta dólares por mês, e todos tinham de comer. Além disso havia os quatro ou cinco garrafões de vinho que de algum modo eles conseguiam consumir cada semana (apesar de Madeleine admitir ser principalmente Manny quem os consumia). Então um dia, umas duas semanas antes da data de execução da hipoteca pelo banco e sem perspectivas de entrada de dinheiro, Madeleine, sem saber o que fazer e acreditando que em um mês ou dois Manny terminaria o esboço e o capítulo-amostra do livro e o submeteria a seu agente, tomou o ônibus para Springfield e inscreveu-se para o seguro da Previdência de Massachusetts. Como prova de residência, ela apresentou o recibo de aluguel do velho apartamento de Springfield. Que sorte terem-no mantido, sublocando-o!

Foi espantosamente fácil. Bem, se não exatamente fácil, também nem tão difícil quanto se poderia imaginar. Os cheques seriam enviados a seu endereço em Springfield. Para acelerar o processo, ela declarou ter sido abandonada pelo marido. O sistema sempre se compadece mais de mulheres abandonadas com filhos. Além do mais, Manny a convencera de que ele já estava cheio de ter que apresentar-se quase mensalmente naquelas audiências da Previdência de Connecticut para garantir a prorrogação do auxílio. Seria o cúmulo se ele tivesse que fazer a mesma coisa em Springfield. Madeleine então concordara que era sua vez de passar pela "chateação da Previdência".

Era um passo perigoso a dar, mas não tão assustador quanto enfrentar os temores e a baixa auto-estima que a vinham corroendo um bocadinho mais a cada ano. Cegamente dedicada a Manny, Madeleine estava também cega quanto à sua própria dependência — sua necessidade de permanecer amalgamada com o marido, numa relação de tanta proximidade quanto a da mãe canguru com seu filhote. O interior da bolsa podia até ser sufocante, não fazia diferença. Mais do que tudo, Madeleine tinha terror de ficar só. Para evitar isso, ela faria qualquer coisa — inclusive roubar o governo, se necessário (embora, na época, nenhum dos dois visualizasse aquele ato como um "roubo"). É irônica a eficiência empresarial com que Madeleine montou o esquema do duplo auxílio. Providenciou para que seus sublocatários em Massachusetts enviassem os pagamentos para seu endereço em Connecticut. Aí ela simplesmente descontava os cheques em algum lugar — qualquer lugar, exceto em seu banco em Thompsonville onde costumava depositar os cheques da Previdência de Connecticut.

 

Ver-se face a face com a realidade suscita uma sensação estranha do tipo "como é que isto foi acontecer comigo?" naqueles que, intimamente, não se sentem de fato adultos. Para Madeleine, ser pega foi duplamente irônico. Quando as duas seções da Previdência descobriram a fraude, Madeleine havia finalmente reunido coragem para se libertar. Apesar das crianças. Apesar de seu medo de que Manny desmoronasse sem ela. Ela estava desejando fazer algo por si mesma, ainda que isso significasse abandoná-lo.

Aqui vemos um dos truques da personalidade dependente: acreditar que se é responsável por "cuidar" de uma outra pessoa. Madeleine sempre se sentira mais responsável pela sobrevivência de Manny do que pela sua própria. Enquanto se concentrava em Manny — na passividade, na indecisão, no alcoolismo dele —, ela focalizava todas as suas energias imaginando soluções para ele, ou para "eles", sem nunca olhar para dentro de si mesma. Por isso Madeleine levara vinte e dois anos para compreender que, se as coisas continuassem como sempre tinham sido, ela acabaria perdendo. Perdendo por jamais ter vivido uma vida, realmente.

Afinal ela reconheceu isso e deu o passo definitivo para romper — não somente com Manny, mas com todo o seu estilo de vida dependente. Pôs a velha casa, que tanto adorava, à venda, pagou as dívidas (o juiz permitira que cumprisse sua pena nos fins de semana) e mudou-se com os filhos para Seattle. Lá ela arranjou um emprego numa companhia de seguros, matriculou-se num curso noturno e passou a despender toda a sua energia na reconstrução — ou, melhor dizendo, na construção — de uma vida autônoma. Desde os dezoito até os quarenta anos — período no qual as pessoas teoricamente devem traçar o próprio caminho, crescer e experimentar o mundo —, Madeleine Boroff estivera marcando passo, fingindo a si mesma que a vida não era o que era, que logo o marido daria uma arremetida certeira para o futuro, e que um dia ela se libertaria para fruir sua vida interior pacífica e criativamente.

Durante vinte e dois anos ela fora incapaz de defrontar-se com o significado implícito da mentira de sua existência, e assim, sem intenção maldosa, mas amedrontada demais para viver autenticamente, dera as costas à verdade.

 

A história de Madeleine pode parecer trágica em seus detalhes superficiais, mas, na dinâmica fundamental, não é tão incomum. A aceitação incondicional que ela exibia, a aparente incapacidade de se desligar, ou mesmo de pensar em se desligar, de um relacionamento que a exauria totalmente — são sinais de desamparo característicos de mulheres psicologicamente dependentes. Para elas, o casamento funciona como um agente reforçador. Em vez de fortalecer a personalidade da mulher, debilita-a. Em vez de propiciar autoconfiança, conduz à dúvida quanto ao próprio valor. Em vez de promover experiências pelas quais as mulheres possam crescer e desenvolver recursos individuais, muito comumente o casamento acaba fomentando o efeito contrário: reforça sua dependência e remove o que nelas há de autônomo, deixando-lhes apenas um vestígio da alegria e da força que ao menos aparentavam possuir antes de "mergulharem" no matrimônio.

 

Jessie Bernard, uma socióloga da Pennsylvania State University, nota em seu livro The future of marriage (O futuro do casamento) que: "Mulheres que, anteriormente ao casamento, cuidavam bastante bem de si mesmas tornam-se indefesas depois de uns quinze ou vinte anos". Ela narra a história de uma mulher que gerenciava uma agência de turismo antes de casar-se, mas que, ao enviuvar, aos cinqüenta e cinco anos, viu-se na penosa realidade de não mais saber como tirar um passaporte e ter que perguntar aos amigos como fazê-lo!

"As meninas são criadas para aceitar sua condição de seres naturalmente dependentes, com direito a encostar-se nos homens, seres mais fortes do que elas; casam-se, pois, totalmente confiantes em que essas expectativas serão satisfeitas", observa a Dra. Bernard.

O correlato dessa fantasia, obviamente, é que os homens farão às vezes de pais: fortes, inabaláveis, dispostos e capazes de proteger e prestar socorro. Segundo o mito familiar, às mulheres reserva-se o papel de criar e educar; no entanto, esse mito não leva em conta o outro lado do quadro concreto: as mulheres buscam nos homens o mesmo tipo de proteção, apoio e encorajamento que os filhos esperam dos pais. Após o matrimônio, a decepção visita as mulheres; seus maridos, descobrem elas, estão longe de ser os super-homens imaginados durante o namoro. Os homens são tão vulneráveis como qualquer pessoa e, na tentativa de alcançarem a realização pessoal, têm que se debater com suas próprias inseguranças. Na data dessa descoberta, diz Bernard, algumas mulheres agem como crianças "que vêm a perceber que os pais não são realmente oniscientes". Ficam desapontadas e enraivecidas.

Depois de algum tempo de casada, Madeleine Boroff deu-se conta de que seu jovem e charmoso marido não era nada do que ela imaginara. Em vez de constituir-se numa fortaleza, ele buscava forças nela — e na família inteira. Eles eram a armadura com que ele esperava disfarçar sua falta de confiança. Aquelas maneiras francas e teimosas que ele apresentava ao falar, aquele ostensivo desdém às convenções nada representavam além de tímidas tentativas de ganhar estima em face de seus repetidos fracassos. Qualquer pessoa que olhasse para Manny Boroff veria essas coisas, exceto Madeleine. Ela era cúmplice do marido na fantasia de que ele detinha o poder no lar.

"Algumas mulheres exercem controle sendo dependentes", diz a terapeuta Mareia Perlstein, "alimentando no homem a impressão de ser ele quem dita as ordens." Isso é freqüente em relacionamentos onde o homem tem problemas de auto-estima. "A maneira de ele se sentir importante no mundo é tornar-se importante para alguém", prossegue Perlstein. "Ocupando a posição de 'pequenez' esperada, e controlando cuidadosamente a situação, para que esta permaneça equilibrada, a mulher consegue manter ambos simbioticamente unidos e 'felizes'."

A identidade de Madeleine estava tão misturada à do marido que ela não conseguia ver — tinha medo de ver — o quanto ele estava dormitado pelas exigências da vida adulta e pelo caos emocional criado por seus conflitos internos. Quando Manny foi tomado por delírios de "beatniquismo" e insistiu em que partissem e fossem morar em Roma antes que o primeiro filho nascesse, Madeleine também foi assaltada por visões da Via Veneto, e seguiu-o como um cãozinho afeiçoado. Ela não tinha muita certeza de como ou com que dinheiro viveriam; no entanto, de qualquer modo, aquilo não era de sua alçada. Anos depois, quando Manny sentiu chegada a hora de saírem do "cortiço de Springfield" e comprarem uma casa no campo, Madeleine também desejou comprar uma casa no campo, embora jamais tivesse pensado naquela possibilidade e não fizesse idéia de como conseguiriam pagar as prestações da hipoteca. Quando Manny sentiu que tinha de conquistar sua chance de ser um escritor acima de qualquer coisa, Madeleine organizou a família toda no sentido de ajudá-lo a realizar seu sonho.

Até que, um dia, a equação não funcionou mais. Madeleine afinal percebeu que as crianças estavam crescendo e logo sairiam de casa, e que ela teria que viver até o último de seus dias com o Grande Escritor de Esboços Americano e sua garrafa de vinho barato. Tal como ocorre com tantas outras mulheres, a perspectiva da partida dos filhos serviu como um tapa no rosto, despertando-a rudemente para a verdade de sua embotada servidão. O que faria agora? Quem seria? Pois via que não era um indivíduo separado e identificável; era somente uma parte "deles".

 

                   Síndrome da "boa mulher"

A mulher que devota toda a vida a manter o marido de pé e os filhos "protegidos" não é uma santa, é uma covarde. Em lugar de experimentar os terrores de ser só, de ter que encontrar e assegurar seu próprio ancoradouro, ela permanece encostada em alguém, mesmo sofrendo adversidades inacreditáveis. Se ela é realmente boa nisso, nem chega a aparentar que sofre muito. É o tipo de mulher que parece estar sempre "numa boa". Que parece forte e vigorosa em situações em que a maioria das pessoas se reduziria a um farrapo. Que, apesar de tudo, é "maravilhosa com os filhos".

A "boa mulher" dá tudo de si para agradar aos outros. Quanto às tarefas relacionadas com o seu desenvolvimento, contudo, deixa muito a desejar. Ela coloca o casamento "a serviço da regressão", para usar a terminologia psicológica indicativa de que inconscientemente ela espera retornar, mediante o relacionamento com o marido, a um período mais remoto e seguro. De acordo com os psicólogos do ego, Rubin e Gertrude Blanck, para a boa mulher o casamento se torna "um meio de garantir cuidado e sustento... um meio de ganhar um lar, em vez de construir o seu... uma oportunidade de aliviar conflitos, em vez de resolvê-los".

Acobertamento usado para mascarar impulsos neuróticos, uma relação dessas precisa ser contínua e delicadamente manipulada. "Algumas das mulheres que me procuram para tratamento possuem um sentido muito aguçado do que vai funcionar em seus casamentos", diz Mareia Perlstein. "É claro que elas estão enganadas nessa pressuposição do que funciona, do contrário não estariam se sujeitando à terapia. Externamente, o mecanismo que utilizam pode parecer dar certo; no fundo, contudo, elas não são felizes. Sentem um enorme vazio pela falta de significado de suas vidas. Seu único referencial de competência associa-se à capacidade de controlar — de conseguir o que desejam através da dependência."

Em relacionamentos dependentes existem diferentes maneiras de se manter o equilíbrio desejado. Às vezes a esposa finge que o marido lhe é superior. Promover isso pode requerer verdadeiros atos de contorcionismo. Algumas mulheres fazem tão pouco — limitam tão severamente suas vidas — que chegam a se fazerem menos competentes. À vontade apenas quando se sentem inferiores aos maridos, elas se sujeitam, e efetivamente dão as costas a si mesmas — às suas próprias necessidades, talentos e interesses.

(Leon Saltzman, psiquiatra, compara esse comportamento à atitude "do prisioneiro, escravo ou membro de um grupo minoritário que acaba aceitando a condição aviltante de seu status a fim de obter o máximo possível de segurança e vantagens". Em outras palavras: há vantagens em se permanecer num estado de cativeiro — vantagens tão grandes que várias mulheres preferem persistir na escravidão a serem privadas da segurança proporcionada pela servidão.)

Outro truque é fazer exatamente o oposto: diminuir os homens, fazendo-os ver o quanto eles se assemelham às crianças. "Os homens são todos iguais", é o que se ouve nos parques, cozinhas e salas de estar da América. "Estive num jantar onde todas as mulheres presentes eram donas-de-casa, e todos os maridos eram astrofísicos renomados do Cal Tech", contou-me Barrie Thorne, socióloga. "Todos os maridos sentavam-se em um dos cantos da sala discutindo buracos negros, e todas as esposas sentavam-se no canto oposto falando de quão infantis eram seus maridos."

Essa conduta feminina constitui sinal seguro de sofrimento. Trocando entre si o confortante clichê "todos os homens são bebês", elas externam parte da dor pelo ruir de seus sonhos de meninas, sem se arriscarem a mudanças. Elas nada fazem por suas vidas. Simplesmente se queixam. (Ou, se são boas mulheres, não se queixam.)

A esposa dependente freqüentemente oscila entre a idealização e a derrubada do marido. Madeleine Boroff, por exemplo, multiplicava a magnitude do talento do marido, pois isso lhe oferecia uma racionalização para tolerar a destrutividade dele — permanecendo sua escrava. "Meu marido gênio" é um jogo sedutor. Permite-nos continuar encostando-nos nesses "gênios", mesmo quando eles são indubitavelmente fracos de espírito.

Madeleine também diminuía Manny, preferindo pensar nele como alguém frágil e necessitado de sua proteção. O desempenho do papel de protetora ajudava-a a resgatar um pouco de sua auto-estima. Dando uma de grande enfermeira, a mulher cuja auto-estima é frágil pode ganhar uma potência ilusória. "Está vendo como eu me saio bem?" é a mensagem expressa em cada um de seus atos. "Confie em mim. Conte comigo." (E por dentro: "Não me abandone jamais".)

Sob o disfarce de ajuda aos maridos, muitas mulheres fazem um investimento emocional no sentido de manterem a fraqueza de seus maridos. Se fracos, os homens sempre precisarão de suas esposas. Se fracos, jamais partirão. (Este, na verdade, é o paradigma da esposa do alcoólatra: exteriormente competente e com boas habilidades de organização — mas internamente receosa de, se abandonada, dissolver-se como um cubo de gelo à temperatura ambiente.)

Obviamente a boa mulher possui a mesma estrutura de caráter de boa menina, aprendiz de passividade no colo da mãe. As desvantagens de ter crescido obediente, dócil e "boazinha" começam a ser evidenciadas em todas as áreas da vida da mulher. Um dos mais recentes estudos verificou existir uma correlação entre a "síndrome da boa menina" e a dificuldade na obtenção do orgasmo. Dagmar O'Connor, um psicólogo nova-yorkino que já tratou mais de seiscentas mulheres num programa de terapia sexual no Roosevelt Hospital, comparou pacientes não-orgásticas com mulheres orgásticas. No grupo não-orgástico, oitenta e oito por cento afirmavam terem sido "boas meninas" quando crianças e adolescentes. Eram obedientes, bem-sucedidas na escola e nunca tiveram conflitos com os pais. É interessante notar que apenas trinta das mulheres orgásticas se enquadravam nessa categoria. O estudo indica haver ao menos uma probabilidade significativa de correlação entre independência psicológica e capacidade de experimentar o orgasmo. Mulheres psicologicamente dependentes podem achar aterrorizante o momento de fusão com o outro, quando os limites de personalidade e identidade se dissipam. Essencialmente inseguras quanto às próprias identidades, dependentes, vulneráveis e indefesas, acham o momento de abandono apaixonado insuportável e recusam-se a se entregar por completo.

 

                   A segunda rodada: perseguindo o mito da segurança

Não obstante sua disposição de a tudo renunciarem pela segurança, freqüentemente as mulheres descobrem que o casamento não lhes traz o tão almejado objetivo. "É como naquela canção que diz: 'Você não consegue nem dirigir sua própria vida, quanto mais a minha'", observou-me uma mulher a quem denominarei Jéssica. "Não tarda muito e você se surpreende perguntando-se: 'Como é que uma pessoa tão cheia de defeitos pode cuidar de mim?'

Antes de seu segundo casamento, Jéssica vivera sozinha com os filhos durante cinco anos, período no qual retomara os estudos para tornar-se assistente de dentista. Logo após obter seu primeiro emprego na pequena comunidade rural de Massachusetts, onde mora, Jéssica deixou sua recém-adquirida independência por um belo segundo marido. Ocorre que Ben em breve começou a expressar o desejo de ter um filho. Jéssica já tinha três filhos do primeiro casamento e estava com trinta e quatro anos. Se era para satisfazê-lo, pensou, melhor agora do que quando estivesse velha demais. Ben nunca tivera um filho. Como ela poderia privá-lo de um bebê, se era isso que ele queria?

Mas o bebê não foi tudo o que Jéssica deu a Ben. Os treze mil dólares economizados com a venda de sua antiga casa foram liquidados no pagamento de algumas dívidas contraídas pelo novo marido. Atualmente, com o bebê de um ano e meio de idade e outro a caminho, ela não se sente tão feliz por ter cedido tanto. "Eu quis acabar com as dívidas de Ben para que pudéssemos começar tudo direito. Mas agora, quando penso que não tenho mais a casa, nem os treze mil dólares no banco, nem sequer uma profissão, fico desnorteada. Fico dizendo comigo mesma: 'Se algo der errado, se por algum motivo eu quiser cair fora desta relação, será realmente muito duro'."

A atitude de Jéssica ilustra claramente o novo conflito feminino. Emocionalmente, ela deseja o luxo de ter quem dela cuide, mas é suficientemente inteligente para saber estar pagando um preço alto pelo que a Dra. Jessie Bernard chama "as ciladas de segurança em demasia". Jéssica discute sua "situação" com uma espécie de passividade, como se não houvesse tido comprometimento pessoal nas circunstâncias detonadoras de tal "situação". "De repente já não sou mais financeiramente independente; não sou mais profissionalmente independente. Qualquer dia minha frustração vai chegar a um ponto tal que vou explodir. E a razão disso é que não tenho mais o controle de minha vida. Eu o perdi."

Deve-se aos sociólogos a descoberta de que, em comparação com os homens, as mulheres se modificam muito mais com o propósito de tentar salvar seus casamentos. Ao se casarem, a maioria dos homens não têm intenções de mudar a rotina de suas vidas. Eles crêem que basicamente continuarão fazendo as mesmas coisas, pensando da mesma maneira — em resumo, sendo a mesma pessoa —, com a única diferença de agora estarem casados, e não solteiros.

Algo diverso se dá com as mulheres. Nós nos tornamos esposas do mesmo modo como nos tornamos mães. Temos a expectativa de mudar, reduzir e obscurecer qualquer linha divisória existente entre "eu" e "ele". Em suma, esperamos fundir-nos. E embora não concordemos conscientemente com essa fusão, mesmo quando ela é mais modelada pelas idéias e atitudes dele do que pelas nossas, raramente questionamos a estrutura criada.

"Ajustar-se ao papel de esposa", diz Jessie Bernard, envolve uma redefinição da identidade — uma ativa remodelação da personalidade, a fim de adequá-la aos desejos, necessidades ou exigências dos maridos."

