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CRIME NA POLÍCIA / Georges Simenon
CRIME NA POLÍCIA / Georges Simenon

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Apresentar um romance policial de Georges Simenon não é tarefa fácil Primeiro, porque não se pode comentar a história: seria o mesmo que destruir o interesse do leitor pelo livro. Segundo, porque tudo já se disse sobre esse genial escritor e, mais ainda, sobre o personagem que ele criou e se transformou num quase alter ego seu, o Comissário Maigret.

Autor de uma obra cujos títulos se contam na casa das centenas - sem dúvida, o escritor que mais produziu, pelo menos no século XX -, Georges Simenon, enquanto ficcionista policial, aparece de imediato como um subversor do gênero: em suas histórias, particularmente nas protagonizadas por Maigret, tudo funciona ao contrário do que o leitor espera. O ‘suspense’ é reduzido ao mínimo necessário à condução do desfecho esclarecedor do crime; a descoberta deste e de seu responsável não obedece nem aos métodos comuns da investigação policial, nem, muito menos, resulta da performance espetacular de um detetive superdotado em matéria de raciocínio dedutivo. Com freqüência, aliás, o Comissário Maigret se confessa desnorteado e incapaz de levar a bom termo suas obrigações profissionais.

Crime na Polícia é, nesse sentido, um romance exemplar. O crime, que lhe dá título, é cometido quase por desleixo do comissário, que, ocupado em outras coisas, não dá maior atenção à mulher que logo se transformará em vítima. Procedimento, aliás, habitual desse estranho personagem, para quem o fato de o homem ser capaz de matar -e o porquê disso -é o que mais interessa. O que Maigret faz é mergulhar tanto na ‘alma’ do assassino quanto na da vítima. O resto, parodiando o poeta, não passa de literatura -policial, é claro.

 

 

 

 

O cachimbo que Maigret acendeu à porta de casa, na Avenida Richard Lenoir, tinha mais sabor que nas manhãs anteriores. A primeira bruma era surpresa tão agradável quanto a primeira neve para as crianças, tanto mais que não se tratava daquele nevoeiro amarelado de certos dias de inverno e sim de um vapor leitoso, onde dançavam círculos de luz. Fazia frio. As pontas dos dedos e do nariz formigavam e os pés martelavam a calçada com ruído seco.

Mãos mergulhadas nos bolsos do pesado sobretudo de gola de veludo, tão célebre no Quai dês Orfèvres, e que cheirava ainda um pouco a naftalina, o chapéu bem enfiado na cabeça, Maigret seguiu sem pressa para a Polícia Judiciária, divertindo-se, quando, de repente, uma menina qualquer surgia correndo do nevoeiro e colidia com seu vulto sombrio.

-Desculpe, senhor...

E desatava de novo a correr para não perder o ônibus ou o metrô.

Parecia que toda Paris se divertia nessa manhã, à maneira do comissário. Só os tripulantes das barcaças do Sena, que permaneciam invisíveis, clamavam com voz rouca a sua inquietação.

Uma lembrança ociosa permaneceria com ele: acabava de atravessar a Praça da Bastilha para enveredar pela Avenida Henrique IV e passava diante de um pequeno bistro, quando a porta se abriu, pois era a primeira vez na estação que a temperatura obrigava a manter fechados os cafés. Ao passar, Maigret aspirou uma baforada carregada de certo odor, que permaneceu para ele a quintessência do amanhecer parisiense: cheiro de café com creme e croissants quentes com um laivo de rum; e vislumbrou através dos vidros embaciados dez, quinze, vinte pessoas talvez, diante do balcão, fazendo a primeira refeição, antes de se dirigirem ao trabalho.

Às nove em ponto, penetrou sob a abóbada da Polícia Judiciária e subiu, juntamente com vários colegas, a escadaria eternamente empoeirada. Quando sua cabeça chegou à altura do primeiro andar relanceou maquinalmente para a parede envidraçada da sala de espera e, reconhecendo Cécile sentada numa das cadeiras forradas de veludo verde, franziu o cenho.

Ou antes, para ser totalmente verdadeiro, assumiu uma falsa expressão de zanga.

-Veja, Maigret... Lá está ela!

Era Cassieux, chefe do setor de costumes, que vinha logo atrás. E as piadas se multiplicariam, como a cada visita de Cécile!

Maigret tentou passar sem que ela o visse. Há quanto tempo estaria à espera? Era capaz de permanecer horas seguidas no mesmo lugar, imóvel, as mãos sobre a bolsa, com o ridículo chapéu verde meio de lado sobre os cabelos bem puxados para trás.

Ela o avistou, claro! Levantou-se de um salto e entreabriu os lábios, mas nada se ouviu por causa da parede de vidro. Devia ter suspirado:

-Até que enfim!

Meio inclinado para a frente, Maigret precipitou-se para a sua sala, no fim do corredor. O contínuo aproximou-se para avisá-lo.

-Já sei, já sei... Não tenho tempo agora -resmungou Maigret.

Por causa do nevoeiro precisou acender o abajur verde da escrivaninha. Despiu o sobretudo, tirou o chapéu e olhou para a estufa, pensando que, se no dia seguinte a temperatura estivesse tão baixa, pediria que a acendessem. Depois de esfregar as mãos frias, sentou-se com um grunhido de satisfação e pegou o telefone.

-Alô? Lê Vieux Normand? Quer chamar o Sr. Janvier, por favor? Alô! É você, Janvier?

O Inspetor Janvier devia estar desde as sete da manhã sentado no pequeno café-restaurante da Rua SaintAnt oine, de onde vigiava o Hotel dês Arcades.

-Novidades?

-Estão todos no ninho, chefe... A mulher saiu há meia hora para comprar pão, manteiga e café moído... Acaba de voltar... ’

-Lucas está a postos?

-Eu o vi à janela quando cheguei.

-Bem! Jourdan vai substituí-lo... Está muito frio?

-Um pouco... Mas não tem importância... Maigret sorriu, pensando em Lucas há quatro dias

fingindo-se de velho enfermo. Vigiavam a quadrilha de poloneses que estavam escondidos há cinco ou seis dias num quarto sórdido do Hotel dês Arcades. Não havia prova alguma contra eles. Apenas um dos membros do grupo, apelidado de Baron, trocara em Longchamps uma das notas roubadas na Fazenda Vansittart.

O grupo circulava em Paris como que a esmo, reunia-se na Rua de Birague em torno de uma jovem, amante de quem não se sabia, e cujo papel exato permanecia ignorado.

Lucas vigiava-os da manhã à noite disfarçado de doente, envolto em chales, da janela de um apartamento fronteiro.

Maigret levantou-se para esvaziar o cachimbo no balde de carvão, escolheu outro na escrivaninha e reparou numa ficha preenchida por Cécile. Estava para ler o que ela havia escrito quando uma campainha soou insistente no corredor.

A reunião! Tomando seus dossiês dirigiu-se, como todos os demais chefes de departamento, ao gabinete do diretor da Polícia Judiciária. Era a cerimoniazinha de todas as manhãs. O chefe tinha longos cabelos brancos e barbicha de mosqueteiro. Trocaram apertos de mão.

-Viu a moça? Maigret fingiu espanto.

-Quem?

-Cécile! Se eu fosse a Sra. Maigret...

Pobre Cécile! No entanto, ainda era jovem! Seus documentos haviam passado pelas mãos de Maigret: vinte e oito anos apenas. Difícil parecer mais velha, mais desgraciosa, apesar do esforço que fazia para se mostrar amável. Os vestidos pretos, que deviam ser feitos por ela própria com base em moldes desajeitados, o ridículo chapéu verde... Impossível perceber ali qualquer graça feminina. A fisionomia pálida demais acusava, além disso, leve estrabismo.

-Ela é vesga! -afirmava o Comissário Cassieux. Exagerava. Não se podia dizer que fosse tão vesga

assim. O olho esquerdo não tinha desvio maior que o direito.

Ela chegava, antecipadamente resignada, já às oito da manhã.

-O Comissário Maigret, por favor.

-Não sei se ele virá hoje... Pode falar com o Inspetor Berger que...

-Obrigada. Eu espero.

E esperava o dia inteiro sem se mover, sem sinal de impaciência, erguendo-se de repente, como que emocionada, tão logo o comissário emergia da escada.

-Juro, meu velho, que ela está apaixonada.

Os comissários permaneciam de pé. Conversava-se primeiro um pouco e depois, insensivelmente, passava-se ao trabalho.

-E o caso do Pelican? Novidades, Cassieux?

-Convoquei o gerente para as dez horas. Ele tem de falar.

-Vá com calma, ouviu? É protegido de um deputado e não quero complicações... E os poloneses, Maigret?

-Estou à espera. Pretendo ficar pessoalmente de vigia hoje à noite. Se amanhã não houver nenhuma novidade tentarei uma entrevista com a mulher, só ela e eu.

Uma quadrilha nojenta. Três crimes em seis meses, todos em fazendas isoladas do norte. Banditismo grosseiro, brutal, assassínios a machadadas.

A bruma assumia tonalidades douradas. As luzes tornaram-se desnecessárias. O chefe atirou um dossiê para Maigret.

-Se tiver algum tempo livre esta manhã, Maigret... Investigação no interesse das famílias... Um rapaz de dezenove anos, filho de um grande industrial, que...

-Deixe ver...

A reunião durou trinta minutos, em meio à fumaça de cachimbos e cigarros, interrompida às vezes por telefonemas.

-Sim, Sr. Ministro... Sim, Sr. Ministro... Ouvia-se o ir e vir dos inspetores no vasto corredor, portas que batiam, telefones que tocavam em todos os gabinetes.

Maigret, dossiê sob o braço, voltou à sua sala pensando na quadrilha dos poloneses. Maquinalmente colocou a pasta sobre a ficha que Cécile havia preenchido. Mal se sentou, o contínuo bateu à porta.

-E a moça...

-E daí?

-Pode recebê-la?

-Daqui a pouco.

Queria terminar primeiro a leitura do caso que o chefe acabava de lhe confiar. Sabia onde encontrar o rapaz, que já era seu conhecido.

-Alô!... Ligue para o Hotel Myosotis, Rua Blanche...

Um hotel miserável, onde se reuniam outros rapazes como aquele, viciados em cocaína e entregues a seu hábitos especiais.

-Alô! Ouça, Francis! Creio que serei obrigado a fechar definitivamente a sua espelunca... O quê? Pior para você! Está passando da conta... Se quer um bom conselho, mande esse rapaz, Duchemin, imediatamente para cá. Ou melhor, traga-o você mesmo... Quero duas palavrinhas com ele... Claro que está aí! Se não estiver, tenho certeza de que você o encontrará antes do meio-dia... Estou à espera!

Já o chamavam em outro aparelho. Era um embaraçado juiz de instrução:

-Comissário Maigret? Trata-se de Pénicaud, Sr. Comissário... Afirma que o senhor obteve a confissão por intimidação, que ele foi forçado a se despir no seu gabinete e deixado nu durante cinco horas...

Havia ordens a distribuir aos inspetores que o aguardavam, chapéu de lado, cigarro no canto da boca, na sala vizinha. Eram onze horas quando se lembrou de Cécile e tocou a campainha.

-Mande a moça entrar.

O contínuo voltou daí a instantes.

-Ela já foi, comissário.

-Ah!

Deu de ombros. Voltou a sentar-se, o cenho franzido. Não era coisa de Cécile, que certa vez ficara sete horas imóvel na sala de espera. Procurou a ficha entre os papéis que cobriam a mesa. Acabou por encontrá-la sob o dossiê do jovem Duchemin.

”O senhor tem de me receber. Aconteceu uma coisa horrível esta noite.

Cécile Pardon.”

O contínuo reapareceu, chamado pela campainha.

-Diga, Leopold -ele não se chamava Leopold, mas ganhara o apelido por ser ’vidrado’ no falecido rei da Bélgica -, a que horas ela saiu?

-Não sei, Sr. Comissário... Fui chamado em todos os gabinetes... Há meia hora ainda estava por aí...

-Havia outras pessoas na sala de espera?

-Duas para o chefe... Um homem de certa idade, que queria as delegações judiciárias e... O senhor sabe: de manhã é um entra-e-sai... Só agora reparei que a moça já não estava lá.

Uma inquietude desagradável, uma espécie de malestar instalou-se no peito de Maigret. A história não lhe agradava. Haviam caçoado demais da pobre Cécile.

-Se ela voltar, você...

Não! Mudou de idéia. Chamou um dos inspetores.

-O gerente do Hotel Myosotis virá aqui dentro de alguns minutos, trazendo um rapaz chamado Duchemin... Mande-o esperar... Se eu não voltar até o meiodia, conserve o rapaz e libere o gerente.

Chegando à Ponte Saint-Michel quase tomou um táxi, o que seria algo fora do comum. Justamente por ser fora do comum não o fez, decidindo esperar o ônibus. Seria dar demasiada importância a Cécile! Confessar que...

A bruma, em lugar de dissipar-se, adensara-se, embora fizesse menos frio. Maigret fumava seu cachimbo na plataforma externa do ônibus, a cabeça balançando ao sabor dos choques e freadas.

A quando remontaria a primeira visita de Cécile à Polícia Judiciária? Cerca de seis meses. Ele deixara o caderninho de anotações na mesa, mas verificaria na volta. Ela pedira logo para falar com o Comissário Maigret. Verdade que não lhe faltara ocasião de ler o nome nos jornais. Estava calma. Perceberia que sua narrativa parecia uma fábula, produto de imaginação excessivamente fértil?

Esforçava-se por falar com segurança, olhando bem de frente o interlocutor, corrigindo com um sorriso a extravagância do relato.

-Juro, Sr. Comissário, que não inventei coisa alguma e que não sou impressionável... Conheço o lugar de cada objeto, pois sou eu quem arruma a casa... Minha tia não quer saber de empregada... Na primeira vez que aconteceu pensei que tivesse me enganado, mas passei a prestar atenção. E ontem estabeleci pontos de referência. Fui mais longe. Coloquei um fio diante da porta de entrada.

”Não só as duas cadeiras mudaram de lugar, como encontrei o fio arrebentado. Alguém entrou em casa, portanto... Alguém passou algum tempo na sala e abriu a escrivaninha de minha tia, pois coloquei também ali um fio. É a terceira vez em dois meses... Minha tia é quase inválida. Ninguém tem a chave do apartamento e, no entanto, a fechadura não foi arrombada. Não contei a tia Juliette para não preocupá-la. Mas tenho certeza de que nada desapareceu... Ela teria dado pela falta. É muito desconfiada...

-Em suma -resumira Maigret -é a terceira vez em dois meses, a seu ver, que um desconhecido entra durante a noite no apartamento onde mora com sua tia, instala-se na sala, muda as cadeiras de lugar...

-O mata-borrão também!

-Muda as cadeiras e o mata-borrão de lugar e mexe na escrivaninha, que está fechada a chave e não apresenta qualquer sinal de arrombamento.

-Acrescento que esta noite a pessoa fumou! -insistiu Cécile. -Nem minha tia nem eu fumamos. Ontem não entrou homem algum em nossa casa. Pois esta manhã a sala cheirava a fumo.

-Vou investigar.

-É o que eu gostaria de evitar... Minha tia não é fácil... Ficará furiosa, tanto mais que não contei a ela.

-Então, que espera da Polícia?

-Não sei... Confio no senhor... Quem sabe pode ficar algumas noites na escada...

Coitada. Imaginava que o papel de um comissário da Polícia Judiciária era passar a noite numa escada, verificando as histórias fantasiosas de uma moça!

-Mandarei Lucas amanhã.

-O senhor não pode ir?

Não! Cem vezes não! Que absurdo! E a decepção dela -os colegas tinham razão -parecia a decepção de uma apaixonada.

-Talvez não seja esta noite... Será daqui a três, cinco, dez dias, sei lá... Tenho medo, Sr. Comissário... A idéia de que um homem...

-Onde mora?

-Bourg-la-Reine, a um quilômetro da Porta d’Orleans, na estrada nacional, bem em frente à quinta parada do ônibus. Um prédio grande de tijolos, com cinco pavimentos... No térreo há uma loja de bicicletas e uma mercearia... Moramos no quinto andar.

Lucas fora até lá e colhera informações entre os vizinhos.

Voltara cético.

-Uma velha que não sai de casa há meses e uma sobrinha que é sua criada e enfermeira...

A casa foi assinalada à Polícia local, vigiada durante cerca de um mês. Não se viu pessoa alguma, além dos locatários, entrar à noite no prédio. ’ Contudo, Cécile voltou ao Quai dês Orfèvres.

-Ele tornou a entrar, Sr. Comissário... Dessa vez deixou marcas de tinta no papel do mata-borrão que eu mudei ontem à noite...

-Não levou coisa alguma?

-Nada...

Maigret cometeu a imprudência de contar a história aos colegas e todo o Quai dês Orfèvres passou a se divertir à custa dele.

-Maigret fez uma conquista!

Iam espiar através dos vidros da sala de espera a moça vesga e depois entravam na sala do comissário.

-Depressa! Estão à sua espera!

-Quem?

-Sua admiradora.

Oito noites seguidas Lucas se escondeu na escada. Nada viu nem ouviu.

-Será amanhã, talvez -dizia Cécile.

Suspenderam a diligência.

-Cécile chegou!

Cécile tornou-se famosa. Todo mundo a chamava pelo nome. Um inspetor queria entrar na sala do comissário?

-Há uma pessoa...

-Quem?

-Cécile!

Maigret tomou outro ônibus na Porta d’Orleans e desceu na quinta parada. À direita erguia-se um prédio isolado entre dois terrenos baldios e uma estreita faixa de rua cortada como uma fatia de pão de fôrma.

Nada de anormal. Carros seguindo rumo a Arpajon e Orleans. Caminhões voltando do mercado de Lês Halles. A porta do prédio ficava imprensada entre a loja de bicicletas e a mercearia. A porteira descascava cenouras.

-A Srta. Pardon está em casa?

-A Srta. Cécile... Acho que não. Mas toque a campainha. A Sra. Boynet abrirá a porta.

-Pensei que fosse paralítica.

-Quase... Mas instalou um sistema para abrir a porta da poltrona onde fica... Como nos camarotes... Sem contar que, quando quer...

Cinco pavimentos. Maigret tinha horror a escadas. Aquelas eram escuras, atapetadas de um marrom sombrio. As paredes estavam enegrecidas. Os odores modificavam-se de andar em andar, segundo as cozinhas. Os ruídos também. Piano. Gritinhos de criança e, a certa altura, os ecos de uma violenta discussão.

À esquerda, no quinto andar, um cartão de visitas empoeirado, sob a campainha elétrica, dizia: Jeàn Siveschi. Nesse caso devia ser a porta da direita. Tocou. O som repercutiu de peça em peça, mas não se ouviu qualquer estalido e a porta continuou fechada. Tocou novamente. O mal-estar transformou-se em inquietação, a inquietação em remorso.

-Que aconteceu? -perguntou atrás dele uma voz feminina.

Voltando-se, deu com uma moça rechonchuda, que um penhoar azul tornava ainda mais atraente.

-ASra. Boynet...

-Está em casa -respondeu ela, com leve sotaque estrangeiro. -Não respondeu? Estranho...

Ela tocou por sua vez e, ao erguer o braço para alcançar a campainha, desnudou-o em parte.

-Ainda que Cécile tivesse saído, a tia...

Maigret aguardou no patamar, impaciente, uns dez minutos e foi obrigado a caminhar quase um quilômetro para descobrir um serralheiro. Não só a moça acorreu novamente ao ouvir barulho, como veio acompanhada da mãe e da irmã.

-Acha que aconteceu alguma coisa? Conseguiram abrir a porta sem forçar a fechadura,

que não apresentava sinais de violência. Maigret foi o primeiro a entrar no apartamento atulhado de velhos móveis e bibelôs; não prestou atenção a detalhes. Salão... Sala de jantar... Uma porta aberta e, sobre a cama de acaju, uma velha de cabelos pintados que...

-Saiam, por favor... Ouviram? -gritou Maigret às três vizinhas. -Lamento muito se estão se divertindo com isso.

Um estranho cadáver: uma velhinha gorducha, pintada, de cabelos grossos exageradamente louros, mas acusando o branco nas raízes; vestia penhoar vermelho e uma meia, uma só, na perna que pendia da cama.

Fora estrangulada, sem dúvida alguma.

-Chamem um policial.

Cinco minutos depois, Maigret telefonava da cabine de um bistrô próximo.

-Alô... Aqui o Comissário Maigret... Quem está falando?... Diga, rapaz: Cécile voltou? Corra ao ministério. Procure falar pessoalmente ao procurador, entendeu? Eu espero... Alô! Previna também a antropometria... Se por milagre Cécile aparecer... Que foi que houve? Não! Não, rapaz. O caso não é para brincadeira...

Quando saiu do bistro, depois de tomar um cálice de rum no balcão, havia cinqüenta pessoas diante do prédio.

Inconscientemente procurou Cécile com o olhar.

Somente às cinco da tarde viria a saber que estava morta.

 

A Sra. Maigret ficaria mais uma vez à espera diante dos pratos dispostos sobre a mesa redonda. Estava tão habituada! E fora inútil instalar o telefone. Maigret esquecia-se de avisá-la. Quanto ao jovem Duchemin, Cassieux se encarregaria do tradicional sermão.

Lentamente, ar preocupado, o comissário tornou a subir os cinco lances de escada, sem notar que havia inquilinos em todos os patamares. Pensava em Cécile, a moça desajeitada que fora objeto de tantas piadas e que na Polícia Judiciária alguns chamavam de ’queridinha’ do Maigret.

Cécile morava ali, naquele prédio de subúrbio; descia e subia diariamente a escada sombria; aquela atmosfera aderia a suas roupas quando se sentava, assustada e paciente, na sala de espera do Quai dês Orfèvres.

Quando Maigret se dignava a recebê-la, não era para indagar com gravidade de que mal disfarçava a ironia:

-E então, os objetos mudaram de lugar esta noite? O tinteiro passou para o outro lado da mesa? A espátula de cortar papéis saiu da gaveta?

No quinto andar ordenou ao policial que proibisse a entrada de qualquer pessoa no apartamento, fechou a porta, voltou atrás e examinou a campainha. Não era campainha elétrica, e sim um grosso cordão vermelho e amarelo, que pendia da parede. Puxou-o. Uma sineta de convento soou na sala.

-Sargento, fique de olho para que ninguém toque nesta porta.

Por causa de possíveis impressões digitais, embora não esperasse encontrá-las. Mostrava-se irritadiço. Perseguia-o a imagem de Cécile sentada no aquário -era assim que chamavam no Quai a sala de espera de parede envidraçada.

Mesmo sem ser médico não tivera dificuldade em constatar que a morte da velha remontava há várias horas. Ocorrera bem antes da chegada da sobrinha ao Quai desOrfèvres.

Teria Cécile assistido ao crime? Caso positivo, não avisara pessoa alguma, não gritara. Permanecera no apartamento com o cadáver até de manhã. Arrumara-se como de costume. Ao entrar na Polícia Judiciária, ele reparara nela o suficiente para constatar que estava vestida como de hábito.

Quis verificar imediatamente o detalhe, que considerava importante. Procurou o quarto da moça. Não o encontrou logo. Na parte da frente havia três cômodos -sala de visitas, sala de jantar e quarto da tia.

À direita do corredor, a cozinha e uma área de serviço. Foi além da cozinha que, ao empurrar uma porta, encontrou um cubículo mal iluminado, mobiliado com uma cama de ferro, um lavatório e um cabide, que servia de quarto a Cécile.

A cama estava desarrumada. A água da bacia continha sabão e no pente havia alguns fios de cabelo escuro. Um roupão de flanela salmão fora jogado à cadeira.

Enquanto se vestia Cécile já saberia? Mal o dia raiara, ela saíra para a rua, ou melhor, para a estrada nacional que passava diante da casa, onde esperara o ônibus na parada a menos de cem metros do prédio. A bruma era espessa.

Na Polícia Judiciária preenchera a ficha e sentara-se diante do quadro da sala de espera, onde se estampavam as fotografias dos inspetores que haviam tombado em serviço.

Maigret surgira finalmente na escada. Ela se levantara de um salto. Ele a receberia. Poderia falar finalmente...

E deixaram-na à espera mais de uma hora. Os corredores se movimentaram. Inspetores interpelavam-se. Portas se abriam e fechavam. Pessoas sentavam-se no aquário e o contínuo vinha chamá-las uma a uma. Só ela permanecia... Só ela continuava à espera.

Por que decidira sair?

Maigret abasteceu maquinalmente o cachimbo. Ouvia vozes no patamar -os locatários que comentavam os acontecimentos eram aconselhados pelo policial a entrar em casa.

Que fim teria levado Cécile?

Durante toda a hora que passou sozinho no apartamento a idéia não o abandonou, dando-lhe aquele ar pesadão, como que adormecido, que seus colaboradores tão bem conheciam.

Mas trabalhava à sua maneira. Já se impregnara da atmosfera da casa. Desde o vestíbulo, ou melhor, desde o longo corredor escuro que fazia as vezes de hall de entrada, o apartamento cheirava a velhice e mediocridade. Havia naquela habitação exígua móveis suficientes para guarnecer o dobro de peças, móveis velhos de todas as épocas, de todos os estilos, sem o menor valor. Lembravam leilões do interior quando, em conseqüência de um óbito ou de uma falência, o público tinha subitamente permissão para desvelar o segredo de austeras casas burguesas.

Em compensação, tudo estava em ordem; limpeza meticulosa reinava em toda parte. As mais reduzidas superfícies estavam polidas, os mínimos bibelôs se achavam em seu exato lugar.

O apartamento poderia ser indiferentemente iluminado a vela, a petróleo, a gás, ou a eletricidade; não pertencia a época nenhuma. As lâmpadas elétricas estavam instaladas em antigos lustres a petróleo.

A sala de visitas não era uma sala de visitas, mas um bric-à-brac de paredes cobertas de retratos de família, aquarelas, gravuras sem valor, emolduradas em falsa madeira trabalhada, dourada ou preta. Perto da janela via-se enorme escrivaninha de acaju com tampo móvel, do tipo que ainda se encontra nas administrações de castelos. Envolvendo a mão com um lenço, Maigret abriu as gavetas, uma após outra. Algumas continham chaves, pedaços de lacre, caixas de pílulas, uma armação de lorgnon, agendas de vinte anos antes, faturas amareladas. A escrivaninha não fora forçada. Quatro gavetas estavam vazias.

Poltronas de tapeçaria gasta, um guarda-papéis, uma mesa de trabalho, dois relógios de parede Luís XIV. Na sala de jantar, Maigret encontrou outro relógio. Havia um também no vestíbulo e ele constatou, quase surpreendido, que a peça figurava em duas duplicatas no quarto da assassinada.

Mania, evidentemente! O mais estranho era que todos os relógios funcionavam. Maigret percebeu-o ao meio-dia, quando começaram a badalar, um após outro.

Excesso de móveis também na sala de jantar, onde mal se podia circular. Ali como nos outros compartimentos, as cortinas eram espessas, como se os moradores temessem a claridade.

Por que na véspera, em plena noite, ao ser surpreendida pela morte, a velha vestia uma das meias? Procurou a outra e encontrou-a no tapete. Meias grossas, de lã preta. As pernas estavam inchadas, azuladas, e Maigret concluiu que a tia de Cécile era hidrópica. Uma bengala recolhida do chão provava que não era totalmente paralítica, que podia circular pelo apartamento.

Finalmente, pendurado sobre a cama, um cordão semelhante ao do patamar. Puxou-o, ficou à escuta, ouviu a porta da entrada abrir-se e foi logo fechá-la, resmungando contra os locatários que continuavam reunidos no patamar.

Por que teria Cécile saído de repente do Quai dês Orfèvres? O que a induzira a tomar tal decisão quando tinha notícias tão graves a transmitir ao comissário?

Só ela saberia. Só ela poderia dizer, e Maigret sentia-se cada vez mais ansioso com o passar das horas.

