Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


DE VOLTA PARA CASA / Penny Jordan
DE VOLTA PARA CASA / Penny Jordan

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

10º livro da série Família Crighton

DE VOLTA PARA CASA

 

Anos antes, David Crighton desaparecera, deliberadamente. Dera as costas à família, ao lar e ao escândalo que provocara.

Algum tempo depois, ele conheceu Honor Jessop, uma mulher que lhe deu amor e carinho como ele nunca recebera na vida. David, porém, não revelou a Honor sua verdadeira identidade... nem seu passado sombrio.

Agora, no entanto, chegara o momento de Honor descobrir a chocante verdade.Os Crighton mal podem imaginar o tumulto que os espera...porque,finalmente,David está pronto p/voltar p/casa.

 

Como está o vovô?

— Não está muito bem, Joss — admitiu Jenny Crighton ao caçula de dezessete anos, vendo o marido franzir o cenho.

— Maddy conversou em particular comigo de­pois que o visitei — contou Jenny, — Está muito preocupada com ele. Apesar do sucesso das duas operações na bacia, ele ainda reclama de dores, principalmente nas juntas. Também está emagrecendo, não tem se alimentando bem. Está definhando.

— Ben já tem mais de oitenta anos, Jen — observou Jon.

Jenny percebeu seu cenho ainda franzido, preocupado. Ele não tinha dúvida de que Maddy, a nora, casada com o filho mais velho, Max, cuidava bem de seu velho pai, porém sentia-se culpado, pois era ele quem deveria estar carregando esse fardo, bem como por...

— Tia Ruth diz que Ben está ficando um velho rabugento — comentou Joss. — Parece que vive resmungando.

— Talvez, mas não deve ser divertido sentir dor o tempo todo — lembrou Jenny, gentil.

Joss sempre preferira a companhia da tia-avó Ruth à do próprio avô, e Jenny não podia culpá-lo. Ruth sempre fora muito mais avó, orientando Joss, do que Ben.

De todos os netos, Ben Crighton só demonstrava afeto por Max. Não que esse favoritismo tivesse a ver com ela ou Jon. Na juventude, Max não se dera bem com os pais, mas já haviam superado as diferenças. Agora, diante do quadro de Max com a esposa Maddy e as três crianças, sentia não apenas amor e orgulho, mas uma humilde gratidão pela vida bem-sucedida do filho.

Embora hoje todos se referissem a Max com respeito, admiração e afeto, o fato era que ele renascera como ser humano. Tal transformação não ocorrera por vontade própria, mas depois que ele trilhara o caminho estreito que separava a vida da morte. Um "acidente" que podia ter acabado com sua vida, ou feito dele um inválido.

Felizmente, Max sobrevivera e voltara para a família, para começar uma nova vida ali, na pequena cidade de Haslewich, em Cheshire.

Famílias! Jenny suspirou. Mas não passaria sem a sua, não excluiria nem um membro sequer, nem mesmo o sogro irritadiço, Ben.

A família Crighton era numerosa e tinha vários ramos, porém todos cultivavam um interesse comum, quase uma herança genética, o fascínio pelo mundo das leis, dos advogados, das procuradorias, dos juizes. Costumavam brincar, dizendo que todas as crianças Crighton, assim que passavam a entender o significado, quando perguntadas sobre o que queriam no Natal ou nos aniversários, respondiam:

— Quero ser um CR.

Conselheiro da Rainha. Ben tentara atingir esse objetivo sem sucesso, pressionara o filho incansavelmente e, depois, o neto, para realizar seu sonho.

Jenny sabia que Max almejara esse objetivo e, de certa forma, não achava a atitude correta. Então, no ano anterior, Max lhes contou que era quase certo que receberia aquela honra, enchendo-os de amor e orgulho. Jon até abraçara o filho, parabenizando-o com emoção.

Mas, como sempre, numa reunião de família, ao mesmo tempo em que elogiava o neto favorito pela conquista, Ben Crighton não resistiu e disparou:

— Essa honra devia ter sido de meu filho David. Devia ter sido de David — repetiu, rancoroso, lançando um olhar de ódio à neta Olívia. — Se não fosse por aquela sua mãe.

Olívia não respondeu, mas Jenny identificou a dor em seu olhar e a raiva do marido, Caspar, solidário.

Não adiantava consolar Olívia, lembrando-a de que Ben Crighton dava pouco valor e amor às outras netas também. Ben podia ter nascido no século vinte, mas nunca abraçara a ética a ponto de aceitar que mulheres eram tão capazes profissionalmente quanto os homens. As conquistas dos membros femininos da família, Ben ignorava ou criticava, opinando que os cargos eram mais adequados aos homens.

— Vovô vai morrer? — perguntou Joss à mãe. Jenny viu a ansiedade em seu olhar. Seu caçula, embora amadurecesse, continuava refém de seus medos, conseqüência da sensibilidade que o mar­cara desde criança.

— Não sei, Joss — respondeu Jenny. — Segundo o médico, não há motivo para esperarmos o pior. — Fez pausa para escolher as palavras com cuidado. — Mas seu avô nunca foi um homem satisfeito com a vida. Ele...

— Ele ainda sente falta de tio David, não é?

Jenny e Jon trocaram olhares. Joss apontara com precisão a verdadeira causa da indisposição de Ben.

David Crighton, irmão gêmeo de Jon, desaparecera poucas semanas após a festa do qüinquagésimo aniversário deles. Pouco depois, Jon descobriu que David movimentara fraudulentamente a conta bancária de uma viúva idosa, cujos negócios administrava.

Tia Ruth interviera, compensando o "empréstimo" de David de modo a evitar o escândalo que prejudicaria não apenas o culpado, mas também os inocentes. David poderia ter manchado a reputação do escritório de advocacia da família, do qual era sócio, dirigido pelo irmão mais tranqüilo e menos exibicionista, Jon. Não obstante, Jon se opusera veementemente à decisão de Ruth, crente em que a verdade e a honestidade deviam estar acima dos interesses da família e dele mesmo.

No final, entretanto, à vontade de Ruth prevalecera, considerando que não sabiam se David tinha a intenção de devolver o dinheiro, ou se a viúva, agora já falecida, realmente lhe emprestara a quantia.

A princípio, somente Jon, Olívia e Ruth ficaram sabendo do ocorrido, porém, após uma discussão, decidiu-se que contariam aos mais próximos, pois, na opinião de Ruth, não devia haver segredos entre casais e membros da família. Só não contaram nada a Ben por altruísmo.

Não souberam mais nada sobre David, apesar das tentativas de Jon de descobrir seu paradeiro. A última notícia era de que estaria na Jamaica, mas Max fora até lá e não encontrara nenhuma pista. Como se isso não bastasse, levara uma facada ao ser atacado por ladrões numa praia jamaicana.

Com o sumiço de David, a mulher dele, Tânia, voltara para a casa dos pais, na costa sul, deixando o filho Jack com Jon e Jenny, que acabaram adotando-o.

Com pouca diferença de idade, Jack e Joss sempre se deram bem e eram como irmãos.

Naquele momento, Jenny não se preocupava com a ala jovem da família Crighton, mas com seu membro mais velho, Ben, que enfraquecia cada vez mais.

— Ele me chamou de David na semana passada — contou Joss à mãe, triste.

Jenny franziu o cenho. Joss não se parecia nada com o tio.

— Acha que tio David vai voltar um dia? — indagou o rapaz.

Jenny olhou desamparada para o marido.

— Duvido, Joss — respondeu Jon, gentil. — David estava... está...

Deteve-se e meneou a cabeça. Não queria contar ao filho que David era um irresponsável que nunca se importara com os sentimentos da família, além de ter fugido covardemente. Graças ao pai, que sempre o protegera das conseqüências de seus atos, freqüentemente à custa de Jon, David crescera acreditando que podia fazer o que bem entendesse. David era o filho favorito, o menino loiro de olhos azuis que Ben colocara num pedestal tão alto que a queda fora inevitável, percebia Jon, agora.

Apesar das comparações cruéis do pai ao longo dos anos, Jon sempre amara o irmão gêmeo, ainda o amava, só que não mais tão cegamente quanto o pai exigia, não mais a ponto de subjugar suas próprias necessidades e sentimentos. Com a ausência de David, sua personalidade florescera.

— Não acho que ele queira voltar — opinou Jon.

— Nem mesmo se souber que vovô quer vê-lo? — indagou Joss.

Desolado, Jon olhou para Jenny.

— Não é tão simples assim, Joss — explicou a mãe. — Há problemas... e...

— É por causa do dinheiro — interrompeu Joss. — Mas ele ainda pode voltar, pode ver o vovô. Com certeza, se soubesse o quanto vovô quer vê-lo...

— Talvez, se ele quisesse — concordou Jenny. Pessoalmente, não achava que faria a mínima diferença. David sempre fora egoísta, fútil, um homem fraco que jamais considerara os sentimentos ou necessidades das outras pessoas. — De qual­quer forma, como não sabemos onde ele está, nem como entrar em contato...

— Mas ele e papai são gêmeos — lembrou Joss, num tom que espantou os pais, — Há uma ligação entre gêmeos, alguns conseguem se comunicar por telepatia. — Como ninguém comentava nada, exemplificou: — Como Katie e Louise.

Jenny suspirou. Era verdade que suas filhas gêmeas tinham uma ligação especial. Quando uma precisava de ajuda ou se machucava, a outra sempre sabia, mesmo estando a quilômetros de distância.

— Joss, eu não acho... — começou Jenny. Então, deteve-se e olhou para Jon.

— David e eu nunca estivemos ligados dessa forma — afirmou Jon, áspero.

— Mas podia tentar — insistiu o filho. — Por vovô.          

Jenny avaliou a expressão do marido. Ele es­tava aborrecido com algo, algo que não queria comentar.

— Joss... — começou ela, gentil, mas o filho a cortou.

— Quando me tomou por David, vovô... começou a chorar, disse que tinha sentido a minha falta, que a vida dele não tinha sentido sem mim. Nunca fui muito ligado a tio David e sei o que todos pensam dele. Até Jack diz que gostaria de ser seu filho, pai, mas vovô...

Sem falar nada, Jon aproximou-se do filho e pousou o braço em seus ombros. O rapaz já era um pouco mais alto que ele, mas o corpo, os ossos ainda pareciam vulneráveis.

Jon o abraçou e lhe acariciou os cabelos. Ambos tinham os olhos marejados.

— Tentamos encontrá-lo, filho — observou, rouco, _ Mas, às vezes, as pessoas simplesmente não querem ser encontradas. Ele pode estar em qualquer lugar.

— Mas e o vovô? Será que ele não se lembra de que vovô sente sua falta e está ficando velho?

Jon suspirou, não sabia o que dizer ante o tom emocionado do filho.

David e o pai sempre foram ligados, mas por­que Ben atribuíra ao filho preferido características elevadas que ele nunca tivera de verdade. Sustentar aquela ficção, manter a falsidade, ano após ano, década após década, acabara levando-os a uma relação autodestrutiva. Para ter­miná-la, só se um dos dois desaparecesse, o que David acabara fazendo.

Sim, Jon sabia que o pai sentia muito a falta de David, mas de um David que ele mesmo criara. Acreditava que o irmão gêmeo tivesse sofrido um trauma ao se dar conta de que não era o super-homem que o pai sempre proclamara. E Ben ficaria ainda mais abalado, se percebesse também. Mas aquilo já era passado. Após o desaparecimento de David, a família sofrera uma série de trans­formações. Somente agora seu próprio casamento apresentava a ligação física e emocional que sempre desejara.

Se voltasse de repente, David ficaria espantado com as mudanças. A filha, Olívia, estava casada e era mãe. Jack, o filho, já era um rapaz de dezenove anos pronto para iniciar o primeiro ano de faculdade. O sobrinho Max estava casado e tinha três filhos.

Sim, havia uma nova geração de bebês, incluindo as netas do próprio David. Olívia nunca per­doara o pai pelo que lhes fizera, que quase resultara no fim de seu relacionamento com o marido, Caspar. A mãe, Tânia, sofria de desordem alimentar, bulimia, e morava longe. No relacionamento entre mãe e filha, Olívia sempre considerara que a mãe era a criança. Embora nunca tivesse dito, culpava o pai pelos problemas emocionais da mãe.

Olívia. Cenho franzido, Jon liberou o filho. Es­tava cada vez mais preocupado com a sobrinha. Achava que ela trabalhava demais, era a primeira a chegar ao escritório e a última a sair. Chegou a comentar a respeito, querendo ajudar, mas ela reagira mal. Depois, desculpando-se, Olívia explicara que passava mais tempo no escritório porque não podia levar trabalho para casa.

— Caspar acha que devemos passar o máximo de tempo com as crianças. Claro, concordo, mas são tantos pareceres e contratos para ler...

Jon demonstrara compreensão, porém desconfiava de que a sobrinha vinha usando o trabalho como barreira entre si mesma e a família. Talvez Jenny pudesse conversar com a sobrinha. As duas sempre se deram bem.

Pouco depois, à noite, quando se preparavam para dormir, Jenny comentou com Jon:

— Lembrei-me daquela vez em que Louise machucou a perna e Katie, que estava num passeio com uma amiga, insistiu em voltar porque a irmã precisava de sua ajuda...

Jon lembrou-se também e imaginou aonde a es­posa queria chegar.

— Quando eram meninos, você e David, vocês nunca... — Jenny calou-se ante a expressão desgostosa do marido.

— David e eu nunca tivemos a ligação que Lou e Katie têm. Acha que se houvesse um jeito, qualquer jeito, de trazer David para casa, eu não experimentaria?

Jenny o abraçou. Jon já estava na casa dos cinqüenta anos e levava uma vida sedentária, porém, mantinha-se atraente. Ao menos, ela achava. Após anos reprimindo os sentimentos, não deixava de sentir prazer agora que podia acariciá-lo livremente.

Como todos os homens da família Crighton, Jon era alto, de ombros largos e perfil másculo. Os cabelos eram fartos e tinham um tom mais cara­melo que loiro. As mulheres ainda o olhavam cobiçosas quando saíam juntos, mas ele nem reparava. Era um marido leal e amoroso e Jenny sentia-se afortunada com o casamento harmonioso. Mas não estavam livres de desentendimentos. Jon podia ser teimoso, cabeça-dura às vezes, porém, era raro vê-lo zangado como naquele dia. Falar do irmão gêmeo parecia exasperá-lo.

Jon tinha personalidade forte, força emocional e compaixão. Outro em seu lugar, ante o favoritismo do pai pelo outro, teria ficado traumatizado. Solidário demais, ele não caiu na armadilha e Jen­ny amava justamente sua delicadeza, característica que o sogro tomava como fraqueza.

— Vamos dormir — convidou ela, e o beijou no queixo.

Jon olhou para o relógio no criado-mudo. Jenny estava adormecida a seu lado, aninhada junto a ele como uma criança. Sorriu ao ver o rosto tranqüilo. Fizeram amor e ela adormecera logo depois, o que era sua prerrogativa como homem, certo? Para ser justo com Jenny, ele sempre dormia primeiro, porém, naquela noite, por algum motivo, estava sem sono.

Por algum motivo... Só havia um motivo para perder o sono... David. Nem mesmo a Jenny confidenciara... admitira... o quanto pensava no ir­mão, quanto sentia sua falta. Era irônico, pois sabia que David provavelmente não pensava nele, nem sentia sua falta. Para completar, sem a presença do irmão gêmeo, sua vida melhorara muito. Onde estaria ele? Pensaria na família... nele? Deliberadamente, fechou os olhos e se imaginou de volta à época em que eram crianças. Foram anos dolorosos, sempre colocado de lado pelo pai, ignorado e indesejado. Ben lhe dizia que tinha sorte por ser irmão de David.

— David nasceu primeiro — repetia o pai, e Jon logo aprendera que o irmão seria sempre o primeiro, o sol, a estrela, e que nunca deveria tentar ocupar seu lugar.

Depois que cresceram, achou natural permanecer à sombra do irmão, anular-se para que seu gêmeo se destacasse.

Sim, Jon tinha milhares, milhões de imagens de David guardadas na memória. David...

— Você parece... preocupado. Em que está pensando?

David sorriu, provocando:

— Uma vez jesuíta, sempre jesuíta.

O homem mais velho riu.

— Confesso que, às vezes, o hábito de encorajar os outros a falar é irresistível, mas somente pelos motivos mais altruístas, devo salientar.

David desviou o olhar, emocionado:

— Em noites como esta, fico imaginando o que compele os seres humanos a agir de forma tão insensata quando temos esse universo todo, quando temos a possibilidade de melhorar nossas vidas, de nos aprimorar...

— É uma noite perfeita — concordou padre Inácio, sentando-se ao lado de David na rocha de onde podiam contemplar não apenas o céu estrelado da Jamaica, como também o mar imenso. — Mas já houve outras noites igualmente perfeitas, que não resultaram em divagações filosóficas.

— Filosóficas. — David meneou a cabeça. --Não. Ser filosófico significa ser imparcial, significa falar da condição humana em termos gerais, enquanto eu estava pensando... desejando... lamentando...

O padre adivinhou.

— Você quer ir para casa.

— Casa! — David riu, impiedoso. — Aqui é a minha casa e já é muito mais do que mereço.

— Não, David — corrigiu o padre, gentil. — Aqui é onde você mora. A sua casa é onde o seu coração está. Sua casa é na Inglaterra... em Cheshire...

— Haslewich — especificou David. — Sonhei com meu pai ontem à noite. Fico imaginando o que contaram a ele... sobre mim... sobre meu desaparecimento; Fico imaginando se...

— Pelo que me contou sobre sua família, seu irmão, seu gêmeo... Duvido que tenham contado qualquer coisa que o magoasse. Mas, se quer mesmo saber, devia voltar...

— Voltar — repetiu David. — Não posso.

— Não existe a expressão "não posso" — afirmou o padre.

— Sou um ladrão, um criminoso. Roubei dinheiro — lembrou David, áspero.

— Cometeu um dos pecados capitais — concordou o padre. — Mas se arrependeu, reconheceu o fato com humildade. Já se reconciliou com a verdade.

— Talvez — concordou David, sombrio. — Mas, aos olhos da lei, ainda sou culpado.

— O que é mais importante para você? — questionou o padre. — O fardo que carrega pelo débito com a família ou o que carrega perante os olhos da lei?

— Meu pai pode já não estar vivo.

— Você tem uma família — observou o padre. — Um irmão... uma filha... um filho...

— Eles estão melhores sem mim — concluiu David, desviando o rosto para que o padre não visse sua expressão.

— Talvez... Talvez, não.

— Não posso voltar — repetiu David, menos convicto do que gostaria.

Padre Inácio preparava-se para aquela conversa desde que lera no jornal local que o sobrinho de David, Max, fora atacado na praia. David se lhe tornara tão chegado quanto um filho e o amor que sentia por ele era paternal. Contudo, não era pai dele e, mesmo que fosse, tinha em mente que um pai amoroso devia dar liberdade ao filho para viver a própria vida.

Responsável por uma enfermaria que cuidava de doentes terminais, somente os mais pobres, aos quais a sociedade não oferecia ajuda, padre Inácio encontrara David bêbado, caído numa sarjeta de Kingston, e ainda não sabia por que parara para ajudá-lo. David praguejara na ocasião e depois, sóbrio, culpara-o por não tê-lo deixado morrer em paz.

Meses se passaram até que David começasse a revelar fatos de sua vida, seu passado. O padre não o julgara, não lhe cabia julgar ninguém. Sua missão era ajudar ao próximo, curar, oferecer amor irrestrito.

Entrara para o monastério cheio de idéias, mas sua fé fora abalada ao descobrir que o homem que mais admirava, que o inspirava, era culpado do pecado mais repreensível. Padre John quebrara seu voto de castidade. Não apenas mantinha uma relação secreta com uma mulher, como tinha um filho.

Ainda muito jovem e sentindo-se dividido, temeroso e perdido, padre Inácio concluíra que a verdade devia prevalecer. O resultado foi catastrófico. Padre John tirou a própria vida e ele, Francis O'Leary, conhecido como padre Inácio, foi considerado o responsável pela tragédia. Até o bispo pensava assim.

Transferido, tentara recomeçar, mas a mácula o tornara um intocável, alguém que devia ser evitado. Era um padre sem fé nos outros e em si mesmo, a trabalhar como voluntário em causas missionárias.

— Mesmo que quisesse voltar para casa, não poderia — comentou David, trazendo o padre de volta ao presente. — Não tenho como pagar a passagem aérea.

Viviam de forma bem simples. Plantavam o próprio alimento e dependiam da generosidade e gratidão dos pacientes e suas famílias para a complementação.

— Há outras formas de viagem — observou padre Inácio. — Há no porto um iate que vai para a Europa. O capitão esteve no Coconut Bar ontem e disse que estava contratando gente que quisesse trabalhar pela passagem.

— Um iate para a Europa? — David desconfiou. — Qual é a carga? Drogas?

— Não, o proprietário está morrendo e quer voltar para casa.

David encarou o padre.

— Aids?

— Imagino que sim.

Boa parte dos pacientes ali sofriam daquele mal devastador e já tinham sido abandonados pelas famílias e amigos. Ao trabalhar com padre Inácio, David aprendera a lidar com a doença e suas vítimas. Já não tinha medo.

— Não posso ir... não agora... — resistia David, mas sem disfarçar a vontade.

— Sempre sonha com seu irmão?

— Não como ontem à noite — admitiu David. — Sonhei com o tempo em que éramos crianças. Era tão real. Quando ganhamos nossas primeiras bicicletas, mas o mais estranho... — Franziu o cenho. — No sonho, embora pudesse me ver andando na bicicleta, sentia como se fosse Jon.

O padre não comentou nada. De longe, David vira o irmão gêmeo Jon entrando e saindo do hospital em que o filho Max fora internado, até o dia em que pudera levá-lo de volta à Inglaterra. A vida era tão preciosa, pensou padre Inácio. Ciente da própria debilidade física, rezou para que Jon Crighton recebesse o irmão de volta.

— Não posso ir — repetiu David, mas o padre sabia que ele podia e iria.

 

Alô, sra. Crighton... está bem, Maddy. — Honor sorriu quando a mulher do outro lado da linha insistiu para que se tratassem pelo primeiro nome. — Posso examinar seu sogro, embora não possa prometer...

Após tantos anos de prática, já se acostumara à tendência dos pacientes e suas famílias, tendo desistido da medicina convencional, a acreditar que seria capaz de elaborar uma poção mágica.

- Medicina homeopática não é nenhum tipo de magia negra, é uma ciência exata — costumava pregar, severa.

Afinal, muitos remédios modernos originaram-se de plantas, ainda que mais tarde os cientistas tivessem descoberto como produzir os princípios ativos sinteticamente nos laboratórios. Honor achava que drogas e alimentos sintéticos nem sempre faziam bem ao corpo humano e, a julgar pelo número crescente de pacientes, outras pessoas começavam a pensar o mesmo. Ela nem sempre fora herbolária. Longe disso.

Na década de setenta, entrara para a faculdade de medicina. Morena de olhos expressivos, queria fazer tudo de uma vez: estudava, ia a festas, tentando desesperadamente negar a origem e as referências aristocráticas, a fim de se integrar ao cenário londrino. Ironicamente, não conhecera o falecido marido em Londres, mas apresentado por uma das amigas da mãe.

Lady Caroline Agnew organizara uma festa de debutante para a filha e a mãe de Honor insistira para que ela comparecesse. Rourke estava lá, fotografando o evento. Lady Caroline tinha contatos na Vogue e ele era o fotógrafo do momento, mais acostumado a trabalhar com modelos de pernas longas do que com debutantes rechonchudas.

Honor ficara fascinada por Rourke. Tudo nele indicava que pertencia ao mundo para o qual desejava entrar. As roupas, os cabelos, a atitude e, acima de tudo, o sotaque plebeu. De algum modo, conseguira chamar a atenção dele e deixaram a festa juntos.

Três meses depois, tornaram-se amantes e, após mais três meses, casaram-se. Ela abandonou a faculdade, e durante dois anos, completamente apaixonada pelo marido, permanecera cega à realidade. Rourke a traía com freqüência, embalado por bebida e drogas. As contas se acumulavam porque não conseguiam pagá-las, as dificuldades financeiras caracterizando a vida deles. Então, ela engravidou.

A primeira filha, Abigail, tinha menos de seis meses quando Rourke abandonou Honor pela primeira vez. Os pais dela, que nunca a tinham per­doado por fazer aquele péssimo casamento, recusaram-se a acolhê-las em casa, mas passaram a lhe conceder uma mesada modesta, suficiente para o aluguel de um pequeno apartamento. A fim de complementar a renda, Honor arranjou em­prego numa farmácia de manipulação, quando re­tomou o interesse por medicina. Na loja antiga com depósito no andar superior, ela descobriu um livro sobre ervas e não conseguiu largá-lo mais.

Rourke, após terminar outro caso amoroso, batera em sua porta certa noite chuvosa e ela o aceitara mais uma vez. Nove meses depois, quando Ellen nasceu, ele já estava com outra mulher, muito mais velha do que ele e rica.

Sozinha novamente, Honor rendeu-se de vez ao fascínio pela homeopatia. Um dia, na sala de espera do dentista, viu o anúncio de uma herbolária e entrou em contato.

Agora, herbolária capacitada após anos de estudos e prática, sempre aconselhava os pacientes a procurar praticantes com boa formação e treinamento quando precisassem de formas alternativas de cura.

Também por causa da homeopatia, fora morar na propriedade de seu primo em segundo grau, lorde Astlegh, em Cheshire, atraída pela possibilidade de cultivar suas próprias ervas de forma natural, livre de agrotóxicos e qualquer elemento químico sintético. As filhas não gostaram da casa isolada, reclamando de desconforto, umidade, tudo. Honor prometeu contratar um profissional para irem reformando aos poucos, de modo que teriam um lar bem aconchegante.

— É um casebre — resmungou Abigail.

— Um casebre miserável — completou Ellen.

— As pessoas vão achar que você é mesmo uma bruxa — avisou Abigail.

— Obrigada. Quando precisar levantar o meu ego, sei a quem procurar — ironizou Honor.

— Oh, não, mãe! Eu não disse que você se parece com uma bruxa — esclareceu Abigail. — Na verdade, você está muito bem para a sua idade.

— Humm... Algo em torno de quarenta e cinco — concordou Ellen.

— Na verdade, quarenta e quatro — corrigiu Honor.

Abigail não se conformava:

— Francamente, mãe. Com todo o dinheiro que herdou de papai, poderia ter comprado uma casa mais confortável. Sei que trabalhou muito para nos criar, mas agora...

— Agora, escolhi viver aqui — declarou Honor, decidida.

Ainda não superara completamente o choque de receber uma herança tão vultosa de Rourke. Não esperava que ele morresse tão jovem e de uma doença tão banal quanto uma gripe que se tornou pneumonia. Ficara ainda mais surpresa ao descobrir que, como nunca se divorciaram legalmente, era sua parente mais próxima. A modelo magra e alta com quem ele vivera os últimos dias alegou não precisar de herança. Encarando Honor com seus olhos de viciada, afirmara, sem emoção, já ser rica.

A fortuna de Rourke não provinha de seu trabalho mais recente como fotógrafo de moda, mas das fotos do início de sua carreira, consideradas originais, que se tornaram itens de colecionador. Altamente valorizadas, agora valiam milhares de libras.

Honor fizera questão de dividir a herança com as filhas. As filhas de Rourke. Já adultas, as duas a tratavam como se ela precisasse de mãe. Abigail e Ellen adoravam o primo lorde Astlegh, bem como sua mansão, Fitzburgh Place, mas de­testavam a casa que a mãe escolhera para morar.

— Não sei como pode viver aqui — desabafou Ellen, passando o dedo no parapeito sujo.

— Então, não pense mais nisso — aconselhou Honor, gentil.

Amava demais as filhas, eram bonitas, inteligentes, independentes e bem-humoradas, porém lembravam um pouco sua mãe na atitude e no jeito de falar.

— Honor sempre foi geniosa — observava a mãe, com freqüência.

Honor tinha consciência do sofrimento e contrariedade que infligira à mãe ao dar as costas à vida que todos esperavam que ela assumisse. Ao final do segundo grau, deixara os pais chocados e confusos ao rejeitar um colégio para moças na Suíça a fim de estudar Medicina. A desaprovação foi total quando assumiu o estilo de vida irreverente com o marido e os novos amigos. Aos membros mais convencionais da família, Honor vivia lembrando que seus antepassados aristocratas, de quem se orgulhavam tanto, haviam conquistado as terras e títulos por feitos que beiravam o roubo e o barbarismo.

Seus pais haviam se esforçado, tinha que re­conhecer. O pai era o estereótipo do nobre aristocrata, de família muito respeitada, embora não tão rica quanto à de sua mãe. De fato, era vantajoso permutar contatos de alto nível por riqueza. A mãe era filha única de um dono de moenda bem-sucedido. A família sempre fizera bons casamentos e, por isso, o primo lorde podia agora ser generoso com os arrendatários, ao mesmo tempo que mantinha a propriedade em excelente condição.

Menos a casa que alugara para Honor. Ela não quiser revelar às filhas o verdadeiro motivo de a casa estar tão mal-conservada.

Segundo a lenda local, a casa fora construída originalmente por ordem do irmão caçula do lorde Astlegh na época para alojar uma amante. Ele a visitava e passava vários dias ali, apesar da desaprovação do irmão e do resto da família, que já arranjara um casamento vantajoso para ele com a filha de outro proprietário.

Mas o rapaz não queria saber. A única mulher que queria, a única que poderia amar era a cigana que mantinha na casa. Ela costumava andar pela mata descalça, desprezando os confortos do lar que ele construíra.

— Venha comigo — implorou ela, ao saber dos planos que a família tinha para ele. — Podemos ir embora juntos...

Ele se negou. Adorava a boa comida, os bons vinhos e livros.

— Não posso ficar aqui — disse a cigana. — Sinto-me presa. Preciso viajar, ser livre. Venha comigo.

— Não posso — respondeu ele, triste.

— Você é um covarde — opinou ela, desdenhosa. — Não tem fogo, não tem paixão. É um fraco. Não é um homem de verdade, não como um homem cigano. Um homem cigano mata pela mulher amada.

No bosque escuro em que discutiram, o rapaz interpretou o brilho das lágrimas nos olhos da cigana como de desafio.

Depois, quando os corpos foram encontrados, disseram que ela o enfeitiçara e que somente matando-a e se matando em seguida o rapaz conseguira se livrar do encanto.

Como se tratava da família mais poderosa da região, James, o irmão mais velho e então lorde Astlegh, usara sua influência para abafar o ocorrido, mas um boato se espalhou entre a população, de que o bosque e a casa eram mal-assombrados. Arrendatários que zombaram dos alertas e ocuparam a casa logo decidiam se mudar novamente.

Era uma casa razoavelmente grande e bem construída, de tijolos vermelhos com pequenos arcos e janelas elegantes, que as mulheres da classe alta classificariam como casa de campo ideal. Entretanto, o primo não conseguia arrendatário. Ele mesmo contara a lenda a Honor.

— Já viu algum fantasma lá? — perguntou Honor, curiosa.

Ele negou.

— Uma bobagem, se quer saber — comentou, amuado. — Mas não queria que soubesse disso. Vou deixar que fique lá de graça. Não posso vender... é parte da propriedade. Terá que fazer a reforma sozinha... o pessoal não quer trabalhar lá.

Honor se apaixonou pela casa assim que a viu.

Fora visitar o primo, pois soubera por parentes que ele sofria de cólicas estomacais e que os médicos não encontravam solução. Nem imaginara que, com isso, arranjaria uma moradia. Já pro­curava casa havia algum tempo.

A herança de Rourke lhe permitiria fazer uma reforma completa, além de realizar seu maior sonho, que era não apenas manipular as ervas, mas cultivá-las. Foxdean e as terras adjacentes eram per­feitos para seus propósitos. Ora, podia até convencer o primo a deixá-la construir uma estufa, onde cultivaria as ervas mais sensíveis às intempéries.

Numa loja de alimentos naturais de Haslewich, conversara longamente com o proprietário e conseguira uma relação de inúmeros pacientes em potencial. Logo, sua agenda ficou lotada. Por isso, ao ouvir Maddy Crighton descrever o estado do avô do marido, avisou:

— Não poderei prescrever um tratamento para o sr. Crighton enquanto não o vir, claro, e infelizmente, só tenho hora para daqui a algumas semanas.

Seguiu-se uma breve pausa do outro lado da linha e então ouviu Maddy dizer:

— Oh, bem. Nesse caso, acho que teremos que esperar.

Honor anotou a lápis na agenda o novo compromisso. Então, fez inúmeras perguntas sobre o paciente.

— Ele operou a bacia duas vezes nos últimos anos, mas ainda se queixa de dor — informou Maddy. — Mas não é isso que mais nos preocupa. Ultimamente, ele parece ter perdido a vontade de viver. Sempre foi uma pessoa difícil, um pouco rabugento, mas, nesses últimos meses...

— A dor contínua acaba debilitando o paciente — ponderou Honor. — Se o médico não prescreveu analgésicos...

— Oh, ele receitou, mas vovô não quis saber. Ele não gosta de tomar remédios... e não confia muito nos médicos.

— Oh, que lástima. — Solidária, Honor concluiu que Ben Crighton era o que os médicos chamavam de paciente difícil.

— Acho que estou passando um quadro sombrio — desculpou-se Maddy. — Vovô pode ser um pouco difícil, às vezes, mas detesto vê-lo sofrendo. Ele não é tão velho, afinal, tem oitenta e poucos anos. Sei que deve ser frustrante para ele não ser capaz de fazer o que costumava. Não dirige mais e não pode ir muito longe,

— Tente persuadi-lo a tomar os analgésicos que o médico receitou — aconselhou Honor.

— Acha que vão ajudar? — indagou Maddy.

— Espero que sim. Você ficaria espantada com a diferença que uma pequena mudança na dieta pode provocar nas pessoas que sofrem de dores nas articulações. Podemos aplicar cataplasmas nas juntas feitos de várias ervas medicinais. Conversaremos melhor sobre isso depois que eu exa­minar o sr. Crighton.

Desligando o telefone, Honor foi para a cozinha antiga nos fundos da casa. Estava transformando aquele ambiente em saleta. No corredor que ligava a cozinha atual à saleta, instalara estantes para seus livros. Procurou um título, retirou um volume e o levou para a cozinha.

Encontrara aquele volume em meio a uma pilha de documentos embolorados nos fundos de uma pequena livraria na cidade de Wells. Intitulava-se Um Herbário Medieval e ela se apoderara dele no mesmo instante. Agora, virando as páginas, detinha-se no subtítulo "Amoreira Silvestre".

— "Para dor nas juntas, pegue uma porção da planta, ferva com um terço de porção de vinho e aplique o fluido nas juntas" — leu em voz alta.

Fechou o livro e recostou-se na cadeira. A homeopatia percorrera um longo caminho desde os primórdios, mas o objetivo ainda era o mesmo, curar os doentes.

No mundo competitivo das drogas modernas, os laboratórios empreendiam pesquisas varrendo áreas remotas à procura de plantas, sonhando com a panacéia capaz de curar a humanidade de todos os seus males e ainda lhe conceder a juventude eterna.

Pessoalmente, Honor achava que os esforços e recursos seriam mais bem empregados na conservação das florestas tropicais. Com certeza, o aumento de casos de asma e eczema em crianças era conseqüência da poluição na atmosfera terrestre. As árvores limpavam o ar. Sem elas...

Honor já tinha mudas de árvores para formar um novo bosque nas terras arrendadas. A filha Ellen, bióloga, irritava-se com suas crenças e opiniões, pois enxergava o tema de outro ângulo. Já Abigail, contadora, resumia tudo em termos de lucros e prejuízos.

Espantava-se por ter produzido filhas tão práticas... Ou teriam se tornado cautelosas devido às dificuldades que enfrentaram na infância?

Ao se levantar e encher a chaleira com água para fazer café, viu o gato preto passar pela porta. Em sua primeira semana na casa nova, esse gato aparecera, instalara-se e a adotara.

Honor chegara a procurar o dono do bichano, mas ninguém se manifestou. Como ele era adepto de uma rotina inabalável, Honor sabia, sem olhar para o relógio, que eram três horas.

O gato devia ter chegado a casa seguindo a tri­lha de britas que levava de Haslewich a Chester, passando pela propriedade do primo.

Honor franziu o cenho ao reparar na porta em mau estado. Como o resto da casa, precisava de reparo ou substituição. Tinha que arranjar alguém para começar a trabalhar na reforma imediatamente.

Já entrara em contato com duas empreiteiras, mas os orçamentos foram exorbitantes, e com três pequenos prestadores de serviços, que se recusa­ram por motivos variados.

Irritada quando o terceiro orçamentista alegara ter "trabalho demais", Honor o desafiara:

— Não me diga que as pessoas aqui ainda acre­ditam naquelas histórias idiotas sobre o local ser mal-assombrado?

O homem enrubesceu.

— Não são apenas histórias — afirmou, som­brio. — Meu tio quebrou a perna trabalhando aqui. O membro infeccionou e ele acabou perdendo o membro.

— Um acidente — argumentou Honor. — Acidentes acontecem.

— E, acontecem, mas já houve acidentes demais nessa casa — retorquiu o homem.

— Não acredito que as pessoas estão se recusando a trabalhar na casa por causa de uma história tola sobre assombração — queixou-se Honor ao primo, jantando a convite dele em Fitzburgh Place alguns dias depois. — Quero dizer... é tão... tão... ridículo.

— Há a história da família Cooke — lembrou o primo. — Eles têm ligação com a tribo cigana da moça que morreu e, numa cidade tão pequena, o povo não esquece.

— Oh, não estou dizendo que não houve um romance, nem que não tenha havido o desfecho trágico. E só essa idéia tola de achar que a casa é mal-assombrada.

— Humm... bem, os Cooke são teimosos e têm seu código. Você poderia tentar trazer alguém de Chester...

— Podia tentar pagar quase o dobro do que pagaria a uma empresa de reformas grande também — ironizou Honor, com uma piscadela. — Estou começando a achar que a casa com aluguel barato não foi um negócio tão bom assim.

Lorde Astlegh ironizou:

— Ah, bem, minha cara, sabe o que dizem a respeito de cavalo dado...

— Não se olham os dentes — completou Honor.

Honor sorriu ao lembrar-se da tarde agradável com o primo, um homem gentil, culto, interessante. Viúvo e sem filhos, estava determinado a manter a propriedade intacta para o próximo na linha de sucessão. Para isso, procurava tornar a fazenda o mais auto-sustentável possível, pondo em prática várias idéias inovadoras.

Por exemplo, transformara as construções anexas em unidades auto-suficiente nas quais trabalhavam artesãos locais. A procura por uma vaga era tanta que havia até lista de espera. As feiras de antiguidades e outros eventos promovidos não proporcionavam apenas uma renda extra, mas atraíam visitantes para as unidades fabris, jardins e lojinhas de chá e lembranças.

Falava-se agora em reformar a estufa de laranjas e conseguir licença para realizar casamentos lá. Honor reconhecia que seria um cenário per­feito, grande o bastante para abrigar as maiores recepções, com jardim interno. Entusiasmado, lorde de Astlegh planejava acrescentar rosas-trepadeiras brancas e uma fonte.

Só agora Honor descobria que aquelas idéias todas eram do responsável pela organização das feiras de antiguidades, Guy Cooke.

— Bom camarada — afirmou lorde Astlegh. — Preciso apresentá-la ao casal. Eles têm uma filha bonita, mas não são da aristocracia. Se bem que sou suspeito para falar, com a história pouco convencional de nossa família, não é?

O gato miou, obrigando Honor a providenciar alguma comida. No dia seguinte, faria um esforço concentrado no sentido de encontrar um pedreiro... a menos que o destino fosse bondoso e lhe enviasse um do céu.

— Uma herbolária! Não imagino vovô... Acha que é uma boa idéia? — indagou Max Crighton à esposa, desconfiado. — Ele já não gosta de medicina convencional...

— Não precisamos contar que Honor é herbolária — argumentou Maddy, gentil. — Não gosto de enganar vovô, mas estou preocupada, Max. Ele parece tão fraco que até as crianças começam a notar.

— Humm... Entendo o que quer dizer — concordou Max, distante, tocando numa panqueca que a esposa acabara de tirar da frigideira. Queimou os dedos.

— Espere até esfriar — repreendeu Maddy. — Sabe que vai ter indigestão se não esperar.

— Indigestão. — Max riu. — Casamento dá nisso. A mulher que ama pára de vê-lo como alguém sexualmente excitante e o identifica com alguém com indigestão.

— Não diria isso — respondeu Maddy, com um sorriso.

— Não? — questionou Max, tomando-a nos braços para pousar os lábios na pele macia e perfumada de seu pescoço.

— Nãããooo... — suspirou Maddy.

Na verdade, seria difícil encontrar um homem sexualmente mais atraente do que o marido. Max usava a sensualidade com a mesma ostentação e desprendimento com que usava a toga. Parecia divertir-se com a sensação que causava, ao mesmo tempo em que convidava silenciosamente a compartilhar a brincadeira.

— Por que aquela senhora está olhando para o papai? — indagou Emma, certa vez, quando Max foi buscá-las na escola pára casa. Ao saltar do carro, provocara olhares com vários graus de interesse das outras mães.

A senhora em questão era quase tão atraente quanto Max, mas causou nele o mesmo efeito que tia Ruth.

Para inveja das amigas de Maddy, Max era um marido e pai devotado.

Nem sempre fora assim. O Max com quem se casara era um predador perigoso como homem e alguém que tratava as emoções dos mais chegados com aspereza. Era difícil imaginá-lo assim hoje.

Ele mudara depois de seu quase encontro com a morte na Jamaica. Se ele tivesse continuado como antes, Maddy sabia que jamais teria deixado de ser a esposa insegura que permitia abuso emocional.

Mas já era passado e aquela Maddy já não existia mais. Ela e Max conduziam o casamento com igualdade agora. Max não apenas a amava, como a respeitava.

— Onde estão um, dois e três? — murmurou ele contra o pescoço dela, enquanto lhe lambia a pele sedosa, referindo-se aos três filhos.

— Na casa de sua mãe — disse Maddy, rouca.

— Então vamos lá para cima.

— O que há de errado aqui embaixo? — questionou Maddy, ousada, fitando-o sedutora. — Vovô nunca vem aqui e não há mais ninguém na casa...

— Aqui?

Max franziu o cenho, mas Maddy sabia que ele se excitara com a sugestão.

— Você fica tão sensual com as roupas do tribunal — sussurrou ela, ligeiramente ofegante.

Max riu, mas entrou no jogo. Alcançou o prato de panquecas e acusou, severo:

— Então, o que é isto? Estou vendo que falta uma panqueca e você, feiticeira, é a única que poderia tê-la escondido. Tal roubo demanda uma sentença pesada.

— Não... não... — implorou Maddy, tentando se desvencilhar, mas ele se recusou a soltá-la e colocou-a contra a mesa.

— Uma punição exemplar — anunciou, rouco. — A menos, talvez, que não tenha consumido o doce roubado, mas tenha secretamente escondido com você. Talvez, nos bolsos... Ou...

Ele levou as mãos aos seios de Maddy. Ela riu.

— Oh, Max... — Ao ver o olhar do marido, ficou séria.

— Oh, Max, o quê? — desafiou ele, apalpando por dentro da blusa.

Ela sentiu a mão pesada e aquecida sobre o seio e o mamilo se enrijeceu.

— Não podemos — protestou, ofegante. — Não aqui...

— Não? — Max lhe soltou o pulso e livrou-a da blusa e do sutiã antes de colocá-la sentada sobre a mesa.

Uma hora depois, Maddy, enrubescida e coberta de farinha, apressou-se em abotoar a blusa antes que os três filhos e a sogra chegassem à cozinha.

— Jenny — saudou Maddy, quando a sogra a abraçou. — Obrigada por tomar conta deles. Foram bonzinhos com a vovó? — perguntou aos dois mais velhos, enquanto Max tomava o caçula dos braços de Jenny.

— Sua saia está com farinha, mãe — avisou Léo.

— Sim, e a blusa também — completou Emma. Maddy se voltou, vermelha como tomate.

— Mamãe estava fazendo panquecas — explicou Max, rápido.

Maddy olhou-o parecendo encantada. A sogra não deixou por menos:

— Há farinha na parte de trás da saia também, Maddy... e no paletó de Max...

— Pegos no ato — admitiu Max, alegre. — Bem, quase...

— Max! — protestaram Maddy e Jenny ao mesmo tempo.

— O que papai quis dizer? — indagou Emma, puxando a saia da mãe.