"Ajustar-se ao papel de esposa" igualmente envolve a renúncia às habilidades individuais. A chave dos grilhões de várias mulheres casadas hoje reside no fato de que não teriam meios de sustento próprio, já que quaisquer habilidades que possam ter desenvolvido antes de se casarem há muito se atrofiaram. Mulheres que já passaram por isso asseveram a realidade da patética falácia contida na crença de que é possível "retirar-se" por seis ou sete anos, enquanto as crianças são pequenas, e depois retornar às antigas carreiras como se nada houvesse acontecido. Será preciso um novo treinamento, um período de reavaliação. Não se é mais a mesma pessoa que se era à época do casamento. "É uma coisa tão sutil, essa que acontece", comentou essa mulher que desistiu da carreira e de seu ninho de treze mil dólares. "Quando estava vivendo sozinha, divorciada e solteira, sentia-me capaz de fazer praticamente qualquer coisa. Eu tinha responsabilidades. Mal entro novamente num casamento e eis-me esperando que a outra pessoa faça toda sorte de coisas por mim. Se ele não as faz, penso: 'Não é justo!'

Por sua própria natureza, a dependência cria a falta de confiança em si mesma, e a insegurança pode conduzir com rapidez devastadora ao ódio de si mesma. Estudos comparativos da variável sexual mostram que as esposas se vêem sob uma luz muito mais negativa do que os maridos. As esposas se preocupam obsessivamente com coisas tais como sua aparência, quão "atraentes" são. Se têm alguma dificuldade na adaptação a algum aspecto do casamento, as esposas prontamente se culpam, propensas a atribuírem o problema a suas próprias falhas. Mesmo quando é o marido quem está criando arestas no relacionamento, as mulheres sentem ter cometido um erro.

Dentre todas as mulheres com quem conversei enquanto levantava dados para a elaboração deste livro, aquelas que estavam na casa dos trinta e que se tinham divorciado e casado novamente, mas não tinham conquistado a auto-suficiência entre o primeiro e o segundo maridos eram as mais dolorosamente resignadas. "Quando saiu nosso divórcio, senti-me como que num limbo até surgir meu segundo marido", disse uma mulher de Little Rock. "Eu estivera apenas aguardando o próximo marido."

"Não tenho nenhuma experiência", disse uma mulher com pós-graduação e que até então jamais recebera um salário. "Nunca tive que pensar em me sustentar, ou à minha família, e é muito duro, difícil, começar a pensar nesses termos."

"Chega o dia", confessa outra, "em que a gente começa a dizer a si mesma: 'Ei, há realmente alguma coisa de que não gosto nessa pessoa, alguma coisa de que eu não me apercebi quando me comprometi com ela, algo que, agora que cresci e mudei, não consigo aceitar'! Aí surge: 'Muito bem, o que vou fazer? Passa-se a considerar a separação, contempla-se o divórcio, mas já não é tão fácil na segunda rodada."

Jéssica, a mulher que gastou suas economias para saldar as dívidas do marido, finaliza: "Você chega a um ponto em que percebe haver certas coisas que gostaria de mudar, mas provavelmente não o fará — não se pode mudar a 'natureza animal'. Às vezes isso me deprime, e então penso: Bem, deve haver algum proveito nisso tudo. Antigamente eu pensava o tempo todo em como gostaria de mudar as coisas, mas agora acho que o melhor mesmo é a aceitação".

Mulheres que não se queixam, mulheres estóicas e "fortes" perante casamentos que não as nutrem adequadamente em geral são mulheres com um grau doentio de dependência. Como esposas, são incapazes de enfrentar os maridos, porque, para fazê-lo efetivamente, teriam que provar seus próprios sentimentos de raiva ou hostilidade, e isso seria por demais perigoso. São mulheres que amam não por uma escolha nascida de uma força íntima — uma ternura e uma generosidade facilmente ofertadas porque se sentem inteiras e dignas de estima. São mulheres que "amam" porque têm medo de viver sós.

 

                   E então?

A dependência é auto-ativadora. No fim, a mulher dependente se encontra numa posição de real escravidão. Humilhada, só conta com seu "opressor", o homem de quem depende. A essa altura ela acha difícil, se não impossível, olhar para dentro de si. "Ele é o responsável por eu não ter uma vida própria", consola-se consigo mesma.

Mareia Goldstein, uma psicoterapeuta de Berkeley, Califórnia, especializou-se em terapia de casais, com a qual os ajuda a elaborar seus relacionamentos amalgamados, simbióticos. Às vezes seus clientes acabam permanecendo juntos, capacitados a construir uma vida mais gratificante e a permutar mais amor e menos ódio entre si. Às vezes terminam por se separar. Entretanto, como denota a seguinte "história", a dissolução de um relacionamento que oferece pouco mais que uma dependência de total fusão entre ambos os parceiros não será necessariamente devastadora para eles. Ela pode verdadeiramente constituir um caminho para a liberdade.

O homem desta história (vamos chamá-lo de Al) tinha um histórico de entrada em relacionamentos antes de estar realmente pronto para tal. "Um tipo agressivo-passivo, ele parecia capitular a tudo e mais tarde ressentir-se disso", contou-me a terapeuta.

A mulher, a quem denominaremos Lyn, era uma pessoa ativa, extrovertida, era professora e administradora escolar.

Durante os quase quatro anos em que esteve envolvida com Al, sua eficiência e autoconfiança esgotaram-se, fazendo-a parecer uma pessoa diferente da que fora "antes de Al", como notavam seus amigos. Quanto mais ela se aproximava de Al, mais ele se fechava. Ele reclamava de ela estar se intrometendo em sua vida; ela recuava novamente, ferida em sua auto-estima.

Artista frustrado, Al ansiava por uma chance de verificar se realmente conseguia vencer em arte comercial. Lyn encorajava-o a trabalhar em seu estúdio à noite, e ficava por perto esperando-o, "no caso de ele querer um lanche ou qualquer outra coisa". Al, sentindo a presença dela, sentia-se asfixiado.

Al e Lyn tinham verdadeiramente se tornado "duas figuras cinzentas presas numa repetitiva dança mortal". A tensão emocional produzida pela tentativa de conter a raiva e a mágoa extenuava a ambos. Al estava sempre brigando para obter algum "espaço" para si mesmo, onde teria a espécie de quietude que lhe permitiria trabalhar de modo livre e espontâneo. A verdade, porém, era que intimamente ele temia libertar-se, pois não desejava experimentar a solidão; assim, externava isso recriminando Lyn pelo problema.

Lyn, por seu lado, assustava-se com o distanciamento de Al. A existência dele como um ser separado — um indivíduo diferente dela — era sentida como a aniquilação de sua união. "Em casais adultos fundidos", observam Wexler e Steidl, "o parceiro é visto como sendo o mundo todo, e inteiramente responsável pelo bem-estar ou a infelicidade do outro. Se por acaso as necessidades de ambos os parceiros se harmonizam, o mundo vai bem. Se, contudo, um dos parceiros não corresponde ao esperado, o relacionamento vai mal.

A manutenção de um relacionamento simbiótico requer que ambos os parceiros fiquem precisamente onde estão. Não há lugar para crescimento ou mudança numa transação tão rígida. Por fim, um ou outro pode detonar a bomba exigindo mais, expressando seu desapontamento ou sentindo-se ameaçado. De acordo com o relato da terapeuta, isso é o que estava ocorrendo com Lyn e Al. Embora conscientemente Lyn sentisse estar sendo razoável e madura, na realidade estava terrivelmente perturbada pelo fato de Al passar as noites sozinho em seu estúdio. "Quando a outra pessoa não está presente", Wexler e Steidl explicam, "a relação é sen¬tida como perdida, e isto é experimentado como a perda do próprio eu. A verdadeira dependência é interpretada como união."

Como sair de tal prisão?

"Lyn e Al experimentaram uma separação por três meses", contou-me Mareia Goldstein. "Era uma coisa que eu já tinha feito com outros casais — uma oportunidade de romper a estrutura, dar-lhes um espaço para respirar e, possivelmente, uma nova perspectiva de si mesmos. No primeiro mês eles vivem separados, mas monogamicamente, concentrando-se no desenvolvimento de suas vidas individuais. No segundo mês eles podem ser não-monogâmicos; se desejarem, podem utilizar esse período para experimentar a possibilidade de um outro tipo de relacionamento. No terceiro mês, de novo a monogamia — um período para que eles possam reavaliar e determinar o que têm e o que não têm em seu relacionamento."

Ao término dos três meses, a terapeuta pediu a Lyn e Al que decidissem independentemente o que desejavam fazer — se queriam separar-se ou permanecer juntos.

Na primeira sessão de Lyn após a separação experimental, ela apresentou o que sua terapeuta descreve como "a clássica reação dependente". "Começou dizendo que sabia que ia demorar, mas que realmente ama Al e sabe que ele realmente a ama, e mesmo apesar de ele ter estado distante, se ele estivesse disposto a tentar, então ela estaria disposta a tentar — blablablá. Tudo soa muito razoável e sen¬sato, mas mascara sua crença de não conseguir ir adiante sem Al." De fato, a essa altura Lyn não tomara nenhuma decisão; estava agarrando-se desesperadamente ao "relacionamento".

Entrementes, a terapeuta já vira Al e sabia que ele tinha resolvido separar-se de Lyn. Como Lyn, com toda a sua dependência do amante, receberia isso?

"Na verdade, sob sua superficial preocupação com Al, muita coisa acontecera na vida de Lyn", prossegue o retrato de Mareia Goldstein. "Ela arranjara um emprego melhor. Também, e isso era muito importante, tivera bem mais contato com amigos durante a separação — amigas e até alguns antigos namorados. Haviam passeado, feito piqueniques, tido boas conversas. Como tantas mulheres dependentes, Lyn havia previamente se trancado dentro da relação com o amante. Ela chegara ao ponto de nem mesmo conseguir se relacionar com outras pessoas."

Lyn ainda se sentia profundamente dependente de Al, mas essa era mais uma convicção baseada em velhas idéias sobre si mesma do que na realidade de sua nova vida. "Sabendo que Lyn começara a desenvolver um sólido sistema de auto-sustentação, perguntei-lhe se estava disposta a retomar o relacionamento com Al incondicionalmente. Ela pensou um pouco e disse: 'Não. Se ele continuasse a me culpar, se continuasse a me acusar de ser a única razão de ele não conseguir fazer sua arte, se sentisse estar me fazendo um favor ficando comigo, então não, eu não o aceitaria'.

Quando Lyn compareceu à sessão seguinte junto com Al, estava num estado emocional descrito por Mareia Goldstein como "corajosamente vulnerável". Em essência, ela disse a Al: "Não vou mentir para você; já passamos por muita coisa juntos para eu fingir agora". Prosseguiu depois: "Este relacionamento significa muito para mim, em parte como história de vida, em parte devido ao hábito, mas principalmente porque gosto de você. E se eu pudesse tê-lo querendo manter a relação, se eu pudesse realmente ter você, ter você inteiro, e com o compromisso de que ainda tentaríamos viver cada um a própria vida — se você estivesse disposto a fazer tudo isso, então eu desejaria o relacionamento. Mas se você hesitar um mínimo que seja e não quiser, muito embora seja doloroso, estou realmente pronta a separar-me".

"Al disse a Lyn que não poderia fazê-lo", prossegue Marcia, "não poderia lhe dar o que ela desejava, e os dois se separaram ali mesmo, em meu consultório. Achei isso lindíssimo. Foi o atestado de quebra da dependência de Lyn."

Desde a separação, Lyn tem sido "mais terna, mais vulnerável e mais amorosa para com os amigos", conta a terapeuta. E está se preparando para uma viagem à Europa. "Isso é uma coisa importante; quando as pessoas realmente quebram a dependência, fazem-no de modo positivo. Elas experimentam o lado da liberdade da independência, em vez do lado do isolamento. Se ainda se sentem dependentes, não importa o que estejam fazendo, então experimentam o isolamento, a auto-piedade: 'Estou completamente só no mundo, destinado a nunca mais ter alguém, nunca mais ser feliz'. Lyn, ao contrário, diz a si mesma: 'Não preciso me preocupar se ele me ama ou não. Posso ir para a Europa por três meses; aí, quando voltar, posso arrumar minha casa, ou mudar-me, e progredir em meu emprego'. Esse é o verdadeiro barômetro indicativo de uma libertação da de¬pendência: se você não tem essa espécie de energia, essa espécie de confiança, então você ainda não se libertou."

 

                   Pânico do gênero feminino

Se nunca se ousou mudar nada na vida, como é que se começa a ousar? O que é que nos dá o empurrãozinho, o impulso para ultrapassarmos a fronteira do conhecido e aventurarmo-nos adiante?

Para muitas mulheres, é o sentimento do desespero.

 

Não foi na escola, nem em Mademoiselle, que finalmente comecei a escrever, mas sim num pequeno apartamento de cinco cômodos ao lado da estação ferroviária, ao norte de Greenwich Village. Isso se deu quando meu segundo bebê contava um mês de idade. Recordo claramente aquela noite, pois de modo algum previra o que ia acontecer. O ímpeto viera do nada (essa foi minha impressão na época). Apenas um impulso súbito e premente para escrever, pôr palavras no papel. Aquelas palavras eram um início, porque provinham diretamente de minha cabeça para o papel, sem a intervenção de nada mais. Era uma corrente maravilhosamente fluida, a primeira experiência inteiramente independente que eu tinha desde o casamento. O apartamento estava calmo, em silêncio. Meu marido dormia no sofá da sala de estar. Eu dava a meu filho a mamada da meia-noite. Lembro-me de que o acariciava com a mão esquerda enquanto o tinha ao peito, e com a mão direita começava a rabiscar palavras. O bebê sugava, e minha mente se enchia impetuosamente com os contornos de algo que eu queria comunicar aos outros. Eu escrevia sem cessar, quase febrilmente, mal parando para pôr o bebê no berço. Fiquei lá, só, apenas consciente das chaminés sobre os telhados vizinhos, até que a luz da manhã começou a surgir.

O que me impeliu, a começar a escrever foi que eu não queria mais ficar sozinha. Era uma solidão antiga, que de muito precedia a solidão de que meu casamento se revestia. Seus traços de origem estavam na pequena escola paroquial de Valley Stream, Long Island, com suas freiras estranhas e rígidas e com meu próprio corpo frágil; estavam nos espaços entre meus dentes; em minha perene auto-percepção de ser nova demais, magra demais, nunca em sintonia com o mundo a meu redor: meus pais, meus colegas de escola, meus amigos. Por anos eu fora uma dissidente e uma líder, marginal e membro de um grupo. Minha existência sempre se colocara ligeiramente à direita de minha auto-imagem, produzindo um modo de vida solitário e auto-alienado. Assim, quando afinal iniciei o processo de ruptura, minha motivação era a de dizer: "Olhem para mim. Tenho algo em comum com vocês. Tenho sentimentos que certamente vocês deverão conhecer". Creio que na época, como agora, eu estava escrevendo especificamente com a finalidade de criar um sentido de comunhão com outras mulheres.

No princípio, os sentimentos sobre os quais eu escrevia pertenciam a um domínio bastante seguro — eram as frustrações aninhadas no ser de uma jovem esposa e mãe tentando viver adequadamente numa grande cidade suja e barulhenta. Em minha solidão, eu imaginava que as mulheres que lessem meus artigos realmente conseguiriam ver-me fazendo aquele vestido a partir do molde da revista Vogue, sentada numa sala cheia de brinquedos quebrados, e tendo por vista somente uma escada de emergência defronte à janela. Eu imaginava que elas saberiam que tudo o que às vezes eu desejava era ser capaz de aplicar o delineador nos olhos com um risco preciso e sem borrões, e sair e esquecer que ainda não tinha trinta anos e já me sentia inutilizada, uma menina que de algum modo envelhecera e se cansara, sem jamais ter tido a oportunidade de desabrochar.

À medida que o tempo passava as frustrações aumentavam, e os riscos decorrentes do escrever sobre elas também. Sete anos após meu primeiro artigo ter sido publicado, eu estava pronta para começar a falar. Eu também estava pronta para romper meu casamento. As duas coisas, parecia-me, coincidiam: a necessidade de jogar fora a falsa segurança de minha relação com meu marido e a necessidade de usar meus escritos como um ato de auto-definição. Eu começara a pensar por mim mesma. As opiniões de meu marido (às quais, a princípio, eu me agarrara, vítima de uma espécie de fascínio infantil e, posteriormente, porque me alienara completamente de minha própria mente) não mais tinham peso para mim. Eu visualizava a maioria das coisas de modo diverso dele, e muito do que ele considerava importante já não me importava absolutamente.

Falando francamente, eu também via que aquele homem não podia me proteger do mundo. Eu atingira um ponto onde parecia menos perigoso viver sozinha do que persistir num casamento que submergia a ambos no domínio da ilusão. Estranhamente, só me conscientizei disso ao fim de um ano em que Ed não bebera uma gota sequer de álcool. Éramos gente comum, trabalhadora, sem motivos para nos rotularmos especiais ou diferentes. Na ausência da crise, nossa vida em comum passou a revelar-se espiritual e emocionalmente árida.

Através de meus artigos, com meus artigos, eu começara a entrar em contato comigo mesma. Escrever exige o uso solitário da mente e das emoções do escritor. Não há ninguém que nos anime enquanto criamos parágrafo após parágrafo, ninguém que nos diga: "É isso aí, você está no caminho certo". Você decide sozinho, e as decisões são infindáveis. Existem várias maneiras pelas quais se pode chegar a conhecer — e aceitar — a si mesmo. Existem várias maneiras de uma pessoa começar a engajar-se na vida sem subterfúgios. No meu caso, o que impulsionou esse processo foi o escrever.

 

Qual a razão de escolhermos permanecer criaturas indiferenciadas na fusão, evitando o processo da auto-definição? Quantas de nós figuram na indeterminada estatística do enor¬me reservatório de talentos adormecidos e enterrados sob a superfície da condição de mulher da classe média?

"Todo mundo sempre me dizia que eu era criativa"; assim começa a carta que me foi enviada por uma mulher residente em um abastado subúrbio de Bedford Village, no condado de Wetchester, em Nova York. "Com uma paciência inacreditável, algumas de minhas amigas ainda confiam em que de repente farei minha aparição no cenário artístico profissional como um cometa bem-vindo. Isso, enquanto datilografam e arquivam papéis das nove às cinco horas, todos os dias. Entretanto eu continuo sentada, perplexa, tentando resolver o que fazer quando amadurecer. Ajude-me. Estou a ponto de retornar ao piano, ou voltar ao jardim para arrancar o mato entre os canteiros." (A remetente desta carta tem trinta e sete anos.)

Uma possível resposta ao fato de as mulheres serem tão inibidas no exercício de seu talento veio de Ann Arbor, Michigan, no fim da década de 60. Atônita frente ao estranho pânico que a invadira durante seu longo rastejar até o doutorado em psicologia, Matina Horner começou a suspeitar de que o sucesso — a idéia do sucesso — tem um significado bem diferente para as mulheres do que para os homens. As mulheres não parecem perseguir o sucesso como fazem os homens. Delimitam para si mesmas, objetivos mais restritos. Quando as coisas vão bem, elas se sentem tão ansiosas quanto diante da iminência de uma rejeição ou de um fracasso. Sair-se bem — tornar-se realmente experiente em algo, vencer — são itens que aparentemente ameaçam excessivamente um imenso número de mulheres que possuem as características exigidas para a produção de algo substancial no curso de suas vidas.

Horner concluiu ser este um fenômeno digno de uma investigação científica. Conduzindo estudos que acabaram por colocá-la à frente de um novo campo (a psicologia feminina), ela começou por testar noventa mulheres e oitenta homens da University of Michigan. Ao final, identificou um dado totalmente novo, mesmo em termos de conceituação: a tendência feminina de apavorar-se com a mera possibilidade de obter êxito causa o estrangulamento do próprio desejo de obtê-lo. A esse fenômeno ela deu o nome de medo do sucesso.

Os dados de sua pesquisa evidenciaram de forma inequívoca a alta porcentagem de mulheres vítimas desse medo; aliás, o número delas era tão superior ao de homens com a mesma problemática que, em alguns aspectos, poder-se-ia enquadrar essa característica no âmbito da psique feminina. Não era simplesmente uma questão de insegurança quanto às habilidades necessárias para vencer. Quanto mais tinham a oferecer, maior sua ansiedade. "Exatamente as mulheres que mais ambicionam e mais capacitadas são para realizar coisas", afirma a Dra. Horner, são aquelas que mais sofrem do medo do sucesso.

Isso pode ter causado controvérsia no meio acadêmico, mas indubitavelmente muitas de nós, lendo sobre o medo do sucesso, sentiram um instantâneo aperto no coração — pelo reconhecimento de sua veracidade. Mas será mesmo possível que as mulheres promovam, para si próprias, o insucesso? Será que aquela preocupação com os homens, com o amor e a segurança emocional, associados sob o termo "feminilidade", constitui um fato significativo, se não primário, do que nos prende?

