Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CORPOS E ALMAS / Van Der Schmeer
CORPOS E ALMAS / Van Der Schmeer

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

CORPOS E ALMAS

Primeira Parte

 

Prudentemente, Michel empurrou a porta do teatro anatómico. Era a primeira vez que ali voltava depois de haver feito o serviço militar.

Deviam ter-lhe espiado a chegada, pois que, mal entrou, recebeu em cheio no peito um osso a que aderiam ainda bocados de carne.

- Toma lá rancho! Fora, Michel! Rua, Doutreval! Morra o caloiro! Morra o galucho! Aí tens rancho!

E a carne e os ossos voavam. Com projécteis arrancados ao cadáver, bombardeavam-no trinta estudantes de bata branca, no meio duma vozearia ensurdecedora. Um deles, alto e decidido, já sofrivelmente calvo, e outro de estatura baixa e feições miúdas, abrigadas por óculos enormes de aros de tartaruga, eram os que comandavam o fogo. Michel, curvando-se atrás duma das mesas, apanhou um dos pedaços com que o tinham atingido e precipitou-se para os agressores, bradando:

- Súcia de cobardes! Mil contra um!

Aproximou-se do grupo e a batalha cessou. Rodearam-no, dando-lhe grandes palmadas e rindo, enquanto ele ensaboava as mãos e a cara junto dum lavatório de ferro esmaltado.

- Isto não é decente - protestou o recém-vindo. Fazerem-me esta recepção, a mim, um veterano! Caloiro, pelo menos, é que já não sou. Mas estão perdoados. E como vão de saúde? Cada vez mais careca, Seteuil?

-- Como vês - respondeu o mocetão do cabelo ralo. Ouve lá, Michel, vens ter connosco esta noite, depois do banquete?

- Fixe. A que horas?


- As dez - elucidou Tillery, que era o homenzinho dos óculos. - Nessa altura já o banquete deve ter acabado.

- Santhanas irá?

- Com certeza que nos vai esperar também.

- Há-de ser divertido! - profetizou Seteuil.

E expôs o plano para a noite. Tillery, com um ar grave e atento espalhado por toda a face redonda e delicada, escutava e aprovava muito sério, enquanto ia limpando as lentes na aba da bata. Depois retomou o escalpelo e atacou um cadáver já em grande parte retalhado, que estava à sua frente, na mesa de mármore. Como os músculos haviam sido todos separados, aquilo apresentava o aspecto duma coisa amorfa, cor de vinho, com ossos salientes e amarelos que se ligavam por longos cordões brancos e fibrosos. Tillery, minucioso, pôs a nu os tendões do antebraço, arrancou bocadinhos de carne quase putrefacta, que foi enrolando’e deitando num balde, como qualquer magarefe. Os outros rapazes tinham recomeçado também a dissecação e, de cigarro ao canto da boca, soltavam gracejos pesados e boa dose de palavrões. Era a reacção instintiva dessa juventude que se via mergulhada brutalmente na dura verdade da condição humana e cuja grosseria e alegres sacrilégios só revelavam a necessidade desesperada de endurecer o coração a todo o custo. Seteuil pegou num pedaço de carne informe, onde se descortinava ainda pele e cabelo, escavou-lhe o interior, virou-o, revirou-o. De súbito, resolveu observá-lo mais de perto, durante um minuto.

-Escuta - disse ele dirigindo-se a Tillery - sabes o que estamos a trinchar?

Exibiu o retalho, que se lhe pegara aos dedos : rosto desossado, espécie de máscara amarela, enrugada, gasta, onde se apercebia vagamente uma fisionomia de velha.

- Não sei - ripostou o interpelado.

- É a velha do hospital, a que Géraudin operou. O teu namoro, ó sátiro! Tu oferecias-lhe pacotinhos de café.

Tillery segurou por sua vez na máscara, esticou a pele, examinou-a.

- Tens razão. Que chatice, hem?

Esteve algum tempo a considerar esse farrapo humano. Atrás dos óculos os seus olhinhos pardos conservavam-se sérios.

- Que chatice! - repetiu.

Ficou silencioso um instante. Em seguida dir-se-ia que teve vergonha. Riu e, por duas ou três vezes, agitou a carranca na mão. Imitando a voz do velho professor Donat, murmurou:

- Muito bem, meus senhores, muito bem. Absolutamente bem.

Mas de repente voltou ao seu tom natural e acrescentou :

- Agarra lá o petisco!

Como se fosse uma bola, atirou a máscara a Seteuil, que a apanhou no ar.

Depois voltaram a falar do banquete dessa noite.

Ao sair da Faculdade, Michel Doutreval dirigiu-se a casa do pai. Tinha de levar de automóvel as duas irmãs, Mariette e Fabienne, a Pruillé, aldeola situada a vinte quilómetros de Angers. Aí é que ficava, à beira do Mayenne, a residência de campo do professor Heubel, notável cirurgião.

Grande parte da tarde, Michel, as irmãs e Simone Heubel passaram-na a jogar ao ténis e ao «croquet». Simone, rapariga robusta, em todo o esplendor dos seus dezanove anos, não ocultava a inclinação que sentia por Michel. E talvez por isso mesmo, por um inconsciente desejo de contradição e apesar dos conselhos discretos do pai, Michel Doutreval não se apressava a declarar-se.

Pelas cinco horas o tempo refrescou. O Outono já ia adiantado. Principiou uma bruma leve a cobrir a paisagem calma, de arvoredos e vales, do Mayenne. Simone Heubel conduziu então os seus convidados até à sala, O chá foi servido junto do fogão, onde ardiam achas de lenha. Comeram sanduíches de queijo, presunto, salmão, salada e pasta de fígado, bolo de frutas e doce de laranja. Conversaram e divertiram-se ainda algumas horas. Por fim Michel pôs-se ao volante do automóvel familiar, que o pai, em ocasiões semelhantes, lhe emprestava, e os três irmãos regressaram a casa.

O rapaz subiu ao seu quarto, mudou de roupa branca e de fato. E como o seu estômago, que era sólido, fizera copiosa honra às sanduíches de Simone Heubel, decidiu-se Michel a não jantar. Sem prevenir Mariette (a irmã mais velha, que não lhe teria dado consentimento) desceu a escada cautelosamente, atravessou o vestíbulo e saiu com maravilhosa discrição.


O encontro estava marcado para as dez horas, depois do banquete dos internos. Enquanto esperava, Michel foi até à Praça de Armas e entrou no pequenino e moderno botequim instalado por baixo do rés-do-chão do hotel. Aí, ao balcão, bebeu um cálice de vinho e devorou pratadas de batatas fritas, cubos de queijo holandês e biscoitos salgados. O homem do botequim, Raul, conhecia bem o apetite de Michel e tratou o cliente com a devida solicitude.

Ainda era cedo e havia pouca gente por ali. Uma ou outra mulher de vida fácil, sentada à mesa, com a xícara de café e o prato de bolos a um canto, escrevia cartas intermináveis, sabe Deus a quem. Um ou outro velhote elegante olhava de soslaio para a sua vizinha. Os tubos de néon multiplicavam nos espelhos os fogos rubros e violáceos. Realçavam a madeira sombria das mesas e das poltronas guarnecidas de couro vermelho as bandas largas de metal cromado. Michel, com olhadelas furtivas, inspeccionava os bancos do balcão, procurando alguém conhecido. Muitos dos seus amigos, estudantes de medicina, deviam estar a essa hora no banquete de Suraisne. Bocejou e pediu outra bebida, a quarta dessa noite. A sua figura forte, de ombros largos, impunha-se na pequenez do lugar. De longe, examinou no espelho a cabeça volumosa, maciça, o rosto corado, os olhos castanhos, os cabelos também castanhos e eriçados, em escova, e não chegou a conclusão positiva quanto à sua beleza física.

Sentiu então baterem-lhe no ombro. Voltou-se.

- Santhanas!

O amigo Santhanas, rapaz alto, magro, amarelo como uma cidra, parecia mais amarelo do que nunca. Devia estar deveras preocupado.

- Isso não vai fino, hem? - notou Michel.

- Não. Foi sorte encontrar-te aqui.

- Precisas de mim?

- Preciso. Despacha-te.

Michel pagou e saiu atrás de Santhanas.

Lá fora a noite espalhara-se suavemente e difundia uma penumbra roxa. Os escaparates iluminavam-se. Dos escritórios saía a multidão das empregadas, animando as ruas com a sua graça juvenil e o seu luxo vistoso e barato.

- Que há então? - inquiriu Michel.

- Corre a chamar Tillery.

- Tillery? Para quê?

- Tenho lá no quarto uma rapariga a contas com uma hemorragia.

Michel observou o amigo. Conhecia-o, sabia de que coisas ele era capaz. E compreendeu.

- Previno-te de que Tillery está no banquete. Diverte-se, é possível que não queira vir...

- Não importa. Corre. Explica-lhe que estou atrapalhado. Há-de vir.

- Pois seja.

- Vai depressa. Eu espero.

Michel levou na mão o chapéu de feltro: o tamanho da cabeça e as suas protuberâncias não lhe permitiam conservar um chapéu em equilíbrio. E foi em verdadeira corrida que se dirigiu para o bairro das Faculdades, ao pé do castelo do rei Renato.

No primeiro andar da Taberna do Rei Renato decorria o banquete dos internos do Hospital da Égalité. Esta festa era tradicional e todos os anos os estudantes a ressuscitavam com o mais fervoroso dos zelos. Para ela convidavam sem grandes formalidades numerosos médicos e estudantes de medicina. E a maior parte dos mestres, famosos professores da Faculdade, viam-se também solicitados e aceitavam o convite sem se fazerem rogar. Por seu turno, cada professor oferecia um jantar anual aos do seu serviço hospitalar, jantar a que assistiam senhoras e onde o traje era de rigor. Mas no banquete dos internos estava-se entre homens e, além disso, o estudante imperava ali. Era ele o anfitrião. Não havia damas presentes nem constrangimento nenhum. E os professores, nessa noite, limitavam-se a ser convivas benévolos e sorridentes. Verdade seja que, em geral, o ambiente da festa se mantinha em nível elevado.

À volta dos professores a atmosfera conservava-se menos tumultuosa: reinava ali apenas alegre animação. Com barretes de papel de seda que lhes embiocavam singularmente a gravidade catedrática, os médicos discutiam entre si, mas em altas vozes por causa do ruído. Entre Géraudin e Heubel presidia o director da Faculdade, Geoffroy. Jean Doutreval, pai de Michel, gracejava com Suraisne e com o velho Ribières. E o neurologista Donat, que viera ao banquete apesar da sua aortite, escutava com sorriso fino e discreto as histórias de política interna contadas por Gigon, poderoso secretário da Faculdade de Medicina. Mais adiante viam-se os assistentes, os encarregados de curso; em suma, os que esperavam vaga duma cadeira: Bourland, Huot, Vanderblieck, Vallorge, a quem chamavam o Luís XVI por causa do seu perfil borbónico. Seguia-se a massa de estudantes e internos, todos muito alegres, arvorando chapéus de papel e emblemas multicolores. Por fim, no extremo da mesa, a minoria terrivelmente estrepitosa dos zaragateiros, na sua maior parte ébrios como cachos, conforme manda a tradição. Nessa espécie de entrudo, de pândega desenfreada e excepcional que é o divertimento dos estudantes, são imprescindíveis alguns truqes. Aliás, dois ou três assistentes de fresca data não desdenhavam misturar-se ao grupo. Por enquanto, naquele lado da mesa, iam na altura das canções. Uma dúzia deles, armada de facas, batia em cadência nas garrafas e nos copos. Outros dois, com fortes punhadas, tocavam tambor nas almofadas da porta. Outros ainda faziam tilintar como guisos as colheres metidas nos gargalos das garrafas. O efeito dessa orquestra era surpreendente. Tamanha algazarra pretendia acompanhar a canção de Seteuil. Este, encafuado num casaco virado do avesso, empoleirado na cadeira e com um pé sobre a mesa, vacilante, purpúreo, lustroso de suor, berrava tudo quanto se podia lembrar duma cantiga vulgarizada no meio académico.

De caçarola na cabeça, Lapeyrade, interno do terceiro ano (que morreria daí a um mês devido à sua dedicação por uma criança atacada de difteria), marcava freneticamente o compasso com o guarda-chuva surripiado ao professor Donat. Ao fim de cada estância, brandia de súbito a umbela num gesto brusco e formidável. E todo aquele bando de loucos que o rodeava ia ululando em coro, num clamor que se ouvia até ao fim da rua:

Pela siflis unidos estamos!

Galantemente enfeitado com um aventalinho branco cedido por uma criada pouco arisca, Tillery, muito vermelho, de olhos a luzir por trás dos óculos grandes como escotilhas, discutia com Groix e Regnoult, os dois internos de Doutreval, e tentava averiguar se estes persuadiriam certo assistente novo a acompanhá-los nessa noite. Depois, entre eles três, houve longo debate sobre doenças venéreas. Regnoult afirmava a individualidade particular do treponema da sífilis nervosa, ao passo que os outros expunham diferente parecer com argumentos que um princípio de embriaguez tornava pouco claros. Valia a pena ver Groix (que tinha a alcunha de Gilvaz por causa duma cicatriz que lhe desfigurava o rosto) falar gravemente com Tillery acerca de espírilos, espiroquetas, reacções de Kahn, antigéneos e anticorpos, um com a cabeça ornada de gigantesco barrete arrancado à força ao chefe da cozinha e o outro de avental branco debruado de rendas. Mais adiante, Vallorge explicava a Flégier, director do serviço de Géraudin, a recente aventura sucedida a Suraisne. Por causa dum neoplasma no seio, entrara uma velha no Hospital da Égalité. Por trás daquilo não haveria tuberculose escondida? A velha morreu numa sexta-feira. Era Seteuil quem a tratava. Suraisne encontrava-se em Paris e só voltou na quarta-feira seguinte.

- Não me conformo! - exclamara. -Ter perdido aquele seio!

Então, sem dizer palavra, Seteuil, certo da alegria que ia causar, apresentara com ar solene, ao mestre, o seio dissecado e conservado por ele em formol.

- Ah, Seteuil! Seteuil!-dissera Suraisne. -Aí está um rasgo que eu nunca esquecerei.

Segurara o seio, no bocal, e abrira-o. Mas, nesse momento, rebentara um abcesso na carne morta, que lhe salpicou de pus a cara e a mão. Dois dias depois Suraisne tinha por sua vez um abcesso no dedo.

- Assustei-me - confessava Vallorge, olhando de longe para o professor Suraisne. - Palavra! E Seteuil também. O mestre tinha precisamente uma esfoladela naquele dedo.

Agora ria-se dos seus temores, passando devagar a mão pela cara, bela cara de tipo borbónico, um tanto gorda e pesada, mas serena, confiante. E Suraisne, que via os gestos e os olhares do discípulo, recomeçou por seu lado a narração do incidente, mostrando aos seus vizinhos Doutreval e Ribières o dedo em que se produzira o acidente. Ribières apalpou-lhe os gânglios da axila, por baixo do casaco, e mostrou-se interessado.

- Ora vejam! Mal sabem o que me aconselharam, o que me prescreveram! Não fiz nada, no fim de contas.

Uma ninharia! E ao cabo de três dias não havia nada, nem febre nem dor.

Poder-se-ia dizer que Suraisne, homem de ciência e de laboratório, esquecia tudo quanto aprendera desde que se tratava da sua pessoa. O caso, aliás, não é raro : há muitos médicos que recusam ministrar a si próprios o mais pequeno tratamento.

-Já vêem como me saí bem!

- De facto - volveu o velho professor Ribières, abanando a cabeça, na qual pompeava um barrete de polícia, de papel de seda, e continuando a apalpar os gânglios do colega com tanta consciência como se estivesse no seu consultório. - Contudo - acrescentou - eu, no seu lugar, tomaria cuidado...

- Ora! Acabou-se, e de vez. Bebamos à derrota dos cirurgiões!

Vallorge e os que o rodeavam viram-no erguer o copo e fazer-lhes um convite amigável.

- Foi nessa ocasião que um criado, aproveitando-se do burburinho geral, veio inclinar-se ao ouvido de Tillery.

- Está lá fora um amigo que lhe deseja falar...

- Um amigo?

- Sim, senhor. Alto, forte, de cabelos tesos.

«É Michel», pensou logo Tillery. «Não quis que o pai o visse».

E saiu, pondo de parte o guardanapo, mas sem se lembrar que ainda tinha o avental de rendas.

No patamar encontrou efectivamente Michel.

- Santhanas precisa de ti - disse-lhe este. - Vem depressa.

E explicou de que se tratava. Tillery praguejou, injuriou Santhanas e tirou os óculos quatro ou cinco vezes para os limpar enquanto reflectia. Por fim decidiu desembaraçar-se do avental, o que só conseguiu com a ajuda de Michel, pegou no seu barrete de estudante constelado de estrelas de oiro e ornamentado de fitas espaventosas, e saiu com o amigo. O ar fresco da noite dissipou-lhe o começo de embriaguez. Pelo caminho ia pedindo pormenores a Michel, o qual não o podia elucidar.

- Foi obra de Santhanas, não é verdade? É um idiota chapado E agora conta comigo para o desenrascar. Paciência! Não tenho o direito de dizer que não. Mas ele bem podia dirigir-se a outro.

Pretendia informações concisas. Michel, porém, sabia apenas que se tratava duma hemorragia.

- Naturalmente ele teve medo - concluiu Tillery. As vezes, nestes casos, o útero expulsa tudo em globo: ovo, bolsa de águas, placenta... Mas em geral isso acontece em dois tempos. Primeiro é o feto a ser expulso. Como, no entanto, se não trata dum verdadeiro parto, a placenta não está ainda «madura» e adere ao útero por velosidades que se desarraigam e sangram... É de facto assustador. E como Santhanas nem tem capacidade para partejar uma vaca... Pensar que esse homem será um dia médico I

- Achas que sim?

- É fatal! Já viste um estudante de medicina não chegar a ser médico? Uma vez entrado na bicha, aquilo é automático. Enfim, ele e a amante bem podiam ter escolhido outro dia para tramarem o seu homicídio.

O quarto de Santhanas ficava por cima dum café modesto, perto do cais do Maine. Era um desses aposentos que se alugam já mobilados; grande, banal e triste, ornamentado com fotografias de actrizes em indumentária sugestiva, pregadas na parede com alfinetes. Sobre o fogão via-se uma caveira de cachimbo na boca e boina de estudante. O catre de varões de latão ficava a um canto. Aí, com a roupa levantada até aos seios, em cima dum oleado velho de florinhas azuis, lívida e ensanguentada, estava uma rapariga dos seus vinte anos, que, de joelhos erguidos e olhos fechados, respirava com dificuldade. Ao pé da cama, a iluminar a cena, ardiam quatro velas equilibradas no fundo do mesmo prato, que por sua vez se mantinha na mesita colocada sobre uma pilha de cartapácios. Santhanas corria dum lado para outro, a rasgar lençóis e a ferver água no fogão de gás. Como quisesse explicar as coisas, Tillery, que lavava as mãos, atalhou :

- Cala-te! Já percebemos. Não passas dum patife idiota. Quem se quer meter em alhadas deste género não as faz num quarto de aluguer, com quatro velas por iluminação, sem assepsia nem coisa nenhuma. Sabes que isso equivale a uma operação autêntica? Sabes que a arriscas a uma febre puerperal? Hem? Estás-te nas tintas, é claro. Bem, vamos a isto. Dá cá a colher de raspagem e o histerómetro.

- Para quê?

- Para uma sondagem Nunca fiando. Se lhe perfuraste a matriz és capaz de me deixar actuar e dizer depois que foi eu quem a perfurou. Já te conheço!

Pegou no histerómetro, aproximou-se da doente e aplicou o instrumento, que penetrou até ao baixo ventre. Michel curvou-se, olhando ora para aquele ventre ora para a cara miúda e redonda de Tillery, que se tornara grave e contraída. E esperou tão interessado que a angústia do momento o não contagiou.

- Não encontro nada - murmurou Tillery. - Parece que não há perfuração. Quando ela existe, a agulha, entra direita, às vezes chega ao intestino. Era caso para uma peritonite! Podes-te gabar, meu trapalhão, de que tiveste sorte - prosseguiu ele endireitando-se. - Prepara a colher. Não, não vale a pena. Isto vai à mão.

Mergulhara a mão profundamente, e os seus dedos retiravam do útero farrapos ensanguentados. A rapariga empalideceu ainda mais, fez uma careta e soltou um breve gemido de dor. As feições juvenis e finas, emolduradas de cabelos loiros e sedosos, pareceram envelhecer de repente, tomando súbito aspecto de rigidez e dureza.

«Vai morrer», pensou Michel.

E, pela primeira vez na sua vida, sentiu uma impressão de horror, a sensação de assistir a qualquer coisa que não era simples incidente da vida de estudante mas um grande drama em que estava empenhado o destino dum ser humano. Isso, porém, durou pouco tempo. Tillery acabara e já ensaboava as mãos. Santhanas trouxe café forte e bagaço. A rapariga compôs a roupa e, sentada, bebeu aos goles, recuperando as cores. Todos serenavam, e Michel achou oportuno rir. Tornaram a fazer café, fumaram os cigarros de Santhanas e esperaram que a doente ficasse em estado de poder sair.

Michel e Tillery levaram-na de táxi, visto Santhanas se não atrever a fazê-lo. A rapariga morava no fim da avenida Foch. Segundo Tillery explicou durante o trajecto, era filha de pais muito decentes, empregados no comércio. Loucura de menina demasiado livre, moderna em excesso, acrescentou ele, que aproveitou a ocasião para pregar moral. Ela, no seu canto, nada respondia : de olhos fechados, escutava, ou então ia a dormir.

Chegaram diante da porta da casa. Como não achassem a rapariga capaz de andar firmemente por seu pé, Michel e Tillery propuseram acompanhá-la, ao que a doente recusou com a maior obstinação. Preferiu, assim, contar sabe Deus que história à família. Então Tillery deu-lhe o número do telefone do hospital, e recomendou-lhe que tomasse a temperatura e chamasse logo um médico no caso de não se sentir bem. Que estivesse tranquila, pois nenhum médico a denunciaria. Segredo profissional. Michel pagou ao motorista e Tillery puxou a campainha da porta. Apareceu luz a uma janela. Ressoaram passos no interior. E os dois amigos afastaram-se a toda a pressa, deixando à rapariga e aos pais o cuidado de se entenderem em tão embrulhado negócio. Para as pernas curtas de Tillery, aquela corrida foi deveras notável.

Alcançaram o Rei Renato mesmo na altura em que o banquete findava. Os estudantes saíam em grupos, espalhando-se na rua mal iluminada. Os mestres dirigiam-se para os seus automóveis. Vallorge esbravejava por ter descoberto, ao querer pôr o carro em marcha, que um gracioso lhe despejara água no depósito da gasolina. Para Vallorge aquilo era o pão nosso de cada dia. Ora lhe furtavam toda a gasolina, ora o tampão do radiador, pois devido à sua rápida ascensão na Faculdade de Medicina não lhe faltavam inimigos no rancho dos arrivistas. Certa vez, quando ele regressava de Espanha, o funcionário aduaneiro encontrou debaixo do assento do carro cinquenta gramas de cocaína. Nunca se soube quem lhe fizera essa partida, e Vallorge teve dificuldade em demonstrar a sua inocência. Naquela noite houve que resignar-se, abandonando o automóvel; Suraisne levou-o no seu. Durante este tempo a maioria dos alunos dispersara-se calmamente, indo cada qual para a sua toca. Alguns, em grupos pequenos, acompanhavam os professores, que seguiam a pé, conversando familiarmente. O bando dos mais fogosos ia-se também disseminando. Uns dirigiam-se à Associação dos Estudantes, outros ao Liceu, com ideia de o tomar de assalto e introduzir nos dormitórios dos infelizes «bichos» um pouco de alegria sã. O terceiro contingente foi em busca das barracas de frituras, no propósito de, à socapa, despejar nos tachos um pacote de orelhas humanas, tiradas com toda a paciência dos cadáveres em dissecação. Quanto a Michel e Tillery, viram-se arrastados na malta vociferante que, tocando às portas, gritando injúrias complicadas aos burgueses pacatos, virando de pernas ao ar os caixotes do lixo e apagando os bicos de gás que encontrava pelo caminho, ia à cata das tabernas a essa hora ainda abertas. Empunhando o guarda-chuva do velho Donat, Lapeyrade

- esse que morreria daí a um mês -servia de condutor ao grupo.

A noite acabou no meio de grande confusão. Beberam champanhe e ponche, com soldados ébrios, num café de lepes que ficava por trás do quartel e onde reencontraram o magro e pálido Santhanas. Seteuil armou discussão com uma das mulheres, a quem acusava de lhe haver furtado uma nota de cem francos. A mulher negou a pés juntos, e o dinheiro apareceu por fim no copo de Tillery, que se preparava para o engolir. Nesse momento surgiu entre Groix e a dona do estabelecimento uma disputa complicada acerca da liquidação da conta. Michel tinha-a visto trazer duas garrafas vazias no meio das que vinham cheias. O caso azedou-se. Entretanto, desafiado pelas mulheres, Tillery pretendeu fazer de Mercúrio, com um pé no ar, em equilíbrio sobre o fogão, entre as lâmpadas Carcel. Subiu para lá aos ombros de Seteuil, vacilou, agarrou-se ao espelho e veio a terra com este e com as lâmpadas, derrubando mesas, copos e garrafas numa barulheira infernal. Seguiu-se tumulto, que se generalizou aos soldados e estudantes presentes. Michel representou papel de relevo, fazendo frente a dois gigantescos militares e ao dono da loja até ao momento em que Santhanas, por uma estratégia perfeita, pôde alcançar o interruptor da luz. Então, nas trevas e na barafunda, Michel carregou com Tillery às costas, e, no meio de indescritível confusão, correu à desfilada para o cais. Tillery, aos sacões sobre os ombros do amigo, choramingava a reclamar os óculos, com vozita de criança.

Por fim chegaram ao quarto deste último. Tillery deitou-se no chão, cobriu-se com o tapete, como se puxasse a roupa da cama, e adormeceu ainda entre prantos. Michel tornou a sair, alcançou o bairro das avenidas e deu de cara com Seteuil, Groix, Regnoult, Santhanas, um grupo completo que o primeiro arrastava para casa da sua amiga Madeleine Daele, enfermeira do sanatório, disposto a passar ali o que restava da noite. Michel não se lhes juntou. Tinha bebido pouco e a fuga com Tillery restituíra-lhe o sangue frio. Deixou, pois, que se afastasse o bando dos excitados. Na cidade adormecida o eco da canção que entoavam ia morrendo ao longe. E Michel voltou para casa, em ar de passeio, numa atmosfera já calma e silenciosa.

Subiu sem ruído, às apalpadelas, até ao primeiro andar. Aí, bruscamente, desenhou-se no soalho um quadrado de luz.

- És tu, Michel?

Reconheceu Mariette, a irmã mais velha, e sentiu remorsos. Sabia muito bem que ela o esperava sempre. Porque não regressara mais cedo?

- Vens tão tarde!

- Não devias ter ficado acordada.

- Deixa lá. Agora estou tranquila. Deita-te depressa. Se o papá soubesse...

- Já está recolhido?

- Há muito tempo. Boa noite.

Fechou a porta. Depois da morte da mãe, Mariette velava pelos dois irmãos e até pelo pai como uma galinha choca vigia os pintainhos; e era ela quem governava a casa.

Michel entrou no quarto, despiu-se, enfiou o pijama e abriu a janela. O céu ia já clareando. Ao longe, para além dos telhados de ardósia, o campo angevino começava a surgir, com um reflexo pálido sobre o Maine largo e lento; viam-se manchas ainda negras, que eram as florestas e que escondiam o Loire. Algures, numa igreja do arrabalde, um relógio bateu quatro horas.

Michel tornou a fechar a janela e veio sentar-se na poltrona. Não tinha sono. O cérebro trabalhava-lhe. Reviu Tillery a fazer de Mercúrio, Vallorge diante do automóvel imobilizado, e o gigantesco militar a cair de cangalhas sobre o dono do café quando o seu punho o atingira no queixo.

Riu-se sozinho. Que noite! Lembrou-se então da mulher que Seteuil acusara de furto : recordou-se da cara dela, do seu ar de justa indignação. Era estranho, numa criatura dessa laia... Tal evocação afligiu-o, sem que soubesse porquê, Gostaria de tornar a ver aquela rapariga. É isto a vida! A frase agradou-lhe, e repetiu-a:

- É isto a vida!

Veio-lhe também à memória a amante de Santhanas. Que face trágica, nesse momento em que Michel pensara que ela ia morrer-lhe no táxi... Como diabo teria acabado tudo aquilo... com os pais? De novo sentiu um vago aperto de coração, que logo tratou de reprimir.

- É isto a vida! - murmurou mais uma vez.

E aplaudiu-se por ser forte. Incoerentes, agradáveis, atravessavam-lhe o espírito certos trechos de moral que decorara no Liceu, na Faculdade, em casa, perante o espectáculo da existência.

- Para além do bem e do mal... A força é sagrada... vcevictis...

Nesse instante considerou-se decidido a calcar tudo aos pés a fim de ser também, na vida, um super-homem.

Excitado como estava, não conseguia dormir. Pegou então no livro cuja leitura principiara na véspera: Crime e Castigo. Leu durante uns minutos. E isso, ao fim duns momentos, operou o milagre. Esqueceu-se de quanto se passara nesse dia, emoções, pensamentos, sonhos. Viveu a triste aventura de Sônia, pobre rapariga que Catarina, sua madrasta, enche de pancada e quer prostituir para matar a fome dos próprios filhos. Sônia volta a casa com trinta rublos, dá-os a Catarina, e deita-se, tudo sem abrir a boca. A madrasta, transtornada, adivinha o espantoso sacrifício e cai de joelhos aos pés da cama, chorando com a enteada.

Michel poisou o livro, levantou-se e deu alguns passos no quarto. A comoção apertava-lhe a garganta, como um nó, sufocando-o: misto de piedade, de cólera, de revolta juvenil e generosa, que lhe humedecia os olhos e que ele não sabia explicar.

 

O motorista do professor Géraudin, de nome Louis, esperava o patrão à porta da moradia. O automóvel preto e cromado irradiava reflexos sombrios. Havia flores na jarra. Louis mirava-se no esmalte e sentia-se orgulhoso. Era ele, na casa de Géraudin, uma das personagens importantes. A sua vontade valia como lei, pois - e não se sabe porquê - a mulher do professor, que não temia ninguém, parecia ter medo de Louis.

Géraudin saiu e entrou no carro, sentando-se à frente, ao lado do motorista. Não era a primeira volta que davam nesse dia : toda a manhã fora ocupada com idas à clínica, aos doentes e operados.

- É verdade que o professor Suraisne não anda bem?

- perguntou Louis, a quem o patrão concedia certa familiaridade.

- Consta que sim. Não deve ser coisa pequena.

- Estava tão alegre, outro dia, no banquete! Não quer o volante, senhor doutor?

- Não, Louis, esta manhã prefiro não guiar. Tenho operações a fazer. Vamos primeiro ao senhor Gigon, à Faculdade.

Antes de operar, Géraudin, por medida de prudência, evitava os gastos nervosos. Já passara os sessenta anos e, embora se considerasse rijo, achava conveniente poupar-se. Era homem ainda em pleno vigor, baixo, sanguíneo, de olhos pardos raiados de vermelho e orelhas grossas e encarnadas metidas na carne dum pescoço apoplético; a boca, de bigodinho à americana, mostrava uma ruga melancólica, de fadiga. Tirou da algibeira um isqueiro de oiro e acendeu o terceiro charuto dessa manhã. Quantas vezes não se exprobrava a si mesmo de fumar charutos em excesso! Aquilo fê-lo pensar de novo no seu começo de arteriosclerose. Inconscientemente, num gesto que se lhe tornara familiar e maquinal, apalpou, entre o polegar e o índex, o lóbulo da orelha, sempre muito quente.

O triunfo de Géraudin vinha já de há trinta anos. Devia-o a Salnikov, médico sem grande nome, nem sequer assistente da Faculdade, mas extraordinariamente audacioso e esperto : fora ele quem pressentira as vias por onde iria trilhar a medicina moderna. Depois de muito tempo de prática obscura, Salnikov lançara-se a fundo nessa coisa então nova, com que se entusiasmavam os doentes até aí desesperados: os raios X. E havia sido fulminante o seu êxito, favorecido como fora pela voga e curiosidade geral e merecido também pela dedicação, consciência profissional e rara segurança de diagnóstico.

A medicina apaixonara Salnikov, mas a medicina em marcha, a do futuro. Foi um precursor. Ousado até à temeridade, o seu racionalismo científico precedia todos os confrades nos caminhos perigosos da medicina da vanguarda. Essa mesma audácia lhe atraía uma clientela fascinada. Grandes amputações, ablações de órgãos, ele não recuava diante de nada. Tinha estofo para ser um príncipe da cirurgia. Foi o primeiro, naquelas redondezas, a experimentar a ressecção dos filetes do simpático. Os próprios cirurgiões hesitavam em acompanhá-lo, não se atrevendo a praticar as intervenções tão revolucionárias que ele prescrevia. Salnikov exasperava-se, procurava debalde, de cirurgião em cirurgião, aquele que lhe pudesse servir, que lhe obedecesse, que se tornasse o seu pulso, dócil ao cérebro que o dirigiria.

Foi então que encontrou Géraudin.

Bernard Géraudin, antigo director do serviço do professor Rillerac, acabava de ser abandonado por este e vegetava tristemente. Rillerac desejava que o discípulo casasse com a filha dele e lhe sucedesse na Faculdade; mas o rapaz mantinha uma ligação com certa costureirinha e recusou-se a deixá-la. Era novo, estava na idade em que se chora ao ouvir a Louise de Charpentier e em que se gosta de cantar:

Todos os homens têm direito a ser felizes, Todos os homens têm direito de ser livres,..

A este primeiro motivo de queixa do mestre não tardou a juntar-se o segundo: Rillerac veio a saber que o seu protegido começava a operar por sua conta e a arranjar clientela. Isso é que Rillerac não podia perdoar. E despediu então Géraudin, acabando com as veleidades desse moço tão apressado em lhe fazer concorrência.

Géraudin, posto assim à margem, condenado a esperar indefinidamente pela sua cadeira de professor, sem capitais que lhe permitissem abrir uma clínica, foi passando vida mesquinha, arranjando-se com o que lhe rendiam as operações no domicílio dos doentes.

Nascera no Bordelais, filho de gente pobre. O futuro não se anunciava prometedor a esse rapaz robusto, excelente anatomista, a quem dez anos de existência medíocre, de restaurantes baratos, de quartos de aluguer, de humilhações perante os ricos haviam aguçado os dentes de maneira feroz. Uma vez apresentado a Salnikov, logo acreditou nesse homem e o seguiu convicto.

De começo, porém, a coisa não deixava de causar vertigens. Salnikov, nesse tempo, estava muito adiantado à medicina oficial. Todos os dias arriscava a sua situação, como um jogador; era capaz de escrever, sem pestanejar e para cobrir o risco do seu cirurgião, documentos deste género: «Declaro sob minha responsabilidade que o senhor X..., enfisemático, deve ser adormecido com clorofórmio e não com éter». Géraudin, pouco a pouco, foi-se familiarizando com semelhante temeridade e tornou-se num instrumento dócil, que executa e compreende. Tanto que Salnikov declarava a todos os clientes:

- Para operações, Géraudin. Não há outro.

Este beneficiou assim da nomeada do protector e da sua afoiteza. Já não se distinguiam um do outro. Dizia-se:

- Ah, Géraudin, que homem arrojado!

E a verdade é que o discípulo assimilava dia a dia os processos do mestre, lançando-se a valer, e por sua conta, no que ele chamava cirurgia construtiva, criadora. Salnikov foi na realidade o professor de Géraudin. Em contacto com aquele, o moço cirurgião adquiriu da cirurgia uma concepção nova e pessoal. O êxito chegou, e foi possível em pouco tempo abrir uma clínica.

Por várias ocasiões Salnikov confiou a própria carcaça ’às mãos peritas do seu amigo. O mestre trabalhava muito, consumia-se, divertia-se sem moderação. Foi em Salnikov que Géraudin praticou, pela primeira vez em França, a ablação das hemorróidas. E as hemorróidas de Salnikov tornaram-se prodigiosamente célebres. Em intervenções sucessivas, Géraudin suprimiu-lhe a vesícula biliar, o estômago, uma parte do intestino. Salnikov morreu na clínica do seu amigo dois dias depois de ter recebido um enxerto ósseo na coluna vertebral, coisa que ele exigira e que, em si mesma, fora bem sucedida.

Géraudin, no entanto, já podia passar sem esse velho mestre. Estava lançado. Ninguém, nem sequer entre os seus inimigos, lhe contestava o valor. E como não era daqueles que sabem guardar muito tempo a idade dos sacrifícios e da pobreza risonha, que é a verdadeira mocidade, Géraudin, tentado pelo dinheiro à medida que o ganhava, desfez a sua ligação com a costureira, com quem vivia desde os vinte anos, e desposou Valerie Largilier, filha mais nova do director da Faculdade. A vida não é sentimento. Tinha um filho da amante: ofereceu-lhe uma soma avultada, que ela rejeitou.

O seu casamento com a filha do director assegurou-lhe na Faculdade uma cadeira que Largílier criou expressamente para ele. Valerie trouxe ao marido um dote principesco, mas Géraudin depressa se habilitou a viver com os recursos próprios. A sua clientela era a mais rica, a mais notável da região. Industriais, políticos, personalidades de toda a espécie só queriam ser operados por Géraudin. E os honorários faustosos que reclamava, os seus caprichos, a sua arrogância, as exigências de quem pode desprezar o dinheiro criavam em volta dele uma lenda reverente.

- É um original - comentavam.

Géraudin dominava na Faculdade. Todos os deputados da região eram seus amigos. Sobretudo o advogado Guerran, homem ainda novo visto que não atingira os cinquenta, deputado aos trinta anos, ministro aos trinta e seis, fora para ele um apoio inestimável. Géraudin, pessoa perspicaz, dera o primeiro impulso a Guerran. E Guerran pagara bem esse favor. Era a ele que Géraudin devia a sua enorme influência em todo o departamento. Géraudin nomeava os cirurgiões dos hospitais, arranjava emprego aos seus alunos, mandava reservar-lhes os melhores lugares. Fora Guerran quem obtivera para o amigo a roseta e a fita branca e doirada de grande oficial da Legião de Honra; quem pusera de remissa todos os decretos susceptíveis de causar prejuízo a Géraudin; quem elevara um primo deste, César Gigon, ao posto de secretário da Faculdade. E então, quanto ao papel de Gigon, bem se pode dizer que era precioso.

Géraudin tinha direito a considerar-se o homem mais adulado e o mais detestado do país. Para o seu triunfo arranjavam-se explicações monstruosas. Quanto a Guerran, pretendia-se descobrir outras causas justificadoras, além da amizade: chegou-se a afirmar que o político fora amante da senhora Géraudin, com o conhecimento, é claro, do marido. Contudo Valerie Géraudin, se possuía feitio difícil de aturar, em matéria de honestidade era pessoa incorruptível. No meio desta onda de calúnias, Géraudin avançava sempre, sem sequer se dar ao trabalho de encolher os ombros, pois tinha a seu respeito (e os inimigos sabiam-no) esta pura convicção : que sem Salnikov, nem Gigon, nem Valerie, nem Guerran, isto é, sozinho, ele chegaria da mesma forma à notoriedade, devido ao seu génio operatório. E isso é que ninguém lhe perdoava.

No segundo andar da Faculdade, ao fim das salas da secretaria, Gigon tinha um escritório para ele só, modesto e poeirento, donde governava os estudantes e os mestres. Pouca gente suspeita quanto é poderoso um simples secretário de Faculdade. É este que consegue suspender ou aplicar tal regulamento, modificar o processo dum ou doutro candidato, fechar os olhos a uma irregularidade. Praticamente, era Gigon quem premiava, distribuía os lugares, regulava as promoções. Este primo de Géraudin morava no campo, esquivando-se assim à importunidade das visitas. Para aumentar o ordenado modesto que recebia, fizera-se intermediário duma livraria importante e vendia livros luxuosos de arte e de medicina. É claro que os pretendentes a qualquer coisa, numerosos sempre em todas as Faculdades, lhe compravam boa cópia de exemplares.

Nesse dia o corredor estreito que servia de antecâmara estava abarrotado de visitas. Bourland, Huot, Vanderblieck, que eram assistentes, saudaram o «grande» Géraudin e cederam-lhe logo a sua vez. Gigon, que nesse instante vinha a acompanhar uma visita, acolheu com deferência o seu ilustre primo e, desculpando-se com um gesto dos outros que esperavam, convidou-o imediatamente a entrar.

- Como vê - disse ele - isto hoje está concorrido. Soube-se que Suraisne não vai lá muito bem, de modo que a bicha dos candidatos se pôs em movimento. Há duas horas que desfila por aqui a multidão dos ambiciosos. Querem notícias, desejam informações seguras para ver quais são as probabilidades de cada um...

- Que diabo - volveu Géraudin - Suraisne ainda está vivo!

- É o que digo a todos. Mas não foi por causa disso que eu o incomodei.

E expôs o assunto da conferência. Gostaria de ver criada uma ordem nova, a Ordem do Mérito Clínico, que constituiria recomendação para a Legião de Honra e daria por outro lado, a Gigon, um instrumento de influência suplementar. Com o apoio de Guerran, o êxito do projecto estaria garantido.

Géraudin prometeu falar a Guerran, na primeira ocasião que o topasse. E deixou Gigon para vir encontrar Louis e o automóvel, que o conduziram ao hospital da Égalité. O carro seguiu em andamento moderado e Géraudin foi pensando em Suraisne e nesse bando de rapazes condenados a desejar a morte dos mais velhos para subirem um degrau na escada. A si próprio, dizia que essa «política de Faculdade», com esses mestres rodeados duma corte, a disporem como senhores absolutos do futuro dos alunos sem darem apreço aos exames nem aos concursos, não fora decididamente criada para favorecer a competição leal e a união fraterna. Com certa amargura, recordou-se da sua mocidade, de Rillerac, o tal que o despedira pelo facto de Géraudin querer ganhar a vida à custa do seu trabalho. Não lhe saía da lembrança o grupo ansioso, marcando passo no corredor de Gigon. E, com a mesma lógica com que o havia utilizado, achava que o sistema não era nada bom.

 

Sem pressa, Michel dirigiu-se para o Hospital da Égalité. Tinha muito tempo: Regnoult acabara a aula na Faculdade mais cedo que de costume. Além disso, o trajecto era curto, e Géraudin, sempre atarefado, raras vezes chegava à hora marcada.

Contornando a fachada do Hospital, Michel foi por uma porta de serviço, a fim de evitar o desvio da entrada principal, e atravessou a sala de otorrinolaringologia nariz, boca e ouvidos, como em geral diziam - para onde os indigentes da cidade traziam os filhos necessitados de operação. O dispensário estava em plena actividade. Em bancos alinhados derredor da sala, esperava uma multidão envolta em farrapos multicolores: mulheres, homens, velhos, cada qual com um nené ao colo ou com uma criança pálida e inquieta sentada nos joelhos ou à sua beira. Estava ali calor. Atendendo ao fresco dessa manhã outonal, haviam posto os radiadores a funcionar. E um fedor acre de dias húmidos, de suor e de gente amontoada dominava o cheiro ácido do anti-séptico que a Irmã Angélique vaporizara antes da abertura do hospital. Toda aquela multidão, encafuada em barretes de lã verdes e vermelhos enterrados até às orelhas, com lenços castanhos, azuis ou amarelos, sobretudos esverdinhados e velhos casacões cor de vinho, roxos ou pardos, formava ao longo dos bancos uma faixa de tons agressivos e desarmónicos. A cada instante chegavam mais pessoas, que se iam sentar junto das outras. Conversavam pouco e mantinham o olhar mais ou menos fixo na porta do fundo, na direcção da sala em que o gordo Belladan, director do serviço do professor de cirurgia infantil, operava amígdalas e polipos. De três em três minutos abria-se essa porta e dela saíam quatro, cinco mamãs com ar aterrado, cada uma trazendo ao colo uma criança lívida ou purpúrea, com a boca e o nariz ensanguentados, chorando a bom chorar. Voltavam a sentar-se e uma enfermeira levava-lhes pedacinhos de gelo para os petizes chuparem.

- Outros! - chamava o gordo Belladan. Levantavam-se mais cinco mulheres e avançavam

para a porta com os respectivos miúdos transidos de medo. A porta tornava a fechar-se, ouviam-se gritos pavorosos, e nova saída de crianças com a boca ensanguentada.

- Outros.

Aquilo prosseguia com rapidez vertiginosa, sem interrupção. E assim era preciso. Todas as manhãs, no dispensário, tinham de arrancar gratuitamente centenas de amígdalas ou de pólipos.

Michel foi lançar uma vista de olhos à salinha das operações e apertar a mão a Belladan. Uma vez mais se admirou da perícia do director do serviço. O enfermeiro agarrava num pequeno, amarrava-o à cadeira ou limitava-se a segurá-lo nos seus braços sólidos. À distancia dum metro o projector ofuscava a criança. Como esta em geral resistia, metiam-lhe à força, entre os dentes, o abre-bocas, escancarando as maxilas. Belladan enfiava então o abaixa-línguas, impedia o esforço desesperado do doente para vomitar, introduzia com rapidez uma colher além da abóbada palatina, erguia-a na direcção da base do crânio, agitava e raspava. O sangue irrompia. Gritos. Acessos de tosse. Outra vez náuseas. A criança, sufocada, amarrada, louca de dor e de susto, engolia, abafava e acabava muitas vezes por lançar à cara de Belladan os pedaços sangrentos arrancados à garganta. Terminara a operação. Libertavam o pequeno, que saía a chorar ao colo da mãe. Belladan passava no rosto um bocado de algodão e mandava segurar outra criança.

-Devíamos adormecê-las-disse ele a Michel, enquanto limpava das sobrancelhas um salpico de sangue. - Mas é impossível. Quando tenho tempo recorro à anestesia local. E ainda assim isso é raro. São muitos. Vês a quantidade? De facto, seria impossível. Resta saber se a cirurgia é que tem de se adaptar ao dispensário ou se é o dispensário que tem de se adaptar às necessidades da cirurgia. Medicina administrativa, meu amigo, medicina do Estado... Isto promete ser bonito daqui a uns tempos. Lastimo os doentes do futuro! E lastimo também os médicos. Hás-de ver que não será a administração que estará ao serviço da medicina. Os médicos é que terão de se submeter às exigências da administração! Vai ser divertido! Então? Ele está pronto? Vamos, meu menino, coragem...

Aproximou-se de mais uma vítima, de colher na mão.

- Não chores! Mostra que tens coragem... Olha a tua mama tão aflita...

Michel saiu, perseguido por um grito horrível, e afastou-se rapidamente. Para atingir o pavilhão de Géraudin, atravessou o pátio do antigo claustro. Notou com pena que estavam a pintá-lo: vários homens besuntavam de cinzento escuro os pilares e os arcos das abóbadas.

O Hospital da Égalité dependia do município de Maineburgo. Esse antigo convento de beneditinos fora barbaramente ampliado e desfigurado com duas alas gigantescas, duas construções monumentais de ferro, vidro e cimento armado, espécie de gaiolas que davam sensações de vertigem e esmagamento. Mas, ao centro, o claustro subsistira durante muito tempo, intacto, belo e calmo, com a sua galeria circular, os seus arcos de tijolos e pedra; o relvado, tal um tapete verde, estendia-se aos pés duma estátua da Virgem, toda branca no meio daquela frescura. Cantava num tanque um fio de água. Infelizmente, tudo aquilo desaparecera. Em primeiro lugar, haviam tirado dali a imagem da Virgem, por motivos políticos; depois, fora a vez do pequenino jacto de água, o qual, segundo parecia, minava as finanças da Assistência Pública; por fim, em nome da economia, tinham substituído a relva por um forte e sonoro pavimento de arenito. Em vão o padre Vincent, capelão da casa, protestava a cada uma dessas novas destruições. Agora o município de Maineburgo mandava pintar o claustro, as paredes, os pilares e até as colunetas das janelas com uma tinta cinzenta, espessa, oleosa e indelével que lembrava os tons fúnebres do material de guerra. O padre Vincent fora a todas as repartições da Câmara para defender o seu claustro, explicar as belezas dele e o que poderiam fazer ali. O tijolo vermelho dos muros e dos pilares, os capitéis e as nervuras de pedra branca da abóbada, os envasamentos de pedra inteira e a ardósia azul dos telhados, tudo isso bem raspado, bem limpo, formaria um conjunto de cores harmónicas e magníficas. O capelão, porém, esbarrara com os princípios de economia intransigente de todos os camaristas. Por acaso, Chatelnay, presidente da Câmara de Maineburgo, era representante duma fábrica de tintas. Não admira, pois, que se pintasse com tanta abundância por toda a cidade.

A capelar incendiada durante a Revolução, cedera lugar ao escritório do economato. Mas, no subsolo, conservava-se a cripta, bela amostra de arquitectura de abóbadas góticas, com suas gráceis colunas fasciculadas e carrancas de pedra finamente esculpidas a representar querubins. Tinham aí instalado os geradores do aquecimento central. Montões de carvão de pedra faziam daquilo um lugar sombrio e poeirento: subiam até às abóbadas, escondiam os pilares até aos capitéis e enchiam-nos duma camada negra e corrosiva de carvão e fuligem. Em toda essa mancha escura serpenteavam tubos enormes, enredados uns nos outros como répteis. No chão, as caldeiras estavam colocadas sobre o lajeado antigo de mármore, outrora preto e branco; a água estagnava no solo, formando lama gordurosa. Sobre as pedras gastas ainda se percebia uma inscrição antiga, nomes das religiosas que ali estavam sepultadas, debaixo das caldeiras.

O padre Vincent vagueava com pena e desolação por entre essas ruínas. Também Géraudin, Donat, Ribières e outros professores (pois muitas vezes os médicos são amadores de arte e coleccionadores perspicazes) vinham ali admirar um pormenor de escultura, uma cabeça de mulher ou de demónio ainda visível sob a camada de fuligem, e lastimavam a sua impotência em face do vandalismo administrativo. Mas o município de Maineburgo era muito anticlerical e não se interessava por capelas.

No pátio, os estudantes esperavam a chegada de Géraudin. De bata branca e barrete, e sobraçando cadernos, acabavam de vir da aula de neuropsiquiatria dada pelo assistente Regnoult, que substituía Doutreval. Este, que era o pai de Michel, ocupava-se de psiquiatria, e muitas vezes retido pelos seus trabalhos, descartava-se dos cursos (como faziam muitos dos seus confrades) em Groix e Regnoult, ambos candidatos a professores extraordinários. O facto encantava-os, pois viam nisso oportunidade de fazerem exercícios oratórios que lhes serviriam para o concurso. Havia já alguma semanas que a aula de Regnoult despertava grande interesse, sobretudo entre os estudantes mais modernos. O papel dele, mais difícil do que se poderia supor, consistia em mandar buscar um hospitalizado qualquer, o qual chegava a pé ou de maca, e era examinado minuciosamente a fim de pôr em evidência as mais secretas manifestações da doença. Alguns, ainda lúcidos, em especial os novos, sofriam com essa exibição de animais de feira; outros, já habituados, nem sequer coravam, e ainda havia uns que se envaideciam com o caso. O hospital, a promiscuidade, as injecções, os tratamentos, os exames em público, tudo isto destruía o pudor e desenvolvia nos doentes autêntico exibicionismo. Demais a mais persuadiam-nos desta forma:

- Estes senhores vão examiná-lo. É para seu bem, para o curarem.

O doente, convencido, mostrava a sua satisfação.

Os sifilíticos gatosos, os paralíticos gerais, sempre contentes, aparentemente bem muitas vezes, galhofeiros, rijos, mas em estado de verdadeira inconsciência, formavam o melhor contingente.

Enquanto aguardava Géraudin, Tillery, com os óculos enormes a cavalo na ponta do nariz minúsculo, fazia sortes de cartas e arrengava, arremedando um charlatão. Santhanas e Seteuil jogavam aos dados. Outros fumavam, outros contavam histórias do hospital e da Faculdade. Regnoult e Flégier, mais sérios, discutiam a vaga deixada por Suraisne, que acabava de se finar, e as probabilidades de êxito de cada concorrente. Michel, por seu lado, acompanhou às enfermarias o amigo Groix Gilvaz (assistente do pai, como Regnoult) que lhe queria mostrar um «belo» caso de sífilis: cancro do lábio deveras notável numa prostituta de vinte anos. Esses casos típicos iam-se tornando raros.

Atravessaram as salas, devagar, falando alto, e os doentes, na cama, seguiam-nos com o olhar. No vão de uma janela estava uma rapariga, de pé, a lavar-se, escondida atrás de cortinas de pano branco, presas uma à outra por alfinetes.

- É uma escrupulosa - explicou Groix. - Ainda aparece disso. Está aqui por causa de uma doença de pele. Receia as mulheres de maus costumes, no lavabo... São os palavrões, e os piolhos também...

- E além disso - acrescentou a Irmã Angélique. que chegara nesse mesmo instante - tem medo da espanhola, essa rapariga alta e morena que aqui está. A desavergonhada anda doida pela pequena. Mete-lhe sustos, diz que «lhe vai fazer um filho»... Que gente! Ainda ontem, dei com a ruiva a dançar nua em pêlo, no meio dos lavatórios.

A rabugenta Irma Angélique, calejada por trinta anos de hospital, não tinha papas na língua.

- Hei-de chamá-la à ordem - prometeu Groix.

De caminho, mostrou a Michel o referido cancro sifilítico, uma coisa linda, particularmente característico, verdadeiro modelo, perfeito como uma estampa do Larousse Medicai, conforme dizia Groix. Em seguida foi falar com a espanhola e com a ruiva nos lavatórios.

- Suas peçonhentas! Não lhes basta andar a estragar os homens? Querem ainda corromper as raparigas honestas? Experimentem mais uma vez e verão o que lhes faço!

As mulheres, nuas até à barriga, de seios pesados e flácidos, baixaram a cabeça, como um rebanho de sonsas e medrosas, e continuaram a lavar-se, a arregaçar a roupa, a passar debaixo da camisa, num gesto profissional, toalhas molhadas e ensaboadas. Mas não responderam. Era a secção mais difícil de dirigir, genuíno veneno do hospital. Essas criaturas às vezes chegavam embriagadas, e a Irmã Angélique tinha de as deitar à força, sem dispensar uma ou outra bofetada. Algumas sifilíticas vinham, demais a mais, cobertas de eczemas purulentos, que a Irmã Amélie, rapariga de pouco mais de vinte anos, se encarregava de limpar. Houve uma que deitou ao mundo um nado-morto de sete meses e meio, todo gangrenado; outra, semidoida, e tuberculosa ainda por cima, fugia de vez em quando, estava uns dias fora e voltava com a roupa em desalinho, a delirar. Precisavam de a meter na cama e de a alimentar com um tubo que lhe passava pelo nariz e se enterrava até à garganta; aplicavam-lhe depois na cabeça um saco de gelo, que escorregava a todo o momento e que as companheiras se recusavam a endireitar, receosas de serem contaminadas pela tísica. Só uma velha reumática se atrevia a esse rasgo de solidariedade, levantando-se de contínuo para tal efeito. Estava ali também uma antiga meretriz, estropiada, que, despótica e cruel, obrigava as mais a servirem-na, numa tirania constante: exigia que a penteassem, que lhe cortassem as unhas e a lavassem. Temiam-lhe tanto a língua viperina que lhe obedeciam em tudo. Era a única daquela enfermaria que tinha direito a conservar junto do catre uma arrastadeira, que empestava o ar. Groix maçava-se a valer, pois todas as manhãs ela queixava-se de qualquer coisa. Quando o prazo de internamento chegava ao seu limite, a mulher saía com alta por um ou dois dias, a fim de ser autorizada a nova hospitalização. Por dó, admitiam-na sempre. Fora na sua mocidade amante dum importante industrial e chamavam-lhe Elmo de Ouro: nesses tempos, possuía carruagem... Recordações que ela desfiava diante das outras e que as maravilhavam.

Groix, de passagem, apontava as enfermas, explicava a Michel a história de cada qual. Atrás deles, a Irmã Angélique preparava as injecções, chamava as mulheres uma por uma.

- Tu, agora É a tua vez.

Empurrava-as, como aliás fazia a toda a gente, autoritária, terrível, infatigável. Seguia-a uma criada, que empunhava reverentemente uma bacia.

Ouviu-se lá fora, no pátio, o bater duma portinhola de automóvel. Michel foi à janela.

O motorista Louis ajudava nesse instante Géraudin a apear-se.

- Já chegou! - preveniu Michel.

Ele e Groix desceram os degraus a quatro e quatro, e atravessaram, para irem mais depressa, o pavilhão dos cancerosos, onde Heubel tratava pelo rádio os cancros da pele. Ali, melancólicos, passeavam vários infelizes, com pedaços de tafetá colados na cara. Espetada em plena carne- no lábio, no nariz, na face, na língua, na pálpebra, no canto do olho - via-se-lhes uma pontinha de metal semelhante à agulha dos gramofones, a qual continha alguns miligramas de rádio. Como a sua pessoa física se achava assim bruscamente valorizada, representando capital importante, vigiava-se de perto estes pobretões-milionários. Não tinham direito de sair,do pavilhão. E, para que fosse fácil encontrá-los em qualquer parte, pregava-se-lhes na botoeira um disco grande de pano encarnado, gigantesca roseta da Legião de Honra, que significava: «Atenção: rádio». Assim erravam eles, lúgubres e mortos de tédio, sonhando com um cigarro impossível - antigos esfomeados que valiam agora uma riqueza, portadores e prisioneiros simbólicos de tesouros cujo montante os teria feito outrora arregalar os olhos.

Bernard Géraudin era o senhor poderoso do hospital, como o era da Faculdade. O Hospital de São Géraudin, diziam os estudantes, falando daquele estabelecimento. O seu amigo Olivier Guerran preparara-lhe a nomeação para administrador da casa. Por mercê deste título, Géraudin reservara para si um pavilhão inteiro onde recebia os doentes pagos que não encontravam lugar na sua clínica particular. Tinha ele assim duas clínicas : uma de luxo e outra para as classes remediadas; nesta última, reservava dois ou três leitos para o presidente e camaristas de Maineburgo ou amigos destes, a quem tratava gratuitamente, confiante no apoio que lhe dariam em caso de precisão. Na realidade, a conta destes senhores era liquidada pela caixa da assistência.

É verdade que um decreto recente proibia estas clínicas particulares dentro dos hospitais civis, mas Guerran pusera-se logo em campo. O decreto ficara «de molho», em companhia de outro que interdizia a acumulação das funções de cirurgião e administrador. As relações de Géraudin com Gigon acabaram de consolidar a autoridade ditatorial daquele. Graças a Guerran, o administrador desprezava os regulamentos, concedia favores e dispensas aos seus internos e favoritos, nomeava directamente os seus apazi-guados para lugares em que se exigia concurso, modificando assim os artigos dos textos que o podiam estorvar. Outras vezes, o edital que anunciava o concurso era afixado discretamente em sítios de que ninguém se lembraria e onde se tornava impossível descobri-lo. Havia sempre, pois, só um candidato: o de Géraudin. E esse triunfava sem perigo.

O director do serviço, Flégier, apressou-se a vir ao encontro do mestre. Géraudin, seguido da multidão dos estudantes, penetrou no seu pavilhão, enfiou a bata enquanto interrogava Flégier e foi até à porta da sala de operações verificar a ementa.

- Vamos lá, meus senhores, fazer o giro das enfermarias.

Os alunos acompanharam-no através do hospital. Com o mestre à frente, o bando entrava pelas coxias, insinuava-se junto das camas. Em cada sala, o interno de serviço e a religiosa indicavam as papeletas com a temperatura presas aos ferros do catre. Os doentes, deitados, alinhados, pareciam distrair-se por um instante do seu sombrio abatimento. Uma velha (esta sentada, portadora de cancro no seio, e que viera pouco antes da sala de operações de Heubel) errava em volta de si um olhar apalermado. Mais adiante chamou-lhes a atenção certa rapariga a quem, num movimento rápido, descobriram o corpo, afastando o lençol. Géraudin mandou-a arregaçar a camisa até ao peito.

- Observem a fáci esquerda. O edema aumenta com a arritmia cardíaca. O sarcoma vai em progressão evidente.

Empregava de propósito termos que a desgraçada não podia compreender, precaução que acabariam por abandonar. A pouco e pouco é costume esquecerem-se de que estão em presença dum ser humano. O caso era interessante. Todos os estudantes, um após outro, deviam apalpar o ventre da doente. A alguns, Géraudin mandou fazer um toque vaginal. A mulher, corada, nua na cama, voltava a cabeça para que a não vissem chorar. Então o professor, que deu fé disso, endereçou-lhe palavras simples, demasiado bondosas num mestre daquela categoria, palavras com que se desculpava e pedia perdão à desgraça de ter necessidade de se servir dela.

- Minha filha, não nos leves a mal. Nem sabes o serviço que nos prestas. Permites que a gente se instrua, estes senhores e eu. Vais ajudar a cura de infelizes como tu. Estamos perdoados, não é verdade?

Géraudin tinha respeito pelo infortúnio alheio. Sabia falar a esses desventurados. Via-se por aí que também fora pobre. A rapariga não disse nada, mas deixou de chorar. Parecia que já não se envergonhava de sentir todas aquelas mãos a lhe percorrerem o corpo.

Quantas, no entanto, se mostravam indiferentes quando as examinavam daquela forma! Eram as habituadas ao hospital. Outras arvoravam um sorriso triste e ainda outras, no seu canto, sem que os estudantes se ocupassem delas, derramavam lágrimas, sozinhas, pensando sem dúvida no seu lar. Nenhum dos rapazes se aproximava para lhes dirigir qualquer consolo. Passavam sempre. O facto de serem quarenta ou cinquenta juntos constrangia-os, impedia-os de terem um rasgo de piedade que decerto lhes viria espontâneo se não estivessem acompanhados. Os homens têm o pudor estranho de se mostrarem bons.

O compartimento especial dos raios X encontrava-se atulhado com uma vintena de estudantes. Foi a custo que Michel arranjou lugar. Iluminava frouxamente as trevas a luz vermelha duma lâmpada. De repente, veio a escuridão e toda a gente se inclinou para um quadro esverdeado que se movia em sentido horizontal sobre um doente que ninguém vira a princípio. Tratava-se duma perna fracturada, na qual Heubel experimentava novo sistema. Ali estava ele a dar explicações, passeando sobre a tíbia quebrada o esqueleto da sua mão, onde o anel de platina fazia um círculo negro. Passava no osso um fio de prata ao qual se suspendiam pesos que variavam conforme a tracção a exercer. Via-se perfeitamente no quadro o fio enfiado no osso. Heubel, na sombra, ajuntava pesos, tirava-os, demonstrando a eficácia do sistema a Géraudin e aos estudantes. Ouvia-se a respiração ofegante do doente, reprimindo os gemidos. Seria homem ou mulher? Michel saiu sem o saber.

Acabaram o giro na enfermaria das crianças. Naqueles catres estreitos alinhavam-se cabecinhas pálidas e sérias, seguindo quem passava com o seu olhar doloroso de vítimas.

- Anemia perniciosa - dizia Géraudin. - Peritonite. Osteomielite.

Aquela maneira de seguir as pessoas com as grandes pupilas calmas, resignadas e inocentes causava sempre mal-estar a Michel e levava-o a pensar em pobres animais mansos e submissos, condenados sem saberem porquê, aceitando, sem compreenderem, o castigo dum imenso pecado colectivo no qual ele tinha a vaga impressão de comparticipar, ele, demasiado rico e demasiado feliz! Géraudin deteve-se junto dum rapazito descorado, a fim de lhe tirar um pouco de sangue para análise. Iam fazer uma transfusão e o dador já chegara. Flégier preparou lâminas e bisturis. O garoto observava com angústia todos esses aprestos. Géraudin, aproximando-se dele, apelou para a sua coragem de criança.

- Não vais chorar, hem? Diante de toda a gente! Mostra que és um homem. E eu tenho uma surpresa para ti. Depois verás...

Com um golpe de bisturi, fez-lhe uma incisão no lóbulo da orelha. O sangue jorrou e o pequeno pôs-se a chorar. Flégier recolheu o sangue na lâmina e fez a mistura; todavia manejou desastradamente e perdeu-se todo o trabalho. Era preciso recomeçar, dar novo golpe na orelha. Géraudin ficou rubro, mas limitou-se a dizer:

- Flégier, isto desagrada-me. A um miúdo... Flégier corou também e balbuciou qualquer coisa.

Depois de tudo findo, quando os estudantes já se haviam afastado, Géraudin tirou furtivamente do bolso uma caixa de lápis de cores e meteu-a debaixo do lençol do pequeno, tal qual como os visitantes fazem quando passam uma garrafa de vinho tinto ao amigo doente, às ocultas das enfermeiras. Géraudin adorava as crianças; ia vê-las todos os dias à enfermaria, beijava-as, beliscava-lhes as faces, fazia trejeitos, dizia tolices, feliz quando conseguia um sorriso numa carinha pálida. Trazia, escondido dos outros, chocolates e brinquedos que ele sabia escolher: um automóvel para o filho dum motorista de táxi, um guindaste para o petiz dum marinheiro. Adivinhava o que eles necessitavam, o que mais lhes agradaria; distraía-se às vezes uma hora inteira a brincar com os pequenos quando as enfermeiras não estavam presentes, e andava apoquentadíssimo durante semanas se algum desses inocentes morria por acaso sob o seu bisturi.

Terminara a visita. Os estudantes foram-se dispersando. Géraudin saiu da enfermaria com Flégier, Michel, Seteuil e alguns internos.

À porta da sala de operações, de novo consultou a ementa, a lista do que havia a fazer.

- Uma raspagem, um quisto, uma histerectomia. Muito bem, Flégier; comece pela raspagem.

Flégier vestiu bata limpa. Antes de enfiar a sua, Géraudin reclamou:

- Irma Angélique, o meu veneno!

Assim é que ele chamava à tigela de sopa que a religiosa lhe trazia sempre, antes de qualquer operação. Era um dos hábitos mais queridos de Géraudin esse de ingerir a sopa espessa e plebeia que lhe recordava a sua infância pobre; achava-a mais saborosa do que os complicados pitéus feitos pela hábil cozinheira lá de casa. Em vinte anos, nem uma só vez faltara a esse costume tão apreciado. Certa ocasião estava um doente já estirado na mesa das operações e, ao ouvir o médico pedir o «veneno», convencera-se de que o queriam matar e fugira pela janela. Bastante se haviam rido por causa disso.

De bata e máscara, Géraudin penetrou na sala, acompanhado de Michel e da Irma Séraphine. Ia de mãos nuas porque as luvas o constrangiam. Flégier começara a trabalhar.

Sobre a mesa, alteada, dormia uma mulher, deitada de costas, com as pernas erguidas e afastadas. Flégier, de pé, tendo o rosto ao nível das nádegas da paciente, enfiava com precaução a colher na abertura sangrenta, raspava na carne, tão absorto e interessado que era evidente haver esquecido que operava num ser vivo.

No banco, diante doutra mesa, esperavam duas mulheres, de cabeça baixa, atordoadas pela injecção de escopolamina que a Irma Angélique lhes dera com antecedência.

- A do quisto? - perguntou Géraudin.

- É esta - informou a Irmã Angélique.

- Faça-lhe uma ráqui, Doutreval.

Michel ergueu a cabeça da mulher, poisando-lhe a mão debaixo do queixo.

- Isso vai bem?

- Vai bem - gaguejou ela.

- Está contente?

- Hum...

- Não há medo?

- Não há medo.

Repetia as frases, dócil e aparvalhada. Michel sentou-a na mesa e a Irma Angélique arregaçou-lhe a camisa. Na espinha dorsal, em plena articulação das vértebras, Michel espetou o trocarte. Da agulha escorreu, gota a gota, uma água clara; o líquido que banha o espinal medula e o cérebro começava a escoar. Aplicou então a seringa e injectou novocaína. No hospital, Géraudin empregava sempre a raquianestesia. Este processo, simples e rápido, assegura a perfeita imobilidade do abdómen. No entanto, no seu consultório, utilizava a anestesia pelas vias respiratórias. É fácil tirar a máscara de éter à menor ameaça de síncope. Pelo contrário, uma injecção lança em cheio no canal medular uma dose brutal de evipan, sem emenda possível, embora tamanho risco tenha as suas compensações. O certo é que, se preferia ali a raquianestesia, Géraudin jamais a impunha à sua clientela.

O quisto foi extirpado com uma rapidez de relâmpago. O mestre sentia-se em boa forma. Uma vez mais causou admiração a Michel, a Tillery e a quantos o viram trabalhar. Findara a operação do quisto e Flégier raspava ainda o útero da sua doente.

- O número dois - disse Géraudin.

Michel foi buscar a outra mulher que estava sentada e fez-lhe a pergunta do costume :

- Isso vai bem?

- Vai bem - respondeu ela com ar apático.

- Como se chama?

- Jeanne Lacroix.

- Que idade tem?

- Trinta e três anos.

- A escopolamina atacou-a menos que às outras observou Géraudin, que ensaboava as mãos.

- Faça-lhe a ráqui, Tillery.

Este obedeceu. Em seguida, deitaram a mulher sobre a mesa articulada e ergueram-na dum lado; a mulher ficou assim pendente, de pés para o ar e cabeça para baixo, com os cabelos a flutuarem como os duma afogada. Géraudin fez uma incisão rápida, contornando o umbigo, e abriu o ventre.

Separou as camadas musculares e, para além do peritoneu, afastou com as mãos as vísceras abdominais. Todos se aproximaram, espetando o pescoço, com ávida curiosidade.

- Vejam - disse Géraudin, passando as mãos por baixo da matriz, levantando-a, destacando-a do fundo da cavidade pélvica e mostrando os ovários. - Aqui está uma infeliz que se deixou contaminar de blenorragia por um porcalhão qualquer. Não se tratou, talvez nem soubesse que estava doente. Resultado: infecção, metrite, inflamação crónica dos ovários. Sou agora obrigado a castrá-la, como se faz a um coelho. Diga-me, minha Irmã, qual era a profissão desta criatura?

- Estava matriculada. Morava na rua de la Caserne, 26

- elucidou a Irmã Angélique.

- Ah, perfeitamente, está tudo explicado! Retomara o bisturi, pronto a continuar. E de súbito, no

silêncio da sala, ressoou uma voz estranha, rouca, forte e calma:

- Senhor doutor, a culpa não foi minha.

O próprio Géraudin foi tomado de espanto, e ficou de bisturi no ar. Os estudantes curvaram-se. E a mulher, lá em baixo, de cabelos pendentes e de olhos muito abertos, fitava o operador. Havia resistido à escopolamina. Questão de nervos. É um caso raro. Ouvira tudo e, com a sua voz calma e enrouquecida pelo álcool, mas que se conservava extraordinariamente forte, tentou justificar-se. Contou a sedução, a queda, o nascimento da filha, o abandono, a miséria; outras decepções e traições até à completa decadência. Por fim, a caderneta. Narrou tudo com palavras simples, inexpressivas, como uma história vulgar, onde um ou outro pormenor punha essa nota pungente em que se reconhece a verdade.

- Ficou-me a pequena - disse ela. -Já ia nos quatro anos. Desenvolvia-se bem. Estava ao cuidado duma ama e eu ia visitá-la ao domingo. Mas depois adoeceu. Trouxe-a para Paris e tratei-a sete semanas. Morreu num domingo, ao meio dia... Eu não tinha comigo um vintém, senhor doutor, e era preciso pagar ao médico, ao padre, fazer o enterro... Então, nessa noite, fui-me oferecer a uma casa daquelas... A noite inteira. Cinquenta, cem clientes, talvez... Sabem o que isso é... Mas ganhei com que pagar o caixão e as flores. Enterraram-na em Pantin. Levaram-na em carro funerário. Como já não possuía dinheiro suficiente para o táxi, tive de seguir de longe o enterro, no eléctrico. Aqui está, senhor doutor...

- Bem, bem -volveu Géraudin.-Cala-te agora, minha filha. Assim não consigo trabalhar.

Passou a manga pelos olhos. Sentia-se tão comovido como os outros.

Michel jamais se esqueceria dessa pobre criatura de cabeça para baixo e cabelos pendentes, que ele via de alto, num escorço trágico, essa mulher de barriga aberta como um animal pendurado num gancho do matadouro e que narrava a sua história enquanto Géraudin, curvado sobre ela, lhe arrancava os ovários e lhe enxugava o sangue no fundo da cavidade pélvica.

 

Depois da partida de Géraudin, Michel saiu do pavilhão e atravessou o hospital com Seteuil Tillerv e os ajudantes.

- Vamos comer ao Toxinas-Bar ? - propôs Tillery. Ainda tenho duas senhas.

O Toxinas-Bar, também chamado Retiro das Virulências, era uma tasca que os estudantes assim denominavam por causa da toxidade do vinho tinto e das carnes que lá serviam.

O dono da taberna proporcionava aos estudantes refeições a cem soldos. E quem adquirisse dez senhas duma só vez tinha direito a comer por quatro francos e cinquenta soldos. Tillery, que era prudente e conhecia as suas fraquezas, comprava, logo que recebia a pensão do pai, trinta senhas para o mês inteiro. Certo de não morrer de fome, gastava então sem preocupações o resto da sua mensalidade. Depois, por volta do dia quinze, vendia com prejuízo as senhas para comprar tabaco e, segundo afirmava, vivia «sã e sobriamente» de cachimbadas e sanduíches.

