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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CONSTANTINO / Alves Redol
CONSTANTINO / Alves Redol

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Esta história simples ganhou raízes e deu fruto numa aldeia da região saloia, o Freixial, onde a sua gente me aconchega com carinho há mais de dez anos - e tanto como se eu fosse da família de cada um e de todos. Em certa medida o sou - valha a verdade! -, pois foi de Bucelas que os Alves emigraram para a Borda-d'Água, radicando-se em Vila Franca com bem vivas saudades da origem.

Foi uma viagem também simples - um destes voos de pássaros calhandreiros que não se resignam a morrer na dor da fome. O meu avô era ferreiro, um moiro de trabalho, batia-lhe a todas as horas a mágoa de ver para ali sete filhos a mirar o saquitel do pão, e como por Vila Franca sempre havia gado para ferrar, mais canelos e ferraduras para moldar à forja e à bigorna, lá abalou com a mulher e a criançada toda.

Uma banalíssima história do povo... Ao saber do meu gosto em achar recanto sossegado onde me desse, por inteiro, à ânsia de me construir, minha mãe lembrou-se duma vinda ao Freixial, na companhia do pai, tinha ela uns nove anos. Não nos enganou essa recordação de infância, porque hoje devo a esta gente o ambiente de ternura e de paz, de verdadeiro amor, posso dizê-lo, mercê do qual a minha obra de escritor veio acrescentando-se desde Os Homens e as Sombras.

 

 

 

 

                             Pequeno labirinto de nomes e alcunhas

Tem doze anos, mas não deitou muito corpo para a idade. Ainda está a tempo. Um homem cresce até o fim da vida, se não em altura, pelo menos em obras e ambições. E nisso promete.

Por voto do 'padrinho e assentimento dos pais, recebeu no registo o nome de Constantino. É um nome bonito, sim senhor. Na aldeia não há outro igual, e isso é bom, pensou a mãe; escusa uma pessoa de matar a cabeça como em certas casas em que os homens usam o mesmo nome e ninguém se entende. Na Chamboeira conheceu ela uma mulher, a Ti Pirralha, metida num inferno de portas adentro por causa de o marido, o filho e o neto se chamarem António.

Enquanto o rapaz foi pitorro, tudo correu bem. Um era o António Grande, o outro só António e o mais novo o António Pequeno. O rapaz, porém, deitou muito corpo, e depressa, enquanto o avô continuou cartaxinho, cartaxinho e melindroso, pois começou a pôr-se de vidro fino quando a mulher lhe chamava Grande, vendo nisso uma artimanha dela para se vingar de certas desfeitas que lhe fazia quando bebia um copo a mais.

"Grandes são os burros", refilava então o velho, muito rezingão, com reumático nas cruzes, umas dores parvas como dentadas de lobo. Mas

andou tudo raso naquele casal quando a Ti Pirralha o tratou por António Velho para chamar Novo ao neto, o que incendiou o marido, e de tal jeito que a mulher teve de se esconder três dias em casa duma vizinha.

"Velhos são os trapos!", gritava o António Pirralha, chamando corja ao povo inteiro da sua aldeia - que não gostava muito dele, valha a verdade.

Foi isto mais ou menos que a mãe do Constantino lembrou ao marido para defender o nome escolhido pelo compadre. Constantino era um nome bonito para rapaz, devia ser nome da cidade, e já que um pobre não tem luxos, ao menos que na graça seja igual aos outros.

Só a avó paterna, a Ti Elvira, não se atrelou à toleima da nora, como ela dizia com segundo sentido, chegando a segredar ao filho que até parecia mal uma coisa assim.

- É o mesmo, acho eu, cá no meu fraco entender, que pôr de rastos o nome de todos os homens da família, duma banda e doutra, salvo seja!

O filho, o Silvestre, deu de ombros com os melindres da mãe, e esta só largou uma queixa:

- A gente, quando deixa de ter voz, era melhor dar-se-lhe um sumiço pelo chão adentro! Escusava de sofrer vergonhas...

A Ti Elvira fazia gosto no nome do pai dela; alumiava a lembrança dum santo homem (põem -se muitos nos altares menos merecedores, Deus me perdoe!), e sonhara noites sem fim com o seu prolongamento no primeiro neto. Nisso, ao menos, tinham-lhe feito a vontade - um rapaz sempre vale outra coisa!

Agora, porém, já se habituou. E até se regala, valha a verdade, quando chega à porta de casa e grita o nome do neto, esganiçando a terceira sílaba num agudo de ecos voadores. Com quase setenta anos, ainda a voz lhe salta da garganta como o repuxo dum jardim de rico. Todas a ouvem, menos o Constantino quando percebe que o querem pôr a tratar do gado numa altura em que mais lhe apetece a brincadeira.

Não se julgue daqui que não gosta dos animais, antes pelo contrário, mas uma pessoa tem tempo de puxar pelo corpo quando chega a homem, pensa ele, e há horas para tudo, já a própria avó lho disse muitas vezes.

O enrascanço é que a velha não se cala enquanto ele não aparece. E lá se chega o Constantino, a resmungar e aos pontapés às pedras, com o ar taciturno e um tanto ausente, que leva as pessoas a acharem-no um retrato pintado do avô Germano Cara-Linda, falecido há mais de um ano quase sem uma queixa. "Foi assim a modo uma luz de azeite que se apagou num bafo pequeno", lembra a nora, lastimosa.

A conversa do rapaz com a Ti Elvira é mais ou menos a mesma:

-Não ouviste chamar por ti, moço?

- S'ouvisse não vinha logo?

- Então és surdo... Tão pequeno e já surdo. -Isso é que não, surdo não sou... Constantino sabe que os velhos têm o ouvido duro; a mãe diz-lhe, por outro lado, lá porque em casa não se dá muito à risota, que parece um velho, que é rabugento como um velho. E ele não gosta dessas brincadeiras, porque um velho está mais perto da morte; e prefere não pensar que terá de morrer um dia...

Então refila: -Mas não sou surdo... A avó é que podia gritar mais alto.

-Só se gritasse tanto que me ouvissem em Bucelas... Vinha aí o povo todo, julgando que me estavam a matar.

-Porque é que a avó não se põe do lado do vento?

- Porque tu te punhas logo do lado da chuva; andas sempre ao contrário.

- Cale-se aí, mulher! Para não lhe atirar com um cavaco acima, a Ti Elvira acena a cabeça, conformada, e volta para a lida, enquanto a neta, a Ana Maria, mais nova do que o Constantino cinco anos, os espreita da janela e sorri, fechando os olhos e mostrando a boca quase desdentada. O rapaz afina.'Joga as palavras como pedras duma atiradeira.

- Achas graça?... Vê lá se te cai o resto dos dentes. Ficas como a avó...

A Ana Maria fecha depressa a boca, compõe o cabelo loiro que lhe cobre a testa, alta, e finge não ouvir o irmão.

É uma bizarria da natureza aquela diferença tão grande entre os dois. A irmã, branca e loira, tem os olhos cor de mel clarinho; ele é moreno, morenão de todo. Vê-se bem que os Árabes andaram por aqui há muitos séculos. Também os seus olhos negros e tristes, de pestanas longas, o recordam. Nisso sai à mãe, a Maria Cantigas, uma mulheraça desenxovalhada e um nadinha ralhadeira.

Cantigas não é apelido de família - é alcunha. E nas aldeias são estas que valem por muitas gerações. Também da parte do pai o apelido Cara-Linda, que já de si parece facécia, perdeu o uso quando passaram a tratá-lo por Cuco. Foi uma história de caça; não vem agora ao jeito contá-la, nem valerá a pena.

O Constantino ficou assim Cantigas e Cuco. Será por isso-que gosta tanto de pássaros?!...

 

                               Aldeia de pássaros que falam...

Pássaros não escasseiam pelo Freixial; e alguns passarões, é bem de ver, como em qualquer terruco habitado por homens.

A aldeia está envolvida por arvoredo, onde a passarada se pode acoitar e fazer ninho, gozando ainda a liberdade de silvedos e moitas, além da frescura e sombra das veredas e das margens do Trancão, um rio assomadiço, no Inverno, mas parrana e apaulado quando o calor aperta.

Aqui convivem freixos, carvalhiços e pinheiros, umas tantas faias, com eucaliptos e oliveiras em barda. Mas também aparecem sobreiros, alguns até de forma caprichosa e robusta, que não percebo bem como medram numa terra de tamanha frescura. Todos fazem moldura ao pequeno burgo, quase rastejante, ante a * sobranceria da serra de Ribas, logo desenvolvida por uma linha de ondulação serena, vinda do poente e caminhando para o sul, em cuja roseta se levanta o mamilo do monte do Picoto, mirante de muitas terras sossegadas, e também de Lisboa, a grande loba, para onde de madrugada partem os mimos das hortas.

Mimalha é a aldeia para quem busca sossego e ares lavados. Por isso não faltam forasteiros quando o vinho novo espreita às bicas, ou veraneantes enfermiços mal o Sol africano se deita na Ibéria com vontade de nos amolentar ainda mais a vil pachorra. A pequena invasão dá jeito às lojas, que sempre acrescentam algum negócio, embora com sobrecarga de calotes graúdos, às pensões aos que alugam casas à época e aos rapazes da terra, uma vez que para estes não faltam meninas, da cidade e criadas de serviço lesto para namoriscar.

Às tantas, sussurra-se um escandalozito, logo batido e rebatido nas muitas pedras do rio, que, se bem lava a roupa encardida do suor, também põe alguma mancha nas reputações. Ao cabo tudo se desfaz, como as bolhas do sabão bem esfregado.

Irmão gémeo de qualquer burgo miúdo, o Freixial conta com dois ou três bêbedos consagrados, de quem se contam histórias pícaras, e que são, quase sempre, a santa voz da verdade quando perdem o medo às conveniências e à lei. Como a água da aldeia é pouca e má, por culpa de quem manda, o vinho arranja galões de única bebida sadia. Talvez por isso mesmo alguns forasteiros deitem foguetes à porta da taberna do Ti Zé Mendes, dos poucos a perceber quanto valem as pingas, se as tratam com carinho.

A época das vindimas torna-se, de resto, uma das raras em que se vislumbra ainda a vida passada dum terruço campónio, de tal modo a gente burguesa se deitou a comprar vinhas e pinheirais para lhes implantar casinholos de mau gosto pinoca, nesse estilo fatal de varanda e beirado, a quem nem já falta o horrível marmorite colorido. E a dignidade sóbria e branca da aldeia espatifa-se com a guizalhada destes citadinos que querem à viva força tornar-se notados.

O ar sadio é que limpa tudo - desde as fraquezas do peito às cordas desafinadas dos nervos cansados.

Fora as hortas, à beira do Trancão, ou algum vinhedo ou olival de senhoria, o agro dá agora, trabalho ralo, e mais parece viver no canto saudoso de algum boieiro que me passa à porta numa melopeia bonita com o seu quê de árabe, como não ouvi, outra em terra portuguesa. Cheira a milagre a mantença desta solfa remota num meio tão abastardado; também o trilo das aves se não perdeu neste ambiente remansado- e calmo, onde famílias inteiras herdam nomes de pássaros. Como já sabemos, o meu amigo Constantino é Cuco- e Cantigas também.

Todo o povo gosta dele; "é um homem pequeno", diz a gente quando o vê passar na lida; e conta-se, entre sorrisos e olhares (da Portela, onde moramos os dois, ao Alto, que fica junto à estrada, ou ao Rossio e às Ermidas, cá em baixo, quando se busca a saída para Bucelas), certa conversa a que o Constantino deu andamento pronto quando numa tarde andava ele a dar volta aos seus ninhos, contando-os a todos, embora sem lhes bulir.

Era um ano farto de passarada. Dizia ele, na escola, com uma ponta de imaginação um tanto larga, que tinha de seu quase cinquenta ninhos.

Cinquenta ou menos de metade não interessa apurar. A verdade é que metera para o lado do arvoredo do Trancão, a mirar bem as folhagens e os troncos, sozinho, como um lavrador que gosta de se rever no que lhe pertence. Quando se certificou de que os ninhos continuavam no seu lugar, pensou consigo: "Vou até à horta do Periquito, passo-me para a outra banda do rio e de lá grito pelo Manel... Depois vai um grande banho na poça grande da nora ... "

No entusiasmo da ideia, pôs-se a cantarolar. Uma cantiga qualquer sem jeito. A frescura das águas do Trancão vinha até ele, e já se lhe remocava o corpo todo com o gozo duma banhoca em pêlo.

Vai daí, mesmo numa curva do atalho, à sombra do canavial e dum freixo antigo, deu de caras com um pequeno grupo seu conhecido - dois homens afogueados com o trabalho da horta, a tasquinharem uns torresmos com pão, e o filhote de um deles, deitado de borco, a seguir um carreiro de formigas no seu vaivém apressado. Prendeu-se-lhe a cantiga na boca, fez um sorriso, e encolheu os ombros, um tanto ruborizado.

Galhofeiro, um dos homens largou-lhe a piada:

- Então, ó Cuco, já cantas?!... Riram-se os três, até mesmo o franganote do rapaz. Constantino Cara-Linda sentiu a graçola; numa mirada pronta viu logo por onde lhes iria pegar. E foi a sua vez de rir também.

- E vossemecês também deviam cantar. Estamos no nosso tempo...

- Então., porquê?! - perguntou o hortelão, sem ainda achar sentido às palavras do moço.

- Então isto não é tudo uma passarada? Vossemecê é Periquito, o Sr. António é Melro, o filho é Melricho e eu sou Cuco... É tudo uma passarada, já se vê!

Passou um resto de tarde bem catita. Entrou na roda dos torresmos e ainda bebeu umas goladas de tinto, pois não há melhor coisa no mundo do que um petisco ao ar livre.

Já um nadinha ajudado pela pinga, o meu amigo Cuco confidenciou aos outros:

-Vai aí um ano de pássaros... -Mas achou por bem não propalar quantos ninhos considerava seus.

 

                                 Grão-Senhor de Cinquenta Ninhos

Se quer arrancar à terra seara que se veja, o lavrador não pode marcar preço para canseiras e cuidados. Tudo começa nos seus projectos, nas insónias prolongadas a que se entrega, como nos tempos em que os generais resolviam batalhas. E com olhos que devassam tudo, e com pés que pisam a leira para lhe lembrar: "cá estou mais um ano, cá estamos, pago em suor tudo o que me puderes dar ... "

Também um rapaz precisa de grandes caminhadas e preocupações para dizer aos outros:

"vai aí um ano de pássaros... Só eu à minha conta tenho quase cinquenta ninhos." Mesmo que a fantasia o leve a acrescentar o número, o que não espanta quando se aprendem na escola contas de multiplicar e a professora marca com reguadas na palma das mãos os erros que se cometem.

Começa-se no Inverno, com geadas de deixar tudo branco, quando as árvores não guardam uma folha e tudo parece morto para sempre. A aldeia é fria e húmida, não há roupa que valha a uma pessoa, quanto mais para quem gosta de trazer calças de serralheiro com alças sobre a camisa!... O Constantino quer andar 'assim, quer ser um dia serralheiro de navios, como ele diz, já sabe que no campo um homem mata o corpo, não tem horas suas e mal ganha para as côdeas. E por isso não larga o seu fato de serralheiro. vá de meter então, por esses campos tristes (é ver o arvoredo do Rossio no resto do ano e no Inverno), e toca de espreitar os ninhos velhos que ficaram, subir ao coruto das árvores, pondo a mão frouxa, numa carícia, nos sítios em que a vida rebentou durante os meados da Primavera. É como se um rapaz pudesse marcar o lugar dos futuros ninhos, como se ele próprio mandasse no futuro... É bom, mesmo que seja na imaginação, um homem - quanto mais um moço! - sonhar um pouco que também lhe ouvirão a voz nos tempos que estão para chegar.

Tem de se fazer essa volta várias vezes, e esperar, esperar longas semanas, que de repente, quase de um dia para o outro, se sinta no ar, no eco de um grito, numa primeira andorinha que se descobre, no pintar ainda indeciso duma árvore que-vem aí a época dos dias longos e soalheiros, das águas mornas do rio e das manhãs de passarada, como se a alma da gente cantasse tudo aquilo que os pássaros aprendem, talvez com as próprias pessoas quando a esperança nasce dentro delas...

Então um rapaz começa a contar os ninhos. É um deslumbramento!... Ir pelos campos fora com as vacas, os burros e os cães e poder dizer para si: "Este ninho de picanço é meu, e o outro de papa-moscas, tão amarelinhos e de gravata escura, e aquele de pintinhas, e ainda aqueloutro de melros ou de tordos ... " um rapaz, sem nada de seu, passa a ser o grão-senhor das mais belas criações do mundo que o cerca. Cinquenta ninhos, mais de duzentos pássaros, tudo dele, fora os que andam à solta a comer nas searas

e se podem apanhar com ratoeira de arame. Ninhos nas árvores, ninhos -nos silvedos, ninhos nas vinhas, quando se sulfatar as cepas...

É um sonho vivo e maravilhoso!

- Vamos armar aos pássaros? - pergunta-lhe o Manel Coelho, que não gosta de ser tratado pelo apelido. (Aquilo cheira-lhe a alcunha, e o Manel vai às do cabo com o apelido da família - preferia ser Leão ou Lobo, que outro animal qualquer que metesse medo. Coelho parece-lhe coisa de somenos, animal de capoeira ou bicho. sujeito a chumbo de caçador.)

E o nosso amigo Constantino, que não cuida por ser Cuco, diz logo que sim, cheira-lhe a vida ao ar livre, e abala de casa com o outro, enquanto a Ti Elvira ou a mãe lhe grita o nome, por mor do trato das duas vacas leiteiras.

Ele mesmo me explica: Uma ratoeira de arame fica boa com bicho e cardo... (Percebe a minha cara de estranheza, pensa que esta gente da cidade sabe bem pouco, e não se engana, e lá conta com paciência do que se trata.) Num cardo pequeno, fininho, abre-se-lhe o miolo com jeito e lá está o bicho. Nem todos os cardos têm bicho, e nos que o têm só um aparece... Só um bichinho mesmo no miolo do cardo. Os pardais gostam... Também gostam de trigo, pois então, não são parvos. Os pardais são finos, os malandros!... (Depois sorri de boca aberta, ficando com duas covinhas nas faces trigueiras.) A minha avó Elvira diz que eu sou esperto como um pardal... O pardal é esperto, lá isso é. Se a ratoeira não estiver bem arranjada, ele safa-se. E às vezes safa-se com o bago de trigo... e a gente fica com cara de parvo. Há um bicho de que eles gostam muito: a trela. (Pelos meus olhos descobre que não sei do que se trata; com a voz ainda mais cantada, ensina-me a sua técnica de armador de pássaros.) É assim a modos como a minhoca... A cor é amarelão, mesmo da cor do ovo; do amarelo do ovo quando as galinhas comem muito milho. Já agora, sempre lhe digo que é com milho que a gente arma a ratoeira para as perdizes. A perdiz é assim um pássaro tonto. Deixa-se a ratoeira à vela e a perdiz vai lá na mesma. o pior é que os caçadores de tiro as espantam e a gente não agarra muitas. Eu até hoje só agarrei uma... Na minha ratoeira de pau já matei dois pica-paus. O pica-pau é engraçado com aquele bico muito comprido...