 

                   A crise relativa ao sucesso

A técnica utilizada pela Dra. Horner para desvelar esse estranho e previamente não-identificado medo é denominada "completar histórias", e pertence à categoria das chamadas técnicas projetivas. Usando esse instrumento, ela pôde verificar as atitudes inconscientes dos sujeitos da pesquisa (estudantes). Ela tencionava descobrir o que eles sentiam realmente, mais do que o que julgavam sentir ou prefeririam sentir. Os estudantes (de ambos os sexos) eram solicitados a compor histórias com base numa frase proposta de modo a delimitar o campo que se desejava estudar. Às mulheres ofereceu-se esta frase: "Após os exames do primeiro semestre, Anne descobre ser a primeira aluna de sua turma de medicina". (Para os homens, a frase era idêntica, salvo ser "John" quem encabeçava a lista de melhores alunos.)

As composições dos estudantes foram então analisadas pela equipe de pesquisadores, que, graças aos testes projetivos, acreditam poder perceber as reais atitudes e expectativas dos sujeitos na temática da história.

A Dra. Horner considerava sinal de que o medo do sucesso estava operando o fato de os estudantes construírem histórias indicativas de que esperavam conseqüências negativas decorrentes de qualquer grande êxito acadêmico. As conseqüências negativas incluíam o medo de serem socialmente rejeitados, de perderem a perspectiva de arranjar namorados (as) ou de se casarem, e o medo de ficarem isolados, solitários ou infelizes como resultado do sucesso.

A notícia daquilo em que Horner estava trabalhando propagou-se de uma universidade a outra imediatamente. Ela verificou haver tremendas diferenças entre as formas com que homens e mulheres respondem à perspectiva de sucesso. Os estudantes do sexo masculino mostravam-se exultantes pela possibilidade de desenvolver carreiras brilhantes; tal perspectiva enchia de ansiedade os do sexo feminino; no¬venta por cento dos homens não somente achavam que se sentiriam à vontade sendo bem sucedidos no trabalho profissional, como também acreditavam que isso os ajudaria no tocante à popularidade entre as mulheres; sessenta e cinco por cento das mulheres testadas por Horner e seus assistentes conceituavam o sucesso como qualquer coisa entre incômodo e totalmente aterrorizador. De acordo com a Dra. Horner, a principal razão para isso era: As mulheres acreditavam que a obtenção de êxito profissional deterioraria suas relações com os homens. Simplesmente isso. As mulheres que tinham namorados achavam que os perderiam. As que não tinham namorados pensavam que jamais os conseguiriam.

Diante do risco de uma vida sem amor, as mulheres aparentemente preferem renunciar a muita coisa — abandonar, dar as costas a suas ambições, fugir ansiosamente para o interior do anonimato dos oitenta por cento. Não é com elas reinar, solitárias e sem amor, sobre o trono frio da superioridade profissional. Mais que tudo, as mulheres querem se sentir em relação com um outro. Isto é fundamental e suplanta qualquer outra coisa.

 

                     As catástrofes reservadas a "Anne"

Vejamos como as mulheres da University of Michigan lidaram com a perturbadora situação em que Anne se encontrou na faculdade de medicina.

Uma vasta maioria de mulheres expressou a idéia de que Anne bem podia ter sido uma leprosa, a julgar por todo o isolamento que seguramente lhe sobreviria como conseqüência de seu anômalo brilhantismo na faculdade de medicina. Esse brilhantismo ia causar tantos problemas a Anne que não valia a pena exibi-lo. Uma das moças sugeriu que Anne prontamente providenciasse um modo de perder a posição de primeira da turma. Pondo de lado seus estudos e ajudando seu amigo Carl, Anne poderia em breve casar-se, largar a faculdade e "concentrar-se na educação dos filhos (de Carl)".

A temática geral das histórias das estudantes era que Anne podia desistir de contar com a afeição de um amante se persistisse em ostentar tantos méritos. As mulheres expressavam uma espécie de irritação ansiosa em relação a Anne. Ela não era "feliz", diziam. Ou descreviam-na como uma moça repulsivamente agressiva. Essa "Anne", sugeriam, não tinha escrúpulos em passar por cima dos outros — família, marido, amigos — em sua abjeta trajetória para a realização de suas ambições.

O que aparentemente constituía fonte de maior preocupação era a rejeição social. "Anne é uma pobre coitada que esconde a acne por trás dos livros", escreveu uma delas. "Ela corre para o quadro onde estão afixadas as notas e vê que está à frente. 'Como sempre', esnoba, fingindo estar surpresa. A resposta do resto da classe é um coro de resmungos aborrecidos."

Uma outra estudante, depois de questionar se uma mulher com tanta ambição e inteligência não seria um tanto anormal, concluiu que Anne deveria recuar rapidamente. Ela escreveu: "Infelizmente Anne não tem mais certeza de realmente querer ser médica. Ela está preocupada consigo mesma e pergunta-se se é normal... Anne resolve não continuar na medicina e, em vez disso, matricular-se em cursos que tenham maior significado pessoal para ela".

Algumas das histórias produzidas eram em si bizarras. Uma mulher achou a idéia de Anne alegrar-se com o sucesso tão revoltante que a puniu com espantosa brutalidade. "Anne começa a proclamar sua alegria e surpresa", escreveu a estudante, "de forma tal que os colegas ficam tão enojados com seu comportamento que pulam por cima dela e batem-lhe tanto que ela fica permanentemente mutilada."

Conquanto às vezes extremados, os temores dessas mulheres de que o sucesso arrasará suas vidas sociais não são inteiramente destituídos de realidade. Idéias tradicionais sobre o que é desejável em mulheres continuam surpreendentemente prevalentes entre a nata da população solteira do sexo masculino, os jovens e requintados produtos da Ivy League. Um recente estudo efetuado entre alunos de ambos os sexos de seis faculdades e universidades do nordeste revelou um fato inusitado: a grande maioria dos estudantes do sexo masculino espera desposar mulheres que fiquem em casa e não trabalhem. Eles se vêem como os provedores da casa, enquanto suas esposas ficam em casa com as crianças. E se elas quiserem trabalhar? "Talvez depois que as crianças entrarem na escola", dizem eles. Talvez.

Em seu livro The future of marriage, Jessie Bernard afirma que a agressividade, o desejo e o impulso para o sucesso, qualidades necessárias para a obtenção de empregos bem-remunerados em nossa sociedade, "são precisamente aquelas não desejadas pela maioria dos homens para suas esposas". Nossos bem-sucedidos profissionais de hoje — ou pelo menos os de amanhã, os alunos das escolas da Ivy League — ainda procuram mães para seus descendentes. Eles não estão procurando mulheres profissionais que possam desempenhar seus papéis no mundo com tanta sofisticação — e independência — quanto eles.

Começa a evidenciar-se que esse conflito relativo ao trabalho associa-se fortemente à classe social. Nas pesquisas de Matina Horner, as mulheres mais perturbadas com a possibilidade de um futuro sucesso provinham em geral da classe média e média alta, com pais bem-sucedidos — pais esses não diferentes dos atuais jovens da Ivy League, que querem por esposas moças não-empreendedoras. Nesses lares, as mães ou não trabalhavam ou trabalhavam a um nível bem aquém de um sério compromisso profissional.

As mulheres a quem o sucesso não incomodava tanto vinham da classe baixa, com mães que em geral tinham melhor educação acadêmica que seus maridos, e que sempre tinham trabalhado. As filhas dessas mulheres não experimentavam conflito entre realização e feminilidade, porque haviam crescido vendo ambas harmoniosamente integradas em suas mães.

A correlação entre classes sociais e os conflitos femininos nessa área tornou-se ainda mais óbvia quando, em estudos posteriores, Horner se deparou com um fascinante paralelo entre mulheres brancas e homens negros. Ela observou que ambos são notavelmente mais ansiosos quanto ao sucesso, se comparados a homens brancos e mulheres negras. Somente dez por cento dos homens brancos e vinte e nove por cento das mulheres negras apresentavam problemas associados ao medo do sucesso.

Os resultados obtidos por Matina Horner em seus estudos sobre o medo do sucesso eram tão estimulantes que ela decidiu dar um passo adiante e averiguar em que grau as atitudes expressas pelas mulheres nos testes de completar histórias correspondiam ao modo de agir em suas vidas reais. O medo do sucesso reduz a probabilidade de se vencer? As mulheres que se mostravam ansiosas com relação ao sucesso tinham de jato menor probabilidade de serem bem sucedidas?

Os mesmos estudantes universitários utilizados no estudo inicial receberam testes que envolviam tarefas competitivas e não competitivas. Horner assevera que os resultados "deixaram bem claro" que, quando as mulheres esperam o pior do sucesso, fazem o impossível para evitá-lo.

O processo constitui uma espécie de profecia auto-concretizadora.

 

Expectativa de                                       eliciação do

 

conseqüências negativas     conduz a       medo do sucesso

Medo do sucesso                     conduz a             menor sucesso

 

Uma vez que o medo do sucesso se instala nas mulheres, seus níveis de aspiração caem vertiginosamente, como a coluna de mercúrio quando atingida por uma onda de frio. Não é que as mulheres cortejem o fracasso; elas evitam o sucesso. Por exemplo: apesar de suas médias acadêmicas se enquadrarem no percentual superior, as mulheres com alto grau de MDS (medo do sucesso) optavam pelas ocupações menos desafiantes, as chamadas "femininas" — dona-de-casa, mãe, enfermeira, professora. Era como se, evitando carreiras mais "duras", elas conseguissem provar a si mesmas que ainda mereciam ser mulheres. Tomando-se uma mulher individualmente, a evitação do sucesso pode não ser tão rudemente autodestrutiva quanto a facilitação do fracasso, mas o efeito desse fenômeno sobre as mulheres em geral não pode ser subestimado. Essa nossa tendência a nos diminuirmos, a desviarmos o desenvolvimento de nossas habilidades inatas devido ao receio da perda de amor, ê uma conseqüência daquilo a que me referi anteriormente e que chamei o pânico do gênero feminino — a nova confusão sobre nossa identidade feminina. Em lugar de experimentarmos a ansiedade do fazer (talvez de nos sentirmos não femininas como resultado disso), nós nada fazemos.

As mulheres estão armando um triste jogo de autonegação. Universitárias com alto grau de MDS progressivamente reduzem seu nível de aspirações à medida que avançam do primeiro ao último ano de faculdade, segundo os dados obtidos pela Dra. Horner. Se Julia entra na faculdade decidida a tornar-se médica, ela é bem capaz de, ao chegar ao último ano, resolver que nada lhe agradaria mais do que ser biomédica. A segundanista do curso de história, que agora quer fazer direito ao fim do curso, mais ou menos na metade do último ano passa a achar que seria ótimo ser professora de segunda série do primário, e, quem sabe, simplesmente fazer alguns créditos em matérias de pedagogia para ter um diploma de professora. Mamãe diz que ela está tomando uma decisão sensata; papai, idem.

Idem para o namorado Jim. "Ensinar é uma coisa que você sempre poderá fazer mais tarde", assegura ele, "depois que as crianças tiverem crescido."

E quanto às mulheres cujo MDS era baixo? Seus futuros pareciam muitíssimo mais promissores. É espantoso que, embora tivessem menor talento natural do que as possuido¬ras de alto MDS, estas mulheres estavam se preparando para fazer pós-graduação e seguir carreiras em disciplinas científicas "difíceis" (matemática, física, química). A esse respeito, as mulheres com baixo grau de MDS assemelham-se aos homens. É comum o caso de homens com aspirações que excedem suas reais capacidades. Isso serve para impulsioná-los na vida mais do que qualquer outra coisa. Os homens são combativos. Eles podem gerar sua própria fonte específica de ansiedade ao darem passos maiores que os permitidos por suas capacidades inatas, mas ao menos chegam ao meio do caminho. As mulheres se retraem. Reduzem suas possibilidades, almejando bem menos do que lhes permite seu nível (inato) de desempenho.

O resultado é que muitas jamais passam da beira da estrada.

À época em que Matina Horner publicou seus resultados iniciais, em 1968, pensou-se que certamente as mulheres já deviam ter abandonado aqueles temores patéticos — se é que na verdade algum dia os tinham experimentado. Afinal de contas, para que servira o movimento feminista senão para alargar e dissolver as rígidas fronteiras culturais da feminilidade? Horner conduzira suas primeiras pesquisas no passado sombrio de 1964. As universitárias de 68 eram outra coisa, só queriam saber de explorar todas as suas potencialidades e vencer... ou não?

Horner prosseguiu seus estudos, dessa feita utilizando as jovens "liberadas" do fim da década de 60 e início da de 70. O que descobriu contradisse todas as impressões construídas pelos meios de comunicação sobre a nova mulher.

Incompreensivelmente, uma proporção ainda maior de mulheres estavam apresentando o medo do sucesso.

E fracassando em situações competitivas.

E baixando seus níveis de aspirações quanto à carreira, voltando seu interesse para empregos que ofereciam menos desafios, mais "femininos".

Em 1970, Horner relatou que "As atitudes negativas expressas por indivíduos brancos do sexo feminino aumentaram dos 65 por cento verificados no estudo de 1964 para, atualmente, 88,2 por cento".

 

                     O alto preço do silenciar as ambições

Recorde quanto reforço as meninas pequenas recebem para evitar qualquer coisa que lhes provoque ansiedade e você começará a entender como essas ambiciosas e academicamente bem-dotadas mulheres podem tão prontamente capitular à própria auto-realização. Elas desejam escapar ao pânico do gênero feminino. A eventualidade de perderem seu valor feminino, caso façam aquilo de que são capazes, provoca-lhes tanta apreensão que passam a buscar opções menos ameaçadoras. Tentam fazer-se Mulheres, com M maiúsculo. E o tiro sai pela culatra. Mulheres ansiosas quanto ao sucesso podem ser bem sucedidas em se manterem mais ou menos medíocres, mais ou menos dentro dos moldes da imagem aceitável da boa mulher; logo, porém, percebem-se presa de uma série de outros problemas. "Agressão, amargura e confusão", diz Horner, é o que cabe às mulheres que silenciam seu potencial.

Uma jovem de Washington que deixara seu emprego de assistente de uma congressista logo após casar-se começou a sentir-se entediada e insatisfeita. Mas em vez de identificar e resolver o problema — seu problema —, ela achou mais fácil zangar-se com o marido. "Eu sentia uma espécie de frustração me corroendo cada vez que meu marido viajava a negócios", disse. "Por que ele podia ir a lugares novos, conhecer diferentes pessoas e eu não? Ele voltava dessas viagens todo feliz e animado, e eu me esforçava por parecer interessada, mas por dentro estava furiosa e ressentida."

"Sempre invejei a vida de minhas amigas que não tinham filhos", disse outra, uma atriz que, praticamente desde o minuto em que se casou, sentiu que algo lhe fora roubado — apesar de, na verdade, ter sido ela quem desistira de algo. "Eu tinha saudade do teatro e sentia que o destino me aprisionara cedo demais." (Não reconhecendo que são elas mesmas que fogem daquilo que tanto querem, as mulheres freqüentemente julgam estar sendo trapaceadas — transformadas em vítimas. Como é que isto pode estar acontecendo comigo?)

Durante alguns anos, até finalmente sentir-se saturada o bastante para resolver fazer algo à respeito de sua vida, essa atriz contentou-se em invejar as amigas que, em sua opinião, tinham mais liberdade que ela. "Uma vez tentei escrever uma peça com uma amiga solteira, mas ela tinha tanto mais espaço e tempo livre em sua vida, podia dedicar-se tanto mais que eu a pesquisas e entrevistas, que eu me sentia tensa e burra a seu lado."

A comparação propagou-se por outras áreas de sua amizade. "Eu invejava seu corpo esbelto e o tipo de roupas que ela comprava, pois ela ganhava um salário fixo, enquanto eu tinha que esperar que sobrasse algum dinheirinho em nosso orçamento doméstico para comprar um par de sapatos. O relacionamento entre nós foi piorando. Perto daquela mulher eu me sentia gorda e desajeitada, estragada pelos serviços da casa e por ter que constantemente atender àquelas pestes dos meus filhos, sempre me requisitando quando nos sentávamos para trabalhar em nossa peça. Por fim, comecei a evitar completamente minha amiga. Ela entrava em meu apartamento — sempre em desordem, com brinquedos pelo chão e fraldas por lavar — toda arrumada e entusiasmada, com a mente a mil por hora e falando excitadamente; e tudo o que eu conseguia pensar era que logo teria de preparar o almoço das crianças. Fico triste ao refletir nisso agora, mas acabei desistindo do projeto. Cheguei a um ponto em que não tolerava sequer ver aquela coisinha livre e feliz."

 

As mulheres pagam um alto preço por sua ansiedade relativa ao sucesso. Matina Horner e seus auxiliares concluíram que mulheres jovens e capazes comumente inibem-se de até mesmo procurar o sucesso. Em situações competitivas onde estejam presentes pessoas de ambos os sexos, elas apresentam um desempenho mais pobre do que poderiam apresentar; além do mais, muitas que, apesar de tudo, acabam vencendo tentam mais tarde diminuir a qualidade de seu desempenho. Essas mulheres não põem à prova seu próprio poder e méritos. Confusas e ansiosas, elas preferem baixar suas aspirações profissionais a sentir esse desconforto.

Algumas delas, desviando-se de qualquer coisa que cheire a competitividade, sabotam totalmente seu futuro. E o pior é que nem imaginam que suas vidas estão sendo governadas pelo pânico do gênero feminino.

 

                   A "boa vida" da esposa que trabalha fora

Considere, por exemplo, a história de uma mulher a quem chamarei Adrian Holzer. Do tipo vivaz e muito ativo, que quase sempre tivera um emprego, Adrian há muito se esquecera de suas ambições de adolescente, relegando-as ao "compartimento de inutilidades" (os sonhos infantis). Agora, por alguma razão, aqueles sonhos estavam de volta, alfinetando-lhe a mente como cartas não respondidas. Era uma sensação incômoda, que a levava a sentir-se deslocada em sua vida, como se, em algum ponto, ela houvesse tomado um atalho errado. Precisamente quando começava a achar que as coisas estavam correndo bem e agradavelmente, algo inesperado brotou dentro dela para mudar sua vida interior.

Numa tarde de inverno em que conversávamos e bebíamos vinho, Adrian exteriorizou seus velhos sonhos — e começou a perceber que tinha adquirido novos temores.

"Não demorou muito para que eu voltasse a trabalhar depois de ter tido meus filhos — uns três ou quatro anos. Mas então a vida já tinha um sabor diferente do que eu experimentara quando solteira. Eu já não tinha mais qualquer sentido de 'futuro', de um futuro só para mim. Sabe como é, aquele viver dia após dia que toda mãe conhece. Carreguei para o serviço essa mentalidade do dia-a-dia. Passaram-se dois anos, e eu nem pensara em dizer: 'Ei, e a minha promoção?' E então sobreveio a raiva por ter que pedi-la."

Ao trinta e quatro anos, Adrian voltara a trabalhar como relações-públicas na Fundação Ford, "um emprego de prestígio com uma imagem de prestígio", segundo a descrição dela. "Eu estava recebendo um bom salário, considerando que não precisava dele para me sustentar. Mas tenho me sentido de algum modo, distanciada de tudo. A verdade é que não me importo nem um pouco com os interesses da fundação. Sempre me contentei, como mulher casada e mãe, com ter um 'bom' emprego e roupas bonitas. Se o dinheiro me bastava para ir almoçar fora com minhas amigas, comprar uma bolsa de vez em quando... bem, isso já era liberdade suficiente para mim."

"Já se passaram quatro anos!", exclamou subitamente, enchendo novamente seu copo. "Quatro daqueles anos que nem se percebem, mas que de qualquer modo nos levam aos trinta e oito anos de idade."

Esse balanço de vida feito por Adrian é típico da mulher que rebaixa seu nível de aspirações aos vinte anos e não se dá conta do que está ocorrendo até quase chegar aos quarenta. Agora os almoços eram entediantes, assim como o emprego. "Quando paro para pensar nisso, acho tudo uma loucura. Todos na faculdade sempre tiveram como certo que eu iria direto para o mestrado. Eu tinha notas muito boas mesmo. Houve uma época em que pensei em entrar para a diplomacia."

