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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CORAÇÃO ARTIFICIAL / Viviane L. Ribeiro
CORAÇÃO ARTIFICIAL / Viviane L. Ribeiro

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

CORAÇÃO ARTIFICIAL

 

         As pessoas conversavam em grupos sob lustres brilhantes, sorrindo superficialmente entre elas e com taças de champanhe em volta das mãos.

             Ninguém parecia se divertir, embora eu esteja convencido de que seja essa a ideia deles de diversão.

             Eu estava numa roda com três caras. Meu pai, um homem maduro de cabelos grisalhos e Luciano. O homem de cabelos grisalhos era um importante homem de negócios assim como meu pai, mas a sua área era a de transporte seguro de distribuição, e Luciano um cara de vinte e cinco anos que herdou uma empresa de administração depois que seu pai faleceu e ele acabou se tornando um dos jovens mais ricos da cidade. Grandioso, é eu sei. É o que meu pai sempre me lembra, a respeito de ele ser tão jovem e assumindo tamanha responsabilidade para a sua idade.

             Eles conversavam alguma coisa sobre fechamento de contratos, mas eu não estava participando. Eu olhava para o relógio no pulso o tempo todo, a única coisa que conseguia pensar era no compromisso que eu teria depois que conseguisse dá o fora daqui.

             Um garçom passou atrás de mim e do meu pai ao meu lado. Dei um giro preciso e pesquei uma bebida restante da sua bandeja, mesmo que eu tenha decidido a algum tempo parar de beber e que eu fosse dirigir essa noite. Eu só precisava de algum tipo de intervenção para me ajudar sobreviver a isto aqui.

             — Acho que vou precisar disso. — eu disse, mais pra mim do que para ele.

            Levantei o copo pra cima, exatamente como se faz com uma bebida forte e não doce, não bebendo completamente tudo. Virei para o garçom para lhe entregar a taça, mas ele já tinha ido.

            Quando voltei para os três, Luciano estava me olhando.    

             — Não acha, Gabriel? — ele perguntou, me incluindo na conversa. Tinha uma coisa indefinida nele que de alguma forma eu sabia que não poderíamos ser amigos.

             Meu pai olhava para mim, na expectativa, o mais interessado pelo que eu teria a dizer.        

             Concordei, embora não soubesse do que raios Luciano estava falando.

             — Ah, sim.

             Meu pai pareceu decepcionado. Quanto ao velho, eu era tão insignificante que ele nem se deu ao trabalho de sentir alguma coisa.

             Luciano deu um sorriso afetado, seu cabelo ordenadamente penteado todo pra trás brilhava por causa do gel em excesso. Ergueu uma sobrancelha pra mim, em desafio.

             — Tem certeza?

             Seu sorriso era convencido e Luciano era sustentado por uma postura pomposa que me irritava. Eu não gostava da ideia de conversar com um cara que passava a sensação de que tudo o que eu disser não será considerado, de qualquer forma.

             — Claro. — respondi distraído, e olhei mais uma vez o relógio. Dessa vez foi para mostrar ao Luciano que eu não estava nem um pouco interessado na sua conversa.

             Em um momento depois disso, meu pai se afastou para cumprimentar um ministro baixo e com um bigode nojento, acompanhado de uma mulher loira e mais alta do que ele.

             No mesmo instante, virei para os dois “cavaleiros” restantes.

             — Já volto. — eu disse, para ninguém ali em específico. Nenhum deles estiveram atentos a mim mesmo.

             Pausei calmamente a taça com a bebida em cima de uma mesa qualquer. Não queria que eles notassem qualquer indício de ansiedade e com isso calculassem que eu não pretendia voltar mais. Mas assim que avancei a porta, eu desci as escadas correndo, quase tropeçando sobre os pés, como se eu estivesse fugindo de um daqueles brutamontes estupidamente forte de vídeo game e que a gente sempre acha que vão acabar nos pegando no final.

             Saí da casa enquanto afrouxava a gravata que esteve estritamente alinhada e desabotoei os três primeiros botões da camisa social, andando a passos apressados em direção ao carro estacionado na porta da minha casa.

             Ela era muito grande para só eu e meu pai.

             Sem mãe. Ela resolveu deixar eu e meu pai ainda quando eu era criança demais para me lembrar. Depois, quando meu pai julgou que eu tinha idade suficiente para poder saber das “coisas da vida”, eu soube pelo meu pai que minha mãe foi embora com um cara que inclusive tinha a mesma idade que eu tenho hoje.

             Sei que meu pai não é um santo, que ele deveria ter tido uma generosa parcela de culpa por minha mãe querer ir embora desse jeito. Mas mesmo assim, acho que minha mãe não deveria ter me abandonado. Acho que ela deveria ter lutado por mim mesmo que na época eu fosse um garotinho frágil e grudento que vivia dando trabalho e pegando no seu pé para aonde quer que ela fosse. Eu era uma criança doente e frágil. Qualquer criança que passou quase toda a sua infância no hospital precisa da mãe ao seu lado.

             Entrei no carro e tirei o blazer do terno e a gravata, jogando-os de qualquer jeito no banco de trás. Olhei o retrovisor central e passei a mão pelo cabelo, atrapalhando o penteado disciplinado e jogado pra trás.

             Estava pronto agora.

          

        Cheguei em cima da hora que tinham marcado para a corrida acontecer. E eu tive um tempo justo, porque as corridas sempre aconteciam tarde da noite, por ser nesse horário que tem poucas patrulhas da polícia e com isso menos probabilidade de sermos pegos. Mas eles quase não davam as caras por aqui. Nesse bairro, nenhum policial esperto se arriscaria em rodar com uma viatura.

             Somos um bando de jovens que se juntavam debaixo de uma ponte abandonada num sábado à noite para beber e ficar com garotas. Os mais loucos apostavam corridas de carros.

             Eu era 95 por cento aves voando em bando nas cordilheiras próximo à minha casa. Mas quando estou no universo que meu pai rege, aí eu me sinto uma personagem secundária e sem importância – o que é frustrante, considerando que é da minha história que estávamos falando. Então eu participo de corridas, porque é a única coisa me envolvendo que meu pai não pode controlar. Por hora, esse é o meu escape.

             Os carros que iriam competir já estavam em seus lugares, faltando só uma vaga para completar. Posicionei o carro na vaga disponível, e que ironicamente era ao lado do Vitor.

             Ele é um dos moradores do bairro. Eu não me dou bem com ele. Ele é cabeça dura demais, talvez um pouco parecido comigo para que possamos nos entender como amigos um dia.

             A aversão dele chegou ao ponto de ele querer me proibir de ir até ao bairro e competir, por eu não precisar do dinheiro. Ele disse isso ao Nico, o cara que mandava na gangue. Desde quando entrei para a competição, nunca vi o chefão, só ouvi falar dele pelas pessoas. E foi por elas mesmas que eu soube que Nico não levou em consideração o pedido do Vitor. Ele disse que a competição era aberta a qualquer um que quisesse participar. Mas não se enganem, eles não estavam pensando em ser justos. Estavam apenas sendo visionários, porque é claro que não queriam correr o risco de esvaziar pouco a pouco esse negócio. E querendo ou não, eles precisavam de mim tanto quanto eu precisava deles.

             Até hoje me pergunto quem Vitor pensava que era para achar que Nico o ouviria.

             Um cara de camiseta e com as calças caindo com a cueca aparecendo foi para frente dos carros. Fiquei assistindo-o andar com as mãos preparadas em volta do volante e o pé prontamente no acelerador, ansioso, até que ele parou no meio por onde os carros passariam e levantou a mão, dando sinal para arrancarmos.

             A marcha dos carros em fileira arrancou, o mais rápido seguindo em frente.

             Havia uma regra, e ela era inviolável: nenhum oponente pode bater no carro de outro competidor, e caso isso aconteça, é desclassificado. Então eu sempre tomava cuidado para não encostar meu carro em outro, eu apenas focava nisso e em ultrapassá-los. Não queria perder a chance de estar aqui.

             Nesta noite, eu consegui vencer. Era fácil fazê-lo. A aceleração do meu carro era violenta e agressiva sem me esforçar, então eu só tinha que dosar o pé e concentrar no que estava fazendo.

             Talvez então seja por isso que Vitor sentia raiva de mim, em quanta desvantagem ele estava tendo comigo. Mas isso é só uma suposição. Não dava para ter nem uma base de ideia do que passava na cabeça de um cara descontrolado como ele.

             Eles ligaram o potente alto falante de um dos carros, a música pop ribombando através das caixas de amplificadores. Distraidamente olhei para o lado e percebi Vitor encostado no seu carro acabando de dar um gole de cerveja no próprio gargalho da garrafa, os olhos friamente concentrados em nenhuma outra coisa a não ser em mim.

             Ele estava sozinho, apenas me observando, e achei que deveria fazer algo a respeito para mudar a forma como ele me via. Os traços por todo o meu corpo pode não soar como uma pessoa ingênua, mas eu não conseguia deixar de agir assim em relação às pessoas, algumas vezes.

             Saí da área “segura” e andei até ao Vitor que estava a sete passos de distância, atravessando decididamente para o outro lado da rua. Parei de frente a ele. Vitor permaneceu com a mesma posição e sua expressão não mudou.

             Se a intenção era me ignorar, ele estava fazendo um ótimo trabalho.

             Apontei a cabeça para seu carro.

             — Você foi bem hoje.

             O olhar do Vitor para mim era enviesado, perguntando-se o que eu pretendia com essa atitude cordial repentinamente. Mas depois de um tempo, ele julgou que me responder seria mais superior do que não dizer nada de volta.

             — Você também. — ele disse, que conseguiu soar como um rosnado.

             Puxei do bolso o montante da aposta de seiscentos reais e estendi para ele; não como esmola, e tentei soar sincero e não prepotente. Eu não estava aqui pelo dinheiro, e talvez, ele pudesse ajudá-lo melhor de alguma forma.

             — Acho que você merece isso por essa noite. De qualquer forma, não é pelo dinheiro que eu faço isso.

             Vitor desencostou do carro e deu dois passos longos e rápidos em minha direção, ficando a centímetros de distância do meu rosto. Lutei contra a vontade de virar o rosto para longe por causa do bafo de cerveja, ainda que fraco; isso mostraria algum tipo de intimidação. E então hostilmente bateu na minha mão, jogando-a para o lado.

             Vitor parecia furioso. O nervo da testa saltava da sua pele.

             — O que te faz pensar que eu preciso do seu dinheiro?

             — Estava apenas tentando ajudar você. — eu disse, calmamente. De alguma forma, soando mais superior que ele.

             — Não preciso da sua ajuda. — rebateu, seus olhos presos nos meus. — Vá se ferrar, você e seu dinheiro.

             Vitor me deu as costas e foi embora.

              Sério, qual é o problema em simplesmente aceitar seiscentos reais de um cara quando esse dinheiro estava sendo oferecido de boa vontade a ele?

         

        Voltei para casa às três da manhã.

             Pelo quintal eu vi luzes acessas no segundo andar e vultos de pessoas passando pela janela, indicando que eu ainda tinha companhia. Eu tinha pensado que a essa hora eles já deveriam ter ido embora e só por isso eu voltei.

             Olhei os poucos carros na entrada da casa.

             Bem, isso significava que tinha menos gente agora; poucas pessoas e que logo iriam embora.

             Entrei em casa. Andei até a escada, com a cabeça baixa. Estava nos últimos degraus, e finalmente levantei os olhos. Deparei com a imagem inflexível do meu pai em pé na base da escada me esperando.

             Não sei como ele previu que eu chegaria exatamente agora.

             A recepção que recebi foi uma mão mexendo no botão do terno e a outra no bolso, o peito inflado e um olhar intolerante, nós dois plenamente conscientes do quanto infantil essa situação parecia para ambos. Porque ele não precisava me esperar aqui desse jeito e eu não precisava me sentir como se tivesse feito algo errado. Quero dizer, eu acabei de fazer algo errado, mas meu pai não sabia disso. Até onde ele tinha conhecimento, eu só fugi de uma festa beneficente que não tenho certeza se ajuda realmente alguém.

             — O que foi? — eu perguntei ao passar por ele no topo da escada, com a voz baixa e desanimada. Estava com a cara cansada, segurando o blazer por cima do ombro e uma mão no bolso.

             Percebi o movimento dele virando para mim.

             — Onde você foi? — exigiu. — E por que saiu daqui como se estivesse fugindo de alguém?

             Ironicamente, era dele mesmo que eu fugi antes.

             — Podemos conversar outra hora? — sugeri tão fracamente que quase não ouvi minha própria voz. — Estou realmente muito cansado agora.

             E passou pela minha cabeça como em um retroprojetor as imagens dos carros em alta velocidade, a música alta, a bebida, as garotas...    

             — Não —, meu pai protestou, a voz alta. — Nós vamos conversar agora.

             Retive meus pés, e virei lentamente para olhá-lo. Sua expressão era determinada, de que de forma alguma eu iria sem ele despejar em cima de mim toda a sua frustração. Minha fugida deve tê-lo feito se sentir envergonhado.

             — Está bem. — eu disse, com o tom de voz bastante baixo. — Se quer saber, eu não consegui aguentar. Pensei que conseguiria, mas não consegui. Precisei escapar, porque eu estava enlouquecendo aqui dentro. Já estou cursando a faculdade que você queria, não vejo por que eu tenho que fazer isso também.

             — Você sabe o porquê.

             — Se o senhor realmente está interessado em me ajudar, então deveria esquecer de uma vez por todas essa ideia de me incluir nessa merda. — e apontei para trás dele, para além da parede e para as pessoas lá dentro.

             — É isso que servirá de contatos para a sua carreira. — ele rebateu, descontrolado. — Você não acha que já é hora de começar a pensar seriamente sobre o seu futuro?

             Formulei uma resposta menos diplomática para dizer ao meu pai e parei, decidindo-me por uma resposta que sei que ele odiaria mais do que simplesmente bater de frente a ele.

             — Então da próxima vez você poderia contratar uma boa música e chamar pessoas animadas. — eu disse, tranquilamente. — Quem sabe depois disso eu começo a pensar sobre o meu futuro?

             Ele parecia decepcionado.   

             — Não sei mais o que eu faço com você, Gabriel.

             — Não quebre a cabeça com isso, pai, é só você não se preocupar. Foi isso o que você fez a vida toda... — e dei um passo para perto dele, a fim de falar mais baixo para o caso de alguém passar e não conseguir nos escutar. — Mas quando tem uma oportunidade de me mostrar aos seus amigos como um troféu, você me obriga a prestar esse papel de filho exemplo.

             Não que fosse isso o que eu era. Nunca fui bom em atuação.

             Meu pai me encarava, perplexo, como se fosse possível que todas essas verdades o tivesse incomodado. Mas eu duvidei disso. O remorso, a culpa, ou qualquer que seja o sentimento que se volta atrás, nunca tombou essas paredes.

             — Desculpe, pai. Mas eu não vou fazer parte disso.

             Ele ainda continuava parado, de frente para as minhas costas, observando-me a ir. No meio do caminho para o quarto, virei a cabeça pra trás. Não importa o quanto eu tente parecer não me importar, mas não conseguia ignorar o meu pai, não completamente.

             — Você deveria ir descansar. — eu disse para ele, falando por cima do ombro.

             Ele me olhou como se eu fosse um estúpido.

             — Eu sou o anfitrião, esqueceu?

             — Ah. Bem, então melhore essa cara.

          

        O lugar não estava cheio, exatamente como Lucas disse que estaria. Eu o vi de óculos de sol na piscina e mais algumas outras pessoas da faculdade espalhadas pelo clube.

             Apesar de morarmos a três horas e meia do litoral, na região sudeste, Lucas parecia o típico garoto de praia; a pele com a aparência bronzeada e os cabelos castanhos queimado de sol. Quanto à tonalidade da pele, domingos ao sol em piscinas pode ter tido sua influência natural. Quanto ao cabelo, os reflexos eram os principais responsáveis.

             — Você veio?

             O grito dele dentro da piscina fez uma mulher deitada na cadeira desprender as costas rapidamente e direcionar a cabeça em minha direção. Chegou até a levar a mão nos olhos e suspender os óculos de sol para ver claramente além das lentes. Ela estava longe, então não dava para saber se era bonita ou não.

             Não que importasse. Não era por isso que eu estava aqui.

             Levantei a mão para o Lucas em resposta, e caminhei até a ele ao mesmo tempo que ele nadava até a orla da piscina para me encontrar.

             Eu me apoiei em um joelho para falar com ele.

             — Você falou sério mesmo quando disse que ninguém estaria aqui, hein? — eu disse, só para provocá-lo.

             — É só a Carolina.

             — Bem, e aqueles caras ali? — apontei para o grupo próximo à piscina e depois para a garota dos óculos. — A garota, Wesley.

             Na verdade, Wesley fazia parte do que eu poderia considerar a minha roda de amigos. Mas ele estava ali pelo Lucas. Carolina pelo Lucas, e eu por Lucas também. Lucas sempre foi o mais sociável; o que sempre tinha amigos, o que sempre estava de bom humor para fazer qualquer coisa em qualquer momento que você chegasse nele e dissesse: “Ei, vamos fazer aquilo?” Não tem como não gostar de um cara como esse.

             Do outro lado da piscina, Carolina passou e deitou debaixo de um guarda sol enorme que fazia uma enorme sombra cobrindo desde a sua cabeça até os pés. Usava chapéu de palha com aba e metodicamente trabalhado que acobertava a cabeça e parte do rosto.

             Não consegui deixar de me perguntar o que Carolina fazia aqui se não era sua intenção desde o começo de pegar sol.

             — O que está fazendo parado aí? — Lucas me disse, incentivamente. — Não vai entrar?

             — Agora não. Vou falar com a Carolina.

             Deixei de olhar o Lucas e lhe dei as costas, caminhando em direção a ela.

             Eu e Lucas a conhecemos no mesmo dia. Porém, Lucas tornou o seu amigo e eu apenas o amigo do seu amigo. Foi o que pensei ser melhor.

             — Você vem para o clube —, Carolina observou, quando sentei na cadeira de frente a sua. — E não vai entrar na água?

             — Tenho piscina em casa. Então não é esse o caso.

             Inclinei sobre seu corpo e peguei a taça do seu refresco em cima da mesa.

             Aquela mulher, a dos óculos, estava ali de frente para mim, me observando. Eu olhava para além dela apoiado os cotovelos na coxa da perna enquanto bebia, depois virei rapidamente para Carolina, só para entregar-lhe a taça que agora tinha menos quantidade de quando peguei.

             — Você está fazendo isso de novo. — Carolina disse, numa voz preguiçosa e pastosa. — O olhar sedutor e tão concentrado.

             — Incomoda você?

             — Não, é apenas inquietante te ver paquerar uma garota usando os mesmos artifícios de sempre. — ela respondeu, indiferente. — Não sei por que elas ainda continuam caindo.

             Então era isso o que Carolina estava falando.

             É verdade que eu olhava em direção da mulher e por isso a suposição da paquera, mas não era para ela que eu estava olhando. Estive distraído, pensando na discussão que tive ontem com meu pai.

             Eu poderia ser mais compreensível com ele, já que participar dessas festas fazia parte do acordo que fizemos. Mas a questão era que eu recusava me entregar deliberadamente assim, como um cara em uma luta desproporcional e mesmo assim não dá o braço a torcer.

             Como qualquer pessoa, tenho meus conflitos, e eles me confundem. É como se coexistissem duas pessoas diferentes na minha cabeça. Tenho a vontade de virar o jogo de um lado, e a resistência pesando do outro. Até agora, uma das partes está sendo mais forte do que a outra.

             Quando virei a cabeça para olhar Carolina, o meu corpo acabou acompanhando-o também.

              — Você está errada quanto a eu usar os mesmos artifícios de sempre. Mas posso tentar agora com você —, eu disse numa voz provocativa. — E depois me diz se realmente não funciona.

             Carolina estava sorrindo.

             — Isso não funciona comigo. — ela disse, confiante. — Sou imune a você.

             Meus olhos ainda permaneceram presos nela por um instante depois que seu sorriso desapareceu.

             Carolina tinha tudo para ser uma garota perfeita, tudo mesmo, mas eu simplesmente não conseguia enxergá-la assim. E me vi perguntando qual era o meu problema.

             — Você está certa. — eu disse a ela. — Você é imune.

             Por um breve momento pensei ter visto seu rosto ruborizar. Mas só por um momento. Carolina não costumava ficar assim com frequência. Na verdade, acho que nunca a vi ficar envergonhada por alguma coisa ou por alguém.

             De repente, pareceu desconfortável nos olharmos assim desse jeito. E então meus olhos e da Carolina foram parar no Lucas que saía da piscina. Ficamos olhando-o andar a passos rápidos e precisos para chegar até nós. Água escorria por todo o seu corpo, e então ele deu um sorriso direcionado para Carolina, um sorriso quente e aberto.

             Nunca percebi antes que Lucas trocava olhares dessa forma com ela. Olhei Carolina ao meu lado para constatar se o sentimento dele era, eu não sei, recíproco? Carolina desviou os olhos dele e inclinou sobre a mesa para pegar uma revista de moda trago de casa, e ficou passando os olhos sem ao menos prestar atenção no que fingia ver.

             — O que está rolando? — Lucas perguntou, tentando soar descontraído, mas pela urgência da voz, mostrava genuinamente interessado em saber.

             — Nada. — respondi por mim e pela Carolina. — Apenas conversando.

             Lucas aproximou da cadeira que Carolina deitava, como suas pernas pequenas ocupavam pouco espaço ao invés das minhas, empurrando-as gentilmente para o lado para sentar-se. Carolina baixou a revista e bufou pelo nariz, mas ele não viu isso; estava de perfil para ela e de frente para mim.

             — Como anda as coisas com seu pai?

             — Não mudou nada. — eu disse, tranquilamente. — Você sabe, a mesma coisa de sempre.

             — E suas notas? Estão indo bem?

             Eu o encarei um instante para dizer: “De que buraco você tirou esse interesse?”, mas depois desconsiderei. Diante de tantas possibilidades, eu não conversaria sobre coisas que me deixava inquieto.

             — Não —, respondi, desassossegado. — Elas estão uma merda.

             Para quem não o conhece e o ouvir dizer isso, diria que ele se preocupava mesmo se as notas andavam boas ou ruins e que era daqueles que reclamava pontuação de prova mesmo se tivesse tirado um valor acima da média. Mas esse papo de notas boas não o preocupava. Assim como eu, Lucas nem prestou vestibular porque realmente queria. Ele estudava na mesma faculdade que a minha porque não tinha nada programado para a sua vida, então resolveu que seria bom se continuássemos amigos na faculdade também.

             Mas ele estava encarando a faculdade mais seriamente agora, seguindo finalmente seu próprio caminho. Porque em alguma hora, todo mundo tem que crescer.

             Coloquei os fones conectado ao celular. Lucas ficou me observando com um olhar de inacreditável, a testa e a sobrancelha franzida, balançando a cabeça de um lado para o outro. Deitei as costas na cadeira, a mão por baixo da cabeça, uma perna esticada e a outra não.

             Lucas virou para Carolina.

             Antes de a música começar, o ouvi dizer:

             — Ele vem para o clube para ouvir música?

          

        Quando cheguei à Faculdade de Villanova, Lucas e Wesley já estavam lá.

             Ela não era nada de mais. A faculdade, eu digo. Ela era pequena, conveniente para uma faculdade particular e cara, mas tudo nela, desde os pisos à biblioteca, cheirava a dinheiro. Feita à altura de seus mensalistas. O que soava pra mim uma tremenda injustiça; essa coisa de comércio universitário. Veja bem, entre três cidades rodeando Villanova, essa era a mais próxima. Então não era qualquer um que tinha chance, a não ser que tivesse dinheiro. Enquanto que para as pessoas que não podiam pagar, lhes restavam apenas dar o máximo de si para conseguir pisar os pés nesse lugar.

             Eu disse que precisava conversar com o Lucas ao me aproximar dos dois. Estava pensando que eu e ele pudéssemos ir para algum lugar conversar, mas Wesley quis nos dar licença e saiu. Ele disse alguma coisa sobre precisar ir à secretaria trocar uma matéria por outra que fosse mais fácil.

             Não pude conversar direito com Lucas ontem. Quando começou a ficar bagunçado, eu fui embora. E antes disso, Carolina nunca nos deixava sozinhos, sempre perto. E não liguei para ele porque odiava conversar pelo celular. Eu mal conseguia concentrar no que as pessoas estavam me dizendo cara a cara, o que dirá conversa no celular, uma atividade que me deixava disperso. Se eu queria conversar seriamente com alguém, eu não ligava para ele.

             Eu me virei para Lucas quando ficamos sozinhos.

             — Por que você não me contou que gosta da Carolina? — perguntei, de forma casual.

             — Não sei do que você está falando.

             O olhei com um olhar duro.

             — Percebi o jeito que você olhava para ela. Por que não me disse nada antes?

             Sei que só porque somos amigos não significa que contamos tudo um ao outro, eu mesmo não contava tudo a ele. Só me senti um pouco de lado por ele ter me deixado de fora da parte “romântica” da sua vida quando envolvia o nome Carolina. Nós três éramos amigos. Nesses casos, o outro amigo deveria ser o primeiro a saber se estivesse rolando alguma coisa.

             Ele pareceu ficar nervoso.

             — Bem, agora você já sabe. Ela gosta de você, caso ainda não saiba, então se realmente se importa fique fora disso.

             Eu e Lucas somos amigos desde criança, ainda quando nossa família se reunia em encontros sociais e fugíamos para qualquer lugar da casa levando conosco refrigerantes e doces. Ele me incitava a fazer coisas erradas, me ajudava quando estava em apuros – eu costumava ser aquela típica criança tímida e de aparelho com um amigo hiperativo, e às vezes me corrigia quando achava que eu tinha passado da conta; embora a primeira fosse mais recorrente. Então seria uma pena se a nossa amizade estivesse acabando por causa de uma mulher. Elas sempre estão vindo e indo.

             — Não é como se eu fosse atrapalhar você e a Carolina. Por que está agindo assim?

             Lucas se moveu, inquieto.

             — Preciso encontrar com o professor Raimundo antes da aula.

             E com isso, ele se afastou e começou a andar apressadamente. Meus olhos o seguiam confuso enquanto caminhava para a entrada, agindo como aquele cara que acabamos de conhecer.

             Lembrei que eu também deveria encontrar com um professor, mas o meu seria o professor Wilson, e eu pediria a ele mais um prazo para entregar o trabalho de Física.

             O que posso dizer do meu professor de Física? Bem, ele tem um corpo muito longo e magro, com uma calvície nas entradas da cabeça e usava óculos que quase sempre que você olhava para ele estavam sendo empurrados pra trás pelos seus dedos anormalmente longos e magros.

             Uma garota passava pelo campus ao mesmo tempo que eu, e não pude deixar de observar que nas suas costas tinha uma bolsa pequena para o volume considerável de livros no braço. Ela olhava distraidamente o suntuoso prédio da Faculdade de Villanova e por isso não viu um homem de aproximadamente trintas anos à sua frente e acabou esbarrando nele. Aquilo fez com que ela perdesse o controle e deixou os livros caírem do seu braço para o chão.

             — Ei —, o homem xingou. — Olha para onde anda! 

             Houve um rumor quando as pessoas pararam o que faziam e o que falavam para olhar o que estava acontecendo, enquanto o cara e seus amigos, que pareciam um pouco mais novos do que ele, continuavam andando. Alguns deles olharam pra trás por cima do ombro e riam.

             Levantou e apoiou uma perna no chão para pegar os livros. Ela catava concentradamente livro por livro e por isso não percebeu ninguém observá-la e muito menos se deu conta de que a maioria das pessoas olhava para ela agora. Elas continuavam rindo. E não consegui entender o motivo de eles acharem graça numa coisa tão comum. Quero dizer, pessoas costumavam esbarrar em outras pessoas o tempo todo.

             Tá, talvez não o tempo todo. E não desse jeito.

             Eu poderia continuar o meu caminho e encontrar com o professor Wilson, mas olhei à minha volta, e ninguém parecia disposto em ajudar a garota. Eles voltaram a conversar e a sorrir para os amigos.

             Eu deveria ajudar? Não! Eu não sou o bom samaritano que ajudava garotas por aí. Eu não sou esse tipo de cara que se importa... antes que eu terminasse de pensar, agi mais rápido do que o meu pensamento julgaria coerente e andei em direção à garota.

             Agachei perto dela, para ajudá-la com seus livros, e ela nem me percebeu tão perto.

             — Oi. — resolvi dizer, com um livro seu na minha mão. E foi quando ela me percebeu e se assustou com a maneira não surpreendente que me aproximei. Seus olhos pararam em mim um instante, duvidando do que eles achavam que viam. E por um momento acho que os vi brilharem.

             Então eu sorri educadamente, que fez quebrar sua conexão fixa em mim.

             — Oi. — ela respondeu, e imediatamente desviou seus olhos de mim para o restante dos livros, como se não conseguisse encarar meus olhos por mais tempo, como se eles a queimasse ou a constrangesse.

             Seu cabelo é de um marrom feito caramelo escuro, de cachinhos definidos de comprimento para bem abaixo do peito. Gostei do seu cabelo. Gostei dos seus olhos açúcar derretida parecendo artificiais demais para serem reais que combinava com seu cabelo e com sua pele marrom.

             Enquanto pegava livro por livro, percebi ela ficar nervosa. Porque antes de eu me aproximar, enquanto resgatava seus livros, ela parecia naturalmente confiante e calma. Não como agora, com a minha presença lhe causando algum tipo de desconforto.

             Inclinei-me para frente.

             — Está tudo bem com você?

            Minha pergunta soou absurda para ela.

             — Sim! Eu só... me desequilibrei quando, você sabe. — e deu um sorriso sem graça. — Obrigada. Por me ajudar.

             Pegou o último livro no chão e levantou, o corpo impreciso como se a qualquer momento fosse cair. Levantei junto com ela, segurando um de seus livros. Estava gasto e amarelado. Ela o olhou na minha mão, quase que possessivamente, posso dizer, e foi quando me lembrei de devolver a ela.

             Dei um passo apreensivo, considerando que ela me encarava como uma ameaça, e coloquei o livro em cima dos outros empilhados em seu braço.

             Pelos livros, ela fazia Engenharia também. E pela sua personalidade reservada e observadora, ela parecia aquelas pessoas inteligentes. Meu pai é um homem inteligente, então eu meio que tinha um sentido para identificar pessoas inteligentes.

             Seus olhos por uma fração de tempo brilharam.

             O que estava acontecendo com meus olhos hoje? Porque possivelmente olhos não deveriam brilhar assim; como se fogos de artifícios estivessem refletindo em seus olhos, a não ser que eu tivesse fumado ou bebido algo muito forte horas atrás.

            Afastei, dando passos vagos pra trás enquanto a olhava.

             — Arrume um lugar seguro para eles. — aconselhei, apontando o queixo para os livros.

             Ela balançou a cabeça, dizendo que sim.

             — E boa sorte com o seu primeiro dia.

             Ela continuou balançando a cabeça para mim.

             Despedi com um aceno, e virei para ir embora.

             Então ela disse nas minhas costas, enquanto eu ainda estava perto para ouvir.

             — Como você sabe que é o meu primeiro dia? — ela perguntou num tom mais alto do que falou comigo antes, sua voz confiante como não podia ser vista agora.

             Foi bem óbvio supor isso. Ela apareceu na faculdade treze dias depois de as aulas de fevereiro terem começado, não esteve aqui no primeiro dia como todo mundo.

             — Você parece como alguém perdido. — eu disse de volta, sem virar-me.

         

        Depois de deixar a garota, eu fui falar com o professor Wilson. E por sorte o encontrei quando acabava de sair da sala dos professores.

             — Dia corrido hoje? — eu disse, encostando-me relaxadamente na parede ao lado da porta da mesma forma como faria com um amigo íntimo. Exceto que o professor Wilson não era um amigo, muito menos íntimo.

             Professor Wilson mal me olhou.

             — O que você quer? — ele perguntou, rispidamente. Professor Wilson deveria ter percebido que eu estava preparando o terreno antes de dizer o que realmente queria. Eu deveria ter previsto que isso não funcionaria, não com ele.

             — Eu gostaria de falar com o senhor.

             Professor Wilson levantou a cabeça em minha direção.

             — Você já não está fazendo isso? — ele desviou os olhos de mim para terminar de fechar a porta, o que me deixou um pouco desconfortável de falar algo para uma pessoa que prestar atenção em mim não era sua prioridade no momento.

             Cocei a garganta para engrossar a voz.

             — Aquele trabalho de Física, você pode me dar mais um tempo para entregá-lo? — imediatamente esclareci. — É que não consegui terminá-lo a tempo.

             Professor Wilson me encarou.

             — O que você faz em um curso de Engenharia se você não suporta cálculos? Já é difícil um aluno estudar Engenharia quando ele gosta, o que dirá para alguém como você?

             Alguém como eu?

             — Gabriel, estou te falando como um amigo agora. — sua voz não era impaciente. Não poderia ser, porque levantou o braço e colocou a mão no meu ombro; seu olhar o tempo todo compreensivo e atento. — Isso aqui não é para você.

             Eu estava congelado pelo toque.

             Professor Wilson afastou sua mão para tirar a pasta imprensada debaixo do braço e fiquei menos incomodado. Não gostava que me tocassem. Não era nenhum tipo de trauma. Eu só não gostava.

             — Mas você pode entregar o trabalho até semana que vem. — acrescentou. — Acho que vai ser o suficiente para você, não vai?

          

        Dei a volta por fora pelo estacionamento e estacionei o carro num lugar escondido que costumeiramente sobrava vaga, e percorri o estacionamento de volta a pé.

             Por dentro dele, um fusca amarelo tentava estacionar numa vaga disponível em meio a dois carros cromados, atrás e dos lados completados também. Uma baliza que requeria muita habilidade, e o que me chamou a atenção foi que o motorista do fusca não tinha. Enquanto eu fazia o meu caminho, foram quatro manobras mal sucedidas. Não era pelo desempenho do carro por ser velho, era até pequeno perto dos outros; o problema parecia ser o motorista mesmo. Não fiquei para saber quanto tempo ele levou, mas quem quer que seja parecia que chegaria atrasado hoje.

             Do estacionamento não fui diretamente para a sala.

             Antes de a aula começar, meus amigos conversavam sobre alguma coisa qualquer, e eu estava encostado numa árvore, largado sobre seu tronco com os fones no ouvido.

             E então encontrei os olhos da garota de ontem no meio de mais de dezenas cabeças. Ela estava imóvel, apenas me olhando, e então acenou a mão e deu um sorriso que poderia significar muitas coisas.

             Pensei que não a veria de novo; ela poderia ter pego as aulas diferentes das minhas, e não parecíamos ter algo em comum ao ponto de nos encontrarmos fora do limite da Faculdade de Villanova. E aqui está ela, talvez esperando que eu fosse até lá e a cumprimentasse como se fôssemos velhos amigos. Ontem eu estava só sendo gentil com alguém que pareceu precisar. Nada mais.

             Carolina parecia estar dizendo alguma coisa. Por causa da música alta, seus lábios só se mexiam.

             Tirei os fones.

             — Por que aquela menina está te olhando assim? — ela perguntou, curiosamente. — Vocês se conhecem?

             Observei por um momento a garota com uma blusa xadrez muito grande de fundo azul e tênis All-Star.

             Lucas estava sorrindo.

             — Ela está te olhando esquisito —, ele observou. — Como se te seguisse há anos e depois de tanto tempo você desse o seu primeiro “oi”.

             A questão é que eu já tenho um amigo; eu não precisava de mais. E muito menos interessado em alguém de uma forma romântica. Então mesmo nunca sabendo, isso seria o melhor para ela. Eu não sou sociável. Não sou um bom amigo. Nem uma boa pessoa.

            Só por causa dos seus olhos brilhantes, inexistentes em todas as pessoas que já tentaram se aproximar de mim antes, decidi apenas ignorá-la.

             — Estou indo. — eu disse abruptadamente, dando as costas para uma garota confusa e deixando Carolina e Lucas pegos de surpresa. E não sei o porquê. Sempre eu estava indo embora de repente.

         

        Na segunda vez que me encontrei com a garota, estávamos na mesma direção que dava para um passar ao lado do outro. Um formigueiro de pessoas desviando umas das outras e fatalidamente nós tínhamos que estar um ao lado do outro.

             Eu a vi e ela me viu, e não apressei os passos e nem adiantei. Agi como se ela fosse qualquer pessoa estranha que encontramos por aí.

             Da última vez, ela preferiu acreditar na possibilidade de que eu não a tivesse visto ao invés de tê-la ignorado. Sei disso porque ela parou quando chegamos a cinco centímetros um do outro, uma coisa que não teria feito se eu não tivesse sido tão sutil.

             Passei direto, sem olhar em sua direção.

             Na terceira vez, ela jogou o meu jogo. E na quarta e na quinta.

          

        Parei o carro um pouco depois da porta do bar Irmãos Silva.

             Só dois tipos de pessoas frequentam esse bar: as pessoas que vão para cantar ou aquelas que simplesmente vão para ouvir as pessoas cantarem. O que era o meu caso. Ainda não tive coragem de subir naquele palco e apenas fazer o que sei.

             Eu costumava vir sempre nesse bar, mesmo que eu esteja quebrando o acordo com meu pai de que eu deveria concentrar apenas na faculdade e esquecer de música. Mas de vez em quando eu sempre volto, nem que seja para ficar sentado nos fundos e ouvir as pessoas cantarem lá da frente.

             É isso o que eu estava falando antes, sobre conseguir ser submisso às vontades do meu pai e ao mesmo tempo ter que de alguma forma protestar contra elas.

             O bar Irmãos Silva não era um bar comum que as pessoas entravam nele com o propósito de beber e conhecer pessoas. Esse bar era como se fosse uma espécie de clube para amantes da música, porém menos sofisticado e não fechado para quem quisesse conhecê-lo. Visto de fora, soava como algum tipo de clube secreto.

             Não deu para eu ir da última vez, por isso vim hoje.

             Tomei o último banquinho nos fundos e sentei. Era uma das poucas mesas desocupadas, e o restante estava repleta de cabeças. A luz caiu dois tons e de repente o ambiente ficou parcialmente escuro.

             Um tempo após isso, subiu uma mulher para cantar. A voz dela era afinada, cantando uma música que caiu bem para a sua voz, depois uma criança cantando melhor que qualquer adulto que já passou naquele palco, um cara de meia idade com voz de tenor... e mais outros irrelevantes pela frente. E para o meio do final subiu uma garota.

             Ela usava um vestido acima do joelho e tênis e segurava um violão pelo braço. Andou para o meio do palco e sentou no banquinho de frente para o microfone, apoiou uma de suas pernas no banco, a outra no chão e o violão na coxa magra de sua perna. Então levantou a cabeça, e foi quando deu para ver o seu rosto.

             Era a garota dos livros, eu tinha certeza disso, apesar de duvidar do que a retina projetava para eu ver. Estava de cabelo preso, diferente do usual, por isso não a reconheci imediatamente. Eu estava extasiado com o fato de que ela estava aqui, bem ali em cima e de frente para todas essas pessoas. O que ela fez com toda a sua personalidade introspectiva de antes?

             — Pode começar. — alguém da frente disse.

             Ela respirou, tensamente, preparando-se para começar. O som de algo sendo desligado ressoou pelo lugar silencioso, e após isso, a luz do restante do lugar apagou novamente e apenas uma luz circular a ficou iluminando.

             O céu se abriu. Ela era o Sol, brilhante e grandioso, e nós, os planetas, orbitando em sua volta. Ela, ela tinha o mundo sob seus pés agora e talvez nem fizesse ideia.

              Algumas pessoas são predestinadas para isso, e não sei qual é o critério.

             Quando terminou de tocar a última nota, a luz fechou nela e depois voltou para todos nós. Ninguém fez nada, porque por alguns segundos ninguém se atrevia a fazê-lo. Fui pego em estado de aquietação, o mesmo de quando acaba um filme realmente bom e você fica assistindo os créditos subirem sem reação.

             Então houve aplausos. Uma enxurrada deles.

             Da maneira que costumava ser, ela sorriu timidamente para aquelas pessoas e fez curvatura modesta com a cabeça. Ela ficou assim por um tempo, aproveitando aquele momento que eu nunca serei capaz de tentar.

         

        Saí imediatamente do bar assim que as apresentações acabaram, como eu fazia toda vez que vinha aqui. Mas diferente dos outros dias, essa noite fiquei do lado de fora, observando as pessoas que saíam. Esperando. E uma dessas vezes que a porta se abriu, ela saiu de lá, segurando o violão pela alça da capa.

            Um frio gélido açoitou meus ossos e ela estremeceu do outro lado.    

             Estava encostado no carro de algum estranho enquanto a olhava andar, com o capuz da blusa puxado pra frente e com minhas mãos enfiadas nos bolsos da jaqueta, por causa do frio fora de época das dez horas. Ela não olhava para as pessoas e as pessoas não prestavam atenção nela. Eu a acompanhava com os olhos enquanto dava seus passos pensativa, intrinsecamente risonha, compartilhando a glória dessa noite consigo mesma.

             E então eu queria poder andar até a ela e lhe dizer que aquilo que fez foi incrível, que não é um evento saído de um sonho. Mas aí me lembrei do que fiz a ela a alguns dias atrás, e isso não me dava o direito de chegar a ela e lhe dizer o que quisesse. Não era assim que as coisas funcionavam. Você não trai alguém e como se retrocedesse o tempo age como se não tivesse feito nada de errado.

             Além do mais, eu não era digno de parabenizá-la. Quero dizer, eu nem consigo enfrentar meu pai e dizer que detesto Engenharia, e só o pensamento de futuramente vestir terno e ficar atrás de uma mesa num prédio chique no centro da cidade, me deixava desmotivado da vida. Não consigo fazer algo por mim. Sou um jovem rico que vive a sua vida apenas esperando o tempo dela passar, enquanto ela está fazendo alguma coisa importante para si mesma.

             Se os cientistas antropólogos chegarem a comparar minhas reações como humano com as reações próprias da natureza, eles poderiam me chamar de folha, que não chega a ser animal e nem propriamente vegetal; que não é nada. É apenas aquela parte alaranjada decadente de uma árvore no outono europeu, que uma vez caída dela o vento leva pra lá e para cá. Que existe só por existir.

             Ela chegou ao seu carro, colocou o violão no chão apoiado na perna e tirou as chaves do bolso para abri-lo. Foi quando percebi seu carro.

              Por que tinha que ser ela o motorista do fusca amarelo?

              E enquanto isso, eu me movi e entrei no meu carro, levando-o para a direção contrária da dela.

          

        Na saída da aula, no estacionamento, colocava a chave para abrir o carro quando uma espécie de burburinho de pessoas barulhentas chamou minha atenção para elas.

             Para além dele, vi a garota dos livros conversando com um cara.

             Ele não era do tipo de cara que eu imaginava que ela andaria, diferente do protótipo que eu criei de nerds baseado nos filmes que vi: óculos de grau, desastradamente alto, magro e cheio de espinhas. Mas ele é moreno e de cabelo bagunçado, usando roupas largas e desbotadas. Descolado, era o que ele era.

             No princípio, as vozes dos dois estavam no mesmo nível, mas agora a voz dela e a dele começaram a se elevar, assim como a expressão corporal deles estavam intensas. O cara deu um passo largo à frente, uma atitude hostil. Ela deu pra trás defensivamente e o empurrou pelos braços, não surtindo efeito. Ele não se moveu um centímetro. Depois entrou no carro, trancando manualmente as travas da porta, enviando alerta de fracasso ao cara caso tentasse qualquer coisa.

             O cara continuou parado, encarando ela e encarando a porta, considerando se a arrombaria e a tiraria à força de dentro do carro só para não ter de ir embora se sentindo derrotado. E eu me posicionei, porque se precisasse, eu teria que me intrometer.

             Finalmente, ele se afastou e decidiu ir.

             Tirei a chave do carro, decidindo ir até lá.

             Desde o dia que a vi no bar Irmãos Silva, estive procurando um jeito de me aproximar dela sem parecer suspeito. Essa me parecia ser uma boa abordagem.

             Olhei para dentro do carro. Ela apoiava suas mãos no volante e sua cabeça em cima delas. Dei três batidas no vidro, para chamar sua atenção. Levantou preguiçosamente a cabeça, sem demonstrar nenhum tipo de entusiasmo, e então me olhou.

             Seus olhos reviraram quando viu que era eu atrás do vidro.

             — O que foi? — ela perguntou, sua voz saindo abafada por causa das janelas fechadas.

             — Você está... — hesitei, sem saber ao certo sobre a propriedade da minha sentença. — Com algum tipo de problema?

             Seus olhos eram confusos.

             — E por que você se importa?

             Desviei-me da pergunta.

             — Você pode sair um instante do carro?

             — Para o quê?

             — Para conversar.

             Ela me encarava através do vidro do carro.

             — Você é estranho. — constatou, num tom de voz baixo. — Você me ignorou todo esse tempo, e agora aparece na janela do meu carro para conversar.

             Eu poderia inventar alguma desculpa, eu até tinha algumas convincentes em mente, mas quis começar nossa relação com o pé direito.

              — Sei que soa estranho. — concordei. — É que... não sou bom com pessoas.

             Olhei para o lado, passando a mão em volta do pescoço. Mesmo me encontrando fugindo dos seus olhos, eu podia sentir que ela encarava meu rosto, que de repente se tornou desconfortavelmente exposto.

             — Um cara como você —, sua voz era curiosa e inacreditável. — Como é possível não ser bom com pessoas?

             Não pareceu que ela estava fazendo uma pergunta, por isso não respondi ao que quer que fosse isso.

             Ela jogou as costas pesadamente no banco. E ficou ali: com as costas descansadas, envolta em um completo silêncio, seu olhar vago no protuberante capô amarelo diante da sua visão. Ela não parecia que iria ser a primeira a dizer alguma coisa.

             Apontei o dedo para o carro à minha frente.

             — Você tem uma relação com carros antigos?

             Perguntei, porque eu também tinha. Meu carro é um “imperceptível” 1989 DeTomaso Pantera. Antes mesmo de tirar carteira, eu o tinha trago da Califórnia após meses de negociações. Eu realmente, realmente amava meu carro. Nem é mesmo pela potência e o turbo e o desenho agressivo. Ter algo como isso em minha posse é meio que um lembrete de que não existe um limite para as pessoas como eu.

             Ela me deu uma expressão de que não era esse o seu caso.

              — Não, era o que eu podia pagar. E também meu irmão trabalhou nele para mim, então não está cem por cento ruim por ser velho. — e tornou-se a ficar muda outra vez.

             Seu irmão tinha feito um ótimo trabalho, porque o carro não parecia que estava caindo aos pedaços; ele tinha alguma coisa diferente, parecendo estar adulterado. O motor não dava sinais de que pifava a cada quilômetro rodado e a pintura da lataria estava bastante conservada considerando o tempo em que o carro esteve rodando.

             E, percebi com isso que o carro realmente estava adulterado.

             — Bem —, cocei minha testa. — Você se importa de sair do carro? Normalmente prefiro não ter nenhuma barreira visual quando estou tendo uma conversa com alguém.

             — Nós não estamos tendo uma conversa.

             Eu me vi fechando os olhos e jogando a cabeça para trás.

             Estava esperando que ao bater na sua janela ela se fizesse um pouco de difícil por tê-la ignorado daquele jeito, mas não contava que não fosse ser tão fácil dobrá-la. E estou me perguntando por que eu ainda continuava entretido aqui, visto que minha investida não estava sendo muito produtiva.

             Desci a cabeça, e seus olhos se cruzaram com os meus. Ela esteve me estudando todo esse tempo. E então se mexeu no banco, surpreendentemente decidindo-se sair. Recuei um passo surpreso quando escancarou a porta. Ela a bateu forte, como se isso fosse necessário para que se fechasse.

             Ficou de frente para mim, e cruzou os braços, olhando para os pés.

             Não disse nada. Esperou que eu dissesse.

             — O que estava acontecendo entre você e aquele cara? — perguntei, como que casualmente. — Ele estava... incomodando você?

             Ela olhou para o lado.

             — É só um ex-namorado. — ela disse, entre o tom cansado e acostumado, como se tivesse falado isso cem vezes antes. — Era sobre isso o que queria conversar?

             — Não. — eu dei um riso, agora minha vez de olhar para o chão. — Não estou aqui para lhe perguntar sobre quem era o cara que estava lhe incomodando. Na verdade, estou aqui porque estou precisando de ajuda em um trabalho muito difícil.

             O que não chegava a ser uma mentira. E não era algo que eu tinha premeditado; de repente me pareceu conveniente. Dessa forma, mesmo privado disso, eu estaria próximo de alguém que estava próximo de uma coisa que eu gostava.

             Sempre acreditei que a gente devia ficar perto de pessoas que nos inspiravam.