Depois conta-me que há por aqui muitas aves de cantar. No Trancão não faltam rouxinóis, mas se os guardam numa gaiola morrem em pouco tempo. Só cegos perdem o tino à liberdade. Não, nunca fiz isso. Um pássaro cego mete ainda mais pena do que uma pessoa. Canta muito, parece que nunca acaba de cantar -é assim como um cego a falar na sua má sorte.

Magoa-se a voz do Constantino ao lembrar os rouxinóis. Já não pensava o mesmo de pintarroxos e pintassilgos, que aguentam gaiola e cantam até perder o fôlego. Anda com uma ideia ferrada na cabeça; e já não a larga, dê lá por onde der.

Pensou em tirar dum dos seus ninhos um casal de pintassilgos pequenos. A gaiola já ele a preparou -ficará ao pé da janela do quarto onde dorme. Quer ser o primeiro a ouvi-los, mal comecem a cantoria da manhã em despique com os cantadores dos hortos e pinhais. Vai ser um regalo!...

Ainda não contou o projecto a ninguém, pois escusam de seringá-lo se a coisa ficar em nada. A ideia já tem uns meses, foi moída e remoída. Nasceu quando um papa-moscas, mindinho e amarelo, de penas escuras no rabo e de gravata Com O mesmo tom, começou a entrar, o descarado, pela janela do quarto dos pais e a saltitar na barra da cama, sem mais aquelas, pondo-se dali a caçar as moscas que passavam perto. Era uma graça!

Se o papa-moscas ainda continuasse com as mesmas avarias, o Constantino não cogitaria no roubo dos pintassilgos para os meter na gaiola.

"Mas também dois pássaros", pensava ele, "e ainda por cima tão pequenos, não vão fazer uma falta por aí além..."

Meditava nisto e aquietava-se. Aquietava-se é um modo de dizer, porque havia noites e noites em que mal dormia a pensar nos pintassilgos.

O pior foi meter-se-lhe a ideia na cabeça: quando teima não há quem lhe ganhe, tanto mais que põe nisso todo o brio de que é capaz. E os Cucos são briosos...

 

                               A Teimar Ninguém o Dobra

Mar'ia Cantigas chama a isto "ser ele muito senhor do seu nariz", o que o arrenegou muitas vezes quando mais criança, pois deu-se em traduzir o dito da mãe como sinal de que o nariz lhe nascera maior do que a conta.

Foi desgosto sofrido a fogo lento. Sentiu-se caraça de Carnaval, daquelas de narigueta avermelhada e torta, vendo em tal defeito a razão de a mãe se perder em mimos mais escolhidos com a irmã, a Ana Maria, Viveu um ciúme pegado. Até refilava por não andarem com ele ao colo, o que só provocava risota e lhe acrescentava o despeito.

Passou tempos esquecidos a mirar-se ao espelho, num confronto minucioso com todas as caras conhecidas, e sabia, jurava a pés juntos, que não era nenhum nariganga,

O diabo da mulher - refilava ele-, nem parece que lhe pertenço; mais valia torcer-me o pescoço quando nasci.

O pai via-o amuado pelos cantos, perguntava às mulheres de casa:

- O que diabo tem o rapaz?! E como ninguém lhe explicasse aquela tristeza, trouxe-o uma tarde para junto do Tunante, o cão guardador do curral das vacas.

Ali se puseram em conversa.

Foi a primeira conversa a sério que o Silvestre Cuco teve com o filho. Este nunca mais esqueceu tal dia, em que fez uma das descobertas, mais surpreendentes da sua vida.

Falaram de homem para homem. Sim, senhor, de homem para homem, e o Constantino sabe bem o que lhe custou essa conquista. Quando se abriu com o pai para lhe confessar que a mãe não gostava dele por causa do nariz, apareceu-lhe de repente nos olhos uma grande vontade de chorar. Embargou-se-lhe 'a voz, as palavras começaram a sair todas cortadas, e vai então o pai disse-lhe assim:

-Um homem nunca chora, mesmo que veja as tripas doutro na mão...

Apressado, o Constantino deitou a ponta dos dedos a umas lágrimas que queriam rebentar, e ali mesmo as esmagou, segurando as outras todas que já vinham numa carreirinha para fazerem pranto. Baixou a cabeça por instantes, erguendo-a depois com um sorriso. Encararam-se, o pai incitou-o com um olhar que ele conhecia, e o Constantino percebeu que ganhara nesse dia o seu melhor camarada.

- Assim mesmo... Um homem não chora... -Já sou homem?... -És. És um homem valente. Queres ser um homem valente?

- Quero. Quero, sim senhor, meu pai. -Então nunca mais julgues que a tua mãe gosta mais da Ana Maria do que de ti... A tua irmã é pequenita...

- E eu sou um homem, não é?

- Pois, tu és um homem... Um homem pequeno...

- Mas ela metia-se com o meu nariz, e o meu nariz não é grande...

- Ela só queria dizer que tu és teimoso.

Riram ambos com gosto. E tanto, como dois bons camaradas, que a Ti Elvira veio à porta de casa para descobrir o que se passava. Ficou na mesma; mas bastou-lhe à curiosidade ver o filho e o neto tão deslumbrados um com o outro.

Já lá vão uns bons seis anos, recorda a mãe, ainda vaidosa do desembaraço com que o Constantino se levantou à mesma hora do seu Silvestre, disposto a levar sozinho as vacas para o monte. Foi uma madrugada naquela casa, diz' ela a rir.

Na escola a professora também lhe chama teimoso, mas compara-o a um burro. E como o rapaz nunca mais acerta com o ano da batalha do Salado, nem há maneira de decorar a lengalenga dos afluentes do Guadiana, entra a dança da palmatória em função. É um baile muito simples: ela avança desembestada do fundo da sala, o Constantino mete a cabeça entre os braços e põe-se logo a dar aos pés, procurando atingir-lhe as canelas; a professora bate-lhe nos cotovelos para que ele baixe a guarda, deixando a cabeça descoberta, mas o rapaz ginga os braços a fingir que chora. Cansados os dois, ela, abandona a régua e leva-o por uma orelha até à janela das traseiras da escola, onde o deixa de castigo o resto do dia.

Andaram quatro meses naquilo. Só o pai resolveu a contenda, servindo de embaixador entre o rapaz e a professora.

Perguntou ao filho: -Não queres estudar? (O Constantino pôs-se mudo como um calhau.) Se não queres estudar, ficas bruto e acabou-se. Vais comigo para o campo...

-Ela é que tem a culpa. Quando me pergunta alguma coisa, começa logo a mexer na "bicha"... pois, na régua. E eu digo assim cá pra dentro: a medo não me levas. Faço de conta que não sei... Se ela embirra comigo, eu não tenho outra maneira de embirrar com ela...

O pai olhou-o desconfiado, mas ele disse na ponta da língua os afluentes todos do Guadiana -os da margem direita e os da margem esquerda, pois então!

-Vê como sei?

- A mim podes tu enganar-me...

- Mas, se quiser, vamos aí a alguém que saiba ler...

-Então diz isso lá na escola. -Ela que não se ponha com ameaças... Eu sei que estou a fazer mal a mim mesmo, mas não me importo. À pancada não me dobro.

Depois de lhe prometer uma surra, o pai foi à escola nessa tarde e falou com a professora.

O Constantino nunca descobriu o que disseram um ao outro, mas na manhã seguinte abalou para a escola, parando no caminho vezes sem conta -era como se o levassem para a forca, dizia a avó. E, quase ao chegar a hora da saída para o almoço, a professora fez-lhe uma pergunta, como se tivesse mel na boca. Então, um nadinha trémulo, o Constantino ergueu-se do banco e despejou, num atropelo, quanto guardava dentro de si. Em hora de tréguas, entendeu não bastarem os afluentes do Guadiana, acrescentando-lhe a ladainha da batalha do Salado e todos os reis inteirinhos da segunda dinastia.

Quando se sentou, estava cansado. Faltava-lhe o fôlego.

Lá no fundo, a professora acenou-lhe a cabeça, talvez numa ameaça futura. Mas ele não se deu conta, tão pasmado ficara também com a eficácia do seu realejo.

Nessa tarde de glória o Constantino foi para o Rossio da aldeia gozar o sucesso. E, como um déspota que ordenasse festas em sua honra, resolveu começar o jogo do pião umas semanas mais cedo do que estabelece o calendário das jogatinas.

Logo que descobriu dois companheiros inconformistas, traçou ele próprio a arena do torneio e, depois de enrolar o cordel no pião, Jogou-o a preceito. Um pião sereninho, sereninho, que zunia como um farfalho de vento se se aproximava o ouvido para lhe escutar o rodopio.

Não tardou muito que a novidade corresse. Emocionada, a matula veio certificar-se, com os olhos, do desrespeito à lei da aldeia. Nenhum deles, porém, se sentiu com forças para lembrar o defeso, tão deliciado viram o cuco a fazer saltar o seu sereninho para a palma da mão, onde depois girava como a mó corredoura dum moinho de velas.

O desafio foi rijo. Nunca a rapaziada assistira a torneio tão aguerrido e jogado dentro das regras. O Constantino deixou os outros à pida. O pião do Zé António ficou com três lenhos tão abertos nas bochechas que nem a bailar se endireitava; mal o bico tocava no chão, punha-se de banda e caía logo. Parecia tonto, sem trambelho, era mesmo uma perdiz ferida de asa, contou o Cuco ao Manel Coelho quando à noitinha se encontraram.

 

                             Os pintassilgos gostam de liberdade

Não foi com o mesmo sorriso amalandrado que, aí uns tempos atrás, ele contou ao seu amigo Manel o que lhe aconteceu com os pintassilgos.

Com aquela ideia metida na cabeça, o Constantino mal dormia. Pusera a gaiola ao pé da janela depois de lhe endireitar as grades e amanhar o fecho da porta; arranjara um bebedouro de vidro, lavara as madeiras com o esmero dum marujo no convés do seu barco, e até andou a namorar uma lata de tinta prateada na loja do Valdemiro, pensando dar uma pintura às campainhas do gaiolim. Os pintassilgos mereciam bem todas as galas, não só pelo colorido das penas como ainda mais pela garridice do canto. Um pássaro cantador vale uma barrigada de .fruta. Ou um pião com bico cravador para abrir ao meio quantos lhe ficarem por baixo.

Conhecia a vida do ninho, 'quase assistira à postura dos ovos, todas as manhãs e tardes namorava as duas crias, sempre à espera que ganhassem um pouco mais de penugem, não fossem estranhar e morrer com a mudança de aconchego. Andava nervoso, a viver no receio de um dia ir espreitá-los e só encontrar o sítio.

Até que uma noite sonhou com a rapinagem dum malandreco qualquer, feito raposa, tão cosido com as trevas que só ele conseguia lobrigá-lo, embora nunca almejasse descobrir-lhe a cara. No dar de ombros lembrava-lhe certo mariola - podia agora chamar-lhe tal nome! que já se metera com ele por causa dos ninhos; mas esse era um homem de barba, pai de filhos, e pela sombra tratava-se de um moço do seu tamanho. A menos, pensou o Constantino, que este pedaço de malandro ande de quadrilha com alguma bruxa, capaz de lhe dar uma bebida para o pôr mais pequeno!

Com semelhante ideia sentiu um arrepio na espinha. . Ainda se temeu prosseguir na cola do outro, mas um homem é um homem e um bicho é um bicho, caramba! E, naquela bravata súbita, aproximou-se ainda mais mais do inimigo, que já começara a subir ao pinheiro onde ficava o ninho, escolhendo bem os sítios para pôr os pés, sinal de que já o espreitara também a ele nalguma das suas ascensões. Não podia ser doutra maneira... Ou então o gajo era bruxo!

Quando percebeu que o ladrão já estendia o braço para agarrar nos pintassilgos, quis atirar um grito capaz de acordar os quatro lugares do Freixial. A voz, porém, morreu-lhe na garganta; nem um ai lhe saiu cá para fora. Sentiu-se perdido. Correu a um monte de pedras, rezou uma ameaça de estarrecer, mas os calhaus fugiam-lhe, transformados em cobras, e lá abalavam a assobiar que nem melros. Nunca vira bichos daqueles, não só na grossura, aí como o pulso de um homem, como também na cor, pois todos levavam as sete cores do arco-da-velha.

aquietou-se, pois não, brincas! E quando pensou em fugir para casa, as danadas das cobras atravessaram-se-lhe no caminho e puseram-se a deitar fogo pela língua. "Ai que vou morrer aqui", foi só o que disse.

Nesse mesmo instante, aflito, com a respiração opressa, acordou com o cobertor todo enrolado ao pescoço. Nunca a cama lhe soube tão bem, embora o pesadelo se alargasse para a realidade, convencendo-o de que alguma coisa acontecera aos seus pintassilgos. Ainda se pôs à janela a espreitar a noite, mas o escuro atemorizou-o.

E ali 'ficou à espera dos primeiros sinais da madrugada, ansioso por ir até junto do seu ninho preferido. Chegou lá depois numa carreira maluca.

A avó ainda lhe deu um grito: -A esta hora vais já para o galho? Afinal, e ainda bem, tudo parecia como na véspera.

O pior é que o sonho mau também podia ser um aviso. Antes prevenir do que remediar: resolveu levar os seus pássaros para lugar seguro, refreando a ansiedade, até que os pais saíssem em busca de comer. Mas aquela demora tornou-se num consolo. Não havia agulha de pinheiro, folhica de silvedo, tronco de oliveira ou qualquer sinal de vida ao ar livre que não ressumasse gotas de orvalho, muitas, e todas de cristal, onde os alvores da manhã vinham iriar num festim de pequenas luminárias. Mal acordou, a passarada largou-se numa cantoria de trinados e assobios, enquanto devassava moitas, hortos e ramarias.

Ao Constantino parecia que dia tão festivo só era possível pela sua decisão. Já descalçara as botas para amarinhar mais depressa, abrindo também dois botões da camisa para guardar junto do peito os seus pintassilgos cantadores. Se fossem dois machos, ainda seria melhor...

E, assim que espreitou a abalada dos pássaros velhos, foi-se quase num voo até ao ninho, sem medo de que algum pé lhe escapasse, tirando dali o que nenhum malandro, mesmo em sonho, seria alguma vez capaz de lhe roubar. Aconchegando-os muito entre as mãos e a pele, correu para a gaiola e ali os deixou, sem reparar que tiritavam, talvez de medo ou de frio.

Quando a mãe lhe deu a malga das sopas de café, Constantino sentou-se à porta para ficar mais perto dos seus cantaroleiros. Haviam todos de morrer de inveja assim que eles crescessem!

Depois, à socapa, abriu o mealheiro onde guardava as moedas que tinha para a festa e foi comprar alpista, enchendo com ela a gavetinha da gaiola. Só então chamou as mulheres de casa para lhes apontar, vitorioso, a façanha daquela madrugada. A avó ainda disse:

- Nunca gostei de ver pássaros presos... Não dá sorte!

Por seu lado, a Maria Cantigas tomou o partido do filho:

- Ah, mãe, deixe lá! O rapaz faz opinião... E é bonito ouvi-los de manhãzinha...

Mais cedo do que costumava, o Constantino abalou para a escola, desejoso de transmitir a notícia à rapaziada toda. Pôs nos pássaros cores que nunca teriam e garantiu que nem pintarroxos ou rouxinóis lhes ganhariam ao desafio. Exaltado, ofereceu uma moeda de aposta, para quem quisesse teimar, a canicada com que pescava no Trancão durante o Inverno. O argumento colheu, pois nem de empréstimo cedera alguma vez o seu melhor aparelho de pescador - um triângulo, todo de canas e vime, bem amarrados com arame, que ele construíra com o pai em horas de camaradagem, e cuja função consistia em se lhe virar a parte mais larga para o lado da veia da água, por onde o peixe vinha puxado e entrava, esmalhando-se logo de seguida no caniçado mais estreito. É uma rede, bradava ele no entusiasmo da pesca.

Perante a convicção tão arriscada do Cuco, os companheiros passaram da dúvida ao entusiasmo; e logo uns tantos se dispuseram a buscar ninhos para engaiolarem a passarada livre, desconhecedora da batida que o rapazio lhe preparava.

Muito custou aquela manhã a passar!... Com a' distracção da maioria, não arranjou a professora qualquer forma de suscitar o interesse da criançalha. Todos ansiavam a hora da saída para irem admirar com os próprios olhos os tais afamados pintassilgos cantadores de que o Constantino se ufanava. E então a palmatória bailou de mão em mão com fúria tão desusada que o Manel Coelho comentou em voz baixa para o companheiro de carteira:

- Isto hoje é a guerra do Afonso Henriques e dos Moiros...

A malta passou logo o gracejo de fila em fila -nem vale a pena contar que a professora passou a ser tratada entre eles por Afonso Henriques, havendo alguns que chegaram ao descaro de propor à mestra o reinado do rei Conquistador como tema de lição, o que provocava, de seguida, grandes foguetadas de riso entre a malandragem miúda.

Naquela saída, porém, nem isso os segurou muito tempo na estrada, quanto mais o jogo da bola ou as lutas de bandidos e xerifes, acabadas por tradição com um deles a queixar-se de pedrada numa perna ou de galicho no alto da cabeça. Foi uma carreira até ao lugar da Portela - ah, pernas para que te quero eu! -, em que o mulherio correu às portas com a algazarra dos moços, na ideia de que andava na aldeia algum cão derramado.

A gaiola lá estava com os dois pássaros, mas a Ti Elvira comentou para o neto:

- Os pais deram com eles e foi aí uma piadeira toda a manhã ... Vieram dar-lhes comer às grades. Até fazia dó ... Deus me perdoe se uma coisa assim não é pecado!

Exultou o rapazio com as notícias da Ti Elvira, imaginando tudo o que se passara entre o pinhal e a gaiola.

Foi o princípio duma feira A matula vinha e comentava, punha-se a discutir e travava-se de razões. Todos conheciam de pássaros como ninguém. Quem pôs cobro ao arraial foi a Maria Cantigas, quando garantiu que os bichos morreriam de susto com aquela lambança toda. Não, não queria ouvir perto da casa uma romaria tão grande - mais parecia que um santo fizera por ali algum milagre.

Pouco resignados, os rapazes ficaram a olhar em silêncio. O pior é que o bicho carpinteiro, o bicho da idade, começou a entrar com eles. Calados, não se aguentaram por muito tempo na contemplação. E uns à sorrelfa, por aqui me vou, outros em grupos e às corridas, lá abalaram à procura de brincadeira mais ao jeito.

À distância, pendurado num muro, só ficou um grupo mais curioso, que, entretanto, resolveu entender com o relógio do Jorge. O moço andava maluco com a maquineta e passava o dia de braço espetado para que lhe vissem a prenda. Perguntavam-lhe os outros:

- Ah, pá! Que horas são agora em Lisboa?! Já nessa altura a imaginação do Constantino trabalhava noutros enleios.

Ao fim da tarde, na companhia da irmã, fez os trabalhos da escola na mesa de comer (queria lá saber que sete vezes oito são cinquenta e seis. A avó vigiava-os, ralhando com ele mal o ouvia falar. Mas, assim que deu a tarefa por acabada, foi afeiçoar uma tabuinha que havia de servir, em seu entender engenhoso, de plataforma donde os pintassilgos velhos poderiam alimentar os filhos.

