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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


DEPOIS DO FUNERAL / Agatha Christie
DEPOIS DO FUNERAL / Agatha Christie

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

DEPOIS DO FUNERAL

 

Capítulo I

       O velho Lanscombe ia cambaleante, de sala em sala, suspendendo as venezianas. De vez em quando, com os olhos cansados, espiava pela janela.

       Logo, todos estariam de volta do funeral. Arrastou-se um pouco mais depressa. Havia tantas janelas!

       Enderby Hall era uma grande casa vitoriana em estilo gótico. Cada aposento tinha as cortinas de rico brocado desbotado ou de veludo. Algumas paredes ainda estavam cobertas de seda desbotada. Na sala de visitas verde, o velho mordomo olhou para cima da lareira onde estava o retrato do velho Cornelius Abernethie, para quem Enderby fora construída. A barba castanha de Cornelius Abernethie se destacava com certa agressividade. Sua mão estava pousada em um globo terrestre, sendo difícil saber-se se havia sido colocado ali por desejo do modelo ou se simbolizava a presunção do artista.

       Cornelius Abernethie havia sido um homem muito enérgico, assim sempre pensara o velho Lanscombe, e estava satisfeito por nunca tê-lo conhecido pessoalmente. Seu patrão tinha sido o Sr. Richard. Bom patrão o Sr. Richard. E morrera de repente, embora já estivesse sob cuidados médicos há algum tempo. O problema é que ele nunca se recuperara do choque causado pela morte do jovem Mortimer. O velho balançou a cabeça enquanto entrava na saleta branca pela porta de comunicação.

       Tinha sido terrível, uma verdadeira catástrofe! Um jovem tão simpático, honesto, forte e saudável! Ninguém imaginaria que tal coisa pudesse lhe acontecer. Fora lamentável, profundamente lamentável. E o Sr. Gordon morto na guerra... Uma coisa atrás da outra. Era assim que as coisas aconteciam hoje em dia. Fora demais para seu patrão.

       A terceira veneziana da saleta branca se recusou a subir. Subiu um pouco e parou. As molas estavam fracas — era isto —, as molas eram muito velhas, como tudo o mais naquela casa. E não se conseguia ninguém para consertar essas peças antigas. Muito fora de moda — era o que alegavam, balançando a cabeça naquele tolo modo superior. Como se as coisas antigas não fossem muito melhores do que as modernas! Ele poderia dizer-lhes isto! Bugigangas, isto é que era metade dessas invenções modernas. Desmanchavam-se nas mãos. O material não era bom, e tampouco a mão-de-obra. Oh, sim, ele poderia dizer-lhes isto!

       A não ser que fosse buscar uma escada, nada poderia fazer com relação à veneziana. Ele já não gostava muito de subir em escadas porque sentia vertigem. De qualquer maneira, por ora ele deixaria a veneziana do jeito que estava. Não tinha importância, já que a saleta branca não dava para a frente da casa e não seria vista quando os carros voltassem do funeral. E o aposento já não era tão usado. Era um aposento de senhoras, e há muito tempo não havia nenhuma senhora em Enderby. Uma pena que o Sr. Mortimer não tivesse se casado! Sempre viajando para a Noruega para pescar, para a Escócia para caçar, para a Suíça para praticar os tais esportes de inverno, em vez de se casar com uma boa moça e sossegar em casa, com crianças correndo por todo lado. Já se passara muito tempo desde a época em que havia crianças naquela casa.

       E então o pensamento de Lanscombe voltou-se para uma época que se destacava clara e distintamente — muito mais do que os últimos vinte anos, enevoados e confusos. Realmente, não conseguia lembrar-se de quem havia estado por lá ou até mesmo de suas aparências. Contudo, recordava-se perfeitamente do passado.

       O Sr. Richard fora uma espécie de pai para seus jovens irmãos e irmãs. Estava com vinte e quatro anos quando o pai morrera, e começara a trabalhar intensamente, saindo todo dia pontualmente como um relógio e mantendo a casa e tudo o mais da maneira mais eficiente possível.

       Era uma família muito feliz, com todas aquelas moças e rapazes crescendo unidos. De vez em quando, é claro, havia algumas brigas e discussões, e as governantas tinham então bastante trabalho. Governantas eram criaturas pobres de espírito que Lanscombe sempre desprezara.

       As irmãs do Sr. Richard eram muito espirituosas. Principalmente a Srta. Geraldine. A Srta. Cora também, apesar de muito mais jovem. E agora o Sr. Leo estava morto, como também a Srta. Laura. O Sr. Timothy tornara-se um inválido muito triste. A Srta. Geraldine morrera em algum lugar no estrangeiro. O Sr. Gordon morrera na guerra. Apesar de ser o mais velho, o Sr. Richard revelou-se o mais forte entre eles. Sobreviveu a todos... a quase todos, porque o Sr. Timothy ainda estava vivo, e também a pequena Cora, que se casara com um artista, um sujeito bastante desagradável. Fazia uns vinte e cinco anos que ele não a via. Era uma bonita moça na ocasião em que partira com aquele sujeito. Agora ele quase não a reconhecera. Tornara-se uma mulher muito corpulenta, e tão rebuscada na maneira de vestir! Seu marido era francês, ou quase um francês, e nenhum bem poderia resultar de um casamento com um deles. A Srta. Cora, entretanto, sempre fora um pouco simplória, como seria chamada se morasse em um vilarejo. Em toda família existe alguém assim.

       Ela porém se lembrara muito bem dele.

       — Ora, é Lanscombe! — exclamara, parecendo bastante satisfeita em vê-lo. Ah, antigamente todos gostavam dele! E quando havia uma festa iam todos sorrateiramente para a copa, onde ele lhes servia geléia e Charlotte russe. Naquele tempo, todos conheciam o velho Lanscombe, e agora quase ninguém se lembrava dele. A não ser os mais jovens, que ele não conseguia guardar claramente na cabeça, e que o consideravam apenas um mordomo que ali trabalhava já há algum tempo. Um bando de estranhos, pensou ele, quando os viu chegando para o funeral, e um bando de estranhos mal-arrumados.

       A Sra. Leo, não, esta era diferente. Ela e o Sr. Leo estavam sempre por lá desde que se tinham casado. A Sra. Leo era muito distinta — uma verdadeira lady. Vestia-se muito adequadamente e tinha os cabelos sempre bem penteados. O patrão gostava muito dela. Era uma lástima que ela e o Sr. Leo nunca tivessem tido filhos.

       Lanscombe levantou-se. O que estava ele fazendo ali parado, sonhando com o passado, quando ainda havia tanta coisa para ser feita?! Ele já cuidara de todas as venezianas do andar térreo e mandara Janet subir e arrumar os quartos de dormir. Ele, Janet e a cozinheira tinham ido assistir às exéquias, porém, em vez de irem ao crematório, haviam retornado para casa a fim de cuidar da arrumação e preparar o almoço. Almoço frio, é lógico. Presunto, galinha, língua e salada. Com suflê de limão frio e torta de maçã para terminar. Serviriam em primeiro lugar uma sopa quente, e era melhor ir ver se Marjorie já terminara de prepará-la, pois decerto estariam de volta em poucos minutos.

       Lanscombe, com o passo trôpego, cruzou a sala apressadamente. Seu olhar, distraído e desinteressado, pousou no quadro em cima da lareira... o quadro que fazia par com o da sala verde. Era uma bonita pintura. Cetim branco e pérolas envolviam uma figura humana sem qualquer traço marcante. Feições inexpressivas, a boca em forma de botão de rosa, com o cabelo repartido ao meio. Uma mulher modesta e despretensiosa. A única coisa realmente digna de nota a respeito da Sra. Cornelius Abernethie era seu nome

       — Coralie.

       Por mais de sessenta anos após seu lançamento, a Coral Cornplasters e sua associada “Coral”, medicamentos para os pés, ainda continuavam firmes. Se alguma vez houvera alguma coisa de notável a respeito da CC, ninguém poderia dizer — entretanto, conseguira agradar ao público. Fora à custa da CC que haviam conseguido construir aquela mansão neogótica, com seus enormes jardins; o dinheiro para manter sete filhos e filhas. E possibilitara, ainda, que Richard Abernethie morresse havia três dias como um homem muito rico.

      

      

       Ao examinar a cozinha com uma palavra de censura, Lanscombe esbarrou em Marjorie, a cozinheira. Marjorie era jovem, com apenas vinte e sete anos de idade, e representava motivo de constante irritação para Lanscombe, pois, de acordo com seu conceito, estava longe de ser uma cozinheira adequada. Ela não possuía dignidade alguma, nem a menor consideração pela posição de Lanscombe. Freqüentemente chamava aquela casa de “um respeitável velho mausoléu” e reclamava do tamanho da cozinha, copa e despensa, dizendo que “levava um dia inteiro para percorrê-las”. Estava em Enderby havia dois anos, e aí tinha permanecido porque, em primeiro lugar, o salário era bom; e, em segundo, porque o Sr. Abernethie apreciara sua comida. Cozinhava muito bem.

       Janet, que estava perto da mesa de cozinha reanimando-se com uma xícara de chá, era uma empregada mais antiga que, apesar de gostar de ter freqüentes e azedas discussões com Lanscombe, aliava-se a ele contra a nova geração representada por Marjorie. A quarta pessoa na cozinha era a Sra. Jacks, que viera dar uma ajuda. Ela havia apreciado o funeral.

       — Foi lindo — comentou, dando uma fungada enquanto enchia sua xícara. — Dezenove carros, a igreja repleta, e achei que o cônego fez uma bela oração. E também estava um dia esplêndido para o acontecimento. Ah, pobrezinho do Sr. Abernethie, não restam muitos como ele neste mundo! Era respeitado por todos.

       Ouviu-se o som de uma buzina e de um carro chegando. A Sra. Jacks pousou a xícara e exclamou: — Aí estão eles!

       Marjorie aumentou o fogo da grande panela da cremosa sopa de galinha. O enorme fogão dos dias da era vitoriana permanecia frio e intocado, como um tributo ao passado.

       Os carros chegaram um após o outro, e as pessoas que saíam de dentro deles, com suas roupas pretas, moviam-se um tanto inseguras através do hall e pelo interior da grande sala de visitas verde. Por trás da grade de aço, o fogo ardia, uma homenagem aos primeiros dias outonais e previsto para neutralizar o frio adicional que se sente quando se comparece a um funeral.

       Lanscombe entrou na sala oferecendo cálices de xerez em uma bandeja de prata.

       O Sr. Entwhistle, antigo sócio da velha e respeitada firma Bollard, Entwhistle, Entwhistle e Bollard, estava parado de costas para a lareira, se aquecendo. Aceitou um cálice de xerez e examinou os presentes com seu astuto olhar de advogado. Ele não conhecia todos pessoalmente e sentia necessidade de decifrá-los. As apresentações feitas antes de partirem para o funeral haviam sido apressadas e superficiais.

       Observando primeiro o velho Lanscombe, o Sr. Entwhistle pensou consigo mesmo: “O pobre homem está ficando muito trôpego, o que não é de admirar, com seus quase noventa anos. É uma pessoa devotada. Hoje em dia não existem mais empregados como os de antigamente. Serviços domésticos e babás. Que Deus ajude a todos nós! É um mundo triste. Talvez tenha sido melhor que Richard não vivesse por mais tempo. Ele não tinha muita razão para viver”.

       Para o Sr. Entwhistle, de setenta e dois anos, a morte de Richard Abernethie, aos sessenta e oito, era sem dúvida uma morte precoce. O Sr. Entwhistle se aposentara havia dois anos, porém, na condição de testamenteiro de Richard Abernethie e em respeito a um de seus mais antigos clientes e amigo pessoal, fizera essa viagem para o norte.

       Refletindo sobre as cláusulas do testamento, começou a analisar a família.

       A Sra. Leo, Helen, ele conhecia bem, é claro. Uma mulher encantadora por quem nutria respeito e simpatia. Seus olhos pousaram de maneira aprovadora sobre ela, parada perto de uma das janelas. O preto lhe assentava muito bem. Ela havia conservado a boa aparência. Ele gostava de suas feições marcantes, da linha dos cabelos grisalhos ao longo das têmporas e de seus olhos violeta, que ainda possuíam uma cor bem viva.

       Com quantos anos estaria Helen agora? Por volta de cinqüenta e um ou cinqüenta e dois, calculou ele. Era estranho que ela não tivesse se casado novamente após a morte de Leo. Uma mulher tão atraente! Ah, mas eles haviam sido um casal muito devotado um ao outro.

       Voltou o olhar para a Sra. Timothy. Ele nunca chegara a conhecê-la muito bem. O preto não lhe assentava bem. Deveria usar tweeds. Uma mulher de aparência sensata e eficiente. Sempre fora uma boa e devotada esposa para Timothy. Tratando de sua saúde, cheia de cuidados, talvez até com certo exagero. Haveria realmente alguma coisa errada com Timothy? O Sr. Entwhistle suspeitava que era apenas um hipocondríaco. Richard Abernethie era da mesma opinião. — Tinha pulmões fracos quando criança —, dissera ele. — Mas que Deus me perdoe se eu achar que há alguma coisa de errado com ele agora.

       Ah, bem, todos precisam de algum passatempo! O passatempo de Timothy era o muito absorvente cuidado com a saúde. Será que ele conseguia enganar a Sra. Timothy? Provavelmente, não, mas as mulheres nunca admitem esse tipo de coisa. Ele deveria ter uma boa renda. Nunca fora esbanjador. Contudo, um dinheiro extra não seria inoportuno, não nesses dias de tantos impostos. Depois da guerra, possivelmente ele tivera que baixar consideravelmente seu padrão de vida.

       O Sr. Entwhistle transferiu a atenção para George Crossfield, filho de Laura. Laura havia se casado com um sujeito meio suspeito. Ninguém nunca soubera muito a respeito dele. Apresentava-se como corretor. O jovem George trabalhava numa firma de advogados — uma firma de reputação pouco recomendável. Era um jovem de boa aparência, embora houvesse nele algo de suspeito. Não devia ter muito dinheiro. Laura havia sido uma completa tola em seus investimentos. Havia cinco anos, quando morrera, não deixara praticamente nada. Tinha sido uma moça muito bonita e romântica, mas sem qualquer tino para negócios.

       Os olhos do Sr. Entwhistle desviaram-se de George Crossfield. Qual das duas moças seria aquela? Ah, sim, aquela era Rosamund, filha de Geraldine. Estava olhando para as flores de cera colocadas em cima de uma mesa de mármore. Bonita moça; na verdade, linda, apesar de ter um rosto um tanto tolo. Trabalhava no teatro. Casara-se também com um ator. Um cara bonitão. “E ele sabe que é”, pensou o Sr. Entwhistle, que tinha preconceito contra o teatro como profissão. “Imagino que tipo de passado ele tem e de onde vem.” Lançou um olhar reprovador a Michael Shane, com seu cabelo louro e o aspecto um tanto cansado.

       Quanto a Susan, filha de Gordon, esta se sairia bem melhor no palco que Rosamund. Tinha mais personalidade. Talvez até um pouco de personalidade demais para a vida do dia-a-dia. Estava muito próxima a ele e o Sr. Entwhistle pôde observá-la secretamente. Tinha cabelos escuros, olhos cor de avelã, quase dourados, e uma boca carnuda e atraente. A seu lado estava o marido, com quem se casara há pouco tempo. Era assistente de farmacêutico, pelo menos era o que ele tinha entendido. Um assistente de farmacêutico! De acordo com a mentalidade do Sr. Entwhistle, moças não se casavam com jovens que trabalhavam atrás de balcão. Mas hoje em dia, é claro, elas se casavam com qualquer um! O jovem, de cabelos ruivos e um rosto pálido e enigmático, pareceu-lhe muito inquieto. O Sr. Entwhistle ficou imaginando qual seria o motivo, mas decidiu, caridosamente, que deveria ser devido à tensão de conhecer tantos parentes da mulher em um só dia.

       Cora Lansquenet foi a última a ser examinada. Havia uma certa lógica nisso, pois Cora, sem dúvida alguma, fora um imprevisto na família. A irmã mais nova de Richard nascera quando sua mãe já estava com cinqüenta anos, e aquela frágil mulher não sobrevivera à sua décima gravidez (três crianças haviam morrido na infância). Pobre Cora! Toda a vida havia sido uma espécie de embaraço, crescendo alta e desajeitada, fazendo comentários indesejáveis. Todos os seus irmãos e irmãs mais velhos haviam sido muito bondosos para com ela, atentos às suas deficiências e encobrindo suas gafes sociais. Jamais ocorrera a alguém que Cora se casaria. Ela nunca fora uma moça muito atraente, e suas claras tentativas de conquistar rapazes normalmente resultavam na fuga destes, um tanto alarmados. E então apareceu Lansquenet, Pierre Lansquenet, meio francês, que ela conhecera na Escola de Arte, onde estava tendo proveitosas lições de pintura com aquarela. De alguma forma, ela conseguira entrar para a classe de modelos vivos e lá conhecera Pierre Lansquenet; voltara para casa anunciando sua intenção de se casar com ele. Richard Abernethie foi contra a idéia — não gostara do que pudera observar em Pierre Lansquenet, e suspeitava de que, na realidade, ele estava era à procura de uma esposa rica. Mas, enquanto fazia algumas investigações sobre os antecedentes de Lansquenet, Cora fugia com o sujeito para algum lugar onde não pudessem ser encontrados, e lá se casaram. Passaram a maior parte de suas vidas na Bretanha e Cornualha e outros lugares famosos pela freqüência de pintores. Lansquenet havia sido um péssimo pintor e um marido não muito delicado; Cora, porém, continuara dedicada a ele. Richard, generosamente, mandava uma mesada, e era com esse dinheiro que eles viviam, assim acreditava o Sr. Entwhistle. Ele duvidava que Lansquenet alguma vez na vida tivesse ganho dinheiro. Já devia ter morrido há uns doze anos ou mais, pensou o Sr. Entwhistle. E agora ali estava sua viúva, um tanto arredondada, com um espalhafatoso vestido preto cheio de bordados, mexendo-se de um lado para outro, tocando nos objetos e exclamando com prazer quando se recordava de algum fato de infância. Ela fingiu muito pouco estar triste com a morte do irmão. Mas, na realidade, refletiu o Sr. Entwhistle, Cora nunca fora de fingir.

       Retornando à sala, Lanscombe falou num tom baixo, adequado à ocasião:

       — O almoço está servido.      

 

Capítulo II

       Depois de uma deliciosa sopa de galinha e bastante carne fria acompanhada de um excelente chablis, a atmosfera suavizou-se.

       Ninguém sentira realmente grande pesar pela morte de Richard Abernethie, já que nenhum deles tinha mantido qualquer laço de amizade mais profundo com ele.

       O comportamento de todos havia sido apropriado e correto (com exceção da desinibida Cora, que estava se divertindo ostensivamente). Mas, agora que os protocolos haviam sido cumpridos e que poderiam retornar à conversação normal, o Sr. Entwhistle encorajou essa atitude. Ele possuía grande experiência de funerais e sabia exatamente como os fatos deveriam se suceder.

       Depois de terminada a refeição, Lanscombe indicou a biblioteca, onde seria servido o café. Essa era a sua idéia de refinamento. Havia chegado a hora em que os negócios — em outras palavras, o testamento — seriam discutidos. A biblioteca possuía uma atmosfera apropriada para isso, com as estantes repletas de livros e as cortinas de veludo vermelho.

       Servido o café, Lanscombe se retirou, fechando a porta atrás de si.

       Depois de alguns comentários casuais, começaram a olhar para Entwhistle com expectativa. Tendo observado o relógio, ele falou prontamente:

       — Tenho que pegar o trem das três e meia.

       Parecia que todos os outros também tinham que apanhar o mesmo trem.

       — Como sabem — explicou o Sr. Entwhistle —, sou o testamenteiro de Richard Abernethie...

       Foi interrompido.

       — Eu não sabia — disse Cora alegremente. — É o senhor? Ele me deixou alguma coisa?

       Não era a primeira vez que o Sr. Entwhistle sentia que Cora era muito dada a falar fora de hora. Lançando-lhe um olhar reprovador, prosseguiu:

       — Há um ano o testamento de Richard Abernethie era muito simples e, a não ser por alguns legados especiais, ele havia deixado tudo para seu filho Mortimer.

       — Pobre Mortimer — lamentou Cora. — Realmente acho paralisia infantil uma coisa terrível.

       — A morte de Mortimer, tão repentina e trágica, foi um grande choque para Richard — continuou o Sr. Entwhistle. — Levou alguns meses para se recuperar. Mostrei-lhe a necessidade de fazer um novo testamento.

       Com sua voz grave, Maude Abernethie perguntou:

       — O que teria acontecido se ele não tivesse feito um novo testamento? Teria... teria ficado tudo para Timothy, como parente mais próximo, quero dizer?

       O Sr. Entwhistle abriu a boca para esclarecer a questão de parente mais próximo, mas pensou melhor e falou firmemente:

       — Seguindo meu conselho, Richard decidiu fazer novo testamento. Primeiramente, entretanto, ele resolveu conhecer melhor a nova geração.

       — Ele nos manteve em observação — disse Susan com súbita risada. — Primeiro, George, em seguida, Greg e eu, e depois Rosamund e Michael.

       Gregory Banks falou rispidamente, com o rosto enrubescido:

       — Não creio que você deveria colocar as coisas nesses termos, Susan. Em observação, francamente, Susan!

       — Mas foi isso mesmo, não foi, Sr. Entwhistle?

       — Ele me deixou alguma coisa? — tornou a perguntar Cora.

       O Sr. Entwhistle pigarreou e falou um tanto friamente:

       — Proponho mandar para todos cópias do testamento. Se os senhores quiserem, posso lê-lo agora, mas talvez a fraseologia jurídica pareça-lhes um tanto obscura. Resumindo, é o seguinte: depois de alguns pequenos legados, e um substancial legado para Lanscombe, em forma de renda anual, os bens da herança, uma soma bastante considerável, serão divididos em seis partes iguais. Quatro delas, depois de todas as despesas obrigatórias terem sido pagas, devem ir para o irmão de Richard, Timothy, seu sobrinho George Crossfield, sua sobrinha Susan Banks, e sua outra sobrinha, Rosamund Shane. As outras duas partes serão administradas e a renda obtida será paga à Sra. Helen Abernethie, viúva de seu irmão Leo, e à sua irmã, Sra. Cora Lansquenet, enquanto estiverem vivas. Depois de suas mortes o capital será dividido entre os outros beneficiários ou seus filhos.

       — Isso é muito bom! — exclamou Cora com real satisfação. — Uma renda! Quanto?

       — Eu... eu... no momento não saberia dizer exatamente quanto. As despesas obrigatórias, naturalmente, serão vultosas e...

       — Não pode me dar nem uma idéia?

       O Sr. Entwhistle percebeu que Cora precisava ser acalmada.

       — Possivelmente em torno de três a quatro mil por ano.

       — Ótimo — disse Cora. — Irei a Capri.

       Helen Abernethie falou com suavidade:

       — Quanta bondade e generosidade da parte de Richard! Fico realmente muito grata por sua afeição por mim.

       — Ele gostava muito da senhora — comentou o Sr. Entwhistle. — Leo era seu irmão predileto, e depois do falecimento de Leo suas visitas eram muito apreciadas por ele.

       Helen falou, pesarosa:

       — Gostaria de ter percebido o quanto ele estava doente. Vim vê-lo pouco antes de morrer, mas, apesar de saber que ele andava doente, jamais imaginei que fosse tão sério.

       — Sempre foi sério — observou o Sr. Entwhistle. — Ele porém não desejava tocar no assunto e não acredito que alguém esperasse o fim tão cedo. Sei que o médico ficou bastante surpreso.

       — “Subitamente, em sua residência”, era isso que estava escrito no jornal — disse Cora balançando a cabeça. — Então fiquei matutando sobre o assunto.

       — Foi um choque para todos nós — afirmou Maude Abernethie. — Perturbou terrivelmente o pobre Timothy. “Tão repentino, tão repentino”, ele não parava de repetir.

       — Entretanto foi tudo muito bem abafado, não foi? — disse Cora.

       Todos a encararam, e ela pareceu um pouco atrapalhada.

       — Acho que vocês estão com toda a razão — falou ela apressadamente. — Agiram muito certo. Quero dizer... não seria bom... que o fato se tornasse público. Seria muito desagradável para todos nós. Deve permanecer estritamente na família.

       Os rostos virados em sua direção tornaram-se ainda mais vagos.

       O Sr. Entwhistle inclinou-se para a frente e falou:

       — Francamente, Cora, receio que não esteja compreendendo o que você quer dizer.

       Cora Lansquenet olhou para a família com os olhos arregalados de surpresa. Inclinou a cabeça para um lado, em um movimento que lembrava o de um pássaro.

       — Mas ele foi assassinado, não foi? — disse ela.

 

Capítulo III

       Viajando para Londres em um trem de primeira classe, o Sr. Entwhistle entregou-se ao pensamento, de certa forma inquietante, a respeito da extraordinária observação feita por Cora Lansquenet. Era evidente que Cora era uma mulher desequilibrada e excessivamente tola. Desde criança era conhecida por sua maneira embaraçosa de explodir com verdades indesejáveis. Ele não queria dizer “verdades” — esta era uma palavra bastante inadequada para se usar. “Comentários embaraçosos”... este sim era um termo muito mais apropriado.

       Mentalmente ele reviu a seqüência imediata àquele infeliz comentário. Os olhares de censura e espanto fizeram com que Cora percebesse a enormidade do que acabara de dizer.

       Maude exclamara: — Realmente, Cora! — Alguém mais havia perguntado: — O que você quer dizer com isso?

       E imediatamente Cora Lansquenet, envergonhada, explodira em frases confusas.

       — Oh, desculpem... eu não quis dizer... oh, é claro, foi muito tolo de minha parte, mas pensei que... pelo que ele havia dito... Oh, é claro que sei que está tudo bem, mas sua morte foi tão repentina! Por favor, esqueçam o que eu disse... não queria ser tão tola... sei que estou falando a coisa errada.

       E então o mal-estar momentâneo diminuíra e iniciara-se uma discussão prática sobre a distribuição dos bens pessoais do falecido Richard Abernethie. A casa e seus objetos, o Sr. Entwhistle acrescentara, seriam postos à venda.

       A infeliz gafe de Cora havia sido esquecida. Afinal de contas, Cora sempre fora se não extremamente tola, embaraçosamente ingênua. Nunca tivera a menor idéia do que deveria ou não ser dito. Aos dezenove anos isso não tivera muita importância. Os maneirismos de uma enfant terrible poderiam persistir até aquela idade, porém uma enfant terrible com quase cinqüenta anos era decididamente desconcertante. Falando sem parar, explodindo em verdades indesejáveis... A seqüência de pensamentos parou subitamente. Já era a segunda vez que aquela palavra perturbadora lhe ocorrera. E por que era tão inquietante assim? Porque obviamente, no fundo, esse era o motivo pelo qual os comentários de Cora sempre causavam embaraço. Suas declarações ou eram verdadeiras ou continham algo de verdade!

       Apesar de o Sr. Entwhistle ter visto na gorda mulher de quarenta e nove anos pouca semelhança com a tola e desajeitada garota do passado, alguns dos trejeitos de Cora haviam permanecido — a inclinação da cabeça como um passarinho quando fazia uma observação especialmente ultrajante... uma certa aparência de agradável expectativa... Fora dessa maneira que, certa vez, Cora havia comentado sobre a figura da cozinheira: “A barriga de Mollie está tão inchada que ela quase não pode se aproximar da mesa da cozinha. Está assim há um ou dois meses. Por que será que ela está engordando tanto?”

       Cora tinha sido rapidamente silenciada. A criadagem era mantida debaixo de um clima vitoriano. No dia seguinte, a cozinheira havia desaparecido da casa, e, depois das devidas investigações, o jardineiro fora obrigado a torná-la uma mulher honesta, tendo sido por isso presenteado com uma cabana. Eram lembranças remotas... mas tinham a sua importância. O Sr. Entwhistle examinou sua inquietação mais detalhadamente. O que havia nos ridículos comentários de Cora para permanecer importunando daquela maneira seu inconsciente? Ele separou duas frases: “Eu pensei, pelo que ele havia dito...” e “Sua morte foi tão repentina...” Em primeiro lugar, o Sr. Entwhistle examinou o último comentário. Sim, a morte de Richard poderia, de certa forma, ser considerada repentina. O Sr. Entwhistle havia conversado a respeito da saúde de Richard tanto com o próprio Richard como com seu médico. Este último mostrara claramente que uma longa vida não poderia ser esperada. Se o Sr. Abernethie tomasse razoável cuidado consigo mesmo, poderia viver mais dois ou três anos. Talvez até mais, mas isso era pouco provável. De qualquer maneira, o médico não havia previsto nenhum colapso em futuro próximo.

       Bem, o médico se enganara, e os próprios médicos eram os primeiros a admitir que nunca podiam ter certeza quanto à reação individual de um paciente a uma doença. Às vezes, o caso é dado como perdido e inesperadamente há uma recuperação. Pacientes a caminho de se restabelecer têm uma recaída e morrem. Depende muito da vitalidade do doente, de seu desejo de viver. E Richard Abernethie, apesar de ser um homem forte e vigoroso, não tinha, nos últimos tempos, grande motivação para viver. Pois há seis meses seu único filho vivo, Mortimer, contraíra paralisia infantil e morrera em uma semana. Sua morte havia sido um choque consideravelmente aumentado pelo fato de ele ter sido um jovem extraordinariamente forte e animado. Era um excelente esportista e uma dessas pessoas de quem se diz que nunca ficou doente. Estava prestes a ficar noivo de uma moça encantadora, e todas as esperanças do pai centralizavam-se naquele filho profundamente amado, que só lhe dava alegrias.

       Em vez disso viera a tragédia. E, além da sensação da perda, o futuro tinha muito pouco para oferecer a Richard Abernethie. Um filho havia morrido na infância, o segundo sem deixar descendentes. Ele não tinha netos. Não havia, na verdade, ninguém com o nome de Abernethie para vir depois dele, e ele era dono de uma enorme fortuna, distribuída em vários negócios, que até certo ponto ainda controlava. Quem iria herdar aquela fortuna e cuidar dos negócios?

       Entwhistle sabia que isso preocupava profundamente Richard. Seu único irmão vivo era quase um inválido. Restava a jovem geração. Richard pretendia — assim pensava o advogado, apesar de na verdade seu amigo não lhe ter dito nada a esse respeito — escolher um sucessor, embora pequenos legados provavelmente fossem feitos.

       De qualquer maneira, como Entwhistle sabia, nos últimos seis meses Richard Abernethie havia convidado para hospedar-se com ele, sucessivamente, seu sobrinho George, a sobrinha Susan e o marido, sua sobrinha Rosamund e o marido, e sua cunhada, Sra. Leo Abernethie. Foi entre os três primeiros, assim presumia o advogado, que Abernethie havia procurado seu sucessor. Helen Abernethie, ele supôs, havia sido convidada por motivos afetivos e, talvez, até mesmo para trocar idéias com ele, já que Richard sempre tivera uma excelente opinião sobre seu bom senso e julgamento experiente. O Sr. Entwhistle também se lembrou de que certa vez, nesse período de seis meses, Richard fizera uma curta visita a seu irmão Timothy.

       O resultado disso tudo havia sido este que ele agora carregava em sua pasta — uma igual distribuição de bens. Por conseguinte, a única conclusão a que poderia chegar era que ele se desapontara tanto com seu sobrinho quanto com as sobrinhas, ou talvez com seus maridos.

       Pelo que o Sr. Entwhistle tinha conhecimento, Richard não havia convidado sua irmã, Cora Lansquenet, para visitá-lo... e isso levou o advogado de volta à primeira frase perturbadora que Cora havia deixado escapar inconvenientemente: “Mas eu pensei, pelo que ele havia dito...”

       O que dissera Richard Abernethie? E quando fora que ele dissera? Se Cora não havia estado em Enderby, então Richard deveria ter ido visitá-la em Berkshire, onde ela possuía um chalé. Ou seria alguma coisa que Richard havia dito em carta?

       O Sr. Entwhistle franziu as sobrancelhas. Cora, é claro, era uma mulher muito tola. Poderia interpretar mal uma frase, torcer seu significado. Porém, ele gostaria de saber que frase tinha sido essa.

       Ele estava bastante aflito, a ponto de considerar a possibilidade de se aproximar de Cora Lansquenet para falar sobre o assunto. Mas não muito em breve; era melhor fazer com que não parecesse tão importante. Contudo, ele desejava saber exatamente o que Richard Abernethie dissera a ela, para levá-la a formular tão vivamente aquela pergunta chocante:

       “Mas ele foi assassinado, não foi?”

             

       Num trem de terceira classe, Gregory Banks comentou com sua mulher:

       — Aquela sua tia deve ser completamente biruta!

       — Tia Cora? — Susan estava distante. — Oh, sim, creio que ela sempre foi meio avoada ou algo assim.

       George Crossfield, sentado do lado oposto, falou rispidamente:

       — Ela deveria ser impedida de sair por aí dizendo coisas assim. Pode colocar idéias na cabeça dos outros.

       Rosamund Shane, tentando desenhar o contorno de sua boca em forma de arco de cupido, murmurou vagamente:

       — Não acredito que alguém daria atenção ao que uma desmazelada como aquela dissesse. Que roupa mais estranha, cheia de enfeites...

       — Bem, eu acho que deveriam impedi-la — repetiu

       — Está bem, querido — riu Rosamund, guardando o batom e olhando com satisfação a sua imagem no espelho. — Por que você não a impede?

       Seu marido falou inesperadamente:

       — Acho que George tem razão. É muito fácil despertar comentários.

       — Bem, e que importância teria isso? — perguntou

       Rosamund. Seus lábios se abriram num sorriso. — Poderia até ser bem divertido.

       — Divertido? — quatro vozes se levantaram.

       — Ter um caso de assassinato na família — explicou Rosamund. — Acho excitante!

       Ocorreu àquele jovem nervoso e infeliz, Gregory Banks, que a prima de Susan, deixando de lado a aparência atraente, poderia ter alguns pequenos pontos em comum com sua tia Cora. Suas próximas palavras serviram para confirmar-lhe a opinião:

       — Se ele foi assassinado — indagou Rosamund —, quem vocês acham que é o criminoso?

       Seu olhar passeou pensativo pelo trem.

       — Sua morte foi extremamente conveniente para todos nós — afirmou ela. — Michael e eu estávamos completamente sem dinheiro. Mick foi convidado para um papel realmente excelente no espetáculo de Sandbourne se puder dispor de recursos para esperar até sua estréia. Agora ficaremos numa ótima situação financeira. Poderemos até montar nosso próprio espetáculo, se desejarmos. A verdade é que há uma peça teatral com um papel simplesmente maravilhoso...

       Ninguém ouvia a dissertação de Rosamund. Suas atenções haviam sido desviadas para seus próprios futuros.

       “Foi por um fio”, pensou George consigo mesmo. “Agora vou poder repor o dinheiro e ninguém nunca ficará sabendo... Mas escapei por pouco.”

       Gregory fechara os olhos, recostando-se em sua cadeira. “Livrei-me da escravidão.”

       Susan falou com sua voz clara e um tanto dura: — Lamento, é claro, pelo pobre tio Richard. Mas ele estava muito velho e Mortimer morrera, não lhe restando nenhum motivo para viver. Teria sido terrível continuar doente ano após ano. Para ele foi muito melhor partir assim, repentinamente, sem nenhuma confusão. — Seus olhos confiantes e firmes se suavizaram quando se voltaram para o rosto absorto do marido. Adorava Greg. Ela sentia vagamente que Greg gostava menos dela do que ela dele, mas isso só servia para aumentar sua paixão. Greg era dela, ela faria qualquer coisa por ele. Qualquer coisa...

             

       Maude Abernethie, enquanto trocava de roupa para jantar em Enderby (ela ia passar a noite ali), estava em dúvida se deveria ou não ter se oferecido para ficar mais tempo ajudando Helen a selecionar os objetos da casa. Lá se encontravam todos os pertences de Richard... Talvez houvesse cartas... Todos os papéis importantes, supôs ela, já deveriam estar em mãos do Sr. Entwhistle. Era absolutamente necessário voltar para Timothy o mais rápido possível. Ele se queixava muito quando ela não estava lá para tomar conta dele. Ela desejava que ele ficasse satisfeito com o testamento e não aborrecido. Timothy esperava, ela sabia, que a maior parte da fortuna de Richard ficasse para ele. Afinal de contas, ele era o único Abernethie vivo. Richard poderia ter confiado nele para tomar conta da geração mais jovem. Sim, ela temia que Timothy se aborrecesse. E isso seria muito ruim para sua digestão. E, quando ele se contrariava, podia se tornar bastante irracional. Havia ocasiões em que chegava a perder o senso de proporção. Ela não sabia se devia ou não falar ao Dr. Barton sobre o fato. Aquelas pílulas para dormir... Ultimamente, Timothy andava tomando uma quantidade excessiva delas, e ficava zangado quando ela queria guardar o vidro. Mas as pílulas poderiam ser perigosas. O Dr. Barton dissera que a pessoa poderia ficar sonolenta e esquecer que já as tomara... e depois tomar mais. E então tudo poderia acontecer. Estava certa de que havia no vidro menos pílulas do que deveria haver. Timothy era realmente muito desobediente e rebelde em relação a remédios. Não lhe dava ouvidos. Algumas vezes ele era uma pessoa muito difícil.

       Ela suspirou, porém logo em seguida ficou animada. Agora tudo iria se tornar muito mais fácil. O jardim, por exemplo...      

      

       Helen Abernethie estava na sala verde, sentada perto da lareira, esperando Maude descer para o jantar.

       Olhou em torno da sala, relembrando os dias passados ali com Leo e os outros. Aquela havia sido uma casa alegre. Entretanto, uma casa daquele tipo precisava de gente. Precisava de crianças, empregados, grandes refeições, e no inverno bastante fogo queimando na lareira. Tinha se transformado em um lugar triste quando fora habitada por um velho que havia perdido o filho...

       Quem a compraria? Ela gostaria de saber. Provavelmente, seria transformada em hotel, instituto ou, talvez, numa dessas hospedarias para jovens. Era o que costumava acontecer com essas enormes mansões. Talvez fosse demolida e todo o terreno loteado. Sentia-se triste ao pensar nisso, mas empurrou a tristeza para o lado resolutamente. Não fazia bem a ninguém viver do passado. A casa, os dias felizes vividos ali, Richard, Leo, tudo isso era muito bom, mas acabara. Ela agora tinha suas próprias atividades, amigos e interesses. Sim, seus interesses... E agora, com a renda que Richard lhe deixara, iria poder manter a villa em Chipre e fazer tudo o que planejara.

       Ultimamente, ela andara muito preocupada com dinheiro — impostos, todos aqueles investimentos dando errado... Mas agora, graças ao dinheiro de Richard, tudo isso chegara ao fim.

       Pobre Richard! Morrer durante o sono tinha sido realmente uma grande bênção. De repente, no dia 22... Ela ficou pensando o que fora que colocara aquela idéia na cabeça de Cora. Cora costumava se exceder. Sempre fora assim. Helen lembrou-se de tê-la encontrado no estrangeiro, certa vez, logo após seu casamento com Pierre Lansquenet. Ela estivera particularmente tola e infantil naquele dia, inclinando a cabeça para o lado, fazendo comentários dogmáticos sobre pintura, especialmente a respeito das pinturas do marido, o que deve ter sido muito desconcertante para ele. Homem nenhum poderia gostar de ter uma esposa tão tola. E Cora era uma tola! Oh, bem, pobre coitada, ela não podia evitar, e aquele seu marido não a tratara nada bem.

       O olhar de Helen pousou distraído no ramo de flores artificiais dispostas em cima de uma mesa redonda de mármore. Cora estivera sentada ao lado daquela mesa enquanto esperavam para ir para a igreja. Estivera cheia de reminiscências, deliciada com o reconhecimento de vários objetos e evidentemente satisfeita por estar de volta a sua antiga casa. Com isso, esquecera-se completamente do motivo por que estavam ali reunidos.

       “Mas, talvez”, pensou Helen, “ela fosse apenas menos hipócrita que todos nós.”

       Cora nunca fora uma pessoa que respeitasse convenções. Veja a maneira com que ela proferira abruptamente aquela pergunta: “Mas ele foi assassinado, não foi?”

       Todos aqueles rostos assustados, chocados, olhando para ela! Uma enorme variedade de expressões aparecera naqueles rostos...

       E de repente, revendo com clareza a cena, Helen franziu as sobrancelhas... Havia algo de errado naquela cena...

       Alguma coisa... ?

       Alguém... ?

       Teria sido a expressão no rosto de alguém? Teria sido isso? Alguém que... Como ela poderia explicar? Algo que não deveria estar ali?

       Ela não sabia... não conseguia identificar. Mas tinha havido alguma coisa... em algum instante... errada.

             

       Entrementes, em um restaurante em Swindon, uma senhora, com um vestido de luto com bordados negros, comia brioches e tomava chá enquanto pensava no futuro. Ela não estava com nenhum pressentimento ruim. Estava feliz.

       Essas viagens pelo campo eram bastante cansativas. Teria sido bem mais fácil voltar a Lytchett St. Mary via Londres, e não teria saído tão caro assim. Ah, mas agora os gastos não tinham mais importância. Contudo, ela teria sido forçada a viajar com a família, provavelmente tendo que conversar o tempo todo. Seria uma esforço grande demais.

       Não, era melhor voltar para casa pelo campo.

       Aqueles brioches eram realmente excelentes. Era impressionante como um funeral abria o apetite. A sopa em Enderby estivera deliciosa, assim como o suflê.

       Como as pessoas eram afetadas! E quanta hipocrisia! Todos aqueles rostos... quando ela falara sobre assassinato! O modo como todos olharam para ela!

       Bem, tinha sido a coisa certa a dizer. Balançou a cabeça, satisfeita consigo mesma. Sim, ela fizera a coisa certa.

       Olhou para o relógio e viu que faltavam apenas cinco minutos para seu trem partir. Bebeu o chá. Não estava muito bom. Ela fez uma careta.

       Por um ou dois minutos, ficou sentada, sonhando. Sonhando com um futuro que se desenrolava diante de seus olhos. Sorriu como uma criança feliz.

       Finalmente, iria aproveitar a vida. Foi em direção à pequena estação, ocupada em fazer planos.

 

Capítulo IV

       O Sr. Entwhistle passou uma noite muito agitada. Pela manhã, sentia-se tão mal que não se levantou.

       Sua irmã, que tomava conta da casa, trouxe-lhe o desjejum numa bandeja e comentou com severidade o quanto ele estava errado em ter ido ao norte da Inglaterra na sua idade e no seu estado de saúde.

       O Sr. Entwhistle contentou-se em dizer que Richard Abernethie era um velho amigo.

       — Funerais! — exclamou sua irmã com profunda censura. — Funerais são fatais para homens na sua idade. Se você não se cuidar melhor, vai desaparecer tão repentinamente quanto seu precioso Sr. Abernethie.

       A palavra “repentinamente” fez com que o Sr. Entwhistle se sobressaltasse. E também o silenciou. Ele não discutiu.

       Estava bem consciente do que o fizera sobressaltar-se.

       Cora Lansquenet! O que ela sugerira era definitivamente impossível, mas mesmo assim ele gostaria de descobrir exatamente por que ela sugerira aquilo. Sim, ele iria até Lytchett St. Mary para vê-la. Fingiria estar ali para tratar de assunto referente ao testamento e por precisar de sua assinatura. Não havia necessidade de deixar que ela adivinhasse que ele dera atenção ao seu comentário absurdo. Mas ele iria procurá-la... e faria isso em breve.

       Terminou o café e recostou-se no travesseiro para ler o The Times. Achava-o um jornal muito relaxante.

       Naquela tarde, por volta das cinco e quarenta e cinco o telefone tocou.

       Ele atendeu. Era o Sr. James Parrot, o atual segundo sócio de Bollard, Entwhistle, Entwhistle e Bollard.

       — Ouça, Entwhistle — falou o Sr. Parrot. — Acabei de receber um telefonema de um lugar chamado Lytchett

       St. Mary.

       — Lytchett St. Mary?

       — Sim. Parece...  — O Sr. Parrot fez uma pausa. Parecia embaraçado. — É a respeito de uma tal Sra. Cora Lansquenet. Ela não é uma das herdeiras de Abernethie?

       — Sim, é claro. Estivemos juntos ontem no funeral.

       — Oh? Ela foi ao funeral?

       — Sim. O que houve com ela?

       — Bem — disse o Sr. Parrot parecendo se desculpar. — Ela... é realmente extraordinário... ela foi... assassinada.

       O Sr. Parrot pronunciou a última palavra demonstrando profundo menosprezo. Não era o tipo de palavra, acentuou ele, que deveria estar ligada à firma Bollard, Entwhistle, Entwhistle e Bollard.

       — Assassinada?

       — Sim... sim... receio que sim. Bem, quero dizer, não há a menor dúvida.

       — Como foi que a polícia chegou até nós?

       — Foi por meio da dama de companhia, empregada ou seja lá o que for. Uma tal de Srta. Gilchrist. A polícia pediu o nome do parente mais próximo ou de seus advogados. E esta tal de Srta. Gilchrist pareceu um tanto incerta a respeito dos parentes e seus endereços; entretanto, sabia sobre nós. E, sendo assim, eles se comunicaram conosco imediatamente.

       — O que os faz pensar que ela tenha sido assassinada? — indagou o Sr. Entwhistle.

       O Sr. Parrot respondeu, constrangido:

       — Oh, bem, quanto a isso parece que não pode haver dúvida... quero dizer, foi com uma machadinha ou alguma coisa desse tipo... um crime muito violento.

       — Roubo?

       — Essa é a idéia. Uma janela foi arrombada, desapareceram algumas jóias sem valor, as gavetas estavam abertas e tudo o mais em completa desordem; entretanto, a polícia parece pensar que pode haver algo...  bem...  falso nisso tudo.

       — A que horas aconteceu o crime?

       — Entre duas e quatro e meia desta tarde.

       — Onde estava a dama de companhia?

       — Trocando alguns livros na biblioteca. Ela voltou em torno das cinco horas e encontrou a Sra. Lansquenet morta. A polícia quer saber se temos alguma idéia de quem poderia tê-la atacado. — O Sr. Parrot parecia revoltado. — Eu disse que isso seria muito pouco provável.

       — Sim, é lógico.

       — Deve ter sido algum débil mental que anda por aquelas redondezas e que pensou que podia haver alguma coisa para roubar. Depois, perdendo a cabeça, a atacou. Deve ter sido isso... eh, não acha, Entwhistle?

       — Sim, sim... — falou o Sr. Entwhistle distraidamente.

       Parrot estava certo, disse para si mesmo. Deve ter sido isso que aconteceu...

       Porém, para sua aflição, tornou a ouvir a voz de Cora dizendo vivamente:

       “Ele foi assassinado, não foi?”

       Uma tola, Cora. Sempre fora. Intrometendo-se por caminhos que nem os anjos se atreveriam a trilhar. Revelando impulsivamente verdades indesejáveis.

       Verdades!

       Outra vez esta maldita palavra...     

      

       O Sr. Entwhistle e o Inspetor Morton olharam-se com simpatia.

       De maneira hábil e precisa, o Sr. Entwhistle havia exposto ao inspetor todos os fatos relevantes sobre Cora Lansquenet. Sua criação, seu casamento, sua viuvez, sua situação financeira, seus parentes.

       — Seu único irmão vivo e parente mais próximo é o Sr. Timothy Abernethie, porém ele vive recluso, pois é inválido, incapacitado de sair de casa. Ele me autorizou a representá-lo e a tomar todas as providências necessárias.

       O inspetor concordou com a cabeça. Era um alívio poder contar com esse astuto e experiente advogado. Além disso, ele esperava que o advogado o ajudasse a resolver o que estava começando a lhe parecer um problema um tanto intrincado. Falou:

       — Tomei conhecimento pela Srta. Gilchrist de que a Sra. Lansquenet, na véspera de sua morte, havia ido ao norte para assistir ao funeral de um irmão mais velho.

       — É isso mesmo, inspetor. Eu também estive lá.

       — Havia algo de incomum em suas maneiras...  ela parecia estranha ou amedrontada?

       O Sr. Entwhistle levantou as sobrancelhas, num gesto de surpresa bem simulada.

       — É comum haver alguma coisa estranha no comportamento de uma pessoa que está prestes a ser assassinada? — perguntou ele.

       O inspetor sorriu um tanto desanimado.

       — Não estou pensando que ela estivesse “marcada para morrer” ou que tivesse algum pressentimento. Não, estou apenas procurando alguma coisa... bem, alguma coisa fora do comum.

       — Acho que não o estou compreendendo, inspetor — disse o Sr. Entwhistle.

       — Não é um caso muito fácil de se compreender, Sr. Entwhistle. Digamos que alguém fica observando essa tal Gilchrist sair de casa por volta das duas horas, indo em direção à vila e até o ponto de ônibus. Então esse alguém, deliberadamente, apanha uma machadinha no barracão e com ela quebra a janela da cozinha. Entra na casa, sobe, ataca a Sra. Lansquenet... ataca selvagemente. Foram seis ou oito golpes.

       O Sr. Entwhistle se sobressaltou.

       — Oh, sim, foi um crime brutal. Em seguida, o intruso abre algumas gavetas, apanha algumas jóias sem valor, valendo no máximo dez libras, e foge.

       — Ela estava na cama?

       — Sim. Parece que chegara do norte na noite anterior, exausta e muito excitada. Pelo que pude entender, ela recebeu uma herança?

       — Sim.

       — Ela dormiu muito mal e acordou com uma terrível dor de cabeça. Tomou várias xícaras de chá, um analgésico e, em seguida, pediu à Srta. Gilchrist para não a incomodar até a hora do almoço. Não se sentindo melhor, resolveu tomar mais dois comprimidos para dormir. Mandou a Srta. Gilchrist à biblioteca para trocar alguns livros. Ela devia estar muito sonolenta, se não dormindo, quando esse homem arrombou a casa. Ele poderia ter levado tudo o que queria usando de ameaças, ou poderia facilmente tê-la amordaçado. Uma machadinha, deliberadamente trazida com ele de fora, parece-me demais.

       — Talvez ele pretendesse usá-la apenas para assustá-la — sugeriu o Sr. Entwhistle. — Se ela tentasse reagir, então...

       — De acordo com o laudo médico, não há o menor sinal de que ela tenha tentado. Tudo parece indicar que ela estava dormindo tranqüilamente quando foi atacada.

       O Sr. Entwhistle mexeu-se inquieto na cadeira.

       — Às vezes ouve-se falar desses crimes brutais e absurdos — salientou ele.

       — Oh, sim, sim, provavelmente é isso. A polícia está de sobreaviso, é claro, para qualquer tipo suspeito. Não é ninguém da localidade, estamos bem certos disso. Todos os habitantes prestaram depoimentos satisfatórios. Àquela hora do dia, a maioria das pessoas está no trabalho. É evidente que o chalé fica numa viela afastada da cidade e que qualquer um poderia chegar lá facilmente sem ser visto. Há um labirinto de travessas por toda a vila. Estava uma linda manhã e há dias que não chove. Por isso não encontramos nenhuma pista de carro para seguir... no caso de alguém ter vindo de carro.

       — O senhor acha que alguém veio de carro? — indagou o Sr. Entwhistle.

