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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


DEMÔNIOS DO OCEANO / Justin Somper
DEMÔNIOS DO OCEANO / Justin Somper

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

DEMÔNIOS DO OCEANO

 

                                 À tempestade, a cantiga e o navio

Quando o primeiro estrondo de trovão soou sobre a Baía Quarto Crescente, Grace Tormenta abriu os olhos. Um clarão de relâmpago irrompeu atrás da cortina. Tremen­do, ela afastou as cobertas e foi até a janela do quarto, que havia se destrancado e estava escancarada, batendo ao ven­daval como uma asa de vidro.

Grace estendeu a mão para fechá-la. Foi preciso algum esforço e a chuva a encharcou, mas conseguiu. Prendeu a janela mas deixou-a ligeiramente entreaberta — não que­rendo isolar a tempestade por completo. Esta produzia uma música áspera com muitos rufos de tambor e pratos de orquestra estourando. Seu coração disparava de empol­gação e de medo. A água da chuva era gelada no rosto, no pescoço e nos braços. Fazia a pele pinicar.

Do outro lado do quarto, Connor ainda dormia — a boca escancarada, um braço pendendo na lateral da cama. Como conseguia dormir com um barulho daqueles? Tal­vez seu irmão gêmeo tivesse ficado exausto de jogar fute­bol a tarde inteira.

Do outro lado da janela do farol, a baía estava sem navios. Não era uma noite para se velejar. O facho do fa­rol varria a superfície do oceano, iluminando as ondas alvoroçadas. Grace sorriu, pensando no pai lá em cima na sala da lâmpada, vigiando o porto, mantendo todo mun­do em segurança.

Outro raio estalou e se dividiu do lado de fora da jane­la. Cambaleando para trás, Grace esbarrou na cama de Connor. De repente o rosto do irmão se franziu e em se­guida os olhos se abriram. Ele olhou para cima com uma mistura de confusão e irritação. Ela espiou seus olhos ver­des luminosos. Eram exatamente da mesma cor dos dela — como se fosse uma esmeralda partida em duas. Os olhos do pai eram castanhos, por isso Grace sempre achava que eles deviam ter puxado à mãe. Algumas vezes, nos sonhos, uma mulher aparecia à porta do farol, sorrindo e olhando para Grace com os mesmos olhos verdes e penetrantes.

— Ei, você está toda molhada!

Grace percebeu que estava pingando água de chuva em Connor.

— É uma tempestade. Venha olhar!

Agarrou o braço dele e puxou-o de sob as cobertas, arrastando-o para a janela. Ele ficou ali parado esfregan­do o sono dos olhos, enquanto outra veia de relâmpago dançava diante deles.

— Não é incrível? — perguntou Grace.

Connor confirmou com a cabeça, mas ficou quieto. Mesmo tendo vivido todos os dias da vida no farol à beira do mar, nunca se acostumara com a força bruta do oceano — com a capacidade de, num momento, se transformar de um lago calmo num caldeirão violento.

— Vamos ver o que papai está fazendo — disse ele.

— Boa idéia. — Grace pegou o roupão na porta do quarto e se enrolou. Connor pôs um casaco com capuz por cima da camiseta. Juntos saíram correndo do quarto e su­biram a escada em espiral até a sala da lâmpada.

Enquanto subiam, o ruído da tempestade ficava mais alto. Connor não gostou nem um pouco, mas não diria a Grace. Sua irmã era bastante corajosa. Era estranho. Grace era magra e ossuda como um ancinho, mas forte como uma bota velha. Connor era fisicamente forte; mas Grace tinha uma força mental de aço, que ele ainda não havia alcança­do. Talvez nunca alcançasse.

— Ei, olá! — disse o pai quando eles irromperam na sala da lâmpada. — A tempestade acordou vocês?

— Não, Grace me acordou — respondeu Connor. — Eu estava no meio de um sonho muito legal! Ia marcar o terceiro gol numa partida.

— Não entendo como alguém consegue dormir com uma tempestade assim — disse Grace. — É barulhenta demais e linda demais.

— Você é esquisita — provocou Connor.

Grace franziu a testa e esticou o lábio inferior. Algu­mas vezes, mesmo sendo gêmeos, ela sentia que os dois eram totalmente opostos.

O pai tomou um gole de chá de eucalipto, quente, e sinalizou para os dois.

— Grace, por que não vem aqui e pega um lugar privilegiado para o espetáculo? Connor, sente-se perto de mim.

Os gêmeos obedeceram, agachando-se no chão de cada lado dele. Instantaneamente, Grace ficou fascinada, ado­rando a chance de olhar a baía furiosa do ponto de vista mais elevado. Connor teve uma súbita vertigem, mas en­tão sentiu a mão tranqüilizadora do pai no ombro, lançan­do ondas de calma pelo seu corpo.

O pai tomou outro gole de chá.

— Quem quer ouvir uma cantiga de marinheiros? — perguntou.

— Eu! — responderam Connor e Grace ao mesmo tempo. Os dois sabiam exatamente que cantiga ele canta­ria. Tinha cantado para eles desde que podiam recordar, desde quando eram bebês — em berços iguais, lado a lado —, e nem podiam entender a letra.

— Esta — anunciou ele em tom pomposo, como se não tivesse feito isso milhares de vezes antes — é uma canção de marinheiros cantada pelas pessoas muito antes de o novo dilúvio chegar e tornar o mundo tão molhado. É uma cantiga sobre um navio que viaja pela noite, por toda a eternidade. Um navio que leva uma tripulação de almas penadas — os demônios do oceano. Um navio que vem navegando desde o início dos tempos e viajará até o mun­do acabar...

Connor tremeu numa deliciosa expectativa. Grace sor­riu de orelha a orelha. O pai, o faroleiro, começou a cantar:

 

Vou contar a história dos Vampiratas,

História antiga e verídica.

Sim, vou cantar sobre um velho navio

Com tripulação maligna e fatídica.

Sim, vou cantar sobre um velho navio,

Que veleja no oceano azul...

Que assombra o oceano azul.

 

Enquanto o pai cantava, Grace olhou para a baía lá embai­xo, através da janela. A tempestade continuava furiosa, mas ela se sentia perfeitamente segura, olhando de tão alto.

 

O navio Vampirata tem velas rotas,

Que balançam como asas a voar.

Dizem que o capitão usa um véu

Para nosso temor aplacar

De sua palidez mortal

E de seus olhos sem vida,

E dos dentes afiados como a noite sombria

Ah, dizem que o capitão usa um véu

E seus olhos nunca vêem a luz do dia.

 

Connor ficou olhando o pai usar as mãos para fazer mímica de um véu. Tremeu ao pensar no rosto horrível do capitão.

 

É melhor ser boazinha, criança — boa como ouro,

Tão boa que nem posso contar.

Senão te entrego aos Vampiratas

E te mando para o mar.

É, é melhor ser boazinha, criança — boa como ouro,

Porque... olhe! Estás vendo logo ali?

Há um navio escuro no porto esta noite

E tem lugar no porão para ti!

(Tem bastante lugar para ti!)

 

Os gêmeos olharam para o porto, como se contassem ver um navio escuro esperando-os. Esperando para levá-los para longe do pai e de casa. Mas o lugar permanecia vazio.

 

Bom, se os piratas são maus,

E os vampiros ainda piores,

Rezo para que, enquanto eu viver,

Mesmo cantando sobre os Vampiratas,

Jamais um deles possa ver.

É, se os piratas são perigosos

E os vampiros são a morte,

Rezo também por ti...

Que teus olhos nunca vejam um Vampirata...

 

O faroleiro estendeu a mão para tocar de leve os ombros das duas crianças.

 

... E eles nunca ponham a mão em ti.

 

Connor e Grace sabiam o que vinha, mas mesmo assim pularam antes de explodir em risos. O pai os envolveu num abraço.

— Quem está pronto para a cama agora? — perguntou.

— Eu — disse Connor.

Grace poderia olhar a tempestade a noite toda, mas não conseguiu impedir que um bocejo comprido escapasse.

— Vou descer e colocar os dois sob as cobertas — dis­se o pai.

— O senhor não deveria ficar aqui olhando a baía? — perguntou Grace.

O pai sorriu.

— Só vou demorar um instante. A lâmpada está ace­sa. Além disso, Grace, esta noite a baía está vazia como uma sepultura. Não há nenhum navio lá fora. Nem mesmo o navio dos Vampiratas.

Ele piscou para os gêmeos, pousou a caneca de chá e os acompanhou até embaixo. Colocou-os na cama e bei­jou primeiro Grace, depois, Connor.

Após ele ter apagado a lâmpada do quarto, Grace fi­cou deitada, exausta mas empolgada demais para dormir. Olhou para Connor, que de novo estava esparramado na cama, talvez já de volta ao do antigo sonho.

Grace não conseguiu resistir a um último olhar para a baía. Puxou as cobertas para o lado e foi até a janela. A tempestade havia diminuído só um pouco e, enquanto o facho do farol varria as águas, ela viu que as ondas haviam perdido parte da turbulência.

E então viu o navio.

Ele não estivera ali antes, mas agora não havia engano. Um navio solitário no meio da baía. Pairava como se fosse totalmente insensível à tempestade ao redor. Como se na­vegasse nas águas mais calmas. Os olhos de Grace acom­panharam o desenho da silhueta. A imagem fez com que pensasse no velho navio da cantiga do pai. O navio dos demônios. Tremeu ao pensar nisso, imaginando o capitão coberto pelo véu, olhando-a através da noite escura. Mas, sem dúvida, pelo modo como esse navio simplesmente flutuava — como se suspenso por um fio invisível preso à lua —, ele parecia estar à espreita, esperando. Alguma coi­sa... ou alguém.

Lá em cima, na sala da lâmpada, o faroleiro viu o mes­mo navio nas águas inquietas. Ao reconhecer a forma fa­miliar, não conseguiu evitar um sorriso. Tomou outro gole de chá. Depois levantou a mão e sorriu.

 

                                                                             Sete anos depois

 

                               O enterro

Todo o povo de Baía Quarto Crescente compareceu ao enterro do faroleiro. Naquele dia não sobrou nenhuma peça de roupa preta para se comprar no Empório de Rou­pas Quarto Crescente. Nenhuma flor sobrou na Floricul­tura Haste Feliz. Todos os botões foram transformados em coroas e homenagens florais. A maior delas era uma torre de gardênias brancas e vermelhas na forma de um farol, rodeada por um mar de eucaliptos em redemoinho.

Dexter Tormenta havia sido um homem bom. Como faroleiro, cumprira uma importante função na segurança da baía. Muitos dos que estavam agora ao redor da sepultu­ra, de cabeça baixa com os pescoços queimando ao sol do fim de tarde, deviam a vida aos olhos aguçados de Dexter e ao seu senso de dever ainda mais aguçado. Outros agra­deciam a Dexter a passagem em segurança de um ou mais familiares ou de amigos íntimos, resgatados das águas perigosas fora do porto — águas apinhadas de tubarões e piratas... e coisa pior.

Baía Quarto Crescente era uma cidade minúscula, e cada um de seus habitantes parecia ligado aos outros com tanta firmeza quanto pontos de uma peça de tricô. Uma trama tão fechada não tornava a vida necessariamente tran­qüila. As fofocas corriam mais depressa pela baía do que as corredeiras do riacho Quarto Crescente. Agora mesmo, por exemplo, havia apenas um assunto — o que acontece­ria com os gêmeos Tormenta? Ali estavam eles, de cabeça baixa diante da sepultura do pai. Com 14 anos, não eram exatamente crianças, mas também não eram adultos — a menina, alta e magra, com inteligência rara, o garoto, já favorecido com corpo de atleta. Mas na verdade tinham poucos benefícios a contar, sobretudo agora que eram ór­fãos e sozinhos no mundo — tendo apenas um ao outro.

Ninguém na baía tinha ao menos visto a mãe dos gê­meos — a mulher de Dexter. Alguns duvidavam que o ca­samento houvesse mesmo acontecido. Só sabiam que um dia Dexter Tormenta deixou Baía Quarto Crescente com uma idéia maluca de ver alguma coisa do mundo. E um dia — cerca de um ano depois — voltou de coração pesa­do e com dois embrulhos de pano contendo os filhos gê­meos, Grace e Connor.

Polly Pagett, matrona do Orfanato Baía Quarto Cres­cente, franzia os olhos à luz forte para observar melhor o garoto e a garota. Parecia avaliá-los, como um artista que fizesse um esboço. Polly estava preocupada com o dilema de quais camas dar aos recém-chegados. Certo, nenhum arranjo ainda fora discutido, mas sem dúvida não haveria outra opção além do orfanato para aquelas duas crianças, não é? O garoto parecia fortíssimo. Poderia ser posto para trabalhar no porto. E a garota, ainda que mais magra, ti­nha mente aguçada como um alfinete. Sem dúvida, seria boa para ajudar a esticar o orçamento cada vez mais ma­gro do orfanato. Mesmo contra a vontade, um sorriso se esgueirou pelos lábios tensos e ressecados de Polly Pagett.

Lachlan Busby, o gerente do banco, virou a cabeça para longe do belo tributo floral encomendado por sua mulher (e sem dúvida o mais bonito do pátio da igreja) para ob­servar melhor Grace e Connor. Até que ponto o pai havia deixado de prover o futuro dos dois! Se ao menos olhasse as contas bancárias de vez em quando em vez de dedicar tanta atenção aos navios do porto! Existia uma coisa cha­mada confiar demais. Esse era um erro que Lachlan Busby jamais pretendia cometer.

Busby tinha seus próprios planos para os gêmeos. No dia seguinte daria a Grace e a Connor a notícia — com cal­ma e gentileza, claro — de que não lhes restava nada no mundo. Que as posses de Dexter — seu barco, até mesmo o próprio farol — não pertenciam a eles. O pai não havia deixado nada.

Olhou um momento para a esposa, parada ao lado. Querida Loretta! Podia ver que ela achava impossível afas­tar o olhar dos gêmeos. Fora um golpe cruel para os dois nunca terem tido filhos. Mas agora, pelo visto, as coisas poderiam dar certo. Apertou a mão dela.

Grace e Connor sabiam que estavam sendo observa­dos. Não era novidade. A vida inteira tinham sido assunto para fofocas. Nunca haviam escapado ao drama de sua che­gada a Baía Quarto Crescente. E, enquanto cresciam, os gêmeos com olhos de esmeralda haviam continuado como assunto de boatos e especulações. Existe inveja numa ci­dade pequena como Baía Quarto Crescente, e as pessoas sentiam inveja dos curiosos gêmeos que pareciam mais talentosos do que as outras crianças.

As pessoas achavam difícil deduzir por que o filho do faroleiro era tão melhor nos esportes do que os outros. Quer fosse futebol, basquete ou críquete, ele parecia cor­rer mais depressa e acertar com mais força, mesmo quan­do deixava de aparecer nos treinos do time por semanas seguidas. E a garota provocava igual suspeita — tanto en­tre os professores quanto entre os colegas — com seu co­nhecimento incomum e as estranhas idéias sobre coisas muito impróprias à sua idade e condição de vida.

Dexter Tormenta, segundo os boatos, fora um pai es­tranho para os dois, enchendo a cabeça deles com histórias originais. Outros iam ainda mais longe, sugerindo que ele voltara a Baía Quarto Crescente com a mente partida, além do coração.

Grace e Connor estavam um pouco separados do bom povo de Baía Quarto Crescente. E agora, enquanto a con­gregação cantava um hino sobre a última jornada do faro­leiro até um “porto feliz e novo”, seria possível observar uma pequeníssima nota de discordância no ar quente e estagnado. Ainda que Grace e Connor parecessem cantar com os outros, a canção que entoavam era diferente, algo mais parecido com uma cantiga de marinheiros do que um hino...

 

Vou contar a história dos Vampiratas,

História antiga e verídica.

Sim, vou cantar sobre um velho navio

Com tripulação maligna e fatídica.

 

                               O visitante intruso

Era o dia seguinte ao enterro, e os gêmeos haviam subido à sala da lâmpada no topo do farol. Abaixo deles a baía brilhava ao sol do meio-dia. Pequenas embarcações à vela entravam e saíam do porto. Dessa altura pareciam peque­nas plumas roçando as águas azuis.

Connor e Grace sempre haviam gostado daquela sala, assim como o pai. Era um local para ir e pensar; para se distanciar de Baía Quarto Crescente e vê-la como realmente era — um minúsculo retalho de terra atulhado com casas demais, equilibrando-se no penhasco. Nos dias que se se­guiram à morte do pai, a sala da lâmpada assumiu um sig­nificado extra para os gêmeos. Dexter Tormenta havia passado tanto tempo na sala que era impossível para os gêmeos entrar ali sem se sentirem próximos dele.

Mesmo agora Grace podia ver o pai sentado diante da janela, os olhos fixos no porto abaixo, cantarolando uma velha cantiga de marinheiros. Surpreendeu-se cantando também.

Uma garrafa térmica com chá de eucalipto quente es­taria ao lado e, era quase certo, um de seus empoeirados livros de poemas. Quando ela entrava, ele se virava e sorria.

— Olá, olá, tem alguém em casa?

O sotaque característico de Lachlan Busby sinalizou um invasor que não era bem-vindo. Connor e Grace deram as costas para a janela enquanto o gerente de banco, com a cara vermelha, aparecia no topo da escada.

— Bom, devo dizer que, obviamente, não estou tão em forma quanto gostaria de pensar! Seu pai realmente subia e descia essa escada todos os dias?

Connor ficou quieto. Não tinha vontade de conversar com Lachlan Busby. Grace simplesmente assentiu com edu­cação e esperou que o gerente recuperasse o fôlego.

— Gostaria de um pouco d’água, sr. Busby? — pergun­tou enfim. Em seguida serviu um copo e entregou nas mãos úmidas do gerente.

— Obrigado, muitíssimo obrigado — disse ele. — Será que escutei vocês cantando alguma coisa agorinha mesmo? Canção estranha. Não entendi direito as palavras. Adora­ria ouvir, se vocês quisessem cantar de novo.

Connor balançou a cabeça e Grace concluiu que era melhor ter cautela. Sem dúvida, Lachlan Busby não era um homem que subiria trezentos e vinte degraus apenas para uma visita social.

— É uma velha canção de marinheiros que nosso pai costumava cantar — explicou educadamente.

— Canção de marinheiros, hein?

— Ele cantava para nos fazer dormir quando éramos pequenos.

— Uma cantiga de ninar, então, uma canção bonita para acalmar as coisas?

Grace deu um riso suave.

— Não exatamente. De fato é sobre dor, morte e coi­sas horríveis.

O banqueiro pareceu alarmado.

— O objetivo, sr. Busby, é lembrar que, por pior que a vida possa parecer, as coisas podem ficar muito, muito piores.

— Ah, acho que entendo, srta. Tormenta. E, bem, devo dizer que estou impressionado com seu... estoicismo na situação atual.

Grace tentou sorrir, mas a expressão saiu mais como uma careta. Connor olhou para Lachlan Busby com ódio sem disfarces. Também estava tentando se lembrar do que significava estoicismo.

— Vocês dois tiveram uma perda que nenhuma criança, nenhuma pessoa de sua idade, deveria ter de enfrentar — continuou Lachlan Busby. — E agora estão sem os pais, sem rendimentos e sem casa!

— Nós temos uma casa — reagiu Connor, rompendo seu silêncio. — O senhor está nela.

— Meu caro garoto — disse Lachlan Busby estenden­do a mão paternal para apertar o ombro de Connor, de­pois decidindo não fazê-lo. — Se ao menos esta ainda fosse sua casa! Mas, sem querer pôr um infortúnio sobre o ou­tro, é meu triste dever informar que seu pai morreu com muitas dívidas. Agora este farol é propriedade do Banco Cooperativo Baía Quarto Crescente.

Grace franziu a testa. Tinha suspeitado disso, mas de algum modo ouvir as palavras tornou seu medo mais tangível.

— Então vamos morar no nosso barco — respondeu Connor.

— Agora também é propriedade do banco, infelizmen­te — disse Lachlan Busby, com os olhos tristes e baixos.

— Seu banco — disse Grace.

— De fato — assentiu Lachlan Busby.

— O que mais tem a nos dizer, sr. Busby? — Grace percebeu que era melhor ouvir o pior e acabar com aquilo.

Lachlan Busby sorriu, os dentes brancos perfeitos bri­lhando ao sol.

— Não estou aqui para lhes dizer nada, meus queri­dos, só para fazer uma oferta. É verdade que, a partir des­te momento, vocês não têm nada e ninguém no mundo. Mas eu tenho muitas coisas. Tenho uma bela casa, uma empresa próspera e a esposa mais maravilhosa que um ho­mem poderia desejar. E no entanto a tragédia de nossa vida é que não fomos abençoados com...

— Filhos — interrompeu Grace. De repente tudo fi­cou horrivelmente claro. — Vocês não têm filhos e nós não temos pais.

— Se fossem morar conosco teriam toda a vantagem proporcionada por ser um Busby nesta cidade.

— Prefiro morrer — disse Connor com os olhos cha­mejantes.

Lachlan Busby se virou para Grace.

— Você parece mais racional do que seu irmão, queri­da. Diga o que você acha de minha pequena proposta.

Grace se obrigou a sorrir, mesmo sentindo-se enjoada por dentro.

— É muita, muita gentileza, sr. Busby. — A bile subiu em sua garganta e ela lutou para engoli-la de volta. — Mas meu irmão e eu não precisamos de novos pais. É muita generosidade oferecer sua casa, realmente, mas vamos nos virar muito bem sozinhos.

Lachlan Busby parou de sorrir.

— Vocês não vão se virar muito bem. São apenas crian­ças. Não podem morar aqui sozinhos. Na verdade, não podem morar aqui. No fim da semana chegará o novo fa­roleiro e vocês terão de fazer as malas e sair.

Lachlan Busby se levantou. Virou-se para Grace uma última vez antes de partir.

— Você é uma garota inteligente. Não se precipite em recusar a oferta. Outros dariam os olhos por essa oportu­nidade.

Quando o visitante intruso desapareceu escada abaixo, Grace passou o braço pelo pescoço do irmão e enterrou o rosto em seu ombro.

— O que vamos fazer? — perguntou.

— Você vai pensar em alguma coisa. Você sempre pensa.

— Estou ficando sem idéias.

— Não importa o quê vamos fazer, desde que esteja­mos juntos.

Grace confirmou com a cabeça. Começou a cantar baixinho.

 

É melhor ser boazinha, criança — boa como ouro,

Tão boa que nem posso contar.

Senão te entrego aos Vampiratas

E te mando para o mar.

 

Connor se lembrou do pai abraçando-os, olhando o ocea­no. Ainda que as palavras fossem ameaçadoras, lançando arrepios pela coluna, havia algo atraente na idéia de nave­gar pela noite. Agora mais do que nunca.

Abraçou Grace com mais força e os dois pousaram o olhar nas águas brilhantes da baía. Por piores que pareces­se, tudo daria certo, as coisas não poderiam piorar.

 

                                     As coisas pioram

Baía Quarto Crescente era uma cidade pobre, mas, se fos­se possível vender fofocas, o lugar seria o centro financeiro do mundo. E naquele dia, no mercado do porto, as fofocas tinham apenas um tema — a oferta feita por Lachlan Busby aos gêmeos e o modo como Connor e Grace o tinham mandado embora de mãos abanando.

Este último acontecimento apenas confirmou a crença popular no terrível orgulho e na falta de sociabilidade dos gêmeos. Ninguém na baía podia oferecer aos gêmeos uma segunda chance melhor do que os Busby.

Por mais estranho que possa parecer, não houve um úni­co gesto de solidariedade à estranha dupla, que sempre fora desajustada mas agora parecia ter-se recolhido totalmente no farol que logo deixaria de ser seu lar.

Havia apenas uma pessoa, além dos Busby, que ainda cogitava oferecer abrigo aos gêmeos Tormenta. Agora mesmo ela estava virando lençóis sujos pelo avesso, para fazer duas camas para eles, e esvaziando um pequeno ar­mário torto para guardar seus pertences. Enquanto pinga­va uma gota de óleo na dobradiça que rangia, Polly Pagett sorriu. Dentro de vinte e quatro horas os gêmeos passariam pelo alto portão verde e entrariam em seus domínios. Ti­nham ficado sem opção.

 

Na sala da lâmpada, Grace e Connor olhavam o formiguei­ro de pessoas lá embaixo.

— O tempo está acabando — disse Grace.

Connor não respondeu.

— O que vamos fazer? Amanhã à noite o banco exe­cuta a hipoteca de papai e toma o farol.

Connor não sabia o que significava “executa a hipoteca”, mas entendeu o sentido geral. Dentro de vinte e qua­tro horas, mais ou menos, ele e Grace estariam na rua, ou dormindo no Orfanato Baía Quarto Crescente. Nenhuma das duas perspectivas era agradável.

— Talvez a gente devesse reconsiderar — disse Grace finalmente.

Connor virou o rosto para ela e rompeu seu silêncio.

— Você imagina como seria nossa vida com os Busby? Eles não querem filhos, querem bichos de estimação!

Grace confirmou com a cabeça. Estremeceu. Ela e Connor sempre haviam sido livres para fazer o que quises­sem, ir aonde quisessem, pensar o que quisessem. O pai lhes dera isso. Era um legado rico e raro, que eles não po­diam trair. Morar na propriedade luxuosa e sufocante dos Busby seria uma traição completa a tudo que o pai havia defendido, tudo em que havia acreditado.

— Por que não podemos simplesmente ficar aqui e trabalhar no farol, como papai? — perguntou Connor, incapaz de ver além da própria frustração.

— Você ouviu o sr. Busby. Ele disse que já contratou um novo faroleiro. — Grace sentia que as opções estavam diminuindo. — Além disso, ele provavelmente diria que é um trabalho inadequado para duas crianças.

— Crianças! — Connor disse a palavra com raiva.

— Eu sei. Eu sei. Ele finge que está se preocupando, mas ou a gente concorda com os planos dele ou esquece.

 

No dia seguinte Grace estava fazendo o café-da-manhã quan­do ouviu um envelope grande e grosso passar pela caixa de correspondência. Pondo o bule de café de lado, pegou o envelope que estava endereçado numa letra rabiscada.

 

Srta. Grace Tormenta e Jovem Sr. Connor Tormenta.

 

Grace abriu o envelope e desdobrou uma única folha gros­sa. Ao ver o nome no fim, franziu a testa e começou a ler.

 

Meus caros Grace e Connor,

Hoje é o último dia de sua antiga vida. A meia-noite o novo faroleiro receberá as chaves do farol e assumirá a incumbência de acender a lâmpada e vigiar o porto abaixo. Como costumava dizer meu pai, há um cerne de bondade na noz do infortúnio — só precisamos morder com força suficiente para encontrá-lo. Para vocês, ca­ras crianças, não será muito difícil enxergar o bem que está em seu caminho. Amanhã marca o PRIMEIRO dia de sua nova vida. Vocês estarão livres do fardo que seu pai carregou por todos esses anos. Desçam do farol. Venham e aceitem uma nova vida despreocupada, como a que crianças de sua idade devem desfrutar. Alguns dizem que sou um homem orgulhoso, mas não sou orgulhoso demais para lhes oferecer um lugar na minha família PELA ÚLTIMA VEZ.

O que dizem? Pensando bem, que outra opção lhes resta? Minha esposa e eu lhes daremos tudo que vocês podem esperar desta vida. É só pedir e será seu. En­contrem-se comigo à meia-noite na porta do farol. Ar­rumem apenas uma mala de lembranças — porque logo estaremos criando novas lembranças, lembranças me­lhores, como uma FAMÍLIA de verdade!

De braços abertos,

Lachlan Busby, o “papai”!

 

Grace largou a carta no chão, horrorizada, e ficou imóvel, sentindo a maré do medo finalmente cobri-la.

— O que é? — perguntou Connor entrando no cômo­do com uma bola de basquete. Ao ver a expressão da irmã, largou a bola, e cada quicar parecia um eco do anterior, até a bola rolar e parar no canto.

Pegou a carta e leu, absorvendo cada ameaça coberta de açúcar. Por fim pegou o papel e rasgou, espalhando os pedaços no chão como confete.

— É um belo gesto, Connor, mas não muda nada — disse Grace. — Nós ficamos sem opções e agora estamos sem tempo.

Connor olhou nos olhos da irmã e pôs as mãos nos ombros dela. Sorriu e balançou a cabeça.

— Pelo contrário, Grace. Você pode ter ficado sem idéias. Mas eu resolvi tudo. Agora vamos comer torrada com creme de amendoim e eu digo exatamente o que va­mos fazer!

 

                               Inferno ou águas profundas

Menos de uma hora depois os gêmeos estavam junto ao portão do Orfanato Baía Quarto Crescente. Cada um ha­via arrumado apenas uma pequena bolsa com pertences.

Polly Pagett os viu da janela do escritório. Deu um ace­nozinho através do vidro rachado e os chamou.

Os gêmeos acenaram de volta mas não entraram, e um instante depois haviam sumido. Confusa, a mulherzinha abriu a porta empenada e saiu ao sol forte.

Quando chegou ao portão, franzindo os olhos por causa da luz, viu Connor e Grace indo em direção à rua do porto e ao mar.

— Voltem, voltem! — gritou. — Este é o seu lar!

— Nem pense nisso! — gritou Connor de volta, por cima do ombro.

— Muito bem — disse Grace apertando a mão do irmão.

 

Ao sol da manhã, a residência dos Busby brilhava como um castelo de contos de fada.

— Aquela será minha ala — disse Connor apontando à distância.

— E aquela será a minha — respondeu Grace.

— Vou convencer o sr. Busby a deixar que eu dirija seus carros esporte.

— E eu vou encher a piscina com rosas, só porque posso.

Os dois riram e por um momento não viram Loreta Busby flanando por seu jardim em estilo Tudor, segurando uma tesoura de poda.

Mas ela havia notado os dois.

— Vocês vieram! — gritou a mulher. — Vieram ce­do! — Largando a tesoura no gramado, correu para eles, bamboleando como uma geléia em camadas de chiffon cor-de-rosa.

— Hora de sair daqui! — disse Connor. E, segurando a mão da irmã, correu.

 

Os gêmeos só pararam de correr quando chegaram ao porto. O lugar estava zumbindo de atividade, como sem­pre, numa manhã tão bela. Os pescadores já haviam retor­nado com os peixes. No molhe, o processo de separação havia começado. Jogavam peixe no ar como malabaristas, para cá um atum, para lá um vermelho, para ali um ba­calhau. Mais além da área de separação, o molhe estava atulhado com armadilhas de lagostas, recém-saídas do ocea­no. Dentro das gaiolas, as criaturas roxas ainda se moviam como se procurassem um modo de escapar.

— Certo — disse Connor. — Já nos despedimos. Não resta muito tempo.

Grace olhou pela última vez ao redor, depois assentiu. Para além do molhe dos pescadores, o porto dava lu­gar aos ancoradouros de barcos particulares. À distância, o iate palaciano de Lachlan Busby brilhava ao sol. Fazia com que os vizinhos parecessem anões e os deixava à sombra.

O barco de Dexter Tormenta estava ancorado entre as embarcações menores. Era um veleiro simples, feito ao velho estilo, dentro do qual os gêmeos haviam passado muitas horas felizes com o pai. Grace e Connor correram pelo cais de madeira que levava até ele.

— Aqui está — disse Connor. Em seguida estendeu a mão e tocou a lateral do barco, os dedos passando pelo nome: Dama da Louisiana.

— Temos coragem para isso? — perguntou ele.

— Temos, sim.

Nesse momento o sol foi bloqueado por uma nuvem que passava. Uma brisa surpreendentemente fria passou pelo corpo de Grace e ela estremeceu devido à súbita queda de temperatura.

A presença dos gêmeos no cais começava a provocar comentários. Pessoas paravam para olhar e sussurrar. O que Grace e Connor estavam fazendo ali? Não deveriam estar juntando seus pertences e se preparando para entregar o farol? O barco não pertencia mais a eles, como estava claro pela placa de madeira colocada às pressas a bordo: “Propriedade do Banco Cooperativo de Baía Quarto Crescente.”

— Viemos nos despedir do barco do nosso pai — gri­tou Grace.

Ouviram-se ruídos de compaixão.

— Será que poderíamos ficar um instante a sós? — perguntou Connor, baixando a cabeça.

As pessoas se afastaram, com os sussurros transforma­dos em sibilos indecifráveis. Logo foram distraídas pela chegada de duas mulheres sem fôlego, claramente per­turbadas.

Num movimento rápido e ágil, Grace pulou no barco enquanto Connor desenrolava as cordas que o amarravam ao cais.

— Parem os dois! — gritou Polly Pagett.

— Agarrem os dois! — berrou Loretta Busby.

Quando Connor saltou a bordo, Grace olhou para as nuvens baixas se reunindo no alto e sentiu a brisa passar pelos cabelos.

— É um vento de popa, força dois, talvez três — dis­se, enquanto Connor passava por ela.

— Içar vela mestra — disse ele. A vela se abriu, enchen­do-se com o vento que iria empurrá-los para longe.

— Desamarrar proa — gritou Grace, desenrolando a corda.

— Desamarrar popa — gritou Connor. — E vamos nós!

Libertado das amarras, o barco deslizou facilmente para longe do cais. Enquanto Connor soltava aos poucos a retranca, a vela mestra inflou, agradecida com o vento extra, e o barco rapidamente ganhou velocidade.

— Adeus, Baía Quarto Crescente — gritou Connor.

Olhando de volta para o farol, poderia jurar ter visto o pai lá na sala da lâmpada, acenando para eles. Fechou os olhos, mas, quando abriu de novo, a imagem sumira. Suspirou.

— Adeus, Baía Quarto Crescente — repetiu Grace. — Ah, Connor, o que fizemos? Precisamos de comida! Preci­samos de dinheiro. Aonde vamos?

— Eu já disse, Grace, temos tempo para descobrir. O que importa é irmos embora daqui o mais rápido possível. E ficarmos juntos.

Estabeleceram o rumo do barco nas águas escuras fora da baía. Os gêmeos olhavam o futuro cheios de esperança. Enquanto o veleiro ganhava mais velocidade, Connor notou a placa de madeira ainda na proa.

— Propriedade do Banco Cooperativo Baía Quarto Crescente? Não mais!

Pegou a placa e a jogou, como um frisbee, no meio do oceano. Ela afundou sem deixar vestígios.

 

No porto, Polly Pagett e Loretta Busby descobriram que o infortúnio compartilhado pode ser um elo poderoso.

— Pronto, pronto, Loretta. Você não iria querer aque­las crianças bagunceiras na sua casa linda.

— Não, Polly, e elas iriam destruir seu lindo orfanato.

— Já vão tarde! Que os tubarões fiquem com eles.

— Não, Loretta, tubarões, não. Que os piratas fiquem com eles!

— Aaah, sim. Os piratas! Que os piratas fiquem com aqueles monstros ingratos. — Ela passou o braço pelo de Polly.

— Por que não vem à minha casa para o almoço? Te­remos cauda de lagosta agridoce. Lachlan virá do banco. Vai adorar vê-la.

Polly riu de orelha a orelha. Seu dia certamente havia passado de azedo a doce. E coisa melhor ainda viria.

— Isso foi uma gota de chuva? — perguntou Loretta.

— Ah, sim, acho que foi. E veja como o céu escureceu!

— Uma tempestade está chegando — disse Loreta. — E aquelas pobres crianças, sozinhas no mar.

Nenhuma das duas conseguiu conter a gargalhada en­quanto corriam em busca de abrigo contra o mau tempo, que piorava rapidamente.

 

                                     O fim foi viagem

A tempestade pareceu vir de lugar nenhum. Caiu em cima de Grace e Connor no momento em que estavam mais vulneráveis, depois de sair do porto, em mar aberto.

Não lhes deu chance.

O céu mudou de cor tão depressa que foi como se al­guém tivesse arrancado um pedaço de papel de parede azul, revelando um enorme buraco negro. O calor do sol desa­pareceu num instante e a chuva caiu em pesados projéteis de água que queimavam e congelavam os dois ao mesmo tempo.

A água sacudia embaixo deles, como um cavalo chucro tentando derrubar o cavaleiro. O barco se agarrava às on­das, e Grace e Connor se agarravam ao barco, com as amar­ras de segurança oferecendo pouca tranqüilidade. De que adiantava estar amarrado a um barco quando a qualquer momento o mar poderia parti-lo ao meio ou esmagá-lo em seu punho áspero e salgado?

— Não deveríamos ter feito isso — gritou Connor. — Foi uma idéia idiota.

— Não — gritou Grace de volta, acima do rugido da água. — Que opção nós tínhamos?

— Vamos morrer!

— Ainda não morremos!

Aquilo que rolava nas bochechas de Connor eram lágrimas ou a água salgada ardendo nos olhos? Grace des­cobriu que era impossível saber. Pensou no pai. O que ele teria feito?

— Vou contar a história dos Vampiratas — falou co­rajosamente. — História antiga e verídica.

Connor agarrou aquela migalha de consolo e se juntou a ela. Os dois ainda estavam cantando quando o barco gi­rou e a amurada se partiu ao meio.

Os gêmeos foram separados e jogados para baixo, na água gélida e revolta.

 

Cheio de uma estranha calma, Connor ficou olhando pe­daços do barco afundarem passando por ele, descendo na água mais escura embaixo. Um estranho catálogo de co­pos, talheres e livros passou em redemoinho. Estendeu a mão para eles e os viu ir dançando para longe. Sorriu. Abaixo da superfície havia uma calma, um porto seguro da tempestade que rugia em cima. Era tentador ficar ali e afundar com os outros pedaços partidos de seu mundo. Poderia ser um bom modo de morrer.

Não, precisava encontrar Grace! Livrou-se do transe e com cada fibra do corpo abriu caminho subindo pela água. Era difícil e doloroso, e era necessário todo o esforço para não se soltar, não se abrir à água e afundar de volta na escuridão.

Mas Connor era forte e agora usara toda a força para lutar contra a chuva de destroços vindo para ele enquanto se aproximava dos restos do barco. Rompeu a superfície, com as ondas o açoitando o tempo todo. Engolindo a água salgada e com ânsias de vômito, olhou desesperado ao re­dor em busca de algo que boiasse para se agarrar. E procu­rando a irmã.

A salvação de Connor acabou sendo um pedaço de ban­co. Agarrou com força a borda serrilhada, subindo em cima da tábua como se fosse uma prancha de surfe. Foi um es­forço enorme e suas mãos estavam sangrando. A água sal­gada fazia aumentar a dor. Mas Connor encheu os pulmões de ar e percebeu que havia conseguido. Estava vivo.

Mas onde estava Grace?

A tempestade continuava furiosa, mas agora um pou­co mais branda. Connor examinou a água borbulhante, procurando o rosto da irmã em meio aos destroços. Ela não estava ali. Aprendendo a controlar a prancha impro­visada, seguiu pela água, em busca de qualquer sinal dela. Não encontrou.

O mar se acalmou um pouco, mas era cada vez mais difícil enxergar um metro adiante. Connor percebeu que uma névoa estava chegando. Ficou mais densa, envol­vendo-o numa nuvem pessoal. Não! Agora jamais iria encontrá-la. Balançou as mãos ao redor, tentando empur­rar a névoa para longe, mas isso só serviu para desequilibrá-­lo. Baixou as mãos para a tábua e, derrotado, deixou a cabeça pousar na superfície dela. De que adiantava? Se Grace tinha morrido, não havia mais nada para ele. Podia muito bem escorregar da tábua e mergulhar de novo. Pelo menos os dois estariam juntos.

 

Connor perdeu a noção de quanto tempo havia ficado à deriva. Pareceu uma eternidade, mas podiam ter sido ape­nas alguns segundos, estendidos até ficarem impossíveis de reconhecer em meio ao desespero e à fadiga. Agora a né­voa estava diminuindo. Através dela pôde ver a sombra de um navio. Era fraca, mas não podia deixar de identificar a silhueta. Parecia um velho galeão. Só tinha visto essas coi­sas em livros e num protótipo no Museu Marítimo. Devia estar imaginando — alucinando, enquanto a morte se apro­ximava.

Mas não. Era um navio. Enquanto a névoa começava a se dissipar, pôde vê-lo com clareza — girando na água. Por que estaria mudando de direção no meio do oceano? A não ser que fosse parar por algum motivo. Teria vindo resgatá-lo?

— Aqui! Aqui!

O navio continuou a girar. Mas não estava vindo para ele. Não podia ver ninguém a bordo. Ninguém o tinha visto.

A névoa havia chegado ao nível do convés. Quando o navio completou o giro, uma luz dourada e suave caiu so­bre a figura de proa — uma jovem. Se ao menos fosse uma mulher de verdade em vez de uma escultura pintada! Seus olhos penetrantes pareciam observá-lo, mas, claro, não passavam de tinta em madeira.

Connor não sabia o que fazer à medida que o navio começava a se afastar. Enquanto ele ia para longe, o garo­to percebeu velas muito diferentes de quaisquer outras que já vira. Pareciam asas, brilhando com finos veios de luz.

— Ei! — gritou de novo. — Socorro!

Mas sua voz estava débil e o navio já ia muito longe. Só conseguia vislumbrar as silhuetas das estranhas velas, esgarçadas. Pareciam balançar suavemente enquanto o na­vio prosseguia. Era como se, em vez de navegar no oceano agitado, o navio estivesse apenas roçando a superfície, sem se deixar afetar pelas fortes correntes. Sua mente o devia estar enganando.

Não fazia sentido. Seu corpo estava insensível e pesa­do, e agora parecia que a mente também perdia a luta. Grace havia morrido. O navio que poderia tê-lo resgatado estava indo embora. A única opção era desistir e se juntar à irmã em sua sepultura de água.

O devaneio foi rompido por uma voz ao lado.

— Aqui, agarre meu braço. Agora você está em se­gurança.

 

                                 Piratas

Connor ficara tão hipnotizado pelo misterioso galeão que nem tinha visto o pequeno escaler vindo em sua direção. Foi puxado para dentro com firmeza, caindo no piso do barquinho. Agora que seu gigantesco esforço havia acaba­do, ele se sentiu absolutamente exausto.

— Fique aí deitado e respire do melhor modo que puder. Você está meio afogado, mas vivo.

A voz da pessoa que o havia resgatado era suave mas incisiva.

Connor podia enxergar um par de botas estreitas e calças justas acima, mas, quando tentou levantar a cabeça para ver mais, uma súbita dor invadiu seu pescoço.

— Fique quieto, garoto. Nada de movimentos bruscos. Seus ossos levaram uma surra.

Era a voz de uma mulher jovem.

— Quem é você? Para onde está me levando?

Mesmo contra o aviso, ele se levantou um pouco para vê-la melhor. Olhos penetrantes, castanhos, repuxados, o encaravam de volta. O cabelo comprido e preto era repu­xado para longe do rosto da mulher, preso, com tiras de couro, num rabo-de-cavalo apertado.

— Meu nome é Cheng Li — disse ela.

Os olhos de Connor observaram a estranha roupa de Cheng Li. Por cima de uma malha fina e escura ela usava um gibão de couro. Num dos braços havia uma faixa vermelha e roxa, com uma pedra escura. Parecia a única peça de enfeite no uniforme totalmente utilitário. Na cintura havia um pesa­do cinto, no qual estava presa uma bainha de espada, curva.

Os olhos de Connor se arregalaram com a compreensão.

— Você é uma... pirata?

— Ah, então pelo menos a mente está intacta. Sim, ga­roto, sou pirata. — Ela apontou para a faixa no braço, como se isso explicasse. — Subcapitã do capitão Molucco Wrathe.

— Aonde está me levando?

— Ao nosso navio, claro. O Diablo.

Connor se deitou de novo e ficou olhando-a remar. Os movimentos eram precisos e eficientes. Cheng Li era pe­quena, pouco maior que Grace, mas sem dúvida era forte.

— Grace! — Ele não conseguiu se conter e disse o no­me em voz alta.

— O quê, garoto?

— Minha irmã!

— Nós estamos aqui, garoto. Guarde a história da fa­mília para depois.

Connor abriu a boca para protestar, mas viu que tinham parado ao lado de um navio. Seria o que ele tinha visto antes? Levantou a cabeça, tentando descobrir se aquele era o navio com velas que pareciam asas.

Cheng Li havia puxado os remos para dentro do escaler e estava pedindo ajuda com sinais.

— Bartholomew, seu palerma preguiçoso — gritou ela. — Venha aqui embaixo me ajudar!

Connor soltou um suspiro débil. Pela primeira vez per­cebeu que estava em segurança. Pelo menos por enquanto. Cedeu à exaustão e fechou os olhos.

A próxima coisa que notou foi que o escaler flutuava. Sentiu como se estivesse voando, mas percebeu que o bar­quinho estava sendo guinchado para o convés de um grande navio. Cheng Li saltou do escaler antes que ele fosse pou­sado e não perdeu tempo, disparando comandos. Agora dois piratas — um homem e uma mulher — levantavam Connor gentilmente do escaler e o levavam atrás de Cheng Li. O trabalho deles não foi facilitado pela multidão que se juntou para ver o que estava acontecendo.

— Abram caminho, abram caminho, idiotas — gritou Cheng Li.

Logo a turba se dividiu ao escutar suas palavras.

— Deitem-no aqui.

Os piratas o deitaram no que parecia uma pilha de pa­nos de vela e cordas. Não era a cama mais confortável do mundo, mas Connor sentiu-se grato o bastante por não estar mais nas águas geladas. Finalmente podia descansar.

— Não feche os olhos — disse Cheng Li com rispi­dez. — Por enquanto, não. Tente ficar acordado só mais um pouco.

Foi um esforço enorme. Estava cansado demais. Mas queria obedecer. Girou a cabeça, olhando de novo para cima, procurando as velas esfarrapadas. Mas só conseguia ver pessoas. Piratas. Todos apinhados ao redor, observan­do-o com interesse. Olhou de volta — percebendo seus uni­formes e as espadas.

Houve um burburinho crescente da turba até que Cheng Li ergueu o braço, com a jóia escura da braçadeira brilhan­do. Imediatamente o ruído foi parando.

— Acabou o espetáculo, pessoal. Vamos voltar ao tra­balho, certo? As velas sofreram um bocado com a tempes­tade. De Cloux, organize os reparos no castelo de proa. Lukas, Javier, Antonio — agora que o pior da tempestade passou, podem continuar limpando os canhões. Não me importa se está ficando escuro — tem de ser feito agora!

Connor olhou ao redor. Estava realmente num navio pirata. Sentiu um tremor de medo. Seria esse o fim do seu sofrimento ou o início de outro? Um sofrimento para o qual sabia que não lhe restavam forças.

Enquanto a multidão se dispersava para cumprir suas tarefas, apenas Cheng Li, Bartholomew e sua colega pira­ta permaneceram. A mulher pirata era mais alta e visivel­mente mais atlética do que Cheng Li. Usava um lenço em volta do cabelo ruivo, curto.