E o que fez em vez disso? Tal como tantas mulheres, efetuou uma troca crucial. "Tornei-me uma esposa. Depois, uma esposa que trabalha fora. Se Gerry morresse amanhã eu nem sei o que faria. Quando penso nisso — como seria se eu ficasse sozinha —, fico apavorada. Viúva e ainda fazendo relações públicas para um grande Papai simpático e não-lucrativo?!" Ela levanta os olhos, assombrada. "Acho que nem conseguiria manter esse emprego, se não fosse casada!"

Tal percepção paralisou-a. Em que espécie de situação se metera se não seria capaz de sobreviver com seu salário enquanto mulher descasada? O quadro começou a se delinear mais claramente. "Meu marido me sustenta, e meus filhos despedem-se de mim de manhã, ao saírem para a escola; só assim eu posso vestir meus vestidos refinados e sair para escrever minhas notas à imprensa", disse.

O autoconhecimento começava a atingir Adrian Holzer, trazendo consigo a questão que por quase duas décadas ela evitara: "Por que estou fazendo o que estou fazendo?"

Na esteira dessa pergunta vinha um pensamento ainda mais perturbador: "E, se não for isto, o que será?"

Eram perguntas que ela jamais tivera de se fazer. As mulheres são, elas não fazem. Ainda quando escolhem trabalhar fora, trata-se de algo em segundo plano comparativa-mente ao ser esposa e mãe. Esse, pelo menos, era o modo como Adrian e suas amigas sempre haviam experimentado o ser mulher.

Porém a iminência do quadragésimo aniversário estava modificando as coisas para Adrian Holzer. Havia nela uma sensação de que algo estava sendo negligenciado. Tarde da noite (aliás, nas horas mais inesperadas) passeava-lhe pela mente a menina-mulher de vinte anos, aquela criatura entusiástica e esperançosa. Esbelta, com longos cabelos louros e cheia de ideais, a moça daqueles dias se perdera para Adrian havia vários anos. Agora, repentinamente, ali estava ela, recusando-se a partir. Com sua aparência, todos aqueles almoços e jantares, as compras de roupas para os filhos no Saks... tudo se reduzia apenas a rituais vazios. Pelo amor de Deus! Um amigo de seu marido, de apenas quarenta e três anos, tivera um enfarte! A vida já não era mais atemporal e livre.

As coisas também haviam mudado em casa, com os filhos crescendo e Gerry passando tanto tempo em Washington. As pessoas não pareciam mais precisar muito dela. Foi-se sentindo cada vez mais só. E agora as novas questões avolumavam-se: "O que estarei fazendo daqui a cinco anos? Dez anos?"

Dez! Dez parecia impossível. Quarenta e nove anos de idade e ainda reunindo o pessoal em casa para fumar maconha e ver o Show de Sábado à Noite no grande altar da tecnologia? Quarenta e nove anos e ainda indo à sauna religiosamente três vezes por semana, a fim de tentar livrar-se da celulite, torcendo desesperadamente para, no próximo ano, não precisar ir lá quatro vezes em vez de três? Estava cansada de passar o Natal nas Bermudas, cansada de visitar seus parentes em Vineyard durante duas semanas de agosto de cada ano, cansada da enorme rotina de tudo. Acima de tudo, entretanto, ela estava cansada daquele negócio bidimensional esponjoso que habitava os espaços ocos de seu cérebro. Pensamentos obsessivos. Queixas longínquas e desapontadas. Adrian não gostava de mulheres insatisfeitas — era o que dizia.

De repente, ela era uma delas.

Havia, é claro, um pano de fundo que conduzira a isso. Se Adrian tivesse se matriculado na University of Michigan, em vez de na Smith, ela bem poderia ter sido um dos primeiros sujeitos de pesquisa de Matina Horner. Suas aspirações tinham sido postas de lado muitos anos antes. Em 1964, todavia, no ponto crítico de sua vida, uns seis meses antes de formar-se, ela não tinha nenhuma consciência do que estava acontecendo.

Adrian dissera ao namorado que estava planejando ir para a Faculdade de Relações Exteriores da Georgetown University. "Relações Exteriores!", ele repetira, horrorizado. "Esses cursos nunca terminam!" Aflito, ele tentara fazer piada. "Fique comigo, garota, e você nunca terá que ser espiã!"

O que Adrian ouvira foi: "Não posso esperar pelo fim de toda essa história de pós-graduação". Acabou não insistindo. O fato era que não se sentira segura de si mesma para insistir. Ela e o namorado nunca realmente conversaram a esse respeito depois disso. Deslumbrado com a perspectiva de glória, ele partiu para uma escola de cinema, e ela o seguiu até Nova York. Após cerca de um ano em que trabalhava na agência J. Walter Thompson, ela parou de vê-lo. Nessa época Gerry já entrara em sua vida. O querido Gerry, que dissera: "Pode fazer qualquer coisa que deseje. Ganho o suficiente para nós dois". Assim Adrian cessara de se preocupar com o que deveria fazer de sua vida. O casamento, as crianças, Gerry — gradualmente tudo isso passou a ter precedência sobre os temas desenvolvimentistas. Ela não era um ser humano em crescimento, aprendizagem, mudança; ela era — muito apropriadamente — uma esposa.

É impressionante a facilidade com que as mulheres abandonam os estímulos e desafios. Depois de algum tempo nem mesmo sentimos a perda. Escolhemos o conforto e a segurança, em vez da estimulação e da ansiedade que esta freqüentemente engendra. Parte do problema de Adrian é que sua vida tem sido fácil demais — fácil o bastante para amoitá-la contra o terror existencial que pertence a todos nós. Mesmo agora, sua ansiedade permanece no domínio da vaga apreensão. Ela ainda não recebeu aquele aterrorizante aviso interno que diz: "Cuidado ou logo você cairá". A forma como Adrian experimenta as coisas depende das ações e atitudes de Gerry. Se ele morresse (ou se, Deus me livre! ele começasse a passar mais tempo em Washington), então uma crise de enormes proporções abater-se-ia sobre ela. Na ausência de tal crise, Adrian provavelmente continuará como está, sem jamais se dar conta de quão insegura realmente se sente, até que algum outro evento externo a force a conscientizar-se disso.

É uma pena que, à beira do autoconhecimento, as mulheres tão freqüentemente pareçam necessitar de algo catastrófico que as arremesse para o confronto inescapável com a verdade. Após aquela tarde na qual Adrian se revelou tanto — mas, infelizmente, não o suficiente — não pude deixar de pensar que, a essa altura de sua vida, far-lhe-ia bem conhecer alguém como Sulka Bliss.

 

                   O caso de Sulka

Conheci Sulka (cujo nome também foi mudado) no Centro de Esposas Desativadas de Oakland, Califórnia Esse lugar lembra as duras privações de um campo de trabalhos forçados. Centro de Esposas Desativadas. Bem poderia ser o escritório de algum pequeno partido político que jamais conseguirá votos substanciais. Umas mesas baratas, cadeiras um tanto desconjuntadas, latas de café solúvel, inúmeras xícaras de plástico e cestos de papel de metal verde decoram o lugar. As mulheres que trabalham ali são voluntárias, elas mesmas esposas desativadas torcendo para que "o Partido" consiga integrá-las de novo. Muitas delas, quando casadas, levavam vidas confortáveis em demasia. Quando seus casamentos se desfizeram, o mundo à sua volta também desmoronou. Ali, pelo menos, há ordem — uma mesa, um telefone, vozes com que preencher os espaços vazios. Ali há trabalho para ser feito, em favor de outras menos afortunadas do que elas: mulheres que acabaram de levar o fora e desconhecem o que lhes aconteceu. Mulheres com olhos vermelhos e inchados de chorar e unhas roídas. Mulheres que se levantam da cama já com um cigarro aceso e adormecem à base de Valium misturado com vodca.

Sulka Bliss ainda não se entregara à rotina das pílulas com álcool, porém, quando nos conhecemos, ela certamente estava muito deprimida. "Não sei fazer mais nada, exceto tomar conta de filhos", disse-me. "Duvido até que consiga bater trinta palavras por minuto."

Sem prática (e claramente sem auto-estima), Sulka tinha uma coisa a seu favor, da qual a maioria dos empregadores talvez nunca tivesse ouvido falar, no mínimo porque poucos deles demonstram algum interesse por potencial: no curso colegial, verificara-se que Sulka Bliss tinha um QI de 135.

"Naquela época, quando recebemos os resultados dos testes, fiquei surpresa", contou. "Eu disse a mim mesma: 'Acho que vou ser cientista'. Eu sempre fora ótima em matemática, mas naquele tempo as meninas não eram criadas para serem cientistas, e meu irmão ficava me gozando por causa disso. Mesmo minha mãe achava que eu estava esnobando quando dizia que queria tornar-me uma cientista."

Depois do colegial, Sulka fez um curso de dois anos numa faculdade e em seguida casou-se.

O tempo dera cabo das ambições de Sulka. Muito tempo atrás, tanto que ela mal conseguia recordar-se com precisão da época, ela fora uma jovem magra, ativa e enérgica. Mas a cada gravidez engordava mais. Atualmente, veste-se com largas túnicas e cáftans de algodão tingidos com batique. Envergonhada de sua gordura, Sulka cuida bastante dos demais itens de sua aparência; o resto, contudo, não mais lhe importa. Os gerânios de seu jardim morreram. O jardim morreu. Os sulcos entre os tijolos que cobrem as paredes externas de sua casa pedem mais argamassa. A tinta sob o beiral do telhado começou a desbotar e descascar. Incrível, pensa Sulka, como uma casa pôde começar a cair aos pedaços em menos de um ano.

Fazia quase um ano que Dick partira. Ele não fora embora por ela ter engordado (como às vezes ela gostava de crer). Não, aquele homem estivera com um pé fora de casa desde que obtivera seu doutorado em biologia molecular — um título que, de certo modo, Sulka lhe dera, trabalhando para sustentá-lo enquanto ele progredia triunfalmente na carreira acadêmica. Além de trabalhar em período integral como secretária, fazia serviços de datilografia nos fins de semana.

Evitara filhos até que Dick se estabilizasse financeiramente. "Pode parar agora", ele lhe dissera, quando, num mesmo mês, recebeu o grau de doutor e uma oferta de emprego no Califórnia Institute of Technology. Logo Dick estava instalado numa sala do CIT com janelas altas, escrivaninha de carvalho, lousa, alunos e um laboratório sustentado por subvenções governamentais.

Sulka deixara o emprego com um grande suspiro de alívio e contentamento. Agora poderia plantar seus gerânios. Agora, sem dúvida, poderia engravidar.

Sulka limpou, lavou e cantou durante um ano, apren¬deu a fazer pão em casa e, na primavera de 1965, deu à luz o primeiro bebê, uma menina. Ela e Elsie viviam juntas numa casa ensolarada, e eram tão próximas que quase constituíam uma só pessoa. Havia coisas novas surgindo na vida de Dick, mas daí toda a existência dele começara a distanciar-se da dela, tanto quanto a vida dela ia se tornando cada vez mais apartada da dele. Recebiam amigos várias vezes ao ano, de quando em quando compareciam a festas do departamento; essas coisas, todavia, não atraíam muito o interesse de Sulka. Seu coração estava em casa, no ninho.

Ela teve mais filhos, e ganhou mais peso em cada gra¬videz — e nunca conseguia perder esse extra. Por volta de 1970 ela estava muito redonda e feliz, com três criancinhas alegres que se agarravam a ela como à vida. Quanto a isso, tudo bem com Sulka. Ela fazia suas próprias roupas (nada do que havia nas lojas lhe cabia) e penteava e trançava o cabelo, longo e reluzente. Aonde quer que fosse — ao supermercado, à biblioteca, ao cinema à noite —, levava com ela os filhos. Dick, em geral, não estava presente. Sulka nunca deu mostras de se importar com isso. Os cientistas são preocupados e obsessivos. Dick não era diferente deles. Ela tinha o que desejava. Dick não a incomodava.

Aí, no início dos anos 70, tudo se precipitou com repentina intensidade na vida de Dick. Ele e seu grupo de pesquisadores estavam envolvidos no processo de elaboração de algum grande avanço tecnológico, e freqüentemente passavam a noite no laboratório, dormindo apenas algumas horas antes de retornar ao trabalho. Quando Sulka o via, o que era muito ocasional, seu rosto estava pálido e seus olhos, obscurecidos, como que para impedir que o mundo externo o atingisse e interferisse em seus processos de pensamento. Sulka por vezes imaginava o cérebro do marido funcionando como uma máquina cheia de botões e programações complicadas difíceis de manejar e, em última análise, cômicas. Dick era uma pessoa ativa. Ele trabalhara muito — mas aonde, Sulka às vezes se perguntava, toda essa atividade iria conduzi-lo?

Conduziu-o (bastante subitamente, foi a impressão dela mais tarde) a um novo e misterioso negócio, no qual todos os tipos de grandes corporações estavam despejando fundos, algo chamado ADN recombinatório — era a engenharia genética. "Isso vai ser a salvação da crise de energia", anunciara Dick uma noite, um pouco alto com várias doses de vinho e com os olhos cintilando de entusiasmo. "De fato, será a salvação do futuro!"

Sulka recordava a palavra "salvação" porque, à luz de uma visão retrospectiva, tivera a impressão de ele ter ido embora na manhã seguinte à noite em que fizera aquela afirmação. Será que Dick de alguma forma se identificava com seu trabalho a ponto de ter começado a se visualizar como o salvador?

Como geralmente fazem as mulheres prestes a serem abandonadas pelos maridos, Sulka começou a analisar Dick freneticamente, tentando discriminar as motivações dele e vê-lo de modo frio, "objetivo". Ela estava passando por um processo de tentativa de obtenção de controle. Era, é claro, tarde demais para qualquer coisa. O esfriamento emocional — ou, melhor dizendo, a indiferença — se implantara havia muito. Dick não tardou em partir para a conquista de novos mundos: um novo emprego, um novo salário e, inevitavelmente, uma nova mulher.

"Imagine só", disse Sulka, chorando, na primeira vez em que procurou o centro, depois de muito hesitar — desaprovava o rótulo de "esposa desativada", porém sentia-se no fim da linha e carente da ajuda de alguém. "No momento mesmo em que alcança o sucesso ele me abandona com três crianças para cuidar e quase sem dinheiro para pagar as prestações da casa."

Somente depois de ter recebido um pouco de aconselhamento psicológico é que Sulka pôde começar a parar de ver sua vida como inteiramente determinada pelo marido e, em vez disso, enxergar o papel que desempenhara no que ocorrera. Lentamente, deu-se conta de que renunciara a si mesma havia muito tempo, antes mesmo de ter terminado o curso colegial. Tivera, é claro, muito reforço nesse sentido por parte dos pais e amigos — inclusive do orientador da escola, que sugerira que seu QI de 135 deveria ser direcionado para alguma "carreira" de cunho secretarial. Enfim, Sulka compactuara com todo o programa. Acedera a tudo. Havia razões para ela sentir-se tão fraca, inútil e inutilizada; agora começava a ver que pelo menos algumas dessas razões tinham a ver com ela!

Casar-se e propiciar ao marido os cursos de mestrado e doutorado fora uma linha de conduta segura e reforçadora de ego para Sulka, em seus vinte e um anos de idade. "Ela não é maravilhosa?", todos diziam na época, quando ela entrava em casa com o cheque semanal de seu salário. "Ele tem muita sorte em ter-se casado com ela." Realmente, o desafio de sustentar a ambos fora estimulante para ela, embora o trabalho fosse chato. O que Sulka não reconhecia então, no entanto, é que o desafio era superficial. Ela nunca julgara qualquer tipo de trabalho em termos do desenvolvimento de seu próprio potencial. E cada dia, dirigindo-se para o serviço, sempre a acompanhava a crença subjacente: "Isto logo terminará".

E logo terminou mesmo. Com a perda do emprego e o retorno ao ninho, todos os traços de independência de Sulka morreram. O desafio que estimula o crescimento desapareceu; conseqüentemente, seu crescimento cessou. Agora, dez anos mais tarde, ela estava pagando o preço disso em perda de auto-estima e, pior que isso, na perda da coragem. Sulka levaria muito menos tempo para recuperar sua antiga perícia como datilografa do que para reconquistar a confiança e a força.

Se Sulka Bliss houvesse conhecido Adrian Holzer, ainda confortavelmente refugiada na proteção do lar, do outro lado do país, ela possivelmente teria se distanciado do próprio sofrimento o bastante para dizer a Adrian: "Aposse-se de sua própria vida; não espere nem mais um minuto. Seguir o caminho da menor combatividade não dá segurança nenhuma. É mera ilusão!"

 

                   Presa entre dois mundos

A ambivalência intensa e não-resolvida a respeito de papéis e sucesso vem sendo correlacionada com sérios sintomas psicossomáticos em mulheres. Antigamente eram as donas-de-casa, entediadas, destinadas apenas a tirar o pó da casa e arrumá-la, que formavam o maior contingente entre as alcoólatras. Agora esse problema se alastrou também entre as fileiras das mulheres "ativas", aquelas que todas as manhãs despedem-se de Johnny e voam porta afora para pegar o trem das oito horas que vai para a cidade. "Comparando-se as mulheres casadas que trabalham fora, as solteiras que trabalham fora e as donas-de-casa, as maiores taxas de alcoolismo localizam-se entre as primeiras", diz Paula Johnson, da University of California, em Los Angeles. O fato de os homens casados que trabalham não serem afligidos em proporção igualmente alta por problemas de alcoolismo levanta, afirma ela, "a questão da possibilidade de esse tipo de papel não-tradicional gerar o aumento da taxa de alcoolismo".

Penso não ser o papel — a combinação de trabalho e casamento — o fator determinante do alcoolismo (nas mulheres), mas sim o conflito que as assalta quanto à escolha do papel. A distinção é importante. Escolher significa agir livremente e com total percepção da situação, reconhecendo que haverá conseqüências, e comprometendo-se a aceitá-las, sejam quais forem. Isso não é fácil para ninguém, mas é especialmente difícil para as mulheres, desacostumadas que são a fazer coisas que as deixem expostas ao risco e à ansiedade.

Desconhecedoras do desfecho provocado por suas novas opções, as mulheres se atemorizam. Não avançamos de corpo inteiro; ao contrário, recuamos, paralisamo-nos, tentando vencer num mundo competitivo sem desistir de nossas maneiras antiquadas, "femininas" — sempre tendo nossos perfumes e pós-compactos como muletas. Nós "permitimos" que o homem abra a porta do carro ou nos acenda o cigarro, dizendo a nós mesmas: "Que mal isso pode fazer?" Não é o ato em si que gera problemas, mas o sentimento que em nós se insinua — o sentimento de "Como é bom ser cuidada por um homem".

Em pequenos detalhes as mulheres mostram que desejam continuar a ser mimadas e servidas, especialmente pelos homens. Elas dizem que isso as faz sentirem-se delicadas e femininas. Apreciam esses pequenos gestos de proteção. Por dentro, recitam o credo da revista Cosmopolitan: "Posso ser sexy e bem-sucedida simultaneamente".

Mas elas se enganam. Querer ser protegida e, ao mesmo tempo, querer ser independente é como tentar dirigir um carro com o freio de mão puxado. Para se conseguir as coisas, é preciso ser agressivo se a ocasião o exigir. É preciso ser capaz de defender as próprias crenças, brigar por elas se necessário for.

Também é preciso ser capaz de tolerar atritos. As mulheres são demasiadamente propensas a evitar afirmações que possam de algum modo ser interpretadas como hostis. Isso traz a ameaça da solidão. Temendo o isolamento, deixam de cultivar em si mesmas as técnicas e os talentos necessários ao progresso profissional. Como observou Lois Hoffman, da University of Michigan: "Defender um ponto de vista, ganhar uma discussão, vencer outros em situações competitivas e levar a cabo a tarefa que tem de ser feita sem se deixar obstaculizar por questões de relacionamento são comportamentos extremamente penosos para as mulheres, independentemente do grau de inteligência que possam apresentar''.

 

Com efeito, as mulheres estão, a um só tempo, tentando avançar e manter-se na retaguarda. Nossa incapacidade de nos visualizarmos positivamente como trabalhadoras femininas corrói nossas mais prezadas ambições. De fato, toda a nossa relação com o trabalho é reativa. As mulheres trabalham quando os homens lhes "permitem" trabalhar (o que, naturalmente, significa: quando os homens precisam que elas trabalhem). Devido ao atual estado da economia, os homens hoje precisam que trabalhemos; assim, a esposa que trabalha fora é sancionada socialmente. As mulheres sentem que a nova liberdade para trabalharem — e serem esposas — não vem de dentro delas, mas de fora. Apenas receberam licença para isso. "Meu marido se alegra por ainda podermos jantar fora uma vez por semana, graças ao meu salário", queixou-se uma professora de nível colegial, cônscia do interesse egocêntrico do marido. "Antes, porém, de sermos atingidos por essa monstruosa inflação, ele sempre dava indiretas com relação à bagunça da casa, insinuando que meu trabalho afetava nossos filhos. Não tenho dúvidas de que sua atitude se modificará novamente assim que a economia se estabilizar."

