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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CORPORAÇÃO CREPÚSCULO / Anthony Horowitz
CORPORAÇÃO CREPÚSCULO / Anthony Horowitz

 

 

                                                                                                                                   

  

 

 

 

 

A HISTÓRIA ATÉ AGORA...

Em Estrela do Mal, Matt e Pedro não conseguiram fechar o segundo portal que haviam encontrado no deserto de Nazca. E os Antigos — velhas forças do mal — finalmente penetra­ram no mundo.

Tendo perdido essa batalha, Matt percebeu que sua única esperança era encontrar os outros três Guardiões; dois garo­tos e uma garota. Juntando-se, finalmente teriam força para derrotar os Antigos e salvar o mundo do caos e da destruição.

Corporação Crepúsculo, o terceiro livro da série, começa em junho, algumas semanas antes do fim de Estrela do Mal. Os Antigos conhecem o poder dos Cinco — e seus servidores já estão procurando os Guardiões, decididos a mantê-los sepa­rados.

Há três mundos neste livro. O mundo atual. O mundo como era antes da Era das Trevas, há aproximadamente 10 mil anos. E um estranho mundo dos sonhos que liga os dois.

 

 

 

 

Os dois homens na limusine preta já haviam circulado o tea­tro uma vez. Agora paravam do outro lado da rua, diante da porta principal. Lá fora a temperatura estava por volta de 26° C. Mas eles haviam ligado o ar-condicionado no máximo e o carro parecia uma geladeira. Ficaram sentados em silêncio. Os dois trabalhavam juntos por muitos anos e se desprezavam mutua­mente. Não tinham nada a dizer um ao outro.

O teatro ficava na extremidade norte de Reno, Nevada. Era um prédio quadrado, de tijolos vermelhos, com uma única porta e sem janelas, e poderia ser um banco ou talvez uma capela, se não fosse o anúncio de néon sobre a porta da fren­te. Ali deveria estar escrito TEATRO-CINEMA PLAZA RENO, porém mais de metade das letras havia pifado, de modo que, enquanto os dois homens olhavam do ponto onde estavam parados na rua Virgínia, apenas duas palavras piscavam para eles através da luz do dia se desbotando: TEM AZAR.

Não era exatamente o convite mais atrativo numa cidade dedicada ao jogo, onde a maioria dos prédios parecia ser de cassinos e onde os hotéis, os bares e até as lavanderias eram cheios de máquinas caça-níqueis. Apesar do nome, o Teatro-cinema Plaza Reno não apresentava uma peça desde o dia em que fora construído. Em vez disso servia como lar temporário para uma longa linhagem de artistas de segunda classe: can­tores e dançarinos, mágicos e comediantes que haviam sido famosos — brevemente — muito tempo atrás, mas que des­de então não eram mais conhecidos. Era o tipo de gente que se apresentava noite após noite, tentando divertir as platéias que só pensavam no dinheiro que tinham vindo ganhar ou, pior, no dinheiro que já haviam perdido.

A próxima apresentação iria começar dentro de uma hora. Os dois homens já haviam comprado os ingressos — mas que­riam ver algo antes de entrar. Só precisaram esperar alguns minutos pela recompensa. O homem no banco do motorista se enrijeceu de repente.

— Aí estão — disse ele.

Dois garotos haviam acabado de sair de um ônibus. Es­tavam andando pela calçada, vestidos casualmente com jeans largos e camisetas, um deles carregando uma mochila. Ficou imediatamente óbvio que eram gêmeos, com aproximada­mente 14 anos. Ambos eram muito magros — na verdade, pareciam desnutridos. O cabelo era preto e totalmente liso, indo até o pescoço, e ambos tinham olhos castanho-escuros. Um era cerca de 2 centímetros mais alto e alguns quilos mais pesado do que o outro. Ele disse alguma coisa e o outro garoto riu. Então viraram a esquina e num instante haviam sumido.

— Eram eles? — perguntou o passageiro.

— Eram — confirmou o motorista.

O primeiro deu de ombros.

— Não me parecem muito especiais.

— É o que você sempre diz, Sr. Hovey. Mas nunca se sabe. Talvez esses sejam os garotos...

— Vamos tomar alguma coisa.

Os homens tinham uma hora para passar, mas havia bares suficientes em Reno e além disso eles podiam jogar algumas moedas numa máquina. Fora um dia longo. O motorista olhou pela última vez para o teatro e assentiu. Estava com uma sensa­ção boa. Desta vez iriam encontrar o que estavam procurando.

Engrenou o carro e saíram.

O show em cartaz no Teatro Reno — estava ali durante os últimos seis meses — chamava-se O circo da mente. Havia um painel de vidro perto da porta, e atrás dele um cartaz em pre­to-e-branco mostrando os olhos e a testa do que poderia ser um hipnotizador ou um mágico. Suas mãos, separadas do cor­po, flutuavam acima dele, com os dedos apontando para o espectador. Estava escrito:

 

DON WHITE APRESENTA

O CIRCO DA MENTE

Na vida há muitas coisas que não podem ser explicadas. Poderes que existem no limite de nossa consciência. Você ousa viajar para o mundo da paranormalidade?

Espante-se! Maravilhe-se!

Você nunca esquecerá este show.

APRESENTANDO

Swami Louvishni — faquir indiano mundialmente famoso Bobby Bruce — hipnotizador das estrelas

Sr. Marvano — mestre ilusionista

Zorro — especialista em fugas

Scott e Jamie Tyler — gêmeos telepatas

Horários: 19h30 e 21h30 Ingressos: $35 — $55 (idosos pagam meia)

 

Às 19h20 daquela noite um pequeno grupo havia se reunido na calçada, esperando que a porta se abrisse. Eram umas cin­qüenta pessoas. A maioria fora atraída ao teatro por panfle­tos entregues pelos recepcionistas dos hotéis onde estavam hospedadas. Os panfletos prometiam “Cinco dólares de des­conto — só esta semana”. Na verdade havia desconto de cin­co dólares toda semana. Os mesmos panfletos haviam sido entregues durante todo o tempo em que O circo da mente era apresentado. E os recepcionistas só o recomendavam porque tinham sido pagos para isso. Eles receberiam cinco dólares por cada ingresso vendido.

Os espectadores já estavam começando a se perguntar se o show iria realmente espantá-los ou maravilhá-los ao menos um pouquinho. Os tijolos empoeirados, o letreiro quebrado e o cartaz único, de aparência amadorística, não eram pro­missores. Por outro lado, não havia muitas outras coisas que poderiam fazer em Reno por trinta dólares, e provavelmente era tarde demais para pedir a devolução. Houve um barulho alto e a porta se abriu, empurrada de dentro. Como se fos­sem um só, os espectadores avançaram. Havia algumas bebi­das e caixas de doces à venda no saguão, mas eram caros e ninguém comprou nada. Quase contra a vontade, as pessoas apresentaram os ingressos e passaram por um arco estreito entrando no auditório principal.

O teatro possuía duzentos lugares, em forma de ferradura ao redor de um palco de madeira elevado. Uma cortina ver­melha, velha e desbotada, estava fechada. Exatamente às 19h30 o sistema de som irrompeu com um jorro de música pop e a cortina se levantou revelando um homem moreno e barbudo usando óculos escuros e turbante.

— Boa-noite, senhoras e senhores — anunciou ele. — Meu nome é Swami Louvishni e tenho o enorme prazer de estar aqui, vindo de Calcutá.

Nada disso era verdade. Era apenas a primeira de muitas mentiras.

O faquir indiano, claro, era fajuto. Seu nome verdadeiro era Frank Kirby e ele não tinha nem mesmo passado de Nova York. Havia tirado o nome artístico de uma história do Tintim e os truques de um livro de biblioteca que havia roubado aos 19 anos. Bobby Bruce era um ator desempregado e nunca chegara perto das estrelas. O Sr. Marvano, o ilusionista, era Frank Kirby de novo, mas sem a barba e os óculos e usando outra voz. Zorro era um bêbado.

A platéia desta noite não estava lá muito entusiasmada. O verão já havia chegado com força total, as brisas quentes vinham do deserto e o ar-condicionado do prédio só fun­cionava com meia carga. O público estava caindo de sono nas poltronas. Bateu palmas educadamente quando o faquir se deitou em sua cama de pregos e quando o especialista em fugas saltou de um baú trancado. Mas mal reconheceu a pre­sença do ilusionista, mesmo quando ele fez surgir subitamente — numa jaula vazia — um cachorro grande e ofegante. Tal­vez as pessoas soubessem que em Las Vegas, a apenas algu­mas centenas de quilômetros dali, havia mágicos que tinham feito a mesma coisa com elefantes e tigres brancos.

Quando o último número começou, a platéia obviamente já estava farta. Algumas pessoas haviam saído. Mas quando a música mudou, as luzes diminuíram e depois aumentaram pela última vez, alguma coisa mudou dentro do Teatro Plaza Reno. Isso acontecia toda noite. Era como se as pessoas sen­tissem, sem que precisasse ser dito, que finalmente receberiam um pouco do que o cartaz havia prometido.

Os gêmeos apareceram, agora vestindo calça escura e camisa preta aberta no pescoço. O mais alto olhava para a claridade das luzes com hostilidade sem disfarces. Tinha apa­rência de brigão de rua e, de fato, havia um grande hematoma perto de um dos olhos. 0 irmão era, de algum modo, mais amigável, mais receptivo. Era possível que gostasse de estar ali. Foi ele que falou:

— Boa-noite. Meu nome é Jamie Tyler. — Fez um gesto para o outro garoto, que não se mexeu. — E este é o meu irmão, Scott. Desde que posso me lembrar, sabemos exata­mente o que se passa na cabeça do outro. Isso não facilita quando um de nós está tentando arranjar uma garota...

Não eram palavras suas. Eram as palavras que lhe haviam ensinado a dizer e ele não achava a piada nem um pouquinho engraçada. Mas obrigou-se a sorrir. Os espectadores estavam prestando um pouquinho mais de atenção. Tinham visto o cartaz. Gêmeos telepáticos. Mas ninguém havia dito que se­riam tão jovens.

— Só recentemente descobrimos a verdade — continuou Jamie. — Não somente sabemos o que o outro está pensan­do. Somos verdadeiros telepatas, ligados um ao outro de um modo que a ciência não consegue explicar. E é isso que va­mos demonstrar para vocês esta noite. Começando com isto.

Enquanto ele estivera falando, um contra-regra havia tra­zido uma mesa com uma pilha de jornais. Havia vinte jornais diferentes, de todo o país. Também havia outros objetos de cena. Ele iria usá-los mais tarde.

Jamie pegou os jornais e foi até a primeira fila da platéia. Parou diante de uma mulher gorda, com cabelos frisados, calça de malha justa, cor-de-rosa, e uma camiseta onde estava im­presso “Eu amo Reno”.

— Poderia pegar um destes jornais? — pediu ele. — Pode escolher qualquer um.

A mulher estava com o marido. Ele cutucou-a e ela tirou um do meio da pilha. Era um exemplar do Los Angeles Times.

— Obrigado — disse Jamie. — Bom, este jornal tem vários cadernos. Por favor, escolha qualquer um e entregue ao seu marido.

A mulher fez isso. Escolheu o caderno Calendário. O ma­rido pegou-o.

— Por favor, rasgue uma página do caderno e passe para a pessoa que está atrás do senhor — instruiu Jamie.

Ele teve sorte porque havia alguém na fileira de trás. Em noites ruins, ele sabia, talvez tivesse de passar por três ou quatro fileiras para encontrar um terceiro espectador.

Um turista coreano, que viera com a mulher e a filha, se­gurou a página. Jamie esperou que ele entendesse inglês. Pegou uma caneta.

— O senhor tem uma página com mais de mil palavras de cada lado — disse. — Isso significa que tem pelo menos 2 mil palavras para escolher. Poderia, por favor, fazer um cír­culo numa dessas palavras? Pode ser uma manchete ou um anúncio. Não importa. A escolha é totalmente sua.

O coreano sorriu e murmurou algo para a esposa. Pegou a caneta e circulou alguma coisa, depois devolveu o jornal a Jamie. Jamie olhou-o. Leu sem emitir som.

 

A última moda em Los Angeles é o enterro ecológi­co. As celebridades estão fazendo fila para garantir que irão desta para a melhor respeitando o verde.

 

Uma palavra tinha um círculo ao redor. Ele olhou-a. No palco, Scott falou pela primeira vez.

— Enterro.

Jamie segurou o jornal na frente do coreano.

— É esta a palavra? — perguntou.

— É... É! — O homem estava atônito.

Pela primeira vez naquela noite os aplausos foram altos e genuínos. Tinha de ser um truque, claro. Tudo que a platéia havia presenciado eram truques. Mas como fora feito? Tanto a mulher de cabelo frisado quanto o marido haviam escolhi­do livremente. O homem atrás dela poderia ter escolhido qualquer palavra. Talvez os dois garotos tivessem microfones secretos. Poderiam estar em contato por rádio. Mas como isso ajudaria? Jamie não havia dito nada. Mal tinha olhado para a página.

Jamie já havia retornado ao palco quando os aplausos morreram.

— Gostaria de convidar alguém — disse ele. E apontou para o marido que já havia participado. — Poderia vir, senhor?

O homem subiu ao palco. Scott não se mexeu. Afora o mo­vimento quando havia falado, era como se fosse uma estátua. Um garoto esculpido em madeira. Mas Jamie foi se movendo, pegando o próximo objeto de cena, recebendo o homem.

— Vou vendar meu irmão — explicou. — E quero que o senhor se certifique de que ele realmente não consegue ver. Enquanto está aqui, eu gostaria também que o senhor verifi­casse que não há microfones escondidos. Nada em nenhum dos ouvidos dele.

O homem foi até Scott e passou um dedo atrás de cada uma das orelhas dele. Por apenas um segundo alguma coisa chamejou nos olhos do garoto. Era uma humilhação que ele tinha de suportar duas vezes por noite, toda noite — e nunca podia perdoar isso. Mas o sujeito não notou.

— Ele está limpo! — anunciou o homem.

Algumas pessoas riram. Estavam gostando daquilo. Que­riam ver o que aconteceria em seguida.

Sob a orientação de Jamie, o homem pôs duas moedas de encontro aos olhos de Scott. Eram antigas moedas inglesas de um penny, maiores do que as moedas modernas. Em se­guida ele foi vendado, e então, para terminar, um capuz pre­to foi posto sobre sua cabeça. Era como um capuz de carrasco. Cobria completamente os olhos, o nariz e o cabelo, mas dei­xava a boca aparecendo.

Jamie foi para a platéia. Parou junto de uma loura de ves­tido justo. O namorado da mulher estava sentado ao lado. Estava com a mão na coxa dela.

— Pode me dar alguma coisa de sua bolsa? — pediu Jamie.

— Você quer alguma coisa da minha bolsa? — riu a mu­lher, depois olhou para o namorado. Ele assentiu, dando a permissão, e ela pegou um pequeno objeto de prata. Jamie pegou-o e o segurou na palma da mão.

— É um chaveiro — disse Scott.

Jamie levantou o chaveiro para que todo mundo pudesse ver. A platéia aplaudiu de novo. Agora vários espectadores estavam falando, sussurrando uns com os outros, balançan­do a cabeça com incredulidade.

— Vamos tornar isso mais difícil — gritou Jamie. — Será que alguém tem um cartão de visita? Que tal o senhor?

Ele havia parado diante de dois homens sentados lado a lado. Até agora só havia notado que ambos usavam ternos de linho marrons, o que em si era estranho porque ninguém em Reno jamais se vestia com muita elegância. Por outro lado, ele sempre tentava procurar alguém de paletó quando chegava a essa parte do número. Segundo sua experiência, um ho­mem tinha mais probabilidade de ter uma carteira e, na car­teira, um cartão de visita. As mulheres demoravam mais tempo procurando nas bolsas. O número deveria durar 18 minutos. Se ultrapassasse, ele levava um tapa. Ou coisa pior.

Jamie esperou que o homem enfiasse a mão no bolso do paletó, e quando isso não aconteceu, olhou para baixo. Foi então que soube que havia cometido um erro. Nesse momento desejou ter ido a qualquer fileira, menos aquela. Jamie estive­ra lutando para levar o número adiante no calor úmido e su­focante do teatro. O ar-condicionado estava com problemas, como sempre. Mas a simples visão daquele homem foi como água fria no seu rosto.

Não somente porque ele era feio. Jamie havia encontrado muitas pessoas de aparência desagradável enquanto fazia seu número — na verdade algumas vezes se perguntava se have­ria alguma coisa no Teatro Plaza Reno que as atraía. Mas aquele homem era mais do que feio. Havia nele algo quase inumano, no modo como espiava Jamie com olhos que tinham um tom muito fraco de azul: fraco a ponto de serem quase sem cor. O sujeito era totalmente careca, mas não havia perdido o cabelo com a idade — nem havia decidido raspá-lo. O crânio polido não tinha marcas, como se nada jamais tivesse existido ali, para começar. O rosto era a mesma coisa. Não tinha sobran­celhas. Não havia sinal de barba nas bochechas nem no quei­xo. Todo o rosto parecia uma máscara muito esticada sobre uma estrutura óssea que mantinha a forma, mas não permi­tia exprimir qualquer emoção. Tinha dentes muito pequenos e brancos. Pareciam falsos.

— Ele quer o seu cartão — disse o homem ao lado dele. Falou com voz baixa e rouca, e sotaque sulista.

Esse homem tinha cabelos emaranhados e pretos, amar­rados num rabo-de-cavalo, além de uma barbicha rala, brotan­do num triângulo logo abaixo do lábio inferior. Usava óculos escuros de plástico, que ofereciam reflexos espelhados em vez de refletirem seus olhos. Cheirava a loção após-barba bara­ta, que não conseguia esconder a verdade. Ele precisaria mudar as roupas com mais freqüência. Precisava tomar ba­nho. Era impossível dizer se era mais novo ou mais velho do que o companheiro. Ambos pareciam não ter idade.

Jamie percebeu que vários segundos haviam se passado e nada acontecera. Engoliu em seco.

— Um cartão de visita — repetiu.

O silêncio se estendeu. Jamie já ia se afastar. Certamente poderia encontrar outra pessoa que cooperasse. Mas então o careca deu de ombros e enfiou a mão no paletó.

— Claro — disse ele. — Tenho um cartão.

O homem pegou uma carteira, abriu-a e tirou um cartão branco, equilibrando-o por um momento entre unhas sujas e rachadas, como se estivesse em dúvida. Em seguida o entre­gou a Jamie. Jamie segurou-o. Havia um nome e, embaixo, o nome de uma empresa:

 

Colton Banes

CORPORAÇÃO CREPÚSCULO

 

Embaixo havia um endereço e um número de telefone. As le­tras eram pequenas demais para Jamie enxergar a meia-luz.

O homem olhava-o com curiosidade, quase como se ten­tasse enxergar dentro dele. Com dificuldade, Jamie se virou de novo para o palco. Tentou falar, mas tinha a boca seca demais. Engoliu, depois tentou de novo.

— Scott, pode dizer para quem este homem trabalha? — gritou.

Silêncio no palco. O que estava acontecendo? Então Scott falou:

— Claro, Jamie. Ele trabalha para a Corporação Crepúsculo. O homem sorriu.

— Absolutamente certo — disse em voz alta, para que todo o teatro pudesse escutar. Mas sua voz estava quase pro­vocando Jamie, como se ele não se importasse se o truque havia dado certo. — O garoto acertou de primeira.

Desta vez houve mais aplausos ainda. Restavam apenas 45 pessoas no teatro, mas elas estavam genuinamente absorvi­das. Era o único mistério verdadeiro que tinham visto duran­te toda a noite. Dias mais tarde ainda ficariam se perguntando como aquilo era feito.

E nenhuma delas havia adivinhado a verdade simples, mesmo que fosse a única explicação possível e que estivesse na sua cara. Não existiam microfones. Não existiam sinais es­condidos. Não existiam códigos nem mensagens sendo man­dadas de fora do palco. O truque era não haver truque. Os dois garotos podiam genuinamente ler a mente um do outro.

Mas a Corporação Crepúsculo sabia. Por isso mandara aqueles homens naquela noite. Para ver pessoalmente.

Era hora de Scott e Jamie Tyler desaparecerem.

 

A apresentação terminou. Scott e Jamie tinham meia hora até o início da próxima, então foram para o camarim. Um estrei­to corredor em L, iluminado por frias luzes de néon, passava por trás de todo o palco com uma porta de saída nos fundos. Como sempre, eles tinham de passar pelos figurinos, pelos cestos e adereços que já estavam sendo preparados para o próximo show. A cama de pregos de Swami Louvishni estava encostada de pé ao lado das correntes e da camisa-de-força do Zorro. Uma vaca de papier mâché vinha em seguida, e depois um piano quebrado com a maioria das teclas faltando — esses dois últimos objetos eram sobras de algum outro show. De um dos lados, uma parede de tijolos nus subia dez metros até o teto — este era de fato o fundo do palco. Do outro, uma série de portas se abriam em pequenos cômodos quadrados. Toda a área cheirava a fritura. Os fundos do tea­tro davam para um motel cuja cozinha ficava do lado oposto. Freqüentemente, quando saíam, os garotos viam os empre­gados filipinos com seus aventais listrados e chapéus de pa­pel branco, fumando do lado de fora.

Enquanto iam para os camarins, houve um ganido súbito e um cão saiu de uma das portas. Era um pastor alemão de dez anos e cego de um olho. Pertencia a Frank Kirby, que o usava quando fingia ser o Sr. Marvano, mestre ilusionista. Duas vezes por noite o cachorro sentava-se atrás de um espelho secreto, esperando aparecer na jaula.

Jamie se abaixou e fez um carinho na cabeça do bicho.

— Muito bem, Jagger — disse. O cão tinha recebido o nome do cantor dos Rolling Stones. Jamie não sabia por quê.

— Ei, Jamie!

Frank Kirby estava em seu camarim. Zorro estava com ele, sentado junto a uma mesa com um copo e meia garrafa de uísque à frente. Jamie esperava que o especialista em fugas ainda não tivesse bebido demais. Numa noite Zorro fora al­gemado no palco, amarrado e trancado no baú, onde caiu no sono imediatamente. Por causa disso havia perdido uma semana de pagamento. Ele e Kirby costumavam sair juntos. Ambos eram divorciados. Ambos tinham 50 e poucos anos. E — Jamie não conseguia evitar o pensamento — ambos eram fracassados.

— O que é, Frank? — perguntou Jamie. Em seguida se encostou na porta e sentiu o irmão passar por ele. Scott não havia parado.

— Corre um boato de que a gente pode ir embora. — A voz de Kirby era sempre rouca. Fumar trinta cigarros por dia provavelmente não ajudava. — Ouvi dizer que talvez a gente saia de Reno. Sabe de alguma coisa?

— Não ouvi nada — respondeu Jamie.

— Talvez você possa perguntar ao seu tio Don. Ele nunca diz nada a gente!

Jamie ficou tentado a dizer que Don White também nun­ca lhe dizia nada. Mas não adiantava. Frank sabia disso. As­sim Jamie simplesmente deu de ombros e entrou no camarim ao lado.

Scott já estava lá, deitado na cama de solteiro com colchão sujo e cobertor listrado. Havia outra mesa e duas cadeiras. Todos os camarins eram iguais: completamente quadrados com uma janela dando para o estacionamento e o motel, do outro lado. Cada um tinha uma pia e um espelho rodeado por lâmpadas. Em alguns, as lâmpadas até funcionavam. Jamie olhou para o irmão, que estava espiando o teto. Havia dois antigos gibis da Marvel na mesa e uma garrafa de Coca-Cola pela metade. Só isso. Os dois nunca faziam nada entre os shows. Algumas vezes conversavam, mas recentemente Jamie achava que Scott havia começado a ficar recolhido em si mesmo.

— Frank acha que talvez a gente vá embora — disse Jamie.

— Para onde?

— Ele não disse. — Jamie sentou-se. — Seria ótimo sair daqui. Ir para longe de Reno.

Scott pensou um momento. Ainda estava olhando o teto.

— Não acho que vá fazer muita diferença — disse por fim. — Aonde quer que a gente possa ir, vai ser a mesma coisa... ou pior.

Jamie tomou um gole da garrafa de Coca. O líquido estava quente e sem gás. Era como tomar xarope. Virou a cabeça e examinou o irmão, deitado na cama. Scott havia desabotoado a camisa. Ela estava caída dos lados, expondo a barriga e o peito. As camisas pareciam boas no palco, mas eram baratas, de náilon preto, e faziam Scott e Jamie suar. As mãos de Scott estavam meio fechadas dos lados do corpo. Nesse momento não parecia ter 14 anos. Poderia ter dez anos a mais.

Com freqüência Jamie precisava se lembrar de que os dois tinham exatamente a mesma idade. Eram gêmeos. Isso, pelo menos, era certo. No entanto não conseguia deixar de pen­sar que Scott era seu irmão mais velho. Não só por causa da diferença física. Desde que se entendia por gente, Scott havia cuidado dele. De algum modo nunca fora o contrário. Quan­do Jamie tinha seus pesadelos, em algum hotel caindo aos pedaços ou num trailer no meio do nada, Scott estava ali para confortá-lo. Quando ele estava com fome, Scott arranjava comida. Quando Don White ou sua mulher, Marcie, resolviam castigá-los, Scott se colocava entre eles e o irmão.

Era assim que sempre havia sido. Outros garotos tinham pais. Outros garotos iam à escola e saíam com os amigos. Ti­nham televisões, jogos de computador e iam a colônias de férias. Mas Jamie nunca tivera nada disso. Era como se a vida real estivesse em outro lugar, e ele tivesse sido deixado de fora.

Algumas vezes Jamie pensava na vida antes que o tio Don tivesse chegado e levado ele e Scott para O circo da mente. Afinal de contas, não fazia tanto tempo assim. Mas os dias foram virando semanas e depois meses, e agora era como se uma única estrada houvesse atravessado violentamente todas as suas outras lembranças e só restassem teatros vagabundos e lonas de circo, hotéis, motéis, trailers e vans. Horas passa­das nas rodovias cheias de poeira que atravessavam Nevada, sempre em movimento, freqüentemente no meio da noite, caçando o próximo dólar, onde quer que ele estivesse.

Imaginou como havia sobrevivido os últimos anos sem enlouquecer. Mas sabia a resposta. Ela estava esticada na cama diante dele. Scott fora a única coisa constante em sua vida, seu único amigo verdadeiro e protetor. Sempre tinham estado juntos. Sempre estariam. Afinal de contas, foi somente quando os adultos tentaram separá-los que o Acidente aconteceu — o início de todo esse pesadelo em que agora estavam presos. Examinou o irmão. Scott parecia ter caído no sono. O peito nu estava subindo e descendo lentamente, e havia um brilho de suor na pele. Jamie pensou no que Scott havia lhe dito, na­quela noite na grande lona onde estavam se apresentando, nos arredores de Las Vegas. Fora no fim da primeira semana. A primeira apresentação pública dos gêmeos telepatas.

— Não se preocupe, Jamie. Vamos superar isso. Mais cinco anos e teremos 16. Aí eles não vão poder controlar a gente. Não vão poder obrigar a gente a fazer o que a gente não quiser.

— O que vamos fazer?

— Arranjar alguma coisa. Talvez a gente vá para a Cali­fórnia. Podemos ir para Los Angeles.

— A gente poderia trabalhar na TV.

— Não. Iriam transformar a gente em monstruosidades. — Scott sorriu. — Talvez a gente possa montar algum tipo de negócio... você e eu.

— Pelo menos a gente saberia o que a concorrência está pensando.

— Isso mesmo. — Scott mergulhou mais no tema. — A gente podia ser que nem o Bill Gates. Ganhar milhões de dó­lares e depois se aposentar. Espere para ver. Quando a gente fizer 16 anos, ninguém vai poder com a gente.

Ainda faltavam dois anos. Mas Jamie percebia uma ansie­dade crescente. Parecia que, a cada dia que passava, o sonho ia se desbotando. Scott ia ficando mais silencioso, mais afas­tado. Podia ficar deitado durante horas seguidas, sem dormir, mas também sem estar acordado. Era como se algo estivesse sendo retirado lentamente de dentro dele, e Jamie sentia medo. Scott era o forte. Scott sabia o que fazer. Jamie podia continuar se apresentando. Podia suportar o tio Don e a bruta­lidade casual de sua vida. Só havia uma coisa que o apavorava.

Sabia que não seria capaz de fazer isso sozinho.

Na extremidade do corredor, num escritório de canto com vista para duas direções, Don White estava sentado atrás de uma mesa que ele não poderia ter esperança de alcançar com as mãos. Sua barriga era grande demais. Ele era um homem imensamente gordo, com carne que parecia se dobrar sobre si mesma como se procurasse algum outro lugar aonde ir. No camarim estava um frio de rachar — era o único lugar no teatro onde o ar-condicionado funcionava — mas havia par­tes molhadas na frente da camisa e nas axilas dele. Don suava o tempo todo. Para um homem de seu tamanho, até mesmo dar dez passos era um tremendo esforço — ele parecia per­manentemente exausto. Havia círculos escuros sob seus olhos e ele tinha lábios parecidos com os de um peixe, sempre ten­tando engolir o ar. Estava comendo um hambúrguer. Ketchup escorria entre os dedos, pingando na superfície da mesa.

Havia dois homens sentados diante dele, esperando que terminasse. Se estavam enojados pelo espetáculo que viam, não demonstravam. Um era careca. O outro tinha cabelo es­curo. Ambos usavam ternos. Ambos esperavam em silêncio enquanto Don terminava de comer, lambia os dedos e depois os enxugava nas calças.

— Então, o que acham? — perguntou enfim.

— Os garotos são muito impressionantes — respondeu o careca, Colton Banes.

— Eu disse. Eles fazem a coisa de verdade. Não há tru­que. Isso arrepia a gente, se você me perguntar. Mas é como se um conseguisse entrar na cabeça do outro. — Don pegou um charuto fumado pela metade e o acendeu. O cheiro amar­go de fumo velho subiu no ar. — Os outros números do show... não são nada. Mas aqueles garotos são especiais.

— Eu gostaria de saber como eles chamaram sua atenção.

— Vou contar. Eu os peguei há três anos. Tinham uns 11, na época. Ninguém faz idéia de onde eles vieram. Foram lar­gados quando tinham só uns meses. Foram recolhidos pelo pessoal do juizado de menores em algum lugar perto de Lake Tahoe. Sem mãe. Nem pai. Provavelmente têm sangue índio... vocês sabem, nativo-americano. Paiúte, washoe ou algo as­sim. De qualquer modo, ficaram algumas vezes em lares ado­tivos, mas isso nunca durava muito. Não me surpreende. Você iria querer ficar perto de alguém que pode ler sua mente?

— Eles lêem a mente de outras pessoas, além de um ler a do outro?

— Lêem. Claro. Mas fingem que não, e eu não consigo obrigá-los. Quero dizer... no palco tudo bem. Como se fos­sem truques de festa. Mas nunca fora. Nunca na vida real. — Don tragou o charuto e depois soprou a fumaça. — Assim eles foram jogados de um lado para o outro e finalmente fo­ram parar com a irmã da minha mulher e o marido dela em Carson City. Mas também não deu muito certo, posso garantir.

— O que aconteceu?

— Eles estavam lá havia cerca de um ano, e então Ed, que era o marido, foi desta para a melhor... cometeu suicídio. Talvez isso tivesse alguma coisa a ver com os garotos, não sei. Eles estavam de saída, de qualquer modo. Ed já estava cheio dos dois. — Don se inclinou adiante, com ar conspirador. — Ed sempre disse que havia alguma coisa estranha com eles. Tipo, se você desse uma surra de correia em um, o outro sentia a dor. Dá para acreditar? Você bate no Scott e é o pequeno Jamie que fica com o hematoma na cara. Um sempre sabia o que estava acontecendo com o outro, mesmo quando estavam separados por quilômetros. Ed não conseguia suportar isso. Costumava dizer que era como estar num episódio do Arqui­vo X. Por isso ia se livrar deles, e a próxima coisa que a gente soube foi que ele estava morto, a irmã da minha mulher pi­rando de vez e ninguém querendo os garotos.

Um pedaço de cinza caiu da ponta do charuto. Pousou na manga de Don, mas ele não notou.

— Foi quando decidi pegar os dois — continuou ele. — Eu estava fazendo este show. Na época se chamava O mundo de ilusão de Don White. Mas quando vi os garotos, quando percebi o que eles podiam fazer, mudei o nome. Chamei de

O circo da mente e coloquei os dois no último número. O es­tranho é que todo mundo acha que deve haver algum tru­que. Sinais e códigos escondidos, esse tipo de coisa. Não é só a platéia. Nem os outros artistas sabem como os garotos fa­zem. Não é engraçado? Marcie e eu achamos hilário.

Bones havia apresentado o outro homem como Kyle Hovey. Então, Hovey falou pela primeira vez:

— Por que você não pôs os dois na televisão? Você pode­ria ganhar mais dinheiro assim.

— É. Eu pensei nisso. Marcie e eu falamos nisso. Mas se eles ficarem muito conhecidos, alguém vai levá-los. — Ele hesitou, sem saber o quanto deveria contar aos homens. — Vocês sabem como é. Nós só estamos com eles porque o sis­tema de atendimento à infância está sobrecarregado demais. Há muitos necessitados e poucos trabalhadores. É o que Mareie diz. Agora mesmo parece que todo mundo se esque­ceu deles... e talvez seja melhor manter a coisa assim. — Ele examinou o charuto por um momento, olhando a cinza quei­mando. — De qualquer modo, é como eu disse, eles não to­pam. Já foi bem difícil conseguir que eles se apresentassem no palco. Foi preciso dar uma surra. Depois fiz com que passas­sem fome. Disse: se não trabalharem, não comem. E mesmo assim eles continuaram recusando.

— Então o que você fez? — perguntou Banes. Don White sorriu.

— Usei um contra o outro. Disse a Scott que, se ele não fizesse o que eu pedia, iria bater em Jamie até ele sangrar. Disse que faria mais do que isso. Assim ele concordou, para proteger o irmão. E Jamie fez isso porque Scott mandou. Foi o fim do problema. Agora a gente se dá muito bem. Eu sou o tio Don. Eles fazem o show e eu cuido deles.

— E a escola?

— Eles freqüentaram a escola em Carson City quando estavam lá com o Ed, mas não deu certo. Agora estudam em casa. O estado fica satisfeito com isso. Até paga em dinheiro para cuidarmos deles. Marcie é inteligente. Ela ensina tudo que eles precisam saber. — Restava cerca de um centímetro do charuto. Don deu uma última tragada e depois o apagou no prato onde estivera o hambúrguer. — Talvez você esteja certo — admitiu. — Talvez eu devesse colocá-los na TV. Estou cheio do teatro. Ninguém se interessa. Ninguém aparece. Olhe este lugar! Temos mais baratas do que pagantes. Quero dar o fora. Eu estava num bar e ouvi alguém falando sobre uma empresa que pagaria uma boa grana por informações sobre garotos “especiais”. Fui até lá e eles me deram um nome. Dei um telefonema e agora... aí estão vocês. Vocês viram Scott e Jamie. Sabem qual é o nível deles. O que dizem?

O homem chamado Kyle Hovey olhou para o colega, que estivera observando Don com olhos vazios. Colton Banes assentiu.

— Queremos levá-los — disse Banes.

— Levá-los? Assim?

— Crianças desaparecem o tempo todo, Sr. White. Como o senhor mesmo disse, esses garotos não têm parentes nem amigos. O estado de Nevada perdeu o interesse por eles. Vamos cuidar deles de agora em diante, e ninguém ficará sabendo.

— E o dinheiro?

— Vamos lhe pagar 75 mil dólares.

Don White lambeu os lábios. Era mais dinheiro do que jamais havia esperado. Mas ainda não bastava.

— Setenta e cinco mil dólares... cada?

Colton Banes parou um instante. Mas já havia decidido.

— Claro. Cento e cinqüenta mil dólares pelos dois garo­tos. Mas há uma coisa que você deve entender. Essa quantia é final. Você não fará mais indagações sobre eles nem sobre nós. Se informar a alguém sobre esta transação, você e sua esposa também vão desaparecer. Há muita areia no deserto, Sr. White. Vocês não vão querer ficar embaixo dela.

— Quando vocês vão levá-los?

— Esta noite. O Sr. Hovey e eu estaremos dentro do tea­tro. Teremos mais dois colegas do lado de fora. Seria bom se você pedisse aos garotos para ficarem depois do fim do show, até que os outros artistas tenham saído. Então vamos retirá-los e pagar em dinheiro vivo. É aceitável?

— É. Claro que é aceitável. — A boca de Don estava seca. Mas ainda havia algumas perguntas que precisava fazer. — Quem, exatamente, são vocês? Quero dizer, sei para quem vocês trabalham. Mas o que vão fazer com eles? Por que que­rem os dois?

— Acho que você não escutou o que eu disse — respon­deu Banes. — Não somos ninguém. Você nunca nos viu. Os garotos não existem mais.

— Claro. Ótimo. Como quiser...

Do lado de fora do escritório veio o som de música pop, berrando nos alto-falantes no teatro. Uma campainha tocou uma vez, alertando os artistas.

O segundo show da noite ia começar.

 

— Desde que consigo me lembrar, um sabe exatamente o que se passa na cabeça do outro. Isso não facilita quando um de nós está tentando arranjar garotas...

Quantas vezes ele havia falado aquelas mesmas frases? En­quanto começava a segunda apresentação da noite, Jamie foi subitamente dominado pelo cansaço. Odiava Reno. Era sua pri­são. Era a ilha onde havia naufragado. Mas nunca seria seu lar.

Era vazio. As ruas pareciam largas demais para o número de veículos que iam para um lado e para o outro, estenden­do-se em linha reta até onde a vista alcançava. As lojas e os escritórios eram afastados demais uns dos outros, separados por espaços vazios que poderiam ser locais de construção, só que nenhuma construção jamais parecia acontecer. E nunca havia ninguém. As pessoas chegavam todas as sextas-feiras

— os turistas e os grupos de homens festejando — mas eram sugadas para os cassinos no momento em que saíam dos carros ou aviões, para só emergirem, remelentos e falidos, na noite de domingo.

Não havia mais nada a fazer em Reno. Até mesmo o rio Truckee, que atravessava o centro, era tão cinza e desinte­ressante quanto possível para um rio: preso entre duas pare­des de cimento, a água fluía rapidamente como se tentasse sair da cidade o mais depressa que pudesse.

Freqüentemente Jamie olhava para as cordilheiras no ho­rizonte ao longe, a uns 50 ou 60 quilômetros dali. Mesmo quando o sol de verão queimava, elas continuavam encimadas por neve. Às vezes ele imaginava que elas eram promessas sussurradas, de alguma outra vida que viria. Se ao menos pu­desse chegar às montanhas, passar para o outro lado... Mas sabia que isso jamais iria acontecer. Estava preso aqui. Se andasse de carro por dez minutos em qualquer direção che­garia a morros desertos, cobertos de mato ralo e areia. Scott havia percebido corretamente, só alguns dias depois de te­rem chegado:

— Estamos no meio de lugar nenhum, Jamie. E é exata­mente para onde vamos.

Havia menos pessoas no Teatro Plaza Reno do que na pri­meira apresentação da noite — não mais de quarenta. Até agora não havia sido um bom show. Bobby Bruce tinha es­quecido suas falas. Zorro ficara preso num par de algemas. Até Jagger havia se atrasado em aparecer na jaula. Jamie podia sentir o mau humor do público. Nem haviam rido de sua pia­da de abertura.

Continuou no piloto automático, deixando os refletores o ofuscarem, sem ao menos olhar a platéia. Desta vez o volun­tário escolheu o Houston Chronicle na pilha de jornais e a pa­lavra que foi circulada era “e”. Isso era sempre mau sinal.

Palavras pequenas e comuns sempre faziam o truque parecer menos impressionante. Enquanto Jamie retornava ao palco, lembrou-se da palavra “enterro” que havia surgido na apre­sentação anterior. Poderia não ter sido a palavra mais agra­dável, mas pelo menos havia causado efeito na platéia.

Brevemente varreu o público com o olhar, procurando al­guém que o ajudasse a vendar o irmão na parte seguinte do número. E foi então que os viu. O careca que havia lhe em­prestado o cartão de visita estava sentado a cinco fileiras do palco. O homem de cabelo escuro estava ao lado. Jamie esti­vera falando, mas estremeceu no meio da frase e parou. Sen­tiu Scott parar e olhá-lo. Jamie sabia o que o irmão estava fazendo, mesmo sem se virar. Por que os dois homens haviam retornado? Algumas vezes as pessoas voltavam para uma segunda apresentação. Freqüentemente também eram má­gicos: paranormais e leitores de pensamento que tentavam deduzir como era feito o truque dos dois irmãos. Mas aque­les homens com seus ternos marrons idênticos claramente não eram artistas. Nem tinham vindo para se divertir. Pelo modo como o estavam olhando... poderiam ser dois cientistas dian­te de uma bandeja de espécimes. Jamie se lembrou da inquie­tação na primeira vez que os tinha visto. Sentiu de novo, só que em dobro, agora que eles estavam aqui outra vez.

— Eu... é... preciso de alguém para me ajudar no palco. — As palavras estavam saindo à força dos lábios, quase con­tra sua vontade. — Poderia me ajudar, por favor, senhor? — Jamie havia parado à frente de um homem de 20 e poucos anos. Ele estava sentado com o braço envolvendo uma garo­ta. Tinha corte de cabelo estilo Elvis Presley.

— Esquece! — O homem balançou a cabeça e deu um riso de desprezo. Não queria sair da poltrona.

Isso acontecia com freqüência. Havia muitas pessoas que preferiam não se oferecer — porque sentiam vergonha ou porque a coisa toda estava abaixo de seus critérios. Normal­mente Jamie enfrentaria com facilidade a situação e iria adiante. Mas esta noite não se sentia no controle. Tinha medo de que um dos dois homens — os de terno marrom — se oferecesse, e, independentemente de qualquer coisa, não queria que eles chegassem perto.

— Eu ajudo!

Uma mulher havia se levantado, a algumas poltronas dali. Era negra, magra e bonita: com 30 e poucos anos, supôs Jamie. De novo ele não conseguiu evitar a sensação de que alguma coisa não combinava. A mulher estava vestida com elegân­cia, com jeans, blusa de seda branca e um fino cordão de ouro. Dava para imaginar que ela era provavelmente executiva de alguma empresa. Mas o que estava fazendo ali, ainda mais sozinha?

Mesmo assim ela não lhe dera opção. Jamie esperou que a mulher o acompanhasse até o palco, e alguns segundos de­pois eles estavam sob os refletores. Scott ficou ligeiramente de lado, sem olhá-los, esperando que Jamie começasse.

— Vou vendar meu irmão... — começou Jamie.

— Como vocês fizeram aquilo, há pouco? — interrom­peu a mulher. — O truque do jornal. Nunca vi nada assim.

— Bom... — Jamie não sabia o que dizer. Raramente os voluntários falavam com ele e jamais faziam perguntas assim, principalmente quando estavam no palco. Por que tudo estava dando tão errado esta noite? Virou-se e, sem querer, pegou-se olhando de novo para os dois homens da fila cinco. Eles o estavam encarando. Claro que estavam. Mas mesmo assim ele não conseguia afastar a idéia de que eram diferentes do resto da platéia, de que estavam interessados nele por outro motivo.

Obrigou-se a ficar calmo. Os dois homens estavam rodea­dos por um monte de lugares vazios. Esse era o único motivo para parecerem deslocados. Estavam ali pelo mesmo moti­vo de todo mundo: para se divertir.

— Gostaria que a senhora me ajudasse — disse Jamie.

— Claro! — A mulher confirmou com a cabeça. Jamie pegou a venda, o capuz e as moedas inglesas.

— Quero que a senhora se certifique de que não há mi­crofones escondidos.

— Como vocês fizeram aquilo? — perguntou a mulher de novo. — Vocês podem mesmo entrar em contato com a mente do outro?

A platéia estava ficando inquieta. Não tinham vindo para escutar nenhuma explicação sobre os truques. E era tarde, quase dez e meia. Estavam prontos para ir embora. Sem es­perar mais, Jamie apertou as moedas contra os olhos do ir­mão. Por um momento sentiu a respiração de Scott, quente contra seus dedos. Mais tarde, muito mais tarde, iria se lem­brar disso. Mas agora estava indo em frente, depressa. Pren­deu as moedas com a venda, lembrando-se tarde demais que não havia pedido à mulher para examiná-la. Não fazia mal. O que importava? Pôs o capuz na cabeça do irmão.

— E agora? — perguntou a mulher.

— Eu gostaria de alguma coisa da sua bolsa — respondeu Jamie. Era outro erro. Normalmente nesse ponto ele voltava à platéia. Queria que essa mulher não tivesse forçado a barra.

— Não tenho bolsa — disse a mulher.

Isso provocou alguns risos na platéia. Mas eram hostis. Estavam rindo dele, e não com ele.

— Então me dê outra coisa. Simplesmente não diga o que é.

— Que tal isto? — A mulher enfiou a mão no bolso de trás e pegou uma foto, do tamanho de um cartão-postal. Jamie pegou-a. Viu-se olhando para uma foto em preto-e-branco de um garoto de 9 ou 10 anos. Obviamente era o filho da mulher. Jamie podia ver a semelhança. O cabelo do garo­to era muito mais curto, mas ele tinha os mesmos olhos pen­sativos e a boca ligeiramente feminina.

Jamie segurou a foto. Percebeu que estava esperando Scott falar. Normalmente Scott identificava o objeto no momento em que Jamie o pegava. Então seria a carteira, o baralho, a carteira de motorista e o encerramento, antes da cortina final. Mas Scott não havia falado.

— Scott, o que estou segurando? — perguntou Jamie. Tinha violado as regras ensinadas por Don White. Se dissesse alguma coisa, a platéia sempre presumiria que ele estava usan­do algum tipo de código. Era melhor ficar em silêncio.

— Eu... não sei. — Scott virou a cabeça como se estives­se tentando olhar através da venda e do capuz.

Jamie sentiu o chão se abrir embaixo dele. Algo havia dado errado. Olhou para o irmão e sentiu a tensão. Os braços de Scott estavam apertados junto ao corpo, os punhos fechados.

— É uma foto. — Desesperadamente, Jamie tentou ajudá-lo. — Uma foto de quê?

E então Scott gritou. Levantou uma das mãos e encostou os dedos na testa como se sentisse dor.

— O nome dele é Daniel — disse. — E ele sumiu. A culpa é sua. Você ainda está se culpando por deixar que eles o levassem.

Era a voz de Scott, mas não parecia. Nada assim jamais havia acontecido antes.

E então a mulher avançou e pegou a foto de volta. Jamie olhou-a e viu a raiva chamejando nos olhos dela.

— Onde ele está? — perguntou ela. — 0 que você sabe?

— Não sei nada! — Todo o teatro parecia estar girando. As luzes queimavam. Jamie só queria sair do palco.

— Diga o que você sabe.

— Eu já disse...

— Senhoras e senhores... Scott e Jamie Tyler, os gêmeos telepatas! — Frank Kirby estivera olhando da coxia, ainda fan­tasiado de Sr. Marvano, mestre ilusionista. Havia decidido resgatá-los, entrando e batendo palmas ao mesmo tempo. Cerca de metade da platéia aplaudiu junto. Tinham visto al­guma coisa, mas não sabiam bem o quê. Certamente o tru­que com os jornais fora bastante eficiente. Mas o truque da fotografia havia falhado? Havia mesmo? A mulher de blusa branca certamente parecia abalada. Será que os gêmeos ha­viam identificado corretamente o garoto da foto? E, nesse caso, quem era ele?

O show acabou. Jamie segurou Scott e o arrastou para a coxia, ao mesmo tempo tirando a venda. Frank levou a mulher para fora do palco e disse o discurso final que sempre fazia a cortina baixar.

— Obrigado, senhoras e senhores. Esta noite vocês viaja­ram conosco até alguns dos cantos mais distantes da mente humana...

Mas ninguém estava escutando. A mulher havia retornado à sua poltrona, imersa em pensamentos. Banes e Hovey esta­vam algumas fileiras atrás dela, sem se mover, distanciados. Um bom número de pessoas da platéia já ia pegando os ca­sacos e as bolsas, de saída. A música tocava de novo, abafan­do as palavras de Frank. Mesmo quando o show ia bem, era frustrante. Esta noite fora um fracasso completo.

Don White estava esperando do lado de fora do palco.

Enquanto Jamie saía dos refletores, o rosto cheio de despre­zo do “tio Don” foi a primeira coisa que ele viu. Percebeu que Don devia ter estado ali durante todo o número e se encolheu, esperando o tapa no rosto ou talvez os dedos gordos agarran­do sua garganta. Don certamente não parecia satisfeito.

— O que aconteceu? — perguntou ele. Seus lábios gros­sos estavam virados para baixo, numa careta de raiva.

— Não sei — respondeu Jamie. — Deu errado.

— Foi o seu irmão. Ele ferrou tudo.

— É. Isso mesmo. Fui eu. — Scott deu um passo adiante. Instintivamente havia se posto entre Don White e o irmão. Gomo sempre.

Jamie esperou para ver o que aconteceria. Mas esta noite não haveria violência. Don encolheu os ombros enormes, com os braços subindo e descendo, as palmas viradas para fora.

— Certo. Vamos esquecer isso. Vejo vocês dois mais tar­de. Me esperem no seu camarim. — Ele se virou para os ou­tros artistas que haviam se reunido em volta, imaginando o que dera errado. — O resto de vocês, quero fora daqui. Va­mos encerrar por hoje.

Jamie acompanhou o irmão de volta ao camarim. Apa­rentemente não haveria problema, afinal de contas. Se Don fosse bater neles, teria feito isso na hora. Juntos foram ao camarim, sem se incomodar ao menos em fechar a porta. Demoraram-se trocando de roupa. A casa onde moravam, com Don e Marcie, ficava a 20 minutos de carro, e na maioria das noites eles iam para lá com Don. Só quando ele decidia ficar para tomar uma bebida ou jogar fora um pouco de di­nheiro num cassino, os dois pegavam o ônibus número 11 para a praça Victorian e andavam o resto do caminho.

Frank Kirby passou pela porta, indo para a saída. Os garo­tos trabalhavam com ele havia dois anos, mas praticamente não sabiam nada sobre o sujeito. Ele nunca falava muito e jamais sorria. Fumava demais. Geralmente era o último a sair.

— Boa-noite, garotos — disse com voz rouca.

Eles o ouviram ir pelo corredor. A porta de serviço se abriu com um rangido e depois se fechou. Don White devia estar no escritório, tomando uma última bebida, falando ao tele­fone com Marcie. Afora isso os dois estavam a sós.

Jamie se abaixou e amarrou os cadarços. Havia um bura­co no tênis. Podia ver o pé descalço dentro.

— O que aconteceu? — perguntou. — O que você viu... lá no palco?

— Não sei. — Scott mordeu o lábio.

— Você disse que viu alguém chamado Daniel. Disse que ele estava sendo ferido.

— Jamie, não quero falar nisso, certo?

— Claro... — Jamie olhou o irmão, consternado. Scott deu um suspiro fundo.

— Desculpe. Não queria gritar com você. — Ele balan­çou a cabeça. — Alguma coisa está acontecendo. Não sei o que é. Mas tem alguma coisa errada...

— Como assim?

— Esta noite. Aquela mulher. — Scott passou a mão pelo cabelo. Estava cheio de suor. — Escute, Jamie. Estou com uma sensação ruim. Talvez você tenha de cuidar de si mesmo.

— Por quê? Scott? O que é? Foi o cachorro que os alertou.

O teatro deveria estar vazio. O teatro estava vazio, no sen­tido de que todos os outros artistas tinham ido embora, deixando apenas os gêmeos. Mas o que Don White havia esquecido era que Frank Kirby estava hospedado numa pen­são que não aceitava cães, de modo que toda noite ele deixava Jagger no seu camarim. O pastor alemão dormia num col­chonete e normalmente ninguém notaria que ele estava ali.

Mas alguma coisa o havia incomodado. Scott ouviu um ros­nado grave que cresceu subitamente, alto e cheio de ameaça. Vinha do corredor. Jamie levantou os olhos. Nunca tinha ouvido Jagger assim. Scott levantou a mão, sinalizando para o irmão ficar onde estava, depois saiu pela porta. E foi então que os viu.

Dois homens. Um careca, um moreno. Ambos de terno marrom. Scott registrou com um choque de descrença que o careca estava segurando uma arma de aparência estranha.

Scott os encarou. Os homens o tinham visto no momento em que ele havia aparecido no corredor, mas não podiam alcançá-lo. O cão estava entre eles, com os pêlos eriçados e os dentes à mostra. Jagger tinha 10 anos. Dormia na maior parte do tempo. Mas agora, de repente, havia mudado. Era como se tivesse descoberto o animal selvagem que poderia ter sido um dia. Estava para atacar. Não poderia haver dúvida.

Scott percebeu instantaneamente que ele e o irmão cor­riam perigo. Não sabia quem eram os homens nem por que estavam ali, mas sabia que precisava ir embora e tinha ape­nas alguns segundos para isso.

Jamie! Venha cá!

Não gritou as palavras. Pensou-as. Mas tiveram o mesmo efeito. Jamie saiu correndo do camarim e viu os dois, no ins­tante em que Jagger soltava um último rosnado e pulava. Reconheceu-os instantaneamente. Banes disparou a arma — não uma bala, mas algum tipo de dardo. Acertou Jagger no pescoço. O cachorro gritou. Scott empurrou Jamie e os dois começaram a correr. Atrás deles, Jagger ainda estava saltan­do para os dois atacantes. A parte de trás do dardo — tufos de penas pretas — se projetavam dos pêlos atrás da orelha, mas o cão ainda estava consciente, tentando morder os dois homens, rosnando e latindo. Kyle Hovey gritou enquanto o cachorro cravava os dentes no braço dele e começava a ras­gar a carne. Mas então Banes o segurou. Suas mãos aperta­ram a cabeça do animal, segurando-a contra o chão. Jagger tentou alcançá-lo, tentou ficar de pé outra vez. Mas então a droga, ou o que quer que estivesse no dardo, fez efeito. Os olhos do cão ficaram vítreos e ele se imobilizou.

Os garotos ainda não haviam chegado ao fim do corre­dor. Banes tinha largado a arma enquanto cuidava do cachor­ro, mas agora pegou-a, mirou e disparou. O dardo errou Scott por 2 centímetros e ricocheteou na parede. Banes não teve tempo de disparar de novo. Os garotos haviam desaparecido. Com o rosto branco, furioso, virou-se para Hovey, que estava segurando o braço, meio enterrado sob o animal inconsciente.

— Atrás deles! — sibilou.

Hovey se levantou com dificuldade. Banes recarregou a arma, colocando mais dois dardos na câmara. Os dois parti­ram no momento em que a porta de serviço se abria com um estrondo, à frente deles.

Jamie havia chegado ao estacionamento entre o teatro e o motel. Uma extremidade dava na rua Virgínia, com um dos cassinos — o Circus Circus — logo em frente. O outro se afu­nilava num beco estreito que levava às ruas mais calmas atrás. Não havia ninguém à vista. Alguns carros — dos hóspedes do motel — tinham sido deixados no estacionamento. O es­critório do motel, um cômodo parecendo uma caixa, dando para a rua principal, estava fechado com um cartaz de SEM VAGAS na janela. Jamie parou. O pesado ar noturno pareceu cair sobre ele, exaurindo instantaneamente suas forças. O que estava acontecendo? Scott o havia chamado — mas tinha feito isso telepaticamente. Fora como uma faca se cravando na cabeça. E depois os dois homens da platéia. Um deles com uma arma. Jagger...

— Scott! — gritou, e imediatamente ficou com raiva de si mesmo. Não estava ajudando. Não tinha idéia do que fa­zer. Como sempre, dependia totalmente do irmão.

Scott não iria deixá-lo na pior. Enquanto Jamie ficava ali, sem fazer nada, ele havia apanhado um rolo de fio elétrico que fora deixado em cima de uma lata de lixo. Já havia fecha­do a porta de serviço e estava enrolando o fio em volta das maçanetas. Agora a porta não seria aberta por dentro. Scott havia ganhado tempo para os dois. Os homens, quem quer que fossem, teriam de rodear pela frente.

— Quem são eles? — gritou Jamie. — Eu vi. Eles estavam no teatro. Vieram duas vezes.

— Agora não — respondeu Scott, rouco. — Temos de ir...

Já era tarde demais. Enquanto Jamie olhava, um carro apa­receu, um Mustang preto, correndo pelo beco na direção deles. Havia um motorista e outro homem no banco do caro­na, e não havia dúvida de que estavam esperando a saída dos garotos. Dois dentro do teatro. Dois do lado de fora. Quantas pessoas daquelas estariam ali?

Jamie se imobilizou. Scott se inclinou adiante e pegou uma lata de lixo. Estava cheia e devia pesar uma tonelada, mas tal­vez o desespero tenha lhe dado força extra. Enquanto o carro acelerava em sua direção, ele jogou-a. A lata de lixo não foi longe, mas o carro acelerando fez o trabalho para eles. A lata se chocou contra o pára-brisa. O vidro se despedaçou. Scott e Jamie se jogaram de lado enquanto o carro disparava na direção deles. Legumes podres e sobras choveram enquanto a lata de lixo rolava sobre o capô. Eles ouviram os painéis de metal das portas se amassando quando o carro bateu contra a lateral do teatro. Então o Mustang girou e se chocou contra o escritório do motel do lado oposto. Um alarme disparou. O carro parou sibilando e estremecendo. Os dois garotos haviam caído e rolado para longe do perigo. Jamie foi o primeiro a ficar de pé. Estendeu a mão e ajudou Scott a se levantar. Por um breve momento imaginou se o motorista do carro e o passageiro teriam desmaiado. Mas suas esperanças foram esmagadas quando as portas do veículo se abriram e dois homens saíram cambaleando, um deles com sangue escor­rendo de um corte na cabeça, mas afora isso os dois não pare­ciam machucados.

— Anda! — ordenou Scott, e Jamie partiu na direção da rua Virgínia. Tinham de sair para o espaço aberto onde haveria mais gente, testemunhas. Mas, enquanto corriam, Jamie sen­tiu algo passar perto de seu ouvido e percebeu que um dos homens havia disparado um dardo contra ele. Pelo menos não era uma bala. O plano era pegar os garotos vivos. Mas e de­pois? O que havia trazido aquelas pessoas ao teatro em Reno? Durante anos ninguém tinha se importado com ele e Scott. Por que tudo isso estava acontecendo agora?

Os garotos chegaram à rua principal e de repente a escu­ridão do estacionamento deu lugar ao brilho da noite de Reno. Os cassinos estavam iluminados por mil lâmpadas: piscando, girando, circulando, cascateando, fazendo qualquer coisa que pudessem para atrair as pessoas. Havia o cassino chamado Circus Circus, com seu enorme palhaço de plástico cor-de-rosa e azul, com dez metros de altura. Ele segurava um pirulito que girava na mão, anunciando os jogos lá dentro. O Eldorado ficava mais adiante, numa esquina, com a portaria iluminada por um interminável show de fogos de artifício feito de luzes multicoloridas. Jamie não podia ver ninguém nas calçadas, mas havia alguns carros, com os faróis empurrando o pouco de noite que restava. Para onde? Jamie olhou ao redor, desesperado. Não fazia idéia. Não sabia quantas pessoas estariam atrás dele e não havia onde se esconder.

Scott gritou. A porta da frente do teatro estava escanca­rada e os dois homens que haviam começado tudo aquilo ti­nham saído à rua. Jamie estava preparado para correr, mas então viu o irmão parado, com uma das mãos no queixo, como se tivesse dor de dente. O rosto estava completamente bran­co. Lentamente a mão caiu e Jamie viu o tufo preto de um dardo se projetando da bochecha.

— Ah, não... — sussurrou Jamie.

— Corra, Jamie — disse Scott.

— Não. Não vou deixar você.

— Faça isso! Não vai poder me ajudar se eles pegarem você...

Claro que era verdade. Não havia mais nada que ele pu­desse fazer. Se ficasse ali parado, eles simplesmente iriam pegar os dois. Jamie hesitou só mais um segundo, depois se virou e já ia correr quando sentiu algo como um ferrão de abelha no ombro direito. Instantaneamente soube que ele também fora acertado. Os dois homens estavam a 20 metros dali. O careca é que havia disparado. Jamie o viu baixar a arma. Tinha para­do de se mover, sabendo que a perseguição acabara. Jamie ouviu outro homem gritando alguma coisa no estacionamen­to. O alarme do motel ainda estava berrando. Houve o som surdo de sapatos de borracha no concreto. Scott caiu de joe­lhos. Jamie olhou-o, sabendo que seria o próximo. De certo modo ficou satisfeito. O que quer que fosse acontecer, ficaria com o irmão, afinal de contas.

E então, houve o som de pneus cantando e um segundo carro surgiu do nada, indo no sentido contrário ao do tráfego. Jamie ouviu buzinas. As luzes de néon estavam ficando tur­vas e a noite toda parecia se dobrar sobre si mesma. Pensou que o carro iria atropelá-lo e imaginou qual seria o sentido daquilo. Drogá-lo e depois matá-lo? Não era lógico.

O carro parou estremecendo. Um dos pneus havia subido na calçada. O carro estava entre ele e os dois homens — as­sim como o pastor alemão estivera antes. Uma porta se abriu e uma voz chamou.

— Entre!

O homem moreno havia pegado uma segunda arma. Mas esta não disparava dardos. Houve um estalo alto e uma jane­la do carro se despedaçou, com o vidro parecendo virar gelo antes de cair da moldura. Um segundo tiro e o retrovisor se desintegrou.

— Entre! — repetiu a voz, ansiosa.

Jamie olhou uma última vez para o irmão. Scott estava caído de cara na calçada, uma mão estendida, a outra dobra­da sob o corpo. O dardo ainda pendia da bochecha. Seus olhos estavam fechados. Não havia nada que Jamie pudesse fazer por ele. Caiu dentro do carro.

Queria saber quem estava dirigindo, mas não teve forças para olhar. Estava meio no carro, meio fora, mas o veículo já se movimentava. Sentiu os pés sendo arrastados pela rua e estendeu uma das mãos, procurando algo em que se segu­rar, algo para ajudá-lo a se puxar para dentro.

Uma mão segurou a sua.

— Segure-se! — ordenou a voz.

Estavam em marcha a ré. Jamie ouviu um terceiro tiro e depois o uivo de um motor e mais buzinas enquanto outros carros se desviavam. Mas o tráfego havia perdido a forma. Para Jamie os outros carros eram apenas borrões de cor, rico­cheteando uns nos outros, disparando em todas as direções. As luzes de néon giravam e giravam. Pensou ter visto quatro enormes cartas de baralho — os ases de paus, copas, espa­das e ouros — se iluminando uma depois da outra. O pirulito gigante girava na mão do palhaço. Uma placa vermelha pis­cava. SUPER PENHORES DINHEIRO VIVO. De algum modo estava dentro do carro. Podia sentir o couro macio pressiona­do contra o rosto, mas os pés pareciam fora da rua.

Depois disso não se lembrou de mais nada. Enquanto afundava na escuridão, só sabia que, de algum modo, tinha escapado.

Don White estava esperando no escritório quando o Sr. Banes voltou. Kyle Hovey estava com ele. Tinha o paletó rasgado e o sangue havia se espalhado pelo braço.

— Pegaram os dois? — perguntou Don.

— Pegamos um — respondeu Banes.

— Que pena. — Don estava com meia garrafa de bour­bon. Serviu-se num copo. — Mesmo assim vão ter de me pagar pelos dois. — Nenhum dos homens disse nada. Don White presumiu que eles concordavam. Levantou o copo e bebeu. — O que aconteceu?

— Você não falou do cachorro — murmurou Banes.

— Eu não sabia do cachorro.

— Não faz mal — disse Banes lentamente. — Temos um deles. E a polícia vai procurar o outro.

— Ah, é? E por quê?

— Ele vai ser procurado por assassinato.

Don White pareceu surpreso, ou pelo menos tentou. Sem­pre era difícil ler as emoções em seu rosto. Havia carne demais.

— Assassinato de quem? Banes sorriu.

— Você não deveria ter perguntado.

O som da bala ressoou muito alto no espaço confinado do escritório. Banes havia atirado no coração de Don White. Por alguns segundos o homem que Jamie e Scott conheciam como tio Don inspecionou seu uísque, como se reconhecesse o fato de que, infelizmente, jamais iria bebê-lo. Então sua mão caiu. O líquido se derramou. Ele se recostou na poltrona, imóvel.

Colton Banes olhou uma última vez o cadáver. Depois enfiou a arma no bolso e os dois saíram.

 

Jamie abriu os olhos e viu que não estava mais em Reno. Nem estava na América. De algum modo, impossivelmente, fora transportado para uma praia deserta que se estendia pela borda de um mar negro e sem vida. Seria dia ou noite? Olhou para cima, mas o céu parecia apanhado entre as duas coisas. Tentou respirar. Continuava presa do primeiro pânico, o co­nhecimento de que se encontrava num lugar distante e abso­lutamente estranho, e que estava sozinho. Não havia ninguém à vista. Nada. Só a praia, o mar e, a distância, o que poderia ser uma ilha, erguendo-se até uma ponta de agulha, alta, acima das ondas. — Scott!

Gritou o nome, mas a palavra única pareceu morrer nos lábios. Isso era mais apavorante do que qualquer coisa. Pode­ria gritar o quanto quisesse mas não havia ninguém para ouvir. Não estava simplesmente perdido. Estava completamente abandonado. Onde estava? Até os desertos de Nevada ofere­ciam mais vida e cor do que esse lugar.

E no entanto...

Já estivera aqui antes. Sabia onde estava. Puxou as pernas para perto do corpo, enrolando as mãos em volta dos om­bros: não tanto para se manter quente mas para criar uma espécie de casulo protetor. Obrigou-se a respirar fundo, rela­xar. É. Fazia muito tempo, talvez anos, mas ele conhecia este lugar. A ilha... Na última vez em que tinha vindo aqui, havia dois garotos vindo na sua direção, num barco feito de palha. Quisera conhecê-los — não sabia por quê — mas havia acor­dado antes que eles chegassem. E não estivera sozinho: Scott estava ali com ele.

E, parada perto deles, estivera uma garota.

— Isso é um sonho — murmurou Jamie. Sua voz ainda pa­recia muito baixa, mas era tranqüilizador ouvir alguma coisa. As ondas batiam na praia bem à frente, mas eram lentas e mal fa­ziam qualquer som, como se alguém tivesse diminuído o volume.

Um facho de luz relampejou no céu, ao longe. Uma tem­pestade. Jamie se levantou. Estava tremendo. Não era de frio — como todas as outras coisas aqui, a temperatura parecia fixa em alguma espécie de ponto neutro — mas havia algo no raio que provocou uma tensão em seus dentes. Lá estava de novo. Viu aquilo piscar mais duas vezes — garfos bran­cos, de eletricidade tão brilhante que pareciam rasgar o mun­do como se estivessem decididos a esmagá-lo. De algum modo sabia que aquela não era uma tempestade comum. Era um anúncio. Algo estava acontecendo. Ainda estava longe, mas logo chegaria mais perto. Agora havia uma brisa bem leve. Dava para sentir, úmida e morta, batendo em seu rosto.

— Scott! — gritou de novo. Ao mesmo tempo desejou, arrasado, ser capaz de acordar imediatamente.

Ouviu algo sobre os seixos, de um dos lados.

Olhou ao redor, esperando ver o irmão, mas em vez disso havia um homem ajoelhado à beira do mar, segurando uma tigela grande e rasa que ele parecia estar enchendo de água. Jamie não fazia idéia de onde o homem teria vindo. Certa­mente não estivera ali no instante anterior. O homem era enorme — e completamente cinza. O rosto, as mãos, as rou­pas, até os olhos eram cor de pedra, e se ele não estivesse se mexendo Jamie presumiria que era uma estátua. Usava cal­ças antiquadas e sem forma, presas com um cinto de couro, e uma camisa aberta no pescoço, com mangas enroladas. Também tinha um chapéu — não de caubói, mas algo seme­lhante — e botas que chegavam aos tornozelos. Estava com­pletamente concentrado no que fazia.

Jamie se levantou e foi até ele. Já ia falar, mas seus pés, fazendo barulho nos seixos, revelaram sua presença. O ho­mem girou e se empertigou. Nesse momento, Jamie viu que ele era mesmo enorme — tinha pelo menos 2, 10m, com ca­belos encaracolados descendo até o pescoço e um rosto duro, marcado e cheio de raiva. Tinha largado a tigela. Agora havia uma grande faca em sua mão.

— Desculpe... — Jamie não sabia por que estava se des­culpando.

O homem olhou para ele mas não disse nada.

— Pode me ajudar? — pediu Jamie.

— Ele vai matá-lo — disse o homem. O sujeito tinha um sotaque peculiar. Era americano mas estranhamente antiqua­do, como algo saído de um filme em preto-e-branco.

— De quem o senhor está falando?

— Você sabe. Você sabe de quem estou falando.

— Quer dizer... Scott? O homem assentiu.

— Ele vai matá-lo. E o seu trabalho é impedi-lo.

— Mas quem vai matar o Scott? O senhor tem de me ajudar a encontrá-lo...

Foi só isso que Jamie teve tempo de dizer. De repente o homem golpeou com a faca. Jamie escutou-a girando pelo ar úmido. Algo bateu na lateral da sua cabeça e ele pensou que fora esfaqueado. Mas o homem havia batido com o cabo, e não com a lâmina. Com um grito de dor, Jamie foi jogado longe e caiu de costas. Pôde sentir sangue escorrendo do ca­belo e se perguntou se havia quebrado o crânio. O homem se adiantou e curvou-se sobre ele. Estava segurando a faca com as duas mãos, como se fosse fazer um sacrifício. O raio tre­meluziu uma última vez.

— Impeça-o! — ordenou o homem. Suas mãos vieram baixando.

Jamie acordou.