             — Por que eu? — perguntou, astutamente.

             Não era como se eu fosse simplesmente revelar o verdadeiro motivo de estar atrás dela quando as pessoas não o entenderiam se soubessem. Eu tinha consciência de que não tinha motivos para esconder isso dela como se fosse um grande e absurdo segredo, mas acontece que tudo isso era muito importante pra mim para falar dele de qualquer maneira, com qualquer pessoa. Da última vez que compartilhei isso com alguém, me disseram que a música não é algo por qual somos admirados e lembrados; não é algo que valha a pena lutar.

             — Você parece alguém inteligente. Não conheço ninguém e nem tenho amigos que pareçam inteligentes como você.

             Levantei os olhos para ela, para ouvi-la responder.

             — Você está só querendo explorar a minha mente, então.

             — Não estou querendo explorar a sua mente. — retruquei, numa voz baixa e paciente.

             Ela permanecia irredutível.

             — Mas podemos fazer uma troca, então. Já que você está pensando nisso como uma extorsão. — sugeri, quando vi que da parte dela não haveria nenhuma barganha. — Você me ajuda com a Física e em troca eu posso te ensinar baliza.

              Seus olhos vacilaram e sua boca tremeu.

             — Como você sabe que eu preciso de baliza?

             Eu realmente não queria rir, mas era um tanto impossível.

             — Qualquer um neste estacionamento já viu o quanto desastrosa você é na baliza.

             E como uma caça ao ser abatida, a resistência dela desapareceu. Forçou a garganta a engolir alguma coisa, e coçou o nariz parecendo algum tipo de desconforto.

             — Parece-me uma boa troca. — ela considerou, por fim.

             Apesar de eu estar animado, eu não demonstrava isso.

             — Isso é um sim?

             — Parece um sim para mim.

             Ela ainda estava ressentida.

             Afastou de mim para abrir a porta do fusca para entrar. Fiquei parado no estacionamento enquanto a observava arrancar o carro ao tranco e colocá-lo em movimento pelo pátio afora com uma desnecessária lentidão.

          

        Eu e o restante dos meus amigos estávamos juntos antes de a aula começar.

             — Quando despediu de nós ontem —, Carolina me disse. — Você foi embora logo depois?

             — Humhum.

             — A resposta certa é nãao. — ela balançou a cabeça de um lado para o outro. — Vi seu carro no estacionamento quando eu estava indo embora.

             — Ah, sim. — respondi, sem olhá-la. — Estava conversando com uma pessoa.

             — Quem?

             O olhar do Lucas estava para longe da Carolina.

             — Sabia que você parece desesperada quando fala assim? — ele disse, implicante.

             Ela não parecia nenhum pouco perturbada com o comentário.

             Meus olhos não desviaram do pequeno fluxo de pessoas que acabaram de atravessar o portão, e bem no meio dele, a garota dos livros andava junto com o restante dos outros universitários.

             — E lá está ela. — eu disse em voz baixa, mas audível o suficiente para que Carolina à minha frente ouvisse.

             Seus olhos seguiram os meus e voltou a olhar o meu rosto, os olhos arregalados.

             — É ela de quem estamos falando? — ela disse, desdenhosamente. — Você a conhece, então?

            Acho que ela não percebeu que sua voz estava um pouco alta demais.

            Lucas olhou bem para ela.

             — E qual é o problema se ele a conhece?  — ele disse, soando mais irritado do que recriminador.

             Eu realmente não queria dar alguma satisfação à Carolina, e então deixei que Lucas lidasse com ela.

             Eu estava me afastando deles.

             Ela não me percebeu andar em sua direção. Só quando parei no meio do seu caminho a impedindo de prosseguir é que ela subiu os olhos e me viu, com surpresa claramente enunciada em seus olhos, como se eu fosse dinheiro encontrado por aí.

             Ela tinha uma mochila nas costas e apenas uma alça estava pendurada em seu ombro. E no lugar que os livros estiveram no primeiro dia que a vi, suas mãos estavam livres. E acho que teria sido melhor ela ter algo para segurar agora, e então suas mãos não estariam tão trêmulas assim.

             Apontei para a mochila para depois coçar a sobrancelha.

             — Vejo que resolveu seguir o meu conselho.

             — Isso não acontece sempre. — ela murmurou uma explicação. — Ficar esbarrando nas pessoas por aí.

             Olhei para o lado e dei um riso involuntário, mas foi rápido demais para que ela notasse, ao me lembrar dos livros escapando das suas mãos e logo depois seu corpo caindo em cima deles para recuperá-los.

             — Espero que isso seja verdade. — eu disse, sarcasticamente. — A propósito, meu nome é Gabriel. Qual é o seu?

             Ela disse que se chamava Alícia.

             E disse que sabia quem eu era.

            Os olhos dela então desviaram do meu rosto e passou a olhar para algo atrás de mim, a expressão serena de antes substituindo-se por apreensão, um contraste significativo num rosto despreocupado. Olhei pra trás para ver o que esteve olhando. Não só o Lucas que andava preguiçosamente até nós, como o restante deles.

             Voltei a olhar para a Alícia. Ela não se mexia e seus olhos não piscavam, quase como se tivesse virado estátua de sal.

             — E aí, Gabriel? — Lucas disse, chegando por trás e jogando o braço esquerdo em volta do meu pescoço. Apontou o queixo para a Alícia. — Não vai nos apresentar sua amiga?

             Empurrei Lucas pela barriga como que de camaradagem a fim de afastá-lo do abraço.

             Eu disse que seu nome era Alícia.

             — Muito prazer, Alícia. — Carolina disse, e inclinou para ela para beijá-la no rosto, como o cumprimento fútil que ela e suas amigas costumavam fazer. Se eu não estivesse ao seu lado quando se referiu a Alícia com desprezo, eu diria que ela realmente sentia prazer em conhecê-la.

              Mas acontece que tudo isso era uma encenação, já que ela estar aqui se esforçando para parecer agradável era por mim, assim como o Lucas e Wesley estavam fazendo a mesma coisa. E se eu soubesse que fariam isso, teria lhes dito que não precisavam ter se dado ao trabalho. Alícia parecia sentir ameaçada por eles.

             Lucas se dirigiu a Alícia, quando ninguém mais se voluntariava a dizer alguma coisa.

             — Então, de onde você vem? Você... — ele a olhou de cima para baixo, avaliando alguma coisa. — Não parece ser daqui.

             — Bela Vista. — ela foi breve na resposta. Assim as perguntas em determinado momento parariam de vir.

             — Você é bolsista? — Carolina perguntou, especulativamente. Tombou a cabeça, erguendo uma sobrancelha. — Ou mensalista?

             Alícia parecia incomodada, os olhos baixos.

             — Bolsista. Dei sorte o suficiente para nascer inteligente. — ela sorriu um pouco. — E você, é mensalista? — ela perguntou, o rosto inofensivo e a voz casual, as palavras vindo dela de jeito nenhum parecendo suspeitas. Mas eram.

             Carolina chegou a abrir a boca para orgulhosamente dizer que sim, mas Lucas a cutucou. “O quê?”, suas palavras para ele saíram sem som, dando de ombros.

             Aquele silêncio desconfortável de novo.

             — Você veio de Bela Vista? — Wesley perguntou a Alícia, talvez para quebrar a tensão. E entusiasmadamente virou para Carolina e Lucas. — Vocês ouviram o que ela disse? Ela vem da cidade das vacas!

             Ele dizia como se fosse algo extraordinário, e voltou para a Alícia.

             — Por isso achei alguma coisa familiar nas blusas xadrez que você usa!

             Não, não era por causa da tensão.

             Wesley e Lucas deixaram escapar um ruído de riso.

             Alícia baixou a cabeça para sua blusa – que coincidentemente também era xadrez, e subiu os olhos para olhá-los.

             — Usar xadrez soa engraçado para vocês? — ela perguntou, num tom de voz baixo e afiado.

             Lucas parou de rir, não que isso o tivesse intimidado, mas ele pensou que deveria.

             Wesley não pensou a mesma coisa.

             — Por quê? — ele disse, a confrontando. — Algum problema? 

             Ela abriu a boca para retrucar, e foi quando a interceptei. O que me surpreendeu, porque alguém que demonstrava insegurança como ela, possivelmente não é capaz de mostrar algum tipo de imposição com alguém como eles. E eu gostei disso. Gostei da ideia de alguém ir contra sua natureza para se defender.

             — Vamos, Alícia. — resolvi, embora não tendo nada em mente para onde ir com ela. Só quis de repente tirá-la daqui.

             Dei as costas para me afastar, mas andava sozinho, porque Alícia e Wesley ainda se enfrentavam com o olhar. Voltei e a puxei pelo pulso, deixando-se ser guiada por mim.

             No meio do caminho livrei do seu braço por reflexo quando percebi que ainda andava com minha mão nele. Alícia não percebeu isso porque esteve dispersa e não viu à sua volta qualquer movimento estranho e suspeito, parecendo estar numa realidade paralela.

             Tive curiosidade de saber se ela era assim o tempo todo.

             Alícia finalmente deu sinal de vida. Parou de andar. Parei de andar também para acompanhá-la, e virou o corpo subitamente e ficou de frente para mim, me olhando com um olhar crítico, como se estivesse analisando um motor pifado, tentando achar o seu maldito problema.

             — Não sei como você tem amigos como eles. — ela disse, a voz terna como nuvem comparado ao seu rosto conflituoso.

             — Qual é o seu problema com eles? — perguntei, cautelosamente tentando não soar como censura, perscrutando o motivo por trás da sentença.

             Ela me observou ainda mais atentamente, perscrutando se a intenção da pergunta era a de censura. Deve ter constatado que não, porque disse:

             — Eu não confio neles. Deve ser porque eles são ricos —, ela virou o rosto para o lado, o ar aéreo. — Então talvez eu fique um pouco intimidada.

             Eu estava com um grande sorriso.

             — Então você não confia em mim também.

             — Você é diferente. — rebateu, convicta.

             Foi então que sua cabeça foi para mim.

             Um trio de amigas passou por nós, rindo; seus olhos marrons piscaram.

             — E quando vamos começar a aula de baliza? — cobrei. — Não gosto de dever nada a ninguém.

             — Vou fazer isso por você, não precisa me ensinar baliza em troca. — e acrescentou, envergonhadamente: — Só sou um pouco ruim porque acabei de tirar a carteira. Dizem que a gente melhora com o tempo.

             E eu ri, porque, meu Deus, ela precisava aprender baliza imediatamente tanto quanto eu precisava aprender Física.

          

        Professor Wilson estava na frente, falando algo que eu não conseguiria reproduzir se alguém chegasse a mim daqui a dez minutos e pedisse para explicar.

             Meus olhos estavam fixos no caderno sem esboços de anotações de física, exceto pelos doodles que desenhei para passar o tempo enquanto estive distraído durante a aula, e em um deles tinha a caricatura do que seria o professor Wilson: uma linha esguia e com pouco cabelo, uma reminiscência do que chegou a ser um dia. Não que a aula dele está sendo chata agora. Eu tinha um pequeno probleminha de concentração.

             — Hoje em dia estamos altamente equipados para substituir permanentemente várias funções de um corpo humano com sucesso por meio de órgãos artificiais, diferente de antigamente, que tinha a utilidade de servir apenas como uma ponte de estabilidade para um possível transplante. Nós podemos vencer qualquer desafio, o que é incrível! — professor Wilson acrescentou, enfaticamente: — E nem é necessário ressaltar que vocês têm uma grande e importante responsabilidade em suas mãos, e por isso devem pensar direito se querem realmente fazer isso.

             Afastei da mesa e despreocupadamente joguei as costas na cadeira, mostrando ao professor Wilson que percebi que ele estava me olhando e que aquilo não me deixou mais consciente.

             Eu deveria dizer a ele qualquer hora dessas que a tática de psicologia que ele usava comigo não estava funcionado. A psicologia só funcionava realmente quando não se sabe que ela está sendo usada com você, eu acho.

             — Bem —, ele prosseguiu. — Mas órgãos artificiais com essa tecnologia avançada custam caro, e embora seja criado especialmente para salvar vidas, não são todos que têm acesso a essa tecnologia, então pessoas e mais pessoas continuam morrendo numa fila de espera esperando por um transplante que talvez nunca virá.

             O que é exatamente o que meu pai faz. Quero dizer, não a respeito de deixar as pessoas morrerem à espera de um transplante que talvez nunca virá. A Biotec é dele, uma das empresas pagas responsáveis por fornecer órgãos artificiais aos hospitais particulares e para as pessoas que podem pagar por eles. Então meu pai se enriquecia a cada dia por este produto caríssimo mas que todos estão dispostos a pagar o preço estipulado que for para poderem ganhar mais tempo, para não permitirem que se vão por causa da insuficiência de seus órgãos falidos. Não existe mais escassez de órgãos, não para as pessoas que podem pagar por órgãos artificiais evolucionários e infalíveis.

             Isso de alguma forma soava como uma abominação para mim. Pessoas endinheiradas sobreviverem com corações mecânicos e pessoas inferiores sucumbirem com seus corações orgânicos.

             Eu me lembro da primeira vez que entrei na Biotec. Susie tinha me levado para ver meu pai depois do almoço porque tínhamos combinado de fazer alguma coisa juntos, só que para variar, ele ainda continuava ocupado com a reunião importante de mais cedo. Meu pai então pediu a Leona, sua assistente de escritório confiável e eficiente, de ficar encarregada de cuidar de mim. No final do dia, ela estava cansada. Ser babá ocasionalmente do filho de nove anos do patrão não era bem o que devia estar planejando para a sua carreira, então ela virou para mim e disse empolgadamente: “Ei, quer ver uma coisa legal?” Logo depois, ela estava apertando algumas sequências de senhas e a porta pesada de segurança máxima estava se abrindo para nós dois.    

             Quando entrei dentro daquele compartimento, vi centenas de corações artificiais de vários tamanhos, crianças e adultos, guardados em prateleiras como se fosse uma exposição. Eu também me lembro da primeira coisa que pensei: “não quero fazer parte disso. Não quero ser a pessoa que dá a vida para alguns e tira a de outras.”

             Eu ainda acho isso.

             Deram duas batidas na porta, e logo depois ela se abriu. Minha atenção e mais de algumas pessoas foram imediatamente para a porta.

             O que Alícia estava fazendo aqui?

             Ela passou a porta e andou para o meio da sala para seguir o corredor, com uma bolsa nas costas e as mãos desajeitadas e nervosas que contrariava o rosto passivo demais. Professor Wilson continuou falando como se nunca tivesse entrado alguém na sala.

             — Licença. — Alícia disse para ele mesmo assim, com os olhos fixos no chão, sua voz tão baixa que estou certo que professor Wilson não ouviu.

             Eu estava nos fundos, e o que me separava da parede era outra fileira de alunos atrás de mim. Ela pareceu procurar por alguém, e enquanto passava pela fileira de cadeiras, seus olhos passavam por cada um ali, até que me encontrou.

             Seus olhos pararam na cadeira vazia ao meu lado, e foi quando percebi que se sentaria ao meu lado.

             Fechei o caderno rapidamente para que Alícia não visse os doodles – para que não visse o quanto vagabundo eu era, e me consertei para ficar ereto. Sentou-se, e colocou sua mochila no chão, encostada ao pé do seu assento. Logo em seguida virou para mim, rápido demais para a essa altura eu virar o rosto para longe, e disse um caloroso e preenchido “oi”.

             — Oi. — eu respondi, meio inquieto. Não esperava que ela estivesse na aula do professor Wilson, muito menos que estivesse sentada ao meu lado. Fui para perto dela, e falei sobre o seu ombro: — O que você está fazendo aqui?

             — Você não disse que estava precisando de ajuda em Física?

             Cheguei mais perto, e ela deu para trás. Ficou imóvel. Minha boca estava a dois centímetros do seu ouvido, ela parecendo um pouco desconfortável com a aproximação. Havia uma coisa muito curiosa sobre ela ficar nervosa sempre quando eu estava perto.

             — E isso tudo só para me ajudar? — eu disse, e não queria que tivesse soado tão malicioso e indecoroso como soou.

             A voz do professor Wilson vindo lá da frente nos interrompeu.

             — Talvez vocês dois aí queiram nos explicar melhor sobre isso.

             Houve uma comoção de pessoas virando na cadeira. Não precisava me virar para saber que professor Wilson se dirigia a mim e a Alícia; eu meio que senti todos os olhares em nós.

             Tomei coragem para enfrentar os estudantes inteligentes e esforçados de Engenharia que não gostavam de ser interrompidos e me afastei do pescoço da Alícia, onde nitidamente eu podia ver as veias do seu pescoço e fios de cabelos arrepiados na nuca.

             E nem estava tão frio.

             Professor Wilson estava parado, olhando para nós dois com uma enunciada repreensão. Como posso dizer alguma coisa se não tenho ideia do que ele estava falando antes? Cocei a garganta com o punho sobre a boca como se me auxiliasse, porque tive a impressão que se dissesse alguma coisa minha voz não chegaria a sair.

             Professor Wilson deve ter lido algo significativo no meu rosto. Ele empurrou os óculos pra trás com o dedo indicador como sempre fazia quando estava prestes a dizer algo que deveria ser ouvido.

             — Se realmente não quiserem ter que explicar a mim e o resto da turma, então façam silêncio.

             Eu respondi com a cabeça que sim.

             Alícia do seu lugar também disse com a cabeça que sim.

             Depois, quando o professor Wilson virou para o quadro para escrever fórmulas, eu me virei para a Alícia, na mesma posição que estávamos antes e exatamente no mesmo lugar onde fui interrompido.

             — Não acredito em você. — eu disse a ela, a voz grave.

          

        Entrei na casa do Wesley que estava assustadoramente cheia, e quase não conseguia ver nada lá dentro. Minutos antes eu estava tendo dificuldade em estacionar o carro junto com outros mais vinte carros.

             Nunca fui fã de lugares cheios e abafados.

             Corri meus olhos pelo lugar, procurando qualquer um dos meus amigos que deveriam estar aqui em algum lugar. Mas de qualquer forma, estava muito cheio para encontrá-los.

             Quando voltei a cabeça na posição inicial, dei de cara com Lucas à minha frente.

             — Você me assustou. — eu disse, irritadamente.

             — Assustou, não é?

             Ele me olhava suspeitamente.

             — O que foi? — perguntei, o tom frio.

             — Qual é a da garota?

             O olhei com ar enfadado.

             — Que garota?

             — Alícia. Carolina andou perguntando sobre vocês dois. Você está... — Lucas pensou no que dizer. — A fim dela?

              Talvez se eu dissesse o que queria ouvir, ele não me acusaria mais de desviar a atenção da Carolina para mim. O que era completamente injusto.

             Dei de ombros.

              — Eu devo estar. É divertido vê-la embaraçada quando estou perto.

              — Eu não curto o tipo dela.

              Nem eu, na verdade. Gosto de mulher, não de menina, com olhos brilhantes e sorrisos fáceis. Ela parecia ser o tipo de garota sensível que qualquer problema com o namorado corre contando tudo para a mãe.

               — Bem —, Lucas decidiu de repente. — Vou procurar a Carolina.

               — E eu bebida.

             Ao lado da imensa sala tinha uma saída para a piscina. Com um pouco de custo, eu consegui chegar até lá, que era o lugar que eles estavam servindo as bebidas e onde pelo jeito estava acontecendo a maior parte da festa. Algumas pessoas tinham pulado com roupa e tudo na piscina, já outras estavam sentadas na orla com os pés na água. Identifiquei Wesley no meio da piscina, divertindo com bebida na mão e beijando uma garota.

             Vi a mesa com bebidas. Tinha cervejas, bebidas multicoloridas e mais outras coisas suspeitas.

             Eu não deveria estar aqui. Estava cansado de frequentar esses lugares que estão sempre cheio de pessoas, só para vê-las se embriagarem sem razão e fazerem coisas estúpidas, como passar pela mão de todos os rapazes da festa e eles se gabarem às suas custas depois, pensando que viver não é ter consequências nos esperando do outro lado.

             Estar aqui era a prova de que eu não me achava bom demais para não acompanhar meus amigos.

             — Te encontrei. — Carolina disse atrás de mim.

             Virei para ela. Ela usava um apertado e curto vestido, de um tom mais vivo e rebelde da família do vermelho.

             — Você mudou de ideia.

             — E estou começando a me arrepender. — gritei. Com a música alta e as pessoas falando alto ao mesmo tempo, era o que deveria fazer se quisesse que ela me ouvisse.

             Carolina apontou para o copo com refrigerante na minha mão.

             — Parou de beber? — perguntou, descrente.

             — Lucas está te procurando.

             Ela soltou um ar de desapontamento.

             — Ah.

             — Por que você não procura por ele? — e dei um passo adiante, passando por ela.

             — Espere, Gabriel.

             Parei para olhá-la.

             Carolina caminhou até a mim rápido demais e rápido demais jogou seu corpo para cima de mim para pressionar seus lábios fortemente contra os meus, não me dando espaço para respirar. Parece simples quando eles fazem isso em filmes, mas nosso dente bateu um contra o outro. Meu corpo foi pra trás ao impacto do dela, e senti o refrigerante escapar do copo para cair na ponta do meu tênis branco. Fiquei assustado em quanto estrago um corpo de aproximadamente 50 quilos podia fazer. Tentei me desvencilhar, mas sua mão presa no meu rosto não me deixava oportunidade de fuga, e por um momento cheguei a pensar que o beijo não era de todo ruim para eu querer desesperadamente fazê-lo... meu Deus, o que estou dizendo?

             Carolina se afastou, olhando para mim.

             Minhas sobrancelhas estavam franzidas para ela.

              — Por que fez isso? — meu tom saiu repreensivo.

             Carolina parecia consternada. Ela piscou seus olhos com rímel importado.

              — Bem —, sua voz estava um pouco alterada. — Eu não sou uma covarde. Eu não ia ficar te vendo todo o dia sem ter tentado isso.

             — Lucas gosta de você.

             — Você acha que se Lucas estivesse no seu lugar ele pensaria da mesma forma que você? Porque acho que ele não daria a mínima para o que você pensa. Ninguém se importa com a outra pessoa, Gabriel.

             Carolina parecia olhar para essa pessoa em especial. Meus olhos seguiram os dela para o mesmo lugar de onde vim e vi Lucas parado na porta. Quando me viu olhá-lo, ele deu as costas e saiu depressa de lá.

             Que péssima hora para ele resolver encontrar a Carolina.

             Coloquei o copo em cima da mesa e a olhei, enfurecido.

             — Viu o que você fez? — e saí rápido, sem esperar pelo o que Carolina diria em resposta. E honestamente, eu não estava interessado no que ela teria pra dizer. Estava com raiva da Carolina por ter estragado a relação que eu e Lucas tínhamos, por ter arruinado tudo por algo que talvez ela nem tenha certeza.

             Algumas coisas ficam diferentes depois de uma ruptura, não importa o quanto forte já foi um dia.

             Entrei na sala de novo, e não tive sinal do Lucas; é claro que não, não era como se ele fosse me esperar com batidas nas costas e troca de palavras amistosas.

             Passei a porta da casa com pressa. Alcancei a rua, procurando pelo carro do Lucas, e o encontrei em uma das primeiras vagas. Ele estava abrindo o carro quando me viu, e abandonou a porta e veio em minha direção, empurrando meu peito hostilmente para trás.

             Desviei-me das suas mãos e o empurrei de volta.

             — Foi rápido demais —, eu me expliquei. — Minhas mãos estavam ocupadas. Eu não pude evitar que isso acontecesse.

             Seus olhos eram faiscantes.              

             — Claro que não pôde, já que pareceu tanto gostar. E eu ainda te falei que eu gostava dela, te falei para ficar longe, mas tirou proveito porque ela está dando mole pra você.

             — Você não estava lá —, eu disse, a voz apaziguadora. — Você não viu o que aconteceu. Eu nunca faria isso com você, Lucas.

             — A questão é que você já fez, droga!

             Lucas se aproximou, e por um momento pensei que me daria um belo soco, então ele pensou melhor sobre isso e voltou a mão pra trás. Ele me deu um último olhar fulminante quando entrou no carro. Sua mão em punho foi para sua boca e depois socou ferozmente o ar. A intensidade com que bateu o nada seria a mesma com que me socaria.

             Fiquei o observando enquanto acelerava fundo, o pneu rachando no asfalto, até quando o carro sumiu ao virar a rua.

          

        Eu e Alícia tínhamos um trabalho de Física para começar a fazer, então sugeri um lugar um pouco fora do normal para quem estava intencionado propriamente a estudar. Não era um lugar convencional, mas Alícia não se mostrou contra quando lhe perguntei se concordava com o local que escolhi. Ela não se importou. Quero dizer, talvez ela nem estivesse se importando com o fato de que eu deveria mesmo tirar uma nota suficientemente boa no trabalho de Física.

             Marcamos para depois da última aula numa lanchonete ao lado da faculdade, e mesmo assim, cheguei meia hora depois do marcado.

             Entrei tranquilamente e não como alguém atrasado, e procurei com os olhos por ela, que logo a identifiquei sentada em uns dos lugares reservado no canto da lanchonete. Um lugar tranquilo, ótimo para quem pretendia estudar, é claro.

             Aproximei da mesa que ela sentava, com a coluna curvada e concentrada no livro de Física que lia.    

             — Oi. — eu disse, parado de frente à mesa. Se eu não tivesse dito nada, seguramente ela nem teria me notado.

             Alícia levantou impulsionamente a cabeça muito rápido.

             — Oi. — seus olhos foram para as minhas mãos vazias e voltou a me olhar. — Onde estão suas coisas?

             — Eu não trouxe. — respondi, simplesmente. — Eu não tenho Física hoje e não iria carregar peso à toa. Estava contando que você trouxesse o material suficiente para nós dois.

             Ela balançou a cabeça e deu um falso sorriso.

             — Claro que pensou.

             — Quer pedir alguma coisa? — eu perguntei, puxando a cadeira para sentar-me de frente a ela. E então eu vi o copo de plástico com suco em cima da mesa, ao lado do livro aberto.

             — Eu já pedi, que inclusive foi a trinta e cinco minutos depois de eu chegar e trinta e cinco minutos antes de você chegar...

             — Ok, eu já entendi. Estou trinta e cinco minutos atrasado.

             Ela baixou a cabeça para os livros e esteve absorta. E foi quando pude observá-la sem a apreensão de ser pego em flagrante por encará-la. Seus cílios estavam com... rímel?! Bem, seus cabelos continuavam do mesmo jeito, solto, as maçãs salientes do rosto coradas de uma cor artificial, e suas roupas pareciam um pouco melhores.

             Eu não teria notado na mudança se ela não tivesse se esforçado para que eu percebesse.

             — Então —, debrucei-me sobre meus braços em cima da mesa. — Posso pedir alguma coisa pra você, ou talvez batata frita? Não é possível que a única coisa que está passando pela sua cabeça agora é em estudar quando você tem —, abri os braços, mostrando a uma Alícia que não olhava para mim. — Tudo isso à sua volta. Você se preocupa demais.

             Ela estava me olhando agora.

             — É porque se eu perder a bolsa está tudo acabado. Diferente de você —, ela disse com cautela, mas há em seu traço racional determinação de que vai dizer em voz alta as palavras em sua cabeça. — Que não precisa se esforçar porque está tudo garantido.

             Ela não estava sendo cruel, eu sei. Ela só anda inconformada com as coisas predeterminadas, coisas a qual não pode fazer nada a respeito.

             — Mas quanto às batatas —, ela se animou, como se passasse a borracha no ar amargurado de antes. — Estou mesmo com muita fome. E eu adoro batata frita.

             Fui até ao balcão fazer o pedido. Tempo depois, voltei com a porção grande de batatas, pousando a bandeja de plástico no meio entre Alícia e eu. Ela fechou o livro e o arredou para o lado, inclinando-se também sobre a mesa.

             Colocou uma batata na boca enquanto olhava para mim.

             — Viu? — falou com a boca cheia, embora parecesse envergonhada por fazê-lo. Então percebi que só estava me provocando. — Eu não tenho frescuras, se é isso o que queria testar.

             E deu um generoso sorriso, e gostei das covinhas que apareceram nas suas bochechas. Fiquei fascinado pelo seu sorriso, mesmo não tendo nenhuma queda por sorrisos como algumas pessoas têm por pés e mãos, e talvez pescoços.

             Eu diria que quando a estiver realmente testando, ela nem chegará a se dar conta disso. Mas não foi isso que eu disse. Eu disse foi outra coisa.

             — Por que você se matriculou para a aula do professor Wilson? — eu perguntei, soando distintamente curioso.

             — Eu já expliquei o porquê. — ela disse, mecanicamente. — Professor Wilson é um bom professor.

             Eu sorri, quase com a certeza de que não era esse o motivo.

             — Mas não me convenceu. Deve existir razões maiores... — ponderei. — Algum motivo especial, talvez?

             — O que foi —, ela disse, a voz grave. — Está deduzindo que eu me matriculei por causa de você?

             — Isso é você que está dizendo.

             — Nem tudo é sobre você. E já que estamos falando de você, me esclarece uma coisa; nunca te vi conversando com alguém na faculdade além dos seus amigos. Por quê? Por que ser tão seletivo assim?

             Meu olhar para ela era firme.

             — Eu só me relaciono com pessoas que julgo valer a pena no final.

             Por um momento nenhum de nós dois falou. Um cliente passou com uma bandeja de milkshake, hambúrguer e batata frita enquanto dois jovens abandonavam a mesa deixando a sujeira para que a atendente lidasse com a bagunça. Agora o barulho das pessoas falando ao mesmo tempo estava mais alto, mais agitado, mais difícil de concentrar. Tudo isso não parecia incomodar a Alícia. E não sei onde estava com a minha cabeça em escolher vir para cá.

             Alícia estava olhando para mim.

             — Você já pensou em que vai se especializar?

             Eu olhava distraidamente para cima das cabeças das pessoas, com o braço dobrado alcançando o pescoço.

             — Bioengenharia. — hesitei. — Quero dizer, caso eu chegue a me formar.

             — E por que você não chegaria a se formar? — ela perguntou, soando mais por curiosidade do que qualquer coisa.

             Respirei, baixando o braço, meus olhos nela agora.

             — Muita coisa pode acontecer em cinco anos.

             Por exemplo, em cinco anos eu nem posso estar aqui. Em cinco anos, provavelmente nem fazendo faculdade de Engenharia eu esteja. Em cinco anos, talvez eu possa ser uma pessoa diferente da que sou hoje, e eu espero mesmo por isso. Nós não temos controle sobre essas coisas.

             Os olhos dela me olhavam com intensidade.

             — Você tem alguma outra coisa em mente?

             — Eu não saberia te responder. — respondi. — O ser humano muda de ideia o tempo todo.  

             Alícia teria dito algo de volta se não tivéssemos sido interrompidos.

             — Olha o que temos aquií. — e aqui estava Carolina, cantando as palavras outra vez. Estava parada bem ao nosso lado na mesa, aparecendo de repente como um raio.

             Sua voz fez que Alícia recuasse de susto da mesa e se afastasse de mim como se estivéssemos fazendo algo errado, como amantes sendo pegos. Carolina nos olhava astutamente. Permaneci do mesmo jeito, e tampouco fiz questão de recuar – exatamente como Alícia acabou de fazer. Eu era o único aqui que não achava que isso fosse algo incomum?

             Carolina correu os olhos para a Alícia.

             — É injusto quando algumas pessoas não engordam de maldade, e já outras como eu têm que passar fome para manter a forma. — ela disse para Alícia. — Você é sortuda.

             Carolina deu um sorriso cortês para Alícia, e virou-se para mim.   

             — O que estão fazendo? — Carolina me perguntou.

             Dei de ombros.

             — Estudando.

             Pelo menos era essa a intenção inicial.    

             — Posso me juntar a vocês, então?

             Dei de ombros mais uma vez, dizendo que por mim tudo bem.

             Carolina puxou uma cadeira da mesa próxima e sentou-se possessivamente ao meu lado, ficando entre Alícia e eu. Alícia teve de afastar sua cadeira um pouco para que Carolina coubesse. Ela tombou a cabeça levemente para o lado, olhando superiormente para as batatas à sua frente.

             Estava olhando para a Alícia quando pegou o celular na bolsa para olhar as horas.

              — É uma pena dizer isso —, ela disse logo em seguida. — Mas eu tenho que ir.

             Mas ela parecia aliviada por estar caindo fora agora.

             Eu estava jogado confortavelmente na cadeira.

             — E o trabalho?

             — Meu tempo acabou; tenho que ir para o meu trabalho. De qualquer forma, não estava dando certo, não é? — ela juntou suas coisas na mesa e preparou para se levantar. — Eu te ligo. — ela disse. E saiu da mesa para ganhar a saída para a rua.

             — E então —, eu disse, inclinando-me para Carolina. — O que você está fazendo aqui?

             — Estava passando por acaso na rua e aí eu te vi. Sabe —, Carolina adicionou, cuidadosamente. — Eu nunca questionei a sua personalidade cinzenta, mas fiquei observando vocês por algum tempo, e você fala com sinceridade com ela enquanto que eu tenho que espremer — ela fez que realmente espremesse algo. — Palavras de você. Não é assim que você é. Nem mesmo com o Lucas. Com ninguém.

             Não é com queixa e acusação que Carolina fala.

             Eu seria mais humano se eu me sentisse culpado, então é por isso que eu me sinto. Porque nunca foi meu objetivo de vida agir como as pessoas esperam que eu aja e dizer o que elas esperam que eu diga; na verdade, é isso o que eu faço: dou a elas razões para irem e só sobrarem as que realmente querem ficar. E eu digo a mim mesmo que vou tentar mudar, que vou pensar mais nas pessoas e ser mais receptivo, mas sei que são só palavras vazias que uma vez ou outra sempre voltava com premissa de promessas.

             Porque era isso o que eu era.

             Talvez então eu entenda os motivos da Carolina pensar que sente alguma coisa por mim. É como se ela tivesse um objetivo de descobrir todas as camadas de palavras não ditas, de receios e aspirações escondidas por trás da minha personalidade de titânio que não admite passar nem um grão de poeira. Todas as garotas de ontem existente na mulher de hoje, romanticamente já quis penetrar as armaduras de alguém. Carolina não gostava de mim pelos motivos certos.

             Carolina ergueu a coluna. 

             — E sobre o beijo aquele dia, desculpa ter causado intriga entre você e o Lucas. Não foi o que eu quis que acontecesse.

             — Tudo bem, Carolina. — eu disse, a voz suave. — Já passou.

             — Não. — ela disse, triste e resolutamente. — Na verdade, não passou.

          

        Eu e Alícia não tínhamos um lugar para estudar. E constatamos, ela, na verdade, que ir para lugares públicos repleto de distrações não estava funcionando, já que para mim qualquer lugar servia como eu não estava me importando realmente com o trabalho.

             Sei que eu deveria ser grato pela oportunidade que o professor Wilson estava me dando, mas era opcional agora não fazê-lo. Ocorreu-me que meu pai estaria vencendo se eu passasse a ser um estudante exemplar.

             “Há vários lugares que poderíamos estudar.”, Alícia tinha sugerido. “Tem a biblioteca da Faculdade de Villanova. Nós poderíamos estudar lá.”

             “A biblioteca não.”, respondi a ela na mesma hora. “Ela me dá dor de cabeça com todos aqueles livros.”

             “Então onde mais?”

             Esperei por ela na entrada de casa, e nem precisei ficar muito tempo. Minutos depois, pontualmente ela manobrava no portão de casa seu desajeitado carro atrás do meu, eu chegando a ter receio se ela conseguiria fazer uma baliza sem arranhá-lo. Meu corpo hesitou entre interferir ou permanecer no lugar. Acabei optando por permanecer no lugar.

             Acho que Alícia ficaria lisonjeada se soubesse que escolhi acreditar nela.

             O cano de descarga do fusca fez barulho enquanto ela não o desligou completamente.

             Observei-a aliviado enquanto vinha a pé até a mim. Ela usava um macacão jeans largo e desbotado de fábrica, e seu cabelo estava em uma trança folgada posta de um lado, parecendo uma típica garota da fazenda. Se Wesley a visse agora...

         

        Os olhos dela observavam admiravelmente todo o exterior da casa enquanto caminhávamos em direção à entrada.

             A casa é de pedras cinza com os telhados de um cinza mais escuro e janelas brancas de vidros lisos. As árvores que meu pai mantinha reunidas em um conjunto ao lado da casa daria impressão de que estávamos no campo se não fosse todas essas estruturas de casas ricas à nossa volta.

             — Nossa. — ela soltou, quase inconsciente de que o tinha feito.

             Quando seus olhos voltaram para mim, Alícia me pegou a observando enquanto distraidamente esteve olhando a casa. Tentei disfarçar, olhando para o lado contrário, mas nem sei por que fiz isso. Esteve tão desatenta que nem deveria ter percebido.

             Ela não percebia essas coisas. Ela nem deveria saber que meus olhos quando a olha provavelmente brilham de admiração.

             — Deve ser bom morar em uma casa com um quintal tão legal como esse. — ela disse, soando mais como uma pergunta do que com qualquer outra coisa.

             A grama é de um verdíssimo tom vivo forrado pelo redor da casa e por todo o quintal deixando apenas um caminho de pedra para a entrada da casa, como um infinito carpete.

             Eu estava sorrindo.

             — Esta casa tem muitas coisas legais, mas nenhuma delas é o gramado.

             — Você não senta aqui para ler um livro, ou escutar uma música? — ela perguntou, soando indignada.

            Por isso deixei escapar de novo outro riso.

             — Não. — eu disse, o sorriso permanecendo no rosto. — Por que eu gostaria de sentar no gramado quando eu poderia estar em qualquer outro lugar da casa, como a piscina, por exemplo?

             Continuou andando, seus olhos prestando atenção no caminho de pedra que seus pés pisavam, mal me olhando.

             — Porque é isso o que normalmente alguém faria quando se tem um gramado como esse.

             Cocei minha sobrancelha de frustração.

             — Bem, isso realmente não faz o meu tipo. Não vejo nenhuma vantagem de ir para o desconforto do mato e correr o risco de voltar picado por pernilongos.

             Alícia deu um meio sorriso balançando a cabeça.

             — Você é tão fresco. — foi o que pareceu que ela disse.

             Quando entramos em casa, ela ficou ainda mais fascinada com o interior do que tinha ficado lá fora. Passamos a porta ampla de madeira e o hall desimpedido para deparar com duas escadas que se encontravam no segundo andar. O acabamento das escadas e das janelas por dentro era do mesmo tom de madeira. As janelas refletiam no piso claro e espelhado parecendo como uma pista de gelo. O lustre de cristal pendurado no centro do que chamamos de sala brilhou através do olhar inseguro da Alícia. Ele era sustentado apenas por um fio de ferro dourado ligando-o lá de cima e parecia que a qualquer momento poderia cair.

             Não demorou muito para que a forma esbelta e amigável da Susie aparecesse no topo da escada, prontamente, como se estivesse atenta à espera da sua parte no ato.

             Olhei para a Alícia de frente para apresentá-la a Susie. Ela estava com suas mãos enfiadas no bolso do macacão, seus olhos apreensivos. Balancei minha cabeça e fechei os olhos um segundo, sorrindo um pouco, querendo me livrar dessa imagem que normalmente era assim que ela estava.

             — Alícia —, eu disse, me restabelecendo. — Esta é a Susie.

             Alícia tirou as mãos do bolso, nervosamente, e aproximou da Susie, estendendo a mão que parecia suada para ela.

             — Muito prazer. — ela disse, e sorriu, que aposto ser esse o seu melhor sorriso.

             Susie virou-se para mim.

             — Ela é um amor. Onde a encontrou?

             Como assim onde a encontrei?

             Susie parecia satisfeita, e estava com uma linha agradável de sorriso no rosto. Ela nunca tinha visto nenhum amigo meu aqui antes além do Lucas e os outros, então isso para ela deveria significar alguma coisa.

              Revirei os olhos, e inspirei e expirei.

             — Ela é da faculdade, e só está aqui porque viemos fazer um trabalho. Além do mais —, sussurrei para Susie. — Ela tem um ex-namorado muito louco. E não estou a fim de enfrentar um ex-namorado louco.

             Espero que isso tenha desmotivado a Susie.

             Enquanto isso, Alícia olhava a casa como uma criança que olha o mundo pela primeira vez.

             Susie então convidou Alícia para conhecer a cozinha. Era sempre essa primeira impressão que ela gostava de passar para as pessoas a quem queria impressionar, ou cativar, como eu diria que estava tentando fazer com a Alícia.

             Ela colocou na mesa a torta de frango e pudim, suco e bolo... tudo para a Alícia.

             Sentei ao lado da Alícia, e imediatamente olhou pra mim e sorriu. Foi um sorriso que me lembrou de estar em casa – e eu não estava falando fisicamente, porque teto acima da minha cabeça e pessoas a quem compartilhá-lo não é a minha definição de casa. Estava falando de outro tipo de lar. Depois olhou para frente, com um pouco de constrangimento estampado em seu rosto, talvez por eu estar sentado ao seu lado na mesa, por eu estar tão próximo quando nunca pensou que eu estaria.

             — E então —, Susie disse cautelosamente para a Alícia, curvando para ela sobre o balcão da cozinha. — De onde você vem?    

             Alícia deixou de olhar o prato para olhar Susie.

             — Bela Vista.

             — Você veio de longe. — sua voz ressoou, com o ar de repente como quem se lembra de alguma coisa. — Eu também vim para cá nova, com quase a mesma idade que você. Minha família era pobre e minha cidade não tinha muito recurso. E então encontrei esse trabalho que eu não me preocuparia com casa e comida, e que sobraria mais dinheiro que pudesse mandar para a minha família. — contou. — A melhor coisa que eu poderia ter feito era ter saído de lá. 

             Alícia baixou os olhos.

             — Diferente de você, não vim sozinha. Meus pais decidiram mudar comigo quando souberam que eu fui admitida com bolsa na Faculdade de Villanova.

             — E você não ficou feliz por eles terem vindo para cá com você?

             Alícia vacilou.

             — Talvez.

             — Por quê? — eu perguntei numa voz distraída, como se tivesse pegado a conversa no meio, que realmente não tinha sido. Estive atento a elas desde que Susie tocou no assunto.

             — Meu primeiro plano nem era fazer faculdade; eu só estudei e me inscrevi para ter uma desculpa para sair da minha cidade. E fiquei um pouco frustrada quando não deu certo. — ela disse. — Tem coisas que a gente precisa experimentar sozinho. Você precisa saber se consegue sobreviver dependendo apenas de você.

             Susie pareceu não entender.

             — Não teria que ser assim. Se era isso o que você queria, era só ter vindo estudar aqui e seus pais poderiam ter ficado na sua casa, continuando com os seus empregos. Você tem quantos anos?

             — Acabei de fazer dezoito.

             Ela acabava de entrar para a faculdade com dezoito anos enquanto que daqui a dez meses e trinta dias eu completaria os meus vinte. Por um ano eu não soube o que fazer, até que meu pai decidiu por mim.

             Meu pai gostava de tomar decisões por mim. Começou quando eu era criança, quando decidiu sozinho o que era o melhor para mim. Isso passou a ser mais frequente quando percebeu que eu não objetava a isso. E agora percebo que eu gostava. Quando você tem alguém tomando decisões por você, isso evita que você tenha um monte de preocupações. Então por que não? Qual é o problema se esse alguém sabe o que é o melhor para você quando você mesmo não sabe?

             — Viu? — Susie estava dizendo. — Você é adulta e parece ser uma garota esperta. Seus pais não deveriam ter se preocupado.

             Os ombros da Alícia dramaticamente cederam.

             — Eu também acho. — ela respondeu, desoladamente. — Atingi minha maioridade, estou na faculdade, tenho um trabalho; acho que com tudo isso eu consegui provar para meus pais que eles não precisam mais se preocupar. Eles são um pouco... ultraprotetores. E quando tenho a oportunidade de me ver livre deles, eles me seguem até aqui.

             Seria cômico sua odisseia, se ela não parecesse que travava uma batalha interior. Por baixo da mesa, Alícia passava as mãos repetidamente na calça, do joelho até a coxa, da coxa até o joelho. Olhei para o seu rosto, tentando ler sua expressão e entender o quão terrível isso poderia ser; mas era como ler um livro em páginas brancas. E isso me deixou um tanto frustrado. Se eu não conseguia lê-la, não podia ajudá-la.

             Não que ela parecesse precisar de ajuda. Não que eu fosse apto se fosse esse o caso.

             — Bem —, Susie desencostou-se da mesa. — Lembrei-me de uma coisa que eu tenho que fazer.

             Não vi Susie saindo. Estava concentrado no prato fazendo não sei o quê menos comendo. A algum tempo atrás eu estava separando o queimado do pudim, assim como eu separava o feijão defeituoso ou a cenoura que eu julgava grande demais ou alguma coisa que eu decidia não servir.

             Pendido no alto à parede da cozinha, o relógio fazia tic-tac, parecendo horas que o silêncio durava. Fiquei desfazendo o pudim com o garfo, sem fome, convencido de que não diríamos mais nada a respeito; de que passaríamos para o próximo tópico. Por isso eu estava surpreso quando Alícia falou, por um momento minha mão no prato congelada.

             — Eles não são ruins; eu não sou uma filha ruim. O erro deles foi me fazer sentir como se eu vivesse numa gaiola e o meu é ser ingrata. Você já sentiu alguma vez que seu tempo estava acabando, que se não fizesse nada a respeito, não ficaria contente de como ele acabaria? Eu sentia isso o tempo todo. E quando chegou a hora, não consegui dizer a eles: “obrigada, pai, obrigada, mãe; eu assumo daqui.” Fiquei insegura e amedrontada. — ela disse. — Acho que no final eu sabia que não conseguiria fazer isso. Que sou dependente demais para fazer isso sozinha.

             Ela terminou de falar, e eu não tinha uma resposta para dar a ela depois do seu desabafo. O que eu poderia dizer que não seja “Vá se danar” para os seus pais? Talvez eu não seja uma pessoa indicada para dar conselhos, afinal.

             Desfez completamente da posição sobrecarregada de antes e levantou os ombros.

             — Então —, recobrou-se. — Onde vamos estudar?

             Larguei o garfo no prato e o empurrei. Olhei para ela.

             — Estava pensando no gramado. — eu disse, para deixá-la de bom humor. Meu rosto estava inexpressivo e minha voz não demonstrava emoção. — O que você acha?

             Seus olhos se arregalaram e sua boca abriu em descrença.

             — No gramado? — ela balançou a cabeça de um lado para o outro como que para afugentar a confusão. — Mas... você não acabou de dizer que existe coisa melhor do que sentar no “quintal”?

             Dei de ombros, para fazer com que isso não parecesse tão grande quanto Alícia parecia achar.

             — Sabe o que percebi? Que não é como se fosse uma coisa grande demais —, considerei. — E nem pequena demais para mim.

             Ela estava dando um sorriso brilhante em resposta.

          

        O olhar da Alícia correu por toda a extensão da propriedade, e voltou a me olhar. 

             — Susie é legal. — ela concluiu, com as mãos espalmadas no gramado ao lado do corpo, sentindo-o fofo sob as mãos. — Ela é o quê; sua babá ou algo assim?

             Dei um riso desamparado.

             — Não, ela está aqui desde que eu era criança. Mas Susie diz que ainda continua aqui por mim.

             — Por quê?

             Fiz um gesto com a cabeça.

             — Eu não sei.

             E eu realmente não sabia. Susie tem um rosto conservado e bonito, é gentil e modesta, e nunca entendi como uma pessoa com tantas qualidades pudesse perder seu tempo em um emprego como esse. Digo, como ela poderia dedicar todo esse tempo devotamente a minha família, que resumia em apenas eu e meu pai? Dizer simplesmente que gostava de mim não me soava como uma justificativa convincente.

            Alícia olhou para mim, as sobrancelhas franzidas.

             — Onde está o restante da sua família? — sua voz saiu rouca e restritamente curiosa.

             — Morreram todos. Somos só eu e meu pai agora.

             Eu não tinha avô e nem avó, nem tios e tias em grande quantidade, porque todos eles morreram; uma espécie de desastre familiar em grande escala. Minha família era bastante pequena e depois ela se resumiu a nada. Miraculosamente, meu pai não estava no avião abatido. Não tinha chegado sua hora.

             Acaba que viver não é como estar em um parque de diversão. Estar vivo é como assistir a um filme de terror sem saber o que encontrará a seguir.

             E ninguém se permite viver diariamente com a consciência aterrorizadora disso. Vivemos somente dentro dos limites onde vai o muro. Adaptamos uma venda nos olhos e não enxergamos as coisas óbvias.

             Alícia dobrou as pernas de repente.

             — Bem —, arfou, animada. — Acho que devemos começar. Basicamente, teremos que fazer uma relação com os corações artificiais que não funcionaram antes até chegarem ao sucesso do coração artificial de hoje.