Sem dúvida. A atitude de todo o país "modificou-se novamente" após a Segunda Guerra Mundial, quando as mulheres, não mais necessárias nas fábricas, foram mandadas de volta aos lares. E obedecemos. E, aparentemente, nada aprendemos da experiência.

As mulheres são reagentes. Nossa posição não se apóia em si mesma, nem é auto-geradora. Ainda tomamos nossas decisões básicas de acordo com o que "ele" quer, o que "ele" permite. Porque, lá no fundo, ainda "o" vemos como o Protetor?

É muito esclarecedor observar o que acontece com uma mulher quando seu casamento se desfaz. Repentinamente ela começa a se expandir. "Ora vejam só!", pensa consigo mesma. "Então isto é que significa ser adulto." Agora que ela é forçada a assumir a responsabilidade financeira da casa, agora que cabe a ela pagar as prestações ou o aluguel e comprar os sapatos dos filhos, a ambivalência some. Que alívio para ela não ter que lutar mais com os temas do pânico do gênero feminino, não ter que se preocupar com a "correção" do que está fazendo, nem recear que os outros possam vir a apontá-la como uma pessoa dura e invulnerável — não-feminina. Seu salário sobe; incrementam-se suas atribuições. Há uma relação nova e sadia entre trabalho e dinheiro, um profissionalismo agora sancionado. Finalmente autônoma!

Mas ela não está reagindo? Não está simplesmente seguindo outro ditado, tão velho quanto o próprio reino animal? Ela é a leoa cuidando de sua prole; quem pode acusá-la por isso?

Mas se essa mulher se casa novamente ou se junta a outro homem, você verá o filme rodar retroativamente: — e rápido. Agora ela está de novo "em casa". Volta a brotar nela a sensação de segurança.

Mais uma vez acompanhada pela atitude de deferência.

"Comecei com pequenas gentilezas", contou uma mulher que, aos trinta e dois anos, estava casada pela segunda vez havia três anos. "Sempre que ia à cozinha tomar café, trazia também uma xícara para ele. Quando me dei conta do fato de o estar servindo, pensei: 'Ei, isso é legal, eu o amo, que mal há nisso?' 'Quer um sanduíche, querido?' 'Uma cervejinha?' É óbvio que não demorou para que a situação se cristalizasse, eu sempre indo buscar as coisas e ele lá, sentado, aguardando ser servido. E eu já tinha passado por tudo isso antes, e sabia que esses detalhes são significativos. Não são 'nada'. Apontam para a existência de um contrato: 'Você cuida de mim no mundo, e eu cuidarei de você em casa'. De repente ele age de acordo com o contrato, você idem, e, antes que você se aperceba, está exatamente no ponto de onde partiu."

Uma mulher que vivera só por muitos anos após o fim de seu casamento descobriu que suas atitudes para com o novo amante começaram a mudar logo depois que ela passou a viver com ele. "Meu trabalho começou a se afigurar um pouquinho menos importante, e o dele, um pouquinho mais. Nem se tinham passado seis meses e eu já estava pensando no futuro dele como o nosso futuro. O meu futuro de algum modo saíra da jogada."

Enquanto tinham vivido em apartamentos separados, eles haviam sido duas pessoas com carreiras diferentes, sendo que ambas as carreiras guardavam grau similar de relevância. "Quando fomos viver juntos, senti que estava me transformando novamente numa esposa." Fundida nele. Indiferenciada. Metade de um todo, e, aliás, uma metade com menor importância do que a outra.

Tal como ocorria quando estávamos na escola, as prioridades se alteram e mal chegamos a perceber o que está acontecendo. O "ser com" ganha precedência em relação à independência. Começamos a compartilhar tudo — nossos projetos, nossas idéias, nossas inseguranças básicas — de maneira a não termos que estar tão sós com isso tudo. Subitamente torna-se fácil começarmos a voltar-nos para ele a fim de recebermos apoio e aprovação a tudo o que fazemos e pensamos. Isso se revela abertamente na seguinte coloca¬ção de uma jovem paciente da Dra. Moulton: "Preciso de um homem que empreste importância ao que sinto ser importante".

Uma vez tendo um homem por perto, a mulher tende a cessar de crer em suas próprias crenças. Após algum tempo, apenas as tem como "sensações". Vagarosamente, ela passa a abdicar de si mesma, dando as costas à sua autenticidade. Algo peculiar vai se delineando — a velha reprise primordial. Sem consciência disso, ela vai reestruturando as coisas de modo a parecerem — e a oferecerem as sensações — como eram entre mamãe e papai, sendo papai o foco central da vida familiar e mamãe, uma subordinada feliz. "Casei-me com um homem tão diferente de meu pai quanto eu era diferente de minha mãe", conta Celia Gilbert, uma escritora que mora em Cambridge. "E, no entanto, que coisa incompreensível! Nosso casamento acabou se estruturando de modo muito semelhante ao de meus pais."

Por que isso acontece? Dizemos detestar tudo isso. Dizemos que não queremos viver com um homem da forma como nossas mães viveram com nossos pais: dócil, complacentemente, jamais de posse dos requisitos de uma posição de independência, ou seja, uma fonte própria e suficiente de recursos financeiros. Mas essa é uma declaração superficial. Emocionalmente, se não intelectualmente, a decisão de viver contrariamente à mãe (pois é assim que isso é comumente experimentado) é aterradora. Mamãe pode não ter tido uma vida tão boa, mas ao menos sabemos como foi sua vida.

A menininha absorve sua definição de feminilidade a partir da observação das mulheres a seu redor. Daí em diante, ela "sabe" o que dela é esperado. Se decidir ir contra isso, assinala o psiquiatra Robert Seidenberg, ela estará tomando uma decisão tão fundamentalmente perturbadora que se constituirá para ela numa crise moral. "A menina pequena que vê a mãe, tias e avós completamente engajadas em assuntos domésticos e desdenhosas das mulheres ativas no mundo", ensina o Dr. Seidenberg, "pode acabar sentindo que quaisquer outros papéis para as mulheres são 'não-naturais e imorais'."

 

O que será da mulher que se desviar do modelo materno? Internamente, a mulher se sente como a criança na expectativa de que algo de ruim irá acontecer se der aquele passo em direção à independência — se se apartar da mãe e seguir o próprio caminho. Além disso, pergunta-se, onde irá achar gratificação na vida, se rejeitar o caminho tomado pela mãe? A mulher sem um modelo de papel adequado vê-se diante de um profundo dilema psicológico. Ela não quer ser "como a mãe". Nem deseja ser "como o pai". Como, então, será? Essa confusão de identidade de gênero é a essência do pânico do gênero feminino.

 

                     A frenética esposa-mãe-trabalhadora

Renunciar às próprias ambições — tal qual as mulheres nos estudos de Horner — constitui uma "solução" ao problema do pânico do gênero feminino. Outra é tentar manter o velho papel doméstico e, simultaneamente, engajar-se numa nova carreira, com todas as suas novas exigências. Os efeitos negativos dessa "solução de papéis múltiplos" — a fadiga, a ansiedade, o ressentimento por ter que fazer demais — são largamente discutidos entre as mulheres hoje. Há livros e artigos de revistas que tratam do assunto. Mas ninguém fala da causa. Por que as mulheres estão se sobrecarregando freneticamente de trabalho? A resposta a isso se associa ao nosso conflito inconsciente, que permanece oculto.

"O trabalho tornou-se um lugar onde se deve permanecer o dia todo e do qual se sai toda noite, a fim de que se possa ir para casa, para o emprego 2: cozinheira, empregada, governanta e babá."

"Estou todo o tempo tão cansada que cada vez mais sonho poder trabalhar apenas algumas horas por semana, embora certamente não queira deixar de ganhar o que ganho agora, trabalhando quarenta horas semanais."

"Ah, se eu pudesse dispor de uma horinha que fosse no meio do dia para apenas sentar-me em casa inteiramente só, sem ter que atender a meu filho, meu marido, meu cachorro, meu gato, meu chefe — tempo para simplesmente sentar-me, totalmente sozinha..."

Essas mulheres respondiam com essas colocações a uma pesquisa conduzida pela Comissão Nacional para o Estudo de Mulheres Trabalhadoras. Nessa pesquisa ressaltava-se como a maior queixa aquilo que freqüentemente é citado como sendo a "carga dupla" feminina: o ganha-pão e as lides domésticas.

A exaustão é um sintoma prevalente entre as mulheres de nossos dias. Natalie Gittelson disse que a frase "Estou tão cansada" corria como um fio interminável entre os milhares de cartas enviadas por leitoras da revista McCall's em resposta a uma sua recente pesquisa. "Naturalmente, várias mulheres que trabalham fora valorizam seus cheques de pagamento", Gittelson escreve, "e muitas mais relatam que seus maridos valorizam-nos ainda mais do que elas. Mas há uma enorme fadiga expressa diante das exigências às vezes sobre-humanas da dupla vida — lar e trabalho — que tantas mulheres têm que enfrentar.

Antes ansiosas por saírem de casa rumo ao "mundo adulto", as mulheres agora estão começando a clamar por auxílio. O problema é que realmente adentraram o mundo adulto, mas sem terem saído de casa por inteiro.

"Minhas energias estão tão divididas!", lê-se em uma das cartas enviadas à McCall’s. "Passo dez horas por dia em meu emprego e, à noite, ainda tenho de limpar e cozinhar. Nos fins de semana meu tempo é consumido em faxina e demais serviços que não foram feitos durante a semana. Enche!"

"Sexo é um grande problema para nós", escreveu outra mulher, falando de si e do marido. "Trabalho o dia inteiro para depois chegar a uma casa suja, com roupas para serem lavadas e o jantar por fazer. Estou sempre cansada."

Uma terceira esposa escreveu: "Eu sou conveniente para ele. Sou fonte do muito necessitado segundo salário no orçamento, cuido de seus filhos, da casa, e constituo uma bela peça de propriedade. Mas sinto-me tão pressionada pelas contas e por ter que trabalhar! No início eu o queria, mas agora tenho sempre a sensação de estar em falta com as crianças".

 

Ao fim da década de 50 e princípio da de 60, comentava-se que as mulheres russas eram bestas de carga. Toda aquela proclamada igualdade, suspeitávamos, apenas ocultava vidas absurdamente desumanas. A conceituação de bem-aventurança da esposa russa era trabalhar o dia inteiro como gari e, em casa, à noite, cozinhar e lavar. Lembro-me de ter visto mulheres americanas rindo-se disso. Naquela época, éramos mais anti-russos do que pró-mulheres, e tínhamos a impressão de que as russas estavam sendo covardemente enganadas.

Agora, vinte anos mais tarde, cá estamos nós, fazendo exatamente a mesma coisa. As mulheres americanas são as novas bestas de carga — trabalhando acima de suas forças, fatigadas e emocionalmente subnutridas. A maior parte das mulheres casadas que trabalham fora, na América, despendem de oitenta a cem horas de trabalho por semana, incluindo as tarefas domésticas. Nossa economia, sob o peso da inflação, não mais permite aos maridos perceberem o suficiente para sustentar suas famílias; por conseguinte, eles estimulam as esposas a, também elas, procurarem o "pão nosso de cada dia". Entretanto, para a maioria dos homens, o lar continua a ser o refúgio onde possam descansar e ser servidos. "Poucos maridos se dispõem a assumir parte do trabalho doméstico", relata o semanário The Wall Street Journal, concluindo uma série de artigos sobre os feitos e as tribulações da "nova mulher trabalhadora".

No outono de 1980, três grandes agências de publicidade anunciaram os resultados de estudos que haviam efetuado para verificar como "a nova mulher" estava afetando "o marido americano". Batten, Barten, Durstine e Osborne afirmaram cruamente: "O homem de hoje deseja que sua mulher trabalhe em dois empregos: um fora, outro dentro do lar... A maioria (deles) não se mostra disposta a retirar do encargo das esposas as responsabilidades pelo tradicional papel doméstico".

Dentre os homens entrevistados pela BBDO, mais de setenta e cinco por cento disseram que suas esposas eram responsáveis pela cozinha; setenta e oito por cento achavam que cabia às esposas a limpeza dos banheiros. Barbara Michael, vice-presidente da Doyle Dane Bernbach, conclui no relatório daquela agência: "Aos olhos do marido típico, a maior desvantagem em ter uma esposa que trabalha fora é o efeito não sobre os filhos, mas sobre ele mesmo; o marido dessa mulher precisa dedicar mais tempo às tarefas domésticas de que não gosta. E, excetuando-se cortar a grama e consertar pequenas coisas, ele em geral não gosta nem um pouco dessas tarefas".

Com base em entrevistas realizadas com mil homens, a firma Cunningham e Walsh concluiu: "O fato de agora as mulheres ocuparem posições profissionais não causou grande impacto sobre o papel tradicional dos maridos dentro do lar".

Esse tipo de pesquisa pode ser útil para publicitários, porém certamente não diz nada às mulheres que elas já não conheçam. Nunca encontrei uma mulher cujo marido ou companheiro divida uma parte igual do trabalho doméstico com ela. Independentemente de ela trabalhar em regime integral ou ter filhos, ou ganhar mais que o marido, no tocante ao cuidado da casa e dos filhos a mulher sempre faz mais. E queixa-se continuamente de não conseguir "convencê-lo" a fazer isto ou aquilo.

Por que as mulheres são tão incrivelmente ineficazes? Assim que começamos a examinar essa questão ressalta o fato de que o problema tem tanto raízes nas necessidades femininas quanto nas masculinas.

Uma pesquisa conduzida em todo o país há apenas dois anos perguntou a mulheres com empregos fora do lar o que consideravam mais gratificante em termos pessoais: o trabalho doméstico ou o emprego. "O de casa!", foi a sonora resposta.

"Fico perplexo", disse o editor-chefe de uma grande editora, tentando compreender as atitudes contraditórias expressas pela esposa. "Poucos dias atrás, a mãe dela veio jantar conosco. Nós três preparamos a comida juntos. Após o jantar, pus o avental e comecei a lavar os pratos, quando as duas voaram para o meu lado como siamesas, dizendo: 'Não, não, não faça isso. Nós lavaremos a louça'. 'Tudo bem', disse eu. 'Eu posso fazer isso.'

"É estranho", prosseguiu o homem. "De algum modo minha disposição em lavar os pratos após já ter ajudado a fazer a comida encontrou por parte das mulheres uma reação que indicava que eu estava indo além do que me competia. Elas ficaram muito nervosas. Não queriam que eu fizesse mais do que me cabia. Parece-me que não lhes ocorreu que, lavando a louça naquela noite, elas também iriam além do que lhes cabia."

Acontece que a esposa desse homem é uma mulher de negócios bem-sucedida e muito bem-paga. Ela e as amigas passam muito tempo discutindo a constante injustiça da posição da mulher no mundo. Ela professa o anseio por uma divisão justa de trabalho tanto a nível profissional quanto doméstico; aparentemente, contudo, quando as circunstâncias a convidam a abandonar os velhos papéis domésticos, ela se vê invadida pela ansiedade. Refletindo, o homem prossegue: "Era como se, lavando os pratos, eu estivesse roubando algo dela. Quer dizer, delas". Ele sorri ao fazer a retificação, lembrando-se do que provavelmente era o aspecto mais pertinente de todo o episódio: o fato de que a mãe da esposa estava presente na situação. (Quando a mãe entra em cena, grande parte das mulheres se vêem tropeçando desajeitadamente em suas recém-surgidas liberdades.)

O fardo doméstico nada tem a ver com a quantidade de dinheiro percebida. "ROMANCISTA PASSA ROUPA EM MEIO A UMA TORRENTE DE OFERTAS MILIONÁRIAS" podia ter sido a manchete dos jornais publicados no dia 18 de setembro de 1979. A escritora era Judith Krantz, cujo primeiro romance, Luxúria, fora enorme sucesso de vendagem e cujo segundo romance, Princesa Margarida, estava sendo oferecido em leilão a diversas editoras. O que Judith Krantz estava fazendo lá na Califórnia no dia em que se avolumavam as propostas dos editores de Nova York, competindo com somas fantásticas pelos direitos do livro?

"Meu marido e eu chegamos da Europa ontem", disse ela a um repórter. "Por isso, desde as sete da manhã até agora, estive passando roupa."

Passando roupa! Essa foi a "grande notícia" de primeira página do jornal The New York Times, numa reportagem que revelava que os direitos do romance de Krantz acabaram sendo vendidos por três milhões e duzentos mil dólares — um milhão de dólares a mais do que qualquer outro romance na história da editoração. Naturalmente a Sra. Krantz teve que rir de si mesma ao afirmar que passar roupa era "uma terapia contra a ansiedade da espera".

Nos anos 60, a limpeza de privadas era tema de muitas conversas entre diversas mulheres. "Não importa quanto ele ajude dentro de casa, há uma coisa que ele jamais fará", comentavam as esposas em relação aos maridos, meneando solenemente as cabeças. "É como se ele nem tomasse conhecimento da existência da privada. Limpá-la é obrigação da mulher."

Hoje o desafio que se impõe às mulheres não é como levar o marido a fazer mais, mas como ganhar o mesmo que ele sem abandonar todos os pequenos rituais domésticos que as convencem de ainda serem "femininas".

"Ajudei-o a desenvolver uma incapacidade para as mais simples tarefas domésticas", confessa Cynthia Sears, uma formanda de Bryn Mawr que por fim se separou do marido e atualmente vive com as duas filhas em Los Angeles. Escrevendo sobre suas experiências num livro chamado Working it out (Uma elaboração), Cynthia descreve um estilo de vida familiar reconhecível por nós todas. "Quando comentava com meus amigos — com certo orgulho disfarçado por uma máscara de exasperação — que ele nunca havia trocado uma fralda, nunca se levantara à noite por uma das meninas estar doente, nunca lhes dera de comer, eu não via que minha 'tolerância' tinha na verdade sufocado nele um real senso de participação na criação de nossas filhas. A única coisa que eu conseguia enxergar era o benefício imediato de evitar qualquer crítica ou queixa." Aos trinta e um anos de idade", diz Cynthia, "comecei a fazer terapia. Nessa época o ressentimento que se alojava em mim expres¬sava-se como uma sensação física — um aperto no peito e o sangue latejando".

Além de ajudar-nos a reprimir nossa ansiedade relativa à ambição e à realização, a manutenção do papel de rainhas do lar nos ajuda a ignorar igualmente outros temas. O estado exaustivo causado pelas constantes ocupações pode obscurecer muita coisa. Todas nós já ouvimos falar de mulheres — algumas de nós são essas mulheres — que possuem meios de pagar empregadas, mas não o fazem. Por quê? Precisamente porque, contando com ajuda, ver-nos-íamos perigosamente livres.

As mulheres estão começando a descobrir que nada é mais ameaçador do que ir ao encontro da liberdade. É um medo nem um pouco atenuado pelo fato de tender a detonar como uma bomba-relógio, desde o momento em que as necessidades básicas de sobrevivência são satisfeitas e inexiste a pressão financeira que justifique a ambição feminina.

 

                   Disfarçando o conflito através da labuta doméstica

O talentoso casal Evelyn e Richard Melton tem uma renda familiar em muito superior à da maioria dos americanos. Essa renda lhes é garantida por empregos que desagradam a ambos. Richard ganha aproximadamente setenta mil dólares anuais como diretor de arte de uma agência de publicidade. Evelyn ganha também mais ou menos isso como modelo. Conjuntamente, sua renda, livre dos pagamentos de contas domésticas, ultrapassa os cem mil dólares anuais. Todavia, por uma série de erros financeiros que os levaram a adquirir mais do que realmente podem manter (em parte para compensar o tédio originado do fato de trabalharem em coisas pelas quais não sentem mais entusiasmo), Richard e Evelyn dizem não lhes sobrar dinheiro para contratar serviçais. Portanto, Evelyn faz o serviço de casa, o que implica — como sempre — não somente encerar o chão e limpar os banheiros, mas ainda todo o trabalho decorrente da organização de um lar e da criação dos filhos. Três ou quatro vezes por semana, ela toma o trem de subúrbio para Manhattan, onde trabalha como modelo; ela também limpa, cozinha, vai ao supermercado e lava roupa. É ela quem marca todos os compromissos e consultas com médicos e dentistas para os membros da família, e quem cuida para que eles não se esqueçam deles. É ela quem leva os filhos de automóvel a todos os lugares. "Isso é só por mais alguns anos", consola-se a si mesma. Bem, na verdade, cinco ou seis anos. Seu filho mais novo está na quarta série. (É o segundo casamento para ambos.)