Que fariam as duas mulheres durante o dia? -perguntou a si mesmo, vendo tantos móveis sobrecarregados de bibelôs frágeis, desses bibelôs de vidro trabalhado, ou de faiança leve, cada qual mais feio que o outro, de bolas de vidro, no interior das quais se via a Gruta de Lourdes, ou a Baía de Nápoles, de retratos em equilíbrio instável na sua moldura contornada de cobre, xícaras japonesas quase transparentes, de asa colada, flores artificiais dentro de Jlutes de champanhe desparelhadas...

Voltou ao quarto da tia, que permanecia deitada na cama de acaju, uma das pernas vestida com a inexplicável meia.

Era cerca de uma hora quando ouviu agitação na calcada e, em seguida, na escada e no patamar. Achavase naquele momento mergulhado nas profundezas de uma poltrona da sala. Conservara sobretudo e chapéu. Fumara tanto que o ar estava azulado à sua volta. Estremeceu como se saísse de um sonho ao ouvir vozes.

-Então, caro comissário?

O suplente Bideau estendeu-lhe a mão com um sorriso, seguido do minúsculo juiz de instrução Mabille, do médico-legista e de um escrivão já em busca de mesa para espalhar sua papelada.

-Caso interessante? O apartamento nada tem de alegre...

Logo em seguida, a caminhonete da antropometria estacionava junto ao meio-fio e os fotógrafos invadiam o prédio com seus volumosos aparelhos. Intimidado, o comissário de polícia de Bourg-la-Reine esgueirava-se por entre toda aquela gente, desolado porque ninguém lhe dava atenção.

-Voltem para seus apartamentos, senhores e senhoras -repetia o policial de plantão à entrada. –Não há nada para ver aqui... Mais tarde serão todos interrogados. Mas, pelo amor de Deus, dispersem-se... Dispersem-se! Dispersem-se, vamos!

Eram cinco da tarde. A bruma transformara-se em chuvisco e os postes de iluminação haviam sido acendidos antes da hora costumeira. Maigret, chapéu enterrado até os olhos, enveredou pelo pórtico glacial da Polícia Judiciária e subiu rápido a escada mal iluminada.

Uma olhadela involuntária ao aquário, mais aquário que nunca sob a luz elétrica. Quatro ou cinco pessoas aguardavam, imóveis, lembrando os bonecos de cera do Museu Grévin. O comissário perguntou a si mesmo por que teriam escolhido para a sala de espera aquele papel verde, aquela forração também verde para as cadeiras e a mesa, que emprestavam às fisionomias um ar cadavérico.

-Creio que estão à sua procura, Sr. Comissário -avisou um inspetor de passagem, com uma pilha de dossiês sob o braço.

-O chefe quer falar com o senhor -disse por sua vez o contínuo, que selava envelopes.

Sem entrar na sua sala, Maigret bateu à porta do chefe. O abajur da escrivaninha era o único foco de luz do recinto.

-E então, Maigret? Silêncio.

-Caso aborrecido, não é, meu velho? Nada de novo por lá?

Maigret sentiu que o chefe tinha algo de desagradável a comunicar. Aguardou, o cenho franzido.

-Mandei avisá-lo, mas já havia saído de Bourg-laReine... Trata-se daquela moça... Há instantes, Victor...

Victor era um dos porteiros do Palácio da Justiça. Gago, tinha bigodes de foca e voz rouca, que lembrava um cação.

-Victor encontrou no corredor o procurador geral, que estava de mau humor.

”Chama a isto soalho varrido, meu amigo?” Todo mundo sabia que, quando o procurador-geral chamava alguém de ’meu amigo’...

Maigret tentava ultrapassar mentalmente as palavras do diretor da Polícia Judiciária.

-Victor, assustado, precipitou-se para o armário das vassouras... Adivinhe o que encontrou.

-Cécile! -respondeu o comissário sem surpresa, baixando a cabeça.

Enquanto se procedia às averiguações rotineiras em Bourg-la-Reine, ele tivera tempo de examinar todas as hipóteses relativas a Cécile e nenhuma o satisfizera. Voltava eternamente à pergunta:

-Quem a convenceu a sair do Quai dês Orfèvres quando tinha comunicação tão grave a me fazer?

Estava cada vez mais convicto de que não saíra por iniciativa própria. Alguém viera ao seu encontro ali, no âmago da Polícia, a alguns passos de Maigret, e Cécile acompanhara-o.

Que argumento teria empregado? Quem exerceria tal poder sobre a moça?

Súbito, compreendeu.

-Eu devia ter percebido! -resmungou, com uma palmada na testa.

-Percebido o quê?

-Eu devia ter adivinhado que ela não sairia daqui. Nada seria capaz de arrastá-la para fora.

Estava furioso consigo mesmo.

-Morta, evidentemente -murmurou, olhos no chão.

-Morta. Se você quiser...

O diretor apertou a campainha e avisou ao contínuo:

-Se alguém telefonar, diga que volto já. Estavam ambos preocupados, mas o comissário tinha, além disso, um peso na consciência. Um dia tão bem começado! A baforada de café com creme, croissants e rum voltou-lhe à mente... E a bruma luminosa da manhã!

-A propósito, Janvier telefonou. Parece que seus poloneses...

Um gesto de quem afasta do horizonte todos os poloneses da terra!

O diretor empurrou uma porta envidraçada. Há cerca de dez anos falava-se em condenar aquela porta, mas hesitava-se por motivos de ordem prática. Aquela porta, de fato, permitia ir diretamente da Polícia Judiciária ao Palácio da Justiça e aos Arquivos. Era como os bastidores de um teatro: escadas estreitas, corredores complicados... Quando havia um detento a conduzir ao ministério...

À direita, a escada que levava sob o telhado ao setor de antropometria e ao laboratório. Mais adiante, uma porta de vidro fosco e do outro lado o burburinho do Palácio da Justiça -advogados que iam e vinham, curiosos, a multidão que acompanhava as audiências e os processos criminais...

Diante de uma porta mais estreita, aberta só Deus sabia por que em meio a uma parede, um inspetor fumava o seu cigarro, que tratou de apagar ao ver os dois superiores.

Quem conhecia a porta? Os familiares da casa! Ela dava para um recesso bastante profundo, um cubículo com cerca de dois metros, onde Victor, que não gostava de se deslocar, arrumava as vassouras e os baldes.

O inspetor afastou-se. O chefe abriu a porta e, como não havia iluminação no cubículo, riscou um fósforo...

-Veja...

O corpo de Cécile, ao cair, sequer pôde estender-se em todo o seu comprimento; o busto ficou encostado à parede, a cabeça pendia sobre o peito.

Maigret, que sentiu calor de repente, passou o lenço no rosto e enfiou no bolso o cachimbo aceso.

Palavras eram desnecessárias. Diretor e comissário limitaram-se a olhar, e este último tirou maquinalmente o chapéu.

-Sabe o que penso, chefe? Alguém entrou na sala de espera e anunciou que eu a atenderia em outro lugar, não no meu gabinete... Alguém que ela julgava pertencer à Polícia Judiciária.

O diretor limitou-se a assentir.

-Era preciso agir rápido, compreende? Eu poderia recebê-la a qualquer momento. Ela sabia quem era o assassino da tia... Abriram esta porta que dá para a mais completa escuridão... Cécile deu um passo...

-Primeiro abateram-na com um porrete, ou objeto semelhante, para estonteá-la.

O ridículo chapéu verde, caído ao chão, confirmava a hipótese. Havia um pouco de sangue coagulado, aliás, nos cabelos escuros da moça.

-Ela deve ter vacilado, tombado talvez, e o assassino, para liquidá-la sem ruído, estrangulou-a.

-Tem certeza?

-É a opinião do médico-legista... Dei ordem para que não se fizesse a autópsia antes de você chegar... Por que se admira? A tia também foi estrangulada, não?

-Justamente...

-Que quer dizer, Maigret?

-Na minha opinião não poderia ter sido o mesmo homem que cometeu ambos os crimes... Ao chegar de manhã, Cécile sabia quem era o assassino da tia.

-Acha?

-Caso contrário teria dado o alarme mais cedo... Segundo o médico, a tia morreu antes das duas da manhã. Ou Cécile assistiu ao crime...

-Por que o assassino não a matou também em Bourg-la-Reine?

-Talvez estivesse escondida. Prossigo... Ou descobriu o cadáver da tia ao se levantar, por volta das seis e meia, pois pelo despertador sei que era a hora em que se levantava... Não disse nada a ninguém. Correu para cá...

Se o assassino da velha tivesse

-É estranho...

-Não, caso se suponha que ela conhecia o assassino... Queria falar pessoalmente comigo. Não confiava no comissário de polícia de Bourg-la-Reine... A prova deque sabia é que a mataram para impedi-la de falar.

-E se a tivesse recebido assim que chegou?

-Sim... Há algo que me escapa... O assassino talvez não tivesse liberdade para agir então... Ou ainda não sabia...

Bruscamente, como se perseguisse uma idéia, Maigret exclamou:

-Não é possível!

-O quê?

-O que eu disse., aparecido no aquário...

-Aquário?

-Perdão, chefe... É assim que os inspetores chamam a sala de espera... Cécile não o teria seguido. Foi outra pessoa quem apareceu, portanto... Alguém que ela não conhecia, ou em quem confiava...

E Maigret, cabeçudo, obstinado, contemplou o pequeno vulto escuro apoiado à parede do depósito, entre as vassouras e os baldes.

-Foi alguém que ela não conhecia! -concluiu de repente.

-Por quê?

-Ela acompanharia à rua alguém conhecido. Não aqui! Eu esperava, confesso, que a encontrassem no Sena, ou em algum terreno baldio. Mas...

Deu dois passos, abaixou-se para transpor a porta baixa do depósito, riscou um fósforo, depois outro e empurrou ligeiramente o cadáver.

-Que está procurando, Maigret?

-A bolsa.

Uma bolsa tão característica quanto o indescritível chapéu verde, uma bolsa volumosa como uma maleta. Enquanto esperava no aquário, Cécile a mantinha sobre os joelhos como algo precioso.

-Desapareceu.

-E você conclui...

Maigret, esquecendo a hierarquia, dominado pelo nervosismo:

-Concluir! Concluir! O senhor é capaz de concluir alguma coisa?

Ao ver o inspetor de cabelos louros, a dois passos, desviar o rosto, caiu em si.

-Perdão, chefe... Mas confesse que se entra aqui como se entra num moinho... Qualquer pessoa pode enveredar pela sala de espera e...

A ponto de explodir, cerrou entre os dentes o cachimbo apagado.

-Sem contar esta maldita porta, que devia ter sido condenada há muito tempo.

-Se tivesse recebido a moça quando...

Pobre Maigret! Dava pena vê-lo, alto e vigoroso, sólido como uma rocha, baixar a cabeça, olhos naquela trouxa de roupa a seus pés, naquele monte de matéria inerte, e passar novamente o lenço pelo rosto.

-Que faremos? -perguntou o diretor, para distraí-lo.

Confessar ao público que fora cometido um crime no próprio recinto da Polícia Judiciária, mais exatamente naquela espécie de tripa que ligava a Polícia ao Palácio da Justiça?

-Gostaria de lhe pedir mais uma coisa... Se pudesse confiar a Lucas o caso dos poloneses...

Seria fome? Maigret não comera coisa alguma desde a manhã. Mas tomara três pequenos drinques que lhe faziam arder o estômago.

-Se quiser...

-Feche a porta, meu velho... Continue a guardála... Voltarei mais tarde.

Na sua sala, sem tirar sobretudo e chapéu, o comissário telefonou à Sra. Maigret.

-Não, não sei quando volto para casa... É muito complicado para explicar... Não! Fico por aqui mesmo... Não, não vou sair de Paris...

Mandaria buscar sanduíches, como de costume, na Brasserie Dauphine? Precisava de ar livre. Continuava a chuviscar. Decidiu-se pelo bar fronteiro à estátua de Henrique IV, em pleno Pont Neuf.

-Presunto -pediu.

-Tudo bem, Comissário?

O garçom conhecia-o. Quando Maigret tinha as pálpebras caídas e aquele ar decidido...

-Almoço?

Um grupo jogava belote* (Jogo de cartas, tipicamente francês) próximo ao bar. Outros teimavam com o caça-níqueis.

Maigret comeu o sanduíche pensando na morte de Cécile. A idéia causou-lhe arrepios, apesar do grosso sobretudo.

 

MaiGRET costumava dar de ombros quando alguém manifestava espanto, na sua presença, com a resignação dos humildes, dos enfermos, das milhares de pessoas que vivem reclusas, sem horizontes, nos antros da grande cidade; sabia por experiência que a fera humana se adapta a qualquer ninho se puder preenchê-lo com seu calor, seu odor e seus hábitos.

O cubículo onde se achava instalado numa cadeira de vime que rangia não teria sequer dois metros e meio por três. O teto era baixo. A porta envidraçada, sem cortina, abria-se para a penumbra do corredor, pois a escada só era iluminada quando cada inquilino ligava a luz ao entrar. A cama era coberta por um edredom vermelho. Na mesa, os resíduos pegajosos de um pé de porco, migalhas de pão na toalha impermeável marrom, uma faca, um resto de vinho meio azulado num copo.

Sentada numa cadeira, a Sra. ’Com-Sua-Licença’ falava, rosto quase colado ao ombro por um torcicolo crônico, pescoço enrolado em algodão hidrófilo de um rosa doentio, que entrava em choque com o fichu preto.

-Não, Sr. Comissário... Não sento na poltrona, com sua licença. É do meu falecido marido e, apesar da minha idade, de todas as minhas pequenas misérias, eu me sentiria mal se sentasse nela!

Um bafio que lembrava urina de gato. O felino ronronava diante da estufa. A lâmpada elétrica, coberta pela poeira de vinte anos, espalhava claridade avermelhada.

Fazia calor. Ouvia-se chuva sobre zinco nas proximidades e, de minuto em minuto, o ronco de um carro que passava a toda velocidade na estrada nacional, o estrondo de um caminhão de carga, o ranger dos freios dos ônibus.

-Conforme eu dizia, com sua licença, a pobre senhora que era a nossa proprietária... Juliette Boynet, nome do falecido marido... e quando digo pobre senhora, Sr. Comissário, é por respeito, pois era uma fera, que Deus a tenha no Paraíso... embora recentemente Ele nos tenha concedido a graça de lhe tirar o uso das pernas... Não que eu seja mais rancorosa que qualquer outro, nem que deseje mal ao próximo, mas quando ela andava como nós era insuportável...

Há pouco, na delegacia de Bourg-la-Reine, Maigret surpreendera-se ao saber que a morta ainda não completara sessenta anos! Apesar dos cabelos mal tingidos, parecia mais velha, por causa do rosto inchado e dos olhos grandes e saltados.

Juliette-Marie-Jeanne-Léonüne Cazenove, viúva Boynet, 59 anos, nascida em Fontenay-le-Comte, Vendéia, prendas domésticas...

Pescoço torto, coque mal arrematado, fichu de lã preta sobre o busto achatado -como devia ser feio aquele busto de porteira velha! -a Sra. ’Com-SuaLicença’ desfiava seu rosário de sílabas com ávida satisfação, a mesma com que há instantes devorara o pé de porco e a intervalos lançava uma olhadela à porta envidraçada.

-Como o senhor vê, o prédio é tranqüilo... A esta hora todos, ou quase todos, já voltaram para casa.

-Há quanto tempo a Sra. Boynet é proprietária do imóvel?

-A vida inteira, sem dúvida. O marido era empreiteiro. Construiu várias casas em Bourg-la-Reine... Morreu jovem, com menos de cinqüenta anos, e era o que de melhor podia acontecer ao pobre homem... Quando morreu, ela veio se instalar aqui... Isso há quinze anos... Com sua licença, já era a mesma de hoje, só que caminhava e estava sempre atrás de mim e dos inquilinos... Se por desgraça via um cão ou um gato na escada... Se alguém tivesse a audácia de pedir-lhe um conserto... Imagine só: nosso prédio foi o último em todo o quarteirão a instalar eletricidade...

Ouviram-se passos no primeiro andar, gritos de um bebê.

-É na casa da Sra. Bourniquel -explicou a Sra. ’Com-Sua-Licença’. -O marido é representante comercial. Tem um carro. Deve estar viajando agora pelo sudoeste. Ficará três meses ausente. Já têm quatro filhos e esperam o quinto, apesar das complicações por causa do carrinho do bebê. A Sra. Boynet, que Deus tenha sua alma, jamais consentiu que o carrinho ficasse no corredor, de modo que é preciso subi-lo e descê-lo duas vezes por dia... Veja! Lá vem a empregada trazendo o lixo...

Como a luz fora ligada, viram passar uma empregadinha de avental branco, silhueta deformada pela enorme lata de lixo galvanizada, que ela carregava de braços estendidos.

-Que é que eu estava dizendo? Ah, sim... Tome um copo de vinho, Sr. Comissário. Tome! Ainda tenho uma garrafa que o Sr. Bourniquel me trouxe. Ele negocia com vinhos... Um belo dia, há doze anos, mais ou menos, a irmã da Sra. Boynet morreu em Fontenay e a velha mandou vir os sobrinhos, duas meninas e um menino. Todo o quarteirão se espantou com tal generosidade... Nessa época ela ocupava o quinto andar inteiro... O menino, Sr. Gérard, foi o primeiro a sair de casa... Alistouse no exército, sem dúvida para não ter de continuar a morar com a tia... Depois casou-se. Mora em Paris, para os lados da Bastilha. Raramente vem aqui... Creio que os negócios dele não andam muito bem...

-Viu-o recentemente?

-Quase sempre espera a irmã lá fora... Um rapaz sem orgulho... A mulher está esperando bebê... Veio na semana passada e subiu... Achei que precisava de dinheiro e não parecia satisfeito quando desceu... É que, para arrancar alguma coisa à tia, com sua licença, só com muito esforço... À sua saúde!

Voltando-se rapidamente fixou a porta. A luz não fora ligada, mas ouvia-se leve ruído. A Sra. ’Com-SuaLicença’ levantou-se, abriu bruscamente a porta e os dois perceberam um vulto de moça que se afastava.

-Novamente rondando as escadas, a Srta. Nouchi! Que coisa desagradável!

Voltou a se sentar, gemendo:

-Não é brincadeira ser responsável por um prédio tão grande. Essa gente... São os locatários do quinto andar, os vizinhos da proprietária... Eu dizia... Primeiro saiu o Sr. Gérard, que foi para o exército... Depois a irmã mais moça, Berthe, que também não se entendia com a tia e era vendedora nas Galeries... A velha se aproveitou disso para alugar metade do apartamento aos húngaros, os Siveschi... Eles têm duas filhas, Nouchi e Potsi... Potsi é a gorda, que anda por aí seminua... É verdade que Nouchi, que tem apenas dezesseis anos, também não vale grande coisa... Namora à noite por todos os cantos, às vezes aí mesmo na entrada...

Era melhor deixar que a porteira falasse e tentar compreender. No primeiro andar, portanto, morava a família Bourniquel, quatro filhos, marido ausente, uma empregada e esperanças de nova maternidade.

No quinto, os Siveschi. Maigret vira de manhã a primeira amostra da família, a gorducha e impudica Potsi. Acabava agora de entrever a esguia Nouchi.

-E a mãe não diz coisa alguma... Aquela gente não pensa como nós... Imagine que na semana passada, quando eu levava a correspondência, bati e responderam: ”Entre”. Empurrei a porta sem desconfiar de nada e que foi que vi? A Sra. Siveschi completamente nua, fumando e me olhando sem a menor vergonha... E as filhas estavam presentes!

-Qual é a profissão do Sr. Siveschi?

-A profissão dele, caro senhor, com sua licença! Ele entra e sai... Leva sempre livros debaixo do braço... É ele quem faz as compras... Está dois trimestres atrasado, mas não se embaraça ao receber o oficial de justiça. Até parece que se diverte com o caso... Não é como o pobrezinho do Sr. Leloup... Sr. Gaston, como eu o chamo... O vendedor de bicicletas. Um sujeito esforçado, que vendia jornais e ampliou corajosamente a loja. Tem fins de mês difíceis e então juro que não ousa olhar de frente as pessoas, nem mesmo a mim, que, no entanto... Casou-se há três meses apenas e, para economizar o aluguel, o casal dorme nos fundos da loja, entre pneus e rodas desmontadas... Escute! Aposto que a peste da Nouchi...

Foi Maigret quem abriu a porta, atrás da qual percebera o rosto da húngara, de olhos escuros e boca vermelha como sangue.

-Deseja alguma coisa?

E ela, sem o menor embaraço:

-Queria vê-lo. Disseram que o famoso Comissário Maigret...

Fixava-o nos olhos. Se era magra, sem quadris, tinha em compensação o busto bem formado e saliente, valorizado pela blusa justa.

-Agora que já me viu...

-Não vai me interrogar também?

-Tem algo a declarar?

-Talvez...

Indignada, a Sra. ’Com-Sua-Licença’ suspirou e meneou a cabeça tanto quanto lhe permitia o torcicolo.

-Entre... De que se trata?

A moça parecia tão à vontade como se estivesse em casa. Triunfava. Devia ter feito uma aposta de que falaria ao comissário.

-É a respeito do Sr. Dandurand.

-Quem é? -perguntou Maigret, voltando-se para a porteira.

Esta, indignada com a presença de Nouchi:

35-Não sei o que ela vai dizer, mas essas meninas, com sua licença, mentem como respiram... O Sr. Dandurand é um velho advogado, homem distinto, muito sério, tranqüilo e tudo o mais... Ocupa todo o quarto andar há anos... Faz as refeições fora de casa... Não recebe ninguém. .. Aposto que vai entrar agora mesmo.

-O Sr. Dandurand é um velho nojento -declarou Nouchi, com segurança. -Toda vez que desço, está de tocaia atrás da porta. Várias vezes me seguiu até a rua. No mês passado, quando eu estava no patamar, fez-me sinais para entrar no apartamento dele.

A Sra. ’Com-Sua-Licença’ ergueu os braços como se dissesse: ”E ter de ouvir horrores semelhantes!”

-Na segunda-feira entrei por curiosidade e ele me mostrou sua coleção de fotografias... Juro que é nojenta... E disse que, se o visitasse de vez em quando, ele me daria...

-Não acredite, Sr. Comissário...

-Juro que é verdade... Contei tudo a Potsi e ela quis ver também as fotos. E ele fez propostas a ela...

-O que ofereceu?

-O mesmo que a mim: um relógio de pulso... Deve ter um estoque. Agora posso acrescentar outra coisa: uma noite em que não conseguia dormir, ouvi barulho no patamar... Levantei e cheguei até a porta... Olhei pelo buraco da fechadura e vi o Sr. Dandurand...

-Um momento -interrompeu Maigret. -A escada estava iluminada?

Percebeu que ela hesitava, confusa por um instante.

-Não -disse finalmente. -Mas havia luar.

-Como é que o luar ilumina a escada?

-Pela clarabóia. Existe uma clarabóia sobre o patamar.

Era exato. Maigret lembrava-se. Mas por que hesitara quando ele mencionara a luz?

-Obrigado, senhorita... Pode voltar para casa. Seus pais devem estar inquietos.

-Foram ao cinema com minha irmã.

Mostrava-se despeitada. Parecia até esperar que Maigret subisse com ela!

-Não quer me perguntar mais nada?

-Não, nada... Boa- noite.

-É verdade que Cécile morreu?

Sem responder, Maigret fechou a porta.

-Não é uma vergonha, com sua licença? -suspirou a porteira. -Outro copo de vinho, Sr. Comissário? Por pouco é capaz de receber homens no quarto, na ausência dos pais... Viu como olhava para o senhor? Corei em nome do meu sexo.

Carros e caminhões continuavam a transitar. Maigret instalou-se novamente na cadeira de vime, que estalou sob seu peso. A porteira atiçou a estufa e quando voltou a se sentar o gato saltou sobre seus joelhos. Fazia calor. Estava-se ali distante de tudo -os carros, os caminhões circulavam num mundo estranho, como que em outro planeta. Era como se não houvesse de vivo, ao redor daquela sala, senão o prédio familiar. Sobre a cama, o dispositivo que abria a porta de entrada.

-Ninguém entra aqui sem que a senhora saiba, não é?

-Seria difícil, pois não há chave.

-E pelas lojas?

-As portas internas de comunicação com as lojas foram condenadas. A Sra. Boynet tinha muito medo de ladrões...

-A senhora disse que ela não saía de casa há meses.

-Mas observe que não era totalmente paralítica. Andava pelo apartamento apoiada numa bengala. Às vezes arrastava-se até o patamar para vigiar os locatários, ou verificar se eu fazia direito a limpeza. Andava silenciosamente. Tinha um jeito especial de deslizar sobre os chinelos e colocava borracha na ponta da bengala...

-Ela recebia visitas?

-Ninguém, à exceção do sobrinho, o Sr. Gerard, que aparecia às vezes. A Srta. Berthe não punha os pés na casa da tia... Creio, com sua licença, que ela tem um amante... Encontrei-a recentemente, num domingo em que fui ao cemitério, com um senhor muito distinto, cerca de trinta anos, e achei que devia ser um homem casado... Não consegui ver se usava aliança...

-Em resumo, a Sra. Boynet vivia absolutamente só com Cécile?

-Pobre moça! Tão mansa, tão delicada! A tia a tratava como empregada e ela nunca se queixava! Não corria atrás de homens! E não era forte! Saúde frágil, estômago delicado, o que não a impedia de descer cinco andares com a lata de lixo e levar o carvão para cima...

-Então era Cécile quem levava o dinheiro ao banco?

-Que banco?

-Suponho que ao receber o dinheiro dos aluguéis a Sra. Boynet...

-Ela não guardaria dinheiro no banco nem por todo o ouro deste mundo... Era desconfiada demais! Isso me lembra que de início o Sr. Bourniquel quis pagar com cheque. ”Que história é essa?” -perguntou indignada. ”Diga a esse senhor que quero o aluguel em dinheiro...”

”O Sr. Bourniquel insistiu... A história durou quinze dias e afinal ele foi obrigado a ceder.

”Um copo de vinho, Sr. Comissário? Não é que eu beba com freqüência, com sua licença, mas quando se tem ocasião de...”

A campainha tocou sobre a cama. A porteira levantou-se e inclinou-se sobre o edredom. Apertando o dispositivo de borracha anunciou:

-É o Sr. Deséglise, o locatário do segundo andar, à esquerda... É trocador de ônibus. Muda de horário todas as semanas...

De fato, viram passar um homem com o boné da companhia de transportes coletivos.

-No mesmo andar há uma professora de piano, uma velha solteirona, a Srta. Paucot... Ela recebe uma aluna de hora em hora e quando chove a escada fica uma sujeira... O terceiro andar está desocupado... Talvez tenha visto o cartaz na porta... Os últimos inquilinos foram despejados porque deviam dois meses de aluguel... No entanto, eram pessoas que me davam boas gorjetas e eram muito bem educadas... Enfim! Nem sempre são esses que têm mais dinheiro, não é? Estou admirada porque o Sr. Dandurand ainda não chegou... Quando penso no que aquela garota ousou insinuar... Essas moças, depravadas como são, seriam capazes de mandar um homem para a cadeia só para chamarem atenção... Viu que olhares lançava para o senhor? Um homem maduro, casado, um funcionário público... Sei o que significa, porque meu marido também era funcionário... Trabalhava na estrada de ferro... Lá vem o Sr. Dandurand.

Levantou-se e de novo debruçou-se sobre a cama para apertar o dispositivo. Corredor e escada se iluminaram. Ouviu-se o ruído de um guarda-chuva que se fecha, o roçar de solas de sapatos cuidadosamente esfregadas no capacho.

-Não é este que suja a casa.

Uma tosse seca. Passos lentos, comedidos. A porta do cubículo se abriu.

-Correspondência para mim, Sra. Benoit?

-Nada esta noite, com sua licença, Sr. Dandurand...

Um homem de cinqüenta anos, tez pálida, cabelos grisalhos, todo vestido de preto, guarda-chuva molhado na mão. Ergueu os olhos para o comissário, que franziu o cenho porque lhe pareceu já ter visto aquele rosto em algum lugar.

No entanto, há instantes, o nome Dandurand não despertara nenhum eco... Tinha certeza de que conhecia aquele homem. Fez um esforço de memória. Onde...