             Cocei a cabeça e passei a mão pelo cabelo de frente pra trás.

             — Que basicamente só temos que descobrir por que os de antes falharam.  — eu disse, simplificando o problema.

             Alícia balançou a cabeça, concordando comigo.

             — Exatamente. — ela disse, agitada. — Então poderíamos começar com o protótipo de 1982.

             Não parecia ter sido uma pergunta, mas ela olhava pra mim esperando que eu dissesse alguma coisa.

             Arqueei os ombros.

             — O quê? — eu perguntei, inocentemente.

             — Você poderia pelo menos mostrar interesse?

             Ela é muito engraçada. O que ela acha que estou fazendo?

             Os olhos dela desviaram de mim para o bolso de trás para pegar uma folha e estendeu para mim. Capturei a folha da sua mão e apoiei sobre o cotovelo fincado na grama. Tombei a cabeça para o lado, como um pássaro. Para a Alícia que me olhava, poderia parecer que eu estava mesmo concentrado no conteúdo do papel. Eu poderia fazer isso, mas antes eu tinha que decifrar o que ela escreveu.

             — Esse primeiro —, gesticulou para a folha na minha mão. — Pesava 900 gramas, e foi construído com plástico e titânio que batia com o auxílio de uma bateria e ficava ligada à cintura do paciente como um cinto.

             Ouvi falar da história desse aí. O coração Jarvik-7 de 1982 tinha vários fios externos que se projetavam ao paciente e se conectavam a uma grande unidade externa, como um cinto mesmo. Um pouco difícil conviver com aquilo preso a você. O coração artificial de hoje posso dizer que apenas um objeto resume ele; bateria. Ele ficava no mesmo lugar que um coração de verdade e funcionava do mesmo jeito que um coração de verdade, e é recarregável a cada seis meses, ou dependendo do gasto da energia ao longo do uso, e você só saberia que estaria usando algum quando precisasse recarregá-lo, ou se desse algum problema. Nada de fios fora do seu corpo causando infecções como os de antigamente faziam. Esse agora é simples, imperceptível, muito mais evolucionário; mas também não mais eficiente que os outros que vieram antes. Ninguém ainda descobriu como enganar a morte.

             Como deu para perceber, eu não confio muito na tecnologia. Ela tende sempre a nos deixar na mão.

             — Com a tecnologia obsoleta deles —, desdenhei. — Era o máximo que eles poderiam ter conseguido.

             — E mesmo com toda a tecnologia obsoleta do seu século, Santos Dumont conseguiu pensar no 14-Bis. — ela inclinou para frente e arrancou a folha da minha mão. Depois voltou o corpo pra trás, analisando-a pensativamente. — Nós só temos que pensar em qual cálculo usar para descobrir o que o professor Wilson quer que a gente descubra.

             — É só escrever que o B-20 é uma bateria. Sem cabos, sem bateria externa carregável, sem complicações. — eu disse, desanimadamente. — Não precisa necessariamente de cálculo para isso.

             Alícia me encarou, desaprovando a ideia.

             — O professor Wilson deixou claro que queria explicações científicas, então acho que não será possível. — e acrescentou, para causar efeito. — A não ser que você queira ser reprovado em Física.

             — Por que ser tão confuso? — eu disse, distraidamente. Não era uma pergunta realmente.

             Alícia revirou os olhos e balançou a cabeça, o ar enfadado de quem tudo sabe.

             — Não é confuso.

             Meus braços estavam pra trás, escorando meu corpo sobre minhas mãos espalmadas no gramado.

             — Pra você é fácil falar. — eu estava olhando o céu limpo, parecendo uma paisagem simples e idealizada pintada por um artesão pintor. — Você parece a cria do Einstein.

             — Ao contrário do que você está pensando, eu não nasci para isso. O que eu realmente gosto de fazer na verdade é desenhar. — ela pareceu animada ao dizer isso. — Mas não por hobby. Profissionalmente, eu quero dizer.

            Olhei para a Alícia que estava um pouco à minha frente, encarando seu rosto de perfil enquanto estava focada para algo longe.

             — Sério? — eu estava perplexo. — Mas então por que não está fazendo isso ao invés de estar aqui me ensinando Física?

             — Não vejo como desenhos pode me levar a algum lugar. E além do mais, depois que formar eu posso dedicar aos meus desenhos. — ela disse, seus olhos ainda vagos no campo verde à sua frente. — E você? E se não fosse Bioengenharia, o que faria?

             O céu estava muito azul e com poucas nuvens sustentadas por barbantes invisíveis.

             — Bioengenharia.

             Não era como se eu tivesse uma lista e Bioengenharia fosse uma das opções a escolher. Mesmo não vindo ao mundo, ainda quando eu era apenas um feto, podia sentir meu pai decretando: “Esse vai ser um engenheiro. Vai seguir os passos do pai.” Então quem poderia dizer que eu tinha escolhas?

            Alícia agora olhava para mim.

             — E se você pudesse escolher?

             — Seria música. — eu disse seguro, sem considerar as outras opções que eu poderia vir a ter. — Eu poderia estudar música simplesmente por prazer.

             Ela balançou negativamente a cabeça.

             — Isso não faz sentido. Por que não fazê-lo agora?

             — Porque primeiro eu preciso seguir o “legado” da família, e então depois, talvez quando eu der o que meu pai quer, eu possa finalmente fazer o que eu quero. — eu disse, resignadamente. — Meu futuro está determinado desde o dia em que nasci. Pensar nos meus sonhos só vai tornar fazer isso ainda mais difícil.

             Não é que eu seja do tipo ingrato. É só que não importa o quanto eu tenha motivos para me sentir completo, nunca realmente me sentirei assim. É isso o que me faz humano. Estar eventualmente correndo atrás de algo na tentativa de sentir realmente completo.

             Eu suspirei do meu lugar.

             E ela do seu.

              — Eu vi você no bar Irmãos Silva uma sexta-feira dessas.

              — É mesmo? — ela parecia bastante surpresa. — E o que você foi fazer lá?

             Dei de ombros.

             — Eu só fui ver as pessoas cantarem.

             O que soava pra mim se não uma mentira, talvez uma omissão.

             Alícia então virou para capturar o livro na grama e começou a lê-lo. Ela começou a explicar as questões para mim, com a ponta do lápis na boca, de maneira perspicaz. Eu não entendia nada do que ela dizia, eu nem ouvia o que ela dizia, e tudo isso me fazia sentir uma infernal dor de cabeça. A única coisa que me impedia de fugir para longe era porque eu estava gostando de vê-la assim; tão concentrada.

             Deitei na grama, a mão sob a cabeça. Senti os olhos dela sobre mim de inacreditável, mas não me repreendeu. Pelo contrário. Tomada por impulso, Alícia colocou a folha dentro do livro e o arredou para longe sem culpa de abandono, deitando suas costas no chão. Estávamos um ao lado do outro, olhando para o céu. Em algumas nuvens tinha rasgos onde saía a luz do Sol atingindo o nosso rosto.

             Deve ser essa parte que ela estava falando de como é bom ficar ao ar livre. Por enquanto, nenhum pernilongo apareceu. Nem algum mosquito inconveniente também. Só algumas formigas grandes e pretas insistiam em subir na minha mão e vez ou outra eu tinha que afastá-las para longe.

             — Você alguma vez já pensou em como as coisas extraordinárias podem acontecer, se apenas as deixarmos acontecerem?

             Movi a cabeça para o lado direito, para olhá-la. Alícia virou o rosto em minha direção, seus olhos firmes nunca desprendendo dos meus. E um brilho diferente eu notei neles, exatamente como da primeira vez que a olhei.

             Levantei uma sobrancelha.

             — Como o quê, por exemplo?

             — Esquece. — ela virou o rosto, e ficou olhando o céu. — Eu não sei o que estou falando.

             E então ela riu. Ela estava tão bonita agora, tão ingênua e despreocupada. Filtros do sol passavam através do seu rosto, fazendo o contorno marítimo de caramelo dos seus olhos ficarem ainda mais claro. E não sei como estava me permitindo pensar que poderia beijá-la agora.

             Algumas pessoas conseguem ser um ponto colorido num filme preto e branco.

             Desprendi lentamente meu corpo do chão para ir em direção a ela, sem saber com certeza o que pretendia fazer quando eu chegasse ao destino final, como se eu estivesse sob o efeito de droga e não respondesse por mim mesmo. E então inclinei, sem receio, do seu rosto no chão, a mão direita pausada ao lado da sua cabeça e a outra orbitando perdida em seu espaço. Nossos narizes quase se tocavam. Ela ficou quieta, esperando, sentindo contra o meu rosto sua respiração às vezes profunda e às vezes interrompida, e ficou me encarando com os olhos grandes sem piscar, que era a analogia perfeita dos olhos hipnotizantes de um felino ao ser pego encurralado.

             Essa situação de alguma forma era excitante demais, idealizadora demais para deixá-la ir assim.

             Estávamos a um passo de nos beijarmos, dependendo apenas de um movimento. E se realmente existia uma força invisível que defendia garotas sonhadoras de caras como eu, nesse momento desejei que elas não existissem.

             Mas é regra que nossos maiores temores se tornem reais.

             Desisti de beijá-la quando senti meu corpo molhando, que me fez recuar imediatamente. O cenário perfeito tinha sido desfeito e agora não havia nada do que seja o que for isso que há poucos segundos estava acontecendo entre Alícia e eu.

             Olhei para cima, e por um instante acreditei que estava chovendo; mas não era chuva. Levantei rapidamente do chão. O regador do gramado deve ter sido ativado em algum momento quando nos mexemos. Tinha milhares deles, em todo o lugar. Alícia levantou logo em seguida, e embora a situação seja no mínimo constrangedora, ela estava sorrindo, não vendo nenhum problema em estarmos molhando.

             Eu estava achando uma puta sacanagem estarmos molhando.

             A grama já estava completamente úmida. Senti meus sapatos afundarem de tão fofa e macia que estava, e logo depois eu estava soltando um “Merda!” e me mexendo inquietamente. Alícia tardiamente se deu conta dos livros e correu para pegá-los, que deveriam estar molhados a essa altura. Mas mesmo assim ela fez. E correu para longe da água, apesar de que elas estavam em todo o gramado e à vista não havia nenhum lugar seguro longe delas. Então escorregou no gramado molhado, e lá estava ela, caída na lama, os livros espalhados para tudo quanto é lugar longe de onde caiu.

             Corri imediatamente até a ela e agachei urgente, meus pés parando bem próximo à sua cabeça.

              — Você está bem?

              — Sim. Estou. — ela respondeu, e no seu rosto não tinha nenhuma sombra de constrangimento por isso. Na verdade, ela sorria quase que inebriadamente.

             Reparei seu rosto e vi que ele estava com pontinhos de lama.

             Não hesitei quando passei o dedo polegar para limpá-lo. Alícia baixou os olhos com meu toque contra a sua pele ativando alguma coisa, porque teve um movimento leve da sua garganta e o rosto parecendo queimar sobre minha mão em punho.

             Mas hesitei quando me afastei para estender a mão a fim de ajudá-la a se levantar.

             Ela apoiou-se em mim.

             — Acho que estou predestinado a ser o seu salvador.

             — Nesse caso —, ela disse, divertidamente. — Eu não me importaria de cair mais vezes.

             Seu cabelo em uma trança estava tão lindo logo cedo, e agora fios escorriam desajeitadamente no seu rosto. Mas ela continuou sorrindo com tal calma que me lembrou a água do mar beirando a praia num fim de tarde, e eu me dei conta de que adorava apreciar as covinhas que formavam ao lado da sua boca quando ela sorria assim. Ela tem bolhas em miniaturas no cabelo, e reparei finalmente que meu cabelo estava molhado também e que a blusa fina marcava as formas do meu corpo.

             O tempo parou; e uma borboleta voando próximo a nós em algum lugar; e as gotas caindo contra a grama e contra nós.

             Ficamos nos olhando por um tempo. Por cem anos, talvez. Então embaraçosamente Alícia desviou os olhos de mim e agachou no chão para pegar os livros. Depois correu para longe da água com eles escondidos na mão e pressionados contra o peito, seus braços servindo para eles de escudo.

             — Corre! — ela gritava, parecendo como se estivéssemos sendo atingidos por chuva de fogo e não por gotas volúveis. — Vamos sair daqui!

             Em seguida, eu estava correndo atrás dela, não chegando a alcançá-la. Quando cheguei na entrada de casa, ela já estava lá, esperando por mim.

             — O que vamos fazer agora? — ela perguntou eufórica, respirando com dificuldade por causa da corrida até aqui. Eu respirava normalmente, acostumado com exercícios físicos. O peito dela subia e descia, ritmicamente.

             Agitei o cabelo com a mão para tirar o excesso da água.

             — Antes de tudo, você precisa se secar. Você não pode voltar desse jeito para casa.

             — Não, eu vou ficar bem. — assegurou, animadamente. Ela realmente não estava se importando com o que acabou de acontecer. — E nem estou tão molhada assim. Dentro de alguns minutos eu vou estar na minha casa.

             — Que é? — incitei.

             Ela vacilou um pouco, forçando um pequeno movimento com a cabeça.

             — A 45 minutos daqui.             

             — Eu já volto.

             Dei um passo vago pra trás, como se estivesse reconsiderando ter que me afastar. Abri a porta, desaparecendo quando fechou atrás de mim. Logo depois descia as escadas da casa segurando na mão a toalha que orgulhosamente me encarreguei de selecionar para ela. Não tinha rosa ou lilás ou amarelo, mas tinha azul claro entre toalhas escuras e brancas.

             Alícia estava de costas quando cheguei, olhando a vastidão de verde à sua frente. Virou o corpo todo quando ouviu a porta se abrir e o movimento do meu corpo ao andar. Veio até a mim em passos largos.

             Parou.

             Hesitante, pegou a toalha da minha mão e sorriu para si mesma de alguma coisa. E começou a se secar desajeitadamente, um pouco inibida com o fato de eu olhá-la fazer isso.

             — Deixe que eu te ajudo. — com apenas um passo eu me aproximei, encurtando ainda mais a distância, e tirei gentilmente a toalha das suas mãos. — Você não está fazendo um bom trabalho.

             Abri a toalha por cima da sua cabeça e a cobrir, ajudando-a se secar. Ela encarava os meus olhos de uma maneira agradecida enquanto eu o fazia, como se depois de salvar sua vida em meio a um cruzamento eu voasse com ela em meus braços.

              — Obrigada. — ela disse, quando aparentemente já tínhamos secado tudo. A toalha cobria toda a sua cabeça, aparecendo apenas o formato do seu rosto. — Bem, você ficou todo preocupado comigo e esqueceu de você. Deveria também se secar, você está tremendo.

             — É só excitação.

             — É só excitação. — ela ecoou, a voz cética.

             Ela estava toda atrapalhada com sua roupa pregada no corpo e seu cabelo desembaraçado. Tirei um fio de cabelo do seu rosto que me incomodava, e por alguns segundos fiquei apenas olhando para ela.

             Alguém limpou a garganta atrás de nós e nos viramos num sobressalto, surpreendidos pela chegada silenciosa do meu pai. Nós dois ficamos extáticos, como quem recebe uma carga elétrica, apenas observando o jeito acusador que ele nos olhava. Até que nos cortou, sua voz como balde de água virado violentamente em cima de nós.

             — Alguém pode me explicar o que está havendo aqui?

              Minha mão envolveu a nuca para coçá-la.

             — Nada. — respondi. — Apenas nos divertindo.

             Merda, acho que usei uma péssima expressão. O que meu pai acharia que eu estivesse fazendo, a julgar é claro, pelo meu conceito de diversão?

             Meu pai desviou seus olhos de mim e encarou Alícia por um segundo. Parece que a vi estremecer. Meu pai tornou a me olhar.

             — Venha comigo. — ele disse. Logo depois avançava a porta da casa sem esperar alguma possível objeção.

             Não olhei para Alícia quando o segui para o escritório que provavelmente seria o lugar que ele me levaria para ter a nossa conversa em particular. Mas eu não o acompanharia até lá como um cachorrinho. Ele não pode agir assim o tempo todo e esperar que eu simplesmente me submetesse.

             Parei no meio do caminho para o escritório, no hall, que era um pouco mais depois da porta e antes de alcançar a escada.              

             — Posso saber por que está agindo assim?

             Meu pai parou de andar de repente que chegou a me surpreender. Me encarou duramente.

             — O que você pensa que está fazendo? — o tom de sua voz era controlado, mas que notoriamente senti irritação. — Cansou de se comportar como um garoto irresponsável na rua, e agora está trazendo sua diversão para dentro de casa? E o que pensa que está fazendo com essa garota? Não é alguém que você andaria, então o que pretende com isso?

             Ele olhou fixamente pra mim enquanto dizia as palavras tão certo sobre si.

             — Sabe o que acontece com pessoas como nós? Sempre tem alguém atrás de você, mas não por causa de você, e sim por causa do que você tem.

             — Você está insinuando que ela...

             — Eu não estou insinuando nada. — me cortou, alterado. — É apenas um fato. Estou te aconselhando, porque é isso o que os pais fazem; prevenir seus filhos sobre as coisas que mais cedo ou mais tarde vão fazê-los sofrer.

             Balancei negativamente a cabeça.

             — Alícia não é desse tipo.

             Meu pai não disse nada. E então me deu as costas.

             Alícia tinha tirado a toalha e estava com ela cobrindo as mãos. Ela despistou um olhar sem graça quando me viu. Dei alguns passos lentos demais olhando o tempo todo para o seu rosto e parei, ficando de frente a ela na varanda de casa.

             Não havia nenhuma outra coisa que eu pudesse fazer a não ser coçar a testa de desconforto.

             — Você ouviu? — minha voz saiu sem autoridade.

             Ela disse com a cabeça que sim.

             — Hum.

             Perdi a concentração nela para olhar o espaço aberto da casa.

             — Desculpe.

             — Tudo bem. — sua voz não era magoada. — Seu pai está apenas tentando proteger você.

             Dei um sorriso fraco e cínico.

             — Você é uma otimista mesmo, para depois de ouvir o que ouviu ainda dizer isso. — e voltei os olhos para ela, encontrando seus olhos que já olhavam para mim.

             — É uma característica do otimismo acreditar no lado bom das coisas, não é? — ela disse, em resposta. Ou realmente não absorveu o que foi dito atrás daquela parede ou fingia muito bem. Ela tomou fôlego, como se tivesse há muito tempo ser ar. — Bem, e o que faremos com o trabalho?

             Baixei a cabeça.

             — Não estou com cabeça para estudar depois de todo esse drama.

             — Mas o trabalho é para amanhã...

             — Eu sei. — a interrompi de falar suavemente, olhando-a agora e sorrindo forçado para ela. — Considere-se oficialmente liberada de mim.

             Suas sobrancelhas estão franzidas.

             — Você pode repetir a disciplina.

             — Se quer saber —, eu disse, tranquilamente. — Eu não estou preocupado com isso. Só... vamos deixar isso para lá, certo?

             Eu não estava realmente me importando quando a intenção nunca foi de fazer o trabalho.

          

        Na manhã seguinte, encontrei meu pai sentado em sua cadeira. Ele estava de óculos lendo o jornal da manhã que todos os dias, religiosamente, ele lia. O jornal estava aberto, escondendo seu rosto.

             Sentei à mesa. Observei meu pai se me olharia, mas isso não aconteceu. Então decidi tomar a iniciativa. Não que eu fizesse isso sempre, mas hoje acordei de bom humor.

             — Bom dia, pai.

             — Bom dia. — ele respondeu em um tom indiferente, mexendo desconfortavelmente na cadeira. Estava tão acostumado com esse tom de apatia que nem me senti seriamente ofendido.

             Peguei o copo de café e joguei as costas na cadeira, tomando um longo gole.

             Logo depois Susie se aproximou da mesa só para poder olhar para mim.

             — Oi, Gabriel. — ela me cumprimentou, a voz acalentadora.

             — Oi, Susie. — respondi animado, e olhei para ela. — Como está hoje?

             — Não muito melhor do que você, eu tenho certeza.

             Eu estava parecendo um adolescente de quinze anos que não via a hora de ir para a escola e ver a garota com quem trocou olhares o mês inteiro.

             Meu pai mexeu na cadeira outra vez, visivelmente incomodado com alguma coisa. Ele dobrou o jornal e olhou para mim.

             — Vocês podem parar de fazer isso? — pediu, irritado.

             — Fazer o quê?

             — Esse tipo de conversa de manhã.

             Susie desviou os olhos para longe do meu pai.

             Olhei para ela, meus olhos dizendo para ela não se preocupar, que não deixaria que ele a agredisse também.

             — Você já se decidiu quanto ao estágio? — meu pai perguntou, me pressionando outra vez com seus comentários despretensiosos.

             — Não, pai. Nem passei do primeiro período, não é como se eu estivesse preparado para um estágio agora.

             — No primeiro período eu fui convocado para um estágio.

             Essa é a história do meu pai. Antes de a Biotec ser dele foi do meu avô. Mas quando ele começou com órgãos artificiais, o mercado e os recursos ainda eram escassos. Foi com o meu pai que as coisas realmente aconteceram. Ele formou-se em Bioengenharia, melhorou os protótipos existentes de órgãos artificiais e a partir deles aprimorou os que são vendidos hoje. Ele nem sempre foi rico; era apenas um cara muito inteligente que deu a sorte de ter uma oportunidade de indústria a meio caminho andado. Com vinte e três anos, meu pai já estava formado.

             Ele é um deus. Como pode exigir de mim que me iguale a ele?

             — Mas eu não sou você.

             Meu pai deu um sorriso de escarninho.

             — Não —, ele balançava a cabeça. — Obviamente que você não é. Todo mundo sabe disso.

             Poderia responder, mas preferi ficar calado. Vou usar tática de abordagem diferente. Esse poderia ser o melhor caminho em se tratando lidar com meu pai.

             — Tenho acompanhado seu boletim de aproveitamento.

             Ou não.

             — Eu não sabia que outras pessoas a não ser o universitário tem acesso a essas informações.

             — Eu sou praticamente sua instituição.

             Por meu pai ser o magnata de órgãos artificiais, a Biotec serve de pesquisa para os estudantes de Bioengenharia da Faculdade de Villanova. Então é claro que ele podia manipular informações. Eu estava errado em pensar que ele não fosse me observar de longe.

             — Se você vai fazer isso, que faça perfeito então. — meu pai concluiu. — Não me envergonhe.

             Levantei da cadeira, e não sei por que o fiz. Talvez porque senti incomodado por alguém estar controlando minha vida por um painel de simulação e simplesmente assisti-lo subordinado.

             Eu o olhei.

              — Talvez se você parasse de controlar a minha vida desse jeito, aí eu me sentiria um pouco mais disposto a contribuir. O senhor ainda não percebeu que isso não está dando certo? Que não está bom para mim?

             — Como pai —, ele disse na defensiva. — Eu só quero o melhor para você.

             — Você é um péssimo pai. — eu disse, irrefletidamente. E já era tarde demais. As palavras já tinham sido lançadas penhasco abaixo e não havia como puxá-las de volta.

             Ouvi o som da cadeira rangendo contra o chão quando foi arrastada e meu pai estava de pé também. Seus olhos estavam flamejando.     

             — Como ousa me acusar depois de tudo o que eu passei para te criar? Um pai solteiro e despreparado, cuidando de uma criança mimada e doente? Isso não foi nada fácil para mim. Então isso tudo o que eu sou com você, é porque você me deve. Lembre-se disso. — sua voz estava alta e agressiva agora. — Saia daqui. Agora!

             Não sei como são os pais de outras famílias, mas sei que eles não jogam aos pés de seus filhos toda essa merda só para ter o triunfo de vê-los se ajoelhar e recolher.

         

        Mais tarde, quando cheguei à porta da aula do professor Wilson, encontrei Alícia encostada na parede do lado de fora.

             — Finalmente. — ela disse, afastando-se da parede quando me viu. — Eu já estava me convencendo de que você não chegaria mais.

             Consegui sorrir. Ela estava me esperando?

             — Bem —, gesticulei a mão em direção à porta da sala. — Depois de você.

             Ao invés de entrar, ela deu um passo em minha direção.

             — Você não pode entrar aí de mão vazia outra vez. — ela disse, me dando um olhar persistente. — Professor Wilson espera que você entregue um trabalho de Física a ele hoje.

             Ela baixou o olhar para suas mãos, e foi o momento que percebi que segurava algumas folhas, e entregou em minhas mãos o que seria o trabalho que eu deveria ter feito.

             — Você...

             — Entra aí logo e entrega isso ao professor Wilson, certo?

             E com isso, entrou na sala. Mas olhou um momento pra trás e riu pra mim, um sorriso matreiro e conivente. Entrei logo atrás dela e andei até ao professor Wilson, sentindo em minhas mãos o peso do trabalho que Alícia fez por mim, e ela foi para o fundo da sala como era lá que eu gostava de sentar.

             E então me peguei pensando o que faria para continuar perto dela se o motivo para estarmos tão próximos era a desculpa do trabalho de Física.

             — Finalmente. — era a segunda vez que eu ouvia essa palavra hoje. — Espero que esteja com pelo menos 99 por cento de acerto, considerando o tempo que você gastou para fazê-lo.

             Professor Wilson pegou o trabalho da minha mão e me olhou novamente. Mas eu não estava olhando para ele. Estava olhando para a Alícia, e era a única coisa que eu via.

             — Vai estar. — assegurei a ele, distraído.

             Professor Wilson não falou mais. Em algum momento entre sua graduação e mestrado, ele deve ter sido avisado sobre a procrastinação.

             Andei para o fundo da sala e sentei. Alícia olhou pra mim quando virei para olhá-la sentada ao meu lado, e então sorriu. “Droga. Eu amo esse sorriso.” Imediatamente olhei para frente pra não ter que encará-la. Não queria entregar a ela o efeito confuso que causava em mim; uma hora confiante, outra não.

             Ela analisava meu rosto.

             — O que foi? — perguntou, sorrindo.

             Olhei para ela, o maxilar duro de seriedade.

             — Você não deveria ter feito o trabalho por mim.

             — Por quê? Consegui terminá-lo ontem mesmo. — ela disse, convencidamente. — Acredite em mim, não tive nenhum trabalho por isso. Eu sabia exatamente o que tinha que fazer. Só não fiz antes porque queria que você esforçasse um pouco.

             E então eu quis recompensá-la. Não pelo trabalho; por tudo. Eu não sei, talvez dar a ela um presente, um bom motivo para continuar sendo amigável comigo. Deus, como isso soava completamente hipócrita. São apenas desculpas para esconder o que eu realmente queria. Porque estava imaginando como seria se eu caminhasse com a Alícia em um lugar qualquer sem ter um destino em mente, se eu cansaria de passar muito tempo com ela sem fazer nada agradável a não ser as trocas de informações que precede a paquera, se sairíamos bem quando tentássemos conversar sobre tudo quando todos os nossos recursos de conversa tivessem excedido.

             Não havia sentido adiar mais.

             Eu olhava confiante para ela.

             — Você quer sair comigo amanhã?

             Ela sorriu como quem ganha o presente desejado e fez que sim com a cabeça vezes demais. Toquei sua testa com o dedo indicador, para parar a sua cabeça.

             — Eu entendi, Alícia.

             Nossos olhos se prenderam um no outro, e quase eu teria me aproximado mais, mas então a voz do professor Wilson na frente da sala me lembrou de onde exatamente nós estávamos.

             Mas tudo bem. O que mais tínhamos era tempo.

          

        É sábado. O mês de março estava um quente um pouco desconfortável demais para um encontro.

             Parei o carro em frente à casa da Alícia e esperei por ela do lado de fora, encostado na lateral do capô com os braços cruzados na frente do corpo.

             Ela mora para depois das cordilheiras e que ao passá-lo o pitoresco de aglomerados de casas apareciam, o mesmo bairro de periferia onde as corridas clandestinas depois da meia-noite e sem policiais acontecia.

             O rangido barulhento da porta abrindo chamou minha atenção para lá. Meu corpo está exatamente em sua direção.

             Ela não está de salto; está de tênis. Mas não está de jeans. Nem de vestido. Está com seus cachinhos soltos e como sempre indomáveis. E sem maquiagem, sua pele não precisava. Exceto pelo rímel, cílios volumosos que fazia seus olhos parecerem assustados.

             Movimentei as pernas. Estava indo em direção à porta do carro do motorista quando sua voz me parou no meio do caminho.

             — Você não quer entrar e conhecer meus pais?

            Ela abriu um sorriso quando virei para olhá-la.

            — Você sabe —, ela pareceu envergonhada. — É que meu pai está doido para te conhecer e não sei se posso aguentar a pressão por muito mais tempo.

             Eu dei de ombros e disse que tudo bem.

             Depois eu seguia Alícia em direção à porta.

             Ela tinha dito que seus pais eram superprotetores. Hoje eu descobriria o quanto superprotetores eles eram.

             O ar estava quente aqui dentro, mas não chegando ao ponto de estar abafado. Estava acolhedor.

             Na sala tinha um conjunto de sofá cor gelo colocado em posição de L, um tapete com o mesmo tom de cor forrando o chão de madeira criteriosamente encerado. Era um espaço pequeno para um monte de coisas. Passei o olho pelos livros didáticos acumulados em uma estante pequena e pelos livros literários meticulosamente colocados em ordem de tamanho, os olhos correndo por eles devagar, da esquerda para a direita.

             Alícia andava logo atrás de mim.

             — Não sei como você perde seu tempo com livros.

             Não olhava para ela mas sei pela sua voz que estava sorrindo.

             — É por isso que os homens perderam o jeito com as mulheres. — sua voz era vibrante. — Eles não leem livros como deveriam.

             Soltei um ruído de protesto pelo nariz.

             — Não preciso ler livros para saber como lidar com as mulheres. — discordei, a voz nasalada e contida.

             Passei perto de alguns porta-retratos e parei para olhá-los quando reconheci Alícia nele. Ela parecia ter mais ou menos sete anos aqui. O tempo correu, mas o mesmo encanto do sorriso que ela tem permanece o mesmo; não foi alterado. Tem também uma foto que ela já parecia mais velha, e estava segurando um violão nas pequenas mãos e sorria. Ela realmente sorria.

             Estava indo para a próxima foto quando me assustei, porque percebi um vulto passar atrás de mim acabando de entrar na sala.    Virei para encarar a mulher de imagem branda enquanto ela me observava receptivamente.

             Dei um passo até a ela para me apresentar, para alguém que supostamente poderia ser a mãe da Alícia.        

             — Oi. Eu sou o Gabriel.

             Ela me recebeu com um sorriso cálido, e que instantaneamente o reconheci na Alícia. Perguntei-me se era assim que ela pareceria quando fosse mais velha.

             — Eu sei quem você é. Eu sou Maria. — ela apontou para o sofá. — Não quer sentar?

             Como parecia que demoraríamos aqui por algum tempo, decidi aceitar a oferta. Curvei para sentar no sofá, e antes mesmo de alcançar minha bunda no estofado, logo levantava quando um homem entrou na sala. Tudo indicava que seria o pai.

             — Oi, rapaz.

             O cumprimentei com um aceno, pegando na sua mão de volta.

             — Como vai, senhor?

             Ele riu com vontade.

             — Bem. E a propósito, meu nome é Jeremias.

             Jeremias. Soava bem.

             Ele apontou para o sofá. E eu quase, quase mesmo, perguntei-lhe se por acaso não teria mais alguém da família para chegar. Jeremias viu que eu ainda não tinha me sentado e apontou de novo para o sofá.

             Sentei junto com a Alícia e sua família, costas curvadas e rígidas, braços descansados em cima da coxa das pernas desajeitadas, 1m 83 mal distribuídos na ponta do sofá. Por um momento eles apenas me observaram.

             Jeremias estava com as mãos no sofá atrás da Maria, e olhava fixamente para mim.

             — E então —, ele me apontou o dedo da mão desocupada. — Você é filho do Josh Müller, huh?     

             Ele falava como se meu pai e ele fossem velhos amigos.

             — Você o conhece?

             — E tem alguém que não conheça Josh Müller nessa cidade?

             Pensei no rosto do meu pai estampado nos jornais locais referindo-se ao homem que trouxe a tecnologia de ponta para o Brasil e supus que não.

             — Mas me diga uma coisa, rapaz; seu pai é do tipo que faria tudo por você?

             Não sabia qual era o propósito dessa pergunta, se seria um teste ou apenas uma curiosidade a ser finalmente sanada. Eu não tinha como ter certeza, de qualquer forma, e olhei para Maria ao seu lado. Ela desviou os olhos, e não consegui distinguir se o era de vergonha, incômodo ou de contrariedade. Olhei para a Alícia. Ela me apoiava acenando a cabeça positivamente e com o olhar fixo no meu.

             — Acho que sim. — eu disse, virando-me para ele. — Considerando que sou um jovem que tem tudo o que deseja.

              — Jeremias, chega. — Maria disse, um tom intransigente que não admitia condescendência. E deu um sorriso para mim, para aliviar. — Acho que você não veio até aqui para responder esse tipo de pergunta, não é?

             Eu não os conheço bem, mas posso notar pela tensão que se formou sobre nós que eles não são um casal normal. Há uma tensão entre eles. O que é perfeitamente normal. É irrefutável o fato de que ao longo dos anos o romance sofre desgaste. Não que eu seja um cético que não acredita em amor para toda a vida, mas tem aquela coisa de que as coisas sempre são mais fáceis no começo.

             — Como é ter tudo o que deseja? — Alícia perguntou, sua voz como pano frio em cima de um rosto febril. — Sei que você não tem tudo o que deseja, mas estou falando das coisas que o dinheiro pode pagar. Como é viver sem se preocupar com as contas a vencer?

             Não precisei pensar para responder.

             — Impotente. É isso o que é ter muito dinheiro. Se sentir assim o tempo todo por ter muito enquanto mais que a metade do país tem um pouco acima do mínimo para viver com decência.

             Ela deu um largo sorriso, porque essa era a resposta certa.

             Mas essa não era a resposta certa. É verdade o que eu disse, eu não concordava com as diferenças, mas mesmo assim, não sou capaz de dizer que toparia viver como eles, porque sei que o mundo não é daqueles que não têm recursos.

             Pergunto-me se é pecado me sacrificar a fim de me manter no pedestal que determina quem predomina.

         

        Na hora de ir embora, eu dei a volta no carro e abri a porta para que Alícia entrasse, porque era o que os mocinhos de livro faziam.

          

        O parque estava lotado. Já na entrada dele você conseguia ver a roda gigante lá atrás, lâmpadas superluminosas em volta dela. Aliás, a maioria dos brinquedos tinha pequenas lâmpadas mágicas em volta deles. E isso era contagiante, todo esse jogo de luzes e cores.

             Ouvimos gritos de pessoas ensandecidas se divertindo ao passarmos ao lado de um brinquedo que dava giros ao alto e tocava quase de relance o chão. Depois passamos ao lado de um carrossel. Crianças brincavam livres e despreocupadas em cima das esculturas de cavalos.

             De todos os lugares possíveis onde poderíamos estar, eu sinceramente não sei o que estou fazendo aqui com ela. Talvez porque Alícia para mim é sinônimo de desejos simples e risos, e achei que esse lugar tinha tudo a ver com ela.

             — Nunca imaginei você em um lugar como esse. — ela disse uma hora, enquanto andávamos explorando o parque.

             Eu andava ligeiramente curvado com as mãos nos bolsos.

             — E por que não?

             — Eu não sei, eu te vejo em qualquer lugar, não aqui. Você não parece do tipo que gosta de parque. — ela parou em frente ao carrossel e apontou para ele. — Fala a verdade: você andaria nesse brinquedo?

             — Sim. Você não?

             Alícia balançou a cabeça, rindo.

             — Não!

             — Está bem, eu não andaria nesse brinquedo, mas talvez eu andasse naquele ali. — e apontei o dedo para os carinhos bate-bate.

             Seus olhos seguiram a minha mão e depois voltou para mim novamente. Ela levantou uma sobrancelha, a voz insinuante.

             — Então você gosta de corridas de carros?

             — Um pouco. — respondi. — E você?

             — Eu? Hum... parece-me excitante.

             Ela não poderia ter usado um adjetivo melhor, mesmo que estivéssemos falando de coisas completamente diferentes.

             — Então você é do tipo que gosta de adrenalina. — fiz um movimento da cabeça. — Bem, eu só não te chamo para andarmos nesse brinquedo porque você está linda e eu não quero ter que bagunçar você.

             — Obrigada, por ter gostado. Eu não teria gostado da ideia de entrar aí.

             Ela estava rindo um riso travesso. E quando olhou pra mim eu vi as luzes da roda gigante logo à sua frente brilharem através dos seus olhos de conto de fadas. Passou-se sete segundos. Depois nossos olhares irrefletidamente ficaram presos nas pessoas desconhecidas no parque, sem graça, não querendo ter que encarar ambos.

             — Aquele dia eu não estava no bar Irmãos Silva para ver as pessoas cantarem, como eu tinha dito pra você. — confidenciei. — Quero dizer, eu realmente tinha ido ver as pessoas cantarem, mas só porque não tive coragem de fazer o que elas tiveram coragem de fazer.

             — E por que não?

             — Medo, talvez. — eu respondi, evitando seus olhos. — De descobrir que é a única coisa nesse mundo que realmente gosto de fazer e, então, eventualmente me dar conta de que na verdade sou uma fraude.

             Alícia ficou calada um instante.

             — Isso não é verdade. — ela disse, a voz com ternura. — Você nunca vai ser uma fraude.

             Comecei a andar.

             Ela me seguiu até pararmos em frente à montanha russa, ao lado de algumas pessoas que analisavam os movimentos mortais dos carrinhos pelos trilhos. Ficou a olhando admiravelmente, enquanto eu observava seu rosto e seus olhos brilharem de fascinação. Estava prestes a convidá-la para ir ao brinquedo, mas perto de mim passou um cara vendendo flores coloridas e julguei que talvez desse algumas delas para a Alícia fosse mais interessante para ela do que ir à montanha russa.

             Deixei Alícia e seu encantamento. Ela nem notou que saí de tão concentrada que estava na montanha.

             O vendedor me cumprimentou com um sorriso aberto.

             — Vai querer uma?

             Acenei positivamente.

             — Qual cor você vai querer?

             Eu estava contrariado.

             — Eu só quero uma rosa.

             — Sim, mas qual cor?

             — Tanto faz. — eu disse inquietamente, puxando qualquer opção de cor. Tirei o dinheiro da carteira e entreguei a ele. Atrás de mim, o homem manobrava entre segurar seu ganha-pão e guardar o dinheiro, enquanto eu ajeitava a flor na minha mão à medida que me afastava.

             Parei ao lado dela. Depois de alguns segundos, Alícia finalmente olhou para mim. Estendi a ela um tímido ramo amarelo. Surpresa inundava o seu rosto, e me perguntei por que permiti que algo como esse gesto vindo de mim soasse tão impossível assim.

             — Obrigada. — disse, capturando a rosa da minha mão. — Não sabia que você era do tipo que dá flores para as garotas.

             — Nem eu.

             Ela baixou os olhos e riu. Um sorriso que me recompensou. Ela é olhos brilhantes e inseguros, sorrisos reconfortantes e a voz gentil. E não tem nenhuma ideia sobre o efeito que tem em mim.

             Observei-a. Pequena e inquieta, a rosa sendo girada nervosamente na sua mão também pequena e inquieta com ela.

             — Acho que —, decidi de repente. — Isso vai ficar melhor em outro lugar.

             Os olhos dela brilharam, realmente brilharam quando eu diminuía a distância entre nós devagar para não assustá-la, e dessa vez não foi por causa das luzes da montanha russa. Parei muito próximo dela. Levei uma mecha de cabelo para trás da sua orelha, e seu rosto ficou atraentemente vermelho. Peguei a rosa da sua mão e atrevidamente a prendi atrás da sua orelha. Ela levantou os olhos e olhou direto nos meus olhos, com certa apreensão e excitação de como se eu estivesse desabotoando o primeiro e o segundo botão da sua blusa.

             — Eu vou buscar refrigerante. — ela disse, de repente. — Você quer um?

             — Não.

             Alícia começou a andar para longe. E então eu me dei conta.

             — Espere —, minha voz saiu meio tremida enquanto eu tentava tirar a carteira do bolso de trás e ao mesmo tempo me dirigir a ela. — O dinheiro para o refrigerante!

             — Não esquenta. — ela gritou de volta, andando de costas e sem tirar os olhos de mim. — Eu tenho uns trocados aqui!

             Ela era independente e orgulhosa demais para isso.

             Enquanto andávamos, nós passamos em frente a um cara com uma barraquinha de refrigerante. Provavelmente era para aonde estava indo agora.

             Ela virou e sumiu no meio da multidão, e eu me peguei sorrindo. Talvez da forma inesperada como fui deixado, ou de como pensei que já a tinha e foi nesse exato momento que me escapou. E perguntei para alguém importante em algum lugar do céu se isso deveria ser algum tipo de conspiração... virei o rosto, e perdi a imagem bruscamente e linhas verticais apareceram na tela, porque vi Vitor vindo em minha direção. Num momento eu o via a cinco metros de distância, e no outro ele estava à minha frente, me empurrando para trás.

             — O que você pensa que está fazendo com a Alícia? — ele inquiriu, a voz desesperada e descontrolada.

             Não consegui fazer uma ligação entre a Alícia que eu trouxe para o parque com a Alícia que o Vitor se referia e que incontestavelmente deveria ser alguma coisa dele.

             — Eu não sei de quem você está falando.

             — Não se faça de desentendido. — ele estava gritando. — Vai me dizer que você não sabe quem é a garota que estava agora mesmo com você?

             Visualizei Alícia que não tinha nem vinte segundos que saiu daqui para ir atrás do cara do refrigerante.

             Minha postura mudou.

             — E o que você tem a ver com ela? — perguntei, defensivamente agora.

             — Eu sou o irmão dela, seu idiota. Para onde ela foi? — exigiu, a voz autoritária.     

             — Ela foi... — balancei a cabeça atordoado, perguntando-me se deveria dizer alguma coisa a ele, os olhos apertados e fechados, envolvido numa confusão de horror e surpresa. Minha voz desestabilizou. — E o que você está fazendo aqui?

             Vitor passou a me olhar desconfiado.

             — Você fez isso de propósito, não foi? — apesar do tom de pergunta, seu tom era de afirmação. — Pegar minha irmã só para me provocar?

             Sorri um riso louco e minha mão direita foi pra cima.

              — Eu nem sabia que ela tinha um irmão!

             Vitor me afrontou com o olhar e deu mais dois passos. Olhei para o lado, prevendo suas encaradas. E apontando o dedo para mim, disse muito perto da minha cara:

             — Vou encontrar a Alícia, e então vou levá-la embora comigo. E você nunca mais vai vê-la outra vez. — ele disse, numa tentativa de soar intimidador. — Entendeu? 

             Vitor me empurrou pra trás antes de sair, andando para o lado contrário do que a Alícia tinha ido, e eu não me dei ao trabalho de avisá-lo que estava indo para o lugar errado. Pretendia encontrá-la antes, e então saberia o que diabos estava acontecendo aqui.

          

        Alícia voltava com o refrigerante quando a encontrei no meio do caminho.

             — O que foi? — ela perguntou, preocupada, ao ver-me aparecer à sua frente com uma respiração acelerada e o rosto tenso.

             Ignorei ela e seus olhos arregalados em confusão. Em seguida, minhas palavras saíram sem ao menos as ter preparado previamente, saindo cruamente dura e acusadora.

             — Você é irmã do Vitor?

             — Sim. — ela respondeu com um aceno lento. — Como você sabe?

             Joguei minha cabeça pra trás rápido o bastante para olhar para o céu e voltar para ela.

             — Por que não me disse? — queixei, enfurecido.

             — Eu não sabia que ao te conhecer deveria ter dito todos os integrantes da minha família. E qual é o problema?

             — Todos. — meu tom foi enfático. — O cara é um imbecil.

             — Ei —, ela disse em reprovação, numa voz baixa e controlada, apontando o dedo indicador para mim. — Você que está sendo um imbecil agora.

             E baixou o dedo, porque não sabia mais o que fazer com ele.

             Olhei para a Alícia agora, não como uma colega de faculdade e uma garota que possivelmente poderia vir a ser até algo mais do que isso, e sim a via criminalmente como a irmã do Vitor.

             Tomei fôlego para soltar o ar frustrado.

             — Vamos embora.

             — Agora? 

             — Agora.

             Recuei um passo e virei para sair dali.

             Alícia me seguia logo atrás, correndo pelo parque para alcançar meus passos largos.

             — Mas... — ela dizia atrás de mim. — Por quê?

             Meu rosto estava tenso.

             — Seu irmão está aqui.

             — O quê? — ela conseguiu soar mais surpresa de quando fiquei a pouco menos de minutos atrás. — Não era para ele estar aqui!

             Quando chegamos ao estacionamento, Vitor estava encostado no meu carro, as pernas cruzadas e os braços ao lado do corpo apoiados no capô, uma imagem que soava nitidamente provocativa. Ele me acharia, e então acharia Alícia e faria o que obstinadamente veio fazer.

             Alícia se aproximou dele.

             — Vitor —, sua voz era tensa. — O que está fazendo aqui?

             — Eu te segui. Eu queria ter certeza se você teria coragem de prosseguir com isso. — e olhou furiosamente para mim enquanto falava. — E estou decepcionado por saber que sim.

             Ele largou o carro e andou hostilmente até nós.

             — Vitor. — Alícia disse, advertidamente. Acho que ela nem se viu dando um passo pra trás. Não, ela não viu. Seu corpo estava duro como pedra e sua cara branca como papel.

             — Eu te avisei, Alícia. Eu disse pra ficar longe. — ele disse, alto. — Caras ricos como ele, aproveitam das garotas que estão atrás do que eles têm e não se importam.

             Ele era um idiota mesmo, acabou de ofender a própria irmã.

             Vitor tirou a rosa de trás da orelha da Alícia para jogar no chão.

             — Você vai voltar comigo. — determinou.

             Ela deu um passo pra trás, mas dessa vez foi em reflexo. Ele pegou seu braço e apertou os dedos em volta do seu pulso.

             Isso já foi longe demais.

             — Para com isso, Vitor. — interferi, a voz estável. — Alícia não é mais uma garotinha para você agir assim.

             — É exatamente por isso que eu preciso assegurar que ela fique longe de você.

             Eu disse isso mais pelo Vitor a tratar como um irmão mais velho cuidando de sua irmã adolescente e não pelo motivo que ele insinuou. Apesar de que, no fundo, era isso o que eu estava pensando; em como Alícia não parecia em nada como uma garotinha.

             Dei passos à frente e peguei no braço da Alícia, Vitor pegando de um lado e eu do outro, como um cabo de guerra.

             — Alícia não vai a lugar algum com você. — eu disse, com firmeza. Ela também não era minha propriedade para eu reivindicá-la dessa forma, mas talvez eu estivesse com orgulho de não voltar com a garota que cheguei até aqui.

             — Com você posso garantir que também não.

             Alícia puxou a mão do Vitor de modo brusco e soltou-se. Quanto a mim, colocou gentilmente a mão livre em cima da minha, tirando-a do seu braço também.

             — Eu consigo resolver isso. — ela disse pra mim, numa voz calma e baixa.

             Ela não parece que estava conseguindo.

             — Acredite em mim, Alícia, Vitor não vai te escutar. Também não posso permitir que volte com o seu irmão, porque foi para mim que seus pais te entregaram e não para ele. E se algo acontecer a você quando estiver com ele? — olhei para o Vitor. — Desculpe, mas ela é a minha responsabilidade esta noite. Vamos embora, Alícia.

             Passei por ela, mas Alícia parecia determinada a não me seguir.

             — Você sabe que não pode ir com ele. — Vitor estava dizendo para ela, de repente desesperado. — Não se lembra de nada do que eu disse? Você acha que ele...?

             — Pare com isso, Vitor. — sua voz saiu funda e arrepiada.

             — Vai ficar com você...

             — Cala a boca, Vitor! Eu não sou uma criança, pelo amor de Deus!

             Vitor miraculosamente se calou. E tudo à nossa volta também calou. Alícia ficou congelada, seus olhos por um momento não piscaram. E acredito que ela não teria me seguido se Vitor não a tivesse provocado tanto como agora.

             Alícia e Vitor não se pareciam. O cabelo dele é preto e de corte rente à cabeça, rosto largo, olhos escuros, muito músculo, um pouco maior do que ela.

             — Eu vou fazer você se arrepender por isso, playboyzinho de merda. — ele dizia, enquanto via Alícia me seguir.

             Abri a porta do carro com raiva. Estava sem fôlego quando tomei o banco do motorista, perguntando-me se esse circo todo realmente tinha acontecido. Qual era o meu problema? Era só eu ter deixado o maluco do Vitor levar sua irmã dependente e nada disso teria acontecido, mas não, eu tinha que fazer alguma coisa.