Na manhã seguinte viu que tudo corria como idealizara. A mãe, ufana, gabou-lhe a esperteza. Ele respondeu:

- A cabeça das pessoas não serve só para trazer cabelo e boné. (Falava de vaidade farta, o nosso amigo ... )

Satisfeito consigo andava ele, e com razão. Os pintassilgos pequenos já brincavam no cativeiro, os pais traziam-lhes comida nos bicos, e tudo parecia correr às mil maravilhas naquele compromisso da Natureza com um rapaz que era grãosenhor de meio cento de ninhos.

Mas a cabeça do Constantino não parava de imaginar delícias.

E certa manhã, antes de abalar para a escola, já o pai saíra para o trabalho de serventia numa obra, viu-se o Cuco pequeno abrir a porta do cárcere e prender os pintassilgos pelos pés às grades do fundo da gaiola. Depois esperou. Quem porfia, mata caça...

A mãe apareceu à porta, lembrando-lhe o compromisso da escola, a que ele retorquiu, de pronto, explicando "que a senhora mestra não dava aula naquela manhã, porque abalara para o médico; andava doente da barriga, ou coisa parecida". Maria Cantigas acreditou sem custo, tanto mais que a Ana Maria deitou o seu reboco na patranha do irmão, acrescentando que vira a senhora a vomitar. Nas costas da mãe, riram os olhos de ambos, enquanto o Constantino se prontificava a rachar uns cavacos, trazidos para o terreiro há mais de quinze dias, e que por ali ficaram à espera da sua tineta em lhes meter o gume do machado.

Calhou mesmo a jeito aquela tarefa. Enfiou na cabeça o chapeirão de palha- a avó lembrara-lhe que podia agarrar o sol na cabeça e não havia maleita mais custosa de arrancar do corpo duma criatura. E lá de doenças não lhe falassem, que disso se receava ele mais ainda do que palmilhar à noite, sozinho, todo o caminho do Picoto.

De dentes fincados, agarrou o cabo do machado, depois de cuspir bem nas mãos, e vá de ensejá-lo mesmo na veia de uma das achas de madeira para abri-la mais ao jeito. Atirou-o com um "hum!", igual ao que ouvia ao pai, e a lâmina agarrou-se ao cerne do cavaco; então trouxe o machado arriba para o rachar noutro golpe, embora os braços lhe tremessem com o arremesso da primeira incisão. Contudo, logo que a mãe desapareceu do palheiro das vacas, Constantino correu em dois saltos até à gaiola e escancarou-lhe a porta, derriçado com o pular incerto dos dois pintassilgos, talvez estranhões com as novas grilhetas e a demora dos pais em virem debicar-lhes a paparoca.

O nosso passareiro também não aparentava grande calma, diga-se aqui entre nós, que somos seus amigos. Já vira passar um bando -sabia lá de que pássaros se tratava! - e seguira-o com mil atenções, não dessem os pintassilgos todos em debandar do Freixial, e ali ficaria ele COM dois infantes à sua conta, sem saber como tratá-los até agenciarem comida por iniciativa Própria. Não duraram muito tempo as preocupações

do Constantino. Lá vinham eles! Sim, eram os seus pintassilgos, não tinha dúvidas. Conhecia-os quase à légua... O macho mais cantaroleiro, a fêmea mais azougada na pressa de chegar. Passaram ambos rentes à gaiola, e logo abalaram por detrás da casa, num voo rápido de quem investiga e não se aquieta. Constantino percebeu-lhes o espanto; puxou de um cesto vindimo e enfiou-o na cabeça, procurando confundir-se com o chão, enquanto buscava no entrançado do vime uma boa vigia para não perder o rumo dos pássaros velhos.

Eles haviam de voltar!... Por força haviam de voltar!...

Embora lhe parecesse que esperava horas sem fim, os dois pintassilgos regressaram de comida no bico, ainda talvez desconfiados, porque não entraram logo na prisão dos filhos, voando e cantando-lhes à volta, até que a fêmea pousou na entrada da porta -percebia-se bem que receava qualquer coisa!...

Depois, a ânsia de poder libertar os filhotes venceu-lhe o medo, pondo-a a saltitar de alegria no mesmo poleiro a que estavam presos. E de lá cantou para o macho, como a dizer-lhe:, "Então, que receias? Não vês que estou aqui?"

Foi um momento breve. Um momento em que o Constantino de um salto (ainda agora não saberia explicar como fez aquilo tão depressa!), conseguiu fechar a porta de arame, tapando-a com mão nervosa, como se temesse ver fugirem- lhe os quatro pássaros por entre os varões e os dedos. O bater descompassado do coração dava- lhe punhadas brutas no peito; sossegou depois quando viu os pintassilgos velhos a meterem na boca dos filhotes a comida agenciada pelos campos. Sorrateiro, puxou o trinco, experimentando-o; só depois começou a gritar:

Tenho agora quatro pintassilgos cantadores!

ó mãe!... Ah, 'vó!... Ah, Ana Maria!... Apanhei os quatro!...

Estava vermelho, dava pequenos saltos e girava de mãos no ar.

Algazarra tamanha trouxe a família e a vizinhança à porta. E todos diziam:

- Foi uma boa caçada, sim, senhor! - À boca pequena comentava-se: - O rapaz é esperto... Em caça sai ao pai.

O Constantino fingia não ouvir, mas inchava de vaidade. E lavrou a sentença:

- Agora é desandarem, senão os pássaros assustam-se...

A irmã teve de levar um encontrão para se meter em casa, onde ele também se recolheu, tanto mais que chegara a hora do almoço e queria contar, à volta da frigideira, como cometera aquela façanha.

Começou mais ou menos assim:

- Andei duas noites inteirinhas a pensar no mesmo: tiro, não tiro. Era assim uma coisa a puxar-me pra uma banda, e outra com a mesma força a agarrar-me pra outra. A cabeça punha-se-me que nem um moinho... Uma vez tive um raio dum sonho que até febre agarrei... Vi um gajo "assubir” ao pinheiro e roubar-me o ninho. Foi uma aflição! Ah, caramba!... Deu-me cá uma zuna tão grande que deitei atrás do gajo.

Ele sabia que a irmã se deliciava com as suas fantasias. Bem lhe via os olhitos em fenda a sorrirem-se lá no fundo, meio alegres, meio gozões, seguindo-lhe as palavras como se ele as riscasse no ar com lápis de cores. A Ana Maria ouvira-lhe já a história do toiro azul, e dissera na escola que a dele era ainda mais bonita do que a da avó. Mais bonita, sim senhor! Na história do Constantino, o toiro azul até voava atrás dum cavalo branco que se pusera a fazer-lhe negaças, metendo-lhe os cornos ao meio da barriga.

Pois foi com achegas da sua lavra que o rapaz relatou às mulheres da casa a aventura prodigiosa de enclausurar na mesma gaiola quatro pintassilgos cantadores.

A conversa com o pai seria diferente; já a trazia encarreirada. Conversa de homem para homem - menos palavras, nada de 'e acrescentos, antes pelo contrário, embora o entusiasmo não lhe coubesse na pupila azougada dos olhos. Nesse domingo -tinha a certeza!-, 'os caçadores que viessem recordar aventuras de façanhas suas haviam de lhe pedir também para ele falar dos pássaros cantaroleiros, vivinhos ali à frente dos olhos de todos para que ninguém duvidasse do que dizia.

Ainda gozou o tempo necessário para que tal glória lhe acontecesse.

O Evaristo Bacalhau, sempre moedor, quis pô-lo a ferver com uma das suas:

-Eu gostava de te ver a agarrar gambuzinos. O gambuzino é o pássaro mais bonito que eu ainda vi...

- Gambuzino não é pássaro: é conversa para enganar tolos. O meu pai já me contou...

- O teu pai sabe lá de caça!... -Pois não, não sabe. Vossemecê nas caçadas só mata copos... O meu pai mata perdizes e coelhos...

- Vai comprá-los à praça...

- Ao menos dá-lhe trabalho. A vossemecê dá-lhe só conversa...

Foi uma risota nessa tarde. Uma tarde bem passada, enquanto a mãe passajava peúgas e meias, e os cães andavam por aí, à volta dos donos, com saudades das longas caminhadas por cerros e planícies.

Tornou-se mais senhor de si - qualquer pessoa o percebia. Quando pela manhã tomava o carreiro para a aula, depois de limpar a gaiola e enchêla de comer e água, o Constantino até cantava. Não importa o quê: cantigas! Cantigas mal entoadas de quem não é senhor de ouvido apurado. Mas para trinados lá estavam os quatro pintassilgos, capazes de se pegarem ao desafio com quantos rouxinóis quisessem experimentar o gosto azedo duma derrota.

Pensava nestas bravatas, embora uma pequena nódoa de dor começasse a tomar-lhe o coração: os pintassilgos velhos cantavam menos e pior, enquanto os filhotes, desprezados pelos pais, pareciam mirrar-se, magrotes e sem ganharem penas, metendo-se pelos cantos com as asas a cobrir-lhes as cabecitas tristes.

Certa manhã... Ah!, não, o Constantino não gostava agora de recordar essa manhã em que veio a correr do quarto e deu com os dois pássaros pequenos mortos de fome no fundo da gaiola! Ao princípio ainda julgou que eles dormiam: agarrou num graveto, enfiou-o pelas grades e procurou acordálos. Mas os corpos rolaram de cabeça pendida, ante a indiferença dos pintassilgos velhos, que se deitaram um ao outro, à bicada, no desespero de acabarem depressa.

Ganhou susto; pôs-se a gritar pela avó. E quando a Ti Elvira chegou inquieta para indagar de quem fazia mal ao neto, o Constantino viu, viu bem com os seus olhos, que os outros dois pássaros enfiavam o pescoço nas grades mais estreitas, esganando-se ali mesmo, como se quisessem dar ao carcereiro o espectáculo terrível de vê-los matarem-se.

Aturdido, Constantino só conseguiu chorar. Sem lembrar naquela hora o que tantas vezes lhe dissera, a Ti Elvira pegou na gaiola, atirou para longe os quatro pássaros mortos e foi deixá-la perto do neto, esgueirando-se à pressa para dentro de casa,* com receio de assistir ao que premeditara. Um nadinha surda, ouviu perfeitamente o Constantino atirar um pontapé à gaiola, escavacando-a depois debaixo das botifarras cardadas.

Quando ele regressou, de cabeça baixa, repetiu sem o olhar:

-Deixa lá, neto! Pintassilgos presos não dão sorte a ninguém...

 

                                   Mas já é sorte ter amigos...

Amigos dos bons, entenda-se, sem falar nos da família; essa ninguém a escolhe, por mais voltas e contravoltas que dê à vida. E se por aí se ganham afeições verdadeiras, a verdade é que os piores inimigos, os verdadeiros inimigos de morte, aparecem quase sempre entre gente do mesmo sangue, por mor dum bocado de terra ou duma casota.

- Em Arranhó, ouviu ele contar, houve um homem que matou à podoa uma ranchada de gente da família só porque lhe tiraram no tribunal uma vinha que dava aí cinco almudes.

"Isso são moinantes!", foi só o que ouviu dizer ao avô Germano Cara-Linda, quando fechou a conversa num repelão, indo logo sentar-se no poial da porta, naquele seu jeito de cuspir e de falar entre dentes. Depois ainda gritou para dentro de casa:

-Coisas dessas não são pra se falarem ao pé da criançalha...

O Constantino, porém, deu conta de tudo e ainda hoje se arrenega quando lhe chamam moinante ou lhe dizem que anda na moina, embora saiba que o avô se pôs branco como a cal e de mãos a tremer por se lembrar de desavenças antigas com uns primos, ou coisa parecida.

Amigos de três ao vintém descobrem-se mais depressa do que um laparoto na caça. No Verão arranjam-se mais do que as mães, esses meninos de Lisboa que trazem bolas de borracha, camas de pendurar no pinhal e bicicletas de duas rodas com campainha e tudo. E lá porque precisam de companheiros de paródia, toca de arrebanharem amigalhotes de aldeia, julgando-os capazes de dar cavalaria ao primeiro saloio lisboeta aqui chegado com ares de vir ensinar o padrenosso ao vigário.

Afeições de enfiar num cordel e de trazer à cintura não faltam nessa altura. Mas são curtas como as pernas do Pitorrinha, um velho canejo e com menos de metro e meio que anda por aí à pida, entre Bucelas e o Cabeço de Montachique, e se diz ter dinheiro escondido para comprar um palácio de rei.

Mais curta ainda -lembra-se o Constantino - foi a amizade com certo grandalhão, aloirado, que apareceu ao pé da fonte, de bicicleta à mão, propondo passeio a quem quisesse acompanhá-lo. E vai daí começaram as correrias desde a estrada do Avelar até ao largo, sempre com as pernas do arganaz a servirem de motor, uma vez que o garganeiro pensava que o zangarilho se quebraria com outros pés a moverem os pedais.

- A bicicleta é fraca - disse o Manel Coelho num piscar de olho para o Constantino.

- Fraca?... Já tiveste bicicleta?

- Não, mas sei o que é uma bicicleta rija. Há aí um rapaz que leva dois no quadro e com ele a puxar... Parece um automóvel...

- Isso também esta leva - respondeu, brioso, o arganaz.

-Nessa não acredito eu... Intrigado, o nosso amigo Cuco encolheu os ombros para o companheiro. A meia voz, o Manel só lhe disse:

Não vês que o gajinho é parvo?... Se é parvo, bem pode andar com a gente a passear... E corpo não lhe falta; deve comer bifes.

No quadro só foi o Constantino, montado, de ilharga, enquanto o loiraço galgou para o selim e o Manel se equilibrava atrás, bem agarrado às ilhargas do ciclista. Andaram numa dobadoura, acima e abaixo; já o matulão respirava grosso, já as pernas lhe tremiam de fadiga, e ninguém lhe arrancava licença para mover os pedais. Os pedais eram só dele. E se nisso fazia tanta empáfia, que desse às gâmbias, pensava o Constantino, morto de riso com o arfar cansado do lisbonês, a derreter-se em bagas de suor. retaguarda, o Manel incitava-o, garantindo que o tal outro fora capaz de percorrer aquele mesmo caminho mais de vinte vezes.

Mas não chegaram a conta tamanha, porque os canelos do granjolão fraquejaram e a máquina meteu-se aos ziguezagues pela estrada abaixo, até que a corrente lhe saltou fora, embaraçando-se na roda e atirando com dois dos rapazes para uma almofada de poeira. (O Manel galgara a tempo para a banda de trás, embora o salto lhe custasse um bate-rabo de ver discos voadores ao meio-dia.)

Depois de se olharem bem à procura de marcas da cambalhota, chegaram-se à máquina para se garantirem do que havia; e logo o arganaz lhe encontrou defeito grosso, propondo ao Constantino para se apresentar em casa dele como único culpado do desastre. Via-o assim mais tamanhinho e propunha-se achar réu, sabendo que o pai iria tosá-lo no jeito da praxe.

O Cuco não foi na farófia, esganiçando-se a protestar que ia sentado e não bulira na "pasteleira".

Encrespou-se o lísbio com o acintoso da- palavra desdenhosa; e, num empuxão de má catadura, atirou o' Constantino de costas, o que não era façanha, pois de cócoras se pusera o nosso amigo, na boa intenção de descobrir melhor o desarranjo da bicicleta.

Logo rebentaram raios e coriscos em plena estrada. De pedra bem aguda numa das pontas, o nosso Cantigas cresceu para o ciclista, ameaçando pisarlhe os miolos, se tanto fosse preciso, porque estava enganado, " se vens de Lisboa para meteres barretes nos saloios, ficas a saber que eu não tenho coração pra pendurar uvas".

Não, lá isso não. Coração pra pendurar uvas não era do feitio da família.

A verdade é que o loiro se conteve com a ameaça, ajudado certamente pela atitude do Manel Coelho, que rapara do cinto de cabedal e parecia preocupado com o funcionamento da fivela, lembrando, distraído, que uma correada daquela banda fazia um galo de duas cristas na cabeça onde encontrasse assento.

A remoer por seu lado, abalou o outro direito a casa, com a máquina à mão, engenhando história que bastasse para não levar mais de dois tabefes. Mas já no largo, numa bravata escaldada pelo repúdio do Cuco, gritou uma ameaça de cigano:

- sempre que te veja, de dia ou de noite, eu fique ceguinho se não te cuspir nos olhos...

- A mim? -perguntou o Manel. -Não, a esse negralhão... a esse gajo que nunca mais há-de pôr o rabo na minha bicicleta...

Corrido a calhau, já o lísbio se não deu conta que o Constantino lhe devolvia a intimidação, propondo-se partir-lhe os dentes todos para o outro nunca -mais comer pão nos dias da sua vida. (Julgava o nosso amigo que na casa do menino loiro se comia pão duro.)

E aí morreu essa amizade de um só dia. Foi pena, lembrou o Manel uns tempos depois, quando andavam ambos a acarretar vides para o lume. Aproveitando a tarefa, tinham resolvido ir ao rabisco a todas as vinhas por onde passassem; e, se o pensaram, melhor o fizeram, porque havia cachos de mel esquecidos nas cepas. Entre ambos cresceu em menos de uma hora uma praga de uvas; e enquanto a Janota esperava pelo carrego, ali se puseram a recordar, até que veio à conversa, cacho a ti, cacho a mim, a aventura com o ciclista lisbonês.

Vai daí, o Constantino disse: - O moinante tinha quase dois de mim... Calado, o Manel só então percebeu a razão que levara o amigo a fazer as maiores andas que havia no Freixial; tão grandes, tão grandes, que só ele podia andar em cima delas. "Pareces um gigante da feira", gracejava a avó. "Um dia baldeias daí abaixo e nem a alma se te aproveita ... "

Nisso enganava-se a Ti Elvira -o neto era cartaxo de corpo, mas de alma avantajada e aberta, onde os amigos cabiam à vontade. Está aí vivo o Manel que o diga. E esse antes de qualquer, bem entendido, porque ambos nasceram no mesmo dia e quase à mesma hora. No fundo acham-se pouco menos do que irmãos. Ajudam-se no trabalho quando podem, andam na mesma classe, vão ambos para o rio, à pesca ou ao banho, e não se esquecem um do outro se há fruta boa para comer.

De figos nem é bom falar ao pé deles... Adivinham-nos como os pássaros.

E que pássaros são ambos, embora o Manel seja Coelho de apelido, mas não gosta que o tratem dessa maneira. Só o Constantino desfruta dessa mercê quando se põem a brincar:

- ó Cuco, tu falas ...

-Também conheço um Coelho que não lhe fica atrás ...

- Se calhar, estás a pensar no coelho do livro da 3.a classe.

- É o mesmo; são tudo animais que falam ...

Há os que falam e os que entendem o que as pessoas dizem...

- Falam com os olhos, que é modo de falar muito mais da raiz do coração- lembra-lhe a avó, que apascentou ovelhas lá para os lados da Ajuda, quando se vai a caminho do Sobral.

Por isso mesmo os animais lhe entendem a voz e ela os percebe melhor do que às pessoas.