-Comissário Maigret, não é? -falou, tranqüilo, o inquilino, que permanecia à soleira da porta. -Imagine, Sr. Comissário, que venho do seu gabinete. Sei que a hora é imprópria, mas não ignoro que o senhor às vezes...

Um nome veio aos lábios de Maigret... Sr. Charles... Súbito teve a certeza de que existia uma relação entre o nome e a pessoa que se achava diante dele. Que é que lhe vinha à lembrança? Um pequeno café de freqüentadores assíduos...

-Tem algo de urgente a me comunicar?

-Pensei... Isto é, se quiser se dar ao trabalho de subir por um instante ao meu apartamento... Permite, Sra. Benoit? Perdoe por forçá-lo a subir quatro andares, Sr. Comissário... Acabo de saber no Quai dês Orfèvres que a pobre Cécile... Confesso que tive um choque.

Levantando-se, Maigret acompanhou Dandurand escada acima.

-Percebi que me reconheceu sem saber quem sou... Vamos subir mais depressa porque a luz apaga logo...

Procurou a chave no bolso e introduziu-a na fechadura. Maigret levantou a cabeça e distinguiu vagamente Nouchi debruçada sobre o corrimão. Logo em seguida, um escarro tombava ruidoso no patamar.

O Sr. Dandurand era friorento. Vestia sobretudo mais grosso e mais pesado que o de Maigret e tinha o pescoço envolto num cachecol. Era apagado, pouco atraente como os celibatários de certa idade. O apartamento também cheirava a velhice solitária, a cachimbo apagado e a roupa de baixo duvidosa.

-Permite um instante? Vou acender a luz.

Um escritório que parecia de advogado, ou homem de negócios. Móveis escuros, estantes de madeira negra cheias de livros de direito, pastas verdes, periódicos e dossiês sobre as mesas.

-Fuma, suponho?

Havia uma dezena de cachimbos cuidadosamente alinhados na escrivaninha. Encheu um, depois de correr a cortina.

-Ainda não me reconheceu? É verdade que só nos encontramos duas vezes, uma na casa de Albert, na Rua Blanche...

-Eu sei, Sr. Charles.

-A outra...

-No meu gabinete do Quai dês Orfèvres há oito anos, num dia em que eu tinha algumas explicações a lhe pedir... Confesso que respondeu a todas as minhas perguntas...

Um sorriso glacial no rosto gelado, onde só o nariz, bastante pronunciado, era ligeiramente colorido de rosa.

-Sente-se... Saí hoje de manhã...

-Posso saber onde esteve?

-Percebo agora que o caso vai se voltar contra mim. E, no entanto, tenho por hábito freqüentar o Palácio da Justiça. Uma velha mania de homem da lei. Desde que...

-Desde que foi expulso da Ordem dos Advogados, seção de Fontenay-le-Comte...

Um gesto vago, como quem diz: »

”Exato... Mas não tem importância.” O ex-advogado de província continuou:

-Passo quase todo o dia no Palácio... Ainda hoje, na Décima Vara, havia um caso estranho: extorsão de fundos entre membros da mesma família. O Dr. Boniface, que defendia o genro...

O Sr. Dandurand, que no passado fora Dr. Dandurand e residira numa das mais antigas mansões particulares de Fontenay, tinha a mania de estalar as juntas enrijecidas.

-Quer deixar em paz as suas falanges e dizer por que procurou o meu gabinete? -suspirou Maigret, tornando a acender o cachimbo.

-Desculpe... Qiuindo saí de casa, hoje de manhã, ignorava o que se pagara no quinto andar... Foi no Palácio, às quatro horas, que um dos meus amigos...

-Comunicou-lhe o assassinato da Sra. Juliette Boynet, Cazenove em solteira, nascida, como o senhor, em Fontenay-le-Comte.

-Exato, Sr. Comissário... Voltei aqui, mas o senhor não estava. Preferi não falar ao policial de plantão... Tomei o ônibus com a intenção de encontrá-lo no Quai dês Orfèvres. Devemos ter cruzado pelo caminho... O Comissário Cassieux, que me conhece...

-O encarregado da polícia de costumes deve conhecer, de fato, o Sr. Charles.

O outro prosseguiu como se não tivesse ouvido:

-O Comissário Cassieux falou-me de Cécile e de... Maigret levantou-se e atravessou na ponta dos pés o vestibule, cuja porta ficara aberta. Quando a escancarou bruscamente, Nouchi, olho colado à fechadura, quase caiu para a frente. Endireitou-se rápida, lesta como uma enguia, e precipitou-se para a escada.

-O senhor dizia?

-Achei então que dispunha de tempo para jantar... Esperei bastante pelo ônibus na Praça Saint-Michel e aqui estou... Sabia que o encontraria no prédio... Fazia questão de lhe comunicar pessoalmente que na noite passada, entre meia-noite e uma da manhã, estive no apartamento da Sra. Boynet, que era minha amiga e, de certo modo, minha cliente...

Distraído, estalou os dedos e murmurou depressa:

-Perdão. Um velho hábito...

 

Passava um pouco das dez. A Sra. Maigret, diante do espelho do armário, junto à cama ampla que acabara de arrumar para a noite, prendia o cabelo em rolinhos, pegando a intervalos os grampos que segurava entre os lábios. A Avenida Richard Lenoir estava deserta. Para além da Porta d’Orleans, também a rua, luminosa sob a chuva, estava vazia; mas, em poucos segundos, três, quatro, seis carros que se sucederam velozes, precedidos de uma gigantesca pincelada de luz lívida, bastaram para povoá-la.

Esses faróis, de passagem, mal tocavam o prédio da Sra. Boynet, demasiado alto para sua largura e ainda mais feio por não ter vizinhos para ocultar-lhe os flancos, que pareciam talhados ao vivo.

Os Siveschi estavam no cinema. A porteira não queria se deitar antes que Maigret saísse e, para agüentar a espera, terminava a garrafa de vinho tinto, explicando ao gato a situação.

No Instituto Médico-Legal, do outro lado de Paris, dois corpos nas gavetas de um vasto frigorífico humano...

Ninguém devia arejar o apartamento do Sr. Dandurand, pois todos os odores ali se misturavam num bafio repulsivo, que a pessoa levava preso às roupas ao sair e que persistia por longo tempo. Maigret fumava em espessas baforadas, evitando o mais possível olhar de frente o interlocutor.

-Diga, Sr. Dandurand... Se não me engano foi um caso de costumes que o obrigou a sair de Fontenay, não foi? Vejamos... É história antiga, mas falou-se a respeito há semanas, na Polícia Judiciária... O senhor ’gramou’ dois anos...

-Exato! -replicou friamente o advogado.

Maigret mergulhou mais ainda no pesado sobretudo, como se quisesse evitar qualquer contacto. Não havia tirado o chapéu. Ele que, apesar do ar carrancudo, era tão indulgente face à maioria das fraquezas humanas, arrepiava-se diante de certas pessoas, sentia mal-estar físico à sua aproximação. O Sr. Dandurand contava-se entre elas.

A repugnância ia tão longe que Maigret nunca se sentia inteiramente à vontade na presença de seu colega Cassieux, pois este tinha a polícia de costumes entre as suas atribuições.

Fora Cassieux quem falara naquele homem, chamado em geral de Sr. Charles, advogado do interior, implicado num feio negócio de costumes, que envolvia menores. Passara dois anos na prisão.

O caso era extraordinário e abria estranhos horizontes sobre o destino dos homens. Expulso dos quadros da profissão, afogado na capital onde era desconhecido, Dandurand, que dispunha ainda de rendimentos razoáveis, podia entregar-se sem reservas a seu vício, personagem amorfa e repugnante, como as que se arrastam junto às paredes durante o dia, olhar furtivo, e só encontram um pouco de vida ao perseguirem na multidão uma eventual presa.

Haviam assinalado o antigo advogado nas imediações da Porta Saint-Martin, da Avenida Sebastopol, da Bastilha. Era daqueles que aguardam na sombra a saída dos escritórios e das grandes lojas, terminando quase sempre por mergulhar, ombros recurvos, no corredor mal iluminado de uma casa suspeita.

Esses estabelecimentos, em breve ele os conhecia todos, e todas as gerentes o conheciam.

-Bom-dia, Sr. Charles... Que posso fazer hoje pelo senhor?

Sentia-se em casa. Era a sua atmosfera, da qual tinha necessidade diária. Em breve divulgava-se a notícia de que ele fora advogado. De vez em quando pediam-lhe conselhos.

Finalmente era admitido nos bastidores, já não recebido como cliente e sim como amigo.

-Sabe que a casa da Rua d’Antin está à venda? Dédé teve problemas e embarca na próxima semana para a América do Sul, com cem mil francos em dinheiro...

Maigret parecia sonhar. Cabeça baixa, olhos fixos no tapete vermelho desbotado que cobria o chão, estremeceu subitamente. Julgava ter ouvido barulho sobre sua cabeça e pensou por um instante que seria na casa da S rã. Boy net. A imagem de Cécile...

-É Nouchi -explicou o Sr. Dandurand, com seu sorriso sem alegria.

Evidentemente, já que Cécile estava morta!

Cécile morta! Justo naquela hora, o chefe da Polícia Judiciária, em casa de amigos com quem jogava bridge, acabava de contar em poucas palavras a história, descrevendo o armário das vassouras, o cadáver encostado à parede, o vulto comprido de Maigret.

-Que disse ele!

-Nada... Enfiou as mãos nos bolsos... Creio que foi um dos golpes mais duros da sua carreira. Saiu de repente, e eu ficaria muito surpreendido se me dissessem que conseguiu dormir esta noite... Pobre Maigret...

Maigret batia com o cachimbo no salto do sapato, deixando cair as cinzas no tapete.

-O senhor é responsável pelos negócios da Sr a. Boynet? -perguntou devagar, com uma careta, como se as palavras tivessem um gosto amargo.

-Eu a conheci, assim como a irmã, em Fontenayle-Comte. Éramos quase vizinhos. Quando aluguei este apartamento voltei a encontrá-la... Enviuvara. Conheceu-a em sua vida? Não diria que era louca, mas bastante excêntrica... Era obcecada por dinheiro... Guardava em casa toda a fortuna, tamanho o medo de ser roubada pelos bancos!

-E o senhor se aproveitou disso!

Sem esforço, Maigret imaginava o homem nas casas que freqüentava, em tête-à-tête com matronas, que lhe faziam confidencias. E depois subindo novo degrau ao travar conhecimento com os proprietários. Não tardara em encontrá-los nos bares de Montmartre, onde se reuniam à noite para jogar belote.

O Sr. Charles Dandurand, advogado de Fontenay, tornara-se assim o Sr. Charles, conselheiro, colaborador desses senhores, que nele depositavam toda confiança, pois com seu conhecimento do código penal prestavalhes valiosos serviços.

-Foi ela quem se aproveitou, Sr. Comissário! Suas mãos pálidas, longas e cabeludas, brincavam com os cachimbos da mesa. Pêlos cinzentos saíam-lhe em tufosdas narinas.

-Nunca ouviu falar na velha Juliette? É verdade que o senhor trabalha exclusivamente nas investigações especiais. Mas seu colega Cassieux... A história começou com a casa da Rua d’Antin, que estava à venda... Falei à Sra. Boynet, a quem sempre chamei de Juliette, pois brincamos juntos em crianças... Juliette comprou-a. Um ano depois adquiri para ela o Paraíso de Béziers, um dos melhores negócios da França...

-Ela sabia que espécie de uso o senhor fazia do dinheiro?

-Escute, Sr. Comissário: conheci avarentos. Um advogado do interior tem ocasião de conhecer os mais variados espécimes... Essa avareza nada era em comparação com a de Juliette. Ela amava o dinheiro com amor místico. Interrogue os homens do ’meio’, como se diz na Polícia Judiciária... Pergunte de quantas casas Juliette era comandatária... Quer que cite números?

Levantando-se, tirou do cofre embutido na parede um caderninho duvidoso e umedeceu os dedos feios para virar as páginas.

-No ano passado entreguei a Juliette quinhentos e noventa mil francos em notas... Quinhentos e noventa mil francos de lucro...

-E esse dinheiro estava no apartamento?

-Creio que sim, uma vez que ela já não saía e não teria confiado tais somas à sobrinha... Ah, adivinho o que está pensando... Sei que minha situação parece falsa, mas afirmo que se engana, Sr. Comissário. Jamais lesei o próximo num só centavo... Interrogue aqueles senhores... São pessoas que, conforme sabe, não perdoam a menor irregularidade... Todos afirmarão que o Sr. Charles é correto... Fuma?

Maigret recusou a bolsa de tabaco que lhe era oferecida e tirou a sua do bolso.

-Obrigado.

-Como queira... Estou colocando o senhor a par da situação com toda sinceridade. Estou abrindo o jogo, como se diz...

Teve um estranho sorriso ao empregar a gíria, ele que passara metade da vida na sociedade mais severa de Fontenay.

-Juliette tinha as suas manias. Detestava a idéia de que se descobrisse um dia a natureza desses investimentos... Observe que não recebia ninguém, que ninguém se preocupava com ela... Nem por isso dispensava precauções ridículas, até comoventes... Há seis meses ou mais não saía do apartamento. Eu tinha de ir até lá. E sabe como era obrigado a agir nessas ocasiões?

Passos na escada. Os Siveschi estavam de volta. Falavam em húngaro. Pouco depois chegaram do pavimento superior os ecos de uma discussão.

-Todas as manhãs os jornais dos inquilinos são deixados na portaria. A porteira coloca-os nos escaninhos, juntamente com a correspondência. Pois eu tinha de pegar o meu e traçar uma cruz a lápis sobre o jornal de Juliette... A pobre Cécile, que não desconfiava de nada, vinha buscá-lo pouco mais tarde... À meia-noite eu subia sem fazer ruído e Juliette me esperava junto à porta, apoiada na bengala...

Toda a Polícia Judiciária zombara de Cécile quando ela mencionara os objetos que mudavam de lugar em determinadas noites!

-A sobrinha não acordava nunca?

-Cécile? A tia tomava precauções. Se examinou o apartamento, e suponho que sim, deve ter encontrado tubos de brometo... Nas noites em que me esperava, Juliette arranjava meios de proporcionar a Cécile um sono profundo... Perdoe se ainda não lhe ofereci coisa alguma. Que deseja tomar?

-Nada, obrigado.

-Compreendo... O senhor está enganado, Comissário... Não é obrigado a acreditar em mim quando digo que sou incapaz de matar um frango e desmaio à vista de sangue...

-A Sra. Boynet foi estrangulada.

O advogado emudeceu por um instante, como que perturbado pelo argumento, olhos nas mãos pálidas.

-Também seria incapaz disso... Não tinha nenhum interesse, aliás...

-Diga, Sr. Dandurand: na sua opinião, que quantia possuía a Sra. Boynet em casa?

-Cerca de oitocentos mil francos.

-Sabe onde estava escondido o dinheiro?

-Ela nunca me disse. Conhecendo-a como eu a conhecia, suponho que estivesse à mão, que ela dormisse, por assim dizer, com sua fortuna.

-Mas nada se encontrou... Ela devia ter documentos, títulos de propriedade... Desapareceram da escrivaninha... A que horas desceu ontem à noite?

-Entre uma e uma e meia.

-A Sra. Boynet foi assassinada, segundo o médico-legista, por volta das duas da manhã... A porteira afirma que ninguém entrou no prédio. Mais uma pergunta: durante a visita teve motivos para supor que Cécile não estivesse dormindo?

-Nenhum.

-Procure lembrar-se... Tem certeza de que não esqueceu coisa alguma no apartamento, algo que revelasse a sua visita?

Sem se perturbar, o Sr. Charles refletiu.

-Não creio.

-Era o que eu queria perguntar. Peço-lhe que não saia de Paris, é claro, e até evite se afastar de casa...

-Compreendo.

Já no vestíbulo, Maigret acrescentou:

-Perdão... Já ia esquecendo... Recebe amigos com freqüência?

Sublinhou a palavra amigos.

-Nem um só penetrou nesta casa. Sou prudente também, Sr. Comissário, não à maneira exagerada de minha velha Juliette... Não sou maníaco. Meus amigos, conforme diz, ignoram o meu endereço, escrevem para uma caixa postal... Teriam ainda melhores razões para ignorar o endereço da Sra. Boynet e até seu verdadeiro nome, a tal ponto que muitos estão convictos de que Juliette nunca existiu. Era um mito de que eu me servia para...

Novos passos na escada e a voz ofegante da porteira.

-Espere, Sr. Gérard... E chamando:

-Sr. Comissário! Sr. Comissário!

Maigret abriu a porta e ligou as luzes do corredor, que acabavam de se apagar. Um rapaz desconhecido, muito excitado, fremente, encontrava-se diante dele.

-Onde está minha irmã? -perguntou, fitando Maigret com olhos esgazeados.

-É o Sr. Gérard -explicou a Sra. Benoit. -Chegou como um louco... Eu disse que a Srta. Cécile...

-Entre em casa, Sr. Dandurand! -decretou Maigret.

A porta dos Siveschi abriu-se, seguida de outra no andar inferior.

-Acompanhe-me, Sr. Gérard... Pode descer, Sra. Benoit.

O comissário trazia no bolso a chave do apartamento da assassinada. Fazendo o rapaz entrar na frente, aferrolhou a porta.

-Só soube agora?

-É verdade? Cécile morreu?

-Quem lhe disse?

-A porteira.

O apartamento fora vasculhado pelos especialistas da antropometria, os móveis revistados e seu conteúdo espalhado por toda parte.

-Minha irmã?

-Sim, Cécile morreu.

De tão nervoso, Gérard não conseguia chorar. Olhou em volta como se nada compreendesse. Fazia mal vê-lo, tal a angústia estampada em sua fisionomia.

-Não é possível... Onde está ela?

Ia precipitar-se para o quarto da irmã, mas foi detido pelo comissário.

-Ela não está aqui... Acalme-se... Espere... Lembrava-se de ter visto uma garrafa de rum no

armário. Entregou-a ao rapaz.

-Beba... Como soube?

-Eu estava no café quando...

-Perdão... Vou interrogá-lo. É mais rápido. Que fez hoje à tarde?

-Apresentei-me em três endereços diferentes. Estou à procura de emprego.

-Emprego de quê?

E Gérard, com um ricto:

-Qualquer coisa! Minha mulher vai ter bebê dentro de poucos dias... O proprietário nos despejou... Eu...

-Voltou à casa para jantar?

-Não... Estava no café...

Maigret só então percebeu que Gérard, se não estava embriagado, havia bebido mais do que convinha.

-Procurava emprego no café? Um olhar duro, cheio de ódio.

-O senhor também, naturalmente... Como minha mulher! Não sabe o que significa correr inutilmente de um lado para outro, da manhã à noite... Sabe o que fiz na semana passada, três noites seguidas? Descarreguei legumes em Lês Halles para ter o que comer... À noite, no café, esperava encontrar um sujeito que me tinha prometido trabalho.

-Quem?

-Não sei como se chama... Um homem alto e ruivo, que lida com aparelhos de rádio.

-Em que café?

-Pensa que matei minha tia?

Tremia da cabeça aos pés. Dava a impressão de que se atiraria como um louco sobre o comissário.

-No Canon de la Bastille, se é que está interessado... Moro na Rua Pas-de-la-Mule... O sujeito não apareceu.. . E eu não queria voltar para casa sem...

-Não jantou?

-Isso lhe interessa? Havia um jornal no bar. Li primeiro os pequenos anúncios, como sempre... Ninguém sabe o que significa ler os pequenos anúncios pensando que...

Um gesto para afastar o pesadelo.

-De repente, na terceira página, dei com o nome de minha tia. Não percebi imediatamente... Eram umas poucas linhas...

Proprietária de Bourg-la-Reine estrangulada na cama.

”Ontem à noite, a Sra. Juliette Boynet, viúva abastada, residente em Bourg-la-Reine...”

-A que horas foi isso?

-Não sei... Há muito tempo não tenho relógio... Talvez nove e meia... Corri para casa e disse a Hélène...

-Sua mulher?

-Sim. Disse que minha tia havia morrido e tomei o ônibus...

-Não bebeu coisa alguma no intervalo?

-Dois dedos, para me animar... Perguntava a mim mesmo por que Cécile não tinha me prevenido.

-Suponho que seja herdeiro de sua tia.

-Sim, com minhas duas irmãs... No Châtelet esperei o outro ônibus e... Mas, Cécile? Por que mataram Cécile? A porteira acaba de me dizer...

-Mataram Cécile porque ela sabia quem era o assassino -disse Maigret lentamente.

O rapaz não conseguia controlar-se e estendeu novamente a mão para a garrafa de rum.

-Não, basta -interveio o comissário. -Sente-se. Devia tomar uma xícara de café forte.

-O que quer insinuar?

Agressivo, fitou o interlocutor como inimigo.

-Espero que não esteja pensando que matei minha tia e minha irmã! -exclamou de repente, irado.

Maigret cometeu o erro de não replicar. Mas não o percebeu. Acabava de sofrer uma ausência, como acontecia às vezes. Mais exatamente, acabava de animar à sua maneira o ambiente que o rodeava: o mesmo apartamento, alguns anos antes, a tia maníaca, as três crianças, Cécile adolescente, sua irmã Berthe, que usava ainda o cabelo pelo meio das costas, Gérard decidindo alistar-se no exército para fugir àquela atmosfera...

Estremeceu quando o rapaz o agarrou pela aba do sobretudo, gritando:

-Não responde? Pensa que eu as matei? Pensa? Forte bafo de álcool. Maigret recuou, segurando os

pulsos do interlocutor. » «

-Calma, rapaz -murmurou. -Calma... Esqueceu a sua força e o outro gemeu, coma que

torcido pelos punhos de ferro do comissário.

-Está me machucando...

Finalmente, desatou a chorar.

 

Haveria alguma epidemia em Bourg-la-Reine? Maigret poderia informar-se, mas esqueceu a questão assim que esta lhe ocorreu. O empregado da funerária teria respondido, sem dúvida, que as mortes ocorrem em série, que se fica cinco dias sem um carro de primeira ou de segunda classe, e de repente há uma avalanche de pedidos.

Naquela manhã, os cortejos fúnebres sucediam-se, a ponto de um dos cavalos que conduziam o féretro de Juliette Boynet não ser um verdadeiro cavalo de carreta. Dez vezes tentou sair a trote, imprimindo ao cortejo um ritmo saltitante e acelerado, incompatível com a dignidade do sepultamento.

Um certo Monfils, agente de seguros de Luçon, era o responsável pela cerimônia. Mal o assassinato de Juliette Boynet foi anunciado na imprensa, ele desembarcou em Paris e apresentou-se, alto, magro, pálido, nariz avermelhado por uma gripe pegada no trem, já de luto fechado (aproveitava, sem dúvida, a roupa de algum luto anterior).

Era primo-irmão de Juliette Boynet.

- Sei o que digo, Sr. Comissário. Combinou-se desde o início que Juliette nos deixaria algo e ela concordou em ser madrinha do nosso mais velho... Tenho certeza de que existe um testamento... Se não o encontraram, deve ser porque alguém tem interesse em fazê-lo desaparecer... Aliás, pretendo instaurar processo...

Exigira um enterro de primeira classe, com saída da funerária e câmara mortuária no apartamento do quinto andar..

-Não temos o hábito, na família, de enterrar nossos mortos de maneira escusa...

Naquela manhã fora buscar na estação a mulher, também de luto fechado, e os cinco filhos, que acompanhavam o cortejo por ordem de tamanho, chapéu na mão -cinco meninos de cabelos igualmente louros e rebeldes ao pente.

Era a hora de tráfego mais intenso na auto-estrada. As caminhonetes que voltavam de Lês Halles sucediamse em fila ininterrupta. O tempo estava claro, o sol não era forte e o ar estava frio e picante; as pessoas batiam com os pés no chão e enfiavam as mãos nos bolsos.

Maigret passara a noite em claro. Juntamente com Lucas vigiara, do quarto da Rua de Birague, a quadrilha de poloneses. Cécile morrera há três dias e ele permanecia sombrio, deprimido. Esses poloneses que o impediam de se entregar por inteiro ao caso de Bourg-la-Reine começavam a irritá-lo. Às sete da manhã decidira:

-Fique aqui! Vou pegar o primeiro que apareça...

-Cuidado, chefe. Eles estão armados.

Maigret deu de ombros, entrou no Hotel dês Arcades e postou-se na escada. Quinze minutos depois, a porta do quarto se abria. Um colosso desceu e Maigret atirou-se a ele pelas costas. Os dois rolaram até o térreo. Finalmente o comissário se levantou, depois de colocar as algemas no adversário. Torrence acorreu ao ouvir o apito.

-Leve-o ao Quai. Confio a você a tarefa de ’cozinhá-lo’ até que fale, compreendeu? Arranje quem alterne com você, caso seja preciso... E que fale bastante...

Depois de sacudir a poeira da roupa foi comer croissants e tomar café ralo num balcão próximo.

Na Polícia Judiciária, todo mundo sabia que nessas ocasiões era melhor não contrariá-lo. A Sr a. Maigret, por sua vez, não se arriscava a perguntar a que horas ele voltaria para almoçar ou jantar.

Deteve-se na calçada, junto à vitrine da mercearia, ar decidido, fumando o cachimbo em baforadas raivosas. Os jornais haviam mencionado o caso e havia um ajuntamento de curiosos, sem contar meia dúzia de jornalistas e alguns fotógrafos. Os dois féretros se achavam diante do prédio, o de Juliette Boynet na frente, o de Cécile atrás, e os inquilinos do imóvel, por iniciativa da porteira, haviam se cotizado para comprar uma coroa. ”À Nossa Pranteada Proprietária”. Era o mínimo que se poderia fazer, dizia a Sra. ’Com-Sua-Licença’.

Além dos Monfils, que representavam a família de Juliette Boynet, Cazenove em solteira, havia outro grupo que representava a família do defunto marido, os Boynet e os Machepied, que moravam em Paris.

Os dois campos observavam-se com ódio. Boynet e Machepied alegavam também que haviam sido roubados; ao morrer o marido, a velha prometera que parte da fortuna voltaria um dia à família dele. Uma delegação apresentara-se na véspera à Polícia Judiciária. O chefe recebera-os, pois eram figuras de relevo. Um deles era conselheiro municipal.

-Maigret, estes senhores afirmam que existe um testamento e já cansei de repetir que o apartamento foi revistado.

Estavam aborrecidos com Maigret, aborrecidos com Monfils, aborrecidos com Juliette. Em suma: todos se consideravam lesados. Gerard Pardon, que não falava com ninguém e estava mais nervoso que nunca, encabeçava a lista.

Por falta de dinheiro não estava de luto. Não vestia sobretudo, e sim um velho impermeável bege, com braçadeira preta.

Berthe, irmã dele, estava ao seu lado, inquieta por vê-lo tão agitado. Era uma moça roliça, bonita, vaidosa, que não achara necessário trocar o chapéu cor de cereja por outro mais escuro.

O Sr. Dandurand também estava presente, acompanhado de três ou quatro senhores muito seguros, elegantemente vestidos, dedos cobertos de anéis, que haviam chegado num carro de doze cilindros. Estavam presentes ainda os Siveschi, exceto a mãe, que ainda não se levantara. E a merceeira, Sra. Piéchaud, que confiara a loja por um instante à Sra. Benoit, subira correndo ao quinto andar para jogar água benta sobre os caixões.

O gerente da funerária, nervoso porque havia outro enterro às onze horas, não entendia nada de todos aqueles diferentes grupos e tentava em vão saber quem representaria oficialmente a família. Além disso estava assustado com os fotógrafos.

-Ainda não, senhores, por favor... Esperem ao menos que todos estejam nos seus lugares.

E se publicassem no jornal uma foto daquele cortejo desordenado!

Apontavam Maigret, que parecia não notar nada. No momento em que os dois ataúdes eram descidos do apartamento, ele tocou no ombro de Gerard Pardon, que estremeceu.

-Um momento, por favor -murmurou, tomando-o de parte.

-Que é que o senhor ainda quer de mim?

-Sua mulher deve ter contado que eu a visitei ontem, na sua ausência...

-Quer dizer que vasculhou o nosso apartamento... -Riu e teve uma crispação dolorosa. -Encontrou o que procurava?