Havia também estudantes que almoçavam no Toxinas-Bar a fim de economizarem e poderem comprar livros.

- Vamos então ao Toxinas-Bar - concordou Michel. Mas nada de carne. Só um ovo.

Depois duma operação, a simples vista do bife no prato causava-lhe vómitos.

- Quem é ela? - perguntou, enquanto atravessavam os corredores para alcançarem a porta.

- Quem?

- A rapariga que acabou de ser operada.

- Apaixonaste-te pelo seu útero? - gracejou Seteuil. Não sei quem seja. É uma do sanatório. Tenho as indicações na minha agenda.

Como médico do sanatório, Seteuil guardava a lista dos doentes. Tirou a agenda e acrescentou:

- Vamos lá ver... Cá está: Jeanne Lacroix. é esta. Pavilhão C, 2.o andar, quarto 28. Tuberculosa. Agora me lembro. Chegou ontem à noite. Deve voltar para o sanatório esta semana.

- Hei-de ir vê-la - declarou Michel. Atravessavam agora um dos refeitórios do hospital,

sala de altas paredes brancas e ar triste, inundada de claridade crua e fria. Era a hora do jantar. Minutos antes, o criado distribuíra as tijelas de faiança e os garfos e colheres de estanho, e nesse momento passava ajoujado ao peso dum caldeirão, onde havia, em confusa mistura, carne cozida, batatas, feijão, arroz, massa. Segurando-o com um braço, mergulhava aí a concha e distribuía as rações. Ouvia-se a marulhada de todas aquelas bocas, chupando o caldo e sugando a carne. Nada de facas; quem não tivesse canivete devia pegar nos pedaços de carne com a mão e rasgá-los com os dentes. O molho escorria para o queixo.

Também não havia guardanapos. Pouco depois o criado voltava com a sobremesa, constante de ameixas cozidas e marmelada. Aos que ainda não tinham acabado, deitava uma colherada disto em cima das batatas. Por isso todos se apressavam, cortando com os dentes e com as mãos e olhando de soslaio para Michel. Sobre a camisa dos doentes, no ombro direito, via-se o nome do hospital em letras garrafais, a tinta preta: ÉGALITÉ. Tillery asseverou:

- Preferia rebentar a ser tratado aqui.

- Ora - retorquiu Seteuil - espera pela tua primeira constipação.

E Michel, por seu turno, observou :

- Apesar de tudo, sempre alivia muita miséria.

- Sem dúvida - acudiu o primeiro. - Mas está a invadir tudo, a tornar-se absorvente, a ser universal como a vacina ou o serviço militar. Dentro de cinquenta anos toda a gente terá passado pelo hospital. E isso é um erro. O hospital devia ser um processo de caridade excepcional, restrito. O ideal é cada um tratar-se em sua casa.

- Espera que te façam em casa tratamento de rádio, pneumotórax, reduções de fractura como a de Heubel esta manhã! A medicina científica exige grandes instalações, laboratórios, raios X, hospital, enfim!

- Nem por isso, nem por isso. É claro, se o homem fosse apenas um animal... Mas, ainda assim... Muda-se um cavalo de estrebaria, fica transtornado por oito dias. Julgas que um doente arrancado à família e trazido para esta espécie de caserna não sofre com o caso? É preciso ter em conta o factor psicológico.

- O progresso social, as necessidades económicas...

- As necessidades económicas inculcam também que se faça selecção humana, que se não permita conservar senão meninos modelos, que se instalem coudelarias de pessoas, com homens-garanhões escolhidos. Querem toda a gente a comer numa gamela. Querem o homem transportado como qualquer máquina, para onde houver trabalho : para a Europa, para a América. Mas bem se vê que não é possível, que estamos agarrados às nossas casas, ao nosso meio, que temos alma. A medicina é, por essência, individualista.

- Nesse caso, censuras a caridade pública?

- Não, mas digo que se exerce em mau sentido. Devia-se ajudar o homem de outra maneira, mais humanamente. O que não for da minha opinião é que não é pobre, nunca passou pelo hospital. Queria que ele visse a mulher ou a filha, por exemplo, nua em pêlo, examinada por vinte estudantes... e aos pés da cama um tipo como Seteuil a comentar, com Santhanas, as pernas da pequena.

- Ou as nádegas - sugeriu Seteuil.

- Géraudin é muito correcto - lembrou Michel.

- Não o nego. Sabe achar a palavra própria para as ocasiões. Mas nem todos são assim. Muitos têm o hábito da profissão, e esquecem-se. Às vezes sinto remorsos ao ver a irmã Angélique a consolar uma rapariga lavada em lágrimas, depois de todos nós a havermos apalpado de cima a baixo.

- Os indigentes são hospitalizados de graça. é natural que paguem de outra forma.

- Vá lá. Mas então para nós, médicos, já não será caridade, é negócio. Assim o Estado não faz nada gratuitamente, há sempre remuneração. E, visto isso, não me falem de caridade, beneficência, assistência pública. Por que havemos de chamar aos nossos hospitais Igualdade, Fraternidade, Santa Casa da Misericórdia?

«Chego a pensar - continuou Tillery - que não é o pobre quem beneficia mais aqui dentro. Privam-no do lar. Se é uma parturiente, privam-na da família. Evitam ao marido o espectáculo dum sofrimento que os uniria um pouco mais. Podes chalacear, Seteuil; contudo, fica sabendo que já ouvi operários dizerem-me da mulher: «É uma criatura sem préstimo, mas o que mostrou de coragem quando deu à luz!» E o médico? Mal sabe o que perde com este sistema! Acaba-se o contacto de homem a homem. Aos doentes que se habituam a serem considerados números e a serem examinados por vinte médicos, eles assumem o aspecto de máquinas de auscultar e de curar. O hospital deu cabo do médico de família. Ninguém ganhou com isso. A nossa profissão opõe-se ao colectivismo.

Michel não soube que responder.

Os três camaradas saíram. Fora, sentia-se a barafunda habitual da hora que se segue ao jantar dos doentes. A multidão das visitas bloqueava as portas, carregada de bolos, de chocolates, de laranjas. Havia já quarenta e cinco minutos que esperavam a abertura dos portões. Compacta como um rebanho, essa gente comprimia-se nas entradas, a ver quem chegava primeiro. Quando, por fim, se escancararam as grades, todos se arremessaram para diante, partindo em galopada pelos corredores e pátios, para ganhar um minuto e passar mais um instante junto do leito do pai ou da mãe, do filho ou do irmão. Do extremo da rua, Michel via os retardatários correrem à desfilada. Em todo o comprimento do passeio alinhavam-se carrinhos dos vendedores de laranjas e guloseimas. Havia também floristas, que exibiam rosas, dálias, narcisos, margaritas amarelas do Outono, verdadeira festa e alegria de cores e aromas fortes, ali mesmo na rua, defronte do hospital! O povo adora as flores, e aquela multidão levava muitas delas aos seus doentes.

A visita durava uma hora. E, sob a égide da Irmã Angélique, recomeçava a mesma vida de hospital, lenta, monótona, com seus inúmeros sofrimentos, com a sua mesquinhez e grandezas ocultas. A Irma Angélique-rabugenta (assim a designavam os estudantes) dirigia todos os serviços. Até os vagabundos governava, tarefa deveras ingrata. A partir de Novembro, os S. D. C. vinham ocupar o seu quartel-de-inverno. Chamavam-nos os S. D. C. (sem domicílio certo) porque à cabeceira das camas havia um cartão com essas três iniciais. Não faltavam pretextos para os albergar: bronquites, reumatismos, tosses crónicas... Como não existia enfermaria para eles, a Irmã Angélique, com punho viril, rechaçava-os para um corredor largo, onde se entretinham a jogar às cartas durante o dia, perto dos caloríferos. à noite, iam a coxear para a cama, na enfermaria das doenças venéreas, onde os mandavam deitar por não haver outros leitos disponíveis. Em geral, tinham alta ao fim de quinze dias; saíam, tornavam a adoecer e voltavam uma semana depois. Assim chegavam à Primavera, altura em que se dispersavam até ao Inverno seguinte.

A Irmã Angélique infundia-lhes terror, não só a estes como também aos estudantes, que ela vigiava, observando-lhes as solas dos sapatos, obrigando-os a servirem-se do capacho, tirando-lhes o cigarro da boca, sem cerimónia, e notando-lhes com autoridade:

- é proibido fumar.

Sabia julgar as capacidades dos rapazes e proclamava num tom de certeza infalível:

- Este trabalha bem. Aquele nunca fará nada de jeito. Via muito mais longe do que eles, que tinham apenas

a sua ciência e os seus livros. Ela, porém, tinha trinta anos de hospital. E não raras vezes, perante uma iniciativa que lhe parecia deslocada ou uma imprudência evidente, recusava-se com toda a calma, interpunha-se, dizia um não que ficava sem réplica. Em certas conjunturas discernia melhor do que os mestres, pressentia as consequências duma operação e declarava, no meio do optimismo geral :

- Aquele não se cura.

Anunciava com antecedência quais os doentes do seu serviço que morreriam nesse dia. Advertiam-na sinais imperceptíveis, pequeninas mudanças no rosto, coisas que ela vira centenas de vezes nos trinta anos de convívio com a miséria e o sofrimento. Por isso os internos, e até os mestres, acreditavam na sua palavra. O primeiro aviso da aproximação da morte, no hospital, era o biombo que a Irmã Angélique instalava junto dum leito para isolar e dulcificar a agonia do infeliz. Esse aviso jamais enganava. Em seguida vinha o ramo de buxo na água benta. Uma hora antes da morte apareciam as moscas : também elas eram infalíveis. Por fim, uma hora depois da morte, quando o cadáver começava a esfriar, os piolhos amontoados nos cabelos abandonavam o corpo. Viam-nos correr pelo pescoço do morto, sobre os lençóis e o travesseiro.

- A piolheíra está a esvaziar - comentavam os vizinhos de cama.

Faziam este comentário porque, entre o povo, existe a crendice de que os piolhos se alojam sob a nuca numa bolsa debaixo da pele a que chamam piolheira. Na autópsia, os bichos espalhavam-se sobre o mármore das mesas de dissecação, onde os estudantes os matavam às centenas.

Recorria-se muito à autópsia. Em volta dum doente, dum caso interessante, os mestres discutiam. Heubel opinava por um tumor benigno, Geoffrey por um cancro, Géraudin por um abcesso. Doutreval e Donat concorriam com pareceres diferentes. Diante do moribundo, pronunciavam termos estapafúrdios, incompreensíveis para ele. E o debate acabava com esta frase misteriosa:

- Está bem. Veremos isso em casa de Morgagni.

Ir a casa de Morgagni (o primeiro médico que ousou dissecar um cadáver, apesar da proibição da igreja) significava realizar a autópsia. Diziam também :

- Faremos uma necropsia.

à força de haverem discutido, começavam a esperar com impaciência a morte do infeliz. Havia um tumor do cérebro que vinha a excitar há um mês a curiosidade geral.

Em princípio, a lei impõe uma espera de vinte e quatro horas para se proceder à autópsia. É coisa embaraçosa. As vísceras decompõem-se. Trava-se conflito bastante dramático entre a piedade que inspiram os restos dum desgraçado e a outra piedade mais alta, a que deseja conhecer, instruir-se, a fim de aliviar futuros e numerosos infortúnios. De modo que recorriam a subterfúgios: ou injectavam na barriga, do morto, imediatamente, um litro de formol, o que faz conservar, ou (se se tratava apenas de examinar uma única peça e se precisavam dela fresca, como por exemplo um rim) praticavam uma incisão larga, metiam a mão no ventre e iam ao fundo buscar o que queriam. O rim despega bem.

Quando o caso era deveras interessante e merecia exame geral, não se privavam de fazer logo uma verdadeira autópsia. Levavam o cadáver para a morgue. No frigorífico, nus, ficavam os mortos estendidos, cada um na sua gaveta envidraçada, através da qual eram visíveis. Abriam a gaveta e tiravam aquele que lhes convinha. Trabalhando nesse corpo, tinham o cuidado de respeitar a cabeça, para a família não desconfiar. A secretaria do hospital, ao comunicar aos parentes o decesso do doente, pedia-lhes a informassem da hora exacta a que viriam. Assim sabiam os médicos de quanto tempo podiam dispor. Havia, porém, ocasiões em que a família chegava mais cedo, e então a Irmã Angélique inventava qualquer pretexto para fazer esperar no vestíbulo. De vez em quando a religiosa ia bater furtivamente à porta e murmurava:

- Despachem-se!

Como ladrões surpreendidos, eles então apressavam-se, suturavam o cadáver, de modo grosseiro, com pontos largos, punham-lhe pensos e adesivo, faziam, enfim Um conserto sumário. E fugiam por uma saída disfarçada, enquanto a Irmã Angélique preparava a mortalha, arranjava a capela, acendia os círios... A família não suspeitava de nada. Aliás, predominava a escuridão, e o piedoso material distribuído na capela pelas religiosas impedia que se tivesse visão mais nítida. O morto, de mãos juntas, o ramo de buxo molhado em água benta, que entregavam aos parentes para que eles fizessem uma aspersão respeitosa e distante, tudo isso causava impressão e perturbava. Quando muito, davam um beijo rápido na face fria do cadáver; logo atrás, porém, estava o homem da agência funerária, que esperava discreto mas que não deixava de constranger os outros. Os pobres são tímidos, têm a noção do trabalho alheio, sabem o valor do tempo. Assim se encurtavam os adeuses; saíam sem demora e deixavam o cangalheiro aproximar-se do morto para lhe tirar as medidas.

Para o teatro anatómico iam os afogados desconhecidos, os atropelados humildes, os indigentes, todos os destroços humanos. Igualmente os doentes cujas famílias os não reclamavam. Era frequente encontrar sobre o mármore, de manhã, um ente que ainda na véspera tínhamos avistado na cama, com quem havíamos conversado ou que nos olhara e sorrira. Aquilo produzia sensação pungente. Parecia que ele nos ia falar de novo.

Os cadáveres estavam embebidos de anti-séptico quando os traziam para a dissecação. Esfolavam-nos, tiravam-lhes a gordura, isolavam os músculos, os nervos, os vasos, e isto durante três meses. Por fim o bolor cobria essa carcaça humana, que passava, aos bocados, para um balde, colocado debaixo da mesa, restos de açougue, anónimos, confundidos, que um criado ia enterrar algures num buraco. E todos os anos, a pedido dum grupo de estudantes, o padre Vincent dizia missa por alma de todos aqueles desventurados.

Fazia-se ali grande consumo de cadáveres. Mas estão a tornar-se raros. Ha sociedades que se formam para reclamar os corpos. Muitas pessoas que, em sua casa, não recolheriam sequer um cão vadio, e a quem repugnam e enchem de horror as imundícies e purulências sobre as quais professores e alunos se vêem obrigados a chafurdar, acham por bem enternecer-se pelos despojos desses miseráveis a quem na véspera, na rua, tinham recusado uma esmola. Essa gente subvenciona ligas antidisseccionistas, o que não a impede de, na ocasião duma hérnia ou duma perna quebrada, se aproveitar sem pejo de todos os progressos duma ciência cirúrgica que deve o seu aperfeiçoamento essencial à dissecação. Tais ligas estão bem informadas. Encontram sempre um parente disposto a reclamar o espólio carnal dum morto.

Para evitar isso, compra-se de antemão o corpo dum pobre diabo, aí por quatrocentos francos. Uma vez morto, pertence ao hospital. Mas há quem prefira receber uma renda vitalícia, e há quem faça negócio com o cadáver dum parente. As mulheres, sobretudo, liquidam o corpo do marido, à guisa de vingança, o que lhes poupa as despesas do enterro; recebem trezentos francos e têm a certeza de que o patife do homem será cortado em fatias : assim a vingança será mais requintada. Enfim, com interesse preconcebido, albergam-se no hospital três ou quatro mendigos velhos, à espera que lhes chegue a hora da morte. As vezes, os estudantes levam-nos ao teatro anatómico, o que eles aceitam, para se habituarem a ver como lhes farão mais tarde... O efeito, contudo, não deixa de ser terrível, em especial quando lhes mostram, por paródia, a cara dum tipo que eles conheceram, estranha coisa desossada, solta, mole, esvaziada, máscara humana quase podre, mas na qual eles descobrem ainda um nariz, um bigode, algo do rosto familiar do camarada com quem, dois ou três meses antes, jogaram às cartas debaixo dum telheiro.

A Irma Angélique levantava-se às quatro horas da manhã, ia à capela, comungava, meditava até às cinco e em seguida assistia à missa, se no seu serviço não havia nenhum moribundo que a mandasse chamar. Às seis, almoçava, e às seis e meia estava nas enfermarias, pronta a lavar e a preparar os doentes para a visita do médico, que era às oito horas. Ao meio dia havia terminado a sua faina de injecções, clisteres, pensos e lavagens. Comia a correr, sempre atrasada, e em vez de ir à capela às duas horas, voltava para o seu serviço, onde ficava até à noite. Depois da ceia as religiosas tinham direito a uma hora de recreio, único momento agradável para elas. Durante o Inverno reuniam-se no refeitório e, no Verão, no jardinzito da capela. Aí, em redor da Madre Superiora, tagarelavam, riam, perdiam a gravidade, enquanto aquela se conservava muito séria, sentada numa poltrona, com um banquinho aos pés. Mas a Irmã Angélique jamais comparecia no recreio. Acabadas que eram as suas obrigações, pelas nove horas, recolhia ao quarto, nas águas-furtadas, lugar onde a administração do hospital alojava as religiosas às sete e oito em cada compartimento, atendendo à falta de quartos que se verificava ali.

A Irma Angélique tratava das prostitutas sifilíticas, limpava as úlceras, punha as arrastadeiras, lavava os ânus artificiais, sondava os pénis dos prostáticos velhos, passava algodões na garganta dos diftéricos, espremia os antrazes para extrair o carnicão, desinfectava as cânulas, apanhava do chão restos de tabaco de mascar, e despejava a areia húmida e viscosa dos escarradores, tudo em memória e louvor de Jesus Cristo. Mas ninguém a estimava e, como ela aceitava às vezes um círio para adornar a capela, acusavam-na de ser interesseira.

Há também a opinião de que, se as religiosas fazem tudo isso, é para nos «apanhar». A Irmã Angélique «apanhara» assim um antigo vereador extremista e anticlerical, que, hospitalizado na Égalité, se lhe afeiçoara e a seguia por toda a parte como um cão. Todos os outros o puseram de quarentena e o consideraram «traidor ao partido». A própria Madre Superiora não simpatizava com a Irmã Angélique, a quem achava pouco mística; mas esta queria ser acima de tudo uma «irmã de caridade». De maneira que os místicos a tratavam um pouco de alto.

Em cinco anos, dez, vinte, a Irmã Angélique morrerá e será enterrada no canto do cemitério destinado às religiosas, ao pé do crucifixo que se eleva sobre uma pedra. Terá uma cruz de madeira preta e duas iniciais, que um ano de chuvas apagará. Ninguém lhe há-de levar uma flor, ninguém se recordará dela. As pessoas hão-de passar pela cruz já torta e carcomida sem saberem quem ali repousa, depois de cinquenta anos de sacrifício, a exemplo do Senhor, uma filha humilde do povo ou talvez a herdeira dum nome ilustre, em religião Irmã Angélique de Ia Miséricorde -e, para os estudantes, meretrizes e vadios, a velha Irma Angélique-rabugenta.

 

Nessa manhã Ludovic Vallorge, o Luís XVI, fazia o nó da gravata diante do espelho do guarda-vestidos. Pela primeira vez esse rosto sereno, regular, um tanto flácido, havia perdido a sua impassibilidade borbónica. Vallorge estava preocupado. Sobre a mesa de cabeceira via-se aberto o telegrama que ele acabara de receber, assinado pela senhora Suraisne :

«Venha. Síncope prolongada esta manhã. Estou inquieta».

Desde que se realizara o banquete na Taberna do Rei Renato, Vallorge não tornara a ver Suraisne. Que se teria passado?

Acabou de se vestir, sem nervosismo, com o cuidado que punha em todas as coisas. Desceu a escada, foi à garagem, tirou o carro e folgou mais uma vez com a facilidade com que punha o motor a trabalhar; no entanto, à sua satisfação misturou-se uma sombra até aí desconhecida: a ideia de que todas aquelas vantagens estavam ameaçadas, na hipótese de que Suraisne...

«Irei lá sem falta, quando deixar o laboratório», disse Vallorge consigo mesmo.

Lá significava Ponts-de-Cé, a alguns quilómetros da cidade. Suraisne vivia num esplêndido castelo à beira do Loire, entre rosais e velhos álamos.

O laboratório ficava fora de portas, na estrada de Segré. Aí, Vallorge fazia gratuitamente experiências que lhe eram solicitadas pelo serviço de higiene. Isso dava-lhe a regalia de poder acrescentar aos inúmeros títulos que coleccionava o de chefe de laboratório do referido serviço, o que faria pesar mais o prato da balança quando fosse oportuno tomar de assalto uma das cadeiras da Faculdade. E, sobretudo, podia dispor, sem gastar dinheiro, dum laboratório magnífico, faustosamente equipado, com frascos e produtos químicos que haviam sido pagos sem discussão. Vallorge, prudente como era, arrumou o carro no pátio, confiando-o à vigilância do porteiro, e entrou no laboratório.

Havia dois meses que lhe tinham arranjado um ajudante, polícia reformado, o qual obtivera esse lugar à custa de influências políticas. Vallorge foi encontrá-lo na sala das estufas a fumar um cigarro e a ler o jornal.

- Ora viva, Êmile!-exclamou com voz cordial.- Então, já fez o seu trabalho?

- Está tudo pronto - respondeu Émile cheio de orgulho.

Tinha, em quatro dias, preparado um caldo e diluído um pouco de peptona em água. Mas esquecera-se de pesar a peptona.

- Bem, comece de novo -disse Vallorge. - Será o seu trabalho de hoje. Vou mostrar-lhe como é.

Pacientemente, com todos os pormenores, explicou a operação.

- Pega num frasco de peptona, pesa trinta gramas... Sabe pesar?

Émile não sabia pesar. Vallorge indicou-lhe a balança na redoma de vidro, e a maneira de se servir dela, e os pesos a utilizar.

- Ferve a peptona num litro de água, nesse fogão de gás. Percebeu bem? Depois filtra, assim, num papel disposto desta maneira. Está a ver? Em seguida deita-a numa proveta... aqui a tem... aquece-a na autoclave... Não sabe o que é uma autoclave? É isto. A 115 graus, durante vinte minutos. Depois guarda no frigorífico. E pronto. Se eu não vier amanhã, faça-me pipetas com estes tubos de vidro. Sabe fazer pipetas?

Émile não sabia fazer pipetas. Vallorge acendeu um bico Bunsen e alongou tubos de vidro, para demonstração.

Saiu do laboratório meia hora depois, contente por ter mais uma vez sabido dominar os nervos e utilizado essa prodigiosa paciência que era a sua grande força. Émile estava ali por via de protecção política. Se o pusesse fora, iria queixar-se. Ora isso poderia trazer complicações.

«Eu faria tudo muito mais depressa sem a sua ajuda> pensou Vallorge ao meter-se no carro. «Mas que importa? O que não quero é sarilhos».

Era este o seu principal axioma.

Um momento depois, na estrada aberta entre vinhedos, o automóvel corria em direcção a Ponts - de-Cé.

O quarto de Suraisne deitava, pela janela rasgada, para uma varanda coberta de flores. Daí tinha-se a perspectiva duma série de terraços, que desciam em patamares até ao rio e possuíam balaústres engrinaldados de trepadeiras. Aqui e ali uma sequoia, um cedro avultavam o esplendor sombrio da sua majestosa folhagem. A direita, inundada de vinha virgem, a capela do castelo era apenas uma forma sumptuosa de púrpura e oiro. E, se bem que a estação já fosse adiantada, mantinha-se brando o vento que soprava do Loire. Suraisne, estirado no seu leito Luís XV forrado de seda de brocado com florinhas verdes e amarelas, voltara a si do desmaio que o acometera sem razão aparente, ao levantar-se da mesa, e aspirava o lenço embebido em vinagre, que a mulher lhe passava de vez em quando por baixo das narinas.

«Que me havia de acontecer! Que me havia de acontecer!» repetia ele.

Verdadeira notabilidade, o doutor Suraisne, Esse meridional moreno e forte, sanguíneo, corado, de voz quente e insinuante, antes ainda de ser professor extraordinário soubera trabalhar tão bem e mostrar-se tão útil aos seus superiores, no serviço de inspecção das tropas marroquinas, que conseguira ser nomeado professor da Escola Normal de Paris. Depois entrara para a Faculdade e prosseguira a sua ascensão em ritmo acelerado, afastando com habilidade os invejosos que sonhavam fazer-lhe uma «luxação», ou seja, na gíria médica, deslocá-lo do seu lugar.

Suraisne superara nessa política universitária; e agira com tanta perfeição que os seus protectores acabaram por o considerar perigoso e trataram por sua vez de o «luxar». Mas era rapaz de valor; assim, para se verem livres dele, não tiveram outro remédio senão criar uma cadeira a mais na Faculdade de Angers. Aí, Suraisne depressa adquiriu mereeida fama em toda a região. Vulgarizada em Paris, a moda dos laboratórios não conquistara ainda a província. Suraisne, muito versado em bacteriologia, instalou um consultório ultramoderno com laboratório anexo, onde fazia análises de expectoração, fezes, urinas, etc. Deste modo ganhou rios de dinheiro e largo renome; conseguiu também casar com a filha dum agente de compra e venda de propriedades, de Paris, a qual lhe trouxe dois milhões de francos em dote, sem falar dum castelo na margem do Loire e dum palacete na capital.

Foi ao laboratório de Suraisne que Vallorge se aferrou. Fez-se notado, procurou prestar os mil e um serviços que o mestre espera do aluno: redigir os seus cursos e lições, ajudá-lo nas consultas, encarregar-se das fastidiosas tarefas materiais do laboratório. Tudo isto ligou pouco a pouco Suraisne ao discípulo, o qual se tornou seu confidente. Vallorge obteve assim rápidos progressos.

Não era ainda meio-dia quando chegou à residência do seu mestre e amigo. Foi logo direito ao quarto, examinou o doente, tomou-lhe o pulso e, sem dizer palavra, correu ao telefone a fim de chamar o professor Donat. Não se sabe que explicações forneceu a Donat; mas o certo é que, uma hora depois, o velho catedrático, apesar do pericárdio doente e da aortite, subia a toda a pressa as escadas do castelo.

O seu diagnóstico foi claro. Infectara-se o arranhão que Suraisne sujara de pus ao tirar das mãos de Seteuil o seio da velha cancerosa, e a infecção invadira todo o organismo. O coração não resistia. Era tarde.

Donat telefonou a Géraudin. O cirurgião não estava. Chamou então Heubel, que prometeu vir. Mas este tinha duas operações entre mãos que o ocuparam durante muito tempo e foi só ao entardecer que compareceu em casa de Suraisne. Auscultou o doente e em seguida passou ao aposento contíguo, onde formulou à senhora Suraisne uma única e breve pergunta :

- Ele é crente?

- Não... não sei - respondeu ela, desvairada. - Parece-me que sim.

- Nesse caso, é altura...

A senhora Suraisne correu, semidoida, à procura dum padre. Heubel, por sua vez, mandou buscar vacina antiestreptocócica, que já não chegou a tempo.

Assim morreu estupidamente Suraisne, especialista do micróbio, morto pelo micróbio por o haver desdenhado à força de o conhecer. Um golpezinho de bisturi no dedo, poucos dias antes, e Suraisne estaria salvo. Tê-lo-ia feito sem dúvida se não fosse médico. Para quem trata dos seus semelhantes constitui perigo maior do que se julga essa familiaridade constante com a morte. Acaba por se esquecer de que também é vulnerável. Nas pessoas da profissão, este fim absurdo não é afinal muito raro.

Suraisne deixou grossos cabedais e uma viúva que jamais o esqueceu. Esta, daí por diante, dedicou-se apenas a obras de caridade e a manter sempre vivo o culto que votou à memória do marido.

Vallorge andou atrapalhado durante umas semanas. A sua carreira dependia de Suraisne. Fora através do laboratório deste que, sem ter uma única vez assistido às aulas, conseguira passar em todos os exames. Era com Suraisne que ele contava para o seu futuro. Aquela morte equivalia a uma catástrofe.

Para quem, na medicina, pretende funções oficiais, sem se limitar a simples facultativo, a protecção dum catedrático é de suma vantagem. Em todos os concursos os candidatos são classificados conforme o mestre que os apadrinhou. Forma-se assim o que poderia chamar «igrejinha:». Havia em Angers a igrejinha de Geoffroy, a de Doutreval, a de Donat e as de muitos outros. Quando o sorteio designa determinado lente para fazer parte do júri de concurso, o candidato que pertence à igrejinha desse professor está automaticamente aprovado. O concurso é mera formalidade. Com a mesma tese obtém o examinando 19 valores ou 5 conforme o seu protector figura ou não no júri. Além disso, entre os mestres, também se fazem concessões : aceita-se o pretendente proposto por um colega para que este, um dia, retribua o favor. E assim o concurso para professor de Medicina é sempre precedido duma série de cambalachos, de tal modo que uma vez fixada a lista dos arguentes se sabe de maneira segura o resultado do exame.

Daqui a. utilidade de ter um padrinho todo poderoso, capaz (ainda que não seja do júri) de conseguir que os seus amigos favoreçam o candidato. O aluno que não teve a sorte de agradar a nenhum professor e não dispõe de relações influentes, ou cometeu a imprudência de fazer concorrência aos mestres no meio da clientela destes, pode estar certo que não chegará tão cedo à cátedra. Deverá esperar, resignar-se a um início de vida muito mais tardio e não se revoltar se, de três em três anos, se vir preterido por outro muito menos competente.

Ora Ludovic Vallorge não ignorava o que era a pobreza: recordá-la dava-lhe logo vontade de triunfar, de ser rico, de fazer parte dos principais. Esse homem alto, pesado, ossudo, com membros de camponês e aspecto maciço, passara já maus bocados na sua existência. O pai, que era leiteiro, morrera de desastre, dum coice que lhe atirara o cavalo com que trabalhava. A mãe estabelecera na aldeia uma lojinha de capelista. Fora com isso que vivera, educara o filho e pagara todos os seus estudos, que realizara, à. força de prodígios de economia, de privações e trabalhos, o milagre que ela pretendia : fazer do filho um médico, um senhor. Morrera seis semanas antes de Vallorge apresentar a sua tese, sem ter visto o triunfo do filho, pelo qual tanto se sacrificara. Vallorge jamais se recordava sem um aperto de coração do saudoso rosto velho e cansado daquele ente que lhe dera a vida, que o criara e por ele morrera. E daí lhe vinha certa amargura, uma espécie de rancor, um desejo feroz de não voltar a conhecer nem dar a conhecer aos outros aquela existência oprimida e obscura, esse pesadelo da pobreza.

Submetera-se à regra do jogo. À sombra da Suraisne pudera realizar um avanço rápido; antes da prestação de quaisquer provas, já estava nomeado assistente daquele. E soube conservar-se como o favorito do mestre, sem deixar que lhe aplicassem a «luxação» certos camaradas cujas ambições ameaçavam pôr entraves às suas, criando o vazio em volta de Suraisne. Tais manobras, nas Faculdades, destroem muitas carreiras científicas. O único dos competidores que ficou em campo foi Seteuil, e este mostrava-se inquietante nos seus apetites; mas era demasiado novo para alarmar Vallorge, que ia já bastante adiantado no caminho. Todavia, entenderam-se os dois, e Vallorge progredia no sentido da cátedra ao mesmo tempo que acumulava títulos: médico da Assistência Pública, médico escolar, encarregado dum curso na Faculdade de Farmácia. Deste modo conseguia fazer os seus vinte mil francos por ano : encontravam-no por toda a parte, garantindo aqui dois mil francos, justificando ali quatro mil, ou então usufruindo a título gratuito um laboratório ou leccionando, também sem remuneração, em cursos livres e dando aulas práticas extenuantes, tudo com vista à possibilidade de criarem uma cadeira para ele ou a pensarem nele para uma cadeira que viesse a ser criada.

Juntamente com tudo isto, Vallorge dispunha em Angers duma clientela razoável. A esse filho de camponeses não se podia negar a virtude da coragem. As suas inúmeras funções obrigavam-no a um trabalho exaustivo. A elas se entregava sem vacilar, com lentidão e sossego, uma atrás da outra, sem nervosismo nem pressa, a todas dando exacto cumprimento. Era ele quem levava a cabo as tarefas do laboratório de Suraisne. Para os doentes continuava incansável, sempre pronto a atender, respondendo a chamadas nocturnas, perdendo, sem se queixar, uma noite inteira à cabeceira de uma parturiente, instalando no seu automóvel e transportando ao hospital um enfermo ou um operário sinistrado. E, com isto, sempre alegre, bem disposto, paciente, cheio de instintiva ternura pelo povo brutal e pitoresco donde saíra e que não deixava de estimar. Este êxito, mais ainda que o ritmo da sua ascensão à Faculdade, era coisa que os seus émulos lhe não perdoavam. Vallorge não fazia caso. Tencionava dentro de pouco tempo apresentar-se a concurso, e, uma vez professor extraordinário, não se esqueceria de suplantar os confrades, pois a luta prossegue entre estes. Logo que se regista uma vaga, todos se precipitam, mais uma vez, nos braços dos protectores respectivos. Toma-se um táxi, ajusta-se um automóvel para chegar mais depressa. Do Conselho Escolar é que dependem as nomeações, e, neste comenos, os postulantes rivalizam em zelo, publicam trabalhos sobre trabalhos, dão que falar de si, vigiam certos professores proprietários cuja cadeira - quem sabe? - pode também vagar dum momento para outro. Em bacteriologia, por exemplo, o mestre tem ideia de se aposentar... E alguns dos candidatos começam a entusiasmar-se pela bacteriologia, enquanto outros se votam deliberadamente às vias urinárias porque o respectivo lente tem vindo a envelhecer de maneira espantosa, nestes últimos dois anos...

Vallorge, então, construía os seus planos com grande antecedência. Suraisne pensava substituir o velho professor de anatomia logo que este morresse, o que não devia tardar muito. Calculava Vallorge que isso se desse antes de vinte e quatro meses. Em seguida Ribières, proprietário da cadeira de vias respiratórias, alcançaria a reforma daí a cinco anos. Nesse momento Suraisne, já professor de anatomia, reclamaria para si a de vias respiratórias e não seria difícil obtê-la, sabendo como um lente está apto para tudo: um cardiologista, por exemplo, pode muito bem encarregar-se dos órgãos digestivos. Na esteira de Suraisne, Vallorge seria professor extraordinário de anatomia. E quando, cinco anos depois, o mesmo Suraisne sucedesse a Ribières nas vias respiratórias, Vallorge apresentar-se-ia a efectivo da cadeira deixada por aquele.

Mas a morte de Suraisne deitava por terra todo esse edifício audacioso, sábia e pacientemente construído. Procurar novo protector era trabalho demorado e difícil. E talvez já fosse tarde, pois que Vallorge prosperava e os seus rivais distinguiam-no com ódio inexorável. Não lhe permitiriam o acesso a outra igrejinha. Era arriscado: arranjariam maneira de o diminuir aos olhos do mestre. Convinha, pois, mudar de táctica ou então (como Seteuil decidira fazer) abandonar a carreira docente, renunciar à luta, ir estabelecer-se noutra parte e contentar-se com uma vida menos brilhante. Mas Vallorge não se resignava a isso. Depois de vários dias de reflexão, decidiu tentar a sorte com a carta do matrimónio. Havia quatro professores que tinham filhas casadoiras: Donat, Doutrevaí, o velho Ribières e Heubel. Simonne Heubel estava quase noiva de Michel Doutreval; portanto, não valia a pena pensar nessa. Donat já era velho, e a sua aorta não lhe concederia mais dois anos. Seria uma protecção efémera. Além disso, a filha nada tinha de bonita. Restavam Alice Ribières e Mariette Doutreval. Ambas eram graciosas, bem educadas, embora os dotes fossem modestos; mas Vallorge desejava mais apoio do que dinheiro. Hesitou. Depois lembrou-se do carácter escrupuloso de Ribières: homem doutra época, o velho mestre tinha ideias antiquadas acerca do sacerdócio profissional. Clientela nenhuma; vivia parcamente com os cinquenta mil francos que ganhava como professor, e, pago pelo Estado, recusava conceder a outros um minuto do seu tempo. Dali não se tirava nada; nem um candidato designado com antecedência, nem manobras de bastidores... Só concursos leais. A qualquer pedido, a qualquer solicitação, limitava-se a responder:

- Veremos no concurso.

Ora esta frase ninguém a pronunciava senão ele. Com tal austeridade de princípios, Ribières não ajudaria as ambições do genro. E, no fundo, Vallorge sentia-se mais inclinado para Mariette Doutreval, cuja graça fresca e saudável o enternecia. Resolveu, pois, tentar aí a sorte.

 

Foi pouco tempo depois que Lapeyrade morreu, o tal Lapeyrade que, no banquete do mês anterior, tão bem marcava o compasso com o guarda-chuva do velho Donat, enquanto os colegas iam cantando. Entrara no Hospital da Ègalité um pequeno atacado de difteria. Lapeyrade tratou-o, contraiu a doença e sucumbiu. Há estudantes de Direito, de Ciências, de Letras: esses nunca arriscam a vida. Há estudantes de Medicina: e, de tempos a tempos, um deles apanha a morte, assim, à cabeceira dos doentes. Enterram-no com discursos, falam disso durante uma semana, e pronto. Esquecem-no e esquecem o incidente. Os estudantes do curso médico são os que pensam menos no caso e continuam a sua vida. É uma linda coisa vê-los sacrificarem-se tão inconscientemente, tão naturalmente. Jamais se notou num aluno de Medicina a sombra sequer dum pensamento de superioridade em relação aos seus camaradas de Letras ou de Direito. Não existe outra profissão em que a mocidade arrisque a pele com tanta simplicidade, tanta falta de orgulho. E essa mocidade nada tem de excepcional, de particular. Isto reconcilia-nos com o homem.

No dia do enterro de Lapeyrade, depois da cerimónia, Michel resolveu ir ao Sanatório. Não havia aulas, e ele queria ver aquela infeliz que Géraudin operara e que descrevera a sua história durante a operação. Por inexplicável pudor, não disse aos colegas aonde ia. Deixou-os à saída do cemitério e partiu sozinho, a pé, pela ladeira que vai ter a Saumur. Era aí que, a meia encosta, se elevavam os pavilhões de cimento armado do Sanatório.

Michel subiu até ao segundo andar sem encontrar vivalma. A maior parte dos estudantes e das enfermeiras estava ainda no cemitério. Foi seguindo pelo extenso corredor, repetindo a meia voz a indicação de Seteuil, de que ainda se lembrava :

- Jeanne Lacroix, quarto 28. Quarto 26... 27, 28. Cá estamos.

Bateu. Ninguém deu resposta. Tornou a bater, empurrou a porta e entrou. O quarto estava vazio.

Desconcertado, Michel hesitou um segundo e em seguida foi bater ao 27.

- Entre - disse uma voz feminina.

Entrou, sufocando um palavrão. A porta era muito baixa e ele muito alto : batera com a cabeça na padieira.

Sentada no leito e apoiada aos varões de ferro, de costas voltadas para a porta, imóvel, com a grosseira vestimenta do hospital, de mãos estendidas sobre os lençóis, uma rapariga olhava para o céu. A nuca delgada e frágil anunciava extrema juventude. O cabelo puxado para o alto, à moda antiga, era pesada massa loira, dum loiro fulvo que mais acentuava a esbelteza do pescoço. A luz da janela banhava essa massa de oiro e dava àquele vulto juvenil qualquer coisa de irreal. Michel, espantado, detivera-se à entrada.

- Hum! - fez ele, pigarreando.

Ela não se voltou. Supunha, decerto, que se tratava duma criada.

- Menina... disse Michel.

A rapariga estremeceu e virou para ele o rosto pálido e fino onde brilhavam grandes olhos escuros de expressão tímida e bravia como os dum animal assustadiço.

- Senhor... Senhor... - murmurou ela. Via-se que estava amedrontada.

- Procuro Jeanne Lacroix -balbuciou Michel.-Jeanne Lacroix, quarto 28. Este é de facto o segundo andar?

- Sim, senhor - respondeu a rapariga. - Ela morreu ontem de manhã!

- Ah ! - exclamou Michel. - Lastimo...

Sentia-se acanhado, sem razão. Achava-se idiota. E, estupidamente, perguntou:

- Sofreu muito?

- Nem por isso. Estava tão fraca!

- Conhecia-a um pouco - exclamou Michel. - Vi operá-la outro dia.

- Sim, bem sei.

- Sou estudante do curso médico. Amigo de Seteuil.

- Ah, o doutor Seteuil!... Foi quem pediu ao doutor Ribières que me deixassem ficar aqui.

- O professor Ribières?

- Sim, senhor.

- Então não podia ficar aqui?

- Não, senhor. Tenho bacilos. Aqui é o pavilhão dos pré-tuberculosos. Foi um favor que me fizeram. A menina Daele é muito minha amiga.

Ergueu-se-lhe um dos cantos da boca, onde passou a sombra dum sorriso tímido. Michel, que avançara até ao meio do quarto, dirigiu-se para a janela e, voltando as costas ao pátio, firmou-se no peitoril e contemplou a doente. Esta parecia sumida no uniforme de burel, excessivamente largo para ela. Devia ser rapariga de menos de vinte anos. Com ar de pura franqueza, misturada de ingenuidade infantil, ficara a observar o visitante inesperado. Sem dúvida, era uma dessas tuberculosas condenadas. Tão frágil! Fontes estreitas e altas. Olhos muito grandes, como que dilatados. Uma criança, ainda cheia de pureza. Isso saltava à vista. Michel sentiu-se comovido. Tinha a vaga impressão de parecer, com a sua voz forte e estatura avantajada, quase a tapar toda a janela, demasiado alto, demasiado robusto em comparação com aquele ser delicado.

- Há muito tempo que está aqui? - inquiriu. - Como é que adoeceu?

- Nem sei - retorquiu ela, sempre com ar assustado, como as pessoas do povo quando respondem ao interrogatório do médico. - Foi na ocasião em que eu estava a coser à máquina... Deitei sangue pela boca.

- Era costureira?

- Não, senhor. Era criada de servir.

- E os seus pais?

- Meu pai já morreu. Minha mãe tornou a casar. E o meu padrasto... Não sei como hei-de explicar ao senhor...

- Percebo - acudiu Michel.

- E a mãe dizia que a culpa era minha, que eu é que andava a «cirandá-lo»... Não me atrevi a dizer mais nada. E uma noite ele veio ao meu quarto...

- Ao seu quarto?

- E atirou-se sobre mim. Então defendi-me, bati-me com ele e no dia seguinte fugi de casa e arranjei um lugar como criada. Tinha catorze anos. Que pateta eu era nesse tempo, Que tonta!

Sorriu, e Michel sorriu também ao vê-la com aqueles ares de pessoa muito velha e atilada.

- E depois? Adoeceu?

- Não foi logo. Eu era criada de fora numa grande casa. Havia outra criada e uma cozinheira. Depois os meus patrões mandaram embora a cozinheira e a criada por já não terem dinheiro. Eu fiquei, e cansei-me a lavar muita roupa e a cozinhar... Já não podia. Ao domingo à tarde, quando me davam licença para sair, ia dormir para o meu quarto. E um dia, deitei sangue pela boca. Então o médico disse-me que tinha o pulmão atacado... Ainda me conservei uns tempos. Quando deixei de poder trabalhar tive de sair da casa. Arrecadara algum dinheiro. Escrevi a minha mãe, e ela mandou-me entrar num sanatório de Paris. Era muito caro. Principalmente os sais de oiro. Não me foi possível ficar lá muito tempo. Tive de me vir embora, assim que melhorei. Mas a viagem cansou-me muito. A mala era pesada, e os carregadores são tão caros... Arranjei um lugar em Paris-Plage, numa grande moradia. Estavam lá muitos convidados, e eu tive de dormir na cave durante três semanas. Aquilo era húmido... A água escorria pelas paredes. Apanhei frio e adoeci outra vez. Então, para ganhar a vida, fiz-me costureira. Cosia à máquina... Mas sentia faltarem-me as forças... e a minha mãe já morrera... Enfim, consegui vir para cá, para o sanatório. Ia fazer dezoito anos... A minha máquina era pesada... muito grande...

Falava em voz baixa, suave e monótona. Michel observou-lhe as mãos, fortes e vermelhas, com as pontas dos dedos picadas pela agulha, e a cara estreita, emagrecida, sob a abundância dos cabelos fulvos e encaracolados, massa opulenta, sumptuosa, que parecia alimentar-se daquele ente frágil e exauri-lo. Só as pupilas se conservavam vivas, duas pupilas negras, lustrosas, engastadas na córnea dum branco azulado que as tornava ainda mais escuras.

- Deve-se aborrecer muito aqui, não é verdade?

Ela esboçou com a mão um gesto resignado sobre o lençol.

- Que se há-de fazer!

- Há o cinema do padre Vincent...

- Eu gostava tanto disso, nos primeiros meses! Agora já não posso ir lá baixo. E construíram aquele andar...

- Que andar?

Pela janela, a rapariga indicou o edifício das cozinhas, recentemente ampliado.

- Ao princípio não havia aquilo. Eu via passar o trólei dos eléctricos, na avenida... Isso distraía-me. E sabia as horas... Agora já não se vê daqui o trólei...

- Não tem relógio?

- Tenho, mas não regula muito bem... As faces coraram-lhe ao de leve.

- Pedi à menina Daele que o mandasse consertar. Mas é um pouco caro... Fica para daqui a uns tempos...

Tirou de baixo do travesseiro um reloginho de aço com mostrador amarelado e fendido.

- Coisa esquisita - disse ela. - O relógio já não anda, mas tenho-o sempre comigo... É uma espécie de companhia. .. Não sei porquê...

De novo sorriu, com aquele seu sorriso um pouco triste.

- É preciso ser corajosa - murmurou Michel, acanhadamente.

Ela não retorquiu e ficou uns instantes com ar pensativo.

- O que mais desejo - acabou por confessar - é ficar aqui até ao fim... Não gostaria nada de ir para o pavilhão IV, o dos contagiosos... Faço tudo o que posso, nunca me queixo... Não quero incomodar ninguém... Tenho fé de que hão-de me esquecer...

- Por que razão a mandariam embora?

- Tenho bacilos... Aqui não deve haver contagiosos. É um favor que me fazem. O senhor Seteuil bem me preveniu : «Olha, filha, se ainda não estás no pavilhão IV, a mim o deves...»

- Não gosta do pavilhão IV?

- Estou habituada aqui... Tenho um quarto só para mim... e deixam-me sossegada. Além disso, nos contagiosos, põem-nos num quarto especial quando se está perto da morte, e a gente sabe com antecedência o que nos vai acontecer... Aqui, vi morrer uma... uma amiga... Deixaram na até ao fim no seu quarto... em paz... E cá, quando temos visitas, é menos triste.

- Tem visitas?

- Ao princípio, uma vizinha velha... Vinha de quinze em quinze dias. Trazia-me sempre três bananas e conversava comigo durante uma hora. Alegrava-me muito a sua visita. Mas agora já não aparece. Estas doenças são muito demoradas, e acabam por cansar...

- Então não tem ninguém de família?

- Tenho, sim, senhor. Uma tia em Amiens, muito boa criatura. É mãe de sete filhos! Eu ia ser madrinha do mais novo, quando adoeci.

- Ela nunca a visitou? Nunca lhe escreveu? A rapariga sorriu.

- Eu não lhe disse que ia entrar no sanatório! Já sabia que havia de querer ajudar-me e me mandaria qualquer coisa! O que lhe disse é que arranjara uma boa colocação e que partia por seis meses com os meus patrões, em férias.

Michel afastara-se da janela. Sentia-se comovido e atrapalhado ao mesmo tempo. Preparara, antes de vir, duas notas de dez francos para Jeanne Lacroix. Mas a esta rapariga, que ele não conhecia, não se atrevia a oferecer dinheiro. Por outro lado, tinha vergonha de se ir embora assim.

- Tenho de me retirar - disse ele. - Mas hei-de voltar a visitá-la... para a semana. Até qualquer dia.

Estava tão perturbado, tão desejoso de se afastar dali, que ao sair se esqueceu de se abaixar e de novo bateu com a cabeça na padieira da porta. Embrenhou-se no corredor, esfregando a testa e resmungando.

Numa volta da escada, quando seguia preocupado e de olhos no chão, chocou com alguém, que soltou um grito e quase caiu para trás. Michel, com mão vigorosa, segurou essa pessoa pelo braço.

- Perdão!

- Que bruto!

Reconheceu a enfermeira Daele.

- Ah, é você! Eu já devia ter percebido!

- Magoei-a?

- Se lhe parece! Um punho desses! Amanhã terei uma nódoa negra no braço. Que anda a fazer por aqui?

- Vim visitar a Jeanne Lacroix... E estive a conversar com a vizinha dela.

- Ah, sim, a Évelyne, essa pobre pequena...

- Como se chama?

- Évelyne Goyens. É uma rapariga às direitas, nada incomodativa. E não tem ninguém. Vós outros não podeis fazer ideia disto, Doutreval. Bem o vejo, pelo Lucien...

Lucien era Seteuil, o amigo de Madeleine Daele.

- Sois muito ricos. Ignorais o que é possuir apenas sete ou dez soldos para se governar. Contudo há aqui dezenas de pessoas na situação dela, pobrezinhos tão pobres que nem têm uma camisa para vestir. Pessoas como a Évelyne, que não desejam curar-se porque isso de ter alta seria para elas uma complicação dos diabos, visto não possuírem um par de sapatos, nem um vestido, nem sequer um lenço. Criaturas que já nem se atrevem a aspirar à vida, Doutreval! Quando penso na vossa vida, filhos de gente rica!

Michel tentou rir. Madeleine Daele esfalfava-se pelos doentes, fazia análises de expectoração, mudava os pensos, substituía os internos, dava injecções intravenosas quando Seteuil e Santhanas hesitavam perante um braço muito gordo, em que a veia custava a aparecer. Chegava a emitir a sua opinião ao próprio Ribières, que aliás a escutava, a respeito da evolução duma pleuresia ou duma gangrena óssea. Era filha dum engenheiro electrotécnico de Grenoble. A sua profissão afastara a da família. Ligara-se a Seteuil e tornara-se amante dele. Seteuil divertia-se com isso, ia acabar a noite em casa de Madeleine, com os camaradas, quando andava na pândega, exigindo de cear e servindo-se dela como duma criada. Depois que ganhava alguma coisa, Seteuil comprara um automóvel de segunda mão e pagava-o a prestações; mas era Madeleine quem todos os meses liquidava as contas de reparações e gasolina, sem se queixar, com medo de que Seteuil a deixasse.

Mostrou a Michel guarda-jóias de vidro, molduras de papelão, bonecas de lã, tapetinhos, toda a espécie de trabalhos miúdos feitos pelas doentes. Levava aquilo para casa, organizava tômbolas e rifas lá no bairro, vendia aos vizinhos e aos seus fornecedores aquelas bugigangas a fim de proporcionar algumas moedas às pobres tuberculosas. Estava sempre sem dinheiro. Três quartas partes do ordenado eram para os doentes, e o resto para Seteuil. Ribières sabia disso, estava ao facto da vida da enfermeira e estimava-a deveras.

De toda aquela quinquilharia, Madeleine Daele conseguiu impingir a Michel uma horrenda boneca tapa-bule e extorquir-lhe assim os vinte francos.

 

O comboio rápido deslizava sempre, longa serpente cinzenta esverdinhada, através dos campos da Touraine, cavados em forma de vales e dourados pelos últimos esplendores do Outono. Na carruagem-restaurante, sozinho na sua mesa, Olivier Guerran almoçava frango e salada, que acompanhava de meia garrafa de vinho. Vista pela janela, a paisagem transformava-se lentamente; aldeias de pedra grisalha, encostas plantadas de vinhas purpúreas e dominadas por castelos de telhados de ardósia, extensas alamedas ladeadas de espessas cortinas de choupos. Por momentos, pardo e brumoso, surgiu o Loire. O jornal de Guerran estava apoiado à garrafa. Entre duas garfadas, o viajante lia uma ou outra linha. A sua fotografia patenteava-se em grande formato na primeira página, dentro de moldura oval. Os passageiros, em volta, cochichavam, e aos ouvidos dele chegava esse murmúrio discreto e lisonjeiro:

- É Guerran... o ministro...

Fora na terça-feira anterior que o ministério viera a terra, devido à casca de banana que lhe haviam estendido. Bela manobra de Ramboise, chefe da oposição. Chamado ao Eliseu, Ramboise tinha sido, naturalmente, encarregado de constituir o novo gabinete, e propusera a Guerran entrar no seu elenco. Este aceitara com a condição de ficar na pasta da Agricultura, de que já fora ministro duas vezes na legislação anterior: nesse domínio adquirira uma competência que toda a gente estava de acordo em lhe reconhecer. Demais a mais, tinha nisso a vantagem de criar reputação de especialista, ao mesmo tempo que dava assim resposta aos invejosos do seu partido que por acaso lhe censurassem o facto de entrar numa combinação reaccionária.

- Não faço política. O meu papel é de especialista, de técnico.

Quanto aos eleitores, bastava o montão fabuloso de cartas e telegramas de felicitações, chegados desde terça-feira à rua de Varennes, para o tranquilizar quanto à natureza dos seus sentimentos. O círculo de Maine-et-Loire, agrícola e em especial vitícola, não poderia ver com maus olhos o seu candidato tornar-se ministro da Agricultura.

Num ronco surdo o comboio transpôs a ponte, por cima dum vale estreito.

«Faltam dez minutos» - pensou Guerran.

Chamou o criado, pagou a conta e alcançou, cambaleando um pouco, o seu compartimento de primeira classe, afastando as pessoas no corredor e seguido sempre pelo murmúrio agradável da popularidade:

- É Guerran, o ministro...

Olivier Guerran era de origem modesta, filho dum mestre-escola. Formara-se em Direito, estreara-se no tribunal de Angers, e ali, sufocado entre os advogados de nome feito, sentindo que teria de vegetar dez anos antes de ganhar bem a vida e não encontrando melhor solução, lançara-se na política, via segura e rápida para triunfar no foro. E foi tal o êxito que depressa a advocacia lhe interessou menos do que a política.

Em 1914 partiu para a guerra como simples soldado; portou-se com coragem e recusou as vantagens que lhe ofereciam. Um ano antes, depois de muitas hesitações, casara com Julienne, sua amante, rapariga que ele conhecera num café onde ela fazia vida frívola. Mantiveram relações durante alguns anos, das quais resultou um filho. Todavia, Guerran tinha ao mesmo tempo outra ligação, e não pensava no matrimónio. Foi a madrinha dele, a senhora de Nouys, santa criatura de quem o afilhado venerava ainda a memória, que o impeliu ao casamento e o orientou na escolha. Guerran teria preferido a mais nova das duas amantes, que era meiga e educada. Mas da outra, da Julienne, havia um filho, o pequeno Charles.

- Decide-te por Julienne - disse-lhe a senhora de Nouys depois de lhe haver escutado as confidências. É essa a tua obrigação.

Durante toda a sua vida, Guerran pagaria caro aquela escolha. Por seu lado, Julienne não perdoou à senhora de Nouys a circunstância de lhe dever o maior triunfo da sua vida; e conseguiu, à força de ódio, afastá-lo da madrinha. A velha morreu sem tornar a ver o afilhado.

Depois do casamento Julienne presenteou o marido com uma filha. Entretanto a situação política dele continuava a prosperar.

- Angers! Angers!

Guerran apeou-se. Um carregador levou-lhe a mala até ao táxi.

- Ao tribunal - disse aquele ao motorista.

Não lhe era indispensável passar pelo tribunal, mas cedia a uma vaidadezinha secreta, à necessidade de ser visto.

Não se demorou na biblioteca dos advogados senão alguns minutos, apenas o tempo de levantar a correspondência, de apertar a mão dos amigos, de saborear o despeito dos rivais. Saudações frias, forçadamente indiferentes, ar ocupado de pessoas que não o queriam encarar, cumprimentos arrancados a custo a bocas amargas, rumores, segredos, olhadelas furtivas, risinhos perversos, tudo isso ele apreciou com intensidade, como o perfume da sua vitória. Falou alto, riu, de peito dilatado, e mostrou-se aos olhos de todos mais forte, mais optimista, mais seguro de si, mais triunfante ainda do que se sentia Sabia bem que o espiavam, havia já anos que lhe observavam a expressão quando acabava de advogar uma causa, a ver se descobriam cansaço, abatimento, primeiros sinais de fadiga. Constava que sofria do coração, que se notava isso na artéria temporal, sinuosa e muito inchada depois de cada esforço oratório. Os ciumentos da sua glória vigiavam essa artéria de Guerran sempre que este saía do tribunal. Ele, contudo, ria-se com os seus secretários e os homens do partido.

Viu Rebat, o mais obstinado dos seus inimigos, entrar na biblioteca e fugir imediatamente logo que descobriu o novo ministro. Escutou com satisfação o relato que lhe fizeram do que se passara na quarta-feira de manhã, quando se soube que ele fazia parte do gabinete: uma autêntica sublevação; advogados fora de si, injuriando-se, altercações entre amigos e inimigos do Governo! O velho bibliotecário Mayer tivera de intervir de maneira respeitosa mas firme, separando aqueles que estavam prestes a chegar a vias de facto.

A casa de Guerran ficava a poucos passos do tribunal, onde ele vinha sempre a pé. O escritório do advogado, o dos secretários e as salas-de-espera ocupavam o rés-do-chão. Os clientes faziam bicha acolá, confiantes na grande influência do ministro, revelando pelo número a fé universal que se tem no «empenho», nas relações, na preponderância da política sobre os negócios da Justiça. Guerran penetrou no seu escritório, chamou primeiro os seus três secretários e o filho Charles, encurtou as manifestações entusiásticas que lhe tributaram, indagou quais eram os processos mais importantes e reteve um instante o filho, a fim de lhe falar. Charles Guerran acabara recentemente a sua licenciatura em Direito, estava casado havia já seis meses e preparava o doutoramento, trabalhando ao mesmo tempo com o pai. Orgulhoso de envergar a toga, afectava gravidade de jurisconsulto, vestia-se de preto, escutava-se a si mesmo quando discursava, fazia muitos gestos com as mãos e tinha pena de não parecer mais velho do que era. Guerran sabia que, no fundo, o filho não passava dum nervoso, dum fraco. Conversaram um instante acerca da casa, dos negócios correntes. Interrompeu-os a campainha do telefone: Legourdan, que era o secretário principal, anunciou da outra sala que o professor Géraudin acabava de chegar.

- Mande-o entrar já. Charles, vai lá fora buscá-lo.

Charles saiu e voltou com Bernard Géraudin. O ministro precipitou-se, de mãos estendidas, afectuoso e deferente, ao encontro do seu velho amigo. Abraçaram-se.

- Então? Então? - dizia Géraudin, apoplético, sorrindo com os seus olhinhos pardos e apalpando, num gesto maquinal, o lóbulo da orelha rubra, enterrada na carne espessa do pescoço. - Estás contente? E os eleitores?

Guerran, com o dedo, indicou as quatro enormes bandejas de prata repletas de telegramas e bilhetes de felicitações.

- Olhe para ali. E dez vezes mais na rua de Varennes. Os jornais têm sido muito amáveis. Na verdade, estou contente.

Oferecera ao recém-vindo uma poltrona de cabedal, baixa e larga, onde toda a pessoa de Géraudin se afundou. Dum móvel antigo, ornado de livros fingidos, a esconderem prateleiras de garrafas, tirou um tabuleiro, copos, aguardente velha e uma caixa de charutos. Nos copos, que eram de cristal colorido, em forma de túlipa, deitou o álcool loiro e apetitoso.

- Pouco, pouco - recomendou Géraudin, estendendo a mão elegante e musculosa, mão de rapaz.

- E um charuto?

- Estás-me a tentar, Guerran! Não resisto, cheira tão

bem!

Acendeu o havano, apalpou de novo a orelha e disse :

- Fumo em excesso. é um disparate. Valerie tem razão.

- Ela está bem?

- Tu conhece-la... Há-de nos enterrar a todos, com aquele seu génio implicante. Mas falemos antes de ti. Quando me deram a notícia, pelo telefone do Progrès Social, fiquei sobre brasas. Teria corrido a Paris se não tivesse a minha clínica, os meus doentes. Antes de cinco anos serás presidente do Conselho, é o teu velho amigo quem to vaticina!

Falaram de política, de eleições, da Universidade. Guerran explicou a sua concepção engenhosa do «ministério técnico». Géraudin expôs os desejos de Gigon, secretário da Faculdade de Medicina e seu poderoso e precioso primo, o qual sonhava com uma condecoração nova, o Mérito Clínico, coisa que nas mãos deles seria meio de acção suplementar e de grande eficácia, numa época em que todos cobiçavam as veneras. Guerran prometeu tratar disso. O ministro da Saúde Pública era Hochepied, seu amigo certo. A pretensão seria fácil se o governo durasse alguns meses. A propósito, ocuparam-se da saúde pública, da famosa Ordem dos Médicos, que nunca mais se organizava, porque as esquerdas não queriam. As fraudes dos desastres no trabalho e os abortos são belos motivos de propaganda eleitoral para quem conta com eleitores na massa popular : sufrágio universal sem contrapeso na autoridade de elementos operários, camponeses e burgueses esclarecidos, reino aparente dum povo na realidade envenenado e conduzido pelos poderes financeiros e pela imprensa! Guerran, céptico, evocou toda essa triste manobra a que ele recorria porque assim era necessário, mas com certa repugnância. A propósito de alcoolismo, Géraudin falou da publicidade insensata permitida aos fabricantes dessas porcarias a que chamam aperitivos. E Guerran contou a aventura dum jornalista seu amigo, cuja colaboração fora aceita num dos mais importantes diários de Paris e a quem os redactores haviam começado por fazer o seguinte aviso:

- Tem liberdade para escrever o que quiser. Mas não toque no Exército, nem na Igreja, nem no alcoolismo, nem no assunto da prostituição regulamentada.

Géraudin riu com vontade.

- Pobre Exército! Pobre Igreja! Que companhia lhes foram arranjar!

Tagarelaram ainda um quarto de hora, até que Géraudin pôs ponto final na conversa e quis ir-se embora, apesar dos protestos de Guerran.

- Não, não! Devo ir. Bem vejo a tua correspondência. .. e oiço o telefone. Além disso, tens quarenta clientes na sala-de-espera. Ponho-me a andar. Adeus, meu velho. Vai jantar comigo num destes dias. Não, obrigado, não quero mais charutos. Até à vista.

Durante toda a tarde, Guerran atendeu os clientes e esteve a trabalhar. Na sua maior parte, as questões de que se ocupava diziam respeito a assuntos fiscais, aduaneiros ou administrativos. é nesses domínios queum parlamentar advogado pode «intervir» com todo o seu peso. Olivier Guerran gabava-se de, em noventa por cento dos casos, conseguir congraçar as partes sem recurso aos tribunais.

Deixou o filho e os secretários derreados de fadiga, mas despachou imenso trabalho. E às sete horas, de cabeça pesada, cansado e satisfeito, saiu do seu gabinete e subiu ao andar donde Charles telefonara a dizer que «Micheline e a mãe acabavam de chegar».

Julienne Guerran acolheu o marido com indiferença. Havia muito tempo que nem sequer simulavam ternura um pelo outro. Trigueira, de olhos pretos, duros e ardentes, de rosto magro, com as sobrancelhas e os lábios acentuados por excessiva pintura, Julienne Guerran tinha nas suas feições algo de imperioso e cruel. Mais velha dois anos do que o marido, usava vestidos juvenis (que, aliás, se harmonizavam com a sua esbelteza espanhola) fumava incessantemente e gastava rios de dinheiro.

Guerran, até à hora do jantar, só se ocupou da filha. Micheline, de dezassete anos, loira, de olhos azuis, branca, forte e fresca, era a preferida do pai. Guerran instalara-se numa poltrona, sentara Micheline nos joelhos e, sem escutar a tagarelice da rapariga, contemplava-a e sentia-se feliz. Depois chegou Charles Guerran com Andrée, sua mulher. Foram então para a mesa. Durante toda a refeição imperou a disputa de Olivier Guerran e Julienne. Esta contava ir para Paris com o marido, morar na rua de Varennes na casa reservada ao ministro, compartilhar da sua glória, viver na agitação mundana de que tanto gostava e que era para ela como um estimulante e um alimento psíquico. Formulou logo a pergunta :

- Então? Quando é que vamos ter contigo?

- Nunca - respondeu Guerran.

- Porquê?

- Por causa de Micheline. É muito nova, não quero aquela vida para ela.

- Podemos deixá-la aqui num internato.

- Não quero isso.

E a discussão rebentou. Julienne, uma vez mais, acusou Olivier de a sacrificar aos filhos, de pretender arranjar ligações em Paris. Gritou, exaltou-se, ressuscitou as violências do seu tempo de vida equívoca e por fim, depois de partir um prato, fechou a porta com estrondo e subiu para o quarto. Charles e André não esperaram que ela saísse para se lembrarem de que tinham de ir nessa noite ao cinema. Desapareceram ainda antes da sobremesa. Guerran ficou só com a filha, enquanto Elisa, criada de fora, levantava a mesa com a ajuda de outra serviçal.

Guerran passou o resto da noite com a filha, perto do calorífero. Micheline tornara a sentar-se nos joelhos dele, que a interrogava em voz meiga, quase maternalmente. Guerran tinha a impressão de ser ao mesmo tempo pai e mãe da rapariga.

- E os teus estudos? Que notas tiveste? As professoras estão satisfeitas contigo? Hei-de lhes conseguir aquele terreno municipal que está vago, para fazerem o seu campo de basket-ball. Nunca te esqueças de lho dizer. Eu mesmo irei visitá-las. Falaremos de ti...

Guerran, ateu, mas descontente de o ser, confiara a filha a um colégio religioso.

- E esta semana? - continuou ele. - Que fizeste, Micheline? Tiveste juízo? Espero que não fosses ao cinema à noite.

- Não, papá.

- Não te faltam livros? Queres mais? Tens música, pintura, companheiras... Não gosto que saias, ouviste? É para teu bem. Não te zangas comigo, hera?

- Não, papá.

- E sabes que me deves contar tudo, que não é bonito esconderes nada nesse coraçaozinho? Podes ter confiança no teu pai, Micheline.

- Bem sei, papá.

Beijou-o, e ele acariciou-lhe os cabelos loiros. Depois Guerran contemplou-a enlevado. Micheline tinha cintura delgada, peito desenvolvido, ancas fortes, bela saúde florescente. Era, com dezassete anos, ainda criança e já mulher. Evocava maravilhosas promessas de vida, de fecundidade. E Guerran achava linda a sua filha, linda a pontos de sentir os olhos molhados de comoção, orgulho e alegria. Falava-lhe, sondava-a, penetrava-lhe até ao fundo da alma, impando de alegria por sabê-la intacta, imaculada, sem nada de secreto nem de tenebroso, cheia duma pureza que era obra dele. Sim, porque fora ele que a salvara de Julienne e que, embora corrompido e gasto pela vida, conseguira, à força de vontade, de paciência, de franqueza e diplomacia, preservar aquela alma de rapariga e merecer a sua confiança como se fosse irmã. Ao vê-la, nessa noite, a rir-se com o seu belo riso juvenil e a falar-lhe como a um camarada amigo, a quem nada se esconde, Guerran sentia-se recompensado.

Docemente, interrogou-a acerca da mãe. Temia Julienne. Sabia dos conselhos que ela dava a Micheline, com ideias de a filha arranjar um bom partido: vestidos, pinturas, artifícios, garridices de todo o género, eis o que Julienne aconselhava à filha, certa de ter experiência dos homens, convencida de que uma mulher só tem a lucrar com os instintos, a sensualidade, a patetice e até a baixeza deles. Assim julgava preparar a felicidade da filha. Era contra isto que lutava Guerran. Conhecia Micheline, sabia quanto possuía de inocência; mas sabia também que se desenvolvera muito depressa, que dentro de pouco tempo seria mulher em toda a acepção da palavra; que, sem mesmo ter consciência disso, havia nela uma vitalidade exuberante que se tornava necessário vigiar e conduzir com prudência. Micheline fora com Julienne ao baile da Prefeitura. Guerran era ministro desde a véspera e a filha obtivera grande êxito.

- Que vestido puseste? - perguntou Olivier. - Com quem dançaste? A que horas vieste para casa? Quem te levou ao bufete? Robert Bussy? Ah, o filho do notário? Bem, bem. Ora dize-me, Michou: esse rapaz não te anda a rondar? Sê franca... Seria coisa natural... A tua obrigação é contar-me tudo. Daqui a uns anos estarás em idade de casar... Mas eu devo saber o que se passa... Não o tornaste a ver depois? Não te mandou nenhuma carta nem veio visitar-te?

-- Não, papá - respondeu Micheline. - Eu... Ele não me é indiferente... Mas não há nada...

- Bem, bem. Havemos de ver isso... Podemos convidá-lo, nas férias. Hem? Formarás opinião a seu respeito, e eu também. Discutiremos ambos o caso... Em princípio, é um partido muito aceitável. Mas deves dizer-me tudo... Só me tens a mim. Eu é que sou a tua mãe, Michou... E agora, filha, vai dormir. São horas...

Beijou Micheline. Antes de se ir deitar, a rapariga obteve do pai a promessa duma raqueta nova, duma máquina fotográfica e dum mês de férias em Paris-Plage no Verão seguinte. Naqueles momentos Micheline tinha a habilidade de extorquir tudo quanto queria do pai. Guerran bem o sabia, mas não se importava.

Ao ficar só, reflectiu uns instantes. Robert Bussy... Era rapaz apresentável... Aquilo podia resolver-se em pouco tempo... Viu a filha já casada e sobressaltou-se.

- Que falta me vai fazer! Que vida! Que isolamento! Meneou a cabeça, murmurando:

- É sabido que não criamos os filhos para nós.

Mas não aceitava tal separação. Micheline era tudo para ele, muito mais do que Charles, o qual se aproximara da mãe por uma semelhança de caracteres que os impelira a se aliarem.

Guerran consultou o relógio. Nove horas e trinta minutos. Hesitou um segundo. Desagradava-lhe a ideia de recolher já ao quarto. Pegou no chapéu, saiu e, na rua, vagueou uns momentos, sem saber aonde ia. Mais uma vez o espreitavam esses dois monstros de quem ele passava a vida a fugir: a solidão e o solilóquio. Hesitou de novo.

- Vou ter com a Hélène? Não, não. Ela maça-me. E se fosse a casa de Triboux?

Ficou ainda indeciso um minuto. Ser-lhe-ia agradável um contacto feminino nessa noite, na exaltação, misturada de cansaço, que sentia depois de todas aquelas alegrias, choques, comoções, e, em especial, depois da discussão com Julienne. Sempre que havia disputa com ela vinha-lhe um surdo desejo de vingança, o desejo de a atraiçoar. Mas Guerran não tinha nenhuma amante oficial. Só por acaso, muito raramente, quando a carne o exigia, uma curta ligação de semanas, ou então relações passageiras com qualquer dessas mulheres do clube mais elegante, mais confortável e mais discreto de Angers, cujo proprietário, chamado Triboux, era também poderoso agente eleitoral de Guerran. Em suma, nessa noite Olivier Guerran avaliou a inutilidade da glória que os outros’lhe invejavam e que lhe deixava a alma vazia, terrivelmente solitária.

«É necessário», pensou. «Devo ser livre... Além disso, Micheline ficaria cheia de ciúmes se soubesse que tenho uma amante».

De novo se lembrou do seu papel junto da filha. «É singular», disse consigo, «como se pode implantar e desenvolver num ente querido pureza e virtudes que não se possui?

A evocação de Micheline obrigou-o a deter-se a meio caminho da casa de Triboux. Sentiu súbito horror pelo que o esperava ali; passou-lhe pela mente a lembrança daquelas criaturas com as suas frases feitas, as suas palavras de amor profissional, os seus preparativos, as suas carícias e gestos maquinais. Invadiu-o com antecedência a vaga repugnância que se segue a tais amores. Deu meia volta e dirigiu-se à Praça de Armas, a fim de ler os jornais da noite antes de se deitar. Assim, essa pureza que ele já não possuía, e que soubera preservar na filha, voltava-lhe nesse dia como que de ricochete, elevando-o acima da carne dominada. Guerran, porém, não teve consciência disso. Seguiu sozinho pelas ruas sombrias, pensando na sua madrinha, senhora pobre e digna, que o protegera e o estimara. Muito piedosa, fora a única pessoa que lhe soubera falar de virtude sem provocar irritação ou sorrisos, talvez porque a sua norma de vida se harmonizasse com os conselhos que dava. O ministro evocou aquele rosto enrugado, indulgente e bondoso; contudo, para que havia a senhora de Nouys de o forçar ao casamento com Julienne? Não, não lhe queria mal por isso. Era sempre a ela que Olivier Guerran dirigia o seu pensamento, durante as horas de solidão - e sem que soubesse porquê.

 

Ao separar-se do amigo ministro, o professor Géraudin meteu-se no carro e Louis, seu fiel motorista, levou-o à clínica. Géraudin tratava aí toda a aristocracia do sangue e do dinheiro. E de Paris, onde os clientes lhe tinham desde há muito difundido o nome e estabelecido a celebridade, vinham procurá-lo esposas de industriais, artistas, americanas de passagem, dispostas a tirar o apêndice ou a «altear» os seios.