— Devo chamar o capitão Wrathe, senhora? — per­guntou a Cheng Li.

— Sim, Cate, acho bom.

Cheng Li virou o olhar para Connor.

— Como está agora, garoto?

— Bem — disse ele. Mas percebeu que não estava. Nunca mais ficaria bem.

— Você parece perturbado, garoto. O que há?

— É minha irmã. Grace.

— O que houve com ela?

— Ainda está por aí. Na tempestade.

— Tarde demais, garoto. Ela se foi.

Surgiram lágrimas quentes em seus olhos. Tudo virou um borrão.

— Por favor, vocês me encontraram. Por favor, voltem para pegá-la.

— Sinto muito, garoto. Não havia nenhum sinal dela.

— Mas...

— A noite está chegando depressa. Não podemos fa­zer nada.

Connor sentiu que sua cabeça estava a ponto de explodir. Bem no fundo podia sentir um terrível rugido começando. Vinha bem do seu centro, inundando cada veia, invadindo braços e pernas até que cada fibra do ser estava gritando.

— NÃO!

— Calma, garoto. Agradeça pela sua vida. Honre sua irmã, como ela desejaria.

A voz de Cheng Li era suave, mas firme. Acalmou-o de algum modo, ainda que não fossem as palavras que ele queria ouvir. Mas o que ele queria ouvir? Que ela pegaria o escaler e reviraria as águas geladas em busca de Grace? Sabia, bem no fundo, que seria uma tarefa inútil. Simples­mente não havia como Grace ter sobrevivido. Ele sempre fora mais forte, fisicamente. Anos praticando esportes lhe deram a resistência vital necessária para ficar na água até o resgate. Grace era mais inteligente. Grace tinha sido mais inteligente, corrigiu-se. Não havia mais tempo presente para Grace. Ela fora mais inteligente do que ele; mas não era fisicamente forte. E agora isso lhe havia custado a vida.

— Afogar-se — disse Cheng Li. — Afogar-se não é um modo muito ruim de morrer.

— Como você sabe?

— Os piratas sabem. Nós vivemos a vida na água. Eu mesma cheguei perto da morte, uma vez. Foi parecido com dormir, uma liberação gradual. Afogar-se é um modo sua­ve de morrer. Sua irmã não deve ter sentido muita dor.

De novo as palavras eram brutais, mas ele sentiu algum consolo ao ouvi-las. Pareciam verdadeiras. Lembrou-se da sensação de queda, vendo seus pertences cascateando ao redor. Não havia sido totalmente desagradável. Tinha sentido uma certa calma. Talvez fosse sua morte chaman­do-o, mas de algum modo ele escapara das garras dela.

— Houve um navio — disse ele, subitamente compe­lido a contar à srta. Li o que vira. — Outro navio, antes da senhora me resgatar. Saiu navegando da névoa. Um velho galeão. Muito antigo...

Suas palavras destrancaram outras lembranças bem no fundo, mas não conseguia que elas fizessem sentido.

— O navio girou. Mudou de direção no meio do ocea­no. Como se tivesse parado por algum motivo. Achei que fossem me resgatar. Gritei. Mas ninguém me ouviu. Nin­guém me viu.

Então um novo pensamento lhe ocorreu, explodindo no cérebro como fogos de artifício.

— Talvez ele já tivesse feito um resgate! Talvez tivesse resgatado Grace! O que acha?

Virou-se para Cheng Li. Os olhos escuros dela o obser­vavam atentamente.

— A névoa começou a subir. Vi a figura de proa do navio, uma linda mulher. Era quase como se ela estivesse me olhando. E então o navio enfunou as velas. Eram velas incríveis. Mais parecidas com asas...

Por fim algo estalou dentro de sua mente perturbada.

Velas rotas que balançam como asas a voar.

Quis dar um grito e um soco no ar. Mais uma vez cap­tou o olhar de Cheng Li. Mais uma vez ele era impossível de ser decifrado.

— Não vê? — disse ele, rindo de júbilo. — O navio resgatou Grace! Ela não se afogou. Ela foi resgatada por um navio antigo que navega por toda a eternidade. Foi resgatada pelo navio Vampirata!

Connor havia se exaurido e agora as pálpebras pesa­das se fecharam. No entanto, na escuridão de sua mente, podia ver tudo com perfeita clareza. Lá estava aquele na­vio outra vez, afastando-se à luz dourada. A figura de proa sorria docemente e as velas rotas balançavam com suavi­dade na noite que vinha chegando. E junto ao timão, sozi­nha mas sem medo, estava Grace.

 

                             Lorcan Furey

Quando Grace acordou, a primeira coisa que viu foi o céu. Céu azul ofuscante sobre ela. Então aconteceu uma coisa estranha. O azul penetrante se contraiu, depois começou a se esticar e se separar em dois círculos azuis. Enquanto seus sentidos começavam a se ajustar, ela percebeu que não estivera olhando o céu, e sim um par de olhos azuis pro­fundos.

Os olhos de Connor eram verdes, como os dela. Aque­les não eram conhecidos. Olhavam-na com intensidade.

Quando eles se afastaram um pouco mais, ela viu que pertenciam a um rapaz. Parecia mais velho do que ela e Connor — uns 17 ou 18 anos. Tinha cabelos pretos com­pridos e sobrancelhas combinando. Olhando-a, o rapaz franziu a testa.

— Você vai me meter numa encrenca — disse ele.

As palavras fizeram tão pouco sentido para ela quanto todo o resto, mas Grace reconheceu um forte sotaque ir­landês. Ele se inclinou à frente e afastou os cabelos dela de cima dos olhos. Usava um anel Claddagh no dedo. Ela sem­pre quisera um anel daqueles, com a figura do coração apertado entre duas mãos com uma coroa em cima. Mas este era ligeiramente diferente. As mãos não seguravam um coração e sim um crânio.

— Quem é você? — perguntou tremendo. — Onde estou?

O rapaz franziu a testa de novo e balançou a cabeça. Será que não conseguia entendê-la? Mas havia falado in­glês com ela, não havia?

— Quem é você? — perguntou ela de novo. Dessa vez escutou como sua voz tinha saído. “Qqqevvvvcêêêê.” Sua respiração estava fraca, a boca e a língua, ressecadas.

— Aqui. Beba.

Ele pegou um odre no bolso e pingou água suavemente entre seus lábios. Era boa, mas completamente gelada. Ela separou os lábios e se esforçou ao máximo para receber a água. Demorou um instante até a boca funcionar direito outra vez. Estava tão concentrada em beber que mal no­tou quando o rapaz levantou sua cabeça e pôs o casaco enrolado embaixo dela, como um travesseiro improvi­sado. Mas quando terminou com o gole d’água e deixou a cabeça tombar de volta, sentiu-se mais relaxada do que antes.

A maciez sob a cabeça e o pescoço contrastavam com a superfície dura encostada no resto do corpo. Ela estava deitada num chão de madeira áspera. Girando a cabeça ligeiramente, pôde ver um trecho de piso pintado de ver­melho dos dois lados. Mas, além disso, em todas as dire­ções, sua visão era limitada por uma densa névoa.

Sua cabeça girou de novo na direção do rapaz, cujo rosto parecia estar flutuando na névoa.

— Quem é você? — perguntou de novo.

Dessa vez ele entendeu.

— Meu nome é Lorcan. Lorcan Furey.

— Lorcan — repetiu ela. Nunca tinha ouvido esse nome antes.

— Aqui, beba um pouco mais.

Ele levou o odre aos seus lábios de novo e ela tomou outro gole.

— Onde estou?

O rapaz sorriu.

— Não é óbvio, moça? No mar.

Mesmo não podendo ver além de Lorcan, enquanto ele falava, Grace sentiu o navio sacudir nas ondas e ouviu o estrondo do oceano abaixo.

— Como cheguei aqui?

— Não lembra? Houve uma tempestade.

Quando ele disse a palavra tempestade, todo o corpo de Grace reagiu. De repente estava de volta ao coração da tormenta, o mastro estalando no alto; a água salgada en­charcando seu corpo já totalmente molhado.

— Encontrei você flutuando na água, como um pei­xe — disse Lorcan.

— É. — Agora ela percebeu que ele também estava molhado, o cabelo e a camisa grudados na pele. O rosto era pálido, quase tanto quanto a névoa.

— Encontrei você no último instante — disse Lorcan. — Você estava a caminho de conhecer as sereias.

— E Connor? Onde ele está? Quando posso vê-lo?

Lorcan olhou-a com tristeza. Naquele momento terrí­vel ela entendeu.

— Você só me resgatou.

Ele confirmou com a cabeça.

— Vamos voltar para pegá-lo! Não é tarde demais. Você se lembra de onde me encontrou? Ele deve estar per­to. Você deve ter visto o barco.

Lorcan balançou a cabeça.

— Não havia barco. Só você, debatendo-se nas ondas como um salmão em um rio da Irlanda.

É. Ela se lembrou da sensação na água. Tão fria! Tão debilitante! E então a lembrança foi embora, como um so­nho que termina depressa demais. Tentou desesperada­mente invocá-la de novo, retornar. Sua cabeça doeu com o esforço.

— Um barco não pode desaparecer. Simplesmente não pode.

— Numa tempestade assim, até um navio do tamanho do nosso pode desaparecer. O oceano pode ser um mons­tro maligno quando quer.

— Mas meu irmão, Connor! Nós somos gêmeos. So­mos tudo um para o outro. Não posso continuar a viver sem ele.

Seu coração começou a martelar. Ela sentiu o ritmo crescendo, como uma bomba prestes a explodir dentro do corpo.

— Gêmeos, foi o que você disse?

Os olhos de Lorcan eram intensos.

— Aspirante Furey.

Grace escutou a outra voz, mas não pôde identificar quem estava falando através da névoa. A voz era apenas um sussurro, mas ressoava claramente em sua cabeça.

Lorcan se virou de costas para Grace.

— Sim, capitão.

Houve uma pausa, e Grace ouviu dois passos pesados ecoando nas tábuas do navio.

— Aspirante Furey, você deve entrar. A névoa não pode durar muito mais.

Lorcan parecia em transe. Talvez a água gélida estives­se entorpecendo os ossos dele também. Talvez o esforço de resgatá-la o estivesse esgotando. Como acontecia com ela, a capacidade de Lorcan para ver e falar estava clara­mente perdida.

— Esta é a garota?

A outra voz. Mesmo sendo apenas um sussurro, era ine­gavelmente firme e dominadora. Parecia fluir em cada canto de seu cérebro.

— Sim, capitão — disse Lorcan finalmente. — Estava prestes a se afogar. Diz que tem um irmão gêmeo.

— Um gêmeo.

— Sim — disse Grace. — Meu irmão gêmeo, Connor, está lá, em algum lugar. Por favor, me ajude a encontrá-lo!

— Gêmeos. — De novo o sussurro lentamente se en­raizou em sua cabeça.

Grace queria ver o capitão, mas a névoa era densa de­mais para enxergar além de Lorcan.

— Leve-a para dentro. Para a cabine ao lado da mi­nha. Depressa. Não queremos que os outros saibam disso. Pelo menos por enquanto.

— E Connor? — implorou Grace.

— Leve-a para a cabine ao lado da minha. — O sus­surro era firme como antes. Como se não tivesse escutado seu apelo. Ou como se estivesse ignorando-o.

— E depois? — perguntou Lorcan.

— Depois venha à minha cabine. Não há muito tem­po. Deve escurecer logo, e o Festim começará.

Festim? De que ele estava falando? Iam procurar Connor? Não estava claro.

— A névoa está se dissipando, aspirante Furey. Deve­mos entrar. Não há tempo a perder.

Enquanto o sussurro dele se esvaía, Grace ouviu os pas­sos pesados ecoando à distância. Olhou os olhos azuis de Lorcan.

— Por favor — disse. — Por favor, procure meu irmão. Se ele estiver lá embaixo. A água é tão fria!

Lorcan deu-lhe um sorriso débil.

— Vamos levar você para o calor.

— Mas vocês vão procurá-lo?

— Por enquanto vamos nos preocupar com você.

Ele se abaixou e pegou-a no colo. Enquanto era carre­gada através da névoa, Grace sentiu-se voando entre as nuvens. Ou então se afogando. Queria se soltar e mergu­lhar de novo na água, para procurar Connor. Mas seu cor­po estava tomado por um cansaço que nunca havia sentido antes. Mesmo sendo pouco mais que um adolescente, o aperto de Lorcan era forte.

 

                                 Molucco Wrathe

Connor olhou para o céu que ia escurecendo, tentando desesperadamente ver de novo o outro navio. O navio Vampirata. O navio que levara Grace.

— Ele não vai voltar — disse Cheng Li.

— Como sabe?

— Porque não existe navio Vampirata.

— Mas...

— Chega. — Ela ergueu a mão. — E, por favor, não cante aquela cantiga de novo. É só isso, uma cantiga velha. Uma canção que seu pai cantava, por motivos que não posso imaginar, para ninar você e sua irmã. A idéia de que um navio assim possa existir é simplesmente absurda. In­felizmente, sua irmã se foi. É um golpe terrível, eu sei. Mas é a verdade. Você deve encarar os fatos, garoto.

Mas havia um navio. Ele podia vê-lo novamente — dentro da mente, claro como cristal. Girando no oceano. De novo viu os olhos da linda figura de proa e as velas lu­zidias que pareciam subir e descer como asas enquanto o navio se afastava.

Olhou por cima do ombro e viu Cheng Li dando or­dens a alguns piratas. Com as costas viradas para ele, Connor podia ver que, além do alfanje junto ao quadril, ela possuía mais duas armas penduradas às costas. Ainda que estivessem em duas bainhas de couro, ele não tinha dúvida de que as lâminas eram afiadas e letais como sua língua.

— Abram caminho para o capitão.

O ruído iniciou como um murmúrio, mas logo come­çou a aumentar.

Cheng Li se mostrara inflexível dizendo que ele havia imaginado o navio. Connor acabara de conhecê-la, mas dava para ver que, assim que ela decidia alguma coisa, era o fim do assunto. Mas talvez houvesse outros no navio que acreditassem na sua história — o capitão, por exemplo.

— Abram caminho para o capitão. Abram caminho.

Cheng Li parou de conversar e voltou para perto de Connor. Parecia bastante irritada. Connor sentiu o coração bater forte. De medo? De ansiedade? Que tipo de homem seria necessário para comandar uma turba de piratas?

De repente Connor viu Bartholomew e Cate vindo em sua direção. Acompanhando-os, num passo ligeiramente oscilante, havia um homem de idade indefinida, com cabelos compridos desgrenhados e pequenos óculos redon­dos e azuis. Usava um comprido casaco azul-celeste sobre duas bainhas de prata contendo adagas, e as altas botas de couro pontudas como facas chacoalhavam com esporas de prata. O capitão estava rindo e parecia envolvido em rápidas trocas de pilhérias com vários piratas. Parecia ati­rar insultos por cima dos ombros, mas com um sorriso lar­go que fazia a pele se franzir dos dois lados dos óculos. Deixando ondas de risos atrás, o capitão finalmente veio andando com arrogância até ele. Connor podia ver que o sujeito era amado e respeitado pela tripulação.

— Aqui está ele, capitão — disse Bartholomew antes de ficar de lado, com Cate.

— Ora, ora, ora — disse o capitão levantando os ócu­los. — O que temos aqui? Andou pescando, srta. Li?

O capitão andou ao redor de Connor, sem dizer nada. Connor se maravilhou com as muitas cores do cabelo dele. A princípio havia achado que eram simplesmente tons di­ferentes de castanho, mas não, havia cinza — ou melhor, prateado —, e então, quando a luz bateu num ângulo dife­rente, verde também — como fios de algas. Em meio ao arco-íris distorcido havia dois — não, três — dreadlocks presos com conchas do mar. Era uma aparência incomum, mas ele se portava com tranqüilidade masculina. Apesar de todos os enfeites e do modo meio errático de se mover, dava para ver que o capitão tinha força física, para não mencionar o carisma de um líder natural.

O capitão parou à frente de Connor, examinando suas roupas molhadas. A mão cheia de jóias coçou o queixo barbado.

— Humm, você acaba de sair do oceano, pelo que vejo, mas não é um peixe de água salgada.

Levantou os óculos e pela primeira vez seu olhar se cra­vou direto no rosto de Connor. Os olhos do capitão eram grandes e pintalgados com tantas cores quanto seu cabelo. O olhar era hipnotizante.

— Qual é o seu nome, garoto?

— Connor, Connor Tormenta.

— Tormenta, é? — Ele deu um risinho. — Isso é mui­to bom! Connor Tormenta, que foi trazido a nós numa tem­pestade.

Ele estendeu a mão. Seus dedos tinham tantas safiras bri­lhantes que era um espanto o sujeito conseguir levantá-los.

— Molucco Wrathe, capitão desta corja. Bem-vindo ao meu comando, Connor Tormenta.

Connor segurou a mão dele. O capitão lhe deu um aper­to de mão firme.

— Obrigado, ah... sr. Wrathe.

— Capitão Wrathe — disse ele, mas com um sorriso. — Agora diga, Connor Tormenta, como veio parar aqui?

Connor olhou para Cheng Li. O rosto dela estava fixo numa expressão que era algo entre o tédio e a impaciên­cia. Seus braços estavam apertados com força e as duas bainhas de espadas, às costas, se erguiam como asas escu­ras, prontas para voar.

— Ah, sei que a srta. Li trouxe você a bordo. Mas an­tes disso. O que estava fazendo tão longe nessas águas traiçoeiras?

— Fomos apanhados na tempestade. Eu e minha irmã. Grace... somos gêmeos. Viemos de Baía Quarto Crescente...

Enquanto falava, Connor tentou sustentar o olhar do capitão Wrathe, mas se distraía com o cabelo do sujeito. O vento soprava e uma comprida madeixa escura estava agora pendurada sobre um dos olhos.

— Você não é um tremendo contador de histórias, não é, garoto?

Connor abriu a boca para continuar, mas ao fazer isso a madeixa de cabelo voltou por cima da testa do capitão Wrathe. E então Connor percebeu. Não era uma madeixa. Era uma pequena cobra.

— O que foi? O gato comeu sua língua, garoto?

— Desculpe, capitão Wrathe, mas acho que o senhor tem... uma cobra no cabelo.

Sem dúvida. A criatura quase havia escapado do bolo de cabelo e conchas e estava descendo, passando pela ore­lha do capitão.

— Ah — disse o capitão Wrathe, sorrindo. — Olá, Scrimshaw, veio dizer olá ao sr. Tormenta?

Ele ergueu a mão e a cobra deslizou sobre ela, enrolan­do-se no pulso como um bracelete vivo. Connor ficou olhando, fascinado, enquanto o capitão Wrathe estendia o braço para que Scrimshaw pudesse chegar mais perto. A cobra se levantou para olhar Connor nos olhos. Connor não sabia o que deveria fazer em resposta.

— Diga alô ao subcapitão, garoto! — Molucco Wrathe deu um risinho. — Ah, só estou brincando, srta. Li! É brinca­deirinha. Todos sabemos que você é a segunda no comando.

Connor ficou quieto. Não queria fazer nenhum movi­mento súbito. A cobra era pequena, mas não se parecia com nenhuma espécie que ele reconhecesse. Talvez fosse vene­nosa, e a boca aberta e a língua esticada estavam perto de­mais para que ele se sentisse à vontade.

Por fim o capitão Wrathe moveu o braço, e Connor soltou um pequeno suspiro de alívio quando a cobra foi afastada.

— Certo, Scrimshaw. Já deu uma olhada no sr. Tor­menta, então vamos voltar. — O capitão Wrathe levou a mão à cabeça, e Scrimshaw se enfiou obedientemente na moita de cabelo desgrenhado.

— Bom, onde é que estávamos, moleque? Você ia con­tar sobre o golfo da Lua Nova?

— Ah, Baía Quarto Crescente, capitão. Nós moramos lá. Bem, morávamos. Nosso pai era o faroleiro, mas mor­reu e nós perdemos tudo. Eles iam pôr a gente no orfana­to, ou coisa pior. Tínhamos de ir embora. Por isso zarpamos com o barco do nosso pai. Só queríamos velejar pela cos­ta, mas o tempo mudou. Fomos colhidos pela tempestade.

As palavras de Connor saíram numa torrente.

— O barco emborcou. Fomos jogados no oceano. O barco estava se despedaçando. Nadei com o máximo de força que pude até a superfície, tentando evitar as coisas que caíam em cima de mim. Não consegui ver Grace. Che­guei à superfície. Havia um pedaço de banco flutuando. Procurei por ela. Procurei na água ao redor mas não con­segui ver... não consegui encontrar.

Os olhos de Molucco Wrathe estavam úmidos de lá­grimas. Ele tirou do bolso um enorme lenço rendado para enxugá-los.

— Que história triste, sr. Tormenta! Que história ter­rivelmente triste! Fico feliz porque a srta. Li o encontrou. Você se tornará um membro de nossa tripulação. Precisa­mos de mais jovens.

— Obrigado, capitão Wrathe, mas só quero encontrar minha irmã.

— Sua irmã? — Molucco Wrathe levantou o olhar con­fuso para ele. — Mas achei que você tinha dito que ela havia morrido.

Connor balançou a cabeça, decidido.

— Eu a vi sendo levada para outro navio. A princípio achei que era este...

— Outro navio? Outro navio pirata? Bem, parece que sua história terá um final feliz, afinal de contas. Vamos encontrar esse navio e você vai se reunir à sua irmã.

Connor balançou a cabeça.

— Não era um navio pirata, senhor. Era um navio di­ferente.

Podia sentir o olhar de Cheng Li queimando nele, mas não ousou olhar na direção dela.

— Um navio diferente — repetiu o capitão Wrathe. — Como assim?

— Já ouviu falar dos Vampiratas, capitão?

— Os Vam-pi-ra-tas? Não creio que tenha ouvido, garoto.

— Há uma cantiga, senhor...

— Capitão Wrathe. — A voz de Cheng Li cortou o ar, afiada e poderosa como uma espada.

O capitão Wrathe a ignorou.

— Capitão Wrathe. — Ela não seria impedida facilmente.

— Guarde o seu trovão, srta. Li.

— Mas, capitão Wrathe, o garoto está confuso.

— Tenho certeza de que todos estamos meio confu­sos, srta. Li, mas fiz uma pergunta ao garoto e pretendo ter a resposta.

— O navio Vampirata é um navio escuro que vem na­vegando por toda a eternidade — disse Connor, perce­bendo que talvez não tivesse muito tempo. — A tripulação é de demônios ou, pelo menos, vampiros.

— Que história! — exclamou o capitão Wrathe. — E como tomou conhecimento dela, garoto?

— Meu pai. Meu pai cantava a cantiga de marinhei­ros para a gente.

— Uma cantiga de marinheiros, hein? Adoro uma boa cantiga de marinheiros. Todos adoramos, não é, rapazes?

A turba de piratas gritou aprovando — homens e mu­lheres, todos menos Cheng Li, que parecia irritada e ente­diada. Pelo menos, pensou Connor, agora a raiva dela parecia direcionada contra o capitão Wrathe, não contra ele.

— Bem, vamos ouvir a cantiga — disse o capitão. — Ande, sr. Connor Tormenta. Cante a canção do seu pai e veremos o que podemos deduzir dela.

Connor respirou fundo e começou a cantar:

 

Vou contar a história dos Vampiratas,

História antiga e verídica.

 

Enquanto cantava, observou o rosto do capitão. Ele pare­cia estar ouvindo atentamente. Até a cobra, Scrimshaw, se inclinou adiante, como se fascinada pelo canto.

A voz de Connor estava cansada e desafinada devido à água do mar que ele tinha engolido ao lutar pela vida. Ficou grato quando chegou aos últimos versos.

 

Que teus olhos nunca vejam um Vampirata...

...E eles nunca ponham a mão em ti.

 

Quando terminou, houve gritos de aprovação e muitos aplausos da turba. Depois, silêncio. Connor olhou de Cheng Li para o capitão Wrathe. O capitão deu um passo à frente e pôs a mão no ombro de Connor.

— É uma bela canção, garoto. Mas acho que é só isso. Naveguei por estes oceanos desde que era bebê e nunca vi nem ouvi falar nesses demônios.

Connor balançou a cabeça.

— Eu vi o navio.

— Viu?

— Acho que sim. Ele se virou na água. Era um velho galeão com velas parecendo asas, balançando...

— O garoto está cansado e confuso — disse Cheng Li, adiantando-se até perto do capitão.

— Não — insistiu Connor. — Não, eu vi.

Mas dava para perceber que, por mais que pudesse desejar, o capitão Wrathe também não acreditava. Agora Connor começou a perder a confiança na própria memó­ria. Talvez realmente houvesse delirado e invocado a ima­gem. Não sabia mais o que pensar.

— De volta ao trabalho, todo mundo — disse o capi­tão Wrathe. — Espere. Bartholomew, fique aqui.

Obedientemente, os piratas se afastaram. Bartholomew ficou, como o capitão havia mandado. E Cheng Li espe­rou atrás dele, sem que lhe tivessem pedido.

O capitão Wrathe estendeu a mão para o ombro de Connor, apertando-o de um modo que fez o garoto pen­sar no pai. Tentou afastar a lembrança, mordendo o lábio para impedir que as lágrimas caíssem.

— Tenho dois irmãos, sr. Tormenta. Dois irmãos pira­tas. Nem sempre gosto deles, mas amo os dois até as pro­fundezas da alma. Dá para ver por que você se agarra a qualquer coisa para acreditar que sua irmã, Grace, conti­nua em segurança. Mas, para seu próprio bem, deve enca­rar a verdade, por mais terrível que possa ser.

O capitão Wrathe olhou no fundo dos olhos de Connor.

— Você chegou a nós no mais negro de seus dias, Connor Tormenta, mas vamos guiá-lo de volta à luz do sol. Nem pense o contrário.

Connor assentiu, inseguro, olhando do rosto do capi­tão Wrathe para o mastro do navio. Seu olhar subiu ainda mais, para além do cesto da gávea, até pousar na bandeira do crânio com as tíbias cruzadas, balançando à brisa. Agora o céu era de um índigo quase perfeito, mas a lua havia su­bido, lançando seus raios frios no crânio branco.

 

                                     Claustrofobia

Grace foi acordada pelo som de um sino tocando. Como o sussurro do capitão, cada toque parecia penetrar na pró­pria câmara e nas fendas de seu cérebro.

Ao abrir os olhos, viu-se numa cama de dossel. Estava apoiada num mar de travesseiros limpos e enfiada sob os lençóis mais macios que já havia sentido. Ficou ali um momento, absolutamente imóvel. O som do sino deu lu­gar a uma estranha música — pontuada por tambores rít­micos, quase tribais.

Seus braços estavam nus e, levantando as cobertas, viu que as roupas velhas, molhadas, haviam sido tiradas e que estava usando uma bonita camisola de algodão bordada com detalhes intricados. De onde aquilo tinha vindo? A quem pertencia? E quem a teria despido?, imaginou, en­vergonhada.

A música estava ficando mais alta. Apoiando-se nos cotovelos, olhou o cômodo ao redor. Era iluminado com velas dentro de lampiões de vidro, que lançavam uma luz incrivelmente suave, tremeluzindo nas paredes e no piso de madeira. Quando pôs os pés no chão, o navio balançou para o lado. Ela demorou alguns instantes para recuperar o equilíbrio.

Afastou-se da cama, notando que os postes de madeira da cama terminavam com entalhes complexos. O dossel era muito bordado. De um dos lados da cama havia um pequeno lavatório aberto, com uma bacia e uma jarra d’água, de porcelana. Tudo no cômodo parecia exótico e luxuoso. Talvez aqueles itens tivessem sido adquiridos nas muitas viagens do navio, pensou Grace.

Escutou vozes vindas de fora, acima da música persis­tente. Virou-se na direção do barulho. Viu que havia uma cortina, evidentemente cobrindo uma vigia. Havia um bi­lhete pregado à cortina. Chegou mais perto para ler.

 

Grace, por favor, mantenha a cortina fechada o tempo todo. Para sua própria segurança.

Seu amigo, Lorcan Furey

 

A letra era bastante antiquada, mas irregular. Ele havia usado uma caneta-tinteiro, e a tinta se esparramava pela página. O que queria dizer com “Para sua própria segu­rança.”? As palavras e o modo aparentemente apressado com que haviam sido escritas a fizeram estremecer.

Estendeu a mão para a cortina. Era muito tentador ig­norar o pedido de Lorcan. Algo que o capitão tinha dito antes lhe veio à lembrança. Não queremos que os outros saibam disso. Quem eram os outros? Que tipo de navio era este?

Nesse momento captou um trecho de conversa, do lado de fora da vigia.

— Estou com uma tremenda fome esta noite.

— Eu também. Nunca precisei tanto do Festim como esta noite.

O Festim. O capitão havia falado nisso também. Era, sem dúvida, um acontecimento importante e esperado com ansiedade. A tripulação parecia extremamente faminta. Talvez não comessem direito há algum tempo. Talvez esse navio tivesse acabado de fazer um estoque de provisões frescas.

Grace encostou a cabeça na cortina para ouvir mais, porém as pessoas que haviam falado deviam ter ido para longe. Esperou um tempo, lutando contra a tentação de puxar a cortina e espiar o convés. Olhando as velas na ca­bine, imaginou se deveria apagá-las, para que ninguém visse a luz, depois, se arriscar a abrir a cortina.

Antes que tivesse chance de agir com esse impulso, uma voz áspera, do lado de fora da janela, atraiu sua atenção.

— Aspirante Furey?

— Tenente Sidório.

Ela reconheceu o sotaque irlandês de Lorcan.

— Pronto para o Festim, sr. Furey?

— Estou, sim, tenente.

— Mas escutei você no convés antes.

— Não, tenente. No convés? Quando teria sido?

— Antes do Toque do Anoitecer.

— Antes... como poderia? Ninguém, a não ser o capi­tão, se aventura na luz.

— Sei disso. Mas poderia ter jurado que era você.

— Talvez o senhor tenha sonhado — disse Lorcan.

— Não tenho mais sonhos.

As vozes foram abafadas pelo aumento no volume da música. Grace se encostou ainda mais na cortina, a testa roçando no bilhete de Lorcan escrito às pressas. Mas ago­ra só conseguia escutar a música. Lorcan e seu companheiro cheio de suspeitas pareciam ter-se afastado.

Avaliou a conversa que havia escutado. Lorcan, certamente, estivera do lado de fora. Sem dúvida, ele e o capi­tão pretendiam manter sua presença em segredo. Mas o que era o Toque do Anoitecer e por que ninguém, a não ser o capitão, podia sair à luz? Parecia uma regra estranha.

Esperou perto da vigia, tentando escutar mais alguma coisa. Pensou ter ouvido passos, mas o som era abafado e podiam ser apenas as batidas da música. Aquilo demorou um tempo, depois deu lugar ao silêncio. Silêncio absoluto. Parecia que todos haviam entrado para o Festim.

Grace deu as costas para a vigia. Diante dela havia uma pequena escrivaninha com uma cadeira ao lado. Foi até lá. A superfície estava atulhada de canetas, tinta, lápis apon­tados e uma pilha de cadernos. Havia algo deliciosamente convidativo nos cadernos de capa dura. Levantou uma velha caneta-tinteiro, mas ela escorregou de sua mão e a ponta furou o polegar. Uma bolha de sangue se formou rapidamente na pele. Uma gota caiu num dos cadernos.

Instintivamente, levou o polegar à boca para sugar o ferimento. Era algo que havia feito vezes sem conta, de­pois de se cortar com papel ou furar o dedo com um espi­nho de roseira. O sangue tinha gosto metálico, mas não desagradável.

Quando tirou o polegar, o pequeno ferimento estava limpo. Mas não havia nada que pudesse fazer para tirar a marca da capa do caderno. Olhou a caneta, com a ponta agora manchada de um vermelho profundo, como se ti­vesse sido enfiada em tinta carmesim. Estremeceu e olhou em volta, em busca de alguma distração.

Seu olhar pousou numa cômoda laqueada, pintada com caracteres estranhos e, sobre ela, uma ornamentada esco­va de prata e um espelho. Engastados nos dois havia pe­dras que brilhavam como diamantes recém-lapidados. Pegou o espelho, virando-o para olhar o próprio reflexo. A moldura não tinha mais vidro. Era claramente velho e quebrado. Que pena.

Ao lado da escova e do espelho havia um pequeno incensório de madeira. Estava aceso e soltava um perfume intenso, inebriante, de baunilha e jasmim.

Percebeu que estava muito cansada e voltou à cama, afundando no conforto do colchão. De repente pensou em Connor. O que estivera fazendo ao explorar preguiçosa­mente a cabine? Todos os seus pensamentos deveriam es­tar fixos no irmão e em como iria encontrá-lo de novo.

Talvez ele já tivesse sido encontrado. Mas, nesse caso, será que não o teriam trazido até ela? O capitão tinha dito a Lorcan para ir à cabine dele. Grace estava lembrada. O que teriam decidido lá? O pânico fluiu pelas suas veias como água gelada.

Precisava sair daquela cabine. Precisava falar com Lorcan e com o capitão. Precisava descobrir se Connor es­tava a bordo do navio — e se estava em segurança.

Censurando-se por não ter feito isso antes, afastou-se da cama em direção à porta. Estendeu a mão e virou a ma­çaneta. Era um globo perfeito de latão, gravado com um mapa-múndi. Sua mão escorregou na primeira tentativa. Tentou de novo. O globo girou, mas a porta não cedeu. Na terceira tentativa, apertou com tanta força que a pal­ma da mão voltou gravada com as linhas invertidas dos países do mundo. Mesmo assim, a porta não se abriu. Es­tava trancada.

Fumegando de frustração e raiva, sentindo-se cada vez mais cansada e fraca, Grace voltou cambaleando pela ca­bine, em direção à cortina. Olhou de novo o alerta de Lorcan.

 

...por favor, mantenha a cortina fechada o tempo todo.

 

Respirando fundo, levantou a cortina e encostou o rosto na vigia gelada.

Com o coração martelando, olhou pelo vidro. De cer­ta forma, esperava que um alarme soasse, ou que tivesse de encarar os olhos furiosos de Lorcan ou do misterioso capitão. Mas não houve alarme. E não havia ninguém a olhando. Pela janela só viu o convés. Estava deserto. Claro que estava. Eles — quem quer que fossem — haviam en­trado para o Festim.

Sorte deles. Ela também estava com fome, mas não ti­nham pensado em lhe trazer comida. Estava com fome, can­sada e fraca. Seu pai havia morrido. E agora também poderia ter perdido o irmão. Sentindo-se totalmente abandonada, Grace puxou a cortina de volta, com força, sobre a vigia.

Quando se virou, imaginando o que iria fazer, viu uma tigela de sopa na mesinha-de-cabeceira. Aquilo não estava ali antes, não é? Como poderia ter deixado de ver?

Pôs as mãos em volta da tigela. Estava quentíssima, e Grace rapidamente afastou as mãos. Não era possível que aquilo estivesse ali quando ela acordou, caso contrário já teria esfriado. Como tinha aparecido? De onde tinha vin­do? Olhou, perplexa, o vapor subir espiralando da tigela. Logo sua confusão deu lugar à fome. Como o resto da tri­pulação, fazia algum tempo que tinha comido, e o cheiro da sopa era ótimo.

Ao lado da tigela havia uma colher enrolada num guardanapo de pano. Quando desenrolou o guardanapo, um bilhete caiu no chão. Grace se ajoelhou para pegá-lo. Esta­va escrito na mesma letra irregular de antes.

 

Tome isto. Vai fazer com que você se sinta melhor. Tenha paciência!

Seu amigo, Lorcan Furey

 

Tenha paciência! Grace franziu a testa. Tinha vindo parar num navio muito estranho. Onde ninguém além do capi­tão se aventurava ao ar livre antes do cair da noite. Onde ninguém deveria saber que ela estava ali. Era demais.

Pelo menos haviam trazido alguma comida. Levantou a colher e mergulhou-a na tigela. O gosto era diferente de tudo que já havia provado. Absolutamente delicioso.

 

                                    Vida de pirata

— Pode ficar com esta cama — disse Bartholomew a Connor.

Era um catre básico, improvisado. Só um estrado de madeira com um colchão fino e algum espaço embaixo para guardar alguns pertences. Não que Connor tivesse algum. Ele e Grace haviam saído de Baía Quarto Crescente levan­do apenas o conteúdo das mochilas. E a tempestade havia tirado isso. Agora só possuía as roupas do corpo, que esta­vam em frangalhos.

— Não pode dormir com essas coisas molhadas, com­panheiro. Aqui está uma camisa. E esta calça deve servir.

— Obrigado. — Connor pegou o bolo de roupas que Bartholomew lhe jogou. Tirou as vestes molhadas e pen­durou nos caibros, enfiando-se na camisa e na calça que estavam secas. Bartholomew era vários centímetros mais alto do que ele, e Connor precisou enrolar a bainha da calça e os punhos da camisa. Não importava, era simplesmente um alívio usar roupas secas de novo. Sentou-se na cama. As molas do colchão rangeram. Era, obviamente, velho e gasto.

— Você vai se acostumar depois de um tempo — disse Bartholomew. — Nós trabalhamos duro neste navio. Nem o colchão rangendo vai impedir você de ter uma boa noite de sono.

— Espere um minuto... esta cama é sua?

Bartholomew deu de ombros.

— O que o diabo dá, o diabo leva.

Connor ficou tocado pela gentileza do sujeito. Era um desconhecido, mas lhe cedera a própria cama.

— Não posso aceitar — disse ele. — Primeiro, sua rou­pa, depois, a cama. Onde você vai dormir?

— Não se preocupe comigo. Posso dormir em qual­quer lugar.

Com isso, Bartholomew jogou uns sacos numa área do chão que estava livre. Ajeitou a sacola com suas coisas como se fosse um belo travesseiro. Desabotoando a camisa, pen­durou-a num caibro. Em seguida se recostou, com uma ca­miseta manchada de suor e sujeira, e se espreguiçou como se estivesse se acomodando na cama mais macia e confor­tável do mundo. Pegou atrás da orelha um cigarro feito à mão e acendeu, tragando lentamente a fumaça.

Connor fez uma careta.

— Desculpe, Connor, quer um? Acho que tenho fumo suficiente para fazer outro.

Não era isso. Connor odiava ficar perto de fumaça de cigarro. Mas não podia reclamar, depois de toda a genero­sidade de Bartholomew.

— Não, tudo bem. Eu não fumo, Bartholomew. Mas obrigado.

— Pode me chamar de Bart, companheiro. Bartho­lomew enche demais a boca.

Connor assentiu e ficou olhando Bart soprar anéis de fumaça contra a luz da vela. Por algum tempo nenhum dos dois falou. Connor se remexeu, tentando achar uma posi­ção mais confortável na cama. De fato, o colchão rangia e uma mola solta cutucava suas costas. Sem dizer nada, ele se ajeitou e se esticou de novo.

— Aqui o negócio é bem básico — disse Bart, soltan­do uma espiral de fumaça —, mas todo mundo trabalha duro. O capitão é da velha escola, meio irregular, mas tra­ta a gente como se fosse da família. É um cara legal.

Connor se inclinou na direção de Bart, baixando a voz.

— E Cheng Li? O capitão e Cheng Li não parecem gostar muito um do outro.

Bart sorriu.

— É um modo de dizer a coisa. Ela é como um espi­nho no pé dele, e ele... bem, ele é como uma enorme ada­ga no dela — riu Bart. — Como falei, o capitão Wrathe é da velha escola. Acho que você não sabe muito sobre o mundo dos piratas, não é?

Connor balançou a cabeça.

— Tudo bem, a maioria dos terrícolas não sabe. Veja bem, no nosso mundo, Molucco Wrathe é uma espécie de lenda. A família Wrathe é a realeza da pirataria. Molucco tem mais dois irmãos, e todos são capitães piratas. Mo­lucco é o mais velho. Depois vem Barbarro. Os dois têm uma rixa, não se falam há anos, pelo que dizem. E há o irmão mais novo, Porfírio. Ouvi o capitão Wrathe falar sobre ele muitas vezes. Diz que é o melhor capitão dos três.

Bart havia chegado ao fim do cigarro. Remexeu-se à luz da vela para achar a caixa de fumo e começou a enro­lar outro.

— Bom, como eu disse, os irmãos Wrathe pertencem à velha escola da pirataria. Eu também, acho.

Connor se pegou perguntando:

— Quantos anos você tem?

— Quantos você acha?

Connor deu de ombros.

— Vinte e nove? Trinta?

Bart gargalhou.

— Obrigado, companheiro, tenho 22! Mas acho que vivi um bocado. Trinta? Companheiro, terei sorte se vir meu aniversário de 30 anos. Algum outro pirata maldito terá me atravessado com uma espada até lá, tenho certeza.

Ele não parecia muito chateado com a idéia, pensou Connor, enquanto olhava Bart acender o segundo cigarro.

— No lugar de onde eu venho, de onde o capitão Wrathe vem, pirataria é conseguir o que se quer, quando se quer. A vida é uma aventura, não é? Pelo menos deveria ser. Eu nunca poderia ser um terrícola, trancado num escritório, preso entre quatro paredes.

O olhar de Connor percorreu a minúscula cabine onde estavam.

— Ah, sim, aqui é bem apertado, mas não é aqui que eu vivo — disse Bart. — Eu vivo lá fora. O oceano é o meu escritório, graças a Deus. As ilhas e os recifes são as únicas paredes que me prendem. Talvez eu trabalhe mais do que muita gente para colocar comida na pança, mas sou livre de um modo que os outros nunca vão conhecer. E sabe de uma coisa?

Ele se virou para Connor, com fogo ardendo nos olhos.

— Quando aquela espada me acertar, vou estar pre­parado, companheiro. Porque vivi mais nesses 22 anos do que a maioria dos caras durante uma vida inteira.

Connor sentiu a força daquelas palavras. Seu coração batia forte ao ouvir o discurso de Bart. Não sabia dizer por quê. Seria medo? Medo da morte? De algum modo, com tudo que havia acontecido, a morte perdera parte do mis­tério. A morte havia reivindicado seu pai e podia muito bem ter tomado, ou estar tomando, sua irmã. No todo, a morte era como um visitante intruso que simplesmente não que­ria deixar Connor Tormenta em paz. Agora não sabia se sentia medo da morte tanto quanto raiva e ressentimento. Não iria se entregar sem lutar!

— Fale de Cheng Li — disse ele, mudando de assun­to. — Você disse que o capitão Wrathe é um pirata da ve­lha escola. E Cheng Li?

— A srta. Li é totalmente da nova escola. Acabou de sair da Academia de Piratas. Sem piada, é assim que se chama. Ela se formou em primeiro lugar na turma, com menção honrosa. O que a torna praticamente a pirata mais qualificada a percorrer os mares. Mas também há pirata­ria no sangue dela. Seu pai, Chang Ko Li, foi um dos pira­tas mais sanguinários que já usaram a bandeira do crânio com tíbias. Era conhecido como o melhor dos melhores. É fama demais para superar.

Ele ergueu o cigarro à luz da vela, olhando a ponta queimar.

— De qualquer modo, a srta. Li está aqui como apren­diz. É a parte final do treinamento. Ela cumpriu todas as etapas da Academia e isso é para testá-la, para ver como se sai em situações da vida real. Parece piada, se você quer saber. Acaba de sair da escola e de repente é a segunda no comando. Quando outros caras mais experientes... bom, isso não parece direito. Está me entendendo?

— Porque ela é mulher? O que os piratas acham disso?

— Ah, não, não é isso. Nós não somos machistas. Veja Cate, Cate Alfanje. Está entre os melhores, é uma das pes­soas mais populares deste navio. Numa luta é quem você gostaria de ter ao lado. O que ela não sabe sobre espadas não vale a pena saber.

Bart soltou um bocejo longo e profundo.

— Não tenho nada contra a srta. Li pessoalmente. Na verdade, ela é bem legal comigo. Claro, ela bufa, urra e tenta manter a gente no devido lugar. Mas no fundo está com medo. Sei que não passa de uma garotinha apavora­da. Escola de piratas! Bom, isso não passa de um absurdo. Nada pode preparar alguém para a vida no mar. Nada.

Bart apagou a guimba do cigarro, bateu na sacola para ajeitá-la e fechou os olhos.

— Boa noite, companheiro. Cuidado com as molas malignas do colchão! Elas podem causar um machucado onde a gente menos deseja.

Bart deu um risinho e logo caiu num sono profundo. Connor ficou acordado, as orelhas ressoando com os ron­cos altos do novo colega de quarto. Estava tão cansado que quase não conseguia dormir. A cabeça girava com tudo que havia acontecido. Era como um sonho — um pesade­lo. Se ao menos pudesse acordar!

Olhou a cabine ao redor. Isto era real. Estava num na­vio pirata e, quando acordasse de manhã, ainda estaria ali. E sua nova vida iria começar.

E Grace. Onde estava? Será que fora mesmo resgatada ou ele teria simplesmente imaginado?

Não tinha nada em que se apegar, além da lembrança daquele navio estranho e da curiosa sensação de calma que de algum modo havia inundado seu corpo ao ver a figura de proa.

Fechou os olhos e instantaneamente lhe veio a imagem da irmã dormindo. Era uma imagem reconfortante. Lá es­tava ela, na cabine do navio que a havia resgatado, enfiada na cama. Mas não era um lugar atulhado e básico como este. Grace estava numa cama de verdade, bonita e confortável.

De onde tinha vindo a imagem? Connor não sabia, nem se importava. Era simplesmente a balsa salva-vidas de que ele precisava para acalmar a mente febril e levá-lo tranqüi­lamente às águas quentes e macias do sono.

 

                                   Uma espécie de perigo

Ao ouvir a porta da cabine se abrindo, Grace abriu os olhos. Quanto tempo teria dormido?, imaginou enquanto Lorcan Furey entrava e fechava a porta. Não ficou muito satisfei­ta por ele ter invadido seu espaço daquele jeito.

— Desculpe — disse ele, como se lesse seu pensamen­to. — Eu bati, mas baixinho. Não queria atrair atenção.

A momentânea raiva de Grace passou e se transformou num embaraço por ele tê-la descoberto meio adormecida naquela camisola fina. Puxou as cobertas para cima do corpo, ao mesmo tempo que amontoava os travesseiros às costas, para ficar mais sentada.

— Gostou da sopa? — perguntou Lorcan.

Grace olhou a tigela vazia. A fome era tanta e o gosto tão bom que havia lambido a tigela. Uma coisa que nunca tinha feito antes.

— Deliciosa. Mas como você a trouxe aqui, sem que eu notasse?

— Tenho meus meios — disse Lorcan, despreocupa­do. — Tenho meus meios. Achei que seus ossos precisa­vam de calor, depois do mergulho no oceano.