Quando o comissário respondeu afirmativamente, fixou-o, apavorado.

-Num momento em que sua mulher me voltou as costas tive a curiosidade de enfiar a mão num vaso de flores... Sou jardineiro nas horas vagas... O vaso não me parecia natural! De fato, encontrei sob a terra recémremexida...

Exibiu na palma da mão uma pequena chave que abria o apartamento de Juliette Boynet.

-Estranho, não é? -continuou. -Veja que coincidência... Passando pouco depois pelo meu gabinete encontrei um serralheiro à minha espera, um serralheiro que mora a cem metros daqui Q queria comunicar que havia fabricado uma chave semelhante há quinze dias apenas...

-Que é que isso prova?

Gérard tremia, olhando avidamente em torno, como se buscasse socorro. Seu olhar caiu sobre o caixão da irmã, que os homens de preto colocavam no coche.

-Vai me prender?

-Ainda não sei...

-Se interrogou o serralheiro, deve saber de quem recebi a chave.

Recebera-a de Cécile! O depoimento do artesão não deixava dúvidas a respeito.

-Na segunda-feira, 25 de setembro -havia declarado -, uma moça de cerca de trinta anos entrou na minha loja e me mostrou uma chave Yale, perguntando se eu podia fazer outra igual. Pedi que a deixasse para modelo, mas ela objetou, dizendo que possuía apenas uma e precisava dela. Tirei um molde... No dia seguinte, ela veio buscar a segunda chave e me pagou doze francos e setenta e cinco centavos... Somente ao ler nos jornais a descrição de Cécile Pardon, que fora encontrada assassinada, e principalmente quando soube que era ligeiramente estrábica...

O cortejo pôs-se em marcha. O mestre de cerimônias precipitou-se para Gérard, gesticulando, e Maigret disse à meia-voz:

-Conversaremos mais tarde...

Gérard e a irmã foram colocados imediatamente após os carros; porém, mal haviam percorrido alguns metros, os Monfils disputaram o lugar e colocaram-se no mesmo plano.

Mais discretos, os Boynet e Machepied, que não se davam ao trabalho de fingir tristeza, acompanhavam o cortejo discutindo a sucessão. O Sr. Dandurand vinha em seguida, rodeado pelos senhores cobertos de anéis, dos quais um, na cauda da procissão, conduzia o automóvel.

Desde o início, o andamento foi demasiado rápido por causa do cavalo caprichoso. Em compensação, quando dobraram à esquerda para seguir para a igreja, cortando a auto-estrada, houve engarrafamento e o trânsito ficou interrompido por vários minutos. Três ônibus enfileiraram-se, um após outro.

A mulher de Gérard não comparecera devido ao seu estado. Uma semana, no máximo, a separava do parto. Maigret passara uma hora com ela na véspera, no apartamento de dois cômodos que o casal ocupava na Rua Pasde-la-Mule, por cima de um açougue.

Tinha apenas vinte e três anos, e toda a resignação das donas-de-casa pobres já se estampava no seu rosto sem juventude. Sentia-se que lutava quase sem recursos para tornar habitável o quarto-e-sala. Alguns objetos já deviam ter ido para o Montepio. Maigret reparou que haviam cortado o gás.

-Gérard nunca teve sorte -suspirou, sem rancor. -No entanto, é um rapaz de valor... É bem mais inteligente que muitos outros que têm bons empregos... Será inteligente demais?

Chamava-se Hélène. O pai era fiscal público. A moça não ousava confessar a Maigret a situação do casal. Deu a entender que Gérard trabalhava, que os dois eram felizes.

-O senhor deve tê-lo achado um tanto amargo, mas coloque-se no lugar dele... É incapaz de cometer a mais ligeira desonestidade... Talvez não consiga vencer por ser escrupuloso demais. No último emprego, uma firma que vende aspiradores de pó, houve um roubo. Gérard desconfiava de um colega, mas nada disse... Como o patrão o interrogou com insistência, parecendo que o acusava, Gérard preferiu sair...

Pode revistar o apartamento... Não encontrará nada de interessante, exceto contas a saldar...

O vaso de flores no peitoril da janela... Maigret havia observado que a terra fora recentemente remexida, embora o gerânio estivesse morto há muito tempo. Aproveitara um momento de distração de Hélène...

Caminhava, mãos nos bolsos, pela calçada, à margem do cortejo, o que lhe permitia fumar o seu cachimbo. No final da procissão avistou as duas Siveschi, Nouchi e Potsi, que pareciam estar numa festa e nada perdiam do espetáculo. A Sra. ’Com-Sua-Licença’ confiara a portaria a uma vizinha (ignorava que Maigret colocara um inspetor diante do prédio). Iria à igreja, mas não ao cemitério por causa do torcicolo. Temia as correntes de ar.

Súbito, o cortejo parou, o que não estava planejado. Todos se inclinaram, ou se puseram na ponta dos pés para verificar o que se passava.

Juliette Boynet e Cécile estavam de azar. Outro cortejo, este atrasado, enquanto o delas estava adiantado, desembocava numa rua transversal e se dirigia para a igreja. Era preciso aguardar. Os cavalos escoiceavam o solo com as ferraduras. Os homens abandonaram por um instante o cortejo para tomar um gole e saíram de um pequeno café enxugando os lábios.

Ouviram-se sons de órgão. À retaguarda, os automóveis passavam na estrada. O vigário expediu seu acólito a toda velocidade e em breve as portas da igreja abriam-se amplamente.

-Et ne nos inducas in tentationem...

O mestre de cerimônias, chapéu de dois bicos na cabeça, ia e vinha ao longo do cortejo como um cão pastor.

-Sed libera nos a maio...

-A men.

Quando entraram, nem todos os componentes do cortejo anterior tinham saído. Um dos ataúdes, o de Juliette Boynet, ficou sob o catafalco. O de Cécile permaneceu atrás, no piso ladrilhado da igreja. E o vigário entoou:

-Libera nos Domine...

Solas de sapatos rangiam, pés de cadeiras arranhavam o chão. O ar fresco soprava pela porta aberta, que revelava a rua ensolarada. Gérard, na primeira fila, voltava a cabeça a todo instante. Procuraria Maigret? Os senhores que acompanhavam Charles Dandurand mantiveram-se discretos e distribuíram notas de cem francos no ofertório. Berthe, de chapéu cereja, acompanhava o irmão como se temesse alguma tolice da parte dele.

-Pater noster...

Todos estremeceram, pois um fotógrafo não hesitara em explodir magnésio no templo.

Maigret, envolto no grosso sobretudo de gola de veludo, ombro apoiado numa coluna de pedra, movia os lábios como se rezasse. E quem sabe rezava por aquela pobre Cécile que o aguardara por tanto tempo no aquário do Quai dês Orfèvres?

Há três dias mal ousavam dirigir-lhe a palavra. Ele passava, pelo corredor da Polícia Judiciária sólido, quase ameaçador, mastigando o cachimbo e idéias cheias de fúria.

-Como vão as coisas? -perguntara o chefe, na véspera à noite.

Respondera com um olhar tão pesado que valia por todas as réplicas.

-Não se deixe abater, meu velho... Reaja...

O sol iluminava os vitrais que representavam os Evangelistas, e Maigret, sem motivo, olhava principalmente para São Lucas, que o artista representara com barba castanha e quadrada.

-Et ne nos inducas in tentationem...

Outro enterro aguardava à porta? Por que o vigário expedira de novo o acólito a toda velocidade? O cavalo, que não estava habituado a cerimônias fúnebres, relinchava de minuto a minuto, e os relinchos repercutiam sob as abóbadas como um alegre apelo à vida...

Por que Cécile, quinze dias antes, teria às escondidas da tia encomendado uma segunda chave do apartamento? Teria entregue a chave ao irmão? Caso sim...

Ele a revia na sala de espera, a bolsa sobre os joelhos, capaz de permanecer horas na mesma posição. Maigret lembrava-se de ter dito:

Ou ela seguiu alguém a quem conhecia, em quem confiava, ou lhe deram a entender que a conduziam até onde eu me achava...

O irmão?

Embaraçado, o comissário desviou o olhar de Gérard, que o fitava a todo instante e a quem Berthe procurava acalmar tocando o braço.

-Por aqui, senhores... Rápido!

Também no cemitério houve confusão. Atravessaram rapidamente o setor dos jazigos de família e dos mausoléus de pedra e chegaram aos lotes novos, retângulos de argila dominados por uma cruz de madeira. Os coches não podiam seguir adiante. Colocaram, então, os dois ataúdes sobre carretas, e nos caminhos mais estreitos era preciso andar em fila indiana.

-Quando poderia falar com o senhor,,Comissário?

-Onde mora?

-Hotel du Centre, Avenida Montparnasse... Era Monfils, que de passagem detivera Maigret.

-Irei sem falta ao anoitecer.

-Não prefere que eu passe pelo seu escritório?

-Não sei quando estarei lá.

Maigret aproximou-se de Berthe, que a multidão afastara por um instante do irmão.

-Não saia de perto dele... Está muito agitado... Procure levá-lo para sua casa, onde irei vê-lo.

Ela balançou a cabeça em sinal de assentimento. Era bonita e sua silhueta roliça afastava qualquer idéia de drama.

-Sr. Comissário...

Maigret voltou-se para um dos homens que acompanhavam Dandurand.

-Poderíamos conversar por alguns minutos? Há um bistrô tranqüilo à saída do cemitério.

O padre, seguido de um coroinha que parecia galopar a toda velocidade com suas perninhas embaraçadas pela batina preta, de onde emergiam sapatões ferrados, inclinou-se sobre o túmulo, moveu os lábios, virou as páginas do missal e atirou o primeiro punhado de terra. Gérard e o primo Monfils estenderam a mão ao mesmo tempo. Cabeças interpuseram-se e Maigret não pôde verificar quem levou a melhor.

Houve uma súbita debandada. Nouchi fitou descaradamente o comissário. Quase pedia um autógrafo, como se ele fosse artista de cinema.

Quando Maigret empurrou a porta do bistrô, que se erguia em meio a marmorarias, o grupo já sentado ao redor de uma mesa levantou-se em conjunto.

-Perdoe incomodá-lo... Que é que o senhor toma? Garçom! O mesmo para o Comissário...

Charles Dandurand estava presente, rosto escanhoado e pálido, da mesma tonalidade das pedras mortuárias.

-Sente-se, Sr. Comissário. Pretendíamos ir ao seu gabinete, mas talvez seja melhor...

Todo o grupo dos grandes clientes que se reunia à noite no Albert achava-se presente, sereno como se comparecesse a uma reunião de diretoria.

-À sua saúde! Não vale a pena fazermos rodeios. O Comissário Cassieux nos conhece e sabe que somos corretos...

O automóvel deles estava na porta e a garotada admirava os acessórios cromados que brilhavam ao sol.

-Trata-se da pobre Juliette, naturalmente... O senhor sabe que a lei, sob pretexto da moralidade, não se imiscui nas transações das nossas empresas... Nós mesmos temos de resolver os nossos problemas... A velha Juliette possuía ações de uma dezena de casas pelo menos, sem contar Béziers e a Rua d’Antin, que lhe pertenciam pessoalmente... O Sr. Charles dirá que nos reunimos ontem para discutir o que con vinha fazer...

Os outros concordaram com graves movimentos de cabeça. O Sr. Charles mantinha sobre a mesa as mãos lívidas e cabeludas.

-O mesmo, garçom! Sabe o que isso representa em dinheiro, Sr. Comissário? Pouco mais de três mil pacotes, ou seja, três milhões. Ora, não pretendemos sair prejudicados... Parece que não há testamento... O Sr. Charles não quer saber de complicações e tem razão... Neste caso queríamos lhe perguntar o que devemos fazer... Dois sujeitos já o procuraram. Primeiro um certo Monfils, aquela espécie de joão-ninguém que veio com os filhos... Depois o irmão da moça, Gérard. Ambos querem o dinheiro... Não dizemos que não, mas precisamos saber a quem ele cabe... Eis a situação. Não podemos fechar estabelecimentos que dão lucro máximo porque...

Súbito, o que falava levantou-se e tomou o comissário pela manga.

-Quer me acompanhar um instantinho? E atraiu Maigret para uma sala dos fundos.

-Sou o que sou, estamos entendidos... Contudo, quero afirmar uma coisa que todos os meus camaradas aprovarão: o Sr. Charles foi sempre correto... Os papéis da velha desapareceram, mas nós não somos do tipo que falsifica assinaturas... Falei em três milhões... Talvez a coisa valha mais... Com ou sem documentos, ninguém tocará o negócio sem que o senhor autorize.

-Falarei com meus chefes -respondeu Maigret.

-Um momento... Falta um detalhe, mas é preciso que meus camaradas escutem a sua resposta...

Voltaram à sala comum.

-Sr. Comissário, decidimos colocar à sua disposição vinte pacotes para que seja encontrado o crápula que liquidou a velha Juliette... Combinado? Basta?... Tudo em ordem? O Sr. Charles lhe entregará o dinheiro...

Julgando chegada a hora, o homem enfiou a mão no bolso e retirou-a com uma carteira recheada.

-Agora não -interveio o comissário. -Preciso consultar... Garçom! Quanto devo?... Claro que sim! Perdão! Faço questão...

E pagou a despesa, enquanto o homeiri que servira de porta-voz resmungava:

-Como quiser... Mas não é direito...

Maigret saiu do bistro levando no peito o calor de dois aperitivos. Mal deu alguns passos deteve-se bruscamente.

Gérard, mais tenso que nunca, achava-se diante dele. Berthe, a irmã, dirigiu ao comissário um olhar que significava:

”Fiz o impossível para levá-lo... O senhor está vendo? Mas não consegui...”

O irmão de Cécile, cujo hálito cheirava a álcool, dizia em tom cortante, lábios trêmulos:

-Agora, Sr. Comissário, espero que me dê uma explicação...

Os coveiros estavam exaustos. Outras tumbas reclamavam sua atenção, e sobre o caixão de Cécile havia apenas alguns punhados de argila amarelada.

 

Entre, minha filha...

Embora não tivesse o hábito, Maigret, sem o perceber, sentiu necessidade de apoiar a mão no ombro redondo de Berthe Pardon. Inúmeros homens maduros, ou de certa idade, agem habitualmente assim, assumindo um ar paternal, e o gesto mal se nota. O comissário devia ser desajeitado, pois a moça se voltou para ele surpreendida, deixando-o desconcertado. Parecia dizer:

”Até o senhor!”

O irmão fora o primeiro a entrar no apartamento que os funcionários da agência funerária haviam deixado instantes atrás; tinham-nos encontrado com o material junto à escada.

Maigret fazia menção de entrar, quando uma voz marcada de ligeiro sotaque falou ao seu lado:

-Gostaria de conversar com o senhor, Comissário. Reconheceu Nouchi, que vestira para as exéquias

um taüleur preto demasiado pequeno e apertado, de dois ou três anos atrás, anterior sem dúvida ao seu desabrochar, o que lhe acentuava o ar equívoco.

-Mais tarde -replicou Maigret mal-humorado, pois não tinha complacência com aquela desavergonhada.

-É muito importante!

Entrando no apartamento da falecida Juliette Boynet, resmungou, antes de fechar a porta:

-Importante ou não, terá de esperar...

Uma vez que Gérard estava à mão, terminaria de interrogá-lo. Não importava a presença de Berthe. O apartamento da velha era mais conveniente para a entrevista do que o gabinete do Quai dês Orfèvres. A atmosfera já agia sobre os nervos de Gérard, que olhava com certa angústia as paredes de onde acabavam de arrancar as cortinas escuras e aspirava o cheiro dos círios e das flores, que era como o odor insípido da morte.

Berthe Pardon parecia tão à vontade como por detrás do balcão das Galeries, ou no restaurante popular onde fazia suas refeições. O rosto redondo, ainda infantil, ressumava serenidade e contentamento, o que alguns chamariam paz de consciência. Era a própria imagem da juventude ideal -aquela que ainda não roçou o pecado, sequer a idéia de pecado.

-Sentem-se, meus filhos -disse Maigret, tirando o cachimbo do bolso.

Gérard estava demasiado tenso para se imobilizar numa das poltronas da sala. Ao contrário da irmã, vivia alerta, preso a idéias tumultuadas. Não fixava o olhar em ponto algum.

-Reconheça que suspeita de que eu tenha matado minha tia e minha irmã -disse, lábios trêmulos. -Porque sou pobre, porque sempre fui perseguido pelo azar! Pouco lhe importa perturbar minha mulher que espera criança e não tem muita saúde... Aproveitou-se da minha ausência para revistar o nosso apartamento... Foi propositalmente até lá quando eu não estava em casa...

-É exato -confirmou o comissário acendendo o cachimbo, olhos nos retratos pendurados nas paredes.

-Mas não tinha mandado de busca! E sabia que eu não consentiria!

-De modo algum!

Berthe livrou-se da pele de marta muito comprida e estreita que levava e o comissário reparou que tinha o pescoço roliço e branco.

-Já perguntou àquele miserável do Monfils onde estava na noite do crime? Não, com certeza, pois ele é um...

-Pretendo interrogá-lo hoje à tarde.

-Nesse caso pergunte se minhas irmãs e eu não fomos sempre roubados...

Designando um retrato de mulher, uma ampliação pouco nítida:

-Minha mãe. Cécile se parecia com ela, não só fisicamente como no temperamento... O senhor não pode compreender... Sempre humilde, com o medo lancinante de não estar no seu lugar, de invadir espaço que não devia... Uma necessidade quase doentia de se sacrificar... Minha pobre irmã também era assim e viveu a vida inteira como empregada. Não é verdade, Berthe?

-É verdade -confirmou a moça. -Tia Juliette a tratava como uma criada.

-O que o comissário não sabe...

Maigret quase sorriu. De uma coisa o seu tenso interlocutor não desconfiaria: ele próprio sofria de complexo de inferioridade. Aquela humildade o perturbava. Sentia às vezes ímpeto de sacudi-la e então se tornava agressivo, exagerava no sentido oposto, desafiando as pessoas.

-Minha mãe era a mais velha. Tinha vinte e quatro anos quando minha tia conheceu Boynet, que era rico. As duas órfãs viviam em Fontenay com uma renda deixada pelos pais. E veja o que aconteceu: para casar com Boynet minha tia precisava de dote. Conseguiu que mamãe renunciasse à sua parte da herança. Toda a família sabe, e se Monfils não for um mentiroso confirmará. Assim, graças à minha mãe, tia Juliette conseguiu um belo casamento: ’Eu retribuirei um dia... Pode ter certeza de que jamais esquecerei... Depois do casamento...’

”Nada! Depois do casamento achou a irmã pobre demais para ser recebida no círculo de pessoas ricas em que vivia. A coitada entrou como vendedora numa loja de Fontenay... Casou-se com um chefe de departamento que já estava doente. E continuou a trabalhar...

”Nós nascemos e minha tia só com dificuldade consentiu ser madrinha de Cécile... Sabe quanto mandou quando ela fez a primeira comunhão? Cem francos! E isso quando o marido era proprietário de uma dezena de imóveis...

’Não tenha medo, Émile’, ela escrevia à minha mãe. ’Se alguma coisa acontecer a você, eu cuidarei de seus filhos...’

”Meu pai foi o primeiro a morrer. Minha mãe não durou muito. Tia Juliette já era viúva e acabava de se instalar neste apartamento. Na época ocupava todo o andar.

”Foi o primo Monfils quem nos trouxe de Fontenay... Você, Berthe, era muito pequena. Não se lembra...

’Meu Deus, como são magros!’ exclamou tia Juliette quando nos viu. ’Até parece que minha pobre irmã não dava de comer a vocês...’

”E se pôs a criticar tudo -nossas roupas, os sapatos de sola fina, a roupa de baixo, a nossa educação...

”Cécile, já mocinha, foi logo tratada como empregada. Quanto a mim, queriam me colocar como aprendiz, sob pretexto de que os pobres precisam de um trabalho manual... Se eu voltava para casa com um rasgão na calça eram censuras que não acabavam... Eu não passava de um ingrato. Não reconhecia o bem que faziam a mim e a minhas irmãs. Acabaria mal...

”Cécile sofria sem dizer uma palavra... Despediram a empregada, pois ela poderia fazer todo o serviço... Quer ver como nos vestíamos?”

Tomou de um móvel uma foto que mostrava os três -Cécile de preto, como Maigret a conhecera, cabelos puxados para trás sem qualquer vaidade, Berthe pequena e gorducha, com um vestido comprido demais para sua idade, e Gérard, com quatorze ou quinze anos, vestindo um terno que certamente não fora feito para ele.

-Preferi me alistar, e ela me mandava apenas uma moeda de cinco francos no fim do mês... Meus camaradas recebiam pacotes, cigarros... Durante toda a minha vida olhei os outros...

-Com que idade saiu da casa de sua tia? -perguntou Maigret, voltando-se para a moça.

-Dezesseis anos. Apresentei-me sozinha numa grande loja de departamentos... Perguntaram a minha idade e respondi que tinha dezoito.

-Quando me casei, minha tia me enviou um bule de prata -prosseguiu Gérard. -Quis vendê-lo, num dia de miséria, e deram-me trinta francos por ele... Cécile quase passava fome, e, no entanto, nossa tia era rica... Agora que está morta é o senhor quem me persegue. Até o senhor...

Fazia mal vê-lo, tal o amargor e a revolta que transmitia.

-Nunca pensou em matar sua tia? -perguntou Maigret, com uma calma que sobressaltou a moça.

-Se responder que sim vai concluir que a estrangulei, não é? Pois tive muitas vezes ímpetos de matá-la... Infelizmente sou covarde... Agora, pense o que quiser... Pode me prender se achar interessante. Não passará de uma injustiça a mais.

Berthe consultou o reloginho de pulso.

-Ainda precisa de mim, Sr. Comissário?

-Por quê?

-Meio-dia. Meu amigo me espera diante da loja. Para falar no amante conservava o ar virginal.

-O senhor tem o meu endereço: Rua Ordner, 22. Estou quase sempre em casa por volta das sete, exceto nas noites em que vamos ao cinema... Que pretende fazer com Gérard? Ele foi sempre assim... Não lhe dê atenção... Você precisa de dinheiro, Gérard? Beije Clémence por mim... Diga que irei visitá-la amanhã, ou depois de amanhã. Ganhei folga de três dias na loja.

Dirigiu-se à porta, mas voltou-se para sorrir aos dois antes de sair.

-Veja só: o amigo dela é casado! Se minha pobre mãe...

-Por que Cécile deu a chave a você?

-Quer mesmo saber? Pois eu digo. E pior para o senhor! Ela me entregou a chave porque a polícia não cumpriu sua obrigação! Porque, quando os pobres a procuram, a polícia nem sequer escuta! Cécile lhe falou várias vezes, o senhor não ousaria negar. Confessou que tinha medo, que no apartamento sucediam coisas que ela não compreendia. E o senhor que fez? Zombou dela. Mandou duas vezes um policialzinho ridículo, que se limitou a passear diante do prédio. Quando Cécile voltou ao seu gabinete, convicta de que alguém tinha entrado na sala durante a noite, percebeu que todo o pessoal da Polícia Judiciária ria dela. Os inspetores passavam, um após outro, diante da sala de espera, só para vê-la de perto...

Maigret baixou a cabeça.

-Foi então que ela encomendou a chave. E me pediu...

-Um momento! Onde encontrava sua irmã?

-Na rua! Quando precisava vê-la...

-Para pedir dinheiro?

-Sim, para pedir dinheiro, é verdade! Parece satisfeito com a descoberta! De vez em quando me dava alguns francos, pouca coisa, que conseguia espremer do dinheiro das compras. E eu a esperava na esquina à hora em que costumava sair! É o que queria saber? Pois agora já sabe! Há cerca de dez dias entregou-me a chave e me pediu para passar de vez em quando a noite no apartamento, para ver se descobria o que se passava...

-E você veio?

-Não, por causa de minha mulher... O médico teme um parto prematuro. Prometi a mim mesmo que depois do nascimento...

-Como passaria pela porta da entrada?

-Cécile previu tudo. Todas as noites, às sete horas, a porteira sobe com a correspondência. E não deixa de passar alguns minutos nos Deséglise, os inquilinos do segundo andar, à esquerda... Bastava entrar nessa hora.

-E sua tia?

-Sei que tudo o que digo se voltará contra mim. É tão fácil! Tanto pior! Minha tia, que sentia dor nas pernas, submetia-se todas as noites, mais ou menos a essa hora, a uma massagem com ar quente. Parece que isso a aliviava. Minha irmã usava o secador elétrico, semelhante ao dos cabeleireiros. É muito barulhento... Bastava entrar no apartamento com minha chave e me esconder debaixo da cama de Cécile... Está satisfeito? Agora confesso que estou com fome e que minha mulher me espera. O senhor a assustou bastante com sua visita. Se eu não voltar logo, ela vai pensar que... Ou o senhor me prende, ou permite que eu me vá. Quanto à herança que nos cabe por direito, veremos se...

Voltou a cabeça, mas não bastante rápido para ocultar a Maigret as lágrimas de ódio que lhe escorriam dos olhos.

-Pode ir -disse o comissário.

-Verdade? -ironizou o rapaz. -Não pretende ainda me deter? É muita bondade sua. Não sei como agradecer...

Gérard ficou em dúvida se escutara direito, mas pareceu-lhe que ao dirigir-se à porta Maigret resmungava, dando de ombros:

-Imbecil!

Nouchi ainda teria esperanças de seduzir o comissário? Fazia o possível, pelo menos, com uma estranha mistura de grosseria e ingenuidade. Tivera até o cuidado, ao sentar-se diante dele, de erguer a saia acima dos joelhos pontudos.

-Onde estava? -perguntou Maigret, mal-humorado.

-Na rua.

-Que fazia na rua?

-Conversava com um amigo.

-Tem certeza de que foi na véspera do crime?

-Está no meu diário... Todas as noites anoto no meu diário o que fiz durante o dia.

Maigret pensou que também ele ingressaria naquela estranha agenda de moça desequilibrada. Nouchi era do tipo que se apaixona por qualquer um -o policial da esquina, um vizinho que passe diariamente à mesma hora, um artista de cinema que nunca viu na tela, ou um assassino célebre. No momento, Maigret era o astro!

-Não posso dizer o nome desse amigo porque ele é casada.

Também Berthe, a serena Berthe de chapéu cor de cereja, era amante de um homem casado!

-Estava na rua, nas proximidades da casa... Não tinha medo de ser vista por seus pais?

-Meus pais não se preocupam com isso. São compreensivos...

-Afirma ter visto Gerard Pardon entrar no prédio...

-Estava vestido como hoje, com o mesmo impermeável e o chapéu cinzento de abas caídas... Olhou em volta e precipitou-se para o corredor...

-A que horas foi isso?

-Sete da noite... Tenho certeza pdístefco fiüuteift» que faz a última entrega acabava de passar.

-Obrigado.

-É importante, não é?

-Não sei.

-Mas se o irmão de Cécile esteve na casa naquela noite...

-Obrigado, senhorita.

-Não tem outras perguntas a me fazer?

-Nenhuma. < > Nouchi não se levantou. Aguardava.

-Pode contar com a minha ajuda. Conheço btifctf casa. Seria capaz de dizer...

-Obrigado.

Maigret dirigiu-se à porta. Ela roçou por ele ao passar, com seu corpo de músculos tensos como cordas de violão.

-Não preciso ir ao seu gabinete para que registre o meu depoimento?

-Não antes de ser convocada.

-Até a vista, Comissário.

-Até a vista.

Maigret desceu a escada depois de guardar a chave no bolso. O Inspetor Jourdan continuava de vigia na calçada. Maigret fez-lhe sinal para permanecer e procurou um táxi.

Enquanto almoçava no Boulevard Richard-Lenoir, sua mulher não conseguiu arrancar dele uma só palavra. Cotovelos apoiados na mesa, esfarelava o pão sobre a toalha, mastigando com ruído. Tudo isso era mau sinal.

-Não foi por sua culpa que essa moça, Cécile... -arriscou.

Em momentos assim ela o tratava com cerimônia. Chegava até a dizer, referindo-se a ele:

-O Comissário...

Ou ainda, embora mais raramente:

-Perguntarei ao Sr. Maigret se...