             Alícia entrou no carro logo em seguida, sentou ao meu lado e puxou o cinto de segurança, fazendo tudo isso sem me olhar. Suas mãos tremiam, mal conseguindo trancar o cinto à sua volta. Eu queria poder dizer algo a ela agora, mas o que eu poderia dizer num momento como esse? E além do mais, eu deveria estar com raiva.

             Enfiei a chave na ignição e girei, o barulho do motor possante sob o capô ensurdecendo qualquer pessoa no raio de dois quilômetros. Atrás do volante, todo o meu corpo começou a vibrar por causa do motor. Desviei os olhos da direção para o retrovisor a fim de fazer a manobra, o filtro de ar refletindo pelo espelho.    

             Dei a ré. Troquei a marcha. E segui meu caminho enquanto observava pelo retrovisor a imagem do Vitor diminuir quando o carro se distanciava.

             Passávamos por uma avenida mal iluminada e de árvores escuras, eu sentindo a imperfeição do asfalto através das mãos no volante.

             Desviei os olhos da estrada e a olhei por um instante.

             — Por que todo esse ataque do seu irmão em te ver comigo?

             — Você não sabe? — sua voz chiou. — Bem, é tudo por causa dessa corrida estúpida e sobre essa rivalidade estúpida de vocês dois.

             Olhei para o lado da minha janela só por um segundo.

             — Então você sabe sobre a corrida.

             — Sim. — ela disse, sua voz mais calma. — Cheguei a te ver na corrida uma vez. Na verdade, foi mais que um olhar de longe. Você estava passando apressado quando esbarrou distraidamente em mim; parecia nervoso com alguma coisa. Essa tinha sido a primeira vez que eu te vi.

             Fiz um esforço para me lembrar dela, e revirei minha memória como um ladrão faz ao entrar em uma casa adentro, tirando as coisas do lugar, jogando ao chão tudo o que pudesse encobrir alguma coisa de valor.

             — Não acho que eu tenha te visto antes.

             — Não me surpreende você não ter se lembrado. Eu sempre fui aquele tipo de pessoa que passa despercebida mesmo se esbarrar em alguém. — ela disse. — Naquele dia, assim que percebeu que tinha esbarrado em mim, você perguntou se eu estava bem. E quando me olhou, naquele momento esqueci tudo o que sabia sobre você, porque como você pode ser como as pessoas dizem, se pode se preocupar com um desconhecido? E então te encontrei de novo na Faculdade de Villanova, e não era como se eu fosse te ignorar. — ela encarava o meu rosto. — Desculpe não ter falado nada sobre meu irmão. Porque caso contrário, não seria possível você estar aqui agora.

             — Com toda a certeza não. — eu disse, e dei uma virada brusca para virar a curva.

             Continuei dirigindo, meus olhos fixamente concentrados na rodovia. Mas teve uma vez que olhei para a Alícia ao meu lado, e a peguei me olhando de volta.

            Eu não deveria ser intolerante quando todo mundo esconde alguma coisa sobre si mesmo.

             — Isso o que eu disse... não é verdade. — eu disse, voltando atrás. Porque não acho que seja fácil ficar com raiva de uma pessoa de quem a gente gosta. — Não acho que conseguiria ficar muito tempo sem falar com você.

             Dois faróis de carro que me seguia logo atrás piscaram pelo retrovisor central, chamando a atenção dos meus olhos. Ignorei, e voltei a olhar para a rodovia. O farol piscou outra vez.

             Olhei novamente, e reconheci o carro.

             — Que merda é essa que ele está fazendo agora? — eu me vi dizendo. Mas talvez eu estivesse preocupado com a reação do Vitor quando ele na verdade estava apenas tomando o caminho de casa.

             — Quem está fazendo o quê?

             Mas, e se ele não estivesse? E se ele estiver pensando em me desafiar? Não, isso é loucura, eu sei. Isso não deveria estar acontecendo, não aqui. Não agora.    

             — De quem você está falando, Gabriel? — ela perguntou de novo, dessa vez nervosa.

             — Do seu irmão, que inclusive está nos perseguindo.

             Alícia virou o rosto de repente para trás, e depois me olhou, assustada. 

             — Por que ele está fazendo isso? — ela disse em um sussurro, em dois decibéis mais alto que seu acostumado tom.

             — Como eu posso saber? Então por que você não liga para ele e faz essa pergunta àquele imbecil?

             Alícia me reprovou um instante com os olhos com a maneira a qual me referi ao seu irmão, mas depois considerou. Ela tinha um problema maior para resolver do que defender a maneira como eu chamava o Vitor. Abriu a bolsa e pegou o celular. Enquanto o esperava atender, ela me olhava, incerta se conseguiria fazer isso, enquanto o meu olhar para ela era de ande logo.

             A tensão entre nós estava em alta voltagem.

             — Vitor? — ela o chamou. — Vitor, o que está fazendo?

             Houve uma pausa.

             — Não. Eu sei o que estou fazendo, então pare com seja o que estiver tentando fazer.

             Sua voz parou outra vez para escutá-lo, e esse estribilho passou a me deixar inquieto. Deveriam deixar esse assunto de família para depois, para quando estiverem preferencialmente em um lugar que não tenha tráfego de carro e no momento que o Vitor estiver rigorosamente sedado. Sim, como uma pessoa demente, que é o que ele é. 

             — Me passa o celular. — inclinei-me para a Alícia, estendendo a mão para pegar o celular, mexendo meus dedos inquietamente. — Deixe-me tentar agora.

             Hesitante, Alícia o passou para mim.

             — Vitor, pare de ser infantil, está bem? Isso não é divertido. Talvez numa corrida, só nós dois. Não na estrada e com a sua irmã.

             — Não vou deixar você ficar também com a minha irmã.

             — Você não ouviu nada do que eu disse? Isso não é uma competição!

             Desliguei o celular e o entreguei a Alícia.

             — O que aconteceu? — ela quis saber, preocupada.

             — Eu não disse que seu irmão era um imbecil?

             Eu tentava dirigir para longe do Vitor, e cada vez que ele avançava, eu acelerava. Não porque estava entrando no seu jogo, apenas queria tirar eu e Alícia da sua reta e nos colocar em segurança para longe dele.

             Mas ele continuou me seguindo.

             — Gabriel —, Alícia disse, a voz baixa e hesitante. — Não precisamos correr. Acho que meu pai não vai se importar se a gente chegar uns minutinhos depois das onze...

             Ela estava com suas duas mãos seguradas na correia do cinto, assegurando que se o tranco travasse, talvez se o segurasse ajudasse salvar sua vida caso houvesse algum impacto. Não é uma boa hora para eu me lembrar de música, mas vendo-a assim, me lembrou de uma que uma garota diz ao rapaz que ele tem um carro rápido, e o questionava se ele era rápido o bastante para voarem para longe[1]. Não que fosse isso o que os olhos da Alícia estavam me dizendo agora.

             “Quem escapa a um perigo ama a vida com outra intensidade”, foi o que Assis escreveu quando compôs o pensamento de Cubas. Alícia parecia o tipo de pessoa que concordava com ele.

             Ultrapassei o carro à minha frente para pegar um atalho pela estrada e assim poder seguir meu caminho livre do Vitor. Foi isso o que fiz. Não tinha nenhum carro na minha frente, o caminho estava livre.

             Um brilho entrou no carro vindo pelo espelho da frente e senti iluminar todo o meu rosto, logo seguido de um som de buzina estridente e longa. Meu coração acelerou. Todo o meu corpo ficou ativo quando vi um caminhão bem à nossa frente, e me dei conta de que estávamos emboscados no meio da pista. Não havia para onde fugir. Ele estava desgovernado, por isso apareceu no meio do nada, numa pista que não era a dele.

             Desviei instintivamente toda a direção do carro para a esquerda, jogando-o para o acostamento. Estava tudo sobre controle, consegui desviar do caminhão, jogando-o para a mata. E foi quando perdi o controle da direção. Foi o maldito alívio de que tínhamos escapado que me fez perder o controle. Minhas mãos fugiram do volante e meus pés pisaram em falso no freio.

             Estávamos indo direto em direção das reservas de árvores.

          

        Abri os olhos. Eu me movi na cama, e ao inclinar a cabeça, vi uma sonda injetada no meu braço; parecendo que eu estava tomando algum tipo de soro. Percebi que algum tipo de bandagem estava apertando minha cabeça também, pegando um pouco da testa. A assimilação ocorreu instantaneamente.

             Umas das últimas vezes que estive aqui com urgência foram pelos ataques de bronquite quando criança.

             Eu não estava sozinho no quarto. Susie estava sentada na poltrona e concentrada no livro que lia, com uma blusa de frio jogada sobre suas pernas, pequena demais para cobri-las por completo.

             Eu já deveria saber que quando abrisse meus olhos, a pessoa que estaria esperando por mim seria ela, e não meu pai, quando deveria ser.

             Grunhi quando fiz uma tentativa de me levantar, mas prossegui. Todo o meu corpo estava doendo, como esteve sem se mover por algum tempo. Susie percebeu e virou para me olhar. Quando viu o que eu estava prestes a fazer, imediatamente jogou a blusa e o livro para o canto e levantou, aproximando-se apressadamente de mim na cama.

             — Acho que você deveria ficar deitado. — ela disse, repreensivamente.

             — Fiquei muito tempo deitado para querer me levantar, Susie.

             Suspirei cansado, e arrumei uma posição confortável para minha coluna e pernas na cama. Depois olhei para a Susie. Ela passou sua mão na bandagem cobrindo minha cabeça de um jeito materno, e era assaz acolhedor. 

             — É bom te ver acordado. — ela disse, segundos depois. — Você nos deu um susto. Seu pai ficou apavorado. Ele estava preocupado, com medo de te perder também.

             Olhei inquisitivamente para o quarto vazio sem indícios dele.   

             — Então onde ele está agora?

             Tornei a olhá-la, e Susie apenas me olhou da maneira que eu estava acostumado quando tentava justificar a ausência do meu pai.

             — Os médicos disseram que você estava fora de perigo, então ele voltou para o trabalho. Mas ele disse que assim que conseguisse despachar alguns compradores, vinha te ver. — ela disse prontamente, como se fosse deixar as coisas um pouco melhores. — Ele prometeu.

             Perguntei-me se eu deveria ser um péssimo filho para meu pai não estar aqui quando eu abrisse meus olhos, quando provavelmente eu poderia não ter o feito. Não que estivesse esperando que ele me esperasse com balões de melhoras. Um sorriso de alívio bastaria para mim.

             — Obrigado —, eu disse para a Susie. — Por estar aqui.

             Ela sorriu um sorriso reconfortante e se afastou. Eu a observava enquanto tirava o livro em cima da cadeira e voltava a se sentar, continuando a lê-lo.

             — E Alícia? — eu perguntei, hesitante quanto a resposta. — Você sabe se... se ela está bem?

             Susie desviou os olhos do livro por um momento e me olhou de modo condescendente, apesar de eu ter tirado sua concentração na leitura que parecia estar realmente muito interessante, mais interessante do que eu ter acordado.

             — Sim, está. Ela tinha ido para um hospital público, mas seu pai se responsabilizou pela transferência dela para cá. Ele está arcando com todas as despesas dela. — ela virou para frente, acomodando-se na cadeira e passou uma folha do livro. — Seu pai está sendo muito generoso.

             Soltei uma respiração de alívio puro. Imagina como seria acordar de um acidente e descobrir que alguém morreu com você no volante? Acho que ninguém gostaria de ter sangue de uma pessoa nas mãos.

             — Você acha que posso vê-la assim que o médico me liberar, então?

             — Acho que sim. — Susie respondeu sem me olhar. — Mas de qualquer forma, você mesmo pode perguntar a ele quando voltar daqui —, e olhou rapidamente para o relógio pregado na parede. — A uma hora para verificar seu histórico médico. Ele também vai te explicar algumas coisas.

             — Que coisas? — eu perguntei por perguntar. Eu observava o quarto que fui instalado, depois olhei para o soro suspenso ao lado da minha cama sendo transferido para o meu organismo, injetado por uma agulha de espessura que não podia definir o tamanho por estar transpassada no meu braço! Descobri que eu não estava vestindo mais as roupas que usei no sábado. No seu lugar, eu estava usando uma camisola hospitalar.

             — Você sabe, as coisas que tiveram que fazer para te manter vivo. — ela disse, distraidamente. — Sobre o sangue que você perdeu, os ossos que quebrou. Essas coisas burocráticas.

             Imagens do acidente passaram pela minha cabeça como se uma espécie de dispositivo de memórias fosse de repente acionado por um botãozinho. Vi fragmentos de todas as fases daquela noite passando pelos meus olhos como flashes. Obviamente, eles me assombrariam agora.

             — Nós tivemos sorte. — eu disse, de repente consciente.

             Susie me ouviu.

             — O que disse?

             Meus olhos foram irrefletidamente para Susie sentada na cadeira, mas eu não olhava necessariamente em seus olhos ou para ela. Meus olhos não estavam vidrados em nenhum lugar específico daquele quarto.

             — O acidente. — sussurrei, ainda falando para mim mesmo. — Por um giro a mais nós poderíamos talvez não ter sobrevivido, e eu era o motorista naquela noite. Eu seria o responsável por nós dois se tivesse acontecido alguma coisa.

             A expressão da Susie ficou preocupada quando ouviu o que eu disse. Depois de um acidente daquele que tive, as vítimas costumavam ficar paranoicas e depressivas. Não era o que eu estava sentindo no momento, mas Susie pensou que deveria se preocupar.

             Por isso quando sua voz saiu, ela foi tensa e trêmula.   

              — Mas nada aconteceu. Quero dizer, nada irreparável. E você vai ver quando sair daqui. Tudo vai voltar ao normal.

             E eu acreditei, como criança que acredita em promessas fáceis.

             Susie virou mais uma folha do livro.

             — Você deveria tentar descansar agora. Você e os médicos terão um longo caminho pela frente...

          

        Hoje completava três dias que estou trancado neste quarto. E durante esse período, Susie e eu costumávamos minimizar a forte influência das tardes maçantes e longas procurando ler livros e assistindo televisão. No caso, livros para Susie e televisão para mim.

             Quanto a isso, Susie tinha certa resistência. Ela tinha um tipo de ditadura contra a televisão. Ela sempre dizia que os conteúdos de entretenimentos nos deixavam burros. E sempre eu dizia a mim mesmo que ela só estava preocupada com a influência que eles poderiam ter sobre meu intelectual e não necessariamente me chamando de burro.

             E numa dessas tardes, Susie estava sentada na intitulada sua poltrona lendo um livro enquanto eu assistia a um filme repetido passando na televisão aberta. Nada de novo acontecia, até que deram leves batidas na porta, fazendo minha cabeça se dirigir rapidamente para lá em sobressalto. Qualquer barulho anormal quebrando aquele intacto silêncio causaria essa reação.

             Logo em seguida, apareceu o rosto gentil de uma enfermeira na brecha que foi aberta.

             — Você tem visita. — ela disse.

             O rosto da enfermeira voltou para trás e sumiu. Mas ela deixou a porta meio aberta, e isso significava que quem quer que tenha vindo me visitar não demoraria muito a entrar por aquela porta.

             Em um clique rápido desliguei a televisão, jogando o controle remoto ao lado da perna deitada e me endireitei, arrumando apresentavelmente o corpo na cama.

             A enfermeira voltou, abrindo a porta completamente.

             Nas pessoas que entraram no quarto, identifiquei apenas Carolina e Wesley; Lucas não estava. E apesar de toda a nossa desavença, esperava que no final ele fosse estar.

             Os dois ficaram parados e me olhando analiticamente como quem olha para alguém que acaba de fazer uma cirurgia estética que deu errado; um nariz muito grande do esperado ou o queixo fora do lugar. E isso só porque eu tinha alguns cortes e machucados que ainda não sararam na minha testa e ao longo do meu braço. Tive um ferimento grave na testa, mas esse estava escondido debaixo do cabelo, um pouco acima da sobrancelha. Era bem pequeno, mas já me avisaram que ficará ali para sempre apesar da tentativa de não o deixarem ali. Eu não estava me importando muito com uma cicatriz quando eu poderia ter saído daquele acidente sem um membro importante do corpo.

             Tive uma contusão, hemorragia e ossos quebrados. Eu estava quebrado exatamente no sentido literal da palavra.

             — Ei! — Carolina finalmente disse algo, e foi quando se aproximou. 

             Dei um sorriso fraco para ela.

             — Ei.

             Susie levantou da cadeira.

             — Bem, já que seus amigos estão aqui, vou lá embaixo tomar um café. Se precisar de mim, é só chamar no celular. Certo? 

             — Certo, Susie. — eu disse, enfadonhamente. — Consigo sobreviver alguns minutos sem você.

             Susie assentiu pra mim, não completamente satisfeita e saiu. E como se estivesse esperando que ela saísse, Carolina se aproximou da cama, mas parou a dez centímetros de distância entre mim e ela. Ela não sabia como agir e parecia desconcertada por isso.

             — E então —, ela disse, hesitante. — Você está bem?

             Cocei o queixo, conseguindo rir por mais que fosse só de nervoso.

             — Sim, apesar de não parecer.

             — O que aconteceu, cara? — Wesley perguntou, aparentemente parecendo não esperar por essa; que logo eu tivesse batido o carro e me envolvido numa confusão dessas. Pra falar a verdade, nem eu esperava.

             — Perdi o controle...

             — E o que aquela menina fazia com você? — Carolina não me deixou terminar, soando desinteressada. Mas ela parecia inquieta sobre isso.

             — Nós tínhamos ido ao parque...

             — Parque? — Wesley disse desdenhosamente, balançando a cabeça em negação. — Vocês estavam ficando? Que doidera.

             Carolina procurou um lugar na beirada da cama ao meu lado e sentou, enquanto Wesley preparava-se para sentar na poltrona da Susie. Se ela estivesse aqui com certeza não aprovaria seu traseiro magrelo e desastrado atrapalhando a colcha primorosamente arrumada.    

             — Disseram que você teve que fazer uma cirurgia. — Wesley disse, assim que se sentou. — Foi tão grave assim?

             — Sim, pelo que disseram. Quebrei alguns ossos. Em um acidente daquele que tive era demais pedir para sair ileso.

             — E você? — Carolina me perguntou. — Está bem?

             Fora a insuportável dor de cabeça que eu estava sentindo, sim. Minha cabeça estava estourando numa sequência de bombas e apitos, e sinceramente eu não sabia qual deles era o pior. Os médicos disseram que era normal. Eu tinha levado um baque e tanto na cabeça. Levaria um tempo até eu me recuperar completamente.

             — Claro. — respondi, empolgado. — Os médicos não me disseram, mas, talvez eles queiram me liberar na próxima semana.

             Susie voltou tempo depois, acompanhada com a notícia de que o tempo de visita dos meus amigos tinha acabado, e isso significava que eu voltaria às mesmas ações monótonas ao longo do meu dia... em exceção da Susie que se esforçava tanto para me deixar confortável e entretido, esse lugar era um saco, e eu não via a hora de sair daqui.

             Agora estava mais tranquilo, mas no começo a porta sempre se abria e entrava médicos e residentes, anotando coisas e conversando entre eles coisas que eu não entendia e que ainda assim me deixava assustado. Agora, só as enfermeiras passavam por aqui para me inspecionar. Entretanto, o lado ruim de estar num hospital não era isso, apesar da consciência de ser estudado por pessoas que você não conhece fosse desconfortável. O que realmente me claustrofiava era a sensação de viver excluído do mundo lá fora.

             Aqui dentro o tempo parecia parar.

             Wesley me cumprimentou com a cabeça e saiu rápido, esperando pela Carolina lá fora.

             Carolina foi a última a se despedir.

             — Bem —, ela disse, pesarosamente. — Então nos vemos semana que vem. Todos nós sentimos muito a sua falta.

             Os olhos dela piscavam nervosamente. E então como se decidindo subitamente, ela saiu, fechando a porta atrás dela.

         

        Quando estava sozinho no quarto, me lembrei do que exatamente aconteceu naquela noite que Alícia disse que me viu.

             Era a noite que eu tinha oferecido o dinheiro da corrida ao Vitor, e eu estava tão intrigado em como ele pôde ser tão topetudo, tão arrependido em mostrar consideração e contrariado por ainda ter sido ofendido, que eu estava tão cego de raiva que não enxergava nada à minha frente. Nem mesmo uma garota.

             Assim que deixei Vitor, quando atravessei para o outro lado da rua, esbarrei em alguém. Eu só vi que era uma garota porque vi de relance uma cortina de cabelos indomáveis. Mas não vi o seu rosto, e nem fiz esforço para vê-lo também.

             “Desculpe. Você está bem?”, eu tinha dito, automaticamente, meus olhos nela mas sem olhá-la diretamente. Estava ainda nervoso pelo que tinha acabado de acontecer com o Vitor, e com razão. O cara era um tapado.

             “Estou bem.”, ouvi a garota dizer em resposta enquanto apressadamente eu andava para longe.

          

        Nem chegou a dar uma semana quando recebi a notícia de que iria embora.

             Quando recebi a notícia de que eu receberia alta, a primeira coisa que planejei fazer fora desse quarto foi procurar pela Alícia. Teria que assegurar eu mesmo se iria ficar tudo bem com ela.

             E o apito anunciando o aguardado quarto andar, me indicava que eu estava prestes a descobrir. As portas do elevador deslizaram e se abriram. Minhas mãos começaram a suar de nervoso.

             Depois do acidente essa seria a primeira vez que eu veria Alícia, e então descobriria se ela me culparia pelo que aconteceu. Foi um acidente, eu sei, a gente não planeja coisas assim. Mas se ela tivesse que culpar alguém, eu entenderia se fosse eu.        

             Quando cheguei ao corredor que me disseram que Alícia estava, vi sua mãe e seu pai parados, olhando para a janela do seu quarto. Eles estavam do lado de fora.

             Havia uma imensa janela de vidro liso que deixava uma pequena barreira entre Alícia e seus pais. Eu a ultrapassei, e pude vê-la. Então Jeremias e Maria me notaram se aproximar. 

             Porém de início eu não consegui ler seus olhos ao me observar e consequentemente sobre o que eles poderiam vir a significar. Só me perguntei se já passou pela cabeça deles me culpar pelo que aconteceu ou se ao menos eles sabem que não foi inteiramente minha culpa. Provavelmente, Vitor ainda não deve ter feito o favor de dizer que foi sua culpa também.

             — Oi. — minha voz foi altamente cuidadosa, como se eu estivesse pisando em ovos e minha vida dependesse se eles quebrassem ou não por debaixo de mim.

             — Oi, Gabriel. — foi Maria que respondeu. — Como está se sentindo?

             Hesitei por um momento, mas depois decidi que eu deveria soar confiante.

             — Bem.

             Jeremias não me olhava. Ele olhava o tempo todo para a Alícia.

             Aproximei da janela, parando bem ao lado de Jeremias, e pude ver Alícia dormindo de uma maneira etérea e calma. Tirando as bolsas de soros ligadas nos seus braços, eu quis acreditar que ela não sentiu dor alguma quando houve a colisão do carro de tão impassível que dormia.

             — Como ela está?

             — Está bem agora. — Maria me respondeu, a voz calma e condescendente. — Ela só está dormindo.

             E como ela ainda conseguia agir agradável comigo, eu não entendia. Não era assim que eu agiria com o cara que envolveu minha filha em um acidente de carro e a deixou nessa situação. Mesmo que não fosse culpa dele.

             Estava perdido no rosto da Alícia quando Jeremias bruscamente interrompeu aquilo.

             — O que você está fazendo aqui? — ele me perguntou, a voz aborrecida e hostil.

             Olhei confiantemente para ele.

             — Eu queria ver ela, saber como está.

             — E o que achou? — ele apontou o dedo para a Alícia na cama e com os aparelhos ligados a ela.

             Eu não respondi. Qualquer resposta que eu viesse a dar seria a resposta errada.

             Seus olhos me diziam, mesmo de uma forma sutil, de que era eu o culpado por isso, de que era eu que deveria estar deitado naquela cama agora.

             — Você deveria ir embora. — Jeremias disse baixo e virou para a janela, seus olhos fixos na Alícia, controlando suas emoções para não agir descontroladamente como agora.

             E ao olhá-lo, não acreditei ser possível ele ser o mesmo homem amável que conheci semanas atrás. Não que eu o estivesse culpando. Eu na verdade o entendia.

             — Está certo. — concordei. — Virei visitá-la depois.

             — Não acho que seja uma boa ideia. — Jeremias disse rápido. — Seria bom se você apenas ficasse longe.

             — Mas...

             — Você deveria mesmo ir, Gabriel. — Maria disse, com a voz mais macia e agradável que conseguiu. E só por isso, por Maria considerar que talvez eu estivesse também me sentindo mal a respeito disso, eu decidi que deveria escutá-la.

             — Está bem, eu vou embora e não vou voltar, se é isso o que vocês querem. Mas saibam que vocês não estão sendo justos. — encarei Jeremias, como alguém que sabe o que está dizendo, e olhei última vez para a Alícia antes de ir embora.

             Mas eu não estava falando a verdade ao dizer que não iria voltar.

          

        Estou de volta à Faculdade de Villanova.

             Sem meu carro. É, além de mim, ele ficou todo detonado também. Ele foi a segunda coisa que passou pela minha cabeça quando tive consciência do que aconteceu, e ir atrás dele foi a primeira coisa que fiz ao sair daquelas portas do hospital para sempre.

             A porta chegou a sair um pouco do lugar na abertura quando foi esmagada e os vidros estilhaçaram. No dia, à responsabilidade do meu pai, o carro tinha sido rebocado de volta para a minha casa. Sem o dono. Enfim, levaria algum tempo até que o mecânico conseguisse deixá-lo como antes.    

             Quando cheguei, todos os meus amigos estavam no mesmo lugar que costumávamos ficar. Aparentemente, as coisas não tinham mudado por aqui.

             Lucas também estava lá. Achei que não seria uma boa ideia me aproximar deles hoje e simplesmente não parar e continuar o meu caminho, fingindo que não os vi ali. Hesitei um pouco, antes de resistir. E mesmo se eu quisesse, minhas ações não respondiam ao que quer que minha mente achasse lógica, então meu corpo foi meio que involuntariamente em direção a eles.

             — Ei, Gabriel! — Carolina veio em minha direção, me dando um abraço tão confortavelmente longo e apertado que não lhe disse que estava pressionando os machucados do meu ombro e braço. — Estou feliz que você está de volta.

             Eu também estou.

             Carolina se afastou, e unilateralmente meus olhos captaram o olhar incomodado do Lucas. Ele se mexeu, parecendo aborrecido. Wesley apenas levantou a mão pra mim quando o olhei, e depois disso o clima ficou estranho. Os olhares de nós quatro estavam perdidos, como se não tivesse nenhum lugar nesse espaço todo para onde olhar.

             — Oi, Lucas. — eu disse para ele, sem jeito, para aquele que costumava ser o meu melhor amigo.

            As coisas definitivamente mudam. Nada está seguro.

             — Oi. — ele respondeu, numa voz irritada. Em menos de dez segundos depois Lucas se inquietou, puxando a mochila no seu ombro de volta para o seu lugar. — A gente se vê depois, pessoal.

             Eu certamente não estava incluído nesse “pessoal”.

             Ele saiu desenfreadamente, atravessando as pessoas no seu caminho como um trem bala, ou como alguém ansioso para ir ao banheiro. O segui com os olhos enquanto ele desaparecia aos poucos como fumaça, me pegando pensando em como permitimos que chegasse a esse ponto de agirmos como estranhos. Na verdade, alguém que chegou a te chamar de irmão não era assim que ele deveria agir.

             E foi quando a voz da Carolina me despertou.

             — Bem —, ela disse animadamente, entrelaçando seu braço no meu. — Está pronto?

              — Para o quê?

              — Para voltar à aula. Suas férias acabaram!

             Meus pés involuntariamente seguiam os seus enquanto me puxava pelo braço entrada afora.

         

        Quando entrei na sala do professor Wilson, ele foi a primeira pessoa que vi, e estranhei ter gostado de ver a forma atrapalhada e esguia dele. Era normal sentir isso depois de alguns dias ausente. Ele estava inclinado sobre a mesa examinando alguns papéis, e pela aparência deveriam ser as provas semanais que perdi durante o tempo que fiquei fora. Essa era a melhor parte de ter tido o acidente que tive.

             Professor Wilson me percebeu parado na porta, de repente me sentindo melancólico com o lugar. Seus olhos me encaravam por cima da armação dos óculos, deixando aparecer um enorme e satisfeito sorriso de boas vindas.

             — Olha quem resolveu voltar para nós. — depois virou o rosto para as provas, verificando uma por uma inclinado sobre a mesa, e ao mesmo tempo seus ouvidos atentos em mim. — Como você está?

             — Bem. — avancei alguns passos, aproximando-me mais para perto da sua mesa. — Professor Wilson, você sabe sobre a Alícia, por que ainda não voltou para as aulas?

             Seus olhos estavam prestando atenção em mim agora.

             — Atestado, foi o que aconteceu. Ela está afastada das aulas por quinze dias, então não vamos vê-la tão cedo.

             Como eu disse, eu não disse a verdade ao dizer que não iria voltar.

             Tentei fazer contato. Eu tinha ligado no seu celular, mas ninguém atendeu. Liguei até na sua casa, mas seus pais não me deixaram falar com ela, me lembrando do que tinham me falado no hospital: “Seria bom se você apenas ficasse longe.” Considerei ir até a sua casa, mas minha consciência duramente me puxou de volta. Do jeito que seus pais estavam convencidos a me manter longe, dificilmente eu conseguiria tentar uma aproximação e sair ileso.

             Era como se ela nunca tivesse existido, exatamente como uma ilusão.

          

        Entrei na sala do professor Wilson, correndo meus olhos pela sala toda e não vi quem, tão esperançosamente, eu esperava encontrar.     Tenho feito isso todos os dias por uma semana e seis dias.

             Fui para o fundo da sala, sentando aproximadamente no lugar que na última semana eu tenho sentado, o mais longe possível do professor Wilson. Ele tinha um poder sobrenatural de me achar em qualquer lugar da sala para me fazer perguntas que sabe que não faço a ideia de qual seja a resposta.

             E então ele começou a falar.

             Inclinei o corpo para a mochila no chão. Tirei o caderno, um toco do que seria uma borracha e o lápis também gasto, jogando-os de qualquer jeito em cima da mesa. Não que eu fosse escrever alguma coisa hoje, mas o professor Wilson precisava ver que eu estava me esforçando.

             E nesse meio tempo, ela entrou e eu não vi.

             Senti meu coração palpitar. Fiquei paralisado um instante, apenas vendo-a pegar suas coisas de uma versão mais organizada e feminina. Estava sentada bem ali, numa fileira ao meu lado nas primeiras cadeiras da frente. Ela precisamente virou-se para trás, seus cachinhos movendo como molas, e me encarou por cima do seu ombro estreito. O olhar dela sustentou o meu por um tempo ininterrupto, como se houvéssemos somente nós dois naquele lugar e mais nada existisse, até que ela interrompeu isso e olhou para frente.

             Ela não iria voltar só daqui a quinze dias? Então como é possível estar aqui agora?

             Quis perguntar isso a ela. Também quis me sentar ao seu lado e não ter que esperar até a aula do professor Wilson acabar para poder conversar finalmente com a Alícia. Mas não tinha nenhum lugar vago perto dela, e como a aula do professor Wilson já tinha começado, ele me interceptaria no caminho se eu tentasse alguma coisa parecida como uma aproximação.

             Às vezes, não há nada que você possa fazer, a não ser esperar. Eu poderia fazer isso. Esperar alguns minutos era muito pouco para alguém que ansiou por este momento por dezenove dias.

             Depois de um tempo, a aula acabou. Cadeiras se mexeram pelos corpos exasperados em sair do lugar. Estive tão ansioso, nervoso e inquieto que uma hora e quarenta minutos esperando pareceram uma eternidade. Nem é necessário dizer que não sei dizer o que se passou nessa sala hoje.

             Resgatei rápido minha mochila do chão e joguei minhas coisas dentro dela tão mal quanto as tinha pegado. Acho que nem cheguei a fechá-la direito, e digo que isso realmente não importava já que nem quis parar para conferir. Alícia abandonou sua cadeira rapidamente e passou a porta quase correndo, tentando fugir de mim antes que eu a abordasse. Porque sair correndo atrás dela assim era algo tão certo quanto saber que tudo o que sobe eventualmente tem que voltar. Qualquer pessoa tentaria algo como isso depois de passar pelo que nós passamos.

             Saí me esquivando das pessoas à minha frente para alcançá-la antes que fosse embora, porque simplesmente eu não aguentaria mais esse tempo de espera. Ninguém estava pensando em mim. Eles se esqueceram que eu também tinha sido uma vítima e que ainda estava tentando lidar com tudo isso.

             Então gritei, quando reconheci sua cabeleira no corredor entre as pessoas.

             — Alícia, espere!

             E na primeira tentativa de chamá-la, ela me ouviu. Fácil. Ou talvez não. Talvez ela não quisesse arriscar que eu não a chamasse outra vez. Não que eu esteja sendo pretensioso. Mesmo à distância, Alícia parecia ansiosa.

             Ela ficou com o corpo virado para frente, deixando os alunos mais apressados passarem por ela, alguns praguejando para ela sair do caminho. A alcancei, pegando no seu pulso gentilmente e a guiei pelo corredor até pararmos no canto do corredor para conversarmos sem riscos de interrupção.

             — O que você está fazendo aqui? — perguntei, intrigado. — Você não deveria voltar só daqui a um mês?

            Meus olhos correram por todo o seu rosto, seus olhos e sua testa, sua pele marrom esticada ausente de poros abertos e espinhas, constatando se o que eu via até onde era real.

             Alícia me encarava de volta.

             — O que é —, ela disse, suavemente. — Não está contente em me ver?

             Vendo-a agora, era como se nada daquele acidente trágico tivesse acontecido. Eu esperava que ela fosse me olhar de uma forma diferente, mas isso não aconteceu. Ela continuava sendo a mesma Alícia de sempre.

             — Você está bem?

             — Sim. — respondeu, parada na minha frente e olhando sem acusação para mim. — Eu estou.

             Ótimo.

             — Desculpa por te envolver naquele acidente e a colocar nessa situação. Se eu pudesse impedir que aquilo acontecesse, eu teria feito alguma coisa...

             — A culpa foi daquele caminhoneiro por dirigir na contramão, não sua. — ela me interrompeu gentilmente. — Meu irmão admitiu ter culpa também, então você não é o único culpado, se tivesse algum.

             — Ele fez? — meu tom saiu incrédulo.

             — Fez. E você deveria saber que eu nunca culparia você pelo que aconteceu. — ela disse cada palavra e a sua articulação com confiança. Até o momento eu realmente não sabia o que ela quis dizer com isso, mas quando sustentou o olhar, inquestionavelmente eu soube.

             Eu me senti aliviado.

             — Então por que você estava fugindo de mim?

             — Acho que você já sabe. Me desculpe, mas... — ela fechou os olhos brevemente, preparando-se para o efeito das palavras que viriam a seguir. — Pelo menos por enquanto eu deveria fazer como meus pais querem. E eles passaram por tanta coisa. Eles te veem como sinônimo de confusão agora, então o melhor a fazer é deixar a poeira abaixar até eles esquecerem a implicância com você.

             Ela disse as palavras com propriedade, e em algum lugar do meu coração eu senti uma pontada como se ela o tivesse em posse e o tivesse sufocado.

             — Eu talvez não esteja aqui quando a poeira abaixar. — eu disse. — Tem certeza de que é isso o que você quer?

             Sua resposta não veio.

             É claro que ela não viria. Alícia era covarde demais para isso.

             Ela se afastou lentamente, recuando de costas, e caminhou em direção ao corredor. E enquanto a assisto se afastar, estou me convencendo de que ela não é grande coisa, de que ela não é grande coisa.

         

        Três dias depois, encontrei com a Alícia no corredor. Ela conversava com uma menina simploriamente como ela. Ela deveria ser da mesma sala que a minha desde muito tempo, mas não me lembro de tê-la visto aqui antes. E como me lembraria? Normalmente nunca reparo nas pessoas.

            Alícia parou de rir quando me percebeu e ficou me olhando por cima do ombro da garota que conversava. E por um momento eles estiveram concentrados em mim, desprezando o olhar com quem deveria estar dando atenção agora. Desviei os olhos dela como fade, e lamentei o olhar trocado. Isso poderia significar muitas coisas, inclusive que estou me importando. E essa é a última coisa agora que quero que ela pense.

             E não tinha que ser assim. Não precisaríamos tratar um ao outro como estranhos.

             Só que eu já não me importava mais. Eu não sou um tipo de herói igual aos dos livros que ela lê que vai tentar fazê-la enxergar que isso o que está fazendo é burrice, que não se deve permitir que pais controlem a vida de seus filhos desse jeito, como se suas vidas pertencesse a eles também. Eu nem corri atrás do meu amigo de anos quando brigamos, porque sei que ele já tinha tomado a decisão de não me ter por perto e eu não gosto de reivindicar nada. Não reivindiquei nem minha mãe. Ela deveria saber que eu não correria atrás dela também.

             Apesar de não ser o fim do mundo, é um pouco combatedor quando se não é escolhido. Quando alguma outra coisa parece melhor do que você. Uma pessoa que cresceu tendo tudo o que quer, descobre não saber lidar com esse tipo de coisa.

             Naquele dia eu não olhei para trás. Nem nos outros depois desse.

          

        Era sexta-feira.

             Estava tendo um encontro de amigos num bar próprio para beber e conhecer garotas, um tipo normal de bar e completamente diferente do bar Irmãos Silva; com um ambiente metade escuro e metade claro, adequado para quem apenas quisesse paquerar ou trocar ideias com amigos.

             O barzinho de elite não estava cheio. Tinha algumas aglomerações de pessoas, mas também não significada que estava vazio. Estava razoável. Você poderia ir ao balcão de pedidos e voltar à mesa com a bebida sem riscos de esbarrar em alguém.

              Cheguei com a Carolina. Trinta pares de olhos pararam em nós quando entramos, eu chegando a me perguntar o que eles estariam pensando ao me verem chegar com ela. Que talvez a mais provável das hipóteses fosse a mesma que eu pensaria se visse meu amigo chegar acompanhado de uma garota como a Carolina.

             E em um desses pares de olhos, encontrei um familiar.

             Alícia estava em um canto do bar, encostada as costas inibidamente na parede. Mas ela estava acompanhada. Desviei meus olhos dela e olhei para o Lucas à sua frente. Ele virou a cabeça na direção dos seus olhos para encontrar-se com os meus, e me encarou com um olhar obstinado. Um olhar de raiva que jamais, em todo esse tempo que o conheço, vi em seu rosto.

             — O que Lucas faz aqui com a Alícia? — eu não pude prever as palavras saindo, e olhei Carolina ao meu lado.

             Carolina levantou a cabeça, seu nariz arrebitado tocando o ar, fazendo uma varredura pelo lugar como quem procura alguém.

             — Eu não sei. Eu não me importo com o que eles estão fazendo, e você também não deveria. — ela disse, a voz neutra. — O que é, está com ciúmes?

             — Eu? Claro que não.

             Bobagem. De jeito nenhum.

             — Apenas é... estranho. 

             — Estranho? Lucas estar aqui com uma garota?

             Era a Alícia, ora. E ela não fazia o tipo do Lucas, nem de ninguém nesse lugar. Então o que estava acontecendo? Esses bares não são para as pessoas da faculdade. Elas eram feitas exatamente para essas pessoas que estavam aqui.

             Inquietei.

             — Esquece. Vamos pegar uma bebida.

             E andei em direção ao fundo do bar a fim de fazer o pedido no balcão. Antes de prosseguir, olhei novamente para a Alícia.

             Ela me olhava também.

             Lucas estava fazendo isso por causa de mim? Deveria ser. Sempre que eu e Lucas brigávamos, ele procurava um jeito de me provocar. Só não sabia como ele descobriu que conseguiria fazê-lo usando Alícia de intermédio.

              Escolhi o refrigerante entre as bebidas alcoólicas.

              — O que você tem —, Carolina soou incomodada. — Gabriel?

             Não olhei para Carolina ao meu lado que me olhava clinicamente.

             — Nada.

             — Tem certeza? — ela disse, incrédula. — Porque você parece incomodado com alguma coisa. Incomodado e agitado.

             — Não, estou bem.

             Uma música eletrizante começou a tocar, e Carolina esvaziou o resto da bebida alcoólica de uma vez e com estalo o copo foi colocado sobre o balcão. Em seguida, ela me puxou para o meio do bar transbordado de pessoas, levando-me para o centro.    

             — O que você está fazendo? — eu disse, desesperado. Corri os olhos para as pessoas paradas, apenas conversando. Ninguém estava dançando, e ninguém parecia que faria. Eles ririam da Carolina e ririam de mim. Dezenove anos de existência, e nunca imaginei que poderia ser zoado dessa forma.

             Mas não era nisso realmente que eu estava pensando. Estava preocupado no que a Alícia iria pensar ao ver-me dançar assim com a Carolina.

             Livrei meu braço da sua mão bruscamente, e ela o pegou de novo, dessa vez mais forte, mais persistente. E começou. Carolina dançava, encostando seu corpo no meu de uma maneira que amigos não deveriam fazer. Em outras circunstâncias, eu teria gostado. Mas não conseguia parar de me concentrar na Alícia quando ela estava debaixo do mesmo teto que eu.

             Ela estava com a bebida intocada na mão, sem ideia nenhuma do que fazer com ela.

             Eu não conseguia não olhar em sua direção, não conseguia não prestar atenção no que estava fazendo. Em algum momento alguém deve ter percebido isso, que o meu foco era uma garota deslocada no canto de uma parede.

             Em um momento rápido, Lucas puxou Alícia pela cintura e a beijou. Foi tão fácil para ele. Quanto a mim, tentei por duas vezes e falhei. E talvez por isso, talvez por ele chegar primeiro, eu senti uma onda de alguma coisa subir pelos meus pés até meu rosto com a mesma velocidade que um fogo se alastra em um campo que não vê chuva há muito tempo.

             Alícia parecia estar sendo esmagada pela boca do Lucas e ele não a soltava, nem mesmo quando ela colocava as mãos no seu braço e inclinava pra trás tentando em vão parar o beijo. Em algum momento ela deveria ter machucado a boca e alguma coisa frágil como o orgulho. E eu não sabia se eu deveria interferir por ser algo que eu queria fazer.

             Lucas finalmente a deixou se livrar, e Alícia resmungou algo em resposta que o fez xingar. Os olhos do Lucas estavam chamuscando raiva em direção a ela, e foi quando tive que fazer alguma coisa.

             Ainda que eu não tivesse admitido para mim mesmo, esse era o sinal que eu esperava, de que essa aproximação em momento algum tivesse sido permitida ao Lucas. Porque se fosse esse o caso, não havia nada que eu pudesse fazer a respeito.

             Atraquei ao lado da Alícia e de frente para o Lucas. E foi para ele que olhei, foi para ele que eu dirigia um olhar raivoso, um olhar inquiridor que não se importava em parecer hostil.

              — O que está havendo aqui? — eu disse, uma pergunta que poderia soar casual em outro contexto.

              — Fica fora disso. 

              — Fica fora disso? — eu estava indignado. — Como posso ficar fora disso?

             Olhei para a Alícia. Seu rosto expressava mágoa, vergonha, raiva, ultraje; muita coisa para um rosto que não mostrava nada a não ser tranquilidade. Mas ela não sustentou o olhar e saiu rápido dali, a princípio lentamente, depois quase correndo.

             Agora entendo por que Carolina insistiu tanto para que eu viesse.

             Voltei a olhar para o Lucas.

             — Por que você fez isso? — eu disse, a voz alta. — Alícia não tem nada a ver com essa nossa briga estúpida!

             — Tem certeza? Então me diz —, ele fez uma pausa de satisfação. — Como é a sensação do seu melhor amigo beijar a garota que atormenta a sua cabeça desde que se conheceram?

             Então percebi que Lucas não estava se referindo a mim ou o que ele achava que pensava sobre como eu me sentia em relação à Alícia, ele estava falando era sobre como ele se sentia em relação à Carolina.

             — Você é tão infantil.

             Lucas estava dando um sorriso de triunfo em resposta quando lhe dei as costas.

            Andava para o meio do bar quando Carolina apareceu atrás de mim.

             — Então você estava mesmo com ciúúmes.

             Congelei, de costas. Meu corpo deu uma volta e fui até onde ela estava, levando minha mão fechada à boca, porque eu estava muito confuso e pego de surpresa a respeito de tudo isso, e não sabia como deveria proceder.

             — Você... está junto com o Lucas nisso?

             Seus olhos arregalaram e não se viu recuando.

             — O quê? Não, eu não sabia de nada disso. Lucas apenas me pediu para insistir que você viesse.

             — E você não achou estranho?

             Depois disso, eu me vi andando apressadamente para longe da Carolina e indo para fora.

             Quando saí na rua não tinha ninguém, por isso facilitou encontrar Alícia. Ela andou no meio fio até parar debaixo da sombra de uma árvore mal iluminada; uma rua que poucas pessoas passavam e de carros parados um atrás do outro, postes reprojetando cones de luz contra a calçada. 

             E eu poderia escolher voltar atrás e fingir que nada disso aconteceu, mas sei que não era o que eu queria fazer.

             Se Lucas tivesse contado ao meu pai sobre eu usar seu dinheiro em corridas clandestinas e perigosas, ou feito qualquer outra coisa, eu não me importaria. Mas ele nunca deveria ter trazido Alícia para o meio disso.

             Impulsionei meus pés a darem passos que saíram sem convicção.

             — O que você está fazendo aqui? — eu perguntei para a Alícia, a voz sólida e sombria tanto quanto esta rua. Meus pés pararam, eu olhando para a sombra da sua silhueta sob a pouca iluminação. — Pensei que você não fosse com a cara de nenhum dos meus amigos.

            Alícia não virou pra trás.    

             — Eu ainda não vou com a cara deles. — ela disse, apologética, sua voz saindo baixa e tremida. — Mas Lucas me disse que você queria conversar comigo, que apenas estava sem jeito de dizer, e então me falou desse bar em que você estaria.

             — Eu não estou conversando com ele, então ele mentiu para você. — eu disse, nas suas costas. — E você poderia ter evitado isso em apenas uma ligação.

             Eu disse, mesmo que numa circunstância como essa ela não precisasse ser chamada a atenção. Olhei em volta. Tinha alguns carros, mas nenhum deles era um fusca amarelo.

             — Cadê o fusca?

             — Foi o Vitor que me trouxe. — e com isso, ela enlaçou os braços em volta da cintura, deixando à mostra o celular em sua mão, que provavelmente tentava fazer contato com alguém quando eu cheguei interrompendo o processo.

             Baixei a cabeça para levantá-la logo em seguida.

             — Isso significa que você está precisando de uma carona?

             Não adianta. Sempre será a parte interessada a ceder.

             — Carolina não vai se importar? — perguntou, com um tom de voz claramente amargo e capcioso. — Porque você chegou com ela, não foi?

             Depois disso, ela não falou mais nada e nem eu. Meu rosto esquentou de uma sensação boa e desconfortável ao mesmo tempo. Meu queixo ficou tenso. Não acho que ela tenha o direito de sentir alguma coisa depois das coisas que me falou, ainda mais ciúme.

             Mas também eu não deveria estar aqui, e ainda assim eu estava.

          

        Apertei o volante, olhando atentamente para o lado de fora pelo para-brisa e para a estrada à frente a percorrer. Troquei a marcha para subir uma pequena elevação, com mais força do que pedia. Meu carro tinha a embreagem e a alavanca relativamente pesada.

             Olhei escondido para a Alícia pelo retrovisor central. Ela estava com o corpo virado para a janela, perdendo os olhos na paisagem que passava pelos seus olhos um pouco rápidas demais para observá-las direito.

             — Para aonde estamos indo? — Caroline me perguntou, passando alguma coisa no olho, olhando-se no espelho do quebra-sol.

             — Para depois das cordilheiras.

             Carolina fechou o espelho e olhou para mim. E foi quando vi seus olhos. A pele delicada debaixo dos seus olhos estava inchada e um pouco vermelha, já que seja o que for que passou nos olhos diminuiu um pouco.

             Espremi os olhos, para ver melhor.

             — O que aconteceu com seus olhos?

             Carolina evitou me olhar.

             — Você não tem medo? Nunca ouviu falar nos assaltos que acontecem lá?

             — Você não precisa ir.

             Carolina virou enfurecidamente para me olhar, mas eu estava prestando atenção na direção do carro.

             — Está tentando se livrar de mim?