Sua cabeça estava latejando e por um momento ele pen­sou que fora mesmo atacado. Levantou a mão e a encostou na lateral do crânio. Não havia nada. Nem sangue. Nem sinal de ferimento. Estava deitado, totalmente vestido, numa cama. Por um instante permaneceu completamente imóvel, deixando os pensamentos girar ao redor, separando o que era real do que havia sonhado, tentando deduzir o que havia aconteci­do, onde estava agora e como havia chegado ali. O ataque no teatro. Isso era real. Lembrava-se do barulho do tráfego, as luzes de néon, o carro atravessando a rua para pegá-lo.

Scott. Eles o haviam pegado. Jamie sentou-se de repente, procurando instantaneamente o irmão mesmo que houvesse pouca chance de ele estar por perto. Mas não importava. Era instintivo. Enviou os pensamentos, primeiro para este cômo­do, depois para o cômodo que pudesse ficar ao lado, depois mais longe. Estava gritando o nome do irmão, mas sem emi­tir nenhuma palavra.

Não havia nada. Jamie sentiu um vazio que lhe disse exa­tamente o que ele temia. Estava sozinho.

Deixou-se cair no travesseiro, sentindo a rigidez no om­bro onde o dardo acertara, e soube que fora drogado. Quan­to tempo teria dormido? O sol brilhava. Uma cortina estava fechada na frente da janela, mas ele podia ver a luz passando nas laterais.

Sua boca estava seca e ele sentia enjôo. Olhou ao redor e viu que estava em algum tipo de quarto de hotel. Dava para perceber por causa do vazio do lugar, da mobília barata, das gravuras nas paredes — fotos em preto-e-branco de Reno cin­qüenta anos antes. Havia um copo d’água ao lado da cama. Pegou-o e bebeu. Ainda estava fresca. Alguns pedaços de gelo meio derretido flutuavam. Estava com sede. Esvaziou o copo, depois passou os pés pela beira da cama, preparando-se para se levantar.

A porta do quarto se abriu e alguém entrou, com a luz da manhã escorrendo sobre os ombros. A princípio ele não pôde deduzir quem era. Então a pessoa fechou a porta e Jamie viu uma negra jovem, vestindo jeans, camiseta branca e uma blusa de algodão colorida, frouxa por fora da calça. Carregava duas sacolas de supermercado.

— Quando você acordou? — perguntou ela. Jamie não respondeu.

— Quem é você? Há quanto tempo estou aqui?

— Já passa das dez. Eu estava ficando preocupada com você. Pensei que teria de chamar um médico. — A mulher fez uma pausa. — Você terá de me ajudar. Você é Scott ou Jamie? Os dois são tão parecidos!

Jamie tentou se levantar, mas ainda não tinha força. Sen­tia como se tivesse permanecido deitado uma semana.

— Onde estou?

— Num motel — respondeu a mulher. — Ainda estamos em Reno, perto do aeroporto. O Bluebird Inn. Conhece? — Ela pôs as sacolas numa mesa. Estavam cheias de comida. Duas maçãs caíram e ela pegou-as. — Pensei que você estaria com fome, por isso fui fazer compras. Fico feliz porque acertei a hora. Não queria que você acordasse sozinho.

— A senhora estava no teatro — reconheceu Jamie. Era a mulher com a foto no último show. Tinha se oferecido para subir no palco.

— É. — A mulher confirmou com a cabeça. — Na verda­de vi vocês três vezes. Estive lá no show das sete e meia. E na noite anterior.

— Porquê?

— Queria ver como vocês faziam. O número...

Jamie se obrigou a ficar de pé. Estava fraco e sua cabeça ainda latejava, mas não queria ficar ali, sozinho, no quarto com aquela mulher estranha. Scott havia sumido. Alguém o tinha levado. Era só isso que importava.

— Aonde você vai? — perguntou a mulher. Ela se colo­cou entre Jamie e a porta.

— Preciso achar o Scott.

— Sei como você está se sentindo. — Ela balançou a ca­beça. — Mas você não pode simplesmente sair daqui. É tarde demais.

— Como assim? — Sem saber, Jamie havia fechado os punhos. Seus olhos estavam ferozes e injetados. — A senhora estava lá. Por quê? Sabia o que ia acontecer? Fazia parte disso?

Foi a vez de a mulher ficar com raiva.

— Acho que você está esquecendo o que aconteceu. — Sua voz ainda era suave, mas Jamie podia ver que ela estava se esforçando para se controlar. — Eu salvei você. Se não fosse por mim, eles teriam levado você também.

Claro. Ela estava no carro. Jamie não tinha visto, só escu­tado a voz antes de desmaiar. Mas não podia haver dúvida. Reconheceu-a de novo.

— A senhora sabe onde ele está? Sabe quem eram eles?

— Não.

— Preciso procurar o Scott.

— Sei como você está se sentindo, Jamie. Posso chamá-lo assim? Você disse que estava procurando o Scott, portanto acho que isso responde à minha pergunta sobre quem é você. — De novo ele não respondeu, por isso ela continuou: — Só tente pensar direito por um minuto. Você quer encontrar seu irmão. Mas por onde vai começar? — Ela foi até uma mesa e pegou um pequeno objeto prateado, com a forma de uma bala, mas com uma agulha se projetando numa ponta e um tufo preto na outra. — Sabe o que é isso?

Jamie sentiu o sangue esfriar.

— Tirei isso do seu ombro — disse a mulher. — Deus sabe o que havia aí, mas você dormiu durante onze horas. Seu ir­mão também foi acertado, e nesse momento pode estar em qualquer lugar. Você pode procurar em toda a Reno, se qui­ser. Pode procurar em todo o estado de Nevada. Mas não vai encontrá-lo.

Ela estava certa. Jamie sabia. Mas isso não importava. Ele não podia ficar aqui, sem Scott.

— Tenho de falar com o tio Don.

— Don? — A mulher piscou. — Quer dizer, Don White? O homem dos cartazes? Ele é seu tio?

— Não. Ele não é nada nosso, mas obriga a gente a cha­mar assim. Ele deve estar imaginando aonde nós fomos. Ele estava no teatro ontem à noite. Talvez possa ajudar.

— Não tenho tanta certeza...

— Não me importa o que a senhora acha. — Jamie respi­rou fundo. — Nós alugamos uma casa. Fica em Sparks. Ele e Marcie. Preciso contar o que aconteceu. Eles vão contatar a polícia.

A mulher pensou por um momento. Depois assentiu.

— Por que não liga para eles?

Havia um telefone na mesa ao lado da cama. Jamie pegou-o e digitou o número. Esperou, ouvindo tocar do ou­tro lado. Ninguém atendeu. Deixou tocar uma dúzia de ve­zes. Depois desligou.

— Se eles se importassem com você, já teriam ligado para a polícia — disse a mulher.

— Como a senhora sabe que não ligaram?

A mulher suspirou.

— Certo. Eu ainda não vi os jornais.

— A senhora sabia o que aconteceu. — Jamie não con­seguiu manter a hostilidade longe da voz. — Por que não li­gou para a polícia?

— Queria falar com você primeiro.

— Fantástico. Agora já falou comigo. Quanto tempo dis­se que estou aqui? Onze horas. Isso significa que deu a eles onze horas para sumir com o Scott. Nem sei o seu nome, mas a senhora não tem nada a ver comigo. Só quero ir para casa.

— Não estou impedindo! — A mulher levantou as mãos num gesto de rendição. — Quer ir para casa? Tudo bem! Na verdade, eu levo você até lá. Certo?

Jamie assentiu.

— Então vamos.

A mulher foi até a porta e os dois saíram. Jamie franziu os olhos quando o sol o atingiu. A porta se abria para um esta­cionamento e ele podia sentir o calor ricocheteando no asfalto, assando-lhe a testa e as bochechas. O ar cheirava a borracha queimada e gasolina. O Bluebird Inn era um prédio antiquado, de dois andares, quase todo de madeira pintada de branco. O nome se devia à ave oficial do estado de Nevada, mas se alguma coisa com asas chegasse perto do lugar, mais prova­velmente seria um avião. O motel fora construído exatamen­te à frente da pista, e enquanto estava ali parado Jamie ouviu o rugido de um jato — mas não dava para ver se estava deco­lando ou pousando.

— Você sempre se hospeda aqui? — perguntou ele. A mulher olhou-o.

— Sempre fico perto de aeroportos.

Por quê? O que ela queria dizer? Mas Jamie não pergun­tou. Qualquer que fosse o problema dela, não tinha nada a ver com ele.

A mulher tinha um carro alugado, um Ford Focus pratea­do, de quatro portas, e Jamie viu que ela havia chamado alguém para consertá-lo de manhã cedo. A janela fora con­sertada. Mas um retrovisor lateral estava faltando. Isso pode­ria lhe custar um bocado quando devolvesse o carro. Jamie sentou-se no banco da frente e fechou a porta.

— Alicia McGuire — disse a mulher.

— O quê?

— Você não perguntou meu nome, mas achei que gos­taria de saber, mesmo assim. — Ela ligou o motor. — Então, aonde vamos?

— Fica perto da 80. Posso mostrar.

Seguiram em silêncio. Jamie olhava pela janela enquanto os escritórios e hotéis de Reno passavam. Conhecia todos. Tinham-se tornado familiares para ele como as características de seu próprio rosto. No entanto, de algum modo, agora pareciam muito distantes. Enquanto subiam a rampa e en­travam na via expressa indo para o leste, ele sentiu um deslo­camento. Era como se alguém tivesse pegado uma tesoura gigantesca na noite anterior e cortado uma linha reta através de sua vida.

O ar-condicionado estava no máximo e Jamie deixou a corrente de ar passar sobre ele, separando as roupas da pele. Esperava que isso o acordasse. Ainda estava grogue, talvez por causa da droga, talvez por causa do choque devido ao acontecimento. Tentava entender os eventos do teatro, mas não conseguia. Pelo menos quatro homens, talvez mais, ti­nham vindo pegá-lo e ao Scott. Dois estavam na platéia. Os outros haviam aparecido do nada. Mas a coisa toda fora pla­nejada cuidadosamente. Isso era óbvio. E se não fosse o Jagger, os dois nem teriam saído do teatro.

O cachorro de Frank Kirby. Jamie se lembrava da luta e esperava que o animal estivesse bem. Frank vivia se preocu­pando com o cachorro... era velho e tinha coração fraco. Jamie sabia que os homens que estavam no teatro matariam Jagger sem ao menos pensar duas vezes, e eram as mesmas pessoas que haviam levado Scott. Bom, Jamie iria encontrá-los, com ou sem a ajuda do tio. Eles não o conheciam. Não sabiam contra o que estavam indo.

— É a próxima saída — disse.

Don White e sua mulher haviam alugado uma casa em Sparks, subúrbio de Reno, poucos quilômetros a leste. Alicia deixou a via expressa e desceu para um xadrez de ruas boni­tas, arborizadas, que pareciam a um mundo de distância do centro da cidade. No entanto as mesas de pôquer e as má­quinas caça-níqueis haviam se espalhado até ali. Duas torres enormes, como suportes de livros que não combinavam, erguiam-se do outro lado da via expressa. Era o Nugget, ou­tro enorme complexo de cassino e hotel. Muitas pessoas que moravam em Sparks trabalhavam ali como garçons, crupiês, faxineiros ou seguranças. Não havia como escapar. Aquilo parecia olhar de cima para baixo, com um riso de desprezo pela pequena comunidade, como se dissesse: sou o seu dono. Você deve a vida a mim.

Cada casa em Sparks era diferente e cada qual se erguia em seu próprio terreninho. Havia chalés feitos de tijolos, ban­galôs de madeira com postigos pintados e varandas, vilas cons­truídas em estilo espanhol com portões de ferro fundido e paredes de estuque branco. Algumas casas tinham sido en­feitadas com sinos de vento, bonecos e vasos de plantas. Outras haviam ficado sem manutenção. Tudo dependia de quem morasse nelas — e parecia que todo tipo de gente es­colhera esse bairro como lar.

O número 402 da rua Dez ficava na extremidade de cima, perto do cassino. Destacava-se imediatamente porque era a construção mais dilapidada da rua, com um jardim que ficara selvagem e uma churrasqueira enferrujada caída de lado no capim. Tinha varanda com tela ao redor, mas cheia de bura­cos, como se tivesse sido esfaqueada. A tinta estava se sol­tando. Os caixilhos das janelas estavam enferrujando. Um único aparelho de ar-condicionado se grudava numa parede como se estivesse agarrado pelas unhas. A casa tinha dois andares, com garagem de um dos lados. Havia uma perua estacionada na entrada e, pela aparência, ela não saía do lu­gar havia muito tempo.

— É aí — disse Jamie.

— Meio que adivinhei. — Alicia não parou na frente. Se­guiu por mais algumas casas e parou embaixo de uma acácia. — Parar na sombra — explicou.

Jamie assentiu.

— Obrigado — disse. E estendeu a mão para a maçane­ta da porta.

— Espere um minuto! — Alicia o encarou. — O que você acha que está fazendo?

— Tudo bem. É aqui que eu moro. Você não precisa ir.

— Não está bem! Simplesmente não posso deixar você aqui. Quero ver se você está em segurança.

— Então espere no carro...

— Não! — Alicia desligou o motor. — Vou com você. — Jamie abriu a boca para questionar mas ela o impediu. — Você esteve fora a noite inteira. Talvez fosse bom se tivesse alguém para explicar o que aconteceu, para apoiar sua história.

Jamie pensou um momento, depois confirmou com a ca­beça. Os dois saíram do carro e voltaram pela calçada, pas­sando pela casa vizinha a dele. Ela pertencia a uma família com duas filhas de mais ou menos 10 ou 12 anos. Jamie cos­tumava vê-las brincando no gramado da frente, e suas bici­cletas estavam ali agora, paradas perto de um balanço. Mas ele nunca havia falado com elas, durante todo o tempo em que morava em Sparks. As garotas provavelmente tinham re­cebido ordem de evitá-lo e ao Scott. Ninguém jamais chega­va perto do número 402. Era como se todo o bairro soubesse que aquelas não eram pessoas que alguém desejaria conhecer.

Subiu três degraus de concreto e atravessou a varanda até a porta da frente. Agora estava satisfeito porque aquela mulher vinha junto. De jeito nenhum Don ou Marcie poderia culpá-lo pelo que havia acontecido na véspera, mas o problema era que os dois provavelmente atacariam primeiro e fariam per­guntas depois. Ele havia desaparecido por mais de doze ho­ras. Pelo menos Alicia lhe daria tempo para explicar o motivo. Eles não ousariam machucá-lo enquanto ela estivesse lá.

No último minuto parou e tocou a campainha. Subitamen­te havia lhe ocorrido que não podia simplesmente entrar com uma estranha completa. Ainda não era meio-dia. Marcie pro­vavelmente não estaria vestida decentemente. Tentou escutar qualquer som de vida, uma porta batendo ou o ruído de pés descendo a escada, mas não houve nada. Como sempre a televisão estava ligada na sala. Isso não significava coisa ne­nhuma. Marcie a ligava de manhã cedo e algumas vezes deixa­va assim o dia inteiro, mesmo quando estava escutando música no rádio no mesmo cômodo. Ele pôde ouvir um homem len­do um noticiário. Tocou pela segunda vez. Não houve resposta.

— Eles não estão — disse Jamie.

— Você quer esperar por eles?

— Quero. Não precisa se preocupar comigo. Pode me deixar aqui, se quiser.

— Não. Vou entrar também.

Ela estava decidida. Jamie deu de ombros e abriu a porta. Sabia que não estaria trancada. Nunca estava. Não havia nada que valesse a pena roubar na casa e nenhum móvel pertencia a eles, de qualquer modo. Don havia alugado o lugar através de uma agência. Os donos estavam em outro estado, e quem quer que fossem, certamente não sentiam orgulho da casa. Os carpetes eram finos, o papel de parede se soltava e as lâm­padas pendiam sem luminárias. Os dois garotos tinham col­chões no chão, num dos quartos de cima. Don e Mareie tinham uma cama bamba no quarto ao lado. Na cozinha havia uma mesa e quatro cadeiras. Só isso. A casa era pouco mais do que uma casca. Se fosse totalmente abandonada, ninguém notaria qualquer diferença.

“...faltando menos de cinco meses para a eleição, nenhum dos dois candidatos se distanciou, a pressão é definitivamen­te enorme. Quem será o próximo presidente dos Estados Unidos? Parece que só o tempo dirá. Sou Ed Radway, infor­mando de Phoenix, Arizona...”

Não havia qualquer platéia na sala para o apresentador de televisão, que mesmo assim continuou falando, procurando contato ocular com duas poltronas vazias.

— É aqui que você mora? — Alicia não conseguia tirar a consternação da voz.

— Nós só alugamos — explicou Jamie. Estava sentindo vergonha, mesmo não tendo motivo. — Você não precisa fi­car — acrescentou.

— O que foi? Ainda está tentando se livrar de mim?

— Não.

Mas estava. Não gostava que ninguém o visse ali. Não gos­tava de admitir que era ali que morava. Alicia estava olhando-o e Jamie percebeu que mal havia falado com ela desde que tinham saído de Reno — e quando falava, era apenas para ser grosseiro. No entanto o que ela dissera no hotel era ver­dade. Ela o havia salvado. Tinha arriscado a vida, dirigindo o carro no meio de um tiroteio. E ele nem havia agradecido.

— Desculpe — disse ele.

— Esquece. — Alicia olhou ao redor. — Você está certo. Parece que não tem ninguém em casa. O que essa mulher, Marcie, faz para viver?

— Na verdade não faz nada.

— Então como vocês...

Mas Alicia não terminou a pergunta. Os dois viram ao mesmo tempo. A imagem na televisão havia mudado. Um garoto magro com cabelos compridos escuros e pele pálida estava encarando-os. Com um estranho choque, uma sensa­ção de irrealidade, Jamie percebeu que estava olhando para si mesmo.

“...procurado pelo assassinato de seu responsável legal, Don White”, estava dizendo o repórter.

A imagem se dividiu em duas. Jamie e Scott lado a lado. Eram obviamente gêmeos, mas na tela de televisão não pare­ciam tão idênticos.

“Scott e Jamie Tyler são gêmeos idênticos. Apesar de te­rem apenas 14 anos, estariam armados e seriam perigosos. A polícia insiste para que as pessoas não se aproximem deles”.

— Isso é loucura... — sussurrou Jamie.

— Sssh! — Alicia estava olhando para a tela.

A imagem mudou para o Teatro Plaza Reno. Devia haver quatro ou cinco repórteres do lado de fora, cada um com seu microfone e seu cinegrafista, clamando por atenção. Suas vo­zes podiam ser ouvidas ao fundo enquanto a repórter local — uma loura de aparência agitada — contava a história.

“Scott e Jamie Tyler estavam se apresentando aqui, neste teatro no centro de Reno”, estava dizendo ela. “Faziam parte de um suposto número de leitura de mente, que usava truques simples para enganar a platéia. Segundo testemunhas, os dois garotos estavam tremendamente envolvidos com drogas e na noite passada parece que perderam o controle, roubaram a arma de seu guardião, Don White, e se voltaram contra ele...”

— É tudo mentira! — exclamou Jamie. Virou-se para Ali­cia, subitamente com medo de que ela não acreditasse. — O que ela está dizendo? Nada disso é verdade.

— Jamie...

— Ele nem tinha arma!

— Escute, Jamie...

Mas nesse momento houve um estrondo de sirenes do lado de fora da casa, que só podia significar uma coisa. A polícia havia chegado.

Para Jamie, aquilo parecia simplesmente outro pesadelo, pior até do que o da noite anterior. Era como se uma impos­sibilidade se empilhasse sobre outra, em cima dele, e quase esperava que o caubói cinza de seu sonho pulasse sobre ele, saindo de trás do sofá, só para completar o quadro. Ouviu o guincho de pneus, o som de carros parando na rua. Ao mes­mo tempo o chiado de transmissores de rádio encheu o ar. Portas se abriram e se fecharam com estrondo. Alguém, em algum lugar, gritou uma ordem:

— Por aqui.

Foi Alicia que assumiu o controle da situação. Enquanto Jamie ficava imóvel, enraizado, ela o agarrou e subitamente estava muito perto.

— Temos de ir — disse, ansiosa. — Você não pode ser encontrado aqui.

— Mas...

— Você ouviu o que disseram no noticiário. É o que to­dos eles pensam. Armaram para você! Se a polícia pegá-lo, você está acabado. Temos de ir.

— Para onde?

Jamie se virou para a porta da frente, mas já era tarde demais. Ouviu passos vindo pela entrada de veículos. O quin­tal da frente fora coberto de cascalho e as botas faziam baru­lho. Alicia entendeu. Esse caminho estava bloqueado.

— Para a cozinha! — ordenou ela.

Jamie estava com raiva de si mesmo. A situação estava completamente fora de controle. Se Scott estivesse ali, saberia o que fazer. De novo sentia-se fraco e impotente, permitin­do-se ser empurrado de um lado para o outro... desta vez por uma mulher que só havia conhecido algumas horas antes. Felizmente Alicia tinha assumido o comando. Uma porta dava na cozinha. Ela abriu-a e os dois passaram. E foi então que perceberam que não estavam sozinhos na casa, afinal de contas.

Marcie estava caída no chão, e era óbvio — mesmo sem a poça de sangue — que estava morta. Os braços e as pernas se esparramavam quase comicamente e a bochecha estava grudada no linóleo como se ela tentasse ouvir alguma coisa no porão embaixo. Em vida fora uma mulher baixa e atarra­cada. A morte, de algum modo, a havia comprimido ainda mais, de modo que ela nem parecia exatamente humana. Uma boneca gorda, estufada. Mas alguém havia atirado nela duas vezes e deixado o estofo sair.

Jamie tentou dizer alguma coisa, mas as palavras não saíam. Ouviu a porta da frente se abrir do outro lado da sala de estar e percebeu que os policiais já estavam na casa. Não tinham se incomodado em tocar a campainha. Alguém mur­murou alguma coisa, mas era impossível identificar as pala­vras com o barulho da TV. Enquanto isso, Alicia estava olhando ao redor. Uma porta dupla, de correr, dava no quintal dos fundos, mas ela não sabia se estaria trancada ou não, e não tinha tempo para descobrir. Havia outra porta ao lado. Pe­gando Jamie, tirou-o da cozinha e entraram numa despensa estreita. Havia uma máquina de lavar, uma secadora, algu­mas prateleiras com latas de comida. Ela parou e levantou a mão, alertando para Jamie não se mexer. Ao mesmo tempo a polícia entrou na cozinha.

— Ah, meu Deus! — Jamie ouviu um dos policiais en­gasgando.

— Isso sem dúvida é uma beleza. — Uma segunda voz.

— Parece que os garotos vieram para casa ontem à noite.

Havia uma saída da despensa. Outra porta na extremida­de. Alicia sinalizou e ela e Jamie foram nas pontas dos pés até lá. Devia haver pelo menos três policiais na cozinha, separados deles apenas por uma divisória fina. A porta estava trancada, mas a chave se encontrava ali. Ela estendeu a mão e virou-a...

No momento em que um policial entrava na despensa atrás deles. O homem ficou parado, olhando-os, como algo saído direto de um filme de Hollywood, com a camisa preta, de mangas curtas, e óculos pretos que escondiam totalmente os olhos. Era jovem, branco e malhava. As ferramentas feias de sua profissão pendiam do cinto: revólver, lata de spray de pi­menta, algemas e cassetete. Por um instante ele não disse nada. Depois sua mão baixou para a arma.

Jamie estivera atrás de Alicia. De repente, deu um passo adiante, de modo a ficar diretamente virado para o policial. Ela o viu levantar os olhos e havia algo no rosto do garoto que Alicia não pôde reconhecer, uma espécie de intensida­de que parecia quase do outro mundo.

— Não tem ninguém aqui — disse ele baixinho. — A despensa está vazia.

O policial encarou-o, como se perplexo pelo que havia acabado de escutar. Alicia esperou que ele dissesse alguma coisa. Mas não disse. Seus olhos estavam vazios. Ele assentiu devagar e saiu de novo.

Jamie e Alicia escutaram vozes na cozinha enquanto o policial se juntava de novo aos outros.

— Alguma coisa?

— Não. Não tem ninguém lá. É só um cômodo vazio.

— Ei, Josh. Por que não diz aos paramédicos para vir aqui? Eles podem começar a limpeza.

Jamie olhou para Alicia, como se a desafiasse a fazer per­guntas. Mas não era hora. Alicia abriu a porta dos fundos e os dois passaram para a garagem. Estava vazia, a não ser por um cortador de grama enferrujado e um freezer. Don havia levado seu carro para o Teatro Plaza Reno e, claro, o veículo não fora trazido de volta. As duas portas estavam fechadas, mas havia uma janela nos fundos. Jamie a abriu e os dois saíram. Agora a garagem se encontrava entre eles e os policiais que poderiam estar montando guarda na frente. Jamie se certificou de que não havia ninguém por perto, depois se es­gueirou atrás da casa vizinha, passando pelo jardim onde as duas meninas haviam brincado. Só quando estava do outro lado da casa, virou para a rua. O carro de Alicia estava para­do bem à frente dele.

Olhou uma última vez para a casa onde havia morado nos últimos seis meses. A entrada já estava isolada com fita da polícia. Havia policiais em toda parte: na varanda, no gramado da frente, levando equipamentos para dentro e para fora. Três radiopatrulhas estavam paradas na rua. Sirenes distantes anunciavam outras a caminho.

Ninguém notou quando Jamie e Alicia atravessaram a calçada e entraram no carro. E se alguém tivesse se virado, presumiria que os dois seriam vizinhos. Só quando estavam dentro do carro — e antes de ter ligado o motor — Alicia se virou para ele.

— O que foi aquilo? — perguntou ela. — O que você fez com o policial? Como fez com que ele... ? — A voz dela ficou no ar.

— Não posso dizer. Não sei o que eu fiz. E não importa. Porque nunca mais vou fazer.

Alicia assentiu e virou a chave. Um dos policiais olhou na direção deles, mas não fez nada para impedi-los. Alicia engrenou o carro e os dois foram embora.

 

Era fim de tarde. Alicia havia conseguido dois quartos contí­guos no Bluebird Inn e tinha aberto a porta que ligava os dois. Jamie estava sentado à mesa em sua metade, olhando uma variedade de comidas que ela havia espalhado em pratos de papel: almoço, jantar ou alguma coisa intermediária. Mas ele não estava com fome. Nem sabia quanto tempo teria se pas­sado desde que ele e Alicia haviam saído de Sparks. Sentia-se oco. Em algum lugar, por dentro, uma voz dizia que nesse momento deveria estar indo para o teatro, preparando-se para a primeira apresentação da noite. Mas não haveria apresen­tação. Isso estava acabado, e nada mais seria igual.

A televisão continuava ligada. Um intervalo comercial aca­bou e teve início outro boletim de notícias. Agora estavam informando dois assassinatos. Don White, morto a tiro no tea­tro, e sua companheira, Marcie Kelsey, morta com a mesma arma em sua casa alugada. O nome mal se registrou na mente de Jamie. Sempre a conhecera como Marcie ou Mars. E agora ela estava morta e ele era procurado pelo assassinato. Jamie

Tyler, irmão gêmeo de Scott Tyler. Ambos desaparecidos. De­linqüentes. Viciados em drogas.

— Já chega! — Alicia pegou o controle remoto e des­ligou a televisão. — Nada disso é verdade, então de que adianta ouvir?

Jamie ficou quieto.

— E você não vai somente ficar aí parado. Tem de comer alguma coisa. — Alicia empurrou uma bandeja de plástico com salada na direção dele. Jamie olhou o rótulo. SALADA CÉSAR DE BAIXAS CALORIAS DA TIA MARY Havia uma foto de uma senhora de avental. Ela não era de verdade, claro. A refeição teria sido preparada numa fábrica, resfriada e posta na bandeja. As folhas de alface também pareciam falsas.

— Não estou com fome.

— Claro que está. Você não comeu o dia todo. — Alicia suspirou. — Temos que pensar juntos, Jamie. A polícia está pro­curando você. Seu irmão sumiu. Duas pessoas morreram. Acha mesmo que pode ajudar alguém simplesmente sentado aqui, assim? Coma um pouco e vamos falar sobre o que faremos.

Ela estava certa. Jamie cutucou um pouco da alface com um garfo de plástico e depois pegou um pedaço de presun­to. No motel não havia instalações para cozinhar, e Alicia es­colhera comida que pudessem comer direto da embalagem. Também havia biscoitos, frutas, queijo e pão. Ela havia pega­do uma cerveja no frigobar do motel. Jamie pegou um Sprite. Puxou o anel da lata e o gás que saiu sibilando pareceu des­trancar alguma coisa dentro dele. Estava com fome, afinal de contas. E com sede também. Bebeu a maior parte do Sprite e começou a comer.

— Temos de conversar — continuou Alicia. Apesar do que havia dito, ela mesma não estava comendo. — Aquele tru­que que você fez na casa da sua tia. Foi incrível. Vai me con­tar como fez?

Jamie balançou a cabeça.

— Não quero falar nisso.

— Bem, deixe-me sugerir uma coisa. O número que você e seu irmão faziam no palco. Não era um número. Vocês eram mesmo capazes... de ler o pensamento um do outro. Estou certa? — Jamie não respondeu e ela continuou: — E acho que o que vi lá na casa foi algum tipo de controle mental.

Jamie havia terminado o Sprite. Estava segurando a lata e subitamente fechou os dedos, amassando-a.

— Você não entende. Eu nunca falo dessas coisas. Com ninguém. A não ser o Scott. — Ele olhou-a e ela viu que seus olhos estavam cheios de raiva, desafiando-a a questionar. — Não sei como é. Você não faz idéia. E não vou contar.

— Tudo bem. Desculpe. — Alicia tomou um pouco de cerveja direto da garrafa. Pensou um momento. — Olha, sei que isso é difícil para você. Mas não vamos chegar a lugar nenhum brigando um com o outro. Talvez ajudasse se eu con­tasse minha história. No momento sou uma completa estra­nha. Mas não foi só coincidência eu estar no teatro ontem à noite. Eu estava lá por um motivo.

— Algo a ver com aquela foto. Daniel... Alicia pousou a cerveja.

— Exato. Daniel. É disso que se trata.

Ela se inclinou adiante, pousando os cotovelos na mesa. Depois começou:

— O garoto da foto, Daniel, é meu filho. O aniversário dele seria na semana passada. Fez 11 anos em 9 de junho. Mas não sei onde ele está. Nem sei se está vivo. Desapareceu há sete meses e desde então estou procurando por ele.

“Você não precisa saber muito sobre mim, Jamie. Tenho 32 anos. Tenho uma irmã. Meus pais são de Nova Jersey. Há um ano eu estava vivendo na cidade de Washington, traba­lhando para o senador John Trelawny. Talvez você tenha ouvi­do falar dele. Deve ter ouvido. No momento está tentando se tornar o próximo presidente dos Estados Unidos e as pessoas dizem que há uma boa chance de ele ganhar. Pois é, fiquei com ele durante cinco anos, organizando a correspondência, organizando a agenda... esse tipo de coisa. Ele é um bom ho­mem e eu gostava do trabalho.

“A outra coisa que preciso dizer é que fui casada durante um tempo. Meu marido ficou doente e morreu dois anos de­pois de Danny nascer, por isso tive de criá-lo sozinha. Mas de certa forma tive sorte. Tinha uma casinha perto de uma esco­la muito boa. E uma empregada maravilhosa, Maria, que cui­dava de Danny toda tarde até eu chegar em casa.”

Ela respirou fundo.

— E então, perto do fim do ano passado, na primeira semana de novembro, recebi um telefonema de Maria. Era por volta de seis da tarde e eu estava fazendo hora extra. Bom, ela disse que o Danny não tinha chegado da escola. Tinha ten­tado o celular dele mas ninguém atendia, e não sabia o que fazer. Lembro de ter dito para ela ligar para alguns amigos dele e me telefonar se ele não tivesse aparecido até as sete horas. Pensando bem, não acredito em como eu estava calma. Mas Danny costumava ir para casa de algum amigo, ele fazia parte de uma banda e tocava bateria. E estava ensaiando para um show de natal. Nunca me ocorreu que pudesse haver al­guma coisa errada.

“Bom, Maria ligou de novo às sete horas e Danny ainda não havia aparecido, e ninguém tinha idéia de onde ele esta­va. Nesse ponto já havia escurecido e foi então que comecei a me preocupar de verdade. Telefonei para a polícia. O fato de eu ser ligada ao senador Trelawny ajudou. Eles chegaram em uns 10 segundos e o colocaram direto no arquivo de pessoas desaparecidas. Também emitiram um Alerta Âmbar, o que significava que todas as empresas e lojas da cidade tinham sua descrição e sua foto, e era como se estivessem construin­do uma rede de pessoas que fossem procurá-lo. E eu ainda achava que ele iria aparecer. Na verdade podia me ouvir lhe dando uma bronca pelo atraso.”

Ela parou. Houve uma pausa longa.

— Ele nunca mais apareceu. Ninguém tinha visto nada. Nin­guém sabia de nada. Era como se o menino tivesse desapare­cido no ar. Procurei pela casa toda, tentando achar alguma pista de onde ele poderia ter ido. Fui a todos os lugares aonde ele costumava ir. Fui à TV e ao rádio. A foto dele ficou em vitrinas de lojas por toda a cidade e na traseira de caminhões. Mas nada...

— Scott o viu — murmurou Jamie. — Quando você mos­trou a foto. Ele disse que Danny estava esperando você.

Alicia assentiu.

— Eu sei. É a primeira notícia que tenho dele desde que o negócio aconteceu. — Ela engoliu em seco. — É a primeira vez que alguém ao menos sugere que ele está vivo.

Ela se obrigou a continuar.

— Duas semanas antes do Natal tomei uma decisão. A polícia não sabia onde procurá-lo. Ninguém sabia onde ele estava. Mas eu não iria desistir. Por isso me demiti do empre­go e decidi encontrá-lo sozinha. Há muitas organizações que lidam com crianças desaparecidas e entrei em contato com elas. Distribuí panfletos. Revirei a Internet. Comecei a juntar nomes, rostos, horários, lugares. Anotei todos os casos infor­mados no ano passado. Desenhei mapas. Liguei para os pais e falei com eles.

“Para minha surpresa, começou a se formar uma imagem. A princípio não fazia sentido, e achei que talvez eu estivesse imaginando coisas. Mas rapidamente percebi que era verda­de. Havia uma espécie de padrão. Uma série de coincidên­cias. E foi isso que me levou a vocês.

“O que notei foi que, nos últimos seis meses, um grande número de crianças que haviam desaparecido eram o que a gente poderia chamar de especiais. O que quero dizer com isso? Estou falando de crianças com habilidades especiais. Jamie, não vou ficar embromando. Aquelas crianças tinham poderes paranormais. Sei que parece loucura. A gente não deveria mais acreditar nessas coisas no século XXI. Mas mes­mo assim havia um elo nítido...”

Alicia se levantou e foi até o sofá. Abriu uma pasta e pe­gou um maço de documentos. Abriu um deles na frente de Jamie. Havia sido tirado de um jornal local e mostrava a foto de um garoto de olhar bastante intenso, de cabelos curtos. A manchete dizia: JACK TEM VISÃO DO FUTURO.

A matéria não se levava muito a sério. Aparentemente ha­via um menino de 11 anos chamado Jack Pugh, que morava na fazenda da família no Kentucky. Ele tivera um sonho e havia alertado os pais de que uma igreja do local iria pegar fogo. Doze horas depois a igreja foi acertada por um raio e se incen­diou até os alicerces. Felizmente ninguém havia se machucado.

— Seis semanas depois de o jornal publicar essa matéria, Jack desapareceu — disse Alicia. Em seguida pegou um se­gundo pedaço de papel.

Desta vez era uma garota. O nome dela era Indigo Cotton e sua história fora publicada no Miami Herald. Parecia que ela era capaz de dobrar colheres e parar relógios apenas olhan­do para eles. Havia uma foto dela no verso de um papel, en­costada num relógio de armário. O relógio havia parado exatamente ao meio-dia. Segundo a matéria, a menina fora a responsável.

— Ela também desapareceu — disse Alicia. — Dois me­ses depois da publicação da matéria.

Alicia acrescentou mais folhas à pilha. Havia um garoto que conseguira prever o vencedor cinco vezes seguidas numa pista de corrida de sua cidade. Outro garoto que, sem se me­xer, havia queimado todas as lâmpadas de sua escola. Uma garota que falava com fantasmas. Um menino autista que sabia o nome de todo mundo que encontrava, antes mesmo de ser apresentado. Outro par de gêmeos que parecia viver um na mente do outro.

— Todos desapareceram? — perguntou Jamie.

— Uma dúzia em apenas seis meses. Isso pode não pare­cer muita coisa, Jamie, mas eu sei como as estatísticas funcio­nam e posso garantir que é completamente incrível. Claro, um monte de outras crianças também sumiu. Mas isso era uma coisa bem diferente. Parecia claro que alguém estava delibera­damente escolhendo essas crianças.

— Então você foi à polícia?

— Não. — Alicia sentou-se de novo. — Leia as matérias. Nenhuma delas leva o assunto a sério. Quero dizer... uma criança capaz de dobrar colheres? Outra que fala com mor­tos? “HISTÓRIAS DO OUTRO MUNDO”. “Façanha fúnebre: Fulaninha fofoca com fantasmas”. Leia. Claro, assim que essas crianças desapareceram, todo mundo as tratou com muita seriedade. Mas o negócio paranormal foi simplesmente esque­cido. Não era importante. Na verdade nem foi mencionado.

Jamie pensou nisso por um momento. Então algo lhe ocor­reu subitamente.

— E o Daniel?. Alicia assentiu.

— Havia uma matéria sobre ele, também. Na época eu não queria que fosse publicada e me incomodei quando isso aconteceu. Mas o negócio é que um bocado de coisas estra­nhas aconteceram com o Danny também. Ele costumava ter premonições. Não eram sonhos... eram mais como senti­mentos. Uma vez ele me impediu de entrar num trem. Tinha apenas 6 anos e ficou histérico. Jogava coisas pela sala, e no fim eu cedi. Não poderia deixá-lo com Maria, daquele jeito. Por isso não fui. E sabe o que aconteceu? Alguns dias depois fiquei sabendo que houve um incidente naquele trem. Se eu estivesse viajando naquele dia, poderia ter sido comigo? Não sei...

“Depois ele fez de novo, só que dessa vez foi na escola. Avisou a um garoto para não ir para casa. Naquela mesma tarde um ônibus derrapou na rua e entrou direto por uma parede da casa do garoto. Entrou na cozinha e derrubou a maior parte do andar de cima. Claro, todo mundo na escola ficou falando daquilo, e um jornal local fez a matéria.”

— E você acha que alguém pode ter lido — disse Jamie.

— É, acho que alguém leu. Acho que alguém foi pegar o Danny porque ele era especial. E nos últimos seis meses estive examinando os jornais, procurando garotos como vocês. Porque, veja bem, se realmente há alguém procurando crianças com poderes, talvez eu possa chegar antes. Talvez possa descobrir quem são eles e descobrir o que fizeram com meu menino.

“Agora você sabe por que eu estava em Reno. Por acaso vi uma matéria numa revista. Era sobre dois garotos que fa­ziam um número de leitura de mentes. O escritor disse que tinha visto duas vezes e não podia deduzir, de modo nenhum, como eles faziam aquilo. Por isso vim ver pessoalmente...”

— E chegou bem na hora.

— Não acreditei quando aqueles homens foram atrás de vocês com dardos de sonífero e armas. — Por um momento os olhos de Alicia se iluminaram e ela não conseguiu afastar a empolgação da voz. — Mas isso prova o que estou dizendo. Há alguém por aí que realmente está atrás dessas crianças especiais. Eles pegaram seu irmão e, para onde quer que o tenham levado, é onde Danny também pode estar.

— Não entendo uma coisa — disse Jamie. — Suponhamos que você esteja certa e que alguém esteja seqüestrando crianças com poderes especiais. Por que fazem isso? Qual é o sentido?

— Pode ser o governo, a CIA ou alguém assim. Pense um minuto. Se você realmente pudesse ler a mente de alguém, seria uma arma perfeita. Poderia ser espião. Poderia ser qual­quer coisa!

— Você acha mesmo que eles acreditam nesse tipo de coisa?

— Claro que acreditam, Jamie. Eles gastam milhões de dólares todo ano experimentando com paranormalidade. E há grandes corporações com programas, trabalhando com crianças especiais e as famílias delas. Até entrei em contato com uma. Achei que eles poderiam ajudar.

— Que corporação era? Alicia pousou a cerveja.

— É uma multinacional gigantesca. Está metida em comu­nicações, saúde, segurança, energia... praticamente tudo. Mas também tem uma divisão que se especializa em pesquisa para­normal. — Ela fez uma pausa. — Eram as pessoas que foram atrás de vocês no teatro. O nome é Corporação Crepúsculo.

 

A sala da diretoria ficava no 66° andar do Prego — nome do mais novo e mais espetacular arranha-céu na silhueta de Hong Kong. O Prego fora construído em ângulo, de modo que se inclinava na direção da colina Orchard e para longe do mar. Parecia feito de aço sólido, ilusão causada por vidros espe­lhados em todas as janelas. Os últimos três andares, do 64 ao 66, eram circulares e mais largos do que o resto do prédio. Visto de Kowloon, do outro lado do porto de Vitória, o prédio realmente parecia um prego gigantesco que fora cravado no coração da cidade.

Havia apenas três homens na sala da diretoria, mas cin­qüenta poderiam se acomodar ali com facilidade. Uma mesa de reuniões, feita de madeira preta e brilhante, estendia-se por toda a extensão da sala com cadeiras de couro preto postas a intervalos exatos. Dois dos homens já estavam sentados, examinando papéis, preparando-se para a reunião que esta­va para começar. O terceiro se encontrava de pé, diante das janelas que iam do piso ao teto e curvas num grande arco, desfrutando da vista.

O Prego era a sede mundial da Corporação Crepúsculo. O homem de pé, sozinho, era o presidente.

Diferentemente do cargo, ele não tinha nome — ou, se tinha, nunca usava. Era apenas o presidente, ou Sr. Presiden­te, quando falavam diretamente com ele. Tinha 60 e poucos anos, mas fizera o máximo para disfarçar a idade com várias operações plásticas. Isso o havia deixado com um rosto que era mais jovem do que deveria e ao mesmo tempo estra­nhamente pouco natural, como se pertencesse a outra pes­soa. Tinha cabelos brancos e densos que poderiam ser uma peruca, mas na verdade eram seus, e óculos meia-taça pra­teados. Como sempre, usava terno, feito sob medida por seu alfaiate pessoal.

Eram sete da manhã e o sol ainda não havia nascido to­talmente. A vastidão de Kowloon ainda estava meio adorme­cida, os bares e as lojas de eletrônicos brevemente fechados antes do início de mais um dia. O céu chamejava em verme­lho. O presidente achou aquilo apropriado. Kowloon signifi­ca “nove dragões”, e lhe parecia, olhando pela janela, que todos haviam bafejado ao mesmo tempo.

Atrás dele um dos outros dois homens falou:

— Eles estão se conectando agora, Sr. Presidente.

O presidente foi até seu lugar na cabeceira da mesa e sentou-se. Pousou as mãos na superfície polida e se ajeitou. Havia 13 telas de plasma montadas ao redor da sala e uma depois da outra se acendeu enquanto os outros executivos, em diferentes partes do mundo, se conectavam. Uma webcam sobre a mesa apontava para o presidente, levando sua ima­gem para fora. Em Los Angeles eram quatro da tarde. Em

Londres era meia-noite. Mas a hora do dia não tinha impor­tância. Esta era a reunião mensal dos principais executivos da Corporação Crepúsculo, e nenhum deles ousaria se atrasar sequer um minuto.

— Bem-vindos, senhoras e senhores. — Como sempre, o presidente era o primeiro a falar. Tinha uma voz desagradá­vel, gutural, como se estivesse doente. Falava muito baixo e sua voz tinha de ser amplificada durante a transmissão. Ele não possuía sotaque óbvio. Era um empresário internacional e havia conseguido desenvolver uma voz internacional.

— Creio que não preciso lembrar que este é um momen­to crítico para todos nós — continuou. — É um momento de mudança no mundo. Tudo por que estivemos trabalhando em todos estes anos está para ser realizado. Os negócios nunca estiveram melhores, mas neste momento há muito mais coi­sas em jogo do que o simples lucro ou o prejuízo. Temos o projeto Psi. Temos notícias da América do Sul. E, claro, temos a próxima eleição... a corrida para se tornar o homem mais poderoso do mundo. — Ele parou e foi quase como se uma névoa fina tivesse passado sobre seus olhos. — Não preciso dizer, senhoras e senhores, que desta vez não podemos nos dar ao luxo de cometer erros.

Parou. Ninguém se mexeu. As imagens nas telas de televi­são estavam tão imóveis que pareciam acidentalmente conge­ladas. A mais de 3 mil quilômetros dali, o satélite particular da Corporação Crepúsculo, que tornava possível essa teleconferência, continuava sua órbita ao redor do mundo, captan­do os sinais e transmitindo para os diferentes países. E era como se algo do vazio negro do espaço estivesse sendo man­dado junto com eles. As imagens eram mortas. As 12 salas com seus 12 televisores não pareciam conter nenhuma vida.

— Comecemos por Nova York. A eleição. O que pode informar?

A tela do executivo de Nova York estava mais ou menos na metade da sala. Era um homem forte, de ombros quadra­dos, que passara vinte anos no exército antes de passar para a vida empresarial, e isso era visível. Seu nome era Simms.

— É uma coisa difícil de deduzir, senhor — informou ele. — E, o que quer que aconteça, a diferença será mínima... talvez apenas um ou dois estados. O nosso homem está se saindo melhor do que o esperado, mas até agora não conse­guimos causar danos sérios em Trelawny.

— Propaganda?

— Senhor, fizemos propagandas sugerindo que Trelawny é frouxo com os criminosos e com a imigração. Dissemos que ele é covarde e mentiroso. Até conseguimos colocar matérias em jornais sugerindo que ele pode ser gay. Mas nada parece prejudicá-lo. Por algum motivo as pessoas gostam dele, e neste momento todas as indicações são de que os dois estarão ca­beça a cabeça em novembro.

— Baker deve ganhar. Não pode haver outro resultado. Trelawny não pode ser o presidente.

— Bom, afora matar John Trelawny, não sei o que pode­mos fazer.

— Acho, Sr. Simms, que o senhor deveria considerar to­das as possibilidades.

— Sim, senhor.

Em seguida o presidente voltou a atenção para uma tela perto dele, do lado direito.

— Poderia, por favor, fazer seu relatório? — disse.

— Certamente, Sr. Presidente.

A mulher na tela de plasma olhava diretamente para a sala. Mais parecia uma professora do que uma empresária, com óculos grandes demais para o rosto, cabelo grisalho muito curto e pescoço comprido e fino. Vestia-se de preto. Estava falando de um escritório em Los Angeles, e ainda que lá fora o sol estivesse luminoso, nada dele tivera permissão de al­cançá-la. Havia uma sombra em seu rosto. A pele era pálida. Como se estivesse iluminada pela lua.

O nome dela era Susan Mortlake.

— Tenho notícias boas e ruins — começou. — Faz quase um ano e meio que começamos o projeto Psi, mas talvez te­nhamos obtido um bom resultado. Parece que finalmente conseguimos descobrir dois Guardiões.

Isso causou uma agitação na sala. As cabeças sem corpo nos televisores se viraram, mesmo que uma não pudesse de fato ver a outra. Os dois homens que tomavam notas rabis­cavam furiosamente. Um deles virou uma página.

— Ainda é muito cedo para ter certeza total de que eles são quem achamos que sejam — continuou a mulher. — O fato é que examinamos centenas de crianças que demonstra­ram algum nível de poder psíquico. Telepatas, incendiários, clarividentes... qualquer coisa fora do comum. Metade delas, claro, se mostrou uma perda de tempo. Algumas se muda­ram antes que pudéssemos rastreá-las. Mas quanto ao resto... conseguimos tomar posse de 17 das mais promissoras e esti­vemos fazendo experiências com elas nas nossas instalações, em Silent Creek. Mas agora parece que todos os esforços po­dem ter sido perda de tempo. Temos um dos Guardiões em nosso poder, estou certa disso. Até agora só pudemos iniciar um exame breve, mas é óbvio que os poderes dele são muito maiores do que qualquer coisa que já encontramos.

— Por que só estão com um deles? — perguntou o presidente.

— Esta é a notícia ruim, Sr. Presidente. — Susan Mortlake fez uma pausa. — Os garotos, Scott e Jamie Tyler, estavam fazendo um número de telepatia num teatro de Reno. Foi o responsável por eles, que também era produtor do show, que primeiro chamou nossa atenção para os dois. Estava bastan­te satisfeito em que nós os pegássemos em troca de uma quantia em dinheiro. Se bem que, claro, era nossa intenção matá-lo. Fizemos isso. Montei uma operação bastante sim­ples para pegar os garotos, mas infelizmente algo deu erra­do. Pode ser que os poderes deles sejam ainda maiores do que tínhamos imaginado. De qualquer modo, eles sabiam que estávamos indo, e um, Jamie, conseguiu escapar.

— Onde ele está agora?

— Não temos idéia. Meus agentes dizem que ele foi aju­dado na fuga por uma mulher, mas não puderam conseguir o número da placa do carro. Tudo aconteceu depressa demais e estava escuro. No entanto, acredito que agora a situação esteja sob controle.

— Prossiga.

— Nós atiramos no produtor, um homem chamado Don White. Ele vivia com uma mulher, Marcie Kelsey. Atiramos nela com a mesma arma e depois usamos nossos contatos na po­lícia de Nevada para estabelecer uma pista falsa. Agora Jamie Tyler é procurado pelos dois assassinatos e é apenas questão de tempo antes que seja rastreado. Nesse ponto nós o teremos.

Susan Mortlake parecia confiante, mas o presidente não se impressionou.

— Seus agentes deixaram um dos garotos escorrer por entre os dedos. Também falharam em descobrir o carro. A senhora tomou alguma medida disciplinar, Sra. Mortlake?

— Não, senhor. — A mulher ergueu os olhos em desafio. — Ocorreu-me que o senhor talvez possa querer minha demissão.

O presidente pensou, depois balançou a cabeça.

— Se a senhora tem um dos Guardiões, isso bastará. Só precisamos romper o círculo e teremos vencido. No entanto, você ainda precisa fazer cortes, Sra. Mortlake. Não podemos deixar que as pessoas nos prejudiquem.

— Claro, Sr. Presidente. Foi o que pensei.

— E quero que a senhora cuide pessoalmente de Scott Tyler. A senhora entende que, falando em termos gerais, seria melhor se nós não o matássemos.

— Entendo. Mas na verdade talvez possamos usá-lo. Es­pero trazê-lo para o nosso lado.

— Bom.

Essa única palavra era um elogio de fato. O presidente nun­ca elogiava os subordinados em nada. Na Corporação Cre­púsculo a excelência era vista como ponto pacífico. Falou de novo, desta vez dirigindo-se aos executivos:

— Como comecei dizendo, este é um momento crítico. Também é um momento muito positivo e, antes de nos des­pedirmos, quero lhes apresentar um colega cujo nome será familiar a vocês. Nós trabalhamos juntos em muitas ocasiões e ele concordou muito gentilmente em lhes dizer algumas palavras.

Havia uma décima quarta tela na outra extremidade da mesa, de frente para o presidente. Até agora estivera apagada, mas subitamente se iluminou. A princípio parecia haver algo errado com a imagem. A cabeça que havia aparecido simples­mente parecia grande demais para a tela, pesada demais para o pescoço que a sustentava. Os olhos eram muito altos, aci­ma de um nariz que parecia viajar um longo caminho até a boca pequena e infantil embaixo. Era como se a imagem ti­vesse sido esticada — mas na verdade não havia nada errado com a transmissão. O homem era Diego Salamanda, chefe da Salamanda News International. Estava transmitindo o si­nal a partir de seu centro de pesquisas na cidade de Ica, no Peru. E esta era realmente sua aparência.

— Boa-noite — começou ele. A hora local era pouco mais de seis da noite. — É um grande prazer falar com os senho­res. Gostaria de agradecer ao presidente por me convidar. E tenho notícias excelentes para contar.

“Tive a chance de decifrar o diário do monge louco de Córdoba, que foi descoberto muito recentemente na Espanha e passado às minhas mãos. Não preciso lembrar aos senhores que é a única história escrita sobres os Antigos e sua luta contra as cinco crianças que passaram a ser conhecidas como Guar­diões. Os Antigos governaram a terra há cerca de 10 mil anos.

Eram todo-poderosos, mas foram derrotados, segundo o diá­rio, por um truque. Infelizmente não temos mais detalhes. Houve uma grande batalha que os Antigos perderam, e eles foram banidos. Dois portais foram construídos para mantê-los fora do nosso mundo. Desde então muitos de nós estivemos trabalhando para o retorno deles.

“Um exame mais profundo do diário me forneceu as res­postas que estive procurando, e posso lhes dizer que, sem sombra de dúvida, logo teremos alcançado nossos objetivos e um novo milênio terá começado. Sim, amigos, os Antigos estão para retornar e tomar o controle de um mundo que, na verdade, deveria ser deles desde sempre.”

Ele fez uma pausa para recuperar o fôlego, com as nari­nas se abrindo. Para ele, falar era doloroso. Era doloroso fa­zer praticamente qualquer coisa, em resultado da mutilação deliberada feita em sua cabeça depois do nascimento.

— Agora estamos em meados de junho — continuou. — E o dia 24 deste mês é sagrado no meu país. Nós o chama­mos de Inti Raymi, o solstício de verão. Nesse dia, o segundo grande portal, construído no deserto de Nazca, será aberto. Examinando cuidadosamente o diário descobri os meios de destrancá-lo, e agora nada pode me impedir.

Ele ergueu uma das mãos. Ao lado da cabeça ela parecia ridícula, desproporcional.

— Mas temos inimigos. Por mais incrível que pareça, as cinco crianças que nos derrotaram há tantos anos conseguiram retornar. Vocês podem ter encontrado duas delas na Améri­ca. Uma está vindo aqui para o Peru. Meu agente o encon­trou numa igreja em Londres.

“Posso lhes dizer o seguinte: É preciso haver cinco delas. Só quando se juntam elas têm a força para representar peri­go contra nós. Sozinhas, são impotentes. E nada pode nos impedir. No dia 24 de junho os Antigos tomarão o que é de­les e todos nós compartilharemos as recompensas.”

Ao redor da mesa de reuniões, os executivos começaram a aplaudir. Estavam separados por milhares de quilômetros: em Londres, Los Angeles, Tóquio, Pequim... em todo o mun­do. Era como se alguém tivesse aumentado o volume. O ba­rulho ecoou pela sala.

A décima quarta tela ficou preta. Salamanda havia inter­rompido o contato.

— Agora vocês sabem como a coisa está — disse o pre­sidente. — Faltam apenas alguns dias para o fim do velho mundo. Mas não vamos nos enganar achando que nosso tra­balho acabou. Só está começando. Uma guerra está vindo e nosso serviço é preparar o caminho. Precisamos de um presi­dente dos Estados Unidos que seja simpático aos nossos obje­tivos. Sr. Simms, estou contando com o senhor. Sra. Mortlake, cuide do garoto. Torne-o um de nós. Depois encontre o ir­mão e cuide dele também.

O presidente sinalizou para um de seus auxiliares. Um deles estendeu a mão e apertou um botão. As outras 13 telas fica­ram pretas.

Em seu escritório de Los Angeles, Susan Mortlake olhou a luz vermelha em sua webcam se apagar e soube que não estava mais transmitindo. Também sabia que tinha muita sorte em estar viva. O presidente havia considerado brevemente pedir sua demissão. Ela vira nos olhos dele.

Mesmo assim ele lhe dissera para fazer cortes. Susan inclinou-se adiante e estendeu um dedo comprido, com a unha afiada até formar uma ponta. Havia um interfone à frente e ela apertou um botão.

— Pode mandá-los agora — disse.

Alguns segundos depois a porta se abriu e Colton Banes e Kyle Hovey entraram. Havia duas cadeiras diante da mesa e eles se sentaram sem que ela pedisse. A sala estava gelada, com o ar-condicionado no nível máximo, mas Susan Mortlake no­tou que gotas de suor haviam brotado na testa de Hovey. Banes parecia mais relaxado. Nem se encolheu quando ela se virou e olhou para ele. Os dois sabiam por que estavam ali. Era inevitável que fossem chamados para prestar contas.

— Então? — A Sra. Mortlake falou rispidamente a única palavra. Agora era realmente uma professora, uma diretora de escola em via de escolher o castigo.

— A culpa foi dele! — respondeu Hovey imediatamente, ansioso para dar sua versão dos acontecimentos. E olhou para Banes. — Ele cometeu erros sérios. Deveria saber sobre o cachor­ro. — Hovey levantou um braço, fazendo uma careta ao mesmo tempo, como se quisesse provar seu argumento. Por baixo do paletó do terno estava coberto de curativos onde fora mordido. Tivera de receber injeções contra tétano e raiva. — E ele deveria ter mais homens esperando do lado de fora da porta de serviço.

— Sr. Banes? — A Sra. Mortlake virou a cabeça de volta. Estava usando brincos compridos que balançavam quando ela se mexia.

Banes deu de ombros.

— É verdade — disse ele. — Eu não sabia do cachorro. Os garotos tiveram sorte. Algumas vezes acontece assim.

A Sra. Mortlake pensou. Já sabia o que iria fazer. Não ti­nha chegado a uma posição de poder na Corporação Crepús­culo sem ser capaz de tomar decisões rápidas.

— Parece que vocês tiveram sucesso pela metade — co­meçou. — O que quer dizer que fracassaram pela metade. Um garoto fugiu, mas ainda temos o outro. Se os dois tives­sem escapado, eu não teria escolha além de cortar vocês dois. Como está, um de vocês pode ser poupado. — Ela deu um sorriso doce. — Sr. Banes, sinto muito...

Na cadeira ao lado, o Sr. Hovey relaxou.

— Mas terei de pedir que estrangule o Sr. Hovey. Sei que são amigos. Sei que trabalharam juntos por longo tempo. Mas a corporação realmente não pode permitir o fracasso, e acho pessoalmente muito desagradável o fato de o Sr. Hovey ser meio chorão.

— Quer que eu faça isso agora, Sra. Mortlake?

— Sim, por favor, vá em frente.

Colton Banes se levantou e foi para trás do outro homem. Kyle Hovey ficou onde estava. Todo o seu corpo havia se afrou­xado. Estava com uma arma num coldre sob o paletó, mas nem tentou pegá-la. Pelo menos isso seria rápido. Ou razoa­velmente rápido.

As mãos de Banes pousaram brevemente nos ombros do outro.

— Sinto muito, Kyle — disse ele — , mas afinal de contas você sempre foi um fracassado. — Seus dedos esticados se enfiaram por baixo do rabo-de-cavalo preto e se fecharam so­bre a garganta dele. Começaram a apertar. Do outro lado da mesa, Susan Mortlake olhava com interesse. A coisa demo­rou só um minuto. Então Colton Banes voltou à sua cadeira e sentou-se. Ao seu lado, Kyle Hovey permaneceu onde estava, como se nada tivesse acontecido.

— Mais alguma coisa, Sra. Mortlake? — perguntou Colton Banes.

— Não, obrigado, Sr. Banes. Pode esperar por mim aqui em Los Angeles.

Kyle Hovey deslizou suavemente de lado, depois tombou no chão.

— É melhor mandar cremar seu amigo — continuou ela. — E mande flores se ele tiver família. Quanto a mim, vou para Silent Creek. Mal posso esperar para conhecer esse garoto, Scott Tyler. Acho que temos de iniciar imediatamente o trata­mento dele.

 

Viram a mulher vestida de preto com cabelos grisalhos curtos sair do prédio de escritórios. Havia uma limusine esperando-a e eles a observaram, enquanto era levada pela rua 4 Oeste na direção da auto-estrada Harbor. Mas não sabiam quem ela era nem para onde ia. Descobririam isso mais tarde.

Jamie e Alicia estavam num carro, na área empresarial de Los Angeles. Era o mesmo carro que Alicia havia alugado em Reno — os dois tinham vindo de lá no dia anterior.

Jamie havia dormido na maior parte da viagem, mas estivera acordado no início. Uma hora depois de saírem de Reno, a auto-estrada havia subido e de repente ele se viu passando por florestas de pinheiros que se erguiam íngremes dos dois lados. Se olhasse para longe podia ver montes de neve ainda se recusando a derreter, e tinha percebido que finalmente ia passar sobre as montanhas. Para além da neve. Antigamente havia sonhado que faria a travessia e que assim encontraria uma vida nova. Agora não tinha tanta certeza. Só sabia que sua vida antiga fora despedaçada e que estava deixando os cacos para trás.

Alicia teria preferido pegar um avião. Mas Jamie não tinha carteira de identidade. Não podia voar. E com a polícia ainda o procurando, não seria seguro chegar perto de um aeropor­to. Assim ela havia dirigido, parando para passar a noite em outro motel em Fresno antes de chegar a Los Angeles na tar­de seguinte, suja e com os olhos remelentos de tanto dirigir.

Quando desceram o vale, Jimmy vira o famoso letreiro de Hollywood, as letras brancas refletindo os raios do sol. Tinha visto aquilo com freqüência na televisão. Esta era a cidade dos anjos, a fábrica de sonhos, lar das estrelas e celebridades. Todo tipo de clichês rolavam por sua mente. Mas não sentia nada. Havia chegado ali porque precisava. Los Angeles não signifi­cava nada para ele. E quanto ao letreiro, o que era? Somente umas letras grandes numa colina.

Estava exausto, vazio. Don e Marcie tinham sido mortos e a polícia achava que ele era o culpado! A matéria fora repas­sada para todos os Estados Unidos. Afinal de contas ele tinha apenas 14 anos. Um delinqüente juvenil, fugitivo, culpado de dois homicídios. Os jornais haviam adorado. Mas, pior do que tudo isso, pior do que qualquer coisa que ele tivesse sofrido, era saber que Scott fora levado. Ao entrar nesta nova cidade, de novo tentou alcançar os pensamentos de Scott, imaginan­do se — contra todas as chances — poderia ter algum pe­queno sentimento da presença do irmão. Mas não havia nada. Na verdade Scott parecia mais distante do que nunca.

Jamie queria ficar em Reno, mas Alicia o havia convencido de que seria perigoso demais. Tinham uma pista: um nome num pequeno cartão branco. Corporação Crepúsculo. Alicia tinha verificado na Internet. A Crepúsculo era sediada em Hong

Kong, mas possuía escritórios em todo o mundo. Dois ende­reços eram citados nos Estados Unidos: um em Nova York e outro em Los Angeles. Ir até a costa leste estava fora de cogi­tação. Vir para cá era a única opção.

E assim cá estavam, estacionados diante de um arranha-céu que não passava de um bloco retangular, com cinqüenta andares e janelas de tamanho idêntico posicionadas com pre­cisão matemática. Os últimos seis andares pertenciam à Crepúsculo, com bancos, companhias de seguros, firmas de advocacia e dezenas de outras empresas embaixo. Jamie e Alicia estavam ali havia uma hora, olhando as pessoas irem e virem. Neste momento eram cinco horas e as portas girató­rias jamais ficavam paradas, enquanto os empregados saíam rapidamente, ansiosos para chegar em casa.

Mas não houvera sinal de Cotton Banes nem do homem moreno de rabo-de-cavalo que ficara ao lado dele no teatro. Talvez eles nem estivessem ali.

Esperaram mais uma hora, então Alicia suspirou e ligou o motor.

— Isso é perda de tempo — disse. — Está com fome?

Jamie assentiu. Não tinha apetite de verdade, mas não havia comido nada desde a manhã e podia sentir os níveis de energia baixando. Alicia saiu com o carro e eles voltaram para onde estavam hospedados, em West Hollywood. Alicia havia mencionado que tinha uma irmã. Por acaso ela era comissária de bordo e morava em Los Angeles. Estaria fora durante uma semana e emprestou a casa a eles. Alicia havia telefonado para ela de Fresno. Não tinha mencionado Jamie.

Pararam num restaurante na avenida Melrose, uma rua malcuidada, colorida, cheia de lojas que vendiam principal­mente antigüidades ou roupas. Sentaram-se ao ar livre sob um gigantesco guarda-sol rosa. Uma garçonete apareceu com o menu. Alicia escolheu salada. Jamie hesitou. Estava sem jeito.

— O que é? — perguntou Alicia.

— Nunca comi num restaurante chique assim. Alicia sorriu.

— Não é tão chique. Na verdade é só um café.

— Não posso pagar por isso.

— Já expliquei. Você não tem de pagar nada.

Alicia havia comprado roupas novas para Jamie em Fresno. Ele estava usando uma camisa havaiana multicolorida. Não era seu estilo, mas, quanto mais impressionante a camisa, menos seria provável que as pessoas olhassem para o rosto dele. Pelo menos era o que Alicia havia dito. Também tinha comprado óculos escuros e um boné de beisebol, o uniforme dos adolescentes por todos os Estados Unidos. Mesmo que a polícia o estivesse procurando na Califórnia, nunca iriam identificá-lo agora.

Jamie pediu um hambúrguer e os dois ficaram sentados em silêncio tomando suco de laranja feito na hora, até a co­mida chegar. Só quando começou a comer, Jamie percebeu como estava com fome, e devorou a comida. Alicia comeu com mais delicadeza. Jamie já havia notado que ela fazia tudo muito cuidadosamente. Até quando preparava o café-da-manhã ela manuseava as xícaras como se fossem de por­celana cara.

— Temos de pensar no que vamos fazer — disse ela.

— Crepúsculo — murmurou Jamie, com um sentimento de pavor.

— Pense em Reno, Jamie. Você disse que havia quatro homens no teatro. Quantos você acha que conseguiria reconhecer?

Jamie pensou um momento.

— O careca. Reconheceria em qualquer lugar. Era arrepiante. E o amigo, o que foi mordido. Reconheceria também. — Ele tentou se lembrar da seqüência de eventos. Tudo havia acon­tecido depressa demais. — Um dos homens, o motorista do carro, se machucou. Cortou a cabeça. Deve ter um ferimento.

— Os homens do carro podiam ser da cidade. Havia mais alguém?

— Não vi ninguém. — Jamie havia terminado de comer. Tudo fora engolido, até a última folha de salada. Empurrou o prato. — Que diferença faz, Alicia? Mesmo que a gente veja um deles, não podemos procurar a polícia. Eles só vão me prender, e vai ser o fim.

— Não era isso que eu tinha em mente.

— Então o que vamos fazer?

— Tenho uma idéia. Mas acho que não vou fazer nada, Jamie. Isso é com você.

— Como assim?

Alicia pousou a faca e o garfo. Pensou um momento, pro­curando as palavras certas.

— Olhe, sei que você não quer falar nisso, mas não po­demos mais evitar. Você é muito especial. Tem um poder. Sei que não gosta dele. Mas pode usá-lo para encontrar o Scott.

— Como? — perguntou Jamie. Mas já podia ver aonde ela queria chegar.

— Vamos encontrar um desses homens, Banes ou o outro, e você vai até ele e pergunta onde seu irmão está. Na bucha. Claro que ele não vai dizer. Mas isso não importa, importa? Porque você consegue ler a mente dele. Pode descobrir a res­posta sem que ele diga uma palavra.

— Não! — Jamie apertou os punhos com força. Havia gritado a recusa e duas pessoas na mesa ao lado se viraram brevemente para olhá-lo.

Mas Alicia não iria desistir.

— Por quê? — insistiu. — Qual é o seu problema? Você tem alguma idéia melhor? Por que não quer ajudar?

— Não vou fazer isso. — Toda a cor havia sumido do rosto de Jamie e seus ombros estavam subindo e descendo enquanto ele recuperava o fôlego. — Já disse. Nem quero falar nisso.

— Mas e o Scott?

— Você não se importa com o Scott. Não se importa com nenhum de nós dois. Só está me usando porque quer que eu ajude você a achar o Daniel.

Assim que disse as palavras, Jamie se arrependeu. Mas era tarde demais. Alicia olhou-o como se ele tivesse acabado de lhe dar um tapa no rosto.

— Isso não é justo — disse ela em voz baixa. — Daniel é meu filho, verdade. Claro que quero encontrá-lo. Quero mais do que qualquer coisa no mundo. Mas você realmente acha que só estou usando você? Acha que eu vou esquecê-lo se você encontrar meu menino? — Ela fez uma pausa, depois continuou mais devagar: — Nem sei se as mesmas pessoas pegaram os dois. Sabemos que pessoas da Crepúsculo esti­veram lá em Reno. Mas não há nada dizendo que eles estavam em Washington há oito meses. Talvez eu esteja me agarran­do a fiapos de esperança e Danny tenha sido assassinado no dia em que desapareceu. Mas isso não vai me impedir de pro­curar o Scott. Agora estamos juntos nisso.

— Mesmo assim não posso fazer o que você pediu.

— Ótimo. — Alicia ficou ali sentada, rígida. — Então va­mos para casa.

Voltaram praticamente em silêncio. Na verdade Alicia só fa­lou uma vez. Quando chegaram ao cruzamento principal no bulevar Santa Monica, ela notou um cartaz gigantesco. Mos­trava um homem com camisa aberta no pescoço, encostado no que poderia ser um portão ou uma cerca. A foto parecia casual, quase como um instantâneo de família. Havia uma manchete: UMA MUDANÇA HONESTA. E, embaixo, um anún­cio direto, em letras pretas:

 

O SENADOR JOHN TRELAWNY FALA NO CENTRO DE CONVENÇÕES DE LOS ANGELES.

22 de junho, 20h.

 

— É depois de amanhã — disse Alicia. — Não sabia que ele vinha a Los Angeles.

Jamie imaginou por que ela se importava com isso.

— Eu trabalhei para ele — lembrou Alicia. — Na verda­de, ainda trabalho.

— Achei que você disse que tinha se demitido.