       O inspetor encolheu os ombros. — Eu não sei. Estou apenas dizendo que existem aspectos curiosos nesse caso. Isto, por exemplo... — Ele apanhou na escrivaninha um punhado de coisas: um broche em forma de trevo com pequenas pérolas, um broche de ametistas, um pequeno cordão de pérolas e uma pulseira. — Estas são as coisas tiradas da caixa de jóias. Foram encontradas jogadas perto de um arbusto, do lado de fora da casa..

       — Sim, sim, é um tanto estranho. Talvez o assaltante estivesse assustado com o que havia feito...

       — Pode ser. Mas aí provavelmente ele as teria deixado lá em cima, no quarto. É óbvio que ele pode ter entrado em pânico enquanto estava entre o quarto e o portão de entrada.

       O Sr. Entwhistle falou calmamente:

       — Ou podem, como o senhor mesmo está sugerindo, ter sido roubadas apenas para despistar.

       — Sim, há várias possibilidades. É lógico que essa tal de Gilchrist pode ser a culpada. Duas mulheres morando sozinhas...   nunca se sabe que discussões, ressentimentos ou outros tipos de sentimentos podem surgir. Também estamos levando esta hipótese em consideração. Porém não me parece muito provável. Todas as informações são de que as duas se davam muito bem. — Fez uma pausa antes de prosseguir. — De acordo com o que o senhor disse, ninguém sairá ganhando com a morte de Cora Lansquenet, não é?

       O advogado mexeu-se, desassossegado.

       — Não foi bem isso o que eu disse.

       O inspetor encarou-o atentamente.

       — Pensei que o senhor tivesse dito que a fonte de renda da Sra. Lansquenet era urna mesada dada por seu irmão e, pelo que o senhor sabia, ela não tinha propriedades nem outros bens.

       — É isso mesmo. O marido dela morreu na miséria e, pelo que eu me lembro de quando ela era menina, ficaria surpreso em saber que alguma vez em sua vida ela economizara ou juntara algum dinheiro.

       — Nem o chalé é dela, é alugado. E as peças de mobília que lá existem não são nenhuma maravilha, mesmo para os dias de hoje. Alguns móveis rústicos e quadros sem valor. A pessoa para quem ela deixou aquilo não ganhará muito, no caso, é lógico, de ela ter deixado um testamento.

       O Sr. Entwhistle balançou a cabeça.

       — Nada sei sobre seu testamento. É preciso compreender que eu não a via há muitos anos.

       — Então o que foi exatamente que o senhor quis dizer ainda há pouco? O senhor tinha algo em mente, não?

       — Sim, eu tinha. Gostaria de ser extremamente cuidadoso e preciso.

       — Estava se referindo à herança que mencionara? A que o irmão lhe havia deixado? Ela poderia dispor da herança em seu testamento?

       — Não, não da forma a que o senhor se refere. Ela não poderia dispor do capital. Agora que ela morreu, será dividido entre os outros cinco beneficiários do testamento de Richard Abernethie. Foi isso que eu quis dizer. Todos serão, automaticamente, beneficiados com sua morte.

       O Inspetor Morton pareceu desapontado.

       — Oh, pensei que aí encontraríamos um ponto de partida. Bem, certamente não parece haver motivo para alguém chegar e golpeá-la violentamente com uma machadinha. Dá a impressão de que é coisa de algum sujeito de parafuso frouxo... talvez um desses delinqüentes juvenis. Há muitos deles espalhados por aí. E então, perdendo a calma, ele jogou fora as jóias e fugiu. Sim, deve ter sido isso. A não ser que tenha sido a respeitável Srta. Gilchrist e, devo dizer, isso me parece improvável.

       — Quando foi que ela encontrou o corpo?

       — Só por volta das cinco horas. Ela voltou da biblioteca no ônibus das quatro e meia. Ao chegar ao chalé entrou pela porta da frente, foi até a cozinha e preparou a chaleira para o chá. Nenhum som vinha do quarto da Sra. Lansquenet. A Srta. Gilchrist imaginou que ela ainda estivesse dormindo. Em seguida, a Srta. Gilchrist notou a janela da cozinha. Estava quebrada e havia vidro espalhado por todo o chão. Mesmo assim, a princípio pensou que tivesse sido algum garoto com uma bola ou estilingue. Subiu as escadas e entrou no quarto da Sra. Lansquenet sem fazer muito barulho, para ver se ela continuava dormindo ou se por acaso desejava tomar chá. Então gritou e saiu correndo pela travessa até o vizinho mais próximo. Sua história parece bastante convincente, e não encontramos vestígios de sangue nem em seu quarto nem em seu banheiro ou em suas roupas. Não, não creio que a Srta. Gilchrist tenha alguma coisa a ver com isso. O médico chegou lá às cinco e meia. Ele calcula que a morte tenha ocorrido antes das quatro e meia, e, provavelmente, mais próximo das duas horas. Dessa forma, seja lá quem for, estava esperando por perto que a Srta. Gilchrist saísse de casa.

       O rosto do advogado crispou-se. O Inspetor Morton prosseguiu: — Suponho que o senhor irá ver a Srta. Gilchrist?

       — Sim, estava pensando em ir vê-la.

       — Ficaria satisfeito se o senhor fosse. Acredito que ela tenha nos contado tudo, embora nunca se possa ter certeza. Às vezes, numa conversa pode aparecer um detalhe inesperado. Ela é uma velha solteirona insignificante, mas uma mulher sensata e prática, que tem sido de muita ajuda para nós.

       Fez uma pausa e em seguida prosseguiu:

       — O corpo está no necrotério. Se o senhor quiser ir ver...

       O Sr. Entwhistle concordou, mas sem qualquer entusiasmo.

       Poucos minutos depois, ele estava parado, em pé, olhando para os restos mortais de Cora Lansquenet. Ela havia sido selvagemente atacada e o cabelo tingido estava endurecido pelo sangue coagulado. O Sr. Entwhistle crispou os lábios e afastou-se, enjoado.

       Pobre Cora! Como ela havia estado ansiosa na antevéspera para saber se o irmão lhe havia deixado alguma coisa! Que previsões maravilhosas ela deveria ter tido do futuro! Quantas coisas tolas ela poderia ter feito... e se divertido fazendo-as...  com aquele dinheiro.

       Pobre Cora! Como duraram pouco os seus sonhos! Ninguém saíra ganhando com sua morte, nem mesmo o brutal assaltante que jogara fora as jóias ao fugir. Cinco pessoas teriam mais alguns milhares de libras acrescentados ao seu capital. Entretanto, o dinheiro que eles haviam recebido era provavelmente mais do que suficiente. Não, o motivo não estava ali. Estranho que um assassinato tenha passado pela cabeça de Cora justamente um dia antes de ela própria ser assassinada.

       “Ele foi assassinado, não foi?”

       Que coisa mais ridícula para se dizer! Ridícula! Completamente ridícula. Ridícula demais para ser mencionada ao Inspetor Morton.

       É lógico, depois de ele conversar com a Srta. Gilchrist... Talvez a Srta. Gilchrist, apesar de ele achar pouco provável, pudesse esclarecer algo sobre o que Richard havia dito a Cora.

       “Pensei que... pelo que ele havia dito...”

       O que dissera Richard?

       “Preciso ver a Srta. Gilchrist imediatamente”, pensou o Sr. Entwhistle

      

       A Srta. Gilchrist era uma mulher magra, sem viço, de cabelos curtos e grisalhos. Tinha um desses rostos indefiníveis que as mulheres muitas vezes adquirem por volta dos cinqüenta anos.

       Ela cumprimentou o Sr. Entwhistle afetuosamente.

       — Fico tão satisfeita que o senhor tenha vindo, Sr. Entwhistle! Na verdade, sei muito pouco a respeito da família da Sra. Lansquenet e, é lógico, nunca tive nada a ver com assassinatos antes. É terrível demais!

       O Sr. Entwhistle sentiu que realmente a Srta. Gilchrist nunca tivera nada a ver com assassinatos. Na realidade, a reação dela era muito semelhante à sua própria.

       — Lê-se muito sobre crimes, é evidente — continuou a Srta. Gilchrist. — Relegando-os sempre a seu próprio círculo. E até mesmo isso eu não gosto muito de fazer. Na maioria dos casos, são sórdidos demais.

       O Sr. Entwhistle olhava tudo atentamente enquanto a seguia até a sala de visitas. Havia um cheiro muito forte de tinta a óleo. O chalé estava superlotado, não bem por mobília, que correspondia bastante à descrição do Inspetor Morton, mas por quadros. As paredes estavam cobertas de quadros, a maioria de pinturas a óleo. Havia também esboços em aquarela e um ou dois de natureza-morta. Pinturas menores estavam empilhadas junto à janela.

       — A Sra. Lansquenet costumava comprá-los em leilão — explicou a Srta. Gilchrist. — Coitadinha, ela se interessava muito por arte. Ia a todos os leilões que havia pelas redondezas. Os quadros hoje em dia estão bastante baratos, uma verdadeira pechincha. Ela nunca pagava mais de uma libra por eles, algumas vezes apenas alguns xelins, e costumava dizer que havia sempre a maravilhosa oportunidade de se obter alguma coisa de valor. Freqüentemente, falava que este era um primitivo italiano que poderia valer muito dinheiro.

       O Sr. Entwhistle olhou em dúvida para o primitivo italiano que ela apontava. “Cora”, refletiu ele, “na verdade nunca entendera nada a respeito de pintura. Macacos me mordam se algum desses borrões vale mais do que uma nota de cinco libras!”

       — É claro — continuou a Srta. Gilchrist, percebendo a expressão e a reação do Sr. Entwhistle. — Eu mesma não entendo muito de pintura, embora meu pai fosse pintor. Infelizmente sem sucesso, o que eu lamento muito. Quando criança, entretanto, eu costumava pintar a aquarela e ouvia falar muito sobre pintura. Sendo assim, era agradável para a Sra. Lansquenet ter com quem conversar, e alguém que entendesse um pouco do assunto. Pobrezinha, ela gostava tanto de arte!

       — A senhorita gostava dela?

       Era uma pergunta idiota, ele pensou consigo mesmo. Seria possível ela responder “não”? Entretanto, Cora deveria ter sido uma mulher muito cansativa para se morar junto.

       — Oh, sim — respondeu a Srta. Gilchrist. — Nós nos dávamos muito bem. O senhor sabe, de certa forma Cora era igual a uma criança. Dizia tudo o que lhe viesse à cabeça. Não sei se seu “raciocínio” era sempre bom...

       Não se diz de uma pessoa morta: “Ela era uma mulher inteiramente tola”, pensou o Sr. Entwhistle. Então ele disse:

       — Ela não era de forma alguma o que poderíamos chamar de uma mulher intelectual.

       — Não, talvez não. Entretanto, era muito perspicaz, Sr. Entwhistle. Realmente muito astuta. Algumas vezes chegava a me surpreender pela maneira como conseguia acertar em cheio.

       O Sr. Entwhistle olhou para a Srta. Gilchrist com maior interesse e concluiu que ela também não era nenhuma boba.

       — Creio que a senhorita estava com ela há alguns anos, não é verdade?

       — Há três anos e meio.

       — A senhorita... ahn... era sua dama de companhia e também... bem... cuidava da casa?

       Era evidente que ele tocara num assunto muito delicado.

       A Srta. Gilchrist corou ligeiramente.

       — Oh, sim, de fato. Era eu quem cozinhava, a maioria das vezes. Aliás, adoro cozinhar. E fazia a arrumação da casa e outros trabalhos leves. Mas é claro que eu não fazia nenhum trabalho pesado. — O tom da Srta. Gilchrist expressava um princípio rígido.

       O Sr. Entwhistle, que não tinha a menor idéia do que era “trabalho pesado”, concordou com ela num murmúrio.

       — A Sra. Panter, que mora na vila, costumava vir aqui para isso, duas vezes por semana. Compreenda, Sr. Entwhistle, eu não poderia aceitar ser uma simples empregada. Quando a minha pequena casa de chá faliu... um desastre... foi a guerra, o senhor sabe. Era um lugar encantador. Chamava-se Willow Tree, e a louça azul com motivos de salgueiro era delicada e bonita. Os doces eram realmente gostosos. Sempre tive boa mão para bolos e doces. Sim, eu estava indo muito bem quando chegou a guerra e os suprimentos foram cortados, e o negócio foi à falência. Foi um acidente da guerra, é o que eu digo sempre, procurando encarar o fato sob este ângulo. Perdi o pouco dinheiro que meu pai me deixara e que eu investira todo naquele negócio. E, sendo assim, tive que procurar trabalho. Eu não tinha prática de coisa alguma. Fui trabalhar para uma senhora, mas não deu certo porque ela era muito grosseira e arrogante. Em seguida, fui trabalhar num escritório, mas detestei. E então vim para a casa da Sra. Lansquenet e nos entendemos bem desde o começo... seu marido tendo sido um artista e tudo o mais. — A Srta. Gilchrist parou para respirar e acrescentou tristemente: — Mas como eu gostava da minha querida, querida casa de chá! Era freqüentada por pessoas tão agradáveis!

       Olhando para a Srta. Gilchrist, o Sr. Entwhistle teve um súbito reconhecimento... um quadro composto de centenas de distintas senhoras em numerosas casas de chá, Bay Trees, Ginger Cats, Blue Parrots, Willow Trees e Cosy Corners, todas discretamente vestidas em aventais azuis, rosa ou amarelos, anotando os pedidos de chá e bolinhos. A Srta. Gilchrist tivera uma casa de chá à moda antiga, com uma freguesia selecionada. Deveria haver, pensou ele, um grande número de Srtas. Gilchrists espalhado por todo o país, todas muito parecidas, com os rostos suaves e pacientes, o lábio superior denotando obstinação, e cabelos grisalhos.

       A Srta. Gilchrist prosseguiu:

       — Mas não devo ficar falando a meu respeito. A polícia tem sido muito amável e atenciosa, agindo com muita consideração para comigo. Muito amável mesmo. O Inspetor Morton saiu de seu escritório para vir até aqui e foi muito compreensivo. Até providenciou para eu passar a noite na casa da Sra. Lake, mas eu recusei. Achei que era meu dever permanecer aqui cuidando de todas as coisas bonitas que há na casa da Sra. Lansquenet. Eles levaram o... o... — a Srta. Gilchrist engoliu em seco — o corpo, trancaram o quarto, e o Inspetor Morton informou-me que um policial ficaria de serviço a noite toda na cozinha... por causa da janela quebrada, que felizmente foi de novo envidraçada esta manhã. Mas o que era mesmo que eu estava falando? Oh, sim, eu dizia que ficaria muito bem em meu próprio quarto, embora deva confessar que empurrei a cômoda para a frente da porta e coloquei um grande jarro de água no peitoril da janela. Nunca se sabe... e se por algum acaso foi um maníaco... ouve-se falar tanto nessas coisas!

       Neste ponto, a Srta. Gilchrist fez uma pausa e o Sr. Entwhistle apressou-se em falar:

       — Estou ciente dos fatos principais. O Inspetor Morton colocou-me a par de tudo. Entretanto, se não lhe afligisse muito, gostaria que me desse seu próprio relato.

       — Pois não, Sr. Entwhistle. Entendo perfeitamente como o senhor se sente. Os policiais são tão impessoais, não são?

       — A Sra. Lansquenet retornou do funeral anteontem à noite — mencionou o Sr. Entwhistle.

       — Sim, seu trem só chegou bem tarde. Eu havia contratado um táxi para apanhá-la, conforme pedido seu. Ela estava muito cansada, pobrezinha, o que era bastante natural, mas de resto sentia-se muito animada.

       — Sim, sim. Ela comentou alguma coisa sobre o funeral?

       — Muito pouco. Eu lhe servi um copo de leite quente... ela não queria outra coisa... e ela me contou que a igreja estivera repleta de pessoas, com muitas, muitas flores... Disse também que lastimava não ter visto seu outro irmão... Timothy, não é este o nome?

       — Sim, Timothy.

       — Disse que já haviam se passado mais de vinte anos desde a última vez que ela o vira e que esperara encontrá-lo por lá, mas que compreendia que sob tais circunstâncias ele deveria ter achado melhor não ir. Mas que a mulher dele tinha ido e que ela nunca conseguira suportar Maude... oh, Deus, desculpe-me, Sr. Entwhistle, saiu sem querer... não quis dizer...

       — Não se preocupe, eu não sou parente. E acredito que realmente Cora e sua cunhada nunca se deram muito bem.

       — Bem, foi quase isso. “Sempre soube que Maude se tornaria uma dessas mulheres mandonas e intrometidas”, foi isso o que ela disse. E então, como estava se sentindo muito cansada, disse que ia para a cama imediatamente. Eu já havia preparado seu saco de água quente e ela subiu.

       — Não se recorda de nada especial que ela tenha dito?

       — Ela não teve nenhum pressentimento do que ia acontecer, Sr. Entwhistle, se é isso que quer dizer. Estou bem certa disso. Ela estava realmente muito animada, apesar do cansaço e do... do triste ocorrido. Perguntou-me se gostaria de ir a Capri. Capri! É evidente que respondi que seria maravilhoso, que era uma coisa que eu nunca sonhara ser possível, e ela afirmou: “Nós iremos!” Falou assim mesmo. Eu imaginei, mas na verdade não foi mencionado... que o seu irmão deveria ter-lhe deixado uma anuidade ou coisa parecida.

       O Sr. Entwhistle concordou com a cabeça.

       — Pobre coitada! Fico satisfeito em saber que pelo menos ela teve o prazer de fazer planos, apesar do que aconteceu.

       A Srta. Gilchrist suspirou e murmurou pensativa: — Acho que agora nunca irei a Capri...

       — E na manhã seguinte? — indagou o Sr. Entwhistle sem dar atenção aos lamentos da Srta. Gilchrist.

       — Na manhã seguinte, a Sra. Lansquenet não estava nada bem. Na verdade, estava com uma péssima aparência. Contou-me que não dormira. Pesadelos. “É porque a senhora se cansou demais ontem”, eu lhe disse, e ela respondeu que talvez eu tivesse razão. Tomou o café da manhã na cama e não se levantou. Entretanto, na hora do almoço, disse-me que não havia conseguido dormir. “Sinto-me tão agitada!”, disse ela, “Não paro de pensar em certas coisas e ficar imaginando.” Em seguida falou que iria tomar alguns comprimidos para ver se conseguia dar uma boa dormida durante a tarde. Pediu-me para ir de ônibus até a biblioteca trocar dois livros porque lera ambos durante a viagem de trem e agora não tinha nada para ler. Normalmente, levava quase uma semana para ler dois livros. Então eu saí logo depois das duas horas e esta... esta... foi a última vez... — A Srta. Gilchrist começou a fungar. — Ela devia estar dormindo. Não deve ter ouvido nada e o Inspetor Morton garantiu-me que ela não sofreu. Ele acredita que o primeiro golpe a matou. Oh, Deus, fico doente só em pensar no que aconteceu!

       — Por favor, procure se acalmar. Não desejo forçá-la a entrar em maiores detalhes. Tudo o que eu queria era saber o que a senhorita podia me contar sobre a Sra. Lansquenet antes de ocorrer a tragédia.

       — O que é muito natural, tenho certeza. Diga aos parentes dela que, embora tenha passado uma noite tão ruim, ela estava realmente muito contente, aguardando o futuro com ansiedade.

       O Sr. Entwhistle fez uma pausa antes de formular a pergunta seguinte. Era preciso tomar cuidado para não induzir a testemunha.

       — Ela não mencionou nenhum de seus parentes em particular?

       — Não, creio que não. — A Srta. Gilchrist refletiu. — A não ser o que falou sobre ter lamentado não ter visto seu irmão Timothy.

       — Ela não comentou nada a respeito da doença do irmão? A... ahn... a sua origem? Nada relacionado a isso?

       — Não.

       Não havia nenhum sinal de alarme no rosto da Srta. Gilchrist. O Sr. Entwhistle estava certo de que haveria se Cora houvesse falado sobre seu veredicto de assassinato.

       — Acho que ele já estava doente há algum tempo — observou a Srta. Gilchrist vagamente. — Embora deva dizer que fiquei surpresa ao ouvir isso. Ele parecia tão forte!

       O Sr. Entwhistle perguntou, apressado:

       — Quando a senhorita o viu?

       — Quando ele veio visitar a Sra. Lansquenet. Deixe-me ver... há umas três semanas.

       — Ele dormiu aqui?

       — Oh, não. Ficou só para o almoço. Foi uma surpresa e tanto. A Sra. Lansquenet não o esperava. Imagino que existia algum problema de família. Ela não o via há anos, conforme ela mesma me revelou.

       — Sim, é isso mesmo.

       — Vê-lo novamente perturbou-a bastante. E também por perceber o quanto ele estava doente.

       — Ela sabia que ele estava doente?

       — Oh, sim, lembro-me muito bem. Porque eu fiquei imaginando se o Sr. Abernethie não estava de miolo mole. Uma de minhas tias...

       Com muita habilidade o Sr. Entwhistle desviou o assunto.

       — Foi alguma coisa que a Sra. Lansquenet disse que a fez pensar assim?

       — Sim. A Sra. Lansquenet falou: “Pobre Richard! A morte de Mortimer o envelheceu tanto! Ele parece senil. Todas essas fantasias de alguém estar querendo envenená-lo! Pessoas idosas às vezes ficam assim”. E é lógico que sei que isso é verdade.  Essa minha tia de quem eu falava estava convencida de que os empregados estavam querendo envenená-la com a comida, e no final ela só comia ovos cozidos porque, dizia, não era possível colocar veneno dentro deles. Nós achávamos graça nela, mas se fosse nos dias atuais não sei o que faríamos. Com essa escassez de ovos e a maioria vinda do estrangeiro, cozinhá-los seria sempre arriscado.

       O Sr. Entwhistle estava surdo à narrativa da história da tia da Srta. Gilchrist. Ele estava profundamente perturbado. Quando, afinal, a Srta. Gilchrist interrompeu sua nervosa dissertação, ele conseguiu falar:

       — Imagino que a Sra. Lansquenet não levou isso tudo muito a sério?

       — Oh, não, Sr. Entwhistle, ela entendeu tudo perfeitamente bem.

       O Sr. Entwhistle também achou esse comentário perturbador, embora não no sentido em que a Srta. Gilchrist havia empregado. Teria Cora Lansquenet compreendido? Talvez não no momento, mas sim mais tarde. Teria ela compreendido bem demais?

       O Sr. Entwhistle sabia que Richard Abernethie nunca estivera senil. Richard mantivera-se em perfeita posse de suas faculdades mentais. E não era, de forma alguma, o tipo de homem de ter mania de perseguição. Era, como sempre havia sido, um lúcido e obstinado homem de negócios, e sua doença nada modificara a esse respeito. Parecia absurdo que ele tivesse falado com sua irmã naqueles termos. Mas era possível que Cora, com sua estranha astúcia infantil, tivesse lido nas entrelinhas e tivesse colocado os pingos nos is no que Richard Abernethie realmente dissera. Cora sempre fora uma completa tola. Não possuía nenhum bom senso, nenhum equilíbrio, e tinha um ponto de vista imaturo e infantil. Contudo, era dotada de uma estranha habilidade infantil que algumas vezes a fazia acertar em cheio de maneira bastante assustadora.

       O Sr. Entwhistle deixou por isso mesmo. A Srta. Gilchrist, pensou ele, não sabia mais do que contara a ele. Perguntou-lhe se sabia se Cora Lansquenet havia deixado um testamento. A Srta. Gilchrist respondeu que o testamento da Sra. Lansquenet se encontrava no banco.

       Com isso, e depois de tomar algumas providências, ele se retirou. Antes, porém, insistiu para que a Srta. Gilchrist aceitasse uma pequena quantia em dinheiro para pagar as despesas existentes. Disse que se comunicaria com ela novamente e que enquanto isso ficaria muito grato se ela permanecesse no chalé até encontrar novo trabalho. Isso seria, respondera a Srta. Gilchrist, muito conveniente, já que, na verdade, ela não estava nem um pouco nervosa.

       Ele não conseguiu sair sem que antes a Srta. Gilchrist o levasse por todo o chalé e mostrasse vários quadros do falecido Pierre Lansquenet agrupados numa pequena sala de jantar. O Sr. Entwhistle ficou perplexo. A maioria era de nus, falhos na técnica de desenho mas extremamente minuciosos nos detalhes. Foi também forçado a admirar vários pequenos desenhos a óleo de pitorescos portos de pesca feitos pela própria Cora.

       — Polperro — disse a Srta. Gilchrist orgulhosamente. — Estivemos lá no ano passado e a Sra. Lansquenet ficou encantada com seu caráter pitoresco.

       O Sr. Entwhistle, vendo Polperro com vistas tomadas do sudoeste, noroeste e, provavelmente, de outros pontos cardeais, chegou à conclusão de que a Sra. Lansquenet deveria ter ficado realmente muito entusiasmada.

       — A Sra. Lansquenet prometeu me deixar seus desenhos — disse a Srta. Gilchrist ansiosamente. — Eu os admiTO tanto! Podem-se realmente ver as ondas se quebrando neste aqui, não é mesmo? No caso de ela ter se esquecido, talvez eu pudesse ficar com um como lembrança, o senhor não acha?

       — Estou certo de que isso pode ser arranjado — garantiu o Sr. Entwhistle amavelmente.

       Ele tomou mais algumas providências e em seguida retirou-se para uma entrevista com o gerente do banco e para maiores consultas com o Inspetor Morton.

 

Capítulo V

       — Você está esgotado — disse a Srta. Entwhistle, naquele tom indignado e ameaçador adotado por irmãs devotadas e que cuidam da casa para os irmãos. — Não deveria fazer isso na sua idade. Gostaria de saber o que é que isso tudo tem a ver com você. Você está aposentado, não está?

       O Sr. Entwhistle explicou calmamente que Richard Abernethie tinha sido um de seus melhores amigos.

       — Certamente! Entretanto, Richard Abernethie está morto, não está? Então não vejo razão para você se envolver em coisas que não lhe dizem respeito e morrer de frio nesses desagradáveis trens cheios de corrente de ar. E também assassinatos! Não consigo entender por que o chamaram lá.

       — Comunicaram-se comigo porque no chalé havia uma carta assinada por mim, avisando Cora dos arranjos para o funeral.

       — Funerais! Um funeral atrás do outro... e, por falar nisso, outro desses preciosos Abernethie tem telefonado... Timothy, acho que é este o nome. Tem telefonado de algum lugar de Yorkshire, e o assunto também é sobre um funeral! Disse que tornaria a ligar mais tarde.

       Naquela noite uma chamada para o Sr. Entwhistle foi completada. Atendendo ao telefone, ele ouviu a voz de Maude Abernethie do outro lado.

       — Graças a Deus, consegui finalmente encontrá-lo! Timothy tem andado num estado terrível. As notícias a respeito de Cora o perturbaram enormemente.

       — Isto é bastante compreensível — observou o Sr. Entwhistle.

       — O que foi que o senhor disse?

       — Disse que era perfeitamente compreensível.

       — É, suponho que sim. — Maude parecia incerta. — Quer dizer que foi realmente assassinato?

       (“Foi assassinato, não foi?”, havia dito Cora. Mas dessa vez não havia hesitação quanto à resposta.)

       — Sim, foi assassinato — afirmou o Sr. Entwhistle.

       — E pelo que li nos jornais foi com uma machadinha.

       — Sim.

       — Parece-me tão inacreditável! — comentou Maude. — A irmã de Timothy, sua própria irmã, assassinada com uma machadinha!

       Para o Sr. Entwhistle também não parecia menos inacreditável. A vida de Timothy era tão afastada de violência que se sentia que até mesmo seus parentes deveriam estar igualmente imunes a ela.           

       — Receio que tenhamos que enfrentar o fato — disse o Sr. Entwhistle gentilmente.

       — Na verdade, estou muito preocupada com Timothy. Tudo isso é muito ruim para ele! Agora consegui colocá-lo na cama, mas ele insiste em que eu convença o senhor a vir até aqui para vê-lo. Quer saber uma centena de coisas: se vai haver inquérito, quem deverá comparecer, quando será o funeral, onde, que capital disponível existe, se Cora expressou algum desejo de ser cremada ou algo assim, se deixou um testamento...

       O Sr. Entwhistle interrompeu-a antes que a lista se tornasse longa demais.

       — Sim, existe um testamento. E ela nomeou Timothy seu testamenteiro.

       — Oh, Deus, receio que Timothy não possa incumbir-se de nada...

       — A firma cuidará de tudo. O testamento é muito simples. Ela deixou seus desenhos e um broche de ametista para a dama de companhia, a Srta. Gilchrist, e o restante para Susan.

       — Susan? Mas por que Susan? Acho que ela nem conhecia Susan...  pelo menos, não a via desde que ela era um bebê.

       — Imagino que ela tenha sido informada que Susan havia feito um casamento que não agradara totalmente à família.

       Maude falou de modo zangado:

       — Até mesmo Gregory é um bocado melhor do que Pierre Lansquenet! É lógico que casar com um homem que trabalha numa loja seria inadmissível no meu tempo, porém uma farmácia é muito melhor do que um armarinho, e Gregory pelo menos me parece uma pessoa respeitável. — Fez uma pausa e acrescentou: — Isso significa que Susan fica com a renda que Richard deixou para Cora?

       — Oh, não. O capital será dividido de acordo com as instruções do testamento de Richard. Não, a pobre Cora tinha apenas algumas centenas de libras e a mobília de sua casa para deixar. Quando pagarem as dívidas existentes e a mobília for vendida, duvido que tudo venha a somar mais do que quinhentas libras. — Ele prosseguiu: — Evidentemente terá que haver um inquérito. Está marcado para a próxima quinta-feira. Se Timothy estiver de acordo, mandaremos o jovem Lloyd para acompanhar o processo em nome da família. — Acrescentou, desculpando-se: — Receio que vá atrair a atenção do público devido... ahn... às circunstâncias.

       — Mas que desagradável! Já prenderam o desgraçado que cometeu o crime?

       — Ainda não.

       — Suponho que tenha sido um desses jovens meio malucos que perambulam por aí assassinando pessoas. A polícia é tão incompetente!

       — Não, não — retrucou o Sr. Entwhistle. — A polícia não é, de forma alguma, incompetente. Não pense isso nem por um momento.

       — Bem, tudo me parece bastante estranho. E é tão ruim para Timothy! Seria possível o senhor vir até aqui, Sr. Entwhistle? Eu ficaria muito agradecida se viesse. Acredito que Timothy se acalmaria se o senhor estivesse aqui para tranqüilizá-lo.

       O Sr. Entwhistle ficou calado por um momento. O convite não chegara em má hora.

       — Acho que a senhora tem razão — admitiu ele. — E também irei precisar, para certos documentos, da assinatura de Timothy, já que ele é o testamenteiro. Sim, acho que é uma boa idéia.

       — Isso é esplêndido! Estou tão aliviada! Amanhã? O senhor passará a noite aqui? O melhor trem é o das onze e vinte, que sai de St. Pancras.

       — Receio que tenha que pegar o trem da tarde. Tenho um outro compromisso pela manhã — explicou o Sr. Entwhistle.

      

       George Crossfield cumprimentou o Sr. Entwhistle cordialmente, embora com uma certa surpresa.

       O Sr. Entwhistle falou de uma maneira elucidativa, mas que na verdade não explicava nada:

       — Acabei de chegar de Lytchett St. Mary.

       — Então foi mesmo a tia Cora? Li sobre o caso nos jornais, mas eu simplesmente não podia acreditar. Pensei que se tratava de alguém com o mesmo nome.

       — Lansquenet não é um nome comum.

       — Não, é claro que não. Suponho que é uma aversão natural que se tem em acreditar que alguém de sua própria família tenha sido assassinado. Parece muito com aquele caso que aconteceu mês passado em Dartmoor.

       — Parece?

       — Sim. As mesmas circunstâncias. Um chalé num lugar solitário. Duas mulheres idosas morando juntas. A soma de dinheiro roubado bastante desprezível e insignificante.

       — O valor do dinheiro é sempre muito relativo — afirmou o Sr. Entwhistle. — O que conta é a necessidade.

       — Sim, sim, suponho que o senhor tenha razão.

       — Se a pessoa precisa desesperadamente de dez libras, então quinze libras são mais do que o suficiente. E também ocorre o inverso. Se a sua necessidade é de cem libras, quarenta e cinco libras de nada adiantarão. E, se a pessoa precisar de milhares de libras, então umas centenas não resolverão o problema.

       George, com um brilho repentino nos olhos, falou: — Eu diria que hoje em dia qualquer dinheiro é bem-vindo. Todo mundo está com dificuldades financeiras.

       — Mas não desesperados — observou o Sr. Entwhistle. — É o desespero que conta.

       — O senhor está pensando em alguma coisa especial?

       — Oh, não, em absoluto. — Fez uma pausa para em seguida prosseguir: — Como levará algum tempo até que se resolva a questão da herança, será que o senhor acharia conveniente receber um adiantamento?

       — Aliás, eu ia tocar neste assunto. Entretanto, esta manhã fui ao banco e mencionei seu nome, e eles foram muito gentis em relação a um cheque em descoberto.

       Tornou a aparecer o mesmo brilho nos olhos de George, e o Sr. Entwhistle, com sua profunda experiência, o reconheceu. George, ele teve certeza, tinha estado se não desesperado, pelo menos em grandes dificuldades financeiras. Naquele momento, ele soube o que sentira o tempo todo subconscientemente. Em matéria de dinheiro ele jamais confiaria em George. Ficou imaginando se o velho Richard Abernethie, que também possuíra grande experiência em julgar os homens, havia sentido o mesmo. O Sr. Entwhistle estava certo de que, depois da morte de Mortimer, Richard Abernethie tivera a intenção de fazer de George seu herdeiro. George não era um Abernethie, mas era o único homem da geração mais jovem. Era o sucessor natural de Mortimer. Richard Abernethie convidara George para sua casa e o hospedara por alguns dias. Tudo indicava que, ao terminar a visita, Richard não achara George satisfatório. Teria ele sentido instintivamente, como sentira o Sr. Entwhistle, que George não era honesto? A família achava que o pai de George havia sido má escolha da parte de Laura. Um corretor com outras atividades um tanto misteriosas. George puxara mais ao pai do que aos Abernethie.

       Talvez interpretando mal o silêncio do velho advogado, George falou com um riso nervoso:

       — A verdade é que ultimamente não tenho tido muita sorte nos meus investimentos. Arrisquei-me um pouco e não deu certo. Perdi praticamente todo o meu dinheiro. Agora, entretanto, vou poder me recuperar. Tudo o que a pessoa precisa é de um bom capital. Ardens Consolidated é um bom negócio, não acha?

       O Sr. Entwhistle não concordou nem discordou. Estava pensando se, por algum acaso, George andara especulando com o dinheiro dos clientes e não com seu próprio. Se George correra o risco de ser processado.

       O Sr. Entwhistle falou com firmeza:

       — Tentei localizá-lo no dia seguinte ao funeral, mas creio que você não estava no escritório.

       — O senhor me procurou? Não me disseram nada. Na verdade, achei que tinha direito a um dia de folga depois das boas novas!

       — Boas novas?

       George enrubesceu.

       — Oh, olhe aqui, não estava me referindo à morte de tio Richard. Mas herdar muito dinheiro deixa qualquer um eufórico. Sente-se necessidade de celebrar. Na realidade, fui ao Hurst Park. Acertei em dois vencedores. Quando se está com sorte, tudo dá certo. Ganhei apenas cinqüenta libras, mas sempre ajuda.

       — Oh, sim — concordou o Sr. Entwhistle. — Sempre ajuda. E agora você receberá uma soma adicional resultante da morte de Cora.

       George pareceu preocupado.

       — Coitada dela! — lastimou. — Foi muito azar, não foi? Logo agora que ela ia aproveitar a vida.

       — Vamos torcer para que a polícia encontre a pessoa responsável por sua morte — disse o Sr. Entwhistle.

       — Espero que o peguem logo. A nossa polícia é boa. Pode reunir todos os criminosos em potencial da redondeza e dar uma checada... fazer com que prestem conta de suas ações na hora do ocorrido.

       — Não é assim tão fácil depois que já se passou algum tempo — afirmou o Sr. Entwhistle, dando um sorriso de quem estava prestes a dizer uma piada. — Eu mesmo estava na Livraria Harchard às três e meia no dia em questão. Será que eu me lembraria se fosse interrogado pela polícia dez dias depois? Duvido muito. E você, George, você estava no Hurst Park. Será que você se lembraria em que dia você foi às corridas depois de... digamos... de um mês?

       — Oh, eu poderia tomar como base o funeral. Foi no dia seguinte.

       — Está certo. E você apostou em dois vencedores. Outra ajuda para a memória. Raramente alguém se esquece do nome de um cavalo com o qual se ganhou dinheiro. A propósito, quais foram?

       — Deixe-me ver... Gaymark e Frogg II. Sim, não os esquecerei tão cedo.

       O Sr. Entwhistle deu um riso seco e curto e se retirou.

      

       — É ótimo vê-lo — disse Rosamund sem qualquer sinal de entusiasmo. — Porém é terrivelmente cedo.

       Ela bocejou com exagero.

       — São onze horas — observou o Sr. Entwhistle.

       Rosamund tornou a bocejar. Ela falou se desculpando:

       — Demos uma festa daquelas ontem à noite. Bebida à vontade. Michael ainda está com uma terrível ressaca.

       Nesse momento apareceu Michael, também bocejando. Trazia uma xícara de café preto na mão e usava um roupão muito elegante. Era magro, atraente, e seu sorriso tinha o encanto habitual. Rosamund estava de saia preta, um casaco amarelo um tanto sujo e, pelo que o Sr. Entwhistle pudera observar, nada mais além disso.

       O exigente e minucioso advogado não aprovava de maneira alguma a forma de viver dos jovens Shane. Um apartamento quase desmoronando em Chelsea... garrafas, copos, pontas de cigarros espalhados por toda a sala... o ambiente poeirento e desarrumado. Em meio a esse cenário desalentador, floresciam Rosamund e Michael com suas aparências maravilhosas. Formavam, sem dúvida alguma, um casal muito bonito, e pareciam gostar muito um do outro. Era evidente, pensou o Sr. Entwhistle, que Rosamund era profundamente apaixonada por Michael.

       — Querido — disse ela —, que acha de um pequeno gole de champanha? Apenas para nos reanimar e fazer um brinde ao futuro. Oh, Sr. Entwhistle, foi realmente uma sorte incrível o tio Richard nos deixar todo aquele dinheiro justamente agora!...

       O Sr. Entwhistle percebeu o rápido olhar zangado que Michael lhe lançou, mas mesmo assim Rosamund continuou tranqüilamente:

       — Porque há uma esplêndida oportunidade para encenarmos uma peça. Tem um papel simplesmente maravilhoso para Michael e também um pequeno papel para mim. É sobre um desses jovens marginais, o senhor sabe, na verdade eles são santos... e repletos de idéias avançadas.

       — É o que parece — comentou o Sr. Entwhistle com frieza.

       — Ele rouba, mata, é perseguido pela polícia, pela sociedade e, então, no final, faz um milagre.

       O Sr. Entwhistle se mantinha calado, indignado. Quantas bobagens perniciosas esses jovens tolos diziam! E escreviam!

       Não que Michael Shane estivesse falando muito. Havia em seu rosto um leve ar zangado.

       — O Sr. Entwhistle não está interessado em ouvir as nossas histórias particulares. Fique um pouco de boca fechada e deixe que ele nos diga por que veio nos procurar.

       — Há um ou dois assuntos para resolver — explicou o Sr. Entwhistle. — Estou acabando de chegar de Lytchett St. Mary.

       — Então foi mesmo a tia Cora que foi assassinada. Li a notícia nos jornais. Achei que deveria ser ela porque o nome é muito pouco comum. Pobre tia Cora! Eu a estava observando no dia do funeral e pensando o quanto ela era desmazelada e que para uma pessoa com aquela aparência era melhor estar morta... e agora ela está morta! Ontem à noite ninguém queria acreditar quando lhes contei que a mulher que fora assassinada com uma machadinha era minha tia. Eles simplesmente riram, não foi, Michael?

       Michael não respondeu, e Rosamund, com toda a aparência de que estava se divertindo, continuou:

       — Dois assassinatos, um atrás do outro. É demais, não é?

       — Não seja tola, Rosamund! Seu tio Richard não foi assassinado!

       — Bem, Cora achava que sim.

       O Sr. Entwhistle interveio para indagar:

       — Vocês voltaram para Londres logo após o funeral, não?

       — Sim, viemos no mesmo trem que o senhor.

       — É claro. Perguntei porque tentei me comunicar com vocês — ele lançou um rápido olhar para o telefone — no dia seguinte, várias vezes aliás, e ninguém respondeu.

       — Oh, sinto muito. O que foi mesmo que fizemos naquele dia? Anteontem. Ficamos em casa até por volta do meio dia, não foi? Então você saiu para tentar encontrar Rosenheim e almoçar com Oscar, e eu saí para comprar algumas roupas íntimas e percorri algumas lojas. Deveria me encontrar com Janet, porém nos desencontramos. Sim, passei uma tarde esplêndida fazendo compras... e depois jantamos no Castile. Creio que chegamos por volta das dez horas.

       — É, foi por volta disso — confirmou Michael. Ele estava olhando pensativo para o Sr. Entwhistle. — Para que o senhor estava nos procurando?

       — Oh, eram apenas alguns detalhes que apareceram a respeito da herança de Richard Abernethie. Papéis para assinar e coisas assim.

       — Receberemos o dinheiro agora ou só daqui a séculos? — perguntou Rosamund.

       — Receio que a lei esteja sujeita a atrasos — observou o Sr. Entwhistle.

       — Mas poderemos conseguir um adiantamento, não? — Rosamund parecia alarmada. — Michael disse que sim. Na verdade, é terrivelmente importante. Por causa da peça.

       Michael falou gentilmente:

       — Oh, não há tanta pressa assim. É apenas uma questão de decidirmos se vamos ou não encenar a peça.

       — Será muito fácil adiantar-lhes algum dinheiro — explicou o Sr. Entwhistle. — A quantia que for preciso.

       — Então está tudo bem. — Rosamund respirou aliviada. Em seguida, acrescentou: — Tia Cora deixou algum dinheiro?

       — Um pouco. Deixou-o para sua prima Susan.       

       — Gostaria de saber por que Susan. É muito?

       — Poucas centenas de libras e alguns móveis.          

       — Bonitos?

       — Não — respondeu o Sr. Entwhistle. Rosamund então perdeu o interesse pelo assunto.

       — É tudo muito estranho, não é? — comentou ela. — Depois do funeral, lá estava Cora saindo-se de repente com “Ele foi assassinado!”, e então, exatamente no dia seguinte, ela própria é assassinada. Quero dizer, é estranho, não é?

       Houve um momento de silêncio um tanto desconfortável antes que o Sr. Entwhistle falasse calmamente:

       — Sim, é realmente muito estranho...

      

       O Sr. Entwhistle estudou Susan Banks enquanto ela se inclinava para a frente da mesa, falando com seu modo animado.

       Não havia nela nada da beleza de Rosamund. Possuía, entretanto, um rosto atraente, e sua atração residia, concluiu o Sr. Entwhistle, em sua vitalidade. A curva da boca era harmoniosa e carnuda. Era uma boca feminina e seu corpo, decididamente, o de uma mulher... e de uma forma bastante expressiva. Entretanto, em muitos aspectos, Susan lembrava seu tio, Richard Abernethie. O formato da cabeça, a linha do queixo, os olhos fundos e pensativos. Possuía o mesmo tipo de personalidade dominante de Richard e a mesma clarividência e avaliação correta das coisas. Dos três membros da jovem geração só ela parecia ser feita da mesma fibra que criara a vasta fortuna dos Abernethie. Haveria Richard reconhecido em sua sobrinha um espírito idêntico ao seu? O Sr. Entwhistle acreditava que sim. Richard sempre tivera aguçado julgamento do caráter das pessoas. Ali, seguramente, estavam as qualidades que ele procurava. E, contudo, em seu testamento Richard Abernethie não fizera nenhuma distinção em seu favor. Desconfiado em relação a George, assim pensava o Sr. Entwhistle, ignorando aquela linda tola, Rosamund, não poderia ele ter encontrado em Susan o que buscava... um herdeiro com vigor semelhante ao seu?

       Senão, o motivo deveria ser, sim, era lógico: o marido...

       O olhar do Sr. Entwhistle passou por cima do ombro de Susan e pousou em Gregory Banks, que distraidamente apontava um lápis.

       Era um jovem de cabelos ruivos, magro, pálido, fisionomia indecifrável. Tão ofuscado pela personalidade brilhante de Susan que era difícil chegar-se a uma conclusão de como ele realmente era. Não havia nada de especial a seu respeito, parecia até bastante agradável, sempre pronto a concordar. Contudo, isso não era bastante para descrevê-lo. Havia algo de vagamente inquietante no indecifrável Gregory Banks. Ele não era par para ela; entretanto, ela insistira em casar-se com ele, enfrentando todas as oposições. Por quê? O que ela teria visto nele?

       E agora, seis meses após o casamento, “ela é louca pelo sujeito”, concluiu o Sr. Entwhistle. Ele conhecia todos os sintomas. Um grande número de casos havia passado pela firma Bollard, Entwhistle, Entwhistle e Bollard. Esposas profundamente devotadas a maridos inadequados e aparentemente sem qualquer atrativo, e esposas desdenhosas e enfastiadas com maridos atraentes e impecáveis. O que essas mulheres viam em determinados homens ia além da compreensão humana. Era assim e ponto final. Uma mulher poderia ser inteligente em relação a tudo o que existe no mundo e uma completa tola quando se tratasse de determinado homem. Susan, pensou o Sr. Entwhistle, era uma dessas mulheres. Para ela o mundo girava em torno de Greg. E isso era extremamente perigoso.

       Susan falava com ênfase e indignação:

       — ...é uma vergonha. O senhor está lembrado daquela mulher que foi assassinada em Yorkshire no ano passado? Nunca prenderam o criminoso. E a velha da loja de doces que foi morta com uma alavanca?! Detiveram um sujeito e em seguida o soltaram!

       — É preciso provas, minha querida — explicou o Sr. Entwhistle.

       Susan não lhe deu atenção.

       — E aquele outro caso, o da enfermeira reformada, acho que foi com uma machadinha, exatamente como tia Cora.

       — Ora veja, parece-me que você fez um completo estudo desses crimes, Susan — comentou o Sr. Entwhistle calmamente.

       — Naturalmente, a pessoa não se esquece dessas coisas, e quando alguém de sua própria família é assassinado e da mesmíssima forma... bem, isso demonstra que deve haver lá pelo interior muita gente desse tipo, invadindo casas e atacando mulheres solitárias... e que a polícia simplesmente não está se importando!

       O Sr. Entwhistle balançou a cabeça.

       — Não menospreze a polícia, Susan. São homens astutos, pacientes, e também bastante persistentes. Apenas porque ainda não foi mencionado nos jornais, não quer dizer que o caso esteja encerrado. Longe disso!

       — Mesmo assim todo ano há centenas de crimes não solucionados.

       — Centenas? — O Sr. Entwhistle parecia em dúvida. — Um certo número, sim. Mas existem ocasiões em que a polícia sabe quem cometeu o crime, mas as provas não são suficientes para uma instauração de processo.

       — Não acredito nisso — afirmou Susan. — Acho que quando se sabe com certeza quem cometeu o crime sempre é possível conseguir-se a prova.

       — Não estou bem certo disso. — O Sr. Entwhistle parecia pensativo. — Não estou bem certo...

       — Eles têm alguma idéia...  no caso de tia Cora... de quem poderia ser o assassino?

       — Eu não saberia responder. Pelo que sei, não. Contudo é pouco provável que me contassem. E também ainda é cedo; lembre-se de que o crime ocorreu apenas anteontem.

       — Não há dúvida de que deve ter sido um tipo determinado de pessoa. — Susan refletiu. — Um tipo selvagem, talvez um doente mental ou um criminoso incorrigível. O que eu quero dizer é que usar uma machadinha daquela forma...

       Parecendo ligeiramente zombeteiro, o Sr. Entwhistle murmurou, levantando as sobrancelhas:

      

       “Com muitos golpes de machadinha

       Lizzie Borden seu pai matou.

       Quando viu o que havia feito,

       Com muitos mais sua mãe golpeou”.

      

       — Oh!  — exclamou Susan, vermelha de raiva. — Cora não morava com nenhum parente, a não ser que o senhor esteja se referindo a sua dama de companhia. E, de qualquer maneira, Lizzie Borden foi solta. Ninguém tinha certeza de que ela matara os pais.

       — O verso é bastante acusatório — observou o Sr. Entwhistle.

       — Quer dizer que foi a dama de companhia? Tia Cora deixou-lhe alguma coisa?

       — Um broche de ametista de pouco valor e alguns quadros de vilas de pescadores de valor apenas sentimental.

       — É preciso ter um motivo para cometer um assassinato, a não ser que se seja doido.

       O Sr. Entwhistle soltou um pequeno riso.

       — Por enquanto, pelo que sabemos, a única pessoa que tinha motivo era você, minha querida Susan.

       — O que disse? — Greg repentinamente deu um passo à frente: era como se tivesse despertado.

       De repente, ele não era mais a figura desprezível em segundo plano.

       — O que Susan tem a ver com isso? O que o senhor está querendo insinuar?

       Susan falou com frieza:

       — Cale a boca, Greg. O Sr. Entwhistle não quis insinuar nada.

       — Era apenas uma brincadeira — desculpou-se o Sr. Entwhistle. — Receio que de mau gosto. De acordo com o testamento de Cora, você é a herdeira, Susan. Mas, para uma jovem que acabou de herdar milhares de libras, um legado de no máximo algumas centenas de libras dificilmente poderá ser considerado motivo para um assassinato.

       — Ela deixou seu dinheiro para mim? — surpreendeu-se Susan. — Que estranho! Ela nem me conhecia. Por que o senhor acha que ela fez isso?

       — Creio que ela ouviu alguns boatos a respeito de alguns problemas... ahn... com seu casamento. — Greg, que continuava a apontar o lápis, franziu a testa. — Como houve certos problemas com seu próprio casamento, acho que ela sentiu uma certa afinidade de situação.

       — Ela casou-se com um artista de quem a família não gostava, não é isso? Ele era um bom pintor? — indagou Susan com certo interesse.

       O Sr. Entwhistle negou com a cabeça, muito decididamente.

       — Há algum de seus quadros no chalé?

       — Sim.

       — Então eu mesma irei julgá-los.

       O Sr. Entwhistle sorriu diante da firmeza de Susan.

       — Então que seja assim. Sem dúvida, sou uma pessoa irremediavelmente antiquada a respeito de arte. Estou seguro, entretanto, que você não irá contestar meu veredicto.

       — Suponho que, de qualquer modo, eu deva ir até lá para dar uma olhada. Há alguém no chalé?

       — Providenciei para que a Srta. Gilchrist permanecesse lá por mais algum tempo.

       — Ela deve ter nervos de aço para ficar numa casa onde foi cometido um assassinato — disse Greg.

       — Eu diria que a Srta. Gilchrist é uma mulher bastante sensata. Além do mais — acrescentou o advogado secamente —, não creio que ela tenha lugar para ficar até que arranje outro trabalho.

       — Quer dizer que a morte de tia Cora deixou-a de mãos vazias? Ela... ela e tia Cora se davam bem?

       O Sr. Entwhistle olhou-a bastante curioso, tentando imaginar exatamente o que se passava em sua cabeça.