O que Richard está fazendo enquanto isso? Bem, Richard está extremamente ocupado. Entre suas aulas de levantamento de peso e mergulho, para não mencionar as horas que passa à noite tirando cópias e revelando filmes em seu quarto escuro, quase não dispõe de tempo durante o dia. Deve-se dizer a seu favor que Richard não é uma pessoa frívola. Ele está lançando as bases para uma grande mudança de vida, planejando trocar a agência (no momento adequado, é claro, em termos de estabilidade financeira) por uma atividade que o apaixona: a fotografia. O conflito de Richard em relação à sua atual situação — trabalhar quarenta horas semanais em algo que detesta, em vez de fazer o que descobriu adorar — sobrepuja tudo o mais. Aos quarenta e seis anos, Richard Melton sente-se como um homem encurralado pela morte. Tantos anos desperdiçados chateando-se com o trabalho na agência, para somente agora, perto dos cinqüenta, descobrir sua verdadeira vocação! Está fora de questão para ele imaginar-se perdendo um segundo sequer de seu precioso tempo fazendo o serviço de casa! Cada partícula de energia disponível que possui canaliza-se para o que ele chama seu "trabalho real": a fotografia. Entre o levantamento de peso e a concentração despendida na escolha do que fotografar, seu rosto afinou-se muito e seus olhos estão extremamente fundos. Ele é um homem que acalenta um segredo no coração — o fato de ter recebido uma segunda chance.

Evelyn, com quem se encontra casado há dois anos, de esposa veneradora transformou-se numa pessoa que às vezes se sente enlouquecida pela amargura e pela raiva. Richard reserva-lhe tudo o que se relaciona com a casa, e vai-se tornando cada vez mais inacessível a ela. Em todos esses meses, o único sucesso que ela obteve no sentido de conseguir que ele mexesse um dedo dentro de casa foi ensinar-lhe a fazer saladas. De vez em quando ele entra na cozinha e arruma algumas folhas de alface num prato — principalmente quando ela não está lá para fazê-lo por ele. Quanto ao resto, Richard simplesmente não vê, parece incapaz de perceber que ela está constantemente fazendo o serviço doméstico, as compras e o planejamento; é ela quem providencia tudo, limpa a casa e cozinha para receber os amigos e a família dele; é ela quem cuida do filho dele por ocasião de suas temporadas com o pai — além de cuidar de seus próprios filhos.

"Você não precisa fazer isso", Richard retruca quando ela reclama.

"Mas alguém tem que fazê-lo", ela replica.

Ele dá de ombros. Por que alguém tem que fazê-lo? Ele se pergunta, daquele jeito com que apenas as pessoas que sempre tiveram suas necessidades domésticas satisfeitas por Outrem podem se perguntar. Ele conclui que isso é um problema dela, algo cuja "elaboração" toca apenas a ela. (Intuitivamente ele está correto quanto a isso — ela tem que adotar uma posição própria em relação ao problema; — porém, por desconhecer os motivos de seu próprio ressentimento, ele escapa à sua parcela de responsabilidade na situação.)

A essa altura a atmosfera entre os dois se acha obviamente pesada. Richard está confuso com relação ao motivo pelo qual a esposa se mostra tão tensa e distante. Evelyn acha que o motivo de suas atitudes é tão claro quanto a gelatina que serve aos filhos na sobremesa. Há, contudo, algo que escapa também a ela. Inconscientemente, Evelyn não está se permitindo comunicar a Richard sua concepção do que está ocorrendo. É estranho. Ela consegue comunicar seus gostos e desgostos, seus temores e ressentimentos relativos a praticamente tudo o mais que acontece. Sai-se bastante bem no cuidar de si mesma; entretanto, aparentemente não consegue reconhecer e libertar-se da paralisante armadilha em que se meteu, desempenhando o papel da Hausfrau.

Por quê?

Porque, em sua vida particular, Evelyn não tem nenhum equivalente para a fotografia de Richard — nenhum trabalho de que goste, nenhum envolvimento passional com qualquer coisa fora de casa. Embora ganhe quase tanto quanto o marido, ela sente que, em termos de criatividade, Richard ocupa um mundo separado, o que a leva a sentir-se distanciada e só. Na cabeça de Evelyn, o quarto escuro de Richard é uma espécie de rendez-vous. O que ela sente é quase ciúme sexual. Quando adentra o quarto escuro, ele a está abandonando, da mesma maneira como se houvesse se dirigido à alcova de outra mulher.

O ciúme se instala nas ocasiões em que nos achamos menos seguras e integradas internamente. À medida que ela foi notando como o marido, sempre tão adorador dela, estava investindo paixão em sua arte, Evelyn começou a se defrontar com uma crise em sua própria vida — especificamente, o que fazer consigo. Há muito comprometida com um emprego que utilizava apenas uma porção mínima de seus talentos, ela aprendera a abstrair-se de si mesma, entregando-se às atividades de criada, governanta e mãe. Houve época em que o ocupar-se com os itens que definem a dona-de-casa perfeita lhe propiciara a sensação de ser ao menos útil. Coisa que não mais ocorre, e é parte da razão de estar se sentindo tão perdida. Os tempos — e os padrões de expectativas em relação às mulheres — mudaram.

Há dez anos Evelyn tinha o que muitos consideravam uma vida invejável, incluindo uma carreira fascinante e independência financeira. Todos se impressionavam com a facilidade com que ela combinava o trabalho com a vida doméstica. Era perita na cozinha. Enchera a casa com adoráveis peças de antiguidades caçadas em leilões e lojinhas desconhecidas. Cada ano, organizava festas de aniversário maravilhosas para os filhos, e freqüentemente oferecia requintados jantares aos amigos. No Dia de Ação de Graças, não era raro sentar-se à sua mesa, coberta com toalhas de linho branco adamascado e talheres de prata, acompanhada de outras vinte e nove pessoas.

Mas agora era diferente. Agora seu objetivo parecia ser o de trabalhar em alguma coisa que a desafiasse, alguma coisa gratificante. Todo o nível de envolvimento feminino no mundo fora um pouco elevado.

Parcialmente em conseqüência disso, a velha "solução" dos papéis múltiplos — a atividade frenética da esposa-mãe-trabalhadora — não funciona mais para Evelyn. No entanto, ela tende a agarrar-se a ela por recear comprometer-se com algo novo. Durante o último ano, ela considerou tudo, desde matricular-se num curso de literatura de ficção numa faculdade próxima, até prestar vestibular para medicina; porém, na hora H, Evelyn parece não conseguir dar um só passo. Ela vem trilhando o mesmo caminho por tanto tempo que não mais precisa pensar nas coisas. Ela vem fazendo tudo o que se deve fazer a fim de permanecer à frente no mundo dos modelos desde seus dezoito anos de idade, quando foi para a cidade grande. Ela era boa nisso, droga! Conhecia todos os truques. Por que deveria jogar tudo fora agora? Nem todo mundo com mais de trinta anos ainda consegue ganhar dinheiro com isso.

Entretanto, uma vozinha dentro dela discorda. Ela precisa de um novo caminho. Ela realmente não pode mais evitar o conflito. Ele vai crescendo com dolorosa premência em todos os sentimentos conscientes — a raiva, o ressentimento, a sensação de estar sendo ferida e explorada. Exteriorizando seus conflitos internos, ela responsabiliza Richard pelo que ela mesma não se sente capaz de fazer. Isto é: sair de casa. Fazer alguma coisa. Vender a casa de campo, contratar uma empregada ou promover quaisquer outras mudanças necessárias para facilitar sua volta aos estudos ou ao início de uma nova profissão — algo que lhe permita desabrochar como ser total e a robusteça com uma nova energia.

 

As mulheres continuam exercendo o papel de donas-de-casa tenham ou não uma carreira fora, porque ainda se sentem dependentes dos maridos e necessitam de alguma coisa — um serviço — com que lhes retribuir. Essa é a razão pela qual as mulheres investem mais na idéia de família do que os homens. É por isso que, não obstante as horas que despendem no emprego, elas persistem na invenção de pratos elaborados a partir de sobras, na preparação de pães e biscoitos caseiros, na confecção de colchas de retalhos que combinem com as cortinas ou o papel de parede do quarto das crianças.

A segurança do casamento — de ser amada e ter quem dela necessite — pode ser uma bênção para aquela que está sob pressão íntima de fazer alguma coisa por si só mas tem medo. Qualquer reação negativa por parte "dele" pode ser convenientemente transformada num fator externo que venha distraí-la de seus próprios temores internos. O trabalho, especialmente se concebido como instrumento do próprio desenvolvimento pessoal e não apenas como meio de "ajudar a pagar as contas", é uma forma de separar-se ou individualizar-se. Portanto, pode ser considerado como um afastamento do outro — coisa realmente assustadora. Melhor marcar passo no "casamento". "Eu realmente me importo com minha família", é a racionalização para esse recuo vital básico.

A exaustão expressa pelas mulheres de hoje com relação à sua "dupla carga" é o resultado de um conflito — a contradição entre querer resguardar os seguros limites domésticos sempre apreciados pelas mulheres e o desejo de ser livre e realizadora. Este conflito não resolvido e, por conseguinte, paralisante gera o pânico do gênero feminino, retém as mulheres em empregos ou atividades profissionais de nível inferior a seu potencial intelectual e as mantém prisioneiras do "lar".

A maior parte de nós ainda não tomou uma verdadeira decisão relativamente às próprias vidas. A tentativa de manter uma situação na qual nem desistimos de nossa independência, nem de nossa dependência, esgota nossas energias. Conscientemente, culpamos os homens por não mudarem, mas, inconscientemente, ansiamos por que permaneçam do jeito que são.

 

                   Libertando-se

Depois do término de meu casamento, o que me trouxe de volta ao viver por minha conta, não tardou muito para que assomassem à superfície estranhos sinais contraditórios de perturbação. Havia uma tremenda fadiga; eu experimentava crises de choro quando não conseguia dormir. Por outro lado, esses sintomas depressivos eram contrabalançados por momentos de indescritível alegria e energia, instantes de exultação quase maníacos, já que aparentemente destituídos de razão de ser.

Os melhores momentos eram aqueles em que eu imaginava que algum dia obteria um real reconhecimento. Não tinha bem certeza do que isso significava, exceto que equivalia a alguma forma de resgate. "Eles" me descobririam, "eles" reconheceriam meu caráter, meus talentos ocultos e remover-me-iam daquele grande e vazio apartamento sem vida, transportando-me para alguma fronteira excitante, onde satisfações desconhecidas me aguardavam. Às vezes, tarde da noite e ligeiramente bêbada, eu dançava para mim mesma em frente ao espelho. Nessas horas usava apenas um chapéu de abas curtas com uma longa pluma. Ainda recordo essa imagem em parte devido a seu contraste tão gritante com aquele outro aspecto de minha personalidade — a colegial tímida, jovem, insegura e sem experiência. Essa era a parte de mim que desejava permanecer em segundo plano, contentando-se com a mera sobrevivência. Essa era a mulher que se auto-retraía, feliz se o aluguel estava pago e o telefone ainda não fora cortado. De que mais precisava além de um pouco de comida e um pouco de calor?

Perto do fim desse período de minha vida, o aspirador de pó quebrou-se. Sintomático foi eu não haver me mexido para que fosse consertado. "A vassoura serve", dizia-me enquanto varria o apartamento dia após dia. "Afinal de contas, as mulheres não usavam vassouras antes da invenção dos aspiradores?"

Como eu andava assustada na época! Que vida mais limitada e reprimida a minha! Eu me sentia agradecida quando ganhava entradas para o teatro, ou se era incumbida de escrever alguma coisa sobre um espetáculo de balé, pois então podia vê-lo de pé nos bastidores do New York State Theater. Lá meus olhos se arregalavam com um misto de espanto e admiração pela jovem bailarina sobre o palco esbanjando perícia e perfeição, movendo o corpo vigorosamente ao som da triunfante música de Stravinski. Por alguma razão eu preferia pensar na bailarina como uma mágica. Eu não conseguia conciliar a majestade de seu desempenho com o suor escorrendo-lhe pelo corpo ou com as contorções de seu rosto quando, durante uma pausa da dança, tendo as costas para o público, eu a via ofegante, clara e odiosamente cansada. Ela então parecia esgotada, vulnerável, exausta pelo esforço de ter-se entregue por inteiro. Eu não queria ver a conexão entre a magnificência de sua arte e o trabalho duro, torturante, que se tinha de impor para alcançar aquele grau de desempenho. Essa visão me presenteava com uma verdade desagradável: uma mulher arquejante, descontrolada e — mesmo que por um breve lapso — horrível de se ver. Seus esforços afrontavam dolorosamente meus sonhos de glória — sonhos que, sem eu saber, eram caracterizados por uma face quase vingativa: eu não deveria ter que lutar pelo reconhecimento. Ele deveria vir a mim tão fluidamente quanto um manto de seda caindo-me pelos ombros.

Fortes ondas de oposição estavam em ação. Ao mesmo tempo que minha auto-estima era dolorosamente baixa, minhas fantasias a meu respeito eram grandiosas. A idéia de que realmente deveria empenhar-me para conseguir o que almejava era humilhante; ela parecia validar aquela outra terrível opinião sobre mim mesma: que, não sendo muito inteligente e com certeza não-original, só me restava mourejar. Eu era a insignificante irmã adotiva cuja única razão de ser era a de manter a lareira acesa, o borralho limpo. Tal como Cinderela, eu sonhava com uma fada-madrinha, um príncipe — qualquer pessoa que me proporcionasse uma saída.

Se tudo o que se deseja é segurança, basta uma existência limitada e insípida. Eu não me contentava com isso. Sentada na minha grande cama vazia naquele triste inverno de 1973, com os canos do aquecimento tinindo e o ar quente escapando dos radiadores para turvar as janelas, minha mente era assaltada por imagens de como seria ser forte e autêntica, livre da ansiedade. Aos vinte e sete anos, enfiada em outro apartamento menor com três crianças pequenas, eu costumava imaginar-me usando uma minissaia e botas, atravessando a Fifth Avenue numa Honda vermelha. Agora eu sonhava com outras coisas — com uma produção literária forte e livre: linhas de uma poesia carregada de intensa emoção assomavam-me à mente durante a insônia do meio das noites. Não as pus no papel na época, porém elas me apontavam a intensidade de minha vida interior. Sonhava também com viagens, com idas e vindas com novos amigos e amantes, segura numa gratificante nova conexão comigo mesma.

Subitamente, e pela primeira vez, reconheci ser uma pessoa que desejava. Desejo, desejo, desejo, gritava uma voz dentro de mim, apesar de eu ainda ter a impressão de que jamais poderia obter o que desejava. Era como se estivesse vivendo dentro de uma membrana rígida, mas translúcida. Enxergava através dela, porém não conseguia sair. As coisas que chegara a desejar não eram materiais, mas emocionais; não quantificáveis, mas torturantemente evanescentes: a liberdade de fazer e ser, simbolizada por anseios de mais luz, mais ar puro, meses de férias junto ao mar, uma casa no campo.

Reprimidos, meus desejos conflituosos de ser livre e estar em segurança mantinham-me presa. Eu praguejava, eu dançava, eu chorava. O chão sob meus pés se deslocava. Disso tudo adviriam benefícios. Passar-se-iam alguns anos mais; amigos partiriam; as pessoas diriam que eu havia mudado. Eu teria me tornado diferente — uma pessoa diferente. A ansiedade desapareceria, mas com ela igualmente sumiria o que me levava a dançar com ar sonhador na frente do espelho. Se queria curar a cisão que me atormentava, teria que renunciar a muita coisa. Adeus à comodidade da segurança; adeus às glórias que se podem fantasiar quando se está vivendo principalmente voltado para si mesmo.

 

                   Elaborando o conflito interno

Uma vez que o conflito interno entre dependência e independência haja sido percebido, identificado, isolado da fina trama constituída pelo cotidiano do indivíduo, é possível saltar-se do apertado quarto do medo em direção às planícies abertas da liberdade?

Não é tão simples. Há todo um processo aí. Os terapeutas chamam-no de "elaboração". Não é necessário fazer um tratamento (em termos formais) para se aprender a elaborar um conflito. Precisa-se, sim, ser sistemático e persistente. Uma conscientização vaga e generalizada de que se está em conflito não adiantará muito. O empenho concreto, sim. Deve haver um esforço consciente e deliberado para perseguir — e separar — os fios embaraçados que compõem a meada do conflito, se se deseja descer da gangorra imóvel da estase.

O conflito entre querer ser livre e querer ser abrigado e protegido é insidioso porque carrega consigo uma vantagem oculta. O conflito nos permite permanecer exatamente onde estamos. A condição que admitimos desejar (a independência) age como acobertamento de algo que desejamos com igual intensidade, mas não podemos admitir: a dependência — a necessidade de uma deliciosa segurança primordial. Pressionados por esses dois desejos opostos, conseguimos permanecer num limbo. O limbo tem suas vantagens. Pode não ser muito quente, mas também não é muito frio. Não é excitante, mas também não é o mesmo que estar morto.

É impossível elaborar a dependência se se é incapaz de identificá-la; isso é certo. A identificação dessa tendência, pois, é o primeiro passo para a sua resolução. Tem-se que conscientemente procurar seus sinais. Naquela época em que passava as madrugadas rebolando, com meu chapéu de pluma, eu também reclamava muito de que a razão de eu não ganhar a vida como escritora era que "eles" (os editores) eram cegos ao valor do trabalho de todos os pobres escritores. Aliando-me a todos os pseudo-escritores surgidos sobre a face da Terra, fiz-me de vítima. "Recusava-me" a fazer qualquer coisa que contrariasse meus ideais, xingava o sistema e convenientemente continuava produzindo o mesmo trabalho que sempre produzira repetitivamente. A idéia de que eu podia estar com medo de arriscar algo novo, de que talvez eu não tivesse coragem de experimentar coisas diferentes, de entregar-me ao desconhecido — essa idéia jamais me ocorreu. Meus problemas permaneceram confortavelmente escondidos enquanto eu continuava a reclamar.

O trabalho não era a única parte de minha vida atingida pelo conflito. Minha vida amorosa era uma bagunça, dividida como estava entre a necessidade de ser amada e o desejo igualmente forte de rejeitar essa necessidade. O aparente narcisismo daqueles namoros noturnos com o espelho contrastava agudamente com a maneira como eu me sentia ao examinar minhas feições à luz do dia. "Você está envelhecendo", eu dizia, procurando em minha face no espelho novos sinais de decrepitude. "Você está feia." Aquela preocupação com a idade — com qualquer coisa que me levasse a sentimentos negativos, em relação a mim mesma — deveria ter sido interpretada como um sinal.

Naquele tempo eu estava tendo um relacionamento limitado e insatisfatório com um homem casado. Enquanto dançava vaidosamente à noite, de dia receava não conseguir "agarrar" esse homem, que me fascinava justamente devido a seu distanciamento. Não obtendo o amor que a outra parte de mim reivindicava, eu recriminava o homem por ser obtuso, por ser covarde demais para arremessar-se num relacionamento louco e passional comigo. Era, naturalmente, pura projeção. Era eu a covarde. Continuei a encontrar aquele homem várias tardes por semana durante um ano, mantendo-me, pois, segura — e infeliz.

Tanto no trabalho quanto no amor, portanto, eu me via derrubada por inibições de toda espécie. Julguei estar experimentando os inevitáveis temores de uma nova mulher emergindo da estagnação de um longo casamento opressivo. Pode ter sido isso em parte, mas era também muito mais. O impulso para permanecer arriada era forte, e chocava-se com o impulso igualmente forte para abrir-me, realizar, "construir um nome". Os dois impulsos — um expansivo e o outro restritivo — pareciam anular-se mutuamente, deixando-me no meio, paralisada. A fadiga instalou-se em minha vida como a fuligem sobre os telhados vizinhos. Continuava trabalhando, porém era difícil terminar qualquer coisa. Castigava-me por minha lentidão. Roía as unhas.