- Os olhos dum cão nunca enganam - confidencia a Ti Elvira. - Ali, isso nunca!... Nem os olhos nem o rabo, que é a modos uma espécie de bandeira do que lhe vai na alma. Eu por mim acho que sim, acho que os cães têm alma. Se não a têm, não se pode gabar Deus de ter feito o mundo muito a direito, Deus me perdoe se estou em falta. Também fazer uma coisa tão grande como é o mundo, com terra, e água, e céu, e bichos, e tudo isto, só em seis dias, por muito bem que se trabalhe sempre há coisas que escapam... Mas deu aos cães os olhos e o rabo, essa é que é a verdade, louvado seja Deus! Quando em pequena me mandavam para o monte com mais de trinta ovelhas, aprendi a conhecer os animais. Ninguém me tira da cabeça que eles arranjam maneiras de falar uns com os outros.... E alguns de se entenderem com a gente, que "semos" os bichos mais "ordinairos" de toda a criação. Mandavam-me para aquele degredo sozinha, e eu tinha de me calar, a comer pão duro com o molho dos olhos, que é o molho mais amargo que se pode comer. Nem vinagre, nem fel, nem ervas do campo, sabem pior do que as lágrimas choradas às escondidas... sem ninguém. O meu cão, um cão malhado de branco e amarelo sujo, o Tejo, percebia tudo e ali se punha à minha beira, a acompanhar os meus passos doridos, também ele dorido e triste, olhando-me de esguelha, como se tivesse medo de me ofender... E, assim que eu me sentava, lambia-me as mãos, punha-me as patas em cima do braço, que depois abocanhava, mal eu lhe fazia uma festa. Eu já sabia: estava a convidar-me para a brincadeira. E aí então, eu levantava-me para agarrar uma pedra e atirá-lá longe, o mais longe que podia; e ele galgava o pasto aos pulos e voltava, a sacudir o rabo, com a pedra na boca, tão contente, tão contente dele e de mim, que daí a pouco eu já ria e lhe gritava o nome por aqueles 'montes fora. Nunca uma ovelha me fugiu, graças a ele. Uma vez agarrei um susto de morrer... Nem me quero lembrar, que o coração se me corta todo, e já lá vão quase sessenta anos. Ficou-me o coração mais retalhado que uma azeitona. Chego ao cimo dum cabeço com o rebanho, e aí me abalam aquelas malditas todas, pareciam doidas, com o belzebu no corpo, a barregar e a correr de tal jeito que levantaram uma nuvem de poeira, como se fosse uma manta de nevoeiro caída em cima da gente. Ih, Jesus, gritava eu. A Senhora da Ajuda me acuda nesta hora! Fiquei para ali "esparvoada", sem pinga de sangue, e já não era capaz de gritar, e só pensava "vou-me deitar a um poço, vou-me deitar a um poço fundo". Ao longe, eu só ouvia o ladrar do Tejo; conhecia-lhe o ladrar como a voz da minha mãe, salvo seja!...

"... E então "assubi" a mais outro cabeço e vi .que o rebanho voltava para o pé de mim. Trazia-o o Tejo com mais preceito do que qualquer guardador lá da Bordad'Água, que era donde o cão viera prà nossa casa. Desatei a chorar de contente; nesse dia enchi de beijos o focinho do meu amigo...

" ... O que foi?... Ora, o que havia de ser!... Uma delas viu um campo de milho a verdejar ao longe e aquilo foi logo uma doideira que mais ninguém as agarrava. Não há bicho pior para guardar do que a ovelha... Nem a cabra. Nesse dia fiz mais cedo a minha boneca. Tirava a saíta e enrolava-a, dando-lhe o jeito duma boneca de compra. Vocês hoje são todos uns fidalgos!... Eh! Eh! Uns senhores reizinhos da família... No meu tempo era só trabalho e porrada... Agora, trazem-nos tanto nas palminhas que os filhos mandam nos pais. Com o mundo a andar em semelhante jeito, não sei onde tudo isto vai parar... Mas lá bem não acaba, não. A mim é que já não me calha muito tempo para ver as voltas que o mundo vai levar, mas ainda gostava de dar um passeio por cá daqui a uns cem anos...

"... Se daqui por cem anos ainda houver mundo. Os livros sagrados dizem que desta vez a Terra vai acabar em fogo, e a mim não me custa nada a acreditar... Só é pena que numa desgraça tamanha os justos acabem por pagar o mesmo que os pecadores. E os animais também...

O neto sabe de cor este arrazoado todo e repete-o à irmã, que se derriça mais ao escutar o Constantino do que a avó, talvez por ele entremear na narrativa certos apartes que ouvem aos cómicos da televisão. No fundo, porém, as histórias são as mesmas. Nisso, como no desvelo pelos animais, o rapaz sai todo inteirinho à Ti Elvira, embora a sua predilecção se vire para os cães, o que não espanta, pois em casa de caçador só não há matilha de podengos quando estes não conseguem sozinhos deitar rumo à vida. Na época da caça, a não ser os cães cegos e os "esparvoados", todos ajudam para o monte; diz o pai que seria capaz de meter um tiro de bala na asa mindinha dum papa-moscas, se pássaro tão pequeno lhe desse a conta.

Fora o Tunante, que guarda o curral das vacas, e o Lisboa, que é arraçado de perdigueiro e tem faro especial para levantar perdizes, há ainda a Rasteira, uma cadela amarelada, de perna curta e orelha graúda, companheira do Constantino por toda a parte, vá ele à folha de cana para as vacas ou as leve a beber água à fonte, se meta no rio a pescar ou ande perto de casa a imaginar distracção. A Rasteira prefere servir-lhe de companhia quando o rapaz abala sozinho; sabe, porém, que não pode ir-lhe no encalço se ele toma o caminho da escola, não lhe apareça a morte nas rodas dalgum carro ao atravessar a estrada, fim vulgar de muito rafeiro da aldeia. .Se o Cuco monta na burra, a brincadeira é outra. A cadela desata a correr à sua frente, galga para certo muro que já mediu bem, e ali o aguarda, ansiosa, de focinho no ar, a trazê-lo para si com o faro apurado. O rapaz finge não dar por ela, assobiando voltado para a banda do Trancão; atenta, a Rasteira mede então o seu salto e atira-se para a garupa da Janota, abocanhando a camisa do dono, de maneira a segurar-se no balanceado da marcha e a lembrar-lhe também que já tomou o seu lugar.

Escusa de fingir, conhecem-se bem um ao outro. A Rasteira acha-se com certos direitos, e tem razão. Quando ele quis fazer uma flauta de cana, que ninguém podia ouvir, tão roufenho e esquisito era o som, os outros cães abalaram e não faltaram os ralhos da mãe e da avó por causa daquela solfa tão pífia. E foi ela, a Rasteira, que aguentou o sacrifício inteirinho, resolvendo assistir, no seu fraco entender, a quantos ensaios o companheiro marcasse para afinar a flauta, até parti-la toda, mais migada do que a ração das vacas depois de estas lhe meterem a dentuça.

A cadela de perna curta sabe dar amizade, e da fiel mas também gosta de se ver retribuída nas suas inclinações. Um passeio de burra com o amigo ou uma coçadela no pescoço bastam-lhe para a tornar feliz. E então salta e corre, a dar ao rabo, como se lhe enchessem a barriga de carne crua.

Olhem, o dono grande que o diga quando a leva à caça. Não faltam na matilha cães grandes e destemidos. Mas nenhum deles desentranha perícia maior ao meter o focinho por debaixo de um coelho e jogá-lo ao ar, dando-lhe uma boa estocada, como os caçadores chamam àquela acometida. E ela que chega a brincar com a coelhada mansa, aparece toda outra, aguerrida e fera, mal percebe no dono os preparos para uma batida por cerros e pinheirais.

Cheira-lhe a pólvora antes dos tiros comenta o Silvestre Cara-Linda para os companheiros, vaidoso da Rasteira, tão rafeirota de tipo e tão ardorosa nas longas caminhadas das suas andanças de caçarreta profissional.

Volta cansada, língua de meio palmo quase de rojo, mas tão segura de si junto das pernas do dono mais velho que o Constantino sabe por ela, antes de ver o que o pai traz pendurado à cintura, como decorreu a guerreia. O amigo chama-a. Nesses momentos só dá ao rabo, porque para ela uma caçada acaba exactamente quando o seu chefe entra em casa e tira a bandoleira do ombro. Antes disso, escusam de desafiá-la para a brincalhotice. A Rasteira faz galas de cadela esmerada e briosa.

Depois até lhe sabem bem as carícias do Constantino, embora se sinta trôpega das pernas*. Para lhe fazer o gosto ainda há duas ou três corridas; em seguida busca uma sombra e adormece. Ela tem a certeza de que o rapaz está a vigiála no repouso.

Mas o jeito do Constantino para os animais fica-se pelos cães e por uma das vacas, a Mimosa. Com as burras a coisa sailhe sempre torta. Já a Ti Elvira tem o condão de fazer amizade com qualquer bicharada, talvez por contar do seu lado com uma razão de peso: dá-lhe de comer, argumento valioso no culto das relações de pessoas e animais.

Põe nome a galos e galinhas, e eles acorrem ao seu chamamento, mesmo o Zaragateiro, um "galarós" pimpão com ar de moço de forcado, e a Teté, a pintainha pedrês que valia por três quando começou a dar ovos, mas se tornava arisca com as outras, tanta bicada distribuía dentro do galinheiro. Uma ninhada de patos tratada à mão pela Maria Cantigas e pelos filhos, se os consentia perto, não deixava para eles a afeição maior. Assim que ouviam a voz da Ti Elvira...

- Queija! Queija! Queijinha! ...

- Cucharretas! Cucharretas! ... aí vinham eles a correr, e alguns em pequenos voos, como se temessem encontrá-la zangada. A um deles, um pato refilão e crocitador, chamou- lhe Chico. E o bicho acorria ao brado do seu nome, atropelando tudo o que lhe aparecesse à frente do bico inquieto.

Nisso de nomes para a bicharada só ela servia de madrinha. E amuava a sério, e ainda amua, quando não lhe concedem essa prerrogativa. À Carriça, a burra mais nova, quis o Silvestre alcunhá-la de Ligeira. Pois a Ti Elvira logo sentenciou:

- Ligeira é nome de ovelha... E a burra nova ficou Carriça. Agora protestam os netos, porque a Carriça cresceu mais do que a Janota, a burra velha, e eles acham disparate tratar por pequena uma besta daquele tamanho todo.

 

                         Não ir à caça e apanhar uma raposa...

A Ti Elvira, incapaz de decifrar uma letra do tamanho duma roda de carro de bois, concede aos netos a façanha de saberem ler nos livros certos nomes estranhos de terras e de gente que ficam para além das fronteiras do seu pequeno mundo. Mas isso basta. A experiência segreda-lhe que há muito doutor aparentado a jerico de cigano - na cabeçada não lhes faltam cores, berloques e guizos, mas só com grãos de pimenta metidos no "sim-senhor" se mostram vivazes e ligeiros.

Ali, em casa, cabelhe a função do livro vivo de toda a sabedoria das coisas que importam numa aldeia de camponeses. Com os animais ninguém se entende melhor; do tempo variado, quer de chuva ou quer de vento, lavra ela a sentença justa, adivinhando pelo rumorejar das árvores, pelo desdobrar dos ecos ou por sinais nas serranias e nas nuvens o que irá acontecer nos dias mais próximos.

Se garante que vem aí uma chuva brava, convêm tomar boa conta das coisas postas ao tempo e susceptíveis de se guardarem; se ela opina que a terra beberá bem as cordas de água, mesmo que o vento as balouce com força, não valerá a pena correr para se meter debaixo da telha seja o que for.

Os netos reconhecem-lhe o prodígio de tantas sabenças.

Eles próprios lhe pedem conselho em momentos de apuro ou a imitam em ocasiões propícias. Não se esquecem de certa trovoada vinda de longe, das bandas da serra do Trancão, e que ela repeliu da aldeia com palavras mágicas. E embora outras tempestades se mostrassem insensíveis aos rogos da avó, a verdade é que lhe repetem o clamor humilde, e também raivoso, confiantes de que, ao menos, não cairá do céu nenhum raio para os fulminar.

 

Santa Bárbara pequenina

Se vestiu e se calçou,

Seu caminho caminhou.

Por onde vais, Bárbara?...

Vou espalhar a trovoada.

Espalha, espalha,

Por onde não haja beira,

Nem eira,

Nem folha de figueira,

Nem gadelhinho de lã,

Nem bafo de gente cristã...

 

Maravilha-os naquilo mais do que tudo a intimidade com que a avó trata por tu uma santa, sem lhe ralharem do Céu, sinal garantido de que a conhecem e a ouvem por sítios tão sagrados e distantes. Foi ela também a sua mestra na cantoria ao arco-da-velha:

Está a chover e a fazer sol; Estão as bruxas a fazer pão mole.

E se têm a certeza de que as bruxas existem, indo à noite a certas fontes para se pentearem, e rirem, depois de saltarem das vassouras cavalgadas por ares e ventos, acham que nenhuma tarefa lhes cabe no preparo do pão, mesmo no de milho, pois conhecem os dois padeiros da aldeia e já os espreitaram no trabalho. Quando muito, as bruxas poderão meter-se dentro do forno, onde a lenha arde e estala. Mas nem isso, duvida o rapaz.

Os netos só se esquentam com ela se lhe dá para gracejar à sua conta, ou se lhes grita o nome quando se sentem felizes na brincadeira e a Ti Elvira precisa dalgum recado. O Constantino, por exemplo, andou com cara de ferro- velho durante quinze dias quando voltou da escola no dia da passagem para a 4.a classe e a avó, lá porque ele ficou mal, se pôs à hora de jantar a oferecer à nora uma pele de raposa para fazer uma gola de bicho.

Arrelias já lhe chegavam bem as que passara todo o caminho até casa, mais com vontade de abalar, sabia lá para onde, do que aparecer à família de raposa às costas, quando andara todo o ano a garantir que sabia as lições na ponta da língua. A irmã, por aquele andar, ainda iria agarrá-lo; e isso já representava vergonha bastante para quem se fazia passar por professor austero na hora de prepararem os trabalhos da escola.

De bibe branco vestido e mala debaixo do braço, viera no caminho a resmungar consigo, afogueado de pudor e de olhos no chão, pois daí a pouco não tardariam os foguetes e morteiros a festejar a passagem dos outros. Naquela altura achou tal costume uma coisa parva de quem não se pode gabar de muito tino. Pensou em esconder o bibe e os livros no curral das vacas, como se a família pudesse esquecer o exame, de que tanto se havia falado. Ainda chamou a irmã, na esperança de que a avó não desse por ele, pois a mãe devia ter ido levar o leite a Ribas e o pai ainda não regressara do trabalho. Nessa manhã fora levar-lhe o almoço. E lá de cima do telhado, a sorrir-lhe, o pai prometera:

- Se passares para a quarta, compro-te umas botas pretas para levares à festa...

E a festa aí a arranjara ele por sua fraca cabeça, dizia consigo, naquele jeito de falar sozinho, como tantas vezes ouvira ao avô Germano Cara-Linda, um homem a direito, sim senhor, que naquela dificuldade o defenderia de brincadeiras e dalgum puxão de orelhas bem ensejado pelas mãos rijas do pai.

Ainda pensou inventar uma peta:

- Este ano a professora não fez passagens de classe, arreliou-se com a gente todos.

Mas o pior eram os outros... E as mães dos outros, todas rabitesas com os exames dos fi lhos ... E os foguetes e morteiros na estalação ...

Pediu à irmã que lhe guardasse o bibe branco e a maleta em qualquer sítio, encostando-se com ela ao muro do Ti Joaquim Labrasco a cogitar na desculpa que haviam de arranjar para repetir em casa. Mas a avó veio dar de comer às galinhas e bateu de olhos com eles. - Então o exame?!

Fez-se desentendido, mas a Ti Elvira insistiu:

- Ali, Constantino!, não ouves? E remoeu, e resmungou.

- Coisas de velha - disse o rapaz para a irmã.

Despeitada por não lhe prestarem atenção, a avó repuxou da maior ofensa que julgava poder inventar:

-Há por aí raposa, há!... Tão certo como eu me chamar Elvira...

Sabia que a reacção do Constantino seria pronta; conhecia-o de ginjeira. Mas com o silêncio adivinhou que os dois netos falavam entre si, fingindo, os marotos, que a não ouviam; e indignou-se, embora nem por sombras admitisse um falhanço do rapaz. Então, gritou com alma:

- Querem ver que trouxeste alguma raposa?!...

-E se trouxesse? -respondeu o Cuco num arreganho. -Se calhar, nunca se viram raposas no Freixial...

Ti Elvira sentiu sumir-se pelo chão dentro ou cair da altura do céu, sem asas e de cabeça para baixo. Ficou trémula, incapaz de dizer o que lhe passou pela ideia. Só arranjou forças para se meter dentro de casa, meio tonta e infeliz, ao lembrar-se do aranzel que o seu Silvestre faria à hora da ceia.

Mas as palavras dele foram curtas. Secas e curtas. -Se perdes outro ano, acabou-se o ofício... Meto-te no campo a puxar a raiz do Sol cá para baixo. Vais saber o custo da galé...

A sentença caiu num silêncio de morte. Constantino bebeu lágrimas verdadeiras em vez de sopa. Parecia-lhe que poderia dar uma explicação do que se passara, mas não achou palavras com força suficiente para contrabater a indignação do pai. Pediu licença e foi deitar-se. Depois ouviu uma longa conversa em surdina, em que mal percebeu as desculpas da mãe a seu favor.

Na manhã seguinte, ela só lhe disse:

- Agora vê lá se depois disto te metes aí na moina...

Levou mais de uma semana a engolir o desgosto. Afugentava os amigos que o desafiavam para a brincadeira, ficando-se a congeminar entre o curral das vacas, o palheiro e a porta de casa.

Todas as manhãs, à hora do café, a avó pregava-lhe uma ensaboadela de conselhos e reprimendas, que ele procurava . tamponar com as duas mãos postas sobre os ouvidos. Já decorara a perlenda inteirinha: que era uma vergonha dos outros, que o pai se fartava de trabalhar para eles, mais isto e mais aquilo, que se fosse com ela até pintaria a cara de preto...

E, ainda insatisfeita com os remoques do sermão, passava os dias a inventar tarefas para não -deixálo pôr o pé em ramo verde, como lhe dizia num tom de mofa, que o irritava mais do que a perseguição. Acompanhar as vacas ao pasto e à água, carregar a burra ou ir levar o almoço ao pai não lhe faziam mossa. Em liberdade sempre havia maneira de acamaradar com os amigos ou dar um escapanço até ao rio. Mas demorava-se nele o véu turvo daquele desgosto. As pessoas percebiam-lho e achavam que o Cuco parecia outro.

Numa tarde, porém, em que voltou carregado com a Carrica, vindo ele em riba da albarda com a irmã e a cadela, a avó gritou-lhe, a sorrir:

Vocês estão como os do Zambujal: vêm três no mesmo animal...

Fizeram as pazes, já não era cedo, quando Constantino arranjara tamanha molhada para cansar a burra, convencido de que a Ti Elvira iria irritar-se com ele.

Mas os dois andavam realmente cansados daquela disputa. Queriam-se demasiado um ao outro para que aguentassem por mais tempo o jogo das implicações. Nessa noite a avó esperou que ele adormecesse e foi acariciá-lo.

- Este neto ... este neto ... Tão pequeno e tão torto! ...

Ainda acordado, o rapaz gozou a certeza de que a avó se arrependera de lhe fazer a vida negra.

 

                                 Um bacalhau depois de uma raposa

Na vida negra da aldeia há pausa aí por fins de Agosto. Festa de três dias, sempre igual todos os anos. Só as pessoas mudam. Só delas se espera alguma coisa de diferente.