             — Não. — eu estava calmo. — Você disse...

             — Eu nunca disse que não iria. — ela rebateu, irritada. Existia essa rispidez nela que eu não via razão.

             Juntou o ambiente silencioso natural do carro com esse silêncio pesado. Estiquei a mão para ligar o som do carro e Alícia mexeu no banco.

             — Você disse que não conversa mais com o Lucas. — a voz veio da Alícia que até agora não disse nada, olhando pra mim do seu lugar. — O que aconteceu?

             Voltei pra trás, desistindo de ligar o som.

             — Nos desentendemos. — respondi vagamente, olhando a estrada. Ignorei Carolina olhando meu rosto de uma sentível indignação por ter deixado a parte que nos beijamos de fora.

             — Então eu estar aqui...?

             — Lucas planejou isso para me atingir.

             — Te atingir? — ela fez que não. — Não sei o que isso tem a ver comigo.

             Carolina ao meu lado revirou os olhos.

             Alícia voltou as costas no banco e tornou a contemplar a vista lá fora da sua janela. Carolina sentada ao meu lado não me olhava; mexia no celular, ao invés. E eu liguei o som do carro.

         

        Favorecendo a má impressão da Carolina quanto ao bairro, a rua estava escura. Alguns postes estavam desativados. Não tinha nenhum carro estacionado na rua e muito menos um cachorro vagando à procura de um abrigo para a noite ou de lixo para saciar a fome. Não tinha ninguém exceto nós.

             Não olhei para Carolina desde que parei o carro, porque sei que faria algum comentário maldoso. Escutei o cinto de segurança lá atrás despencar de volta para o seu dispositivo. Alícia moveu e abriu a porta, saindo tão rápido que quando meus olhos foram para o banco, ela já tinha saído e batido a porta. E então bruscamente apareceu na minha janela – já que a da Carolina estava fechada de medo de sermos roubados.

            Eu a observava quando olhar-me ficou desconfortável e dobrou os braços ao peito, olhando para o lado. Parecia que qualquer coisa era melhor do que olhar para mim.

             — Obrigada. — sua voz saiu envergonhada e orgulhosa. — Eu não esperava que você fizesse isso depois... de tudo o que eu disse.

             Olhou-me. Por um instante, Alícia apenas me encarou. Ouvi as folhagens da árvore próxima movendo-se, a brisa fazendo barulho ao balançá-las para lá e para cá, ouvi os grilos e seu canto noturno vindo de alguma casa adormecida. Uma mulher segurava a bolsa presa ao peito e passou a passos apressados por nós no passeio. Aquele seu silêncio me incomodava. E eu me senti miserável por estar mendigando atenção dela assim.

             Eu não costumava ser covarde, mas naquele momento eu quis desesperadamente fugir. Quebrando a ligação entre nossos olhos, dei partida e arranquei bruscamente o carro.

          

        Meia noite e quarenta e cinco.

             Estávamos na respectiva fileira de cada um, apenas aguardando o sinal para avançarmos, enquanto o nervosismo e a adrenalina do que estaria por vir só aumentava a cada cronometrado segundo de espera.

             Vitor estava a quatro carros de distância do meu.

             Então o sinal foi feito.

             Acelerei meu carro, conseguindo sair na frente por uns cinco pontos de vantagem. Em todo o tempo, Vitor estava sempre na minha reta, espreitando-se para vencer.

             Fiz todo o percurso certo. Concentrei-me em não pisar em falso e perder pelo mínimo detalhe; eu tinha feito meus cálculos, não havia chance de dar alguma coisa errada.

             A seta do carro do Vitor piscou ao meu lado. Desviei dele, passando por um desvio numa rua abaixo. Logo à frente, na esquina, o carro do Vitor me surpreendeu numa espreitada. Teria como ele desviar, se ele quisesse. Mas ele pareou seu carro com o meu e virou bruscamente todo o volante, jogando-o contra a lateral do meu, todo o meu corpo sentindo o tremor do seu carro quando passou rangendo por mim.

             Mesmo assim, avancei, mais rápido do que jamais cheguei a ser.

             Vitor não iria ganhar, não hoje, não assim.

              Dentro de dez minutos eu cheguei ao ponto de chegada, vencendo mais uma vez outra corrida. Mas a forma como fui recebido desta vez foi diferente das diversas outras vezes. Parei o carro, e tudo o que as pessoas faziam era se aglomerar para olhar a batida na lateral.

             Nem queria ver o trabalho que Vitor fez nele. Não tinha nem uma semana que busquei meu carro na oficina...

             — O que aconteceu lá? — era só o que eu ouvia quando saí do carro e bati a porta, um murmúrio vindo daquelas mesmas pessoas que se reuniram comigo parar comemorar minha vitória algumas vezes.

             Eles precisavam de uma legenda para o que estavam vendo.

             — Bateram no meu carro. — respondi a eles. Apesar de por fora parecer resignado, por dentro eu estava o oposto disso. E se visse Vitor agora, não sei se conseguiria parar para considerar que Alícia era sua irmã.

             — Em algum competidor? — desta vez foi uma voz única e masculina que saiu do meio daquelas pessoas. Elas deram espaço para que ele passasse, soando quase como uma reverência ao chefão de uma máfia, até que chegou a mim.

             Eu o reconheci. Ele se parecia muito com aquele cara no estacionamento na Faculdade de Villanova com a Alícia, mas não era possível. Era ele o ex-namorado que a perseguia como um cachorrinho para voltarem?

             — Não. Quero dizer —, eu disse, embaraçado pela informação de ele ser o ex da Alícia. — Vitor jogou o carro dele contra o meu.

             — Você entende a gravidade dessa acusação?

             Senti a pergunta estúpida.

             — É claro que sim.

             — Então você está ciente das consequências se estiver mentindo. — ao contrário de mim, a voz dele estava impassível. Era mais irritante do que se tivesse dirigido a mim com impaciência também.

             Notei um burburinho no meio das pessoas, e saindo dele, vi Vitor. Eu podia jurar que tinha um sorriso bem ali naquele rosto.

             — O que está...?

             Não cheguei a terminar, porque percebi o que estava acontecendo.

             — Então me diz —, o cara disse, levando meus olhos em sua direção. — Por que Vitor iria jogar o próprio carro contra o seu?

             — Porque ele queria me vencer, não parece óbvio pra você? — apontei para um Vitor satisfeito, mas inutilmente. Ninguém ali estava disposto a ver o que eu via.

             — Bem, se ele queria vencer por que não correu junto com você? Então por que ele voltou para nos avisar?

             Como explicaria que Vitor jogou seu carro contra o meu justamente para me tirar da jogada? Que ele não estava mesmo com intenção de ganhar? Se eu queria convencer alguém de que eu falava a verdade, isso não teria nenhuma porção de lógica, não o suficiente para que eles acreditassem em mim.

             Eu era aquele cara com um corpo sem vida no chão e as evidências na mão.

             — E quem diabos é você?

             — Nicolas. — ele respondeu. — Mas todos me chamam de Nico.

             Nico? Eu estou realmente ferrado.

             — Então será a palavra dele contra a minha. — eu disse, firme. — Porque eu não fiz nada do que está me acusando. Vocês terão meio que abrir um inquérito, porque temos um grande caso aqui.

             — Você sabe que as evidências não estão ao seu favor.

             — E o que isso significa?

             — Você está desclassificado. — a resposta dele saiu mais fácil e fria do que eu esperava.

             Nico deu as costas e a multidão se dispersou. Entre os poucos que ficaram foram Vitor e uns amigos seu.

             — Você —, Vitor disse para um dos caras. — Segure ele.

             Alguém me segurou por trás, impossibilitando que eu me movesse. Vitor veio em minha direção como um trem desgovernado. Tentei me soltar dos braços de um alguém que não consegui identificar, mas ele me prendeu mais.

             — Isso é por ter ido embora aquele dia com minha irmã. — Vitor me deu um soco. E achei que mereci. — Bem, e por não ter me ouvido quando disse pra ficar longe dela. — e me deu outro, e achei que mereci também.

             Ele me batia sem eu ter ao menos chance de me defender. De alguma forma, isso inflou meu orgulho. Significava que Vitor não estava confiante de que conseguiria me acertar se não fizesse dessa forma. Eu era maior que ele e tinha experiência com brigas. Eu não sairia perdendo se estivesse desimpedido.

             Ao plano de fundo daquele cenário covarde, eu consegui reconhecer uma voz familiar.

             — Parem com isso!

             Alícia se aproximou e empurrou Vitor para trás. Depois tirou de mim as mãos de quem me segurava e curvou para ver meu rosto, procurando urgentemente pelos meus olhos.

             — Desculpe.

             — O que...  — parei de falar ao sentir minha boca doer. — O que você está fazendo aqui?

             — Isso não importa. — ela se afastou de mim, parecendo fora de si. — Eu vou concertar isso.

             Antes que eu pudesse reagir, ela se direcionou ao Vitor como uma leoa protegendo sua cria vulnerável. Isso não estava certo. Eu que deveria estar protegendo.

             — O que você está fazendo? — ela disse ao Vitor, soando indignada. — Batendo nele quando não teve uma chance de se defender? Você é o quê, um tipo de pessoa cruel? Tenho certeza que não foi isso o que nossos pais te ensinaram.

             Algumas pessoas riram do tom que ela se dirigiu ao Vitor.

             Alícia voltou para elas.

             — E vocês —, sua voz estava uma oitava acima do normal, estridente, desesperada. — O que estão olhando?

             Eu me restabeleci, arrastando as costas da mão pela boca para limpar o sangue que pensei sentir e que acabou sujando minha mão, preparando-me para dizer a Alícia para deixar tudo isso para lá – porque, para ser sincero, eu estava inquieto de uma garota estar tomando partido por mim, e foi quando a atenção dela e a de todo mundo foi para o Nico que se aproximava outra vez.

             — O que está fazendo, Alícia? — Nico perguntou, claramente irritado.

             Ela o olhou, confiante.

             — Eu preciso conversar com você. — e levantou o queixo, ainda que um pouco hesitante. — Agora. Por favor.

             Alícia deu um passo em direção a ele.

             Vitor a parou no meio do caminho, seu pulso escondendo no braço dela.

             — Alícia.

             — Eu não vou parar. — ela disse, encarando-o decididamente. — Você deveria ter pensado nisso antes de ter feito o que fez.

             O olhar do Vitor desviou enfurecidamente dela para mim, depois voltou para a Alícia, apontando a mão em minha direção.

             — Você está defendendo ele? É isso?

             — Você errou duas vezes, Vitor. Você não deveria ter batido nele dessa forma e nem ter feito aquilo ao seu carro. — ela soltou da sua mão e se afastou com um passo à frente. — Como você espera que eu apoie você?

             E foi em direção ao Nico.   

             Eles conversaram por apenas pouco tempo, depois Nico virou para trás para chamar o Vitor. Quando aproximou deles, ele ficou ali por pouco tempo também, e então seguiu Nico e Alícia para outro lugar. No meio do caminho, Nico virou seu rosto por cima do ombro, apontando o dedo indicador para mim; determinando uma ordem que eu estava terminantemente proibido de desobedecer.

             — E você —, Nico me disse. — Não saia daí.

             Quem diabos ele pensa que é? 

             Antes de o trio andar para longe, Alícia virou para me olhar, mas não consegui decifrar o que eles tentavam me dizer. Foi muito rápido. Os segui com os olhos até entrarem numa casa pequena e fecharem a porta.

             Fiquei esperando por vinte minutos, ou mais. Eu não sei direito. Sabia que eu poderia escolher não ter esperado, já que Nico deixou claro que aqui não tinha mais nada para mim, mas eu quis ficar pela Alícia que ainda estava lá dentro com eles.

             Pretendia perguntar algumas coisas.

             Um cara que nunca vi aqui antes foi chamado para dentro da casa. Ao voltar minutos depois, ele andou em minha direção. Eu me senti rígido. O que estava acontecendo?

             O homem se aproximou de mim. Ele foi breve e sem cerimônias:

             — Siga-me.

             Ele começou a andar quando o interpelei, apreensivo.

             — Para onde?

             — Nico está te chamando.

             Se tivesse alguma chance de esse cara saber o que estava acontecendo, ele não diria nada para mim, não quando foi instruído para não fazê-lo. Foi só por isso que reprimi a vontade de fazer perguntas diretas. De qualquer forma, qualquer curiosidade que eu venha a ter será respondida assim que eu entrasse naquele barraco, e então descobriria o que Alícia disse ao Nico para ele ter solicitado uma reunião de última hora. 

             — Entre. — o homem disse, ao abrir a porta para mim.

             Sem relutância, eu entrei na casa. Ela estava vazia, e me perguntei para onde deveria ter ido todo mundo. Abri minha boca para fazer essa mesma pergunta ao homem, mas ele pareceu ter previsto.

             — Por aqui. — ele disse, ao passar por mim.

             Eu o segui por corredor afora até darmos de frente para uma porta pequena e de pintura desgastada escondida no final do corredor escuro com cheiro forte de mofo. Ele deu três batidas firmes nela e logo depois a abriu, escancarando-a para eu passar. Tudo isso me lembrou aquelas gangues usando os fundos de uma casa para suas reuniões podres. O quanto Alícia estava envolvida?

             Lembrei que ela já esteve aqui antes, foi inclusive aqui que me viu pela primeira vez. Não consegui imaginar Alícia se envolvendo com coisas como essa. Porque convenhamos que, um lugar que está lotado de garotas de vestidos tão curtos que se pareciam blusas e caras maus de jaquetas pretas e tatuagens, não era para ela.

             — Entre.

             Estava de frente para ele, então notei pela primeira vez o quanto seu físico era rude e o quanto sua aparência poderia soar intimidadora. Ele era mais ou menos da minha mesma altura, porém mais forte, então tecnicamente ele parecia maior do eu. Seus braços eram tão definidos que eu poderia contar as dobras nele. Ele tinha piercings, muitos para falar a verdade, e usava um sinistro corte moicano e ao fundo uma careca lisa.

             Olhei um momento para trás antes de entrar, para ver se me seguiria, mas ele ficou do lado de fora deixando que eu entrasse sozinho.

             Dei um passo e entrei no cômodo.

             Observei Alícia primeiro. Ela me olhou pelo canto do olho, tendo o cuidado de fazê-lo sem que Vitor ou Nico notasse. Não era como se fosse um crime me olhar, mas aqui e agora parecia que sim. Depois olhei para o Vitor sentado na cadeira ao seu lado com o maxilar apertado e a mão direita cerrada em punho, e por último, para o Nico atrás da mesa; envolto em toda a sua imponência.

             Direcionei-me a ele. 

             — O que está acontecendo?

             — A acusação contra você foi retirada.

             — Por quê? — eu perguntei, direto e desconfiado.

             — Você não vai ser mais desclassificado. — ele foi sucinto. — Isso é só o que você precisa saber.

             Eu era essa figura amassada e com o rosto machucado em pé de frente para eles, e essa situação não me deixava nenhum pouco intimidado.

             — Assim tão fácil? Agora mesmo você declarou que eu estava fora, então por que resolveu me enquadrar de novo nesta merda?

             Nico empurrou pra trás a cadeira quando levantou bruscamente, nos pegando desprevenidos. Foi tão rápido que Alícia levantou de susto. Eu estava bastante concentrado no Nico e não vi quando ela veio até a mim e se colocou na minha frente, como se sua mão sobre meu peito fosse suficiente para impedir qualquer coisa. Talvez realmente fosse.

             — Ei —, ela disse, a voz baixa, o foco o meu ouvido mas o fluxo da sua voz batia no meu peito sob a roupa. — Você não vai ser mais desclassificado. Não era isso o que importava?

              Olhei para ela.

              Seu olhar sustentou o meu. Abri a boca para perguntar o que afinal estava acontecendo, mas ela se desfez da posição de antes, porque se deu conta que sua mão estava com propriedade sobre meu peito, e a afastou para longe.

             Seus olhos estavam baixos.

             — Está tudo resolvido agora. Você não precisa se preocupar.

             — O que você fez?

             — Ela me entregou. — Vitor entrou na conversa. — Por causa de você!

             Ele tinha se colocado de pé.

             Desviei os olhos do Vitor e olhei novamente para a Alícia.

             — Do que ele está falando, Alícia?

             — Eu disse ao Nico que você não teve culpa pelo o que aconteceu ao carro do Vitor. — ela me respondeu. — Eu disse que foi o Vitor mesmo que ferrou com o próprio carro.

             Pisquei, confuso.

             — E por que você fez isso?

             — Satisfeito agora? — Nico disse, desassossegado.

             A voz dele fez que eu perdesse a concentração fixa na Alícia e o olhasse sem um pouco de tolerância.

             — Então a nossa reunião está finalizada, já que todos nós entramos em um acordo. — ele acrescentou.

             Vitor andou para a porta, empurrando com raiva o ombro da Alícia quando passou. Ela se incomodou com a forma que foi tocada, e subiu os olhos para me olhar. E foi quando reparei no quanto ela era pequena, no quanto ela era tão frágil e pequena perto de mim, perto de todos que estavam nessa sala agora. E me vi com o desejo de ser aquele que ela quer que a proteja, mesmo ela parecendo não precisar disso agora.

             E então Alícia passou a porta atrás do Vitor.

          

        Eu não sei como consegui chegar em casa esta noite. Eu estava com a aparência do que seria um cara que acabou de ser atropelado por um trem.

             Toquei a maçaneta da porta de casa, e foi quando senti a pontada de dor dos machucados no meu rosto, porque até então, a adrenalina amorteceu qualquer sensação de dor que eu viesse a sentir. Abri a porta, e tentei fazer o mínimo de barulho possível, agindo exatamente como um ladrão profissional faria – e não era como se eu fosse encontrar alguém por aí pela casa, a eventualidade não poderia me achar agora. Mas não só estava meu pai na sala, como ele tinha uma companhia. Uma mulher, daquelas decorativas, e que por sinal era bem mais jovem do que ele.

             Achei muita hipocrisia toda aquela conversa do meu pai de a Alícia estar atrás de mim por interesse. Não é isso o que essa mulher estava fazendo?

             Eu os encarava como se tivessem sido pegos em flagrante, assim como eu tinha consciência de que eles faziam a mesma coisa comigo também.

             Meu pai levantou do sofá ao ver minha figura amarrotada aparecer na porta.

             — Gabriel? Gabriel, o que aconteceu com o seu rosto? Você se meteu em uma briga? — a voz dele era transtornada. Ou então só era inacreditável que eu tivesse feito isso hoje, justamente no dia que resolveu trazer alguém para casa.

             — Por incrível que pareça. — eu disse, depois de uma pausa.

             Minha resposta pegou meu pai desarmado, e não sei o porquê da surpresa. Pela expressão pasma da acompanhante do meu pai, tentei adivinhar o que ela devia estar achando sobre tudo isso. Já meu pai provavelmente devia estar me amaldiçoando por envergonhá-lo dessa forma.

             — O que aconteceu? — então ele perguntou docilmente e aflito, e não parecia encenar preocupação para a mulher.

             Por um momento eu o olhava abismado, incerto se eu deveria ter julgado errado a emoção que pensei ouvir, até que dei conta de que meu corpo ocupava um espaço que já estava cheio demais, e decidi que realmente não importava se eu o entendi direito ou não. Eu só queria subir até o quarto e lidar com essa bagunça do Vitor, do meu carro e... Jesus, eu estava fora da corrida.

             — Nada. Não se preocupe, pai.

             Dei um passo pra frente e fui em direção à escada para afastar-me dos quatro olhares preocupados, subindo para o quarto. Nunca estive antes numa situação que fiquei tão ansioso para sair de algum lugar. Entrei no quarto e caí imediatamente de costas na cama, completamente ferrado.

             Eu não estava tão mal quanto pensei que ficaria se ficasse impossibilitado de participar da corrida. Estranhamente, eu não estava me importando.

             Passado algum tempo notei meu pai no quarto, encostado despreocupadamente o ombro na porta, me assistindo.

             — O que você está fazendo silencioso aí como um fantasma? — eu perguntei lentamente e sem entusiasmo, não desviando os olhos da visão de cima da minha cama.

             — O que aconteceu? — ele exigiu saber. — De verdade?

             Eu poderia escolher não contar para o meu pai, mas não queria. Queria poder contar para alguém que caí na armadilha de um filho da mãe.

             — Alguns caras me pegaram desprevenido.

             — E quem são esses “caras”?

             E logo me ocorreu que se eu desse nomes aos caras, o que meu pai acha que poderia fazer a respeito?

             — Acho que consigo cuidar disso, pai.

             Pela sua respiração, o notei soar decepcionado, uma expressão peculiar que ele sempre mantinha no rosto por minha causa.

             — Eu só queria que você tivesse mais responsabilidades. — ele murmurou. — É por isso que sempre estou pegando no seu pé. Eu só queria que você levasse as coisas mais a sério, porque não vou estar aqui para sempre.

             Por um momento achei ter ouvido um tom lírico na voz do meu pai. O olhei diretamente por um instante. Isso realmente estava acontecendo, mais uma vez. Desviei os olhos dele, e voltei a concentrar novamente no teto do quarto.

             — E quando você vai cortar esse cabelo? — a voz alta do meu pai me assustou quando cheguei a pensar que a essa altura ele já tinha ido.

             Meu cabelo é de um loiro escuro cortado em camadas na altura dos olhos. Meu pai pegava no meu pé por causa disso, dizendo que o corte garotão não combinava para um homem que estava na faculdade.

             Eu o olhei.

             — E quando você vai parar de me encher por causa disso?

             Meu pai deu um fraco sorriso em resposta, e logo em seguida desencostou-se da porta. Quando ele sorria, linhas de sorriso formavam em volta dos seus olhos, lembrando-me que o tempo tinha passado para nós dois.

             Eu me peguei lembrando a minha infância.

             Eu gostei dela. Gostava das histórias que meu pai me contava antes de ir dormir – naquela época ele tinha tempo para essas coisas normais. Gostava quando ele frequentava as reuniões do colégio mesmo para no final dizer: “Não acredito que vim até aqui pra ouvir sua professora dizer que você está péssimo.” Gostava da relação de cumplicidade entre nós logo depois de a minha mãe ter ido; ele se tornou o meu herói. Mas chegou um dia que as expectativas do meu pai em cima de mim foram muito altas, e então ele começou a mudar e as coisas nunca mais foram as mesmas.

             — Boa noite, Gabriel. — ele saiu, muito rápido para que eu pudesse respondê-lo de volta.

             Assim que ele se foi, eu me peguei pensando no que acabou de acontecer. Ele estar aqui, parado na porta do meu quarto, tendo uma conversa amigável como se tivéssemos uma relação de pai e filho imaculada. Porque, inacreditavelmente, depois de muito tempo essa tinha sido uma das conversas mais longas que eu já tive com meu pai.

          

        Entrei na loja de Pet Shop.

             A porta bateu e se fechou, despertando a atenção de todas aquelas pessoas que estavam ali para mim, depois voltaram exatamente onde pararam no momento que me olharam. Não tinha muita gente, só uma modesta senhora olhando coleiras caninas na prateleira, uma mãe perseguindo seu filho que corria desenfreadamente pela loja; uma mulher com o rosto artificialmente esticado, uma vendedora. E nada da Alícia.

             Aquela mesma vendedora veio em minha direção, abrindo um sorriso profissional.

             — Bom dia. — ela disse. — Posso ajudá-lo?

             — Estou procurando a Alícia.

             Ela me levou até a um balcão escondido nos fundos da loja. Atrás dele eu esperava que fosse encontrar Alícia, mas estava vazio. Olhei para a mulher que me levou até lá, insinuando num pseudossorriso que ela tinha me levado para o lugar errado. Mas ela parecia confiante, de qualquer jeito, de que Alícia estava mesmo ali.

             Esperei ela dar as costas e debrucei sobre o balcão. Esperava que no final ela estivesse mentindo, mas Alícia estava mesmo lá embaixo, fechando gaiolas complicadamente difíceis de lidar.

             Alícia olhou para cima e me viu, levantando de repente.

             — O que você está fazendo aqui?

             Eu estava sussurrando porque ela estava sussurrando.

             — Eu precisava falar com você. — e falei no meu tom de voz másculo. — Só existe um pet shop nessa cidade no raio de vinte quilômetros entre a faculdade e a sua casa, sabe. Não foi difícil de te encontrar.

             Ela sorriu um pouco.

             — Você está parecendo o mocinho controlador do livro erótico que estou lendo. — e falou seriamente. — Mas eu não posso falar agora. Estou trabalhando.

             Balancei a cabeça afirmadamente.

             — Eu posso te esperar, então. — eu disse, obstinado. — Eu fico aqui enquanto faz o seu horário, e então nós podemos sair para algum lugar para conversar.

             Eu espalhando as palavras na mesa assim parecia absurdamente simples e lógico.

             Alícia levantou uma sobrancelha.

             — Eu só vou sair daqui exatamente a duas horas, tem certeza? De qualquer forma, acho que não vai funcionar. — ela desviou seu corpo da minha direção e apontou o dedo para a mulher atrás de mim, a com o rosto artificialmente esticado que eu tinha visto na entrada da loja. — Aquela ali é a minha chefe, e ela não gosta que recebemos amigos no trabalho.

             E voltou o corpo para o lugar de antes.

             — Ela não precisa saber que somos amigos. — sugeri. — Aparentemente, eu sou apenas o seu cliente, e estou aqui para comprar um bichinho.

         

        Eu seguia Alícia pelo imenso corredor, onde estavam expostos os diversos tipos de raças caninas que você pudesse imaginar. Poucos filhotes latiam, e o restante brincava com suas bolinhas e ossinhos, ou seja lá o que for isso o que eles usavam para se distrair.

             — O poodle é a segunda raça de cachorros mais inteligentes do mundo. — havia intensidade na voz dela, como se o que eu acabasse de ouvir fosse uma espécie de curiosidade vital. Talvez para ela realmente fosse.

             Alícia apontou para os filhotes peludos. Torci o nariz. São cachorros de garotas e madames, e se eu estava aqui para fingir que via cachorros, eu olharia pelo menos para os que combinavam comigo.

             — E qual é o primeiro? — perguntei, soando indiferente de propósito.

             — Esse.

             Ela me mostrou um filhote de lisos pelos preto e branco e de olhos sapecas. Ele não estava se mostrando muito para mim, mas parecia ser um daqueles cachorros bastante ativos. Ele tinha tudo o que um cachorro precisava ter para chamar a atenção de uma pessoa que estava pensando em adotar um.

             — É um Border Collie, e eles adoram espaço para brincar. — parou de andar subitamente e virou para mim. — Ele iria adorar a sua casa.

             Ela me olhava seriamente. Ela era mesmo muito petulante.

             Com as mãos em cada um do seu ombro, girei seu corpo para frente, empurrando-a para ela se mover. Escorregou fácil das minhas mãos e virou pra trás, encarando-me de novo.

             — Não gostou dele?

             — Só estamos fingindo que estou olhando cachorros, esqueceu? Não é como se eu estivesse aqui para escolher algum de verdade. E além do mais, eu não gosto de cachorro.

             Alícia pareceu desapontada.

             — Não é possível você não gostar de cachorro.

             — Sim, é possível. — respondi, impaciente. — Vamos?

             Alícia virou voluntariamente o corpo pra frente dessa vez e começou a andar. Eu andava logo atrás dela quando percebi olhos brilhantes me observarem. Olhei para ele. Ele me encarava humanamente, soando racional demais para um cachorro. Ultrapassei a gaiola que estava, e o cachorrinho tombou sua cabeça para o lado de fora da grade para me olhar. Por isso parei de andar e voltei para trás.          

             Ele tinha conseguido me intrigar.

             Apareci, e ele recuou para o fundo, seus olhos fixos em mim. Quando percebeu que eu não estava ali para machucá-lo e nem para xingá-lo, ele se aproximou e começou a balançar o rabo avidamente, fazendo todo esse estardalhaço para mim.

             — Gostou desse? — Alícia disse tão alto e chegou tão inesperadamente que me assustou. Ela agachou na altura que eu estava, para olhá-lo também. Disse com um balançar de cabeça: — Você não vai querer levá-lo.

             Se ela queria instigar minha curiosidade com isso, ela conseguiu.

             — Por que eu não iria querer levá-lo?

             — Ele só tem três meses, e é terrível, então imagina quando estiver adulto. Você pode achar que esses olhinhos são incapazes disso, mas eles definitivamente são. E acho que se chegasse a levá-lo, você voltaria com ele pra cá antes de completar as 24 horas. E ele é um labrador também.

             — Pensei que o trabalho dos vendedores é vender e não coagir o cliente a não comprar. — eu disse. — Mas não se preocupe. Não é minha intenção levá-lo.

             Isso nem sequer passou pela minha cabeça.

             Alícia levantou.

             — Bem —, ela disse, apressada. — Já podemos voltar agora.     

             Antes de levantar, coloquei meus dedos na gaiola e instantaneamente o pequeno cachorro os lambeu por trás da barra de ferro.

             — Você é muito simpático. — eu disse para ele. — E eu te levaria para casa se eu gostasse de cachorro.

             Logo em seguida eu sorri, como se ele pudesse entender o que um sorriso nestas circunstâncias poderia vir a significar. O cãozinho balançava o rabo, como se estivesse me respondendo.

          

        Era seis e meia. A única iluminação proeminente eram as luzes dos postes e algumas lâmpadas acessas vindo das casas vizinhas. A rua deserta para esse horário.

             Esperava Alícia em frente à loja em uma posição rígida encostada no carro enquanto ela se preparava para ir embora. Vez ou outra eu olhava para a entrada, esperando que ela saísse por aquela porta a qualquer momento. Eu segurava um molho de chave na mão, ansioso, brincando com o barulho metálico enquanto o rodava no meu dedo.

             Mexi impacientemente no carro uma vez e olhei para o lado, e notei Alícia se aproximar depois de tanto tempo de espera.

             Estávamos tendo um feriado prolongado, então eu não conseguiria vê-la se não tivesse vindo até a ela no seu trabalho. Por isso saí perseguindo pet shops pelo bairro à procura dela.

             Alícia aproximou de mim no carro, com a cabeça baixa e com um sorriso no rosto enquanto andava.

             Parou de frente para mim.

             — Então —, ela disse despreocupada, arrastando a palavra como se estivesse me provocando a alguma coisa. — O que é tão importante que não poderia esperar até quarta-feira?

             — O que foi aquilo ontem, toda aquela coisa do Vitor e do Nico?

             Seu sorriso desapareceu, e um ar sério tomou lugar no seu rosto. Continuei com os olhos preso nela quando Alícia se moveu tranquilamente para o meu lado e escorou as costas no carro. Meus olhos a seguiram até ela virar a cabeça e me olhar.

             — Eu sabia que meu irmão estava planejando alguma coisa, mas eu não podia saber o quê com certeza. Foi por isso que eu fui até lá. Para conferir o que ele iria fazer com você.

             Cocei a testa. Você está acostumado a ninguém fazer algo grandioso por você, e quando isso acontece, a gente fica meio que desconfortável.

             — Obrigado. — eu disse. E essa palavra nesta circunstância tinha uma carga semântica tão grande.

             Ela sorriu de constrangimento, e balançou a cabeça como se não tivesse importância.

             — Eu só fiz o que achei que seria a coisa certa a fazer.

             — Tem certeza? Porque não é todo o dia que alguém é capaz de fazer algo como isso só por uma questão de achar que é a coisa certa a se fazer. — encerrei de uma vez o barulho metálico das chaves na minha mão, enfiando-as no bolso da calça. — Deixando todo o seu espírito de justiça de lado, quero saber o real motivo de você ter feito isso. Por que me ignorar esse tempo todo e depois fazer algo como isso por mim?

             Ela não respondeu logo, e seus olhos foram parar lá à frente, perdidos ao longe nos prédios de estruturas altas.

             — Mudei de ideia. Não quero mais ignorar você. — ela disse. — A verdade é que eu não soube impedir meus pais quando decidiram controlar a minha vida daquele jeito, não consegui lidar com as pessoas trabalhando tão duro para que eu ficasse longe de você, por isso eu disse aquelas coisas. Mas nunca quis dizer realmente.

             Ficamos assim alguns instantes, calados.

             — E que acordo foi aquele que o Nico disse?

             Um avião passou bem acima de nós no mesmo tempo que ela falou.

             — Eu fiquei de pensar.

             — E?

             — Nico disse que se eu quisesse que você fosse reintegrado de novo e que meu irmão não fosse prejudicado, eu teria que voltar com ele. E então ele não precisaria te desclassificar e nem ao meu irmão também. Vocês dois poderiam ficar.

             Neste momento, eu estava olhando para o seu rosto com urgência, tentando descobrir se ela falava sério, se realmente passou pela sua cabeça aceitar isso.

             Que espécie de cara pede isso a alguém, e quem é tão altruísta ao ponto lhe dar alguma coisa?

             — E você está pensando em concordar? — eu disse, num tom aterrorizado e suplicante, numa voz sólida que não se admitia liquefação.

             Porque eu não poderia ver uma garota do jeito que eu queria ver se ela estivesse compromissada com outro cara.

             — Eu poderia ajudar você e ao mesmo tempo o meu irmão...

             — Mas eu já estou desclassificado, Alícia. E ele disse isso na frente de todo mundo, então não há nada que o Nico possa fazer para consertar isso. — toquei seu braço, chamando a atenção dos seus olhos para mim. — Você não precisa fazer isso, não por mim, porque, se quer saber, ontem à noite decidi que não quero mais fazer parte dessa loucura. Acho que estou tendo muito prejuízo, e acho que não vale a pena.

             Seus olhos intensos encaravam os meus.

             — Eu não entendo. Está simplesmente desistindo?

             — Sim, eu estou. — eu disse, suave e firme. — Não preciso disso. Você pode ser o meu escape a partir de agora, e vai ser mais seguro do que corridas clandestinas.

             — O quê? — ela perguntou, num tom de voz muito mais baixo do seu normal. Quis assegurar se ouviu direito.

             — Você pode ser o meu escape a partir de agora. — repeti, a voz rouca.

             De frente para mim, sua cabeça batendo no meu peito, Alícia impulsionou-se um pouco à frente como se não tivesse ouvido o que eu acabei de dizer; uma iniciativa que me surpreendeu tanto quanto rochas com silhuetas de pessoas movendo-se, e ergueu o braço para passar a mão no meu rosto, parando nos machucados recentemente ganhados, um toque de água mole num rosto de pedra dura. É verdade que para toda regra existe uma exceção, porque apesar de eu não gostar muito de ser tocado, gostei de ela me tocar assim.

             Quis perguntar-lhe se ouviu direito dessa vez, mas Alícia falou primeiro.

             — Está doendo? — ela perguntou, gentilmente. Uma voz sexy que se plugou em algum lugar acendendo alguma coisa.

             — Não mais.

             Não sei quanto tempo durou sua hesitação.

             — Desculpe pelo seu carro. — ela disse, depois de um tempo.

             Agitei a cabeça.

             — Carros são facilmente consertados. E em termos de comparação, nem está tão terrível como da última vez.

             Ela tirou a mão do meu rosto pela menção do acidente, e quase a pedi para que voltasse, controlando-me para não trazê-la de volta como se rebobina um filme, e então encostou no carro ao meu lado outra vez e ficou olhando os prédios no centro da cidade.

             — Sabe qual é o grande problema da vida? — ela disse. — É não sabermos quando vai ser a nossa última respiração, nossa última ida à padaria ou a última vez que vemos as pessoas que amamos. A vida é tão incerta e viver é tão irônico.

             — Por que está dizendo estas coisas?

             Ela virou o corpo todo para mim.

             — Eu só... estou inconformada com o curso do rio. Mas eu estou tentando. Você sabe, aquela coisa sobre viver a vida sem deixar nada para depois.

             — E como exatamente você anda fazendo isso? — perguntei, curiosamente.

             — Você. Fui atrás de você mesmo que as pessoas à minha volta me diziam para fazer o contrário. Não quero ter nenhum tipo de pendência com você.

             Eu me vi dizendo:

             — Você está fazendo isso de um jeito errado, então.

             Ela olhava para mim, dando um olhar significando incompreender o que eu havia dito. Mas certas coisas não são para serem compreendidas, não de início.

             Minha mão se levantou e agora era minha vez de perscrutar seu rosto, como um artesão faz, investigando cada falha, sondando cada contorno das suas peças de barro. Meus dedos grandes pareceram desproporcionais num rosto tão frágil e pequeno; pareceu que eu estava tremendo. Nunca esperei tanto tempo para beijar uma garota antes e me vi perguntando quando foi, o exato momento, que Alícia deixou de ser apenas uma garota comum para alguém que eu desejava dessa forma.

             Ela sorriu abertamente, como janelas sendo abertas pela manhã num dia confortavelmente quente.

             — Eu tinha uma queda por você.

             — É? — eu disse por dizer. Não era como se eu quisesse conversar. Num momento como esse, você não está pensando em conversa.

             — É. — ela afirmou, balançando a cabeça para cima e para baixo. — Desde a primeira vez que te vi até agora.

             Firmei mais forte minha mão em seu rosto, então a trouxe para mais perto. Ela elevou o rosto, concedendo-me beijá-la. Toquei seus lábios levemente e a beijei, com cuidado, como se a cada deslize meu fosse fatal. Depois, como se a qualquer momento entre agora e o agora ela fosse se desintegrar dos meus dedos se eu não o fizesse logo, como se fosse apagada da tela mágica logo após ser escrita, como balões voando pra longe no céu. Como se a recompensa por viver fosse exatamente isso daqui.

             Eu não sei por quanto tempo exatamente nós ficamos assim, debaixo da Lua, encostados no carro. Eu só sei que tinha parecido que o tempo parou. E por um momento, quem poderia dizer que não tinha?

          

        Cheguei ao meu quarto, suando e o cabelo molhado, libertando-me da camisa de suor, tirando-a de mim como se me livrasse de algum peso. Estava chegando de uma corrida pela manhã em volta da propriedade.  

             Além da música, essa era outra forma eficaz de descarregar frustração. Não que eu esteja frustrado agora. Nunca estive tão bem comigo mesmo.        

             Abri as portas centrais do guarda roupa para pegar uma roupa, e ao fechá-la notei uma sombra pelo lado do meu olho e que ela não estava ali, com certeza, quando abri as portas segundos antes.

             Meu pai apoiava os ombros na porta do quarto, como da última vez que esteve aqui.

             — Aconteceu alguma coisa? — perguntei, sem rodeios. Sentei na cama e me dobrei para desamarrar os cadarços para depois tirar as meias e o tênis, ignorando meu pai parado na porta.

             — Sua mãe está na cidade.

             Fiquei imóvel um instante. Quando finalmente disse algo, minha resposta se projetou com a mesma indiferença crua que ouvi a notícia.

             — E?

             — Ela veio te ver. Sua mãe quer passar um tempo com você.

             Dei um sorriso tenso.

             — E por que isso agora? Ela não se deu ao trabalho de saber se ao menos estou interessado?

             Soltei o ar, sobrecarregado. Peguei o tênis, as meias no chão e levantei, soando como se estivesse fazendo tarefas casuais, como se eu não estivesse tendo uma conversa com meu pai sobre minha mãe ter voltado.

             — É por isso que estou aqui. 

             E com isso, o olhei severamente. Depois de tanto tempo eu não esperava receber notícias da minha mãe, muito menos uma notícia de que ela estava tão perto.

             — Você já está crescido para ainda guardar ressentimentos da sua mãe, Gabriel. — ele me disse em resposta. — Você tem que superar isso.

             Meus olhos foram para o papel branco que ele colocou em cima da mesa do computador.

             — Este é o endereço dela —, meu pai disse, levando preguiçosamente meu rosto para ele. — Caso mude de ideia.

             Desviei os olhos dele e andei em direção ao banheiro. Abri a porta. Meus pés pararam na soleira prestes a entrar quando a voz do meu pai me interceptou:

             — Você ainda está vendo a garota do acidente?

             O momento em que nos beijamos ontem à noite cristalizou em minha mente, e sei que não era isso o que ele gostaria de saber.

             Olhei para ele, desconfiado.

             — Sim. — respondi, lentamente. — Por que está me perguntando isso?

             Meu pai pareceu pensar antes de dizer.

             — Eu sei que você nunca considera o que eu digo —, ele disse, calmamente. — Mas preciso que me escute dessa vez. Você precisa ficar longe dela.

             Eu estava rígido.

             — Por quê?

             — Gabriel —, a voz do meu pai era além de cuidadosa. Ele nunca se preocupou em ser cuidadoso comigo antes. — Eu tenho certeza de que isso não é o que você precisa agora.

             Inacreditável. O que ele sabe sobre o que preciso?

             Senti uma vertigem de calor subir pelo meu rosto, mas estou em choque demais para espantá-la do meu rosto. Estou imóvel, petrificado, desconfiando da razão de o meu pai estar me interpelando desse jeito.

             — Toda essa implicância é por ela não ter dinheiro – os pais dela não terem dinheiro?

             — Não.

             — Tem alguma coisa de que eu preciso saber, então?

             — Não.

             — Então por que eu deveria te escutar? Você pode interferir em tudo na minha vida, mas quando se trata de garotas, deveria ter bom senso e ficar de fora. — fiz um gesto de negação com a cabeça. — Não sei como ainda tem coragem de verbalizar uma coisa como essa.

             A expressão dele mudou de tranquila para tensa.

             — Gabriel.

             — Você pode me dá licença agora? — eu disse, agitado, parado na porta do banheiro.

             Depois de um longo tempo, meu pai assentiu e bati a porta, alto. Não tinha necessidade disso, mas essa reação hostil significava que a conversa tinha acabado. Definitivamente.

             Meu pai não podia vir até a mim e me dizer estas coisas.

             Quando terminei o banho, passei por acaso pela mesa do computador. O papel com o endereço da minha mãe ainda estava lá.

             Convenci-me de que não seria um fraco se pegasse aquele papel e talvez o guardasse. Dei um passo e depois o outro em direção ao computador. Peguei o endereço da minha mãe e o guardei na carteira, num lugar escondido e bem guardado, para não precisar ter que desfazer-me dele quando o encontrasse em um momento de raiva e loucura.

             Mas isso não significava que eu estava cedendo.

          

        Eu estava indo encontrar com a Alícia.

             Desci as escadas. Passei a porta do escritório do meu pai, e consegui ouvir vozes do outro lado da porta. Não precisei escutar duas vezes para saber que a outra voz era a da Susie. Eles sussurravam e conversavam como se tivessem um segredo em comum.

             Fiquei intrigado, porque meu pai não costumava manter segredos com a Susie e muito menos ficar sussurrando com ela pelos cantos da casa quando eu estava lá em cima da casa, longe de seus alcances. Na verdade, quase o tempo todo Susie parecia ter medo dele. Por isso resolvi parar e me aproximar, para que os sussurros deixassem de serem sussurros. Eu não queria fazer isso, mas não consegui controlar a força de vontade que tinha meus pés.

             Eu ouvia distintamente agora.

             — Eu conversei com o Gabriel.

             — Você contou a ele? — ouvi Susie dizer, ao mesmo tempo sua voz parecendo surpresa e aliviada.

             — Não, e nem vou. — meu pai foi duro na resposta. — Eu só disse a ele para ficar longe da garota.

             — Robson —, ela disse, sua voz soando com um aviso. — Você precisa contar a ele. Eventualmente ele vai acabar desc...

             — Susie, me escuta. Você não pode contar ao Gabriel o que aconteceu. Ele não pode saber. — ele disse, destacando bem as sílabas da última frase, expondo claramente o seu propósito.

             — Você não precisa me dizer o que devo fazer. — a voz dele voltou, imperativa. — Eu sou o pai dele, e sei o que é o melhor para ele.

             Susie foi rápida na resposta.

             — Não é disso o que estou falando.

             — Seja do que você estiver se referindo, minha resposta continua sendo a mesma. Gabriel não pode saber. Eu sei que não preciso te avisar disso, mas... — ele vacilou por um instante. — Se você contar qualquer coisa ao Gabriel, seu emprego nessa casa estará em jogo, Susie. Lembre-se disso antes de pensar sair por aí contando qualquer coisa a ele.

             O som da voz deles cessou. Depois, ouvi os passinhos gentis da Susie andando apressadamente para longe dali. Recuei, para sair de lá antes que eles me vissem e soubessem que estive escutando a conversa.

             Só que, se eu o fizesse, nunca poderia confrontar meu pai sobre o que ouvi hoje sem que Susie perdesse o emprego.

             Susie fechou a porta e andou um pouco, distraidamente, até que me viu encostado na parede. Ela se assustou, e depois ficou mais preocupada do que aliviada. Senti passar um monte de coisa pelo seu rosto, como efeitos de sobreposição. Estava esperando que ela falasse primeiro, porque assim eu saberia o que estava passando pela sua cabeça em primeiro plano que a deixava assim tão pálida.

             — Você estava aí por muito tempo? — então era essa a sua preocupação, se eu deveria ter ouvido a conversa.

             Não lhe dei uma resposta. Eu queria dizer que sim, assim talvez espontaneamente a fizesse falar sobre o que meu pai e ela acabaram de conversar. E aí eu poderia falar mais alto, para que meu pai ouvisse do outro lado da porta, e então a culpa não recairia em cima da Susie por ter me contado, e sim porque eles foram burros demais para serem pegos por mim.

             Susie se dirigiu a mim, passos rápidos que chegavam a ser desesperados. Parou, e com os olhos baixos ajeitou alguma coisa errada na minha camisa que não estava errada, então percebi que era nervoso, porque suas mãos estavam tremendo um pouco.    

             Com as duas mãos sobre as suas, tirei gentilmente suas mãos de mim.

             — Susie. — eu disse, advertidamente. Porque eu sabia o que ela estava tentando fazer; me calar sobre o que quer que ouvi.

             Ela me ignorou.

             — Sabe —, ela disse, nervosamente. Seus olhos tremiam. — Eu te vi crescer, então minha relação com você não é somente por causa do trabalho. Eu gosto de você, como um filho.

              — Por que está falando isso de repente? Isso é pela ameaça que meu pai te fez?

             Ela riu forçadamente, para me levar a pensar que foi estúpido minha afirmação. E levantou os olhos, mas eles me olhavam inconvictos.

              — Por que seu pai iria me ameaçar, Gabriel?

              A porta se abriu, e ela se afastou de mim o mais longe que foi possível. Meu pai apareceu no corredor, e olhava especulativamente de mim para a Susie.

              — O que está acontecendo?

              Se eu não falasse agora, eu não poderia falar mais, não sem comprometer a Susie. Em posição de triângulo, olhando para a Susie que olhava para o meu pai, através dos seus olhos vi como ela o enxergava aterrorizador. Meu pai causava-lhe algum tipo de medo, então como posso prender uma pessoa claustrofóbica? Como eu poderia fazer isso com ela?

              Virei, meus ombros com os ombros da Susie, dando as costas ao meu pai.

              — O que está acontecendo? — ele perguntou outra vez, enquanto eu andava para a porta.

          

        Estacionei o carro uma rua antes da casa da Alícia, como eu sempre fazia; eu posso ter me entendido com ela, mas não com seus pais.

             Ela já estava lá quando cheguei muito mais atrasado do que o normal, esperando-me na rua escura e deserta. Além do reflexo do farol, seu rosto iluminou com outro tipo de coisa quando reconheceu meu carro virando a rua. Como se estivesse pensando que eu não viria.

             Abriu a porta, seus olhos parando em mim logo quando sentou. Eu era esse muro sombrio e disperso de pensamentos barulhentos. Eu não disse “oi”. Ela teria dito, mas viu alguma coisa no meu rosto que a deteve. Pressionou o dente num pedaço do lábio inferior e olhou para o lado, como se estivesse remoendo por dentro para não ter de perguntar por que isso.

             Mas não resistiu, de qualquer jeito.

             — Aconteceu alguma coisa?

             — Parece que sim. 

             Alícia se moveu no assento e virou o corpo todo para me olhar.

             — O que aconteceu? — ela perguntou, a voz carregada de preocupação e ansiedade.

             — Não tenho certeza. Eu ouvi meu pai tendo uma conversa estranha com a Susie. Eu não sei, mas... alguma coisa está errada.

             Eu só omiti o expoente da conversa que envolvia o seu nome. Não queria encher a cabeça dela sobre coisas das quais eu nem tinha certeza do que era.

             — Isso provavelmente não é nada, Gabriel. — ela já pronunciou meu nome diversas vezes antes, e sei que não deveria ser assim que ele deveria soar; tão pesado quanto um submarino que afunda no mar. — Hipoteticamente falando... — sua voz tremeu. — Vamos dizer que seu pai está escondendo mesmo alguma coisa de você. Seja o que for... deve ser para o seu bem. Quero dizer, ele é seu pai, ele não iria querer ver você se dando mal. Então por que se preocupar?

             Ela falava com propriedade.

             — Você sabe de alguma coisa? — eu perguntei, minhas palavras soando confusas demais em decidir entre uma suposição ou uma pergunta.