— Tentei, mas ele me colocou de licença indefinida... até que eu encontrasse Danny. Ainda recebo pagamento todo mês. Por isso consigo ir em frente.

A irmã de Alicia tinha uma casinha bonita, uma de cinco que se erguiam enfileiradas, todas projetadas em estilo espa­nhol. Na frente havia um quintal com flores se derramando de vasos de cerâmica e trepadeiras retorcidas subindo pelas paredes. Dois gatos se espreguiçavam ao sol e o ar cheirava a perfume. A casa, em si, era bem simples. Uma sala e uma co­zinha, dois quartos e um banheiro, todos mobiliados com sim­plicidade. Ventiladores circulavam e refrescavam o ar. Dois pôsteres de viagem, emoldurados, e, na mesinha de centro, um modelo de um antigo biplano, eram as únicas pistas de que o lugar poderia pertencer a uma comissária de bordo.

— Quer alguma coisa para beber? — perguntou Alicia.

— Não, obrigado.

— Quer se deitar? Pode assistir à TV, se quiser... Jamie olhou em volta.

— Como é o nome da sua irmã?

— Caroline.

— Vocês são chegadas?

— Nós nos vemos quando podemos.

Jamie e Alicia estavam parados na sala. Pareciam sem jei­to. A casa não era deles. E ainda não haviam absorvido total­mente a cadeia de acontecimentos que os havia reunido.

— Olha, desculpe. Certo? — Jamie murmurou as pala­vras. — O que eu disse lá no restaurante foi errado. Você está tentando me ajudar. Mas o que você quer que eu faça... você não entende...

— Vou fazer um pouco de café — disse Alicia. — Porque não vamos lá para fora?

Dez minutos depois estavam sentados no quintal dos fun­dos. A noite caíra mas uma lua cheia havia nascido, iluminando um trecho de deque, um emaranhado de plantas. Estavam rodeados por outras casas mas não havia mais ninguém à vista. Nem o barulho do trânsito de Los Angeles podia alcançá-los.

— Não gosto de falar de mim — disse Jamie.

Alicia ficou quieta. Queria que ele relaxasse, que come­çasse quando quisesse.

— Eu e Scott. A gente sempre foi... — Jamie levantou os dois indicadores, quase se tocando, para mostrar o que queria dizer. — Ele é o inteligente. É ele que tira a gente de encrenca. Sempre sabe o que fazer. Penso nele como meu irmão mais velho, mesmo achando que somos gêmeos.

— Você não sabe? Jamie balançou a cabeça.

— Nós fomos encontrados perto de um lugar chamado Glenbrook, perto de Lake Tahoe. Tipo bebês num cesto, dei­xados na beira da rua. Só que não era um cesto, era uma caixa de papelão. Não tinha nomes. Nada. Ah, é, isso foi realmente engraçado. Alguém tinha feito uma tatuagem na gente. Nos dois, a mesma tatuagem.

— Onde? — Alicia não pretendia perguntar, mas não pôde se conter.

— Aqui. — Jamie apontou um polegar sobre o ombro. — No ombro. É uma espécie de círculo com uma linha atra­vessando. Não significa nada.

— Então como vocês receberam esses nomes?

— Chamaram ele de Scott porque a caixa onde nós fo­mos encontrados era de sementes de grama Scott. Eu fui chamado de Jamie por causa do médico que examinou a gen­te. Eles achavam que nós tínhamos sangue índio. Pergunta­ram sobre nós nas reservas.

— Você parece um pouco — concordou Alicia.

— Não vou contar muito sobre nossa vida, sobre o que aconteceu com a gente. Acho que você não se importa mui­to. Porque o que você quer saber é do Acidente. Foi como a gente chamou a coisa. Mas a gente nunca fala sobre isso. Eu nunca disse nada a ninguém, a não ser ao Scott, e não quero falar agora.

Alicia suspirou.

— Talvez, se você começasse pelo início, fosse mais fácil.

— Tanto faz. De qualquer modo não tem muita coisa para contar.

Jamie estava com uma xícara de café à frente, mas não havia bebido nada. Por alguns instantes olhou para a superfí­cie preta do líquido como se fosse um espelho, mostrando o passado.

— Certo. Nós fomos deixados na beira da estrada. Nun­ca tivemos mãe, pai, nem nada assim. Saiu uma matéria de jornal sobre quando acharam a gente. Chamaram de Bebês da Caixa de Sementes. E depois disso fomos levados pelo ser­viço de proteção. Acho que deixaram a gente num hospital por um tempo, mas depois fomos postos num lar adotivo em algum lugar de Carson City. Havia mais meia dúzia de crian­ças lá, todas com sangue índio. Nem lembro mais onde era. As pessoas que cuidavam do lugar se chamavam Tyler, e nós ficamos com o sobrenome deles enquanto a polícia e o servi­ço social tentavam descobrir de onde tínhamos vindo.

“Só que não conseguiram. Todo mundo se interessava pelas tatuagens. Achavam que as tatuagens tinham de signi­ficar alguma coisa. Afinal de contas, quem se incomodaria em pôr uma tatuagem num bebê? Foram às reservas, fizeram per­guntas e ofereceram recompensa. Mas não deu certo. E no fim encerraram as buscas e deixaram a gente para lá.

“Mas as coisas nunca pararam de dar errado. Nós vivía­mos sendo mandados embora dos lares adotivos. Brigávamos com as outras crianças. Não arranjávamos as brigas, elas só aconteciam. Quando tínhamos uns 6 anos sabíamos que ia ser sempre assim... Scott cuidava de mim e eu cuidava dele. Quanto ao resto das pessoas... a gente não ligava a mínima.

“Perdi a conta dos lares onde a gente entrou e saiu. A única coisa era que nunca separaram nós dois. Nós tínhamos uma assistente social. O nome dela era Derry e ela dizia que era importante manter os dois juntos. Dizia que era a lei. Quan­do estávamos com 9 anos tentaram colocar a gente fora do estado, em Salt Lake City, e isso funcionou por um tempo. Acho que fomos felizes. Ficamos com um casal sem filhos. Eles tinham uma casa legal e eram bons com a gente, mas uns 12 meses depois de a gente chegar, eles decidiram que já estavam cheios. Derry foi de avião falar com a gente, e nesse ponto ela sabia o que estava acontecendo, e foi então que tentou contar. Nós éramos diferentes. Éramos especiais. Mas deixávamos as pessoas incomodadas. Foi o que ela tentou dizer, mas não colocou exatamente em palavras. Talvez achasse que iríamos rir dela.

“Mas não importava. Nós já tínhamos deduzido sozinhos. Sabíamos que tínhamos uma... capacidade. Talvez você cha­me de poder, só que isso faria parecer que a gente poderia vestir fantasias e virar o Homem-Aranha ou algo do tipo, e nunca era assim. Enquanto Derry falava, tentando explicar, a gente sabia que podia olhar na mente dela e ver o que ela estava pensando. Telepaticamente. Essa é a palavra. Mas nós não éramos super-heróis. Éramos monstruosidades. Não éra­mos iguais a mais ninguém. E por isso nunca conseguimos nos adaptar.”

— Vocês usavam sua capacidade? — perguntou Alicia. Ela sentia como se não tivesse respirado durante todo o tempo em que Jamie havia falado. Ele era tão magro e vulnerável, sentado ali no quintal, com o cabelo preto caindo até o pes­coço! Só agora ela começava a entender tudo que ele havia passado.

— Como assim? — perguntou Jamie.

— Não sei. Para colar nas provas. Ou descobrir coisas que não deveriam saber.

— Não! — Jamie balançou a cabeça. — Você não enten­de a sensação de ler a mente das pessoas, Alicia. Não é diver­tido. Era como se houvesse um sussurro o tempo todo. O tempo todo! A gente andava pela rua e aquilo estava em toda parte, ao redor, nunca parando. Pode imaginar como seria ir a um filme se a platéia nunca parasse de falar? Bom, era as­sim. Algumas vezes isso deixava a gente maluco.

“O que a maioria das pessoas pensa, na maior parte do tempo, não é muito legal. Pensam nos maridos, nas mulheres e nas brigas que tiveram. Pensam nas pessoas que elas querem machucar, em como estão com raiva, como estão sofrendo e por que nunca é culpa delas. Ou talvez estejam preocupadas com dinheiro, com a perda do emprego ou pode ser ainda pior. Podem estar tendo pensamentos horríveis, sujos. Assim, não, a gente não usava a capacidade. Fazia exatamente o oposto. Era como tapar os ouvidos com as mãos o tempo todo. Nós conseguimos fechar todas as portas.

“Só deixávamos uma aberta. Eu podia ouvir o que Scott estava pensando e ele me ouvia. Isso funcionava mesmo quan­do estávamos separados por mais de um quilômetro, se bem que ficava mais fraco... você sabe... como um sussurro. Mas nunca sentimos medo de entrar na cabeça um do outro por­que a gente sempre sabia que não haveria surpresas ruins. Sabíamos que seria seguro. E foi assim que viramos os gê­meos telepatas. Foi nisso que Don White transformou a gente.”

— Vocês foram mandados para ele em seguida? Jamie balançou a cabeça.

— Posso beber mais uma coisa?

— Café?

— Coca.

— Espere aí...

Alicia foi à cozinha. Felizmente a irmã mantinha o local bem abastecido. Voltou com uma lata de Coca e um copo com gelo. Esperou enquanto Jamie bebia. Então ele pousou o copo.

— Ler mentes não era a única coisa que a gente podia fazer — disse ele.

O Acidente. Alicia se lembrou de que ele havia menciona­do isso quando começou a falar. Achou que estava chegando ao ponto agora.

— Depois de Salt Lake, nós fomos levados de volta para Nevada, para Carson City. Fomos deixados com um casal cha­mado Ed e Leanne. Ed trabalhava num hospital. Fazia manu­tenção. Leanne não fazia nada.

— Na época nós ainda íamos à escola. Tínhamos 10 anos. E ainda não conseguíamos nos encaixar. Estávamos mal em todas as matérias. Bom, havia um garoto grande na escola. O nome dele era Ray Cavalli e ele pegava no nosso pé o tempo todo. Todo mundo tinha medo dele porque ele pegava pesado e ninguém falava com os professores porque não queria ser dedo-duro. Bom, eu tive uma briga com o Cavalli e ele estava me batendo de verdade; claro que Scott sabia o que esta­va acontecendo assim que o negócio começou, e de repente ele estava ali. E entrou no meio e nunca vou esquecer do olhar dele. Só olhou direto para Cavalli e mandou ele sumir.

“E sabe o que aconteceu? Cavalli recuou como se estives­se atordoado e não entendesse o que estava acontecendo. Depois simplesmente foi andando... cambaleando... saiu da escola e continuou indo.

“A polícia demorou dois dias para encontrar o Cavalli, e ele quase morreu. Tinha entrado no deserto e se perdido. Era verão, e por lá a temperatura chega facilmente aos 40° C, e ele não tinha água. Quando o encontraram, ele não fazia idéia de onde estava nem de como tinha chegado ali. Bom, foi isso. Ouvi dizer que no fim ele melhorou e a família se mudou para outro estado. Nunca mais vi o Cavalli.

— Você acha que vocês dois foram responsáveis?

— Sei que fomos. Quer ouvir o resto?

Alicia confirmou com a cabeça. Jamie tomou outro gole de Coca.

— Ed e Leanne não eram muito ruins. A gente gostava de Carson City. Dava para ver águias carecas e gaviões no verão. Era legal. Mas a encrenca sempre andava atrás da gente. E dessa vez a culpa foi minha. Tinha um professor, o Sr. Dempster, que costumava pegar no nosso pé. Talvez Scott e eu soubés­semos um pouco demais sobre ele. Talvez ele tenha intuído isso. Bom, ele vivia colocando a gente de castigo e coisas as­sim, e um dia eu decidi dar o troco e cortei os pneus do carro dele. Ele tinha um fusca e era todo orgulhoso do carro. Foi um negócio idiota, mas eu furei os pneus com uma faca, e o pior é que... fui apanhado.

“Nunca pensei que o negócio ia ser tão ruim para a gen­te, mas o que aconteceu em seguida foi que eu estava preso e tinha um agente de condicional. De repente eu estava na frente de um juiz, e o negócio foi que o que Ed vivia dizendo virou verdade.

— Você foi mandado para a cadeia?

— Fui mandado para uma instituição para menores, só por duas semanas. O juiz disse que seria um alerta para mim. Fui parar num lugar perto de Reno. Também disseram que eu teria de trabalhar depois do horário da escola para pagar o custo dos pneus.

Ele bebeu de novo. Uma nuvem passou diante da lua. Era como uma faca, cortando-a ao meio. Em algum lugar, ao lon­ge, uma ambulância gritou passando pelos bulevares.

— A instituição para menores não era tão ruim — conti­nuou Jamie. — Era limpa e a comida boa, e na verdade me dei bem com os outros garotos. Só era chato. O pior foi quan­do voltei para casa. Scott estava me esperando; achei que ele ia ficar feliz em me ver, mas não ficou. Ficou furioso. Disse que o que eu tinha feito era idiota. Disse que as coisas já eram ruins para nós, e que eu só tinha feito piorar.

“Estava certo. Depois que eu voltei, as coisas nunca mais foram as mesmas com Ed e Leanne. De qualquer modo eles estavam com problemas. Viviam brigando... gritando um com o outro. Mas então decidiram que Scott e eu estávamos atra­palhando e que nunca deveriam ter nos pegado. Ed tinha co­meçado a beber. Principalmente vodca. Entornava meia garrafa por noite, facilmente. Cerca de um mês depois de eu voltar, teve uma briga com o Scott e bateu nele. Foi a primei­ra vez em que fez isso. E o poder ainda estava funcionando — a ligação entre nós — porque fui eu que fiquei com o he­matoma, mesmo nem tendo entrado na sala na hora.

“Ao mesmo tempo, Derry, minha assistente social, ficou doente. Ela vinha cuidando de nós desde o início, mas agora não podia mais trabalhar e todos os seus casos foram repas­sados para outras pessoas. Ela escreveu para a gente, mas nunca mais a vi e nunca mais vi ninguém. Eles estavam sobre­carregados. Não podiam cuidar do número de casos que já tinham, e achavam que Scott e eu estávamos bem, por isso deixaram para lá. Provavelmente acham que eu ainda estou com Ed e Leanne. Não sei...

“Eles não estavam bem. O humor de Ed ficou cada vez pior. Perdeu o emprego e foi então que disse que nós sería­mos transferidos de novo. Lembro bem demais. Leanne esta­va fora, e nós estávamos sozinhos com o Ed. Ele tinha bebido de novo e, talvez só para se divertir, começou a provocar o Scott. Disse que já havia falado com o Juizado da Infância e da Juventude e que nós dois finalmente seríamos separados. Scott ia ficar em Carson City. Mas eu iria para outro estado.

“Não sei se ele estava mentindo ou não. Mas fez parecer que era muito real, tipo como se fosse acontecer a qualquer momento. Ele e Scott ficaram gritando um com o outro e ele estava bebendo, direto da garrafa, e rindo de nós. Foi então que aconteceu. Scott olhou nos olhos dele e nunca vou es­quecer o que ele disse. Posso dizer as palavras exatas. “Nin­guém vai separar a gente. Vá se enforcar.”

Jamie ficou em silêncio.

— Ah, meu Deus! — sussurrou Alicia. Jamie assentiu.

— Isso mesmo. Ed se levantou e tinha uma expressão esquisita. Como se estivesse chocado... como se tivessem dito a pior coisa que tinha ouvido na vida. Ficou de pé, saiu da sala, passou pela cozinha e foi para a garagem. Ouvimos a porta se abrir e fechar. Pensei em correr atrás dele mas estava muito abalado, e você tem de lembrar que eu só tinha 11 anos.

“Foi Leanne que achou ele, quando voltou. Ed tinha en­trado na garagem. Subido numa escada. E se enforcado com um fio amarrado num suporte de metal. Claro, ninguém fi­cou surpreso: com toda a bebida, as discussões, a perda do emprego e coisa e tal. Ele não havia agüentado. Era o que todos diziam.

“Só Scott e eu sabíamos a verdade. Só falamos disso uma vez: Scott disse que foi um acidente, e foi assim que nós sem­pre pensamos, depois. O Acidente. Porque Scott não sabia o que estava dizendo. Não queria que nada daquilo aconteces­se. Eram só palavras.

— Não foi culpa do Scott — disse Alicia. — Nenhum de vocês deveria se culpar.

Jamie deu de ombros.

— As semanas seguintes foram uma confusão só. Houve o enterro, claro, e foi quando a gente conheceu Don e Marcie. Ela era irmã de Leanne. Por acaso Ed havia falado com Don e os dois deviam saber mais sobre nós do que nós pensávamos, porque já estavam planejando colocar a gente em algum tipo de show...

“Fomos morar com Don e Marcie. Eles viviam num estacio­namento de trailers perto de Reno. Tiraram a gente da esco­la... Marcie disse que ia ensinar a gente em casa, e depois do negócio dos pneus a escola não reclamou. Mas ela nunca ensinou nada. Don convenceu a gente a trabalhar para ele. Ele me machucava porque sabia que era o único modo de afetar o Scott, e no fim a gente concordou. Bolamos meia dúzia de truques, mas era só isso que fazíamos. Você se lem­bra do policial na casa da Marcie?

— Lembro. Claro.

— O que eu fiz com ele... foi a primeira vez. Scott me fez jurar que nunca tentaria com ninguém. Ele sentia medo, por mim. Porque, se eu começasse a fazer isso, quem sabe o que poderia acontecer? E se eu ficasse com raiva de alguém, dis­sesse alguma coisa, e em seguida a pessoa estivesse machuca­da ou morta? Entende? Eu posso matar só com o pensamento! Esse é o meu maravilhoso poder. Posso machucar você num piscar de olhos.

— Mas não vai fazer isso. Eu confio em você, Jamie.

— Não vou fazer isso porque não vou deixar. E agora você sabe por que reagi daquele jeito. Por que não queria fazer o que você pediu e ler a mente daquele sujeito. Mas não é assim. Mesmo com o Scott não é, e ele é meu irmão. Esses homens... se eu entrar na cabeça deles, vou ver tudo de ruim que eles já fizeram. Vou ser parte daquilo. As pessoas que eles mataram. As crianças que eles machucaram. Tudo! Vai ser que nem mer­gulhar num esgoto, e mesmo assim posso não descobrir o que ele fez com o Scott.

— Vamos arranjar outro jeito — disse Alicia.

— Não. — Jamie balançou a cabeça, arrasado. — Não tem outro jeito. O que mais a gente pode fazer?

— Encontrar Colton Banes. Segui-lo.

— Isso poderia demorar semanas. Não temos tempo. — Jamie parecia exausto. Nunca havia falado tanto. — Vou lá amanhã cedinho. Vou achar o Banes e perguntar o que ele fez com o Scott. — Jamie deu um sorriso sério. — E mesmo que não abra a boca, ele vai contar o que quero saber.

 

— Eu gostaria de não ter convencido você a fazer isso — dis­se Alicia. — Vou morrer de preocupação. Jamie deu de ombros.

— Não precisa se preocupar. Posso cuidar de mim mesmo.

— Só não gosto da idéia de você entrar lá sozinho.

— É de dia. Estamos em Los Angeles. Nada de ruim vai acontecer.

Jamie olhou pelo vidro do prédio de escritórios do outro lado da rua. Parecia um lugar muito comum à luz da manhã, com o sol ricocheteando nas janelas. Agora não havia muitas pessoas por perto. O trânsito havia diminuído e as calçadas estavam praticamente vazias. Jamie havia aprendido rapida­mente que, em Los Angeles, ninguém ia a pé a lugar nenhum.

No entanto havia pelo menos mil pessoas lá dentro. Jamie tentou imaginar como seria trabalhar no vigésimo andar de um arranha-céu, com seu próprio escritório, uma secretária e pagamento todo mês. Vida comum. Houvera um tempo em que esse era seu sonho, era tudo que queria. Ter um emprego. Férias. Promoções. Havia olhado para prédios de escritório em

Reno com uma espécie de inveja. Esse tipo de vida estaria sempre fora do seu alcance.

Uma vez dissera isso a Scott. Mas Scott havia rido dele.

— Não quero trabalhar num lugar desses, Jamie. Você entra novo e sai velho. E não nota o que aconteceu no meio tempo.

— Achei que você queria ser Bill Gates.

— Isso mesmo. Não quero trabalhar para ninguém. Como ele.

Scott. Onde estaria agora? Jamie examinou rapidamente o prédio, tentando sentir algum sinal da presença do irmão por trás das monótonas fileiras de janelas. Não havia nada.

Abriu a porta do carro e sentiu o ar quente e pesado jor­rar para cima dele.

— Não se preocupe comigo — disse. — Vou ficar bem.

— Eu preferiria ir junto.

— Assim iríamos ter o dobro de chance de ser impedi­dos. — Jamie saiu do carro, depois se virou e encostou nele. — Me dê 10 minutos. Depois dê o telefonema.

— Não deixe de estar lá, Jamie. O tempo tem de ser exato. Ele bateu no pulso. Estava usando um relógio barato. Scott havia lhe dado quando fez 13 anos.

— Estarei lá.

Pegou um envelope grande no painel. Deu um último olhar para Alicia e fechou a porta.

Enquanto atravessava a rua, ficou subitamente nervoso. As portas giratórias à frente pareciam uma armadilha. Quan­do rodassem, iriam engoli-lo. Será que tinha tanta certeza de que elas iriam deixá-lo sair de novo? Onde, exatamente, estava entrando? Não sabia quase nada sobre a Corporação Crepús­culo, mas até mesmo o nome o fazia pensar. Ela empregava um homem chamado Colton Banes, e Banes estivera presen­te quando Scott foi levado. A empresa procurava garotos como ele. E agora ele estava simplesmente entrando, se entregando.

É o meio do dia. Estamos em Los Angeles. Nada de ruim pode acontecer.

Mas por que não? Quem sabia de fato o que acontecia em cada rua, ou mesmo no prédio ao lado? Subitamente Jamie percebeu que até mesmo o sol mais forte podia esconder muitos segredos sombrios e feios.

Havia chegado ao outro lado da rua. Brevemente olhou para trás, só verificando se Alicia ainda estava lá, se não tinha ido embora. Viu-a levantar a mão, tranqüilizando-o. Sentiu um jorro de irritação. Por que estava sendo tão covarde? Ele é que havia bolado esse plano. Era o único modo de encon­trar Scott e, se fosse o inverso, se ele é que tivesse sido se­qüestrado, Scott nem hesitaria.

Bateu com a mão na porta giratória e empurrou. A porta rodou. Ele estava dentro.

O saguão era uma caixa preta que se estendia por toda a extensão do prédio. As paredes eram de granito preto, o piso de mármore preto. A mobília — havia uma mesa de vidro baixa e quatro cadeiras — também era preta. Numa parede havia uma fonte. Fios de água escorriam interminavelmente, desa­parecendo numa espécie de cocho. Afora isso não havia de­coração. Dois negros corpulentos, de terno preto, montavam guarda, observando todo mundo que entrava. Um deles se aproximou.

— Sim?

Jamie levantou o envelope.

— Tenho um pacote para Colton Banes. Trabalha na Crepúsculo.

O guarda olhou-o interrogativamente.

— Você é meio novo para trabalhar como mensageiro.

— Estou fazendo uma semana de experiência.

O guarda assentiu. Se fosse alguém mais velho ele teria mais suspeitas. Mas era só um garoto. E o envelope estava claramente etiquetado.

— É no quadragésimo quinto andar — disse ele, e pas­sou seu cartão de segurança para ativar o elevador.

Jamie entrou e esperou as portas se fecharem. Sentiu o estômago se encolher enquanto o elevador subia em silên­cio. Olhou o relógio. Apenas 2 minutos haviam se passado desde que saíra do carro, e tinha certeza de que ainda havia bastante tempo. Mas o elevador parou duas vezes antes de chegar ao seu andar. Pessoas entraram e saíram. Outro minu­to inteiro havia se passado antes que ele finalmente chegasse.

Quadragésimo quinto andar. Saiu.

Era tudo muito comum, afinal de contas. O que ele estivera esperando? Um corredor largo ia para a esquerda e a direita, com as palavras CORPORAÇÃO CREPÚSCULO em letras pra­teadas em relevo. Havia uma janela do piso ao teto numa das extremidades, dando para o prédio do outro lado, e uma mo­derna porta dupla, de vidro, na outra. Dava para ver uma mesa de recepção e duas mulheres usando terninhos elegantes e fones de ouvido com microfones.

— Bom-dia. Corporação Crepúsculo. Em que posso ajudar?

— Bom-dia. Corporação Crepúsculo. Com quem o senhor deseja falar?

Uma segunda porta de elevador se abriu e um entregador da FedEx saiu, segurando um pacote. Jamie esperou enquan­to ele ia à frente, passando pela porta de vidro. Seria preciso uma assinatura contra a entrega do pacote. Isso era bom. Dis­trairia a atenção delas. Isso lhe daria sua chance.

Uma das mulheres estava falando ao telefone. A outra cuidava da entrega. Agora! Rapidamente, Jamie passou pela porta de vidro, caminhando como se fosse seu direito, como se tivesse visitado o prédio dezenas de vezes. Viu-se numa elegante área acarpetada com poltronas de couro e um be­bedouro. Havia quadros na parede: arte moderna. Uma gran­de porta de vidro ficava de cada lado, levando a corredores e mais salas. Para onde? Tinha de tomar uma decisão imediata. Se hesitasse, seria percebido. E então seria parado.

Virou à direita e passou pela porta, esperando a qualquer momento ouvir uma das recepcionistas chamá-lo. Mas não o tinham visto. Agora seria mais fácil. Estava dentro. Qualquer um que o visse presumiria que haviam lhe dado permissão para entrar.

Mas por onde começaria? Jamie olhou seu relógio de novo. Tudo dependia do sentido de tempo exato, e de algum modo mais 2 minutos haviam se passado. Com isso só lhe restavam 5 minutos para achar Colton Banes. Olhou em volta. O qua­dragésimo quinto andar tinha decoração cara, em dife­rentes tons de azul, com mais pinturas entre as portas. Do lado esquerdo do corredor, todas as salas externas, as que tinham vista para fora, haviam sido dadas a altos executivos e suas secretárias. O nome deles e os números das salas esta­vam impressos em letras pequenas ao lado de cada porta. Do outro lado, a parte central do escritório era aberta. Jamie podia ver um labirinto de mesas separadas por divisórias. Havia uns vinte ou trinta homens e mulheres, na maioria jovens, curva­dos sobre telas de computadores ou falando ao telefone. Os carpetes eram grossos e pareciam absorver qualquer som. Era assim que os negócios eram feitos aqui? Com o mesmo silên­cio de um laboratório... ou talvez uma igreja.

Chegou a uma porta aberta e olhou para dentro. Havia uma máquina copiadora e um rapaz de jeans e camisa aberta no pescoço, apenas cinco ou seis anos mais velho do que Jamie, separando pilhas de documentos. Jamie ia continuar andan­do, mas o rapaz levantou os olhos subitamente.

— Tudo certo? — perguntou ele.

— Tudo.

— Está procurando alguém?

— É... — Jamie levantou o envelope, mostrando o nome na frente. — Preciso dar isso a um tal de Colton Banes.

— Banes? Sabe qual é o departamento dele?

— Não. Não diz aqui.

— Bom, vamos dar uma olhada... — O rapaz foi até uma mesa e pegou um fichário de plástico. Folheou-o. — Banes... — murmurou. Virou uma página. — Aqui está. Você está no andar errado. Ele fica no quarenta e nove. Sala quatro nove dois cinco. Deve ser um figurão! Por aqui a coisa é assim. Quanto maior você é, mais alto vai.

— Obrigado. — Jamie recuou pela porta.

Pensou que teria de voltar ao elevador, mas enquanto saía da sala de cópias notou uma placa: SAÍDA DE INCÊNDIO. Cla­ro, no caso de um incêndio os elevadores seriam desligados. Tinha de haver escadas.

Seguiu pelo corredor. Uma mulher com uma pilha de pas­tas passou rapidamente por ele mas ninguém o fez parar. Ninguém sequer olhava em sua direção. Chegou à saída de incêndio, empurrou a porta e encontrou um lance de escada de metal e concreto do outro lado. Subiu de dois em dois degraus. Tinha o número da sala de Banes, mas o tempo es­tava acabando. Alicia daria o telefonema dentro de apenas alguns minutos. E tudo isso era fácil, comparado com o que teria de acontecer em seguida. Jamie morria de medo enquan­to acelerava o passo. Podia sentir o coração batendo e sabia que não era somente o cansaço da subida.

O quadragésimo nono andar era exatamente igual àque­le de onde ele havia saído, com os escritórios da chefia e salas de reunião do lado de fora e a área comum no centro. Havia mais pessoas circulando entre as diferentes estações de tra­balho, mas ainda falavam em voz baixa como se tivessem medo de ser ouvidas. Mas aqui não havia obras de arte. As paredes eram cobertas de cartazes: o mesmo cartaz. Mostra­va um homem grisalho e sério. Ele fora apanhado meio sor­rindo, como se quisesse ser amigável, mas tivesse coisas demais em mente. VOTE EM CHARLES BAKER. Jamie reconheceu o nome do senador que concorria à presidência contra John Trelawny. Pelo jeito, todo o andar fora transformado num es­critório de campanha para ele.

Jamie sentiu-se mais exposto ali. Poderia ser apenas ques­tão de tempo antes de ser notado. Mas pelo menos sabia para onde estava indo. 4907,4908... Seguiu as portas. Outra olha­da rápida no relógio. Restavam 2 minutos.

Colton Banes tinha um conjunto de salas no canto mais distante, e a porta estava entreaberta. Havia uma sala exter­na para secretária, mas estava vazia. Uma segunda porta, tam­bém aberta, dava em outro espaço maior. E ali estava ele, sentado numa poltrona de couro, com encosto alto, atrás de uma escrivaninha de antiquário, muito brilhante. Jamie respi­rou fundo. Viera aqui procurando Banes, mas mesmo assim era um choque vê-lo de novo: os olhos frios e aquosos, a ca­reca que poderia ser resultado de alguma doença. Isto ficava a um mundo de distância do teatro Plaza Reno e Jamie achava quase impossível fazer a ligação. Será que a Crepúsculo havia mandado esse homem seqüestrá-lo e ao seu irmão? Será que Banes realmente havia matado duas pessoas — Don e Marcie — quando o plano dera errado?

Olhou o relógio. Faltavam 30 segundos.

— Quem é você? O que está fazendo aqui?

A voz viera de trás. Um homem vinha pelo corredor e Jamie pôde ver imediatamente que o sujeito não era nem um pou­co como o rapaz que ele havia conhecido na sala de cópias. Era gordo e barbudo, usando terno, e tinha um radiotransmissor na mão. Devia fazer parte da segurança. E estava cheio de suspeitas.

O telefone tocou. Jamie ouviu. Com o canto do olho, viu Banes atender.

— Quem é você? — perguntou o segurança.

— Alô? — Jamie ouviu Banes atender ao telefone e soube que tinha de entrar na sala. Restavam apenas alguns segundos.

Do lado de fora do prédio, falando ao celular no carro, Alicia perguntou:

— Colton Banes? — A ligação fora transferida da central para a sala dele.

— Sim. — Banes já estava perplexo. Não conhecia a voz. Por que essa mulher estava ligando para ele?

O segurança estava esperando Jamie responder. Quando Jamie não disse nada, ele deu um passo à frente.

— Acho melhor você vir comigo — disse o homem.

— Estou com ele. — Jamie balançou o polegar na dire­ção do escritório. Sabia que parecia uma resposta débil, mas não conseguiu pensar em mais nada. Entrou e fechou a porta.

No celular, Alicia soube que o momento havia chegado.

— Onde está Scott Tyler? — perguntou.

Banes levantou os olhos e viu um garoto magro com ca­misa multicolorida e boné de beisebol, parado em sua sala, e soube que fora enganado. A mulher ao telefone fizera uma pergunta e, mesmo não tendo intenção de dizer mais nada, ele não pôde evitar o pensamento na resposta. Era por isso que Jamie estava ali. Era isso que os dois haviam arranjado. Ele chegara no momento em que Alicia abria uma janela na mente do sujeito.

Jamie pulou através dela.

Fez exatamente o que fizera mil vezes no palco. Pulou — não fisicamente, mas como se estivesse jogando uma réplica sua em miniatura para fora da cabeça. Mas desta vez não era

Scott que estava do outro lado. Desta vez não era seu irmão, com pensamentos calorosos e familiares. Era Colton Banes.

Jamie sentiu que caía numa escuridão absoluta. Era como mergulhar num poço de óleo congelando. E nesse momento compartilhou tudo que Banes já havia sentido ou pensado. Havia imagens — milhões — mas também havia experiências e emoções: medo, arrogância, luxúria, raiva, crueldade, ódio e muito, muito mais. Jamie havia tentado explicar a Alicia, mas nunca poderia encontrar as palavras. O cérebro de uma pes­soa é um mundo. Era o que deveria ter dito. E o mundo onde ele se via agora estava além de qualquer imaginação.

Viu a morte de Kyle Hovey. Pior, eram suas mãos que esta­vam ao redor do pescoço do outro. Podia sentir a carne quente e a veia pulsando sob seus dedos enquanto apertava. Esta fora a morte mais recente e era a que mais se destacava no cére­bro de Banes. Viu uma mulher olhando-o. Tinha cabelos gri­salhos muito curtos, pescoço comprido, óculos. Banes tinha medo dela. Jamie sentiu o medo. Viu a crueldade nos olhos dela e por um momento ela estava olhando diretamente para ele, sorrindo enquanto ele cometia o assassinato.

Mas então a imagem se dobrou para longe e ele estava dentro de um trailer. Havia uma garota deitada numa cama, com expressão atordoada e cabelo comprido espalhado nos travesseiros. Ela moveu o braço e Jamie viu que a carne estava machucada e cor de malva, e havia marcas de picadas, algu­mas cobertas com cascas de ferida. Havia roupas em toda par­te, latas de cerveja amassadas e cinzeiros com o conteúdo se derramando, uma folhinha suja na parede. Colton Banes em casa. Estava ali, e depois sumiu. Jamie vira apenas por um se­gundo. Mas a sensação era de uma hora, ou mesmo um dia.

E então viu outros assassinatos; uma arma disparando interminavelmente diante dele, toda uma fileira de pessoas, jovens e velhas, sendo mortas a tiro como se numa obscena barraca de parque de diversões. Algumas haviam morrido em silêncio. Algumas haviam gritado por piedade. Jamie as ou­viu e olhou enquanto caíam. Principalmente homens. Algu­mas mulheres. As balas cuspiam, uma depois da outra, e o sangue espirrou numa dúzia de paredes diferentes.

E então chegou a Don White.

— Assassinato de quem?

— Você não deveria ter perguntado.

Ouviu as palavras e viu Don White se sacudir para trás quando a bala o acertou. Então foi a vez de Marcie. Ela fora apanhada de surpresa na cozinha. Nem ouviu a porta se abrir. Havia acabado de se virar e foi só isso.

Tantas mortes. Uma câmara de horrores.

Viu a si mesmo, perseguido para fora do teatro. O cachorro — Jagger — forçado contra o chão. E o homem que estava se candidatando a presidente, Charles Baker. Isso era loucura. O que ele estava fazendo na cabeça de Banes? Mas era defi­nitivamente ele, levantando a mão e sorrindo, dizendo algo a um jornalista.

Outro clarão, uma centena de lugares diferentes, passan­do em lampejos como um baralho caindo. Ele havia chegado a uma cidade, talvez algum lugar da China. Um barco estranho com velas escuras, enrugadas, atravessando um trecho de água. Sumiu. Agora estava de volta em Los Angeles, vendo-se entrar no escritório. Sentiu o momento de reconhecimento, seu nome sussurrado com raiva e surpresa. Jamie lutou con­tra a torrente de palavras, imagens e emoções, procurando a única coisa de que precisava.

— Onde está Scott Tyler?

Alicia havia feito a pergunta e a resposta tinha de estar ali, ricocheteando na mente de Banes. Jamie não sabia quan­to tempo mais poderia ficar ali. Ia vomitar. Sentia-se afogando.

E então o viu. Seu irmão. Scott.

Estava deitado de costas num quarto fechado, sem camisa. Estava doente. Havia um tubo entrando no nariz, o tipo de coisa que a gente vê num hospital, e outro no pulso. Um lí­quido transparente pingava. Scott estava coberto de suor. O cabelo encharcado. Havia um fio de sangue seco no canto da boca. Seus olhos estavam abertos e cheios de dor. Jamie quis saber o que Scott pensava, mas era impossível. Estava vendo-o como Banes o tinha visto. Quando? Não ontem. Anteontem, talvez. Recentemente...

— Onde está Scott Tyler?

Banes não queria que ninguém soubesse. Estava lutando contra. Mas as imagens continuavam chegando, uma depois da outra. Jamie viu um deserto. Um cacto com a forma da letra Y Viu montanhas com a lua suspensa fantasmagórica entre dois picos. Houve um zumbido eletrônico alto enquan­to um portão se abria automaticamente, depois um estrondo com eco quando um segundo portão se fechou. Rostos. Ou­tros garotos, alguns da mesma idade de Scott, mas todos sem vida, vazios. Uma câmera de segurança girando. Chuveiros, o vapor rolando para fora. Mais garotos, com as silhuetas apenas visíveis atrás de cortinas de plástico. Outro portão se fechan­do. E ali estava, finalmente, o letreiro que Banes não queria que ele visse. SILENT CREEK

Jamie viu aquilo e começou a recuar para fora da cabeça do sujeito. Não podia ficar por mais tempo, cercado de tanto veneno e dor. Sentiu que ia recuando, como se voasse por um grande túnel. Mais imagens passaram, mas tão rápidas que ele não podia vê-las.

E então estava de volta onde havia começado, no escritó­rio, com Banes encarando-o, boquiaberto, atrás da mesa.

Por alguns instantes nenhum dos dois se mexeu. Jamie não poderia, nem se quisesse. Estava exausto. Sentia-se vazio. Então Banes sorriu.

— Jamie — murmurou ele.

Jamie só pôde ficar olhando enquanto Banes enfiava a mão numa gaveta e tirava uma arma. Era a arma de dardos que havia usado contra Scott. O sujeito parecia saber que Jamie estava impotente, que não tinha aonde ir. Seus movimentos eram cuidadosos e sem pressa. Nem se levantou. Mirou com cuidado.

Então a porta externa se abriu com estrondo e o seguran­ça entrou.

— Desculpe, senhor... — disse ele, e parou. Havia passa­do pela sala exterior e encontrou um executivo da Crepúsculo apontando uma arma para uma criança.

Jamie viu a expressão dele e percebeu que, mesmo traba­lhando ali, o segurança não fazia idéia do que se passava atrás das portas fechadas dos diversos escritórios. O que ele faria agora? Jamie decidiu não descobrir. Levou a mão atrás e se­gurou o sujeito, puxando-o para a frente, entre ele e Banes. Foi no momento exato em que Banes puxou o gatilho. O dar­do voou pela curta distância e se cravou no braço do homem. O segurança gritou de dor e alarme. Jamie soltou-o e saiu correndo. Ouviu um segundo dardo se chocar contra o portal enquanto passava. Então estava no corredor, correndo o mais rápido que podia.

Já sabia que não poderia pegar os elevadores. Mesmo que por acaso um deles estivesse esperando-o com a porta aber­ta, iriam desativá-lo antes que chegasse ao térreo. Mas estava indo na direção oposta. Para a saída de incêndio. Quarenta e nove andares levavam à rua, mas só precisava chegar abaixo do quadragésimo quinto e estaria fora da Crepúsculo: em segurança.

Um dos gerentes tentou impedi-lo. Jamie viu um homem de terno parado no corredor, com os braços abertos como se quisesse um abraço. Jamie deu um soco na barriga do sujei­to, depois saltou enquanto o homem desmoronava, ofegando. A saída de incêndio ficava adiante. De súbito havia pessoas em toda parte, mas nenhuma se mexia, esperando que outro assumisse a responsabilidade. No corredor atrás, ouviu Banes gritando ordens. Jamie chegou à saída de incêndio e passou.

E exatamente nesse momento todos os alarmes do prédio dispararam. O ar explodiu num caos de sirenes e campainhas. Jamie se perguntou se a porta estaria ligada ao sistema e se ele próprio teria disparado o alarme. Mas não era possível. Eleja a abrira uma vez. Era Alicia. Tinha de ser. Ela devia ter ligado para a polícia logo depois de dar o telefonema para o Sr. Banes.

Jamie desceu correndo a escada de emergência. Abaixo ouviu portas se abrindo com estrondo. A Crepúsculo compar­tilhava o prédio com pelo menos 12 outras empresas e todas estavam sendo evacuadas. A escada à frente já estava apinhada de gente. Jamie foi empurrando e abrindo caminho pela multidão, mas mesmo assim, demorou séculos para chegar ao nível da rua. Quando chegou à luz do sol, bombeiros e policiais estavam entrando, procurando qualquer sinal de fu­maça. Havia duzentas ou trezentas pessoas na calçada. Já começava a correr a notícia de que a coisa toda havia sido um trote.

Jamie atravessou a rua correndo. Alicia estava esperando-o no carro.

— Conseguiu? — perguntou ela.

— Vamos... — Jamie estava sem fôlego. Seu coração martelava. E sentia-se sujo, com as lembranças de Banes ain­da grudadas a ele. Queria tirá-las. Precisava ir para longe.

Partiram, rodeando o quarteirão e depois voltando para a casa em West Hollywood. Alicia olhou brevemente para Jamie, mas não disse nada. Talvez entendesse que ele precisava ficar em paz.

Então seu celular tocou.

Alicia olhou-o por um momento. Ninguém sabia que ela estava em Los Angeles, afora a irmã — e provavelmente sua irmã estava voando em algum lugar. Então quem...? Um nú­mero apareceu na tela e, com um sentimento de pavor, ela o reconheceu. Não tinha escolha. Atendeu.

— Você me ligou há alguns minutos — disse Colton Ba­nes. — Acho que estou falando com a Sra. Alicia McGuire.

Alicia parou o carro.

O telefone dele devia ter armazenado o número, claro. Como ele havia conseguido seu nome? Não seria difícil. A Cor­poração Crepúsculo era uma empresa gigantesca. Devia ter seus recursos.

— O que você quer? — perguntou Alicia.

Ao seu lado Jamie escutou a voz e soube imediatamente com quem ela estava falando. Mas não conseguia entender as palavras.

— Você tem um filho — respondeu Banes. Alicia se enrijeceu. A dor chamejou em seus olhos.

— Queremos Jamie Tyler. Ele não é nada para você. Você sabe disso. Se quiser ver seu filho de novo, entregue-o a nós. É uma proposta muito simples, Sra. McGuire. Você nos dá esse garoto, nós lhe damos o seu. Mas é uma oferta única. Se re­cusar, nunca mais verá o Daniel.

Alicia não estava respirando. Jamie sabia que algo terrível havia acontecido. Ela estava segurando o telefone como se tentasse esmagá-lo. Cerca de 10 segundos se passaram. Por fim ela sussurrou:

— Vá para o inferno, desgraçado.

E desligou. Por fim jogou o telefone no banco de trás, como se ele tivesse lhe dado uma mordida.

— O que ele queria? — perguntou Jamie.

— Ofereceu trocar Danny por você.

Jamie não sabia o que dizer. Sabia o que ela devia estar pensando. Não precisava ler sua mente.

Mas quando Alicia se virou de novo para ele, estava sor­rindo, mesmo que tivesse os olhos vazios.

— Ele disse o que eu queria saber. A Crepúsculo pegou Danny. Antes era uma suspeita. Agora é fato. E isso significa que sei o que fazer.

Ela engrenou o carro de novo e partiram. Jamie olhou para trás. O sol ainda brilhava. O prédio da Corporação Crepúsculo não parecia diferente de nenhum dos outros que o rodeavam, enquanto eles entravam na via expressa, deixando-o para trás.

 

A polícia havia feito um círculo de segurança ao redor do hotel Carlton no bulevar Wilshire, logo ao sul de Beverly Hills. Parecia a Jamie que Los Angeles não tinha um centro de verdade. Es­palhava-se descuidadamente de um distrito ao outro... mas se a cidade tinha uma carteira, certamente era guardada aqui. Jamie nunca vira tantas lojas e butiques caras lado a lado, as vitrines atulhadas de relógios, jóias e ternos de 5 mil dólares.

O Carlton era um prédio antiquado, com 15 andares e ocu­pava todo um quarteirão. Enquanto Alicia chegava de carro, com Jamie, no pátio da frente, uma dúzia de empregados com paletós cinzas e iguais correu para ajudá-los a sair do carro e depois estacioná-lo atrás. Mas até o número de empregados era suplantado pelo pessoal do serviço secreto, que também tinha seu uniforme: ternos pretos, camisas brancas, óculos escuros e fones de ouvido. Para Jamie eles pareciam quase ridículos, como algo saído de um desenho animado. Mas tal­vez essa fosse a idéia. Eles anunciavam o fato de que o hotel estava protegido.

O senador John Trelawny ficaria hospedado ali durante as 24 horas que antecediam o discurso no Centro de Convenções de Los Angeles, e havia ocupado todo o décimo segundo an­dar para passar a noite. Faltavam menos de cinco meses para a eleição geral e sua equipe de campanha chegava a quase cem pessoas, inclusive conselheiros de mídia, consultores de políti­ca, redatores de discursos, estatísticos, auxiliares pessoais e mais seguranças. Todos tinham quartos, e durante uma noite todos os elevadores para o décimo segundo andar estavam bloquea­dos. Para visitar o senador os convidados teriam de mostrar a identidade e depois receber uma chave-passe — dada pelo serviço secreto. As visitas eram acompanhadas por todo o ca­minho. Se não tivessem convite, não entravam.

— Ele vai nos receber? — perguntou Jamie, enquanto entrava no hotel com Alicia, passando por um corredor sinuoso.

Alicia confirmou com a cabeça.

— Só preciso informar a ele que estamos aqui... Entraram num saguão gigantesco com um enorme lustre pendurado sobre uma mesa redonda e lustrosa. Jamie se pe­gou olhando boquiaberto para a riqueza à mostra. Havia tudo em exagero. Demasiadas luzes elétricas, demasiados vasos de flores — pelo menos dez — sobre a mesa, demasiados reló­gios antigos, espelhos e vitrines atulhadas de bolsas, echarpes e sapatos. E pessoas demais. Havia uma mesa de recepção, carregadores e hóspedes em toda parte. Hora do rush para os ricos, pensou Jamie. Nunca estivera num lugar assim.

Alicia parou e olhou em volta, procurando algum conhe­cido. Alguns instantes depois encontrou.

— Ali! — exclamou, e foi andando.

Um homem parado perto de uma mesa junto dos eleva­dores. Vestia o mesmo tipo de terno escuro e camisa branca dos outros seguranças, mas tinha gravata colorida como a anunciar que na verdade não era um deles. Mesmo assim havia um fio revelador passando por trás da orelha e ele estava obvia­mente fazendo o mesmo serviço: examinando o saguão com olhos cheios de suspeita. Tinha pelo menos 1,90m, cabelos louros cortados à escovinha, olhos azuis constantemente em movimento e corpo de halterofilista. Os ombros eram enor­mes. Ou era ex-militar do exército ou jogador de basquete aposentado... ou as duas coisas.

O homem viu Alicia, reconheceu-a antes de ela se aproxi­mar a menos de dez passos.

— Alicia! — cumprimentou dizendo o nome dela, mas pareceu mais surpreso do que satisfeito ao vê-la.

— Como vai, Warren?

— Bem — disse ele com sotaque forte. — Não sabia que você estava em LA.

— Eu só soube que vinha há uns dois dias.

Warren havia notado Jamie, parado alguns passos atrás dela, tentando não incomodar. O homem franziu a testa bre­vemente e Jamie sentiu um nervosismo súbito, pensando que poderia ter sido reconhecido.

— É amigo meu — disse Alicia. — O nome dele é David. — Havia uma vitrine junto à parede, anunciando charutos Davidoff. Jamie sabia que ela havia escolhido o nome falso dali, e esperou que o segurança não notasse também. Ela se virou para ele. — David, este é Warren Cornfield.

Warren assentiu devagar para Jamie, depois se virou para Alicia.

— O que posso fazer por você?

— Quero ver o senador.

— Quer ver o senador? — Um sorriso lento se espalhou nos lábios de Cornfield. Mas ele não estava achando diverti­do. — Você sabe que não é possível, Alicia. Amanhã ele vai falar para 10 mil pessoas. De algum modo não creio que ele tenha tempo para vê-la agora.

Mas Alicia ficou firme.

— Quando eu saí, ele disse que sua porta estaria sempre aberta para mim.

— Não foi o que ele me disse.

— Por que não pergunta a ele?

— Não sou secretário dele, Alicia. Você sabe. Acho que talvez você devesse voltar outra hora e marcar uma reunião.

Jamie podia ver que Alicia estava lutando para manter a compostura.

— Eu estou aqui agora, pedindo uma reunião, Warren — rosnou ela. — E está certo. Você não é secretário dele. Então por que não liga para Elizabeth, que é, e ela pode perguntar se o John me recebe?

— Você está perdendo seu tempo.

— Veremos, não é?

Alicia deu um sorriso agradável, mas Warren fez um mu­xoxo. Não gostava que falassem assim com ele, mas estava claro que Alicia não admitiria questionamento. Warren levan­tou um dedo e se afastou, de cabeça inclinada, falando num microfone escondido. Para qualquer um que olhasse, era como se estivesse discutindo consigo mesmo.

— Warren é o chefe da segurança pessoal de John — explicou Alicia. — Ele deveria ser o elemento de ligação com o serviço secreto, mas na metade do tempo pensa que co­manda o serviço secreto. Nós nunca nos demos bem.

— Dá para ver.

— Dizem que ele já foi da CIA, mas foi mandado embo­ra. Pessoalmente, eu acho...

Mas Alicia não terminou a frase. Warren Cornfield estava voltando para ela, e toda a sua postura havia mudado. Pare­cia uma criança carrancuda.

— Ele diz que vai recebê-la — murmurou.

— Obrigada, Warren.

— Por que não me chama de Sr. Cornfield? Você não faz mais parte da equipe...

Ele estalou os dedos como um cliente irritado num res­taurante pedindo uma bebida. Um dos jovens do serviço se­creto veio correndo.

— Leve estas pessoas até o décimo segundo — disse.

— Sim, Sr. Cornfield.

Alicia sorriu para ele e entrou com Jamie no elevador. O segurança enfiou uma chave na fechadura e apertou o botão do décimo segundo andar. A porta se fechou.

— Vocês são amigos do senador? — perguntou o rapaz.

— Eu trabalhava para ele — respondeu Alicia.

— Ele é um bom sujeito — continuou o segurança. — Talvez eu até vote nele. Charles Baker é um sacana.

Havia um homem de cabelos prateados, de terno mas sem gravata, esperando-os quando o elevador chegou. Warren devia ter avisado lá de baixo. O homem reconheceu Alicia imediatamente.

— Nossa, que bom ver você! Como tem passado? — Ele tinha sotaque irlandês.

— É ótimo vê-lo, Patrick. Ainda apostando nos cavalos?

— Ainda perdendo.

— Este é um amigo meu. — Ela indicou Jamie, mas teve o cuidado de não dizer o nome dele. — Patrick é o chefe da campanha de John no estado da Califórnia.

— É um prazer conhecê-lo. — Patrick sorriu e Jamie gos­tou dele imediatamente. O sujeito obviamente estava perplexo com a aparência de Jamie, mas havia decidido não fazer per­guntas. — Ele não pode falar com você por muito tempo, Alicia — disse enquanto os levava pelo corredor. — Neste momen­to, a pressão é enorme.

— Como ele está? — perguntou Alicia.

— Fazendo um ótimo trabalho. Só gostaria que a dispu­ta não fosse tão apertada.

Havia uma porta dupla no fim do corredor, com outro ho­mem do serviço secreto montando guarda. Patrick mostrou um passe e levou Alicia e Jamie a uma grande sala de reuniões com uma única mesa cheia de blocos e canetas, computado­res, impressos, pastas de papel, bandejas de sanduíche e gar­rafas de água mineral. Havia uma dúzia de pessoas sentadas ao redor e, pela aparência, nenhuma havia dormido muito nos últimos dias. Estavam ocupadas falando, discutindo so­bre uma espécie de gráfico, mas quando Alicia entrou, um deles se levantou e, com um choque, Jamie reconheceu o homem que tinha visto em cartazes por toda Los Angeles.

John Trelawny não parecia um político. Foi o primeiro pen­samento de Jamie. Era um homem bonito, mais alto do que Jamie havia esperado pela foto, e também era mais novo, talvez com pouco menos de 50 anos. Tinha cabelo que já fora claro, mas que havia desbotado, a caminho de ficar grisalho. Mas parecia em forma e saudável. Estava usando calça de veludo cotelê, suéter azul frouxo e tênis. Obviamente sentia-se cansado, mas os olhos castanho-claros eram cheios de vida.

— Alicia, esta é uma surpresa muito inesperada. Como vai? — Ele a abraçou. — Há alguma notícia do Daniel?

— Sim, há, senador. Foi por isso que eu quis vê-lo. — Ela se virou e apresentou Jamie. — Este é Jamie. — Desta vez usou o nome certo.

Trelawny estendeu a mão e os dois se cumprimentaram.

— Como vai?

— Senhor... — Jamie achou difícil acreditar que podia estar apertando a mão do próximo presidente dos Estados Unidos.

— Desculpe aparecer assim — continuou Alicia. — Sei como está ocupado e como este momento é importante. Mas preciso falar com você com urgência.

— Encontrou seu garoto?

— Acho que posso ter encontrado. Sim. Mas não posso ir até ele.

— Senador... — Uma mulher sentada à mesa levantou um celular. — Estou com o prefeito de Auburn ao telefone. Ele quer falar sobre o desfile de aniversário.

Trelawny pareceu achar divertido.

— Agora não, Beth. Pode dizer que eu ligo de volta para ele? — Em seguida se virou para Alicia. — Infelizmente não posso lhe dar muito tempo. Há muita coisa acontecendo agora. Mas, sabe, para mim pode ser bom fazer uma pausa. Na ver­dade pode ser bom para todos nós. Certo, pessoal! — Ele le­vantou a voz. — Saiam e vão pegar um pouco de ar fresco, comer algo ou fazer alguma coisa que se aproxime da vida real. Voltamos em 10 minutos. — E se virou para Alicia. — Por que não vamos para a sala ao lado, falar sem ser perturbados?

Alicia olhou para Jamie. Ele assentiu de volta. O senador e sua ex-secretária saíram juntos. Ao lado do centro de confe­rências havia uma sala de estar. Jamie viu os dois entrando. Eles fecharam a porta. Nenhum dos encarregados da campa­nha saiu da mesa. Continuaram a trabalhar como antes. O irlandês se aproximou.

— Quer beber alguma coisa, rapaz?

— Vocês têm uma Coca?

— Claro. Por que não se senta no sofá e fica à vontade? Jamie fez isso, satisfeito por estar fora do caminho. Havia uma TV de plasma ligada no canto, mas tinha o som abaixado e estava sintonizada numa estação de notícias. Patrick retornou com uma Coca e Jamie bebeu devagar, imaginando quanto tempo Alicia ficaria na outra sala. John Trelawny havia dito 10 minutos, mas parecia que tinha se passado muito tempo. Por fim a porta se abriu e Trelawny apareceu de novo.

— Michael — disse ele, dirigindo-se a um dos homens da sala. — Pode me conseguir um dossiê sobre a Crepúsculo?

— Em seguida se virou para Jamie. — Gostaria de trocar uma palavrinha com você.

Jamie se levantou e entrou. Tinha consciência do pessoal da campanha olhando-o com curiosidade. Eles estavam traba­lhando num discurso importante. Por que aquele adolescen­te estava tomando tanto tempo do chefe? O homem chamado Michael havia pegado uma pasta grossa e entregado a Trelawny, que assentiu agradecendo. Jamie acompanhou Trelawny até a outra sala, fechando a porta.

Alicia estava sentada num sofá, mas Jamie foi levado a uma cadeira vazia, como se o senador quisesse mantê-los separa­dos. Trelawny ficou junto à porta, pensando, depois pousou a pasta e andou pela sala.

— Alicia acaba de me contar a história mais estranha que já ouvi na vida — começou ele. — Se eu não a conhecesse bem, já teria mandado que ela saísse. Na verdade, agora mesmo tenho de me perguntar se ela não está meio pertur­bada. Não falo isso de modo cruel. Depois de tudo que aconte­ceu, da perda do filho, eu entenderia. Mas ela disse que você também perdeu alguém... um irmão. Scott. Que ele foi levado de um teatro em Reno. É mesmo?

Jamie confirmou com a cabeça. Sabia o que viria.

— Segundo Alicia, as pessoas que levaram Scott podem ser as mesmas que levaram Daniel. E o motivo para estarem interessadas em vocês, segundo ela, é que vocês têm uma ca­pacidade extraordinária. Vocês podem ler o pensamento dos outros. Meus pensamentos, por exemplo.

— Desculpe, Jamie — murmurou Alicia.

— Tudo bem. — Jamie havia adivinhado o que teria de fazer, mas desta vez não estava preocupado. Tudo no sena­dor Trelawny, até o modo como ele falava, deixava-o confor­tável. Não seria como Colton Banes. Ele não vivia no mesmo mundo.

— Tentarei manter a mente aberta — continuou Trelawny — e eu seria o primeiro a admitir que neste mundo há muitas coisas que não podem ser explicadas. Mas isso... — Ele ba­lançou a cabeça em dúvida. — De qualquer modo, deve ser bastante simples. Alicia sugeriu que eu o testasse. Você se importa?

— Não, senhor. — Jamie estava pronto.

— Muito bem. — Trelawny indicou uma mesa baixa, diante do sofá. Havia uma caixa de madeira simples, mais ou menos do tamanho de um maço de cigarros, posta no meio.

— Minha mulher me deu isso — disse ele. — Eu levo aonde quer que vá. Alicia não sabe o que há dentro. Eu não contei. Mas ela diz que você pode falar o que é.

Jamie se concentrou por um momento. Depois olhou Trelawny direto nos olhos.

— Não há nada dentro da caixa. Está vazia. Trelawny não revelou nada. Mas Alicia sentiu uma tensão súbita na sala.

— Foi sua mulher que fez— continuou Jamie. — Ela gosta de trabalhar com madeira. O nome dela é Grace. O senhor mantém coisas na caixa quando vai para a cama. Abotoaduras e coisas assim. Agora é difícil falar mais, porque o senhor só está pensando na eleição. É esquisito...

— Continue.

— Bom, eu ia dizer que o senhor está realmente com medo de perder. Mas o estranho é que está com mais medo ainda de ganhar.

Houve silêncio. Trelawny ficou parado, tão imóvel que mal respirava. Por fim soltou um suspiro longo.

— Você tem um talento extraordinário. Não vou chamar isso de dom, porque talvez não seja. Não imagino como deve ser para você, ter essa capacidade.

— Eu não uso. Não quero ter.

— Ninguém, além de mim, jamais olhou dentro desta caixa — disse Trelawny. — Ela viaja comigo. Nunca contei a ninguém quem a fez. — Ele foi até a mesa e pegou-a, abriu e mostrou a Alicia. Não havia nada dentro.

— Alicia sugeriu que eu deveria lançar uma investigação em escala total sobre a Corporação Crepúsculo. Mas por acaso já comecei. — Ele foi até a pasta de papel e abriu. — Isto é só a ponta do iceberg. Deixe-me falar um pouco sobre eles. E por que, neste momento, não posso fazer nada.

Ele sentou-se.

— Não acredito que todas as grandes empresas sejam ruins — começou. — Mas a Crepúsculo é muito grande e parece se orgulhar em ser tão ruim quanto possa, sem ser apa­nhada. O problema deste país é que sempre estamos prontos a nos fazer de cegos para crimes cometidos em nome dos negócios. Uma fábrica pega fogo e vinte trabalhadores mor­rem. Um tanque vaza e um rio inteiro fica poluído. Um siste­ma de armas é vendido fora do país e termina sendo usado contra soldados americanos. Ninguém nota, e sabe por quê? Porque o que importa é o lucro. O lucro é o rei. Essas empresas têm lucros gigantescos e empregam dezenas de milhares de pessoas. Então que fiquem impunes dos assassinatos.

“Ouvi falar da Crepúsculo pela primeira vez há uns seis meses. — Ele pegou um recorte de jornal. — Isso me foi man­dado por um amigo. Ele achava que eu poderia me interessar pela história de uma criança de 12 anos, trabalhando numa fábrica de brinquedos na Indonésia, que foi queimada por uma das máquinas e morreu. O garoto trabalhava dez horas por dia em troca de vinte centavos por hora, e estava exausto. Eu cha­mo isso de assassinato. Ele estava fazendo peças para um jogo de tiro ao alvo, e a empresa que o empregava era de proprie­dade da Crepúsculo. Mas eles pagaram alguma compensação? Eles se importaram? Claro que não. E você poderia comprar aquele brinquedo em qualquer shopping dos Estados Unidos.”

— O senhor disse que não pode fazer nada — interveio Jamie.

— Eis o motivo. — Trelawny franziu a testa. — O atual vice-presidente e o chefe do estado-maior trabalharam para a Crepúsculo antes de entrar na política. Quando saírem da Casa Branca, independentemente de quem ganhar a eleição, eles voltam para a diretoria da empresa. A Crepúsculo tem cerca de trezentas companhias em todo o mundo, e muitas trabalham para o governo americano. Há uma que faz bom­bas. As bombas são jogadas. Há outra que é contratada para reconstruir as cidades destruídas pelas bombas. Está enten­dendo aonde quero chegar? Os negócios e a política andam de mãos dadas.

“E, para piorar, a Crepúsculo está apoiando Charles Baker na eleição presidencial. Na verdade é um dos maiores patro­cinadores. Deu milhões de dólares. Eles têm de ser espertos no modo como fazem isso: há leis sobre doar dinheiro para causas políticas. Mas há dezenas de organizações indepen­dentes e pequenos grupos lutando contra mim e, mesmo não parecendo ser ligados, temos quase certeza de que a Crepús­culo está bancando todos eles. Mas não tenho provas, Jamie. Eles são cuidadosos demais. E se eu começar a fazer acusações, só vou parecer um mau perdedor, pelo menos vou parecer que estou com medo de perder, e isso não ajudaria ninguém.”

— Então o que pode fazer?

— Tenho de esperar e ter esperanças de ganhar. Se eu virar presidente deste país, e acredito que haja uma boa chance de isso acontecer, quero que minha primeira prioridade seja lutar contra a corrupção nos negócios, e pretendo começar com a Crepúsculo.

— Não podemos esperar — disse Jamie. — Eles estão machucando o Scott.

— Como você sabe?

— Eu sei.

— Espere aí — disse Alicia. Ela enfiou a mão na bolsa e pegou um papel. — Graças a Jamie, conseguimos descobrir que Scott pode estar preso num lugar chamado Silent Creek. Verifiquei na Internet. Silent Creek é uma prisão, um instituto correcional para jovens, no deserto de Mojave. É a única pri­são que a iniciativa privada administra no estado de Nevada. E é de propriedade da Crepúsculo.

— Scott está lá — disse Jamie.

— Achamos que Scott está lá. E achamos que Daniel tam­bém pode estar. — Alicia suspirou. — Faz sentido. Se você quiser manter um bocado de crianças num lugar onde nin­guém possa encontrar, fora do caminho, uma prisão no de­serto seria perfeito. Você pode entrar lá, senador? Poderia conseguir que a polícia fizesse uma batida?

— Eu poderia tentar. — Trelawny pensou um momento, depois balançou a cabeça. — Mas não seria fácil. Em primei­ro lugar não tenho prova de que haja algo errado acontecen­do lá. E nunca ouvi falar de Silent Creek. E se fica em Nevada, nem está na minha jurisdição. E, finalmente, o supervisor da prisão ficaria sabendo antes que chegássemos perto. Se os tais garotos estivessem lá, haveria todo o tempo do mundo para levá-los a outro lugar. Ou coisa pior...

Alicia assentiu. Estivera esperando isso.

— Talvez você esteja certo. Mas temos outra idéia.

— Eu poderia entrar lá — disse Jamie.

— Entrar lá... como?

— Você deve conhecer pessoas. Imagine se Jamie se tornasse um dos internos. Com nome falso. Um juiz poderia mandá-lo para lá com outro grupo de delinqüentes juvenis. Quando estivesse dentro de Silent Creek, poderia descobrir se Scott e Daniel estão lá e mandar uma mensagem para mim. Talvez até pudesse ajudá-los a sair.

— Como ele faria isso?

— Há coisas que posso fazer — explicou Jamie. — Coisas que o senhor não sabe.

— Sei que você quer pegar aquelas pessoas no momen­to devido, Senador — disse Alicia. — Mas nós não temos tem­po. Temos de fazer alguma coisa agora.

Houve uma batida na porta e, sem esperar resposta, Warren Cornfield entrou intempestivamente. O segurança de Trelawny estava furioso. Parou emoldurado no portal, que era quase do seu tamanho.

— Com licença, senhor — disse ele. — Desculpe entrar assim...

— O que foi, Warren? — perguntou Trelawny. Ele não parecia preocupado.

— Senhor, esta mulher mentiu para mim. — Seu dedo apontou para Alicia. — O garoto que ela trouxe para vê-lo, acho que deveria saber que o nome dele não é David. Eu achei que o havia reconhecido e sei quem ele é. O nome dele é Jamie Tyler e é um bandido procurado.

— Alicia já me contou quem ele é — respondeu Trelawny.

— Contou? — Cornfield ficou pasmo. — Senhor, a polí­cia de Nevada está procurando esse garoto. Ele é procurado por assassinato em primeiro grau. Se o senhor o deixar aqui, se alguém descobrir que ele ao menos esteve na mesma sala que o senhor, isso pode destruir toda a sua campanha.

— Entre, Warren. Feche a porta.

O segurança obedeceu. Trelawny esperou até que ele ti­vesse se acalmado.

— Você chamou a polícia? — perguntou Trelawny.

— Não, senhor. Ainda não.

— Bom. Vamos deixar a coisa assim. — Trelawny se virou para Alicia. — É melhor vocês irem — disse ele. — Mas tenho o número do seu celular e vou manter contato. Talvez seja possível arranjar o que você pediu. Tenho amigos... — Ele foi até Jamie e pôs a mão no ombro do garoto. — Não vou me esquecer que conheci você, você está absolutamente certo. — Ele sorriu. — Espero que encontre seu irmão.

— Senhor... — Warren não podia acreditar no que esta­va vendo. — Essas duas pessoas deveriam estar na cadeia.

— Tudo bem, Warren. Acho que sei o que estou fazen­do. Quero que você leve meus convidados. Não os prenda. Não chame a polícia. Certifique-se de que ninguém fique no caminho deles.

— Como quiser, senhor.

Cornfield ainda estava fazendo careta quando os levou até a porta. No último momento Jamie se virou e olhou mais uma vez para o homem que poderia se tornar presidente. Ele ha­via pegado a caixinha e estava segurando-a com uma espécie de perplexidade, como se também pudesse, de algum modo, olhar através da superfície de madeira e descobrir os segre­dos que havia dentro. A porta se fechou. Jamie achou que não iria vê-lo de novo.

Dor.

Scott Tyler não sabia quanto tempo havia passado ali. Nem sabia onde era o “ali”, nem como tinha chegado.

Estava deitado numa cama. Para começar, houvera cor­rentes e algemas nos pulsos, mas agora não existia mais ne­cessidade disso. Ele estava fraco demais para se mexer. Caso pudesse se examinar, teria visto que continuava com as mes­mas roupas de quando estava no teatro, se bem que a cami­sa fora rasgada e as calças estavam amarrotadas e rasgadas. Não que se lembrasse mais do teatro ou de qualquer coisa acontecida na noite em que foi seqüestrado. Grande parte de sua memória fora apagada. As drogas que pingavam no bra­ço direito haviam feito isso. As doses tinham sido cuidadosa­mente monitoradas, as injeções dadas no tempo exato. Eles não queriam matá-lo nem enlouquecê-lo. Queriam arrancá-lo da vida que ele tivera e deixá-lo flutuando desamparado até estar pronto para se tornar um deles.

Não comia há dias e eles mal haviam trazido água sufi­ciente para mantê-lo vivo. Nem tinha dormido. A cada vez que seus olhos se fechavam, o quarto era bombardeado com uma explosão de sons, tambores, música, metralhadoras. As luzes eram mantidas acesas o tempo todo. Neste momento poderia ser o meio do dia ou da noite. Não fazia diferença. Scott mal estava consciente. E estava pronto para o estágio seguinte.

A porta se abriu. Scott nem tentou olhar para ver quem havia entrado. Tinha medo de fazer qualquer coisa sem que lhe mandassem. Houve um farfalhar de tecido quando alguém se sentou. Ele sentiu um cheiro, algum tipo de flor. Tremen­do, virou a cabeça e viu que uma mulher havia entrado e se sentado na cadeira junto da cama. Ela o olhava como se não soubesse o que pensar dele. Ou talvez estivesse decidindo o que fazer em seguida.

Ela ergueu uma das mãos. Scott viu que a mulher usava vá­rios anéis. Por um momento dois dedos pousaram em seu braço.

— O que fizeram com você? — Ela falou pela primeira vez. Sua voz era suave e quase musical. — Coitadinho. Eu teria vindo antes, se soubesse, mas, veja bem, para mim é muito difícil. Quero ser sua amiga. Mas preciso saber se você confia em mim. Você precisa estar do meu lado.

Os dedos dela foram até a testa dele, afastando dos olhos uma mecha de cabelo.

— Jamie abandonou você — continuou ela. — Você se lembra, no teatro? Foi quando vieram pegar você, e seu irmão simplesmente o abandonou. Durante toda a vida você cui­dou dele, mas ele não se importou. Na primeira chance que teve, foi embora, deixando você assim. Neste momento ele está rindo de você. Porque está numa boa. Curtindo de mon­tão. E você está deitado de costas, ligado a esses tubos horrí­veis, poderia morrer aqui e ninguém pensaria duas vezes.