O resto arma-se com foguetório do rijo, música coxa para dançarem os sãos, quermesse de muita rifa e poucos prémios, taberna para a gente da sardinha assada e do copo de três, bufete com cerveja e outras frescuras gasosas para os mais pinocas. De fora vêm mulheres vender queijadas, além doutros bolos de poeira, regalo de velhas e meninos, e uma barraca onde se atiram bolas para ganhar tabaco. Quando se acerta, é bem de ver; se a mão falha, fica a raiva, que amarga mais do que o cigarro, embora seja mais sadia.

Bailarico não falta. Cinco orquestras, cinco, umas à tarde, outras à noite, sempre em parelha, pois armam-se dois coretos e a função nunca pára. Os dançarinos andam em corrimaças entre ambos, numa compita de resistência sempre ganha pelas raparigas. Quando os rapazes amocham, encostados aos muros ou a beber um copo, elas continuam a bailar entre si, não vão as pernas enferrujar durante a pausa.

Às tantas, nascem as bebedeiras, cordatas em regra. A rapaziada miúda segue-as com cuidado, à espera que o vinho amarinhe bem, altura de tirarem o seu proveito de brincadeira nos pifões dos adultos. Faz-se uma espécie de procissão, em que Noé vai de andor, na cabeça dos bêbedos, acompanhado de anjinhos e mariolas. A recolha faz-se quase sempre à sombra de árvore ou de muro, num sono repousado e longo, oportunidade para as moscas terem a sua parte na festa.

Para os pimpões há agora divertimento próprio -a pamplona, como lhe chamam. Armam um cercado com prumos e varas de madeira, mais ou menos em jeito de arena, e às tantas, dentro de camioneta, bem amarradas, chegam duas vacas que sabem a cartilha toda. Magras, de tanto correrem por todas as festas das redondezas, cornos engravitados e pernas fracas por tanta cãibra, descem quase em charola do leito do carro, dão volta a trote por toda a arena, como para ver quem está, e depois param em sítio que lhes parece propício para a ceifa.

Agarrada uma das mãos ao cercado, os aficionados desafiam-nas com a outra, fazendo flexões de pernas e gritando à vaca, que mal alteia a cabeça e a estremece. Tanto basta para que a matula se ponha a salvo. "Assim não vale a pena correr", pensa o bicho; "lá tão longe não m'atrevo eu", meditam os pimpões. Nos primeiros momentos, a arena só tem a vaca farpeada por gritos e assobios.

É a altura de os olhos das raparigas, acrescentados com sorrisos de desdém, servirem de capinhas para a função, embora aqui, ao contrário das toiradas, as capas delas preparem os toureiros para levarem a maquia. Os rapazes enchem-se de brios, combinam formas novas de correr gado bravo -tu desafias dum lado e eu assobio-lhe do outro -, e a afoiteza acaba por vir, apesar de o medo varejar as pernas. Soltam-se as mãos do cercado, já se dão alguns passos para dentro da arena.

- Eh, vaca! Eh, vaca! Com todas as distâncias bem medidas, o bicho percebe logo que não chegou a altura de se cansar. Escarva o chão, procura as ervas e põe-se a ruminá-las, assim como assim não perderá tudo, aguardando com santa paciência que a matula resolva pensar que ela não marra. Muitas vezes, sem ninguém esperar, surge um bêbedo entre vagas de vinho e "pesporrâncias".

O gentio aplaude-o com manha. E o vinho encrespa-se, resmunga qualquer coisa, enquanto deita a mão à fralda do homem que o leva às cavaleiras, e dali mesmo, sem poder arriscar mais um passo, lança o desafio...

- Eh, vaca mocha!... Se tu não marras, marro eu...

Conhecendo as regras da etiqueta, a vaca aceita o convite e vai marrar. Mas como percebe com quem trata no corpo lasso, do borracho, lembra-se do ditado e põe ela, salvo seja, a mão por baixo do odre. Toma-o nos cornos engravitados e vai depô-lo a um canto da arena, sem mácula, se não prefere deixá-lo sobre um monte de bosta, sem beliscadura também, embora com bastante cheiro.

Exaltam-se os ânimos. Constantino não se arrisca, mas diverte-se.

Todo cheio de manganilhas bem estudadas, um rapazola galga o cercado por detrás da vaca, espirra três saltos na arena e desata numa corrida que divide em dois andamentos: no primeiro atinge a anca do bicho com uma palmada, no segundo mete o fogo no rabo e tenta alcançar a vedação donde partira. Mas a gritaria da gentalha afiança-lhe que a vaca o persegue, tolda-se-lhe a vista, foge-lhe o terreno, e, aos tombos lassos, acaba por bater com a cara na vedação, sem forças para lhe deitar as mãos, quanto mais para galgá-la. É então que a vaca intervém, ajudando-o a enfiar-se para ó outro lado, com certos cuidados enternecedores.

O bicho não presta -concluem todos à uma; até ela, a pobre, que anda farta de correr, de ser assobiada e de fingir bravezas, se não soberbas, que nada lhe acrescentam à fraqueza da manjedoura.

Aí se revelam os pimpões acobardados, chegando-se à vaca mais de perto, sempre conduzidos pelos olhos capinhas de raparigas. Chega a hora da sopa. E cornada num, coice noutro, pega,-não-pega com algum mais ligeiro de pernas, o animal ganha honradamente o dinheiro que a comissão da festa esportulou para o dono.

Durante uns dias, a aldeia vai gozar as anedotas da pamplona, de que o rapazio guardará o melhor quinhão, discutindo, valentes e sendeiros. O Constantino tenta fixar os baldões e as pegas, as bravatas e os tombos de cada aficionado, mas o seu número na festa está ainda para vir. Anda a pensar se lhe vale a pena jogar perícia de trepador de árvores. Tem matutado fundo nesse momento novo da sua vida. Se quem não arrisca não petisca, não é menos verdade que cabe aos tolos dar gozo aos outros. Cogita naquilo há quase uma semana. E fá-lo sozinho, sem contar ao Manel.

Na tarde seguinte, decide-se a tentar a sorte. Ao meio do arraial lá puseram o pau ensebado, tendo no topo um grande almoço de bacalhau, batatas e azeite, tudo pendurado como um ramalhete. Finge-se distraído, de mãos nas algibeiras, mas vai espreitando os competidores. Convém deixar subir uns três ou quatro antes dele - sempre ajudam a limpar o sebo. O diabo é se algum tem boas unhas e boas pernas para atingir o bodo. Fica um pouco nervoso com tal receio, o que não lhe agrada muito.

Os dois primeiros não passaram do meio. Começaram à pressa, parece que se sentiam capazes de chegar ao cimo em menos dum fósforo, mas o fósforo ardeu depressa, pensa o Cuco. Acabaram por escorregar até ao chão, ficando com os gadanhos a arder. Depois de explicarem o desaire aos que lhes ficam mais perto, acabam por se safar, alapardados pelo pejo.

Já lá vai outro. Aquele sobe com manha, sem pressas. Constantino dá a volta para lhe ver a cara e não se aquieta. O malandreco tem braço rijo, embora o corpo lhe pese. Quase no cimo, porém, a vara começa a dobrar-se, o povo grita-lhe, espanta-o, e aí vem ele que nem um boneco. Constantino Cantigas respira fundo.

Respira fundo e logo dá um salto para agarrar o pau ensebado. Tira o dinheiro para pagar a inscrição, agora já não o deixam hesitar, e recolhe o troco no bolso da camisa.

Chegou o seu momento. Precisa de se lembrar de tudo o que o matutou durante dias. Bate com as mãos nas algibeiras das calças, sente que não caiu o que lhe metera dentro, rapa do lenço e enxuga o suor das mãos. Lá do topo, o bacalhau espreita-o.

-Vamos lá a isto! -diz para si. Atira-se dum salto para a vara, agarra-a bem com as mãos, prende-lhe os pés, levanta o olhar mais uma vez e lança para cima o braço direito. o sebo ainda escorrega bem. Tem um rompante de brio para dar três braçadas rápidas. Pára depois, segura-se com os pés, e mete a mão no bolso onde guardara a serradura; experimenta e sente que a mão se agarra melhor.

Então, faz o mesmo com a outra. A confiança alastra dentro dele.

A vara começa a varejar lá em cima quando ele a atinge em mais duas viagens curtas, sempre interrompidas para enxugar as mãos. Cá de baixo ninguém deve ter percebido 'a marosca. Começam até a aplaudi-lo e a incitá-lo.

Grita-lhe o nome a malta mais miúda. O Manel olha-o com uma pequena sombra de despeito, embora o anime também.

O fogueteiro lança um morteiro em sua honra, pensa o Constantino, e não pode assustar-se agora com o dobrar da vara. O pior é que no topo o sebo escorrega mais. Começa a fazer intervalos mais curtos, atira um braço e outro, manobra bem com os pés e já o suor lhe vem à boca. Dava-lhe mais jeito um pirolito.

Mesmo por cima da cabeça, o bacalhau balouça com o saquitel das batatas e a garrafa azeiteira. Percebe um silêncio no pessoal que o segue com os olhos. A coisa está preta, mas não pode voltar para baixo. Precisa de descansar mais um bocado. Tudo tem o seu tempo; mais tempo há-de levar o almoço a ser cozinhado. Cinge-se um pouco mais à vara, encostando-lhe também a cabeça.

- Vamos lá a isto!. Volve o olhar para riba, não deve obrigar o mastro a varejar muito, e aí recomeça outra vez. Vai certo, certinho, como se tivesse começado naquele momento. Afinal, nada mais fácil, pensa consigo. Quando põe a mão em cima do bacalhau e o agarra, o silêncio rebenta em alarido. Estão todos satisfeitos, ao que parece. E ele mais do que ninguém, graceja em pensamento. O diabo é que as mãos se puseram trémulas com a subida. Desatar o bodo não é assim fácil. Lembra-se então do Manel e grita-lhe:

-Eh, Manel! Apara-me lá isto!... Atira primeiro o bacalhau e o azeite. Se deixar as batatas, não se importa; a mãe lhas dará. Mas logo de seguida cresce nele um pincho de brio. E, embora nos derradeiros fios de genica, puxa e repuxa o cordel do saco, até que o desata, despejando o conteúdo por cima dos assistentes e da poeira. Assobiam-no e gritam-lhe por graça, enquanto a rapaziada luta a encontrão e rasteira pela posse das batatas.

Constantino está outro. Perdeu o ar um pouco triste e bisonho que sempre traz quando anda só. As pessoas lá de cima ficam mais pequenas e esquisitas. Algumas parecem ter a cabeça agarrada às pernas; e as que o olham, mesmo por baixo da vara, tornam-se ainda mais bizarras, porque nada mais lhes vê do que a cara e a ponta dos pés.

Mantém-se ainda um instante a descansar, gozando também o triunfo, que só será completo quando chegar a casa, puser o prémio em cima da mesa e lembrar à avó que, além de raposas, consegue agarrar bacalhaus à unha, já que não lhe chegou a idade para pegar as vacas.

Agora, sim, vai descer. Deita cuspo nas mãos, afrouxa as pernas e deixa-se deslizar com certa pompa. A um metro do chão atira um salto, num golpe de rins; e repara, só então pensa nisso, que estragara com o sebo o seu fato novo.

Afinal (raio de sorte!), ainda não pagara o preço todo do bacalhau - tinha de se preparar para dois ou três sopapos bem repuxados.

 

                     Em casa deste "home" quem não trabalha não come

Há ainda quem se queixe da cegarrega dos ralos e das cigarras... Nunca ouviu, com certeza, uma mulher sanfona e ralhadoira, ferrum-fum-fum, ferrum-fum-fum, todo o dia a moer a mesma conversa de meia dúzia de palavras, pega-lhes duma banda, pega-lhes da outra, como os gatos pequenos fazem a um bocado de trapo, à espera, quem sabe!, de que nasça dali algum outro gato para os acompanhar nas correrias de saltarilho.

Constantino já não podia ouvir semelhante falácia.

- Só queres andar no "galhô", meu quadrilheiro! E o teu pai a matar-se no trabalho por via de ti. Ainda o Sol estava na barriga do outro mundo, já ia ele de enxada por aí fora. E tu pensas que vais andar toda a vida na moina?!... Estás bem enganado!

Era de ensandecer o homem mais parrafla, quanto mais um rapaz assomadiço que sabia as horas de tratar do gado e não virava a cara às canseiras da lida. Conhecia as obrigações, não precisava que as mulheres andassem atrás dele, ferrum-fum-fum, ferrum-fum-fum, a mãe dum lado, a avó do outro, numa picaria de aguilhão em cima de boi ralaço. "Fossem as duas para a pata que as pôs", grunhiu ele em cima da manjedoura, a distribuir palha pelo gado, depois de ter posto a Carocha, a vaca mais velha, fora do palheiro, à força de pontapés e pau. Deitada no chão, a Mimosa ainda barregava baixinho queixosa da cornada que a outra lhe dera numa anca, como se alguém lhe tivesse mandado marcar a companheira com um sinal em feitio de coração.

Vaca danada, negra de tição, que, se não fosse calçada de branco, mais parecia uma "aventesma"!

As pessoas não fazia mal, lá isso não, mas pegara-se com a Estrela, uma das vacas da Ti Felismina, e vá de ensarilharem os cornos uma na outra, como se tivessem, mal "àcomparado", braços de gente, e toca de se torcerem, e toca de se enforquilharem, as duas a mugirem e a babarem-se de raiva, que até o Periquito, dono de muito animal leiteiro, disse para quem o quis ouvir:

- Essas vacas não se gostam... Ainda um dia se matam uma à outra. A primeira que acerte uma cornada bem ensejada no remoinho da outra, manda-a desta pra melhor... Eu, cá por mim, ia já na quinta-feira ao mercado da Malveira empandeirar uma delas, antes que agarrasse um prejuízo danado duns poucos contos de réis. . Aquilo começara na véspera no caminho da fonte, a bem dizer. O Constantino levara as suas com a companhia da Rasteira, sempre pronta a correr e a ladrar para a frente dos animais, se algum deles dava de pular e fugir, mas naquela tarde tudo se passara na maior pachorra, talvez por causa do brasido do dia. Só perto do bebedouro a manhosa da Carocha apressara o passo, na intenção de agarrar o melhor sítio, metendo-se toda de esguelha, ainda por cima, só para que a Mimosa não bebesse à vontade.

Gritou-lhe danado;

- Chega-te pra lá, vaca desgraçada! Eh, vaca garganeira!...

Só algumas cacetadas na anca conseguiram pô-la a jeito, embora logo depois aquela torta se pusesse às arrecuas com inveja da outra. Isto, como há pessoas, há gado, pensou o rapaz.

Beberam até não quererem mais, pois água de chafariz não custa dinheiro. E foi no regresso para o curral, a passo morno, que a Carocha deparou com a Estrela e ali mesmo se bateram como dois bichos feros. Nem gritos nem paus conseguiram separá-las. Parecia andarem já de rixa antiga, à espera de oportunidade, tal a gana com que ensarilhavam os cornos, apesar de lhes pesarem as tetas ainda por mungir.

Arrepelado, prestes a chorar, o nosso amigo Cuco queria fazer alguma coisa em favor da sua vaca, uma vez que a outra lhe jogava bem .e com mais gana -mas quem é que punha mão naquelas danadas? Agarrar-se ao rabo da Estrela seria receber troco de coice e, queixos partidos; saltar-lhes para o meio, tentando afastá-las, mesmo com a ajuda do cacete, podia dar entaladela de morte -foi assim que lhe gritou o Zé Camilo quando percebeu o propósito do rapaz em separar as contendoras.

Mugindo à distância, a Mimosa parecia soprar num búzio para anunciar a luta mortal. A tanto, porém, não chegou a guerreia das vacas ariscas, porque o Constantino pôs-se-lhes de volta, aos saltos e a ensarilhar o cajado, descarregando-lho na lombeira e na cabeça com fúria tamanha que as inimigas se puseram na defesa ante o inesperado acesso do guardador. Assim que as viu separadas, o rapaz correu para a Carocha de cacete no ar e o bicho humilhou-se, de cabeça baixa, rodando nas patas traseiras, e abalando depois pelo caminho, adiante, embora à distância largasse um mugido de desespero.

Riu-se o povo ajuntado. E foi nessa altura que o Periquito largou a sua previsão de vaqueiro.

O Constantino ouviu-o. Ao fim da tarde, mal o pai regressou do trabalho, contou-lhe o que se passara e lembrou, como coisa sua, que deviam ir à Malveira vender a Carocha.

- A vaca faz ainda uma desgraça e a gente perde -uma "porrada" de contos. Eu, se fosse a si, trocava-a por outra... E depois já está velha...

-Tens aí dinheiro que m'emprestes?-respondeu o pai com ar gozão.

- Empresto-lhe o que tenho no mealheiro...

- Então o negócio está feito. Silvestre Cara-Linda passou depois o braço pelo ombro do filho e explicou-lhe que o dinheiro para uma vaca não cabia no seu mealheiro de barro. Para o Constantino, o que contava era a oferta que fizera -ao pai, sem que o coração se lhe magoasse com a ideia de passar a festa do próximo ano a olhar para os tabuleiros das mulheres dos bolos.

E logo na manhã seguinte, a dar-lhe razão ao aviso que fizera ao pai, a malvada da vaca preta, a alma do diabo, atirou a cornada à anca da Mimosa e marcou-a bem marcada com aquele feitio de coração. Devia andar ainda enraivecida da luta com a outra ou despeitada com o dono pequeno, sempre todo carinhos para a vaca mais nova. Aquilo já ia a mais, chasqueava a Maria Cantigas, só faltava dormir com a Mimosa na cama; o animal era bonito duma vez, sim senhor, o focinho parecia pintado por gente com preceito, e a graça maior estava no remoinho branco que vinha acabar num bico quase na direcção dos olhos meigos...

Para pôr as coisas no seu lugar, deve acrescentar-se que a vaca malhada se mostrava melindrosa em demasia para animal de cornos, tanto mimo lhe dava o Constantino. Porque embora a marrada da outra parecesse bem ensejada, não seria coisa também para aquele barregar sem tino, como se alguém começasse a abrir-lhe a barriga com faca de magarefe. Já a Ti Elvira achava, e com razão, que aquela iria dar grande trabalheira quando alguma vez ficasse cheia e tivesse de parir.

Mas o Constantino andava com ela em algodão; e aí se atirou à Carocha de cajado pronto a desancá-la. Sabendo o que dali lhe vinha, a vaca furtou-se, abalando para o terreiro, depois de atirar outra cornada à burra velha, que lhe respondeu a coice de ferver. Amoroso, o guardador saltou então para cima da manjedoura, compôs a ração o melhor que pôde e depois ajudou a sua mimalha a levantar-se, puxando-lhe a cabeça para junto da porta, como se precisasse de mostrar à Mimosa o chapão de sol que alagava a descida dali até o rio.

Ficou atento. Pressentia que àquela hora o Manel e mais dois ou três companheiros andariam por lá, à solta, nus em pêlo, como Deus os botara ao mundo, enquanto ele amargava no corpo a maldita raposa que lhe haviam posto em cima dos ombros. A graça é que já vira duas rapositas verdadeiras apanhadas por um caçador e gostara delas. Nunca vira bichos tão espertos e bonitos. Nem uma bezerra malhada ou um burrito preto acabado de nascer se lhe assemelhavam.

Resignou-se.

A avó e a irmã tinham ido arrancar folha de feijão para o gado. Daí a pouco chegava a hora de aparelhar a Janota para fazer os carregos. Talvez depois, pensou, antes de a mãe ordenharas leiteiras, ele conseguisse dar uma "furteta" até às bandas do Trancão. No Casal da Lavandeira havia um sítio de bom peixe que só ele sabia. Descobrira umas locas de barbo e saboga capazes de darem caldeirada para um regimento.