Ele perceberia que estava comendo um delicioso pudim de caramelo? Mal passou o guardanapo nos lábios, tomou o sobretudo rígido como um capotão de soldado. Ela compreendeu, pelo jeito do marido, que seria inútil perguntar a que horas voltaria.

-Hotel du Centre, Avenida Montparnasse -disse Maigret ao chofer do táxi.

Um hotel tranqüilo, freqüentado por pessoas do interior, que vinham a Paris em dias fixos. Cheirava a vitela ensopada e biscoitos secos.

-Sr. Monfils, por favor.

-Está à sua espera na estufa...

Pois havia uma estufa, ou melhor, um pequeno recinto em parte envidraçado, decorado com pedras, plantas e um chafariz. O Sr. Monfils, que continuava de luto fechado, lenço na mão, narinas avermelhadas e úmidas, instalara-se numa poltrona de vime e fumava charuto em companhia de um homem que Maigret teve a impressão de já conhecer.

-Apresento-lhe meu advogado, o Dr. Leloup... O Dr. Leloup representará em Paris os meus interesses.

O advogado era tão gordo quanto o outro era magro. Diante dele, na mesa, havia um alentado aperitivo.

-Bom dia, Comissário... Sente-se. Meu cliente...

-Um momento -interveio Maigret. -Ignorava que o Sr. Monfils já tivesse necessidade de advogado.

-Advogado de negócios, observe! Estamos face a uma situação no mínimo confusa, e enquanto não se encontrar o testamento...

-Quem lhe disse que o testamento existe?

-É evidente! Uma mulher de posses e de cabeça fria como a Sra. Boynet, Cazenove em solteira, não deixaria de...

Nesse instante, a Sra. Monfils e os cinco filhos irromperam na estufa. Os garotos caminhavam por ordem de tamanho.

-Desculpem -murmurou ela, com um doloroso sorriso de circunstância. -Estamos de saída, Henri! É o tempo justo de chegarmos à estação... Até a vista, Sr. Comissário. Até a vista, Dr. Leloup. Pretende ficar muito tempo em Paris, Henri?

Os meninos beijaram o pai um a um. O criado aguardava com a bagagem. Depois que a família partiu, Henri Monfils serviu-se, por sua vez, de um cálice de aguardente, pediu outro para Maigret sem consultá-lo e principiou:

-Julguei meu dever, Sr. Comissário, dever principalmente para com a minha família, recorrer a um advogado, que se manterá de agora em diante em contacto com o senhor e...

O nariz começava a escorrer. Monfils só teve tempo de tirar o lenço do bolso. Simultaneamente perguntava76I se por que o comissário se levantava e pegava o chapéu colocado numa cadeira.

-Aonde vai?

-Receberei com prazer o Dr. Leloup no meu gabinete quando ele tiver alguma declaração a fazer -replicou Maigret. -Boa tarde, senhores.

Henri Monfils não conseguia recuperar-se da surpresa.

-Que foi que houve? Que aconteceu?

E o advogado, refestelado na sua poltrona de vime, aquecendo com a mão gorducha o copo de aguardente, murmurou, otimista:

-Não se preocupe. Ele é assim... Esses policiais não gostam de se envolver com profissionais. Aborreceuse porque me encontrou aqui. Conte comigo para...

Interrompeu-se, ocupado em cortar com os dentes a ponta do charuto que o cliente lhe oferecera.

-Palavra que eu...

As primeiras edições dos jornais vespertinos publicavam fotos das exéquias. Numa delas via-se Maigret em destaque, junto ao túmulo de Cécile e ao lado do vigário, que manejava o hissope.

Jourdan, que montava guarda diante do prédio de Bourg-la-Reine, onde as janelas começavam a iluminarse, o chefe da Süreté, que telefonava em seu escritório e não sabia o que responder ao procurador-geral, a Sra. Maigret, ocupada em dar brilho aos cobres, ficariam surpreendidos se vissem o comissário, mãos enfiadas nos bolsos, cachimbo entre os dentes, a caminhar pela Avenida Montparnasse, ar carrancudo, deter-se num cinema de sessão contínua, o hall coberto de anúncios multicoloridos, aproximar-se finalmente do guichê e estender o dinheiro, murmurando:

-Uma poltrona de balcão.

Dócil, acompanhou em seguida a moça vestida de seda preta e golinha branca, que lançava sobre os degraus o raio estreito de uma lanterna de bolso.

-Com licença... com licença... com licença...

Esgueirou-se entre as poltronas, percebendo que perturbava todo mundo e pisava pés ao passar.

Ignorava o que exibiam. Vozes potentes, que vinham não se sabia de onde, enchiam a sala, enquanto na tela um capitão da marinha atirava uma jovem sobre o beliche da cabine.

”-Ah! Estava me espionando...

”-Piedade, Capitão Brown... senão por mim, ao menos por...”

-Com licença -disse uma vozinha tímida à direita do comissário.

E sua vizinha puxou a aba do casaco, sobre a qual Maigret se sentara.

 

Maigret sentia calor. Um ’bom calor’, como dizia em menino. E se as luzes se tivessem acendido de repente, ele, envolto no sobretudo, mãos nos bolsos, corpo um tanto inclinado para trás e olhos semicerrados, passaria pela encarnação da beatitude.

Na realidade, era um truque, uma pequena trapaça que fazia consigo mesmo quando estava farto de pensar num assunto e sentia a cabeça a ponto de estourar. No verão, ele se sentaria ao sol no terraço de um café e, pálpebras meio fechadas, ficaria a bronzear-se diante de uma cerveja.

Quando instalaram o aquecimento central no Quai dês Orfèvres, o comissário pediu para conservar sua velha estufa a carvão e conseguiu. Os jovens inspetores davam de ombros. Pois aquilo fazia parte do famoso truque. Quando algo não corria bem, quando, de tanto se debruçar sobre um problema, tinha a impressão de que ele perdia toda substância, reduzindo-se a um tecido de frias incoerências, Maigret enchia a estufa até a goela, esquentava-se de frente e de costas, atiçava o fogo, movimentava a alavanca ao máximo. E pouco a pouco sua carne se dilatava de bem-estar, as pálpebras piscavam, os objetos que o rodeavam perdiam os contornos, esbatiamse, com a contribuição da fumaça do seu eterno cachimbo.

Nesse estado de entorpecimento físico, a mente, como nos sonhos, abarcava relatórios às vezes complexos, seguia caminhos que a pura razão jamais teria descoberto.

A Sra. Maigret nunca compreenderia. Quando lhe tocava o braço no final de uma sessão de cinema, nunca deixava de suspirar:

-Você dormiu de novo, Maigret... Não sei por que paga doze francos pela poltrona quando tem em casa uma cama tão confortável...

A sala às escuras estava cheia de calor humano, vibrava com a vida de centenas de pessoas, sentadas umas ao lado das outras e que, no entanto, se ignoravam. Lá no alto, o comprido triângulo de luz pálida que saía da cabine de projeção atraía a fumaça dos cigarros.

Se lhe perguntassem o que estavam exibindo responderia que não tinha a menor importância. Olhava as imagens sem tentar estabelecer entre elas qualquer relação. A certa altura baixou o olhar porque percebeu ao seu lado um ligeiro movimento...

Aquele homem vigoroso, que há cerca de trinta anos enfrentava, de certo modo, todas as paixões levadas ao paroxismo, isto é, ao crime, era um casto, e tossiu, chocado pela atitude da vizinha e de seu companheiro, de quem via apenas a mão leitosa na penumbra. Há instantes, quando se sentara sobre o casaco da moça, esta lhe parecera bastante jovem. E não se movia. Seu rosto, esbranquiçado como a mão do homem, como o palmo de coxa que ele descobria, permanecia voltado para a tela.

-Hum-hum! -fez o comissário, embaraçado.

Os namorados nem prestaram atenção. Ela devia ter a idade de Nouchi.

Na verdade, quando Nouchi vira Gérard entrar no prédio de Bourg-la-Reine, às sete da noite... Mas teria visto realmente? Estava também com o namorado, na escuridão, colada à parede, sem dúvida.

Sussurro de beijo... Veio-lhe aos lábios como quéõ gosto de saliva estranha. Enfiou-se ainda mais no sobretudo. Nouchi, pouco antes, provocara-o descaradamente. Se ele quisesse... Seriam numerosas as garotas daquela idade que se atiravam assim aos homens maduros, dotados de alguma celebridade, ou apenas de um certo prestígio?

”Aposto que o namorado é bem mais velho que ela!”, raciocinou, aludindo ao namorado da vizinha.

Era assim que pensava sem pensar, aos poucos, idéias soltas que não tentava unir umas às outras.

Teria a jovem húngara mentido a respeito do Sr. Charles? Não, provavelmente. Dandurand era bem do tipo que espiona moças através de uma porta entreaberta e sugere mostrar-lhe fotografias pornográficas. Nouchi, por sua vez, seria capaz de tudo para mantê-lo interessado e no último instante gritar, pedindo socorro.

O que havia de perturbador era afirmar ter visto Gerard Pardon entrando no prédio precisamente às sete horas, quando a porteira, de passagem pelos Deséglise, não vigiava a escada...

-Quando o depoimento se tornar oficial...

Assim, o depoimento de uma garota perversa bastaria para enviar um homem à prisão e, quem sabe...

Agitou-se, perturbado. Não era apenas a imagem de Gérard saindo de madrugada pela porta da Avenida Arago... Continuava de olhos na tela, cenho franzido... Há instantes sentia algo que não era natural e, de repente, compreendeu: os lábios dos personagens do filme moviam-se, mas não à cadência das sílabas pronunciadas. Na realidade articulavam vocábulos ingleses e ouviam-se frases em francês. Era um filme dublado.

O casal ao seu lado portava-se cada vez pior, mas a atenção do comissário estava longe. O que o confundia há três dias, afinal? Começava agora a compreender. É que naquele caso havia algo que o chocava. Um elemento falso na base. Qual? Ainda não sabia.

Olhos semicerrados, revia mais nitidamente do que se estivesse diante dele o prédio, a loja de bicicletas, a mercearia da viúva Piéchaud. Soubera na véspera que ela não era, na verdade, viúva. O marido desaparecera com uma mulher de má vida, segundo sua expressão, e ela vivia tão envergonhada que se fazia passar por viúva.

Mas, e a Sra. ’Com-Sua-Licença’, em seu cubículo pegajoso, cabeça torta, pescoço envolto em algodão hidrófilo...

Uma vez que não abrira a porta a ninguém estranho à casa, concluíra apressadamente que pessoa alguma entrara ou saíra naquela noite.

Mas estava provado que às sete da noite podia-se entrar sem ser visto pela porteira. E o que provava que o mesmo não acontecia em outros momentos do dia?

No último andar, aquela velha maniaca, Juliette Boynet, cercava-se de mistérios para receber Charles Dandurand e discutir com ele seus investimentos, que seriam, no mínimo, imorais. Desonesto, porém humano. Em sua carreira, Maigret encontrara outros fenômenos do mesmo gênero.

E também muitos Dandurand!

O que não se ajustava? O que soava falso?

A velha fora estrangulada, sem dúvida, depois de Dandurand sair e quando pretendia se deitar. Vestia ainda uma das meias...

Seria o caso de concluir pela existência de uma terceira chave, que estaria de posse do Sr. Charles? E acreditar que ele entrara no apartamento para matar a velha?

Um dos seus amigos do ’meio’? Não eram principiantes, pálidos vagabundos dispostos a tudo, e sim pessoas realizadas, que possuíam prestígio nas ruas e não queriam se envolver.

Eram sinceros ao afirmar que a história os aborrecia e prejudicava.

Gerard Pardon?

Maigret quase explodiu:

-Fiquem quietos, diabo!

Os vizinhos ultrapassavam todos os limites, candidamente, como se estivessem sozinhos na imensa sala às escuras.

... Gerard escondido desde as sete da noite no quarto da irmã... Gérard assistindo, despercebido, à entrevista entre Juliette Boynet e o Sr. Charles, vendo talvez os maços de notas e decidindo apoderar-se delas tão logo a tia estivesse sozinha...

Mas, nesse caso, seria preciso supor que Gérard, uma vez cometido o crime, permanecera no apartamento até de manhã, uma vez que a porteira não abrira a porta para ninguém.

Seria preciso supor ainda que Cécile pretendia denunciá-lo quando aguardava Maigret no aquário do Quaides Orfèvres.

E, finalmente, seria preciso supor também que acompanhara Gérard até o armário das vassouras.

De que modo Gérard Pardon, que nunca se envolvera com a Polícia, conheceria não só a localização do armário, como a porta de comunicação entre a Polícia Judiciária e o Palácio da Justiça?

Um gesto brusco junto dele, uma saia abaixada, a palavra ”Fim” projetada na tela. Todas as luzes acenderam-se ao mesmo tempo e houve um longo arrastar de pés.

Maigret, levantando-se como todos os demais, acompanhou a fila, relanceando curioso para a vizinha. Encontrou um rostinho tranqüilo, tez fresca, faces redondas, olhos inocentes e sorridentes. Não se enganara. O homem que a acompanhava era quarentão e usava aliança.

Ainda entorpecido, o comissário deu consigo na agitação da Avenida Montparnasse. Deviam ser seis horas. A noite caíra. Vultos escuros passavam rápido diante das vitrines iluminadas. Sentiu sede e entrou no La Coupole, instalando-se junto à vidraça. Pediu uma cerveja pequena.

Uma espécie de lassidão invadiu-o. Retardava o momento de penetrar na realidade nua e crua. Deveria seguir direto para o Quai dês Orfèvres, onde Lucas estava às voltas com o polonês.

Em vez disso, pediu um sanduíche de presunto, olhando a esmo a multidão que passava. Pouco antes precisara de vários minutos, talvez um quarto de hora, para notar o que o perturbara no cinema: o desajuste entre o movimento dos lábios e as sílabas ouvidas.

Quanto tempo precisaria para descobrir o que havia de falso no caso de Bourg-la-Reine? O sanduíche estava delicioso. A cerveja era boa e ele pediu outra.

No decurso de cada investigação cercada de publicidade, ou quase, pelo menos um jornalista publicava uma matéria que se tornara, de certo modo, tradicional: ”Os Métodos do Comissário Maigret”.

Que apareça esse jornalista! Maigret saía do cinema... Comia sanduíche... Tomava cerveja... Junto à vidraça embaciada do La Coupole parecia um burguês do interior, siderado pelo movimento de Paris...

Na verdade, não pensava em coisa alguma. Estava na Avenida Montparnasse e não estava, pois levava para toda parte a imagem do prédio. Entrava, saía... Espreitava a Sra. ’Com-Sua-Licença’ em seu cubículo... Subia e descia a escada...

A velha proprietária de cabelos pintados fora estrangulada. Primeiro fato... Dinheiro e documentos haviam desaparecido. Segundo fato...

Oitocentos mil francos...

Oitocentos mil francos em notas de mil, para ser mais exato... Esforçou-se por imaginar o volume que fariam.

Cécile já às oito da manhã no aquário do Quai dês Orfèvres.

Coisa estranha: sentia dificuldade em rever seu rosto familiar e característico. Evocava o casaco preto, o chapéu verde e aquela bolsa enorme e ridícula sobre os joelhos, bolsa que mais parecia uma maleta e da qual não se separava.

Cécile fora, por sua vez, assassinada e a bolsa desaparecera.

84Maigret permanecia ali, com o copo de cerveja em suspenso, sem saber ao certo o que se achava diante dele. Se alguém o interpelasse nesse momento, voltaria de bem longe.

O que não se ajustava...

Era preciso não avançar com muita pressa. Era necessário não assustar a verdade, sob pena de vê-la desaparecer novamente...

Cécile...abolsa....o armário das vassouras...

A tia estrangulada...

Porque a moça vesga também fora estrangulada, concluíra-se, o próprio Maigret concluíra, que os dois crimes...

Soltou um suspiro de alívio e tomou um grande gole de cerveja espumante.

O erro que ele cometera, e que o forçara a andar em círculos como um cavalo cego de picadeiro, fora procurar um só assassino.

-Por que não dois? Por que admitir de saída que ambos os crimes foram cometidos pela mesma pessoa?

-L ’Intran... Leiam L ’Intran...

Pegou o jornal. Havia uma foto na primeira página, foto que o levou a franzir a testa. Era ele, mais gordo do que se imaginava, o cachimbo ferozmente encaixado no maxilar, mão no ombro de um rapaz de impermeável, que era Gérard. Não se lembrava de ter apoiado a mão no ombro do irmão de Cécile. Tê-lo-ia feito num gesto inconsciente?

O repórter havia tirado duas conclusões, pois a legenda dizia:

”Simples acaso? Não parece que o Comissário Maigret apoia sua pesada mão no ombro trêmulo de um culpado?”

-Idiota! Garçom! Quanto devo?

Estava furioso e satisfeito ao mesmo tempo. Ao sair do Coupole, seu passo não era o mesmo de quando entrara após o cinema. Táxi. Tanto pior se o caixa da Polícia armasse dificuldades depois, alegando que o metrô é a condução mais rápida entre dois pontos.

Dez minutos mais tarde, mergulhava na atmosfera da Polícia Judiciária e empurrava a porta do seu gabinete. O polonês estava sentado na ponta da cadeira, enquanto Lucas se instalara na poltrona do comissário. Um simples piscar de olhos e o policial acompanhou o chefe à sala dos inspetores.

-Janvier e eu já o interrogamos há dez horas... E ele resiste. Mas tenho a impressão de que começa a fraquejar... Ou muito me engano, ou será para a madrugada.

Não era o primeiro que resistia tanto tempo!

-Se o senhor pudesse vir por volta das duas ou três horas, para dar o golpe final...

-Não há tempo -resmungou Maigret.

As salas começavam a se esvaziar. Apenas uma lâmpada ficaria acesa no vasto corredor empoeirado; um homem permaneceria de plantão na mesa telefônica. Então, no gabinete de Maigret, o polonês se veria diante de um Lucas obstinado, que Janvier substituiria de tempos em tempos, enquanto o outro ia tomar uma cerveja e comer alguma coisa na Brasserie Dauphine.

-Telefonaram para mim?

-Um tal de Dandurand.

-Disse alguma coisa?

-Que não sairia do apartamento... Tem uma novidade interessante a comunicar.

-Apareceu alguém?

-Não sei. É melhor perguntar ao contínuo.

-Um rapaz de impermeável, com uma braçadeira de luto. Muito agitado. Perguntou quando o senhor voltaria. Respondi que não sabia, Queria o seu endereço, mas não dei.

-Gerard Pardon?

-Um nome assim... Não quis preencher aficha.

-Há quanto tempo?

-Cerca de meia hora.

-Tinha um jornal na mão ou no bolso -disse o comissário, para grande surpresa do contínuo.

-É exato. L’Intran... Segurava o jornal todo amassado.

Maigret voltou à sala dos inspetores.

-Quem está livre? Torrence...

-Tenho de ir a Bourg-la-Reine, chefe,

-Não vale a pena. Vá à Rua Pas-de-la-Mule, n. 22. Conhece o rapaz?

-O irmão de Cécile? Conheço. Eu o vi em Bourgla...

-Está bem! Toque a campainha... Espero que ele tenha voltado para casa. Se tiver voltado, encontre um meio de não sair de perto dele... Não deve cometer tolice alguma, compreendeu? Seja amável. Não o assuste, pelo contrário...

-E se ele não tiver voltado?

Sombrio, Maigret fez um gesto de impotência.

-Se não tiver voltado... só resta aguardar um telefonema da polícia fluvial, a menos que ele consiga um revólver... Um momento! Telefone para mim no... Espere! Quem teria telefone no prédio? Dandurand, com certeza! Telefone para Charles Dandurand. Encontrará o número no catálogo. Boa noite, meu velho.

Entrou no seu gabinete a tempo de examinar o polonês dos pés à cabeça, lentamente, como se tomasse a temperatura moral do homem. Ao sair, dirigiu nova piscadela a Lucas, que recomeçou o interrogatório. A piscadela significava:

”Está no papo!”

Um táxi conduziu-o à estrada de Orleans. Saltou diante do prédio que começava a lhe parecer familiar. Quem estaria de guarda? Relanceou em volta. Um vulto destacou-se da escuridão.

-Aqui, chefe.

Verduret, um novato, rapaz gentil, profundamente impressionado com o chefe, a ponto de gaguejar quando se dirigia a ele.

-Alguma novidade?

-O inquilino do quarto andar, o Sr. Charles, voltou de ônibus às seis horas. Alguém esperava por ele no corredor... Um homem baixo e gordo, de sobretudo cinzento, pasta debaixo do braço.

Maigret refletiu um instante e lembrou-se. Era o advogado de Monfils, o Dr. Leloup, com certeza.

-Ficou muito tempo?

-Cerca de meia hora. O húngaro saiu pelas cinco e não voltou ainda. Quanto à filha...

O jovem inspetor indicou duas silhuetas que se confundiam com a escuridão junto ao muro do terreno baldio.

-Há três quartos de hora -suspirou. -E não se mexem...

Maigret corou imperceptivelmente e entrou no prédio. Cumprimentou de passagem a Sra. Benoit, sentada diante de um prato de sopa, e galgou pesadamente quatro lances de escada. Seu passo foi reconhecido, pois o Sr. Charles abriu a porta sem que o comissário precisasse tocar a campainha.

-Estava à sua espera. Faça o favor de entrar. Depois da entrevista desta manhã com meus amigos...

Decididamente o comissário não conseguia se habituar àquele odor rançoso de velho celibatário. Pela atmosfera que reinava na casa de Dandurand sentia repulsa tanto física quanto moral. Fumava a grandes baforadas.

-Que foi que o Dr. Leloup veio fazer aqui?

-Já soube? Ameaçou-me de um processo por captação de herança. Está convicto de que Juliette redigiu testamento. Baseia-se em cartas que ela escrevia no Ano Novo ao primo Monfils. O senhor deveria lhe pedir que as entregue. Ela tratava o sobrinho e as sobrinhas de degenerados e parasitas. Dizia que são ingratos e que, depois de tudo o que fez por eles em memória da irmã, só queriam o dinheiro dela. ”Ficarão furiosos, assim comoos Boynet e os Machepied, ao saberem que deixo a você tudo o que possuo...” -concluía a carta.

-O Dr. Leloup limitou-se a ameaçar?

Sorriso glacial surgiu nos lábios cinzentos do Sr. Charles.

-Fez-me o que chamou de propostas generosas e honestas.

-Meio a meio?

-Mais ou menos. O que seria apreciável se houvesse um testamento.

O Sr. Dandurand estalou os dedos.

-Mas essas pessoas não conheciam Juliette. Para ser exato, eu era o único que a via tal qual era. Tinha tanto medo de morrer, de ter de abandonar um dia o seu dinheiro, que seria capaz de crer que jamais morreria. Ou pelo menos não tão cedo. Ela me repetia muitas vezes: ’’ Quando eu envelhecer...”

O homem repulsivo não mentia. Maigret tinha certeza. De Juliette vira apenas o cadáver de cabelos mal pintados, mas colhera uma impressão que correspondia exatamente ao que dizia o Sr. Charles.

-E então?

-Convidei o Dr. Leloup a se retirar. Aliás, não foi por isso que telefonei. Percebo que minha situação é delicada e não ignoro que para mim o melhor será a descoberta do assassino.

-Ou assassinos -resmungou Maigret, os olhos postos numa aquarela pendurada na parede.

-Ou assas... Como quiser! Nada prova, aliás, que não fossem vários.

-Em todo caso há dois cadáveres e, portanto, dois crimes.

E Maigret acendeu placidamente novo cachimbo.

-É uma teoria... Eu dizia que, depois que o senhor saiu, me lembrei de uma coisa.

Tomou da ponta da escrivaninha uma caderneta encapada de tecido impermeável.

-Eu não seria advogado há tantos anos sem adquirir certas manias da profissão. Toda vez que entregava a Juliette os lucros dos seus investimentos tinha o cuidado de anotar o número das cédulas. Talvez pareça ridículo, mas quem sabe servirá para alguma coisa? O caderninho estava coberto de algarismos.

-Lembre-se de que eu não tinha nada para fazer durante o dia.

Maigret imaginava-o, de fato, no escritório cheirando a excremento pisado, a copiar colunas de números com fria satisfação. As cédulas não lhe pertenciam... Ainda assim gozava da volúpia de manejá-las, anotar a numeração, prendê-las com um grampo aos maços, agrupar os maços com um elástico...

-Observe que, embora esses senhores tenham sido os primeiros a lhe fazerem uma proposta, estou disposto a ajudá-lo em tudo o que puder -concluiu, entregando o caderninho ao comissário.

Ouviram Nouchi voltar para casa subindo a escada de três em três degraus e deter-se por um instante à porta. Teria se comportado tão mal quanto a gorduchinha do cinema?

E isso interessava ao comissário? De que modo os fatos e os gestos daquela garota...

-Para ficar à sua espera não saí para jantar no meu restaurante habitual. Contentei-me com costeleta fria. O senhor jantou? Aceita uma bebida?

-Não se preocupe, obrigado.

-Um dia reconhecerá que fiz tudo o que podia e... Está bem! Como quiser...

Abrindo a porta sem mesmo prevenir que estava de saída, Maigret deu passagem a acordes de piano. A Srta. Paucot, sem dúvida, que se vingava assim das escalas dos alunos.

 

Um dia, olhando sonhadora para o marido, a Sra. Maigret suspirou de repente, com franqueza quase cômica:

-Pergunto a mim mesma por que você não tem sido esbofeteado com mais freqüência...

A frase vinha do fundo do coração. Havia momentos em que Maigret era, de fato, de uma insolência inaudita e sua mulher era a única pessoa a saber que essa insolência era inconsciente. Não resistia a um sorriso irônico, ou a um laivo de zombaria no olhar. Tinha-se a impressão de estar diante de um monólito inabalável, que continuava a viver sua vida pessoal, enquanto os outros falavam e se agitavam. O comissário escutaria? Veria o interlocutor? Ou estaria olhando a parede acima da cabeça da pessoa? Súbito interrompia o outro no meio de uma frase, de uma palavra, e o que dizia nada tinha a ver com o assunto.

Assim, Charles Dandurand falava ainda, quando Maigret abriu a porta, deixando penetrar os acordes do piano, e imobilizou-se como que para escutar a música. Há quanto tempo teria deixado de acompanhar a conversa? Que caminhos trilharia sua mente naqueles breves instantes

Súbito, falou:

-O senhor tem telefone, suponho.

-Sim, é claro.

Saberia que Dandurand estava diante dele, esperando para fechar a porta do seu apartamento? Monologava, hesitante:

-Será que...

Não agia assim propositalmente. Contudo, outros além do ex-advogado tinham se sentido desarvorados com atitude semelhante. Que queria? Que estaria imaginando? Seria importante ou banal? Impossível adivinhar ao vê-lo franzir as espessas sobrancelhas e menear a cabeça, murmurando finalmente:

-Ia esquecendo... Dei o seu endereço para o caso de precisarem me telefonar. Enquanto esperamos, gostaria que subisse comigo. Ouviremos perfeitamente o telefone lá de cima.

-Permite que eu leve a minha chave?

No patamar do quinto pavimento, o comissário parou.

-Foi pouco depois da meia-noite, conforme declarou. Estava de chinelos?

Olhou para os pés do Sr. Charles, calçados de pantufas de pelica marrom.

-O senhor não costumava tocar a campainha, não é?

-Juliette me esperava atrás da porta. Eu nem precisava bater.

-Vamos entrar. O vestíbulo estava iluminado?

-Não. A claridade vinha da sala, cuja porta estava entreaberta.

-Um momento... Vou acender a luz da sala.

-Não essa lâmpada, Sr. Comissário. Só o abajur de falso alabastro que se encontra na mesinha.

O Sr. Charles, meio vexado, fingia participar da brincadeira, sem sombra de inquietação. Sua atitude parecia dizer:

”Veja: seu truque não me impressiona. Nada tenho a ocultar, pelo contrário. Só procuro, como o senhor, a verdade. Se quiser uma reconstituição meticulosa, eu farei...

E em voz alta:

-Observe que vestia o mesmo terno que visto hoje, mas trazia um cachecol branco... Nas mãos... Não, no bolso interno do colete, eu havia guardado um envelope contendo...