“Mas esse foi o erro que você fez desde que era pequeno, Scott. Lembra-se de Ed e Leanne em Carson City? Você achou que eles iriam cuidar de você, mas eles o deixaram na mão. Depois Don e Marcie, que foram piores ainda. Mas essa é a vida, não é? As pessoas boas são sempre empurradas de um lado para o outro. As pessoas pequenas. Você quer ser uma pessoa pequena, Scott, ou quer ficar comigo? Porque, veja bem, no mundo que virá, eu estarei no comando, e você terá de começar a se perguntar em que extremidade do chicote você vai querer ficar.

“Vou deixá-lo pensando nisso, querido. Eu trabalho para umas pessoas... bom, não são exatamente pessoas. Eles estarão conosco muito em breve e vão adorar saber que você se juntou a nós, que decidiu servi-los. Infelizmente Jamie não é sensato o bastante para fazer essa escolha. Mas talvez um dia você possa se vingar dele. Talvez um dia nós deixemos você pegar aquele porco e cravar uma faca no coração dele.

“Mas neste momento preciso ir. Pense no que eu disse e talvez amanhã a gente bata outro papinho.”

A porta se abriu pela segunda vez. Outra pessoa havia entrado no quarto. A mulher se levantou.

— O Sr. Banes veio vê-lo agora — explicou ela. — Eu gostaria de ficar com você e mantê-lo longe daqui. Mas até que você esteja pronto para mim, não posso. Sinto muito, querido. Mas vou voltar. Prometo.

O careca sentou-se no lugar dela. Scott fechou os olhos com força e gemeu, bem no fundo de si mesmo.

Ouviu a porta se fechar suavemente e os dois foram dei­xados a sós.

 

Jamie já estivera no tribunal antes, de modo que não houve surpresas: nem a pequenez da sala, as poucas pessoas den­tro ou a velocidade em que tudo aconteceu. Havia duas me­sas diante da juíza, uma mulher de meia-idade vestida de preto sentada entre a bandeira de Nevada e a dos Estados Unidos. Jamie estava atrás de uma das mesas com seu advogado. Seu agente de condicional e uma mulher da promotoria estavam na outra. Um escrivão tomava notas e um segurança montava guarda com expressão de quem já viu de tudo. Nem a im­prensa nem o público tinham permissão de entrar num tri­bunal juvenil, mas Alicia estava sentada lá, sozinha, com expressão ansiosa. Tinha vindo como amiga da família.

As mãos e os pés de Jamie estavam algemados. Isso o havia alarmado porque não tinha acontecido na última vez em que fora levado preso. Mas desta vez o crime era mais sério. Ele fora preso, supostamente, por vender drogas na escola — um cri­me que lhe garantiria tempo de cadeia. Era tudo falso, claro. O agente de condicional e o advogado faziam parte da arma­ção, eram ligados de algum modo a John Trelawny, que havia arranjado a coisa toda. Até haviam dado um nome falso a Jamie: Jeremy Rabb: processo número J83157. De algum mo­do haviam-no colocado no sistema de justiça juvenil de Neva­da e, pelo que Jamie sabia, a juíza era a única pessoa na sala que não fazia idéia do que estava acontecendo de fato.

Era tudo falso — no entanto, as tiras plásticas que pren­diam seus pulsos e as correntes nos tornozelos eram horrivel­mente reais. A movimentação livre, o mais básico dos direitos humanos, lhe fora retirada. Sentiu o horror de ter sua identi­dade arrancada, de pertencer a um sistema que agora pode­ria fazer o que quisesse com ele. Pior ainda, lembrava-se do que o senador John Trelawny dissera a Alicia pelo telefone.

— Posso colocá-lo dentro, Alicia, mas há algo que você precisa avaliar: não posso tirá-lo de novo, depois de ele ser mandado a Silent Creek. Pessoas demais saberiam. O que estamos fazendo aqui é necessário e posso justificar na mi­nha mente, mas está no limite da ilegalidade. Entende o que estou dizendo? Assim que Jamie estiver dentro do sistema, não posso mais intervir.

Alicia havia explicado isso a Jamie, que entendeu. O sena­dor já estava pondo o pescoço na forca por ele, e não podia se arriscar a um escândalo caso tudo desse errado. Ao mes­mo tempo Jamie não estava preocupado demais. Tinha seu poder e poderia usá-lo para sair da prisão a qualquer momen­to. Pensava em Scott. Encontrar o irmão era tudo que impor­tava e não havia outro modo. Só agora, incapaz de separar as mãos, incapaz de andar sem arrastar os pés, pensou duas vezes. Estava para ser condenado, levado, engolido. Quando isso acontecesse, estaria totalmente sozinho.

Seu cabelo fora cortado curto e haviam lhe dado um par de óculos grossos, de armação de plástico preto. Ficou surpreso ao ver como sua aparência havia mudado. O peri­go era que alguém que tivesse conhecido Scott o reconhe­cesse como um gêmeo quase idêntico, mas agora parecia haver pouca chance disso. Olhando no espelho, mal conse­guia se reconhecer.

— ...a sentença estabelecida por este tribunal é de 12 meses de detenção... — estava dizendo a juíza. Jamie havia perdido a primeira parte do que ela falou. Ela se virou para o oficial de condicional. — Examinei os autos e acho que Summit View seria um lugar adequado.

Jamie ouvira falar de Summit View. Era um centro de cor­reção juvenil nos arredores de Las Vegas. Mas o oficial de con­dicional estava balançando a cabeça.

— Com todo o respeito, meritíssima, eu iria recomendar Silent Creek.

A juíza ficou surpresa.

— Lá a coisa é bem dura — observou. — O garoto só tem 14 anos e é um primeiro crime.

— Sim, meritíssima. Mas ele estava vendendo metanfetamina para crianças de 12 anos. Algumas delas estão fa­zendo tratamento de reabilitação, estão fora da escola. Rabb não mostrou remorso. Na verdade ele tem se mostrado bas­tante satisfeito consigo mesmo.

Rabb. Jamie precisava ficar se lembrando de que estavam falando dele.

A juíza pensou um momento, depois assentiu.

— Muito bem. Será uma lição dura, mas talvez seja disso que ele precise. — Havia uma pasta de papel à sua frente. Ela fechou-a. — Doze meses em Silent Creek.

O segurança avançou e Jamie foi levado por uma porta lateral, com os pés movendo-se apenas alguns centímetros de cada vez. A última coisa que viu foi Alicia olhando-o. Os olhos dela estavam arregalados e cheios de pavor.

Levaram-no de microônibus, ainda algemado, com uma gar­rafa d’água presa entre os joelhos. Iria precisar dela. A tem­peratura subiria rapidamente assim que o sol nascesse, e eles pretendiam viajar durante toda a noite. Não havia mais nin­guém no ônibus: só o motorista — um homem velho e des­gastado pelo tempo — e um guarda que havia verificado rapidamente as algemas nos pulsos e nos tornozelos de Jamie e depois o ignorou.

Eram oito horas da noite quando partiram. Jamie viu a escuridão cair antes de cochilar, sentado desconfortavelmente, dormindo, mas ainda percebendo o movimento espasmódico do ônibus. Quando abriu os olhos, a luz o ofuscou. Haviam saído da via expressa e estavam seguindo uma estradinha, le­vantando uma nuvem de poeira ao redor. Jamie só conse­guia ver areia e mato ralo, com alguns cactos espaçados na paisagem. Uma cordilheira, queimada em vermelho pelo sol, esticava-se pelo horizonte.

Então a estrada começou a descer. Haviam chegado a um vale em miniatura. E então ele viu seu novo lar, Silent Creek. As duas palavras estavam escritas numa placa — desnecessa­riamente. Os internos certamente sabiam onde estavam e não havia mais ninguém para ler, em quilômetros ao redor. Ele vira a placa antes — dentro da cabeça de Colton Banes. Scott es­tava ali, em algum lugar dentro desse complexo, Jamie tinha certeza. Encontraria o irmão e os dois fugiriam. O pesadelo estava quase terminado.

Um grande complexo retangular estava à sua frente. As construções eram baixas, mas rodeadas por uma cerca de arame farpado com pelo menos 10 metros de altura. Havia duas parabólicas apontadas para o céu e do outro lado Jamie viu um campo de futebol com duas traves de gol — mas, cla­ro, não havia grama naquele calor. A superfície era de areia cinza-amarelada. Na extremidade mais distante do campo havia um muro — como todas as outras construções, feito de blocos de concreto e encimado por mais arame farpado. Enquanto bamboleavam até o portão principal, Jamie vislum­brou mais prédios do outro lado do muro, mas percebeu que não poderia vê-los de novo sem estar num lugar alto. Por al­gum motivo, Silent Creek fora dividido em dois: um terço de um dos lados, dois terços do outro.

O microônibus passou entre várias casas do lado externo. Devia ser onde os guardas e os funcionários da manutenção moravam. Jamie ficou chateado consigo mesmo. Só havia acordado no último minuto e não fazia idéia da distância que estavam de qualquer cidade ou vilarejo. Scott estaria mais bem preparado. Mas agora era tarde para se preocupar com isso. Haviam parado na frente do portão. Esta era a entrada da prisão, o portão externo. Houve um zumbido e o portão des­lizou eletronicamente, deixando-os entrar num corredor es­treito entre duas fileiras de arame farpado. O microônibus avançou aos solavancos e parou diante de um segundo portão. Este só abriu depois de o primeiro ter sido fechado. Agora, finalmente, estavam dentro da prisão. Jamie olhou ao redor, procurando câmeras de segurança. Não havia torres de guar­da. Nem ninguém à vista.

O microônibus parou uma última vez. A porta se abriu sibilando.

— Certo! Para fora! — Foram as únicas palavras que o guarda falou desde que haviam saído.

Jamie se levantou do banco, foi arrastando os pés pelo cor­redor e saiu. Imediatamente o calor o atacou. Era como levar uma pancada. Foi obrigado a fechar os olhos com força, depois abriu mais cautelosamente, lutando contra a claridade. Já esta­va suando. A temperatura devia estar acima de 30° C. Até o ar queimava. Olhou ao redor. O sol havia sugado a cor de pratica­mente tudo. O prata da cerca, a areia cinza, os blocos de con­creto cinza — tudo parecia se fundir como uma foto com excesso de exposição. Um gerador elétrico e um tanque de combustível estavam lado a lado, trancados numa jaula. Eram de um amare­lo luminoso. Não havia mais nada para atrair o olhar.

— Por aqui!

O guarda guiou-o até uma porta numa parede, que se abriu quando se aproximaram. Jamie notou uma câmera montada no alto. Ela girou para acompanhá-lo quando ele se mexeu. A porta dava numa sala grande e sem graça, com um segundo policial sentado atrás de uma mesa com compu­tador. Havia duas celas, algumas cadeiras — nenhuma com­binando com a outra — e um chuveiro com uma cortina plástica puxada até a metade. Não havia janelas. A sala era iluminada por tubos de luz fria. Misericordiosamente, depois da fornalha do pátio, havia ar-condicionado.

— Sente-se! — Foi o segundo guarda que falou. Vestia-se de modo casual, com jeans e camisa de manga curta. Jamie viu que ele não portava arma. Era um homem de 40 e poucos anos, com cabelo preto amarrado na nuca. Obviamente tinha sangue nativo americano, e Jamie se perguntou se isso pode­ria torná-lo mais simpático. Mas seus modos eram enérgicos e formais.

— Meu nome é Joe Feather — disse ele. — Mas me chame de Sr. Feather ou apenas senhor. Sou o agente de recepção e vou fazer sua ficha e depois levá-lo à orientação. Entendido?

Jamie assentiu.

— Você vai achar a coisa difícil aqui. Você já passou um tempo num instituto juvenil, certo?

— Já.

— Bom, então já sabe o básico. Fique de cabeça baixa. Faça o que for mandado. Isso vai tornar a situação mais fácil para você. — Ele assentiu para o outro guarda. — Pode tirar as algemas.

As mãos e os pés de Jamie foram soltos e, agradecido, ele separou as pernas. Havia marcas vermelhas nos pulsos e ele as esfregou. Nos 20 minutos seguintes seus dados foram digi­tados no computador... ou pelo menos os dados de Jeremy Rabb, o garoto que ele supostamente era. Ficara acordado durante metade da noite anterior com Alicia, memorizando-os antes de ser entregue à polícia.

— Entre no chuveiro e tire a roupa — disse o agente de recepção. — Quero todas as suas roupas, inclusive a cueca. Você tem algum piercing?

Jamie balançou a cabeça.

— Certo. Vou lhe passar seu novo kit...

Jamie entrou no chuveiro e puxou a cortina. Mas parecia que não teria nenhuma privacidade. A parede lateral do cubí­culo tinha uma janela dando para um depósito e, enquanto ficava sob a água corrente, Jamie percebeu Joe Feather examinando-o do outro lado. Jamie já havia passado por revistas quando estava na instituição juvenil, mas mesmo assim ficou sem graça e virou as costas. Foi então que o policial viu a ta­tuagem no seu ombro.

— Sr. Rabb... — Joe Feather falou as palavras baixinho. — Desligue o chuveiro.

Jamie obedeceu. Ficou parado com gotas d’água escor­rendo pelos ombros e pelas costas.

— Onde você conseguiu esta tatuagem? — perguntou o agente de recepção.

— Sempre tive. Foi feita quando eu nasci.

— Você tem um irmão?

Jamie se imobilizou. Será que já fora reconhecido?

— Não tenho irmão — respondeu.

— Não tem irmão?

— Não, senhor.

Joe Feather lhe entregou as roupas da prisão. Elas passa­ram por uma fenda sob a janela.

— Vista isso. Vou levá-lo para dentro.

Jamie era o nonagésimo quinto garoto a entrar em Silent Creek. A prisão poderia manter cem, ao todo, com dez guar­das — ou supervisores, como eles chamavam a si mesmos — para vigiá-los em tempo integral. Havia quatro áreas de esta­dia, Norte, Sul, Leste e Oeste — e a vida era organizada de modo que os internos ficassem o mais afastados possível. Assim, membros de gangues rivais mal se viam e jamais se falavam. Cada unidade comia num horário diferente — havia quatro turnos em cada refeição — e quatro horários de exer­cícios no ginásio. A faixa de idade ia dos 13 aos 18 anos.

Havia regras para tudo. Os garotos tinham de andar com as mãos cruzadas às costas. Não tinham permissão de falar enquanto se moviam e não podiam ir a lugar nenhum, nem mesmo ao banheiro, sem a supervisão de adultos. Eram vigia­dos constantemente, por supervisores ou por câmeras de se­gurança. Eram revistados superficialmente depois de cada refeição e, se faltasse ao menos um garfo plástico, todos eram despidos e revistados. Havia seis horas de aulas todas as ma­nhãs, duas de recreação (no ginásio, já que era quente de­mais do lado de fora) e duas horas de TV. Só era permitido assistir a esportes — jamais filmes ou noticiários. O uniforme da prisão consistia em calça de moletom azul, camiseta cinza e tênis. Todas as cores haviam sido escolhidas cuidadosamente. Nada era preto nem vermelho forte. Essas eram cores de gangues e poderiam bastar para provocar uma briga.

A vida na prisão não era brutal, mas era tediosa. Havia livros da biblioteca, que os garotos podiam ler, mas afora isso todos os dias eram iguais. As horas medidas com precisão mortal, estendendo-se interminavelmente ao sol do deserto. Havia confinamento na solitária ou perda de privilégios para qualquer um que saísse da linha, e até mesmo um cadarço desamarrado podia provocar castigo instantâneo caso os supervisores estivessem de mau humor.

E havia a enfermaria. Garotos que fossem violentos e pouco cooperativos iam ver o médico num pequeno complexo en­costado no muro de blocos de concreto. Recebiam compri­midos e, quando voltavam, estavam calmos e de olhos vazios. De um modo ou de outro a prisão controlava as pessoas. Os garotos aceitavam isso. Nem mesmo odiavam Silent Creek. Sim­plesmente suportavam como se fosse uma longa doença que lhes acometera, e não era sua culpa.

Jamie não demorou muito para descobrir o que precisava saber. Nenhum dos outros garotos havia se encontrado com Scott. Não havia registro de ele jamais ter estado ali. Mas sa­bia que o que tinha visto em Silent Creek até agora era apenas metade da história. Havia duas áreas na prisão: isso pudera ver pessoalmente ao chegar de ônibus. Havia toda uma área, do outro lado do muro, que ficava separada. Ninguém se co­municava com ela. Tinha seu próprio ginásio, suas salas de aula, cozinhas e celas, como se fosse um reflexo ligeiramente menor do complexo principal. E havia boatos.

Do outro lado do muro. Dizia-se que era lá que os espe­ciais eram mantidos.

— Eles são os verdadeiros barras-pesadas. Os assassinos. Os psicopatas.

— Eles são doentes. Foi o que ouvi dizer. Eles têm algu­ma coisa errada na cabeça.

— É. São vegetais. Cretinos. Só ficam sentados nas celas, olhando para a parede.

Jamie estava almoçando com outros quatro garotos. A ca­deira onde estava era feita de metal, soldada à mesa, que por sua vez era aparafusada ao chão. A cantina era uma pequena sala quadrada com paredes brancas e nuas. Nenhuma decora­ção era permitida em qualquer lugar de Silent Creek, nem mesmo nas celas. Mas a comida não era muito ruim — mesmo sendo servida numa bandeja de plástico, com compartimentos. Jamie ficara surpreso com a maioria dos garotos que co­nheceu. Ninguém havia lhe causado dificuldades — na verdade tinham ficado felizes em ver uma cara nova. Talvez sua expe­riência no instituto juvenil tivesse ajudado. Desde o início era igual aos outros. Até agora não havia precisado usar seu nome falso. Os outros garotos da mesa o chamavam de índio. Ele os conhecia como Olhos Verdes, Baltimore, DV e Tunes.

— A história que ouvi é que ninguém quer ficar com eles — disse DV. Tinha 17 anos, era latino, fora preso depois de um tiroteio de carro em Las Vegas. Os garotos não deveriam perguntar uns aos outros sobre seus crimes, mas é claro que perguntavam. DV era membro da Playboy Gansta Crips. Tinha tatuagens nos dois braços e planejava retornar à gangue assim que saísse. Não havia conhecido o pai, e a mãe o igno­rava. A gangue era sua única família. — Eles não têm pais — continuou —, de modo que agora estão sendo usados para experiências. Testam bagulhos neles. Esse tipo de coisa.

— Eles são quantos? — perguntou Jamie.

— Ouvi dizer que são vinte — disse Olhos Verdes. Jamie não sabia como ele ganhara o apelido. O garoto tinha 15 anos, fora preso por posse de arma mortal, ou seja, revólver. Seus olhos eram azuis.

— Pelo menos 15 — resmungou Tunes. Era o garoto mais novo da prisão, mal havia feito 14 anos. Virou-se para Jamie e baixou a voz. — Você não vai querer fazer muitas perguntas sobre eles, índio. A não ser que queira ir para lá também.

Jamie se perguntou onde todos aqueles boatos teriam começado. Mas esse era o negócio nas prisões. Nunca havia segredos. De algum modo os sussurros viajavam de cela em cela e você tinha tanta chance de mantê-los escondidos quanto de impedir a brisa do deserto.

Como sempre, estavam sendo supervisionados enquanto comiam. Era uma das poucas vezes em que tinham permis­são de falar com liberdade, mas mesmo assim nem podiam se levantar sem pedir permissão. Foi o que mais impressio­nou Jamie sobre a vida em Silent Creek. Eles não eram mais pessoas. Eram objetos. Em nenhum momento do dia podiam fazer nada sozinhos. O homem que os vigiava era o supervisor de posto mais alto — e o mais duro. Era um sujeito corpulen­to, de ombros redondos, com cabelo ralo e bigode. Seu nome era Max Koring. Se alguém estivesse procurando encrenca, seria ele. Parecia gostar de humilhar os internos, fazendo re­vistas sem motivos, tirando um mês de privilégios simplesmen­te porque achava isso divertido.

Baltimore se inclinou do outro lado da mesa. Recebera o nome por causa da cidade onde havia nascido. Era um garo­to negro e alto que jamais falava sobre o crime que o trouxe­ra para cá.

— Se quiser saber sobre o outro lado, você tem de falar com o Koring — sussurrou. — Ele trabalha dos dois lados do muro.

— Como você sabe? — perguntou Jamie.

— Eu vi quando ele passou para cá, pela enfermaria.

A enfermaria ficava encostada no muro. Todo mundo sa­bia que ela atendia aos dois lados da prisão. Pelo menos era o que diziam.

— Ele é o único que tem permissão— continuou Baltimore.

— Há guardas trabalhando o tempo todo do outro lado. Guardas armados. Eles não têm nada a ver com a gente.

— Se quiser visitar o outro lado, é só perguntar ao Max

— disse DV. E sorriu brevemente. — O único problema é que ele vai ligar seu cérebro num computador e, da próxima vez que alguém te ver, você vai ser um vegetal como os outros.

A refeição terminou. Os garotos entregaram as bandejas e os garfos plásticos, depois viraram os bolsos pelo avesso e ficaram com as pernas separadas para a revista superficial, antes de voltarem às celas para uma hora de descanso. Quan­do saíram do refeitório, andando devagar através da luz ofuscante, Jamie notou Joe Feather parado na beira do campo de futebol, examinando-o. Parecia que o agente de recepção estivera observando-o desde o momento em que ele havia chegado. Será que suspeitava de alguma coisa? Nesse caso Jamie teria de agir depressa, poderia estar ficando sem tempo.

Lembrou-se do que Feather havia dito durante sua entrada, quase uma semana antes. Tinha visto a tatuagem no ombro de Jamie e perguntado: “Você tem um irmão?” Só havia um modo de ele saber disso. Tinha visto Scott. E isso significava que Scott tinha de estar ali, em Silent Creek.

Jamie tinha certeza. Afinal de contas, fazia sentido. Silent Creek era a única prisão administrada por uma empresa particular em Nevada, e fazia parte da Corporação Crepúsculo. Segun­do Alicia, a Crepúsculo fora responsável pelo desaparecimento não somente de um, mas de muitos garotos com habilidades paranormais. Que lugar melhor para mantê-los do que numa prisão de segurança máxima, a quilômetros de qualquer lu­gar, rodeada pelo deserto de Mojave? Tinha visto o nome nos pensamentos de Colton Banes. E o que mais poderia haver, escondido do outro lado do muro?

Tirou os tênis (era a regra 118 ou 119: nada de sapatos dentro da cela) e deixou-os enfileirados no corredor. Os ou­tros garotos haviam feito o mesmo. Entrou na cela e alguns segundos depois houve um zumbido e as portas se fecharam eletronicamente. Sua cela, pintada de branco, media dez pas­sos por cinco. Havia uma cama que na verdade fazia parte do chão, moldada a partir dele. O cimento simplesmente subia formando uma prateleira estreita com um fino colchão de plástico em cima. Do lado oposto à cama havia uma pratelei­ra de metal que servia como escrivaninha, com uma cadeira aparafusada ao chão. Uma unidade sanitária de aço inoxidá­vel ficava ao lado da porta — toalete e pia combinados. E só. O cômodo tinha uma única janela: uma tira comprida com pouco mais de alguns centímetros de largura. Não havia bar­ras. Mesmo que ele pudesse quebrar o vidro de rigidez indus­trial, jamais conseguiria sair.

Os outros garotos haviam dito que a porta era lacrada ele­tronicamente, e sempre que ficava sozinho, trancado na cela, Jamie precisava lutar contra um sentimento crescente de pâ­nico. Alicia sabia que ele estava ali. No fim da segunda sema­na poderia telefonar para ela. Mas ela era seu único elo com o mundo lá fora. E se algo acontecesse com Alicia? Ele ficaria preso ali como Jeremy Rabb. Ou índio. Quanto tempo iria se passar até que ficasse louco e tivesse de ser trancado no iso­lamento ou drogado?

Mas isso não aconteceria. Jamie ainda tinha seu poder e iria usá-lo. Haveria um guarda de serviço em sua unidade e o guarda iria levá-lo ao outro lado da prisão. Ele encontraria Scott e, juntos, os dois sairiam.

A não ser...

Só agora, quando era tarde demais, chegavam os primei­ros sussurros de dúvida. Scott tinha os mesmos poderes que ele — então por que não os tinha usado para fugir? Haveria algo que Jamie não sabia? Por que tinha tanta certeza de que Scott ao menos estava ali? Um pensamento enjoativo lhe ocorreu. Scott poderia estar morto. Poderia ter escapado e se perdido no deserto. Qualquer coisa poderia ter acontecido.

Sentado sozinho na cama, Jamie abriu a mente como havia feito todas as noites, desde a chegada. Estava mandando seus pensamentos pelos corredores, para os diversos prédios, ten­tando ter qualquer sensação de que o irmão estivesse por perto. Concentrou-se do outro lado do muro. Mas não havia nada. Por quê? Jamie se recusava a aceitar que Scott não es­tivesse ali. Tinha de estar em algum lugar dentro do comple­xo secreto. E se não respondia devia existir algum motivo. Talvez porque simplesmente estivesse dormindo.

De algum modo a hora seguinte se arrastou. Em seguida havia mais aulas, uma hora no ginásio esportivo, jantar. O dia terminou com uma sessão de encerramento na área de estar — um espaço aberto com quatro mesas circulares onde eles tinham permissão de jogar cartas ou jogos de tabuleiro. Os garotos deveriam falar sobre como o dia havia sido, mas claro que não havia muito a dizer. Um guarda ficava sentado vigiando-os de trás de uma fileira de telas de televisão que mostra­vam diversas imagens dos corredores. Não havia câmeras nas celas. Esta noite Max Koring estava de serviço, o que significa­va que as luzes iriam se apagar exatamente às dez horas — ou talvez 15 minutos antes, se ele sentisse vontade.

Eram mandados de volta às celas às nove horas. Não re­cebiam nada para usar na cama — na verdade era quente demais — por isso os garotos simplesmente dormiam de cueca. Cada um recebia uma escova de dentes, mas ela era recolhida e trancada de novo antes que as portas fossem fe­chadas. O cabo de uma escova de dentes, afiado, poderia se tornar uma arma letal, e os supervisores não se arriscavam. Jamie não tinha relógio. Ele fora tirado, junto com qualquer coisa que lhe desse um sentimento de identidade ou inde­pendência. Finalmente as luzes das celas se apagaram. Ainda que não estivesse realmente escuro, havia lâmpadas de arco voltaico ao redor de todo o perímetro da prisão que ficavam acesas a noite toda, com a claridade branca escorrendo pela janela. Jamie ficou deitado na cama durante cerca de meia hora. Depois se levantou e se vestiu. Estava na hora.

Apertou o botão de chamada ao lado da porta da cela.

Alguns minutos depois houve um chacoalhar de chaves e a porta se abriu. Max Koring estava ali, com a barriga subindo e descendo, o rosto meio escondido na sombra. Havia aberto a porta manualmente, e não com o controle eletrônico. E não parecia satisfeito por estar ali. Nenhum dos supervisores gos­tava do turno da noite, mas ser incomodado pelos garotos só tornava a coisa pior.

— O que é? — perguntou ele.

— Quero que você me leve às unidades do outro lado do muro — disse Jamie.

O supervisor encarou-o. Parecia perplexo.

— Você fará isso agora — continuou Jamie — e pressio­nou, projetando seus pensamentos na cabeça do sujeito. Sa­bia o que estava fazendo. Tinha feito a mesma coisa ao ficar cara a cara com o policial na casa de Marcie, em Sparks.

Max Koring não se mexeu.

— Vamos sair agora — disse Jamie. E pressionou de novo.

— Você acha que está sendo engraçado? — murmurou Koring. — Que diabo acha que está fazendo?

Jamie sentiu um tremor de perplexidade — seguido pelo pânico. Não estava funcionando. Mas precisava funcionar.

— Leve-me até o meu irmão — exigiu. Ainda estava pres­sionando, abrindo um buraco no cérebro do sujeito.

Agora Koring o examinava como se o visse a uma luz com­pletamente diferente — mas não havia nada de caloroso ou agradável nela.

— Você tem um irmão? — perguntou ele.

Desesperado, Jamie mudou de abordagem. Não conse­guia fazer com que o sujeito obedecesse — mas ainda podia usar o momento para conseguir informações com ele. Não se importava mais com as conseqüências. Tinha de saber sobre Scott, por isso se concentrou e pulou na mente de Koring, como havia feito com Colton Banes.

Nada aconteceu. Seu poder não estava funcionando. Jamie só teve tempo de absorver o choque antes de Koring segurá-lo e lhe dar um tapa violento no rosto, com as costas da mão. A cela girou. Jamie sentiu gosto de sangue. Então foi jogado para trás, caindo na cama.

— Não gosto de perder tempo — disse Koring. — E você não me dá ordens. Você pode ser novo aqui, mas deveria sa­ber disso. De modo que talvez seja hora de ter seu primeiro gostinho da SRC.

SRC Sala de Restrição Corretiva. Outro modo de dizer solitária.

Dez minutos depois Koring retornou com outro supervisor. Nenhum dos dois disse uma palavra. Simplesmente arranca­ram Jamie da cela e o arrastaram pelo corredor. Os outros garotos deviam ter escutado o que acontecera. De repente todos estavam acordados e gritando encorajamentos.

— Boa sorte, índio!

— Não deixe que eles acabem com você!

— Vejo você mais tarde, índio. Cuide-se!

As celas de isolamento ficavam numa área separada, com duas pesadas portas de aço separando-as da unidade princi­pal. Jamie nem tentou resistir. Foi jogado numa cela com me­tade do tamanho da anterior. Esta não tinha colchão, e apesar de haver uma janela estreita, o vidro era fosco, de modo que não dava para ver do outro lado.

— Vejamos como você vai se sentir depois de uma sema­na aqui — disse Koring. — E no futuro me chame de senhor.

A porta se fechou com estrondo.

Jamie ficou parado, enrolado como uma bola no chão. Tinha batido com a cabeça na cama quando caiu, e seu nariz estava sangrando. Estava absolutamente sozinho. E seu po­der o havia deixado na mão. Teria ido embora, ou havia algo nessa prisão que ele não sabia? Talvez tivesse sido construída nessa parte do deserto de propósito. Poderia haver algo na água, ou mesmo no solo, que estivesse atrapalhando sua mente. Fazia sentido. Se eles estavam trancando garotos com poderes, teriam de se certificar de que esses poderes ficas­sem sob controle.

Finalmente, quase com relutância, arrastou-se para a cama e caiu no sono, os joelhos perto do queixo, os braços cruza­dos frouxos em volta das pernas. E foi então que teve o se­gundo sonho.

Soube imediatamente onde estava, e quase se sentiu gra­to, mesmo que este mundo — este mundo de sonho ou o que quer que fosse— fosse tão estranho para ele quanto Silent Creek. Havia o mar à frente, a ilha de novo, o céu vazio e morto como sempre. Jamie não sabia o que isso significava nem por que estava ali de novo, mas de algum modo percebia que era importante. Lembrou-se dos dois garotos no barco de palha e procurou-os, esperando que surgissem. Talvez, no mínimo, eles pudessem lhe dizer onde encontrar Scott.

Algo se moveu perto da beira d’água e o coração de Jamie se encolheu. Era o homem que havia encontrado na última vez em que estivera aqui. Ele já estava se levantando — todos os 2,10m — movendo-se sobre os seixos, os olhos vazios, espian­do, no rosto cinza que parecia feito de massa. O homem segu­rava sua tigela. Desta vez não havia sinal da faca.

— Ele vai matá-lo — disse o homem.

Mesmo contra a vontade, Jamie sentiu um jorro de raiva.

— É o que você disse da última vez — gritou. — Mas não posso impedir que matem Scott a não ser que você me diga onde ele está.

— Não, garoto. Você não entende...

O homem estava a ponto de continuar, mas não teve chan­ce. Houve um raio. Não: foi mais do que isso. Era como se duas mãos gigantescas tivessem segurado o universo e ras­gado como papel. O mundo inteiro — o mar e o céu — foram partidos em dois. Jamie sentiu o chão se convulsionar embai­xo dele— um terremoto mais poderoso do que qualquer coisa que o mundo já conhecera. Tudo estava se sacudindo. Podia sentir os dentes chacoalhando na cabeça. Foi jogado no chão e, enquanto caía, tentou ver o homem... mas eleja havia su­mido. Ao mesmo tempo um grito de rasgar os ouvidos ecoou ao redor. Ele diria que era um grito de triunfo, só que não havia nada remotamente humano naquilo. Jamie ficou sur­do. Estava se agarrando ao chão que se sacudia num tumulto.

Nos próximos segundos apareceu de repente uma série de formas, mergulhando pelo céu — voando ou caindo... não dava para saber. Era como se um grande buraco tivesse se aberto do outro lado do universo e chamas irrompessem de lá. Todo o céu pegava fogo. Pensou ter visto uma aranha gi­gante, outro animal como um macaco, algo que parecia um pássaro enorme... Milhares de pontos minúsculos seguiam-nos: um enorme enxame preto, retorcendo-se e cabriolando no ar.

E havia mais alguma coisa. Jamie só percebia um negrume se aproximando, um sentimento de algo tão aterrorizante que ele não suportava olhar. Fechou os olhos e agarrou o chão. O mar havia sumido, com a água se afastando rapidamente do litoral. O vento uivava ao redor.

Aquilo pareceu continuar para sempre. Mas ali não havia tempo verdadeiro, e tudo podia ter acabado num minuto. Enquanto a tempestade morria e as ondas retornavam, ele ficou ali deitado, completamente exausto.

Jamie não sabia nada sobre os Antigos, os cinco Guardiões, a luta que vinha acontecendo havia milhares de anos e o pa­pel que ele fora escolhido para representar. Não sabia nada sobre o círculo de pedras chamado Portal do Corvo, nem so­bre o segundo portal construído no Deserto de Nazca, no Peru. Nem sabia que agora era a meia-noite de 24 de junho, o dia conhecido como Inti Raymi.

O segundo portal acabara de ser aberto.

 

                           Nazca, Peru

O jipe parecia estar pegando fogo. Enquanto disparava pela planície, levantava uma nuvem de poeira e areia que, ao luar, era como fumaça. Os faróis estavam acesos, mas quase não causavam efeito no grande vazio do deserto de Nazca, e a lua era um guia melhor. Eram três da madrugada do dia 25 de junho, um dia depois do Inti Raymi. Fazia um frio incomum, mesmo num deserto onde a temperatura podia cair 10o C ao pôr-do-sol. E havia algo estranho na luz. Ela possuía uma qualidade dura, quase não-natural, como se uma tempesta­de terrível tivesse acabado de passar.

Uma mulher dirigia. Seu nome era Joanna Chambers e era professora de antropologia, especialista mundial na maravi­lha chamada de Linhas de Nazca. Era grande e tinha aparên­cia ligeiramente excêntrica. Gostava de bancar a professora louca e podia ser espalhafatosa, até mesmo grosseira às ve­zes. Mas neste momento estava com os lábios apertados, as mãos comprimindo o volante. Olhava à frente com um ver­dadeiro pavor do que poderia encontrar.

E não estava sozinha. Havia um inglês no banco do carona ao lado. Era Richard Cole, o jornalista que estivera com Matt Freeman — o primeiro dos Cinco — quando ele descobriu o segredo do Portal do Corvo, em Yorkshire, e que havia opta­do por viajar com Matt ao Peru. Ele parecia exausto, mais magro e abatido do que nunca. Richard havia percorrido um longo caminho — em mais de um sentido — desde que ele e Matt se conheceram numa precária redação de jornal em Grande Mailing. Na época, o trabalho de Richard envolvia prin­cipalmente escrever sobre casamentos e enterros... e não sa­bia qual das duas coisas achava mais deprimente. Mas Matt o apresentou a um mundo de impossibilidades: esqueletos de dinossauro que voltavam à vida, feiticeiras e demônios, ci­vilizações perdidas e cidades ocultas nas montanhas do Peru E agora isso. Parecia que suas aventuras haviam chegado a um final súbito e azedo. Matt podia estar morto. Desta vez não tinham vencido.

— Estamos quase chegando — disse a professora Chambers. Ela olhou brevemente para Richard, que nem parecia ter es­cutado. — Tenho a sensação de que isso é minha culpa — prosseguiu. — Se ao menos eu tivesse deduzido tudo antes, talvez tivéssemos mais tempo.

— Não é sua culpa. É minha. — Richard respirou fundo. — Eu nunca deveria ter deixado que os dois fossem sozinhos para o deserto. Matt e Pedro. Eles são apenas garotos, pelo amor de Deus!

— Era um helicóptero de dois lugares, e de qualquer ma­neira havia três pessoas. Não havia espaço para mais ninguém.

— Eu não deveria ter deixado que eles fossem. Os incas nos alertaram. Disseram que um deles seria morto...

— Disseram que um deles poderia ser morto. E você sabe que Matt não é uma criança comum. É um dos Cinco. Pedro também. Acho que você deveria ter mais fé neles.

Mas enquanto prosseguiam, ficava mais claro que algo terrível havia acontecido. Um terremoto já fora informado por uma rádio do Peru, mas agora Richard Cole e a professora Chambers sabiam que isso era apenas parte da verdade. Matt havia partido para interceptar Diego Salamanda em seu la­boratório móvel no deserto, mas parecia que não chegara a tempo. O segundo portal havia sido aberto. Richard sabia disso mesmo sem olhar o solo revirado do deserto. Podia sentir no ar. Havia um lençol de raios pulsando a distância, atrás das montanhas. Queimava nos olhos. Ele estava começando a enjoar.

— Ali! — exclamou a professora Chambers e girou o volante.

Os faróis do jipe haviam encontrado os destroços de um helicóptero meio enterrados no chão do deserto. Dois rotores faltavam e os outros dois estavam amassados e quebrados. A cauda havia se partido ao meio e a cabine era uma confu­são de vidros despedaçados e fios embolados. Agora que estavam mais perto, podiam sentir cheiro de combustível no ar. A professora Chambers pisou no freio, mas Richard já es­tava do lado de fora e correndo, antes mesmo de o jipe pa­rar. Tinha visto um garoto meio deitado com as costas nos destroços, as pernas esticadas. Uma delas estava dobrada num ângulo impossível. Era Pedro.

— O que aconteceu? Onde está o Matt? — Richard gri­tou as perguntas antes de se lembrar que Pedro não falava uma palavra de inglês. Pedro olhou-o interrogativamente e Richard sentiu vergonha. Estivera tão preocupado com o ami­go que nem havia parado para pensar em como o outro ga­roto podia estar se sentindo. Agachou-se e pôs a mão no ombro de Pedro. — Você está bem? — perguntou.

Um instante depois a professora Chambers chegou. Havia trazido uma garrafa d’água e a entregou a Pedro, que bebeu.

— Como estás? — perguntou.

Pedro explicou rapidamente o que havia acontecido. O helicóptero fora acertado por um tiro. Eles haviam perdido o controle e caído. Richard olhou dentro da cabine e viu o jo­vem piloto — Atoc. Estava preso pelo cinto ao banco, as mãos pousando nos controles. Obviamente morto. Pedro continuava falando. Sua perna fora quebrada e ele não podia se mexer. Matt havia ido sozinho encontrar Salamanda.

— Vocês devem me deixar — disse ele, em espanhol. — Vocês têm de encontrar o Matteo. O portal se abriu. Eu vi...

Ele hesitou e parou.

— O que você viu? — perguntou a professora Chambers.

— Não posso falar. Só achem o Matteo.

Richard havia entendido o sentido do que Pedro estava di­zendo. Estendeu a mão e tocou o braço da professora Chambers.

— Fique aqui. Eu vou — disse ele.

A professora confirmou com a cabeça.

— Lá adiante.

Richard não pegou o jipe. Sentia medo de não ver Matt caso dirigisse depressa demais. Tinha certeza de que o garoto não poderia estar longe do helicóptero, mas mesmo assim demorou 20 minutos para encontrá-lo, e quando encontrou, nunca tinha visto ninguém mais abatido ou mais imóvel. O garoto havia chorado sangue. Seu rosto estava completa­mente branco.

Estava morto. Tinha de estar. Não havia sinal de respira­ção, nem o menor movimento do peito. Richard precisou pis­car para afastar as lágrimas — não só de tristeza, mas de raiva. De que havia adiantado? Tinham vindo lá da Inglaterra só para isso? O portal havia se aberto. Pedro estava ferido. E Matt es­tava morto. Brevemente se perguntou o que teria acontecido com Salamanda. Podia ver os destroços do laboratório móvel a distância, mas não havia sinal do sujeito. Teria sido respon­sável por isso? Mas, examinando Matt, não pôde ver qual­quer sinal de ferimento externo. Ele não havia levado nenhum tiro. Era mais como se a força vital tivesse sido sugada.

Pegou o pulso de Matt. A carne estava fria. Mas foi então que sentiu: minúsculas, irregulares, mas definitivamente presen­tes. As pulsações. Richard se perguntou se estaria imaginando. Rapidamente encostou os dedos no pescoço de Matt. Ali tam­bém havia uma pulsação. E mesmo sendo quase imperceptí­vel, ainda havia alguma respiração chegando aos lábios.

Mas ele precisava de ajuda. Precisava chegar a um hospi­tal. Depressa.

Levantou-se e partiu, correndo de volta ao jipe.

 

                                 Hong Kong

O presidente da Crepúsculo estava de pé em sua sala no sexagésimo sexto andar do Prego, no mesmo corredor em que ficava a sala de reuniões onde falava regularmente com seus executivos. Estava olhando os barcos no porto e segurando uma taça do conhaque mais caro do mundo. A bebida tinha quase cem anos e vinha numa garrafa de cristal. Havia custa­do 5 mil dólares americanos. Quanto valeria o líquido doura­do que ele estava aninhando na palma da mão? Pareceu-lhe um pensamento estranho, e muito satisfatório, que do lado de fora da janela — em Kowloon — houvesse pessoas que mal podiam se dar ao luxo de comer, mulheres e crianças pre­sas em fábricas o dia inteiro e boa parte da noite, trabalhando em troca de moedas simplesmente para sobreviver, enquan­to ele podia desfrutar dessa bebida antiga que talvez custas­se duzentos dólares o gole. Era assim que o mundo deveria ser, refletiu. E muito em breve a diferença entre os que tinham e os que não tinham ficaria maior do que nunca. Que sorte ele estar do lado certo!

Um enorme navio de cruzeiro passou lá embaixo e o pre­sidente virou as costas. Não gostava de barcos. Mais do que isso, tinha medo deles — e com bom motivo. Voltou à sua mesa e sentou-se. Era hora de considerar os eventos da noite anterior.

Os Antigos estavam de volta. Era só isso que realmente importava. Seus agentes no Peru haviam informado que as estrelas tinham se alinhado exatamente como fora previsto 10 mil anos antes, e que o grande portal, escondido no deserto de Nazca, havia sido aberto. Desejou ter estado lá. Ouvira dizer que seria possível ficar cego ao olhar nos olhos do Rei dos Antigos — mas mesmo assim valeria a pena.

Nem todas as notícias eram boas. Na última teleconferência, seu colega, o industrial sul-americano Diego Salamanda, dissera que uma das crianças que se diziam Guardiões estava indo para o Peru. Dissera que não teria dificuldade para en­contrá-la. Mas agora parecia que o próprio Salamanda fora morto e o garoto ainda estava em liberdade. O presidente não se incomodava com Salamanda. Era um par de mãos a me­nos para compartilhar as recompensas. Mas o fato de que o garoto podia ter sobrevivido... isso era insatisfatório. Era uma ponta solta. Em sua parte da organização isso não seria permitido.

O telefone particular de sua mesa tocou subitamente. Mui­to poucas pessoas no mundo tinham o número. Qualquer telefonema dado para aquela linha valeria ser atendido. Pou­sou a taça de conhaque na mesa e pegou o telefone.

— Boa-noite, presidente. — Era Susan Mortlake. Estava ligando de Los Angeles.

— Sra. Mortlake. — Como sempre, o presidente não pa­recia feliz nem triste em falar com ela.

— Parabéns, senhor. — Claro que ela sabia o que havia acontecido no Peru. — A notícia é maravilhosa.

— O que tem para informar, Sra. Mortlake? — Mesmo num momento assim, os negócios vinham primeiro. Os exe­cutivos da Crepúsculo não telefonavam uns para os outros simplesmente para trocar elogios.

— Estive pensando em Charles Baker— respondeu Susan Mortlake. — Na campanha presidencial. Em vista do que acon­teceu, é mais crítico ainda que ele vença.

— Sim. — A palavra única mostrou que o presidente es­tava se impacientando.

— O senhor viu os últimos números...

John Trelawny estava avançando mais nas pesquisas.

— Claro que vi, Sra. Mortlake.

— E nosso agente em Nova York não conseguiu bolar uma estratégia?

— Infelizmente, o Sr. Simms se demitiu.

Dois dias antes o Sr. Simms, o executivo de Nova York, havia mergulhado de cabeça no Rio Hudson. Na verdade sua cabe­ça havia mergulhado na água vários minutos antes do corpo. Mais tarde ambos foram encontrados na margem, separados por cinqüenta metros.

— Acho que posso ter uma solução para o problema, Sr. Presidente. De fato, foi algo que o próprio Sr. Simms suge­riu... enquanto ainda estava conosco. Disse que a única res­posta poderia ser assassinar Trelawny.

— Não creio que ele estivesse falando sério.

— Mas eu estou, Sr. Presidente.

O presidente considerou. Matar um candidato à presidên­cia do país era possível, mas não seria fácil. Afora o fato de que Trelawny estava continuamente rodeado de homens do serviço secreto e que ninguém com uma arma poderia che­gar perto dele, o verdadeiro problema viria mais tarde, caso o atentado tivesse sucesso. Haveria um clamor público e a in­vestigação policial seria gigantesca e interminável. Poderia até levar a polícia à Crepúsculo. Você paga a alguém que paga a alguém que paga a um louco para disparar o tiro fatal — mas a linha ainda pode ser acompanhada para trás. O as­sassinato era uma coisa suja e cheia de perigo. Era sempre o último recurso.

Mas Susan Mortlake estava confiante.

— Imagine que Trelawny leve um tiro de alguém que seja próximo dele — disse ela. — Alguém que não tivesse absolu­tamente nenhuma ligação conosco. Imagine que o assassino seja apanhado imediatamente depois e não consiga explicar seus atos, mas pareça ter sofrido algum tipo de colapso ner­voso. Não haveria dúvida de sua culpa. Ele seria julgado, con­denado e executado. Não haveria mais investigações. Trelawny estaria morto e esse seria o fim. Claro, alguém ocuparia o lu­gar dele, mas seria tarde demais. Jamais conseguiria alcançar a corrida. Enquanto isso Charles Baker ficaria triste e sombrio. Até poderia comparecer ao enterro. Na verdade, isso ajuda­ria seu posicionamento nas pesquisas. Nada impediria que ele se tornasse o próximo presidente dos Estados Unidos.

— Você pode fazer isso? — perguntou o presidente.

— Sim, Sr. Presidente.

O presidente pensou um tempo. Mas conhecia bem Susan Mortlake. Reconheceu a confiança na voz dela.

— Então faça — disse ele. E desligou.

Estendeu a mão de novo e levantou o conhaque pre­cioso, contemplando sua cor girando no vidro. Os Antigos precisavam de tempo. Mais do que isso, precisavam de um mundo que estivesse pronto para fazer as coisas do jeito deles. Não tinha dúvida de que Charles Baker seria o ho­mem certo, no cargo certo, na hora certa. Sorriu sozinho e levou a taça aos lábios. No último segundo mudou de idéia e emborcou-o, derramando os últimos dois centímetros num vaso de planta. Fertilizante caro.

Depois se levantou e saiu silenciosamente da sala.

 

                           Nova York

O carro que levava John Trelawny parou diante da grande torre na extremidade sul da Broadway em Lower Manhattan. Havia dois homens com ele. O motorista, como sempre, era um homem do serviço secreto. Trelawny sabia que ele estava ar­mado e em contato direto com sua equipe de apoio num se­gundo carro, provavelmente apenas cem metros atrás. Warren Cornfield estava sentado ao lado. Era um homem tão grande que mal restava espaço suficiente para o senador, mas, nos últimos meses, Trelawny havia se acostumado com isso. Des­de o dia em que começara a corrida para a presidência, hou­vera muitas coisas às quais tinha se acostumado — e nunca estar sozinho era a primeira.

— Vou demorar uma hora — disse ele, e estendeu a mão para a maçaneta da porta.

— Eu vou junto, senhor — anunciou Cornfield. Trelawny hesitou. Esta era uma discussão que ele tivera uma centena de vezes. Apreciava o que Cornfield estava fa­zendo. Essencialmente era o trabalho dele. Só desejaria gos­tar mais do sujeito.

— Tudo bem, Warren. Este prédio de apartamentos tem sua própria segurança e ninguém sabe que estou aqui. Vou almoçar com uma velha amiga e você não vai me dizer que ela é um risco para a segurança.

No fim, chegaram a um meio-termo. Cornfield foi com ele até o saguão mas permitiu que ele entrasse sozinho no apar­tamento. Havia ocasiões em que Trelawny se perguntava se toda essa segurança era mesmo necessária — mas achava que só era preciso um maluco com uma arma para provar que sim. E, claro, era fácil demais comprar uma arma nos Estados Unidos. Esta era uma coisa da qual ele pretendia cuidar um dia, se...

Mal sentiu qualquer movimento enquanto era levado ao sétimo andar. A dona da cobertura sabia que ele vinha e ha­via programado o elevador para levá-lo. Trelawny pensou na mulher que ele viera ver. Os dois se conheciam durante a maior parte da vida — ainda que algumas vezes ele pensasse que o que cada um não sabia sobre o outro provavelmente suplan­tava o que sabia. Ela fizera fortuna criando e vendendo com­putadores baratos para escolas públicas, hospitais e clubes de jovens. Havia apoiado sua campanha desde o início, orga­nizando uma série de jantares para levantar fundos nas cos­tas leste e oeste do país. O estranho era que ele provavelmente confiava mais em Nathalie Johnson do que em qualquer mu­lher do planeta, inclusive sua esposa. E ela sabia coisas. Tinha conexões em todo o mundo e parecia afinada com histórias que jamais chegavam aos noticiários. Ele pensava nela como uma guardiã de mistérios. Por isso viera vê-la agora.

A porta do elevador se abriu diretamente numa sala de estar, em forma de leque, tendo janelas com vistas maravi­lhosas para o rio Hudson, de um lado, e para o rio East, com a ponte do Brooklyn atravessando-o, do outro. Os olhos de Trelawny foram atraídos instantaneamente para o panorama. Lá estava a Estátua da Liberdade, parecendo muito pequena e distante na entrada do porto de Nova York. E lá estava a ilha Ellis, onde as grandes ondas de imigrantes nos séculos XIX e XX haviam chegado primeiro. As janelas do piso ao teto eram como um cartão-postal em escala gigantesca e captu­ravam uma das vistas mais famosas do mundo.

— John! Como vai?

Nathalie Johnson saíra da cozinha levando uma bandeja com dois copos e uma garrafa de vinho. Pousou a bandeja e os dois se abraçaram. Ela devia ter uns 50 anos, era magra e de aparência séria, com cabelos castanho-escuros averme­lhados que chegavam aos ombros. Estava usando um vestido preto simples. Durante todo o tempo em que Trelawny a ha­via conhecido, jamais a vira usando jeans.

— É bom ver você — continuou ela. — Há quanto tem­po está em Nova York?

— Só uns dias. — Trelawny suspirou. Nunca ficava muito tempo num mesmo lugar. — Preciso voltar a Washington, depois vou à Virgínia e na semana que vem retorno à Cali­fórnia. Minha cidade natal vai fazer um desfile em minha homenagem.

— Auburn?

— É meu aniversário. Vão fechar a cidade toda em mi­nha honra.

— Que maravilha! Talvez eu vá.

— Você seria muito bem-vinda.

Os dois sentaram-se. Nathalie serviu o vinho e durante alguns minutos os dois falaram da campanha, do discurso em Los Angeles, das últimas propagandas negativas que haviam passado na TV. Mas depois de um tempo Trelawny ficou em silêncio.

— Havia algo que você queria me perguntar — disse Nathalie.

— É. — Ele passou a mão na boca, tentando pensar num começo. — Aconteceu uma coisa quando eu estava em Los Angeles. Não se parece com nada que eu já tenha experimen­tado, e não consigo tirar do pensamento. Preciso falar com alguém, e você é a única pessoa em quem pude pensar que não acharia que estou maluco.

— Vou aceitar isso como um elogio.

— Bom, recebi a visita de uma antiga secretária, Alicia McGuire. Lembra-se dela?

— Não foi a que perdeu o filho?

— É, o Daniel. Ele desapareceu no fim do ano passado.

— Que terrível para ela! — Nathalie Johnson nunca ha­via se casado e não tinha filhos. Não conseguia imaginar o que a outra estaria passando.

— Quando estive em LA, Alicia apareceu no meu hotel. Não havia encontrado Daniel, mas estava com outro garoto, de 14 anos. Pela aparência devia ser nativo americano. Ela me contou uma história incrível. Eu não acreditaria numa pala­vra. Acharia que ela estava fora de si. Mas então ela me mos­trou algo que era completamente impossível e que só poderia acontecer se tudo que ela havia dito fosse verdade.

— Conte...

Escolhendo as palavras com cuidado, Trelawny descreveu tudo que havia acontecido no hotel Carlton, seu encontro com Jamie Tyler e o negócio da caixa de madeira. Se esperava que Nathalie reagisse com espanto ou descrença, ficou desapon­tado. Ela não demonstrou qualquer emoção quando ele fa­lou, mas se encolheu à menção da Crepúsculo e assentiu compreendendo quando Trelawny mencionou o interesse da corporação por crianças com habilidades paranormais.

— Onde está Jamie Tyler agora? — perguntou ela, quan­do Trelawny havia terminado de falar.

— Talvez eu tenha agido contra meu bom senso. Mas ele estava desesperado demais para encontrar o irmão. E acredi­tei que seria a coisa certa a fazer. — Ele fez um gesto com as mãos. — Arranjei para ele ser mandado a Silent Creek.

— Ele está na cadeia?

— Não com seu nome verdadeiro. Mudamos a aparên­cia dele também. Não se esqueça, as autoridades de Nevada ainda estão procurando-o pela morte dos dois responsáveis.

— Deixe-me perguntar: esse garoto mencionou alguma coisa sobre a Inglaterra ou o Peru? — Não houve resposta, por isso ela continuou: — Falou alguma coisa sobre os Anti­gos? Ou os Guardiões?

— Não. — Trelawny balançou a cabeça. — Não sei do que você está falando, Nathalie. Antigos? O que são? O que têm a ver com um punhado de crianças desaparecidas?

— Se eu não estiver enganada, têm tudo a ver. E esses dois garotos, Scott e Jamie Tyler, você não faz idéia de como eles podem ser importantes. Os dois estão em Silent Creek?

— Não sei. Jamie está... provavelmente. Foi mandado para lá há vários dias. Quanto ao irmão, ele iria descobrir quando chegasse. Esse era o plano.

Nathalie pousou a taça e se inclinou adiante.

— Ouça — disse ela. — Você veio pedir conselho. Me es­colheu porque sou uma velha amiga. Mas, não negue, tam­bém veio porque sabe que sou membro de... uma organização.

— A Nexus. — Trelawny falou as duas palavras e sorriu enquanto Nathalie se recostava, alarmada. — Já ouvi o nome — admitiu ele. — Sei que é uma espécie de sociedade secreta e sempre suspeitei que pudesse ter algo a ver com você.

Nathalie assentiu devagar.

— Você foi tocado por algo do qual não sabe nada — disse. — Mas eu sei bastante coisas a respeito. Durante metade da vida estive envolvida com ela. Então você deve acreditar quando eu digo que é absolutamente vital que encontremos Jamie Tyler e o tiremos imediatamente do Silent Creek. E o irmão também, se ainda estiver lá.

— Isso pode não ser fácil.

— John, você pode ser o próximo presidente deste país. Mas talvez nem haja um país do qual ser presidente, a não ser que faça o que eu digo.

— O que você está falando? Quem são esses dois garotos? Nathalie Johnson respirou fundo.

— Você tem de fazer o seguinte...

 

                                       Los Angeles

Colton Banes estava sentado à sua mesa quando o telefone tocou.

Não gostava de ficar no escritório. Era muito parecido com a prisão onde havia passado 11 anos antes que a Corporação Crepúsculo o contratasse. Certo, ele podia sair quando quises­se. Era bem pago. Mas ficar num lugar fechado, vestido de terno, esperando que alguém o mandasse fazer alguma coi­sa... deixava-o inquieto.

No entanto, precisava admitir que nunca tivera um em­prego melhor. Na verdade não poderia existir nenhum em­prego mais adequado aos seus talentos. Colton Banes gostava de machucar pessoas. Gostava de matar também — mas ma­chucar era melhor, porque elas ainda ficavam por aí para falar, para dizer a ele como era a sensação. Desde valentão da es­cola até delinqüente juvenil, depois assaltante à mão armada, prisioneiro e finalmente isto... Toda a sua vida o levava ape­nas numa direção. Sabia que um dia iria escorregar e a Sra. Mortlake iria se livrar dele com a mesma despreocupação com que havia se livrado de Kyle Hovey. Mas não pensava realmente nisso. As pessoas como ele nunca viviam muito. Isso fazia parte do negócio.

Atendeu ao telefone no quarto toque.

— Alô?

Não precisava dizer o nome. A telefonista não transferiria a ligação se a pessoa não tivesse pedido para falar com ele.

— Aqui é Max Koring.

— O que é? — Banes reconheceu o nome do principal supervisor do Silent Creek. Ele estava ligando de lá. Era fácil dizer. Não havia telefones fixos naquela parte do deserto de Mojave e a recepção por satélite era ruim. A prisão fora cons­truída numa zona morta, no meio de um campo magnético natural, o que tornava a comunicação quase impossível. O campo tinha outros efeitos colaterais, também. A localização fora escolhida com grande cuidado.

— Há uma coisa que o senhor deveria saber— prosse­guiu Koring. — Ontem à noite aconteceu uma coisa muito estranha. Um dos garotos, um recém-chegado, tentou fazer com que eu o levasse até o Bloco.

— Como assim?

— Ele pediu que eu o levasse para o outro lado do muro. Na verdade não pediu: ele me mandou, como se esperasse que eu fizesse o que ele queria. E disse que queria ver o irmão.

Os olhos de Banes se estreitaram.

— Qual é o nome do garoto?

— O nome na ficha é Jeremy Rabb. Isso não significava nada para Banes.

— Diga como ele é.

— Não preciso. No momento em que vi, achei que ele parecia familiar. Cortou o cabelo curto e está usando óculos grossos, mas, pensando bem, eu deduzi quem ele é.

— Jamie Tyler?

— Sem dúvida. Verifiquei com o cara da recepção. Ele tem a mesma tatuagem no ombro. Uma coisa meio em rede­moinho com uma linha atravessando. É o gêmeo. Sem dúvida.

Colton Banes sorriu. Primeiro a notícia sobre a noite ante­rior no Peru, agora isso. As coisas não poderiam estar melho­res. Então Jamie Tyler havia decidido encontrar o irmão. E tinha ido ao lugar certo. O problema é que havia escolhido a hora errada.

— Onde ele está agora? — perguntou.

— Coloquei na solitária. Quer que eu o leve para o Bloco?

— Não. — Banes pensou um momento. Assim que o garoto chegasse ao Bloco, saberia que era tarde demais. Se­ria mais divertido manter suas esperanças vivas por enquanto. E Jamie Tyler havia lhe escapado duas vezes. Banes tinha uma conta pessoal a acertar. Deixaria o garoto ali parado, cozi­nhando por algumas horas, depois entraria e olharia no rosto dele, quando ele soubesse que havia fracassado, que a dor e a morte eram tudo que restava. — Desligue o ar-condicionado da cela dele.

— Tem certeza? — Até Koring ficou surpreso. — Lá faz 40° C. O garoto vai fritar...

— Ele vai ficar bem durante 12 horas. Vou para aí esta noite. Quero que ele fique amaciado antes de eu chegar.

— Ele não vai ficar amaciado, até lá já terá derretido. Mas tudo bem. Como quiser, Sr. Banes.

— Isso mesmo, Sr. Koring. Como eu quiser.

Colton Banes desligou, depois se recostou em sua poltro­na de couro. De repente o escritório não parecia tão ruim, afinal de contas. Lá fora o sol brilhava. Seria um lindo dia.

 

Jamie nunca havia sentido nada igual. Nem o teatro em Reno jamais havia sido tão ruim. Não tinha ouvido o ar-condicionado de sua cela se desligar, mas sentiu o resultado ins­tantes depois. O ar frio havia se evaporado instantaneamente. O calor o golpeou de todos os lados. Poderia dizer que era como um forno, só que não havia isso de “como”. Ele estava num forno. Assando, lentamente, até a morte.

Havia esperado durante o que parecia uma eternidade, depois foi até a porta e apertou o botão de chamada para pedir ajuda. A temperatura estava nos 40° C e subindo. A luz do sol golpeava as paredes externas e o teto, e o suor escor­ria. Suas roupas estavam encharcadas. Ele não ousava respi­rar muito fundo, por medo de queimar os pulmões. Ninguém veio. Apertou o botão de chamada de novo e de novo, mas logo percebeu que o botão fora desligado ou que ele estava sendo deliberadamente ignorado. Seria parte do castigo pelo que havia acontecido na noite anterior? Duvidava. Mesmo não tendo certeza, suspeitava que o novo tratamento poderia si­nalizar algo muito pior.

Foi até a pia de metal — já estava quente demais para ser tocada — e abriu a torneira. Um fio de água fria saiu. Até agora só havia recebido água engarrafada para beber no Silent Creek. Na verdade haviam lhe alertado que a água da torneira não era filtrada. Mas não havia saída. Se não bebesse, morre­ria. Pôs as mãos em concha e levou um pouco da água à boca. O gosto era rançoso e metálico. Tirou a camiseta e segurou-a sob o fio d’água, depois apertou-a contra o corpo. Fiapos de água escorreram sob as axilas e pelo peito, refrescando-o por apenas alguns segundos. Apertou a camisa na nuca. Teria de fazer isso constantemente até que alguém viesse ou que o ar-condicionado fosse ligado outra vez. Mas de algum modo Jamie sabia que nada dessas coisas aconteceria tão cedo.

O tempo se arrastou implacável. A janela era uma fenda estreita com vidro cor de leite. Não dava para ver lá fora, de modo que era impossível saber a hora do dia, só que — à medida que o meio-dia se aproximava — a claridade ficava ainda maior, o calor ainda mais insuportável. Não tinha nada para ler, nada para fazer. Queria gritar e bater com os punhos na porta, mas sabia que ninguém iria ouvir e não adiantaria nada. Além disso, nem sabia se tinha forças. Estava achando cada vez mais difícil respirar. À medida que cada hora passa­va, ele pairava entre a consciência e um sono que temia ser sua morte. Precisava se obrigar a ficar de pé a intervalos de alguns minutos e retornar à torneira. O fio de água era a úni­ca coisa que o mantinha vivo.

Agora sabia que havia fracassado. Deveria ter adivinhado pelo modo como Joe Feather tinha olhado para ele no fim da refeição, na véspera. O agente de recepção o havia reconhe­cido de algum modo, e devia ter dado a informação ao super­visor, Max Koring. Este era o resultado. Eles iriam deixá-lo ali até que ele morresse e então diriam às autoridades que fora um acidente. Afora o sangue no nariz, não haveria sinal de vio­lência no corpo. Iriam enterrá-lo no deserto e esse seria o fim.

Teriam feito a mesma coisa com Scott? Era isso que ele não entendia. Por que ter tanto trabalho com o seqüestro, usan­do as armas de dardos, o assassinato duplo de Don e Marcie — só para trazê-lo para morrer aqui? A Crepúsculo suposta­mente procurava garotos com poderes paranormais. Scott, o próprio Jamie, Daniel McGuire e muitos outros. Mas ainda não fazia idéia do motivo.

E então a porta se abriu.

Jamie sentiu uma brisa fria que dançou em sua pele. Estava deitado de costas, despido até a cintura. As calças encharcadas e a camiseta embolada pressionada contra a cabeça. O peito subia e descia enquanto os pulmões lutavam desesperadamente em busca de ar. De algum modo conseguiu virar a cabeça e viu um homem ali parado, em silhueta na passagem. Jamie não conseguia discernir quem era, mas então o homem entrou e o coração do garoto se encolheu, ao reconhecer Joe Feather.

Feather ficou parado. Xingou baixinho, depois murmurou:

— O que eles estão fazendo?

Recuou de novo e Jamie sentiu medo de que o guarda fosse abandoná-lo — mas em vez disso Feather encontrou um in­terruptor e ligou o ar-condicionado de novo. Quase imedia­tamente a temperatura na cela começou a cair. E então Jamie deve ter desmaiado por um breve momento, porque de re­pente Feather estava ali, ajoelhado junto da cama. Tinha uma garrafa de água fresca.

— Beba isso — disse ele. — Não muito. Vai deixar você enjoado...

Ele encostou a garrafa nos lábios de Jamie e o garoto be­beu, agradecido. Nunca havia sentido nada tão maravilhoso quanto a água fresca escorrendo pela garganta.

Durante um tempo nenhum dos dois falou. Enquanto Jamie recuperava as forças, de novo examinou o homem que o ha­via apresentado ao Silent Creek. Joe Feather talvez fosse mais velho do que ele havia pensado a princípio. Era difícil ter certe­za, já que o rosto era tão queimado de sol, tão vivido. Os olhos eram muito escuros. Estava olhando para Jamie com uma mistura de consternação e... alguma outra coisa. Pela primei­ra vez Jamie imaginou que aquele homem talvez não fosse seu inimigo, afinal de contas. Os dois eram nativos americanos. Isso não os colocava do mesmo lado?

— Você consegue ficar de pé? — perguntou Feather. E olhou nervoso para a porta, certificando-se de que não hou­vesse ninguém do lado de fora. — Não temos muito tempo.

— Por quê?

— Você precisa sair daqui. Eles querem machucá-lo. Mas eu tenho amigos. Liguei para eles. Logo eles virão. Vão ajudar você a escapar.

— Escapar...? — Tudo aquilo estava acontecendo depressa demais. Jamie lutou para sentar-se. Pegou a garrafa e bebeu um pouco mais de água, depois derramou o resto na cabeça.

Parecia gelada, escorrendo pelo pescoço e os ombros, e o fez reviver instantaneamente.

— O que você está falando? Por que quer me ajudar?

— Mais tarde. Não podemos falar agora.

— Não. — Jamie balançou a cabeça. — Não conheço você. Não sei o que você quer. Por que deveria confiar?

O homem suspirou, frustrado.

— Eu conheço você — disse ele. — Sei quem você é.

— Quem eu sou?

— Você é um dos Cinco.

Não era a resposta que Jamie havia esperado. Não fazia nenhum sentido. Tentou outra abordagem.

— Quando cheguei aqui, você perguntou se eu tinha um irmão. Você o viu?

— Você disse que não tinha irmão, mas eu sabia que es­tava mentindo. E ontem à noite o Sr. Koring me disse o seu nome verdadeiro. Você tem um gêmeo.

Jamie passou a mão pelo cabelo, espremendo mais água.

— Isso mesmo — admitiu. — Meu nome é Jamie Tyler. Joe Feather assentiu.

— Houve um Scott Tyler aqui. Ele foi mandado ao Bloco... do outro lado do muro. Mas eu não estava aqui quando ele chegou. Não o vi.

— Você está mentindo! Você sabia sobre a tatuagem. Ele tem a mesma tatuagem no mesmo lugar. Você deve ter visto!

— Foi por causa da tatuagem que eu soube quem você era. Há muita coisa que preciso lhe explicar. Mas agora não. Aqui, não. E tenho amigos que já estão a caminho para ajudá-lo. Esta noite, quando estiver escuro, você vai embora...

— Não vou embora sem o Scott!

Jamie havia levantado a voz e o agente de recepção virou-se ansioso para a porta, com medo de terem ouvido.

— Seu irmão foi trazido para cá há uma semana — sus­surrou, com as palavras embolando umas nas outras. — Eu não entro no Bloco. Não tenho permissão. Mas algumas ve­zes ouço os outros falando e conheço os nomes. Ele esteve aqui, mas saiu de novo. Eles o levaram.

— Quando?

— Logo antes de você chegar.

— Para onde? Levaram para onde? Joe Feather baixou os olhos.

— Não sei. Eles não me contariam. Só posso dizer que ele foi embora.

Era quase a pior notícia que Jamie poderia ter ouvido. Ter chegado tão perto! Scott havia estado ali! Se Jamie tivesse che­gado mais cedo tudo poderia ter sido diferente. Mas seu irmão tinha ido embora. A Crepúsculo podia tê-lo levado para qual­quer lugar do mundo. Sua busca teria de recomeçar de novo.

— Se quiser encontrar seu irmão, tem de sair deste lugar

— insistiu Feather. — Deve fazer o que eu digo. Se ficar aqui, não há esperança.

— Espere um minuto... — Jamie tentou organizar os pen­samentos. Tudo ainda estava acontecendo depressa demais.

— Fale do Bloco. Do outro lado do muro há o que vocês cha­mam de unidades, mas para que servem? Quantos garotos estão trancados lá? Quem vai para lá?

— Por favor. — Feather parecia sentir dor. Mas dava para ver que Jamie estava determinado. — Escute — sussurrou. —

Eu só trabalho aqui há alguns meses. Não sei o que acontece. Há garotos na prisão principal e há os especiais. Existe algu­ma coisa que chamam de projeto Psi. Não sei o que significa. E não trabalho no Bloco. Algumas vezes vejo coisas. Vejo no­mes em listas. E ouço os outros supervisores falando. Mas para mim era só um trabalho, até que vi você. Então soube que precisava agir...

— Por quê?