Da porta de casa a mãe chamou-o. Lá vinha o ferrum-fum-fum.

- Anda aparelhar a burra, ah, rapaz! Não ouves, Constantino?... A esta hora já a tua avó tem a folha toda apanhada...

 

                                Viagem tormentosa

Naquela manhã queixara-se de dores de cabeça, estavam ali mesmo pegadas à nuca, como disse à mãe quando ela lhe perguntou.

-Isso foi sol que tu agarraste, meu moinante! Passas o dia metido n'água, tens raça de pato...

Sorriu para dentro com a ideia de lhe nascer um bico largo no sítio da boca; achava os marre cos engraçados e muitas vezes na brincadeira do rio fingia-se de pato, a dar aos braços e a grasnar, aproveitando ocasião para atirar chapadas de água para cima dos outros.

- Hoje só sais daqui com chapéu - insistiu Maria Cantigas.

-Ora, com chapéu...

- Pois, tenho medo que te crestes... Tão branquinho és...

Gracejava com o filho por mor da pele trigueira (nisso o rapaz calhava todo à sua banda, aos Cantigas).

As dores de cabeça vinham-lhe do sono; metera-se na cama pensar numa coisa... (Que coisa é? Não, isso não dizia; antes de experimentar não contava a ninguém.) Encaixara-se-lhe aquela na ideia e mal pregara olho a maior parte da noite. Dera por tudo: pelo ladrar dos cães, a desafiarem-se no medo aos vultos da escuridão, pelo ruído dos carros a passarem na estrada, buzinando à curva, e por toda a lida de vozes, zangas e assobiadelas durante a carga das carroças de hortaliça que abalavam para os mercados de Lisboa. Enleara-se naquilo; depois o sono espantara-se, bem chamara para que viesse depressa, mas a espertina entrara-lhe no corpo e até parecia que na cama nasciam picos. Só amodorrara pela madrugada, vencido pela fadiga.

A mãe pusera-se a ralhar para que se levantasse (são horas de arribar, Constantino, o resto da folha de feijão não espera como ontem ... ), levando-o a queixar-se da maldita dor de cabeça, mesmo debaixo da nuca, sim senhor, como se me tivessem cravado um bico de forquilha pela carne dentro.

- Quem as sente sou eu, ora esta! - clamara num arranco de mentira.

Resmungão, saltara da cama e enfiara o fato de macaco e as botas, indo aparelhar a burra velha na companhia da avó e da irmã, mais madrugadoras do que ele. Haviam de ganhar muito com a ligeireza! Que fossem andando ainda as agarraria antes de chegarem à horta do Manel dos Santos, uma vez que precisavam de fazer caminho pela estrada e ele meteria ao rio da Lavandeira, atravessando-o a vau.

Sentou-se à porta a comer as sopas da manhã; continuava a meditar no projecto que lhe atravancara o descanso da noite, pois acreditava em poder levá-lo por diante. Era uma fé!

Mais uns momentos passados, a varina começou a apregoar já perto dali. Abriam-se portas no alarido do costume, e agora não o deixariam ficar mais tempo entretido com a Rasteira, porque a mãe não tardava, com certeza, a indagar do peixe que a varina oferecia. Era sempre uma

conversa atravessada, de riso e de malandrice. A mulher trazia carapau vivinho e peixe-espada fresquinho, um regalo, e logo se começou a juntar gente à sua volta.

Constantino sentiu os passos da mãe; antes que fingisse preparar a partida, já ela entrara a depenicá-lo com o mesmo palavreado. A má cara aí abalou ele de chapéu na cabeça, enquanto a cadela saltava à sua volta, convencida de que no regresso faria viagem às cavaleiras. Enganava-se bem. Carga de folha de feijão não dá lugar a ginetes.

O trabalho já se lhe adiantara. Expeditas, para o verem irritado, a avó e a Ana Maria tinham arrancado quase toda a folhagem das canas. Era um montão. Pediu a ajuda da irmã e atirou-se ao carrego da Janota. Mas a burra parecia endemoninhada, sempre a mexer-se com o mosquedo; foi um calvário. Nem as ameaças a punham quieta.

- A burra tem azougue - disse a Ti Elvira de brincadeira.

- O azougue dou-lhe eu... Com arrenegos e pragas, empurrões e algumas mordidelas de cacete, o animal parecia uma árvore estranha, toda liames ásperos e folhas amarelecidas, que só lhe deixavam a cabeçorra livre, inquieta, de orelhas ao alto. De vez em quando sacudia-se, farejava, farejava, e logo de seguida punha-se a zurrar, talvez com saudades da Carriça, que ficara com as mulheres. Constantino puxava-a pela corda, muito ancho, mas a burra teimava para o lado contrário, nem se deixando convencer com o bico da bota no focinho.

- Nunca vi burra tão mole ... Se fosse teu dono, bem te passava a patacos ...

Como se lhe entendesse o desprezo, a Janota fez das fraquezas um arranco de força bramia abalando depois numa carreira de égua corre doura metida a equilibrista de circo. Em riba dela o carrego oscilava, prestes a desabar, obrigando o Constantino a correr ao seu lado, ora amparando da direita, ora amparando da esquerda, enquanto lhe gritava:

-Aí, burra! Pára-te aí, burra!... Mas a Janota, que mais parecia uma árvore fantástica e andarilha, tomava o bramar do dono por incitamentos, e logo se largava mais, e mais, e tanto que numa curva da estrada 'atirou por terra com a maior parte do carrego.

Foi ali mesmo uma feira de chinfrins.

O rapaz estava zaranza. Atirou com o chapéu de palhiça ao chão, foise à burra e socou-a entre as orelhas, largou-se aos pontapés ao monte de folhagem e cortava o ar com todo o repertório de palavras pesadas que aprendera desde menino. Andou naquele sarilho um tempo sem conta, como se precisasse de se esgotar.

Só depois, quase rouco e quebradiço de energia, resolveu cruzar os braços, pondo-se a meditar no que precisava de fazer.

Começou por juntar num monte a carga espalhada, sempre ralhando consigo:

-Pois, tu és maluco... És maluco, Constantino, pois és. Quem te mandou carregar a burra tão mal?... Estavas com o fogo no rabo e agora lixas-te. Pois, a carga está mal feita. Ainda não viste?... Então és cego! Isto não é carga que se ponha numa burra! Isto não é trabalho, não é nada. Fizeste um trabalho como a tua cara... Podes limpar a mão à parede, sim senhor, ainda vais parar a ajudante de camioneta. Querias "galhô"... agora aguenta-te.

Calou-se por momentos a meditar. E de novo se voltou para a Janota:

- Burra de trampa!... Burra velha!... Começaste a correr e a andar de banda, e bumba! Eu agora que me aguente ... Mas deixa lá que mas pagas bem. Olá, se pagas! ... Sempre que estiveres a jeito, já sabes: comes pela medida grande. Sou eu que te digo!...

Quiseram ajudá-lo e recusou. Depois arrependeu-se da empáfia, mas já não havia remédio.

Foi então que se pôs a gritar pela irmã com quanta gana arrebanhou. Esganiçou-se num meio lamento, quase a molhar-se de lágrimas; logo depois já bramava com as duas mãos a servirem-lhe de concha na boca.

-Eh, Ana Maria!... Vem aqui depressa!... Dava-lhe vontade de se atirar para o chão e espojar-se na poeira. Ou de matar a burra a pontapés... E depois chorar de raiva e de vergonha, abalando daquela terra onde toda a gente se queixava, mas onde todos- continuavam a viver na mesma... Raios partam a vida! Raios partam a terra! Raios partam a burra!

- Um raio que partisse isto tudo-foi o que achou para gritar à irmã quando a viu a correr ao seu encontro.

A sorrir com os olhos malandretes, a irmã achou graça àquele preparo.

-Como arranjaste tu este sarilho, ah, moço!...

-Não preciso de sentenças... Se quiser sentenças, vou a Loures e ainda volto pior.

Ficou por ali a conversa. Atiraram-se ambos à tarefa. Daí a pouco já a Janota parecia outra vez uma árvore bizarra de país tropical.

Agora, porém, ia debaixo de guarda, com o Constantino de um lado e a Ana Maria do outro, como se o asno caminhasse para a cadeia a cumprir sentença.

 

                                       Trabalho e lazer

A avó entende que a vida não passa duma galé para quem nasceu pobre, mas ele gosta de andar na lida do campo, embora queira meter-se a serralheiro. Bem melhor do que ir à escola aprender coisas sem préstimo, acha o Constantino na sua. Por isso o tempo de férias o encontra sempre expedito para qualquer trabalho ao ar livre, sem a sujeição daquela amarra da carteira, onde já gravou, a canivete, a primeira letra do nome.

No trato das vacas e das burras, a -partir lenha ou a regar o milho para pasto na terra que o pai traz de renda, nunca lhe ouviram uma rezinguice, a não ser quando resolve meter-se no rio e o chamam de casa para fazer um recado.` Então exaspera-se, dão-lhe raivas súbitas, recalcitra, abana o corpo todo, como se tivesse pulgas no sangue.

O rio é a sua paixão - talvez por sonhar que um dia chegará a serralheiro de barcos, como ele diz.

Já se tornou num hábito verem o Constantino deitado por ali a olhar as águas, cujo destino tão bem conhece. Por sinal, sabe mais coisas do que vêm nos livros; lá só falam do rio Trancão, e para ele o Trancão só começa ao pé de Bucel as; antes disso há muitos outros rios - o

da Lavandeira, o da Ponte Grande, o da Pontinha, sem falar nos açudes do Avelar e do Casalinho, onde um banho regala o corpo feio das ratas de água, quanto mais o de uma pessoa com fala e entendimento. A mãe já lhe tem dito vezes sem conta que um dia, sem ele esperar, lhe começarão a nascer barbatanas e ficará peixe dentro do rio.

O rapaz delicia-se com a hipótese e pensa, radiante, que aí estava uma boa maneira de chegar mais depressa a Lisboa, onde já o levaram para ver o Tejo e os barcos... Foi um dia bem passado, olarila! Nunca mais se esqueceu...

Ainda hoje brincam com ele, repetindo o seu deslumbramento perante o quadro das fragatas e dos 'navios, das gaivotas e dos ruídos.

"Ena tanta água!", gritara entusiasmado e tonto. "Donde vem esta água toda?" E ali mesmo lhe nasceu a vocação para serralheiro de navios, entre as maravilhas dessa manhã soalheira.

Antes de ser homem - ah, sim, bem antes de lá chegar! - sonha construir um barco para fazer uma viagem. Até onde?! Não avalia bem. Nunca viu coisa mais bonita em toda a sua vida! Parece-lhe milagre que a água aguente um navio de ferro tão grande e cheio de gente... Também ele quer experimentar fazer um... E já tem uma ideia...

Esse projecto trá-lo sorumbático, mais calado ainda do que o costume. Senta-se à porta, muito quieto, quase sempre a afagar a Rasteira, que também não percebe a mudança e lhe vem lamber as mãos. A família chega a ter medo daquela ausência. Por onde andará o pensar do moço?!...

Talvez uma rapariga, insinua a mãe. Agora até a morte já tem vícios...

Não irá o rapaz ficar doente?, pergunta o pai, receoso. A irmã já contou que às vezes o ouve

falar sozinho -não sabe o que ele diz, mas lá que fala, fala...

A Ti Elvira, por seu lado, acha que o Constantino anda na Lua. Males da idade-nunca se consegue adivinhar o que nasce na raiz de um rapaz daquele tamanho...

Ninguém gosta, portanto, de vê-lo ausente e silencioso.

Ah, rapaz! Some-te daqui! - incita-o a mãe quando não consegue inventar qualquer trabalho para ele.

- Agora está a pôr-me com dono - responde o rapaz num resmungo.-Daqui a bocado começa aí a gritar por mim...

Depois apetece-lhe aproveitar a deixa que a mãe lhe oferece para vir às boas.

-Ao pé do rio da Lavandeira há peixe à farta... Sei dumas locas onde os bordalos são mais que as mães. Basta meter as mãos...

Se calhar, agarras mais do que com a cana...

Mas no pescar à cana há um sabor diferente. Aproveita-se melhor a presença de um companheiro, além de ser mais emotivo-parece quase um jogo. Vêem-se passar as bogas, os bordalos ou os barbos com os seus bigodes de gato, e aí começam as ansiedades: pega-não pega, de repente o peixe vai direito ao anzol, abre a boca, arrepanha-se logo o coração do pescador, e então é vê-lo morder na isca, comê-la e borrifar-se para o anzol, safando-se num sacão ou ficar preso e agitar-se, a sacudir o rabo, a contorcer-se. E, num golpe rápido do braço, ergue-se a cana para recolher a linha com a mão, arrancando o peixe às convulses e atirando-o para cima da erva, onde acabará aos poucos sob o olhar vigilante da Rasteira, que lhe ladra de vez em quando.

A festa começa muito antes, na busca das minhocas e na escolha da cana, a desbandeirá-la das folhas muito verdes e a enrolar-lhe o fio.

Se um sapo dá sinal ali perto, convém desandar. O sapo canta como o corvo e é bicho agoirento, dizem na aldeia. O Constantino acha também que sim. Atento a uma boga prestes a pegar na isca, o Manel conta uma história a propósito:

- Uma vez deitei-me na erva ali abaixo, e vai um sapo urinou-me prà cara...

- Ena, pá! -responde o Constantino.

- Ena, pá, o quê?!... Eu fique ceguinho se não é verdade. Lembras-te duma ferida que tive na cara? Pois foi aí mesmo... Onde o mijo caiu nasceu uma ferida.

As horas assim passam mais depressa-Cada qual a contar a sua, aprendem a experiência um do outro. E esquecem-se do tempo a pescar muito juntos.

Quando o silêncio os enfarta, recolhem o peixe, vão lavá-lo e amanhá-lo na fonte. É um bom passatempo, porque- sempre dá conversa com alguma mulher que vai encher a bilha. Algumas vezes vendem o pescado, e aí aparece dinheiro para comprar qualquer coisa barata que apeteça. Há tanta tentação nas lojas!...

Arranjar freguesa sempre acrescenta mais do que aparecer em casa com o trabalho de pesca dumas poucas de horas e ainda por cima ouvir graçolas. Uma pessoa arrelia-se, pois claro, ainda por cima dizem que tem a pele fina ou que é de vidro, o "trongo" do rapaz, não -se lhe pode falar. Mas só quem ouve as palavras sabe o que custa ficar calado. Ora oiçam lá!

Ele tinha descoberto umas locas onde havia peixe como no mar. E vai daí meteu-se a fazeruma caniçada toda bem acabadinha, amarram bem as canas com arame de fardo. O Manel andava com o pai num trabalho qualquer e procurou o Salamim para entrar na pescaria. Salamim, outro bom companheiro, está sempre a dizer piadas, uma pessoa apanha com grandes barrigadas de riso. Meteram-se os dois ao rio, depois de discutirem com as lavadeiras que até lhes atiraram pedra 's por mor da sujidade da água. O Salamim teve uma boa saída.

- O rio é de toda a gente... Porque é que vossemecê não compra um rio só pra si?!... Se quiser, eu vendo-lhe este... - Palavra puxa palavra, a mulher jogou-lhes uma pedra, e eles não se ficaram. E, depois duma guerreia encarniçada, a mulher lá abalou, de alguidar à cabeça jurando vingar-se.

Despiram-se num instante; vá então de procurar o peixe nas locas. Punham a caniçada debaixo de água, o Constantino ficava na parte mais larga e aconchegava-a à margem, metendo uma das mãos nas casas dos peixes. Sentia-os e eles escapavam-se - eram peixes à ufa! gordos!... Peixe quase igual ao que as varinas vendem.

Mas os malditos pareciam pressentidos, os peixes são espertos, olha pois não, já andava por ali há um bom bocado e só tinham agarrado uns quatro ou cinco bordalos, apesar de na caniçada terem entrado muitos que se esgueiravam depois, pela parte mais estreita, à guarda do Salamim. Aquilo começava a danar o Constantino. Deu-lhe uma ira das suas: meteu a caniçada à loca maior e toca de enfiar a mão por ali dentro.

- Isto agora ou vai ou racha! - garanti ao companheiro.

Logo de seguida, porém, atirava-se para trás num salto espavorido, a queixar-se dum dedo.

- Foi uma rata... Mordeu-me uma rata! E mostrava ao amigo o dedo molestado, embora se empinasse de brios quando o outro deduziu que ganhara medo. Qual medo, qual coisa! Foi maneira de se atirar à faina, mais presto do que nunca, fazendo andar o amigo num virote.

O peixe nem assim se convenceu, o maldito! Ao cabo de quase três horas dentro de água, já ambos batiam o queixo, já tocavam castanholas, como o Salamim gracejou, a pescaria pouco adiantava. Enxugaram-se ambos ao sol, depois de -esconderem a caniçada numa das margens, e entenderam que chegara a hora de regressar com o produto do trabalho. Dividiram-no como dois ourives-bordalo a um, bordalo a outro, bem medidos e quase passados a balança fina. Sete peixes para o Constantino, sete peixes para o companheiro.

Para não dar o braço a torcer, entrou em casa num alarido.

-Há aqui peixe para a ceia. Frito em azeite é melhor que galinha...

Logo acorreram a mãe mais a irmã para avaliarem a pescaria. A irmã olhou-o e começou num sorriso de troça que o arrenegou. Pôs-se a mãe do lado dele, garantindo que "aquilo dava bem para três pessoas comerem".

Mas quando o rapaz se virava pimpão para a Ana Maria todo ancho com o testemunho da mãe, esta passou os dedos pelos sete bordalos e acrescentou:

-Sim, dá à vontade para três pessoas, se duas delas não gostarem de peixe frito...

Ah, diabo, que tal disseste! Antes que a Maria Cantigas percebesse o que se passara, já os bordalos saíam pela porta da rua, atirados de rompão, indo cair no terreiro, sujo pelas vacas e pelos burros. Também com a mesma presteza, a mãe lhe jogou o primeiro tabefe, seguido duma saraivada tão grande que o rapaz ainda hoje assevera aos amigos:

A tarosa maior que até hoje apanhei foi a minha mãe que ma deu. Não me doeu muito porque eu estava danado... . Doeu-lhe bem mais quando no dia seguinte procurou a caniçada, só achando canas partidas e arames torcidos.

Logo percebeu tão bem quem lhe pregara a partida que foi direito à pedra de lavar da Custódia e a empurrou para dentro do rio. Mas nem assim se lhe desatou do coração aquele nó de raiva.

 

                                                Guardador de vacas

os animais precisam de verde, resmungalhe a avó. Constantino percebe o que ela quer dizer, mas entrega-se à fantasia de admitir que as vacas e as burras necessitam de comer cores, agora um bocado de verde e depois outro de amarelo ou de vermelho. E enquanto as desamarra da manjedoura, dá-se ao gosto de pensar como seria divertido levá-las a pastar no arco-íris, podendo cada uma delas escolher a cor que mais lhe apetecesse, ou misturá-las e fazer cores diferentes. Ele próprio deitar-se também sobre a faixa azul ou violeta, e depois rolar pelas outras, ficando pintado com as sete cores, às manchas. E só quando o Outono chegasse, se elas fossem vivas como as folhas, vê-las mudar para amarelo e depois para castanho, até caírem de cima do seu corpo, que só então voltaria a ser igual ao de agora. O pior é que as burras poderiam dar cabo de tudo, se chegassem ao arco-da-velha e se espojassem, a zurrar, como sempre fazem, mal encontram poeira no caminho para o monte, baralhando as sete cores.