             — Eu? — ela disse, sorrindo tensamente. — Não. Por que eu saberia de uma conversa entre o seu pai e a Susie?

             A forma como seus olhos me encarava era convincente.

             — Podemos ir agora? — ela tentou parecer animada, e moveu o corpo para frente no banco. — Estou curiosa para saber em que lugar nós vamos.

             Estudei sua expressão por um instante, tentando decodificá-la e passar para o papel se ela sabia alguma coisa que não estava disposta a me dizer. Depois decidi que não tinha motivos para desconfiar dela. Acho que Alícia não conseguiria olhar dentro dos meus olhos, encarar meu rosto e mentir para mim. Qualquer outra pessoa poderia; não alguém com uma voz como a dela.

         

        Eu levaria Alícia para um lugar distante, vazio e perto da natureza. Com gramas, árvores e pouca luz. Quando esteve na minha casa e se encantou com o gramado do meu quintal, então imaginei que ela acharia esse lugar um playground.

             Parei o carro, um ponto verde musgo com um motor possante fundindo com os verdes naturais da mata. Espécies de grilos cantavam lembrando-me de que este lugar era completamente perdido e solitário, afastado do restante do mundo. As árvores da floresta atrás de nós farfalharam ao toque de uma rajada confortável de vento que passou por elas. Lá embaixo, os carros passavam na rodovia, ouvindo daqui de cima as sirenes e o barulho da cidade iluminada ao longe. As gramas não são tão grandes, por não sofrer nenhuma intervenção antrópica, elas são baixinhas, como um chão de veludo. Bem ao nosso lado, tinha uma árvore frondosa e bastante alta, a única nesse pedaço alto de lugar.     

             Estava sentado sobre o capô do carro, olhando para o céu e para as estrelas espalhadas nele. Acima de nós, havia a vastidão do espaço e o céu preto como um abismo, e nós dois aqui em baixo parecia como se fôssemos os únicos existentes no mundo. Ao contrário de mim, Alícia encostou na ponta do carro, com os pés no chão. Sempre com os pés no chão.

             Alícia suspirou, perdendo seus olhos na cidade viva abaixo de nós.

              — Aqui é uma espécie de esconderijo para você? — ela perguntou, sem desviar os olhos do ponto que olhava. — Eu preciso saber para o caso de quando você decidir fugir e eu poder te encontrar.

             Sorri, adivinhando o que a levou a perguntar isso.

             Eu não vinha aqui, não era um tipo de refúgio ou algo assim. Eu o conheci quando eu e Lucas procurávamos por um lugar deserto para fazermos uma festa privada de garotas e bebidas, e então encontramos esse lugar no meio do nada, saindo de uma beira de estrada.

             Era assim que eu era, antes. Bebida e garotas. Mas não é o que sou agora. Chega um tempo na vida que você só quer parar e esperar, por mais que não saiba definidamente o que está esperando.

              — Não —, eu respondi, lentamente. — Eu só te trouxe porque pensei que você gostaria de ver esse lugar.

             Alícia acenou positivamente.

             — Eu gosto de...

             — Natureza. — completei a frase por ela. — E essas coisas sobre ar livre, eu sei.

             E era por isso que nós estávamos aqui e não em qualquer outro lugar.

             O farol do carro era forte, então dava perfeitamente para ver o contorno do formato do rosto da Alícia e o reflexo dos seus olhos iluminado também pela luz da Lua.

             — Como aconteceu essa sua paixão por música? — sua voz ecoou nítida e suave pelo espaço aberto. — Sei que todo mundo tem uma história. Qual é a sua?

             Ela virou a cabeça pra trás por alguns segundos quando eu demorei na resposta.

             — Na verdade —, comecei a dizer, olhando para o céu agora. — Começou quando eu era criança, quando tive de lidar com a ausência da minha mãe quando foi embora. Vivi um processo traumático por causa disso. Fiquei um ano sem falar com as outras crianças, e foi quando meu pai descobriu que eu comportava como uma criança autista. Mais tarde deram o nome de síndrome de Asperger. E então ele me colocou na aula de música, porque achou que fosse resolver alguma coisa.

             E realmente não contava que fosse resolver. Mas não fui curado completamente, eu ainda relaciono pouco com as pessoas e falo o pouco que posso. É como se eu fosse um anticorpo, neutralizando qualquer coisa que venha chegar perto.

             Não sou tão estranho, considerando que uma pessoa normal mesmo só depois de muita resistência tolera uma aproximação íntima de outro alguém. Pelo menos é isso o que tento me convencer.

             — Mas quando meu pai viu que minhas expectativas eram grandes à medida que crescia, ele suspendeu as aulas porque achou que fosse interferir na minha preparação para a faculdade, que só aconteceria a uma década e meia pela frente. Mas continuei por conta própria. O que meu pai estava pensando, que eu iria largar a escola para tocar no centro da cidade em troca de pequenos “incentivos”?

             E ri um riso sonoro que mexia a cabeça, embora não tivesse nenhuma gama de comicidade no que eu disse. É só que preferi ironizar a fazer uma coisa pior do que se lamentar como uma criança com um amigo.

             Eu olhava para as suas costas enquanto Alícia estava com os olhos fixos em algum ponto alto da cidade.    

             — Vi na sua casa uma foto de você criança segurando um violão —, eu disse, para direcionar os refletores para outro lugar que não fosse para mim. — Parecendo que era isso o que você faria quando crescesse. Por que mudou de ideia?

             — Eu gosto de música, mas parece que não é o suficiente. Não gosto tanto quanto você. — ela estava com um sorriso tranquilo. — Por isso acho que você deveria cantar no bar Irmãos Silva qualquer dia desses. Acho que você deveria saber qual é a sensação quando se está lá em cima e as pessoas lá embaixo estão esperando por você, para ouvir a sua voz. Você faz ideia de como seja?

             — Não.

             — Então você deveria tentar. — ela baixou os olhos por uma fração de segundos, e levantou a cabeça, olhando para o nada. — A vida é curta, Gabriel.

             — Eu sei. — eu disse, automaticamente.

             Ela virou o corpo pra trás, apoiando uma coxa no capô.

             — Não parece que você sabe. — ela disse, afetuosamente. — Eu vejo você fazendo muitas coisas incríveis. — e então seu rosto mudou, e estava com um brilho nos olhos, de uma convicção assustadora disso como quem tem certeza de que 1+1 = 2.

             Ergui uma sobrancelha, intrigado.

             — Que tipo de coisas incríveis?

             — Eu vejo você como um bioengenheiro trabalhando na empresa do seu pai...

             Sorri cinicamente antes que ela chegasse a concluir, mas Alícia não se abalou por causa disso. Poucas coisas a abalariam.

             — E eu te vejo tocando também, e, aliás, isso é o que você sabe fazer de melhor. — ela sorriu de modo feérico antes de acrescentar: — Nós podemos ser qualquer coisa que quisermos.

             — Qualquer coisa? — repeti, cético quanto a isso.

             — Qualquer coisa.

             Escorrei pelo capô para parar ao seu lado. Joguei o braço em volta do seu pescoço e a trouxe para perto. Ela ficou ali, apertada contra a lateral do meu corpo, as mãos enlaçadas para baixo da sua barriga. E como um bichinho voador que a gente captura quando criança, eu prendi esse instante bem forte em minha mão por mais tempo que eu pudesse conseguir. 

             Nas nossas costas, um pouco acima das nossas cabeças, machos alados de vagalumes pairavam no ar, iluminando o espaço verde vazio com sua bioluminescência.

          

        Virei os pneus do carro na direção do passeio para estacionar no lugar que eu costumava deixar Alícia depois dos nossos encontros furtivos, e foi quando sua voz me atrapalhou.

             — Você está me deixando no lugar errado. — ela disse, decididamente. — Pode me deixar na porta da minha casa dessa vez.

             — Mas e seus pais?

             — O que têm eles? — ela perguntou, não ligando nenhum pouco para isso.

             — Eles não disseram para você ficar longe de mim?

             — Gabriel —, ela olhou para mim —, Eu falei sério quando disse que estava sendo uma idiota por pensar que as pessoas podem controlar a minha vida. Para alguém que voltou para a Faculdade de Villanova antes do tempo só por causa de você, acho que eles conseguem lidar com isso.

             Eu não disse nada, apesar de eu estar surpreso pelo fato de a Alícia ter voltado por mim. Achei que qualquer coisa que eu dissesse não seria nada comparado ao que foi dito.

             Então só o que eu poderia fazer era dirigir silenciosamente até a sua rua, que era no próximo quarteirão dali.

             Parei na porta da casa branca e com pilastras pintadas da mesma cor sustentando as varandas. As lâmpadas externas da casa estavam acessas. Quando desliguei os faróis do carro, meus olhos correram pela janela, procurando por algum rosto à espreita atrás das cortinas nos cômodos escuros da casa. Desliguei o carro e enfrentei Alícia ao meu lado. Quando o motor do carro desligou, ela ainda continuava aqui, me olhando.

             Ela era a única que me olhava com esse olhar, como se eu fosse digno.

             — Acho que não fui inteiramente sincero com você.

             O mundo ficou suspenso.

             — Sobre o quê? — ela perguntou, a voz sobrecarregada de tensão sobre o que viria a seguir.

             — Não posso ir até ao bar Irmãos Silva, porque fiz um trato com meu pai. “É a música, ou o dinheiro.”, foi o que ele me pediu para escolher.

             Quando finalmente resolvi dizer ao meu pai qual faculdade escolhi, as coisas não saíram como imaginei.

             “Olha”, ele tinha dito. “Você já fez dezoito anos, e não tenho mais nenhuma responsabilidade legal por você. Então se continuar com essa ideia de fazer faculdade de música, você não terá mais nenhum recurso vindo de mim e terá que lidar com suas despesas, inclusive arcar com essa faculdade que quer fazer. Esse é o negócio que estou fazendo com você.”

             — Você entende o que estou tentando dizer, Alícia? — e as palavras vieram numa cachoeira de palavras: — Eu não escolhi o meu sonho porque sou dependente do dinheiro do meu pai. Eu o odeio por ter me feito fazer uma escolha. Eu me odeio por estar sendo tão superficial.

             E como as engrenagens de uma máquina industrial, o mundo recomeçou.

             — Está tudo bem, Gabriel. — ela disse suavemente. — Está tudo bem escolher uma carreira ao invés de um sonho.

             Eu estava indo dizer que estas coisas que eu disse nunca foram materializadas antes, e isso fazia dela a minha cúmplice. Mas então houve um barulho do ranger irritante de uma porta se abrindo e logo em seguida alguém apareceu na porta.

             — Vocês chegaram numa boa hora, acabei de fazer o jantar. Talvez Gabriel pudesse jantar com a gente —, Maria se dirigiu sugestivamente a mim. — Então podemos conversar um pouco.

             Por que pensei sentir um tom intimidador em “Podemos conversar um pouco”? E por que essa sensação de que deveria fugir?

             Alícia afundou no banco.

             — Certo, mãe! — ela disse, porém a cabeça estava erguida para a janela do carro para o som poder se propagar de volta para Maria.

             Maria deu as costas e entrou na casa, deixando a porta entreaberta para quando Alícia entrasse, soando como um aviso para que não demorasse.

             Ela olhou para mim, envergonhada.

             — Desculpe por isso.

             — Pelo quê?

             — Por se sentir pressionado, talvez?

             — É preciso muito mais para me fazer sentir pressionado. — meus olhos estavam vidrados nela, e então saí do curto transe: — Bem, então acho que enfrentar seus pais não vai ser a coisa mais assustadora que eu já tive que fazer.

             Mas a verdade era que eu não sabia como seria isso. Lembro-me muito bem da última vez que eu vi o “Sr. Lopez”, e ele não estava nenhum pouco agradável comigo. Ele tinha me pedido para ficar longe da Alícia, e o que eu tinha feito? Aproximado tanto ao ponto de estar indo jantar com a sua família. E ainda tem o Vitor... definitivamente, eu não sabia como seria isso.

          

        Maria chegou, colocando na mesa a última coisa que preparou.

             Eu pensava que a hora do jantar seria menos intensa, por todos estarem interessados propriamente no jantar, mas eu estava errado. Enquanto comiam, todos eles – menos Alícia, é claro. Ela mal me olhava nos olhos – passaram a me observar, fazendo-me sentir distintamente desconfortável; como um bichinho excêntrico.

             Maria interrompeu o silêncio. 

             — Então, como vocês dois estão indo?

             Eu sei que essa pergunta não foi direcionada para mim – porque Alícia poderia responder também, mas Maria me olhava, esperando que eu desse alguma “posição”. Olhei para os outros dois homens na mesa. Vitor estava com a cabeça baixa mexendo no prato, parecendo entediado, e Jeremias transparecia não gostar nada disso por causa da carranca intimidadora que fazia.

             Mexi inquietamente na cadeira.

             — Bem. — respondi, propositalmente soando vago. Por que eles tinham que saber coisa minha e da Alícia? O que estava acontecendo com os pais de hoje?

             Por um momento, houve um silêncio desconfortável na mesa.

             — Você deveria ver a sua cara. — Vitor olhou pra mim numa exagerada lentidão. — Nunca sentou com os pais de uma menina antes?

             Ele esteve calado todo esse tempo que em algumas vezes esquecia de que esteve ali. Toda aquela ausência de conversa, me sentir agradecido por ele abrir a boca nem que fosse para me provocar. Estava realmente desconfortável.

             — Não é como se —, olhei dele para o seu pai na mesa. — Eu estivesse numa posição confortável.

             Vitor ergueu uma sobrancelha.    

             — Você não está na sua zona de conforto agora? — ele perguntou, num tom claramente irônico.

             O encarei sem desafixar os olhos.

             — O que você acha? 

             Jeremias deixou o garfo cair sobre o prato.

             — Basta. — ele soou zangado, assustando todos na mesa. Vitor que esteve disperso todo esse tempo foi forçado a acordar; Alícia olhava incredulamente para o pai; e assustada, Maria analisava todo aquele comportamento bipolar do marido. E eu encontrava me avaliando se foi o que eu disse que o deixou assim.

             — Eu não consigo fazer isso. — a voz dele foi mais controlada agora. Ele arrastou a cadeira quando se colocou de pé e saiu da sala de jantar, deixando eu e mais três cabeças confusas em seus lugares.

            Maria levantou logo em seguida, desculpando-se em um murmúrio.

             — Desculpe. — ela disse para mim. — Ele deve ter uma boa explicação para isso.

             Eu não sei se tinha uma explicação para isso.

             Maria pausou seu garfo e faca calmamente em cima do prato, e retirou-se da mesma forma, sem demonstrar raiva por seu marido ter estragado seu jantar em família ou cumplicidade.

             Logo depois que Maria e Jeremias saíram, o clima na mesa ficou tenso com apenas eu, Alícia e Vitor sentados na mesa e seus pais no outro cômodo, discutindo.

             “Por que você está fazendo isso?”, Maria disse num fio de voz, do outro lado do cômodo. Não importa o quanto eles falem baixo, a casa é pequena e as paredes são finas. “Não dá para ignorar o que ela está fazendo. Ela está jogando fora sua vida estando com esse garoto. Ela está indo contra nós por causa dele!”

             Acho que alguém deveria avisá-los de que estão sendo escutados.

             Sob o silêncio pesado, eu sentia o olhar acusador e pesado do Vitor em cima de mim como âncora. Eu olhava para a Alícia, penetradamente, porque era de mim que Jeremias estava falando. E os olhos dela evitavam encontrar com os meus, talvez por vergonha de toda essa situação ou amaldiçoando o momento que me convidou a entrar.

             Esse foi o pior jantar que eu já participei.

             — Eu vou buscar a sobremesa. — Alícia resolveu, e olhou finalmente para mim e depois para o Vitor. — Posso ficar tranquila quanto a vocês dois destruírem a sala de jantar quando eu estiver fora, não posso?

             Mas saiu sem esperar pela resposta, e foi em direção à cozinha. Eu a observava quando virou o curto corredor e desapareceu, sem olhar pra trás para confirmar se eu e Vitor a essa altura destruímos a sala de jantar.

             Vitor e eu olhávamos para os lados opostos, ouvindo Alícia fazer barulhos na cozinha.

             Então Vitor disse.

             — Você tem ido a outras corridas?

             Fiquei surpreso por ele estar puxando assunto, mas disfarcei a importância que eu dava para isso. Poxa, eu estava saindo com a Alícia. Eu gostava dela ao ponto de querer me dar bem com a sua família.

             — Estou dando um tempo. — respondi, nem totalmente disposto mas também não azedo.

             Passou alguns instantes.

             Vitor bufou. 

             — Eu sou grato pelo o que seu pai fez pela Alícia no hospital, e por isso sou capaz de esquecer nossas desavenças por um determinado tempo. Não queria que tivesse acontecido aquele lance da corrida para me dar conta disso, mas... eu não deveria ter pegado tanto no seu pé. — seus olhos estavam para o lado, as costas largadas na cadeira e os braços cruzados debaixo dos braços. — E muito menos ter feito o que fiz com você na noite da corrida. Acontece que... eu tinha que culpar alguém pelo acidente. Essa pessoa não poderia ser eu, porque não estava certo se fosse eu.

             O relógio na parede da pequena sala de jantar deu doze estalos.

             Qualquer um de nós dois poderia fugir para algum lugar. Eu banheiro e ele quarto, ou ele que ficasse aqui mesmo e eu desse o fora. Mas, preciso saber uma coisa antes.

             Meus braços estavam esticados na mesa. Não olhava para o Vitor quando perguntei:

             — Por que o Nico e a Alícia terminaram?

             — Por que você não pergunta a ela? — ele soou ríspido.

             — Se quisesse que eu soubesse ela já teria contado, você não acha?

             — Então por que eu contaria?

             Olhei para minhas mãos.

             — Se não tem intenção de contar, é só dizer. Não precisamos fazer esse jogo.

             Vitor respirou fundo, cedendo.

             — Nico traía Alícia com as putas da corrida. Uma vez a levei para me ver correndo e ela o viu se agarrando com uma mulher. Nico não tinha como ter ideia que o irmão dela frequentava lá também, que estava de olho nele sem ele saber. — ele disse, mecanicamente. — Não foi simplesmente chegar para ela e dizer: “seu namorado está te traindo, irmãzinha.”

             — Então você a levou lá.

             Vitor assentiu.

             — Assim Alícia veria com os próprios olhos e eu não teria que ser o encarregado de contar a ela.

             Nossa, posso dizer que Vitor é bem prático. E estou em um grande conflito se isso faz dele um péssimo irmão ou não.

             Um desconfortável silêncio tomou conta do cômodo que eu e Vitor estávamos, já que Alícia continuava fazendo sei lá o quê e seus pais também.

             Vitor interrompeu a longa pausa.

             — Só porque eu disse essas coisas —, ele disse, por entre dentes. — Não significa que esqueci quem você é. Você ainda continua sendo um plaboyzinho de merda.

             Era fácil ser tolerante com o Vitor quando nós dois saímos perdendo. Alícia já fez muito por mim ao interceder por mim na corrida, e eu deveria dar algum crédito a ele em troca. O pai dela não gostava de mim e sua mãe estava agindo estranha. Pelo menos eu poderia me entender com o seu irmão. Talvez fazer isso se tornasse mais fácil.

             Funguei com ar de pouco caso.

             — E não é algo que eu esteja querendo também. — revidei. — Ser amigo de você.

             Houve silêncio depois que eu falei.

             — Então uma trégua? — Vitor sugeriu. — Por um tempo?

             Homens não pedem desculpas à toa, o orgulho fala muito mais alto. Então quando um homem se desculpa para outro, você perdoa.

             — Acho que eu posso fazer isso.

             Até quando duraria essa trégua? Talvez ela desaparecesse no primeiro momento que topássemos em alguma corrida por aí.

          

        Assim que entrei no meu quarto, afundei exaustivamente a bunda na cama e tirei o par de tênis, jogando-os no chão. Caí de costas na cama feita e permaneci assim.

             Estou voltando de uma aula de violão. Na parte da tarde. Mas não sou o aluno. Inacreditavelmente, o professor sou eu. Desde o começo do ano eu tenho dado aulas de violão em uma ONG depois das cordilheiras, num bairro vizinho ao da Alícia. Tanto conhecimento numa pessoa não tem sentido guardar só para ela.

             Nas brigas com meu pai, ele sempre me acusava de estar vagabundando por aí. Mas não posso dizer que é isso o que tenho feito, ainda mais se souber que não recebo por isso. Se souber que tenho feito a única coisa que ele não quer que eu faça.

             O celular tocou.

             Desprendi rapidamente as costas da cama e tirei o celular do bolso, lendo o nome da Alícia.

             — Você já chegou em casa? — ela disse, imediatamente.

             Que tipo de pergunta era essa?

              — Sim.

              — Você pode descer? É que estou te esperando aqui em baixo.

             — E o que você está fazendo aqui embaixo? — eu perguntei, surpreso de que ela estava no meu portão agora.

             — Seu pai está em casa?

             — Não. — eu estava cada vez mais confuso. — Por quê?

             — Venha logo. Tenho uma surpresa para você.

             Levantei da cama e fui até à janela do quarto antes de descer. Abri um pouco a cortina só o suficiente para ver que Alícia estava mesmo lá embaixo, encostada suas costas no fusca amarelo.

         

        Meus passos eram desconfiados quando aproximei. Alícia virou pra mim assim que ouviu o barulho dos cascalhos, o rosto brilhando de alguma coisa e um sorriso excitante.

             — Ei!

             — Ei. — eu respondi quando parei de frente a ela. — O que você está aprontando?

             — Espera; não diga nada. Vou te mostrar.

             Ela foi até ao seu carro e abriu a porta. Tirou do banco dianteiro alguma coisa lá de dentro e voltou seu corpo para fora. Agachou no chão e pausou nele uma caixa de papelão razoavelmente pequena e cheia de furos.

             — Vem aqui. — me chamou urgentemente com a mão.

             Caminhei até a ela, não deixando de examinar à distância a caixa para ver sobre o que era aquilo enquanto dava passos incertos em sua direção. E foi quando me puxou pelo braço, eu usando um joelho para apoiar-me no chão.

             — Abre logo. — ela disse. Estava agachada, olhando com expectativa para mim. — Ainda tenho que voltar para o meu trabalho.

             Abri a caixa, e quase fui para trás de susto quando dei de cara com um focinho preto e olhos âmbares olhando para mim. Estava ali dentro aquele cachorro de pelo amarelo encolhido na caixa, inicialmente com medo – e de toda essa situação de uma hora estar dentro de uma gaiola e logo em seguida ser arrastado para o outro lado da cidade dentro de um carro barulhento –, mas depois começou a abanar avidamente o rabo, como se fosse possível me reconhecer.

             Eu não estava com a cara de quem tinha gostado.

             — Um cachorro? — eu disse, com uma censura na voz, com um tom de inverossimilhança que ela tivesse tomado essa decisão por mim.

             Alícia abriu um inocente e enorme sorriso branco.

             — A maioria dos homens não gosta de ganhar presentes porque dificilmente são agradados, então achei que você fosse gostar de um cachorro. — eu a observava enquanto mexia a cabeça ao falar, fazendo as coisas parecessem tão simples. — E você tinha gostado dele. Então achei que só estivesse sem coragem de trazê-lo com você.

             — Não é assim tão simples. — eu disse, contraditoriamente. — Eu não tenho responsabilidades e nem disposição para cuidar de alguma coisa com vida. Sou só eu. Sempre fui só eu.    

             — Justamente por causa disso; acho que você deveria saber como é tomar conta de uma coisa com vida.

             Alícia ultimamente achava muita coisa.

             — Mas se não gostou, eu posso levá-lo de volta. — ela disse, sem sombra de ressentimento. — Às vezes a gente tem que arriscar, sabe? Eu sabia do risco de você não gostar.

             E se não bastasse invadir minha propriedade, ela continuava agindo como se não tivesse a menor ideia da intensidade do erro que cometeu. Pensou que fosse uma coisa natural, e que de forma natural poderia ser descartada. Mas como posso renegar esse presente dentro de uma caixa que olhava desse jeito para mim?

             Numa hora eu estava contra a parede e na outra não me restava opção a não ser deixar a arma cair e me render. Eu olhava para o cachorro, medindo as estatísticas de um pulo arriscado, e dele olhei para a Alícia, que me dava um olhar persistente, esperando o aval que determinaria se o réu poderia viver.

             Passei frustradamente a mão pelo cabelo para cair nos olhos novamente.

             — Eu —, hesitei, apertando o maxilar como se confessar isso fosse uma questão de orgulho. — Vou ficar com ele.

             Seu rosto iluminou.

             — Sério? Quero dizer —, ela disse, disfarçando a animação. — Você não aceita um cachorro simplesmente para não fazer desfeita a alguém. Você sabe disso, não sabe?

             — Eu sei. Eu estou falando sério.

             E para a minha surpresa, eu estava. Nunca na vida tive um cachorro, nem mesmo quando eu era criança. E eu realmente gostaria de saber como é cuidar de uma coisa com vida.

             Alícia vacilou.

             — Você tem certeza?

             — Se você perguntar de novo, estou certo de que vou começar a ter dúvidas quanto a isso.

             Ela disse rapidamente “ok” duas vezes e balançava a cabeça pra cima e pra baixo.

             Eu só estava pensando em como faria isso; essa coisa de cuidar de um cachorro. Inicialmente, eu poderia deixá-lo ficar no meu quarto. Eu ainda não pensei em que lugar ele faria suas necessidades, mas provavelmente eu teria que levá-lo para fora todo o dia antes de ir para a faculdade, e que para isso significaria que eu teria que acordar mais cedo que o normal – além de não poder andar mais livremente pelo quintal por correr o risco de pisar em merda de cachorro. Meu Deus, no que estou me metendo?

              Nós dois ficamos olhando para o cachorro dentro da caixa com seus olhos assustados.

             Alícia cobriu o joelho com os dedos para se levantar.

             — Bem —, ela deu um passo pra trás e depois outro. — Saiba que isso não vai ser nada fácil.

             Quis perguntar o porquê, mas estava certo de que não precisava de uma desmotivação agora.

             Do bolso, ela tirou uma folha arrancada de caderno inteiramente preenchida com anotações e a estendeu para mim.

             — O que é isso?

             Algumas coisas eu li por alto: dar banho de dois em dois dias e nunca esquecer de deixar um brinquedo para ele, porque caso contrário, ele encontraria um pedaço de móvel da casa mesmo – ou algum objeto que você goste muito.

             — É um manual. — explicou. — Mas não precisa seguir ele ao pé da letra, inicialmente. Isso é só um guia caso você se encontre perdido.

             Por que eu me encontraria perdido?

             Observei Alícia enquanto ela ia até ao carro e tirava algumas coisas lá de dentro, colocando ao lado da caixa no chão.

             — Eu trouxe algumas coisas também. Ração, uma casinha e mais algumas coisas de cachorro para você não ter que se preocupar com isso por agora. Faz parte do presente. — então suspirou. Alícia olhou para mim e colocou suas mãos no bolso de trás da calça. — E qual vai ser o nome dele?

              — Ferrugem.

              Achei que tinha tudo a ver com ele.

              Agachei de novo perto da caixa, com um braço no joelho equilibrando o corpo. Ele estava lá dentro, se sentindo apreensivo pelo meu comportamento inóspito de antes, e que a insegurança desapareceu no momento que espanei sua cabeça. Seu nariz molhado tocou minha mão, um ato repentino que me arrancou um sorriso. Ele tocou mais minha mão quando não o repreendi por isso, e enfiou toda a sua cabeça dentro dela. Passei meus dedos ao longo do seu pelo. Fechou os olhos, gostando. Ele tinha uma expressão genuinamente pueril, quase consciente. E me vi perguntando em como não tive coragem de trazê-lo para casa.

             Dei as costas ao Ferrugem dentro da caixa – que inclusive estava se comportando muito bem comparando ao que Alícia me fez acreditar do que ele era capaz, e levantei, para ir até a ela.

             Alícia estava balançando sobre os pés quando parei à sua frente.

             — Daqui a seis dias vai ter uma festa na minha casa —, eu disse, abruptadamente. — Daquelas beneficentes e um pouco chatas.

             Não era como se eu quisesse ir, mas imaginei que Alícia fosse gostar. Qual é a garota que não gosta de ter uma boa desculpa para se arrumar e se mostrar em alguma festa?

             — Parece uma boa festa.

             — Na verdade —, olhei diretamente para ela. — Estou te convidando para ir comigo.

             Ela sorriu, eternizando-o ao ponto de eu fechar os olhos e ainda poder vê-lo.

             — Então eu vou com você.

             — Você tem um vestido? Porque caso não tenha...

             Alícia chamou a atenção para mim quanto ao fato de eu estar parecendo o mocinho prestes a mandar um vestido embrulhado em um caixa para a mocinha ao convidá-la para alguma festa chique. E eu lhe disse que estava lendo livros demais.

             Ela sorriu outra vez, baixando a cabeça e olhando para baixo.

             — Sim, eu tenho um vestido perfeito para a ocasião jogado no meu guarda roupa há um bom tempo. — ela disse isso dando a entender que seu suposto vestido velho estivesse acumulando traças dentro do guarda roupa. E ressaltou que eu não viesse com alguma ideia de lhe mandar por intermédio de um entregador algum vestido, porque esse iria servir perfeitamente.

             Alícia levantou a cabeça e me olhou, e as estrelas do firmamento caíram.

             — Sabe —, a voz dela saiu grave, séria. — Às vezes, acho que estávamos predestinados a nos conhecermos, desde o começo. Talvez isso seja um presságio.

             — Um mesmo presságio para duas pessoas pode significar coisa boa e ruim. — assim como duas pessoas têm concepções diferentes sobre um mesmo pecado. — Em qual deles você acredita?

             Alícia molhou a boca e avaliou cada perímetro da palma da sua mão.

             — Acho que eu só consigo saber disso no final, não é?

          

        Imagine um salão igual aos dos contos de fadas, milhares de cristais cintilantes espalhados sobre sua cabeça como teias e músicas nostálgicas que nunca acabam. Pense no rei agindo como o dono da festa o tempo todo, ocupado em tornar a vida do seu primogênito em um verdadeiro pesadelo quando o seu papel deveria ser o antônimo disso. E então, o príncipe esperando pela sua amada, bem no meio de tudo aquilo; ansioso pela hora que ela chegaria e finalmente fazer desaparecer todo aquele inferno. Exceto que a princesa não sabia quem era e o que representava para o príncipe.

             Não ainda.

             Estava encostado na grande pilastra branca observando as pessoas, um pouco afastado do centro que meu pai e o restante dos seus amigos de sempre estavam. Não era minha intenção me esconder, mas também não queria ficar aparentemente disponível para todos eles.

             — Como sempre, você tem que estar escondido em algum lugar.

             Carolina veio inesperadamente de trás de mim e parou ao meu lado de uma sutileza como um fantasma. Ficamos olhando, em silêncio, as pessoas aparentemente felizes e solidárias no salão ornamentado.

             — Não sei como seu pai consegue criar toda essa mágica. — sua voz é rouca e arranhada.

             Velas queimando dentro de “copos” de cristais estavam espalhadas pela casa, pelo chão e em apoios quase invisíveis. Tinha muitas flores também, todas elas em jarros transparentíssimos e com seus brotos delicados e de espécies variadas, pequenos e grandes.

             Se não fosse todas essas pessoas intrusas, eu me sentiria aconchegante aqui.

             Finalmente olhei para Carolina. Abriu um sorriso fraco quando meus olhos pararam nela, então percebi que desde que se aproximou eu não tinha olhado para ela. Ela estava bonita. Maquiagem leve e cabelo preso, impossivelmente parecendo uma princesa de Atena.

             — Você não tem atendido as minhas ligações. Já que estamos aqui, não vai haver nenhum problema se você tirar um tempo para conversar comigo, vai?

             Meus olhos eram acusadores.

             — O quê? — ela disse, abrindo um sorriso desavergonhado. — É só uma conversa.

             Eu não disse nada. Desviei meus olhos, tirando o celular do bolso da calça. O celular tinha vibrado informando uma nova mensagem. Era Alícia avisando de que chegou.

             — É Alícia. — eu disse para ela. — Vou descer para buscá-la.

             — E qual é a sua resposta?

          

        Todas aquelas pessoas decidiram chegar ao mesmo tempo. A frente de casa estava cheio de carros acabando de estacionar e convidados saindo de dentro deles sem pressa em seus vestidos de gala.

             Meus olhos correram por todos os lados à procura da Alícia, então a vi saindo de um dos carros que eu havia pedido para buscá-la. Ela fechou a porta e deu um passo tímido à frente, segurando a bolsa de mão contra o peito, protetoramente. Se quem estava protegendo quem eu não sei. A lanterna de trás do carro acendeu quando o motorista o pôs em movimento. Mas ela continuou lá, olhando desesperadamente para as pessoas que passavam por ela parecendo sofrer de agorafobia, ansiando que eu aparecesse em algum momento cinematográfico e a resgatasse de tudo aquilo.

             Fiquei um instante olhando-a ao invés de correr e ir buscá-la. Ela usava um justíssimo vestido preto abaixo do joelho e de decote quadrado sobre um salto, e fez um penteado folgado preso, mostrando um rosto bem mais maduro do que aparentava ser.

             Ela abria um sorriso precipitado quando me viu vir até a ela.

             Parei na sua frente.

             — Quem é você e o que fez com a Alícia?

             Ela riu ainda mais.

             Apontei para o seu vestido.

             — Esse é o vestido de que você falou?

             Baixou a cabeça e levou a mão da costela pra baixo para apalpá-lo.

              — Não —, ela balançou a cabeça negativamente. — Acabei comprando um novo. Não é todo o dia que tenho uma festa assim para ir.

              O pensamento da Alícia numa loja sendo apresentada e dispensando diversos vestidos de diversas cores e modelos o dia inteiro me fez rir.

              — A propósito —, eu disse. — Você está linda, Alícia.

             E estava mesmo, eu não disse por ser o que se esperava que eu dissesse. Então pensei no quanto eu era sortudo.

         

        Parei logo atrás dela quando se fixou na porta. Alícia olhava para dentro da casa, provavelmente se perguntando se era demasiado tarde para mudar de ideia. Andei até a sua linha de visão e fiquei contemplando por um instante seu perfil, privilegiado pela luz amarelas das lâmpadas internas acima de nossas cabeças.

             — Nervosa?

             — Talvez um pouco —, ela deu um riso acanhado. — Considerando que nunca estive numa festa dessas antes.

             — Eu sou o filho do dono da festa. — eu disse, tranquilamente. — Por que ficaria?

             Dei alguns passos em direção à porta, mas deixei que Alícia passasse na minha frente. Ela já estava familiarizada com a casa da última vez que veio aqui, mas enquanto eu fechava a porta, ela deu um giro lento com o seu corpo, olhando com olhos ávidos a casa à sua volta tal como se estivesse vendo o mar pela primeira vez, parecendo maravilhada e maravilhada.

             A casa não estava diferente. Apenas a encheram de harmoniosos botões coloridos de flores pelo canto da casa dentro de vasos de porcelanas compridos e delicados. E claro, não poderia esquecer do notável tapete vermelho esticado ao longo de ambas as escadas até lá em cima.

             Estávamos no meio da escada quando alguém me chamou. Viramos sem pressa pra trás enquanto Luciano pulava os degraus de dois em dois até chegar a nós.

             — Seu pai está te chamando. — ele me disse. Não cumprimentou a Alícia, não era alguém do seu interesse que merecia ser notado. — Ele disse algo sobre precisar conversar com você, e também tem alguns caras com ele. Parece importante.

             — Diga a ele que eu não posso. Ele sabe o porquê.

             Eu havia dito ao meu pai que hoje não ficaria de companhia para seus amigos e tampouco daria total atenção a ele, porque eu estaria com a Alícia. Eu não ter dito nada seria a mesma coisa.

             Toquei no braço da Alícia para irmos.

             — É essa a Alícia? — a voz do Luciano me parou. — É essa sua namorada de quem seu pai tanto fala?

             Virei pra trás para olhá-lo. Não gostei do seu tom desdenhoso. Luciano tinha uma expressão tão podre e um riso camuflado que quis quebrar sua cara em mil pedaços e o assistir colocá-la de volta no lugar, pedaço por pedaço, como em um quebra-cabeça.

             Luciano era um cara de vinte e cinco anos e parecia ter menos idade do que eu. Mentalmente falando, é claro.

              — É que seu pai pediu que a levasse também. — ele completou, porque se deu por satisfeito pela minha expressão. — Então, você vem? Como eu disse antes, é importante.

             — O que meu pai quer com a Alícia? E por que não veio ele mesmo falar comigo?

             Luciano levantou as mãos pra cima.

             — Ele só mandou que eu viesse dar o recado. — e baixou as mãos. Adotou uma nova postura e uma expressão mais séria. — Essa coisa de corrida dá para ganhar muito dinheiro? Porque essa é a única justificativa pra você se envolver e se arriscar com corridas clandestinas por aí.

             Meu coração estava acelerado.

             — Como você sabe disso?   

             — Seu pai me disse. — Luciano respondeu, prontamente.

             — Meu pai não sabe.

             — Ele sempre soube. E o que fez você acreditar que ele não soubesse? Por que ele não te fez desistir? Seu pai é um homem ocupado, ele não perderia tempo tentando lidar com o filho problemático. — ele disse. — Esses dias nós estávamos conversando sobre pais e filhos, e lá estava seu pai se abrindo para nós, dizendo que não consegue entender como uma pessoa que tem tudo se envolver com coisas como essas. É mesmo, por quê?

            — Não é da sua conta.

             Não acredito que meu pai possa ter tido conversas desse tipo com Luciano ou com outro desconhecido qualquer. Porque ele simplesmente poderia ter conversado comigo. Ele poderia ter chegado a mim e me perguntado tudo o que ele quisesse saber.

             Alícia colocou levemente sua mão no meu braço.

             — Gabriel —, ela disse, numa voz controladamente calma. — Por que a gente não sobe?

             Eu disse sim com a cabeça.

             Voltei para o Luciano.

             — Diga ao meu pai que eu não estou indo. — foi a minha resposta. Essa deveria ter sido as últimas palavras. Deveria ter parado nelas. — Você está se achando, não é? Mas caso ainda não tenha percebido; você é um fantoche do meu pai.

             As palavras dele já estavam preparadas para a réplica.

             — Um fantoche? Por quê? Meu pai morreu e me deixou uma empresa de administração. Preparei-me a vida toda para estar preparado para ocupar seu lugar quando ele não mais pudesse. Se estar atrás de uma grande empresa a fim de convencê-la a fechar um contrato comigo é ser um fantoche, então eu sou. Eu sou um fantoche, e você é um fracassado. Mesmo tendo todo o recurso para ser alguém de importância no mundo, prefere ser apenas mais um.

             Pessoas práticas como o Luciano não entendem que só porque tudo aponta a favor de alguma coisa, isso não quer dizer que é destino.

             Eu estava falando sério quando disse uma vez que eu não conversava sobre coisas que me deixava inquieto. Tenho um estilo de vida que não me permite me autodefender mesmo se a pessoa estiver errada. Não gasto palavras.

             Dei uma última olhada no Luciano.

             — Nós somos duas pessoas diferentes. — dei-lhe as costas e segui Alícia, para um lugar além das nuvens onde inexiste acusação.

          

        Alícia olhou para mim.

             — Isso aqui não é tão chato quanto você me fez acreditar. O prefeito está aqui, dá para acreditar? Mal posso esperar para contar para o meu pai. Ele gosta dessas coisas envolvendo celebridades.

             — Você deveria ter visto a anterior. — eu disse, inexpressivamente. — O ministro da saúde estava aqui.

             Ela passou do estado de admiração para pensativa.

             — Alguma vez você já viu alguém sendo beneficiado?

             — Não.

             — Nem eu. Tenho uma amiga que precisava de um coração, mas não tinha dinheiro o suficiente. Seus pais foram até a eles pedir ajuda e voltaram para casa sem ela. — ela disse, melancólica. — E a propósito, aquilo que Luciano disse sobre você não é verdade. Você é melhor que todos eles.

             Seus olhos eram confiantes quando me olhava, mostrando que realmente acreditava no que disse.

             — Eu sou sua maior fã. — sua voz saiu profunda e rouca. — Você sabe disso, não sabe?

             — Eu já notei. — eu disse, desconfortável.

             Seu sorriso começou de lado para depois escancarar-se de vez. Estava balançando a cabeça, como que desacreditando a minha falta de modéstia.

             Meus olhos passaram por ela devagar desde o seu cabelo preso, os ombros, o osso da clavícula até para baixo do pescoço... agitei a cabeça, afastando o pensamento que começou a cristalizar em minha cabeça como quem abana uma cortina de poeira. Elas conseguiam sentir um olhar de desejo, e então poderiam fazer o que quisessem com o cara que deixou ser descoberto.

             E cocei a garganta.

             Os olhos dela estavam por todo o lugar, avaliando minuciosamente cada pequeno detalhe daquele espaço. Nesse cômodo espaçoso no segundo andar que meu pai chamava de salão, estava espalhado um monte de gente fazendo nenhuma outra coisa a não ser conversar e sorrir falsamente. Porque ninguém ria com tanta facilidade assim.

             — Desculpe atrapalhar. — a voz nos atrapalhou, e Alícia e eu olhamos na mesma direção. — É que eu preciso falar um instante com esse cara aíiii. 

             Carolina estava bem ali, de frente para nós. Então começou a andar em seu salto alto, seu quadril requebrando através do tecido de seda do seu vestido vermelho.

             Ela deveria mesmo gostar dessa cor.

             — Eu já volto. — eu disse para a Alícia.

             Carolina me puxou pela mão até pararmos num lugar reservado, ausente de pessoas. Ela encarava meus olhos penetradamente sem um pouco de rubor. Ela era tão decidida, tão certa sobre o que queria. Ela merecia alguém mais forte do que eu.

             — O que queria me falar?

             — Bem... — ela pareceu ficar sem palavras, e parou de falar. Ela nunca ficou sem graça ou insegura na minha frente antes, nunca perdeu a fala ou mediu palavras a alguém, então tentei imaginar o que de tão extraordinário poderia sair da sua boca. — Eu realmente gosto de você. Mas definitivamente não como uma amiga. Só me arrependo de não ter dito como me sentia antes, de ter esperado você tomar a iniciativa, e talvez você não estaria com ela agora.

             Quando ela dizia “ela”, era com indiferença. Tão desdenhosamente que nem se permitia articular o nome por trás do pronome.

             — Carolina.

             — O fato é que eu gosto de você —, ela continuou, mais firme. — E queria saber se tenho uma chance. Eu não sou o tipo de pessoa que fica esperando por algo incerto e que insiste com caso dado como perdido, mas eu preciso dessa certeza, Gabriel. Preciso saber se posso esperar por você. Porque... provavelmente não vai dar certo. Você e ela, quero dizer. Ela não é como eu e você.

             Olhei Alícia quando percebi que Carolina estava sendo um pouco emotiva. Mas Alícia não estava aqui. O lugar que ela esteve nos olhando estava vazio.

             — Gabriel. — Carolina suplicou. Colocou a mão no meu rosto, os dedos longos e magros com suas unhas grandes e pintadas de rosa, trazendo-o gentilmente de volta para ela.

             Se eu não a notei antes, não era alguém importante o suficiente para ser notado. Sinto-me malditamente culpado por pensar assim. Então tirei suas mãos do meu rosto, afastando-me com um passo desnorteado, como se eu tivesse sido atingido por um míssil e acabava de sair dos escombros. E de certa forma, eu fui.     

             — Não.

             — “Não”, o quê?

             — Não acho que eu mereço que você espere por mim.

             Dei-lhe as costas e andei para longe.

         

        Alícia sentava de costas pra mim quando aproximei, e estava indo pra lá e pra cá quase suavemente no balanço. Era um balanço de jardim, pendurado por um metal suficientemente resistente e de aparência rústica que ia até ao chão, com flores trepadeiras rosa e lilás cobrindo seu metal enferrujado. Normalmente era assim o aspecto que o balanço tinha, mas hoje as lamparinas superluminosas penduradas nele monopolizavam a admiração de qualquer pessoa insensível a isso.

             Alícia ouviu os barulhos dos meus passos na grama e parou de balançar o corpo, virando a cabeça para me olhar. Ela sorriu ao ver-me, como se estivesse esperando que eu não a encontrasse sozinho.

             Parei de frente a ela, colocando irrefletidamente as mãos no bolso da calça.

             — O que você está fazendo aqui?

             — Eu precisei de ar fresco. E além do mais, essas luzes aqui fora estão tão lindas.

             Olhei ao redor do quintal e não consegui captar a mesma mágica que ela pareceu ver. Nos troncos das árvores foram instaladas pequenas lâmpadas, iluminando o caminho indicando por onde as pessoas deveriam passar, e nos galhos também; lâmpadas em bolinhas brilhantes.

             Voltei a olhá-la, e Alícia ainda gangorreava levemente no balanço. Eu estava desigual a olhando de cima. Subi um pouco as calças para ajoelhar-me no chão, ficando à sua frente, conscientemente subordinado. Ela apoiava no balanço com as duas mãos nas correntes, olhando distraidamente o verde do meu quintal.

             Era uma noite perfeita de abril quando o clima não está tão quente quanto o verão e que vez ou outra vinha bater contra nosso rosto lufadas secas de ar.

             — É por isso mesmo que você está aqui? — eu perguntei, num tom de brincadeira. — Ou foi por que teve uma crise de ciúmes por me ver conversar com a Carolina?

             Ela deu um sorriso que me lembrou um lago calmo e tranquilo com sua superfície espelhada.

             — Você continua sendo um maldito de um convencido.

             Alícia olhava para o quintal, e eu a fiquei observando com uma mecha solta de cabelo marrom pendido sobre parte do seu rosto marrom. Ela brilhava tanto que meus olhos não conseguiam se fixar nela por muito tempo.

             — Você já trocou com um mendigo e tocou no seu lugar? — ela perguntou, subitamente.

             Sua voz tirou meu foco nela.

             — Não. Isso seria nojento.

             — Então nunca pagaram pelo que acham que vale a sua voz. — constatou. — Você provavelmente não acredita em mim, e pelo visto nem em você mesmo, mas você é realmente muito, muito bom. Nunca vi ninguém tocar como você. E sua voz... ela é suave e potente e tão linda de se ouvir. Quando você for cantar no bar Irmãos Silva, eu realmente gostaria de estar lá nesse dia só para ver a cara das pessoas quando te virem cantar. Quando virem que nunca ouviram algo parecido antes.

             — Você vai estar lá. — eu disse por dizer, para que ela pudesse parar de falar estas coisas. Eu já expliquei que fazer isso é impossível, mas mesmo assim ela continuava e continuava mantendo o fogo acesso. Era maldoso. É quase como dizer a uma mulher que não pode ter filho que ela seria uma ótima mãe se tivesse oportunidade.

             Sua cabeça girou imediatamente para mim, mas ela me olhava sem expressão, seus olhos marrons em contraste com seu rosto sem cor.

             — Você promete? — sua voz saiu tremida, essa frase sendo dita por ela assim parecendo pesada e cheia de expectativa.

             — Sim.

             Alícia parecia ter prendido sua respiração todo esse tempo. Eu sei disso, porque soltou um riso que saiu como um suspiro de satisfação. Levantei. Ela abandonou o balanço e andou até a mim ao mesmo tempo em que eu andava até a ela, e parou à minha frente. Ela não tirava os olhos de mim. E nem eu dela. Sobre os pés, ela levou o rosto para o meu e me beijou muito rápido, quase desajeitadamente, e tão rápido quanto o beijo voltou o corpo para trás.

             Nós dois não éramos muito bons em demonstração de afeto.

          

        Quando voltamos, meu pai nos esperava. Ao seu lado, estava o irritante Luciano. E eu me descobri incomodado do porquê de ele estar enfurnado aqui. O restante eram dois velhos intelectuais de cabeça branca. Eles não me soavam receptivos, seus olhos eram profissionais e calculistas.

             A porta do escritório se fechou atrás de nós, e os dedos da Alícia se apertaram na minha mão. A olhei para acalmá-la. Pareceu que ela disse “desculpe”, mas eu devo ter entendido errado. Ela não fez nada de errado para que eu a desculpasse.

            Meu pai olhou para a nossa mão dada uma a outra. E foi exatamente nessa hora que ela se soltou, porque Alícia afrouxou sua mão e se libertou, como correntes se quebrando. E algo muito assustador passou pelo rosto dele.

             — É essa a garota? — o velho de cabeça branca perguntou, incrédulo. Olhou de baixo para cima para a Alícia em seu vestido preto e de salto. — Ela parece ótima. Parece realmente bem. — e olhou para meu pai, os olhos estatelados. — Ela parece perfeita!

             Alguma coisa não estava certa.