Entrou, como de costume, no quarto dos doentes e demorou-se um pouco junto da senhora Boissy, cujo marido era dono duma ardosieira em Fumay. Tratava-se justamente dum peito restaurado, caso difícil que o preocupava. A doente decerto que seguia, em casa, qualquer regímen deplorável, baseado em vinho, peixe e caça brava, pois as feridas não cicatrizavam bem.

Gastou perto duma hora a ver os operados, e depois desceu ao escritório a fim de verificar as contas da senhora Claim, sua enfermeira-chefe. Era o aspecto comercial da profissão. Horrorizava-o toda aquela papelada constituída por contas de fornecedores, padeiro, talho, farmácia, e ainda as folhas de salários e avisos de seguros e contribuições. Achava que fora feito para operar e não para conferir notas de débitos e créditos. Mas a mulher, Valerie, fiscalizava com minúcia a receita da clínica, e Géraudin, para que esta não diminuísse, perdia o tempo em intervenções de cirurgia plástica, arranjos superficiais de peles murchas e cansadas, que lhe rendiam trezentos mil francos por ano - trabalho indigno de quem tinha salvado dezenas de vidas humanas, que sem ele estariam votadas à morte.

Aliás, Géraudin tornara-se perito nessa arte das operações estéticas Na Comédie Française apontavam-se três peitos, pelo menos, que eram obra sua. Talhava um círculo na pele, em volta da auréola do seio flácido. Seis ou sete milímetros mais alto contornava e despegava uma rodela do mesmo diâmetro. Depois introduzia o bico do seio por baixo da pele, levantava-o, obrigava-o a surgir de novo no furo praticado acima. O seio estava «alteado», não havia mais nada a fazer senão cortar, abaixo, a pele agora inútil. A cicatriz em torno do mamilo, confundida com a auréola, ficava quase invisível. Isto custava cinquenta mil francos. Géraudin dizia, e com muita razão, que semelhantes caprichos se devem pagar bem. A operada tinha seio rejuvenescido para cinco anos, ao fim dos quais, com o peso, a pele se estirava outra vez; mas podia-se recomeçar sempre que fosse preciso.

Géraudin refazia pernas, ventres e nádegas. Às mulheres gordas extraía a camada de gordura do ventre e das nádegas, um, dois, três quilos de banha, repugnante como bolas de cebo, quantidades de unto adquirido numa vida de ociosidade e gula. Às que eram mal construídas modificava a barriga da perna : fendia-a, tirava com perícia um filete de carne e cosia habilmente a incisão. Sob os olhos, ou então na testa, esticava a pele, cortava a sobresselente, desfazendo as rugas e agindo de modo que a cicatriz ficasse rente com as pestanas ou junto da base do coiro cabeludo. A ablação da papada era apenas uma brincadeira : a marca imperceptível do bisturi perdia-se no vinco do pescoço. Assim «alteadas», esticadas, as mulheres tinham por mais uns anos uma primavera efémera. Depois voltavam à clínica. Os estudantes, chocarreiros, afirmavam que muitas delas, à força de tantas vezes lhes subirem a pele, acabavam por ficar com pêlos no peito.

Semelhantes trabalhos exigiam prodigiosa delicadeza de mão para as cicatrizes não serem visíveis. Ora Géraudin seria capaz de coser quinhentos pontos de agulha num selo e de bordar o seu nome numa simples mortalha de cigarro, sem a destruir. A sua habilidade de operador causava a admiração de todos, até dos que o invejavam e o odiavam. Era cirurgião nato. Operava magnificamente, com precisão e ligeireza jamais igualadas por qualquer dos rivais. Salvara a vida de muitos doentes com o seu sangue-frio e espírito de decisão inabalável. Em dez segundos, diante dum ventre aberto, que revelava estragos até então insuspeitos, tomava a sua decisão, escolhia entre uma ablação ou uma plicatura, entre uma sutura lateral ou término-terminal. Mas no que ele forçava a admiração dos alunos era nos acidentes brutais, hemorragia, síncope, que sobrevinham como um raio no desenrolar ritual e silencioso da operação e lançavam surpresa e desordem naquela harmonia laboriosa e minuciosamente regulada. A calma de Géraudin, nesses momentos, chegava a ser empolgante. Na barriga aberta, sem se precipitar, sem perder a calma, no meio dum fluxo copioso, rubro, perturbador, o mestre encontrava a artéria lacerada e continha a hemorragia.

- Pinças, senhora Claim... Adrenalina... Óleo canforado... - ia pedindo sempre no mesmo tom plácido, que infundia em toda a gente serenidade e sangue-frio.

Era Géraudin um dos médicos a quem se devia a prática da maçagem directa no coração. Para ele deixara de haver essas intervenções dramáticas, comoventes, em que o operado caía em síncope grave. Num caso destes, quando a respiração artificial e a injecção de adrenalina no miocárdio, na aurícula direita ou num dos ventrículos não conseguiam restabelecer o movimento do órgão parado, Géraudin abria deliberadamente o ser que lhe fora confiado, e que era já cadáver, para chegar ao coração. Fazia isso não pelo abdómen e diafragma, como a maior parte dos cirurgiões, receosos de protestos e queixas ao tribunal, mas de modo directo, com uma incisão no peito, cortando o esterno por altura da terceira e quarta cartilagem costal, a fim de obter uma brecha larga que lhe permitisse a visão e deixasse passar a mão toda. Através dessa abertura escancarada, Géraudin agarrava com força o coração, friccionava-o, comprimia as cavidades para fazer refluir o sangue e praticava a circulação artificial. E de repente, entre os dedos dele, no fundo do peito, a víscera ainda quente, motriz da vida, respondia por um estremecimento, seguido de contracção e pulsação. Mais uma vez se ressuscitava um morto. Em alguns casos o coração ficava a bater, o corpo vivia três ou quatro dias, mas a alma não voltava. O cérebro estava extinto, a ressurreição fora apenas parcial.

Ao sair da clínica, Géraudin tomou de novo o automóvel. Mostrava-se satisfeito, porque todos os doentes iam bem, incluindo a senhora Boissy. A ferida desta começava a fechar; a cicatriz, em forma de crescente, mesmo abaixo do seio, unia-se com perfeição à curva deste e ficaria quase invisível. A senhora Boissy não tardaria a exibir em Juan-les-Pins um lindo peito de virgem, acrescentando mais ainda a fama de Géraudin. Estas coisas constam sempre e não há discrição profissional que defenda um segredo contra a inveja de rivais. Excelente propaganda, sem dúvida. Ao menos não diriam que ele «declinava».

E era esta a maior preocupação de Géraudin: não declinar, não envelhecer. Tanto mais, agora, que já fizera sessenta anos. Observava-se de contínuo, estudava-se, media o tempo que duravam as suas operações, como um campeão olímpico, passava da consternação à alegria, consoante a leitura das estatísticas, e acabava sempre por declarar:

- Não, não declino. Sou ainda o mestre. A minha mão é a dum rapaz de vinte anos.

Sentado à direita de Louis, baixou os olhos, instintivamente, olhou a mão, pôs-se a movê-la, abriu-a, fechou-a e sentiu-se satisfeito por verificar que era bela, fina, nervosa, verdadeira mão de artista, cheia de vigor e precisão, capaz de esforços hercúleos ou de apalpações delicadas; mão que se familiarizara com o contacto da carne, sentindo-lhe os sofrimentos, em especial quando erguia um útero ou tocava num membro partido. Em tais ocasiões tornava-se tão sensível como o órgão ferido, tal se fosse lúcida e inteligente e experimentasse, ela própria, as reacções e as dores. Naqueles dedos finos e duros, ágeis e fortes, o bisturi transformava-se alternadamente em agulha, serra, buril e faca de cozinha, ferramenta de ourives e em seguida de carniceiro.

A perícia de Géraudin obrigava sempre ao respeito e à admiração, em sua volta. Continuava a ser o artista rodeado dum bando de rivais ciumentos, a quem dominava. Sabia que alguns o não perdiam de vista, lhe vigiavam as mãos, atentos, à espera do menor desfalecimento, do mais pequeno sinal de fadiga. Esperança sempre lograda, prova sempre transferida para data incerta. Contudo, passara dos sessenta, dizia-se à boca pequena. Os internos, os amigos também começavam a observá-lo, a estudá-lo, a vê-lo com o olhar perspicaz e impiedoso de médicos nas horas de intervenção cirúrgica. Géraudin percebia esses olhares atentos a uma possível hesitação, e desprezava-os, muito senhor de si, seguro da sua força, consciente de ser igualmente lúcido, vigoroso, exacto e rápido. A própria luta o excitava, levando-o a proezas e temeridades que não teria ousado noutras circunstâncias. Assustava: retinha em torno de si os assistentes suspensos e transidos. E o desembaraço com que, duma assentada, depois do primeiro golpe, extraía e passava para a tina o volume inteiro da matriz, arrancava, aos mais biliosos, genuínos brados de entusiasmo pela ciência do mestre.

Mas às vezes, quando a operação era demorada, acontecia-lhe sentir nas vértebras da nuca um breve formigueiro, um vago sinal de cansaço...

Por isso Géraudin, assim acompanhado dum grupo de novos cobiçosos do seu espólio, vigiado por certos cirurgiões que ele formava todos os anos e que eram logo seus concorrentes e inimigos, se tornava cadavez mais absoluto e mais cioso da sua autoridade e prestígio à medida que ia envelhecendo. Essa desconfiança, esse medo de se ver um dia ultrapassado por um rapaz produzia em roda de si o vácuo. Sentia-se constrangido a oprimir os outros com a injustiça de que ele mesmo sofrera. Sob este aspecto é detestável a organização das nossas Faculdades de Medicina, que condenam o mestre a ver nos discípulos futuros concorrentes. O director do serviço hospitalar de Géraudin não tinha o direito de operar fora da clínica. Só os filhos dos ricos poderiam permanecer nessas condições, à espera de oportunidade. Com trinta e cinco anos, Flégier não sabia o que era clientela particular, e limitava-se a ganhar o seu vencimento de duzentos e cinquenta francos por mês. E, como operava bem, era-lhe igualmente defeso realizar qualquer intervenção importante diante dos alunos. Trabalhava só, longe de todos, na clínica de Géraudin. No hospital fazia apenas raspagens. Isso, porém, não obstava a que os estudantes, uma vez médicos, se lembrassem da proficiência de Flégier e lhe enviassem os seus doentes. Todas estas circunstâncias e ainda o carácter de Valerie, sua mulher, faziam com que Géraudin se não considerasse feliz.

Desde manhã, como de costume, que Valerie Géraudin martirizava as criadas e punha a casa em reboliço. Primeiramente quis ir à clínica particular do marido para reclamar dinheiro à senhora Claim, enfermeira-chefe e sua inimiga pessoal. Mas Bernard levara consigo Louis e o automóvel, e isso no dia em que ela ordenara ao motorista que lavasse as vidraças da sala! Também desejou ir à confissão, logo a seguir ao almoço, antes de partir para La Baule. No entanto o marido guardara para si o carro, toda a manha : assim, nem confissão nem vidros lavados. Para cúmulo, às dez horas, o pessoal, aparvalhado com ordens contraditórias e afrontas várias, soube que a patroa acabava de ter uma crise de nervos, na cama. Restava só uma esperança e um desejo : ver chegar a hora da partida para La Baule.

Valerie Géraudin era a filha mais. nova do antigo director da Faculdade, Largilier. A mais velha, Jeanne, disforme, com um pé aleijado, feiíssima, acabara por encontrar um pretendente, Lepoignard, médico militar de pouco futuro, que Largilier, sem demora, conseguiu fosse nomeado chefe de trabalhos laboratoriais. Jeanne morreu dois anos depois, e o viúvo deixou a cidade para se estabelecer algures, guardando das suas funções apenas o título e os vencimentos, que lhe mandavam pelo correio. Nem ele sabia já Onde era o laboratório, que haviam transferido de lugar. A partir do ano seguinte obteria a aposentação, visto ser nessa altura atingido pelo limite de idade.

Valerie, menos desfavorecida da natureza, não teve contudo maior facilidade em se casar. As taras físicas da primogénita afastavam também desta os pretendentes. Falava-se de degenerescência congénita. Géraudin foi prevenido e hesitou. A rapariga era bonita mas denotava carácter agressivo. Aliás, ele próprio estava comprometido numa ligação de velha data, que lhe custava romper. No fundo, esse sanguíneo era um sentimental. Mas as instâncias da mãe acabaram por decidi-lo. Na sua aldeia remota, deslumbrava-a a grandeza do filho e queria-o ver triunfar por meio daquele faustoso casamento. Valerie trazia o dote de dois milhões. A ambição de Géraudin deixou-se tentar. Desposou Valerie Largilier; esta, com a morte da irmã, tornou-se pouco depois a única herdeira do pai. No dia do casamento de Géraudin, a amante que ele abandonara veio apresentar-lhe o filho à porta do Registo Civil, o que causou certo escândalo.

Largilier era muito rico. Fundara um laboratório para explorar comercialmente as suas descobertas em endocrinologia, e esse negócio tomara incremento. Com a morte de Largilier, Géraudin (ou antes a mulher, pois o contrato antenupcial fora bem redigido) herdara um volumoso maço de acções do Laboratório Dynam.

Quando Géraudin chegou ao palacete soube que a mulher estava recolhida nos seus aposentos. Ninguém se atrevia a ir falar com ela. Discutiram demoradamente todos juntos, Géraudin, as duas criadas, Louis e a cozinheira. Por fim, resolveram mandar o motorista parlamentar com a senhora.

Louis subiu então ao quarto de Valerie. Entre a patroa e ele houve longa disputa, que os outros escutavam no andar de baixo. Valerie chorou, mostrou a Louis a bílis que vomitara no balde do lavatório, falou da sua prisão de ventre e da sua morte próxima, acusou o marido, a criada de quarto e a senhora Claim, e pôs-se de novo a chorar. Louis lembrou que tinham de partir para La Baule às cinco horas, que era altura de se preparar, ajudou a patroa a apertar a cinta (que ela usava por causa duma ptose imaginária) resmungou porque a senhora perdia tempo, troçou abertamente dos seus males e falou da mulher dele, operada havia seis semanas, a qual lavava roupa para toda a vizinhança a fim de poder criar os três filhos. Por fim Valerie desceu, entoando uma romança, e Louis seguiu-a, encolhendo os ombros. Para tratar da sua gastrite bebeu um enorme copo de cacau e comeu meio pão de espécie e grande quantidade de doce de calda, que digeriu sem dificuldade. Às cinco horas partiram para La Baule, Géraudin no fundo do carro e a mulher à frente, ao pé do motorista, porque receava que os solavancos lhe fizessem mal ao estômago. Louis tinha por costume dar grande velocidade, coisa que Valerie apreciava. De tempos a tempos, Géraudin recebia uma das malas na cabeça ou nos joelhos e gritava:

- Pare, Louis!

- Não pare - dizia Valerie.

Louis hesitava um segundo e, obedecendo à senhora, continuava na corrida desenfreada. Géraudin, resmungando, empilhava as malas como podia e não se queixava mais até ao próximo solavanco. Pela janela, Kikt, o pequinense de Valerie, ladrava injúrias e desafios a todos os transeuntes de duas e quatro patas que ele descobria no horizonte.

Pelo menos uma vez por mês, o casal Géraudin fazia dessa maneira a viagem de Angers a La Baule, onde possuía ampla casa de campo, no meio dum pinhal de dez hectares. Aí é que a governanta inglesa Miss Dorothy, com a ajuda da criada e do jardineiro, tomava conta do filho dos Géraudin. A hereditariedade de Valerie não podia ser mais pesada. A mãe, heredo-alcoólica, descendente de burgueses ricos estragados por bom passadio, era uma doente mental e acabara os seus dias numa dessas casas de saúde que se parecem extraordinariamente com manicómios. A irmã, aleijada de nascença, trouxera a marca visível daquela tara congénita. Em Valerie só se notava instabilidade de carácter, mas o filho único, Henri, era idiota. Escondiam-no, criavam-no longe, em segredo, na propriedade de La Baule.

Chegaram já noite escura. Henri, no seu quarto, junto do fogão aceso, estava instalado na cadeira de rodas, a cujo espaldar fora ligado por uma correia sólida. Com a bata preta e o babeiro de rendas atado ao pescoço, o idiota, de cabeça à banda, batia as mãos franzinas e ria para qualquer coisa invisível. Sobressaía-lhe no rosto um bigode espesso, pois ia fazer vinte e quatro anos. Perto da janela, Miss Dorothy, vestida de azul e branco, fazia uma camisola de lã, e vigiava de longe o seu estranho pupilo. Havia já dez anos que se encontrava ao serviço dos Géraudin.

Valerie deu um beijo rápido ao filho, pôs-lhe no colo o pacote de brinquedos que lhe trouxera, e escapuliu-se. Preferia não o ver. Perante aquele ente mísero sentia às vezes, lá muito no fundo, piedade e ternura, uma agitação enorme do instinto maternal sufocado, o explodir súbito duma tendência ingénita que a horrorizava. Tinha a impressão confusa de que havia uma força, um poder capaz de a perturbar, de tudo transfigurar na sua vida, se deixasse crescer dentro de si a devoção e o amor pelo demente. Isso assustava-a, como nos assusta, muitas vezes, o que nos há-de salvar. Fugia, então, ia para o jardim ou para o quarto, procurava o esquecimento no casino, se estava aberto, ou em casa da sua vizinha Miss Jennison.

Foi o que ela fez uma vez mais, nessa noite, depois do jantar servido na sala de estilo rústico, toda fechada por causa do frio e onde se ouvia a brisa marítima assobiar lá fora, nos pinheiros. Géraudin, engolindo sem apetite o seu linguado com vinho branco, lia o Paris-Soir, mantendo o jornal apoiado na garrafa de borgonha. Valerie, essa, tinha Kiki no regaço e ia-lhe dando pedacinhos de peixe cuidadosamente escolhidos do meio dos filetes.

Logo a seguir ao café, Valerie chamou pelo motorista e, com o pequinense debaixo do braço, fez-se conduzir a casa das Jennisons. Miss Olivia Jennison, inglesa velha, morava na casa mais próxima, a um quilómetro de distância, com as duas irmãs Adelaide e Êmily. As quatro mulheres, jogadoras inveteradas, jogavam ao bridge até à meia-noite e depois ao poker até de madrugada.

Assim que Valerie partiu, Géraudin tornou ao quarto do filho. Henri, em frente do lume, atado à cadeira de rodas, balançava a cabeça e balbuciava palavras incoerentes, enquanto Miss Dorothy, que acabara de lhe dar um prato de flocos de aveia, colher por colher, lhe limpava a boca e o queixo. Géraudin informou-se da saúde do infeliz, examinou-o, preocupou-se com as digestões e sono dele. Obrigou-o a abrir os maxilares para observar as amígdalas, muito grandes, que seria preciso operar mais dia menos dia. Meteu-lhe chocolates na boca. O idiota soltava gritos convulsivos e fazia gestos desvairados com as duas mãos, entusiasmado com o cheiro das guloseimas e incapaz de as agarrar e as levar aos lábios.

Acalmou-se por fim e retomou o mesmo olhar espantado, de cabeça à banda, rindo para o vácuo, entregue sabe Deus a que tremendo devaneio, invadido talvez pelas reminiscências da sua vida uterina... Miss Dorothy saíra do quarto. Géraudin, sentado ao lado do filho, enxugava-lhe o queixo de tempos a tempos e pensava no outro, no filho da amante. Era também um rapaz. Devia ter agora vinte e sete anos. Por onde andaria? Géraudin lembrava-se de como o pequeno o beijava, à noite, quando o tratara da difteria. Parecia-lhe sentir ainda no rosto o roçar das mãozinhas, a acariciá-lo...

O idiota soltou um grito selvático. Géraudin estremeceu, regressou à realidade. Em volta de Henri os brinquedos inúteis juncavam o chão. Há vinte anos que Valerie trazia todos os meses uma centena de francos de brinquedos ao filho, que mal os segurava nos dedos uns segundos a cada um. Géraudin apanhou um coelho de rodas, um jogo de quadrados, uma corneta de celulóide, e embrulhou tudo rapidamente num jornal. O coelho serviria às mil maravilhas para um dos seus doentinhos, Charles : anemia perniciosa, três transfusões... O professor evocou o rosto pálido da criança, a vivacidade dos seus olhos pretos cheios de lucidez, de voluntariedade, talvez de ternura... Quando se envelhece, já não é possível pensar em certas coisas sem que isso nos cause tristeza.

Com o embrulho dos brinquedos, Géraudin saiu do quarto. Na escada ouvia-se mais forte o rumor do vento. Chegou ao vestíbulo e ergueu sem ruído a tampa da banqueta gótica que servia ao mesmo tempo de arca. Era esse o seu esconderijo habitual, e foi lá que guardou o seu furto. Dirigiu-se depois à casa-de-jantar, tirou do aparador a garrafa de borgonha e a caixa de charutos e pôs a funcionar o aparelho de T. S. F.

 

A primeira vez que encontrou o professor Doutreval na Faculdade, depois do funeral de Suraisne, Ludovic Vallorge foi-lhe apertar a mão e interrogá-lo acerca dos seus trabalhos.

O neurologista Jean Doutreval aperfeiçoava um processo da sua invenção para curar certa categoria de demência até aí considerada incurável e que se chama esquizofrenia. Vallorge mostrou-se deveras interessado com as explicações ouvidas. E Doutreval, muito contente, convidou-o a uma das próximas experiências.

- Procure-me no Manicómio de Saint-Clément, segunda-feira, por exemplo. Há-de ver algo de curioso.

Vallorge agradeceu, pediu notícias do filho de Doutreval, Michel, da filha Fabienne, e também de Mariette... E os dois médicos despediram-se encantados um com o outro.

Na segunda-feira seguinte, às quatro horas da tarde, Ludovic Vallorge atravessava de automóvel a aldeia de Saint-Clément-de-la-Place, quinze quilómetros ao norte de Angers, e penetrava no vasto pátio do hospital de alienados. Ao mesmo tempo, diante da entrada da secretaria, parava uma ambulância, da qual desceu um homem baixo e nutrido, de grandes óculos. Vallorge reconheceu Tillêry. A seguir, apeou-se Groix Gilvaz. Os dois ajudaram a tirar de dentro da ambulância um indivíduo corpulento, de nariz rubro, cujos punhos estavam atados. Com frequência, e em gestos violentos, levantava este à altura do rosto os punhos ligados e esmurrava com toda a força o nariz.

Vallorge aproximou-se.

- Boa tarde - disse ele. - Que é isso?

- Um louco -respondeu Groix.-Vem assim de Seine-et-Marne. Há-de ver!

Tirou o chapéu, sacudiu a cabeleira loira, e passou o lenço na cara larga e franca onde a cicatriz riscava um traço vertical.

- Porque é que o homem quer bater em si próprio?

- Sabe-se lá! É uma ideia fixa. Faz isto desde pequeno. Murros na penca!

- Se o visse na estação... - observou Tillêry. - E no comboio! Vínhamos na carruagem com duas senhoras de idade. Pois o tipo não se lembra de começar a urinar! «Enquanto for isto, vai menos mal», dizia eu comigo.

- Não havia perigo de outra coisa - acudiu Groix. Antes da partida, deram-lhe uma dose de bismuto.

- De bismuto?

- E das valentes! Os enfermeiros afirmaram-me que tem prisão de ventre para uma semana.

Tillêry respirou.

- Devias ter dito isso mais cedo! Vim toda a viagem debaixo dum susto!

- E em Paris? - inquiriu Vallorge.

- Êxito nunca visto! Mil pessoas em volta de nós, no cais da estação. Almoçámos ali perto, sempre rodeados de curiosos. O pobre diabo tinha um bocado de pão nas unhas, que eu lhe dera, mas não conseguia encontrar a boca e esborrachava-o no nariz, aos socos! Foi preciso alimentá-lo à mão. Enfim, chegámos, e isso é o principal. Vamos, Groix, levemo-lo para dentro. Vem daí, rapaz.

Arrastaram brandamente o louco. Vallorge entrou na secretaria, onde Doutreval se lhe juntou daí a pouco.

Este era homem alto, de tez biliosa. Vestia fato de corte impecável, onde avultava uma gravata carmesim. Coxeava levemente da perna esquerda, se bem que tratasse de o dissimular.

- Foi muito pontual - disse ele. -Venha comigo.

Saíram, contornaram o parque e atravessaram os pavilhões das mulheres, para encurtar caminho. Acolhiam-nos exclamações e clamores. Em extensas salas de duas filas de camas, as loucas, deitadas ou sentadas, e também de pé em cima do colchão, urravam, vociferavam, cantavam, brandiam o punho contra Vallorge, atiravam-lhe injúrias e ameaças. Outras, de boca escancarada, riam a bom rir, interminavelmente, explicavam a auditores invisíveis longas histórias divertidas que as faziam convulsionar-se de novo em gargalhadas, enquanto uma só, deitada, imóvel, de olhos vagos, estranha a tudo, prosseguia naquele inferno o seu sonho incoerente e sem fim. Tillery e Groix vieram ter com Doutreval à saída duma das enfermarias, e seguiram todos por um corredor para onde davam portas munidas de frestas gradeadas. Por uma dessas frestas, Vallorge, curioso, lançou uma olhadela breve. Havia ali uma centena de mulheres desgrenhadas, ferozes, rindo e chorando, a gesticularem e a interpelarem fantasmas. Quando perceberam o rosto de Vallorge, atiraram-se às grades, como feras. Uma velha de cabelos brancos, enrolados como serpentes, chegou a morder nos ferros. Vallorge, enfiado, recuou precipitadamente. Nessa ocasião Doutreval tirou uma chave e abriu a porta.

Atravessaram a sala de lês a lês. Doutreval, quando via as mais furiosas, ia direito a elas. Parecia um domador. Às vezes uma demente mais sonsa aproximava-se por trás dele. O psiquiatra voltava-se, encarando-a, e a mulher detinha-se logo, perplexa.

- Porcalhão! Porcalhão! - gritou de longe uma velha, dirigindo-se a Vallorge.

- Não estou doida! Hei-de me queixar - exclamou outra de cara rubicunda e olhos arregalados.

Doutreval afastou-a com gesto firme e tranquilo.

Atrás dos quatro médicos, uma rapariga de cabelos loiros e ar brando seguia Vallorge e suplicava-lhe, chorando de mansinho:

- Senhor doutor... Senhor doutor.

Foi necessário empurrá-la com violência para sair da sala, pela porta do fundo. Uma vez fora, Vallorge respirou.

- é preciso estar habituado ! - comentou ele. Doutreval sorriu.

- Ora! O único perigo é a negligência dum guarda.

- Sucede isso?

- Repare na cutilada de Groix.

Este, sorrindo, mostrou a cicatriz da face.

- Um golpe da garrafa que me era destinada - explicou Doutreval. - Groix interpôs-se e recebeu-a em meu lugar.

- E perdi oitenta por cento do meu sex-appeall - ajuntou o rapaz. - Desde esse tempo que só tiro retratos de perfil.

- Para esconder uma arma -prosseguiu Doutreval, dando uma palmada no ombro do seu assistente - os loucos têm mais esperteza que as pessoas normais. Houve um, o ano passado, que, durante seis meses, apanhou pedrinhas no pátio. Deixaram-no fazer o que queria, não vendo mal nisso. Pois bem, meu amigo, essas pedrinhas foi-as ele metendo numa peúga velha, com ideias de mais tarde me atirar com ela à cabeça. Lembra-se, Groix?

- Se me lembro, senhor doutor! Era um estranho pé de meia. Os economistas têm razão quando dizem que o excesso de economia é um perigo social...

- Aliás, cada ano, há alienistas assassinados pelos seus doentes. Ora! Temos de morrer de qualquer maneira! Trouxe o tal doido, Groix?

- Ainda há pouco.

- É um gatoso - disse Tillery.

- Vê-lo-emos de passagem... Isso deve interessá-lo, Vallorge.

Os gatosos ocupavam uma ampla enfermaria no rés-do-chão dum pavilhão isolado. Justamente ao lado do primeiro leito, dois guardas acabavam de vestir um fato de linhagem ao desventurado que Tillery e Groix haviam trazido. Sentado na cama, indiferente, o homem, já com as mãos amarradas, tentava de vez em quando o gesto habitual de esmurrar o nariz. Doutreval parou diante dele e observou-o um instante.

- Pai alcoólico - informou Tillery. - É o que está na ficha.

- Isso é evidente. Faça-lhe uma «wassermann», Groix. Mais adiante, um negro gigantesco, de pé junto do

leito, nu, inteiramente nu, magnífico espécimen da raça humana, belo como uma estátua de bronze polido, olhava em volta com ar aparvalhado, enquanto um enfermeiro o sacudia pelo ombro e puxava a colcha para os pés da cama. Sobre o lençol fumegava um monte de excrementos.

- Sífilis - murmurou Groix.

- Que soberbo garanhão! - exclamou Doutreval. Causa dó, não é verdade?

- Não há nada a fazer? - perguntou Vallorge.

- Nada. foi um arseno-resistente. E a malarioterapia não deu resultado. Irá até ao gatismo total. Como vê, já evacua na cama... Pobre inteligência humana! Quando a gente pensa que foi este o destino de Maupassant e de Nietzsche! Sim, de Nietzsche! Leram a última carta ainda lúcida que ele escreveu à mãe? «Mãe, mãe, estou louco!» Esse génio viu-se soçobrar! Grito pavoroso do homem que sabe ter perdido a razão!

- Donde veio este? -perguntou Vallorge, apontando para o hércules negro.

- Ninguém sabe. Um dos destroços da guerra. No entanto, ainda há alguém que se interessa por ele. Uma mulher. Sim, uma mulher que o amou. De tempos a tempos escreve a pedir notícias.

O negro fitava Vallorge com os seus grandes olhos sombrios, como se o houvesse compreendido.

Nas outras camas, seres inertes seguiam os médicos com o olhar, sem nunca se moverem. Num canto, um deles gemia lamentosamente, dirigindo-se ao guarda:

- Mama... mama...

Só lhe restava a lembrança da infância, a memória dum ente que o amara e criara, e que ele continuava a chamar. Outro, sentado perto da mesa, mergulhava numa bacia de água a ferver a mão carcomida por um panarício. Vallorge olhou para a chaga e reteve um vómito. Via-se o osso. Sereno, alheado e insensível, o homem banhava a mão como se aquilo lhe não doesse. Mais longe, uma cercadura de tábuas rodeava um leito, tornando-o numa espécie de jaula. E ao fundo dessa gaiola, atolado nas próprias dejecções, vegetava um monstro, figura pequenina e nua, de ventre enorme e membros esqueléticos deformados por inúmeras fracturas. Os pés aleijados estavam cobertos pelas peúgas. Agitava os braços e as pernas, soltando ao mesmo tempo um vago grito, como que um balido. A cabeça era minúscula. Nem testa, nem crânio: acabava nas sobrancelhas. Os olhos, horrivelmente afastados um do outro, eram como dois globos de faiança, duas bolas azuladas sem íris nem pupila. Exalava-se dessa caixa um cheiro a excrementos. Sobre o globo do olho pousara uma mosca que se alimentava daquele ente sem que houvesse sequer um fremir de pálpebras.

- É Paul Merchant -elucidou Tillery. -Sífilis e heredo -alcoolismo.

- Custa a crer que uma criatura destas tenha um nome - observou Vallorge.

Doutreval chamou um enfermeiro e ordenou que mudassem a roupa da cama.

- Não se pode fazer isto com muita frequência explicou ele a Vallorge. - Os ossos quebram-se como se fossem galhos secos. De tempos a tempos encontramo-lo com uma perna ou um braço partido, dobrado em ângulo recto. Consertamo-lo de qualquer maneira. Não sente nada. Só se interessa por uma coisa: masturbar-se continuamente... Ainda assim foi capaz de descobrir isso... sem dúvida por acaso... Saia por aqui. Cá estamos.

Entraram num pavilhão mais asseado e mais garrido, a cuja porta acorreu, para os receber, o assistente de Doutreval, Regnoult, bonito rapaz de cabelos castanhos ondulados, testa larga e olhos inteligentes.

- Está pronto?

- Está tudo pronto - respondeu Regnoult. Doutreval passou ao escritório exíguo e pegou num

lápis e num caderno de apontamentos.

- A experiência é curiosa - disse ele a Vallorge. É possível que já conheça os meus primeiros trabalhos neste assunto. Há anos que tento, seguindo na peugada dalguns sábios como Méduna, Sakel e Nyiro, a cura de certos casos de loucura classificados com nome de esquizofrenia... E porquê, justamente, estes casos? Porque a esquizofrenia é oposta, se assim se pode dizer, à epilepsia. Daí a ideia de provocar nesses doidos uma crise de epilepsia artificial para lhes restituir a razão. Daí também o nome de «convulsoterapia» dado ao nosso método.

- E como provocar o acesso artificial?

- Não faltam meios - retorquiu o mestre. Deteve-se um momento para tirar dum cabide uma

bata branca, que vestiu. E apresentou outra a Vallorge.

- Certos médicos - continuou ele - empregam em injecções uma solução de cânfora. Quanto a mim, depressa abandonei a cânfora para recorrer a produtos mais enérgicos. Actualmente, utilizo um derivado muito complexo do metileno, cuja síntese devemos a um químico alemão. Comecei os ensaios em coelhos, cães e gatos e obtive magníficas epilepsias artificiais.

Procurou num ficheiro e exibiu fotografias de gatos em convulsões e inteiriçados em espasmos formidáveis.

- Está a ver? Por fim afoitei-me a experimentar nos seres humanos. Vou na quadringentésima quinquagésima experiência.

- Com que resultados?

- Se não se tratasse de mim, dir-lhe-ia que são extraordinários. Verá pelas estatísticas. Em quatrocentos e cinquenta casos, tenho duzentas e sete melhoras. Ou seja 45% de resultados favoráveis. Para uma doença considerada até aqui incurável!

- É estupendo! - exclamou Vallorge. - E consegue realmente uma epilepsia experimental como pretende?

- Vai ver com os seus olhos. Venha daí.

Através do corredor, Vallorge seguiu Doutreval até a uma vasta sala onde só havia mesa e cama, esta ao centro e aquela ao canto, sobrepujada de frascos. Aí os esperavam Regnoult, Tillery, Groix e um enfermeiro, todos também de bata branca. Sobre a cama estava uma forma nua e magra, um homem de corpo macilento. Olhava para os circunstantes e não dizia nada. A respiração soerguia-lhe as costelas descarnadas e desenhava-lhe no ventre côncavo profundas covas. O púbis, naquela longa carcaça de pele marfilínea, fazia uma protuberância negra e peluda. Devia ser criatura de quarenta anos. Na cara, sombreada pela barba de vários dias, destacavam-se os olhos grandes e inquietos.

- Estão prontos? - indagou Doutreval.

- Prontos! - respondeu Regnoult.

Doutreval avançou para a mesa, pegou numa seringa e mergulhou-a na água que fervia no bico de gás. Em seguida destapou um frasco, meteu aí a agulha e puxou o êmbolo. A seringa ficou cheia. Doutreval aproximou-se então do leito. Em volta, os assistentes mantinham-se a postos.

- Subcutânea? - perguntou Vallorge.

- Não. Intravenosa. Uma injecção subcutânea exigiria dose triplicada. Fez a pinceladela, Regnoult?

- Como de costume.

- Que pinceladela? - inquiriu Vallorge.

- Mistura de álcool, iodo e óleo de rícino em todo o corpo. Depois, polvilhamo-lo com amido.

- E para quê?

- Para tornar aparente o mínimo traço de suor. Havendo transpiração em qualquer ponto do corpo, a pele fica imediatamente roxa. Simples reacção química.

- É engenhoso - comentou Vallorge.

- Foi ideia de Groix.

Doutreval agarrou no braço esquerdo do doente.

- Vamos a isto...

- Aqui, senhor doutor - disse Regnoult, indicando a marca feita com tintura de iodo. - Assinalei uma bela veia.

Com a mão direita, apertou um pouco o braço, fazendo salientar a veia. Doutreval tomou-a entre o polegar e o indicador e, obliquamente, enterrou a agulha, enfiando-a na veia, e carregou devagarinho no êmbolo. A seringa foi-se esvaziando a pouco e pouco. Curvados sobre a cama, os seis homens de bata esperavam, observando. Passaram-se alguns segundos. De repente, elevou-se a voz do homem, rouca:

- Isto cheira a alcatrão...

Respirou duas, três vezes. No rosto passou-lhe uma expressão de angústia, as pálpebras agitaram-se-lhe. A face contraiu-se numa careta. E, de súbito, soltou um berro.

- Sinto-me mal! Sinto-me mal!

Os olhos rolaram-lhe nas órbitas até se envesgarem. Numa contracção horrível, o corpo ficou em arco: o homem só tocava na cama com a cabeça e os calcanhares. Depois uma contracção inversa o abateu sobre o colchão, de pernas e braços dobrados e queixo esmagado de encontro ao peito, de tal modo que os dentes rangeram. Um tanto pálido, Vallorge recuou.

- Tome nota - disse Doutreval a Regnoult. - Assente o pormenor da observação.

Ele próprio rabiscava apontamentos na sua agenda, sem desviar a vista do paciente. Agora o homem, de boca escancarada, gritava, escumava, lançava em espasmos a língua de fora, como se fosse um jacto de carne sangrenta a brotar em sacões regulares do fundo da garganta. Das narinas escorria-lhe um líquido abundante e espesso. Os olhos, dilatados, pareciam saltar das órbitas. Quase sem intervalo, a boca fechou-se-lhe com um estalo e tornou a abrir-se tão violentamente que o maxilar se deslocou e ficou pendente sobre o peito. Devagar, o doente levantava os braços e as pernas. Os músculos não eram mais que bolas, os tendões dir-se-iam prestes a saltar, debaixo da pele. Os dedos das mãos e dos pés abriam-se e crispavam-se, toda aquela carne estremecia como sob a acção dum choque eléctrico. Angustiado, Vallorge observava os bicípites do homem, nós de carne contraídos, cada vez mais contraídos... E, de repente, ouviu-se um rangido, o estalo seco dum pau a partir-se, e a perna esquerda do paciente dobrou-se em ângulo recto. Os músculos da coxa, demasiado tensos, acabavam de fracturar o osso. Quase ao mesmo tempo o braço direito partia-se com o mesmo estalido dum galho que se quebra.

- Está no fim -disse Doutreval. -Repare. A pintura revela imediatamente a menor transpiração. Acabou-se. Os esfíncteres vão-se distendendo.

Por baixo do doente espalhava-se uma onda de urina e de excrementos. De súbito, brotou um jacto de líquido seminal.

- E nenhum sinal premonitório - comentou Doutreval na sua voz calma. - Tome nota disto, Regnoult. Guibrard pretendia o contrário. Reparem : está a chorar... Terminou tudo.

Um fluxo de lágrimas inundava o rosto manchado do infeliz. Prostrado agora, o homem encharcava-se em dejecções, suor e baba. O braço partido poisava sobre o peito tatuado de placas vinosas. E a coxa fracturada estava toda de lado, como a dum boneco de papelão. Agitavam ainda aquela carne profundos estremecimentos. O queixo deslocado ficara pendente, deixando a boca aberta, donde saía a língua roxa e ensanguentada. Os olhos rolavam-lhe lentamente, regularmente, da direita para a esquerda e da esquerda para a direita.

- Caiu em coma - explicou Groix.

- Se não respirar, faça-lhe a respiração artificial recomendou o alienista. - Tillery, a bobelina.

Tillery correu à mesa, a preparar qualquer coisa. Pouco a pouco, todavia, o doente regressava do coma. Respirou profundamente, duas ou três vezes, e circunvagou um olhar de espanto, amedrontado. Depois, com um grito de terror, esforçou-se por se levantar e fugir. Groix segurou-o pelos ombros, e o homem, sacudido por soluços dolorosos, pôs-se a vomitar. Entretanto Doutreval procurava obter alguns reflexos, fazendo-lhe cócegas na planta dos pés, martelando-lhe os joelhos. E, de tudo isto, tomava notas.

- Então? - perguntou Doutreval a Vallorge, ao acompanhá-lo ao automóvel. - Que lhe parece?

- É impressionante - replicou o outro, passando na cara pálida, de feições regulares, um pouco espessas, o lenço de cambraia.

- é terrível - confirmou Doutreval. - Mas, aqui, já nos vamos habituando.

- E o doente? Que recordação conserva?

- Medonha! É quase impossível convencê-lo a repetir a experiência, necessária quando o resultado não foi logo favorável.

- É um inconveniente...

- Sem dúvida. No entanto, as melhoras são, na maior parte, bastante pronunciadas. Digo-lhe mais: são indiscutíveis em quarenta e cinco por cento dos casos.

- E as fracturas?

- Evidentemente que significam um contratempo. Mas creio que o facto de curar um louco à custa duma perna ou dum braço quebrados não representa grande sacrifício.

- Com certeza. Aliás, uma fractura da perna ou do braço, uma luxação do queixo não são coisas muito graves.

- Ora já vê. E ainda assim só observei fracturas em três por cento dos casos. Uma vez houve fractura dupla do colo do fémur. É arreliante. Já pensei em provocar o coma hiperinsulínico, antes da crise, na esperança de que um corpo mergulhado de antemão em torpor sofresse menos violentamente a acção do medicamento. Até aqui não obtive resultado, mas trabalho nisso. Em todo o caso, até ao presente, a estatística é animadora, não acha?

- Se é! - corroborou Vallorge.

Doutreval levou-o através do manicómio, até ao carro. Pelo caminho, nos pátios, nos jardins, encontravam aqui e ali um doido que divagava, falava só, ou, mais ajuizadamente, se ocupava a cavar a terra e a jardinar por conta da administração. Muitos deles saudavam Doutreval e sorriam-lhe. O professor abordou um sujeito pequenino, de ar satisfeito.

- Olhe, Vallorge, aqui está o visionário Nénesse. Então, Nénesse? A respeito de vozes?

O homem ergueu o dedo :

- Falam! Falam!

- E a serpente?

Nénesse indicou o estômago.

-Continua cá. Há também aranhas, que me atravessam a cabeça, duma orelha à outra.

- Ah!

- Sim, senhor. Mas agora engulo-as. é melhor.

- Muito melhor - confirmou Doutreval.

Em seguida Nénesse referiu-se a Adão e Eva, à rebelião, ao céu. Explicou que toda a pessoa dele começava a diminuir, e quis exibir o seu membro viril.

- Não vale a pena -disse Doutreval.-E a tua mulher? -Ah, esquecia-me: recebi uma carta!

Mostrou um papel amarrotado. O professor leu em voz alta :

«Meu caro marido: a tua última carta fez-nos rir bastante, mas não compreendemos tudo. Por aqui vamos indo. O nosso Léon vai ter trabalho. Esperamos que continues a melhorar e que voltes para a nossa companhia este Inverno...»

O infeliz observava-os e sorria.

- É um sifilítico - elucidou Doutreval, afastando-se com Vallorge. - Daqui a um ano estará com os gatosos. Olhe, ali tem outro. Aquele que se aproxima, com uma condecoração...

Chegava, efectivamente, um velho bem posto, de fitinha na.botoeira.

- Senhor doutor!

- Como vai isso? - volveu Doutreval.

- Muito bem. Tão bem que não chego a perceber porque me obrigam a estar aqui.

- Mas recusa-se a comer...

- Isso é comigo. Que porcaria o senhor me obrigou a beber! Ainda me sinto enjoado.

Doutreval riu-se e explicou a Vallorge :

-Trinta gramas de óleo de rícino. Quando fazem greve

da fome, forço-os a ingerirem aquilo. É inofensivo e tira-lhes a vontade de recomeçarem a graça.

- Nunca mais tive notícias da minha filha - continuou o homem.

- Tive-as eu. Ela escreveu-me.

- Não soube de nada. Seja como for, uma coisa é certa. Não voltarei a vê-la.

Doutreval pegara já no braço de Vallorge e afastava-se do louco.

- Este homem tem uma filha? - inquiriu o visitante.

- Tem uma, casada. Não pôde conservá-lo junto de si porque às vezes dão fúrias ao homenzinho.

- E tornará a vê-la algum dia?

- Talvez. Quando estiver gatoso, quando não oferecer perigo, poderá ir para casa dela. Mas, nessa altura, não dará por nada. E a filha ainda o quererá então? Um velho a evacuar na cama, a babar-se, a... Em geral, os filhos não estão para aturar isso! Aqui, meu amigo, não é possível ter-se muita fé. É o reino da desesperança.

- Quantos internados estão cá?

- Três mil. E vai em aumento. O manicómio é pequeno, como todos os de França. Nem merece a pena citar números. Imagine apenas que, se a quantidade de loucos for crescendo, como é de supor, antes de dois séculos não haverá entre nós senão dementes! Qual a razão desta decadência da raça? É muito simples: álcool e sífilis, sendo muitas vezes o primeiro a causa indirecta da segunda. Quinhentas mil tabernas no nosso país! Nas nações vizinhas, bebem-se três a quatro litros de álcool por ano. Pois os franceses bebem quinze. Nós, alienistas, gastamos aqui os nossos esforços, damos às vezes a vida... e entretanto o Parlamento acaba de votar a abertura de mais vinte mil botequins novos! Caramba! O taberneiro é o grande eleitor... A França é uma tabernocracia...

Vallorge e Doutreval despediram-se, encantados um com o outro. Aquele ficara, além disso, convidado para casa do segundo, num dia da semana próxima.

Doutreval arrumou as suas notas, indicou aos internos e assistentes o trabalho para o dia seguinte, e, de automóvel, retomou o caminho de Angers. Deixou o carro na Praça de Armas e, a pé, dirigiu-se para a sede do Progrès Social, importante órgão regional onde a sua amiga Jeanne Chavot ocupava o lugar de secretária da redacção. Apesar de coxear um pouco, conseguia, com a sua figura alta e magra e o fato bem talhado, ser supremamente elegante, duma elegância um tanto rebuscada. As mulheres voltavam-se para o verem.

Casara-se novo, e há mais de quinze anos que era viúvo. Por causa dos filhos, recusara-se a contrair segundo matrimónio. Céptico, persuadido, no íntimo, da inutilidade de todas as coisas e ao mesmo tempo da necessidade de esconder do vulgo essa filosofia pessimista, ele era um desses homens para quem a própria honestidade constitui um absurdo e que passam a vida em relativa rectidão, à qual chamam fraqueza. A ambição de Doutreval seria sufocar em si a consciência, coisa que jamais conseguira inteiramente.

Desde a mocidade que fora a esperança dos professores, o menino bonito dos concursos. Prémio de ciências no concurso geral, interno laureado dos hospitais de Paris, encarregado dum serviço no de Saint-Louis, publicara sobre a malarioterapia uma tese que teve grande repercussão. Foi nessa altura que os seus interesses chocaram com os do filho de Lechesne, seu mestre. Este propunha-se arrumar o seu próprio filho, antes de Doutreval. Explicou o caso ao discípulo e ofereceu-lhe ir em missão científica à Alemanha. Lechesne punha e dispunha nos ministérios. De modo que Doutreval, já casado e pai de dois filhos, Mariette e Michel, partiu para a Alemanha, onde conheceu os químicos que mais tarde o haviam de ajudar bastante nas suas investigações. Quando voltou, o filho de Lechesne estava professor extraordinário. Dois anos depois chegou a sua vez, e dessa altura em diante Doutreval dedicou-se a trabalhos sobre terapêutica de choque, por então ainda confusos.

A guerra interrompeu-lhe as pesquisas, mas não lhe trouxe dissabor. A mulher, apesar de tão nova, tinha morrido, ao dar à luz o terceiro filho, Fabienne. A mobilização distraí-lo-ia do desgosto. Foi destacado para um grupo sanitário das primeiras linhas; recebeu no joelho um estilhaço de obus, que o deixou coxo, e acabou a guerra como médico militar no hospital de Val-de-Grâce. Terminadas as hostilidades, obteve na Faculdade de Medicina de Angers, sua cidade natal, a cadeira de neurologia, e recomeçou as investigações. Agora considerava que havia atingido os seus fins.

A filha mais velha, Mariette, pensava casá-la daí a dois ou três anos. Boa rapariga, essa Mariette: corajosa, prosaica, alegre e maternal. Um pouco estúpida, um pouco alheia à ciência, mas fiel e afeiçoada como um cão. Quanto a Michel, não se duvidasse que iria longe. Muito imprudente, muito dado aos prazeres: no entanto, deve-se descontar o que é próprio da juventude. E, como ele era prático, materialista, céptico, tamanha força juvenil, emancipada das velhas peias morais, preencheria sem dúvida aquela existência perfeita e doirada que Doutreval sonhara para si, sem se atrever a realizá-la. Que bom que é conhecer em moço, o que é a comédia da moral, saber que toda a arte consiste em salvar as aparências! Essa energia, Doutreval, incapaz de a adquirir em quantidade suficiente para si mesmo, procurava agora, discretamente, instilá-la no filho. Às vezes tinha a impressão de que Michel o compreendera, embora não o dissesse. E os próprios desatinos do rapaz, censurados em público, não deixavam de rejubilar o coração de Doutreval. O pai admirava em Michel certa crueldade, certo cinismo para com as mulheres, e a vida, e a moral oficial, tudo coisas de que ele não seria capaz. E dizia com satisfação não isenta de temor:

- Este irá mais longe do que eu.

Fabienne, a mais nova da família, constituía o supremo bem de Doutreval. Inteligente, orgulhosa, fazia com que o pai se revisse nela. Doutreval gostava de a ter junto de si, associava-a, apesar de tão moça, aos seus trabalhos. Imaginava-a já como colaboradora, apoio dos seus dias de velhice. Mais do que nos outros dois filhos, ele reconhecia-se em Fabienne.

O edifício do Progrès Social ocupava uma esquina da praça. Naquela tarde já avançada, corriam letras luminosas na frontaria da casa, imprimindo, uma espécie de jornal telegráfico que a multidão, ao passar, soletrava, detendo-se um instante.

«O contratorpedeiro Duguay-Trouin será lançado ao mar amanhã de manhã em Nantes. - Minha senhora, não se esqueça de que os sais K. aperfeiçoarão a sua linha. O doutor Olivier Guerran, deputado por Angers e ministro da Agricultura, recebeu uma delegação de viticultores da nossa região...»

Doutreval entrou no átrio do imenso edifício e passou entre os ociosos que liam as folhas ainda frescas afixadas na parede; por uma escada de serviço, subiu ao segundo andar, bateu a uma porta que tinha o dístico de Secretário, e entrou.

Jeanne Chavot, sozinha, perdida num canto da sala enorme cheia de livros e manuscritos, trabalhava numa prova de página. Ergueu a cabeça e a luz crua dos globos eléctricos iluminou-lhe o rosto pintado e fatigado.

- És tu? Como estás?

- Vai-se indo - volveu Doutreval, desembaraçando dum monte de papéis a poltrona onde se sentou.

Jeanne Chavot tinha trinta e nove anos. Havia cinco que Jean Doutreval a conhecera, e ficara satisfeito com esse encontro, pois aborrecia-se com certas aventuras sentimentais onde poderia, acaso, perder a liberdade. Por nenhum preço desejava tornar a casar-se, a fim de não impor madrasta aos filhos. Por outro lado, Jeanne Chavot, também viúva, e sem descendência, apreciava tanto ser independente que por nada deste mundo se sacrificaria a novo lar. Demais a mais, ser-lhe-ia difícil renunciar ao posto de importância que ocupava no jornal.

Conversaram um bom bocado. Jeanne Chavot acabava de receber a visita dum grande médico parisiense que lhe oferecia cinquenta mil francos para que ela deixasse passar um artigo acerca do método de rejuvenescimento pelo soro de boi. Aquilo levou-os a falar dos trabalhos de Doutreval, da publicidade médica, de certos quotidianos parisienses cujas acções estão em poder de consórcios farmacêuticos e que envenenam o espírito do público à custa de mentiras. Depois Doutreval voltou, como de costume, a descrever as suas pesquisas pessoais. As seis horas levaram a Jeanne Chavot uma refeição leve, chá, carnes frias e pão com manteiga, de que o visitante compartilhou. Este, por fim, levantou-se para se ir embora.

- Vais lá a casa esta noite? - indagou ela.

- Não. Tenho de trabalhar.

Beijou-a na testa. Jeanne acompanhou-o até ao patamar e voltou para o seu lugar à secretária, enquanto ele descia a escada em passo lesto, apesar do joelho quebrado e do estilhaço de obus que ficara alojado na rótula. Era aquilo, acima de tudo, que Doutreval vinha procurar junto da sua amiga Jeanne : uma auditora, uma pessoa a quem expor as suas ideias e sonhos.

Entrou em casa pelo laboratório, separado da residência pelo jardim e que dava para um beco. O laboratório estava iluminado. Groix e Regnoult, que tinham vindo do manicómio, trabalhavam nas «wassermannes. Doutreval saiu dali e atravessou o jardim às escuras, alumiado apenas pela claridade das janelas. Entrou então no escritório, onde encontrou Mariette, a primogénita, sentada numa cadeira com um galo velho seguro entre os joelhos.

- Que estás a fazer?

Mariette ergueu para ele o rosto corado e saudável, emoldurado de madeixas loiras.

- Estou a tratar do Tlti. Tem uma lasca de vidro na pata.

Tlti, os cães, as galinhas e os pombos eram os grandes amigos de Mariette.

- Fizeste-nos uma torta, aposto.

A rapariga olhou para os seus braços nus, roliços e bronzeados, onde havia ainda restos de massa aderida à penugem loira. Era ela quem governava a casa e tomava conta da cozinha.

- É verdade. Torta de maçãs! Vai tê-la ao jantar. Está no forno, sob a vigilância da criada.

- Óptimo!

- Guloso! E a si que o Michel sai! Titi Titi!ti Está quieto! Ajude-me, papá.

Tentava segurar a ave assustada, que adejava e lhe batia com as asas na cara. Doutreval agarrou no galo e estendeu à filha a pata ferida. Inclinada, Mariette observava o golpe minúsculo. Os cabelos roçavam pela face do pai e este sentia-lhe o leve cheiro da transpiração misturado ao suave perfume de alfazema, de que ela gostava de espalhar alguns ramos entre a roupa.

- Pronto! Obrigada, papá. Vamos, Titi, agora canta. Pegara no galo pelas patas e empoleirara-o no ombro.

A ave fixava com o olho redondo os dentes brancos da sua dona e, tentado, queria debicá-los. Mariette ria às gargalhadas. Doutreval contemplava a filha, fresca, roliça e forte, com os seus cabelos loiros e finos, molhados de suor junto à raiz, os seus dentes alvos e o seu belo riso tão puro. Dela se exalava, juntamente com o aroma singelo da alfazema, como que um perfume de saúde, de rectidão, um não sei quê’que fazia lembrar a natureza e o ar dos campos. Era uma flor campestre. À memória de Doutreval acudiram reminiscências do catecismo e da Bíblia :

«E os teus filhos serão como oliveiras novas à roda da tua casa. . .»

Sim, uma oliveira nova. Nem literata nem erudita. Muito diferente de Fabienne e de Michel. Nada de complicado nem de raro. Uma árvore nova, sólida, rústica e direita, bem plantada na terra.

Doutreval sentiu-se invadido por estranha comoção. Beijou a filha, o que fez com que Titi batesse as asas, assustado, e foi ter com Groix e Regnoult ao laboratório, enquanto Mariette ia à cozinha para cuidar da sua torta.

Na semana seguinte, Michel, num sábado à tarde, tornou a ir a pé até ao sanatório. Ao chegar ao pavilhão cumprimentou Madeleine Daele, que parecia fatigada de trabalho e desgostos. Havia uma semana que não via Seteuil: este fazia-se desejar, ameaçava-a com a ruptura, e tudo porque ela não pudera pagar a conta da garagem. Inquieta e desgostosa, Madeleine resolvera pedir à administração um adiantamento do ordenado. O seu maior terror era que Seteuil a abandonasse, que se fosse estabelecer como médico em qualquer parte e a deixasse ali com a reputação perdida e o coração dilacerado. Amava Seteuil como as mulheres sabem amar aquele que foi o seu primeiro namorado. E à medida que os meses passavam, que se aproximava a data em que Seteuil, depois de apresentar a tese, partiria de Angers a fim de se instalar algures, maior era a angústia de Madeleine Daele. Seteuil jamais falava em casamento.

Michel animou-a conforme pôde. Depois subiu até ao segundo andar e procurou o quarto 27, o quarto da pequena Èvelyne Goyens. Bateu à porta e entrou.

Ao princípio, viu-a de costas. Ela, porém, voltou a cabeça mal o sentiu e, logo à primeira vista, Michel achou-a mudada. Mais fresca, mais viva. Estava sentada na cama, muito asseada na sua grosseira vestimenta de xadrez azul e cinzento. Alegrava a tristeza desse fardamento de hospital, pesado e sombrio, uma gola de linho branco. Na abertura do decote pregara um raminho de lã, encarnado, azul e amarelo, seis fios dobrados em forma de pétalas e unidos uns aos outros, tal como os fazem, para vender, as doentes dos sanatórios. A tez pálida coloria-se imperceptivelmente: animara-a a chegada da visita, brilhavam-lhe os olhos pretos e grandes, um pouco bravios, de animal assustadiço, que tanto surpreendiam Michel. Como não possuísse ganchos nem travessas, reunira o cabelo ao alto, massa enorme e loira, abundante velo resplendente, formando um penteado gracioso e fora do vulgar, à moda de há quarenta anos. Aquela pesada cabeleira, transbordante e faustosa, amenizava mais, por contraste, a finura do rosto miúdo e diáfano onde brilhavam os olhos profundos, e acentuava a magreza do pescoço longo e grácil, da nuca alta, branca e frágil, nuca de adolescente, sombreada de leve penugem de oiro. Vista assim, na sua alvura e graça débil, e quase trémula, evocava qualquer coisa de imaterial, fugitivo e melancólico, como que um presságio de breve destruição.

Sorriu ao recém-vindo, com um sorriso acanhado, que tentou esconder com a mão, por ter vergonha dum dente partido, ao canto da boca. E esse leve constrangimento acentuou-lhe a expressão tímida e triste. Contudo, pressentia-se-lhe uma secreta efusão de felicidade.

- Sabia que era o senhor. -Sabia?

- Reconheci a sua voz, lá em baixo, na galeria.

- E foi isso que a fez corar?

Ela sorriu de novo, tacteou as maçãs do rosto.

- Imagine-se: ter uma visita! Ser visitada como toda a gente... Passei a noite inteira a dizer comigo: «Espero uma visita... Talvez tenha uma visita...» Antes, os dias eram ainda mais tristes para mim.

- É assim acontecimento tão importante, uma visita de um quarto de hora?

- Decerto, quando se tem estado só, durante meses!

- Não tem amigas?

- A princípio tive algumas, enquanto pude descer ao refeitório. Mas, quando foi preciso recolher à cama, e ficar aqui sem me levantar, elas amedrontaram-se. Além disso, tenho bacilos, o que assusta mais ainda. Há sempre o receio de piorar. Cada qual, aqui, pensa na sua pessoa. Compreende-se. Vieram para se curar, querem curar-se. No primeiro mês eu ia à missa, aos domingos. Isso acabou...

- Pois então está menos só, presentemente - disse Michel. - Tem visitas, amigos... Vejo até que se quis pôr mais bonita.

A rapariga levou a mão à gola branca, para onde ele apontara. E corou.

- Emprestaram-me isto... Foi uma vizinha, Simone, chegada há pouco. Está também sozinha, porque a acusam de se ter portado mal. Evitam-na. De maneira que só me tem a mim. Eu, por meu lado, não sei dizer dela senão bem. Prometeu-me vir jogar às damas no próximo domingo. Anda por aí livremente, mas sempre sozinha. Enquanto as outras passeiam, eu aqui estou, na cama... O que me vale é ela... Ah, senhor Doutreval, tanta coisa que me trouxe!

Da pasta, Michel, que voltara as costas à rapariga, começara a tirar embrulhos, que ia colocando sobre a mesa: um cacho de uvas pretas, chocolate, café moído, açúcar. Realmente, excedera-se. Vá lá quanto às uvas e ao chocolate. Mas o café! E logo meia libra dele: cinco francos e cinquenta. Ainda assim, Madeleine Daele proibira-o de trazer maior quantidade porque, segundo dizia, o café se altera com o ar. Michel sentia-se ridículo.

- Posso guardar isto no armário? -perguntou, sempre de costas voltadas.

- Não, não... Não vale a pena.

Ele, porém, abrira já o armàriozinho metido na parede. Ao ver as prateleiras vazias, onde só havia um pires com uma nica de manteiga a cheirar a ranço, compreendeu a razão daquela recusa. Ouviu a voz da rapariga a justificar-se :

- Não tive ninguém esta semana que me fizesse as compras... por isso não há aí quase nada. Costumo ter mais... muito mais...

- É claro - balbuciou ele. - É claro.

- Não devia fazer despesas por minha causa, continuou Êvelyne.

Michel aproximou-se dela.

- Não está contente?

- Oh!

- De vez em quando umas uvas, um pouco de chocolate...

- E café! - exclamou entusiasmada, esquecendo-se da peta que pregara. - Há tanto tempo que eu desejava! E calha bem a manteiga que uma vizinha me deu...

- Tem ranço.

- Pois tem. Por isso é que ela ma deu... As vezes uma ou outra manda-me coisas... E como me levanto um bocado durante o dia, eu própria poderei fazer o café. De começo, a criada polaca trazia-me uma xícara dele, ao meio dia, para eu molhar o pão. Depois a criada foi-se embora e a que veio era interesseira. Eu não tinha dinheiro para lhe dar. No fim, ela já não me cortava o pão nem me fazia a cama. (A gente é que tem obrigação de a fazer). O café da manhã punha-o no peitoril da janela. Eu é que devia levantar-me para ir buscar. Bebia metade de manhã e o resto ao meio-dia, frio, com pão. Enfraqueci muito nesse tempo... Já não comia nem dormia. Logo de manhã entra aqui o sol, e a claridade acordava-me. A gente aqui não tem direito a cortinas.

- E agora?

- Essa criada foi-se embora. Caiu dum eléctrico, numa noite em que vinha bêbeda. Expulsaram-na. A que veio substituí-la é meiga, embora também se embebede. Mas tenho a Simone. Ela é que me arranja as almofadas e me ajuda a levantar... Isso não lhe repugna, é por sua vontade...

- Que boa rapariga! - disse Michel.

Sentia-se tão indignado e comovido ao mesmo tempo que, quase sem pensar, soltou uma exclamação em que transparecia toda a sua necessidade de justiça e de que mais tarde se admirou, de tal forma foi espontânea e ingénua:

- Ela há-de ser recompensada.

- Sim, há-de ser - confirmou Évelyne em tom solene. Michel quis fazer o café. Seguiu as explicações da

doente, encheu, da torneira do lavatório, uma chávena de água quente, meteu o café dentro dum bocado de pano, que amarrou, e deixou macerar na água. Évelyne ria-; mas, ao levar a xícara à boca, diante dele, ficou atrapalhada, sem razão. Michel obrigou-a a molhar no líquido uma fatia de pão com manteiga. Via-se, no entanto, que •estava contrafeita por comer em presença do rapaz. E, como se envergonhava do dente partido, fazia, ao mastigar, um gesto com a mão para esconder o canto da boca, ao mesmo tempo que punha a cabeça à banda e a descaía, o que tudo acentuava a expressão tímida e o seu ar frágil. Ao despedir-se, Michel pediu-lhe o relógio, o seu reloginho de aço. Perguntou-lhe ela para quê.

- Para o mandar consertar. Não lhe agrada a ideia? A rapariga ruborizou-se, de surpresa e contentamento.

E não teve coragem de dizer que não.

Ao voltar à cidade, Michel, quando passava defronte do cemitério, descobriu atrás duma cruz de mármore o padre Vincent, que tentava desembaraçar-se, com pouco jeito, dos seus paramentos de altar. Admirado, firmou a vista e compreendeu de que se tratava. O padre Vincent acabara de fazer as encomendações sobre a vala comum e tratava de despir a sobrepeliz para regressar com a sotaina preta. Michel, contente por ter companheiro para o trajecto, entrou pelo meio das sepulturas e alcançou o sacerdote diante dum modesto monumento onde ele fora rezar uma oração breve. O padre persignou-se, dobrou a alva e guardou-a na pasta, juntamente com o hissope. Foi então que viu Michel, e sorriu-lhe. Era homem gordo, de aspecto bonachão e prosaico. Indicou-lhe a pedra funerária :

- Era uma doente do hospital. Dezassete anos... Uma santinha, pode crer. Venho visitá-la de tempos a tempos.

Voltaram ambos para a cidade. O padre Vincent, duas ou três vezes por semana, tinha assim os seus enterros de mortos do hospital, corpos de indigentes que iam num churrião e que desciam à terra uns atrás dos outros. Em certas ocasiões o capelão era o único acompanhante.

--Desgraçados! Infelizes ! Singular paróquia a minha!

- E consegue alguma coisa junto deles?

- Não - respondeu o padre. - Alivio-lhes a miséria moral, distraio-os, projecto fitas de animatógrafo com a minha maquineta. Levo-lhes fruta e tabaco. E pronto. Estão num estado em que já não são nem responsáveis nem livres. Resta-lhes apenas o medo de morrer e a esperança confusa de que alguma potência oculta lhes possa ainda dulcificar a dor. Mais nada. Nem há necessidade de serem admoestados. Quando os confesso, declaram-me: «Não tenho muito que dizer. Não fiz nada de mau...» E contudo, no hospital, as confissões são aterradoras. Perderam a noção do bem e do mal. Quando sofrem, praguejam, blasfemam, soltam uma exclamação, sempre a mesma: «Que fiz eu? Que fiz eu a Nosso Senhor?»

- E insiste, apesar de tudo?

- Não o faço por eles, nem por mim. O senhor agora até me parecia a minha criada.

- A sua criada?

- Sim. Ela diz-me quase todas as manhãs: «O meu reverendo esfalfa-se por causa deles, mas perde o seu tempo. São todos uns devassos!» Talvez a mulher tenha razão. Mas que quer! Não houve quem os iniciasse... Não vêem as coisas como nós. Nunca tiveram outra ideia senão a do pão. Para eles, uma cruz traçada sobre o pão é um grande acto religioso. Isso lhes basta. Talvez baste também a Deus. Para as mulheres perdidas, deitar-se com um homem já não é pecar, é trabalhar. Oiço-as no dispensário, ou na visita da quarta e da sexta-feira, quando se apresentam a exame para ver se apanharam sífilis. Dizem umas às outras: «Que tal vai isso?» «Não há trabalho agora...» «Rende pouco». «Com esta crise, a clientela é rara». Comentários de operárias, senhor Doutreval. E muitas delas ainda têm o hábito de se persignarem antes de realizar o acto... Acredite, que é verdade. Aquilo, para elas, representa trabalho. Não, isso não me revolta. A princípio, sim, indignava-me. Mas agora compreendo. No fundo é belo, é consolador, prova que, no coração, elas não pecam... Santificam aquela abominação como santificariam um trabalho qualquer. Se, no hospital, há criaturas que morrem como santos, em cada dez, sete são mulheres perdidas. Sim, senhor, é belo, é sempre belo! Soubéssemos todos nós ter fé na humanidade, sempre e apesar de tudo! Pensemos um pouco em todo o bem que se fez e que não se teria feito, há dois mil anos para cá, se Jesus Cristo não houvesse tido fé no homem. Não podemos julgar esses desgraçados, nós! Deus os julgará. Por mim, quando os confesso e dou a absolvição, digo sempre: «Perdoo os teus pecados, na medida em que pecaste, em que te conheceste culpado...

- Em suma - replicou Michel - acredita ainda que os homens são susceptíveis de aperfeiçoamento?

- Acredito.

- Apesar do espectáculo que todos os dias tem diante dos olhos! Apesar da vida!

- Sim - retorquiu o padre. - Se não acreditasse, só sentiria horror pelos meus semelhantes.

- Enquanto que assim...?

- Enquanto que assim os amo, como uma aquisição possível.

Michel meneou a cabeça.

- Não concordo consigo, meu reverendo. Não creio no aperfeiçoamento do homem. Que diferença existe em nós, depois do homem pré-histórico?

A voz do padre Vincent tornou-se grave de súbito.

- Senhor Doutreval, se diz adeus à esperança do aperfeiçoamento humano, diga também adeus à vida. Nesse caso, não há mais nada neste mundo. Mais nada senão lutar e gozar antes de morrer. Acaba-se o dever, a consciência, a moral, a civilização. Se o homem deixa de crer que pode salvar os seus irmãos, está perdido. Morrer ou salvar.

- Morrer ou salvar... - repetiu Michel.

- Sim; é uma frase de Giovanni Papini que me agrada bastante. É a frase-mestra da vida, senhor Doutreval. Um dia a compreenderá.

Chegavam à cidade. Ao passarem à porta dum fotógrafo, o padre Vincent parou, desculpou-se e entrou no estabelecimento. Devia ali uma importância graúda, que não conseguia liquidar: letras que tinha aceitado ao adquirir a sua máquina de projecção. Esta máquina de amador era há dois anos, para o bondoso sacerdote, o seu constante pesadelo. Mas sabia que a passagem das fitas, à noite, nas enfermarias, constituía a principal alegria dos doentes do hospital. De modo que não se decidia a privá-los desse gosto, apesar da fadiga que para ele representava tal obrigação quotidiana e da má vontade das religiosas, a quem perturbava o serviço com toda aquela tralha. Ficou uns minutos na loja a dar explicações ao credor. Depois saiu e retomou, com Michel, o caminho da Égalité.

- O hospital - dizia ele, enquanto andava - faz bem a todos, apesar de tudo. Obriga-os a reflectir. É muito importante. Por uma vez na vida têm tempo de meditar. Sabe uma coisa, senhor Doutreval? Hoje em dia já ninguém medita. Escasseia o tempo. Há demasiadas distracções, muito trabalho, infinitas solicitações exteriores. Lá dentro, pelo contrário, é possível pensar-se. As vezes chego a apreciar os resultados disso. Alguns pedem-me que os confesse, na véspera duma operação. Há ligações clandestinas que se tornam legais...

Tirou da algibeira da sotaina um canhenho de capa preta e continuou:

- Cá está a minha contabilidade... Este ano celebrei no hospital doze baptizados, ministrei doze comunhões. A adultos, já se sabe. E casamentos! Sem falar na história daquela mulher que devia ter alta daí a dois dias e que me procurou para dizer que vivia há seis anos com um homem e que queria casar. Perguntei-lhe: «Por que esperou tanto tempo?» E ela respondeu-me: «Porque ele não quis comungar e eu queria casar-me na igreja. Fui educada nesses princípios...» Apresentava isto como uma desculpa. Expliquei-lhe o meu processo. Disse-lhe: «O seu homem não tem mais nada a fazer senão vir ao confessionário e recusar-se à confissão. Basta que se apresente lá. Eu, por mim, nada posso revelar: segredo profissional. A verdade é que os casei no mês seguinte.

- É singular - observou Michel.

- De facto, é. A mulher encontrava-se internada para sofrer uma raspagem. Sabe o que isto significa, não? No hospital, todas as raspagens querem dizer abortos. A princípio eu era parvo, não entendia. Perguntava o mesmo a todas as mulheres, para mostrar interesse: «E que é que tem então? Que doença é?» Elas coravam, constrangidas. Eu também, porque percebi, enfim. Mas já era tarde. Actualmente não lhes pergunto nada.

Deixou Michel uns cem metros antes da Égalité, defronte do quiosque de jornais. De tempos a tempos, com grande escândalo das religiosas, comprava um exemplar do Populaire a fim de o oferecer a um canceroso velho que só tinha agora essa alegria na terra. Ao entrar no hospital, fez um desvio e foi à capela rezar o terço, durante meia hora, para ter a certeza de que, ao chegar aos seus aposentos, já não encontrava lá a criada que o servia. Tinha-lhe ela comprado, na véspera, um quilo de maçãs reinetas, que escondera no aparador. O padre descobrira-as e levara-as aos seus doentes. De maneira que preferia não a encontrar.

Michel levou o relógio de Évelyne a um relojoeiro. Foi buscá-lo três dias depois, consertado, limpo, com o seu tiquetaque alegre de serzinho vivo. Durante o resto da semana, andou sempre com ele. E, sem razão, sentia-se feliz quando por acaso lhe tocava com os dedos, no bolso do colete.

 

Michel tornou-se frequentador do sanatório. Duas, três vezes por semana, sempre que dispunha de tempo, corria a visitar Évelyne. Aí passava as mais belas horas da sua vida.

Beaujoin, vice-presidente da Câmara Municipal de Maineburgo e provedor dos hospitais, era bastante orgulhoso do seu sanatório, que mostrava a todos os visitantes, sublinhando o modernismo cubista do enorme edifício, a hygiene dos oleados lustrosos, as paredes pintadas de tinta branca, o conforto dos elevadores, a sumptuosidade da sala de operações. O visitante, maravilhado, passava dum compartimento para outro com a impressão de desfilar num palácio encantado. No entanto, os infelizes doentes, se pudessem falar, com que desesperadas vozes não reclamariam a sua casa, o seu lar, a sua baiúca sórdida e familiar, insalubre e agradável, que podia ser melhorada, saneada, reconstruída, mas que jamais a caridade oficial conseguiria substituir pelas casernas públicas.