       — Creio que se davam razoavelmente bem. Ela nunca tratou a Srta. Gilchrist como empregada.

       — Provavelmente, tratava-a bem pior do que isso — opinou Susan. — Hoje em dia essas pseudomadames são as que mais se aproveitam desse tipo de pessoa. Tentarei lhe arranjar uma colocação decente em algum lugar. Qualquer pessoa que esteja disposta a fazer um pouco de trabalho doméstico e cozinhar está valendo ouro. Ela cozinha, não?

       — Oh, sim; pelo que entendi é apenas ao “trabalho pesado” que ela faz objeções. Receio que eu não tenha entendido bem o que significa “trabalho pesado”.

       Susan parecia bastante divertida.

       Olhando para o relógio, o Sr. Entwhistle comunicou:

       — Sua tia deixou Timothy como testamenteiro.

       — Timothy — disse Susan com desprezo. — Tio Timothy é praticamente um mito. Ninguém nunca o vê.

       — Realmente. — O Sr. Entwhistle tornou a olhar o relógio. — Viajarei esta tarde para vê-lo. Informar-lhe-ei de sua decisão de ir até o chalé.

       — Devo ficar lá por apenas um ou dois dias. Não quero me afastar de Londres por muito tempo. Tenho vários planos. Vou entrar para o mundo dos negócios.

       O Sr. Entwhistle olhou em torno da pequena sala de visitas do minúsculo apartamento. Era evidente que Greg e Susan tinham problemas financeiros. O pai de Susan, pelo que ele sabia, havia gasto a maior parte do seu dinheiro. Deixara a filha em má situação.

       — Será que posso perguntar quais são seus planos para o futuro?

       — Estou de olho em um imóvel na Cardigan Street. Suponho que, se for necessário, o senhor poderá me adiantar algum dinheiro, não? Tenho que pagar um depósito.

       — Isso pode ser arranjado — afirmou o Sr. Entwhistle. — Telefonei-lhe várias vezes no dia seguinte ao funeral, mas ninguém atendeu. Pensei que poderia estar interessada em um adiantamento. Fiquei imaginando que você talvez tivesse saído da cidade.

       — Oh, não — respondeu Susan rapidamente. — Ficamos em casa o dia todo. Nós dois. Não saímos nem um minuto.

       Greg falou gentilmente: — Sabe, Susan, acho que naquele dia o nosso telefone estava com defeito. Lembra-se de que durante a tarde não conseguimos completar a ligação para Hard and Co.? Pretendia registrar a queixa; entretanto, na manhã seguinte já estava funcionando bem.

       — Telefones... algumas vezes não podemos confiar neles — observou o Sr. Entwhistle.

       De repente, Susan falou:

       — Como é que tia Cora sabia sobre o nosso casamento? Foi realizado num cartório e só comunicamos depois.

       — Imagino que talvez Richard tenha lhe contado. Ela refez o testamento há três semanas (o anterior era em favor da Sociedade Teosófica), por volta da época em que ele foi visitá-la.

       Susan ficou assombrada.

       — Tio Richard foi visitá-la? Eu não sabia disso!

       — Eu também não sabia — reforçou o Sr. Entwhistle.

       — Então foi quando...

       — Quando o quê?

       — Nada — respondeu Susan.

 

Capítulo VI

       — Foi muita bondade sua ter vindo — agradeceu Maude com sua voz rouca, ao cumprimentar o Sr. Entwhistle na plataforma da estação de Bayham Compton. — Posso lhe garantir que tanto Timothy quanto eu apreciamos muito seu gesto. A verdade é que a morte de Richard afetou tremendamente a saúde de Timothy.

       O Sr. Entwhistle ainda não analisara a morte do amigo sob este ângulo. Porém, pelo que estava vendo, era o único ângulo sob o qual a Sra. Timothy estava propensa a encará-la.

       Enquanto se encaminhavam para a saída, Maude desenvolveu o tema.

       — Para começar, foi um choque... Timothy era realmente muito ligado a Richard. E também, infelizmente, serviu para colocar a idéia da morte em sua cabeça. Sendo inválido, esse pensamento o deixou muito nervoso. Compreendeu que ele era o único dos irmãos ainda vivo, e começou a dizer que seria o próximo a partir e que não iria demorar muito... toda essa conversa mórbida, conforme eu mesma disse a ele.

       Saíram da estação e Maude conduziu-o até o carro em ruína, quase uma antiguidade.

       — Desculpe-me por este velho calhambeque. Há anos que queríamos comprar um carro novo, mas não dispúnhamos de recursos. Este aqui já mudou de motor duas vezes. Estes carros antigos podem realmente suportar um bocado de trabalho pesado.

       “Espero que pegue”, acrescentou ela. “Algumas vezes é preciso girar a manivela.”

       Ela tentou dar partida no carro várias vezes, conseguindo apenas um barulho inútil. O Sr. Entwhistle, que nunca manejara um carro na vida, sentiu-se um tanto apreensivo. Maude porém desceu e ela mesma introduziu a manivela e com voltas vigorosas fez o motor pegar. Era uma sorte, pensou o Sr. Entwhistle, que Maude fosse uma mulher de constituição forte.

       — É isso — disse ela —, esta velharia ultimamente tem me pregado peças. Foi o que aconteceu quando eu estava voltando do funeral. Tive que caminhar várias milhas até a oficina mais próxima e eles não eram lá muito bons... apenas uma pequena oficina do interior. Fui obrigada a me alojar em uma hospedaria do local enquanto esperava o conserto do carro. E é lógico que isso também perturbou Timothy. Tive que telefonar para avisá-lo de que só iria chegar no dia seguinte. Abalou-se terrivelmente. Procuro mantê-lo afastado dos problemas, mas há certas coisas que não é possível... o assassinato de Cora, por exemplo. Tive que chamar o Dr. Barton para lhe dar sedativo. Coisas como um assassinato são demais para um homem no estado de saúde de Timothy. Acho que Cora sempre foi uma tola.

       O Sr. Entwhistle digeriu o comentário em silêncio. Ele não havia compreendido bem aquela afirmativa.

       — Creio que não via Cora desde o meu casamento — comentou Maude. — Naquela ocasião eu não quis dizer para Timothy: “Sua irmã mais nova é maluca”, não dessa maneira. Entretanto, era isso que eu pensava. Lá estava ela dizendo as coisas mais incríveis! Eu não sabia se deveria ficar ofendida com o que ela falava ou se deveria rir. Suponho que a verdade é que ela vivia numa espécie de mundo imaginário, cheio de melodramas e idéias fantásticas sobre as outras pessoas. Bem, pobre coitada, ela agora pagou por tudo. Ela não tinha nenhum protegido, tinha?

       — Protegido? O que quer dizer com isso?

       — Estava só pensando. Algum jovem artista vagabundo, músico, ou algo parecido. Alguém que ela pudesse ter deixado entrar naquele dia e que a matou pelo seu dinheiro. Talvez um adolescente. Algumas vezes, eles são tão esquisitos nessa idade, especialmente se são do tipo artista. O que eu quero dizer é que parece muito estranho alguém arrombar a casa e matá-la no meio da tarde. Se alguém quisesse arrombar uma casa, certamente o faria à noite.

       — Então haveria duas mulheres na casa.

       — Oh, sim, a dama de companhia. Mas, francamente, não consigo acreditar que alguém, deliberadamente, esperasse ela sair para entrar e atacar Cora. Para quê? Ninguém poderia achar que ela tivesse dinheiro ou alguma coisa de valor. E deve ter havido ocasiões em que as duas estavam fora e a casa vazia. Isso teria sido muito mais seguro. Parece-me tão estúpido cometer um assassinato, a não ser que seja absolutamente necessário.

       — E a senhora considera o assassinato de Cora desnecessário, é isso?

       — Tudo me parece sem sentido.

       Assassinatos deveriam ter sentido? O Sr. Entwhistle ficou pensando. Academicamente, a resposta era “sim”. Contudo, havia muitos crimes “sem sentido” registrados. Dependia, refletiu o Sr. Entwhistle, da mentalidade do assassino.

       O que ele realmente conhecia a respeito de assassinos e seus processos mentais? Muito pouco. Sua firma nunca lidara com processos criminais. Ele próprio não era nenhum estudioso de Criminologia. Pelo que podia julgar, havia assassinos de toda espécie. Alguns por vaidade excessiva, alguns por cobiça de poder, alguns, como Seddon, haviam sido maus e mesquinhos, outros, como Smith e Rowse, haviam tido uma incrível fascinação por mulheres; alguns, como Armstrong, haviam sido sujeitos agradáveis de se conhecer. Edith Thompson havia vivido num irreal mundo de violência; a enfermeira Waddington matara seus pacientes mais idosos com eficiência e alegria.

       A voz de Maude interrompeu-lhe as meditações.

       — Se ao menos eu pudesse manter os jornais longe do alcance de Timothy! Mas ele insiste em lê-los, e então, é claro, fica perturbado. O senhor entende, não, Sr. Entwhistle, que não há a menor chance de Timothy comparecer ao inquérito? Se for necessário, o Dr. Barton pode providenciar um atestado ou seja lá o que for necessário.

       — Quanto a isso, pode ficar descansada.

       — Graças a Deus!

       Subindo por uma rua maltratada, entraram pelos portões da Stansfield Grange. Aquilo já havia sido uma pequena e bonita propriedade, mas agora tinha uma aparência sombria e descuidada. Suspirando, Maude falou:

       — Fomos obrigados a deixar isso aqui ir à ruína durante a guerra. Os dois jardineiros foram convocados, e atualmente temos apenas um jardineiro velho que não serve para muita coisa. Os salários subiram assustadoramente. Devo dizer que é uma bênção saber que agora poderemos gastar um pouco de dinheiro neste lugar. Nós dois gostamos muito daqui. Francamente, eu estava com medo de que fôssemos obrigados a vender a casa. Não que eu tenha comentado alguma coisa a esse respeito com Timothy. Ele teria ficado profundamente perturbado.

       Pararam diante do pórtico da antiga e bela casa de estilo georgiano que precisava urgentemente de uma mão de tinta.

       — Não temos empregados — lamentou Maude com amargura, enquanto o conduzia para dentro. — Apenas duas diaristas. Até o mês passado tínhamos uma empregada fixa, um pouco corcunda e terrivelmente fanhosa e não muito inteligente, mas que ficava aqui, o que era muito confortável, e também era muito boa cozinheira. O senhor acredita que ela pediu demissão e foi trabalhar na casa de uma idiota que tem seis cachorros pequineses (é uma casa maior do que esta e com muito mais trabalho) porque “gostava muito de cachorrinhos”, conforme ela disse!? Cachorros, essa não! Sempre fazendo a maior sujeira, não tenho dúvida! Realmente essas garotas são doidas! E aqui estamos nós, e se eu tiver que sair durante a tarde Timothy fica sozinho, e se acontecer algo, como poderá ele conseguir ajuda? Embora eu sempre deixe o telefone perto de sua cadeira para o caso de ele se sentir fraco e poder ligar imediatamente para o Dr. Barton.

       Maude o introduziu na sala de visitas, onde havia uma mesa de chá preparada junto à lareira. Acomodando o Sr. Entwhistle, ela desapareceu, provavelmente para a parte dos fundos da casa. Em poucos minutos, retornou carregando um bule e uma chaleira de prata e começou a servir o Sr. Entwhistle. O chá estava bom e vinha acompanhado de bolo caseiro e doce de passas. O Sr. Entwhistle murmurou:

       — E quanto a Timothy?

       Maude explicou vivamente que antes de ir à estação levara uma bandeja para Timothy.

       — E agora — continuou Maude —, ele já terá dormido sua sesta e será a melhor hora para o senhor ir vê-lo. Por favor, tente fazer com que ele não se excite demais.

       O Sr. Entwhistle garantiu-lhe que tomaria todas as precauções para que isso não acontecesse.

       Observando-a à luz da flamejante lareira, ele foi tomado por um sentimento de compaixão. Aquela mulher grande, decidida, saudável, forte e cheia de bom senso era estranhamente vulnerável num determinado ponto. Seu amor pelo marido era um amor maternal. Maude Abernethie não tivera filhos e era uma mulher feita para a maternidade. O marido inválido havia se transformado em seu filho, a ser protegido, guardado e cuidado. E talvez, por ter a personalidade mais forte dos dois, ela lhe havia, inconscientemente, imposto um estado de invalidez muito maior do que o real. “Pobre Sra. Tim”, pensou o Sr. Entwhistle.

      

       — Obrigado por ter vindo, Entwhistle.

       Timothy ergueu-se da cadeira ao estender a mão. Era um homem grande e com acentuada semelhança com seu irmão Richard. Contudo, o que era força em Richard em Timothy era fraqueza. Sua boca era irresoluta, o queixo, ligeiramente recuado, os olhos, menos fundos. Sinais de teimosia e irritação podiam ser vistos em sua testa.

       Sua condição de inválido era enfatizada pelo cobertor cobrindo os joelhos e um enorme estoque de remédios em pequenos vidros e caixas, numa mesa à sua direita.

       — Não devo me esforçar muito — preveniu ele. — O médico proibiu. Fica me dizendo para eu não me preocupar. Preocupar!  Se ele tivesse um assassinato em sua família, aposto como também teria sua dose de preocupação! É demais para um homem: primeiro a morte de Richard... depois ouvindo tudo sobre seu funeral e testamento... e que testamento! E para culminar a pobre Cora sendo assassinada com uma machadinha! Uma machadinha! Ugh! Hoje em dia, este país está cheio de criminosos... assassinos... sobras da guerra! Soltos por aí matando mulheres indefesas. Ninguém tem coragem de acabar com essas coisas, ninguém tem pulso firme. Gostaria de saber o que vai ser deste país. O que será deste maldito país?

       O Sr. Entwhistle já estava acostumado com estes comentários. Era uma pergunta feita quase que invariavelmente, mais cedo ou mais tarde, pelos seus clientes nos últimos vinte anos. E ele já tinha sua própria rotina em responder. As palavras não comprometedoras que ele usava podiam ser comparadas a meros ruídos.

       — Tudo começou com aquele maldito governo trabalhista — prosseguiu Timothy. — Mandando todo o país para o inferno. E o governo que temos agora não é nem um pouco melhor!  Um bando de socialistas hipócritas! Olhe a que ponto chegamos! Não podemos nem arranjar um jardineiro decente nem empregadas. A pobre Maude tem que se matar de tanto trabalhar cuidando de tudo na cozinha (por falar nisso, acho que um pudim de leite iria bem com o linguado hoje à noite, minha querida, e talvez uma sopa leve como entrada). Tenho que me alimentar bem, foi o que disse o Dr Barton... onde eu estava mesmo? Oh, sim, Cora. Posso lhe garantir que é um choque para a pessoa saber que sua irmã... sua própria irmã... foi assassinada! Olhe, tive palpitações durante vinte minutos. Você terá que cuidar de tudo em meu lugar, Entwhistle. Não posso comparecer ao inquérito nem ser incomodado com nada relacionado ao testamento de Cora. Quero esquecer de tudo o que se passou. A propósito, o que acontece com a parte do dinheiro que Cora herdou de Richard? Vem para mim, suponho?

       Murmurando algo sobre a necessidade de levar a bandeja de chá, Maude se retirou.

       Timothy recostou-se em sua cadeira e comentou:

       — É uma boa coisa nos livrarmos das mulheres. Agora poderemos conversar sobre negócios sem interrupções tolas.

       — A quantia deixada em usufruto para Cora será igualmente dividida entre vocês, as sobrinhas e o sobrinho.

       — Mas olhe aqui — o rosto de Timothy estava vermelho de indignação. — Certamente sou seu parente mais próximo. Seu único irmão vivo.

       O Sr. Entwhistle, com algum cuidado, explicou com exatidão as cláusulas do testamento de Richard Abernethie, lembrando gentilmente a Timothy que havia lhe enviado uma cópia.

       — Não espera que eu entenda todo aquele palavreado, espera? Vocês, advogados! Para dizer a verdade, não consegui acreditar quando Maude chegou me contando a parte principal do testamento. Pensei que ela tivesse entendido errado. Maude é a melhor mulher do mundo, mas as mulheres não entendem de finanças. Acho mesmo que Maude não compreende que, se Richard não tivesse morrido agora, teríamos sido obrigados a nos mudar daqui. Verdade!

       — Certamente, se você tivesse recorrido a Richard...

       Timothy soltou um riso curto e áspero.

       — Esta não é a minha maneira de agir. Nosso pai nos deixou uma quantia razoável... isto é, se não quiséssemos entrar para os negócios da família. Eu não quis. Meu espírito está acima desse tipo de negócio, Entwhistle. Richard recebeu mal minha atitude. Bem, com os impostos, com a desvalorização da moeda, uma coisa e outra... não tem sido nada fácil equilibrar as finanças. Tive que fazer uso de grande Parte do meu capital. Certa vez insinuei a Richard que estava difícil manter este lugar. Reagiu dizendo que estaríamos muito melhor em um lugar menor. “Seria mais fácil para Maude”, disse ele, “maior economia de mão-de-obra!” Mão-de-obra! Que expressão! Oh, não, eu jamais pediria ajuda a Richard. Mas posso lhe garantir uma coisa, Entwhistle, a preocupação afetou minha saúde. Um homem em meu estado não deve ter preocupações. Então, quando Richard morreu, apesar de eu ter ficado triste... ele era meu irmão... não pude deixar de sentir alívio em relação ao meu futuro. Sim, agora não existem mais dificuldades, e sinto um grande alívio. Vou mandar pintar a casa, contratarei dois jardineiros realmente bons e mandarei refazer o jardim de rosas. E... o que eu estava mesmo dizendo?

       — Detalhando planos futuros.

       — Sim, sim, mas não devo aborrecê-lo com tudo isso. O que me magoou, e magoou profundamente, foram as cláusulas do testamento de Richard.

       — Realmente? — O Sr. Entwhistle parecia interessado. — Não eram o que você esperava?

       — Devo dizer que não. Naturalmente, depois da morte de Mortimer presumi que Richard fosse deixar tudo para mim.

       — Ah... ele alguma vez lhe disse isso?

       — Ele nunca afirmou nada, não com todas as palavras. Richard era o tipo do sujeito reservado. Mas pouco depois da morte de Mortimer ele veio até aqui. Queria conversar sobre a nossa família em geral. Falamos sobre o jovem George, as garotas e seus maridos. Ele desejava conhecer o meu ponto de vista. Não pude lhe dizer muita coisa. Sou um inválido e não circulo por aí. Maude e eu vivemos fora deste mundo. Mas, se quer a minha opinião, foram dois tolos e detestáveis casamentos os dessas duas garotas. Bem, Entwhistle, eu naturalmente pensei que ele estivesse me consultando como o futuro cabeça da família, e, assim sendo, pensei que o controle do dinheiro iria ser meu. Richard certamente poderia ter confiado em mim para cuidar da nova geração e de Cora. Que diabo, Entwhistle, sou um Abernethie... o último Abernethie. O controle de tudo deveria ter sido deixado em minhas mãos.

       Em sua excitação, Timothy havia empurrado o cobertor e sentara-se ereto na cadeira. Não havia nele qualquer sinal de fraqueza ou fragilidade. Parecia, o Sr. Entwhistle pensou, um homem perfeitamente saudável, apenas um pouco agitado. O velho advogado percebeu claramente que Timothy Abernethie provavelmente sempre sentira ciúmes secretos de seu irmão Richard. Haviam sido suficientemente parecidos para que Timothy se ressentisse da força de caráter e pulso firme de seu irmão para os negócios. Quando Richard morrera, Timothy exultara diante da perspectiva de ser, a essa altura da vida, seu sucessor no poder de controlar o destino dos outros.

       Richard Abernethie não lhe dera esse poder. Será que ele pensara em fazê-lo e em seguida decidira o contrário?

       Um repentino berreiro de gatos no jardim fez com que Timothy se levantasse da cadeira. Indo apressado até a janela, levantou a vidraça, gritando: — Parem com isso! — e apanhando um livro atirou-o com violência.

       — Gatos nojentos — resmungou ele, voltando-se para o visitante. — Estragam os canteiros e não suporto essa maldita gritaria.

       Sentou-se novamente e perguntou:

       — Aceita uma bebida, Entwhistle?

       — Agora não. Maude acabou de me servir um excelente chá.

       Timothy resmungou:

       — Maude é uma mulher muito eficiente. Mas ela exagera. Lida até com o motor do nosso velho carro. Sabe, ela até que é uma boa mecânica.

       — Soube que o carro enguiçou quando ela estava voltando do funeral.

       — Sim, deu pane no motor. Ela teve o bom senso de telefonar, pois eu poderia ficar ansioso. Entretanto, aquela idiota da empregada anotou o recado de uma forma que não tinha nenhum sentido. Eu havia saído para tomar um pouco de ar fresco. O médico aconselhou-me a fazer exercício sempre que eu tiver disposição. Ao voltar do passeio, encontrei rabiscado num pedaço de papel: “A senhora sente muito, mas o carro quebrou e ela não vai voltar esta noite”. Naturalmente eu pensei que ela ainda estivesse em Enderby. Telefonei para lá e soube que Maude partira pela manhã. Poderia ter enguiçado em qualquer lugar! Uma confusão daquelas. A idiota da empregada deixou apenas um macarrão pegajoso para o jantar. Tive que descer até a cozinha e eu mesmo esquentei a comida... e também preparei o chá, sem falar que tive de cuidar do fogo. Poderia ter tido um ataque do coração... porém, esse tipo de mulher lá está se importando com isso? Se tivesse algum sentimento digno, teria voltado naquela noite e cuidado de mim adequadamente. Não existe mais lealdade na classe baixa...

       Suspirou tristemente.

       — Não sei até que ponto Maude lhe contou sobre o funeral e sobre seus parentes — falou o Sr. Entwhistle. — Cora criou um momento bastante constrangedor. Disse claramente que Richard havia sido assassinado. Talvez Maude tenha lhe falado.

       Timothy riu calmamente.

       — Oh, sim, ela me contou. Todos baixaram os olhos e fingiram estar chocados. É bem típico de Cora. Você sabe como ela sempre conseguia meter os pés pelas mãos quando menina, não sabe? Lembro-me de que no dia do meu casamento ela disse algo que perturbou Maude. Maude nunca gostou dela. Sim, Maude telefonou-me na tarde depois do funeral para saber se eu estava bem e se a Sra. Jones viera para me servir a refeição da tarde. Em seguida, contou-me que tudo correra muito bem e perguntei sobre o testamento. Ela tentou desviar o assunto, evitando uma resposta direta, mas é claro que consegui arrancar a verdade. Não pude acreditar e disse que ela deveria estar enganada, mas ela confirmou o que dissera. Aquilo me magoou, Entwhistle. Realmente, me feriu, se é que entende o que quero dizer. Se quer saber a minha opinião, foi simplesmente maldade da parte de Richard. Sei que não se deve falar mal dos mortos, mas dou-lhe minha palavra de honra que...

       Timothy continuou nesse assunto por algum tempo.

       Então Maude entrou no quarto e falou com firmeza:

       — Eu acho, querido, que o Sr. Entwhistle já ficou bastante tempo com você. Você agora precisa descansar. Se já resolveram tudo...

       — Oh, já decidimos o que era preciso. Você, Entwhistle, fica encarregado de tudo. Avise-me quando agarrarem o culpado... se é que vão conseguir fazê-lo algum dia. Não tenho nenhuma confiança na polícia de hoje em dia... os chefes de polícia não são do tipo certo. Você cuidará do... ahn... enterro... não é? Receio que não possamos ir. Encomende uma coroa de flores, e é preciso providenciar uma lápide apropriada. Suponho que ela será enterrada lá mesmo. Não vejo sentido em trazê-la para o norte e não tenho a menor idéia de onde Lansquenet está enterrado. Creio que deve ser em algum lugar da França. Não sei o que se coloca na lápide de uma pessoa que é assassinada. Não se pode dizer “descansa em paz” ou algo assim. É preciso escolher um texto adequado. RIP? Não, isso é apenas para os católicos.

       — “Oh, Deus, vós conheceis meus erros. Julgai-me” — murmurou o Sr. Entwhistle.

       O olhar de espanto que Timothy lhe lançou fez com que o Sr. Entwhistle sorrisse sem graça.

       — É das Lamentações — comentou ele. — Parece-me apropriado, apesar de um tanto melodramático. Contudo, ainda levará algum tempo antes que precisemos tratar desse assunto. Agora não se preocupe com nada. Providenciaremos o que for necessário e o manteremos a par dos acontecimentos.

       O Sr. Entwhistle partiu para Londres de trem na manhã seguinte.

       Ao chegar a casa, depois de pequena hesitação, telefonou para um amigo.

 

Capítulo VII

       — Não sei como lhe dizer o quanto apreciei seu convite.

       O Sr. Entwhistle apertou afetuosamente a mão de seu anfitrião.

       Hercule Poirot, num gesto de hospitalidade, indicou-lhe a cadeira perto da lareira.

       O Sr. Entwhistle suspirou ao sentar-se.

       Num dos cantos da sala havia uma mesa posta para dois.

       — Retornei do campo esta manhã — explicou Entwhistle.

       —E tem um assunto sobre o qual quer me consultar?

       — Sim. Receio que seja uma história longa e desconexa.

       — Então só falaremos sobre o assunto após termos jantado. Georges?

       O eficiente Georges apareceu trazendo pâté de foie gras acompanhado de torradas quentes num guardanapo.

       — Comeremos nosso pâté perto da lareira — disse Poirot. — Depois iremos para a mesa.

       Uma hora e meia depois, o Sr. Entwhistle esticou-se confortavelmente na cadeira e soltou um suspiro de satisfação.

       — Você certamente sabe como se tratar, Poirot. É bem próprio de um francês.

       — Sou belga. Porém o resto do seu comentário está correto. Na minha idade, o prazer principal, quase o único prazer que ainda resta, é o da mesa. Graças a Deus, tenho um bom estômago.

       — Ah — murmurou o Sr. Entwhistle.

       O jantar havia sido sole Veronique, seguido de escalope de veau milanaise, terminando com poire flambée com sorvete.

       Haviam bebido pouilly-fuissé seguido de corton, e agora havia um delicioso vinho do Porto ao lado do Sr. Entwhistle. Poirot, que não apreciava vinho do Porto, saboreava crème de cacao.

       — Eu não entendo — observou o Sr. Entwhistle, pensativo — como você consegue um escalope como este. Derreteu-se em minha boca.

       — Tenho um amigo estrangeiro dono de açougue. Resolvi um pequeno problema doméstico para ele. Ficou muito grato por isso e desde então vem sendo muito gentil comigo em assuntos ligados ao estômago.

       — Um problema doméstico — o Sr. Entwhistle suspirou. — Gostaria que não tivesse me lembrado. Este é um momento tão perfeito!

       — Prolongue-o, meu amigo. Agora teremos a demi tasse e o conhaque. Depois então, quando a digestão tiver sido feita tranqüilamente, você me dirá por que precisa do meu conselho.

       O relógio bateu nove e meia, quando o Sr. Entwhistle se moveu na cadeira. O momento psicológico chegara. Não sentiu mais relutância em revelar sua perplexidade... estava ansioso por fazê-lo.

       — Não sei — começou ele — se estou bancando o tolo. De qualquer modo, não vejo nada que possa ser feito. Contudo, gostaria de lhe apresentar os fatos e saber o que pensa a respeito.

       Calou-se por alguns momentos e depois, com seu jeito frio e meticuloso, relatou a história. Seu cérebro de jurista possibilitou-lhe contar os fatos com clareza, sem deixar nada de lado e não acrescentando detalhes sem importância. Foi um relatório claro e sucinto, e, assim sendo, apreciado pelo pequeno homem idoso, de cabeça em forma de ovo, que estava ali escutando.

       Ao terminar, houve uma pausa. O Sr. Entwhistle estava preparado para responder a perguntas, porém, por alguns momentos, não houve nenhuma. Hercule Poirot estava revendo as evidências. Por fim falou:

       — Parece-me bastante claro. Você suspeita que seu amigo Richard Abernethie possa ter sido assassinado. Esta suspeita ou suposição está baseada em um único fato: as palavras proferidas por Cora Lansquenet no funeral de Richard Abernethie. Tire estas palavras e não resta nada. O fato de ela própria ter sido assassinada no dia seguinte pode não passar de pura coincidência. É verdade que Richard Abernethie morreu repentinamente, mas estava sendo cuidado por um médico conceituado, que o conhecia muito bem, e esse médico não teve a menor suspeita e passou-lhe um atestado de óbito. Richard foi enterrado ou cremado?

       — Cremado... de acordo com seu próprio desejo.

       — Sim, esta é a lei. E isso significa que um segundo médico assinou o atestado, mas quanto a isso não haveria a menor dificuldade. Então, retornamos ao ponto essencial: o que Cora Lansquenet disse. Você estava lá e ouviu. Ela disse: “Mas ele foi assassinado, não foi?”

       — Sim.

       — E o fato é que você acredita que ela estivesse falando a verdade.

       O advogado hesitou por um instante e em seguida afirmou:

       — Sim, acredito.

       — Por quê?

       — Por quê? — repetiu Entwhistle, um tanto confuso.

       — É isso, por quê? Foi porque no fundo você já sentia uma certa inquietação em relação à morte de seu amigo?

       O advogado balançou a cabeça.

       — Não, não, nem um pouco,

       — Então foi única e exclusivamente por causa dela... de Cora. Você a conhecia bem?

       — Não a via há mais de vinte anos.

       — Tê-la-ia reconhecido se a encontrasse na rua?

       O Sr. Entwhistle refletiu.

       — Poderia passar por ela na rua sem reconhecê-la. Na última vez em que a vi era uma moça magricela e agora havia se transformado em uma mulher de meia-idade corpulenta e mal-arrumada. Mas acredito que no momento em que falasse com ela cara a cara eu a reconheceria. Continuava usando o cabelo do mesmo modo: uma franja caída em cima da testa. Manteve o hábito de observar atentamente por trás da franja, como um animal um tanto tímido. E sua maneira muito característica de falar abruptamente. O jeito de virar a cabeça para um lado e de repente falar alguma coisa bastante chocante. Sempre teve personalidade, uma personalidade altamente marcante.

       — Então era de fato a mesma Cora que você conhecera anos atrás. E continuava a dizer coisas chocantes. Essas coisas, essas coisas afrontosas que ela havia dito no passado, normalmente eram justificadas?

       — Isso é que sempre foi estranho a respeito de Cora. Quando seria melhor que a verdade não fosse revelada, ela falava.

       — E essa característica permaneceu inalterável. Richard Abernethie foi assassinado... então Cora imediatamente mencionou o fato.

       O Sr. Entwhistle ficou agitado.

       — Você acha que ele foi assassinado?

       — Oh, não, não, meu amigo, não podemos ir tão depressa. Ela estava bastante certa de que ele fora assassinado. Para ela era mais uma certeza do que suposição. E aí chegamos à conclusão de que ela deveria ter tido alguma razão para acreditar nisso. Concordamos, pelo que você conheceu a seu respeito, em que não foi apenas uma brincadeira. Agora, responda-me: quando ela falou isso houve na mesma hora um coro de protestos, não é isso?

       — Certo.

       — E então ela ficou confusa, embaraçada, e recuou dizendo, pelo que você consegue se lembrar, algo como: “Mas eu pensei... pelo que ele disse...”

       O advogado concordou com a cabeça.

       — Gostaria de me lembrar mais precisamente. Mas estou bastante certo quanto a essa parte. Ela usou as palavras “ele disse” ou “ele falou”.

       — Em seguida, o assunto foi encoberto e todos começaram a falar de outras coisas. Revendo o fato, você não consegue se lembrar de nenhuma expressão especial no rosto de alguém? Alguma coisa que ficou guardada em sua memória como... digamos... estranha?

       — Não.

       — E no dia seguinte Cora é assassinada... e você se pergunta: será isso causa e conseqüência?

       O advogado mexeu-se, inquieto.

       — Suponho que isso tudo lhe pareça fantástico demais.

       — Nem um pouco — respondeu Poirot. — Partindo da premissa de que a hipótese inicial seja correta, existe lógica. O crime perfeito, o assassinato de Richard Abernethie, foi cometido, tudo acontecendo sem problemas... e de repente surge uma pessoa que parece ter conhecimento da verdade. Evidentemente essa pessoa precisa ser silenciada o mais depressa possível.

       — Então acha que ele foi assassinado?

       Poirot falou gravemente:

       — Penso, mon cher, exatamente como você, que é um caso para investigação. Já tomou alguma providência? Falou sobre isso com a polícia?

       — Não — disse o Sr. Entwhistle balançando a cabeça. — Não achei aconselhável. Minha posição é a de representante da família. Se Richard Abernethie foi assassinado, parece existir apenas uma maneira possível de isso ter sido feito.

       — Veneno?

       — Exatamente. E o corpo foi cremado. Não existe agora nenhuma prova à nossa disposição. Entretanto, sinto necessidade de esclarecer esse assunto. É por isso que vim procurá-lo, Poirot.

       — Quem estava na casa na hora em que ele morreu?

       — Um velho mordomo que trabalha lá há muitos anos, uma cozinheira e uma arrumadeira. Talvez dê a impressão de que tenha sido algum deles...

       — Ah, não tente me ludibriar. Essa tal de Cora sabe que Richard Abernethie foi assassinado, e mesmo assim concorda em se calar. Ela disse: “Acho que vocês têm razão”. Por conseguinte, só pode se tratar de alguém da família, alguém que talvez a própria vítima preferisse não fosse acusada abertamente. Se não fosse assim, já que Cora gostava tanto de seu irmão ela não aceitaria deixar o assassino andar solto por aí. Não concorda?

       — Sim, era a essa conclusão que eu havia chegado confessou o Sr. Entwhistle. — Mas como é que alguém poderia ser capaz...

       Poirot interrompeu-o abruptamente.

       — No que diz respeito a veneno, existem todos os tipos de possibilidades. Se ele morreu durante o sono e se não havia nenhum sinal suspeito, provavelmente foi algum tipo de narcótico. É possível que por ordem médica ele estivesse tomando algum narcótico.

       — De qualquer maneira — observou o Sr. Entwhistle —, a forma pouco importa. Nunca poderemos provar nada.

       — No caso de Richard Abernethie, não. Entretanto, o assassinato de Cora Lansquenet é diferente. No momento em que soubermos quem, então provavelmente arranjaremos provas. — Acrescentou com um olhar penetrante: — Você já deve ter feito alguma coisa.

       — Muito pouco. Acho que meu método principal foi o da eliminação. Para mim é muito desagradável pensar que alguém da família Abernethie seja um assassino. Ainda não consigo acreditar. Esperava que, com algumas perguntas aparentemente sem importância, eu pudesse eliminar alguns membros da família sem ficar nenhuma dúvida. Quem sabe, até todos eles? Nesse caso, Cora teria se enganado em sua suposição e sua própria morte poderia ser atribuída a algum ladrão que invadiu sua casa. Afinal de contas, a questão é muito simples. O que estavam fazendo os membros da família Abernethie na tarde em que Cora Lansquenet foi morta?

       — Eh bien — disse Poirot —, o que estavam fazendo?

       — George Crossfield estava assistindo às corridas em Hurst Park. Rosamund estava em Londres fazendo compras. Seu marido... pois devemos incluir os maridos...

       — Certamente.

       — ... seu marido estava resolvendo um negócio a respeito de uma peça teatral. Susan e Gregory Banks ficaram em casa o dia todo. Timothy Abernethie, que é um inválido, estava em sua casa em Yorkshire, e sua esposa estava voltando de Enderby de carro.

       Fez uma pausa.

       Hercule Poirot olhou para ele e balançou a cabeça em sinal de que havia compreendido.

       — Sim, é isso o que eles dizem. E é tudo verdade?

       — Simplesmente não sei, Poirot. Algumas declarações são ou não possíveis de serem provadas. Contudo, seria difícil fazê-lo sem que percebessem as minhas intenções. Aliás, isso equivaleria a uma acusação. Vou apenas lhe contar a respeito de algumas conclusões a que cheguei. George pode ter estado em Hurst Park, mas eu não acredito. Ele estava muito apressado para alardear que havia jogado em dois vencedores. Sei por experiência própria que muitos transgressores da lei arruínam seu próprio caso por falarem demais. Perguntei-lhe os nomes dos vencedores, e ele disse os nomes dos cavalos sem nenhuma hesitação aparente. Descobri que no dia em questão ambos os cavalos haviam recebido muitas apostas, e que realmente um vencera, conforme era esperado. O outro, apesar de ser favorito, inexplicavelmente falhara até mesmo em conseguir uma colocação.

       — Interessante. Esse tal de George tinha alguma necessidade urgente de dinheiro por ocasião da morte do tio?

       — A minha impressão é de que sua necessidade era muito grande. Não tenho provas para afirmar, mas tenho forte suspeita de que ele tenha andado especulando com o dinheiro de seus clientes e que corria o perigo de ser processado. Trata-se apenas de uma impressão, mas tenho alguma experiência nesses assuntos. Lamento dizer que advogados inescrupulosos não são muito raros. Posso lhe garantir que eu não entregaria meu dinheiro a George. Suspeito que Richard Abernethie, um perspicaz avaliador dos homens, estava insatisfeito com o sobrinho e não lhe depositava nenhuma confiança.

       “Sua mãe”, continuou o advogado, “era uma moça muito bonita e um tanto tola. Casou-se com um homem que considero de caráter duvidoso.” Ele suspirou. “As jovens Abernethie não sabem fazer boas escolhas.”

       Fez uma pausa e em seguida prosseguiu:

       — Quanto a Rosamund, é uma linda cabecinha de vento. Realmente não consigo imaginá-la com uma machadinha. Seu marido, Michael Shane, é um tanto enigmático. É um homem ambicioso e diria que também extremamente vaidoso. Porém, na verdade, sei muito pouco a seu respeito. Não tenho nenhum motivo para suspeitar que seja capaz de um crime brutal ou de um envenenamento planejado, mas até eu saber se ele realmente estava fazendo o que diz que estava não posso excluí-lo.

       — Entretanto, você não tem nenhuma dúvida a respeito de sua mulher?                                

       — Não, não, há uma certa insensibilidade alarmante... mas não, não consigo imaginá-la com a machadinha. É uma criatura de aparência frágil.

       — E linda! — acrescentou Poirot com um sorriso levemente irônico. — E quanto à outra sobrinha?

       — Susan? Ela é um tipo de mulher bem diferente de Rosamund. Uma moça de notável habilidade, eu diria. Ela e o marido estavam juntos em casa naquele dia. Eu disse (falsamente) que na tarde em questão tentara falar com eles pelo telefone. Greg rapidamente respondeu que o telefone estivera quebrado o dia inteiro. Que ele tentara ligar para alguém e não conseguira.

       — Então mais uma vez não é conclusivo... Você não pode eliminá-la como gostaria de fazer. Como é o marido?

       — Acho difícil decifrá-lo. Possui uma personalidade de alguma forma desagradável, embora não consiga explicar por que me causa essa impressão. Quanto a Susan...

       — Sim?

       — Susan me lembra o tio. Tem o vigor, a força, a capacidade mental de Richard Abernethie. Pode ser imaginação minha, mas sinto que faltam nela a bondade e o calor humano de meu velho amigo.

       — As mulheres nunca são boas — observou Poirot. — Apesar de que algumas vezes possam ser ternas. Ela ama o marido?

       — Apaixonadamente, eu diria. Mas realmente, Poirot, não posso acreditar... não vou acreditar, por um momento sequer, que Susan...

       — Você prefere George? É natural! Quanto a mim, não sou tão sentimental em relação a jovens bonitas. Agora, conte-me sobre sua visita à velha geração.

       O Sr. Entwhistle descreveu detalhadamente a visita a Timothy e Maude. Poirot resumiu o resultado.

       — Então a Sra. Abernethie é uma boa mecânica. Conhece tudo a respeito de motores de automóvel. E o Sr. Abernethie não é o inválido que ele gosta de pensar que é. Sai para passear a pé e é, de acordo com sua opinião, capaz de ações vigorosas. É também um pouco egomaníaco e se ressente do sucesso do irmão e de seu caráter superior.

       — Ele falou de Cora de maneira muito afetuosa.

       — E ridicularizou o tolo comentário que ela fez depois do funeral. E quanto ao sexto beneficiário?

       — Helen? A Sra. Leo? Não suspeito dela nem por um segundo. Mesmo assim sua inocência é fácil de ser provada. Estava em Enderby, com três empregados na casa.

       — Eh bien, meu amigo — exclamou Poirot. — Vamos ser práticos: o que quer que eu faça?

       — Quero saber a verdade, Poirot.

       — Sim. Eu sentiria o mesmo em seu lugar.

       — E você é o homem ideal para descobri-la. Sei que você não aceita mais casos. Entretanto, peço que aceite este. É uma questão de chegarmos a um acordo. Ficarei responsável pelos seus honorários. Vamos, dinheiro sempre é útil!

       Poirot sorriu ironicamente.

       — Não, quando vai tudo embora nos impostos. Mas devo admitir que seu problema me interessa. Porque não é fácil. É tudo tão nebuloso...  Há uma coisa, meu amigo, que é melhor que seja feita por você. Depois, me ocuparei do caso. Acho que você deve procurar o médico que tratou de Richard Abernethie. Você o conhece?

       — Ligeiramente.

       — Que tal é ele?

       — É um senhor de idade, bastante competente. Dava-se muito bem com Richard. Um ótimo sujeito.

       — Então procure-o. Ele falará mais abertamente com você do que comigo. Pergunte-lhe sobre a doença do Sr. Abernethie. Descubra quais os remédios que o Sr. Abernethie estava tomando antes e na ocasião de sua morte. Veja se alguma vez Richard Abernethie comentou algo com ele a respeito de suspeitar que estava sendo envenenado. A propósito, essa tal de Srta. Gilchrist tem certeza de que ele usou o termo “envenenar” na conversa com a irmã?

       O Sr. Entwhistle refletiu.

       — Foi a palavra que ela usou... mas ela é o tipo de testemunha que freqüentemente muda as palavras porque está convencida de que está mantendo o sentido. Se Richard disse que estava com medo que alguém quisesse matá-lo, a Srta. Gilchrist pode ter se lembrado de veneno porque ela ligava os temores dele com os de uma tia que pensava que estavam misturando veneno em sua comida. Posso tocar novamente no assunto com ela uma outra hora.

       — Sim. Ou eu mesmo o farei. — Calou-se e em seguida, com a voz alterada, disse: — Não lhe ocorreu, meu amigo, que a Srta. Gilchrist também possa estar correndo perigo?

       O Sr. Entwhistle pareceu surpreso.

       — Não, não posso dizer que isso tenha me ocorrido.

       — Mas sim. No dia do funeral Cora declarou suspeitas. A dúvida na mente do assassino seria se Cora teria comentado a esse respeito com mais alguém ao tomar conhecimento da morte de Richard. E a pessoa mais provável seria a Srta. Gilchrist. Acho, mon cher, que ela não deveria permanecer sozinha naquele chalé.

       — Creio que Susan vai até lá.

       — Ah, então a Sra. Banks vai até lá?

       — Ela quer dar uma olhada nos pertences de Cora.

       — Entendo, entendo. Bem, meu amigo, faça o que lhe pedi. Pode preparar a Sra. Abernethie — a Sra. Leo Abernethie — para a possibilidade de eu aparecer por lá. Vamos ver. De agora em diante, eu mesmo vou me ocupar de tudo.

       Poirot torceu o bigode com energia.

 

Capítulo VIII

       O Sr. Entwhistle olhou pensativo para o Dr. Larraby.

       Ele possuía larga experiência em avaliar as pessoas. Em várias ocasiões fora obrigado a manejar uma situação difícil ou um assunto delicado. A essa altura, o Sr. Entwhistle já era perito na arte de saber exatamente como fazer a aproximação correta. Como seria o melhor modo de abordar o Dr. Larraby no que era certamente um assunto muito difícil e com o qual o médico poderia ficar ressentido no que dizia respeito à sua própria habilidade profissional?

       Franqueza, pensou o Sr. Entwhistle, ou pelo menos uma franqueza moderada. Seria imprudente dizer que a suspeita surgira por causa de um comentário ocasional proferido por uma mulher tola. O Dr. Larraby não conhecera Cora.

       O Sr. Entwhistle limpou a garganta e precipitou-se a falar corajosamente.

       — Desejo consultá-lo a respeito de um assunto muito delicado — começou ele. — O senhor poderá se ofender, mas sinceramente espero que isso não aconteça. O senhor é um homem sensato e compreenderá, tenho certeza, que uma... ahn... a melhor maneira de se lidar com uma insinuação absurda é descobrir uma resposta razoável em vez de deixá-la de lado. Diz respeito ao meu cliente, o falecido Sr. Abernethie. Farei a minha pergunta claramente. O senhor tem certeza, certeza absoluta, de que ele morreu de morte natural?

       O rosto de meia-idade, vermelho e bem-humorado, olhou assombrado para seu inquisidor.

       — Que idéia... É claro que sim! Passei um atestado de óbito, não passei? Se eu não tivesse ficado satisfeito...

       O Sr. Entwhistle interrompeu-o habilmente:

       — Naturalmente, naturalmente. Asseguro-lhe que não estou pensando nada em contrário. Contudo, ficaria satisfeito em ter sua confirmação... em face de... ahn... boatos que estão sendo espalhados por aí.

       — Boatos? Que boatos?

       — Ninguém sabe ao certo como essas coisas começam — comentou o Sr. Entwhistle mentirosamente. — Mas a minha opinião é que eles deveriam parar e, se possível, oficialmente.

       — Abernethie era um homem doente. Sofria de doença que seria fatal em, digamos, no máximo dois anos. Poderia acontecer muito mais cedo. A morte de seu filho enfraquecera sua vontade de viver e sua resistência. Admito que não esperava que morresse tão cedo e não tão repentinamente, mas existem precedentes. Qualquer médico que prognosticar a data exata em que seu paciente vai morrer ou quanto tempo ele irá viver está sujeito a fazer papel de tolo. O fator humano é sempre imprevisível. Muitas vezes o fraco tem forças inesperadas de resistência, e algumas vezes os fortes sucumbem.

       — Compreendo tudo isso. Não estou duvidando de seu diagnóstico. O Sr. Abernethie estava, digamos, de uma forma um tanto melodramática, receio, sob sentença de morte. Estou apenas lhe perguntando se é possível que um homem sabendo ou suspeitando de que está condenado poderia, por vontade própria, encurtar esse período de vida. Ou se uma outra pessoa poderia fazê-lo.

       O Dr. Larraby franziu as sobrancelhas.

       — Quer dizer suicídio? Abernethie não era do tipo suicida.

       — Entendo. O senhor pode me garantir, falando do ponto de vista médico, que tal sugestão é impossível?

       O médico mexeu-se, inquieto.

       — Eu não usaria impossível. Depois da morte do filho, a vida de Abernethie deixou de ter o interesse que tivera anteriormente. Na verdade, não acredito na probabilidade de suicídio, mas não posso afirmar que seja impossível.

       — O senhor está analisando pelo aspecto psicológico. Quando me refiro ao ponto de vista médico, quero, na verdade, dizer: as circunstâncias de sua morte tornam tal sugestão impossível?

       — Não, oh, não. Não posso afirmar isso. Ele morreu dormindo, o que acontece com muitas pessoas. Não há motivo para se suspeitar de suicídio, nenhuma evidência de seu estado mental. Se fossem pedir uma autópsia toda vez que um homem seriamente doente morresse durante o sono...

       O rosto do médico estava ficando cada vez mais vermelho. O Sr. Entwhistle apressou-se em intervir.

       — É claro, é claro. Mas se tivessem existido evidências...   evidências de que o senhor mesmo não estivesse ciente? Se, por exemplo, ele tivesse dito algo a alguém...

       — Indicando que estivesse pensando em suicídio? Ele fez tal coisa? Devo dizer que isso me surpreende.

       — Mas se assim fosse, meu caso é puramente hipotético, o senhor poderia eliminar a possibilidade?

       O Dr. Larraby falou vagarosamente:

       — Não, eu não poderia fazer isso. Torno, porém, a repetir que ficaria muito surpreso.

       O Sr. Entwhistle apressou-se em manter sua vantagem.

       — Se então admitirmos que sua morte não foi natural — tudo isto é puramente hipotético —, o que poderia tê-la causado? Quero dizer, que tipo de droga?

       — Várias. Algum tipo de narcótico. Não havia nenhum sinal de cianose. Sua aparência era tranqüila.

       — Ele tomava pílulas para dormir ou alguma coisa desse tipo?

       — Sim, eu havia receitado Slumberyl, um sonífero seguro. Ele não tomava todas as noites. E só tinha um pequeno vidro de comprimidos de cada vez. Três ou até quatro vezes a dose receitada não causariam a morte. Na verdade, após sua morte lembro-me de ter visto na prateleira um vidro praticamente cheio.

       — O que mais o senhor lhe havia receitado?

       — Várias coisas... um remédio contendo pequena quantidade de morfina para ser tomado quando tivesse uma crise de dor; algumas cápsulas de vitaminas; um preparado para a digestão.

       O Sr. Entwhistle interrompeu-o.

       — Cápsulas de vitaminas? Acho que, certa vez, receitaram-me um tratamento desse tipo. Pequenas e redondas cápsulas de gelatina.

       — Sim. Contendo adexolina.

       — Seria possível alguma outra coisa ter sido introduzida em... digamos... uma dessas cápsulas?

       — Quer dizer, alguma coisa mortal? — O médico parecia cada vez mais surpreso. — Mas certamente ninguém iria... olhe aqui, Entwhistle, aonde está querendo chegar? Meu Deus, homem, você está insinuando assassinato?

       — Eu não sei bem o que estou insinuando... quero apenas saber o que seria possível.

       — Mas que evidências você tem para até mesmo sugerir tal coisa?

       — Não tenho nenhuma evidência — respondeu o Sr. Entwhistle com voz cansada. — Abernethie está morto... e a pessoa com quem ele falou também está morta. Trata-se de um boato... um boato vago e insatisfatório. E eu gostaria de colocar um ponto final nisso tudo, se puder. Se você dissesse que seria completamente impossível alguém ter envenenado Abernethie, eu ficaria profundamente agradecido! Garanto-lhe que tiraria um enorme peso da minha consciência.

       Levantando-se, o Dr. Larraby começou a andar de um lado para outro.

       — Não posso lhe dizer o que quer que eu diga — falou afinal. — Gostaria de poder. É claro que poderia ter sido feito. Qualquer pessoa ter extraído o óleo da cápsula e substituído com... digamos... nicotina pura, ou meia dúzia de outras coisas. Ou poderiam ter colocado algo em sua comida ou bebida. Não acha isso mais provável?

       — Talvez. Mas o caso é que só os empregados estavam em casa quando ele morreu, e não acredito que tenha sido nenhum deles; na realidade, estou certo que não. Sendo assim, estou procurando pela possibilidade de alguma ação de efeito retardado. Suponho que não exista nenhuma droga que possa ser administrada vindo a causar a morte somente semanas depois?

       — Uma idéia prática, mas receio que insustentável — afirmou secamente o médico. — Sei que é uma pessoa responsável, Entwhistle, mas quem está fazendo essa insinuação? Parece-me completamente fora de propósito. .

       — Abernethie nunca lhe disse nada? Nunca deu a entender que algum de seus parentes talvez estivesse querendo vê-lo fora do caminho?

       O médico olhou-o, curioso.