— Por causa da tatuagem! — Feather não suportava mais. Foi até a porta e olhou para fora. Mas não havia ninguém no corredor. As outras celas de isolamento estavam vazias. Os dois se encontravam sozinhos. — Vou lhe contar tudo — pro­meteu. — Mas só quando estivermos fora daqui.

— Certo. — Jamie podia ver que não havia sentido em discutir. E não tinha desejo de passar nem mais um minuto em Silent Creek, principalmente se Scott já havia ido embora. — Mas há uma coisa. Há um garoto chamado Daniel McGuire.

— McGuire... — Feather assentiu. — É. Já vi esse nome.

— Ele está no Bloco?

— Está.

— Ele vai comigo. — Feather abriu a boca para questio­nar, mas Jamie não lhe deu tempo. — Só estou aqui porque a mãe dele me ajudou. Eu prometi a ela. Não posso deixá-lo para trás.

— Mas não há como entrar no Bloco. Há câmeras e guardas...

— Você pode ajudar. Você precisa me ajudar! O supervisor trincou os dentes, depois assentiu.

— Verei o que posso fazer. Não temos mais tempo para conversar. O Sr. Koring vai chegar logo. Venho pegar você quando escurecer. Depois veremos.

— Não vou a lugar nenhum sem o Daniel.

— Farei o que puder.

E então ele foi embora, deixando a cabeça de Jamie gi­rando. Ouviu um estalo fraco e percebeu que Feather havia desligado o ar-condicionado de novo. Isso fazia sentido. Se Max Koring viesse verificar, teria de ver que Jamie ainda esta­va sofrendo. O calor retornou, um cobertor insuportável que o cobriu completamente. Mas ele tinha uma garrafa d’água inteira dentro do corpo e a pior parte do dia havia passado. Jamie desejou ter perguntado a hora a Feather, mas só podia ficar ali deitado, olhando o retângulo de vidro branco, vendo a luz se suavizar e ir sumindo. Até que chegou o fim da tarde e depois a noite. A lâmpada única, numa gaiola de aço acima da pia, se acendeu automaticamente. Ninguém havia trazido nenhuma comida. Talvez isso também fizesse parte do casti­go... um modo de enfraquecê-lo para o que quer que viesse. Estava começando a ficar nervoso. Será que Joe Feather fora descoberto? Será que teria voltado atrás na decisão? Ele dis­se que retornaria quando estivesse escuro, e certamente ha­via se passado mais de uma hora desde o pôr-do-sol.

Mas era muito mais tarde quando a porta finalmente se abriu e o agente de recepção entrou depressa. Estava com os tênis de Jamie e uma camiseta nova. Além disso trazia outra garrafa d’água. Jamie bebeu cobiçoso enquanto Joe falava. Jamie desejou que o supervisor também tivesse trazido algu­ma comida.

— Temos de nos apressar— disse ele. — O Sr. Koring foi...

— Para onde?

— Há uma pista de pouso. Um pequeno avião. Ele foi pegar o Sr. Banes.

Banes. Era o último nome que Jamie queria ouvir. Ficou instantaneamente de pé, vestindo a camiseta, pronto para ir.

— Meus amigos estão perto — continuou Feather. Em seguida olhou o relógio. — São dez horas. Às dez e meia eles virão. Até lá temos de estar prontos.

— E o Daniel?

Feather pegou no bolso um pequeno frasco de plástico e desatarraxou a tampa. Jamie viu que ele estava cheio de al­gum xarope vermelho.

— Isso contém suco de cerejeira-silvestre — explicou. — Não vai fazer mal a você. — Antes que Jamie pudesse impedi-lo, Feather havia espremido o suco sobre o rosto de Jamie. O garoto pôs a mão na pele e examinou os dedos. O suco se parecia exatamente com sangue. — Vou levá-lo à enfermaria. Você tem de fingir que está machucado. — Jamie se lembrou do que Baltimore havia lhe dito quando estavam almoçando. A enfermaria ficava encostada no muro e servia aos dois la­dos da prisão. Agora entendeu o que Feather estava fazendo.

— As câmeras de segurança verão você — continuou Feather. — Mas os guardas vão ver o sangue e não farão per­guntas. Não há ninguém na enfermaria. Numa emergência eles esperariam que eu chamasse as enfermeiras, mas claro que não vou chamar. Vamos estar sozinhos.

— Como vamos passar para o Bloco?

— Venha. Vou lhe dizer.

Os dois saíram juntos. O suco havia escorrido por todo o lado do rosto de Jamie e qualquer um que olhasse presumiria que ele tivera uma luta violenta ou que havia tentado se ma­tar. Joe Feather agarrou-o e, enquanto seguiam pelo corre­dor vazio, Jamie foi cambaleando como se mal conseguisse ficar de pé. Chegaram a uma porta que dava no campo de futebol. Jamie já sabia que nenhum guarda carregava chave para esta porta. Ela só podia ser aberta eletronicamente, a partir do controle central. Sentiu uma câmera no alto, giran­do para examiná-lo. Daria certo? Silêncio. Então houve um zumbido alto e a tranca se abriu com um estalo. Joe ajudou-o a passar. Estavam do lado de fora!

Era estranho atravessar o campo de futebol à luz artificial das lâmpadas de arco voltaico. O deserto estava numa escu­ridão de breu. Esta noite não havia lua. Mas toda a prisão era de um estranho branco elétrico, com a cerca de arame farpa­do brilhando ao redor de todo o perímetro. Jamie podia ver as janelas das quatro unidades e pensou nos garotos que havia conhecido — Baltimore, Olhos Verdes, DV e os outros — e lamentou deixá-los para trás. Eles haviam cometido erros. Ti­nham feito coisas idiotas. Mas ele os conhecia e pensava que nenhum era realmente muito mau.

A enfermaria erguia-se diante deles com o sólido muro de blocos de concreto estendendo-se atrás. Joe Feather ti­nha a chave da porta e deixou Jamie entrar. Passaram para uma área de recepção com mesa e duas pequenas salas de exame num corredor estreito atrás. Havia uma tabela de exa­me de vista na parede, dois cartazes contra drogas na outra.

Jamie notou outra câmera observando-o do canto. Como os dois poderiam fazer alguma coisa se estavam sendo segui­dos o tempo todo?

Joe Feather se ajoelhou e fingiu examinar o ferimento dele.

— A câmera pode nos ver, mas não pode ouvir — sussur­rou. — Eles esperam que eu use o telefone para chamar a enfermeira. Vou fingir que faço isso. Você deve pegar isto aqui... — Jamie sentiu algo metálico sendo apertado contra sua mão. — É a chave mestra. Ela abre as celas de todas as quatro unidades: Norte, Sul, Leste e Oeste. Também deve abrir as celas do Bloco, mas não tenho certeza. Se não abrir, não há mais nada que possamos fazer.

— Como eu chego ao Bloco?

— Há uma porta no fim do corredor.

Jamie olhou ao redor, ao mesmo tempo soltando um ge­mido de dor para a câmera. Era verdade. Havia uma porta logo depois das duas salas. E — claro — pelo desenho do prédio dava para ver que o corredor era uma espécie de tú­nel, atravessando diretamente o muro externo.

Enquanto isso, Joe Feather havia ido ao telefone e digitado um número. Em algum lugar, no complexo da prisão, outros supervisores estariam observando todos os seus movimentos. A primeira regra da vida na prisão era que não deveria haver surpresas. Cada minuto do dia tinha de ser exatamente igual ao do dia anterior. O fato de um garoto ser machucado e pre­cisar de ajuda médica era um rompimento da rotina e os ou­tros guardas estariam totalmente alertas. Feather fingiu que falava com a enfermeira do outro lado da linha, mas na ver­dade não havia feito a ligação. Estava falando com Jamie.

— Eu mexi no gerador — continuou Joe. — O gerador elétrico no pátio. Ele tem um sistema de sobrecarga. Algumas vezes temos de desligar para fazer consertos. Daqui a pouco ele vai se desligar e eles vão demorar um tempo para colocar o de emergência funcionando. Isso vai nos dar pelo menos 1 minuto sem câmeras, sem luzes e com todas as portas da prisão automaticamente ajustadas no manual. É então que você deve cuidar do seu amigo. Ele está na cela 14.

— Não haverá guardas?

— Só há um supervisor de serviço no turno da noite. Dei­xe-o comigo.

— Por que você está fazendo tudo isso?

Joe olhou para ele e se permitiu um breve sorriso.

— Já lhe disse. Você é um dos Cinco.

— É. Mas um dos cinco o quê? O que isso significa? Sem aviso, as luzes se apagaram.

— Agora! — ordenou Joe.

Ele estava com uma lanterna e acendeu-a. Jamie o acom­panhou pelo corredor e esperou enquanto ele destrancava a porta na extremidade usando outra chave. Tudo estava numa escuridão de breu, mas o facho da lanterna captou alguns detalhes enquanto Joe o apontava de um lado para o outro: uma unidade quase idêntica à de Jamie; um corredor com por­tas de celas; uma mesa aparafusada ao chão, uma fileira de monitores; um supervisor já se levantando, tentando pegar a lata de gás lacrimogêneo presa ao cinto.

— O que...? — começou o sujeito.

Joe o acertou com a lanterna. O facho de luz lançou som­bras loucas na parede mais distante. Jamie ouviu o supervisor grunhir. Ele se dobrou e desmoronou.

— Vá! — Joe já estava arrastando o homem inconscien­te de volta para sua cadeira. Havia um livro de bolso na mesa diante dele e Joe estava arrumando-o de modo a que, quan­do as luzes se acendessem de volta, pareceria que ele estava inclinado adiante, lendo uma página. Jamie olhou em volta, tentando achar o caminho. Joe atirou a lanterna para ele. Jamie pegou-a e saiu correndo.

Os números das celas eram impressos claramente ao lado de cada porta. Tinha de andar depressa. Assim que o gera­dor de emergência fosse ligado, ele seria visto e — pior — as portas seriam trancadas eletronicamente. Podia ouvir gritos. Vinham de trás das portas trancadas. Alguns garotos teriam acordado e agora se viam na escuridão total... uma nova ex­periência para eles. Estavam batendo com os punhos nas portas. Jamie imaginou se a mesma coisa estaria acontecen­do nas unidades do outro lado do muro.

Chegou à de número 14 e, usando a lanterna, enfiou a chave na fechadura e virou. Com alívio, sentiu a tranca se abrir. Deslizou a porta para o lado e entrou.

Havia um garoto negro, de 11 anos, deitado numa cama, usando camiseta e cueca. Era pequeno para a idade, mas for­te e magro. Tinha cabelo curto, encaracolado, e olhos redon­dos e brancos. Havia um adesivo sobre seu pulso, logo acima da veia, e ele estava muito magro. Mas afora isso não parecia ferido. Já estava acordado e olhando a figura que havia inva­dido sua cela. Jamie fechou a porta de novo — mas não to­talmente. Virou a lanterna para si mesmo.

— Não tenha medo — disse. — Sou amigo.

— Scott? — O garoto da cama pensou tê-lo reconhecido e por um momento Jamie ficou abalado. Mas, claro, ele não estava usando os óculos. E à meia-luz seria fácil confundi-lo com o irmão, mesmo com o cabelo curto.

— Não sou Scott. Sou o irmão dele.

— Jamie!

— É. — Jamie sentia um redemoinho de emoções. Scott estivera ali. O garoto o havia encontrado. Talvez até soubesse para onde ele tinha ido. — Você é Daniel... certo?

— Sou Danny.

— Eu conheço sua mãe. Ela está procurando você. Me mandou para encontrá-lo.

— Você viu minha mãe?

As luzes se acenderam de novo. Danny ofegou, vendo as manchas vermelhas no rosto de Jamie.

— Você está machucado!

— Não. Não se preocupe. É de mentira...

Jamie não sabia direito o que deveria acontecer em segui­da. Estava na cela com Daniel McGuire, dentro do Bloco. Os outros prisioneiros continuavam socando as portas, gritando por atenção. As luzes estavam acesas de novo. As câmeras de segurança funcionavam. Toda a prisão se encontrava em alerta máximo. O que, exatamente, eles haviam conseguido?

Colton Banes também tinha visto as luzes se acender.

Estava num jipe, sendo levado da pista de pouso onde havia descido no Cessna de quatro lugares que o trouxera de Las Vegas. Max Koring dirigia. Ele soubera imediatamente que algo estava errado. Em geral, Silent Creek podia ser vista a quilômetros ao redor, e a escuridão nesta parte do deserto era simplesmente impossível— era como uma espécie de enor­me truque de magia. À medida que os dois se moviam pela estradinha, as luzes se acenderam e a prisão reapareceu. Koring se virou para ele.

— Falha de energia — murmurou. — Isso acontece. Al­gumas vezes o gerador pifa.

— Um acidente? — Banes balançou a cabeça devagar. — Acho que esta noite, não. — Em seguida enfiou a mão embaixo do paletó e pegou uma arma. — Pise fundo — or­denou rispidamente. — Temos de dar o alarme.

Mas era tarde demais. O jipe ainda estava a cem metros do portão principal quando os primeiros tiros foram disparados.

 

Tinham vindo de lugar nenhum, saindo do deserto em picapes, carros sem capota e jipes, todos empoeirados. Se fosse um antigo filme de faroeste, Silent Creek seria um forte e eles estariam usando pintura de guerra e penas — porque todos eram índios, pelo menos trinta, de diversas tribos, disparan­do revólveres e fuzis enquanto se aproximavam da cerca do perímetro.

Miravam contra as lâmpadas de arco voltaico. Uma depois da outra as lâmpadas se despedaçavam e a escuridão tomava conta de novo. Mas outras luzes haviam se acendido dentro dos prédios. Os supervisores sabiam que estavam sob ataque e também tinham armas. O alarme fora dado nas casas ao redor e mais guardas iam saindo, alguns vestidos pela meta­de, arrancados do sono.

Um dos jipes partiu na direção da cerca e se desviou no último minuto. Havia um homem de pé na traseira, agarrando-se às barras laterais e, à medida que se aproximava, atirou alguma coisa: uma granada artesanal. Ela pousou na areia, ricocheteou e explodiu — uma bola de chamas que abriu um buraco enorme na cerca. Imediatamente uma sirene dispa­rou, uivando inútil na escuridão. Do outro lado da prisão houve outra explosão e outra parte da cerca foi aberta. Agora um dos carros entrou na parte interna, com os últimos pedaços de arame-navalha se arrebentando enquanto o veículo pas­sava. Quatro homens, quase invisíveis nas sombras, saíram e assumiram posição ao redor do campo de futebol. Outra ex­plosão. Desta vez era uma das parabólicas atrás das salas de aula. Os atacantes haviam se certificado de que não haveria mais comunicações esta noite.

Não que precisassem se incomodar. Colton Banes estava olhando o ataque, pasmo, e já havia percebido algo que os atacantes deviam saber desde o início. Silent Creek era uma prisão correcional de segurança máxima para jovens: fora construída para remover a menor chance de algo sair. Mas ninguém havia considerado a possibilidade de uma força bem armada tentando invadir. Pior: a localização, no meio do deserto de Mojave, havia se tornado seu calcanhar de Aquiles. Não havia ninguém por quilômetros ao redor. Quando alguém chegasse para ajudar, seria tarde demais.

O carro de Banes se alinhou com uma das picapes, e por um momento ele esteve com um dos atacantes na mira... outro homem com cabelos pretos e olhos incendiados de empolgação. O homem usava jeans e uma camiseta rasgada, e havia pintado tiras vermelhas e brancas na lateral do rosto. Não podia ter mais de 20 anos. Banes mirou com cuidado e atirou. Mas no último minuto Koring virou o volante, evitan­do um buraco na estrada. O tiro passou longe do alvo. O carro saiu da trilha. Banes xingou. A picape disparou à frente.

— Quem são eles? — perguntou Koring, rouco. Seus olhos estavam arregalados e ele suava. A transpiração pingava do bigode. Não era só o calor da noite: Colton Banes o amedron­tava. A situação estava fora de controle. E isso o apavorava mais ainda. — O que eles querem?

— Estão aqui por causa do garoto! — rosnou Banes. — Jamie Tyler. Não pode haver outro motivo.

— O que vamos fazer?

— Matá-lo! Matar Tyler! Não importa o que aconteça. Ele não deve sair daqui vivo.

Dentro do Bloco, Jamie tinha ouvido o tiroteio e as explo­sões. Houve um estrondo alto e as luzes se apagaram de novo. Sua lanterna ainda estava acesa e ele girou-a. Agora todos os outros prisioneiros estavam acordados. Dava para ouvi-los gritando e comemorando nas celas. Daniel McGuire já havia se vestido. Jamie teve de admirá-lo. Estava trancado havia sete meses e de repente fora acordado no meio da noite e na es­curidão total por um estranho que parecia coberto de sangue. Uma batalha feroz estava acontecendo do lado de fora. Mas ele parecia completamente calmo, esperando que lhe disses­sem o que fazer.

Joe se aproximou, vindo rapidamente pelo corredor, atrás do facho de outra lanterna.

— Meus amigos estão aqui — gritou. Não se importava mais se as câmeras o viam. Não era preciso muita imaginação para Jamie saber que o agente de recepção não voltaria. — Agora vamos!

— E os outros? — perguntou Jamie.

Havia vinte celas no corredor, dez de cada lado. Passando o facho da lanterna, viu rostos através das janelas de vidro engastadas nas portas. Não eram só garotos, havia garotas também. Lembrou-se do que Alicia tinha dito. Os seqüestra­dores se interessavam por jovens dos dois sexos, meninas e meninos, desde que tivessem algum tipo de habilidade para-normal. Sem dúvida era ali que todos tinham ido parar. Era incrível. Uma prisão dentro de uma prisão. E ainda não fazia idéia de por que haviam sido trazidos.

Joe Feather estava esperando. Mas Jamie não ia se mexer.

— Não podemos deixá-los — disse.

— Temos de deixar! — exclamou Joe. — Meus amigos vie­ram pegar você. Só você. É perigoso demais levá-los para fora.

— Mas eles não fizeram nada errado! — Foi Daniel quem falou. Tinha voz aguda; ela obviamente ainda não havia mu­dado. — Eles são como eu. Todos foram seqüestrados e tra­zidos para cá.

Joe se balançou de um pé para o outro, como se estivesse pisando em carvões acesos.

— Quando você estiver fora daqui, vai poder ajudá-los. Pode falar com as autoridades. Mas se não formos agora, nunca vamos sair.

Jamie sabia que ele estava certo. Demoraria demais abrir todas as portas. E quanto aos seus amigos lá na outra unidade? Também não podia salvá-los. Scott não estava ali. Seu primeiro trabalho era levar Daniel de volta para a mãe. Então Alicia poderia procurar John Trelawny. E o senador cuidaria do resto.

— Joe está certo. Precisamos ir. — Virou-se para Daniel. — Prometo que vamos voltar e ajudar os outros.

Daniel assentiu, e só por um segundo Jamie teve a sensa­ção estranha de, pela primeira vez na vida, ser o irmão mais velho. Durante muitos anos havia dependido de Scott, mes­mo sendo da mesma idade. Mas Scott não estava com ele havia um tempo, e talvez nesse ínterim Jamie tivesse muda­do. Teria de começar a pensar sozinho.

Houve outra explosão e mais tiros. O tiroteio havia se in­tensificado e Jamie achou que os supervisores deviam estar atirando de volta. Seguindo Joe, foram pelo corredor até a enfermaria. Assim que chegaram lá e puderam olhar pelas ja­nelas, viram a verdade. Uma batalha feroz acontecia no terre­no da prisão. Havia buracos enormes em três partes diferentes da cerca, e a gaiola que continha o gerador fora explodida. O gerador estava pegando fogo. Isso explicava a segunda queda de energia, e por algum motivo o de emergência ainda não fora ligado. Meia dúzia de veículos diferentes havia parado diante das quatro unidades, do refeitório e do ginásio. Viu fi­guras, pouco mais do que silhuetas, saltando para se posicionar e atirar contra as janelas da prisão. Havia breves clarões de bran­co enquanto os supervisores disparavam de volta.

Os três empurraram a porta e saíram para o calor da noite, agachando-se para o caso de alguém poder vê-los. Daniel estava ao lado de Jamie, que pôs a mão em seu ombro, mantendo-o perto. Joe Feather se levantou e gritou numa lín­gua que nenhum dos dois garotos entendia. Era quase um grito de guerra, agudo. E a voz ecoou no complexo, acima do som dos tiros. Um instante depois alguém respondeu. Houve um som de motor sendo ligado e mais tiros enquanto uma picape vinha rapidamente pela areia, na direção deles.

— Agora vamos! — disse Joe.

A picape parou derrapando. Jamie viu um motorista e um passageiro se inclinando pela janela com um fuzil equilibra­do no braço. Os dois eram jovens — teriam apenas alguns anos a mais do que ele. Rapidamente Jamie ajudou Daniel a subir na carroceria, depois subiu também.

— Segurem-se aí atrás! — disse Joe. Ele foi o último a subir. Nem bem seus pés saíram do chão, estavam de novo em movimento.

Havia uma barra atravessada atrás da cabine. Jamie ficou de pé, agarrando-se nela com toda a força. Daniel estava deitado, sendo chacoalhado no piso de madeira enquanto a picape disparava. De repente o chão parecia cheio de buracos — talvez resultado de todas as explosões. Mais balas foram disparadas. Uma delas bateu na lateral da cabine, ricocheteando com um estalo alto. Jamie não soube se havia sido um tiro a esmo ou se fora dado deliberadamente contra eles. Estavam indo para a cerca, a alguns metros do portão que tinha sido aberto, havia menos de uma semana, para a entra­da de Jamie. O portão ainda estava lá, mas a cerca fora arre­bentada com uma explosão. Dava para ver a estradinha e as casas dos guardas do outro lado.

Atravessaram. Jamie se abaixou, com medo de ser rasga­do por um pedaço de arame farpado balançando. O motorista deu um tiro pela janela e um guarda girou para trás na areia, ferido. Os outros veículos também estavam saindo da prisão. Olhando para trás, Jamie viu meia dúzia deles seguindo-os a pouca distância.

O vento — quente e bem-vindo — passava sobre seus ombros e pelos cabelos. Ele quase quis gargalhar. Ainda não sabia quem eram aquelas pessoas, mas elas estavam do seu lado, e o estavam levando para fora, junto com Daniel. Ele iria contatar Alicia e a prisão seria fechada. E, sem dúvida, al­guém lá — um dos supervisores, uma enfermeira ou um admi­nistrador — saberia o que havia acontecido com Scott. Haveria um registro em algum lugar dos arquivos.

Passaram por um jipe perto da estrada. Jamie viu-o e pre­sumiu que estivesse vazio. Não viu o homem se levantar ao lado dele. Nem a arma apontada para suas costas.

Colton Banes o estivera esperando. Percebera que não fazia sentido entrar na batalha da prisão. Tudo lá estava es­curo e confuso. Seria melhor esperar do lado de fora do com­plexo. Eles iriam trazer o garoto, teriam de passar por ali. E estava certo. Podia ver Jamie, de pé, agarrando-se à cabine para ter apoio. Era um alvo perfeito, quase como um daque­les recortados em papel, que Banes usava para treinar no estande de tiro.

Disparou.

Jamie escutou o tiro e sentiu a bala acertar suas costas, no alto, perto do ombro. Era como ser golpeado por uma faca incandescente. Toda a força o abandonou. Suas pernas se dobraram e ele caiu, esparramado, em cima de Daniel. Não havia fechado os olhos, mas de repente tudo ficou preto. Ouviu Joe gritar, mas antes que o índio chegasse ao fim da frase as palavras haviam sumido. Não podia sentir o piso da picape. Não podia sentir nada.

Colton Banes ainda não havia acabado. Tinha visto o ga­roto cair, mas ainda tinha tempo para um segundo tiro. Mes­mo tendo quase certeza de que a primeira bala havia feito o serviço, esta iria garantir. Um sorriso se espalhou em seus lá­bios enquanto ele levantava o revólver, mirando com cuidado.

Mas não puxou o gatilho. Ouviu algo chegar zumbindo da escuridão e se sacudiu para trás, imaginando o que teria acontecido. Olhou para baixo e ficou surpreso ao ver uma fle­cha, com penas e tudo, se projetando do peito. Aquilo havia sido atirado contra ele? Uma daquelas pessoas realmente ha­via trazido uma de suas armas antigas e usado contra ele? Um carro passou a toda velocidade. O rapaz com a pintura de guerra vinha com metade do corpo fora da janela, uivando. O arco estava em suas mãos.

Por um momento Banes ficou parado, sem perceber que sua mão havia baixado e que agora a arma apontava para o chão. Abriu a boca para falar, mas nenhuma palavra saiu. Sangue quente escorreu sobre o lábio superior. Seu último pensamento foi que jamais havia esperado morrer assim, e certamente não tão cedo. Então caiu de joelhos e despencou de cara na areia.

Max Koring se levantou trêmulo. Alguns supervisores ain­da atiravam, mas a coisa já havia acabado. Os últimos veícu­los tinham desaparecido na noite do deserto.

Alvorecer.

Daniel McGuire acordou e se viu deitado num grosso ta­pete de lã numa barraca completamente circular, que se afi­nava até uma ponta lá no alto. As paredes eram feitas de algum tipo de couro enrolado numa estrutura de paus. Havia uma aba no lugar da porta e ele podia sentir a luz do sol se filtrando pelas frestas. Ainda era de manhã cedo. O ar dentro da barraca era fresco e a luz tingida de vermelho.

Adormecera totalmente vestido. Piscou e se espreguiçou, depois foi se arrastando para a frente, passando pela aba. Viu de imediato que estava nas montanhas. Havia grandes pedras ao redor e, ainda que a barraca tivesse sido erguida numa laje plana, o terreno se erguia íngreme atrás. E não era uma bar­raca. Olhando ao redor, Daniel viu que havia passado a noite numa tenda indígena.

Havia uma figura sentada de pernas cruzadas na frente de uma pequena fogueira, os olhos fixos na fumaça que subia pelo ar. Daniel reconheceu o homem que tinha ajudado a res­gatá-lo na noite anterior. Como é que Jamie o havia chamado? Joe. E Daniel se lembrou do que havia acontecido. O surgi­mento súbito de Jamie em sua cela, a escuridão, os tiros, a fuga da prisão. Enquanto acordava, havia pensado que era tudo um sonho — mas o despertar completo trouxe a per­cepção de que aquilo havia acontecido de verdade. E Jamie...

— Onde está ele? — perguntou. Joe Feather se virou.

— Você precisa beber alguma coisa — disse ele. — E comer...

— Ele está bem?

Joe fez um gesto. Daniel havia notado uma quantidade de embrulhos espalhados no chão. Então, percebeu que um deles era Jamie, completamente enrolado em cobertores, ape­nas o rosto aparecendo. O rosto estava muito branco. Os olhos fechados, e ele não parecia respirar.

— Está morto? — perguntou Daniel.

— Está muito perto da morte. — A voz de Joe saía baixa. — Fiz o que pude por ele.

— Temos de levá-lo a um hospital!

— Um hospital não pode ajudá-lo agora. E, de qualquer modo, não existe hospital. Pelo menos num raio de 50 quilô­metros. Mesmo que a gente pudesse levá-lo, ele estaria mor­to antes de chegar.

— Então o que vamos fazer?

— Você vai comer e beber.

— Não quero nada.

Os olhos de Joe chamejaram.

— Esse garoto arriscou a vida para tirar você de Silent Creek. Você não vai ajudá-lo se ficar aí sentado se desidratando. Ele queria levá-lo de volta para a sua mãe, e eu vou ga­rantir isso. Mas por enquanto você tem de confiar em mim.

— Você pode ajudá-lo?

— Já ajudei. Mandei vir um xamã. Vai chegar logo. Daniel assentiu. Havia uma garrafa d’água e um cesto com frutas, pão e algum tipo de carne-seca. Ele se obrigou a comer. Joe estava certo. Nem podia acreditar, mas o pesadelo de Silent Creek finalmente havia ficado para trás — e tudo graças a esse garoto que ele não conhecia mas que conhecia sua mãe. Olhou para a figura silenciosa. Lembrou-se do momento em que a bala o acertou enquanto saíam a toda velocidade do complexo. Parecia injusto. Mais um minuto e estariam longe.

A manhã passou. 0 sol subiu, ficando cada vez mais quen­te. Jamie fora posto à sombra, protegido por uma grande pedra. Daniel ficou preocupado com a hipótese de alguém encontrá-los — a polícia certamente devia estar procurando os garotos — mas Joe parecia não se preocupar. Mas, claro, os índios haviam passado anos escondidos nas montanhas. Não ser encontrados era o único modo de muitos deles sobreviverem.

Pouco antes do meio-dia houve movimento e uma figura apareceu a cavalo. A princípio era difícil ver quem era. O sol estava por trás da pessoa, que parecia tremeluzir fora de foco enquanto o ar quente subia do chão. Joe saltou de pé, com alívio inundando o rosto. Daniel entendeu.

Era o xamã. O feiticeiro.

O cavalo e o cavaleiro pareceram demorar uma eternida­de para alcançá-los, lutando contra a encosta íngreme e o calor do dia. Daniel viu o xamã instigando o animal, mas não com muita força e com pouco resultado. Por fim a figura chegou perto e ele pôde ver o homem em quem Joe tinha tanta fé. Não ficou impressionado.

O xamã era um dos homens mais velhos que Daniel já vira. Tinha o tipo de rosto que seria de esperar num cadáver, a pele enrugada e ao mesmo tempo esticada no crânio. Os poucos dentes que restavam pareciam estar prestes a cair. Os braços eram emaciados e na garganta havia uma reentrância funda na qual daria para colocar o punho. O cabelo era prateado. Era comprido, indo até os ombros, mas amarrado com um pe­daço de fita preta. Só os olhos do xamã eram realmente vivos. Eram acinzentados, mas pareciam brilhar com uma força interior.

Muito lentamente desceu do cavalo. Joe ainda estava ali parado, as mãos apertadas na frente do corpo, os olhos baixos.

— Cavalo desgraçado! — O xamã se virou e cuspiu. — Só estou nele há duas horas e juro que estive sentado num cacto. — Virou-se para Joe. — Não fique aí parado, Joe Feather. Faça uma xícara de chá! E eu não recusaria um pedaço de torta, se por acaso você tiver.

Só quando escutou a voz, Daniel percebeu que o xamã não era homem, e sim mulher. Seu corpo havia chegado a um tal estágio de decadência que era difícil dizer a diferença. De repente sentiu os olhos dela grudados nele.

— Você é Danny?

— Sim, senhora. — Danny não sabia bem como chamá-la.

— Quanto tempo mantiveram você naquela prisão?

— Fiquei lá trinta semanas e três dias.

— Você contou cada um deles. — Ela balançou a cabe­ça. — Há gente ruim neste mundo. Gente que não merece andar na terra, e essa é a verdade. Agora vamos olhar esse garoto.

Os modos dela mudaram enquanto se aproximava da fi­gura silenciosa de Jamie. Ajoelhou-se ao lado dele e pôs a mão nodosa em sua testa. Joe estava se ocupando com uma cha­leira, mas ela o chamou.

— Esqueça isso, Joe. Venha me ajudar a virá-lo.

Joe veio correndo e os dois viraram Jamie de lado. As cos­tas da camiseta estavam empapadas de sangue. Daniel podia ver o buraco por onde a bala havia entrado. A xamã exami­nou o furo de entrada, tocando-o gentilmente com a ponta do dedo.

— Está ruim? — perguntou Joe.

— Está ruim. Poderia ser muito pior. A primeira coisa é tirar esta bala. Por sorte você está com a fogueira acesa. Va­mos precisar disso.

— Ele vai viver?

A xamã balançou a cabeça como se descartasse a pergun­ta. Virou-se para Daniel.

— Quero que você volte para a tenda. Sei que quer ficar e ajudar, mas não há nada que você possa fazer e isso é uma coisa que uma criança não deveria ver.

— Por favor... — Daniel quis argumentar, mas um olhar da velha lhe disse para não perder tempo. Obedeceu.

A xamã virou-se para Joe.

— Tire a camisa dele.

Joe se ajoelhou ao lado de Jamie. Não tentou puxar a ca­misa pela cabeça do garoto. Em vez disso usou uma faca para cortar o tecido, depois rasgou-o, expondo o ferimento. A pele estava de um vermelho vivo e inchada ao redor do buraco da bala. Enquanto isso, a xamã voltou ao cavalo e desamarrou uma bolsa de couro que fora presa à sela. Quando voltou ao garoto inconsciente, abriu-a e pegou alguns saquinhos de musselina amarrados com tiras feitas de tendões, algumas tigelas, duas garrafas de vidro e uma vara de madeira, com cerca de 10 centímetros, com uma águia esculpida numa das extremidades. Por fim, pegou uma faca. Joe olhou-a e se en­colheu. Não havia nada de antigo na faca. Era um bisturi ci­rúrgico comum.

Ela atraiu seu olhar.

— Os espíritos só fazem uma parte — disse a mulher. — Para começar, temos de cortar a carne e tirar a bala.

Joe assentiu.

— Diga quando meu chá estiver pronto.

Ela se inclinou sobre Jamie e fez o primeiro corte.

Daniel esperou enquanto pôde. Tentou dormir, mas agora o sol estava alto e ficou quente demais, mesmo na sombra da tenda. Desejava falar com a mãe, mas duvidava que a xamã tivesse um celular — e, de qualquer modo, era a hora errada para pedir. Talvez no fim ele tivesse conseguido cochilar, por­que a próxima coisa que percebeu foram sombras compridas caindo sobre a tenda e que o calor parecia ter diminuído. De novo se arrastou passando pela aba, sem saber o que espera­va encontrar.

Joe estava sentado junto de Jamie, que não parecia me­lhor do que na última vez em que Daniel o tinha visto. Estava deitado de lado, com um curativo no ferimento. A xamã ha­via feito algum tipo de emplastro. Daniel podia ver e sentir o cheiro, passando pelas bandagens. A xamã estava mais abaixo na encosta, de joelhos, virada para o sol. Era o fim da tarde. O céu já se tingia de vermelho. A fogueira continuava acesa, lançando um fino fio de fumaça para as nuvens.

— Como está o Jamie? — perguntou Daniel. Joe se virou com raiva.

— Pára! Você não deve dizer o nome dele.

— Por quê?

— É o nosso costume. Quando alguém morre a gente não deve falar o nome durante quatro dias.

— Quando alguém...?

O impacto do que Joe havia dito acertou Daniel.

— Quer dizer... — ele se obrigou a terminar a frase. — Ele morreu?

Houve uma pausa longa. Então Joe falou:

— Nós tiramos a bala. A xamã limpou o ferimento com milefólio e outras ervas. Mas não havia mais nada que ela pudesse fazer. Ele atravessou para o outro lado.

Daniel sentiu as lágrimas se juntando nos olhos. Olhou para Jamie ali deitado, em paz. Não podia acreditar que tudo ha­via terminado assim. Tinha conhecido Scott, o irmão gêmeo de Jamie. Os dois eram muito parecidos. Quando Jamie havia entrado em sua cela, na noite anterior, foi como o início de uma nova amizade, o primeiro capítulo de uma história que ainda tinha páginas pela frente.

E agora...

Eu achei... — começou Daniel. Sua voz ficou embar­gada. Ele se virou e olhou a velha, que estava murmurando alguma coisa, segurando a varinha. — O que ela está fazendo? — perguntou.

— Você não deve fazer perguntas — respondeu Joe. De­pois, mais gentilmente, continuou: — Está fazendo o que pode. Está usando magia poderosa. Invocando o que chama­mos de we ga lay u. Seu poder espiritual.

— O que é isso? Não entendo. Os olhos de Joe se estreitaram.

— Os feiticeiros recebem seus poderes de auxiliares que lhes dão orientação no trabalho. Eles assumem muitas for­mas, mas sempre de animais ou pássaros. Essa mulher pode não aparentar, mas é muito forte. Não é da minha tribo, mas é famosa. Você viu a varinha dela, com a escultura. O poder espiritual dela é a águia.

— Mas se ele está morto...

— A águia é o único poder espiritual que pode atraves­sar e trazê-lo de volta. É tão poderoso que ninguém do meu povo sequer mantém uma pena de águia em casa. Isso pode causar muito mal. Mas ela o invocou para ajudá-la. Olhe...

Joe apontou.

A princípio Daniel não viu, e quando viu não teve certeza se estava imaginando. Um pássaro veio descendo, voando diretamente do sol como se tivesse acabado de nascer nas chamas. Enquanto baixava, gritou, um som que ecoou nas montanhas. Não pousou, mas voou sobre eles num círculo.

A xamã levantou os braços. Seu poder espiritual tinha ouvido o chamado e viera.

A águia circulou mais duas vezes, depois voltou para o céu.

 

Desta vez não era um sonho. Disso Jamie tinha certeza. Não havia mar nem ilha, nem um homem de 2,10m esperando para dar uma mensagem cifrada. E, de qualquer modo, o mundo em que agora se encontrava era real demais. Não estava sim­plesmente vendo-o: também podia senti-lo e cheirá-lo. E era frio. Esfregou as mãos e se pegou tremendo. Não era possível sentir frio nos sonhos, era?

Olhou para cima. Onde quer que estivesse, certamente não era o estado de Nevada. O céu do deserto havia sido de um azul intenso durante o dia, com o negro mais fundo e estre­las espalhadas à noite. O céu aqui era uma estranha mistura de cores, como se alguém tivesse derramado uma dúzia de potes de tintas diferentes — mas era predominantemente cin­za e vermelho com densas nuvens se retorcendo e nenhum sinal de sol. Jamie observou as árvores antigas, que mais pa­reciam esculpidas em pedra do que feitas de madeira; o ca­pim selvagem, balançando; as formações rochosas retorcidas. Não somente não estava em Nevada, não estava nem mesmo nos Estados Unidos. Até a brisa era estranha: lenta, pegajosa e cheirando a cinza, lama molhada e... alguma outra coisa. Que lugar era esse?

Tentou se lembrar do que havia acontecido. Estivera de pé na carroceria de uma picape que tinha conseguido atraves­sar a cerca da prisão, mas depois levou um tiro. Lembrou-se da dor lancinante enquanto a bala entrava nas suas costas, perto do ombro. Havia sentido as pernas falharem e tinha desmoronado no piso da picape. Só isso. Pensara ter ouvido alguém gritando, mas então a escuridão se fechou.

Até agora.

Olhou ao redor e viu que estava rodeado de cadáveres. Eram dúzias, partidos e retorcidos como se alguma força im­possível de ser contida tivesse matado todos no mesmo ins­tante. Com um sentimento crescente de horror, Jamie ficou de pé e foi mancando até o mais próximo. Eram todos ho­mens, vestidos com os mesmos tons de marrom e cinza. Sol­dados. Agora dava para ver. Mas não eram modernos, não pareciam os soldados que ele via nos noticiários de TV, ace­nando e levantando os polegares a caminho de alguma guer­ra distante.

Esses homens usavam roupas estranhas: casacos compri­dos que chegavam aos joelhos e calças largas. Alguns usavam capuzes, com o tecido escuro envolvendo a cabeça e passando sobre os ombros. Não pareciam ter armas de fogo. Em vez disso estavam armados com espadas e escudos, mas mesmo esses não eram parecidos com nada que ele vira antes. Os es­cudos eram pequenos, redondos e com um espeto se proje­tando, de modo a ser usado como defesa ou para golpear quem chegasse perto. As espadas tinham formas diversas: algumas eram retas, algumas curvas, algumas com lâminas múltiplas. Havia flechas em toda parte, mas eram de metal, e não de madeira, e com algum tipo de folhas pretas no lugar das penas.

Todos tinham sido mutilados. Alguns estavam quase irre­conhecíveis como seres humanos. Enquanto o cheiro do san­gue recém-derramado subia em suas narinas, Jamie se virou e vomitou, depois saiu cambaleando, desesperado para se esconder, para tentar entender o que estava vendo.

Havia acordado perto de uma construção em ruínas, empoleirada num morro. Ela se erguia alta, acima dele, feita de tijolos vermelhos e com a forma de um polegar gigantesco, com um terraço curvo onde a unha deveria estar. Havia uma porta de madeira pendendo das dobradiças e, dentro, uma es­cada em espiral subindo do que devia ter sido um saguão de entrada, circular. A fortaleza — porque certamente era isso — fora incendiada recentemente. Partes ainda soltavam fu­maça e era óbvio que os homens na frente dele haviam mor­rido tentando defendê-la.

Ainda com náusea e desorientado, Jamie cambaleou so­bre o entulho até chegar à entrada, encostando a mão no por­tal. Encolheu-se. A madeira estava quente demais. Esfregando a palma da mão, rodeou a construção até os fundos, para longe dos cadáveres. Encontrou um trecho de grama e sen­tou-se, obrigando-se a manter o controle. Seu coração batia com o dobro da velocidade normal. Havia um gosto horrível em sua boca e a cabeça rodava. Queria vomitar de novo, mas não restava nada no estômago.

Só então percebeu que não estava mais usando suas rou­pas. Alguém o vestira com uma blusa de trama áspera, abo-toada até o pescoço e sem colarinho. Havia um cinto de couro por fora da blusa, acima da cintura. Seus pés estavam descal­ços. Ele se parecia bastante com todos os mortos ao redor.

Só que estava vivo.

Estava mesmo? Subitamente lhe ocorreu que podia ter sido morto tentando escapar de Silent Creek e que este poderia ser o resultado. Jamie havia lido alguns trechos da Bíblia. Fora à igreja algumas vezes. Marcie o havia obrigado a fazer isso junto com Scott, como parte dos estudos em casa. Ele sabia sobre o céu e o inferno, mas nunca havia acreditado em ne­nhum dos dois. Então, se perguntou se estaria errado. Talvez ali fosse o inferno. Não havia chamas nem diabos com chifres, mas infernal era exatamente a palavra para descrever onde estava agora. Este podia ser o lugar para onde as pessoas ruins iam depois do Dia do Juízo Final.

Mas sabia que não era verdade.

Levou a mão atrás do corpo e tentou encontrar o local onde a bala havia penetrado nas costas. Mas não havia qual­quer sinal de ferimento, e enquanto se movia soube que não iria encontrar. Não estava sentindo dor. Era como se o tiro jamais tivesse acontecido.

— Estou vivo! — sussurrou as palavras como se, ao ouvi-las, pudesse provar que eram verdadeiras. Virou as mãos para o rosto e flexionou os dedos. Eles obedeceram. O estômago estava oco e a garganta áspera, mas afora isso sentia-se bem.

Então, se não era um sonho e se ele não estava morto, será que estaria sofrendo algum tipo de alucinação? Tinha visto esse tipo de coisa na TV, em programas de ficção científica. Uma mulher num acidente de carro bate a cabeça e acorda em algum lugar estranho. Ela acha que aquilo é verdadeiro, mas de fato só está imaginando, e na realidade está em coma numa cama de hospital. Isso era mais provável. Jamie baixou as mãos e olhou outra vez ao redor. A grande torre não pare­cia uma alucinação. Só havia um modo de se certificar. Trin­cou os dentes, contou até três e deu um soco nos tijolos. Gritou alto. Aquilo doía! Olhou para baixo e viu sangue nos nós dos dedos. Bom, certamente isso provava alguma coisa. Xingou baixinho e lambeu a ferida.

Seria possível que tivesse sido golpeado até ficar incons­ciente na saída da prisão? Será que Colton Banes ou Max Koring o teria capturado de novo e trazido para cá, como castigo? Não. Isso também não funcionava, porque “aqui” era diferente demais. O ferimento de bala havia sumido. E todos esses corpos mortos, com suas roupas estranhas? Al­gum tipo de guerra havia acontecido. E ele tinha acabado de acordar do lado derrotado.

Não havia uma explicação simples. Jamie percebeu que precisava aceitar a situação como era e tentar aproveitá-la do melhor modo possível. Afinal de contas, toda a sua vida ha­via sido totalmente insana, desde o dia em que fora abando­nado numa caixa de papelão e deixado na beira do lago Tahoe até o momento em que se viu caçado por todos os Estados Unidos por dois crimes que não cometeu. Ele era uma mons­truosidade. Um leitor de mentes. Tinha aprendido a viver com tudo isso, então por que não isto, agora? De algum modo, de um jeito impossível, fora transportado para outro lugar... talvez até mesmo para outro planeta. E aparentemente esta­va sozinho, era a única pessoa viva, talvez num raio de quilô­metros. Poderia ficar aqui, encolhido num canto, ou poderia ir em frente.

Na verdade não havia escolha. Era hora de ir.

Enxugou a boca no braço, depois se levantou e começou a descer o morro. Quanto mais longe ia, mais corpos cobriam o caminho, até que se viu passando por cima deles, esforçan­do-se ao máximo para não pisá-los e ao mesmo tempo ten­tando não olhar muito de perto. Os ferimentos eram horríveis demais.

O campo de batalha se estendia até a base do morro e mais além. Jamie viu mais espadas e escudos partidos. Che­gou perto de um rapaz louro espetado numa árvore com uma lança que o havia atravessado direto. O homem segurava al­gum tipo de bandeira — uma estrela azul, de cinco pontas, num círculo sobre um fundo branco. Jamie começou a en­tender. Era como uma daquelas batalhas que ele vira em fil­mes. Todos aqueles mortos podiam ter sido guerreiros. Mas contra quem haviam lutado? Os inimigos, quem quer que fossem, tinham sido absolutamente implacáveis. Era possível que tivessem feito prisioneiros, mas não haviam deixado nin­guém vivo no campo.

Jamie olhou mais para baixo no morro. O campo se es­tendia na direção do horizonte, que formava uma linha qua­se invisível entre o céu que ia escurecendo e o capim. Mesmo tendo se afastado da fortaleza, o cheiro de queimado ia fi­cando mais forte e ele percebeu que na verdade as nuvens eram fumaça, que alguma coisa enorme — um povoado ou uma cidade — havia se queimado havia pouco tempo e que, ainda que o incêndio pudesse ter acabado, deixara um man­to que cobria o céu. Nesse caso, esta batalha provavelmente era apenas uma dentre muitas. E a carnificina poderia se es­tender por quilômetros.

Chegou a uma estrada lamacenta que lhe deu a escolha de duas direções, mas nenhuma das duas tinha muito a ofe­recer. Jamie sentiu-se tentado a continuar pelo campo aberto. Poderia estar mais seguro ficando longe de uma trilha muito usada. Afinal de contas havia um exército vitorioso em algum lugar da área e não queria trombar com ele antes de saber de que lado deveria estar.

Houve um movimento. Jamie levou um susto, quase saiu correndo, depois relaxou. Uma única figura andava pela es­trada em sua direção, um velho se apoiando num pedaço de pau. Parecia um monge, vestido com um manto marrom e um capuz dobrado para trás, sobre os ombros. Ainda es­tava muito longe, mas, à medida que se aproximou, Jamie viu que o homem teria pelo menos 60 anos, era quase careca, com pele frouxa e olhos lacrimejantes, injetados. O velho mal conseguia andar. Todo o seu peso estava apoiado no peda­ço de pau, que ele colocava cuidadosamente à frente antes de cada passo.

Jamie sentiu um enorme alívio. Não estava mais sozinho! O homem levantou uma das mãos e acenou. Parecia que era amigável. Agora talvez Jamie pudesse descobrir onde estava e o que havia acontecido... presumindo que o homem falasse sua língua. Esperou enquanto ele vinha pela estrada. Demo­rou muito tempo até finalmente chegar.

O homem parou e falou:

— Rag dagger a marrad hag!

Foi como as palavras soaram. Jamie ouviu claramente e elas não deveriam fazer nenhum sentido. O homem estava apenas tagarelando. Mas Jamie entendeu exatamente o que ele queria dizer. De algum modo seu cérebro havia sintoniza­do uma língua estranha que ele aprendeu instantaneamente. Era impossível, claro. Mas foi assim.

— Bom-dia para você, amigo! — dissera o homem. Ha­via gritado o cumprimento numa voz trêmula e aguda. Parou para recuperar o fôlego e depois continuou, as palavras se traduzindo instantaneamente: — Uma criança viva em meio a tantos mortos! É muito estranho. Quem é você, meu garoto? O que está fazendo aqui?

Jamie hesitou, imaginando se poderia responder.

— Meu nome é Jamie — respondeu, mas mesmo sendo estas as palavras em que pensou, não foram as que saíram de seus lábios. Sem tentar, ele estava falando a língua do homem. Parou, depois continuou: — Não sei o que estou fazendo aqui. Nem sei onde estou. O senhor pode me ajudar?

— Claro que posso. — O homem riu brevemente. Era um som seco e desagradável. — Mas, quanto a onde você está, não resta nada aqui, de modo que, por que este lugar deve­ria ao menos ter um nome? E se tivesse um nome, logo seria esquecido, como em todos os outros lugares. Não há países agora. Nem cidades, nem povoados. Tudo são apenas cinzas. — Ele passou o olhar sobre Jamie e franziu a testa. — De onde você vem?

— Sou americano. De Nevada.

— América? Nevada? Não conheço estes lugares. — Ago­ra ele estava cheio de suspeitas. — Como chegou aqui?

— Não sei. — Jamie balançou a cabeça. — Não queria chegar. Simplesmente aconteceu.

— Como se por magia?

— Bom... é. — Jamie não sabia direito se o velho estava brincando.

— Talvez tenha sido magia! — A mão do velho se aper­tou no cajado. — Talvez você tenha sido trazido pelos Anti­gos. Eles poderiam querer você, ainda que eu não possa pensar no motivo. Você serve aos Antigos?

Jamie balançou a cabeça.

— Desculpe. Não sei do que o senhor está falando.

— Você não é serviçal dos Antigos?

— Não! Não sou serviçal de ninguém!

— Então foi uma sorte eu ter vindo por aqui. Parece que cheguei bem a tempo.

— Para fazer o quê? — Jamie ficou subitamente inquieto.

— Matar você.

O velho ergueu o cajado e Jamie quase riu alto. A idéia daquele sujeito de 60 anos ao menos machucá-lo era ridícu­la. Meio que levantou a mão para se defender, depois recuou horrorizado, os olhos se arregalando enquanto o impossível acontecia diante de seus olhos. O velho pareceu se descascar, com a carne caindo como pedaços de roupa sendo tirados. Outra criatura, algum tipo de inseto gigantesco, explodiu de dentro dele, com feias escamas pretas no lugar da pele. Duas garras enormes, com pinças se abrindo e fechando, surgiram nas laterais e se estenderam de onde os braços haviam estado.

Os olhos tinham ficado amarelos. A cabeça e as pernas ainda eram humanas, mas agora se grudavam ao corpo de um es­corpião, e enquanto Jamie tombava para trás uma cauda enor­me ergueu-se acima dos ombros da criatura, com um ferrão enorme apontando de cima para baixo, para ele. O cajado também havia mudado. Agora era uma lança de aço enferru­jado, como algo recolhido de um naufrágio. A ponta era torta e estava manchada de sangue, e tinha a forma de uma letra Y, não com uma ponta, e sim duas.

O homem-escorpião gritou para ele e Jamie viu que os dentes haviam se tornado agulhas prateadas e a boca estava cheia de sangue. Os olhos amarelos eram largos e furiosos. Ouviu algo estremecer através do ar e tombou para trás no momento em que a haste de aço, segura numa das garras, cortou o vento a 1 centímetro de seu rosto. Se o tivesse atin­gido teria esmagado seu crânio — ou arrancado a cabeça dos ombros. Jamie perdeu o equilíbrio e quase caiu, depois sal­tou para trás enquanto a cauda da criatura golpeava na sua direção, com veneno branco espirrando no solo. Algumas gotas minúsculas daquilo bateram na mão dele e Jamie gri­tou. Era como ácido. Podia sentir queimando através da pele. A cauda golpeou de novo e desta vez Jamie se jogou no chão, com medo de ser queimado ou cegado. A criatura gargalhou e Jamie soube que não tinha nenhuma chance, que agora iria realmente morrer — e que nem mesmo descobriria o que havia acontecido, como tinha chegado ali.

A coisa avançou bamboleando, a cabeça girando de um lado para o outro, o rosto distorcido de raiva e ódio, segu­rando a lança de duas pontas bem no alto. Jamie se arrastou para trás, procurando qualquer coisa, uma arma que pudes­se usar para se defender. Havia um soldado caído junto à es­trada, ainda segurando uma espada curva como um sabre, que tinha uma segunda lâmina mais curta se projetando logo abaixo do punho. Jamie estendeu a mão e pegou-a, arrancando-a da mão do morto, depois rolou e rolou, consciente de que a criatura havia atirado a lança contra ele. A lança bateu no chão tão perto de sua barriga que ele sentiu o gume en­costar na camisa. O homem-escorpião veio para ele e, ao mes­mo tempo, Jamie saltou de pé, estendendo a espada. Só por um segundo sentiu-se presa de uma sensação de irrealidade que quase o paralisou. Estava enfrentando algo que não era humano. Tinha uma espada. Estava numa luta de morte. E não sentia medo.

Isso era o mais estranho de tudo. De súbito sabia exata­mente o que fazer, e mesmo nunca tendo segurado uma es­pada na vida, ela quase parecia fazer parte dele. Isso havia acontecido no momento em que ele a pegou. Sem nem mes­mo pensar, percebera o peso, o comprimento da lâmina, o equilíbrio da arma na mão. Era como se, de algum modo, a absorvesse, e ele e a espada fossem um só.

O homem-escorpião atacou, com a cauda batendo de cima para baixo. Jamie saltou de lado e girou a espada, rindo quan­do o gume afiado cortou escamas e pele, cravando-se no fer­rão e arrancando-o fora. A criatura gritou. Veneno espirrou no ar. Jamie se abaixou, avançando. Desta vez sentiu a ponta da espada se cravar no corpo da criatura. Sangue — vermelho-escuro e pegajoso — jorrou do ferimento. Jamie sentiu-o espirrar no rosto e teve ânsias de vômito ao sentir o gosto nos lábios. Mas havia feito. Ainda estava vivo. Tinha vencido.

O homem-escorpião se empinou para trás, levando con­sigo a espada. Jamie pôde ver que ele estava morrendo mas, afinal de contas, ainda não estava acabado. Com as últimas forças a coisa arrancou a lança do chão e apontou pela se­gunda vez.

— Morra! — gritou a criatura, e avançou.

Jamie estava desarmado. Ficou onde estava, apoiado nos calcanhares e com todos os instintos em alerta, tentando deci­dir para onde se jogaria para evitar o ataque.

Então algo zumbiu no ar, e a próxima coisa que ele viu foi que havia três flechas de metal se projetando do peito do ho­mem-escorpião, entre as duas garras. Ele foi empurrado para trás, praticamente incapaz de permanecer de pé. Mais duas flechas o acertaram. Uma ricocheteou na casca, mas a outra se cravou na garganta. A criatura gritou uma última vez. A luz em seus olhos se apagou e ele desmoronou, um monte trêmulo de sangue e veneno. Até que ficou imóvel.

Jamie se virou a tempo de ver uma garota a cavalo, corren­do para ele, com três homens montados a alguma distância, atrás. Todos os cavaleiros se vestiam de modo semelhante a Jamie e o fizeram se lembrar de beduínos atravessando o de­serto — só que não havia areia nem sol. A garota segurava um arco apontado para o cadáver do homem-escorpião, mas ao ver que não precisava mais dele, baixou-o e recolocou a flecha numa aljava de madeira pendurada às costas. Tinha um cinto com uma espada curta junto à coxa, e uma tira preta no pu­nho. Havia uma echarpe velha e vermelha ao redor do pescoço.

Uma garota. Obviamente estava no comando. Jamie pôde ver isso pelo modo como os homens se mantinham afasta­dos, esperando sua ordem. E no entanto eram pelo menos dez anos mais velhos do que ela, porque — Jamie estava ten­tando absorver tudo isso progressivamente — ela só poderia ter uns 14 ou 15 anos, a mesma idade dele. Era muito pe­quena, com olhos escuros que eram algo entre o castanho e o verde, e ele supôs que seria mestiça... parte européia, parte chinesa. Era um rosto difícil de decifrar porque não era uma coisa nem outra. Também estava coberto de sujeira. O cabelo era preto, curto na frente, amarrado com outra tira de pano atrás. Tinha um pescoço muito esguio. Se ele não tivesse visto, não diria que ela teria força para disparar uma flecha capaz de matar uma criatura com pelo menos o dobro de seu tamanho.

Estava olhando-o muito estranhamente. Levantou uma das mãos, sinalizando para os três homens ficarem onde es­tavam, depois desceu do cavalo e veio até ele. Parou a pouco mais de um metro, olhando-o com uma mistura de espanto e incredulidade.

— Árvore Nova — disse ela. Jamie esperou.

— Você é Árvore Nova! — exclamou a garota. Estava fa­lando a mesma língua do homem-escorpião, e parecia quase chateada.

— Não. Sou Jamie.

— Jamie?

— É.

— Não, não é. — A garota balançou a cabeça. — Você é Árvore Nova.

— Acho que sei meu nome — disse Jamie. Ocorreu-lhe que era uma das poucas coisas que sabia.

A garota pensou um momento. Depois assentiu.

— Os nomes mudam — disse ela. — Não faz mal. Só importa que você está vivo. É você mesmo! Nem posso acre­ditar... — E antes que Jamie pudesse impedir, a garota o en­volveu com os braços, beijou-o nas duas bochechas e enterrou o rosto no seu peito. Depois, abruptamente, empurrou-o e irrompeu em lágrimas.

— Scar... — Um dos três homens havia descido do cava­lo e veio até ela. Tinha uns 30 anos, parecia um grande urso, com barba, uma cicatriz no alto do malar e nariz quebrado. Junto dela, parecia ter o dobro do seu tamanho.

— Deixe-me em paz, Finn — disse a garota. Em seguida enxugou os olhos com a manga da blusa. As lágrimas haviam parado tão rapidamente quanto tinham começado. — Então Matt estava certo — continuou. — Por que eu tive de discutir com ele? Ele disse que você estaria aqui...

— Quem é Matt? — perguntou Jamie. — Por que não me diz o que está acontecendo? Não sei onde estou. Não en­tendo nada disso. Num minuto eu estava... em outro lugar. E agora estou aqui. Scar. É o seu nome?

A garota assentiu. Olhou-o de novo e agora havia perple­xidade em seus olhos.

— Você realmente não sabe quem eu sou?

— Não. — Mas ao mesmo tempo que balançava a cabe­ça, Jamie soube que estava errado. Já a vira antes. Não fazia nenhum sentido, mas tinha certeza que ela era a garota do sonho. Dois garotos num barco. Seu irmão, Scott. E ela.

Os outros dois homens também haviam apeado. Eram mais novos do que Finn, louros e obviamente irmãos. Um deles parecia estar usando uma luva de metal. Mas então moveu o braço e Jamie percebeu, com um sentimento incômodo, que toda a mão faltava e fora substituída por uma réplica de aço. Todos o encaravam. Jamie soube que estavam esperando que ele falasse, mas não tinha nada a dizer.

— Meu nome de verdade é Scarlett — explicou a garota. — Mas todo mundo me chama de Scar. É assim que você sempre me chama.

— Desculpe. Eu já disse. Não conheço você.

— Claro que conhece. Só esqueceu. Depois de tudo que aconteceu, não fico surpresa. — Ela parou, examinou-o e de repente ficou triste de novo. — Você sabe, eu chorei quando vi as chamas. Pensei que tudo havia acabado. Mas não foi só isso. Não pude suportar a idéia de que não veria você de novo.

— Que chamas? Não sei do que você está falando.

O homem chamado Finn estivera escutando com impaciên­cia cada vez maior. Então entrou no meio dos dois.

— Não podemos conversar aqui — disse e olhou ao re­dor. — Se havia um metamorfo, haverá outros. Os campos estão cheios de inimigos. Temos de voltar à cidade antes de perdermos a luz do dia.

Scar assentiu.

— Está certo, Finn. Você está sempre certo. Isso é que é irritante em você. — Em seguida olhou para Jamie. — Está machucado?

— Não. — Jamie balançou a cabeça. — Acho que não.

— Trouxemos seu cavalo.

Jamie olhou para além dela e viu um quinto cavalo, que fora puxado atrás dos outros. Não tinha sela, só um cobertor áspero dobrado ao meio.

— Não sei montar — disse ele.

O homem com a mão de metal escutou.

— Que loucura é essa? — exclamou ele. — É o garoto ou não é? Talvez seja algum tipo de truque.

— Fique quieto, Erin — reagiu a garota com rispidez. — Matt nos mandou aqui, e certamente sabia o que estava fa­zendo. Vamos todos esperar que seja assim. De qualquer modo, nos foi dito o que fazer. — Ela se virou de novo para Jamie. — Temos de viajar umas dez léguas. E se você não sabe montar agora, só posso dizer que certamente terá aprendido até chegar. E como diz que não me conhece, pode não co­nhecer os outros também. Este é Finn. Ele salvou minha vida tantas vezes que tem pouco tempo para qualquer outra coi­sa. E os outros dois são Erin Mão Prateada e seu irmão, Corian.

Os dois irmãos assentiram, mas Erin ainda não parecia con­vencido. Enquanto isso, Corian havia puxado o cavalo de Jamie. Era cinza, e da posição de Jamie parecia gigantesco.

— Escute — disse Jamie. Já havia esquecido que estava falando uma língua que nunca aprendera. As palavras sim­plesmente saíam com naturalidade. — Vou com vocês. Parece que não tenho escolha. Mas primeiro há uma coisa que pre­ciso saber. Vocês parecem saber quem eu sou, então diga: o Scott está aqui?

Os dois homens mais jovens trocaram um olhar, mas não disseram nada. Finn se virou para Scar, de novo esperando-a.

— Scott— disse ela. — É assim que você chama seu irmão?

— É.

— Vocês são gêmeos.

— É. — Jamie estava ficando impaciente. A cada segun­do que passava, estava ficando mais confuso.

— Scott está aqui — disse Scar. — Mas não é esse o nome que damos a ele. Nós o chamamos de Pedra-de-Fogo. Árvore Nova e Pedra-de-Fogo. Quando vi você, por um momento pen­sei que fosse ele. Nunca pude dizer quem era quem.

— Onde está ele? — Pela primeira vez em séculos, Jamie sentiu um jorro de esperança.

— Não muito longe. Vamos acampar esta noite na Cida­de dos Canais...

— Que cidade?

— Ela não tem outro nome. Se teve, já perdeu há muito tempo. — Scar olhou para o céu. Ele não estivera muito cla­ro, mas já ia ficando mais escuro. — Deveríamos ouvir o Finn. Se ficarmos aqui falando, vamos todos acabar com as entra­nhas num pedaço de pau. Sugiro irmos andando.

Jamie estendeu a mão e pegou as rédeas do cavalo.

— Vou ajudá-lo. — Um dos homens, Corian, veio até ele e cruzou as mãos, e enquanto o irmão firmava o cavalo, le­vantou Jamie. Ele nunca havia montado num cavalo. O mais próximo que estivera de um fora na feira do Condado de Clark, quando ele e Scott viajavam com o show. Mas foi exatamen­te como havia acontecido com a espada. No momento em que se empertigou sobre o cavalo, sentiu-se no controle. Não estava nervoso. Mesmo sem saber o que fazer, pensou que provavelmente poderia controlar o cavalo e fazê-lo andar na direção correta.

Mas se ficou satisfeito consigo mesmo, foi posto no devi­do lugar um instante depois. Scar saltou em seu cavalo com um único movimento e uma expressão que o fez se lembrar de que ela não havia precisado da ajuda de dois homens. Finn, Erin e Corian montaram com facilidade igual.

— Para a cidade — disse Scar.

Os quatro partiram com Jamie no meio, logo atrás de Scar. Não fazia idéia de onde estava. Não fazia idéia de para onde estava indo. Mas sentia-se confortado pelo fato de que pelo menos não estava mais sozinho.

 

Scar havia dito que cavalgariam por dez léguas, mas como Jamie não fazia idéia exatamente do quanto era uma légua, a viagem pareceu se arrastar para sempre.

Quase a partir do momento em que saíram, Jamie perce­beu que montar um cavalo — como tudo o mais — fora de algum modo programado em sua mente. Não teve dificulda­de para levar o animal a fazer o que ele queria: parar, andar, virar à esquerda ou à direita, ficar para trás ou acompanhar os outros. Não se sentiu nem um pouco nervoso. Havia en­contrado o equilíbrio e sabia que não iria cair. Na verdade era como se tivesse cavalgado durante toda a vida.

Mesmo assim mal podia esperar para chegar. Ainda esta­va coberto com o sangue da criatura que o havia atacado. Podia senti-lo no cabelo e o gosto nos lábios. Quanto tempo se passara desde que tinha comido? Daria qualquer coisa por um descanso, uma refeição e uma chuveirada morna, mas era cada vez mais certo que nada disso seria oferecido.

E havia a paisagem. Como ele poderia medir o progresso quando tudo parecia igual e era tão desolado e arrasado? Não havia nada em que se fixar. Seguiam a estrada, mas ela mal era visível, coberta de pegadas — de animais e humanas — até quase desaparecer na lama revirada e no capim. Iam cons­tantemente na direção das montanhas que Jamie havia notado quando tinham partido, mas elas nunca pareciam se aproximar. Alguns amontoados de árvores com aparência antiga rompiam o campo, e então chegaram perto de grandes afloramentos de granito, pedregulhos que pareciam caídos do espaço exterior. Mas afora isso não havia nada especial para ver.

Jamie não tinha idéia de que horas seriam. Ficou sem seu relógio quando entrou em Silent Creek, e era improvável que o visse outra vez. Olhou para cima. O céu estava ficando mais escuro, mas seria difícil dizer quando o dia virava noite: prin­cipalmente porque não havia sinal do sol. Ele ainda sentia frio. O mais velho dos dois irmãos — Corian — o tinha visto tre­mendo e lhe dera um casaco. Era igual ao deles — chegando aos joelhos. Não havia bolsos nem botões. Jamie assentiu agradecendo e apertou o tecido novo sobre o corpo. Não po­dia dizer que fizesse grande diferença.

Estavam viajando havia umas duas horas e, afora algumas árvores curvadas pela brisa, Jamie não tinha visto qualquer movimento. Haviam deixado os cadáveres para trás, mas pa­recia não existir nada vivo: nem vacas pastando nos campos, nem pássaros no céu. Havia mil perguntas que ele queria fa­zer, mas sabia que não era a hora certa. Scar ainda ia à frente, com Finn ao seu lado. Jamie se perguntou se a teria desapon­tado. Ela viera esperando achar alguém que se chamava Ár­vore Nova e, em vez disso, tinha-o encontrado. E, no entanto, ao mesmo tempo, o havia aceitado e levado. Tinha dito que iam levá-lo ao Scott, mesmo que ela o conhecesse como Pe­dra-de-Fogo. Árvore Nova e Pedra-de-Fogo. O que isso signi­ficava? Queria que ela tivesse contado um pouco mais, antes de partirem.

A estrada foi descendo. Agora passavam por uma bacia natural com um riacho correndo preguiçoso ao lado. A água parecia suja e pouco convidativa, mas de repente Jamie sen­tiu sede.

— Scar... — gritou ele. Ela girou no cavalo.

— O que é? — Ela não parecia satisfeita.

— Podemos parar para beber água?

— A água é envenenada. — Ela disse isso como se fosse óbvio, e Jamie percebeu que Árvore Nova jamais teria feito uma pergunta tão idiota. Árvore Nova saberia.

Mas, ao lado dela, Finn sentiu pena. O grandalhão tinha uma garrafa d’água presa ao cinto e, olhando azedamente para Scar, soltou-a.

— Tome um pouco dessa — disse, estendendo-a. Jamie instigou o cavalo e pegou-a. Era feita de pele de animal.

Já ia levá-la aos lábios quando Finn se imobilizou. Tinha ouvido alguma coisa, mas seus sentidos deviam estar comple­tamente sintonizados, porque para Jamie não existia nenhum som vindo de nenhuma direção, afora a água borbulhando e a brisa fraca.

— Para baixo! — sibilou ele. Depois, para Jamie. — Não diga nada!

Scar já estava deslizando do cavalo. Havia começado a se mexer antes mesmo de Finn falar, mostrando que estava tão alerta quanto ele. Finn e os dois irmãos a acompanharam, puxando os cavalos para baixo. Jamie ficou perplexo ao ver que os animais eram treinados para se deitar de lado. Fez o mesmo, descendo do cavalo e depois puxando a rédea para trazê-lo para baixo. O animal desmoronou como se tivesse morrido. Finn se esticou e pousou a mão no flanco dele, firmando-o. Todos ficaram imóveis.

Muito lentamente, Jamie virou a cabeça, tentando ver por que tudo aquilo era necessário. À frente viu os olhos de Finn se arregalarem, alertando-o para não se mexer. Jamie não podia notar nenhum perigo. Imaginou o que os havia deixado com tanto medo.

E então viu.

A princípio pensou que estava olhando para uma coluna de fumaça que poderia estar subindo de uma fogueira parti­cularmente densa, só que não havia fogueira e a nuvem não se movia para cima, e sim para baixo, retorcendo-se do céu até a superfície da terra. Então percebeu o que era. Um enxa­me. Algum tipo de inseto... besouros ou moscas. Eram pre­tos e devia haver um milhão deles, jorrando como se tivessem sido derramados de um vidro gigantesco. Ao mesmo tempo ouviu-os zumbindo enquanto as asas minúsculas vibravam rápido a ponto de ficarem quase invisíveis.

O que será que eles queriam? O que os havia atraído para ali? Um minuto depois, com um senso de horror e increduli­dade absoluta, entendeu por que Scar precisara se esconder.

Quando os insetos bateram no chão, a coluna se dividiu. Por alguns instantes era apenas uma névoa preta. Depois se alterou e se solidificou. E Jamie viu que aquilo havia assumido uma forma. À frente dele havia um grupo de dez guerreiros a cavalo — mas os guerreiros e os cavalos eram inteiramente feitos de moscas. Imaginou o que aconteceria se os golpeasse com uma espada. Presumivelmente a lâmina passaria através do corpo. Mas e se eles o atacassem? Será que uma lança feita de moscas poderia cortar, ou iriam se separar de novo e picá-lo até a morte? Não quis saber.