As mulheres, acolá, sofriam menos que os homens. Cosiam, faziam malha, bonecas de lã, molduras, e tudo isso lhes proporcionava um pouco de dinheiro. Os quartos delas eram os mais limpos. Distraíam-se a arrumá-los e a cozinhar. Mas os homens, com raras excepções, não se interessavam pelo asseio nem pela confecção de bugigangas. Mais egoístas, menos resignados, menos acostumados ao sofrimento, acusavam o universo inteiro, queixavam-se de tudo. Assistiam desiludidos ao desenrolar do que, nos comícios eleitorais, lhes haviam apresentado como um éden, como a sociedade futura ideal: o colectivismo, a assistência do Estado, o hospital e asilo para todos. Tinham aplaudido, de longe, e agora admiravam-se de estar ali reunidos, militarizados, tratados como números duma série. E compreendiam que em medicina, como em todos os sectores, nada valia o humilde lar da família.

Sufocava toda a gente um tédio esmagador naquela mansão de ócio, de silêncio, de repouso obrigatório e perpétuo. De tempos a tempos um velho fonógrafo, presente de qualquer senhora caridosa, arranhava discos antiquados. Livros e revistas não havia nenhuns. Quando muito, alguns jornais e fascículos de romances populares, que circulavam às escondidas. Liam-nos à noite, ocultamente, na cama, e à passagem da enfermeira metiam-nos debaixo dos lençóis. Fumavam nas retretes, onde havia intermináveis sessões em comum : esvaziar os intestinos era uma das maiores distracções diárias. E tinham ainda o recurso das cartas. Jogavam forte e conseguiam sempre arranjar dinheiro para isso. Não eram raros os lucros ou perdas de trezentos francos, dinheiro que desaparecia à aproximação das enfermeiras. Enfim, as corridas de cavalos faziam grandes devastações nas galerias masculinas. Um tal Trigault, que tinha cavernas e estava condenado, era quem recebia as apostas. Os seus fundos em caixa passavam de vinte e cinco mil francos. De manhã, à hora dos jornais, ninguém fosse importunar os doentes, absortos na leitura dos prognósticos e resultados da corrida. Madeleine Daele, em resposta às suas perguntas, só obtinha uma palavra proferida num grunhido, quando passava entre as cadeiras em que eles repousavam.

- Laxante...

- Poção...

- Injecção...

Estavam em demasia interessados com a vitória do Gladiator ou do Cornichon IV, filho de Rosalina e de Sirocco, para se preocuparem com o estado dos seus intestinos e pulmões.

As mulheres, sobretudo as novas, preferiam o «jogo do correspondente». Publicavam anúncios em qualquer desses semanários que se mantêm graças às subvenções dos fabricantes de produtos de beleza e que envenenam a juventude feminina de França, incutindo-lhe o amor exclusivo do carmim, da ondulação permanente, do cinema e dos namoricos; em resposta, recebiam dez, vinte, trinta cartas de candidatos amorosos. A escolha já era entretenimento para vários dias. Umas queriam pretendentes distantes, receando as visitas. Outras, pelo contrário, procuravam galanteador que lhes proporcionasse visitas, presentes e até saídas. é agradável deixar por uns dias a monotonia do hospital; só há o inconveniente de regressar com uma lesão mais ou menos agravada. A missa era também variante para algumas. Iam à capela umas vinte mulheres, com a sua gola branca e florinhas de lã. À falta de chapéu, levavam boinas de malha, feitas por elas próprias. Riam ao passar diante dos homens estirados nas cadeiras, os quais lhes piscavam o olho e faziam apreciações em voz alta. Julgar-nos-íamos à porta duma fábrica, de manhã, quando as operárias entram, sob o olhar dos homens.

E no entanto, atrás de toda aquela frivolidade, existia, na maior parte dos doentes, uma angústia secreta, a saudade do marido, da mulher, dos filhos, a preocupação do dinheiro, o receio da miséria que ameaçava os entes queridos, a lembrança do lar abandonado para onde seria preciso voltar em breve, fosse como fosse... Eis porque, depois de alguns meses, cansados de esperar por uma cura que não se definia, os invadia surda revolta contra os médicos, contra os enfermeiros, contra todo o sanatório, esse meio estranho que chegavam a acusar de os fazer ainda mais doentes. E acabavam por querer ir-se embora, voltar à vida, à sua vida doutros tempos.

- No fim de contas, eu não estava tão mal como isso! Há poucos meses ainda trabalhava. Aqui dentro é que adoeço a valer!

Quando se anunciavam leves melhoras, consideravam-se curados : já não davam ouvidos a mais ninguém, nem a Ribières, nem à enfermeira Daele, nem aos internos.

- Isto está óptimo! Terei cuidado comigo,-não se preocupem. Evitarei o excesso de trabalho. Adeus.

Iam-se embora, retomavam as antigas ocupações, e voltavam ao sanatório seis meses depois, para morrer. Tão dolorosa era ali a existência que, em noventa por cento dos casos, os doentes recusariam tratar-se e fugiriam à série de suplícios se não tivessem a seu cargo a família. Mas por causa da mulher, sobretudo dos filhos, aceitavam o tratamento e seguiam-no com ânsia, com fúria. Agarravam-se à vida, sujeitavam-se a pouco e pouco à cadeia de martírios, até à tortura cirúrgica, a princípio repelida com horror. Logo de início, alimentação forçada, repouso total, silêncio, isolamento, vida de prisão celular. Depois vinham as primeiras intervenções: limpeza dos brônquios, insuflação de ar’ entre o pulmão e o seu invólucro para comprimir os alvéolos e os pôr em descanso. De quinze em quinze dias lá tinham novamente de «meter gás», deixando penetrar entre as costelas uma agulha comprida. Nem sempre era aquilo muito simples, quando o pulmão se unia por aderências à pleura : era preciso cortá-las, destruí-las por meio dum bisturi eléctrico. Melhoras nenhumas. Portanto, supe1 ralimentação. Mas o estômago revoltava-se e seguia-se diminuição de peso. Discretamente, o médico começava a falar duma «fréni». Coisa de nada, cortar apenas o nervo que comanda o diafragma para que este, liberto, se eleve e comprima o pulmão. Hesitavam, acabavam por concordar. Instilação de álcool no nervo frénico, para o poderem destruir. Alguns meses de espera e depois recaída. Superalimentação desesperada, gastrite, icterícia. Era altura de o médico falar duma «toraco». A toracoplastia consiste em cortar determinado número de costelas, ou seja suprimir a caixa torácica no sítio das cavernas para que o pulmão abata e aquelas, de qualquer maneira, fechem e cicatrizem. O doente recusava. Intervinham então os companheiros:

- Olha, daqui a oito dias fazem-me isso também.

- E a mim já mo fizeram. Tiraram-me metro e meio de costelas.

Gracejavam, rindo com ar de bravata, e mostravam o ombro derribado ou o torso demolido, como um vigamento deitado abaixo à machadada. Os outros resignavam-se e aceitavam. Pois se os camaradas haviam suportado o mesmo! Toracoplastia. Ao mesmo tempo, último esforço de superalimentação desenfreada, e, também, em noventa por cento, recaída. Era a derrocada final. Depois disso, no cúmulo do desânimo, sentiam que já nada havia a fazer. Deixavam de comer, de ingerir drogas, abandonavam-se, esperando pela morte. Quinze dias antes do fim, o médico falava da casa, dos filhos, e sugeria em voz branda:

- Talvez uns dias de licença lhe fizessem bem... Hem? Que diz a uma visita à família, por uma semana?

Oh, doçura de rever o lar, de tornar à querida toca onde se viveu e sofreu!... O moribundo não resistia à tentação. A ambulância levava-o a casa, para ele ali morrer, e a sua morte não aumentava a estatística dos decessos no sanatório.

Imperava o furor da alimentação, tanto nos médicos como nos doentes. Aqueles prescreviam carne crua de cavalo nos intervalos das refeições; estes faziam do quarto uma cozinha. Cada internado escondia, debaixo da cama ou no armário, uma lâmpada de álcool, conservas, café, açúcar, azeite e vinagre, E preparavam refeições suplementares, mandando comprar bifes, latas de sopa e litros de aguardente pela enfermeira de vela. Esta criatura embriagava-se e obtinham dela tudo quanto desejassem a troco dum copo de aguardente. Também os amigos lhes traziam o «abastecimento», às ocultas. Em vão a enfermeira Daele vasculhava, nos dias de visita, os sacos e pastas de quem ia entrando. De qualquer maneira lá conseguiam passar os fornecimentos para restabelecer os queridos doentes : carnes frias, boiões de suco de carne, coisas que eles, num gesto rápido, metiam debaixo da roupa. Às vezes, às seis horas da manhã, os quartos recendiam a bifes. Por cima dos muros do pátio fazia-se extraordinário tráfico de garrafas de vinho de mesa, que os amigos devota iam encher à taberna da esquina e as quais voltavam ao ponto de partida, por engenhosos sistemas de cordéis.

Em muitos dos compartimentos os doentes eram sete ou oito. Incitavam-se mutuamente à superalimentação e repartiam tudo entre si. Dir-se-ia uma competição para ver quem comeria mais, quem engoliria mais ovos, quem mais aumentaria de peso. Não se contentando com as doses brutais de carne fornecidas pelo sanatório, compravam picado de cavalo e ingeriam-no com pão. E como o estômago se revoltava perante esse alimento inumano, disfarçavam o repugnante cheiro a carne crua, salpicando-a de açúcar ou estendendo sobre ela uma camada de doce. Por isso se apresentavam, na pesagem semanal, inchados, assoprados, ofegantes, obesos! Dez quilos em mês e meio! Que triunfo! Mas, em seguida, lá se iam os dez quilos, com uma indigestão formidável. Recomeçavam, duplicavam a ’quantidade de comida para recuperarem o tempo perdido. Desta vez surgia a icterícia. Recuo dalgumas semanas. Recomeçavam de novo, obstinados e enfurecidos. Havia de acabar por engordar essa maldita máquina humana que teimava em ficar descarnada! Intervinham então as drogas, suscitando tremendas revoltas gástricas, e em seguida as injecções de cacodilato e de óleo de fígados de bacalhau. Três semanas deste regímen e, desta feita, uma hemorragia ou uma pleuresia os tornava definitivamente magros. Nada funcionava já : o estômago, os intestinos e o fígado negavam-se a qualquer novo esforço. A superalimentação levara a cabo a sua obra devastadora. Renunciavam a ela, abandonavam-se ao emagrecimento progressivo, recusavam-se a ir à pesagem. Os próprios médicos, perspicazes, deixavam de falar nisso. Acabara-se tudo, não havia mais nada a tentar. Seguia-se lento declínio; depois, em frequentes casos, a morte. E novos doentes afluíam ao sanatório, os quais, sem ver, sem compreender, principiavam a mesma luta, o mesmo esforço que os arrastaria, dentro de cinco ou seis anos, ao mesmo fim. Havia fotografias de grupo, fotografias tiradas três ou quatro anos antes. Os veteranos mostravam-nas aos recém-vindos, enumeravam os já defuntos. Era trágico, em tão pouco tempo! Comentavam: «Foram bastantes, hem?> Mas falavam sem pensar que igual destino esperava bom número dos que estavam vivos. E nem os doentes, nem sobretudo a maioria dos médicos, discerniam nessa hecatombe o papel devastador da superalimentação. O dever do escritor seria calar-se neste assunto, respeitar, como os médicos, a inconsciência feliz daqueles que sofrem, senão houvesse um remédio, uma possibilidade de salvação em outros métodos. A luta pela verdade é a mais elevada forma de piedade para com esses infelizes. Aliás, a ideia da morte não os afligia. Recalcavam-na o mais que era possível. Mas era ela que, no subconsciente, animava esses moribundos dum delírio supremo de gozo, sobreexcitado ainda pela alimentação incendiária e pela promiscuidade das camaratas.

Quando chegava uma mulher de vida fácil, uma tolerada, punham-na à parte, isolavam-na num quarto para que ela não contaminasse moralmente as outras. Deixavam, porém, misturadas pequenas de catorze anos com mulheres casadas, que se divertiam a corrompê-las, explicando-lhes como se entretinham com os respectivos maridos e como agiam para não terem filhos. Às vezes faziam visita nocturna às recém-chegadas, indo juntar-se com elas na cama. «Aqui, em oito dias, abrem-se os olhos; ficamos a saber o que é a vida», diziam as próprias doentes. Como se a vida fosse aquilo! Na secção dos homens circulavam jornais pornográficos, comprados em comum por meio de quotas semanais. E, de vez em quando, Madeleine Daele surpreendia pares de internados metidos na retrete.

De tempos a tempos havia um ou outro que, sem se conter mais, saltava o muro e fugia. Uma das vizinhas de Évelyne fora-se embora daquela maneira; como tinha feito toracoplastia, os sete dias em que andou na pândega produziram-lhe abertura completa do corte, que nunca mais fechou, embora regressasse ao sanatório. Ao que parece, criara-se-lhe pus no pulmão, e disso morreu. Outra voltou grávida depois de fuga semelhante, o que lhe causou também a morte. Outra ainda, por meio de anúncios, arranjou pretendente. Marcaram entrevistas e ela escapuliu-se : três meses mais tarde encontraram-na caída numa estrada e gelada de frio. Apesar de tudo, subsistia ali a febre de gozar, de gozar com furor a vida que se lhes escapava. Moral nenhuma, nenhuma crença, nada a que se agarrarem. O padre Vincent mal se atrevia a falar-lhes. Limitava-se a perguntar:

- Que tal vai isso? Melhor? Mais animado?

Não queriam saber de mais nada. Sobretudo, que não aludissem à morte! Esta ideia afastavam-na tanto quanto podiam, iludindo-se a si mesmos. Iam vivendo. Mas apesar disso, na hora derradeira, alguns sentiam-se de repente dominados por um medo atroz, não queriam morrer, e debatiam-se, blasfemavam, clamando o seu terror de desaparecer deste mundo. Ouviam-nos gritar, nos quartos mais próximos, e escutavam-nos transidos de susto. Por esse motivo é que a administração conservava a antiga vigilante, embora ela se embriagasse todas as noites. Só essa mulher, graças talvez ao álcool, consentia em ficar ali até ao fim, junto desses agonizantes que bradavam de pavor. Ah, miséria duma humanidade a quem não foi concedido mais nenhum ideal, nem esperança, nem luz, senão a existência terrena - e que bruscamente percebe estar à beira de perder aquela mesma existência!

Ao lado de Évelyne alojava-se uma histérica, de nome Clara. Toda a gente se assustava com as suas crises. Não era raro que a simples presença de um homem lhe provocasse um ataque; rebolava-se no chão, esgarçava o fato, mordia, praguejava, babava-se, dizia obscenidades e acabava por se sujar e ficar rígida. As companheiras é que tinham de a leyantar e de lhe mudar a roupa. Afora essas crises, era boa rapariga, amável e dedicada. Havia também uma velha que tinha um cancro no recto. À mesa, no refeitório, espalhava-se de súbito um cheiro nauseabundo. Todos se retiravam à pressa, já ninguém tinha vontade de jantar. Outra urinava no banco enquanto estava a comer e expectorava sem rebuço no escarrador de vidro azul que conservava sempre junto de si. Constituíam grande distracção para muitos doentes os manejos audaciosos duma tal Julia, rapariga gorda, que recebia o noivo no jardim, à hora das visitas. Viam-nos de longe, aos dois, instalados num banco mais discreto, quase sentados em cima um do outro. Madeleine Rieux era outra que, todas as semanas, passava uns momentos na companhia do marido, sujeito crapuloso e inquietante. Ficavam no quarto, e os seus amores, ou antes, as suas disputas domésticas, ressoavam por todo o sanatório.

Maria, também vizinha de Évelyne, tinha vinte anos. O pai visitava-a ao domingo. Gostava bastante da filha e manteve-se-lhe fiel até ao fim, coisa que nem todos fazem. Era casado em segundas núpcias, mas a madrasta da rapariga nunca a procurou, por causa de antigas zangas familiares. Foi num sábado, à noite, que Maria morreu, perfeitamente lúcida. O pai assistiu-lhe aos últimos momentos. Nessa altura estavam também ali Germaine Saulvez, rapariguinha de quinze anos, mais a mãe e outra irmã. Três pessoas da mesma família! Entretanto, no asilo, havia três pequenos Saulvez à espera que a mãe se curasse ou morresse.

Dois quartos adiante encontrava-se Zélie Chabry. O marido, igualmente tísico, estava em tratamento no pavilhão C. Quanto ao filho, pequeno de onze anos, fora para o sanatório de Berck-Plage. Só ao domingo é que Chabry podia ver a mulher; nesse dia barbeava-se a preceito, vestia o melhor fato e ia beijar a sua Zélie. Não tardou, porém, que lhes faltasse dinheiro para pagar a mensalidade do filho. Então Chabry interrompeu a cura e retomou o trabalho. Como piorasse a olhos vistos, a mulher saiu por sua vez do sanatório a fim de ir tratar o marido; e de tal modo o fez que morreu três meses antes dele. No entanto, fora o homem que a contagiara. Tinha, porém, uma tuberculose fibrosa, e esses resistem muito tempo. Do filho nunca mais se soube nada.

Quem ocupou o quarto de Zélie foi uma rapariga grávida. Certa manhã acometeram-na as dores do parto e foi levada para o pavilhão da maternidade. Deu à luz o filho, voltou ao pavilhão C e morreu três dias depois. Também ninguém soube que fim levou a criança.

É muito demorada, esta doença. Acaba por esgotar a paciência dos próprios membros da família. Eram às centenas os abandonados. O marido duma dessas desgraçadas só se lembrava dela quando estava bêbado. Aparecia a cambalear, chorava como um vitelo e só regressava ao sanatório daí a três meses. Outros compareciam apenas para falar de separação, de divórcio.

- Compreendes... Sou novo. Isto não é vida para um homem. Se quisesses, podíamos chegar a acordo...

Havia também os que receavam o contágio e não queriam que a mulher voltasse a casa; e os que não apareciam mais, esquecendo de vez a companheira ou o filho. No terceiro quarto aquém do de Évelyne estava há seis meses uma rapariga, internada logo oito dias após o casamento, sem mais tornar a ver o marido. Outra fora abandonada grávida pelo amante e parecia irrevogàvelmente condenada.

- Oxalá que eu morra depressa! - dizia ela. - Oxalá morra antes de a criança nascer.

No andar reservado aos homens achava-se um rapazinho que já passava ali três anos sem ver a mãe.

Era total a infelicidade desses mortos-vivos. A administração não lhes fornecia roupa. Não tinham um soldo, nem uma camisa, nem um lenço, e às vezes nem sequer um botão ou uma agulha: a mais absoluta privação!

Como o andar dos homens estava repleto, viram-se obrigados a alojar na secção das mulheres um rapaz de vinte e oito anos, Edmond Jacquet. Isso não tinha importância, pois Jacquet nunca abandonava o leito. A sua maior desgraça era possuir vinte mil francos na Caixa Económica. A mulher e a mãe discutiam quem devia herdar esse dinheiro. A última teria cedido se aquela não enganasse o marido : assim, toda a família incitava a mãe a não largar mão do negócio. No meio dessa atmosfera o doente acabou por desconfiar que era atraiçoado. Inquietava-se, queria ir-se embora, interrogava os camaradas, fazia cenas à mulher... Esta, no entanto, sossegava-o, e ele voltava-se contra a mãe. E ora uma ora outra se aproveitava dos momentos favoráveis para lhe falar (discretamente, é claro) dessa caderneta da Caixa Económica e do testamento que Edmond devia fazer.

O caso é que se finou certa manhã, depois duma agonia solitária e dolorosa, com a consolação de não saber ao certo que fora traído. A enfermeira Daele assistiu-lhe aos derradeiros instantes. O sangue obstruíra-lhe os pulmões e a garganta. Morreu sufocado.

Nunca se soube quem vencera no espírito dele, se a mãe, se a mulher, nem se chegou a fazer testamento. Era um caso interessante de tuberculose sem bacilos. Inocularam a expectoração a uma cobaia, que viveu muito tempo depois da morte do rapaz.

Falemos agora de Simone, a tal mulher de vida fácil, que devido ao seu isolamento se aproximara de Évelyne. Mantinham-na afastada. As doentes, na sua maioria operárias, por meio de perguntas insidiosas tinham descoberto a verdade a seu respeito, sabido que «trabalhara» em casa de Triboux, e por isso a tratavam agora com desprezo. No refeitório, onde costumavam ficar meia hora depois das refeições, formavam-se grupinhos. Conversavam, jogavam, discutiam, e Simone via-se sozinha entre esses grupos hostis que a rechaçavam. Chegava a sentir-se feliz quando tinha febre, porque isso a dispensava de comparecer no refeitório.

Só tinha por amiga Évelyne Goyens, condenada à mesma solidão.

Também Simone não dispunha de dinheiro, embora já houvesse possuído muito. Chegara à região com cinco mil francos, mas gastara tudo estupidamente, em presentes às amigas e a tnadame Maria, mulher do poderoso Triboux. Quando deixara o clube para entrar no hospital já não lhe restava uma só moeda. Madame Maria tinha habilidade para explorar tanto as suas empregadas como os seus clientes. Agora, a distância, é que Simone começava a dar fé disso. Percebia-se nela um vago cansaço de toda aquela vida. De vez em quando falava em ir-se embora, em voltar para a sua terra. A mãe, que tinha um lugar de hortaliça em Lê Mans, julgava a filha empregada num hotel. Simone pregara-lhe essa mentira. Mas a mãe era pobre. Regressar seria impor-lhe pesada carga.

Madame Maria vinha de tempos a tempos visitar Simone no seu automóvel ou no dum cliente. Chegava às vezes acompanhada de Triboux e de duas ou três raparigas muito pintadas, estas radiantes por exibirem vestidos pomposíssimos de seda natural, sapatos e malas de crocodilo, jóias, raposas... A clientela de Triboux era rica. Perante tamanho luxo, as doentes ficavam boquiabertas de espanto. Mas aquelas damas não traziam nada a Simone; pelo contrário, surripiavam as moldurinhas guarnecidas de fitas que ela fazia para vender. E, se por acaso o senhor Triboux apetecia uma boneca de lã, das grandes, e se se dispunha a puxar pela carteira, madame Maria intervinha logo :

-- Com certeza não lhe vais pagar isso, pois não?

Ainda por cima, trazia ela a Simone peças para bordar, camisas, combinações, toda a espécie de roupa interior. Madame Maria gostava de vestir coisas bonitas, e Simone bordava tão bem...

Fora Beaujoin, dono dum botequim e provedor do hospital, quem conseguira o internamento de Simone no pavilhão C, apesar do regulamento. Beaujoin não só era cliente de Triboux como lhe estava ligado por fortes laços eleitorais. Uma vez por outra visitava Simone, acompanhado da mulher, a quem apresentara a rapariga como sendo uma protegida sua, uma infeliz que lhe inspirava compaixão. A senhora Beaujoin interessava-se por Simone da mesma forma que madame Maria: porque a doente lhe bordava adereços. E Simone, sabendo que só a influência do comerciante-político a mantinha no pavilhão - ela, que devia estar nas salas destinadas às prostitutas! - afadigava-se a bordar roupa branca de princesa para as nádegas rotundas daquela criatura.

Era bondosa, a pobre rapariga. Despejava os baldes de Évelyne, emprestava-lhe lenços e fazia-lhe a cama, sem se importar com o contágio, os micróbios e tudo mais que formava uma espécie de vácuo em volta de Évelyne. Naquele ente perdido ficara o suficiente com que realizar prodígios de abnegação, de sacrifício, verdadeiras maravilhas - se alguém o quisesse compreender. Mas à Simone faltava vontade. Percebia-se que ela, aos baldões na vida, passara dum homem a outro homem, dum amor a outro amor, sempre dócil, sempre servil. Ao primeiro que a obrigara a «trabalhar», obedecera sem grande resistência, passiva, sem a ideia duma possível revolta, até contente e ufana do dinheiro que lhe dava, dos prazeres que permitia ao homem amado, do holocausto que lhe oferecia. .. Pessoa feita para ser explorada, isso ela bem o sentia. Como fora sempre assim, achava que tinha de continuar; e ficava submissa, incapaz duma rebelião. A distância, madame Maria tiranizava-a ainda. Em cada visita que fazia, rebuscava o armário de Simone, as gavetas, a mala de mão. Até lia as cartas que eram endereçadas à rapariga! Foi deste modo que encontrou um dia a da mãe de Simone, expedida de Lê Mans, o que lhe provocou uma explosão de furor. Rasgou-a diante da destinatária, e exclamou :

- Proíbo-te que lhe escrevas. Se precisas de qualquer coisa, a mim é que deves pedir. A tua mãe sou eu!

Havia no clube um criado polaco que tinha grande simpatia por Simone. Visitou-a uma vez e, comovendo-se com aquela miséria, foi num pulo à rua comprar-lhe uma quarta de café e um quilo de açúcar com as suas escassas economias. Na quinta-feira seguinte, madame Maria descobriu os restos dos mantimentos, tomou aquilo como uma afronta, e o polaco não voltou ao hospital.

Simone finou-se uma noite, sem sofrimento. Esperara ver a mãe, porém a madame Maria, que não largava a sua vítima e talvez receasse complicações, arranjou as coisas de modo a expedirem o telegrama tarde demais. A mãe chegou quando a filha já estava morta e, no escritório do hospital, soube com espanto qual o verdadeiro ofício desta. Do espanto passou à indignação - tão grande que regressou logo a Le Mans sem querer ver a defunta nem assistir ao funeral. Apesar de tudo, o enterro de Simone foi concorrido, com madame Maria e todo o pessoal da casa, num cortejo de cores variegadas que os doentes viram desfilar das janelas. Na véspera, madame Maria fora à morgue, acompanhada de Beaujoin e da enfermeira Daele, para tirar à morta o anel e o bracelete:

- Isto pertence-me - declarou, justificando a acção. Emprestei-lhe só para o trabalho.

Em cem doentes, afirmava Madeleine Daele, oitenta perdiam o ânimo, iam-se embora, tornavam-se sabe Deus o quê. Durante uns meses, ainda os mais perseverantes voltavam ao sanatório para renovar o pneumotórax. Depois deixavam-se disso. Desapareciam. Dos vinte que ficavam, dez morriam e dez saíam curados, nem sempre por muito tempo. E tudo isso custava caro. No pavilhão C cada cama importava em duzentos mil francos. Ser-nos-ia fácil citar numerosos autores que denunciam esta impotência, este malogro na luta actual contra a tuberculose - prova de que os meios utilizados não são bons.

Fora acto criminoso proclamar alto e bom som tamanhas crueldades, destruir a esperança na alma de tantos infelizes, se não houvera para eles outro remédio além da mentira, que é a suprema caridade. Mas existe uma verdade médica, cujo conhecimento trará a salvação aos que sofrem. A missão do escritor é, antes de tudo, servir essa realidade, apressar o seu advento.

 

Apresentado por Doutreval, Ludovic Vallorge tornara-se familiar da casa. Ao professor, falava do coma hiperinsulínico e da terapêutica de choque ; à Mariette levava flores e discos para o gramofone. Doutreval, para quem, até aí, Vallorge não era mais que um dos muitos candidatos entrevistos nos corredores do hospital e da Faculdade, começava agora a mudar de opinião. No fundo, devia saber que a assiduidade e a súbita curiosidade científica de Vallorge pelos seus trabalhos tinham um móbil bem definido. Mas o certo é que, embora descortinemos a lisonja, esta não deixa de nos ser agradável. O nosso orgulho adorna voluntariamente de grandes qualidades a pessoa que nos concede a sua admiração. E Doutreval principiava, de boa fé, a conceder pública estima a Ludovic Vallorge.

Este fez o pedido de casamento no fim do ano. Doutreval, pelo que lhe respeitava, disse que sim. Mariette hesitou uns dias. Ludovic não lhe desagradava. Tentava-a, em especial, a ideia de casar. Via-se já mãe de família, com um rancho de crianças à sua volta. Mas atemorizava-a o facto de deixar o pai, Michel, Fabienne. Considerava-se indispensável. Era ela quem governava, quem dava ordens às criadas, elaborava as ementas, vigiava o asseio da roupa, fiscalizava o consumo do gás e do carvão. Em suma, substituía em tudo a mãe. Doutreval chamava-lhe muitas vezes a «mamã Mariette». Tinha feitio de dona de casa, previdente, meticulosa. Criava galinhas e pombas com os restos da comida, fazia doce com a fruta que lhe mandava Heubel ou Géraudin, arranjava abafos de malha para o pai e o irmão. E, com isto, alegre, sempre a rir e a cantar, dando à velha residência um tanto soturna a claridade da sua alegria vibrante. Doutreval adorava-a. Michel também. Que seria deles, se ela os abandonasse? É verdade que havia Fabienne, mas esta era muito nova, não possuía o instinto doméstico, interessava-se mais pelos trabalhos de laboratório do pai do que pela confecção de molhos e saladas. Mariette, essa apenas se lembrava do laboratório quando necessitava do frigorífico para as suas pastas de fígado. Afligia-a a possibilidade de entregar nas mãos das criadas o leme do governo caseiro. Imaginava já fabulosas contas de gás e buracos nas peúgas de Michel.

Tudo se harmonizou, afinal de contas. Por essa época apareceu o anúncio de arrendamento duma óptima casa, paredes meias com a dos Doutreval. Vallorge e o professor apressaram-se a ir vê-la e a falar ao senhorio. A moradia tinha os cómodos desejados, além de garagem e jardim. Vallorge habitava já no sítio, de modo que não perderia a clientela. Fixaram, então, a data do casamento. E decidiram abrir uma porta no muro do jardim, o que permitiria a Mariette passar duma casa a outra.

Nessa manhã Doutreval esperava Groix no laboratório. Estava-se no começo de Abril, e o sol inundava o jardim. Na capoeira, Mariette dava de comer às galinhas e pombas. Pela janela aberta do laboratório, Doutreval distinguia, entre as folhas ainda tenras das plantas, o vestido da filha, branco de pintinhas azuis. Isso alegrou-o, sem ele saber porquê. O dia seria bom.

Em dezoito doentes tratados úítimamente pela sua terapêutica de choque, doze apresentavam melhoras evidentes; dois até haviam retomado o trabalho, se bem que leve, o que era um resultado imprevisto. O único inconveniente consistia nas convulsões atrozes, com as fracturas às vezes sérias que daí provinham. Mas Groix acabava de ter uma ideia genial. Lera em Claude Bernard a análise magistral que este escrevera sobre os efeitos do curare, estranho veneno índio, com que os indígenas da América do Sul impregnam a ponta das frechas e que tem a propriedade de bloquear as funções neuro-musculares, ou seja de paralisar inteiramente o organismo. Groix, para combater as convulsões aterradoras dos doentes injectados por Doutreval e impedir assim as fracturas dos ossos dos membros, pensara em empregar o curare. Cinco minutos antes de ser administrado o produto convulsivo, propunha ele injectar uma dose reduzida do veneno. Os ensaios, feitos em gatos, foram concludentes. Nessa manhã Doutreval tencionava realizar uma experiência num demente de quinze anos, e impacientava-se como uma criança. Para ele nada valia tanto como as comoções duma descoberta. Ecoaram passos no corredor. Era Groix que chegava. Doutreval pegou na bengala e na pasta, e desceu.

- Vamos lá.

- Regnoult não vem? - perguntou Groix.

- Está no hospital. Tomamo-lo de caminho.

Groix subiu para o carro. Doutreval instalou-se ao volante e partiram na direcção da Égalité.

Regnoult dera de manhã as aulas de Doutreval e estava, nesse momento, no serviço hospitalar daquele. Quando o mestre ia a passo lesto, apesar do defeito na perna, pelo corredor longo e sonoro da Égalité, em busca do seu assistente, ouviu que alguém o chamava. Parou logo. Era o provedor Beaujoin.

- Como vai, senhor Beaujoin?

- Bem, obrigado. Desejava dizer-lhe uma palavrinha...

-Já?

- Está com pressa?

- Alguma...

- Trata-se do seu filho.

- Ah!

Doutreval assustou-se um pouco.

- Diga o que é.

- Sabe que ele vai com frequência ao sanatório, nestes últimos tempos?

- Ao sanatório?

- Sim, lá acima, na encosta.

- Fazer o quê?

- É isso que todos perguntam. Já se murmura...

- Ah! - repetiu Doutreval, que ainda não percebera muito bem.

- Parece que se trata duma pequena que o impressionou...

- Não acredito.

- Dizem que sim. Leva-lhe café, manteiga... Beaujoin ria. O outro riu também, durante uns segundos.

- Contaram-lhe isso?

- Eu próprio vi, por dez vezes.

- Dez?

- Para não dizer mais!

- E quem é essa pequena?

- Uma doente.

- Doente?

- E bastante. Fiz as minhas indagações. A história afigura-se-me perigosa. É arriscado, pois não? Eu não sou médico, mas parece-me...

- Agradeço-lhe, senhor Beaujoin. -Julguei prestar um serviço...

- Fez muito bem. Vou tratar de pôr fim a essa criancice.

Retomara o seu ar de grande senhor, e sorria.

- Rapazes! Rapazes! E mais uma vez muito obrigado. Esta gente nova não vê o que faz. Nós é que já não temos vinte anos, senhor Beaujoin.

- A quem o diz! - suspirou o provedor.

- Quando se reúne a comissão dos hospitais?

- Na próxima segunda-feira.

- Tenho um pedido a fazer-lhe, de material para o meu serviço... Falaremos nisso com mais vagar. Desculpe, mas estão à minha espera. Até breve.

Apertou a mão a Beaujoin e embrenhou-se nos corredores empestados de cheiro a ácido fénico. Caminhava em passo ligeiro, esforçando-se por coxear o menos possível, assobiando, rodopiando a bengala e retribuindo com gesto desenvolto e familiar os cumprimentos dos internos. Levava, porém, no coração, uma flecha envenenada. Havia algum tempo que notava grande mudança no filho. Michel já não saía à noite; deixara de ser pródigo para se tornar económico; abandonara os cigarros caros pelos mais baratos; fumava muito menos; já não comprava revistas de oito ou dez francos; trabalhava mais e recolhia ao quarto logo em seguida ao jantar. Num desses dias, no decurso duma conversa à mesa, Mariette exclamara com espanto:

- O quê? Pois tu, Michel, sabes o preço da manteiga e do café!

Nessa ocasião, Doutreval não dera importância àquele conhecimento tão recente como inexplicável. Agora, porém, parecia-lhe deveras alarmante.

Regnoult estava pronto. Mal viu o mestre, correu ao seu encontro e acompanhou-o. Meteram-se então no carro. Durante todo o percurso até Saint-Clément, Doutreval não abriu a boca.

- Ele tem qualquer coisa que o preocupa - segredou Groix a Regnoult, lá no fundo do automóvel.

O pavilhão das crianças ocupava a parte de trás do hospital de Saint-Clément. No meio dos pequenos que brincavam, Doutreval, a pé, seguido dos seus dois auxiliares, passou com o seu ar distinto, elegante no fato de corte inglês de quadrados largos, cor de café com leite, apoiando-se à bengala de castão de ouro com um gesto tão natural que a sua claudicação mal se notava. Com sorriso amigável respondeu às saudações atenciosas das vigilantes e enfermeiras. As crianças corriam para ele, para Regnoult e especialmente para Groix, a quem estimavam muito.

- Senhor doutor! Senhor doutor!

E Doutreval, prosseguindo, abriu caminho entre a barafunda confrangedora desses pequeninos monstros: humanidade falhada, mal feita, disforme, incompleta, de crianças quase sem crânio, ou sem queixo, ou que eram apenas tronco e cabeça, tristes garotos medonhos, feios, ramelosos, cheios de erupções, de pústulas, que destilavam do nariz, dos olhos, das orelhas, do coiro cabeludo; anões e colossos, frágeis inocentes de membros esqueléticos, outros já vigorosos, bestiais, de queixos formidáveis, palmas espessas como mangos, destinadas sem dúvida a assassinar, futuros criminosos designados de antemão, cujo olhar triste seguia as pessoas, sem compreender. Os maiores, os mais espertos, encaminhavam os mais estúpidos, ocupavam-se deles, protegiam-nos, adoptavam-nos. Em volta dos três médicos estrugiram gritos, apelos indistintos, uivos, manifestações de alegria dos desgraçados que revêem os que lhes querem bem. E até os que jamais seriam capazes de falar grunhiam, gaguejavam, mugiam sons de ternura confusa e bárbara. Viam-se mâozinhas erguidas para os recém-vindos, a tocar-lhes, a acariciá-los, a apalpá-los como o fariam tentáculos, Regnoult, nervoso, reprimiu a comoção, susteve um movimento de repugnância. Esse espectáculo dava-lhe sempre uma impressão de pesadelo. Mas Groix adorava todos esses petizes, até os mais horrorosos, até os que exibiam cabeça de escafandro, de peixe ou de insecto descomunal; até os viciosos, esses e essas que se «coçavam»... Chamava-os de parte, ao passar, cheirava-lhes as mãos para descobrir os odores suspeitos, fitava-os como quem quer hipnotizar.

- Tens tido juízo?

- Tenho, senhor doutor.

- E continuarás a ter?

- Sim, senhor doutor.

- Está bem. Vai brincar. Toma um pau de chocolate. Gira!

Havia rapariguitas a quem fora necessário amarrar os punhos para evitar que se esgotassem. Mas algumas, depois de assim manietadas, excitavam-se com o calcanhar. No fundo dessas almas abandonadas fervilhavam todos os vícios hereditários, fazendo-as regressar à animalidade primitiva, retrocedendo na escala da evolução. As pequenas, mais sonsas, mais libertinas, dominadas já pelos ímpetos da puberdade, gostavam de disfarçar; ruborizavam-se e assumiam ares afectados. Os rapazes mostravam violências inquietantes na forma como brincavam. Alguns, solitários, choravam pelos cantos, inconsoláveis, inadaptados para sempre. Certo pequeno, encaracolado como um São João, de olhos azuis, franzino, gentil, quase bonito, arriscou-se a aproximar-se de Groix, pegou-lhe na mão, pediu baixinho:

- Senhor doutor, deixe-me voltar para a mamã... Quando é que posso ir?

Ah, as mamãs! muitas vezes elas os tinham desamparado, a esses pobres monstrozinhos a quem deram o ser e que lhes causavam repugnância. Havia casais de alcoólicos que todos os anos, regularmente, inevitavelmente, conduziam ao hospital mais uma criança idiota, mais uma prova da sua degenerescência - para recomeçarem no ano seguinte.

Aliás, o abandono era aí a norma. Os esquecidos da família contavam-se às dúzias. Quantos, entre os loucos internados em Saint-Clément, morriam sem ter revisto um rosto querido, a face da mãe, da mulher, do filho, que flutuava como um estranho fantasma na sua pobre memória obscurecida e despertava neles às vezes um resto de consciência, uma lágrima de lucidez desesperada? Os parentes pouco se interessavam por eles. De tempos a tempos Doutreval recebia uma carta deste teor, o que era para causar admiração :

«Senhor doutor, gostaria de ter notícias de meu pai (ou de meu marido)...»

A carta seguinte vinha muito mais espaçada. E depois cinco, dez anos de silêncio. O doido acabava por se finar, a secretaria comunicava o facto à família e Doutreval tinha então uma resposta breve :

«Senhor doutor, rogo-lhe mande enterrar meu pai no cemitério do manicómio, por causa da despesa...»

Nem sequer uma visita ao morto. O padre Vincent acompanhava sozinho o cadáver à vala comum.

Na enfermaria aguardavam Doutreval, que se propusera fazer a experiência do curare num pequeno dos seus quinze anos. O paciente, nu, esperava na cama. Regnoult deu-lhe uma injecção do veneno dos índios na veia do braço. Doutreval, de papel na mão, tomava nota das reacções : depressão muscular, contracção do rosto, envesgamento dos olhos e logo paralisia progressiva dos membros. Nesse instante o professor fez sinal e Regnoult injectou o produto convulsivo.

A crise foi imediata, como de costume, mas infinitamente menos violenta. Certo hebetismo, devido talvez ao curare, impediu a habitual expressão de angústia e de pavor que se verificava no rosto dos doentes. Algumas convulsões brutais fizeram ranger a espinha dorsal e crisparam os membros, mas sem nenhuma fractura aparente. Minutos depois de terminarem as convulsões, o rapazito voltou a si, sem testemunhar esse terror, esse desejo de fugir que era de regra até aí. Queixou-se apenas de grande fadiga e de violenta dor nas costas. Doutreval, exteriormente calmo, exultava lá no íntimo.

- Creio que o problema está resolvido - disse ele. Deu uma pancadinha no braço nu do doente.

- Vamos restituir-te a consciência, meu pobre diabo! No fundo, é uma dádiva pouco apetecível, não é? Se tivesses voto na matéria talvez nos pedisses que te deixássemos entregue à tua sorte...

- Oh! - exclamou Regnoult.

- Não é desta opinião, Regnoult? Dá assim tanto valor à consciência?

- É claro que dou...

-Talvez não tenha razão. Chego às vezes a pensar que a consciência, a noção do eu, é apenas um acidente infeliz.

- Infeliz? - repetiu Groix.

- Imagine uma formiga, Groix. Ela vive, trabalha, sofre. Suponha que, de repente, por milagre, lhe concedemos a noção de si própria, a consciência. Fica a saber que existe, que é formiga, apercebe-se sem demora do seu terrível destino, que é trabalhar durante uma ou duas estações e desaparecer. Acha que lhe deu uma prenda inestimável? E não sendo o homem senão uma formiga de memória desenvolvida, capaz de se examinar nas diversas circunstâncias da existência, acha singular que eu hesite às vezes, que sinta uma espécie de... de remorso, no momento de restituir ao meu semelhante essa lucidez, essa consciência?

- O senhor doutor está pessimista - observou Groix. Doutreval sorriu.

- A inteligência implica certa melancolia, já o disse alguém. Mas vamos ao que interessa. Dê-me as suas fichas, Regnoult. Conto consigo, Groix, para vigiar este pequeno e fornecer-me notas pormenorizadas. Amanhã de manhã passarei por aqui.

Guardou as fichas na pasta. Em seguida, acompanhado de Regnoult, saiu do pavilhão das crianças e meteu-se no automóvel. Groix ficou no manicómio para observar as consequências do tratamento no doente. Era essa, aliás, a sua semana de serviço em Saint-Clément, obrigação que ele cumpria sem se queixar. Esse galhofeiro incorrigível, esse rapaz sempre fiel à velha praxe das partidas irreverentes dos estudantes, tinha amizade aos seus loucos. Por eles, não hesitava em esvaziar a bolsa e ver-se em apuros no fim do mês. E como a maioria era constituída por infelizes abandonados, acontecia que, para lhes poder levar fruta, chocolates ou brinquedos, se via obrigado a aparecer inopinadamente na Taberna do Rei Renato, onde havia camaradas ocupados a jogar à manilha ou ao poker para ver quem pagava o aperitivo, e, com um gesto, arrebatar o dinheiro das apostas ou o troco que o criado vinha entregar.

- Para os meus pobres - dizia ele.

Metia tudo no bolso e ia-se embora muito calmo, enquanto os outros vociferavam injúrias.

Satisfeito, passava a mão pela nuca, empurrava o chapéu para os olhos com a maior desenvoltura e afastava-se dali assobiando.

Nessa noite, depois do jantar, Doutreval, como de costume, foi a pé até ao Progrès Social. Eram os seus momentos de folga, de exercício salutar depois das exaustivas horas de aulas, de hospital e de laboratório. Caminhava lestamente, direito, com ar juvenil, apoiando-se na bengala, do lado da perna lesada, com perfeito à-vontade, e apertando entre os dentes brancos a ponta da boquilha de âmbar. à sua passagem um ou outro estudante reconhecia-o e cumprimentava-o. Algumas mulheres fitavam-no, e ele, desdenhando-as embora, experimentava íntima satisfação. O rosto comprido um tanto pálido, a testa direita marcada entre as sobrancelhas por duas rugas verticais e graves de labor intelectual, as fontes já grisalhas, contrastando com a face quase lisa, constituíam-lhe uma beleza severa de que ele não deixava de ter consciência. Apesar do frio intenso, achava delicioso passear assim, sem contenção de espírito. Revia em pensamento o manicómio, as crianças, o doente, a experiência feita nesse dia. E respirava mais amplamente, o coração enchia-se-lhe de esperança, e apressava o passo sem dar por isso. No segundo plano havia uma sombra desagradável, a lembrança de Beaujoin e de Michel.

Jeanne Chavot estava, como todas as noites, ocupada a rever provas para o jornal do dia seguinte, no seu vasto escritório do primeiro andar do Progrès Social. Doutreval falou do curare, dos seus ensaios nos gatos e da feliz experiência tentada nessa manhã, pela primeira vez, num ser humano.

- Foi assim que pensámos em utilizar o curare...- dizia ele a Jeanne Chavot.

Não confessou que a ideia partira de Groix. Também não aludiu a Michel. Sem que soubesse porquê, ser-lhe-ia extremamente humilhante e desagradável contar o que Beaujoin lhe revelara nesse dia.

No dia seguinte, à hora do almoço, toda a família Doutreval se encontrou reunida na casa de jantar, de móveis antigos e um tanto sombria, que comunicava com o salão. Doutreval esperou que Fabienne se levantasse da mesa para voltar às aulas, e só então, na presença de Mariette, disse a Michel:

- Vais esta tarde à Faculdade?

- Vou, sim, senhor.

- Nesse caso, irás depois ao laboratório. Preciso de falar contigo.

Michel não respondeu. Parecia mais contrariado que surpreendido. Mas pelo modo como Mariette olhou, inquieta, para o irmão e para o pai, este percebeu que também ela adivinhara qualquer coisa e já a sua ternura maternal se alarmava.

Tillery, estabelecido como médico havia dois meses num bairro populoso da cidade, foi nessa noite ao laboratório de Doutreval a fim de pedir uma análise a Groix. Regnoult e Groix, os dois assistentes de Doutreval, concediam a este todo o seu tempo. Contavam com o mestre e o mestre com eles. Trabalhavam para ele, dirigiam-lhe o serviço, encarregavam-se das tarefas materiais. Em troca, Doutreval fá-los-ia professores, dar-lhes-ia a sua influência e apoio. São vulgares estas associações nas Faculdades de Medicina.

Até então, Groix e Regnoult nada mais ganhavam que a honra de trabalharem com o catedrático. Arranjavam, porém, algum dinheiro fazendo no laboratório de Doutreval análises com abatimento de preço para médicos amigos.

Quando Tillery entrou, Regnoult estava justamente ocupado com uma dessas análises, recolhendo do fundo dum escarrador, com o auxílio dum fio de platina, partículas amarelas e caseosas que estendia sobre uma lâmina de vidro e secava à chama do gás. Flutuava no ar um cheiro a expectoração queimada. Groix, inclinado para outro bico Bunsen, fabricava pipetas, manejando o vidro com a perícia dum operário especializado. Dir-se-ia que o material quebradiço se tornava dócil e maleável entre as suas mãos. Groix aquecia um tubo, rodava-o, amolecia-o como pasta, até o vidro tomar um tom alaranjado. Em seguida estirava-o, puxando, como se faz a um elástico, o vidro meio liquefeito, e adelgaçava-o até à capilaridade, fio leve e flexível que partia depois no comprimento desejado. Ou então, soprando num tubo tornado rubro à chama, matéria em fusão irisada de reflexos maravilhosos, formava uma espécie de hérnia de vidro, uma hérnia enorme e oca, ou talvez um aneurisma. Os dedos de Groix divertiam-se nesse trabalho de prestidigitação, elegante e quase mágico.

Regnoult estava de bata branca, impecável de asseio. Sobre os cabelos castanhos e encaracolados, um barrete de linho de imaculada alvura, colocado um pouco atrás, deixava a descoberto a testa bem proporcionada. De vez em quando, tirava do cinzeiro o cigarro aceso, puxava uma fumaça e repunha-o delicadamente entre as cinzas.

Groix tinha o seu velho fato de desporto, por cima do qual envergara o avental azul do jardineiro de Doutreval. Do lado da cicatriz pendia-lhe sobre a cara a madeixa dos cabelos loiros e compridos, oscilando a cada um dos seus gestos. Ao canto da boca consumia-se a ponta dum cigarro.

Foi nessa altura que chegou Tillery, com o ar grave de médico recentemente instalado, de pasta imponente debaixo do braço e olhar severo, através dos grandes óculos de tartaruga sobrepostos ao narizinho chato e de ponta arrebitada.

- Olá, seu farsista! -exclamou Groix. -Que tal vais?

- Isto vai indo - retorquiu Tillery, depondo a pasta e apoderando-se do maço de cigarros que Regnoult, imprudentemente, deixara sobre a mesa da máquina centrífuga.

- E tu como estás, ó Frisado?

- Vai indo? -repetiu Groix. -E a respeito de clientela?

- Consta que estás a singrar-insinuou Regnoult, sem erguer os olhos da bacia onde lavava as lâminas de vidro, que iam tingindo de azul o esmalte do lavatório.

- Não há razão de queixa - respondeu Tillery. - Tive algumas surpresas, evidentemente. O velhote, a quem sucedi, fazia mais ou menos as suas trapalhices em abortos e acidentes no trabalho. A princípio, os clientes julgaram que eu também me encarregaria do mesmo. Surgiram mal entendidos, foram precisas explicações...

- E isso prejudicou-te?

- Naturalmente - volveu Tillery, enquanto acendia o cigarro no bico Bunsen onde Regnoult aquecia as lâminas.

- Meu caro Regnoult, já te tenho dito que os teus cigarros são muito ordinários. Um tipo como tu, com uma permanente dessas, não deve fumar senão cigarros ingleses. Espero não ser preciso voltar ao assunto. Pois é verdade, houve clientes que ficaram admirados. Mas vai-se indo, vai-se indo menos mal. A clientela aumenta. Tinha três indigentes: agora tenho cinco.

Regnoult e Groix desataram a rir. Na realidade Tillery prosperava, apesar de preguiçoso e ignorante e de haver desdenhado os estudos teóricos. Da sua ignorância tinha ele consciência. Mostrava-se prudente, consultava os colegas mais experimentados, contentava-se com tratamentos corriqueiros, já conhecidos e de êxito seguro, não se arriscando a inovações. Aliás, possuía o dom da observação, que é a primeira qualidade dum médico. E estimava os doentes. Oriundo do poyo, conhecia a gente dessa classe, sabia falar-lhe, fazia-a rir ou comover, consolava-a, animava-a, obrigava-a à gratidão. Muitas vezes, é um simples reconforto o que os homens mais solicitam do seu médico. E, no geral, os enfermos de Tillery curavam-se tão depressa e tão bem como os de Belladan, o urso da Faculdade, grande esperança dos mestres, esse que, estabelecido no mesmo arrabalde, vegetava inexplicavelmente apesar da sua instalação luxuosa e do seu profundo saber.

- Ainda não é tudo - prosseguiu ele. - Trouxe trabalho para ti.

Abriu a pasta, tirou frascos e tubos etiquetados e colocou-os diante de Groix.

- Duas «wassermannes», uma pesquisa de ureia. E, para já, este exsudado faríngeo. Mexe-te.

- Difteria? - perguntou Groix.

- Receio que sim...

Groix pôs de lado as pipetas. No tubo de vidro que lhe estendia Tillery havia apenas um bocadinho de algodão, e, neste, um pouco de mucosidade pardacenta, raspada duma garganta humana. Groix, com uma pinça desinfectada à chama, levantou o algodão, esfregou-o numa lâmina e dirigiu-se para o lado de Regnoult. Gota a gota, sobre a lâmina, deitou líquidos azuis, corantes e descorantes. No esmalte da bacia alastraram-se manchas azuladas e róseas.

- Há muito tempo que não se encomenda nada para o velho Donat - observou ele, sempre a manipular a lâmina.

- Exacto, exactíssimo - retorquiu Tillery, imitando a voz fanhosa do professor Donat, e o seu jeito de cabeça e olhar míope. - Estava mesmo a pensar nele para lhe expedir uma barrica de goma...

- Eis uma ideia genial! - exclamou Groix.

Donat era a vítima dos estudantes endiabrados. Encomendavam, em nome dele, as coisas mais estranhas: uma dúzia de carrinhos de mão com rodas de borracha, trezentos óculos escuros, cuja chegada ao seu domicilio quase sufocava o velho professor. Às vezes, pelo telefone, participavam a sua morte à Prefeitura, à Faculdade, ao Bispado, ao Progrés Social, a todos os jornais ...

- É preciso papel de carta timbrado com o nome dele

- observou Regnoult.

- Amanhã já o teremos - disse Groix. - Encarrego-me disso.

Foi nesse momento que Michel entrou no laboratório.

- Ah! Ah! Seu macrópode I Acrocéfalo ! - bradaram Groix e Tillery ao verem-no chegar. - Que vens cá fazer, coprófago?

- Salve! - exclamou Michel.

Dirigia-se para o andar onde o pai tinha o seu escritório.

- Teu pai não está lá - preveniu um dos rapazes. Disse que esperasses.

- Está bem. E tu, caixa de óculos? A respeito da tese?

- Vai indo, vai indo - respondeu Tillery, tirando os óculos incriminados e humedecendo-os com o bafo, a fim de os limpar na aba do casaco. - A coisa avança.

- Qual é o assunto? - inquiriu Regnoult.

Tillery retomou o tom fanhoso e ar doutoral do professor Donat.

- História da apendicite. Belo tema, meus senhores, esplêndido tema. Vou na apendicite entre os chineses. Se sabes alguma coisa de confidencial a este respeito...

- Infelizmente nada sei - disse Michel, rindo-se.

- Apaga a luz - ordenou Groix.

Tillery fechou a luz eléctrica e Groix, encarrapitado no banco, acendeu a lâmpada do microscópio, escondida atrás do globo de vidro cheio de água azulada. Só se via a cara de Groix, curvado sobre o microscópio, iluminado por um estranho reflexo espectral. Tillery deixara de falar e olhava, de cenho carregado, a ver se percebia a expressão do outro.

- Nada... nada por enquanto... nada absolutamente. Torna a acender, Michel. Tu mesmo podes observar, Tillery. Não há difteria.

- Ainda bem! - murmurou este.

- É homem? É mulher? - perguntou Regnoult, de longe.

- Um pequeno, filho de operários. Filho único. Calou-se e limpou outra vez os óculos. Mas daí a pouco

volvia, com o seu irreprimível tom chocarreiro:

- Vocês sabem a última de Santhanas?

- Não. Conta lá.

Tillery contou então que Santhanas, estando de serviço no banco da Égalité, durante a noite anterior, quisera a todo o custo fazer uma raspagem a certa rapariga que ali aparecera com hemorragia. Era espanhola e exprimia-se mal em francês. Não se conseguia saber com que instrumento pretendera provocar o aborto. Mas a Irmã Angélique não quis fornecer a colher de raspagem. Achava que a pequena estava com bom parecer e que podia esperar até de manhã.

- Imaginem vocês! Santhanas e a Irmã Angélique descompuseram-se durante o resto da noite. Enfim, de manhã, chegou Géraudin, que examinou a rapariga. Tratava-se simplesmente da sua primeira menstruação! Mas, como a hemorragia era grande, assustara-se e correra ao hospital!

E Tillery imitava ora Santhanas com a sua voz branda, ora a Irmã Angélique de coifa e gestos secos, ora Géraudin a mascar o charuto e a apalpar o lóbulo da orelha.

Michel, Regnoult e Groix riam ainda quando chegou Doutreval. Michel, ao vê-lo entrar, sentiu um baque no coração. A história de Tillery fizera-o esquecer-se do motive que o trouxera ali. Doutreval, com um gesto amigável, correspondeu às saudações dos seus assistentes e de Tillery. Depois descobriu a presença do filho.

- Estás aí, Michel? É um instante.

Deu volta ao laboratório, parou a uma das mesas, apoiando-se com a mão, de leve, para aliviar a perna coxa, e pegou num frasco.

- Isto que é?

- Análise de urina - informou Regnoult. - Trabalhinho para um amigo...

- Ah, bom! E as «wassermannes» para o manicómio, estão feitas?

- Está tudo pronto. Das sete, seis positivas. Só a de Louvic deu negativa.

- Organizou as fichas, Groix?

- Estão prontas. Doutreval reuniu os papéis.

- Bem, levo-os daqui a pouco. Anda comigo, Michel.

Atrás do pai, o rapaz subiu a escada lentamente, pois o joelho ferido incomodava o professor naquelas ascensões. Entraram no gabinete de trabalho, que tinha todo o aspecto dum laboratório. Havia apenas, entre as duas janelas, uma secretária de dois lugares opostos; mas, em compensação, à volta da sala estavam colocadas, lado a lado, mesas de tampo de faiança, lavatórios, armários envidraçados, estufas, frigoríficos, prateleiras carregadas de frascos, de provetas, de suportes com tubos de ensaio, de recipientes de todos os géneros e formatos, feitos de vidro, de ferro, de loiça, de barro ... Errava por ali um cheiro forte a iodo e ácido fénico.

Michel reparou que o pai tivera o cuidado de fechar a porta.

- Senta-te - disse Doutreval, que se instalou em frente do filho, fitando-o e sorrindo de modo contrafeito. - Ah, Michel, Michel!

Quase nunca sorria. Aquele esforço, aquela vontade de se mostrar meigo e bondoso comoveu o rapaz, que já se aprontara para a batalha. Sentia-se agora fraco, mais disposto à capitulação.

- Queria falar comigo, pai? - perguntou Michel com voz pouco firme.

- Sim, preciso de te falar muito a sério.

A sua mão, de pele manchada de vermelho e azul pela fucsina e outros corantes do laboratório, procurou sobre a secretária uma pinça, com que não mais deixou de brincar.

Era a primeira vez que, perante Michel, aludia às mulheres e ao amor. Até então fora sempre mudo, extraordinariamente silencioso em tais assuntos. Não estava, pois, muito à vontade.

- Trata-se do seguinte. Fala-se de ti na Faculdade, no hospital e no sanatório. A principio, limitei-me a encolher os ombros, foi o próprio Beaujoin que me veio advertir. Segundo parece, tens um namorico, uma aventurazinha...

Michel não respondeu. Sentia-se empalidecer, tal era a sua comoção.

- Não te diria nada se a coisa não fosse já do domínio público. Parece que te deixaste... pescar, e que vais demasiado longe. Previno-te, pois tomei informações, que ela é uma doente contagiosa, além de pobre e sem educação; uma pessoa, enfim, com quem não podes contar para o teu futuro. Aliás, não era possível teres tomado aquilo a sério. Não é a sério, pois não?

Seguiu-se um momento de silêncio.

- Responde, Michel.

- Não é- murmurou o rapaz. Doutreval respirou. O rosto iluminou-se-lhe.

- Bem me queria parecer! Calculei logo que não fosse nada de importância.

Levantou-se e deu uns passos no quarto. Parecia aliviado. Tornou a sentar-se defronte do filho e prosseguiu :

- Nota que não sou puritano. Compreendo a mocidade. Também passei pelos vinte anos. Mas aqui o caso é grave. Há a questão da saúde. Encontram-se raparigas gentis sem ser num sanatório, Michel... És forte, mas outros como tu têm apanhado o bacilo. Tua mãe morreu nova. Toma cuidado, não quero imprudências. Posso confiar em ti, não é verdade?

Fitava Michel, que baixou os olhos e não disse nada.

- Aliás - continuou Doutreval - não há só a questão da saúde. Não te assiste o direito de escolher para esposa uma mulher qualquer. Tens um papel a desempenhar na sociedade, uma posição a manter, uma obra a continuar. Representas um capital para mim, para os teus professores, para o agregado social. Não te é lícito diminuir esse capital. Ora a verdade é que o reduzirias de maneira lamentável se casasses com a primeira rapariga que te aparecesse.

Doutreval, com os dedos esguios marcados das nódoas sangrentas da fucsina, manejava a pinça, abrindo-a, fechando-a, acompanhando maquinalmente as palavras com gestos breves e enérgicos. Inclinado para a frente, falava em voz baixa e contida, sem olhar para Michel. Percebia-se que tentava pôr toda a sua força de persuasão no que dizia, e que revelava ao filho o que havia de mais profundo e sincero na sua experiência de homem de idade.

- Nunca te deixes prender pelo coração, Michel. A vida exige entes fortes. Quem quer que haja realizado grandes obras, fê-lo sempre, mais ou menos, passando por cima de certo número de vítimas... Cromwell, Napoleão... É a vida! É a lei das coisas. A existência não passa duma luta. Tu não a mudarás. Aceita-a como é, não sejas ingénuo, não te alimentes de ilusões. Sê forte, convence-te, em novo, daquilo de que os homens, em geral, têm tanta dificuldade em se compenetrarem : que o amor não vale nada. É coisa que passa. Ama-se dez, vinte vezes! Hás-de ver. Amarás sei lá quantas mulheres na tua vida! E sempre com sinceridade. E consolar-te-ás sempre de todos esses amores, quando acabarem. Portanto, actua com este convencimento. Não te proíbo que te distraias, que gozes a vida... Ama, se te apraz, diverte-te. Mas põe a razão acima disso, fiscaliza as tuas loucuras, sem sentires vergonha delas, é claro, visto que todos as temos. Mas diferencia-te dos outros desta maneira : enquanto os outros crêem, tu não crerás; se não te deixares arrastar por caprichos, eles não te conduzirão ao abismo. Acredita que se pode conciliar o amor e a razão. Podemos fazer todas as extravagâncias com a condição de não comprometer o futuro, de não tomar o amor a sério, de saber em que momento nos devemos desembaraçar dele. O essencial é parar o tempo. Compreendeste-me?

-Julgo que sim... - murmurou Michel.

- Vais perguntar-me, decerto, se é forçoso haver sempre uma vítima. Respondo que sim. É triste, é lamentável, mas é assim. A vida é que o exige. A vida nutre-se da morte. Por isso é que te digo : não fraquejes. Fazes parte dum escol. Tens o dever de ir longe, de percorrer uma belíssima carreira científica. Preparo-a para ti. Herdarás a minha obra, para a defenderes e a continuares. Concederás à humanidade o mais precioso dos serviços. Isto merece vítimas. Nada conseguirás se te detiveres em frente da primeira criatura insignificante e se não ousares passar a outra. Há no mundo, Michel, muitas pessoas que existem somente para servir o progresso dum escol. E a única explicação possível das coisas... Resigna-te, pois. sê viril. Nenhuma mulher deverá ser para ti mais que um instrumento... ou um passatempo.

Calou-se. Observava Michel, que, de olhos fixos no chão, se mantinha silencioso.

- Já concluí - volveu Doutreval. - Falei-te como de homem para homem. Suponho que te convenci. Crês nas minhas palavras? Tens confiança em mim? Responde.

- Tenho - disse o rapaz em voz baixa.

- Está bem.

Doutreval levantou-se e deu uma palmada cordial no ombro do filho.

- Acabou-se? Não me queres mal?

- Não há razão para lhe querer mal...

- Vais pôr fim a tudo isso, discretamente? Está combinado?

- Está combinado... -murmurou Michel.

- Óptimo! Vejo que me compreendeste. Sinto-me satisfeito.

Michel saiu do gabinete do pai e desceu ao laboratório.

Tillery já lá não estava. A um canto, um homem desabotoava os suspensórios, enquanto Groix preparava uma lanceta.

- Vais-te embora?-perguntou este a Michel. - Não esperas pela tua vez?

Michel ripostou com outro gracejo, sem mesmo saber o que dizia, e alcançou a porta.

- Cobarde! Cobarde! - gritava ele a si próprio. Sentia as faces afogueadas de vergonha e furor. Não pudera resistir. Sabia perfeitamente que tivera medo, que o pai o dominava, lhe impunha a sua vontade. Fora cobarde, sim. Renegara o seu amor, a sua nova existência. Não soubera defendê-los perante o mundo. Envergonhara-se de Évelyne e do laço que o unia a ela. Que podia esperar do futuro se ao primeiro obstáculo ele se curvara, se julgava a sua causa insustentável, se nem sequer se atrevia a justificar-se? Duvidava de si, perdera a confiança em si mesmo. Pesava-lhe no coração uma dor intolerável, esse remorso cruel que se segue à primeira traição.

 

Logo que o filho saiu, Jean Doutreval desceu por seu turno ao laboratório. O homem, que Michel vira de passagem, estirado num divã, de calças desabotoadas, exibia o membro viril com ar inquieto. Groix, de lanceta na mão, inclinava-se para ele. A cada golpe de bisturi, o homem dava um pulo e gritava:

- Santo Deus!

- Não se mexa dessa maneira - disse Groix, muito plácido. -Agora é contigo, Regnoult. Colhe o pus.

Regnoult, fleumático, de lâmina de vidro na mão, aproximou-se e fez a colheita dum pouco de sangue purulento.

Doutreval lançou um olhar ao cancro.

- A análise é para um camarada - explicou Groix.

- Bem, bem. Dê-me os apontamentos, Groix. Doutreval recebeu o maço de papéis, tornou a subir a escada e entrou no escritório.

Sentado à secretária, no círculo de luz da lâmpada eléctrica com pantalha de níquel, Doutreval embrenhou-se na leitura das notas. Na sala, aquecida e confortável, imersa em penumbra, destacava-se aquele círculo luminoso, com a mão do homem a voltar lentamente as folhas de papel. Chovia lá fora. Ouvia-se a música da água de encontro aos vidros. Doutreval, esquecido de tudo, sentia-se bem. Essas eram as melhores horas da sua vida.

Achou preciosas as observações anotadas por Groix. O curare parecia agir maravilhosamente. Nenhuma fractura, nenhum choque moral no doente, nem terror nem apreensão como nas experiências anteriores. Fossem, os benefícios mentais tão sensíveis como os do antigo método e a curarização estaria consagrada. Se nesse instante se pudesse congelar o curso dos pensamentos de Doutreval como quem gela a água dum rio, e cortasse uma secção, veria sem dúvida, à superfície, o trabalho da inteligência: extrema atenção às notas do assistente; logo abaixo, menos visível, a ideia do êxito muito próximo, fortemente colorida de exaltação orgulhosa, deveras agradável.

«Estou a alcançar o objectivo... Triunfo... Glória... Génio...» Mais abaixo ainda, muito menos visível, terceira extensão de pensamentos, estes tingidos dum elemento desagradável: «Foi Groix quem primeiro se lembrou do curare... Não fui eu... Foi Groix quem...» E lá no fundo, obscura, escassamente iluminada por um resto de consciência, sob a tríplice camada dos outros pensamentos, esta última ideia confusa, um destes desejos quase subterrâneos que não gostamos de invocar : «Ocultar o papel de Groix... Não dizer nada...» Eis as quatro camadas de pensamentos que havia então no espírito de Doutreval, embora ele se julgasse unicamente ocupado a ler as notas do assistente. Conheceríamos muitas coisas acerca do nosso orgulho, da tirania do nosso eu, se, em plena acção, nos déssemos ao trabalho de sondar até às profundezas.

Houve um deslumbramento de luz no escritório. Alguém dera volta ao interruptor.

- Sou eu!

Era Fabienne. Estava à porta, séria e um tanto pálida, com aquele ar de espanhola que lhe davam os,cabelos espessos e negros enrolados em tranças de roda da cabeça. Fabienne acabava nesse ano o curso do liceu, tirado no colégio, depois do qual faria um estágio na clínica; seria enfermeira e trabalharia com o pai. Era este o grande sonho de ambos.

Doutreval contemplava-a, sorridente, um pouco cansado, com os olhos fatigados de tanto haver decifrado a péssima caligrafia de Groix. A rapariga veio beijá-lo, deu umas voltas pelo gabinete e desceu ao laboratório, onde Groix e Regnoult terminavam as suas análises. Simpatizava bastante com os dois discípulos do pai. Groix serrazinava-a, inventava, com a sua imaginação de estudante, histórias espantosas. Regnoult, menos agarotado, explicava-lhe os seus trabalhos; instruía-a, interessava-a, lisonjeando-lhe um pouco a vaidadezinha de colegial ainda ingénua e fazia-lhe, de brincadeira, uma espécie de corte, que nenhum deles, aliás, tomava a sério. Groix assustava-a um tanto. Grande, loiro, às vezes com barba de quinze dias, à passa-piolho, mal distribuída e arisca (própria para irritar os burgueses) e aquela maldita cicatriz, que lhe resultara de se interpor entre um louco, armado de garrafa, e Doutreval, era um rapaz que falava alto, ria estrondosamente, imaginava enredos pavorosos cuja veracidade jamais se averiguava, e aludia ao amor e às mulheres com o desdém de pessoa que já perdeu as ilusões. Regnoult, de cabelos castanhos ondulados, feições regulares, olhos perspicazes e meigos ao mesmo tempo, usava fatos sempre impecáveis, barbeava-se todos os dias, perfumava os lenços com heliotrópio e limava as unhas com pedra pomes depois dos trabalhos de laboratório. Fabienne não desgostava de ser vista com Regnoult, num encontro casual, pelas suas companheiras de colégio.

- Venha cá observar treponemas, Fabienne - disse Regnoult.

Fabienne, curiosa, aplicou a vista no ocular do microscópio e contemplou por instantes, num círculo de luz alaranjada, os minúsculos e sinistros espírilos negros da sífilis. Em seguida quis ver bacilos, células, líquido céfalo-raquidiano. Regnoult mudava as lamelas, regulava o microscópio, dava explicações. Depois foi a vez de Groix chamar por Fabienne, para que ela lhe «lavasse a loiça», como ele dizia. Lavar a loiça consistia em enxaguar os tubos, provetas, «bécheres», «erlenmeyeres, e frascos de toda a espécie, que é costume lançar fora depois de usar, mas que Groix, económico, limpava e esterilizava, tanto quanto possível, para os aproveitar de novo.

Fabienne abriu a torneira, e, servindo-se duma solução de cloreto de potassa, lavou os frascos e provetas. As vezes sentia-se agoniada ao encontrar um resto de urina coberto de bolor, ou, no fundo dum recipiente, um pedaço de sangue coagulado, gelatinoso e compacto.

-Que porcaria!-exclamava Fabienne.-Groix! Groix!

E Groix aproximava-se, pegava com os dedos naquela massa escura e trémula e atirava-a para o balde do lixo.

Fabienne soltava novas exclamações de nojo, enquanto Groix, junto da torneira, continuava a lavagem e recebia nas mãos e nos punhos cabeludos a água avermelhada por aquele sangue de sifilítico. Ele, no entanto, chalaceava, ia aspirar com a boca, num tubo de vidro, um pouco de soro humano, um pouco de antigéneo, para fazer uma reacção de Meinicke, como se estivesse a sugar limonada por uma palhinha, no terraço da Taberna do Rei Renato. Em seguida pegava na tampa de algodão que cobria uma garrafa de urina fétida e inflamava-a ao bico de gás, para com isso acender um cigarro.

- Qualquer dia apanha alguma! - dizia a rapariga.

- Não há perigo - afirmava Groix. - É uma questão de virulência. Ora eu sou mais virulento do que os micróbios. Eles é que morreriam.

Entretanto Regnoult, às cavalitas no banco, de olho fito no microscópio e com a cara iluminada pelo reflexo lívido do globo cheio de água azulada, examinava um escarro, pequenino disco brilhante, mosqueado de sombras. Mergulhava assim na densidade desse universo, manobrava os parafusos entre o polegar e o indicador, investigava à direita, à esquerda, avançava, recuava, embrenhava-se em profundidade, sondava a matéria, procurava mais longe, fazia uma viagem longa e complicada no meio desse espaço infinitesimal de expectoração colocada na lamela, mundo tão próximo e todavia tão inacessível como uma estrela vista ao telescópio, mundo onde vegetam, lutam, crescem e morrem prodigiosamente estranhos e indiferentes, a nós, ao nosso tempo, à nossa espécie e à nossa sorte, essas poeiras vivas que tecem a sua existência à custa, por vezes, de espantosas hecatombes, e, sem sequer o saberem, através da vida humana.

Fabienne acabou a «lavagem da loiça». Em seguida foi ter com o pai, que continuava a trabalhar, erguendo apenas a cabeça para lhe dirigir o sorriso distraído dum ser cujo espírito anda longe. A rapariga pôs um pouco de ordem no gabinete. Ouvia-se o sussurro dum bico Bunsen. Na estufa de esterilizar, o gás queimava com um rumor surdo. Do canto onde Fabienne colocava a frasearia, vinha o tilintar leve, discreto, dos vidros que se deslocam. Sobre uma bacia, algures, uma torneira gotejava, produzindo uma notazinha clara. A temperatura era tépida, húmida. Lá fora, chovia. E todos esses sons familiares mal perturbavam o silêncio. Estava-se muito longe do mundo. Eram as horas mais agradáveis de toda a existência de Doutreval, que lia, sublinhava, tomava notas. E a vaga ideia que tinha da presença da filha ainda lhas tornava mais doces.

Quando ela acabou os seus arranjos e foi, como de costume, buscar uma almofada para se sentar no chão aos pés do pai, e ler com todo o sossego um romance de Walter Scott, Doutreval considerou-se verdadeiramente feliz.

Os efeitos da curarização revelaram-se notáveis. Quinze dias depois da experiência, o rapaz tratado por Doutreval começou a levantar-se e a mostrar interesse pelo mundo exterior.

Doutreval procedeu desde então a uma série maciça de ensaios, numa quinzena de loucos do manicómio de Saint-Clément. Nos departamentos vizinhos, houve confrades que o autorizaram a tentar o novo método nos doentes dos seus serviços. Durante todo esse tempo, Doutreval andou constantemente dum hospital para outro, de Orme para Cher, de Nantes para Tours. Dava a primeira injecção e voltava a Angers. Groix ficava para observar os resultados e consignar as suas observações por escrito. O moço assistente levava uma vida exaustiva, mas o entusiasmo alentava-o. Hesitaram um momento na determinação das doses de curare; depois na fixação do ritmo segundo o qual tinham de provocar o acesso. As dificuldades, porém, aumentaram o ardor de Groix. Percorria o país, saltava dum comboio para outro, visitava os manicómios, acumulava apontamentos, trazia, todas as semanas, ao mestre, volumosos processos, atulhados de pormenores e de números, enquanto Regnoult, de temperamento mais sereno, substituía Doutreval na Faculdade e visitava por ele os doentes da Égalité e de Saint-Clément.