Aí começam elas a espojar-se. Bastou que as soltasse e metesse as vacas para as bandas do rio, onde podem encontrar agora o verde de que a avó fala, para a Janota e a Carriça se deitarem numa corrida escoicinhada e logo se atirarem para o chão, cheias de cócegas e de gozo. Parecem duas tolas.

Ele vai tangendo as vacas, que aproveitam os ramos das árvores lançados sobre o caminho. As burras não tardam muito, Já se aproximam, disparadas, aos orneios e aos coices, como se quisessem disputar o prazer de levarem o guardador às cavaleiras até ao pasto. Escolhe quase sempre a Carriça; a mais velha enche-se logo de ciúmes, repetindo todas as coisas que já percebeu desagradarem ao dono. Assim que encontra aberta a entrada duma horta, enfia por ali dentro - tem a certeza de que o rapaz vai saltar atrás dela, embora a birra lhe custe uns soquetes no focinho e até um pontapé ou outro nas pernas. Mas faz a vontade. A Janota teima sempre como um asno - ou não fosse burra velha e sabida. Amua por instantes, quem não a conhecer bem julgaria que tomou juízo, mas não demora muito para abalar numa carreira cega, mesmo sabendo que poderá tropeçar e fazer joalheiras de mazelas.

Constantino grita-lhe, chama-lhe nomes e arrepela-se.

Só há, porém, uma forma de lhe travar a fuga: persegui-la e obrigá-la a regressar a passo, saltando-lhe para cima do lombo. À força de pancada, pensa o dono; deixando a Carriça e servindo-se dela, pensa a burra velha.

Estes incidentes repetem-se todos os dias em que as vacas vão para o monte.

Constantino conhece-as melhor do que aos seus dedos; talvez por isso se comece a irritar com as tropelias da Janota.

o caminho não é longo, e ainda bem. As vacas escolhem o sítio que melhor lhes serve, ruminando ervas e folhas tenras. Uma vez por outra corneiam-se de mansinho, mugem de prazer, depois lá se separam . Quem as faz que as baptize. O rapaz aproveita a oportunidade para regressar ao sonho de construir um barco, ou começa a preparar uma atiradeira, escolhendo uma boa forquilha de ramo de árvore, com que há-de apedrejar a Custódia, mal dê com ela a lavar no rio. Já escolheu o sítio donde a irá alvejar. Não quer bater-lhe, podia fazer sangue; de resto, acha melhor vingança atirar-lhe pedras à volta, provocando-lhe o medo.

Está servida a Custódia, não sabe com quem se meteu.

E o guardador de vacas ora guarda sonhos, ora se torna guardador de vinganças.

Quando se entretém com o pensamento, o tempo não custa a passar. Mal uma pessoa se descuida, aí começa o Sol a descair.

No regresso voltam todos mais' calmos. Os quatro animais mataram a fome de verde e o guardador um pouco da fome de aventura, pois já descobriu de que fará o barco para a sua viagem.

Como tomados pela mesma paz, os caminhos mergulham em sombras e silêncio. Certas veredas assemelham-se a túneis, onde o sol só entra cansado.

- Ali, Constantino! ... Cons ... t antitititi ... no! Já faltava aquele grito. A mãe quer mungir as vacas na ordenha da tarde; talvez precise de abalar mais cedo para ir esperar o pai com a Ana Maria. Depois basta encher a bilha, descer com ela os dois degraus da porta e entregá-la à Ti Felismina, que a levará com a sua para Ribas. A camioneta da cooperativa não perde tempo.

Também ele tem a sua vida, essa é boa!... Finca os pés na barriga da Janota e a burra aligeira o passo desenrolando nuvens finas de poeira com as ferraduras.

À noite, assim que comer a ceia, abalará para a ponte grande. Sozinho, sim, sozinho. Por enquanto sozinho.

Senta-se no pilar da vedação, de casaco vestido (à noite faz sempre uma ponta de frio e as mulheres não o deixam sair sem agasalho), e ali fica à espera que o luar transforme o rio numa estrada de luz. Então as árvores recortam-se, mais negras; ele deixa de pensar nos ninhos que conta todos os anos, embora nunca mais quisesse guardar pássaros cantadores em gaiolas.

De manhã é que é bonito ouvi-los. À noite o Constantino só escuta o canto de uma aventura que sonha começar um dia destes.

Não, já não demora muito. Nem ele já pode aguentar aquela ânsia por mais tempo. Precisa de convencer o Manel a partilhar do seu plano, mesmo que tenha de lhe mentir. Se ele lhe perguntar até onde vão, responderá simplesmente: até Lisboa. Lisboa é coisa boa, pois é!

E não vai o Trancão até lá?!... Se o rio chega tão longe, porque não há-de levar os dois?!...

Não, ele não precisa de mentir ao Manel.

 

                               Banho de água e de aventura

Pôs-se aí uma calma de rebentar com pedras e lagartos. O rio não passa de meia dúzia de charcos isolados. Só em certos sítios a veia corre, a saltitar fraquezas entre pedras, em pouco mais de um palmo de água. Mas nas poças a água fede, começa a ficar negra.

Nem os bichos rasteiros se aguentam nos buracos com o calor. Chegou a altura de os caçadores poderem encontrar certas cobras-fantasmas, que dizem da grossura do braço de um homem e com mais de dois metros. Cobras lendárias que atiram chicotadas e não se temem duma pessoa; bichões destes devem ser presos bem perto da cabeça para serem dominados, e precisam de ajudante que não os deixe enrolar, senão um homem só não se avém com a força deles.

É a época da mudança de pele das cobras e das aventuras imaginárias contadas à sua custa, ou doutras verdadeiras, porém mais simples, que até os rapazes menos poltrões saberão testemunhar.

O Manel veio procurar o Constantino para lhe relatar o encontro com uma, voltava ele de levar o almoço ao pai e a bicha pusera-se mesmo ao meio do caminho, devia estar ali à espera dalguma mulher que andasse a amamentar criança.

As cobras. gostam de leite de mulher parideira, é um perigo se agarram alguma que não se pode defender. O Manel não a deixou pensar muito tempo. Ela assobiou-lhe e deitou a língua para fora, mas o rapaz atirou-se-lhe de pés juntos com as botas cardadas, quebrando-lhe a espinha e desfazendo-lhe depois a cabeça com mais uma calcadela de tacão. Guardara-a em casa, contava ele ao amigo, para um dia destes a meter no cesto da Custódia, a malvada, que ainda a semana passada lhe escondera a roupa quando ele andava sozinho ao banho, indo entregá-la à mãe para que lhe pregasse uma tarosa. Nisso enganou-se, abençoada resposta a que a mãe lhe dera: tomasse conta dos filhos ou de quem lhe pertencia, não quisesse meter infernos em casa de cada um; já bastavam os que não se conseguem evitar com os tombos da vida.

- Essa bruxa precisa duma ensaboadela grunhiu o Constantino com a raiva que lhe ganhara. -No outro dia ia ficando maluca com as pedras que lhe atirei... Pus-me descalço, meti-me atrás do canavial e dali nunca mais lhe deixei um bocado de sossego...

- E ela? - perguntou o Manel, divertido com a história.

- Começou a remoer e a chamar-me nomes; daí a bocado até deitava espuma pelos cantos da boca... Aquela danada tem peçonha...

Conversam e riem, ainda nada disseram um ao outro quanto ao que pensam fazer naquela tarde calmosa, mas encaminham-se para o lado das hortas e do rio. O Constantino lembra-se duma cobra que viu há três semanas, vinha ele de pastar as vacas com a irmã. Tinha aí dois metros a bicha, eu cegue se não tinha dois metros. A Ana Maria agarrou um cagaço de todo o tamanho; ainda agora fica gaga quando fala disso.

Os dois amigos põem-se à espreita do buraco onde o Constantino julga ter visto a cobra meter-se, mas o calorão não ajuda à paciência. Parece que se puseram ambos à boca de um forno. O Manel propõe:

-Vamos a um banho?... Não espera pela resposta; de repente sente-se cheio de pressa, como se o suor fosse doença ruim, só capaz de lhe sair do corpo com a água dalgum charco. E aí vai ele a correr para o sítio já escolhido, enquanto o Constantino, de perna mais curta, o persegue a distância.

Em pouco tempo já o Manel se atirou para a frescura- está fria, pá!, está boa! De seguida atira um mergulho para molhar a cabeça, batendo com os pés fora de água. Quando volta cá acima, o Constantino aproxima-se da poça, deixa-se escorregar um pouco suspenso dos braços, para experimentar a temperatura da água; não vai nisso, o Manel é judeu, e sente um arrepio danado percorrer-lhe o corpo mal submerge os pés. Já sabe o remédio; atira-se de chapuz para dentro do charco, deixa-se ir baixo, volta à superfície, faz o mesmo movimento por duas vezes, e depois começa a nadar- ao lado do companheiro.

- Com um calor bruto lá fora, não sei como a água fica assim...

-Está boa!

- O pior é entrar!... Começam os dois a nadar à cão, como chamam ao bater de mãos espalmadas na água, o Manel recorda aquele dia em que Constantino julgava que ainda tinha a prancha de cortiça debaixo da barriga e ela já lhe fugira.

-Tiveste medo...

-Medo, não, não tive. Percebi que me estava a aguentar...

Mas se a cortiça não te foge, ainda não te mexias sozinho - insiste o Coelho.

-E tu? Se calhar, começaste logo a nadar sozinho!...

Bebi muito pirolito, mas aprendi sem cortiça...

E eu aprendi com cortiça e não bebi pirolitos responde o Cuco, que enfia a cabeça pela água e deixa os pés de fora, batendo com eles no ar, como se aplaudisse alguém.

-Já começo a sentir fome-diz o Manel, com um sorriso nos olhos achinesados.

O Cuco percebe a alusão e confirma. Saltam para fora do charco, começam a limpar-se com os lenços e, num instante, ficam prontos para o assalto. Fazem aquilo para encher o buraco que o ratito da fome lhes deixou na barriga, mas também para ouvirem a dona das figueiras, uma sovina, mais satisfeita em ver a fruta cair podre da árvore do que deixar aos rapazes o regalo de comerem os figos.

E então com aqueles dois-que moinantes -de bico amarelo!...

Eles não ignoram o ódio da dona das figueiras e alardeiam essa vaidade. Comprazem-se em comer-lhe os primeiros, vão lá de noite quando podem- nunca deixam de fazer a sua colheita, tanto mais que blasonam da sua qualidade de verdadeiros donos da propriedade.

Hoje, porém, não vão a falar nisso. A conversa já é quase relha para ambos. Caminham lado a lado, conhecem o destino da viagem, mas o Constantino Cuco começou a relatar ao amigo a construção do barco.

O Manel não se convence, goza o projecto do Cuco com a malícia dos olhos, mas adere à ideia; precisam de coisas diferentes, maneiras diferentes de brincar e passar o tempo, andam fartos de jogar às caricas com as tampas das garrafas de cerveja, empurrando-as com um toque do dedo indicador.

-E aonde vamos com o barco?... Constantino confrange-se em repetir o que sonhou. Entaramela as palavras, ele que se mostra sempre expedito na conversa.

- Aonde o barco chegar ... Vamos com ele pelo rio...

- O rio chega a Sacavém ...

- A Sacavém, não, a Lisboa - lembra o Cantigas, com a voz acesa.

- Em Lisboa é mar...

- O mar é mais longe. Em Lisboa é rio... -Mas é um rio que nem um mar. O nosso barco não aguenta até lá...

-Era bom que aguentasse! -diz o Constantino com mágoa. - Pode ser que a gente tenha sorte-emenda logo a seguir.

Os figos desfazem-se em mel, são catitas. As coisas boas apreciam-se devagar, com toda a pausa. Pouca pressa. Quando se trata de um fruto, deve-se abri-lo bem, dando de comer aos olhos, e só de seguida meter-lhe os beiços e os dentes.

Assim procedem com os figos e também com a aventura do barco. Abrem-na bem, saboreiam-na lentamente, pedaço a pedaço.

- Era bom se a gente pudesse forrar o barco de madeira -acrescenta o Cuco.

- E os remos?...

- Cada um leva uma vara e puxa por ela no fundo - responde o Constantino, que já previra a pergunta.

- E quando começamos?...

- Amanhã... ou depois...

- O rio não leva água que chegue. Só daqui por dois meses ou três...

- Pois é! ... Dois meses ou três ... A não ser que venha uma golada de água do açude do Avelar.

- Mas isso não chega até Sacavém. Voltam aos figos. Sabe sempre bem comer figos depois do banho.

 

                                     Almirante de um barco de cana

Ah, ainda bem que vieram as chuvas!... Bendita água! - dizem todos os que vivem da terra.

Sequinha de todo, a terra sôfrega irá agradecê-la.

Foi um ano de calma, um Verão desgraçado! Calma danada que o Inferno guarde por muito tempo sem a soltar, porque não deixou saudades. Aqui, pelo menos, não deixou saudades. Poucas jornas, poucos ganhos... Quando assim é, come-se mais fome do que outra coisa. E vida dessa nem os cães gostam de passá-la.

Já se percebe agora a razão de as pessoas andarem à chuva sem resguardo nos primeiros dias. Precisavam de senti-la, sabia bem agarrar nos ossos uma chuva tão molhada que encharcava tudo; apetecia bebê-la, tirar o chapéu ou o lenço e deixá-la correr pela cabeça abaixo. Oiro não será, como diziam alguns; agora nem se compram libras de cavalinho para trazer ao pescoço, mas sempre uma pessoa se julga menos condenada a penar entre desgraças.

No ninho dos Cucos também entrou um pouco de tranquilidade. O Constantino até se sente feliz em ouvir as chuveiradas nos vidros da escola ou em chapinhar os pés na lama dos carreiros.

Acabaram os pássaros cantadores, mas veio o bom tempo para viagens no rio. Chegou a altura de preparar o barco. Já sabe onde pode arranjar canas secas; arame grosso não lhe falta, tem -no guardado num sítio que só ele conhece. Mal sai da escola, deita a correr para o Trancão e ali se entretém a meditar na aventura que sonhou e há-de levar por diante.,Conhece de cor e salteado a página do livro onde se fala do Tejo

- nasce na serra de Albarracim, em Espanha... É uma lengalenga de afluentes nas duas margens, até que chega o Trancão, o rio da sua terra, aquele mesmo que passa ali à frente dos olhos e da imaginação. Não tem muito tempo a perder, não poderá deixar que o Inverno se agarre, porque senão começam as cheias umas atrás das outras e a golada arrasta e escavaca tudo o que apanhar nos remoinhos. Parece doida.

Aquele sítio onde gosta de se deitar ficará coberto. Muitas hortas e vinhas estarão dias e dias debaixo de água; lá mais adiante será como um lago barrento, e as pessoas irão lamentar-se, achando que assim já traz prejuízos, duma desgraça como esta não há memória... A gente crescida nunca se dá por contente e não há maneira também de perceber as tristezas ou alegrias dos mais novos. Esquecem depressa o que já foram!...

Ainda ontem o Manel Coelho falou nisso, por mor duma ralhação que a mãe lhe pregou quando ele desapareceu de casa e não quis dizer onde passara a tarde. O Manel é um bom companheiro, valente e sem medo. Ninguém lhe arranca uma palavra quando dá em se fechar; guarda segredos que nem uma toupeira. Por isso mesmo o escolheu.

Nasceram no mesmo dia, quase à mesma hora... São meios-irmãos, dizem a brincar, quando vagueiam de mãos sobre os ombros um do outro, e buscam maneira de esvaziar as fervuras do sangue.

Agora nem disso precisam. Combinaram na escola começar hoje a construção do barco. Para que não haja ajuntamentos (muita gente junta não se salva), resolveram ir por caminhos diferentes. O Constantino parece apreensivo, enquanto o Manel assobia e joga pedras aos ramos. das árvores e aos muros.

Quando se juntam ao pé do rio da Lavandeira, o Cuco explica ao amigo onde escondeu as canas que foi arrebanhando pelas hortas. Vão buscá-las, metem-se à água e começam a tarefa. O Manel não acredita que possam ir muito longe com um barco daqueles. Como o companheiro insiste, ele ajuda-o sem convicção, mas continua a enlear as canas com arame.

-A gente devia arranjar um barco de madeira...

-E a madeira? -Pois é, não há madeira...

- Faz-se de cana e depois forra-se com tábua de caixote.

- Mas as canas não aguentam...

- Não vês que não vão ao fundo? Ah, Coelho, Coelho!...

Ali, Cuco, Cuco!... Tens mesmo cabeça de pássaro. Com o peso da gente as canas vão ao fundo.

Experimentam. Nem precisam de saltar os dois. Basta o Constantino pôr uma perna, fazer um pouco de força em cima, e logo a jangada começa a submergir.

- Vês?!.

O Cuco fica apreensivo. Está envergonhado perante o amigo, o que lhe dói. Como não pensou numa coisa tão simples?!... Que raio de cabeça de alho chocho!

Finge reforçar o fundo do barco com nova camada de canas entrançadas, mas percebe agora que não consegue arranjar lastro para se meter lá dentro. Sem que eles dessem por isso, duas mulheres chegaram às pedras de lavar e põem-se logo a barafustar: a água está turva, dá-lhes cabo da roupa.

- Eh, suas serigaitas! Calem-se aí!... O rio é de vossemecês?

-Olha, quem havia de ser senão o Cuco! diz a Custódia, que gosta de arreliá-lo.

-É o Cuco e o Coelho - acrescenta a outra lavadeira.

- Coelho é o seu filho - resmunga o Manel.

- Então, como te chamas tu? -Sou Manel, e chega bem!... - Deixa-as lá falar-refila o Constantino, já transtornado com o falhanço do empreendimento.

De repente, porém, a imaginação acende-se-lhe. Se arranjarem dois molhos de canas, tem a certeza, a viagem poderá começar no domingo de manhã. E um dia inteiro a deslizar por aí abaixo, com a ajuda de varas ou de canas grossas para fincarem no fundo do rio hão-de chegar longe, talvez a Lisboa, quem sabe...

Enquanto o Manel dá troco às mulheres, a conversa já mete curtas e compridas, ele enrodilha-se nas fantasias da sua rota marinheira. Mas não pára por aí. A experiência de calafate diz-lhe que os dois molhos de canas, ou três, se de tantos precisar, não ficam muito longe, embora sozinho não os consiga transportar. E é pena! Já agora fazia gala em deixar o companheiro a discutir, resolvendo por si a construção do barco, sem que o outro tivesse de lhe lembrar qualquer coisa mais. Ainda não cabia dentro da vergonha que sentira. Onde trazia a cabeça?...

Então, Constantino? Pergunta-lhe o 'amigo.

O frio da água começa a tomar-lhes conta do corpo, já os dentes batem castanholas e daí a bocado virão tremuras às pernas e aos braços, como se tivessem agarrado maleitas.

De boca na orelha do amigo, não vá escapar-se o segredo, o Cuco diz-lhe onde há material para fazerem a jangada. O Manel acena a cabeça e sorri, não tanto pela revelação, como pela raiva que o homem há-de sentir quando der por falta dos molhos de canas. Sabe que o outro é um fona, um unhas de fome - nunca mais esquece, que o correu à pedra e lhe açulou o cão de guarda quando deu com ele em cima duma árvore a apanhar fruta.