-Mais tarde... Caso não se importe, vamos primeiro colocar esta sala em ordem... O senhor deve conhecer o lugar de cada móvel, cada objeto...

Estavam ambos muito sérios e o Sr. Charles, irônico, fazia meticulosa questão de encontrar o lugar exato de cada poltrona, recuava para melhor julgar sua obra.

-Pronto! É mais ou menos isso...

-Uma pergunta: quando abriu a porta, a Sra. Boynet trazia a bengala?

-Teria dificuldade em caminhar sem ela.

-É capaz de me dizer como estava vestida?

-É fácil. Sobre a camisola de dormir vestia um roupão de flanela esverdeada. As meias, observei, estavam caídas ao redor dos tornozelos.

-As duas?

-Sim, as duas! Vestia habitualmente duas meias, se é o que deseja saber. Chinelos com sola de feltro... Juliette não era nem um pouco vaidosa. Creio até que tinha certa satisfação em se mostrar sob sua aparência mais desagradável. Naquela noite, despenteada, rosto brilhante de cremes, olhos inchados...

-Observou se havia outra luz acesa no apartamento? Afirma que não saiu da sala?

-Afirmo.

-Onde se sentou a Sra. Boynet?

-Diante da escrivaninha. Abriu-a. Sabia que eu vinha prestar contas.

-Um momento... Onde pegou a chave para abrir este móvel?

O homem hesitou ligeiramente.

-Eu... Para falar a verdade não me lembro... Suponho que a chave estivesse no bolso do roupão...

-Diga, Sr. Dandurand: se ela abriu a escrivaninha quando o senhor se dispunha a lhe prestar contas é porque guardava aí todos os papéis relativos aos seus negócios.

-Evidentemente.

Mais sério, o Sr. Charles refletia.

-Tem razão. Confesso que não pensei nisso. , -Que conversaram durante todo esse tempo?

-Nunca falávamos grande coisa. Devo ter dito que temia ter me resfriado na cidade, o que explicava o meu cachecol. Anunciei-lhe também que precisaria ir a Béziers...

Maigret, olhando em torno, fez uma pergunta ainda mais inesperada:

-Todos os relógios estavam funcionando? Que importância teria aquilo?

-Observe, Sr. Dandurand, que, embora três andares nos separem do apartamento da Srta. Paucot, ouvimos o piano quase com a mesma nitidez que do seu apartamento. A casa é sonora. Isto me tranqüiliza, pois se telefonarem para mim ouviremos com certeza.... Continuemos... O senhor estava sentado aí mesmo? Chegamos, portanto, ao envelope que continha...

-Cinqüenta e dois mil francos. Os lucros trimestrais da casa da Rua d’Antin.

-Ela contou o dinheiro?

-Contava sempre.

-Sabia que o senhor anotava a numeração?

-Nunca mencionei esse fato. Enquanto separava as notas de mil francos em montes de dez, observei que Béziers evitava há semanas responder nossas cartas. A pessoa que colocamos ali e que...

Fitou Maigret, persuadido de que ele não escutava. Teve mesmo a nítida impressão de que o comissário não dava nenhuma importância ao que ele dizia. Fumava o seu cachimbo, contemplava os retratos de família, principalmente os das três crianças, depois uma foto, a única no gênero existente no apartamento, de uma opulenta mulher de seus trinta anos, olhos e colo provocantes, uma bela mulher na verdade, e que era Juliette.

-Continue, Sr. Dandurand.

-Nesses casos o controle é difícil, senão impossível. Conforme disse, não podemos recorrer à justiça quando há irregularidades. É o que explica...

Maigret abrira a porta da sala de jantar e tornara a fechá-la.

-Continue, continue... Não me dê atenção. Desta vez, enquanto Dandurand falava sem convicção, ele saiu da sala.

-Ofereci-me para ir pessoalmente a Béziers e investigar junto aos clientes, a única maneira de se estabelecer uma média das receitas que...

-Continue! -insistiu a voz distante do comissário.

-Como queira... Lembro-me de ter observado que a época ruim não bastava para explicar tal queda na receita, queda que chegava a um terço no terceiro mês e...

O comissário reapareceu finalmente no limiar e fitou curioso o Sr. Charles. Era como se pensasse:

”Que é que ele está fazendo aqui? Por que fala sozinho?”

-Diga: enquanto conversavam, ouviu algum ruído no apartamento? Falava alto como hoje?

-Muito baixo. Juliette estava sempre com medo de acordar a sobrinha, apesar do brometo. Desconfiava também dos húngaros que moram ao lado e cujas brigas e vozes agudas ela escutava o dia inteiro. Tentava há meses despejá-los, mas eles se agarravam ao apartamento por todos os meios.

-Que fez ela com os cinqüenta e dois mil francos?

-Segurava-os quando me acompanhou à porta.

-Estavam no envelope?

-Sim, creio que havia recolocado as cédulas no envelope.

-Um envelope comum?

-Um envelope usado, que achei na minha escrivaninha. Espere: era amarelo... Que correspondência recebi nesse dia? Sim! Tenho quase certeza de que era um envelope do Credit Lyonnais, com o meu endereço datilografado...

-Não tornou a ver o envelope?

-Não, nunca.

A voz tinha um laivo de zombaria que ele não pôde conter. Maigret julgaria perturbá-lo, impressioná-lo com as suas manobras?

-Permite que eu fume, Sr. Comissário?

-Por falar nisso, o senhor fumava quando visitava sua amiga Juliette?

-Muitas vezes.

-Fumava o quê?

-Constato que está mais bem informado do que eu julgava. Se não tivesse a consciência tranqüila... Como soube? Nunca viu Juliette Boynet em vida, creio.

Desta vez, se não estava inquieto, confessava-se intrigado.

-Vejamos... Não há cinzeiro na sala. Mas tenho certeza de que nunca deixei pontas de cigarro por aqui. Quanto às cinzas...

Riu, nervoso.

-Confesso que não compreendo, Sr. Comissário. Vou explicar e o senhor entenderá o porquê da minha surpresa. Um dia, faz muito tempo, entrei aqui com o meu cachimbo e Juliette, que tinha lá as suas idéias, declarou não admitir que se fumasse cachimbo diante de uma senhora... Houve noites em que trabalhamos horas seguidas. Eu trazia, portanto, cigarros... Para não espalhar as cinzas, colocava um papel no canto da escrivaninha, papel que me servia de cinzeiro e que eu levava ao sair.

Maigret continuava a fitá-lo com olhar impessoal.

-Não posso entender como soube... A menos

que.

-A menos que... -repetiu o comissário,

-Que alguém estivesse escondido no apartamento, observando nossos gestos... Além disso, seria preciso que se comunicasse com o senhor, dizendo...

-Pouco importa, não acha? Quando Juliette Boynet o acompanhou à porta levava as cinqüenta e duas cédulas. Quanto ao envelope, serviu-lhe para recolher as cinzas. Juliette fechou a porta a chave, suponho.

-E puxou o ferrolho.

-Voltou direto ao seu apartamento? Não encontrou ninguém? Não ouviu coisa alguma? Sabe se sua velha amiga deitou-se imediatamente?

-Não sei...

Escutaram, atentos. O ruído insistente de uma campainha chegava-lhes aos ouvidos com nitidez. Maigret adiantou-se, resmungando:

-Com licença... Deve ser o telefonema que estou esperando.

A porta do apartamento do quarto andar ficara encostada, as luzes acesas. O telefone se achava no escritório.

-Alô! Torrence...

-É o senhor, chefe? Continuo na Rua Pas-de-laMule...

-Gérard?

-Não o encontrei. Escute. É bastante complicado... Não sei se devo contar pelo telefone...

-Espere...

O inspetor devia ter perguntado a si mesmo por que o mandavam calar. É que Maigret acabava de ouvir passos bem acima de sua cabeça. Calculou que seria no quarto de Juliette Boynet. O som era de perfeita nitidez. Embora o Sr. Charles estivesse de chinelos e tomasse as suas precauções, nada se perdia de suas idas e vindas.

Era claro que do seu apartamento o ex-advogado ouvia tudo o que se passava no quinto andar.

-Alô! Ó senhor está aí, chefe?

-Cale-se...

-Continuo aqui?

-Mandei que calasse a boca... ’ Súbito precipitou-se para fora, deixando o fone sobre a escrivaninha. Quando emrou no apartamento da Sra. Boynet, o Sr. Charles já se achava à porta, impassível, mas sombrio.

-Recebeu o telefonema?

-Ainda não terminei. Se quiser descer...

-Perdão... Temia ser indiscreto.

Maigret teve a impressão de que desta vez havia despeito e talvez angústia nos olhos frios do homem.

-Eu o acompanho, Sr. Comissário. Se soubesse que...

-Siga na frente, por favor.

-Para onde vamos?

-Para o seu escritório. Feche a porta. Fique de pé. Importa-se de colocar as mãos sobre a mesa?

Tomou novamente o fone.

-Pode falar...

-Ah! Pensei que haviam cortado a ligação. É o seguinte, chefe: ao chegar interroguei a porteira e ela me disse que Gerard Pardon ainda não tinha voltado, mas que a mulher dele estava em casa. Coloquei-me a menos de três metros da porta. Começou a chover...

-Não importa.

-Estou encharcado. Não ousei ir até o café da esquina para comer qualquer coisa. Passaram-se horas. Há alguns minutos, um quarto de hora no máximo, chegou uma moça de táxi. Parecia preocupada. Pelo chapéu vermelho reconheci a irmã de Gerard, a Srta. Berthe, que o senhor me apontou...

-E depois?

Mal sabia que o comissário escutava apenas a meio o relatório. Com o olhar examinava o Sr. Charles da cabeça aos pés. Quanto ao ex-advogado, fazia questão de manter as mãos, num gesto desajeitado, sobre a escrivaninha.

Que teria feito lá em cima? Era a primeira vez depois da morte de Juliette que se encontrava sozinho no apartamento da morta.

-Continue. Estou escutando.

-Eu não tinha recebido instruções. A moça subiu. Depois de alguns minutos pensei que havia trazido más notícias e resolvi subir também. Bati à porta. Foi ela quem abriu. Não há vestíbulo. Na cozinha, a Sra. Pardon soluçava. Fitou-me com olhos esgazeados, gritando:

” -Ele morreu?”

O rosto de Maigret devia ter manifestado grande surpresa, pois o Sr. Charles franziu as sobrancelhas.

-E depois?

-Fiquei embaraçado, juro, chefe... Perguntei à moça o que ela tinha vindo fazer. Declarou que éramos uns selvagens e se alguma coisa acontecesse ao irmão nós seríamos os responsáveis. Uma chorava, a outra acusava. E eu não entendia nada de nada!

”Finalmente, à custa de paciência, compreendi que Gérard tinha ido à casa da irmã. Parecia um louco. Queria dinheiro de qualquer maneira.

”Ela tentou acalmá-lo, descobrir a que se destinava o dinheiro.

”Ele respondeu com uma risada sarcástica:

” -Você saberá amanhã pelos jornais. Pelo amor de Deus, mede tudo o que tiver...

”Entregou-lhe cento e trinta francos exatos. Guardou apenas dez francos. O rapaz saiu como um louco. Ela tentou segui-lo, mas o irmão saltou num ônibus em movimento.

”Não sei o que fazer, chefe. Deixei-as para telefonar. Devo voltar para lá? A mulher de Gérard diz que ele vai se matar. Na minha opinião...”

-Basta! -interrompeu Maigret.

-Mas... que é que eu faço?

O comissário já desligara e, sem transição, ordenava ao Sr. Charles:

-Esvazie os bolsos.

-Como?

-Esvazie os bolsos!

-Já que insiste...

Obedeceu devagar, tirando um objeto após outro e colocando-os sobre a escrivaninha: uma carteira muito usada, uma chave, um canivete, um lenço mais que duvidoso, papéis, uma caixinha contendo pastilhas contra tosse, uma bolsa de fumo, um cachimbo e uma caixa de fósforos.

-Puxe os bolsos para fora. Dispa o colete.

-Faz questão de que eu me dispa?

A Sra. Maigret poderia fazer, com ligeira modificação, a observação que dirigira ao marido:

”Pergunto a mim mesma como é que você consegue deixar de esbofeteá-lo.”

Dos dois era realmente o Sr. Charles o mais calmo, o mais frio, e essa frieza não era isenta de insolência. Ao despir o casaco revelou mangas de camisa de punhos gastos e encardidos. O colete era passável. Os suspensórios não se achavam em melhor estado que a camisa, e as cuecas ultrapassavam as calças.

-Prossigo?

Não era uma bofetada o que o comissário lhe daria, caso não se contivesse, e sim um bom murro na cara.

-Quer que tire os chinelos?

-Quero.

Uma das meias estava furada, mas os chinelos não ocultavam nem mesmo um fragmento de papel.

-Observo, Sr. Comissário, que são onze da noite e que a essa hora, ainda que estivesse munido de um mandado na devida forma, eu teria o direito de expulsá-lo de casa. Não pretendo fazê-lo. Menciono o fato para sublinhar até que ponto eu...

-Sente-se.

Pegou o telefone e discou um número.

-Não faça cerimônia -disse, irônico, o exadvogado.

-Alô! Chame Lucas, por favor. É você? Ainda não? É preciso continuar, meu velho. Não! Não tenho tempo. Quem está por aí? Berger? Pena... Diga a ele que tome um táxi e venha a Bourg-la-Reine. Sim, quarto andar. Obrigado. Boa sorte!

Desligou e permaneceu imóvel, olhos fixos na escrivaninha.

-Se pretende ficar aqui por muito tempo, poderíamos tomar alguma coisa...

Um olhar de Maigret forçou-o a calar-se. Transcorreram dez minutos, um quarto de hora. Carros passavam na estrada. O piano emudecera. O prédio inteiro dormia.

Finalmente ouviu-se no térreo o ruído da porta que se fechava. Logo em seguida passos ecoaram na escada.

-Entre, Berger.

Chovia mais forte porque o chapéu e os ombros do inspetor, que no entanto viera de táxi, estavam molhados.

-Apresento-lhe o Sr. Charles. Está bastante nervoso e temo que cometa alguma tolice. Observei que não era legal ocuparmos o apartamento esta noite, mas ele não se importa! Fiquei aqui. Ele pode se deitar se quiser, mas nesse caso você velará como se vela por um parente enfermo, compreendeu? Virei aqui amanhã de manhã. Se me atrasar, não se impaciente e não o deixe sair. Poderia resfriar-se...

Abotoou o sobretudo e abasteceu o cachimbo calcando-o com o polegar.

-Desconfie do conhaque. Creio que não vale grande coisa...

Pegou a carteira de Dandurand e os papéis que ele tirara do bolso e colocara na mesa.

-Mandou o táxi esperar?

-Não, chefe.

-Pena... Boa noite.

Saiu, deixando os dois sozinhos. Esteve a ponto de subir ao quinto andar, mas para quê? Dandurand não era homem que deixasse pistas.

No corredor do térreo encontrou a Sra. ’Com-Sua-Licença’ em trajes de dormir, a cabeça mais que nunca inclinada sobre o ombro.

-Que aconteceu, Sr. Comissário? Outro crime no prédio?

Maigret não escutava. Mal percebeu algumas sílabas indistintas e respondeu maquinalmente:

-Talvez... Abra a porta, por favor.

 

-Entre, Maigret. Está melhor? Tomei a liberdade de deixar um visitante à espera na sua sala. Não sabia onde colocá-lo. A visita, aliás, é para você. Leia.

Maigret olhou sem compreender o cartão de visitas que dizia:

JEAN TINCHANT

Chefe de Gabinete do

Ministro do Exterior

Pede ao sr. diretor da Polícia Judiciária que preste toda colaboração ao Sr. Spencer Oats, do Instituto de Criminologia de Filadélfia, que nos foi especialmente recomendado pela embaixada do seu país.

-Que é que ele quer?

-Estudar os seus métodos...

O chefe não pôde conter uma risada, enquanto Maigret saía, ombros recurvos, punhos cerrados, como se pretendesse despedaçar o criminologista americano.

-Prazer, Sr. Comissário...

-Um momento, Sr. Spencer. Alô! Plantão? Aqui, Maigret. Nada para mim? Não o encontraram? Ligueme com Bourg-la-Reine, 19...

Não era antipático o americano. Rapaz alto, tipo universitário, cabelos ruivos, rosto magro, terno correto, bem talhado, ligeiro sotaque bastante agradável.

-É você, Berger? E então?

-Nada, chefe. Dormiu vestido no sofá. Começo a sentir fome e não há coisa alguma para se comer no apartamento. Não ouso descer para comprar croissants. O senhor está a caminho daqui? Não! Está bem comportado. Disse até que não se aborreceu com o senhor. Que no seu lugar faria o mesmo. E que o senhor não tardaria a perceber o erro que cometeu...

Maigret desligou e postou-se diante da estufa, que estava acesa e cuja presença surpreendia o americano.

-Em que posso servi-lo, Sr. Spencer? Chamava-o assim por não ter a mais ligeira idéia de como se pronunciava Oats.

-Gostaria, em primeiro lugar, Sr. Comissário, de conhecer suas idéias a respeito da psicologia do criminoso....

Maigret, entretanto, abria a correspondência que se achava na escrivaninha.

-Que criminoso? -perguntou, enquanto lia.

-O criminoso em geral...

-Antes ou depois?

-Não entendi.

Maigret fumava o cachimbo, lia as cartas, aquecia as costas e aparentemente não dava a menor importância àquela entrevista sem pé nem cabeça.

-Pergunto se se refere ao criminoso antes ou depois do crime. Porque antes, evidentemente, ainda não se trata de um criminoso. No decorrer de trinta, quarenta, cinqüenta anos e às vezes mais, ele é uma pessoa como qualquer outra, não?

-Certamente.

Maigret ergueu afinal o olhar e, com um brilho malicioso nas pupilas, indagou:

-Por que acha que a mentalidade do criminoso, Sr. Spencer, modifica-se de um instante para outro só por ter matado um dos seus semelhantes?

Aproximou-se da janela para contemplar uma das curvas do Sena.

-Com isso quer dizer que os criminosos são pessoas como todas as outras... -concluiu o americano.

Bateram à porta. Lucas entrou com um dossiê e fez menção de se retirar ao perceber o visitante.

-De que se trata, rapaz? Ah, sim! Leve o dossiê ao ministério. Suponho que o Hotel dês Arcades continua sob vigilância...

Trocaram algumas frases a respeito dos poloneses, porém Maigret não perdeu o fio das idéias.

-Por que alguém comete um crime, Sr. Spencer? Por ciúme, cupidez, ódio, inveja e, mais raro, por necessidade. Impelido por qualquer das paixões humanas, em suma. Essas paixões, todos as temos em grau mais ou menos intenso. Odeio o meu vizinho que, nas noites de verão, abre a janela para tocar uma cometa de caça. Não é provável que eu o mate... Contudo, há um mês, um antigo funcionário das colônias, a quem as febres tornaram menos paciente que eu, atirou no vizinho do apartamento de cima porque ele tinha perna de pau e caminhava pela casa durante a noite, martelando o soalho...

-Compreendo o que quer dizer. Mas a mentalidade do criminoso depois?

-Isso não me diz respeito. É caso para os jurados e os diretores de prisão ou penitenciária. Minha tarefa é descobrir os culpados. Assim, não me preocupo com sua mentalidade. Saber se este homem é capaz de cometer tal infração, quando e como a cometeu...

-O diretor da Polícia Judiciária sugeriu que o senhor me permitiria assistir a...

Não seria o primeiro! Pior para ele!

-Sei que está encarregado do caso de Bourg-laReine e li com atenção tudo o que os jornais publicaram. O senhor sabe quem é o culpado?

-Sei pelo menos quem não é culpado e que, no entanto... Vou lhe fazer uma pergunta, Sr. Spencer. Um homem convicto de que suspeitam dele, que imagina, com ou sem razão, que a Polícia tem provas contra ele... cuja mulher está esperando bebê para qualquer instante, e não tem um centavo em casa... Esse homem surge como um louco no apartamento da irmã e lhe pede todo o dinheiro que ela possui. A irmã entrega-lhe cento e trinta francos. Que é que ele faz com o dinheiro?

E Maigret colocou diante do interlocutor o jornal da véspera, com a foto de Gerard Pardon, sobre cujo ombro o comissário apoiava a mão.

-É o rapaz?

-É ele... Ontem à noite, deste gabinete, mandei que distribuíssem sua descrição a todas as delegacias da França. Todas as fronteiras foram alertadas. Cento e trinta francos...

-Ele é inocente?

-Estou convicto de que não matou nem a tia, nem a irmã. Se tivesse exigido o dinheiro antes do anoitecer, eu talvez pensasse que queria comprar um revólver para se suicidar.

-Mas é inocente?

-Justamente, Sr. Spencer. Era aí que eu queria chegar... Existem inocentes com alma de culpados e culpados com alma de inocentes. Por sorte, quando lhe entregaram os cento e trinta francos, os vendedores de armas já haviam fechado as lojas. Suponho, portanto, que tenha tentado fugir. Nesse caso, aonde se pode ir com cento e trinta francos? Até a Bélgica, no máximo.

Tomou o telefone e pediu a antropometria.

-Alô! Aqui, Maigret. Quem está falando? É você, Jaminet? Chame alguém e pegue os seus aparelhos. Espere-me lá embaixo num táxi.

E voltando-se para o americano:

-Creio que vamos fazer uma prisão.

-Descobriu o culpado?

-Talvez, mas não é certo. Para falar a verdade, eu me inclinaria a... Quer esperar um momento, Sr. Spencer?

Maigret dirigiu-se ao Palácio da Justiça, usando a famosa passagem que deveria ter sido condenada há tanto tempo, passagem sem a qual Cécile não teria sido assassinada. Era tão prática! Repetia-se inutilmente há dez, vinte anos...

O comissário bateu à porta do juiz de instrução. Recusou-se a sentar.

-Estou só de passagem. Há uma pessoa à minha espera. Venho perguntar, Sr. Juiz, se ficará muito aborrecido caso eu prenda um homem que talvez seja inocente.

É um indivíduo repulsivo, condenado há anos por atentado ao pudor, e que não ousará apresentar queixa.

-Neste caso... Como se chama?

-Charles Dandurand...

Dez minutos depois, Maigret e Spencer Oats encontravam-se com os dois técnicos da antropometria no táxi que os aguardava no Quai dês Orfèvres. Pouco depois das dez, o carro se detinha em Bourg-la-Reine, onde o nevoeiro chuvoso dava à casa de Juliette Boynet o aspecto de uma velha foto meio apagada.

-Esperem-me no patamar do quinto pavimento -disse o comissário aos técnicos.

Tocou a campainha do apartamento de Dandurand. Berger, que não tinha dormido e estava abatido, atendeu.

-Trouxe algo que se coma?

O Sr. Charles havia tirado o colarinho postiço e estava todo amarrotado, como quem dormiu vestido. Continuava calçando as velhas pantufas.

-Suponho... -começou.

-Não suponha coisa alguma, Sr. Dandurand, pois se enganaria com certeza. Em virtude da ordem de prisão assinada esta manhã pelo juiz de instrução, eu o detenho...

-Ah!

-Surpreendido?

-Não. Aborrecido pelo senhor.

-Tem alguma declaração a fazer antes de seguir para a Prisão da Santé?

-Nenhuma, exceto que está cometendo um erro.

-Continua ignorando o que fez ontem, enquanto eu telefonava desta sala, no quarto de Juliette Boynet?

Um sorriso amargo estampou-se no rosto do advogado, que não se barbeara.

-Fique com ele, Berger. Que se vista. Quando estiver pronto, você o conduzirá à delegacia para as formalidades.

Voltando-se bruscamente, agarrou uma garota pelos ombros magros e resmungou:

-Se eu a encontrar mais uma vez na minha frente, Nouchi...

-Que é que vai fazer? -perguntou, muito excitada.

-Você verá! E não será nada agradável! Desapareça!

Pouco depois abria a porta do apartamento do quinto andar.

-É isto, rapazes. Cuidado, Sr. Spencer. Não entre nesse quarto.

-Já tiramos as impressões digitais de todo o apartamento -protestou o fotógrafo.

-No dia seguinte ao do crime, é exato. E no quarto de Juliette Boynet só encontraram dois tipos de impressões: as dela e as de Cécile. Nenhuma impressão de homem -nem de Gerard Pardon, nem a do triste sujeito que acaba de nos deixar. Mas, ontem à noite, enquanto eu falava ao telefone do escritório dele, Dandurand entrou neste quarto. Tenho certeza porque ouvi os passos. Não sei o que fez. Para se arriscar a essa manobra mais que comprometedora ele devia ter graves razões. Vocês terão de descobrir em que objetos ele tocou. Vamos, trabalhem! Compreende agora, Sr. Spencer, por que pedi que não entrasse no quarto?

Os técnicos espalharam seu material e puseram mãos à obra. Maigret, enfiando as suas nos bolsos, ia e vinha nas outras peças do apartamento.

-Pouco divertido, não é? Uma velha avarenta, maníaca. Uma jovem, ou antes, uma senhorita madura e pouco dotada pela natureza. Quer descer um instante?

Chegaram à casa do Sr. Charles no momento em que este, de sobretudo e chapéu, saía acompanhado do Inspetor Berger.

-Não se preocupe com os seus bens, Sr. Dandurand. Ficarei com a chave do apartamento. Suponho, aliás, que não demore a chamar um advogado e que ele em breve esteja aqui.

Com essas palavras fechou a porta e entrou, não no escritório, mas no quarto do antigo advogado.

-Sente-se, Sr. Spencer. Está ouvindo?

-Não se perde uma palavra do que é dito lá em cima.

-Exato! Ignoro como são construídas as casas modernas na América, mas aqui são frágeis como caixas de charuto. Não se preocupe com o que dizem lá em cima os nossos amigos. Escute o ruído dos passos. Tente reconstituir os gestos.

-Parece... É bem mais difícil...

-Exatamente o que eu penso... Ouça! Tocaram numa gaveta. Abriram-na. Mas é capaz de dizer a que móvel pertence?

-Impossível.

-Um ponto estabelecido, portanto. De seu apartamento, Dandurand escutava tudo o que se dizia lá em cima. Poderia acompanhar, de modo geral, as idas e vindas das pessoas que se encontravam em casa de Juliette Boynet. Quanto aos detalhes. Se ao menos esse imbecil do Gérard não se atirou ao Sena!

-Mas, se é inocente...

-Eu disse que o considerava inocente, mas infelizmente não sou infalível. Insisti também no fato de que um inocente sofre com freqüência reações de culpado. Espero que Berthe tenha ficado com a mulher dele. A qualquer momento pode nascer uma criança.

Lá em cima arrastavam móveis.

-Se fosse avarento, Sr. Spencer...

-Não existem avarentos na América. É um defeito ou uma qualidade que um povo jovem como o nosso ainda não adquiriu.

-Suponhamos, nesse caso, que o senhor é uma velha francesa possuidora de milhões e vivendo tão modestamente quanto qualquer pessoa de rendimentos exíguos.

-É muito difícil para mim...

-Faça um esforço. Sua única alegria é contar o dinheiro que representa seus lucros. Há três dias este problema me persegue, pois dele depende a vida de um homem. Conforme o local onde esteja escondido o dinheiro muda o nome do culpado.

-Suponho que... -principiou o americano.

-Que supõe o senhor? -quis saber Maigret, quase agressivo.

-Se eu fosse quem descreveu há pouco, faria questão de ter o dinheiro sempre ao alcance da mão.

-Exatamente o que pensei. Mas observe que Juliette Boynet, embora quase paralítica, circulava pelo apartamento. Até cerca das dez da manhã ficava na cama, onde a sobrinha levava-lhe o café da manhã e o jornal.

-Quem sabe o dinheiro está escondido na cama? Creio que é hábito, na França, ocultar as economias no colchão...

-Mas, após as dez horas e até a noite, Juliette ficava na sala. Ultimamente guardava em casa oitocentos mil francos em cédulas de mil. Isso representa certo volume. Repare: somente duas pessoas poderiam saber onde estava escondido o dinheiro. A sobrinha, Cécile, que morava com a tia. Esta o escondia dela, mas por acaso...