Em suma, Doutreval dominava agora o seu sistema. Provocava nos doidos convulsões quase infalíveis. Nos casos de demência já antiga, o resultado era nulo; mas, na doença ainda ao começo da sua evolução, podia-se contar com oitenta a oitenta e cinco por cento de beneficiados contra quinze por cento de refractários.

- E ainda se há-de fazer melhor! - dizia Groix.

Doutreval decidiu enviar à Academia de Medicina uma comunicação sobre a convulsoterapia por meio do curare e do pentametilentetrazol.

A ideia do curare partira de Groix. Por um momento, levado pelo entusiasmo, Doutreval pensara em associar os dois assistentes à sua obra, juntando, na comunicação, os nomes deles ao seu. Chegara até a falar nisso a Groix, depois do êxito do curare. Mas, à última hora, não teve ânimo de diminuir a sua glória partilhando-a com outros. Quando Groix, pela primeira vez, viu na secretária do mestre o volumoso processo enfim terminado (só à espera que Regnoult, mais literato, lhe retocasse o estilo) o rapaz, ao ler na capa o título em letras garrafais e mais abaixo apenas o nome de Jean Doutreval, fez um gesto de espanto e empalideceu. A marca da cicatriz pareceu mais encarnada. Nos dias seguintes, Grois não se mostrou exuberante como de costume; depois, a pouco e pouco, recuperou o bom humor. Não se falou mais no assunto. Aliás, Doutreval, em conversa, aludira ao centro de curarização que pretendia fundar e que não seria difícil conseguir com a ajuda de Géraudin e das suas relações políticas; e, já se sabe, os seus dois auxiliares teriam ali garantida uma situação magnífica. Groix, bom rapaz e filósofo, esqueceu depressa o que aos seus. olhos não fora mais do que um lapso infeliz.

 

Modificara-se a existência de Eveline. A amizade de Michel salvara-a da penúria total que, havia meses, constituía o seu quinhão na vida. Possuía agora várias coisas, se bem que humildes: alguma roupa, pantufas, sabonetes, uma caixa de costura... Já não sabia o que era aborrecimento. Michel deixava-lhe jornais e livros que trazia da biblioteca da sua casa. Comprara-lhe lã, agulhas, papelão e fitas. Évelyne começava a trabalhar um poucachinho. Madeleine Daele, nos seus momentos de ócio, ensinava-a a fazer caixas e molduras. As horas passavam depressa. Todos os dias, ao cair da tarde, Michel chegava ao pavilhão anexo. Évelyne reconhecia de longe os seus passos no saibro do jardim, e o coração parava-lhe de bater. Michel subia a escada, seguia pelo corredor que conduzia à porta, e Évelyne sentia-se invadida de extraordinária comoção, dum sobressalto tão grande como se fosse morrer. O rapaz entrava. Ela nem podia dar-lhe as boas tardes. Tinha de virar a cabeça, de o deixar falar primeiro, e só então conseguia fitá-lo e responder-lhe. Diante dele, sentia a garganta apertada, um desejo de chorar, sem motivo. No entanto, para Évelyne esses momentos eram infinitamente doces e preciosos, e a sua expectativa iluminava os longos dias de resignação. Nada mais houvera entre eles além dessa comoção recíproca, dessa felicidade profunda e oculta que os tornava acanhados e mudos, um perante o outro, nos primeiros instantes do encontro.

A saúde da rapariga ia também em progresso. Tinha melhor cara, e o velho Ribières, quando falava com Madeleine Daele, não deixava de se referir ao facto, sem mostrar contudo grande admiração. Professor da velha guarda, céptico no que respeitava à eficácia das drogas e tratamentos medicamentosos, aprendera a avaliar a influência que o moral exerce nas doenças. As enfermeiras e as religiosas haviam-no posto ao corrente das visitas de Michel. Ribières notou em Évelyne, no espaço dum mês, um aumento de dois quilos, desaparecimento da febre, modificação nas manchas pulmonares. A doente, por seu lado, sentia-se melhor; podia já levantar-se um pouco, arranjar o quarto, fazer a cama sem auxílio de ninguém. E maravilhava-se com a sua ressurreição.

- Talvez me cure - dizia a Michel. - Devê-lo-ei a si.

- A mim?

- Sim, senhor. Quando eu tiver alta, convencer-se-á que foi quem me salvou.

Pensava uns momentos e confessava então em voz baixa:

- Quer saber? Não tenho muita vontade de partir...

- Há-de ficar contente - volvia Michel. - Imagine! Liberdade, saúde, vida... E não ignora que o resto continuará. .. que amigos como nós nunca se esquecem, não se apartam mais...

Ela sorria sem responder, com um sorriso que impacientava Michel, pois que entrevia nisso uma sabedoria, uma experiência mais madura do que a sua e que Évelyne calava só para não recomeçar inúteis discussões.

Por essa época Seteuil foi-se embora.

Depois da morte do doutor Suraisne, compreendera que devia renunciar ao professorado. Eram dois, ele e Vallorge, agarrados à sorte de Suraisne. Vallorge, graças aos esponsais com Marietta Doutreval, via consolidarem-se as suas esperanças de um futuro universitário. Mas, para Seteuil, o projecto estava comprometido. Mais valia não perder tempo e estabelecer-se já noutra coisa. Achava-se capaz de triunfar na carreira médica, tinha a certeza de conseguir boa clientela.

Todavia, hesitou durante umas semanas. Madeleine Daele apegava-se-lhe desesperadamente; e Seteuil, apesar de tudo, era pessoa de hábitos. Foi uma carta da mãe que o decidiu: propunha-lhe ela um partido vantajoso, a filha de certo lavrador de Pas-de-Calais, rapariga cujo dote orçava por trezentos mil francos. Com isso podia-se montar um consultório moderno, provido de raios X, raios ultravioletas e toda a aparelhagem niquelada que tanto impressiona os doentes.

Um dia, de manhã, Seteuil preveniu Madeleine de que tencionava dar uma saltada a casa da família. Coisa duma semana, quando muito. E partiu. Quatro dias depois, Madeleine recebeu dele uma carta em que o rapaz lhe dizia não poder resistir à vontade da mãe, que sacrificara toda a sua vida para o ver formado e bem estabelecido; não tinha, pois, o direito de a desiludir. Acabava pedindo a Madeleine que o esquecesse.

Soube-se, dois meses mais tarde, que se casara com a filha dum lavrador muito rico. Não participara a sua mudança de estado a nenhum dos amigos da Faculdade, pois receava um ímpeto de cólera da parte de Madeleine, o que podia causar escândalo. Quase todos comentaram, sem grande benevolência, a sua falta de carácter. Na carreira forense raras vezes acontece unirem-se legalmente à antiga amante; mas, na profissão médica, há ainda a pimponice de fazer coisas dessas. O velho Ribières, que estimava deveras a sua enfermeira, declarou, a respeito de Seteuil:

- É um patife!

Quanto a Santhanas, levava sempre a mesma existência plácida e ociosa de estudante amador. Vivia de rendimentos sobre cuja origem se mostrava discreto.

Essa felicidade foi repentinamente perturbada.

Bernard Géraudin conservava, havia já alguns dias, um doente em observação no hospital. Era um caso interessante : tratava-se dum homem que tinha qualquer coisa no recto, provavelmente um cancro. Mas, para o saber, necessitava-se analisar as fezes. Se contivessem sangue, far-se-ia um anus artificial. Géraudin encarregara Santhanas dessa análise. Ao sair da sala de operações, o professor chamou o aluno:

- E então, essa análise?

Santhanas teve uma hesitação imperceptível.

- Já está feita, senhor doutor.

- E qual foi o resultado?

- Positivo! - declarou Santhanas, com voz firme.

- Está bem. Obrigado.

Mas Géraudin sabia do seu mister e fiscalizava tudo.

Desceu à sala dos cancerosos e passou junto do leito do pobre diabo. Mandou-o destapar-se, examinou-o defronte do curso e explicou os sinais e sintomas. Em seguida, familiar, bateu no ombro do velho:

- Então que tal vai isso? Melhor? Tem comido bem?

- Sim, senhor doutor.

- Não há prisão de ventre? Evacuou esta manhã?

- Sim, senhor doutor.

- Onde?

- Onde havia de ser? Na retrete.

Géraudin soltou uma praga e voltou-se para Santhanas.

- Intrujão! Quer agora convencer-me de que mergulhou a mão na trampa das retretes para colher a que era deste? Se eu me fiasse na sua palavra, fazia a este homem um ânus artificial. Desapareça do meu serviço!

Parecia que se ia atirar a Santhanas e bater-lhe. Este, ainda mais amarelo que de costume, recuou, deu meia volta e foi-se embora.

Uma aventura como esta equivalia à expulsão. Santhanas nada mais tinha a fazer senão defender a sua tese a toda a pressa e abrir consultório.

Pensou em estabelecer-se em Angers, mas outro incidente impediu-o de pôr em prática essa ideia. Uma tarde, em que ele tomava café numa esplanada, acompanhado de Tillery e Michel, aproximou-se um rapagão de chapéu desabado que, pelas costas, lhe bateu no ombro e exibiu o seu cartão de agente da segurança.

- Chama-se Santhanas? Pois, meu amigo, previno-o de que o trazem de olho. Se continua a viver à custa de mulheres, acaba por se arrepender. Percebeu?

Santhanas engoliu em seco e o caso ficou por ali.

Michel soube assim que o outro tinha uma amante, rapariga empregada num botequim, a qual por essa altura o sustentava.

Havia muito tempo que Santhanas pedira a Tillery que lhe fornecesse o assunto da tese. Tillery, pessoa de imaginação, forjou um estudo interessante sobre certos trabalhos a que ele próprio assistira, nas experiências de Doutreval: os ensaios de tratamento da esquizofrenia pelo coma-hiperinsulínico provocado antes da crise de epilepsia artificial. Santhanas nunca pusera os pés no hospital de Saint-Clément; mas entregou toda a documentação de Tillery a um estudante pobre do terceiro ano, que se encarregou da composição e redacção por mil e quinhentos francos. E Santhanas, uma vez formado, tratou de se instalar. A sorte favoreceu-o. Por essa época herdou vinte e cinco mil francos dum tio velho que morrera sem mais herdeiros. Aquela quantia dava para as primeiras despesas. O novo médico, munido desse dinheiro, foi-se estabelecer numa aldeia normanda, onde não havia facultativo nem farmácia. Depressa se soube que ele prosperava e até fazia operações em casa dos clientes, o que indignou Tillery ao máximo.

- Estes tipos sem vergonha são o que há de mais perigoso-disse ele.- Um homem como eu, que não vale grande coisa mas que é honesto, sente receio diante dum doente. Compreende nesse momento que é pouca a sua ciência. Chama um colega. Pelo menos não faz nada de grave. Mas um Santhanas nem sequer tem esse escrúpulo! Isto é que é terrível!

Tillery ia também abandonar a região. No entanto, estava a ser bem sucedido em Angers. Muito estimado pela arraia miúda, pelos operários, possuía a «arte», era consciencioso e devotado. Adorava as crianças. A clientela aumentava. Certa manhã, recebeu no seu consultório uma dactilógrafa de Paris, que fora descansar uns dias em Angers, em casa duma tia. A matéria da consulta era um punho luxado. Tillery interessou-se tanto pela cliente que dali resultou um pedido de casamento. Em suma, Tillery matrimoniava-se e ia viver em Paris com a mulher, pois a mãe desta tinha na capital uma mercearia modesta, de que tirava o seu sustento. E o rapaz, demasiadamente apaixonado, apesar do desdém que afectava pelo belo sexo, não queria obrigar a mulher a afastar-se da mãe. De modo que trocava Angers por Paris.

- Abrirei lá novo consultório e pronto! - disse ele. Quando as multidões da capital souberem que o grande Tillery de Angers mudou para lá...

Organizou uma festa de despedida, cuja lembrança subsistiu por muito tempo. Houve um ponche tremendo na Taberna do Rei Renato. A altas horas da noite, várias notabilidades da cidade acordaram com o carrilhão desesperado dum gato preso pelo rabo à campainha duma porta. Groix, previdente, havia em quinze dias reservado uma dúzia de gatos nas gaiolas das cobaias do laboratório de Doutreval.

Ao amanhecer, numerosos comerciantes se espantaram com as mudanças inesperadas de tabuletas. O emblema dourado dum escritório de notário parecia o mais austero possível na fachada azul-celeste do Nina-bar. E, por cima da porta do oficial de justiça Mesniez, baloiçava o letreiro gigantesco duma tasca dos arredores. Aquela hora, porém, já Tillery, no rápido Angers-Paris, dormia um sono de justo.

Entretanto, Jean Doutreval desenvolvia enorme esforço, trabalhando todas as noites no seu escritório. Estava prestes a chegar ao fim da tarefa. Regnoult, que sabia redigir, acabava de retocar o estilo da comunicação a enviar à Academia de Medicina. Já corriam rumores acerca da obra. Houve psiquiatras que escreveram a Doutreval, a pedir pormenores, a solicitar artigos. As experiências, no entanto, prosseguiram. Convinha aperfeiçoar o método, torná-lo definitivo, o que requeria muito cuidado e atenção. Além disso, era necessário rever os doentes que haviam conseguido a cura, ou simples melhoras, examiná-los bem, de modo a poder afirmar-se a permanência dos efeitos obtidos. Surgiam às vezes casos melindrosos: alguns dos indivíduos tratados recaíam na loucura, outros queixavam-se de dores nas costas. Forçoso seria procurar as causas de todas essas consequências, a fim de dar resposta a possíveis objecções. Tanta preocupação extenuava Doutreval. Groix, sobretudo, mostrava-se terrível, exigente, impiedoso. Não queria que ficassem pontos em dúvida, punha em relevo os mais leves inconvenientes do método, que desejava fosse perfeito, inatacável. Segundo ele, deviam dizer tudo, preceder as críticas, confessar os defeitos, não avançar senão em terreno firme. Sem o saber, infligia martírios constantes ao orgulho do mestre, exasperava com os escrúpulos a grande susceptibilidade de Doutreval. Ocasiões havia em que este, já com os nervos abalados, sentia ódio por Groix, tentado a mandá-lo embora, como alívio para as suas apoquentações.

A única distracção do professor consistia em preparar a futura residência de Mariette. Vallorge concorria com a mobília, e Doutreval pagava as despesas da decoração. Aquilo agradava-lhe, divertia-o. Era, como muitos médicos, pessoa de espírito cultivado, artista, amigo de raridades. Destinara a isso alguns milhares de francos, a fim de que a sua Mariette possuísse um interior a seu gosto. Preocupava-se também com os vestidos da filha, o da festa, o de noiva, o da viagem, e igualmente com a lista das pessoas que deviam convidar. Via bem como esses preparativos entusiasmavam Mariette,o que o incitava a tomar mais a peito o seu papel de pai. Aquela sua primogénita dedicava ele um carinho misturado de respeito e gratidão. Não ignorava quanto lhe devia. Mariette substituíra a mãe, empunhara o leme do governo doméstico : era uma rapariga às direitas, cheia de virtudes sólidas. Doutreval contemplava-a satisfeito, agradecido, quando ela voltava da praça em companhia da criada, com muitas hortaliças e frutas, sã, robusta, de cara prazenteira, zelosa, indiferente a tudo que não fosse a sua vida de casa; ou então quando confeccionava doce de groselhas, de mangas arregaçadas, a mostrar os braços roliços, de rosto corado e alegre com pequeninas gotas de suor na raiz dos cabelos dourados; ou ainda quando dava caçada às teias de aranha, com uma toalha em turbante na cabeça e faces enfarruscadas como um limpa-chaminés. Cantava como um passarinho, tinha vasto repertório de canções. De alto a baixo na moradia, o pai ouvia-a azafamada, a empurrar os móveis, a varrer, a dar ordens ao pessoal, a entoar as suas árias preferidas.

Era a alegria de Doutreval, era o sol que iluminava e aquecia a casa.

Quando a via assim, quando sentia como aquele ente de vinte anos se lhe prendia às fibras mais profundas do seu ser, quanto a sua vida se ligava à da filha - então, sem saber porquê, Doutreval evocava os seus próprios pais. Compreendia o que fora, o que representara para eles, e o que eles lhe deram da sua alma e da sua vida. Meditava nisso com ternura infinita e cheio de remorso pelas pequeninas ingratidões com que todos nós pagamos àqueles que nos lançaram no mundo e só para nós viveram. é preciso ter uma filha de vinte anos para se avaliar quanto se deve de amor a um pai.

- Ora vamos lá a saber - lembrou Doutreval - quais os convidados da boda.

Tinham acabado de jantar. Michel roía ainda um pêro, e Mariette, com Fabienne, arrumava os pratos e os talheres.

- O pai dirá de sua justiça -respondeu Mariette. -Em primeiro lugar, acho que devemos contar com os Géraudin.

- Evidentemente.

- Donat...

- Sim... sim. Ele também é do júri, este ano. Mas duvido que venha, por causa da acrtite. Convidarei também Guerran, a mulher e os filhos. Os Heubel têm de vir, não achas, Michel?

- É-me indiferente - retorquiu o rapaz.

Mariette relanceou-o, admirada, e olhou em seguida para Doutreval. Este carregara o sobrolho.

- E os seus assistentes? - volveu Michel. - Não convida Groix nem Regnoult?

Pusera na entoação certa ironia, que ao pai passou despercebida nos primeiros momentos.

- É claro que os convido.

- Ah! E acredita que ficarão satisfeitos?

- Não compreendo...

- O pai faz parte do júri do concurso, este ano?

- Faço.

- E vai patrocinar Ludovic Vallorge? -Vou...

- Depois de prometer o seu voto aos assistentes...

- Foi tudo combinado com eles. Já lhes expliquei as coisas. Dentro de três anos, é provável que Heubel faça parte do júri, ou então Géraudin. Entender-nos-emos nessa altura para apoiar Regnoult, primeiro, e depois Groix.

- De maneira que Vallorge será professor três ou seis anos antes destes... Não é justo.

- Mas se aceitam, Michel! - interveio Mariette. - Se compreenderam que, dessa forma .. .

- Não importa. Semelhantes conchavos revoltam-me.

- Essa agora! - exclamou Doutreval. - Mas que farás tu mesmo, dize-me, quando fores nomeado director do serviço de Géraudin ou de Donat? Vais recusar, sob pretexto de que sou teu pai? Ou se, por acaso, viesses a casar com a filha dum lente, por exemplo Heubel; e se este te desse um empurrão na carreira universitária, renunciarias ao auxílio?

- Estou livre de casar com Simone Heubel! - retrucou Michel. - Quanto a essa política da Faculdade, isso para mim não é medicina. Nunca me hei-de imiscuir em tal coisa!

Ergueu-se da mesa, para se ir embora.

- Espera - ordenou o pai. - Quero dizer-te duas palavras.

- Papá... - murmurou Mariette.

Fabienne escutava sem se intrometer na discussão.

- Michel - prosseguiu Doutreval - sabes que estou ao facto de tudo. Até agora fui paciente. Contava com o teu bom senso. As tuas palavras e o teu procedimento provam que me enganei. Mostras-te diferente do que eras. Tens revoltas, assumes atitudes... Inclinas-te para a metafísica, para a ideologia, para a hipocrisia do sentimentalismo, dos belos rasgos... É tempo de acabar com isso. Peço-te, desejo formalmente que te deixes de visitas ao sanatório e que ponhas ponto final na tua ligação. Quero que termines com essa história, percebeste?

- Papá - murmurou de novo Mariette.

- Cala-te, filha. Michel, concedo-te uma semana; não quero ser brutal. Dentro duma semana tem de estar tudo acabado. Mas compreendo a situação : se tu...

Hesitou por causa de Fabienne.

- Se houve algo de grave, se essa pessoa se pode considerar enganada ou prejudicada em semelhante aventura, estou pronto a indemnizar os teus erros. Ponho à tua disposição a soma que fixares: dez, quinze mil francos. Dá-los-ei de boa vontade para te libertar, meu rapaz. Agora, vê se concilias as coisas. Em qualquer caso, já sabes o que eu quero.

Levantou-se, dobrou o guardanapo e saiu. Ouviram-lhe os passos no corredor que ia ter ao laboratório e as pancadas do ferrão da bengala.

Michel, corado e confuso pela presença das irmãs, ficou uns segundos imóvel. Mariette, com pena dele, arrastou Fabienne para o quarto de vestir.

- Que estúpido! - comentou Fabienne, desprendendo, defronte do espelho, as longas tranças enroladas em volta da cabeça.

- Não podes ainda fazer juízos - retorquiu Mariette.

- És muito nova. Dezoito anos! É provável que nem sequer tivesses compreendido.

- Nesse caso, dás razão a Michel?

- Não, não dou. Mas lastimo-o. Sabes como teu irmão é bondoso. Estou certa de que se deixou levar pelo coração.

Fabienne encolheu os ombros.

- Não ouviste o papá oferecer-se para pagar?

- Nem tudo se paga.

O sofrimento que Fabienne adivinhava no pai indispunha-a contra o irmão.

- Que insensibilidade! Achas que Michel faz bem em torturar assim o papá?

- Não disse semelhante coisa - respondeu Mariétte. Soltou um suspiro e acrescentou: -Enfim, seja o que Deus quiser. Talvez ela aceite o dinheiro.

- Porque não havia de aceitar? -retorquiu Fabienne.

- És ainda muito nova - repetiu a outra. - Não sabes o que é amar.

- Muito nova! Muito nova! Quem te ouvisse diria que eras minha avó...

- Enfim - insistiu Mariette - esperemos que se trate apenas duma rapariga de vida fácil.

- Pensaste que seria outra coisa?

- Fabienne, Fabienne! Lembro-te mais uma vez que não sabes ainda o que é o amor. Mais tarde avaliarás por ti mesma.

-Pões-me fora de mim com esses teus ares de pessoa experimentada! Vou-me embora.

Nada a irritava mais do que ser considerada criança.

- Aonde vais?

- Ao laboratório.

- Não te deites muito tarde, Fabienne. Tens aulas amanhã de manhã. Não te acho com boa cara.

- Pelo contrário, estou muitíssimo bem.

- Em todo o caso, são nove horas. Às dez chamo por ti. Vai lá ao laboratório.

«As vantagens dum método como este», lia Doutreval a meia voz, «são indiscutíveis: a fase tónica e a fase clónica tornam-se muito menos violentas. Não assistimos a esses espasmos do tronco brutalmente flectido e convulso. Enfim, a ansiedade do doente, em geral tão caracterizada, atenua-se de maneira extraordinária com a aplicação prévia do curare...»

A luz velada, na calma do seu gabinete silencioso, Doutreval relia as frases curtas, claras, elegantes de Regnoult. Nessa noite não fora ao Progrès Social visitar, como de costume, a sua amiga Jeanne Chavot. Havia já semanas que os seus trabalhos o monopolizavam.

A irritação de ainda há pouco desaparecera-lhe já. Chegara ali enervado, furioso contra Michel, extenuado de se ter visto na necessidade de se dominar durante aquela discussão em que, se escutasse apenas a voz da cólera, haveria dado uma ordem peremptória. É sempre um momento desagradável esse em que nos apercebemos de que o nosso filho se tornou homem, que se liberta e escapa à tutela e que, daí por diante, é preciso contemporizar-se em vez de prescrever. Sendo de natureza imperiosa, Doutreval irava-se mais do que qualquer outro. Mas o trabalho dulcificava-o. A comunicação a fazer à Academia de Medicina esperava-o no escritório inteiramente revista e retocada pela pena ágil do seu assistente. Doutreval sentara-se, abrira a pasta. E estava;realmente tranquilo.

Fabienne chegou, parecendo mais pequena dentro do roupão encarnado. Instalou-se aos pés do pai, sobre uma almofada espessa, com o Ivanhoé aberto. Doutreval recuou a cadeira, como sempre, para lhe dar lugar. A rapariga desfizera as tranças, libertando assim, para a noite, os seus cabelos negros. o pai, enquanto lia, brincava com a cabeleira tépida da filha, que se lhe espalhara na mão. Estava contente de a sentir tão perto, agora que Michel lhe fizera sangrar de novo o coração. Baixinho, articulava as frases incisivas e curtas de Regnoult, prosa sonora, leve, onde não reconhecia nada do seu esforço lento, dessa pesada exposição científica que preparara durante tantos meses. A pena mágica de Regnoult, raspando aquele amontoado informe, transformara-o em poucos dias num edifício claro e harmonioso. Não faltava aí nem o sal ático, nem a palavra que desenruga a testa dos sisudos, nem a franqueza que dispõe bem, nem as confissões leais dos malogros, nem a modéstia e a sinceridade científica, mais lisonjeiras ao orgulho do que o próprio orgulho, nem os resumos engenhosos, nem as pausas, nem os belos efeitos que provocam a ovação do público. Vista dessa forma através da magia do estilo, a sua descoberta parecia-lhe mais bela, maior, mais fecunda, mais genial do que teria suposto. Os algarismos assumiam também mais alto valor persuasivo.

«Nestas condições», leu Doutreval, «sejamos sinceros: falta-nos ainda o recuo no tempo para poder apreciar, em conjunto, os resultados. Mas somos capazes, desde já, de afirmar que, se as esquizofrenias antigas não são influenciadas na sua fase de demência, as recentes, em oitenta e cinco por cento dos casos, acusam alívio ou melhoras indiscutíveis. Quanto aos doentes de hipocondria, todos obtiveram melhoras...»

Assim lia Doutreval. Com a mão fria acariciava a nuca de Fabienne, procurando o calor do pescoço dela, sob a tepidez suave da cabeleira pesada. Mas nem pensava nisso. Todo ele se entregava à satisfação orgulhosa da inteligência. E quando, às dez horas e meia, Mariette veio ralhar com a irmã e buscá-la para se deitar, Doutreval, levantando-se para beijar a filha mais nova, lembrou-se subitamente de Michel e admirou-se de se sentir já tão longe daquele incidente desagradável.

Cansado, dirigiu-se para a cama. Pesava-lhe a cabeça, o joelho incomodava-o depois da fadiga daquele dia. Mas de nada disso ele dava tento; estava todo entregue à exaltação, à alegria do triunfo. Esquecia-se do filho, das preocupações, do esgotamento. Atribuía esse milagre ao trabalho e pensava:

- Trabalho, trabalho! De verdadeiro só há isto! Muitas vezes chamamos virtude ao que, no fundo, não

é mais que satisfação do orgulho. Se Doutreval tivesse de despender o mesmo esforço por conta e para glória de Regnoult ou de Groix, sentiria igual contentamento?

 

- Tem de me deixar, senhor Michel - dizia Évelyne de cada vez que ele a visitava. - A menina Daele falou-me. Sei tudo. Não posso consentir que sofra por minha causa...

- Não quero deixá-la! - retorquia Michel. Évelyne fitava-o com os seus olhos negros um tanto bravios.

- Tem de ser... tem de ser. Não sabe o que é a vida, senhor Michel...

- Não me diga que a conhece. Na sua idade!

- Tenho vivido mais que o senhor. Sofri...

- É exactamente por essa razão que não quero que recomece a sua antiga vida.

Ela encolhia os ombros franzinos.

- Já estou habituada... Será como antes de o senhor vir cá. É preferível não nos tornarmos a ver.

- E é a Évelyne que me diz isso!

- Não quero que seja infeliz por minha causa. Fico mais sossegada assim... Pode escrever-me de tempos a tempos... E será também por escrito que diremos adeus um ao outro, não é verdade? Temos de nos separar... É a vida... Não nasci para o seu mundo nem o senhor para o meu... É melhor que seja já, antes que... que isso se torne muito custoso.

- Muito custoso?

Évelyne ruborizara-se um pouco.

- Isto é... creio que... que já estava a gostar demais das suas visitas, senhor Michel... Não pensava senão nisso... É preciso ser razoável!

-Jamais darei ouvidos a esses argumentos!

- Tem de ser. É preferível... Senão, nunca estaria sossegada, ao vê-lo aqui. Sentiria medo, por sua causa... Deixe-me, senhor Michel, deixe-me. Cada qual tem o seu destino, na terra. Nem o senhor nem ninguém pode mudar a minha sorte. Não nasci para ser feliz. Ainda assim, tive alguns meses de felicidade, graças a si. Nunca o esquecerei. Foi tão bom para mim, fez-me tanto bem Agora acabou-se. A vida assim o quer... Eu já sabia que isto ia acontecer. Esperava por este dia, e fui-me preparando... Esteja tranquilo, que eu tenho coragem. Pense em mim como se eu fosse a sua primeira doente, e nada mais. Fui a sua primeira doente... Évelyne, Évelyne Goyens... Uma recordação agradável para si. Vamos, senhor Michel, digamos adeus um ao outro e nunca mais torne cá. Esqueça-me. A vida chama por si. Verá como há-de ser feliz. E eu, mais tarde, ficarei contente, quando o souber, quando mo disserem. Não volte... Deixe-me...

Mariette também estava ansiosa. Perguntava a Michel:

- Que pretendes? Que esperas? Fala, dize-me qualquer coisa, que eu intercederei junto do papá... Que projectos tens na cabeça? Gostas dela? Não pensas de facto em Simone Heubel? Apresenta-me essa rapariga... Eu própria verei, e talvez te possa aconselhar... Sou a primogénita, Michel, sabes perfeitamente que sou para ti uma espécie de mãe. Porque não confias em mim?

Michel não respondia e ia-se embora para não chorar.

Às vezes, ofendia-se com qualquer alusão de Fabienne, ripostava, ofendendo-a por seu turno, e acabavam por discutir. Fabienne tomara o partido do pai. Aquela ligação de Michel atormentava-a pela diminuição de autoridade que isso trazia ao pai. Mariette, infeliz, ia dum para outro, chorava às escondidas, tentava inutilmente uma reconciliação, enquanto Ludovic Vatlorge, não ousando declarar-se a favor de ninguém, se abstinha de aflorar o assunto, limitando-se a perguntar discretamente aos internos se Michel continuava a ir ao sanatório. No íntimo, aquela história também o preocupava. Sonhara coisa muito melhor para o futuro cunhado.

Michel levava existência dolorosa. Nada lhe faltava, vivia na abastança, mas conhecia exteriormente a mais cruel das misérias: a que atinge um ente amado. Nunca sentira de modo tão brutal essa injustiça que permite a uns a dissipação, ao passo que a outros recusa o necessário. Vivia em dois mundos ao mesmo tempo: o da superabundância e o da maior privação. Passava dum a outro, exasperava-se, revoltava-se contra o dinheiro, contra a sociedade, contra a desigualdade... Chegava a odiar Fabienne e Mariette por causa da sua existência demasiado feliz e fácil, por causa dessa iniquidade de que elas se aproveitavam. Noutras ocasiões, pensava no desgosto do pai e desesperava-se com a sua própria ingratidão e com a sua impotência em se dominar. Via perfeitamente de que lado estava a razão. Abandonava tudo. Comprometia a sua carreira, o seu futuro, torturava o pai, cometia, sob todos os aspectos, uma loucura tremenda. Não seria possível voltar atrás? Em casa, no meio da família, reconhecia-se como ele próprio, ressuscitava o Michel de outrora. A realidade estava ali, ali estava a vida normal baseada na ordem social, no bem-estar, na segurança. Ali o esperava uma existência em harmonia com a que vivera sempre. A sua carreira fora preparada de antemão, a sua posição na sociedade era uma coisa definida. A aventura em que se envolvera, vista desse ângulo, tomava um aspecto insensato, quase infantil e quimérico. Considerava-se doido. Já não se compreendia. Dir-se-ia que essa parte da sua vida se passava num pesadelo.

Depois ia para junto de Évelyne, para o outro ambiente, o de miséria humilde, de injustiça e resignação. E então essa outra realidade, mais trágica, mais terrível, impunha-se-lhe por sua vez. Realidade demasiado forte, pungente como um remorso, de que nos desviamos e fugimos para a poder ignorar, mas que ele vira, jamais esqueceria, e de que para sempre levaria a recordação atroz, se não obedecesse ao novo dever que ela lhe fixara,

Onde estava a verdade? Onde procurá-la? A quem perguntar por ela? Como ver claro em si mesmo? O problema surgia-lhe pela primeira vez. Nunca teria imaginado que se pudesse, a tal ponto, ser tão infeliz e andar tão obcecado. Nem sabia se devia ter inveja ou condoer-se desses que ele via em torno de si, homens maduros ou já velhos, e que jamais haviam sido torturados por esse enigma, que não conheciam a fome e a sede de justiça. Estranha insatisfação, inexplicável angústia que envenena de repente a nossa paz, a nossa alegria de privilegiados da terra, que põe, daí por diante, no pão que comemos, um gosto de cinzas e fel, e que nós amamos apesar de tudo, como um moribundo que ressuscita ama a sua dor renovada com a vida. Michel sofria dessa ideia fixa; mas sentia também, confusamente, que toda a sua existência fora por ela transformada, que tomara uma significação, e que ele se engrandecera como todos os que sofrem por amor da justiça.

Emagrecia, a saúde ia-se-lhe abalando. Atormentava-se na ruminação constante daquelas ideias, incapaz de conciliar o sono, recordando-se daquilo que o apoquentava a cada instante, obcecado por toda essa aventura, formulando a si próprio as mesmas perguntas, o mesmo ponto de interrogação, a propósito da criada que o servia, do cigarro que fumava, duma pulseira no braço da irmã ou dum mendigo encontrado na rua.

Que fazer? Êvelyne? O pai? A quem abandonar? Por um lado, tinha de sacrificar o pai, demonstrando vergonhosa ingratidão. Do outro, havia Êvelyne; o abandono seria a causa da sua morte, ele bem o sentia: deixá-lo-ia afastar-se, sem protestar, tentara já repeli-lo, pedira-lhe que não voltasse. Uma palavra só, e ele seria livre. Mas via-a em seguida ir sozinha, sofrer e desaparecer. Michel sabia que a separação também lhe seria dolorosa, que sofreria tanto como ela, que durante anos e anos lhe subsistiria a angústia e o remorso, que talvez para toda a vida lhe ficasse a amargura cruel daquela má acção. E como não saberia do paradeiro de Êvelyne, nem poderia conhecer nem avaliar a sua miséria, a existência tornar-se-lhe-ia intolerável.

Se ao menos tentasse retê-lo, guardá-lo, se ele a pudesse acusar dum nadinha de egoísmo, de inconsciência! Mas não. Deixava-o ir. Chegava até a impeli-lo a. isso. Não era das que se agarram. Sem que Êvelyne o soubesse, residia aí o seu poder: no espírito de sacrifício.

Amava-a? «Não», respondia a si mesmo, de boa fé. «Ou, se a amo, ainda sou livre, ainda me sinto capaz de a deixar. Se eu tivesse a certeza de que ela seria feliz, poderia viver longe da sua pessoa. Talvez até ficasse aliviado, pondo fim a este combate que me esgota. é a piedade que me ordena, portanto, a não a abandonar».

A piedade! Nem sequer amor, decerto. Inutilizar toda a sua vida por ter dó de alguém. Não seria insensatez? E contudo era assim. O que o retinha era o receio de que a um ser oprimido fosse infligida injustiça e novos sofrimentos. Cobardia? Generosidade? Mais uma vez se lhe apresentava o problema. Onde estava a verdade? Onde estava o dever?

«Serei doido?» pensava Michel. «Ou, pelo contrário, sou o mais humano dos homens? Que devo fazer? Que me impõe a consciência? Isto é que é terrível: não ter nada, nem preceitos, nem luz, nem guia. Nada para além de nós, nada por cima de nós! Tivesse eu uma lei, um princípio exterior a mim, que me indicasse qual o caminho a seguir... Já nem sei discernir o bem do mal! Isto é que é horrível...»

Deixar correr o marfim... Viver, esperar, não modificar nada. Eis a única solução de que se sentia capaz. Esperar que os acontecimentos o guiassem, seguir a via do menor esforço, para ele e para ela...

Tudo isto, em Michel, se exasperava mais por causa do constrangimento perpétuo, do recalcamento constante, do deserto sufocador em que o seu coração se encontrava. À Êvelyne não podia dizer nada; às irmãs e ao pai, menos ainda. E para as outras pessoas, semelhante história, em que estava em jogo a vida inteira dum homem, representava apenas um capricho estúpido e sem importância. Para ele e para ela, toda a existência comprometida; para os mais, uma dessas ligações vulgares e efémeras que se rompem quando vem a saciedade. Porque será que tão mal compreendemos o sofrimento dos nossos semelhantes? Porque será que sorrimos duma aventura que nos alancearia se se passasse connosco? Como é possível não tomar a sério estas coisas? Quem é o louco? Quem está fora da razão? Ele? Nós? Dramatizaria Michel excessivamente o seu dilema? Não. Michel bem sabia que era caso de vida ou de morte. E então? Será porque, para a maior parte das pessoas, a morte dum ser humano pouco importa, uma vez que não se saiba nada, uma vez que o crime da indiferença não surja sangrento aos olhos de quem o pratica?

- Um capricho -diziam, rindo, os camaradas de Michel. - Um estúpido capricho...

 

Certa manhã, em pleno laboratório, houve uma disputa rápida entre Doutreval e o filho. Doutreval enfureceu-se e, diante de Groix e Regnoult estupefactos, declarou a Michel:

-Já estou farto disso! Basta! Quero que acabes quanto antes. De amanhã em diante, é assunto liquidado.

Estava-se numa terça-feira. Michel tinha de esperar até quinta para poder visitar Évelyne, pois no mês anterior Beaujoin dera-lhe a entender, um pouco atrapalhado, que só eram permitidas visitas duas vezes por semana e que o regulamento era igual para todos. O rapaz percebera ter havido ali intervenção do pai, visto que essa norma se não aplicava nem aos estudantes nem aos médicos. Mas fora obrigado a acatá-la.

Na quinta-feira, finalmente, chegou ao pavilhão de Évelyne e preparava-se para subir a escada, quando Madeleine Daele o deteve.

- Onde vai, Doutreval?

Um tanto magra e pálida, continuava a trabalhar no sanatório e tentava esquecer o seu desgosto ocupando-se dos doentes. Depois que Seteuil a deixara, algumas das enfermeiras riam-se dela e tornavam-lhe a vida difícil. Tivera quinze dias de licença mas não ousara voltar à casa da família, porque a mãe, ao vê-la, adivinharia qualquer coisa.

- Vou lá acima - respondeu Michel.

- Ela partiu.

- Quem?

- A pequena Goyens, a Évelyne.

- Foi-se embora?

- Ontem à noite.

- Para onde?

- Não sei.

- Partiu!

- Sim. Beaujoin veio cá ontem e falou-lhe. Depois de ele sair, vi que ela estava a chorar. E ontem mesmo me anunciou que se ia embora. O que tem, Doutreval? Não se sente bem?

- Não é nada - retorquiu Michel com esforço. - Não é nada. Tenho calor... vim a correr...

Tornara-se muito corado e o suor molhava-lhe a testa. Madeleine Daele tratou de o consolar:

- É preciso ser razoável, Doutreval. A vida é assim mesmo... que se há-de fazer?

Percebera o que se passava em Michel e sofria por ele, no meio da sua própria infelicidade.

Michel tirou o lenço do bolso e enxugou a testa.

- Foi-se embora a pé? - inquiriu em voz baixa.

- A pé, pelo caminho de Angers, com a malinha. Em pensamento, o rapaz viu a figurinha dela a seguir

pela estrada, com passo cansado, de mala na mão...

- Iria tomar o comboio? - perguntou.

- Decerto.

- Sem dinheiro! Sem nada!

- Fez-se uma subscrição entre os doentes. Conseguiu-se alguma roupa, um vestido velho... Eu tinha um par de sapatos já usados...

- E dinheiro?

- Não seja essa a dificuldade. .. - replicou Madeleine Daele com certo embaraço.

- Ela não deixou nada para mim? Nem uma palavra?

- Não deixou nada.

Michel sentia-se como se lhe houvessem arrancado o coração. Partira, sem sequer dizer para onde ia! Desaparecida, tragada pelo mundo, perdida para sempre! Para onde se dirigir? Onde procurá-la? Ele próprio se espantava com a imensidade da sua dor, com a vertigem de furor e sofrimento que o dominava. A sua vontade seria chorar, gritar e bater, ao mesmo tempo. Todo o seu ser recusava aceitar o facto, acreditar no irreparável. Nunca mais! Nunca mais! Ela morreria, ele continuaria a viver enquanto Deus quisesse, e morreria também, sem nunca mais se terem visto um ao outro! Esta ideia provocava-lhe uma revolta de impotência, de raiva e desespero. Sentou-se num banco do vestíbulo, meteu a cabeça entre as mãos e desatou a soluçar.

- Michel! Michel! Então, meu amigo! Tenha coragem! - suplicava Madeleine.

Também ela chorava, por si e por ele, perturbada por aquela dor, por esse amor da parte dum homem, amor que ela não soubera inspirar a Setenil. Passou-lhe na testa o lenço, que humedeceu numa tigela de água. E procurou dizer-lhe palavras consoladoras.

- Foi melhor... para si... Êvelyne não há-de ser infeliz. Partiu cheia de coragem. Então, Michel? Vamos lá...

Lembrava-se daquele que a deixara, e proferia frases que lhe faziam, a ela, tanto mal.

- Pensando bem, foi preferível isso... Você ficou livre... A sua situação, a sua família...

Michel não se acalmava. E respondeu, num sussurro :

- É horrível... é horrível...

- Quem sabe se a encontrará um dia? -continuou a enfermeira.

Ele encolhia os ombros, silencioso.

- Procurando bem... Êvelyne perguntou-me a que horas havia comboio para Paris. Quem sabe? Quem sabe se foi até Amiens?

- Até Amiens?

- Talvez ainda tenha lá pessoas de família...

- Ela falou de Amiens? - insistiu Michel. Recordava-se de que a rapariga tinha efectivamente

uma tia naquela cidade, no bairro de Saint-Leu ou coisa parecida.

- Falou - respondeu Madeleine. - Até quis saber, duma das criadas, quanto custava uma passagem daqui até lá, em terceira. Foi por acaso que eu o soube.

Michel levantara-se e olhava para Madeleine, que parecia comprometida. Compreendeu então : depois de Êvelyne haver partido, a enfermeira devia ter procedido a um inquérito discreto junto das doentes e das criadas, a fim de poder ajudá-lo (se o não conseguisse persuadir à resignação) a reencontrar a rapariga, isto no caso de se convencer de que ele era sincero no seu amor, por mais extraordinária que tal coisa se lhe afigurasse.

- Você é uma pessoa digna! Você é admirável exclamou Michel, agarrando-lhe as duas mãos.

Teve desejos de a beijar. Àquela mulher a dor não endurecera o coração!

- Vá depressa, vá! - retorquiu ela, desembaraçando-se. - E nada de ”dar à língua, hem? Se o seu pai ou o provedor souberem, arrisco o meu lugar. ...

«Hei-de ter já uma explicação!» disse Michel consigo mesmo, ao sair do sanatório.

Em poucos minutos fez o trajecto para casa, fervendo de cólera e indignação. Falava só, pronunciava com antecipação as palavras que diria ao pai, e apertava cada vez mais o passo.

No vestíbulo encontrou Mariette a regar as palmeiras dos vasos. A irmã notou-lhe o descomposto das feições e observou, cheia de susto :

- Tu de volta?

- Onde está o pai? - inquiriu ele com voz sufocada.

- No laboratório. Que tens? Espera, quero falar contigo. Vou-te explicar...

Estava ao par de tudo. Ludovic Vallorge prevenira-a, pois soubera do caso através de Beaujoin. Michel, porém, não se deteve e saiu do vestíbulo. Mariette descansou o regador, tirou o avental e correu atrás do irmão sem conseguir alcançá-lo. Ele já estava no laboratório. Groix e Regnoult, ao vê-lo entrar, impressionaram-se com o aspecto daquela cara transtornada.

- Meu pai?

- No escritório - disse Groix.

- Ocupado com a comunicação - ajuntou Regnoult. Declarou-nos que não queria ninguém a incomodá-lo. São ordens, Michel.

impedia-lhe o caminho, de braços cruzados, meio sério meio a brincar. O outro empurrou-o e passou.

- Irra, que é bruto! - gritou Regnoult.

Michel subiu rapidamente a escada e, sem bater à porta, invadiu o gabinete do pai.

Doutreval, com um ficheiro aberto sobre a secretária e centenas de fichas espalhadas à sua frente, anotava as observações mais típicas no propósito de escrever um artigo para a revista Galeno. Carregou o cenho, ergueu o rosto fatigado, com ar ausente.

- Tinha proibido que me perturbassem...

- Venho do sanatório...

- Ah, és tu! Que queres?

E, de súbito, o seu espírito regressou à realidade. Recuou a cadeira, recostou-se, soltou um suspiro de cansaço perante a nova batalha a travar. E disse em voz baixa:

- Fala.

- Venho do sanatório - repetiu Michel.

- Já mo disseste.

- E soube o que o pai fez. Peço-lhe uma explicação.

- Não acho necessárias explicações - retorquiu Doutreval em voz calma, batendo, umas contra as outras, as pontas dos dedos manchados de vermelho. - Estavas a obstinar-te numa loucura sem nome. Sustive-te. é só isto.

- Não percebe que expulsou do sanatório uma infeliz que não tinha outro refúgio nem asilo? Pense bem no que fez. Pôs na rua uma criatura sem dinheiro e sem forças.

- Tomo a responsabilidade do que faço - retorquiu Doutreval em tom firme. - Mas, em primeiro lugar, não expulsei ninguém. Foi por sua vontade que essa rapariga saiu do sanatório. Beaujoin, a meu pedido, aconselhou-a a partir, sem a obrigar. Aliás, não teria direito a isso. Limitou-se a expor a situação, a mostrar-lhe o caminho perigoso que ela seguia e o mal que podia fazer a si mesma e a ti. A rapariga compreendeu. Devo ajuntar que Beaujoin lhe propôs uma ida para o sanatório de Praz-Contant, a mil e duzentos metros de altitude, em plenos Alpes. E, é claro, eu pagava a viagem, além de lhe dar uma indemnização muito razoável. Não quis. É lá com ela. Prefere desenvencilhar-se sozinha. Em qualquer caso, quanto a mim, sinto-me tranquilo. Tenho a certeza de ter agido para bem de ambos.

Michel não respondeu logo. Doutreval julgava-o já vencido. Não estava habituado a ver o filho resistir-lhe.

- Vamos, volta a ti, Michel - concluiu ele, olhando-o bem de frente. - Foi tudo pelo melhor. Não penses mais no caso. Tudo isso acabou da maneira mais feliz que poderias desejar. E agora deixa-me sozinho, pois tenho muito trabalho...

Esperando ter deste modo posto fim à conversa, debruçou-se na secretária, pegou na caneta e abriu outra gaveta do ficheiro. Esse gesto, porém, só teve o condão de exasperar o filho. Em geral, o pai intimidava-o. Desta vez, a indignação e a dor, a lembrança de Êvelyne e a sua angústia galvanizaram Michel.

- Está então convencido que é assunto arrumado e que eu me vou sem protestar? - disse ele, reprimindo a custo o tremor da voz.

O tom surpreendeu Doutreval. Michel nunca lhe falara assim. Ergueu a cabeça, olhou para o filho e viu-o pálido, de feições contraídas por fria cólera. Sem perder a calma, pousou a caneta e guardou de novo o verbete que tirara.

- Nesse caso, falemos, visto quereres - recomeçou o pai. - Pois seja! Destruí tudo. Acabei com essa estúpida aventura. Não te sobressaltes. Estúpida, sim. Mantenho a palavra. Meu pobre rapaz, pouco mais tens de vinte anos. Não possuis experiência da vida. És muito novo, ainda não sabes o que é amar. Queres ir atrás duma mulher que te faz perder a cabeça, que te embriaga. E o resto já não conta. Deixas a família, a situação, o futuro, sacrificas tudo. Pensaste no que te espera? Sais do teu meio. Casas com um ente sem educação, sem cultura, sem família, sem forças nem saúde. Cais na miséria. Estragas a tua carreira. Adeus, professorado! Serás médico num lugarejo distante, e enfermeiro duma mulher azeda, envelhecida, sem beleza, que nem sequer te poderá dar um filho, que te acorrentará a si, que te enterrará consigo e a quem já não amarás!

«Custa muito a um pai, Michel, ver o filho encaminhar-se para a catástrofe, ter a certeza de que ele será um desgraçado, e não poder detê-lo! O amor passa, Michel. Não se ama uma vez só. Consolamo-nos de tudo. Amarás dez vezes, como dez vezes eu amei! Não existe amor absoluto. Já uma vez to disse. Somos incapazes disso, meu pobre filho. Porque não consigo que me compreendas? Michel, é a verdade, é só a realidade que te faço ver. Porque repeles a minha experiência? Porque não acreditas em mim? É aflitivo que a experiência dum pai não possa servir aos filhos! Sabes bem que te estimo. Crê em mim, dá-me ouvidos. .. Que hei-de eu dizer para te abrir os olhos, para evitar que sejas infeliz? Acredita-me, Michel! Crê em quem mais te estima. Vivi, já sou velho! O amor não conta. Não se constrói a vida numa paixoneta dos vinte anos!

Este apelo comoveu Michel. Havia no pai tal angústia, tal certeza de estar na verdade, tal desejo de persuadir, tamanha boa-fé e sinceridade na sua rude concepção da vida e do amor, tão grande mágoa de não ser compreendido, que o rapaz sentiu desvanecer-se toda a sua cólera.

Não se haviam compreendido. Tudo partia daí. Michel teve ainda esperança de convencer o pai. Tentou explicar-se, esclarecer-se a si mesmo, perante Doutreval.

- Julga-me mal -disse ele.- Só vê nisto uma aventura amorosa. Engana-se, pai. Tente, também, compreender-me. Juro-lhe: se eu soubesse que aquela desventurada encontraria a felicidade sem mim, deixá-la-ia ir-se embora! Dir-lhe-ia adeus sem tristeza! Recomeçaria a minha vida onde a deixei, com alívio, apesar da minha dor... Mas não posso! Ela precisa de mim. Não devo abandoná-la. Ela só vive para mim. Em toda a sua triste existência só a mim encontrou. Só eu a mantenho no mundo. Para ela sou alguém que tudo pode, que tudo consegue. Se ainda tem esperança nalguma coisa, é em mim que confia. É insensato, é ridículo... Eu, um tipo que nada vale! Se ela soubesse quem sou! Mas é assim mesmo. Tem fé em mim. Se eu a deixo, tudo se desmorona. Que há-de fazer? Morrerá, sem dúvida. Não posso consentir nisto. Não posso abandoná-la. É uma inocente, no fim de contas, uma vítima. Não tenho ânimo para a fazer sofrer mais ainda. Eu próprio sofreria com essa ideia. Prefiro tudo a esse sofrimento.

Doutreval levantara-se, direito e pálido no seu fato cinzento azulado, e apoiara-se na secretária, do lado da perna lesada.

- Em resumo : falta-te coragem - disse ele.

- Talvez.

- Não esperava isso de ti! Julgava-te forte, capaz de singrar na vida através de todos os obstáculos. Contava ver-te um dia homem livre, tendo apenas por alvo a tua pessoa!

- Também acreditei que isso fosse possível. -E é.

- Não para mim. É-me impossível sacrificar tudo à minha liberdade. É demasiado duro. Pede-me muito.

- Nesse caso - replicou Doutreval - é a mim que sacrificas...

Esperou uma resposta, que não veio. Aquele silêncio despedaçou o seu coração de pai. Lentamente, Doutreval foi, a coxear, até à janela, e pôs-se a olhar para fora, batendo com os dedos na vidraça. Quando se voltou, tinha os olhos avermelhados. Michel conhecia o autodomínio do pai. Aquele simples vestígio de comoção deixou-o perturbado.

- Pai - disse ele - perdoe-me! Repare a que ponto cheguei! Não posso lutar mais! Não posso! Há meses que me torturo, entre ela e o meu pai! Talvez tenha razão, talvez eu seja cobarde, e ame, simplesmente, e ande obcecado... Mas o pai foi sempre tão bondoso para mim! Perdoe-me! Sou novo, não vivi ainda o bastante para ser insensível. Na minha idade não se tem ainda forças suficientes para causar sofrimento a um ente amado. Aconteça o que acontecer, bendirei o seu nome, pai, jamais me esquecerei que teve pena de mim, da minha juventude. Nunca o acusarei de nada, serei o responsável dos meus erros. Pai! Deixamos de ser humanos quando vemos só com a inteligência! Lembre-se de que também foi novo... É tão meu amigo... deixe-se enternecer. Se soubesse o que já tenho sofrido!

- E eu! - murmurou Doutreval, pálido. -Julgas que não tenho sofrido? Educar um filho, e...

A sua voz enrouqueceu. Endireitou-se então, apoiou-se à secretária e tossiu.

- Bem, bem, nada de sentimentalismos -disse, já com voz firme. - Estamos a discutir há meia hora e voltamos sempre ao princípio. Qual é a tua decisão?

- A minha decisão?

- Sim.

- Fale o pai...

- Tens de escolher. Como ontem, como sempre: ela ou nós.

- Nesse caso... não aceita...-balbuciou Michel.- Recusa...

- Estás doido! - exclamou Doutreval. - A ti é que compete obedecer. Ela ou nós.

Invadiu uma palidez lívida a cara robusta e um tanto espessa de Michel. Fitou o pai um instante, num silêncio em que havia algo de solene. Então, em passo vagaroso, foi buscar o chapéu, que havia colocado sobre os ladrilhos brancos duma das mesas, escovou-o com a manga, num gesto maquinal, e dirigiu-se para a porta.

- Partes? - exclamou Doutreval.

Michel voltou para ele o rosto transtornado.

- Vais-te embora? - insistiu o pai.

- Que quer que eu faça senão isso? - murmurou o rapaz, quase humildemente.

Doutreval olhou-o uns momentos, sem falar. Pressentia-se tudo o que queria dizer, tudo o que o filho fora para ele, tudo o que Michel acabara de lhe destruir: grito da sua paternidade despedaçada; tantas coisas dolorosas, em demasia profundas e secretas... Teve um gesto de desespero e de violência, arrancou-se à sua dor e gritou :

- Pois bem, seja assim! Acabou-se! Podes partir!

E, como o filho ainda hesitasse, repetiu com uma espécie de fúria :

- Vai-te embora! Vai-te!

Michel foi até à porta, abriu-a com lentidão, saiu e fechou-a de novo. Nessa altura não lhe restaram dúvidas de que ouvira chamar:

- Michel!

O coração pulou-lhe de esperança. Tornou a abrir a porta.

- Pai! Chamou-me?

Doutreval, de pé, com o rosto tão alterado como o do filho, fitou-o uns segundos com olhar alucinado.

- Não! - exclamou. - Não! Podes partir!

No corredor, ao passar diante da porta do quarto de Mariette, Michel encontrou de repente a irmã, que estivera à espreita e surgira no momento propício. Pelo seu ar aflito, o rapaz percebeu que ela escutara a discussão, no corredor.

- Michel! - disse Mariette, retendo-o pelo braço. Não podes fazer isso! Suplico-te, Michel!

Desprendendo-se docemente, o irmão repetiu as palavras do pai:

- Acabou-se... Deixa-me... Acabou-se.. Chegado ao seu quarto, reuniu ao acaso fatos e roupa

branca e atafulhou-os na mala, com gestos febris e desajeitados. Puxou com tanta brutalidade a correia que esta, apesar de sólida, se partiu em duas. As suas mãos trémulas teriam nesse instante vergado ferro sem que ele desse fé disso.

Pôs o chapéu na cabeça, lançou sobre o ombro o impermeável, agarrou na mala e saiu.

Quando ia descer a escada, Mariette juntou-se-lhe.

Depois de o beijar como uma doida, meteu-lhe na mão

qualquer coisa e afastou-se a chorar. Mais tarde, Michel viu que eram todas as suas economias que ela lhe dera: quinze notas de cem francos.

A campainha do telefone arrancou Doutreval ao seu doloroso devaneio. Ficara de pé no gabinete, com a perna apoiada de encontro à secretária, imóvel, a meditar...

Encaminhou-se para o telefone, coxeando mais que de costume, e levantou o auscultador.

-Está la?

A sua própria voz lhe pareceu fatigada.

- És tu, Jean?

Era Jeanne Chavot quem falava.

- Sou - respondeu ele, a custo.

- Vens esta noite?

- Esta noite?

- Sim. A minha casa. Estou livre.

- Esta noite?

Achou, de súbito, insuportável a ideia de rever Jeanne Chavot. Teria de explicar a humilhante aventura de Michel, de confessar aquele sofrimento que Doutreval não conseguia dominar e que lhe remordia o orgulho. - Então? Que tens? Não respondes, Jean?

- Sabes... não me sinto bem hoje.

- Nada de grave?

- Não, não. Um princípio de gripe. Mas é o bastante para me deixar abatido. Espero que amanhã à noite possa dar uma fugida até ao Progrès.

- Está combinado. Estimo as melhoras.

- Obrigado.

Pousou o auscultador com um suspiro de alívio. Até ao dia seguinte recuperaria a serenidade e poderia apresentar a Jeanne, enquanto lhe explicasse tudo, a fisionomia calma dum homem forte, senhor de si.

Ouviu os passos de Mariette a subir a escada. Em seguida bateram à porta. A rapariga entrou e viu-o de pé, sempre apoiado à mesa, um tanto curvado, com ar de cansaço, sem sequer procurar esconder a sua fadiga. Não se atrevendo a falar, aproximou-se do pai e pôs-lhe a mão no ombro. Doutreval compreendeu que tudo terminara e o coração enterneceu-se. Lentamente, coxeando, foi afundar-se na poltrona e meteu a cabeça entre as mãos, ocultando os olhos.

Mariette correu para ele, sentou-se na secretária e, agarrando-lhe as mãos, beijou-as. Chorava ao lado dele, sem dizer nada, desvairada, martirizada perante aquela dor que ela não podia mitigar. E Doutreval, em frases curtas, desabafava, revelando à filha mais velha, à sua primogénita, o que certo pudor o impedira de gritar ao filho: o sofrimento atroz da sua paternidade dilacerada,

- Partiu... Abandonou-me... É porque não sabe o que um homem pode sofrer por causa dos filhos! Ainda é muito novo... Não tem filhos, não sabe o que é ser pai! Tanta coisa que eu sonhei! Todas as minhas esperanças, todos os meus projectos, todo esse trabalho de terapêutica de choque a que me entrego há dez anos era destinado a ele... Para lhe preparar o caminho... Cem vezes me desiludiu. Não trabalhava, divertia-se demais... A culpa talvez fosse minha, porque lhe dei muito mimo. Era mais fraco com ele do que contigo, Mariette... Dava-lhe dinheiro a mais, tu bem o dizias, e tinhas razão... Mas não podia vê-lo desejar qualquer coisa... Ele conhecia a minha fraqueza e algumas vezes abusou... Eu não tinha animo para lhe recusar nada... Era o meu único filho... Já não tinha mãe... Perdeu-a tão novinho, lembras-te? Sentia-me na obrigação de o amimar um pouco... de lhe conceder a ternura de mãe. Tive-lhe demasiado amor, sim. Só pensava nele, pronunciava o seu nome em toda a parte... Os outros sabiam disso. Quando um estudante pretendia obter qualquer coisa começava por me falar de Michel...

«Escondia de toda a gente as suas fraquezas e tolices... até de ti. Quantas vezes tratei de compor as loucuras que ele fazia! Quantas vezes foi autuado por excesso de velocidade! Eu passava pela Prefeitura... Recordas-te dos vidros quebrados na varanda do vizinho? Não foi a vassoura da criada... Foi ele, querendo patinar sobre os vidros... Tinha então quinze anos. Paguei os estragos, sem nada lhe dizer... E quantas histórias mais graves consegui abafar, para que não se envergonhasse diante de nós! Lembras-te da pequena Raymonde, nossa criada de quarto? Pu-la na rua um dia, de repente... Cá tinha as minhas razões... Não disse nada e limitei-me a mandá-la embora... Custar-me-ia ver Michel envergonhado na minha presença... Sofreria mais do que ele, como se fosse eu o verdadeiro culpado...

«Por sua causa é que não tornei a casar! Tu não dirias nada, és boa e corajosa, Mariette, compreenderias... Fabienne, por ser ainda muito pequena, aceitaria tudo. Mas por causa dele... Não queria que sofresse, que se revoltasse, que se sentisse infeliz. Apareceram-me muito bons partidos, e todos recusei, por amor de Michel. Encontrei muitas mulheres na minha vida, nunca me prendi a nenhuma. Diziam-me que o meu filho um dia me deixaria para casar, que acabaria por esquecer. Isso bem o sabia, mas aceitava o facto. Qualquer mulher, com a sua ternura substituiria a escassa afeição que ele me tinha, afeição bastante frágil e egoísta, mas que eu preferia a todas as outras...

«Nunca me compreendi a mim mesmo! Não creio em nada. Tenho a certeza de que não existe nada para além da morte e, por isso mesmo, gosto de viver e amo a vida acima de tudo. Morreria, porém, de boa vontade, imediatamente, se me dissessem: «Dá a tua vida para que ele seja feliz...»

 

No dia seguinte, de manhã, Michel chegava a Paris, e, à uma hora da tarde, tomava o comboio para Amiens.

Estava-se no começo de Dezembro. O frio era intenso. O comboio corria veloz, atravessando rapidamente as planuras tristes da Picardia. Tempo claro, só com leves brumas no horizonte. Do céu pálido e uniforme caía a luz branca e suave, como que peneirada por um véu imenso. O planalto estendia-se a perder de vista, monótono, de terra escura lavrada, com aJgumas veigas despojadas pelo Inverno e, aqui e ali, casas de herdades solitárias, chaminés de fábricas, esguios aparelhos de puxar água com as suas rodas de penas metálicas a girarem na brisa... Muito ao longe, coroando um outeiro ou agarrando-se-lhe aos flancos, via-se o volume negro, eriçado e denso duma cerrada mata, ali esquecida como testemunha e último vestígio da floresta que outrora dominou aquela região. Algures, da concavidade dum vale, surgia o campanário duma aldeia invisível, acaçapada na margem do rio, perto dessa linfa preciosa e rara que não existe lá no alto. A espaços, uma pedreira abandonada mostrava as reentrâncias sofridas na rocha ou os seus cortes em barrancos lisos e brancos; da vida laboriosa de outro tempo só restavam uma cabana e um telheiro em ruínas, velhas carroças desmanteladas, tonéis de água ao lado de montões de entulho. Um pouco por toda a parte, da fina camada de terra vegetal que o homem se esforçava artificialmente por manter, aflorava o esqueleto duro e anguloso da greda estéril. E, por cima de tudo, reinava Dezembro com a sua geada, o seu tom lívido, a sua vasta solidão. Na crista dos regos fundos permanecia uma espuma branca gelada. A erva endurecida pelo orvalho, à beira da via férrea e nos prados, ficara seca e estaladiça. À passagem do combóio os corvos levantavam voo e espalhavam-se, pesados, no ar, como uma nuvem fúnebre. Neste cenário melancólico, o fumo branco da locomotiva parecia transformar-se em neve. Por vezes um silvo agudo cortava o silêncio envolvente.

Michel, em pé no corredor da carruagem, olhava através dos vidros os campos enregelados, mais ásperos e mais rudes do que a sua Anjou, ainda amornada pelo sol do Outono. Passara a noite anterior em viagem, e não dormira. No cérebro sobreexcitado, desde há vinte e quatro horas que andavam à roda os mesmos pensamentos, as mesmas imagens e reflexões caóticas e ansiosas. Da decisão que tomara, da punhalada com que ferira o pai, das predições deste, do desgosto de Mariette e da aventura em que se metera, que lhe restava agora? Apenas uma grande fadiga, confusão de projectos, de receios e angústias; por trás de tudo isso, surda e no entanto muito nítida, uma obsessão contínua, a recordação das palavras cruéis de Doutreval: «Falta-te coragem... Julgava-te forte... homem livre...»

E isto entristecia-o, lançava-lhe no espírito uma dúvida. Com a testa apoiada à vidraça, olhava, sem a ver, a paisagem crepuscular que fugia. Absorvia-se no seu amargo sonho, assustado pelo próprio niilismo, incapaz de ser egoísta até ao fim, tendo perdido tudo- até a possibilidade de distinguir o bem do mal.

Um pouco antes das três horas, surgiu Amiens ao fundo do vale do Somme. Negra e fumarenta, a cidade estendia-se pela margem do rio, que a encerra nos seus inúmeros braços. Sobre ela corria uma nuvem pesada, cor de fuligem, que ainda mais a escurentava. Dominando a uniformidade cinzenta dos telhados, elevavam-se as duas torres da catedral, maciças, quadradas e iguais. A sua enorme cobertura de ardósia corcovava como um espinhaço monstruoso. Atrás das torres erguia-se a agulha, alta, afilada, desmedidamente frágil pelo contraste com os dois campanários de pedra.

Do cimo da rampa, Michel, durante segundos, teve debaixo dos olhos toda aquela vasta perspectiva. Depois, o comboio desceu em direcção à cidade e o panorama de telhados foi desaparecendo a pouco e pouco atrás do monte.

Minutos mais tarde, Michel saía da estação de Amiens.

Por acaso, Évelyne dissera-lhe, uma vez, de maneira muito imprecisa, qual o bairro onde a tia morava. Michel não só se lembrava disso como sabia que esta se chamava Jeanne Lallier e que tinha sete filhos. Era a casa dessa mulher que ele queria ir, convencido de que obteria aí as informações necessárias. Um polícia indicou-lhe o caminho. Ao chegar à frente da catedral, tomou pela esquerda, contornou a basílica e enfiou por uma dessas ruelas sórdidas, cheias de tascas, de péssimos hotéis e de casas mais que duvidosas. à porta das tabernas, exibiam-se mulheres de má nota, muito decotadas apesar do frio. De vez em quando, Michel entrava num ou noutro estabelecimento para se informar. Foi um carteiro que, por fim, declarou conhecer perfeitamente Jeanne Lallier e lhe deu a direcção: morava atrás de Saint-Leu, no terceiro andar dum prédio que o homem descreveu assim:

- Em baixo, na cave, habita um sapateiro. E por cima da porta há uma gaiola com tentilhões.

Michel agradeceu, continuou o seu caminho e chegou às traseiras da igreja de Saint-Leu. Aí, numa rua larga, ainda mais populosa, onde só se viam quitandas imundas, caixotes de lixo, portas abertas para corredores escuros e escadas sujíssimas que conduziam sabe Deus a que antros de miséria, reconheceua baiúca do sapateiro e, por cima da porta, a gaiola onde se debicavam dois tentilhões cegos.

Michel debruçou-se no postigo e interrogou o sapateiro remendão.

- É no terceiro andar - confirmou o homem. Meteu-se pela entrada particular e subiu. Chegando ao patamar do terceiro andar, estreito e curto-o suficiente para as pessoas se voltarem - deteve-se diante duma porta. O coração batia-lhe tumultuosamente. Tinha agora a certeza de que não encontraria Évelyne: achava isso impossível, seria muito simples, fácil demais; iam abrir e dizer: «Não, senhor, a minha sobrinha não está cá...»

Era o mais natural. Michel quase teve vontade de se ir embora, sem nada perguntar. Ficou assim meio minuto, com a mão erguida, pronto a bater e sem ousar fazê-lo. Atrás dele, uma fresta deixava entrar no patamar exíguo uma claridade suja, que punha em evidência a sordidez das paredes até à altura do corrimão, e a velhice da porta e das madeiras carecidas de tinta e manchadas. Do fundo da escada vinha cheiro a refogados e a urina.

E se ela estivesse ali? Se fosse a própria que viesse abrir? Que diria ele? Que perguntaria? Como explicar-se? Como declarar a Êvelyne: «Venho ter contigo, compartilhar da tua miséria!? Aceitas-me?»

Êvelyne diria que não, repudiá-lo-ia. Havia de julgar que estava doido. Não podia deixar de proceder assim.

Michel continuou no patamar, olhando maquinalmente em volta de si, ouvindo o coração pulsar-lhe cada vez mais forte. E, resolvendo-se de repente, bateu à porta.

Houve um rumor de chinelas que se arrastam no soalho e o barulho do ferrolho a correr. O rapaz esperava, no cúmulo da impaciência. A porta abriu-se então e, destacando-se na sombra duma cozinha onde pendia roupa a enxugar, apareceu a figura duma velha, de tez amarelada e cabelos grisalhos.

- Que deseja?... - balbuciou ela tomada de vaga inquietação, esse medo perpétuo dos humildes perante os desconhecidos. - Que... deseja?

- É a senhora Lallier?

- Sou, sim, senhor.

- Tem uma sobrinha, Êvelyne Goyens?

- Sim, senhor.

- Ela está aqui?

- Não, senhor.

Michel experimentou um alívio enorme ao saber que Êvelyne não estava ali, que não ia surgir bruscamente.

- Venho da parte do provedor dos hospitais de Maineburgo. A sua sobrinha saiu do sanatório...

- Sim, senhor. Há alguma dificuldade?

O visitante viu-a logo receosa de qualquer complicação.

- Não, senhora. Desejava apenas saber se entrou noutro estabelecimento.

- Não entrou, não, senhor. Está em sua casa. Alugou um quarto que encontrou vago. E teve sorte, porque também achou trabalho.

- Trabalho?

-Sim, senhor. Peças de pano, para tirar o barbilho.

- Então não mora consigo?

- Isto é tão acanhado! Dois quartos só, e tenho, ainda, quatro filhos na minha companhia! Eu de bom gosto a teria hospedado; ela é que não quis...

- Onde é que mora?

- Na rua d’Engoulvent, 27, 1º.o andar. É a dois passos daqui.

- Muito obrigado, minha senhora. Queira desculpar.

- Não há de quê. Sempre às ordens, senhor... senhor.

Michel desceu a correr. As fontes latejavam-lhe. Mas o ar frio fez-lhe bem. De chapéu ainda na mão e sobretudo desabotoado, foi caminhando ao acaso, no passeio, até encontrar um garoto que lhe indicou o caminho.

A rua d’Engoulvent, corredor estreito e medieval, com os seus casebres tenebrosos, seguia ao lado dum canal, braço do Somme, prisioneiro entre muralhas de tijolo, no fundo do qual, entre pedras, tachos quebrados e muito ferro velho, corria apressada uma água verde e extraordinariamente límpida. Ao fim da rua cruzava o canal uma pontezinha curva de pedra, que ligava à abside da igreja de Saint-Leu. O número 27 ficava ali, perto da ponte. Michel subiu rápido, em silêncio, como que impelido por uma força. Já não sentia nem medo nem apreensões: ia decidido, arrastado por uma impaciência frenética. Duas portas no primeiro andar; numa delas, um bilhete ensebado onde se lia um nome desconhecido. Michel bateu à outra, e fê-lo com as duas pancadas secas com que tempos antes, no pavilhão do sanatório, anunciava a sua chegada à porta de Êvelyne. Ela devia reconhecê-las, por certo. E, sem esperar resposta, deu volta ao puxador e entrou.

O quarto, lajeado de vermelho, era modesto mas limpo. Num fogão de ferro ardia uma chama pequenina. Sobre a mesa coberta de oleado via-se um pão já partido. Em frente da janela havia uma grosseira mesa de pinho onde se desdobrava uma peça de tecido cru, pronto para o desbaste. E defronte da mesa, sentada, recebendo em cheio, pela janela de estores arrepanhados, a luz fria desse céu de Dezembro, Êvelyne Goyens, meio voltada para a porta e muito pálida de ansiedade, esperava que a visita se revelasse. Os seus grandes olhos pretos, olhos de animal assustadiço, fixaram, imóveis, o rosto de Michel. Ela não fez um gesto, não pronunciou uma palavra. Julgar-se-ia que lhe tinham faltado as forças.

Ele é que, em voz baixa, disse:

- Êvelyne!

A rapariga deixou-o entrar no quarto, sempre sentada, muda, mais pálida ainda e de boca entreaberta. Devagar, endireitou o busto. E deixou pender a cabeça para trás, fechando docemente os olhos. A pinça de metal escapou-se-lhe dos dedos, caiu no ladrilho com um som claro.

- Évelyne!

Michel correra para ela, gritava-lhe o nome em voz estrangulada, selvática. Dir-se-ia ver agora, e de repente, que estava do lado da verdade, que no espírito se lhe formara uma súbita certeza. Naquele grito vibrava a confissão dos seus sofrimentos, dos seus combates do amor mais forte que tudo, vitorioso, prevalecendo sobre o mundo, sobre os homens, sobre as dúvidas, sobre o seu próprio ser. Não pôde proferir outra coisa. Reunia, nesse nome, um infinito de devoção, de ternura, de piedade e heróica loucura do sacrifício - tudo junto nesse nome, gritado como um apelo. E sentia bem que ela igualmente o compreendia assim.

- Évelyne!

Uma vida inteira, a sua vida toda, ele a atirava aos pés dessa criatura, pronunciando-lhe o nome. Ajoelhara, emlaçara-lhe as pernas com o braço, escondia a cabeça no vestido, soluçava, sufocado, sacudido por um choro rouco e convulso. Tomara-lhe a mão gelada, que apertava na sua, cobrindo-a de beijos e de lágrimas. E ela, de olhos cerrados, lívida como um cadáver, continuava sem dizer fosse o que fosse.

- Évelyne! Évelyne! Queres-me? Queres-me?

Por fim fez um movimento de cabeça, soltou um suspiro desesperado. E, com gesto frouxo, resignado e triste, poisou-lhe no pescoço a mão livre, magra e fria, como para lhe significar que o aceitava na sua miséria.

 

- Não te atormentes dessa maneira! - disse Évelyne.

- Vai dar as tuas voltas. Eu, entretanto, encarrego-me de limpar isto.