             Eu estava tenso no meu lugar.

             — O que está acontecendo?

             — Bem, pessoal —, meu pai disse, mas não para mim. — Apresento-lhes um exemplo vivo e jovem de um dos sucessos do coração artificial.

             Às vezes, um pequeno erro de alguém pode incitar uma grande calamidade, muitas vezes não só acometendo uma pessoa, às vezes uma cadeia de seres humanos que tinha uma vida antes de você aparecer e ferrar com tudo. Eu não queria ser esse alguém.

             Eu me senti em meio a um filme do Frankenstein, como o que de mais ruim e impossível poderia acontecer.

             Houve um alvoroço. Os murmúrios altos e polifônicos entre eles se transformaram em uma bagunça até que passaram a ser apenas sussurros, e eu fui transportado a uma distância de 5 mil pés e finalmente as vozes sumiram de uma vez. E estou esperando que Alícia diga alguma coisa, mas o som da sua voz não vem.

             Olhando para mim, meu pai disse.

             — Achei que já era hora de você saber antes que fosse ainda mais longe com isso.

             Alícia ainda continuava ao meu lado, mas eu não tinha coragem de olhá-la. Eu só olhava para a direção do meu pai e de seus colegas e não para o meu lado direito.

             — Podemos estudá-la... — alguém estava dizendo.

             — Ninguém aqui vai estudá-la como um teste que deu certo. — eu disse, firme demais, altivo demais. — Vocês podem nos deixar sozinhos?

             Não houve comoção ao meu pedido, eles simplesmente se calaram e mexeram para sair do lugar, um por um. Esperei, completamente imóvel.

             Em instantes, o escritório esvaziou.

             Olhei finalmente para a Alícia. Ela estava encolhida, mais que o normal, mas não parecia culpada. Não parecia sentir nada. Estava com os olhos fixo em alguma coisa no teto e de alguma forma estava confiante e tranquila.

             — Por quê? — a voz que saiu de mim foi muito baixa e seca, como se não bebesse água há dias. — Por que não me contou?

             Alícia continuava não olhando para mim.

             — Seu pai. — sussurrou. — Ele não queria que você soubesse. Eu não tive escolha!

             Eu estava exaltado também.

             — E por que diabos ele iria querer uma coisa dessas?

             — Eu não sei, talvez... porque ele não queria que isso te motivasse...? — sua voz desafinou. — Pensou que você se sentiria responsável por mim...? Ele me disse que você era uma pessoa incorrigivelmente generosa, e que se dependesse de você não teria se afastado se soubesse, por isso ele queria tentar fazer isso de outra maneira que não fosse te contar.

             Eu estava encarando o seu rosto, nervoso.

             — Não queria que me motivasse? — meu coração estava disparado e eu falava mais rápido ainda. — Meu pai é burro, ou quê? Se tivesse me contado surtiria mais efeito, como ele não pensou nisso? 

             Mas não estou certo disso.  

             Eu só estou com muita raiva por tudo quanto é gente achar que tem direito de decidir o que posso e não posso saber, como se minha vida fosse um palco de marionetes. E não é. Pelo menos não deveria ser.

            Alícia baixou os olhos, passando a olhar para a ponta redonda do seu sapato alto de camurça.

             — Eu realmente não tive escolha. — ela disse, a voz mais tranquila dessa vez, reduzida a 30 para não chocar com a impetuosidade da minha. — Meus pais não podiam pagar o tratamento do acidente, então seu pai disse que se eles conseguissem com que eu ficasse longe de você, em troca ele daria tudo o que eu precisasse. Ele propôs uma troca de favores, como ele mesmo disse. E depois seu pai deve ter pensado que era errado o que fez por ainda cumprir a parte dele mesmo eu não cumprindo a minha.

             — Eu sou o herdeiro dele. — não percebi minha explosão. — Eu poderia ter feito muito mais por você se tivesse me contado!

             Ela não retraiu, não hesitou, mesmo comigo gritando contra o seu rosto. E então eu soube que se voltasse no tempo, ela teria feito exatamente a mesma coisa. Foi com prática que ela fez isso, não mediu as consequências da mesma forma de quando deixou na porta da minha casa um cachorro dentro de uma caixa, não se colocou em momento algum no meu lugar. Porque simplesmente não se importava.

             Eu poderia ter gritado com ela para que olhasse para mim e visse o que fez, eu poderia a ter sacolejado até que fosse tirado do lugar a articulação e restado em minha mão só a carcaça.

             Eu poderia, mas não fiz.    

             — Eu não sei se consigo lidar com isso agora. — estou dizendo, enquanto dou um passo para longe dela, depois outro e outro e outro.

             Eu me abri com a Alícia mais do que com qualquer outra pessoa e acreditei todo esse tempo que ela estivesse fazendo o mesmo comigo. Sinto-me traído. E era isso que me deixava mais zangado, mesmo sabendo que as coisas são assim mesmo, que nada é o que parece, assim como parece que estamos contemplando estrelas quando na verdade são satélites.

             Somos enganados o tempo todo por um ilusionista sem senso de humor.

             — Vou chamar o motorista para te levar para casa. — e passei a porta. 

             Nunca confiei minha felicidade a outra pessoa justamente por causa disso. Para quando elas irem, eu não sentir como se o teto tivesse desabado sobre minha cabeça.

         

        Meu pai conversava com um dos velhos que estava no escritório agora pouco.

             O velho projetou o queixo em minha direção enquanto eu avançava para eles. Meu pai, parado no meio do corredor, parou de conversar para virar-se pra mim. 

             — Preciso conversar com você.

             — Eu não posso agora, Gabriel. Espere quando a festa acabar, então você pode conversar comigo sobre o que quiser.

             Avancei mais, como se não o tivesse escutado.

             — Bem, você não se importou com a festa quando fez um púbico para a Alícia. — rebati. — Por que você não me contou sobre ela antes? O que te levou a pensar que tinha o direito de me esconder isso? E por que você subornou a família dela para que a mantivesse longe de mim, pai? Qual é o problema com você?

             Meu pai levantou a mão para me interromper, e olhou para o velho. 

             — Já estou indo. — disse para ele.

             O velho assentiu. Meu pai esperou que ele se afastasse, e olhou para mim, de repente desesperado.

             — Estava protegendo você. Eu sabia que você não iria chegar a lugar algum com ela, eu tentei te avisar disso, mas você simplesmente não estava inclinado a me ouvir. Então me escute dessa vez. É melhor se afastar agora, antes que você se envolva demais. No momento, o que você precisa é apenas concentrar em tirar boas notas e se formar. Você e ela nunca poderiam acontecer mesmo se ela não estivesse nessa situação, vocês são de mundos diferentes. — ele disse, friamente. — Não existe um futuro para você e ela. Nunca houve.

             Então desde o começo tudo isso se tratava de dinheiro.

             Meu pai continuava me olhando.

             — Então agora você vai ficar longe dela? — ele disse, uma pergunta com peso de afirmativa.

             — Você conseguiu o que queria, não é, pai?

             — A essa altura da vida você já deveria saber que não podemos ter tudo.

             E é justamente isso que me faz perder a credibilidade da vida; viver sem ver seus sonhos se tornarem realidade, porque existe uma lei que determina que não podemos ter tudo.

              Olhei fixamente nos seus olhos.

             — Acho que o senhor deveria ficar avisado antes de dar conta de que está faltando alguma coisa. — eu disse. — Bem, estou caindo fora.

             Meu pai pareceu tenso.

             — O que você quer dizer com “caindo fora”?

             — Estou indo embora de casa, pai.

             Ele estava de queixo caído quando o deixei sozinho no andar de cima e dei-lhe as costas.

             — Gabriel. — meu pai chamou, a voz dura.

             Eu não parei. Agora que tomei a decisão, por nada no mundo eu pararia.

          

        Puxei a mala e a abri na cama, depois catei minhas roupas do guarda roupa com urgência e as enfiei de qualquer jeito dentro dela. Não estava pensando em organização.

             — Para aonde está indo, Gabriel? — Susie perguntou, assim que entrou no quarto atrás de mim. Insistiu, quando eu não disse nada: — Você não precisa ter que ir embora. Você tem todo o direito de ficar com raiva do seu pai, mas você pode fazer isso sem ter que ir embora. Você não está pensando direito.

              — No momento realmente não estou. Mas preciso fazer isso.

             E não há dúvidas de que é isso o que eu quero quando só o pensamento de sair daqui me faz sentir livre. E então todos os temores que eu já tive não me impedem mais agora.

             Puxei o fecho da mala e a tirei da cama.

             Eu ainda levaria um tempo sentido por eles terem me escondido coisas relevantes; coisas que não deveriam ter sido escondidas. Mas nada que passasse disso. Guardar raiva de uma pessoa por muito tempo requer uma série de coisas, e eu sou preguiçoso demais para isso.

             Peguei o violão no canto do quarto, jogando-o nas costas, e chamei Ferrugem para me seguir enquanto eu saía do quarto. Ele me seguiu até o meio da escada, porque foi quando encontrei com meu pai.

             — Então está indo. — ele disse, por algum momento pensou que eu não teria coragem de prosseguir com a ameaça.

             Passei por ele calado, e desci sem pressa degrau por degrau.

             — Vai continuar indo à faculdade, pelo menos?

             — Desde que você assuma a responsabilidade por ela. — eu disse, de costas. — Então, sim. Se eu tiver que fazer isso, não vai ser mais pelo acordo.

             — Você está indo embora por causa dela?

             Quando ouvi isso, parei no meio da escada e o olhei.     

             — Não, pai, estou fazendo isso por mim. Estou saindo de casa para não me sentir controlado mais por você. — eu olhava confiantemente para ele. — Pensei que eu tivesse dito que isso não estava funcionando, que não estava bom para mim.

             — Eu me sacrifiquei todo o dia por você, deliberadamente. Mas você não quis ver, preferiu insistir na ideia de que eu não queria o seu bem, se convenceu de que tinha um péssimo pai. Mas isso não é verdade. Eu só queria que você seguisse meus passos, porque foi isso o que eu sonhei para você. Estava assegurando que quando chegasse em determinada parte da sua vida, não olhasse pra trás e se arrependesse de tudo o que fez. Como essa garota. Você não vai se lembrar dela mais daqui a dez anos, porque terá sido apenas uma garota. — ele não parava de falar. — Eles vieram até a mim. A mãe e o pai rogando um coração para a filha. Só depois eu descobri que a filha e a sua garota eram as mesmas pessoas, e agora eu te lembro do que lhe disse. Sobre as pessoas estarem atrás de você, mas não por causa de você. Acabei estando certo.

             Eu estava mortificado em saber que meu pai poderia tê-los aliviado se quisesse.

             — E por que você não deu? — eu perguntei, acusadoramente.

             — Olha pra mim; não faço caridades. — ele respondeu, enfaticamente. — Só fiz isso por ela porque não seria muito bom para minha imagem se uma jovem morresse com meu filho na direção. Não queríamos correr o risco de sofrer algum processo decorrente disso, queríamos?

             Meu pai retomou a fala.

             — Ela me ameaçou, antes, quando fui visitá-la na sua casa para saber por que não estava cumprindo sua parte do acordo. E então ela me disse que se eu insistisse em mantê-la afastada de você, iria me denunciar para a imprensa. Está vendo? Aquela menina pode ser uma ameaça para alguém de posse como você.

             Como Alícia pode ser uma ameaça? A única coisa que ela fez foi lutar por mim. E ninguém lutou por mim antes.

             Eu dei as costas ao meu pai, e continuei andando, ultrapassando a porta sem olhar para trás. Em ambos os sentidos.

          

        Meu pai caminhava em minha direção pelo extenso corredor. Pela minha ansiedade, ele caminhava muito lento para alguém que estava sendo aguardado há horas. Ao lado dele, estava um homem baixo de cabelo branco vestindo jaleco branco.

             Nos últimos dias, eu tenho estado numa pensão a dez quilômetros da minha casa; era a única que admitia animais. E era lá que eu estava quando o telefone tocou.

            “É sobre a Alícia.” meu pai tinha dito. “Ela está no hospital.”

             Levantei da cadeira em um pulo, e lembrei que eu deveria estar em um péssimo estado. Passei a mão de frente pra trás pelo cabelo para tentar melhorar minha aparência, mesmo que isso não fosse resolver alguma coisa depois de horas sem dormir e ainda não ter tomado café.

             — Você está horrível. — meu pai disse, enquanto anotava alguma coisa na prancheta na sua mão. — Não está comendo direito onde está?

             Revirei os olhos.

             — Sim, pai.

             Meu pai parou de escrever e gesticulou para o homem ao seu lado. 

             — Esse é o Dr. Ronaldo. — informou. — É ele quem está cuidando da Alícia.

             Direcionei-me a ele, urgente.

              — Algum problema com o coração?

             Dr. Ronaldo não respondeu imediatamente. Meu pai olhou para ele e assentiu, um comando entre esses seres superiores indicando que não havia problema em dizer para alguém que não fosse da família.

             — A situação é complicada...

             — Eu sei —, eu o interrompi, não conseguindo esconder a impaciência na minha voz. — Corações artificiais não são seguros. Eu só não entendo por que colocaram essa merd... isso nela. Um acidente daquele que tivemos não seria tão grave ao ponto de comprometer um órgão, seria?

             — E não foi, mas a paciente foi arremessada contra a árvore quando houve a colisão do carro que resultou em graves lesões no coração. O órgão dela já estava debilitado, e por isso quando chegou ao hospital ele não funcionava mais com a mesma eficiência. Então tivemos que trocá-lo, senão ela iria morrer.

             — Espere. Você disse “O órgão dela já estava debilitado”?

             — Sim —, Dr. Ronaldo afirmou, olhando de mim para o meu pai, tentando entender se possivelmente poderia ter dito algo errado. — Foi exatamente isso o que eu disse.

             — Não. — eu disse, resolutamente. — Não, deve estar havendo algum erro. Alícia é uma pessoa saudável, então o coração dela também deveria ser. Não é?

               Dr. Ronaldo não disse nenhuma palavra e olhou novamente para o meu pai, depois meu pai olhou dele para mim, e eu me encontrava olhando para os dois.

             — Gabriel —, meu pai disse, a voz fria. — Alícia estava doente antes de acontecer o acidente. Insuficiência cardíaca. Às vezes o coração bombeia devagar demais e não chega sangue suficiente no cérebro, e por um momento a pessoa perde a coordenação do próprio corpo. À primeira vista, pode parecer característica de uma pessoa genuinamente desastrada, mas é o que a insuficiência faz.

             Todo esse tempo depois que descobri sobre a Alícia, eu daria tudo por uma redenção, uma forma que eu não viesse a me sentir culpado por tê-la colocado nessa situação; mas Deus sabe que eu não queria ter sido absolvido dessa forma. Eu não queria ter descoberto que qualquer caminho que ela tenha tomado que acabaria chegando ao mesmo lugar.

             — Mas infelizmente —, meu pai disse. — Esse não é o grande problema que estamos resolvendo aqui. O coração dela está começando a falhar, e não era para ser assim, como você sabe. Mas acontece que o corpo dela não o está aceitando e está rejeitando o coração. E nestas circunstâncias não há nada que possamos fazer, a não ser que consiga um transplante, então poderemos salvá-la. Ela está na lista de doadores já faz bastante tempo, então talvez ela tenha sorte.

             — Corações artificiais —, Dr. Ronaldo disse. — Ou como qualquer outro órgão artificial, são adaptados ao corpo do paciente tanto quanto tamanho e probabilidade de aceitação. Eles são feitos para serem infalíveis. O coração artificial realmente pode ser a solução para que os pacientes possam sobreviver, isso se não houvesse repulsa. E quando isso acontece, não há nada que possamos fazer.

             Eles só sabem dizer “Não há nada que possamos fazer.”?

             Alícia dificilmente vai encontrar um transplante, não tão rápido, o que é o que precisava no momento. Eu poderia ser otimista e dizer que sim, que a qualquer momento ela poderia receber um, mas eu sei que não. E ninguém poderá fazer nada a não ser esperar ansiosamente por alguma notícia boa. Porque às vezes isso é só o que você pode fazer.

             No final, se tiver sorte, ela terá alguns meses. Mas ela não era uma garota de sorte. Ela na verdade era a pessoa mais azarada que já conheci.

             — Sabe —, meu pai disse, não perdendo a chance de me provocar. — Se você tivesse prestado atenção nas aulas teria evitado que Dr. Ronaldo tivesse que explicar isso a você agora.

             Mas eu não sou um ignorante. Eu sabia o que isso significava, sabia que órgãos artificiais teriam a possibilidade de não aceitação, que as pessoas além de gastar uma nota para ter um desses no corpo, elas ainda corriam o risco de não funcionar, e que elas nunca iriam saber se não tentassem, então elas não tinham escolhas; era arriscar para viver ou morrer de qualquer jeito. Era por isso que eu não confiava na tecnologia, porque eu sabia de tudo isso.

             Dr. Ronaldo olhou para o meu pai.

             — Precisamos visitar o paciente da Ala-3 agora. — comunicou. — Estão esperando por nós.

             Meu pai disse que sim para ele. E se dirigiu a mim.

             — Você deveria ir embora. — ele me disse, pesadoramente.

             Meus olhos estavam sem foco.

             — Talvez.

          

        Estava escorado sobre os joelhos, observando as pessoas que passavam por mim na tentativa de adivinhar suas histórias, olhando em seus rostos preocupados e me perguntando quem são elas de verdade lá fora: se suas vidas são difíceis como aparentam ser ou se é só mau humor mesmo; se lá fora tem um marido apaixonado que as esperam ou uma mulher que te trai enquanto está cuidando de trazer comida para casa. Se naquele quarto pequeno nos fundos da casa tem um filho se drogando ou está o velho pai – e por que não também a mãe? –, apenas dormindo tranquilamente sob o teto do filho amado. Imaginando se suas vidas eram mais difíceis que a minha. Porque deve ser. Sempre vai ter pessoas com problemas maiores que os meus.

             Virei o rosto distraidamente em outra direção e vi minha mãe aparecendo no corredor, eufórica e desajustada, caminhando apressadamente em minha direção.

             Muitas vezes eu me perguntei se seria capaz de reconhecer minha mãe quando a visse na próxima vez em que nos encontrássemos, mas no exato momento que a olhei, eu fiquei feliz de ainda poder reconhecer a mulher que me deu a vida – e todo o resto.

             Minha mãe usava o cabelo grande, originalmente castanhos claros como o meu, e agora eles estavam mais escuro e cortado na altura do pescoço. Fora isso, o rosto dela ainda me era familiar, não tinha mudado muito da última foto que me mandou por email. É, minha mãe me mandava email, mas nunca cheguei a responder algum deles.

             Uma parte de mim queria ser cordial. A outra hostil. E querer e não querer duas coisas ao mesmo tempo não era de todo ruim. Nos dá tempo para quando chegar a hora de decidir qual das duas deve prevalecer.

             Não me levantei da cadeira, não me movi, e nem mostrei algum indício de animação por vê-la. Nunca li um manual onde instrui como você deveria agir com sua mãe quando a encontra depois de tanto tempo.

             — Oi, Gabriel.

             — Oi.

             Por um momento minha mãe considerou se aproximava de mim ou não, pela bagunça da sua mente seguindo seu corpo inquieto. Talvez se fosse anos trás ela não teria nenhum problema com isso, mas agora não seria fácil para nenhum de nós dois ela chegar de repente e agir como se nada tivesse mudado.  

             Às vezes, a lembrança que tenho da minha mãe quando criança é tão remota que nem me lembro direito de como era seu rosto, exceto pelas fotos. Mas isso não conta. Estou falando de lembranças, algo importante que você retém pra si mesmo não permitindo perder no decorrer do tempo.

             Minha mãe sentou ao meu lado.

             — Como você está? — ela perguntou, e pareceu realmente se importar. Mas não me amoleceu. Pessoas ainda conseguiam mostrar alguma reação mesmo depois de atirar em alguém.

             Não olhei para ela.

             — Estou bem.

             — Você me deu um susto e tanto quando sofreu o acidente. Na ocasião, eu não pude vir porque estava viajando, então eu estava muito longe para voar até você. Mas eu quis vir te ver. — ela inclinou mais um pouco pra frente para encontrar meus olhos, e então bateu as mãos em cima da perna. — Então, o que anda fazendo? Estudando?

             Seu empenho em mostrar que se interessava era tão forçado que me incomodou o fato de ela não parecer genuinamente curiosa.

             — Sim, engenharia. — respondi, de má vontade. — Como o meu pai.

             — Eu achava que você viraria arqueólogo, porque sempre gostou de Indiana Jones. Ou mecânico, por destruir minhas coisas do jardim para depois concertá-las. — ela disse, parecendo lembrar-se melancolicamente daqueles tempos.

             As flores trepadeiras no balanço nunca teriam existido se não fosse por ela. Eu obviamente não me lembro disso, porque eu era muito criança para lembrar; foi a Susie que me contou uma vez. A única coisa que realmente me lembro da minha mãe é o primeiro dia depois de ela ter ido e de meu pai ter me falado que ela não iria voltar mais. Estou certo de que tenho muitas coisas boas para me lembrar, mas é que traumas marcam mais que coisas belas.

             Então se restabeleceu, afastando pra longe as referências de uma vida passada, como se deve ser.

             — Mas sempre achei mesmo que você fosse seguir os passos do seu pai.

             — Com um pai como o meu, dificilmente você não seguiria. — virei para olhá-la, o olhar duro sobre ela. — Mas você obviamente já sabe disso.

             Levou um tempo para minha mãe dizer alguma coisa.

             — Eu acho que devo algumas explicações a você, agora que já está maduro o suficiente para entender certas coisas.

             — Não precisa se explicar. — eu disse duramente, evitando que nós dois tivéssemos que passar por isso. — Realmente não me importo.

             — Mas seu pai te contou por...

             — Honestamente, mãe, eu não tenho cabeça para ouvir nenhuma desculpa agora.

             Ela se calou. A expressão dela ao me olhar tornou-se uma nuvem carregada e escura. Já me encontrei com ela em outras ocasiões, ocasiões completamente sociais. Desde que minha mãe foi embora de casa, eu sou capaz de contar as vezes que nos encontramos: três. O tempo passa muito, muito depressa. Minha mãe não se deu conta de que ao me deixar menino quando tornasse a me ver talvez eu fosse um homem. Então ao me deparar com esse misto de sensação de arrependimento e culpa estampada no seu olhar e por todo o seu rosto, interiormente senti prazer em sua punição. Ela deveria ter se dado conta. Deveria ter sabido que o tempo é maldoso.

             Deixei de olhá-la e passei a encarar o meu tênis.

             — O que você está fazendo aqui?

             — Aceitei uma proposta de trabalho, então vou ficar por um tempo. Estou morando não muito longe de você. Você pode ir me visitar sempre quando quiser...

             — Quis dizer, como você soube que me encontraria aqui?

             — Seu pai. Ele me ligou hoje de madrugada pedindo que eu viesse ver você, disse que talvez estivesse precisando de alguém para conversar. — ela respondeu, sem culpa. — Ele me disse também que você foi embora de casa. Eu sinto muito que as coisas com seu pai tenham acabado dessa forma.

             — Aconteceria de qualquer jeito. — eu disse. Estava sustentando o peso do meu corpo com meus cotovelos sobre a perna, olhando para baixo, ignorando minha mãe bem ao meu lado.

             — Mas não posso negar que fiquei feliz que isso tenha acontecido. Você não poderia ficar morando com o seu pai a vida toda, algum dia, você teria de fazer isso. — ela disse. — Você tem um lugar para ficar?

             — Sim.

             Mas não é algo que eu chamaria de “lugar”. A ideia de uma casa ainda continua sendo melhor do que pensão.

             — Olha, eu tenho um quarto vago. Então se quiser, você pode vir morar comigo. — ela ficou em silêncio um instante. — A garota é sua namorada?

            Eu não tenho certeza do que posso responder à minha mãe. Eu e Alícia nos conhecemos apenas a dez semanas, não era como se fôssemos um casal. Nunca conversamos sobre isso em algum momento. Não tivemos tempo.

             — Gostaria de poder conhecê-la. — minha mãe disse, quando não veio uma resposta.

             Virei a cabeça para ela pelo que disse, de repente irritado.

             — O que de verdade você faz aqui? Por favor —, eu estava sendo sarcástico. — Não me diga que está aqui para reparar o tempo?

             — É um clichê, mas o que posso dizer?

             — Gabriel?

             Olhei na direção de onde veio a voz. Susie estava bem ali, de frente para mim, e embora tenha me chamado ela não olhava para mim. Susie encara minha mãe sem expressão, como se estivesse de frente para um fantasma.

             — Susie? — minha mãe disse, surpresa. — O que está fazendo aqui?

             — Eu vim ver o Gabriel. Eu soube que o encontraria aqui.

             — Como você...? Você manteve contato com o meu filho, com o Robi?

             Olhei curiosamente para minha mãe.

             — Como assim “manteve contato”? Susie é quem cuida da casa.

             — O quê? — minha mãe desviou os olhos rapidamente de mim para a Susie. Ela tinha levantando da cadeira e parado de frente a Susie. — O que você faz na minha casa?

             Minha mãe estava agindo possessivamente com a Susie como se ela tivesse pegado por um tempo um de seus brinquedos, o que me soou estranho. Ela e Susie costumavam darem-se bem, pelo menos do que Susie me contou. Não era assim que eu imaginava como seria o reencontro de duas amigas depois de tanto tempo.

             Levantei.

             — Espere, mãe. — eu me pronunciei. — Ela deixou de ser a sua casa quando decidiu ir embora. E por que está falando assim com a Susie?

             Minha mãe virou ofendidamente para mim e apontou na direção da Susie.

             — Por que estou falando assim com ela? Você não deve saber de nada, não é, Gabriel? — ela olhou para Susie. — Vocês não contaram a ele?

             Senti todo o meu corpo tenso.

             — Não me contaram o quê?

             Minha mãe me ignorou.

             — Todo esse tempo estive sendo a mãe irresponsável pelos olhos do meu filho, quando eu fui a vítima? O que disseram a ele? O que disseram a ele?!

             Susie se assustou com o grito, mas não respondeu o que minha mãe gostaria de ouvir. Então virou-se para mim.

             — Qual foi o motivo que eles deram para eu ter ido embora, Gabriel?

             Minha mãe se referia a Susie e ao meu pai como se eles fossem alguma equipe de conspiração que foi responsável por jogá-la na prisão por um crime que não cometeu.

             Eu estava completamente confuso.

             — Susie, o que está acontecendo?

             — Gabriel...

             — Ela tinha um caso com seu pai! — minha mãe disse ao mesmo tempo que a Susie, porém o que ela disse foi mais relevante para que eu prestasse atenção. — Susie tinha um caso com o seu pai e por isso eu fui embora! Depois que descobri, eu não poderia ficar na mesma casa que seu pai. E você sabe como ele é poderoso... eu poderia ter ficado com nada, mas seu pai me ofereceu um acordo; que eu cedesse a sua guarda. Por isso não te levei comigo, Gabriel. Mas prometi a mim mesma que assim que conseguisse minha independência, eu voltaria para te buscar. Desculpe-me por ter demorado tanto tempo, filho.

             Agora eu sei de onde vem essa minha dependência pelo dinheiro, apesar de eu não levar a vida como uma pessoa que tem dinheiro. Minhas roupas e meu estilo de vida são simples; blusas finas e às vezes camisetas, chapéu para quando quero esconder um pouco o cabelo, mas nem sempre, já meu pai é a única pessoa interessada na minha aparência que não me faça parecer um rebelde. Diferente dele, que sempre viveu com terno de bom pano e sob medida, não faltando nenhum pedaço de pano fora do contorno do corpo. Em casa, suas camisas eram pólos bem passadas e shorts de linho.

             Suas viagens eram caras, os restaurantes eram caros, as mulheres eram caras, os amigos eram caros. Viver era caro para ele.

             Mesmo diante desta declaração, eu me encontrava buscando uma confirmação.

             — Isso tudo que minha mãe disse sobre você e meu pai é verdade?

             — Eu amava seu pai.

             Todos esses anos eu busquei apenas um motivo para entender por que minha mãe escolheu ir embora e deixar pra trás a sua família, e todo o tempo a resposta estava bem debaixo do meu nariz: Susie.

             — Você... — minha voz falhou. — Esteve com ele todo esse tempo?

             — Sinto muito, Gabriel.

             Dei passos desnorteados pra trás e caí na cadeira. Susie amarguradamente veio para me encontrar, mas minha mãe a deteve.

             — Deixe-o em paz!

             — Não! Estive ao lado do Gabriel todo esse tempo, eu não vou deixá-lo agora só porque você apareceu. — Susie disse, firmemente. — E você não tem o direito de exigir isso de mim! Você o abandonou, e independente do motivo, você não deveria tê-lo feito.    

             — Agora você está me culpando pelo o que aconteceu? — minha mãe rebateu, jogando as mãos dramaticamente para cima. — Você é a única culpada pelo o que aconteceu, Susie! Você destruiu o meu casamento...

             — Não —, Susie corrigiu. — Você nunca teve um. Você só pensava em massagens linfáticas, massagens relaxantes, academia, viagens e compras. Você não dava atenção a sua família, e foi por isso que ela acabou.

             Minha mãe fazia que não com a cabeça.

             — Não. Não, você está errada, eu...

             Virei o rosto para o outro lado, para longe disso, e vi Vitor logo à frente colocar a mão no rosto e andar de um lado para o outro no corredor paralelo. Fiquei intrigado em por que ele estaria ali assim, intrigado e preocupado.

             Fiquei de pé em um pulo e fui até a ele, ansioso para fugir de tudo aquilo. Minha mãe e Susie estavam tão concentradas em ofender uma a outra que nem notaram que o objeto da briga tinha saído.

             Vitor finalmente me viu andar até a ele.

             — E aí? — ele disse, quando passei por ele.

             Ainda dava para ver minha mãe e Susie discutindo.

             Com uma respiração profunda, olhei para ele.

             — Aconteceu alguma coisa com a Alícia? — perguntei de uma vez. — Você parece... perdido.

             Vitor colocou as mãos no bolso da calça e escorou as costas na parede.

             — Não. — ele disse, olhando para o corredor à sua frente. — Eu só... estou me decidindo se devo entrar ou não.

             Passei a mão fechada pelo nariz para coçá-lo, os olhos para o lado.

             — Por quê?

             — “Por quê”, o quê? — seu tom foi seco.

             — Por que está hesitando?

             — Não estou com coragem de entrar lá. — a voz dele era baixa. E acrescentou, com culpa: — E também porque eu tenho um compromisso daqui a pouco.

             Então esse era o motivo.

             Meu tom era acusador.

             — O que é mais importante do que ver a sua irmã?

             — Meus pais estão pensando em voltar para a nossa cidade e por isso estou atrás de um emprego. Estou indo conversar com um cara agora. Ele tem uma oficina e está precisando de um mecânico. Estou disposto a trabalhar oito horas por dia em seis dias da semana para não ter de voltar para lá. — ele continuou falando. — Lá não têm corridas, carros adulterados. Não consigo viver num lugar como aquele.

             Me perguntei se era por esse motivo também que Alícia queria ir embora da sua cidade.

             Minha mãe e Susie notaram que o banco que estive sentado estava vazio agora. E então as duas me viram; mas foi Susie que me encontrou primeiro. Elas não se aproximaram de mim, e senti uma vertigem de alívio por isso. Deixou que eu e Vitor continuássemos a conversar e saíram para algum lugar, ambas seguindo caminhos diferentes.

             Não era como se eu quisesse puxar assunto com o Vitor e estivesse confortável com isso, mas eu precisava lhe perguntar uma coisa. No final, é o que eventualmente todo mundo acaba querendo saber.

             — Por que você participa de corridas?

             — Preciso de dinheiro.

             As perguntas eram frias e as respostas mais ainda.

             — Para o quê?

             — Para que o interrogatório? — ele forçou o tom a sair rude, mas não foi assim que soou.

             — Só estou curioso.

             Vitor revirou os olhos e olhou o corredor extenso e vazio à sua frente, de repente a ideia de poder falar isso para alguém pela primeira vez parecendo a sua recompensa.

             — Preciso ajudar meus pais com as despesas do hospital. Eles sozinhos não conseguem. Também tenho minhas coisas, e a renda da corrida é um dinheiro extra. Por isso eu faço isso; pela minha irmã. Por isso que me senti ameaçado quando você chegou ganhando todas as corridas. Precisava do dinheiro para pagar as despesas do hospital para minha irmã.

             Deixei que passasse alguns segundos. Então eu disse:

             — Mais um motivo pra você ir ver a Alícia. Ela seguramente gostaria de ver o seu herói.

             O maxilar dele ficou tenso e acenou a cabeça negativamente.

             — Alícia não sabe. Ela é orgulhosa demais, e não iria aceitar a ajuda sabendo de onde o dinheiro vem. Ela nem sabe que sou eu que pago. Eu passo o dinheiro para o meu pai, e é como se ele estivesse pagando tudo quando na verdade eu ajudo também. O que não me importo. Ninguém além de mim precisa saber. — em um instante, Vitor saltou da parede. — Então, já foi vê-la?

             Não respondi logo.

             — Não posso. Só os parentes têm autorização por enquanto.

             — O que então você está fazendo aqui?

             — Não conseguir ir embora.

             Seus olhos estão desfocados.

             — Ela deve gostar mesmo de você. — sua voz mal é audível. — A vida toda, sempre colocou as vontades das pessoas antes da sua. Então quando confrontou meus pais por sua causa, seu pai por sua causa, eu soube que ela realmente gostava de você.

             E então surpreendentemente Vitor estava movendo seu corpo para a direção contrária do quarto que Alícia estava.

             — Sério? — gritei para as suas costas indo embora pelo longo corredor. — É essa a sua escolha?

             Vitor levantou a mão em um aceno sem virar-se.

             — Alícia vai ficar bem logo. — respondeu, calmamente. — Como sempre fica.

             Não importa a confissão heroica que o Vitor acabou de fazer, ele continuava sendo um imbecil.

          

        Levei três dias para me decidir quanto a passar um tempo com a minha mãe. No dia determinado, estava levando minhas coisas que consistiam apenas em uma mala, um violão e um cachorro. Não precisava de mais.

             A casa que minha mãe alugou tinha um ar arejado por causa do piso de madeira, as janelas brancas de altura tocando o chão e suas cortinas longas, a piscina na frente da casa, parecendo uma casa de praia.

             No quarto vago tinha uma cama de solteiro e um guarda roupa também. Tudo estava com aquele cheiro de novo quando desembrulhávamos um brinquedo ao acabar de ganhar.

             Olhei para minha mãe por cima do ombro.

             — Eu não estava esperando uma cama, e muito menos um guarda roupa. Não era o trato que eu ficaria por um tempo? Então por que estas coisas?

             — Sim, ainda é. — ela tirou a mala da minha mão e a colocou em cima da cama feita, afundando-a com seu peso. — Mas isso é para o caso de você decidir ficar mais.

             Minha mãe estava querendo me dobrar.

             Mas eu a entendia. Era isso o que eu faria também depois de ficar tanto tempo longe do meu único filho. Ela provavelmente gostaria de conhecer as histórias por trás de todas as cicatrizes ganhadas, e eu teria tanto o que contar. E ainda que a maior parte da minha vida tenha sido obscura, eu não esconderia nada dela. Principalmente quando entrei em incontáveis confusões na adolescência e enchi a cara de bebida alcoólica para descontar a raiva da vida.

             Bem, eu a forçaria ouvir o que a sua ausência me causou. Que passei a odiar o dia das mães quando todos os meus amiguinhos faziam artesanatos para suas mamães na escola para entregar a elas quando chegassem em casa. Uma coisa compreensível é ir embora por questões divinas, a outra é decidir deliberadamente partir. E por causa disso eu não tive ninguém para estar comigo, uma pessoa para enxergá-la como aquela fagulha de luz no meio da escuridão, a não ser a Susie. Então passei a dar todos os cartões com desenhos borrados para ela. E em todos os anos, ela me abraçou contra o seu peito e me agradeceu por aqueles desenhos que soavam tão simples pra mim mas que para ela não significava tão pouco. Ela guardou todos eles. Eu sei disso porque todos os anos Susie me mostrava o álbum que fez, registrando todos aqueles momentos da minha vida. Esse ritual foi até eu não querer mais ver aquelas bobagens. Eu tinha ganhado alguns pelos no rosto e achei que já tinha crescido o suficiente para ficar sentado ao seu lado vendo cartinhas antigas de criança. Susie foi a única imagem materna que tive e sem ela não sei o que teria sido se eu não tivesse alguém para dar aquelas cartinhas bobas depois de sair da escola.

             Eu não vou ser a primeira pessoa e nem a última a dizer que a vida não é justa, não existe ninguém que não ache isso. Mas eu soube ver, e encontrei um motivo para continuar acreditando nela. No meu caso, foi a Susie.

             Mesmo as pessoas que nos amam nos magoam às vezes.

             À noite, eu e minha mãe estávamos na mesa de jantar. Apenas quando ela começou a querer saber sobre o que passei nesses anos eu descobri que ainda não tinha superado ela ter me deixado. De que precisávamos trabalhar nisso um pouco mais até chegarmos ao nível de agir como se ela fosse a “minha mãe”.

             Tirei meu prato da mesa, levantei-me da cadeira e olhei para ela.

             — Vou dar uma saída.

             — Ok. — respondeu, tristemente. Ela é esperta demais para não acreditar nessa desculpa de última hora.

          

        Eu não queria ter que ir para a Faculdade de Villanova e ser obrigado a escutar os professores falarem na minha cabeça quando a minha última vontade era não precisar ter de fazer isso. Só que essa era a única forma de não enlouquecer sozinho. Por algum tempo ir à faculdade fez parte do meu ritual, e o ritual faz com que os dias difíceis se passam por normais.

             Na hora do intervalo, fiz o percurso pelo campus e fui para o estacionamento.

             Tirei um cigarro barato do bolso e acendi.

              Não que eu seja um viciado em nicotina, mas sempre levava algum para emergências. Como agora. Parece que pegaram meu mundo e o viraram de cabeça para baixo.

              Fechei o isqueiro na palma da mão e guardei no mesmo lugar de onde tirei o cigarro. E percebi a contradição disso. Irônico alguém que não é dependente manter um isqueiro guardado no bolso.

             Ouvi o barulho de salto alto ficando mais distinto à medida que se aproximava.

              Dei um trago e olhei para o lado. Logo eu suspirava entediadamente quando vi Carolina andar até a mim. Eu não fui cuidadoso o suficiente, e em algum momento ela deveria ter visto eu fazer o caminho até aqui em cima.

             Carolina parou na minha frente e apontou para o cigarro pendido no canto da minha boca. 

             — E como qualquer humano, você tinha que ter um defeito. Por que está se escondendo aqui?

             — Precisava pensar.

             Baixei o cigarro, pausando o pulso na carroceria do carro.

             Carolina aproximou lentamente, medindo o tempo todo a minha reação exatamente como se faz ao chegar perto de um animal selvagem, e encostou no carro ao meu lado.

             Ela levantou o rosto com dignidade.

             — Sabe, estive errada quanto a você. A respeito de gostar de você. Quero dizer, eu ainda gosto de você, mas não do jeito que eu disse que gostava. Desculpe por colocar dessa forma, mas... acho que eu tinha pena de você.

             — Pena de mim?

             Não acreditei nela, mas fingi que sim, assim como Carolina fingia que acreditava nas suas palavras também. Sentimentos como aquele que dizia sentir não desaparecem magicamente, a não ser que fosse parte de uma mentira, então sim. Se para se sentir melhor ela precisava me desmerecer, tudo bem para mim.

             — Pelo seu pai sempre te ignorar, pela ausência da sua mãe, por ter sido criado por uma empregada.

             Meus olhos estavam por cima dos carros no estacionamento.

             — Susie não é uma empregada.

             — Enfim, então é isso. Eu só queria que tivesse me dado conta disso antes, então não teria estragado a relação entre você e o Lucas e nada teria mudado. O universo teria continuado em equilíbrio.

             Eu acredito nas coisas predeterminadas. Então daqui a cinco meses ou cinco anos acabaria acontecendo a mesma coisa entre mim e o Lucas. Ele sempre me provocou, sempre retaliou de forma bem injusta; ele não era um bom amigo. E eu não soube enxergar os sinais.

             Peguei o cigarro pela ponta e o joguei no chão, pisando em cima dele para apagá-lo.

             — Você não deveria esquentar a cabeça com isso, Carolina. Lucas e eu acabaríamos chegando ao mesmo lugar. Você acabou sendo a minha desculpa. 

             Carolina me deu um sorriso como se isso fosse exatamente o que esperava ouvir como resposta. Estávamos ombro com ombro, e então passei o braço em volta do seu pescoço para abraçá-la, como fiz com a Alícia uma vez.

             Nós ficamos abraçados por mais algum tempo depois disso até que pelo canto do olho percebi alguém parado. A primeira reação foi a de susto e a segunda surpresa e um tipo intrínseco de exaltação. Alícia estava bem ali nos vendo, e então olhou direto no meu olho.

             Ela não disse nada. Nem ninguém.

             — Eu ainda não gosto dela. — Carolina disse para mim, seu sussurro saindo nítido próximo ao meu ouvido.

             Os olhos da Alícia ficaram trêmulos e úmidos, e talvez ela estivesse interpretando isso de outra forma no contexto que eu e Carolina encontrávamos. Perguntei-me o que isso deveria significar para ela estar prestes a chorar por uma coisa tão boba como essa. Fui contra a gravidade e me segurei para não lhe dizer que estava redondamente errada. Lembrei que meu braço ainda estava confortável em volta do pescoço da Carolina, mas não o tirei. Não quis mostrar ansiedade em aliviar suas suposições.

             — Gabriel —, Alícia disse numa voz insegura e baixa. — Nós podemos conversar um instante?

             Carolina olhou para mim, Alícia olhava para mim. Sem coragem de verbalizar ou fazer algum gesto, meu silêncio significava qualquer coisa e não protesto. Carolina deve ter lido nas entrelinhas, porque deu um jeito de sair silenciosamente debaixo do meu braço sem que eu percebesse e sem que eu percebesse Alícia e eu ficamos sozinhos.

             Ela baixou a cabeça e ficou com os olhos fixos no chão cimentado. Desviou os olhos, olhando para qualquer coisa ao seu lado, depois para o outro. Quando virou para me olhar, meus olhos estavam fixos nela. Ela teria sorrido, aquele sorriso fácil, mas meu rosto não era receptivo o suficiente.

             Alícia aproximou, com um passo incerto à minha frente.

             — Você sabe que seu pai pessoalmente irá cuidar de mim? — ela disse, quebrando o gelo. — Pois é, ele disse algo sobre “precisar fazer isso porque Gabriel acha que eu não presto”. Ele parece estar se esforçando para concertar as coisas com você.

             Mas nós dois sabíamos que ela estava sendo apenas otimista, que se meu pai quisesse concertar as coisas comigo, ele sabia exatamente o que fazer.

             Alícia ficou calada.

             Eu contava os carros acima da sua cabeça, meus olhos nas insignificantes coisas e não nela. 

             — Você não deveria estar aqui. — eu disse, numa voz áspera. — Não deveria estar no hospital?

             Ela riu, como se eu tivesse dito uma coisa boba.

             — Não é assim como você está pensando. — fez uma pausa. — E só vim para lhe dizer uma coisa.

             — Você poderia ter me ligado. — rebati, secamente.

             — Poderia. — ela disse, numa voz tranquila como o ar. — Não se preocupe, você não vai precisar olhar mais para a minha cara todos os dias, se é isso o que está te atormentando. Eu inclusive vim até aqui para dizer que não volto mais para a Faculdade de Villanova. A partir da semana que vem, eu vou estar no hospital.

             Tentava me mostrar não me importar mas era tão difícil.

             — Por quê? — mas minha voz saiu seca e despreocupada.

             — Eles acham que eu devo ficar no hospital sendo monitorada. Eu só não vou antes porque eles estão desocupando um quarto pra mim no hospital que seu pai trabalha, como será uma espécie de caridade. — ela parou de falar, engolindo alguma coisa que pareceu descer com dificuldade pela sua garganta. — Nas piores das hipóteses, eu vou viver o resto da minha vida com um coração de outra pessoa.

             Não consegui evitar. Sorri ironicamente por não saber o que fazer.

             — O coração artificial não é tudo aquilo o que eles diziam ser? Ele não era o que chamaríamos de uma grande e invencível evolução, então como ele pode ser tão limitado? — eu não estava realmente perguntando isso a ela. Era só eu agindo inconformadamente.

             Ela se inclinou conspiratoriamente para mim.

             — Acontece que —, sussurrou as palavras. — Assim que o nosso corpo percebe que estamos usando algo que não nascemos com ele, a própria natureza se encarrega de expulsá-lo.

             A verdade é que não importa o quanto o homem evolua e as coisas grandiosas que eles consigam criar, mas jamais conseguirão fazer algo com tanta perfeição quanto Deus; como pensar que podem substituir um coração, por exemplo, e levar o crédito por isso. Não deveriam ter sido tão confiantes.

             — Acho que todos aqueles cientistas não consideraram isso. — e se colocou na minha frente para chamar minha atenção, a fim de alinhar nossos olhos como os planetas. — E eu também vim para dizer que conhecer você foi a melhor coisa que me aconteceu, e não estou falando de que por causa de você eu ganhei uma chance. Achei que você deveria saber.

             A verdade incontestável que Alícia não sabia é que ela poderia ter me pedido qualquer coisa e eu teria entregado em suas mãos tudo. Era só ter dito as palavras, não esperado que um acidente desses acontecesse.

             — Eu não te contei no início —, continuou. — Porque pensei que nunca iríamos a lugar algum e estava evitando passar por um momento dramático para no final você dizer que não conseguiria lidar com isso. Mas eu quero que você saiba que cheguei muito perto de te contar. E então aconteceu o acidente...

             Ela deixou o argumento morrer.

             Eu estava olhando para o seu rosto e assisti passar um monte de coisa na minha cabeça como scanner. Mas impotente. Porque eu não conseguia dar um passo até a ela, não conseguia dizer as palavras certas que deixaria tudo no lugar.

             — Eu ainda não sei se consigo lidar com tudo isso.

             E ela foi pra trás. Recuando.

             Ela parecia decepcionada por não ser essa a atitude que um mocinho que se preze faria, e foi esse o seu erro; ter criado expectativas. Se eu fosse um bom bad boy, teria a avisado que no final é sempre isso o que faço. Fugir. Porque às vezes é a única saída.

             Desviei o olhar. Também não estava olhando para ela quando se afastou com um passo, andando para longe.

             E duvidei de mim mesmo. E me chacoalhei se essa seria a coisa certa a se fazer, se era isso o que eu realmente queria para colocar tantas coisas de lado. Desfiz da posição empertigada no carro pra virar de costas para onde Alícia ia. Passei a mão pelo cabelo, de contrariedade, como que já prevendo uma rendição iminente, como que já sabendo que não adiantaria mais resistir.

             Olhei a silhueta da Alícia percorrer o seu caminho para longe e talvez para sempre. E ir atrás dela talvez não seja pisar no meu orgulho. Talvez seja maior do que isso. E se o que ela fez é imperdoável, estou certo de que já perdoei coisas maiores. 

             E eu não hesitarei mais.

             Meus pés corriam para a Alícia. Corriam desesperados.

             Alícia tão desatenta como era, poderia muito bem não me ouvir correndo pelo estacionamento; os tênis com amortecedores não eram sapatos, eles não me entregariam. Mas, de alguma forma, ela virou pra trás tão rápido que nem percebeu. E esperta como era, supus que tenha entendido o que isso nessa circunstância vinha a significar.

             Alícia não disse nada quando parei de frente a ela. Mas estava olhando o meu rosto tentando descobrir alguma coisa, e parecia ansiosa e seus olhos piscavam e seus lábios estavam entreabertos, e eu não estava com o ouvido sobre o seu coração mas provavelmente estava agitado tanto quanto o meu estava agora.

             — Desculpe. — foi tudo o que eu disse.

             — Você não precisa se explicar. Não é como se fôssemos namorados. — o sorriso que deu foi bem pequeno naquele rosto amargurado, como um feixe de luz debaixo da porta visto de um ambiente escuro. — E não precisava ter corrido até aqui para me dizer isso.

             Ela não estava entendendo.

             Alícia virou para ir e a segurei pelo braço. Seus olhos subiram da minha mão pra mim sem pressa, e eu não a soltei.

             — Mudei de ideia.

             A tensão do seu rosto diminuiu.

             — Por quê?

             — Já disse uma vez... não sei se consigo ficar sem falar com você por muito tempo.

             Há algo no seu olhar ao olhar-me e na forma como conversa comigo... existe essa dependência que me faz pensar que não conseguiria.

             Ela não falou nada por um tempo.