-O Sr. Dandurand era confidente da velha?

-Não o bastante para que ela revelasse o esconderijo, creia! Uma pessoa como Juliette Boynet desconfiaria até do seu anjo da guarda. No entanto, conforme verificou, ouve-se neste quarto tudo o que se passa lá em cima. Vamos subir? Se telefonarem, escutaremos a campainha.

O dia estava tão úmido que o corrimão se tornara pegajoso. No apartamento da professora de piano, uma aluna desfiava escalas. Oshúngaros discutiam e ouvia-se com nitidez a voz aguda de Nouchi.

-E então, rapazes?

-É impressionante, chefe.

-Que é impressionante?

-Tem certeza de que o sujeito não usava luvas de borracha?

-Tenho provas...

-Caminhou sobre o tapete. Mas até o momento parece que não tocou em objeto algum, exceto a maçaneta da porta. Tiramos impressões e só encontramos as suas.

Um forte refletor estava ligado a uma tomada. Os aparelhos fotográficos modificavam a atmosfera do quarto que Juliette Boynet habitara por tanto tempo.

-Ela andava de bengala, não é? -falou de repente o americano.

Maigret voltou a cabeça com tanta vivacidade que parecia ter sido picado por um inseto.

-Espere... O objeto que...

Que poderia a velha transportar consigo do quarto para a sala e da sala para o quarto e conservar durante as refeições na sala de jantar? A bengala, claro! Mas não se ocultam oitocentos mil francos numa bengala, ainda que oca!

P olhar do comissário percorria mais uma vez a peça.

-E isto? -perguntou de repente, apontando um movelzinho muito baixo, recoberto de tapeçaria antiga, sobre o qual Juliette Boynet devia apoiar os pés quando se sentava. -Nenhuma impressão digital?

-Nada, chefe...

Maigret pegou o banquinho e colocou-o sobre a cama. Seus dedos deslizaram pelos pregos de cobre que prendiam a tapeçaria. Descobriu assim uma espécie de tampa. O utensílio fora, na verdade, planejado para abrigar brasas quentes e continha uma selha de cobre vermelho.

Silêncio. Todos viram na selha um volume enrolado num velho jornal.

-Os oitocentos mil francos devem estar aí -disse finalmente Maigret, reacendendo o cachimbo. -Verifique, Sr. Spencer. E não conte aos seus colegas do Instituto de Criminologia, pois morro de vergonha... Abri o colchão, o sofá, sondei as paredes, o teto, a lareira... E não me ocorreu que uma velha de pernas inchadas, arrastando-se com a ajuda de uma bengala, era acompanhada de um lado para outro por um maldito banquinho onde apoiava os pés! Cuidado com o jornal! Quero que vocês o examinem.

Nos dez minutos seguintes, Maigret, alheio ao que se passava à sua volta, acertou todos os relógios, o que desencadeou uma série de carrilhões.

-Terminamos, chefe.

-Encontramos as impressões, não?

-Encontramos. Quanto ao dinheiro, há oitocentos e dez...

-Preciso de envelopes, cera para lacrar... Lacrou a pequena fortuna e telefonou ao ministério para que um funcionário responsável viesse recolhê-la.

-Vamos, Sr. Spencer?

Na rua ergueu a gola do sobretudo.

-Foi um erro despedir o táxi. Mas acredite que o homem que mais me intimida na polícia é o caixa. Não sei se são ferozes nos Estados Unidos. Que tal bebermos alguma coisa naquele bistrô enquanto esperamos o ônibus? Ora, esqueceu o chapéu...

-Nunca uso chapéu...

Um olhar prolongado do comissário aos cabelos ruivos, onde as gotas de chuva lembravam pérolas. Havia coisas que Maigret decididamente não compreendia!

-Para mim um calvados. E para o senhor?

-Pode-se pedir um copo de leite?

Seria por isso que aquele homem de trinta e cinco anos possuía a tez rosada do focinho úmido de um jovem cervo?

-Copo grande, chefe!

-O leite?

-Não, o calvados!

Maigret abasteceu o cachimbo com polegar impaciente. Aquele crápula do Dandurand teria arriscado a cabeça para recolocar os oitocentos mil francos no banquinho da velha?

 

SAÍRAM do escritório do registro civil. Às perguntas de Maigret, um funcionário de dentes cariados respondera de início que não podia fornecer as informações solicitadas. Em seguida, à vista do distintivo do comissário, fora tomado de zelo tão febril e levava o dobro do tempo necessário à consulta dos volumosos registros.

A prefeitura não era nem antiga, nem moderna -era feia, em conjunto, nas proporções, no material, nos menores detalhes. Funcionários saíram ao mesmo tempo que Maigret e o americano, pois soava meio-dia; o personagem barrigudo, de queixo tríplice, a quem todos cumprimentavam com deferência, devia ser o prefeito de Bourg-la-Reine.

No patamar precedido de quatro ou cinco degraus, o comissário e seu companheiro marcaram um tempo de espera, pois desabava forte tempestade. Na pracinha, ao abrigo de árvores sem folhas, o mercado terminava. Desmontavam-se as barracas. O solo lamacento estava coberto de detritos. Num açougue fronteiro, a mancha sangrenta da carne pendurada; à caixa, uma mulher gorducha. Os alunos de uma escola próxima haviam sido liberados e espalhavam-se a gritar. Muitos tinham sapatos de sola de madeira. Um ônibus verde e branco...

Já não era a capital; não era também uma cidadezinha do interior, ou uma aldeia. Maigret relanceou para o americano e encontrou o olhar dele.

Spencer Oats compreendeu, pois esboçou um sorriso leve e velado como a paisagem.

-Também no meu país nem sempre o ambiente é bonito -murmurou.

A tarefa que acabavam de cumprir na prefeitura era do tipo que qualquer inspetor, qualquer subalterno poderia fazer. Maigret queria, em primeiro lugar, saber desde quando Charles Dandurand morava no prédio de Juliette.

Há quatorze anos. Antes morava num apartamento mobiliado na Rua Delambre, próximo à Avenida Montparnasse.

Há quatorze anos e meio o marido de Juliette, o empreiteiro Boynet, falecera.

Os dois policiais, à saída da prefeitura, esperavam que cessasse o pior do aguaceiro.

-Sabe por que os criminosos preferem lidar conosco a lidar com os magistrados, Sr. Spencer?

-Creio que começo a perceber.

-Somos violentos às vezes. Menos do que se diz, porém mais que um juiz de instrução, ou um substituto. Mas no decorrer do inquérito vivemos no ambiente do acusado. Vamos à casa dele. Conhecemos seus hábitos, sua família e seus amigos. Hoje de manhã fiz a distinção entre o criminoso antes e depois... O que fazemos questão de conhecer é o homem antes do crime. Quando o colocamos nas mãos do magistrado é o fim. Ele rompe, quase sempre em definitivo, com sua vida de homem. É um criminoso apenas e os magistrados tratam-no como tal.

Sem transição, Maigreí suspirou:

-Daria muita coisa para saber o que Charles Dandurand fez no quarto de Juliette. Recolocou o dinheiro no banquinho ou... A chuva melhorou...

Saíram correndo, o comissário de mãos nos bolsos, ombros recurvos, o americano desenvolto como se estivesse em pleno sol.

-Importa-se de almoçar num bistrô?

-Ficarei encantado, pois o pessoal da embaixada, que me acompanhou até agora, só me levou aos grandes restaurantes.

Tomaram o ônibus até a Porta d’Orleans e olharam de passagem o prédio que lembrava uma fatia de pão. A chuva escurecia os tijolos.

-O difícil é colocar-se no lugar deles, pensar, sentir da mesma maneira. Mais um obstáculo para o juiz, que vive num ambiente demasiado neutro. O prédio onde moro não é muito diferente deste. Entre!

Maigret empurrava a porta de um restaurante muito simples, com balcão de estanho, mesas de mármore, soalho coberto de serragem. Um homem vermelhão, avental de tecido azul, aproximou-se para apertar a mão do comissário.

-Há muito não o vemos! Preciso chamar a patroa. Mélanie! Que é que você tem de bom para o Sr. Maigret.

E Mélanie, barriguda, surgiu da cozinha enxugando as mãos.

-Se o senhor tivesse telefonado... Bem, temos coq au vin e hoje de manhã me trouxeram cogumelos muito bonitos. Seu amigo aprecia cogumelos?

Havia apenas alguns velhos clientes. Os vidros estavam embaçados e não se via coisa alguma da rua.

-O beaujolais de sempre, Sr. Maigret?

O comissário dirigiu-se a uma estreita cabine para telefonar e o americano, fitando-o através do vidro, notou que estava sério e preocupado.

-Ainda não conseguiram encontrar o idiota do Gérard -anunciou, sentando-se à mesa. -Hoje à noite vou passar em casa dele para visitar a mulher.

-O senhor disse que não tinham dinheiro suficiente...

-Já se tomaram providências, naturalmente. A criança jamais saberá em que circunstâncias veio ao mundo. Mas, afinal, por que Charles Dandurand...

Percebia-se que o que ele dizia não tinha importância. Um único problema o preocupava.

-Por que Dandurand?

-Se ele matou a velha. . . -arriscou Spencer.

-Se ele matou a velha, sou um imbecil e terei de recomeçar do início toda a investigação, Sr. Spencer. Para começar, por que a mataria? Viva era mais lucrativa para ele do que morta. Sabia que não herdaria da velha. Quanto a roubar os oitocentos mil francos que estavam em casa, verificamos que não o fez.

”Além disso, como o faria? Ele se levanta para sair... Ela o conduz até a porta e fecha-a com cuidado, sem dúvida alguma. Aferrolhou a porta, disse ele e eu acredito. Volta para o quarto... Despe-se... Já havia tirado uma das meias, sentada na cama, quando... Não, Sr. Spencer, não foi Dandurand quem tornou a subir, quem abriu a porta da entrada e... Contudo, quatro dias depois, quase na minha presença, não hesitou em atrair as suspeitas sobre si entrando no quarto. Por quê?

”Observe que os papéis da velha, os recibos, as escrituras, tudo o que se encontrava na escrivaninha da sala e que para o assassino não tem qualquer valor, uma vez que não poderá se utilizar dos documentos sem se trair, desapareceu.

”Em compensação, as cédulas que teoricamente são anônimas não saíram do esconderijo. Ou, caso tenham saído, a ele voltaram. Gosta de cogumelos à bor-Não é observador, Sr. Comissário, permita-me dize-lo, ou teria reparado que repeti três vezes que, se não tivesse ouvido falar em cog au vin... Quanto ao beaujolais, será o culpado se me mostrar um tanto lerdo hoje à tarde.

-Espere só o coq Mélanie foi durante vinte anos cozinheira de um dos nossos ministros que não foi bemsucedido, mas sabia apreciar a boa cozinha. Sabe que Juliette era uma bela mulher? No apartamento há uma fotografia dela. Eu me pergunto se, por acaso, o marido seria ciumento.

Aquelas simples palavras bastaram para mergulhálo em novo abismo de reflexões. Para retirá-lo foi preciso a chegada de Mélanie indagando como estava o coq au vin. A intervalos, Maigret relanceava para a porta.

-Está esperando alguém?

-Espero um senhor por quem não tenho muita simpatia. Parece que estava há duas longas horas no Quai dês Orfèvres. Pedi-lhe que viesse me encontrar aqui.

Minutos depois, um táxi parava à porta e o Dr. Leloup, gordo e cheio de importância, pagava ao chofer e entrava no bistrô.

-Trouxe o que prometi ao senhor -anunciou, colocando a pasta de couro sobre uma mesa desocupada. -Verá que meu ilustre cliente, o Sr. Monfils, não exagerou ao dizer...

O advogado não devia ter almoçado, mas o comissário não o convidou a partilhar da refeição, nem mesmo a despir o sobretudo.

-Verei tudo isso mais tarde.

-A investigação está progredindo?

’ -Lentamente, Dr. Leloup... Lentamente...

-Tomo a liberdade de apontar um detalhe que talvez lhe tenha escapado. Observe que não critico os métodos que lhe valeram certa celebridade. Enviei um elemento de confiança a Fontenay. Mandei que interrogasse pessoas de certa idade que conheceram a Sra. Boynet quando era jovem e ainda se chamava Juliette Cazenove...

Maigret comia sem responder, como que indiferente àquela tagarelice. O americano observava-o, curioso.

-Soube de coisas que o surpreenderão, com certeza.

Baixinho, o comissário murmurou:

-Não creio...

-Juliette Cazenove tinha fama de ser um tanto louca, ou, mais exatamente, louca pelo próprio corpo.

-Acusaram-na de ter sido amante de Charles Dandurand, não?

-Quem lhe contou?

-Ninguém me disse nada, mas eu desconfiava. Dandurand era uns dez anos mais velho que ela. Já nessa época devia apreciar as frutas verdes...

-Foi um escândalo na época.

-O que não impediu Juliette de casar com o empreiteiro e vir morar com ele em Paris. Sei de tudo isso, Dr. Leloup.

-Qual a sua conclusão?

-Não tirei conclusões. É muito cedo... Aposto que esse telefonema é para mim.

Precipitou-se para a cabine, a fisionomia refletindo esperança. Era, de fato, para ele, pois ficou muito tempo ao telefone. Ao voltar parecia aliviado.

-Sirva-nos mais um pouco de coq au vin...

Até parecia que não havia comido coisa alguma. Recuperara o apetite. Bebeu um copo cheio de beaujolais e enxugou a boca com as costas da mão. Seus olhos cintilavam.

-Encontraram Gérard! -suspirou finalmente. -Pobre sujeito!

-Pobre sujeito por quê?

-Porque agiu como o idiota que é. Outra garrafa, Désiré! Imagine que tomou realmente o trem para a fronteira belga, conforme previ. Na fronteira percebeu que a Polícia fazia uma inspeção mais minuciosa que de costume nos vagões. De repente perdeu a cabeça. Desceu na contramão e se pôs a correr pelo campo, escorregando no gelo e na lama. A Polícia perseguiu-o. Vendo uma fazenda, precipitou-se para lá. Sabe onde o encontraram após uma hora de busca? No banheiro! Debateu-se tanto que precisaram imobilizá-lo. Está sendo conduzido de volta. Chegará a Paris às três e cinqüenta.

-Confessou? -perguntou o Dr. Leloup. Maigret, com falsa franqueza:

-Confessou o quê? Já estava esquecendo o principal! Tenha a bondade, doutor, de telegrafar de minha parte ao seu cliente. Eu me pergunto se, por acaso, dadas as relações de amizade que os dois entrelinham, a tia Boynet não lhe teria confiado coisas embaraçosas... O que, não sei! Quem sabe ela dava presentes ao sobrinho? Não imagina a que ponto isto me interessa!

Finalmente conseguiram desembaraçar-se do advogado mais ou menos desonesto para degustar em paz o café de Mélaine e o velho armagnac de Désiré, que era natural de Gers, onde conservara amizades entre os vinhateiros. Eram apenas os dois no bistrô limpo e singelo, junto às vidraças opacas. Na mesa desembaraçada colocaram as cartas trazidas pelo advogado, todas escritas no papel de luto que a velha Juliette usava desde que inviuvara.

”Meus caros primos,

Recebi seus votos de boas-festas, que retribuo com afeto. É penoso para uma pessoa idosa como eu viver em meio a ingratos. Quando penso em tudo o que fiz pelos filhos de minha irmã, que...”

Maigret lia as cartas uma após outra e passava-as ao companheiro, que as examinava por sua vez. Eram todas semelhantes e datadas do dia 2 ou 3 de janeiro, pois respondiam aos votos dos Monfils.

”... Eles não perdem por esperar. Se julgam que um dia herdarão a minha fortuna...”

Noutra carta:

”Gérard é um inútil, que só me visita para pedir dinheiro. Como se eu o fabricasse!”

Bertha não era mais bem tratada que os outros.

Estou satisfeita porque ela decidiu sair daqui.

Esperava a todo instante vê-la em estado interessante, o que seria um escândalo no prédio.”

-Estado interessante? -espantou-se o Sr. Spencer.

-Maneira discreta de dizer que temia ver a sobrinha grávida.

Os dois sentiam calor. Achavam-se em estado beatífico. O armagnac perfumava a atmosfera e o paladar.

”É terrível estar sozinha, enferma e pensar que as pessoas só desejam o nosso dinheiro... Não consigo afastar a idéia de que, mais cedo ou mais tarde, me acontecerá uma desgraça.

”Vocês é que são felizes vivendo numa cidade pequena, sem as preocupações que me afligem. Cécile finge dedicar-se a mim, porém se inclina mais para o lado do irmão que do meu...

”Enfim, há uma pessoa que muito me deve, mas em quem não tenho total confiança...”

Maigret mostrou o trecho ao americano.

-Ela não confiava em ninguém.

-E tinha razão, não acha?

-Leia o trecho seguinte!

”Felizmente sou menos idiota que eles e tomei as minhas precauções. Se algo me acontecer, juro que não sairão lucrando...”

-”Eles”... -suspirou Maigret. -Colocava todos no mesmo saco, os que se aproximavam e aqueles que só queriam o dinheiro dela, a seu ver, inclusive o Sr. Dandurand. Principia a compreender?

-A compreender o quê? Maigret sorriu.

-Estou falando de modo quase tão vago quanto o dela, é verdade. Compreender o quê? Deveria ter dito ’sentir’... O senhor, que desejava estudar os meus métodos, conforme disse esta manhã, deve estar decepcionado. Eu o obrigo a caminhar na chuva. Levo-o a uma prefeitura banal, depois convido-o a comer coq au vin. Que quer que eu explique? Eu os sinto... Dandurand, ao sair da prisão, instalou-se em Paris num apartamento mobiliado. Reencontrou Juliette, que ainda não era viúva. Que aparência tinha o marido? Dele só temos algumas fotos. Um homem de quarenta e cinco anos, alto, robusto, banal. Juliette e Dandurand reataram suas antigas relações. Encontravam-se, com certeza, no apartamento do ex-advogado, na Rua Delambre. O marido morre e Dandurand não tarda a instalar-se no prédio da amante, a quem continua a visitar às escondidas.

-Não compreendo por que se escondiam -objetou o americano.

Houve um longo silêncio. Maigret, olhos no copo, suspirou e tomou um gole de armagnac. E, sem transição:

-Veremos! Désiré! A conta, meu velho. Se eu não fizer nada que preste hoje à tarde, a culpa é sua e de sua mulher.

”Que foi que o nosso pilantra fez no quarto de Juliette? Ajude-me, Sr. Spencer! Se encontrarmos uma resposta satisfatória para essa pergunta...”

Como se fosse um secretário modelar, Spencer Oats arrumou as cartas tarjadas de preto que se espalhavam sobre a mesa.

-Precauções -arriscou.

-Precauções? Maigret franziu o cenho.

Numa das cartas, a velha avarenta não mencionara, de fato, precauções tomadas contra os que queriam o seu dinheiro? Desconfiava de todos, inclusive do antigo amante.

-Almoçou bem, Sr. Maigret? -quis saber a truculenta Mélanie, que contava mais de um personagem célebre entre a sua clientela e tratava-os todos com maternal familiaridade. -Copiei a receita para a Sra. Maigret. Ela experimentou?

O comissário não escutava. Mão enfiada no bolso da calça, onde acabara de guardar o troco, fixou o avental de Mélanie, como que em suspenso. Finalmente murmurou:

-Perguntava a mim mesmo por que Cécile teria morrido. Compreende, Sr. Spencer? Tudo o mais se explicava... Era fácil... Mas Cécile morreu e... Desculpe, Mélanie. Almoçamos muito bem, obrigado, e, se não tiver outras recordações de Paris, meu amigo poderá falar a respeito em Filadélfia...

Estava muito agitado. Na rua não pronunciou uma palavra e, ao chegar à esquina da Avenida d’Orleans, ergueu o braço para chamar um táxi:

-Quai dês Orfèvres, depressa! A caminho mudou de idéia.

-Vamos antes à Estação do Norte... Chegada dos grandes percursos... É mais tarde do que eu pensava...

Seria efeito do coq au vin, do beaujolais, do maravilhoso bolo de café preparado por Mélanie e do armagnac de Désiré? O caso é que Spencer Oats fitava o companheiro com ar enternecido. Tinha a impressão de assistir a uma transfiguração progressiva nas últimas horas. O comissário, mergulhado no seu sobretudo, chapéu jogado para trás, cachimbo entre os dentes, dedicava-se a viver realmente a vida de todos aqueles personagens repugnantes, mesquinhos, ou comoventes, do drama que fora encarregado de esclarecer.

-Talvez a mulher dele esteja para dar à luz...

Tinha as faces vermelhas como se fosse ele o marido. Maigret se achava mentalmente no trem, entre dois policiais, no lugar de Gérard. Estava junto da mulher, acompanhando Berthe; estava no prédio de Bourg-laReine, pés sobre o tamborete coberto de tapeçaria da velha Juliette; e estava também no andar de baixo, na peça de onde o Sr. Charles ouvia o que se passava sobre sua cabeça.

A intervalos, num cruzamento movimentado, via-se o disco pálido de um relógio elétrico, o bastão branco de um policial de pelerine. Maigret contava os minutos, inclinava-se para diante e soerguia-se no banco, dando a impressão de querer tornar o táxi mais leve para que corresse mais.

Chegaram à Estação do Norte na hora exata, quase atrasados. Um grupo de curiosos. Um guarda a gritar:

-Afastem-se...

Dois policiais empurravam à sua frente um rapaz magro, de calças enlameadas, impermeável rasgado, que resistia, algemado, como um cavalo rebelde. E aquele Gérard febril, furioso, era para o público a própria encarnação do criminoso subjugado!

Seus lábios tremeram quando avistou o comissário.

-O senhor se considera muito esperto, não é?

-Entrem neste táxi, senhores -disse Maigret aos policiais, a quem exibiu o distintivo.

Não hesitaram. Estavam nervosos. Durante toda a viagem tinham permanecido sob a ameaça de que o prisioneiro se atirasse pela porta do trem.

-Aposto que ninguém deu a menor atenção a minha mulher!

Grandes lágrimas, que ele não pôde enxugar por causa das algemas, vieram-lhe aos olhos.

 

De que brigada?

-De Feignies, Sr. Comissário.

-Há um trem às cinco e sete... Preferem dormir em casa ou em Paris?

Maigret mandou parar o táxi junto ao meio-fio, na esquina da Rua La Fayette. Os transeuntes, inclinados para a frente para se protegerem da tempestade por trás do guarda-chuva, lançaram um olhar curioso ao táxi que circulava com policiais. O comissário assinou os papéis sobre os joelhos. Os agentes desceram e dirigiram-se a um bar. Maigret baixou o vidro, falou à meia-voz com o chofer. Quando o carro tornou a se movimentar, tirou do bolso uma pequena chave e livrou Gerard Pardon das algemas.

-Agora faça o favor de se manter quieto, ouviu? Se tivermos de enfrentar algumas dezenas de inocentes como você, precisaremos triplicar o efetivo da Polícia Judiciária.

Gérard, que olhava as ruas como se não visse Paris há anos, estremeceu. Fixando no comissário as pupilas eternamente desconfiadas, perguntou:

-Por que disse ’inocentes’? Maigret não pôde conter um sorriso.

-Pretende fingir agora que é culpado?

-Se acha que sou inocente, por que mandou me prender?

-E se você é de fato inocente por que fugiu? Por que, ao ver policiais, desatou a correr como um frango e se trancou num local exíguo, onde ninguém permanece voluntariamente durante horas?

Spencer Oats, reclinado no banco, digeria com ar beatífico, lábios distendidos no vago sorriso das pessoas que almoçaram bem e acompanham com indulgência as peripécias de uma peça teatral. O táxi tinha as janelas embaçadas como uma lanterna sem polimento. Através dos vidros, as silhuetas pareciam deformadas; os guardachuvas entrechocavam-se ao longo das calçadas, assumindo formas burlescas. Quando o carro parava num sinal, avistavam-se às vezes os passageiros de ônibus imobilizados como figuras de museu.

-Escute, rapaz. Sei quem matou sua tia.

-Não é verdade.

-Sei quem matou sua tia e vou prová-lo daqui a pouco.

-É impossível -obstinou-se Gerard, meneando a cabeça. -Ninguém pode saber...

-Exceto você, não é? No entanto, aposto que estava dormindo

Desta vez, o irmão de Cécile estremeceu e fitou apavorado o interlocutor, sem crer no que ouvia.

-Está vendo?

-Mas... para onde vamos?

Na névoa chuvosa, Pardon acabava de reconhecer a Praça da Bastilha. Por causa da mão única, o carro enveredou pela Rua Saint-Antoine, a fim de contornar a Praça dos Vosges.

-Escute, há um prêmio de vinte mil francos para quem encontrar o assassino. Por motivos que não lhe interessam, a Polícia Judiciária não receberá de modo algum o prêmio.

-Quieto! Creio que sua mulher ainda está em casa, com sua irmã Berthe. Já que tem certa repugnância pela maternidade, aqui está um recibo referente aos vinte pacotes que você ganhará daqui a pouco. Suba depressa!

Nós esperamos no táxi. Que clínica havia escolhido, no caso de Cécile conseguir o dinheiro?

-Clínica Saint-Joseph.

-Berthe poderá levar sua mulher à Clínica SaintJoseph e você irá para lá hoje à noite!

Um tanto surpreso, o americano olhava de um para o outro.

-Nada de tolices, hein?

O carro parou e Gérard, aturdido, talvez ainda desconfiado, hesitou.

-Vamos, seu idiota!

Nos dez minutos seguintes, Maigret fumou o cachimbo sem pronunciar uma palavra. Quando Pardon reapareceu à porta, enxugando os olhos, limitou-se a relancear para Spencer Oats.

-Quai dês Orfèvres, chofer. Por falar nisso, há quanto tempo não se alimenta?

-Eles me deram um sanduíche no trem. Não estou com fome, palavra... Tenho sede. Eu...

Tinha a garganta tão apertada que mal conseguia articular as sílabas.

Pararam novamente diante de um bar e Maigret, para ajudar a digestão do coq au vin e principalmente do bolo de café, tomou uma cerveja.

Dez minutos depois abastecia ao máximo a estufa e acendia o abajur verde da escrivaninha.

-Sente-se. Tire a capa, que está encharcada. Instale-se diante do fogo para secar as calças. Que absurdo fazer uma coisa dessas!

A noite não caíra de todo. Pela janela avistavam-se guirlandas de luzes pálidas que contornavam o Sena. Era a hora em que a Polícia Judiciária vivia seus momentos mais intensos. Ouviam-se portas a se abrir e fechar, passos no corredor, telefones tocando, matraquear contínuo das máquinas de escrever.

-Torrence! Mandei fazer relação de todas as pessoas que se apresentaram à Polícia Judiciária na manhã de 7 de outubro. Vá buscá-la.

Sentou-se finalmente, escolhendo na escrivaninha um cachimbo maior que os outros, e começou:

-Que foi que você bebeu no apartamento de sua tia? Espere, vou ajudá-lo. Estava totalmente sem dinheiro, não é? Sabia que sua mulher teria a criança a qualquer momento e não havia enxoval para o bebê. Você tinha o hábito de recorrer a Cécile. Vamos, não precisa baixar a cabeça. Infelizmente Cécile só podia lhe dar somas insignificantes, retiradas do dinheiro das compras, que era obtido com dificuldade. Em geral você esperava sua irmã na rua. Naquela noite subiu e entrou no apartamento. Escondeu-se no quarto de Cécile, enquanto ela cuidava da Sra. Boynet. Correto?

-Correto.

-Quando sua tia se instalou na sala para jantar, Cécile foi até a cozinha. Entreabrindo a porta, você disse que precisava de dinheiro, fosse como fosse...

-Disse que estava a zero e que de preferência a ver minha mulher...

-Isso mesmo. Não só comoveu Cécile, como a assustou. Uma espécie de chantagem emocional.

-Estava resolvido a me matar.

-Depois de matar sua mulher! Imbecil!

-Juro, Sr. Comissário, que me mataria. Há três dias que...