Michel observou, em volta de si, o quarto mobilado que acabavam de alugar, nas traseiras da estação do Norte. Casados na véspera em Amiens, tinham chegado nesse dia à capital.

O quarto ficava no último andar; era de tecto baixo e sujo, com paredes forradas de papel amarelado, soalho cheio de nódoas de gordura e pedaços queimados em volta do fogão de ferro. Do leito de madeira, muito velho, caía pelas frinchas pó de caruncho. Michel, ao abrir a janela, abalou as tintas, que voaram em pedacinhos e se alastraram no chão. Dali dominava-se um horizonte de telhados de zinco e chaminés de chapa de ferro, donde saía fumo. No prédio fronteiro viam-se outros quartos mobilados, outras janelas, através das quais mergulhava o olhar de Michel. Aqui, uma vizinha acendia o lume, o que projectava, ao crepúsculo, rubros clarões na parede. Ao lado, três pretos, à luz duma vela, esvaziavam litros de vinho. Mais adiante, apoiado ao peitoril, um argelino, ainda enfarruscado pelo carvão da fábrica, tocava na marimba de vidro árias nostálgicas do seu país. E, no quarto por cima, uma rapariga ensaboava roupa na celha colocada entre duas cadeiras. Michel fechou a janela, coçou a barriga da perna, já invadida pelas pulgas, agarrou no chapéu e anunciou:

- Vou ver se encontro Norf ou Tillery.

O professor Norf não estava no seu laboratório. Era o padrinho da mãe de Michel, e este, embora não o tivesse visto mais depois da morte dela, contava obter o seu apoio. Um tanto descoroçoado, o rapaz tornou a meter-se no metropolitano e saiu na Bastilha, a fim de procurar Tillery. Encontrou o antigo camarada na própria casa. Tillery acolheu sem espanto a participação de casamento que o outro lhe fez.

- Está bem, acabarás o curso em Paris. Tenho aqui dois amigos que são estudantes. Sentir-te-ás em família.

Deu a Michel notícias dos conhecidos. Seteuil, casado na província, prosperava e vinha a Paris quase todos os meses, para se distrair. Santhanas, médico numa aldeia normanda, ganhava bastante dinheiro. Lá não havia farmacêutico, de modo que Santhanas vendia os remédios que receitava e não era de meias medidas na redacção das suas prescrições. No entanto, na terreola mais próxima, fora-se, estabelecer um boticário, a quem Santhanas tornava a vida difícil, pois este não recomendava aos seus doentes senão as especialidades de que tinha monopólio.

- Ele esta muito satisfeito - dizia Tillery. - E deve também haver grande regozijo entre os donos de agências funerárias da Normandia.

- E tu? - perguntou Michel. - Que tal vai isso?

- Muito bem. Clientela de operários. É claro que não dá lucro, mas não se pode ter tudo... Cá me vou governando

- acrescentou Tillery com um sorriso um tanto forçado.

Falaram de Êvelyne e da saúde dela.

- Tuberculose? Vai consultar Domberlé! - aconselhou Tillery. - é quem dirige um pavilhão no sanatório de Saint-Cyr. Tem um sistema muito especial, que dá bom resultado. Mando-lhe sempre os meus doentes difíceis mas desejosos de se curarem. Vai falar com ele e vê se consegues que tua mulher seja internada no pavilhão desse médico. Se não for tarde demais, o tipo cura-la-á.

Afloraram o assunto do casamento de Tillery e do seu lar.

- É um paraíso - declarou ele. - Evidentemente que luto com dificuldades... Mas, graças a Deus, minha sogra ajuda-me no que respeita à alimentação. Possui uma mercearia... Nos primeiros tempos foi para mim grande auxílio mandar vir, a crédito, batatas e café.

- Nunca supus que fizesses um casamento de conveniência - gracejou Michel.

A chegada da senhora Tillery ao consultório interrompeu a conversa dos dois rapazes. Era uma criatura graciosa, rechonchuda e fresca, que corou até à raiz dos cabelos quando o marido, com ar sumamente vaidoso, anunciou que ela se encontrava em tal estado que já podia haver a esperança de o nome dos Tillery se perpetuar através dum herdeiro.

- Que se há-de chamar Charles - ajuntou ele.

- A não ser que seja rapariga - observou Michel.

- Há-de ser rapaz - afirmou Tillery com tanta segurança que o outro não soube que replicar.

A senhora Tillery quis à viva força que Michel comesse com eles. Exibiu o saco das provisões e colocou sobre a secretária, entre impressos de receitas, pinças, o oscilómetro de Pachon e o estetoscópio, tudo quanto trouxera consigo: ovos, espinafres em lata, maçãs e queijo.

-Tudo isto vem do estabelecimento da mamã-comentou Tillery, enquanto trincava uma das maçãs e um bocado de queijo ao mesmo tempo. - É formidável! E, ainda por cima, convida-nos todos os domingos para jantar. Se eu fosse outro, até ficava corado de vergonha. Mas, daqui por uns quatro ou cinco anos, ofereço-lhe uma casa em Anjou, com pomar, em troca das maçãs que ela me dá. Tu jantas connosco, Michel. O quê? Não aceitas? Nada de recusas.

Michel teve de se defender energicamente contra Tillery, de explicar que Êvelyne o esperava e se inquietaria com a sua demora. Então a senhora Tillery insistiu em que ele levasse, ao menos, duas maçãs à mulher. Depois arrebatou, indignada, das mãos do marido, o que restava do queijo (só o conseguindo à custa dalguns beijos obtidos em luta renhida) e desapareceu na cozinha. Tillery acompanhou Michel até ao patamar no preciso instante em que chegava um cliente. Era digno de ver-se o ar solene do médico, ainda um tanto vermelho da refrega com a mulher, a introduzir o seu doente na sala-de-espera! Lançou um derradeiro olhar a Michel, acenou-lhe com a mão e fechou a porta.

Michel dirigiu-se para casa. A felicidade de Tillery alegrava-o e enternecia-o, mas provocava-lhe também uma espécie de melancolia quando pensava em si mesmo. Tillery era um felizardo; tinha dívidas, porém naquele lar havia saúde, mocidade, um filho prestes a nascer, a vida inteira em promessa... Michel revia o quarto em que ele e Êvelyne estavam instalados, esse horrível quarto de aluguer, e só a ideia lhe causava tristeza, misturada de apreensão. Afastou de si tais pensamentos e, ao abrir a porta do quarto, toda a má impressão se desvaneceu. Êvelyne limpara o aposento, correra a cortina, acendera o candeeiro de petróleo, tornara a fazer a cama e substituíra pela manta de viagem a colcha de manchas suspeitas. O lume crepitava. No forno chiavam maçãs. Sobre a mesinha, onde ela estendera uma toalha de mãos, esperavam dois pratos, luzindo sob o círculo avermelhado de candeeiro. Na prateleira do fogão ostentava-se a fotografia de Michel, dentro duma dessas molduras de cartão envolvido em fio de seda, que se faziam no sanatório. Tudo se tornara asseado, quase íntimo, quase alegre.

- Eu não seria capaz de me lembrar destas coisas todas - murmurou Michel, observando a toalha, a manta sobre a cama, a fotografia na sua moldura. Por esses pormenores conheceu a força que pode dar a experiência da miséria. E começou a admirar Êvelyne.

No dia seguinte voltou a procurar o professor Norf. Ao fundo da Faculdade de Medicina, lá no fim duma série de corredores cada vez mais sujos, Michel desembocou num pátio cercado duma estacada já apodrecida e semeado de barracões infectos, onde se acumulava carvão, caixotes velhos, coelheiras, galinheiros, canis e gaiolas com ratos. A meio havia um montão de lixo coroado por um enxergão com a palha à mostra. Ficava nesse pátio o laboratório de anatomia patológica, onde Norf recebia os sábios do mundo inteiro.

O professor acolheu cordialmente Michel. Era um velho excêntrico, de cabeça leonina, quase toda branca, olhos perspicazes e maxilares fortes. Prometeu ajudá-lo, tomá-lo ao seu serviço, obter-lhe, se o discípulo se mostrasse merecedor, um lugar de assistente na Faculdade. Enquanto falava, ia chafurdando com as duas mãos, deliciado, num cérebro humano que estava no fundo duma terrina. De tempos a tempos pegava distraidamente no cigarro que o empregado do laboratório se esquecera sobre a mesa e puxava uma fumaça, sem se aperceber dos olhares de aflição que lhe lançava o pobre diabo.

Tíllery forneceu a Michel a direcção do doutor Domberlé. o rapaz escreveu-lhe e obteve uma entrevista para a semana seguinte, no sanatório de Saint-Cyr-Êcole.

A moradia de Domberlé ficava a um quilómetro do sanatório, num lugar solitário e arborizado: casa modesta e silenciosa, a meio dum jardim.

Domberlé era homem de idade, de barba grisalha, olhos extraordinariamente negros, sagazes e ardentes, e fronte calva e enrugada.

Auscultou Êvelyne, examinou as radiografias, verificou as localizações, reviu as folhas de regímen alimentar que pedira, oito dias antes, lhe preenchessem. Com frases breves, sem insistir, chamou a atenção de Michel para o estado dos pulmões e sobretudo o esgotamento das vísceras digestivas, a debilidade do estômago, a congestão e sensibilidade do fígado, a obstrução do intestino.

- Ora veja - disse ele - o esfalfamento e a superalimentação fizeram a sua obra. A sua mulher é de família artrítica e está intoxicada desde pequena pela fadiga e pela alimentação muito forte. Foi a fraqueza dos humores envenenados que permitiu ao micróbio instalar-se sem luta. A tuberculose é, nela, apenas uma consequência do artritismo. Em lugar de nos agarrarmos estupidamente ao sinal externo, ao bacilo, vamos remontar à causa, aplicar-lhe o tratamento antiartrítico. E espero que, sem pneumotórax nem anti-sépticos, o organismo, uma vez regenerado, se desembarace por si só dos bacilos. Assim a curaremos da tuberculose.

Enquanto aguardava a entrada de Êvelyne no sanatório de Saint-Cyr, Domberlé estabeleceu uma dieta, e interdisse formalmente a superalimentação clássica de carne crua, carne de porco ou de cavaJo, fortificantes, peixe, frutas ácidas, remédios, injecções.

- Tudo isto intoxica e agrava o seu estado - declarou ele.

- Contudo - observou Michel - nos sanatórios faz-se grande consumo de carne de porco, de carne crua. Superalimentam-se...

- Bem sei! Infelizmente é assim!- replicou Domberlé.

Recomendou, pois, ao primeiro almoço pão e café com leite. Ao almoço propriamente dito, como acepipes, um pouco de trigo germinado, trigo cozido, salada e legumes crus (em pequena quantidade); em seguida ovos ou carne de vaca, um ou dois farináceos leves, queijo, pudim, frutas doces. O mesmo ao jantar, com legumes frescos e sem carne. Aconselhou por fim alguns exercícios, um pouco de hidroterapia, certo repouso metódico a observar de manhã e à tarde.

Acompanhou o casal quase até à rua. Êvelyrie ia à frente. Michel, atrás com o médico, perguntou-lhe:

- Que lhe parece, senhor doutor?

- Você viu tanto como eu. Crepitação no vértice do pulmão direito. Aqui e acolá, fervores quase cavernosos. Aliás, a radiografia é elucidativa; todo o lóbulo superior direito e a metade do lóbulo médio estão atacados. À esquerda, uma sombra muito acentuada, nódulos... Fígado excessivamente cansado, unhas muito vermelhas, dores no ombro direito por bradicardia reflexa.

- E então?

- Não sei. Mas, com um bom regímen e a ajuda de Deus, conseguem-se milagres.

Êvelyne tinha parado e esperava por eles. Domberíé alcançou-a, tocou-lhe no ombro, disse-lhe palavras animadoras, simples, bondosas, quase paternais. E ela, ao partir, sentia-se reconfortada. Um dos maiores bens que o médico pode fazer é dirigir ao doente uma frase carinhosa. Não há outra profissão em que o coração tenha tanto lugar.

No fim do mês, Êvelyne foi admitida no sanatório de Saint-Cyr-1’École. Michel acompanhou-a e lá a deixou num dormitório pequeno, com mais três doentes. Eram quatro em cada um. Despediu-se, deu-lhe um beijo, e ela ficou. A presença das outras companheiras constrageu-os até ao fim, paralisando as manifestações de ternura. Michel regressou só a Paris.

Entrou no seu quarto alugado, refugiando-se aí com uma espécie de alívio. Êvelyne fizera daquilo um lar. Ambos tinham sofrido entre aquelas quatro paredes. Michel habituara-se a pensar nesse aposento como um abrigo, um refúgio, durante as horas em que circulava pelas ruas de Paris. Êvelyne soubera dar-lhe alegria, ordem, um pouco de beleza. Ali estivera doente por duas semanas, com um começo de pleuresia. O facto de terem, juntos, sofrido naquele quarto fora bastante para o tornar, de triste compartimento, num recanto familiar e querido.

Passou uma semana melancólica a trabalhar no laboratório de Norf. A lembrança de Êvelyne não o largava. Revia-a, sem cessar, no dormitório que ela compartilhava com outras três mulheres. Escreveu-lhe na quarta-feira e tomou, no domingo, o comboio para Versalhes, a fim de a ir visitar. Quando entrou e procurou Évelyne com o olhar, viu uma visita à cabeceira do leito da mulher: uma rapariga loira, de pele branca, sentada muito perto da doente, a quem pegava nas mãos. Era Mariette.

 

Mariette, depois de ter falado em Saint-Cyr com o irmão e a cunhada, regressou a Angers e reviu com satisfação o seu velho galo Titi, as pombas e as flores. Estava contente com a viagem. Mais uma vez cumprira a sua missão de substituir a mãe defunta, de ofertar aos outros apoio, ternura e amor. Deixara dinheiro, prometera ajudá-los. Mas o que a preocupava era a notícia que tinha de dar ao pai. Só se resignou a isso três dias decorridos. E fê-lo uma noite, depois do jantar, quando Jean Doutreval a interrogava sobre a vida de Michel.

- Julgo que se há-de arranjar - disse ela. -É apenas questão de dinheiro. O mais caro é a despesa do sanatório, para a mulher...

Doutreval teve um sobressalto e fitou Mariette.

- A mulher?

- Sim...

- Isso é modo de falar, pois não?

- Supus que já lhe tinha contado...

- Que ele se casou?! Mas casou, realmente?

- Em Amiens, sim, senhor. Logo depois de partir daqui.

-Ah!

Não acabou de jantar. Pôs o guardanapo em cima da mesa e foi-se fechar no escritório.

Até aí contara sempre com a volta do filho. Custava-lhe a acreditar naquela ruptura. Esperava a carta de Michel para lhe enviar o perdão e lhe abrir os braços. Agora, só pensar nisso o exasperava.

- Imbecil! Imbecil!

Sabia que Mariette o ia visitar. A filha não fora capaz de o iludir, guardando segredo acerca da sua diligência. E, às modestas economias da rapariga, Doutreval juntara algumas notas, para Michel. Todas essas fraquezas o humilhavam presentemente, e o enchiam de furor contra si mesmo. Acabara-se tudo! Traçaria um risco sobre o passado. Já não tinha filho. O filho casara! E casara com essa doente, essa criatura insignificante, que o rapaz preferira ao pai, sacrificando vinte anos de dedicação, de amor, de ternuras inúmeras e constantes.

«Pois bem!» pensou Doutreval. «De hoje em diante já não tenho filho».

Mariette casou no fim do ano com Ludovic Vallorge, e ficou a viver na casa vizinha, alugada e decorada por Doutreval. Fabienne terminara os seus estudos no colégio-liceu. Não a interessara tirar nenhum curso superior: entrara para o hospital da Égalité a fim de fazer estágio e tornar-se enfermeira. Doutreval não discordava disso. Teria necessidade, mais dia menos dia, dos serviços da filha, pois sonhava com um centro importante de curarização, de que ele seria director e ela o seu braço direito. No entanto, aquelas mudanças acabaram por despovoar a casa. Doutreval soube o que era a solidão. Restava-lhe Jeanne Chavot, mas esta, por seu lado, vivia muito ocupada : o seu lugar no Progrès Social absorvia-lhe todo o tempo. Além disso, as suas vidas não se haviam fundido : cada um deles possuía o seu interior, o seu lar próprio, não se encontravam senão de tempos a tempos, durante umas horas, convenção tácita que tinha em vista a sua mútua comodidade, mas que, ao presente, parecia a Doutreval bastante penosa, nos momentos de isolamento e lassidão em que o invadiam pensamentos difíceis de expulsar. Tivera de contar a Jeanne a separação de Michel; e agora, que lhe devia revelar a consequência mais humilhante, o casamento do rapaz, Doutreval hesitava, deixando passar os dias. O seu orgulho sangrava ainda. Por aí compreendia ele que a amante não é o mesmo que a mulher legítima: com aquela só se compartilham as alegrias.

Jeanne era bondosa, consoladora. Um pouco distante, talvez. As mulheres intelectualizadas em excesso perdem às vezes uma parte da sua feminilidade, do seu coração. A todas as palavras prudentes que ela proferia, a todo o seu confortamento raciocinado, havia ocasiões em que ele teria preferido uma lágrima, um simples beijo, mas compassivo, maternal.

O mais difícil de passar eram as noites, essas noites de insónia intermináveis, em que tudo se acentuava, e agravava, e adquiria maior relevo: raiva, humilhação, saudades, remorsos. Remorsos, em especial. Vinham-lhe à memória episódios da sua juventude. Césarine, a criadita do restaurante frequentado pelos estudantes... Aferrara-se-lhe, apaixonadamente, e Doutreval tivera dificuldade em a deixar. A rapariga sofrera muito com isso. E uma Denise, que era empregada... Esta morrera no hospital, devido a um acidente na fábrica onde trabalhava. Ele sentira tanto essa perda! E Olga, Olga... Só, na cama, Doutreval sentia-se ruborizar. Mulher de má nota, aquela Olga... E amara-a, como um louco... Ah, mocidade, mocidade! O que ele sofrera em matéria de torturas morais com esse caso ocorrido quando tinha vinte para vinte e um anos! Sem dúvida que houvera recíproco amor... Lembrava-se com espantosa lucidez de todos os pormenores de tão censurável ligação, que durara meses. E fora ela que um dia lhe dissera: «Vai-te embora! Não voltes! Farei a tua desgraça, e não quero que isso aconteça!» Doutreval chorara, suplicara. Se a mulher quisesse, o que não teria ele feito? O que não faria qualquer de nós, aos vinte anos, se nos tivesse o destino deixado livres! E Denise? Se não houvesse morrido? Se não rebentasse nem lhe apanhasse a nuca essa correia da fábrica? Que seria agora de um e de outro? No íntimo, julgava-se homem forte só porque a existência lhe correra bem. Mas se o acaso determinara outra coisa? Ao recordar-se das fraquezas do seu coração juvenil, Doutreval chegava a compreender o filho. Apiedava-se, por momentos. Dizia de si para si, com remorsos, que no fundo queremos os nossos filhos mais perfeitos do que nós, que somos demasiado duros para com eles, que temos menos pena deles do que de nós mesmos...

Para essas longas insónias havia só um remédio, se Doutreval não quisesse embrutecer-se tomando gardenal: era o trabalho. Felizmente que, desde há meses, lhe não faltava em que se ocupar. A sua comunicação à Academia de Medicina despertara grande interesse. A imprensa apoderara-se logo do caso. E, desde os primeiros dias, choviam cartas, afluíam doentes a quem sorria nova esperança. Assim os clientes, a correspondência, os jornais, as interpelações e apelos vindos de institutos estrangeiros, as cartas e visitas dos colegas, tudo isso fazia com que Doutreval e os seus colaboradores andassem numa roda-viva. Um pouco por toda a parte, Doutreval fazia conferências, expunha os seus métodos. Estava agora a acabar a redacção dum grosso volume com documentos, gráficos e fichas que não pudera inserir na comunicação. Todos os meses dava uma fugida de quatro a cinco dias ao estrangeiro. Desse modo visitara Londres e Glasgow, a Bélgica, Munique, Berna, Milão e Roma. Preparava-se entretanto para ir a Madrid, Valência e Barcelona. O inspector geral do serviço sanitário de Marrocos propusera-lhe uma experiência no manicómio de Mequínez. Se os resultados fossem satisfatórios, estenderiam o método a todo o país. Enfim, Doutreval pensava abrir um centro, coisa sua, que ele dirigiria, onde trataria gratuitamente e que consagraria, em última análise, a sua autoridade e o seu êxito. Este pesado fardo de tarefas tomava-lhe todo o tempo, absorvia-lhe todas as energias e pensamentos. Chegava a esquecer-se de Michel e a sentir-se menos isolado.

E, para terminar a sua «cura», abandonou quase por completo a moradia e foi viver no prédio contíguo, em casa de Mariette e de Ludovic Vallorge. Só o viam na antiga habitação quando ia trabalhar no laboratório e no seu gabinete. Comia e dormia na residência da filha, que lhe preparara ali um quarto. Doutreval sentia-se mais feliz entre ela e o genro.

Ludovic Vallorge era excelente marido, trabalhador, calmo, de carácter sempre igual. A sua situação melhorava de dia para dia: médico escolar, médico dos hospitais, médico dos serviços de assistência, chefe de laboratório dos serviços municipais de higiene, eis os títulos que ele coleccionava e lhe proporcionavam recomendação constante. Encarregado de curso na Faculdade, tornava-se popular entre os estudantes, futuros médicos. Prudente e fino diplomata, tendo sabido conciliar a amizade do secretário Gigon, dos professores Heubel, Donat e Géraudin, era natural que afagasse a esperança de, em breve, ocupar a cátedra. Inscrevera-se recentemente no partido político de Guerran, e isto só porque existia essa famosa Legião de Honra, que ele anelava possuir, como toda a gente.

O que havia de mais simpático em Ludovic Vallorge era o facto de este oportunista ser ao mesmo tempo trabalhador consciencioso. Só se consegue êxito duradoiro e clientela fiel, sobretudo quando esta é constituída por gente pobre, à custa de muito trabalho e de espírito compreensivo. Vallorge, sem descurar a política dos bastidores da Faculdade, era escrupuloso nos seus encargos. Não faltava às visitas diárias do hospital, tinha as suas lições sempre sabidas e em dia, não desligava, à noite, o telefone. Podiam-no chamar a qualquer hora, quer estivesse em casa ou de visita aos Heubel ou fosse lá quem fosse. Ainda que se tratasse dum indigente que se queixasse de simples cólica, Vallorge desculpava-se perante os seus anfitriões, deixava Mariette, enfiava o sobretudo, metia-se no automóvel e, por três francos e sessenta, que talvez lhe não pagassem, acabava a noite à cabeceira do doente, sem rancor, sem azedume, sem a mais leve sombra de aborrecimento.

Era um modelo de saúde, de tranquilidade, de equilíbrio. Aceitava, com admirável sabedoria, o que a vida pode dar de melhor. O seu estômago forte, o seu sono de justo permitiam-lhe usufruir muitas coisas, das quais gozava sem se exceder. Recebiam em casa uma vez por mês, iam para o campo ao sábado e voltavam à segunda-feira; no Inverno, dedicavam-se aos desportos da neve, em Auvergne. E Mariette corria de tempos a tempos a Paris a fim de visitar Michel e Évelyne e de lhes levar qualquer auxílio. O seu projecto era de acabar por fazer a reconciliação entre o irmão e o pai. Só lhe faltava isso para ser inteiramente venturosa; isso, e a promessa duma criança.

 

Nessa noite, depois do jantar, Olivier Guerran tornara a descer ao escritório, menos para trabalhar do que para se isolar um pouco e consultar alguns livros. A mulher passara a tarde no salão do cabeleireiro, com a cabeça metida num capacete eléctrico, para ondular o cabelo, e tinha voltado para casa, como sempre, mal disposta e propensa a discussões. A atmosfera, pois, naquela noite fora tempestuosa durante toda a refeição. Charles, filho dos Guerran, e Andrée, sua mulher, esquivaram-se logo depois da sobremesa, para o seu refúgio habitual que era o cinematógrafo. Na vasta sala do primeiro andar só tinham ficado Julienne e Micheline.

Guerran, estirado numa dessas poltronas enormes de couro, que avultavam de cada lado do fogão, desdobrara um número do Candide e procurava os comentários sobre as sessões do Parlamento, quando a porta se abriu. Reconhecendo os passos de Micheline, murmurou, sem se voltar:

- És tu, filha?

Micheline ia muitas vezes ali a essa hora. Havia já seis meses que o pai deixara de ser ministro, o que lhe proporcionava aqueles momentos de descanso. O ministério caíra devido a um golpe decisivo das direitas, as quais se haviam aproveitado duma sessão da manhã de certa segunda-feira, em que não se encontravam presentes quase nenhuns deputados. O pretexto fora uma interpelação insidiosa sobre a promoção em demasia rápida concedida a determinado funcionário. O governo vira-se logo em minoria.

Guerran não se preocupou muito com isso. Sentia-se fatigado desse ano inteiro na pasta da Agricultura. O fígado inquietava-o. De vez em quando tinha pontadas na ilharga, à direita. Além de mais, convinha-lhe regressar por algum tempo ao consultório jurídico, retomar as rédeas, nem que fosse por curto período. Assim tranquilizava a clientela e dava-lhe a entender que era ele em pessoa quem decidia de todos os processos. Aliás, nenhum dos secretários, nem sequer Legourdan, seu braço direito, estava à altura de pegar, sozinho, no leme da embarcação. Quanto ao filho, Charles, bem podia arvorar-se em chefe: Guerran não o achava apto, por ora, a suceder-lhe na direcção dos negócios. Embora se apaixonasse pela política, o ex-ministro considerava que o essencial, aquilo que não admitia negligência, era a profissão de advogado. Charles, com a volta do pai, sentira-se despojado dos processos mais importantes, de que se apropriara na ausência de Guerran; mas este sabia, quando era preciso, passar por cima dos despeitos dos outros, e Charles não chegara a recalcitrar, tanto mais que o seu orçamento dependia das importâncias avultadas com que Guerran o equilibrava.

- Papá - disse Micheline - queria falar consigo.

O interpelado voltou-se, com ar surpreendido. O tom da rapariga parecia sério.

- Sou todo ouvidos - respondeu, depondo o jornal. Senta-te aqui.

Micheline aproximou-se e, sentando-se nos joelhos do pai, estendeu um braço em volta do pescoço dele.

- Escute, papá. Sempre me preveniu de que eu devia ser franca, não é verdade? Que devia contar tudo...

Guerran assustou-se. Que lhe iria a filha confessar? Em certas ocasiões, a franqueza das crianças é um tanto dolorosa. Ah, como se torna mais fácil a solução cobarde, o silêncio mútuo que permite ignorarem os pais as tentações e desfalecimentos da mocidade! A ele, no entanto, não escasseava coragem para essas coisas. Desejara sempre que a rapariga fosse transparente como cristal. Cumpria saber pagar o preço de semelhante qualidade.

- Sim, deves dizer-me tudo, Micheline - respondeu Guerran, disfarçando a inquietação. - Ainda que seja assunto grave... -é... que é difícil.

- Caso muito delicado?

- Um pouco - volveu ela, ruborizando-se.

Como lhe acontecera em tantas ocasiões, Guerran teve pena, nesse momento, de não ser a mãe de Micheline. Quanto mais fácil seria, a esta, fazer a sua confidência à mãe! Com um suspiro, diligenciou, pela milésima vez, conquistar e serenar a rapariga, substituir a mãe e conseguir, à força de ternura, merecer a confiança, o abandono total da alma da filha.

- Micheline - insistiu ele, pegando-lhe na mão - sou o teu papá, o teu camarada e companheiro... Só me tens a mim... Faze de conta que, além de pai, sou tua mãe... Em quem podes depositar confiança, senão em mim? Não estás ainda convencida de que te dedico a maior afeição?

- Estou, sim, senhor.

- Então? E estimo-te mais do que julgas, minha filha, O bastante para ouvir tudo e tudo compreender. Vivi, já sou velho, conheço a vida, tive as minhas fraquezas... Ainda que tivesses procedido...

- Isso não! - protestou Micheline. Guerran sentiu-se mais sossegado.

- Nesse caso, que podes recear? Achas difícil dizer? Ora, ora... Já te tenho contado tanta coisa espinhosa a meu respeito! Já me confessei a ti, pelo menos, dez vezes!

E não se arrependera, naquelas ocasiões, das fraquezas, dos pecadilhos confessados a Micheline, daquela sinceridade que ele, por instinto, achara necessário mostrar-lhe, para melhor captar a sua confiança. Sem saber porquê, talvez por intuição, compreendera que é preciso ceder para depois conquistar. E fora assim que, em certos momentos, se entregara a confidências penosas, descrevendo as suas primeiras decepções de rapaz, as suas dúvidas, os seus erros; observando-lhe como é prejudicial à vida a solidão moral, a ausência de conselhos, de guia, e tudo isso apesar das aparências indicarem muita vez o contrário. Agora experimentava a satisfação de haver tido a coragem de se apresentar à filha sob o seu verdadeiro aspecto.

- Sei tudo isso muito bem - retorquiu Micheline. Vamos, pois, ao caso. Não é nada de grave, nada de mau. Apenas isto: parece-me... parece-me que há alguém que me interessa. Ora aí tem!

Declarou isto e ficou rubra como uma cereja. Tentou rir, com um risinho embaraçado, e escondeu a cabeça loira no ombro do pai, onde ficou a chorar.

- Então, então? - murmurava Guerran, definitivamente aliviado. - Quem é essa pessoa? Dize-me o nome. Não tens coragem? Queres que te ajude? É alguém daqui? Do meu consultório? Não? É visita da casa? Também não! Alguém que tu conheceste nas férias? Ah, já sei: Robert Bussy!

Micheline, sempre com a cabeça escondida no pescoço do pai, fez que sim, por duas ou três vezes.

- Está bem. é natural -comentou Guerran.-Trata-se dum rapaz muito simpático, de boa família e com boa situação... Há-de ser notário, como o pai. Pela minha parte, agrada-me. Ele declarou-se?

- Não... Sim... um poucachinho... Queria falar do assunto à família dele, mas eu exigi que o meu pai soubesse primeiro...

- Minha filha - volveu Guerran, radiante, beijando Micheline - sinto-me muito contente! Vamos resolver tudo isso. Antes de nada, é conveniente falares à tua mãe...

- Oh, com ela não me atrapalho! - retorquiu a rapariga. - Dir-lhe-ei o que se passa, com a maior serenidade.

- Bem, bem. Ela não deve suspeitar da nossa cumplicidade. Podia-se ofender. Vejamos agora outra coisa: tens apenas dezoito anos, e esse rapaz não é muito mais velho do que tu. Há o serviço militar... Ele já o fez?

- Ainda não.

- Gostaria que ficasse livre disso antes de se casar. Mas, por outro lado, noivados intermináveis... Enfim, havemos de resolver o assunto.

Foi assim que, oito dias depois, na maior intimidade, o notário Bussy festejava discretamente os esponsais do filho com Micheline Guerran. Ficou combinado entre as duas famílias que os jovens se veriam pouco durante o primeiro ano de noivado e que o casamento se realizaria dois anos depois. Géraudin, que assistiu ao almoço comemorativo, na altura da sobremesa ofereceu a Micheline uma pulseira de oiro com desenhos gregos, no valor de catorze mil francos.

Guerran, ministro, mais uma vez prestara um grande favor a Géraudin. Graças a ele, a lei que fixava aos sessenta e sete anos a reforma de cirurgião dos hospitais fora considerada letra morta. Isto, para Géraudin, representava uma nuvem negra cuja ameaça desaparecia para longe.

Havia oito dias que Belladan - o doutor Belladan, como lhe chamavam depois que abrira consultório -preparava cuidadosamente um dos seus pequeninos doentes, petiza de dez anos, para a ablação das amígdalas. Repouso, regímen leve, laxantes fracos. Géraudin é que a devia operar.

Este Belladan, instalado no mesmo bairro em que estivera Tillery antes da sua transferência para Paris, não conseguia obter na vida prática o êxito que lhe agouravam os seus anos de estudante. Para quem o conhecera na Faculdade, aquilo era coisa inexplicável. Sabia como ninguém, fazia diagnósticos certíssimos, tinha muita prudência e grande jeito para tudo o que respeitava à cirurgia. Era, sem discussão, excelente médico. Todavia, apesar de tantas qualidades, limitava-se a vegetar. Faltava-lhe esse não sei quê que dá confiança e cria cordialidade, esse dom que estabelece a simpatia entre o facultativo e o doente. é possível que tivesse excesso de hospital e de laboratório e se esquecesse um pouco que o factor humano entra também em linha de conta e que tratar pessoas não é o mesmo que se ocupar de máquinas e de animais. Conhecia pouco o elemento operário. Mantinha sempre uma atitude distante, científica, abstracta, quando auscultava os doentes. Para ele havia nessa gente, e antes de tudo, um problema a resolver, o qual não necessitava, no fim de contas, nem piedade nem penetração psicológica. Nascido no meio burguês, considerava os homens do povo um pouco como seres elementares, para a cura dos quais se não exigiam explicações.

É, no entanto, de crer que os humildes pressentissem tudo isso, embora confusamente. O certo é que Tillery, com as suas incertezas e tentativas, mas também com a sua bonomia, entusiasmo e ternura espontânea por essa mesma classe de pessoas, alcançava triunfos numa região operária de Paris, ao passo que, em Angers, Belladan se via obrigado a pedir aos pais, todos os meses, quatro ou cinco notas de mil francos. Por isso lhe não desagradava a ideia daquela operação que lhe traria razoável percentagem, além de que era útil chamariz para a clientela do seu bairro. A pequena era filha dum armador rico, e, como só queria ser tratada por Belladan, este dedicava-lhe um interesse, um afecto invulgar na sua pessoa.

O dia da operação ficou marcado para a quinta-feira seguinte. Nessa quinta-feira, de manhã, Géraudin veio de Paris com Valerie, em automóvel. Valerie, depois de curta estada em La Baule junto do filho idiota, voltara fatigada, ao que dizia, e propusera ir repousar na capital. De lá, na quarta-feira, cedo, havia telefonado a Louis para lhe pedir que a fosse buscar sem falta: o estômago atormentava-a, sentia-se mal a mais não poder.

Géraudin, ao chegar ao hotel, encontrara a mulher no salão de chá, onde, de vestido muito curto, estava a dançar um chctrlestown, apesar do seu mal de estômago. Ia um pouco melhor, segundo a sua declaração. Quem não estava bem era Kiki, que ela trazia quase constantemente ao colo, doente das orelhas e da goela. Valerie quis que o marido examinasse imediatamente o cão e que regressassem sem demora a Angers. Géraudin, depois duma discussão acalorada, resignara-se a observar o pequinense e prescrevera supositórios - que um paquete do hotel correu a ir buscar à farmácia e que Louis administrou.

Voltaram, pois, de automóvel na quarta-feira, Valerie à frente, como de costume, ao lado do motorista, e Géraudin atrás, com as malas. Valerie medicava o estômago com chocolates de licor e cerejas cristalizadas. A cada solavanco, Géraudin apanhava com uma das malas na cabeça. Acabou por se zangar e fazer tal barulho que Louis parou o automóvel. Depois de breve mas rude altercação, a meio da estrada, Géraudin declarou à mulher:

- Pois vem tu para o meu lugar! Verás como é bom!

- E é que vou! - retorquiu Valerie.

Mas, passados três quilómetros, desatou aos ais e, pela portinhola, vomitou as cerejas que engolira. Géraudin, aflito e consternado, desculpou-se, consolou-a, chamou-se a si mesmo estúpido e a ela «minha pobre Riri». E foi instalar-se de novo no assento de trás.

Chegaram a Angers justamente à hora do almoço. Logo a seguir, apareceu o veterinário, o qual examinou Kiki, na presença de Géraudin, que estava irritadíssimo. Depois dessa consulta, Valerie reclamou o carro e o motorista para ir à confissão.

Demorou-se bastante tempo na igreja. Louis não se importou muito : a senhora, depois disso, Acostumava ficar como um veludo, por espaço duma hora. à saída, ordenou ao motorista que a conduzisse a uma loja de modas, e foi silenciosa durante todo o trajecto. Era já o efeito da confissão. Ao apear-se, recomendou, como de costume:

- Venha buscar-me daqui a pouco.

Em geral, esquecia-se das horas, quando andava nas lojas. Louis esperou trinta minutos, depois entrou no estabelecimento, descobriu a senhora na secção dos espartilhos e trouxe-a, não muito satisfeita, para o carro. Dali foram a outra loja, onde Valerie desapareceu. O motorista, ao cabo de uma hora, procurou-a em vão de sala em sala. De forma que achou preferível chamar:

- Minha senhora! Minha senhora!

Com o máximo desprezo pelo ar ofendido das empregadas, conseguiu dar com ela na secção das meias de seda. Valerie protestou. Não queria acompanhá-lo. Ele protestou também, ameaçando-a de a deixar só. Então, furiosa mas dominada, dispôs-se a segui-lo. Não se sabe bem porquê, a verdade é que tinha medo de Louis. Ao passarem na secção da roupa branca para homens, comprou-lhe um par de cuecas listadas de azul, no propósito de o apaziguar.

Pelo caminho foi exclamando :

- Que dirá o senhor? Estamos tão atrasados! Louis, arranje uma desculpa. Por exemplo, que teve um furo...

- E a senhora acaba de sair da confissão! - retorquiu o motorista, indignado. - Mais valia não ter ido lá!

- Não serei eu quem mentirá. Será você.

- Vem a dar no mesmo - concluiu ele, na sua lógica vigorosa.

- Está bem, está bem, não haverá mentiras. Pelo menos hoje.

Ainda o obrigou a parar no depósito do peixe, onde comprou um linguado para ela, uma sarda para o marido e bacalhau para o pessoal, a quem alimentava parcamente. Era às escondidas que Louis levava para casa, todas as manhãs (e de acordo com o patrão) a carne para o jantar das criadas. Tinham assim decorrido cinco horas depois que haviam saído. Géraudin estava sobre brasas. Belladan esperava na clínica, sabe Deus desde quando!

Louis levou lá Géraudin a toda a pressa. O cirurgião tinha quatro operações a ffazer.

A primeira era um antraz profundo da nuca, o qual devia ser esvaziado com o bisturi eléctrico. Foi trabalho delicado. Tratava-se dum sujeito de setenta e dois anos, de pele lívida, beiços azulados, coração fraco, ameaçado de septicemia. Teve duas síncopes sob a acção do clorofórmio. Géraudin, quando acabou, bufava de calor. Depois veio coisa mais importante: uma úlcera do estômago. Ele, porém, era dos raros que operam isso a valer. Há muitos cirurgiões que se contentam com unir o estômago ao intestino, isolando o piloro. Géraudin, esse, operava verdadeiramente a úlcera. O médico que mandara o doente estava ali também e desejou ver a operação. O professor quis brilhar. Trabalhou com rapidez e foi de facto brilhante. Ao concluir, sentiu a nuca a picar de leve.

Faltavam só uma apendicite e uma amigdalotomia. Géraudin suspirava por um charuto, café e conhaque. Mas, enquanto passava as mãos por álcool, já lhe traziam o doente seguinte, o da apendicite.

Aquilo foi difícil. Não havia meio de descobrir o apêndice. E o médico assistente, que também, como o outro, quisera presenciar a operação! Era necessário, mais uma vez, fazer figura, ter jus aos louvores. Cada uma das operações de Géraudin representava assim uma espécie de exame, que o esgotava : dupla batalha contra a morte e contra o médico que assistia. Géraudin começou a enervar-se. Onde diabo se teria metido o apêndice? As orelhas escaldavam-lhe. E, com tudo isto, a maldita nuca sempre a picar! Quando terminou, sentia-se descontente, mal disposto, enervado. Tratou com aspereza a enfermeira-chefe e o seu motorista Louis, que, segundo ele, aplicara mal o clorofórmio. E pensou:

- Mais vale ficar hoje por aqui.

Havia, porém, essa petiza, que Belladan trouxera para que lhe extirpasse as amígdalas. Estava pronta, e esperava. Géraudin conhecia as angústias desses momentos.

Quis livrar-se de mais aquela operação, a fim de não a deixar para o dia seguinte. Além disso, havia a questão do amor-próprio. Géraudin não se queria reconhecer fatigado. Seria o seu primeiro recuo, a primeira vez que se confessaria envelhecido. Inconscientemente, recusava-se a aceitar uma coisa dessas.

Belladan esperava havia mais de uma hora, com a sua doente, tentando distraí-la, a fim de lhe abreviar aquela expectativa intolerável. A pequena estava ali com o pai e a mãe, todos três horrivelmente oprimidos.

Por fim Belladan entrou com a petiza na sala das operações, enquanto os pais ficavam no corredor. Deitaram logo a criança e Louis deu-lhe o anestésico, do qual foi necessária grande dose. A paciente estava nervosa. Aliás, as operações na proximidade do cérebro exigem sempre muito mais quantidade de anestésico. A operação decorreu às mil maravilhas. Géraudin raspara com a respectiva colher na faringe e limpara o «cavum» ensanguentado. Sentia um vago enjoo. A nuca doía-lhe cada vez mais. Tinha a testa molhada de suor. Mas acabara.

- Perfeito! - disse Belladan. - Perfeito! Géraudin pôs de lado a colher e afastou-se, aliviado,

com Belladan, a fim de lavar as mãos.

- Senhor doutor! Senhor doutor! Era Louis que chamava.

- Ela está a morrer.

Os dois médicos correram para a mesa operatória. A criança já não respirava.

- Respiração artificial - disse Belladan, começando a desabotoar o vestido da pequena.

- Sim... sim - balbuciou Géraudin.

- Vá! Eu dispo-a!

- Uma pinça... Uma pinça - pediu Géraudin. Recebeu a pinça, que a enfermeira lhe apresentava, e

repetiu :

- Respiração artificial... respiração artificial...

- Depressa! -incitou Belladan, que acabava de cortar a camisola da pequena.

Géraudin meteu a pinça na boca da moribunda; mas, em vez da língua, prendeu a bochecha, e puxou.

«Enlouqueceu!» pensou Belladan.

Olhou para ele. Géraudin, lívido, luzidio de suor, tremia todo e enxugava a testa com ar desvairado. Sem um segundo de hesitação, Belladan arrancou-lhe a pinça das mãos, meteu-a na boca da pequena, prendeu a língua e puxou. Géraudin, desnorteado e com as fontes a escorrer, sustinha com as mãos trémulas a cabecita pendente.

«E os pais à espera!» disse consigo Belladan, desesperado.

Justamente nessa altura a língua escapou-lhe da pinça. A criança teve um soluço e respirou.

Os dois clínicos endireitaram-se. Géraudin estava muito pálido e os lábios tremiam-lhe levemente. Ninguém à volta deles havia reparado em nada.

«Foi uma vertigem», dizia Géraudin de si para si, enquanto Louis o conduzia a casa. «O que eu tive foi apenas uma vertigem. Isto acontece. É coisa acidental».

Sentia-se ainda cheio de calor; a nuca doía-lhe, o lóbulo da orelha ardia-lhe quando o apalpava entre o indicador e o polegar. Tentava tranquilizar-se mas, do incidente, ficara-lhe certa inquietação, de que ele não conseguia desembaraçar-se.

Ao entrar em casa encontrou o veterinário, a quem haviam chamado pela segunda vez, por causa de Kiki. Louis recebeu ordem de ir, no carro, buscar leite azedo para o cachorro, e a cozinheira teve de largar tudo para fazer uns bolinhos de que o animal gostava muito! O jantar foi detestável. Géraudin, furioso, disse o que pensava do caso, e Valerie retirou-se-lavada em lágrimas. Do quarto de vestir o marido ouviu-a, mais tarde, confiar a Louis as suas amarguras, aludindo sempre às «crueldades do senhor doutor». Falava em voz baixa, pedia ao motorista que se aproximasse mais, até junto do travesseiro, inconsciente e pueril como uma criança de dez anos. Depois Louis voltou à sala, onde devia velar toda a noite o sono de Kiki.

Antes de se deitar, Géraudin levou-lhe um maço de cigarros e uma garrafa de vinho, perguntando com solicitude :

- Não irá ficar muito fatigado, Louis?

- Não, senhor doutor.

- Amanhã de manhã terá cinquenta francos.

- Muito obrigado, senhor doutor. Mas isso não adianta nada. O que é preciso é paciência, não é verdade?

Louis nunca se punha com rodeios quando falava ao patrão.

_Por mim, tenho de a suportar, mesmo sem paciência - declarou Géraudin.

pois sim, mas não sou casado com a senhora!

_ isso é verdade.

_ Sabe o que à senhora faz falta?

-Não... Diga lá...

- Miséria, uma dúzia de filhos e uma boa tareia de tempos a tempos.

- É possível - concordou Géraudin. - Em todo o caso, ela tem qualidades : é honesta...

- Mais valia que fosse infiel, uma vez por outra...

- Louis! Louis!

Géraudin foi-se deitar e Louis instalou-se numa poltrona, à cabeceira de Kiki. Sobre a mesa estavam os bolos e o boião de leite azedo, que o animal desdenhara. No dia seguinte, de manhã, a senhora diria ao motorista:

- Como o Kiki já não quer estas coisas, pode levá-las para o seu miúdo.

Louis tinha três filhos. O mais novo sofria de osteomielite. Géraudin, quando era necessário fazer-lhe uma intervenção, raspava-lhe o osso da tíbia, sem levar, é claro, dinheiro pelo trabalho.

Olhando para Kiki, Louis lembrava-se da noite de repouso que esse cãozinho lhe custava. O bicho, de olhos fechados e narinas secas, parecia sofrer bastante, e o motorista, por momentos, acalentou a ideia de o estrangular. Depois teve pena de Kiki e resolveu sacrificar-lhe a noite.

Foi no começo da Primavera que a aorta do velho Donat deu de si. Havia já alguns anos que o grupinho dos oportunistas, como infelizmente acontece em todas as Faculdades, andava com o olho em cima dele. Sabiam que a aortite era das «boas», que podia resistir muito tempo se tivesse cuidado consigo. Mas aconteceu haver mudado de cozinheira, e isso foi a sua perda: a comida demasiadamente suculenta, com excesso de molhos e temperos, precipitou a evolução da doença. Uma tarde, ao sair do hospital, Donat caiu para a frente e ficou estirado, morto, no passeio.

A luta foi renhida em volta da sucessão.

Donat era proprietário da cadeira de cirurgia infantil. Uma vez mais, os candidatos assediaram o gabinete de Gigon. Eram Bourland, Huot, Vand der Blieck... O primeiro parecia o mais indicado. Operava com verdadeira mestria. Havia oito anos que era professor extraordinário, à espera duma oportunidade. Segundo a opinião geral, cabia-lhe agora a vez de subir um degrau. Mas Heubel, que não gostava dele, opôs-se-lhe de modo terminante. Bourland já em diversas ocasiões demonstrara as suas grandes qualidades de operador, em doenças de clínica particular, no que fazia concorrência a Heubel. Uma vez professor catedrático, seria rival temível. Heubel já o obrigava a operar longe das vistas dos estudantes, quase às ocultas, para que lhe não pudessem apreciar a perícia. Posto à margem Bourland, só restavam em linha de conta Van der Blieck e Huot. Vallorge, porém, tinha habilitações que valiam as deles, e nenhum era especializado em cirurgia infantil; dedicavam-se à ginecologia, e Vallorge à medicina geral. Foi nessa altura que se percebeu a esperteza deste último, essa previdência que o levara a sobrecarregar-se de funções absorventes e mal remuneradas: chefe do laboratório municipal, médico escolar, dos serviços de higiene, da Assistência Pública... Tudo isso, agora, valorizava o homem, revestindo-o de autoridade e peso indiscutíveis. Não havia nada a objectar contra ele: possuía habilitações. Além disso, Huot, o concorrente mais perigoso para Vallorge, cometera a tolice de se meter na política e alardear ideias avançadas. Vallorge, pelo contrário, tivera sempre o cuidado de se manter na sombra, limitando-se à sua inscrição no partido de Guerran, isto é, o menos que podia fazer para ter a seu lado a Câmara Municipal e a Comissão Hospitalar de Maineburgo. Eis porque, depois de excluído Bourland, preferiram Vallorge a Van der Blieck e a Huot. No fim do ano, o genro de Doutreval era proprietário da cadeira de cirurgia infantil. Ficou radiante, é claro, mas à sua alegria misturava-se certa inquietação. Nunca manejara até então o bisturi. Contava, porém, com o director do serviço, e propunha-se usar de muita prudência.

Tudo sorria aos Vallorge: pelo Natal de 1932, Mariette, felicíssima, anunciou ao marido e ao pai que tinha quase a certeza de se encontrar no estado interessante.

 

Fora das horas de aula e de hospital, Michel trabalhava agora com o velho Norf.

O laboratório deste, ao fundo dum pátio infecto e cheio de lixo, era constituído por uma série de vastas salas poeirentas, atulhadas de prateleiras, onde se alinhavam frascos com formol. Aí metiam as peças anatómicas tiradas dos cadáveres: fragmentos de intestino, de estômago, mãos decepadas pelo pulso, onde, na pele, se viam chagas cancerosas. Em tinas, boiavam pedaços mais frescos, fígados inteiros, pulmões, montes de entranhas. Nas paredes ostentavam-se fotografias de ratos esqueléticos, com tumores enormes na barriga ou nas costas, e onde se viam letreiros deste teor:

Sarcoma obtido por enxerto num rato de três anos.

Prof. Norf. 16 de Nosembro de 1927. Ref. 199 B-<8.

Norf mostrava-se orgulhoso daquelas fotografias, como se fossem obras-primas de pintores afamados.

Aí dentro, em companhia de Vanneau, antigo servente de laboratório, homem de grandes bigodes gauleses, passava Norf três quartas partes da existência. Casara-se, tivera três filhos, mas toda a sua vida particular, aos seus próprios olhos, não devia significar nada de importante. Vivia apenas para uma coisa, que se resumia numa palavra : cancro.

Era o primeiro a chegar ao hospital, antes de qualquer outro professor ou de qualquer estudante, somente precedido por Michel e Vanneau, que tinham por hábito esperá-lo à porta. Norf entrava com um cabaz enorme no braço, fazia o giro das salas, interrogava as enfermeiras e descia à morgue para as autópsias. Ali, tirava do cabaz um amplo avental azul e tamancos. Uma vez com esses acessórios no corpo, arregaçava as mangas da camisa e metia mãos à obra.

Michel já vira muitas autópsias, mas o trabalho de Norf constituía novidade para ele. Era lento, minucioso, completo. Realizava tudo com extraordinária consciência profissional. Aplicava um escopro na cabeça do cadáver, malhava com o martelo, fazia uma incisão em volta do crânio, levantava assim uma calote óssea e punha à vista o cérebro. Depois insinuava a mão sob os hemisférios e deixava deslizar o cérebro para um prato. Em seguida atacava o tronco. Abria primeiramente o tórax, extraía o coração e os pulmões e examinava-os. Depois cortava o ventre, inspeccionava o estômago, sacava o intestino e desenrolava-o, observando-o em pormenor, por transparência, diante da janela. Se alguma coisa se lhe afigurava suspeita, dava um corte no intestino para ver o interior. Feito isto, levantava e colocava na mesa o fígado, o baço, o pâncreas; isolava os rins, pesava cada um em separado, e tomava nota. Por fim seccionava tudo aquilo, punha de parte bocados de uma coisa e de outra, coração, pulmões, estômago, fígado, cérebro, e metia-os em frascos cheios de formol, ou, se eram muito grandes, no cabaz, a fim de os levar para o laboratório. Examinar um cadáver exigia-lhe tempo infinito, tantas eram as suas precauções.

- Nunca se sabe o que se vai encontrar - dizia ele. É atentando bem e indo devagar que se vê o que escapa aos outros.

Muitos dos seus colegas faziam pouco das suas minúcias, das suas autópsias intermináveis. Norf não suspeitava disso, mas, se o soubesse, não se teria preocupado.

- É preciso observar tudo - dizia ele. - Uma doença de rins reage no coração, no fígado e no cérebro. De que serve ter um rim nas mãos? Não há doenças locais! Nem sequer há doenças, o que há são doentes. Os livros dão listas de sintomas para cada enfermidade. E para quê? Não só jamais encontramos todos os sintomas descritos, como encontramos outros, desconhecidos! Verá isso com a experiência, Doutreval. Se existem tantos médicos medíocres é porque se fiaram nos livros. Acho que todos os estudantes de medicina deviam, ao menos, ser externos dum hospital. O externo vê doentes, trata-os à vontade, sem ter atrás de si o professor e os colegas. Pode interessar-se. Tem prática. Com o sistema actual, há muitos estudantes que se tornam médicos sem nunca sequer terem visto um doente. Raros são aqueles que têm possibilidade de fazer longos estágios nos hospitais, de estudar os homens, os casos particulares...

Feita a autópsia, Norf ficava uns minutos a contemplar o cabaz. Com os braços musculosos sujos de sangue e com farrapos de carne colados aos dedos, meditava-e via-se-lhe um sorriso de satisfação nos lábios donde pendia a ponta do cigarro. Sacava então a bolsa de tabaco, enrolava novo cigarro com os dedos ossudos e cheios de gordura humana, passava a língua na mortalha e acendia. De tamancos e avental azul, com o seu cabaz enfiado no braço, saía e atravessava de lês a lês um bairro de Paris, a fim de ir ao laboratório. O cesto ensanguentado e o avental com manchas vermelhas davam-lhe o aspecto dum magarefe. Os transeuntes voltavam-se para o verem, mas Norf nem dava por isso. Ao chegar ao seu destino, confiava a Michel e a Vanneau as peças anatómicas de menor importância, punha as outras de reserva para ele mesmo as preparar, e ia dar a sua aula. O curso professado por Norf, refeito todos os meses, actualizado sempre de acordo com os trabalhos mais recentes (até da América, da Rússia e do Japão) constituía uma autêntica maravilha.

Depois da aula, Norf voltava ao laboratório, para fazer as preparações. Um pedaço de fígado, de pulmão ou de baço não é coisa que se inspeccione logo ao microscópio. Tem-se de colorir as células, meter tudo em parafina para lhe dar rigidez e finalmente cortar em lâminas muitíssimo delgadas, duma espessura apenas de milésimos de milímetro. Norf, nos casos mais interessantes, fazia isso por suas mãos, recomeçava dez vezes, se tanto fosse necessário para obter um bom corte.

Quando se tratava do corpo duma pessoa viva, de exame do qual dependesse uma existência humana’ ele esquecia-se muita vez de si mesmo e passava metade da noite nas suas observações, em companhia de Michel Mas também era capaz de trabalhar depressa. Os outros bem o sabiam. Se, em plena operação, os seus colegas da cirurgia geral topassem com um neoplasma, qualquer volume suspeito nos intestinos, na matriz, na veia cava, e tivessem de admitir a hipótese dum cancro, chamavam logo por Norf, caso este estivesse no seu posto habitual. Ele acudia cortava um átomo de carne e precipitava-se no laboratório’ E a resposta chegava daí a pouco, lacónica, escrita num papelucho amarrotado:

Cancro. Extirpar.

Norf, ía prestar serviço

Norf Taciturno, abstracto, longínquo o professor não

me respeita, não me apertou a mão.

- A mim - dizia Vanneau - apertou a mão quatro vezes em quarenta anos.

Norf vivia fora do mundo das realidades. O seu universo circunscrevia-se ao laboratório, onde andava ”dum lado para outro, alto, de cor biliosa, testa enrugada, cigarro nos lábios, semeando cinza por toda a parte. Os punhos da camisa roçavam pelas mesas e embebiam-se de todos os corantes imagináveis. Ia ver os outros trabalhar no microscópio, empurrava-os, instalava-se no lugar deles, para ver - até que se interessava e ficava absorvido por aquilo, esquecido dos mais, duas horas a contemplar debaixo da objectiva uma célula cancerosa, fumando ao mesmo tempo o cigarro que alguém por acaso lhe deixasse à mão. Era duma distracção sem limites. Depois das autópsias, a fim de não levar consigo gérmenes perigosos, por causa da mulher, despia-se e, nu em pleno laboratório, pincelava o corpo todo de permanganato. Ficava assim dum tom horrível de vermelho-escuro, como um índio; depois, para clarear, esfregava-se com bissulfito, que descora o permanganato. Mas, feito isto, imediatamente se esquecia e, descobrindo uma terrina trazida por Vanneau, e que devia conter tripas, levantava a tampa, mergulhava os braços no recipiente e punha-se a desenrolar os intestinos, com ar deliciado. Costumava urinar nos frascos, muito naturalmente, e, sem deixar de urinar, estendia a mão livre a qualquer visita. Para ele, nada da vida corrente tinha importância. Se não conseguia desamarrar a bata, dava nos cordões um golpe de navalha, cortando ao mesmo tempo o casaco e colete. Um dia em que a mulher se encontrava fora (havia ido passar uma temporada em casa duma das filhas) Norf foi atropelado por um táxi e conduzido ao hospital. Em poucos dias se restabeleceu e sentiu-se, ali, extremamente feliz : não precisava de atravessar as ruas, não tinha de discutir com a mulher-a-dias por causa das refeições, nem com a lavadeira, nem com os fornecedores. E, para cúmulo, estava no seu elemento, podia munir-se de peças de dissecação ainda frescas. De tal modo que Louise Norf, ao regressar dois meses depois, encontrou o marido domiciliado no hospital, donde saiu com mal disfarçada pena.

Os cuidados de Norf não eram os mesmos de toda a gente. As suas preocupações relacionavam-se com os microtomes, frágeis máquinas de cortar bocados de carne em centésimos de milímetro, e que se desarranjavam com o uso. Passava o tempo afiando as laminas de barbear que serviam para esse efeito, imaginando processos de as aguçar ainda mais. Outras vezes inventava novos microtomes, que não funcionavam. Quando esteve duas semanas doente, escreveu a Michel e a Vanneau a recomendar-lhes as cautelas que deviam ter com as suas famosas lâminas.

Norf apontava, sem omissão dum cêntimo, a sua contabilidade quanto a despesas de laboratório. Vivia na angústia de ser acusado de desviar os dinheiros públicos! E temia constantemente que o roubassem.

De tempos a tempos, trazia, ao ombro, para o laboratório, umas poucas de tábuas de pinho. Vanneau pregava-as e construía prateleiras para os inúmeros livros preciosos, escritos em todas as línguas, que se acumulavam ali. O espaço começava a faltar; as dissecações e vivissecções faziam-nas entre a estufa e a geleira. Recebiam assim, num cenário de miséria e de atulhamento, sumidades médicas, nomes ilustres da ciência, homens vindos de Washington, de Roma, de Moscovo e de Tóquio, os quais, depois de terem sujado as botas no lixo do pátio, se viam obrigados a cheirar o odor dos canis e das gaiolas de ratos, dissimulando delicadamente a sua repugnância.

Norf ganhava cinquenta mil francos por ano, porque não dava consultas e consagrava todo o seu tempo ao Estado. Na maior parte, os colegas tinham a sua clientela e recebiam do Estado apenas menos cinco mil francos do que ele.

- Isto é que é mau, senhor Michel - dizia Vanneau. A diferença é muito pequena. Se o doutor Norf quisesse receber clientes, ganharia trezentos mil francos a mais. Era melhor que os professores fossem mais bem pagos e não dessem consultas. Todo o mal vem daí. É por causa da clientela que a maioria dos estudantes aspira ao título de professor e que às vezes os catedráticos poupam os alunos, ainda que estes sejam incapazes: assim, depois de estabelecidos, os rapazes chamarão para uma junta o antigo professor. Se alguns ambicionam uma cadeira, não é por”vocação, por amor do ensino, mas para estarem em contacto com muitos dos futuros clínicos, que lhes hão-de fazer propaganda. Deve conhecer desses professores que não ensinam coisa nenhuma, que mandam os assistentes dar as aulas, que se limitam a receber os cinquenta mil francos e passam todo o tempo a dar consultas. Em seis meses, aparecem nas aulas trinta vezes, o máximo. Digo e repito: haja concursos sérios e mestres que não exerçam clínica. Se assim não for, todo o nosso corpo docente, embora ilustre no conjunto, continuará a ser denegrido na sua reputação por causa duma súcia de oportunistas que dão azo às críticas e as justificam. E como há tendência para generalizar...

Vanneau ocupava-se de tudo, no laboratório. Varria, espanejava, lavava. Era alternadamente carpinteiro, mecânico, óptico, electricista. Consertava balanças de precisão, micrótomos, microscópios, e em seguida ia para cima do telhado limpar a chaminé. Tratava dos animais, dava de comer aos ratos cancerosos, fazia dissecções e vivissecções. De tempos a tempos, ao dissecar uma laringe de canceroso ou o cérebro duma rapariga que morrera de meningite tuberculosa, picava-se, tinha uma síncope ao chegar a casa e chamava então o doutor Norf, que lhe abria o dedo com uma faca de cozinha cheia de bocas. Vanneau ganhava um pouco menos de mil francos por mês, além dum fato novo de três em três anos, mas os jardineiros e os varredores recebiam muito mais do que ele, por estarem sindicados. Vanneau, esse, era sozinho.

Melhorava a sua sorte praticando um pouco de medicina. Não é impunemente que se vive quarenta anos na atmosfera dum Norf. Aliás, o professor, oprimido pelo trabalho, preparara e instruíra Vanneau para se servir dele como ajudante. Norf não desprezava o homem à priori, e para ele não existiam diplomas. Por fim Vanneau, simples servente de laboratório, ficou a ser talvez o homem que em França, depois de Norf, sabia descobrir, com mais segurança, um cancro ao microscópio. Os estudantes conheciam-no bem. Nos dias de problemas, ou de exames, na sala dos microscópios, Vanneau distribuía as lâminas de vidro sobre que havia finas partículas de carne cancerosa a identificar : Fígado? Pulmão? Intestino? Norf vigiava os alunos. Mas quando, por acaso, topava com uma lâmina que lhe despertava interesse, tomava o lugar do estudante, que ficava radiante, e, entregando-se à observação, esquecia-se totalmente do exame e das horas. Então, de todos os cantos elevavam-se Os Seus apelos cochichados :

- Vanneau! Vanneau! Pst! Pst! Venha cá.

Vanneau aproximava-se, lançava uma olhadela e segredava duas ou três palavras :

- Sarcoma do fígado... Tumor cerebral.

Isto valia-lhe vinte francos por cabeça, à saída.

Chegava a trabalhar para médicos. Muitos deles vinham ao laboratório de Norf para falar com Vanneau; traziam pedacinhos de carne humana e perguntavam :

- Ora diga-me, Vanneau, se haverá aí cancro?

Com isto, Vanneau ganhava cinquenta francos por cada resposta. E o médico ganhava também, pois os laboratórios pediam cento e cinquenta francos.

Michel, através de Tillery, conseguiu também alguns trabalhos desse género. Mas, quando não estava seguro do seu diagnóstico, ia sem acanhamento chamar o velho servente:

- Veja isto, Vanneau, e diga-me a sua opinião. Vanneau inclinava-se sobre o microscópio, observava

durante cinco minutos e tornava a endireitar-se.

- Senhor Michel - volvia ele - recordo-me que, um dia destes, num caso semelhante, o doutor Norf falou de cancro...

Assim, a lição partia de Norf e não do servente. Vanneau era pessoa arguta.

Também Norf conhecia as capacidades de Vanneau. Nos casos difíceis, já com a vista fatigada pela observação constante e infrutífera, interrompia o trabalho e afastava-se do microscópio. Vanneau dava umas voltas por ali, aplicava o olho na ocular, prosseguia nas suas ocupações de limpeza, e, depois de duas ou três vassouradas no chão, aproximava-se novamente do aparelho...

Daí a bocado, Norf chamava-o e ditava-lhe o seu relatório :

- Escreva aí: «Não tendo encontrado nenhum sinal positivo da presença de tumor...»

Nesta altura, Vanneau parava de escrever, fingia uma comichão na perna.

- A propósito, senhor doutor - dizia ele enquanto se coçava - reparou no cantinho à esquerda, na parte seccionada? Havia lá qualquer coisa... Eu cá não percebo nada disso...

Norf tornava ao microscópio, afinava o parafuso e examinava o tal canto, à esquerda.

- Sim, sim, é muito possível...

Depois recomeçava a ditar:

- «Trata-se, no caso presente, dum tumor assim constituído...»

O laboratório de anatomia patológica, como todos os de França, tinha uma dotação anual de vinte mil francos. Daí é que Norf devia pagar a conta da luz, do gás, do carvão e a assinatura do telefone. Ficavam-lhe somente dez mil francos para comprar instrumentos de trabalho, produtos químicos, animais e a alimentação destes. E um rato custava cinco francos! O facto é que Norf lutava com tanta falta de ratos para as suas experiências que passava os serões a armar ratoeiras nos sótãos enormes que se estendiam por cima dos seus domínios, a fim de reconstituir a colecção. Mas nunca se queixava. Pertencia à geração dos nossos velhos sábios que se habituaram à penúria. Vanneau, a propósito disso, citou a Michel o exemplo do professor Grey, presidente da Academia de Medicina, o qual, em 1910, descobriu o grande remédio da diabetes, a insulina. Grey necessitava de trinta cães para continuar as experiências e, como só possuía três, teve de interromper o trabalho e, vinte anos mais tarde, depois de continuarem a morrer dezenas de diabéticos, apareceu a insulina como descoberta americana. A Universidade de Toronto, no Canadá, não achara excessivas as pretensões dos seus sábios e concedera-lhes os trinta cães necessários, o que lhes permitiu aperfeiçoar o remédio.

A Norf também escasseavam auxiliares. O que lhe valia era Vanneau, a quem ele ensinara. Michel prestava-lhe a sua ajuda, mas, depois de este se formar, ir-se-ia embora e Norf ficaria de novo sozinho, forçado a contentar-se com um ou outro assistente benévolo. Talvez pudesse obter os créditos precisos para dispor dum auxiliar. Mas, como um chefe de laboratório ganha vinte mil francos por ano, um assistente catorze mil e um auxiliar nove mil (isto é, menos três mil do que um servente) o simples enunciado destes números bastava para afastar os candidatos. é certo que havia bolsas de estudo; mas não seduziam os possíveis concorrentes. E o estrangeiro atraía a juventude. Por toda a parte laboratórios, fábricas, centros de investigação a oferecerem aos nossos sábios honorários faustosos. De tal modo que muitas pessoas de valor desertavam duma pátria ingrata e iam procurar riqueza e consideração na terra alheia.

Norf não era dado a queixumes. Semelhante mesquinhez deixava-o indiferente. Com o olho na objectiva do microscópio, abstraía-se de tudo mais; porém, a mulher, quando Michel e Évelyne a visitavam, nem sempre escondia o seu desânimo. Era ela quem lidava com o dinheiro, quem se afligia pelo futuro. Dentro de pouco tempo o marido seria obrigado a aposentar-se. A lei considerá-lo-ia velho e ele não poderia tornar a pôr os pés no laboratório. Não se atenderia nem ao seu vigor físico, nem aos trabalhos ainda entre mãos e prestes a darem óptimos frutos, nem aos trinta anos de investigações aturadas. A reforma viria, automática e infalível como a guilhotina. Norf evitava pensar nisso, para não se apoquentar. E o pior é que não receberia mais de vinte e cinco mil francos por ano. Como viver em Paris com esse dinheiro? Teria de deixar a casa, vender os livros, ir enterrar-se numa aldeola, onde definharia de inacção cerebral. Em muitos outros países, os professores auferem, depois de aposentados, os seus vencimentos por inteiro, e, visto terem merecido a jubilação, continuam a servir-se do seu laboratório. Não entre nós. Somos, segundo parece, muito pobres para tamanho luxo.

Louise Norf, entretanto, calava-se diante do marido. Das suas economias, feitas com sacrifício de vestidos e das horas de serviço da mulher-a-dias, conseguia às vezes apurar dois mil francos e dava-os a Norf, dizendo :

- Toma lá para esse aparelho de microfotografia.

Ele, com a inconsciência e avidez um tanto cruéis duma criança, agarrava no dinheiro, mastigava um agradecimento e corria logo ao seu fornecedor de instrumentos de precisão.

 

Todos os domingos Michel ia visitar Évelyne ao sanatório de Saint-Cyr.

A mulher registara grandes melhoras. Na auscultação, o vértice direito respirava com maior facilidade e já descolava em baixo. Menos pieira, menos tosse e expectoração. Para Michel, tais melhoras eram incompreensíveis. Évelyne desembaraçava-se lentamente duma doença que nem o pneumotórax, nem os sais de ouro, nem a superalimeritação tinham logrado debelar; e isso devia-se apenas a um regímen bastante pobre, quase vegetariano: muito pouco de carne, pão, batatas, legumes, saladas, ovos, frutas, uma nica de queijo, um ou outro doce...

O doutor Domberlé, antigo tuberculoso, vivia também numa dieta ainda mais pobre. Quando Michel aludia a isso, ele sorria e mostrava-lhe as fichas com as histórias dos seus doentes, ou então levava o rapaz a dar uma volta pelo pavilhão, para ver os internados, todos tuberculosos em via de cura, os quais se alimentavam com um ovo, meia libra de pão, trezentos gramas de batatas, outro tanto de fruta e uma libra de legumes crus ou cozidos, quase sem carne, sem vinho, sem açúcar nem leite. Ao invés de todos os conceitos clássicos, eles iam melhorando.

Évelyne não engordara, mas, debaixo do braço, os gânglios haviam desaparecido. Não se queixava de insónias, não tinha febre. Seria do regímen? Ou simples coincidência? Michel recusava-se a acreditar em tamanha derrota da medicina oficial. É um acaso, pensava ele. Em medicina, tudo é possível...

Contudo, assistia a coisas extraordinárias. Uma única refeição tóxica, um pouco mais de carne ou de açúcar, um exercício insuficiente ou excessivo - tanto bastavam para que Évelyne, nas horas que se seguiam, voltasse a tossir ou a sentir uma impressão dolorosa na axila, enfartamento de gânglios, regresso quase instantâneo de outros sintomas. Ao fim de alguns meses começou a ganhar peso. O marido, auscultando-a, não lhe encontrava mais que leves crepitações superficiais. Na radioscopia as melhoras revelavam-se consideráveis. Colapsara uma caverna do vértice. As mais pequenas assemelhavam-se a simples manchas de fibrose. Quanto às infiltrações pulmonares, estavam incrivelmente reduzidas.

As prescrições de Domberlé não eram uniformes, variavam com o estado do doente. E, ao contrário de todos os métodos clássicos, quanto mais fraco ele estivesse, mais leve, mais simplificada em qualidade era a dieta proposta. Nos casos extremos, aliás bastante raros, Michel via que os internados se mantinham e reconquistavam terreno com irrisórias doses de azote: a décima parte dum ovo por dia, uma sombra de manteiga, cinco gramas de queijo. Em compensação, era considerável a quantidade de legumes, batatas e farináceos leves que eles comiam. Quando Michel falava disso com os outros do sanatório, estes encolhiam os ombros. No entanto, em dois dias, com aquele sistema, ele vira atenuarem-se focos pulmonares numa tuberculosa com espleno-pneumonia, apaziguarem-se fervores e sopros, ficando apenas submacicez e pontos não iluminados. Mas, em três dias de regresso à superalimentação, tudo isso ressuscitava: febre, sopros, fervores...

- Como é que eu descobri isto? - disse Domberlé, num domingo à tarde, quando Michel o interrogou mais uma vez. - O que me pergunta é a história de toda a minha vida. Saiba que sou antigo tuberculoso. Órfão de pouca idade, artrítico hereditário, criado a trouxe-mouxe por um tio, tirei em Paris o curso de medicina. Comia à pressa no restaurante, andava dum lado para outro por causa da clientela... Em suma, pouco depois de me formar, percebi que tinha uma infiltração do pulmão direito. Trato-me segundo o método clássico: carne crua, ovos, leite, superalimentação. .. Estadia na Suíça, sanatório... Não vale a pena dar pormenores... Em resumo, apronto-me para desaparecer... Foi então que sucedeu um incidente. Certa manhã, uma das Irmãs, ao trazer-me uma laranjada, engana-se no copo. E eu bebo o citrato de magnesia destinado a outro doente. Digo com os meus botões : «Com isto, estou pronto». Passo um dia e uma noite horríveis, que me deixam prostrado, sem forças para nada. Só adormeço ao romper da aurora, e acordo prodigiosamente aliviado... Respiração fácil, baixa de temperatura, sensação de bem-estar. O pulso desce para oitenta... As mãos desincham, perdem o tom azulado... As melhoras duram dois dias. Depois a febre reaparece. Esse alívio inexplicável dá-me que pensar. Arrisco-me a tudo. Reclamo novo citrato, e tenho o mesmo desarranjo intestinal seguido de iguais melhoras momentâneas. Repito a mesma coisa de três em três dias, atenuando as doses. Com este estranho regímen de purgas e de jejuns, perco seis quilos em dois meses, mas posso sair do quarto! Eis-me assim lançado num caminho ao fim do qual só vejo a catástrofe, o emagrecimento, a consumpção, mas donde não me é possível retroceder. Tenho a impressão nítida de viver das minhas reservas, de obter por alto preço uma breve prorrogação. No entanto, digo de mim para mim: «Deve haver relação entre o estado digestivo e a febre, o pulso, a congestão e a infiltração dos pulmões.