       — Não, ele nunca me disse nada. Tem certeza de que alguém não estava querendo causar sensação? Você sabe que alguns comentários absurdos podem parecer bastante lógicos e racionais.

       — Espero que tenha sido isso. É melhor que seja.

       — Deixe-me ver se entendo. Alguém alegou que Abernethie contou a ela... foi uma mulher, suponho?

       — Oh, sim, foi uma mulher.

       — ...disse a ela que alguém estava querendo matá-lo?

       Encurralado, o Sr. Entwhistle contou a história do comentário de Cora no dia do funeral. O rosto do Dr. Larraby se iluminou.

       — Meu caro amigo, não deveria ter-lhe dado nenhuma atenção. A explicação é bem simples. Numa certa época de sua vida, a mulher, ansiando por sensações, desequilibrada, insegura, é capaz de dizer qualquer coisa. Elas fazem isso, você sabe!

       O Sr. Entwhistle ressentiu-se com a rápida conclusão do médico. Ele próprio já lidara com grande quantidade de mulheres histéricas à procura de sensações.

       — Pode ser que você tenha razão — respondeu, levantando-se. — Infelizmente não poderemos discutir o assunto com ela, pois ela foi assassinada.

       — O que disse... assassinada? — O Dr. Larraby parecia ter graves suspeitas quanto ao equilíbrio mental do Sr. Entwhistle.

       — Provavelmente, você leu a esse respeito nos jornais. A Sra. Lansquenet, em Lytchett St. Mary, Berkshire.

       — É claro. Contudo, não tinha a menor idéia de que ela era parente de Richard Abernethie. — O Dr. Larraby estava trêmulo.

       Sentindo que havia se desforrado da superioridade profissional do médico, e tristemente consciente de que suas próprias suspeitas não haviam diminuído com o resultado da visita, o Sr. Entwhistle se retirou.

      

       De volta a Enderby, o Sr. Entwhistle decidiu falar com Lanscombe.

       Começou por perguntar ao velho mordomo a respeito de seus planos para o futuro.

       — A Sra. Leo me pediu para permanecer aqui até que a casa seja vendida, e certamente ficarei muito satisfeito em obedecer-lhe. Todos nós gostamos muito da Sra. Leo. — Ele suspirou. — Lamento muito, se me permite mencionar, que a casa tenha que ser vendida. Trabalho aqui há muitos anos e vi todas as moças e rapazes crescerem. Sempre imaginei que o Sr. Mortimer sucedesse ao pai e talvez criasse a própria família aqui. Estava combinado que eu iria para North Lodge quando ficasse velho demais para o meu trabalho. North Lodge é um lugar muito agradável e eu pretendia deixá-lo novinho em folha. Creio, entretanto, que agora não seja possível.

       — Lamento que sim, Lanscombe. Toda a propriedade será vendida. Mas, com o seu legado...

       — Oh, não estou me queixando, senhor. Fiquei muito grato pela generosidade do Sr. Abernethie. Fiquei numa boa situação financeira; contudo, hoje em dia não é tão fácil encontrar um lugar agradável para se comprar, e, apesar de minha sobrinha casada ter me convidado para morar com ela, não será a mesma coisa.

       — Entendo — disse o Sr. Entwhistle. — Este mundo moderno é duro para nós, velhos. Gostaria de ter convivido mais com o meu velho amigo antes de ele morrer. Como estava ele nos últimos meses?

       — Bem, depois da morte do Sr. Mortimer, ele nunca mais foi o mesmo.

       — Não, aquilo deixou-o em pedaços. E ele também era um homem doente... homens doentes algumas vezes têm estranhas fantasias. Creio que nos seus últimos dias o Sr. Abernethie deveria estar sofrendo desse tipo de coisa. Talvez falasse de inimigos, de alguém que desejasse fazer-lhe mal? Pode ter chegado até a imaginar que estavam colocando alguma coisa em sua comida?

       O velho Lanscombe pareceu surpreso... surpreso e ofendido.

       — Não me lembro de nada desse tipo, senhor.

       Entwhistle olhou-o atentamente.

       — Você é um empregado muito leal, Lanscombe. Tenho certeza disso. Contudo, tais fantasias por parte do Sr. Abernethie seriam... ahn... sem importância, apenas um sintoma natural em certas doenças.

       — É mesmo, senhor? Posso apenas lhe dizer que o Sr. Abernethie nunca me disse nada nem ouvi nada parecido.

       Gentilmente, o Sr. Entwhistle desviou para outro assunto.

       — Antes de morrer, ele trouxe parte da família para ficar com ele, não foi? Seu sobrinho, suas sobrinhas e os maridos?

       — Sim, senhor, é isso mesmo.

       — Ele ficou satisfeito com essas visitas? Ou ficou desapontado?

       O olhar de Lanscombe ficou distante.

       — Realmente, eu não saberia como responder, senhor.

       — Acho que saberia — disse o Sr. Entwhistle delicadamente. — O que você quer dizer realmente é que sua posição não lhe permite comentar certas coisas. Às vezes, entretanto, é preciso ir contra o que se julga correto. Fui um dos melhores amigos de seu patrão. Gostava muito dele. Você também. É por isso que estou pedindo sua opinião como homem, não como mordomo.

       Por um momento, Lanscombe permaneceu calado; em seguida, falou com voz inexpressiva:

       — Há alguma coisa errada, senhor?

       O Sr. Entwhistle respondeu com sinceridade:

       — Não sei. Espero que não. Gostaria de ter certeza. Você por acaso sentiu que havia algo... errado?

       — Só depois do funeral, senhor. E não saberia dizer exatamente o quê. Mas naquela noite, depois que os outros se retiraram, a Sra. Leo e a Sra. Timothy não pareciam mais as mesmas.

       — Você tem conhecimento do conteúdo do testamento?

       — Sim, senhor. A Sra. Leo achou que eu gostaria de saber. Parece-me, se me permite dar a minha opinião, um testamento muito justo.

       — Sim, foi um testamento muito justo. Todos foram beneficiados igualmente. Não creio, entretanto, que tenha sido o testamento que o Sr. Abernethie pensou em fazer após a morte do filho. Responderá agora à pergunta que lhe fiz ainda há pouco?

       — Posso apenas lhe dar a minha opinião pessoal...

       — Sim, sim, essa parte já ficou acertada.

       — O patrão, senhor, ficou muito desapontado depois da visita do Sr. George. Acho que ele esperava encontrar no Sr. George alguma semelhança com o Sr. Mortimer. O Sr. George, se me permite dizer, não correspondeu à expectativa. O marido da Srta. Laura sempre foi considerado pusilânime e receio que o Sr. George tenha saído a ele. — Lanscombe fez uma pausa. — Em seguida, vieram as jovens com seus maridos. Logo de saída, o Sr. Abernethie afeiçoou-se a Susan. Uma moça bonita e de muito espírito. Mas na minha opinião ele não suportou o marido dela. Hoje em dia as jovens fazem escolhas estranhas, senhor.

       — E quanto ao outro casal?

       — Não tenho muito o que dizer a esse respeito. Um casal bonito e agradável. Acredito que meu patrão gostou de tê-los aqui. Porém, não creio... — O velho Lanscombe hesitou.

       — Sim, Lanscombe?

       — Bem, o Sr. Abernethie nunca teve nada a ver com teatro. Certo dia ele me disse: “Não consigo compreender por que as pessoas se tornam fanáticas pelo teatro. É um tipo tolo de vida. Parece tirar das pessoas qualquer bom senso que possam ter, e não sei o que faz à sua moral. Certamente perdem o senso de proporção”. É lógico que ele não estava se referindo diretamente a...

       — Não, não, compreendo perfeitamente. E então depois dessas visitas o próprio Richard viajou. Primeiro foi ver o irmão e, em seguida, a irmã, a Sra. Lansquenet.

       — Não sabia disso, senhor. Quero dizer, ele mencionou que iria até a casa do Sr. Timothy e em seguida a algum lugar chamado St. Mary.

       — É isso mesmo. Lembra-se de alguma coisa que ele disse a respeito dessas duas visitas?

       Lanscombe refletiu.

       — Realmente, não sei... nada direto. Estava satisfeito de estar de volta. Viajar e ficar em casas estranhas o cansava muito... isso me lembro de ele ter dito.

       — Nada mais? Nada a respeito de qualquer dos dois?

       Lanscombe franziu as sobrancelhas.

       — O meu patrão costumava... bem, resmungar, se é que me entende. Falando comigo, mas mais consigo mesmo... mal percebendo que eu estava lá.

       — Isso porque ele confiava em você.

       — Minhas lembranças são muito vagas. Ele falou alguma coisa sobre não entender o que ele havia feito com seu dinheiro... achei que se referia ao Sr. Timothy. Em seguida disse algo sobre “mulheres podem ser tolas em centenas de situações, mas muito astutas em determinados assuntos”. Ah, sim, ele comentou: “A pessoa só pode dizer o que realmente pensa a alguém de sua própria geração. Não pensam, como os jovens, que você está fantasiando as coisas”. E mais tarde ele disse, porém não sei em que sentido, que “não é muito agradável ter que preparar armadilhas para outras pessoas; contudo, não sei o que mais eu poderia fazer!” É possível que ele estivesse se referindo ao jardineiro... um problema de os pêssegos estarem sendo roubados.

       O Sr. Entwhistle, entretanto, não acreditava que Richard Abernethie estivesse se referindo ao jardineiro. Após mais algumas perguntas, ele dispensou Lanscombe e refletiu sobre o que acabara de tomar conhecimento. Nada, realmente nada que ele não houvesse deduzido anteriormente. Contudo, havia pontos sugestivos. Não era sua cunhada Maude, mas sim sua irmã Cora a quem ele se referia quando fez aquele comentário sobre mulheres que eram tolas e ao mesmo tempo astutas. E fora com ela que ele conversara sobre as suas fantasias. E ele falara em preparar uma armadilha. Para quem?

      

       O Sr. Entwhistle meditara bastante sobre o que deveria dizer a Helen. Por fim decidiu colocá-la a par de tudo.

       Primeiramente agradeceu-lhe por ter cuidado dos pertences de Richard e por ter tomado várias providências domésticas. A casa fora colocada à venda e havia um ou dois compradores em perspectiva que em breve viriam dar uma olhada.

       — Compradores particulares?

       — Receio que não. A ACM está cogitando do assunto, há também um outro clube de jovens, e os administradores da Fundação Jefferson, que estão procurando um lugar adequado para as suas instalações. Acho triste esta casa deixar de ser uma residência, mas é claro que nos dias de hoje não seria uma proposição prática.

       — Gostaria de pedir-lhe, se for possível, que você permaneça aqui até que a venda seja efetuada. Ou seria um grande inconveniente?

       — Não, na verdade seria até muito conveniente para mim. Não desejo retornar a Chipre antes de maio, e prefiro muito mais ficar aqui a permanecer em Londres, como planejara. Sabe que amo esta casa. Leo a amava e sempre nos sentíamos felizes quando estávamos aqui reunidos.

       — Existe uma outra razão para eu ficar agradecido se você permanecer aqui. Há um amigo meu, um homem chamado Hercule Poirot...

       Helen falou bruscamente:

       — Hercule Poirot? Então você acha...

       — Você o conhece?

       — Sim. Alguns amigos meus... mas eu imaginava que ele tivesse morrido há muito tempo.

       — Ele está bem vivo. Não é jovem, é claro.

       — Não, dificilmente poderia ser jovem.

       Ela falava mecanicamente. Seu rosto estava branco e contraído. Num esforço, perguntou:

       — Você acha que Cora tinha razão? Que Richard foi... assassinado?

       O Sr. Entwhistle sentiu-se aliviado. Era um prazer poder desabafar com Helen, dona de uma mente clara e tranqüila.

       Quando ele terminou, ela disse:

       — Tudo isso poderia parecer fantástico, mas não é. Maude e eu... na noite depois do funeral... estou certa de que estava em nossos pensamentos. Dizendo para nós mesmas que mulher tola era Cora, e apesar disso sentindo-nos inquietas. Em seguida Cora é assassinada... e eu disse a mim mesma que se tratava de uma coincidência, e é lógico que pode ter sido. Ah, se ao menos eu pudesse ter certeza. É tudo tão complicado!

       — Sim, é complicado. Entretanto, Poirot é um homem de muita engenhosidade, praticamente um gênio. Ele sabe exatamente do que precisamos: a certeza de que tudo não passa de boato.

       — E supondo que não seja?

       — O que a faz pensar assim? — indagou o Sr. Entwhistle rapidamente.

       — Não sei. Tenho andado inquieta. Não só por causa do que Cora falou naquele dia... é uma outra coisa. Algo que na ocasião senti que estava errado.

       — Errado? De que maneira?

       — O problema é justamente este. Eu não sei.

       — Está se referindo a alguma coisa ligada a alguém que estava na sala naquela tarde?

       — Sim, sim, algo assim. Não sei, porém, quem ou o quê... Oh, isso parece absurdo!

       — De forma alguma. É interessante... muito interessante. Você não é nenhuma boba, Helen. Se notou alguma coisa, essa coisa tem importância.

       — Sim, mas não consigo me lembrar o que foi. Quanto mais penso...

       — Não pense. Este é o modo errado de se procurar recordar de alguma coisa. Deixe o tempo passar. Mais cedo ou mais tarde você terá um lampejo. E, quando isso acontecer, avise-me imediatamente.

       — Avisarei.

 

Capítulo IX

       A Srta. Gilchrist enfiou o chapéu com firmeza e prendeu uma mecha de cabelo grisalho. O inquérito estava marcado para o meio-dia e ainda não eram onze e vinte. Seu casaco e saia cinza, pensou ela, estavam com boa aparência. Ela comprara uma blusa preta. Gostaria de poder estar toda vestida de preto, mas isso estaria muito acima de seu orçamento. Olhou em torno do pequeno e arrumado quarto em cujas paredes estavam penduradas reproduções do porto de Brixham, Cockington Forge, Anstey’s Cove, Kyance Cove, Polflexan, Babbacombe Bay, etc, todos vistosamente assinados por Cora Lansquenet. Seus olhos pousaram com carinho especial na enseada de Polflexan. Em cima da cômoda, cuidadosamente emoldurada, havia uma fotografia amarelada da casa de chá Willow Tree. Olhando-a com amor, a Srta. Gilchrist suspirou.

       Foi despertada de seu sonho pelo som da campainha da porta.

       — Minha nossa! — murmurou a Srta. Gilchrist. — Quem será que...

       Saiu do quarto e começou a descer as escadas. A campainha tornou a tocar, seguida por uma batida seca.

       Por algum motivo, a Srta. Gilchrist ficou nervosa. Diminuiu, por instantes, seus passos. Em seguida, um tanto contra a vontade, foi até a porta, forçando-se a não ser tão tola.

       Uma jovem vestida de preto e carregando uma mala estava parada à entrada. Notando o olhar assustado da Srta. Gilchrist, apressou-se em falar:

       — Srta. Gilchrist? Sou sobrinha da Sra. Lansquenet, Susan Banks.

       — Oh, sim, é claro. Por favor, entre, Sra. Banks. Eu não sabia que a senhora viria para o inquérito. Teria preparado alguma coisa, um café ou algo assim.

       Susan Banks respondeu vivamente:

       — Não desejo nada. Lamento se a assustei.

       — Bem, de certa forma a senhora me assustou. Sei que foi muito tolo de minha parte. Normalmente, não sou nervosa. De fato, disse ao advogado que não era nervosa e que nem ficaria por permanecer aqui sozinha, e realmente não sou nervosa. Apenas... talvez seja por causa do inquérito e... por ficar pensando nas coisas. Senti-me sobressaltada durante toda esta manhã, e há meia hora a campainha tocou e quase não consigo ir abrir a porta. Foi muito estúpido de minha parte, pois é muito pouco provável que o assassino volte... por que voltaria? Na verdade, era apenas uma freira recolhendo dinheiro para um orfanato. Senti-me tão aliviada que lhe dei dois xelins, apesar de eu não ser católica e de não ter nenhuma simpatia pela Igreja Romana e todos esses padres e freiras. Entretanto, acho que as irmãs de caridade realizam um bom trabalho. Mas, por favor, sente-se, Sra... Sra...

       — Banks.

       — Sim, é claro, Banks. A senhora veio de trem?

       — Não, vim de carro. A estrada é tão estreita que levei o carro por um outro caminho e estacionei-o junto a uma pedreira abandonada que encontrei por perto.

       — Essa estrada é mesmo muito estreita, mas quase não há tráfego por aqui. É uma estrada solitária.

       A Srta. Gilchrist estremeceu ligeiramente ao dizer essas últimas palavras.

       Susan Banks estava olhando em torno da sala.

       — Pobre tia Cora! — comentou ela. — Deixou para mim tudo o que possuía, a senhora sabia?

       — Sim, eu sei. O Sr. Entwhistle me contou. Espero que goste da mobília. Pelo que pude compreender, a senhora é recém-casada, e hoje em dia custa uma fortuna mobiliar uma casa. A Sra. Lansquenet tinha algumas coisas bonitas.

       Susan não concordava. Cora não apreciava o estilo antigo e a decoração era do tipo modernoso e na base da arte barata.

       — Não vou querer nenhuma peça da mobília — afirmou. — É que já tenho a minha. Colocarei tudo em leilão. A não ser que... há alguma coisa com que a senhora gostaria de ficar? Eu teria prazer em... — parou, embaraçada.

       A Srta. Gilchrist, entretanto, não estava nem um pouco embaraçada. Sorriu.

       — É muita gentileza de sua parte, Sra. Banks, realmente muita gentileza. Na verdade, gosto muito de tudo, mas a senhora sabe, tenho minhas próprias coisas. Guardei-as num depósito para o caso de algum dia eu vir a precisar. Tenho também alguns quadros que meu pai me deixou. Certa época, tive uma pequena casa de chá, mas aí estourou a guerra... foi tudo um grande azar. Mesmo assim, não vendi meus objetos, porque tinha esperança de ter novamente a minha própria casa, e por isso guardei num depósito as coisas melhores juntamente com os quadros de meu pai e algumas relíquias de nossa antiga casa. Gostaria muito, entretanto, se a senhora realmente não se importar, de ficar com a pequena mesa de chá pintada da querida Sra. Lansquenet. É tão bonita e sempre tomávamos chá nela!

       Susan, olhando com leve estremecimento para a pequena mesa verde pintada com grandes orquídeas roxas, apressou-se em dizer que ficaria muito contente se a Srta. Gilchrist ficasse com ela.

       — Muito obrigada, Sra. Banks. Sinto-me um tanto gananciosa. Fiquei com todos os quadros, a senhora sabe, e um lindo broche de ametista, porém talvez deva devolver-lhe isto.

       — Não, não é preciso.

       — A senhora gostaria de examinar seus pertences? Talvez depois do inquérito?

       — Pensei em passar alguns dias aqui para examinar e arrumar tudo.

       — Quer dizer, dormir aqui?

       — Sim. Existe algum inconveniente?

       — Oh, não, Sra. Banks, é lógico que não. Colocarei lençóis limpos em minha cama, e posso muito bem dormir aqui no sofá.

       — Mas e o quarto de tia Cora? Posso dormir lá.

       — A senhora não... não se incomodaria?

       — Quer dizer porque foi lá que ela foi assassinada? Oh, não, isso não tem problema. Sou muito corajosa, Srta. Gilchrist. Já foi... quero dizer... está tudo arrumado?

       A Srta. Gilchrist compreendeu a pergunta.

       — Oh, sim, Sra. Banks. Todos os cobertores foram mandados para a lavanderia e a Sra. Panter e eu limpamos todo o quarto cuidadosamente. E há muitos cobertores extras. Mas suba e veja a senhora mesma.

       Começou a subir as escadas e Susan seguiu-a.

       O quarto de Cora Lansquenet estava limpo, arejado, e curiosamente desprovido de qualquer atmosfera sinistra. Possuía, exatamente como a sala de visitas, uma mistura de objetos modernos e móveis pintados com detalhes elaborados e rebuscados. Representava a personalidade alegre e sem gosto de Cora. Em cima da lareira uma pintura a óleo mostrava uma mulher jovem e robusta prestes a entrar no banho.

       Susan sentiu um ligeiro tremor ao olhar o quadro. A Srta. Gilchrist comentou:

       — Foi pintado pelo marido da Sra. Lansquenet. Há vários outros quadros dele lá embaixo, na sala de jantar.

       — É horrível.

       — Bem, eu também não aprecio muito este estilo de pintura, mas a Sra. Lansquenet tinha muito orgulho do marido como pintor e achava que era uma injustiça seu trabalho não ser apreciado.

       — Onde estão os quadros de tia Cora?

       — Em meu quarto. Gostaria de vê-los?

       A Srta. Gilchrist exibiu orgulhosamente seus tesouros.

       Susan comentou que Cora parecia ter sido amante dos recantos do litoral.

       — Oh, sim. É que ela morou com o Sr. Lansquenet durante muitos anos numa pequena vila de pescadores da Inglaterra. Barcos de pesca são sempre tão pitorescos, não?!

       — É evidente — murmurou Susan. Uma série completa de cartões-postais, pensou ela, poderia ser feita dos quadros de Cora Lansquenet. Eram cheios de detalhes e extremamente coloridos. Davam margem à suspeita de que eles próprios haviam sido copiados de cartões-postais.

       Entretanto, quando ela levantou essa hipótese a Srta. Gilchrist ficou indignada. A Sra. Lansquenet sempre pintava a natureza! Houve até uma vez em que ela teve queimaduras de sol por se recusar a abandonar o local onde estava pintando, achando que a luz estava perfeita.

       — A Sra. Lansquenet é uma verdadeira artista! — afirmou a Srta. Gilchrist de modo repreensivo.

       Ela olhou para o relógio e Susan falou imediatamente.

       — Sim, está na hora de irmos para o inquérito. É longe? Devo apanhar o carro?

       — A pé chegaremos lá em cinco minutos — assegurou a Srta. Gilchrist.

       As duas foram juntas, caminhando. O Sr. Entwhistle, que chegara de trem, foi ao encontro delas e as introduziu no Village Hall.

       Parecia haver um grande número de estranhos presentes. O inquérito não foi conduzido de maneira sensacionalista. Sabia-se quem era o morto. Houve evidências médicas quanto à natureza dos ferimentos que haviam causado a morte. Não havia sinais de luta. Estava provavelmente sob efeito de narcóticos ao ser atacada. Era improvável que a morte tivesse ocorrido depois das quatro e meia. Entre duas e quatro e meia, era o cálculo mais aproximado. A Srta. Gilchrist testemunhou ter encontrado o corpo. Um policial e o Inspetor Morton prestaram depoimentos. Os jurados não tiveram dúvidas quanto ao veredicto: “Assassinada por pessoa ou pessoas desconhecidas”.

       Acabara. Saíram novamente para a luz do sol. Foram fotografados por meia dúzia de repórteres. O Sr. Entwhistle levou Susan e a Srta. Gilchrist para o King’s Arms, onde tomara a precaução de providenciar para que o almoço fosse servido numa sala privativa atrás do bar.

       — Receio que não tenha sido um almoço muito bom — desculpou-se ele.

       O almoço; entretanto, não fora ruim. A Srta. Gilchrist choramingara um pouco dizendo que “foi tudo tão terrível!”, mas, depois de o Sr. Entwhistle ter insistido para que ela bebesse um cálice de xerez, ela se animou e devorou o cozido com apetite.

       — Não imaginava que você viesse hoje, Susan. Poderíamos ter vindo juntos — disse o Sr. Entwhistle.

       — Sei que disse que não viria, mas pareceu-me maldade que ninguém da família estivesse presente. Telefonei para George e ele disse que seria impossível vir, pois estaria muito ocupado. Rosamund tinha uma entrevista e tio Timothy, é claro, é um inválido. Sendo assim, eu mesma tinha que vir.

       — Seu marido não a acompanhou?

       — Greg teve que ficar na sua loja enfadonha.

       Notando o olhar espantado da Srta. Gilchrist, Susan falou:

       — Meu marido trabalha numa farmácia.

       Um marido trabalhando no comércio não se enquadrava bem com a imagem que a Srta. Gilchrist tinha de Susan, porém falou corajosamente:

       — Oh, sim, exatamente como Keats.

       — Greg não é poeta — retrucou Susan. — Temos planos para o futuro: um estabelecimento de duplo alcance. Cosméticos e salão de beleza e um laboratório para preparados especiais.

       — Isso será mais agradável — aprovou a Srta. Gilchrist. — Algo como Elizabeth Arden, que é uma condessa, assim me disseram... ou é a Helena Rubinstein? De qualquer modo — acrescentou ela gentilmente —, uma farmácia não é uma loja comum... uma loja de tecidos, por exemplo, ou um armazém.

       — A senhora tinha uma casa de chá, não?

       — Sim, realmente. — O rosto da Srta. Gilchrist iluminou-se. O fato de que a Willow Tree tivesse sido alguma vez uma casa comercial no sentido estrito de “comércio” nunca lhe ocorrera. Dirigir uma casa de chá significava para ela a essência do requinte. Começou a falar para Susan a respeito da Willow Tree.

       O Sr. Entwhistle, que já a ouvira falar a esse respeito, deixou o pensamento vagar. Depois de Susan ter-se dirigido a ele duas vezes sem obter resposta, ele apressou-se em se desculpar.

       — Desculpe-me, querida, estava pensando em seu tio Timothy. Estou um pouco preocupado.

       — Com o tio Timothy? Eu no seu lugar não ficaria. Não acredito que haja alguma coisa realmente errada com ele. É apenas um hipocondríaco.

       — Sim, sim, pode ser que você tenha razão. Confesso que não é sua saúde que está me preocupando. É a Sra. Timothy. Parece que ela caiu da escada e torceu o tornozelo. Ela tem que ficar em repouso e seu tio está num estado deplorável.

       — Porque agora ele vai ter que cuidar dela? Vai lhe fazer muito bem — observou Susan.

       — Sim, acredito que sim. Mas será que sua pobre tia receberá algum cuidado? Esta é a pergunta. Sem nenhum empregado em casa?

       — A vida é um verdadeiro inferno para as pessoas idosas — comentou Susan. — Eles vivem numa casa de estilo georgiano, não?

       O Sr. Entwhistle concordou com a cabeça.

       Saíram cautelosamente do King’s Arms, mas tudo indicava que os jornalistas já se haviam dispersado.

       Alguns repórteres estavam aguardando Susan à porta do chalé. Orientada pelo Sr. Entwhistle, ela disse algumas palavras necessárias e não comprometedoras. Em seguida, ela e a Srta. Gilchrist entraram na casa e o Sr. Entwhistle retornou ao King’s Arms, onde alugara um quarto. O funeral seria no dia seguinte.

       — Meu carro ainda está na pedreira. Havia me esquecido dele. Vou trazê-lo para a vila mais tarde.

       A Srta. Gilchrist falou com ansiedade:

       — Não muito tarde. A senhora não vai sair depois que escurecer, vai?

       Susan a encarou e riu.

       — Não está pensando que ainda exista um assassino rondando por aí, está?

       — Não, não, suponho que não. — A Srta. Gilchrist parecia embaraçada.

       “Entretanto é isto mesmo que ela está achando!”, pensou Susan. “Que incrível!”

       A Srta. Gilchrist havia desaparecido em direção à cozinha.

       — Estou certa de que gostaria de tomar chá. Daqui a uma meia hora, está bem, Sra. Banks?

       Susan achava que chá às três e meia era demais; entretanto, era suficientemente caridosa para compreender que uma boa xícara de chá, de acordo com a opinião da Srta. Gilchrist, era um restaurador dos nervos, e, como tinha seus próprios motivos para desejar agradar à Srta. Gilchrist, concordou:

       — Quando quiser, Srta. Gilchrist.

       Um alegre ruído de utensílios de cozinha começou e Susan foi para a sala. Estava lá há apenas alguns minutos quando a campainha tocou, seguida por firmes batidas na porta.

       Susan encaminhou-se para o hall e a Srta. Gilchrist apareceu à porta da cozinha vestindo um avental e nele limpando as mãos cheias de farinha.

       — Minha nossa, quem poderá ser?

       — Mais repórteres, creio — respondeu Susan.

       — Mas que aborrecimento para a senhora, Sra. Banks!

       — Ora, não tem importância. Vou atender.

       — Ia começar a fazer alguns bolinhos para o chá.

       Susan dirigiu-se à porta da frente e a Srta. Gilchrist ficou andando de um lado para outro, indecisa. Susan imaginou se por acaso ela estaria pensando que havia um homem com uma machadinha esperando do lado de fora.

       O visitante, entretanto, era um senhor idoso, que tirou o chapéu assim que Susan lhe abriu a porta. Perguntou sorrindo:

       — É a Sra. Banks?

       — Sim.

       — Meu nome é Guthrie, Alexander Guthrie. Eu era amigo da Sra. Lansquenet. Um amigo antigo. A senhora, creio, é sua sobrinha, Sra. Susan Abernethie, em solteira?

       — É isso mesmo.

       — Então, já que nos apresentamos, posso entrar?

       — É claro.

       O Sr. Guthrie limpou os pés cuidadosamente no tapete, entrou, tirou o casaco, colocou-o com o chapéu em cima de uma pequena arca, e seguiu Susan até a sala de visitas.

       — Esta é uma ocasião triste — falou o Sr. Guthrie, para quem a tristeza não parecia vir com naturalidade, já que sua inclinação era sorrir. — Sim, uma ocasião muito triste. Eu estava por estes lados e achei que o mínimo que poderia fazer seria comparecer ao inquérito e obviamente ao funeral. Pobre Cora... pobre e tola Cora! Eu a conhecia, minha cara Sra. Banks, desde os primeiros dias de seu casamento. Uma moça alegre que levava a arte a sério como também levava a sério seu marido, Pierre Lansquenet... quero dizer, como artista. No todo, ele não era mau sujeito. Ele era dado a conquistas, a senhora entende o que quero dizer, mas felizmente Cora aceitava isso como parte de seu temperamento de artista. Era um artista e conseqüentemente um imoral. Na verdade, não estou certo de que ela não ia além: ele era imoral e portanto deveria ser um artista! A pobre Cora não possuía qualquer percepção em matéria de arte, apesar de que, se me permite dizer, em outros assuntos Cora tivesse bastante bom senso... Sim, uma surpreendente percepção.

       — É isso que todos parecem afirmar — observou Susan. — Não a conheci realmente.

       — Não, não, ela se afastou da família porque eles não apreciavam o seu precioso Pierre. Nunca foi uma moça bonita... porém tinha algo. Era uma boa companhia. Nunca se sabia o que ela iria dizer em seguida e nem se seu comportamento ingênuo era verdadeiro ou se fazia aquilo propositalmente. Divertia-nos muito. A eterna criança... esta sempre foi a opinião que tivemos dela. E, realmente, na última vez que a vi (costumava vê-la de tempos em tempos desde que Pierre morreu) ela me surpreendeu por ainda se comportar como uma criança.

       Susan ofereceu um cigarro ao Sr. Guthrie, mas o velho recusou com a cabeça.

       — Não, obrigado, minha cara. Eu não fumo. A senhora deve estar imaginando por que vim até aqui. Para lhe falar francamente, estava com a consciência pesada. Prometera a Cora vir vê-la há algumas semanas. Costumava visitá-la uma vez por ano, e há pouco tempo ela começara a comprar quadros em leilões e queria que eu desse uma olhada em alguns deles. Sou crítico de arte. É claro que a maioria das aquisições de Cora eram horríveis borrões, mas no todo não eram mau investimento. Nesses leilões do interior os quadros saem por uma ninharia, e as molduras valem mais do que o próprio quadro. Naturalmente que em leilão importante comparecem negociantes, e não é muito provável que as outras pessoas consigam colocar a mão em obras de arte. Porém, outro dia mesmo, num leilão em uma fazenda, um pequeno Cuyp foi arrematado por umas poucas libras. A sua história é bastante interessante. Havia sido dado a uma enfermeira pela família que ela servira fielmente por muitos anos. Não tinham a menor idéia de seu valor. A velha enfermeira deu para o sobrinho do fazendeiro, que gostava muito do cavalo que havia no quadro. Mas achava o quadro velho e sujo. Sim, sim, essas coisas algumas vezes acontecem, e Cora estava convencida de que tinha bom faro para pintura. E é evidente que não tinha. Queria que eu viesse ver um Rembrandt que Obtivera no ano passado. Um Rembrandt! Não era nem mesmo uma cópia respeitável! Entretanto, ela conseguira uma gravura bastante boa de Bartolozzi... infelizmente manchada de mofo. Vendi-a por trinta libras e isso naturalmente a estimulou. Escreveu-me muito entusiasmada a respeito de um primitivo italiano que comprara em um leilão qualquer, e prometi vir aqui vê-lo.

       — Acho que é aquele ali — mostrou Susan, apontando para a parede atrás dele.

       O Sr. Guthrie levantou-se, colocou os óculos, e foi examinar o quadro.

       — Pobre Cora! — disse ele afinal.

       — Há ainda muitos outros — informou Susan.

       O Sr. Guthrie deu prosseguimento a uma inspeção demorada dos tesouros artísticos adquiridos pela esperançosa Cora Lansquenet. De vez em quando, ele emitia um “tsk, tsk”. Outras vezes, suspirava.

       Por fim, tirou os óculos.

       — Poeira é uma coisa maravilhosa, Sra. Banks! Dá uma pátina de romance aos mais horríveis exemplos da arte de pintores. Receio que Bartolozzi tenha sido apenas sorte de principiante. Pobre Cora! Em todo caso, deu-lhe um interesse na vida. Estou realmente satisfeito de não ter sido obrigado a desiludi-la.

       — Há outros quadros na sala de jantar — informou Susan —, mas creio que são trabalhos do marido dela.

       O Sr. Guthrie estremeceu ligeiramente e levantou a mão em protesto.

       — Não me force a olhá-los novamente. Sempre procurei poupar os sentimentos de Cora. Ela era uma esposa dedicada, muito dedicada mesmo. Bem, cara Sra. Banks, não devo tomar mais seu tempo.

       — Oh, fique e tome chá conosco. Acho que está quase pronto.

       — É muita gentileza sua. — O Sr. Guthrie tornou a sentar-se prontamente.

       — Vou lá dentro ver como estão as coisas.

       Na cozinha, a Srta. Gilchrist estava acabando de tirar do forno a última porção de bolinhos. A bandeja de chá já estava arrumada e a tampa da chaleira sacudia levemente.

       — O Sr. Guthrie está aqui, e eu o convidei para o chá.

       — O Sr. Guthrie? Oh, sim, era um grande amigo da querida Sra. Lansquenet. É um consagrado crítico de arte. Que sorte! Fiz alguns bolinhos gostosos e geléia de morango caseira. E também preparei alguns brioches. Vou arrumar o chá agora mesmo. Já esquentei a água. Oh, por favor, Sra. Banks, não carregue esta bandeja pesada. Posso cuidar de tudo.

       Apesar dos protestos, Susan pegou a bandeja. A Srta. Gilchrist a seguiu com o bule de chá e a chaleira, e na sala cumprimentou o Sr. Guthrie.

       — Bolinhos quentinhas, isto é uma delícia! — exclamou ele. — E que geléia maravilhosa!

       A Srta. Gilchrist estava corada de satisfação. Os bolinhos e os brioches estavam excelentes e os dois faziam-lhes justiça. O fantasma da Willow Tree pairava sobre o ambiente. Era evidente que ali a Srta. Gilchrist se encontrava em seu elemento.

       — Bem, obrigado — agradeceu o Sr. Guthrie ao aceitar o último bolo, pressionado pela Srta. Gilchrist. — Sinto-me um tanto culpado, saboreando este chá aqui, onde a pobre Cora foi tão brutalmente assassinada.

       A Srta. Gilchrist teve uma inesperada reação vitoriana.

       — Oh, mas a Sra. Lansquenet teria gostado que o senhor tomasse um bom chá. O senhor precisa manter suas forças.

       — Oh, sim, talvez tenha razão. O fato é que é difícil de acreditar que alguém que se conhece, conhece realmente, possa ser assassinado!

       — Concordo — disse Susan. — Parece simplesmente fantástico!

       — E é certo que não foi nenhum vagabundo que arrombou a casa e a matou. Posso pensar em motivos pelos quais Cora possa ter sido assassinada.

       — O senhor pode? Que motivos? — indagou Susan apressadamente.

       — Bem, ela não era discreta — afirmou o Sr. Guthrie. — Cora nunca foi discreta. E gostava...  como vou explicar... de mostrar o quanto podia ser esperta. Como uma criança que descobriu um segredo de alguém. Se Cora descobrisse um segredo, ela iria querer falar sobre ele. Mesmo que prometesse não o revelar, ainda assim ela contaria. Não seria capaz de se controlar.

       Susan não dizia uma palavra. Nem a Srta. Gilchrist. Esta parecia preocupada. O Sr. Guthrie prosseguiu:

       — Sim, uma pequena dose de arsênico numa xícara de chá... isso não teria me surpreendido, ou então uma caixa de chocolate enviada pelo correio. Mas um roubo e um assalto sórdido... parecem-me extremamente improváveis. Posso estar enganado, mas acho que ela possuía muito pouca coisa de valor a ponto de um ladrão se arriscar por isso. Não guardava muito dinheiro em casa, guardava?

       — Muito pouco — respondeu a Srta. Gilchrist.

       O Sr. Guthrie suspirou e se levantou.

       — Ah, bem, desde a guerra há muita ilegalidade espalhada por aí. Os tempos mudaram.

       Agradeceu pelo chá e se despediu polidamente das duas mulheres. A Srta. Gilchrist levou-o até a porta e o ajudou com o casaco. Pela janela da sala, Susan observou-o caminhar vivamente em direção ao portão.

       A Srta. Gilchrist voltou carregando um pequeno pacote.

       — O carteiro deve ter estado aqui enquanto comparecíamos ao inquérito. Ele empurrou o pacote pela caixa postal e ele caiu no canto atrás da porta. Bem, o que será... ora, é claro, deve ser um bolo de noiva.

       Alegremente, a Srta. Gilchrist rasgou o papel. Dentro havia uma pequena caixa branca amarrada com fita prateada.

       — É, sim! — Ela puxou a fita. Dentro havia uma fatia de bolo com recheio de amêndoa e cobertura branca.

       — Que lindo! Mas quem... — Ela leu o cartão que estava afixado. — John e Mary. Quem poderia ser? Que tolice não colocarem o sobrenome!

       Susan, saindo de seus pensamentos, falou distraidamente:

       — Algumas vezes fica bem difícil saber-se de quem se trata com as pessoas usando o primeiro nome. Outro dia recebi um cartão-postal assinado Joan. Conheço oito Joans... e falando-se tanto pelo telefone muitas vezes não se conhece a caligrafia dos amigos.

       A Srta. Gilchrist estava alegremente pensando nos possíveis John e Mary que conhecia.

       — Pode ser a filha de Dorothy... seu nome é Mary, mas não ouvi falar em noivado, muito menos em casamento. Há também o pequeno John Banfield... suponho que ele já tenha crescido o bastante para se casar... ou a menina Enfield... não, seu nome é Margaret. Nenhum endereço nem nada. Oh, bem, acho que de repente vou me lembrar.

       Carregando a bandeja, foi para a cozinha.

       Susan levantou-se e disse:

       — Bem, acho melhor eu ir guardar o carro em algum lugar.

 

Capítulo X

       Susan retirou o carro da pedreira, onde o deixara, e levou-o até a vila. Encontrou um posto de gasolina, mas nenhuma garagem. Foi aconselhada a levá-lo ao King’s Arms. Lá havia onde guardá-lo, e ela o estacionou ao lado de um Daimler que estava prestes a sair. Era dirigido por um motorista, e lá dentro, todo agasalhado, estava um senhor idoso de enormes bigodes.

       O menino com quem Susan falava a respeito do carro estava tão absorto encarando-a que parecia não estar entendendo nem a metade do que ela dizia.

       Por fim, perguntou, atemorizado:

       — A senhora é sobrinha dela, não é?

       — O quê?

       — A senhora é sobrinha da vítima, não é? — repetiu o menino com certo prazer.

       — Oh, sim, sou.

       — Ah, estava pensando onde a tinha visto antes.

       “Parecem uns urubus”, pensou Susan, enquanto tomava o caminho para o chalé.

       A Srta. Gilchrist recebeu-a dizendo:

       — Oh, ainda bem que a senhora está de volta e salva — falou em tom de alívio, que irritou Susan ainda mais. A Srta. Gilchrist acrescentou, ansiosa: — A senhora come espaguete, não come? Eu pensei que para hoje à noite...

       — Oh, sim, qualquer coisa está bem. Não estou com muita fome.

       — Posso me gabar de fazer um espaguete au gratin muito gostoso.

       A autopromoção não era sem motivo. A Srta. Gilchrist, refletiu Susan, era realmente uma excelente cozinheira. Susan ofereceu-se para ajudar na lavagem da louça, mas a Srta. Gilchrist, embora evidentemente agradecida pela oferta, garantiu a Susan que havia muito pouco a fazer.

       Pouco depois, ela voltou trazendo o café. Este não estava tão bom, estava decididamente fraco. A Srta. Gilchrist ofereceu a Susan um pedaço do bolo de noiva. Susan recusou.

       — É realmente um bolo muito bom — insistiu a Srta. Gilchrist, provando um pedaço. Ela havia decidido para sua própria satisfação que deveria ter sido mandado por alguém a quem ela se referia como “a querida filha de Ellen, que eu sei que estava noiva, mas cujo nome não consigo me lembrar”.

       Susan deixou a Srta. Gilchrist tagarelar bastante antes de iniciar seu próprio assunto de conversa. Este momento, após o jantar, sentadas diante da lareira, era de aproximação.

       Afinal ela disse:

       — Meu tio Richard veio aqui antes de morrer, não veio?

       — Sim, veio.

       — Quando foi isso exatamente?

       — Deixe-me ver... deve ter sido uma, duas... quase três semanas antes de sua morte.

       — Ele parecia doente?

       — Bem, não. Não diria que parecesse propriamente doente. Possuía umas maneiras bastante vigorosas. A Sra. Lansquenet ficou muito surpresa em vê-lo. Ela disse: “Ora, Richard, depois desses anos todos!”. Ao que ele respondeu: “Vim ver pessoalmente como você estava”. E a Sra. Lansquenet disse: “Estou bem”. Sabe, acho que ela ficou um pouquinho ofendida por ele aparecer tão casualmente depois daquele tempo todo. De qualquer modo, o Sr. Abernethie disse: “Não vale a pena guardar velhas mágoas. Você, eu e Timothy somos os únicos que restamos, e ninguém consegue falar com Timothy a não ser sobre sua saúde”. E acrescentou: “Parece que Pierre a fez feliz. Sendo assim, acho que me enganei. Pronto, isso a satisfaz?” Ele falou de uma maneira muito gentil. Era um homem bonito, apesar de idoso, é claro.

       — Quanto tempo ele permaneceu aqui?

       — Ele ficou para o almoço. Preparei bifes à milanesa. Felizmente foi no dia em que o açougueiro apareceu.

       A memória da Srta. Gilchrist parecia ser essencialmente culinária.

       — Davam a impressão de estarem se entendendo bem?

       — Oh, sim.

       Susan fez uma pausa e retomou o assunto em seguida:

       — Tia Cora ficou surpresa quando ele morreu?

       — Oh, sim, foi bastante repentino, não foi?

       — Sim, foi repentino... quero dizer... ela ficou realmente surpresa? Ele não dera nenhuma indicação do quanto estava doente?

       — Oh, entendo o que quer dizer. — A Srta. Gilchrist calou-se por um momento. — Não, não, acho que a senhora tem razão. Ela chegou a comentar que ele estava muito velho... creio que ela disse senil...

       — A senhora, entretanto, não o achou senil?

       — Bem, não na aparência. Mas eu não conversei muito com ele; naturalmente, deixei-os sozinhos.

       Susan examinou a Srta. Gilchrist, pensativa. Seria ela o tipo de mulher que ouvia atrás das portas? Era honesta, Susan estava certa quanto a esse ponto. Nunca roubaria ou abriria cartas. Contudo, a curiosidade pode vir envolta numa capa de retidão. A Srta. Gilchrist poderia ter achado necessário cuidar do jardim perto de uma janela aberta, ou varrer o hall... isso estaria dentro dos limites permitidos. E então, é claro, ela não poderia ter deixado de ouvir alguma coisa.

       — A senhora não ouviu nada da conversa dos dois? — indagou Susan.

       Fora abrupto demais. A Srta. Gilchrist corou de raiva.

       — Não, Sra. Banks. Nunca tive o hábito de ouvir por trás das portas!

       O que significava que ela costumava escutar, caso contrário diria simplesmente não.

       — Sinto muito, Srta. Gilchrist. Não era bem isso que eu queria dizer. Porém, algumas vezes, nesses pequenos chalés de paredes finas, a pessoa simplesmente não pode evitar de ouvir quase tudo o que está se passando. E, agora que ambos estão mortos, é realmente muito importante para a família saber exatamente o que foi dito naquele encontro.

       O chalé era tudo menos uma construção precária. Datava de uma era de construções sólidas, mas mesmo assim a Srta. Gilchrist aceitou o engodo, mostrando-se à altura da situação.

       — A senhora tem razão, Sra. Banks... esta é mesmo uma casa muito pequena, e compreendo que queira saber o que se passou entre os dois, mas infelizmente não posso ser de muita ajuda. Creio que estavam falando a respeito da saúde do Sr. Abernethie... e certas... bem, fantasias que ele tinha. Ele não dava a impressão, mas devia ser um homem muito doente, e como muitas vezes acontece ele atribuía sua doença a fatores externos. Creio que é uma reação comum. Minha tia...

       A Srta. Gilchrist descreveu sua tia.

       Susan, tal como o Sr. Entwhistle, desviou o assunto.

       — Sim — disse ela. — Foi exatamente isso que pensamos. Os empregados de meu tio eram muito afeiçoados a ele e logicamente ficaram perturbados por ele pensar... — ela fez uma pausa.

       — Oh, é evidente. Empregados são muito sensíveis a esse respeito. Lembro-me de que minha tia...

       Novamente Susan a interrompeu.

       — Suponho que ele suspeitasse dos empregados? Quero dizer, de quererem envenená-lo?

       — Eu não sei... eu... realmente...

       Susan notou o quanto ela estava confusa.

       — Se não eram os criados, quem era?

       — Não sei, Sra. Banks. Sinceramente, não sei.

       Seus olhos, entretanto, evitaram encarar os de Susan. Susan concluiu que a Srta. Gilchrist sabia mais do que estava disposta a admitir.

       Era provável que a Srta. Gilchrist soubesse de muita coisa...

       Decidindo não fazer pressão sobre o assunto naquele momento, Susan perguntou:

       — Quais são seus planos para o futuro, Srta. Gilchrist?

       — Bem, na verdade eu ia tocar neste assunto com a senhora. Eu disse ao Sr. Entwhistle que estaria disposta a permanecer aqui até que tudo fosse ajeitado.

       — Eu sei, e fico muito agradecida.

       — Gostaria de saber quanto tempo isso levará porque, é claro, devo começar a procurar um outro trabalho.

       Susan refletiu.

       — Na realidade, não há muito o que fazer aqui. Em poucos dias posso arrumar tudo e notificar o leiloeiro.

       — Então a senhora resolveu mesmo vender tudo?

       — Sim. Acho que não haverá nenhuma dificuldade quanto ao chalé.

       — Oh, não, estou certa de que as pessoas formarão filas. Existem muito poucos chalés para alugar. Quase sempre é necessário comprá-los.

       — Então, é tudo muito simples. — Susan hesitou por um momento antes de falar. — Gostaria de lhe dizer... que espero que aceite três meses de salário.

       — Isso é muita generosidade de sua parte, Sra. Banks. Eu agradeço. E será que a senhora poderia... quero dizer, posso pedir-lhe... se necessário... para... para me dar uma carta de recomendação? Dizendo que eu trabalhei para uma parenta sua e que a servi satisfatoriamente?

       — Oh, é claro.

       — Não sei se deveria lhe pedir isso. — As mãos da Srta. Gilchrist começaram a tremer e ela procurou firmar a voz. — Mas seria possível não mencionar as... as circunstâncias... ou até mesmo o nome?

       Susan encarou-a.

       — Eu não estou compreendendo.

       — É porque a senhora não parou para pensar, Sra. Banks. Foi um caso de assassinato. Um crime que saiu nos jornais e que todo mundo leu a respeito. Não entende? As pessoas poderão pensar: “Duas mulheres morando juntas e uma delas é assassinada... talvez tenha sido a outra”. Percebe agora, Sra. Banks? Estou certa de que se eu estivesse procurando uma empregada, eu... bem, eu pensaria duas vezes antes de contratar alguém como eu... se é que compreende o que quero dizer. Porque nunca se sabe! Isso tem me preocupado terrivelmente. Tenho ficado acordada a noite inteira pensando que talvez não consiga outro trabalho... não desse tipo. E o que mais sei fazer?

       A pergunta foi feita com emoção inconsciente. Susan sentiu-se repentinamente atingida. Ela compreendeu o desespero daquela mulher agradável e simples, cuja existência dependia dos medos e caprichos dos patrões. E havia muita verdade no que a Srta. Gilchrist dissera. Ninguém, se pudesse evitar, empregaria uma mulher para compartilhar de sua intimidade doméstica que tivesse participado, ainda que inocentemente, de um caso de assassinato.

       — Mas se eles descobrirem o assassino... — disse Susan.

       — Oh, neste caso, é claro, estaria tudo bem. Mas será que vão descobrir? Não creio que a polícia tenha a menor idéia de quem seja. E se não for apanhado... bem, isso me deixa como... como, bem, não como a principal suspeita, mas como uma pessoa que poderia ter cometido o crime.

       Susan balançou a cabeça, pensativa. A verdade era que a Srta. Gilchrist não havia se beneficiado com a morte de Cora Lansquenet... mas quem sabia disso? E, além do mais, existiam tantas histórias... Histórias feias, de animosidade crescendo entre mulheres que moram juntas, estranhos motivos patológicos que levam a súbitas violências. Alguém que não as tivesse conhecido poderia imaginar que Cora Lansquenet e a Srta. Gilchrist haviam vivido nesse clima.

       Susan falou com sua habitual maneira decidida.

       — Não se preocupe, Srta. Gilchrist — disse viva e animadamente. — Estou certa de que posso lhe arrumar um trabalho com algum dos meus amigos. Não haverá a menor dificuldade.

       — Receio — respondeu a Srta. Gilchrist, recuperando em parte seus modos costumeiros — que eu não possa dar conta de nenhum trabalho pesado. Apenas cozinhar e trabalhos domésticos...

       O telefone tocou e a Srta. Gilchrist sobressaltou-se.

       — Minha nossa, quem será?

       — Espero que seja meu marido — disse Susan levantando-se, apressada. — Ele falou que me telefonaria hoje à noite.

       Dirigiu-se ao telefone.

       — Sim?... Sim, é a Sra. Banks quem está falando...

       Houve uma pausa e em seguida sua voz mudou. Tornou-se macia e quente.

       — Alô, querido... sim, sou eu... Oh, tudo bem... Assassinada por algum desconhecido... as coisas de costume... Apenas o Sr. Entwhistle... O quê?... é difícil dizer, mas acho que sim... Sim, exatamente como pensamos... Inteiramente de acordo com o plano... Vou vender tudo. Não há nada que gostaríamos... Não, por um dia ou dois... Completamente assustador. Não se exalte, sei o que estou fazendo...  Greg, você não...  Você tomou cuidado em... Não, não é nada. Nada em absoluto. Boa noite, querido.