— Hora do banho, querida! — desconversou Max, rumo à porta da cozinha.

— Homens! — queixou-se Maddy com a sogra, enquanto o marido levava as crianças.

— Falando neles, como está Ben? — indagou Jenny.

— Não está muito melhor — admitiu Maddy. — Ele não parece... Entrei em contato com uma herbolária para vir vê-lo. O problema é que está tão ocupada que só poderá vir daqui a algumas semanas.

— Uma herbolária?

— Remédios homeopáticos funcionam — defendeu Maddy.

A sogra meneou a cabeça.

— Não estava criticando, querida. Acho uma excelente idéia.

— Acha? Que bom. Na verdade, estava pensando se não podíamos usá-los na Casa Lar...

Casa Lar eram unidades de moradia provisórias originalmente bancadas pela irmã de Ben Crighton, Ruth, para prover lares seguros a mães solteiras e seus bebês. A assistência fora ampliada e, agora, não proviam apenas acomodações onde os pais podiam visitar os bebês, mas davam oportunidades de acesso educacional para que as jo­vens mães pudessem ter condições de trabalhar e ganhar para seu sustento.

— Em que está pensando? — indagou Jenny, divertida. — Treinar todas as mães adolescentes para ser herbolárias?

Maddy riu.

— Não, claro que não. Estava pensando que talvez pudéssemos usar o jardim da cozinha aqui e combinar um programa de jardinagem com in­formação nutricional e de remédios caseiros básicos, como nossas avós usavam. Isso seria mais um passo a fim de tornar as jovens independentes e valorizadas.

— Bem, certamente, vale a pena pensar no assunto — concordou Jenny.

Ruth tivera uma filha ilegítima e não achava que se casaria. Por obra do destino, acabara se casando com o homem que amava e fora morar nos Estados Unidos, deixando o controle da Casa Lar com Jenny e Maddy. Hoje em dia, Ruth dividia seu tempo entre Haslewich e a família na América.

— Humm... e sabe aquele terreno que era usado para alojamento... uma propriedade municipal junto ao rio... que está cheio de mato e abando­nado? Bem, estava pensando... se os governantes permitirem o uso, podemos fazer um projeto comunitário. Se for o caso, podíamos pedir aos ra­pazes para ajudar a limpar o terreno.

Ouvindo as idéias da nora, Jenny percebeu que Ruth não poderia ter encontrado melhor sucesso­ra. Maddy, antes uma esposa tímida e reprimida, transformara-se numa mulher de capacidade e compaixão, com muita energia e amor para com­partilhar. Era uma bênção tê-la na família.

— Joss está preocupado com Ben — contou Jen­ny. — Perguntou a Jon se David voltaria um dia.

Maddy mostrou-se compreensiva.

— Vovô está cada dia mais reservado e rabugento como sabe. Mas, quando fala, o assunto invariavelmente é David e agora não fala mais se David voltar, mas, sim, quando David voltar.

— Oh, querida — suspirou Jenny. — Acha que...

Maddy meneou a cabeça.

— Oh, não, ele está lúcido. Não há sinal de demência, de acordo com dr. Forbes. Não. Acho que vovô está tão desesperado em ter David em casa que se convenceu de que isso vai acontecer. Acha que David vai voltar?

— Não sei — respondeu Jeimy, pensativa. — Ele não era... não é... como Jon. Ele...

— Ele é como Max era antes — completou Maddy. — Sim, eu sei.

— Bem, sim, mas David nunca teve aquele... aquele lado agressivo de Max — comentou Jenny.

— Era egoísta, sim, demais, porém fraco. Devia saber sobre o problema de desordem alimentar de Tiggy, mas nunca fez nada para ajudar. — Jenny usava o apelido de Tânia, Tiggy. — Ele nunca defendeu Olívia contra a aspereza de Ben e nunca a encorajou a ser advogada. E quanto ao pobre Jack...

— Olívia sempre diz que ele não foi um bom pai.

— Não, não foi — afirmou Jenny, triste e, então, obrigou-se a defender o cunhado, assim como Jon teria feito. — Mas precisa considerar a formação dele e a indulgência com que Ben o tratava. Ele colocou David num pedestal. Isso não apenas lhe deu uma idéia errada sobre sua própria importância, como o assustava às vezes.

— Assustava? —estranhou Maddy.

— Sim, ele tinha que se preocupar em não cair — resumiu Jenny. — E Ben nunca deixou de insistir que Jon devia dedicar a vida ao irmão gêmeo primogênito. E também, de forma inconsciente, fez tudo para criar uma barreira entre os dois. A lealdade entre eles nunca pôde se desenvolver naturalmente. Ben praticamente mandou Jon colo­car David em primeiro lugar.

Jenny continuou revelando suas especulações à nora.

— Isso tudo se originou, claro, no fato de Ben ter perdido seu próprio irmão gêmeo no nasci­mento. A mãe dele, sem saber e seguindo a crença da época, parece ter feito Ben acreditar que o ir­mão morto era um santo e que suas vidas, da mãe e do filho, seriam malogradas porque ele não estava ali com eles.

Ela fez uma pausa.

— Ter um irmão gêmeo é ter uma relação muito   especial — acrescentou,   perspicaz. — Imagine ter uma pessoa fisicamente igual a você, alguém com quem compartilhou o ventre materno e que, mesmo assim, sabe ser um indivíduo totalmente independente.

— Olívia não quer que o pai volte — comentou Maddy.

— Ela não tem motivo para querer David de volta. Ele não foi um bom pai. Além disso, ela precisou lidar ao mesmo tempo com o problema de bulimia da mãe, a fraude do pai e uma crise em seu relacionamento com Caspar. Entendo por­que ela se sente assim.

— Sim, eu também. — Com muito cuidado, Maddy avançou para um assunto delicado. — Não acho que Olívia esteja se sentindo muito feliz no momento.

Jenny desanimou-se ao captar o olhar da nora.

Olívia era tão chegada e querida quanto suas próprias filhas. Às vezes, até mais. Embora Olívia não tivesse comentado nada, também percebera a mudança.

— Jon disse a ela que estava trabalhando de­mais — respondeu Jenny.

Seguiu-se uma pausa e Maddy sugeriu:

— Não acha que há algo errado entre ela e Caspar, acha?

Jenny avaliou o olhar da nora.

— Por que pergunta?

— Nada. Bem, nada que possa explicar de forma lógica — admitiu Maddy. — É que... bem, sempre que vou lá, sinto uma... atmosfera diferente.

— Olívia mencionou que achava que não deve­riam ir a um casamento da família dele — comentou Jenny. — Talvez...

— Não, Olívia me contou sobre isso. Acho que há algo mais. Eles simplesmente não... eles não parecem mais felizes juntos — declarou Maddy, hesitante. — E as crianças... — Deteve-se e me­neou a cabeça. — Olívia não é do tipo que discute seus problemas e sentimentos, mas sei o quanto você e Jon a consideram e detestaria se...

— Olívia sempre foi uma pessoa reservada — concordou Jenny. — E ela sempre foi muito in­dependente devido à vida familiar irregular. Por esse motivo, ligou-se tão completamente ao ma­rido. Caspar também sofreu com os inúmeros casamentos dos pais e Olívia teve todos esses problemas com David e Tiggy. Éramos muito ligadas quando Olívia era mais nova, mas ela mudou após o nascimento de Alex. — Suspirou. — Acho que... Bem, ela tem Caspar e as crianças. Caspar adora as meninas, Alex e Amélia, e é um ótimo pai.

— Sim, eu sei — concordou Maddy, e voltou-se ao perguntar, sem jeito: — Estava imaginando se isso não é parte do problema. Oh, eu sei que Olívia os ama também, mas...

— Acha que ela pode estar um pouco ressentida por Caspar estar se destacando na educação das meninas? — indagou Jenny. — Olívia adora as crianças — acrescentou, defensora.

— As crianças... sim — concordou Maddy. — Não devia mencionar, mas, na semana passada, quando jantamos lá, Olívia discutiu com Caspar sobre algo insignificante e não parecia uma briguinha comum de marido e mulher. Ela me disse também que acha que Caspar tem uma atitude muito protetora em relação às crianças. Enquanto estávamos lá, ela disse, até um pouco nervosa, que Haslewich não era Nova York.

— Max também é um pai cuidadoso — observou Jenny.

— Humm... mas não a ponto de me chamar a atenção sobre o tamanho das meias das crianças e se elas precisam ou não de roupas novas — exemplificou Maddy. — Para ser honesta, se es­tivesse no lugar de Olívia, também me sentiria ofendida e...

— E você não foi criada como Olívia, ouvindo que não tinha valor por ser menina. Entendo o que quer dizer e vejo onde está o problema, mas não sei qual é a solução.

— Sim, entendo. Eu me ofereci para ficar com as crianças num fim de semana, assim eles poderiam viajar, mas Olívia disse que não tinha tempo. "Estou com muito trabalho" e "Caspar jamais deixaria as crianças" foram suas palavras exatas.

— Humm... — Jenny ficou pensativa.

— Oh, e falando de crianças, quase me esqueci. Léo comentou com você sobre ter visto um homem estranho?

— Não! — Jenny alarmou-se. — Onde? Quando?

— Bem, sabe como meu filho tem a imaginação fértil. — Maddy expressou preocupação. — Mas ele fica falando sobre um "homem legal" a quem quer como "amigo. Disse que o viu no jardim. "Vovinho" ele diz, seja lá o que isso significa! Mas, quando saímos para ver, não havia nenhum sinal.

— Oh, Maddy, contou à polícia? Hoje em dia...

— Ainda não. Léo sabe que não deve falar com estranhos, nem se aproximar. Mas o mais interessante é que ele diz que o homem é legal. Quando pergunto o que ele quer dizer, não sabe explicar. Eu tomo cuidado, mas...

— Onde exatamente ele vê esse homem? — indagou Jenny, preocupada.

— No jardim. Mas quando pergunto o que esse homem estava fazendo, ele diz que não estava fazendo nada, só olhando. Aparentemente, não para Léo, mas para a casa.

— Acho que devia notificar a polícia — alertou Jenny.

— Sim, mas, e se for apenas um andarilho pro­curando um abrigo abandonado para passar a noite...

— Maddy, você tem um coração de ouro — elogiou Jenny, meneando a cabeça.

— Talvez, mas nunca deixo as crianças sozinhas no jardim — assegurou a nora. O relógio da sala anunciou as horas e ela soltou um gemido. — Mas já? Ainda não dei o remédio da tarde a Ben.

Jenny riu, solidária, e comentou:

— Talvez se a sua herbolária for mesmo boa, não tenha mais que se preocupar com isso.

Maddy riu.

— Não seria o máximo? E Ben faz de tudo para não tomar os comprimidos, apesar da dor. Ele diz que fica com sono e até me acusou de tentar sedá-lo e torná-lo senil. Ele pede desculpas depois, claro, mas quando está de mau humor... — Meneou a cabeça.

— Você é uma santa, sabia? — declarou a sogra, carinhosa. Levantou-se e lhe deu um abraço.

 

- Maddy disse que quando ela e Max foram jantar na casa de Olívia e Caspar, Olívia estava... Jon, está me ouvindo? — protestou Jenny.

— Desculpe-me, Jen. O que foi? — Jon tinha um olhar arrependido.

—-Estava tentando lhe dizer o quanto eu e Maddy estamos preocupadas com Olívia e Caspar — resumiu Jenny, severa. Então, com um suspiro, perguntou, gentil: — O que foi, Jon? Qual é o problema?

— Nada — afirmou o marido, rápido. Rápido demais, na opinião de Jenny.

— Sim, há — insistiu. — Conte-me.

— É David — admitiu Jon, relutante. — Não consigo parar de pensar nele. Não quero. Só eu sei quantos problemas deveria estar resolvendo, mas não importa o quanto me esforce, ele volta aos meus pensamentos.

Jenny entendia e amava o marido. Não quis pressioná-lo por mais detalhes. Sorriu e considerou:

— Oh, acho que é porque conversamos sobre ele recentemente.

— Sim, foi o que pensei — concordou Jon, aliviado. — Aonde vai? — perguntou, quando a es­posa se levantou da poltrona.

— Oh, lembrei-me de que tenho que telefonar para Katie. Ela comentou que não sabia o que dar de presente de aniversário para a sogra e eu vi algo interessante na loja, um porta-tinteiro Dresden muito bonito.

As lojas de antiguidades em Haslewich pertenciam inicialmente a Jenny e um sócio, Guy Cooke. Ele era o único proprietário agora e a gerente era uma de suas primas, Didi. Jenny sempre passava por lá quando ia à cidade. Mesmo assim, Jon não evitou o suspiro de incompreensão e espanto ao ver a esposa largar a conversa pelo meio e correr para tratar de outro assunto "inadiável".

— Pensei que quisesse conversar comigo sobre Olívia e Caspar — reclamou Jon.

— Sim, queria... quero — concordou Jenny. — Mas você sabe como eu sou. Se não ligar para Katie agora e falar sobre o porta-tinteiro, vou acabar me esquecendo.

Jon piscou, surpreso, ante a declaração infundada. Como ele sabia, Jenny nunca se esquecia de nada. Era capaz de comandar a logística de um batalhão, se fosse preciso. De qualquer forma, quem era ele, um mero macho, um mero marido, para questionar os padrões de raciocínio de uma mestra em tática?

— Katie? — disse Jenny, quando a filha atendeu. — Louise aparece nos seus pensamentos quando você menos espera?

— Quer dizer, como se ela quisesse entrar em contato comigo? — indagou Katie, interpretando a questão. — Acontecia, sim, principalmente quando éramos mais jovens e ela queria me pedir dinheiro emprestado. — Riu antes de retomar, séria. — Sim, eu penso nela. Por que pergunta?

— Oh, não é nada, mesmo. Oh, e aliás, vi o presente ideal para a mãe de Seb na loja. É...

— ...um porta-tinteiro antigo. Já comprei para ela — contou Katie, triunfante. — Eu fui à cidade hoje à tarde e, quando o vi, achei que ela ia adorar. Fui na Maddy também. Ela comentou sobre consultar uma herbolária para ver se ajuda vovô.

— Ela me contou também — disse Jenny.

— Ele não precisa de uma herbolária — concluiu Katie, triste, — Precisa de um mágico, alguém que agite uma varinha e traga tio David de volta. Falando nisso, essa herbolária não seria a mulher que se mudou para Foxdean, seria? Ela estava na loja de produtos naturais quando fui lá outro dia. Muito atraente. Alta, morena, com os olhos azuis mais penetrantes que já vi, e, apesar das roupas comuns, tinha um ar elegante... sabe o que quero dizer. Quando ela se foi, Didi me contou que ela é parente de lorde Astlegh, prima em segundo grau ou algo assim.

— Bem, Guy vai ficar sabendo. Ele é muito chegado a lorde Astlegh e vai sempre a Fitzburgh Place. Foxdean... É corajosa para se mudar para lá.

— Por causa dos fantasmas? Oh, vamos, mãe, não acredita nisso, acredita?

— Não, claro que não. Eu quis dizer que ela é corajosa em se mudar para lá por causa do estado da casa. Ouça, preciso desligar. Seu pai está esperando o jantar. Nos veremos no domingo, certo?

— Com certeza. Seb diz que nada o impede de almoçar aí aos domingos.

Jenny desligou, foi à geladeira e tirou um pote com patê caseiro. Jon adorava queijo e conservas com pão fresquinho como ceia, mas isso lhe dava indigestão. Ficaria contente com o patê.

Aquela previsibilidade sobre as reações do ma­rido seria um sinal de que estavam ficando velhos? Considerava o fato divertido e não maçante. Um ponto positivo. A impetuosidade dos primeiros estágios do amor fora superada por diversas razões e pertencia ao passado, o sentimento substituído por companheirismo e satisfação. E para ela, o sexo também amadurecera e se tornara mais prazeroso nos últimos anos.

Agora, parecia estranho pensar que invejara tanto do casamento externamente perfeito de David e Tânia, que se ressentira da desaprovação de todos por Jon ter desposado uma moça comum, que de forma alguma se comparava à ex-modelo glamourosa com que o gêmeo contraí­ra matrimônio.

Tranqüila, pegou a bandeja e partiu para a saleta. Os tapetes novos, comprados no outono, abafavam seus passos. Abriu a porta.

Jon estava de costas e olhava para uma foto­grafia antiga que ela mantinha sobre um pequeno aparador. Observou-o em silêncio.

A fotografia fora tirada na festa de cinqüenta anos dos dois. O fotógrafo captara David e Jon conversando um com o outro, sugerindo uma proximidade que na realidade não existia. Além disso, a semelhança entre eles também parecia mais acentuada.

Embora raramente falasse sobre o assunto, Jenny sabia o quanto Jon estava magoado com a deslealdade e a desonestidade do irmão.

— Se meu pai soubesse o que Ruth e eu fizemos para encobrir David, desmaiaria de choque — comentara Jon, na época em que a fraude veio à tona.

Jenny não se manifestara. Se David tivesse co­metido um assassinato, Ben seria capaz de exigir que Jon assumisse a autoria para poupar David de qualquer punição.

— Você se perdoaria se não tivesse permitido que Ruth assumisse o rombo? — indagara Jenny.

Um sorriso triste foi a única resposta. Jon era o homem mais honesto e honrado que conhecia. Sabia o quanto ele se sentia dividido entre proteger os clientes da má gestão do ir­mão e salvar David das conseqüências de sua irresponsabilidade.

Jenny não se esquecia tampouco de que David sofrera um ataque cardíaco naquele aniversário, devido ao estresse a que se submetia. Jon levava um estilo de vida muito mais saudável, mas não era raro gêmeos terem os mesmos problemas de saúde, por isso ela insistia para que ele não trabalhasse demais.

A preocupação com a saúde do marido não significava que Olívia tivesse que enfrentar problemas em seu casamento por assumir todo o trabalho do escritório. Talvez devesse sugerir a Jon que considerasse contratar outro advogado qualificado.

A implantação de uma grande indústria do ramo farmacêutico na área trouxera muito trabalho ao escritório de advocacia. A empresa possuía um departamento jurídico, claro, comandado por Saul Crighton, outro membro da família que seguira a carreira jurídica.

As xícaras bateram sobre a bandeja chamando a atenção de Jon, que devolveu rapidamente a fotografia ao aparador e se voltou. Sem indicar que vira algo extraordinário, sorriu e agradeceu quando ele afastou a mesinha que usavam para cear.

— Não vai acreditar, mas Katie viu o porta-tinteiro e o comprou. Mandou um beijo — acrescentou Jenny, tagarela, mas percebeu que Jon ainda não estava lhe dando total atenção.

Não era hora de sondar, nem de ser abelhuda. O sofrimento de Ben com a ausência de David afetava Jon, mas... e se David voltasse? Tal acontecimento traria todo tipo de problemas e conflitos e ela não queria ver seu amado Jon colocado em segundo plano novamente, nem com o fardo de proteger o irmão incondicionalmente.

Seria errado orar para que tudo continuasse como estava e que a tranqüilidade e satisfação que tinham com a vida não se alterasse? Talvez não fosse errado, reconheceu, mas um pouco egoísta.

Didi completava a relação de vendas de antiguidades da semana para o proprietário, Guy Cooke. Ele percebeu que a prima parecia preocupada.

— Algo errado? — perguntou, quando encerra­ram a discussão de assuntos ligados à loja e abordaram temas de família, bem como o aniversário de dezoito anos do filho de Didi, Todd.

— Estou um pouco preocupada com Annalise — admitiu a prima, séria. Annalise era sua sobrinha, filha mais velha do irmão, cujo divórcio causara grande comoção na família quatro anos antes.

— A primogênita de Paul? — indagou Guy, surpreso. — Mas no Natal mesmo, Paul estava comentando como ela ia bem na escola.

— Sim, mas nas últimas semanas parece que mudou completamente, negligencia as lições de casa, sai e se recusa a dizer aonde vai e com quem. Paul acha que ela está envolvida em alguma atividade maluca ou que está namorando. Anda tão nervosa que até fez o pequeno Teddy chorar por causa de uma bobagem. Paul contou também que às vezes é preciso perguntar várias vezes até obter uma resposta.

— Parece que está apaixonada — sugeriu Guy.

— Sim. E disso que Paul tem medo — admitiu Didi.

Guy olhou-a perspicaz.

— Garotas de dezessete anos se apaixonam — observou, e sorriu. — Ou, pelo menos, acham que estão apaixonadas.

— Bem, sim, mas, por causa do divórcio dos pais e de sua natureza séria, Annalise talvez não esteja tão alerta quanto as outras garotas da mesma idade. Às vezes, no papel de mãe, é muito madura, em outras, principalmente em relação aos rapazes, ela é muito ingênua. Paul tende a ser superprotetor com todos, uma vez que o divórcio foi bastante desagradável. A mulher teve vários relacionamentos antes de ir embora com um amante. Ela também era Cooke, membro da nossa grande família, e sabe como velhos comentários e histórias distorcidas retornam nessas épocas.

Didi prosseguia com sua análise do caso:

— Paul está determinado a manter os filhos, especialmente Annalise, longe da pecha de "car­regar os genes selvagens dos Cooke". Tentei conversar com ele, quando Annalise entrou na adolescência, sobre essa questão de ser superprotetor em assuntos relacionados a rapazes, sexo e relacionamentos, mas você sabe como Paul é difícil, às vezes.

— Sim, é uma situação delicada, vista sob qual­quer ângulo — concordou Guy. — Mas... sabe por quem Annalise se apaixonou ou...

— Sabemos, e aí está outro problema. O rapaz se chama Pete Hunter. Paul não gosta dele porque é vocalista de uma banda local que é a sensação do momento.

— O Salt? — perguntou Guy, citando o grupo formado por cinco adolescentes da região.

— Esse mesmo. — Ela o olhou curiosa. — Estou surpresa por você saber o nome do grupo. Não sabia que gostava desse gênero musical, Guy.

— Não gosto — concordou ele. — Mas Mike, filho da minha irmã Francês, faz parte do grupo.

— Oh, sim, claro. Então, você conhece Pete?

— Mais ou menos. Um rapaz alto e moreno com mais "atitude" de roqueiro para não dizer pose — descreveu Guy, malicioso.

— Esse mesmo. — Didi suspirou. — Por um lado, não acho que Paul deva se preocupar. Pete é consciente e muito seguro de si e do que quer da vida. Duvido que se interesse por Annalise. Não que ela não seja bonita. Ela é, e vai ficar ainda mais bonita. Mas agora só tem dezessete anos e, eu diria, dezessete anos da classe das atrasadinhas.

Após breve pausa, Didi continuou:

— Pelo que ouvi dizer, as garotas com quem Pete sai são mais... oferecidas. E, se Paul não cometer o desatino de ir à casa dos pais dele exigir que o rapaz fique longe de Annalise, tenho certeza de que essa paixão logo arrefecerá. Claro, sendo Pete como é, uma interferência de Paul só causará o efeito contrário. Aparentemente, Annalise tem sido vista em vários clubes onde a banda se apresenta, é mais como um membro da trupe.

— E Paul sabe disso?

— Não tenho certeza, mas, assim que descobrir e parece que está perto... Annalise está numa ida­de vulnerável e se Paul der uma de pai durão...

— Ou se, na hora da raiva, disser que ela vai acabar como a mãe...

— Exatamente — concordou Didi. — Tentei conversar com Paul, mas ele não quer ouvir. Ele é tão teimoso, às vezes. Desconfio de que, enquanto Annalise pensa estar profundamente apaixonada por Pete, como só uma garota jovem e sonhadora pode estar, ele, por sua vez, sente tudo menos amor. Detesto usar uma palavra tão feia, mas acho que ele só a está usando e, quando se encher, vai colocá-la de lado. Normalmente, diria que esse tipo de experiência faz parte do desenvolvimento. Todos nós passamos pela dor do amor na adolescência, mas fico ansiosa com a disparidade entre Annalise e Pete, principalmente porque toda a situação vai acabar sendo de conhecimento público...

— E claro, não poderia acontecer em pior hora, com todas as provas de habilitação à frente — acrescentou Guy.

— Exatamente.

— Oh, querida, os perigos de um pai de adolescentes. — Guy suspirou. — Bem, se eu puder ajudar em alguma coisa...

Guy, após seu casamento com Chrissie, viu-se eleito chefe do clã Cooke e, inevitavelmente, vários membros o procuravam para conversar sobre seus problemas.

No entanto, desconfiava de que aquele era um caso mais para Chrissie.

— Teremos uma reunião de família logo, não teremos? — indagou Guy. — Vou ver se Chrissie pode conversar com Paul, se quiser.

— Faria isso? — Didi sorriu, aliviada. — Não me atrevi a falar nada com Paul, mas ouvi dizer que Annalise anda faltando às aulas para ficar com Pete. A banda ensaia num barracão na...

— Fazenda de Laura e Rick, sim, eu sei — completou Guy. — Costumavam usar a garagem de Francês, mas ela deu um ultimato a Mike, Só poderiam continuar se tocassem baixinho. Laura apareceu e ofereceu um dos velhos barracões.

— Bem, como disse, parece que Annalise anda faltando às aulas para ficar com eles.

— Deixe comigo. Farei o que puder — prometeu Guy.

David ficou tenso ao ver o carro de Maddy se aproximar pela estrada em direção a Queensmead. Observava a casa desde que chegara à Inglaterra, alguns dias atrás, pernoitando em barracões abandonados. Após várias semanas no mar, compartilhando o alojamento com o resto da tripulação, estava até aliviado com aquela solidão. Sentia falta de padre Inácio, claro. Tornaram-se amigos durante o tempo em que trabalharam jun­tos. Também preocupava-se com ele. Apesar do vigor e da atitude positiva diante da vida, notara que o padre já não era tão forte quanto antes.

Errara ao deixá-lo? Tomara uma decisão egoísta mais uma vez?

No carro, com Maddy, estavam seus três filhos. A do meio, Emma, com seu olhar solene e expressão determinada, lembrava-o de sua própria filha, Olívia, nessa idade. Era engraçado como a memória retinha lembranças sem que as pessoas se dessem conta. Se perguntado, seria forçado a admitir que dera muito pouca atenção aos filhos. Olívia passara mais tempo com Jon e Jenny do que em casa, recebera da tia o amor maternal que jamais tivera de Tiggy.

Como se ausentara por muitos anos, David presumia que seu divórcio já estivesse regulamenta­do. Teve certeza quando ouviu um comentário sobre Tiggy ter se mudado e recomeçado a vida com outro homem, envergonhando-se ao perceber que sentia mais alívio que dor com a notícia. Contudo, a perda da esposa era um assunto, outro era ver Emma no jardim, com os irmãos Léo e Jason e lembrar-se de Olívia.

Mas, afinal, fora ali só para ver os filhos do sobrinho brincando? As crianças reforçavam o sentimento de que ele mudara.

O primogênito, Léo, fisicamente um legítimo Crighton, parecia fascinado por ele. Ficou com vontade de conversar com as crianças, abraçá-las, mas se deteve. Vê-los só reforçava o pesar por tudo o que perdera. Não falara com Léo, mas David sentia que existia um laço de sangue entre eles.

— Vovinho! — gritou Léo, quando Maddy apareceu à porta do jardim.

Teria ela voltado para casa por causa do filho e da filha? Ou porque precisava ver o avô do ma­rido? Ben era um homem velho. Passava a maior parte do dia na cadeira, levantando-se só para duas caminhadas diárias pelo jardim, com a ajuda de Maddy ou Jenny, a esposa de Jon, ou, às vezes, com Max.

Max!

Surpreendera-se com Max. O que acontecera ao jovem egoísta e hedonista, que o tratava com admiração? Sempre se envaidecera com a admiração do sobrinho, nutrindo a própria auto-estima vulnerável.

Dois dias antes, vira Max caminhar pelo jardim com o irmão caçula, Joss. Pareciam unidos ao conversar. A certa altura, pararam e Max pousou o braço no ombro do irmão, num gesto de segurança e afeição genuína. Não havia engano na proximidade entre eles e menos engano ainda no olhar de amor e orgulho de Max ao brincar com os filhos.

David sentiu dor e arrependimento ao ver Max com a esposa e os filhos e, principalmente, ao constatar a transformação de seu caráter.

Anos antes, ao deixar a enfermaria onde se recuperara de um ataque cardíaco, também modificara-se radicalmente. Não tolerava mais o fardo da própria culpa e, principalmente, o fardo das expectativas que o pai lhe incutira.

Ser o filho favorito, o primogênito dos gêmeos, o marido atraente e cunhado charmoso, o isola­mento de ser aquele que todos admiravam, tudo aquilo se tornara um fardo. Passara toda a vida no limite.

Precisara libertar-se, livrar-se da imagem que os outros haviam criado e ser ele mesmo. Pelo menos, convencera-se disso na época. Concluíra também que tinha o direito de se colocar em primeiro lugar, que sua quase morte o liberara de qualquer obrigação para com os outros, que o ataque cardíaco fora um alerta para que vivesse a própria vida.

Sorriu fraco.

Estava bem mais magro agora e seu corpo possuía a força muscular de um homem habituado a esforço físico. Tinha a pele bronzeada pelo sol jamaicano e pelo ar marinho, seus cabelos loiros só agora começavam a apresentar fios brancos. Mas não só o corpo estava diferente. As longas horas de reflexão e os debates e discussões com o padre haviam provocado seus efeitos. Agora, via o mundo com sabedoria e compaixão e conseguia sorrir solidário, generoso e até terno ante as fragilidades dos semelhantes.

Se um estranho olhasse para ele agora, o consideraria um enigma. A aparência era de um trabalhador braçal, mas havia percepção e inteligência no olhar, o que sugeria um homem de letras e reflexão. Mas David não buscava a aprovação das outras pessoas, não precisava nem da admiração, nem da companhia. Optara pela solidão, física, mental e emocional.

Já trabalhava havia alguns meses com padre Inácio quando começara a se confidenciar.

— Não tenho família, não tenho amigos — contou-lhe. — Se voltasse para casa, eles me renegariam, com razão. Cometi um crime imperdoável.

— Nenhum crime é imperdoável neste mundo — respondeu o padre, com firmeza. — Não se há arrependimento genuíno.

— O que é arrependimento genuíno? — indagou David, irônico. — Nunca fui do tipo religioso. In­dolente, eu diria, e egoísta.

— Diz isso, entretanto, está preparado para re­conhecer que pecou. É preciso coragem para se submeter ao julgamento de seus semelhantes, e mais coragem ainda para se submeter ao próprio julgamento. O primeiro passo é admitir que pecou e, então, vem a expiação.

— Expiação! E como faço isso? — perguntou David, transtornado. — Não tenho como pagar o que roubei ou desfazer o mal que fiz.

— Sempre há um modo — insistiu padre Inácio.

— Às vezes, podemos dificultar as coisas a nós mesmos.

Sempre há um modo! David meneou a cabeça ao relembrar as palavras. Imaginava se seu desaparecimento, sua ausência, criara um vazio na vida dos que ficaram. Vã indagação aquela. O rastro de destruição que deixou foi apagado e nos dias em que observou silenciosamente a vida da família, descobriu quem era o responsável pela nova harmonia e proximidade.

Jon, seu irmão. Secretamente, sempre sentira pena dele. Às vezes, desdenhara dele, abertamente.

Jonathon. Na tarde anterior, o irmão gêmeo aproximara-se tanto de seu esconderijo no jardim de Queensmead que poderiam ter ficado lado a lado, se tivesse se deslocado poucos metros.

O irmão estava mudado, parecia mais alto, ou seria simplesmente a atitude? Observando-o, no­tara-o mais confiante, mais satisfeito. Seria por­que ele não fazia mais parte de sua vida?

Nunca fora gentil com Jon, nem o valorizara como deveria. Envergonhava-se ao lembrar de como o pai insistia para que Jonathon ficasse sempre atrás, para que o irmão gêmeo se destacasse. Como se deixara conduzir fácil e levianamente a um pedestal, festejado como filho favorito! Presunçoso e egoísta, clamara todas as virtudes da herança comum, relegando a Jonathon todas as fraquezas. A verdade era que, dentre os dois, Jonathon era o mais forte, o de co­ração puro e diligente.

Começava a sentir fome. Tinha pouco dinheiro e não queria ser reconhecido por ninguém. Na noite anterior, atacara a horta de Maddy. Essa noite...

Um carro se aproximou pela estrada. Dessa vez, não era o de Maddy, tinha um som de motor diferente. Ágil, escondeu-se no matagal, observou quando o carro parou de repente e uma mulher jovem saiu, o cabelo brilhante ao sol. Olívia...

David sentiu o coração falhar ao ver a filha entrar na casa. Parecia preocupada e muito mais nervosa do que Maddy ou Jenny. Sentiu ansiedade pela filha.

Olívia estava preocupada com alguma coisa. Por quê? Com o quê?

Olívia franziu o cenho e apressou-se até a cozinha de Queensmead. Esperava ver Maddy que, evidentemente, não se encontrava mais lá.

— Ela disse que voltaria logo — informou Edna Longridge, a enfermeira aposentada que vinha a Queensmead algumas vezes por semana para cuidar de Ben.

— Não posso esperar — disse Olívia. — Tenho uma reunião em meia hora.

— Oh, querida, quer que eu dê algum recado? — indagou Edna.

— Não, não importa.

Telefonara a Maddy por impulso, por necessidade de conversar com alguém compreensivo sobre sua decepção com a vida e com o casamento.

Maddy e Max podiam estar felizes agora, mas nem sempre foi assim. Ninguém melhor do que a tia para saber como era estar casada com um homem que não a amava... um homem que lhe era infiel...

Olívia ficou tensa.

Mas Caspar a amava e, até onde sabia, nunca lhe fora infiel.

Não ainda! - observou a vozinha interior, ultimamente mais ativa.

Não ainda... Nunca. Não Caspar...

Não? Então, por que ele andava tão irritado com ela? Talvez por se sentir excluído de sua vida, em que o trabalho se tornara mais importante do que ele ou as crianças. Caspar devia saber que não era verdade. Ele devia saber como ela temia ser comparada ao pai, pouco confiável, egoísta, incompetente e desonesto. Trabalhando com afinco, demonstrando a cada segundo que tinha valor, estaria se afirmando e às crianças também. Se não agisse assim, estaria condenando-as pelos pecados do avô.

Era fácil para tio Jon dizer que ela não tinha responsabilidade pelos crimes do pai, que ninguém acharia que, por ele ter sido desonesto, ela também seria. Bem no fundo, Olívia não acreditava nisso. Assustava-se com a idéia de que Jon estivesse mentindo, que não confiasse nela de verdade. Por isso, trabalhava com tanto afinco, obrigando-se a se firmar cada vez mais.

Na semana anterior, voltara de uma reunião fora do escritório e encontrara Jon junto à sua mesa. Com um frio no estômago, lembrou-se do dia em que soube o que o pai fizera. Jon estava em sua sala apenas porque precisava de um documento, como dissera, ou estaria especulando sobre seus clientes?

Pensou em discutir seus temores com Caspar, mas o orgulho a impediu.

E se Caspar compartilhasse a desconfiança de Jon? Com certeza, não confiava nela como mãe. Lembrou-se de como ele a criticara por voltar ao trabalho em tempo integral após o nascimento da segunda filha, Alex.

— Preciso trabalhar — dissera, incapaz de ver­balizar o medo que se apossara de sua vida. Começara com uma leve dúvida, após o nascimento de Alex, e tornara-se a força que agora ameaçava destruir seu casamento.

Na outra semana, Max comentara sobre o carro novo que haviam comprado. Imediatamente, Olívia ficara ansiosa. Estaria o primo desconfiado de que ela roubara dinheiro dos clientes para pagar aquela despesa?

— Não devia ter comprado um carro tão caro — criticou Olívia. — Não havia nada de errado com o velho, Caspar.

— Não. Exceto o fato de não ser grande o bastante para nossa família — observou Caspar, tranqüilo. — O que está querendo dizer, Liwy? Eu sei que você ganha mais do que eu e que a maior parte do dinheiro para o carro foi você quem arranjou. Se está sugerindo que eu fiz pressão para que comprasse o carro novo para polir o meu ego masculino...

— Não, claro que não — negou Olívia. Em poucos segundos, estavam tensos com a hostilidade, cada um em atitude defensiva. Não sabia explicar o que lhe causava tanta ansiedade, quando Caspar parecia preocupado só com seus próprios senti­mentos e necessidades.

Foram para a cama calados. Ficaram de costas e nenhum dos dois procurou fazer as pazes antes de adormecer. Más por que tinha que ser ela a ceder sempre, a contornar as dificuldades? Com certeza, se Caspar a amasse de verdade, veria... entenderia... saberia... se realmente se importas­se... se realmente se importasse...

Olívia não se lembrava da última vez em que Caspar a olhara como se a amasse, nem da última vez em que se tocaram com afeto. Não faziam sexo havia semanas, que diria amor. Não que quisesse sexo. Estava sempre tão cansada que, ao ir para a cama, isso era a última coisa em sua cabeça. Parecia ser a última coisa para Caspar também... ao menos, com a esposa!

Na semana anterior, ao sair de casa, percebeu que esquecera o casaco. Voltou, subiu a escada correndo, entrou no quarto e viu Caspar ao tele­fone, em tom suave e divertido. Ele terminou a conversa abruptamente e não lhe disse com quem estava conversando. Ela, claro, era orgulhosa de­mais para perguntar.

A discussão da noite anterior foi a pior de todas. Voltara para casa após uma reunião com um cliente particularmente difícil e encontrou Caspar acusando-a de ser uma mãe negligente por não ter ido buscar Amélia após a aula de dança.

— Mas eu liguei para a escola e expliquei que ia me atrasar — defendeu-se. — Deixei um recado com Maddy para ver se ela podia fazer o favor de pegar Amélia.

— Deixou recado? — questionou o marido, ás­pero. — Liwy, o que está acontecendo com você? Ser mãe não é uma tarefa que se delega a outra pessoa. Percebe que Amélia precisou pedir para a professora me ligar porque ninguém foi buscá-la? Imagina o que poderia ter acontecido com ela se não tivesse tido a sensibilidade de pedir à professora... se ela tivesse decidido voltar a pé para casa, por exemplo?

— Fiz o melhor possível — argumentou Olívia, defensiva. Embora se sentisse culpada e temerosa pela filha. Caspar tinha razão.

— Fez? Bem, com certeza fez o melhor para si mesma, mas não para Amélia — acusou o marido, irritado.

Magoara-se com a acusação de ter negligenciado as necessidades da filha e sabia que Caspar pretendera aquilo mesmo. Afinal, ele, melhor do que ninguém, sabia o quanto ela sofrera com o desinteresse e negligência dos pais e o quanto estava determinada a provar seu amor pelas filhas.

— Você não precisa trabalhar em tempo integral — observou Caspar, quando ela retomou a pro­fissão após o nascimento de Alex. — Podemos nos arranjar com menos dinheiro,

— Não aqui nesta casa, vivendo como agora — respondeu Olívia, áspera, sempre defendendo sua decisão. Não sabia explicar a ansiedade que tomaria conta de sua vida se não continuasse provando que não era como o pai.

Ninguém sabia como se sentia, claro. Ela era mulher, adulta, e ninguém parecia notar que precisava de ajuda. Jack, o irmão caçula, por sua vez, era protegido pela família, os efeitos do comportamento do pai sobre ele sempre monitorados.

Mas ela precisava exatamente de quê? Não sabia ao certo. Houve época em que achava que tudo o que queria e precisava era o amor de Caspar, mas fazia muito tempo, e agora...

De certa forma, estava contente por Maddy ter saído. De que adiantaria discutir seus problemas? Precisava enfrentá-los sozinha, como sempre.

Estacou a meio caminho do carro ao ser tomada pelo medo.

Do matagal, David observava-a. A cabeça baixa, o cenho franzido, a atitude impaciente, tudo indicava uma mulher infeliz consigo mesma ou com sua vida.

Quando ela passou perto e entrou no carro, David sentiu vontade de ir até ela, de abraçá-la, de dizer o quanto a amava. Já era adulta, mesmo assim, ao observá-la, David percebeu que o olhar era o de uma criança perdida.

— Minha volta não tem outro propósito senão salvar minha própria consciência — confidenciara a padre Inácio, frustrado quando o religioso insistira que era hora de deixar o esconderijo.

— Para você — concordara o padre. — Mas não nos esqueçamos de que quem traça nosso destino não somos nós.

— Não sou religioso — protestou David.

O padre riu como se tivesse ouvido uma piada.

— Não precisa ser — rebateu.

Ainda não era religioso, mas vira e aprendera bastante trabalhando com padre Inácio. Agora, compreendia que a complexidade das necessidades e emoções era o que dava à humanidade seu caráter especial.

A filha não era feliz e David captava todo o seu sofrimento.

Experimentara a mesma sensação na Jamaica, com relação ao filho Jack, que estava com Max quando este fora esfaqueado. Teria voltado por causa dos filhos?

Olívia se afastou. David olhou para a casa e viu o pai sentado na biblioteca. Exteriormente, os dois sempre partilharam uma estreita ligação. Sempre fora o filho favorito, mas, por dentro, o relacionamento baseava-se na necessidade de Ben de recriar o laço fraternal que perdera quando seu irmão gêmeo faleceu. Ben era vítima de sua educação e de sua perda, assim como David e Jon.

Imaginou para onde Olívia teria ido. Voltara para o escritório? Escritório em que Jon, mais qualificado, sempre conduzira os casos mais di­fíceis? Jon sempre fora o responsável por manter a reputação profissional da família, embora nin­guém lhe desse esse crédito, muito menos o ir­mão gêmeo.

Negligenciara tantos pagamentos... Débitos que talvez jamais pudesse quitar.

Esse pensamento lembrou-o de que seus recur­sos também se esgotavam. Precisava ganhar mais dinheiro e encontrar acomodações adequadas. Não na cidade, claro, onde seria reconhecido. Não, não ali. Numa fazenda distante, talvez, ou, melhor ainda, na propriedade de lorde Astlegh. Com cer­teza, ele estava contratando serviço temporário.

Ficava distante alguns quilômetros, mas isso não tinha importância. David sorriu ao lembrar-se de que o antigo David se aborrecia sempre que tinha que andar alguns metros a mais, a não ser que fosse no campo de golfe!

 

Honor trabalhava no jardim quando viu um homem na estrada de brita em direção a Fitzburgh Place. Notou que ele cami­nhava controlando os passos, característica daqueles acostumados a cobrir grandes distâncias, mas não parecia um excursionista, nem andarilho. Não sa­beria explicar, mas sentia que havia algo diferente nele, algo que o diferenciava das pessoas comuns.

Ele se vestia de maneira simples, calça jeans e camisa xadrez velha, botas resistentes e uma pe­quena mochila de lona. Era alto, rosto esculpido e bronzeado. Seus instintos femininos indicavam que aquele homem valia uma segunda olhada. Endirei­tou-se e sorriu, amigável, quando ele a saudou.

David deteve-se para retribuir o sorriso. Aquela não era a primeira pessoa a falar com ele durante a caminhada, mas, com certeza, era a mais en­cantadora. Sua ex-esposa, durante o casamento, usara todo artifício disponível, primeiro para sa­lientar e depois, para manter a beleza. Era um sacrifício que ela oferecia em troca da aceitação e aprovação dos outros.

Não se lembrava de ver Tiggy em público ou em qualquer outro lugar, com exceção da cama, sem maquiagem. Já aquela mulher, que o obser­vava com a cabeça levemente inclinada, bonitos olhos e atitude amistosa, não usava maquiagem, nem precisava.

Ela já não era jovem, apresentava rugas finas ao redor dos olhos e sabedoria e maturidade no sorriso. Por isso mesmo, David desconfiava de que, numa sala cheia de moças bonitas, ela ainda seria o centro das atenções.

— Está com sede? — perguntou Honor. — Eu ia mesmo tomar um refresco.

Sede! David ficou surpreso.

Honor imaginou se ele saberia o quanto sua expressão era denunciadora. Além de surpresa, ele externava desaprovação e também proteção.

— É muito gentil, mas...

— Mas uma mulher da minha idade devia ter mais juízo e não convidar um estranho para entrar no jardim. — Honor riu. — Ah, mas você sabe, eu tenho poderes mágicos especiais que me capa­citam a saber quem uma pessoa realmente é. Sou bruxa, entende? — acrescentou, séria e zombetei­ra, o olhar divertido. Largou a pá e foi ao portão. — E então... tem coragem de entrar?

— Uma bruxa, é?

Honor sentiu o coração disparar com o sorriso dele, muito branco contra a pele bronzeada. Cui­dadosa, repreendeu-se quando o homem foi em sua direção. Tratava-se de um homem muito atraente, com um ar pouco convencional e único que a excitava. Sabia que era seguro deixar aquele estranho entrar em casa.