Os olhos azuis piscaram para ela. Ele parecia mais relaxado do que antes — a pele ao redor dos olhos e na testa agora estava lisa. Antes havia um franzido de ansiedade. E também estava menos pálido, ou talvez só parecesse, à luz da vela. Não, pensou Grace, olhando-o circular pela cabi­ne. Sem dúvida, parecia mais vigoroso do que antes. O Festim devia ter-lhe feito algum bem.

— Que horas são? — perguntou. — Perdi a noção do tempo e não consigo achar meu relógio.

— É o meio da noite, a hora mais negra. — Algumas vezes, quando ele falava, era como se estivesse entoando um velho poema.

— Não está cansado? Deve ter tido um dia longo.

— Nem um pouco — riu Lorcan. — Dormi a maior parte do dia e vou dormir mais quando o sol nascer.

Ah, agora ela entendia. Ele devia ser do turno da noi­te. É, isso talvez explicasse o que ela havia escutado Lorcan dizer antes: que não saía antes do anoitecer. Claro, faria sentido ter uma tripulação diferente para o horário notur­no. Mas era uma tripulação muito silenciosa, pensou Grace. Não conseguia escutar mais ninguém se movendo no con­vés. Mas, presumivelmente, o grosso do trabalho no convés seria feito no horário diurno.

— O que é isso? — perguntou ele, interrompendo seus pensamentos. Estava de costas para ela, perto da mesa do outro lado da cabine.

— O quê?

Quando Lorcan se virou, Grace viu que ele segurava o caderno. Foi até ela, batendo na marca de sangue na capa.

— Você fez isso?

— Foi. — Ela estava sem graça. — Eu me cortei.

— Coitadinha. Deixe-me olhar.

— Ah, não é nada. Peguei a caneta, mas ela escorre­gou e furou meu polegar.

— Deixe-me ver — disse ele, sentando-se na cama.

Sentindo-se acuada, Grace levantou a mão de baixo da coberta. Ele segurou seu pulso e gentilmente virou a mão com a palma para cima, para ver o corte fino no polegar. Grace ficou ao mesmo tempo reconfortada e meio sem graça com o toque. As mãos dele eram surpreendentemente frias. Talvez por isso sua pele tivesse começado a se arrepiar.

— Saiu muito sangue? — perguntou ele com muita gentileza.

— Não — respondeu Grace, soltando-se. — Só um pouquinho. Desculpe se estraguei o caderno. Tentei limpar.

Lorcan balançou a cabeça.

— Não se preocupe com isso, Grace. Não se preocu­pe nem um pouco.

Ela ainda estava sem graça, sentada ali, de camisola.

— Você viu minhas roupas? — perguntou. — Não consigo encontrar.

— Ah, sim, aqui estão.

Levantando-se rapidamente, ele pegou uma pilha de roupas na cadeira diante da escrivaninha. Pareciam limpas e bem dobradas. Ela teve certeza — bom, pelo menos o máximo de certeza possível — que as roupas antes não estavam ali. Mas talvez estivesse confusa.

— Olhe, aí está seu relógio também.

Lorcan pôs a pilha de roupas sobre o edredom e balan­çou o relógio diante dela, como se para hipnotizá-la. Com os olhos azuis brilhando como o sol na água, ele soltou o relógio na palma de sua mão. Ela o pegou e olhou o mos­trador. Indicava sete e meia. Não parecia certo. Ele não tinha dito que era o meio da noite?

Levantou o relógio até o ouvido. Não tiquetaqueava.

— Parou — disse.

— A água do mar deve ter entrado na engrenagem.

Ela confirmou com a cabeça, depois se lembrou de que era um relógio de mergulhador, projetado para se usar no fundo. Que estranho!

— Ah, bem — disse ele. — Alguns diriam que é uma bênção estar livre dos tique-taques do relógio.

Seu pai costumava dizer algo parecido. Ele nunca usa­va relógio de pulso, preferindo acertar seu ritmo pelo sol e pela lua, deixando o fluxo e o refluxo da luz e das marés marcarem o dia. Talvez também fosse assim neste navio — com a tripulação mudando do dia para a noite, da escuri­dão para a luz.

Lorcan sorriu e olhou a cabine ao redor. Notando o bilhete preso à cortina, levantou as sobrancelhas.

— Peço desculpas pelo melodrama — disse. — Mas é melhor que ninguém mais saiba que você está aqui. Pelo menos por enquanto.

— Por quê?

Enquanto pensava na resposta, o humor de Lorcan pareceu mudar de novo. Ela viu o franzido familiar atraves­sando sua testa.

— São ordens do capitão, Grace. Ele acha mais segu­ro assim.

— Seguro? Estou correndo perigo?

— Perigo? Não, não... claro que não.

— Lorcan, você não está sendo claro. Se é mais segu­ro eu permanecer escondida, deve haver algum tipo de perigo.

Ele não disse nada, mas estava franzindo a testa.

— Se eu estivesse correndo algum perigo, você me di­ria, não é?

— Sim, claro, Grace.

Ele parecia ansioso. Agora seu humor jovial parecia ter sumido.

— O que há de errado?

As pálpebras de Lorcan se fecharam por um instante. Ela não pôde deixar de ver como seus cílios eram compri­dos. A luz do lampião, eles lançavam sombras compridas no rosto.

— Este não é um navio comum — disse Lorcan, abrin­do os olhos. — Nossos costumes são estranhos. Não sei se você vai gostar daqui.

O que, afinal, ele queria dizer?

— Por quê? — gaguejou ela. — Por que eu não gosta­ria daqui?

Ele balançou a cabeça, como se tentasse impedir que pensamentos sombrios escapassem das amarras.

— Gostaria de poder lhe contar mais, mas o capitão pediu que eu não fizesse isso.

— Por quê?

— Ele não quer amedrontá-la. Ah, estou fazendo uma tremenda confusão...

— É. Agora você está começando a me apavorar.

— Não é minha intenção. Verdade, Grace, é a última coisa que quero fazer.

— Então pare de falar por enigmas! — disse ela exasperada, depois sentiu que talvez tivesse exagerado.

— Enigmas? Entendo por que você acha isso, mas na verdade não é um quebra-cabeça muito grande.

Ela suspirou. Cada resposta dele parecia destinada a provocar mais perguntas.

— Você deve querer notícias de seu irmão — disse ele.

Grace ficou surpresa com o tom direto. Quisera per­guntar sobre Connor, mas esperava o momento certo. Sa­bia que era vital ganhar a confiança dele.

— Vocês têm notícias de Connor? — perguntou, tentando manter a voz neutra e não revelar com que desespe­ro precisava saber.

— O capitão disse que seu irmão está vivo e bem de saúde.

— Disse? Como ele sabe? Connor está a bordo deste navio?

— Não posso lhe dizer mais nada.

— Você precisa dizer, Lorcan. Você falou que eu de­via ser paciente; e tenho sido. Usou enigmas para falar deste navio e do motivo para eu ficar trancada aqui como um animal, e não pressionei para ter resposta. Mas, quando se trata do meu irmão, preciso saber de tudo. É importante demais.

Olhou no fundo dos olhos dele, sentindo algo próxi­mo da vertigem enquanto mergulhava nas profundezas do azul.

— Só posso dizer para confiar no capitão. Se o capitão diz que seu irmão está em segurança, você deve acreditar.

— Mas como? Como posso? Como ele sabe?

— O capitão sabe muitas coisas, mais coisas do que eu poderia manter na cabeça mesmo se vivesse mil anos.

Ela não entendeu, mas podia ver que era o máximo de resposta que ele daria... por enquanto. Teria de esperar. Ganhar mais sua confiança. Então ele contaria mais. Ela já vira que Lorcan tinha o hábito de deixar escapar mais do que pretendia. Enquanto isso, precisava descobrir mais sobre o capitão. Não era possível confiar num sussurro sem corpo, e isso — a essa altura — era tudo que o capitão representava para ela.

De repente escutaram vozes do lado de fora.

— Volte aqui!

— Não, você já teve o bastante...

— O bastante? Vou dizer a VOCÊ quando tiver tido o bastante!

Franzindo a testa, Lorcan saltou até a cortina. Ele e Grace se esforçaram, mas não ouviram mais nada. Até...

— Não! Solte-me!

— Não tente lutar comigo. Você sabe que não vai vencer.

Lorcan passou rapidamente por Grace, em direção à porta.

— Preciso ir.

Abriu a porta e saiu correndo pelo corredor. A porta se fechou. Grace esperou pelo som da chave na fechadura, mas Lorcan parecia estar com tanta pressa que se esquece­ra de trancá-la de novo. Seu coração martelou. A situação do lado de fora lhe dera a chance.

Pegando a pilha de roupas, arrancou a camisola borda­da e rapidamente vestiu suas roupas antigas. Estava amar­rando o cadarço dos sapatos quando voltou a escutar vozes do lado de fora da janela.

— Deixe-o, Sidório, ele está fraco. — Era Lorcan.

— E minha fome é forte.

— Você já se alimentou esta noite. Teve sua parte.

— Não basta!

— Você sabe que basta. O capitão disse...

— Talvez eu esteja cansado de seguir as ordens do ca­pitão. Talvez esteja pronto para tomar minhas próprias decisões.

Mesmo não sabendo exatamente do que falavam, Grace havia escutado o suficiente para ficar muito preocupada. Dessa vez não iria simplesmente ouvir. Andou pela cabine soprando as velas. Quando por fim a última chama se apa­gou, ela se viu cercada pela completa escuridão. Demorou um instante para se orientar e para seus olhos encontra­rem o caminho nas trevas. Então foi até a cortina e puxou-a lentamente.

Encostou-se no vidro e olhou para fora. As costas de Lorcan estavam viradas para ela. Ele parecia lutar com al­guém, presumivelmente o homem chamado Sidório.

— Vá para sua cabine — ouviu Lorcan gritar.

Nesse momento uma terceira figura passou rapidamen­te pela janela. Um velho. Um rosto pálido e contorcido de medo. Olhos vazios.

Lorcan e Sidório lutaram, e Lorcan foi puxado. De re­pente Grace viu o rosto de Sidório. Ele olhava direto para ela. Foi a visão mais terrível de sua vida. As feições do su­jeito eram horrivelmente distorcidas — os olhos parecen­do poços de fogo, a boca cheia de sangue. Era mais um cachorro selvagem e raivoso do que um homem. E não pa­recia estar simplesmente olhando para ela, mas para den­tro dela.

De repente Lorcan se virou e a viu olhando pelo vidro. O choque nos olhos dele era evidente.

Nesse ponto a cortina caiu da mão de Grace. Não pa­recia que ela a deixara cair — era mais como se tivesse sido arrancada de sua mão. De qualquer modo, a vigia estava fechada de novo. Tentou puxar a cortina de volta, mas pa­recia pesada como ferro. Devia estar ficando fraca — ou então alguma magia negra estava acontecendo.

Então, uma a uma, todas as velas que ela havia apaga­do tremularam e acenderam de novo. Como isso poderia estar acontecendo? Grace ficou parada, pasma, enquanto a cabine se enchia de luz outra vez. Correu para a porta mas, quando seus dedos tocaram a maçaneta, ouviu o es­talo da fechadura se trancando. Girou a maçaneta, mas era tarde demais. De novo estava trancada. Quem fazia isso? Não podia ser Lorcan. Ele não poderia se mover tão depressa.

Virando-se de novo para a cama, seus olhos pousaram numa xícara e um pires sobre a mesa. Uma espiral de vapor girava no ar — como se para enfatizar que a xícara havia acabado de ser posta ali, tão misteriosamente quanto a ti­gela de sopa.

Aproximou-se da xícara com o pires, cheia de medo e espanto. Meio tonta, inalou o cheiro forte de chocolate quente com laranja e noz-moscada. Isso despertou uma fome medonha por dentro — uma fome da qual não tinha idéia há apenas alguns instantes.

Quanto mais via este navio, quanto mais tempo passa­va a bordo, menos aquilo fazia sentido.

— Tome o chocolate — disse uma voz baixa e calma. Era um sussurro dentro da sua cabeça. — Tome.

Ela havia escutado essa voz antes. Pertencia ao capitão.

 

                             Um modo suave de morrer

O café-da-manhã no navio pirata era um caos organiza­do. O refeitório estava totalmente apinhado de piratas quando Bart levou Connor para dentro.

— Depressa, pegue aqueles lugares, companheiro. Eles vão sumir num instante.

De algum modo, Connor conseguiu deslizar em meio às hordas e plantar o traseiro num banco, estendendo a mão para guardar um lugar para Bart. Os homens do outro lado ergueram o olhar dos pratos.

— Não tinha visto você antes — disse um deles. Sua boca se abriu, revelando um deserto de espaço, interrom­pido apenas por alguns tocos de dentes podres e marrons e migalhas de comida.

— Deve ser aquele garoto que a srta. Li pescou na água — disse o homem ao lado, inclinando-se para olhar melhor.

Connor assentiu, tentando ignorar o hálito terrível do sujeito.

— Eu naufraguei. Cheng Li me resgatou.

— Foi, é? — disse o primeiro. — E daí? Você vai ser pirata? — Ele mastigou um pedaço de pão, consideravel­mente prejudicado pela falta de dentes.

— Talvez — respondeu Connor.

— Acha que tem peito para isso, garoto? — pergun­tou o outro pirata, examinando-o atentamente. — É pre­ciso muito peito para ser pirata.

— Ah, muito peito e muita pança! — repetiu o vizi­nho desdentado. — E o Pum Fedorento aqui sabe tudo sobre pança!

Com isso o pirata desdentado cutucou o colega no cen­tro da enorme pança. Uma gargalhada explodiu em seu rosto feio e ele jogou uma chuva de migalhas de pão meio comidas na cara de Connor. O outro, Pum Fedorento, fez “tsc-tsc” com um som nasal, antes de soltar três puns altos em rápida sucessão.

Felizmente naquele momento Bart chegou à mesa com dois pratos cheios de comida. Acomodou-se no banco ao lado de Connor e bateu os pratos na mesa.

— Vejo que você conheceu Jack Banguela e Pum Fe­dorento. — Baixinho, Bart acrescentou: — Dois dos pira­tas mais deploráveis e inúteis que você vai encontrar.

Connor sorriu e olhou para o prato cheio. Não sabia direito o que era tudo aquilo, mas o cheiro parecia bom e ele estava com fome. Havia ovos em algum lugar, e algu­ma papa que tinha gosto de aveia e enchia a barriga de modo satisfatório. Um naco chamuscado de alguma coi­sa — possivelmente bacon, talvez peixe defumado. O que quer que fosse, o gosto era bom. E um grande pedaço de melancia. Tudo aquilo descia muito bem.

— Vejo que você precisava disso, companheiro.

— Humm — disse Connor lambendo os lábios. — Tem mais?

— Sem chance, esfomeado. Por que acha que enchi tanto os pratos? O truque aqui é: quando enxergar comi­da, agarre, e agarre o máximo que puder. No momento a cozinha está bem abastecida, mas nem sempre é assim. Bom, por que não vai pegar duas canecas de chá para a gente? Com leite, sem açúcar, obrigado.

Ele empurrou Connor na direção do balcão. Connor se esforçou ao máximo para serpentear em meio à turba de piratas. Era um grupo variado — jovens, velhos, gor­dos, magros, altos, baixos e de toda nacionalidade em que se pudesse pensar. Um número de mulheres equivalente ao de homens... e pareciam tão barulhentas e bagunceiras quanto os colegas.

Por fim enxergou a passagem para a cozinha. Adian­tou-se, e um rapaz de rosto redondo e cor de beterraba, cheio de espinhas, gritou:

— Sim?

— Ah, dois chás, por favor.

Mal as palavras saíram de sua boca, duas grandes ca­necas esmaltadas, com chá fumegante, foram postas em suas mãos.

— Andando, filho — gritou o pirata atrás dele, quase estourando um dos tímpanos de Connor.

O salão estava cheio de atividade. Enquanto voltava à mesa, Connor passou por piratas disputando queda-de-­braço por cima de pratos vazios e enrolando os primeiros cigarros do dia, enquanto outros iniciavam um rápido jogo de baralho antes de começarem as tarefas.

Jack Banguela e seu colega fedorento passaram por Connor na saída do refeitório.

— Divirta-se, Capitão Coragem! — riu Jack.

Connor franziu a testa e foi em frente, enquanto Pum Fedorento soltava mais um. Connor ficou felicíssimo por estar dividindo uma cabine com Bart.

Nem bem havia chegado à mesa e sentiu uma mão no ombro. Virando-se, viu que estava diante de Cheng Li. Seu coração começou a martelar. Era a última pessoa que ele queria ver.

— Preciso falar com você — disse ela. —Vamos lá fora.

Connor olhou para Bart, que se levantou e veio na di­reção deles.

— Vou falar com o garoto sozinha — insistiu Cheng Li. — Deixe o chá aqui.

 

Era uma manhã ensolarada, mas mesmo assim um vento forte soprava no convés. O som das velas inflando enquanto eles passavam por baixo era ensurdecedor. Alguns piratas já se ocupavam de suas tarefas — consertando as velas, lim­pando os canhões, subindo no cordame para os turnos de vigia. Cheng Li guiou Connor até um ponto abrigado no convés de proa, onde era mais silencioso e eles estavam sozinhos.

— Queria pedir desculpas — disse ela.

Connor mal podia acreditar nos próprios ouvidos. Era a última coisa que esperava escutar.

— Ontem foi um dia terrível para você, garoto, e acho que não tive tanta consideração pelos seus sentimentos quanto deveria.

— Obrigado. — Connor não conseguia pensar em mais nada para dizer.

Cheng Li olhou para ele de modo estranho. Connor percebeu que ela estava tentando sorrir. Parecia um esforço tortuoso para os músculos do rosto, e por fim ela desistiu.

— Mas como você está hoje?

— Bem. — Connor estava mais do que bem, na ver­dade. A comida e o sono haviam restaurado seus níveis de energia, e ele ainda sentia a estranha calma que viera do nada e tinha inundado seu corpo na noite anterior.

— Parece que nem os roncos de Bartholomew o impediram de dormir — disse ela. Mesmo que não conseguis­se sorrir, seus olhos brilharam um pouquinho.

— Quase. — Connor deu um risinho. — Mas não totalmente.

— E então, hoje, você começa a vida nova como pirata.

Ele assentiu.

— Alguma idéia do que o espera?

— Na verdade, não. — Connor balançou a cabeça, olhando o convés ao redor. Mais piratas haviam subido depois do café-da-manhã e estavam se juntando aos outros nas tarefas. Parecia haver muita coisa a ser feita, e todo mundo sabiá seu lugar.

— É um bom momento para se juntar à tripulação — disse Cheng Li —, especialmente para alguém como você, que tem... que precisa de uma mudança. A pirataria está se transformando, Connor. Nossas forças crescem a cada dia. Se você trabalhar duro e aprender depressa, pode desco­brir que é uma vida muito boa. Há muita coisa que posso lhe ensinar.

Connor se lembrou de Bart falando do treinamento de Cheng Li na Academia de Piratas. Sem dúvida, ela era am­biciosa e dedicada. Connor sentiu-se lisonjeado por ela ver potencial nele, e não pôde deixar de sentir-se culpado por não sentir interesse verdadeiro em ser pirata. Mas ela não precisava saber disso, nem o capitão Wrathe, Bart ou qualquer um dos outros. Seu único objetivo era encontrar Grace — descobrir o navio que nenhum deles acreditava existir mas que ele vira com tanta clareza quanto agora via a srta. Li à sua frente.

— Estive pensando — disse ela. Sua voz era absoluta­mente profissional de novo. — Ontem à noite fiquei acor­dada na cama e pensei no que você nos contou.

— Você... acredita em mim?

— Nunca duvidei que você pensou ter visto aquilo. Só fiquei pensando se um navio assim poderia mesmo existir.

— Pode. Ele existe.

Cheng Li balançou a cabeça.

— Você não tem provas, Connor.

— A cantiga...

— Não é prova. Uma canção não vai ajudá-lo a achar a irmã.

— Ontem à noite, antes de dormir, tive uma imagem de Grace dormindo em segurança no navio. — Ele sorriu da lembrança. A imagem havia sido tão forte que ele qua­se pôde sentir a maciez do travesseiro.

— Excelente — disse Cheng Li. — Então podemos contar com uma visão, um sonho e uma velha cantiga. Verdade, garoto, isso me serve quase tanto quanto um al­fanje de papel. Estou procurando fatos, e você me dá de­sejos e fantasias.

Connor franziu a testa. Ela acreditava ou não?

— Estou dizendo tudo que posso.

— É mais seguro desistir disso — disse ela em tom esmagador. — É melhor não ter muitas esperanças. O capi­tão Wrathe me daria uma bronca só de imaginar que eu tive uma conversa dessas...

— Não vou contar a ele — disse Connor, desesperado para não perder a aliança com ela, ainda que débil.

Cheng Li olhou o horizonte.

— Será que pode mesmo existir um navio desses?

Connor sorriu. Sabia que sim. Podia sentir nas veias. O navio Vampirata estava lá, em algum lugar, com Grace a bordo. Agora não era apenas questão de crença para ele. A despeito da fanfarronice, dava para ver que Cheng Li acre­ditava — queria acreditar — também. Tinha uma aliada.

— Claro que há um fato importante que deixamos de observar — disse a jovem.

Connor se virou para ela.

— Vamos supor, apenas supor, por um instante, que o navio Vampirata realmente exista. E vamos supor que esse navio tenha sua irmã a bordo...

— Sim — disse Connor, impaciente para ela continuar.

— Não há um modo fácil de dizer isso, garoto. Se for um navio de demônios, de Vampiratas, o que acha que eles querem com sua irmã?

Foi como se ela tivesse rasgado seu coração com uma faca. Connor sentiu as palavras o atravessarem, mas não conseguia deixar de perceber a verdade delas. Que idiota havia sido! Estava se agarrando desesperadamente à idéia de que Grace fora resgatada pelo navio Vampirata. Mas, mes­mo que ela estivesse a bordo, não era um resgate. E, mesmo que ainda estivesse viva esta manhã, talvez não continuasse por muito tempo. Cheng Li dissera antes que se afogar era um modo suave de morrer. Nas mãos dos Vampiratas, era improvável que a morte fosse tão pacífica.

 

                                               Espelho partido

— Há quanto tempo estou aqui? — perguntou Grace quan­do Lorcan entrou na cabine com uma bandeja de comida.

— Bom dia para você também! — disse ele sorrindo.

— Há quanto tempo estou aqui? Quantos dias?

— Deixe-me ver. — Ele pousou a bandeja na mesa diante da cama. — Bom, acho que são... três dias e três noites. Não, não, estou errado. Quatro.

Quatro dias e quatro noites. Grace tremeu. Se ele não houvesse dito, ela não faria idéia. Desde a chegada ao na­vio tinha achado impossível manter a noção do tempo. Cla­ro que não ajudava nada o fato de seu relógio ter parado e não haver outro na cabine. Mantida ali, com a cortina fe­chada, estava praticamente privada da luz do dia. E sentia­-se cansada durante uma parte tão grande do tempo que isso fazia aumentar sua desorientação.

— Trouxe mingau quente — disse Lorcan. — Você deve estar com fome.

Ela sentia fome, mas tinha perguntas para ele, e o ra­paz estava ficando muito hábil em desviar suas questões. Engambelava-a para comer, depois ela ficava cansada e perdia o foco do que queria perguntar. E depois de um tempo fechava os olhos e caía no sono. E quando acorda­va, ele havia sumido — sem responder às perguntas. Mas não, não dessa vez.

— Lorcan, onde está meu irmão?

— Não sei, Grace. Você sabe que eu diria, se soubesse.

— Faz quatro dias. Quero ver Connor. Preciso saber onde ele está. Preciso saber se está bem. — Ela se sentia à beira das lágrimas, com uma mistura de exaustão, frustra­ção e medo.

— Sinto muito, Grace. Verdade. Mas não tenho respos­tas para você. Só o capitão pode responder a essas perguntas.

— Então preciso ver o capitão — disse, subitamente decidida. — Pode me levar até ele?

— Preciso perguntar antes. Não posso simplesmente levá-la à cabine dele.

— Por quê?

— Vou falar com ele, Grace.

— Hoje? Esta noite? — Ela segurou a cabeça. — É dia ou noite? Não sei.

— É noite, Grace — disse ele segurando suas mãos trêmulas e apertando-as por um momento. — Sim, vou falar com ele esta noite — disse baixinho. — Agora quer tomar um pouco deste mingau enquanto está quente?

— Ele vai continuar quente — respondeu Grace. — Sempre fica. Como essas velas que nunca terminam de queimar. — Ela se levantou e olhou para um dos lampiões. —Estou aqui há quatro dias, e essas velas ficam sempre acesas, a não ser quando soprei todas elas. E então se acen­deram de novo. Explique isso!

Lorcan sorriu e balançou a cabeça.

— Eu disse que este não era um navio comum.

— Mas que tipo de navio é?

A pergunta ficou pairando. Ele olhou para o espaço entre os dois como se quisesse arrancar as palavras certas do ar.

— É o tipo de navio onde as garotas ficam cansadas e fracas se não comerem. Ande, a cozinheira fez especialmen­te para você. Ela vai ficar de coração partido se vir que você não comeu.

— Se é tão bom, coma você.

Lorcan balançou a cabeça.

— Não estou com fome.

— Certo. Certo. Se isso vai fazer você se sentir me­lhor, comerei o seu mingau.

Grace passou por ele e sentou-se à mesa. Ali, na ban­deja, havia uma grande tigela branca cheia de mingau quen­te. O cheiro era bom. Também havia uma jarra de creme de leite e uma tigela com cristais de açúcar mascavo. Como sempre, a colher fora enrolada num guardanapo de pano limpíssimo. E, como sempre, Grace achou impossível re­sistir. Desenrolou a colher e salpicou açúcar no mingau. Olhou o calor da aveia dissolver os cristais de açúcar num xarope deliciosamente grosso. Depois derramou o creme, mergulhou a colher e comeu, faminta.

— Pronto, vai se sentir melhor agora — disse Lorcan, que havia se sentado na beira da cama enquanto ela se ali­mentava.

O mingau deveria dar energia. Lembrou-se disso de algum lugar. Mas, como toda comida que comia a bordo do navio, esta a deixou sentindo-se satisfeita, mas cansa­da. Grace se virou de costas para a mesa e encarou Lorcan de novo.

— Você está colocando alguma droga na minha comida?

— O quê? — ele riu.

— Você escutou. Toda vez que eu como ou bebo algu­ma coisa, fico cansada demais. Depois durmo horas segui­das, ou pelo menos o que acho que são horas. Na verdade, não tenho noção do tempo.

— Grace, você quase se afogou há alguns dias. Quan­do a encontrei, praticamente não existia vida em você. O corpo e a mente demoram para se curar. Não lhe ocorreu que você simplesmente precisa dormir?

Fazia sentido quando ele falava assim. Lorcan Furey tinha um jeito admirável de acalmar seus sombrios temo­res. Parecia fazer com que tudo ganhasse sentido, mas, quando a deixava — quando ela acordava sozinha —, todo aquele temor voraz, pulsante, se arrastava de volta para dentro de sua mente.

— Preciso ir — disse ele, ficando de pé. — Vou procu­rar o capitão e pedir notícias do seu irmão. Você está cer­ta. Precisa de notícias dele. Não é justo.

Lorcan foi até a porta.

— Tem certeza de que eu não posso ir com você? Fa­ria qualquer coisa para sair um pouco desta cabine.

Ele balançou a cabeça.

— Preciso ir sozinho. Mas entendo. Entendo mesmo. Odiaria ficar preso aqui, se bem que é uma das melhores cabines a bordo e — ele apontou o pequeno banheiro — uma das poucas com instalações sanitárias. Mas, como costumo dizer, é para sua segurança. Não vou demorar, e quando tiver ido...

— Eu sei, eu sei: não devo olhar pela janela.

— Eu ia dizer para tentar não se preocupar. Mas, sim, já que falou, por favor, mantenha a cortina fechada.

Ela confirmou com a cabeça. Lorcan sorriu e passou pela porta, trancando-a.

Grace estava cansada de novo. Claro que estava. Tinha de haver alguma coisa na comida. E, mesmo que ficasse apagando o incenso, ele parecia se acender sozinho, espa­lhando pela cabine o inebriante cheiro de baunilha e jas­mim. A princípio havia achado delicioso — agora era enjoativo. Ficou sonolenta. Muito sonolenta.

Não. Precisava permanecer alerta. Era importante de­mais. Precisava ficar alerta e esperar a volta de Lorcan. Olhou o cômodo ao redor em busca de algo para se distrair. Os olhos pousaram no caderno e nas canetas sobre a mesa. De repente sentiu um relâmpago de inspiração.

Tirou a bandeja de comida da mesa e colocou-a no piso. Depois escolheu um dos cadernos, abriu-o e pegou uma caneta.

“Quarto dia”, escreveu. “Mingau. Lorcan foi pergun­tar ao capitão sobre Connor. Também lhe perguntei sobre as velas e se a comida é misturada com drogas...”

Olhou as palavras. Não lhe dariam nota dez em reda­ção, mas poderiam ajudar a manter uma noção melhor do tempo.

Nesse momento escutou vozes no convés — passos e vozes. Pousou a caneta e foi até a cortina. Com a janela fechada, só era possível escutar vozes se estivessem perto ou se as pessoas gritassem. Por enquanto, o barulho era indistinto. Isso significava que as pessoas não estavam di­retamente do lado de fora, e que ela podia arriscar-se a dar uma olhada.

Não era a primeira vez que desobedecia ao aviso de Lorcan — nem a segunda ou a terceira. Tinha ficado expe­riente em só puxar uma nesga da cortina e bloquear a luz das velas encostando o rosto no vidro.

Fez isso agora, de novo, olhando de um lado para o outro, procurando algum sinal da tripulação. O convés parecia vazio, a princípio. Então, com o canto do olho, viu um bando de pessoas amontoadas perto de uma das amu­radas. Tentou entender as vozes, mas estavam muito longe.

— Cheguem mais perto — sussurrou.

Como se suas palavras as tivessem enfeitiçado, as pes­soas se afastaram da amurada e entraram em seu campo de visão. Grace se apertou mais contra o vidro, desespera­da para garantir que nem um fiapo de luz das velas de den­tro da cabine aparecesse.

Olhou as pessoas passando. Escutou fragmentos de frases, mas nada que pudesse juntar. Um dos membros da turba, percebeu com um susto, era o homem que havia olhado para ela na noite em que fora apanhada espiando pela janela. Sidório — era o nome dele. Mas agora parecia um homem normal. Será que ela havia simplesmente ima­ginado a estranha metamorfose? Quem sabe? Talvez tives­se sido apenas um sonho febril.

Ouviu a fechadura girar de novo. Era Lorcan. Rapida­mente largou a cortina e pulou de volta na cama. Lorcan entrou, de novo girando a chave na fechadura.

— Falei com o capitão — disse ele.

— Obrigada. — O coração de Grace estava dispara­do. — O que ele disse? Connor está aqui?

— Mandou dizer que seu irmão está em segurança, mas que não se encontra a bordo deste navio.

— Não se encontra a bordo? Então, como ele sabe que Connor está em segurança?

— O capitão sabe.

Grace sentiu a frustração inundando-a de novo.

— Então, quando o capitão vem falar comigo?

— Isso não pode acontecer esta noite, Grace.

— Então você vai me levar até ele.

— Não é o momento, Grace. O capitão tem muitas outras tarefas.

Muitas outras tarefas? O que poderia ser tão impor­tante quanto isso? Que tipo de monstro era o capitão para ignorar seus pedidos? Como podia ser tão cruel? Ela esta­va à beira das lágrimas.

Lorcan lhe deu as costas, como se fosse sair do cômodo.

— Não me deixe sozinha.

Ele se virou, sorrindo.

— Não estou de saída.

Lorcan tinha algo nas mãos. Era o espelho que ela ha­via encontrado na cômoda laqueada. O que não tinha vidro.

— Pegue isto — disse ele.

Ela o olhou interrogativamente.

— Confie em mim. É um presente do capitão.

Presente? Um espelho quebrado? Estava gostando cada vez menos do capitão. Seria uma piada?

— Pegue — disse Lorcan.

Grace deu de ombros. Não faria mal pegá-lo, mas pou­quíssimo bem lhe faria. Porém, quando segurou o espelho ornamentado, algo estranho aconteceu. Um fio de névoa começou a se formar ao redor dela. Vinha do espelho — do lugar onde deveria estar o vidro. Olhou para Lorcan, confusa, mas mal conseguia vê-lo — tão depressa e de tão densa a névoa que se formava. Antes que percebesse, esta­va parada no centro de uma opaca nuvem branca. Aquilo fez com que se sentisse completamente tonta.

E então a névoa se dissipou. Mas Grace não estava mais na cabine. Estava num convés ao ar livre. Olhou para o piso. Era de um marrom natural — diferentemente das tábuas pintadas de vermelho que tinha visto antes. Le­vantou os olhos e, parado a menos de um metro, estava Connor.

— Connor! — exclamou, dando um sorriso largo e correndo para ele. Mas, por mais que corresse, ele se afas­tava. Ou melhor, permanecia à mesma distância. Parou de correr, percebendo que na verdade não se movera.

— Connor! — gritou de novo. Ele não parecia ouvir.

Entendeu. Por mais real que parecesse, era apenas uma visão. Podia ver e ouvir Connor, mas era estritamente um processo de mão única. Não fazia mal, era melhor do que nada, muito melhor.

Sem dúvida, era Connor, mas usava roupas de outra pessoa — roupas de marinheiro. Mas parecia bem feliz. Ficou olhando enquanto ele corria até uma trave grossa. Era um mastro. Ele estava puxando uma corda. Percebeu que estava içando uma bandeira. Levantou os olhos e viu o crânio e as tíbias cruzadas. Connor estava num navio pirata!

Então a visão ficou enevoada outra vez. Ela o estava perdendo. Acabou tão depressa!

— Só um pouco mais — implorou. — Por favor, só um pouco mais. — Porém a névoa estava ficando densa ao redor. E então, enquanto começava a se dissipar de novo, ela se viu de volta à cabine, segurando o espelho quebrado.

Lorcan estava perto.

— Pronto. Gostou do presente do capitão?

Ela assentiu, sentindo uma calma e uma euforia com­pletas.

— Sim. Sim, gostei. Por favor, agradeça a ele.

— Claro.

— Diga... diga que eu entendo.

Lorcan olhou-a interrogativamente.

— Entende? Entende o quê, Grace?

— Tudo — disse com um sorriso suave. — Agora en­tendo tudo.

Lorcan continuou perplexo.

— Não preciso explicar a você — disse ela.

— Acho melhor explicar, Grace. Não faço idéia do que você está falando.

Ela balançou a cabeça, achando divertida a charada.

— O que quero dizer, Lorcan, é que entendo que es­tou morta. Percebo agora. Naquela noite eu me afoguei. Você não me resgatou, pelo menos não no sentido conven­cional. Você me pescou da água e me trouxe aqui. A este... este lugar de espera. Mas Connor está bem. Está vivo. Agora vejo isso. O capitão deixou que eu voltasse para vê-lo, só por um instante. Ah, estou tão feliz, Lorcan, que nem pos­so dizer. Estou muito feliz, mesmo morta.

 

                                             O amanhecer

Grace dormiu melhor do que podia lembrar. Era estranho como estar morta era parecido com estar viva — mas pelo menos agora sabia por que seu sentido de tempo se encon­trava tão desorientado. Talvez isso também explicasse o cansaço — talvez seu corpo mortal estivesse ficando pesa­do demais para ela, e logo seria hora de deixá-lo para trás.

Abriu os olhos e descobriu, para sua surpresa, que Lorcan estava dormindo, largado, na cadeira perto da vi­gia. Ele nunca havia dormido na cabine. Isso seria signifi­cativo?, pensou. Será que ela estava para sair deste local de espera? Para onde estaria indo? Talvez, pensou empol­gada, seu pai a estivesse esperando.

Que horas seriam? Grace não tinha como dizer sem olhar pela vigia. Saiu da cama, passou por Lorcan e che­gou à cortina. Puxando-a cuidadosamente de lado, viu que a escuridão ia diminuindo — não era mais totalmente ne­gra e sim como um véu cinza esfumaçado. O amanhecer devia estar chegando. Mas seria o mesmo amanhecer que recebia os vivos ou eles estariam em outro lugar? Grace ficou ansiosa para descobrir. Se ao menos Lorcan acordas­se! Tinha um monte de novas perguntas para ele.

Deixou a cortina cair de novo. Ao fazer isso, o navio foi sacudido pelas ondas e ela perdeu o equilíbrio, tom­bando contra Lorcan. Ele acordou com um susto e uma expressão de pânico nos olhos.

— Desculpe — disse ela. — Não queria assustar você. Tropecei.

— Há quanto tempo eu estava cochilando?

Grace deu de ombros.

— Não sei. Já disse, perdi toda a noção de tempo. Mas lá fora está clareando.

— Clareando? — ele pareceu mais apavorado do que nunca.

— É, sim, olhe. — Ela foi até a vigia e estendeu a mão para a cortina. A manhã ia chegando depressa e o véu cin­za de um momento atrás estava sumindo, substituído pelo rosa profundo do nascer do sol.

Lorcan se virou de costas, como se tivesse se ferido, as mãos cobrindo o rosto.

— Qual é o problema? — perguntou Grace. — O que há de errado?

— Eu não deveria ter dormido. Preciso ir a outro lugar.

— Por que ficou aqui ontem à noite?

— Estava preocupado com você. Você parecia febril. Falou que estava morta.

— Mas eu estou morta. E não estou com febre. Na verdade, nunca me senti melhor.

— Grace, precisa me ouvir. Você não está morta.

— Não? — Tudo fazia sentido caso estivesse morta, mas, se não estava, a situação era tão confusa quanto antes.

— Como posso ter dormido durante o Toque do Ama­nhecer? — perguntou Lorcan pousando a cabeça nas mãos.

— O sino não tocou. Não pode ter tocado, caso con­trário eu teria ouvido quando acordei.

Lorcan começou a tremer.

— Mas Darcy sempre toca o sino. Como ela pode ter esquecido?

— Quem é Darcy? O que há de tão importante com esse sino? E, Lorcan, você tem certeza absoluta de que não estou morta?

— Cem por cento de certeza, Grace. Para começar, garotas mortas não tomam mingau. — Ele indicou a tigela vazia na bandeja. — Preciso estar em outro local — disse de novo.

— Então vá.

Lorcan pareceu imobilizado.

— Não posso chegar lá a tempo. Eu...

Parou. Claramente frustrado, bateu com um punho na palma da outra mão.

Meio perturbada com essa demonstração de violência, Grace virou-se de volta para a escotilha. Levantando a cor­tina, olhou pelo vidro sujo, para a luz rosada do amanhe­cer. Era como olhar as pétalas de uma flor se abrindo.

— Feche a cortina, Grace. — A voz dele estava rouca.

— O que?

— Por favor, Grace, feche a cortina.

Ela a deixou cair e se virou. O comportamento de Lorcan era muito estranho, em especial vindo de alguém que fora tão tranqüilo e controlado durante todo o curto tempo em que o conhecia. Quando a cortina desceu, Lorcan soltou um suspiro fundo, baixando lentamente as mãos do rosto.

— Vou ficar aqui — anunciou finalmente. — Vou fi­car com você. É o melhor.

— É muita gentileza, mas não precisa se preocupar comigo. Não estou com febre. Meio confusa, talvez...

— Não estou preocupado com você.

— Então o que é? Lorcan, qual é o problema?

Ele balançou a cabeça.

— Há coisas que é melhor você não saber.

O rapaz ainda estava trêmulo. Agora ela se pegou estendendo a mão num gesto tranqüilizador. Então teve uma idéia. Sabia como poderia acalmá-lo. Abriu a boca e co­meçou a cantar:

 

Vou contar a história dos Vampiratas,

História antiga e verídica.

Sim, vou cantar sobre um velho navio

E sua tripulação maligna e fatídica.

Sim, vou cantar sobre um velho navio,

Que veleja no oceano azul...

Que assombra o oceano azul...

 

Lorcan ficou boquiaberto.

— Quer dizer que você sabe? — A voz dele mal passa­va de um sussurro.

Grace balançou a cabeça, confusa.

— Sei o quê?

Lorcan ficou quieto, olhos arregalados.

— É uma cantiga de marinheiros que meu pai cantava para Connor e para mim. Ela nos acalmava sempre que estávamos perturbados.

Grace sorriu e continuou a cantar:

 

O navio Vampirata tem velas rotas,

Que balançam como asas a voar.

Dizem que o capitão usa um véu

Para nosso temor aplacar

De sua palidez mortal

E de seus olhos sem vida,

E dos dentes afiados como a noite sombria

Ah, dizem que o capitão usa um véu

E seus olhos nunca vêem a luz do dia.

 

Quando sua voz formou as últimas palavras da estrofe, Lorcan e Grace olharam para a vigia. De repente tudo fi­cou claro. Era como se todas as palavras de Lorcan tives­sem sido as peças espalhadas de um quebra-cabeça, mas agora elas se encaixavam.

— E seus olhos nunca vêem a luz do dia. — Dessa vez ela falou as palavras, voltando à janela e segurando a cor­tina de novo.

— Não! — Lorcan estendeu a mão para impedi-la.

Tarde demais. Os dedos de Grace pegaram a ponta da cortina enquanto Lorcan a puxava de lado, e ela segurou o tecido, que se soltou da janela. E uma pálida tira de luz brilhou na cabine.

Lorcan largou-a, cobrindo os olhos de novo e se jo­gando longe da coluna de luz. Ele se encolheu no canto da cabine.

— Ponha de volta — gemeu. — Ponha de volta. Por favor, Grace, ponha a cortina de volta.

Por um momento, Grace ficou chocada demais para fazer qualquer coisa além de olhá-lo, agitando-se de um lado para o outro como uma vespa num frasco. Não era uma visão agradável.

Mas, apesar do horror da visão, não suportava ver Lorcan tão perturbado. Por isso colocou a cortina de volta na janela. Ela a havia arrancado do suporte mas, segu­rando-a no lugar, pôde mais uma vez bloquear a luz do amanhecer.

Lorcan olhou-a agradecido.

— Obrigado — disse com voz rouca.

— Tudo bem.

Grace enfiou a cortina por cima do suporte e amarrou as duas pontas. Depois de verificar se ela ainda cobria a vigia, virou-se de novo para Lorcan.

— Bem — disse. — Eu estava quase certa, não é? Só que não sou eu que estou morta, é você.

Ele confirmou com a cabeça.

— É melhor ficar aqui até o anoitecer, Lorcan Furey. O que lhe dará tempo suficiente para explicar tudo.

Grace podia parecer no controle, mas isso era o mais distante possível da verdade. Por enquanto, olhando o ra­paz, aquele rapaz bonito que parecia ter apenas alguns anos a mais do que ela, viu para além do cabelo preto comprido e dos olhos azuis brilhantes. Ele podia estar sorrindo ago­ra, mas logo seu humor poderia mudar. E, por trás do sor­riso suave, quem sabe que perigos aguardavam?

 

                                      Conflito

À medida que os dias passavam no navio pirata, as espe­ranças e os temores de Connor fluíam e refluíam com tan­ta freqüência quanto a maré. Ele se agarrava à crença de que Grace estava viva, de que fora resgatada pelo navio Vampirata e que, de algum modo — contra todas as chan­ces —, sobrevivia. Principalmente durante o dia, pelo me­nos, podia se agarrar a essa crença. Mas, quando a noite caía e ele terminava as tarefas diurnas, sombrios temores o dominavam.

Era difícil acreditar que há menos de uma semana ele e Grace moravam no farol. E, ainda que Connor fosse ca­paz de tudo para fazer o tempo recuar — se isso lhe trou­xesse Grace de volta —, havia muita coisa a favor da vida no mar. O Diablo era um navio bem feliz, apesar da ten­são entre o capitão Wrathe e Cheng Li. Connor fizera boa amizade com Bart. E a maioria dos outros piratas também era amigável com ele, se bem que o garoto tivesse sempre cuidado de evitar Pum Fedorento e Jack Banguela.

— Menos reflexão e mais esfregão, por favor, Connor.

Ele ergueu os olhos e viu Cheng Li passar rapidamen­te, com as duas bainhas de espadas se projetando às cos­tas. De novo ela lhe dera o serviço de lavar o convés. A princípio Connor gemeu por dentro mas, assim que come­çou a tarefa, viu que não era realmente difícil. Era bom estar ao sol, fazendo alguma coisa física que não exigia reflexão.

— Ei, molenga!

Connor sorriu quando Bart saltou ao lado dele. Bart havia recebido outra área do convés para lavar, mas sem dúvida tinha sido mais rápido.

— O senhor é realmente molenga, sr. Tormenta — disse Bart com um riso brincalhão. — Qual é o problema? O esfregão é pesado para você, novato?

— É isso mesmo — respondeu Connor, sorrindo.

Enquanto tirava o esfregão pesado de água do balde, levantou-o e girou na direção de Bart, de modo que o co­lega recebeu um banho inesperado.

Bart ficou atordoado um momento. Connor se pergun­tou se teria passado do ponto. Bart estava com um olhar maligno. Ele pegou seu próprio esfregão e mergulhou no balde.

Connor não teve tempo de “recarregar”. Em vez dis­so, estendeu o esfregão como se fosse uma espada, prepa­rando-se para o ataque.

Viu o esfregão de Bart girar e levantou o seu para bloqueá-lo. Os cabos de madeira se chocaram. A água espir­rou, mas Connor continuou seco.

— Leva jeito, hein? — admitiu Bart. — Cate Alfanje vai ficar impressionada!

Enquanto Bart afastava o esfregão, Connor mergulhou rapidamente o seu no balde. Agora estava na ofensiva. Sal­tou na direção de Bart, mas Bart bloqueou o ataque, le­vantando o esfregão de Connor tão alto que só encharcou o garoto. O choque da água era frio, mas revigorante. Connor se recuperou e investiu de novo. Seu esfregão en­controu o de Bart. Bart se afastou. E logo estavam lutando por todo o convés de proa, até chegar à beira do navio. Bart estava com vantagem. Connor foi pressionado con­tra a amurada.

— Acho que não vou fazer você pular na água dessa vez, meu garoto — disse Bart com um brilho maligno no olhar. Connor suspirou e, com toda a força, levantou o esfre­gão de novo e empurrou Bart para longe.

Com um grito de prazer, Bart saltou, reagindo ao desa­fio. De novo lutaram pelo convés, com os esfregões se cho­cando. Agora Connor é que tinha a vantagem, manobrando para encostar Bart numa porta de cabine.

— Ah, você me pegou! — admitiu Bart.

Connor sorriu, olhando Bart baixar o esfregão. Os dois tinham se movido a toda velocidade pelo convés, e ele se sentiu grato por recuperar o fôlego. Mas, ao fazer isso, Bart saltou e passou por ele. Connor se virou e encon­trou Bart esperando atrás, preparado para atacar.