       Ela desligou. A proximidade da Srta. Gilchrist deixou-a um pouco embaraçada. A Srta. Gilchrist poderia ouvir a conversa da cozinha, para onde ela se retirara discretamente. Havia coisas que ela gostaria de ter perguntado a Greg, mas achara melhor não fazê-lo.

       Permaneceu perto do telefone, com expressão preocupada. De repente, teve uma idéia.

       — É claro — ela murmurou. — É isso mesmo.

       Tirando o telefone do gancho ligou para o interurbano. Uns quinze minutos depois, uma voz cansada dizia:

       — Lamento, porém não respondem.

       — Por favor, continue tentando.

       Susan falava em tom autoritário. Escutava ao longe o som da campainha do telefone. Então, de repente, esse som foi interrompido por uma voz de homem, irritada e ligeiramente indignada:

       — Sim, sim, o que é?

       — Tio Timothy?

       — O que disse? Não consigo ouvir.

       — Tio Timothy? É Susan Banks.

       — Susan o quê?

       — Banks. Abernethie de solteira, sua sobrinha Susan.

       — Oh, é Susan? O que houve? Por que está telefonando a esta hora da noite?

       — Ainda é bastante cedo.

       — Não é, não. Eu já estava deitado.

       — Então o senhor deve ir para a cama muito cedo. Como vai tia Maude?

       — Foi só para perguntar isso que você ligou? Sua tia está com muitas dores e não pode fazer coisa alguma. Nada. Está imprestável. Estamos numa bela confusão! O idiota do médico diz que nem ao menos pode conseguir uma enfermeira. Queria levar Maude para o hospital, mas me mantive firme contra a idéia. Ele está tentando arranjar alguém para ficar conosco. Não posso fazer nada... não me atrevo nem a tentar. Tem uma idiota que veio da vila passar a noite aqui, mas está resmungando sobre voltar para o marido. Não sei o que vamos fazer.

       — É por isso que telefonei. Gostaria de ficar com a Srta. Gilchrist?

       — Quem é ela? Nunca ouvi falar a seu respeito.

       — Era a dama de companhia de tia Cora. É muito agradável e competente.

       — Sabe cozinhar?

       — Sim, cozinha muito bem, e poderá cuidar de tia Maude.

       — Está tudo muito bem, mas quando é que ela poderá vir? Aqui estou eu, tendo que me arranjar sozinho com essas mulheres idiotas da vila entrando e saindo daqui a toda hora, e isto não é bom para mim. Meu coração está se ressentindo.

       — Providenciarei para que ela chegue aí o mais rápido possível. Talvez depois de amanhã.

       — Bem, muito obrigado. — A voz denotava uma certa má vontade. — Você é uma boa moça, Susan... ahn... obrigado.

       Susan desligou e foi até a cozinha.

       — Estaria disposta a ir para Yorkshire e cuidar de minha tia? Ela levou um tombo e quebrou o tornozelo, e meu tio não serve para nada. Ele é uma peste, mas tia Maude é uma ótima pessoa. Eles recebem ajuda da vila, mas a senhora poderia cozinhar e tratar de tia Maude.

       Em sua agitação, a Srta. Gilchrist deixou cair o bule de café.

       — Oh, obrigada, obrigada, isto é muita bondade sua. Acho que posso realmente afirmar que sou eficiente em matéria de enfermagem, e estou certa de que posso cuidar de seu tio e preparar-lhe refeições gostosas. Francamente, Sra. Banks, é muita bondade sua. Fico-lhe muito grata.

 

Capítulo XI

       Susan estava deitada esperando o sono chegar. Tinha tido um dia comprido e sentia-se cansada. Pensara que adormeceria imediatamente. Nunca tivera nenhuma dificuldade para dormir. Contudo, lá estava ela, deitada, hora após hora, completamente desperta, a mente trabalhando sem cessar.

       Ela dissera que não se incomodaria de dormir naquele quarto, naquela cama. Naquela cama onde Cora Lansquenet... Não, não, ela precisava tirar aqueles pensamentos da cabeça. Sempre se orgulhara de possuir nervos de aço. Por que pensar naquela tarde há menos de uma semana? Deveria pensar adiante... pensar no futuro. No seu futuro e no de Greg. Aquele prédio na Cardigan Street era exatamente o que eles haviam sonhado. A loja no andar de baixo e no andar superior um apartamento simpático. O quarto que ficava nos fundos da casa serviria de laboratório para Greg. Por questões de imposto de renda seria um excelente arranjo. Greg se acalmaria e ficaria bom novamente. Não teria mais daquelas crises alarmantes. Às vezes, ele olhava para ela parecendo não saber quem ela era. Uma ou duas vezes ela ficara bastante amedrontada... E o velho Sr. Cole havia insinuado, chegando mesmo a ameaçar: “Se isto tornar a acontecer...” E poderia ter acontecido novamente... teria acontecido, se tio Richard não tivesse morrido exatamente quando morreu...

       Tio Richard... mas por que ver os fatos sob este prisma? Ele não tinha mais motivo para querer viver. Velho, cansado e doente. O filho morto. Na verdade, fora uma bênção para ele. Morrera tranqüilamente, durante o sono. Tranqüilo... em seu sono... Se ao menos ela conseguisse dormir. Era uma estupidez ficar deitada acordada hora após hora... ouvindo a mobília ranger, o sussurro das árvores e das folhagens do lado de fora e o estranho e melancólico piar que ela supunha ser de uma coruja. De certa forma, o campo era bastante sinistro. Tão diferente da cidade grande e barulhenta! Lá a pessoa se sentia segura... cercada de gente... nunca sozinha. Ao passo que aqui...

       Casas onde assassinatos eram cometidos, algumas vezes se tornavam assombradas. Talvez aquele chalé viesse a ser conhecido como o chalé mal-assombrado. Povoado pelo espírito de Cora Lansquenet... tia Cora. Era realmente estranho como desde o momento em que chegara havia sentido como se Cora estivesse perto dela... ao seu alcance. Tudo puro nervosismo e fantasia. Cora Lansquenet estava morta e amanhã seria enterrada. E não havia ninguém na casa a não ser ela e a Srta. Gilchrist. Então por que sentia a presença de alguém naquele quarto, alguém bem perto dela...

       Era nessa cama que Cora tinha estado deitada quando fora atacada por uma machadinha. Dormindo confiante... Não sabendo de nada até ser golpeada... E agora ela não deixava Susan dormir.

       A mobília voltou a ranger... ou teria sido um passo furtivo? Susan acendeu a luz. Nada. Nervos, nada além de nervos. Relaxe... feche os olhos.

       Aquilo sem dúvida tinha sido um suspiro... um suspiro ou um leve gemido. Alguém com dores... alguém morrendo...

       — Não devo imaginar coisas, não devo — murmurou Susan para si mesma.

       A morte era o fim... não havia existência após a morte. Sob nenhuma circunstância alguém poderia voltar. Ou estaria ela revivendo uma cena do passado... uma mulher morrendo, gemendo...

       Outra vez... mais forte... alguém gemendo de dor.

       Mas... isso era real. Susan tornou a acender a luz, sentou-se na cama e prestou atenção. Os gemidos eram verdadeiros e ela os estava ouvindo através da parede. Vinham do quarto ao lado. Susan levantou-se bruscamente e vestindo o penhoar saiu do quarto. Batendo na porta do quarto da Srta. Gilchrist, entrou logo em seguida. A luz estava acesa. A Srta. Gilchrist estava sentada na cama, extremamente pálida, com o rosto desfigurado pela dor.

       — O que há, Srta. Gilchrist? Está doente?

       — Sim. Não sei o que eu... — Ela tentou sair da cama, mas teve um acesso de vômitos e caiu de volta nos travesseiros.

       Ela murmurou: — Por favor, telefone para o médico. Devo ter comido alguma coisa...

       — Vou apanhar bicarbonato. Poderemos chamar o médico pela manhã, se a senhorita não melhorar.

       A Srta. Gilchrist balançou a cabeça.

       — Não, chame o médico agora. Estou me sentindo péssima.

       — Sabe o número do telefone ou devo procurar na lista telefônica?

       A Srta. Gilchrist deu-lhe o número. Foi interrompida por um outro acesso de vômito.

       A chamada de Susan foi respondida por uma sonolenta voz de homem.

       — Quem? Gilchrist? Em Mead’s Lane. Sim, eu conheço. Irei já.

       Ele cumpriu realmente a palavra. Dez minutos depois Susan ouviu o automóvel chegar e foi abrir a porta.

       Explicou o caso à medida que subiam as escadas. — Acho — comentou ela — que ela deve ter comido alguma coisa que lhe fez mal.

       O médico tinha o ar de uma pessoa controlada e que já se acostumara a atender chamados desnecessários. Contudo, assim que examinou a mulher lamurienta, sua expressão mudou. Deu várias ordens a Susan e desceu rapidamente para telefonar. Em seguida, juntou-se a Susan na sala.

       — Chamei a ambulância. É preciso levá-la para o hospital imediatamente.

       — Então, ela está realmente mal?

       — Sim. Apliquei-lhe morfina para acalmar a dor. Mas parece... — Ele se calou. — O que ela comeu?

       — Comemos espaguete au gratin e pudim no jantar. E depois café.

       — A senhora comeu as mesmas coisas?

       — Sim.

       — E está se sentindo bem? Nenhuma dor ou mal-estar?

       — Não.

       — Ela não comeu nada mais além disso? Nenhum peixe em conserva ou lingüiça?

       — Não. Almoçamos no King’s Arms... depois do inquérito.

       — Sim, é claro. A senhora é sobrinha da Sra. Lansquenet?

       — Sim.

       — Foi um negócio sórdido. Espero que capturem o culpado.

       — Sim, realmente.

       A ambulância chegou. Levaram a Srta. Gilchrist e o médico a acompanhou. Disse a Susan que lhe telefonaria de manhã. Assim que o médico se retirou, ela subiu e foi se deitar.

       Dessa vez adormeceu assim que sua cabeça tocou o travesseiro.

      

       O funeral foi bem concorrido. A maioria dos moradores da vila compareceu. Susan e o Sr. Entwhistle eram os únicos de luto, mas várias coroas de flores haviam sido enviadas pelos outros membros da família.

       O Sr. Entwhistle perguntou pela Srta. Gilchrist, e Susan explicou o ocorrido num sussurro apressado. O Sr. Entwhistle levantou as sobrancelhas.

       — É um fato um tanto estranho, não?

       — Oh, ela já está melhor hoje. Telefonaram-me do hospital. As pessoas costumam ter esses embrulhos estomacais. Algumas fazem mais espalhafato a respeito do que outras.

       O Sr. Entwhistle não disse mais nada. Ele iria voltar para Londres imediatamente após o funeral.

       Susan voltou para o chalé. Encontrou alguns ovos e preparou uma omelete. Em seguida, subiu para o quarto de Cora e começou a remexer nos pertences da morta.

       Foi interrompida pela chegada do médico.

       Parecia preocupado. Respondeu à pergunta de Susan dizendo que a Srta. Gilchrist estava bem melhor.

       — Terá alta daqui a alguns dias — afirmou ele. — Foi sorte a senhora ter me chamado logo. De outro modo... ela poderia não ter escapado.

       Susan o encarou.

       — Ela esteve assim tão mal?

       — Sra. Banks, poderia me dizer exatamente o que a Srta. Gilchrist comeu e bebeu ontem? Tudo.

       Susan refletiu e deu um relato minucioso. O médico balançou a cabeça, insatisfeito.

       — Ela deve ter comido alguma coisa que a senhora não comeu.

       — Não creio...  Bolinhos, geléia, chá... e depois o jantar. Não, não consigo me lembrar de mais nada.

       O médico esfregou o nariz. Andou de um lado para o outro.

       — Está certo de que foi alguma coisa que ela comeu? Comida envenenada? — indagou Susan.

       O médico lançou-lhe um olhar penetrante. Então pareceu chegar a uma decisão.

       — Foi arsênico — afirmou ele.

       — Arsênico? — espantou-se Susan. — Quer dizer que alguém lhe deu arsênico?

       — É o que parece.

       — Ela poderia ter tomado por vontade própria? Quero dizer, deliberadamente?

       — Suicídio? Ela diz que não e ela deve saber. Além disso, se quisesse se suicidar não seria provável que escolhesse arsênico. Há pílulas para dormir aqui no chalé. Poderia tomar uma dose excessiva.

       — O arsênico poderia ter sido colocado em alguma coisa por acidente?

       — É nisso que estou pensando. Parece muito improvável, mas já houve casos. Mas se a senhora e ela comeram as mesmas coisas...

       Susan balançou a cabeça. Ela disse:

       — Tudo parece impossível... — De repente exclamou: — Ora, mas é claro, o bolo de noiva!

       — O que disse? Bolo de noiva?

       Susan explicou ao médico, que escutou com grande atenção.

       — Estranho! E a senhora diz que ela não tinha certeza de quem o mandara? Sobrou algum pedaço, ou pelo menos a caixa em que ele veio está por aí?

       — Não sei. Vou ver.

       Procuraram juntos e por fim encontraram, no armário da cozinha, a caixa de cartolina branca com algumas migalhas de bolo. O médico recolheu-as com bastante cuidado.

       — Levarei isso. Tem alguma idéia de onde possa estar o papel que embrulhava a caixa?

       Nisso eles não tiveram sucesso, e Susan falou que provavelmente havia sido queimado no incinerador.

       — A senhora ainda ficará aqui alguns dias, não, Sra. Banks?

       Apesar de seu tom cordial, Susan se sentiu um pouco desconfortável.

       — Sim, preciso cuidar dos pertences de minha tia.

       — Ótimo. A senhora entende, a polícia possivelmente vai querer lhe fazer algumas perguntas. A senhora não sabe de ninguém que... bem, tivesse raiva da Srta. Gilchrist?

       Susan balançou a cabeça.

       — Na realidade, sei muito pouco a respeito dela. Trabalhava para minha tia há muitos anos... isso é tudo o que sei.

       — Certo, certo. Sempre me pareceu uma mulher agradável e simples... bastante comum. Diria que não era o tipo de pessoa que possuísse inimigos ou qualquer coisa melodramática. Bolo de noiva enviado pelo correio. Parece coisa de alguma mulher invejosa... mas quem sentiria inveja da Srta. Gilchrist? Nada parece encaixar.

       — Não.

       — Bem, preciso me retirar. Não sei o que está acontecendo em nossa pequena Lytchett St. Mary. Primeiro, um assassinato brutal e, agora, uma tentativa de envenenamento pelo correio. Estranho, um em seguida ao outro.

       Saiu e encaminhou-se para o automóvel. O chalé estava abafado e Susan deixou a porta aberta enquanto subia, vagarosamente, para terminar sua tarefa.

       Cora Lansquenet não havia sido uma mulher nem arrumada nem metódica. Suas gavetas eram um confuso agrupamento de coisas. Havia artigos de toalete, cartas, lenços velhos, escovas, tudo misturado numa gaveta. Havia algumas cartas antigas e contas no meio de uma gaveta entupida de roupa íntima. Em outra gaveta, debaixo de alguns casacos de lã, havia uma caixa de papelão com duas franjas postiças. Numa outra, fotografias antigas e um álbum de recortes. Susan deteve-se numa fotografia de um grupo, tirada, evidentemente, em algum lugar da França. Mostrava uma Cora mais jovem e magra agarrada ao braço de um homem alto e esbelto, de barba irregular, usando um casaco que parecia de veludo, e que Susan presumiu tratar-se do falecido Pierre Lansquenet.

       As fotografias interessavam a Susan, mas ela as deixou de lado, apanhou todos os papéis que encontrara e começou a examiná-los cuidadosamente. Pouco depois encontrou uma carta. Leu-a duas vezes e ainda a estava olhando fixamente quando uma voz vinda de trás dela fez com que desse um grito de susto.

       — O que foi que você encontrou aí, Susan?

       Susan enrubesceu, contrariada. O seu grito havia sido involuntário; sentiu-se envergonhada e ficou ansiosa para explicar.

       — George! Que susto você me deu!

       Seu primo sorriu preguiçosamente.

       — É o que parece.

       — Como foi que você chegou aqui?

       — Bem, a porta da frente estava aberta, então entrei. Parecia não haver ninguém lá embaixo, por isso subi. Mas, se está se referindo a como foi que eu vim parar nesta parte do mundo, comecei a viagem para cá esta manhã para assistir ao funeral.

       — Mas eu não vi você por lá.

       — A camioneta pregou-me uma peça. Parece que a bomba de gasolina estava entupida. Depois de muito custo consegui consertá-la. Àquela altura, eu estava muito atrasado para o enterro, mas achei que, como me encontrava aqui, poderia muito bem vir vê-la. Sabia que você tinha vindo para cá.

       Ele fez uma pausa e depois prosseguiu:

       — Aliás, eu lhe telefonei e Greg me informou que você viria receber a herança. Achei que poderia lhe dar uma ajuda.

       — Não precisam de você no escritório? Ou você pode tirar folga sempre que deseja?

       — Um funeral sempre foi considerado motivo para faltar ao trabalho. E este é indubitavelmente verdadeiro. Além do mais, sempre fascina as pessoas. De qualquer maneira, no futuro não deverei ir muito ao escritório, não agora que sou um homem de posses. Terei coisas melhores para fazer.

       Calou-se e sorriu.

       — Tal como Greg — observou ele.

       Susan olhou para George, pensativa. Nunca tivera muito contato com o primo e nas poucas vezes em que se encontraram ela sempre achara difícil decifrá-lo.

       — Por que foi que você realmente veio até aqui, George?

       — Garanto-lhe que não foi para bancar o detetive. Estive pensando bastante a respeito do último funeral a que comparecemos. Naquele dia, tia Cora certamente conseguiu tumultuar o ambiente. Tenho me perguntado se foram a alegre irresponsabilidade e a joie de vivre de nossa tia que a induziram a dizer aquelas palavras ou se na verdade tinha alguma base para falar aquilo. O que há nesta carta que você estava lendo com tanta atenção quando eu entrei?

       — É uma carta que tio Richard escreveu para Cora depois que esteve aqui para vê-la.

       Como eram negros os olhos de George! Ela sempre imaginara que eles eram castanhos, mas na realidade eram pretos. E havia nesses olhos alguma coisa de estranhamente impenetrável. Escondiam os pensamentos que havia por trás deles.

       — Encontrou alguma coisa interessante na carta? — perguntou George arrastando as palavras.

       — Não, não exatamente...

       — Posso ver?

       Ela hesitou por um momento e então entregou-lhe a carta.

       Ele leu passando por cima de certos trechos, num tom monótono.

       — “Fiquei satisfeito em vê-la depois de todos esses anos... está com ótima aparência... fiz boa viagem de volta e não cheguei muito cansado...”

       De repente sua voz mudou, ganhando veemência:

       — “Por favor, não comente com ninguém a respeito do que eu lhe contei. Pode ser um engano. Seu irmão, Richard.”

       George olhou para Susan.

       — O que significa isso?

       — Pode significar qualquer coisa... Pode estar se referindo à saúde dele, ou pode ser algum boato a respeito de um amigo comum.

       — Oh, sim, pode ser uma porção de coisas. Não é conclusivo, mas é sugestivo... O que ele disse a Cora? Alguém sabe o que ele disse a ela?

       — A Srta. Gilchrist é capaz de saber — comentou Susan, pensativa. — Acho que ela ouviu a conversa.

       — Oh, sim, a dama de companhia. A propósito, onde está ela?

       — No hospital, vítima de envenenamento por arsênico.

       George arregalou os olhos.

       — Você não está falando sério!

       — Estou. Alguém lhe enviou um bolo de casamento envenenado.

       George sentou-se numa das cadeiras do quarto e assobiou.

       — Parece que tio Richard não estava enganado — disse ele.

      

       Na manhã seguinte, o Inspetor Morton apareceu no chalé.

       Era um homem calmo, de meia-idade, com leve sotaque do interior. Suas maneiras eram calmas e pausadas embora os olhos fossem astutos.

       — A senhora compreende do que se trata, não, Sra. Banks? — perguntou. — O Dr. Proctor já lhe falou a respeito da Srta. Gilchrist. As migalhas do bolo que ele levou daqui foram analisadas e apresentaram traços de arsênico.

       — Então alguém queria deliberadamente envenená-la.

       — É o que parece. A própria Srta. Gilchrist não está sendo capaz de nos ajudar. Fica repetindo que é impossível, que ninguém faria tal coisa. Mas alguém fez. Será que a senhora poderia nos ajudar a esclarecer o assunto?

       Susan balançou a cabeça.

       — Estou simplesmente perplexa — respondeu. — O senhor não conseguiu descobrir nada no correio? E quanto à caligrafia?

       — A senhora se esqueceu? O papel provavelmente foi queimado. E há dúvida de que tenha realmente vindo pelo correio. O jovem Andrews, o motorista da camioneta dos Correios, não consegue se lembrar de tê-lo entregue. Ele serve a uma grande área e não pode ter certeza.

       — Mas então qual é a alternativa?

       — A alternativa, Sra. Banks, é a de que tenha sido usado um velho pedaço de papel já com o nome e o endereço da Srta. Gilchrist e um selo usado. E que o pacote tenha sido empurrado pela caixa postal ou colocado atrás da porta por alguém para dar a impressão de ter vindo pelo correio.

       Ele acrescentou, calmamente:

       — É uma idéia bem esperta, escolher um bolo de noiva. Mulheres de meia-idade são sentimentais a esse respeito. Ficam satisfeitas de serem lembradas. Uma caixa de doces ou algo assim poderia ter despertado suspeita.

       Susan falou vagarosamente:

       — A Srta. Gilchrist especulou um bocado sobre quem poderia tê-lo mandado, mas não estava nem um pouco desconfiada. Como o senhor mesmo disse, ela ficou contente e também envaidecida. — Acrescentou: — Havia veneno bastante para matá-la?

       — Isto é difícil de responder até que se saiba o resultado da análise de quantidade. Depende muito de a Srta. Gilchrist ter comido ou não um pedaço inteiro. Ela parece achar que não. A senhora não se lembra?

       — Não, não estou certa. Ela me ofereceu um pedaço, mas eu recusei. Ela então comeu um pedaço e comentou que estava muito bom, mas não consigo me lembrar se ela comeu tudo.

       — Se a senhora não se incomodar, eu gostaria de ir lá em cima.

       — À vontade.

       Ela o acompanhou ao quarto da Srta. Gilchrist. Falou, desculpando-se:

       — Receio que esteja todo desarrumado. Mas, com o enterro de minha tia, não tive tempo de ajeitar nada. E depois da visita do Dr. Proctor, achei que seria melhor não mexer em nada.

       — Isso foi muito inteligente da sua parte, Sra. Banks. Nem todo mundo agiria assim.

       Ele foi até a cama e escorregando a mão por baixo do travesseiro levantou-o cuidadosamente. Um sorriso calmo surgiu em seu rosto.

       — Aí está — disse ele.

       Em cima do lençol havia um pedaço de bolo com aparência um tanto deteriorada.

       — Que extraordinário! — exclamou Susan.

       — Oh, não, não é. Talvez sua geração não faça isso. As jovens hoje em dia talvez não tenham tanto empenho em se casar, mas é um velho costume. Coloque um pedaço de bolo de noiva debaixo de seu travesseiro e sonhará com seu futuro marido.

       — Mas certamente a Srta. Gilchrist...

       — Ela não queria nos contar porque sentia-se tola em fazer tal coisa na sua idade. Mas eu tinha um palpite de que se tratava disso. E, se não fosse por uma tolice de solteirona, a Srta. Gilchrist talvez não estivesse viva hoje.

       — Mas quem poderia querer matá-la?

       Os olhos dele encontraram os de Susan, e seu olhar estranhamente inquiridor fez com que ela se sentisse pouco à vontade.

       — A senhora não sabe? — perguntou ele.

       — Não... é claro que não.

       — Então parece que teremos que descobrir — finalizou o Inspetor Morton.

 

Capítulo XII

       Dois homens idosos estavam sentados juntos, numa sala cuja mobília era do tipo mais moderno que existia. Não havia curvas na sala. Tudo era em linha reta. Talvez a única exceção fosse o próprio Hercule Poirot, que era cheio de curvas. Sua barriga era agradavelmente redonda, a cabeça tinha o formato de um ovo, o bigode era virado para cima de maneira atrevida.

       Saboreava um copo de sirop enquanto olhava para o Sr. Goby. O Sr. Goby era pequeno, magro e encolhido. Sua aparência sempre fora confortavelmente apagada e agora era tão apagada como se praticamente não estivesse ali.

       Não estava olhando para Poirot, pois o Sr. Goby nunca olhava diretamente para alguém. Os comentários que agora fazia pareciam endereçados à lareira que havia no canto esquerdo da sala.

       O Sr. Goby era famoso por conseguir informações. Poucas pessoas o conheciam e muito poucos contratavam seus serviços. E esses poucos eram normalmente muito ricos. Tinham que ser, pois o Sr. Goby cobrava muito caro seu trabalho. Sua especialidade era conseguir informações com rapidez. Ao estalar de seus dedos, centenas de homens e mulheres, trabalhadores, velhos, jovens, eram rapidamente enviados para questionar, investigar e conseguir resultados.

       Hoje em dia o Sr. Goby estava praticamente aposentado. Por vezes, porém, ele “obsequiava” algum antigo cliente. Hercule Poirot era um desses.

       — Consegui o que foi possível — falou o Sr. Goby num sussurro confidencial, olhando para a lareira. — Coloquei os rapazes para trabalhar. Eles fazem o que podem, são bons rapazes, todos eles, mas não são como os de antigamente. O problema é que não estão dispostos a aprender. Pensam que depois de poucos anos neste serviço sabem tudo. Limitam-se a trabalhar dentro do horário. Chega a ser chocante.

       Ele balançou a cabeça tristemente e desviou o olhar para um interruptor.

       — É o governo -— ele afirmou. — É essa educação moderna. Enchem as suas cabeças de idéias. Voltam e nos dizem o que pensam. Seja lá como for, a maioria deles não pode pensar. Tudo o que sabem aprenderam nos livros. E isso de nada serve em nosso trabalho. Tragam as respostas, é só disso que eu preciso... nada de pensar.

       O Sr. Goby afundou-se em sua cadeira e olhou para um abajur.

       — Mas não devemos criticar o governo — continuou ele. — Realmente, não sei o que faríamos sem ele. Posso lhe afirmar que hoje em dia se pode andar em quase qualquer lugar com um livro de notas e uma caneta, vestido corretamente, e, usando uma linguagem adequada e formal, perguntar às pessoas os mais íntimos detalhes de suas vidas diárias e também todo o seu passado, e o que comeram no jantar no dia 23 de novembro, porque este foi um dia de pesquisa sobre o padrão de vida da classe média... ou seja lá o que for (adulando-os para torná-los mais acessíveis). Pergunte-lhes o que bem entender, e em nove vezes em dez eles darão uma resposta exata. E mesmo na décima vez não se afastarão muito da verdade. Não duvidarão por um momento sequer que você não é realmente o que diz ser, e acreditarão que o governo está mesmo desejando saber aquilo tudo... por algum motivo misterioso. Posso assegurar-lhe, Sr. Poirot — disse o Sr. Goby ainda falando para o abajur —, é a melhor linha de trabalho que já tivemos. Muito melhor do que censurar conversas telefônicas, usar disfarces de freiras, escoteiros, etc, embora ainda usemos desses recursos. Sim, nós, investigadores, devemos dar graças a Deus por esta constante vigilância do governo e torcer para que continue sempre assim!

       Poirot permanecia calado. Com a idade, o Sr. Goby se tornara um pouco tagarela, mas no devido tempo ele acabaria por entrar no assunto.

       — Ah — disse o Sr. Goby, e, apanhando um caderninho de notas, pequeno e gasto, começou a folhear as páginas.

       — Aqui está. O Sr. Crossfield. Vamos a ele em primeiro lugar. Apenas os fatos. O senhor não vai querer saber como consegui as informações. Ele trabalha há bastante tempo na Queer Street. Aposta em cavalos, joga... não é muito entusiasmado por mulheres. Vai de vez em quando à França e também a Monte Cario. Passa muito tempo no cassino. É muito esperto e não desconta cheques por lá, mas consegue mais dinheiro do que poderia dispor para viajar. Não entrei em detalhes a esse respeito porque não era isso que o senhor desejava saber. Ele não tem escrúpulos em burlar a lei... e sendo advogado sabe como fazê-lo. Há motivos para se acreditar que estivesse lançando mão de dinheiro entregue a ele para investir. Jogando desenfreadamente na Bolsa e nos cavalos! Falta de critério e de sorte. Tem passado mal nos últimos meses. No escritório andava mal humorado e irritado. Mas, desde que o tio morreu, tudo isso mudou. Atualmente anda muito bem humorado.

       “Agora tratemos da informação pedida. É praticamente certo que a declaração de que no dia em questão ele estava no Hurst Park seja mentirosa. Ele costuma quase que invariavelmente fazer suas apostas com um ou dois bookmakers, e nesse dia eles não o viram. É possível que tenha deixado Paddington de trem para destino ignorado. Um motorista de táxi, que fez uma corrida para Paddington, fez uma identificação um tanto duvidosa da fotografia do Sr. George. Mas eu não confiaria nisso. Ele tem um tipo muito comum, sem nada de marcante. Não Obtivemos nenhum resultado com porteiros, etc, em Paddington. É certo que ele não chegou a Cholsey Station, a estação mais próxima de Lytchett St. Mary. É uma estação pequena, onde os estranhos chamam a atenção. Poderia ter descido em Reading e tomado um ônibus. Lá os ônibus estão sempre cheios, são freqüentes e com várias rotas que passam a cerca de uma milha ou mais de Lytchett St. Mary. Há também ônibus que vão direto para a vila. Entretanto, ele não apanharia nenhum desses... não se seu propósito fosse o que pensamos. Não foi visto em Lytchett St. Mary, mas não era preciso ser visto. Havia outras maneiras de se aproximar sem ter que passar pela vila. Se naquele dia ele foi até o chalé, poderia não estar com a aparência habitual de George Crossfield. Devo conservá-lo no meu caderninho, não acha? Tem um ângulo ligado ao mercado negro que eu quero esclarecer.”

       — Pode conservá-lo — confirmou Hercule Poirot.

       O Sr. Goby molhou a ponta do dedo e virou outra página de seu caderno.

       — O Sr. Michael Shane. Ele é bastante conhecido em sua profissão. A idéia que ele faz de si mesmo é muito melhor do que a que os outros fazem. Quer chegar ao estrelato, e rápido. Gosta de dinheiro e está indo muito bem na carreira. É considerado muito atraente pelas mulheres. Elas se apaixonam por ele com facilidade. Ele também as aprecia... mas os negócios têm prioridade. Está tendo um caso com Sorrel Dainton, que interpretou o papel principal na última peça em que ele atuou, e o marido da Sra. Dainton não gosta dele. A Sra. Rosamund Shane não sabe sobre o caso. Parece que não sabe de muita coisa a respeito de nada. Ela não é lá uma grande artista, mas é muito bonita. É louca pelo marido. Há rumores de que há pouco tempo quase houve um rompimento entre os dois. Mas parece que agora isso já passou. Passou desde a morte do Sr. Richard Abernethie.

       O Sr. Goby enfatizou esta última parte balançando a cabeça significativamente para uma almofada no sofá.

       — O Sr. Shane declarou que no dia em questão teve um encontro com um tal de Sr. Rosenheim e um tal de Sr. Oscar Lewis para acertar um assunto relativo a teatro. Não é verdade. Ele lhes mandou um telegrama dizendo o quanto lamentava não poder comparecer. O que realmente fez foi ir até a agência de automóveis Emeraldo e alugar um carro. Alugou-o por umas doze horas, e saiu com ele. Devolveu-o por volta das seis da tarde. De acordo com o velocímetro, ele rodou o número de milhas necessárias para ir e voltar do lugar em que estamos pensando. Nenhuma confirmação de Lytchett St. Mary. Parece que nenhum carro estranho foi observado por lá naquele dia. Existem muitos locais onde poderia ter sido deixado sem ser notado. E há até uma pedreira abandonada que fica a poucas centenas de jardas do chalé. Há três cidadezinhas que ficam bem próximas e onde a pessoa pode estacionar o carro nas ruas laterais sem que a polícia o incomode. Devemos conservar o Sr. Shane, não?

       — Certamente.

       — Agora vamos à Sra. Shane. — O Sr. Goby esfregou o nariz e falou olhando para o punho esquerdo. — Ela declarou que estava fazendo compras. Apenas fazendo compras... No dia anterior, ela tomara conhecimento que herdara muito dinheiro. Naturalmente, nada a seguraria. Ela tem um ou dois crediários atrasados, e estão fazendo pressão para que pague, mas ela ainda não se manifestou. É bem possível que tenha andado por aí experimentando roupas, olhando jóias, vendo o preço disso e daquilo, sem comprar nada! Digo-lhe que é fácil uma pessoa se aproximar dela. Mandei uma das jovens que trabalha para mim e que tem experiência em teatro fisgá-la. Então, num restaurante, ela parou à mesa onde a Sra. Shane estava sentada e exclamou da maneira que costumam fazer: “Querida, não a vejo desde Way down under. Você esteve simplesmente maravilhosa! Tem visto Hubert ultimamente?” Ele havia sido o produtor da peça na qual a Sra. Shane fora um verdadeiro fiasco... mas isso só serviu para ajudar. Começaram imediatamente a conversar sobre teatro, e a minha jovem citava os nomes corretos e depois disse: “Acho que a vi em tal lugar...” dando o dia... A maioria das mulheres responde: “Oh, não, eu estava...” seja lá onde for. Mas não a Sra. Shane. Com um olhar vago ela diz: “Oh, certamente”. O que se pode fazer com uma pessoa assim? — O Sr. Goby balançou a cabeça, sério e olhando para o aquecedor.

       — Nada — respondeu Hercule Poirot vivamente. — Acha que não tive experiência nesse sentido? Nunca me esquecerei do assassinato de Lorde Edgware. Quase fui derrotado... sim, eu, Hercule Poirot... pela habilidade extremamente simples de uma mente vazia. Os tolos muitas vezes possuem o talento de cometer um crime bem simples e depois deixar por isso mesmo. Vamos torcer para que o nosso assassino... se é que existe um assassino neste caso... seja inteligente, convencido e extremamente seguro de si mesmo. Enfin... mas continue.

       Mais uma vez o Sr. Goby utilizou-se de seu caderninho.

       — Sr. e Sra. Banks... que disseram que estiveram em casa o dia todo. De qualquer maneira, ela mentiu! À uma hora da tarde ela foi à garagem, apanhou o carro e saiu dirigindo. Destino ignorado. Voltou por volta das cinco horas. Não posso lhe dizer a quilometragem porque desde então ela tem saído com o carro diariamente e não era interesse de ninguém checar.

       “Quanto ao Sr. Banks, descobrimos algo curioso. Para começar, devo lhe informar que não sabemos o que ele fez no dia em questão. Não foi trabalhar. Parece que já pedira alguns dias livres por conta do funeral. E desde então vem faltando ao trabalho sem nenhuma consideração pela firma. É uma farmácia simpática, bem-estabelecida. Eles não gostam muito do Sr. Banks. Parece que ele costumava entrar em estranhos estados de excitação.

       “Bem, como eu já lhe disse, não sabemos o que ele estava fazendo no dia da morte da Sra. Lansquenet. Ele não saiu com a mulher. Pode ser até que tenha ficado o dia inteiro em seu pequeno apartamento. Não há porteiros no prédio e ninguém sabe se os moradores estão em casa. Entretanto, seu passado é interessante. Até uns quatro meses atrás... exatamente antes de conhecer a atual esposa, ele estava num sanatório. Teve o que chamam de esgotamento nervoso. Parece que se enganou no preparo de uma receita (nessa época ele trabalhava para a firma Mayfair). A mulher se recuperou, a firma desmanchou-se em desculpas, e não houve instauração de processo. Afinal de contas, esses enganos acontecem, e a maioria das pessoas decentes sente pena do sujeito que os provocou... Isto é, contanto que não haja nenhum dano permanente. A firma não o despediu, mas ele pediu demissão... alegou que aquilo abalara seus nervos. Entretanto, mais tarde ele caiu em profunda depressão e disse ao médico que estava obcecado pelo sentimento de culpa... que tudo fora proposital... que a mulher havia sido grosseira com ele quando foi à loja, reclamando que sua última receita havia sido mal preparada... e que ele ficara ressentido e deliberadamente adicionara uma dose fatal de uma droga qualquer. Ele falou: ‘Ela precisava ser punida por se atrever a falar comigo daquela maneira!’ Em seguida, chorou e disse que era perverso demais para viver e uma porção de coisas desse tipo. Os médicos têm um termo para definir essa espécie de comportamento... complexo de culpa ou algo assim. Eles não acreditam que tenha sido proposital, apenas descuido, mas que ele queria tornar o ocorrido um fato importante e sério.”

       — Ça se peut — disse Hercule Poirot.

       — Como disse? Bem, de qualquer modo ele foi para o sanatório, onde foi tratado e considerado curado. Logo depois ele conheceu a Srta. Abernethie, como então era chamada. Conseguiu trabalho numa farmácia respeitável, apesar de um tanto pequena e modesta. Disse-lhes que estivera fora da Inglaterra por um ano e meio e apresentou como referência uma loja de Eastbourne. Nada havia contra ele nessa loja, mas um empregado declarou que ele possuía um temperamento muito esquisito e que algumas vezes seu jeito era estranhíssimo. Contam uma história de um certo freguês que, um dia, disse como piada: “Gostaria que você me vendesse alguma coisa para eu matar a minha mulher, ah, ah”. E Banks respondeu, muito calmo e suavemente: “Eu poderia... custaria duzentas libras”. O homem ficou sem jeito e riu. Pode não ter passado de uma brincadeira, mas não me parece que o Sr. Banks seja do tipo piadista.

       — Mon ami — falou Poirot. — Realmente me surpreende como você consegue suas informações! A maioria delas é de caráter médico e extremamente confidencial!

       O olhar do Sr. Goby percorreu a sala e ele murmurou, olhando para a porta em expectativa, que existiam “maneiras”...

       — Agora chegamos ao setor rural: Sr. e Sra. Timothy Abernethie. Possuem uma propriedade muito bonita, mas precisando urgentemente de reformas. Parecem viver em regime de economia bastante apertada. Impostos e investimentos malsucedidos. O Sr. Abernethie sente prazer em ser doente e pode colocar ênfase no prazer. Reclama de tudo e faz com que todos se desdobrem cumprindo mil tarefas. Tem uma alimentação substancial e parece ser bastante forte fisicamente se estiver disposto a fazer esforço. Depois que a diarista vai embora, não fica mais ninguém na casa e a ninguém é permitido entrar no quarto do Sr. Abernethie, a não ser que ele toque a campainha. Estava de péssimo humor na manhã seguinte ao funeral. Praguejou contra a Sra. Jones. Comeu apenas parte do desjejum e disse que não iria almoçar... tinha passado uma noite péssima. Falou que o jantar que ela deixara preparado estava horrível e muitas outras coisas. Permaneceu sozinho na casa sem ser visto por ninguém das nove e meia daquela manhã até a manhã seguinte.

       — E quanto à Sra. Abernethie?

       — Ela saiu de Enderby de carro na hora que o senhor mencionou. Chegou a pé a uma pequena garagem de um lugar chamado Cathstone e explicou que seu automóvel havia quebrado a algumas milhas dali. O mecânico a acompanhou até o lugar, examinou o carro e disse que teriam de rebocá-lo. Informou que seria um trabalho demorado, não podendo prometer que ficaria pronto naquele mesmo dia. A senhora ficou contrariada. Porém, foi até uma pequena estalagem e providenciou para passar a noite ali; pediu alguns sanduíches dizendo que gostaria de ver um pouco a paisagem local — que fica nas proximidades da ravina. Retornou à estalagem já bem tarde da noite. Meu informante disse-me que não se admirava com isso. É um lugarzinho sórdido!

       “Ela recebeu os sanduíches às onze horas. Se tivesse andado até a estrada principal, poderia ter viajado de carona até Wallcaster e apanhado o trem especial que pára em Reading West. Não entrarei em pormenores a respeito de ônibus, etc. Digo que simplesmente poderia ter sido feito se o... ataque pudesse ter sido praticado bem no final daquela tarde.”

       — Pelo que eu sei, o médico estendeu a hora limite para quatro e meia.

       — Atenção — disse o Sr. Goby —, eu não diria que é provável. Ela me parece uma ótima senhora, querida por todos. É muito dedicada ao marido, trata-o como se fosse uma criança.

       — Sim, sim, o instinto maternal.

       — Ela é forte e ativa. Corta madeira e muitas vezes carrega grandes toras. Também entende muito de automóveis.

       — Ia tocar neste assunto. O que exatamente estava errado com o carro?

       — O senhor quer os mínimos detalhes, Sr. Poirot?

       — Deus me livre! Não entendo nada de mecânica.

       — Era um defeito difícil de localizar. E também difícil de consertar. Poderia ter sido feito propositalmente por alguém sem muito esforço. Por alguém que entenda de motores.

       — C’est magnifique! — exclamou Poirot com um entusiasmo amargo. — Tudo tão conveniente, tudo tão possível! Bon Dieu, não podemos eliminar ninguém? E a Sra. Leo Abernethie?

       — Também é uma senhora muito simpática. O falecido Sr. Abernethie gostava imensamente dela. Ela chegou para ficar com ele uns quinze dias antes de ele morrer.

       — Depois de ele ter ido visitar a irmã em Lytchett St. Mary?

       — Não, um pouco antes. Sua renda ficou bastante reduzida depois da guerra. Ela vendeu a casa na Inglaterra e alugou um pequeno apartamento em Londres. Tem uma vila em Chipre e passa lá parte do ano. Tem um sobrinho pequeno a quem está ajudando a educar. E parece haver um ou dois jovens artistas a quem ela ajuda de tempos em tempos.

       — Santa Helena de vida intocável — disse Poirot fechando os olhos. — E é praticamente impossível ela ter saído de Enderby sem que os empregados percebessem? Diga que é verdade, por favor!

       O Sr. Goby pousou o olhar de desculpas no sapato de verniz brilhante de Poirot, o mais próximo que ele chegara de um encontro direto, e murmurou:

       — Receio que não possa, Sr. Poirot. A Sra. Abernethie foi até Londres buscar mais roupa e outros pertences, já que ela concordara com o Sr. Entwhistle em ficar em Enderby para tomar as providências que fossem necessárias.

       — Il ne manquait que ça! — exclamou Poirot com ênfase.

 

Capítulo XIII

       Quando lhe entregaram o cartão do Inspetor Morton da polícia municipal de Berkshire, Hercule Poirot levantou as sobrancelhas.

       — Mande-o entrar, Georges, mande-o entrar. E traga... o que é mesmo que a polícia prefere?

       — Eu sugeriria cerveja, senhor.

       — Que horror! Porém, muito britânico. Então traga cerveja.

       O Inspetor Morton foi direto ao assunto:

       — Tive que vir a Londres e procurei seu endereço, Sr. Poirot. Fiquei curioso ao vê-lo no inquérito quinta-feira.

       — Então o senhor me viu lá?

       — Sim. Fiquei surpreso... e, como disse, curioso. O senhor não deve se lembrar de mim, mas eu me recordo muito bem do senhor. No caso Pangbourne.

       — Ah, o senhor estava ligado àquele caso?

       — Numa posição de pouco destaque. Já faz muito tempo, mas nunca me esqueci do senhor.

       — E no outro dia reconheceu-me de imediato?

       — Não foi difícil, senhor. — O Inspetor Morton reprimiu um ligeiro sorriso. — Sua aparência é... um tanto incomum. — Seu olhar observou a elegância impecável de Poirot e por fim se fixou no bigode curvo. — O senhor chama atenção numa cidade de interior — comentou ele.

       — É possível, é possível — concordou Poirot, satisfeito consigo mesmo.

       — Fiquei curioso em saber por que o senhor estaria ali. Aquele tipo de crime... roubo... assalto... normalmente não lhe interessa.

       — E foi realmente um tipo de crime comum e violento?

       — É quanto a isso que tenho dúvidas.

       — O senhor teve dúvidas desde o início, não teve?

       — Sim, Sr. Poirot. Chamamos algumas pessoas para interrogatório e todas conseguiram responder satisfatoriamente quanto ao que estavam fazendo na hora do crime. Não foi o que o senhor chamaria de crime “comum”, Sr. Poirot... estamos bem certos quanto a isso. O chefe de polícia também concorda. Foi praticado por alguém que gostaria que parecesse como tal. Poderia ter sido a tal Gilchrist, mas não parece haver qualquer motivo, nem mesmo de ordem emocional. A Sra. Lansquenet talvez fosse um pouco avoada ou simplória, se o senhor quiser colocar dessa maneira, mas era uma dona-de-casa comum, parecendo haver entre as duas um relacionamento tranqüilo. Existem por aí dúzias de Srtas. Gilchrist e normalmente não são do tipo criminoso.

       Fez uma pausa.

       — Sendo assim, teremos que procurar por outros caminhos. Vim perguntar-lhe se poderia nos dar uma ajuda. Alguma coisa deve tê-lo levado até lá, Sr. Poirot.

       — Sim, sim, alguma coisa me levou até lá. Um excelente automóvel, um Daimler. Mas não apenas isso.

       — O senhor obteve alguma informação especial?

       — Não é bem o que o senhor está imaginando. Nada que pudesse ser usado como evidência.

       — Mas algo que servisse como um ponto de partida?

       — Sim.

       — É que temos um fato novo.

       Meticulosamente, ele contou a respeito do bolo de noiva envenenado.

       Poirot respirou fundo.

       — Engenhoso, sim, muito engenhoso... Preveni o Sr. Entwhistle para tomar conta da Srta. Gilchrist. Sempre haveria a possibilidade de um ataque contra ela. Mas devo confessar que não contava com um envenenamento. Eu previa a repetição de um ataque da machadinha. Achava desaconselhável ela andar sozinha depois do escurecer.

       — Mas por que o senhor previu um atentado? Creio que deveria me dizer, Sr. Poirot.

       Poirot balançou a cabeça vagarosamente.

       — Sim, vou lhe contar. O Sr. Entwhistle nada dirá porque é um advogado e advogados não gostam de falar de suposições, de suspeitas a respeito do caráter de uma mulher morta, ou de algumas palavras irresponsáveis. Mas ele não se oporá se eu lhe contar. Ao contrário, ficará até aliviado. O Sr. Entwhistle não quer parecer tolo ou fantasioso, porém deseja que o senhor tome conhecimento do que podem ser — trata-se apenas de uma possibilidade — os fatos.

       Poirot calou-se quando Georges entrou trazendo um copo cheio de cerveja.

       — É para o senhor, inspetor. Não, não, faço questão.

       — O senhor não vai me acompanhar?

       — Não bebo cerveja. Mas vou tomar um copo de sirop de cassis. Já observei que os ingleses não apreciam muito esta bebida.

       O inspetor olhou agradecido para sua cerveja.

       Poirot, saboreando seu copo de líquido roxo-escuro, falou:

       — Tudo começou no funeral. Ou melhor, depois do funeral.

       Vividamente, com muitos gestos, apresentou a história como o Sr. Entwhistle lhe contara, embora enriquecendo-a com os detalhes que sua natureza exuberante exigia. Tinha-se quase a impressão de que Hercule Poirot fora testemunha ocular da cena.

       O inspetor, que tinha uma mente muito perspicaz, avaliou de imediato quais eram, para os seus propósitos, os pontos de destaque.

       — Este Sr. Abernethie pode ter sido envenenado?

       — É uma possibilidade.

       — E o corpo foi cremado e não há nenhuma evidência.

       — Exato.

       O inspetor ficou meditando.

       — Interessante. Mas não há nada aí para nós. Quero dizer, não vale a pena investigar a morte de Richard Abernethie. Seria uma perda de tempo.

       — Sim.

       — Porém há as pessoas... as pessoas que estavam lá... que ouviram Cora Lansquenet dizer o que disse, e uma dessas pessoas poderá ter pensado que Cora seria capaz de repetir o que falara e com mais detalhes.

       — O que, indubitavelmente, ela faria. Existem, inspetor, como o senhor mesmo disse, as pessoas. E agora o senhor entende o motivo por que eu estava presente ao inquérito, por que me interessei pelo caso. É porque sempre estou interessado em pessoas.

       — Então o atentado contra a Srta. Gilchrist...

       — Já era esperado. Richard Abernethie estivera no chalé. Conversara com Cora. Talvez tenha até mencionado algum nome. A única pessoa que poderia saber ou ter ouvido alguma coisa por acaso era a Srta. Gilchrist. Depois de Cora ter sido silenciada, o assassino pode ter continuado ansioso. Será que a outra mulher sabe de alguma coisa... qualquer coisa? É lógico que, se o assassino fosse inteligente, deixaria tudo por isso mesmo, mas para sorte nossa os assassinos raramente são espertos. Preocupam-se demais, sentem-se inseguros, desejam ter certeza... bastante certeza. Ficam satisfeitos com sua esperteza. E, no final, entregam a cabeça numa bandeja.

       O Inspetor Morton sorriu ligeiramente.

       Poirot prosseguiu:

       — Essa tentativa para silenciar a Srta. Gilchrist já é um erro. Pois agora existem dois casos que podemos investigar. Há a caligrafia no rótulo do bolo de noiva. É pena que o papel de embrulho tenha sido queimado.

       — Sim, porque, caso contrário, poderíamos ter certeza se o bolo veio ou não pelo correio.

       — O senhor tem motivo para acreditar na última hipótese?

       — Trata-se somente da opinião do carteiro, mas ele não está seguro. Se o embrulho tivesse vindo pelo correio da vila, são dez contra um como a moça que trabalha lá notaria. Entretanto, atualmente o correio é entregue por uma camioneta vinda de Market Keynes, e é claro que o jovem carteiro dá muitas voltas c entrega um bocado de coisas. Ele acha que entregou apenas cartas e nenhum pacote no chalé, embora não tenha certeza. Aliás, ele está tendo um problema com uma garota e não consegue se concentrar em outro assunto. Testei sua memória e ele não está seguro de nada. Entretanto, se ele realmente o entregou, parece estranho que o pacote só tenha sido notado depois que este... qual o seu nome... Guthrie...

       — Ah, o Sr. Guthrie?

       O Inspetor Morton sorriu.

       — Sim, Sr. Poirot. Estamos investigando a seu respeito. Afinal de contas, seria fácil aparecer dizendo-se amigo da Sra. Lansquenet, não seria? A Sra. Banks não poderia saber se era verdade ou não. Ele poderia ter colocado aquele pequeno pacote, o senhor sabe. É simples fazer com que uma coisa pareça ter vindo pelo correio. Uma mancha de fuligem pode muito bem dar a impressão de um carimbo sobre o selo. — Fez uma pausa para em seguida acrescentar: — E existem outras possibilidades.

       — O senhor acha... ?

       — O Sr. George Crossfield estava por aqueles lados... mas só no dia seguinte. Pretendia assistir ao funeral, porém no caminho teve um pequeno problema com o motor. Sabe alguma coisa a respeito dele, Sr. Poirot?

       — Um pouco. Mas não tanto quanto gostaria de saber.

       — Como isto, não é? Entendo, um grupo de pessoas interessadas no testamento do falecido Sr. Abernethie. Espero que isto não signifique que todos são suspeitos.