 

                   O vazamento de energia

As mulheres essencialmente divididas podem apresentar áreas inteiras de suas personalidades eclipsadas pela necessidade de utilizar grandes porções de sua energia a serviço da supressão — ou negação — de um ou outro lado do conflito básico. É assim que tentamos atingir a integridade psicológica. Eu, por exemplo, estava sempre tentando negar meu impulso para a dependência — e desgastando-me nesse processo. Segundo a explicação de Karen Horney, a parte de nós que tentamos suprimir é "ainda suficientemente ativa para interferir, mas não pode ser posta a serviço de ações construtivas". O processo, segundo ela, "constitui uma perda de energia que, de outro modo, poderia ser utilizada para a auto-asserção, a cooperação ou o estabelecimento de bons relacionamentos humanos".

Esta perda de energia é mais um sinal de conflito inerente a uma dependência inconsciente. O vazamento de energia se manifesta na indecisão e na inércia. A mulher em conflito vacila eternamente. Devo pegar este ou aquele emprego? Devo ficar em casa ou voltar a estudar? Devo amá-lo ou deixá-lo? A indecisão gasta energia de modo similar a um aparelho de ar condicionado ligado para aquecer uma casa quando as janelas estão abertas. As decisões podem ser triviais ou fundamentais, mas o processo é o mesmo: obscurecimento, dúvida. Protelações conduzem à autopunição e a um tipo de frustração irada e sem objetivo.

Um estado mental assim cindido nos esvazia, coartando nossa eficácia. Pode-se, por exemplo, levar horas para escrever um simples relatório, ou limpar e arrumar um armário, ou planejar um jantar. Para a mulher em conflito, até as tarefas mais simples parecem requerer uma extraordinária quantidade de esforço.

A ineficácia resultante da tensão interna geralmente se revela também na forma com que nos relacionamos com as pessoas. Se, por exemplo, uma mulher deseja afirmar-se, mas quer igualmente subordinar-se ao outro, ela acabará agindo de modo hesitante.

Se ela precisa pedir alguma coisa, mas também sente que deve impor seu desejo sem passividade, poderá soar autoritária.

Se ela deseja ter sexo, mas também tem um desejo íntimo de frustrar o parceiro, terá dificuldade em atingir o orgasmo. Ela pode jogar a culpa de alguns ou de todos os seus problemas no trabalho excessivo, na falta de sono, na "pouca resistência" ou no que for; contudo, seu estado provavelmente tem muito mais a ver com as contracorrentes de conflito que atuam em seu interior.

 

                   Desfazendo o nó

A resolução de um conflito requer mais do que a sutura das várias fendas e rupturas que dividem uma pessoa. A resolução implica a procura das causas desencadeantes do conflito, de modo que a necessidade de cisão caia por terra.

Como fazer isso? Prestando atenção detalhada em si mesma. Não permitindo que nada se passe sem um exame meticuloso dos motivos, atitudes e modos de conceituar as coisas. Ao surgimento de um fio — alguma pequena atitude inusitada ou algum traço comportamental percebido e aparentemente em contraposição com o resto de sua personalidade —, siga-o. Não diga: "Ah, isso é apenas uma pequena inconsistência em minha mente; isso não faz parte de minha identidade". Faz. E, se perseguir e analisar suas inconsistências, terá o caminho para a raiz básica do conflito subjacente.

Você pode vir a notar, por exemplo, que oscila entre extremos — que, digamos, vacila entre ser severa consigo mesma e ser auto-indulgente. Você pode vir a reconhecer que hesita entre esnobar os outros e acreditar secretamente na superioridade deles. Ou que sua necessidade de subestimar-se prejudica sua capacidade de competir com êxito, ao passo, que, simultaneamente, sua necessidade de triunfo sobre os outros assume a intensidade de uma compulsão. Note especialmente como você oscila entre arrogar-se todos os direitos e o sentimento de que não tem direito a nada no mundo. (Em lugar de ter pena de si mesma por este último sentimento, suspeite de si mesma com relação ao primeiro. Arrogar-se todos os direitos equivale a precisar ter tudo a seu modo — característica evidente de uma personalidade dependente.)

O ponto em questão é o seguinte: "inconsistências" de personalidade não são necessariamente aberrações irrelevantes; de fato, elas provavelmente refletem cisões básicas em sua personalidade. Observe-as fria e objetivamente, sem censurar-se por ser menos que perfeita, e elas a conduzirão à percepção de aspectos fundamentais e previamente não reconhecidos de quem você é. Enfrentando — e aceitando — essas suas partes desconhecidas, você acabará descobrindo um novo "eu" integrado e poderoso.

 

Em meu caso, foram estranhas discrepâncias em minha atitude com relação ao dinheiro que finalmente revelaram distorções básicas em meus relacionamentos com outrem. Vou contar como segui os fios enovelados de meu problema quanto ao dinheiro, até chegar ao gigantesco nó que havia anos se vinha embaraçando ao redor de um distúrbio de caráter central: o desejo de ter alguém que fizesse o trabalho pesado por mim; o desejo de ser salva.

Como descrevi no capítulo I, uns cinco anos depois de meu casamento se dissolver (e um ano após eu ter me juntado a Lowell), descobri, um tanto vexada, que não queria ter nada a ver com dinheiro. No fundo, eu seria perfeitamente feliz vivendo com uma mesada. Aliás, durante quase dois anos foi exatamente assim que vivi. Lowell pagava todas as contas; tomada de uma incômoda inquietude, eu não ganhava quase nada. Minha conta no banco local estava praticamente sempre a zero. (Correspondentemente, ia a zero minha auto-estima.)

O conflito se configurava assim: por um lado, eu achava humilhante ter que ir a Lowell e pedir-lhe dinheiro toda vez que precisava mandar os sapatos para o conserto; por outro lado (foi aqui que tive que desemaranhar inúmeros fios do grande nó interno), a situação mais me agradava do que desagradava.

Muitas brigas foram necessárias até que eu me dispusesse a ouvir — e aceitar — o que Lowell me dizia: que eu estava me acomodando às custas dele, bem como às minhas; que existiam outras coisas mais gratificantes, em termos de realização, que ele poderia estar fazendo com suas energias do que sustentar cinco pessoas. Por fim, não pude mais ignorar a justiça de seus apelos.

Entretanto, não era somente a pressão de Lowell que me estava colocando em conflito. Quanto mais eu lhe permitia carregar a responsabilidade por meu bem-estar, pior eu me sentia em relação a mim mesma.

Depois de grande luta interna, experimentando também enormes quantidades de raiva, afinal arrastei-me para fora dessa "sarjeta" e comecei a realizar alguns trabalhos produtivos. O dinheiro começou a entrar — mais, aliás, do que eu ganhava antes. Todavia, o fato de eu ainda almejar ser cuidada mostrava-se na maneira como eu administrava — ou melhor, não administrava — meus novos ganhos. Eu sempre pensara que, se tivesse o bastante, livrar-me-ia do incômodo de ter que administrar esses fundos. Essa é uma atitude característica. Ah, se eu tivesse bastante dinheiro, opinava, nunca mais teria de ficar fazendo continhas'. Nunca teria que controlar as coisas, administrá-las, tomar consciência delas; nunca teria que reconhecer como tudo é terrivelmente real.

Descobri que meu maior truque era evitar a conferência dos cheques que emitia. Desse modo, eu nunca ficava sabendo do saldo. Quanto mais deixava de controlar meus débitos, mais complicava minha vida. Sem saber com certeza quanto dinheiro possuía em dado momento, eu podia continuar a sentir-me indefesa. Como poderia avaliar se deveria gastar tanto em um novo par de botas, ou se teria meios para pagar um seguro de vida? (Ou, se fosse o caso, comprar um seguro de vida?) A única imagem mental que se me impunha era a do último grande depósito que fizera (como free-lancer, meus depósitos eram grandes, se bem que irregulares). Sem levar em conta todos os cheques que pudesse ter emitido desde aquele depósito, eu apenas tinha na cabeça os, digamos, cinco mil dólares originais.

Mas de vez em quando um instinto de sobrevivência me advertia: "Ei, é hora de prestação de contas". Em geral, chegada a hora em que eu me forçava a calcular minha situação financeira, o saldo, fosse qual fosse, funcionava como um pedacinho de sabão na mão de uma criança. Recusando-me a cuidar de meu pequeno tesouro, recusando-me a protegê-lo, a colocá-lo num local seguro, a tocá-lo apenas quando necessário, eu invariavelmente acabava limitando-me a ler as irrisórias sobras e perguntar: "Aonde é que foi todo esse dinheiro?"

A recusa em lidar com dinheiro funcionava tanto como um símbolo do meu ser indefeso quanto como sua causa.

Eu nunca me dava conta de que meu saldo estava diminuindo; portanto, muitas vezes, levava um choque quando ele se esgotava. Por que essa negação crônica e cega? Eu não queria enfrentar o fato de que ia ter que continuar realimentando meus fundos — incessantemente — pelo resto da vida.

Passados muitos meses de dor e confusão, resolvi: "Faça uma conferência constante de seus gastos e veja como é que vai se sentir".

O que senti foi incompetência. Eu era incapaz de parar de gastar. Estava sempre perdendo, jamais ganhando. Nunca conseguiria nivelar entradas e saídas; nunca poderia criar um equilíbrio entre ambas.

Depois de um tempo, comecei a ver que toda essa história de conferir talões de cheques era uma metáfora. Não fazer a conferência era uma forma de evitação. Eu gostava de não saber de quanto dinheiro dispunha, pois assim podia persistir em não assumir responsabilidade alguma pelas conseqüências de meu comportamento. Quantas vezes as contas do dentista de meus filhos eram postas de lado enquanto eu balançava a cabeça, descrente, dizendo: "Mas este mês simplesmente não dá!" Contudo, outros que ganhavam menos do que eu eram capazes de pagar suas contas. Outras pessoas que eu sabia ganharem menos tinham assistência médica e planos de aposentadoria ou seguros — todas as providências chatas, mas realistas adotadas pelos adultos com o fim de proteger seus filhos e dependentes idosos. Continuei evitando essas realidades, crendo, de algum modo, estar isenta de seus efeitos; acreditando que, se agüentasse o bastante — se pagasse o aluguel, as contas de telefone, e saldasse meus compromissos em geral — eventualmente seria poupada às vicissitudes dessa vida ruim, assustadora e exigente, e seria salva!

Manter os talões de cheques atualizados não constitui apenas uma boa política financeira: é uma boa política emocional. Significa manter um contato dia a dia, ou até momento a momento, com a realidade. Significa não deixar uma explosão de raiva irromper sobre as crianças ou sobre o homem com quem vivo. Significa não deixar as coisas rolarem quando estou deprimida, mas parar, sentar-me e verificar a situação: o que está acontecendo aqui? Vara onde estão indo minhas energias? De onde está vindo minha satisfação? A energia que estou despendendo corresponde ao montante de satisfação produzida, ou há um desnível? Estou gastando mais do que recebo? Se é assim, como posso obter mais?

Questões como estas são parte de um processo auto-regulador. Tento ser minha própria conselheira. Aposso-me da responsabilidade por minha felicidade ou infelicidade, em vez de transferir essa responsabilidade para outrem. A conferência constante de minha "conta psíquica" reduz a possibilidade de eu reter um quadro distorcido e irrealista das coisas. Sei quais são meus "fundos", porém também conheço minhas limitações. Tendo delimitado essas realidades, consigo estabelecer objetivos e prioridades significativos, e viver realisticamente no presente. A conferência constante de minhas ações e atitudes implica meu engajamento concreto na vida, a ativação de minha mudança e crescimento, em vez de uma espera de que "algo aconteça" — de que o príncipe encantado apareça. Eu posso efetivamente tornar-me esse "príncipe" realizador.

 

                   O sonho revelador

Às vezes é somente nos sonhos que nossos sentimentos de desamparo e frustração emergem. Uma jovial e atraente mulher de cinqüenta anos que vinha tentando reunir coragem para abandonar um decepcionante casamento de dezoito anos descreveu-me a nitidez e vivacidade que coloriram o que ela denominou seu "sonho da piscina". Ele teve lugar exatamente um ano antes de sua separação, e constituiu sinal tão evidente que fê-la despertar, sentindo-se inundada de energia. Eis o que ela me contou:

"Eu estava boiando como um cadáver numa imensa piscina e tentando falar, mas não conseguia me fazer compreendida. Jim (seu marido) estava de pé ao lado da piscina, tentando falar com meu cadáver. Eu, 'viva', estava de pé ao lado da piscina, diante de Jim, e gritava: 'Não fale com ela! Você não está vendo que essa não sou eu? Aqui! Olhe para mim! Eu sou esta!

 

A amarga verdade revelada pelo sonho era que seu marido nunca a enxergava objetivamente. Mais importante ainda, revelou que ela estava ativamente envolvida na manutenção de seu "eu real" oculto. Essa era a verdadeira mensagem do sonho; ao reconhecê-la, sentada na cama no meio da noite, ela começou a soluçar. Não era apenas "dele" — o marido indiferente — que ela estava se escondendo. Era de quaisquer pessoas com quem pudesse ter tido um relacionamento íntimo e gratificante. Conquanto desejasse aquele relacionamento, conquanto almejasse desesperadamente tê-lo, ele estava perdido para ela; dar vazão ao "eu real" era por demais ameaçador.

A Dra. Alexandra Symonds contou-me o caso de uma paciente que a procurou por estar se sentindo deprimida. Pouco depois de começar a terapia, a mulher teve um sonho. Estava pendurada do lado externo do prédio de apartamentos onde morava, a muitos metros do chão, agarrando-se desesperadamente ao beiral da janela com as pontas dos dedos. No interior do apartamento, o marido passou pela janela. A mulher tentou gritar por socorro, mas tudo o que pôde fazer foi produzir um murmúrio abafado. O marido afastou-se sem ouvi-la.

O poderoso simbolismo de sonhos como esses representa, segundo a Dra. Symonds, toda uma categoria de mulheres que, embora muito bem-sucedidas em suas vidas profissionais, são profundamente perturbadas pela necessidade inconsciente de serem cuidadas. Os sonhos são reveladores. Para algumas pessoas eles podem constituir-se no primeiro indicador de que algo está errado.

Eles podem também apontar para o fato de que velhos padrões estão se quebrando e há mudanças em curso. Uma professora universitária com um histórico de dificuldades de auto-afirmação sonhou que estava num automóvel, tentando dizer ao motorista o que fazer. Alguns meses depois, após ter-se conscientizado do fato de necessitar exercer mais controle sobre a própria vida, ela sonhou que estava sentada no banco de passageiros de um carro em movimento, que não tinha motorista.

Um sonho desses pode ser perturbador, mas pode também, como nesse caso, significar progresso. A mulher avançou no sentido de atingir a fronteira do reconhecimento de que estava só e desprotegida no mundo, sentada no banco de passageiros, num carro sem motorista. (Uma vez que se perceba isso, pode-se muito bem decidir sentar-se no banco do motorista.)

Um sonho pode ainda ser o arauto de um novo mundo, provindo não da fama ou da sorte, mas derivado de alguma resolução interna. Depois de diversos anos de análise, tive o que desde então apelidei "meu sonho do Harlem". No sonho, o Harlem figurava como uma metáfora para a própria vida, um mundo estranho e heterogêneo, fervilhando de surpresas, alegrias e perigos potenciais. Foi assim que ele se desenrolou:

Estou subindo a pé uma das ruas principais do Harlem, provavelmente a Seventh Avenue. Estou acompanhada de duas amigas. Tenho a impressão de não ter vindo ao Harlem há muito tempo. É assustador; porém, ao mesmo tempo, sinto não ser tão assustador. "Vou conseguir me virar", disse comigo mesma. "Existem jeitos e dicas especiais pra gente se virar no Harlem. Sobreviver aqui não é só questão de sorte."

O volume de ação e movimento nas ruas — a multidão, o barulho, os veículos — me perturba. Estou preocupada com minha segurança. De repente, paramos para olhar a entrada de um lugarzinho apertado especializado em peixe frito. Minhas amigas entram diretamente; eu, atordoada com a enorme variedade de coisas a escolher, permaneço fora, inteiramente imobilizada. Finalmente entro — forço-me a entrar no "restaurante" —, torcendo para que o movimento me ajude a optar assim que eu esteja lá dentro.

Lá, sobre o balcão, há coisas torturantemente apetitosas — escalopes grelhados, imensas metade de abacates. Subitamente vem-me à mente o pensamento de que talvez eu não tenha dinheiro suficiente. Reviro os bolsos e, para meu alívio, acho trinta e cinco cents. "Quero duas ostras", peço ao negro alto do balcão. Ele está vestido de branco, com um grande chapéu de cozinheiro à cabeça. Perpassa-lhe nos olhos um brilho malvado e suspeito quando empurra as ostras em minha direção. Conto minhas moedas desajeitadamente, tremendo, e ele me agarra pelo ombro. "Vi o que você estava fazendo!", grita. "Você estava tentando cobrir a de cinco (cents) pra eu pensar que era de vinte e cinco."

"Não, não estava", protesto, zangada. "Eu só estava confusa." Pego as ostras e saio daquele lugar.

No meio da Seventh Avenue alguns homens estão entretidos num jogo de rua, pulando uma corda em movimento suspensa a uns trinta centímetros do chão. Fito-os, chego à conclusão de que não pretendem machucar ninguém, e salto sobre a corda. Contudo, fico com raiva de minhas amigas por não me terem avisado. "Ei!", grito. "Por que vocês não me avisaram disto antes de eu descer da calçada?"

Elas dão de ombros e eu penso: "Quem sabe eu esteja jazendo uma tempestade em copo d'água. Talvez atravessar uma rua movimentada seja algo que simplesmente implique pôr os pés no chão e seguir em frente".

Quando alcanço o lado oposto da rua, minhas amigas estão me aguardando e as pessoas apinhadas na calçada não parecem mais tão ameaçadoras. É sábado à tarde no Harlem. O sol brilha. Arvores frondosas enfeitam a calçada. Paramos para observar algumas menininhas brincando.

Em meus esforços para captar a mensagem dos sonhos, atento para o que sentia e pensava durante seu desenvolvimento. Este sonho principiou com um sentimento de ansiedade e mal-estar num local estranho. Depois fui colocada diante de uma superabundância de opções convidativas e vi-me incapaz de agir em meu próprio benefício. Rememorando o sonho, acho quase insuportável a sensação de impotência nesse sentido. Havia coisas boas à minha disposição, mas eu não conseguia mover-me em sua direção. Alguma coisa me prendia, como se eu estivesse enraizada na calçada. Imobilizada.

Então veio o momento crucial do sonho. "Vá assim mesmo", instigava-me uma voz interna. "Você não pode ficar aí parada."

Nesse instante, algo em mim decidiu mover-se.

Após entrar no restaurante, senti-me confusa e insegura. Tive que verificar e reverificar minhas moedas. Quanta dificuldade em reunir as moedas suficientes para pagar minha comida! Finalmente, passei pela experiência de ser acusada injustamente — aliás, irracionalmente — pelo homem do balcão. Ele não só estava errado, como foi ruim para comigo — arbitrariamente ruim.

Mas e daí? Esse tipo de loucura não podia mais me abater. A maldade dos homens, a arbitrariedade dos homens eram problemas deles. Agora, capaz de cuidar de mim mesma, se alguém não me tratasse decentemente, eu estava livre para afastar-me. Foi o que fiz. Disse ao homem que ele estava errado e saí.

Fiquei apavorada na rua, mas ainda assim atravessei-a.

Fiquei brava com minhas amigas por não me protegerem, mas notei que estava sendo tola.

O negócio era atravessar a rua — levantar e mover meus pés, olhar se vinham carros e caminhões, abrir caminho entre tudo e todos — por minha conta.

Quando cheguei ao outro lado senti-me melhor, menos vulnerável, realmente deliciada com a beleza daquela tarde. Eu havia cruzado a rua sem me ferir. Comi minhas ostras, que estavam deliciosas, por trinta e cinco cents. Eu me negara a ser intimidada pelo desafiante homem do restaurante. Em lugar de ansiedade, senti prazer. Tive boas sensações observando as menininhas entretidas em sua brincadeira. Minhas costas se aqueceram calidamente com o sol.

Senti-me, numa palavra, inteira.