— Bem, não, não de verdade — admitiu Honor, conduzindo-o para os fundos. — Sou herbolária,

— Herbolária?

Ao captar interesse no tom de voz, Honor olhou-o por sobre o ombro.

— Entende do assunto? — indagou, empurrando a porta da cozinha.

O cômodo de teto baixo estava escuro. Honor planejava ela mesma cortar o arbusto que crescera junto à janela. Talvez, quando encontrasse um prestador de serviços, conseguisse a indicação de um especialista em plantas e árvores.

— Não muito — respondeu ele. — Mas tenho um amigo que acredita que a resposta para todos os males modernos pode ser encontrada tanto na natureza quanto nos laboratórios.

— Concordo — afirmou Honor, amistosa. — Seu amigo mora por aqui? Aliás, sou Honor Jessop. Sou nova na região e ainda não tive tempo de conhecer nenhuma alma gêmea...

David hesitou e meneou a cabeça.

— Não, ele mora na Jamaica. — Fez uma pausa antes de se apresentar: — David... David Lawrence.

Honor gostou do nome dele.

— Jamaica... Estava mesmo imaginando onde conseguiu esse bronzeado invejável. Vai lá com frequência?

— Não — declarou, sucinto. Então, percebendo que fora rude, suavizou a situação com um pouco de explicação. — Morei lá... por algum tempo. Foi assim que o conheci. Mas agora... — Franziu o cenho e olhou na direção da torneira gotejante.

— Irritante, não é? — concordou Honor. — Ten­tei soltar para trocar a peça, mas está emperrada.

— Provavelmente, precisa de uma lubrificação — sugeriu David, contente por mudar de assunto.

— Posso dar uma olhada, se quiser.

Meia hora depois, David desenrolava as mangas da camisa. Após consertar a torneira e limpar o sifão, observara que ela deveria trocar o encana­mento de chumbo, isolando a parte externa para evitar congelamento durante o inverno.

Observando David locomover-se pela cozinha, Honor deu-se conta de como ele completava o local, como parecia certa a presença dele ali. Sentia-se confortável perto dele, e feminina. Sorriu discre­tamente à última conclusão. As filhas ficariam chocadas com seus pensamentos.

Sempre fora uma esposa fiel, mas sabia que havia um forte lado sexual em sua natureza, o qual re­primia devido às circunstâncias e estilo de vida. Sexo bom era um dos prazeres da vida, uma experiência que todos tinham o direito de usufruir. Sexo ruim, por outro lado, era como comida ruim, venenoso ao sistema humano, destrutivo, às vezes até fatal.

Honor era tanto realista quanto fatalista. A vida oferecia muitas oportunidades, mas era preciso reconhecê-las e tirar vantagem delas.

Sem falar nada, enquanto David lavava as mãos, foi à geladeira e retirou o chilli que prepa­rara no dia anterior.

— Não demora para esquentar — comentou, casual. — Devo alertá-lo, entretanto, que pode achar um pouco apimentado. Minhas filhas recla­mam que...

— Tem filhos?

— Sim, duas meninas. Bem, já são adultas ago­ra. E você, tem família?

— Tenho dois filhos também.

— Mas não tem esposa? — perguntou Honor.

— Não — afirmou David. — E você?

— Estou sozinha também — informou Honor.

— Quer dizer que mora sozinha aqui — concluiu David, pouco depois, à mesa, saboreando o chilli de Honor.

Ela achou que David não se alimentava havia algum tempo, considerando seu apetite e con­centração no ato de comer. Era um homem edu­cado, falava bem e tinha boas maneiras. Com certeza, não se sentia inquieta por estar ali so­zinha com ele, pelo contrário, mas compreendia que não se tratava de alguém que saíra para dar um passeio à tarde. Embora tivesse respon­dido às suas perguntas, notou que ele elaborava as frases com cuidado.

— Parece desaprovar. — Honor sorriu.

— Bem, a casa é muito isolada...

— E muito mal conservada. Sim, eu sei — con­cordou ela. — Estou tentando encontrar um pedreiro para fazer a reforma, mas não consegui contratar ninguém da região por causa da lenda...

— Lenda? Oh, quer dizer a velha história sobre a casa ser mal-assombrada — lembrou-se David.

Ante a insistência de Honor, David aceitou um copo de vinho caseiro e acabou relaxando com o álcool, o calor da cozinha e o estômago cheio.

Se ele conhecia a lenda em torno daquela casa, devia ser da região, pensou Honor.

— As pessoas geralmente não usam essa estrada. Acho que é primeira pessoa que vejo nesta semana. Imagino que estava indo para Fitzburgh Place.

— Sim. Estou procurando algum tipo de serviço temporário... e um lugar para ficar — admitiu David. — Achei que valia a pena perguntar a lorde Astlegh se ele está precisando de alguém.

— Humm... Bem, você está na época de entressafra para serviço temporário — alertou Ho­nor. — A colheita é feita com maquinário e, embora empreguem batedores para a estação de caça, acho que não estão precisando de nin­guém no momento.

Observando David, uma ideia começou a tomar forma.

— Você fez um trabalho profissional naquela pia. Estou procurando alguém que torne a casa à prova de água para o inverno. Não posso pagar muito, mas posso oferecer uma cama e refeição.

David encarou-a atónito.

— Está me oferecendo um trabalho? Está fa­lando sério?

— E você está falando sério sobre precisar de trabalho? — rebateu Honor.

— Mas você não sabe nada sobre mim — pro­testou David.

— Sei que tem unhas limpas e boas maneiras — brincou Honor. — E sei que consegue consertar torneiras e que gosta do meu chilli.

— Não acredito. — David meneou a cabeça. — Faz ideia de...

— Se vai me dar uma palestra sobre os perigos que estou correndo, por favor, poupe-se — adver­tiu Honor. — Sou uma mulher adulta e perfeita­mente capaz de fazer julgamentos e tomar minhas próprias decisões. A oferta está de pé. Se vai acei­tar ou não, é com você. Torta de maçã? — ofereceu, levantando-se para recolher os pratos.

— É... por favor... deixe que eu faço isso — insistiu David. Levantou-se rápido e tomou os pratos.

Quando se tocaram, Honor ficou ciente da força das mãos e do calor dele. Apreciando seus dedos longos e os movimentos econômicos, ágeis, ima­ginou que ele devia tocar uma mulher de um jeito firme e planejado. Mas seria sensual? Perderia o distanciamento e a cautela no calor da paixão? Ou seria o tipo de homem que se mantinha ina­cessível ao desejo verdadeiro, talvez até por medo? Nesse caso, não permaneceria interessada nele por muito tempo.

Mas, talvez, não quisesse mantê-lo por muito tempo mesmo... talvez...

David interrompeu seus pensamentos:

— O que seria exatamente esse trabalho que está me oferecendo?

— É... bem, como disse, gostaria de preparar a casa contra a chuva no inverno. Você disse agora mesmo que o encanamento precisa de isolamento. Há uma goteira no teto e algumas janelas preci­sam de pintura... uma ou duas estão com alguns vidros quebrados. Há muito trabalho para ser feito no jardim e há a estufa que meu primo disse que eu poderia usar. Só preciso arranjar alguém que a conserte para mim.

— Primo?

— Sim — respondeu Honor. — Lorde Astlegh é meu primo. Por isso vim parar aqui. Ele me deixou morar quase de graça.

— Quer dizer que está pagando para morar nes­se barraco? — David franziu o cenho.

Honor lançou-lhe um olhar torto.

— Agora você está parecendo as minhas filhas — acusou.

David pensou rápido. Precisava se alimentar e precisava de um lugar para dormir. Honor não era da região, assim, não havia perigo de reconhecê-lo. Pelo que ela contara, não tinha muita atividade so­cial, parecia gostar de ficar sozinha. Era surpreen­dente aquele retraimento, considerando sua sensua­lidade extraordinária. Ou, talvez, fosse por isso mes­mo. Poucas mulheres, não importava quão felizes e seguras com o casamento, se arriscariam a uma competição com Honor. Sentindo-se já muito exci­tado, achou prudente recusar a oferta,

No entanto, queria um lugar para ficar, exatamente naquela na área. Como podia dizer não? Se quisesse... A imagem da filha Olívia voltou-lhe, como a vira pouco antes. Cabisbaixa... infeliz... precisando de ajuda...

— Eu aceito — declarou.

— Ótimo — alegrou-se Honor. — Não vai me perguntar quanto estou pagando?

— Casa e comida, você disse — respondeu ele. Casa e comida! Ele estava disposto a trabalhar por isso. Por quê? Honor ficou curiosa. Mas sentia que qualquer tentativa de questionamento faria com que ele se retraísse e, talvez, recusasse a oferta de trabalho.

— Pensei em começarmos com cinqüenta libras por semana, pelo período de experiência de um mês — sugeriu Honor. Era uma quantia irrisória, mas queria ouvir a resposta de David.

Ele aceitou tranquilo e sem questionamento. Honor sabia que tinha o direito de estar curiosa, curiosa e desconfiada, talvez? As filhas com cer­teza ficariam. Mas não era como as filhas, cen­surou-se. Preferia confiar nos seus instintos.

Cinqüenta libras por semana, refletiu David. Uma fortuna comparada à renda que ele e padre Inácio tinham na Jamaica. Mas não estavam na Jamaica, alertou-se.

O que esperava obter? Por que voltara? Para aliviar a própria consciência? Para rever a famí­lia? Presenciar a infelicidade de Olívia já o deixara mais preocupado com ela do que consigo mesmo.

Por que sentia que Olívia precisava dele? Podia contar com Jon. Quando criança, sempre preferira o tio, as­sim como Max, filho de Jon, preferia ficar com ele. Mas Max e Jon estavam mais próximos agora.

Honor completou os copos com mais vinho, er­gueu o dela e fez um brinde.

— A um relacionamento de sucesso e de ami­zade entre nós.

David fitou-a. A frase era ambígua. Honor era uma mulher atraente, mas não do tipo predador. Não precisava ser. Na Jamaica, conhecera mu­lheres que falavam abertamente em pagar para obter satisfação sexual com ele.

Honor encarou-o interrogativa. David sabia que ela controlaria a curiosidade, a menos que ele des­se um passo... e mesmo assim...

Havia algo nela que o fascinava. Honor era tão sincera, não parecia se importar com sua segu­rança física nem emocional. Ao mesmo tempo, pa­recia protegida, como se tivesse sabedoria e força adquiridas em momentos de sofrimento e de ale­gria também.

David sorveu um gole de vinho e imaginou o que padre Inácio faria naquela situação. Aprova­ria sua atitude? Sorriu para si mesmo, imaginan­do a resposta do grande amigo.

— Você aprova? — diria ele. — Sua própria aprovação às suas ações e reflexões deveriam ser mais importantes do que a minha opinião. É muito mais difícil nos decepcionarmos conosco e, por isso, somos nossos melhores críticos.

— Sim, mestre. — David às vezes o satirizava ao final de suas homilias.

— Não há mestres aqui — corrigia o padre, gentil. — Só dois aprendizes.

David não tinha receio quanto à sua capacidade de realizar o serviço. Ao deixar a Inglaterra, passara algum tempo na Espanha, trabalhando ilegalmente na construção de vilas para estrangeiros.

— Conte-me um pouco sobre você — convidou Honor.

Era um vinho potente, principalmente para um homem que não tocava em bebida desde a noite em que padre Inácio o tirara da sarjeta, em Kingston. As bebedeiras foram uma tentativa patética e solitária de destruir o que restava de sua vida. Não deu certo, felizmente, mas o desgosto com o próprio comportamento, juntamente com a vida abstêmia do padre, desabituaram seu organismo ao álcool. Cuidado, alertou-se, sentindo o sangue esquentar e a língua se soltar.

— Não há muito para contar — assegurou, cauteloso.

Honor ergueu o sobrolho, mas não questionou.

— Você disse que tem dois filhos...

— Um filho e uma filha — especificou David. — Mas não tenho contato com eles.

Com uma praga, imaginou por que lhe contara aquilo. Aliviado, viu que Honor aceitava o fato.

— Acontece. Os casais se divorciam e, apesar da boa intenção de todos, às vezes, é impossível manter contato. Meu marido tinha pouco contato com nossas filhas. Era fotógrafo. Minha família nunca aprovou nosso casamento e sempre descon­fiei de que ele nos deixava, em parte, por sentir prazer em confirmar a expectativa de meus pais. Ele era assim.

— Deve ter sido difícil cuidar de suas filhas sozinha — atentou David.

Honor olhou-o de soslaio.

— Na verdade, não. Era difícil conviver com meu marido. Casamo-nos jovens. Ele exagerava em tudo, bebidas, drogas, sexo, dinheiro. Queria tudo e tinha tudo. Agora, está morto. — Percebeu o olhar surpreso de David. — E, por ironia do destino, herdei os bens dele. Não vou fingir que o dinheiro não foi bem-vindo. Minha família lavou as mãos quando me casei e, embora tenhamos nos separado depois, meus pais achavam que eu tinha que me virar sozinha, pois eu mesma pro­curara aquela situação. E você, é divorciado?

— Sim. Pelo menos, entendo que o divórcio se efetivou — respondeu David. — Não tive contato com minha esposa nem com minha família por algum tempo, mas o casamento já estava acabado antes... antes da minha partida. — Ansioso por mudar de assunto, indagou: — Mas, afinal, como se tornou uma herbolária?

— O que faz alguém se interessar por alguma coisa? — ponderou Honor. — Eu gostava da ideia de usar o poder de cura da natureza. Acho que me divirto mais com isso do que gosto de admitir.

— Se descobrir um método natural de emagre­cimento, vai ficar milionária da noite para o dia.

— Já existe algo na natureza — informou Ho­nor. — Chama-se famine.

David enrubesceu.

— Desculpe-me. Não quis menosprezar seu trabalho.

— Nem a mim? — questionou Honor.

Houve uma pausa antes que David respondesse.

— Não tenho o direito de menosprezar ninguém, nem de fazer julgamentos. Por direito, deveria estar...

— Deveria estar onde? — encorajou Honor.

— Em outro lugar — completou David, de re­pente. O que ela diria se tivesse completado a frase original, contando-lhe que deveria estar na prisão, cumprindo pena por um crime que real­mente cometera?

— Em outro lugar. Quer dizer, com a sua fa­mília? — indagou Honor. Sentia que algo o per­turbava e que o vinho derrubara barreiras que ele preferia ter mantido erguidas.

— Não, não com a minha família — disse, zan­gado. — Minha família... minha família provavel­mente se desviaria se me visse na rua, e quem pode culpá-los? Não há dúvida de que preferem fingir que não existo... que nunca existi... e com razão. Têm todo o direito de sentir vergonha de serem meus parentes. Eu... o pai... o irmão... o filho... o ladrão e covarde.

— Ladrão?

Honor respirou aliviada. Por um momento, imaginou o que ele poderia ter feito. Roubo, embora um crime deplorável para qualquer pessoa de bem, dificilmente despertaria reprovação em al­guém cujos ancestrais haviam cometido o mesmo crime em grande escala.

— Honor, não ajuda ninguém pensando de for­ma tão radical — criticara uma tia, quando ela questionara a versão amenizada da história da família. — Seu bisavô foi um dos homens mais respeitáveis de sua geração e seu tio-avô foi go­vernador do condado.

— Sim, sei que foram tão direitos e honestos quanto se pode ser, mas e quanto a nossos an­cestrais de verdade, aqueles que violentaram, as­sassinaram e roubaram?

— Isso foi há séculos, quando todo mundo fazia isso — explicou a tia. — Você é uma menina es­tranha. Não sei porque aborda esses assuntos. Isso não se faz...

Fazendo ou não, não havia como encobrir os fatos. Duvidava de que o crime de David chegasse aos pés das atrocidades de seus ancestrais.

O vinho acabou e Honor sabia que David la­mentava ter revelado aquele fato. Mais alguns minutos e ele diria que havia mudado de ideia e iria embora. Não queria que isso acontecesse. Oh, não, não queria mesmo.

Levantou-se e sorriu.

— Se subir comigo, vou lhe mostrar o seu quar­to. Amanhã, decidimos quais reparos devem ter prioridade.

David se levantou, um pouco confuso. Quase dissera a Honor que ia embora. As perguntas so­bre sua família o alertaram para o perigo e es­tupidez do que estava fazendo. A família não que­ria mais saber dele. No lugar deles, faria o mesmo.

— Por aqui — chamou Honor.

Incapaz de se decidir, David a seguiu pelo cor­redor até a escada. No andar de cima, ela lhe mostrou um quarto na parte dos fundos.

— Não é tão grande quanto os quartos da frente, mas eu estou ocupando um e as meninas se apos­saram dos outros, para quando vierem aqui me visitar — explicou Honor, acendendo a luz.

O quarto não era grande, mas que importava? Comparado aos lugares onde andara dormindo... Tinha uma cama... um luxo. Tinha móveis tam­bém, um guarda-roupa e duas arcas. Não que fosse precisar. Viajava com pouca bagagem, todos os seus pertences estavam na mochila.

Havia cortinas nas janelas e um tapete. Esta­vam puídos, mas David pouco se importava. O quarto tinha ainda a própria lareira e o ar parecia úmido e frio.

— A casa possui aquecimento central... um tipo de aquecimento central... — informou Honor, como se lesse seus pensamentos. — Mas ainda não consegui fazer funcionar.

— Humm... qual é a prioridade do aquecimento?

— Bem; ficaria antes de "arrumar o jardim" e depois de "consertar o telhado" — respondeu Ho­nor, com aquele sorriso que o excitava.

Quando jovem, não dera a devida importância à sexualidade e considerava normal a reação que tinha ao ver uma mulher bonita. Quando conhe­ceu Tânia, Tiggy, nos anos sessenta, todo mundo fazia sexo sem se preocupar muito.

Casaram-se e tiveram, dois filhos. Então, pas­saram-se anos em que o sexo se tornou um ritual, um dever, uma tarefa. Depois, sexo virou a re­compensa para aliviar as inseguranças de Tiggy e sua própria culpa.

Na Espanha e na Jamaica, mulheres de meia-idade se aproximavam dele, ansiosas, querendo não apenas seu corpo, mas seu espírito também. Resistira a todas. O celibato dos últimos anos lhe proporcionara um oásis de paz. Não se importava em estar impotente tanto física quanto emocionalmente no que se relacionava a sexo. Entretan­to, ali estava ele, ciente de Honor, reagindo a ela como um adolescente.

— O banheiro fica na terceira porta à esquerda — informou Honor. — Vai encontrar muitas toa­lhas na estante. Felizmente, o aquecedor da ba­nheira é uma das poucas coisas que estão funcio­nando, portanto, há água quente. Oh, e sempre deixo as luzes do corredor acesas, mas, com a porta fechada, isso não deve incomodá-lo.

— Sempre deixa as luzes acesas? — indagou David. — Por causa dos fantasmas?

Honor ficou tensa. Já de saída, estacou, mas não se voltou.

— Talvez — concordou, mas ele identificou um leve tremor na voz e compreendeu, surpreso e so­lidário, que ela devia ter medo de escuro.

Era um temor tão infantil que teve vontade de rir, mas controlou-se a tempo.

— Bem, as luzes não me incomodam — asse­gurou, sério.

Foi recompensado com um olhar de alívio. Ela disse ainda, com voz insegura:

— Os cabos elétricos são aéreos aqui e, quando há tempestades, é comum ficarmos sem energia. Eu mantenho um estoque de velas... caso seja preciso.

— As velas podem provocar incêndio — alertou David, gentil. — Pode valer a pena instalar um gerador.

— Sim, andei pensando nisso — concordou Honor. David compreendeu que ela devia ter passado por algum trauma, pois seu nervosismo era evi­dente. Deu uma volta pelo quarto, analisando o que sentia ao saber da vulnerabilidade de Honor. Era orgulho, orgulho masculino e machismo... as­sociado ao desejo de protegê-la, de ser seu protetor.

— Não, não — alertou-se, abrindo a mochila. — Oh, não, você não vai. Não é para isso que está aqui, David Crighton. Não é mesmo.

 

David acordou bem cedo e por alguns segundos sentiu-se desorientado com o quarto e o conforto da cama com colchão.

Não fechara as cortinas na noite anterior e, pela janela, via as árvores que formavam o bosque per­tencente a Fitzburgh Place, envoltas em nevoeiro. O sol acabara de despontar.

Na Jamaica, essa hora sempre fora a sua pre­ferida, quando o ar ainda estava frio nas monta­nhas onde padre Inácio construíra o refúgio.

Não havia nada como o outono inglês. Alguns podiam elogiar as cores maravilhosas do outono na Nova Inglaterra, porém, ali em Cheshire po­dia-se entrar em sintonia com a mudança da es­tação e o ano que chegava ao fim. Havia uma melancolia persistente, salientada pelo calor fraco do sol, uma pálida lembrança do verão. Ao mesmo tempo, o ar recebia a influência da névoa das pri­meiras horas da manhã e isso logo trazia a lem­brança do inverno iminente.

Espreguiçou-se, levantou-se e andou nu pelo quarto como um gato selvagem. Aprendera, morando nos trópicos, a poupar a energia do corpo. E, morando com padre Inácio, aprendera a valo­rizar a sabedoria que vinha com a experiência do velho religioso.

A princípio, rira da insistência do padre em se banhar na cachoeira perto do refúgio toda manhã. E também da rotina de exercícios vigorosos.

— O corpo é como uma peça de equipamento. Com um pouco de cuidado, pode nos servir bem, mas, como qualquer outra peça, se o negligencia­mos ou abusamos, logo a preguiça e a falta de respeito vão dar sinais nos anos seguintes.

— Desde que se esteja vivo para sentir os efeitos — ironizara David.

O padre inclinara a cabeça, aceitando a ressalva.

— O verdadeiro sábio orgulha-se de seu equi­líbrio físico, mental, emocional e espiritual — en­sinou. — E, talvez seja fútil da minha parte, mas não quero que digam que não tenho sabedoria por não respeitar os presentes que a natureza me deu. Além disso, sinto-me limpo e energizado tan­to em corpo quanto em espírito.

— Um típico ensinamento dos jesuítas — des­denhou David.

— A limpeza faz bem à alma — recitou o padre.

— O que posso dizer é que a limpeza é o primeiro passo para controlar e erradicar as doenças e, uma vez que nossa tarefa aqui é...

David dera de ombros, mas sabia que o religioso tinha razão. O padre era meticuloso quanto a ferver toda a água utilizada no hospital e não manter objetos desnecessários, foco de bactérias, junto aos doentes.

E, após algum tempo, David parou de ironizar o hábito de padre Inácio de se banhar e de trocar de roupa ao final do dia. Ele mesmo começara a seguir o mesmo ritual diário.

Não havia diferença entre as roupas, porém, sem dúvida, as que estavam limpas caíam bem melhor.

Na Espanha, ganhara o suficiente para comprar roupas básicas e pagar a uma mulher da vila para lavá-las. Mas tivera de partir às pressas, pois os agentes com a ordem de deportação por trabalho ilegal já estavam em seus calcanhares. A oferta de trabalho num iate que partia para a Jamaica era oportuna demais para recusar. No fim da viagem, entretanto, o capitão informara que o único paga­mento que ele receberia seria a passagem gratuita.

Na Jamaica, o único trabalho disponível era o de "mula" para gangues de droga, para levar o produto para a Inglaterra. Por pior que fosse, Da­vid sabia que não devia se envolver com drogas e viu-se na situação de viver um dia após o outro sem saber se ganharia o suficiente para comer.

Vestiu a calça jeans e foi ao banheiro. Duvidava de que Honor já estivesse de pé, portanto...

Honor. Que mulher fascinante. Ainda se intri­gava com o fato de ela morar sozinha. Era escolha dela, sem dúvida. A reação de seu corpo ao pensar nela era estranha e surpreendente. Não se lembrava da última vez em que reagira de forma tão imediata e firme. Tiggy com certeza duvidaria e ficaria espantada ao vê-lo agora.

Mesmo antes da concepção de Jack, fingira or­gasmo em várias ocasiões. Às vezes, interrompia a sessão para ir ao banheiro alegando vontade de urinar, quando, na verdade...

David franziu o cenho, desgostoso, ao sair do chuveiro. O apetite sexual de Tiggy espelhava sua desordem alimentar. A bebedeira seguiam-se auto-repulsa e autopunição. Na época, podia não ter reconhecido os sintomas, porém, mas com certeza, não tivera interesse nem compaixão para ajudá-la, tão ansioso quanto ela em manter a fa­chada do casamento perfeito. Ambos empenha­vam-se em manter a imagem de um relaciona­mento muito sexual, com encenações fajutas de intimidade e adoração sempre que havia público. E, como sempre acontecera em sua vida, carregar o fardo dessa ficção destruíra qualquer autenti­cidade existente. No lugar, ficara um medo des­trutivo, doentio de que percebessem o logro e des­cobrissem como ele realmente era.

Na época em que começou a movimentar as con­tas bancárias dos clientes como se o dinheiro fosse seu, iniciaram-se também os sonhos desesperadores. Via-se caminhando pela área comercial de Haslewich, mas ninguém parecia reconhecê-lo. Ao parar e ver o próprio reflexo na vitrine de uma loja, descobriu por quê. Não se parecia nada con­sigo mesmo.

Voltando-se para a rua, chamava aqueles que o observavam, o irmão, Jon, a esposa, o pai, os amigos do clube de golfe, mas ninguém atendia. Davam de ombros, como se ele fosse um estranho importunando-os.

Era fácil entender a mensagem do sonho agora. Podia caminhar pela cidade e ser reconhecido pelo que era, David Crighton, aquele que deixara a famí­lia, o lar, mas por dentro... por dentro, era um homem totalmente estranho, alguém que não conheciam. Um estranho às vezes até para si mesmo, considerando sua resposta sexual ao conhecer Honor.

Já vestido, desceu e foi para a cozinha, onde encheu uma chaleira com água. Enquanto aguar­dava a fervura, estudou o local. Um dos caixilhos estava podre e a janela não se fechava completamente. A porta também não se encaixava bem no batente. Como já sabia, a escada rangia e, sob o tapete do corredor, alguns tacos do assoalho es­tavam soltos.

Honor evidentemente tentara clarear a cozinha, pintando as paredes com uma tinta de tom ocre claro. As prateleiras exibiam peças de porcelana de cores mediterrâneas.

Numa reentrância da parede, sobre um fogão antigo, ervas secavam presas a um suporte de madeira. Fora esses detalhes, a cozinha era fria e ligeiramente úmida. David aproximou-se do fo­gão e viu que estava apagado. Após um segundo de hesitação, ajoelhou-se, abriu as portinholas e começou a limpar o forno.

Tinha acabado de acender o fogo quando Honor entrou na cozinha com um cesto de vime.

— Acordou cedo! — exclamou ela, sorridente.

— Você também. — David fechou as portinholas do forno, levantou-se e foi a pia lavar as mãos.

—É que gosto de colher as plantas e ervas no dia, pois são mais eficazes quando frescas.

— Isso me parece mitologia medieval — provo­cou David.

Rindo, Honor acrescentou:

— Mas não fui atrás só de plantas e ervas. — Abriu o cesto e retirou um punhado de cogumelos, o olhar cintilante ao mostrar sua colheita. — Veja, é o café da manhã!

— Tem certeza de que são comestíveis? — in­dagou David.

— Confie em mim, sou herbolária — respondeu Honor, fingindo presunção.

Ele foi ao fogão antigo, abriu uma portinhola e acrescentou mais lenha ao fogo já alto. Honor espantou-se.

— Oh, ótimo, conseguiu acender o fogão. Não consegui manter o fogo aceso.

— Por que não lançou um feitiço?—provocou David.

— É um fogão muito temperamental — inven­tou Honor. — Pretendo trocá-lo. Felizmente, não dependo dele para cozinhar. Tenho um fogão por­tátil e um forno de microondas.

— Quer dizer que tive todo esse trabalho para nada? — reclamou David.

Honor riu.

— Bem, não para nada. Está vendo? O fogão é grande o suficiente para o meu caldeirão e posso fazer umas receitas, agora que você conseguiu acendê-lo!

— Receitas de bruxa? — brincou ele.

Sério um segundo depois, observou Honor mo­vimentando-se pela cozinha. Ela estava de botas de borracha e calça jeans, os joelhos sujos de terra da horta. O suéter de algodão branco extragrande devia ter sido de outra pessoa... um homem. O marido? Um amante? Franziu o cenho ao identi­ficar o ciúme possessivo, bem característico dos homens. Apesar de grande, o suéter não escondia o volume dos seios, que balançavam tentadores, insinuando que estavam livres.

Tiggy, apesar dos períodos de necessidade se­xual, era obcecada pelo corpo. Dizia que a lingerie que usava seria considerada irresistível por qualquer outro homem. Ele a achava mais como uma boneca de plástico, rígida e sem gra­ça, fria e estéril.

Honor, por outro lado, não usava perfumes ca­ros, nem sutiã para salientar o busto, nem meias provocantes. Não pretendia parecer irresistível.

Não, Honor era deliciosamente mulher, em vez de artificialmente feminina. Apaixonada, se­ria terna e carinhosa, gozaria o prazer com he­donismo natural e, assim, não deixaria de ex­citar o companheiro.

Companheiro! Mas ele não era... não era e nun­ca seria.

— Não sei quanto a você, mas gosto de começar o dia com um bom café da manhã — comentou Honor, amistosa.

Um bom café da manhã. Na Jamaica, o café da manhã, como todas as outras refeições, con­sistia de frutas frescas, peixe que eles mesmos pescavam e outros alimentos que os pacientes e suas famílias forneciam.

— Um bom café da manhã — repetiu David.

Onde ele estivera? Aonde suas lembranças o levavam, imaginou Honor, ante aquele olhar con­centrado e distante.

— Bem, sabe o que dizem: saco vazio não pára em pé.

— Tem razão — aceitou David e deu de ombros. Nunca vira Tiggy tomar o café da manhã, pois ela ainda dormia quando saía. Ele próprio, odian­do o caos matinal na cozinha, tomava só um café. Olívia, de uniforme escolar que passava a ferro sozinha, preparava uma tigela com cereais para o irmão Jack e o olhava acusadoramente ante os berros que emitia irritando à mulher à guisa de despedida. Só no escritório beliscava sanduíches e croissants, que mandava a secretária ir buscar. Como aquelas lembranças doíam agora! Na épo­ca, não se sentira culpado, egocêntrico ao extremo, crente de que, como filho favorito, valia mais que todos os membros da família. Não se cansava, tampouco, de arranjar desculpas para passar o mínimo de tempo com os filhos, ora amuado, ora irritado com os pedidos de atenção. Era fácil preencher a agenda com reuniões de negócios, se­guindo para o clube ao final do expediente, de modo a chegar em casa somente quando Olívia e Jack já estavam dormindo.

— Está pronto.

O chamado de Honor tirou-o de seus pensamentos. Sorriu triste.

— Estava me lembrando do café da manhã quando as crianças eram pequenas.

— Lembranças infelizes? — adivinhou Honor, precisa.

— Sim — admitiu David.

Honor era tão objetiva, em contraste com a cau­tela dele, que outra pessoa poderia até se ofender. Entretanto, nela a objetividade parecia natural, considerando que respondia sem rodeios também.

— Nem sempre é fácil ser pai ou mãe — con­solou Honor.

— Não é fácil ser criança quando se tem um pai tão negligente e egoísta quanto eu era — con­fessou David, amargurado. — Meus filhos têm pouco a me agradecer e muito a me culpar.

— E eles o culpam?

David deu de ombros.

— Não sei, mas se fosse eles... — Deteve-se e a fitou. — Isso está ficando sentimental demais e não pode lhe interessar. Que mais tem esse seu café da manhã, fora os cogumelos duvidosos?

Honor riu. Reconhecia uma porta fechada quan­do via uma, especialmente quando a batiam com tanta determinação.

— Não há nada de duvidoso nos meus cogume­los. Espere até experimentar.

— Humm... Não sei se vou me lembrar do sabor ou se vou acordar com uma bela dor de cabeça e descobrir que...

— Que eu usei o seu corpo para satisfazer mi­nhas necessidades femininas — sugeriu Honor, com um sorriso maroto.

Um sorriso maroto e sexy, reconheceu David. Aproximou-se sério.

— Agora eu me ofendi. Se me levar para a cama, prometo que vou saborear e me lembrar de cada segundo. Com certeza, não precisarei de nenhum afrodisíaco ou poção mágica.

Por que dissera aquilo? Algum tipo de machis­mo, algum tipo de desejo deturpado de provar que era homem? Que tipo de idiota era? Com uma frase, em menos de um minuto, mudara completamente a natureza do novo relacionamento e, se fosse Honor...

Prendeu a respiração e aguardou que ela dis­pensasse a oferta, ou, pior, dissesse que mudara de ideia a respeito de contratá-lo para fazer a reforma da casa. Mas ela simplesmente foi à geladeira.

— A fazenda fornece toda a carne — comentou, como se nada tivesse acontecido. — O toicinho defumado é feito aqui. Meu primo Freddy diz que perco todo o sabor do bacon colocando-o na gela­deira, mas, com toda esta umidade, prefiro perder um pouco de sabor a acabar intoxicada. No verão, após alguns dias quentes, não imagina a quanti­dade de moscas que aparecem...

— Os drenos provavelmente precisam de lim­peza — comentou David, mecanicamente, mal acreditando que ela fora graciosa o bastante para ignorar seu desabafo indecoroso.

Graciosa. Palavra estranlia para se definir uma mulher tão moderna, pois lembrava viúvas da épo­ca eduardiana. A graciosidade de Honor era muito mais que isso, uma mistura de gentileza, compai­xão, sabedoria e força, difícil de descrever, como os componentes de um perfume soberbo.

— Oh, já que tocamos num assunto tão infecto, devo alertá-lo: desconfio de que a casa tenha ratos.

— Ratos! Imaginava que sim, lá fora. Um gato deve resolver o problema.

— Humm... Foi o que pensei, mas até agora, Jásper, ou é muito incapaz, ou anda muito bem alimentado, pois não se animou em caçá-los.

— Jásper?

— O gato. Não é meu... bem, não propriamente. Ele apenas apareceu. Uma vez que ninguém sabe quem é o dono, ele e eu nos adotamos. Ele vai aparecer logo para o café da manhã. Sempre chega lá pelas oito horas.

— Os gatos sabem a hora. Bem, ele deve ser inteligente demais para perder tempo caçando ra­tos — brincou David. Ao ver Honor pegar uma frigideira, ofereceu-se: — Se é para o toicinho, eu posso fazer.

Ela lhe passou o utensílio prontamente.

— Obrigada. Gosto do meu bem crocante — informou.

Honor era mesmo uma mulher extraordinária. Meia hora depois, quando o café da manhã estava pronto, ela saiu em direção do corredor e voltou em segundos com o jornal do dia. Gostava de ler enquanto saboreava o desjejum.

A maioria das mulheres de sua geração insis­tiria em preparar o café da manhã e passar-lhe o jornal para que lesse primeiro. Em vez de se sentir humilhado, porém, revigorou-se. Era como se Honor o informasse, sutil e indirêtamente, da­quele seu jeito casual e indiferente, de que só se impressionaria com um tipo muito especial de masculinidade.

Um homem muito especial. Bem, quase certa­mente, ele não o encarnava. Duvidava de que mui­tas mulheres o achassem atraente e desejável quando soubessem a verdade sobre seu passado, e não as culparia...

— Passado é passado — comentou Honor, de repente. — Estamos vivendo o presente. Aqui e agora. E devemos continuar vivendo.

David sobressaltou-se. Honor baixara o jornal e o observava. Teria adivinhado que ele pensava no passado?

— Tem certeza de que não é bruxa ou, pelo menos, telepata? — questionou, um tanto defen­sivo. — Podemos viver no presente, mas o passado faz parte de cada um de nós. O que fizemos no passado é o que nos torna o que somos hoje.

— Sim, porém, debater com os erros do passado significa impedir que aprendamos com esses erros, para crescer e seguir em frente — opinou Honor.

— E quando nossos erros não afetaram apenas nossas próprias vidas, mas também das pessoas a nosso redor? — replicou ele.

Honor fitou-o reflexiva. Tratava-se de um ho­mem com a consciência atormentada, sem dúvida. Ele concluiu o desabafo:

— E quando não podemos pedir para que essas pessoas nos perdoem porque sabemos que o que fizemos não tem perdão?

— Não sei — admitiu Honor. — Não sei, mas, se fosse você...

Honor calou-se quando a porta da cozinha ran­geu, assustando-os, a David principalmente.

— É Jásper. — Ela se levantou para recepcionar o gato.

— Precisamos instalar uma portinhola para ele — sugeriu David. O gato adentrou a cozinha, ani­nhou-se diante do fogão e estudou o estranho an­tes de começar a limpar as patas. — Vou fazer isso. Você disse que ia listar o trabalho a ser feito — lembrou.

— Sim, claro — concordou Honor, percebendo que ele queria mudar de assunto, provavelmente lamentando ter revelado tanto a ela.

Estava surpresa com a própria curiosidade so­bre ele. Era um homem atraente, sem dúvida, um homem atraente e muito viril. Sentia a própria feminilidade aflorar ao vê-lo, contudo...

Não estava em busca de um caso amoroso e, com certeza, não queria ser confidente de nin­guém, nem prover um ombro de apoio. Por que deveria? Os problemas de cada um só diziam res­peito a si mesmos. Herbolária eficiente era aquela que mantinha uma certa distância dos pacientes, diagnosticando e prescrevendo com calma e sem emoção.

— Vou lhe mostrar a casa toda após o café da manhã — decidiu Honor, prática. — Vai precisar de um bloco para anotar tudo.

— Passei na agência de turismo ontem, os voos para Nova York estão em promoção. Acho que sai mais barato se formos para lá e, então, pegarmos um voo doméstico para a Filadélfia. A viagem de­mora um pouco mais, claro, mas achei que pode­ríamos pernoitar num bom hotel e, após o casa­mento, passear um pouco pela Nova Inglaterra...

— Caspar, não vou para os Estados Unidos de jeito nenhum — desabafou Olívia, afastando a xí­cara de café intacta.

Ouvia a movimentação das filhas preparando-se para a escola no andar superior da casa. Já estava acordada havia duas horas, pois queria adiantar algumas leituras.

Caspar detestava vê-la trabalhando em casa, pois se dedicava menos a ele e às meninas, porém não tinha argumentos quando ela alegava não dar conta de todas as tarefas no escritório.

Olívia detestava quando o marido a pressionava, fazendo-a sentir-se culpada. Às vezes, tinha a impressão de que nunca conseguiria satisfazer as vontades dos homens em sua vida. Além disso, cada vez mais, sentia necessidade daquela hora extra para si mesma pela manhã, que pertencia somente a ela, quando só tinha a si mesma para considerar.

Houve época em que o único motivo para acor­darem cedo era fazer amor, mas aquilo parecia muito distante agora. Não se lembrava da última vez em que realmente desejara o marido, Caspar... Quando tentava se aproximar, ele externava raiva e mágoa, não carinho.

Exatamente o que ela sentia agora.

Ao experimentar a mistura de raiva, pânico e desespero, cerrou os dentes.

— Caspar, sei que conseguiu um período de li­cença maior na universidade para essa viagem, mas você sabe que não posso ir. Já discutimos e...

— Não, nós não discutimos nada — interrom­peu Caspar, zangado. — Eu tentei discutir o assunto, Liwy, mas tudo o que fez foi vetar qualquer discussão.

Olívia ergueu a mão em protesto.

— Caspar, simplesmente não tenho tempo para outra discussão. Tenho um compromisso as oito e meia e antes tenho que...

— Oh... desculpe-nos se nossas vidas particu­lares estão interferindo em sua agenda de traba­lho — ironizou o marido. — Desculpe-me se às vezes me esqueço de quão importante e ocupada você é. A sócia do escritório da família.

Olívia contraiu os lábios ante o sarcasmo.

Ao lhe propor sociedade no escritório, tio Jon deixara claro que ela não deveria se sentir pres­sionada a assumir mais trabalho. Segundo ele, estava apenas reconhecendo sua importância na condução dos negócios da firma.

Mas Olívia não entendera assim. A euforia do amor por Caspar, e depois, o nascimento das filhas, escondera por um bom tempo a dor e ansiedade que trazia desde a infância. Recentemente, com a tensão crescente no casamento e a pressão no tra­balho, percebia que se tornava paranóica.

Não que tivesse analisado seus sentimentos e seus medos, nem que soubesse a causa da ansiedade. Pelo que entendia, a motivação era apenas a necessidade. Necessidade de quê? Não sabia responder.

Viu raiva no olhar de Caspar. Ao sentir a alie­nação e a dor crescer entre eles, punha-se na de­fensiva. A insistência do marido em comparecer ao casamento do meio-irmão nos Estados Unidos, interpretava como uma indireta. Era como se ele dissesse que a família dele, os irmãos, os homens fossem mais importantes do que ela.

— Não entendo por que está tão ansioso em ir a esse casamento. Afinal, você e Bryant nunca foram chegados. Quando ele nasceu, você já estava no segundo grau e só passou férias com ele, seu pai e a mãe dele uma vez. Se comparecêssemos a cada casamento, batizado e outras comemora­ções dos seus parentes, ficaríamos viajando direto.

— Bem, eu não me importaria — declarou Cas­par. — Pelo menos, nos veríamos mais, para va­riar. Como está agora, com você passando noventa por cento do seu tempo trabalhando...

— Não seja ridículo — interrompeu Olívia. — Você está exagerando.

— Estou? Não acho. Pergunte às meninas o que elas acham... se tiver coragem.

— Não é justo — protestou Olívia. — Passo o máximo de tempo com elas.

— O máximo de tempo disponível, mas quanto seria isso, exatamente, Liwy?

Olívia mordeu o lábio. Era verdade que ultima­mente não passava tanto tempo com as filhas quanto gostaria, mas trabalhava bastante justa­mente para elas. Que modelo ela seria se permi­tisse que as filhas crescessem como ela mesma, acreditando que as mulheres eram seres inferio­res? Não! Suas filhas não cresceriam assim dimi­nuídas, rebaixadas. Se, para isso, tivesse que sa­crificar parte do tempo na companhia delas...

— Está dizendo isso porque... porque está ten­tando me pressionar a ir a esse casamento — acu­sou, zangada. — Não entendo porque toda essa vontade. Vocês nunca foram muito chegados.

— Não como você e sua família, quer dizer — interpretou Caspar, furioso. — E sabemos como o clã Crighton é unido, não sabemos? Principal­mente aqueles que são deixados de fora. Nós so­mos sua família, Liwy, eu, Amélia e Alex, mas, às vezes... ou melhor, na maior parte do tempo, você age como se...

— Não é justo e não é verdade - protestou Olívia.

— Não? — desafiou o marido. — Faz ideia de quantas pessoas ainda se referem a você como Olívia Crighton? Não importa o quanto negue, Liwy, você ainda está sob domínio das regras Crighton, do jeito Crighton de fazer as coisas. Con­segue imaginar como você teria reagido se eu su­gerisse que não fôssemos ao casamento de Louise, por exemplo... e ela é só uma prima.

— É diferente. Nós crescemos juntas. Vejo meus primos e primas todo o tempo. Você não vê seus meio-irmãos e irmãs há anos.

— Não, não vejo — concordou Caspar. — O que justifica ainda mais minha vontade de vê-los numa ocasião especial. Lembra-se de quando nos casamos, Liwy, era você que pedia uma nova ati­tude... um novo começo, um novo modo de inte­ragir e reagir à minha família.

— Nós os visitamos — lembrou ela.

— Acho que não estou me fazendo entender — concluiu Caspar. — Bem, talvez isto funcione, Liwy. Eu vou estar presente no casamento do meu meio-irmão e as meninas também. Se a minha esposa irá, só depende de você.

Olívia ia protestar e dizer-lhe exatamente o que achava daquela atitude autoritária, mas ouviu as meninas descendo e sabia que era tarde demais para expressar seus sentimentos. Forçou um sorriso largo quando a porta da cozinha se abriu e as filhas entraram.

— Certo, garotas, café da manhã, e então, têm dez minutos para arrumar o material.

— Oh, ótimo, é a vez de papai nos levar para a escola — comentou Amélia, sentando-se à mesa. — Isso significa que podemos fazer o caminho mais longo e ver os póneis no campo.

Olívia beijou as filhas e foi para a porta. Deliberadamente, evitou passar perto de Caspar. Sen­tia-se magoada e triste.