       — Reuni algumas informações que estão à sua disposição. Naturalmente não tenho nenhuma autoridade para interrogar essas pessoas. Na verdade, nem seria aconselhável.

       — Eu próprio irei devagar. Não quero assustar o pássaro. Quero fazê-lo na hora exata.

       — É uma maneira bem técnica. Então para você, meu amigo, a rotina, com todos os mecanismos que você tem à sua disposição. É vagaroso mas seguro. Quanto a mim...

       — Sim, Sr. Poirot?

       — Quanto a mim, irei para o norte. Como já lhe expliquei, o meu interesse é pelas pessoas. Sim, depois de um pequeno disfarce... irei para o norte. Tenho a intenção — acrescentou Poirot — de comprar uma mansão no campo para os estrangeiros refugiados. Represento a ANUOR.

       — E o que é ANUOR?

       — Auxílio das Nações Unidas para a Organização de Refugiados. Soa bem, não acha?

       O Inspetor Morton sorriu.

 

Capítulo XIV

       Hercule Poirot agradeceu a Janet, que estava com uma expressão mal-humorada.

       — Muito obrigado. A senhora foi muito gentil.

       Janet, com os lábios ainda num contorno amargo, retirou-se da sala. Estes estrangeiros! As perguntas que eles fazem! Quanta impertinência! Estava muito bem dizer que era um especialista interessado em problemas de coração como o do Sr. Abernethie. Isso certamente era verdade... o patrão havia morrido repentinamente e o médico ficara surpreso. Mas o que é que um médico estrangeiro tinha a ver com isso? Estava certo que a Sra. Leo dissesse: “Por favor, responda às perguntas do Sr. Pontarlier. Ele tem um bom motivo para fazê-las”.

       Perguntas. Sempre perguntas. Às vezes, páginas delas para serem preenchidas da melhor maneira possível. E por que o governo ou outra pessoa queria saber sobre assuntos pessoais? Naquele censo haviam perguntado sua idade... com a maior impertinência, mas ela não lhes dissera. Diminuíra cinco anos. E por que não? Se ela se sentia com cinqüenta e quatro anos, então ela se considerava com cinqüenta e quatro anos!

       De qualquer forma, o Sr. Pontarlier não indagara sua idade. Ao menos tivera alguma decência. Apenas perguntas a respeito dos remédios que seu patrão costumava tomar, onde os guardava, e se, talvez, ele poderia ter tomado uma quantidade maior do que a receitada se não estivesse se sentindo muito bem... ou se costumava ser uma pessoa esquecida. Como se ela pudesse se lembrar de toda essa bobagem... o patrão sabia muito bem o que estava fazendo! E indagando se alguns dos remédios ainda estavam na casa. Naturalmente que já haviam sido jogados fora. Problema de coração... e mais uma outra palavra comprida que ele usara. Esses médicos estavam sempre inventando alguma novidade. Olhe só eles dizendo ao velho Rogers que ele estava com problemas de coluna. Simples lumbago, era apenas isso que havia de errado com ele. Seu pai havia sido jardineiro e sofrera de lumbago. Médicos!

       O falso médico suspirou e subiu as escadas à procura de Lanscombe. Não conseguira arrancar muita coisa de Janet, mas ele já esperava por isso Tudo o que realmente quisera fora conferir algumas das informações arrancadas de Janet com as que haviam sido obtidas, com muito menos dificuldade, por Helen Abernethie, já que Janet estava pronta a admitir que a Sra. Leo tinha todo o direito de fazer tais perguntas. E, na verdade, a própria Janet gostara de participar ativamente das últimas semanas de vida de seu patrão. Doença e morte lhe eram assuntos familiares.

       Sim, pensou Poirot, poderia ter confiado nas informações que Helen havia lhe dado. Na realidade, confiara. Mas, por natureza e por longo hábito, não confiava em ninguém até que ele próprio os pusesse à prova.

       De qualquer modo, as evidências eram inconsistentes e insatisfatórias. Resumiam-se ao fato de que cápsulas de vitaminas gelatinosas haviam sido receitadas para Richard Abernethie. Que essas ficavam num grande vidro que, na ocasião de sua morte, estava quase vazio. Qualquer pessoa que quisesse, com uma seringa hipodérmica, poderia ter agido em uma ou mais dessas cápsulas. E poderia ter arrumado o vidro de tal forma que a dose fatal só seria tomada algumas semanas depois que já tivesse ido embora. Ou alguém, na véspera da morte de Richard Abernethie, poderia ter entrado escondido na casa e adulterado uma cápsula... ou então, o que é mais provável, ter substituído a pílula de dormir por algo diferente. O pequeno vidro ficava ao lado da cama. Ou também poderia facilmente ter misturado alguma coisa na comida ou na bebida.

       Hercule Poirot fizera suas próprias experiências. A porta da frente era mantida fechada, mas havia uma porta lateral dando para o jardim, que só era trancada ao anoitecer. Por volta da uma e quinze, quando os jardineiros haviam ido almoçar e quando os outros empregados estavam na sala de refeições, Poirot entrara no jardim, fora até a porta lateral, subindo até o quarto de Richard Abernethie sem encontrar ninguém. Numa outra tentativa ele conseguira passar por uma porta e entrara na despensa. Ouvira vozes vindas da cozinha, no fim do corredor, mas ninguém o tinha visto.

       Sim, poderia ter sido feito. Mas teria sido feito? Não havia nada para indicar que sim. Não que Poirot estivesse realmente procurando provas; ele queria apenas certificar-se das possibilidades. O assassinato de Richard Abernethie poderia não passar de uma hipótese. O que precisava era de provas para o assassinato de Cora Lansquenet. O que ele desejava era estudar as pessoas que naquele dia haviam se reunido para o funeral e formar uma opinião a respeito delas. Ele já traçara um plano, mas primeiro queria trocar algumas palavras com o velho Lanscombe.

       Lanscombe foi cortês mas distante. Pousou a flanela com a qual estava carinhosamente polindo um bule de estilo georgiano.

       — Sim, senhor? — disse educadamente.

       Poirot sentou-se cuidadosamente num banquinho da copa.

       — A Sra. Abernethie contou-me que quando o senhor se aposentar pretende morar num chalé ao lado do portão norte?

       — É isso mesmo, senhor. Naturalmente, agora tudo mudou. Quando esta propriedade for vendida...

       Poirot interrompeu-o delicadamente.

       — Creio que ainda é possível. Existe o chalé para os jardineiros. O chalé não é necessário para os hóspedes nem seus empregados. Talvez possamos entrar num acordo.

       — Bem, obrigado, senhor, pela sugestão. Mas acho que dificilmente... Presumo que a maioria dos hóspedes será de estrangeiros?

       — Sim, serão estrangeiros. Dentre aqueles que vieram da Europa para este país existem vários que estão muito velhos. Não existe futuro para eles se retornarem para seus países, pois essas pessoas, o senhor compreende, são aquelas cujos parentes morreram. Eles não podem ganhar seu próprio sustento. Arrecadamos um capital, que está sendo administrado pelo organização que eu represento, para doar-lhes várias casas de campo. Acho este lugar altamente apropriado. O negócio está praticamente fechado.

       Lanscombe suspirou.

       — O senhor pode entender o quanto é triste para mim saber que esta casa deixará de ser residência particular. Contudo, sei como as coisas são hoje em dia. Ninguém da família poderia manter este lugar... e nem mesmo acredito que os jovens quisessem. Atualmente, é muito difícil conseguir-se empregados domésticos, e quando se consegue cobram caríssimo e o trabalho é insatisfatório. Compreendo que estas belas mansões já cumpriram seu dever. — Lanscombe tornou a suspirar. — Contudo, se tem que ser transformada numa instituição, ficarei satisfeito em saber que será do tipo que o senhor mencionou. Fomos poupados neste país, e devemos isso a nossa Marinha e Força Aérea e aos jovens corajosos. Tivemos sorte bastante de nosso país ser uma ilha. Se Hitler tivesse vindo parar aqui, todos nós o teríamos enfrentado e rapidamente acabado com ele. Minha vista não é muito boa para atirar, mas eu poderia ter usado um forcado. Era o que pretendia fazer se fosse necessário. Neste país sempre acolhemos bem os necessitados, senhor. Isso tem sido o nosso orgulho. E continuaremos a agir assim.

       — Obrigado, Lanscombe — agradeceu Poirot gentilmente. — A morte de seu patrão deve ter sido um grande choque.

       — Foi, sim, senhor. Trabalhava para ele desde que ele era muito jovem. Tive muita sorte na vida. Ninguém poderia ter tido um patrão melhor.

       — Estive conversando com meu amigo... ahn... meu colega, o Dr. Larraby. Estávamos imaginando se por acaso seu patrão não tinha tido alguma preocupação extra... alguma conversa desagradável... na véspera de sua morte... Não se lembra de nenhuma visita especial naquele dia?

       — Creio que não, senhor. Não me recordo de ninguém.

       — Ninguém veio naqueles dias?

       — O vigário esteve aqui para o chá um dia antes. Também vieram algumas freiras recolhendo donativos. E um jovem bateu na porta dos fundos tentando vender para Marjorie escovas e esponjas de aço. Ele era muito persistente. Ninguém mais apareceu.

       Uma expressão preocupada surgira no rosto de Lanscombe. Poirot parou de pressioná-lo. Lanscombe já desabafara com o Sr. Entwhistle. E era natural que fosse muito menos acessível com Hercule Poirot.

       Com Marjorie, entretanto, Poirot Obtivera sucesso imediato. Marjorie não possuía nenhum dos estereótipos do “bem servir”. Era uma cozinheira de primeira e o caminho de seu coração era através de sua comida. Poirot fora vê-la na cozinha. Elogiara com discernimento certos pratos, e Marjorie, notando que ele era alguém que entendia do que estava falando, imediatamente aclamou-o como alma irmã. Ele não teve a menor dificuldade em descobrir exatamente o que havia sido servido na noite anterior ao falecimento de Richard Abernethie. Marjorie estava inclinada a explicar o que “aconteceu na noite em que eu fiz o suflê de chocolate. Eu havia guardado seis ovos. O leiteiro é meu amigo. Também tinha conseguido algum creme, mas é melhor não perguntar como. Que o Sr. Abernethie gostou, gostou”. O resto da refeição foi igualmente detalhado. O que sobrara na sala de jantar havia sido comido na cozinha. Apesar da disposição de Marjorie em falar, Poirot não ficara sabendo nada de importante.

       Foi apanhar seu paletó e um cachecol, e assim protegido contra o frio do norte saiu para o terraço, onde se juntou a Helen Abernethie, que estava colhendo rosas.

       — Descobriu alguma coisa nova? — indagou ela.

       — Não. Mas eu já esperava por isso.

       — Eu sei. Desde que o Sr. Entwhistle me revelou que o senhor viria, comecei a investigar, mas realmente não existe nada.

       Ela fez uma pausa e falou esperançosa:

       — Talvez tudo não tenha passado de um logro...

       — Ser atacada por uma machadinha?

       — Não estava pensando em Cora.

       — Mas é em Cora que eu penso. Por que alguém achou necessário matá-la? O Sr. Entwhistle me contou que naquele dia, no momento em que ela soltou aquela gafe, a senhora sentiu que algo estava errado. É verdade?

       — Bem... sim, mas não sei...

       Poirot prosseguiu, apressado:

       — O que parecia errado? Inesperado? Surpreendente? Ou... digamos... inquietante... sinistro?

       — Oh, não, sinistro, não. Apenas alguma coisa que não estava... oh, eu não sei, não consigo me lembrar e nem era importante.

       — Mas por que a senhora não consegue se lembrar? Será que uma outra coisa desviou seu pensamento... uma coisa mais importante?

       — Sim, sim, creio que o senhor tem razão neste ponto. Suponho que tenha sido a menção do crime. Isso apagou tudo o mais.

       — Talvez tenha sido a reação de alguém à palavra “assassinato”?

       — Talvez... Mas não me lembro de ter olhado para ninguém em especial. Estávamos todos olhando para Cora.

       — Pode ter sido algo que a senhora ouviu, algo que tenha caído... quebrado...

       Num esforço para se recordar, Helen franziu a testa.

       — Não... acho que não...

       — Ah, bem, algum dia a senhora se lembrará. E pode ser que não tenha nenhuma importância. Agora diga-me, madame, das pessoas aqui presentes, quem melhor conhecia Cora?

       Helen refletiu.

       — Lanscombe, suponho Ele a conheceu criança. A empregada, Janet, só veio trabalhar aqui depois que ela já havia se casado e ido embora.

       — E depois de Lanscombe?

       Helen respondeu, pensativa:

       — Acho que era eu. Maude mal a conhecia.

       — Então, levando em conta que a senhora era a pessoa que a conhecia melhor, por que acha que ela fez aquela pergunta?

       Helen sorriu.

       — Era bem típico de Cora!

       — A senhora quer dizer que não passou de tolice pura e simples? Que ela apenas deixou escapar o que estava em seu pensamento? Ou estaria ela sendo maliciosa... divertindo-se em perturbar os outros?

       Helen meditou.

       — Nunca se pode ter certeza a respeito de uma pessoa, não é? Nunca cheguei a saber se Cora era simplesmente ingênua ou se desejava, infantilmente, chamar atenção. É a isso que o senhor está se referindo?

       — Sim. Eu estava pensando. Suponhamos que Cora dissesse para si mesma: “Como seria divertido perguntar se Richard foi assassinado e depois ver a reação de todos!” Isto seria bem típico dela, não?

       Helen parecia em dúvida.

       — É possível. Ela certamente possuía um senso de humor travesso como o de uma criança. Mas que diferença faz?

       — Reforçaria a opinião de que não é sensato fazer-se piadas sobre assassinatos — explicou Poirot secamente.

       Helen estremeceu.

       — Pobre Cora.

       Poirot mudou de assunto.

       — A Sra. Timothy Abernethie ficou aqui na noite depois do funeral?

       — Sim.

       — Ela comentou com a senhora o que Cora dissera?

       — Sim, ela falou que era chocante e bem próprio de Cora!

       — Ela não levou o comentário a sério, levou?

       — Oh, não. Estou certa que não.

       O segundo “não”, pensou Poirot, soara repentinamente hesitante. Mas não era isso que acontecia quase sempre quando a pessoa procura se recordar de alguma coisa?

       — E a senhora, madame, levou a sério?

       Helen Abernethie, os olhos muito azuis e estranhamente jovens sob a moldura de cabelos grisalhos, respondeu:

       — Sim, Sr. Poirot, creio que levei.

       — Talvez por causa de sua sensação de que algo estava errado?

       — Talvez.

       Ele esperou... mas como ela não dissesse mais nada, continuou:

       — Havia uma desavença que já durava anos entre a Sra. Lansquenet e sua família, não é verdade?

       — É, sim. Nenhum de nós gostava de seu marido e ela sentia-se ofendida com isso. E assim, a desavença cresceu.

       — E então, de repente, seu cunhado vai visitá-la. Por quê?

       — Não sei... suponho que ele sabia, ou imaginava que não iria viver por muito tempo e queria se reconciliar... mas eu realmente não sei.

       — Ele não lhe contou?

       — Contar a mim?

       — Sim. A senhora estava aqui com ele, antes de ele ir visitar Cora. Ele nem ao menos mencionou-lhe a sua intenção?

       Poirot teve a impressão de que uma ligeira reserva aparecera nas maneiras de Helen.

       — Ele me disse que iria ver seu irmão Timothy, o que fez. Não mencionou Cora nenhuma vez. Vamos entrar? Deve estar quase na hora do almoço.

       Ele caminhou ao seu lado levando as flores que colhera. Quando entravam pela porta lateral, Poirot indagou:

       — A senhora está certa, bem certa, de que durante a sua estadia com o Sr. Abernethie ele nada disse de relevante a respeito de nenhum membro da família?

       Com um ligeiro ressentimento, Helen comentou:

       — O senhor está falando como um policial.

       — Já fui um policial. Não estou mais na ativa. Não tenho nenhum direito de lhe fazer perguntas. A senhora, entretanto, quer a verdade, ou pelo menos foi o que me fez acreditar.

       Entraram na sala de visitas verde. Helen falou com um suspiro:

       — Richard estava desapontado com a nova geração. Os homens idosos geralmente sentem-se assim. Ele discordava deles em vários aspectos... mas não houve nada... nada, o senhor entende... que poderia possivelmente sugerir um motivo para assassinato.

       — Ah! — exclamou Poirot. Helen apanhou um vaso chinês e começou a arrumar as rosas. Quando ela finalmente ficou satisfeita com o arranjo, olhou em torno procurando um lugar para colocá-lo.

       — A senhora faz arranjos de flores admiráveis, madame — elogiou Hercule. — Acho que qualquer coisa que a senhora resolvesse fazer, faria com perfeição.

       — Obrigada, gosto muito de flores. Acho que estas aqui ficariam muito bem naquela mesa de mármore verde.

       Havia um buquê de flores de cera numa redoma de vidro em cima da mesa de mármore. Quando ela a levantou, Poirot falou casualmente:

       — Alguém revelou ao Sr. Abernethie que o marido de Susan quase envenenara uma cliente ao preparar uma receita? Ah, pardon!

       Ele pulou para trás.

       O ornamento vitoriano escorregara dos dedos de Helen. O recuo de Poirot não fora suficientemente rápido. Caindo no chão, a redoma se quebrou. O rosto de Helen ganhou uma expressão de aborrecimento.

       — Que falta de cuidado a minha! As flores, entretanto, não ficaram estragadas. Posso mandar fazer uma redoma nova para elas. Vou guardá-las no armário que fica sob as escadas.

       Só depois de tê-la ajudado a colocar as flores numa prateleira do armário e de tê-la acompanhado de volta à sala, é que Poirot falou:

       — A culpa foi minha. Não deveria tê-la assustado.

       — O que foi que o senhor perguntou mesmo? Eu me esqueci.

       — Oh, não há necessidade de repetir a pergunta. Na verdade, eu também já não me lembro mais.

       Helen se aproximou dele e pousou a mão em seu braço.

       — Sr. Poirot, existe alguém cuja vida suportaria uma investigação muito profunda? É preciso que a vida das pessoas seja arrastada nisso quando elas nada têm a ver com... com...

       — Com a morte de Cora Lansquenet? Sim. Porque é preciso examinar-se tudo. Oh, é verdade, é uma velha máxima: “Todos têm alguma coisa a esconder”. É uma verdade de todos nós. Talvez também se aplique à senhora. Mas torno a dizer que nada pode ser ignorado. É por esse motivo que o seu amigo, o Sr. Entwhistle, me procurou. Porque eu não sou um policial. E desde que nesta história não são as evidências e sim as pessoas que me preocupam... então é das pessoas que me ocuparei. Preciso, madame, conhecer todos os que estiveram aqui no dia do funeral. E seria muito conveniente... sim, seria estrategicamente perfeito se eu pudesse reuni-los todos aqui.

       — Receio — disse Helen vagarosamente — que isso seja muito difícil.

       — Não tão difícil quanto a senhora pensa. Já encontrei um meio. A casa foi vendida. Assim irá declarar o Sr. Entwhistle. Ele convidará todos os membros da família para se reunirem aqui a fim de escolherem os objetos que desejam antes que tudo seja posto em leilão. Poderemos escolher um fim de semana adequado para esse propósito.

       Ele calou-se e em seguida disse:

       — Está vendo, é fácil, não é?

       Helen olhou para ele. Seus olhos estavam frios, quase gelados.

       — O senhor está preparando uma armadilha para alguém, Sr. Poirot?

       — Quem me dera que eu já soubesse tanto! Pode haver — acrescentou Poirot, pensativo — certos testes...

       — Testes? Que tipo de testes?

       — Ainda não os formulei. E de qualquer modo, madame, seria melhor que a senhora não os conhecesse.

       — Para que eu também possa ser testada?

       — Com a senhora, madame, eu já conversei. Há uma parte que ainda oferece dúvida. Acredito que os jovens venham imediatamente, mas talvez seja difícil conseguir-se a presença do Sr. Timothy Abernethie. Ouvi dizer que ele nunca sai de casa.

       Helen sorriu repentinamente.

       — Parece que o senhor está com sorte, Sr. Poirot. Maude telefonou-me ontem. Estão pintando a casa e Timothy está sofrendo terrivelmente por causa do cheiro da tinta. Ele diz que está afetando seriamente sua saúde. Creio que Maude e ele ficariam satisfeitos de vir para cá... talvez por uma ou duas semanas. Maude ainda não está podendo se movimentar muito bem. O senhor sabia que ela quebrou o tornozelo?

       — Não, não sabia. Que falta de sorte!

       — Felizmente conseguiram ficar com a empregada de Cora, a Srta. Gilchrist. Parece que ela se revelou um verdadeiro tesouro.

       — Como disse? — Poirot virou-se bruscamente para Helen. — Eles pediram para a Srta. Gilchrist ficar com eles? Quem sugeriu isso?

       — Acho que foi arranjo de Susan. Susan Banks.

       — Ah! — exclamou Poirot com voz curiosa. — Então foi a pequena Susan. Ela gosta de fazer arranjos.

       — Susan deu-me a impressão de ser uma moça muito competente.

       — Sim. Ela é competente. A senhora soube que a Srta. Gilchrist escapou por pouco da morte por comer um pedaço de bolo envenenado?

       — Não!  — Helen parecia assustada. — Agora me lembro de que Maude me disse ao telefone que a Srta. Gilchrist acabara de sair do hospital; entretanto, não tinha a menor idéia do motivo por que ela fora parar no hospital. Envenenada? Mas, Sr. Poirot... por quê... ?

       — A senhora realmente acha necessário fazer esta pergunta?

       Helen falou com repentina veemência:

       — Oh! Reúna-os todos aqui! Descubra a verdade! Não deve mais haver assassinatos.

       — Então a senhora vai cooperar?

       — Sim, vou cooperar.

 

Capítulo XV

       — O linóleo está muito bonito, Sra. Jones. A senhora realmente sabe cuidar dele. O bule de chá está na mesa da cozinha, pode se servir à vontade. Irei para lá assim que levar a bandeja para o Sr. Abernethie.

       A Srta. Gilchrist subiu as escadas carregando uma bandeja elegantemente arrumada. Bateu na porta e, interpretando um resmungo como um convite para entrar, transpôs a porta muito animada.

       — Café e biscoitos, Sr. Abernethie. Espero que o senhor esteja se sentindo melhor hoje. Está um dia tão bonito!

       Timothy respondeu e perguntou, desconfiado:

       — Tem nata neste leite?

       — Oh, n-ão, Sr. Abernethie. Eu tirei a nata com muito cuidado, mas mesmo assim trouxe um pequeno coador para o caso de se formar novamente. O senhor sabe, algumas pessoas gostam de nata, dizem que é creme... e é, na realidade.

       — Idiotas! — exclamou Timothy. — Que tipo de biscoito é este?

       — São uns deliciosos biscoitos digestivos.

       — Umas drogas! Biscoitos de gengibre são os únicos que vale a pena comer.

       — Sinto que esta semana estivessem em falta no armazém. Mas estes são ótimos. Prove e verá.

       — Eu sei que gosto têm, obrigado. Será que não pode deixar estas cortinas em paz?

       — Pensei que o senhor gostaria de um pouco de sol. Está um dia muito bonito.

       — Quero que o quarto fique escuro. Minha cabeça está terrível. É esta tinta. Está me envenenando.

       A Srta. Gilchrist respirou fundo para sentir o cheiro e falou animadamente:

       — Daqui não se sente muito o cheiro. Os trabalhadores estão do outro lado da casa.

       — A senhora não é tão sensível como eu. Será que é preciso levar todos os livros que estou lendo para longe do meu alcance?

       — Sinto muito, Sr. Abernethie, não sabia que estava lendo todos eles.

       — Onde está a minha esposa? Não a vejo há mais de uma hora.

       — A Sra. Abernethie está descansando no sofá.

       — Diga-lhe para vir descansar aqui em cima.

       — Eu lhe direi, Sr. Abernethie. Mas ela pode ter adormecido. Digamos, daqui a uns quinze minutos, está bem?

       — Não, diga-lhe que preciso dela agora. Deixe este cobertor em paz. Está da maneira que eu gosto.

       — Desculpe. Pensei que estivesse escorregando.

       — Eu gosto assim. Vá chamar Maude. Preciso dela.

       A Srta. Gilchrist encaminhou-se para o andar de baixo e nas pontas dos pés entrou na sala, onde Maude Abernethie estava sentada com a perna para cima, lendo um livro.

       — Desculpe-me, Sra. Abernethie, o Sr. Abernethie está chamando a senhora.

       Maude deixou o livro de lado com expressão culposa.

       — Oh, minha nossa. Irei imediatamente — disse ela apanhando a bengala.

       Timothy gritou assim que ela entrou no quarto:

       — Finalmente você chegou!

       — Sinto muito, querido, não sabia que você precisava de mim.

       — Esta mulher que você arrumou vai me deixar maluco. Zanzando de um lado para o outro como uma barata tonta. Uma solteirona típica, isto é o que ela é.

       — Lamento que ela o aborreça. Ela apenas procura ser gentil.

       — Não preciso de ninguém gentil. Não quero uma maldita solteirona sempre tagarelando à minha volta. E ela também é cheia de malícia...

       — Só um pouquinho, talvez.

       — Trata-me como se eu fosse um garoto confuso. É de enlouquecer.

       — Estou certa de que deve ser. Mas, por favor, Timothy, procure não ser grosseiro com ela. Eu ainda não estou bem, e você mesmo disse que ela cozinha bem.

       — Ela cozinha direito — admitiu o Sr. Abernethie. — Cozinha bastante bem. Mas mantenha-a na cozinha, é só isso que eu peço. Não a deixe vir aqui me perturbar.

       — Não, querido, é claro que não. Como está se sentindo?

       — Nada bem. Acho melhor chamar Barton para vir me dar uma olhada. Esta tinta está me afetando o coração. Sinta o meu pulso. Está com a batida irregular.

       Maude segurou o pulso sem fazer comentário.

       — Timothy, que acha de irmos para um hotel até que terminem a pintura?

       — Seria um grande desperdício de dinheiro.

       — Isso tem tanta importância... agora?

       — Você é igual a todas as mulheres... incorrigivelmente extravagante! Só porque herdamos de meu irmão uma quantia de dinheiro ridiculamente pequena, você pensa que podemos morar para sempre no Ritz.

       — Não foi bem isso o que eu disse, querido.

       — Posso lhe garantir que a diferença que o dinheiro de Richard vai fazer é muito pouca. Este governo sanguessuga cuidará para que seja assim. Grave bem as minhas palavras. Irá tudo nos impostos.

       A Sra. Abernethie balançou a cabeça tristemente.

       — Este café está frio — disse o inválido olhando com desagrado para a xícara que ele ainda não provara. — Por que será que nunca consigo tomar um café realmente quente?

       — Vou lá embaixo esquentá-lo.

       Na cozinha, a Srta. Gilchrist estava tomando chá e conversando afavelmente, embora com um leve tom de condescendência, com a Sra. Jones.

       — Fico ansiosa para poupar a Sra. Abernethie o máximo que eu puder — comentava ela. — Toda essa subida e descida é muito penosa para ela.

       — Trabalha como uma escrava — disse a Sra. Jones mexendo o chá.

       — É muito triste ser inválido.

       — Ele não é tão inválido assim — afirmou a Sra. Jones sombriamente. — É muito confortável para ele ficar lá deitado a tocar a campainha e ter tudo levado para ele na mesma hora. Mas ele consegue muito bem se levantar e sair por aí. Outro dia mesmo, quando a Sra. Abernethie estava viajando, eu o vi na vila, andando bem fagueiro. Qualquer coisa de que ele realmente precise... como seu tabaco ou um selo... sabe ir buscar. E é por isso que quando a Sra. Maude foi ao funeral, e ficou retida na volta, e ele me disse que eu teria que passar a noite aqui, recusei. “Sinto muito, senhor”, eu falei, “mas tenho meu marido para cuidar. Sair para trabalhar durante o dia está muito bem, mas tenho que tratar dele quando ele volta do trabalho.” Far-lhe-ia bem, pensei, para variar movimentar-se pela casa e cuidar de si mesmo. Talvez servisse para ver o quanto se faz por ele. Mantive-me firme.

       A Sra. Jones deu um longo suspiro e tomou um saboroso gole de chá doce e escuro. — Ah! — exclamou, satisfeita.

       Apesar de profundamente desconfiada da Srta. Gilchrist, e considerando-a uma “solteirona meticulosa e afetada”, a Sra. Jones apreciava a maneira pródiga com que ela lhe oferecia chá e açúcar.

       Ela pousou a xícara e disse amavelmente:

       — Darei uma boa esfregada no chão da cozinha e depois irei embora. As batatas já estão descascadas, querida. Estão ao lado da pia.

       Apesar de ligeiramente afrontada pela “querida”, a Srta. Gilchrist apreciava a boa vontade com que ela havia destituído de suas cascas uma enorme quantidade de batatas.

       Antes que pudesse falar alguma coisa, o telefone tocou e ela correu para atendê-lo. O telefone, no estilo característico de cinqüenta anos atrás, ficava inconvenientemente situado numa passagem com corrente de ar, atrás das escadas.

       Maude Abernethie apareceu no topo das escadas enquanto a Srta. Gilchrist ainda estava falando. Esta olhou para cima e disse:

       — É a Sra. Leo Abernethie.

       — Diga-lhe que já vou atender.

       Maude desceu as escadas devagar e penosamente.

       A Srta. Gilchrist murmurou: — Lamento que a senhora tenha tido que descer novamente, Sra. Abernethie. O Sr. Abernethie já terminou o café? Acabarei este chá num só gole e irei apanhar a bandeja.

       Ela subiu correndo enquanto a Sra. Abernethie atendia ao telefone.

       — Helen? É Maude.

       O inválido recebeu a Srta. Gilchrist com um olhar maligno. Quando ela apanhou a bandeja, ele perguntou, mal-humorado.

       — Quem está ao telefone?

       — A Sra. Leo Abernethie.

       — Garanto como vão ficar tagarelando durante uma hora. As mulheres perdem a noção do tempo quando estão ao telefone. Nunca pensam no dinheiro que estão jogando fora.

       A Srta. Gilchrist respondeu de imediato que a Sra. Leo é quem teria que pagar, e Timothy resmungou.

       — Abra a cortina, sim? Não, esta não, a outra. Não quero o sol batendo nos meus olhos. Agora está melhor. Não há motivo, só porque sou inválido, para que eu fique o dia inteiro no escuro.

       Ele prosseguiu:

       — E a senhora pode procurar naquela pasta ali por uma... O que houve agora? Por que esta pressa?

       — Estão batendo na porta da frente, Sr. Abernethie.

       — Eu não ouvi nada. Aquela empregada está lá embaixo, não está? Deixe que ela vá atender.

       — Está bem, Sr. Abernethie. Qual era o livro que o senhor queria que eu apanhasse?

       O doente fechou os olhos.

       — Agora não me lembro mais. A senhora fez com que eu esquecesse. É melhor ir embora.

       A Srta. Gilchrist apanhou a bandeja e partiu apressada. Pousando a bandeja na mesa da copa dirigiu-se para o hall, passando pela Sra. Abernethie, que continuava ao telefone.

       Em poucos instantes ela voltou para perguntar em voz baixa:

       — Desculpe-me interrompê-la. É uma freira recolhendo donativos. Acho que é da Fundação Coração de Maria. Ela está com um livro. A maioria das pessoas subscreveu meia coroa ou cinco xelins.

       Maude disse ao telefone:

       — Um momento, Helen. — E para a Srta. Gilchrist: — Eu não dou donativos a católicos. Fazemos caridade para a nossa própria igreja.

       A Srta. Gilchrist saiu novamente apressada.

       Depois de alguns minutos, Maude terminou a conversa com a frase: “Falarei com Timothy a respeito”.

       Desligou e foi até o hall principal. A Srta. Gilchrist estava parada à porta da sala de visitas. Franziu o rosto de maneira estranha e pulou quando Maude Abernethie falou com ela.

       — Há algo errado, Srta. Gilchrist?

       — Oh, não, Sra. Abernethie. Receio que eu estivesse apenas divagando. É tão tolo da minha parte quando há tanto para fazer!

       A Srta. Gilchrist retornou ao seu papel de mulher ativa, e Maude subiu as escadas vagarosamente e com esforço.

       — Era Helen ao telefone. Parece que a casa foi vendida para alguma Instituição de Refugiados Estrangeiros...

       Permaneceu calada, enquanto Timothy se expressava a respeito do assunto de refugiados estrangeiros, com comentários esparsos sobre a casa onde ele nascera e fora criado. — Não há mais padrões morais neste país. Minha antiga casa! Não suporto pensar nisso.

       Maude continuou:

       — Helen compreende bem o que você... nós sentimos a este respeito. Ela achou que gostaríamos de ir até lá para uma visita antes que passe para outras mãos. Ficou muito aborrecida com o seu estado de saúde e pela maneira como a tinta o está afetando.  Achou que preferiríamos ir para Enderby a irmos para um hotel. Os empregados ainda continuam lá e, sendo assim, você teria todo o conforto.

       Timothy abriu a boca para proferir violentos protestos, mas não chegou a formulá-los. Seus olhos de repente haviam se tornado muito vivos. Ele então balançou a cabeça em sinal de aprovação.

       — É muita gentileza de Helen — observou ele. — Muita gentileza. Não sei, tenho que pensar no assunto. Não há dúvida de que o cheiro da tinta está me envenenando... creio que há arsênico nas tintas. Acho que ouvi algo a este respeito. Por outro lado, o esforço da mudança pode ser demasiado para mim. É difícil saber o que seria melhor.

       — Talvez você prefira o hotel, querido — disse Maude. — Um bom hotel é muito caro, mas quando se trata de sua saúde...

       Timothy a interrompeu.

       — Gostaria de fazer com que compreendesse, Maude, que não somos milionários. Por que irmos para um hotel quando Helen, muito gentilmente, nos convidou para irmos para Enderby? Não que caiba a ela sugerir tal coisa. A casa não é dela. Não entendo de assuntos legais, mas presumo que, até que seja vendida e o lucro dividido, a casa pertença a todos igualmente. Refugiados estrangeiros! Isso faria o velho Cornelius dar voltas em seu túmulo. Sim, eu gostaria de rever a casa antiga antes de morrer.

       Maude jogou sua última cartada corretamente.

       — Pelo que entendi, o Sr. Entwhistle achou que os membros da família gostariam de escolher algumas peças de mobília, cristais ou outras coisas, antes que sejam postos a leilão.

       Animado, Timothy endireitou-se na cadeira.

       — Não podemos deixar de ir. É preciso haver uma correta avaliação do que é escolhido por cada pessoa. Aqueles homens com quem as garotas se casaram... pelo que ouvi falar deles, não confiaria em nenhum dos dois. Eles poderiam dar algum golpe. Helen é passiva demais. Como chefe da família, é meu dever estar presente!

       Levantou-se e começou a andar de um lado para o outro com passos rápidos e vigorosos.

       — Sim, é uma idéia excelente. Escreva a Helen dizendo que aceita. Estou pensando realmente é em você. Será um bom descanso e uma boa mudança. Você tem trabalhado muito ultimamente. Os pintores podem continuar com o trabalho enquanto estivermos fora, e essa tal Gillespie pode ficar e cuidar da casa.

       — Gilchrist — corrigiu Maude.

       Timothy abanou a mão e disse que era tudo a mesma coisa.

      

       — Eu não posso — disse a Srta. Gilchrist.

       Maude olhou-a, surpresa.                                              

       A Srta. Gilchrist estava tremendo. Seus olhos a encaravam, Suplicantes.

       — Sei que é tolice da minha parte. Mas simplesmente não posso ficar sozinha nesta casa. Será que não há ninguém que possa vir dormir aqui?

       Olhou esperançosa para a outra mulher, mas Maude balançou a cabeça. Maude Abernethie sabia bem demais o quanto era difícil conseguir alguém na vizinhança para passar a noite ali.

       Com um certo desespero na voz, a Srta. Gilchrist prosseguiu:

       — Sei que a senhora achará isso tudo bobagem e puro nervosismo. Eu jamais sonhei que um dia me sentiria assim. Nunca fui uma mulher nervosa... ou fantasiosa. Mas agora tudo parece diferente. Ficaria aterrorizada... sim, completamente aterrorizada em permanecer aqui sozinha.

       — É claro — concordou Maude. — Que tolice a minha! Depois do que aconteceu em Lytchett St. Mary!

       — É, suponho que seja isso... Sei que não tem muita lógica. E no começo não me senti assim. Não me importei em ficar sozinha no chalé mesmo depois... depois do que aconteceu. Este sentimento foi crescendo gradualmente. Talvez a senhora não faça bom juízo de mim, mas a verdade é que desde que cheguei aqui tenho me sentido assustada... com medo. De nada em particular... apenas assustada. Sei que é bobagem minha e realmente sinto-me envergonhada. É como se o tempo todo eu estivesse esperando que alguma coisa terrível fosse acontecer. Até aquela freira vindo aqui me assustou. Oh, Deus, estou me sentindo péssima!

       — Suponho que é o que eles chamam de choque retardado — observou Maude vagamente.

       — É? Eu não sei. Sinto muito parecer tão... tão ingrata. Depois de toda a sua bondade! O que a senhora não irá pensar...

       Maude acalmou-a.

       — Precisamos pensar em outro arranjo — disse ela.

 

Capítulo XVI

       George Crossfield parou indeciso enquanto olhava para umas costas femininas que desapareciam por uma porta. Em seguida, balançou a cabeça e seguiu-as.

       A porta em questão era a de uma loja, uma loja desocupada. A janela mostrava um vazio desconcertante. A porta estava fechada, mas George bateu. Um jovem de rosto inexpressivo e usando óculos abriu a porta e encarou George.

       — Desculpe — disse George —, mas acho que minha prima acabou de entrar aí.

       O jovem recuou e George entrou.

       — Alô, Susan — cumprimentou ele.

       Susan, que estava de pé em cima de um caixote e usando uma régua, virou a cabeça com certa surpresa.

       — Alô, George. De onde você surgiu?

       — Vi você de costas. E tinha certeza de que era você.

       — Como você é esperto! Suponho que as costas sejam inconfundíveis.

       — Muito mais do que os rostos. Coloque uma barba ou algum outro disfarce e faça coisas diferentes com seu cabelo e ninguém o reconhecerá. Mesmo cara a cara. Entretanto, tome cuidado quando virar as costas.

       — Vou me lembrar. Será que você pode se lembrar da medida de sete pés e cinco polegadas até eu anotar?

       — Certamente. O que é isto, prateleiras?

       — Não, espaço cúbico. Oito pés nove e três pés sete...

       O jovem de óculos, que estava irrequieto, tossiu.

       — Dá licença, Sra. Banks, se a senhora ainda vai ficar aqui por mais algum tempo...

       — Vou, sim — respondeu Susan. — Se deixar as chaves, eu tranco a porta e devolvo-as no escritório quando passar por lá. Está bem assim?

       — Sim, obrigado. Se não estivéssemos com poucos funcionários esta manhã...

       Susan aceitou a intenção de desculpa que havia na frase inacabada e o jovem se retirou para a rua.

       — Fico contente em me livrar dele — comentou Susan. — Agentes imobiliários só servem para atrapalhar. Ficam falando quando o que eu quero é fazer contas.

       — Ah! — exclamou George. — Assassinato numa loja vazia!  Como seria excitante para os transeuntes verem o corpo morto de uma linda jovem através da janela de vidro. Iam ficar de olhos esbugalhados. Como peixes!

       — Não haveria motivo para você me assassinar, George.

       — Bem, eu receberia uma quarta parte da herança que vazia!  Como seria excitante para os transeuntes verem o bastante de dinheiro, isso seria uma razão.

       Susan parou de tomar as medidas e virou-se para olhá-lo. Seus olhos se abriram um pouco.

       — Você parece uma pessoa diferente, George. É realmente extraordinário.

       — Diferente? Diferente como?

       — Como no anúncio. “Este é o homem que vocês viram na página anterior, mas agora ele tomou vitaminas Uppington.”

       Ela sentou-se em outro caixote e acendeu um cigarro.

       — Você deveria querer muito a sua parte do dinheiro do velho Richard, não é, George?

       — Ninguém pode afirmar com honestidade que dinheiro não é bem-vindo nos dias atuais.

       O tom de George era leve.

       — Você estava em apuros, não estava, George? — perguntou Susan.

       — Isto não é problema seu, é?

       — Estava apenas interessada.

       — Você está alugando esta loja para negócios?

       — Vou comprar todo o prédio. Os dois andares superiores eram apartamentos. Um estava vinculado à loja. Quanto ao,outro, vou indenizar os moradores para que saiam.

       — É bom ter dinheiro, não é, Susan?

       Havia um tom de malícia na voz de George. Mas Susan apenas respirou fundo e disse:

       — Quanto a mim, acho maravilhoso. É uma resposta às minhas orações.

       — Orações matam parentes mais velhos?

       Susan não lhe deu atenção.

       — Este lugar é perfeito. Para começar, tem uma arquitetura muito boa. No andar superior posso fazer um apartamento inigualável. Há dois telhados lindamente moldados e os quartos têm uma bela forma. Esta parte de baixo, que já foi reformada, vou fazê-la toda moderna.

       — O que vai ser? Uma loja de roupas?

       — Não. De artigos de beleza. Preparação de ervas medicinais. Cremes faciais.

       — Com todo o aparato?

       — Como de costume. Dá dinheiro. Sempre deu. O que precisa é de um toque de personalidade. E isso eu posso dar.

       George olhou para Susan com aprovação. Ele admirava-lhe as formas angulosas do rosto, a boca generosa, o colorido radiante. Tudo formando um rosto incomum e cheio de vida. E ele reconhecia que Susan possuía aquela estranha e indefinível qualidade... a qualidade do sucesso.

       — Sim — disse ele. — Acho que você tem jeito para a coisa. Você receberá de volta o dinheiro gasto neste empreendimento e terá sucesso.

       — Tem a localização certa. Fica exatamente na saída da principal rua de comércio e pode-se estacionar o carro bem em frente à loja.

       George balançou a cabeça.

       — Sim, Susan, você vai obter sucesso. Há muito tempo que você tem isso em mente?

       — Há mais de um ano.

       — Por que não levou ao conhecimento do velho Richard? Ele poderia ter financiado o negócio.

       — Eu levei ao conhecimento dele.

       — Ele não tomou nenhuma providência? Por que será? Pensei que ele reconheceria em você o mesmo vigor que ele próprio possuía.

       Susan não respondeu, e na mente de George apareceu, num relance, a figura de uma outra pessoa. Um jovem magro, nervoso e de olhar desconfiado.

       — Onde o... qual é mesmo seu nome... Greg... entra nisso tudo? — indagou ele. — Ele deixará de preparar pílulas e pós?

       — É claro. Construiremos um laboratório lá nos fundos. Teremos as nossas próprias fórmulas para cremes faciais.

       George reprimiu um sorriso. Ele queria dizer: “Então, agora o garoto vai ganhar seu brinquedinho”, mas não disse. Como primo, ele não se importava em ser malicioso, embora tivesse a inquietante impressão de que os sentimentos de Susan pelo marido eram uma coisa para ser tratada com muito cuidado. Tinha todo o aspecto de um perigoso explosivo. Ele ficou pensando, como ficara no dia do funeral, naquele sujeito esquisito e apagado, Gregory. Ele tinha algo de estranho, algo indefinível e que ao mesmo tempo não o era.

       Tornou a olhar para Susan, tão tranqüila e radiantemente triunfante.

       — Você tem o verdadeiro toque dos Abernethie — observou ele. — É a única da família que o possui. Pena que seja mulher. Digo isso por causa do velho Richard. Se você fosse homem, aposto como ele teria lhe deixado toda a sua fortuna.

       Susan falou devagar:

       — Sim, creio que sim.

       Ela fez uma pausa e em seguida disse:

       — Sabe, ele não gostava de Greg...

       — Ah! — George ergueu as sobrancelhas. — Erro dele.

       — Sim.

       — Oh, bem, de qualquer modo as coisas agora vão bem... tudo correndo de acordo com seu plano.

       Ao pronunciar estas palavras, ele foi surpreendido pelo fato de que elas pareciam especialmente aplicáveis a Susan.

       Essa idéia fez com que, por um momento, ele sentisse um certo mal-estar.

       Mudando de assunto, ele disse:

       — A propósito, você recebeu uma carta de Helen? Sobre Enderby?

       — Sim, recebi esta manhã. Você recebeu?

       — Sim. O que vamos fazer a respeito?

       — Greg e eu pensamos em ir no próximo fim de semana...  se isso for conveniente para todos. Helen parece querer reunir todos nós.

       George riu maliciosamente.

       — Caso contrário, alguém poderá escolher uma peça de mais valor do que o outro.

       Susan riu.

       — Oh, suponho que haja uma avaliação apropriada. Entretanto, uma avaliação para um inventário será muito mais baixa do que pelo preço do mercado. E, além disso, eu gostaria de ficar com algumas relíquias do fundador da fortuna dos Abernethie. Acho que seria interessante colocar aqui um ou dois exemplares realmente absurdos e encantadores da era vitoriana. O estilo daquela época está voltando à moda. Havia uma mesa de mármore verde na sala de visitas que dá para fazer uma decoração bem colorida. Talvez com pássaros empalhados... ou um daqueles arranjos de flores de cera. Alguma coisa desse tipo, como elemento central, pode ser de muito efeito.

       — Confio no seu gosto.

       — Você irá, não?

       — Oh, irei, nem que seja só para me assegurar da honestidade da distribuição.

       Susan riu.

       — Quanto quer apostar que vai sair uma grande confusão na família? — perguntou ela.

       — Rosamund provavelmente vai querer a mesa de mármore verde para um cenário de teatro.

       Susan não achou graça. Em vez disso, franziu as sobrancelhas.

       — Você tem visto Rosamund ultimamente?

       — Não vejo a linda prima Rosamund desde que voltamos do funeral naquele trem de terceira classe.

       — Eu a vi uma ou duas vezes. Ela... ela parecia um tanto estranha...

       — O que estava acontecendo? Ela estava tentando pensar?

       — Não. Ela parecia... bem... parecia perturbada.

       — Perturbada por ter herdado muito dinheiro e agora poder montar alguma peça horrível onde Michael possa fazer papel de tolo?

       — Oh, isso está sendo levado adiante, e realmente me parece horrível... mas mesmo assim pode vir a ser sucesso. Você sabe, Michael é bom. Ele causa grande impressão no palco. Não é como Rosamund, que não passa de uma mulher bonita e péssima atriz.

       — Pobre linda e péssima atriz Rosamund!

       — De qualquer forma, Rosamund não é tão tola quanto se imagina. Às vezes ela diz coisas bastante perspicazes. Coisas que você nem imaginaria que ela tivesse sequer notado. É... é bem desconcertante.

       — Bem parecida com tia Cora.

       — Sim.

       Uma inquietude momentânea desceu sobre eles... dando a impressão de ter sido trazida pela invocação do nome de Cora Lansquenet.

       Em seguida George falou com um ar de despreocupação um tanto estudado.

       — Por falar em Cora, e quanto àquela empregada? Acho que algo deveria ser feito em relação a ela.

       — Fazer algo em relação a ela? O que você quer dizer?

       — Bem, não deixa de ser um assunto que diz respeito à nossa família. Na verdade, estive pensando que Cora era nossa tia, e ocorreu-me que essa mulher poderia não encontrar emprego com facilidade.

       — Você pensou nisso?

       — Sim. As pessoas vivem preocupadas com a própria segurança. Não digo que pensem que esta tal de Gilchrist os atacaria com uma machadinha, mas lá no fundo podem achar que ela traz azar. As pessoas são supersticiosas.

       — Que estranho você ter pensado tudo isso, George! O que você poderia entender desse assunto?

       George respondeu secamente:

       — Você se esqueceu de que sou advogado. Vejo muito o lado estranho e ilógico das pessoas. Mas o que eu estava querendo dizer é que acho que deveríamos fazer alguma coisa por essa mulher. Dar-lhe uma pequena mesada ou algo parecido. Ou arranjar-lhe um emprego num escritório, se é que ela sabe fazer esse tipo de trabalho. Sinto que devemos manter contato com ela.

       — Você não precisa se preocupar — afirmou Susan. Sua voz estava irônica e seca. — Já tomei minhas providências. Ela está na casa de Timothy e Maude.

       George pareceu espantado.

       — Susan... isso é sensato?

       — Foi a melhor coisa em que pude pensar... no momento.

       George encarou-a, curioso.

       — Você é muito segura de si mesma, não é, Susan? Sabe o que está fazendo e não sente remorsos.

       — Sentir remorsos é perda de tempo — respondeu Susan tranqüilamente.

 

Capítulo XVII

       Michael jogou a carta para Rosamund, que estava do outro lado da mesa.

       — Que acha disso?

       — Oh, nós iremos. Não acha melhor?

       — Se você quiser... — concordou Michael.

       — Pode haver algumas jóias. É claro que todas as coisas naquela casa são horrorosas. Pássaros empalhados, flores de cera... ugh!

       — Sim. É o próprio mausoléu. Aliás, gostaria de fazer um ou dois esboços, especialmente da sala de visitas. Da lareira, por exemplo, e daquele sofá de forma tão estranha. São perfeitos para The baronet’s progress, caso venhamos a encená-la.

       Ele se levantou e olhou o relógio.

       — Por falar nisso, preciso ir encontrar-me com Rosenheim. Só chegarei tarde da noite. Vou jantar com Oscar para falarmos sobre a encenação da peça e estudar as suas possibilidades no mercado americano.

       — Querido Oscar! Ele ficará satisfeito em vê-lo depois de tanto tempo. Mande-lhe as minhas lembranças.

       Michael olhou-a penetrantemente. Não estava mais sorrindo e em seu rosto havia uma expressão alerta e vigilante.

       — O que quer dizer com “depois de tanto tempo”? Qualquer pessoa pensaria que não o vejo há meses.

       — E você não o tem visto, tem?

       — Sim, almoçamos juntos há apenas uma semana.

       — Que engraçado! Então ele deve ter se esquecido. Telefonou ontem à noite e disse que não o via desde a noite da estréia de Tilly looks west.

       — Ele deve estar maluco!

       Michael riu. Rosamund, com seus olhos azuis e grandes, olhava-o sem emoção.

       — Você pensa que sou uma tola, não pensa, Mick?

       Michael protestou:

       — Querida, é lógico que não!

       — Sim, você pensa. Entretanto, não sou completamente tola. Você não esteve com Oscar naquele dia. Sei aonde foi.

       — Rosamund querida... o que você está querendo dizer?

       — Que sei aonde você realmente foi.

       Michael, com o rosto atraente e inseguro, encarou a esposa. Ela lhe devolveu o olhar, plácida e imperturbável.

       Como podia ser desconcertante um olhar verdadeiramente vazio, pensou ele de repente.

       Ele foi um tanto infeliz ao falar:

       — Não sei onde você está querendo chegar.

       — Que é bobagem sua me contar um monte de mentiras.

       — Olhe aqui, Rosamund...

       Ele começou a gritar, mas parou, surpreso, quando sua mulher disse suavemente:

       — Você quer encenar esta peça, não quer?

       — Se eu quero!? Tem o papel com que sempre sonhei!

       — Sim... era isso que eu queria dizer.

       — O que exatamente você queria dizer?

       — Bem, que é uma coisa que tem muito valor, mas que não se deve correr muitos riscos.