— Certo, certo, você venceu — disse Connor, rindo. — Mas precisa prometer que vai me ensinar esse movimento.

— Claro. — Bart era um vencedor orgulhoso. — Mas você se saiu bem, moleque. Só cometeu um erro. Só um. Olhou o esfregão quando deveria estar olhando os meus olhos. Sempre observe os olhos do oponente. A espada pode mentir, mas os olhos, não.

Com isso ele sacudiu a cabeça do esfregão na direção de Connor e o encharcou de água imunda.

Acima ouviram o som de palmas lentas. Piscando atra­vés da luz do sol, com água nos olhos, Connor levantou a cabeça e viu Molucco Wrathe inclinado sobre o corrimão acima.

— Muito bem, garotos — gritou ele. — Eu e Scrimshaw gostamos da exibição, não foi, Scrim? Talvez a gente use esfregões e vassouras no próximo ataque, hein, Bartholomew?

— Acho que vou continuar usando a espada, se não tiver problema, capitão.

— Muito bem, Bartholomew — disse o capitão Wrathe. — Agora, sr. Tormenta, poderia fazer a gentileza de subir à minha cabine? Gostaria de trocar uma palavra com você. — O capitão se virou e desapareceu de volta no interior do navio.

Bart cutucou Connor.

— Ande, mexa-se! Nunca é boa idéia deixar o capitão esperando.

 

A porta da cabine do capitão Wrathe estava aberta. Connor bateu no portal.

— Entre, sr. Tormenta.

Connor podia ouvir, mas não podia ver o capitão Wrathe. Sua cabine parecia enorme e era apinhada com todo tipo de objetos. Connor pensou que devia ser como entrar na câmara de um faraó. Uma estátua de mármore de uma deusa antiga se erguia sobre um baú, do qual se derramavam moedas de ouro e jóias. Havia pinturas — inclusive uma de girassóis que parecia realmente fami­liar — encostadas numa poltrona antiga.

Mais para o interior havia dois bebês elefantes crave­jados de jóias, quase do tamanho dos bichos de verdade. Havia espelhos mais altos que Connor, que faziam dupli­car a vastidão do butim. Tudo aquilo deviam ser objetos de saque obtidos pelo capitão Wrathe nas viagens do Diablo, ou talvez apenas na última viagem. Sem dúvida, existiam benefícios agradáveis em ser capitão pirata.

Quando Connor adentrou mais para o fundo da cabi­ne, ouviu música — uma melodia estranha e assombrosa. Por fim, olhando para além de dois altos vasos chineses, encontrou Molucco Wrathe sentado como um sultão dos tempos antigos sobre um monte de almofadas de seda. Atrás dele Scrimshaw ia se desenrolando numa almofada roxa brilhante e deslizando na direção de uma mesa baixa, para inspecionar um prato de tâmaras com mel.

— Você demorou, sr. Tormenta — disse o capitão. — Bem, sente-se. Vou desligar a música. Connor sentou-se de pernas cruzadas sobre uma gran­de almofada dourada.

— Eu disse: vou desligar a música — insistiu o capi­tão Wrathe, mais alto do que antes.

O capitão não tinha se movido do lugar: simplesmente levantou a voz. A música continuou tocando. Connor não sabia se devia fazer alguma coisa.

— Droga — disse o capitão, girando e pegando uma velha panela. Virou-se e baixou a panela com força sobre alguma coisa atrás dele.

A música parou.

Houve um gemido.

Um homem caiu para a frente, nas almofadas, largan­do uma cítara aos pés de Connor.

— Pronto — disse o capitão Wrathe. — Assim está melhor. Agora posso me ouvir pensando.

Connor olhou o tocador de cítara machucado. Pelo menos parecia respirar, notou com alívio.

— Agora vamos aos negócios — disse o capitão Wrathe, mordendo uma tâmara e oferecendo a metade que restou a Scrimshaw. — O que está achando da vida no mar?

— Tudo bem, acho, capitão.

— Você deve estar pensando um bocado em sua irmã e em seu pai.

— Sim.

— É como deve ser, meu garoto. Pense com freqüên­cia e dê a si mesmo a chance de lamentar adequadamente o falecimento deles.

Connor assentiu, tentando não trair nenhuma emoção. O capitão Wrathe parecia ter afastado absolutamente qual­quer possibilidade de Grace estar viva. Por enquanto, pelo menos, parecia haver pouco sentido em contradizê-lo.

— Jamais poderemos compensar sua perda, sr. Tormen­ta, mas se quiser pensar em nós como tal, poderemos ser sua família. Não para substituir a verdadeira, jamais pode­ríamos fazer isso, mas para cuidar de você e lhe dar um lugar no mundo. Para garantir que você não está sozinho.

Connor ficou tocado, não somente pelas palavras do capitão Wrathe mas por sua sensibilidade com relação aos seus sentimentos.

— Todo mundo me recebeu muito bem. Bart, Cate Alfanje, Cheng Li...

De repente Molucco Wrathe segurou o pescoço. Seus olhos se arregalaram. Será que havia se engasgado com a tâmara? Connor não sabia se conseguia se lembrar da li­ção de primeiros socorros. Olhou em volta em busca de um copo d’água. Então o capitão Wrathe explodiu numa gargalhada.

— Não se preocupe, garoto. É que a simples menção à srta. Li algumas vezes me abala um pouco. Curioso, não?

Connor assentiu, sorrindo e fazendo uma anotação mental para mencionar Cheng Li o mínimo possível. Ven­do o butim que os rodeava, achou um modo fácil de mu­dar de assunto.

— O senhor conseguiu tudo isso em ataques piratas?

— Sim senhor, meu garoto, tudinho — disse o capitão Wrathe com orgulho. — A maioria foi recém-conseguida num ataque na semana passada, um ou dois dias antes de conhecermos você.

— Tudo isso é somente de um ataque? — perguntou Connor, incrédulo.

— Ora, sim, mas este foi especialmente bem-sucedi­do. Nós atacamos em terra. Ficamos sabendo que a mansão do governador em Port Hazzard estava vazia e pensamos em fazer uma visitinha.

Connor ficou surpreso.

— Achei que os piratas só atacavam outros navios.

O capitão Wrathe riu de orelha a orelha.

— A única regra é que não há regras. Tudo tem a ver com surpresa. Fazer o inesperado. Um famoso capitão pi­rata dos velhos tempos disse um dia que a vida de pirata era curta mas alegre. Bom, minha vida tem sido muito ale­gre, ainda que não tão curta, fico feliz em dizer. E vou to­mar um copo de rum por causa disso!

Molucco Wrathe tomou um gole tirado de seu barrilete. Connor sorriu. Havia algo irresistivelmente fascinante no capitão do Diablo. A pirataria parecia brotar de todos os seus poros.

— Vida curta mas alegre, ouviu, sr. Tormenta? Há muitos estraga-prazeres no mundo dos piratas hoje em dia, meu garoto. Pessoas como a srta. Li, que aprendeu tudo num livro — se bem que o pai dela era um ótimo pirata. Porém maligno! He-he, maligno. Mas onde é que eu esta­va? Ah, há muitas pessoas que aprendem pirataria em li­vros. Ficam cheias de regras, regulamentos e burocracias mesquinhas. Mas a pirataria não é assim. Tem a ver com instinto, sorte e se jogar no perigo em favor do irmão. E somos todos irmãos aqui. Há uma honra nisso, sabe, meu garoto? Honra de pirata. E, se você trouxer algum butim, bem, por que está com a testa franzida? Eles não passam de coisas — disse girando o braço para indicar a cabine ao redor. — Pinturas bonitas, estátuas, elefantes dourados, tudo. Não passam de coisas. Na semana passada eram do governador. Agora são minhas. Fim de papo.

“Um diamante pelos seus pensamentos”, continuou o capitão Wrathe, sorrindo enquanto pegava uma jóia num baú aberto. Mordeu-a. “Ah, esta é realmente boa, acho que vou ficar com ela.”

— Só queria que o senhor soubesse, capitão, como estou agradecido... por tudo. — Connor falava sério, do fundo do coração.

— Nem pense nisso, sr. Tormenta. Aqui todos somos uma família. Sirva-se de uma tâmara. É o prato preferido de Scrimshaw. Precisamos fazer um desvio ao redor do Cabo para comprar barris de tâmaras, mas faço o que for necessário para manter o sujeitinho contente... — Ele sor­riu e fez outro carinho em Scrimshaw. Por mais que gos­tasse do capitão Wrathe, Connor achava meio difícil se afeiçoar a seu amado réptil.

Connor estendeu a mão e pegou uma das tâmaras. Po­deria jurar que Scrimshaw o estava fixando com um olhar irritado. Comeu a tâmara com certa culpa.

— O que acha destes vasos, sr. Tormenta? Não são lindos?

— São muito grandes — respondeu Connor.

— Foram presente do governador, uma oferta de paz, podemos dizer.

— O governador de quem o senhor roubou?

— Ora, sim, meu garoto. Ele os mandou hoje cedo. É seu modo de demonstrar que não há mágoas. Isso não é meio estranho?

Quando terminou de falar, Connor ouviu uma campai­nha soando alto. Levantou a cabeça tentando localizar o som. O primeiro pensamento foi de que seria o sino do navio. Seria um chamado às armas? O capitão Wrathe fi­cou igualmente perplexo. Sem dúvida, não esperava aque­la campainha. E ela soou de novo, mais alto.

O toque prosseguiu, constante, mas ficando ainda mais alto. E, agora que havia se repetido, os dois souberam que não era o som de um sino. Nem o carrilhão de um relógio. Parecia estar vindo da frente deles. Mas não podia ser. Tudo que estava diante deles era um par de altos vasos chineses.

Connor olhou para a pintura detalhada dos vasos. Ce­nas iguais, de um pagode perto de um rio sinuoso, um alto salgueiro e... de repente, diante de seus olhos, os vasos se racharam. As cenas do pagode desapareceram e a porcela­na se despedaçou. De cada vaso voou uma figura vestida de preto da cabeça aos pés, cada uma brandindo uma arma.

— Que negócio é esse? — gritou o capitão Wrathe, enquanto os dois intrusos mergulhavam para cima dele, um armado com um alfanje e o outro com uma adaga.

 

                                                   Sob Ataque

— Quem, diabos, são vocês? O que querem? — pergun­tou o capitão Wrathe. Se estava com medo, e tinha todos os motivos para isso, disfarçava muito bem. Mas Connor achou que o capitão havia encarado a morte muitas vezes antes.

Os dois mascarados não disseram nada, mas chegaram mais perto, espreitando o capitão e Connor como grandes moscas.

Então, o que segurava a adaga virou-se para o compa­nheiro. O do alfanje assentiu e moveu os pés ligeiramente. Agora estava com Connor e o capitão Wrathe ao alcance de sua espada. O coração de Connor martelou forte. Se sua luta de esfregões com Bart fora a primeira aula de com­bate, ali estava a segunda. E agora havia uma possibilidade muito real de não viver para a terceira.

O cúmplice se aproximou de Connor, passando rapidamente a parte plana da adaga nos dois lados dos quadris do garoto. Procurava uma arma escondida. Não encon­trando, foi até o capitão. Era impossível não ver as duas bainhas de prata do capitão Wrathe. O capitão estava com a mão numa delas, pronto para sacar, mas foi lento demais. Num movimento preciso e maligno, o homem da adaga cortou as bainhas do cinto do capitão. Elas caíram no chão com ruído, quase atingindo Scrimshaw, que se enfiou em­baixo da mesa.

Em seguida o homem da adaga desenrolou da cintura uma faixa de pano preto. Jogou o pano para Connor e ba­lançou a cabeça na direção do capitão. Estava claro que queria que Connor amarrasse o capitão Wrathe.

Connor olhou para o capitão, pensando que ele sabe­ria o que fazer. Ele devia ter um plano, com toda a sua experiência.

Mas o capitão Wrathe simplesmente disse:

— É melhor obedecer, garoto. Não vale a pena discu­tir contra metais, assim. — Ele levou as mãos às costas, preparado.

Será que o capitão tinha um plano? Haveria algo que Connor pudesse fazer, como manter os nós frouxos? Po­rém Molucco Wrathe não deu nenhuma pista, e o agressor olhava para ele com muita atenção, de modo que não ti­nha como deixar de apertar os nós. Triste, enrolou o pano nos pulsos do capitão. Depois de terminar a tarefa, o ho­mem virou a ponta da adaga para ele e, obedecendo, Connor recuou enquanto o agressor inspecionava a amarração. Pareceu satisfeito.

Virando-se, o homem passou a ponta da adaga na pi­lha de almofadas na frente de Connor e do capitão. Uma névoa de penas subiu no ar enquanto a lâmina cortava a pele das almofadas.

Quando as penas subiram, Connor espirrou e quase perdeu o equilíbrio. Firmou-se mas sentiu alguma coisa cutucando na base das costas. Era o cabo da panela que o capitão havia usado antes contra o tocador de cítara. Dei­xou o cabo pressionar a coluna, imaginando se consegui­ria segurá-lo.

O agressor pegou as armas de Molucco Wrathe que haviam caído no chão. Enfiou uma em seu cinto e tirou o alfanje da outra, jogando-a para o companheiro. O cúm­plice pegou-o com habilidade. Agora os ameaçava com um alfanje em cada mão.

As penas haviam caído sobre as almofadas e a mesa, e ficaram ali como flocos de neve. O homem da adaga avan­çou pela cabine. Connor percebeu que cortar as almofa­das poderia não ser um ato aleatório de vandalismo. O sujeito parecia procurar alguma coisa.

Mesmo não estando amarrado como o capitão Wrathe, Connor não podia se mexer, com o sujeito dos alfanjes pos­tado diante dele. Lembrou-se do conselho de Bart: Sem­pre olhe os olhos do oponente. A espada pode mentir, mas os olhos, não. Olhou da ponta das lâminas ferozes para os olhos do oponente. Notou que eram de um castanho pro­fundo. Olhou para além da cor e viu, para sua surpresa, clarão de medo.

Tendo cuidado para não demonstrar nenhuma reação óbvia, baixou o olhar. Será que o agressor, mesmo tendo não apenas uma, mas duas armas mortais, estaria com medo? Será que estava com medo do que poderia aconte­cer? Com medo demais para usá-las? O cabo da panela pressionava as costas de Connor, e um plano começou a se formar. Tudo dependia de aproveitar o momento.

Enquanto isso, o outro adversário provocava o caos na cabine. Connor podia ouvir os tesouros que tinha vislum­brado antes despencando no chão — pinturas sendo ras­gadas, cadeiras quebradas. Só podia imaginar o dano.

Durante toda aquela balbúrdia, nem ele, nem o capi­tão Wrathe, nem o agressor com os alfanjes se mexeram. Era como se estivessem presos numa delicada bolha de imobilidade e silêncio.

Um ornamentado biombo espelhado caiu no chão com estrondo, atirando cacos de vidro pelo chão. De novo Connor temeu pela segurança de Scrimshaw, mas no momento ti­nha outras preocupações. Agora o vândalo estava visível a Connor e aos outros. Passando sobre um mar de cacos de vidro, o sujeito se aproximou da estátua de mármore da deusa. Com os olhos escuros brilhando, levantou a adaga para a garganta da estátua. Seria um aviso? Connor não podia ver medo nem hesitação nos olhos daquele homem. Ficou olhando enquanto ele fazia o gesto de cortar a gar­ganta da estátua. Connor se encolheu.

Quando a lâmina tocou o mármore, aconteceu uma coisa estranha. Uma tira de vermelho apareceu sob a lâmi­na. Connor se encolheu enquanto, de olhos arregalados, o sujeito passava a faca de volta pelo pescoço da estátua. O que estava acontecendo? Que segredos a estátua escondia?

O homem com a adaga não perdeu tempo para desco­brir. Enfiou a adaga no corte e, de algum modo, conseguiu cortar fora a cabeça da estátua. Quando ela caiu no chão e se despedaçou, uma fonte vermelha jorrou da estátua de­capitada, derramando-se nos pés do sujeito. A estátua es­tava cheia de rubis.

Era claramente isso que ele procurava. Abriu um saco preto na cintura e, enfiando a adaga de novo no cinto, começou a jogar as pedras preciosas no saco.

O colega com o alfanje olhou por cima do ombro para ver melhor. Quando ele fez isso, Connor levou a mão atrás do corpo muito devagar e cautelosamente e, com os olhos ainda no sujeito dos alfanjes, procurou o cabo da panela.

Com o canto dos olhos Connor viu Scrimshaw sair de baixo da mesa e deslizar na direção dos agressores. O que a cobra ia fazer?

Soube da resposta no minuto em que Scrimshaw se enrolou nas pernas do homem dos alfanjes. Viu isso nos olhos do sujeito e não perdeu tempo. Seus dedos encontraram o cabo da panela. Segurou-o com força.

Com a cobra enrolada no tornozelo, o agressor gritou, as palavras abafadas sob a máscara. Ao ouvir o grito, seu companheiro se virou. As mãos dele estavam cheias de rubis, cujo brilho vermelho refletia em seus olhos.

Connor girou a panela e, soltando um rugido de guer­reiro, baixou-a sobre a cabeça do homem. A base de metal fez contato violento, e o sujeito caiu, tonto, numa pilha de rubis. Estava apagado.

Enquanto isso, seu colega tentava arrancar Scrimshaw das pernas com a ponta de um alfanje.

— Não! — gritou o capitão. — Deixe Scrimshaw em paz!

Connor tirou a adaga da cintura do agressor caído e pegou de volta a bainha roubada do capitão Wrathe. Não havia tempo para sacar a arma, por isso a enfiou no cinto. O homem com os alfanjes tentava freneticamente sa­cudir Scrimshaw das pernas. Com os olhos arregalados de terror, sua atenção estava dispersa. Foi fácil para Connor girar a adaga e derrubar o primeiro alfanje de sua mão. Mas isso pareceu despertar o sujeito. E, por mais apa­vorado que pudesse estar com uma cobra subindo lenta mas constantemente pela perna, ele se virou para encarar Connor com o alfanje que restava. Connor não podia per­der tempo tirando a espada do capitão Wrathe da bainha. Mas tinha a adaga. Olhou nos olhos do invasor e pôde ver que, apesar da pose, o sujeito continuava cheio de medo. Hesitou, não querendo levar perigo a Scrimshaw. Se o agressor caísse, poderia esmagar a cobra. Era estranho ter de lutar do mes­mo lado que um réptil, mas Connor decidiu que precisava continuar atacando. Scrimshaw havia se oferecido corajo­samente para salvar o capitão, e agora cabia a Connor ter­minar o serviço.

Levantou a adaga e girou-a no ar, na frente do corpo, sentindo o peso e a velocidade com que podia brandi-la.

O agressor golpeou com o alfanje que restava. Sem me­do, Connor aparou o golpe. Metal se chocou contra metal e, ainda que o alfanje fosse maior, Connor segurava a ada­ga com mais força. O alfanje tremeu na mão do oponente. Recuando depressa a adaga, Connor girou-a de volta contra a lâmina. A espada escorregou da mão do sujeito. Connor saltou adiante e pegou-a em triunfo. Agora estava com o alfanje na mão direita e a adaga na esquerda.

O oponente fez menção de pegar o primeiro alfanje, que havia caído. Mas, quando se curvou para pegar a arma, não notou o minúsculo músico se movendo atrás dele. Logo uma corda de cítara envolveu sua cintura e seus braços. Estava preso.

Scrimshaw se desenrolou dos tornozelos do sujeito e voltou pelo chão coberto de penas até seu dono.

— Bom trabalho, rapazes — disse o capitão Wrathe, enquanto Connor o libertava.

Molucco Wrathe pegou Scrimshaw com uma das mãos e o alfanje caído com a outra.

— Foi um dos melhores trabalhos de equipe que já vi. Um belíssimo trabalho de equipe!

 

                                       O vampiro

O coração de Grace estava disparado. Parou junto à vigia, tocando a cortina. Lorcan estava sentado na cadeira do outro lado da cabine. Era um meio-termo razoável. Ele jurou que não iria atacá-la, mas como ela poderia ter cer­teza, sabendo o que sabia agora? Enquanto segurasse a cortina, mantinha uma frágil segurança. Se ele se mexesse em sua direção, ela iria expor a luz de novo para obrigá-lo a recuar outra vez.

Era estranho pensar nele desse modo. O rapaz não parecia nem um pouco com um monstro. Era seu aliado, havia salvado sua vida. Será que poderia realmente lhe fa­zer mal? Poderia ser realmente um... um... Ela nem conse­guia se obrigar a formar a palavra.

— Quantos anos você tem? — perguntou, em vez disso.

— Dezessete. Mas achei que você já sabia.

— Quero dizer, em que ano você nasceu?

— Ah. — Ele sorriu, assentindo mas não respondendo.

— Que ano, Lorcan? Preciso saber.

— Mil oitocentos e três.

— Então, na verdade, você tem 709 anos!

— A coisa não funciona assim, Grace. É difícil expli­car. Tenho 17 anos. É a idade que tinha quando fiz a tra­vessia. E é a idade que sempre terei.

— Mas você percorre essas terras, esses mares, há mais de sete séculos?

— O tempo se move de modo muito diferente deste lado — disse Lorcan em voz baixa. — Para dizer a verda­de, perdi a noção de como era antes.

— Esqueceu sua vida?

Ele balançou a cabeça.

— Longe disso. Lembro-me muito bem dos fatos de minha vida. Lembro-me do tempo que passei em Dublin e de tudo que me aconteceu. Lembro-me de como terminou. Mas é como uma história que alguém contou repetidamen­te. Sei de cada detalhe mas não me lembro da sensação de estar vivo.

Grace olhou o rapaz à sua frente, apenas quatro anos mais velho, numa medida, no entanto a um mundo de dis­tância, em outra. Era difícil absorver.

— Quando a gente atravessa — explicou ele —, perde os ritmos antigos. Posso andar e falar como antes. Posso ajudar a velejar um belo navio como este. Mas não pos­so sentir as coisas que você sente. É difícil descrever, Grace. O que eu daria para sentir ao menos por um instante o que você sente! Até sua dor seria melhor do que esse entorpe­cimento.

Grace franziu a testa. O que ele sabia de sua dor? Se ele quisesse trocar de lugar, ela estava pronta para refletir sobre a idéia.

Logo sua raiva se dissolveu ao notar uma estranha expressão passando pelo rosto dele. Só por um momento ele não aparentava ser o Lorcan que Grace conhecia. Seus olhos pareciam vazios como os de uma estátua, as narinas se alargaram e, quando a boca se abriu, ela vislumbrou uma agudeza incomum num dos dentes. Grace estremeceu. Ele parecia com o outro, Sidório. Então percebeu. Havia ou­tros como ele a bordo. Muitos outros.

Lorcan estremeceu ligeiramente e suas feições voltaram à forma conhecida. Olhou-a com aqueles olhos familiares, como se nada tivesse acontecido. Aonde ele teria ido na­quele momento estranho? Ela não ousou perguntar.

— Eu não deveria estar lhe contando essas coisas — disse Lorcan.

— Você será punido? O que o capitão vai fazer?

— O capitão é um homem justo. Não estou nesta tripulação há muito tempo, e não o conheço muito bem. Ele não é uma pessoa que a gente conheça direito. Mas trata todos com justiça. Ele tem uma visão especial. Desde que fiz a travessia, estive em lugares terríveis, lugares de escu­ridão que espero que você nunca veja. Mas agora estou em segurança. Este navio é meu porto seguro.

— E eu, estou em segurança? — As palavras escapa­ram antes que ela tivesse chance de censurá-las.

— Com relação a mim? Sim, Grace, você está em segurança. Jurei antes e vou jurar de novo: nunca lhe farei mal.

Ela queria acreditar. Achava que podia confiar nele. Mesmo assim continuava segurando a cortina com firmeza.

— Mas estou segura com relação aos outros?

Lorcan não ergueu o olhar. Enfiou a mão no bolso e pegou uma chave de ouro numa corrente comprida. Dei­xou-a balançar de um lado para o outro como se a estives­se hipnotizando.

— Por que acha que está sendo mantida trancada na cabine ao lado da do capitão?

Ela não tinha resposta. Olhou a chave balançar de um lado para o outro, imaginando o que custaria pegá-la e fugir. Se puxasse a cortina, ele iria largá-la num instante. Isso lhe daria tempo suficiente...

— Talvez você tenha sido trancada não para que você fique dentro, mas para que os outros fiquem fora — con­tinuou ele.

As palavras a fizeram imobilizar-se. Faziam sentido. Quantos mais haveria lá fora?

Lorcan enfiou a chave com a corrente no bolso.

— As coisas nem sempre são o que parecem, Grace. Mas suspeito que você já saiba disso. O capitão ordenou que eu a protegesse. Por isso você está nesta cabine, por isso ainda não pode sair.

— Mas o que o capitão quer de mim? Não entendo.

— Isso não sei, Grace. Só estou obedecendo a ordens.

Um instante antes ela havia se sentido em segurança, tranqüila. Agora se sentia mais ameaçada do que nunca. Lorcan podia falar e falar, mas não tinha poder verdadei­ro. O destino de Grace estava nas mãos do capitão.

— Quero vê-lo — anunciou.

— Ver quem?

— O capitão? Você vai trazê-lo aqui?

Lorcan riu.

— Já não deixei claro? Ninguém, mas ninguém, man­da chamar o capitão, Grace. Ele irá vê-la quando decidir que é hora.

— Não. Já esperei muito. Quero vê-lo. Peça para ele vir aqui ou me leve até ele. Agora.

Sua respiração estava acelerada. Precisava encontrar uma solução para aquilo.

— Mesmo que eu quisesse, não poderia. Pelo menos enquanto estiver claro. O navio dorme durante o dia. Quando soa o Toque do Amanhecer, o convés se esvazia e todo mundo procura abrigo. Até o capitão.

— Mas o Toque do Amanhecer não soou. Você mes­mo disse. — Grace estava pensando, de pé.

— É, mas não importa. Não sei por que Darcy não tocou, mas isso não muda nada. Apenas o capitão pode andar sob o sol.

Grace pensou por um momento.

— Você não pode sair, é verdade, mas eu posso. Se me der a chave, posso encontrar o capitão sozinha. Você disse que a cabine dele fica ao lado.

Lorcan balançou a cabeça.

— Não vou lhe dar esta chave, Grace, sinto muito.

Ela franziu a testa e o olhou de volta, cheia de teimosia.

— Pensei que você fosse meu amigo.

— Esse foi um golpe baixo, Grace. Fiz o que pude por você. Nadei nas águas geladas por você. Defendi você com o capitão. E arrisquei minha segurança e minha reputação ficando aqui com você. Mas agora tenho de obedecer às ordens.

Grace cruzou os braços e mordeu o lábio, frustrada. Sentiu gosto de sangue de novo. O resto aconteceu num borrão. Subitamente Lorcan estava parado junto dela, os olhos espiando os seus, mais concentrados do que nunca. Sua mão se estendeu para a dela e ela percebeu que preci­sava largar a cortina. Agora não havia como escapar do aperto no momento em que ele virou a palma de sua mão para cima. Então ela sentiu a frieza do metal quando ele apertou a chave em sua mão.

— Vá — disse Lorcan. — Vá agora, antes... antes que eu mude de idéia.

Ele se virou e cobriu os olhos. Suas mãos estavam tre­mendo.

Grace sentiu o peso da chave e da corrente. Olhou para a porta.

 

                               Punição compatível com o crime

— E agora vamos desmascarar os vilões — anunciou o capitão Wrathe à tripulação empolgada.

Os dois intrusos tinham sido amarrados e levados da devastação da cabine do capitão Wrathe para o convés principal. Demonstraram pouca resistência, e Connor po­dia ver o medo e a resignação nos olhos deles.

Um ataque contra o capitão era um acontecimento importante, e toda a tripulação interrompeu os trabalhos para ver quem havia perpetrado aquela trama maligna. Os piratas se comprimiam ruidosamente, empurrando uns aos outros para conseguir os melhores lugares até que Molucco Wrathe levantou a mão e pediu silêncio. Sua ordem foi cumprida imediatamente — ninguém estava com humor para desafiar o capitão.

— Sr. Connor Tormenta, por que não faz as honras?

Ele deu.uma leve cutucada em Connor, empurrando-o na direção dos dois prisioneiros.

— Tire os capuzes e vamos ver quem são esses vilões —continuou o capitão.

Connor parou diante dos dois invasores. As mãos de­les tinham sido atadas com força às costas e os corpos es­tavam amarrados do peito até os joelhos. Como pareciam diferentes de quando haviam ameaçado o capitão Wrathe com a adaga e os alfanjes!

— O que está esperando? — gritou uma voz rouca de pirata.

— Ande com isso, garoto! — gritou outro.

O capitão Wrathe silenciou a turba outra vez. Connor se adiantou e levantou os dois capuzes, recuando para que a platéia enxergasse melhor.

Os rostos revelaram a todos o que Connor havia percebido muito antes. Os dois agressores eram rapazes, provavelmente apenas dois ou três anos mais velhos do que ele. Haviam demonstrado coragem ao abordar o Diablo e se esconder nos vasos gigantes, à espreita. Tinham se saído bem passando pelos muitos protetores do capitão Wrathe.

— Reconheço vocês dois — disse o capitão, aproximando-se. — Há algo familiar nesses rostos.

— Corte o nariz deles! — gritou um dos piratas.

— Não, corte as orelhas! — berrou outro.

Connor podia ver que um dos rapazes estava dizendo alguma coisa, mas a voz foi abafada pela balbúrdia.

— Ele está tentando falar — disse ao capitão Wrathe.

De novo o capitão levantou a mão para a turba, mas os gritos pedindo a punição dos intrusos estavam ficando mais insistentes e imaginativos.

— Ande — disse o capitão Wrathe. — Se tem alguma coisa a dizer, garoto, desembuche logo. Não posso manter esse bando em silêncio por muito tempo.

— Somos de Port Hazzard — disse o garoto. — Nos­so pai é o governador de lá. O senhor saqueou nossa casa e viemos lhe dar uma lição.

Connor ficou impressionado com a veemência do ra­paz, mesmo naquela circunstância difícil. Aparentemente, o capitão também se impressionou.

— Vocês vieram me dar uma lição, foi? Diga mais. Sou todo ouvidos. Ande, garoto, estamos esperando.

— Fique apenas nos mares — disse o garoto com ferocidade. — Vocês podem ter domínio aqui, mas a terra é nossa.

Houve mais gritos vindos da turba. Connor podia ver que o outro rapaz estava à beira das lágrimas. Sem dúvida, não compartilhava o veneno do irmão. Connor o reconhe­ceu como o mais novo, o que tinha usado os alfanjes. Ele havia mostrado habilidade de espadachim, mas os olhos traíam sua falta de confiança.

— É melhor nos deixar ir embora — disse o mais ve­lho ao capitão.

— É mesmo? E por quê? Você tem outra adaga escon­dida na meia ou um alfanje atrás da orelha, é? E, se tiver, diga por favor como pretende pegá-lo.

— Joguem os dois na água! — gritou alguém.

— Pendurem no cordame! — Connor reconheceu a voz de Bart.

— Se alguma coisa acontecer com meu irmão e co­migo — continuou o rapaz, com orgulho —, nosso pai mandará uma força como vocês nunca viram. Você e sua tripulação serão massacrados. E mesmo que naveguem para além do Cabo, temos amigos no território do norte, tam­bém. Se nos matar, estarão assinando sua própria sentença de morte com nosso sangue.

A simples menção de morte e sangue se mostrou de­masiada para o irmão mais novo, que vomitou no convés, errando por pouco as costas da casaca de veludo do capitão.

— Isso é realmente interessante — disse o capitão Wrathe, adiantando-se e mantendo a atenção no irmão mais presunçoso. — Deve haver alguma verdade no que você diz.

O garoto olhou em triunfo para o capitão e para Connor. Connor se lembrou de como os rubis haviam refletido nos olhos escuros dele.

— Acho que não devo matá-lo — disse o capitão Wrathe.

Houve um rugido vindo da turba.

— Esperem, esperem. Não terminei. Acho que não vou matá-los por enquanto. Terei de pensar nisso. E, enquanto estou exercitando as células cerebrais, acho que seguire­mos a sugestão do sr. Bartholomew e vamos pendurar es­ses dois purulentos no cordame.

Uma gigantesca onda de comemoração se ergueu da turba. O capitão chamou Bart e alguns colegas. Enquanto era arrastado com violência, o mais perverso dos irmãos cuspiu na direção de Connor.

Então desapareceu da visão, junto com o irmão, que parecia estar a ponto de vomitar outra vez. Connor sentiu pena do garoto. Provavelmente, fora obrigado a atacar incentivado pelo irmão.

Não demorou muito até que Bart e seus colegas fizes­sem o serviço. Em minutos os rapazes tinham sido amar­rados e estavam pendurados no ar, de cabeça para baixo no mastro, como quartos de carne num açougue.

A tripulação comemorou e gritou insultos contra os dois, enquanto eles balançavam lá em cima.

Na empolgação, poucos perceberam a figura subindo a escada na lateral do navio e saltando atleticamente no convés.

— Que diabos está acontecendo? — estalou uma voz que parecia trovão.

Era Cheng Li — o rosto sombrio como nuvens de tem­pestade, os olhos brilhando como raios. Connor também estivera concentrado demais nos acontecimentos para no­tar a ausência dela antes. Imaginou onde teria estado.

— Ah, srta. Li, bem-vinda de volta — disse o capitão Wrathe.

Cheng Li abriu caminho pela turba.

— Retornem ao serviço — gritou aos piratas. — Retor­nem às tarefas, estou mandando.

Houve uma quantidade significativa de resmungos, mas o bando começou a se dispersar gradualmente.

Cheng Li parou diante do capitão Wrathe, o rosto ain­da vermelho de fúria.

— Sabe quem são esses garotos? — perguntou.

— Sim, srta. Li. São ladrõezinhos malignos que há me­nos de uma hora estavam com as espadas apontadas contra o jovem sr. Tormenta e contra mim. E, não fosse a enge­nhosidade e a coragem do garoto, poderiam ter aberto nossas tripas.

— É verdade? — Cheng Li se virou para Connor.

— Não me dê as costas! — trovejou Molucco Wrathe. — Perdão, srta. Li, mas eu perdi alguma coisa? Você assu­miu o comando do Diablo? Porque, quando olhei pela últi­ma vez o diário de bordo, ainda li capitão Molucco Wrathe.

Connor ficou chocado com a fúria do capitão Wrathe. Evidentemente, Cheng Li também ficou, porque, quando falou em seguida, seu tom era muito mais suave.

— Peço desculpas, capitão. Falei sem pensar. Mas, para seu próprio bem, para o bem de todos nós, esses garotos são filhos do governador Acharo, que tem sido tolerante com os piratas nas águas adjacentes às suas terras. Qual­quer mal que fizermos a eles voltará para nós multiplicado por cem.

— Tenho plena consciência disso, srta. Li, e não pre­tendo causar mal duradouro. Vamos lhes dar um susto e despachá-los, mas a tripulação está sedenta de sangue. Es­tranhamente, parece que minha tripulação se incomodou com o fato de o capitão ser atacado em sua própria cabine.

Cheng Li abriu a boca para falar, mas o capitão Wrathe não havia terminado.

— E isso, certamente, põe em questão nossas medidas de segurança, srta. Li, não é? Creio me lembrar de que, quando você redigiu aquele tedioso caderno sobre segu­rança de bordo, ficou claro que isso seria sua responsabi­lidade.

De novo Cheng Li começou a falar, mas o capitão Wrathe a interrompeu, tão brutalmente como se tivesse atravessa­do suas palavras com uma espada.

— Graças a este garoto — disse ele, passando o braço ao redor de Connor —, e somente a este garoto, estou vivo e de pé diante de você. Enquanto você estava fora toman­do chá com biscoitos e batendo um papinho na Academia de Piratas, este garoto arriscava a vida para salvar a mi­nha. Agora espere até aqueles rapazes lá em cima estarem um pouquinho tontos demais e mande-os com um aviso para o governador Acharo e qualquer outro suposto herói ao longo do Cabo: se atacarem o capitão Molucco Wrathe e sua tripulação, pagarão o diabo.

Cheng Li fechou a boca. Sem dúvida, não era hora de responder a Molucco Wrathe. Em vez disso, baixou tanto a cabeça que era quase uma reverência, e saiu.

Assim que ela ficou fora do alcance de sua voz, Molucco Wrathe se virou para Connor e lhe deu uma piscadela.

— Estava esperando fazia um tempo para dizer algu­mas dessas coisas. Estou me sentindo com a alma lavada, meu garoto, com a alma lavada!

Connor não pôde evitar um sorriso.

— E quanto a você, jovem senhor, que bravura, que instinto! Agora deve dizer qual será sua recompensa. Qual­quer coisa que seu coração deseje será sua.

Não havia nada que Connor desejasse mais do que encontrar Grace. Precisava arranjar um modo de rastrear o navio Vampirata — em vez de simplesmente aguardar e ter esperanças. O capitão não o havia levado a sério antes, mas agora talvez levasse. Mas era um jogo. Não queria ver o capitão lançar sobre ele a fúria que havia dirigido contra Cheng Li.

— Ande, garoto, desembuche. Qualquer coisa que seu coração desejar.

O coração de Connor começou a bater forte. Estava amedrontado, mas precisava tentar mais uma vez.

— Por favor, capitão Wrathe. Preciso de sua ajuda para encontrar minha irmã.

— Sua irmã? — O capitão Wrathe franziu a testa. — Mas, garoto, sua irmã não pode ser encontrada. Eu gosta­ria que pudesse, ah, gostaria de todo o coração, mas infe­lizmente...

— Sei que o senhor não acredita que existe um navio Vampirata — disse Connor, incapaz de deixar que a chance passasse. — Mas, mesmo que não exista, capitão, sinto que ela está viva. Nós somos gêmeos e somos íntimos. Não consigo explicar o sentimento que tenho, mas simplesmente sei que ela está viva.

O capitão Wrathe olhou-o com tristeza.

— Sr. Tormenta, tem certeza que sente isso? Ou será apenas um desejo?

A voz do capitão era incrivelmente gentil. Fez Connor se empertigar. De repente toda a sua empolgação e deter­minação se esvaíram. Tinha suportado aqueles dias no navio pirata agarrado à crença de que Grace estava viva, de que de algum modo iria encontrá-la. Mas, e se não es­tivesse? E se ela realmente houvesse se afogado naquela primeira noite? Talvez ele estivesse apenas tendo uma alu­cinação quando viu aquele navio com as estranhas velas parecidas com asas — por mais clara que a visão pareces­se. Talvez fosse hora de aceitar que Grace não voltaria e dar prosseguimento a sua vida. Sua vida como pirata.

— Sinto muito, Connor. De verdade. Posso fazer indagações sobre o navio Vampirata, se você quiser. Mas estaria mentindo se dissesse que penso que há algum sen­tido nisso; e não minto para meus amigos, meus irmãos.

Connor assentiu, de novo tendo de conter as lágrimas. Então era isso. Estava sozinho. Seu pai e Grace haviam morrido. Era órfão. Um órfão pirata. De repente teve um relâmpago de inspiração.

— Capitão Wrathe, vou lhe dizer o que gostaria de receber como recompensa. Gostaria de aulas de luta de espada.

Molucco Wrathe riu de orelha a orelha.

— Bela resposta, garoto, bela resposta! Senti o sangue de pirata em você desde o instante em que o vi pela pri­meira vez, e de novo na minha cabine lá em cima. Aulas. E com nossa melhor instrutora. Cate Alfanje. Vou informá-­la imediatamente.

Molucco Wrathe foi andando devagar, rindo de orelha a orelha.

Connor foi até a amurada e olhou para o horizonte distante. Sem dúvida, ele parecia se estender até o infinito.

— Estou fazendo isso por você, Grace — disse baixi­nho. — E por você, papai. Vou fazer com que os dois se orgulhem de mim. Vou ser o melhor pirata que já navegou nos mares. E nunca vou esquecer vocês. Nunca vou esque­cer nenhum dos dois.

Ali parado, desesperadamente tentando dizer adeus, sentiu a presença da irmã, mais forte do que nunca. Então uma coisa estranha aconteceu. Dentro de sua mente escu­tou uma voz. Parecia a voz de seu pai.

— Não a abandone, Connor. Agora, não. Principal­mente agora, quando ela mais precisa de você.

— É difícil demais — disse Connor, como se o pai es­tivesse parado junto dele. — Quero ajudar, mas não sei como. Não sei o que fazer nem como encontrá-la.

Seus olhos estavam lacrimejando. Piscou furiosamente para afastar as lágrimas. Então escutou a voz de novo, mais clara ainda do que antes.

— Prepare-se, Connor. Só isso. Prepare-se. Confie na maré.

Prepare-se. Confie na maré. O que ele queria dizer? Por que estava falando por enigmas?

— Como assim? O que preciso fazer?

Esperou, querendo ouvi-lo de novo. Será que era mes­mo seu pai? Tinha de ser, pensou Connor. Nem importava o que ele dissesse — simplesmente escutar a voz macia e familiar era recompensa suficiente. Como havia sentido falta daquela voz! Mas, por mais que tentasse invocar o retorno, agora só ouvia o rumor do oceano e os gritos das gaivotas acima.

Por fim se virou e voltou pelo convés. A cabeça estava rodando mas, por enquanto, tinha tarefas a cumprir. Os acontecimentos da tarde haviam-no afastado de seus ser­viços como pirata.

 

                             O capitão

Grace abriu apenas uma fresta na porta, para conter a quantidade de luz que entrava na cabine. O mais rapidamente que pôde, para diminuir o desconforto de Lorcan, espre­meu-se pela passagem e fechou a porta. Estar ao ar livre depois de tanto tempo trancada na cabine era uma sensa­ção inebriante. Fechou os olhos, inalando profundos haus­tos de ar puro, tornado ainda mais revigorante pelo cheiro do sal marinho. Antes mesmo de abrir os olhos pôde sen­tir o calor do sol no rosto — a princípio suave como uma pluma, depois, mais forte.

Olhando da esquerda para a direita, viu que os conve­ses pintados de vermelho estavam vazios, como Lorcan tinha dito. Foi até a amurada e olhou para o horizonte. O tempo estava perfeito. O mar calmo — e a superfície pare­cia dançar com luz ao refletir os raios do sol.

A princípio pareceu uma visão mágica, ainda mais por tê-la somente para si, mas então os pensamentos de Grace giraram. O mar podia estar calmo e majestoso à luz da ma­nhã mas, quando ela o vira pela última vez, havia sido uma história muito diferente. As águas que agora pareciam tão pacíficas e fascinantes eram as mesmas que haviam parti­do o barco dela e de Connor ao meio e, famintas, arrasta­ram os dois para as profundezas.

Sentindo-se subitamente tonta, virou-se de costas, apoian­do-se na amurada. Quando abriu os olhos, prendeu o fô­lego. Estava diante da cabine ao lado da sua. Seu coração falhou. Seria a cabine do capitão? Devia ser, já que as duas eram separadas de todas as outras. Enquanto olhava a pe­sada porta de carvalho, esta se abriu com um rangido. Grace ficou imobilizada. Queria falar com o capitão fazia muito tempo. Mas agora, de repente, estava insegura. Sabia que este não era um navio comum, portanto, como seria o ca­pitão? Que demônio estaria por trás da fresta escura na porta?

— Não vai entrar?

Como antes, a voz era apenas um sussurro, mas as pa­lavras soavam perfeitamente claras — como se não vies­sem do fundo da cabine e sim de dentro da cabeça de Grace. Instintivamente, ela foi para a porta e entrou. Seus olhos foram recebidos apenas pela escuridão. A porta se fechou atrás dela, aparentemente por vontade própria.

— Bem-vinda, Grace. Entre.

De novo as palavras eram sussurradas. De novo pare­ciam ser ditas dentro de sua cabeça. Mas, mesmo sendo apenas um sussurro, a voz era autoritária. O contraste entre a luz do lado de fora e a escuridão dentro a deixou tempo­rariamente sem visão, mas enquanto se adiantava, come­çou a ver através do véu de escuridão.

Era difícil perceber o tamanho da cabine, já que ela ain­da não conseguia identificar os cantos. Mas no centro ha­via uma mesa redonda, de madeira, cheia de mapas e de uma quantidade de instrumentos de navegação. No cen­tro da mesa um lampião a óleo estava aceso, com luz fra­ca. Parecia a única fonte de iluminação no cômodo.

Ainda que o lampião iluminasse o círculo da mesa, para além das bordas o resto da cabine permanecia envolto em negrume. Olhou para o poço de luz dourada. Alguns instrumentos de navegação pareciam familiares. Outros eram novos e curiosos. Embaixo deles o mapa em si era ricamente ilustrado. Ela examinou a obra de arte, procurando um trecho de costa familiar.

Escutou a voz.

— Por favor, venha para perto de mim.

— Onde o senhor está?

— Aqui, claro. Onde mais?

Com estas palavras a luz no cômodo mudou. Duas den­sas cortinas se separaram e subiram, e Grace se viu diante de um painel de portas fechadas, através das quais a luz do dia se filtrava.

Então as portas se dobraram para trás e ela viu uma figura escura numa varanda, com as mãos enluvadas fixas num enorme timão.

— Por favor, tente não se alarmar com minha apa­rência.

Hesitante, Grace saiu para juntar-se a ele próximo ao timão.

Acima das luvas os braços do capitão desapareciam nas dobras de uma capa escura e com muitas camadas, feita de couro fino. Os olhos de Grace subiram até o pescoço dele, onde a capa se abria em leque, numa gola serrilhada, e era presa por uma corrente de pedras negras. Então vislum­brou o rosto. Ou melhor, o espaço onde o rosto deveria estar. Porque no lugar dele havia uma máscara de tela. Não dava para ver nada por trás da máscara, mas ela possuía os contornos de um rosto, com reentrâncias para os olhos e a boca. Ajustava-se perfeitamente, como uma máscara mor­tuária, mas não era rígida. Não podia ser, porque, enquanto ela observava, a máscara se franziu dos dois lados da reen­trância da boca. Grace percebeu, com um choque, que o capitão devia estar sorrindo para ela.

— Você deveria ter imaginado algo assim.

Grace ficou sem fala.

 

... Dizem que o capitão usa um véu

E seus olhos nunca vêem a luz do dia...

 

Era estranho ouvir as palavras no sussurro denso e ressoan­te do capitão.

— Abandonei o véu há alguns anos. Acho esta másca­ra mais... prática.

A parte de trás da cabeça do capitão era raspada, e Grace podia ver que, longe de ter uma palidez mortal, a pele era de uma cor marrom profunda. A máscara era pre­sa por três tiras de couro: duas se estendendo de cada ore­lha até o centro e a terceira passando pelo topo da cabeça. As três tiras se encontravam numa fivela em forma de par de asas de prata, no centro da cabeça.

— Mas por que... por que o senhor cobre todo o rosto?