O comentário de Amélia não fora proposital, mas destacava as diferenças de conduta do pai e da mãe. Caspar, como palestrante da universida­de, podia programar seu dia para ter mais tempo pela manhã. Olívia tinha outra rotina. Até ima­ginava o que o avô diria se a visse chegando ao escritório depois das oito e meia. Ele a condenaria imediatamente. Ao volante rumo ao trabalho, não conseguia parar de pensar no que Caspar dissera. Ele não falara sério, tinha certeza. Ele jamais iria ao casamento de Bryant sem ela. Só estava que­rendo pressioná-la, chantageá-la. Mas ele, mais do que ninguém, sabia o quanto era difícil tirar uma licença do escritório. Como seu marido, tinha que ser mais compreensivo.

 

— Bem, há pelo menos um, provavelmente vá­rios buracos no telhado — alertou David, avalian­do as manchas úmidas no teto e na parede do quarto.

— Sim. Acho que tem razão, e está ainda pior no sótão — concordou Honor.

Estavam no final da vistoria e, pelo que David vira, havia trabalho suficiente para mantê-lo ocu­pado por meses, considerando só o telhado e as janelas.

Certa vez, havia muito tempo, em outra vida, um outro David olharia para Honor horrorizado à simples ideia de assumir tal trabalho. Não sa­beria por onde começar, nem como fazer, pois seu pai o levara a crer que qualquer tipo de trabalho manual era inferior. Até a fogueira nos fundos da casa, acesa todo dia quinze de novembro, era preparada pelo jardineiro.

Tudo era diferente agora, claro. Nos anos em que estivera fora, aprendera, inicialmente por ne­cessidade, a executar tais trabalhos. Também, para sua surpresa, descobrira gosto em aprender e realizar bem um serviço.

Agora, seu olho clínico reconhecia os sinais de negligência na construção da casa e acreditava poder realizar a maior parte do trabalho sozinho.

— Eu gostaria de pesquisar um pouco — de­clarou. — Se escolher materiais semelhantes aos utilizados,   a reforma vai ficar menos visível. Quanto a encontrar madeira de qualidade para os caixilhos das janelas...

— Meu primo pode ajudá-lo — sugeriu Honor. — Vou telefonar e combinar para irmos lá.

David franziu o cenho. Não conhecia lorde Astlegh pessoalmente, portanto, não tinha medo de ser reconhecido, mas ele podia conhecer outro membro de sua família, em particular, seu irmão gémeo. A última coisa que queria era encontrar alguém que pudesse reconhecê-lo devido a seme­lhança com o irmão. Por esse motivo, a idéia de ficar ali isolado com Honor lhe parecia perfeita.

— O que foi? — indagou Honor. — Vai gostar dele, prometo.

Ficou atônito com a percepção de Honor. Ela era tão intuitiva, captava seus sentimentos tão rápido. Tiggy, por sua vez, não sentiria nem em um milhão de anos o que Honor tão facilmente identificava.

— Não se trata de gostar ou não dele — admitiu David.

— Quer dizer, ele pode se sentir obrigado a incorporar o papel de pai e questionar suas in­tenções para comigo? — Honor riu e meneou a cabeça. — Tenho quarenta e quatro anos e, dei­xando de lado outras considerações, ele acha que eu tenho muito mais experiência em julgar se al­guém é ou não confíável.

— Mesmo? — David não evitou o olhar cari­nhoso. Desconfiava que, mesmo tendo sofrido um pouco na vida, ela tivera uma existência relati­vamente protegida e não fazia ideia do quão fundo as pessoas podiam cair.

— Sim, mesmo — confirmou Honor. — Meu finado marido era fotógrafo, nenhum génio da arte, mas famoso o bastante para conseguir bons trabalhos para revistas e continuar sustentando a bebida, as drogas e as modelos bonitinhas. —Apu­rou as recordações. — Ele gostava de formar trios, e contrastes. Talvez fosse o artista dentro dele. Sua combinação favorita era uma modelo branca e outra negra. Eu sei, não porque ele me disse, mas porque vi as fotografias... e as meninas, também quase vi­ram! Ele queria que eu soubesse onde conseguia aquilo que eu não lhe fornecia. — Sorriu. — Com­partilhar nunca foi meu ponto forte.

— Lamento — murmurou David.

— Não se lamente. Eu não me lamento. Foi um casamento ruim, mas aprendi muito... e tenho Abigail e Ellen.

— Não estava lamentando seu casamento. Es­tava me desculpando por tê-la julgado mal... por achar que não conhecia as realidades da vida por ter sido sempre poupada.

Honor capturou seu olhar e David resistiu à tentação de se aproximar. Havia algo terno e con­vidativo nela, algo...

Um tanto rouco, voltou ao assunto da reforma:

— Embora esteja abandonada, a casa em si foi bem construída e tem um bom tamanho. Mais as terras adjacentes, é com certeza um bom inves­timento e...

— Não posso comprá-la — interrompeu Honor. — Meu primo se opõe a tudo que fragmente a propriedade, e entendo o ponto de vista dele. En­tretanto, ele me disse que podia arrendar a casa pelo tempo que eu quisesse, e optei por noventa e nove anos.

— Parece suficiente — concordou David, sor­rindo. — Mesmo para uma bruxa.

— Pode parar de dizer isso? — censurou Honor, divertida. — Não sou bruxa.

— Ah, mas você diria isso, não diria? — pro­vocou ele. Sua expressão mudou completamente quando ela se voltou para a janela e a brisa lhe enfunou a blusa contra o corpo. — Não tenho cer­teza se posso confiar em você — acrescentou, rou­co. — Sinto-me meio enfeitiçado.

Honor voltou-se para ele.

— É mesmo?

— Desculpe-me, não devia ter dito isso — re­conheceu David, sem jeito.

— Por que não, se é o que sente? — indagou Honor, tranquila.

— O que eu sinto não é... Eu não deveria falar assim com você — concluiu ele, passando a mão nos cabelos. — Não tenho nada a oferecer a uma mulher... a mulher nenhuma, muito menos a uma mulher como você.

Honor lançou-lhe um olhar severo.

— Não sou eu quem deveria decidir? Então, antes que ele respondesse, ela apontou para uma mancha na parede.

— Se puder arrumar isso, pretendo redecorar este quarto e me mudar para cá. Não sei por que, mas sinto que este é o quarto certo para mim. A casa toda precisa de reforma, claro, mas o telhado é mais urgente. Depois, pretendo persuadir Freddy a acrescentar a estufa no meu contrato.

Ela olhou o relógio.

— Ouça, preciso visitar um paciente. Importa-se de ficar sozinho e fazer uma lista do que vai pre­cisar? Veja por onde quer começar, está bem? Vai precisar de dinheiro para comprar o material. Po­demos conversar à tarde.

 

- Mas como sabe que ele a ama?

- Porque ele me disse — respondeu Annalise, recuando quando a outra ga­rota lançou para o lado a cabeleira castanho-escura com reflexos cor de mel.

— Oh, mas ele diria isso de qualquer forma, não diria? — Patti olhou-a de soslaio e acrescen­tou: — Todos os meninos dizem isso quando estão na cama com você.

Annalise sentiu o coração disparar. Estavam no quarto de despejo sobre a garagem da mansão dos pais de Patti. A construção era nova e mo­derna. Patti, que sabia controlar o pai como nin­guém, convenceu-o a permitir que a banda en­saiasse às vezes ali. O pai reclamara, pois queria instalar uma mesa de bilhar e um bar para uso particular, mas acabara concordando.

A banda, que ensaiara ali pela primeira vez na noite anterior, considerou o local mais adequado do que o barracão da tia de Mike Salter. Annalise sabia o que motivava Patti. Nova na cidade e na escola, Patti deveria se manter recatada, mas tinha suas próprias regras de comportamento. O pai acabara de vender uma pequena rede de su­permercados no sul da Inglaterra, segundo Patti, por "milhões", e a família se mudara para Cheshire por causa das excelentes oportunidades de negócio na área. Como a filha, Will Charles se promovia com a sutileza de um rinoceronte.

Já nas primeiras semanas na escola, Patti de­cidira que faria parte da trupe da banda. Annalise não tinha dúvida de que ela secretamente se in­teressava por Pete, seu namorado. Embora se pas­sasse por amiga, vivia lhe telefonando, convidan­do para atividades, mas sentia que ela não queria a sua amizade.

— Por que faz isso? — questionou Patti, certo dia, quando Annalise recusou mais um convite com a desculpa de que devia ajudar nos serviços domésticos. — Deixe seu pai fazer isso ou que encontre alguém que faça. Ele não tem namorada?

— Não — respondeu, sucinta.

— Como você sabe? — rebateu Patti. — Ele pode ter uma namorada e não ter contado nada. Os homens nem sempre contam. Ele é homem e precisa de sexo. Todos os homens precisam. Aposto que Pete é bom de cama — acrescentou, insinuan­te. — Pode falar... sou sua melhor amiga.

— Não há nada a contar — respondeu Annalise, formal.

— Mentirosa — acusou Patti, volvendo os olhos ao teto. — Pete é tão sexy. Se ele não está tran­sando com você, então deve estar procurando outra garota. E, se ele quiser, não me importo em ajudar! — Riu e acrescentou: — Só estava brin­cando. Você sabe que é a minha melhor amiga.

Annalise não respondeu, e Patti prosseguiu:

— Acho que esse corte de cabelo não lhe cai bem. Realmente, não quero ser grosseira, mas ouvi Pete dizendo outro dia o quanto gostava de garotas morenas. — Lançou os cabelos para o lado, olhando-a maldosa. — Se ele realmente a amasse, não diria isso, diria? — Ajeitou o cabelo. — Ele disse que gostava do meu estilo...

Annalise começando a sentir náusea. Era ver­dade que não havia nada a comentar sobre sua vida sexual com Pete. Até então, só haviam tro­cado uns beijos. Pete queria ir mais além, mas ela se recusara. Iria para a cama com ele, para se completar, mas sua alma romântica desejava muito mais que a intimidade física, quase casual que ele propunha. Fora difícil dizer não, pois o amava muito.

Em sua imaginação, amá-lo e estar apaixonada por ele eram sentimentos diferentes da realidade de ser sua "garota". Para ela, tratava-se de duas partes de um todo e ele deveria amá-la acima e além de tudo e de todos. Ele devia estar só espe­rando completar dezoito anos para desposá-la e possuí-la e, assim que se casassem, viveriam fe­lizes juntos. Tudo seria perfeito. Ela se sentiria desejada, amada, segura.

Nunca largaria os filhos, como sua mãe fizera. Não, nunca faria isso. Desejava que Pete dissesse as palavras que a fariam se sentir segura, mas reparava no jeito como ele olhava para outras ga­rotas. Notava também os olhares delas para ele e, em seu coração, já sentia a dor do que viria.

— Sei como fazer alguém me amar — vanglo­riou-se Patti, confiante.

Séria, Annalise observou-a. Não devia estar ali. Devia estar em casa, mas a banda viria mais tarde e, se não estivesse ali, Patti, sua "melhor amiga", cairia em cima de Pete.

— A que horas será que Pete vai chegar? — comentou Patti, impaciente. — Ele parecia abor­recido ontem à noite e não conversou muito com você, não foi?

Annalise não disse nada e desviou o olhar. Às vezes, Pete a tratava com cruel indiferença. Ten­tava não se importar, mas, quando ele agia assim, magoava-se muito.

— Meus pais vão viajar no fim de semana e vou dar uma festa — contou Patti.

— Preciso ir — disse Annalise. Levantou-se e foi para a porta ao perceber que já era tarde.

— Mas Pete vai chegar logo — comentou Patti, com um brilho no olhar. — Mesmo assim, se pre­cisa... Eu tomo conta dele para você, está bem?

Annalise sorriu forçado e abriu a porta.

— Annalise, é você? — chamou o pai, quando ela entrou em casa.

— Sim — respondeu, desanimada.

Estava mais atrasada do que deveria e sabia disso. Esperara chegar em casa antes que o pai voltasse do trabalho. Ele não gostava de Patti nem de Pete e, se soubesse que ficara conversando com ela em vez de ir direto para casa, ficaria irritado. Para seu alívio, ao abrir a porta da cozinha, viu um dos amigos do pai, Hal, à mesa com ele.

Hal tinha uma empreiteira que realizava refor­mas e serviços. Sempre gostara de Annalise e, com um brilho no olhar, comentou:

— Ora, mas você está uma moça muito bonita.

Annalise enrubesceu e o pai franziu o cenho.

— Não encha a cabeça da menina com essas bobagens. Ela precisa passar mais tempo com os livros do que diante do espelho.

Hal riu, piscou para Annalise e provocou:

— Ouvi dizer que você e Pete Hunter andam namorando...

— Namorando? — rugiu o pai, para surpresa de Annalise: — Ela não anda fazendo isso, não!

Hal lançou um olhar solidário a Annalise e amenizou:

— Só estava brincando...

 

David franziu o cenho ao completar a lista de materiais e equipamentos de que precisaria para realizar o trabalho de reforma para Honor. Ficaria caro, muito caro. Talvez, quando Honor visse...

Honor...

Imaginou quanto tempo ainda demoraria a che­gar. A casa parecia vazia sem ela. Pensara em Honor o dia inteiro... sonhando... Provavelmente, por ela ser a primeira mulher com quem tinha contato estreito em muito tempo. Honor era muito atraente e ele, humano. Estava confuso, pois Ho­nor definiria o homem, que ele seria daquele mo­mento em diante.

À tarde, nuvens pesadas, trovões e relâmpagos anunciaram a chegada da chuva. Ao ouvir o som de um carro se aproximando da casa, ficou tenso.

Fora, abriram e fecharam a porta do carro e, então, Honor surgiu na cozinha. Balançando a cabeça para eliminar o excesso de água, parecia sem fôlego.

— Está chovendo forte! Fiquei ensopada só nes­se trechinho...

David sentiu ternura ao vê-la tão animada. Com gentileza, estendeu a mão e enxugou as gotas de chuva de seu rosto.

— Você está molhada. Devia ter usado uma capa — observou, ausente, e Honor percebeu que ele não pensava em sua roupa molhada. — Fiz uma lista do material e equipamentos de que vamos precisar. Vai ficar um pouco caro — alertou, o tom rouco, perturbado.

— Sim, eu sei — respondeu Honor, igualmente perturbada.

David tinha os olhos azuis mais lindos... Sabia que, por trás da conversa mundana, algo muito mais significativo, poderoso e potencialmente pe­rigoso acontecia. Formava-se entre eles uma co­nexão intensa e profunda.

Os homens flertavam com ela antes, insinuando com frases de duplo sentido que a desejavam, mas nenhum nunca a afetara tanto quanto David. Ape­sar disso, não dava mostras do que pensava ou sentia. Sorrindo, afastou-se e foi à mesa para ana­lisar cada item.

— Precisamos providenciar algum tipo de trans­porte para você — observou, ao final da leitura. — Você sabe dirigir, claro.

David sabia dirigir, sim, e até tinha carteira de motorista vigente, mas não no nome com o qual se apresentara. Além disso, não tinha ne­nhum seguro.

— Eu...

— Meu carro tem seguro para qualquer moto­rista — adiantou Honor. — É grande o bastante para a maioria dos materiais que precisará com­prar. Pode usar quando precisar.

Honor sabia que ele mentira sobre sua identi­dade? Não, não havia como. Era apenas a cons­ciência pesada levando-o a crer que ela evitava olhá-lo.

— Eu... — David calou-se quando um trovão soou ao longe.

— Estou ficando com fome — comentou Honor, quando o ruído arrefeceu. — E preciso fazer al­gumas anotações depois do jantar. Oh, falei com meu primo Freddy na volta e ele me disse que o caseiro da fazenda poderá nos fornecer os tijolos necessários. Até falei com esse caseiro. Um bom homem, australiano, e faz pouco tempo que tra­balha aqui.

David não percebeu que prendia a respiração, ansioso. Bem, se o caseiro era australiano e novo na região, dificilmente o reconheceria.

Enquanto falava, Honor sem querer derrubou o livro sobre ervas que estivera lendo. David incli­nou-se para apanhá-lo e leu a descrição em latim de uma planta, traduzindo-a automaticamente.

— Você sabe latim? — indagou Honor, surpresa.

— Um pouco. Nós... eu... fazia parte do currículo escolar — gaguejou David, incomodado.

Honor franziu o cenho. Um trabalhador itinerante com conhecimento de latim não era comum. Para ter tido latim no currículo, David devia ter frequentado uma escola particular.

— A maioria das pessoas acha que é uma língua morta e associada ao Direito, mas...

— Por que pensa assim? — interrompeu David, abruptamente.   Tão   abruptamente   que   Honor franziu o cenho. Cônscio de que exagerara na reação, explicou: — Sempre pensei no latim como o idioma da igreja. É a língua franca.

— Sim, acho que tem razão — concordou Honor, afável.                    

Por que David reagira daquela forma a uma breve alusão à área do Direito? Bem, ele confessara ter roubado. Nesse caso, sem dúvida, tinha um bom motivo para temer o Direito, as leis.

— Já passa das onze. Vou dormir. Posso deixar a louça para você? — indagou Honor, quando vol­tou para a cozinha.

Ele detalhara planilhas de todos os serviços ne­cessários, para Honor ordenar por prioridade.

— Sim, claro. Vou dar uns telefonemas pela manhã para descobrir onde posso encontrar o ma­terial necessário pelo melhor preço. Quanto antes arrumar o telhado, melhor.

Sorrindo, Honor passou por ele e abriu a porta da cozinha. David abandonara o trabalho várias vezes para espiá-la concentrada nas anotações. Estava tão absorta que nem percebera.

Mesmo sob a iluminação deficiente da cozinha, a pele de Honor apresentava frescor e textura ju­venis, embora a expressão fosse de maturidade e ternura. Era uma das pessoas mais naturais e descontraídas que ele já conhecera. Não tinha nada de ardiloso ou artificial, o que, de algum modo, a assemelhava a padre Inácio. Talvez por­que, como o padre, ela demonstrasse a capacidade de ver além da face exterior, direto na alma. Sim, Honor conseguia enxergar através da concha, não julgava somente com base no que via.

 

— Você está inquieto hoje — comentou Jenny, vendo o marido andar de um lado para o outro na saleta. — Já passa das onze, vou dormir. Você vem?

— Vá na frente. Subo já — disse Jon. Cenho franzido, admitiu: — Estou mesmo apreensivo e não sei por quê.

— Deve ser porque os meninos ainda não vol­taram — sugeriu Jenny, calma.

— Foi bom Guy ter arranjado trabalho para eles nas terras de lorde Astlegh nas férias.

— Sim, foi — concordou Jenny, sorrindo amo­rosa. Abriu a porta e subiu a escada.

Sozinho, Jon deteve-se à janela. Talvez se sen­tisse tenso por causa da tempestade... era como se esperasse algo. O quê? Por quê?

De repente, lembrou-se da conversa com Olívia naquele dia, sobre Ben. Ele comentara que estava preocupado com a saúde do velho, completando:

— Ele sente muito a falta de seu pai.

— Ele pode até sentir, mas eu, com certeza, não sinto — afirmou a sobrinha, rancorosa. — Nunca mais quero vê-lo e se tiver... — Sem com­pletar, encarou-o: — Mas você deve se sentir da mesma forma... após o que ele fez.

— Sim... a princípio — concordara ele. — Com certeza, não posso justificar seus atos, mas o tem­po passa e cura todos os males.

— Os meus, não — rebateu Olívia. — Nunca vou perdoá-lo pelo que fez.

Perturbado com a veemência da sobrinha, Jon não alimentou a discussão. Olívia não era mais criança. Era uma mulher. Adulta... esposa... mãe... e filha.

Fora, as trovoadas se sucediam. Seria uma noite muito chuvosa.

David subiu a escada e encontrou as luzes do corredor acesas. Seria Honor espantando seus de­mônios? Quando abriu a porta do quarto, uma trovoada ribombou no céu fazendo tremer a casa.

No quarto, Honor ouviu o assoalho ranger quan­do David passou no corredor. Mantinha os dois abajures ao lado da cama acesos, espantando a escuridão. As pessoas achavam difícil entender seu medo do escuro e até suas filhas a provocavam por isso, mas nunca conseguira livrar-se da fobia. Naquela noite, entretanto, tinha algo muito mais agradável em que pensar, algo para embalar seus sonhos... David era um homem tão atraente.

Sorrindo para si mesma, fechou os olhos e re­visou, do ponto de vista feminino, por que consi­derava David tão sexy. Nem se abalou com a tro­voada anunciando a chegada da tempestade. Nun­ca se perturbara com os trovões, nem quando o estrondo abalava a estrutura da casa. Quando as luzes piscaram, porém, ficou tensa. Sentou-se na cama, a boca seca. As luzes piscaram novamente e se apagaram.

Não, por favor, isso não, orou, mas era tarde demais. Aterrorizada, permaneceu imóvel en­quanto o breu se adensava. Não pôde evitar um grito abafado, de medo.

Sem saber por quê, David acordou. Seu sexto sentido alertava que havia algo errado. Totalmen­te desperto na cama, olhou ao redor e percebeu o problema. Mesmo com a porta do quarto fechada, sabia se as luzes do corredor estavam acesas ou não. Naquele momento, só havia escuridão. Isso significava... Tateando, encontrou o interruptor do abajur no criado-mudo. Nada. Estavam sem ener­gia elétrica.

Sem parar para analisar o que fazia, ou por quê, afastou a coberta e procurou o robe atoalhado que Honor lhe emprestara comentando que fora um presente das filhas, "caso recebessem visitas masculinas".

— Brinquei na ocasião dizendo que a visita mas­culina que Abigail tinha em mente era o namorado dela — contara ela. — Mas eles terminaram antes que o relacionamento chegasse a tanto. Não ouso dizer, mas devo admitir que estou ansiosa para ser avó... mas não quero que nenhuma delas se apresse sem ter certeza do que está fazendo. Você tem netos?

Vendo-o constrangido, Honor o dispensara da resposta adiantando-se:

— Desculpe-me. Estou xeretando. — E mudou de assunto.

David abriu a porta do quarto e saiu ao corredor escuro. A casa silenciosa devia ser o paraíso para alguns, ou muito assustadora, para outros. Tendo passado tantas noites a céu aberto, sem os refi­namentos da civilização, qualquer construção de quatro paredes e teto para proteger das intempéries era bem-vinda. Mesmo assim, tinha que ad­mitir que gostava de Foxdean. Ao vistoriar a casa com Honor, compadecera-se tanto de seu estado precário quanto da má reputação injusta.

No meio do corredor, ouviu um som que não era das tábuas do assoalho, nem das janelas mal encaixadas. O som se repetiu, um som abafado de terror. Honor!

Sem perder tempo, foi até o quarto dela e abriu a porta.

O quarto, óbvio, estava escuro, mas, apesar das nuvens carregadas no céu, havia bastante clari­dade do luar. Acostumado ao breu dos aveludados céus tropicais, conseguiu discernir os móveis e o volume encolhido sobre a cama.

— Honor? Está tudo bem. Sou eu — sussurrou, bem suave, enquanto se aproximava.

Ela se voltou, mas ele não saberia dizer se re­gistrara sua presença ou sua voz.

— Honor? — Ele se sentou ao lado dela na cama. — Está tudo bem. Acabou a energia, só isso.

— David? — murmurou ela, a voz insegura.

— Sim, sou eu.

Honor o fitou nos olhos, e ele viu o quanto estava amedrontada.

— Obrigada por vir. Estava aterrorizada demais para me mover. É idiota, eu sei...

— Não é idiota — garantiu ele. — Todo mundo tem medo de alguma coisa, com certeza.

Honor tentou sorrir, mas estava difícil.

— Do que você tem medo? — quis saber, mais para se descontrair.

Honor já se recuperava. David percebia, pelo olhar. Ao mesmo tempo, outros sentimentos se manifestavam, à medida que reparava no luar sombreando a pele dela, salientando a curva da boca tentadora, os cabelos junto ao pescoço. Honor tinha os ombros desnudos, levando à conclusão de que estava completamente nua sob as cobertas.

Ele sentiu o corpo reagir aos pensamentos sensuais.

— Neste momento, estou com medo de estar aqui com você — respondeu, honesto. Por um segundo, pensou que o silêncio de Honor significava que a ofendera e que ela o rejeitava.

Então, viu o brilho das lágrimas nos olhos dela e lhe tomou a mão, protetor. Ela começou a contar:

— Todos os anos, nós, meus pais e meus irmãos, costumávamos ir à Escócia visitar meus avós. Eles tinham uma casa enorme. No andar superior, ha­via um longo corredor, com os retratos da família e trofeus de caça. Costumávamos brincar ali quan­do chovia. Num dos extremos, havia uma grande arca. Meus irmãos costumavam me provocar di­zendo que era um caixão. — Sorriu, tremula. — Clara que não era, mas, por algum motivo, acre­ditei. Os dois eram mais velhos do que eu, acho que se ressentiam por ter que brincar com uma menina. Como estudavam num internato, não tí­nhamos muito contato, exceto nos feriados. Parece muito arcaico hoje, mas, na época... Bem, nesse feriado em particular... eu era bem novinha, tinha oito anos, inventamos de brincar de pirata. Eu fui "capturada" e eles me enrolaram num lençol velho e ameaçaram me fazer andar na prancha, porém, por algum motivo do qual já não me lem­bro, decidiram me prender na arca...

Honor acelerava o ritmo da narrativa, sinal evi­dente de ansiedade. De repente, aumentou as pau­sas, como se fosse difícil encontrar as palavras.

A voz também saía fraca, tanto que ele se achegou para poder ouvir.

— Foi só uma brincadeira de meninos... eles não tinham a intenção... Mas algo deve ter acon­tecido. Alguém os chamou, ou, simplesmente, es­queceram-se de mim.

Honor estremeceu, o rosto tão branco quanto os lençóis. David via o suor brotar em sua pele à medida que ela revivia o terror do aprisiona­mento. David entendia por quê.

Sentia o coração disparado só de ouvi-la e ima­ginar seu desespero. Se pegasse os dois pilantrinhas, seus irmãos, naquele instante...

Sentia ansiedade, raiva e necessidade de abra­çá-la, de dizer-lhe que estava a salvo, que não havia o que temer, e que ele, David Crighton, a protegeria pelo resto da vida.

— O que foi? — perguntou Honor, ofegante, quando ele lhe apertou a mão com mais força.

— Nada — tranquilizou ele. — Seus irmãos, gostaria de ter tirado o couro deles.

Honor riu, parecendo ter superado o terror. Ali­viado, David desejou apertar os lábios contra sua pele sedutora.

— Embora, como mãe, eu desaprove todo tipo de violência contra crianças, não sabe como me faz bem ouvir isso — confessou ela. — Quando a empregada de meus avós me achou, todos já es­tavam tão amuados que só recebi bronca por fazer brincadeiras bobas e por sujar meu vestido. Meus irmãos tinham ido lanchar com um amigo e não disseram a ninguém que tinham me deixado trancada na arca. Felizmente, a empregada que estava me procurando para me dar o jantar ouviu minhas batidas na arca e a abriu com uma chave extra.

— Seus irmãos devem ter se sentido culpados pelo que lhe fizeram — considerou David.

— Na verdade, não — retrucou Honor. — Não éramos esse tipo de família. Precisa lembrar-se de que meus irmãos estudavam em internato. Essas escolas valorizavam o que consideravam ser quali­dades masculinas desejáveis. Acho que minha família perdeu a paciência comigo quando desenvolvi esse medo ridículo do escuro. Experiências assim deviam nos fortalecer, não nos tornar mais frágeis.

Ela suspirou, compreensiva.

— Não me deixavam ficar nem com uma luzinha acesa no quarto e meu pai até insistia de forma obsessiva que apagassem todas as luzes à noite. Eu escondia velas e fósforos e acho que meu anjo da guarda me protegeu, evitando que incendiasse a casa acidentalmente.

— Uma vela... — Pensativo, David olhou ao redor e entendeu o verdadeiro propósito de tantos candelabros na casa.

— Levei o candelabro daqui lá para baixo no último corte de energia — explicou Honor. — En­tão, é minha culpa estar essa situação agora. Des­culpe-me por tê-lo acordado. Realmente, é uma vergonha uma mulher adulta fazer tanto barulho a ponto de acordar o hóspede. Deve estar me achando uma idiota.

David fitou-a, saboreando o brilho de seu olhar, a pele cintilante, os lábios carnudos tentadores, o perfume natural...

— O que eu acho é... é subjetivo. — Na verdade, quisera dizer: "Não estou em posição de julgar ninguém". Porém, para seu próprio espanto, re­plicou: — Acho que eu é que sou idiota por vir aqui sabendo o quanto estou vulnerável e com vontade de fazer amor com você.

Honor levou um segundo para digerir a informação.

— Tem vontade?

— Sim, tenho — afirmou David. Então, apro­ximou-se e a beijou.

Honor gemeu, satisfeita. O medo se dissipou e em seu lugar, surgiu uma emoção igualmente perigosa.

Havia quanto tempo não se sentia assim com um homem? Havia quanto tempo não desejava...

Tempo demais, sentiu o corpo responder, impa­ciente. Entretanto, não era mais uma adolescente impetuosa, mas uma mulher madura. Sendo as­sim, com certeza, sabia o que queria, podia se satisfazer um pouco, podia ser franca e honesta com sua sensualidade. Afinal, o que quer que fi­zessem ficaria apenas entre ela e aquele homem. Não devia explicações a ninguém. Às filhas já eram adultas, por causa delas não se relacionara com nenhum homem após a separação. Deviam considerá-la uma retrógrada por não satisfazer a necessidade sexual, mas a realidade era...

A realidade era que queria David com uma in­tensidade que tornava fácil   deitar-se ali e se deixar tragar pelas ondas voluptuosas do desejo mútuo.

Já sabia que ele seria um amante terno e ca­rinhoso, que ao tocá-la e possuí-la não se mostra­ria voraz, nem egoísta.

Tinha conhecimento do que era o sexo pelo sexo, acompanhando as aventuras de Rourke, ainda que não tivesse vivenciado. Adotando uma visão dis­torcida dos homens, passara muito tempo esqui­vando-se do assédio daqueles que tentavam con­vencê-la de que tudo de que precisava era fazer sexo com eles.

Não era verdade. Se precisava de algo, era de amar e ser amada em troca, mas isso havia sido há muito tempo. Agora, detinha a sabedoria de que o amor assumia várias formas, que se podia obter tanta alegria no amor emocional e não sexual com uma criança ou um amigo quanto na sensualidade com um amante.

Não, nem tentaria se convencer de que a tensão entre ela e David era "amor".

Não. Preferia respeitar e usufruir a pureza da intimidade e necessidade sexuais que os unia a denegrir essa imagem rotulando-a de pseudo-amor.

— Humm... isso foi bom — murmurou, suave, quando ele concluiu o beijo.

— Bom, quanto? — sussurrou ele, carinhoso. Sorrindo, Honor ponderou:

— Melhor que bom...

— Muito bom — concordou David, afastando os cabelos de seu pescoço. — Muito melhor que bom.

Honor fechou os olhos e ele a beijou na pele sensível do pescoço, enquanto ela deslizava a mão por dentro do robe atoalhado que ele usava.

— Você está tão bronzeado — comentou, sonhadora.

Ele ergueu a cabeça e riu.

— Está escuro... como sabe?

— Posso sentir — insistiu Honor. — Sua pele é quente e dourada.

Ele provocou a área macia atrás de sua orelha e sorriu, lembrando como ele e o resto da tripu­lação do iate nadaram nus no mar na primeira etapa da viagem de volta à Europa.

— A sua pele parece cetim — comparou ele. — Como um creme suave. — Enquanto falava, afas­tou o edredom.

Honor sentiu inflarem seu ego e orgulho femi­ninos ante o olhar de David sobre seu corpo nu.

Ela acreditava em moderação em qualquer as­sunto. Nunca fizera regime, nem se exercitara em excesso, mas gostava de alimentação sadia e ar puro. Gostava também da sensação de usar o corpo, de se espreguiçar e sentir prazer. Em Londres, quando as filhas eram mais novas, frequentara aulas de ioga e ainda seguia os princípios aprendidos. En­tretanto, desconfiava de que a boa forma do corpo e a pele maravilhosa deviam-se a bons genes.

David a apreciava embasbacado. Ao contrário de Tiggy, Honor tinha seios fartos e era robusta.

Seu corpo se afunilava na cintura e se alargava, formando os quadris sedutores. As pernas esguias terminavam em tornozelos delicados.

Tiggy tinha um corpo sem curvas e seus torno­zelos eram grossos, do que ela vivia reclamando. Obcecada pela perfeição, encontrava mil defeitos e os enumerava.

De certa forma, a insatisfação de Tiggy com o corpo espelhava sua insatisfação com o casamento. Toda vez que salientava ou criticava um ou outro aspecto físico, era como se atacasse os defeitos daquela relação. Sua incapacidade de atingir o corpo perfeito teria como consequência a incapa­cidade do marido de se excitar com ela.

Já Honor não tinha a menor dificuldade em es­timulá-lo. Mesmo antes de vê-la nua, já reagira proporcionalmente.

Houve época em que se orgulhara da virilidade, fútil, mas o tempo e padre Inácio, bem como a ciência de seus erros colocaram a questão no de­vido lugar. Sentia-se satisfeito, claro, e de certa forma, orgulhoso. Mostrar-se viril sempre seria fonte de orgulho para seu lado masculino, mas nada lhe dava mais prazer do que a espontanei­dade de Honor em revelar seu desejo e extravasar a sexualidade com ele.

Um pouco envergonhado, David inclinou e a bei­jou no ventre.

— Ohhh... — Honor suspirou de prazer.

— É bom? — provocou David.

— Não tenho certeza — respondeu ela, provo­cante. — Faça novamente.

Rindo, David obedeceu. Pouco depois, ambos ofegavam.

— Tire o robe — sussurrou Honor, puxando-lhe a gola.

— Ajude-me, então — sussurrou ele, fechando os olhos ao sentir as mãos macias sobre o corpo nu.

Na Jamaica, havia perto de casa uma cachoeira cujas águas despencavam de tão alto que era im­possível represá-la. A sensação era a mesma ali, de estar diante de algo intenso, incontrolável.

Honor passou a provocá-lo com a língua atre­vida, pedindo passagem entre os lábios. David abraçava-a de forma terna e segura. Ela quis re­tribuir o prazer que tomava conta de seu corpo. Estremeceu ao sentir as carícias nas costas, no ventre, nos seios. Frutos tentadores, intumesci­dos, estes ardiam, pesados e cheios de promessa, lascivos e suculentos.

David massageou um mamilo com o polegar e, insatisfeito, abocanhou-o. Honor sentiu uma pon­tada de prazer e gritou. Ansiosa, indicou onde queria ser acariciada. Excitado ao ver que Honor queria que ele lhe provocasse sensações, ele obe­deceu, passando a explorá-la com a mão. Ela co­meçou a sentir as primeiras contrações do orgas­mo. Não havia tempo para avisá-lo do momento da penetração.

As feministas defendiam a "auto-satisfação", que viam como ritual de passagem à maturidade da mulher, porém, embora fosse fisicamente sa­tisfatória, deixava algo a desejar, uma pontada de excitação, a sensação de alívio em integração com o parceiro.

Indefesa, Honor entregou-se às sensações cres­centes de seu corpo. Não se envergonhava do pra­zer despertado pelo companheiro.

— Desculpe-me — murmurou, sem fôlego, quan­do as ondas de satisfação amainaram. — Mas fa­zia tanto tempo e você foi...

— Eu fui — concordou David, tomando-lhe a palavra e distorcendo-a para seu propósito. — Mas, infelizmente, não sou mais. — Percebeu que ela compreendera e, mesmo antes que ela olhasse para seu corpo, admitiu: — Faz muito tempo para mim também e já tinha me esque­cido, se é que um dia soube, como pode ser eró­tico e excitante tocar e saborear uma mulher tão intimamente. O seu prazer foi demais para meu próprio autocontrole.

Surpreso, viu Honor enrubescer, tão intensa­mente que nem a penumbra disfarçou.

— Desculpe-me — pediu. — Não quis deixá-la envergonhada.

— Não me deixou — assegurou ela. — É só que... Meu marido costumava reclamar, dizendo que eu exercia sobre ele o mesmo efeito que mi­galhas de torrada. Eu o irritava a tal ponto que ele só queria fazer o que tinha que ser feito e sair da cama o mais rápido possível. Agora, mãe de duas filhas adultas e já fora da idade... Bem, saber que um homem atraente sente desejo por mim e não consegue se controlar... — Suspirou, satisfeita. — Você me fez uma mulher muito feliz.

— Eu fiz? — indagou David, sem esconder o orgulho e satisfação ante o elogio. — Bem, não sei como vai se sentir a respeito, mas desconfio de que em pouco tempo...

— O que eu sinto a respeito... o que sinto por você — Honor tomou uma decisão. — Venha aqui e deixe-me demonstrar o que acho e sinto.

David não precisou de mais incentivo.

 

— Então, o que vocês dois estão planejando fazer no fim de semana? — indagou Jon, durante o café da manhã tardio,

Jack fízera questão de mostrar suas novas ha­bilidades domésticas preparando o desjejum para todos. Quando trocava uma receita de caçarola com tia Jenny, o primo Joss caçoou dele.

— Só quero ver quando você for para a universidade — advertiu, bem-humorado. — Agora é a minha vez e sei que não vai ser fácil me virar com a mesada de estudante. Além disso, se soubesse o que eles co­mem... ugh! — Fez uma careta. — Ao menos, se aprender a cozinhar, saberei o que estou comendo.

Jenny estava tão orgulhosa de Jack. Sim, hou­vera aquele evento triste no passado, quando o pobre sobrinho se sentira confuso e zangado com o golpe que o pai dera na família, mas agora, felizmente, parecia ter superado o problema. Sa­bia o quanto Jon estava satisfeito com a decisão de Jack de estudar Direito, seguindo a tradição dos Crighton.

Quanto a seu caçula, Joss, era o tipo de pessoa que todos amavam naturalmente. Ruth comentara certa vez que se tratava de uma daquelas pessoas raras capazes de estabelecer uma ponte entre os homens e o céu. Na hora, Jenny protestara, di­zendo que ela exagerava as qualidades do sobrinho neto favorito, mas, no fundo, secreta e orgu­lhosamente, concordava com ela. Joss era especial, muito especial, mas isso não diminuía seu amor pelos outros filhos, nem por Jack.

"A cada um o que precisa" dizia o ditado, e era assim que Jenny se sentia com relação aos filhos. As vezes, um deles precisava de mais amor do que os outros, e Jack, bem como Olívia, tinham atenção na medida de suas necessidades.

Olívia nasceu quando Jenny acabara de perder seu primeiro filho no parto. A mãe dela, Tânia, mostrara-se assustada com a maternidade, che­gando a demonstrar repulsa, às vezes. Modelo, Tânia queria seu corpo esbelto de volta e se re­cusou a amamentar o bebé, delegando a Jenny essa tarefa. Embora ansiasse por ter seu próprio filho, Jenny ainda não conseguira engravidar no­vamente. Também compadecera-se da pequena Olívia, tratada com indiferença pelos pais e com desprezo pelo avô, por ser menina.

Jenny mal coubera em si de felicidade quando a sobrinha se casou com Caspar e iniciou sua pró­pria família. Após o nascimento da segunda filha, Olívia passou a procurá-la menos, alegando estar muito ocupada com o trabalho. Jenny concluiu que a presença de um companheiro diminuía a necessidade de se confidenciarem. Era normal que Olívia passasse a confiar mais no marido para dividir seus problemas.

Jenny sentia que a idade provocara sua mu­dança de status dentro da família. Não era mais a mãe atarefada com a casa e a família numerosa. Devia ser a síndrome do ninho vazio. O laço com a nora, Maddy, se intensificou, mas ainda sentia falta de Olívia, que, durante muitos anos, foi sua "filha mais velha".

Algumas mulheres, ao alcançar a meia-idade, podiam se achar inúteis ao se ver despojadas do papel de mãe. Mas Jenny tinha certeza de que não se abateria quando Joss, a exemplo de Jack, fosse para a universidade. Em vez disso, tentaria convencer Jon a se aposentar parcialmente. Havia tantas atividades que poderiam realizar juntos, enquanto se sentissem bem-dispostos.

— Podemos ficar com seu carro esta noite, mãe? — perguntou Joss.

— Talvez — respondeu, cautelosa.

Embora os dois rapazes tivessem carteira de motorista e dirigissem bem, Jenny e Jon decidi­ram não lhes dar um carro ainda.

— Não importa o quanto sejam responsáveis, no fundo são jovens movidos a hormônios mascu­linos. Já tive de lidar com muita papelada resul­tante de tragédias envolvendo jovens e carros pos­santes — explicara Jon.

Jenny concordou totalmente, apesar das reclamações dos rapazes. Combinaram que eles pode­riam usar o carro dela, sempre que quisessem, com permissão, e só.

— Eles vão dirigir com cuidado, sendo o carro da mãe — concluiu Jon. — Além disso, vão va­lorizar seus próprios carros muito mais se tiverem que trabalhar para consegui-los.

Jenny sorriu. Jon sabia do que estava falando, afinal. Quando ele e o irmão eram adolescentes, Ben dera um carro esportivo a David dizendo ao outro que ele não precisava de carro porque ainda morava em casa.

Jenny e Jon protestaram quando Ben insistira em comprar um carro veloz para o neto Max. Mas Ben, sendo Ben, adorara contrariá-los. Naquela ocasião, Max abusara da generosidade do avô.

— Ele não está satisfazendo Max, está satisfa­zendo a si mesmo — concluiu Jon, nervoso com a atitude do pai, passando por cima de sua au­toridade sobre o filho.

Jenny não se manifestara, incapaz de refutar a verdade por trás do desabafo do marido. Ao dar de presente o carro, Ben comprava a lealdade de Max e, pior, seu filho, vergonhosa e traiçoeira­mente, se deixava corromper pelo avô.

Mas não teriam esse problema com Jack, nem com Joss.

Ben nunca fora chegado aos netos mais novos. Jenny desconfiava de que seu amor obsessivo, pri­meiro por David, depois por Max, o incapacitava de amar qualquer outra pessoa.

Jack sentia que o avô, de certa forma, o culpava pelo desaparecimento de David. Joss, com sua na­tureza alegre, encarava Ben com compaixão e Jenny achava que, de certa forma, seus papéis eram opostos. Em termos de conhecimento da natureza humana, Joss era o adulto e Ben, a criança.

— Para que precisa do carro? — perguntou Jon.

— Nós vamos a uma festa — explicou Joss.

Jon ergueu o sobrolho, indeciso.

— Vamos dirigir com cuidado — prometeu seu caçula.

Jon olhou para Jenny, que assentiu discretamente.

— Está bem, então — concedeu Jon.

Jenny se sentiu recompensada ante o olhar agradecido de Jack.

— Festa de quem? — indagou, curiosa, uma hora depois, ao caminharem pelo jardim. As rosas daquela parte abrigada haviam resistido aos ven­tos, porém, com a tempestade da noite anterior, foram destruídas.

— De Patti — contou Jack. — A família dela se mudou recentemente para Haslewich. Joss e eu nos encontramos com Mike Slater ontem à noi­te e ele nos convidou. Ele ia ensaiar com a banda na casa dela. Mike toca teclado.

— Mike Slater — repetiu Jenny. — É o filho da irmã de Guy, não é?

— É — confirmou Jack.

Jenny não se mostraria cautelosa quanto a Patti ou seus pais nem que os comentários sobre eles fossem verdadeiros. Afinal, não era nenhuma esnobe. Longe disso. Mas ele detectara um certo caráter materialista tanto em Patti quanto no pai dela. Não gostava da maneira pouco feminina como ela exibia sua sexualidade.

A loirinha, Annalise, cujo namorado Patti es­tava tentando roubar, não seria páreo para a dis­puta. Não se os olhares que Pete Hunter lançava a Patti fossem uma indicação. Jack sabia qual das duas preferiria. Não se sen­tia atraído por maquiagem pesada, saias muito curtas e show de sensualidade.

Não que tivesse muito tempo para garotas atualmente. Estava determinado a estudar com afinco na universidade e obter boas notas. Era importante, não apenas para dar orgulho a Jon, mas também para refutar o olhar que o avô lhe dedicava com frequência.

Ao contrário de Max, podia nunca se tornar con­selheiro da rainha e, com certeza, não tinha a capacidade intelectual e presença de Joss, no en­tanto, conforme tio Jon lhe assegurara, poderia se tornar um bom advogado.

— Direito não é só o teatro das cortes — ob­servara Jon, durante uma de suas conversas fran­cas. — E muito mais que isso.

Jack sentira-se reconfortado com as palavras gentis do tio logo após o avô dispensá-lo como o filho de um homem indigno como David.