       Ele encarou-a e disse vagarosamente:

       — O dinheiro é seu... eu sei disso. Se você não quer se arriscar...

       — O dinheiro é nosso — enfatizou Rosamund. — Acho que isso é muito importante.

       — Olhe, querida. O papel de Eileen parece-me muito bom.

       Rosamund sorriu.

       — Não creio... realmente... que desejo interpretá-lo.

       — Minha querida menina... — Michael estava espantado. — O que está acontecendo?

       — Nada.

       — Está, sim, você anda diferente ultimamente... melancólica... nervosa. O que há?

       — Nada. Quero apenas que seja cuidadoso, Mick.

       — Cuidadoso com o quê? Sempre sou cuidadoso.

       — Não, não acho que seja. Você sempre pensa que pode escapar com tudo o que faz e que todo mundo acreditará no que você quiser. Outro dia você foi muito tolo a respeito de Oscar.

       Michael ficou vermelho de raiva.

       — E quanto a você? Você disse que ia fazer compras com Jane. Não é verdade. Jane está na América há semanas.

       — Sim — concordou Rosamund. — Isso também foi tolice minha. Na realidade, fui dar uma volta... no Regent’s Park.

       Michael olhou-a, intrigado.

       — Regent’s Park? Você nunca foi passear no Regent’s Park em toda a sua vida. O que está acontecendo? Você tem algum namorado? Pode me dizer o que quiser, Rosamund. Você tem andado diferente ultimamente. Por quê?

       — Tenho pensado em certas coisas. Sobre o que fazer...

       Michael deu a volta na mesa, indo até ela num ímpeto espontâneo. Havia fervor em sua voz quando falou:

       — Querida, você sabe que a amo loucamente!

       Ela correspondeu ao abraço. Entretanto, quando se separaram, ele foi de novo desagradavelmente surpreendido pela estranha sagacidade que havia naqueles lindos olhos.

       — Você perdoaria qualquer coisa que eu fizesse, não? — indagou ele.

       — Suponho que sim — respondeu Rosamund vagamente. — Não é esse o ponto. É tudo diferente agora, entende? Temos que pensar e planejar.

       — Pensar e planejar o quê?

       Rosamund, com uma expressão carregada, falou:

       — As coisas não acabam quando as fazemos. Na verdade, é apenas uma espécie de começo, e então é preciso decidir-se o que se deve fazer em seguida. O que é importante e o que não é.

       — Rosamund...

       Ela sentou-se. O rosto perplexo, o pensamento perdido na distância, onde aparentemente Michael não figurava.

       Na terceira repetição de seu nome, ela começou lentamente a sair de seu sonho.

       — O que disse?

       — Perguntei-lhe o que estava pensando.

       — Oh, sim, estava imaginando se deveria ir a... qual é mesmo o nome?... Lytchett St. Mary e ver esta tal de Srta. Alguma Coisa, a mulher que trabalhava para tia Cora.

       — Para quê?

       — Bem, ela irá embora em breve, não irá? Para a casa de algum parente ou algo assim. Acho que não devemos permitir que vá embora antes de lhe perguntar.

       — Perguntar-lhe o quê?

       — Perguntar-lhe quem matou tia Cora.

       Michael arregalou os olhos.

       — Você quer dizer que acha que ela sabe?

       Rosamund respondeu um tanto distraída:

       — Oh, suponho que sim. Ela morava lá, entende?

       — Mas, se fosse assim, ela teria contado à polícia.

       — Oh, não digo que ela saiba a ponto de afirmar para a polícia. Apenas que, provavelmente, ela tem bastante certeza. Por causa do que tio Richard falou quando esteve lá. Você sabe, ele foi até lá. Susan me contou.

       — Porém, ela não deve ter ouvido o que ele disse.

       — Ah, sim, ela deve ter ouvido, sim, querido.

       Rosamund parecia alguém discutindo com uma criança irracional.

       — Bobagem! Não consigo ver o velho Richard Abernethie falando de suspeitas em relação à família diante de uma desconhecida.

       — Bem, isso é lógico. Mas ela poderia ter ouvido.

       — Você quer dizer ouvir por acaso?

       — Acho que sim... na verdade, tenho certeza. Deve ser mortalmente aborrecido duas mulheres morando sozinhas num chalé sem nunca acontecer nada, exceto lavar louça, cozinhar, colocar o gato para o lado de fora e coisas desse gênero. É claro que ela ouvia as conversas e lia as cartas... qualquer pessoa o faria.

       Michael olhou-a de uma forma que quase se aproximava do assombro.

       — Você seria capaz? — ele perguntou abruptamente.

       — Eu nunca iria ser dama de companhia no interior. Preferiria morrer.

       — Quero dizer... você leria cartas e tudo o mais?

       — Se quisesse saber de alguma coisa, sim. Todo mundo é assim, você não acha? — disse Rosamund calmamente.

       Um olhar límpido encontrou o dele.

       — A pessoa deseja apenas saber — continuou Rosamund. — Não quer fazer nada a respeito. Acho que foi assim que ela se sentiu. Refiro-me à Srta. Gilchrist. Estou certa de que ela sabe.

       Michael falou com a voz abafada:

       — Rosamund, quem você acha que matou Cora e o velho Richard?

       Novamente o olhar límpido e azul encontrou o seu.

       — Querido, não seja absurdo! Você sabe tão bem quanto eu. Mas é muito, muito melhor não mencionar isso nunca. E, assim sendo, nunca o faremos.

 

Capítulo XVIII

       De sua cadeira, perto da lareira na biblioteca, Hercule Poirot olhava para as pessoas presentes.

       Seu olhar parou pensativo em Susan, que estava sentada ereta, parecendo alegre e animada; no marido sentado perto dela, com expressão um tanto vaga e torcendo com os dedos um pedaço de barbante; em George Crossfield, jovial e claramente satisfeito consigo mesmo, contando para Rosamund sobre jogadores trapaceiros que conhecera em cruzeiros pelo Atlântico, e esta dizia mecanicamente: — Que extraordinário, querido! Mas por quê? —, num tom completamente desinteressado; em Michael, com o seu tipo muito especial, sua boa aparência e enorme charme; em Helen, séria e ligeiramente distante; em Timothy, confortavelmente instalado na melhor poltrona com uma almofada a mais nas costas; em Maude, forte e atarracada, em devotada assistência; e, por fim, na figura que estava sentada como que a pedir desculpas por estar ali no âmbito do círculo familiar... a figura da Srta. Gilchrist, que usava uma blusa excentricamente enfeitada. Daqui a pouco, ele calculou, ela se levantará e, murmurando uma desculpa, deixará a reunião, indo para o seu quarto. A Srta. Gilchrist, pensou ele, conhecia seu lugar. Ela aprendera da maneira mais difícil.

       Hercule Poirot saboreou seu café e com os olhos semicerrados fez sua apreciação.

       Ele havia desejado reunir todos ali e conseguira. E o que, pensou consigo mesmo, iria fazer com eles agora? Sentiu um repentino desprazer e cansaço de continuar o trabalho. O que seria aquilo?, pensou ele. Seria a influência de Helen Abernethie? Havia nela uma qualidade de passiva resistência que, inesperadamente, parecia ter muita força. Teria ela, enquanto aparentava simpatia e despreocupação, conseguido impor sua relutância? Ele sabia que ela era contra esmiuçar os detalhes da morte de Richard Abernethie. Ela queria que o assunto fosse deixado em paz, que desaparecesse no esquecimento. Poirot não se surpreendia com isso. O que o surpreendia era sua disposição de concordar com ela.

       A avaliação do Sr. Entwhistle havia sido admirável. Descrevera de maneira astuta e perfeita todas as pessoas. Tendo como base o conhecimento e o julgamento do velho advogado, Poirot quisera ver por si mesmo. Imaginara que, conhecendo aquelas pessoas intimamente, teria uma idéia exata não de por quê ou quando (estas eram perguntas a que ele não se propusera responder. O assassinato havia sido possível — isso era tudo o que ele precisava saber), mas quem? Pois Hercule Poirot tinha uma vida inteira de experiência, e, assim como um homem que lida com quadros sabe reconhecer um artista, Poirot acreditava poder reconhecer um provável tipo de criminoso amador que — se a necessidade aparecesse — estaria pronto para matar.

       Mas não ia ser tão fácil. Porque ele podia visualizar quase todas aquelas pessoas como um possível, mas não um provável, assassino.

       George poderia matar como os ratos encurralados matam; Susan calmamente, com muita eficiência, armaria um plano; Gregory porque possuía aquele estranho e mórbido traço dos que pedem, quase imploram, por punição; Michael porque era ambicioso e tinha a vaidade de um assassino perfeitamente seguro; Rosamund porque, exteriormente, era assustadoramente simples; Timothy porque havia odiado e invejado o irmão, desejando ardentemente o poder que o dinheiro do irmão lhe daria; Maude porque Timothy era a sua criança e, no que dizia respeito a ele, ela não tinha limites. Até mesmo a Srta. Gilchrist, pensou ele, poderia ter considerado a hipótese de cometer um assassinato se isso pudesse restituir-lhe a Willow Tree com todo o seu antigo encanto!

       E Helen? Ele não conseguia imaginar Helen cometendo um assassinato. Era muito civilizada, completamente incapaz de violência. E ela e seu marido haviam realmente amado Richard Abernethie.

       Poirot suspirou. Não iriam poder mais fugir à verdade. Ele iria adotar um método mais demorado, mas certamente seguro. Haveria muita conversação. Muita mesmo. Porque, com o correr do tempo ou através da mentira ou através da verdade, as pessoas acabariam se entregando...

       Helen o apresentara ao grupo e ele começara a trabalhar para vencer o freqüente mal-estar causado por sua presença... um estrangeiro! Ele usara os ouvidos e os olhos. Vira e ouvira... abertamente ou atrás das portas. Observara afinidades, antagonismos, palavras descuidadas que surgiam sempre que se referiam à divisão de bens. Maquinara com perfeição, tête-à-tête, passeios pelo terraço, e fizera suas deduções e observações. Falara com a Srta. Gilchrist a respeito das glórias passadas de sua casa de chá. Sobre a correta preparação de brioches e éclairs de chocolate. Visitara o jardim para discutir o uso apropriado de ervas na culinária. Gastara longas horas ouvindo Timothy falar sobre a própria saúde e sobre o efeito que a pintura estava tendo sobre ele.

       Pintura? Poirot franziu as sobrancelhas. Alguém mais falara alguma coisa sobre pintura — o Sr. Entwhistle?

       Tinha havido também uma discussão a respeito de um tipo diferente de pintura. Pierre Lansquenet como pintor. As pinturas de Cora Lansquenet, aprovadas entusiasticamente pela Srta. Gilchrist, reprovadas desdenhosamente por Susan. — Iguais a cartões-postais — afirmara. — E também foram copiadas de cartões-postais.

       A Srta. Gilchrist ficara bastante perturbada com esse comentário e afirmara com veemência que a querida Sra. Lansquenet sempre pintara copiando da natureza.

       — Mas aposto como trapaceava — disse Susan a Poirot quando a Srta. Gilchrist retirou-se da sala. — Aliás, tenho certeza, mas não vou perturbar “a nossa garotinha” dizendo isso.

       — E como a senhora sabe?

       Poirot observou o rosto forte e confiante de Susan.

       “Esta aí sempre será uma pessoa segura de si”, pensou ele. “E talvez, algum dia, ela se sentirá segura demais...”

       Susan prosseguiu:

       — Vou lhe contar, mas não comente com a Srta. Gilchrist. Um dos quadros é de Polflexan, a enseada, o farol, o ancoradouro... a paisagem habitual que todos os artistas costumam desenhar. Entretanto, o ancoradouro foi destruído durante a guerra, e desde que o esboço de tia Cora foi feito há alguns anos não é possível que tenha sido copiado da natureza, é? Contudo, os cartões-postais que eles vendem por lá ainda mostram o ancoradouro como costumava ser. Havia um desses cartões numa gaveta de seu quarto. Sendo assim, acho que tia Cora começou lá o seu esboço e depois, escondida, terminou-o copiando de um cartão-postal! É engraçado, não é? A maneira como as pessoas são descobertas...

       — Sim, é como a senhora disse, engraçado. — Ele fez uma pausa e então achou que aquela era uma boa oportunidade.

       — A senhora não se lembra de mim, madame, mas eu me lembro da senhora. Esta não é a primeira vez que a vejo.

       Ela o encarou. Poirot balançou a cabeça com prazer.

       — Sim, sim, é isso mesmo. Eu estava dentro de um automóvel, bem agasalhado, e pela janela eu a vi. A senhora falava com um dos mecânicos da garagem. A senhora não me notou... o que é natural... eu estava dentro do carro... um estrangeiro velho e todo encapotado! Mas reparei na senhora, pois é jovem e agradável de se olhar, e estava parada à luz do sol. Então, ao chegar aqui, disse a mim mesmo: “Que coincidência!”

       — Uma garagem? Onde? Quando foi isso?

       — Oh, há pouco tempo, uma semana... não mais. No momento — disse Poirot falsamente e com um retrato perfeito da garagem do King’s Arms na cabeça —, não consigo lembrar-me de onde foi. Viajo tanto por este país!

       — Procurando um lugar adequado para os refugiados?

       — Sim. Há muito para se levar em consideração. Preço, vizinhança, lugar fácil de ser adaptado.

       — Suponho que o senhor vai ter que fazer muitas reformas aqui. Tem divisões horríveis.

       — Sim, nos quartos será preciso. Mas não mexeremos na maior parte dos aposentos do andar térreo. — Fez uma pausa antes de continuar. — A senhora fica triste que esta sua velha mansão vá parar nas mãos de estranhos?

       — É lógico que não — Susan parecia estar se divertindo. — Acho uma excelente idéia. Do jeito que está, é impossível até mesmo alguém pensar em morar aqui. Não tenho motivo para ser sentimental a esse respeito. Não é a minha velha casa. Minha mãe e meu pai moravam em Londres. Vínhamos aqui apenas algumas vezes para o Natal. Na verdade, sempre achei este lugar horroroso... quase que um templo indecente para a riqueza.

       — Os templos agora são diferentes. A simplicidade dispendiosa, a iluminação embutida, e todos os detalhes cuidadosamente estudados. Bem, a riqueza ainda tem seus templos. Suponho, espero não estar sendo indiscreto, que a senhora mesma está planejando uma construção deste tipo. Tudo de luxo, sem medir despesas.

       Susan riu.

       — Dificilmente poderia ser chamado de templo. É apenas um local de negócios.

       — Talvez o nome não tenha importância. Contudo, vai custar muito dinheiro, não é verdade?

       — Hoje em dia está tudo assustadoramente caro. Valerá a pena esta despesa inicial.

       — Fale-me de seus planos. Fico espantado em encontrar uma jovem bonita, tão prática e tão competente. No meu tempo de moço, há muitos anos, admito, as mulheres bonitas pensavam apenas em divertimentos, cosméticos... na toilette.

       — As mulheres continuam a se preocupar bastante com os seus rostos. É aí que eu entro.

       — Fale-me a respeito.

       E ela falou. Falou com riqueza de detalhes e com grande dose de inconsciente auto-revelação. Ele admirava sua perspicácia nos negócios, sua audácia no planejamento e sua segurança nos detalhes. Uma planejadora corajosa que não se detinha em questões sem importância. Talvez um pouco calculista demais, como todos os planejadores audaciosos devem ser.

       Observando-a, ele comentou:

       — Sim, a senhora terá sucesso. Irá para a frente. Que sorte que não tenha sido restringida, como muitos o são, pela pobreza. Não se pode ir muito longe sem capital. Ter tido essas idéias criativas e ter sido impedida de concretizá-las por falta de dinheiro... isso seria insuportável.

       — Eu não suportaria! Mas teria levantado dinheiro de uma forma ou de outra... conseguido alguém para me financiar.

       — Ah, é claro. Seu tio, dono desta casa, era rico. Mesmo que não tivesse morrido, ele teria empregado dinheiro em seus negócios.

       — Oh, não, ele não o faria. Tio Richard era cabeça dura no que dizia respeito às mulheres. Se eu fosse homem... — Um rápido lampejo de raiva passou-lhe pelo rosto. — Ele me deixava com muita raiva.

       — Estou vendo, estou vendo...

       — Os velhos não deveriam ficar no caminho dos jovens. Eu... oh, desculpe-me.

       Hercule Poirot riu tranqüilamente e torceu o bigode.

       — Sou velho, sim. Entretanto, não atrapalho a juventude. Não há ninguém que precise esperar pela minha morte.

       — Que idéia horrível!

       — Mas a senhora é uma pessoa realista, madame. Admitamos, sem maiores alvoroços, que o mundo esteja cheio de jovens, ou até mesmo de pessoas de meia-idade, que esperam paciente ou impacientemente pela morte de alguém cujo falecimento lhe dará, se não riqueza, oportunidade.

       — Oportunidade! — disse Susan, respirando fundo. — É disso que todo mundo precisa.

       Poirot, que estava olhando adiante, disse alegremente:

       — Aí vem seu marido para se juntar a nossa pequena discussão. Falávamos, Sr. Banks, de oportunidade. Oportunidade de ouro... que deve ser agarrada com as duas mãos. Até onde sua consciência lhe permitiria ir? Ouçamos seus pontos de vista.

       Poirot, porém, não estava destinado a ouvir as opiniões de Gregory Banks sobre oportunidade ou qualquer outra coisa. Na verdade, achara praticamente impossível conversar com Gregory Banks. Ele possuía um curioso dom. Pela sua própria vontade ou pela de sua esposa, ele dava a impressão de não ter prazer em tête-à-tête ou em bate-papos amenos. Não, “conversação” com Gregory havia falhado.

       Poirot falara com Maude Abernethie... também sobre pintura (o seu cheiro) e como havia sido bom que Timothy pudesse ter vindo para Enderby, e como Helen havia sido gentil em estender o convite para a Srta. Gilchrist.

       — Pois ela realmente é muito útil. Timothy muitas vezes sente vontade de fazer um lanche e não pode pedir demais aos empregados dos outros, mas há um fogareiro a gás fora da copa, de modo que a Srta. Gilchrist pode esquentar café ou chocolate sem perturbar ninguém. E ela é tão prestativa, sempre disposta a subir e descer as escadas uma dúzia de vezes por dia. Oh, sim, acho que foi bastante providencial ela ter ficado nervosa por permanecer sozinha na casa, embora eu deva admitir que na ocasião fiquei contrariada.

       — Ela ficou nervosa? — interessou-se Poirot.

       Ele ouviu enquanto Maude lhe dava um relato do repentino ataque de nervos da Srta. Gilchrist.

       — A senhora disse que ela estava assustada? E entretanto não sabia exatamente por quê? Isso é interessante. Muito interessante.

       — Eu calculo que se trata de um choque retardado.

       — Talvez.

       — Certa vez, durante a guerra, quando uma bomba explodiu a cerca de uma milha de nós, lembro-me de que Timothy...

       Poirot abstraiu seu pensamento de Timothy.

       — Aconteceu alguma coisa especial naquele dia? — indagou ele.

       — Em que dia?

       — No dia em que a Srta. Gilchrist ficou perturbada?

       — Oh, esse dia... não, creio que não. Parece que ela estava assim desde que deixou Lytchett St. Mary, ou pelo menos foi o que disse. Ela não parecia se importar enquanto estava lá.

       E o resultado, pensou Poirot, fora um pedaço de bolo de noiva envenenado. Não era de se espantar que depois disso a Srta. Gilchrist tivesse ficado assustada... E até mesmo depois que se mudara para uma pacata cidadezinha perto de Stansfield Grange o medo permanecera. Mais do que isso. Aumentara. Por quê? Certamente cuidar de um hipocondríaco do tipo de Timothy deveria ser tão exaustivo que aquele medo nervoso provavelmente se transformaria em exasperação.

       Porém alguma coisa naquela casa deixara a Srta. Gilchrist com medo. O quê? Será que ela própria sabia?

       Encontrando sozinha a Srta. Gilchrist por um breve espaço de tempo antes do jantar, Poirot tocara no assunto com exagerada curiosidade de estrangeiro.

       — É impossível, a senhora compreende, para mim mencionar o assunto do assassinato com os membros da família. Entretanto, estou intrigado. E quem não ficaria? Um crime brutal. . . uma artista sensível atacada num chalé solitário! Foi terrível para a família. Mas imagino que também tenha sido horrível para a senhorita. Já que a Sra. Timothy Abernethie me deu a entender que a senhorita estava lá na ocasião...?

       — Sim, estava. E se o senhor me desculpar, Sr. Pontarlier, não quero tocar no assunto.

       — Compreendo... oh, sim, compreendo perfeitamente.

       Dizendo isso, Poirot esperou. E, como imaginara, a Srta. Gilchrist imediatamente começou a falar a respeito.

       Ele não ficou sabendo de nada que ainda não tivesse conhecimento, mas representou bem seu papel demonstrando simpatia, emitindo algumas exclamações de compreensão e ouvindo com absorto interesse, que a Srta. Gilchrist não podia deixar de apreciar.

       Só quando ela esgotara o assunto de como ela se sentira, do que dissera o médico e de como o Sr. Entwhistle havia sido bondoso, é que Poirot passou cautelosamente para o ponto seguinte.

       — Acho que a senhorita foi inteligente em não permanecer sozinha naquele chalé.

       — Eu não poderia, Sr. Pontarlier. Realmente não poderia.

       — Não. Compreendo até que a senhorita sentisse medo de ficar sozinha na casa do Sr. Timothy Abernethie enquanto eles estivessem aqui.

       A Srta. Gilchrist tomou uma expressão culposa.

       — Sinto-me terrivelmente envergonhada disso. Foi tão tolo de minha parte! Senti uma espécie de pânico... e realmente não sei por quê.

       — Mas é claro que todos sabem por quê. A senhorita acabara de se recuperar de um covarde atentado de envenenamento...

       A Srta. Gilchrist suspirou e disse que simplesmente não conseguia compreender. Por que alguém desejaria envenená-la?

       — Mas é óbvio, minha cara senhorita, que esse criminoso, esse assassino, achou que a senhorita sabia de alguma coisa que pudesse incriminá-lo com a polícia.

       — Mas o que eu poderia saber? Algum vagabundo ou uma criatura quase maluca.

       — Se é que foi um vagabundo. Parece-me improvável...

       — Oh, por favor, Sr. Pontarlier... — a Srta. Gilchrist de repente ficou muito perturbada. — Não sugira tais coisas; Não quero acreditar.

       — Em que a senhorita não quer acreditar?

       — Não quero acreditar que foi... quero dizer... que foi...

       Ela se calou, confusa.

       — E, entretanto, a senhorita acredita — afirmou sagazmente Poirot.

       — Oh, não, não acredito!

       — Acho que acredita. É por isso que a senhorita está amedrontada. Ainda está, não está?

       — Oh, não, não desde que cheguei aqui. Com tantas pessoas. E uma atmosfera familiar tão boa! Oh, não, aqui tudo me parece bem.

       — Parece-me, a senhorita precisa desculpar meu interesse, sou um homem velho, de certa forma fraco, e gasto grande parte do meu tempo à toa, especulando sobre assuntos que me interessam, parece-me que deve ter havido um fato definido em Stansfield Grange que trouxe o medo a sua mente. Hoje em dia os médicos reconhecem que muitas coisas acontecem em nosso subconsciente.

       — Sim, sim, sei que eles afirmam isso.

       — E acredito que seu medo inconsciente foi trazido à tona por algum pequeno acontecimento concreto, talvez algo bem estranho, servindo como ponto focal.

       A Srta. Gilchrist pareceu ansiosa para concordar.

       — Estou certa de que o senhor tem razão — reforçou ela.

       — Então, qual foi, digamos, esta... ahn... estranha circunstância?

       A Srta. Gilchrist refletiu por um momento, e em seguida disse inesperadamente:

       — Sabe, Sr. Pontarlier, acho que foi uma freira.

       Antes que Poirot pudesse assimilar a resposta, Susan e seu marido entraram seguidos de Helen.

       “Uma freira”, pensou. “Onde foi, nisso tudo, que ouvi alguma coisa sobre uma freira?”

       Resolveu retornar ao assunto das freiras em alguma hora no correr da noite.

 

Capítulo XIX             

       Toda a família havia sido gentil com o Sr. Pontarlier, o representante da ANUOR. E como ele estivera certo ao escolher para ser designada por iniciais. Todos haviam aceitado a ANUOR como um fato lógico... haviam até fingido saber tudo a respeito! Como os seres humanos detestavam admitir ignorância! A única exceção fora Rosamund, que perguntara, curiosa:

       “Mas o que é? Eu nunca ouvi falar disso”.

       Felizmente, não havia mais ninguém por perto na ocasião. Poirot explicara a organização de tal maneira que qualquer pessoa, a não ser Rosamund, se sentiria embaraçada em desconhecer uma instituição mundialmente famosa. Rosamund, entretanto, apenas disse vagamente: “Oh, refugiados de novo. Estou tão cansada de refugiados!”, exprimindo assim a silenciosa reação de muitos que normalmente eram convencionais demais para se expressarem tão francamente.

       O Sr. Pontarlier estava, portanto, aceito... como um estorvo, mas também como uma pessoa sem importância. Tornara-se uma peça de décor estrangeira. A opinião geral era de que Helen deveria ter evitado recebê-lo nesse fim de semana especial, mas, já que ele estava ali, deveriam tratá-lo bem. Felizmente, esse pequeno e esquisito estrangeiro não parecia saber muito inglês. Com bastante freqüência, ele não compreendia o que se dizia a ele, e, quando todo mundo estava falando mais ou menos ao mesmo tempo, ele dava a impressão de estar desnorteado. Aparentava estar interessado apenas em refugiados e nas condições de pós-guerra, e seu vocabulário incluía somente esses assuntos. Bate-papo comum parecia confundi-lo. Quase que esquecido por todos, Hercule Poirot, recostado em sua cadeira, bebendo seu café, observava, como um gato costuma observar, todo o movimento, as idas e vindas dos pássaros. O gato ainda não estava pronto para fazer sua aparição.

       Depois de perambular vinte e quatro horas pela casa e examinar todos os objetos, os herdeiros de Richard Abernethie estavam prontos para declarar suas preferências e, se fosse preciso, lutar por elas.

       O assunto da conversa foi, em primeiro lugar, acerca de um certo serviço de sobremesa de porcelana Spode.

       — Não creio que eu vá viver por muito tempo — disse Timothy numa voz fraca e melancólica. — E Maude e eu não temos filhos. Dificilmente valerá a pena nos enchermos de objetos sem utilidade. Contudo, por motivos sentimentais, gostaria de ficar com este serviço de sobremesa. Lembra-me os tempos felizes. É claro que está fora de moda, e compreendo que serviço de sobremesa tem pouco valor atualmente. Mas ficaria muito satisfeito...  e talvez também a cômoda boule da saleta branca.

       — O senhor chegou atrasado, tio — falou George com alegre despreocupação. — Esta manhã pedi a Helen para reservar o serviço de porcelana Spode para mim.

       O rosto de Timothy ficou vermelho de raiva.

       — Reservá-lo... reservá-lo? O que significa isso? Ainda não ficou nada resolvido. E para que você quer um serviço de sobremesa? Você não é casado!

       — Na realidade, coleciono porcelana Spode. E este é um exemplar esplêndido. Mas quanto à cômoda boule, não há problema. Eu não queria aquilo nem como presente.

       — Olhe aqui, meu jovem. Você não pode se intrometer dessa maneira. Sou mais velho do que você e o único irmão vivo de Richard. O serviço Spode é meu.

       — Por que não fica com o serviço Dresden? É um lindo modelo e tenho certeza de que também traz lindas recordações. Bem, de qualquer maneira, o Spode é meu. O melhor é de quem chega primeiro.

       — Bobagem... nada disso! — explodiu Timothy.

       Maude falou com firmeza:

       — Por favor, não perturbe seu tio, George. Isso faz muito mal para ele. Naturalmente que ele ficará com o serviço Spode se ele quiser. A primeira escolha é dele, e vocês jovens devem vir depois. Ele era irmão de Richard e você é apenas um sobrinho.

       — E digo-lhe mais, meu jovem. — Timothy estava agitado de tanta raiva. — Se Richard tivesse feito um testamento decente, a distribuição dos bens desta casa teria ficado inteiramente em minhas mãos. Era dessa forma que a propriedade deveria ter sido distribuída, e, se não foi, posso apenas suspeitar de alguma influência desonesta. Sim, eu repito, influência desonesta.

       Timothy olhou fixamente para o sobrinho.

       — Um testamento absurdo! — exclamou ele. — Absurdo!

       Recostou-se e colocou a mão sobre o coração, gemendo.

       — Isso me faz muito mal. Gostaria de beber um pouco de brandy.

       A Srta. Gilchrist apressou-se em buscar e voltou com o tônico num pequeno cálice.

       — Aqui está, Sr. Abernethie. Por favor, procure se acalmar. Tem certeza de que não deve subir e ir para a cama?

       — Não banque a tola. — Timothy bebeu o brandy. — Ir para a cama?! Pretendo ficar aqui e defender os meus interesses.

       — Realmente, George, estou surpresa com você — criticou Maude. — O que o seu tio disse é verdade. A vontade dele vem primeiro. Se ele quiser, o serviço de porcelana Spode será dele.

       — De qualquer maneira, é medonho — comentou Susan.

       — Cale a boca, Susan — ordenou Timothy.

       O jovem magro que estava sentado ao lado de Susan ergueu a cabeça. Com a voz ligeiramente mais aguda do que de costume, disse: — Não fale assim com a minha mulher! — levantando-se um pouco da cadeira.

       Susan apressou-se em dizer:

       — Está tudo bem, Greg. Eu não me importo.        

       — Mas eu me importo.

       Helen falou:

       — Acho que seria gentil de sua parte, George, deixar que seu tio fique com o serviço de sobremesa.

       Timothy manifestou-se, indignado:

       — Não há nada de “deixar que fique” neste caso!

       Contudo, George, com uma ligeira reverência para Helen, disse:

       — O seu desejo é uma ordem, tia Helen. Abro mão de minhas pretensões.

       — De qualquer forma, você não o queria realmente, queria? — perguntou Helen.

       Ele lançou-lhe um olhar aguçado, e em seguida sorriu.

       — O seu problema, tia Helen, é que a senhora é muito astuta. Vê mais do que pretende ver. Não se preocupe, tio Timothy, o Spode é seu. Estava apenas me divertindo.

       — Divertindo-se, realmente! — Maude estava indignada. — Seu tio poderia ter tido um ataque do coração.

       — Não acredito nisso — disse George alegremente. — Tio Timothy provavelmente sobreviverá a todos nós, embora não passe de um velho enferrujado.

       Timothy falou malignamente:

       — Não é de admirar que Richard tenha se desapontado com você.

       — O que disse? — O bom humor desaparecera do rosto de George.

       — Você veio aqui depois da morte de Mortimer esperando tomar seu lugar... esperando que Richard o nomeasse seu herdeiro, não foi? Porém, meu irmão percebeu logo com quem estava lidando. Sabia aonde o dinheiro iria parar se você tivesse controle dele. Surpreendo-me até que ele tenha lhe deixado parte de sua fortuna. Ele sabia aonde iria parar. Jogos, Monte Cario, cassinos estrangeiros. Talvez até pior. Ele suspeitava que você não era honesto, não é verdade?

       George, com manchas esbranquiçadas aparecendo em torno das narinas, falou:

       — Acho que seria melhor o senhor tomar cuidado com o que diz.

       — Eu não estava bastante bem para vir ao funeral — continuou Timothy vagarosamente —, porém Maude me contou o que Cora disse. Cora sempre foi uma tola, mas pode haver alguma coisa de real nisso tudo. E, se assim for, sei de quem eu suspeitaria.

       — Timothy! — Maude levantou-se, firme, calma, uma torre de fortaleza. — Você teve uma noite muito cansativa. Deve pensar em sua saúde. Não pode ficar doente novamente. Suba comigo. Precisa tomar um sedativo e ir direto para a cama. Helen, Timothy e eu ficaremos com o serviço de sobremesa de porcelana Spode e com a cômoda boule como lembrança de Richard. Espero que não haja nenhuma objeção.

       Seu olhar percorreu todo o grupo. Ninguém falou e ela retirou-se da sala apoiando Timothy com a mão debaixo de seu cotovelo. Dispensou com um aceno a Srta. Gilchrist, que aguardava perto da porta.

       George quebrou o silêncio assim que eles se retiraram da sala.

       — Femme formidable! — disse ele. — Isso descreve com exatidão a tia Maude. Eu detestaria ter que impedir seu triunfal desempenho.

       A Srta. Gilchrist tornou a se sentar um tanto desconfortavelmente e murmurou:

       — A Sra. Abernethie é sempre tão gentil!

       O comentário caiu mal.

       Michael Shane riu de repente e disse: — Sabe, estou me divertindo com tudo isso. Herança de Voysey na vida real. Por falar nisso, Rosamund e eu desejamos aquela mesa de mármore da sala de visitas.

       — Oh, não — gritou Susan. — Eu a quero.

       — Ih, vai começar tudo de novo! — exclamou George, olhando para o teto.

       — Bem, não precisamos nos zangar com isso — explicou Susan. — O motivo por que quero a mesa é para colocá-la em meu novo salão de beleza. Apenas um toque colorido. . . e colocarei um grande ramo de flores de cera em cima dela. Ficará lindo. Posso encontrar flores de cera com muita facilidade, mas uma mesa de mármore verde não é muito comum.

       — Mas, querida — disse Rosamund —, é justamente por isso que a queremos. Para um novo cenário. Como você mesma disse, uma nota de colorido, e é um exemplar tão perfeito de seu estilo! Com flores de cera ou com pássaros empalhados, ficará absolutamente maravilhosa.

       — Entendo o que você quer dizer, Rosamund — falou Susan. — Porém, não acho que tenha uma justificativa tão boa quanto a minha. Você poderia facilmente conseguir uma mesa pintada para o palco. O efeito seria o mesmo. Mas, para o meu salão, preciso de uma peça genuína.

       — Vamos, minhas senhoras — apaziguou George. — Que tal uma decisão na sorte? Podemos tirar cara ou coroa. Ou decidir nas cartas. Tudo bem de acordo com o estilo da mesa.

       Susan sorriu simpaticamente.

       — Rosamund e eu conversaremos sobre isso amanhã — disse ela.

       Ela parecia, como sempre, muito segura de si. George olhava com algum interesse para os rostos de Susan e Rosamund. O rosto de Rosamund tinha uma expressão vaga e um tanto distante.

       — Em qual das duas a senhora aposta, tia Helen? — indagou ele. — Eu diria que a chance é igual. Susan possui determinação; entretanto, Rosamund é maravilhosamente franca.

       — Talvez não pássaros empalhados — disse Rosamund —, mas um daqueles grandes vasos chineses que dariam um lindo abajur, com uma cúpula dourada.

       A Srta. Gilchrist apressou-se em fazer um discurso apaziguador.

       — Esta casa está repleta de coisas bonitas. Estou certa de que a mesa verde ficaria esplêndida no novo estabelecimento da Sra. Banks. Eu nunca tinha visto nenhuma mesa deste tipo. Deve valer muito dinheiro.

       — É óbvio que será deduzido da minha parte da herança — afirmou Susan.

       — Sinto muito... não quis dizer... — A Srta. Gilchrist estava completamente tonta pela confusão.

       — Poderá ser deduzido da nossa parte da herança — salientou Michael. — Juntamente com as flores de cera.

       — Elas ficam tão bem naquela mesa! — murmurou a Srta. Gilchrist. — Delicadamente bonito.

       Mas ninguém estava prestando atenção às trivialidades bem-intencionadas da Srta. Gilchrist.

       Greg disse, novamente naquela voz nervosa:

       — Susan quer aquela mesa.

       Houve uma momentânea agitação, como se, com suas palavras, Greg tivesse mudado o tom da música.

       Helen falou, apressada:

       — Com o que você realmente quer ficar, George? Já que abriu mão do serviço Spode.

       George sorriu e a tensão diminuiu.

       — É até uma vergonha atormentar o velho Timothy — disse ele. — Mas ele é uma figura quase inacreditável. Possui há tanto tempo o hábito de fazer as coisas de acordo com sua vontade que já se tornou um caso patológico.

       — É preciso fazer a vontade de um inválido, Sr. Crossfield — disse a Srta. Gilchrist.

       — Um grosseiro velho hipocondríaco, é isso que ele é — afirmou George.

       — É claro que é — concordou Susan. — Não acredito que haja nada de errado com ele, você acredita, Rosamund?

       — O quê?

       — Que exista alguma coisa errada com tio Timothy?

       — Não... não, acho que não. — Rosamund estava distraída. Desculpou-se. — Sinto muito, estava imaginando que tipo de iluminação ficaria bem na mesa.

       — Está vendo? — alertou George. — Uma mulher de uma idéia só. Sua esposa é uma mulher perigosa, Michael. Espero que você perceba isso.

       — Já percebi — respondeu Michael um tanto sombrio.

       George prosseguiu com toda a aparência de quem estava se divertindo.

       — A Batalha da Mesa! Para ser disputada amanhã... educadamente... mas com firme determinação. Devemos tomar partido. Eu aposto em Rosamund, que parece meiga e dócil, mas não é. Os maridos provavelmente apostarão em suas esposas. A Srta. Gilchrist? Do lado de Susan, obviamente.

       — Oh, realmente, Sr. Crossfield, eu não me atreveria a...

       — Tia Helen? —. George não deu nenhuma atenção ao alvoroço da Srta. Gilchrist. — A senhora tem o voto decisivo. Oh, tinha me esquecido. Sr. Pontarlier?

       — Pardon? — Hercule Poirot parecia distraído.

       George pensou em lhe explicar a situação, mas decidiu que não valeria a pena. O pobre sujeito não entendera uma única palavra do que estava acontecendo. Disse: — É apenas uma brincadeira em família.

       — Sim, sim, compreendo. — Poirot sorriu cordialmente.

       — Então o voto decisivo é seu, tia Helen. De que lado a senhora está?

       Helen sorriu.

       — Talvez eu também queira a mesa para mim, George.

       Ela deliberadamente mudou de assunto, dirigindo-se ao convidado estrangeiro.

       — Receio que tudo isso seja muito aborrecido para o senhor, Sr. Pontarlier.

       — De forma alguma, madame. Considero um privilégio ser admitido a participar de sua vida em família. — Ele inclinou a cabeça. — Gostaria de dizer... não consigo expressar-me bem... o meu pesar de que esta casa tenha que passar de suas mãos para as de estranhos. É sem dúvida uma grande tristeza.

       — Não, realmente, não. Isso não nos entristece nem um pouco — assegurou-lhe Susan.

       — A senhora é muito gentil, madame. Isto aqui será o lugar perfeito para os velhos sofredores de perseguição. Quanta tranqüilidade!  Que paz! Rogo-lhe para lembrar-se disso quando as situações cruéis da vida surgirem, como seguramente ocorrerá. Ouvi dizer que havia também a possibilidade de isto aqui ser transformado em colégio... não um colégio comum, um convento... administrado por religiosas... por “freiras”, acho que é assim que se diz. Talvez os senhores preferissem isto?

       — De forma alguma — garantiu George.

       — O Sagrado Coração de Maria — continuou Poirot. — Felizmente, devido à bondade de um doador desconhecido, pudemos fazer uma oferta ligeiramente mais alta. — Dirigiu-se diretamente à Srta. Gilchrist. — Creio que a senhorita não gosta de freiras.

       A Srta. Gilchrist enrubesceu, parecendo embaraçada.

       — Oh, realmente, Sr. Pontarlier, o senhor não deve... quero dizer, não é nada pessoal. Mas não acho certo esconder-se do mundo daquela maneira... isto é, não é necessário e é quase egoísta. Embora, é claro, existam aquelas que dão aulas e as que lidam com os pobres. Estas, com certeza, são mulheres altruístas e que praticam o bem.

       — Eu, simplesmente, não posso imaginar como se pode querer ser freira — comentou Susan.

       — O traje é muito bonito — disse Rosamund. — Lembram-se no ano passado quando reviveram O milagre? Sonia Wells estava indescritivelmente glamourosa.

       — O que eu não entendo — disse George — é por que agradaria ao Todo-Poderoso que elas andassem vestidas daquela maneira medieval. Porque, afinal de contas, é assim que uma freira se veste. Inteiramente incômodo, anti-higiênico e nada prático.

       — Faz com que fiquem tão parecidas umas com as outras, não acham? — indagou a Srta. Gilchrist. — Sei que é bobagem, mas tive um choque e tanto quando estava na casa da Sra. Abernethie e uma freira bateu à porta recolhendo donativos. Meti na minha cabeça que era a mesma freira que aparecera em Lychett St. Mary no dia do inquérito da pobre Sra. Lansquenet. Sabe, tive quase a impressão de que ela estava me perseguindo.

       — Pensei que as freiras sempre recolhiam donativos aos pares — comentou George. — Não houve, certa vez, uma história de detetive baseada justamente nesse detalhe?

       — Desta vez havia apenas uma — afirmou a Srta. Gilchrist. — Talvez precisem economizar — acrescentou vagamente. — E, de qualquer modo, não poderia ter sido a mesma freira, porque a outra estava coletando dinheiro para uma organização, acho que de St. Barnabas... e esta era para algo bem diferente... algo a ver com crianças.

       — As duas tinham o mesmo tipo de feições? — perguntou Hercule Poirot. Ele parecia interessado. A Srta. Gilchrist dirigiu-se a ele:

       — Acho que deve ter sido isso. O lábio superior... quase como se ela tivesse um bigode. Creio que foi justamente isso que me assustou, pois naquela ocasião eu estava bastante nervosa. E lembrei-me daquelas histórias acontecidas durante a guerra em que as freiras, na realidade, eram homens da Quinta Coluna que desciam de pára-quedas. É lógico que foi muito tolo da minha parte. Soube disso depois.

       — Uma freira seria um bom disfarce — observou Susan, pensativa. — Esconde os pés.

       — A verdade é que — disse George — raramente alguém olha bem para os outros. É por isso que no tribunal se ouvem de diferentes testemunhas tantos depoimentos contraditórios na descrição de uma pessoa. Vocês ficariam surpresos. Um mesmo homem é muitas vezes descrito como alto, baixo; magro, robusto; louro, moreno; vestido de terno claro, escuro., e assim por diante. Normalmente há um observador em que se pode confiar, mas é preciso se decidir qual.

       — Outra coisa estranha — comentou Susan — é que às vezes você se vê inesperadamente num espelho e não sabe quem é. Parece apenas alguém vagamente familiar. E você diz para si mesmo: “É alguém que conheço bastante...”, e então, de repente, você percebe que é você mesmo.

       George falou:

       — Seria ainda mais complicado se você pudesse realmente se ver... e não uma imagem refletida num espelho.

       — Por quê? — perguntou Rosamund, intrigada.

       — Por que você não se vê, ninguém se vê, como aparece para as outras pessoas. Sempre se vê num espelho... isto é... uma imagem invertida.

       — E há alguma diferença?

       — Oh, sim — apressou-se Susan. — Deve haver. Porque os rostos das pessoas nunca são iguais dos dois lados. Suas sobrancelhas são diferentes, suas bocas são mais levantadas de um lado que do outro, e os narizes não são perfeitamente simétricos. Pode-se ver isso com um lápis. Quem tem um lápis?

       Alguém apareceu com um lápis e começaram a experiência, segurando o lápis de cada lado do nariz e rindo ao ver a ridícula variação no ângulo.

       A atmosfera agora se suavizara bastante. Todos estavam de bom humor. Não eram mais os herdeiros de Richard Abernethie reunidos ali para uma partilha de bens. Era um grupo alegre e comum reunido para um fim de semana no campo.

       Apenas Helen Abernethie permanecia calada e desligada.

       Com um suspiro, Hercule Poirot levantou-se e deu um educado boa-noite para a sua anfitriã.

       — Talvez, madame, seja melhor eu me despedir. Meu trem parte amanhã às nove da manhã. É muito cedo. Sendo assim, prefiro agradecer agora por sua gentileza e hospitalidade. A data da assinatura da escritura será combinada com o Sr. Entwhistle. À sua conveniência, é claro.

       — Pode ser quando o senhor desejar, Sr. Pontarlier. Eu... eu já fiz tudo o que tinha para fazer aqui.

       — A senhora voltará para a sua vila de Chipre?

       — Sim. — Um ligeiro sorriso apareceu nos lábios de Helen Abernethie.

       Poirot falou:

       — A senhora está satisfeita. Não sente nenhuma pena?

       — Em deixar a Inglaterra? Ou se refere a esta casa?

       — Refiro-me a esta casa.

       — Oh, não. Não vale a pena se prender ao passado. Deve-se deixá-lo para trás.

       — Se se consegue. — Piscando os olhos inocentemente, Poirot sorriu para o grupo de rostos educados que o cercavam. — Muitas vezes não é possível. O passado não pode ser abandonado. Não pode ser relegado ao esquecimento. Permanece ao nosso lado... dizendo: “Este assunto ainda não está encerrado”.

       Susan soltou uma gargalhada de descrença. Poirot explicou:

       — Mas eu estava falando sério.

       — O senhor quer dizer — indagou Michael — que quando os refugiados vierem para cá não conseguirão esquecer completamente os sofrimentos passados?

       — Não estou me referindo aos meus refugiados.

       — Ele estava falando sobre nós, querido — explicou Rosamund. — Está se referindo a tio Richard, tia Cora, a machadinha e tudo o mais.

       Ela virou-se para Poirot.

       — Não é verdade?

       Poirot olhou para ela com um rosto inexpressivo. Em seguida, perguntou:

       — Por que acha isso, madame?

       — Porque o senhor é um detetive, não é? É por isso que está aqui. A ANUOR, ou seja lá como se chama, é pura bobagem, não é?

 

Capítulo XX

       Houve um momento de extraordinária tensão. Poirot pôde senti-la, embora não tivesse afastado os olhos do lindo e calmo rosto de Rosamund.

       Com uma ligeira reverência, ele disse:

       — A senhora tem uma grande perspicácia.

       — Nem tanto — retrucou Rosamund. — Certa vez, num restaurante, mostraram-me o senhor. Lembro-me bem.

       — Mas por que a senhora não mencionou isso antes?

       — Achei que seria mais divertido se não o fizesse — respondeu Rosamund.

       Michael falou numa voz mal controlada:

       — Minha... querida!

       Poirot voltou o olhar para ele.

       Michael estava zangado. Zangado e talvez... apreensivo.

       Os olhos de Poirot examinaram vagarosamente todos os rostos: o de Susan estava zangado e atento; o de Gregory, cansado e abatido; o da Srta. Gilchrist, abobalhado e com a boca aberta; George estava alerta; Helen, assustada e nervosa...

       Todas aquelas expressões eram normais naquelas circunstâncias. Ele gostaria de ter visto seus rostos um segundo antes, quando a palavra “detetive” saíra dos lábios de Rosamund. Porque agora, inevitavelmente, não seria bem a mesma coisa...

       Endireitou os ombros e fez uma reverência. Seu sotaque tornou-se menos acentuado.

       — Sim — disse ele. — Sou um detetive.

       George Crossfield perguntou:

       — Quem o mandou aqui?

       — Fui designado para investigar as circunstâncias da morte de Richard Abernethie.

       — Por quem?

       — Por enquanto isso não lhe diz respeito. Mas seria bom, não seria, se eu pudesse lhes assegurar que acima de qualquer suspeita Richard Abernethie morreu de morte natural?

       — É lógico que foi morte natural. Quem está dizendo o contrário?

       — Cora Lansquenet disse. E ela está morta.

       Uma pequena sombra de inquietação pairou sobre a sala como uma brisa maligna.

       — Ela disse aquilo... nesta sala — falou Susan. — Mas, realmente, não pensei que...

       — Não mesmo, Susan? — George Crossfield lançou-lhe um olhar sarcástico. — Por que continuar a fingir? Você não conseguirá enganar o Sr. Pontarlier.

       — Na verdade, todos nós acreditamos nela — afirmou Rosamund. — E o nome dele não é Pontarlier, é Hercule alguma coisa.

       — Hercule Poirot... a seu serviço.

       Poirot fez uma reverência.

       Não houve nenhuma exclamação de surpresa ou apreensão. Seu nome nada parecia significar para eles.

       Eles ficaram menos alarmados com a menção de seu nome do que haviam ficado pela palavra “detetive”.

       — Posso saber a que conclusões o senhor chegou? — indagou George.

       — Ele não lhe dirá, querido — disse Rosamund. — E, se ele falar, não será a verdade.

       À parte de todo o grupo, ela parecia estar se divertindo.

       Hercule Poirot olhou para ela, pensativo.

      

       Hercule Poirot não dormiu bem naquela noite. Estava perturbado e não tinha muita certeza do motivo por que estava assim. Trechos incompreensíveis de conversas, vários olhares, movimentos estranhos... tudo parecia carregado de atormentador significado na solidão da noite. Estava no limiar do sono, mas o sono não chegava. No momento em que começava a adormecer, alguma coisa aparecia em sua mente e o despertava. Pintura... Timothy e tinta. Tinta a óleo... o cheiro de tinta a óleo...  associado de alguma forma com o Sr. Entwhistle. Pintura e Cora. Pinturas de Cora... cartões-postais... Cora fraudulenta com sua pintura... Não, de volta ao Sr. Entwhistle... algo que o Sr. Entwhistle dissera... ou fora Lanscombe? Uma freira que apareceu no dia da morte de Richard Abernethie. Uma freira de bigode. Uma freira em Stansfield Grange e em Lytchett St. Mary. Eram freiras demais! Rosamund glamourosa, vestida de freira no palco. Rosamund... revelando que ele era detetive... e todos a encarando quando ela falou. Deveria ter sido assim que olharam para Cora no dia em que ela dissera: “Mas ele foi assassinado, não foi?” O que Helen Abernethie achara de errado naquela ocasião? Helen Abernethie... deixando o passado para trás, indo para Chipre... Helen deixando cair as flores de cera quando ele dissera... o que foi mesmo que dissera? Não conseguia lembrar-se...

       Ele então adormeceu e, enquanto dormia, sonhou...

       Sonhou com uma mesa de mármore verde. Em cima dela havia uma redoma de vidro com flores de cera... só que tudo havia sido pintado com uma espessa tinta a óleo vermelha. Pintado da cor de sangue. Ele podia sentir o cheiro da tinta, e Timothy estava gemendo e dizendo: “Estou morrendo... morrendo... é o fim”. E Maude, em pé ao lado, alta e forte, com uma grande faca na mão e repetindo as palavras dele: “Sim, é o fim...” O fim... um leito de morte, com velas e uma freira rezando. Se ao menos ele pudesse ver o rosto da freira, ele saberia...

       Poirot acordou... e ele sabia!

       Sim, era o fim...

       Apesar de ainda haver um longo caminho a percorrer.

       Ele separou todas as peças do mosaico.

       O Sr. Entwhistle, o cheiro de tinta, a casa de Timothy, e alguma coisa que deveria estar dentro dela... ou que poderia estar dentro dela... as flores de cera... Helen... vidro quebrado...

      

       Em seu quarto, Helen levou algum tempo para se deitar. Estava pensando.

       Sentada em frente à penteadeira, olhava-se sem se ver no espelho.

       Havia sido forçada a receber Hercule Poirot. Ela não tinha querido. Contudo, o Sr. Entwhistle tornara difícil para ela recusar. E agora tudo fora revelado. Não havia mais possibilidade de deixar Richard Abernethie descansar em paz em seu túmulo. Tudo começara com aquelas poucas palavras de Cora...