A pergunta escapou de sua boca instintivamente. No silêncio que se seguiu, ela começou a se arrepender de tê-­la feito e a temer o sussurro que viria.

— O que você acha?

A resposta óbvia estava na cantiga.

 

Dizem que o capitão usa um véu

Para aplacar nosso temor

De sua palidez mortal

E de seus olhos sem vida,

E dos dentes afiados como...

 

— ...mas sua pele não é de uma palidez mortal.

O capitão assentiu, girando o timão ligeiramente.

— Então o resto talvez não seja verdade, também — disse Grace cheia de coragem.

Ele não respondeu, apenas esperou, observando-a.

De repente Grace sentiu uma dor lancinante na cabe­ça. Ao mesmo tempo teve uma visão fugaz de carne se ras­gando e um clarão de sangue vermelho sobre pele escura. Era uma visão horrível, mas num instante sumiu e ela esta­va olhando de novo a máscara do capitão.

Quem seria esse monstro atrás da máscara? Talvez não fosse humano. Talvez nunca tivesse sido.

A dor lancinante voltou, dessa vez mais forte. Grace fechou os olhos, em parte procurando alívio e em parte para não testemunhar o horror que tinha visto antes. Mas, de olhos abertos ou fechados, não havia como fugir. De novo o súbito rasgo de carne e um clarão de vermelho so­bre pele escura. E então sumiu.

A dor desapareceu junto com a imagem, mas Grace sen­tiu-se entorpecida e meio tonta. Abrindo os olhos de novo, espiou nervosa o estranho olhar sem olhos do capitão.

Nada havia mudado. Mas dessa vez não viu um demônio.

— O senhor está cobrindo um ferimento? — pergun­tou, hesitante.

Por um instante não houve resposta, depois o capitão assentiu devagar.

— Muito bem, Grace. Você é tão excepcional quanto eu imaginava. Enquanto outros vêem apenas a máscara, você enxerga além.

De novo o capitão parecia estar sorrindo.

— Então finalmente nos conhecemos.

O sussurro não deixava de ser caloroso, mas não ser­via em nada para aplacar a maré de temores de Grace.

— O que o senhor quer de mim? — perguntou ela, não conseguindo mais conter a pergunta que a queimava por dentro.

— O que eu quero de você? — foi a resposta lenta e cautelosa. — Grace, foi você que me procurou, não foi?

Verdade. Grace havia procurado o capitão em sua ca­bine. Queria respostas, e Lorcan parecia não ter.

— Vamos entrar — disse ele.

— Mas e quanto ao... timão?

O capitão já havia passado por ela e entrado na cabine. Grace ficou na varanda, perplexa. Diante dela o timão continuou a girar — um pouquinho à esquerda, um tanto à direita —, como se as mãos do capitão continuassem so­bre ele.

 

                                     Porto seguro

Grace acompanhou o capitão de volta para dentro. Atrás dela as portas se fecharam e as cortinas escuras tombaram juntas.

— O que a faz pensar que eu quero alguma coisa de você? — O sussurro do capitão redemoinhou na cabeça de Grace.

Grace pensou na pergunta enquanto seus olhos o procuravam na escuridão.

— É só uma sensação que eu tenho. O senhor deu a Lorcan o espelho para me mostrar que Connor estava em segurança. E me trancou naquela cabine e designou Lorcan para me proteger, ou pelo menos é o que ele diz.

— O aspirante Furey fala a verdade.

— Bem, então — Grace percebeu que ele havia se sentado à mesa dos mapas —, parece que há duas possibili­dades. Ou o senhor está me protegendo de algum perigo a bordo deste navio ou tem outro objetivo em mente para mim. Talvez as duas coisas. — Ela estava olhando direta­mente para a máscara do capitão, desejando ser capaz de ver os olhos dele.

O capitão assentiu.

— Venha, sente-se comigo, por favor.

Ela obedeceu, os olhos descendo da máscara para a capa do capitão. Agora que olhava mais de perto, viu que o ma­terial não era couro, como havia pensado a princípio, pa­recia mais leve, e a luz do lampião iluminava veias finas que corriam através dele. As veias pareciam encharcar-se da luz, fazendo a capa luzir. Grace gostaria de tocá-la, ver qual seria a sensação, mas não se atreveu.

— Vamos supor que você esteja certa, Grace. De que perigos eu poderia estar protegendo você? E que objetivo acha que eu poderia ter para você?

Com um capitão assim, não era de espantar que Lorcan falasse por meio de enigmas. Sem dúvida, era o estilo do navio. Não importava, ela iria participar do jogo do capi­tão. Desagradá-lo não ajudaria nada.

— Sei o que o senhor é — disse ela. — Não sei quantos outros vampiros existem a bordo, mas acho que é uma boa quantidade. E os vampiros precisam de sangue, não é?

O capitão assentiu.

— Na maioria das circunstâncias, sim, precisam.

Isso era interessante. O que ele queria dizer com “na maioria das circunstâncias”?

— Acha que estamos querendo seu sangue, Grace?

— Não poderia haver outra possibilidade real, não é? — a despeito de Lorcan parecer tão gentil, a despeito do cui­dado com que o capitão articulava as palavras agora. Este era um navio de vampiros. Para eles Grace não passava de um novo suprimento de sangue. A simples idéia a fez estremecer.

— O fato — continuou o capitão — é que a... tripula­ção está bem atendida neste departamento. Se você optar por ficar conosco um pouco mais, verá o que quero dizer. Creio que achará bastante... esclarecedor.

Se você optar. Era um modo interessante de dizer. Será que ela tinha alguma escolha?

— O quanto você sabe sobre este navio? — pergun­tou o capitão.

— Muito pouco. Queria sair da minha cabine, mas Lorcan não deixava.

— Talvez ele estivesse de fato sendo um pouco prote­tor demais, mas estava pensando no seu bem.

— Então eu estou correndo perigo.

— Uma recém-chegada costuma provocar interesse.

Ela não sabia exatamente o que ele queria dizer, mas algo no tom de voz a fez interromper essa linha de perguntas.

— Você é naturalmente curiosa, não é? — perguntou o capitão depois de um tempo. — É o que eu imaginava. Uma criança inteligente como você jamais se contentaria em permanecer trancada numa cabine, sozinha.

Grace não se sentia à vontade com elogios, mas assen­tiu. Era verdade. A última coisa que queria era voltar a fi­car trancada na cabine. Queria explorar o navio.

— Certamente, não há motivo para você não deixar sua cabine — disse o capitão. — Mas seria mais seguro não subir ao convés depois que a srta. Flotsam soar o Toque do Anoitecer.

— Por quê? O que acontece, então?

— É quando o navio retorna à vida. Há muitas tarefas que a tripulação deve realizar. Eles têm apenas as horas de escuridão. Não devem ser distraídos do trabalho.

— Já vi pessoas do lado de fora algumas vezes, capi­tão, mas elas devem ficar muito silenciosas na maior parte do tempo, caso contrário, eu teria notado.

O capitão sorriu de novo.

— É, você andou olhando um bocado por aquela vi­gia, não foi? De novo, eu deveria imaginar isso. Mas você também andou dormindo bastante, Grace, e dormindo pro­fundamente.

— É a comida — disse ela. — Sei que há alguma coisa na comida. Vocês me drogaram?

— Não, pelo menos não no sentido convencional. É um assunto complexo.

— É o senhor que entrega a comida na minha cabine? E as velas, o senhor faz as velas se acenderem de novo?

— Tantas perguntas! Não há pressa para saber tudo isso, não é, criança? Sempre há tempo. Sei do que estou falando. Sempre há tempo.

— Então posso andar sozinha pelo convés durante o dia, quando toda a tripulação, menos o senhor, está dor­mindo. Mas assim que eles acordarem deverei retornar cor­rendo para dentro como um camundongo?

— Fascinante. Que criança corajosa! Não sente medo por estar rodeada de pessoas como eu?

— Meu pai sempre nos confortava com a cantiga dos Vampiratas. Dizia que, a despeito do que estivesse nos amedrontando, nada poderia ser tão ruim quanto um Vam­pirata. Mas agora, depois de tudo que passei nestes últimos dias, nem o senhor parece tão apavorante.

— Mesmo com a máscara e esta capa? Mesmo achan­do que eu quero sangue?

— O senhor quer que eu fique amedrontada?

— Longe disso, Grace. Você é hóspede no meu navio. Quero que se sinta em casa.

Grace não pôde evitar um sorriso.

— Em casa? Aqui?

— Esta embarcação navega há muito tempo. É um refúgio, Grace, um porto seguro para os desgarrados, para aqueles de nós que somos forçados, ou atraídos, para as próprias bordas do mundo.

O capitão parou, dando a Grace a chance de pensar em suas palavras, antes de continuar.

— Acho que você é uma desgarrada, Grace. Não creio que já tenha se ambientado em algum lugar. É verdade, não é? Assim como Connor.

Grace ficou pasma. E não somente pela menção a Connor. O capitão parecia saber muito sobre eles. Era verdade, os gêmeos Tormenta sempre haviam sido desa­justados. Mas como o capitão sabia? Será que os estava ob­servando? Nesse caso, de onde? E há quanto tempo? Ele parecia conhecer até mesmo seus pensamentos mais ín­timos. Ou seria um truque? Sua mente latejava com todas as possibilidades.

— Gostaria que Connor estivesse aqui — disse final­mente.

O capitão assentiu.

— Ele estará conosco logo. Gostou do presente?

— Vê-lo no espelho? É, gostei. Fiquei confusa, mas foi ótimo vê-lo de novo.

— Você irá vê-lo de novo, criança, de verdade.

— Onde ele está, capitão? Num navio pirata? Perto? Quando vou vê-lo?

— Ah, quantas perguntas! Ele está em segurança, Grace. Connor está se saindo muito bem, assim como você. Seu pai fez um bom trabalho.

— Nosso pai. O senhor o conheceu?

Houve uma longa pausa.

— Acho que estou ficando cansado, criança. Conver­saremos de novo, mas agora preciso descansar.

Ele se levantou e se aproximou de uma cadeira de balanço, diante de uma lareira que Grace não havia notado antes. Talvez porque o fogo fosse apenas brasas. O capitão sentou-se na cadeira de balanço, arrumando as dobras da capa sobre as laterais.

— Foi bom conhecê-la finalmente, Grace — disse ele antes de inclinar a cabeça para a frente. Ela percebeu que fora dispensada.

 

                                     Espadas

Pela primeira vez desde que chegara ao Diablo, Connor dormiu bem. Escutar a voz do pai o havia acalmado pro­fundamente. De algum modo, isso permitira que ele abris­se mão do tormento constante quanto ao que fazer e em que acreditar. Prepare-se. Confie na maré. Ficou repetin­do estas palavras até cair no sono. Não importava o que os outros pensassem. Grace ainda estava viva. Seu senti­mento estivera certo o tempo todo.

— Ei, companheiro, acorda! Sacode esse rabo!

Connor abriu os olhos e viu Bart já vestido, barbeado e cheio de energia.

— Que horas são? — perguntou. — Perdi o café-da-manhã?

— Não, companheiro, é cedo. Mas esqueceu? É a primeira aula de luta de espada. Pegue suas coisas. Não vamos fazer Cate esperar!

— Que cheiro é esse? — Connor franziu o nariz.

Bart ficou vermelho.

Connor sorriu.

— Você está usando perfume... para Cate?

— Só pensei em me refrescar. Agora ande, companheiro.

Menos de dez minutos mais tarde, depois de se lavar muito depressa, Connor e Bart chegaram ao convés de proa. Cate Alfanje estava arrumando diversas armas. Mos­trou-se amigável mas profissional, o cabelo ruivo amarra­do num rabo-de-cavalo bem-feito e coberto pelo lenço de sempre. Os olhos estavam brilhando de energia e objetivi­dade enquanto ela calçava um par de luvas de couro.

— Isso não são brinquedos — disse a Connor enquanto continuava arrumando várias espadas. — Alguns tripulan­tes os tratam como se fossem. E não chegam muito longe. Nós nunca os colocamos na frente durante a batalha, vira­riam picadinho.

“Hoje vou lhe mostrar algumas das principais espadas que usamos em combate. Você achará algumas mais satis­fatórias do que outras. Cada espada tem uma personalida­de. Precisamos encontrar a que combina com você. É como conhecer várias pessoas. Com algumas, há uma conexão instantânea. Com outras, a gente não combina. Precisamos achar a espada certa para você. Sua espada se torna uma extensão sua — de seu corpo, de sua personalidade.”

Connor assentiu, fascinado.

— Bartholomew, por favor levante-se — instruiu Cate.

Quando ele fez isso, ela franziu o nariz.

— Que cheiro é esse?

— Essência de limão — disse Bart, sorrindo.

— Está tentando evitar escorbuto? — perguntou ela, rindo.

Bart estufou o peito e deu um riso torto para Cate. Ela balançou a cabeça, totalmente profissional, e jogou um par de luvas para ele. Bart calçou-as e estendeu a mão para pegar a maior espada.

— Bom, Bartholomew é um sujeito grandalhão, por isso usa o montante. É uma espada pesada, pesada demais para alguns, mas nas mãos certas é uma poderosa aliada.

Ela se afastou de Bart.

— Um florete, por favor, Bartholomew.

Enquanto Cate saía do espaço dele, Bart começou a usar a espada, cortando o ar. Ela brilhava ao sol. De repente Bart ficou muito sério, movendo-se com a graça de um dan­çarino e a precisão de um atirador de facas enquanto gira­va a espada à esquerda e à direita, para cima e para baixo, girando-a ao redor da cabeça e depois para os lados.

— Certo, certo, pare de se mostrar — disse Cate com firmeza. — Está vendo, Connor, como a espada e Bart combinam?

Connor assentiu e bateu a mão na do colega, comemo­rando, quando ele pousou a espada cuidadosamente no convés e retomou a posição ao seu lado.

— Agora você pegue o montante. Primeiro ponha es­tas luvas.

Connor se adiantou e, depois de calçar as luvas de cou­ro, segurou o punho da espada. Era incrivelmente pesada.

Tinha parecido leve como um graveto nas mãos de Bart, mas Connor não sabia nem mesmo se conseguiria segurá-­la com firmeza.

— É isso — disse Cate. — Segure-a. Chamamos esta extremidade de botão do punho. A parte cruzada chama­mos de guarda-mão. Esta aqui, a ponta, é a parte mais fra­ca da espada. Chamamos de ponto fraco.

Ela passou o dedo pelo gume achatado da espada, indo em direção à mão de Connor.

— A parte mais resistente da lâmina está aqui. Cha­ma-se forte.

Tendo o cuidado para se afastar de Cate, Connor er­gueu a espada usando as duas mãos. Estremeceu diante do poder que estava segurando. A luz brilhava nos gumes da arma. Isso não era brincadeira, percebeu. Era um instru­mento de morte.

— O montante é uma arma de cortar ou talhar — pros­seguiu Cate, como se tivesse lido seus pensamentos. — É afiada na ponta, mas os dois gumes também são como navalhas. Agora vamos ver sua postura...

Enquanto Cate avaliava sua pose, Connor se pergun­tou como ela podia ser tão descontraída quanto ao propó­sito da arma. Percebeu que, se quisesse ser pirata, também teria de lidar com a morte diariamente. Pior, seria chama­do para infligi-la. Era uma séria preocupação. Assassino treinado aos 14 anos. Engoliu em seco.

— Você deve parecer um lutador de sumô, Connor, com os pés separados. Isso, dobre os joelhos. Um pouqui­nho mais.

Connor seguiu as instruções de Cate. Ela assentiu, apro­vando. Todo o corpo da mulher parecia cheio de energia.

— Está bom, Connor, muito bom. Certo, por que não pousa a espada agora?

Sentindo-se grato, Connor pousou o montante de vol­ta no convés. Sentou-se de novo ao lado de Bart, cheio de respeito renovado e admiração por seus colegas piratas.

— Bom, o negócio dos montantes é o seguinte — prosseguiu Cate. — São espadas grandes e pesadas. Este monstro aqui tem um metro e vinte de comprimento. Quando abor­damos um navio inimigo, tempo é essencial. O montante é cheio de problemas. Pode ficar preso no cordame, para co­meçar. Portanto, eis o que fazemos: mandamos Bart e uns dois outros grandalhões na frente. Eles vão e cortam o cordame, girando as espadas como se fossem moinhos de vento. Mas tudo isso não passa de distração, como fumaça e espelhos. A outra tripulação vê aqueles brutamontes fazendo estragos no navio e fica apavorada. Mas isso é só para criar clima... sinto muito, Bart... veja bem, nesse ponto eu entro com este bebe­zinho e eu é que provoco o verdadeiro dano.

Enquanto falava, Cate havia apanhado uma espada menor e retirado da bainha. Tinha uns três quartos do ta­manho do montante, mas era muito mais leve e delicada.

— Isto, meu amigo, é como lutar com uma agulha. — Cate saltou adiante, impelindo a espada diante do corpo.

— Ela está dando uma estocada nas suas costelas, companheiro — explicou Bart com um riso. — É um golpe rápi­do que estoura os órgãos internos. E depois você vai demorar um ou dois dias para ter uma morte linda, lenta e tortuosa.

— O montante tem a ver com aparência — disse Cate, saltando para trás e para a frente —, o florete tem a ver com efeito. Nas mãos certas, é poesia em movimento.

Connor estava começando a se sentir cada vez mais incomodado e meio enjoado.

— Você está meio verde, companheiro — disse Bart. — Vai vomitar?

— Não, não, vou ficar bem. — Ele respirou fundo al­gumas vezes.

— Tem certeza?

Connor assentiu. Cate não prestou atenção aos seus problemas. Permaneceu concentrada na instrução, devol­vendo o florete à bainha e pegando outra espada.

— Bom, vamos experimentar o sabre, certo?

Ela estendeu a espada para Connor, e, respirando fun­do, ele passou a mão enluvada pelo cabo da arma.

— Isso. Note como é o punho desta espada. Aí está, toda a sua mão penetra nele. É como uma gaiola protetora.

Era muito mais acolhedora do que o montante. Um pouco mais curta, mas significativamente mais leve.

— Ah, parece bom. Excelente. Agora segure a lâmina na horizontal.

Connor estendeu o braço.

— Bom, Connor — disse Cate sorrindo. — Agora sua mão está em pronação, ou seja, virada para cima. Sua pos­tura deveria ser suave de novo, as pernas um pouco do­bradas. Seu peso está dividido entre os pés. Imagine que está jogando tênis. Está pronto para se mover rapidamen­te em qualquer direção.

Connor seguiu as instruções e de repente estava se divertindo. Podia esquecer por um momento o sangue, as entranhas e a morte, e se concentrar naquilo como se fos­se apenas outro esporte. E ainda não existia um esporte que Connor Tormenta deixasse de dominar. De novo autoconfiante, seguiu o fluxo de instruções de Cate. Podia ver que ela estava deliciada com seu progresso acelerado.

— Bom, vamos tentar um pouco de passes à frente e atrás — disse Cate, demonstrando o movimento de pés. — Seus pés nunca devem ficar juntos. Se ficarem, você per­derá o equilíbrio. Mova um pé de cada vez, como eu.

Ele acompanhou o trabalho de pés, pegando rapida­mente o ritmo. Cate recuou, e Bart se juntou a ela. Juntos, ficaram olhando seu protegido. Connor não estava atento a eles, absorto na determinação de aperfeiçoar os movi­mentos parecidos com dança.

— Nada mau para um iniciante — disse Bart, tirando as luvas.

— Ele tem talento natural — respondeu Cate. — É exatamente o que estávamos procurando.

Acima deles, parado fora da cabine, o capitão Molucco Wrathe sorria satisfeito.

— O que eu lhe falei, Scrimshaw? — disse, acarician­do o bicho de estimação. — Vejo um futuro empolgante para o sr. Connor Tormenta: um futuro muito empolgante.

 

Pelo resto do dia Connor ficou animado com a aula de luta de espada. A cada vez que pensava, não conseguia evitar um sorriso. Cate dissera que iria dar outra aula à mesma hora, na manhã seguinte. Ele mal podia esperar.

Enquanto isso, havia trabalho a ser feito. A última ta­refa de Connor era limpar os “canhões de rodízio”, peque­nos canhões que ficavam no convés de proa. Tinha recebido um pedaço de camurça e um polidor fedorento, que ele se esforçava para não inalar enquanto trabalhava. Não era tão ruim quando limpava a parte de cima do canhão, mas ago­ra estava fazendo a de baixo, e precisava deitar no convés como se estivesse embaixo de um carro. Trabalhava o mais depressa que podia, ansioso para acabar com a tarefa o mais rápido possível.

— Bom, ouvi dizer que você é um exímio espadachim.

Connor deslizou para a frente e encontrou Cheng Li olhando-o com um sorriso torto.

— Fico imaginando se limpar canhões de rodízio é um trabalho adequado para o principal jovem guerreiro do Diablo — disse ela.

Connor ficou de pé, sentindo-se grato pela pausa.

— O capitão Wrathe disse que todos compartilhamos o trabalho a bordo — disse ele, tampando a lata de po­lidor.

— Que bom piratazinho você virou, Connor, e tão depressa!

Connor ficou perplexo com o sarcasmo na voz dela. O que havia feito para chateá-la? Concluiu que era melhor deixar isso para lá.

— Cate me deu um monte de espadas para experimen­tar — disse ele, entusiasmado. — Gostei mais do sabre.

— Não do montante, como seu amigo Bartholomew?

— Não. É muito ruim de manobrar. Quero uma arma de precisão.

— Se é precisão que está procurando, experimente isto — disse Cheng Li, passando os braços sobre a cabeça e, num único movimento, retirando duas espadas iguais das bainhas às costas.

— Katanas — disse ela enquanto girava as lâminas de aparência maligna pelo ar —, feitas segundo minhas especificações pelo armeiro na ilha Lantao. Presente de forma­tura. Para mim mesma.

As lâminas pareciam leves como penas mas afiadas como navalhas nas mãos dela. Depois de um último floreio, ela as recolocou nas bainhas. Connor ficou impressionado.

— E sua outra espada? — perguntou.

— Minha outra espada?

Ele apontou para a ornamentada bainha de latão que pendia da cintura de Cheng Li, numa tira de couro.

Cheng Li olhou para baixo, subitamente pensativa. Não desembainhou o alfanje.

— Era a espada do meu pai. Talvez você tenha ouvido falar dele.

— Chang Ko Li — disse Connor. — O melhor dos me­lhores, pelo que Bart me disse.

Cheng Li assentiu.

— O melhor dos melhores — repetiu num tom surpreendentemente sem emoção.

Ela olhou para a bainha, os dedos pousando no punho do alfanje.

— Me trouxeram isso quando ele morreu. Guardo para lembrar.

Connor assentiu.

— É bom ter alguma coisa para lembrá-lo. Gostaria de ter alguma coisa do meu pai.

— Você entendeu mal, garoto. Não uso o alfanje para me lembrar do meu pai. Uso para lembrar que, por maior que a gente seja, por mais longe que eu possa ter chegado, só é preciso o golpe da espada de um estranho para acabar com tudo. Meu pai, apesar de toda a reputação e glória, foi morto como um ladrão comum. Esta é a verdade la­mentável sobre o grande Chang Ko Li.

Com isso ela afastou a mão da espada antiga. Connor podia ver que Cheng Li estava perturbada, ainda que seu rosto continuasse parecendo de aço e revelasse pouca coisa.

— Melhor voltar à limpeza — disse ela. — Olhe, guerreiro, você deixou um lugarzinho sujo.

 

                                 Pão e sopa

Quando Grace saiu da cabine do capitão, sua mente zum­bia, cheia de pensamentos em Connor. Quando seu irmão iria se juntar a eles? Onde estaria agora? Ao passar pela por­ta, viu-se não no convés exterior, como esperava, mas no corredor interno, cheio de portas fechadas dos dois lados.

Os aposentos do capitão deviam ter duas entradas, percebeu. Não ousou voltar para a cabine dele e sair pela outra porta. Além disso, devia haver outra saída desse cor­redor para o lado de fora.

Sem dúvida, quando chegou ao fim do corredor havia uma porta à esquerda, dando para o convés. À direita no­tou uma escada que mergulhava até as profundezas escuras do navio. Deveria ir para a esquerda, de volta à segurança de sua cabine, ou então para o convés deserto iluminado pelo sol.

Mas a escada oferecia uma alternativa hipnotizante, o capitão não a proibira de explorar o navio. Só havia pedido que voltasse à cabine na hora do Toque do Anoitecer, o dia ainda estava no início. Tinha bastante tempo para dar uma volta rápida e olhar embaixo do convés para ter uma idéia melhor do navio, enquanto os tripulantes dormiam.

A escada levava a outro corredor. Era mal iluminado, com lampiões que pouco clareavam as fileiras de portas das cabines dos dois lados. Felizmente um tapete — ainda que puído — fora esticado ao longo das tábuas e absorvia o som de seus passos cautelosos.

Era um silêncio fantasmagórico, ou talvez assim parecesse, enquanto Grace imaginava as pessoas, as criaturas, que habitavam os aposentos ao redor. Era um corredor longo, e ela ficou tentada a voltar e interromper a exploração.

Não, disse a si mesma, isso é bobagem. Já não havia conhecido dois vampiros? Mesmo não querendo pensar neles desse modo, era isso que Lorcan e o capitão eram. E haviam se mostrado demônios? Lorcan não poderia ser mais diferente de um demônio, a não ser, talvez, naquele breve momento em que suas feições tinham assumido uma súbita aspereza — mas havia sido tão rápido que talvez fosse apenas um efeito da luz.

Quanto ao capitão — claro que a máscara e a capa eram intimidantes, e demorava algum tempo para que se acos­tumasse com o sussurro estranho e incorpóreo. No entan­to, suas palavras haviam expressado apenas o desejo de cuidar dela. E através da visão de Connor ele lhe dera es­perança.

Os dois vampiros que havia conhecido tinham mostrado prudência e preocupação. Por que o restante da tripu­lação seria diferente, mais perigoso? Mesmo assim, nem Lorcan nem o capitão tinham parecido gostar da idéia de Grace encontrar os outros. Seria cautelosa.

Continuou pelo corredor, contando cada porta para ter a idéia do tamanho da tripulação. Depois de vinte, parou de contar. Se havia dois vampiros em cada cabine, já seriam quarenta. Se houvesse quatro, seriam oitenta. Mesmo que cada cabine fosse ocupada apenas por um deles, ainda se­ria... algo em que ela preferiria não pensar.

Tremendo ligeiramente, continuou andando, tendo o cuidado de pisar com firmeza e em silêncio no centro do tapete. Lembrou-se de quando era pequena e, inspirada por algum filme ou livro de histórias, havia passado meses de­cidida a jamais pisar nas rachaduras da calçada para não cair, através delas, no covil de leões, tigres e ursos.

No final do corredor havia outra escada. Grace hesi­tou, mas parecia não haver sentido em não descê-la e ver aonde levava — principalmente depois de ter chegado tão longe.

Ela a conduziu a outro corredor, semelhante ao primei­ro, mas talvez só um pouco mais estreito e com menos lam­piões. Seria lar de outros deles? Devia ser. Indo em frente, contou mais trinta portas, depois parou.

De novo lembrou-se de que Lorcan e o capitão tinham prometido protegê-la. As palavras do capitão redemoi­nharam de volta em sua cabeça.

Não estamos atrás do seu sangue. Temos outros modos de atender às necessidades da tripulação.

O que ele quisera dizer com isso?, perguntou-se, espe­rando tropeçar num porão cheio de barris de sangue —, uma paródia grotesca de uma adega de vinho. O pensa­mento a fez tremer. Talvez fosse melhor voltar à cabine ago­ra, afinal de contas. Virou-se para retornar ao local de onde viera.

Nesse momento houve o rangido inconfundível de uma porta se abrindo. Grace parou. Que porta seria? Encostan­do-se à parede, olhou para um lado e para o outro, espe­rando o feixe de luz que revelaria o local.

Prendeu o fôlego quando um homem saiu cambalean­do de uma cabine a pouca distância de onde ela estava. Se ele virasse para a direita, ela seria descoberta instantanea­mente. Não sabia o que aconteceria, mas estava certa de que não seria uma experiência feliz — pelo menos para ela.

O homem parecia meio atordoado e parou um instan­te do lado de fora da cabine, vacilante. Grace percebeu, chocada, que era o pobre velho que ela vira através da ja­nela, fugindo das exigências de Sidório.

Deveria abordá-lo? Estava preocupada com a hipótese de amedrontá-lo. Além disso, e se ele não fosse o pobre velho que aparentava ser? E se fosse um vampiro também — um vampiro que precisasse tanto de sangue a ponto de percorrer os corredores para implorar? Decidiu acom­panhá-lo e olhar, sem fazer contato. Pelo menos até saber mais sobre ele. O sujeito parecia estar numa espécie de tran­se. Talvez esse fosse o estado depauperado em que os vam­piros existiam durante as horas do dia, enfraquecidos até mesmo sem exposição direta ao sol.

Grace só conseguia segurar o fôlego por um tempo. Lamentando não ter feito mais aulas de natação, viu com alívio que o homem havia partido pelo corredor na dire­ção oposta, cambaleando um pouco de um lado para o ou­tro e estendendo as mãos de vez em quando na direção das paredes do corredor estreito, para se firmar.

Grace soltou o ar em silêncio e foi atrás dele, muito devagar e sem fazer barulho, mantendo-se nas sombras e deixando uma boa distância entre os dois.

Ele desapareceu, mas era possível ouvir seus passos, e ela imaginou que o homem devia ter encontrado a escada para um dos outros conveses. Sem dúvida, ela própria che­gou a outra escada que descia ainda mais no navio. Abaixo viu a cabeça dele rapidamente, antes de partir pelo outro corredor. Esperou alguns instantes e foi atrás.

O corredor seguinte era diferente. Não havia tapete, e as portas eram em número muito menor. Mais adiante, uma delas estava aberta e uma luz forte se esgueirava para fora. O vampiro acelerou o passo e entrou na porta iluminada. Grace seguiu-o rapidamente, mergulhando em silêncio nas sombras atrás da porta. Através da fina fenda entre a por­ta e a parede pôde ver uma cozinha de tamanho considerá­vel. E sentiu cheiro de comida. Antes não tivera consciência da própria fome, mas o cheiro era inebriante a ponto de parecer absolutamente impossível resistir. Ela havia saído das sombras e entrado no meio da área iluminada. Era como se tivesse pisado num palco iluminado. Viu-se olhan­do a cozinha, encarando o vampiro idoso e uma cozinheira de aparência exausta, que pareceu meio irritada com seu surgimento.

— Não fique aí parada, moça — disse a cozinheira uma mulher gorducha, de rosto vermelho —, venha e sen­te-se num banco. Cuido de você num minuto, é só esperar sua vez.

A mulher virou a cabeça enquanto Grace puxava obe­dientemente um banco e sentava-se junto ao balcão.

— Jamie! Jamie! Aonde esse garoto foi?

A cozinheira fez “tsc-tsc” e se virou de novo para o vampiro que Grace havia acompanhado. Na cozinha lu­minosa, a pele dele parecia pálida e frágil como papel de seda.

— Espere aí, Nathaniel — disse a cozinheira. — Vou lhe servir uma boa tigela de sopa.

Sopa? Vampiros não comiam sopa, não é?

Mas, sem dúvida, a cozinheira enfiou uma concha numa panela de líquido borbulhante e o transferiu para uma ti­gela funda. Pôs a tigela numa bandeja com um pedaço de pão preto recém-tirado do forno e entregou ao vampiro.

Vampiros também não comem pão — Grace tinha qua­se certeza. Será que esse homem não era um vampiro?

Ele enfiou o nariz no vapor que subia e abriu um sorriso.

— Vai ser muito bom para você, Nathaniel — disse a cozinheira.

O homem assentiu para ela e saiu da cozinha carregan­do a bandeja. Grace se perguntou se ele conseguiria voltar à cabine sem derramá-la.

— Bom, uma tigela de caldo quente para você tam­bém? — A cozinheira não esperou resposta antes de mer­gulhar a concha de volta na panela borbulhante.

— Jamie — gritou por cima do ombro. — Jamie, es­pero que não esteja dormindo. Há muito trabalho a fazer, só temos duas mãos! Jamie!

Grace não sabia se o rosto vermelho da cozinheira era devido ao vapor ou de tanto gritar. Será que ela não tinha medo de perturbar a tripulação, despertá-la do sono? O sono dos mortos, pensou Grace, cheia de tristeza.

— Lá vamos nós, aproveite — disse a cozinheira, pon­do uma tigela de sopa no balcão diante de Grace e cortando uma generosa fatia de pão para acompanhar.

Grace puxou o banco mais para perto do balcão e par­tiu faminta para a sopa. Era deliciosa, mas ela não sabia exatamente dizer qual seria o sabor — certamente, nada que houvesse provado antes. A cor era de um rosa profun­do, mas logo a tigela estava limpa e vazia de novo.

— Bem, alguém estava com fome! — disse a cozinhei­ra. — Quer mais uma gotinha? Sim, claro, seria grosseria não querer!

Com isso ela pegou a tigela e a encheu de novo.

Grace ficou surpresa com a intensidade de sua fome. Era doloroso esperar a chegada da segunda tigela. Impa­ciente, bateu com o pé no banco enquanto a cozinheira par­tia mais pão. Grace percebeu que seu corpo gritava por comida, por esta comida.

Foi um alívio maravilhoso mergulhar a colher de volta na tigela e tomar outra porção da sopa. Mal respirou en­quanto sorvia até a última gota. O pão preto era tão gos­toso quanto o caldo. Picou-o e usou para enxugar cada mancha de sopa nas laterais da tigela.

— Viu isso, Jamie? — disse a cozinheira. — Os novos são sempre os piores, não é?

Grace levantou os olhos com curiosidade, a língua enxugando as últimas gotas de sopa dos cantos da boca. Os novos. Novos o quê? Ia perguntar quando sentiu um can­saço súbito e avassalador. A cozinheira e o menino na frente dela viraram um borrão. Enquanto seus olhos se fechavam, sentiu a colher cair. Ela bateu no piso, mas o som pareceu distante. Grace caiu para trás mas pousou, felizmente, em duas mãos que a esperavam. Depois disso, relaxou num sono profundo e tranqüilo.

 

                                      Postos de combate

Connor e Bart comeram no segundo turno do almoço. Ambos estavam famintos depois dos trabalhos da manhã e mergulharam em montanhas de torta de bacalhau, purê de batata-doce e algas cozidas. As algas não eram somente di­fíceis de mastigar, mas tinham um gosto meio ruim, e Connor as empurrou para o lado do prato.

— Isso é cheio de minerais — disse Bart, colocando uma porção extra no próprio prato. — Ótimo para ganhar músculos rígidos.

Connor experimentou outro bocado. Era como comer raspas de borracha.

Enquanto Bart acendia um cigarro feito à mão e ia pe­gar chá para os dois, Connor soltou um bocejo. Tinha sido uma longa manhã, e ele estava pronto para uma sesta. Olhando o refeitório ao redor, podia ver que os outros piratas estavam num clima parecido. Alguns haviam cochilado à mesa, estavam deitados nos bancos ou encostados no vizinho. Um camarada sem sorte tinha evidentemente cedido ao cansaço durante a refeição e caíra de cabeça no purê. Connor sorriu — estava cansado, mas não tanto.

De repente um sino tocou alto. Connor pulou do ban­co. O sino tocou de novo. Piratas — que há um instante roncavam, barulhentos — voltaram à vida e saíram cor­rendo do refeitório, completamente alertas, espadas balan­çando à cintura. Todos, menos o preguiçoso cujo rosto estava enterrado no almoço.

— Ande, rapaz, anime-se.

Bart empurrou uma caneca de esmalte, cheia de chá, na mão de Connor.

— Leve com você — disse ele.

— Aonde vamos?

— Ao convés principal — gritou Bart acima do baru­lho. — Informes do capitão.

— Informes do capitão?

— Você verá. Venha, mexa-se. Quero um bom lugar.

 

O convés estava se enchendo depressa quando Connor e Bart chegaram. Mesmo assim, Bart conseguiu abrir cami­nho no meio da multidão, e Connor foi atrás. Não era coi­sa fácil, carregando uma caneca de chá, e Connor recebeu vários olhares furiosos enquanto derramava líquido quen­te na casaca ou nas botas de algum pirata. De algum modo conseguiram chegar à frente da turba. Connor sentou-se de pernas cruzadas e se viu aos pés do capitão Wrathe, que estava imerso em conversa com Cate Alfanje. Scrimshaw, como Connor percebeu, havia se enrolado no braço do capitão e parecia acompanhar atentamente as palavras de Cate. Atrás dela um grande quadro-negro estava encosta­do num cavalete e, enquanto falava ao capitão, as mãos de Cate passavam sobre ele, deixando um borrão de intrica­das marcas de giz.

Por fim o sino tocou de novo. Cheng Li chegou ao con­vés parecendo bastante irritada.

— Por que não me informaram disso? — perguntou rispidamente a Cate Alfanje, que deu de ombros e se virou de novo para o quadro-negro.

— Capitão Wrathe, preciso falar com o senhor — dis­se Cheng Li.

Mas o capitão não queria ouvir.

— Depois dos informes, srta. Li.

Connor ouviu-o dizer.

— Mas, capitão, eu realmente...

— Depois dos informes. — Havia aço na voz dele.

Connor podia ver que a relação entre o capitão Wrathe e sua subcapitã estava piorando dia a dia. Não era de es­pantar que Cheng Li desse broncas em todo mundo que atravessasse seu caminho. Seu poder no navio parecia ser questionado o tempo todo. E não ajudava em nada o fato de os piratas tratarem Cate Alfanje com um respeito natural, tão grande que qualquer um acharia que ela era a subcapitã.

O capitão Wrathe se virou para encarar a curiosa platéia.

— Certo. Está todo mundo aí?

— Sim, capitão — gritaram alguns piratas. Em termos de chamada, pensou Connor, estava longe de ser completa.

— E todo mundo está com vontade de ficar podre de rico? — perguntou o capitão.

Dessa vez houve muito mais gritos de “sim”.

— Excelente, excelente — disse o capitão Wrathe com os olhos brilhando tanto quanto as safiras que usava nos dedos.

— Bem, amigos, recebemos a notícia de um navio que partiu há pouco de Puerto Paradiso, carregado — e eu dis­se CARREGADO — de belos tesouros.

A atenção do capitão Wrathe pareceu ser distraída por um momento pela chegada de um dos seus homens.

— Desculpe o atraso, capitão.

Um pirata palerma, com o rosto meio coberto por purê de batata, espremeu-se no espaço ao lado de Bart.

— Tudo bem, Pequeno Bobby — disse o capitão Wrathe. — Você acabou de almoçar, não foi?

Houve um ricochete de gargalhadas da tripulação, mas o capitão silenciou-a levantando o braço.

— Como estava dizendo, este navio vem subindo a cos­ta. Parece que um dos maiores ricaços de Puerto Paradiso está transportando seus melhores tesouros para sua casa de veraneio.

— Aaah, a casa de veraneio! Que chique! — gritou um pirata.

— É mesmo, sr. Joshua, não é? — respondeu o capi­tão, claramente achando divertido. — Eu digo “casa”, mas na verdade é mais um palácio.

Connor estava se divertindo. Gostava do modo como o capitão Wrathe brincava com a tripulação. Era como olhar uma peça de teatro.

— Bom, quem de vocês está a fim de uma pândega? — perguntou o capitão.

— Eu, capitão!

— Desculpe — disse o capitão, levantando uma das mãos ao ouvido. — Estou com um pouco dificuldade de escutar.

— EU! — rugiram os piratas.

Connor juntou-se ao grito. O capitão Wrathe o escu­tou e deu-lhe uma piscadela. Scrimshaw também pareceu olhar Connor direto nos olhos. Ele ainda sentia irritação por ser monitorado pela cobra.

— Maravilhoso — continuou o capitão. — Bem, se­gundo nossos cálculos, pelo modo como o navio está na­vegando, podemos alcançá-lo na hora do chá, abordar e voltar com o butim antes da hora do jantar. Ouviu, Bobby? Antes da hora do jantar!

Bobby, que ainda estava lambendo o purê do rosto, assentiu com entusiasmo.

— Todo mundo concorda? — gritou o capitão Wrathe.

— Sim, capitão! — rugiu a turba de novo.

Mas houve uma voz que não participou.

— Capitão, uma pergunta.

— Sim, srta. Li.

— Esse navio está realmente navegando em nossa via marítima? Puerto Paradiso fica bem longe.

— Já discutimos isso antes, srta. Li. Não ligo para essa idéia de capitães piratas terem vias marítimas fixas. Se vejo um navio com tesouro navegando por perto, por que vou deixar outro capitão pegá-lo?

— Ouçam, ouçam! — gritou alguém na multidão.

Cheng Li balançou a cabeça.

— Com todo o respeito, capitão Wrathe, esses são regulamentos estabelecidos pela Federação dos Piratas...

Molucco Wrathe fingiu bocejar, provocando boas gar­galhadas na turba.

— Sei que acha esse assunto tedioso, capitão, mas, de novo com todo o respeito, sou eu que tenho de limpar a bagunça depois de ignorarmos descaradamente os regu­lamentos.

— Lamento se isso afeta você.

— Afeta a todos nós — respondeu Cheng Li com a voz ríspida. — Se entrarmos na via marítima de outro navio, não somente estaremos violando as regras do mar, estare­mos atraindo ataque por parte de piratas que insultamos ao invadir suas águas.

— Certo — disse o capitão Wrathe, calmamente. — Certo, srta. Li. Seu argumento é justo. E o Diablo é uma democracia. Vamos colocar em votação. Os que acham que devemos deixar esse tesouro escapar, por respeito aos nos­sos colegas piratas, digam “sim”.

Houve silêncio no convés. Connor se encolheu ao ver Cheng Li tão humilhada. Só podia imaginar a fúria que ela sentia por dentro. Sabia que aquela fúria encontraria saída em algum momento e esperava não estar por perto na hora.

O capitão Wrathe continuou sem remorsos:

— Bom, todos que são a favor de pegar o tesouro e os arriscarmos...

Dessa vez houve uma reação ensurdecedora. Connor sentiu as tábuas do convés ressoarem com o barulho. Seu coração batia rápido, e ele sentiu um arrepio na coluna. Olhou do capitão Wrathe para Bart, que havia se juntado aos gritos que se espalhavam como incêndio pelo convés. O convés era um mar de piratas gritando, com as mãos levantadas em apoio ao capitão.

— Acho que tem sua resposta, srta. Li — disse o capi­tão Wrathe.

— Sim — respondeu ela, sem lhe dar a cortesia de usar seu título. Connor se perguntou se o capitão Wrathe iria censurá-la por isso, mas ele deixou passar.

— Realmente espero que ainda se sinta em condições de lutar conosco, srta. Li. A senhorita é um dos nossos guerreiros mais brutais e não tenho dúvida de que vou querê-la no coração desse ataque.

— Sou subcapitã do Diablo — disse Cheng Li gelidamente. — Claro que cumprirei meu dever.

— Muito bem — disse o capitão Wrathe. — Muito bem. E agora vamos ouvir uma ou duas palavras sobre estra­tégia, de minha estimada colega, a sra. Catherine Morgan, mais conhecida nestas paragens como Cate Alfanje.

O capitão Wrathe recuou, e Cate se adiantou. Dois ou­tros piratas saltaram da multidão para empurrar à frente o quadro-negro.

— Certo, pessoal — disse Cate, profissional como sempre, com um pedaço de giz azul na mão. — Hoje vamos trabalhar com três equipes em formação 4-8-8. Vocês sa­bem como é...

Ela se virou para o quadro-negro e fez cruzes com o giz azul sobre o desenho original, que agora Connor viu que se parecia com um convés visto de cima.

— Nosso serviço de informações disse que o navio-alvo é um galeão padronizado. Depois de dispararmos os ca­nhões, as equipes de frente vão entrar aqui, aqui e aqui. Joshua, Lukas, Bartholomew... vocês vão na frente com os outros homens dos montantes. Façam seu serviço. Quero ver o cordame picotado quando o pessoal dos sabres che­gar ao convés.

Seu giz varria o quadro-negro, fazendo círculos sobre as cruzes desenhadas antes.

— Equipes dos sabres, vocês sabem quem são. Vamos seguir logo depois. Atenção ao pessoal de frente e mante­nham o passo com eles. Não quero nem um centímetro entre vocês. À medida que eles abrirem espaço, ocupem. Quero a tripulação inimiga derrotada antes que perceba o que está acontecendo. Essa é a chave para trazer o tesou­ro. Agora...

Cate deu as costas para o quadro e encarou a tripula­ção. Sua expressão era séria.

— Quero o mínimo derramamento de sangue. O importante é contar os prêmios, não os mortos. Alguns de nós andamos passando do ponto nesse departamento. Javier? De Cloux? Contenham-se rapazes, entenderam? Há mais habilidade numa espada que não retorna com sangue na ponta.

Connor ficou aliviado e um pouco surpreso. Depois das palavras de Cate durante a aula de luta de espadas ele havia ficado com a impressão de que sangue e tripas eram tudo que importava para ela e para os piratas daquele navio.

— Sábias palavras, Cate — disse o capitão Wrathe, vol­tando à discussão. — E espero que todos tenham ouvido bem. É dever de vocês, piratas experientes, dar bom exem­plo aos novos recrutas.

Os homens ficaram em silêncio, pensando nas palavras de Cate e do capitão.

— E agora — disse o capitão Wrathe, sorrindo de no­vo —, certifiquem-se de que suas espadas estão lubrificadas e prontas. Estabeleçam curso para oeste e preparem-se para a batalha! Preparem-se para doces riquezas. Caso se saiam bem — e sei que isso vai acontecer —, posso prometer uma noite de prazeres lá na taverna de madame Chaleira.

Ao ouvir essas palavras, um grito enorme se ergueu da turba. Então os piratas começaram a se dispersar tão rapidamente quanto haviam chegado.

Bart se adiantou para falar com Cate. Cheng Li se afas­tou bruscamente, sem dizer nada. Connor se viu diante do capitão Wrathe.

— O garoto precisa de uma espada, Cate — disse o capitão.

Ele piscou para Connor de novo, deu um tapa nas cos­tas de Bart e se afastou a fim de preparar o navio para o ataque.

Cate e Bart se viraram para Connor.

— Tem certeza de que está preparado para isso? —perguntou Cate.

Connor deu de ombros.

— Ele está — disse Bart.

 

Na volta para a cabine, Connor encontrou Cheng Li olhan­do o mar, parecendo a própria imagem do abatimento. Hesitou. Estava temeroso de se aproximar, mas sentia que lhe devia algum apoio. O capitão Wrathe a havia humilha­do cruelmente na frente dos piratas, enfraquecendo ainda mais sua reduzida autoridade sobre eles. Cheng Li podia ser arrogante e autoritária, mas, afinal de contas, ela é que havia salvado Connor da morte. E, mesmo tendo um modo estranho de demonstrar, o garoto sabia que a subcapitã se importava com ele.