Por pouco, Jack não atirara na cara do avô o maravilhoso ser humano que ele tanto adorara, o mentiroso, o ladrão. Felizmente, conseguira se controlar. As lembranças que tinha do pai eram vagas e nebulosas. David parecia nunca ter tempo para ele, nunca fora sequer ríspido. Sempre que tentara conversar com Olívia, sua irmã, sobre o pai, ela se esquivara.

Não era segredo na família o quanto Ben de­sejava a volta de David, mas Jack não sabia ao certo como reagiria se reencontrasse o pai.

Quando precisava de conselho e apoio... e amor, procurava Jon.

— Vamos lá. Quem vai saber? Seu pai não está. Não quer que eu a leve para cima, tire suas roupas e...

— Não. — Annalise tentou parecer firme, mas a voz saiu insegura.

Tremia, mas não de desejo. Era medo e nervo­sismo, ante a impaciência e o aborrecimento de Pete. Annalise sabia que ele andava dando muita atenção a Patti, que, aliás, passara a exibir uma atitude triunfante.

— Você não existe, sabia? — zombou o na­morado. — Por que tem tanto escrúpulo com isso? Ninguém quer virgens... não é legal. Devia me agradecer. Eu estaria lhe fazendo um favor.

Pete tinha razão, Annalise sabia. O pessoal que acompanhava a banda caçoava abertamente das garotas que não faziam sexo.

— Imagine não saber como é quando um rapaz a excita — comentara Patti, dias antes, maliciosa.

— Elas simplesmente não sabem o que estão per­dendo, sabem? Pete já transou com você? — per­guntou, casual.

Annalise sentiu o coração falhar ao forjar um ar despreocupado e dar uma resposta dúbia.

— Eu transei com todos os meus namorados — gabara-se Patti. — Com certeza, é uma maneira de eles provarem que amam. O que mais vocês fizeram? — especulou, porém, felizmente, nem aguardou réplica. — Meu último namorado me deu nota vinte, numa escala de dez, para o meu desempenho! — Devia ter visto. Era mesmo gran­de. Aposto que o de Pete também é...

Annalise enrubesceu, enquanto Patti prosseguia:

— Já fez com mais de um menino... ou menina? — indagou Patti. — Um dia, fui a uma festa legal. Todo mundo fazia com todo mundo. E tinham uma balinha. Você colocava na bebida e sua mente voava...

— Drogas? — perguntou Annalise, nervosa. — Mas...

— Isso mesmo — confirmou Patti, e mudou de assunto: — Já viu seus pais fazendo sexo?

Muda, Annalise negou com um meneio de cabeça.

— Eu já vi. Encontrei um vídeo. Foi impressio­nante. Não admira meu pai viver dizendo que mi­nha mãe tem o traseiro grande. Se bem que ele não pode falar muito... — Fez uma careta. — Eu não faria com um homem velho e gordo, e você? De jeito nenhum. Gosto de rapazes fortes, corpos torneados... como Pete.

Annalise e Pete seguiam para o shopping center agora, o local de encontro favorito dos jovens aos sábados. O namorado gostava de ir à loja de discos ouvir os últimos lançamentos...

— Chegamos — alegrou-se Pete, em tom de rai­va e desprezo. — Então, vê se não aborrece.

— A... aonde você vai? — indagou Annalise, insegura, quando ele soltou sua mão e lhe deu as costas.

— Por que quer saber? — retrucou Pete, áspero. — Não quer ir para a cama comigo, por que devo ficar aqui com você?

Annalise reprimiu o soluço de desespero. Já es­tava acontecendo, como todos haviam previsto. Pete ia deixá-la... largá-la. Oh, não aguentaria a humilhação. Ele ia contar a todo mundo que ela era virgem e seria motivo de piada... principal­mente para Patti.

Mas nem por isso cederia. De forma alguma, permitiria que a rotulassem, como sua mãe, pois, não importava o que Pete dissesse, no mundo real, no mundo dos adultos, as coisas eram diferentes. Só tinha que ouvir o pai agora e, além disso... Tinha medo. Apesar de tudo o que ouvira, toda a conversa de Patti, ainda não queria...

Baixou o rosto para que o namorado não visse suas lágrimas, imaginando como ele reagiria se lhe dissesse que estava com medo de... fazer aqui­lo... com medo da dor.

Talvez houvesse algo de errado com ela. Talvez não fosse como as outras garotas... talvez fosse... horror dos horrores... anormal de alguma forma.

Vendo Pete entrosado com o grupo, deixou cair os ombros e afastou-se em silêncio.

Naquela noite, haveria uma festa e estava com medo, por um único motivo: não tinha roupa para vestir... pelo menos, nada parecido com o que Patti iria usar. Além disso... Sentiu a boca seca, ima­ginando o que poderia acontecer naquela noite.

Haveria bebida, em excesso, de acordo com Pat­ti, e provavelmente, drogas. Mas a banda iria tocar e isso lhe daria desculpa para ficar nas laterais. Como garota de Pete, que era o chefe, o líder, usufruía certo respeito, considerada intocável pe­los demais. Felizmente.

Mas, ainda era a garota de Pete? O que acon­tecera com o rapaz que a beijara terno e amoroso na festa do ano anterior? Pete mudara muito após se envolver com a banda. Queria um namoro di­ferente agora. Ele estava diferente.

Joss e Jack voltavam da casa de Ruth Crighton, que ficava perto da igreja.

— Ei, não é a garota que estava no ensaio da banda no outro dia? — comentou Joss, cutucando o primo.

Jack estreitou o olhar contra o sol de outono. De fato, parecia Annalise, solitária e pensativa.

— Acho que sim — opinou Jack, imaginando o que teria acontecido, por que ela não estava com o namorado.

— Ela é bonita — avaliou Joss, reflexivo. — Mais bonita que a outra.

— Bonita? — indagou Jack.

— Sim — confirmou o primo, explicando: — Outras pessoas podem não ver ainda, mas é por­que ela mesma não se vê assim.

— Ei, não está pensando em tentar a sorte com a garota do chefe, está? — advertiu Jack.

— Não. Ela não é o meu tipo — assegurou Joss, e sorriu para o primo. — Mas aposto que é o seu!

Um transeunte censurou a algazarra dos dois.

A caminho de casa, Annalise passou no restau­rante de Frances Salter e o marido. Sempre tra­balhava ali nas férias e esperava que eles tivessem uma vaga.

— Bem, estamos precisando de lavador de pra­tos — informou a dona do estabelecimento, igno­rando a gesticulação negativa do filho atrás de Annalise. —Quando quer começar? Esta noite?

Annalise enrubesceu e meneou a cabeça.

— Não... eu... tenho uma festa hoje. Mas posso estar aqui para a hora do almoço — ofereceu-se, ansiosa.

— Que história é essa de contratar a moça para lavar pratos? — questionou o filho de Frances, abor­recido, depois que Annalise foi embora. — Acabamos de comprar uma lavadora automática supermoderna!

— Eu sei — retrucou a mãe. — Mas é que fiquei com pena da menina. Ela não tem uma vida fácil. O pai... — Calando-se, sorriu para o filho mais velho. Sua vida familiar era tão feliz que, reco­nhecendo a sorte, procurava ajudar os outros sem­pre que possível.

Era censurada na família por não ser capaz de dizer não. Todo pedinte na região sabia que sem­pre podia conseguir um prato de comida quente no restaurante.

— Só estou pagando o que devo — justificava Frances, enigmática.

— Caspar, que bom vê-lo! — exclamou Maddy, ao abrir a porta da frente. — Entre.

— Não cheguei em má hora, cheguei? — per­guntou Caspar, entrando com as duas filhas. Maddy chamou os filhos para cumprimentar as visitas.

— Em absoluto! — assegurou. — Max não está, infelizmente. Foi jogar golfe. — Torceu o nariz. — E desconfio de que haverá atraso no décimo nono buraco! Como está Olívia? Faz séculos que não a vejo... — protestou, exagerada, seguindo para sua espaçosa cozinha.

Caspar deixou as filhas irem ver os brinquedos das crianças da casa.

— Ela anda... muito ocupada — explicou, sem graça.

Maddy colocou água para ferver e se voltou, sentindo que havia algo errado, pelo tom sombrio da voz dele.

— Ela está trabalhando demais — concordou.

— Jon e Jenny comentaram que ela anda se des­dobrando, pois, para completar, Katie tirou alguns dias de licença.

— Tirou? — Caspar parecia indiferente. — Olí­via e eu nos encontramos tão pouco que a agenda dos outros seria nosso último assunto. — Incon­formado, desabafou: — Raios, não temos tempo nem para falar de nossas próprias vidas... Des­culpe-me — murmurou. — Você não tem nada a ver com isso, mas é que...

— Está tudo bem — tranquilizou Maddy. — Entendo o seu nervosismo. Eu também ando preo­cupada com Liwy. Mas se está planejando umas férias para vocês dois...

— Não para nós dois — interrompeu Caspar, sombrio. — Olívia se recusa a conversar sobre o assunto. Diz que está muito atarefada... Meu meio-irmão vai se casar. Ele nos convidou para a cerimonia e acho que devemos ir... como uma família. Olívia parece pensar diferente. Claro, sei que minha família não é como os Crighton, não se pode dizer que somos unidos, mas já é a segunda vez que minha mulher inventa uma desculpa para não visitá-los e eu estou ficando sem desculpas para dar. Começo a pensar que ela não quer passar muito tempo comigo e com nossas filhas.

Ele fez uma pausa e retomou:

— Não entendo, Maddy. Ela queria tanto ser mãe e, agora, quase não tem tempo para Amélia e Alex e, com certeza, não tem tempo para mim.

— Caspar, eu sei o quanto ela os ama — ga­rantiu Maddy.

— Eu também... sabia! Pelo menos, achava que sabia, mas parece que estava errado. Não é só falta de sexo — acrescentou, franco. — Posso ser homem, mas isso não significa que não percebo o prejuízo que a sobrecarga com a família e a carreira plena causa à libido da mulher.

— É o mesmo efeito na libido do homem, na mesma situação — observou Maddy, gentil, de­fendendo as mulheres. — Mas não ter vontade de fazer sexo não significa que não há mais amor.

— Não, mas essa recusa em comparecermos ao casamento de meu irmão... Desculpe-me — pediu, mais uma vez. Massageou a nuca, cansado, ten­tando aliviar a tensão que sentia desde o ultimato que dera a Olívia.

Nunca imaginara que a situação chegaria a esse ponto. Não era apenas esse assunto que Olívia encerrara. Simplesmente, ela já não falava com ele sobre nada! Apostava como seria capaz de dor­mir no escritório, se pudesse. Com certeza, ele mesmo ficara tentado a pernoitar em seu gabinete na universidade nos últimos dias e, provavelmen­te, teria ficado, não fossem as filhas.

— Olívia está mudada, Maddy. Ela não... ela não é mais a mesma pessoa.

Talvez não, mas Caspar mudara, também, desconfiava Maddy. Por exemplo, ele agora a chamava de Olívia, em vez de Liwy. Era como se estivesse deliberadamente se distanciando da esposa.

Maddy sentiu um peso no coração. Gostava de Caspar e de Olívia e não queria tomar partido.

— Talvez deva tentar conversar com ela nova­mente, Caspar.

— Conversar! — Ele franziu o cenho. — Olívia não tem tempo e, quando tem, fica repisando os mesmos problemas... as velhas mágoas. Sugeri que tirássemos um tempo para nós, mas Olívia diz que a estou pressionando e que a faço se sentir culpada. Sim, acho que estou exagerando, mas, às vezes, sinto que ela não se importa mais. Sei que minha família serviria de exemplo para um livro de disfunção familiar, mas, ainda são a mi­nha família, e agora, com as meninas, sinto que devo reatar as relações... por elas.

— Diga isso a Liwy — sugeriu Maddy, gentil. — As vezes, esperamos que nossos companheiros en­tendam tudo que pensamos e sentimos sem que fa­lemos nada, mas, infelizmente, isso é exigir demais.

— Mas não sou só eu. Olívia parece não ter tempo para as garotas também — continuou Caspar. — Seus filhos têm sorte de ter uma mãe como você, Maddy. Você está sempre aqui para eles.

Maddy sorriu.

— Eu sei o quanto Liwy ama as meninas, Cas­par — afirmou. — Sei o quanto ela os ama.

— Vi um carro dobrando a curva na estrada quando cheguei. Não era o Caspar? — comentou Max com Maddy, meia hora depois, na cozinha.

— Era. Ele está preocupado com Liwy. Acha que ela está trabalhando demais e, além disso, se recusa a ir para os Estados Unidos para o ca­samento do meio-irmão dele.

— Não me envolveria muito se fosse você, Maddy. Casais deviam resolver suas diferenças. Outra coisa, se algum homem vai chorar no ombro da minha esposa, serei eu.

Maddy parou de mexer o molho.

— Não está com ciúme, está? Não de Caspar?

— Não de Caspar — imitou Max. — Não. De quem mais estaria com ciúme?

— De ninguém — protestou Maddy.

Max observou-a e imaginou o que Maddy diria se soubesse que sentia ciúme e insegurança, às vezes. Não se esquecia de que quase a perdera, nem do distanciamento emocional que ela impu­sera mesmo após a reconciliação. Afinal, deliberadamente a engravidara do terceiro filho, saben­do que ela levaria em consideração aquela nova vida em seu ventre, mais as duas crianças que já tinham, desistindo de abandoná-lo. Ele quisera ganhar tempo e conseguira.

A terceira gravidez os aproximou e Max pro­meteu se empenhar para que a boa relação perdurasse.

Mas isso não alterava o fato de que Maddy pla­nejara deixá-lo. Sabia quantos homens invejavam seu casamento e sua esposa, e não os culpava. O antigo Max, com certeza, seria um desses homens. Seduziria Maddy apenas pela diversão, assim como outros. Maddy tinha um coração terno, o que era um perigo. Não estava sugerindo que Cas­par seria capaz dessa indignidade, porém, encon­trando-se tão magoado e vulnerável, diante de Maddy tão solidária...

— Não, não estou com ciúme — afirmou, sor­rindo. — Mas ponho para correr qualquer homem que tente tirá-la de mim.

Maddy reprovou, meneando a cabeça, porém, no íntimo, estava emocionada. Era bom saber que o marido se sentia possessivo, mas não ti­nha o hábito de confessar tais sentimentos. Era uma mulher um tanto inflexível e muito mais independente do que a garota que se casara com Max. Já nem se sentia tão compelida a demons­trar indiferença.

— Gosto quando fica assim possessivo. Sinto-me...

Max atravessou a cozinha e abraçou-a.

— Você me deixa excitado — declarou ele, rouco. — Esqueça o jantar. Quero você, agora...

— Max, as crianças...

— Dê o jantar a elas e deixe-as assistindo à televisão — sugeriu o marido. — Então, nós dois subimos e...

— Max... — alertou Maddy.

— Vou sair e comprar o seu prato favorito para viagem — prometeu. - É sábado à noite. Casais fazem sexo aos sábados.

— Não, não fazem — protestou Maddy. — A maioria faz no domingo pela manhã.

Max interrompeu os beijos no pescoço dela.

— Bem, podemos fazer, também. Eu não me importo — declarou, amável.

Na cama, David inclinou-se sobre o rosto sereno de Honor. Mesmo dormindo, ela sorria. Com que estaria sonhando...? Com ele? Franziu o cenho ante a própria frivolidade, cogitando a seguir se ela ainda sorriria se soubesse a verdade sobre ele. Inevitavelmente, passaram o resto da noite juntos após voltar do térreo com um monte de velas. Honor protestara contra o desperdício ao vê-lo acender várias em volta da cama.

— Será como fazer amor numa ilha, cercados pelo mar tranquilo — sugerira ele, romântico.

E comprovaram que havia algo mágico, quase mís­tico, em fazer amor à luz das chamas tremeluzentes.

Tomaram o café da manhã na cama e riram como crianças ao discutir sobre a responsabilidade de recolher as migalhas.

Ele lambera o mel sobre a pele dela e...

David fechou os olhos e lembrou-se do toque, do gosto de Honor. Na realidade, mal se conhe­ciam, mas havia honestidade e pureza naquela união, que os elevava além do ato barato e carnal.

Era improdutivo e injusto comparar o que par­tilharam com o que tivera com Tiggy, mas não deixava de pensar que a verdadeira intimidade, a verdadeira partilha, o verdadeiro amor, conhe­cera nos braços de Honor... no corpo de Honor.

— Não usamos preservativos — comentou, de­pois, quando ela o acariciou amorosa e sussurrou seu desejo. — Nem...

— Não. — Ela riu, despreocupada. — Na minha idade, duvido de que sejam necessários. Tenho duas filhas adultas. E, quanto ao sexo seguro... já que nenhum de nós tem parceiro há muito tempo...

— Nunca tive parceira — corrigiu David, ho­nesto. — Esposa, sim, mas parceira... não.

— Costumava imaginar o que tinha feito de er­rado, por que o destino não me mandava um homem que realmente me amasse — desabafou Honor, pa­recendo aliviada. — Mas isso foi antes de aprender o quanto é importante amar a si mesma.

— E desde então? — sussurrou David, mordis­cando-lhe gentilmente o lóbulo da orelha.

— Desde então, não precisei do amor de mais ninguém — respondeu ela, sincera.

Enquanto já revelara quase tudo sobre sua vida, seu passado, ele não conseguira depositar nela a mesma confiança.

Não havia por quê. Aquela união seria breve, transitória e, assim que soubesse a verdade, Ho­nor o rejeitaria. Quem poderia culpá-la? Agora, contemplando-a plácida no sono, percebia que te­ria de contar a ela, mesmo sem entender a com­pulsão que o levava a agir assim. Da mesma for­ma, não compreendia por que sentira necessidade de voltar para casa.

O que iria fazer, agora que estava ali? Passaria o resto da vida se escondendo no matagal de Queensmead?

— Honor...

Devagar, ela abriu os olhos.

— Preciso lhe contar sobre mim — começou David.

 

- Caspar. Onde esteve?

Amuado, Caspar mandou as filhas ao quarto trocar o uniforme por roupas de casa antes de encarar a mulher.

— Você se importa? — questionou. — São cinco horas da tarde e hoje é sábado, Olívià. Você saiu antes das oito da manhã e...

— Estava de volta à uma e meia — defen­deu-se ela. — Mas você não estava aqui. Aonde foi?

— Levei Amélia à aula de dança. Ela vai todo sábado, lembra-se?

— Isso só dura uma hora — observou Olívia.

— Fui conversar com Maddy — revelou ele, por fim.

— Conversar com Maddy... — Olívia o fitou con­fusa. Então, adivinhou. — Oh, entendo. Foi chorar no ombro dela, reclamar de mim.

— Ela está preocupada com você, Olívia. Nós todos estamos — afirmou Caspar, sombrio. — Todo mundo vê o que está fazendo a si mesma e a esta família.

— Tem certeza disso, Caspar, ou só enxergam aquilo que você descreveu? O que está tentando fazer comigo?

— Não estou tentando fazer nada. Preocupo-me com o que está fazendo consigo mesma. Essa sua obsessão pelo trabalho...

— Obsessão? — Olívia se enrijeceu. — O que está tentando dizer? Que estou louca... perturbada?

— Não seja ridícula — protestou Caspar.

— Mas obsessão não é isso? — pressionou Olí­via. — Uma forma de loucura. Eu trabalho porque preciso, Caspar.

— Precisa por quê? — questionou o marido, áspero.

— Bem, um bom motivo é que precisamos do di­nheiro —-observou Olívia. — Você sabe disso. Não poderíamos ter comprado esta casa com o que você ganha dando palestras. Temos dois carros. Vivemos bem e foi você quem insistiu em proporcionar às meninas muitas atividades extracurriculares. Todas essas atividades precisam ser pagas.

— Então, é minha culpa o fato de você ter que trabalhar tanto. É isso? É minha culpa, porque não ganho bem... porque não ganho o bastante...

— Eu não disse isso — cortou Olívia, irritada. — Ouça, Caspar, foi você que começou essa dis­cussão. Está se comportando como uma criança mimada porque não quero ir ao casamento do seu irmão. Não entendo toda essa vontade de ir. Você mesmo admite que não são chegados. Segundo você, nem se lembra de todos os nomes e...

— Olívia, isso foi há anos. Sim, eu sentia mágoa de minha infância quando cheguei aqui, mas, des­de então, ganhamos nossas filhas e agora... — Caspar fez um gesto vão, desanimado. — Isto não é um ensaio. É vida real. Está na hora de eu me reconciliar com minha família, com meu pai...

— Seu pai! — Olívia torceu o lábio. — O que há com vocês, homens, que os faz se unir... se perdoar por tudo? Ben receberia meu pai de braços abertos se tivesse a chance, e mesmo Jon... Pensei que Jon se sentisse como eu... que ele nunca per­doaria o irmão, mas, às vezes como se...

— Como se o quê? Como se sentisse a falta dele? Olívia, eles são gêmeos.

— Sim, e ele é meu pai — rebateu ela, nervosa. — Mas isso não me impede de odiá-lo.

Caspar franziu o cenho.

— Ouça, por que estamos falando sobre seu pai? Estamos discutindo sobre a minha família. Sabe, Olívia, às vezes, acho que tem obsessão por David. Sim, ele fez algo muito errado e entendo como se sente mal a respeito, mas ficar repisando o assunto como você faz... sempre trazendo à tona... sempre exumando...

— Não estou fazendo nada disso. Não é preciso exumar. Está lá, Caspar, bem na minha frente todos os dias. Como acha que me sinto, sabendo que os outros membros da família, que tio Jon e Max e os outros, todos sabem o que o meu pai fez e cuidam de me vigiar só para garantir...

— Agora sei que está se debatendo por nada — declarou o marido. — O que está fazendo, Olívia? Se acha que revolver o drama da fraude de seu pai vai me demover da ideia de ir ao casa­mento, se está tentando o meu voto de empatia...

— Você não entende, não é? — irritou-se Olívia, pálida, os olhos obscurecidos. — Você não entende nada. Não vou ao casamento do seu irmão e pode se lamentar o quanto quiser com Maddy, porque não vou mudar de ideia. Eu odeio os homens! — gritou, nervosa. — Vocês são todos iguais... só pensam em si mesmos e não se importam com o quem destróem pelo ca­minho. Vovô, meu pai, Max, você...

— Não estou mais ouvindo — avisou Gaspar, irritado. — Não sou responsável pelo que seu pai fez, nem pelo fato de Max ser o favorito de seu avô. Nada disso é culpa minha!

Olívia retirou-se e bateu a porta. Ele rugiu de ódio.

 

Hesitante, Annalise olhou pela porta da cozinha da casa dos pais de Patti. O corredor lotava-se de adolescentes animados.

— Tem certeza de que seus pais não vão se importar? — perguntou a Patti, nervosa. — Não conheço muita gente. Podem ser penetras...

— E daí? Quanto mais gente, melhor — des­denhou Patti, chamando a atenção para Joss e Jack, que acabavam de chegar.

— Por que convidou esses dois? — sussurrou Annalise.

— Porque são bonitos — respondeu Patti.  

Annalise lembrou-se de tê-los visto antes, naquele mesmo dia, e, em especial, do modo como Jack a olhara. Com pena.

— Patti, não acho que devíamos ficar aqui — repetiu, ao ouvir uma risada aguda vindo de um dos quartos. A porta se abriu e uma garota bêbada saiu com uma garrafa na mão. — Quem é ela?

— Não sei — admitiu Patti. — Ela veio com um grupo de Chester.

— De Chester! — exclamou Annalise. — Como eles souberam que haveria uma festa aqui?

Patti deu de ombros.

— A notícia se espalha. — Foi se pendurar num rapaz que acabava de chegar. — Toby, não vai me dar um beijo?

Annalise desviou o olhar. Patti apertava o corpo contra o de Toby Horley, insinuante. Em torno deles formava-se uma rodinha cujos componentes os incentivavam com palavras obscenas.

Ela chegara cedo para ajudar Patti com os preparativos e agora, vendo os convidados, ima­ginava por que Pete estaria atrasado. Os outros membros da banda já estavam ali. Podia, claro, perguntar por Pete, mas, por algum motivo, sen­tia-se relutante.

— Humm... nada mal — elogiou Patti, quando Toby a liberou.

— Se gostou disso, espere até ver do que eu sou capaz de verdade.

Annalise viu quando ele passou a mão com liberdade sobre o corpo de Patti, incluindo a região entre as coxas. Escandalosa, ela se contorcia toda. Olhou desdenhosa para Annalise.

— Pete, veja o que Toby está fazendo comigo! — exclamou, lasciva.

— Camarada de sorte.

Ao ouvir a voz do namorado, Annalise voltou-se a tempo de vê-lo olhando cobiçoso para Patti.

— Pete...

Por que estava tão hesitante e nervosa? Com certeza, o namorado não a ouvira, por isso, não atendia. Ou talvez... sentiu o coração disparar... talvez ainda estivesse zangado, por causa do que ocorrera à tarde.

— Pete... — tentou mais uma vez, a voz rouca. Ele continuou de costas para Annalise.

— Preciso de uma bebida, boneca — disse a Patti. — Onde tem?

— Venha comigo e eu lhe mostro — respondeu Patti, ignorando os comentários obscenos ao redor.

— Por aqui. — Puxou-o pela mão para longe de Annalise.                

Demoraram para voltar. Annalise reparou que Patti estava com o batom borrado. Esperou até ver Pete sozinho e aproximou-se. To­cou-o no braço e aguentou a humilhação de ser ignorada por mais alguns segundos. Fi­nalmente, ele a olhou.

— O que você quer? — indagou, gélido. Annalise sentiu o cheiro de bebida e recuou um pouco. Ele estava cambaleante, os olhos embaçados. Havia outro cheiro... seu instinto feminino indicava que era o cheiro de outra mulher. Patti? Mesmo assim...

— Pensei que você e eu... — começou, hesitante, mas ele a interrompeu.

— Bem, pensou errado, meu bem — cortou ele, arrogante. — Está acabado. O pouco que havia. Preciso de uma mulher de verdade... uma que saiba das coisas. Vá brincar com suas bo­necas, garotinha.

Estava acabado. Ele a dispensara e logo todos saberiam. Sentiu as lágrimas ardendo nos olhos. Não podia mais ficar ali. A porta, voltou-se. Viu Pete com Patti outra vez, ele acariciando-lhe o seio despudoradamente.. Patti se esfregava nele, cônscia de que ela os observava. Olhou-a com ex­pressão triunfante.

Cega pelas lágrimas, Annalise saiu à escuridão.

— Vamos, acho que está na hora de irmos embora.

Joss olhou para Jack, interrogativo.

— Acabamos de chegar — protestou Joss.

A festa era muito menos inocente do que Jack imaginara. Havia uma atmosfera ali da qual não gostava. Franziu o cenho ao ouvir o som de vidro se quebrando dentro da casa.

— Vamos dar o fora — decidiu, chamando o primo. — Acho que vai haver confusão.

Joss concordou. Jack teve algum trabalho para manobrar o carro de Jenny em meio aos outros, estacionados desordenadamente. Foi um milagre ter saído sem arranhar a pintura.

— Coitado de quem for fazer a limpeza aí — comentou Jack, quando finalmente tomaram a rua escura que levava à avenida principal.

— O clima era mesmo de baderna, não é? — concluiu Joss. Jack assentiu.

— Podem até destruir a casa. Metade dos con­vidados não era daqui.

— Muita gente, eu não conhecia — admitiu Joss. — Mas vi Patti e Pete juntos. Você viu?

— Vi... — Jack levou um susto ao torcer o vo­lante para se desviar de uma garota que cami­nhava meio perdida pela rua. Brecando seco, abriu a porta e gritou uma advertência: — O que pensa que está fazendo? Quer se matar?

Annalise reconheceu a voz de Jack e soube, en­tão, que sua humilhação estava completa. Deu-lhe as costas, sem responder, rezando para que ele fosse embora.

— Jack! — chamou Joss, ao vê-lo sair do carro. Jack agarrou a moça pelos braços e a encarou.

— Responda! — exigiu. — Você... — Deteve-se ao notar que ela chorava.

— Solte-me — murmurou ela, desolada. Ele era a última pessoa que gostaria que a visse daquele jeito.

Jack olhou para ela e, então, para a rua deserta. Seriam uns três quilómetros de caminhada até Haslewich. Não podia abandoná-la ali àquela hora... uma garota tão abalada...

— Entre no carro — ordenou. — Vamos lhe dar uma carona para a cidade. — Como ela não se mexia, argumentou, impaciente: — Vamos. Você não pode ficar aqui. Não é seguro.

Joss saltou também e foi até eles, curioso. Re­conheceu Annalise.

— O que foi? O que aconteceu?

— O que acha que aconteceu? — rebateu Jack. — Você viu o que se passava lá na festa.

— Oh, é mesmo...

Começou a chover forte e Annalise estremeceu, enregelada.

— Entre no carro — repetiu Jack.

— Sim — reforçou Joss, gentil. — Volte para a cidade conosco.

Annalise queria recusar, por orgulho, mas, de repente, ouviu-se um estrondo na casa de Patti, como um estouro de boiada, e vários carros ar­rancaram cantando os pneus. Sozinha na estrada, poderia ser abordada por alguns daqueles rapazes bêbados, talvez drogados, e...

— Não está pensando em voltar para lá — des­confiou Jack, interpretando erroneamente a an­siedade em seu olhar. — Deve estar louca. Para quê? Você viu o que estava acontecendo. Ele não...

— Ele não me quer — completou Annalise, a boca contraída.

Jack desviou o olhar.

— Ele não a merece — corrigiu.

— Vamos, entre no carro — encorajou Joss. — Estou ficando ensopado.

Annalise achou mais fácil ceder ao apelo de Joss.

— Onde exatamente você mora? — indagou Jack, quando entraram na rua principal de Haslewich.

— Oh, pode me deixar aqui no centro — infor­mou a moça.

— Oh, não é incômodo deixá-la em casa — as­segurou Joss. — Certo, Jack?

— Em absoluto, assim que soubermos onde fica — concordou o primo, amuado. Contrariada, Annalise forneceu o endereço. Sen­tia o quanto Jack Crighton a desprezava e não estava surpresa. Sem dúvida, como Pete, ele pre­feria a assanhada da Patti.

Para sua humilhação, Jack não se contentou em apenas parar o carro diante da casa. Fez ques­tão de descer.

— O que está fazendo? — questionou ela, quan­do ele se postou a seu lado.

— Levando-a a salvo até a porta de sua casa — explicou ele. — Sou educado.

— Quando é um encontro, concordo — replicou Annalise. — Acontece que não estamos... — Des­viou o olhar, constrangida. — Aliás, nem precisava ter me trazido até aqui. Eu podia vir andando.

— Podia — concordou Jack. — Ouça, não des­conte em mim só porque...

— Porque Pete me dispensou? — completou ela, frustrada.

— Você está melhor sem ele — garantiu Jack, perturbado ante as lágrimas nos olhos dela. — Se ele tiver algum juízo...

Tremula, Annalise encontrou a chave e abriu a porta. Entrou rápido antes que Jack pudesse com­pletar o que dizia. Agora, sua humilhação era total. Ele vira as lágrimas, sabia como ela se sentia.

A passos lentos, Jack voltou para o carro.

— Ela estava muito abalada — comentou Joss. Jack ligou o carro.

— Estava — concordou Jack, sombrio.

Automaticamente, David virou o rosto ao cruzar com o carro que vinha na direção contrária pela estrada que levava a Foxdean. Era improvável que se tratasse de algum conhecido, num domingo àquela hora. Devia ser só alguém que saíra para comprar os jornais, assim como ele.

— Oh... croissants frescos e os jornais de do­mingo. Que maravilha... — Honor não disfarçava a satisfação. — Café da manhã mais perfeito, não imagino! — declarou, com uma piscadela.

— Eu vou comprar os croissants e os jornais — ofereceu-se David.

— Enquanto isso, faço o café — completou ela. A harmonia fluía tão naturalmente entre eles que David se sentia abençoado, mais até do que naqueles momentos de prazer sexual que compartilharam.

Já sem vestígios da tempestade da noite ante­rior, o céu amanhecera limpo e fresco. Uma leve névoa cobria os campos.

Na Jamaica, padre Inácio acordava de madrugada, a fim de aproveitar ao máximo o período mais fresco do dia.

David queria conversar com Honor sobre a Ja­maica, mas não sabia como ela se sentiria a respeito do trabalho que ele desenvolvera lá. As vezes, mes­mo as pessoas mais educadas e inteligentes demons­travam receio e apreensão ao saber, que ele e o padre cuidavam de doentes. Testemunhara pessoalmente, ao acompanhar padre Inácio numa viagem a King-ton para levantar donativos junto aos ricos e pode­rosos,   incitando-os a fazer algo mais do que apenas elogiá-los por fazer um bom trabalho.

Aids, hanseníase, câncer terminal. David cui­dara de portadores de todas essas enfermidades quando ainda se atolava na autopiedade, o que o impedira até de reagir com repulsa. Pois descon­fiava de que teria dado as costas também, se não fosse o padre.

Ainda se lembrava de como reagira... de como se sentira... quando Tiggy sofrera um de seus ata­ques de comilança desenfreada, seguida da auto-mutilação. O banheiro, o quarto, às vezes, a casa toda pareciam impregnados do cheiro de vômito.

Depois disso, vira seres humanos em pior estado ainda. Às vezes, reprimira as lágrimas de raiva, dor e angústia ante o sofrimento dos enfermos, sabendo que não havia mais o que fazer.

— Todos vamos morrer um dia — lembrava padre Inácio.

— Morrer, sim... mas não dessa forma — pro­testara David.

Sabia que as infusões de ervas do padre não passavam de poderosos narcóticos, facilmente dis­poníveis na ilha. Enquanto os ricos se drogavam por diversão, o produto, mesmo na forma de me­dicamento, era caro demais para os pobres.

Deitado na cama, ao lado de Honor, ocorreu-lhe que ela e o padre se assemelhavam no desígnio de ajudar o próximo. Eles se dariam bem, prova­velmente com tantas idéias a trocar que ele se veria deixado de lado.

Queria lhe dizer isso. Então, lembrou-se da ma­nhã anterior, quando desejara contar a Honor so­bre sua vida, mas ela o impedira.

— Não, nada de confidências, nada de confis­sões — pedira Honor. — Vamos aproveitar o que temos aqui.

Com isso, reiniciara as carícias pelo corpo dele, e tudo o mais foi esquecido, prevalecendo apenas o desejo sexual.

Passaram o resto do dia tranquilamente, tra­balhando juntos. Ela lhe mostrou como cultivar as ervas e como colhê-las, comentando rapidamen­te sobre as propriedades de cada planta.

Mais tarde, quando escureceu, jantaram e con­versaram sobre a reforma na casa.

David lembrou-se. da casa que fora sua, cuja decoração Tiggy vivia mudando ao sabor da moda, sendo que ele nunca se incomodara em dar uma opinião. Agora, refletindo, entendia que nunca considerara aquela casa seu "lar". Lar era... era a casa de Jon e Jenny, cheia de carinho e amor.

Quando Honor falou em redecorar Foxdean, David entusiasmou-se em dar ideias, para seu pró­prio espanto.

— Parece que nós dois temos gosto por cores fortes — reconheceu Honor, a certa altura. — Mi­nhas filhas acham loucura pintar a saleta de ocre. Segundo elas, já está escuro demais. — Sorriu ao lembrar-se. — Abigail é muito organizada e             ca­prichosa, mora num loft onde tudo é branco, cro­mado ou de madeira.

— E a sua outra filha? — indagou David.

— Bem, ela mora num apartamento alugado. Está insegura sobre seu futuro, quer mudar de emprego, o que significaria uma mudança, talvez até para o exterior.

— Acho que ocre vai ficar ótimo — opinou David.

Certo Natal, quando criança, David ganhou uma caixa de tintas de tia Ruth. Jon, se não se enganava, ganhara sementes. Agora, entendia que Ruth tentava encorajá-los a desenvolver ca­racterísticas diferentes de suas personalidades. Ruth interessava-se tanto por jardinagem quanto por arte. Adorara as tintas e criara figuras gran­des e coloridas, mas o pai, ao ver aquilo, ficara muito zangado.

— Pintura! Rabiscos! Isso é para garotas — cri­ticara ele, preconceituoso.

David jogara tudo fora e repetira, grosseiro, as palavras do pai, quando a tia lhe perguntara se estava usando as tintas.

Na Jamaica, frequentemente sentira vontade de colocar em telas as cores vibrantes que via ao redor.

— Esta pobre casa ficou tanto tempo fria e sem amor que precisa de cores quentes para trazê-la de volta à vida — ponderou Honor.

David lembrou-se da saleta de face norte onde Honor colocara as caixas de livros. Ficariam ali, segundo ela, até fazer as estantes e pintá-las em cores terracota.

— Quero decorar a escada com um mural — contou Honor. - Com cores brilhantes.

— Uma cena toscana — concluiu David, sor­rindo. Vira esse tipo de mural nas vilas onde trabalhara.

Honor negou, explicando:

— O que tenho em mente é algo... — Ela fez uma pausa e estreitou o olhar, concentrando-se. — Algo único e especial. Só não sei bem o que é.

— Que tal copiar alguns manuscritos que os mon­ges usavam com o desenho das ervas? — sugeriu David. — Eles usavam cores fortes e você poderá criar seu próprio jardim pessoal com as ervas que...

— Oh! É uma ideia maravilhosa — aprovou Honor, entusiasmada. — Sim, é exatamente o que quero. Como não pensei nisso? Oh, você é tão es­perto, David.

David riu do entusiasmo quase infantil, lison­jeado por ela ter gostado de sua sugestão.

Passaram o resto da tarde conversando sobre ervas antigas, que Honor colecionara, até que che­gou a hora de dormir.

— Vou subir — anunciou ela. — Duvido de que tenhamos corte de luz agora que a tempestade passou, mas você é bem-vindo em minha cama... se quiser.

Deixou a cozinha sem esperar pela resposta. Ele a alcançou no meio da escada.

— Você me deixa de um jeito que não sei se conseguiremos chegar ao quarto — confessou, e beijou-a possessivo.

Enquanto voltava de carro pela estrada de­serta na área rural de Cheshire, David lembrou-se da máxima: A cavalo dado não se olha os dentes. Ou seja, não se deviam analisar demais certas situações.

Certa vez, David perguntou ao padre por que pessoas que nunca cometeram nenhum crime ti­nham que sofrer tanto no final da vida. Padre Inácio não soube responder.

— Só sei que enfrentamos melhor essas prova­ções quando temos fé, crença, aceitação. É melhor aceitar a tentar encontrar uma explicação.

Para alguns, tal atitude era sinal de fraqueza, para outros, de força. David não sabia mais que lado tomar. Só sabia que naquela manhã de outono maravilhosa, dirigindo para a casa onde uma mu­lher de encantos mágicos o aguardava, sentia-se mais feliz, mais em paz, mais satisfeito do que ja­mais estivera em toda a sua vida. Talvez, Honor estivesse certa ao dizer que deveriam viver um dia de cada vez. Por que complicar ou estragar tudo?

Estacionou junto da casa e pegou a sacola com croissants. Estavam saindo do forno do padeiro quando os comprou.

Haveria forma mais perfeita de passar uma ma­nhã preguiçosa?, imaginou Honor, feliz, ao ouvir David chegar.

Tinha uma ideia para a decoração da sala de jantar e queria discuti-la.

Ele parecera confuso no dia anterior, quando ela comentou sobre seu talento artístico evidente. Estava curiosa para saber sobre a vida dele, en­tender por que se surpreendera e, ao mesmo tem­po, se envergonhara, com o reconhecimento de seu talento. De qualquer forma, não pretendia especular. David era apenas alguém que estava passando por sua vida, exatamente o que queria. Sentia-se feliz e não precisava das complicações de um compromisso. Tinha tantos planos, tanto a fazer. Planos egoístas, talvez, para os outros, mas, com certeza, ganhara o direito de fazer o que quisesse, de ser a pessoa que era, a filha, a esposa, a mãe.

Sua própria cura era muito importante. Ha­via tanto a aprender e não queria considerar as necessidades e desejos de outra pessoa se, por exemplo, decidisse estudar mais ou, tal­vez, viajar.

Não tinha nada planejado e essa era a beleza de estar onde estava, de ser quem era. Entretanto, não havia como negar a sintonia entre ela e David. Nem o prazer inesperado da intimidade.

Foi maravilhoso acordar pela manhã e ver David aninhado junto a seu corpo, o braço musculoso sobre ela, protetor.

— O café está cheirando bem — comentou ele, ao entrar na cozinha.

Honor nem respondeu, já se deliciando com o aroma dos croissants que ele trazia.

— Foi mesmo uma ideia excelente! — aprovou David, depois, ao lamber migalhas de massa fo­lheada da pele dela.

— Humm... foi, não foi? — concordou Honor, preguiçosamente. Estendeu os braços, enlaçou-o pelo pescoço e lhe ofereceu seu corpo.

A família compareceu em bom número à igre­ja, pensou Jenny, conduzindo o velho Ben para um ponto onde havia luz do sol. Ela e Jon não compareciam à igreja aos domingos tanto quan­to deveriam, mas sempre iam ao cemitério ad­junto para visitar o túmulo do filho natimorto. Não sentia mais a dor insuportável, nem o de­sespero do momento da perda, mas ainda havia tristeza. Por Harry, por si mesma, por tudo o que poderia ter sido.

— David foi batizado aqui — contou Ben, des­necessariamente, quando transpunham o portão. — Já se via o tipo de homem que seria. Nunca chorou... nem uma vez.

Jenny ficou tensa com a indireta do sogro em relação ao marido.

— Lawrence e Henry foram os padrinhos de David e Jon, mas nunca fizeram nada por eles. Quando David voltou de Londres, deviam ter lhe oferecido um lugar na câmara, mas, claro, tiveram medo de que ele se destacasse em relação aos próprios filhos.

Jenny ouviu e absteve-se de comentar que Hen­ry Crighton não oferecera um cargo a David por­que ele fora demitido de seu emprego em Londres sob circunstâncias nebulosas.

— Esta família não é a mesma sem David — resmungou Ben, enquanto Jenny o levava para o carro. — Ele sabia como fazer as coisas. As pessoas o admiravam e o respeitavam. Ele tinha presença... autoridade. Ele devia ser conselheiro da rainha, sabe. Teria sido se não fosse aquela esposa dele.

Jenny, que já ouvira aquelas lamentações uma centena de vezes, não disse nada.

David se casara com Tânia pelo mesmo motivo que o levara a fazer tudo na vida: parecera-lhe o mais fácil. Na época, ficara de ego inflado, con­forme Ben sempre lhe ensinara ser seu direito.

— É culpa de Jon o fato de David não estar aqui conosco — disparou Ben, de repente, mu­dando de enfoque.

Jenny estacou.

— Isso não é verdade — protestou, com firmeza e dignidade.

Além de David, se mais alguém era responsável, era o próprio Ben, mas não adiantava lhe dizer isso. Ben já estava velho e frágil, mas nem por isso ela ficaria ali ouvindo-o criticar seu amado Jon.

— Oh, você diz isso, claro — rebateu o sogro, zangado. — Nenhum de vocês gostava de David... nem os próprios filhos.

Jenny atingiu seu limite. Era a última pessoa no mundo a querer agredir alguém ou encorajar uma discussão, mas Ben estava sendo injusto.

— Não, Ben. Você está errado — corrigiu, de­terminada. — Pelo contrário, David é que não gostava de nós.

— O que está dizendo? — gritou Ben, alterado. — David era meu filho. Eu o conhecia melhor do que ninguém. Ele...

— Jon também é seu filho — lembrou Jenny.

— Oh, Jon — resmungou Bem, em tom de desprezo.

Jenny ficou aliviada por chegarem ao carro. Não sabia o que teria dito se a discussão continuasse.

— Problemas? — indagou Max, solidário, en­quanto Maddy ajudava Ben a entrar no carro.

— Na verdade, não — assegurou Jenny. — Eu devia ser mais paciente, mas, às vezes, fico tão aborrecida quando ele menospreza seu pai. Sei que está sofrendo de dores, porém...

— Maddy chamou uma herbolária para vê-lo amanhã. Oh, isso me lembra, quero falar com pa­pai. Há um terreno à venda do outro lado da cidade e estou pensando em comprá-lo. — A sur­presa da mãe, explicou: — Sei que vai parecer horrível, mas Ben não vai viver para sempre e isso significa que eu e Maddy teremos que pro­curar outro lugar para morar.

— Mas pensei que estivesse acertado que Ben deixaria Queensmeaçl para você e Maddy — re­plicou Jenny.