             E então seu rosto começou a iluminar e estava começando a sorrir tão plenamente e vagaroso como ventos reverberando pelos ares levantando roupas no varal e crianças correndo para dentro de casa, tudo isso presságio de uma chuva tranquila vindo por aí.

             — Mas as coisas não vão voltar exatamente do jeito como eram antes. — esclareci. — Então posso apenas ser seu amigo agora. É o melhor que eu posso fazer no momento.

             Porque eu posso ser vingativo às vezes, e achei que sugerir isso fosse ferir mais a Alícia do que ficar longe.

             O rosto dela estava relaxado, sem indícios de frustração. Então ela disse:

             — Tudo bem. Qualquer coisa é melhor do que estar longe.

          

        Minha mãe queria muito conhecer a Alícia e sempre me pressionava quando eu iria levá-la para ela finalmente conhecê-la, apesar de eu ter ressaltado que nós éramos apenas “amigos” agora e que minhas idas ao hospital era puramente por consideração de “amizade”. Então por isso cheguei a perguntar a Alícia se ela gostaria de, sei lá, conhecer minha mãe. Obviamente ela se animou com a proposta, que nem era uma. Era só uma pergunta, porque talvez ela agiria sem entusiasmo e diria que esse encontro não tinha nenhum significado para ela.

             Eu estava errado. 

             ”Amigos fazem isso?” ela me perguntou, logo após a proposta. ”Jantam com a mãe do amigo?”

             “Não foi ideia minha, se é isso o que está tentando dizer.”

             Essa era a primeira vez que Alícia recebia alta. “Seu desempenho foi bom”, foi o que os médicos disseram e então a liberaram para ir para casa.

             Cheguei à sua casa para pegá-la às seis. Tão cedo assim porque minha mãe teria um compromisso mais tarde. Eu tinha dito à minha mãe que poderíamos marcar outro dia e que não precisaríamos fazer tudo correndo. Mas ela disse que não; que odiava adiar coisas.

             Era uma viagem de vinte e cinco minutos.

             Durante todo o jantar não dissemos muito. Mas em algumas vezes, minha mãe pegava eu e Alícia nos olhando furtivamente. Ainda que eu tenha colocado uma barreira entre nós, qualquer um poderia ver a carga de palavras não ditas que passava pelo olhar desviado após se fixar por mais tempo que deveria.

             Para acabar com aquele silêncio que parecia incomodar minha mãe, ela tocou em um assunto que provavelmente pensou que estaríamos mais confortáveis para conversar. E tudo começou com aquela pergunta curiosa e inevitável que sempre é feita para um casal:

             — Então, como vocês se conheceram?

             Alícia ergueu a coluna, animando-se com a pergunta e com a expectativa do rumo que se daria. Depois de um tempo ouvindo as duas conversando, eu não consegui evitar um comentário. Estranhei que eu não tivesse feito isso mais cedo.

             — Você não tem aquele compromisso daqui a pouco, mãe? — eu disse impaciente, com a intenção de que assim ela desse conta que estava incomodando com esse assunto e saísse para se arrumar, ou algo parecido com dar o fora. Eu estava sendo a terceira pessoa da narrativa, e dada a situação, não estava sendo confortável pra mim ouvir a história pela perspectiva romântica e idealizada da Alícia.

             Os cotovelos da minha mãe estavam cravados na mesa e escorava o queixo nas mãos, olhando para a Alícia sem piscar.

             — Não —, ela acenou distraidamente a mão para mim, sem me olhar. — Eu tenho mais alguns minutos.

             Claro que ela tem.

             Nem ela e nem Alícia perceberam o meu revirar de olhos, não que isso importasse alguma coisa ou as fizesse pararem de falar.

             Ouvimos um trovão ecoar. Segundos depois, a chuva começou a cair, batendo violentamente contra o vidro da janela.

             — Está chovendo? — todos nós dissemos juntos, como se o vento da chuva sacudindo as cortinas não fosse o suficiente para comprovar.

             Levantei em um sobressalto da mesa de jantar e andei até a janela mais próxima. Afastei a cortina branca só o bastante para ver através da vidraça o céu escuro e nuvens negras de tempestade cobrindo todo o perímetro. E não era uma humilde chuva. Seria difícil voltar para casa debaixo dela e enfrentar a estrada, porque sempre acontecia dos barrancos cederem quando chovia muito e as árvores caírem na estrada e impedir os carros de movimentarem-se. Culpei-me por passar tanto tempo aqui dentro e não ver a tempestade formando-se... espere, que horas deveriam ser?

             Olhei o relógio preso à parede. Os dois ponteiros indicavam vinte minutos para às dez. Um pouco tarde. Lembro-me vagamente dos pais da Alícia me dizendo para não levá-la muito tarde para casa.

             Afastei imediatamente da janela e andei até a Alícia. Peguei sua blusa de frio esticada nas costas da cadeira e lhe entreguei.

             — Temos que ir agora. — eu não parei para olhá-la, e peguei as chaves do carro em cima da mesinha de canto na saída da sala. — Se a chuva ficar mais grossa vai ficar difícil te levar para casa.

              Eu praticamente forcei Alícia a sair da casa diante da minha afobação.

             A porta se abriu. Vimos a chuva cair com violência contra o solo, desfalcando as folhas das árvores antes altiva e suntuosa; toda a natureza subjugada diante dela.

             — É. — eu e Alícia dissemos juntos, quanto à disposição de encarar o fim do mundo lá fora.

             “Agora”, e percorremos juntos o quintal até o carro. No meio do caminho o vento virou do avesso o modesto guarda-chuva emprestado da minha mãe que Alícia segurava. Debaixo da chuva, ela o desvirava enquanto eu corria para abrir manualmente o carro; ele não automático. Quando ela alcançou o carro, a porta já estava destrancada. Então partimos.

         

        Dirigi pela cidade com o farol alto e em velocidade baixa.

             Quando alcançamos a estrada ficou ainda mais difícil dirigir com o tráfego maior de carros e a chuva. Também os carros acumulados numa gigantesca fila um atrás do outro não ajudava muito, então a velocidade foi reduzida ao mínimo e os carros quase não se moviam. Passaram-se quinze minutos quando percebi que eu não tinha me movido também.

             Pelo painel do carro, bem à frente, consegui distinguir um guarda por causa das listras laranja fluorescentes de seu uniforme. Ele portava uma lanterna na mão e a outra acenava para os motoristas baixarem o vidro do carro. Ele chegava na janela do motorista, falava algo a ele, e depois seguia para o próximo carro. Então ele chegou a mim.

             Abri a janela manualmente, e o guarda curvou na janela e jogou a lanterna dentro do carro. Quase bloqueei meus olhos com o braço para mostrar a ele que aquilo estava me incomodando, mas ao invés disso, apenas apertei os olhos por causa da luz. Eu não ganharia nada o irritando, e a gente nunca sabe quando vamos precisar de alguém.

             — A estrada está interditada. — ele me disse. — Uma árvore caiu e está bloqueando a passagem. Peço que aguardem até a emergência retirar o tronco da estrada, e então vocês poderão prosseguir com a viagem.

             — Você acha que vai demorar muito?

             — Para o melhor de todos nós, espero que não. Tenham uma boa noite. — o guarda levantou, ultrapassando meu carro para falar com o motorista de trás.

             — Ótimo. — resmunguei. — Realmente ótimo.

             Olhei Alícia ao meu lado. Ela tirava a blusa de frio para depois guardá-la no colo, como acabou molhada, e aninhou seus braços em volta da cintura para se autoaquecer. Meu carro não tinha ar condicionado. Eu poderia abraçá-la agora, fazer um pouco essa sensação se conter, mas tinha que manter o meu posto. E afinal, nós éramos apenas “amigos” agora.

             Chuva batia no vidro do carro e água descia pelo vidro.

             — Não é tão terrível —, ela disse, olhando através da janela do carro a chuva cair. — Nós ficarmos presos aqui. Nós poderíamos conversar. — e ao acabar de dizer, olhou para mim.

             — Sobre o que quer conversar?

             — Bem —, ela pareceu pensar. — Que tal falarmos sobre o que você vai fazer agora que saiu de casa? Tem um plano B?

             — Não.

             Alícia não pareceu frustrada.

             — Bom —, ela disse, considerando. — Leva um tempo para se programar. E quanto à Carolina? Qual é a de vocês dois?

             Eu sabia que essa conversa despretensiosa viria em algum momento.

             — E quanto a você? — perguntei, para mudar de assunto. — Os médicos disseram mais alguma coisa sobre... o coração?

             Ela suspirou para depois jogar as costas no banco do carro.

             — O de sempre. Você sabe, segurar as pontas e continuar mantendo as expectativas até encontrar um transplante. — a voz dela se fundiu com a pesada chuva batendo bem acima de nossas cabeças. — Mas não estou animada, porque você nunca sabe o que pode acontecer. Só estou dizendo que... eu sei como é. Porque de tempo em tempo eu fico hospedada em um hospital e nunca sei quando vou sair. Da última vez fiquei por dois anos. Dois anos! — indignou. — É quase a metade de um terço de uma vida, se parar para pensar, tempo de mais para passar numa cama de hospital.

             Quis perguntar como ela fez para estudar ao ponto de entrar para a faculdade, em como ela tirou a carteira, em como ela pôde perder tempo namorando o Nico, mesmo sabendo que a motivação é tudo o que uma pessoa precisa para conseguir o que quer, e que ninguém quer ficar sozinho.

             Eu a olhava admirado.

             — Como você pôde pensar em fazer tudo o que fez até agora?

             — E se eu conseguisse? Era nisso no que eu estava pensando. Sei que eu tenho esperado por isso há muito tempo e ainda não aconteceu, mas... e se no final eu recebesse uma notícia boa? — fez que não com a cabeça. — Eu não poderia perder tempo. Temos só uma chance para fazer a coisa certa.

             Receber uma notícia de transplante não era difícil porque poucas pessoas em todo o mundo morriam de morte cerebral. Receber uma notícia de transplante era difícil porque ninguém quer despedir da pessoa que ama antes do tempo.

             — Sabe —, ela estava afundada no banco, olhando para os carros enfileirados sobre o para-brisa molhado. — Eu não podia nem andar em montanha russa para evitar que meu coração passasse por emoções fortes. O que é uma loucura —, ela deu um riso desamparado. — Porque são essas sensações que é feito a vida. Não aceito o fato de que eu tenho que viver com medo das coisas que foram feitas para serem simples.

             Nessa pausa de silêncio em que ficamos, ouvi a chuva bater com toda a força no chão que me lembrou da realidade lá fora, que estávamos debaixo de uma tempestade violenta e que ambos estávamos molhados.

             Mexi para fora do banco.

             — O que você está fazendo? — ela perguntou, excitadamente.

             — Se não vai dar para te levar embora, então eu vou te levar de volta para a casa da minha mãe. Você não pode ficar aqui desse jeito.

             Abri a porta e metade de toda aquela água entrou no carro, Alícia se encolhendo no banco por causa da rajada de vento acompanhado da chuva.

             Andei até o guarda. Contei a ele a situação da Alícia: que ela tinha um coração que não era exatamente igual ao nosso, e por isso eu precisava levá-la para casa mais que qualquer pessoa neste lugar. Eu tinha dito mesmo não acreditando que ele fosse se importar.

             O rosto dele estava impassível.

             Meu plano não estava dando certo.

             — O quê? — eu disse, após o meu discurso. — Não acredita em mim? Sinto muito, mas no momento não posso comprovar que estou falando a verdade. Então terá simplesmente de confiar na minha palavra.

             — E você está muito defensivo. — ele disse no mesmo instante. — Mas não acho que você mentiria sobre isso.

             — É claro que não. Quem mentiria sobre isso...?

             — Você fala demais. Vai.

             — Mas você vai me ajudar? 

             — Eu já estou te ajudando. Entra no carro. E adeus.

             Coloquei o carro em movimento em marcha ré. O guarda abria o caminho pra mim com o seu apito muito alto, para os outros carros se afastarem.

             Depois que ultrapassei o último carro, eu peguei o caminho de volta para casa.

          

        Peguei Alícia pelo braço quando saímos do carro e a levei até a porta. Seus pés pisaram em poças feitas por pisos desnivelados e espalhou lama na perna descoberta; tinha acontecido a mesma coisa comigo também, sujando minha calça e meu tênis. Mas não estávamos importando com isso mais do que a chuva caindo com força sobre nossas cabeças.

             Eu e Alícia escondemos debaixo do telhado, encolhidos por causa do frio, encontrando abrigo enquanto eu abria a porta.

             Chuva escorria pelo rosto da Alícia quando a olhei.

             — Desculpe. — eu disse para ela, sentindo meu cabelo grudado na testa molhada. — Eu não deveria ter te tirado de casa esta noite.

             — Não seja tão duro consigo mesmo. Está sendo divertido.

             Eu discordo. Não era divertido estarmos molhados, nossas roupas molhadas, nossos pés molhados e com um cheiro igual ao do Ferrugem quando estava molhado.

             Abaixei para afrouxar o cadarço do tênis e o tirei com o auxílio do pé, colocando no canto da parede ao lado de fora da casa para não marcar o piso quando entrasse. Alícia fez o mesmo com suas sandálias. Não sei se foi coincidência ela a ter colocado ao lado do meu tênis, sandália e tênis escorrendo água um perto do outro.

             — O que aconteceu? — minha mãe perguntou, quando entramos na sala e nos viu.

             — A estrada está interditada, então tivemos que voltar. — eu respondi a ela quando entramos no aconchego da casa quente e soando tão confortável agora.

             Reparei minha mãe. Ela estava de salto alto, vestido, maquiagem e o cabelo preso em um coque sofisticado.

             — Você vai sair agora? A estrada está interditada, você não vai conseguir passar.

             — Por sorte —, ela me disse, sua boca enrugando-se em um sorriso de lado. — Eu vou para o outro lado.

             Então a atenção da minha mãe foi para a Alícia parada no meio da sala, perdida, sem saber para que caminho ir e o que fazer com suas roupas molhadas.

             — O que você está fazendo aí? Você precisa de um banho quente agora.

             — Mas e...

             — Não se preocupe. — minha mãe gentilmente empurrou Alícia pelas costas até ao banheiro. — Vamos dar um jeito.

             Eu nem me dei ao trabalho de sentar no sofá. Minha mãe teria expulsado a mim e minhas roupas dele se eu tentasse. Estava tirando a blusa quando minha mãe voltou para a sala.

             — Tome conta dela. E não espere por mim. — algo no tom que usou me dizia que ela realmente não acreditava que eu fosse esperá-la. Não importa se sou filho homem, minha mãe não deveria ser tão promíscua. — Eu vou chegar só amanhã. Esses encontros de trabalho costumam demorar um pouco, você sabe.

             E algo no seu olhar me dizia que não era só pelo encontro de trabalho. Talvez um cara.

             Como minha mãe era mestre em massagens, como Susie mesmo disse antes, ela montou uma clínica de estética. Começou de forma simples, como tudo começa, e agora ela tem duas clínicas na mesma cidade. Parece que ela está querendo abrir uma aqui também.

             Minha mãe me levou até ao seu quarto antes de realmente pegar sua bolsa e ir. Ela abriu seu guarda roupa e tirou algumas peças finas de roupas (vestido, saia, outra vez vestido).

             — Acho que isso vai servir. — ela disse, mencionando o fato de que poderia servir na Alícia. Mas eu não estava pensando nisso quando encarei aqueles panos finos na minha mão.

             — Isso não vai servir.

             — Como não? Alícia não parece muito...

             — Esses panos são finos, mãe. — estiquei os panos para mostrar a ela. — Alícia precisa de algo confortável e quente ao mesmo tempo.

             Minha mãe levou um tempo para pensar no que teria no seu guarda roupa.

             — Acho que eu não tenho isso.

             Soltei uma respiração cansada.

             — Bem, eu tenho.

             Separei uma calça azul-escuro de moletom – aquelas feitas de elástico na cintura, e por isso eu tinha certeza de que serviria na Alícia também –, e uma blusa de frio com capuz. Eu usava esse conjunto quando fazia a corrida em volta da propriedade pela manhã quando estava muito frio.

             Eu ainda estava no quarto quando minha mãe foi até lá se despedir. Estive torcendo para que isso acontecesse o quanto antes. Minha mãe não estava me ajudando muito com a Alícia e achei que eu sozinho conseguiria fazer isso. Ela pareceu que nunca precisou cuidar de outra pessoa além dela mesma.

             Bati na porta do banheiro.

             — Alícia, você já terminou aí?

             — Não —, ela gritou do outro lado da porta. — Mas já estou acabando.

             — Eu não estou te apressando. — eu disse, com meu ombro escorado na porta. — Só perguntei, porque suas roupas estão aqui. Vou deixá-las na maçaneta da porta, está bem?

             — Está bem!

             Meus olhos pararam na maçaneta. Eu não era um pervertido. Só tive curiosidade por um momento de pausar a mão nela e descobrir se Alícia se deu ao trabalho de trancar a porta.

             Estava no meu quarto, arrumando a cama para a Alícia. Eu tinha estendido o lençol azul e em cima dele coloquei dois cobertores quentes o suficiente. Depois saí, deixando a luz acessa para quando ela viesse conhecer o lugar onde passaria a noite. Foi quando percebi que nesse tempo desde que deixei as roupas na porta do banheiro e vim para o quarto, Alícia ainda continuava lá.

             Cheguei perto da porta do banheiro para ver se eu ouvia alguma coisa lá de dentro. Não ouvia nada. Nem um gemido, um cantar debaixo do chuveiro, qualquer coisa indicando sinal de vida.

             Bati na porta.

             — Alícia, está tudo bem aí?

             E no lugar, eu ouvia apenas o barulho da água do chuveiro batendo no chão.

             — Alícia. — virei a maçaneta. Estava trancada. — Alícia, me responda.

             Ouvi o trinco da porta. Ela se abriu devagar, vendo primeiro a mão da Alícia na maçaneta do lado de dentro e depois seu rosto aparecendo para fora na pequena brecha aberta. Atrás dela, a fumaça tomava conta do banheiro. Apesar de toda a tensão do momento, não consegui ignorar o colo descoberto; a toalha tampava do seu busto para baixo e o restante do seu corpo estava à mostra. O cabelo estava molhado e a pele cheia de gotas espalhadas, mostrando que ela teve pressa para se cobrir que nem chegou a se secar direito.

             Fiquei imóvel, em silêncio, e ela também imóvel e em silêncio, esperando eu dizer alguma coisa.

             — Por que não me respondeu?

             Alícia deu um atraente dar de ombros.

             — Você não me deu tempo.

             Eu me mexi, nervosamente, por ela ter me permitido chegar a esse estado de loucura, e resgatei a roupa para ela que acabou caindo no chão.

             — Obrigada. — ela disse ao pegar a roupa da minha mão, com um sorriso travesso, e escondeu o corpo para dentro quando fechou a porta. — Você está muito paranoico, sabia?

         

        Estava indo conferir alguma coisa quando encontrei com a Alícia no corredor saindo do banheiro. Acabei esquecendo a coisa importante que eu tinha que verificar. Ela estava tão pequena nas minhas roupas, e então levou a toalha até o cabelo e com o auxilio de uma mão atrapalhou para secá-lo. Fiquei a observando fazer isso enquanto ouvia a chuva bater no teto da casa.

             — Espero que a sua mãe não se importe de eu ter usado aquele xampu importado lá dentro. — ela disse num tom descontraído enquanto andava até a mim. — Eu realmente tive que lavar o meu cabelo. Ele estava com um cheiro estranho de...

             — De cachorro molhado. É, eu sei.

             Seus passos ficaram mais devagar.

             Vê-la assim e a consciência de estarmos sozinho no mesmo teto me desconcertou. De repente minhas mãos não sabiam pra onde ir ou onde ficar até que se fixou em volta do meu pescoço e a outra voou para o bolso da calça, e pela primeira vez compreendi por que as mãos dela agiam exatamente assim. O que passava pela sua cabeça quando estava perto o suficiente de mim.

             — Bem, acho melhor tomar banho também. — cheirei meu braço dramaticamente e minha mão fez o percurso de volta pelo cabelo. — Não posso ficar fedendo.

             Alícia me deu um olhar insinuante.

             — Você não está fedendo. — e passou por mim.

             Eu dava passos pra trás, distanciando, enquanto encarava suas costas.

             — Eu esperava que você não fosse ser sincera. — eu disse, com ar divertido. — Você pode pegar alguma coisa na geladeira, se sentir fome.

             Ela girou o corpo de frente para mim, assentindo animadamente.

             — Humhum.

             Nossos olhos estavam um no outro.

             Engoli com dificuldade.

             — E se estiver com sono —, minha voz saiu trêmula. — Você pode ir dormir.

             Mas o que eu queria mesmo dizer era “fique aqui até eu voltar, você acha que é possível fazer isso?”

             — Ok. — ela respondeu.

             Por um momento eu hesitei em ir. Em momento algum me esqueci da situação dela, e era exatamente nisso no que eu estava pensando, em como o tempo corre. E hesitei de novo. E de novo. E de novo.

             Alícia me olhava especulativamente. Seus olhos brilhavam de alguma coisa e ria de alguma coisa.

             — Você não estava indo tomar banho?

             Não percebi que eu tinha parado de andar.

             Eu a olhava, e então baixei os olhos e inclinei a cabeça. Rindo.    

         

        Saí do banho só com a calça, o cabelo lavado, a toalha secando em volta do pescoço.

             Quando voltei para a sala, Alícia não estava sentada no sofá assistindo televisão, me esperando como interiormente desejei que estivesse. Talvez no quarto, dormindo e sonhando a essa altura, ou apenas pensando no longo dia que teve. Gastei uns quinze minutos no banho, então penso que era o suficiente para ela estar fazendo uma dessas coisas agora.

             Joguei-me no sofá onde eu dormiria essa noite, sobre o travesseiro e a coberta. Vesti a blusa e depois procurei o controle da televisão que descobri perdido debaixo do cobertor, que Alícia escondeu, e liguei a televisão. Baixei o volume para não atrapalhar Alícia no cômodo ao lado. Estava ciente das imagens da televisão passando pelos meus olhos, mas eu não era capaz de prestar atenção nelas. Estava meio que devaneando sobre o que Alícia poderia de fato estar fazendo agora. Ela não poderia estar dormindo. Como poderia?

             Queria poder bater na sua porta e perguntar se ela estava precisando de alguma coisa, mas não era uma boa ideia eu estar parado na porta do quarto que uma garota estava dormindo. Meu Deus, era tão difícil não pensar nisso quando Alícia estava a apenas algumas paredes de distância de mim.

             Percebi um movimento e mexi no sofá para olhar pra trás. Alícia saía da escuridão da sala para vir até a claridade de onde eu estava. Eu me sentei direito quando sentou ao meu lado, o cheiro do xampu e do sabonete me atingindo como gás lacrimogêneo. Meu coração batia rápido, e quis me afastar ou aumentar o volume da televisão para ela não escutá-lo, para não mostrá-la a instabilidade que me tornava quando estava perto.

             — O que você está vendo? — ela perguntou, a um centímetro de distância e olhando fixamente para o meu rosto.

             — Nada importante. Apenas dando tempo para o sono vir. — eu respondi, sem desviar os olhos da televisão. Não sei por que eu achava que não era capaz de me segurar quando fosse olhar diretamente para ela.

             Alícia dobrou as pernas e as deitou no sofá. Ela estava sentada perto o suficiente para eu querer passar o braço em volta do seu ombro e puxá-la junto a mim. Parei o braço no meio do caminho atrás dela ao hesitar se essa seria uma boa ideia, e então ela me olhou e deu um sorriso desajeitado. E foi neste exato momento que senti todo o meu esforço de antes ir por água abaixo agora.

             Não quero ser o tipo de pessoa que deixa momentos importantes escapar dos dedos como água.

             — Estive pensando.

             — Hum?

             — Acho que eu estava sendo cruel com nós dois ao sugerir que fôssemos amigos. — eu disse. — E acho que não quero mais ser o seu amigo, Alícia.

             O mundo apagou. E tudo ficou escuro. Era como se os cosmos tivessem se alvoroçado a esse momento e estivessem prontamente nos assistindo agora. Dentro daquele enorme silêncio eu sentia meu coração bater em cada parte do meu corpo e o sangue circulando em desespero, algum fluído incinerando dentro de mim e alguma coisa avassaladora criando forma.

             Seus olhos brilhavam ao olhar para mim, provavelmente por causa do reflexo da televisão.

             — E a Carolina?

             — O que tem ela?

             — Agora você me responde, não é?

             — Não tenho nada com ela. — respondi, a boca seca. — Nunca tive.

             — É, mas aquele dia no estacionamento...

             — Você pode me fazer um favor daqui pra frente? Você pode parar de falar em momentos inapropriados?

             Levantei a mão, e ela foi da sua testa ao longo do seu rosto, pausando na bochecha onde as covinhas costumavam aparecer para depois parar o dedo na sua boca, passando-o de um lado e depois o outro. Alícia congelou no lugar, seus olhos o tempo todo fixados nos meus, e queria que ela me detivesse quando sabíamos o quão longe isso poderia ir. Mas ela permaneceu imóvel, talvez porque queria testar qual seria meu próximo passo. Os reflexos rápidos da televisão era a única luz que nos iluminava, era isso e os relâmpagos lá fora. Respirávamos em êxtase, pálidos.

             Fugir parecia uma estúpida e longínqua ideia agora.

             Permiti que meu corpo se deslocasse e fosse pra onde realmente queria ir. E era como se o mundo estivesse acabando, nossa cidade desmoronando à nossa volta e não nos restasse mais nada nesse mundo para se preocupar. Beijá-la era como se a estivesse usando como um saco de areia descontando alguma coisa, descarregando toda a frustração e preocupação como se ela fosse um psicanalista e eu sentado num divã. Estava ligado a 120 Volts. Quando recuperei o fôlego, a beijei de novo. Como o primeiro beijo de um casal e o primeiro depois de tanto tempo desde que disse adeus pela última vez. Como algo tão bom que não importa quantas vezes o tenha, nunca sentirá realmente saciado.

             Recuei, lentamente. Como um predador com crise de consciência, dando-lhe tempo favorável para fugir e se esconder num lugar que ele jamais pudesse encontrá-la.

          

        Levamos duas horas e meia para chegarmos à praia, quando a expectativa era de três. Na estrada, o vento batia no nosso rosto enquanto a música tocava no player do carro; a estrada sem fim e plana, aparecendo planície e mais planícies, e com a mesma rapidez desaparecendo.

             Chegou a noite, e nós ainda estávamos lá.

             Eu e Alícia andávamos lado a lado; ela tinha tirado o tênis, para sentir a textura da areia sob os pés, e passou a carregá-lo na mão. Nós víamos o céu tocando o mar. Em pé, nós parecíamos maior do que ele.

             Eu queria poder perseguir a sua borda para saber até onde vai dar o seu fim só para não ter de voltar para casa e enfrentar o que nos esperava. Mas eu sabia que não importa quantas voltas eu desse, em algum momento eu teria que voltar.

             Uma rajada de vento passou, tocando o cabelo da Alícia suavemente e, lá estava a borda do seu vestido esvoaçante, permitindo-se levar por ele.

             Alícia sentou-se em um lugar qualquer próximo a mim.

             À nossa frente, a vastidão do mar. E acima dele, a superlua. Ela geralmente não é tão grande e tão brilhante assim. Uma verdadeira pintura, como se ela tivesse sido desenhada por um pintor sentimentalista e a tela fosse o próprio céu.

             E me perguntei se algum dia nós teremos paz. Se chegará um dia que não teremos nenhum tipo de interferência nos impedindo de seguirmos o curso natural das coisas.

             Alícia juntou as pernas e prendeu as mãos em volta delas. E como se o universo estivesse piscando para nós, uma estrela cadente passou fugaz e se escondeu no horizonte.

             Foi de certa forma mágico. Como poderia não ser? – apesar de ser possível apenas porque coincidentemente estamos numa época que meteoros estão mais próximos da Terra e numa posição propícia do horizonte de isso acontecer, mesmo isso sendo rochas – rochas! – e não estrela. Era a mesma coisa que estar consciente de assistir a um filme e ainda assim se emocionar, porque naquele momento, a gente acredita no que está vendo. É uma questão de ponto de vista. Você acredita naquilo que quer acreditar, e seu cérebro recebe o comando e reconstrói a ilusão que você construiu. A essa altura, o inconsciente pouco se importa se é real ou não.

             Então é mágico porque decidi que era. Criei um mundo fantástico e coloquei Alícia bem no centro dele e presenciar tudo de bom que nele há para em momento algum desejar ir.

             Alícia arfou de surpresa.

             — Você viu? — ela disse empolgadamente, virando-se pra mim e depois para olhar o céu novamente.

             — Sim. — respondi, impassível. — Você sabe o que eles dizem sobre ela?

             Ela me olhou.

             — A estrela cadente? Claro que eu sei!

             — Então faça um pedido.    

             Alícia não evitou rir, sacudindo a cabeça.

             — Não!

             — Por quê? — eu perguntei, seriamente.

             — Por que está fazendo isso? Você não acredita nessas coisas.

             Realmente, mas Alícia não precisava saber disso quando fui eu que inventei toda essa história furada. Às vezes, a gente precisa dizer coisas para alguém mesmo não acreditando naquilo.

             — Eu vou fazer também. — eu disse, incentivamente.

             Não havia uma regra específica que determinasse como fazer isto, então Alícia apenas fechou os olhos, e pensou que era assim que deveria ser feito. A duração do meu pedido durou apenas um pouco mais de um longo piscar de olhos, ou como a mesma duração de uma estrela cadente cruzando o céu. Eu não estava pedindo muito.

             Quando abri os olhos, Alícia olhava para mim.

             — O que você pediu?

             — Você sabe —, dei de ombros. — Mais dinheiro, um bom emprego.

             Alícia balançou a cabeça repreensivamente.

             — Você é tão materialista.

             — E você?

             — A mesma coisa também. — e depois olhou o céu cheio de estrelas. Seus olhos estavam concentrados, como se estivesse esperando encontrar alguma coisa nele. E então apontou para o céu, tentando alcançar uma estrela com a mão, como aquele videoclipe da música Fly Away From Here – o que era tão inebriante. Eu olhava para a Alícia. Contemplava-a na verdade, como se olhá-la fosse a coisa mais prazerosa para fazer ao invés de olhar o céu limpo e as estrelas daqui, a lua brilhante refletindo no mar ou o próprio oceano. Olhá-la parecia melhor do que todas essas coisas juntas.

             E eu pensei ao olhá-la assim que eu deveria a ter encontrado há mais tempo, que só uma vez eu pudesse ir contra o jogo que determina quando seremos movidos, e a encontrar há mais tempo.

             — Por que está me olhando assim? — ela disse numa voz baixa, sem olhar-me. Baixou a mão, porque cansou.

             Parei um instante para ouvir o som que as ondas faziam ao se espraiarem-se na areia.

             — Estava apenas pensando.

             — Em quê? — ela perguntou, ainda olhando o céu.

             E eu poderia dizer muitas coisas, mas ao invés, eu disse:

             — Se valeu a pena você ter gastado seu dia livre para estar aqui.

             Eu ri.

             Alícia me olhou e riu também, um sorriso melancólico que começava como se eu fosse uma velha fotografia encontrada esquecida no fundo da gaveta sem força para passar disso.

             — Obrigada. — ela disse e mexeu, fazendo as pedrinhas da areia se bagunçarem debaixo do jeans e se aproximou, aconchegando-se em um espaço confortável que encontrou no meu peito. Ela esteve ali, encolhida, envolvida nos meus braços como se soubesse de algum mal à espreita e eles fossem capazes de protegê-la de tudo.

             Talvez fosse.

             Naquela noite, quando fechei meus olhos e tentei acreditar que meu desejo se realizaria se eu apenas pedisse com fé, eu tinha pedido para Alícia não ser tirada de mim, mesmo que daqui a um ano ou um mês eu a perdesse para outro cara, ou a vida e os afazeres da vida e do que é crescer se encarregassem por si só de nos separar. Eu só não queria perdê-la agora.

             Gastei meu pedido para pedir que esse agora fosse mantido por mais um pouco de tempo.

          

        Estava deitado com a Alícia em cima da sua cama no hospital. É claro que não podia fazer isso, mas quando uma pessoa está numa situação como a Alícia, você não consegue negar-lhe nada. Você simplesmente burla as regras e não se importa.

             Ela acabou dormindo nos meus braços enquanto eu me encontrava sozinho no quarto, pensando. Foi quando o telefone tocou. Levantei com cuidado da cama, tirando delicadamente meus braços debaixo da sua cabeça. Ela se mexeu quando fiz isso e acabou acordando, de qualquer jeito.

             — Aonde está indo, fujão?

             — Vou até ao corredor. — eu disse, colocando os pés com meia para fora da cama. — Preciso atender ao telefone.

             Olhei para Alícia.

             — Você não precisa ir ao corredor para atender ao telefone.

             E ela riu, um riso que sei que ficaria gravado em pedra escondido numa caverna para pessoas de outras civilizações encontrarem. Então mexeu um pouco, aconchegando sua cabeça melhor no travesseiro.

             Calcei o tênis, amarrei o cadarço e andei até a porta.

             Eu tinha desligado a ligação do meu pai para não acordá-la e retornei para ele enquanto andava para o final do corredor. Virei. Encostei as costas na parede. Suspirei, e foi quando percebi que estive tenso todo esse tempo que estive com a Alícia.

             Ele atendeu.

             — Oi, pai. — eu disse, ansioso. — Você me ligou.

             — Sim, para avisar que encontraram um doador para a Alícia. Ele era um garoto saudável e forte de dezessete anos. Já foram feito todos os exames clínicos e estão transportando o órgão para o hospital para a realização do transplante agendado para amanhã.

             E me perguntei o que isso significava. O que isso realmente significava.

             Apoiei cambaleante as costas na parede e escorreguei até encostar no chão. Para quem passasse por mim exatamente agora pareceria que eu estava desolado. Mas eu estava o oposto disso. Estava feliz, e continuava a me sentir assim mesmo que isso implicasse a morte de alguém. Alguém morreu para que outra pessoa pudesse viver uma vida plena e feliz, para alguém ter uma chance de fazer tudo o que puder e o que quiser. E se eu soubesse que numa despretensiosa manhã de maio teria acabado assim, teria dito a Alícia para não se preocupar, porque no final teria dado tudo certo. Eu teria dito isso para mim também.

             Então lembrei que eu deveria avisar a Alícia e de repente levantei. Eu poderia deixar essa responsabilidade aos seus pais, mas eu estava me permitindo ser irrestritamente egoísta agora.

             Me senti atordoado, como se eu acabasse de tentar apanhar borboletas no ar sem sucesso, ou como alguém que leva uma pancada bem forte na cabeça, ou como alguém que acaba de receber uma visita de outro mundo. Minhas mãos tremiam e minhas pernas também. E então eu soube que é essa a sensação de quando você recebe o telefonema; e não importa quantas vezes pensei nisso, descobri que nunca estive realmente preparado. Passei a mão pelo rosto ao olhar para um ponto indefinido no teto antes de correr de volta para a Alícia.

         

        Alícia estava cochilando quando entrei no quarto e a chacoalhei. Nenhum sonho era tão importante quanto o presente que estava sendo entregue a ela. Ela abriu os olhos, um pouco sonolenta, procurando nos meus olhos a explicação do porquê disso. E então eu disse.

             Disse que ela terá um coração. Um de verdade, um estável, um que não corra o risco de não funcionar. E disse que ela poderá andar na montanha russa agora, e que ela estava certa em não querer perder tempo.

             Ela disse coisas também. Disse em como as coisas extraordinárias realmente podem acontecer e que Deus se lembrou dela. E que nada do que fez à espera disso foi em vão. Absolutamente nada.

             Não fiquei sozinho com ela tempo suficiente que eu gostaria.

             Seus pais, que estavam no subsolo comendo alguma coisa, entraram no quarto e a encheram de abraços e palavras otimistas e os três disseram tanta coisa. O médico e uma enfermeira entraram logo em seguida, dizendo que estavam confiantes e que amanhã tudo terá dado certo.

             Esse Amanhã não deveria se atrasar em vir quando estava sendo tão esperado.

             Estava todo mundo aqui, menos o Vitor. Provavelmente ele deveria estar envolvido com alguma outra coisa importante, talvez tenha conseguido o emprego de mecânico nessa oficina de ricos. Que ele ficasse lá. Ninguém parecia sentir a falta dele agora.

             Alícia ria.

             Eu ri, o médico riu, os pais dela riram. O mundo parecia rir.

             E foi com o rosto deles sorrindo que eu fui dormir naquela noite. E não pensei na demora do sono em vir, porque a gente não se importa com uma insônia desde que fosse uma insônia feliz. Fiquei repassando o momento desde que entrei naquele quarto pela segunda vez desde a hora que fui embora. O rosto de seus pais se reprojetaram na minha mente também, parecendo que a própria personificação da felicidade era aquilo que estavam sentido naquele momento. E por um momento a reconheci também.

             Dessa vez, meus medos não se concretizariam.

          

        Saí de casa – a do meu pai. Eu voltei, mas só para buscar algumas coisas que eu havia deixado para trás –, levando a caixa com os meus pertences para o carro.

             Encontrei um lugar para morar que não seja a minha antiga casa ou a da minha mãe. Um apartamento pequeno. Era o que eu podia pagar. Tenho um trabalho renumerado agora.

             Quando saí de casa, pensei que estivesse agindo por impulso e acreditava que ainda voltaria para casa quando as coisas se tornassem difíceis e fora de controle, que eu estava sendo apenas mimado. Mas não voltei. E não acho que se tratava de pirraça. Descobri que a vida é muito curta para viver uma vida que não é minha. E mesmo se eu tivesse mil vidas depois de outra, não pensaria diferente. É bom quando não precisamos fazer esforço para ser o que não somos, para viver uma vida que nunca pertenceu a nós realmente. E se esse é o preço que eu tenho que pagar, tudo bem. Tudo bem pagar o preço por uma coisa que eu acho que vale a pena.

             Ajeitava as caixas dentro do porta mala quando um carro veio cantando pneu e freou ao lado do meu. Saí de trás do porta mala aberto para olhar quem era.

             Vitor?!

             Ele bateu a porta do carro e andou até a mim segurando um violão com capa pela alça.

             Apontou a cabeça para uma mala sobrando no chão.

             — De mudança?

             — Sim. O que você está fazendo aqui?

             — Era isso o que eu ia dizer a seguir. — ele disse, estendendo o violão para mim. — Eu me sinto em dívida com você por tudo o que seu pai fez por nós, e talvez te oferecer isso me deixaria quitado. Não gosto de dever nada a ninguém.

             Hesitei. Peguei o violão da sua mão.

             — E o que seus pais vão fazer agora?

             — Eles vão voltar para Bela Vista, como era suposto que eles fizessem.

             Senti um estremecimento, arrependendo-me da pergunta.

             Seus pais tocaram suas vidas, como se deve ser, e apesar de que estivessem conformados, sempre haveria um buraco; e acho que eles sabem assim como eu sei, que esse buraco sempre estará lá, num lugar profundo do seu peito que nunca será preenchido. E me pergunto todos os dias ao ver essas coisas como Alícia pôde ir e os deixar aqui desse jeito.

             Aquela ida à praia só existiu na minha cabeça. Nunca aconteceu realmente. Porque quando coisas ruins acontecem, acontece tão rápido que você não tem tempo o suficiente para se despedir.

             — Mas eu não vou voltar com eles. — Vitor continuava dizendo. — Vou procurar algum lugar para eu viver aqui.

             Bastante conveniente.

             — Você pode vir morar comigo, se quiser. Estou precisando mesmo de alguém para dividir o aluguel.

         

        Eu fui ver o professor Wilson. Eu não queria voltar à Faculdade de Villanova outra vez, mas precisava vê-lo. Sabia que estava deixando algo pra trás e que deveria voltar para dizer adeus.

             Estava sentado no banco colado à parede da sua sala quando ele vinha no corredor, segurando na mão sua velha pasta e um livro de Física na mão livre. Só de reconhecer aquele livro como parte do programa de estudo me deu dor de cabeça.

             A expressão dele se iluminou quando me viu.

             — Pensei que você não voltaria mais.

             Professor Wilson parou na minha frente. Eu não tinha me levantado para cumprimentá-lo, ou apenas por levantar. Não era nossa intenção que a conversa fosse tão breve. Eu estava com as mãos no fundo do bolso e minhas costas encostadas rigidamente na parede.

             — Na verdade, eu realmente não voltei. — eu disse para ele. — Só vim me despedir.

             Professor Wilson passou o livro para a outra mão e sentou ao meu lado.

             — É?

             — É. — confirmei. — Estou decidido fazer o que eu gosto mesmo se daqui a trinta anos eu possa dizer: “Onde eu estava com a minha cabeça?”

             Professor Wilson, o velho professor Wilson, sorriu de satisfação.

             — Fico feliz por você. — ele disse, batendo levemente no meu ombro. Como era uma espécie de despedida, não permiti que materializasse no meu cérebro que esse toque fosse ruim. — Algumas pessoas levam quase uma vida para decidir por isso e algumas nunca chegam. Você é abençoado.

             Perguntei-me que tipo de bênção é essa que ele se referia.  

             E lhe perguntei se falava por experiência própria, se por acaso ele não estaria satisfeito com o seu trabalho. Ele me respondeu se alguém realmente está. Fui mais direito. Ele me disse que pelo menos fazia algo que estava próximo do que gostava.

             — Você está diferente. — ele observou.

             — Diferente como?

             — Como se tivesse encontrado o que vinha a tanto tempo buscando. — ele respondeu. — Sabe a expressão “Carpe Diem”? Era isso o que eu estava tentando te mostrar todo esse tempo. Vá e torne a sua vida extraordinária, Gabriel. É isso o que todos nós fomos destinados a fazer.

         

        Abri o violão da Alícia. O coloquei no canto do cômodo e afastei, sentando de volta na cama. Ferrugem estava deitado aos meus pés com suas orelhas abaixadas, e voltei a olhar o violão. Precisava tomar uma decisão, e talvez encará-lo me ajudasse a decidir.

             Nunca ouvi falar de alguém que tenha recebido um embrulho de presente grande e bonito e entregado a outra pessoa, nunca vi alguém esperar tanto tempo por alguma coisa e no final simplesmente se entregar. Talvez as coisas funcionem exatamente como previu a lei de Murphy. Que se algo predeterminado tem que acontecer, acontecerá.

             Vitor saiu do banho com uma toalha cobrindo sua cintura e cruzou a sala. Ele geralmente desfilava assim pela casa, se não era assim, era de cueca e sem camisa. Chegou um tempo que eu deixei de me importar.

             — Olha —, a voz dele saiu entrecortada quando vestiu a camisa. — Eu vou trazer uma garota hoje, então se você puder ficar fora um tempo. Você sabe, para nos dar liberdade.

             Não protestei quanto ao fato de eu estar sendo colocado pra fora da casa só porque Vitor teria um encontro hoje. Eu sabia de todas essas coisas que poderiam acontecer se um homem viesse morar comigo nesta casa pequena.

             Vitor era um bom colega de quarto. Eu quase não o via por aqui, deve ser por isso, então ele saía cedo e só voltava de madrugada. E também porque tenho trabalhado muito, então não nos encontramos frequentemente como as pessoas que moram juntas costumavam se encontrar. E eu só estava aqui hoje porque tirei o dia de folga.

             Tenho vivido a vida para depois viver o sonho.

             — O que está fazendo aí? — ele me perguntou, olhando-me com os braços sobre os joelhos, as mãos caídas no meio das pernas vestidas de jeans e os pés com tênis. E correu os olhos para o violão à minha frente.

             — Apenas pensando.

             Depois sentou na cama para calçar o tênis.

             — Não vai sair? — ele perguntou, parecendo incomodado com a minha posição diante do violão. — Você não tem amigos para ver, ou um lugar para ir?

             — Na verdade, eu vou sair também.

             Ele passou desodorante, escovou os dentes, terminou de se arrumar e depois saiu para o seu encontro. Quando bateu a porta, o barulho do tráfego e da vida ficou banido do outro lado, e enquanto que pra mim o tempo parece ter parado aqui dentro, o mundo lá fora continuava a girar e a girar.

             Talvez eu troque de emprego – ouvi falar que ser barman nesse bar ganhava mais do que servir pessoas. Não me importo de passar a vida assim, desde que eu não me torne em um homem igual ao meu pai.

             Talvez eu tente faculdade de música.

             Talvez eu pare de fumar quando estiver nervoso.

             Talvez eu chame meu pai para vir me visitar qualquer dia desses. E a Susie também, mas vai ser um pouco difícil; ela está morando do outro lado da cidade agora.

             Acabou que estava falando a verdade ao dizer que na minha casa não tinha nada que a interessasse além de mim. Não que em algum momento eu chegasse a ter dúvida quanto a isso, mas algumas coisas por mais certas que sejam, precisam ser testadas.

             Olhei o relógio: 19h30min.

             Passei a mão no cabelo pra trás e coloquei o chapéu. Levantei da cama e peguei meu violão. Espalmei a mão no topo da cabeça do Ferrugem para me despedir quando alcancei a porta; ele sempre esperava pela despedida, com seus olhos brilhando, exatamente o mesmo olhar de quando eu chegava da rua ou de quando o levava para sair. Na verdade, era isso o que ele estava esperando.

             — Não dessa vez, amigão.

             Tranquei a porta do apartamento e saí para a rua.

             Talvez depois de hoje eu possa falhar e ser atormentado a vida toda por isso. Ou o contrário, e eu serei tudo o que desejei ser. Só é irônico como às vezes temos que despedir de algumas pessoas para termos coragem de tomar decisões importantes.

         

        Sentei no banquinho do bar Irmãos Silva e encostei o violão deitado em cima da coxa da perna.

             Para essas pessoas que estavam aqui, eu era só um cara com um violão na mão e talvez com uma bela voz como todos os outros que já passaram por aqui antes. Estar aqui para elas era algo casual, mas não era assim para mim. Não hoje. Nem em outro dia qualquer depois desse.

             A luz se apagou.

             Um casal apaixonado deitados num campo verde com o sol fraco da manhã protegendo-os da realidade lá fora. Um passeio de bicicleta em uma rua plana e sem tráfego com os braços bem abertos. Um pequeno morro. E uma descida brusca. Uma chuva fraquinha, e depois mais forte, e então os relâmpagos. E finalmente, o inevitável; a tempestade. A música termina como se deve ser: com o final sereno que nos leva a pensar num monte de coisas.

             Houve aplausos. Muitos deles.

             E questionei o sentido de oferecer uma apoteose se o motivo não está aqui para ver.

             Uma coisa ela tinha razão a respeito disso; quando você está aqui, qualquer indício de insegurança desaparece. Aqui, posso sentir meu futuro me esperando ansiosamente, lá à frente, sussurrando: “venha me encontrar. Tenho coisas boas reservadas para você”. E então, um dia, eu estarei em cima de um palco de verdade e terei gente chamando o meu nome, uma multidão esperando para ouvir minha voz. Farei o que vim para fazer, como um ser predestinado.

             Meus medos de três meses atrás parecem bobos agora. E realmente não sei por que pensei que nunca poderia fazer algo como isso.

             Neste milésimo de segundos, imaginei que Alícia estivesse aqui.

             E então ela estava. Alícia está sentada ali, de frente para mim, e então acenou. E claro, ela sorriu aquele sorriso espetacular, um sorriso que soava como clarão de sol penetrando as rachaduras das nuvens logo depois de a chuva ir.

             Desci as escadas e sentei nos primeiros bancos da frente. Mas ao invés de esperar o restante das apresentações acabarem, guardei o violão de volta na capa e levantei.

             Passei pela Alícia. Ela levantou com um pulo da cadeira que sentava e encontrou comigo na porta.

             Era ela mesma. O mesmo sorriso, o mesmo olhar brilhante e sonhador, exatamente a mesma voz.

             — Isso o que você fez foi in-crí-vel. — ela disse animadamente, virado o corpo todo para mim, saltitando ao meu lado enquanto passávamos a porta do bar. — Foi assim como você imaginou que seria?

             Balancei a cabeça negativamente.

             — Foi muito além.

             Porque coisas boas como isso não dá para imaginá-las.

             — Isso quer dizer que você vai vir mais vezes, então? — ela perguntou, enquanto andava ao meu lado na rua e ultrapassávamos carros e mais carros estacionados.

             — Definitivamente sim.

             Alícia pareceu satisfeita.

             — Eu não te disse?

             Era esse o momento. Eu só a trouxe de volta pra poder lhe dizer:

             — Sim. Você estava certa esse tempo todo, Alícia.

             Ela mostrou os dentes pra mim em um sorriso, o maior que já deu, e então nós andamos juntos debaixo da Lua, lado a lado, em direção ao meu carro no final da rua.

 

                                                                                Viviane L. Ribeiro  

 

                      

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