«Começo então a eliminar das minhas ementas os alimentos mais intoxicantes: carne, peixe, vinho, açúcar e álcool. Basta uma refeição mais suculenta para, horas depois, sentir pontadas, dores no ombro, inchação e cor azulada nas mãos, hipo-sístole cardíaca. Porquê? Não importa saber. Continuo assim tratando da minha tuberculose por meio do estômago e dos intestinos, e excluo sucessivamente das refeições a manteiga e os legumes secos. Estou condenado a óleo de rícino de três em três dias, e como doses copiosas de legumes cozidos e saladas. O meu peso passou de setenta para sessenta e um quilos. Assusto-me. Contudo, melhora o estado pulmonar! Para onde vou? Quanto tempo durarei assim? Sinto-me melhor, mas receio sucumbir. O meu emagrecimento consterna o hospital. Eis-me com cinquenta e sete quilos. Pulso, sessenta. Mas a menor tentativa para aumentar peso, pulso ou tensão arterial, através da ingestão de alimentos fortificantes, só me faz mal. Já não há recuo possível. Todavia, os purgantes arrasam-me os intestinos, entravam a assimilação e põem-me em estado de acidose com edema generalizado. Uma das enfermeiras tem a ideia de me administrar grande quantidade de ameixas cozidas... Melhoras sensíveis, e cura por fim.

«No mês de Maio seguinte, deixo o hospital. Peso quarenta e nove quilos. Chego a Paris, alugo um quarto e cozinha. Vendo todos os meus móveis, resta-me só a cama e uma pequenina mesa de pinho. Saio pouco. Alguns passos na rua e faltam-me as forças, não posso mais, tenho de chamar um táxi... Que será de mim amanhã, sem dinheiro, sem clientes? À minha frente está uma incógnita. Ninguém que me guie! Todavia, neste caos sobrenadam umas certezas, poucas : preciso de repouso, devo alimentar-me de legumes, privar-me de carne e às vezes até de ovos e de leite. Eis tudo o que sei em definitivo para me poder tratar. Durante algum tempo tolero sem desnutrição o regímen quase vegetariano. Por essa época sinto momentos de desespero. Já não compreendo nada, revolto-me contra mim mesmo Mas não ignoro que essa revolta me conduziria à morte. Acabo assim por me persuadir de que, por trás de toda essa incoerência, deve haver uma regra que eu violei e que estou à beira de reencontrar, a pouco e pouco, guiado até ela pelo sofrimento e pelas provações Submeto-me, obedeço, resigno me, arrasto-me, pacientemente, de queda em queda e levanto-me sempre como um animal cansado e dócil. Cada nova provação fornece-me uma verdade nova. Principio a entrever a parte de utilidade, o papel educador do sofrimento na terra. Passo a passo, dolorosamente, caminho para não sei quê. Existência o mais restrita e solitária possível. Tudo isso parece inconcebível aos que me rodeiam, alguns raros amigos, médicos, que se compadecem de mim.

«- Dás em doido!

«- Fazeres-te vegetariano no teu estado!

«- Deixares-te emagrecer vinte quilos!

«- Come ao menos um pouco de carne crua, toma óleo de fígados de bacalhau!

«- Um médico que receitasse isso aos seus doentes, metiam-no na cadeia!

«Sigo uma vida que jamais alguém trilhou. Não há ainda, sobre este método, nem um mestre, nem um livro. Apavoro-me e desejo recuar. É impossível. O menor recuo faz voltar o mal. E eis-me colocado diante desta obrigação que me apetece rejeitar e que, no entanto, se impõe de maneira imperiosa: verificar que é erróneo tudo quanto me ensinaram e eu apliquei anteriormente para o tratamento da tuberculose. Seis meses depois da minha saída do sanatório, volto para lá - mas desta vez como médico assistente; É certo que começam por me supor enfermo e que me vejo na necessidade de o desmentir a toda a gente; mas não importa, para mim é uma ressurreição. Habito, na aldeia, uma velha casa modesta. Ganho trezentos e setenta e cinco francos por mês. Não é nada mau! E tenho cento e dez doentes no meu pavilhão. Aí mando eu. O médico-chefe vem só duas vezes por mês. Examino, interrogo, investigo. Em quase todos os internados reconheço um período de alimentação forçada, de perturbações digestivas, uma intoxicação prolongada que se agravou pela superalimentação e tratamento clássico, sobretudo injecções. A tuberculose seria, pois, um estado secundário, o resultado de grande e prolongado trabalho digestivo. Alguns dos doentes da minha clientela ainda reduzida são bastante curiosos. Proíbo-lhes carne e eles perguntam-me logo:

«- Porquê?

«Proíbo-lhes excesso de açúcar, de pão integral, de feijão seco.

«- Porquê? Porquê?

«Mando-os bugiar.

«Sei lá porquê! Verifico por mim, e nada mais

«Apesar de tudo, aborrece-me não poder responder-lhes. Em vão folheio os meus livros, recapitulo a química, faço cálculos de calorias, dosagens de azote e de açúcar. Não chego a nenhuma conclusão. Depois, numa bela manhã, primeira revelação essencial, repentina luz no meu espírito:

«É um caso de concentração!

«Sim, isto mesmo. Os autores clássicos prescrevem invariavelmente aos seus doentes tantos gramas de azote e tanto de calorias. Consideram os doentes como retortas, ou melhor, como máquinas que consomem todos os combustíveis. Ora um doente é uma máquina enfraquecida, transformador que transforma muito mal. Portanto, em vez de lhe dar alimentos concentrados, carne, açúcar, vinho, fortificantes, convém dar-lhe alimentos de pouca concentração. O tuberculoso, que é um debilitado, esgota-se a transformar e a assimilar ovos, sucos de carne e legumes secos. Eis porque só tolera pão alvo, carne de vitela, batatas, legumes verdes e frutos pouco ácidos. Todos estes alimentos são de fraca concentração em azote, hidrocarbono, matérias gordas ou minerais. E toda a arte está em ajustar o grau de concentração do alimento ao poder digestivo do doente. O alimento forte para quem é forte, o fraco para quem é fraco. A superalimentação fica assim condenada. Munido, pois, dum regímen alimentar mais suave, o tuberculoso só tem de regularizar os dispêndios, isto é, de adaptar os seus esforços musculares e fadigas às aquisições de energia, em parte reduzidas, que o novo género de nutrição lhe há-de trazer. Sobrevêm então outra catástrofe: o abuso do limão desmineraliza-me. De tal modo que em seguida a um golpe no dedo vejo inchar os ganglios da axila e declarar-se uma adenite supurada. Mais uma vez me revolto e me exaspero, sem compreender. Operar? é impossível, o fígado não resistiria ao clorofórmio. Faço, pois, um dreno de sedenho na chaga, e assim vou vivendo, diligenciando não pensar no caso. Mas aquilo incomoda-me, dói, incha, destila humidade. Não há outro remédio senão ocupar-me disso. Esta nova calamidade é a minha salvação, afinal. Tenho agora sob os olhos o barómetro do meu estado geral. Supuração, impressão congestiva, guinadas, tudo isso aumenta ou cessa conforme a qualidade ou a dose de alimentação, de exercício e de repouso. Deixo de amaldiçoar os gânglios e o fígado intoxicado que me impediram a operação. Que teria eu aprendido sem esta prova? Em quantos erros prosseguiria? E que maiores desgraças nos teriam eles reservado? Agora, possuo a chave do enigma, a resposta aos porquês. É tudo uma questão de concentração, de densidade alimentar. E o efeito das sobrecargas alimentares em quantidade ou em densidade, tal como a ingestão de alimentos ácidos, é fazer passar para o sangue ácidos não oxidados, que o organismo se esforçara por neutralizar, tirando aos ossos, aos dentes, por toda a parte onde lhe foi possível, o calcário indispensável. Daí a desmineralização, o esgotamento e a impotência de assimilar os alimentos concentrados.

«No sanatório, ensaios discretos. Proíbo os erros crassos : superalimentação, injecções. Os doentes resmungam um pouco com a restrição da carne, pois reina ali a ideia fixa da comida muito abundante. Depois, meia dúzia de convencidos forma um núcleo que aumenta a pouco e pouco. Venço alguns tuberculosos. Depressa outros se impressionam com a diminuição das hemoptises e dos acessos de febre, no meu pavilhão. Os resultados da experiência permitem-me generalizar esses princípios, verificá-los e completá-los. E, ao mesmo tempo, prossigo em mim próprio essa incrível experiência, resignado, submisso, levado a princípio pela vontade de viver e mais tarde por uma espécie de curiosidade científica, pelo desejo de ver o que resultará de tudo aquilo. Há momentos em que desespero por não ter ninguém a meu lado. Momentos de dúvidas, de revolta, perante essa tarefa imposta, perante essa via onde me embrenhei sem recuo possível. Tenho de olhar para trás, ver o caminho percorrido, os progressos realizados, as certezas estabelecidas e o bem que já espalhei à minha volta, para recuperar a confiança e aceitar os factos. A cada prova, um passo à frente. Edifico uma verdade ainda fruste, habituo-me a manobrar os regímenes como remédios, a utilizar as suas diversas possibilidades, a espaçar as doses de alimentos concentrados, mas necessários: ovos, leite e açúcar. Aprendo a desconcentrá-los, cmuindo-os copiosamente em preparações culinárias simicozinhadas. Torno-me cozinheiro e químico ao mesmo tempo. E à noite, no meu quarto, escrevo sobre a mesa de pinho as primeiras ideias ainda confusas dum livro novo que há-de conter estas noções universalmente desconhecidas da tuberculose provocada pelo artritismo, e da sua cura por meio da alimentação desconcentrada e desintoxicante... Eis como descobri isto. Já sabe quais são as minhas ideias essenciais.

«Depois de Pasteur, a medicina clássica está hipnotizada pelo micróbio. Julga ela que ficamos tuberculosos porque o micróbio se implantou em nós. Imagina que o organismo se defende superactivando os dispêndios, donde resulta o emagrecimento e desmineralização. Quais os remédios propostos pela medicina clássica? Destruição dos micróbios através de anti-sépticos, superalimentação em volume e principalmente em qualidade, alimentos dos mais ricos e mais fortes: ovos, açúcar, carne crua, leite, injecções de arsénico, de soros, fígado cru, etc. Esta chicotada formidável, com a violenta reacção dum organismo vulnerado pelos anti-sépticos, provoca em dez por cento a cura momentânea, até à recaída fatal, no dia em que o organismo esgotar toda a energia desenvolvida na oposição àquelas sobreexcitações. Daí, a frequência das recaídas nos tuberculosos «curados». Aliás, na maior parte das vezes, tais métodos só trazem intoxicação digestiva, artritismo, esgotamento acelerado das resistências do doente que eles pretendem salvar. A verdade é que, no estado normal, o homem se defende vitoriosamente contra o bacilo. O bacilo não conta. É preciso o enfraquecimento da pessoa para que o micróbio vença. Esse enfraquecimento das defesas naturais é quase sempre causado por uma alimentação tóxica, irritante (carne, salsicharias, açúcar, álcool), que sobreexcita um momento, faz crer num aumento de forças, mas gasta as energias da pessoa, a acidifica e a desarma perante o bacilo da tuberculose ou qualquer outro micróbio (tifóide, difteria, septicemias). A este enfraquecido, que é o tuberculoso, é necessária, evidentemente, uma alimentação muito completa e sintética, mas não concentrada, superabundante ou violenta. Só lhe convém o alimento atenuado, diluído, proporcional ao seu reduzido poder de assimilação. Porque a alimentação é um combate. Um doente esgota-se a desassociar e a assimilar alimentos muito concentrados. Consumido pelo esfalfamento, não se poderá curar, a não ser que se modere, o que provocará a ressurreição das suas imunidades naturais. Os venenos do tuberculoso são, portanto, o alimento concentrado e o alimento ácido, os anti-sépticos, os medicamentos, tudo o que o violenta, o obriga a esforços e o esgota, tanto no que respeita à nutrição como ao emprego das forças. Os métodos actuais de tratamento, que desprezam o regímen alimentar e só atendem à superalimentação, são ilógicos e nocivos. É de lamentar que se gastem milhões em tratamentos irracionais aplicados não só contra a tuberculose como contra todos os estados de enfraquecimento orgânico. Porque os princípios que já expus, as leis da vida sã, não valem só para a tuberculose, mas para todos os estados mórbidos, sem excepção. O maior perigo não é o bacilo de Kock, o micróbio, a tuberculose, o cancro, a doença em si. São as causas que a engendram e contra as quais não se faz nada : o suicídio alimentar da raça branca, que abandona a sua verdadeira alimentação, cereais, frutos e legumes, ~para consumir cada vez mais carne, açúcar, álcool e alimentos químicos, que a desgastam em algumas gerações (*).

 

Desde o fim de 1931 que Fabienne trabalhava na Egalité sob a direcção de Bourland. Professor extraordinário havia já dez anos, cirurgião notável, Bourland, excluído da cátedra por Vallorge, não demonstrou, a princípio, grande entusiasmo pela nova estagiária. Era homem de trinta e cinco anos, alto e espadaúdo, de espessa barba preta. Enviuvara há cinco anos e tinha duas filhas, por quem Fabienne se interessava quando vinham, por acaso, esperar o pai ao hospital. Este interesse valeu à rapariga um retorno de simpatia da parte de Bourland.

Depressa arranjou ela uma amiga. Madeleine Daele, farta do sanatório, das ironias e pequeninas maldades que lhe infligiam duas ou três colegas depois da partida de beteuil, requererá transferência de serviço e havia sido colocada na Egalité. Foi ela quem tomou Fabienne sob a

 

Notas: Ver Pidoux: «Estudo sobre a tísica» (1874).

Pascault: «O artritismo pela superalimentação». Brtmon: «Tratamento e profilaxia da tuberculose».

Principalmente: Dr. P. Carton: «A tuberculose pelo artritismo», 3.» edição.

 

sua protecção e se encarregou do seu aprendizado de enfermeira.

Fabienne, no dia da chegada, começou por assistir a uma operação : hérnia estrangulada num operário de vinte e dois anos. Bourland foi breve e conciso. Mal a rapariga entrou na sala de operações, declarou-lhe:

- Coloque-se aí. Ponha as mãos atrás das costas. Observe e não toque em nada. Se sentir que não «aguenta», saia, porque no caso de desmaiar ninguém terá tempo para se ocupar de si.

Prevenida deste modo, Fabienne encostou-se à parede, muito perto da mesa operatória, onde já estava o paciente, e daí ficou a olhar.

Aquilo não lhe causou grande impressão. Só via um estendal de panos brancos e, a meio, um espaçozito de carne a descoberto, onde Bourland mergulhava os instrumentos niquelados. Toda a gente se conservava calada. De vez em quando ouvia-se a voz do cirurgião:

- Enfermeira, pinças, se faz favor.

- Enfermeira, catgut. Obrigado.

E Madeleine Daele, no mesmo instante, apresentava as pinças sobre um tabuleiro ou o fio de catgut enrolado no tubo cheio de álcool.

Com voz estranha e distante de quem sonha, o operado cantava:

- Tem vestido de xadrez Mais comprido que o casaco, Arrebitado o cabelo...

«Não, não é assim. Tenho de voltar ao princípio :

«Tem vestido de xadrez Mais comprido que o casaco, Arrebitado o nariz E o cabelo bem cortado...

- Crina, enfermeira Daele - dizia Bourland.

Foi a filha de Doutreval quem, finda a intervenção, empurrou o operado para a enfermaria e teve o encargo de o vigiar até que despertasse. Dormia bem e parecia muito calmo. Mas, quando Madeleine Daele chegou, meia hora depois, estava ele prestes a «engolir» a língua e a dar a alma ao Criador. Fabienne não reparara em coisa nenhuma. Madeleine agarrou-lhe na língua e puxou-a para fora da boca. Uma hora depois, o operado despertava tranquilamente.

No dia seguinte operaram duma otite dupla um pequeno de cinco anos. Fabienne é que ficou de vela. Quando a criança acordou, sentiu dores e pôs-se a chorar. Tinha a cabeça enorme, toda embrulhada em ligaduras. Fabienne, consternada, falou-lhe, entoou velhas canções, contou-lhe uma data de histórias. O pequeno serenou e ficou muito quieto a olhar para ela. Quando Bourland passou por ali e perguntou à rapariga que estava a fazer, Fabienne explicou então, muito ufana, que entretinha a criança para a distrair das dores. Bourland sorriu tristemente:

- Minha pobre filha, ele não a ouve! Já não tem tímpano. Otite dupla! Está surdo para toda a vida.

Afloraram lágrimas aos olhos de Fabienne.

Alguns dias depois Bourland teve o seu primeiro morto do ano : um homem de vinte e oito anos, casado, pai de três filhos, que morreu já no fim da operação. Madeleine Daele estava de licença. Bourland mandou levar o cadáver para a sala contígua, chamou Fabienne e ordenou-lhe :

- A mulher dele está no corredor. Vá preveni-la. Circunspecção, hem?

Fabienne demorou-se uns vinte minutos atrás da porta, a reunir a coragem que lhe faltava, sem se atrever a sair da sala. Mas foi necessário decidir-se, ir ao pé da infeliz, procurar as palavras capazes de prepararem o choque...

O mais dramático, porém, era o espectáculo que davam os alcoólicos. Havia sempre incrível quantidade deles entre os operários que vinham ao hospital para serem operados.

Uma vez estendidos na mesa, com a máscara na cara, punham-se a respirar o éter, congestionavam-se, contorciam-se. O enfermeiro que dava o anestésico agarrava-lhes então na cabeça, com as duas mãos, e Madeleine Daele segurava na máscara, abria a torneira de par em par. Mas o alcoólico, no seu sono incompleto de inconsciente, resistia, lutava, quebrava as correias que lhe ligavam os membros. Era preciso mais outro enfermeiro para o dominar, custasse o que custasse. E Bourland, conforme podia, cortava à pressa aquele ventre agitado de convulsões e sobressaltos, fazia incisões, enxugava, cosia e recosia e chegava a magoar-se. Não era raro o homem morrer nesse mesmo dia.

- Os rapazes dos liceus deviam ver isto - dizia Bourland. - Talvez desistissem de tomar os seus copinhos de aguardente.

Fabienne, todas as manhãs, procedia ao trabalho que lhe estava destinado. Despejava os bacios, aprendia a lavar os doentes, a refazer as camas sem que os ocupantes tivessem de se levantar, a ver e a ouvir tudo com um sorriso, a não ter jamais um movimento que traísse a sua repugnância, a sair depressa e disfarçadamente quando sentisse vómitos. Precisava de se mostrar forte, calma, experiente, acostumada a tudo. As temperaturas que tinha de tirar aos homens, de manhã, suscitavam problemas delicados. A princípio, Fabienne apresentava em silêncio o termómetro, contando com a eloquência do gesto. Na maior parte, contudo, não percebiam e ficavam a pensar de que maneira se serviriam daquilo.

- Veja a temperatura - explicava Fabienne.

- Ah, sim!...

E, conforme se tratava dum abcesso da perna ou do braço, o pobre diabo unia o termómetro à tíbia ou ao bicípete, o mais perto possível do mal que o afligia.

- Não! Não, senhor! - protestava ela a meia voz, corada de atrapalhação. - No... ânus.

- Em quê? - insistia candidamente o homem. Tornava-se necessário dizer-lhe onde se encontrava ao

certo o ânus. E ele, compreendendo por fim, ficava mais vermelho do que Fabienne. Havia ainda momentos mais desagradáveis, quando era ela própria que devia colocar o termómetro ou esperar a amostra de urina que o doente, confuso por ter de fazer isso defronte duma rapariga, se torturava inutilmente por apresentar.

- Vamos, vamos - murmurava ela, animando-o. Lembre-se de que sou apenas uma enfermeira. Uma enfermeira não é uma mulher.

Se este raciocínio discutível não era suficiente, Fabienne lembrava-se do estratagema que lhe indicara Madeleine Daele :

- Engula... engula a saliva.

Estupefacto, o homem engolia a saliva, a retenção cessava de repente e tombava no frasco um jacto abundante de urina.

- Caramba! - dizia ele, maravilhado e contente. As senhoras têm cada truque!

Ouvia-se a voz de Bourland chamando Fabienne:

- Vá ao 88, que está para ter alta. A fractura compôs-se, mais ou menos. Mas a enfermeira Daele descobriu que ele tem qualquer coisa no pulmão direito. Diz que não quer entrar no sanatório, que tem de trabalhar por causa da família. Veja se o convence. Note-lhe que, devido ao possível contágio, não lhe convém conviver com o filho, que é uma criança de cinco anos. E, em especial, proíba-o de ter relações com a mulher...

Em pouco tempo a rapariga começou a ser estimada por todos aqueles desgraçados, a quem ela retribuía a afeição. Tinha tanto medo de os fazer sofrer! As mãos tremiam quando devia dar uma injecção intravenosa. Era a própria paciente que a animava, estendendo-lhe o braço e sorrindo.

- Vá, não vale ter receio!

Toda essa gente, no entanto, tinha a sua sensibilidade, um pouco diferente da de Fabienne mas igualmente delicada. O homem, a quem ela agarrara, nas mãos enquanto lhe espetavam uma agulha no canal da espinal medula, não a esquecera mais; ficara a haver daí por diante, entre ambos, uma espécie de elo. Fabienne bem o sentia na maneira como ele a seguia com os olhos, tal um cão a quem se fez uma carícia. Aquele homem compreendera quanto uma enfermeira é susceptível de bondade e ternura no simples gesto de segurar as mãos.

Os professores, sempre apressados, pressentiam menos estas coisas. Passavam diante dos doentes incuráveis e condenados sem já sequer se deterem defronte do catre. E para quê? Não lhes podiam ser úteis. A sua obrigação era agora ocuparem-se dos outros. Mas, quando o médico saía, Fabienne lia a angústia e o desespero que se reflectiam no olhar do abandonado. E dirigia-se a ele.

- Senhora enfermeira, o senhor doutor nem olhou para mim! Isto quer dizer que estou perdido, não é verdade?

Fazia-se mister consolá-lo, mentir. Madeleine Daele era mestra nessa especialidade. Mas, desse por onde desse, nunca colocava mal o professor. Achava sempre meio de o desculpar, de lhe explicar a atitude. Até ao fim, conviria que o doente depositasse confiança naquele que o tratava.

- Isto e a religião - dizia Madeleine à sua colega - constituem as três quartas partes duma cura.

Havia notado como a fé, como a esperança é poderoso factor de resignação moral, por conseguinte, de levantamento das forças físicas.

- Que bandido! Que grande canalha! - gritavam as mulheres que estavam de parto, torcendo-se com dores e amaldiçoando os seus homens. - Nunca mais! Nunca mais há-de ele tocar em mim! Ah, menina, não se case!

E quando, meia hora depois, Fabienne mostrava a uma e outra o respectivo nené, ouvia-as dizer:

- Que tal? Não é bonito? E tão gordo! A menina devia casar-se quanto antes, para ter uma dúzia de pimpolhos como este.

A sala dos partos ficava no rés-do-chão. Em seguida levavam as parturientes para o andar de cima. Madeleine Daele é que recebia, num lençol dobrado em quatro, a criança acabada de nascer, juntamente com o mecónio. Levava-a consigo, dava-lhe banho, prestava-lhe os primeiros cuidados. E era então Fabienne quem, daí a pouco, ia apresentar os recém-nascidos às mães, cinco, seis, sete pequeninos entes, a seguir uns aos outros. As mulheres, deitadas, ainda vermelhas, soerguiam-se a custo na cama e procuravam-na de longe com o olhar, a ver para onde é que ela se dirigia. As vezes, acontecia ficar uma ali a assistir à passagem dos filhos das outras, sem que o seu jamais chegasse. Fitava a enfermeira, e esta não podia esquivar-se a fitá-la também. Nesse olhar, a mãe adivinhava que o seu filho estava morto e punha-se a chorar. Madeleine Daele, quando o podia fazer, baptizava-os de urgência, antes que se finassem. Uma gota de água na testa e...

- Eu te baptizo, José, em nome do Padre...

E depois o pequeno morria. Singulares e lúgubres baptizados! Fabienne viu assim extinguir-se uma série de pequeninos Josés, pois Madeleine não tinha tempo de se lembrar de muitos mais nomes para os seus neófitos.

Havia também inúmeras mães solteiras que abandonavam o filho à saída do hospital, deixando-o ali para ser entregue à Assistência Pública. Era quase necessário batalhar com essas mulheres; faziam tudo para que elas acedessem a olhar para a criança que haviam dado à luz, para que se ocupassem dela, e a tivessem nos braços. Se, nem que fosse uma só vez, consentissem em lhe dar o seio, tudo se modificava, estavam salvas: já não tinham coragem de abandonar o filho. Elas, porém, bem o sabiam, desconfiavam do próprio coração, desse instinto mais forte que tudo, e repeliam com fúria a criança, desviando o olhar para não a ver.

Havia, além disso, os abortos clandestinos mal sucedidos, que no hospital já não levavam em linha de conta : mulheres com hemorragias desatadas, que acabavam de furar o feto e a matriz ao mesmo tempo, com uma agulha de meia ou um alfinete de chapéu. Nem sequer lhes faziam perguntas. Para quê? Elas, por seu lado, não diziam coisa alguma, conservando-se desconfiadas e silenciosas. Só Bourland é que se indignava, tratando-as de desavergonhadas; se o tratamento a fazer-lhes era apenas uma raspagem, ele procedia a isso sem as adormecer, evitando-lhes assim a vontade de recomeçarem.

- Há-de ficar-te de memória! A culpa é tua!

Os abortos enfureciam-no sempre, mas o método que ele aplicava parecia dar bom resultado. Em primeiro lugar, como escapavam à intoxicação pela anestesia, as operadas curavam-se depressa. Em seguida, guardavam da operação um medo que não deixava de ser salutar. E não era raro Bourland rever, na consulta pré-natal, mulheres a quem ele, meses antes, tratara daquela maneira.

- Com que então, estás aí? Desta vez a coisa vai! Resolveste deixar-te emprenhar!

- Ah, senhor doutor - confessava ela - prefiro o parto à raspagem!

Fabienne ocupava-se dos petizes abandonados. Havia sempre uma centena deles, que permaneciam no hospital até que tivessem um ano. Depois a Assistência Pública confiava-os a amas. Estavam de quinze a vinte por compartimento, cada qual na sua cama. Entrava-se ali no meio dum concerto de miados e bramidos, e as enfermeiras tinham de gritar para se fazerem ouvir. Sobre a mesa comprida, ao centro do quarto, lavavam as crianças e lançavam os cueiros para dentro dum cesto enorme. O cheiro a amoníaco chegava a ser sufocante. Fabienne, desenfaixando os nenés, precisava às vezes de reter a respiração. Terminado o giro das salas, era altura de preparar os biberões e distribuí-los. Em seguida recomeçava a série das lavagens. Muitos desses pequeninos seres apresentavam taras. Certa idiotazinha, hidrocéfala, não conseguia apertar na boca o biberão e soltava a cada instante uma espécie de risadas estridentes, que despertavam os seus vizinhos. Alguns, magros, encarquilhados, ficavam perpetuamente imóveis, pensando não se sabe em quê e, em paga dos pecados maternos, passavam da vida à morte sem que se desse por isso. E eram todos tão raquíticos, tão descarnados, que havia dificuldade em lhes dar injecções. Voltavam-nos e tornavam a voltar, e não viam sítio onde meter a agulha sem ofender os ossos. Aos sifilíticos sobretudo é que davam séries de injecções intravenosas de Noar. Para Fabienne havia algo de horrível nesse tratamento anti-sifilítico aplicado a criaturas de seis meses, ao passo que os culpados continuavam talvez na impunidade a contaminar outros entes e a procriar futuras vítimas. O pior era ainda ser necessário tomar cuidado, estar em guarda contra esses infelizes pequerruchos. Dos olhos e do nariz corria-lhes de contínuo um humor malsão; ou então a ferida do umbigo não cicatrizava, supurando sempre. Ao limpá-los sem precauções, corria-se o risco de contrair a infecção.

Aos abandonados da Assistência prodigalizava-se maior soma de carinhos, e a isso se entregavam religiosas, enfermeiras e criadas. Eram sossegados e bonitinhos, aqueles seres minúsculos! Brincavam sós na cama, de pé, agarrados às guardas de ferro. Calmos, quase graves, sem sequer sorrirem, punham-se a ver passar as pessoas, em silêncio, como meninos que não receberam a sua quota de beijos e de amor. Do pescoço pendia-lhes um colar, o singelo e doloroso colar de pedras azuis da Assistência Pública, onde se lia, na medalha circular, os nomes «República Francesa». Não era sem uma dor de alma que se via partir para a Assistência uma ou outra dessas crianças adoráveis. Entre elas estava uma petiza muito meiga, que ali deixara a mãe, ajudanta de cozinha do hospital. Todas as enfermeiras lhe tinham a maior estima. Fabienne não podia olhar sem angústia para aquela facezinha tímida e sempre inquieta, como se a pequena já pressentisse o seu destino. Aproximava-se a data: ia, no fim da semana, para a Assistência, quando, inesperadamente, se soube que Madeleine Daele a havia adoptado.

Foi em Agosto de 1932, um pouco antes da partida de Fabienne, que se espalhou a notícia: Bourland ia casar com Madeleine Daele. Esta, como já se disse, adoptara a tal criança. Bourland, por seu lado, tinha duas filhas do primeiro casamento. Era já uma família numerosa, ainda antes de se unirem pelo matrimónio. Soube-se também que ele ia sair da Faculdade. Sentia-se cansado daquelas manobras, de estar a marcar passo na expectativa de ver morrer um catedrático, daquelas estratégias ardilosas e prolongadas, das minas e contraminas em volta da cátedra ocupada, daquelas correrias doidas para alcançar a cadeira vaga. Toda essa política de bastidores o fatigava. Estava farto de ver passarem-lhe à frente os filhos dos professores quejandos, por simples despotismo, sem o menor esforço. Proporcionara-se-lhe um bom lugar na América do Sul. Bourland despedia-se da França, ia estabelecer o lar em terra alheia e aplicar aí o seu talento e a sua ciência. Dentro de dez anos, como tantos outros, voltaria célebre. E a França, uma vez mais, acolheria de braços abertos o grande homem a quem não soubera dar ocupação.

 

Uma tarde, depois de regressar do laboratório de Norf, Michel viu surgir no seu quarto Tillery, Seteuil e Santhanas.

Seteuil viera do departamento de Nord a fim de comprar aparelhagem de radiografia. Quanto a Santhanas, desembarcara da Normandia e estava sem ter que fazer. | Esse estouvado estragara a óptima situação que lá usufruía. Capaz de fazer supurar uma estátua, como dizia j Géraudin, metera-se a praticar cirurgia sem os devidos cuidados e fora mal sucedido em dois ou três casos : pernas | e braços consertados de tal modo que houvera necessidade de os fracturar novamente para se poderem endireitar. Isto desanimou a clientela. Por fim, ao operar certo dia um pequeno em casa dos pais deste, Santhanas viu a criança morrer-lhe nas mãos. Dum acidente nenhum médico é responsável; mas, como o cirurgião se encontrava no quarto sozinho com a criada, deitou o cadáver na cama sem dizer coisa nenhuma, saiu e preveniu a família deste modo : - Está a dormir. Só deve acordar daqui por duas horas. Máximo sossego e, sobretudo, que ninguém entre no quarto. São seiscentos francos o meu trabalho. Recebeu o dinheiro e foi-se embora. Duas horas depois, os pais encontraram o pequenino corpo já frio, interrogaram a criada e adivinharam o que se passara. A história espalhou-se e a aldeia em peso, armada de forcados, quis assaltar a casa de Santhanas, o qual, no entanto, pôde escapulir-se com o auxílio da polícia.

- Uma maçada - rematou ele, depois de contar a sua aventura aos três camaradas. - Mas cá me hei-de arranjar. Tenho amigos homeopatas... Parece que isso dá... Instalo um consultório de homeopatia e pronto!

Seteuil, esse, ganhava muito dinheiro.

- Aquele Zé Ninguém I - comentava Tillery com ênfase.

Tillery tornara-se em grave chefe de família. O rapaz prometido, e que se devia chamar Charles, achara preferível adiar a sua vinda para mais tarde e ceder o lugar a duas gémeas de nariz arrebitado e olhos maliciosos como o pai. Um tanto desconcertado a princípio pelo que ele designava como «troca de encomendas», Tillery depressa se resignou.

- Recomeçaremos e assim remediámos o caso - dizia com a maior singeleza. - Não é verdade?

- Não tens vergonha! - volvia a mulher, rubra de atrapalhação.

O casal Tillery começava a viver com mais desafogo. A clientela aumentava e, sobretudo, ia-se habituando a pagar de tempos a tempos. Agora, Tillery, quando ia com a mulher jantar a casa da mamã merceeira, levava solenemente uma torta de nata e uma garrafa de Bordéus.

- Presentes interesseiros! - afirmava Tillery. -Minha mulher adora tortas e eu pelo-me pelo vinho de Bordéus. O coração do homem é um poço de egoísmo.

Com certa vaidade, falava já em comprar um automóvel, mas acabava por chalacear a esse respeito, fazendo trocadilhos. Nessas ocasiões, ela encolhia os ombros com ar resignado, chamava-lhe tolo, e afastava-se para ir ver as gémeas, em quem Tillery mal se atrevia a tocar na presença da mulher - que declarava abertamente não confiar no marido. Pois não quisera ele, um dia, abaixar com uma colher a língua das filhas, com risco de as fazer vomitar, e tudo por causa duma simples dor de garganta! Isso não impedia, no entanto, que tratasse, e muito bem, todos os miúdos do bairro. Michel admirava-se um tanto com esse facto. Escasseava a Tillery a gravidade, o ar solene de médico. A sua instalação era pobre. Por outro lado, só dispunha de conhecimentos teóricos e bastante rudimentares. O que ele tinha era faro, habilidade, certa intuição, extrema prudência e, principalmente, o gosto da profissão e amor à sua clientela de operários, que lhe pagavam mal e o adoravam. O êxito em medicina é uma coisa que nem sempre está relacionada com os estudos nem com o saber teórico, e que dificilmente se explica.

Évelyne ia bem. Michel, que a via todos os domingos, achava-a cada vez melhor.

Numa tarde, falou do assunto a Domberlé.

- Porque razão não é mais conhecido, senhor doutor? Porque é que os seus vinte ou trinta volumes não são lidos em toda a parte? Que é que impede a medicina oficial de seguir o seu método?

- É preciso esperar - retorquiu Domberlé. - Este método, no fundo, implica enormes modificações na medicina clássica. A unidade da doença! Lembre-se de que os médicos estão ainda muito longe dessa ideia. No entanto, a doença, na sua essência, é única. Por meio de alimentação industrial, química, superconcentrada, pelo abuso da carne, do açúcar, do café, dos excitantes, do álcool, dos medicamentos, injecções e fortificantes, o homem gasta-se, estraga o organismo. E, quando o organismo tenta purificar-se, grita-se ó da guarda e declara-se: estou doente!

- Isso é um tanto verdadeiro - concordou Michel.

- Extremamente verdadeiro. Aquilo a que chamamos doença não é mais que o resultado dos múltiplos esforços salutares da nossa força vital para se purificar. Dor, inflamação, febre, diarreia, vómitos, escarros de sangue, tudo isso são reacções de defesa, tentativas de expulsão, de saneamento. Conforme o órgão que, por fraqueza hereditária, serviu de emuntório, de via de evacuação (intestinos, pulmões, bexiga, pele, olhos, ouvidos) os médicos, esquecendo-se muitas vezes de ir mais longe, chamam àquilo enterite, bronquite, cistite, eczema, furunculose, conjuntivite, otite, etc., etc. E obcecam-se ainda com maior facilidade, porque na altura daquela libertação maciça dos produtos tóxicos o órgão fatigado pode dar azo a que o micróbio se instale, provocando tuberculose, pneumonia ou colibacilose, ou qualquer outra coisa. Muitos médicos se esquecem de que, se o terreno estivesse são, alimentado de modo puro e natural, o micróbio jamais teria dominado o doente.

- E esquecem-se de que, voltando a essa pureza humoral, permitem automaticamente ao organismo desembaraçar-se do micróbio - concluiu Michel.

- Como viu no caso de sua mulher, Doutreval. Aliás, todos temos micróbios connosco, aos biliões, continuamente. Micróbios da tuberculose, da difteria, da erisipela, da pneumonia.,. São, porém, inofensivos enquanto somos saudáveis. Porque se tornam de súbito virulentos? Porque a fraqueza do terreno humoral o permite. E a melhor prova de que é questão de terreno e não de micróbios é o facto de os mais diversos destes poderem provocar num doente a mesma doença. E, inversamente, a mesma espécie microbiana produzirá, segundo o temperamento do indivíduo que a aloja, as mais variadas enfermidades: o mesmo estreptococo causará erisipela numa pessoa, noutra uma angina, noutra umfleimao, ou escarlatina, ou septicemia... O mesmo micróbio pode provocar herpes, pneumonia ou meningite; porque o que conta são as taras e as fraquezas, o terreno do indivíduo.

- Muitas vezes pergunto a mim mesmo por que motivo o género humano, no meio de todos esses micróbios, se não extinguiu há já muito tempo - observou Michel.

- Ora! Isso seria inexplicável, se a teoria clássica tivesse razão.

Abanou a cabeça e prosseguiu.

- O pior de tudo é a medicina oficial estar ainda nesse ponto; para ela, existe multiplicidade de doenças a tratar localmente, sem preocupação do estado geral. A doença é a diarreia, a transpiração, a febre, o micróbio... Confunde os sintomas com a própria enfermidade e faz-lhe um ataque em forma. Para isso dispõe dum arsenal completo: para deter uma diarreia, ópio e bismuto; para a febre, hipotérmicos; para a expectoração, terpina; para as hemoptises, hemostáticos; para a. hipertensão e a hipotensão, adrenalina ou tónicos; e para o micróbio, os anti-sépticos, os soros e as vacinas! O motor aquece? O termómetro sobe? Deito-lhe água fria e continuo a passear no carro. Que pensaríamos dum empregado de garagem que nos tratasse o automóvel dessa maneira?

Michel sorriu.

- É precisamente a mesma coisa, meu caro amigo.

- Há as dietas...

- Bem sei. Mas muitos médicos ainda as prescrevem de modo desastroso. é certo que não são responsáveis: a medicina de escola é que os ensina mal. E, não tendo eles sido doentes como eu fui, por desgraça ou por sorte, como quer que saibam o que nunca lhes ensinaram? Quer que adivinhem que certas batatas desmineralizam, que os limões, as laranjas e os frutos ácidos causam perturbações nos mais fracos? Que o pão de rolão, os doces de frutas, alguns alimentos fortes, bem tolerados por pessoas robustas, devastam os organismos débeis? O médico aplica o que lhe inculcaram, tem em consideração as calorias, e esquece-se das questões essenciais: primeiro, a origem química, industrial e desvitalizante de certos alimentos, depois a densidade molecular, a riqueza, a concentração de outros alimentos, concentração que devia sempre, para os doentes, ser bastante diminuída, bastante aliviada. Mal adaptado, o regímen não dá grandes resultados, e o médico, não acreditando já na sua eficácia, prefere os medicamentos mais rápidos, mais fáceis, mas que na realidade não curam e se limitam a encobrir por uns tempos os sintomas.

- No entanto, às vezes, os medicamentos são valiosos

- observou Michel.

- Evidentemente! Apaziguam reacções excessivas e desordenadas. Uma droga, um soro, uma vacina podem ser indispensáveis em plena crise aguda. Mas não os utilizemos senão depois de haver tentado outros meios, e lembremo-nos que, ao empregá-los, mais não fazemos do que rechaçar as manifestações da doença, sem lhe dar cura. Expulso dum lado, o mal, inevitavelmente, levará a outro órgão o seu esforço saneador, e isso em condições agravadas, pois que a purificação dos humores foi impedida e o remédio ou a vacina produziram no doente uma intoxicação química ou microbiana suplementar. Ao servirmo-nos dum medicamento, pensemos sempre que se trata dum caso urgente e nada mais; em seguida, é necessário proporcionar ao enfermo uma demorada cura de desintoxicação e uma revisão geral do seu sistema de alimentação e de vida.

- Deve-se confessar que o médico muitas vezes se esquece dessas coisas - notou Michel. - Uma vez que a droga fez efeito, ele julga o doente curado...

- Na verdade, existe aí uma lacuna gigantesca. Na maior parte dos casos pratica-se medicina de urgência. Adquire-se o hábito de reprimir energicamente, se não brutalmente, reacções salutares, que nada apresentavam de ameaçadoras: febre, diarreia, ou tosse. Desaparecido o sintoma, fica-se por ali. De facto, na aparência curou-se o doente. Já não sofre, retoma a actividade, mas, tempos depois, voltará a adoecer. Tudo isto desgasta a pouco e pouco o indivíduo e a raça. Os nossos sanatórios e manicómios estão à cunha. A tuberculose propaga-se, o cancro e a diabetes cada vez alastram mais. Constroem-se sanatórios, hospitais, procuram-se com afinco novas vacinas, soros, específicos, anti-sépticos, extractos glandulares, gastam-se milhões em institutos, opera-se, fazem-se tratamentos radioactivos, e ninguém se lembra de remediar a causa essencial da doença: o enfraquecimento vital ocasionado pela alimentação sobreexcitante, venenos farmacêuticos e vacinas. Todos esses esforços, todo esse heroísmo de tantos sábios são, por assim dizer, inúteis. Porque, ainda que amanhã se descubra a cura radical da tuberculose e do cancro, outras doenças virão substituir aquelas.

- Já assistimos a esse fenómeno - confirmou Michel.

- Há enfermidades que «recuam», mas por toda a parte se alarmam com a progressão doutros males. O reumatismo e as doenças do coração têm diante de si um futuro magnífico. Ainda há poucos dias li que o reumatismo custa mais aos Estados Unidos do que a tuberculose, a sífilis e o cancro, todos juntos!

- Não me admiro. Em França, o reumatismo acaba de ser denominado «doença social». E será tratado como tal em institutos dispendiosos, com o reforço de perigosas injecções de salicilato. Quanto às causas do reumatismo, quem se preocupa com isso? E essas causas são afinal sempre as mesmas, para todos os males: a dissipação das forças através da alimentação incendiária, das drogas e da vida insalubre. Já me viu tratar os tuberculosos, Doutreval. Viu-me e continuará a ver-me tratá-los da mesma maneira, por meio de dieta, exercício, hidroterapia e higiene geral rigorosamente apropriada e individualizada segundo as possibilidades mais ou menos reduzidas do «transformador». Lembre-se das minhas enfermarias de crianças, daquelas anginas, amigdalites, sinusites, otites, tosses convulsas, osteomielites, abcessos, pólipos que foram desaparecendo com a supressão da causa: alimentos excessivamente concentrados e obstrutivos, fadiga... Nos «meus velhos» verá desaparecer do mesmo modo os reumatismos, furunculoses, cistites, prostatites (no começo) e até verrugas.

- E quando eu digo a um estudante de medicina que a amigdalite ou os pólipos se podem curar com regímen são, ele sorri! - observou Michel.

- Como muitos outros sorrirão. Pudessem eles compreender que qualquer doença, por mínima que seja, por muito localizada que esteja na aparência, furunculose, corisa, pólipos, e até cárie dentária, tem por causa uma perturbação no estado geral, e que o médico em caso nenhum deve limitar a sua acção a um tratamento local, a um medicamento. Não sabem ainda o que se obtém quando se compreendeu o sentido da doença, o seu esforço de purificação, e que, em lugar de contrariar esse esforço com intoxicações da farmacopeia, se deve ajudá-lo, agindo sobre os emuntórios naturais: pele, intestinos, rins, e também pelos meios naturais, água, ar, calor, frio, alimentos desconcentrados, a fim de acelerar as descargas em vez de as retardar. Ignoram que só se pode dizer que um doente está curado quando ele foi esclarecido sobre as possibilidades do seu «transformador», dotado duma dieta desconcentrada, à medida das suas reduzidas possibilidades, informado, enfim, sobre as causas do mal. é importante o papel salutar, de advertência e de obstáculo a novos erros, que representa, para ele, aquilo a que deu o nome de «a sua doença». O sofrimento, Doutreval, é o grande educador do homem. A medicina clássica não sabe até que ponto isto é verdadeiro, até no campo fisiológico. Ensina-nos a detestar a enfermidade; e, contudo, a doença esclarece, previne, purifica, tem sobre o plano material as mesmas causas: ignorância, excesso, falta de submissão que o sofrimento tem sobre o plano moral. Os cristãos, exaltando o papel do sofrimento, não fazem senão transpor

e sublimar uma verdade, da qual muitas vezes ignoram quão profundamente as suas raízes mergulham no próprio ser psicológico. Na realidade, se bem as entendermos, medicina e religião fazem a mais harmoniosa das sínteses, apoiam-se uma sobre a outra em lugar de se contraporem. uno o plano pré-estabelecido que conduz o mundo para a Perfeição. E agora vamos ver os nossos doentes, Doutreval.

 

Depois duma noite mal dormida, Guerran levantou-se cedo nessa manhã.

Estava já há uma semana em Paris. A Páscoa aproximava-se. Na Câmara dos Deputados preparava-se grande debate, e Guerran, com um dos partidos do centro, combinava a queda do Ministério. A fim de examinar o assunto, marcara uma entrevista com o chefe do seu partido, às dez horas, em casa dele.

Como sempre, o nosso deputado deixara em Angers a mulher e os filhos. Alugara em Paris uns aposentos confortáveis e muito simples, de cujas janelas se desfrutava magnífica vista sobre o Sena.

Nessa manhã, em que se levantara às seis, Guerran barbeava-se defronte do espelho do lavatório enquanto, na cozinha exígua, a mulher-a-dias lhe preparava o café.

Sentia-se fatigado. Havia alguns dias que tinha picadas agudas no ventre, coisa que na véspera se agravara. Com a delegação do grupo parlamentar, fora ao Arco do Triunfo depor uma coroa. A cerimónia prolongara-se, estava muito frio, e ele ficara com os pés quase gelados. Ao meio-dia almoçara na residência do chefe, almoço de ostras, faisão, lagosta, vinho. Guerran tinha-se esforçado por comer bem, para abortar o que julgava ser um princípio de gripe. à tarde, por duas ou três vezes, experimentara dores breves e lancinantes na barriga, à direita, perto do quadril.

Depois de barbeado e vestido, Guerran dirigiu-se à cozinha. Era aí que, para simplificar o serviço, tomava a primeira refeição. Nesse dia nem o café nem o pãozinho barrado de manteiga lhe souberam bem. Bebeu só dois goles do líquido fervente, passou ao vestíbulo e envergou o sobretudo.

Guardava o carro numa garagem próxima. Foi lá buscá-lo e nele se dirigiu para a porta de Orleães. Conduzia muito devagar, contra o costume. A fadiga continuava. Doía-lhe o ventre, tiritava de frio. Um nevoeiro húmido envolvia Paris e o limpa-parabrisas abria repetidas meias-luas no vidro embaciado. Apesar do sobretudo espesso, das luvas e do lenço do pescoço, Guerran sentia-se enregelado.

Bruscamente, defronte dum restaurante que tinha no interior as luzes acesas, parou o automóvel, desceu, entrou e pediu café e aguardente.

«Isto há-de aquecer-me», pensou. «Vou ter com o chefe, entrego-lhe os papéis, desculpo-me, e volto logo para casa. É singular, esta dor... E tenho calor e frio ao mesmo tempo!»

Não pôde tomar o café. Só o cheiro o enjoava. Limitou-se a beber o copo de aguardente.

Isso, porém, não o aqueceu. Pelo contrário, cada vez o invadia mais frio. E que vontade de vomitar! Mas a cólica é que era intolerável: dir-se-ia que lhe rasgavam as entranhas.

Chamou o criado, pagou e, com grande esforço, pôs-se de pé. Um pouco curvado, levando, à cautela, a pasta consigo, dirigiu-se para as retretes. Tinha de se reprimir para não fazer caretas, tal era a dor que sentia. Fechou-se na retrete e colocou a pasta no chão. E, de repente, a cabeça andou-lhe à roda, as náuseas agravaram-se e Guerran desatou a vomitar, dobrado em dois. Esteve assim muito tempo. Todavia, não tinha comido nada. O sofrimento enchia-o de suores. Para não cair, segurava-se à parede. Quando acabou, ficou nessa posição ainda um momento, sem forças para se mexer.

«É da gripe», disse consigo. «Apanhei-a forte! Tenho de voltar já para casa. Tanto pior...»

Saiu, esquecendo-se da pasta. Mas não ousou atravessar o restaurante. Devia estar lívido e feio de meter medo. Seguiu, pois, por uma porta de serviço, devagarinho, com a mão direita apoiada à barriga, aflitíssimo com dores. Arrastou-se para dentro do carro, respirou um minuto, já ao volante, e pôs-se a caminho de casa. Ia cada vez mais fraco. Guiar custava-lhe bastante. Agora as cólicas, atrozes, percorriam-lhe todo o ventre. A vista toldava-se-lhe.

«Depressa», ordenou a si mesmo. «Depressa para a cama!»

Obscureceu-lhe a vista uma vertigem, durante alguns segundos; mas reanimou-se. Rodava devagarinho, muito devagar.

«Nunca mais chego a casa!»

Numa encruzilhada, um polícia fez-lhe sinal de parar. Foi com grande dificuldade que Guerran manobrou o travão e fez a mudança de velocidade. O sinaleiro mandou-o seguir e Guerran arrancou tão lentamente que o outro, impacientado, lhe fez largos gestos :

- Despache-se! Despache-se!

Guerran percorreu ainda cem metros. A sua volta, tudo se tornava cada vez mais negro, como se anoitecesse de repente. Já não tinha dores. Sentia grande lassidão, os braços iam ficando frouxos... Só teve tempo de arrumar o carro à direita e de se estirar no assento. E perdeu os sentidos. Antes, porém, de desmaiar, num derradeiro e infinito esforço, conseguiu escancarar a portinhola para que o socorressem.

Voltou a si alguns minutos depois. Estava ainda deitado no assento do automóvel, de barriga para o ar e pernas encolhidas. Havia gente a rodeá-lo.

- Levem-me para casa... para a minha casa... - murmurou.

Ouviu vozes longínquas, como em sonho :

- Um médico? O hospital... Compreendendo que se tratava dele, balbuciou:

- Não, não. Para a minha casa...

- Uma ambulância? É preciso um polícia...

- Não... Um motorista. Quero ir para casa. O motorista dum táxi...

- Eu sou motorista - declarou um homem.

- Leve-me... no meu carro... Quai aux Fleurs, 22...

- E as minhas horas de serviço? O senhor paga-mas?

- Pago, sim... Depressa...

O homem pôs-se ao volante, fecharam as portinholas e o automóvel partiu.

- Devagar... devagar... - gemia Guerran, no assento de trás.

Parecia que mãos de ferro lhe trituravam as entranhas. Aquilo durava um minuto e apaziguava-se um instante, para logo voltar. Guerran continuava encolhido em cima do banco, com os pés e as mãos geladas, num tremor constante, sem mesmo saber onde estava. De vez em quando, era sacudido por um solavanco.

- Devagar... - pedia ele.

O carro parou e tiraram o doente para fora. Guerran recusava estender-se, estirar as pernas. Não podia. Era como se lhe rasgassem qualquer coisa lá por dentro. Assim foi transportado até aos seus aposentos e deitado, vestido, sobre a cama.

- Tire-me daqui a carteira - balbuciou. - Tome cem francos... Vá chamar um médico...

A grande custo, puxou a colcha para cima de si, e, em seguida, fechou os olhos e caiu em sonolência, atravessada por dores breves e atrozes. Foi nesse estado que, meia hora depois, o encontrou o médico.

Ajudado pela porteira e pela mulher-a-dias, o doutor, homem muito moço, desabotoou a roupa do enfermo e persuadiu-o a estender as pernas e a não contrair os músculos abdominais. Foi com dificuldade que o examinou. O ventre reagia ao menor toque. Percutido, dava um som de «barriga de pau».

- Tem dores há muitos dias? Desde quando? - perguntava o médico. - Onde? Ah !... Aqui, na fossa ilíaca, não é verdade? Vomitou? Muito? Sim... sim, bem vejo... Pois, meu caro senhor, o seu estado é grave. É preciso ser operado imediatamente.

- Operado? - repetiu Guerran.

- Tem uma crise de apendicite aguda. No seu lugar, não perderia tempo. Nestes casos, os minutos são preciosos.

- Podem-me operar aqui?

- É impossível. O seu estado é muito sério. O melhor que temos a fazer é chamar a ambulância duma clínica.

- E será coisa para eu ficar retido na cama muito tempo?

- Uns dez dias.

- É que é absolutamente necessário que eu esteja de pé quando reabrir o Parlamento...

O médico reprimiu um gesto de impaciência.

- Veremos, daqui até lá. Por agora, esse género de preocupações tem de passar para segundo plano.

- Guerran compreendeu.

- Oh, diabo!...-murmurou ele.- Bem. Para onde me aconselha que vá?

- Escolha o senhor... Casa de saúde Ambroise-Paré Berthelot, Epidauria, Claude-Bernard, muito próxima daqui...

- Épidauria... - volveu Guerran. - Conheço... Estão vemgOS de Géraudin”’ Ah- lá vem a dor outra

- Quer que previna a Épidauria?

- Sim, peça a ambulância. Depressa! E que me adormeçam... e operem logo... Diga também... que desejo

Géraudin... Géraudin, de Angers. Não se esqueça: Géraudin...

Às dez horas e meia Géraudin recebeu este telegrama:

«Favor vir operar senhor Guerran casa saúde Épidauria. Urgente. Esperamos até duas horas. Se não chegar teremos nós intervir. Saudações cordiais.

Doutores Godefrin, Hoyer, Colligny».

Não havia serviço aéreo regular entre Angers e Paris, mas Flégier, pelo telefone, chamou de Nantes um avião-táxi. Às onze e quarenta Géraudin subia para a carlinga do aparelho. Acompanhavam-no Flégier, como ajudante, e o motorista Louis, que em todas as intervenções do patrão ficava encarregado de administrar o anestésico. O professor estava habituado a ele e não queria dispensá-lo num caso tão grave. Louis é que levava as malas.

O aparelho descolou contra o vento oeste, passou um momento rente às ervas da vasta planície, nas quais o hélice punha ondulações profundas, tomou altitude, virou e dirigiu-se para nordeste. No horizonte brumoso esbateram-se Angers, o Maine, o castelo do Rei Renato. Géraudin, pelas escotilhas, via fugir o solo, as colinas eriçadas de troncos despidos, as velhas casas acasteladas, de tectos de ardósia. As asas do avião rasgavam e desfiavam nuvens, uma roda girava lentamente, suavemente no espaço... O rumor ensurdecia Géraudin, a pressão bloqueava-lhe os ouvidos. De tempos a tempos o aparelho dava um tombo, de modo brusco: era um poço de ar, de cinquenta metros.

- O pavimento não está bom... - comentava o piloto, com a sua voz zombeteira de parisiense de Belleville.

Manobrava a barra de direcção, puxava a alavanca de pilotagem. Louis, sentado ao lado dele, olhava-o com vivo interesse e gracejava. Quanto a Flégier, atrás de Géraudin, vomitava o almoço, com toda a discrição possível, num saquinho de papel onde, mais tranquilizadora do que qualquer palavra francesa demasiado evocativa, estava impressa a fórmula inglesa: AIR-SICKNESS

O mais extraordinário é que Flégier, que não sabia inglês e jamais havia deixado a terra firme, adivinhara instantaneamente que Air-Sickness queria dizer «enjoo do ar» e compreendera logo qual era a utilidade daqueles sacos de papel.

Géraudin acendeu um dos seus eternos charutos. Estava preocupado e, nesse instante, invejava Louis, a sua apatia, a sua tranquilidade de criatura pobre e sem glória, que não tem nada a defender. Ele aí se encontrava, aquele animal, a dizer gracejos e a rir com o piloto. Não sentia a inquietação duma nova luta com a morte, duma daquelas batalhas em que Géraudin arriscava sempre o seu nome, o seu prestígio. Cada vez mais o cirurgião, antes dessas horas difíceis, experimentava a angústia da «cólica». Ninguém o suspeitava. Aquilo começara no dia em que Belladan lhe trouxera a tal petiza para ele a operar das amígdalas. Fadiga? Enervamento? Mau estado geral? Fosse o que fosse, Géraudin, diante da síncope, perdera por completo a cabeça. Os outros não deram por isso. A cena desenrolara-se em dez segundos, entre ele e Belladan. Mas nesses dez segundos, em face do pequenino moribundo, Géraudin ficara desnorteado. E o facto repetira-se em mais duas ocasiões: quando fizera trepanação de urgência no polícia que fora atacado por um vadio, e no fim duma operação demorada e fatigante a um canceroso. Picadas acima da nuca, névoa na vista, súbita impressão de vácuo na cabeça, tremor nas mãos...

Agora, antes de qualquer intervenção cirúrgica, Géraudin perguntava a si mesmo:

- Irei sentir a mesma coisa? Conseguirei chegar ao fim?

Nas primeiras vezes, soubera dominar-se. Esperara, imóvel, a meio da operação, de cabeça baixa e olhos fechados, como se reflectisse. Contara até vinte. Depois, tudo aquilo passara e ele pudera continuar o trabalho. A crise seguinte foi mais prolongada. Géraudin necessitara de toda a sua energia para terminar a operação, a qual durara bastante. Louis, que mantinha a máscara sobre o rosto do paciente, erguera os olhos e fitara o patrão, admirado daquelas hesitações...

«E hoje?» pensava Géraudin. «A semana passada trabalhei demais. Ontem, aquela insípida festa para onde Valerie me obrigou a ir... E é Guerran que está em jogo! Não faltará gente em meu redor. Se eu pudesse, recusaria! Mas ele conta comigo. E também não vou confessar as razões... Oxalá tudo corra bem. Na presença de Godefrin e Colligny! Eles notariam o mínimo desfalecimento. Hão-de estar com o olho em mim, principalmente Hoyer. Já se gabou de ser tão rápido como eu! Se mostrar lentidão, se me demorar, constará logo: «Géraudin já está velho... Géraudin está a ficar lento...»

Todas estas ideias o apoquentavam. Nesse momento chegava a querer mal a Guerran por o ter mandado chamar, por depositar confiança nele. Um amigo, uma pessoa a quem Géraudin estimava! Quando o coração intervém, a mão já não é tão firme. E que responsabilidade! Guerran era uma das personagens mais em evidência, e por certo que a imprensa ia falar do caso. Géraudin lembrou-se do professor Gosset, que por várias vezes operara Clemenceau. Depois duma dessas operações, Clemenceau disse ao célebre cirurgião:

- Afinal, o facto de me operar é mau para si. Se eu ficar curado, ninguém mais se recordará de que foi o senhor quem me pôs bom; e, se eu morrer, toda a gente dirá que me assassinou!

Já não sentia nenhum balanço. O avião, suspenso em pleno céu, a três mil e quinhentos metros acima da terra, parecia imóvel no centro duma vasta planície côncava. De tão alto, já não se via fugirem as cidades, os caminhos, as florestas. Géraudin ficou surpreendido quando, voltando-se, Louis lhe disse numa voz que o barulho do motor mal deixava distinguir:

- Senhor doutor, a Torre Eiffel! Efectivamente, ela surgia no horizonte, entre a bruma.

Em redor, envolvendo Paris, pairava uma atmosfera quente, amarela, pesada e doentia. Num raio de trinta quilómetros, essa cúpula de ar viciado asfixiava a capital. O tempo húmido, a ausência de vento, um sol pálido tornavam em especial nesse dia bem visível o fenómeno.

Contornaram Paris. O aparelho sobrevoou durante um minuto, tomando rumo a oeste, o aeródromo de Bourget, cujas construções de cimento se distribuíam como um jogo de cubos; aqui e ali, sobre o verde da relva, como moscas poisadas, os aviões prestes a erguerem voo. O roncar do motor cessou. Desceram numa resvalagem angustiosa. Bruscamente, rente ao chão, ouviu-se novamente o ronco, por segundos. Um solavanco. Depois o rodar saltitante sobre o solo desigual. E o avião estacou.

- Uma hora e um quarto, senhor doutor - anunciou Louis em tom ufano.

Dois minutos depois, Géraudin, Louis e Flégier (este ainda um tanto pálido) atravessavam Pantin em táxi, em direcção a Paris. Às duas horas menos vinte, Géraudin entrava na Casa de Saúde Épidauria, onde Godefrin, Hoyer e Colligny o aguardavam para o levarem à sala de operações. Guerran estava já na mesa respectiva.

Guerran passeava num lindo jardim. Das árvores pendiam frutos soberbos, pomos dum volume descomunal, doirados e tão luminosos que chegavam a encegueirar. Colheu um deles, trincou-o : tinha gosto a remédio e um cheiro de éter, desagradável. Deitou-o fora, trepou a um muro, para colher outros, e caiu de costas.

«Quebrei qualquer coisa cá dentro», pensou. «Não me posso mexer. Que será?»

Fazia esforços para se pôr de pé, sem o conseguir.

- Segurem-lhe a cabeça - disse alguém.

Viu perto de si Julienne, Charles e Micheline. A mulher é que tinha falado.

- Deixem-me levantar!

- Não deves comer esses frutos. Olha a tua barriga!

- Que tem a barriga? Já disse que me quero levantar

- insistiu ele, afastando os filhos.

Ergueu-se dum pulo. Julienne deitou-lhe as mãos, ele repeliu-a e foi direito ao muro.

- A pinça! - gritou Charles.

Julienne, apanhando do chão uma enorme tenaz de ferro, atirou-a com toda a força na direcção do marido. Este, recebendo o instrumento em pleno ventre, teve que se sentar. Penetrava-o uma dor muito aguda.

- Oh, sofro tanto!

Levou a mão à ferida. O sofrimento continuava, cortante, interminável. De repente, ouviu-se a voz de Géraudin ordenar:

- Compressas. Que tal, Louis? Guerran caiu em si.

- Operam-me. Abrem-me a barriga. E não estou anestesiado...

Teve medo. Ergueu, num movimento rápido, a cabeça, aspirou com força, absorveu grande quantidade de éter, e readormeceu.

Géraudin saiu da sala de operações. Tirara o barrete, as luvas, a máscara. Transpirava. Aquilo fora demorado, difícil. Peritonite. Aderências por toda a parte. Apêndice gangrenado, aberto como um fruto podre. A cavidade abdominal cheia de pus. Perante os seus três confrades, Géraudin fora admirável. Quanto a isso, estava sossegado. Acontecesse o que acontecesse, todos diriam que ele fizera os impossíveis. A honra ficara salva. Com respeito a Guerran, a cura já não dependia dos homens, mas duma batalha rápida e misteriosa que se ia travar entre alguns biliões de glóbulos brancos e outros biliões de micróbios invasores. Géraudin inquietava-se bastante acerca do resultado dessa luta. O doente não ajudava: coração abalado, cianose da face, grande fadiga geral...

Nos corredores da casa de saúde, havia repórteres que, já ao facto do que se passara, cercavam as portas à espera do cirurgião. Mal o viram, precipitaram-se para ele. Às perguntas feitas, Géraudin respondeu com voluntária imprecisão:

- Impossível pronunciar-me. A intervenção decorreu muito bem. Aguardemos agora as consequências.

Dirigiu-se, na companhia de Colligny e de Hoyer, para o escritório, a fim de redigir o boletim que devia ser publicado nos jornais:

«A operação efectuou-se com êxito, mas continuam os riscos de infecção geral, pelo que é impossível pronunciarmo-nos quanto ao resultado.

Professor Géraudin, Doutor Godefriri, Doutores Hoyer e Colligny, assistentes*.

Géraudin recambiou Flégier para Angers, por causa do hospital e da sua clínica particular. Mas conservou Louis junto de si, decidindo ficar uns dias na capital. Teria assim Guerran debaixo de olho. Vigiaria a evolução da doença e poderia intervir de novo, caso fosse necessário. É claro que aplicariam ao operado soro antigangrenoso, anticolibacilar. E talvez sulfamidas. Godefrin ofereceu um quarto na casa de saúde a Géraudin, que aceitou. Quando o professor se preparava a ir ao seu novo aposento, ouviu uma voz chamar:

- Senhor doutor Géraudin!

Voltou-se. Sob a touca branca de enfermeira reconheceu Fabienne Doutreval.

- Ora viva! Sabia que trabalhava cá, mas ainda não tinha tido tempo de perguntar por si. E então?

- A gente habitua-se...

- Ainda bem! Oiça, indique-me o meu quarto. Ontem mesmo falei de si ao seu pai.

- E o doente?

- Guerran? Hum...”Preocupa-me bastante. Mas silêncio, sim?

- Está acordado?

- Creio que ainda [não. Para já não receio nada. Nos dias mais próximos é que vai ser necessário jogar a partida. Se não escapar, será para mim grande desgosto. É um bom amigo, um amigo fiel! Ah, não me conformaria se o deixasse morrer, depois de haver salvado tantos estranhos, tantos indiferentes...

- Far-se-á o que se puder, senhor doutor - retorquiu Fabienne, comovida com aquele tom de tristeza. Olhe, eu é que vou tomar conta dele. Logo que o vir acordado, venho preveni-lo. Conte comigo.

Desde o mês de Novembro que Fabienne estagiava na casa de saúde Épidauria.

Era um grande estabelecimento parisiense, de construção moderna, que funcionava, sob a direcção dum conselho administrativo, um pouco à maneira duma fábrica : o cliente, mal entrava, sujeitava-se a uma série de injecções, observações, exames laboratoriais, passava de especialista em especialista e via-se por fim na posse dum orçamento semelhante ao projecto de reparação dum automóvel avariado. Estas «fábricas de saúde», maravilhas de racionalização, estão em vias de destronar as nossas velhas clínicas particulares de outrora, onde um médico tratava (de homem para homem) uma clientela que ele conhecia e que depositava confiança nele.

Na Épidauria recebiam-se ministros, altos financeiros, astros de cinema e teatro, celebridades literárias. Tudo quanto Paris possuía de ilustre e brilhante era na Épidauria que se tratava : todos os que se consomem e se dissipam em festas, prazeres, patuscadas, lá se reuniam de tempos a tempos, para «conserto». Aí se encontravam periodicamente, como se encontravam em Deauville ou em Biarritz,por causa dum antraz, dum acidente de patinagem, dum apêndice, duma vesícula biliar, duma úlcera de estômago, dum rim, duma consequência, enfim, a expiar, da boa vida e da boa mesa. Era coisa normal. Ninguém se admirava já.

Depois do hospital da Égalité, em Angers, depois do contacto dos miseráveis e das mulheres do povo, Fabienne julgava que se ia encontrar muito desorientada em Paris. Mas percebera logo, pelo contrário, que a humanidade é em toda a parte a mesma, e que o verniz superficial da riqueza e da educação estala quase instantaneamente ao chocar-se com o sofrimento e põe a nu almas iguais, semelhantes na sua baixeza, na sua cobardia e às vezes, mas de modo raro, na sua grandeza.

Há um momento em que o ser humano aparece na sua sinceridade brutal, deixando ver o mais secreto da alma : é o instante em que, debaixo da influência do anestésico, ele adormece e soçobra na inconsciência. Fabienne, que ajudava a ministrar o éter em todas as intervenções de Colligny, assombrava-se de ouvir um homem da sociedade, portador de nome ilustre, pronunciar palavras de carroceiro, frases ignóbeis de que ela nem sempre conhecia o significado. Certas crianças, criaturinhas que se julgaria puras e preservadas da mais pequena mácula no meio em que viviam, revelavam já um coração gangrenado, soltavam, pouco antes de acordarem, injúrias crapulosas, medonhos nomes em calão. E o pior eram as mulheres, as mulheres casadas, que chamavam pelo amante, que se confessavam em voz alta, que diziam, adormecidas, enquanto lhes faziam uma raspagem :

- Para outra vez, não me hei-de servir desta sonda! O que eu devia ter feito era ir com,aquela parteira...

Ou então, julgando-se em presença do amante, exclamavam :

- Idiota! Tinha-te prevenido de que tomasses cuidado. Logo que engano meu marido, sucede isto!

Colligny, aliás, tomava as suas cautelas. Jamais consentia que os maridos assistissem às operações. Faziam-nos esperar no corredor, como norma de prudência.

Após o despertar, restava às mulheres qualquer coisa dessas divagações. Lembravam-se confusamente de terem falado. E perguntavam, inquietas, a Fabienne:

- Eu falei, não é verdade? Devia ter dito muitos disparates. ..

- Não, senhora - respondia Fabienne. - Apenas uns gritos indistintos, como todos os operados... Nós nem damos atenção.

Diante de Fabienne Doutreval esse mundo da riqueza despojava-se do seu mistério, na hora do sofrimento e da morte, confessava a sua corrupção profunda, a sua gangrena irremediável de civilização exausta, céptica, frívola e condenada. Ao devassá-lo, a rapariga, pouco a pouco, foi fazendo da vida uma concepção desoladora. Em dez casais que vinham à casa de saúde, era garantido que cinco fossem ilegítimos. No escritório do rés-do-chão, depois do exame médico, os doentes que consentiam em marcar data para uma operação cumpriam as formalidades da praxe. Fabienne procedia então ao registo.

- 22 de Dezembro, convém ? Está combinado, minha senhora. Quer o quarto 47, do segundo andar? Em que nome devo fazer a inscrição?

A mulher hesitava uns instantes, atrapalhada, e olhava para o homem.

- Que nome? O teu? Ou o meu?

- Hum... não sei- dizia o amante.

Curto conciliábulo. Fabienne fingia-se ocupada a procurar qualquer coisa no livro.

- Bem, senhora enfermeira, pode escrever este nome...

- participava por fim o homem.

Por causa destas trapalhadas era necessário tomar certas precauções, na altura das visitas. No quarto 108, onde estava um operado, acabara de entrar uma senhora. Dez minutos depois, no escritório, apresentava-se outra dama...

- Venho visitar meu marido, o senhor X..., quarto 108. Fabienne, enquanto alguém distraía a visitante, corria

ao telefone.

- Oh, diabo! - exclamava o doente do 108. - É minha mulher. Faça de maneira que ela espere dez minutos.

Retinham a esposa um instante, sob o pretexto dum curativo, enquanto, por outra escada, a amante se escapulia.

O mais vulgar, porém, era prevenirem Fabienne, pelo telefone, dessas visitas clandestinas.

- Se vier alguém para mim, queira informar-me primeiro, antes de mandar entrar...

Fabienne compreendia agora as razões desta recomendação tão frequente.

Os divorciados davam também origem a complicações.

Não convinha que se encontrasse o primeiro marido com o segundo, a antiga mulher com a actual. Havia, contudo, excepções: às vezes predecessores e sucessores entendiam-se às mil maravilhas, apertavam-se a mão, tratavam-se por «meu caro», «querida amiga». Aconteceu que um rapazito de dez anos, muito doente de anemia perniciosa, se viu rodeado de dois papás e duas mamãs: os pais tinham-se divorciado e tornado a casar, e compareciam todos à cabeceira do moribundo, saudando-se afectuosamente uns aos outros. Uma espécie de ménage à quatre. Aquilo, ao pequeno, devia fazer grande confusão, pois não conseguia explicar as coisas.

- É esquisito - dizia ele a Fabienne - ter quatro pais! Como é que isto pode ser?

Tinham-lhe perfurado o esterno para aí injectar extracto de fígado. E a criança morreu após longa e triste agonia, cercado de mães e pais em duplicado.

Tudo isto era tão vulgar, tão quotidiano, que a indignação de Fabienne e a sua reacção de honestidade ofendida acabaram por esmorecer. Por fim, e com a continuação, o anormal assim perpetuamente repetido impôs-se ao espírito dela como um facto normal, uma coisa regular. E era com certa aflição que Fabienne, em dados momentos, se sentia mais indulgente, mais tolerante, mais disposta a transigir com os princípios da sua primeira educação. Não é de modo impune que se respira a atmosfera da amoralidade elegante de que se rodeia hoje grande parte daqueles a quem muita gente ainda atribui, a sério, a designação de escol.

Estas histórias de maridos, esposas e amantes complicavam singularmente a situação com os abortos que eles às vezes solicitavam. Por duas ou três ocasiões sucedeu apresentar-se na casa de saúde, para operação no útero, uma senhora acompanhada de seu marido. Depois voltava com o amante, explicando que, na realidade, o que desejava era uma «raspagem especial» para se desembaraçar da gravidez. Colligny percebia muito bem tudo isso e manobrava nessas intrigas com perfeito à vontade. Ao marido, falava dum fibroma benigno. Com o amante empregava a expressão eufemística de «raspagem especial». E, no escritório, mandava passar duas contas: uma razoável, para o marido; outra para o amante, mais salgada. Semelhantes casos davam grande lucro ao estabelecimento.

_Fabienne assistia assim a estes crimes, a estes assassínios voluntários e premeditados de pequeninos seres. Se a gravidez estava no princípio, procedia-se à colocação de laminarias, quer dizer, colocava-se no colo do útero uma ponta de certa alga seca, da espessura dum fósforo, que se dilatava com a humidade, inchava até ao volume dum cigarro e, distendendo assim o útero, obrigava o feto a cair. Mas, se já era tarde para isso, praticavam a tal «raspagem especial» do útero. Na casa de saúde chamavam a essa intervenção «fazer uma biopsia».

Às ocultas, enquanto os pais andavam em viagem, ou acompanhadas por eles, compareciam ali raparigas solteiras, para o mesmo tratamento. Nesta última hipótese, o médico era prevenido com antecedência; e dizia à menina, diante dos seus progenitores:

- Um quisto, nada mais... É conveniente arrancá-lo. Esteja descansada, é questão de cinco minutos. E, daqui a oito dias, já estará de pé... Não, minha senhora, a sua filha não corre nenhum perigo.