O líder dos soldados-moscas levantou uma das mãos, si­nalizando para os outros esperarem. Devia ter sentido que algo estava errado, que o inimigo se encontrava próximo. Sua ca­beça virou lentamente na direção deles, com os olhos pretos examinando a área. Os outros soldados ficaram onde esta­vam, tremeluzindo um pouco, mas mantendo a forma. Jamie sentiu seu cavalo tremer e se perguntou se ele iria relinchar. Isso faria com que todos fossem mortos. Finn estendeu a mão, acariciando o animal, instando-o a ficar calmo. O líder parecia olhar diretamente para eles. Jamie nem respirava. Seus ner­vos gritavam para ele se levantar e sair correndo, mas não po­deria se mexer, nem se tentasse. Scar estava deitada de barriga no chão, a mão sobre a espada. Não parecia com medo. Pa­recia com raiva.

Que lugar era esse? Primeiro o homem-escorpião, agora isso. Em que tipo de pesadelo havia pousado?

E então foi como se uma decisão tivesse sido tomada. O líder instigou o cavalo — um cavalo que na verdade fazia parte dele, parte do enxame de onde ele viera — e eles saltaram à frente. O resto da tropa o seguiu. Jamie os viu cavalgar uns dez passos antes de — no mesmo instante — todos se sepa­rarem de novo. Outra vez não passavam de moscas, uma nuvem gigantesca pairando acima do chão. Então foram var­ridos como se pelo vento, e um instante depois haviam sumido.

— Beba! — Finn assentiu para Jamie, que ainda estava segurando a garrafa d’água. Estava apertando-a com tanta força que ficou surpreso por ela não ter estourado. Pensou um momento, depois balançou a cabeça e devolveu-a. Ainda estava com sede mas duvidava de sua capacidade de engolir qualquer coisa. Todo o corpo estava retesado. O coração mar­telava e ele precisava se concentrar para não tremer diante dos outros. Parte dele sabia que Árvore Nova não teria senti­do medo.

— O inimigo está se reunindo para a última luta — disse Finn. — O fim da guerra.

Scar assentiu.

— Será que vão atacar esta noite?

— Quem pode saber? — Finn pensou um momento en­quanto prendia a garrafa d’água de volta no cinto. — Eles acreditam que já venceram. Estarão ocupados demais se feli­citando. Vão esperar a luz da manhã.

— Se não corrermos já será manhã antes mesmo de che­garmos em casa. — Scar puxou seu cavalo para ficar de pé. — Vamos indo.

Os outros permitiram que seus cavalos se levantassem, depois montaram e partiram de novo, indo — para consterna­ção de Jamie — na direção que os soldados voadores haviam acabado de tomar. Mas quando chegaram à crista do morro não havia sinal deles. Se ainda estavam voando pela vasta paisagem, não restava muita luz para vê-los.

Mas agora havia construções. Olhando para um vale, Jamie viu que tinham chegado a uma pequena cidade hexagonal, rodeada por muralhas com torres de formas estranhas nos cantos. Era impossível dizer quando a cidade fora construída. A maioria dos prédios era baixa e não havia ruas modernas, nem evidência de tráfego ou vida urbana. Tudo parecia ter sido construído ao redor de um sistema entrecruzado de ca­nais com estreitas pontes para pedestres indo de um lado para o outro.

A Cidade dos Canais. Mas não era uma cidade e a água fora drenada dos canais. Enquanto desciam a colina, Jamie percebeu que o lugar fora quase completamente destruído. As muralhas ao redor estavam rompidas. Em alguns lugares haviam desmoronado. Existiam marcas de fogo sugerindo um incêndio recente. Talvez essa fosse a fonte da fumaça que havia se espalhado pelo céu, engolindo o sol.

Passaram pelos restos de uma entrada com a forma de uma fechadura gigante, e imediatamente Jamie viu a escala da devastação. Portas quebradas, paredes despedaçadas, gra­ma queimada e árvores reduzidas a tocos. Os canais estavam cheios de entulho. Tentou visualizar como a cidade poderia ter sido, mas simplesmente não conseguia. A maior parte das construções era feita de tijolos vermelhos com telhados de cerâmica. Os caminhos eram multicoloridos, com acabamen­tos em mosaico. Mas a verdade simples era que nenhuma cidade assim jamais existira nos Estados Unidos, e mesmo na escola, olhando livros ilustrados, ele nunca vira nada igual. Pela primeira vez Jamie começou a se perguntar se estava ao menos no planeta Terra.

Seguiram por uma rua entre os restos de dois pagodes iguais e entraram numa ampla área vazia. À frente ficava um templo circular — certamente não poderia ser outra coisa — com colunas brancas a toda volta, sustentando um teto em cúpula. Uma série de arcos ficava à esquerda e à direita, na praça, fazendo parte de um sistema de aquedutos. Estes já haviam trazido água à cidade, mas agora não restava nenhu­ma água para trazer. Havia duas fontes, uma de cada lado do templo, e uma série de canteiros de flores que deviam ter tornado este um lugar agradável para passear. Mas tudo fora destruído. Algumas colunas tinham sido arrebentadas, havia grandes buracos no teto do templo, as fontes estavam secas e havia crateras em toda parte, sugerindo que todo o lugar fora bombardeado do alto.

Scar levantou a mão, puxando as rédeas do cavalo. Os outros quatro pararam. Ela se virou para Jamie.

— Não faça nada — alertou. — Não diga nada. Só faça o seu papel. É importante.

Jamie quis falar rispidamente com ela. Estava exausto de­pois da longa viagem. Sua garganta estava ressecada e ele fedia ao seu próprio suor e ao sangue do homem-escorpião. Estava farto de ser empurrado de um lado para o outro. Mas assentiu, obrigando-se a permanecer controlado.

Pessoas tinham começado a aparecer, indo lentamente na direção deles. A princípio eram apenas umas poucas — qua­tro ou cinco aqui, mais algumas do lado oposto. Mas enquanto Jamie olhava, mais e mais avançavam, chegando de todos os lados. Todas se vestiam do mesmo modo, com casacos lon­gos, chapéus e cintos de couro, mas algumas mulheres usa­vam vestidos bordados, de mangas largas, que iam até os pés. Muitas pessoas carregavam espadas curvas e escudos redon­dos, com pontas. Eram de todas as idades, algumas até com 11 ou 12 anos. Logo havia mais de cem, enchendo a praça, mas ninguém fazia qualquer som. Nenhuma parecia ao menos li­geiramente receptiva. Os movimentos eram pesados, os rostos cansados. Ocorreu a Jamie que elas não precisavam se preparar para a batalha. Aquelas pessoas já estavam derrotadas.

Mas, à medida que chegavam mais perto, uma mudança extraordinária aconteceu. Era como se uma vara mágica ti­vesse sido agitada. Tinham visto algo e não podiam acreditar. Um sentimento de empolgação ondulou através delas. Jamie viu nos rostos. A cada passo elas pareciam encontrar novas forças. Estavam olhando algo com um sentimento de choque e espanto, e agora sorriam. Algumas levantavam as mãos em saudação. E então Jamie percebeu o que elas haviam visto.

Ele.

Scar se empertigou.

— Agora acreditam em mim? — gritou. — Nós dissemos a verdade. Ele está aqui. Nós o encontramos.

— Árvore Nova! — gritou alguém.

E nesse momento toda a multidão começou a gritar co­memorando. Espadas foram erguidas e estandartes aparece­ram como se viessem de lugar nenhum, com as estrelas azuis, de cinco pontas, balançando sobre as cabeças. Todas as pes­soas corriam, querendo ser as primeiras a alcançá-lo, as crianças na frente, os adultos olhando-o com uma nova es­perança viva nos olhos. Nesse momento Jamie sentiu-se gra­to a Scar. Não fazia idéia do que estava acontecendo, mas ela o havia alertado quanto ao que fazer. Representar o papel. As explicações viriam mais tarde. Levantou uma das mãos, cumprimentando a multidão, e os gritos ficaram mais altos, ricocheteando nas paredes que restavam, de modo que qua­se parecia que a cidade tivesse revivido, como se parte de sua antiga alegria houvesse retornado às ruas.

Scar instigou o cavalo e eles avançaram lentamente, a mul­tidão se dividindo — mas apenas com relutância — para deixá-los passar. Apearam diante do templo circular e entraram. A multidão comemorando seguiu-os até as colunas, mas parou ali como se esta fosse uma linha que não tinham permissão de atravessar. Jamie e seus quatro companheiros estavam sozinhos de novo, mas ele ainda podia ouvir as pessoas na praça, gritando um nome — seu nome — Árvore Nova, as vozes subindo para o céu que escurecia rapidamente.

— Tudo que sempre conheci foi a guerra — disse Scar.

Tinham acendido uma fogueira. Havia bastante comida que podia ser encontrada na cidade em ruínas, e Finn, Erin e Corian a haviam empilhado de modo que quase parecia uma pira fu­nerária. Jamie sentiu medo de que aquilo atraísse o inimigo. Talvez os soldados-moscas retornassem. Mas Scar garantiu que estavam em segurança. As muralhas externas escondiam a maior parte da luz e o céu estava suficientemente escuro para ocultar a fumaça que subia por um buraco no teto.

Não havia nada dentro do templo. Estavam num espaço redondo — que fez com que Jamie pensasse num circo — protegido por paredes de tijolos que subiam uns 15 metros ao redor. Antigamente houvera afrescos: estranhos símbolos e imagens de animais e pássaros. Mas tinham se desgastado. Ou talvez sido apagados de propósito.

Jamie finalmente pudera se lavar — usando água tirada de um poço. Ninguém havia lhe oferecido privacidade e ele ficou relutante em se despir, especialmente com Scar por per­to. Felizmente ela havia desaparecido por um tempo e nenhum dos homens sequer olhou em sua direção. A água estava la­macenta antes mesmo de ele entrar, mas mesmo assim Jamie sentiu-se grato, lavando a sujeira e o sangue que o cobria. Não havia toalhas. Ele vestiu as calças e se secou diante das chamas.

Depois disso foi alimentado. Corian havia cozido algum tipo de carne no fogo. O gosto era como de frango, porém mais dura, difícil de mastigar. Jamie não fazia idéia do que era e decidiu que seria melhor não perguntar. Fora servida com feijão e pedaços de queijo sólido. Ele recebeu uma tigela de líquido fumegante para beber. O gosto era amargo e doce ao mesmo tempo, e Scar — que havia retornado a tempo para a refeição — lhe disse que era feita de bolotas de carvalho e mel. Jamie ficou satisfeito. Apenas segurar algo quente nas mãos já o fazia sentir-se melhor.

E agora conversavam. Os dois irmãos estavam sentados, encostados numa parede, com as pernas esticadas. Finn ha­via se agachado num pedaço de coluna, roendo um osso, os dedos cobertos de gordura. Scar e Jamie estavam sentados de pernas cruzadas diante da fogueira. Enquanto Scar falava, Jamie pôde ver o reflexo do fogo dançando nos olhos dela.

— Muitas vezes Finn me contou que o mundo nem sem­pre foi assim — disse ela. — Há muito tempo não havia metamorfos, esquadrões da morte, suseranos, cavaleiros de fogo e todo o resto deles. Mas isso é o que eu sempre conhe­ci, portanto não me peça uma aula de história. Não conheci minha mãe, nem meu pai. Quando nasci, a maioria das pes­soas não conhecia os pais. Só lembro de ser levada de um lado para o outro por pessoas diferentes. Alguém me pegava e, justo quando eu estava começando a conhecer as pessoas e achar que eram boas, elas eram mortas e outras ocupavam o lugar. E tudo era sempre arruinado, como esta cidade. Acho que nunca passei mais do que alguns dias numa casa antes de ela ser despedaçada e queimada. — A garota ergueu a tigela num fingimento de brinde. — Bem-vindo ao fim do mundo, Jamie. Porque é onde você está.

— Você me chamou de Jamie. — Jamie não sabia direito como começar. Aquilo tudo era demais para ser apreendido. — Mas antes disse que eu era Árvore Nova. — Ele olhou na direção da praça principal. — Eles me chamaram de Árvore Nova.

— Não há sentido em chamá-lo de Árvore Nova. Porque você não é ele, mesmo se parecendo exatamente com ele, e com todas aquelas pessoas pensando que você é ele... — Ela fez um gesto na direção da praça. — Imagino que você este­ja confuso.

— Pode ter certeza que sim.

— Bom, eu também. Só espero que Matt consiga expli­car, mas às vezes ele pode ser bem irritante e nunca dá uma resposta direta a nada.

— Você falou de Matt antes. Quem é ele?

— Matt é quem comanda. É o nosso líder. O primeiro dos Cinco. Ele é que deve entender o que está acontecendo.

Os Cinco. Quando estava na prisão, Joe Feather havia dito que ele era um dos Cinco. Será que Joe sabia alguma coisa sobre este mundo e os acontecimentos daqui?

— Fale de Matt— disse Jamie. Ele visualizou alguém como Finn; grisalho e com cicatrizes de batalha. — Ele é velho?

Scar gargalhou.

— Não. Tem a nossa idade. Você realmente não sabe quem nós somos? Você, Pedra-de-Fogo, eu, Inti e Matt?

— Pedra-de-Fogo é meu gêmeo.

— É.

— Então ele é Scott. Eu o estava procurando quando le­vei um tiro. Foi assim que vim parar aqui. — Ainda não fazia sentido, mesmo enquanto Jamie tentava explicar. Então se lem­brou. — Eu vi você antes. Mas não era real. Foi num sonho.

Pensou que Scar iria rir dele, mas ela assentiu, perfeita­mente séria.

— As pessoas costumavam pensar que os sonhos não significam nada — disse ela. — Que só eram coisas que acon­teciam quando a gente ia dormir. Mas nós os usamos o tem­po todo. Há um mundo de sonho que visitamos algumas vezes e foi assim que descobrimos quem éramos. Foi assim que nos encontramos, para começar.

— Você deveria começar pelo início — gritou Finn. Ele havia terminado de comer. Jogou o osso no fogo. As chamas o devoraram como se estivessem tão famintas quanto ele es­tivera. — Você é uma péssima contadora de histórias.

— Para mim não houve começo — retrucou Scar. — Ou, se houve, não lembro. Matt é o único que sabe toda a verda­de e nunca nos diz nada.

— Comece com os Cinco! — insistiu Finn.

— Certo. Certo. — Scar suspirou. — Mas não me inter­rompa, Finn. Você só torna a coisa mais difícil.

— Adultos subordinados a crianças! — Finn balançou a cabeça em desespero. — É isso que eu realmente chamo de fim do mundo. — Ficou em silêncio.

Scar se virou para Jamie.

— Eu só estou viva há uns 15 anos — disse ela — E esta guerra tem mais de cinqüenta. Por isso digo que, para mim, nunca houve um início. Eu nem estava neste país. Estava lon­ge, do outro lado do mundo, e quando tinha uns 9 anos o povoado em que eu morava foi queimado. Todos os velhos morreram. As crianças foram mandadas para as minas.

— Espere um minuto. — Jamie já estava perdido. — Este mundo onde vocês vivem... é o meu mundo? Que ano é este? Nem sei onde estou!

— E eu não sei de onde você veio, de modo que não posso ajudar. Você só terá de ouvir minha história. Se ficar interrom­pendo, não vamos chegar a lugar nenhum.

Jamie suspirou.

— Continue.

— Nós escavávamos para encontrar pedras preciosas. Éramos milhares... trabalhando no fundo da terra. Eles usavam as crianças para se enfiar nos túneis menores. Era aterrorizante. Havia desmoronamentos. A gente vivia se perguntando quan­do seria enterrada viva.

— Quem obrigava vocês a fazer isso? Para quem vocês estavam trabalhando?

— Estávamos trabalhando para a classe dominante. Os suseranos e os mentores. E, por trás deles, claro, os Antigos.

— Quem são eles? — Jamie se lembrou do velho lhe fa­lando antes de se transformar num escorpião. Ele havia per­guntado se Jamie servia aos Antigos.

— São o inimigo — respondeu Scar simplesmente. — Matt diz que eles são o primeiro e o maior dos males, que nasceram no dia em que o mundo começou. Eles querem nos destruir. É o único motivo para existirem. Mas querem fazer isso lentamente, um passo de cada vez. Veja bem, eles se ali­mentam do sofrimento humano. É o que os nutre. No fim, vão matar todos nós, mas vão fazer com que isso demore o máximo possível.

— De onde eles vieram?

— Não sei — respondeu Scar. — Você terá de perguntar ao Matt.

Erin havia caído no sono, encostado no irmão. Seu cabelo louro e comprido tinha tombado no rosto e a mão de metal estava estendida à frente do corpo, com os dedos enrolados apontando para cima. Corian permaneceu imóvel, com cui­dado para não acordá-lo, ouvindo Scar contar a história.

— Acho que deve ter sido há cerca de um ano — conti­nuou ela. — Não sei porque o tempo não significa muita coi­sa ultimamente. Quando a gente é escrava, sendo espancada e obrigada a trabalhar no escuro, todo dia é a mesma coisa. De qualquer modo, há cerca de um ano descobri que eu era diferente. Disseram-me que eu era um dos Cinco.

— Matt lhe disse? Scarlett assentiu.

— É. Bom, ele veio até mim num sonho. Ou talvez eu tenha ido até ele. É muito difícil explicar. Mas você disse que também teve sonhos. Deve saber do que estou falando.

— Acho que sim. — Jamie pensou. — Há um mar com água preta. E as estrelas estão brilhando, mas não é exata­mente noite.

— Há uma ilha.

— É. — Jamie estava empolgado. Ela sabia do que ele estava falando. — E dois garotos num barco de palha.

— Matt e Inti. — Ela o olhou com curiosidade. — Você esteve na biblioteca?

A pergunta era tão inesperada que Jamie ficou perplexo.

— Que biblioteca?

— No mundo de sonho.

— Não. Nunca vi nenhuma construção.

— Esquece. — Scar havia perdido o fio do pensamento. Olhou para a fogueira como se pudesse encontrá-lo ali, de­pois continuou: — De qualquer modo, foi como conheci Matt. Ele veio até mim num sonho e me explicou tudo. Havia cinco de nós em diferentes países. Ele estava aqui. Eu estava onde estava. Você e Pedra-de-Fogo estavam do outro lado do mun­do, e Inti... Não sei de onde ele veio, nem ele. Mas o ponto é que todos fomos escolhidos. Todos tínhamos poderes e, se pudéssemos encontrar uns aos outros e ficar juntos, teríamos força para derrotar os Antigos e dar um recomeço ao mundo.

Não havia ocorrido a Jamie que ele ainda podia ter seu po­der, que o poder teria retornado depois do choque em Silent Creek. Será que poderia usá-lo agora? Será que poderia alcan­çar Scott? Decidiu não tentar. Neste mundo Scott era alguém chamado Pedra-de-Fogo. Não queria alcançá-lo por enquan­to. Tinha medo do que poderia encontrar.

— Já havia pessoas lutando — continuou Scar. — Pessoas como Finn, Erin, Corian e todos os outros. Havia grupos de resistência. Mas eles precisavam de nós. É engraçado, não é? Mas é como Finn disse. Eram adultos, mas precisavam de cin­co crianças para sobreviver. E nós precisávamos uns dos ou­tros. Por isso partimos para nos encontrar. E foi assim que chegamos aqui.

— Você não está fazendo nenhum sentido! — provocou Finn.

— Estou fazendo o melhor que posso! — reagiu Scar. Ela se virou para Jamie.

— Matt disse que eu tinha de escapar da mina, por isso fugi. Consegui por pouco. Quase fui apanhada. Mas é uma história longa e não vou contar hoje. Você só precisa saber que eu saí de lá. E ao mesmo tempo os outros estavam fazendo a mesma coisa. Pedra-de-Fogo e Árvore Nova num reino. Inti em outro. Todos estávamos separados por léguas uns dos outros. Nunca havíamos nos encontrado. Nem sabíamos que os ou­tros existiam. Mas usamos os sonhos para falar um com o outro e Matt disse aonde deveríamos ir, e eventualmente qua­tro de nós nos encontramos perto de um rio, não longe da­qui, do outro lado dos morros. Matt está esperando por nós lá, agora. Pedra-de-Fogo está com ele.

— Onde está o garoto que você chama de Inti?

— Ainda não chegou. Ele tinha de viajar a maior distân­cia. Mas deve chegar ao nascer do dia.

— E então...? — Jamie fez a pergunta mas já sabia a res­posta. Houve uma sensação de enjôo em seu estômago.

— Haverá uma batalha. Isso foi previsto há séculos. Se nós cinco conseguirmos nos encontrar, vamos vencer. Se não pudermos, o mundo acaba.

Ela estendeu a mão e Finn lhe jogou a garrafa d’água. Naquele simples movimento Jamie viu como os dois se co­nheciam bem. Ela não havia pedido. Ele sabia o que ela que­ria. Ela não havia olhado ao redor. No entanto sabia que ele estaria com a garrafa a postos para ela.

— Como você me encontrou? — perguntou Jamie. — Aquela fortaleza, ou sei lá o que era. Você chegou... e foi como se estivesse me esperando.

— Nós não estávamos esperando você — respondeu Scar.

— Então por que foram até lá?

Ela tomou um gole comprido, depois usou as costas da mão para enxugar a boca. Quando continuou a falar, sua voz saiu baixa.

— Por causa do que aconteceu há dois dias.

— Conte!

— Foi o Matt. — Ela fez uma pausa. — Já expliquei. Nós cinco tínhamos de nos encontrar, para ganhar. E estávamos perto demais... mas houve um problema. Os Antigos sabiam que Inti estava vindo e posicionaram todo o seu exército en­tre ele e nós. Eles o estavam procurando por toda parte. Você viu os soldados-moscas hoje. Bom, havia mais centenas como eles, além de metamorfos e cavaleiros de fogo. Inti estava en­curralado. Precisou se esconder. Não ousou chegar mais perto.

— Como Matt sabia?

— Matt sempre sabe! E há duas noites ele convocou uma reunião entre nós quatro. Disse que só havia um modo de ajudar Inti: mandar uma pequena força até um local chamado Colina Scathack. Havia uma fortaleza lá, e ele disse que iríamos encontrar algo que nos ajudaria na luta contra os Antigos. Claro, Finn se ofereceu para ir. Não há um único soldado que não se ofereça para fazer qualquer coisa que Matt queira. Mas ele disse que tinha de ser um de nós. Um dos Cinco.

Scar parou pela segunda vez e, quando começou a falar de novo, Jamie ficou pasmo ao ver que havia lágrimas nos olhos dela.

— Nós acreditamos — disse a garota. — Por que não acre­ditaríamos? Ele sempre estava certo, antes. Mas mesmo assim parecia loucura nos separar de novo pois finalmente estáva­mos quatro de nós ali. Mas ele insistiu. Não queria que eu fosse. Tinha de ser Árvore Nova ou Pedra-de-Fogo. Ele os levou até sua tenda e falou com eles, e uma hora depois Árvore Nova saiu, montou no cavalo e partiu. Cem homens foram com ele. Ele não me disse nada, mas vi seu rosto e nunca vou esquecer a expressão. Era como se soubesse o que ia acontecer. E ne­nhum soldado fez nenhuma pergunta. Ele ordenou e eles obedeceram.

Sua voz falhou.

— Você sabe o que aconteceu em seguida — disse ela. — A colina Scathack foi o lugar onde o encontramos. Os An­tigos deviam saber da expedição porque mandaram uma força gigantesca, perseguindo. Você viu o resultado. No mo­mento em que Árvore Nova chegou, eles o cercaram e ata­caram. A batalha durou quase um dia inteiro. Árvore Nova foi incrivelmente corajoso. Mas estava em número muito inferior e não tinha aonde ir. Seus soldados morreram ao redor... todos menos dois. Os Antigos os deixaram viver, não por misericórdia, mas para voltar e contar ao resto de nós. Árvore Nova foi deixado quase para o final. Estava muito ferido, mas continuou lutando e na última vez em que o vi­ram ele estava liderando uma carga, tentando escapar, para voltar até nós.

“Eles o derrubaram. Levou três flechas no peito mas con­tinuou lutando. Mas então os soldados inimigos chegaram e o despedaçaram, rindo enquanto faziam isso. Mesmo quan­do ele estava morto, não o deixaram em paz. Alguns corta­ram dedos como lembranças. Ele tinha cabelo comprido, e eles cortaram os cabelos também. Depois fizeram uma foguei­ra, queimaram o resto e mandaram apenas dois homens de volta, para contar o que aconteceu.

— Então tudo estava acabado. — Jamie sussurrou as palavras.

— Foi o que pensamos. Inti continuava cercado, mas mes­mo que conseguisse nos encontrar, isso não importaria. Ja­mais seríamos cinco. Era tarde demais.

— Mas o que havia na colina Scathack? O que era tão importante, para começar?

— Não havia nada. — A voz de Scar era fria. — Os dois homens nos disseram isso. Matt estivera errado desde o iní­cio. A fortaleza estava vazia e abandonada. Árvore Nova ha­via morrido por nada.

Scar ficou em silêncio. Já estava farta.

— Termine a história — murmurou Finn. Em seguida es­tendeu a mão e tocou-a de leve no ombro. — O garoto pre­cisa saber. A próxima parte também importa.

Scar assentiu lentamente.

— Eu nunca mais queria ver Matt. Pensei que ele havia nos traído. Pensei que ele havia nos trazido até aqui em tro­ca de nada. Para ser honesta, eu o odiei. Odiei quase tanto quanto odiava os Antigos. Mas então, ontem à noite, ele veio me procurar. E o que me disse... senti vontade de gritar com ele. Mas não se grita com o Matt. Quando conhecê-lo, vai entender.

“Ele me disse para levar parte do meu exército até a cida­de arruinada onde estamos agora, mas que depois disso eu deveria ir sozinha até a colina Scathack, só com Finn, Erin e Corian. Disse que ainda era importante trazer de volta o que eu iria encontrar lá e que, mesmo sabendo que eu estava com raiva por causa do acontecido com Árvore Nova, eu entende­ria por que ele havia morrido. — Scar franziu a testa. — A princípio não acreditei. Sentia ódio por ele e não queria acre­ditar. Mas Finn me convenceu e por isso nós partimos. Deixa­mos todo mundo aqui e fomos sozinhos. E quando chegamos à colina Scathack, encontramos você. Por isso chorei quando vi você. Achei que você era Árvore Nova.

— Talvez seja — resmungou Finn.

— Você é? — Scar se virou para Jamie. Estava quase im­plorando com ele. — Porque precisamos que seja. Amanhã lutaremos com os Antigos pela última vez. Eles estão espe­rando por nós. Precisamos que você seja um de nós.

Jamie tentou juntar os pensamentos.

— Eu sou Jamie — disse. De repente estava cansado. — Sinto muito. Eu gostaria de ser a pessoa que vocês querem que eu seja, mas acho que não sou.

— Então está acabado — respondeu Scar. — Árvore Nova está morto e os Antigos venceram.

Ela se levantou e foi para a escuridão.

 

Jamie acordou lentamente na manhã seguinte e, antes mes­mo de abrir os olhos, mandou seus pensamentos à procura do irmão. Era instintivo, algo que fazia automaticamente. Sa­bia que não haveria resposta.

Scott. Onde você está...?

Mas desta vez foi diferente.

Aqui!

A palavra única voltou, muito fraca, de algum lugar dis­tante. Jamie sentou-se empertigado, totalmente desperto num instante. Foi então que viu onde estava. Deitado no piso do templo, vestindo as roupas que usara na véspera e enrolado no mesmo cobertor que havia servido como sela. Um lado de seu corpo estava entorpecido e sentia cãibra no pescoço. Na verdade a maioria dos ossos doía; ficou surpreso ao ver que tinha conseguido dormir. Gemeu baixinho e se apoiou num cotovelo. Erin estava do outro lado do templo, acendendo a fogueira, agitando as brasas com sua mão de metal.

Teria sido Scott quem havia respondido? Jamie tentou de novo, visualizando o irmão.

Scott, você está aí...?

Mas desta vez houve silêncio e Jamie se perguntou se não teria simplesmente imaginado a voz do irmão enquanto ain­da estava meio adormecido. Scott não estava ali. Para aque­las pessoas, Scott nem existia. Jamie olhou em volta. Ninguém havia notado que ele acordara. Erin colocava um pote de água sobre as chamas. Corian estava sentado perto, afiando a es­pada entre duas pedras. Não havia sinal de Scar ou Finn.

Então o que havia acontecido? Como tinha chegado ali? Ainda deitado no chão duro, Jamie repassou tudo, tentando entender. Só sabia com certeza que tinha chegado no fim de uma longa guerra entre a humanidade e criaturas que se cha­mavam de Antigos. E as esperanças de toda a humanidade repousavam em cinco adolescentes. Matt era o líder. E havia Scar e um garoto chamado Inti, que estava perto, mas ainda não havia chegado. E finalmente dois irmãos... gêmeos. Pedra-de-Fogo e Árvore Nova.

Essa era a parte mais difícil. Para todo mundo, Jamie era Árvore Nova. E isso significava que deveria lutar na batalha que começaria apenas dali a algumas horas. A idéia o fazia tremer. Não sabia nada sobre espadas ou flechas. E agora ali estava, por conta própria no meio de uma guerra, e comple­tamente perdido.

E no entanto...

Isso não era totalmente verdade. No dia anterior havia ti­rado uma espada de um soldado morto e lutado corpo-a-corpo com uma criatura que tinha o dobro do seu tamanho. Soubera exatamente o que fazer — e tinha vencido. Certo, Scar havia aparecido a tempo para acabar com o homem­-escorpião, mas só depois de Jamie ter cortado sua cauda e acertado praticamente no coração dele. E não era só isso. Mesmo que jamais tivesse montado a cavalo na vida, tinha viajado muitos quilômetros, a passo, trote e até galopando. E neste momento nem estava rígido. Era como se seu corpo estivesse acostumado a passar horas na sela. O que isso significava?

Ele não era Árvore Nova. Era Jamie Tyler. Mas Árvore Nova parecia ser parte dele. Os dois tinham a mesma idade. Pare­ciam iguais e tinham as mesmas habilidades, mesmo que ti­vessem nascido separados por milhares de quilômetros e talvez por milhares de anos.

Houve um movimento na entrada do templo e Finn apa­receu, trazendo uma garrafa d’água. Aproximou-se e en­tregou-a a Jamie.

— Você está acordado — disse Finn. — Teve algum sonho?

— Estava cansado demais para sonhar. — Jamie sentou-se, pegou a garrafa d’água e bebeu. — De onde vem a água, se os rios estão envenenados?

— Temos poços, mas eles têm de ser fundos.

Jamie percebeu que Finn o estava examinando. A seu modo, Finn era tão sofrido quanto a cidade onde haviam passado a noite. O cabelo ficara grisalho cedo demais. A cicatriz no malar fora deixada por um ferimento fundo. Os olhos, atentos e de um cinza suave, tinham visto dor demais.

Jamie devolveu a garrafa.

— Obrigado.

— Árvore Nova.

— Não sou ele. — Jamie balançou a cabeça. — Sei que você quer que eu seja. Sei que ele era seu amigo. Mas não sou.

— Talvez não. Mas hoje terá de ser.

— Então fale sobre ele. E fale sobre Scar. Como vocês dois se conheceram?

Finn sentou-se ao lado de Jamie. Obviamente havia algum tipo de atividade do lado de fora. Jamie podia ouvir o som de cascos, relinchos ocasionais. O exército estava se reunindo na praça principal, do lado de fora do templo. Preparando-se para a derradeira marcha de guerra. Mas por enquanto Finn pa­receu contente em deixar que os guerreiros se arrumassem sozinhos.

— Conheci Scar há quatro estações — começou ele. — Antes da chegada da neve. Tinha viajado para bem longe e estava descansando com as costas apoiadas num muro, ima­ginando o que fazer em seguida. Havia uma porta numa pa­rede, que se abriu, e ela apareceu... assim. De certa forma ela teve sorte. Se minha espada estivesse na mão eu poderia tê-la matado antes de perceber quem ela era, mas tinha sido descuidado e deixado a arma com o cavalo. Ela me disse como se chamava, mas não perguntei de onde tinha vindo, mesmo que — e isso é que era estranho — a porta na parede não desse em lugar nenhum. Era só uma parede arruinada. Ela sa­bia aonde ia. Era só isso que importava. E decidi ir com ela.

“Viajamos juntos durante um tempo e eu cuidei dela. Ela era diferente de como é hoje. Era mais amedrontada, mas seria melhor não lhe contar que eu falei isso. Disse que esta­va procurando alguém chamado Matt, um garoto que tinha visto nos sonhos. Falei que ela era louca. Mas então nós o encontramos, ou ele nos encontrou, e de repente vi que era tudo verdade.”

— E Árvore Nova?

— Nisso não posso ajudar. Está além da minha com­preensão. Você se parece com ele. Fala como ele. E se eu não tivesse certeza de que ele foi morto e teve o corpo queimado, diria que você era ele.

— Em que ano estamos? Finn deu de ombros.

— É o ano depois do ano passado. Ouvi dizer que já hou­ve números, mas isso foi há muito tempo, e todos foram esquecidos.

— Os Antigos...

— Isso mesmo. Eles tornaram a vida miserável e doloro­sa, mas pelo menos a tornaram curta. — Finn pensou por um momento, depois se levantou. — Venha comigo. Tenho uma coisa para mostrar.

Jamie rolou para fora do cobertor e acompanhou Finn até a parede mais distante, onde existia uma passagem que ele não havia notado antes. Dava numa pequena sala circular com teto em abóbada e pintado de azul com estrelas douradas. As paredes já haviam sido pintadas, mas não restava nada, qualquer imagem fora raspada completamente.

Scar estava ali, ajoelhada diante de uma laje de pedra que poderia ter sido um altar, aninhando sobre as pernas um pa­cote embrulhado em pano. Ao escutar Finn, levantou-se e gi­rou. Olhou-o de modo quase acusador.

— O que está fazendo aqui, Finn?

— E bom-dia para você, Scar — respondeu Finn.

— Eu estava dormindo.

— Não estava, não. — Finn olhou o embrulho que ela segurava. — Eu sabia que você estaria aqui. Me dê isso.

— Por quê?

— Quero provar uma coisa.

Scar hesitou, depois entregou o embrulho. Com cuidado, Finn desembrulhou o pano e pegou um escudo redondo, feito de metal escuro e velho, com um intricado padrão de folhas desenhado no perímetro. Não tinha ponta. Em vez disso ha­via um desenho bem no meio, e Jamie ofegou, surpreso. Re­conheceu-o instantaneamente. Uma espiral com uma linha dividindo-a em duas metades. Era exatamente o mesmo de­senho com o qual havia nascido.

Tinha certeza de que era isso que Finn quisera lhe mos­trar. Mas Finn pôs o escudo de lado.

Em vez disso pegou uma espada e entregou a Jamie. A espada também tinha um símbolo — uma estrela de cinco pontas no meio da cruzeta, logo acima da lâmina. Jamie viu que ela fora feita de alguma pedra azul — lápis-lazúli — en­gastada em prata. A lâmina era surpreendentemente fina e pesava quase nada. Ele não pensaria que ela cortaria qual­quer coisa, mas ao mesmo tempo podia ver que fora afiada com precisão espantosa, como um instrumento cirúrgico. Girou-a algumas vezes e sentiu que o próprio ar era cortado ao meio.

— Era dele — disse Jamie.

— É. — O olhar de Finn sustentou o seu. — Agora diga o que está escrito na lâmina. Não leia as palavras. Apenas diga.

Parada perto do altar, Scar se enrijeceu. Mas não disse nada.

— Geada — murmurou Jamie.

— Está vendo? — Finn falava com Scar. — Ele sabia. Jamie baixou os olhos. Havia uma única palavra gravada na lâmina. As letras eram estranhas, como hebraico ou gre­go, e não deveriam significar nada para ele. Mas ele as enten­deu imediatamente. GEADA.

— É o nome da espada — disse Finn. — Árvore Nova chamou-a assim porque, mesmo sendo fria, traz as primeiras luzes do dia. Havia esperança. E ele levou-a até a colina Scathack. Nós a encontramos instantes antes de ver você. Ele deve tê-la perdido na luta. Mas agora está vendo? — Ele olhou para Scar. — Vocês dois não vêem? Está acontecendo algu­ma coisa, algum tipo de magia, e talvez nenhum de nós en­tenda. Mas este garoto é Árvore Nova, não há dúvida, mesmo que ele tenha esquecido. — Finn desviou o olhar, subitamen­te carrancudo de novo. — Só esperemos que ele não tenha esquecido como lutar.

Alguns instantes depois os cinco saíram na praça principal: Scar e Jamie primeiro, depois Erin e Corian, com Finn atrás. Todos estavam armados para a batalha, com espadas, ada­gas e escudos. Jamie olhou para Erin e viu-o tocar a palma da mão artificial. Imediatamente cinco lâminas brotaram dos dedos. Ao mesmo tempo a mão esquerda se enrolou em vol­ta de uma adaga curva que ele havia enfiado num cinto.

O exército estava reunido: cem homens, mulheres e crian­ças, esperando em silêncio pela ordem que iria levá-los à vitória ou à morte. Scar avançou. Também carregava um escudo com o mesmo padrão de folhas do de Árvore Nova, mas o seu ti­nha a imagem de um lagarto — com olhos repuxados e cauda em ponta — enrolado no centro. Três passos a separavam da multidão do lado de fora do templo. Ela foi até a beira e le­vantou a espada. Jamie se perguntou se deveria fazer o mes­mo, mas sentiu-se muito sem jeito e tímido. Percebeu que os olhos de todos estavam fixos nela. Mas também o observavam.

— Este é o dia que estávamos esperando — gritou ela e, mesmo sendo jovem e pequena, sua voz ecoava facilmente na praça. — Não posso dizer o que aconteceu com o mundo para deixá-lo como está. Não sei de onde os Antigos vieram nem como puderam assumir o controle. Só posso dizer que isso acabou. Depois de hoje o mundo pertencerá de novo a nós, e mesmo que alguns de nós devam morrer, valerá a pena. Matt e Pedra-de-Fogo estão esperando por nós. Inti virá do leste. Eu estou aqui e não estou sozinha. Árvore Nova está comigo. É! Árvore Nova não foi morto.

Os primeiros gritos de comemoração irromperam entre os soldados mais próximos da frente, mas Scar levantou a mão pedindo silêncio.

— Os Cinco estão se reunindo finalmente! — exclamou. — Os Antigos acharam que tinham nos derrotado, mas esta­vam errados. E agora vamos mostrar. Vamos mostrar a eles o poder dos Cinco.

— Cinco!

A palavra explodiu ao redor. Estandartes voaram, espadas foram erguidas e, de algum lugar, veio o trovão de tambores e uma grande fanfarra. Jamie levantou os olhos e viu os mú­sicos, três meninos pequenos, nenhum com mais de 10 anos, empoleirados num dos aquedutos. Suas trombetas brilhavam à luz do dia enquanto saudavam a multidão abaixo. O cavalo de Scar fora trazido e ela montou. O cavalo cinza fora trazido para Jamie, e ele fez o mesmo. Desta vez não precisou de aju­da. Um instante depois estavam cavalgando com Finn, Erin e Corian, guiando o exército animado por entre os dois pago­des e ao longo do caminho de mosaico que levava às mura­lhas da cidade. Havia pessoas cavalgando sozinhas, outras iam em duplas nos cavalos. Algumas corriam atrás. Como eram tantos, demoraram vários minutos para simplesmente passar pelo portão.

Enquanto saíam da cidade para a planície, Jamie se virou para Scar.

— Foi um tremendo discurso — disse.

— É preciso fazer um discurso antes das batalhas. — Scar baixou os olhos, culpada, depois levantou-os de novo. — Na verdade, se quiser saber, foi o Finn que escreveu para mim. Ele me fez decorar ontem à noite.

— Bom, acho que deu certo.

— Espero que sim.

Estavam rodeando a Cidade dos Canais, indo na direção oposta à colina Scathack. À frente a paisagem era plana e aberta, um tampo de mesa coberto de capim selvagem e al­gumas flores. Mas as flores eram estranhas, as cores não eram naturais, e o capim era afiado e parecia couro. Passaram sob os galhos de uma fruteira e Jamie estendeu a mão para pegar o que parecia um pêssego cor de malva, mas com uma pele dura e espinhenta. Scar o impediu.

— Não! — gritou ela. — É venenoso.

Continuaram pelos campos e pela primeira vez Jamie viu animais — ou os restos deles. Um rebanho de vacas havia mor­rido ali. Estavam caídas, inchadas e rígidas, as línguas para fora da boca, as órbitas dos olhos cheias de moscas pretas. Enquanto passava, Jamie captou o cheiro doce de carne podre e sentiu o estômago se revirar. Achou ótimo não terem lhe oferecido café-da-manhã.

À frente, a menos de um quilômetro e meio, o terreno se elevava, coberto por uma floresta. As árvores eram como pi­nheiros, com galhos tão retos que pareciam artificiais. Tinham agulhas verde-escuras como cacos de vidro quebrado. Agora Jamie podia ouvir alguma coisa, um som estranho e irritante. Era um martelar rítmico de metal contra metal. Bum, bum... bum. Bum, bum... bum. A cada vez a terceira batida era a mais alta. Era como se algum tipo de máquina enorme, ainda fora das vistas, estivesse do outro lado do morro.

Scar ia à frente dele, por isso Jamie instigou seu cavalo. Não precisou bater os calcanhares nem estalar as rédeas. De algum modo o cavalo parecia entendê-lo. Saltou adiante e alcançou-a. Chegaram às primeiras árvores e começaram a serpentear en­tre os troncos, subindo a colina íngreme em direção ao topo. Jamie sentiu um nervosismo crescente na boca do estômago. Apenas algumas semanas antes ele estivera no palco do teatro Plaza Reno para fazer um número de magia com jornais e car­tas de baralho. E aqui estava agora, cavalgando para a guerra.

Devia estar aterrorizado. Deveria estar esvaziado pelo hor­ror de tudo aquilo. Mas o estranho era que sentia apenas uma empolgação. Ainda estavam subindo a encosta, rodeados pelas árvores altas e hostis, e ele sabia que não existia volta. Era isso. O som de tambores continuava chamando-o. Bum, bum... bum. Bum, bum... bum. E ele estava sendo levado adiante, de livre vontade, com o trovão suave de cascos ao redor e o cheiro do suor dos cavalos nas narinas. Havia des­coberto o segredo da guerra, o momento em que os solda­dos jogam fora o medo e se tornam parte de uma máquina que é muito maior do que eles. Porque só então ficam prepa­rados para morrer.

Iam cada vez mais depressa. Quando chegaram ao último trecho do morro, as árvores ficaram mais esparsas e eles co­meçaram a galopar. Mas então Scar levantou a mão e eles diminuíram o passo até que pararam. Tinham chegado. Os guerreiros que haviam pegado carona na garupa dos cavalei­ros desceram e estavam preparando as armas. As carroças iam se esvaziando e Jamie viu crianças até mesmo de 11 e 12 anos flexionando seus arcos, os rostos numa concentração séria.

— Como está se sentindo? — perguntou Scar.

Jamie demorou um momento para perceber que ela fala­va com ele. Assentiu.

— Estou bem.

— Tudo vai acabar muito rapidamente — disse ela.

— Como você sabe?

— Matt tem um plano.

— Você sabe qual é? Scar sorriu.

— Ele me contou ontem à noite.

Para sua surpresa, Jamie ficou meio chateado. Matt devia ter falado com Scar em sonhos. Por que ele fora excluído? Mas agora não havia sentido em discutir.

— Você está com medo? — perguntou ele. Scar balançou a cabeça.

— Na verdade, não. O que de pior pode acontecer? Jamie podia pensar em todo tipo de coisas, mas decidiu não dar uma resposta.

Scar olhou para trás. O resto das forças havia finalmente se reunido e estava olhando para cima, esperando sua ordem. Finn estava inclinado à frente no cavalo, como se tentasse escutar alguma coisa. Parecia mais velho ainda do que de manhã, e Jamie viu que ele estava à beira da exaustão. Não somente can­sado depois de uma noite de sono ruim, mas de anos de luta.

— Finn está apavorado — murmurou Scar, certificando-se de que Finn não pudesse ouvir. — Está tentando não demons­trar, mas sempre fica. Ele tem medo por mim.

— Você significa muito para ele.

— Acho que é verdade. Sou a filha que ele nunca teve, mas ele me diz que tem quatro filhos. — Ela se virou para Jamie. — Fui dura com você, e sinto muito. Vou tentar ser mais gentil, se algum de nós sobreviver.

Jamie não sabia o que dizer, mas isso não importava por­que Scar não lhe deu chance. Ela sinalizou e imediatamente começaram a avançar, cobrindo os últimos metros até o topo do morro. Agora estavam muito silenciosos. Jamie só podia ouvir o som dos cascos dos cavalos no tapete de agulhas de pinheiro mortas, mas afora isso os animais não faziam nenhum som. O resto dos guerreiros, avançando na ponta dos pés com suas armas e escudos, mal parecia respirar. No topo, uma úl­tima linha de árvores oferecia abrigo. De novo pararam e fi­nalmente Jamie viu o que o esperava do outro lado. O campo de batalha.

Não se parecia com nada que eleja vira. Era mais terrível do que qualquer coisa que poderia ter imaginado.

Estava acima de uma faixa de capim muito escuro, quase preto, com cerca de quatrocentos metros de largura e fluía como um rio entre os morros de um lado e uma floresta den­sa do outro. Abaixo, à frente dele, o último grande exército da humanidade havia se reunido, 2 mil guerreiros, unidos sob a estrela azul de cinco pontas que ele próprio levava na espa­da. Ela estava nos estandartes e nos escudos. Voava sobre as tendas espalhadas morro abaixo, altas e triangulares, como as velas de um navio apanhadas na brisa. Se houvesse mais luz ela teria brilhado, mas o céu era cinza e ameaçador, e a sombra da morte iminente se estendia por toda a paisagem.

O exército avançava em três blocos — uma falange cen­tral e duas alas — cada uma feita de tantas pessoas que, para Jamie no alto do morro, era impossível separá-las. Os cavalei­ros iam à frente, centenas, liderando a carga. Depois vinham os soldados de infantaria. Atrás deles uma longa fila de ho­mens esperava, cada um segurando o que parecia um peda­ço de cano de cobre quase do tamanho deles. Em seguida vinham os arqueiros e finalmente, logo à frente das tendas, uma fileira de canhões com dois homens ajoelhados junto de cada um. Jamie ficou perplexo com a variedade de armas, porque pareciam pertencer a tempos diferentes e continentes diferentes. Mas percebeu que não havia nada de uniforme nas pessoas também. Haviam se reunido aqui depois de chegar de todas as partes do mundo.

Dois garotos estavam se preparando para comandá-los na batalha. Jamie os viu, bem na frente, ambos montando cava­los cinzas malhados. Não era necessário que lhe dissessem quem eles eram. Tinham apenas 14 anos e comandavam to­dos aqueles homens; haviam-nos trazido para cá. A estraté­gia deles traria a vitória ou a derrota. Jamie não podia ver os rostos. Os dois estavam montados de costas para ele. Mas sabia que estava olhando para Matt e Pedra-de-Fogo, e dese­jou que eles se virassem, ao menos por um instante. Queria olhar no rosto deles. Queria ver o irmão, Scott.

Mas os dois continuaram avançando, e só quando olhou para além deles, para o outro lado do campo, Jamie enten­deu todo o horror do que iriam enfrentar. O exército da estrela azul era assustadoramente suplantado em número. Estava diante da morte certa. Para cada um deles, havia dez inimi­gos. Humanos e não humanos, estendiam-se até onde a vista alcançava. Algumas vezes era difícil para Jamie discernir o que era o quê.

Na linha de frente estavam os mais desgraçados de to­dos, os escravos humanos que haviam confiado nos Antigos e ficado com eles até o amargo final. Esta era a sua recom­pensa. Todos tinham sido acorrentados juntos, nus ou cober­tos com alguns trapos, os nomes gravados na carne como se fossem gado. Haviam recebido porretes de madeira e macha­dos para se defender. Muitos tinham sido desfigurados, com olhos ou orelhas faltando. Pior ainda do que isso, alguns tinham tido a parte de baixo dos braços cortada e substituída por lâminas serrilhadas, de modo que eles e as armas eram uma coisa só.

Atrás vinham mais humanos: certamente as classes domi­nantes. Eram as pessoas que Scar chamava de suseranos e mentores. Tinham espadas, escudos e — pelo menos alguns — pedaços de armaduras. Eram pálidos e doentios, porque mesmo estando bastante satisfeitos em suas posições de po­der, não tinham estômago para a luta. Mesmo a distância, o medo e a covardia podiam ser vistos em seus rostos.

Em seguida vinham quatro filas de cavaleiros — Jamie só podia pensar neles como cavaleiros, envoltos em armadura preta. As duas primeiras eram de guerreiros idênticos aos soldados moscas que ele vira a caminho da Cidade dos Canais. Mas havia mais duas fileiras depois deles, e esses eram tão feios e grotescos que Jamie mal conseguia olhá-los.

Talvez fossem os oficiais. Talvez fossem humanos por baixo da armadura. Era impossível saber. Tinham lâminas se proje­tando dos ombros, dos cotovelos e joelhos. Os elmos tam­bém eram rodeados por espetos pretos e malignos de modo que, do pescoço para cima, eram como porcos-espinhos. Os cavalos tinham sido mutilados e possuíam baionetas pratea­das se projetando da testa, aparafusadas logo acima dos olhos, o que transformava cada um numa versão grotesca de um unicórnio. Os cavaleiros estavam parados rigidamente, em prontidão. Quantos seriam? Era impossível dizer. Cada um tinha a mesma altura do vizinho. Na verdade poderia ser o mesmo homem, replicado milhares de vezes. Seguravam es­cudos rodeados por pontas e batiam neles ritmicamente com a parte chata das espadas. Esse era o estrondo que Jamie tinha ouvido. Vê-los agora e ouvir o som fez seu sangue congelar. O pior ainda estava para vir.

Era uma infestação. Jamie não conseguiu pensar em ou­tra palavra enquanto aquilo sangrava para fora da floresta, jorrando no campo. O garoto havia pensado que aquela seria uma luta entre dois exércitos, mas o que via agora era uma horda sem forma nem formação, apenas uma gosma de cria­turas de pesadelo desesperadas pela matança. Levavam por­retes cheios de pregos, machados enormes, lanças, redes e forcados. Algumas deslizavam. Algumas caminhavam sobre três pernas ou mais. Eram meio humanas, meio animais, como se as duas coisas tivessem sido misturadas de propósito, para ver qual produziria o resultado mais hediondo. Algumas eram parte escorpião, como a criatura que havia atacado Jamie na colina Scathack. Mas também havia homens-cães, homens-crocodilos, homens-águias e até homens-tubarões, uma lou­ca mistura de braços, dentes, bicos, escamas, penas e garras, tudo reunido para criar monstros inimagináveis.

E por fim havia animais gigantes passando pela floresta, mais altos do que as árvores, erguendo-se atrás do exército, mas sem fazer parte dele exatamente.

O primeiro era uma aranha. Tinha uns 20 metros de altu­ra, apoiada em oito pernas alongadas, com um gordo saco de veneno pendendo sob a barriga. Tinha duas antenas que se agitavam à frente, como se testassem o ar, e grandes pre­sas pingando veneno e saliva. Quando ela virou a cabeça, Jamie viu o exército refletido muitas vezes nos brilhantes espelhos pretos que eram os olhos. Assim que ela atacasse, seria invencível. Espadas e flechas seriam inúteis. Era o mesmo que lutar com alfinetes e agulhas.

Um macaco enorme havia aparecido ao lado, dando socos e gritando com uma voz horrível e aguda. Não era musculoso como um símio, mas quase parecia um inseto, com cauda longa e pêlos imundos e sujos. Tinha apenas quatro dedos numa das mãos. Enquanto ele estava ali parado, as árvores se separaram de repente e um beija-flor gigante saltou no ar, com as asas batendo tão depressa que pareciam apenas um borrão. O pássaro criava uma tempestade ao redor, levantan­do poeira e galhos mortos. Um instante depois surgiu outro pássaro, subindo no céu. Este era um condor do tamanho de um avião. Voou alto, com as asas trovejando enquanto faziam o ar estremecer e vibrar.

E então, justo quando ele achava que não suportaria mais nada, Jamie viu uma figura abrindo caminho em meio ao exército, avançando para ocupar seu lugar na frente. Era o comandante... tinha de ser. Montava um animal que à primei­ra vista parecia um cavalo, mas que tinha chifres, olhos ver­melhos chamejantes e vapor subindo como fumaça da boca e das narinas. Mais 13 cavaleiros o rodearam, mas ele pare­ceu não notá-los. Seus olhos estavam fixos nos dois garotos à sua frente.

— Caos — sussurrou Scar.

— O quê? — Jamie não podia se mexer. Mal podia respirar.

— Ele não tem nome. Mas é como o chamamos. É o rei dos Antigos.

Jamie teve de olhá-lo duas vezes. Uma para ver. Outra para entender o que via.

Tinha tamanho humano, mas parecia maior. Parecia en­golir tudo em volta, como um buraco negro no espaço side­ral. Jamie sabia que estava olhando para o mal puro e que não havia nada mais vazio nem mais destrutivo no universo. Caos não tinha rosto. Nenhum tipo de feição. Com cada movimento destruía a área ao redor. Não se movia simples­mente. Mesmo sem tentar, cortava o caminho através do mundo.

Jamie não tinha idéia de quanto tempo estivera parado no morro. Sentia-se enraizado. O tempo parecia ter se imobilizado.

Os dois exércitos opostos se encaravam. Só por um mo­mento tudo ficou imóvel. Os cavaleiros pararam de bater nos escudos e o silêncio — algo chocante — caiu sobre o campo de batalha. Havia uma brisa suave. O capim se dobrava e os estandartes balançavam. Em algum lugar um cavalo bufou. Havia uns 30 metros entre Matt e Pedra-de-Fogo e as forças contra as quais tinham vindo lutar.

Caos havia chegado à frente. Tirou sua espada. Jamie ouviu o metal rangendo ao sair da bainha. Um instante depois Caos falou — mas fez isso sem abrir a boca. O som parecia sair dele como água jorrando de um tubo, e mesmo não tendo erguido a voz acima de um sussurro, ela ecoou no campo de batalha e chegou aos que estavam na colina.

— O poder dos Cinco foi derrotado — disse ele. — Um de vocês está preso longe daqui e um foi morto. Morreu do­lorosamente. E agora vocês não podem vencer. Larguem as armas e eu serei generoso. Vou lhes dar uma morte rápida. Permitirei que o resto me sirva. Esta batalha é desnecessária. Vocês sabem que já foram derrotados.

Matt não disse nada. Jamie o viu baixar a mão e pegar a espada. Essa era sua resposta.

O rei dos Antigos assentiu devagar. Não disse mais nada. De repente levantou sua arma acima da cabeça. Era o sinal. Imediatamente houve uma explosão de gritos, comemorações, risos, berros. Um trovão de cascos. Um estrondo que poderia ser um trovão.

O exército negro avançou.

A batalha havia começado.

 

Muito rapidamente a matança começou.

O exército dos Antigos veio como um maremoto erguendo-se de um mar negro e fervilhante. Os escravos da linha de frente foram os primeiros a se mover, correndo com os ma­chados e porretes como se mal pudessem esperar por sua própria morte inevitável. Atrás deles os cavaleiros marchavam, um passo de cada vez, implacáveis, com espadas erguidas. As cabeças dos cavalos unicórnios balançavam como se eles sentissem dor, os chifres de metal golpeando quem chegasse perto. Então vieram os homens-criaturas, cambaleando pelo campo, golpeando com garras e dentes. E por fim havia os animais monstruosos. Para Jamie, que olhava do topo do morro, eles pareciam impossíveis de ser parados. Eram tão gigantescos que certamente poderiam vencer esta batalha sozinhos.

O macaco gigante havia saltado à frente no meio das fi­leiras opostas. Nos segundos seguintes dezenas de homens e mulheres foram jogados longe com gestos largos das patas que os despedaçavam. Cavalos empinavam cheios de terror, derrubando os cavaleiros. Metal se chocava contra metal e num instante o capim estava manchado de sangue enquanto as primeiras baixas aconteciam. Jamie procurou Matt e Pedra-de-Fogo, mas eles já haviam desaparecido, embolados na con­fusão. O que momentos antes tinha parecido um mapa organizado, as forças alinhadas com precisão matemática, agora havia se tornado uma bagunça esparramada e medonha.

As forças de Matt haviam começado a contra-atacar.

Os arqueiros, posicionados atrás do corpo principal das tropas, disparavam uma saraivada depois da outra, com o céu escurecendo enquanto centenas de flechas prateadas faziam uma curva no alto e caíam, encontrando seus alvos. Vinte ou trinta acertaram o macaco e, ainda que em comparação ao tamanho gigantesco dele parecessem pouco mais do que agulhas, elas espetaram o rosto do bicho e o deixaram cego de um dos olhos. O macaco uivou de dor, mostrando os den­tes, mas manteve a posição. Depois houve uma explosão e um projétil branco e luzidio passou a toda velocidade, erran­do por pouco a cabeça dele. Jamie se virou para ver de onde aquilo tinha vindo. Havia pensado que os canhões tinham aberto fogo, mas na verdade o tiro viera de um dos tubos de cobre que ele havia notado antes. Os tubos eram um tipo gros­seiro de bazuca que os homens apoiavam no ombro e apon­tavam contra as forças inimigas. Jamie viu outra disparar, com o projétil branco incandescente cortando o ar com uma cauda de fumaça. Este encontrou o alvo. Um dos cavaleiros havia rompido as fileiras de Matt. Houve uma explosão e ele sumiu, simplesmente despedaçado.

Não dava para ver onde a linha entre os dois exércitos es­tivera. Parecia que os dois lados haviam abandonado qual­quer estratégia assim que a batalha tinha começado, e agora lutavam num combate completamente aleatório, corpo-a-corpo. Os soldados de Matt sustentavam a posição, manten­do os homens-criaturas a distância. No entanto os corpos começavam a se empilhar. Equipes médicas já corriam para o campo com maças, de algum modo surgindo de novo com os feridos, levando-os até um hospital improvisado que fora armado entre as tendas. Mesmo nesses primeiros estágios, por mais que odiasse admitir, Jamie tinha certeza de que es­tava do lado perdedor. As chances contra eles eram grandes demais.

E Scar continuava se recusando a se mover. Ninguém a havia notado com suas tropas, no alto do morro, acima do campo de batalha, parcialmente escondidas atrás dos pinhei­ros. Eram apenas cem — não o suficiente para fazer qualquer diferença verdadeira. Mas Jamie não suportava ficar ali para­do. Sentia-se péssimo, covarde.

— Temos de descer! — exclamou.

— Não! — Scar estava furiosa. Seus olhos se fixavam no que acontecia embaixo, e todo o corpo parecia congelado.

— Por quê? Não estamos fazendo nada de bom.

— Era assim que o Matt queria. — Scar estava segurando a espada com tanta força que o punho havia ficado branco, e Jamie se perguntou se ela o teria atacado caso ele tentasse avançar. — Eles não sabem que estamos aqui — explicou. — É disso que se trata. Eles não devem nos ver. E temos de esperar.

— O quê?

— Você verá!

Jamie olhou para Finn, como se ele fosse dizer algo dife­rente, mas o grandalhão balançou a cabeça devagar e conti­nuou olhando o progresso da batalha. Jamie se obrigou a olhar de novo para o campo e imediatamente os gritos dos agoni­zantes e o cheiro enjoativo do sangue recém-derramado su­biram e o consumiram. Tinha visto filmes. Tinha disputado jogos de computador. Mas isso era totalmente diferente. Não havia câmeras, nem arranjos artísticos. Ali a morte era malig­na, aleatória, a toda volta.

E então o macaco caiu. Uma grande bola de chamas la­ranjas havia subido acima dos lutadores. De novo Jamie não soube de onde ela viera. Então viu uma catapulta elaborada, uma estranha construção de metal e madeira, como algo re­cuperado de um ferro-velho. Estivera escondida entre as ten­das e tinha acabado de disparar um projétil contra a criatura, acertando-a bem no ombro. O animal enorme explodiu em chamas que se espalharam em segundos ao longo dos pêlos, fazendo toda a parte superior do corpo desaparecer num in­ferno vermelho. Jamie viu-o tentando apagar o fogo com as mãos, mas então os braços também se incendiaram. O ma­caco guinchou uma vez — um som medonho, de dar pena. Por fim tombou para trás, esmagando vários de seus próprios soldados, e ficou imóvel.

Mas não havia tempo para comemorar essa pequena vi­tória. Os outros animais gigantes estavam matando dezenas de pessoas, o condor e o beija-flor mergulhando repetidamen­te para golpear, a aranha cuspindo veneno ou esmagando as vítimas com as patas. Os cavaleiros cheios de espetos também continuavam avançando, mais como robôs do que homens, matando qualquer um que ficasse no caminho. Os canhões rugiram e dois cavaleiros caíram, com os cavalos gritando en­quanto despencavam. Os Antigos não tinham artilharia pesada — nem canhões nem catapultas. Mas não precisavam disso.

Pela primeira vez Jamie notou os 13 cavaleiros que acom­panhavam Caos. Deviam ser os cavaleiros de fogo que Scar havia mencionado na véspera. Vestiam-se de cinza, como monges ou frades, o rosto completamente escondido por capuzes. E não estavam armados. Mas então ele viu um deles se inclinar e tocar quase gentilmente um dos guerreiros de Matt, como se tentasse chamar sua atenção. Um único toque significou a morte. O rapaz irrompeu instantaneamente em chamas — virando cinzas antes mesmo de conseguir gritar. Em seguida foi uma mulher, morta antes de saber o que ha­via acontecido. Os outros cavaleiros também estavam ocupa­dos. Jamie achou que o exército de Matt estava diminuindo rapidamente e que a luta ia chegando cada vez mais perto dele, enquanto seu lado era suplantado.

Estavam perdendo. Era simples. E mesmo não conhecen­do Matt, mesmo não sabendo nada sobre este mundo até agora, Jamie sentiu a amargura da derrota e um sentimento de raiva por isso ter sido planejado desse modo. Por que ele e Scar haviam sido postos fora da luta? Assim que deixassem a segurança da colina, iriam morrer. Mas isso não importava. Jamie pensou no garoto chamado Pedra-de-Fogo, que estava em algum lugar lá embaixo, talvez já ferido ou até mesmo morto. De todo o coração desejou tê-lo conhecido, ao menos por pouco tempo, antes do fim.

De repente Scar gritou e estendeu a mão.

— Ali!

Ela vira alguma coisa. Finn olhava na mesma direção.

A princípio Jamie não pôde enxergar nada. Scar estava apontando para a borda do campo, para além da luta, onde o rio de capim descia e desaparecia. Mas havia alguma coisa. A luz parecia estar escurecendo. Era impossível, mas as pró­prias nuvens iam se reunindo como se de algum modo esti­vessem magnetizadas. Jamie sentiu um peso súbito, um latejar na cabeça dizendo que haveria uma tempestade.

— São eles — disse Scar, e no momento seguinte houve um grande clarão de relâmpago e um aguaceiro tão pesado a ponto de parecer que uma tela fora puxada na beira do cam­po de batalha. A chuva caía sobre os guerreiros. O trovão explodia acima das cabeças. Jamie sentiu a água encharcando suas roupas e escorrendo em riachos na pele. A mudança no tempo fora instantânea — como se um deles o tivesse con­trolado, de algum modo.

— O que está acontecendo? — perguntou.

Scar não respondeu. Estava olhando a distância. Jamie acompanhou seu olhar e viu que uma fileira de figuras a ca­valo havia aparecido, galopando para a borda da batalha. Até agora ninguém os vira. A chuva havia cuidado disso. Eram apenas seis. Cinco homens e um garoto. Era difícil discerni-los na escuridão e na confusão da tempestade, mas Jamie podia ver a figura que cavalgava no centro. Cabelo escuro e com­prido. Pele morena. Também carregava um escudo. O dele era decorado com um sol chamejante.

Inti havia chegado.

E não estava sozinho. Atrás, mais soldados — talvez uns cinqüenta — apareceram, erguendo-se sobre a borda do cam­po. Não se pareciam com nenhum dos outros guerreiros, usan­do túnicas e enfeites de cabeça feitos de penas e ouro batido. Levavam armas estranhas — fundas, boleadeiras e arcos cur­vos, muito pequenos, que eles disparavam enquanto galopa­vam, derrubando mais homens-criaturas que haviam ficado perto demais. Levavam um estandarte com a estrela azul.

Um dos cavaleiros de fogo se virou, percebendo-os pela primeira vez. Jamie viu Inti se inclinar adiante na sela. Ele ha­via desembainhado uma espada com a lâmina em forma de lua crescente. E brandiu-a. A cabeça do cavaleiro caiu dos ombros. O resto do corpo desmoronou de joelhos e depois tombou para a frente. Inti nem ao menos havia hesitado. No mínimo seu cavalo acelerou mais ainda, levando-o direto para o coração da batalha.

— É hora! — exclamou Scar. Em seguida se virou para Finn. — Está preparado?

— Esperei tempo demais — resmungou Finn.

— Então vamos acabar com isso. — Ela firmou o cavalo. Por um momento ficou muito perto de Jamie. — Use o seu poder. Encontre Matt. É só isso que temos de fazer.

E finalmente Jamie entendeu a estratégia de Matt. Caos havia entrado na batalha com a crença de que apenas três dos Guardiões — Matt, Pedra-de-Fogo e Scar — tomariam parte. Inti deveria estar encurralado em algum local distante, incapaz de alcançá-los. Árvore Nova estava morto. Pelo me­nos era o que o rei havia pensado ao tentar fazer com que os inimigos se rendessem. Confiava que a luta já estivesse termi­nada, que este não passava de um último embate antes que a humanidade fosse extinta. Mas fora enganado. Inti havia conseguido abrir caminho. E ainda que Árvore Nova tivesse morrido, ele — Jamie — estava aqui.

Jamie sentiu um jorro de empolgação. Mais do que isso. Era como se houvesse uma corrente elétrica atravessando-o. Sabia o que tinha de acontecer em seguida.

Os Cinco precisavam se reunir.

Scar também sabia. Sorriu brevemente para Jamie, depois desembainhou a espada. Jamie fez o mesmo. Scar gritou. Uma única palavra: — Avançar!

E então, ao mesmo tempo, estavam disparando morro abaixo, direto para o meio do inimigo mas sem medo, ansiosos para se juntar à refrega. Jamie sentiu seu cavalo quase voando, mas não havia chance de cair — ele e o cavalo eram um só. Tinha seu escudo numa das mãos e a espada na outra. Geada. Quando a havia segurado pela primeira vez, sabia que ela fora feita para ele, forjada com a forma de sua mão. Geada era mais do que um pedaço de metal inanimado. Era uma amiga.

A colina era íngreme e o cavalo quase tropeçou, mas Jamie firmou-o e foi em frente, rodeou as tendas, passou pelos médicos com suas serras sangrentas e suas bandagens, pas­sou entre os arqueiros que se separaram para deixá-lo ir, gri­tando em comemoração enquanto ele avançava. No momento em que havia passado, eles dispararam outra saraivada para distrair o inimigo. Jamie viu o enxame de flechas decolar, es­curecendo o céu sobre sua cabeça, e deu rédeas livres ao cavalo, como se ele pudesse sair do chão e voar com elas. Sen­tiu os cascos batendo na terra macia. Segundos depois a ba­talha o havia engolido.

No morro pudera ver o campo em sua totalidade, enten­der as características do terreno e a direção da luta. Agora tornava-se parte dela. Não podia ver Scar nem Inti. Se paras­se ao menos por alguns segundos para olhar ou se orientar, sabia que seria morto. Algum instinto dizia que o único modo de sobreviver era continuar em movimento. Mas à frente o caminho estava bloqueado. Conteve o cavalo e quase imedia­tamente uma das criaturas tentou golpeá-lo. Jamie viu uma cabeça de serpente, olhos pretos ardendo, um forcado sal­tando para ele a partir de uma boca torta. Ao mesmo tempo, houve um estalo e algo passou voando a centímetros de seu pescoço. A cobra tinha um corpo humano, com braços e per­nas humanos — e estava segurando um chicote. Ela havia ten­tado derrubá-lo da montaria, mas Jamie tivera sorte. O monstro tinha errado. Jamie girou sua espada e cortou o pescoço da criatura, não sentindo qualquer resistência enquanto a lâmi­na cortava. O sangue espirrou. O chicote caiu de lado. O cor­po desmoronou.

O barulho era ensurdecedor. Muito poucos sons da guer­ra haviam chegado até o morro, mas agora estavam a toda volta. Havia os gritos de homens e cavalos, e era difícil dizer quais doíam mais no coração. Espada retinia contra espada e havia o som terrível de metal entrando em carne. Um corpo, um de seus homens, caiu no chão e ficou imóvel. Outro ho­mem, cego, com sangue escorrendo pelo rosto, gritou por socorro e só foi silenciado quando um dos cavaleiros de fogo tocou-o e ele foi vaporizado instantaneamente.

Abaixe-se!

O alerta não foi dito. Foi mandado como um pensamento que se chocou em Jamie, fazendo-o se abaixar quase instinti­vamente. Uma segunda lança, atirada por um dos cavaleiros, voou por cima do seu ombro, errando apenas por centíme­tros. De algum modo Pedra-de-Fogo o tinha visto. Pedra-de-Fogo ainda estava vivo e estivera procurando-o do mesmo modo que Scott teria feito. Não havia sinal do outro garoto, mas agora Jamie se lembrou do que Scar tinha dito momen­tos antes. Seu poder havia retomado. Ele precisava usá-lo.

O cavaleiro que tentara matá-lo havia apanhado uma es­pada de duas lâminas. Já estava galopando, o cavalo apontan­do diretamente para ele com seu espeto mortal se projetando da cabeça. Jamie não se mexeu. Simplesmente mandou uma instrução.

Você não pode se mexer. Você não pode me machucar.