— Olá — disse.

Ela ergueu os olhos. Em seu rosto Connor costumava ver a máscara retesada da guerreira. Agora, mais parecia uma menina. O capitão Wrathe não apenas lhe havia retirado a autoridade, mas também a capacidade de luta, o entusiasmo.

— E, então, gostou do espetáculo? — perguntou ela com amargura.

— Na verdade, não. — Connor balançou a cabeça. — Você está bem?

— Estou — disse ela, olhando-o com curiosidade. — Claro que sim. Estou acostumada com as manias de Mo­lucco Wrathe, mesmo que essa tenha sido um pouco mais exagerada do que o normal. Na verdade, é lisonjeiro.

— Lisonjeiro? — Connor não entendeu.

— Ele deve se sentir muito ameaçado por mim, não acha, para tentar me diminuir desse jeito? Veja bem, jovem amigo, ele sabe que, mesmo tendo os imbecis desta tripu­lação aplaudindo cada sílaba que fala, eu tenho o poder de verdade por trás.

— Como assim?

— O mundo da pirataria está mudando, garoto, e os homens como Molucco Wrathe serão deixados para trás. Ser pirata, para eles, é uma farra alegre. Gente como eu, empreendedora, com mil conexões, é o futuro.

Connor ficou surpreso ao ouvi-la falar naqueles termos, mas achou que, depois do comportamento do capitão Wrathe, a fidelidade de Cheng Li fora tremendamente tes­tada. E talvez ele fosse o único com quem ela achava que poderia se abrir sobre isso.

— Há um mundo de pirataria muito maior do que você vê neste navio, garoto. O Diablo, perdoe a expressão, não passa de uma gota no oceano. Chegará um tempo, e não está muito distante, em que os Molucco Wrathe deste mundo ficarão para trás. Então você verá algo empolgante: um novo alvorecer da pirataria.

Cheng Li parecia ter retornado a algo parecido com sua costumeira arrogância. Connor ficou lisonjeado por ela tê­-lo incluído em sua visão de futuro. Mas os sentimentos calorosos não permaneceram por muito tempo.

— Bem, não posso ficar aqui falando com você a tar­de toda, garoto. Estas katanas precisam de óleo para o ataque.

Com isso virou-se e foi andando pelo convés. Cheng Li certamente era corajosa. Nem mesmo a humilhação que sofrera havia retirado seu impulso. No mínimo, aquilo a havia tornado mais forte e mais temível. Connor ficou olhando as duas lâminas se projetando das costas dela. Lembrou-se de Cate implorando que os piratas não infli­gissem ferimentos sem motivo. De algum modo, duvidou que a srta. Li prestaria muita atenção a isso. Coitado do homem ou da mulher que entrasse em confronto com ela hoje.

 

                                            O Toque do Anoitecer

— Jamie, onde você ESTÁ? Jamie!

Grace já fora acordada por alarmes mais agradáveis na vida, mas não havia como duvidar dos gritos agudos da cozinheira. Abriu os olhos e foi lançada instantaneamente de volta ao vapor, ao calor e ao barulho incessante da co­zinha. Estava deitada no chão, no canto, com uma toalha de mesa engomada cobrindo-a como lençol improvisado.

A cozinheira estava verificando panelas ruidosamente, levantando tampas e batendo como um percussionista que tivesse um senso de ritmo confiante, mas irregular. Jamie parecia ter sumido de novo.

— Onde está, meu garoto? Só tenho duas mãos, não é? Ah, isso é demais para uma mulher da minha idade!

— Posso ajudá-la? — perguntou Grace, levantando-se e dobrando a toalha de linho pelos vincos do ferro de engomar.

— Você? — A cozinheira parou. — Isso é meio irre­gular. Seria bom ter ajuda mas, não, você precisa descan­sar e recuperar as forças.

Grace balançou a cabeça.

— Estou me sentindo ótima, obrigada. Não sei o que há naquela sopa, mas estou cheia de energia.

A cozinheira sorriu.

— Obrigada, moça, fico feliz em ouvir isso. Muito bem, de cavalo dado não se olham os dentes. Só não espere que eu revele algum dos meus ingredientes secretos, hein? — Ela balançou uma espátula na direção de Grace, de um modo nem um pouco ameaçador.

— Sem dúvida — disse Grace. — Bem, por onde co­meço?

— Estas cenouras precisam ser picadas, para começar.

Grace olhou a montanha de cenouras — uma quanti­dade maior do que já tinha visto no mercado do porto. Sem se abalar, pegou um punhado e colocou sobre uma tábua de cortar.

— Muito bem — disse a cozinheira, observando Grace. — E no tamanho certo. Você é realmente uma bênção ines­perada, sabia?

Enquanto a cozinheira corria para cuidar do resto da comida, Grace se ocupou com as cenouras. Sempre havia gostado dos aspectos repetitivos do ato de cozinhar — ti­nha descoberto que isso lhe dava um sentimento de calma e controle, em especial quando esses sentimentos estavam em falta nos outros lugares. Lembrou-se da hora do jantar no farol, quando seu pai costumava preparar festins para os três, e ela e Connor ajudavam cortando, mexendo e, o melhor de tudo, provando.

— Como está indo?

Um rosto sorridente apareceu do outro lado do balcão. Não era a cozinheira, e sim o esquivo Jamie.

— Bem — respondeu Grace.

— Você trabalha rápido — disse ele, jogando um pe­daço de cenoura na boca.

Grace deu de ombros.

— A última coisa que eu esperava encontrar neste na­vio era uma cozinha.

— As pessoas precisam comer, moça — disse Jamie.

— É, as pessoas, sim, mas não... — ela baixou a voz. — Mas não vampiros.

Seu olhar encontrou o de Jamie.

— Ah, este grude não é para eles — disse o garoto, jo­gando outro pedaço de cenoura na boca.

— Então é para quem?

— Jamie! Jamie, quer parar de distrair a garota e fa­zer alguma coisa útil? Pegue aquela carne na geladeira.

— O dever me chama — disse Jamie, afastando-se antes que Grace tivesse chance de pressionar por uma resposta.

A cozinheira veio e deu um tapinha no ombro de Grace.

— Isso é que é trabalho rápido, menina — disse ela. — Acho que vou trocar uma palavra com o capitão sobre você. Parece um tremendo desperdício, quando eu pode­ria aproveitá-la aqui na cozinha. Seria bom ter mais um par de mãos para compensar aquele meu sobrinho imprestável.

Um tremendo desperdício? O que ela estava falando? Grace lembrou-se das palavras que a cozinheira tinha dito antes que ela caísse no sono.

Os novos são sempre os piores, não é?

O que ela estava falando? Uma onda de pânico come­çava a crescer. Mais além, Jamie tirou uma porção de car­ne da geladeira.

— O que está acontecendo aqui? — gritou Grace, largando a faca. — Para quem é toda esta comida?

— Cuidado, moça — disse a cozinheira. — Olhe, você se cortou.

Grace olhou para baixo. Sem dúvida, a faca havia feito uma incisão no dedo e uma pequena gota de sangue estava brotando na pele.

Antes que ela percebesse, a cozinheira havia agarrado sua mão, apertando-a com força.

— Depressa, Jamie, mexa-se. Mexa-se, seu impres­tável. Ah, que desperdício!

Grace tremeu, mas não conseguia escapar do aperto feroz da cozinheira. Quando levantou os olhos, viu, hor­rorizada, que o rosto da mulher havia mudado. Seus olhos estavam vítreos e toda a expressão era vazia, como se a vida houvesse partido da concha de seu corpo e ido para outro lugar. Grace lembrou-se de como as feições de Lorcan ha­viam se distorcido em sua cabine. Era a mesma coisa, mas ao mesmo tempo diferente. Será que a cozinheira era ou­tra vampira? E Jamie? Grace tinha pensado que estaria em segurança ali, nessa parte quente e movimentada do na­vio. Como estava enganada!

Jamie tinha se juntado à tia e estendeu a mão para a de Grace, limpando seu dedo e enrolando um pequeno cura­tivo muito bem-feito.

— Isso deve estancar o sangue — disse ela.

Atordoada, Grace olhou a mão com o curativo.

— Essa foi por pouco — disse a cozinheira. De repen­te, toda animada de novo, ela soltou a mão de Grace. — Uma cozinha não é lugar para falta de higiene! É melhor eu levar essas cenouras para a panela. E você, moça, é me­lhor parar um pouco. Não sei bem se você está preparada para o trabalho de cozinha, afinal de contas. É um pou­quinho tensa demais. Talvez a escolha do capitão seja me­lhor, afinal de contas.

— Qual é a escolha do capitão? — perguntou Grace. — Por favor, pare de falar por enigmas e conte o que está acontecendo!

— Devo dizer que você acordou meio de mau humor — disse a cozinheira, franzindo a testa.

— Conte — repetiu Grace.

— Sem dúvida você sabe do essencial — disse a cozinheira, sorrindo para ela com uma sugestão de malícia. — Você é a nova doadora, não é? O velho Nathaniel vai se aposentar e você vai ocupar o lugar dele.

Doadora? Grace não estava bem certa do que a cozi­nheira queria dizer, mas não parecia bom. Queria pergun­tar mais. Porém, quando abriu a boca, não saiu nenhuma palavra. Lembrou-se da visão do velho Nathaniel entran­do tonto na cozinha, a pele pálida e fina como se estivesse sem sangue. O que a maldosa cozinheira estava dizendo? Que o velho Nathaniel não era vampiro? Então era o quê?

Você é a nova doadora.

Temos outros modos de atender às necessidades da tri­pulação.

As coisas começavam a fazer sentido. Talvez ela esti­vesse errada em confiar em certas pessoas. Surpreendeu-­se com frio e trêmula.

Então um sino começou a tocar.

— Está na hora? Depressa, Jamie, de volta ao traba­lho, caso contrário, não estaremos prontos para o Festim.

O Festim?

O sino tocou de novo.

— Esse é o Toque do Anoitecer? — perguntou Grace a Jamie.

Ele assentiu, jogando uma maçã vermelha para o alto e pegando-a entre os dentes. Tinha dentes estranhamente afiados, pensou ela, enquanto o garoto mordia a casca e penetrava na carne branca e cremosa. Mas vampiros não comem comida, não é? Tudo era muito confuso.

— Preciso ir — disse, sentindo-se nauseada. — Preci­so voltar.

— Então vá.

Jamie sorriu para ela, a boca se abrindo enquanto mas­tigava o resto da maçã — sementes, miolo e tudo.

 

                                  Ataque de surpresa

Connor esperava com sua equipe que o canhão sinalizasse o começo do ataque. Seu coração martelava de tanta ansie­dade. Apenas cerca de metade dos piratas participariam do ataque. O galeão-alvo, do qual estavam se aproximan­do rapidamente, era menor do que o navio pirata, de modo que sessenta homens e mulheres fariam o trabalho.

Havia três equipes de vinte — cada uma dividida em três grupos menores, de quatro, oito e oito. Daí a forma­ção 4-8-8, da qual Cate havia falado. Connor era bastante experiente em times esportivos para entender rapidamen­te a estratégia. Era bem simples. O “quatro” era uma equi­pe de quatro homens com montantes, que entrariam na frente para amedrontar a tripulação do outro navio, usar suas espadas pesadas e fazer todo o dano superficial que pudessem contra o cordame e outras partes da embarca­ção. Apenas danos superficiais. O navio não seria significativamente destruído, para a hipótese remota de o capitão Wrathe decidir seqüestrá-lo para seu uso.

Assim que as equipes de montantes tivessem provoca­do o caos e o medo no convés, poderiam ser seguidas de perto pelas primeiras equipes de oito atacantes. Equipa­dos com armas menores e letais como sabres, floretes e adagas, os primeiros oito identificariam os alvos humanos e partiriam para o ataque. Como Cate lembrou à sua equi­pe na última reunião, a idéia era fazer com que a tripula­ção do outro navio se submetesse e entregasse a carga, e não matá-la por esporte.

O trabalho do segundo grupo de oito atacantes — Connor Tormenta fora convocado para um deles — era apoiar o pri­meiro ataque. Os oito primeiros tinham status superior e poderiam ordenar o apoio deles. Cada um dos oito primei­ros era emparelhado com um dos segundos; Connor sen­tiu-se honrado por ser designado como segundo de Cate.

— É a posição mais segura da equipe — disse Bart. — Cate faz o equivalente a três homens. Mas você vai ficar perto do combate, não se engane com isso. E ouça o que ela falar. Faça tudo que ela pedir e todos voltaremos em segurança para a festa.

Bart calçou as luvas de couro e apertou a mão de Connor.

— Boa sorte, sr. Tormenta.

— Para você também.

Sorrindo como sempre, mas totalmente profissional, Bart foi correndo juntar-se aos outros três grandalhões que compunham sua equipe de quatro.

Connor se juntou de novo à sua equipe, que se prepa­rava psicologicamente para o ataque de modo bem pareci­do com os times de esportes dos quais ele havia participado desde criança. Alguns piratas se aqueciam — saltando para soltar as pernas ou girando de um lado para o outro para garantir que poderiam obter a máxima amplitude de mo­vimento. Outros treinavam estocadas e cortes no ar, com as espadas. O pensamento nas espadas em ação verdadei­ra fez Connor estremecer e sentir-se meio enjoado.

Roçou os dedos no punho do sabre que agora pendia de sua cintura. Cate havia repassado o papel de Connor no ataque e dito que era bastante improvável que ele tivesse de usar a espada para algo além de intimidação. Mas isso não era brincadeira. Nada era garantido. Connor sentiu o peso da espada. Era pesada, mas ainda mais pesado era o sentimento cada vez maior de pavor por ter de usá-la. Talvez não fosse feito para a vida de pirata, afinal de con­tas. Mas agora era tarde demais para recuar — os outros dependiam dele.

De repente Cheng Li apareceu ao seu lado. Pensou que ela estivesse num dos primeiros grupos de oito. Mas tal­vez estivesse apenas vindo lhe desejar sorte.

— Vou participar desta equipe — anunciou Cheng Li. — Johnna, vá tomar meu lugar nos oito primeiros. Você foi promovida. Vou ficar de olho no sr. Tormenta.

A outra pirata, Johnna, ficou obviamente deliciada. Saudou Cheng Li e foi correndo se juntar ao restante de sua equipe. Connor olhou para Cheng Li. Será que ela havia mesmo escolhido ficar atrás ou teria sido rebaixada? Seus olhos escuros o, alertaram a nem pensar nisso.

De repente houve um ruído ensurdecedor vindo de cima da cabeça de Connor. Olhando para cima viu uma pesada grade de metal caindo na direção dele. Instintiva­mente, pulou para fora do caminho. Quando ele fez isso, a grade estreita balançou para baixo mas parou num ângu­lo de quarenta e cinco graus. Duas estruturas semelhantes apareciam a intervalos, mais adiante no convés. Elas se projetavam ameaçadoramente, como pontes levadiças meio estendidas.

— O que são essas coisas? — perguntou Connor a Cheng Li, já suspeitando do pior.

— Como acha que vamos passar do nosso navio para o deles?

Connor olhou para a grade estreita que pairava acima de sua cabeça enquanto o navio balançava de um lado para o outro. Não parecia nem um pouco estável.

— Quando o canhão soar — disse Cheng Li —, elas vão baixar até ficar na horizontal, formando uma ponte.

Connor não se convenceu.

O pirata do outro lado cutucou-o.

— A gente as chama de Três Desejos — disse. — Por­que todo mundo só pode desejar uma boa travessia até o outro navio e retornar em segurança.

— Obrigada — disse Cheng Li, irritada. — Isso aju­dou muito.

Connor sentiu-se realmente enjoado.

O canhão soou.

O navio pirata havia chegado junto ao alvo, sendo mui­to mais rápido do que a embarcação menor, como um tu­barão se aproximando de um golfinho.

As embarcações se chocaram.

O barulho nos ouvidos de Connor foi ensurdecedor quando os canhões soaram de novo e, ao mesmo tempo, as Três Desejos foram baixadas até um ângulo de noventa graus e posicionadas em forma de pontes que iam do Diablo até o outro navio.

Quando as grades de metal se encaixaram ruidosamen­te, as três equipes de homens com montantes não perde­ram tempo em correr pelas estruturas frágeis, bem acima do mar agitado. Connor viu que cada ponte tinha um fino corrimão de cada lado, mas mesmo assim não pareciam nem um pouco fortes, balançando para cima e para baixo enquanto os dois navios se sacudiam na água revolta.

— Não consigo — disse Connor, com o pânico o atra­vessando como gelo.

— Claro que consegue — respondeu Cheng Li. — O truque é correr o mais depressa possível. Quanto mais lento você for, mais instável vai se sentir. E, faça o que fizer, Connor, não olhe para baixo!

Mas nesse momento Connor não conseguia deixar de olhar. Muito abaixo das grades de metal ficava o oceano borbulhante, esperando faminto para recebê-lo de volta em seu abraço frio.

Tremeu. Nunca havia gostado de altura — nem mes­mo o fato de ter morado num farol havia feito ele suplan­tar isso. Sentiu um enjôo forte e um apavorante jorro de adrenalina nas veias. Num momento todo o seu corpo parecia pesado como chumbo, no outro, frágil e vulnerá­vel como uma pena. De jeito nenhum poria os pés na ponte. Bastaria um escorregão ou um passo em falso para mergu­lhar nas profundezas geladas. Queria arrastar-se para lon­ge e procurar abrigo. Por que o capitão Wrathe o havia escolhido para participar do ataque? Não podia fazer isso.

— Pode, sim.

Era a voz de seu pai outra vez. Bem dentro da cabeça.

— Você consegue, Connor.

A calma e a certeza da voz o tranqüilizaram. O jorro de adrenalina diminuiu, e Connor sentiu uma calma mo­mentânea.

— Primeiros grupos de oito, ao ataque! — gritou Cate, subitamente saindo do grupo e partindo por cima da Desejo.

E agora três equipes de oito piratas correram pelas pon­tes de metal como matilhas de lobos, pulando de um navio para o outro, correndo para cima da presa.

Connor e os outros da segunda equipe de oito foram em fila até a amurada. Ele era o penúltimo. Cheng Li esta­va atrás.

Era isso. O momento. Não sabia como a batalha esta­va indo. Era impossível ver o que acontecia no convés do outro navio.

Na frente dele a Desejo balançava para cima e para bai­xo. Mesmo tendo visto doze piratas a atravessando em segurança, ainda temia o pior. Mas que opção havia? Ele fazia parte de um time, e Connor Tormenta nunca havia deixado seu time na pior.

— Segundos grupos de oito! — soou um grito.

Os piratas à frente dele dispararam pela Desejo, as mãos nem mesmo tocando o corrimão de arame. De repente Connor estava na frente. Hesitou um instante, mas Cheng Li deu-lhe um empurrão firme.

— Ande, garoto. Prove que eu não resgatei um covarde.

Respirando fundo, Connor pulou na Desejo e, sem olhar para baixo, sem estender a mão, avançou. Bastaram alguns passos e pousou com ruído surdo no convés de madeira do navio. Tinha conseguido.

— Excelente, garoto! — gritou Cheng Li, pulando ao lado dele. Não houve tempo para mais conversa. Connor se separou de Cheng Li. Seu trabalho era encontrar Cate e seguir as instruções dela.

Ao redor, o primeiro grupo de oito estava envolvido em combate corpo a corpo. Connor estava tão cheio de adrenalina que poderia sentir-se tentado a participar, mas as instruções de Cate haviam sido claríssimas. Existia um sistema que precisava ser seguido. À frente viu Cate sinali­zando para ele se aproximar. Correu para perto dela. O sabre de Cate estava apontado para dois homens, cujos rostos falavam de rendição mesmo que os corpos não esti­vessem tremendo como juncos ao vento.

— Segure-os aqui enquanto eu vou mais fundo — ins­truiu Cate.

Connor desembainhou seu sabre e o apontou para os homens, esperando que eles não sentissem sua inexperiên­cia. A julgar pelos gemidos, não sentiram.

— Não deixem Tormenta nervoso — disse Cate aos dois. — Ele é um dos mais sanguinários. — Piscando secretamente para Connor, ela foi em frente.

Talvez não fosse tão difícil ser pirata, afinal de contas. Connor soltou o ar e sorriu para seus prisioneiros. Aquilo pareceu irritá-los bastante.

— Só estou sendo amigável — disse, dando de ombros, presunçosamente movendo a ponta do sabre mais para perto dos dois.

Sentiu uma batida nas costas. Girou. Um dos tripulantes do navio atacado havia se livrado e estava diante dele — segurando um sabre. Devia tê-lo tirado de um tripulante do Diablo. Não usava nenhuma proteção, mas seus olhos estavam cheios de ódio.

— Piratas desgraçados — disse ele. — Pensam que somos presa fácil, não é? Bom, pensem de novo.

Ele golpeou com a espada, mas Connor viu o movimen­to e saltou fora do caminho.

O homem voltou direto para ele, e dessa vez o sabre roçou em seu ombro. Connor sentiu uma dor lancinante. Mas tudo bem — melhor do que bem. A dor era como um despertador. Fez Connor se concentrar. Agora os dois es­tavam frente a frente, avaliando as possibilidades. Connor forçou-se a se concentrar, lembrando as lições de Cate e de Bart.

— Você é apenas um garoto — zombou o oponente. — Eles estão ficando sem piratas de verdade e pegando os jovens estagiários?

Não deveria engolir a isca. O sujeito estava tentando tirá-lo da guarda. Connor manteve o olhar fixo nos olhos dele. Deu certo. Quando o homem tentou atacá-lo de novo, Connor previu o movimento e bloqueou a lâmina com a sua. Então usou toda a força para pressionar o sabre do atacante para baixo. Ao fazer isso, a dor atravessou seu om­bro. O esforço fora demasiado. Podia sentir o sangue quen­te escorrer do ferimento.

Não podia permitir-se ficar distraído. Teria de partir primeiro no próximo ataque. E fez isso. Puxou o sabre e mergulhou para o oponente, rugindo de adrenalina. Com os olhos se cravando no sujeito, mergulhou o sabre na di­reção do peito dele. Mas o convés estava úmido de sujeira e sangue e Connor escorregou. O sabre não chegou ao peito do homem, mas o ataque o impeliu para trás e sua cabeça se chocou no mastro. Ele caiu no chão, com sangue jor­rando na cabeça e no rosto como uma cachoeira.

O coração de Connor estava disparado quando se abai­xou e tirou o sabre das mãos frouxas do sujeito. Quando puxou a mão de volta, ela estava encharcada de sangue. Enxugou-a nas calças.

Não queria que o sujeito morresse. Queria proteger­-se, mas não desejava que ele morresse. Olhou o convés ao redor. A batalha estava terminando. Os piratas do Diablo tinham vencido. Mas Connor não se sentia vitorioso.

Correu até os dois prisioneiros que Cate havia pedido para vigiar. Eles tinham visto o duelo e recuaram de medo quando ele voltou.

— Tenha misericórdia! — gritou um deles.

— Tire o cachecol — disse Connor com a voz áspera. — Tire o cachecol. AGORA!

As mãos trêmulas do sujeito desenrolaram o cachecol.

— Venha comigo! — ordenou Connor.

— Por favor, tenha misericórdia!

— Venha. — Agora Connor estava quase sem voz.

Segurou o sujeito pelos pulsos e puxou-o até o mastro, onde o oponente anterior estava coberto de sangue devi­do ao ferimento na cabeça. Pegando o cachecol, apertou-o no crânio do homem, segurando-o ali para estancar o sangue.

— Aqui, tome conta dele — disse, pondo a mão do outro homem sobre o cachecol ensangüentado. — Segure isso aí e mantenha a pressão com força. É um ferimento feio, mas não será fatal.

— Você é misericordioso! Obrigado! — disse o sujei­to do cachecol, sorrindo através dos dentes que chacoa­lhavam.

Connor ficou parado, respirando em haustos rápidos. Sentiu uma mão no ombro. Não podia mais lutar. Não lhe restava energia.

Virou-se.

— Bom trabalho, garoto — disse Cheng Li. — Talvez tenhamos de trabalhar seus instintos assassinos, mas, mes­mo assim, bom trabalho.

Cate veio correndo.

— Connor, ouvi falar do que aconteceu. Muito bem! Brilhante! E, Cheng Li...

— Sim?

Cheng Li e Cate se encararam, com as espadas nas mãos.

— Trabalho fantástico, srta. Li. Como sempre. Obri­gada por cuidar do Connor, mas na próxima vez quero você de volta à frente de ataque. Belos ferimentos de precisão. Você terá de me mostrar alguns desses golpes com as kata­nas qualquer hora dessas.

— Quando quiser — disse Cheng Li em tom displicen­te, mas Connor pôde ver que ela havia ficado satisfeita.

Cate foi correndo dar a notícia oficial da rendição do navio. O Diablo disparou dois tiros de canhão para sinali­zar a vitória e o navio derrotado deu um tiro que indicava a rendição. E a coisa acabou, tão depressa quanto havia começado.

O capitão do navio derrotado não precisara ser muito convencido. Sabia que estava em desvantagem numérica. Enquanto Cate o tirava da cabine, ele só conseguia gemer sobre o que seu chefe diria ao saber que a preciosa carga fora tomada.

— Pode dizer a ele que o capitão Molucco Wrathe, do Diablo, manda seus calorosos cumprimentos — disse uma voz familiar.

O capitão Wrathe saiu de trás da fumaça do canhão, parecendo absolutamente impecável, com as espadas já de volta às bainhas de prata.

— Agradecemos gentilmente sua carga — disse o ca­pitão Wrathe. — E, se nos ajudarem trazendo-a aqui para ser transferida, não iremos tomar mais de seu precioso tempo.

Sob ordens de Cate, Connor seguiu dois prisioneiros até o porão, mantendo a espada apontada para eles enquan­to faziam quatro viagens, cada um, levando os tesouros guardados na parte debaixo. Estavam aterrorizados demais para protestar.

Finalmente o butim estava empilhado no convés como uma fogueira de riquezas. Os piratas se dividiram de novo em duas equipes. Os primeiros grupos de oito mantinham a tripulação derrotada num círculo enquanto os homens dos montantes e as segundas equipes de oito pegavam os tesouros e levavam através das Três Desejos até o convés do Diablo. Depois de duas viagens de ida e volta, Connor havia praticamente perdido o medo.

— Pode me dar uma ajuda aqui, companheiro? — gri­tou Bart.

Rindo, Connor pegou o outro lado do último baú e, juntos, levaram-no pela Desejo.

As equipes de ataque restantes retornaram, pulando triunfantes das Três Desejos no convés. Então as três pon­tes temporárias foram erguidas, como pontes levadiças, e guardadas para o próximo ataque.

Gritos de comemoração receberam a volta dos atacan­tes, e houve uma rodada interminável de abraços, tapas nas costas e cumprimentos.

— Muito bem, companheiro! — disse Bart, dando um tapa caloroso nas costas de Connor.

— Muito bem mesmo! — exclamou o capitão Wrathe. — Belo ataque, colegas. Um belo ataque. — Ele passou o braço ao redor de Cate e abraçou-a. — Trabalho magnífi­co, Cate, realmente magnífico.

Cate ficou muito vermelha.

— Nós conseguimos — disse Connor a Bart. — Conseguimos!

— Agora você é um pirata — disse Bart. — Que Deus o ajude, você é um pirata de verdade.

Connor virou o olhar para o oceano e viu o navio derrotado retirando-se depressa em direção ao horizonte que escurecia. Afastou-se dos outros, indo até a amurada.

— Eu falei que você ia conseguir — disse uma voz fa­miliar em sua cabeça.

— Papai! — exclamou ele em voz alta.

— Você se saiu bem hoje, Connor.

— Onde está Grace? — perguntou Connor. — Está viva? Onde ela está?

Esperou, mas houve silêncio. Atrás dele ouvia a tripu­lação em júbilo. Por que seu pai havia ignorado a última pergunta? Houve mais disparos de canhão. Ele continuou junto à amurada, os olhos fixos no horizonte, esperando.

Por fim, a voz calma falou de novo dentro de sua cabeça:

— Ainda não, Connor. Ainda não. Mas logo.

 

                                           A figura de proa

Grace se virou e saiu correndo da cozinha para o corredor. Onde estava a escada? Quanto tempo ainda lhe restava?

O sino tocou de novo.

Como podia ter perdido a noção de tempo desse jeito? Devia ter dormido muito mais tempo do que percebera. Imaginou se a cozinheira teria posto um ingrediente secre­to no pão e na sopa.

No toque seguinte do sino havia chegado ao corredor onde o velho Nathaniel tinha saído da cabine. Agora o lo­cal estava silencioso, com todas as portas fechadas. Talvez ainda houvesse tempo.

Lançando-se na escada, subiu de dois em dois degraus, sem se preocupar com o barulho que fazia. Seu coração martelava feito louco. Precisava voltar à cabine antes que a tripulação acordasse.

De novo o sino tocou. Quantos toques ela ainda teria?

Agora estava no corredor sob o convés principal. Po­dia ouvir sinais de vida atrás das portas fechadas. Não: eram mais como sinais de morte. Nem pense nisso, Grace, ape­nas corra!

Já estava sem fôlego quando chegou à última escada. Se ao menos tivesse uma forma física como a de Connor. Não faz mal, agora não falta muito. Quase podia ouvi-lo encorajando-a.

Ao chegar ao topo da escada olhou para o corredor atrás. Então percebeu que havia um caminho mais rápido. Aquela porta — a que havia ignorado antes — se abria para o convés. Podia chegar à cabine mais depressa por ali. Empurrou-a, e o sino tocou de novo.

Foi um choque descobrir que estava escuro do lado de fora, mas, claro, sabia que deveria estar. No entanto, era uma escuridão absoluta, e ela precisou parar para se orien­tar. Se corresse atarantada agora, poderia facilmente escor­regar na borda do navio, chocar-se contra o mastro ou algum outro perigo oculto.

De repente uma luz apareceu ao seu lado. Agradecida, Grace olhou ao redor. A luz ficou mais forte, o suficiente para indicar que precisava virar à esquerda.

— Não vai parar para dizer olá?

Era uma voz de garota. Atrás dela. Grace soube que deveria simplesmente baixar a cabeça e correr. Deveria retornar à cabine antes que a noite caísse. E quase havia conseguido.

— Bem, isso é grosseria, se você quer saber. E não gosto de gente grosseira.

— Desculpe. — Grace girou. Melhor dizer um olá rá­pido e correr depois.

Encarando-a, havia uma jovem de cabelo curto, usan­do um vestido antiquado. Havia um nome para aquilo. Grace revirou a memória. Um vestido de melindrosa, é, era isso. E também tinha uma faixa na cabeça com uma pena preta. E tudo — as roupas, a faixa de cabelo, os pés des­calços da garota — estava pingando água. O rosto era uma bagunça. Ela, obviamente, estivera usando um bocado de maquiagem que escorria, transformando os olhos em bor­rões negros e fazendo a boquinha em forma de arco pin­gar em riscos vermelhos.

— É grosseria ficar encarando, não sabe? — disse a garota. — Ainda que eu seja bem bonita.

— Desculpe. Eu só estava pensando... em como seu vestido é lindo.

Não era isso que estava pensando, mas por acaso era a coisa certa a dizer. Os lábios da garota se separaram num sorriso largo.

— Bem, obrigada. É uma cópia original de um Chanel, sabe? Vou trocar por outro modelo quando terminar meu serviço do anoitecer.

A garota balançou um pequeno círio, levantando-o até um lampião, que se encheu de luz. Com cuidado fechou o lampião de novo e foi andando, com a elegância de uma bailarina, até o próximo, ao lado de Grace.

— Você é a srta. Flotsam? — perguntou Grace, subitamente somando dois e dois.

— Ora, sou — respondeu ela dando de novo um sor­riso bonito. — Darcy Flotsam, artista de palco, anterior­mente do Titania. E quem é você?

— Grace, Grace Tormenta.

— Encantada, tenho certeza — disse a srta. Flotsam, parando em seu trabalho para fazer uma pequena reverên­cia a Grace.

Que estranha criatura, parece uma boneca!, pensou Grace.

— Então você tocou o sino — disse Grace.

— Isso mesmo. Sempre toco o sino. Sou sempre a primeira a me levantar. É meu trabalho tocar o sino e depois acender os lampiões. Depois posso tirar essa roupa molhada e colocar alguma coisa linda e seca.

Continuou, passando por Grace, e abrindo o lampião seguinte. Grace realmente devia voltar para dentro, mas agora sua cabine estava perto. E o convés continuava de­serto, a não ser pelas duas. Sabia que precisava retornar à cabine, mas não poderia haver inconveniente em conver­sar um pouquinho mais com Darcy Flotsam, sem dúvida.

— Como ficou tão molhada? — perguntou.

A srta. Flotsam deu um risinho.

— Boba, eu nadei um pouco, claro, como sempre faço. É importante fazer um bom alongamento no fim do dia, em especial quando a gente tem um... — ela respirou fun­do — um trabalho se-den-tário como o meu.

— Trabalho sedentário?

— Caracterizado por muita imobilidade e pouco exer­cício físico... O sr. Byron me disse isso. Ele é muito bom com palavras.

— Qual, exatamente, é o seu trabalho?

A srta. Flotsam se virou e adotou uma postura de balé levantando todo o corpo num belo arco. Em seguida le­vou o braço às costas, atrás da cintura, e avançou o rosto, com o nariz inclinado para o céu.

— Esta é a sua pista — disse.

Grace balançou a cabeça, totalmente confusa.

— Ora, sou a figura de proa do navio, não sou?

Grace olhou para a proa do navio e notou que, de fato, agora havia um espaço vazio onde a figura de proa esti­vera. Poderia ser mesmo verdade? Neste navio tudo era possível.

— Figura de proa de dia, figura divertida à noite — disse a srta. Flotsam. — Acredite, querida, se você tivesse de manter aquela posição por catorze horas seguidas, iria precisar de uma boa natação no fim do período!

— Mas como você passou a ser a figura de proa?

— Ah, é uma história longa e fascinante — disse a srta. Flotsam, fechando o lampião enquanto falava e andava com passo cheio de elegância até o próximo. — Eu era artista de palco, uma chanteuse, no grande navio de cruzeiro Tita­nia. Cantava depois do segundo serviço de jantar, todas as noites, e todos os cavalheiros e damas elegantes adoravam meu canto e minhas danças. Bem, você deve se lembrar, tenho certeza, do que aconteceu naquela noite fatídica em que o Titania foi acertado no meio do oceano por um raio enorme. Nós afundamos. Todos fomos jogados na água, mas uma coisa curiosa aconteceu comigo. Afundamos no mesmo lugar onde um velho galeão havia naufragado. Eu só soube disso muito mais tarde, claro. Estava dormindo, veja bem... tinha atravessado. Porém mais tarde, quando recuperaram os destroços, encontraram uma linda figura de proa no piso do oceano... eu! Porque, de algum modo, eu havia me fundido à figura de proa do galeão. Por isso me recuperaram e me levaram para um importante museu náutico. Deram-me uma etiqueta especial e me puseram no depósito enquanto decidiam onde seria melhor me apre­sentar. Fiquei lá por vários dias e várias noites, e então me entediei. E uma noite simplesmente abri os olhos, estiquei as pernas, saí da bancada e fui embora daquele importan­tíssimo museu náutico...

— Então você é vampira também — disse Grace, os olhos arregalados de espanto.

— Não sou vampira. — A srta. Flotsam balançou a ca­beça com firmeza, com o cabelo curto girando sobre as bo­chechas. — Você precisa saber, eu sou uma Vam-pi-ra-ta.

Grace não pôde evitar um sorriso. Apesar das espanto­sas revelações da srta. Flotsam, era impossível sentir medo dela.

— E qual é a sua história, Grace? — perguntou a srta. Flotsam. — É, qual é a sua história?

Não foi a srta. Flotsam quem falou. Era uma voz mascu­lina e rouca. Não estavam mais sozinhas. Grace havia conversado por tempo demais, permitindo-se ficar distraída.

A srta. Flotsam estremeceu.

— Boa noite, tenente Sidório.

— Oi, Darcy. Bom, não vai me apresentar à sua amiga?

Grace respirou fundo e se virou. Diante dela estava um homem alto e careca, os músculos parecendo explodir das roupas que eram uma mistura entre as de um marinheiro e de um gladiador. Reconheceu-o, mas ele não parecia se lem­brar dela.

— Grace Tormenta, quero apresentá-la ao tenente Sidório — disse a srta. Flotsam. — Tenente Sidório, quero...

— Sim, sim — disse ele numa voz que parecia casca­lho sendo pisado. — Já entendemos, Darcy. Então. Grace, hein? Quando chegou a bordo? É vampira ou doadora?

Ali estava de novo. Aquela palavra medonha. Doadora.

Grace pensou no velho Nathaniel e em sua palidez exangue.

Você é a nova doadora...

Você vai ocupar o lugar dele...

E, de repente, Grace soube que estava numa armadilha.

 

                                             O lento desfile

— Bem — disse Sidório, olhando intensamente para Grace. — O que você é? Vampira ou doadora?

Ainda sem fala, Grace o olhou. Era como encarar uma parede de músculos. O pescoço era grosso como o tronco de uma árvore bem crescida. Os braços eram muito mais grossos do que as pernas dela.

— Fantástico — disse ele com ar superior —, exata­mente o que precisávamos, outra idiota.

Grace ficou furiosa, mas continuou sem dizer nada. A última coisa que queria era deixá-lo com raiva.

— Sidório! Ei, Sidório! — disse uma voz atrás de Grace.

Sidório olhou por cima da cabeça de Grace. Ao fazer isso, abriu a boca e começou preguiçosamente a palitar alguma coisa entre os dentes. Olhando para cima, Grace viu que ele possuía dois caninos enormes, aparentemente feitos de ouro. Poderiam cravar-se numa pessoa como faca entrando em manteiga, pensou. Isso fez seu sangue gelar.

— Estive procurando você em toda parte, tenente — disse Lorcan, passando rapidamente por Grace, como se não a tivesse visto. — Preciso falar com você com urgên­cia, ordens do capitão.

— Claro — respondeu Sidório, aparentemente sem pressa. Em seguida virou a cabeça na direção de Grace. — Viu a recém-chegada à tripulação?

Lorcan se virou.

— Ah, sim. Grace — disse em tom displicente. — Des­culpe, não vi você.

— Você a conhece?

— Sim, sim — respondeu Lorcan, que parecia ter algo muito mais importante a discutir. — Fui eu que a pesquei na água.

Sidório pareceu ter perdido o interesse.

— Ah, Lorcan, é bom ver você — começou Grace, bastante aliviada ao encontrar o amigo.

— Para você ele é o aspirante Furey — disse Sidório.

Lorcan não tentou defendê-la. Em vez disso, examinou Grace com os mesmos olhos frios de Sidório, então lhe deu as costas.

Grace sentiu como se tivesse levado um soco. Por que Lorcan estava agindo assim? Havia pensado que ele era seu amigo. Ele tinha sido tão gentil antes!

— Preciso mesmo falar com você, Sidório — continuou Lorcan. — A sós.

Ele estendeu a mão para os antebraços ondulados de Sidório e puxou-o para longe das duas.

Grace sentiu-se absolutamente arrasada por ter sido ignorada daquele jeito, mas quando os homens haviam se afastado um pouco Lorcan se virou de novo para ela, os olhos azuis cheios de preocupação. Em seguida apontou com o dedo. Grace percebeu que ele a estava mandando ir para a cabine.

Bem, talvez ela fosse para a cabine, talvez não. Talvez fosse hora de Grace pagar para ver.

A srta. Flotsam cutucou-a.

— Ele só estava bancando o durão para impressionar o tenente Sidório. Típico dos homens!

Grace deu um sorriso débil, um pouco aliviada com o pensamento.

— Acho que você está meio caidinha pelo aspirante Furey — disse a srta. Flotsam. — E quem pode culpá-la? Ele, sem dúvida, é lindo. Aquele cabelo. Aqueles olhos.

Grace sentiu-se ruborizar enquanto a srta. Flotsam continuava:

— Claro, ele não serve para mim. Estou me guardan­do para o sr. Jetsam, meu único amor verdadeiro.

Ela suspirou ao pensar.

— Bem, preciso terminar de acender os lampiões. Não posso ficar aqui parada com gente como você a noite in­teira. — Ela sorriu. — Mas vejo você mais tarde, Grace. E vou lhe emprestar um belo vestido, também. Você vai que­rer estar linda para o Festim.

Com uma piscada, ela continuou em seu caminho, segurando o círio.

O Festim? Grace lembrou-se de que haviam falado em um festim quando chegou ao navio. Mas o que, exatamen­te, era o Festim? Seria esta noite? Por isso a cozinheira e o menino estavam tão frenéticos?

Jamie lhe dissera que aquela quantidade de comida não era para os vampiros. Claro que não. Era para os doado­res. De modo que talvez o Festim fosse simplesmente uma grande festa para os doadores. E, como a cozinheira, a srta. Flotsam havia simplesmente presumido que ela era uma doadora.

Quanto mais pensava nisso, mais percebia que devia ser uma doadora. Certamente, não era vampira e, segundo Sidório, só era possível ser uma coisa ou outra. Ainda não havia entendido a essência do que os doadores faziam. A resposta mais óbvia era que davam o sangue aos vampiros. E no entanto o capitão tinha dito que não queria seu sangue. Sua mente girava sem parar. Precisava falar com Lorcan. Tinha descoberto muita coisa desde que o havia interroga­do pela última vez sobre o navio. Mas agora tinha algumas perguntas específicas que precisavam de resposta.

Ele havia sinalizado para ela voltar à cabine, e isso pa­recia boa idéia. Lá os dois poderiam conversar em particu­lar, sem distrações. Foi pelo convés, tendo o cuidado de permanecer nas sombras e não atrair mais atenção. Um grupo de vampiros estava se reunindo no convés, mas pa­reciam entretidos demais em suas próprias conversas para notá-la.

Eram fascinantes de observar — uma verdadeira mi­xórdia de pessoas, nem um pouco como as imagens de vampiros com as quais Grace havia se acostumado. Exis­tiam alguns, como Darcy Flotsam, que claramente haviam mantido a moda da época em que tinham “atravessado”. Outros, como Sidório, usavam uma mistura de vestuário, o que tornava mais difícil situá-los no tempo ou no espa­ço. Muitos, como Lorcan, pareciam ter adotado as roupas usuais de pirata ou marinheiro. E outros, ainda, não se pa­reciam com nada que Grace já vira — inimaginavelmente glamourosos e fantasmagóricos. Enquanto Grace observava o estranho grupo se arrastar sem pressa, pensou em como a idade aparente deles dava pouca indicação do como eram realmente velhos. Como será que mediam a idade?, imagi­nou. Seria a partir do nascimento verdadeiro? Ou de quan­do haviam “atravessado”? Se fossem tão intrigantes quanto a srta. Flotsam, Grace estava ansiosa por ouvi-los. Talvez esse pudesse ser seu papel a bordo, pensou — lembrando-­se dos lápis e dos cadernos na cabine. Poderia ser a histo­riadora do navio. Isso iria mantê-la ocupada — mais do que ocupada — até encontrar Connor outra vez. Precisa­va manter-se concentrada nisso e não deixar que a estra­nheza do navio a distraísse o tempo todo. Precisava falar com o capitão de novo e convencê-lo a ajudá-la — a parar cada embarcação de passagem, se fosse necessário.

Mesmo estando perto da cabine agora, parou nas sombras, ainda não se sentindo pronta para deixar a sua pri­meira impressão dos tripulantes do navio.

De sua segurança nas sombras, Grace observava e ou­via enquanto eles passavam. Boa parte das palavras pare­cia ser apenas amenidades — o tipo de bate-papo social que era comum no porto, mas aqui parecia um pouco mais formal.

— Boa-noite, senhora. Espero que tenha desfrutado um sono pacífico.

— De fato. E o senhor? Bom. Claro, sempre me sinto um pouco mais cansada nessa época da semana.

— Sim, sei como é. Eu mesmo mal consegui me levan­tar da cama esta noite, mas depois me lembrei de que era a noite do Festim.

— Isso, isso. Quando soar o Toque do Amanhecer, todos estaremos renascidos.

— Sim, de fato. Que tragam os doadores, é o que eu digo, e que isso não demore!

Esta última menção aos doadores bastou para impelir Grace, finalmente, em direção à cabine. Quando abriu a porta, Lorcan já a esperava, com um livro na mão. Será que ele a esperava fazia muito tempo?

Quando fechou a porta, ele ergueu os olhos e fechou o livro.

— Fale do Festim — disse ela.

Sem surpresa, ele assentiu e indicou que ela deveria puxar uma cadeira.

 

                                       A divisão dos espólios

O convés do Diablo estava atulhado de novo. E, dessa vez, não apenas de pessoas. Os piratas que haviam retornado espalharam o butim trazido na travessia das Três Desejos. Fora um bom ganho. Havia pesados baús de carvalho com as bocas escancaradas liberando bolsas de ouro sobre o convés. Havia belas jóias, pinturas e esculturas, relógios ornamentados, urnas antigas, espelhos dourados, lustres de cristal e todo tipo de coisas finas. O convés de proa, pen­sou Connor, parecia uma feira — mas uma feira onde as mercadorias eram incrivelmente raras e preciosas e onde era possível acreditar que nada era falsificado.

Diante do butim, como um divertido camelô, estava o capitão Wrathe.

Toda a tripulação do Diablo havia se reunido no con­vés. Os sessenta piratas que tinham participado do ataque ocupavam a frente. Connor olhou para os colegas. Estavam suados e sujos devido aos esforços, mas empolgados. To­dos tinham recebido jarras d’água ao voltar. Connor havia tomado a sua rapidamente. Alguns jogavam a água sobre a cabeça para se refrescar e se limpar ao mesmo tempo.

O capitão Wrathe se dirigiu à tripulação:

— Bem, companheiros, foi uma excelente vitória, não foi? Muito bem, muito bem mesmo. Vamos dar três vivas à nossa estrategista militar, Cate Alfanje!

Em seguida puxou Cate da multidão e Connor achou divertido ver como ela ficava vermelha enquanto os pira­tas davam vivas. Ele participou, gritando alto, junto com Bart, que não conseguiu resistir a um “uau” extra.

— Hoje testemunhamos um belo trabalho de equipe — continuou o capitão Wrathe. — Todos vocês fizeram seu papel e agradeço a todos. Mas quero prestar um tributo particular a um jovem corajoso que, sem temor, partici­pou de seu primeiro ataque hoje.

O capitão Wrathe examinou a turba em busca de Connor.

— Onde você está, sr. Connor Tormenta? Venha cá.

No meio da multidão, Connor ficou imobilizado, até que a mão firme do capitão o empurrou à frente.

— Ande, companheiro, vá.