Mas também acontecia os pais saberem do que se passava. Falava-se então, pura e simplesmente, de biopsia de urgência. Muitas dessas pessoas eram ricas, pertenciam à aristocracia do dinheiro, lamentavam a tirania da massa popular e a sua falta de ideal, a sua sede de divertimentos! Estas repugnavam muito mais a Fabienne do que as pobres mulheres do povo, que eram levadas ao hospital da Égalité, silenciosas e envergonhadas, depois do furo da agulha de meia, no sábado à noite. O povo, ao menos, mantinha ainda o pudor de tais coisas. Na Êpidauria, não. Era facto admitido, corrente e tabelado. Uma biopsia - e pronto!

Semelhantes intervenções especiais custavam caro. Hoyer, que fiscalizava as contas, dizia a Fabienne que incluísse, além dos honorários fabulosos do cirurgião, duzentos francos pelo uso da sala de operações, mais uma retribuição especial para o anestesista, mais mil e duzentos francos para as enfermeiras e ajudantes. Tudo isso pela tabela mais elevada : até as luvas de borracha do operador (que podiam servir quatro vezes); até as compressas, crinas, catgut e alfinetes de segurança, facturados por dez vezes o seu valor. Um pacote de algodão de vinte e cinco gramas custava oito francos. Uma garrafa de água, cinco francos e cinquenta. Em cima de tudo recaía a taxa de serviço, de doze por cento. A casa de saúde Épidauria era um negócio de primeira ordem para alguns especuladores, que a tinham tornado famosa e a exploravam.

O que assombrava Fabienne era ver na Épidauria tanta gente orgulhosa, muito segura da sua superioridade, a qual praticava adultérios, divórcios, perversões sexuais, abortos, e até abandono dos filhos, sem falar na sua mania da morfina e da cocaína. Faziam aquilo tudo sem constrangimento, sem pudor, com perfeito conhecimento do médico e da enfermeira, como se fossem coisas normais, como se os seus autores, pelo dinheiro e pela situação social, estivessem dispensados da moral comum, ensinada e imposta à plebe à guisa de disciplina necessária e de freio, mas de que eles, iniciados de grau superior, achavam por bem prescindir. Aliás, não se deve julgar que Godefrin, Hoyer e Colligny fossem pessoas desonestas. Em primeiro lugar, não auferiam senão uma ínfima parte dos lucros. Pagavam-lhes por operação. Hoyer apreciava mais que os outros o dinheiro. Godefrin tinha cinco filhos, era excelente marido e pai bondoso e condescendente. Colligny, apaixonado pela sua profissão, só vivia para ela, e estava sempre a modificar e a melhorar os instrumentos cirúrgicos, quando não inventava outros. Como a mulher lhe não houvesse dado filhos, adoptara uma criança, um pequerrucho loiro da Assistência Pública. Mas estes homens não eram crentes, representavam a consequência directa da educação que se ministra há quarenta ou cinquenta anos à mocidade da França. Não viam, não lhes tinham ensinado a ver para além da vida; ora, se não existe para o homem senão a vida terrena, isso não é coisa que mereça ser respeitada durante muito tempo. Godefrin admirava a fórmula dos países ricos, aquela que, tornando-os materialmente felizes, despovoou a Noruega e a Suécia e deixa a Austrália deserta: «O máximo de bem-estar para um número reduzido de indivíduos:». Dizia-se neomaltusiano, achava muito racional o «Birth Control», ou seja a fiscalização da natalidade, que funcionava na Inglaterra. Hoyer, por seu lado, não falava senão do direito de a mulher dispor do seu corpo, isto é, o aborto legal. E lamentava que tal princípio se não espalhasse mais, pois via nisso o remate da liberdade humana, do individualismo. Contristava-se pela circunstância de o governo não admitir a criação de «abortadouros» oficiais, onde qualquer mulher pudesse ir «desembaraçar-se». Quanto a Colligny, esse sofrera na juventude dum clericalismo inepto. O pai, socialista, sem recomendações da parte dos padres, não conseguira nunca obter lugar estável na sua terreola bretã. O filho ficara toda a vida ressentido, revoltado. Admirava Gide e Victor Margueritte. No fundo, estes médicos eram lógicos consigo mesmos, o que se revelava bem na melancolia, tristeza surda, desencanto e leve amargura com que eles consideravam a existência. Nisso, via-se-lhes a sinceridade. Quem não acredita senão na vida não tem muitas ocasiões de sorrir, pois o mesmo é dizer que não acredita em nada.

No mês de Fevereiro, Doutreval veio visitar a filha a Paris. Encontrou-a mudada, inquieta, um pouco triste. Sob o aspecto médico, era evidente que lucrara muito, visto que aprendera bastante: aquele estágio constituía admirável experiência da matéria. Todavia, ela mostrava-se tentada a regressar a Angers, junto da irmã e do pai. Não se atrevia a explicar as razões, mas insistia nessa preferência. Doutreval não compreendeu a agitação de Fabienne. Não reparou que a filha atravessava uma grave crise moral, em que todos os princípios da sua infância estavam a ser de novo examinados, com perigo para a sua solidez. Pelo contrário, Doutreval aconselhou-a a ser razoável, pediu-lhe que se deixasse ficar. Qualquer dia teria precisão dela: esperava obter dentro de pouco tempo o local necessário para a instalação do dispensário. Aquela filha mais nova seria o seu braço direito. O pai contava com Fabienne; convinha, pois, que fosse corajosa e paciente. A rapariga não tornou a falar no assunto.

Guerran, quatro horas depois da operação, despertou do pesado sono da anestesia. Circunvagou um olhar ainda inexpressivo e o que viu primeiro foi um rosto pálido e fino, aureolado pela touca de enfermeira, que se inclinava para ele com ar inquieto. Os olhos castanhos, o nariz delgado e um tanto comprido, as sobrancelhas negras e arqueadas recordaram-lhe qualquer coisa, uma cara conhecida.

- É... a Fabienne... - articulou ele, com voz pastosa.

- Sim, senhor, sou a filha do professor Doutreval. Esteja sossegado. Não fale.

- Sinto-me enjoado...-murmurou Guerran. - Vejo tudo a andar à roda...

Tentou apoiar-se no cotovelo e, debruçando-se para fora da cama, teve um arranco para vomitar, o que lhe provocou uma dor lancinante no abdómen. Mas só lançou um pouco de espuma e de bílis.

Esteve com náuseas até à noite. Cerca das nove horas, quando ele já se sentia melhor, chegou a mulher, a qual, avisada por telegrama, tomara o rápido em Angers. Alta, morena, com um tom de ocre nas faces pela pintura excessiva, de sobrancelhas e pestanas tingidas de negro violáceo, envolta num casaco de seda preta com gola de astraca, que lhe moldava a magreza elegante, Julienne fez uma entrada silenciosa e impressionante no quarto em que o marido, pálido e molhado de suor, parecia mais morto do que vivo, e foi beijá-lo sem dizer palavra.

- Micheline? - murmurou Guerran.

- Ficou em Angers, em casa de Charles. Vem amanhã.

- Só amanhã... - gemeu o doente.

- Amanhã de manhã.

- Demora tanto...

Fabienne saíra, mas a campainha chamou-a. Guerran tinha frio, reclamava uma botija para os pés.

- Nesse caso, trouxeram-te direito para aqui? -dizia Julienne, enquanto a enfermeira destapava os pés enregelados do enfermo para os embrulhar em algodão, e metia entre os lençóis uma botija eléctrica.

- Direitinho - respondeu o marido.

- Levantaste dinheiro?

- Não.

- Bem sabes que não tenho quase nenhum lá em casa. Guerran mexeu-se, gemeu:

- Dói-me...

- Ao menos previste que...

- Não sei, Julienne... Obrigado. Está bem assim, Fabienne. Obrigado.

A senhora Guerran, sob a aba do chapéu de feltro ornado de grossos alfinetes dourados, lançou a Fabienne um olhar rápido e perscrutante.

- É a pequena Fabienne - murmurou Guerran.

- Fabienne?

- Sim, Fabienne Doutreval.

- Sou filha do professor Doutreval, de Angers - explicou a rapariga.

O olhar terrível da senhora Guerran dulcificou-se um pouco.

- Ah, bem sei! Agora me recordo. Realmente, pensei: «Conheço esta cara». Foi em casa dos Heubel que nos encontrámos, não foi?

- Sim, senhora.

- Não há dúvida. Que coincidência! E que sorte para o meu marido, coitado!

Com o seu ferocíssimo ciúme de mulher maldosa e já decadente, suspeitara logo uma possível rival naquela enfermeira tão jovem, a quem o marido tratava familiarmente pelo nome. O facto de verificar que se enganara foi bastante para que sossegasse e se mostrasse amável.

Fabienne quis retirar-se.

- Vou consigo - disse a senhora Guerran.

- Quer que lhe prepare uma cama aqui?

- Não. Géraudin não gostaria. Estou constipadíssima, e ele receia pelo nosso doente. Parece que pode sobrevir, às vezes, uma pneumonia, não é verdade?

- Pode, sim, senhora.

- Além disso, já marquei quarto no hotel, na rua Saint-Honoré. Estarei cá amanhã de manhã cedo, o que vem a dar no mesmo. Já a acompanho. Adeus, Olivier. Pensa naquilo que te disse. ânimo, sim?

E saiu atrás de Fabienne.

Guerran passou uma noite muito má. Fabienne recomendara à enfermeira de vela que a chamasse em caso de necessidade. Pelas onze horas o telefone retiniu no quartinho do oitavo andar que ela ocupava nas semanas em que estava de serviço.

- Não vai bem - disse-lhe a colega, quando Fabienne chegou. - Tem 40 de febre e delira.

Guerran, afundado no côncavo do colchão, tinha sobressaltos bruscos, soltava palavras breves, entrecortadas.

- Já te disse que não! Isso é que não hás-de ter! Dezoito mil francos? Não e não!

Calava-se. Daí a pouco recomeçava:

- Vocês todos julgam que eu os desaposso do dinheiro. Não, Julienne, nem mais um soldo. Mas, se quiseres, abre tu mesma o cofre, e verás...

- Que prescreveu o doutor Géraudin? - perguntou a enfermeira.

- Duas hóstias, se achássemos necessário - informou Fabienne. - Comecemos por uma. Quem me dera que já fosse manhã!

De manhã, Guerran tinha menos temperatura, mas estava com muito mau parecer. Géraudin é que fez o penso, sem emitir nenhum comentário. Fabienne reparou que o corte não tinha bom aspecto. Nenhuma supuração, nenhum sinal de defesa do organismo. Era muito possível que já houvesse ali dentro grave infecção.

As nove e meia, Julienne chegou de táxi, com Micheline e o noivo desta, Robert Bussy, que as acompanhara a Paris. Fabienne esperava-os em baixo para os prevenir de que a noite fora péssima e que o doente precisava de sossego. Julienne mostrou-se impassível. Robert Bussy, rapaz alto e calmo, um tanto afectado e de modos glaciais, declarou que ficaria entretanto na sala-de-espera. Quanto a Micheline, arregalou os grandes olhos azuis como se não houvesse compreendido. Era ainda muito nova e, evidentemente, não fazia ideia da catástrofe ameaçadora. Fabienne conduziu mãe e filha até à cabeceira de Guerran. O facto de ver o pai vivo e lúcido tranquilizou Micheline, na inconsciência da sua juventude.

- Então como vai isso? - perguntou Julienne.

- Vai devagarinho.

- Dormiste bem?

- Sonhei muito. Vem cá dar-me um beijo, Micheline...

A rapariga afastou-se do vão da janela, onde, apartando as cortinas, se divertia a fazer sinais a Robert Bussy, que passeava em baixo, no pátio, e foi beijar o pai. Fabienne retirou-se e só reapareceu daí a um quarto de hora, a fim de vir buscar as duas mulheres. Quando ia a sair, Julienne lembrou de novo ao marido :

- Olivier, pensaste no dinheiro?

- Entreguei-te, no princípio do mês, a quantia habitual, Julienne...

- Bem sabes que tive muita despesa. Guerran reprimiu um gesto de cólera.

- Que queres tu que eu faça? Que me levante daqui e vá advogar? Espera uns dias.

- Charles não pode pedir nada por conta?

- Sim... Não... Os processos principais estão no meu cofre-forte... Ele não percebe nada daquilo.

- E no banco?

- No cofre do banco? Sim... ainda há um resto de dinheiro... Há os títulos... Mas não se pode vendê-los! Além disso, só eu é que posso ir lá.

- A que ponto chega a tua desconfiança!

- Deixa-te disso! - exclamou Guerran. - No fim de contas, não vou morrer! Hei-de sair daqui! É questão de dez dias.

- Dez dias!

- Sim! Géraudin assim mo disse.

- É muito tempo! O peleiro já mandou duas vezes a conta... E temos a pagar a letra do automóvel de Charles...

- Não posso fazer nada! - volveu Guerran, exasperado. - Acredita que, se me fosse possível andar,.. Olha, não me atormentes mais do que já estou! Adeus. Vem cá beijar-me, minha filha...

- Não há pus! - declarou Géraudin no dia seguinte, no corredor, depois de fazer o penso. - Nenhum sinal de defesa. Retenção dos gases. Prostração inquietante. Fico na dúvida se deverei ou não reabrir...

Guerran, no seu leito, caíra em sonolência, atravessada de pesadelos. Nessa noite, competiu a Fabienne ficar de vela. Não dormiu um segundo que fosse, incessantemente arrancada ao torpor ora por um grito abafado, ora por uma invectiva a meia-voz, ora por um gemido. Levantava-se da poltrona e ia observar aquele pobre rosto aflito e amarelo, onde, nos maxilares salientes, havia a sombra duma barba de três dias. De tempos a tempos, Guerran articulava palavras indistintas, em voz baixa :

- Nem mais um soldo... Não quero que toques no dote dela. Foges de mim, Micheline? Não te importas comigo?

A frase acabava num gemido. Tornava a abrir os olhos e murmurava:

- Tenho sede!

A noite foi extenuante para Fabienne. Às seis horas, veio uma colega substituí-la. Guerran despertara lúcido] mas abatidíssimo. Fabienne subiu ao quarto a fim de repousar um pouco, e, quando voltou, cruzou-se no corredor com Julienne, acompanhada do filho. Tinham acabado de chegar.

- Então, menina? Que tal foi esta noite?

- Não muito boa.

- Está acordado?

- Há muito tempo.

- Tanto melhor! Preciso de lhe falar a sério.

- E eu - acrescentou Charles - quero mostrar a meu pai alguns processos... urgentes, que são julgados esta

semana...

- Não o aconselho a isso - objectou Fabienne.

- Porquê?

- Está prostradíssimo. Falem-lhe o menos possível.

- Ah! - exclamou Charles, desiludido.

- Será, então, a menina capaz de lhe falar, no momento oportuno? - lembrou Julienne. - Pergunte-lhe o segredo do cofre-forte. Já experimentei todas as iniciais da família e não o abri! E pergunte também, se o achar melhor, a quais clientes Charles poderá pedir um adiantamento...

Não se esqueça.

- Está bem. O senhor deixe a sua pasta no vestiário...

- Não - replicou Charles. - Talvez eu tenha uma oportunidade de dizer duas palavras sobre o que mais

interessa...

Entraram no quarto de Guerran, e só saíram uma hora depois, deixando o enfermo aniquilado, como depois duma batalha.

- A menina - disse Géraudin furioso, dirigindo-se a Fabienne -não saia do quarto quando essas criaturas vierem visitar o doente. Vão dar cabo dele!

- O senhor doutor acha que está pior?

- Vou tornar a abri-lo esta tarde!

Reabriu a costura às três horas, em presença de todos os cirurgiões da casa de saúde. Godefrin, Hoyer e Colligny torceram o nariz ao verem aquela brecha rosada, sem pus, sem trabalho de reparação ou de defesa, donde escorria lentamente um líquido amarelo e pouco abundante.

- Suco pouco apetecível! - comentou Hoyer.

- De facto - apoiou Colligny - é um caldo nojento! Géraudin, com uma pipeta, aspirou um pouco do

líquido e mandou-o analisar.

Às quatro horas o laboratório enviou o seu oráculo sinistro. Um minuto depois, todo o pessoal da casa de saúde conhecia o veredicto mortal: havia estreptococo.

- Guerran está liquidado - disse Hoyer.

- é preciso lutar! - replicou Géraudin. - Vacina antiestreptocócica, transfusão... Ainda nos restam armas.

- Viu o aspecto dele?

- Outros doentes tenho eu curado nas mesmas circunstâncias. Mandem chamar os dadores de sangue.

Fizeram durante a noite uma série de vacinas e, no dia seguinte de manhã, uma transfusão.

Foi o próprio Géraudin que preveniu Julienne e Charles do estado de Guerran.

- Não lhes oculto - declarou - que dentro de dois dias é possível um desenlace fatal. À cautela, tomem as suas precauções. Mas não o fatiguem. Apenas dois minutos e nada mais.

Logo atrás deles, mandou entrar Fabienne,

- Não os deixe maçá-lo. Conheço a mulher... Fique lá, e ponha-os na rua se...

Guerran, reconhecendo ainda a mulher e o filho, perguntou num sussurro:

- Micheline?

- Amanhã...

-- Quero ver Micheline - repetiu, sem reabrir os olhos.

- Sentes-te pior?

- Isto vai mal...

- Não desejas nada?

- Micheline.

- Não tens nenhuma providência a tomar? Não

queres...

Guerran compreendeu a alusão velada e tornou a abrir

os olhos.

- Quais providências?

- Não sei... À cautela... Ficarás com o espírito mais descansado... A tua conta no banco? Podias passar umcheque...

O marido não respondeu. Houve um silêncio. Então

Julienne cochichou ao filho :

- Poder-se-á levantar o dinheiro se... enfim, se...

- Não - retorquiu Charles. - A conta ficaria retida. No rosto pintado e sombrio de Julienne passou uma

expressão de cólera, rápida e violenta. Tornando a falar ao doente, disse-lhe enfurecida:

-Então, Olivier, não és nenhuma criança! Compreendes a situação... Supõe que te acontece algum percalço. Que

será de mim?

- Não percebo o que queres dizer - balbuciou Guerran.

- Já pensaste que me deixas sem um soldo! Absolutamente sem nada, à mercê dos filhos?

- Pertence-lhe a manção - objectou Charles.

- Vocês dois obrigar-me-ão a vendê-la, para depois me porem na rua! Fico dependente dos filhos! Ouviste, Olivier? Reabre os olhos e dá atenção. Vou chamar um notário. Preciso duma doação, testamento, usufruto, qualquer coisa dessas.

Esquecia-se da presença de Fabienne, que estava de pé, à janela. Agarrando no ombro do marido, sacudiu-o e perguntou :

- Está combinado?

- Deixa-me em paz! - gemeu o moribundo. - Suplico-te...

Fabienne aproximou-se da cama.

- Ó mãe - acudiu Charles, com esse usufruto ficamos despojados!

- Usufruto ou seja o que for, pouco me importa! Sei que os Heubel fizeram qualquer coisa assim...

Tirou da carteira um pedaço de papel e leu dificilmente o começo duma fórmula tabeliónica.

- Tomei nota disto. Hein? Que dizes, Olivier? Responde!

Guerran agitou-se no leito e fez um esforço para se soerguer.

- Então quer deixar-nos sem um soldo, a Micheline e a mim? - protestou Charles. - Pois bem, pai...

- Não os deixarei sem nada! -gritou Julienne. -Mas tens de fazer com que eu possa dispor do dinheiro, Olivier! Eles é que devem depender de mim! Chamo o notário?

- Amanhã - murmurou o marido.

- Amanhã? Será talvez demasiado...

- Minha senhora! - exclamou Fabienne, interrompendo-a.

- Amanhã - repetiu o doente. - E daqui até amanhã estarei curado. Esse maldito Rebat não há-de levar a melhor. Bastonário, ele? Nunca! Mais depressa lhe partirei a cara, e já!

- Que dizes? Que dizes? - balbuciou Julienne, sobressaltada.

- Fique deitado! - ordenou Fabienne, premindo o botão da campainha. - Senhor Guerran!

Impeliu-o para o travesseiro, tocou novamente e agarrou no braço de Julienne.

- Basta, minha senhora! Viu o que fez? Eu teria vergonha...

Chegavam enfermeiras. Julienne, cheia de raiva, e não ousando provocar escândalo, saiu com o filho em passo desabalado.

«Vai-se queixar, com certeza, a Godefrin», pensou Fabienne.

Mas a senhora Guerran não se queixou. Quando tornou a visitar o marido, este encontrava-se em estado comatoso. Ela e os filhos instalaram-se então na casa de saúde.

Transfusões. Vacinas. À terceira transfusão, Guerran, que toda a gente já considerava morto, começou a reviver, não se sabe porquê.

Durante semanas ali esteve na cama, frio e molhado em suores, como um ser quase inconsciente, que gemia, chamava por Fabienne, pedia que o voltassem, que o erguessem, que lhe compusessem o travesseiro, que lhe dessem água, que lhe enxugassem a testa, que o descobrissem e o cobrissem, e lhe chegassem éter ao nariz, e lhe abrissem a janela e depois a fechassem, para logo a tornarem a abrir; que lhe corressem as cortinas, e lhe apagassem a luz... Miserável montão de carne sofredora, que tudo torturava. Mas reagira, e agora havia de escapar! Géraudin regressara ’a Angers. Aos olhos de Guerran, Fabienne incarnava uma espécie de anjo bom, de caridade diligente. Nunca ele imaginara que se pudesse ser tão suave, tão dócil às exigências duma criatura esgotada e dolorida. Por vezes sentia vergonha de si mesmo quando, pela quadragésima vez, tinha necessidade dela e se via obrigado a chamá-la. E, ao vê-la chegar com o mesmo sorriso, sentia-se tão perturbado de comoção e reconhecimento que os olhos se lhe marejavam de lágrimas. Fabienne, por seu lado, afeiçoara-se a Guerran e tratava-o com mais solicitude do que a outro qualquer, pois adivinhara que, no íntimo e apesar das aparências de êxito e felicidade, ele era imensamente infeliz.

Julienne deixara a casa de saúde, assim como Micheline. Habitava agora no hotel e vinha todas as manhãs visitar o marido. Charles voltara para Angers, mas aparecia de três em três dias, mostrava os processos e pedia esclarecimentos e indicações sobre as acções distribuídas. Acabrunhava-o o peso do trabalho. Faltava-lhe experiência. Já não se fazia sentir a influência pessoal de Guerran, que outrora, com toda a facilidade, passava pelo Ministério, regularizava qualquer assunto dependente da Alfândega, obtinha composições a propósito duma licença de importação ou duma declaração fiscal «errada», segundo o eufemismo oficial.

- Era tão bom que pudesse levantar-se! - dizia Charles ao pai.-Quando poderá trabalhar? Já entreguei as alegações do divórcio Planquim-Berthiel. Rebat mandou-me as suas. Há também o caso das contribuições. Trago-lhe o processo, para que o pai lhe deite uma vista de olhos. É claro que, se pudesse ir ao Ministério, arranjava as coisas num instante...

Como remate disto tudo, Julienne metia a sua colherada :

- E não te esqueças do dinheiro. Mandei fazer vestidos de Verão...

Só Micheline, descuidada e inconsciente, tinha o poder de consolar Guerran. É certo que se mostrava demasiado alegre e exuberante naquele quarto de enfermo, e que na sua tagarelice e risadas transparecia o egoísmo dum ser moço e feliz a quem nada preocupa. Mas Guerran não dava por isso.

Um dia, veio ela com o noivo. Robert Bussy, se bem que o doente já estivesse fora de perigo, devia ter ficado impressionado com a decrepitude do futuro sogro, pois, daí em diante, se notou mudança em Micheline. Sem dúvida que o noivo lhe falou de precauções a tomar, duma catástrofe possível... Também ela, agora, aludia à questão monetária, e perguntava:

- E se por desgraça lhe acontecer alguma coisa, papá? Poderia casar-me mesmo assim? Providenciou no que respeita ao meu dote? Que sucederá se o papá deixar de existir?

Havia dias em que, atormentado, extenuado, Guerran se aterrava com a ideia da visita da família.

- Fabienne - pediu ele - não me deixe só durante muito tempo. Venha logo. Mande-os embora... Darão cabo de mim! Se eu viver, terão tudo quanto querem; se eu rebento para aqui, não terão nada! Deviam pensar nisto...

E Fabienne abreviava o tempo das visitas, reaparecia no quarto quinze minutos depois da chegada de Julienne ou de Charles, com o pretexto dum penso a renovar.

- é tão bondosa!-dizia-lhe Guerran. - Nunca conheci ninguém como você... Sim, sei que a maço. Sou rabugento, exigente, incomodo-a por tudo e por nada. E nunca se zanga! Contudo, não pode adivinhar que eu sou sincero, que sofro a todo o momento, que preciso a cada instante de ser levantado, que necessito ter o travesseiro composto, e a colcha esticada, que tenho de ser voltado dum lado para o outro. Não pensava que as pessoas fossem assim depois duma operação: há excesso de sensibilidade, fraquezas que eu não tinha previsto. Coro de vergonha. Mas você possui a intuição destas coisas, sem ter passado por isto...

- Todas as mulheres.

- Todas, não. Minha mulher não compreende. Nem Micheline. Não reparou como a minha filha me visita?

- Não.

- Vem pintada!

- Ora, isso é o menos...

- Para mim tem importância. Micheline mudou de penteado, há uma semana. Não viu? E o carmim dos lábios é demasiado vivo. Escureceu as sobrancelhas, ela, uma loira! E tão bonita com os cabelos claros e os olhos azuis! Patetinha! Aflige-me vê-la pensar nessas frivolidades, enquanto eu estou aqui. Quanto a Julienne, pouco me importa, embora aquele perfume que usa me provoque náuseas. Essa pode-se pintar à vontade. Conhecemo-nos bem. Mas a pequena... assusta-me um pouco.

- Ela está na idade, senhor Guerran. Aliás, o senhor já não corre perigo. é natural que a sua filha se refaça dos sobressaltos por que passou.

- Sim, é possível. Não digo que não. Mas não deixa de chocar uma pessoa... Há susceptibilidades singulares, durante as doenças. Você é que não se pinta, Fabienne. Dir-se-ia ter notado que isso me impressionaria mal.

- Pode-se ser boa enfermeira e usar carmim, senhor Guerran.

- Um poucachinho só. O sofrimento exige respeito. Nunca me tinha lembrado que pudesse ser assim.

Fabienne riu-se.

- Afianço-lhe que nunca pensei em tal coisa.

- Bem sei. Em si é instintivo. Gostaria de ter uma filha como você.

- Tem a melhor das filhas.

- Sim, é boa rapariga, mas só serve para as horas de alegria, de felicidade. Você, ao contrário, é nas provações que a desejamos ter a nosso lado.

Retinha-a largo tempo a falar com ela e a fazê-la falar. Fabienne contava-lhe o seu estágio no hospital e na casa de saúde, como fora obrigada a abandonar as suas ilusões de infância e a abrir os olhos para a fealdade da existência. Descrevia-lhe as suas ansiedades e satisfações de enfermeira, e os doentes que a preocupavam. Guerran ficava a conhecer, sem sair do leito, todos os seus vizinhos, suas doenças e estado actual. A rapariga recreava-o, distraía-o, enternecia-o. Havia um cocainómano, que entrara ao mesmo tempo que ele e que devia fazer uma cura de desintoxicação : as dificuldades do caso apaixonavam Guerran como se se tratasse duma batalha. E Fabienne podia falar livremente, pois Colligny e Hoyer já tinham aludido a isso diante de Guerran. O doente era bastante conhecido em Paris, por ser filho dum dramaturgo célebre, cujas peças, demasiado frescas, lhe haviam rendido muito dinheiro. O rapaz absorvia o alcalóide tanto aspirando-o como injectando-o. Foi a amante do pai quem, por fim, perdendo a paciência, pois aquele vício custava muito caro ao escritor, decidira internar o infeliz.

O tratamento era difícil. Quando um intoxicado vem de moto próprio pedir que o salvem, a cura é possível; mas é quase impossível quando o doente foi levado contra-vontade para uma clínica. Neste caso, arranja sempre maneira de esconder os estupefacientes. Em caso de necessidade, são os amigos que lhos trazem. Fabienne explicou como, à chegada, haviam revistado dos pés à cabeça o filho do escritor. Tinham-no despido, tomado conta da roupa e confiscado os sapatos, a caneta de tinta permanente e o relógio. Até a boca e o ânus lhe haviam inspeccionado. Em seguida deram-lhe um clister, para terem a certeza de que os intestinos não escondiam nada. Vestido com o pijama fornecido pela casa, tendo unicamente à sua volta livros, lápis, cigarros e objectos pertencentes à clínica, o rapaz continuava no entanto a tomar cocaína! As visitas eram vigiadas : estava sempre presente um enfermeiro, que não desviava a vista das mãos dos visitantes. Mas aquela franco-maçonaria de intoxicados professa uma solidariedade demoníaca. É de crer que o desejo de arrastar consigo os outros para o abismo iguale em intensidade e contrabalance a necessidade que certas almas sentem de fazer com que os mais compartilhem da sua ascensão. Deve haver no mundo um apostolado às avessãs. Apesar de todas as precauções, Fabienne, dia sim dia não, ao entrar no quarto de Guerran, dizia :

- Quer saber? Ele ainda arranjou meio de obter aquilo. Acabam de o encontrar na cama, adormecido!

Guerran andava interessadíssimo por aquela batalha que se travava em torno de um homem, para o salvar contra sua vontade. Acabaram por descobrir o esconderijo, esquadrinhando a fundo o aposento num dia em que o desgraçado dormia sob o efeito do estupefaciente : a cocaína estava dentro de água, no sifão da retrete, metida num tubo-estanque de metal. Mas, três dias depois, o filho do escritor fornecia-se mais uma vez do seu veneno favorito. Encontraram-no de novo em estado de torpor e embrutecimento, e a busca minuciosa a que procederam não deu resultado nenhum. Levaram então o rapaz para um quarto exactamente igual ao primeiro, no andar superior. Ao acordar, notou a mudança, mas calou-se. A luta desenrolara-se em silêncio, com boas maneiras. Talvez o doente esperasse ainda que alguma criada, subornada por ele ou pelos seus misteriosos amigos, lhe trouxesse uma dose do alcalóide. Fabienne, porém, era agora a única pessoa autorizada a entrar no quarto. Daí por diante as melhoras foram rápidas. E o internado começou a perder o ódio feroz que votava ao Homem e à enfermeira.

Tudo isto interessava Guerran, abreviando-lhe as longas horas da convalescença. Já principiava a falar na sua partida. O trabalho chamava-o, no seu escritório acumulavam-se processos sobre processos. As férias parlamentares da Páscoa haviam terminado.

- No entanto - sugeria Fabienne - o senhor devia repousar ainda uns meses. Se vai realmente à Sabóia, fique por lá até ao fim do Outono.

- É impossível. Preciso de trabalhar e ganhar dinheiro, preciso de lutar... Você não faz ideia do que isto é! -Demais, aborrecer-me-ia lá bastante. Nunca apreciei as férias.

- Mas a Sabóia é tão bonita!

Falaram disso muitas vezes. Guerran conhecia a região, por haver aí passado algumas semanas. Fabienne visitava-a todos os anos, em Setembro. E, nos seus comentários, evocava Aix-les-Bains, Petit-Port, a casa velha onde Mariette alugava uns quartos, o lago e as manhãs claras, o céu e as águas azuis, a bruma esparsa em largas toalhas flutuantes, as tardes outonais, com os reflexos róseos do poente nos altos de granito do Mont Revard, as primeiras luzes de Aix-les-Bains pespontando a sombra violácea, as nuvens brancas descendo do Dent du Chat e rolando lentamente no sopé da montanha, em direcção ao vale...

- Tem razão - dizia Guerran, tentado. - É bem bonito tudo isso. Não tinha dado atenção. Pois está prometido: farei o possível de me demorar na Sabóia. e será mais uma coisa que me concedeu, Fabienne! Não há dúvida que lhe devo toda a minha ressurreição.

Guerran teve alta nos primeiros dias de Maio. Compareceu na Câmara e passou cinco dias em Angers, a desenvencilhar, para Charles e Legourdan, seu secretário, os processos mais embrulhados e urgentes. E, uma semana depois de ter deixado Paris, chegou com Micheline e Julienne a Aix-les-Bains. Os seus aposentos estavam já preparados no hotel, que em honra do poderoso homem de Estado desfraldara uma grande bandeira tricolor.

 

Certa manhã o automóvel de Doutreval parou defronte da casa de saúde Épidauria. Doutreval, com o genro Ludovic Vallorge, vinha buscar a filha para umas semanas de férias. Acompanhava-os Regnoult, sempre elegante, com os seus cabelos castanhos anelados, vestido dos pés à cabeça com o maior apuro. Havia já oito dias que Olivier Guerran tivera alta, de maneira que Doutreval não o pôde ver, o que lamentou. Guerran e ele sentiam recíproca simpatia, que se firmara durante as visitas do professor à casa de saúde. O convalescente não regateava elogios a Fabienne; e Doutreval, por seu lado, via com prazer estreitarem-se os seus laços de camaradagem com um político influente, que lhe podia ser de muita utilidade.

No manicómio de Bicêtre, onde Doutreval devia fazer uma demonstração do seu método, esperava-o Groix, sempre espirituoso, com a sua cicatriz e a sua cabeleira loira. à tarde, pai e filha, acompanhados dos dois assistentes, regressaram a Angers. Fabienne escutou sem grande atenção os gracejos do Gilvaz e as amabilidades de Regnoult. Estava fatigada. O seu desejo, agora, era descansar em Anjou, na atmosfera familiar.

Doutreval, actualmente, vinha com frequência a Paris.

Andava sempre a viajar. De toda a parte o solicitavam, tanto das grandes cidades francesas como das capitais estrangeiras. Gastava todo o tempo a conceder entrevistas, a fazer conferências, a fundar postos de tratamento nos manicómios. O seu nome já era célebre. Dos países vizinhos chegavam-lhe doentes, e médicos desejosos de se instruírem no seu método. Tornara-se uma sumidade. Em Angers, consideravam-no o grande homem da terra; ele bem o percebia pela atitude respeitosa, pela atenção deferente dos estudantes cada vez mais numerosos. O incenso embriagador da glória iminente consolava-o do lar deserto, da ruptura com o filho, da separação de Fabienne, separação que, felizmente, se não prolongaria mais. A rapariga terminara o seu estágio, adquirira a experiência necessária e seria agora uma auxiliar incomparável. Só restava obter, o mais depressa possível, um local e subsídios para tratar grátis os indigentes e ter assim em Angers um centro de curarização importante onde Doutreval poderia receber os médicos e apresentar-lhes doentes, estatísticas e documentação viva, irresistível. Aquele centro seria a última fase a realizar. De tempos a tempos, Doutreval falava a Géraudin desse grande sonho: um centro de curarização em Angers. Conhecia as dificuldades materiais, e os mil ciúmes a apaziguar ou a vencer. Géraudin aquiescia:

- Espere que o Ministério caia - dizia ele. - é uma questão de paciência. Guerran há-de sobraçar qualquer pasta. Impõe-se cada vez mais. É o técnico da agricultura! Se Guerran for ministro, a coisa está garantida. Encarrego-me disso.

Entretanto, Doutreval definia o programa dos seus trabalhos e das viagens a realizar nesse ano. No fim do mês, iria à Holanda. Depois dos exames da primeira época, à Noruega. Em Outubro, à Alemanha. Regressaria então a Angers, por causa das aulas, e, fechadas estas, visitaria a Itália. De toda a parte lhe escreviam, convidando-o a ir fazer demonstrações.

Esta difusão da sua obra tinha um inconveniente: impedia-o de a aprofundar tanto quanto ele desejava. Havia ainda pontos obscuros no problema. A acção paralisadora do curare era muito variável; dependia do paciente. Porquê? Certos doentes antigos, que até haviam retomado o trabalho - trabalho leve, é claro - voltaram a consultar Doutreval, queixando-se de dores violentas nas costas, o que os impedia de continuar nos seus respectivos ofícios. Porquê? Para o descobrir seria preciso tempo e investigações aturadas. O professor dedicava ao assunto algumas horas, mas vinha depois uma conferência a preparar, uma leitura com exemplificações a fazer em Toulouse ou em Estrasburgo, e isto arrancava-o ao estudo, perturbava-lhe a concentração do pensamento.

Aconteceu também o primeiro acidente mortal; e, embora fosse inevitável, Doutreval não deixou de ficar tristemente impressionado. Foi no manicómio deSaint-Clément. Groix e Regnoult injectavam o produto convulsivo nas veias dum rapaz de vinte e seis anos, que estava deitado, nu, sobre o catre: exactamente seis centímetros cúbicos duma solução a dez por cento. Doutreval anotava a quantidade quando a crise, depois duma demora razoável, se produziu de modo fulminante. A cara do homem ficou branca, e em seguida verde. Os olhos e a cabeça rodaram à direita, na direcção do professor, com tanta força que se diria ter quebrado a nuca. O doente, tetanizado, com todos os músculos esticados como cordas, soltou um grito rouco, terrível, sentou-se, tornou a cair para trás, com as pernas no ar, a agitá-las estranhamente, tal se estivesse a pedalar no espaço. As mãos pareciam garras, a boca abria-se, fechava-se com um estalo capaz de fazer voar os dentes em estilhaços. De repente, no meio dum esforço horrível de contracção, ouviu-se um ruído seco, muito nítido, de qualquer coisa a rebentar na espinha do alienado. O homem deu um berro e o professor e os dois assistentes entreolharam-se. Uma vez terminada a crise, Doutreval mandou transportar o louco, ainda inanimado, para a radioscopia. A primeira vértebra dorsal estava partida, esmagada sob a tracção dos músculos espinhais. Devia haver importantes lesões na espinal medula, pois o homem veio a morrer no dia seguinte, à noite.

Durante dias, Doutreval discutiu com Regnoult e Groix. Doutreval optava por um acidente, devido à predisposição que o rapaz teria às fracturas, por emagrecimento e desmineralização. Em suma, um caso excepcional, que se não devia ter em conta. Regnoult apoiava-o. Mas Groix pretendia relacionar esse resultado com uma série completa de factos vagamente afins: dores nas costas frequentemente verificadas no momento da crise, em especial nesses doentes que voltavam depois de curados e que se queixavam de sofrer da espinha. Como ele se aferrasse a essa opinião, Doutreval teve de lhe cortar a palavra e declarar, de modo bastante ríspido, que a discussão acabara.

Foi cheia de comoção que Fabienne reviu a sua Anjou, e em particular o laboratório do pai, onde ela passara a infância. Groix e Regnoult estavam sempre lá. O primeiro era ainda o mesmo rapaz barulhento e agarotado, se bem que em vésperas de concorrer a professor; Regnoult, mais sério, mais douto e, sobretudo, mais previdente, fazia a Fabienne uma corte discreta, falando de vez em quando do seu futuro, dos seus projectos ligados aos do «mestre» e tentando interessar a rapariga em tudo isso, o que não desagradava a esta. Fabienne sentia por ele apenas simpatia de camarada, mas sabia que esse casamento não descontentaria o pai. Ela mesma, em princípio, não repelia tal ideia, julgando-se muito sensata, mas, na realidade, era profundamente ignorante dos negócios do coração. «Ver-se-á mais tarde», pensava.

Ressuscitara a alegria da vida familiar. Mariette preparara um quarto para a irmã, na sua casa, pois que a do pai, desprovida do encanto da convivência feminina, se tornava, cada vez mais, apenas laboratório, lugar de trabalho, de recepção e de pesquisas. O próprio Doutreval passara a viver com os filhos : dava-se muito bem com o genro, cujo silêncio fleumático lhe proporcionava descanso. Quanto a Mariette, estava grávida de sete meses. O seu contentamento não conhecia limites. Falava do caso a toda a gente, dizia que o seu gosto seria ter uma rapariga, mas que esperava um rapaz. Via-se já rodeada de crianças, pondo manteiga nas fatias de pão, conduzindo à escola um batalhão turbulento, agitando-se num meio em que fervilhava a infância - vidas irrequietas, faces sujas e coradas, onde o seu apetite de maternidade encontraria, enfim, satisfação. Fabienne, mais amadurecida, um tanto triste por tudo quanto a existência lhe revelara da sua monstruosa fealdade, na casa de saúde, sentiu-se bruscamente rejuvenescida, restaurada ao contacto com essa irmã tão alegre, tão exuberante de saúde e optimismo. Reabituou-se aos risos, aos beijos maternais de manhã e à noite, às canções entoadas em altas vozes por uma Mariette coberta de pó, de toalha na cabeça a fazer de turbante e a perseguir as aranhas e as teias do tecto.

Tornou a encontrar as pombas, o velho galo T til, as galinhas (todas também com seus nomes), as rolas a quem Mariette deixava debicarem-lhe na boca. Com a irmã, passeou pelos belos caminhos angevinos ladeados de moitas enormes e espessas. As giestas abriam as suas flores amarelas, de perfume silvestre. A urze, de folhagem rude e estreita, oferecia a sua floração dura e pobre, roxa laivada de púrpura. As duas voltavam com uma colheita abundante, capaz de encher todas as jarras da casa. Doutreval, regressando à noite do laboratório, de olhos fatigados pelo uso do microscópio, e de espírito pesado, experimentava, sem procurar as causas, a sensação apaziguadora desse eflúvio floral disperso na moradia.

- É singular como se está bem aqui, Mariette - dizia ele, ainda sem compreender a razão da mudança.

Mariette piscava o olho a Fabienne. E Doutreval contemplava a sua primogénita, aquela que substituíra a mãe. Passando por trás dela, curvava se, aspirava o cheiro fresco dessa alfazema com que ela perfumava a roupa e as gavetas, e suavemente, nos belos cabelos claros e soltos, depunha um beijo de gratidão. Essa filha rejuvenescia-o. Ia conceder em breve uma vida nova no lar. Não era, pois, sem comoção que ele a via, observando-lhe o corpo pesado

- promessa de maternidade que ela oferecia como uma terra generosa e fértil. Ei-la, pois, quase mãe por seu turno. O vácuo ia ser preenchido, o lugar do ausente seria ocupado. Havia momentos em que ele se sentia mais jovem do que esse casal juvenil. Preocupava-se com o berço, com o carrinho, ocupava-se das compras inumeráveis com mais entusiasmo do que Ludovic Vallorge, a quem isso divertia.

Calculava-se para meados do mês seguinte o nascimento da criança. Van der Blieck, especialista de obstetrícia, vigiava Mariette e encarregara-se do parto. Tudo decorreria bem, dizia ele. Mariette era robusta, sã. Não havia hereditariedade suspeita. Higiene excelepte. Talvez fosse um pouco estreita de ancas : essa era a nuvenzinha negra. Mas no parto há sempre um óbice. O caso ideal não existe em medicina.

Um dia de manhã, ao chegar ao hospital para a sua inspecção ao serviço com os internos Fleurioux e Cassaing, e todos os estudantes, Ludovic Vallorge viu no corredor do seu gabinete um petiz dos seus três anos, acompanhado da mãe. Estavam à espera dele. Proprietário da cadeira de cirurgia infantil, Ludovic operava agora as crianças com muita perícia. Isso, porém, era-lhe odioso. Sofria com o caso, sem se atrever a confessá-lo a ninguém. Habituado a trabalhos de laboratório, silenciosos e pacíficos, durante o seu longo estágio com Suraisne, não se considerava talhado para cirurgião. O seu desejo seria mudar de cadeira, trocar com uma de medicina geral. Contudo, precisava de aguardar vaga. Van der Blieck alcançara finalmente a de ginecologia, mas ainda havia um concorrente, Huot, que também não gostava de cirurgia e tinha em mira os mesmos projectos de Vallorge, com a agravante dum apetite espicaçado por dez anos de espera. Isto sem contar com Flégier, que Géraudin já fizera professor extraordinário e que decerto se apresentaria no próximo concurso para uma cátedra. Tudo aquilo era melindroso.

- Bom dia, senhor doutor - disse a mulher. Ludovic aproximou-se, assim como alguns estudantes

e os internos.

- Que é? - inquiriu o professor.

- O meu pequeno... É por causa da sobrancelha.

- Esta mulherzinha trabalha toda a semana - explicou um interno. -Não tem tempo para ir ao dispensário. Dissemos-lhe então que aparecesse por cá numa das manhãs em que estivesse de folga...

- E como estou hoje de folga... - rematou a mulher.

- Que tem o garoto? - perguntou Ludovic. - Acompanhe-me à sala de consulta. Mostra cá a tua cara, meu menino. .. Ah, sim, acima dos olhos!... É um quisto dermóide da ponta da sobrancelha. Os senhores estão a ver? Um resto do embrião que às vezes subsiste desta maneira. Lembro-lhes, a propósito, que já pretenderam ser o cancro um resto embrionário que recomeçou a desenvolver-se... No caso presente a ablação é muito simples: fende-se a pele e faz-se a descortinação do quisto com uma sonda-cânula. Pois bem, minha senhora, temos de tirar isso ao nosso rapazinho. E quanto mais cedo, melhor. Não fica lá muito bonito com essa coisa na cara.

- Ela não quer. Tem medo - disse o interno Fleurioux.

- A senhora vê como tínhamos razão? - observou Cassaing.

- Não é que tenha medo - objectou a mulher. - É que eu quero prevenir o meu homem, e ele então dirá se quer ou não.

Os internos riram-se.

- Mas se é coisa para trinta segundos!

- O tempo de uma pessoa assoar o nariz!

- Olhe -acudiu Vallorge -vamos fazer uma surpresa agradável ao seu marido. Tiramos esse quisto imediatamente e, daqui a um quarto de hora, leva ao pai o miúdo já operado, sem essa história na sobrancelha. Que boa surpresa, hem?

- O senhor doutor acha... - disse a mulher, hesitante.

- Vamos, dê-me cá o garoto e espere aí dois minutos. O tempo de contar até cem. Fleurioux, Cassaing, tragam compressas, se fazem favor. Duas gotas de clorofórmio...

Levou o pequeno para a sala contígua, onde, quando se oferecia ocasião, fazia operações de pouca importância.

- Não será bastante uma anestesia local? - perguntou Fleurioux.

- Bem sabe que isso não dá resultado com as crianças. Conservam a consciência, ficam assustadas...

- E berram - concluiu Cassaing. - Vá, estiquem a mesa.

Estiraram o pequeno e os estudantes fizeram círculo. Cassaing pegou numa compressa e Fleurioux no frasco de clorofórmio. O petiz, cheio de medo, olhava para todos. Cassaing pôs-lhe uma compressa sobre o nariz e Fleurioux deitou aí algumas gotas. Ludovic Vallorge calçava as luvas. Às primeiras gotas, a criança empalideceu e Cassaing viu as pupilas dilatarem-se-lhe.

- Olá! Oh! Oh!

Atirou fora a compressa. Ludovic acorreu.

- Meu Deus! Síncope!

O pequeno já estava morto. Síncope clorofórmica.

Cassaing dava sacões na língua da criança. Dois estudantes erguiam-lhe os braços, outro premia-lhe as costelas, Fleurioux enchia uma seringa de adrenalina. Vallorge, lívido, banhado em suor, de cabeça perdida, espetou a agulha em pleno coração e esvaziou a seringa. Mas tudo findara. A morte fora instantânea.

Entreolharam-se com ar entristecido. De súbito, notaram que a porta ficara aberta. E a mãe à espera que lhe trouxessem o filho para o levar ao pai, que não sabia de nada e tão contente ficaria com a surpresa... Fleurioux, num pulo, correu a fechar a porta. E ali ficaram encerrados naquele compartimento, sem outra saída senão a que dava para a sala onde a mãe esperava... Ninguém, nem sequer Ludovic, ousava passar diante da mulher.

Fleurioux teve então uma ideia. Abriu a janela e murmurou :

- Por aqui!

E todos, com Vallorge à frente, saltaram o peitoril da janela, como malfeitores, deixando ali o pequenino cadáver. Cassaing foi logo falar com a Irmã Angélique, para que esta prevenisse a mãe do pequeno e deslindasse aquela história.

Com tudo isto, Vallorge sentiu-se ainda mais desgostoso. Todavia, a culpa não fora dele. Tais acidentes acontecem aos melhores cirurgiões. Mas o que o afligia eram as circunstâncias do drama, aquela mulher a quem ele quase arrancara à força o filho, que nada dissera ao marido e que tivera de regressar a casa e anunciar ao homem a tremenda notícia : «.. .O nosso menino morreu...»

Era esta a ideia que atormentava Ludovic, em vésperas dum nascimento em sua casa, numa ocasião em que tudo quanto se relacionava com a infância despertava nele particular sensibilidade. Decidiu-se a falar ao sogro e pediu-lhe que intercedesse junto de Géraudin no sentido de lhe obter uma cadeira de medicina ou de trabalhos laboratoriais. Doutreval prometeu fazer” o que pudesse. Surgia, no entanto, uma dificuldade. Desde há meses que Géraudin mostrava má cara a Ludovic. Por causa dum antraz que lhe aparecera no lábio superior, Vallorge tivera de se submeter a intervenção cirúrgica : um golpe de bisturi para esvaziar o carnicão. Para isso não recorrera a Géraudin, porque lhe haviam chegado aos ouvidos vagos rumores a respeito de certo desfalecimento, dois ou três desmaios breves e cautelosamente encobertos, de que o velho mestre fora vítima enquanto estava a operar. Ninguém vira nada, não se sabia nada de concreto, mas o imperceptível murmúrio, menos que um sopro, nos corredores da Faculdade e do hospital, fora o bastante para alarmar Vallorge. Hesitara. Se se tratasse do lábio inferior, confiaria a sua pele a Géraudin. Mas no lábio superior nunca se sabe o que pode acontecer. O perigo é incomparavelmente maior. Existe ali determinada veia pela qual qualquer infecção se torna grave dum instante para outro. Vallorge, aliás a conselho de Groix, decidira-se por Heubel. Ora essa escolha devia ter melindrado Géraudin. Fora uma manobra errada que não seria fácil remediar.

No fim de Maio, Doutreval fez mais uma vez os seus preparativos de viagem. Devia combinar na Holanda a longa digressão para a qual o tinham convidado. Haviam-lhe pedido que fizesse uma série de conferências em Utreque, Amsterdão, Roterdão e Haia. Como Doutreval nunca se submetera a esse pequenino vexame que é o exame para obter licença de condução, resolvera que Ludovic o acompanhasse, a fim de guiar o automóvel. Quanto a Regnoult e Groix, é óbvio dizer que nunca deixavam o mestre. Fabienne também tomaria parte na viagem, até Paris; ficara estabelecido que ela voltaria à casa de saúde e que o pai faria um desvio para lá a deixar, de passagem.

Mariette é que, como sempre, arrumou as malas do pai e do marido. Vallorge levou o carro à garagem e encomendou vários pneumáticos novos. Na manhã de 30 de Maio, Doutreval beijou mais uma vez a filha casada, antes de se meter no automóvel. Tanto ele como Mariette estavam um tanto comovidos. Era a última viagem de Doutreval antes da grande ocorrência : o nascimento da criança.

- Toma cuidado contigo - disse ele. - Tens o nome do nosso hotel. Não saias de casa, não te mexas muito nem subas as escadas a correr. Bem sabes que a partir do sétimo mês...

- Está bem, está bem, não se inquiete! - volveu Mariette, rindo. - Prometo ter juízo e deixar as aranhas em paz! Não se esqueça da sua pasta preta. As lâminas da barba estão na caixinha, com os sabões... Meti fósforos e uma vela na mala de pele de porco. Sim, sim, pode ser útil, para o caso de haver desarranjo na electricidade do hotel... E também pus na malinha pequena um frasco de água de melissa e três torrões de açúcar, para as digestões. .. Está-se a rir! Verá como vai apreciar a minha ideia quando não digerir bem os guisados do hotel... Então adeus, Fabienne. Porta-te com juízo e escreve amanhã... Adeus, pai...

Doutreval depôs outro beijo na face fresca de Mariette e aspirou o suave perfume de alfazema e o sadio odor natural que dela emanava.

- Adeus, minha filha! - gritou ele, metendo-se no automóvel.

Pela portinhola, Mariette teve ainda tempo de se despedir do marido e de, com as duas mãos, atirar beijos a toda a gente, incluindo Groix que, freneticamente, lhe correspondeu com largos gestos melodramáticos. Já o automóvel ia no fim da rua e ainda o rapaz, com o busto fora do carro, testemunhava tão delirante amor que os transeuntes se detinham espantados. Fabienne chorava de tanto rir, ao ver a figura dele. Havia alguns dias que Groix deixava crescer a barba, horrível barba ruiva que lhe fazia, com os olhos claros, uma cara patibular. «Consequência dum voto», dizia. Na realidade, tratava-se duma aposta com o seu colega Cassaing. Se Groix não se barbeasse durante seis semanas, aquele ofereceria um ponche gigantesco depois dos exames.

Doutreval, sentado ao pé do genro (que, diga-se a verdade, guiava de modo notável) meditava na sua conferência. No assento do fundo, Groix fumava cigarros, enquanto Regnoult conversava com Fabienne. Fizeram o percurso até Paris em quatro horas, deixaram Fabienne na casa de saúde Êpidauria, e, por Villette e Pantin, saíram da capipal e tomaram o caminho da Flandres. Doutreval reparara na despedida de Regnoult e de Fabienne: um aperto de mão demorado, um olhar insistente trocado entre ambos... Achava aquele casamento possível e deveras oportuno. Regnoult era rapaz de valor, inteligente e amigo de trabalhar. Calculista, evidentemente. Mas quem o não é? Ficaria ligado a Doutreval e continuaria a ajudá-lo. Doutreval fazia empenho nessa colaboração. No íntimo, teria preferido Groix Gilvaz para genro. O carácter aberto, franco, às vezes um tanto brutal, mas sempre leal e alegre, deste seu outro colaborador, inspirava-lhe mais confiança do que a deferência um pouco fria de Regnoult. Mas Groix, por outro lado, não era muito acomodatício. Acontecia-lhe, às vezes, dar «o seu coice». Ainda na véspera se travara de razões com ele, a propósito dum doente. O professor tivera de elevar a voz, usar do peso da sua autoridade catedrática. Além disso, o rapaz não tinha ambições. Era pessoa para largar uma situação, mandar os outros passear e estabelecer-se como médico de aldeia só por causa de qualquer coisa que não lhe agradasse ou para evitar solicitações, rapapés e zumbarias, humilhações a que ele seria incapaz de se submeter. Muito rígido para curvar a espinha. E, enfim, estes negócios do coração não se resolvem por imposições, como quaisquer outros. Fabienne parecia inclinada a favor de Regnoult.

Almoçaram em Senlis e falaram, naturalmente, da viagem pela Holanda, dos casos a apresentar, dos resultados a exibir. E houve outra vez conflito com o Gilvaz, o que veio provar a Doutreval que as suas reflexões de ainda há pouco eram na verdade justas. Como Doutreval aludisse às críticas provocadas pelo seu sistema, e à sua refutação, Groix lembrou o último acidente ocorrido em Saint-Clément - o da coluna vertebral quebrada no momento da contracção convulsiva, e morte consequente.

- Vai falar disto, senhor doutor?

- Não acho necessário - respondeu Doutreval.

- Pois eu entendo que devia falar. Relaciona-se com outros indícios análogos. Há uma sombra negra, um lado negativo que, segundo a minha opinião, se não devia deixar em silêncio.

Continuaram a discutir. Para Regnoult, Doutreval e Vallorge o caso não suscitava dificuldades, de modo que se tornava inútil fazer-lhe alusão. Só Groix é que pretendia obstinadamente que a probidade científica exigia uma exposição completa, com tudo o que pudesse comportar de elementos desfavoráveis. Teimava, sugeria tantas e tão boas razões que Doutreval, por fim, teve de o mandar calar, recordando-lhe certos erros que ele cometera no laboratório, no dia seguinte a um banquete: uma análise mal feita, que Doutreval corrigira a tempo. Vexado, Groix não disse mais nada.

Viajaram toda a tarde, atravessaram Lille, Gand, Antuérpia, depois de terem passado por baixo do Escalda no túnel acabado de inaugurar. À noite atingiram a fronteira holandesa. Dormiram num hotelzinho todo catita, muito branco, florido de gerânios, onde Doutreval trocou dinheiro francês por florins. No outro dia, à tarde, depois de horas de espera na margem dos inúmeros braços do Reno e das passagens de barcaça para barcaça e de ilha para ilha, os quatro médicos aproximaram-se de Amsterdão. Aquelas viagens através das terras sulcadas pelo Reno são desmedidamente lentas. Não há pontes. Por toda a parte embarcações de acostagem. é necessário uma pessoa armar-se de paciência. Bem podia o automóvel, depois disso, correr a bom correr sobre o pavimento elástico das estradas sinuosas e planas; o tempo perdido não se recuperava nunca. Uma vez chegado a Amsterdão, Doutreval mal teve tempo de mudar de colarinho e de calçado no seu quarto de hotel: já o elemento oficial ali estava para o levar de carro outra vez.

A primeira noite foi consagrada às recepções. O banquete que se seguiu terminou tarde. Doutreval quis voltar a pé, com os seus assistentes e o genro. A cidade, à luz das estrelas, mostrava naquela noite serena amplas avenidas ladeadas de prédios de muitos andares, casas de campo e chalés à americana. De súbito, encontraram-se defronte dum vasto espelho de água negra, um dos numerosos canais que fazem de Amsterdão uma Veneza nórdica. A água imóvel e sombria reflectia a luz invertida das lâmpadas eléctricas. As altas tílias tremulavam suavemente à brisa salina do Zuyderzée. Contra o fundo estrelado do céu velhas fachadas esculpidas erigiam silhuetas de estátuas, de génios e vitórias aladas, semelhantes a figuras de proa. Ao nível de água dormiam barcas pesadas, lanchões, chalupas compridas e baixas, onde, através da janela do camarote, brilhava a luz calma duma lanterna. Acima dos telhados, por intervalos, o clarão da cidade subia como uma aurora. Doutreval respirava essa paz silenciosa, conversava com Regnoult e Ludovic e sentia-se contente. Tudo ia bem. Era para ele um desses curtos e raros instantes da existência em que se ousa dizer: «Sou feliz!» Frase que o homem mal se atreve a pronunciar, tanto isso evoca um equilíbrio instável e frágil, um efémero triunfo! Mas, logo a seguir, a lembrança do filho atravessou, dolorosa e rápida, aquela doce quietude. Doutreval conseguiu afugentá-la... Logo atrás dos três, Groix seguia assobiando, ainda um pouco arrufado.

Deixaram o bairro tranquilo e penetraram no coração da cidade. A transição foi súbita : viram-se, dum momento para outro, em plena luz, em plena vida, no deslumbramento dos escaparates, dos letreiros luminosos, entre ruas estreitas, tumultuosas, estuantes de vida e de alegria, sob o revérbero cru e brutal da electricidade. Eram horas tardias, e no entanto julgar-se-ia ser dia claro. Os quatro médicos chegaram enfim ao hotel e entraram com certa pena.

O dia seguinte foi inteiramente tomado pela conferência e visita aos hospitais. Foi Regnoult quem teve de enviar à pressa, e já tarde, postais a Mariette e a Fabienne. Só no outro dia, depois das cinco horas, em seguida a uma volta fatigante pelos hospitais dos subúrbios, é que Doutreval e Ludovic gozaram finalmente uns momentos de repouso.

- Já que estamos disponíveis, vamos aproveitar o tempo - sugeriu Doutreval, mal chegaram ao hotel.- Ludovic, vá ao escritório e pergunte à menina da central telefónica se demora muito uma ligação para Angers, Será uma bela surpresa para Mariette!

- Boa ideia! - aplaudiu Ludovic. -Vou já indagar isso. Dois minutos depois, o telefone retenia no quarto de

Doutreval. Este pegou no auscultador, de cima da mesa de cabeceira. Era Ludovic.

- Está lá? Sim, sou eu. Horário da noite; teremos a ligação por metade da tarifa, e relativamente depressa: cerca das dez horas. Mariette não estará ainda na cama. Cinco gulden e meio... Que é um gulden?

- é um florim - explicou Doutreval. - Custará mais ou menos cinquenta e cinco francos. Peça já ligação para Angers, Ludovic. Mariette vai ficar radiante.

- Calculo! - confirmou Ludovic.

Enquanto esperavam pelas nove horas, deram uma volta pela cidade, acompanhados por Groix e Regnoult. Compraram desses charutos gigantescos que têm de comprimento quase meio metro e são mais grossos que um cabo de vassoura. Solitários, na sua comprida caixa de madeira africana, tinham o aspecto de múmias preciosas e perfumadas no fundo dum sarcófago. Para a mulher, Ludovic escolheu uma renda feita à mão. Doutreval, para oferecer a Fabienne, adquiriu um monstro de ébano de Bornéu, gnomo cambaio, belamente esculpido, que suportava pesado sino de bronze onde serpenteavam dragões alados. Destinado a Mariette, comprou um broche de oiro, de filigrana, tal como fazem nos Países-Baixos, com um brilhante de quilate e meio ao centro.

«Será o meu presente de padrinho», pensou Doutreval, contente.

Quanto a Groix e Regnoult, iam coleccionando tudo quanto encontravam de gulodices, tais como chocolates, confeitos, bolos e pastéis raros; o bastante, dizia Groix, para se apanhar uma indigestão muito «corlocal». Dos mostradores abertos até ao chão transbordava uma opulência de vitualhas, jóias, sedas, especiarias, tapetes, frutos exóticos e perfumes. Os estabelecimentos eram ornados de mármore, ferros forjados e madeiras orientais. Nas ruas estreitas, onde estava proibido o trânsito de automóveis, circulava a multidão compacta e alegre, num burburinho de festa perpétua. Ali se encontravam excursionistas de calções, com as pernas peludas ao léu; raparigas loiras e robustas, de sapatos ferrados, camisola de ciclista e mochila sobre os ombros sólidos; mulheres com a indumentária tradicional, de saias compridas e rodadas, tamancos de pau, cabelos puxados ao alto e largas placas de oiro de cada lado da testa. De toda aquela gente sã e de boas cores, criada ao vento do mar, emanava uma impressão de força, mocidade e saúde.

Às oito e meia Doutreval estava no hotel. Acabavam todos quatro de se sentar à mesa a fim de jantar rapidamente, por causa da chamada para Angers, quando um dos empregados do hotel, que falava um pouco de francês, veio ter com Ludovic:

- Chamam-no ao telefone, senhor. é de França. -Já?

- Vá atender, Ludovic. Eu lá irei ter - disse Doutreval, que estava a acabar a sopa.

Vallorge depôs o guardanapo e saiu.

- Angers? - inquiriu ele à menina encarregada das ligações.

- Perhaps - respondeu a interpelada, usando a única língua estrangeira que conhecia. - It comes from France. Alio, alio... alio, já, Amsterdam. Menheer Vallorge, já, já.,. Voltou-se para Ludovic e acrescentou: A call from France, Sir. Will you go to the box number seven, please?

Ludovic entrou no compartimento n.º 7.

- É o professor Vallorge? - dizia uma voz distante, muito distante, mas muito nítida.

- Sim, sou eu. És tu, Mariette?

- Não. Desculpa, meu caro. Quem está ao aparelho é Van der Blieck.

- Van der Blieck?

- Achei conveniente chamar-te. Desculpa...

- Mas eu é que tinha pedido a ligação...

- Foi coincidência. É curioso! Ouve: os acontecimentos precipitaram-se.

- Minha mulher?

- Sim, não te sobressaltes, vai tudo bem.

- Ah, assustaste-me - volveu Ludovic, aliviado.

- Mandaram-me chamar esta manhã, da tua casa. Tua mulher deve ter-se fatigado. Apareceram as dores, um pouco prematuras, a meu ver.

- Em todo o caso, tem oito meses - observou Ludovic, para se tranquilizar a si próprio.

- Bem sei, e isto nada tem de inquietante. O único aborrecimento é que a coisa não avança. A passagem é realmente muito estreita, tanto que penso pedir a opinião de Huot. Faremos tudo o que for possível. Enfim, se daqui por umas horas se não resolver, parece-me ser melhor...

- Uma cesariana?

- Seria o mais acertado. Não é nada que assuste. Ludovic sentiu de repente a testa húmida de suor.

- Sem dúvida, sem dúvida - repetiu em voz alta.

Diligenciava lembrar-se das inúmeras operações cesarianas a que assistira, quando estudante, com a maior indiferença, intervenções quase diárias em mulheres a quem Géraudin abria a barriga e tirava a criança e que voltavam para casa a pé, três semanas depois, sem que mais ninguém pensasse nelas. Uma cesariana, vulgarlssimo incidente... Não havia razão para tomar o caso de outra maneira, só com o pretexto de que se tratava de Mariette.

- Está bem-respondeu por fim. -Combina com Huot. Confio em ti, Van der Blieck.

A voz tremia-lhe um pouco. Pela primeira vez na vida sentia que é coisa solene e terrível entregar nas mãos dum homem a vida da pessoa que mais se preza.

- Obrigado - disse a voz longínqua.-Quem escolhes?

- Quem?

- Sim, para operar. Heubel? Géraudin? Há outros...

- Não sei... Não sei...- murmurou Ludovic.

- Tu é que me deves indicar o cirurgião.

- Não sei...

- E teu sogro? Qual é a opinião dele?

- Não está aqui. Nem sabe de nada ainda...

- Pede-lhe o parecer. Ele dirá.

- É verdade...

- Já responderam? - interrompeu uma voz.

- Ó menina, deixe-nos sossegados! Há três minutos que estamos a falar! Ouve, meu caro, reflecte e liga para cá por volta da meia-noite. Nessa altura me dirás quem escolheste. Por meu lado, vou-me informar, saber qual o operador que está livre. Aliás, é muito possível que daqui até à meia-noite tudo esteja terminado. Tenho quase a certeza disso. Só quis prevenir-te para não tomar a responsabilidade, no caso de ser necessária uma cesariana. Mas estou confiante... Eu e Huot havemos de resolver isto!

- Há os ferros...

- Pois claro, os fórcipes... E algumas injecções, também. Não te aflijas. Pode ser que não seja precisa intervenção nenhuma. Eu é que quis advertir-te com tempo. Faze uma chamada para cá à meia-noite.

- Estão a falar? - atalhou a tal voz.

- Estamos! Deixe-nos em paz, menina! Como te estava a dizer, pede ligação para cá à meia-noite. Oxalá eu tenha o prazer de te anunciar o nascimento dum pimpolho! Até logo!

Ludovic Vallorge, um tanto enfiado, voltou para a sala do restaurante. No vestíbulo, encontrou Doutreval, que vinha a correr.

- Desligou? Então... ?

- Não foi Mariette.

- Mas não era de Angers?

- Pois era, mas Van der Blieck é que fez a chamada. Doutreval empalideceu por seu turno.

- Aconteceu alguma coisa?

- Não. Mas a Mariette sentiu esta manhã as primeiras dores, um pouco antes do tempo..

- É uma palerma! - exclamou Doutreval. - Naturalmente pôs-se como de costume a fazer grandes limpezas! Entregou-se a isso de alma e coração! Apanhou-nos fora de casa... Eis o resultado. E então?

- Não vai muito mal, mas Van der Blieck queria a opinião de Huot.

- Se for preciso, que chame todos os médicos da Faculdade.

- Foi o que eu lhe disse. Mas queria o parecer dum colega para a hipótese de recorrerem à cesariana.

- Ah, falou de cesariana!

- Diz que não tem a certeza de o caso se resolver sem isso.

- Que maçada - murmurou Doutreval.

- Não é ainda certo.

- Tem razão. Se fosse, ele teria dito.

- Não perdi a esperança. Van der Blieck parecia optimista.

- Mariette é robusta. Há-de sair-se bem. Mas não deixa de ser uma operação de tomo... Enfim, não se morre disso. Como somos parecidos com os outros, nós, os médicos, quando se trata das pessoas da nossa família! Não me considerava tão fraco.

Foi sentar-se. Estava agora deveras preocupado. Regnoult e Groix, inquietos de não os verem regressar, chegaram naquele momento. Ludovic explicou-lhes o que se passava.

- Ah! - exclamou Regnoult. - Vi centenas de cesarianas, na Égalité, sem o mínimo incidente.

- No fim de contas - ajuntou Groix - é só mais fatigante do que um parto vulgar um pouco laborioso. Nenhum sofrimento. Conheci muitas mulheres que preferiam isso a um parto pela via normal.

- Sem dúvida - corroborou Doutreval. - E ainda não há a certeza de ser necessário...

Voltaram à mesa, na sala do restaurante. Groix e Regnoult atiraram-se à omeleta de espargos. Vallorge e Doutreval comiam vagarosamente, sem apetite.

- Quem escolheremos como cirurgião? -perguntou Ludovic.

- Como cirurgião?

- Sim, no caso de...

Groix ficou de garfo no ar, coçando o pêlo curto da sua medonha barba.

- Não sei - respondeu Doutreval. - Não sei... Entreolharam-se. Groix observava-os, sem deixar a

barba em paz. Regnoult acabava a omeleta, que deixara no prato uma espuma alaranjada.

- Você, Ludovic, por quem optaria - indagou o sogro.

-Eu?

- Ora veja: temos... temos Heubel, em primeiro lugar.

- Sim, senhor.

- Flégier...

- E Géraudin - concluiu Groix.

Regnoult terminara a omeleta. Agora que o criado levantava os pratos, silenciosamente, ele prestava por seu turno atenção, com o costumado ar de frieza.

- Eu - continuou Groix - se se tratasse da minha pele, confiava-a a Flégier.

- Flégier não é catedrático - acudiu Regnoult.

- Pouco me importa! - volveu Groix.

- Deixá-lo. Um título desses sempre conta. E, além disso, é preciso ver as consequências...

- Ser-me-ia custoso, Groix - disse Doutreval-infligir uma afronta dessas aos meus dois melhores colegas. Preferir a Géraudin e a Heubel um novo, ainda sob a fiscalização deles e que está longe de ter a autoridade desses dois!

- Plenamente de acordo - atalhou Vallorge.

Groix fez o gesto de quem diz : «Nesse caso, lavo daí as minhas mãos». Enquanto esperava pelo queijo, acendeu um cigarro e pôs-se a escutar muito calado, fumando com ar ausente.

- Então quem escolhemos? - insistiu Doutreval.

- Ou Heubel ou Géraudin - disse Vallorge. - Equivalem-se.

- Escolha você mesmo, Ludovic.

- Não, não me atrevo. Resolva o senhor. Dou-lhe plenos poderes.

Trouxeram queijos. Regnoult e Groix serviram-se das qualidades que eram da sua preferência. Os outros dois deixaram que o criado lhes pusesse no prato fatias que eles não faziam ideia do que fosse.

Doutreval, depois dum silêncio grave, voltou-se para os seus assistentes.

- Vocês, Groix, Regnoult, por quem optariam? Por Heubel ou Géraudin?

- Por Heubel! - respondeu Groix.

- Por Géraudin! - respondeu Regnoult.

- Géraudin está gasto - declarou o primeiro, em tom brutal.

- Oh! - murmurou Regnoult.

- Sei o que digo. Tem havido uns incidentes...

- Ora, ora! Géraudin ainda há pouco realizou prodígios, salvando Guerran.

- Isso é verdade - confirmou Vallorge.

- Concordo - anuiu Groix.

- Demais - prosseguiu Regnoult - não me parece que o senhor doutor vá desconsiderar assim Géraudin, que nos tem sido tão dedicado. Olhe a questão do centro! Através de Guerran, Géraudin consegue o que quer. Não tens razão, Groix. Discutir o valor operatório dum Géraudin!

No espaço dum segundo, Ludovic pensou na cadeira de medicina geral que ele ambicionava e que em parte dependia de Géraudin... Num gesto maquinal, tacteou a cicatriz do antraz, no lábio superior. Fora Heubel quem o operara... Géraudin ofendera-se com isso...

Doutreval, que o observava, surpreendeu o gesto inconsciente. Os seus olhares cruzaram-se, e ambos experimentaram certo constrangimento.

- O pai que decida - murmurou Ludovic.

Um após outro, Doutreval olhou para os dois assistentes.

- Heubel! - disse Groix.

«Sim», pensou Doutreval. «Mas estás ainda ressentido pela disputa do outro dia e pela afrontazinha que te infligi... No fundo ficarias satisfeito se me pregasses uma partida!»

- Opto por Géraudin! -repetiu Regnoult.

«E tu», disse Doutreval com os seus botões, «só tens em mira o teu futuro, o dispensário, a política da Faculdade... O teu lema é não desagradar, não melindrar ninguém, manobrar, louvaminhar... Em quem devo crer? Qual de vocês é sincero?»

Levantou-se bruscamente.

- Ludovic, vá lá abaixo e faça já uma chamada para Angers. Devemos ter a ligação por volta da meia-noite. Daqui até lá reflectiremos e tomaremos uma resolução.

- Aliás - acudiu Groix - é preciso não exagerar. Há médicos de aldeia que fazem cesarianas sobre qualquer mesa de cozinha, à luz duma candeia... Pensando bem, não é nada de grave!

- Tem razão - concordou Doutreval.

A intervenção de Groix aliviou-o, pôs as coisas nas suas proporções exactas. Uma cesariana, afinal, não era nada de terrível.

- E eu ainda não perdi a confiança - ajuntou Ludovic.

- Por enquanto não há a certeza. Van der Blieck pareceu-me optimista. Talvez que à meia-noite nos anuncie um nascimento!

- Quem sabe? Talvez...

Tranquilizado, Doutreval sorriu. Esvaziou o copo de vinho e, deixando os outros três no átrio, recolheu ao quarto.

Voltou, porém, a ficar preocupado. Sozinho, na poltrona junto da janela aberta, escutando o rumor folgazão da vida nocturna da cidade, pensava em Mariette, que sofria longe, em Angers, a mil quilómetros dali. Sangrava-lhe o coração de pai. Desejaria chamar Vallorge, saltar para o automóvel, partir imediatamente...

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

              Biblio"SEBO"