- O pior são aquelas-lembra o Cantigas, virando-se para o lado das lavadeiras.

-Esperamos que acabem... -E se vierem outras? -A gente vai lá e esconde os molhos ao pé do açude. Valeu?! ...

Para o Constantino vale tudo o que o puser mais perto do seu sonho. Começa a ficar cansado de esperar... Quer distrair-se, podiam talvez arranjar uma rede das portas, daquelas que não .deixam entrar as moscas em casa, e prepararem uma pescaria. Peixe não deve faltar... Mas começa a faltar-lhe a paciência. chama o amigo, arrenega-se porque não vem logo, e começa a encaminhar-se para a horta que escolheram. Chama o dono - Eh, seu António! - -, quer saber com o que deve contar, e o desejo parece-lhe bom. O homem está a bater sorna, com certeza. Terá de se levantar a meio da noite para carregar a carroça com hortaliça; uma bebedeira de sono não embebeda menos do que bebedeira de vinho. O Constantino olha para os molhos encostados ao muro e todo o corpo lhe sorri.

Mais distanciado, a assobiar, o Manel aproxima-se.

Trocam breves palavras para resolverem o caso, ninguém consegue ouvi-los, e depois galgam a vedação, deitando a correr. Mira à volta mais uma vez e ali abalam com um molho que deitam para o rio.

-Estás a ver?.

Sim, ambos têm olhos e já perceberam que o barco fica prontocom mais outro rolo de canas.

Esquecem-se até das mulheres. Querem lá saber que elas contem o que viram.

Daí a pouc galgam os dois para cima da jangada e sentem-na deslizar pelo rio abaixo, arrastada pelo impulso brando das águas que buscam a ída para a foz. O Constantino é o almirante, vai de pé, a responsabilidade é sua. Experimenta meter uma cana comprida pela diferença: o barco assim vai mais depressa, ele bem tinha bem tinha dito ao Manel.

Então, combinam esconder o barco ao pé duns salgueiros e partir na manhã seguinte. Faltarão os dois à escola – querem lá saber! A aventura tomou conta de ambos e ambos são resolutos.

- E o que leva a gente para comer? – perguntou o Manel.

- O que se arranjar pelo caminho – respondeu o almirante da nau.

Separam-se outra vez, não desconfie alguém do empreendimento.

O Manel pensa que se arribarem a Lisboa os jornais trarão o retrato deles – será coisa falada!

Ao fim da tarde, o nosso amigo Cuco delicia-se a olhar o rio de cima da ponte. Hão-de passar por ali mesmo; depois, até Bucelas, será coisa da meia hora. E, se a sorte se puser da banda deles, deitarão à cidade talvez antes da hora do jantar. Aí doze horas chegam à vontade para a viagem toda. Foi as' Ir,

contas que lhe deitou.

 

                               Viagem ao mar sem fundo

Tudo aconteceu de um momento para o outro, sem trabalhos nem penas.

E foi maravilhoso. Embora o Constantino não conheça a palavra -nunca a ouviu, sequer-, pode afirmar que a viveu plenamente, que sorveu todo o sabor do maravilhoso, sem diminuir o quinhão dos outros. E assim apetece. Assim é bom.

Deitou-se mais cedo, de janela aberta, e para ali ficou a rememorar no que previra para a viagem da manhã seguinte: na forma de navegar, nas horas necessárias para chegar ao Tejo, nos perigos das fragas antes do Tojal, 'na rijeza do barco...

Nada lhe escapou. Quando percebeu, por fim, que dentro dele tudo ficara pronto para o empreendimento, consentiu que o sono viesse. E o sono aproximou-se sorrateiro, cauteloso e sorrateiro, enchendo-lhe a travesseira de sonhos.

Adormeceu feliz. Virou-se para o lado direito, aconchegou a manta bem ao pescoço, e lá entrou, em caminhada serena, no mundo do esquecimento e da fantasia. Daí a pouco, foi um instante, o luar saltava pela janela e punha-se a brincar-lhe com a cabeça, talvez até a sorrir com os fios da realidade e da imaginação que o sonho já começara a tecer.

Também o Constantino sorriu quando se achou dentro do barco, sem pisar o chão nem saltar da margem do rio.

- Adeus, adeus! Boa viagem!... Eram eles que se saudavam, acenando também para as árvores e os pássaros a despedida daquela viagem em segredo, a que ninguém viera assistir. O Manel trouxe as botas altas de borracha para as lidas do Inverno, mas sentou-se no fundo do bote, a manobrar com perícia uma das canas que serviria para apressar a rota batida. No lugar do almirante postara-se o Constantino, atento às manobras, de pé, com o olhar arremessado por aí adiante, sabia lá até onde...

A jangada parece movida a motor. Corre depressa, avança numa vertigem, cortando as águas sem hesitar, em "furtetas" rápidas, quando lhe surge pela frente algum penedo, e prossegue numa carreira quase alucinante, de que eles mal se apercebem.

Já passaram Bucelas e Tojal; nem sabem explicar como venceram o caminho tão depressa. Viajar assim torna-se mais fácil do que andar de burro, pensam ambos. Um deles, porém, quer falar nisso ao companheiro; só então repara que o barco se pôs a crescer, que está maior do que uma galera 'de parelha e ainda continua a aumentar, sempre a aumentar... Coisa esquisita!... Já precisam de gritar para se ouvirem.

Constantino fecha os olhos para se certificar; quando os reabre, já a nau cresceu outro tanto em tamanho e em velocidade. Apossa-se dele, então, um certo receio. Prevê que não fará rota por muito tempo, que numa curva mais apertada e fragosa a jangada se partirá toda, atirando com eles para a morte ou para a troca da aldeia, quando lá souberem o projecto de arribarem a Lisboa.

De um freixo de ramos compridos atirados sobre o rio cai em cima do barco, e logo por sorte mesmo no centro, uma folha verde com o seu pé já a amarelecer. É uma brisa que a traz de mansinho, aos ziguezagues pelo ar, num jeito de embalo. Constantino ainda esboçara um gesto para lhe deitar a mão, mas nesse momento o Manel gritou-lhe do lado da proa...

-Ali em baixo deve ser Sacavém...

- O quê?!... Fala mais alto! -Ali é Sacavém!... Procuram ambos o casario apontado pela mão do Manel -marinheiro, que se apressa a emendar o movimento, quando repara na lonjura a que Sacavém já fica, quase perdida na neblina da manhã e da distância.

Nesse momento assustam-se; não é caso para menos.

Com tamanha velocidade, aonde iriam eles parar?!...

-Não metas a cana no fundo-grita o almirante Constantino, um tanto temeroso com o ímpeto maluco da carreira.

Aqui não acho fundo - responde o companheiro na mesma berrata.

Constantino quer certificar-se, por seu lado, mete a vara mais comprida à água, não encontra apoio, agacha-se um pouco mais e não consegue firmar-se.

-Pois não, não há fundo - confidencia para si. - Se calhar, já estamos no mar alto, sem ter fundo...

Mas já o espanto do almirante arranja novo motivo para se alargar. O pé da folha caída no meio do barco agarrara-se, não percebia como nem a quê, e começara a crescer muito direito por aí acima. Um pouco tonto, o rapaz, fecha os olhos. Quando os abre, o pezito tornara-se num -madeiro onde adejava uma grande vela verde, recortada no feitio da folha.

Nada lhes faltava agora para chegarem a Lisboa. Ficam perplexos, talvez receosos. Precisam de espreitar para se verem, porque a vela torna-se maior e esconde-os um do outro.

- Vem prà aqui! - brada o almirante.

- Não, não vou. O barco ainda está a crescer...

-Vais com medo, Manel?

O companheiro mastiga o receio. -Eu, medo? Nunca vi o medo... Como é o medo?...

Constantino paga-se na mesma moeda. -Foi bicho que nunca vi. Se calhar, é como um sapo.

- Ou como a toupeira, que se mete dentro da terra. Dizem que o medo mete-se também dentro das pessoas...

Assim vale a pena a um almirante entrar em aventuras. Guarnição bem firme e ele no seu lugar.

O pior é que o barco não pára. Vai sempre mais e mais depressa, passam vultos por ele, cada vez mais vultos.

-Aquilo parece um navio -diz o Manel.

- Ali vai um barco à vela - confirma o Constantino.

Mas tudo lhes foge mal os olhos descobrem qualquer coisa.

Ouvem apitos, sereias, vislumbram casas, praças, e mais navios, e mais guindastes, e mais velas...

- Não será Lisboa? - pergunta o marinheiro.

- E a gente não pára? - pergunta o almirante com ansiedade.

Ficam ambos calados. Só agora percebem -que nenhum deles sabe abrandar a marcha dum barco e acostálo às muralhas.

Já não podem prever para onde a corrente os arrasta. Talvez para o alto mar, como naquela fita que viram no largo do Freixial e que o homem da manivela contava às pessoas, não chegassem elas ao fim sem compreender a história.

A verdade é que as ondas crescem. Crescem sozinhas e avantajam-se com o vento corredor, um' vento bruto de deitar abaixo um homem. Vale-lhes a rijeza do mastro, o tamanho da-vela de folha verde e a valentia de ambos.

Por seu lado, e aí tudo se complica, o mar e o vento também não querem ficar mal naquela contenda. Juntam forças, parecem combinados, e lá se atiram sobre o barco a tentar esmagá-lo no encapelado da vaga grossa.

De gatas, quase a rastejar, o Manel chega-se para junto do companheiro. Vem com cara de susto, fala com dificuldade, mas sempre consegue perguntar:

- Onde é que a gente está?...

O almirante procura nos livros, busca e rebusca, medita com cautela, e acha que se Lisboa já ficou para trás há muito tempo, eles devem estar, mais ou menos, ao pé do fim do mundo.

- E que gente mora lá? - pergunta o Manel, com ansiedade.

- índios... Não viste naquela fita de aventuras?

Por isso não entendem como podem chegar até eles os gritos da família. As mulheres devem estar assustadas, acham ambos. Mas como vieram ali tão longe?!... Teriam arranjado talvez um outro barco para os perseguir e só agora puderam alcançá-los. Entre todos os gritos, o Constantino percebe distintamente os da avó. E deseja que o seu barco vá ainda mais depressa; já agora sempre quer ver como a aventura termina - não está disposto a interrompê-la para levar as vacas à fonte ou entregar o leite à Ti Felismina.

Tenham paciência, isso é que não! Ao apelo desesperado das mulheres, junta-se, porém, um novo alarido mais confuso.

Sentado junto do mastro, o Manel volta-se para o camarada e indaga:

- O que quer essa gente?... Que diabo de confiança é aquela? Essa agora!... Sim, são amigos, com certeza, senão não viriam ali juntos. Mas ele é o almirante da nau, não deve consentir que o seu marinheiro o trate com desprezo...

O 'outro não lhe sabe interpretar o silêncio, insistindo na pergunta; Constantino responde-lhe com duas pedras na mão:

-Não tens ouvidos?... Então manda fazer uns novos ao funileiro...

Depois reconsidera e acha absurdo que se dêem disputas entre si, quando o alarido se aproxima cada vez mais. Percebem agora todas as palavras, como se as pessoas estivessem dentro do seu barco, embora não as descortinem. Não dizem qualquer novidade, pelo menos para os dois; não há dúvida, porém, que os descobriram.

Foram aquelas calhandreiras que estavam a lavar em Bucelas, pensam ambos.

- O Cuco e o Coelho abalaram para o mar alto! Agora mais ninguém os agarra!...

Conhecem a voz que disse a última palavra, e não se sentem seguros.

-É o dono das canas -diz o Manel.

Para o sossegar, o Constantino estende a mão para segurar o ombro do amigo, na intenção de lhe dar coragem, e sente com surpresa que agarra um pedaço de pêlo muito macio. Fica atordoado. Larga a vara e ajoelha-se; repara, espantado que o Manel se transformara num coelho branco com malhas castanhas.

O coração atira-lhe um pinote.

- e eu como estarei? -pergunta.

- Tu és um cuco - responde-lhe o Coelho, de orelhas arrebitadas e narinas irrequietas. -Tens asas e bico como um cuco...

Constantino experimenta dar aos braços, fá- -lo ainda sem convicção, mas nota que começa a subir, a subir muito. O barco fica lá em baixo, misturado com árvores. "Com árvores?", pensa confundido. "Como diabo nasceram árvores no meio do mar?"

A perseguição de vozes não cessa:

- O Cuco e o Coelho abalaram para o mar alto!

Estão no mar alto, sem ter fundo, a bordo duma grande nau; mas não poderão desembarcar em Lisboa, mesmo que consigam voltar para trás. Que diria toda a gente quando visse chegar ao cais um barco de vela verde com dois bichos a bordo?...

Lembra-se o Cuco das suas obrigações de almirante. E, como não gosta de enjeitar responsabilidades, aí se atira de asas fechadas para tomar a direcção do barco, o que só consegue de pois de bater com a cabeça na vela. O embate fá-lo cair e ficar tonto. Nesse mesmo instante, um tiro rebenta-lhe aos ouvidos, pondo o seu amigo Coelho aos saltos desabridos.

Ai, que estou ferido! Ai, que estou ferido!... Aflito, percebendo o perigo, começa o Cuco a bater as asas na intenção de se escapar. É pássaro

e pode fugir melhor, pensa ele. Outro tiro ainda maior rebenta-lhe, porém, mesmo em cheio na cabeça...

Dá um salto na cama, ainda lhe parece ouvir o estrondo dos tiros, põe-se a gritar, aflito, e corre para a janela. Leve de sono, a avó pressente-o logo e pergunta-lhe lá de dentro:

- O que foi, moço?... Constantino esfrega os olhos. Não, não vai a bordo do seu barco, mas felizmente é homem. De qualquer maneira, gosta mais de ser homem.

- Ah, Constantino!... Não respondes?... Por sua vez, interroga-o a voz da mãe:

- Estás doente, rapaz?...

- Não, não senhor. Volta para a cama, cansado. Mais cansado do que se regressasse da viagem debaixo dum temporal desfeito.

 

                                     Guardador de sonhos

Doente ficou ele na manhã seguinte quando o Manel lhe veio contar a desgraça.

Ah, gente danada!... Se a inveja fosse tinha, muita gente era tinhosa...

O companheiro chegou ao pé dele com a raiva a atabafá-lo, mas o Constantino pressentiu logo o que se passara quando o viu a correr. O dedo mindinho adivinhou tudo num instante.

Alguém descobrira o barco escondido, ou estivera a espiá-los, e logo entregara os dois molhos ao dono, o qual fizera um alarido de desgraças, chegando a jurar - nascessem-lhe ferraduras nas mãos- que chamaria os ladrões à guarda republicana. Inquieto com a ameaça, o Manel rói as unhas e indaga:

- O que responde a gente se formos a perguntas a Bucelas?...

Constantino mantém-se calado e taciturno, não lhe apetece falar. Há coisas que as palavras só estragam. Quem acreditaria na sua viagem até tão longe?!... E depois a cabeça duma pessoa pensa e repensa, cada pergunta não pede uma só resposta... O melhor de tudo, ao cabo, é fingir que se não entende.

- E se a gente ficar presos? - repisa o Manel, a acrescentar glórias inspiradas nas fitas do cinema ambulante.

Lembra-se o Cuco da morte dos pintassilgos cantadores e o sangue magoa-se-lhe. Depois atira dois pontapés a um cesto vindimo para se vestir de bravatas:

- A cadeia fez-se prós homens... Manel Coelho ufana-se com a resposta do amigo. Há-de ser bom, toda a gente vai falar -nisso, irem ambos entre dois guardas armados até ao posto, como sucedera àquele homem da Chamboeira, a quem só deitaram a mão sob a ameaça de três tiros disparados para matar. Naquele momento, o Coelho sente-se capaz- de defrontar todos os xerifes e polícias do mundo inteiro.

Constantino já não o acompanha, porém, no delírio dessa aventura secundária. E o outro amua, sentindo-o ausente, talvez com medo. Então dá-lhe a veneta para abalar às pedradas a quantas árvores acha dignas da sua pontaria certeira.

Logo o Tunante se chega ao dono para lhe lamber as mãos, talvez por saber que a Rasteira abalou para a caça e não lhe roubará as carícias. O rapaz acolhe-o distraído, mas o cão fica sereno a dar ao rabo, erguendo bem o focinho para que a mão do dono lho afague mais.

Para o Cuco, almirante dum navio de cana, a grande aventura, a verdadeira, vivera-a ele durante a noite.

Ainda agora se embala nessa aventura maravilhosa de viajar num barco mágico, onde acabara por nascer duma simples folha um mastro com vela grande e verde. Parecia mesmo um pendão. Só assim pudera entrar pelo mar dentro - nem sabia bem aonde chegara! -, embora acossado por vagas e temporais medonhos.

A viagem sonhada fora-lhe preciosa. Aprendera nela muitas coisas de marinhagem, de que aproveitaria quando repetisse, ao vivo, essa aventura misteriosa. Ah, sim, tem a certeza, e agora mais do que nunca, de que irá construir um barco seu, arrebanhando quantas canas e tábuas consiga encontrar na aldeia.

Há-de preparar o navio com todo o preceito, sem esquecer o mais importante. Para mastro arranjará um pau de varejar azeitona. O pai tem um guardado no palheiro; é alto e verga-se bem. Tirará a vela dum lençol velho, mesmo remendado. Precisa de oferecer ao vento uma boa concha para lhe soprar com força.

Não, não pode ficar-se por uma Jangada qualquer feita à matroca com dois molhos de canas amarrados por arames, à toa. Assim iriam, quando muito, até perto de Bucelas. E ele precisa de alcançar terras mais distantes...

Quer chegar a serralheiro de navios, há-de construir alguns, que deitem fumo, desses que aguentam em cima com o povo inteiro do Freixial. Não conhece ofício mais bonito!...

Precisa de mostrar às pessoas que merece andar com fato de macaco de duas alças. Não é serralheiro de ferro-velho, como já o Evaristo Bacalhau lhe chamou a brincar, Um navio custa mais a fazer do que uma casa e o seu barco novo há-de espantar toda a gente...

Daí por um ano, quando fizer o exame, o pai irá levá-lo aos estaleiros, como lhe prometeu:

- Eh, mestre!... Precisa cá dum aprendiz?... Ele poderá acrescentar sem melindres para ninguém:

-Aprendiz não é bem assim... Já fiz um barco... Já pus sozinho um barco a navegar. Vim da minha terra até aqui...

Vive para esse grande e único sonho, nascido à vista do Tejo, quando o levaram a Lisboa pela primeira vez. Constantino sente-se investido na dignidade de guardador desse sonho. E sabe que o passará inteirinho -para as suas mãos.

Quando voltar à cidade, não dirá com espanto nos olhos:

- Ena, pai, tanta água!... Donde vem esta água toda?! ...

Conhece agora os mistérios da água e do mar. Aprendeu muitas coisas boas e sábias, e vai usá-las, pois então!

Quando?!... Por enquanto é segredo. O Constantino quer fazer uma surpresa à Ti Elvira, porque a avó lhe disse um dia: cresce e aparece. E o nosso amigo Cuco sabe também que o verdadeiro tamanho de um homem se mede pela coragem e pelas obras.

Amanhã mesmo ele vai continuar a construir seu barco. Já o meteu no estaleiro do coração, conhece-o de cor, e o resto é fácil... 

 

                                                                  Alves Redol

 

 

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