 

Devo advertir que o momento em que meu "eu interior" disse "Vá!" nada tinha a ver com força de vontade. É impossível "pôr-se de pé na base do tapa", do "ou vai ou racha", e passar à ação entre conflitos extremados. Se força de vontade fosse a resposta ao problema, eu nunca teria escrito este livro. Aquele impulso para a frente do "eu interior" surgiu como resultado de um longo e significativo processo, o processo de identificar as contradições dentro de mim e então elaborá-las. A vontade não pode ser comandada a nosso bel-prazer. Quando se está inteiro e sem conflitos, a vontade opera automaticamente.

Por outro lado, quando se é invadido por sentimentos e atitudes mutuamente opostos, a vontade é anulada. Isso quer dizer que se torna impossível escolher o que fazer na vida; age-se apenas segundo uma compulsão à ação. Permanece-se no mesmo emprego medíocre não porque nos agrada e o escolhemos, ou porque, nas palavras de algumas mulheres, "meu trabalho não é tão importante para mim como minha família". Tal qual a advogada Vivian Knowlton, permanece-se nele porque a necessidade de subordinar-se está em relação inversa à necessidade de vencer, e fica-se paralisada entre as duas necessidades.

No campo do amor, não se escolhe o parceiro pela alegria de compartilhar a vida com outro ser humano. Se estamos em conflito, como Caroline Burkhardt, casamo-nos devido a uma necessidade compulsiva e indiscriminada de sermos amadas, desejadas, aprovadas, cuidadas.

É essa mesma necessidade que nos cega para o fato de que nem todo mundo é bom e digno de confiança — e então desmoronamos quando alguém se nos revela mau ou hostil.

É essa necessidade que nos leva a fazer qualquer coisa para evitar brigas, desaprovação, olhares carrancudos.

Enfim, é essa necessidade que nos leva a subordinar-nos, a adotar posições secundárias, a automaticamente assumir culpas. Disso à síndrome do "pobre de mim", é somente um pequeno passo. As mulheres que são dominadas pela compulsão de adotar posições secundárias acabam realmente prejudicando suas potencialidades. Num certo grau, tornam-se aquilo a que são levadas a se tornar: hesitantes, inseguras, excessivamente vulneráveis.

 

                   Arrebatando-se à armadilha da dependência

Não muito depois de haver abandonado a vida de "moça bem-comportada" e fugido para as liberdades irrestritas de Paris, no outono de 1929, Simone de Beauvoir conheceu o homem que viria a ser seu amigo, mentor e amante pelo resto da vida: Jean-Paul Sartre. Ambos tinham vinte e poucos anos, sendo ele um pouco mais velho que ela. Em muitos aspectos, sua ligação rápida e sólida com esse homem permitiu-lhe romper os laços familiares que tanto a tinham reprimido durante a adolescência. Foi uma fuga para um terreno extremamente exótico e intelectual. No início, os dois amantes passavam praticamente todo o tempo juntos, liam os mesmos livros, procuravam os mesmos amigos e, em geral, cultivavam suas idéias tão simbioticamente que, em sua autobiografia, Simone usa frases como "nós achamos" e "nossa idéia".

Quando comecei a ler sua descrição do relacionamento que mantinha com Sartre na época, fiquei aturdida com a quantidade de fusão existente naquela relação. Ela parecia tão inteiramente enredada na sensibilidade dele que se fazia difícil imaginar que ela um dia se desembaraçaria o bastante para entregar-se ao excelente trabalho intelectual e criativo que veio a desenvolver individualmente mais tarde. É bem verdade que Sartre era um gênio; contudo, essa mulher brilhante e interessante constituía-se como que num objeto dele, sujeito. "Eu o admirava por construir seu destino com as próprias mãos, sem ajuda externa", ela escreve. "Longe de sentir-me constrangida por vê-lo superior a mim, tal idéia me proporcionava alento."

Ela contava apenas vinte e um anos e era aparentemente tão romântica como qualquer jovem de sua idade. Entretanto, se quisesse se libertar do padrão destrutivo que ia tão claramente se delineando em seu relacionamento com Sartre, ela teria que fazer alguma coisa — alguma coisa radical. "Minha confiança nele era tão completa", escreve, "que me oferecia o tipo de segurança absoluta e infalível que anteriormente eu encontrara em meus pais ou em Deus."

Simone e Jean-Paul caminhavam juntos pelas ruas de Paris, conversavam interminavelmente, bebiam nos bares até as duas da manhã. Ela se surpreendia quase levitando num delírio de felicidade. "Meus anseios mais profundos estavam agora satisfeitos", prossegue sua narrativa. "Não me restava nada por almejar a não ser que aquele estado de triunfante felicidade continuasse eternamente."

A euforia durou mais de um ano, até a irrupção de algo inquietante que veio sutilmente abalar aquele gozo pleno. Ela começou a suspeitar de haver renunciado a uma parte essencial de seu "eu". Sua complacente entrega à onda de estímulos sensuais e intelectuais oferecidos por Paris estava começando a exercer um efeito fragmentador sobre ela. A ficção que escrevia era marcada pela indiferença. Faltava-lhe convicção. "Por vezes eu sentia estar fazendo algo como uma tarefa de escola, ou produzindo paródias", prossegue.

Durante dezoito anos, De Beauvoir viveu num agudo estado de conflito. "Embora eu ainda perseguisse entusiasticamente todas as coisas boas deste mundo, estava começando a pensar que elas estavam me afastando de minha real vocação; eu estava trilhando o caminho da auto-traição e da auto-destruição." Os livros que sempre lera tão obsessivamente, percebia agora, lia-os sem concentração, sem vistas a um enriquecimento intelectual. Apenas esporadicamente escrevia em seu diário. Impelida pelo desejo de ter tudo, estava de mãos e pés atados. "Não conseguia forçar-me a renunciar a nada", confessa, "de sorte que fiquei incapaz de fazer opções."

A dúvida passou a invadir Simone. Quanto mais permanecia inativa — intelectual e emocionalmente subordinada a Sartre —, mais se convencia de sua mediocridade. "Sem sombra de dúvida eu estava abdicando de mim mesma", registrou mais tarde. Vivenciar um relacionamento de subserviência com Sartre lhe dera uma falsa paz de espírito, uma espécie de estado de êxtase livre de ansiedade no qual não se esperava muito dela, apenas que fosse uma companheira adequada.

Inevitavelmente até essa adequação começou a se deteriorar. "Você antes tinha tantas idéias novas, Castor", dizia Sartre, usando o apelido que lhe dera. (Daí ele passou a adverti-la do perigo de transformar-se em "uma dessas mulheres introvertidas".)

Posteriormente, numa análise mais madura, De Beauvoir reconheceu quão perigosamente fácil lhe fora existir, quando moça, subjugada a outrem. Alguém "mais fascinante" do que ela. Alguém a quem podia idealizar e a cuja sombra podia sentir-se pequena e segura.

Havia, é claro, um preço a pagar. Uma vozinha sutil passou a filtrar-se através da consciência da jovem. "Não sou nada", dizia. Ela deu-se conta de "haver interrompido uma existência própria; agora era apenas uma parasita".

Apesar de ser considerada pelas feministas uma das idealizadoras do feminismo moderno, Simone de Beauvoir não visualizava a solução do seu problema como algo unicamente determinado pela cultura. Embora reconhecesse que até seu modo de encarar o problema tinha raízes no fato de ser mulher, "foi como indivíduo", afirma, "que tentei resolvê-lo".

Abruptamente e com determinação, Simone decidiu aceitar um cargo de professora por um ano — longe de Sartre, longe de Paris — na cidade de Marselha. Tinha esperanças de que a solidão a fortalecesse "contra a tentação com que vinha duelando havia dois anos: a de capitular".

Em Marselha, Simone montou um esquema de atividades rigoroso e obsessivo como forma de exorcizar seu impulso para a dependência. Nos dois dias da semana em que não trabalhava ela caminhava — não de modo casual, como num mero passeio, mas com a perseverança de alguém que combate um grave defeito físico. Punha um vestido velho e sapatos confortáveis e arrumava uma cestinha com lanche. Saía então para sua aventura para o desconhecido, subindo todos os picos, descendo todas as encostas, explorando "todos os vales, gargantas e desfiladeiros".

À medida que aumentava o número de quilômetros percorridos, sua força e resistência cresciam. No princípio ela andava durante somente cinco ou seis horas, mas em breve era capaz de cobrir trajetos que requeriam nove ou dez horas. Com o tempo, chegou a ultrapassar a marca de quarenta quilômetros diários de caminhada. "Visitei cidades grandes e pequenas, vilarejos, abadias e castelos... Com perseverança e tenacidade, redescobri minha missão de salvar as coisas do esquecimento."

Enquanto antes, diz ela, fora "intimamente dependente de outras pessoas", contando com que lhe propiciassem regras e objetivos, agora ela estava tendo que abrir seu próprio caminho sem auxílio externo, dia após dia. Ela pegava carona com motoristas de caminhão, de modo a atingir depressa as mais distantes estradinhas. Adotou uma posição ativa e agressiva em relação a seus propósitos. "Quando estava escalando rochas e montanhas, ou descendo penhascos, procurava descobrir atalhos, de sorte que cada expedição se re-velava um trabalho de arte."

Durante aquele ano ocorreram três coisas que a assustaram. Uma vez ela foi seguida por um cachorro em seu passeio solitário, e o cão começou a enlouquecer de sede com o passar das horas. (Por fim ele atirou-se num regato que encontraram.) Outra vez o motorista de caminhão que lhe dera carona repentinamente saiu da estrada principal e dirigiu o veículo para o único ponto deserto em toda a área. Assim que percebeu o que estava acontecendo, ela imaginou rapidamente um plano. No momento em que o caminhão diminuiu a velocidade para fazer uma curva, Simone abriu a porta e ameaçou saltar com o veículo ainda em movimento. Envergonhado, relata ela, o homem parou e deixou-a partir.

O terceiro episódio envolveu uma cadeia de profundas gargantas que ela ia percorrendo numa tarde ensolarada. A trilha se estreitava gradativamente; ela calculou ser impossível retornar pelo mesmo caminho por onde viera e, portanto, seguiu em frente. "Finalmente", prossegue, "uma parede rochosa, íngreme, lá estava, bloqueando a passagem, e tive que recuar, voltando a cruzar uma depressão após outra. Por fim cheguei a uma falha na rocha que não ousei saltar."

Aqui sem dúvida houve um rito concreto de passagem — situação na qual poucas mulheres se aventurariam deliberadamente. "Não havia ruídos, exceto o som produzido por uma cobra deslizando entre as pedras secas. Nenhuma alma viva jamais passaria por aquele desfiladeiro; e se eu quebrasse uma perna ou torcesse um tornozelo, o que seria de mim? Gritei, mas não obtive resposta. Continuei gritando por um quarto de hora. O silêncio era apavorante."

Simone criara uma situação da qual ela não poderia desistir sem pôr em risco sua vida. O que fez? A única coisa que poderia fazer. Muniu-se de toda a coragem e, no fim, conseguiu descer com segurança.

Os amigos de De Beauvoir preocupavam-se com ela e aconselhavam-na a desistir daquelas perigosas caminhadas so¬litárias. Em especial, insistiam que parasse de pedir caronas. Porém, ela estava numa missão muito mais relevante que qualquer coisa que eles imaginassem. Com firme propósito, ela estava recuperando sua alma.

O que significa assumir a pessoa que se é? Significa assumir a responsabilidade pela própria existência. Criar a própria vida. Planejar a própria programação. As caminhadas de Simone de Beauvoir se constituíam no método e eram o símbolo de seu renascimento como indivíduo. "Sozinha andei sob a névoa que cobria o cume de Sainte-Victoire, e percorri a cordilheira do Pilon de Roi, avançando contra um forte vento que atirou minha boina vale abaixo. Sozinha novamente, perdi-me numa ravina montanhosa na cadeia do Luberon. Esses momentos, com todo o seu calor, ternura e fúria, pertencem a mim e a ninguém mais."

Em 14 de julho, Dia da Bastilha, pronta para regressar a Paris, ela era, sob muitos aspectos, uma pessoa diferente. Fizera amigos e avaliara pessoas por sua conta unicamente. Descobrira o prazer de estar só. Revendo as lições que aprendeu naquele ano admirável, ela escreveu: "Não li muito, e o romance que escrevi não tinha valor. Por outro lado, trabalhei na profissão que escolhera sem perder o ânimo e reconquistei um novo entusiasmo. Eu estava saindo triunfante dos testes a que me submetera: a separação e a solidão não haviam destruído minha paz de espírito".

E então a afirmação derradeira, a afirmação que parece tão pequena, tão óbvia, uma vez que se haja passado pelos rigores necessários para se alcançar esse estado de equilíbrio: "Eu sabia que agora podia contar comigo mesma".

 

Quando começamos a ver quanto contribuímos para nossa própria fraqueza e vulnerabilidade, quanto na realidade nutrimos e defendemos nossa dependência, então, lentamente, começamos a sentir-nos mais fortes. "Quanto mais enfrentamos nossos conflitos e buscamos nossas próprias soluções", escreveu Karen Horney, "maior liberdade e força ganhamos." É quando assumimos a responsabilidade por nossos problemas que o centro de gravidade começa a fazer o crucial deslocamento do outro para o eu. Neste ponto, algo notável acontece. Mais energia fica à nossa disposição. A força anteriormente perdida no vazamento de energia, no processo exaustivo de repressão daqueles aspectos de nossas personalidades que sentíamos serem inaceitáveis ou assustadores. Se deixamos de precisar defender-nos e proteger-nos deles, essa mesma energia se torna disponível para atividades mais positivas. Tornamo-nos gradualmente menos inibidas, menos invadidas pelo medo e pela ansiedade, menos atormentadas pelo auto-desprezo. O velho pânico do gênero feminino, que tanto nos acompanhou, desaparece. Temos menos medo dos outros. Temos menos medo de nós mesmas.

 

                   Libertando-se

O objetivo final é a espontaneidade emocional — uma vivacidade interna que permeia tudo o que fazemos, todos os projetos de trabalho, todas as interações sociais, todos os relacionamentos amorosos. Ela provém da convicção: "Sou a força básica de minha vida". E ela conduz ao que Karen Horney denomina sinceridade — a capacidade de "ser sem fingimento, ser emocionalmente sincero, ser capaz de colocar-se integralmente nos próprios sentimentos, no trabalho, nas próprias crenças".

Penso nas mulheres que conheci e que parecem possuir essa sinceridade. Algumas são pessoas criativas e altamente talentosas; outras levam vidas mais simples, menos visivelmente dramáticas. Mas quer sejam multi-talentosas e sofisticadas habitantes de centros urbanos, quer sejam donas-de-casa do interior, a característica de "estar presente" — de se haverem "libertado" — é inegável. A maneira como experimentam a vida é qualitativamente diversa da daquelas que não se libertaram; a das primeiras é mais rica, menos rotineira, menos regulada por regras e convenções institucionais. Até sua forma de expressar sua experiência é diferente.

Pearl Primus, a coreógrafa, conta como executou seu doutorado em antropologia simplesmente sendo:

"Minha vida tem sido como subir um rio. Vez ou outra eu ouvia cânticos atrás de alguma curva do rio, e lá ia eu e me ocupava com viver. Às vezes anos se passavam e aí eu me dava conta: 'Ah, meu Deus, preciso terminar este doutorado'. Assim, no processo de fazer o doutorado, tenho vivido muitos rios e muitas pessoas. A antropologia se tornou parte de mim, em vez de algo super-imposto".

Surge um momento — um "momento psicológico" que pode durar semanas ou até meses, mas que é freqüentemente experimentado como um momento específico no tempo — no qual os determinantes de personalidade criadores do conflito parecem se desenredar, e a mulher é libertada da prisão que a mantinha imobilizada. Quando isso acontece, tudo se torna possível. Pode haver mudança de emprego, mudança de casa, novos relacionamentos, produções criativas nem sonhadas anteriormente.

As mulheres que se libertaram descobrem-se repentinamente com energia para o engajamento. Elas se agarram com tenacidade à vida, sendo ao mesmo tempo livres para acompanhar os altos e baixos de seus eventos. Há a nova experiência de estar completamente viva, na qual se é mais livre que nunca para tomar decisões, aceitar ou rejeitar coisas de acordo com os desejos do verdadeiro "eu".

Experiências emocionais poderosas aguardam aqueles que realmente abandonam os "scripts" sociais. Uma mulher de Chicago de quarenta e poucos anos, que ainda vive com o marido e o ama, está também intensamente envolvida com um homem com quem trabalha. Ele também é casado, de modo que o tempo de que dispõem para estarem sós é limitado. Várias vezes ao ano viajam juntos à negócios. Em uma dessas viagens, após alguns dias, a mulher sentiu vontade de esquiar. O amante não gostava de esquiar, e, além disso, não terminara o trabalho que tinha de realizar em Boston. "Decidi esquiar sozinha", disse-me ela. "Tomei um ônibus no meie da tarde; enquanto subíamos as montanhas de Vermont, começou a nevar. Lembro-me da sensação de estar sentada sozinha naquele ônibus, olhando pela janela e vendo as luzes se acenderem nas cidadezinhas por onde passávamos. Senti-me tão bem, tão segura no reconhecimento de que podia ser eu mesma, fazer o que quisesse — e também ser amada — que comecei a chorar."

 

A mulher que se libertou tem mobilidade emocional. Ela é capaz de mover-se em direção às coisas que lhe são gratificantes e distanciar-se das que não o são.

Ela também é livre para ser bem-sucedida: para estabelecer objetivos e agir de modo a atingir esses objetivos sem temer o fracasso. Sua autoconfiança deriva de uma avaliação realista de suas limitações e capacidades. Um dos exemplos mais inspiradores que conheço de uma mulher que foi livre para vencer é o de Jean Auel. (Seu primeiro romance, The clan of the cave bear — "O clã do urso da caverna" —, tornou-se de imediato um sucesso de vendagem.) Eis uma pessoa que se recusou a deixar sua vida à mercê de ocorrências externas. Em vez disso, ela assumiu a responsabilidade pelo delineamento de sua vida — muito embora existissem outros que dependiam dela.

Jean casou-se aos dezoito anos de idade. Aos vinte e cinco já tinha cinco filhos. Além de cuidar da casa e das crianças e simultaneamente trabalhar como perfuradora numa fábrica da Tektronix perto de sua casa em Portland, Oregon, ela ainda estudava à noite, para obter um mestrado em administração. (Ela não tinha o bacharelado.) De posse do mestrado, conseguiu subir até a posição de gerente comercial da Tektronix, responsabilizando-se, assim, por operações financeiras no valor de oito milhões de dólares. Então, alguns meses depois de seu quadragésimo aniversário, ela deixou o emprego; decidira escrever um romance.

Tudo começou com uma idéia que lhe ocorrera numa noite, e que se desenvolveu numa história sobre uma menina Cro-Magnon que vive na sociedade mais primitiva dos Neanderthals. Jean Auel leu mais de cinqüenta livros, a respeito dos povos primitivos. Em seguida fez o primeiro rascunho — quatrocentas e cinqüenta mil palavras. Ao fazê-lo, aprendeu uma coisa: não sabia o suficiente para escrever romances. Portanto, passou a preparar-se para isso. Partiu de leituras dos livros da filha sobre literatura de ficção. Escreveu e reescreveu. Então, após algumas recusas por parte dos editores, mandou uma carta para um agente literário de Nova York que conhecera num encontro de escritores em Portland. Oito semanas depois, ela assinava um contrato de cento e trinta mil dólares por The clan of the cave bear.

Eis uma mulher que abriu as portas de sua vida aos ventos da mudança. Eis uma mulher sem medo de trabalhar, de adentrar áreas não experimentadas — de adentrar o desconhecido, o estranho, o novo. Eis uma mulher que acredita em si mesma, e a crença em si própria é a linha mestra do viver plenamente.

Aprendi que a liberdade e a independência não podem ser arrancadas dos outros — da sociedade em geral, ou dos homens —, mas podem ser ativamente desenvolvidas a partir de dentro. Para alcançá-las, teremos que renunciar às dependências que temos usado qual muletas para sentir-nos seguras. E, no entanto, a troca não é tão perigosa. A mulher que acredita em si mesma não precisa enganar-se com sonhos vazios, com coisas que estejam além de suas capacidades. Ao mesmo tempo ela não vacila em face de tarefas para as quais se acha preparada. Ela é realista, segura e ama a si própria. Ela está finalmente livre para amar os outros, porque ama a si mesma. Todas essas coisas, e nada menos que elas, constituem a mulher que se libertou.

 

                                                                                Colette Dowling  

 

                      

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