-Cale-se! Sua irmã não podia conversar com você naquele momento, porque a velha poderia ouvir. Trabalhou como de costume. Jantou com a tia. Será que pediu dinheiro e a velha recusou? Quando a Sra. Boynet se deitou, pois suponho que tenha se deitado, já era muito tarde para você sair da casa. A porta de entrada estava fechada. Teria que pedir à porteira para abri-la e ela poderia falar à proprietária. Cécile deve ter levado alguma coisa para você comer no quarto. Que foi que comeu?

-Queijo e pão.

-Bebeu o quê?

-Primeiro um copo de vinho.

-Nada mais?

-Uma xícara de chá, que Cécile tomava todas as noites, pois sofria do estômago. Aconselhou-me a tomálo. Eu tinha chorado, estava muito abatido e sentia ânsias de vômito.

-Cécile fez com que se deitasse na cama dela.

-Sim. Ainda falei um pouco sobre Hélène. Depois, não sei como, adormeci.

Maigret trocou com o americano um olhar cheio de compreensão.

-Você dormiu porque tomou o chá destinado a sua irmã e no qual a tia colocava forte dose de brometo nas noites em que recebia o Sr. Charles. Tudo resultou desse acaso de aparência insignificante. Se Cécile tivesse tomado o chá, como de costume, sua tia ainda estaria viva e, neste caso, também sua irmã.

Maigret levantou-se e, postando-se à janela, de costas para a sala, prosseguiu como se falasse consigo mesmo:

-Cécile, sentada na poltrona depois de lhe ceder a cama, não conseguia dormir e com bons motivos. A velha Boynet aguardou a hora do encontro, vestiu o roupão e as meias, certa de que ninguém a escutaria, e foi aguardar o Sr. Charles atrás da porta. Bastou o seu estômago enjoado e uma xícara de chá para modificar o destino dos dois cúmplices.

-Por que falou em cúmplices? -exclamou o rapaz, que havia empalidecido.

-Não é exato? Bem, deixe-me continuar. Faz calor demais aqui.

E abriu a porta que dava para a sala vizinha.

-Os dois cúmplices estão na sala, iluminada por uma única lâmpada. Cécile, que ouviu ruído, deslizou até o vestibule, ou a sala de jantar, e escutou, despercebida. Discutiam à meia-voz os seus negócios, que não eram muito limpos. A casa de Béziers... a da Rua d’Antin... Imagino que a pobre Cécile tenha levado bastante tempo para compreender de que negócios se tratava. O Sr. Charles entrega os cinqüenta mil francos a sua velha amiga. Ela fecha a escrivaninha, mas continua com o dinheiro na mão. Leva o ex-advogado até a porta. Passa o ferrolho. Volta ao quarto com um sorriso de satisfação. Um dia de sorte. Sua fortuna se ampliou. Abre o tamborete coberto de tapeçaria, que serve de cofre-forte, e Cécile, olho na fechadura, vê maços de notas de mil francos. Você continua a dormir. Reflita antes de responder. Foi despertado por ruídos insólitos?

-Não. Foi minha irmã quem...

-Espere. Sua tia se despe. Já retirou uma das meias quando Cécile, a quem você assustou com suas ameaças de suicídio...

-Eu não podia prever... -gemeu Gérard.

-É o que a gente sempre diz. Seja como for, sua irmã surgiu de repente diante da velha assustada. A visão das notas, que representam uma fortuna, insuflou-lhe coragem. Exige dinheiro novamente. Já não suplica. Mostra-se quase ameaçadora. Nem uma nem outra suspeitavam que lá embaixo o Sr. Charles, surpreendido e assustado, ouve tudo o que se passa. Suponho que sua tia tenha insultado aquela a quem considerava sua devedora, censurando-a mais uma vez e lembrando o que fez por ela e pela família. Quem sabe ameaçou gritar por socorro?

-Não foi bem assim -disse o rapaz, lentamente.

-Então, fale!

-Não sei exatamente que horas seriam. Ouvi que chamavam meu nome diversas vezes. Tive muita dificuldade para acordar e principalmente para compreender. Estava entorpecido, como se tivesse bebido muito. Cécile, sentada na beira da cama...

”Gérard! Gérard! Que é que você está sentindo? Você tem de me escutar!

”Parecia mais serena que de costume. Pensei que não se sentisse bem, pois estava lívida, de olheiras. Falava em voz baixa, destacando as sílabas.

“ Gérard, acabo de matar nossa tia...”

Depois ficou muito tempo imóvel, olhos no chão.

”Eu me levantei. Queria me precipitar para o quarto da tia.

”Fique aqui. Você não deve...

-Estava pensando nas impressões digitais -interveio Maigret.

E evocou a Cécile impassível que o esperava horas seguidas no aquário.

-Foi ela quem me disse, quem me contou como aconteceu. Tia Juliette estava sentada na beira da cama. Ao ouvir ruído mergulhou a mão sob o travesseiro, onde tinha o hábito de colocar o revólver, pois era medrosa ao extremo...

”Você! -murmurou, reconhecendo Cécile. -É assim que está dormindo?... Confesse que me espionava...

”Escute, tia... Há pouco pedi algum dinheiro para Gerard, ou antes, para a mulher dele, que vai ter um bebê.

”Vá se deitar.

”A senhora é rica, eu sei agora. Precisa me escutar. Gérard vai se matar se...

”O vagabundo do seu irmão está aqui?

”Minha tia tentou se levantar, segurando o revólver. Cécile ficou tão apavorada que deu dois ou três passos para a frente, agarrou-lhe um braço.

“A senhora tem de me dar o dinheiro!”

A tia caiu para trás. Debatia-se, tentando recuperar o revólver. E foi então que minha irmã apertou o pescoço dela.

-Friamente! -disse a voz de Maigret, com ressonâncias inesperadas.

Sim, ele se enganara ao imaginar uma cena tumultuosa. Cécile não perdera o sangue-frio. Era uma ovelha. Vivera resignada anos e anos, sem mesmo percebê-lo, de tal modo a humildade lhe era natural. Bastara pouca coisa, a vista de um maço de notas, a certeza de que a tia sempre a explorara e enganara...

-Continue, rapaz.

-Ficamos muito tempo calados. Cécile saiu por um instante, a fim de verificar se tia Juliette estava realmente morta.

”Mais tarde, quando abriu a boca foi para dizer:

”É preciso avisar a polícia...”

No escritório de Maigret, invadido pelo crepúsculo, a que o abajur verde lançava estranhos reflexos, burilando as fisionomias, baixou o silêncio. Um cachimbo crepitou.

Era fácil imaginar irmão e irmã arrasados de estupor no apartamento do edifício erguido à margem da estrada nacional. No apartamento de baixo, em seu quarto, o Sr. Charles, aflito, ouviu todos os murmúrios.

”Vou sair agora...”

Cécile fitou o irmão. A polícia jamais acreditaria que Gérard era inocente do crime. Sentiam-se ambos doloridos, exaustos como após uma longa corrida.

Pedir à porteira que abrisse a porta? Ela não deixaria de espiar pela janelinha quem saía do prédio a tais horas. Todos os relógios do apartamento soavam, um após outro. A cada toque, irmã e irmão estremeciam.

”Escute, Gérard... Amanhã de manhã vou procurar o Comissário Maigret e contar tudo... Você aproveita o momento em que a porteira estiver apanhando as latas de lixo no pátio para sair daqui e voltar para casa...”

Que estranha vigília! Estavam tão isolados do mundo como aqueles imigrantes que a gente vê sentados no chão, entre suas trouxas, na sala de espera das estações, ou no convés dos navios.

-Qual dos dois teve a idéia de abrir a escrivaninha e examinar os papéis? -perguntou Maigret, reacendendo o cachimbo.

-Foi Cécile, bem mais tarde. Acabava de preparar duas xícaras de café, pois eu estava entorpecido. Nós nos achávamos na cozinha, quando ela murmurou de repente:

”Contanto que aquele homem não torne a subir... ”E acrescentou:

”Contei ao comissário que alguém entrava aqui à noite. Ele não acreditou. Agora... ”

Maigret fixava o retângulo nítido da janela cerrando os dentes com força na haste do cachimbo.

“Deus sabe se depois de sairmos...”

Então, com toda a calma, Cécile propôs retirarem os documentos da escrivaninha. Não tinha idéia de fugir com o dinheiro, nem de tirar uma parte para o irmão, que estava tão precisado.

-Leu os documentos? -perguntou o comissário.

-Li.

Levantando-se, aproximou-se então da porta que havia aberto pouco antes.

-O senhor estaria mais à vontade aqui, Sr. Dandurand. Creio que de agora em diante vamos falar principalmente no senhor.

O Sr. Charles, que se achava na sala vizinha, vigiado por um inspetor, fez uma entrada impressionante. Haviam-lhe retirado o colarinho, a gravata e até os cordões dos sapatos. Não se barbeava há dois dias. Algemas prendiam-lhe os pulsos.

-Pode ficar de pé, não pode? Ou está cansado demais?

Gérard erguera-se de um salto, julgando ter caído numa armadilha.

-Que é que...

-Calma, Pardon. Continue sua história. Insisto em que o Sr. Dandurand a escute. Os dois sentaram-se à escrivaninha, sua irmã e você, e examinaram os papéis. Havia alguns documentos comerciais, recibos, extratos de contas...

-E também cartas.

Gérard falou de olhos fixos no ex-advogado, como se temesse que, apesar das algemas, ele o esbofeteasse.

-Cartas de amor, não é?

Ouviu-se então a voz do antigo advogado.

-Um momento! Gostaria de saber se isto é uma acareação.

-Exatamente, Sr. Dandurand. .

-Nesse caso, peço, exijo, conforme me faculta a lei Que meu advogado esteja presente.

-O nome do seu advogado, por favor?

-Dr. Planchard.

-Torrence! Torrence! -chamou Maigret. -Quer telefonar para o Dr. Planchard? Espere! A esta hora deve estar no Palácio da Justiça.

-Está defendendo uma causa na Décima Primeira esclareceu o Sr. Charles.

Corra à Décima Primeira e traga-o aqui... Se o caso que esrá defendendo ainda não tiver terminado, diga-lhe que solicite um adiamento. Por mim...

O silêncio reinou por cerca de trinta minutos na sala de Maigret, onde o mais ligeiro movimento rompia a calma absoluta, à maneira de um seixo lançado a um charco.

Vara

-Sente-se, Dr. Planchard. Não escondo que provavelmente pedirei ao juiz de instrução que acuse o seu cliente de homicídio voluntário com premeditação. Pode continuar, Pardon. Falava há pouco de cartas de amor. Se não me engano essas cartas datam de quinze anos

atrás.

-Não sei. Não havia datas.

Sorriso triunfante do advogado, que assumia atitudes como se já estivesse no tribunal. Maigret interpelou Spencer Oats:

-- Lembra-se de nossa visita àquela feia prefeitura de Bourg-la-Reine?

E voltando-se para Gérard:

-Que diziam as cartas? Um momento. Vamos estabelecer um ponto importante. Sua irmã, diante da gravidade do que as cartas revelavam, decidiu mostrá-las a mim quando veio se entregar, não foi? Colocou-as na bolsa, juntamente com todos os papéis que se achavam na escrivaninha.

-Exato.

-Neste caso, exijo que exiba esses documentos -interveio o advogado, dirigindo-se a Maigret.

-Calma, doutor.

Um sorriso equívoco veio aos lábios do Sr. Charles.

-Não se alegre tão depressa, Dandurand! Sei que recuperou essa correspondência demasiado comprometedora e que a destruiu. Mas não esqueça que se aproveitou de um telefonema, que me afastou por um instante, para entrar no quarto da Sra. Boynet. Continue, rapaz. Diga primeiro como iniciavam as cartas.

-Com as palavras ”Minha querida”.

Súbito, Maigret pareceu achar graça em alguma coisa.

-Vou interrompê-lo novamente, o tempo de dizer ao meu colega americano, que poderia ficar com uma idéia lamentável dos amores franceses, que à época em que as cartas foram escritas a Sra. Boynet era quinze anos mais moça. Se já não era tão jovem, pelo menos não parecia o espantalho de bengala que se tornara nos últimos tempos. Quantas eram as cartas, Gérard?

-Umas trinta. A maioria não passava de bilhetes. ”Amanhã às três, no lugar de sempre. Beijos. Teu...”

-Assinatura?

-Um C.

O Sr. Charles, que ninguém convidara a se sentar, não afastava os olhos do rapaz. Tinha o rosto cor de cinza, mas estava longe de perder o sangue-frio.

-Um C. nada prova -objetou o Dr. Planchard., -Se esses papéis forem anexados ao processo, serei obrigado a solicitar perícia grafológica.

-Não serão anexados ao processo. Não estes, pelo menos. Continue, Gérard. Alguns bilhetes seriam mais longos.

-Havia quatro ou cinco cartas.

-Faça um esforço de memória.

-Lembro-me de que num deles haviam escrito: ”Coragem! Pense que dentro de algumas semanas você estará livre e nós nos sentiremos finalmente em paz. ”

O Dr. Planchard riu, irônico:

-A mulher estava grávida?

-Não, senhor! Trata-se de pessoa que tinha marido e amante. A carta foi escrita pelo amante...

-O marido estava doente?

-É o que precisaremos verificar. Continue, rapaz. Gérard, embaraçado com os olhares voltados para ele, balbuciou:

-Lembro-me de outra frase: ”...Você vê que ele nada percebeu. Paciência! É melhor que não nos encontremos nos próximos dias. Com a dose atual levará duas semanas no mínimo. Acelerar seria perigoso... ”

-Não compreendo! -disse o advogado, tossindo.

-Lamento, doutor...

-Continuo à espera dos documentos em questão. Permita-me dizer-lhe que acho muito imprudente de sua parte basear...

E Maigret devagar, suave:

-Caso insista, solicitarei a exumação de Joseph Boynet e o exame do que dele resta após quinze anos. Não deve ignorar que a maioria dos venenos, em especial os que são ministrados em doses mínimas, como o arsênico, persistem por muito tempo.

Torrence interrompeu-o, colocando diante dele a relação das pessoas que haviam comparecido à Polícia Judiciária na manhã do assassinato de Cécile.

 

Deve estar cansado de ficar de pé, Dandurand. Torrence! Traga uma cadeira. Há instantes o Sr. Charles vacila...

-Está enganado, Sr. Comissário. Continuo à espera do mais ligeiro fragmento de prova...

-Paciência! Seu advogado, o Dr. Planchard, não conheceu a velha Juliette e talvez seja útil fazer uma breve descrição. Permite, Dr. Planchard?

O badvogado esboçou um gesto vago e acendeu um cigarro.

-Na juventude, quando ainda se chamava Cazenove, Juliette fora amante de Dandurand em Fontenayle-Comte, e toda a cidadezinha comentava o caso. O Dr. Dandurand não fora ainda condenado por atentado aos bons costumes. Era bem mais jovem e acredito que tivesse alguns atrativos. O caso é que Juliette, vinda de família arruinada, não recusa o belo casamento que surgiu na pessoa de Joseph Boynet e não hesitou em sacrificar a irmã para engordar seu dote.

”Que idéia faria de Paris e da vida de um empreiteiro? Não sei...

”Passou a viver em Bourg-la-Reine, com um marido ciumento, uma existência carente de luxo e de brilho.

”Passaram-se os anos e em Fontenay o antigo amante, Sr. Dandurand, envelheceu sem que se extinguisse a paixão pelas jovens e, mais tarde, pelas muito jovens...

”Passo adiante. Dois anos de prisão. Pouco, em suma.

”E um belo dia surge em Paris, num apartamento mobiliado da Rua Delambre, afastado para sempre não só dos quadros de sua profissão, como do mundo das pessoas honestas.

”Onde se terão encontrado? Não importa. O caso é que voltaram a ser amantes e o marido começou a se tornar incômodo.

”Incômodo principalmente para Juliette, estou convencido. Talvez tenha partido dela a idéia de se desembaraçar de um cônjuge que a impedia de viver à vontade.

”O amante aconselhou-a, conforme provam as cartas...”

-Cartas que eu desafio a apresentar! -interveio o advogado, mergulhado em seu dossiê.

Essas cartas não serão apresentadas, uma vez que forçaram o seu cliente a cometer um segundo crime.

-Nesse caso...

Um gesto largo, como se o advogado, no pretório, envergando a toga preta, varresse o espaço com suas mangas amplas.

-Paciência, caro Dr. Planchard. O marido morre, finalmente. Guloso, bebedor e trabalhador, foi vitimado, segundo o médico, por uma crise cardíaca. E então...

Fez uma pausa, fixando primeiro o Sr. Charles, depois Spencer Oats. E com um sorriso pleno de ironia:

-Foi então que a nossa Juliette se transformou, quase sem transição, em velha maníaca! Talvez ainda se sinta atraída pelo cúmplice, mas teme-o. Desconfia de tudo, pois sabe agora como é que se morre. Torna-se avara. O Sr. Charles instala-se no prédio, no apartamento logo abaixo do dela, mas, preocupada com sua reputação, só o encontra longe dali. Duas sobrinhas e um sobrinho caíram-lhe do céu. Mais tarde, as pernas a impedem de sair, e para receber à noite seu cúmplice toma a precaução de adormecer Cécile com ajuda de brometo.

Se Cécile não tivesse problemas de estômago que a obrigavam a tomar chá todas as noites, só Deus sabe...

”A Sra. Boynet guardou as cartas do passado na secretária trancada da sala. Dandurand fez para ela investimentos miríficos, embora vergonhosos. A amante de ontem tornou-se uma velha avarenta e impotente. Estamos em presença do membro mais odioso do falso casal. Um sobrinho e uma das sobrinhas resolvem sair de casa. Ótimo! Resta a pobre Cécile, nascida com alma de escrava ou de santa.”

-Gostaria de fazer uma pergunta, Sr. Comissário. Era o advogado.

-Em que se baseia o senhor para...

-Direi daqui a pouco, doutor. Enquanto espera, peço-lhe que faça um esforço para me acompanhar. O amor transforma-se em avareza. Diz-se que uma paixão substitui outra, um prego expulsa o outro. É preciso um azar, quase um acidente, no caso uma xícara de chá que muda de destino, bebida por Gérard e não por Cécile... e o drama explode.

”De seu apartamento, Dandurand tudo escutou. Sabe que lá em cima há duas pessoas a par de tudo. Sabe que Cécile decidiu me contar tudo, trazendo os documentos.

”Poderia, em plena noite, subir ao quinto andar, bater à porta e impedi-la de agir?

”Deve ter passado uma noite terrível, Dandurand...”

O ex-advogado não se abalou. Mais uma vez um sorriso distendeu-lhe os lábios frios.

-De manhã cedinho, enquanto a porteira estava ocupada no pátio com as latas de lixo, irmão e irmã descem a escada. Pela porta entreaberta Dandurand os vê passar. Se Cécile estivesse sozinha! Mas é impossível saltar sobre duas pessoas ao mesmo tempo.

”Na rua, os dois se separam. Dandurand acompanha Cécile em meio ao nevoeiro. Se conseguisse pelo menos, a caminho, arrancar-lhe a bolsa que contém as provas necessárias à sua condenação...

”O ônibus não é propicio. Da Ponte Saint-Michel à Polícia Judiciária, nenhuma ocasião se apresenta.

”Ela sobe a escada. O que poderá salvar, daí em diante, o Sr. Charles?

”Uma só coisa: a hora. São apenas oito da manhã. Ainda estou em casa. Naquele dia, sem motivo, só para saborear o nevoeiro, decidi vir a pé, enquanto Cécile me esperava no que chamamos de aquário.

’’ Dandurand rondava por ali...”

-Perdoe mais uma vez, Sr. Comissário, mas volto à pergunta: dispõe de provas? Testemunhas?

-Tenho aqui, Dr. Planchard, a lista das pessoas que se apresentaram naquela manhã à Polícia Judiciária, e nessa lista acabo de encontrar três nomes pelo menos. O senhor deve compreender, já que de certo modo faz parte do grupo. Seria demasiado comprometedor para Dandurand subir pessoalmente e dirigir-se a Cécile. Ela sabe de tudo e não o acompanharia por nada deste mundo.

”Mas passa alguém do ’meio’ de quem o Sr. Charles se tornou um dos luminares...

”E ele se precipita...

”Escute! Há na sala de espera uma moça que não deve conversar com o comissário. Ela não conhece você. Preciso dizer-lhe umas palavrinhas, seja lá como for.

”Não esqueçam que Dandurand conhecia tão bem os corredores do Quai dês Orfèvres como os do Palácio da Justiça.

”Arranje um pretexto para traze-la até este lado da porta envidraçada.

”É impossível, senhores, que as coisas se tenham passado de outro modo. O cúmplice ignora que se trata de um crime, caso contrário talvez hesitasse. E tenho certeza de que a esta hora não está muito orgulhoso do que fez. A comédia prossegue...

”Quer falar ao Comissário Maigret?

”Cécile aguarda. Acompanha confiante o guia improvisado.

”Ao transpor a porta envidraçada...

”Confesse, Dandurand, que foi assim que aconteceu, porque não poderia ser de outra maneira!

”Ela se apavorou ao vê-lo. A porta do quarto das vassouras está próxima. O senhor a empurra. Ela resiste. Antes de arrancar-lhe a bolsa que ela defende, ataca-a e depois...”

-Continuo à espera das provas, Sr. Comissário.

O advogado, que fizera inúmeras anotações, não perdera o sangue-frio, pois não era a cabeça dele que estava em jogo.

Maigret murmurou então, depois de fazer um sinal ao confrade de além-Atlântico:

-E se eu substituísse as testemunhas por uma carta?

-Uma carta da pessoa que conduziu a citada Cécile ao meu cliente?

-Uma carta do seu próprio cliente, meu caro doutor.

Dandurand era duro como aço.

-Espero que o senhor a exiba -murmurou o advogado.

-E eu espero que ela seja encontrada -suspirou Maigret.

-Isto significa que o que foi dito é...

-...uma teia de hipóteses, confesso. Ainda assim houve razão para que o Sr. Charles entrasse, em minha ausência, no quarto de Juliette. Desde o meio-dia há especialistas examinando esse quarto. Ignoro se teve ocasião de estudar a mentalidade da mulher velha. Não existe no mundo pessoa mais desconfiada. Se ela guardava a maioria das cartas na escrivaninha da sala, acha que...

O Sr. Dandurand soltou uma risadinha. Todos olharam para ele.

Naquele momento Maigret esteve a ponto de achar que perdera a jogada.

Mas agarrava-se a uma esperança. Juliette Boynet não havia dito numa de suas cartas a Monfils que se alguma coisa viesse a lhe acontecer...?

O comissário havia jogado todos os seus trunfos. Não queria crer ainda que Dandurand, nos poucos minutos que estivera sozinho no quarto...

E o fato de ter entrado no quarto, aberto o banquinho de tapeçaria, tocado nos maços de cédulas sem leválas, sem sequer deixar impressões digitais, não provaria que buscava outra coisa mais importante para ele?

A velha seria tola bastante para deixar no apartamento o documento mais comprometedor?

E se o Dr. Leloup tivesse deixado de enviar o telegrama a Monfils? Se este se achasse pescando, caçando, fosse lá onde fosse, exceto em casa? E se...

O telefone tocou. Maigret atirou-se literalmente ao aparelho.

-Alô? Sim, Continue...

Ao desligar tornou-se evidente para Spencer Oats que a pesquisa no prédio de Bourg-la-Reine não tivera resultados.

-Observo, Sr. Comissário...

-Observe o que quiser. No ponto em que estamos...

-Todas as suas hipóteses baseiam-se numa carta que não existe, e nessas condições meu cliente tem o direito de...

Novo telefonema.

-Alô! Bem! Três ou quatro horas? Sim, ele está aqui. Vou enviá-lo...

E voltando-se para Gérard:

-Seria conveniente que visitasse sua mulher. Creio que em breve você será pai.

-Continuo a observar, Sr. Comissário... Maigret fitou o advogado sem responder, com uma piscadela para o americano. Este o acompanhou até o corredor.

-Começo a crer que essa investigação, que fez questão de assistir, vai me cobrir de ridículo e o senhor levará aos Estados Unidos uma lamentável impressão dos meus métodos. E, no entanto, estou certo de que... Estou certo, entendeu?

Sem transição, Maigret convidou:

-Vamos tomar uma cerveja?

Arrastou o americano para fora, lançando de passagem um olhar furioso ao aquário, onde duas ou três pessoas aguardavam.

Percorreram os muros do Palácio da Justiça e mergulharam na |morna tranqüilidade da Brasserie Dauphine, que servia cerveja retirada do barril.

-Duas cervejas! Eformidáveisl

-Que quer dizer com formidáveis’! -perguntou o americano.

-Copos para os fregueses assíduos. Contêm exatamente um litro...

Estômago cheio, voltaram pelo mesmo caminho.

-Seria capaz de jurar... Enfim, azar meu... Se for necessário recomeçar tudo desde o início, recomeçaremos.

Spencer Oats estava tão embaraçado como alguém que buscasse uma fórmula nova para condolências.

-O senhor compreende? Sei que, do ponto de vista psicológico, tenho razão. É impossível que...

-E se Dandurand encontrou a carta antes do senhor?

-A mulher é sempre mais maligna que seu amante! -declarou o comissário em tom cortante. -E a velha Juliette...

Subiu as escadas poeirentas, onde brilhavam passadas úmidas. Um homem os aguardava, digno e importante, pasta sob o braço.

-Espero que me explique, Sr. Comissário...

A antipatia de Maigret pelo Dr. Leloup dissolveu-se de súbito. Adiantou-se para ele como se fosse um amigo ausente há vinte anos.

-O telegrama? Por que não o enviou diretamente a mim? Dê-me já...

-Está aqui, mas duvido que compreenda alguma coisa. E pergunto a mim mesmo se devo mostrá-lo antes de obter mais amplas informações...

Maigr et arrancou-lhe o papel das mãos.

A ”Previna ao Comissário Maigret que o único presente recebido é foto da falecida tia. Abri o quadro ao acaso. Contém carta quase incompreensível, mas comprometedora para terceira pessoa. Situação completamente alterada quanto à sucessão, pois a morte de Joseph Boynet não seria natural, e assassino ou cúmplice não podem ter pretensões à herança. Cumpro meu dever, mas peço total reserva de sua parte. Estarei à noite em Paris. EtienneMonfils”.

-Julga que meu cliente... -principiou o advogado.

-Seu cliente acaba de viver uma hora dramática, Dr. Leloup... Eu nem sequer havia pensado nisso... Joseph Boynet, assassinado pela mulher e pelo amante desta, faz com que a fortuna mude automaticamente de campo, voltando aos Boynet e aos Machepied.

-Mas...

O comissário não escutava. Permanecia imóvel em pleno corredor monumental da Polícia Judiciária, de onde avistava a porta do seu gabinete e a parede envidraçada da sala de espera, onde, certa manhã de nevoeiro...

Nascia uma criança que jamais saberia que as despesas do parto haviam sido pagas por senhores cobertos de anéis... Àquela hora, na Rua Blanche, no Albert, deviam estar todos absortos nas sutilezas do belote.

Em que pensaria o Sr. Charles ao confabular com o advogado, sob a discreta supervisão do tranqüilo Torrence?

-Nada mau!

Sobressaltou-se, juntamente com Spencer Oats e o Dr. Leloup, ao ouvir a própria voz.

-Estou pensando no truque da fotografia... -desculpou-se. -A velha conhecia o primo e conhecia a província... Vamos jantar, senhores...

E empanturrou-se antes de iniciar o interrogatório de todos os que haviam desfilado na manhã do crime pela Polícia Judiciária.

Era uma da madrugada quando um sujeitinho falou, apagando o cigarro:

-Pronto! Quis prestar o serviço e prestei. Quanto tempo acha que vou pegar, Sr. Comissário? Dois anos?

A Sra. Maigret já havia telefonado três vezes.

-Alô! Não! Não me espere. É provável que volte muito tarde.

De repente sentiu vontade de comer chucrute numa brasserie de Montmartre, ou Montparnasse, a sós com o americano.

Os dois reconstituíram o caso ajudando-se mutuamente. De cerveja em cerveja passaram a noite conversando. Era preciso que Spencer Oats tivesse o que contar em Filadélfia.

E pensar que se Monfils não tivesse a idéia de desenquadrar o retrato...

 

 

                                                                  Georges Simenon

 

 

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