O cavaleiro estava quase em cima dele, mas nem tentou usar a espada. Nem se encolheu quando Jamie levantou Gea­da e a cravou direto em seu peito. O cavaleiro estava impoten­te. Jamie sentiu a espada se cravar e se encolheu horrorizado quando todo o corpo se despedaçou, tornando-se instanta­neamente uma nuvem de moscas zumbindo. A hesitação quase lhe custou a vida. Viu uma sombra com o canto do olho e se virou no momento em que outro homem-escorpião co­meçava a atacar. A cauda e o ferrão já vinham baixando violen­tamente e ele pensou que estava acabado. Mas o movimento não terminou. Diante de seus olhos a cauda e o ferrão pare­ceram se separar do corpo do homem-escorpião. A criatura uivou e Jamie viu Corian saudando-o com a espada e perce­beu que sua vida fora salva pela segunda vez.

Por um segundo viu Scar — à esquerda, mais adiante. Ela havia desaparecido mas agora estava de volta, cortando e decepando com sua espada, mantendo seis criaturas meio humanas a distância. Finn estava perto. Jamie sabia que o sujeito jamais ficaria longe, se pudesse. Ao mesmo tempo viu, com um tremor de alarme, que Finn estava ferido. Havia um talho enorme em seu ombro, que se abria e se fechava como uma boca sangrenta enquanto ele se mexia: um golpe de machado que quase arrancara o braço. Mas ele não parecia ter notado. Tinha transferido a espada para a mão esquerda e girou a lâmina. Outro cavaleiro se desintegrou num enxa­me de moscas pretas.

Algo se chocou contra o escudo de Jamie e ele olhou para baixo, com medo de ter sido acertado. Era uma flecha com a ponta envenenada. Viu no momento em que ela ricocheteou, deixando um leve amassado no escudo. Um homem-jacaré agarrou a flecha e girou, planejando cravá-la na perna de Jamie.

Em você mesmo...

Jamie pensou as três palavras e viu, satisfeito, a criatura virar a flecha contra si mesma, cravando a ponta no próprio pescoço. O homem-jacaré uivou em protesto e desmoronou no chão.

Então alguma coisa bloqueou a luz. Ele só tivera tempo de ver Scar olhando-o horrorizada. Talvez ela estivesse ten­tando alertá-lo. Mas era tarde demais. Uma forma enorme baixava na direção dele. Jamie olhou para cima no momento em que o beija-flor fazia um mergulho estilo bombardeiro, descendo a velocidade fantástica. O escolhera por que reco­nhecia quem ele era? Jamie soube que não tinha tempo de se defender. Sua espada seria inútil. O pássaro iria parti-lo em dois antes que ele tivesse tempo de se mexer. Só havia uma possibilidade. Soltou as rédeas e se jogou para trás, no chão. O mundo virou de cabeça para baixo e, por um momento, os exércitos estavam acima dele, toda a luta havia se tornado um redemoinho de ruídos e cores e ele estava se afogando naquilo. Então seus ombros bateram na terra, a espada saiu da mão e todo o fôlego o abandonou.

Se tivesse esperado mais um segundo, seria morto. Como aconteceu, o bico pontudo do beija-flor golpeou seu cavalo, empalando-o. O animal gritou — um grito terrível, ensurde­cedor. Então o beija-flor se afastou. Jamie pôde sentir o ar sendo empurrado pelas asas enquanto o pássaro pairava aci­ma. Estava procurando-o, querendo atacar de novo. Mas então Erin apareceu do nada e golpeou a face do pássaro, usando as cinco facas que eram seus dedos, tentando acertar os olhos. O pássaro recuou e voou para longe. O cavalo se dobrou de lado e ficou imóvel.

Jamie havia mordido a língua ao cair e sentiu o gosto do próprio sangue. Pior, tinha perdido o cavalo, o escudo e a espada. Ainda não estava apavorado — não existia tempo para medo — mas de repente quis que tudo aquilo estivesse aca­bado. Scar estava certa com relação a uma coisa. Ele não fazia idéia de por quanto tempo estivera lutando. Alguns minutos ou várias horas? De qualquer modo, estava esgotado. Farto.

Mas sabia que precisava encontrar Geada. Estava perdido sem ela. Olhou em volta — e ali estava, caída incólume no chão. Mas quando se inclinou para pegá-la, um homem-porco segurando uma adaga curva e de aparência maligna, correu em sua direção. Jamie mergulhou por baixo da criatura, pegou Geada e golpeou para cima. A espada se cravou na barriga do homem-porco. Jamie puxou-a de volta, rolou e ficou de pé. Havia corpos a toda volta. Homens e criaturas lutando. Cavaleiros e homens-cavalo. Tudo era um borrão. Seu pesco­ço estava doendo. Tocou-o com os dedos e viu vermelho. O homem-porco havia conseguido cortá-lo, mas o ferimento não devia ser muito ruim — não tinha muito sangue. Deixou a mão baixar. E agora?

E nesse momento ficou claro.

À frente havia um espaço aberto. Era como se todos os guerreiros tivessem se separado deliberadamente para criar uma arena circular, e no meio duas figuras se encaravam. Uma era Matt. A outra era o rei dos Antigos, a criatura que recebe­ra o nome de Caos. Matt tinha uma espada, mas não a estava usando. Jamie podia sentir o poder emanando do primeiro dos Cinco. Alguém atirou uma lança na direção dele mas ela nem chegou perto. O ar tremeluzia ao redor do garoto. A lança se despedaçou. Os pedaços foram girando para longe.

— Você não pode me derrotar. Ajoelhe-se diante de mim e talvez eu o deixe viver. — Caos não falou. Em vez disso as palavras se irradiavam, geladas e venenosas. Ele se erguia alto acima de Matt. Seria a imaginação de Jamie ou Caos havia crescido desde o início da luta, como se estivesse se alimen­tando de tanta morte?

Matt ficou onde estava. Jamie o examinou direito pela pri­meira vez. Era só um garoto de ombros retos e cabelo curto e escuro, mas o rosto era muito mais velho do que seus 14 anos. Tinha olhos de homem, cheios de sabedoria e experiência. Vestia-se, como Jamie, com uma blusa cinza de trama gros­seira que ia até abaixo da cintura, atravessada por um cinto de couro que descia diagonalmente no peito. Tinha uma es­pada numa das mãos e um escudo na outra. O símbolo que havia escolhido era um peixe.

De repente Matt levantou a mão, não atacando o opo­nente, mas apontando para o lado. Dois cavaleiros vinham se aproximando, mas foram instantaneamente jogados para trás, voando para longe dos cavalos, empurrados por uma força invisível. Vários humanos — suseranos e escravos — foram atirados no ar. Matt havia criado um corredor na luta, e um segundo garoto entrou nele. Jamie olhou para o outro lado da clareira e viu o que poderia ser uma imagem espelhada de si mesmo. Ou poderia ter sido Scott. Mas sabia que era Pedra-de-Fogo. Ele estava machucado e exausto da batalha, as rou­pas rasgadas e o escudo partido, mas ainda era obviamente seu gêmeo idêntico.

Pedra-de-Fogo avançou e ao mesmo tempo Scar apare­ceu, derrubando um homem com o dobro do seu tamanho, golpeando um segundo e saltando por cima de um terceiro com a espada virada para cima, à frente do corpo, os olhos fixos em Caos como se planejasse atacá-lo sozinha. Agora eram três rodeando a figura imóvel, o espaço preto no centro do conflito.

O rei dos Antigos se divertiu com os recém-chegados.

— Três dos Cinco. Mas não basta. Ainda não basta! — As palavras vibraram no ar. Faziam a cabeça de Jamie doer. Ele ficou enjoado.

Já ia avançar, mas antes que pudesse se mexer, outro ga­roto passou correndo por ele, quase roçando seu ombro. Era Inti. Estava encharcado da tempestade e tinha sangue escor­rendo de um ferimento na bochecha. Havia perdido o escudo, mas continuava com a espada.

— Quatro de vocês! — As palavras saíram sibilando da escuridão, cheias de desprezo.

— Cinco — disse Jamie, e se juntou ao círculo. Pedra-de-Fogo viu-o e assentiu, o rosto cheio de júbilo.

Inti e Scar sorriram. Matt não revelou nada em sua expressão. Embainhou a espada.

E foi então que o rei dos Antigos soube que fora engana­do. O garoto morto estava vivo de novo, de algum modo. Inti havia chegado, sem ser visto, ao campo de batalha. Caos es­tava rodeado pelos Cinco, que haviam nascido exatamente para esse momento, mandados para derrotá-lo. Quatro ga­rotos e uma garota. Cada um deles armado. A batalha, que continuava feroz ao redor, foi quase esquecida.

— Volte para o lugar de onde você veio — disse Matt. Em seguida deu um passo à frente e golpeou com toda a força, enterrando sua espada no coração da criatura.

Os outros fizeram o mesmo. Primeiro Pedra-de-Fogo, de­pois Inti. O rei dos Antigos se retorceu enquanto cada lâmina penetrava nele. Sua forma estava tremeluzindo como ondula­ções num lago. Mas três golpes não bastavam para acabar com ele. Scar foi em seguida, enterrando sua espada até o punho. E por fim a criatura gritou, sentindo dor pela primeira vez.

Jamie foi o último a avançar. Trincando os dentes, mergu­lhou sua espada no negrume adiante. Sentiu o braço congelar e imaginou se a lâmina teria se despedaçado. No mesmo instan­te foi ensurdecido pelo terrível grito de morte do rei derrotado.

As cinco pontas das cinco espadas haviam se tocado.

Caos nunca fora um homem, e nesse momento perdeu o fingimento. Pareceu explodir para fora, perdendo completa­mente a forma humana, tornando-se nada mais do que uma sombra gigantesca, uma espécie de noite viva que finalmen­te era despedaçada pela chegada do dia. Gritou uma última vez e seus serviçais souberam, nesse momento, que a batalha estava perdida. O som chegou aos cantos mais distantes do mundo e mesmo assim não parou. Cada ser maligno do uni­verso escutou e soube que o fim chegara.

Jamie estava paralisado. Se Geada continuava em sua mão, ele não podia mexê-la. Podia sentir o poder dos Cinco agora que estavam finalmente juntos e, mesmo nunca tendo sido mais forte, ao mesmo tempo sentia-se esmagado. O poder ia se intensificando e ele tinha certeza de que aquilo iria despe­daçá-lo. Era mais do que conseguiria suportar. Tentou procu­rar Finn ou algum dos outros, mas era como se nada existisse fora do círculo que haviam formado. Só percebia quatro ros­tos. Matt, Pedra-de-Fogo, Inti, Scar. Todos estavam estranha­mente parecidos, todos fixos numa concentração silenciosa e ele sabia que sentiam exatamente a mesma coisa.

O rei dos Antigos não estava mais ali. Era como se tivesse sido transformado em fumaça que já se esvaía. Os Cinco permaneciam num círculo, as lâminas ainda se tocando, mas com um espaço vazio entre eles. E nada podia alcançá-los. Apesar de a luta continuar ao redor, era como se estivessem dentro de um jarro de cristal. Espadas relampejavam mas as lâminas se partiam no meio do ar. Lanças e flechas choviam sobre eles mas ricocheteavam inúteis. O condor mergulhou contra eles numa última tentativa desesperada de alcançá-los, mas as garras estendidas se despedaçaram subitamente e o bicho foi lançado longe, girando, uma bola disforme, feita de penas e sangue.

Jamie se perguntou se estava mais ferido do que pensava. Estaria morrendo? Todos os sons do combate estavam muito distantes. Houve um grande farfalhar em seus ouvidos e a sen­sação de algo fluindo através dele. Os Cinco estavam encasulados, completamente seguros, no centro da batalha, mas separados dela.

E agora algo ainda mais estranho acontecia.

Os Cinco pareciam estar se movendo, girando lentamen­te como se num carrossel. Mas não eram eles que se moviam. Era o mundo que girava ao redor. O campo, a floresta e o morro giravam cada vez mais rápido até não existirem mais. Tinham se tornado um borrão, nada mais do que uma faixa de cor que redemoinhava ao redor, sem começo nem fim.

Houve um estalo ensurdecedor. Jamie olhou para cima.

O céu havia se aberto. Um abismo apareceu, o próprio tecido do dia se descolando para revelar um universo cheio de estrelas. Ao mesmo tempo o vento uivava. Havia formado um tornado que estava arrancando tufos de capim e pedaços de terra. Primeiro, cadáveres, depois seres vivos eram arran­cados e levados através do vórtice. A cada segundo o processo ia ficando mais forte e mais rápido. Um depois do outro, os serviçais dos Antigos eram carregados para cima. Jamie olhou enquanto eram puxados para o vazio e soube que era em parte responsável pelo que acontecia. Era seu poder que estava fa­zendo isso. Ele e os outros quatro.

Os últimos cavaleiros de fogo foram embora, arrancados dos cavalos e soprados como trapos. Os soldados-moscas haviam se desintegrado. A aranha e o beija-flor — todos os animais gigantes — não passavam de pontos espiralando cada vez mais para o alto. Por fim a sombra escura, que era tudo que restava de Caos, foi sugada, seguindo os outros para o esquecimento. E finalmente tudo acabou. O túnel se fechou atrás deles. O vento morreu. Houve um trovão distante e o céu rolou de volta, fechando a escuridão, curando seu feri­mento auto-infligido.

Os Cinco ficaram parados, em silêncio.

— Árvore Nova... — Foi Pedra-de-Fogo que falou. Mas Matt levantou a mão, contendo-o. Ainda não.

Scar deu um passo adiante. Estava olhando para algo no alto, protegendo os olhos. Jamie levantou a cabeça e viu que finalmente as nuvens haviam se separado e o sol pudera mostrar o rosto.

— Então é assim que ele é — murmurou Scar. — Sempre imaginei como seria. — Em seguida se virou para Matt. — O que isso significa?

— Significa que acabou — respondeu Matt. — Vencemos.

 

Ficaram entreolhando-se, os cinco Guardiões: Scar, Inti, Pedra-de-Fogo, Matt e Jamie. Nenhum deles falava. Muita coisa havia acontecido depressa demais. Jamie só sabia o que Scar tinha lhe contado, uma parte muito pequena da história que os trouxera até ali, naquele dia. Mas sabia que uma jornada havia terminado, uma jornada que ocupara toda a vida deles.

Ao redor tudo estava mudando. E acontecia com veloci­dade incrível. Os Antigos haviam levado o planeta à beira da destruição, poluindo a água e escurecendo o céu. Mas agora que tinham ido embora, o mundo ia se restaurando. A chuva havia parado tão rapidamente quanto começara, e o chão já estava seco. As nuvens tinham se separado como se fossem cortinas esperando ser puxadas, e o céu do outro lado era de um azul ofuscante, com o sol já espalhando o calor sobre o chão. E com a chegada do sol, a cor havia retornado. A flo­resta, que parecera negra e cinza, agora tinha muitos tons de verde. Os pinheiros pareciam menos ameaçadores, o capim mais macio e mais natural.

Os três exércitos reunidos sob o símbolo da estrela azul só agora estavam percebendo que a batalha havia terminado e os Antigos tinham ido embora. Continuavam perplexos, in­capazes de absorver o que havia acontecido. Um buraco ti­nha se aberto no universo. Os Antigos foram sugados por ele. O povo estava finalmente sozinho, não fora derrotado, e o mundo era deles de novo. Lentamente começaram a perceber. Sobreviventes se encontravam e se abraçavam. Algumas pes­soas ficaram paradas, chorando. Algumas largavam as armas e riam alto. E muitas — os mortos e os agonizantes — fica­ram onde estavam, espalhadas pelos quatro cantos do campo.

— Acabou mesmo? — perguntou Scar. — É o fim?

— Nós vencemos a batalha — disse Matt. — E esta noite vamos comemorar. Mas neste momento há muita coisa a fazer.

— Há muitos feridos — falou Inti pela primeira vez. Ain­da que usasse a mesma língua dos outros, devia tê-la apren­dido recentemente. Tinha um sotaque estranho e precisava procurar as palavras.

Matt assentiu.

— Vocês devem ir até eles.

— Estive procurando você, Matteo. Durante muitos anos. Fico feliz por tê-lo encontrado finalmente. — Inti assentiu para Matt e os outros. Depois se virou e foi andando.

Era o primeiro a romper o círculo.

— Eu não deveria ter duvidado de você, Matt— disse Scar. — Você estava certo. Tudo aconteceu exatamente como você queria.

— Não era o meu plano — respondeu Matt. — Simples­mente era para ser assim.

Scar enfiou a espada de novo na bainha.

— Tenho de encontrar Finn — disse ela. — Ele foi ferido na batalha e vai precisar de cuidados. — Ela ficou parada, sem jeito, não querendo sair mas precisando achar o amigo. De­pois se afastou rapidamente.

Pedra-de-Fogo e Jamie se viram cara a cara. O outro garo­to o olhava com uma mistura de emoções. Jamie não sabia como reagir.

— Você é Pedra-de-Fogo... acho — disse. — Quero dizer... claro que é. — E notou que Pedra-de-Fogo estava carregando uma espada idêntica a Geada. Não ficou surpreso. Tudo neles era igual. — Você se parece com Scott. E fala como ele, também.

— Quem é Scott?

— Meu irmão. Pedra-de-Fogo assentiu.

— E você se parece com Árvore Nova e fala como ele. Jamie tentou sorrir, mas era difícil.

— Alguém vai conseguir explicar isso? — perguntou. Os dois garotos se viraram para Matt.

— Não podemos falar agora — disse ele. — Sinto mui­to... mas temos de agir. Há pessoas que precisam de ajuda.

— Quando? — perguntou Pedra-de-Fogo.

— Esta noite.

Jamie olhou ao redor. Só agora percebia a escala da bata­lha que havia acabado de travar. Fez com que se lembrasse do que tinha visto na colina Scathack, só que aqui era muito pior. Por todo o campo havia homens e mulheres com feri­mentos terríveis. Tinham começado a gritar de dor. Havia san­gue em toda parte.

— Inti tem o poder de curar — disse Matt. — Mas há muita coisa para ele fazer sozinho. As pessoas vão querer comida e água. Os médicos vão precisar de ajuda com as ma­ças. As perguntas podem esperar.

Pedra-de-Fogo assentiu. Olhou uma última vez para Jamie, como se tentasse decifrá-lo, depois se virou.

Muito rapidamente o exército havia se dividido em diversos grupos. Os que não estavam feridos, ou que tinham se ferido pouco, estavam ajudando os menos afortunados, levando-os para os hospitais de campanha, trazendo água ou só ficando perto para dar conforto. Os mortos foram deixados onde haviam caído. Não havia nada que pudesse ser feito por eles: seu único consolo era o fim do sofrimento.

Jamie encontrou trabalho, enchendo garrafas d’água num barril que fora trazido de carroça para o centro do campo, levando-as para os homens e mulheres incapazes de se me­xer e que ainda não tinham recebido ajuda. A primeira pes­soa que encontrou não teria mais de 18 ou 19 anos, e estava claro que ela não viveria muito mais. Seu peito fora aberto e o rosto estava branco. No entanto, ao ver Jamie, sorriu. En­quanto Jamie derramava um fio de água entre seus lábios, ela segurou o braço do garoto e pareceu totalmente em paz. Era como se tivesse desejado conhecer Jamie durante toda a vida, e agora que havia conseguido, estava preparada para morrer.

Aconteceu a mesma coisa repetidamente. Jamie notou Matt andando entre os feridos, parando para apertar uma mão ou se ajoelhar e ajudar alguém a beber. Todo mundo no campo parecia saber quem eles eram — o que era estranho porque

Jamie não tinha certeza de conhecer a si mesmo. Voltou para pegar mais água, desejando que o dia terminasse e todos pudessem se sentar e conversar.

Na próxima passagem encontrou Scar e Finn.

Nesse ponto Jamie podia dizer, quase só com um olhar, quem iria viver para falar desse dia e quem não iria. Pôde ver imediatamente que Finn estava morrendo. O grandalhão se encontrava deitado com as pernas estendidas e as costas apoiadas num toco de árvore. Scar estava ajoelhada ao lado e Inti também estava ali. Corian e Erin se encontravam próxi­mos, olhando ansiosos. Jamie ficou aliviado ao ver que ne­nhum dos dois irmãos estava ferido.

Inti estivera inclinado com as mãos nos ombros de Finn, mas quando Jamie se aproximou ele esticou as costas e olhou para Scar, sinalizando que não poderia fazer mais nada. Jamie pôde ver o motivo. Qualquer que fosse o poder de Inti, ele havia chegado tarde demais. Finn havia levado um golpe terrível no ombro e perdido sangue demais. Estava muito perto do final.

Finn viu Jamie e conseguiu dobrar os dedos de uma das mãos, chamando-o para perto. Jamie estendeu uma garrafa d’água mas Finn balançou a cabeça. Não tinha mais forças para engolir. Nem precisava prolongar o pouco de vida que lhe restava.

— Árvore Nova! — disse ele.

Enquanto Scar se virava e o notava pela primeira vez, Jamie viu que havia lágrimas nos olhos dela.

— Você se saiu bem — tossiu Finn, e algumas gotas de sangue mancharam o lábio. — Eu sabia que iria ser assim. Eu não disse isso?

Jamie assentiu, mas não podia falar.

— Finn... — começou Scar. Finn segurou as mãos dela.

— Você não deve chorar, Scar — sussurrou ele. — Já fa­lei antes. Não é adequado.

— Como vou me virar sem você? — exclamou Scar.

— Não seja boba. Você tem seus amigos. Os Cinco... — Finn deu-lhe um tapinha na mão. Era o único movimento que conseguia fazer. — Mas tivemos aventuras juntos, você e eu. As pessoas vão se lembrar e falar delas um dia, talvez.

— Ah, Finn...— Scar não conseguiu mais conterás lágrimas.

— Você vai ficar sozinha agora. Mas não precisa mais de mim. Nem sei se algum dia precisou. — Finn estendeu a mão e acariciou gentilmente o cabelo da garota, pela última vez.

— Nós vencemos. É só isso que importa. — Finn olhou-a com adoração. Depois sua cabeça tombou para trás e Jamie sou­be que ele nunca mais falaria de novo.

Não pôde suportar mais. Pegou a garrafa d’água e se afas­tou rapidamente.

O dia foi terminando, o sol se pôs e finalmente toda a ati­vidade começou a diminuir. Os médicos tinham feito o possí­vel. Os feridos estavam descansando. E os que haviam sido escolhidos para morrer tinham feito isso em silêncio e sem reclamar. Jamie estava quase esmagado pelo cansaço. Parte disso era a exaustão da luta e as longas horas que havia pas­sado trabalhando assim que a batalha terminou. Mas reconhe­cia algo mais. Era uma reação a tudo por que havia passado

— coisas demais acontecendo muito depressa, mortes demais. Estava desgastado, tanto emocional quanto fisicamente.

Foi então que Pedra-de-Fogo retornou. Jamie estivera imaginando o que o irmão estava fazendo — porque não conseguia pensar nele de outro modo — , mas de repente Pedra-de-Fogo apareceu numa carroça puxada por cavalos, atulhada de sacos e barris. Havia levado seis homens e todos retornaram com carroças parecidas. Atravessaram o meio do acampamento e pararam. Pedra-de-Fogo saltou de pé.

— Encontramos comida! — gritou. — Os suseranos ti­nham um acampamento do outro lado do vale, e claro que mantinham os melhores suprimentos para eles mesmos. Te­mos pão, vinho, queijo, carne-seca e frutas. Portanto, acen­dam uma fogueira. Esta noite vamos comer bem.

Cerca de trezentos homens, mulheres e crianças haviam passado incólumes pela batalha. Ao ouvir as palavras de Pedra-de-Fogo, irromperam em gritos de comemoração. Jamie se juntou a eles. Sabia que, se Scott estivesse ali, teria encontra­do a comida. Era assim que ele sempre fora, encontrando coi­sas para os dois sempre que algo era necessário. Quanto mais pensava, mais lhe parecia que Scott e Pedra-de-Fogo eram a mesma pessoa — assim como ele e Árvore Nova eram mais ou menos idênticos. Isso era impossível, claro. Mas todo o resto também era.

Os sobreviventes deviam estar tão exaustos quanto Jamie, mas de algum modo encontraram novas forças. Primeiro fi­zeram uma grande fogueira a partir de armas espalhadas, galhos da floresta e de sua própria catapulta, que desmonta­ram e usaram para alimentar as chamas. Espalharam panos e tapetes diante das tendas. Depois descarregaram as carroças e distribuíram os suprimentos, certificando-se de que os feridos não fossem esquecidos. Logo o que havia sido um campo de morte se tornou subitamente o local de um enorme banque­te ao ar livre, sob um céu cheio de estrelas.

Uma mesa improvisada com cinco bancos dobráveis fora arrumada ligeiramente de um dos lados, para ele e os outros Guardiões. Foi até lá. Matt já estava parado perto, imerso numa conversa com Inti, mas os dois pararam assim que Jamie se aproximou. Matt serviu para Jamie uma tigela de vinho e a entregou. Inti estendeu a mão.

— É bom estar com você — disse ele.

Então Pedra-de-Fogo e Scar chegaram. Se Scar estivera lamentando a perda de Finn, não demonstrou isso. Parecia de mau humor. Deixou-se cair num dos bancos, serviu-se de vinho, bebeu e serviu um pouco mais.

Pedra-de-Fogo havia se sentado perto de Jamie.

— Já viu as estrelas? — perguntou ele.

Jamie olhou para cima. Todo o universo estava chamejante.

— É uma noite linda — respondeu.

— Eu nunca tinha visto as estrelas. Durante toda a minha vida só existiam nuvens. — Ele esticou o pescoço, olhando para a noite. — As pessoas diziam que o céu podia ficar as­sim. Mas nunca acreditei.

Matt sentou-se. Parecia exausto. Scar serviu uma tigela de vinho para ele. Ocorreu a Jamie que os Cinco estavam juntos de novo. Mas por quanto tempo?

Havia perdido a conta do número de pessoas que haviam se aproximado dele durante o dia, enquanto fazia a ronda com as garrafas d’água. Mas quando a festa começou, os cin­co foram deixados em paz. Era como se tivesse sido decidido que deveriam ter direito a um descanso, e — refletiu Jamie — eles certamente mereciam. Beberam mais vinho e comeram queijo mole e algum tipo de carne com pedaços de queijo duro. Jamie ficou surpreso ao descobrir que estava esfomeado.

Em outra parte do campo alguém começou a tocar uma música numa flauta, e um instante depois dois outros se jun­taram com um tambor e algum tipo de instrumento de corda única. As chamas da fogueira saltavam, com fagulhas se re­torcendo no ar.

Scar olhou para Matt.

— E o que acontece agora? — perguntou. — E, antes que você diga alguma coisa, desculpe. Eu não deveria ter dis­cutido com você sobre a colina Scathack e aquilo tudo. Mas como é que eu iria saber? Você é só um garoto. Ninguém nem me disse quem colocou você no comando.

— É tarde demais para falar muita coisa esta noite — res­pondeu Matt. — E, de qualquer modo, não tenho todas as respostas, independentemente do que vocês pensem. Mas há uma coisa que precisam saber agora. Nós passamos a vida toda procurando uns aos outros, mas em muito pouco tem­po vamos ter de nos separar.

— Eu tinha a sensação de que você iria falar isso.

— Nós quatro temos trabalho a fazer. Mas Jamie não é do nosso mundo. Ele tem de retornar ao lugar de onde veio.

Jamie sentiu um jorro de tristeza que não conseguiu ex­plicar. Seu lugar não era ali, sabia disso. Mas não queria ir embora.

Houve um longo silêncio, rompido finalmente por Pedra-de-Fogo.

— Então ele não é Árvore Nova — disse simplesmente.

— Árvore Nova está morto — respondeu Matt. — Mor­reu na colina Scathack.

— Então eu o matei.

— Não.

Pedra-de-Fogo bateu com o punho na mesa, derramando seu vinho.

— Você disse para nós escolhermos — gritou e, pela voz, Jamie pôde ver que ele estava à beira das lágrimas. — Você disse que um de nós tinha de ir e eu deixei que ele se oferecesse.

— A escolha foi dele. — Matt permaneceu calmo. — Você não precisa se culpar.

— Mas se ele não é Árvore Nova — disse Scar — , quem é? Matt se virou para Jamie.

— Eu disse a vocês o tempo todo — respondeu Jamie. — Meu nome é Jamie Tyler. Moro em Nevada, nos Estados Unidos.

— Onde ficam os Estados Unidos? — perguntou Inti. Matt se levantou.

— Temos muita coisa para conversar — disse ele. — Cá estamos, juntos finalmente. Os Cinco. Hoje fizemos o que nas­cemos para fazer. Derrotamos os Antigos e demos um recome­ço ao mundo. Pedra-de-Fogo, eu lhe prometi respostas e você vai tê-las. Você também, Jamie. Mas neste momento estou cansado demais. Gostaria de passar a noite toda com vocês, sentados em volta dessa mesa, mas não posso. Preciso dormir.

— Eu também estou cansado — murmurou Inti.

— Não vamos ficar juntos por muito tempo — continuou Matt. — Mas isso não é importante. Um ano, uma hora ou até um minuto... O importante foi que nos encontramos. Porque nesse instante nosso trabalho foi feito. Foi o fim. Era o único motivo para termos existido. E se nunca mais nos vir­mos, não precisamos lamentar.

Scar se levantou ao lado dele e encheu de novo as cinco tigelas.

— Independentemente do que você pense sobre o desti­no e essa coisa toda, quero comemorar — disse ela. — Quero lembrar este momento pelo resto da vida. Você, eu, Inti, Pe­dra-de-Fogo e Jamie. Fizemos isso juntos. Somos os Cinco. Vamos beber a isso.

Levantaram as tigelas.

— Aos Cinco — disse Scar.

— Aos Cinco — gritaram todos. Em seguida tocaram as tigelas, metal contra metal, e beberam em silêncio.

Matt sorriu.

— Boa-noite — disse. — Vamos nos falar de novo quan­do o sol nascer.

E foi andando.

— Vou também. — Inti bocejou. — Desculpem. A festa deve continuar pela noite toda... mas eu não posso. Viajei muito hoje. Preciso dormir.

Jamie ficou olhando-o caminhar alguns passos atrás de Matt. Pararam na primeira fila de tendas e trocaram algumas palavras antes de se separar, cada um indo para seu lado.

Scar terminou de tomar seu vinho.

— Matt nunca conta nada — disse com um suspiro. — E quando conta, nós não entendemos. Mas ganhamos a bata­lha... e a guerra. De modo que acho que vou concordar com o que ele diz. — Ela estendeu a mão. — Boa-noite, Jamie. Vou encontrar Erin e Corian. Vamos tomar um gole em ho­menagem a Finn. E depois vamos continuar bebendo até es­quecer que ele se foi. Vejo vocês de manhã.

Scar e Jamie se apertaram as mãos. Ao mesmo tempo ela se inclinou e lhe deu um beijo no rosto. Depois se afastou da mesa.

Jamie e Pedra-de-Fogo ficaram a sós.

— Sinto muito — murmurou Jamie. Não sabia o que mais dizer.

— Não precisa. — Pedra-de-Fogo parecia exaurido. — Fico feliz por você estar aqui. Fico feliz porque você foi mandado no lugar do Árvore Nova.

— Eu também. — Jamie pensou um momento. Estava tão cansado que precisava lutar para achar as palavras certas. — Deixe-me falar sobre Scott. Ele é mais inteligente do que eu. Cuidou de mim durante toda a vida. Mas há uma semana apareceram umas pessoas atrás dele. Ele foi seqüestrado. Eu consegui fugir. Agora vejo que isso deve ter alguma coisa a ver com os Antigos. Deve ser por isso que eles estavam pro­curando por nós. Não sei onde Scott está agora. Ele pode ter sido morto. Não sei. Estive tentando achá-lo.

— Ele poderia estar aqui?

— Não. Nem sei onde é aqui. Mas você ouviu o que Matt falou. Este mundo não tem nada a ver com Scott e comigo. Acho que terei de voltar para casa...

Pedra-de-Fogo se levantou, inseguro. Ao redor deles, a festa continuava. Inti estivera certo. Ela iria continuar até o nascer do sol.

— Vou dormir — disse Pedra-de-Fogo. — Vejo você de manhã.

— Boa-noite, Pedra-de-Fogo.

— Boa-noite, Jamie.

Jamie ficou olhando seu gêmeo se afastar e desaparecer numa tenda, sabendo no coração que isso era mais do que uma despedida, que os dois nunca mais iriam se ver.

 

Jamie foi acordado de um sono profundo por alguém sacudindo-o. Abriu os olhos e viu Matt, totalmente vestido, inclinado sobre ele. O alvorecer ainda não havia chegado to­talmente. Ele podia ver a meia luz através da abertura na tenda.

— Desculpe — disse Matt. — Mas tive de acordar você.

— Por quê? O que foi? — Jamie ainda estava grogue. Tinha dormido como se estivesse morto. Sem sonhos.

— Precisamos conversar.

Jamie havia dormido com suas roupas. Estava começan­do a se acostumar com isso. Tinham-lhe dado um cobertor e um saco cheio de palha como travesseiro. Agora saiu da co­berta, pegou a espada e acompanhou Matt para fora da ten­da. Seria um lindo dia. Havia uma ondulação cor-de-rosa num céu que já era de tons suaves de azul e cinza, sem nenhuma nuvem à vista. A festa havia terminado finalmente. Pessoas tinham caído no sono onde estavam. Havia corpos adormeci­dos em toda parte, um estranho eco da batalha da véspera.

Não havia sinal de Pedra-de-Fogo, Scar ou Inti. Matt esta­va usando uma camisa larga sobre calças de lã e botas de couro. Tinha deixado a espada para trás, mas Jamie estava segurando Geada. Por que a havia trazido? Não existia inimi­go, nem mais necessidade de ter medo.

— Devo deixar isto? — perguntou.

— Não — respondeu Matt. — Traga a espada.

— Aonde vamos?

— Não é longe.

Passaram pelas tendas, seguindo a linha do morro onde Jamie e Scar haviam esperado antes de iniciarem o ataque. Estavam indo na direção da borda do campo, a mesma dire­ção de onde Inti viera. Enquanto deixavam as tendas para trás, Jamie ouviu o som de água correndo e ficou surpreso ao en­contrar um rio largo, passando pelo campo numa fenda pro­funda. O mundo estava se regenerando — e isso acontecia numa velocidade incrível.

Os dois encontraram uma pedra chata e se sentaram, perto da beira d’água.

— Há coisas que preciso lhe dizer antes de você ir — disse Matt.

— Vou voltar para o lugar de onde vim?

— Vai.

— Então fale da Corporação Crepúsculo. Fale do Scott. O que fizeram com ele?

— Não sei, Jamie. Sinto muito. Aquele é o seu mundo, não o meu. Mas posso ajudá-lo. Só gostaria de saber por onde começar.

Matt respirou fundo. Depois falou de novo:

— Como tenho certeza que você já percebeu, você via­jou de um mundo a outro. Mas o que precisa entender é que é o mesmo mundo. Isto aqui é o passado. Você vive no futu­ro. Duas civilizações separadas por 10 mil anos.

“Não posso falar muito sobre o nosso mundo. Ele já foi lindo, há muito tempo. Acho que éramos pacíficos. No geral, as pessoas seguiam com a vida sem machucar ninguém.

“Mas então aconteceu uma coisa ruim. Os Antigos. Não sei de onde vieram nem como chegaram, mas assim que che­garam tudo mudou. Eles só tinham um objetivo: acabar co­nosco. De algum modo fizeram a humanidade se virar contra si mesma e, depois disso, as coisas foram ficando cada vez piores. Era óbvio que não iriam parar até que não restasse mais nada. Mas tinha de ser o mais lentamente possível. Esse é o objetivo, Jamie. Esta é a natureza deles. Eles se alimentam de sofrimento. O sofrimento é o motivo da existência deles.

“Você já viu uma pequena parte do que eles fizeram aqui. A colina Scathack e a Cidade dos Canais. Eles despedaçaram tudo que era bonito ou útil: casas e templos, jardins e terra­ços, povoados e cidades. Qualquer um que ficasse no caminho era morto ou transformado em escravo. E nem isso bastava. Você não faz idéia de como eles eram poderosos. Conseguiram mudar a atmosfera de todo o planeta. Derrubaram florestas e mataram os animais que tinham vivido nelas. Envenenaram os rios e até entupiram os mares, e no fim era quase impossí­vel achar água para beber. Derreteram os campos de gelo no norte e tiraram as barreiras que haviam sido postas ao redor da terra para nos proteger. Não podiam destruir o sol e as estrelas, mas cobriram tudo de nuvens para que ninguém os visse de novo.

“Tudo isso começou antes de eu nascer e continuou en­quanto eu era muito novo. O motivo para Scar, eu e os outros não conhecermos nada diferente é porque o mundo sempre foi assim. Estou com 14 anos... acho. Provavelmente tenho a mesma idade que você. Na verdade é bem provável que nós cinco tenhamos nascido exatamente no mesmo momento. Nenhum de nós conheceu os pais. E todos éramos especiais. Tínhamos poderes...”

Jamie assentiu. Tinha visto Matt varrendo o inimigo de lado apenas com um gesto da mão. Ele e Pedra-de-Fogo podiam alcançar a mente um do outro. Inti fazia curas. E Scar? Se ela possuía algum poder, não havia mostrado. Jamie quis pergun­tar sobre ela, mas Matt já ia continuando.

— Fomos postos no mundo para liderar a luta contra os Antigos. Mas logo percebemos que não seríamos fortes o bas­tante: principalmente se cada um ficasse sozinho. Foi o que eu disse ontem à noite. O fato era que precisávamos nos juntar. Tínhamos de encontrar uns aos outros, e depois... bem, você viu. Só precisávamos nos unir.

“Mas não foi tão fácil como seria de pensar. De início es­távamos em terras diferentes. E a vida já era horrível e perigo­sa quando nascemos. Scar foi obrigada a trabalhar nas minas. Inti começou a me contar ontem como seu povo o escondeu nas montanhas. Porque essa era a outra coisa: os Antigos sa­biam sobre nós e estavam nos procurando desde o início. Tentaram me matar muitas vezes. Passei um ano como prisio­neiro deles.

“Nós nos encontramos através dos sonhos, e é aqui que a coisa fica meio complicada, Jamie. Eu falei sobre os dois mundos, o passado e o futuro, mas há uma espécie de tercei­ro mundo que é meio como um túnel entre os dois. Tem um grande mar e uma ilha...”

— Eu estive lá! — exclamou Jamie.

— É. Ele existe no seu tempo e no meu.

— Eu vi você num barco de palha. Acho que Inti estava com você.

— E eu vi você.

— Fale do mundo de sonho.

— Há um local selvagem com uma mulher que vive lá, sozinha. E também há uma biblioteca. Um dia, talvez, você a encontre. Mas não vou falar disso agora. O que você precisa saber é que o mundo de sonho foi criado para nós cinco. Nós podemos nos encontrar lá e falar uns com os outros. E não importa se não falamos a mesma língua. Algumas vezes pa­rece dar medo quando viajamos para lá. Mas os sonhos nos ajudam. Nunca se esqueça disso.

“E agora vou tentar explicar como você chegou aqui e por que não pode ficar. Esta é a parte mais difícil de todas, e pro­vavelmente vou fazer uma confusão, mas vou me esforçar ao máximo.”

Matt parou para respirar. Não havia mais ninguém por perto. A água passava correndo, brilhando à luz da manhã.

— Falei sobre o passado e o futuro — começou. — E quando pensamos no tempo, em geral pensamos numa li­nha reta. Uma semana são apenas sete dias enfileirados. Um século é uma longa fileira de anos: cem. A gente nasce, cres­ce, envelhece e morre.

“Mas imagine se o tempo não fosse assim. Imagine se o tempo fosse circular. Pense no que isso significaria.”

— Não haveria início — disse Jamie. — Nem fim.

— Bom... o fim e o início seriam a mesma coisa. — Matt levantou a mão. — Seria meio como um relógio. A maioria dos relógios é circular, e quando a gente chega à meia-noite também chega ao começo do dia seguinte. Em outras pala­vras, numa fração de segundo o início e o fim do dia existem ao mesmo tempo.

“O mesmo é verdade com relação a nós. O início e o fim. As duas coisas se encontram no meio e é exatamente aí que nós nascemos.”

Matt balançou a cabeça e suspirou, chateado consigo mesmo.

— Isso não está indo bem. Deixe-me recomeçar. Ele pensou um momento, depois continuou:

— Ontem, quatro garotos e uma garota acabaram uma longa guerra contra os Antigos.

— Nós.

— É. Nós os derrotamos e conseguimos mandá-los para outra dimensão. E é lá que eles estão agora. Se você quiser, pode dizer que estamos na meia-noite e que um novo dia está para começar. Prendemos os Antigos do outro lado de um portão e neste momento parece que eles não podem retornar de jeito nenhum.

— Então o que vai acontecer em seguida?

— O mundo vai mudar. Não resta muito da humanidade, Jamie. Ela chegou perto da aniquilação total. Há alguns mi­lhares de pessoas espalhadas pelo planeta, mas o que acon­teceu aqui — a batalha e nós cinco — logo será totalmente esquecido. E à medida que os anos passarem, o mundo vai mudar. O gelo não terminou de derreter no norte e novos continentes estão se formando. Estamos entrando num perío­do de trevas: pode-se dizer que é um tempo para a civilização recuperar o fôlego. Mas então, lentamente, a roda do tempo vai girar e novas cidades vão surgir, novas culturas vão flores­cer. Tudo vai começar de novo.

“E então, um dia, você e seu irmão vão nascer. Daqui a 10 mil anos! Seu mundo vai ser muito diferente do nosso. Ainda que alguns nomes e lugares possam ecoar levemente através dos séculos, muito poucas pessoas saberão o que eles realmente sig­nificavam. Os Antigos. Os Cinco. A construção do primeiro portal.

“Você acha que vive num lugar seguro e confortável, mas acho que estará errado. Porque a coisa toda vai recomeçar. Os Antigos conseguirão sair da prisão que fizemos para eles, e o que virá em seguida será exatamente igual ao que acon­teceu aqui. Eles vão crescer em força e poder e vão terminar o que começaram.

— Vão destruir nosso mundo — disse Jamie.

— É.

— A Crepúsculo. Ela faz parte disso.

— Os Antigos não se mostram, enquanto puderem evi­tar. Encontram pessoas gananciosas, más ou cheias de ódio, e dão poder a elas. Essas pessoas acham que vão ficar ricas. Acham que vão ser recompensadas com tudo que querem. E só no fim percebem que os Antigos mentiram e que também estão condenadas. Não haverá sobreviventes. Todo o planeta tem de morrer.

“De modo que o que está acontecendo no seu mundo é exatamente o mesmo que aconteceu no meu. Ontem, o ciclo terminou e a última batalha foi vencida. Para você, o mesmo ciclo está para começar. Os Antigos vão ganhar força. O mun­do será despedaçado. E você terá de enfrentá-los pela segun­da vez.”

— Sozinho?

— Não, Jamie. No seu mundo também há quatro garo­tos e uma garota que precisam se juntar. Cinco Guardiões. Há um Matt, um Inti e uma Scar, como no meu.

— Mas somos os mesmos ou somos diferentes?

— Somos os mesmos, mas vivendo num tempo diferente.

— Não entendo!

Matt suspirou.

— Não tente decifrar. Só pense em como a coisa funcio­na. É só isso que importa.

— Cinco Guardiões no passado. Os mesmos cinco, nas­cidos de novo e lutando no futuro. Algumas vezes nós nos encontramos...

— No mundo de sonho.

— É. Afora isso estamos separados.

— Então como chegamos aqui? O que estou fazendo aqui agora? — Jamie não entendia tudo que Matt estava dizendo, mas era claro que, de algum modo, ele havia pulado de um mundo para o outro, e que seu lugar não era aqui.

— Esta é uma coisa que os Antigos nunca entenderam. Não posso explicar a você, mas eles nunca perceberam isso, e foi assim que consegui enganá-los.

“A coisa funciona do seguinte modo. Em algum lugar, no seu mundo, há um garoto chamado Matt. E se ele fosse mor­to, eu o substituiria instantaneamente... de modo que ainda haveria cinco Guardiões. E se eu fosse morto, o Matt do futu­ro seria chamado para me substituir. Está vendo? É como se cada um de nós tivesse duas vidas. Para nos matar direito, os Antigos precisam nos matar duas vezes.

— Árvore Nova foi morto.

— É. — Matt baixou a cabeça um momento, e quando falou, sua voz saiu baixa. — Nunca houve nada para Árvore Nova encontrar na colina Scathack. Eu o mandei porque sabia que ele iria morrer lá. E ele também sabia. Eu contei. Pedra-de-Fogo se culpa, mas a verdade é que Árvore Nova se sacri­ficou pelo resto de nós.

— Veja bem, eu tive de deixar que os Antigos matassem um de nós. Eles precisavam pensar que o círculo havia sido quebrado, que os Cinco nunca iriam se reunir e que eles ti­nham vencido. Isso iria deixá-los descuidados. Eles viram Ár­vore Nova morrer, mas não sabiam que você seria mandado para ocupar o lugar dele e que, afinal de contas, haveria cin­co de nós. E foi exatamente o que aconteceu. Deixaram Inti passar entre as fileiras deles. E quando você e Scar entraram na batalha... foi isso. Nós os vencemos usando um truque.

— Mas se eu não sou Árvore Nova, por que sei falar a língua dele? — Jamie ainda tinha consciência de que as pala­vras que estava usando não fariam sentido na Nevada do sé­culo XXI. — Como é que sei andar a cavalo? E isso... — ele pegou Geada. — Sinto que essa espada foi feita para mim. Eu nunca havia matado ninguém, mas assim que estava com ela na mão... — Ele parou, preferindo não se lembrar da matança do dia anterior.

— Um dia você vai travar outra batalha — disse Matt. — E nesse momento estará igualmente hábil. O passado aprende com o futuro e o futuro aprende com o passado. Eu já disse. Nós somos sempre os mesmos Cinco.

— Mas temos nomes diferentes. Matt assentiu.

— É verdade. Mas de onde vêm os nomes? Nós não os escolhemos. Eles são dados.

Jamie pensou por um momento. Fora chamado de Jamie porque esse era o nome do médico que o havia examinado quando era um bebê e o encontraram. Scott recebeu o nome por causa de uma caixa de sementes de grama. Aqueles não eram seus nomes verdadeiros. Eram só algo para colocar num formulário.

— Neste mundo, Inti recebeu o nome por causa do sol — continuou Matt. — Mas no futuro ele vai se chamar Pedro. Não importa. O nome não faz diferença para quem nós so­mos de verdade.

— Qual é o seu nome de verdade? — perguntou Jamie. Matt ficou em silêncio.

— Prefiro usar o nome que tenho no seu mundo. Sou apenas Matt.

Jamie estava sentindo alfinetadas na perna. Imaginou quanto tempo estariam sentados ali. O sol ia subindo cada vez mais.

— Não há muito mais coisas a acrescentar — continuou Matt. — Mas talvez você queria saber onde está. Daqui a 10 mil anos este país vai ser muito diferente. Terá se transforma­do numa pequena ilha. O nome será Inglaterra. A floresta terá sido replantada e haverá um povoado a cerca de um quilô­metro e meio de onde estamos agora. O povoado vai se cha­mar Pequeno Mailing, e ainda que o povo de lá se esqueça tudo sobre os Antigos e a batalha que acabamos de travar e vencer, ele terá fracas lembranças de que algo importante aconteceu aqui. Haverá um círculo de pedra, construído ao redor do lugar onde você e eu, Inti, Scar e Pedra-de-Fogo nos encontramos finalmente. Esse círculo será conhecido como Portal do Corvo.

Matt sorriu e apontou para baixo.

— Está vendo este rio perto do qual estamos sentados? Um dia ele vai salvar minha vida. Bem, não exatamente a mi­nha. — Ele apontou rio acima. — O outro Matt vai nadar de lá e sairá tossindo e meio afogado exatamente aqui. E quando ele se arrastar para fora, não saberá nada sobre mim. Porque, veja bem, ele pertence ao futuro. E eu estou aqui no passado.

— O que vai acontecer agora? Você vai me mandar de volta?

— Vou. Você tem de encontrar seu irmão. Preciso avisar, Jamie: se Scott foi apanhado pelos Antigos, você deve se preparar para o pior. Eles vão machucá-lo. Podem tentar mudá-lo. Se você o encontrar, talvez ele não seja o mesmo.

— Ele não estava em Silent Creek. — De repente Jamie se sentiu arrasado. Com tudo que havia acontecido neste outro mundo, esquecera como tinha fracassado no seu. Scott havia estado na prisão, mas depois fora embora. A busca precisava recomeçar. — Onde devo procurar por ele?

— Use seus sonhos. O mundo de sonho que nós visita­mos age de modo estranho. Algumas vezes ele nos manda mensagens na forma de imagens e símbolos. Sempre se lem­bre do que você vê naquele lugar. Pode significar alguma coisa.

Matt se levantou.

— Preciso ir — disse. — Ainda há muito trabalho a fazer. E daqui a alguns dias vou viajar com Inti até o país dele. Há um ponto fraco lá e temos de construir um segundo portal para garantir que os Antigos não voltem. Inti tem uma idéia brilhante para uma espécie de fechadura, mas em escala gi­gantesca. Vamos desenhá-la juntos para que possa ser cons­truída no solo do deserto.

— Mas de que adianta? — interrompeu Jamie. — Você já disse que os Antigos vão voltar.

— Bom, essa é uma discussão totalmente diferente. Só porque sabemos que eles vão voltar, não significa que não possamos tentar impedir. E quanto mais tempo os mantivermos do lado de fora, mais tempo o mundo tem para se restaurar.

— Você realmente não faz idéia de onde posso encon­trar Scott?

— Sinto muito. Mas ele ainda deve estar vivo. Se tivesse sido morto, Pedra-de-Fogo o teria substituído e ele teria con­seguido encontrar você de algum modo.

Houve um guincho alto e algo desceu voando do céu, pousando no galho estendido de um carvalho do outro lado do rio. Jamie se levantou, alarmado, mas era só uma águia. Imaginou de onde ela teria vindo. Agora o pássaro não esta­va se mexendo e parecia encará-lo diretamente.

Matt havia notado o pássaro e Jamie teve a impressão de que ele teria algum significado para o outro garoto.

— Há mais uma coisa que posso dizer, e que talvez ajude — disse ele.

— O quê?

— Existem dois portais no meu mundo e no seu. Nós fi­zemos o primeiro hoje. Inti e eu vamos projetar o segundo em breve. Mas há outra coisa que você precisa saber. Tam­bém há 25 portas.

— Como assim?

— Como você acha que nós viajamos essas grandes dis­tâncias para encontrar um ao outro? Inti veio do outro lado do mundo, e posso garantir que ele não pegou um barco! As portas são atalhos. Você entra por uma e sai por outra a mi­lhares de quilômetros. Há portas em seu mundo também.

— Onde?

— Todas ficam em locais sagrados, ou em locais que se tornaram sagrados principalmente porque as portas estavam lá. Lugares de culto. Construções de um tipo ou de outro, mas também em cavernas, câmaras funerárias, até morros. São marcados com a mesma estrela de cinco pontas que nós co­locamos nos estandartes. É o símbolo do poder dos Cinco. Vocês vão precisar encontrá-las. Todos vocês.

— Como faremos isso?

— Há um mapa. Foi desenhado por um homem chama­do José de Córdoba. Era um monge, mas foi tornado santo. Era um dos poucos homens que sabiam sobre nós e nossa guerra com os Antigos. Ele pôs o mapa em seu diário, e o mapa mostra as 25 portas. Encontre o diário e ele vai lhe dar os caminhos secretos por todo o seu mundo.

— Como eu volto para o meu mundo?

— Isso é fácil. Alguém mandou um guia para você. Jamie olhou para o outro lado do rio.

— A águia?

Matt confirmou com a cabeça.

— O que eu faço?

— Siga a águia. Ela vai mostrar aonde ir. — Matt se levantou.

Os dois garotos ficaram se olhando.

— Adeus, Jamie — disse Matt. — Nós vamos nos encon­trar de novo.

— Fico feliz porque pude lutar ao seu lado, Matt. Diga adeus a Inti e Scar, por mim. E a Pedra-de-Fogo. — Jamie desembainhou a espada pela última vez. Segurou-a por um mo­mento, não querendo soltá-la, mas sabia que não poderia levá-la. Entregou-a. — Cuide de Geada. Só estive com ela por pouco tempo, mas ela me serviu bem.

Os dois se entreolharam uma última vez. Depois, dei­xando Jamie ao lado do rio, Matt se virou e voltou para o acampamento.

Jamie olhou para a águia, que se agitou ligeiramente, balançando as penas.

— Para onde? — gritou.

A águia voou pela curta distância até a árvore seguinte, depois um pouco mais, para outra mais afastada do rio. E a mensagem era clara. Jamie deveria atravessá-lo nadando. Não sabia se gostava da idéia. O rio era fundo e frio, e a água corria muito depressa. Mas pelo jeito ele não teria opção.

— Como você quiser... — Ele desceu o barranco e entrou na água.

Estava na metade da travessia, na parte mais funda, quan­do percebeu que a correnteza era forte demais e que ele não iria conseguir. O rio o havia apanhado e estava levando-o corrente abaixo, arrastando-o entre margensque ficavam cada vez mais altas, bloqueando a luz. Pior ainda, suas roupas esta­vam pesando, puxando-o para baixo, ameaçando arrastá-lo sob a superfície. Jamie começou a entrar em pânico. Virou-se, imaginando se poderia gritar pedindo ajuda a Matt, mas Matt já estava longe e, no momento em que ele abriu a boca, pe­gou-se engolindo água. Sacudiu-se desesperadamente. Se não pudesse chegar à margem e agarrar alguma coisa, seria pu­xado para baixo. Era loucura. Teria passado por tanta coisa para simplesmente se afogar?

A águia continuava olhando-o, empoleirada em outra árvore. Jamie viu-a rapidamente e achou que o que havia acontecido fora bastante deliberado. Ele fora convidado para uma armadilha, e como um idiota havia entrado nela. A água — gélida — se agitava e espumava ao redor. Afun­dou. Ofegando, usando toda a força, rompeu a superfície e respirou de novo. À frente viu uma caverna, um buraco irregular na rocha. A água entrava ali em jorros e Jamie foi arrastado. Conseguiu gritar uma vez e em seguida foi sugado para a escuridão absoluta. Foi puxado para baixo de novo — e desta vez não tinha como voltar. A água penetrou no nariz e na boca. Ele estava girando e girando. Como havia permitido que isso acontecesse? Tinha certeza de que era a morte. E então, nada.

Abriu os olhos.

Estava deitado de lado, envolto num cobertor. Estava no deserto de Mojave e era o crepúsculo. Havia uma pequena fogueira diante dele e dava para sentir uma dor ardente nos ombros. Joe Feather se inclinava sobre ele. O agente de recep­ção sorria, o rosto cheio de alívio.

Jamie havia retornado.

 

— Quanto tempo estive aqui? — perguntou Jamie.

— Duas noites e dois dias — respondeu Joe Feather.

— E onde, exatamente, estamos?

— A sul de Boulder City. Nas montanhas. Ninguém vai nos encontrar aqui.

Jamie fez um cálculo rápido. O tempo que ele havia passa­do inconsciente neste mundo parecia igual ao tempo em que estivera lutando e sobrevivendo no outro. Olhou Joe remexer a fogueira com um pedaço de pau, fazendo as fagulhas salta­rem. O sol estava se pondo e logo a noite iria esfriar, mas a fogueira estava ali na verdade para ferver água, preparara re­feição e dar um pouco de luz assim que a noite chegasse. Não havia sinal de Daniel. Ele estava dormindo na tenda indígena.

— Há umas coisas que preciso perguntar — disse Jamie.

— Você está em condições de conversar?

Jamie mexeu a omoplata. No momento em que havia retornado ao seu mundo, o ferimento retornou. Podia sentir onde a bala o havia acertado. Provavelmente sentiria algo nos próximos anos. Mas agora não estava doendo muito.

— Nós tivemos de abrir o ferimento — disse Joe. — Tira­mos a bala e fizemos um curativo com casca de salgueiro. — Jamie ficou perplexo. — É tradicional. Mas também faz sen­tido. A casca de salgueiro contém ácido salicílico. É um anal­gésico natural.

— Quem fez isso, Joe?

— Eu e uma amiga. Jamie assentiu.

— Bem, obrigado... — Ele certamente não iria reclamar. Tinha visto ferimentos muito piores nos últimos dois dias.

— Aqui... — Joe levantou uma chaleira do fogo e derra­mou água fervente em duas canecas. Quem os havia trazido até ali tinha deixado bastantes suprimentos. Joe fez um chá cor-de-rosa com gosto ligeiramente amargo. — Chá de meg gel — explicou. — Purifica o sangue. Talvez tire um pouco das toxinas do ferimento.

— Obrigado. — Jamie pegou o líquido fumegante mas não bebeu. — Tem certeza que estamos em segurança?

— Tenho. As autoridades não vão procurar você aqui, e se procurarem, não vão nos encontrar. Meu povo é Washoe. Sabemos nos esconder.

— Você também é Washoe.

— É. Como você e seu irmão.

— Você sabia sobre os Cinco. — Jamie se lembrou do que Joe havia dito quando chegou à cela de isolamento. — Sabe sobre os Antigos?

Joe ficou quieto um momento.

— Não é assim que nós os chamamos — disse ele. — Cada tribo tem um nome diferente para eles. Os Navajo os chamam de Anasazi. Que significa inimigo antigo. Nós falamos deles como comedores de gente. São a mesma coisa.

— Como você sabia quem eu era?

— Eu estava esperando você. — Joe tomou um gole do chá, convidando Jamie a fazer o mesmo. — Como começar a contar tudo que você quer saber? Talvez eu devesse pergun­tar o quanto você sabe sobre os Washoe e sobre outros nati­vos americanos.

— Não sei muito — admitiu Jamie. — Nós falamos sobre os índios na escola. Sobre o que aconteceu com eles.

— Então você deve começar entendendo que meu povo foi destruído. — Joe disse as palavras em tom casual e sem rancor. — A tribo Washoe era uma tribo das montanhas e nós aprendemos a nos esconder. Mas mesmo assim restam apenas algumas centenas de nós, e não temos quase nada. Claro que não estávamos sozinhos. Todo o povo nativo da América do Norte sofreu do mesmo modo. Os brancos tiraram nosso passado e nós crescemos com pouca esperança de fu­turo. Muitos dos nossos pais se voltaram para o álcool, ten­tando esquecer o que foi feito conosco. Muitos jovens se voltaram para as drogas pelo mesmo motivo.

“Mas há alguns de nós que caminham em dois mundos. Trabalhamos nos Estados Unidos modernos, nos hotéis, nos cassinos ou, como eu, nas prisões. Mas não esquecemos nos­sa história. E ainda contamos a história de uma grande bata­lha que aconteceu no princípio dos tempos e sobre dois heróis, gêmeos, que ajudaram a vencê-la.

— Pedra-de-Fogo e Árvore Nova.

— Esses não são os nomes que nós usamos. Acho que esses nomes são iroqueses. Mas não importa. Houve um tem­po em que todas as tribos eram uma só. E, de qualquer modo, as histórias nunca foram escritas. Elas mudam com a passa­gem do tempo.

“Mas mesmo hoje ainda contamos histórias dos heróis gêmeos. Os apache, os kiowa, os navajo e muitos outros. Os gêmeos são sempre garotos da sua idade. Em muitas histórias Pedra-de-Fogo é mau. Ele causa a morte do irmão, Árvore Nova.

— Ele não era mau. Árvore Nova quis morrer.

— Sempre nos contaram que os heróis gêmeos iriam re­tornar num momento de grande necessidade e que devería­mos cuidar deles. Havia um modo de reconhecê-los. — Joe estendeu a mão e tocou seu próprio ombro. — Eles teriam uma marca. Aqui...

— Uma tatuagem...

— Pode chamar assim, mas não foi uma coisa injetada em vocês. Eu vi isso imediatamente. É uma coisa com a qual você nasceu.

— O que ela significa?

— Os símbolos índios têm muitos significados. Mas a es­piral é um símbolo da vida humana. Todo ser humano tem uma espiral no corpo. Olhe suas impressões digitais ou os ca­belos no cocuruto da cabeça. E para nós essas partes sempre foram sagradas. Uma espiral é circular e não termina nunca, por isso pode significar a imortalidade. Quanto à linha dividindo-a ao meio, pode significar muitas coisas. Noite e dia. Bem e mal...

— Gêmeos.

— É. Eu vi a marca quando você estava no chuveiro e adi­vinhei imediatamente quem você deveria ser. Mas você me confundiu. Mentiu para mim. Disse que não tinha irmão.

— Eu não podia contar. Não podia contar a ninguém. Joe assentiu.

— Se eu soubesse, poderia ter agido antes. Mesmo assim fiz contato com meus amigos. Não foi fácil. Tive de contatá-los pelo telefone por satélite, e as ligações em Silent Creek eram monitoradas. Mas fiz com que eles entendessem e eles concor­daram em se juntar. Então Max Koring descobriu quem você era. Ele me disse seu nome verdadeiro e disse que você tinha um gêmeo. Foi então que eu soube que você corria grande perigo.

— Então atacou a prisão.

— É.

— Onde estão seus amigos agora? Nem tive chance de agradecer.

— Eles não precisam de agradecimento. Ficaram honra­dos em ajudar. A maioria já voltou para casa. Uns dois foram feridos. Nenhum foi morto.

Houve um movimento e Daniel apareceu, arrastando-se remelento para fora da tenda. Havia cochilado durante a tar­de mas agora piscou e sorriu, satisfeito em ver Jamie.

— Você acordou! — disse ele.

— Danny... preciso falar com você. — Jamie lutou para fi­car de pé. Suas costas doeram, mas finalmente ele conseguiu se ajeitar, sentado de pernas cruzadas diante da fogueira. Os dois ainda usavam as calças da prisão, mas alguém lhes dera novas camisetas. A de Danny anunciava óleo de motor.

— Achei que tinham matado você— disse Danny. — Uma velha apareceu, e quero dizer velha mesmo. Passou séculos cuidando de você. Não queriam deixar que eu olhasse. Não sei o que ela fez, mas hoje cedo ela pôs as coisas no cavalo e foi embora. Achei que você estava morto. — Ele deu de om­bros. — Fico feliz por não estar.

Joe se levantou.

— Vou deixar vocês dois — disse. — Tenho de preparar a comida. — E desapareceu atrás da tenda.

Jamie olhou ao redor. Estavam numa espécie defenda nas montanhas, rodeados por todos os lados. A não ser que um helicóptero passasse diretamente acima, não havia chance de serem vistos. E, como Joe havia dito, por que alguém iria procurá-los ali? Examinou a tenda onde Daniel estivera dor­mindo. Parecia genuína, feita de pele de animais com um padrão simples de linhas entrelaçadas ao redor da base. O sol estava baixo no céu, fazendo as montanhas luzirem num vermelho profundo. Nada se mexia, a não ser os dedos das chamas, lambendo a madeira morta, e o fio de fumaça, dobrando-se enquanto subia.

Olhou para Daniel.

— Como você está?

— Bem. — Daniel suspirou. — Mas queria ir para casa. Joe tem um celular, mas aqui não pega. Nem pude ligar para minha mãe.

— Você pode me falar sobre Silent Creek? — Jamie fez uma pausa. — Pode falar do Scott?

— Não tem muita coisa para falar. — Daniel sentou-se do outro lado da fogueira. — Eles me pegaram quando eu estava indo de casa para a escola e me levaram para lá. Éramos 16 no Bloco. Eu era o mais novo. Tinha quatro garotas. O resto eram garotos. — Ele pensou um momento. — O primeiro mês foi o pior. Eles fizeram experiências. Achavam que eu tinha algum tipo de poder. Era nisso que estavam interessados. Es­tavam procurando garotos com poderes.

— Você via o futuro.

— Minha mãe contou isso? Jamie assentiu.

— Só aconteceu umas duas vezes, e não era tipo ver o futuro. Era mais como uma sensação ruim. Teve um ônibus que bateu e eu meio sabia que isso ia acontecer. Acho que foi assim que me descobriram, porque saiu nos jornais. De qual­quer modo, eles tentaram me obrigar a fazer isso de novo, e quando eu não conseguia eles me machucavam. Tinham uma sala especial. Disseram que era o único lugar em Silent Creek onde meu poder funcionaria, mas não fazia diferença porque eu não conseguia nada, e depois de um tempo perderam o interesse em mim.

Isso pelo menos explicava uma coisa que Jamie não havia entendido, por que não conseguira obrigar Max Koring a fa­zer o que ele queria. Havia pensado que seu poder tinha falha­do. Mas a culpa era da localização da prisão. Um fenômeno natural, talvez algum tipo de magnetismo, o havia neutrali­zado. A Crepúsculo não deixava nada ao acaso.

— Eles estavam procurando os Cinco — murmurou Jamie. De repente era óbvio.

— Chamavam isso de projeto Psi — continuou Daniel. — Os outros garotos eram de todos os Estados Unidos. Era a mesma coisa com todos nós. Eles faziam testes. Machucavam a gente. Depois deixavam para lá. Depois disso só éramos man­tidos na prisão, o que era um saco, porque ninguém tinha feito nada de errado. Billy tinha medo de que eles matassem a gente um dia, se não precisassem mais.

— Quem era Billy?

— Meu amigo. Fiquei chateado porque a gente teve de deixar ele para trás. Espero que ele esteja bem.

— Fale do Scott.

— Scott foi o último a chegar. Deve ter sido há umas duas semanas. Ele ficou na cela ao lado da minha, e eu o vi antes de começarem com ele. — Daniel viu Jamie se encolher. — Desculpe... — murmurou.

— Eles machucaram muito o Scott?

— Bom, levaram ele para longe e devem ter feito um mon­te de coisas ruins, porque depois de uns dias ele não falava mais comigo. Não falava com ninguém. O careca estava tra­balhando nele... o Sr. Banes. — Daniel fez uma pausa. — A gente sabia que o Scott era importante para eles porque che­gou uma tal mulher. Era magricela, de cabelo grisalho e com a cara parecendo uma fruta podre. A gente só tinha visto ela uma vez, antes. Todo mundo tinha medo dela.

— Sabe o nome dela? Daniel balançou a cabeça.

— Ela nunca disse quem era.

Jamie queria saber mais uma coisa, mas quase sentia pa­vor de colocar a pergunta em palavras.

— O que aconteceu com o Scott? O que fizeram com ele?

— Não sei, Jamie. Desculpe. Num minuto ele estava lá, no outro tinha sumido. Ninguém sabia para onde ele foi levado.

Então era isso.

Era o mesmo que Joe havia dito. Jamie sentiu uma onda negra de desespero, mas forçou-a para longe. Não desistiria. Lembrava-se de tudo que Matt havia dito. Tinha liderado um exército e lutado numa guerra. O estranho era que não havia sequer uma parte dele que acreditasse que isso não houvesse acontecido, ou que toda a experiência tivesse sido algum tipo de fantasia, imaginada enquanto ele estava inconsciente. Sabia que era real. E Joe o reconhecia como o que ele era. Um dos Cinco. Independentemente de qualquer coisa, encontraria Scott, não importando o quanto demorasse.

— Quando podemos ir embora? — perguntou Daniel. O garoto tinha 11 anos. Fora seqüestrado em plena luz do dia, separado da mãe, mantido como prisioneiro durante sete meses. Jamie entendia o que ele devia estar sentindo. Então Joe apareceu trazendo uma panela.

— Quando podemos ir embora? — Jamie repetiu a pergunta.

— Aonde vocês querem ir?

— Temos de voltar a Reno. A mãe do Danny está espe­rando lá.

Joe pensou.

— Mais 24 horas — disse. — A estrada mais próxima fica a 12 quilômetros daqui e temos de ir à noite. Tenho amigos esperando por nós. Eles vão levá-los aonde vocês quiserem ir.

— Podemos ir amanhã, mesmo? — perguntou Daniel.

— Se Jamie estiver pronto.

— Não se preocupe, Danny — disse Jamie. Em seguida tomou um gole de chá. — Vou estar pronto.

Saíram no fim da tarde do dia seguinte, Jamie se apoiando num pedaço de pau que Joe havia trazido para ele. Sabia que não estava realmente pronto para a viagem. O ombro e o braço esquerdo pegavam fogo e ele ainda estava fraco devi­do à perda de sangue. Mas não podia manter Daniel espe­rando mais tempo. Era uma noite perfeita, com lua cheia e talvez um milhão de estrelas guiando-os no caminho. Desce­ram lentamente as montanhas, mas assim que o chão se ni­velou fizeram um progresso melhor. Joe sabia exatamente aonde estavam indo e não hesitou nenhuma vez. Jamie ima­ginou que ele havia nascido com aquelas habilidades, algo passado instintivamente de geração em geração.

Logo estava exausto e desejando ter esperado mais, antes de partir. Cada passo parecia pegar a dor e amplificá-la, lançando-a num tremor pelo corpo. Pegou-se tendo de se apoiar em Daniel. Mas se recusava a reclamar e, mesmo tendo parado algumas vezes para beber água, jamais pediu para descansar.

Na verdade só viu a estrada quando chegaram a ela. Num momento seu pé estava pisando em areia, no outro baixava sobre o asfalto. Olhou para a direita e ali estava, uma linha reta cortando até a distância. Não havia construções em lu­gar nenhum, só uma fileira de postes de telégrafo acompa­nhava a estrada, com os fios indo de um ao outro. Daniel soltou uma exclamação de prazer. Fios de telefone significa­vam contato com sua mãe. Era tudo que ele queria.

Haviam caminhado pela estrada por uns cem metros quan­do Jamie viu faróis vindo em sua direção. Ficou imediatamen­te nervoso, mas então olhou para Joe, que assentiu devagar. Era o que ele estivera esperando. Alguns instantes depois um microônibus velho parou, com um motorista índio. Jamie não sabia direito como o sujeito os havia encontrado. Será que estivera patrulhando a estrada todas as noites, esperando que eles aparecessem? Mas isso não importava agora. Sim­plesmente sentiu-se grato por descansar os pés, feliz por es­tar finalmente a caminho.