— Sim, ele me prometeu Queensmead quando me tornei conselheiro da rainha, mas anda jo­gando umas indiretas, dizendo que a casa devia ficar para David. Por direito, claro, devia ficar para papai, mas vovô ainda acha que David vai voltar. Maddy contou que, quando comentou so­bre umas mudanças que queria fazer, ele disse, áspero, que éramos apenas arrendatários ali. Independente do que ele me prometeu, lembrou que é tradição da família Crighton que a casa fique com o primogênito.

— Mas não é justo — protestou Jenny. — Você e Maddy já gastaram uma fortuna na casa. Vocês pagam as contas e...

— E a casa pertence legalmente a Ben — con­cluiu Max. — Ele é como um urso ferido, mãe, e é   capaz   de   qualquer   coisa,   incluindo   deixar Queensmead para qualquer pessoa. Por outro lado, admito que não deve ser fácil para ele tam­bém, com três crianças correndo para lá e para cá o tempo todo.

— Sem o cuidado de Maddy, ele iria para algum asilo. Ben não tem condições de viver sozinho — observou Jenny.

— Humm... Maddy e eu concordamos que não adianta discutir. Já acertamos que, mesmo que ele deixe Queensmead para mim, vamos fazer uma avaliação e dar a cada neto sua parte em dinheiro.

— Oh, Max, ninguém espera que faça isso — opinou a mãe, desolada.

— Talvez, não — ponderou Max. — Mas eu, com certeza, espero isso de mim mesmo.

A pé, Jack entrou na rua estreita formada por casas medievais, da era Tudor e georgianas. Foi passando pelas construções procurando a porta desejada, até que encontrou.

Estava escuro quando deixara Annalise diante do sobrado na noite anterior, mas, ainda assim, conseguiu voltar lá.

Quando acordara, a última coisa, a última pes­soa em sua cabeça era Annalise. Mas, então, Joss o convencera a ir à igreja. Quando meninos, ambos haviam participado do coral e, embora não gos­tasse de admitir, era reconfortante passar algum tempo na igreja antiga com seus rituais e o aroma único de pedra, madeira, veludo e flores.

Enquanto Joss conversava com a irmã Katie, o cunhado Seb e os sobrinhos gêmeos, Jack conse­guira escapulir.

A rua estava vazia. Hesitante, aproximou-se da casa e tocou a campainha.

Annalise sobressaltou-se ao ouvir o chamado. Tinha esperança de que Pete, arrependido, a pro­curasse para pedir perdão.

Felizmente, o pai saíra e os dois irmãos entretinham-se ao computador.

Rapidamente, soltou os cabelos loiros, desem­baraçando-os com dedos trêmulos, e correu para a porta. Ao ver Jack na soleira, desanimou-se.

— O que você quer? — indagou, amuada. Jack deu de ombros.

— Nada. Estava passando e resolvi perguntar se você está bem.

— Bem? Por que não deveria estar? — desafiou Annalise, defensiva.

Já era ruim a visita não ser Pete, mas ter Jack Crighton lembrando-a da perda humilhante na noite anterior era dez... não, cem vezes pior. Quan­do fechava a porta, ouviu-se um grito na sala, seguido de um som de vidro se quebrando.

Temendo o pior, pois conhecia os irmãos, Annalise deu meia-volta no saguão e correu para dentro. Jack a seguiu sem que ela se desse conta. Os meninos haviam atirado um objeto no aquário, que se que­brara na lateral. Agua e peixes escorriam pela ca­deira e sobre o tapete. Annalise não conseguia con­trolar os irmãos, que se acusavam mutuamente.

Jack resolveu assumir o controle:

— Um dos dois, vá pegar um balde! — ordenou. — E fiquem longe dos cacos de vidro.

— Um balde não vai adiantar — protestou Annalise.

— Sim, vai — afirmou Jack, inclinando-se sobre o aquário. — A fenda não vai até embaixo e, se pudermos remendar provisoriamente, poderemos co­locar o aquário numa banheira. Assim, se o vidro se quebrar de vez, pelo menos os peixes serão salvos.

Antes que ela pudesse dizer algo, Um dos ir­mãos, Teddy, voltou com um balde e Jack o colocou sob a vazão.

— Os peixes estão no chão... morrendo! — disse o menino, assustado.

— Tome, segure aqui — instruiu Jack, ficando de lado para que Annalise tomasse seu lugar. En­tão, ajoelhou-se e pegou os peixinhos com cuidado. — Não, não pegue neles — alertou a Teddy. — Você pode se cortar com o vidro — explicou, devolvendo os peixinhos para o aquário cheio pela metade.

— Vão sobreviver? — indagou Teddy, ansioso, quando Jack resgatou o último.

— Vamos esperar para ver — respondeu Jack, calmo. — Se você tiver jornal e um plástico adesivo, poderemos consertar a fenda e levar o aquário.

Meia hora depois, com o aquário mergulhado na banheira, Jack recusou o convite para brincar de videogame.

— É pena, mas tia Jenny já deve estar imagi­nando onde me escondi. Ouça, acho que temos um aquário encostado na garagem. Se ainda o tivermos, posso emprestá-lo, até que compre outro.

— Você tinha peixes? — indagou Teddy.

— Sim, tínhamos.

— O que aconteceu com eles? — perguntou o caçula, Martin, muito interessado.

— Minha mãe não gostava deles e, então, tive que me desfazer — resumiu Jack. — Felizmente, tia Jenny disse que Joss podia ficar com eles.

— Mas... — Annalise mordiscou o lábio, abstendo-se de comentar que pensava que ele sempre morara com os tios.

— Ouça, se conseguir achar o aquário, passo amanhã à tarde depois do trabalho, se estiver bem para você. Com sorte, o plástico vai resistir até lá.

— Bem, se tem certeza de que não é incômodo... — aceitou Annalise, relutante.

Ela tentou visualizar Pete no lugar de Jack, tomando as providências que ele tomara, e per­cebeu que Pete jamais teria se incomodado com aquele pequeno drama familiar.

Ainda sentia dor no coração ao pensar que todos já sabiam que Pete a dispensara. Logo, teria que enfrentar os colegas de escola.

— Vamos, vocês dois — comandou ela. — Eu tenho que ir trabalhar e vocês têm que arrumar os quartos...

— Trabalhar? — Jack franziu o cenho. — Pensei que ainda estivesse na escola.

— Sim, estou — confirmou Annalise, sucinta.

— Mas alguns têm que trabalhar assim mesmo, sabe. Nem todos nós temos famílias ricas.

Jack lhe lançou um olhar e ela enrubesceu.

— Onde está trabalhando? — quis saber ele.

— No restaurante de minha tia Frances Salter, no centro.

— Oh, ela é irmã de Guy Cooke, não é? — per­guntou Jack.

— Sim — respondeu Annalise. — Mas, se está achando que, por ser metade Cooke, sou... — Ela se deteve e deu meia volta. — Vou lhe mostrar a saída.

Ele a segurou pelo braço.

— O que quer dizer... o que estava dizendo?

— Não disse nada — negou Annalise e deu de ombros, mas percebeu que ele não ia desistir. — O pessoal diz que as moças da família Cooke são... são fáceis — revelou, envergonhada. — E se você está pensando que eu...

— Espere um pouco — protestou Jack, impe­dindo-a de abrir a porta. — Foi você que mencio­nou isso, não eu. Nem sabia que você era Cooke e, mesmo que soubesse... Acha que vim aqui por isso? Porque, eu... porque estou procurando uma garota fácil? Não estou tão desesperado por sexo — declarou, orgulhoso.

Annalise começou a chorar. Tentou golpeá-lo e exclamou:

— Não tenho culpa se não sou sexy... ou que não... que não tenha... Eu o odeio — declarou, espantando-o. — Eu o odeio.

O que ele fizera? Ora, afirmara que não pensava nela como uma garota fácil e ela reagia como se a tivesse insultado...

— Ei, vamos — apaziguou Jack, segurando-a pelos punhos delicados. Ela estava trêmula e as lágrimas corriam por seu rosto. — Por favor, não chore — pediu, rouco. — Eu não quis dizer...

De repente, sem que se dessem conta, Jack a tinha nos braços, o rosto umedecido contra seu ombro. Ela soluçava, transtornada.

— Eu sei o que todo mundo acha, mas não é verdade — choramingava ela. — E, quando Pete disser a todos, vão caçoar de mim.

— Quando ele disser o que... que ele desistiu de uma garota como você por alguém como Patti? Não é de você que vão rir — assegurou Jack.

Annalise ergueu o rosto, controlando os soluços.

— Não pode estar falando sério — disse, confusa. Jack estava mentindo. Nenhum rapaz poderia preferi-la a uma garota sexy e experiente como Patti. Annalise tinha olhos deslumbrantes, pensou Jack, encantado. Mas era nova demais para ele, lembrou-se, severo. Ele tinha dezenove e ela...

— Quantos anos você tem? — perguntou.

— Dezoito. — Vendo que ele não acreditava, Annalise corrigiu: — Dezessete, mas vou fazer de­zoito em março.

Dezoito anos em março, mas parecia mais novinha. Isso significava que o homem que se en­volvesse com ela teria uma grande responsabili­dade, teria que estabelecer um compromisso sério, porque ela com certeza merecia muito mais do que Pete Hunter podia oferecer. Muito mais, aler­tou-se Jack, sombrio. Sendo assim, por mais que seus hormônios se manifestassem, não importava o tipo de relacionamento que ela tivera com Pete, deveria ficar longe dela. Devia dedicar-se aos es­tudos, não queria se envolver emocionalmente com ninguém.

— Você não devia sair com rapazes como Hunter — aconselhou, severo, — E se fosse seu pai...

— Meu pai! — Annalise arregalou os olhos.

— Bem, seu irmão — corrigiu Jack.

Sentiu um frio na espinha ao imaginar o que po­deria ter acontecido com ela na noite anterior. Sua família não sabia os riscos que ela andava correndo? Quando as meninas de Olívia, suas sobrinhas, al­cançassem essa idade e começassem a sair com tipos como Pete Hunter, não ficaria calado.

Jack despediu-se de Annalise assombrado com a grande responsabilidade que era ser homem.

 

Vou ver um paciente em po­tencial hoje — comentou Ho­nor com David, durante o café da manhã.

— Bem, eu vou começar a tirar as placas de ma­deira do telhado onde faltam as telhas de ardósia para ver quanto material é necessário e, então, quando acabar, vou até Fitzburgh Place falar com o caseiro. Aproveito para me informar sobre o ge­rador de energia também — acrescentou.

— Certo — concordou Honor. — Vamos trocar o aquecedor central também, como discutimos.

Conversaram por mais meia hora a respeito dos planos de Honor para a casa. Então, ela anunciou que se não subisse para trocar de roupa, iria se atrasar.

— Eu arrumo a cozinha — ofereceu-se David, indicando a louça do café da manhã.

Honor levantou-se, inclinou-se e o beijou. Sen­tiam-se tão confortáveis um com o outro, tão com­patíveis, que um observador presumiria que es­tavam juntos havia muito tempo.

— Não me interessa quem é essa mulher. Não vou recebê-la. Herbolária... embromação, se quer saber — resmungou Ben, quando Maddy lhe disse que Honor iria visitá-lo.

— Bem, é você que está sentindo dor — observou ela. calma. — Se acha que não precisa...

— Ela não vai fazer nada — insistiu Ben, mas Maddy percebeu que estava menos agressivo.

— Bem, talvez não, e devo admitir que o dr. Forbes acha que é bobagem consultá-la...

— Forbes disse isso? — interessou-se o velho. Sorrindo para si mesma, Maddy desviou o olhar e fingiu tirar o pó da mesa já sem pó. O antago­nismo entre Ben e o médico era notório.

— Bem, ele disse que não há motivo para você estar sentindo dor — continuou Maddy, sagaz.

— Ele acha, é? — rugiu Ben. — E como ele pode saber? Não é na carne dele. O que essa mu­lher diz? — perguntou, desconfiado.

— Bem, ela disse que precisa conversar com você primeiro, mas adiantou que acha ser possível ajudá-lo — respondeu Maddy, cautelosa.

— Se ela acha que vou beber alguma poção nojenta...

Aliviada, Maddy viu um carro estacionar em frente à casa. Ben começava a ficar difícil.

— O velho está implicando? — indagou Max, minutos depois, quando ela saiu ao corredor fe­chando a porta do escritório de Ben. — Eu avisei — murmurou, examinando a correspondência. Pretendia trabalhar em casa naquele dia.

Maddy sabia que o sogro chegaria mais tarde para discutirem a questão do terreno que preten­diam comprar. Pessoalmente, detestaria se mudar dali, ainda mais para uma casa moderna, mas, ao mesmo tempo, aceitava que Queensmead per­tencia a Ben.

— Eu sei — concordou Maddy, e foi abrir a porta para Honor. — Por favor, entre — recep­cionou, calorosamente. — Este é...

Sem graça, percebeu que o marido convenien­temente desaparecera.

— Por aqui — improvisou, conduzindo a her­bolária direto ao escritório de Ben. — Vou apre­sentá-la ao avô de meu marido e, então, os deixarei sozinhos. Ele normalmente toma chá com biscoito às onze...

— Se precisar de ajuda antes disso, eu grito — completou Honor, com um sorriso.

Ben Crighton era tão difícil quanto Maddy alertara, reconheceu Honor, mas as dores de que se queixava eram verdadeiras. Desconfiava que, ao contrário do que ele pensava, a dor não de­corria tanto das operações, mas do fato de não exercitar o corpo havia muito tempo. Embora não pudesse oferecer uma cura definitiva, uma dieta balanceada, rica em ervas, e cremes po­deriam não apenas diminuir o desconforto como aumentar a mobilidade.

— Que tipo de dieta? — questionou Ben, des­confiado. — Não acha que vou viver comendo ca­pim, acha? Um homem precisa de carne vermelha.

— Carnívoros precisam de carne vermelha — corrigiu Honor, firme. — E, quando não podem agarrar e matar sozinhos, morrem. Os seres hu­manos são bem mais afortunados.

Honor percebeu, divertida, que o argumento o silenciara. Mas desconfiava de que logo voltaria à carga. Olhou discretamente para o relógio. Eram quase onze horas. Antes de prosseguir, gostaria de perguntar a Maddy Crighton que alterações poderiam implementar na dieta de imediato.

— Vá e diga a Maddy que são onze horas — ordenou o velho, rude. — Quero meu chá.

Calmamente, Honor se levantou. No mesmo ins­tante, a porta se abriu. Era Maddy trazendo uma bandeja.

— Já não era sem tempo — aprovou Ben, rabugento.

— Achei que gostaria de tomar chá conosco na cozinha, Honor — convidou Maddy, com um sorriso.

— Conosco? — questionou Ben, franzindo o cenho.

— Sim. Jon acaba de chegar. Max lhe pediu que viesse.

— Huh, que filho. Nem se importa em me dizer que vai vir, nem aparece para dizer olá, sendo esta a minha casa. Se fosse David...

Apressadamente, Maddy conduziu Honor para o corredor.

— Desculpe-me — pediu. — Ben às vezes é muito rude. Jon é meu sogro, filho de Ben. David... era... era seu irmão gémeo — contou, a título de esclarecimento. — Acha que pode ajudá-lo? — perguntou, ansiosa, mostrando o caminho para a cozinha.

— Espero que sim — respondeu Honor, cautelosa. — Mas o quanto dependerá muito do próprio Ben.

— Oh — suspirou Maddy. — Achei que iria dizer algo assim. Ele se recusa a tomar os remé­dios que o médico receitou e...

— E ele me disse que não vai deixar de comer carne vermelha, nem vai tomar nenhuma poção de mentira que provavelmente vai matá-lo em vez de curá-lo — completou Honor.

— Oh, ele lhe disse tudo isso? — lamentou Mad­dy, abrindo a porta da cozinha. — Max, vovô foi horrível com a sra. Jessop.

Adentrando a cozinha, Honor viu dois homens sentados à mesa. Estacou, espantada.

— Honor, você está bem? — indagou Maddy, sem entender. — Você está pálida.

Por um segundo, Honor pensou estar diante do mesmo homem com quem compartilhava a casa havia algumas semanas... o mesmo homem com quem compartilhava a cama. Então, percebeu que não era o mesmo homem. Havia algumas diferen­ças, típicas de gêmeos idênticos adultos. Gêmeos... David era o irmão gêmeo daquele homem, o que significava...

Pondo de lado os pensamentos conflitantes, prestou atenção às apresentações. Aquele era Jon Crighton, filho de Ben, seu paciente relutante, e irmão gêmeo de David. Não lhe passou despercebido o tom de desgosto de Maddy ao citar David, como se isso trouxesse um gosto ruim à boca.

Durante os anos em que fora casada, para sua própria sobrevivência e pelas meninas, aprendera a não trair seus sentimentos. Agora, versada nes­sa autodisciplina, forçou-se a sorrir.

— Muito prazer.

A semelhança entre os dois homens era incrível, porém, quando apertaram as mãos, Honor deu-se conta de que jamais se enganaria. Reconheceria cada um pelo simples toque.

Mesmo assim, não pôde deixar de especular:

— Quer dizer que tem um irmão gêmeo?

— Tenho — confirmou Jon, conformado.

— E aí está o maior problema de vovô — opinou Maddy, triste, olhando para o sogro e o marido antes de explicar: — Pelo que me disse ao telefone, você acredita na análise holística aplicada ao tra­tamento dos pacientes, por isso... concordamos que deveríamos colocá-la a par da história de nossa família.

Honor ouviu com atenção a narrativa de Maddy dos eventos que haviam culminado com o desa­parecimento de David, destacando o efeito que a ausência do filho predileto causava no pai.

— Ben sente demais a falta dele — explicou Maddy. — Acho que, se alguém disser que David não vai voltar, ele simplesmente vai se entregar.

— Não acredito — disse Max. — Ele vai se recusar a acreditar. Pessoalmente, não acho que David vai voltar.

— Nem tendo a família aqui? — questionou Honor. — Ele tem uma filha e um filho, além do pai e...

— Uma filha e um filho aos quais ele deu as costas — observou Max, severo. — Nenhum dos dois o receberia de volta; principalmente Olívia. Ela nunca vai perdoá-lo pelo que fez.

Honor absorveu a informação. Era estranho es­tar ali sentada com a família de David, ouvindo-os falar dele. A pessoa que descreviam, entretanto, parecia-lhe irreconhecível. A frivolidade, a vaida­de, o egoísmo, tratava-se de características que jamais atribuiria ao homem sensível e carinhoso que deixara em casa.

Onde estavam o humor, a humildade, a huma­nidade, o calor e compaixão que ela sentia tão claramente nele?

— Esse dinheiro que vocês dizem que ele to­mou... — começou Honor.

Jon meneou a cabeça, meio impaciente.

— O dinheiro não é o caso — declarou, contra­riado ante a disposição da família em revelar fatos íntimos a uma estranha, ainda que sua intenção fosse ajudar o velho Ben.

— Claro que é, pai — protestou Max.

— Não é mais — insistiu Jon. — Sim, o que ele fez foi errado, muito errado, mas isso é entre ele e sua consciência. Graças à generosidade de Ruth, o desastre em potencial foi evitado.

— Ouça — começou Max. — Se existe alguém que deveria defender tio David, esse alguém sou eu. Afinal, ele sempre me favoreceu em relação a Olívia, embora ela fosse sua filha.

— Ele estava apenas repetindo as lições que aprendeu com nosso pai — explicou Jon. — Filhos têm mais valor que filhas.

— E alguns filhos têm mais valor que outros — completou Max, amuado. — Você não lhe devia favores, pai. Afinal, quando ele lhe fez algum fa­vor? Ele sabia que quando sumisse e deixasse a bagunça para trás, você é que ficaria para con­sertar tudo.

— Ele provavelmente não via dessa forma —, repreendeu Jon. — Fossem quais fossem suas fra­quezas, David jamais foi maldoso.

— Sente a falta dele? — indagou Honor, para sua própria surpresa.

— Para ser franco, não — confessou Jon, cau­teloso, como se pesasse as palavras. — Nunca fo­mos chegados, nem quando crianças, nem como adultos.

— Não, vovô cuidou para que não fossem — ironizou Max.

Jon voltou a repreender o filho antes de completar:

— Mas o que realmente sinto é não saber onde ele está. E difícil explicar, mas é como se... como se, de certa forma, estivesse faltando uma parte de mim. Entretanto, minha vida nunca foi tão... feliz.

— Nunca disse isso antes — ralhou Max, contrariado.

— Nunca pensei muito sobre isso antes — jus­tificou Jon. — E, para ser honesto, não sei por que me sinto assim agora. Talvez tenha a ver com a conversa que tive com sua mãe, sobre a ligação que existe entre gêmeos.

Voltou-se para Honor e explicou:

— Discutíamos sobre a saúde de Ben e seu desejo de ver David novamente, e Jenny sugeriu que eu tentasse entrar em contato telepaticamente. Nós também temos duas filhas gêmeas e, como ela me lembrou, as duas têm uma ligação forte, sentem quando uma está precisando da outra. Mas veja, elas são assim desde crianças. David e eu nunca fomos.

— Está dizendo que levou a sério o que mamãe sugeriu? — questionou Max, atônito, e trocou um olhar espantado com Maddy. — Você nunca disse...

— Porque não havia nada a dizer — respondeu Jon. — Não é como se eu estivesse por aí, tentando me conectar telepaticamente com ele. É só... bem, não consigo deixar de pensar nele.

— Ele não vai voltar — afirmou Max. — Não tem por quê. O casamento está acabado. Tânia se divorciou dele. Jack está melhor com você e mamãe. Olívia não faz segredo de que nunca mais quer vê-lo. Para quem, excetuando vovô, ele vol­taria? E se vovô soubesse o que ele fez, se soubesse que ele quase arruinou a reputação da família, reputação pela qual é quase obsessivo, duvido de que o recebesse!

— Acho que está enganado, Max — interveio Maddy, gentil. — O amor dos pais é muito forte e perdoa tudo.

— Eu sei — concordou Max, olhando carinhoso para o pai. — Mas vovô não ama tio David. Es­perem — pediu, quando Maddy e Jon iam pro­testar. — Pensem. Ben pensa que ama tio David porque vê nele o irmão gêmeo que ele mesmo per­deu. Duvido de que ele veja David como ele real­mente é. É mais provável que o veja como ele gostaria que fosse.

Jon suspirou. Não gostava de admitir, mas o raciocínio do filho tinha lógica.

— Que seja — considerou. — Mas acho que já estamos aborrecendo a sra. Jessop com a triste história de nossa família.

— Não estou aborrecida — afirmou Honor, sin­cera. — Mas entendo o que querem dizer e con­cordo que a saúde de Ben é bastante afetada pela infelicidade emocional.

—Então, uma vez que não podemos trazer Da­vid de volta, há algo que possamos fazer? — in­dagou Maddy.

— Vou analisar o caso — respondeu Honor, le­vantando-se. Queria desesperadamente ficar so­zinha, digerir toda aquela informação.

David inventara outro sobrenome. David Lawrence. Por algum motivo, combinava.

O caseiro de lorde Astlegh, tão solícito quanto Honor descrevera, disse a David que poderia levar tudo o que estivesse disponível na fazenda para a reforma de Foxdean, assegurando:

— Lorde Astlegh ficará feliz em ajudar a prima no que for possível. Antigamente, ele mandaria um grupo para colocar a casa em ordem, mas não temos mais esse tipo de trabalhador. Quando pre­cisamos de homens, temos que contratá-los.

— A sra. Jessop quer trocar o sistema de aque­cimento central — comentou David. — E quer abrir as lareiras originais.

— Bem, temos uns radiadores que foram enco­mendados quando o aquecimento central foi ins­talado aqui, que nunca foram usados. Está pen­sando em fazer o serviço sozinho?

— Depende — disse David. — Não sou enca­nador qualificado, mas ela me disse que não con­segue contratar gente para trabalhar na casa.

— Sim, acho que é difícil. Eu não sou daqui, mas lorde Astlegh comentou que sempre teve di­ficuldade em arranjar gente para ir trabalhar lá.

— Mas de gerador ela precisa, com certeza — opinou David. — A energia elétrica lá não é muito confiável.

— Não vão ter problemas para instalar um — assegurou o caseiro. — Na verdade... qual é o seu carro? Se é da fazenda...

— Eu não vim de carro. Vim andando — res­pondeu David.

— Andando!? — O caseiro parecia surpreso. — Está bem, eu providencio o gerador para você. Tenho mesmo que arrumar uma cerca lá para aqueles lados esta semana. Aproveito, passo na casa e deixo lá o equipamento.

— Excelente — disse David, e agradeceu.

Dez minutos depois, estava na estradinha in­terna da fazenda. David decidiu passar pelas no­vas barracas de artesanato para ver os trabalhos. Se encontrasse um marceneiro, poderia encomen­dar caixilhos para as janelas iguais aos originais.

Ao passar pelo pátio de brita, viu dois rapazes saírem de uma barraca. Os dois eram altos, mas concentrou-se em apenas um deles. Tenso, esta­cou, retendo o fôlego.

Ao mesmo tempo que absorvia cada detalhe do filho, tratou de se esconder. Era difícil associar aquele rapagão à criança que guardava na lem­brança. Gostaria de se aproximar e abraçá-lo, a carne de sua carne. Sentiu lágrimas nos olhos. Como pudera ser idiota a ponto de desprezar o amor que poderiam ter partilhado?

Jack crescera desde que o vira na Jamaica e estava mais forte, também. Ria de algo que o outro rapaz disse, o caçula de Jon, Joss. Pareciam ir­mãos, os traços de Jon e dele mesmo evidentes em cada semblante.

Jack golpeou o braço de Joss, de brincadeira, negando alguma insinuação. Sem saber seguiam na direção de David, que se embrenhou mais nas sombras.

— Levei o aquário, sim — dizia Jack. — Ela nem estava lá. Ainda estava trabalhando. E daí?

— E daí? Por que foi lá, se não gosta dela? — caçoou Joss, rindo. — Você mesmo disse que a preferia.

— Posso ter dito isso, mas não significa que... Vamos, estou morrendo de fome. Espero que tia Jenny tenha feito aquela torta para o almoço.

Para alívio de David, eles mudaram de direção e começaram a se afastar.

Jack... seu filho... A emoção o abalava. Não po­dia exigir que o filho o aceitasse de volta. Não tinha direito a nada. Afinal, algum dia se preo­cupara em dar-lhe amor, proteção? De qualquer forma, doía vê-lo tão perto, saber que poderia se aproximar e tocá-lo, porém, incapaz de se mover.

Honor não tinha outros compromissos. Plane­jara passar na loja de tintas após ver Ben Crighton para pegar amostras de cores, entretanto, a redecoração da casa era a última coisa em sua cabeça agora.

De volta a Foxdean, estacionou na lateral da casa. Antes de saltar, porém, ligou o motor nova­mente e continuou em frente. Não queria entrar em casa ainda. Tinha que pensar.

— Preciso lhe contar algo sobre mim — dissera David, mas ela o impedira.

Nem o passado nem o futuro lhe interessavam, convencera-se. Tudo o que queria, tudo de que precisava, era o aqui e agora. Quando acabasse, quando a força da paixão entre eles se extinguisse, ficaria feliz em vê-lo partir.

Não lhe devia lealdade, nem compaixão, nem apoio. Havia um área de acostamento à frente e Honor parou o carro. Milhões de relações estabe­leciam-se em seu cérebro, estava confusa.

Não pensava no crime de David, fraude finan­ceira, roubo. Ele fora desonesto, sim, desprezível, talvez, mas existiam crimes piores, muito piores. — Ele não vai voltar — afirmara Max Crighton, e Honor percebera que Jon e Maddy compartilha­vam a mesma opinião.

Mas ele voltara. Por quê? Não por ganho finan­ceiro, apostaria a vida nisso. Então, por quê? Para reencontrar a filha que o odiava? Para ver o filho que parecia estar muito mais feliz com os tios? Para ver o pai... o irmão?

Por que remoía essas questões? Por que se importava?

Importar-se com os outros era algo que já havia descartado, pois levava a complicações e não que­ria mais complicações em sua vida.

Era ridículo, convenceu-se. Mal conhecia aquele homem. Aos quarenta e quatro anos, estava velha demais para acreditar em amor. A atração não passava de um truque da natureza para garantir a continuação das espécies. O problema era que a humanidade, decidindo melhorar a natureza, transformara algo simples numa trama complica­da, que ia muito além da mera necessidade de reprodução. O amor não tinha nada a ver com a urgência do desejo sexual. Implicava conhecer o outro, dedicar-se a ele. Requeria também despren­dimento e compromisso, e não estava disposta a conceder nenhum dos dois.

Não precisava se envolver, lembrou-se. Podia manobrar o carro, voltar a Foxdean e não comentar nada com David. Os Crighton não imaginavam que David estava tão perto, morando com ela, e David não sabia quem era seu novo paciente.

Mas então, voltando com o carro pela estradinha, relembrou Jon Crighton dizendo, não consigo deixar de pensar nele.

— Tomem cuidado — alertou Annalise aos ir­mãos. — Não podemos danificar o aquário, afinal, não é nosso.

Ela não estava em casa quando Jack Crighton entregara o aquário. Além de ter de fazer hora extra no restaurante, convencera-se de que não precisava vê-lo novamente. Para quê?

Ao chegar, encontrara os peixes já no aquário emprestado.

— Jack fez tudo — contaram os meninos.

— Bom rapaz — comentou o pai, mal-humorado. Annalise não comentou nada, nem contou que Jack a aguardava à saída do restaurante.

— O que está fazendo aqui? — indagara, ríspida.

— Pensei em levá-la para casa — justificara ele. Levar para casa?

— Não sou criança — defendera-se, hostil. Enquanto cruzavam a praça da cidade, Annalise viu algumas garotas da escola vindo na direção contrária. Ao vê-la com Jack, ficaram observando.

— O que foi? — perguntou ele, notando seu olhar ansioso.

— Elas vão contar a todo mundo na escola que me viram... que nos viram — esclareceu ela, contrariada.

— E isso é problema? — indagou Jack, tranquilo. Ela se irritou com a falta de discernimento.

— Talvez não para você. Mas, agora que nos viram juntos, vão achar que...

Annalise conteve-se, mas Jack adivinhou o restante.

— Vão achar que estamos namorando?

— Isso mesmo. Não sei porque está sorrindo — censurou, zangada.

— Talvez porque gosto da idéia — confessou Jack. Ele gostava da idéia!

Annalise não sabia para onde olhar, a ansiedade crescente ao imaginar o que ele pensava em obter dela. Jack tinha dezenove anos e estava a caminho da universidade. Provavelmente, já dormira com várias garotas e acreditava que ela dormira com Pete. Devia acreditar no que diziam sobre as mo­ças Cooke e estar em busca de sexo fácil, antes de partir para o mundo. Bem, se ele achava que ela ia se entregar...

Foi quando os viu... Patti e Pete, saindo do carro dele. Ela agarrou o braço dele possessiva.

Annalise sentiu uma onda de ódio e, sem pensar nas consequências, voltou-se para Jack.

— Pode me beijar, se quiser.

Beijá-la? Jack estava confuso. Por que ela dis­sera aquilo? Então, com o canto do olho, viu o outro casal. Não sabia se protestava ou se ria. Percebendo o desespero nos olhos de Annalise, decidiu não fazer nem uma coisa, nem outra.

Inclinou-se, abrigando-a dos observadores, encaixou a mão em sua nuca, acariciando-a como um amante, e explicou:

— Quando eu a beijar, não vai ser no meio da rua. Vai ser num local reservado, muito reservado, e vai ser muito especial. — O tom grave e calcu­lado, reforçou: — Quando eu a beijar.

Jack tratou, então, de enxugar as lágrimas que brilhavam nos olhos dela.

— Você é jovem demais... jovem demais — ob­servou, quase lamentando.

Então, de repente, abraçou-a. Annalise estre­meceu com as sensações que tomaram seu corpo. Confusa, desejou permanecer ali junto dele para sempre.

Mas Jack a soltou em seguida. Por sobre o om­bro dele, ela viu o carro de Pete arrancando da praça ruidosamente.

Ele a deixara à porta de casa sem dizer se voltaria. Os irmãos conversavam excitados sobre a visita de Jack, mas ela realmente não ouvia o que di­ziam. Só ouvia a voz suave de Jack dizendo: quan­do eu a beijar...

Quando ele a beijasse... Fechou os olhos e cam­baleou um pouco.

 

Honor dirigia devagar pela estradinha. Pela primeira vez, relutava em voltar para casa.

Não queria se envolver no drama de David. Era complicado demais, exigiria demais. Tinha seus próprios conflitos emocionais, por se deixar levar ora pelo coração, ora pela razão.

Não admitia nem a si mesma o quanto se ma­goara ao perceber quem Rourke realmente era e como fora idiota em amá-lo. Levara um bom tempo para enxergar o verdadeiro caráter de Rourke e entender que o homem que amava era apenas fruto de sua imaginação.

Se aprendera algo naqueia experiência, era que não devia confiar nas emoções. No entanto, lá es­tava ela, permitindo que seu coração a enganasse quanto a David Lawrence. Não, não era David Lawrence, corrigiu-se. Era David Crighton. O nome de um estranho... e David era esse estranho.

Por fim, chegou em casa. Parou o carro e saiu devagar. Podia estar errada, ponderou. A seme­lhança entre David e Jon Crighton podia ser um acaso, talvez houvesse outros membros da família sobre as quais não sabia nada.

Quando abriu a porta da cozinha, David estava de costas, examinando um pedaço de madeira.

— Olá, David Crighton — saudou Honor, calma. Ele se enrijeceu. Devagar, largou a madeira e voltou-se.

— Você sabe quem eu sou — disse, a voz trê­mula, o olhar espantado.

— Sim, eu sei — confirmou ela, sem emoção.

— Você tem um irmão gêmeo chamado Jon, um sobrinho chamado Max, um pai rabugento cha­mado Ben. Oh, e tem uma filha e um filho... e duas netas.

David esperou que ela terminasse e, então, sen­tou-se à mesa, apoiando a cabeça nas mãos.

— Você sabe de tudo.

— A maior parte.

— Eu ia lhe contar. Eu devia ter lhe contado. — Ele se levantou e lhe deu as costas. — Você não vai me querer mais aqui — concluiu. — Vou arrumar minhas coisas...

Honor não tentou detê-lo. Ele tinha razão. Seria melhor para os dois se ele partisse. Quando ele voltou à cozinha, indicou um envelope sobre a mesa, sem encará-lo.

— É o dinheiro que lhe devo pelo trabalho.

— Mas ainda não fiz nada — protestou David.

— Pegue. — Ela fez uma pausa e, então, perguntou: — Por que voltou? Sua família... — Conteve-se.  

— Eu não sei — murmurou David. — Padre Inácio disse que eu devia voltar.

— Padre Inácio?

— É uma longa história. Não quero aborrecê-la. Desculpe-me por...

— Ter me levado para a cama? — completou Honor, com um sorriso torto.

— Não, nunca — negou David. — Nunca la­mentaria uma experiência tão... Não, não lamento por isso — repetiu, e dirigiu-se à porta.

Honor não se voltou para vê-lo partir. Sentia um nó na garganta e os olhos áridos, embora as lágrimas estivessem presentes. Lágrimas aceitá­veis numa garota, porém ridículas numa mulher madura.

David já devia ter passado pelo jardim e tomado a estrada a essa altura. Para que lado iria? Para Haslewich ou...

Sem poder resistir, Honor correu para a porta, escancarou-a e saiu.

Ele já estava mais longe do que imaginara e precisou chamar duas vezes antes que ele parasse e se voltasse.

— Está indo na direção errada — informou, rouca. — Haslewich...

Ele meneou a cabeça.

— Não há nada para mim lá. Eu não devia ter voltado.

Não havia amargor na voz, só uma dor que fez Honor sentir o coração diminuir.

— Não vá — pediu, suave, estendendo a mão.

— Não está falando sério.

— Sim, estou — confirmou Honor.

Com isso, pôs-se na ponta dos pés e o beijou com paixão.

— Não devia fazer isso — grunhiu David, contra sua boca. — E eu não devia permitir.

— Venha para casa — pediu Honor.

— Casa. — Ele sorriu amargurado.

— Sim. Para casa... — repetiu Honor.

Por um instante, ela achou que ele ia recusar. Prendeu a respiração. Então, aliviada, viu-o dar meia-volta.

Honor bocejou e olhou para o relógio. Passava das três da madrugada. Não acreditava que ela e David Lawrence Crighton, o nome completo dele, tivessem conversado por tanto tempo.

David lhe contara tudo, sem excluir nada, e ela sentira lágrimas nos olhos várias vezes, não ape­nas por ele, mas pelos outros personagens tam­bém. A pobre e infeliz Tiggy com sua desordem alimentar e vida fragmentada, o irmão, Jon, os filhos, Olívia e Jack.

— Gostaria de conhecê-lo — declarou Honor, quando ele lhe contou sobre padre Inácio.

— Eu também gostaria que o conhecesse — res­pondeu David, abraçando-a, estreitando-a junto a si. — Ele me ensinou tantas coisas, ajudou-me a descobrir a verdade sobre mim mesmo. Gostaria de conversar com todos, curar meus traumas. Vi Jack hoje — revelou. — Ele estava na feira de artesanato de seu primo, trabalha lá, acho. Jon o educou muito bem.

— Ele é seu filho, David — observou Honor, gentil.

Ele meneou a cabeça.

— Não. Eu sou pai só no papel. Dele e de Olívia. Pobre garota. Meu pai sempre foi rude com ela e eu piorei ainda mais as coisas.

— Seu pai é responsável por muitos dos pro­blemas — opinou Honor.

— Não. Culpá-lo é muito fácil. Eu podia, devia, ter sido mais forte. Magoei tantas pessoas, Honor, e nao sei... Seria uma saída fácil culpar meu pai por minhas faltas, mas... A certa altura da vida, as pessoas são livres para fazer suas escolhas, para reconhecer as influências recebidas e aceitá-las, ou corrigi-las. Isso é amadurecer, é se tor­nar adulto — analisou. — Eu percebia o que meu pai fazia, mas gostava do efeito sobre meu ego. Achava-me no direito de fazer tudo o que quisesse. — Fitou-a. — Tem certeza do que está fazendo, pedindo para que eu fique?

— Acho que sim — respondeu Honor, confiante.

— A sua família não vai gostar — alertou-a. — Suas filhas... — Ele fez uma pausa, avaliando seu semblante. — Ou prevê que nosso relaciona­mento será breve e estará acabado antes que...

— Não! — interrompeu Honor, tão veemente que ela mesma se espantou.

Não pensara na família, nem no futuro ao correr atrás dele e convencê-lo a ficar. Até aquele instante, não entendera a necessidade, mas tudo lhe parecia claro de repente.

— Não me olhe assim — pediu David, voltando a abraçá-la. — Eu não mereço, Honor. Eu não a mereço.

— Como o seu padre diria, não é você quem decide — provocou ela, rouca. — Quero você aqui comigo, David. Quero que fique.

Não declararia que o amava. O que significava aquilo no mundo moderno, onde a palavra amor era tão banalizada? Além disso, a palavra não expressava tudo o que sentia.

— Deve ser o destino — ponderou Honor. — Nosso carma. Você deve ser o meu destino, David — concluiu, emocionada.

— Como alguém tão maravilhosa quanto você pode ter a mim como destino? — sussurrou David.

— Você merece um príncipe entre os homens, Honor, um cavaleiro de armadura reluzente. Você merece um homem de coragem, força e virtude.

— Você tem coragem e força — afirmou Honor.

David meneou a cabeça, calando-a com o indi­cador.

— Não diga isso — implorou. — Nós dois sa­bemos que não é verdade.

— É verdade, David — insistiu Honor, séria.

— A verdade é o que está acontecendo agora, neste momento. Talvez, no passado, não fosse verdade, mas teve coragem o bastante para voltar. Você demonstrou coragem.

— E virtude? — questionou, severo.

— Os motivos que o trouxeram de volta não são virtuosos? — questionou Honor.

— Não sei — admitiu David. — Por que vol­tei, afinal? — Meneou a cabeça. — Realmente, não sei.

— Às vezes, a vida é como a curva de um rio — comparou Honor, reconfortante. — Além da curva, nunca se sabe o que virá, é preciso enfren­tar o obstáculo com fé e esperança.

— Você é minha fé e minha esperança — con­fessou David.

Carinhosa, Honor estendeu a mão e o tocou no rosto. Tinha lágrimas nos olhos quando ele lhe tomou as mãos e as beijou, lentamente. Um dedo de cada vez... e então as palmas... e então os pul­sos... e então...

— Não toquei em nenhuma mulher desde que eu e Tiggy nos separamos — revelou David, mais tarde com Honor em seus braços. Mantinha-a apertada junto ao corpo, como se não suportasse distância maior. — E por muito tempo em nosso casamento... eu não fui... eu não consegui... O que sinto por você é totalmente novo para mim. Não sei definir. Quero que saiba que o que sinto por você é o que tenho de melhor, Honor.

— Eu sei — afirmou ela.

Honor se sentia protetora em relação a David, ante a preocupação genuína dele por ela, ante o espanto com a intensidade dos próprios sentimentos.

O passado de David, com toda a dor e todos os erros, era passado, e pessoalmente, ela conside­rava mais louvável um homem que cometera erros e honestamente os reconhecia do um que negava ter cometido qualquer irregularidade.

Abigail e Ellen ficariam estarrecidas, claro, com seu comportamento impetuoso e imprudente. Lembrariam que era uma mulher de posses con­sideráveis e, por isso mesmo, alvo potencial de aproveitadores que procuravam mulheres das quais se aproveitar, mas Honor sabia que David não era um deles.

— Conte-me como foi sua visita à minha família — pediu David, de repente, ansioso. — Como ele está... o que ele disse? Ele falou de mim ou.,.

— Seu pai? — indagou Honor.

— Ele... David negou, aflito. — Não. Estou falando de Jon. Disse que o viu em Queensmead.

Jon, seu irmão... seu gêmeo. Agora, Honor sa­bia por que ele voltara, ainda que ele mesmo não percebesse.

— Sim, ele estava lá — confirmou Honor. — Ele... Eu gostei dele — declarou. — Tem um re­lacionamento maravilhoso com o filho.

— Filho. — David franziu o cenho. — Qual de­les? Ele tem dois, Max e Joss.

— Max — respondeu Honor. — Eu vi Max em Queensmead.

— Max? — David lutou contra a própria inveja. — Max e Jon nunca foram chegados. Quando me­nino, Max era mais ligado a mim do que a Jon. — Ao ver a expressão de Honor, reprimiu seus sen­timentos novamente. — Eu sei que Jon e Max têm um relacionamento muito melhor agora. Estou con­tente por eles. Era meu pai quem dizia que Max devia ser meu filho e Olívia, filha de Jon.

Honor não disse nada, digerindo a nova informação.

David obviamente dava grande importância ao relacionamento com o irmão. Honor percebera a ansiedade em sua voz ao perguntar de Jon, mas desconfiava de que ele não aceitaria se ela dissesse que o motivo de sua volta era o gêmeo.

Compreensível. Ela mesma vivera essa situação com as filhas, vendo como era difícil para a mais velha admitir que precisava da mais nova. Talvez, inconscientemente, David sempre soubesse que Jon era o mais forte, apesar da determinação do pai em impor o contrário. Possivelmente, por isso, David aceitara a separação que o pai criara entre eles, usando-a para manter os sentimentos a salvo.

— Jon não vai querer me ver, claro — disse David. — Se estivesse no lugar dele, eu me sen­tiria da mesma forma, portanto, não posso culpá-lo. Você disse que tia Ruth repôs o dinheiro que tomei — acrescentou, e fechou os olhos. — Ainda acordo à noite com esse pesadelo, não aceito o que fiz, temo ser descoberto, mas, ao mesmo tem­po, desejo ser. Eu só queria emprestado... só um pouco... por algum tempo. Eu tinha uma dica de investimento, algumas cotas, mas o mercado... — Deu de ombros. — Estava tão certo de que con­seguiria lucro que gastei antecipadamente e, quando o preço das ações caiu, não apenas fiquei sem dinheiro para repor, como me vi devendo cen­tenas de libras. Foi quando começou. Tomei mais algum "emprestado" para pagar o banco. Tiggy e eu vivíamos além das nossas posses, mas tentar moralizar os gastos dela era como... Bem, ela não fazia idéia. Claro, agora vejo o que não via antes, o que não queria ver, que ela tinha uma perso­nalidade com tendência à obsessão e eu, com meu egoísmo, levei-a a... — Conteve-se. — Não tenho desculpas, assim como não espero que Jon me ouça.