Então as fileiras de piratas à sua frente se abriram para dar passagem. Os outros piratas apertaram seus ombros e lhe deram tapinhas nas costas enquanto ele andava.

— Aqui está o sujeito — disse o capitão Wrathe. — Só 14 anos e um prodígio, nada menos do que um PRODÍGIO!

O capitão pôs a mão no ombro de Connor. Agora to­dos os olhares estavam sobre ele e Connor sentiu que ia ficando excessivamente vermelho.

— Três urras ao sr. Tormenta, rapazes. Hip, hip...

— Urra! — gritou a multidão.

Connor olhou para aquele mar de rostos que continua­vam a homenageá-lo. Era uma sensação incrível. Ele fazia parte daquilo.

Quando veio o último grito, Connor sentiu uma súbi­ta tristeza. Queria que seu pai e Grace o vissem naquele momento. Ele e Grace sempre haviam sido como párias em Baía Quarto Crescente. Apenas o pai aplaudia os dois. Apesar de seu talento considerável nos esportes, Connor nunca havia se sentido bem-vindo num time. Os outros garotos o viam com suspeita, como o desajustado filho do faroleiro.

Finalmente, ele fazia parte de uma equipe. Olhou para Cate e Bart, que riam orgulhosos e comemoravam. Até Cheng Li aplaudia, assentindo. Connor percebeu que não eram apenas seus colegas de tripulação. Estavam se tornan­do seus amigos.

— Bem, agora — disse o capitão Wrathe quando Connor voltou às fileiras. — Nosso navio apontou na direção da Taverna de Madame Chaleira...

Os gritos que se seguiram a esse anúncio foram longos e ruidosos.

— ...mas, antes de nos lançarmos às benesses daquela dama alegre e seus barris, temos coisas a resolver. Deve­mos dividir este espólio, não é?

Connor esperava que o capitão Wrathe fosse o primei­ro a escolher, mas ele insistiu em que Cate se adiantasse. Connor pôde ver, pela expressão de Cate, era uma honra inesperada.

Cate examinou brevemente a enorme quantidade de itens espalhados pelo convés. Será que escolheria um belo conjunto de jóias? Talvez um espelho ornamentado? Ou uma pintura da Velha Londres antes do dilúvio?

Cate passou por cima de todos esses itens e escolheu uma simples sacola de moedas.

— É sua melhor opção? — perguntou o capitão Wrathe.

Cate assentiu.

O capitão não tentou dissuadi-la. Claramente respei­tava Cate e o fato de ela saber o que queria.

Esfregando as mãos, o capitão Wrathe se adiantou e avaliou primeiro uma peça do tesouro, depois outra. Ago­ra parecia um comprador confiante, verificando as merca­dorias antes de entrar numa negociação com o vendedor. Mas ali não havia vendedor nem necessidade de negociar. O capitão podia escolher o que quisesse. Os piratas clara­mente gostavam dessa parte do ritual.

— Olhe ali, capitão. E uma pintura maravilhosa.

— Não, eu pegaria o entalhe de baleia, se fosse o senhor.

— Aquele é um belo relógio para ajustar seus horários!

Depois de longa deliberação, Molucco Wrathe abaixou-­se e pegou uma grande safira azul num baú de pedras pre­ciosas. Quando a levantou, houve rugidos de aprovação da turba. Connor teve a sensação de que o capitão jamais tivera dúvida quanto ao que escolher.

Houve aplausos, depois uma expectativa silenciosa enquanto o próximo homem ia fazer sua escolha. E assim a cerimônia continuou à medida que cada pirata examina­va o butim e escolhia parte do tesouro. Todo o processo parecia um ritual tão organizado quanto o ataque em si.

Connor se perguntou como essas práticas teriam evo­luído. Era curioso pensar que, há alguns dias, não conhe­cia nada desse mundo. Havia escutado histórias de navios piratas, no cais, e algumas vezes achava que os tinha visto pela janela do farol. Mas agora aqui estava — não apenas no mundo deles, mas participando.

Mas, mesmo enquanto começava a entender o modo de vida dos piratas, não se sentia à vontade com todos os aspectos dela. Não podia esquecer que os tesouros espa­lhados diante dele haviam pertencido a um homem rico e sua família. Será que ser rico era crime? E será que não ser rico era desculpa suficiente para tomar a propriedade de outra pessoa? Os sentimentos de Connor ficavam ainda mais confusos pela impressão de que o próprio capitão Wrathe não parecia nem um pouco pobre. Enquanto olhava cada pirata levar seu tesouro para algum depósito nos con­veses inferiores, precisou parar e ficar pensando até que ponto o tripulante mais humilde seria pobre.

— Venha, sr. Tormenta, venha escolher.

Com o chamado do capitão Wrathe, os piratas em vol­ta de Connor ficaram de lado para ele passar.

Relutante, Connor se aproximou dos bens espalhados Examinou a carga, lançando o olhar sobre relógios, espe­lhos e jóias. Seus olhos pousaram numa pilha de livros. Instantaneamente, eles o fizeram pensar em sua casa no farol. Os bens mais valiosos do pai tinham sido seus livros. Eles haviam preenchido cada prateleira de todos os cômodos, algumas vezes em fileiras duplas e também empilhados nas tábuas do piso. Connor nunca fora um grande leitor, mas sentia falta de ver aqueles livros ao redor todos os dias. Se pegasse ao menos um daqueles livros, quem sabe ele lhe traria de volta uma parte do pai.

Agachou-se, levantou um dos volumes. Era um exem­plar de Peter Pan. Antigo, com belas ilustrações — não mui­to diferente do exemplar que seu pai havia lido para ele e Grace. Folheou as páginas muito manuseadas. O livro se abriu na frente. Havia uma inscrição.

 

Para o meu filho,

em seu sétimo aniversário.

Com todo o meu amor. Papai.

 

Connor fechou o livro. Tinha sido o presente de outro pai ao filho amado. Não traria o pai de Connor de volta. Nada faria isso.

De repente sentiu um jorro de raiva ao pensar que o livro havia sido tirado da criança ao qual pertencia. Raiva por ele e Grace terem sido obrigados a deixar Baía do Quar­to Crescente sem os bens do pai. Raiva porque o pai fora tirado deles. E Grace também. Era demais, difícil demais. Podia brincar de ser homem — pirata —, mas era apenas um garoto e queria ir para casa. Só que não havia mais casa para onde voltar.

— Qual é o problema, sr. Tormenta? — gritou Mo­lucco Wrathe. — Não consegue achar nada atraente?

Connor balançou a cabeça. Lágrimas ardiam em seus olhos, mas ele não queria que o capitão Wrathe nem o res­tante da tripulação o vissem chorando. Passou pela multi­dão, desesperado para se afastar.

Ninguém se importou muito e os homens sentiram-se gratos por avançar alguns centímetros e ver melhor as mercadorias. Por fim Connor se livrou do bando de piratas e subiu ao convés superior. Encontrou um poleiro, bem na proa do navio. Abaixo dele os piratas enxameavam sobre os tesouros roubados, parecendo mais predadores do que nunca. Connor ergueu os olhos e espiou o mar e o céu, que iam escurecendo.

A beleza e a paz da cena deixaram-no solitário de novo, desejando a companhia de Grace. Seu pai tinha dito que ela estava retornando, mas era difícil agarrar-se a essa con­vicção. Como deixar de duvidar que a voz fosse mesmo do pai? Seria de fato seu pai morto, alcançando-o atra­vés do tempo e do espaço, ou será que ele próprio o havia invocado? Como o capitão Wrathe havia sugerido antes, será que ele havia confundido o que sentia com o que queria sentir?

Tudo estava calmo e silencioso ao redor. Mas por den­tro sua mente era um tumulto e o estômago se amarrava em mil nós furiosos. O que havia acontecido? Será que os vampiros a teriam matado? Seus pensamentos e temores começaram atirar, fora de controle.

Sempre houvera um modo certo de ficar calmo. Connor fechou os olhos e começou a cantar...

Vou contar a história dos...

Parou e abriu os olhos de novo. A velha cantiga não trazia mais nenhum conforto. Só o deixava mais ansioso com relação a Grace.

Virou os olhos para o céu estrelado. Os pensamentos se acomodaram na lembrança tranqüilizadora de noites na sala da lâmpada no topo do farol. Noites em que o porto ficava silencioso e Dexter Tormenta acomodava os gêmeos um de cada lado e lhes ensinava o nome das diferentes es­trelas e constelações. Quando Connor levantou os olhos para o céu, lembrou-se de como ele e Grace se revezavam na identificação. Podia ouvir suas vozes infantis entoando os nomes exóticos.

 

Aquário.

Águia.

Carina.

Centauro.

Coroa Boreal.

Dourado.

Eridano.

Lobo...

 

— Aqui está ele!

O devaneio de Connor foi interrompido quando Bart e Cate sentaram-se a seu lado.

— Estávamos preocupados com você — disse Bart.

— Só preciso ficar um tempo sozinho.

Cate assentiu.

— Você teve um dia tremendo. E passou por muita coisa.

Era a primeira vez em que Cate realmente baixava a guarda, embora fosse sempre gentil com ele.

— Aqui, companheiro — disse Bart. — O capitão dei­xou a gente escolher por você.

Bart abriu a mão e largou um medalhão de prata na mão de Connor.

— Um medalhão? — disse Connor, sorrindo e olhan­do sem jeito para Bart. — Isso é uma piada?

— Não é para você, companheiro — disse Bart, completamente sério. — É para sua irmã. Para quando a en­contrar de novo.

Connor estava tocado demais para falar. Fechou os olhos e apertou o medalhão com força.

— Bem... — murmurou Bart. — Não foi só minha idéia. Cate e eu achamos...

As palavras dele ficaram no ar.

— Achamos que é cedo demais para perder as espe­ranças — disse Cate, salvando Bart.

Connor confirmou com a cabeça, sentindo que as lágrimas começavam a recuar.

— Não vou desistir de ter esperança. Nunca vou de­sistir de ter esperança. — Em seguida abriu o cordão, pas­sou pelo pescoço e fechou de novo.

— Parece esquisito? — perguntou.

— Não, companheiro, para mim está legal.

— Não é nem um pouco feminino — acrescentou Cate, balançando a cabeça de modo amigável.

— Mas na taverna é melhor manter escondido — dis­se Bart. — Há olhos malignos e mãos bobas naquele lugar, e seriam capazes de matar por um negócio bonito assim.

Connor enfiou o medalhão dentro da camisa. O metal era fresco e reconfortante junto do coração. Parecia o lugar certo para ele.

— O que é a Taverna da Madame Chaleira, afinal? — perguntou aos outros. — Todo mundo parece muito empolgado, mas não sei o que esperar.

— Isso é fácil — respondeu Bart. — A única certeza que você tem na Taverna da Madame Chaleira é que deve esperar o inesperado! É o lugar onde cada tripulação de piratas desta região libera as energias, com boa bebida e má companhia. Olhe lá, meu chapa, agora não estamos longe.

Connor seguiu o olhar de Bart. Era verdade. Saindo do veludo escuro do céu, a forma do litoral estava entrando em foco. Um afloramento rochoso, como um pedaço de carvão serrilhado, se erguia à distância. Em sua escuridão piscava uma luz de néon, débil e pequena a princípio, mas ficando maior e mais forte à medida que o navio acelerava.

— É a Taverna da Madame Chaleira — anunciou Bart. — Melhor se preparar, meu chapa. Será uma noite memorável.

Instintivamente, Connor passou os braços pelos om­bros de Cate e Bart. Sentia-se incrivelmente tocado pelo presente do medalhão.

Dentro da cabeça ouviu o pai de novo.

— Confie na maré, Connor. Prepare-se. Eu já lhe disse.

— Sim, papai — respondeu ele sem abrir a boca.

Depois voltou a fazer pilhérias com os novos amigos.

 

                                          Vestida para jantar

— Por que foi tão frio comigo? — Grace não conseguiu evitar a pergunta a Lorcan.

— De que está falando?

Grace baixou a cabeça, triste.

— Você sabe.

Lorcan estava franzindo a testa, mas agora sua voz era suave.

— Só estava tentando levar o tenente Sidório para lon­ge de você. Teria sido muito melhor se ele não a visse.

— Por quê?

— Já falei antes, não é, Grace? Este não é um navio comum e não somos uma tripulação comum. Podemos não parecer muito diferentes de pessoas como você, mas temos necessidades que você não pode compreender. Agora que sabe por si mesma que tipo de navio é este, achei que seria um pouco mais cuidadosa.

— Cuidadosa com o quê? — perguntou Grace, pre­parada para jogar seu trunfo. — O capitão disse que eu não corria perigo.

— Verdade? — Os olhos de Lorcan se cravaram nos dela. — E acho que ele também disse para ficar andando pelo convés e se apresentar a toda a tripulação.

Grace ficou vermelha e baixou os olhos.

— Não, não disse.

— Foi o que pensei.

— Ele pediu que eu voltasse antes do Toque do Anoi­tecer. Mas adormeci na cozinha.

Lorcan encarou-a, incrédulo.

— Você esteve na cozinha? Grace!

— Estive — disse Grace, impaciente com o tom dele. — O capitão disse que eu podia olhar o navio desde que voltasse à cabine antes do Toque do Anoitecer.

— Mas você optou por desobedecer ao capitão.

— Não — respondeu Grace com firmeza. — Claro que não desobedeci. Na cozinha me deram uma sopa e, por algum motivo, ela me fez dormir. Devo ter dormido mui­to tempo porque só acordei quando o sino começou a to­car. Mesmo assim, quase voltei a tempo, mas esbarrei na srta. Flotsam e ela começou a falar comigo, e eu não quis ser grosseira. E, então, antes que eu percebesse...

Lorcan se levantou e empurrou a cadeira de lado, com raiva.

— Antes que você percebesse estava tendo uma conversinha amigável com o tenente Sidório?

— Eu não chamaria aquilo de conversinha — disse Grace, pasma com a agressividade de Lorcan.

Lorcan pôs as mãos sobre os olhos, balançando a cabe­ça em desespero, antes de baixar os olhos de novo.

— Você não vê? Não entende? Estamos tentando pro­tegê-la, mas você não colabora.

— Mas estão me protegendo de quê? O próprio capi­tão disse que eu não corria perigo.

Lorcan suspirou, andando de um lado para o outro diante dela enquanto organizava os pensamentos.

— O capitão é um ótimo homem, e eu não faria nada para questionar sua autoridade. Ele criou este navio há muitos anos e deu a mim, e a outros como eu, um porto seguro longe das áreas sombrias deste mundo. E ele cuida de nós, nos alimenta e nos dá uma paz que jamais imagi­návamos encontrar de novo. Atende às nossas necessida­des com os festins semanais. Mas — ele respirou fundo — há outros neste navio que talvez não pensem do mesmo modo. Prefeririam não restringir a fome a uma alimenta­ção semanal. Prefeririam decidir sozinhos a quantidade de alimento e sua freqüência. Acham que chegou a hora de fazer as coisas de modo diferente. E, para dizer a verdade, não sei se o capitão pode continuar dando alguma garantia para sua segurança.

Lorcan parecia triste e quase tão chocado quanto Grace por suas próprias palavras.

— Até pouco tempo atrás, Grace, eu nem teria pensa­do essas coisas, mas você chegou a nós numa época de gran­de mudança e agora nada é seguro. E aqui — ele bateu no peito —, aqui, onde já tive um coração, começo a pensar que, quanto antes tirarmos você deste navio, melhor.

Grace olhou de novo para a expressão dolorida dele. Percebeu que estivera errada ao duvidar de Lorcan Furey. Ele realmente pensava no seu bem. Mas estava começan­do a amedrontá-la. Se não podia protegê-la... se nem mes­mo o capitão podia protegê-la... o que aconteceria?

Antes que pudesse dizer alguma coisa, houve uma ba­tida à porta. O coração de Grace disparou. Ela e Lorcan se viraram para a porta, percebendo que ele não a havia tran­cado. E agora a maçaneta em forma de globo girou e a porta se abriu com um rangido.

A srta. Flotsam entrou no cômodo, trazendo o perfu­me de rosas recém-cortadas e segurando vários vestidos em cabides de seda almofadada.

— Eu disse que ia lhe emprestar alguma coisa para você usar no Festim — disse a Grace. — E sempre cumpro a palavra.

Lorcan balançou a cabeça numa mistura de alívio e incredulidade.

— Ah, fique quieto — disse-lhe a srta. Flotsam. — Se você soubesse mais sobre o ponto de vista feminino, aspi­rante Furey, saberia que nós, as damas, gostamos de nos orgulhar da aparência. Não é verdade, Grace?

Segurando um vestido de cada vez diante dela, a srta. Flotsam examinou Grace com olhos de artista.

— Com certeza, não o azul-pólvora — disse deixando o vestido descartado cair na cama e pegando o seguinte.

Grace não gostou muito de nenhum vestido. Podia imaginar que todos ficariam bonitos na srta. Flotsam, mas, francamente, precisaria esforçar-se para lembrar a última vez em que havia usado um vestido. E, certamente, nunca na vida tinha usado algum tão elaborado assim, com chiffon, seda, contas e finos botões de pérola.

— Acho que estamos entre o rosa e o amarelo-claro — disse a srta. Flotsam. — Vamos olhar como você fica em cada um deles e depois decidimos.

A srta. Flotsam começou a tirar os vestidos de seus cabides. Grace não queria mesmo experimentar nenhum. Olhou para Lorcan.

— Grace não precisa dessas roupas — disse Lorcan. — Ela não vai ao Festim desta noite.

A srta. Flotsam se virou para Lorcan, confusa.

— Não vai? Ora, isso é ridículo! Todo mundo vai ao Festim.

Lorcan balançou a cabeça.

— Grace não vai.

— Não está certo — disse a srta. Flotsam, pressionan­do mesmo assim e oferecendo o vestido amarelo-claro a Grace.

Lorcan pegou o vestido das mãos dela.

— Grace não vai ao Festim, Darcy. Ordens do capitão.

Ele parecia ter dito as palavras mágicas. A srta. Flotsam pegou o vestido amarelo de volta e rapidamente o abotoou direito. Apertou-o contra o corpo, como se estivesse se despedindo de um amigo querido.

— É um vestido tão lindo — disse a srta. Flotsam, triste.

Grace achou que a srta. Flotsam iria chorar.

— Por que não o usa, Darcy? — disse Lorcan baixinho.

— Devo usar?

Lorcan assentiu.

— Vá e vista-o, mas seja rápida, veja bem. Estou ou­vindo a música começar.

Grace também ouvia. Era uma música de percussão, estranhamente tranqüilizadora. O ritmo principal parecia as batidas de um coração, com um contraponto mais insis­tente por cima. Então se lembrou dos mesmos sons na pri­meira noite passada a bordo.

— É, vou me trocar agora — disse a srta. Flotsam, fa­lando meio para si mesma enquanto pegava todos os ves­tidos e ia para a porta.

Antes que chegasse lá, a porta se abriu de novo. A srta. Flotsam parou. Uma sombra vasta e escura inundou a ca­bine, bloqueando boa parte da luz, quando Sidório passou pela porta.

Sorrindo cruelmente, Sidório lançou o olhar malévolo para a srta. Flotsam e em seguida para Grace e Lorcan.

— O que é isso, aspirante Furey? Sei que você não é exatamente homem, mas agora está discutindo moda com as damas?

Lorcan ficou quieto, mas foi na direção de Grace. Ela sentiu que ele estava se posicionando para protegê-la.

— Não estão ouvindo a música? — perguntou Sidó­rio. — O Festim vai começar.

— Estou — respondeu Darcy. — E estou indo.

— Não estava falando com você, srta. Furey. Estava falando com a doadora.

Seus olhos escuros pousaram em Grace. Agora ela fi­cou realmente apavorada. A música estava mais alta e nes­se momento o som de uma flauta girava acima dos dois ritmos de percussão.

— Grace não é doadora — disse Lorcan. — Houve um engano.

— Não houve engano — rosnou Sidório. — O velho Nathaniel não pode participar do Festim desta noite. Não pode haver lugar vazio à mesa. Além do mais, essa magri­cela novata precisa de uma boa refeição.

— Grace não é doadora — disse Lorcan de novo, colocando-se na frente de Sidório, ainda que o sujeito tives­se o dobro do seu tamanho.

— E eu digo que ela é — insistiu Sidório. — E o capi­tão também diz.

Lorcan balançou a cabeça.

— O capitão nunca diria...

— Se não acredita — Sidório falou por cima dele —, vá perguntar a ele. Na verdade, por que não vamos juntos e deixamos as damas com suas frescuras?

Sidório deu um risinho de desprezo e saiu da cabine. A srta. Flotsam ficou paralisada onde estava.

Lorcan se virou para Grace, o rosto retorcido de an­gústia.

— Sinto muito, Grace. Não queria que isso acon­tecesse.

— Tudo bem — disse ela, parecendo muito mais cal­ma do que se sentia por dentro. — Tudo bem. Sei que você fez o que pôde. Se tiver de ser assim, que seja. Srta. Flotsam, posso ficar com o vestido amarelo, afinal? Se vou ao Fes­tim, quero estar à altura do papel.

 

                                           O Festim

Havia algo curiosamente tranqüilizante na música que Grace ouvia com mais clareza quando saiu da cabine usando o vestido amarelo-claro. Sem dúvida, era um pou­co comprido para ela — mas a srta. Flotsam havia mostra­do como pegar o excesso e segurar na mão enquanto caminhava. Enquanto seguia pelo corredor, vestida com mais elegância do que jamais conseguia lembrar, Grace sentia-se meio como uma noiva e meio como um animal a ser sacrificado. Mas mesmo assim os tambores repetitivos a acalmavam.

A srta. Flotsam tivera de deixá-la.

— Vampiros e doadores não entram juntos no Festim — havia explicado Lorcan. — Os doadores chegam primeiro.

E assim Grace voltou a descer pelos corredores e esca­das do navio, cada vez mais para as profundezas que havia explorado com tanta ansiedade mais cedo. À frente dela os outros doadores saíam das cabines. De modo geral, pa­reciam homens e mulheres comuns, mas havia algo lângui­do e indiferente neles, como se já estivessem sido drenados de sangue. O que, claro, era verdade, semanalmente. Sem dúvida, isso tinha um preço — talvez todos terminassem como o pobre Nathaniel, pouco mais do que uma concha frágil.

Todos os doadores pareciam mais velhos do que ela. De algum modo isso lhe dava esperança — talvez ela fosse jovem demais para ser uma doadora decente. Apenas Sidório não parecia achar isso. E Grace continuou andan­do, tentando dar um sorriso nervoso para os outros.

Houve pouco tempo para perguntar a Lorcan tudo que queria saber, depois da saída de Sidório. Mas, enquanto a srta. Flotsam se ocupava vestindo Grace, Lorcan tinha dito que falaria com o capitão. Não acreditava que o capitão tivesse mudado de idéia com relação a Grace — devia ser alguma tramóia de Sidório. As últimas palavras de Lorcan a ela haviam sido para lembrar que, mesmo se fosse doa­dora, não sofreria um mal definitivo. Isso era questão de opinião, refletiu Grace. Entendia que não seria morta — mas teria de dar parte de seu sangue para outra pessoa. Para Sidório, talvez. E, francamente, seria um destino muito melhor do que a morte?

Todos esses pensamentos foram postos de lado quan­do ela chegou ao último corredor e acompanhou os outros doadores que entravam na sala de jantar. Era um espaço vasto, mais parecendo um elaborado salão de baile, ilu­minado com lustres de cristal, com uma longa mesa de banquete que se estendia à distância. A mesa estava imacu­ladamente posta com toalhas de tecido adamascado, por­celanas, copos de cristal bisotado e brilhantes talheres de prata. Mas os lugares haviam sido postos apenas de um dos lados.

Foi para esse lado que os doadores se dirigiram, paran­do diante das cadeiras e permanecendo de pé, esperando enquanto a música polifônica continuava a tocar. Ao lon­go do centro da mesa havia uma comprida fila de velas acesas. Ninguém falava.

Então os vampiros chegaram. Cada vampiro, como Lorcan havia explicado, era emparelhado a um doador, e agora cada vampiro procurava seu par. Quando o vampi­ro encontrava o local diante de seu doador e fazia uma re­verência educada, cada par ocupava seus lugares.

Grace ficou olhando a srta. Flotsam chegar e localizar o homem que era seu doador. Fez uma reverência e deu um sorriso doce antes de sentar-se no lugar diante dele. Logo depois Grace viu Lorcan entrar na sala. Seu rosto ainda estava perturbado e os olhos azuis a espiaram ansiosos antes de encontrar sua própria doadora e fazer uma reve­rência formal para a jovem. Os dois também se sentaram.

E a coisa prosseguiu. Cada vampiro examinava a ex­tensão da mesa e repetia o ritual bastante educado. Grace pensou na exploração anterior do navio e em sua tentati­va de contar quantos tripulantes haveria. A sala de jantar devia ocupar quase toda a extensão do navio, pensou.

Em pouco tempo havia apenas um punhado de doado­res ainda de pé. E depois ficaram apenas dois: ela e o ho­mem ao seu lado, na extremidade mais distante da mesa.

Por fim os últimos dois vampiros chegaram. Sidório entrou com a arrogância característica, alguns passos à fren­te do próprio capitão. Restavam apenas dois lugares — os que ficavam diante de Grace e de seu vizinho. Com um crescente mau presságio, Grace esperou a chegada de Sidó­rio. Quando levantou os olhos, ele estava à sua frente. Si­dório não sorriu e, em vez de fazer uma reverência, apenas balançou a cabeça rapidamente. Havia um respeito cortês no modo como os outros vampiros tratavam seus doado­res — talvez um reconhecimento do sacrifício que viria —, mas Sidório não demonstrava nada disso. Pelo contrário, começou a puxar a cadeira e sentar-se, quando o capitão surgiu ao seu lado.

— Não, tenente. Por que não senta aqui?

Grace escutou, aliviada, o sussurro familiar.

— Estou bem aqui, capitão. Escolhi minha nova doa­dora. — Sidório continuou a puxar a cadeira.

— Não, tenente, insisto. Troque de lugar comigo.

E, mesmo sendo apenas um sussurro, não havia como duvidar da autoridade das palavras do capitão. Sidório olhou por toda a extensão da mesa, aparentemente avalian­do suas opções. O capitão esperou com paciência.

Por fim Sidório ficou de lado, praticamente sem assen­tir para o homem ao lado de Grace, e sentou-se. O capitão fez uma reverência para Grace, depois ar­rastou a capa e sentou-se na cadeira diante dela. Grace não sabia se fora resgatada ou se simplesmente havia recebido outro destino mortal. Mesmo assim, teve alguma satisfação ao ver a derrota de Sidório. Sorriu para ele com os dentes trincados.

— Não o provoque, Grace. — As palavras do capitão ressoaram em sua cabeça e ela se virou de novo, concen­trando-se na pulsação da música.

 

O jantar foi uma cerimônia elaborada. Não era de espan­tar que a cozinheira e Jamie estivessem tão estressados. Cada doador recebia uma sucessão de delícias culinárias. Começou com lagosta assada, que, pensou Grace, teria servido como a refeição inteira. Ainda estava enxugando os sucos deliciosos quando o prato foi retirado e outro, com bife e um arco-íris de legumes — de tomate até abóbora e abobrinha —, o substituiu. A comida se dissolvia na boca, como havia acontecido com a lagosta. Como acontecera antes com a sopa, Grace sentiu uma fome extraordinária. Imaginou como a cozinheira pudera preparar tantas refei­ções ao mesmo tempo com apenas Jamie para ajudá-la. Era de fato um mistério.

Havia conversas educadas à medida que o jantar progredia. Mas não era uma conversa geral. Os vampiros fa­lavam apenas com seus doadores, como se, em vez de sentar-se a uma mesa comprida, estivessem em mesas para dois. Grace ouviu a srta. Flotsam falando sem parar, como sempre, dando ao doador pouca chance de responder. Mais adiante na mesa, viu Lorcan sorrindo e assentindo para sua jovem doadora. Sentindo uma pontada de inveja, imagi­nou o que estariam discutindo. Havia ficado próxima de Lorcan e era estranho vê-lo tão íntimo de outra pessoa.

Sidório não se esforçava para conversar e, mesmo que o vizinho de Grace fizesse tentativas admiráveis para atraí-­lo, simplesmente grunhia, murmurava palavras indis­tinguíveis e tamborilava sem parar com os dedos grandes na toalha da mesa. Sua frustração era evidente demais para Grace. Era apenas questão de tempo antes que a fúria to­masse conta dele.

Quanto ao capitão, falava pouco com Grace. Também parecia distraído. Talvez a causa fosse Sidório. Era com­preensível, caso Lorcan tivesse razão e Sidório estivesse em vias de desafiar sua autoridade. Mas, ainda que o capitão não falasse com ela, Grace sentia-se de algum modo segu­ra em sua presença. Reconheceu o franzido na máscara, indicando um sorriso. Era conforto suficiente permitir que ela desfrutasse cada garfada deliciosa da refeição, sem se preocupar muito com o que poderia acontecer depois.

Durante todo o jantar, a mesma música tocava, mas de algum modo jamais ficava chata nem monótona. Depois que a sobremesa — uma geléia de frutas saborosíssima — foi retirada, a música ficou mais alta. Pela primeira vez Grace examinou a extensão da sala, em busca dos músi­cos. Não havia nenhum à vista.

Agora a mesa estava livre de talheres e pratos dos dois lados e a música ficou mais alta ainda. As velas tremula­vam no centro da mesa, lançando um brilho quente de um rosto ao outro. E agora o vampiro e o doador na outra extremidade se levantaram em sincronismo perfeito e saí­ram juntos da sala de jantar.

Os vizinhos foram atrás e, como uma onda, cada par de vampiro e doador se levantou e saiu. Ninguém se apres­sou, ninguém perdeu o ritmo. Grace se perguntou se seria a música que os guiava.

Por fim era sua vez e, enquanto Sidório e seu doador começavam a marchar para a saída, ela e o capitão se le­vantaram e se encararam de novo. Virando-se, andaram por toda a extensão da mesa, de lados opostos.

Agora o coração de Grace estava batendo depressa. Por mais que tentasse harmonizá-lo com o ritmo constante da música, ele rateava como um peixe que se recusa a ser apanhado.

Por fim, quando chegaram à extremidade da mesa, o capitão se virou e estendeu o braço para Grace. Instintiva­mente ela passou o seu pelo dele, como se fosse dançar com o capitão. Era o último par a sair da sala. Quando chegaram à porta, o capitão olhou por cima do ombro e todas as velas se apagaram ao mesmo tempo.

Ele se virou para Grace, olhando-a através da máscara sem olhos.

— Não tenha medo, criança — sussurrou.

Virando-se para seguir os outros, continuaram a subir em silêncio para a cabine dele.

 

                                                   A fome

De volta à sua cabine, o capitão se acomodou na cadeira de balanço diante da lareira. Arrumou sua capa, como sem­pre fazia, em dobras precisas. Poderia ter sido uma cena aconchegante, pensou Grace. Se ele não fosse o capitão de um navio de vampiros. Se ele tivesse olhos humanos, lábios e um nariz para levar o ar para dentro e para fora do cor­po — em vez do vazio escuro onde aquelas feições deveriam estar. Se em todas as outras cabines o resto da tripulação não estivesse saciando a fome de sangue. Sim, mas apesar de todas essas coisas, poderia ter sido uma cena acon­chegante.

E qual seria seu destino, pensou, olhando-o atiçar o fo­go, com a pele atrás da cabeça lembrando-a de que ele ain­da possuía alguma conexão com sua forma humana. Ele a havia salvado das garras de Sidório, sim, mas talvez ela não tivesse sido exatamente resgatada, e sim trocada. Talvez ele tivesse usado a autoridade de capitão para reivindicar seu sangue. Enquanto seguiam pelos corredores do navio, Grace tinha visto porta atrás de porta se fechar, cada vam­piro seguindo seu doador para dentro das cabines. Os doa­dores entravam primeiro, sem exceção, notou ela. Como se entrassem por livre e espontânea vontade. Ou, talvez, para não poderem escapar.

— Você está tremendo, criança. Venha se juntar a mim, perto do fogo. — Como antes, as palavras pareciam sus­surros dentro de sua cabeça.

Enquanto Grace andava, hesitante, o capitão virou o rosto mascarado para ela.

— Ah, vejo que não é o frio que a faz tremer assim. Mas por quê? Eu lhe disse que não há nada a temer.

Ela pensou de novo nas portas se fechando. E na lân­guida resignação dos doadores ao seu destino.

— O que está acontecendo nas outras cabines?

— Claro, você precisa saber. Por que não fica à vonta­de? Eu me esforçarei para responder às suas perguntas.

Ele tinha a capacidade de fazer tudo parecer razoável, como se estivessem falando de um problema com o dever de casa de Grace, e não sobre os atos selvagens que acon­teciam nas outras cabines enquanto conversavam.

Grace sentou-se na cadeira de balanço ao lado dele, mas só na beirada, os pés pousados no chão para manter a ca­deira imóvel.

— Como você viu, criança, cada um dos membros da tripulação tem um doador. Deixe-me garantir que os doadores são bem cuidados. São alimentados generosamen­te e vivem com conforto.

Isso, pensou Grace, era questão de opinião. Como se­ria possível viver com conforto quando se sabia que era preciso oferecer o sangue a outro, toda semana?

— É uma boa pergunta — disse o capitão. Grace fica­va irritada com a facilidade dele para ler seus pensamen­tos. — Mas o momento de compartilhar, como dizemos, não é doloroso e é bastante breve.

Grace ergueu os pés do chão e dobrou as pernas, fican­do mais à vontade. À medida que relaxava, começou a sen­tir-se cansada e conteve um bocejo.

— Nós damos aos doadores uma dieta muito cuida­dosa, extremamente rica em nutrientes. Por isso — obser­vou ele com um sorriso — ela pode deixar as pessoas bastante sonolentas.

Ao ouvir as palavras, Grace se empertigou bruscamen­te. O capitão continuou:

— Essa comida nutritiva pode ser um choque para o organismo. Mas, como você pode imaginar, resulta num sangue de grande qualidade. E é assim que conseguimos reduzir o compartilhamento a uma vez por semana. Faze­mos disso uma festa, um ritual, acho, não somente para maximizar o conteúdo do sangue na época do compar­tilhamento, mas também para prestar homenagem aos doadores. Agradecemos muito a doação — a doação da vida. A cada semana, veja bem, a tripulação renasce.

Ele parou e atiçou o fogo outra vez.

— Mas e se os outros membros da tripulação quise­rem sangue em maior quantidade, ou com mais freqüência?

— Essa opção não existe, Grace, pelo menos enquan­to eu for o capitão do navio. Eles não precisam de um fes­tim com mais freqüência e não precisam de mais do que determinada dose de sangue. Tomar uma quantidade maior não somente poria o doador em perigo, mas a eles próprios também. Iria desequilibrá-los, criar... como é a expressão para isso? Alterações de humor. O problema é que, quan­to mais a gente toma, mas acha que precisa. Mas existe uma diferença, veja bem, entre o que a gente precisa e o que a gente se convence de que precisa.

— Mas — Grace não conseguia deixar o assunto de lado. — E se houvesse vampiros sob seu comando que qui­sessem tomar sangue de modo menos controlado?

— Então teriam de deixar o navio e seguir seu caminho no mundo. Não é desse modo que fazemos as coisas aqui. Os vampiros são muito denegridos, Grace. Fomos demo­nizados. Bom, pense na cantiga: se os piratas são perigosos e os vampiros são a morte... Você sabe que é verdade. E, cla­ro, entendo por quê. Nós fizemos isso conosco. Sentimos a fome e baseamos toda a existência nela. Mas eu descobri outro caminho. E eu mesmo nem preciso mais de sangue.

Essa era uma notícia bem-vinda para Grace. Suas mãos apertadas começaram a relaxar lentamente. Mas como poderia ser?

— Para alguns de nós é assim. A necessidade de san­gue é realmente de prana, energia. Aprendi a me alimen­tar somente disso.

Então o senhor toma energia de seu doador?

— Eu não tenho doador, Grace. E não, não estou procurando um, pode relaxar. A absorção de prana acontece de modo um pouco diferente. Mas é complicado e acho que essa é uma discussão para outra hora. Sua cabeça deve estar girando com tudo que viu e ouviu esta noite. Você parece cansada e confesso que também estou. Mas deixe-­me garantir que sua fadiga é natural e que não tenho ne­cessidade de tirar energia de você. Espero que a tenha tranqüilizado para voltar à sua cabine e descansar.

— Sim — disse Grace, levantando-se da cadeira. — Sim, estou mais tranqüila. Obrigada.

— Ótimo. — O capitão se acomodou de novo na ca­deira e inclinou a cabeça para o peito.

Atrás dele o fogo diminuiu um pouco. Grace pensou que as veias de sua capa estavam luzindo um pouquinho, mas talvez fosse apenas o reflexo das brasas.

— Gosto de nossas conversas, Grace.

Ela sorriu.

— Eu também gosto. Durma bem.

Em seguida abriu a porta e saiu para o convés escuro e deserto.

Uma brisa agradável soprava e Grace foi de novo até a amurada. Virando-se, levantou os olhos para as velas parecidas com asas. A lua brilhava baixa e espalhava luz nas velas, fazendo-as brilhar como a capa do capitão. Po­dia jurar que via as mesmas veias na parte de baixo do material. Que material seria? Seria o mesmo tecido da capa do capitão?

— A lua está cheia esta noite, não é?

Ela não estava mais sozinha. Sem se virar, reconheceu a voz. Era Sidório. O sangue de Grace gelou.

— E quando a lua está cheia eu sinto mais fome.

Quando se virou, Grace viu um horror muito maior do que havia previsto. Em seus braços grossos e cheios de veias, Sidório carregava um homem — o homem que havia se sentado diante dele no Festim. Estava frouxo e parecia adormecido, mas um raio de luar revelou que era um sono do qual ele jamais acordaria. Sidório havia drenado san­gue demais.

E agora o vampiro caminhou pelas tábuas vermelhas do convés e, sem hesitar um instante, jogou o cadáver pela lateral do navio. Grace ouviu o som oco do corpo batendo na água. O som ricocheteou em sua cabeça como um tiro de canhão. Nunca correra tanto perigo. Nunca havia se sentido tão completamente sozinha.

Sidório voltou-se na direção dela. Quando pisou no raio de luar, suas feições estavam distorcidas, os olhos, de novo, parecendo poços de fogo. Sem dúvida, continuava nas gar­ras sombrias de uma fome terrível. Ter tomado demais de seu pobre doador não o havia saciado. Como o capitão pre­vira, isso havia despertado um apetite insaciável.

Grace não podia correr. Precisava esforçar-se para não cair no chão, exaurida de toda energia e resistência. Sidório abriu a boca num sorriso terrível e a luz rico­cheteou em seus dentes de ouro afiados como adagas.

— Vamos à sua cabine — disse ele.

 

                                 A Taverna de Madame Chaleira

Bart e Cate não haviam mentido. A Taverna de Madame Chaleira era diferente de qualquer lugar onde Connor já havia estado. Quando pulou no cais, Bart lhe deu um tapi­nha nas costas.

— Bem-vindo ao lado negro — sussurrou no ouvido de Connor. — O que acha do lugar?

Era realmente incrível — um cruzamento entre um velho bar e um píer. Ficava em palafitas de madeira, qua­tro metros ou mais acima da água, e parecia completamente instável, como se a qualquer momento toda a estrutura fosse desmoronar e afundar no oceano. Na parte de trás da estrutura erguia-se uma enorme roda-d’água chacoa­lhando ruidosa enquanto girava, como um monstro mari­nho engolindo água do mar e depois vomitando de novo.

Enquanto acompanhava Bart e Cate até a taverna Connor olhou para baixo, entre os pés. Havia trechos de assoalho aparentemente sólido, sobre os quais ficavam mesas compridas e bancos. Mas entre esses existiam enor­mes vazios no piso, abrindo-se para a água embaixo. Não estava claro se a madeira havia apodrecido com o tempo ou se simplesmente não houvera o suficiente para comple­tar o piso.

Seria fácil cair entre essas tábuas, pensou Connor, e, de fato, enquanto caminhava cuidadosamente, viu mais de um pirata descuidado espadanando na água. Cordas pen­diam das traves de madeira a intervalos regulares, supos­tamente para ajudar os piratas caídos a subir de volta — se conseguissem. Caso contrário, era um fim prematuro para a noite de folga.

As garçonetes intrépidas corriam pelos caibros estrei­tos, ágeis e seguras como ginastas, levando canecas espu­mantes de cerveja às tripulações de piratas que esperavam. Mas, por mais ágeis que fossem, não se devia mexer com as garotas. Bart cutucou Connor quando Jack Banguela sussurrou algo no ouvido de uma das garçonetes. Ela se inclinou para trás, sorriu para ele e depois o empurrou com força na água. Afastando-se do jato, que espirrou para cima, a garota continuou seu caminho, dando uma piscadela para Bart e Connor.

— Isso deve deixá-lo sóbrio — disse ela.

— Na verdade, ele nem começou a beber — respon­deu Bart.

A garota balançou a cabeça e riu.

— Vejo vocês mais tarde. Se precisarem de alguma coisa, é só chamar Docinho de Coco.

Continuou em frente e os rapazes se viraram para olhá­-la, fascinados.

— Acho que estou apaixonado — disse Connor, com os olhos do tamanho de pratos.

— Minha nossa — respondeu Bart. — Acho que final­mente encontramos uma coisa pela qual vale a pena ficar caído.

— Parem de babar, rapazes — gritou Molucco Wrathe, passando os braços ao redor dos ombros deles e empur­rando-os à frente. — Madame Chaleira reservou algumas mesas em sua área VIP. Vamos juntar o pessoal e começar a festa... antes que a srta. Li diga que isso é contra os regu­lamentos!

Pelo que Connor podia ver, a festa já estava acontecen­do com força total. Acima do barulho da roda-d’água, ha­via o da banda, tocando música muito alta — uma estranha mistura de jazz, rock e cantigas de marinheiros. Connor nunca havia escutado algo assim, mas era barulhento e di­vertido, como todo o resto por ali.

Como o capitão Wrathe tinha dito, uma área com me­sas compridas havia sido isolada com cordas mais adiante. No centro das mesas Connor notou uma pesada placa de madeira com uma pintura do Diablo. “Reservada para o capitão Wrathe e sua tripulação”, estava escrito embaixo.

— Todos os piratas importantes têm uma dessas — disse Bart a Connor. — Como eu disse, este é o ponto de encontro das tripulações de piratas de toda a região. Real­mente não existe lugar igual.

Sentaram-se a uma das mesas e, quase imediatamente, duas canecas de cerveja espumante foram postas diante deles. Bart levantou a sua.

— Vira-vira!

— Espere um minuto! — Era Cate Alfanje. — Connor deve tomar cerveja?

— Claro que não — disse o capitão Wrathe, juntan­do-se ao grupo. — Ele é novo demais. Tragam para esse garoto um ponche de rum quente!

Cate balançou a cabeça incrédula, depois sorriu.

— Todo mundo já recebeu a bebida? — gritou o capi­tão Wrathe.

— Sim, capitão — rugiram todos na mesa comprida, agora apinhada de membros da tripulação sedenta.

— Excelente! — gritou o capitão saltando sobre a me­sa. — Então um brinde, por favor, companheiros. A um dia de pirataria muito satisfatório e à melhor tripulação de piratas que já singrou os mares!

— O que você disse, Wrathe?

Connor se virou a tempo de ver um dos outros capi­tães piratas saltar sobre uma mesa vizinha, com as botas pesadas ressoando como trovão quando pousou.

A banda decidiu que aquilo era bom demais para ser perdido e interrompeu a música para olhar.

Olhando ao redor, Connor viu que mais três piratas de aparência feroz também haviam saltado sobre as mesas ao redor. Mais seis fizeram o mesmo em seguida.

Sem se abalar, o capitão Wrathe riu de orelha a orelha.

— Ora, boa-noite, colegas capitães. Vejo que a Ma­dame tem casa cheia esta noite! E como é que estamos to­dos nesta noite agradável?

— Estávamos muito bem até que você chegou — gritou um dos outros. A tripulação do sujeito explodiu em gar­galhadas e bateu os pés no piso de madeira, aprovando. — E estaríamos ainda melhor se você parasse de entrar com seu navio bexiguento em nossas vias marítimas!

— Isso mesmo! — gritou outro capitão. — Nós , aqui, seguimos as regras, mas você simplesmente fica ziguezagueando pelo oceano que nem uma baleia bêbada.

Houve mais gargalhadas, mas elas tinham um tom ma­ligno.

— Colegas — disse o capitão Wrathe, tentando man­ter um tom brincalhão. — Talvez eu tenha sido um pouco travesso ultimamente, mas este é o lugar...

— Travesso? — rosnou o primeiro pirata. — Você não vai se sair dessa facilmente.

— Isso mesmo — disse o segundo. — Queremos de volta o que é nosso por direito.

— O que é de vocês por direito?

— O butim, Wrathe. Temos conhecimento de que você pescou em nossa via marítima hoje. E tudo que pegou agora pertence a nós.

Diante disso a tripulação do sujeito gritou, em aprova­ção, e começou a bater as canecas na mesa.

— E, portanto, devem pegar tudo — murmurou Cheng Li.

Connor viu Cate lançar um olhar furioso para ela. Com o clamor cada vez maior, ele estava começando a temer não somente pela segurança do capitão Wrathe, mas pela frágil estrutura da taverna.

O capitão Wrathe pareceu meio abalado, mas logo recuperou a compostura.

— Lamento ter ofendido meus excelentes colegas. Quando a manhã chegar vamos nos reunir e resolver isso, certo? É difícil ensinar truques novos a um cachorro velho e salgado, mas tentarei mudar. Mas esta noite, rapazes, não vamos arranjar encrenca, certo?

Ele olhou de um capitão para outro. Os homens esta­vam com rostos que pareciam de pedra, mas o capitão Wrathe gritou de novo:

— Não vão se juntar num brinde comigo? Andem, não quero ficar contra ninguém esta noite porque estou num clima sentimental. Andem, levantem seus copos!

Connor olhou a taverna ao redor. Todas as mesas ha­viam parado com o barulho e as brincadeiras. A atenção de cada pirata estava centrada no capitão Wrathe. Connor se lembrou de Bart lhe dizendo que Molucco Wrathe pos­suía uma tremenda reputação, e sem dúvida não estava errado.

— À vida dos piratas — gritou o capitão Wrathe, viran­do-se enquanto falava para incluir todas as tripulações. — Uma vida curta, mas alegre!

Tomou toda a sua cerveja num gole só. Rapidamente Docinho de Coco pegou sua caneca vazia e substituiu por uma cheia.

Houve um momento de silêncio na taverna e então os outros capitães e suas tripulações levantaram as canecas e gritaram juntos:

— Uma vida curta mas alegre!