Joe falou algumas palavras com o motorista e todos subi­ram. Partiram imediatamente. Daniel devia estar mais cansado do que pensava, porque caiu no sono quase imediatamente. Jamie sentou-se encostado na janela, olhando a paisagem — escura e vazia — passar depressa.

Uma hora depois pararam nos arredores de uma cidadezinha. Jamie viu lâmpadas elétricas a distância e as sombras atarracadas de casas. Não tinha idéia de onde estavam.

— Deixo vocês aqui — anunciou Joe.

— Obrigado. — Jamie não sabia direito o que dizer. — O que vai acontecer com você, Joe? A polícia estará procuran­do por você. E você não tem emprego.

— Meu povo vai cuidar de mim. Não precisa se preocu­par. E se você precisar outra vez, nós iremos.

Jamie sabia que era verdade. Não tinha como contatá-los, mas de algum modo eles cuidariam dele. Se a necessidade surgisse, estariam presentes. Joe se inclinou e os dois aperta­ram as mãos. Então o índio desceu do microônibus e os três partiram, deixando-o sozinho. Depois disso Jamie dormiu.

Quando abriu os olhos novamente, soube imediatamente onde estava: de volta aonde tudo havia começado, na cidade de Reno. Os marcos familiares surgiam a toda volta. O hotel Hilton a distância. O grande bloco de vidro da prefeitura, erguendo-se no centro da cidade. Os cassinos e as lojas de penhores. A água rápida do rio Truckee. De certa forma era o último lugar onde gostaria de estar, mas ele e Alicia haviam concordado que isso fazia sentido. Ela queria estar perto dele enquanto Jamie estivesse em Nevada, mas não perto demais. Alicia podia alugar um lugar em Reno e ficar a apenas algu­mas horas da prisão. Havia decidido que iria esperá-lo ali.

— Aonde levo vocês? — perguntou o motorista. Jamie não sabia nada sobre ele, nem mesmo o nome.

— Há um lugar chamado Paso Tiempo — respondeu Jamie. — Fica perto do aeroporto.

Paso Tiempo era um estacionamento de trailers perto do motel onde Alicia havia se hospedado na primeira vez em que estivera em Reno. Era uma grande faixa de rua com casas que eram pouco mais do que caixas sobre rodas estaciona­das uma ao lado da outra, numa fileira bem organizada. Eles diminuíram a velocidade e pararam do lado de uma das ca­sas: a de número 23. Era a mais bonita do estacionamento, rodeada por flores. Alicia a havia alugado por um mês.

O microônibus parou. Jamie cutucou Daniel.

— Acorda — murmurou. E nesse momento a porta do trailer se abriu e ali estava Alicia, parada no degrau de cima.

Devia ter ouvido quando eles chegaram. Talvez abrisse a por­ta sempre que um carro parava perto. Daniel viu-a e acordou instantaneamente, todo o rosto cheio de uma expressão de alegria. Passou rapidamente por Jamie, quase caindo do microônibus, e correu para ela. Então os dois estavam abra­çados, não querendo se separar nunca mais.

Jamie saiu mais devagar. Estava sentindo muita dor. Mal podia mover o pescoço ou o braço direito, e estava mancan­do. Nesse momento sentia muitas coisas. Estava feliz por ter trazido Daniel de volta. Mas, olhando-os, também percebeu outra coisa: uma tristeza funda que penetrava ainda mais do que o ferimento nas costas. Não tinha mãe. Ninguém jamais o havia segurado assim, e jamais seguraria. Sentiu vergonha. Era errado, de sua parte. Mas sabia que havia chegado ao fim de uma estrada. Alicia e Daniel tinham um ao outro. Não existia mais nada que pudessem fazer por ele.

Alicia levantou os olhos e viu-o.

— Jamie — disse ela. — Você o trouxe de volta. Jamie assentiu.

— Como posso agradecer? Como algum dia vou poder agradecer? — Então ela percebeu. — E o Scott?

— Scott não estava lá.

Ela ouviu as palavras pesadas e foi até ele, arrastando Daniel. Por um instante os dois se encararam e ela estendeu a mão, querendo abraçá-lo. Mas ele recuou.

— Você está ferido — disse ela.

— Vou ficar bem — Jamie olhou para além dela. — Você se importa se eu entrar? Preciso me deitar.

— Claro. Você precisa me contar tudo... — Ela parou.— Sinto tanto... com relação ao Scott.

Mas Jamie já havia passado por ela. De algum modo con­seguiu subir os degraus e entrou no trailer. Era fresco, limpo, com uma pequena cozinha, um sofá e uma mesa. Sentou-se. A mãe e o filho permaneceram do lado de fora.

 

Não fizeram nada durante todo o dia seguinte. Jamie preci­sava descansar e Alicia e Daniel ficaram satisfeitos em ter um tempo sozinhos. Sentiam-se seguros no estacionamento de trailer. Pessoas iam e vinham e ninguém fazia muitas per­guntas. Jamie não fora visto. Era como se fossem uma família tentando ajeitar a vida, ou poderiam estar fugindo da lei. Para os outros moradores, não fazia diferença.

Alicia estava preocupada com Jamie. Tinha trazido o al­moço para ele e trocado o curativo. Os dois haviam conversa­do um pouco, mas na maior parte do tempo ele queria ficar sozinho. Estivera longe por apenas uma semana, mas agora estava totalmente mudado. Claro, tinha levado um tiro. Ti­nha quase morrido. E ela podia sentir o desapontamento dele por não ter encontrado Scott. Mas era algo mais, mais do que tudo isso, ainda. Ele havia envelhecido. Via o mundo com olhos diferentes.

O dia seguinte era domingo e Jamie acordou tarde. O trailer só tinha um quarto, que Alicia estava dividindo com Daniel, e Jamie usava um sofá na sala. Todos sabiam que não poderiam ficar ali por muito mais tempo. Estavam desperdiçando o tem­po em Reno. Ainda havia coisas que precisavam fazer.

Quando Alicia entrou, Jamie estava sentando-se. Ela ficou feliz ao ver que boa parte da cor havia retornado e ele parecia estar se mexendo com mais facilidade.

— Café? — perguntou ela.

— Obrigado. — Ele olhou ao redor. — Onde está o Danny?

— Ainda dormindo.

Alicia foi à área da cozinha e pôs a chaleira no fogo.

— Como você está? — perguntou.

— Cansado, Alicia. Mas vou ficar bem. Só preciso come­çar a procurar o Scott. — Jamie hesitou, mas precisava saber uma coisa. — Quando você e Danny vão voltar a Washington? Você tem de retornar para o trabalho. Deve haver um monte de coisas que precisa fazer.

Alicia trouxe o café até a cama.

— Pode tirar uma coisa da cabeça — disse ela. — Não vou embora enquanto não encontrarmos o Scott. Eu disse desde o início. Estamos nisso juntos... e Danny concorda. Vamos ficar com você.

Jamie assentiu, agradecendo.

— Não faço idéia de por onde começar.

— Mas eu faço. — Alicia sentou-se perto dele, na beira da cama. — Aconteceu um monte de coisas nos últimos dias. A começar pelo fato de que os federais ocuparam Silent Creek enquanto Danny e você estavam escondidos nas montanhas.

— Eles entraram lá...?

— Foi John Trelawny. Ele ficou desesperadamente preo­cupado com você. Chamou as autoridades.

— Achei que ele não poderia fazer isso.

— Alguma coisa mudou. John quer falar com você urgen­temente. Liguei para ele ontem, mas ele está vindo da Costa Leste. E, de qualquer modo, você estava apagado.

— Então o que aconteceu em Silent Creek? Eles encon­traram o Bloco?

Alicia confirmou com a cabeça.

— Todos os prisioneiros, os que eles chamavam de espe­ciais, foram soltos e os outros garotos serão transferidos para instalações do estado. Falei com Patrick. Você se lembra dele?

Jamie pensou no homem de cabelos prateados que ha­viam conhecido no hotel em Los Angeles. Era o chefe de cam­panha do senador na Califórnia.

— Ele me contou o máximo que pôde, e que na verdade não era muita coisa. Por enquanto ninguém fala nada. Claro, a Crepúsculo nega ter conhecimento dos seqüestras ou que tenha alguma coisa a ver com eles. Está tentando dizer que tudo era coisa do Colton Banes, que ele estava fazendo al­gum tipo de operação independente. E, como ele está mor­to, não vai discutir.

— Saiu alguma coisa nos jornais?

— Ainda não. A história é grande demais e ninguém en­tende direito o que aconteceu. Por enquanto estão manten­do em segredo.

Jamie entendeu. Sabia que haveria um encobrimento. Ha­via muitas perguntas que não estavam simplesmente deixan­do de ser respondidas, eram impossíveis de responder. Ele não se importava. Só estava satisfeito porque o amigo de Daniel, Billy, e os outros garotos seriam devolvidos às famílias. E a notícia também era boa para Baltimore, Olhos Verdes e os outros prisioneiros. Eles estariam em melhor situação com as autoridades de Nevada. Talvez até conseguissem ser soltos mais cedo.

— As notícias são boas — disse Alicia, e Jamie pôde ver que ela não estava simplesmente tentando animá-lo. — Os federais estão no controle. Prenderam um homem chamado Max Koring e pegaram toda a papelada no bloco da adminis­tração. Estão examinando agora. Deve haver algum registro do que aconteceu com Scott. Alguém deve saber onde ele está. Vão encontrar alguma coisa. Tenho certeza.

Jamie queria compartilhar o otimismo. Mas não tinha tanta certeza. Parecia que a Crepúsculo era maior e mais poderosa do que qualquer um deles suspeitava. Mas, afinal de contas, ele tinha visto os Antigos. Tanta morte, causada sem pensar duas vezes. Sentada ali no trailer junto ao aeroporto de Reno, Alicia achava que o mundo se encontrava em segurança. Jamie sabia como isso podia estar errado.

— Por que o senador Trelawny quer me ver?

— Ele não disse. Só disse que tinha informações novas e que havia alguém que você precisava conhecer. Achou que iriam encontrar você na prisão. As pessoas que entraram... o primeiro trabalho delas era pegar você e levar até ele. Vamos vê-lo amanhã.

— Onde ele está agora?

— Não muito longe daqui. Do outro lado da fronteira do estado, na Califórnia... na High Sierra. Já ouviu falar de um lugar chamado Auburn?

Jamie balançou a cabeça.

— É uma antiga cidade de mineração. Era importante no tempo da corrida do ouro. John nasceu lá, e hoje ele está fa­zendo 50 anos, por isso vão fazer um desfile em sua homena­gem. — Havia uma televisão na sala, sobre a bancada da cozinha, e um controle remoto perto da cama. Alicia estendeu a mão e pegou-o. — Deve passar alguma coisa no noticiário.

Ela ligou a TV.

O aparelho já estava sintonizado num canal de notícia 24 horas. O apresentador falava do resultado de um julgamento de um escândalo financeiro. Depois houve propagandas. Em seguida a história de um jogador de basquete acusado de assassinato.

— Vamos encontrar o senador em Los Angeles — disse Alicia.

— A polícia ainda está me procurando?

De repente Jamie percebeu como sua situação havia fica­do ridícula. Não tinha cometido nenhum crime, mas ainda era procurado pelo assassinato de Don White e Marcie Kelsey. E, como Jeremy Rabby, era supostamente procurado por vários crimes relacionados com drogas e por escapar de Silent Creek. Como havia entrado naquela confusão?

Mas Alicia não teve chance de responder à pergunta.

— ...e em Auburn, Califórnia, os últimos preparativos para uma festa de aniversário muito especial. John Trelawny, o ho­mem que a maioria das pessoas acha que vai ganhar a elei­ção em novembro, está retornando à sua cidade natal, onde nasceu há 50 anos. Estas são as ruas onde, daqui a algumas horas, 5 mil pessoas devem se reunir para dar as boas-vindas ao senador...

A matéria que eles haviam esperado surgiu na tela. Olhan­do a imagem, Jamie se imobilizou. Era como se um abismo tivesse se aberto no chão e ele fosse sugado para dentro. Pegou-se agarrando a cama como se quisesse se firmar. Seus olhos estavam fixos na TV.

Tinha visto um rosto e reconhecido. Não era John Trelawny. Era o último rosto que ele esperava ver. Não era ninguém que tivesse encontrado no mundo real. Nem era uma pessoa de verdade, afinal de contas.

Era uma estátua.

Um rosto de pedra cinza. A pele parecendo massa de vidraceiro. Olhos vazios. A figura usava uma camisa com as man­gas enroladas e chapéu de caubói. Estava apoiada num dos joelhos, segurando uma tigela. Havia algum tipo de ponte de metal ao fundo e algumas peças de velhas máquinas de mi­neração atrás.

— O que é? — perguntou Alicia. Ela vira sua expressão. A câmera havia se demorado na estátua apenas por um momento, mas Jamie ouviu as palavras do comentário...

“... procurando ouro, a cidade foi fundada no século XIX...”

E de repente entendeu o que aquele homem era... o ho­mem que ele tinha visto ajoelhado perto da água em seus sonhos.

Não era um caubói. Era um garimpeiro. Por quê?

— Jamie...? — Alicia estava ficando alarmada.

— Você viu? Agora mesmo...

— O quê?

— Na tela!

Era tarde demais. A imagem havia mudado. Agora estava mostrando gravações antigas de John Trelawny acenando para a multidão em outro comício.

— Havia um homem na tela agora mesmo. Não era um homem. Era uma estátua. Eu vi antes e... não sei por que, mas significa alguma coisa. É importante.

— Em Auburn?

— É. Acho que sim.

Alicia saiu da cama. Estava com um laptop e abriu-o, ligando-o e conectando-se à Internet. Enquanto isso Jamie pensava furiosamente. Sabia que tinha recebido um sinal e que estava por sua conta, somente sua, entendê-lo.

A estátua de um garimpeiro em Auburn. Um gigante cin­za ajoelhado numa praia. Era o mesmo homem — Jamie ti­nha certeza. Lembrava-se do que Matt havia dito. O mundo dos sonhos estava lá para ajudá-lo. Mas algumas vezes man­dava mensagens de modos estranhos. O que o homem cinza havia dito?

“Ele vai matá-lo. E é seu dever impedir.”

Será que Scott seria morto em Auburn? Seria isso que ele quisera dizer?

— O nome dele é Claude Chana — disse Alicia. Ela havia acessado um site em Auburn e estava olhando uma foto da estátua. — Ele encontrou ouro na ravina de Auburn em 1848 e isso levou ao estabelecimento de um acampamento de mi­neração que mais tarde se transformou na cidade. Há uma estátua dele perto da antiga sede dos bombeiros.

“Ele vai matá-lo.”

“Quer dizer... o Scott?”

“Não, garoto. Você não entende...”

Mas de repente, com clareza horrível, Jamie entendeu. Havia dois homens lutando para ser presidente: John Trelawny e Charles Baker. A Crepúsculo apoiava Baker. Mas Trelawny es­tava ganhando.

Então a Crepúsculo ia assassiná-lo.

E ia usar o Scott.

“Ele vai matá-lo”.

O “ele” era Scott. O “lo” era Trelawny. Era simples.

— Você precisa ligar para o senador— disse Jamie, e qua­se pareceu que era outra pessoa falando. — Precisa alertá-lo.

— De quê...?

— Vão tentar matá-lo. Alicia encarou-o.

— O que você está dizendo? Como sabe disso?

— Por favor, Alicia. Não discuta comigo. Não posso ex­plicar, mas vão tentar matar o senador Trelawny em Auburn hoje, e você tem de telefonar para ele e impedir que ele vá para lá.

Alicia hesitou mais alguns segundos. Depois pegou o ce­lular e digitou um número que estava na memória. Jamie es­perou enquanto a ligação era completada. Viu o rosto dela se frustrar.

— Senador... — disse ela, e ficou claro que Alicia estava deixando um recado.— Aqui é Alicia McGuire. Estive falando com Jamie e ele disse que o senhor está em perigo, que não deve ir a Auburn. Por favor, me ligue de volta.

Ela fechou o telefone.

— Ele não atendeu — disse Jamie.

— Só tenho o número do celular pessoal dele — explicou Alicia. — John queria que eu ligasse diretamente para ele. Mas deve ter deixado o telefone para trás. Pode ter desligado. Não sei como falar com ele.

— A que distância fica Auburn?

— Não sei. Do outro lado do lago Tahoe.

— Quanto tempo a gente demoraria para chegar lá? O rosto de Alicia se iluminou.

— Não muito. Umas duas horas.

— E quando o desfile começa?

— Ao meio-dia. — Ela olhou para o relógio. Eram alguns minutos depois das dez. Tomou uma decisão. — Podemos conseguir. Vista-se. Vou acordar o Daniel. Vai ser apertado, mas podemos chegar...

A multidão havia começado a chegar cedo para o desfile de aniversário, e às onze horas devia haver 2 mil pessoas nas cal­çadas, com mais gente saindo dos carros a cada minuto. Havia dúzias de policiais de plantão. O serviço secreto tinha ido na noite anterior e isolado a área por onde o desfile iria aconte­cer. Enquanto os moradores dormiam, os policiais fizeram dis­cretamente uma varredura em toda a cidade, usando cães para farejar qualquer traço de explosivos, instalando câmeras de segurança, identificando os telhados e as janelas altas que po­deriam dar cobertura a algum atirador.

Havia duas partes separadas em Auburn. A área moder­na era comum, algumas ruas que se encontravam em ângu­lo, com as lojas e os escritórios de sempre. Mas a Cidade Velha, como todo mundo chamava, fora preservada quase perfeitamente, um eco vivo do século XIX e da corrida do ouro que a havia criado.

Ela ficava — ou melhor, se aninhava — na base de um morro. A rua principal descia e depois se dividia em duas, cada lado se curvando como as duas metades de uma ferradura com um área aberta, como uma praça, no meio. Lojas e casas acompanhavam todas as bordas, na maioria de tijolos ou es­truturas de madeira. Mas eram os prédios do meio da praça o orgulho e a alegria da cidade. Um era uma antiga sede dos correios, o outro uma sede dos bombeiros, que parecia um brinquedo enorme com o teto pontudo e tiras vermelhas e brancas.

Auburn possuía seu próprio tribunal, que se erguia acima da cidade, com a grande cúpula brilhando ao sol. Nos meses de verão, o calor podia ser difícil de suportar, e a cidade não se parecia tanto com uma ferradura mas sim com uma frigideira. Mas alguém, muito tempo antes, havia plantado um cedro atrás da sede dos bombeiros e seus galhos haviam se espalhado em todas as direções, as folhas verdes proporcio­nando pelo menos algum abrigo do sol.

A estátua de Claude Chana ficava perto do cedro. Era ali que a velha cidade acabava abruptamente, com as seis pistas de tráfego da auto-estrada 80 rugindo em direção ao leste e o oeste. Havia dois postos de gasolina, frente a frente, e uma pon­te ferroviária atrás. Era isso que Jamie havia visto na TV.

Seria um dia quente.

O céu estava quase sem nuvens e o sol ofuscava ricocheteando no asfalto e nas vitrines. Toda a cidade havia se vestido especialmente para o desfile, com uma fileira de arquibanca­das, com seis degraus de altura, construída na frente do cor­reio e voltada para o morro. O desfile viria por ali. Passaria pela área principal de compras e faria um círculo completo por trás do cedro antes de parar de novo diante das arqui­bancadas. Havia uma plataforma, uma fileira de microfones, uma área para a imprensa. O prefeito faria um discurso dan­do as boas-vindas a John Trelawny. John Trelawny faria um discurso agradecendo ao prefeito. Depois todo mundo iria almoçar.

Havia bandeiras em toda parte. Centenas. Bandeiras nos postes e nas esquinas, presas em carros, bicicletas e carrinhos de bebê, balançando na cúpula do tribunal. Uma grande fai­xa fora pendurada acima das arquibancadas, para que todo mundo visse ao descer o morro.

 

AUBURN DÁ AS BOAS-VINDAS

AO SENADOR TRELAWNY

FELIZ ANIVERSÁRIO, JOHN!

 

E ainda que as lojas estivessem fechadas naquele dia, as vitri­nes estavam cheias de mensagens de apoio.

 

BEBIDAS VAL’S apóia

john TRELAWNY

PARA PRESIDENTE

 

O BANCO PLACER DÁ

AS BOAS-VINDAS

A JOHN TRELAWNY - FILHO DA CIDADE

 

Os dignitários locais já estavam ocupando seus lugares nas arquibancadas. A esposa do prefeito estava lá, sentada perto de Grace Trelawny e de seus dois filhos. O chefe de polícia e o chefe dos bombeiros, ambos uniformizados, ocupavam seus lugares na primeira fila. As famílias dos fundadores da cidade e os empresários mais proeminentes haviam sido convidados, assim como muitas pessoas que tinham conhecido John Trelawny na juventude: o diretor da escola, seus professores, o pastor, o técnico de futebol. Às 11h45 todos os lugares esta­vam ocupados, a não ser dois, bem no meio. Ambos tinham placas onde estava escrito RESERVADO.

Barreiras haviam sido postas para controlara multidão, e nesse momento as pessoas estavam enfileiradas nas calçadas, e atrás de cada uma da frente havia cinco ou seis outras, ten­tando enxergar. A polícia da cidade patrulhava a beira da rua, ocasionalmente gritando ordens através dos megafones — mesmo que não houvesse necessidade e que ninguém esti­vesse escutando. A atmosfera era leve. Era óbvio que todo mundo em Auburn apoiava John Trelawny e, se houvesse al­guém contra, havia tido a sensatez de ficar longe.

Exatamente ao meio-dia o desfile começou.

Primeiro veio a banda da escola da cidade: os trompetes e trombones brilhando, a música estrondeando. Entre eles havia um garoto minúsculo com um tambor enorme e um garoto enorme com um triângulo. Duas meninas iam na frente girando bastões, seguidas por uma equipe de exercícios: uma dúzia de garotas vestidas de prateado brilhante, fazendo uma série de passos bem ensaiados. Alguém apertou um interruptor e uma música rap começou, lutando com o som da banda. Mas não fazia mal. A confusão de ruídos e cores era o que importava.

Então vieram os veículos: Cadillacs de capota aberta e carros esportivos. O presidente da Câmara de Comércio, ace­nando e parecendo satisfeito consigo mesmo. A miss Auburn e duas outras rainhas da beleza com suas lantejoulas e faixas. Um único caminhão de combate ao fogo com meia dúzia de bombeiros (que receberam os maiores aplausos da multidão). Veteranos de guerra, alguns em cadeiras de rodas. Depois mais dúzias de crianças vinham atrás. Escoteiros, lobinhos. E porta-bandeiras — todos vestidos identicamente em prata e azul — girando bandeiras sobre a cabeça e ao redor do ombro, em sincronismo perfeito.

Enquanto o desfile descia o morro, dois recém-chegados se esgueiraram por entre os convidados nas arquibancadas. Um deles era uma mulher de meia-idade com cabelo grisalho curto, pescoço fino e óculos ligeiramente grande para o ros­to. O outro era um adolescente, vestido estranhamente de terno preto com camisa branca aberta no colarinho. As rou­pas não pareciam certas para ele, como se alguém as tivesse escolhido contra a sua vontade. O garoto era muito pálido. Seus olhos estavam vazios. Ele não tinha absolutamente ne­nhuma expressão no rosto.

A mulher murmurou pedidos de desculpas enquanto os dois ocupavam os lugares reservados para eles. Susan Mortlake e Scott Tyler haviam chegado. E sentaram-se e esperaram o homem que tinham vindo matar.

— Não vamos conseguir — disse Jamie.

— Esse carro não anda mais rápido — murmurou Alicia.

— Estou fazendo o máximo possível...

Mas já era 12h15, e mesmo tendo visto placas indicando Auburn na auto-estrada 80, a cidade se recusava a aparecer. Eram três no carro. Jamie estava ao lado de Alicia. Daniel sen­tava-se no banco de trás, inclinando-se sobre os dois.

Jamie não pudera explicar como havia deduzido, mas sa­bia, com certeza fria, que estava correto. Tinha visto fotos de Charles Baker quando estava no escritório da Crepúsculo em Los Angeles, e o senador Trelawny havia explicado que a corporação bancava a campanha do rival. Talvez por isso eles tivessem querido Scott e Jamie, desde o início. Scott poderia ordenar que Trelawny se jogasse embaixo de um carro. Pode­ria dizer para ele parar de respirar e o senador se sufocaria na hora. Os dois sempre haviam tentado esconder seus poderes. Tinham aprendido, com a experiência amarga, do que eram capazes. Se Scott fora transformado numa arma, seria impos­sível pará-lo.

Scott. Esse era o outro pensamento disparando na mente de Jamie. Claro que queria salvar a vida do senador. Mas, se chegassem a Auburn a tempo, ele veria o irmão de novo, e era isso o que mais importava.

— Chegamos! — Alicia disse a palavra e um instante de­pois deixou a auto-estrada, pegando uma saída que subia até uma ponte e passava para o outro lado. Enquanto faziam a curva, Jamie viu a estátua de Claude Chana agachado. Seria essa realmente a mesma figura que o havia assombrado, re­petidamente, nos sonhos? Não poderia haver dúvida. A está­tua podia parecer inofensiva agora. Não era um gigante ou um monstro. Mas de algum modo fora mandada para lhe dar um aviso. Jamie olhou o relógio no painel do carro. Meio-dia e vinte e cinco! Imaginou se já seria tarde demais.

Chegaram ao outro lado da ponte. E então Jamie viu par­te da multidão se derramando nas calçadas e ouviu a música das bandas. Havia um policial adiante, sinalizando para avan­çarem. Mas era o caminho errado. A rua iria levá-los para além do tribunal e até a cidade nova. Alicia precisava virar à direita — mas esse caminho fora bloqueado. Dessa posição não ha­via como enxergar as arquibancadas, o correio, o palco onde Trelawny iria falar. Mas uma coisa era certa. Não havia onde es­tacionar, de jeito nenhum poderiam passar pela multidão.

O policial estava acenando, agora com mais raiva.

— Mãe...? — murmurou Daniel no banco de trás.

— Espera aí — disse Alicia.

Ela girou o volante para a direita e pisou fundo no acele­rador. Os pneus cantaram. O carro saltou adiante e desceu o morro na direção da multidão.

John Trelawny estava no banco de trás de um Cadillac dos anos 1960.0 prefeito de Auburn se encontrava ao lado. Como sem­pre, havia um homem do serviço secreto dirigindo. Warren Cornfield estava no banco do carona, os olhos totalmente escondidos por trás de óculos completamente pretos. Havia mais dois homens do serviço secreto andando junto ao carro, um de cada lado. Haviam seguido Trelawny por toda a rua, e o estranho era que, apesar do calor, eles mal tinham começa­do a suar.

Trelawny podia ver sua esposa sentada na arquibancada junto de outra mulher, que ele havia conhecido naquela manhã

— era casada com o prefeito. Seus dois filhos também esta­vam sentados ali, e ele sabia que eles não estariam gostando daquilo. Ambos eram tímidos em público. Seu carro havia qua­se terminado o circuito ao redor da arquibancada e a qual­quer minuto iria parar, e ele e o prefeito sairiam. Os discursos começariam. Parecia estranho estar ali. Trelawny se lembrou de quando brincava nessas ruas, na infância. E agora ali estava, com 50 anos, e todas aquelas pessoas haviam aparecido por sua causa. Desejou que seus pais estivessem vivos para ver esse momento- Também esperava que os discursos não fossem longos demais.

O carro diminuiu a velocidade e parou. Warren Cornfield foi o primeiro a sair, a mão pousando na porta do veículo, a cabeça girando para examinar a multidão.

A cerca de 15 metros, no meio da arquibancada, Susan Mortlake se inclinou e pôs a mão no braço de Scott.

— Certo, querido — sussurrou ela. — Está na hora. Faça.

Havia um posto de gasolina na base da ladeira e era a única coisa na cidade que não estava fechada. Alicia saiu da rampa e parou diante das bombas. Ela e Jamie saíram do carro. Daniel veio atrás.

— Ei! — O frentista havia saído do escritório. — Vocês não podem deixar isso aqui!

Mas já estavam andando, abandonando o carro, abrindo caminho pela multidão. Alicia sabia que corriam perigo. O policial na ponte devia ter visto o que estavam fazendo e te­ria dado um alerta pelo rádio. Existia um candidato presidencial na área, e qualquer um que se comportasse de modo estra­nho teria de ser derrubado rapidamente. Em outras palavras: atirar primeiro, fazer perguntas depois. Agora ela desejava ter deixado Daniel para trás.

— Como vamos achá-lo? — gritou Jamie.

Ele não conseguia absorver tudo aquilo: milhares de pes­soas, as bandas ainda tocando, os estandartes de boas-vindas, o sol, as bandeiras voando vermelhas, brancas e azuis. Sentiu que estava sendo sufocado. O ferimento no ombro latejava tremendamente. Por um instante perdeu Alicia de vista.

— Olha por onde passa!

Ele havia trombado numa família. O homem era gordo, usando uma camiseta do Homer Simpson, e estava fazendo careta para ele.

Alicia vinha logo atrás, agarrada firmemente a Daniel.

— Use seu poder! — gritou ela. — Você pode encontrar Scott. Não precisa procurá-lo.

Jamie entendeu. Não precisava procurar. Podia pensar. Se Scott estivesse por perto, certamente ele poderia sentir. Virou a cabeça.

E viu o irmão.

Scott! Ele estava ali!

A princípio Jamie não o reconheceu. Scott estava sentado totalmente imóvel. E estava pálido, como se a vida tivesse sido sugada. O cabelo fora cortado curto, num estilo que não com­binava com ele, e se vestia com elegância demais, de paletó preto, calça preta e camisa de um branco luminoso. Era Scott, mas não era ele. Jamie nunca o vira assim e de repente ficou com medo.

Notou a mulher sentada ao lado e a reconheceu instanta­neamente, mesmo que só a tivesse visto uma vez — e por muito pouco tempo. Era da Crepúsculo. Tinha saído do escri­tório de Los Angeles quando ele estava lá. Seus olhos, por trás dos óculos grandes demais, estavam fixos em Scott. Era como uma mãe exageradamente orgulhosa do filho, mas — Jamie podia ver no rosto dela — aquele era um filho em via de fazer algo terrível.

— Jamie! — Alicia havia gritado um alerta. O policial que os tinha visto descer a rampa os estava procurando. Es­tava na frente do posto de gasolina e teria visto os três se não fosse a quantidade de pessoas no meio. Havia mais po­liciais com ele.

— Senhoras e senhores. Tenho a grande honra de rece­ber um excelente político e um excelente homem de volta à sua cidade neste... em seu grande dia!

O prefeito estava falando. Sua voz era amplificada por alto-falantes posicionados por toda a rua. Jamie viu-o, de pé numa plataforma diante de uma fileira de microfones. O senador Trelawny estava ao lado.

A multidão irrompeu em aplausos.

Scott olhava para alguma coisa, imerso em concentração. Jamie não poderia correr até ele. Teria de abrir caminho através de quatro filas de pessoas, passar por cima da barreira e atra­vessar a rua. Nunca chegaria perto. Só poderia fazer uma coisa.

Scott...!

Projetou o pensamento por cima das pessoas, diretamente para a cabeça do irmão.

E recuou, perplexo.

Era com se tivesse batido numa parede de tijolos. Na ver­dade sentiu: era um golpe físico. Sua cabeça virou bruscamen­te para trás. Sentiu gosto de sangue.

— Jamie? O que está fazendo? — Alicia havia consegui­do encontrá-lo. Daniel estava com ela. Mas Jamie não podia explicar. Pelo menos agora.

— Cinqüenta anos hoje. E antes de fazer 51 será o próxi­mo presidente dos Estados Unidos. — O prefeito riu e passou o braço pelos ombros do senador Trelawny. A multidão aplau­diu de novo.

Scott! Sou eu!

Jamie tentou de novo. De novo foi lançado para trás. Seu irmão havia construído uma espécie de campo de força ao redor de si. Isso nunca havia acontecido. Scott não estava deixando que ele entrasse.

— Mãe...! — Daniel apontou. O policial os tinha visto. O que Scott estava fazendo? Seus olhos pareciam fixos no senador. Não. Era no homem grande e louro ao lado dele. O chefe da segurança. Qual era mesmo o nome dele?

Warren Cornfield tirou os óculos escuros. Jamie o viu largá-los no chão como se não se importasse mais com eles. Depois pegou sua arma.

Jamie entendeu exatamente o que estava acontecendo. Podia ver nos olhos da mulher grisalha, em seu sorriso de expectativa. Isso era coisa dela. Tudo estava acontecendo exa­tamente como ela havia planejado.

Um candidato a presidente pode se sentir seguro, mas está sempre rodeado por homens com armas — e um daqueles homens tinha acabado de se voltar contra ele. Os poderes de Scott deviam ter ficado mais fortes do que nunca. Ele estava dando ordens telepaticamente, sem abrir a boca. Jamie po­dia ver isso acontecendo agora.

Estava ordenando que Warren Cornfield assassinasse seu chefe.

E, ao lado dele, Susan Mortlake sentia o poder fluir e qua­se queria gargalhar. Como era irônico que um dos Cinco fosse fundamental para criar o novo mundo — um mundo que teria o presidente Charles Baker no comando. Era perfeito. O ho­mem louro mataria Trelawny. Haveria 2 mil testemunhas. Nada iria ligá-lo à Crepúsculo. Mais tarde presumiriam que ele ha­via enlouquecido. E ela e o garoto sairiam discretamente. Era quase fácil demais. E isso era só o começo...

Jamie estava suando. Não podia fazer nada. Não podia passar pela multidão. Não podia se conectar com Scott. Mas agora podia ver a arma na mão de Warren Cornfield. O segu­rança estava olhando para o espaço, incapaz de se conter. Ninguém mais o tinha visto. Todo mundo olhava para Trelawny e o prefeito.

— Senhora, quero que vocês venham conosco... — Os policiais os haviam alcançado, a multidão estava se dividindo para deixá-los passar. O policial que os tinha visto na ponte vinha à frente. Era baixo, gorducho, com óculos de lentes marrons e bigode. Alicia se virou para discutir com ele.

Warren Cornfield apontou sua arma para Trelawny.

Jamie ainda estava lutando, tentando alcançar Scott. Mas a parede era sólida. Não havia como passar.

Estava acabado.

Não.

Havia outro modo...

Jamie se afastou do irmão e concentrou toda a energia mental em Cornfield. Mandou os pensamentos para o outro lado da rua, através de todo o barulho e da confusão, dos gritos e aplausos, e imediatamente foi como se tivesse entra­do num quarto particular e Scott estivesse ali com ele, dentro da cabeça do segurança. Jamie o ouviu dando ordens que forçavam Cornfield a cometer assassinato. Ao mesmo tempo sentiu a arma em sua mão, o dedo apertando o gatilho e soube que já era tarde demais, que não podia impedir o homem de disparar.

Os homens do serviço secreto que estavam mais perto da plataforma viram a arma.

Alguém gritou. O policial havia segurado Alicia, mas ago­ra se virou para ver o que tinha acontecido.

Jamie fez a única coisa que pôde. Sabia que ia tomar a decisão mais terrível de sua vida, mas não podia ver outra opção.

Deu a ordem.

Não o Trelawny. A mulher!

Warren Cornfield disparou.

Mas no último instante girou e atirou diretamente contra a arquibancada. Sua bala acertou Susan Mortlake no centro da testa. Ela foi lançada para trás e imediatamente tudo mu­dou enquanto a multidão enlouquecia, gritando e lutando para fugir, e todo o desfile explodia em caos.

O pessoal do serviço secreto havia reagido tarde demais, mas agora moveram-se depressa. Dois deles se jogaram em cima de Trelawny, arrastando-o para o chão. Mais dois cuida­ram de Warren Cornfield. Se não houvesse tanta gente ao redor, ele teria sido morto a tiros. Em vez disso derrubaram-no e o desarmaram. Ele nem tentou resistir. Toda a vida havia sumido de seus olhos. Ele não parecia saber onde estava nem o que tinha acabado de fazer.

O policial soltou Alicia. Suspeitava que ela fazia parte do que acabara de acontecer, mas não podia ter certeza, e nesse momento seu trabalho era tentar controlar a multidão antes que mais alguém fosse morto. Havia pessoas correndo para todo lado, gritando, tentando proteger os filhos. As barreiras estavam sendo derrubadas. As bandas haviam abandonado seus instrumentos e tentavam sumir das vistas, com medo de haver mais tiros. Enquanto Jamie olhava, o senador Trelawny foi levado para longe e jogado num carro, como se agora fosse sua vez de ser seqüestrado. Mas, claro, sua segurança era a prioridade máxima. Sua mulher e os filhos também estavam sendo levados para longe dos bancos. Toda a família tinha de ser removida do lugar antes que mais tiros fossem disparados.

E Scott? Estava sentado no mesmo lugar, atordoado, como se não conseguisse entender o que havia acontecido. Susan Mortlake estava ao lado dele, a cabeça virada para trás, as pernas abertas. Espetacularmente morta. Jamie aproveitou a confusão ao redor. O caminho adiante estava limpo. Correu, pulou uma barreira e atravessou a rua. Havia um médico ajoe­lhado perto da mulher do prefeito, que gritava histérica. Al­gumas pessoas continuavam em seus lugares, traumatizadas sujas de sangue. Jamie as ignorou.

Por fim havia alcançado o irmão.

— Scott!

Scott se virou, mas não o reconheceu, e foi então que Jamie soube o quanto fora feito com ele, como fora machucado.

Não sabia o que fazer. Sentiu uma ardência na garganta. Havia sonhado com o momento em que encontraria o irmão de novo, mas jamais esperava que fosse assim.

E então uma mulher que ele não conhecia se aproximou. Jamie olhou-a apenas brevemente, vendo o cabelo ruivo es­curo e as roupas caras. Mas ela parecia conhecê-lo.

— Você é Jamie Tyler? — perguntou ela.

Jamie não sabia o que dizer. Só queria que ela o deixasse em paz.

— Você não me conhece, mas sou amiga de John Trelawny. — Ela teve de gritar para ser ouvida acima de toda a confu­são. — Meu nome é Nathalie Johnson. Vim aqui hoje como convidada dele, mas estive procurando você. Vocês dois...

— Meu irmão... — Jamie só conseguia pensar em Scott. A mulher assentiu.

— Por favor, confie em mim. Eu posso ajudá-los. Precisa­mos tirar vocês dois daqui.

Do outro lado da rua, o policial que estivera para prender Alicia estava fazendo conexões. Havia deduzido que conhe­cia o garoto do carro. Era o procurado em Nevada, o que havia atirado no tio. E lá estava ele, na arquibancada, falando com alguém, ao lado da mulher que havia levado um tiro.

O policial não entendeu o que acontecia. Existiam coisas demais para entender. Mas uma coisa era certa. O garoto era um bandido procurado.

Pegou seu rádio e começou a falar.

 

Não restava tempo para pensar e havia coisas demais que precisavam fazer. Quase todo mundo já saíra das arquiban­cadas, desesperados para se afastar do cadáver esparramado da mulher que havia levado o tiro. Ao mesmo tempo, poli­ciais e paramédicos tinham chegado e assumido o controle. Não tinham interesse em Scott, que continuava ali sentado, olhando em frente. Havia algumas manchas de sangue bri­lhante em sua camisa branca.

— Ele estava com ela? — perguntou um dos paramédicos. O garoto parecia em choque. Talvez a morta fosse mãe dele.

— Não — respondeu Natalie. — Ele está comigo. — Em seguida se virou para Jamie. — Precisamos tirá-lo daqui.

— Scott! — Jamie se agachou perto do irmão. Scott o havia bloqueado antes, mas se o visse, se escutasse sua voz, talvez fosse diferente. — Sou eu... Jamie. Agora está tudo bem. A Crepúsculo está acabada. Fecharam Silent Creek. Estive procurando você em toda parte, mas estou aqui. Tudo vai ficar bem.

Algo passou brevemente diante dos olhos de Scott — tal­vez um clarão de reconhecimento. Ele abriu a boca e tentou falar, mas não saiu nenhuma palavra. Jamie se virou para Nathalie Johnson e havia lágrimas em seus olhos.

— O que fizeram com ele? O que fizeram?

Os dois ajudaram Scott a se levantar e o levaram. Ele an­dava como um sonâmbulo, sem resistir, mas aparentemente sem perceber aonde ia. Alicia estava esperando-os na base da arquibancada, com Daniel. Não pudera chegar mais perto. Não podia expor o filho de 11 anos à visão da mulher morta.

— Jamie! Scott! — Ela não sabia o que dizer.

— Você é Alicia McGuire? — perguntou Nathalie.

— Sou.

— Está tudo bem. Sou amiga. John me falou de você.

— Quem é você? — perguntou Alicia.

Nathalie olhou ao redor. As ruas estavam se esvaziando rapidamente, pessoas se espalhando em todas as direções. Logo só restariam os policiais.

— Não podemos falar aqui. Temos de levar os garotos.

— Para onde?

— Alicia...! — Já era tarde demais. Jamie apontou. O po­licial de bigode vinha andando na direção deles. Havia aberto o coldre e estava com a mão na arma.

— Tyler. — A palavra única era uma acusação. O policial parou com as pernas ligeiramente abertas, como um caubói num filme antigo. — Jamie Tyler. Certo?

— Não. — Jamie olhou-o direto nos olhos e pressionou. — Jamie Tyler esteve aqui, mas foi embora. Você o deixou escapar. E agora precisa ajudar todas essas pessoas. Não está interessado em nós.

O policial franziu a testa como se não tivesse escutado direito. Depois relaxou.

— Certo. Preciso ajudar estas pessoas. — Em seguida se virou e foi andando.

Nathalie Johnson ficou olhando, sem ter certeza do que tinha visto. Mas Alicia entendeu. Jamie fizera a mesma coisa quando os dois estavam encurralados na casa de Don White em Sparks. Mesmo assim estremeceu. Não podia imaginar como seria um garoto de 14 anos ter tanto poder.

Virou-se para Nathalie.

— Escute. Não vamos a lugar nenhum antes de sabermos quem você é.

— Sou Nathalie Johnson.

O nome significava alguma coisa. Alicia o vira nos no­ticiários.

— Computadores? Você é aquela Nathalie Johnson?

— Sou.

— Você ajudou o senador. Fez eventos para levantar ver­bas no ano passado.

— É. Mas não é por isso que estou aqui. — Nathalie pa­rou. O policial de bigode havia desaparecido, mas não existia dúvida de que outros chegariam logo. Eles tinham tido sorte porque ele decidira fazer a prisão sozinho, mas certamente dera o alerta antes de agir. — Estou com um carro aqui per­to. Vocês podem ir comigo pelo menos até lá? Digo o resto quando estivermos a caminho.

Alicia confirmou com a cabeça. Não podia levar seu car­ro. A polícia certamente o estava guardando, esperando sua volta. E, de qualquer modo, eles teriam divulgado o número da placa.

Foram rapidamente para trás da arquibancada e desce­ram na direção da estátua. Nathalie primeiro. Depois Jamie e Alicia, com Scott no meio. Por fim Daniel. Enquanto passa­vam, Jamie olhou uma última vez para a estátua. Sentiu uma estranha mistura de emoções, olhando o rosto áspero, con­denado a ficar de joelhos para sempre com a rodovia empoeirada à frente. O garimpeiro tinha viajado muito para dar seu aviso. Pelo menos Jamie não o havia deixado na mão.

O carro de Nathalie — um Mercedes azul — estava pa­rado ali perto, numa vaga reservada a pessoas importantes. Normalmente ela teria um chofer, mas hoje decidira vir sozinha.

— Podem levar meu carro — disse Nathalie, e entregou as chaves a Alicia. — O melhor modo de eu ajudar vocês é dando uns telefonemas.

— Aonde eu devo ir? — perguntou Alicia.

— Me dê um minuto. Você precisa chegar a um aeropor­to. Só estou tentando pensar em qual.

— Aeroporto? Nathalie suspirou.

— Sei que é difícil, mas vocês precisam entender. Eu sei o que está acontecendo... ou pelo menos uma parte. Vejam bem, eu pertenço a um grupo de pessoas, uma organização, que existe apenas para ajudar Jamie, Scott e os outros Guardiões.

Guardiões.

Jamie ficou olhando. Aquela mulher havia dito realmente aquilo?

— Como assim? — perguntou Alicia.

— Está tudo bem, Alicia — interveio Jamie. Em seguida olhou para Nathalie. — Você sabe sobre os Guardiões.

— Sim, Jamie. Os Guardiões. Os Cinco. — Ela fez uma pausa. — Conheço Matt Freeman.

— Onde conheceu ele?

— Na Inglaterra. Me encontrei com ele duas vezes. Mas ele não está lá agora. Está no Peru. Num lugar chamado Nazca, logo ao sul de Lima. E é para lá que vocês precisam ir.

— Peru...? — Alicia não podia acreditar no que ouvia.

— Tudo bem. — Jamie não havia contado nada a Alicia sobre o tempo passado depois do tiro. Tinha decidido que era demais para explicar. Nem havia tentado. — Por que Matt está no Peru?

— Havia um segundo portal. Ele se abriu. Matt tentou im­pedir, mas foi ferido. Pedro está com ele agora. Pedro pode aju­dar seu irmão. Esse é outro motivo porque você deve ir para lá.

— E Scar?

Nathalie balançou a cabeça.

— Não conheço ninguém chamado Scar.

Jamie havia tomado uma decisão. O que Nathalie havia dito o fazia pensar que ela estava falando a verdade, e a menção a Pedro amarrou tudo. Era o outro nome de Inti. Matt havia dito. E Inti possuía o poder de curar. Quanto antes Scott se encontrasse com ele, melhor.

— Como vamos chegar lá? — perguntou.

Nathalie deu um suspiro fundo. Tivera medo de não con­seguir convencê-los, mas de algum modo Jamie havia des­coberto quem e o que ele era. Um dia ela iria perguntar como isso tinha acontecido. Mas por enquanto precisava pensar direito. Estavam em Auburn. A polícia continuava procurando-os. A Crepúsculo também estaria procurando. Como tirá-los dali...

— Aeroporto de Lake Tahoe — disse. E olhou para Alicia.

— Fica perto da rodovia 89. Na extremidade sul do lago.

— Passei por lá — disse Alicia. — Mas o de Sacramento é mais perto.

— Se a polícia estiver procurando vocês, vão fechar os aeroportos. O de Lake Tahoe é minúsculo. E não há rodovias importantes. É o lugar menos provável de eles procurarem.

— O que acontece quando chegarmos lá? Compro para os garotos uma passagem para Lima?

— Posso arranjar um jato particular. Posso fazê-lo decolar em 15 minutos. Ele partirá de São Francisco e deve estar es­perando quando vocês chegarem.

— Você vai simplesmente nos dar seu carro?

— O carro não importa. Nada importa. Só leve-os para lá.

— Ela pousou a mão no braço de Jamie. — Vou ligar para o Matt e dizer que vocês estão indo. E um dia vou me encontrar com você e me contará tudo que aconteceu. — Eles ouviram o som guinchado de um rádio do outro lado da arquibancada. A polícia estava isolando toda a área. Era hora de ir.

Alicia nem tentou questionar. Destrancou as portas. Daniel entrou na frente. Jamie ajudou Scott a subir no banco de trás e já ia acompanhá-lo. Mas então se lembrou de uma coisa. Empertigou-se, encarando Nathalie.

— O segurança — disse ele. — Warren Cornfield.

— Você fez com que ele fizesse aquilo. Então ela havia adivinhado.

— Não pude fazer nada além daquilo. Você vai poder ajudá-lo?

— Farei o possível, Jamie. Prometo.

Então outro policial apareceu, indo na direção deles. Jamie entrou no carro. Alicia nem esperou que ele fechasse a porta. Ligou o motor. Partiram.

Ninguém disse nada durante os primeiros quilômetros. Iam para o sul, na direção de Placerville, outra cidade mineradora. Dali podiam pegar a auto-estrada 50 para o leste, voltando a Nevada. Scott não parecia estar acordado nem dormindo, mas em algum lugar intermediário. Ficou encostado na janela, frou­xo. Jamie ao lado, olhando a paisagem passar e sem captar nada. Estava pensando em Matt. Claro, não seria o mesmo Matt com quem havia falado depois da batalha, na beira do rio. Para começar, este Matt jamais o teria conhecido, nem teria conhecido Scott. Ainda assim eram os Cinco. Os mes­mos... mas num tempo diferente. Era assim que Matt havia explicado. Talvez, quando estivessem juntos no Peru, tudo fi­zesse sentido.

Peru. Jamie nem sabia onde isso ficava. Em algum lugar da América do Sul? Agora mesmo um jato particular estaria decolando para pegá-los. A simples idéia fazia sua cabeça girar. Nunca tinha viajado de avião, na vida.

Alicia virou a cabeça.

— Como está o Scott?

— Não sei. — Jamie examinou o irmão. Não podia ver nenhum sinal de ferimento externo, mas de certa forma isso tornava a condição dele ainda mais perturbadora.

— Vamos chegar em duas horas. Talvez você devesse dormir um pouco.

Mas eles não chegariam ao aeroporto de Lake Tahoe.

Haviam acabado de passar pela Floresta Nacional Eldorado, uma das regiões mais bonitas da Califórnia, e iam para o norte na direção do lago. Chegaram a uma placa que indicava o aero­porto e Alicia virou, seguindo uma estrada estreita e cheia de árvores. Nathalie estivera certa. Ninguém pensaria em vir aqui.

Mas a polícia devia ter decidido cobrir todos os aeropor­tos na área ao redor. Sempre era possível que os policiais não estivessem trabalhando sozinhos. Talvez a Crepúsculo estivesse influenciando e aconselhando. De qualquer modo, a estrada estava bloqueada. Havia um único carro da polícia atravessa­do, com dois jovens policiais verificando cada carro que pas­sava. Pareciam entediados. Não poderia ter passado mais de meia dúzia de carros nas últimas horas.

Alicia parou e esperou, com o motor ligado.

E agora?

— Há algum outro caminho? — perguntou Daniel. Alicia mordeu o lábio.

— Acho que não, Danny. Não estou vendo nenhuma placa. Jamie foi se empertigando no banco de trás. Sentia-se enjoado. Estavam tão perto! Não parecia justo serem para­dos no fim.

— Você pode passar em volta deles? — murmurou.

— Não adianta. Eu poderia passar por eles, mas e se o avião não tiver chegado? Eles simplesmente nos seguem até o aeroporto, e isso vai ser o fim. E mesmo que o avião esteja lá, nunca chegaremos a tempo.

— Poderíamos tentar ir a pé...

— Scott não vai conseguir. E, de qualquer modo, é tarde demais.

Ela estava certa. Os dois policiais os tinham visto. Já esta­vam murmurando um para o outro, encarando-os com sus­peitas. Sempre era possível que a placa do carro de Nathalie tivesse sido divulgada. Não importava. Um veículo estivera indo na direção deles. Agora havia parado. Algo estava obviamen­te errado.

Alicia tomou uma decisão. Provavelmente era errada, mas não conseguia pensar em nada além. Pôs o carro em marcha a ré, girou o volante e acelerou.

— O que você está fazendo? — perguntou Daniel.

— Não podemos passar por eles. A estrada para o aero­porto está fechada. A única coisa a fazer é voltar a Reno. Po­demos nos esconder no estacionamento de trailers. Ninguém sabe que estamos lá. O senador vai nos ajudar. Talvez devês­semos ter feito isso desde o início.

Os dois policiais tinham-nos visto indo embora. Sem hesi­tar um momento, voltaram correndo para o carro e partiram em perseguição. Um deles já estava ao rádio, pedindo ajuda de todas as cidades da área. Quatro suspeitos indo para o leste, na direção de Carson City. Um Mercedes azul. Placa número NATHAL3. Havia poucas estradas nessa parte do país, e as distâncias eram enormes. Não havia chance de escaparem.

O Mercedes estava indo a quase 160 quilômetros por hora. Alicia apertava o volante, os olhos fixos na estrada. Já sabia que havia cometido um erro, tentando fugir. Tinha se trans­formado em alvo. A qualquer minuto esperava ver mais carros bloqueando a estrada. Talvez um helicóptero surgisse no céu. Havia perdido de vista o carro da polícia, mas podia ouvi-lo. Os policiais tinham ligado a sirene. Estava a menos de um qui­lômetro e meio, atrás.

Passaram a toda velocidade por um centro comercial com supermercados e lojas vendendo equipamentos de barcos e de esqui. Esse era o negócio em Lake Tahoe. Esqui no inver­no, barcos no verão, lindo o ano todo. Agora tinham vislum­bres ocasionais do lago à esquerda, a água gélida, de um azul profundo, tremeluzindo do outro lado dos pinheiros que co­briam as margens. Ainda estavam acelerando, colocando mais espaço entre eles e o carro da polícia, que parecia ter ficado um pouco para trás. Certamente a sirene parecia mais fraca. Alicia imaginou se deveria sair da estrada — mas não havia onde virar, nenhum lugar onde se esconder. De um lado fica­va o lago. Do outro o terreno subia íngreme com uma face de rocha arenosa e acima mais árvores que pareciam continuar até o céu.

Estavam presos na estrada e Jamie havia chegado à mes­ma conclusão de Alicia. Não iriam escapar. O que acontece­ria se fossem presos? John Trelawny iria ajudá-los — mas será que poderia alcançá-los a tempo? Só era necessário um policial, que recebesse a quantia certa de dinheiro, para ga­rantir que nenhum deles fosse visto de novo.

Passaram disparados através de um túnel que fora aberto numa enorme massa de rocha. À frente, a estrada virava à direita.

E então Jamie escutou. Um sussurro na cabeça.

Pare o carro...

Três palavras. Mas não tinha ouvido. Nem imaginado. Com um arrepio de empolgação, percebeu o que acontecera. Scott as havia mandado. Finalmente fizera contato.

— Pára! — gritou. Alicia continuou dirigindo.

— Alicia! Pára o carro! Agora!

A urgência em sua voz se fez sentir. Daniel já estava giran­do, olhando-o como se ele fosse louco, mas Alicia pisou no freio e o carro deslizou pela estrada, derrapando e parando num acostamento. O motor morreu. Em algum lugar, atrás deles, o grito da sirene encheu o ar.

— Jamie... — começou Alicia.

Ela estava à beira das lágrimas, culpando-se pelo que ha­via acontecido. Mas, olhando ao redor, Jamie percebeu uma coisa.

Sabia onde se encontrava. Tinha estado ali.

Havia cinco ou seis anos. Antes de Don e Marcie. Antes mesmo de Ed e Leanne. Derry, a assistente social, os havia tra­zido a esse local exato porque queria mostrar onde tinham sido encontrados. Fora naquele acostamento, exatamente ali. Era onde os dois bebês tinham sido abandonados numa cai­xa de sementes de grama.

E ela havia contado algo sobre a área. Segundo Derry, a tribo washoe vivia ali havia 10 mil anos. Era o principal motivo para ela pensar que Scott e Jamie eram washoe. O lago Tahoe era o centro do universo deles, e em algum lugar abaixo ha­via uma caverna tão sagrada que os turistas não podiam che­gar perto. Nem os xamãs iam lá.

Os washoe chamavam o local de de’ek wadapush. Podia ser traduzido como Rocha da Caverna.

— Vamos descer — disse Jamie.

— Jamie... — Pela voz dele, Alicia soube que não havia sentido em discutir. Restavam apenas segundos. O carro da polícia ainda estava fora das vistas, mas vinha trovejando na direção deles.

— Acho que é adeus, Alicia. — Jamie não sabia como sabia. Simplesmente era assim. — Obrigado por me ajudar. Obrigado por tudo.

— Você fez tudo, Jamie. Não fui eu...

— Tchau, Danny. — Jamie apertou a mão do filho de Ali­cia, depois abriu a porta. Saiu, depois esperou Scott segui-lo. Alicia também havia saído. Não tinham tempo. Ela abraçou Jamie e beijou-o rapidamente no rosto, depois apertou algo em sua mão. O grito da sirene da polícia havia desaparecido. Por um breve instante ela pensou que o carro estaria indo em outra direção, ou mesmo que poderia ter se quebrado — mas as esperanças foram esmagadas quase imediatamente. O carro simplesmente havia entrado no túnel e a montanha estava bloqueando qualquer som. Quando olhou para a estrada, ele surgiu. Pior ainda, uma segunda radiopatrulha vinha junto. Os dois carros disparavam na direção deles.

Uma trilha arenosa passava por entre os pinheiros e por uma série de pedregulhos. Jamie e Scott começaram a correr, afastando-se da estrada e descendo na direção do lago. O terreno descia irregular até a beira d’água. Uma plataforma de madeira fora construída para os turistas, e a vista era cer­tamente espantosa, com o lago de um azul ofuscante ao sol da tarde e uma cordilheira, com picos nevados mesmo agora, espalhava-se do outro lado. Não havia mais ninguém por perto. Jamie pulou uma cerca e soltou um suspiro de alívio quando seu irmão fez o mesmo.

Scott, você está comigo?

Mandou o pensamento sem abrir a boca.

Estou com você.

As palavras eram indistintas, como se transmitidas por um rádio defeituoso. Mas Jamie escutou e sentiu um jorro de esperança que o levou adiante. Não tinha idéia real de por que estava fazendo aquilo. Nem sabia o que estava fazendo. O simples fato de estarem ali era certamente algum tipo de coincidência maluca. Mas ao mesmo tempo ele sabia o que significava. Estavam fazendo a coisa certa.

— Aqui é a polícia! Fiquem onde estão! Se não pararem vamos abrir fogo!

As palavras ressoaram, amplificadas por um megafone. Jamie quase riu. Não iriam parar agora. Será que a polícia acha­va que, por terem chegado tão perto, eles iriam dar a volta e se entregar? Mas o sorriso foi apagado do rosto um segundo depois. Houve um tiro e uma bala ricocheteou numa pedra a poucos metros dele. Um tiro de aviso? Ou será que os policiais estavam dispostos a atirar pelas costas?

Não queria descobrir. Estavam descendo. O terreno caía tão íngreme que eles precisavam usar as mãos e os pés. A es­trada ficava lá no alto, e a não ser que os policiais pulassem a cerca, ficariam fora das vistas. Com Jamie à frente, os dois garotos desceram os últimos metros, usando os galhos mais baixos dos pinheiros para não cair. Por fim seus pés bateram nos seixos. Tinham chegado à beira do lago. A água se espa­lhava diante deles, milhões e milhões de litros. E apesar de tudo que acontecera e da exaustão da descida, Jamie sentiu-se estranhamente em paz. Era como se tivesse vindo para casa. Ainda não tinha certeza de que encontraria o que esperava, mas ficou feliz por estar ali.

Virou-se, e ali estava, exatamente como Derry havia dito. Um caminho de areia de um branco puro levava a uma aber­tura na rocha. A caverna era muito escura e se retorcia para baixo da estrada. Havia um desenho gravado na superfície, logo acima da entrada, tão leve que ele talvez não notasse, se não estivesse procurando. Uma estrela de cinco pontas. Qual­quer outra pessoa poderia achar que ela fora gravada recen­temente, mas Jamie sabia que não. Ela fora posta ali havia muito, muito tempo.

Alguém gritou lá no alto. Um dos policiais. Jamie respirou fundo. Finalmente havia terminado. Era hora de ir.

Segurou o irmão. Os dois seguiram pelo caminho e entra­ram juntos na caverna.

Os policiais jamais os encontraram. Desceram e procuraram pela margem. Olharam até mesmo dentro da caverna, apesar de terem ouvido falar nas tradições dos washoe e saberem que não tinham direito de estar ali. Quando o sol começou a se pôr, existiam mais de 12 policiais na área. Mas se Scott e Jamie Tyler haviam estado ali, agora tinham desaparecido completamente. Teriam entrado no lago e se afogado? Pare­cia impossível. Certamente seriam vistos de cima, e de qual­quer modo não havia sinal dos corpos.

Alicia não quis admitir nada. Na verdade ela e Danny ne­garam que os dois garotos estivessem no carro. Exigiu falar com o senador Trelawny.

E enquanto a polícia cancelava a busca e discutia o que fazer em seguida, a muitos milhares de quilômetros dali, uma porta numa igreja havia se aberto e dois garotos estavam saindo num mundo estranho, desconhecido. Alguns turistas os olharam com curiosidade. Um padre, que os tinha visto sair, cocou a cabeça, perplexo. A porta fora mantida trancada desde que ele podia se lembrar, e tinha certeza de que não havia nada além de um depósito vazio do outro lado.

Scott e Jamie demoraram meia hora para encontrar uma guia turística que falasse inglês, e ficaram sabendo por ela que haviam chegado ao Peru, ainda que numa parte bem di­ferente do país. Estavam na cidade de Cuzco, no alto dos An­des. A igreja se chamava Santo Domingo e fora construída pelos espanhóis em cima de outro local sagrado... Coricancha, o templo de ouro, que já fora local de culto dos antigos incas.

Estavam longe da Califórnia e, ainda que tudo, inclusive a língua, fosse estranha, sabiam que estavam em segurança. Naquela noite ficaram num hotel. No último instante, agindo por impulso, Alicia havia posto cem dólares na mão de Jamie. O dinheiro pagaria por um quarto e uma refeição. Na manhã seguinte iriam usá-lo para comprar duas passagens de ôni­bus para uma pequena cidade na costa oeste. Um lugar cha­mado Nazca.

Na verdade, a viagem demorou mais de 30 horas. Scott ain­da não estava falando — nem mandando nenhum pensamen­to — e à noite, quando dormia, murmurava e chorava, e seu corpo se retorcia como se estivesse sendo cutucado ou levan­do choques elétricos. Jamie se obrigou a não ficar preocupado. Pedro estava esperando. O curandeiro. Scott iria vê-lo e fi­caria bem.

Chegaram três dias depois. Um táxi largou-os numa casa bonita, pintada de branco, num grande jardim com fontes e lhamas andando no gramado. Quando passaram pelo portão, a porta da frente se abriu e um garoto saiu. Jamie o reconhe­ceu imediatamente. Cabelo escuro e curto. Ombros largos. Olhos azuis.

Era Matt.

Outro garoto saiu atrás dele, e de novo Jamie soube ime­diatamente quem era. Pedro. Parecia estranho pensar que, na última vez em que haviam se encontrado, tinham bebido vi­nho juntos num acampamento, horas depois determinar uma guerra. Imaginou como algum dia poderia explicar isso. Por onde começaria?

Matt avançou. Mesmo tentando não demonstrar, estava óbvio que sentia dor. Assim, eram três. Scott precisava de aju­da. E Jamie ainda tinha um buraco enorme no ombro. Imagi­nou quantos deles iriam se machucar, quantos teriam de morrer antes que essa guerra terminasse.

Por fim pararam olhando-se.

— Jamie — disse Matt. — E Scott.

Ele estendeu a mão. Jamie apertou-a. Quatro dos Cinco haviam se reunido. O círculo estava quase completo.

 

A garota na sala de espera da classe executiva do aeroporto de Heathrow vestia casaco branco curto, uma camiseta cor-de-rosa e calças com a bainha acima do tornozelo. Tinha uma mochila no banco ao lado e um livro aberto no colo, apesar de não ter lido nada nos 30 minutos em que estava ali. Havia um copo de Coca na mesa à frente, mas ela também não o havia tocado.

Era a segunda semana de novembro e o tempo ficara su­bitamente ruim, com chuvas violentas em Londres, obrigan­do as pessoas a correr atrás de guarda-chuvas e segurar os chapéus. Agora mesmo a chuva batucava nas janelas da sala de espera, pingando das asas dos aviões que aguardavam. As pistas pareciam mais cinzas ainda do que o usual. A maio­ria dos vôos estava atrasada.

A garota tinha passaporte inglês, mas suas feições não eram nem um pouco inglesas. A aparência era impressionan­te, meio chinesa, com cabelo preto e comprido amarrado na nuca e olhos num tom incomum de verde. Era pequena e magra, mas havia nela uma confiança, um sentimento de que podia cuidar de si mesma. Iria viajar sozinha, e a companhia aérea lhe dera um crachá de plástico para usar pendurado no pescoço. Ela o havia tirado no momento em que se sentou.

Seu nome era Scarlett Adams e tinha 14 anos.

Geralmente não ficava nervosa ao viajar de avião, mas hoje estava. Ainda não sabia por que fazia essa viagem. Na véspe­ra, mesmo, estava na cara escola particular em Dulwich para onde fora mandada aos 13 anos. A escola St Genevieve era somente para meninas, abrigada num grandioso prédio vito­riano com hera crescendo nas paredes e terrenos amplos nos fundos. Ainda que a escola tivesse uma ala de internato, ela não morava lá. Seus pais viviam fora do país mas tinham uma casa a 5 minutos de distância e uma governanta cuidava dela no período letivo.

Na véspera, logo antes do almoço, a diretora pedira para falar com ela. Enquanto Scarlett subia a escada para a área de espera, que todo mundo chamava de cemitério por causa do número de retratos de professores mortos, ela havia se perguntado em que tipo de encrenca poderia estar. Seria aquela discussão com a Sra. Wilson, a professora de geogra­fia? Ou o trabalho de física que ela “deixou no ônibus”? Ou a briga no bloco de informática, mesmo que não fosse ela quem havia começado?

Mas quando foi levada à sala aconchegante com lareira a gás e vista da entrada, escutou a última coisa que esperava:

— Scarlett, infelizmente você vai nos deixar por algumas semanas. — A diretora não parecia nem um pouco satisfei­ta. — Acabo de receber um telefonema do seu pai. Ele foi muito misterioso, se você quiser saber a verdade. Mas parece que surgiu algum tipo de crise. Ele está bem, mas precisa de você. Já marcou o vôo.

— Quando vou viajar?

— Amanhã. Devo dizer que é muito inconveniente. Você tem de pensar nas provas e teremos de arranjar outra atriz para a peça de Natal. Mas ele insistiu. Disse que falará com você esta noite.

Scarlett havia falado com o pai ao chegar em casa, mas ele não acrescentou grande coisa ao que a diretora já dissera. Precisava que ela saísse por uma semana ou duas. Explicaria quando ela chegasse. A governanta — uma escocesa morena e de aparência bastante azeda— já estava fazendo suas malas. Parecia que não havia nada a discutir. Scarlett passara o resto da tarde mandando e-mails e mensagens de texto para as amigas, e foi para a cama de mau humor.

E não estava se sentindo muito melhor agora, esperando a chamada para o vôo. Olhou em volta. Havia os empresários de sempre, alguns aproveitando a bebida grátis e outros acom­panhando as notícias do dia. Uma TV de plasma ficava num canto da sala e ela olhou para a tela.

— Hoje o novo presidente eleito dos Estados Unidos fez uma declaração...

Estavam falando de novo sobre a eleição. Na última se­mana os noticiários haviam feito pouca coisa além disso. Scarlett viu Charles Baker aparecer atrás do pódio, olhando os repórteres.

— A derrota do senador John Trelawny lançou ondas de choque entre seus amigos e apoiadores — continuou o re­pórter. — A votação final, com Baker conseguindo pouco mais de 52 por cento dos votos dos eleitores e no colégio eleitoral, pegou todo mundo de surpresa e levou a acusações cada vez mais graves de fraude.

Agora Baker estava falando. Vestia-se com elegância e parecia relaxado. Seria bonito, só que existia algo de errado em seus olhos. Era como se não pudessem focalizar direito.

— Odeio acusar o senador Trelawny de mau perdedor — disse ele. — Mas aquelas acusações são completamente ridí­culas e não vejo motivo para uma investigação oficial.

A imagem mudou. Havia pessoas protestando do lado de fora da Casa Branca. Elas levavam cartazes, andando num si­lêncio raivoso.

— Os sistemas de computador usados para contar os votos estão sendo questionados — continuou o repórter. — Cerca de 70 por cento dos votos numa eleição nos Estados Unidos são contados por máquinas, e os críticos observam que nada menos do que três das empresas encarregadas de contar os votos têm ligações fortes com a corporação Crepús­culo, que apoiou Charles Baker durante toda a campanha.

Scarlett já ia parar de olhar. Não tinha interesse em políti­ca. Mas uma palavra atraiu sua atenção. Crepúsculo. Que estranho.

Era a empresa para a qual seu pai trabalhava em Hong Kong, e era exatamente para lá que ela estava indo agora. Será que a Crepúsculo poderia estar mesmo envolvida em al­gum tipo de fraude? Parecia muito improvável. Seu pai era advogado e ela não podia imaginá-lo fazendo alguma coisa errada.

Uma jovem com uniforme da British Airways havia entra­do na sala de espera. Foi até Scarlett.

— Está pronta? — perguntou ela. — Precisamos voltar para área de embarque. Já começaram o chamar os passageiros.

Scarlett pegou suas coisas e se levantou. A matéria na televisão havia terminado. Ela sorriu e as duas saíram juntas, para o avião que esperava.

 

Há alguns livros que eu simplesmente não poderia escrever sem ajuda — e este foi um deles. Então deixem-me começar com Crystal Main, chefe do serviço social em Carson City, Nevada, que abriu tantas portas para mim. Conseguiu que eu visitasse o Centro Juvenil Jan Evans, em Reno, e o Centro Correcional para Jovens Summit View, perto de Las Vegas. Peguei elementos dos dois para escrever este texto, mas Silent Creek é totalmente invenção minha. Também gostaria de agra­decer a Audrey Fetters, superintendente do Summit View... em particular por me dar alguns planos de fuga engenhosos! Tive muita sorte de conhecer Lynda Shoshone e Keith Daniel Wyatt, ambos anciãos da tribo washoe; eles me contaram muita coisa sobre sua cultura e sua história. Também devo agradecer a Robert Wilkins, que primeiro me sugeriu Auburn como locação. A cidade — até a estátua de Claude Chana — é exatamente como descrevo no livro. Minha secretária, Cat Taylor, arranjou a viagem de pesquisa para mim, e minha edi­tora, Chris Kloet, ajudou a dar forma ao livro. Por fim, meu filho Cassian leu o manuscrito e deu idéias ótimas. 

 

                                                                                                    Anthony Horowitz

 

 

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