— Acho que é mais fácil do que imagina — contou Honor, calmamente. — Eles estavam muito cientes do quanto seu pai deseja a sua volta. Acho que por causa dele e por nenhum outro motivo...

— Como está meu pai? — indagou David.

— Fisicamente, está forte, mas espiritualmen­te... — Honor meneou a cabeça. — Ele está no fim da vida, David, e carrega um fardo pesado, de dor emocional.

— Por minha causa?

— Não, por causa dele mesmo — esclareceu Honor. — No estado físico dele, uma pessoa feliz, um homem que se permitiu amar os filhos com generosidade, poderia viver mais uma década, mas seu pai... Ele o quer de volta, mas quer de volta a imagem que ele criou.

— Você me lembra cada vez mais o padre — declarou David. — Ele me disse a mesma coisa. Talvez eu não deva voltar. Talvez deva ficar lon­ge... longe de suas vidas.

— E ficar escondido aqui em Foxdean comigo. — Honor riu. — Bem, eu com certeza não vou me opor.

— Você entende, não é? Que não tenho nada, que minhas únicas posses são literalmente as rou­pas que visto, que nunca poderei sustentá-la fi­nanceiramente do jeito que merece?

— Dinheiro não é importante. Não para mim — assegurou Honor. — Você pode consertar o te­lhado e a casa. Também pode consertar a ferida em meu coração e em meus sentimentos — acres­centou, rouca.

— Dinheiro pode não ser importante para você, mas aos olhos do mundo...

— Os olhos do mundo não são importantes, tam­pouco. O que vejo com meus olhos é o que importa — declarou Honor.

—- E o que está vendo? — indagou David, hesitante.

Honor sabia que a resposta significava muito para ele.

— Vejo você, David. Vejo um homem cuja hu­manidade e força aquecem meu coração, sem men­cionar seus atributos menos esotéricos e mais fí­sicos, que alimentam meu corpo e meus desejos carnais. — Rindo, conseguiu aliviar a tensão dele.

— Então, não sente amor por mim e sim, desejo sexual? — provocou David.

— Humm... — Honor inclinou a cabeça e con­siderou a questão. — Diria que é uma boa mistura das duas coisas, uma excelente mistura.

David a trouxe para junto de seu corpo já excitado.

 

— Olívia?

— Sim? — respondeu ela, voltando-se para Caspar, mantendo a caneca de café entre eles.

— Reservei passagens para Nova York.

— Passagens? — Ela sentiu um aperto no es­tômago. A última coisa de que precisava era outra briga com o marido, pois tivera um péssimo dia.

Representava uma mulher num processo de di­vórcio particularmente complicado. Na reunião que tiveram pela manhã, ela começou a chorar e declarou que não queria se separar do marido. Então, sem almoçar e reprogramando todos os compromissos, conseguira pegar Amélia na aula de dança. A professora a chamara à parte para informar, gélida, que as roupas e sapatos da me­nina já não lhe serviam.

— Estão apertados? Mas por que ela não me disse? — ponderou Olívia, irritada.

— Talvez não tenha conseguido — considerou a professora, dura. — No outro dia, comentou que a mãe estava sempre muito ocupada...

Sentindo remorso com a repreensão da profes­sora, fora até Chester, onde as lojas ficavam aber­tas até mais tarde e comprara material novo para Amélia.

— Isso mesmo — confirmou Gaspar, sucinto. — Vamos partir no final de semana antes do ca­samento e voltaremos na noite seguinte, assim.,.

— Nós vamos? — questionou Olívia.

— Sim, nós vamos — repetiu Caspar. — Fiz reservas para nós quatro.

— Você não pode levar as meninas — alertou Olívia.— Eu...

— Acho que não estava ouvindo, Olívia — in­terrompeu ele, sombrio. — Eu disse que fiz re­servas para todos nós.

— Você sabe que não posso ir. Já tínhamos des­cartado esse assunto e não quero mais falar sobre isso — decretou ela. — Se você precisa ir, então vá, mas eu não vou com você.

— Então, eu e as meninas teremos que ir sozinhos.

— Você não vai levá-las sem mim — protestou Olívia, furiosa.

— Elas são tão minhas filhas quanto suas, Olí­via, e eu vou levá-las comigo. Se você vem ou não conosco é escolha sua. Não vou mudar os planos. Haverá um lugar para você, se mudar de ideia.

— Quer ir a Chester hoje à noite? Jack hesitou antes de responder a Joss:

— É... não, não posso... eu planejei outra coisa.

— Outra coisa? Que coisa? — indagou o primo, mais curioso ao ver Jack enrubescer, constrangido.

— Nada importante.

— Nada... — Joss pensou um pouco. — Eí, não tem a ver com Annalise, tem? — adivinhou, rindo ao ver a expressão de Jack, denunciando que acer­tara na mosca.

— Eu disse aos garotos que passaria lá para ver os peixes — esquivou-se o primo.

— Ou para ver a irmã deles? — provocou Joss.

— Parece cansada, Maddy. O que foi? — inda­gou Max, ao entrar na cozinha, largando a pasta numa cadeira. — Vovô andou aprontando de novo?

— Ele está meio rebelde hoje — relatou a esposa.

— Onde ele está? No escritório? — Max já se­guia para o corredor.

— Max, não diga nada. Ele não faz de propósito e entendo que as crianças devem fazem muito barulho e bagunça, às vezes. Esta é a casa dele, afinal.

— E isso o que ele diz a você? — questionou Max. — Queensmead pode ser a casa dele, Maddy, mas é você que a torna um lar. Se ele anda abor­recendo... — Calou-se, assustado ao vê-la chorar. — Querida, o que foi?

Ele cruzou a cozinha e a abraçou. Ela soluçava tanto que ele se compadeceu. Faria o avô se des­culpar, apesar da idade.

— Maddy... Maddy, por favor, conte o que está acontecendo. Se cuidar da casa e de vovô é tra­balho demais para você, diga. Podemos nos mudar. Para que uma mansão deste tamanho afinal? Uma casa moderna de quatro quartos e...

Calou-se novamente ao perceber que a esposa tremia. Ansioso, afastou-a um pouco para ver-lhe o rosto. Ela ria agora, meio histérica.

— Não podemos — informou, corada, o olhar tímido. — Quatro quartos não serão suficientes. Não agora. Nós...

— Nós... o quê?

— Estou grávida, Max — declarou ela. — Eu... eu devia ter previsto, acho, mas estava tão ocu­pada e nada voltava ao normal após o nascimento de Jason, por isso, não tomei... não estava.,. Mas fui a uma consulta de rotina hoje e...

— Você está grávida? — repetiu Max, confuso. — Mas...

— Não estávamos planejando ter outro, eu sei — interrompeu Maddy. — Mas... bem, eu não es­tava... você não estava... e... — Embaraçada como uma adolescente,   simplesmente   declarou:   — Quando você me toca, esqueço-me de que já sou uma mulher casada e mãe... Max, pare de me olhar assim!

Sem fôlego, protestou levemente quando o ma­rido a abraçou e beijou no ventre macio.

— Outro bebê — sussurrou Max. — Oh, Maddy! Sabe o que isso significa, não sabe? — Apruman­do-se, tomou-a nos braços, o olhar cheio de amor e alegria.

— Como vê, não poderemos nos mudar para uma casa menor — concluiu a esposa.

— Não, pior que isso. — Max inclinou a cabeça para sussurrar junto a seu ouvido. — Primeiro Jason e, agora, este bebê. Todo mundo vai saber que não conseguimos ficar separados.

— Oh, Max...

— E então?

— Você está me provocando, mas... tem certeza de que não se importa?

— Importar? Por que deveria me importar? Você é quem vai carregá-lo... por nove meses. Tudo o que tenho a fazer é parecer orgulhoso e receber os cumprimentos. Humm... Acho que um homem se sente mais homem quando a mulher fica grá­vida. É algo primitivo e atávico, acho.

— Seja lá o que for, não foi planejado — ob­servou Maddy.

— Não. De qualquer forma, não vou suportar.

— Não vai suportar o quê? — indagou Maddy, confusa.

— Não vou suportar vovô atormentando você. Não pode cuidar dele e de quatro crianças, Maddy — observou, gentil. — Já me sentia mal quando eram só três.

— Mas eu gosto de morar aqui em Queensmead — declarou Maddy. — E, a maior parte do tempo, Ben não é tão mau. Só fica rabugento porque sente medo e solidão, às vezes.

— Vou conversar com minha mãe. É uma pena não podermos encontrar David. Se vovô mudar o testamento e deixar Queensmead para meu tio sumido, vamos ficar com uma mão na frente e outra atrás.

— Se pudéssemos encontrá-lo, fico imaginando se ele nos venderia a propriedade — considerou Maddy.

— Significa tanto para você? — indagou Max.

— É a nossa casa, Max, é uma parte de sua he­rança Crighton. A história de sua família está aqui.

— Bem, se vovô não mudar o testamento, não teremos problemas. Mas se ele deixar Queens­mead para David... ouça, não quero que se preocupe com isso... não quero que se preocupe com nada! — Ele sorriu. — Posso contar para todo mundo ou quer manter segredo por enquanto?

— Pode contar — respondeu Maddy. — Na ver­dade, desconfio de que sua mãe já sabe. Ela veio outro dia aqui e, quando fiquei enjoada, ela disse que podia ser um bebê chegando. Eu estava tão certa de que não era que neguei. Devo desculpas a ela... Max, o que está fazendo? — questionou, ao vê-lo pegar a luva de cozinha.

— Vou preparar o jantar. Você pode descansar — esclareceu, autoritário.

— Oh, Max, você não pode, está de terno... — protestou Maddy, mas acabou cedendo.

Determinada a ignorar a presença de Jack e dos irmãos, Annalise concentrou-se na lição de casa. Sentira o coração tão disparado meia hora atrás ao abrir a porta que precisara levar a mão ao peito.

Até seu pai mostrava-se animado com a revitalização dos peixes sob os cuidados de Jack.

Irritada, refez o exercício, mas não conseguia deixar de ouvir a voz rouca de Jack. Ele tinha uma voz sensual, se bem que ela não era do tipo que se impressionava com essas bobagens, claro. Não queria saber de rapazes, por ora. Todas as manhãs, ainda temia ir à escola, porque os colegas já sabiam que Pete a dispensara...

— Alguma dificuldade?

Sobressaltada, viu que Jack se afastara do aquário e já estava a seu lado, bisbilhotando em suas anotações. Tentou esconder o caderno, mas era tarde demais. Ele já lera.

— Não é uma das minhas matérias favoritas — defendeu-se, enrubescida.

Para sua surpresa, em vez de caçoar, ele quis ajudar:

— Está indo bem, mas, se fizer assim, acho que vai sair mais fácil...

Annalise nunca se achara boa em matemática, embora a professora a incentivasse a tirar os cré­ditos. Impressionada com a facilidade com que Jack analisou e resolveu todos os problemas, che­gou a perder o fôlego. Ou seria porque ele se inclinava sobre ela ao escrever no caderno?

— O que vai fazer quando obtiver os créditos? — indagou Jack.

— É... não sei ainda.

Secretamente, desejava ir para a universidade estudar arte, mas isso custava dinheiro... dinheiro que o pai não tinha. Desconfiava de que teria de arrumar emprego fixo em período integral e, tal­vez, frequentar curso técnico.

Já aprendera um pouco de computação na escola e continuar naquela área parecia uma boa idéia. A indústria automobilística era forte naquela re­gião e outras grandes multinacionais também es­tavam se instalando, incluindo a Aarlston-Becker, que contratava recém-formados do segundo grau e estagiários.

Não queria discutir nada daquilo com Jack Crighton, nem lhe revelar seu sonho secreto de estudar artes e, um dia, usá-las como forma de ganhar a vida. Então, simplesmente deu de om­bros e não disse nada.

— Ela precisa passar nos exames primeiro — ralhou o pai, de olho nos dois. — E isso significa passar mais tempo estudando e menos tempo pa­peando com os amigos.

Annalise não pôde deixar de protestar:

— Pai!

— Bem, não venha me dizer que não recebeu lição de casa extra por não ter se saído bem — acusou o pai, severo. — Não sou tão burro.

Desanimada, Annalise mordiscou o lábio. Era verdade que não tirara boas notas nos últimos testes de matemática, mas era porque...

— Esta nunca foi minha matéria favorita — resmungou.

— A matemática é implacável — comentou Jack, pensativo. — Não dá margem a diferenças ou interpretações imaginativas. Ou está certo, ou está errado, por isso as pessoas ficam apreensivas e nervosas com essa matéria. Se está com difi­culdade, talvez eu possa ajudar — ofereceu-se, olhando não para ela, mas para seu pai, o que a deixou envergonhada e zangada.

Quem ele pensava que era? Podia não ser tão inteligente, mas nem por isso permitiria que ele bancasse o superior...

— Bem, se não for tomar seu tempo... — disse o pai.

Annalise arregalou os olhos.

— Pai!

Mas era tarde demais.

Ele e Jack já combinavam os horários, como se ela não fosse capaz de decidir nada sozinha.

Annalise cerrou os dentes, mas teve que esperar até Jack se levantar para ir embora, quando o acompanhou até a porta.

— Por que tinha que dizer ao meu pai que podia me dar aulas particulares? — disparou, por entre dentes cerrados. — Eu não preciso... — Hesitou ao notar o modo como Jack a fitava.

Ele lhe analisava a boca como se... como se... Sentiu uma excitação nervosa, a boca seca e os lábios... Instintivamente, passou a língua sobre os lábios para   umedecê-los. Jack avançou um pas­so e a segurou pelos braços.

Ele era mais forte do que imaginava e, assim tão perto, parecia maior, mais alto, mais largo, muito mais homem. O olhar faminto a deixava tonta e...

O pai a chamou lá de dentro, quebrando o momento.

— Preciso ir — declarou, trêmula. — Eu... oh... — Prendeu a respiração quando Jack lhe deu um beijo forte e ardente na boca.

— Volto amanhã — declarou Jack, a voz grave. Ele já se afastara quando ela se lembrou de que pretendia lhe dizer para não aparecer mais. Por que ele a beijara daquele jeito? Por que ele... Sentiu um arrepio de excitação. O que estava acontecendo? Não podia estar se apaixonando por Jack Crighton. Nem gostava dele e, além disso...

Annalise fechou a porta, recostou-se contra a madeira e fechou os olhos. O que era se apaixonar por alguém? Pensava que amava Pete. Ao ser es­colhida por ele, sentira-se tão bem, tão orgulhosa, a garota mais invejada da escola. Mas então, ele passara a pressionar para fazerem sexo, zangan­do-se muito com as recusas dela.

Quanto a Jack, já não simpatizara ao conhecê-lo e tinha consciência da diferença social entre eles. Os Crighton eram ricos, influentes e respeitados na cidade, enquanto que sua família... O que Jack queria com ela? O mesmo que Pete? Sentiu o pâ­nico crescer.

Quando ele se aproximava, sentia algo excitante e assustador, algo que a confundia e preocupava. Não sabia se o que sentia era amor, mas sabia que era perigoso. Alguém como Jack Crighton só podia querer uma coisa dela, e sabia o que era... sexo! Ele a convenceria a ir para a cama e então seguiria para a universidade, esquecendo-se dela.

Umedeceu os lábios, ainda ardentes do beijo de Jack. Fechando os olhos, podia reviver aquele mo­mento. Estremeceu. Quando ele voltasse, no dia seguinte, teria que enfrentá-lo sozinha. O pai não estaria em casa e os irmãos planejavam visitar um amiguinho.

Devia contar ao pai o que achava que Jack que­ria? Se contasse, ele suspenderia as visitas ime­diatamente. Era isso o que queria ou... Trêmula, Annalise voltou para a sala.

 

- Assim está bem melhor.

Do alto de uma escada, tra­balhando no caixilho de uma janela, David sorriu para Honor, lá embaixo.

A tarefa de restaurar Foxdean agradava-o. Na verdade, sentia mais satisfação executando o tra­balho braçal do que advogando no mundo das leis, sua profissão na vida anterior.

Quando desceu da escada, Honor ainda o aguar­dava. Sorriu consigo mesmo ao imaginar a reação do pai se tivesse acesso a seus pensamentos.

— Meu primo me telefonou agora há pouco — comentou Honor, enganchando o braço no dele. — Ele me convidou para jantar lá no domingo.

— Você vai? — indagou David, abrindo a porta da cozinha.

— Você vem comigo? — quis saber ela. David suspirou.

Já fazia alguns dias que Honor descobrira sua verdadeira identidade... dias de harmonia e ale­gria. Ele até considerara que ela acabaria se aborrecendo com a companhia só dele, mas ela nem cogitara a idéia. A noite, após fazerem amor, permanecia acordado, imaginando o que o futuro lhe reservava.

— Honor... — começou ele, hesitante, detendo-se ao ver as lágrimas nos olhos dela.

Ela ainda tentou disfarçar virando o rosto.

— Eu sei... — murmurou. — Estou sendo tola e irresponsável. Claro que você não pode ir. É possível que ele tenha outros convidados e um deles pode reconhecê-lo.

— Honor — disse David, gentil. Dessa vez, ela o encarou, insegura, tentando adivinhar o que ele ia dizer. — Não vai dar certo. Não posso continuar me escondendo aqui como um eremita e não posso exigir isso de você.

— Você mudou de idéia. Vai partir. — Ela es­tava tensa, pálida e o olhar...

Houve épocas, após abandonar a família, em que se detestara, odiara-se mesmo, mas aquilo não era nada em comparação ao que sentia na­quele instante. Estava magoando Honor, ma­goando-a profundamente, e isso era a última coisa que desejava.

Ela engoliu em seco. Então, surpreendendo-o, indagou:

— Faria diferença se eu dissesse que estou dis­posta a ir com você? Eu poderia, você sabe. Afinal, não há nada que me prenda aqui, nada...

— Mas você adora esta casa. Você disse isso.

— Adoro, sim — concordou Honor, baixando o rosto. Mesmo assim, David identificou a emoção na voz. — Mas eu o amo mais.

— Faria isso por mim? — questionou David, incrédulo.

— Sim, faria,

— Então, você é uma tola — respondeu ele, áspero. — Não vê o que vai acontecer se eu con­cordar, se eu permitir? Acabaríamos vivendo como dois fugitivos, correndo sempre, e haveria a pa­ranóia de sermos descobertos... essa paranóia ma­taria o que... o que sentimos um pelo outro. Não. Além disso, tenho uma idéia melhor.

Ela se posicionou como alguém que receberia um golpe e David desejou     abraçá-la, protegê-la, amá-la, mas não podia... não agora... não ainda.

— Não posso deixar que viva assim, Honor. Você merece mais... e melhor. Você precisa de um ho­mem que possa ter abertamente a seu lado, um relacionamento que todos reconheçam. Eu tomei minha decisão.

Honor prendeu a respiração, e sentiu a dor... Não suportaria perdê-lo, não agora, mas não podia mantê-lo contra a vontade.

— Vou telefonar para Jon e dizer a ele que voltei. Vou perguntar se ele quer me ver... se po­demos conversar.

Honor o fitou, o olhar cintilante de emoção.

— Não me olhe assim — pediu David, capitu­lando à tentação de abraçá-la. — Venha cá e me deixe... oh, Honor... Honor...

David sentia as ondas de emoção varrerem o corpo delicado enquanto a beijava sedento. Mo­viam-se desajeitados em sua necessidade mútua de se tocar. Ele apalpou um seio, quente e já fa­miliar. Ela o acariciou, provocou, massageou.

Fizeram amor com voracidade, desespero, como se as últimas pontes de cautela despencassem. Não havia mais barreiras entre eles, só compro­misso e reconhecimento da intensidade do que sentiam.

— Você teria mesmo desistido da casa? — sus­surrou David, contra a boca de Honor, sem desistir dos beijos.

— De tudo... de qualquer coisa — assegurou Honor, irresponsavelmente.

— Não será fácil — advertiu David, mais tarde, com Honor aninhada a seu lado, o sol do entar­decer destacando as curvas de seu corpo. Ela era muito feminina, não como uma adolescente, porém ciente de sua maturidade.

Ela ria, com ternura, quando lhe dizia o quanto era bonita.

— A natureza é sábia — retrucou. — A medida que aumenta as rugas, diminui nossa capacidade de vê-las!

— Devo informá-la de que minha visão é per­feita — respondeu David, falsamente ofendido.

— Sei — provocou Honor. — Tão perfeita que precisou pôr o jornal a cinco centímetros do nariz para ler as manchetes hoje cedo. — Tem certeza de que quer telefonar para Jon? — perguntou, séria. — Eu levei o remédio e a dieta que preparei para seu pai esta manhã, quando fui ao super­mercado. Ele parecia um pouco melhor.

Honor fez uma pausa, traçando com a unha uma figura complicada no tórax masculino.

— Havia duas outras crianças lá, duas meninas, e não eram de Maddy. Acho que podem ser suas netas. — Franziu o cenho quando ele a segurou pelo pulso.

— As filhas de Liwy?

Honor assentiu.

— Sim.

David fechou os olhos.

— Liwy ficou tão zangada comigo quando soube do problema de bulimia da mãe, e com razão. Eu devia ter feito algo, procurado ajuda profissional, porém, fiz de conta que não estava acontecendo nada. Como são as crianças?

Honor apurou a memória e descreveu:

— Não se parecem muito com você. São more­nas... mas têm algo...

— Caspar é moreno — lembrou-se David. — Se foi com ele que ela se casou...

— Sim, ouvi Maddy se referindo a ele... Algo sobre um casamento nos Estados Unidos.

— Sim, Caspar é americano. Liwy o apresentou a nós pouco antes de...

— Não precisa fazer isso — repetiu Honor, fa­lando sério.

— Sim, preciso — corrigiu David. — Foi por isso que voltei, afinal. Se Jon não quiser me ver, então...

— Não vai fazer nenhuma diferença para mim — adiantou ela.

David meneou a cabeça e explicou, carinhoso:

— Sim, vai. E se Jon e o resto da família de­cidirem que estão cansados de me proteger? E se eles decidirem ir a público contar o que fiz? Não posso expô-la a essa situação, Honor, ser rotulada como esposa de um mentiroso e ladrão.

Esposa! Honor sentiu o coração dar um pulo.

— Vamos dar um passo de cada vez.

Meia hora depois, estavam de volta ao térreo. David foi à saleta e ficou olhando para o telefone.

— Estarei na cozinha se... se precisar de mim — avisou Honor.

— Não — disse David, estendendo a mão. — Não. Por favor, fique. Quero que fique aqui comigo.

Ela voltou e pousou a mão na dele. Não preci­saram procurar o número. David sabia de cor, mas tinha as mãos trêmulas ao discar.

— Telefone! — anunciou Jenny, quando o aparelho começou a tocar ocupada em aparar a borda de uma torta. — Telefone, Jon! — repetiu, mais alto. Então, limpando as mãos no avental, foi atender.

— Eu atendo — disse Jon, chegando primeiro.

— Bolas — resmungou a mulher, voltando para a torta.

Maddy e Max haviam telefonado dez minutos antes, avisando que iriam passar por lá e, logo depois, Katie chegou com o marido Seb e os filhos gêmeos para lhes confiar a chave de casa, pois iriam passar alguns dias de férias em Yorkshire. Distraída, Jenny ouvia a conversa de Jon en­quanto abria o forno e alojava a torta.

— Sim, é — respondeu ele, tranquilo. De re­pente, alterou o tom, como se ficasse nervoso. — Eu sei... Reconheceria sua voz em qualquer lugar!

Do outro lado da linha, David agarrava o tele­fone com as mãos suadas.

— Jon? — perguntou, embora tivesse reconhe­cido a voz do irmão gêmeo imediatamente. A confirmação, revelou: — É David...

Sentindo um nó na garganta, por alguns se­gundos não conseguiu dizer mais nada. A seu lado, Honor o acariciava, incentivava.

— Eu gostaria de vê-lo Jon... de conversar com você.

Enquanto aguardava a resposta do irmão, tre­mia tanto que mal conseguia segurar o aparelho.

Houve uma longa pausa, longa o bastante para David se arrepender de ter feito a ligação, longa o bastante para achar que Jon o rejeitaria.

Como que conduzidos por uma força mística, os outros membros da família convergiram da sala de estar para a cozinha, conversando ani­madamente. De repente, calaram-se. Assim como Jenny, pressentiam a importância do que estava acontecendo.

— Onde você está? — indagou Jon, visivelmente abalado.

Embora não tivessem ouvido a primeira parte da conversa, exceto Jenny, todos ficaram tensos e aguardaram em silêncio, observando Jon ser to­mado pela emoção.

— Eu... eu não estou muito longe — respondeu David, rouco.

— Você pode... pode vir aqui? — indagou Jon. Honor ouviu a pergunta e assentiu vigorosamente.

— Sim, sim, posso — concordou David. — Quando...

— Agora — afirmou Jon, emocionado. — Agora! — E desligou o telefone. Voltou-se para Jenny, — Era David — informou. — Ele... ele virá aqui. Está vindo!

Jon estava pálido de emoção e a mulher dei­xou-se contagiar.

— David! — repetiram os outros, com vários graus de incredulidade.

— Tio David? — indagou Katie.

— Meu pai? — murmurou Jack.

— Sim — confirmou Jon, e olhou para Jenny. — Acho que preciso de uma bebida...

Os demais disparavam perguntas:

— Onde ele está?

— O que ele quer?

— Por que voltou?

— Não sei — disse Jon, meneando a cabeça. Sentia-se zonzo e talvez não fosse sensato beber.

Estava em choque, claro, mas... deveria ficar tão surpreso? Afinal, não tinha... Mas não. Esse não era o motivo da volta de David. Não podia ser.

— Jon, David deu alguma indicação de onde estava? — indagou Jenny.

Ele a fitou com expressão distante.

— Não. Ele não... eu não... Oh, não acredito que esteja realmente acontecendo após tanto tempo — desabafou, emocionado. — Ele está aqui, finalmente. David... David! E se ele mudar de idéia? — Passou a andar pela cozinha, ansioso. — Eu devia ter ido ao encontro dele. Deve estar ansioso, nervoso, com medo... eu devia ter ido até ele.

Ao ouvir o marido, Jenny não pôde evitar o desejo de protegê-lo, seu Jon! David o magoara muito no passado e, mesmo assim, Jon estava quase em estado de graça com a perspectiva de rever o irmão.

Em Foxdean, Honor encorajava David.

— Vai ficar tudo bem. Ele não teria concordado em vê-lo se... Eu levo você até lá.

— Não — recusou ele. — Eu consigo...

— Não, não consegue — corrigiu Honor, decidida.

— Vire à esquerda aqui — orientou David. Honor seguiu a instrução. Surgiu o perfil de uma casa.

— Vou deixá-lo no portão e volto para cá para esperá-lo — combinou ela.

Ao chegarem à casa, Honor acendeu a luz in­terna do carro e contemplou o rosto transtornado de David. Parecia pálido e, estranhamente, mais jovem.

— Vai ficar tudo bem — repetiu ela, beijando-o na boca de forma quase maternal.

Todos ouviram a campainha tocar, mas nin­guém se moveu.

— Jon... — chamou Jenny.

— Eu vou — ofereceu-se Max.

Jon meneou a cabeça.

— Não... não — disse, trêmulo.

Maddy tocou no braço de Max.

— David quer ver seu pai — observou.

— Sim, porque sabe que papai sempre foi com­preensivo. Se ele pedir dinheiro, pai... — Ca­lou-se ante a expressão de Jon, percebendo que fora impertinente.

Jon foi atender à porta. Jenny olhou ao redor na cozinha. Joss e Jack estavam próximos, Katie, o marido e os filhos ocupavam um canto, Maddy mantinha-se junto de Max com a mão no ventre, tendo já anunciado a nova gravidez.

Jenny ficara feliz ao saber que ganharia mais um neto, mas agora o prazer e o entusiasmo ar­refeciam ante o choque e o temor. Não queria que David voltasse. Não queria que Jon voltasse a ser a pessoa retraída de antes do desaparecimento do gêmeo. Não suportaria vê-lo sofrer novamente, como antes, quando seu pai o ridicularizava constantemente, depreciando suas realizações, en­quanto elevava David aos céus. Acima de tudo, não queria reconhecer o que lera no olhar de Jon!

Ouviu a porta da frente se abrir e ficou tensa.

Jon não podia se contentar com o que tinha, uma mulher que o amava, uma família? Reservaria sempre uma parte, a parte mais importante de si, para David? O que mais a magoava era Jon nunca ter mencionado que sentia falta do irmão, nunca ter mencionado que queria a volta dele. Jon respirou fundo e abriu a porta.

— David...

— Jon...

— Venha... entre.

Por algum motivo, Jon conseguiu não abrir os braços para o irmão. Não queria que David sou­besse como aquela reunião era importante para ele. Devagar, recomendou a si mesmo. Não o su­foque, não o assuste, não o aliene. Não o           sobre­carregue com seu amor... com a sua necessidade. Tentou disfarçar o espanto quanto à aparência de David. Esperara reencontrar o mesmo que de­saparecera anos antes, mas o homem que condu­zia o escritório sempre em ternos elegantes não existia mais.

David estava mais alto ou seria apenas uma ilusão de ótica? Com certeza, emagrecera e tor­neara os músculos. Os dentes pareciam mais bran­cos contra a pele bronzeada e os olhos pareciam mais azuis.

— Não tinha certeza se concordaria em me ver — comentou David, rouco, quando entraram no escritório. — Se fosse você...

— Não. Estou contente por estar aqui. Nosso pai... — Jon pigarreou, sentindo a emoção crescer.

Afinal, por que deveria se importar agora com o fato de David ser o filho favorito?

— Ele não anda muito bom.

— Sim. Eu sei — declarou David.

— Sabe?

— Sim. E... há alguém... uma amiga... — David hesitou. — Não quero falar sobre nosso pai, Jon. Ainda não. Preciso lhe dizer algo antes, algo impor­tante, e... — Respirou fundo. — Não vim aqui pedir seu perdão, nem mesmo sua compreensão. Por que me concederia isso? Eu não mereço. Não fiz nada para merecer isso. Pelo contrário. Mas o que quero dizer é que lamento muito tê-lo decepcionado. Todas as vezes em que fui vergonhosamente fraco e egoísta, todas as vezes em que coloquei minhas necessidades em primeiro lugar, todas as vezes em que me omiti quando nosso pai...

Aproveitando a pausa, Jon fez um gesto, como se dispensasse o resto, mas David prosseguiu:

— Não, não é fácil falar sobre isso. E, como disse, não estou pedindo nem esperando que me perdoe nem por minha ganância, nem pela destruição do laço que devia ter valorizado e celebrado.

— Nosso pai... — começou Jon, David meneou a cabeça.

— Nosso pai pode ter sido vítima da própria in­fância, mas isso não me isenta de culpa. Logo percebi que tudo o que ele me dava tinha um preço, e era você quem pagava. Você era o bode expiatório, Jon, e eu deixei que fosse. Não posso pedir que me perdoe por isso... nem posso me perdoar.

— David, por que voltou? — interrompeu Jon.

David o encarou, confuso.

— Realmente não sei. Só senti... — Deu de ombros.

— Que nosso pai precisava de você? — su­geriu Jon.

— Não — declarou David, seguro, o tom baixo.

— Não. Eu voltei, Jon, porque precisava de você.

Por um momento, encaram-se. Então, David viu lágrimas nos olhos de Jon e, sem hesitar, deu o primeiro passo para abraçar o irmão. Os velhos hábitos, a educação que o pai dera, na qual me­ninos, homens, nunca mostravam suas emoções, esquecera-os ao presenciar a miséria humana tra­balhando com padre Inácio.

Sentiu um grande alívio ao abraçar Jon, era como se fosse parte de si mesmo.

— Senti a sua falta — declarou David, sombrio.

Jon retribuiu o abraço, sem palavras para des­crever as emoções que o avassalavam. Quantas ve­zes quando criança, menino, rapaz, desejara abraçar o irmão? Quantas vezes tivera que se enrijecer para suportar a dor da rejeição de David? Para suportar a impossibilidade de poderem se aproximar?

— Eu pensei em você... muito — confessou Jon, rouco.

— Eu também — admitiu David. — Eu o amo, Jon. Senti muito a sua falta! — Antes que o irmão se recuperasse do choque da declaração, revelou:

— Na Jamaica, sonhei com você, foi quando o padre...

— Padre? — questionou Jon.

— É uma longa história — explicou David, triste.

— Max e Jack foram à Jamaica atrás de você — contou Jon.

David franziu o cenho.

— Sim, eu sei.

— Nosso pai queria muito que você voltasse. Praticamente só fala nisso... fala mais até que do que no cargo de Max como conselheiro da rainha.

— Max é conselheiro da rainha?

— Sim. Ele trabalha em Chester com Luke, filho de Henry. Mora em Queensmead e a esposa, Maddy, é quem cuida de nosso pai. Ele e Maddy estão aqui e, por acaso, Katie, o marido e as crianças. — Jon fez uma pausa e declarou: — Estou con­tente por você ter voltado.

Palavras simples mas que significavam muito.

— Nosso pai é um idiota — concluiu David. — Você sempre foi o melhor de nós dois. Isso não mudou.

— Não sei quais são os seus planos, mas no que se refere à sociedade... — Jon respirou fun­do. Não havia um modo fácil de tocar nesse as­sunto. — Você é meu irmão, David, e como tal, sempre será bem-vindo em minha casa e em minha vida, mas...

— Mas não há lugar para mim na sociedade — completou David, sombrio. — Como poderia, depois do que eu fiz? Durante anos, negociei com as suas qualificações profissionais, induzindo as pessoas a acreditar que eu era o advogado inteligente, permitindo que você me desse cobertura, que me protegesse. Não apenas permitia, mas es­perava que assim o fizesse, por ser um direito meu. Eu era um mentiroso e um ladrão, Jon, e tive sorte em não ser pego e ir para a prisão. Sei que tia Ruth repôs o dinheiro que eu roubei.

Apesar das declarações práticas, os irmãos co­mungavam emocionalmente, o amor fluía entre eles como uma onda rápida que derruba todas as barreiras e leva embora todas as impurezas, as mágoas, o passado.

— Sim, ela repôs — confirmou Jon. — Não sabia se devia permitir que ela dispusesse desse dinheiro, mas...

— Não foi por isso que voltei... por dinheiro, por bens materiais. — David deu de ombros. — Na Ja­maica... — Hesitou. — Sei que tenho duas netas.

— As filhas de Olívia, sim.

Jon afligiu-se ao pensar na provável reação de Olívia ao saber da volta do pai. Ultimamente, ob­servava-a com atenção, estimulado pela preocu­pação de Jenny, e reconhecia que a sobrinha tinha problemas. Mesmo assim, sempre que tentava conversar com Olívia, ela se esquivava e o man­tinha a distância.

— Precisamos discutir muitas coisas — disse David. — Mas preciso ir... uma pessoa está espe­rando por mim.

— Quem? — indagou Jon.

— Uma amiga, Honor — contou David, tran­quilo. — Acho que a conheceu recentemente.

Jon queria fazer tantas perguntas, mas ainda estava em estado de choque, não apenas com a volta inesperada do gêmeo, mas também com sua mudança de atitude. Vivia emoções semelhantes às que experimentara no nascimento dos filhos. Alegria, incredulidade, humildade ante o milagre da vida, amor imensurável, gratidão a Deus por ter corrido tudo bem, senso de proteção. David estava de volta. Sentia o coração inflado de amor e alegria diante do irmão.

— Jack está aqui — comentou. — Acho que ele quer vê-lo.

— Será? — David parecia indeciso. — Eu o vi outro dia em Fitzburgh Place. Lembro-me dele como um garotinho, mas já é um homem agora.

— E um bom rapaz, David — assegurou Jon.

— Sim... graças a você.

— Ele é seu filho — insistiu Jon, a exemplo de Honor.

— Talvez, mas foi você que o criou, Jon, e, quan­do chegar à idade adulta e olhar para trás, vai agradecer a você por tudo o que aprendeu, por ser o homem que é.

Voltando no tempo, David lembrou-se de Jack pequeno, na cozinha com Tiggy. Ela exagerara na bebida e na comida e as evidências estavam por toda parte. Pálido, o menino olhava acusador para os pais.

— E eles vão querer me ver? — indagou David.

— Vou buscar Jack — decidiu Jon.

— Onde ele está?

— O que ele quer?

— Ele já foi?

— Não lhe deu dinheiro, deu?

Jon entrou na cozinha ignorando as perguntas. Foi direto ao sobrinho.

— Seu pai, gostaria de vê-lo, Jack, mas ele en­tende se você não... se você achar...

Jack hesitou. Fazia mais de uma hora que Da­vid chegara, uma hora na qual permaneceram to­dos na cozinha entreolhando-se, incrédulos. Uma hora fazendo comentários irados, uma hora re­lembrando episódios desagradáveis do convívio com David.

— Mas ele é muito impertinente — irritou-se Max. — E se acha que vou ficar parado e deixá-lo tratar papai como costumava...

— Não sei como Olívia vai reagir a isso — co­mentou Katie com o marido.

— Tio David. Não posso acreditar — murmurou Joss, meneando a cabeça.

Somente Jenny permanecia calada, pálida. Jack queria abraçá-la, mas se continha, pois ela poderia refutá-lo, dizendo que era mesmo o filho de David. Agora, tio Jon voltava à cozinha e lhe dizia que seu pai queria vê-lo.

Por um momento, pensou em se recusar a ir. Não por maldade ou hipocrisia, mas porque... es­tava com medo. Simplesmente.

De quê? De ter um pai mentiroso e ladrão ou de ver no olhar do pai o mesmo olhar de indiferença e impaciência que ele lhe dedicara durante toda a sua infância?

Instintivamente, endireitou os ombros. Apren­dera muito sobre a importância do respeito, pelas outras pessoas e por si mesmo, convivendo com Jon e Jenny. Se David, seu pai, não lhe tinha respeito, então o azar era dele, convenceu-se.

— Ele está no escritório — disse Jon, acompa­nhando-o pelo corredor.

Jack deteve-se antes de entrar.

— Entre comigo — pediu ao tio. Jon hesitou e então assentiu.

— Se quer assim. — Sentia-se protetor em re­lação a Jack, como se fosse seu filho, sempre dis­posto, atento a sua vulnerabilidade e necessidades.

David. estava diante da janela, em atitude defensiva.

— David, Jack está aqui — anunciou Jon.

Quando o pai se voltou, Jack prendeu a respiração.

Ele parecia diferente, mais semelhante a tio Jon do que se lembrava. O rosto magro não apresentava o queixo duplo. Emagrecera bastante. Por baixo da camisa, delineavam-se os músculos. O sol jamaicano clareara seu cabelo nas laterais, enquanto Jon apre­sentava fios grisalhos. De qualquer forma, ainda se assemelhavam de forma impressionante. Sempre fora assim, claro, mas, quando criança, achara tudo normal. Com certeza, não se lembrava de reparar na semelhança entre o pai e o tio.

— Jack — cumprimentou David, o nervosismo aparente.

— David — respondeu Jack, impassível. Não iria chamá-lo de pai. Não podia.

Silenciosamente, avaliaram um ao outro. Jack era quase tão alto quanto o pai ou o tio e talvez ainda crescesse mais, alcançando Max, mas seu corpo ainda apresentava características juvenis.

Tinha anos de perguntas acumuladas, mas o orgulho o emudecia. Diante dele, estava o homem que os abandonara, à mãe, à irmã e a ele. Ali estava o homem que nunca mostrara interesse paternal, o homem que... Imaginava o que era não se sentir amado? Cogitar qual seria seu de­feito para que fosse rejeitado pelo próprio pai? Mas as faltas do pai não eram sua responsabili­dade. Disso já se convencera, após inúmeras con­versas com tio Jon.

— Jack — ralhou Jon. Mas David o interrompeu.

— Não, ele tem razão, Jon. Eu não tenho o direito de ser chamado de pai e ele faz bem em me lembrar disso. — Voltou-se para o filho. — Teve sorte, Jack. Recebeu uma boa educação e um bom exemplo de Jon e Jenny. Esse é um pre­sente que jamais receberia de mim. Uma das coi­sas de que mais me envergonho é ter abdicado ao meu papel de pai com você e Olívia — declarou, sincero.

— E quais são as outras? — questionou Jack, ríspido.

David encarou o filho. Percebeu que Jack não confiava nada nele. Bem, não merecia outra coisa.

— Por exemplo, minha inabilidade em ver o presente precioso e insubstituível que ganhei na pessoa de meu irmão.

Ele parecia sincero, mas Jack não se convenceu. Queria acreditar em David, mas e se fosse apenas uma farsa?

— Não precisa acreditar em mim, Jack — de­clarou David, como se lesse seus pensamentos. — É minha tarefa ganhar sua confiança e sua fé. Só estou pedindo uma chance. Com a concordância de Jon pretendo ficar por aqui.

— Em Queensmead? — indagou Jack.

David sorriu.

— Não, tenho outros planos.

— Vovô anda falando em lhe deixar Queens­mead, mas Max e Maddy estão morando lá e por direito...

— Jack! — protestou Jon.

— Queensmead é o último lugar onde eu gos­taria de morar — afirmou David, — Minhas lem­branças de lá não são das melhores.

— Diz isso agora — rebateu o filho, rancoroso.

Jon preferiria que Jack não levantasse aquele as­sunto, mas ficou tocado pela preocupação do so­brinho em defender Max, com quem sempre se relacionara bem.

— Estou dizendo a verdade — declarou David, calmo, mas com firmeza. — Não voltei para re­clamar nenhuma herança, Jack, e, se meu pai pensa em deixar Queensmead para mim, direi a ele que vou transferir a propriedade imediatamente ao herdeiro de direito... Max. — Voltou-se para Jon com um olhar interrogativo. — A menos que...

— Eu não a quero — adiantou Jon. — Minhas lembranças de lá são ainda mais tristes do que as suas, embora deva admitir que Maddy trans­formou-a num lar confortável.

— Se não voltou por causa de Queensmead, por que foi então? — indagou Jack, rude.

— Eu... — começou David. Mas Jon veio em sua defesa.

— Basta, Jack. Seu pai não precisa explicar por que decidiu voltar para casa. É suficiente ele estar aqui.

Podia ser suficiente para tio Jon, não para ele. Não era suficiente mesmo, decidiu Jack.

— Sei em que está pensando, Jack, e não o culpo — declarou David. — Em seu lugar, provavelmente estaria menos disposto ainda a conceder o benefício da dúvida. Só conheço alguém tão bondoso quanto você, Jon. O padre... e mesmo ele...

— Que padre? — questionou Jack. David explicou rapidamente.

— Trabalhou com ele cuidando de doentes? — O filho parecia incrédulo.

— Uma tarefa improvável para a reparação de meus pecados, eu sei — concordou David. — Mas, mesmo assim, foi o que eu fiz, embora, na época, não estivesse pensando nos pecados e, sim, no estômago. Sem trabalho, sem comida... foi o que o padre me disse.

Jon viu no olhar de Jack o início de respeito pelo pai. Experimentou um sentimento de per­da, mas rapidamente o suplantou. Jack preci­sava acertar a diferença que tinha com o pai, precisava questionar e entender as forças que motivaram David e precisava ouvir isso do pró­prio. Ainda que não houvesse nenhum outro be­nefício com o retorno de David, para Jack, o valor era incalculável, principalmente nesse es­tágio de seu amadurecimento.

— Aquele relógio está certo? — observou Da­vid, de repente. — Preciso ir. Honor está me esperando...

— Honor... — começou Jon, mas David já pro­curava a saída e não pareceu ouvi-lo. — Vou acompanhá-lo.

A porta da frente, David voltou-se para o irmão. Sem dizer nada, abraçaram-se.

— É melhor contar a nosso pai que você voltou — comentou Jon.

— Sim — concordou David. — E Olívia... Olívia. Jon sentiu uma dor no coração. Decidiu alertá-lo já.

— Olívia... as coisas... as coisas não andam bem para ela no momento. Ela está sob pressão e... Não espere muito dela — avisou, cauteloso.

Dentro do carro, Honor ficou tensa ao ver a luz que vinha do vestíbulo se projetar para fora. David estava de costas, conversando com o irmão. Viu quando se abraçaram e suspirou aliviada.

— Como foi? — indagou, quando David entrou no carro.

— Conversei com Jon e Jack — contou ele. — Jack estava zangado comigo, com todo direito e...

— Jon... como foi com Jon? O que ele disse? — interrompeu Honor.

— Jon foi Jon — descreveu David. — Ele foi mais magnânimo do que eu merecia. Disse que sentiu a minha falta — acrescentou, emocionado.

— Você disse que sentiu a falta dele também? — indagou ela, gentil. David sorriu com ternura.