Houve muitas batidas de pés e de canecas enquanto cada homem e mulher na taverna participava do brinde. Toda a construção tremia.

O capitão Wrathe levantou a mão e silenciou os gritos.

— Onde está Madame Chaleira? — gritou. — Quero que todos os patifes desta taverna recebam uma nova be­bida. Vocês podem achar que o capitão do Diablo é idiota, mas que ninguém diga que ele é um idiota pão-duro!

Houve mais gritos ruidosos e, sem perder o ritmo, as garçonetes correram pelos caibros, as mãos equilibrando de modo improvável montes de canecas cheias. Connor ficou olhando espantado, jamais tendo visto nada como esse espetáculo.

— Ora, vejam quem chegou com a maré — disse uma voz nítida e rouca — e fez uma bagunça suficiente para me arrancar de meu sono de beleza.

Bart cutucou Connor, que derramou bebida na mesa e nas botas.

— Nem pense em perder essa cena, companheiro!

Connor se virou bem a tempo de ver uma mulher impressionante, com um enorme vestido de baile preto, re­bolando em direção à mesa deles. Quando ela chegou mais perto, Connor viu que a roupa era feita totalmente de ban­deiras com crânios e tíbias cruzadas, mas era uma mulher bonita, com olhos que pareciam jóias e cabelo ruivo-san­gue, onde usava uma tiara na forma de um alfanje.

— Dêem uma mãozinha a uma garota — disse ela, chegando à mesa.

Sem que fosse preciso pedir mais, seis piratas puseram-­se de pé, estenderam a mão e levantaram Madame Chalei­ra sobre a mesa.

— Bem, obrigada, senhores — disse ela, fazendo uma reverência graciosa e continuando a andar pela mesa até chegar ao capitão Wrathe.

— Há quanto tempo, Sortudo — disse ela, abraçan­do-o calorosamente. Os dedos cheios de safiras do capitão Wrathe a apertaram com ternura.

Enquanto Madame Chaleira abraçava o capitão Wrathe, Connor viu que na parte de trás do vestido havia o dese­nho do crânio e das tíbias bordado em cristais brilhantes. Num personagem menor aquilo poderia parecer cafona, mas Madame Chaleira era puro rock and roll.

— Kitty — disse o capitão Wrathe, recuando e sorrin­do para ela, com os dedos dos dois ainda entrelaçados. — Minha doce gatinha, tão linda como quando nos conhece­mos. Quando foi? Você se lembra?

— Não vamos falar de datas, certo? — respondeu Ma­dame Chaleira, sorrindo simpática. — Mas claro que me lembro do dia em que botei os olhos no meu Sortudo. Você era o pirata mais bonito que já vi. E, francamente, querido, os anos só o tornaram mais delicioso, seu velho bandidão.

Connor ficou surpreso ao ver o capitão Wrathe ficar vermelho como um tomate.

— Kitty, querida, tenho um novo membro na tripu­lação. Um garoto muito especial que eu gostaria de lhe apresentar.

Ele apontou para o banco onde Connor estava senta­do, entre Bart e Cate.

— Ah, olá, Bartholomew — disse Madame Chaleira acenando. — Ah, aquele é um homem bonito. Se eu tives­se dez anos menos... certo, talvez vinte ou trinta!

Bart jogou um beijo para Madame Chaleira e ela fin­giu que o pegava no ar.

— Certo, Kitty, mas olhe para além daquele belo dia­bo do Bartholomew, para o jovem ao lado dele. Sr. Tor­menta, venha ser apresentado à realeza pirata.

Connor se levantou, sentindo-se meio tonto. Com cuidado subiu na mesa e se aproximou de Madame Chaleira. Sem saber exatamente o que fazer, e já meio grogue, deci­diu-se por uma reverência.

— Ora, não é um tesouro? — disse Madame Chalei­ra. — Um belo piratazinho, dá para ver. E acredite, já vi muitos. Fique com o Sortudo, rapaz, e não vai errar muito.

Ela piscou para Connor, depois gritou por cima do ombro:

— Docinho de Coco, meu anjo, certifique-se de que as meninas sejam especialmente gentis com o sr. Tormenta esta noite. E se algum outro pirata o incomodar, dê-lhe um soco e diga que está banido até a primavera!

— Sim, sim, Madame — gritou Docinho de Coco, fazendo uma saudação atrevida para a patroa.

— Obrigado — murmurou Connor, ruborizando. Em seguida desceu, embaraçado com a atenção.

Madame Chaleira levou o capitão Wrathe para uma conversa particular e uma dança.

— Andem — gritou para a banda. — Comecem a to­car! Não pago a vocês para ficarem parados de boca aberta!

— Você não paga nada! — gritou o baixista.

— Ah, cale a boca, Johnny, e toque!

Connor riu. Sentiu um tapinha no ombro. Virou-se e viu Cheng Li parada atrás dele.

— Vamos andar e conversar — disse ela.

Connor se levantou, ainda meio tonto.

— Acho melhor deixar sua cerveja aqui, companheiro— observou Bart, rindo.

Cheng Li guiou Connor para fora da área principal, se­guindo por uma passarela de tábuas ladeada por jacarandás cheios de luzes penduradas. O local estava deserto, a não ser por eles, e mais silencioso à medida que se afastavam do bar.

— Foi uma semana cheia, desde que resgatei você, ga­roto — disse Cheng Li. — E muita coisa aconteceu nesta semana.

— É mesmo.

— Você me impressionou muito, garoto. Principalmen­te hoje.

Connor sentiu-se vaidoso ao ouvir o elogio.

— Você demonstrou grande coragem hoje, mas tam­bém demonstrou misericórdia.

Connor não estava bem certo de que aquilo era um elogio.

— Eu disse algumas coisas a você antes do ataque. Coi­sas que talvez não deveria ter dito. Cada um de nós deve travar nossas batalhas. Afinal de contas, sou subcapitã. — Ela esfregou sua braçadeira, como se quisesse dar mais lus­tro à pedra preciosa.

— Nós fazemos parte de uma equipe — disse Connor. — Fiquei lisonjeado porque você se abriu comigo. E nun­ca direi a ninguém o que você me falou.

Cheng Li parou um momento. Olhou-o diretamente.

— Eu agradeceria profundamente, garoto.

— Sem problema. — Pela primeira vez Connor sentia que estava falando com ela num nível próximo da igual­dade.

— A coisa que mais me impressiona em você, Connor, é o modo como não deixou o sofrimento por sua irmã perturbar suas atitudes.

Ele sorriu.

— Ah, mas veja só, eu sei que ela está bem. Ela vai voltar logo.

— Como assim? Não entendo. — Seus olhos escuros se franziram, confusos.

Connor sorriu ao falar.

— Meu pai me disse. Não preciso esperar muito mais. Grace está viva e bem, e logo iremos nos encontrar.

— Mas seu pai está... desculpe... morto. — O rosto dela continuava mascarado pela incompreensão.

— É, mas algumas vezes escuto a voz dele.

— Você escuta a voz de um morto?

— É. Você provavelmente acha loucura.

— Não. — Ela balançou a cabeça. — Não, minha mente é bastante aberta para essas coisas. E o quê, exata­mente, ele disse?

— Não muita coisa. Para me preparar e confiar na maré.

— Confiar na maré. Interessante.

— Pensei que poderia estar imaginando, mas na ver­dade não acredito nisso. É claramente a voz dele. E ouço no coração. Grace está bem. Sei que está.

Quando mencionou o nome dela, Connor pensou ter sentido o medalhão no peito vibrar ligeiramente.

— Então, Connor Tormenta, sua coragem não é seu único talento. De novo estou impressionada. Fico imagi­nando se sua irmã compartilha esses mesmos dons prodi­giosos.

— Ah, sim. Ela é muito mais inteligente do que eu. Ela lê livros e além disso tem um talento para ler pessoas. E é forte, não tanto fisicamente, mas mentalmente. Grace nun­ca desiste.

Cheng Li assentiu. Tinham chegado ao fim da calçada e estavam à beira d’água.

— Parece uma jovem extraordinária. Gostaria muito de conhecê-la.

Cheng Li se virou para Connor.

— Eu já lhe disse, Connor. O mundo da pirataria está mudando. Há oportunidades fantásticas para pessoas como você e Grace. Oportunidades que deixariam você louco, só de pensar.

Connor ficou imediatamente intrigado e pronto para ouvir mais.

— Vamos conversar de novo. Por enquanto, você deve retornar e se juntar aos outros — disse Cheng Li, com os olhos brilhando. — Vou lhe comprar um copo de saque quente e vamos brindar ao seu futuro brilhante.

Começaram a voltar.

— Mais uma coisa — disse Cheng Li.

— Sim?

— Acho que devemos manter esta conversa em segre­do, Connor. Sei que você tem muitos amigos no Diablo, e isso é bom, claro que é. Mas há algumas coisas que pessoas como você e eu não podemos compartilhar com os outros. É o fardo de nossa grandeza. Vejo um futuro brilhante para você. Você vai suplantar facilmente os que hoje considera seus colegas; até mesmo pessoas que vê como seus supe­riores. Não será uma jornada fácil, não espere isso. Mas as jornadas fáceis não valem o couro da sola dos nossos sa­patos, garoto. As jornadas que nos testam até o âmago — as jornadas que arrancam as roupas de nossas costas, me­xem com nossa mente e sacodem nosso espírito — são as que valem a pena na vida. Elas mostram quem somos nós.

As palavras dela eram verdadeiramente brutais, mas en­quanto os dois continuavam andando num silêncio agra­dável, Connor pensou que já sabia alguma coisa sobre o que Cheng Li queria dizer.

 

                                   O fim da minha história

Grace não lutou. De que adiantava? Sidório era forte de­mais. Ele fechou a porta da cabine e virou a chave na fe­chadura, enfiando-a no bolso, por segurança.

Sidório preenchia o cômodo, não apenas fisicamente, mas com uma aura de ameaça e violência. De repente aque­le não era mais o abrigo de Grace, e sim um local perigo­so. Ali, percebeu, poderia ser o lugar onde sua história chegava a um final súbito e brutal.

Estava consciente demais do silêncio lá fora. Não hou­vera sinal dos outros quando saiu da cabine do capitão. A noite havia terminado cedo, devido ao compartilhamento. O capitão estava dormindo. Lorcan estava se alimentan­do. Mesmo que ela gritasse agora, ninguém escutaria. Nin­guém poderia alcançá-la a tempo. A única pessoa que teria esperança de salvá-la era ela mesma. Mas como?

— O que você quer de mim? — perguntou, decidindo começar com o pior.

Sidório deu um risinho.

— Quero seu sangue, claro.

Aquela resposta direta poderia ser considerada revigorante, supôs Grace. Talvez ele fosse a única pessoa que ela encontrara no navio que não falava por enigmas.

— Mas por que o meu?

Ele deu de ombros.

— Porque você está aí. E eu estou com fome.

Dava para ver no rosto dele. Era como se fosse feito de vela de cera, derretendo e se transformando. Grace vira essa expressão três vezes, antes. Primeiro em Lorcan, depois no rosto da cozinheira e há um instante em Sidório, fora da cabine. Devia ser o rosto que todos tinham por trás das portas fechadas, quando a fome crescia por dentro, atra­vessando-os como uma onda.

— Mas você poderia conseguir sangue muito melhor do que o meu — disse Grace, tendo uma idéia súbita. — Sou nova no navio. Só comi uma refeição decente desde que cheguei. Minha comida deve ser a menos nutritiva de todo mundo! Você poderia ter coisa muito melhor.

As palavras dela pareciam ter provocado algum efeito. Ele a olhou com curiosidade por um momento. Depois ba­lançou a cabeça.

— Sangue é sangue.

— Não foi o que o capitão me disse.

A simples menção ao capitão provocou uma careta em Sidório. Talvez tivesse sido pouco sensato mencioná-lo, mas ela estava ficando sem idéias.

— O capitão gosta de criar pequenas regras — disse Sidório. — Ele gosta de seus jantares semanais. Gosta que a gente fique suprimindo o apetite natural, que todo mundo finja ser civilizado. Mas sabe de uma coisa? Nós não somos civilizados. Somos vampiros, demônios... pode chamar como quiser. E vampiros precisam de sangue. Pura e simplesmente.

— Ah, mas você precisa mesmo? Parece que já se refestelou esta noite. Talvez não precise de mais. — Ela se lembrou das palavras do capitão. — Sei que você está fa­minto pelo sangue, mas não precisa de verdade. Só quer.

— Preciso. Quero. Qual é a diferença? — Ele boce­jou. — Você está me chateando.

Grace havia se afastado de Sidório tanto quanto po­dia. Estava com as costas junto à escrivaninha. Quando se inclinou ainda mais para trás, a pilha de cadernos e lápis caiu no chão. Quando caíram, ela teve uma idéia súbita.

— Conte sua história — disse.

— O quê? — Ele a olhou estranhamente.

— Conte como você atravessou. Quem você era an­tes. Como era sua vida.

Ele a encarou com expressão vazia. Será que a vida mor­tal do sujeito teria acontecido há tanto tempo que ele havia esquecido? A srta. Flotsam parecera ansiosa para compar­tilhar a história da sua vida. Mas ele não era como a srta. Flotsam. Parecia ter perdido qualquer traço de humanida­de. Será?

— Eu era pirata — disse Sidório com os olhos subitamente brilhando — num local chamado Sicília, no sécu­lo I a.C. — Ele sorriu. — Aquele é que era tempo para ser pirata! Controlávamos todo o Mediterrâneo e pusemos o Império Romano de joelhos.

Enquanto ele se empolgava com sua história, Grace cor­reu o risco de sinalizar para a cadeira. Ficou meio surpresa ao descobrir que ele obedeceu e sentou-se.

— Na época, tínhamos um tráfico de escravos muito próspero — continuou Sidório. — Escravos. Era a minha especialidade. Deixávamos os mais ricos comprarem a li­berdade e depois levávamos os outros para o mercado. Fizemos uma fortuna.

Ele assentiu, como se uma lembrança deixasse outra escapar. Então, da mesma forma, saiu do devaneio.

— Por que quer saber disso?

— Estou colecionando histórias de travessia — disse Grace, pensando. — Achei que poderia escrevê-las. A srta. Flotsam me contou a dela, hoje cedo.

— A minha é melhor. A minha é a melhor.

Grace não pôde evitar um sorriso. Tinha encontrado uma rica veia de arrogância.

— Conte — disse. — Conte tudo. — Em seguida pe­gou um caderno e uma caneta. A princípio sua mão tremeu, mas de algum modo se controlou e começou a anotar.

— Já ouviu falar de Júlio César?

Ela assentiu.

— Um lixo romano arrogante — rosnou Sidório. — Nós o seqüestramos, eu e meus colegas.

Os olhos de Grace se arregalaram. Isso era realmente interessante. Não havia prestado muita atenção na escola, mas tinha certeza que teria lembrado disso.

— Um lixo arrogante, sem dúvida. Achava-se um eru­dito, tinha ido estudar retórica, ou sei lá o quê, em Rodes Nós abordamos seu navio perto da ilha Farmacusa e o to­mamos como refém. Mesmo assim ele permaneceu cheio de si, dizendo que era um figurão. Mesmo quando cobra­mos resgate, ele disse que pagaria mais do que o dobro, do próprio bolso, para ser libertado.

Sidório suspirou.

— Alguns homens eram fracos e foram dominados pela ostentação do sujeito. Esqueceram que ele era nosso prisio­neiro. Eu jamais esqueci. Ele me odiava. — Sidório sorriu. — Xingava-me de tudo quanto é nome que existe. Fez todo tipo de ameaças. Adorava contar vantagem.

Sidório ficou quieto de novo. Grace virou a página e olhou-o. Ele precisava continuar falando. Esse era o tru­que. Enquanto ele continuasse a falar, ela ganharia tempo. Ela o manteria falando até o amanhecer, se fosse necessá­rio, então iria expô-lo à luz do sol.

— O que aconteceu, então? — perguntou.

— O resgate foi pago. Por acaso ele era mesmo um figurão. Já devia saber disso. Nós o deixamos em terra, em Mileto, fizemos um trato com o governador para adiar nos­so julgamento.

Ele parou de novo.

— E então?

— E então — Sidório fixou-a com os olhos som­brios —, e então César pegou a lei nas próprias mãos. Vol­tou e se vingou de nós. Ele me matou.

— Você foi morto por César?

Sidório assentiu, sorrindo.

— Eu disse que minha história era a melhor.

Ele olhou para o caderno, aparentemente satisfeito em ver como a escrita cobria as páginas. Pegou o caderno das mãos dela e olhou. Grace não sabia se ele estava de fato lendo. Então Sidório o jogou no chão.

— Estou chateado de novo. E com fome. Venha cá.

Ela balançou a cabeça.

Se ele ia tomar seu sangue, que viesse. Grace estava entorpecida. Então seria desse jeito? Porque sabia que, quando Sidório bebesse, seria o seu fim. Ele era como um animal que ficara enjaulado por tempo demais e de repente havia se libertado, precisando compensar o tempo perdido. Se tomasse o seu sangue agora, iria lhe infligir toda a selvageria que não pudera exercer por tanto tempo, Grace tinha certeza.

Ele se levantou e veio em sua direção. Mesmo contra a vontade, notou que se encolhia. Não, por favor, não. Aqui, não, assim, não.

Sidório estendeu a mão e afastou o cabelo de Grace do pescoço. Seu toque era suave, mas o terror foi como um relâmpago, cortando-a. Todos os temores que, de algum modo, havia conseguido empurrar para baixo durante o tempo passado no navio foram subitamente liberados. A adrenalina atravessou seu corpo como fogos de artifício ferozes. E então, de modo igualmente repentino, tudo fi­cou calmo outra vez e ela sentiu um torpor absoluto, como se flutuasse.

Nesse momento, um estranho ruído entrou no cômo­do. Um zumbido. Encheu o lugar, ficando mais alto até que Sidório também parou para ouvir. De onde viria? De fora ou de dentro? Não estava claro. O que quer que fosse, es­tava ficando cada vez mais alto. E agora, enquanto o zum­bido crescia a ponto de explodir os tímpanos dos dois, a parede atrás de Sidório pareceu curvar-se e tremer.

Um enxame de insetos atravessou a parede. Quando eles encheram o cômodo, as paredes se imobilizaram de novo, mas o ruído ficou insuportável. Grace pôs as mãos nos ouvidos, e Sidório fez o mesmo. Grace ficou olhando, espantada, a hoste negra de criaturas minúsculas envolver Sidório, que levantou as mãos com força ao redor da cabe­ça, gritando de terror. Os insetos se enfiaram em seus olhos e em seus ouvidos, envolvendo-o num manto escuro. E então, bem na frente dos olhos de Grace, o enxame de in­setos se transformou numa capa escura de material pare­cido com couro, com veias luzidias que pulsavam como se respirassem.

— Sidório — disse o capitão, liberando-o de suas gar­ras. — Deixe este navio agora.

Sidório não resistiu nem protestou. Apesar do ódio contra o capitão, parecia aceitar finalmente que os pode­res do rival eram superiores aos dele. Do mesmo modo como, no fim, soubera que César era um homem mais for­te e mais inteligente.

 

Sidório se encontrava junto à amurada do lado oposto a Grace e ao capitão. O convés permanecia deserto, a não ser por eles. A mão enluvada do capitão estava pousada, reconfortante, no ombro de Grace.

Sidório balançou a cabeça, sorrindo.

— Não tem uma pequena cerimônia de despedida para mim, capitão?

— Isso não me agrada, mas você não me deixou alternativa. Seu modo de agir não é o modo de agir deste navio.

— Não — disse Sidório. — Não é.

— A partir deste momento você não é mais um Vampirata. Não posso mais tê-lo a bordo deste navio. — Ele olhou para a distância. — Mas estremeço de pensar no tu­multo que você causará lá fora.

— Bom, prepare-se para se espantar! — disse Sidório, subindo   na amurada.

Ele olhou para o capitão e para Grace.

— Não é a última vez que vocês me vêem. Esse não é o fim da minha história.

Com isso virou-se e mergulhou no oceano. Grace olhou as águas escuras recebendo-o.

— Venha, Grace — disse o capitão, levando-a para longe. — Vamos voltar para dentro.

Antes que tivesse chance de absorver esses acontecimen­tos incríveis, Grace ouviu o som de passos correndo pelo convés e ali, subitamente, estava Lorcan. Parecia em pâni­co e sem fôlego.

— Grace, felizmente! Passei por sua cabine e vi a por­ta aberta. Vi sangue no convés. E Sidório não está em lu­gar nenhum... achei... não pude deixar de pensar...

— Como pode ver, aspirante Furey, Grace está em segurança e bem. Mas parece que lhe devo um pedido de desculpas. Achei que o senhor estava sendo superprotetor com ela, mas parece que não conheço minha tripulação tão bem quanto imaginava. Sidório acabou com a vida de seu doador esta noite.

— Mas — disse Lorcan, a mente disparando para absorver as notícias — o que aconteceu? Onde está o doa­dor? Onde está Sidório agora? Ele machucou você, Grace?

— O livro está fechado, aspirante Furey — disse o capitão. Como sempre, ainda que suas palavras fossem ape­nas sussurros, a autoridade era inquestionável. Ele se levantou.

Grace estremeceu, pensando de novo em Sidório lançando o cadáver sem sangue para fora do navio. Agora o capitão também estava colocando um véu sobre aquilo. Será que a vida era realmente descartável?

— Não quero que Grace corra mais perigo durante a estadia no navio. Eu o nomeio protetor oficial dela. Não a deixe fora de suas vistas. Faça todo o possível para que ela não sofra nenhum mal. Entende?

Lorcan assentiu, sério.

— O senhor tem minha palavra, capitão. Lutarei para protegê-la até meu último suspiro.

 

                                             O estranho

Era tarde da noite quando o nadador se alçou no píer. Seus membros estavam meio cansados, mas ele sentia principal­mente uma energia renovada e uma satisfação definitiva com o esforço. Estava com um nível de força sem igual em sua lembrança. A mente corria tanto quanto a energia que borbulhava em cada célula do corpo.

Ficou de pé e olhou de volta para o oceano escuro atra­vés do qual tinha viajado. Vira demais desse oceano. Era bom estar de novo em terra firme. Virou-se e olhou pela passarela de madeira.

Havia luzes piscando adiante e o clamor de vozes. En­tão veio uma única voz, cantando. Começou a andar em direção ao som, tentando captar as palavras que pairavam no ar noturno.

 

Vou contar a história dos Vampiratas,

História antiga e verídica.

Sim, vou cantar sobre um velho navio

E sua tripulação maligna e fatídica.

Sim, vou cantar sobre um velho navio,

Que veleja no oceano azul...

Que assombra o oceano azul.

 

Era a voz de um garoto, notou o nadador. Uma voz que estava começando a mudar. Mais adiante ficava a estala­gem. Seu sentido de direção fora impecável, como sempre. Este era o lugar. Era ali que todos os piratas se reuniam. E, mesmo sendo tarde da noite, ali estavam, reunidos ao re­dor de um garoto com voz ora mais grossa, ora mais fina, que cantava uma velha melodia.

 

O navio Vampirata tem velas rotas,

Que balançam como asas a voar.

Dizem que o capitão usa um véu

Para aplacar nosso temor

De sua palidez mortal

E de seus olhos sem vida,

E dos dentes afiados como a noite sombria

Ah, dizem que o capitão usa um véu

E seus olhos nunca vêem a luz do dia.

 

É melhor ser boazinha, criança — boa como ouro,

Tão boa que nem posso contar.

Senão te entrego aos Vampiratas

E te mando para o mar.

 

Havia alguma coisa no garoto, algo familiar. Ele não po­dia deduzir exatamente o que era. Sua cabeça estava late­jando. O cansaço da longa viagem começava a dominá-lo. Assim como a fome. Uma fome de um tamanho que não sentia fazia muito, muito tempo.

 

É, é melhor ser boazinha, criança — boa como ouro,

Porque... olhe! Estás vendo logo ali?

Há um navio escuro no porto esta noite

E tem lugar no porão para ti!

(Tem bastante lugar para ti!)

 

O garoto o tinha visto agora e, mesmo continuando a can­ção, deixou uma ou duas notas desafinarem, distraído pe­los passos pesados do nadador. E quem não se distrairia com um estranho daqueles? Um estranho cujo simples ta­manho e o corpo musculoso bastavam para bloquear até mesmo a luz da lua.

 

Bom, se os piratas são maus,

E os vampiros ainda piores,

Rezo para que, enquanto eu viver,

Mesmo cantando sobre os Vampiratas,

Jamais um deles eu possa ver.

E, se os piratas são perigosos

E os vampiros são a morte,

Rezo também por ti...

Que teus olhos nunca vejam um Vampirata...

...E eles nunca ponham a mão em ti.

 

Quando terminou de cantar, o garoto ficou imóvel, olhan­do o nadador, que tinha parado a apenas alguns passos da mesa. Agora outros se viravam para ver o que havia atraído a atenção do garoto. De repente todos o estavam olhando.

O nadador abriu a boca.

— Eu vou lhes contar a história dos Vampiratas — disse.

E então a exaustão se combinou com a fome e sua vi­são ficou turva. E tudo ficou escuro.

 

Connor olhou para o estranho enquanto Bart derramava mais uma gota de rum na boca do sujeito, que estava total­mente encharcado. De onde ele teria vindo, a essa hora da noite? Suas roupas eram estranhas, fora de tempo e lugar. E ele havia olhado de modo muito estranho para Connor enquanto este cantava a música dos Vampiratas. Talvez ela o tivesse perturbado e por isso ele desmaiara.

Com um gorgolejo, o homem retornou à vida, cuspin­do o rum.

— Aqui, companheiro, tome um pouco mais, vai lhe fazer bem — disse Bart.

O estranho balançou a cabeça e virou o rosto para longe.

— Chega.

— Prefere um pouco d’água? — perguntou Cate, ali perto.

— Nada — respondeu o estranho lentamente.

E, de modo curioso, agora que retornava à consciên­cia, parecia totalmente recuperado. Até recusou ajuda para ficar de pé, levantando-se e ocupando um banco ali perto.

— Qual é o seu nome, estranho? — perguntou o capi­tão Wrathe. — De onde veio?

O homem ficou em silêncio, mas se virou para olhar o oceano.

— Veio de outro navio? — perguntou Bart.

— Dê um tempo — disse o capitão Wrathe. — Ele parece em choque.

— Foi a cantiga — explicou Connor. — Ele me ouviu cantando sobre os Vampiratas.

À menção da palavra, o estranho girou a cabeça para Connor.

— Vam-pi-ra-tas — disse muito lentamente.

Connor não conseguia respirar, de tanta ansiedade.

— Vou lhe contar uma história dos Vampiratas — dis­se o homem de novo, com a voz baixa e rouca.

Connor não conseguiu se segurar mais.

— Estou procurando um navio. O navio Vampirata. O senhor veio dele?

Connor sentiu o medalhão vibrando contra o coração que batia forte. Essa tinha de ser a novidade. Esse tinha de ser o caminho de volta até Grace.

Mas o homem o encarou com olhos arregalados e vazios. Connor não queria deixar o assunto de lado.

— Acho que minha irmã está no navio. Ela tem a mi­nha idade. Nós somos gêmeos. O nome dela é Grace.

Ele sabia alguma coisa. Connor estava tão cheio de perguntas que não soube qual fazer em seguida. Antes que ti­vesse chance de falar, escutou a voz de Cheng Li.

— Fale dos Vampiratas — disse ela. — Como pode­mos lutar contra eles? Eles tentarão tomar nosso sangue?

O estranho olhou-a espantado, franzindo a testa, como se sentisse dor. Depois assentiu.

— Eles tomaram o seu sangue? — perguntou com rara suavidade. — É isso? Você era prisioneiro dos Vampiratas? Eles tomaram seu sangue antes de você escapar? Por isso está tão fraco?

— Sangue — foi tudo que ele disse antes de fechar os olhos de novo.

— Não — gritou Connor. — Por favor, senhor, não pare agora. Precisamos que diga onde está o navio. Preci­samos saber se minha irmã está lá.

— Grace — murmurou o estranho. — Perigo.

— Venha — disse o capitão Wrathe. — Não há tempo a perder. Juntem a tripulação e preparem o navio. Vamos levá-lo conosco.

O capitão olhou o pobre estranho, cujos olhos tremu­laram por um momento e depois se fecharam.

— Devem ser demônios terríveis para enfraquecer um homem forte como este — disse o capitão Wrathe, com tristeza. — Se ao menos soubéssemos qual é o ponto fraco deles. Se ao menos tivéssemos uma pista!

Os olhos do estranho tremularam de novo e ele segu­rou o braço de Connor.

— Ele tem algo a dizer — sussurrou Bart. — E se eu tentasse lhe dar um pouco mais de rum?

O estranho balançou a cabeça e apertou o braço de Connor de novo. Mesmo estando fraco, seu aperto era for­te, e Connor se encolheu de dor.

— O que é? — perguntou. — O que o senhor quer tanto dizer?

— Ataquem quando a noite virar dia... — Ele parecia lutar com as palavras. — Quando estiverem mais fracos com a luz.

O esforço das palavras pareceu demasiado. Seus olhos se fecharam de novo e ele se deixou tombar contra a mesa.

Connor achou que iria explodir. Finalmente, finalmente tinha a pista para encontrar Grace! Mas e se fosse tarde demais? E se eles tivessem se alimentado dela como fize­ram com este homem? E se tivessem deixado apenas uma casca frágil?

— Connor — disse o capitão Wrathe, vendo sua preocupação. — Fique firme, ouviu? Acredite que ela está bem. E confie em mim, jovem amigo, vamos nos vingar se tive­rem feito alguma coisa com ela. Este homem nos deu um grande presente. Vai nos levar ao navio deles e faremos o resto. Vamos encontrar sua irmã, meu garoto, e vamos destruir esses demônios.

 

Deitado no banco, de olhos fechados, Sidório só queria rir. Aqueles pobres idiotas tinham engolido seu desempenho direitinho. Ele havia se esquecido de como era divertido brincar com as mentes dos mortais. E mal podia esperar para ver a reação do capitão do navio Vampirata quando um navio de piratas vingativos aparecesse à luz do dia. Será que a vingança poderia ser tão fácil assim? Pela primeira vez em muito, muito tempo, Sidório esperou o amanhecer com uma expectativa deliciosa.

 

                                   Então tudo começa

Lorcan e Grace estavam no convés do navio. Grace havia relutado em voltar diretamente à cabine depois do que acontecera lá, com Sidório.

— Você poderia ir à minha cabine, se preferir — disse Lorcan. — Mas precisamos voltar logo para dentro.

— Não, não, está tudo certo. Terei de voltar para lá em algum momento. Mas só alguns minutos. A noite está tão linda, com as estrelas!

— Certo, mas só alguns minutos. Está ficando tarde e o céu começa a clarear. Preciso ir para dentro antes que Darcy dê o Toque do Amanhecer!

Grace confirmou com a cabeça. Lembrou-se de como ele havia se encolhido para longe da luz, em sua cabine. Não iria fazer com que Lorcan sentisse aquela dor outra vez.

 

O Diablo seguia pelo mar aberto, perseguindo o navio Vam­pirata. O estranho havia se recuperado o suficiente para dar instruções ao capitão, mas tinha lutado para lembrar o próprio nome. Por fim, havia se virado para o capitão Wrathe com um leve sorriso e dissera:

— César.

Agora “César” estava ao lado do capitão, enquanto Connor, Bart, Cate e Cheng Li permaneciam próximos.

O convés se encontrava apinhado de tripulantes. A no­tícia de que a irmã gêmea de Connor estava viva mas cor­rendo sério perigo havia se espalhado depressa, e cada pirata se preparava para a luta de sua vida. Connor sentiu­-se emocionado com o apoio inabalável.

— Agora você é um dos nossos, Connor — disse o capitão Wrathe. — E cada pirata cuida do irmão.

Cate Alfanje e Cheng Li deram um informe conjunto à tripulação, dizendo para terem cuidado com um inimigo do qual praticamente nada sabiam. Cate havia pressionado César para obter todas as informações que pudesse, mas ele só ficava repetindo:

— Ataquem quando a noite virar dia, e a vitória será sua.

Finalmente viram a sombra de um navio adiante. De­via ser ele. O capitão se virou para César, cheio de expec­tativa. Ele assentiu. O coração de Connor batia depressa. Bart pôs a mão no ombro do amigo.

— Agora não falta muito, companheiro — disse ele.

O convés do navio inimigo parecia calmo. O capitão Wrathe diminuiu a velocidade do Diablo para reduzir o ba­rulho. Queria aproveitar ao máximo o elemento surpresa.

Os canhões estavam carregados e as Três Desejos se encon­travam meio suspensas, a postos. Logo o inferno iria se abrir mas até o último momento possível ele queria silêncio. Por fim o capitão se virou para Cate.

— Por favor, faça os últimos preparativos para o ataque.

— Ainda não — interrompeu César. — Está muito escuro.

— Não podemos nos arriscar a esperar mais — disse o capitão Wrathe. — Você ajudou muito, César, mas agora vamos aproveitar a chance.

— Além disso — disse Cheng Li —, olhe, a luz do dia está surgindo no leste.

César tremeu, os olhos se agitando de novo, como ha­via acontecido na taverna.

— Você está bem? — perguntou Cheng Li.

— Com um pouco de frio — hesitou ele, com os olhos quase fechados. — Talvez, se o meu trabalho estiver terminado, eu devesse ir lá para baixo, descansar um pouco.

O capitão Wrathe confirmou com a cabeça.

— Vou ajudá-lo a ir até uma cabine — disse Cheng Li, estendendo a mão e guiando o pobre inválido pelo convés.

O capitão Wrathe se virou para Cate outra vez.

— Faça os preparativos, Cate. Agora.

— Não.

Connor se adiantou.

Os outros se viraram para ele com ar interrogativo.

— Olhem, o convés está quase deserto. Só posso ver duas figuras, e acho que uma delas é Grace. Vamos fazer as coisas de um modo diferente. Deixe-me ir até lá sozinho.

Cate balançou a cabeça.

— Você não pode fazer isso, Connor. Sinto muito, mas você não tem experiência suficiente em combate. E, além disso, não queremos perdê-lo.

— Tenho certeza de que é Grace — disse Connor. — Se atacarmos, isso vai apavorar quem está com ela, e quem sabe o que ele pode fazer. Talvez, se for sozinho, eu possa derrubá-lo em silêncio sem alertar o restante da tripulação.

— É perigoso demais — insistiu Cate.

Mas o capitão Wrathe balançou a cabeça.

— A decisão é do Connor. É a irmã dele que está no navio e devemos fazer as coisas ao modo dele.

Connor sorriu para o capitão.

— Obrigado — disse, imensamente grato.

— Que tal eu ir junto como apoio, companheiro?

— Não, Bart. Obrigado pela oferta, mas esta é uma coisa que eu preciso fazer sozinho.

— Pelo menos leve isto — disse Cate, entregando a Connor seu precioso sabre.

— Não posso — disse Connor.

— Não me obrigue a usar minha autoridade com você — disse Cate, pondo o punho da arma na mão enlu­vada de Connor.

— Obrigado, obrigado a todos vocês.

Cate foi falar da mudança de planos aos piratas que esperavam.

Connor ficou parado na frente do navio, entre o capi­tão Wrathe e Bart.

— No momento em que o vi, sr. Tormenta, soube que era um futuro herói — disse o capitão. — Mas sabe de uma coisa? Você já é.

Connor ouviu as palavras mas não pôde responder. O navio estava quase ao lado do vizinho e ele precisava ficar absolutamente concentrado no convés adiante. Tudo por que havia passado voltou nesse momento. Tinha visto Grace, pelo menos estava quase certo de que tinha visto. Mas agora o convés estava totalmente vazio.

Acima dele os piratas baixaram cuidadosamente uma das Três Desejos. Eles a haviam lubrificado depois do últi­mo ataque e agora ela estava muito mais silenciosa. Mesmo assim, cada som raspado de metal fazia a pele de Connor se arrepiar. Nada deveria alertar os Vampiratas de que ele estava indo. Nada deveria diminuir sua chance de sucesso.

Assim que a Desejo estava na horizontal, ele se virou para o capitão Wrathe, Bart e Cate. Não havia tempo para despedidas dramáticas. Além disso, iria voltar em pouco tempo, com Grace. Não é?

— Ande logo — disse Bart. — Queremos conhecer sua irmã enquanto ela ainda é jovem!

Com um sorriso, Connor pulou na Desejo e correu por ela até o outro convés.

 

— O que foi isso? — perguntou Lorcan a Grace.

— Isso o quê?

— Esse barulho.

— Não escutei nada. Lorcan franziu a testa.

— Há alguém no convés. Ouvi passos.

— Deve ser a.srta. Flotsam que foi soar o Toque do Amanhecer.

— Não, Darcy tem pés mais leves do que isso. São botas masculinas. Há um homem lá fora.

Os olhos de Grace se arregalaram.

— Não seria o Sidório?

— Espero que não. Mas é melhor verificar.

— Você não pode sair agora, o dia vai clarear dentro de alguns minutos. Não sei aonde a srta. Flotsam pode ter ido.

— Alguma coisa não está certa. Vou sair. Feche a por­ta e fique aqui.

Ele empurrou a porta da cabine de Grace e saiu para o convés. Ela foi atrás.

 

Connor continuou andando pelo convés o mais silenciosa­mente que podia. O lugar ainda estava vazio, pelo que ele podia ver, mas ouvia ruídos abafados perto. Escutou uma voz feminina.

— Grace — disse ele, incapaz de impedir que a pala­vra saísse.

— Connor?

Ela havia chamado seu nome. Claro como o dia. Esta­va viva! Ele havia chegado a tempo. Correu pela lateral do navio.

Ali estava.

— Connor — disse ela, levando a mão à cabeça, in­crédula.

Foi então que Connor viu o homem ao lado dela. Não, não era um homem — era um Vampirata. Segurou a espa­da, preparado, e correu até eles.

 

Lorcan ficou perturbado ao ver que Grace o havia seguido ao convés, e ainda mais ao ver um estranho correndo para eles, com a espada na mão.

— É o Connor — gritou Grace sem fôlego. — É o meu irmão. Finalmente me encontrou!

Lorcan demorou um instante para registrar as palavras, e então, enquanto o garoto chegava perto, viu que tudo fazia sentido. Eram gêmeos. Não eram idênticos, mas ha­via uma nítida semelhança. Lorcan ficou para trás enquanto Grace saltava nos braços de Connor e os irmãos reunidos se abraçaram.

Lorcan desviou o olhar. A luz do dia estava começan­do a chegar rapidamente e ele precisava entrar. Mas, ainda que o sol estivesse subindo, eles iam perdendo a visibilidade à medida que a névoa começava a se erguer. Mas aquilo não era um navio, ao lado? Era! De que outro modo o garoto poderia ter chegado a bordo? E agora, olhando pela névoa que adensava e pela luz que chegava, Lorcan viu bandos de homens alertas no convés do outro navio, ar­mados com espadas.

Olhou de novo para Grace, ainda abraçada ao irmão. Isso não poderia ser um truque, não é? Será que o outro navio iria atacar o deles?

Nesse momento uma porta se abriu e Darcy Flotsam veio para o convés.

Olhando para o céu, ela correu até o sino. Sem perder mais um momento precioso, começou a tocá-lo. Ao fazer isso, notou Grace, Lorcan e... um estranho. O que estava acontecendo? Por que Lorcan estava ali a essa hora? Quem era o estranho? Se ao menos ela não tivesse dormido demais...

— Lorcan — gritou a srta. Flotsam —, entre. Está amanhecendo.

Quando o sino começou a tocar, Connor soltou Grace.

— O que é isso? — perguntou ele.

— Tudo bem. — Grace sorriu. — É só o Toque do Amanhecer.

 

No Diablo, os amigos de Connor lutavam para enxergar através da névoa no outro convés. Quando o sino tocou, Bart segurou o ombro de Cate.

— O que é isso?

— Não sei, Bart. Algum tipo de alarme?

— Connor precisa da nossa ajuda — disse Bart pegan­do seu montante.

— Você não sabe disso.

— Não vou ficar aqui esperando — gritou Bart. Sem dizer outra palavra, correu pela Desejo, cegado momentaneamente pela névoa que se assentava.

Sentiu as tábuas do convés sob os pés e atravessou a névoa, vendo figuras adiante.

Ali estava Connor e uma garota. Devia ser a irmã dele. Era possível ver a semelhança. E Connor estava sorrindo. Mas havia outro rapaz e mais uma garota. E, enquanto Bart corria na direção deles, o rapaz se adiantou e desembai­nhou uma espada. Bart levantou o montante e o girou para encontrar a lâmina do alfanje.

— Não — gritou Grace, confusa pelo ataque. — Connor, faça com que ele pare! Lorcan não fez mal nenhum.

— Lorcan, entre! — gritou a srta. Flotsam, em pânico.

Mas Lorcan a ignorou, com a atenção concentrada somente na espada do atacante. Tinha havido algum truque. Quem quer que tivesse trazido o irmão de Grace ao navio, viera preparado para lutar contra os Vampiratas.

A luz estava começando a doer nos olhos de Lorcan, mas ele era um bom espadachim e conseguiu acertar um golpe no braço do agressor.

Bart saltou para trás. Não estava acostumado a ficar na linha direta de ataque. Em geral, encontrava apenas outros usuários de montantes, e não sabres malignos.

Connor empurrou Grace de lado e saltou na frente de Bart, balançando seu sabre diante do rosto de Lorcan.

— Connor! — gritou Grace. — Não! Lorcan é meu amigo!

— E Bart é meu — gritou Connor, não ousando olhar por cima do ombro para ver se Bart estava bem.

— Lorcan! — gritou a srta. Flotsam. — Você precisa entrar. Eu tenho de assumir meu posto.

— Assuma, Darcy — gritou ele. — Assuma seu posto e me deixe aqui. Eu disse que protegeria Grace e é o que pretendo fazer.

Soluçando, a srta. Flotsam correu pelo convés e saltou para sua posição como figura de proa. Grace viu-a trans­formar-se rapidamente de carne viva em estátua pintada.

Connor também viu, incapaz de crer nos próprios olhos.

— Lorcan, por favor, entre. — Agora era a vez de Grace implorar. A luz se derramava no convés e ela podia ver o efeito causado no rapaz. Seus olhos estavam fechados e ele sacudia o sabre com pouco efeito.

— Há um navio cheio deles, Grace — gritou Lorcan, quase sem fôlego. — Eles mandaram seu irmão pegá-la, mas há uma horda esperando para vir em seguida. Como este.

Ele apontou a espada para Bart.

— Não é verdade — disse Connor. — Sou só eu. Eles me trouxeram aqui para pegar Grace, mas é só isso que eu quero. Não quero fazer mal a vocês.

— E ele? — perguntou Lorcan, indicando Bart.

— Vim quando escutei o sino — respondeu Bart. — Pensei que Connor estivesse em perigo. Achei que vocês tinham dado o alarme.

— Isso não é um alarme — disse Grace. — É para sair do convés, não para vir até ele.

— Então você está bem? — perguntou Bart.

— Estou — respondeu Grace, ainda ansiosa para ver Lorcan em segurança lá dentro.

— E vocês não vão mandar mais ninguém? — pergun­tou Lorcan a Bart.

— Não, companheiro, de jeito nenhum. Só estou aqui por causa do meu amigo.

— Entre, Lorcan — disse Grace. — Por favor, entre.

Agora a luz brilhava diretamente no rosto dele. Ela o fazia oscilar e quase largar a espada.

— Como vou saber que não é um truque? — perguntou.

— Não é — respondeu Connor. — Só vim pegar Grace.

— Por favor, Lorcan. Eu confiei em você. Agora você precisa confiar em mim.

— Certo, Grace, certo.

Por fim Lorcan foi cambaleando para a cabine dela, segurando a porta enquanto caía no lado de dentro e dei­xava a espada se soltar da mão.

— Olhe, vou voltar e dizer aos outros que está tudo bem — disse Bart. — Certo?

Connor assentiu.

Quando o amigo dele foi embora, Connor olhou para a irmã de novo.

— Tenho tanta coisa para contar — disse ele.

— Eu também.

— E tenho uma coisa para você. — Connor enfiou a mão sob a camisa e pegou o medalhão, estendendo-o para ela.

 

Lorcan sabia que deveria fechar a porta, mas já fora ex­posto a muita luz, e aquela pequena fresta não iria lhe cau­sar um mal maior.

Olhou Grace e o irmão através da fina fresta de luz. Deveria sentir-se feliz por ela, pensou. Feliz porque, de­pois de todo o sofrimento pelo qual a garota havia passa­do, estava finalmente reunida ao irmão. Agora ela parecia feliz, enquanto segurava o medalhão e depois o pendura­va no pescoço.

Era doloroso para Lorcan olhar. Não queria que fosse assim. Mais do que qualquer coisa, queria sentir alegria no coração por Grace. E no entanto, enquanto ela fechava o cordão no pescoço, Lorcan sentiu a tristeza pela perda, como não sentia havia muito, muito tempo.

Seus olhos ardiam. A princípio achou que seriam lágri­mas, e as enxugou com a mão. Mas os olhos estavam se­cos, ainda que continuassem ardendo.

Grace estava em segurança. Só isso importava. Tinha jurado protegê-la e seu trabalho estava terminado. Agora só precisava descansar.

Olhou pela última vez para os gêmeos, mas estava fi­cando cada vez mais difícil enxergá-los com clareza. A névoa era tão densa no convés que criava um véu entre ele e os gêmeos. Mas não era só a névoa, percebeu quando afinal fechou a porta da cabine. Ele não podia ver direito nem mesmo dentro da cabine. A luz parecia ter danificado permanentemente seus olhos.

 

A estranha névoa envolvia completamente Connor e Grace, até que só podiam ver um ao outro. Ela ainda não podia acreditar que ele estava ali. Era como se tudo tivesse sido um sonho. Bem, uma mistura de pesadelo e sonho.

— Senti sua falta — disse ela.

— Eu também senti a sua.

— E sinto falta de papai.

— Eu também.

Ele abriu os braços e a abraçou com força. Só por um momento era como se estivessem de volta ao farol com o pai. Todos em segurança.

Como ele a havia encontrado?, pensou Grace. E o que fariam em seguida? Ele iria se juntar a ela no navio Vam­pirata ou ela iria segui-lo até o outro? Seria tempo, afinal de contas, de retornar a Baía Quarto Crescente?

Mas, por enquanto, nada disso importava, pensou, afas­tando as perguntas incômodas. Abraçou-o com força. E ao fazer isso percebeu que estivera certa o tempo todo. Ago­ra sabia o que significava o lar. Não somente sabia, mas também sentia.

E enquanto Grace abraçava Connor e Connor abraçava Grace, e enquanto a névoa os cercava, ela escutou o sus­surro do capitão dentro da cabeça.

— Então tudo termina. Então tudo começa.

 

                                                                                Justin Somper  

 

                      

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