— Sim — admitiu. — Disse.

De repente, mais do que tudo no mundo, David precisava da segurança do amor daquela mulher. Queria levá-la para casa e fazer amor. Queria se perder nas sensações, queria aliviar o sofrimento na aceitação irrestrita de Honor.

— Não vai ser fácil — comentou. — Jon me disse isso. Jack acha que voltei para reclamar Queensmead. — Meneou a cabeça, triste. — Não posso culpá-lo por achar que sou avarento e aproveitador. Afinal, eu era assim. Mas, pelo menos, parece que não vou ser expulso da cidade... embora merecesse. — Fez pausa, reflexivo. — Vai contar à sua família... às suas filhas... sobre o que eu fiz? — indagou David.

Honor o fitou, mas não respondeu. Ligou o carro e manobrou.

— Você se aborreceria se eu contasse?

— Por sua causa, sim — reconheceu David. — Mas se elas ouvirem a história de outra pessoa... Desconfio de que vão ficar relutantes em me aceitar... um vagabundo, sem residência fixa, sem renda...

— Você não é vagabundo, é um Crighton — corrigiu Honor, divertida. — Tem uma residência fixa, chamada Foxdean, e como renda... Seu ego masculino ficaria ofendido se eu dissesse que te­nho o bastante para nos sustentar e que fico feliz com isso? Podemos fazer tanta coisa, David — declarou, entusiasmada, sem esperar resposta. — A casa... mas isso é só o começo. Preciso de um companheiro, não apenas para partilhar a cama, mas para partilhar tudo, a vida. As ervas que cultivo não são nada em relação ao que a natureza pode prover. Quero viajar... aprender... e quero você comigo. Você vem?

David não lhe respondia. Ansiosa, encarou-o. Talvez ele a achasse idiota com sua animação, planos, esperanças, idealistas demais, segundo as filhas.

— David?

Ele voltou o rosto para ela.

— Sim, eu vou, mas só se você se casar comigo — condicionou.

— Casar?

Ele mencionara casamento antes, mas ela não sabia se falava sério.

— Se eu aceitar, entende que as meninas vão querer que assinemos um contrato pré-nupcial?

— Eu assino qualquer coisa, desde que fique com você — declarou David, suave. — Não quero o seu dinheiro, Honor. Eu quero você.

— Gostaria de me casar no topo de uma mon­tanha — revelou ela, sonhadora. — Em algum lugar alto e espiritual, algum lugar remoto e pa­cífico. Somente nós e nossos votos.

— Eu conheço esse lugar — assegurou David.

— Na Jamaica — adivinhou ela.

— Na Jamaica — confirmou ele.

— Jenny, o que foi? — indagou Jon.

— Nada — esquivou-se ela. — Foi um dia agitado...

— Sim, eu sei — concordou o marido, sentan­do-se na cama para descalçar as meias.

Deitada de lado, de costas para ele, ela tentava evitar que visse o medo em seus olhos.

— Contei como David parecia diferente? Ele está diferente, Jen — comentou, entusiasmado. — Podia ver, sentir. É estranho, sabe, nunca acre­ditei nessa tal intuição que supostamente existe entre irmãos gêmeos, mas esta noite...

Jenny sentia dor no coração ao ouvi-lo. Estava acontecendo como previra... como temia. Ele já estava sob o encanto de David.

— Só falou com ele por pouco mais de uma hora, Jon — observou ela, — E ele não explicou direito por que voltou. Oh, eu sei o que ele lhe disse, mas como vamos saber que está dizendo a verdade?

— Jenny! — censurou Jon. — Pelo menos tente dar-lhe o benefício da dúvida. Qual é o problema? Não é de seu feitio essa atitude antagônica. Você normalmente é a primeira a mostrar compaixão e tolerância.

O que podia dizer? Não queria lembrá-lo de que David quase arruinara seu casamento, quase des­truíra seu amor, não uma, mas duas vezes. Quan­do ele desapareceu, foi como se uma nuvem negra se instalasse entre eles.

— Não posso acreditar como foi fácil con­versar com ele. Como me senti próximo a ele — explicou Jon.

Jenny conteve-se para não chorar. Era como se David se colocasse entre eles mais uma vez, como se ele fosse mais importante na vida de Jon do que ela.

— Vou ter que contar a Olívia o que aconteceu, claro.

— Ela não vai gostar — alertou Jenny.

— De início, não — concordou Jon. — Mas tenho certeza de que mudará de idéia quando vir e con­versar com David.

David... David... David. Jenny já estava cansada desse nome. Por que... por que ele voltara?

 

- Jack...

Ele franziu o cenho e voltou-se para Annalise.

— Desculpe-me. O que você disse?

Ele comparecera, como combinado, mas não ten­tara convencê-la a ir para a cama. Parecia preo­cupado, com os pensamentos longe. Seria outra garota?, imaginou, ciumenta.

— O que foi? Qual é o problema? — indagou ela.

— Meu pai voltou — explicou ele.

— Seu pai? — Annalise o fitou. Como todo mun­do em Haslewich, sabia que David Crighton de­saparecera sem deixar explicação.

— Sim, eu o vi ontem à noite. Ele telefonou para tio Jon e depois foi lá em casa e... — Retomou os livros. — Estou aqui para lhe dar aulas par­ticulares, não para falar de meu pai.

— Não, quero ouvir mais — disse Annalise. Sempre imaginava como reagiria se sua mãe voltasse. Não que ela tivesse desaparecido. Não como o pai de Jack. Ela simplesmente os aban­donara para ir morar com outro homem.

— Não. Estou aqui para ajudar você, lembra-se? — ralhou Jack, severo.

Uma hora depois, Annalise meneou a cabeça, desanimada.

— Não adianta. Estou piorando.

— Você está exigindo demais de si mesma — consolou ele. — Vai chegar lá. Só precisa de mais tempo e algumas aulas mais. — Franziu o cenho. — Tenho que ir para a universidade na semana que vem, mas... — Fez uma pausa. — Vou estar de volta para o Natal. Terei mais tempo, então.

— Não precisa me ajudar — declarou Annalise.

— Não, não preciso — concordou ele. — Mas eu quero.

— Por quê? — desafiou ela.

— Por que você acha? — respondeu ele, rouco, fitando os lábios dela.

Annalise sentiu o coração disparar.

— Eu não vou para a cama com você — avisou.

— Não quero levar você para a cama — declarou Jack, severo. — Para começar, você ainda não está pronta e depois...

Annalise o fitou. Nunca esperara aquela res­posta de um homem.

— Você não quer — declarou ela, surpresa de­mais para manter a cautela. — Mas...

— Eu não disse que não quero — corrigiu ele, sombrio. — Só disse que não vamos... pelo menos, não ainda.

— Não ainda... — Annalise nunca imaginou que o coração pudesse bater tão rápido.

— Não, não ainda — repetiu Jack. — Não en­quanto... — Deteve-se. — Vai escrever para mim, Annalise?

Escrever para ele... Confusa, ela ergueu-o olhar para ver se ele estava apenas brincando. Jack lembrou:

— Não vai demorar para os feriados de Natal e então...

— Você não vai me beijar? — indagou ela, a voz ligeiramente trêmula.

— Se eu beijar, acho que não vou conseguir parar — respondeu Jack, meneando a cabeça.

Então, para arrepio de Annalise, ele grunhiu e a tomou nos braços.

Beijar alguém e ser beijada era uma experiência bem distante da vida rotineira, descobriu Anna­lise, estonteada.

— Oh, Jack — sussurrou, encantada, quando ele finalmente a liberou.

— O que foi? — Ele sorria, carinhoso.

— Precisamos mesmo esperar?

— Sim, precisamos — afirmou ele, soltando-a. — Prometa que vai me escrever.

— Prometo — declarou Annalise, ardente.

— Livvy, tem um minuto?

— Só um, tio Jon — respondeu Olívia, quando o tio a interceptou no corredor.

Ele a segurou pelo braço e conduziu à sala dele.

— Mas o que foi? — questionou ela, estranhando a atitude.

Quase não dormira à noite. Caspar e as me­ninas iam viajar para os Estados Unidos em dois dias, mas não poderia acompanhá-los, de forma alguma. Caspar estava enganado se achava que podia pressioná-la, chantageá-la, a mudar de idéia.

— Liwy, não há um modo fácil de lhe contar — começou Jon, com tato. — Seu pai voltou.

— Meu pai. — Olívia encarou-o interrogativa. — Não, não pode ser. Ele jamais voltaria a Haslewich. Não se atreveria. Não depois do que fez. Ficaria com medo de ir para a prisão, que é onde merecia estar.

— Olívia, por favor, ouça-me — implorou Jon. — Sei como está zangada com o que David fez. Eu me sentia assim também, mas...

Calou-se ante a expressão da sobrinha. Ela pa­recia ver além dele.

— Liwy, venha cá, sente-se um pouco.

Jon conduziu-a gentilmente pelo braço. Olívia se sentia tensa e fria, o coração apertado. Ansioso, ele entendia a reação, cheio de amor e compaixão. Desde criança, Olívia sempre fora muito sensível, orgulhosa, e se retraía para esconder os senti­mentos dos outros. Mas ela não era mais uma criança e quis encorajá-la a chorar, a desabafar o choque e a dor, mas sabia que isso só faria com que se retraísse ainda mais.

— Eu não quero me sentar — respondeu ela, desvencilhando o braço. — Só quero saber o que está acontecendo. Ele não pode voltar assim. Ele...

Ela estava em choque, percebeu Jon, notando de repente como ela emagrecera nos últimos dias. Seria melhor esclarecer:

— Ele voltou porque...

— Porque precisa de dinheiro, é isso o que está dizendo? Qual é o problema, tio Jon? Ele ficou sem velhinhas ricas?

Olívia tornava-se histérica, andando em círculos pela sala. Ao receber a notícia, empalidecera, mas agora tinha o rosto afogueado e o olhar cheio de mágoa e ressentimento.

— O que ele espera de nós? Pagamento para ir embora de novo? É isso o que ele pretende, nos chantagear? Alguém já disse a Ben que ele voltou?

Jon não se lembrava de quando Olívia parara de usar o termo vovô. Jenny achava que foi logo após o nascimento da segunda filha, quando Ben observou que Max fora o primeiro a presenteá-lo com um neto.

— Não, vou ver Ben mais tarde — comentou. — Ele vai ficar animado, claro, mas muita agi­tação na idade dele...

Jon calou-se ante o olhar acusador da sobrinha.

— Como pode se mostrar tão calmo depois do que meu pai fez? Ele quase arruinou a sua vida, a vida de todo mundo. Chegou perto de destruir tudo o que você conquistou. E, por causa dele, minha mãe...

— Não, Olívia — interrompeu Jon, severo. — Os problemas de sua mãe podem ter se agravado com o casamento turbulento, mas, sabemos, pelos médicos e pelos pais dela, que já sofria de desor­dem alimentar na adolescência. Naquele tempo, ainda não se estudava esse problema...

— Tio Jon, não sei como pode ficar aí, calma­mente, falando sobre o que aconteceu, dessa for­ma! — explodiu Olívía, o corpo trêmulo. — Meu pai não tem o direito de voltar às nossas vidas e, com certeza, não vai voltar à minha. Ele lhe disse onde está, o que anda fazendo, por que foi embora?

— Sim — começou Jon. — Ele...

— Não. Não me conte. Não quero saber. — Olívia fitou-o, transtornada. — Por que deveria? Ele não quis saber de nós... de mim. Eu era apenas a filha que ele nunca quis. A única pessoa com quem ele se importou algum dia foi ele mesmo. Corrijo, inclua Ben e Max, mas ele mesmo sempre em primeiro lugar.

— Liwy, isso não é verdade — protestou Jon. — Seu pai mudou... sofreu...

— Sofreu! Como? Sofreu por não ter acesso às contas bancárias dos clientes ricos? O que ele faz para viver? Ele lhe disse?

Jon não se surpreendeu com o amargor de Olívia, mas ficou desapontado. Esperava encontrar alguma brecha em sua armadura que permitisse persuadi-la a, pelo menos, ouvir o que o pai tinha a dizer, mas agora...

— Não quero vê-lo, tio Jon — declarou Olívia. — Não vou vê-lo. — Como Jon não respondeu, prosseguiu, emotiva. — Faz idéia do que é ser filha dele? De como é carregar seus genes e saber que, não importa o quando trabalhe, as pessoas sempre vão ficar de olho, esperando que eu me torne uma ladra?

Jon estava chocado demais com o desabafo para controlar a expressão ou a reação. Imediatamente, foi até ela e tentou segurá-la, mas ela se desven­cilhou e foi para a janela, ficando de costas para o tio.

— Liwy, querida — implorou Jon. — Entendo o quanto está magoada... com o comportamento de seu pai, mas achar... acreditar... Eu lhe garanto que, dentre as poucas pessoas que sabem o que seu pai fez, ninguém acredita, nem por um mi­nuto, que você... — Foi incapaz de terminar a frase. Ainda estava abalado com o desabafo dela. Era como atravessar um campo minado de pala­vras. Esse tipo de situação requeria o toque gentil e seguro de Jenny, não sua abordagem direta.

— A família toda compartilha o mesmo estoque genético, Liwy — observou, racional. — Se o que disse se aplicar a você, então, é igualmente apli­cável a todos nós. O que seu pai fez foi errado... ninguém está sugerindo o contrário... mas achar que você pode, de alguma forma, sendo filha dele...

— É muito fácil para você dizer isso agora — acusou Olívia, colérica. — Mas percebo o jeito como me olham. Luke... Saul... Max... eles só estão esperando que eu caia na armadilha.

Jon estava horrorizado. Nunca lhe ocorrera que Olivia se sentisse assim e era significativo que ela se referisse somente aos membros masculinos considerando que não era a única mulher da fa­mília a ter uma carreira, pelo contrário. Diante daquele quadro, tinha que reconhecer que a so­brinha não apresentava um estado normal. As palavras "paranóia" e "obsessão" vieram-lhe a mente, mas rapidamente descartou a hipótese. Olívia só estava sofrendo com o choque e com a pressão da carga de trabalho que assumira.

— Liwy, seu pai só quer uma chance para con­versar com você... para se desculpar... para ver as netas — declarou, gentil.

— Não! — Olívia voltou-se, o olhar obscurecido pelo amargor. - De jeito nenhum. Meu pai nunca vai chegar nem perto das meninas. Vocês podem fingir que nada aconteceu, se quiserem, mas eu jamais farei isso.

— Olívia... — protestou Jon, infeliz. Ela meneou a cabeça.

— Preciso ir. Estarei no fórum após o almoço. Um caso de divórcio... e pretendo garantir que minha cliente obtenha o que lhe é devido. Meu pai não é o único homem mentiroso e trapaceiro infelizmente.

 

— Está atrasado — comentou, Jenny quando Jon entrou na cozinha naquela noite.

— Sim, desculpe-me. Fui direto do escritório para Queensmead falar com meu pai.

— Contou-lhe sobre David?

— Contei.

— E como ele reagiu?

— Muito bem. Comportou-se como se sempre sou­besse que David voltaria. Na verdade, foi quase como se David tivesse simplesmente saído de férias, ta­manha a tranquilidade com que recebeu a notícia.

— E Olívia? — indagou Jenny. — Ela também aceitou com tranquilidade?

Jon meneou a cabeça, cansado.

— Acho que já sabe a resposta. Ela se recusa a ver David, na verdade... ela parece ter essa... essa crença cega... de que, por ser filha de David e por ser mulher, todos esperam que ela... Estou preocupado, Jenny. Não sei o que... Você sabia?

— Segundo Maddy, Caspar já detectou uma ob­sessão de Olívia pelos problemas que enfrentou durante seu desenvolvimento — admitiu Jenny. — Achei que era cisma dele, após alguma discus­são que tiveram, mas... Ela realmente ficou muito transtornada quando o que David fez veio à tona, eu sei, mas todos ficamos. Talvez, no afã de es­conder a verdade de Ben, nenhum de nós prestou atenção em Olívia, no sofrimento dela. Então, ela e Caspar se casaram e as crianças vieram... — Franziu o cenho. — O que vai dizer a David?

— Que mais posso dizer senão que ela não quer vê-lo? — indagou Jon, triste.

Nem contaria à esposa que Olívia, antes de sair para ir ao fórum, voltara à sua sala para esclarecer:

— Só mais uma coisa, tio Jon. Enquanto vocês correm para recepcionar a ovelha negra da família e já que não tenho a intenção de ver ou falar com meu pai, ao contrário de vocês, acho que não vi­sitarei mais Queensmead... nem a você e Jenny.

— Sua voz falhara um pouco no final, mas parecia irredutível.

— Liwy... — protestou ele. Mas ela meneou a cabeça.

— Não... Não vou ser hipócrita e, se ele insistir nisso, eu vou embora, e estou falando sério. Vocês podem deixar o passado para trás e aceitar o filho pródigo, mas eu nunca farei isso.

Jon ficara chocado com a declaração da sobri­nha, bem como ansioso e preocupado por ela não ser capaz de cruzar a barreira que construíra en­tre si e o pai.

Como podia ele, seu irmão gêmeo, dar as costas a David e recusar-lhe uma segunda chance? Não podia. Mas perder Olívia, que lhe era tão cara...

— Duvido de que David queira vir aqui — observou.              

— Pode não querer, mas Ben, com certeza, es­pera que ele faça isso — lembrou Olívia.

Quando ela se foi, Jon deu-se conta de que a so­brinha tinha razão. Entretanto, David deixara claro que não tinha intenção de voltar ao escritório, o que, de qualquer forma, teria sido impossível.

Jenny andava pela cozinha, tensa, muito di­ferente de sua amada esposa, normalmente tranquila.

— Jenny? — Jon pousou o braço em seus ombros e puxou para junto de si. — Sente-se. Relaxe.

— Não posso — esquivou-se ela. — Maddy es­teve aqui à tarde. Disse que Max está como um urso resmungão. Oh, e Saul telefonou para per­guntar se era verdade que David voltara. Ele disse que soube por Katie e...

— Jenny, Jenny... — Jon suspirou. —- Qual é o problema?

— Você precisa mesmo perguntar? — indagou Jen­ny. — David voltou e, de repente, tudo ficou de pernas para o ar. Todo mundo está nervoso e você, como sempre fez, toma as dores dele, deixa tudo fácil e confortável para ele, coloca-o em primeiro lugar.

— Jenny, isso não é verdade — protestou Jon.

— Sim, é! — reforçou ela, colérica.

— Jenny, com certeza você, dentre todas as pes­soas, concorda que David tem direito a uma se­gunda chance. Nós somos família dele... — Ca­lou-se, aflito, quando a esposa se voltou e viu que ela chorava. — Jenny, meu amor, o que foi? — Tomou-a nos braços.

— Só estou com... com... tanto medo. Acho que tudo vai mudar com a volta de David — confessou ela. — Fomos tão felizes nesses últimos anos, Jon, e eu não quero...

— A volta de David não vai mudar nada — garantiu ele. — Como poderia?

— Eu não sei — admitiu Jenny. Embora Jon a abraçasse apertado e a cozinha estivesse quente com o forno aceso, sentia frio por todo o corpo.

— Ainda está chocada — concluiu o marido, consolando-a. — Todos estamos. Pensei em con­vidar David para jantar no fim de semana, para ter um primeiro contato com a família, para que­brar o gelo, mas se você prefere...

— Não. — Jenny meneou a cabeça. — Nada pode alterar o fato de que ele ter voltado e, cedo ou tarde, todos ficarão sabendo e vão querer vê-lo. Oh, gostaria que Ruth não estivesse nos Estados Unidos. Se ela estivesse aqui... E como faremos para convidar Olívia e Caspar? — considerou, de repente. — Eu sei que disse que Livvy não estava preparada para falar com David, mas vou telefo­nar para ela — decidiu.

Em Queensmead, Maddy e Max também esta­vam na cozinha.

— Juro que se vovô mencionar o nome de David mais uma vez... — ameaçava ele, irritado.

A esposa demonstrava apoio.

— Ele está muito eufórico — concordou.

— Eufórico! — Max olhou-a enfurecido. — Se alguém o ouvisse, pensaria que o mantivemos en­carcerado num calabouço e que David precisou chamar as tropas para libertá-lo.

Maddy riu.

— Anda assistindo a muito desenho animado com as crianças — provocou. Então, admitiu: — Ben anda meio insuportável.

— Meio? Podia tê-lo estrangulado quando co­meçou a falar que papai nunca se equiparou a David nem nos estudos nem nos esportes. Ele não percebe... — Meneou a cabeça. — Não tenho nada contra David, mas se alguém acha que vou ficar parado e deixá-lo pisar em meu pai...

— Se quer realmente fazer algo heróico, acho que Jack e Olívia, principalmente Olívia, é que mais precisam de seu apoio e proteção — observou Maddy, séria.

— Olívia! Ela e eu nunca fomos muito chegados, e quanto a Jack...

— Estão passando por um momento difícil, Max, e reagem de forma diferente. Não importa o quan­to David tenha mudado, não importa que todos nós saibamos que ele não merece, vovô vai elevá-lo aos céus novamente.

— Olívia, o que está acontecendo? — indagou Caspar, alarmado, quando entrou no quarto e viu as roupas e as malas de Olívia sobre a arca ao pé da cama.

— O que parece? — respondeu Olívia, irritada. — Estou fazendo as malas.

— Fazendo as malas?

Caspar sentiu o coração falhar. Não estavam se dando bem ultimamente. Sabia que ambos eram teimosos, recusando-se a se comprometer ou a ceder, mas a idéia de Liwy saindo de casa o levava ao pânico.

— Sim, fazendo as malas — confirmou ela. — Não é isso que as pessoas fazem quando vão via­jar? — questionou, ácida. — Como é o clima na Filadélfia nesta época do ano, Caspar? Não sei qual destes vestidos é melhor para o casamento e, se formos passear também...

— Está fazendo as malas para ir à Filadélfia? — Caspar não disfarçou o alívio. Sorridente, ig­norou os protestos da esposa, abraçou-a e rodopiou pelo quarto.

— Não, na cama, não, Caspar! — protestou ela, quando ele tentou beijá-la. — Acabei de passar essas roupas a ferro.

— Você vem conosco! — exclamou ele, eufórico.

— Oh, Liwy... Liwy... — Ele tentou beijá-la mais uma vez, mas ela virou o rosto, afastando-o.

Ela se sentia irritada e culpada ao mesmo tempo ante a reação do marido, crente em que ela cedera e ele ganhara a batalha, mas não se tratava de uma circunstância corriqueira. Quando Jenny te­lefonara para dizer que oferecia um jantar de con­fraternização no fim de semana para David, mal disfarçara a raiva na voz ao desculpar-se.

— Eu não estarei aqui, Jenny. Caspar, eu e as meninas vamos aos Estados Unidos para o casa­mento do meio-irmão dele.

Passara o resto da tarde transferindo e cance­lando compromissos, com determinação inabalá­vel. Se o pai estaria na casa de Jon e Jenny, então, ela não estaria. Era simples assim!

 

Max, o que está fazendo aqui? .— indagou Olívia, ríspida, ao abrir a porta.

— Oh, estava só passando e, então, pensei em entrar. Mamãe disse que você e Caspar vão para os Estados Unidos hoje à tarde... um casamento de família.

— Sim — confirmou Olívia, contrariada, ao en­trarem no vestíbulo.

Nunca se sentira completamente à vontade com o primo. Havia uma história de animosidade entre eles, remontando à infância. Sem dúvida, situação criada por Ben e seu tratamento diferenciado. Ao longo dos anos, podiam ter adotado uma atitude de tolerância, mas as raízes ainda estavam lá... para Olívia pelo menos.

— Vai lhe fazer bem sair um pouco. Papai con­tou como anda preocupado com a sua carga de trabalho.

Tensa, Olívia olhou-o hostil. Max praguejou bai­xinho. Não tinha jeito para tratar desses assuntos e não entendia por que Maddy, normalmente uma mulher perspicaz, insistira para que ele conver­sasse com a prima.

— É mesmo? — desdenhou ela. — Bem, pois ele não precisa se preocupar. Sou tão capaz de realizar meu trabalho quanto qualquer pessoa.

Max controlou a irritação. Era típico de Olívia tomar uma atitude defensiva e achar que o co­mentário foi proposital quando, na verdade, esta­vam apenas conversando,

— Acho que todos nós sabemos, Liwy — tentou amenizar. — Mamãe está aborrecida por você não poder ir ao jantar — comentou.

Olívia ficou tensa.

— Acho que Caspar ficaria igualmente aborre­cido se eu cancelasse minha viagem para cortejar o pai que todos nós conhecemos... — Lábios con­traídos, declarou, friamente: — Se Jenny o enviou aqui para tentar me fazer mudar de idéia, está perdendo seu tempo, Max. Eu já disse a Jon que não pretendo ver meu pai novamente... nunca... e se isso significa que não vou ver você novamente também, então, que seja.

Max tentou não demonstrar o choque. Sabia que Olívia reagira pessimamente à volta do pai, mas não imaginava quão pessimamente.

— Ouça, Livvy, entendo como se sente... — começou, mas foi como se tivesse acendido um estopim.

— Não, não entende! — explodiu a prima. — Não entende nada. Seu pai nunca o tratou como se você fosse um estorvo, um incômodo, um pedaço de carne inútil ao qual desejava nunca ter dado a vida. Ele não ria de você, não o menosprezava,

— Liwy! — Max consternava-se ante o desabafo e com a dor contida nele.

Ergueu a mão para acarinhá-la, num gesto ins­tintivo, mas ela recuou.

— Não, não toque em mim.

— Liwy...

Ambos se voltaram quando Caspar surgiu.

— Oh, olá, Max — cumprimentou ele, sorriden­te, e se voltou para Olívia. — Chamei um táxi e pedi que chegasse mais cedo... para o caso de ha­ver trânsito. Está tudo pronto.

— Não vou atrasá-los — adiantou-se Max. — Preciso voltar para ficar com as crianças. Maddy vai com mamãe ao supermercado para ajudar com as compras para o jantar que vão oferecer a tio David.

— David? — Caspar olhou para Max e para Olívia, desnorteado. — Max está falando de seu pai? Mas...

Tarde demais, Max percebeu que Olívia não con­tara ao marido sobre a volta de David Crighton.

— Meu pai reapareceu, sim — confirmou Olívia, raivosa. — Mas, como disse a Max, não quero vê-lo nem falar com ele.

Caspar estava incrédulo.

— Olívia...

Irredutível, ela se voltou para o primo.

— Vou acompanhá-lo à porta, Max.

— Olívia, desculpe-me. — pediu o primo, antes de se retirar. — Eu não percebi que não tinha contado a Caspar o que aconteceu.

— Não contei a ele simplesmente porque não se trata de fato relevante às nossas vidas — ex­plicou Olívia, áspera, e abriu a porta.

— Olívia, se importa em me explicar o que está acontecendo? — indagou Caspar, quando ela vol­tou para a cozinha, minutos depois.

Ela olhou para o relógio.

— A única coisa que está acontecendo, que eu saiba, é que em cerca de... cinco horas estaremos voando para Nova York.

— Olívia, não se faça de tola. Você sabe do que estou falando. Por que não me contou que seu pai voltou?

— Talvez porque não seja algo que queira con­versar com você — replicou ela, sarcástica.

— Mas eu sou seu marido! — explodiu Caspar. — O que está acontecendo? Seu pai volta depois de ficar desaparecido por anos e você age como se... como se nada estivesse acontecendo. — Passou a mão no cabelo, nervoso. — As vezes, Liwy, você... Por isso mudou de ideia quanto a ir ao casamento? — questionou, bravo. — Responda!

Olívia deu-lhe as costas e tomou o corredor.

— Vou chamar as meninas, está quase na hora do almoço.

Caspar encostou a testa na madeira fria do ar­mário. Não adiantava iniciar outra discussão. Não agora. Por que Liwy não lhe dissera nada... Não tinha tempo para pensar nas complexidades da­quela situação. Já estava ansioso por causa do casamento, imaginando que tipo de recepção re­ceberia de sua própria família complicada e   desunida, sem ter que lidar com os ressentimentos neuróticos de Olívia em relação ao pai.

Sabia que David Crighton não fora propriamen­te um bom pai, mas o seu também não fora, mas nem por isso... Agitado, abriu a geladeira e pegou uma lata de cerveja. Alíviou-se ao tomar o pri­meiro gole. Assim que voltassem dos Estados Uni­dos, teria uma conversa séria com Olívia.

No andar de cima, no banheiro da suíte, Olívia contemplava seu próprio reflexo no espelho. Es­tava pálida e abatida, os olhos obscurecidos e fun­dos, mas não era o seu rosto que via e, sim, o de sua mãe. Tânia, com seu rosto bonito e delicado e o corpo muito magro e frágil. Tânia e sua de­sordem alimentar e o casamento infeliz. Então, ao lado do rosto da mãe, viu o do pai, irritado e impaciente como seu marido havia pouco.

Trêemula, percebia que ficava mais e mais tensa. A pressão nos músculos assemelhava-se à que se aplicava nas artérias para evitar hemorragias. Hemorragias que podiam tirar a vida.

Bem no íntimo, sabia que por trás da raiva sen­tia medo... o tipo de medo que destruía o amor e a vida. Mas só reconhecer que esse medo existia a levava a uma espiral de terror e preferia ignorar o fato. Respirou fundo e abriu a porta do banheiro.

— Não mudou de ideia sobre ir ao casamento nao é? — perguntou Caspar, mais uma vez, quan­do se apresentaram ao balcão do aeroporto. — Só está indo para não ter que ver seu pai.

— Sim, isso mesmo — confirmou Olívia indiferente.

Caspar já não a fitava, concentrado em realizar o check-in da família. Se tivesse prestado mais atenção a esposa, teria visto o pânico e o medo que surgiram de repente em seus olhos.

— Não se preocupe, tudo vai dar certo. No carro, David voltou-se para Honor.

— Provavelmente, vai ser mais difícil para eles do que para mim. Jenny deve estar me amaldi­çoando por lhe dar tanto trabalho. Foi amável da parte de Jon oferecer essa reunião de família. Pelo menos, encerra o episódio num golpe só e, muito mais importante, dá-me a oportunidade de apre­sentar você à minha família - acrescentou, com ternura.

Jon ficara curioso e surpreso quando David dis­se que gostaria de levar Honor ao jantar em famíilia. Como sempre, o irmão não especulou, nem se opôs, dizendo simplesmente que aguardaria ambos.

— Olívia não vai estar, claro — observou David. Honor não disse nada. David já lhe contara que a filha não queria vê-lo, nem conversar com ele

— De qualquer forma, ela não poderia compa­recer — comentara Jon, tentando amenizar o golpe. — Ela e Caspar já tinham planejado viajar aos Estados Unidos para um casamento. Do meio-irmão dele, se não me engano...

Estavam quase chegando e, pela quantidade de carros estacionados, David concluiu que pratica­mente toda a família comparecera.

— Você não precisa entrar — disse Honor, adi­vinhando o que ele sentia.

— Sim, preciso — corrigiu David, forçando um sorriso. — Não posso fugir novamente, Honor.

Foi Jack quem abriu a porta. Parecia tenso e nervoso. David também se sentia tenso e de­sejou abraçar o filho, mas não forçou um contato indesejado.

— Honor, este é Jack — apresentou, tentando se acalmar.

O rapaz sorriu, muito mais amistoso com ela. Então, Jon se aproximou e arregalou os olhos ao reconhecer Honor. Então, abraçou David de forma reconfortante e energética, como se lhe transfe­risse parte de sua coragem e força vital. Confiante, David adentrou a ampla sala de estar, com Honor lhe apertando a mão de forma protetora e o irmão Jon do outro lado declarando silenciosamente que todos deviam receber bem o convidado.

Esse arranjo, muito mais que a recepção emo­cional e até desagradável do pai, tornaram pos­sível a David suportar a reunião. Sempre que se sentia abatido, sempre que via dúvida no olhar de alguém, voltava-se para Jon e recebia força através de sua atitude calma e reconfortante.

— Sempre soube que ele voltaria — ouviu Ben contar vantagem com Saul Grighton. — E quem poderia culpá-lo por deixar aquela esposa? Ela tanto fez que quase o matou!

— Meu ataque cardíaco não foi culpa de Tiggy — corrigiu David, imediatamente.

— Bobagem — declarou Ben. — Você nunca deveria ter se casado com ela. Tiggy o enganou para se casar — continuou, olhando para Maddy, que estava perto de Saul e sua esposa, Tullah. — Arruinou sua carreira também. David teria sido conselheiro da rainha, se não fosse aquela mulher.

— Não, pai — interrompeu David, com firmeza. — Nunca poderia ter sido conselheiro da rainha, e á única pessoa responsável por arruinar minha carreira fui eu mesmo.

Cônscio do escrutínio do filho, David continuou explicando como se só os dois estivessem na sala.

— Seu avô pode ter se esquecido de como fui idiota, mas eu não, Jack. Eu achava que sabia tudo... e que podia fazer tudo. Mas qualquer pes­soa com bom senso vai lhe garantir que trabalhar como conselheiro e ir a festas todas as noites não combina! Eu me comportava como um idiota ar­rogante e mereci tudo o que me aconteceu, in­cluindo minha demissão da câmara.

Ficaram todos em silêncio. David desafiou o pai, como deveria ter feito havia muito.

— Se não fosse por Jon, ouso dizer que teria recebido a punição que merecia. Com certeza, não poderia ter trabalhado como advogado, muito me­nos me tornado sócio do escritório.

— Você tinha todo o direito de ser sócio! — esbravejou Ben. — Você é o primogénito. Jon sabe que é seu direito liderar a sociedade, David.

— Não — contrariou David, calmamente. — O que Jon sabe é que não havia forma legal de eu assumir aquela posição. Não tenho as qualifica­ções e, além disso...

Fez uma pausa, imaginando até onde deveria ir e quanto deveria dizer. Instintivamente, olhou para o irmão. Do outro lado da sala, Jon assentiu discretamente.

— Além disso, o Direito nunca me atraiu. Sin­to-me muito mais feliz trabalhando com as mãos do que com a cabeça.

— Você fez isso! — gritou Ben com Jon, co­lérico. — Você o forçou a falar em seu favor. Ora, eu só digo... você nunca será o homem que David é. Você sempre ficará à sua sombra. Devia se envergonhar.

— David — advertiu Honor.

Mas David já se levantara para ir até o pai.

— Basta — rosnou, ameaçador. Então, voltan­do-se para os presentes, declarou: — Embora sai­ba que ninguém além de meu pai precisa ouvir que está errado e embora saiba que Jon não pre­cisa da minha defesa... preciso deixar algo bem claro. Pai, você é um idiota — acusou, áspero. — Todo mundo nesta sala sabe perfeitamente bem que, dos dois, Jon merece as palmas, Jon devia ser elogiado e festejado. A natureza pode ter de­terminado que eu chegasse dez minutos antes, mas não é responsável por eu ter colocado meu irmão em segundo plano em vez de protegê-lo e tratá-lo com carinho. O culpado e o responsável pelas mentiras em que acreditei sou eu mesmo. Nós todos sabemos o quanto sofreu quando criança por ter perdido seu irmão gêmeo, pai, e nos com­padecemos, mas gostaria de reforçar que o motivo de minha volta, o único motivo, por mais egoísta que seja, foi o fato de eu precisar do meu irmão.

Foi quase palpável a reação de choque de todos os parentes.

— Isso não significa que eu não ame meus fi­lhos... minha filha e meu filho... ou meu pai. Amo, mas posso amá-los de qualquer lugar do mundo, onde quer que eu esteja. Provavelmente, o melhor presente que dei a Jack foi me ausentar de sua vida para que ele pudesse experimentar o que é uma verdadeira família com Jon e Jenny. Não sei explicar por que sentia tanta falta de Jon. Talvez fosse para procurar o perdão, para me re­dimir. Realmente, não sei e talvez nunca saiba. Como minha família, vocês têm o direito de me rejeitar ou aceitar como quiserem.

Ele fez uma pausa e olhou para Honor.

— Para aqueles que escolherem me aceitar, vi­verei permanentemente em Foxdean... quando não estiver atuando como assistente de minha es­posa na colheita de plantas e flores nas selvas amazônicas.

David estava ciente do espanto da família e ou­viu as manifestações confusas, mas, na verdade, não estava prestando atenção. Olhava para Jon.

— Acho que deixou papai chocado — observou o irmão, postando-se a seu lado.

— Talvez, mas é o que ele merece. Ele é muito mais durão do que parece — assegurou David. — Pelo menos, é o que Honor diz e ela entende do assunto.

— Isso, sim, foi uma surpresa — admitiu Jon.

— Se não quiser que fiquemos, Jon, basta dizer — replicou David, sério. — Honor e eu concorda­mos que nos mudaríamos, se fosse necessário.

— Haslewich é o seu lar — decretou Jon.

Ao fundo, David ouviu o estouro de garrafas de champanhe, pois Ben insistira que Max as providenciasse.

— A meu filho... a David... — começou a brindar o velho, quando todos estavam com suas taças.

David o deteve imediatamente.

— Não — corrigiu, com firmeza, e ergueu a própria taça. — A meu irmão. A Jon.

— Acho que vou gostar do seu pai — admitiu Joss, brindando com Jack.

O primo não se manifestou, ainda estava muito confuso. Orgulhava-se do pai pelo discurso, porém, sentia que, ao se orgulhar do pai, de algum modo, mostrava-se desleal com Jon.

Desajeitadamente a princípio, as pessoas come­çaram a se aproximar de David e Honor, para parabenizá-los. Vários ficaram confusos quando souberam que o casamento não seria em Haslewich, mas na Jamaica.

— Na Jamaica! — exclamou Jenny, espantada.

— É o que queremos — explicou Honor, gentil.

Mais tarde, quando já estavam na cama, David perguntou:

— Tem certeza de que sabe em que está se metendo?

— Estou acostumada com famílias grandes — respondeu Honor, distorcendo a pergunta deliberadamente.

— Ah, sim, mas você não é a ovelha negra e as suas filhas não se recusam a vê-la nem a falar com você.

— Dê mais tempo a Olívia — aconselhou ela. — Não foi fácil para ela, crescer nas sombras.

— Não deve ter sido fácil para Jon crescer à minha sombra — observou David.

— Quando Olívia voltar desse casamento, po­deremos conversar com ela — consolou Honor.

— Falando de casamentos... — murmurou David.

— Hum? — encorajou ela, aninhando-se junto dele.

— Sei que concordamos que seria somente nós... nós e padre Inácio, mas...

— Você quer que Jon esteja lá — adivinhou Honor.

— Você se importa? — indagou ele. Honor negou.

David inclinou o rosto para beijá-la e imaginou o que fizera para merecer tanta felicidade. Ele mesmo se considerava totalmente desmerecedor.

Deitada ao lado de Jon na cama, Jenny mur­murou, cansada:

— Bem, pelo menos isso está acabado.

Surpreendera-se quando David defendera Jon de todas as investidas de Ben, mas, mesmo assim, não se sentia relaxada com a situação. Por que temia que a proximidade entre os dois irmãos pu­desse, de algum modo, colocá-la em segundo lugar na vida de Jon?

Podia ser tola, mas ainda ficou tensa quando Jon comentou:

— É bom ter David de volta. É estranho, mas... eu senti a falta dele, Jenny, apesar de tudo. Agora que ele voltou... sinto-me... completo novamente.

Ora, ela estava feliz por Jon e com aquela pro­ximidade do irmão que ele acabara de descobrir. Claro que estava!

Na enorme cama de quatro postes em Queensmead, Maddy suspirou quando Max se revirou a seu lado,

— O que foi? — indagou, gentil.

— Nada. Só estava pensando em Olivía. Não sei se tio David ou meu pai realmente entendem como ela se sente com essa situação. — Após longa pausa, revelou: — Sabe, era quase como se eu estivesse atrapalhando quando meu pai e tio Da­vid conversavam.

Maddy suspirou e apoiou o queixo no tórax do marido.

— Tente ser paciente — aconselhou. — Eles têm muita coisa para colocar em dia. E Jon não é o único a ser atraído por David — observou, sabendo agora quem era o "vovinho". — Léo re­conheceu algo de Jon no homem que viu no jardim, que devia ser David. Por isso, não ficou assustado.

— Sim, você tem razão — concordou Max. Maddy suspirou.

Famílias! Como os relacionamentos podiam ser complicados e delicados. Levaria tempo até que a revolução emocional com a volta de David amai­nasse. Com certeza, a chegada do bebé distrairia Max e ele não se sentiria deslocado com a nova proximidade entre David e Jon. Ben já reagia à recusa severa de David em continuar menospre­zando Jon. Irritado, recusou-se a tomar o remédio ao chegar em casa, acusando Jon de ter tomado a atenção de David, impedindo-o de conversar com o filho querido.

— David virá vê-lo amanhã — consolara Maddy, paciente.

— Sim, e cuide para que Jon não venha com ele — disparou Ben. — Quero David só para mim.

Famílias...

Maddy fechou os olhos e aninhou-se junto ao marido.

 

A névoa da manhã já se dissipava... quando desceram a montanha, ca­minhando devagar em fila única, pois a trilha só permitia essa formação.

O juiz jamaicano que realizara o casamento to­mou a trilha que levava à estrada onde deixara o carro. Eles pegaram a outra variante da trilha, em direção à missão de padre Inácio.

Quando chegaram, o padre insistiu em lhes ofe­recer o café da manhã. Jon e Jenny acabaram aceitando, após alguma hesitação. Já haviam es­tado ali no dia anterior, vindo do hotel em Kingston especialmente para conhecer padre Inácio, e ficaram chocados ao ver como David vivera nos últimos anos.

— Não é tão ruim quanto você pensa — afirmou David, mostrando a Jenny os quartos sem móveis com colchões sobre o chão batido. — Neste clima, a gente precisa de bem pouco...

Como David previra, Honor e o padre logo se reconheceram como almas gêmeas e conversaram até bem tarde no primeiro dia. Jon e Jenny foram recebidos com amizade também. Jon estivera na Ja­maica apenas uma vez antes, para acompanhar a recuperação de Max, que fora esfaqueado durante um assalto e se vira entre a vida e a morte. Esse tipo de lembrança não era fácil de se esquecer, e ele entendeu por que Jenny lhe tomou a mão ao passarem em frente ao hospital a caminho do hotel.

A cerimonia fora simples e curta. Apenas uma troca de votos enquanto o sol se erguia sobre a montanha.

Os recém-casados passariam alguns dias na Ja­maica e, então, voltariam para casa. Honor con­venceu o padre a ir com eles para Haslewich.

— Você vai o quê? — indagaram Ellen e Abigail, quando Honor lhes contara sobre seus planos.

— Vou me casar... na Jamaica — repetira, calmamente.

Elas ainda não conheciam David. Não houvera tempo. Uma vez decidido, Honor e David queriam se casar o mais rápido possível.

— Para nos apoiarmos na hora de enfrentar suas filhas — explicou David.

Enquanto padre Inácio mostrava orgulhosamente sua farmácia para Honor e Jenny, David permane­ceu na varanda, contemplando o mar. Mesmo sem se voltar, sabia que Jon se juntara a ele.

— Daqui, vi o avião em que você estava partindo para a Inglaterra — comentou, nostálgico. — Pa­dre Inácio rezou pela recuperação de Max. Nós dois rezamos.

— É difícil imaginá-lo aqui — admitiu Jon, me­neando a cabeça.

— Padre Inácio salvou minha vida — recordou David. — Ficar aqui e ajudá-lo era a única forma de pagamento possível.

— Café da manhã! — anunciou o padre, indo buscá-los.

Num local sombreado, frutas e pratos típicos tinham sido dispostos com capricho por familiares dos pacientes. A mesa, Honor e o padre conver­savam animadamente, sobre ervas e plantas me­dicinais, certamente. Jon e Jenny estavam de mãos dadas, como duas crianças ligeiramente apreensivas.

Em poucos dias, iriam todos para a Inglaterra. O padre, embora não admitisse, tornava-se frágil para continuar com aquele trabalho sozinho.

— Não sou mais necessário aqui — dizia a Ho­nor, triste. —: O governo abriu um asilo novo...

— Eu preciso de você — declarou Honor, sincera. David viu o religioso se reanimar e imaginou se Honor um dia saberia o quanto a amava. Tinha medo de lhe dizer, para que não se sen­tisse sufocada com a intensidade de seus sen­timentos. Tinha o mesmo receio com relação ao irmão gêmeo.

— Ao amor e harmonia e a todas as bênçãos que elas nos trazem — brindou o padre, solenemente.

— Amor e harmonia — reforçou David.

 

                                                                                Penny Jordan  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

              Voltar à Página do Autor