       No dia do funeral... Qual teria sido a expressão em seus rostos? Como Cora os teria visto? E como ela, Helen, teria se mostrado?

       O que dissera George? Sobre ver a si próprio.

       Existia também a citação: “Vermos a nós mesmos como os outros nos vêem...” Como os outros nos vêem.

       Os olhos que estavam olhando o espelho sem nada ver de repente focalizaram. Ela estava se vendo... mas não realmente a si mesma... não como os outros a viam... não como Cora a vira naquele dia.

       Sua sobrancelha direita... não, a esquerda, era ligeiramente mais arqueada do que a direita. A boca? Não, a curva de sua boca era simétrica. Se ela se encontrasse consigo mesma, certamente não veria muita diferença em relação àquela imagem no espelho. Não como Cora.

       Cora... a imagem voltou bem claramente... Cora, no dia do funeral, sua cabeça inclinada de lado... fazendo sua pergunta... olhando para Helen...

       De repente, Helen cobriu o rosto com as mãos. Disse para si mesma: “Não tem sentido... não pode ter sentido...”

      

       A Srta. Entwhistle foi despertada de seu agradável sonho, no qual estava jogando cartas com a Rainha Mary, pela campainha do telefone.

       Tentou ignorá-la, mas o barulho persistiu. Sonolenta, levantou a cabeça do travesseiro e olhou para o relógio ao lado da cama. Cinco para as sete. Quem poderia estar telefonando àquela hora da manhã? Deveria ser engano.

       O irritante tilintar continuava. A Srta. Entwhistle suspirou, apanhou um robe e dirigiu-se à sala de estar.

       — Kensington 675498 — disse asperamente ao atender ao telefone.

       — Aqui é a Sra. Abernethie.  Sra. Leo Abernethie. Posso falar com o Sr. Entwhistle?

       — Oh, bom dia, Sra. Abernethie. — O bom-dia não foi nada cordial. — Quem fala aqui é a Srta. Entwhistle. Receio que meu irmão ainda esteja dormindo. Aliás, eu também estava dormindo.

       — Sinto muito. — Helen foi forçada a se desculpar. — Mas é muito importante que eu fale com seu irmão imediatamente.

       — Não pode deixar para mais tarde?

       — Infelizmente, não.

       — Oh, então está bem.

       A Srta. Entwhistle foi rude.

       Ela bateu na porta do quarto do irmão e entrou.

       — São os Abernethie de novo — disse ela asperamente.

       — Eh! Os Abernethie?

       — A Sra. Leo Abernethie. Telefonando antes das sete da manhã. Era só o que faltava!

       — A Sra. Leo? Minha nossa! Que estranho! Onde está meu robe? Ah, obrigado.

       Pouco depois ele estava falando:

       — Aqui é Entwhistle. É você, Helen?

       — Sim. Lamento muito tirá-lo da cama desta maneira. Mas o senhor me pediu para telefonar-lhe no momento em que eu me lembrasse do que me chamara a atenção no dia do funeral, quando Cora nos pegou de surpresa sugerindo que Richard fora assassinado.

       — Ah! A senhora se lembrou?

       Helen respondeu numa voz intrigada:

       — Sim, mas não tem sentido.

       — Deve me permitir julgar isso. Foi alguma coisa que notou em alguém?

       — Sim.

       — Conte-me.

       — Parece-me absurdo. Entretanto, estou bastante segura. Lembrei-me quando estava me olhando no espelho ontem à noite. Oh...

       O pequeno grito assustado foi sucedido por um estranho som que veio através dos fios... um barulho pesado e seco que o Sr. Entwhistle não conseguia distinguir.

       Ele falou, ansioso:

       — Alô, alô... a senhora está aí? Helen, responda! Helen...

 

Capítulo XXI

       Só depois de quase uma hora de espera e um bocado de conversa com os supervisores da telefônica e outros é que o Sr. Entwhistle afinal conseguiu falar com Hercule Poirot.

       — Até que enfim! — exclamou o Sr. Entwhistle com desculpável exasperação. — O serviço interurbano parece ter tido a maior dificuldade em conseguir a ligação.

       — Não é de admirar. O telefone estava fora do gancho.

       Havia um tom sério na voz de Poirot que fez o Sr. Entwhistle perguntar:

       — Aconteceu alguma coisa?

       — Sim. A Sra. Leo Abernethie foi encontrada por uma empregada, há cerca de vinte minutos, caída na biblioteca ao lado do telefone. Estava inconsciente. Foi uma Concussão violenta.

       — Quer dizer que ela foi golpeada na cabeça?

       — Acho que sim. Há a possibilidade de ela ter caído e batido com a cabeça na maçaneta da porta, mas não acredito que tenha sido isso, e nem tampouco o médico.

       — Ela estava falando comigo na hora. Estranhei que a ligação tivesse sido cortada tão bruscamente.

       — Então era com o senhor que ela estava falando? O que disse ela?

       — Há algum tempo atrás ela mencionou que, na ocasião em que Cora Lansquenet sugeriu que seu irmão havia sido assassinado, ela sentira que havia algo errado... estranho... ela não sabia, entretanto, como explicar... pois, infelizmente, não conseguia se lembrar por que tivera aquela impressão.

       — E de repente ela se lembrou?

       — Sim.

       — E telefonou para lhe contar?

       — Sim.

       — Eh bien.

       — Não há nenhum “eh bien” neste caso — afirmou o Sr. Entwhistle. — Ela começou a me contar, mas foi interrompida.

       — O que ela chegou a contar?

       — Nada de importante.

       — Desculpe-me, mon ami, mas eu julgo isso, não você. O que exatamente ela disse?

       — Ela me lembrou de que eu lhe pedira para informar-me imediatamente caso ela se recordasse do que chamara sua atenção. Disse-me que se lembrara, mas que não tinha sentido. Perguntei-lhe se era alguma coisa relacionada com as pessoas que estavam presentes naquele dia, e ela respondeu que sim. Falou que o fato voltara à sua memória quando ela estava se olhando no espelho...

       — Sim?

       — Foi só isso.

       — Ela não deu nenhuma pista a respeito de quem ela estava falando?

       — Se ela tivesse me revelado isso, eu dificilmente esqueceria de informá-lo — respondeu friamente o Sr. Entwhistle.

       — Peço desculpas, mon ami. É lógico que você teria me contado.

       O Sr. Entwhistle falou:

       — Temos apenas que esperar que ela recupere a consciência para sabermos.

       — Isso pode demorar muito. Ou talvez nunca aconteça — afirmou Hercule Poirot.

       — Foi tão sério assim? — A voz do Sr. Entwhistle tremeu um pouco.

       — Sim, foi muito sério.

       — Mas... isso é terrível, Poirot!

       — Sim, é terrível. E é por isso que não podemos nos dar ao luxo de esperar. Pois mostra que estamos lidando com alguém completamente desumano ou que está completamente atemorizado, o que vem a dar no mesmo.

       — Mas olhe aqui, Poirot, e quanto a Helen? Estou preocupado. Está certo de que ela está segura em Enderby?

       — Não, ela não estaria segura aqui em Enderby. Por isso a ambulância já veio e levou-a para uma clínica onde ela terá enfermeiras especiais e ninguém da família ou amigos poderá visitá-la.

       O Sr. Entwhistle suspirou.

       — Você me deixa aliviado. Ela poderia estar correndo perigo.

       — Aqui ela certamente estaria em perigo.

       A voz do Sr. Entwhistle parecia emocionada:

       — Gosto muito de Helen Abernethie. Sempre gostei. É uma mulher de caráter excepcional. Ela pode ter tido algumas... algumas reticências em sua vida.

       — Ah, existem reticências?

       — Sempre tive uma idéia de que era assim.

       — Daí a vila em Chipre. Sim, isso explica muita coisa.

       — Não quero que pense...

       — Você não pode me impedir de pensar. Mas agora tenho uma incumbência para você. Espere um momento.

       Houve uma pausa e em seguida Poirot tornou a falar:

       — Tinha que me certificar de que ninguém estava ouvindo. Está tudo bem. Agora vou lhe dizer o que quero que faça para mim. Deve se preparar para uma viagem.

       — Uma viagem? — O Sr. Entwhistle pareceu ligeiramente desanimado. — Oh, entendo, quer que eu vá até Enderby.

       — Nada disso. Estou encarregado disso aqui. Não, você não terá que viajar para tão longe. Sua viagem não o levará para muito longe de Londres. Você irá para Bury St. Edmunds (Ma foi! Que nomes têm essas cidades inglesas!) e lá alugará um carro e irá até a Forsdyke House. É um sanatório para doentes mentais. Procure pelo Dr. Penrith e peça informações particulares sobre um paciente que teve alta há pouco tempo.

       — Que paciente? De qualquer modo, certamente...

       Poirot interrompeu-o:

       — O nome do paciente é Gregory Banks. Descubra que tipo de doença o afligia.

       — Quer dizer que Gregory Banks é louco?

       — Ch! Tenha cuidado com o que diz. E agora... ainda não tomei o meu café e acho que nem você.

       — Ainda não. Estava muito ansioso...

       — Posso imaginar. Então, peço-lhe, tome seu café e repouse.  Ao meio-dia há um bom trem para Bury St. Edmunds. Se eu tiver alguma novidade telefono antes de você partir.

       — Tome cuidado com você mesmo, Poirot — pediu o Sr. Entwhistle, preocupado.

       — Ah, isso, sim! Não tenho a menor vontade de ser atingido na cabeça por uma maçaneta. Pode ficar certo de que tomarei todas as precauções. E, por enquanto...  até logo.

       Poirot ouviu o telefone ser desligado do outro lado e em seguida um segundo clique... e sorriu para si mesmo. Alguém no hall desligara o telefone.

       Ele foi até lá. Não havia ninguém por perto. Foi nas pontas dos pés até o armário atrás da escada e olhou para dentro. Naquele momento, Lanscombe saiu da porta de serviço carregando uma bandeja com torradas e um bule de café de prata. Pareceu um tanto surpreso ao ver Poirot surgindo de dentro do armário.

       — O café está servido, senhor — disse ele.

       Poirot observou-o, pensativo.

       O velho mordomo estava pálido e trêmulo.

       — Coragem — animou Poirot, batendo-lhe no ombro. — Tudo terminará bem. Seria muito trabalho servir-me uma xicara de café no quarto?

       — Pois, não, senhor. Mandarei Janet levá-lo.

       Lanscombe lançou um olhar de desaprovação para Hercule Poirot enquanto este subia as escadas. Poirot estava vestido com um exótico robe de seda com estampas de triângulos e quadrados.

       “Estrangeiros!”, pensou Lanscombe amargamente. “Estrangeiros nesta casa! E a Sra. Leo com uma Concussão. Não sei aonde vamos chegar. As coisas não são mais as mesmas desde que o Sr. Richard morreu.”

       Quando Janet chegou, Hercule Poirot já estava vestido. Suas expressões de simpatia foram bem recebidas, já que ele havia salientado o choque que a descoberta deveria ter-lhe causado.

       — Sim, realmente, senhor, o que senti ao abrir a porta da biblioteca, entrar com Hoover, e ver a Sra. Leo estendida no chão, nunca me esquecerei. Lá estava ela, caída no chão... e eu me certifiquei de que não estava morta. Deve ter desmaiado enquanto falava ao telefone. Estranhei ela estar acordada àquela hora da manhã. Nunca a vi fazer isso antes.

       — Estranho, não é? — disse ele, e acrescentou casualmente: — Suponho que mais ninguém estivesse acordado?

       — Como de costume, senhor, a Sra. Timothy já estava de pé e se movimentando pela casa. Ela é madrugadora... e muitas vezes dá um passeio antes do café.

       — Ela pertence à geração que acorda cedo — comentou Poirot balançando a cabeça. — Os jovens de hoje não se levantam tão cedo.

       — O senhor tem razão. Estavam todos dormindo profundamente quando levei-lhes o chá... sendo que eu também cheguei bem tarde, por causa do choque. Tive também que providenciar o médico, e eu mesma estava precisando tomar uma xícara de chá para me acalmar.

       Ela saiu e Poirot refletiu sobre o que ela dissera.

       Maude Abernethie estivera acordada e andando pela casa. A nova geração na cama... mas isso, ponderou Poirot, nada significava. Qualquer um poderia ter ouvido Helen abrir e fechar a porta, e tê-la seguido... e depois fingir estar dormindo profundamente.

       “Mas se eu estou certo”, pensou Poirot, “e, afinal de contas, é natural eu estar certo, é um hábito que tenho, então não há necessidade de esclarecer quem estava acordado e quem não estava. Primeiramente devo procurar a prova no lugar onde eu calculo que esteja. E em seguida faço o meu pequeno discurso. E então sento-me e espero para ver o que acontece...”

       Assim que Janet se retirou do quarto, Poirot tomou seu café de um só gole, e vestindo o casaco e o chapéu deixou o quarto. Descendo agilmente as escadas dos fundos, saiu da casa pela porta lateral. Andou animadamente um quarto de milha até a companhia telefônica, onde pediu uma ligação interurbana. Pouco depois estava novamente falando com o Sr. Entwhistle.

       — Sim, sou eu outra vez. Não dê atenção à incumbência que lhe confiei. C’est une blague. Alguém estava ouvindo. Agora, mon vieux, vamos à tarefa verdadeira. Você precisa, como eu disse, tomar um trem, não para Bury St. Edmunds. Quero que vá à casa do Sr. Timothy Abernethie.

       — Mas Maude e Timothy estão em Enderby!

       — Exatamente. Não há ninguém na casa, exceto uma mulher chamada Jones, que foi persuadida por uma soma bastante tentadora a tomar conta da casa enquanto estão ausentes. O que eu quero é que você me traga uma coisa que está naquela casa.

       — Meu caro Poirot! Não tenho inclinação para roubo.

       — Não parecerá roubo. Você dirá para a excelente Sra. Jones, que já o conhece, que o Sr. ou a Sra. Abernethie lhe pediu para apanhar esse tal objeto e levá-lo para Londres. Ela não suspeitará de nada.

       — Não, provavelmente, não. Mas não gosto disso. — O Sr. Entwhistle parecia muito relutante. — Por que você mesmo não vai buscar seja lá o que for?

       — Porque, meu amigo, eu seria um desconhecido com aparência de estrangeiro e, sendo assim, uma pessoa suspeita. A Sra. Jones imediatamente criaria dificuldades. Com você ela não criará nenhuma.

       — Não... não, eu entendo. Mas o que será que Timothy e Maude irão pensar quando souberem? Conheço-os há mais de quarenta anos.

       — E você também conhecia Richard Abernethie desde essa época. E também conheceu Cora Lansquenet quando ela era uma criança.

       Numa voz angustiada, o Sr. Entwhistle perguntou:

       — Está certo de que é realmente necessário, Poirot?

       — A velha pergunta que faziam durante a guerra: “A sua viagem é realmente necessária?” Eu lhe digo: ela é necessária. É vital.

       — E que objeto é esse que eu devo apanhar?

       Poirot disse-lhe.

       — Mas francamente, Poirot, não entendo...

       — Não é necessário que você entenda.

       — E o que quer que eu faça com essa maldita coisa?

       — Você a levará a Londres, para um endereço em Elm Park Gardens. Se tiver um lápis, tome nota.

       Depois de ter anotado, o Sr. Entwhistle falou, ainda com a voz angustiada:

       — Espero que saiba o que está fazendo, Poirot.

       Ele parecia ter dúvidas... mas na resposta de Poirot não havia nenhuma dúvida:

       — É lógico que sei o que estou fazendo. Estamos chegando ao final.

       O Sr. Entwhistle suspirou.

       — Se ao menos pudéssemos adivinhar o que Helen ia dizer...

       — Não é preciso adivinhar. Eu sei.

       — Sabe? Mas, meu caro Poirot...

       — As explicações devem ficar para depois. Entretanto, deixe-me assegurar-lhe uma coisa. Eu sei o que Helen Abernethie viu quando se olhou no espelho.

      

       O café da manhã foi uma refeição inquieta. Nem Rosamund nem Timothy apareceram, mas os outros estavam presentes e falaram num tom baixo e comeram menos do que de costume.

       George foi o primeiro a recuperar o bom humor. Seu temperamento era vivo e otimista.

       — Acho que tia Helen ficará boa — opinou ele. — Os médicos gostam de exagerar as coisas. O que é uma Concussão, afinal de contas? Normalmente, as pessoas se recuperam em poucos dias.

       — Uma mulher que conheci teve uma Concussão durante a guerra — comentou a Srta. Gilchrist. — Um tijolo ou algo assim caiu-lhe na cabeça enquanto andava pela Estrada Tottenham Court. Foi durante um bombardeio... e ela não sentiu nada. Continuou com o que estava fazendo. . . e desmaiou num trem para Liverpool, doze horas depois. Parece inacreditável, mas ela não se recordava de ter ido à estação e apanhado o trem. Simplesmente não entendeu nada quando acordou no hospital. E já estava lá há quase três semanas.

       — O que eu não consigo compreender — disse Susan — é o que Helen estava fazendo, telefonando àquela hora da manhã. E para quem ela estava telefonando?

       — Sentiu-se doente — disse Maude com firmeza. — Provavelmente acordou sentindo-se estranha e desceu para ligar para o médico. Então teve uma vertigem e caiu. Esta é uma história que tem sentido.

       — Foi uma falta de sorte ela ter batido com a cabeça na maçaneta da porta — lamentou Michael. — Se ela tivesse caído em cima do tapete felpudo, estaria bem.

       A porta se abriu e Rosamund entrou, a expressão carregada.

       — Não consigo encontrar aquelas flores de cera — disse ela. — Refiro-me às que estavam em cima da mesa de mármore no dia do funeral de tio Richard. — Ela olhou para Susan, de um modo acusador. — Você as pegou?

       — É claro que não! Realmente, Rosamund, você ainda está pensando em mesas de mármore com a pobre tia Helen no hospital com uma Concussão?

       — Não vejo por que não pensar. Se a pessoa está com uma Concussão não sabe o que está acontecendo, e, por conseguinte, não se importa. Não podemos fazer nada por tia Helen, e Michael e eu temos que estar de volta a Londres amanhã até a hora do almoço porque temos um encontro com Jackie Lygo para falarmos a respeito do dia da estréia de The baronet’s progress. Por isso, gostaria de resolver de uma vez por todas sobre a mesa. E também dar mais uma olhada naquelas flores de cera. Agora, em cima da mesa, tem um vaso chinês... bonito, mas não autêntico. Onde será que estão... talvez Lanscombe saiba.

       Nesse momento, Lanscombe entrou para ver se tinham acabado o café.

       — Nós já acabamos, Lanscombe — informou George levantando-se. — O que aconteceu ao nosso amigo estrangeiro?

       — Ele está tomando o café no quarto, senhor.

       — Lanscombe, sabe onde estão aquelas flores de cera que costumavam ficar em cima da mesa verde da sala de visitas? — indagou Rosamund.

       — Creio que a Sra. Leo teve um acidente com elas. Ela ia mandar fazer uma redoma nova, mas acho que ainda não providenciou.

       — Então onde estão?

       — Provavelmente no armário atrás da escada. É lá que normalmente se guardam as coisas que estão precisando de conserto. Devo buscá-las para a senhora?

       — Eu mesma irei. Venha comigo, Michael. Lá é escuro e não vou sozinha em nenhum canto escuro depois do que aconteceu com tia Helen.

       Todos tiveram uma reação violenta. Maude perguntou, séria:

       — O que você quer dizer com isso, Rosamund?

       — Bem, ela foi golpeada por alguém, não foi?

       Gregory Banks falou com veemência:

       — Ela desmaiou e caiu.

       Rosamund riu.

       — Ela lhe disse isso? Não seja bobo, Greg, é claro que ela foi golpeada.

       George falou rispidamente:

       — Você não deveria dizer essas coisas, Rosamund.

       — Bobagem — respondeu Rosamund. — É o que deve ter acontecido. Quero dizer, tudo se encaixa. Um detetive na casa procurando por pistas, tio Richard envenenado, tia Cora morta por uma machadinha, a Srta. Gilchrist quase envenenada por um bolo de noiva, e agora tia Helen atingida por um objeto pesado. Vocês verão, continuará assim. Um após outro, todo mundo será morto, e o que sobrar será o assassino. Mas não vou ser eu... que serei assassinada, quero dizer.

       — E por que alguém haveria de querer matá-la, linda Rosamund? — perguntou George alegremente.

       Rosamund arregalou bem os olhos.

       — Oh, porque eu sei demais, é lógico.

       — O que você sabe? — Maude Abernethie e Gregory Banks quase falaram juntos.

       Rosamund sorriu de modo vago e angelical.

       — Como vocês gostariam de saber, não é? — disse ela cordialmente. — Venha, Michael.

 

Capítulo XXII

       Às onze horas, Hercule Poirot convocou uma reunião informal na biblioteca. Todos estavam presentes e Poirot olhou pensativo para o semicírculo de rostos.

       — Ontem à noite — começou ele —, a Sra. Shane revelou-lhes que eu era um detetive particular. Quanto a mim, esperava manter minha — digamos — camouflage por mais um pouco. Mas não importa! Hoje ou no máximo amanhã eu lhes contaria a verdade. Agora, por favor, ouçam com atenção o que tenho para lhes dizer. Na minha profissão, sou uma pessoa famosa... posso dizer que até muito famosa. Na verdade, o meu talento é inigualável.

       — Tudo isso, Sr. Pont... não, Sr. Poirot, é engraçado... eu nunca ouvi falar do senhor.

       — Não é engraçado — respondeu energicamente Poirot. — É lamentável. Hoje em dia não existe mais educação decente. Aparentemente não se aprende nada além de economia... e de como preparar testes de inteligência. Mas vamos ao assunto. Há muitos anos que sou amigo do Sr. Entwhistle...

       — Ah, então é ele o intrometido!

       — Se quiser encarar o fato dessa maneira, Sr. Crossfield. O Sr. Entwhistle ficou muito abalado com a morte de seu velho amigo, Richard Abernethie. Perturbou-se especialmente com algumas palavras proferidas no dia do funeral pela irmã do Sr. Abernethie, a Sra. Lansquenet. Palavras ditas nesta sala.

       — Palavras tolas... bem típico de Cora — disse Maude. — O Sr. Entwhistle deveria ter tido mais juízo e não ter dado atenção a elas.

       Poirot prosseguiu:

       — O Sr. Entwhistle ficou ainda mais perturbado depois da coincidência, digamos, da morte da Sra. Lansquenet. Ele queria apenas uma coisa: ter certeza de que essa morte foi realmente uma coincidência. Em outras palavras, ele desejava ficar certo de que Richard Abernethie morrera de morte natural. Assim, ele me contratou para fazer as investigações necessárias.

       Houve uma pausa.

       — E eu as fiz...

       Nova pausa. Ninguém falou.

       Poirot jogou a cabeça para trás.

       — Eh bien, todos ficarão radiantes em saber que como resultado de minhas investigações... não há absolutamente razão alguma para se acreditar que a morte de Richard Abernethie não tenha sido morte natural. Não há motivo algum para se acreditar que ele tenha sido assassinado. — Ele sorriu e levantou as mãos num gesto de triunfo. — É uma boa notícia, não é?

       Pela maneira como a receberam, mal parecia ser. Eles o encararam, e nos olhos de todos, exceto nos de uma pessoa, parecia haver dúvida e suspeita.

       A exceção era Timothy Abernethie, que balançava a cabeça em concordância violenta.

       — É claro que Richard não foi assassinado! — disse ele com raiva. — Nunca consegui compreender por que alguém, por um momento sequer, pudesse até mesmo pensar em tal coisa. Foi apenas mais uma brincadeira de Cora. Só isso. Querendo nos pregar um susto. Era essa a sua idéia de ser engraçada. A verdade é que apesar de ser minha irmã ela era um pouco maluca, pobre garota. Bem, Sr.... seja lá qual for seu nome, fico satisfeito que tenha tido juízo para chegar à conclusão correta, embora ache uma audácia do Sr. Entwhistle contratá-lo para ficar nos espionando. E se ele pensa que vai tirar os seus honorários do nosso dinheiro está muito enganado! Maldita intromissão!  Quem é o Sr. Entwhistle para se meter? Se a família está satisfeita...

       — Mas a família não estava, tio Timothy — retrucou Rosamund.

       — Hein... o que disse?

       Timothy olhou-a com ar carrancudo.

       — Não estávamos satisfeitos. E o que me diz quanto a tia Helen esta manhã?

       Maude respondeu rispidamente:

       — Helen está numa idade em que a pessoa está sujeita a um derrame. É apenas isso.

       — Entendo — disse Rosamund. — A senhora acha que foi outra coincidência.

       Ela olhou para Poirot.

       — Não são coincidências demais?

       — Coincidências acontecem — explicou Hercule Poirot.

       — Bobagem — disse Maude. — Helen sentiu-se doente e desceu para telefonar para o médico, e então...

       — Ela não telefonou para o médico — afirmou Rosamund. — Eu perguntei a ele...

       — Para quem ela telefonou? — apressou-se Susan.

       — Eu não sei — disse Rosamund. Uma sombra de embaraço passou pelo seu rosto. — Mas garanto-lhe que vou descobrir — acrescentou, esperançosa.

      

       Hercule Poirot estava sentado no pavilhão vitoriano. Tirou o relógio do bolso e pousou-o na mesa à sua frente.

       Havia comunicado que partiria no trem do meio-dia. Ainda faltava meia hora. Meia hora para alguém se decidir a procurá-lo. Talvez mais de uma pessoa...

       O pavilhão era perfeitamente visível da maioria das janelas da mansão. Certamente, logo alguém viria procurá-lo.

       Senão, seu conhecimento da natureza humana era deficiente e a sua premissa inicial, incorreta.

       Ele esperava... e, acima de sua cabeça, uma aranha na teia esperava por uma mosca.

       A Srta. Gilchrist foi quem veio primeiro. Estava agitada, nervosa e um tanto incoerente.

       — Oh, Sr. Pontarlier... não consigo guardar seu outro nome — disse ela. — Tive que vir falar com o senhor, apesar de não gostar de fazer isso... mas realmente achei que devia. Quero dizer, depois do que aconteceu hoje de manhã com a pobre Sra. Leo... penso que a Sra. Shane estava com toda a razão... não foi coincidência e é claro que não foi um derrame, como sugeriu a Sra. Timothy, porque meu pai teve um, e é completamente diferente. Além do mais, o médico disse claramente que era uma Concussão.

       Ela fez uma pausa, tomou fôlego e olhou para Poirot com olhos Suplicantes.

       — Sim? — disse Poirot, encorajadora e gentilmente. — A senhorita deseja me contar alguma coisa?

       — Como eu disse, não gosto de fazer isso... porque ela foi muito bondosa. Arrumou-me uma colocação com a Sra. Timothy. Tem sido extremamente bondosa. É por isso que me sinto tão ingrata. Ela até me deu o casaco de pele da Sra. Lansquenet, que é realmente lindo e que me assenta muito bem, pois não tem importância que um casaco de pele fique um pouco grande. E, quando quis devolver-lhe o broche de ametista, ela nem me deu ouvidos...

       — Está se referindo à Sra. Banks?

       — Sim, o senhor entende... — A Srta. Gilchrist olhou para baixo, torcendo os dedos, infeliz. Olhou para cima e continuou com um soluço repentino: — O senhor entende... eu ouvi!

       — A senhorita quer dizer que ouviu uma conversa por acaso...

       — Não. — A Srta. Gilchrist balançou a cabeça com ar de heróica determinação. — Prefiro contar a verdade. E acho que não será desagradável contar-lhe porque o senhor não é inglês.

       Hercule Poirot compreendeu-a sem sentir-se ofendido.

       — Quer dizer que para um estrangeiro é natural que as pessoas escutem atrás das portas, abram correspondência ou leiam cartas deixadas ao acaso?

       — Oh, eu nunca abri correspondência de ninguém! — exclamou a Srta. Gilchrist, chocada. — Isso nunca!  Mas aquele dia eu escutei... no dia em que o Sr. Richard Abernethie foi visitar a irmã. Fiquei curiosa, entende, de ele aparecer depois de tantos anos. E eu imaginando o porquê... e... e... sabe, quando não se tem muita vida própria, tende-se a ficar interessada... quando se vive com alguém, quero dizer.

       — É muito natural — afirmou Poirot.

       — Sim, acho que foi natural... Embora, é claro, não seja direito. Mas eu o fiz. E ouvi o que ele disse.

       — A senhorita ouviu o que o Sr. Abernethie falou para a Sra. Lansquenet?

       — Sim. Foi alguma coisa como: “De nada adianta falar com Timothy. Ele acha tudo bobagem. Simplesmente, não quer ouvir. Mas achei que gostaria de me desabafar com você. Só restamos nós três. E, apesar de você sempre ter gostado de bancar a tola, acho que tem bastante bom senso. Então, o que você faria se fosse eu?”

       “Não pude ouvir direito o que a Sra. Lansquenet respondeu, mas escutei a palavra ‘polícia’... e em seguida o Sr. Abernethie exclamou bem alto: ‘Não posso fazer isso. Não, quando se trata da minha própria sobrinha’. E então tive que correr para a cozinha, pois alguma coisa estava queimando e, quando voltei, o Sr. Abernethie estava falando: ‘Mesmo que eu não morra de morte natural, não quero que chamem a polícia, se for possível evitar. Você compreende, não compreende, minha querida? Mas não se preocupe, agora que sei, tomarei todas as precauções’. E ele continuou dizendo que fizera um novo testamento e que ela, Cora, ficaria muito bem. Falou também sobre ela ter sido feliz com o marido e como talvez ele tivesse cometido um erro no passado.”

       A Srta. Gilchrist calou-se.

       Poirot disse:

       — Entendo... entendo...

       — Porém, nunca quis contar nada. Creio que a Sra. Lansquenet não gostaria. Mas agora, depois de a Sra. Leo ter sido atacada esta manhã e o senhor dizendo tão calmamente que foi coincidência... Oh, Sr. Pontarlier, não foi coincidência!

       Poirot sorriu e disse:

       — Não, não foi coincidência... Obrigado, Srta. Gilchrist, por ter vindo. Era muito importante que viesse.

      

       Ele teve alguma dificuldade em se livrar da Srta. Gilchrist e era urgente que o fizesse, pois esperava outras confidências.

       Seu instinto estava certo. Mal a Srta. Gilchrist saíra, Gregory Banks atravessou a passos largos o gramado e entrou impetuosamente pavilhão adentro. Seu rosto estava pálido e havia gotas de suor em sua testa. Os olhos estavam estranhamente excitados.

       — Finalmente! — exclamou ele. — Pensei que aquela mulher idiota não iria embora nunca. O senhor estava completamente errado no que disse esta manhã. Errado a respeito de tudo. Richard Abernethie foi assassinado. Eu o matei.

       Os olhos de Poirot percorreram a figura do agitado jovem. Ele não mostrava qualquer surpresa.

       — Então o senhor o matou? De que maneira?

       Gregory Banks sorriu.

       — Não foi difícil para mim. O senhor certamente pode compreender isso. Existem uns quinze ou vinte diferentes tipos de droga às quais tenho acesso e que serviriam aos meus planos. Precisei de mais imaginação quanto ao método de administração, mas no final tive uma idéia muito engenhosa. A beleza da idéia estava em eu não precisar estar presente na ocasião.

       — Muito esperto! — comentou Poirot.

       — Sim. — Gregory Banks abaixou os olhos com modéstia. Parecia satisfeito. — Sim, realmente achei que foi muito engenhoso.

       Poirot perguntou, com interesse:

       — Por que o matou? Pelo dinheiro que sua mulher herdaria?

       — Não. É claro que não! — Subitamente Greg ficou bastante indignado. — Não sou uma pessoa ávida por dinheiro. Não me casei com Susan pelo seu dinheiro.

       — Não mesmo, Sr. Banks?

       — Era isso o que ele pensava — disse Greg com repentino rancor. — Richard Abernethie! Ele gostava de Susan, admirava-a, tinha orgulho dela como um exemplo do sangue dos Abernethie. Entretanto, achava que ela se casara com uma pessoa inferior a ela... ele achava que eu não servia... me desprezava. Achava que eu não falava de maneira correta, que não usava roupas apropriadas. Ele era um esnobe... um esnobe nojento.

       — Não acho — retrucou Poirot calmamente. — Por tudo o que tenho ouvido falar dele, acho que Richard Abernethie não era nenhum esnobe.

       — Ele era. Ele era. — O jovem falava quase com histeria. — Não me dava a menor importância. Zombava de mim... sempre muito educadamente... mas no fundo eu podia ver que ele não gostava de mim!

       — É possível.

       — As pessoas não podem me tratar assim e saírem ilesas! Já tentaram antes! Uma mulher que costumava trazer suas receitas para serem preparadas. Sabe o que fiz?

       — Sim, eu sei — respondeu Poirot.

       Gregory ficou espantado.

       — Então o senhor sabe?                                      

       — Sei.

       — Ela quase morreu. — Ele falava de maneira satisfeita. — Isso demonstra que não sou o tipo de pessoa que deva ser menosprezada. Richard Abernethie me desprezava... e o que lhe aconteceu? Morreu.

       — Um assassinato muito bem sucedido — congratulou-se Poirot. — E por que o senhor veio se entregar? — acrescentou.

       — Porque o senhor disse que já estava tudo resolvido. O senhor falou que ele não havia sido assassinado. Tinha que lhe mostrar que o senhor não era tão esperto quanto pensava, e além disso, além disso...

       — Sim? — disse Poirot. — E além disso?

       Greg afundou-se no banco. Sua expressão mudou. De repente tomou um ar doentio.

       — Foi errado... perverso... devo ser castigado... devo voltar para o lugar da punição... para expiar as minhas faltas. Sim, pagar por elas! Receber a punição! O castigo!

       Nesse momento seu rosto estava iluminado, com um brilho doentio. Poirot observou-o por uns instantes, curioso. Em seguida, perguntou:

       — O senhor deseja muito se livrar de sua esposa, não?

       O rosto de Gregory mudou.

       — Susan? Susan é maravilhosa... maravilhosa.

       — Sim, Susan é maravilhosa. E isso é uma carga pesada.  Susan o ama profundamente.  Isso também é uma carga, não é?

       Gregory olhava para a frente, fixamente. Então ele disse, com jeito de uma criança rabugenta:

       — Por que ela não me deixou em paz?

       Levantou-se.

       — Ela está vindo para cá agora... atravessando o gramado. Eu vou embora. Mas conte-lhe o que lhe disse. Diga-lhe que fui à polícia. Para confessar.

      

       Susan entrou ofegante.

       — Onde está Greg? Ele estava aqui. Eu o vi.

       — Sim. — Poirot fez uma pausa antes de continuar: — Ele veio me dizer que foi ele quem envenenou Richard Abernethie...

       — Que absurdo! Espero que o senhor não tenha acreditado.

       — E por que não deveria acreditar?

       — Ele nem estava perto daqui quando tio Richard morreu.

       — Talvez não. Onde estava ele quando Cora Lansquenet foi assassinada?

       — Em Londres. Nós dois estávamos.

       Hercule Poirot balançou a cabeça.

       — Não, não, nada feito. A senhora, por exemplo, saiu em seu carro e esteve fora a tarde toda. Acho que sei aonde a senhora foi. Foi para Lytchett St. Mary.

       — Não fiz nada disso.

       Poirot sorriu.

       — Quando a encontrei aqui, madame, não foi, conforme lhe disse, a primeira vez que a vi. Depois do inquérito da Sra. Lansquenet, a senhora esteve na garagem do King’s Arms. Conversou com um mecânico, e perto da senhora havia um carro com um idoso senhor estrangeiro. A senhora não o notou, mas ele reparou na senhora.

       — Não entendo o que quer dizer. Aquele era o dia do inquérito.

       — Mas procure recordar-se do que o mecânico lhe disse. Ele perguntou se a senhora era parente da vítima e a senhora respondeu que era sua sobrinha.

       — Ele estava apenas bancando o abutre. São todos uns abutres.

       — E as palavras seguintes dele foram: “Ah, onde será que a vi antes?” Onde ele a tinha visto antes, madame? Deveria ter sido em Lytchett St. Mary, já que em sua mente a lembrança de tê-la visto estava ligada ao fato de a senhora ser sobrinha da Sra. Lansquenet. Ele a teria visto perto do chalé? Quando? Era uma questão que pedia investigação. E o resultado dessa investigação é que a senhora estava em Lytchett St. Mary na tarde em que Cora Lansquenet faleceu. A senhora estacionou seu automóvel na mesma pedreira onde o deixou na manhã do inquérito. O carro foi visto e o número da chapa anotado. A essa altura o Inspetor Morton já sabe de quem era o carro.

       Susan encarou-o. Sua respiração estava um tanto ofegante, mas ela não dava mostras de perturbação.

       — O senhor está falando bobagem, Sr. Poirot. E está me fazendo esquecer o que vim aqui dizer... Eu queria encontrá-lo sozinho...

       — Para confessar que foi a senhora e não seu marido quem praticou o crime?

       — Não, é lógico que não. Que tipo de tola o senhor pensa que sou? E já lhe disse que Gregory não saiu de Londres naquele dia.

       — Um fato impossível de a senhora saber, já que a senhora mesma não estava lá. Por que foi a Lytchett St. Mary, Sra. Banks?

       Susan respirou fundo.

       — Está bem, já que o senhor insiste!  O que Cora havia dito no dia do funeral me preocupava. Eu não parava de pensar naquilo. Finalmente, decidi pegar o carro e ir até lá vê-la e perguntar-lhe o que havia colocado aquela idéia em sua cabeça. Greg achava bobagem, e por isso não lhe disse nada. Cheguei lá por volta das três horas, toquei a campainha e bati na porta, mas ninguém atendeu. Achei que ela deveria ter viajado ou saído. Foi só isso que aconteceu. Não dei a volta à casa. Se eu o tivesse feito, talvez notasse a janela quebrada. Simplesmente voltei para Londres sem a menor idéia de que havia algo errado.

       O rosto de Poirot estava impassível. Ele indagou:

       — Por que seu marido se acusa do crime?

       — Porque ele é... — A palavra tremia na língua de Susan e era rejeitada. Poirot aproveitou a oportunidade.

       — A senhora ia dizer “porque ele é maluco”, em tom de brincadeira, mas a brincadeira estava muito próxima da verdade, não é?

       — Greg está bem. Ele está... está...

       — Sei alguma coisa a respeito da história dele — disse Poirot. — Antes de ele conhecê-la, esteve por alguns meses na Forsdyke House.

       — Ele não foi forçado a se internar. Internou-se voluntariamente!

       — É verdade. Ele não pode ser classificado como uma pessoa insana. Contudo ele é, fora de dúvida, desequilibrado. Tem complexo de culpa. Suspeito que o tenha desde a infância.

       Susan falou apressada e ansiosamente:

       — O senhor não compreende, Sr. Poirot. Greg nunca teve uma oportunidade. É por isso que eu queria tanto o dinheiro de tio Richard. Tio Richard era uma pessoa muito objetiva. Não conseguia entender. Eu sabia que Greg precisava se estabelecer na vida. Precisa sentir que é alguém, e não apenas um assistente de farmacêutico, sempre obedecendo a ordens. Agora tudo será diferente. Ele terá seu próprio laboratório. Poderá criar suas próprias fórmulas.

       — Sim, sim, a senhora lhe dará o mundo... porque o ama. Ama-o demais, por segurança ou felicidade. Entretanto, não se pode dar às pessoas o que elas não estão preparadas para receber. No final, Gregory continuará sendo algo que não quer ser...

       — O quê?

       — Marido de Susan.

       — Como o senhor é cruel! E como fala besteira!

       — No que diz respeito a Gregory Banks, a senhora não tem escrúpulos. A senhora desejava o dinheiro de seu tio... não para si... mas para seu marido. Até que ponto a senhora o queria?

       Zangada, Susan virou-se e saiu abruptamente.

      

       — Pensei em passar por aqui para dizer-lhe adeus — explicou Michael.

       Ele sorriu e seu sorriso era estranhamente envolvente.

       Poirot tinha consciência da vitalidade e do charme daquele homem.

       Por alguns momentos, em silêncio, ele estudou Michael Shane. Sentiu que de todas as pessoas do grupo aquele homem era o que conhecia menos, pois Michael apenas mostrava o lado que queria mostrar.

       — Sua esposa é uma mulher fora do comum — comentou Poirot.

       Michael ergueu as sobrancelhas.

       — O senhor acha? Concordo que ela é uma beleza. Mas não é lá uma pessoa muito brilhante.

       — Ela nunca procurará ser muito esperta — afirmou Poirot. — Contudo, ela sabe o que quer. — Ele suspirou. — São tão poucas as pessoas que o sabem!

       — Ah! — Outro sorriso iluminou o rosto de Michael. — Pensando na mesa de mármore verde?

       — Talvez. — Poirot fez uma pausa e acrescentou: — E no que estava em cima dela.

       — Refere-se às flores de cera?

       — As flores de cera.

       Michael franziu a testa.

       — Nem sempre consigo entendê-lo, Sr. Poirot. — Tornou a sorrir. — Estou muito feliz em saber que estamos fora de perigo. O mínimo que posso dizer é que é desagradável andar por aí sob a suspeita de que, de uma forma ou outra, um de nós matou o pobre velho Richard.

       — Foi essa a impressão que teve dele quando o conheceu? Pobre velho Richard?

       — É claro que ele estava muito bem conservado e tudo o mais...

       — E em plena posse de suas faculdades mentais...

       — Oh, sim.

       — E, na verdade, bastante perspicaz?

       — Certamente que sim.

       — E um perito avaliador de caráter?

       O sorriso permaneceu inalterado.

       — O senhor não espera que eu concorde com isso, Sr. Poirot. Ele não gostava de mim.

       — Talvez achasse que o senhor fosse do tipo infiel — sugeriu Poirot.

       Michael riu.

       — Que idéia mais antiquada!

       — Mas é verdade, não é?

       — O que o senhor está querendo dizer com isso?

       Poirot juntou as pontas dos dedos.

       — Foram feitas algumas investigações — murmurou ele.

       — Pelo senhor?

       — Não apenas por mim.

       Michael Shane lançou-lhe um rápido olhar inquiridor. Suas reações, notou Poirot, eram rápidas. Michael Shane não era nenhum tolo.

       — O senhor quer dizer que a polícia também está interessada?

       — Eles nunca ficaram muito satisfeitos em considerar o assassinato de Cora Lansquenet um crime casual.

       — E eles andaram fazendo investigações a meu respeito?

       — Estão interessados nos movimentos dos parentes da Sra. Lansquenet no dia em que ela foi assassinada.

       — Isso é terrivelmente embaraçoso — falou Michael num tom confidencial.

       — É mesmo, Sr. Shane.

       — Mais do que o senhor possa imaginar. Sabe, naquele dia eu disse a Rosamund que ia almoçar com um certo Oscar Lewis.

       — Quando na realidade o senhor não ia?

       — Não. Na verdade, fui de carro encontrar-me com uma mulher chamada Sorrel Dainton... uma atriz bastante conhecida. Trabalhei com ela em seu último espetáculo. É um tanto embaraçoso, entende, pois, embora seja satisfatório no que diz respeito à polícia, haverá problemas com Rosamund.

       — Ah! — Poirot pareceu discreto. — Tem havido problemas em relação a essa sua amizade?

       — Sim... na verdade, Rosamund fez-me prometer que eu deixaria de vê-la.

       — Sim, compreendo que possa ser constrangedor... Entre nous, o senhor teve um caso com essa senhora?

       — Oh, foi uma aventura. Eu não sentia nada de especial por ela.

       — Mas ela gostava do senhor?

       — Bem, ela tem sido bastante insistente... As mulheres grudam tanto! Contudo, pelo que o senhor disse, de qualquer maneira a polícia ficará satisfeita.

       — O senhor acha?

       — Bem, seria difícil eu estar assassinando Cora com uma machadinha e ao mesmo tempo namorando Sorrel a milhas de distância. Ela tem um chalé em Kent.

       — Entendo... entendo... e essa Sra. Dainton testemunharia a seu favor?

       — Ela não gostará disso, mas como se trata de um assassinato suponho que terá de fazê-lo.

       — Talvez o fizesse mesmo que naquele dia o senhor não tivesse estado com ela.

       — O que é que o senhor quer dizer? — Michael de repente assumiu um ar ameaçador.

       — A jovem gosta do senhor. Quando as mulheres estão apaixonadas por um homem, juram sobre o que é verdade e sobre o que não é verdade também.

       — Quer dizer que o senhor não acredita em mim?

       — Não importa se eu acredito ou não. Não é a mim que o senhor deve convencer.

       — A quem então?

       Poirot sorriu.

       — Ao Inspetor Morton... que acaba de surgir no terraço pela porta lateral.

       Michael virou-se abruptamente.

 

Capítulo XXIII

       — Ouvi dizer que o senhor estava aqui, Sr. Poirot — disse o Inspetor Morton.

       Os dois homens estavam andando lado a lado no terraço.

       — Vim acompanhando o Superintendente Parwell, de Matchfield. O Dr. Larraby telefonou-me a respeito da Sra. Leo Abernethie e o superintendente veio fazer algumas investigações. O médico não estava satisfeito.

       — E você, meu amigo — indagou Poirot —, onde é que você entra nisso? Está um bocado longe de sua terra natal, Berkshire.

       — Desejo fazer algumas perguntas e as pessoas a quem desejo interrogar parecem estar, muito convenientemente, reunidas aqui. — Fez uma pausa antes de acrescentar: — Isso é obra sua?

       — Sim, é obra minha.

       — E como resultado a Sra. Leo Abernethie é golpeada?

       — Não deve me culpar por isso. Se ela tivesse me procurado... mas ela não o fez. Em vez disso, telefonou para o seu advogado em Londres.

       — E estava revelando o segredo quando... Pam!

       — Quando... como o senhor mesmo disse... Pam!

       — E o que ela conseguiu contar?

       — Muito pouco. Só chegou a contar até a parte em que estava se olhando no espelho.

       — Ah, bem — exclamou o Inspetor Morton filosoficamente. — É bem próprio das mulheres. — Olhou atentamente para Poirot. — Isso lhe sugere alguma coisa?

       — Sim. Creio que sei o que ela iria contar para ele.

       — O senhor é um adivinhador fantástico, não é? Sempre foi. Bem, e o que era?

       — Desculpe-me, o senhor está investigando a morte de Richard Abernethie?

       — Oficialmente, não. Mas é claro que se tiver relação com o assassinato da Sra. Lansquenet...

       — Tem relação, sim. Contudo, meu amigo, peço-lhe para me dar mais algumas horas. Então saberei se o que imaginei — apenas imaginei, compreende? — está correto. Se estiver...

       — Bem, e se estiver?

       — Então poderei entregar-lhe uma prova concreta.

       — É do que estamos precisando — enfatizou o Inspetor Morton. Olhou, desconfiado, para Poirot. — O que é que o senhor está escondendo?

       — Nada. Absolutamente nada. Já que o objeto que imaginei como prova pode não existir. Apenas deduzi a sua existência por vários trechos de conversa. Posso — disse Poirot em tom nada convincente — estar errado.

       Morton sorriu.

       — Mas isso não lhe acontece com freqüência, não é?

       — Não. Embora seja obrigado a admitir que já me aconteceu.

       — Devo dizer que fico satisfeito em ouvir isso. Estar sempre certo deve, algumas vezes, ser monótono.

       — Não penso assim — assegurou-lhe Poirot.

       O Inspetor Morton riu.

       — E o senhor está me pedindo para parar com o meu interrogatório?

       — Não, não, de forma alguma. Proceda conforme o que tinha planejado. Suponho que o senhor não esteja pensando em efetuar uma prisão.

       Morton negou com a cabeça.

       — Ainda não temos base para isso. Temos primeiro que saber a decisão do promotor público. E ainda falta muito para isso. Apenas desejo algumas declarações do que certas pessoas fizeram no dia em questão. Uma dessas pessoas talvez receba uma intimação.

       — Entendo, a Sra. Banks.

       — O senhor é muito esperto, não é? Sim, ela esteve lá naquele dia. Seu carro ficou estacionado numa pedreira.

       — Ela foi vista dirigindo o carro?

       — Não.

       O inspetor acrescentou:

       — O problema é que ela nunca disse uma palavra sobre ter estado lá naquele dia. Terá que explicar isso de maneira satisfatória.

       — Ela é bastante habilidosa em dar explicações — afirmou Poirot secamente.

       — Sim. É uma jovem esperta. Talvez um pouco demais.

       — Nunca é bom ser esperto demais. É assim que os assassinos são apanhados. Descobriram mais alguma coisa sobre George Crossfield?

       — Nada de concreto. Ele tem um tipo muito comum. Há muitos jovens iguais a ele andando pelo interior de um lado para o outro, de trem, ônibus ou bicicleta. E depois de uma semana mais ou menos as pessoas têm dificuldade de se lembrar se era na quarta ou quinta-feira que estavam em certo lugar ou que viram uma determinada pessoa.

       Fez uma pausa e prosseguiu:

       — Obtivemos uma informação bastante curiosa da madre superiora de não sei que convento. Duas de suas freiras saíram para recolher donativos. Parece que foram ao chalé da Sra. Lansquenet na véspera de seu assassinato e não obtiveram resposta quando tocaram a campainha e bateram à porta. Isto é bastante natural. A Sra. Lansquenet estava no norte, no funeral do Sr. Abernethie, e Gilchrist estava de folga e fora numa excursão para Bournemouth. O caso é que elas afirmam que havia alguém no chalé. Disseram que ouviram suspiros e gemidos. Indaguei se isso não fora um dia depois, mas a madre superiora garante que não. Está tudo anotado num livro. Será que naquele dia havia alguém que, sabendo da ausência das duas, estava procurando alguma coisa no chalé? E será que esse alguém não encontrou o que procurava e voltou no dia seguinte? Não dou muito crédito aos suspiros e muito menos aos gemidos. Até mesmo freiras são sugestionáveis e um chalé onde ocorreu um assassinato positivamente pede por gemidos. A questão é: havia alguém no chalé que não deveria estar lá? E, se assim for, quem era? Todos os Abernethie estavam no funeral.

       Poirot fez uma pergunta aparentemente irrelevante:

       — Essas freiras que estavam recolhendo donativos nessa região voltaram para tentar novamente?

       — De fato, voltaram uma semana depois. Creio que no dia do inquérito.

       — Isso encaixa — disse Hercule Poirot. — Encaixa perfeitamente.

       O Inspetor Morton olhou para ele.

       — Por que este interesse por freiras?

       — Quisesse ou não, fui forçado a notá-las. Não lhe passará despercebido, inspetor, que a visita das freiras foi no mesmo dia em que o bolo de noiva apareceu no chalé.

       — O senhor não acha... Certamente esta é uma idéia ridícula.

       — Minhas idéias nunca são ridículas!  — protestou Poirot severamente. — E agora, mon cher, devo deixá-lo com suas investigações sobre o ataque à Sra. Abernethie. Quanto a mim, preciso procurar a sobrinha do falecido Richard Abernethie.

       — Tome cuidado com o que vai dizer à Sra. Banks.

       — Não estou me referindo à Sra. Banks. Falo da outra sobrinha de Richard Abernethie.

      

       Poirot encontrou Rosamund sentada num banco olhando para um córrego que formava uma pequena cascata e que depois ia se estreitando entre rododendros. Ela olhava fixamente para a água.

       — Espero que eu não esteja perturbando uma Ofélia — disse Poirot enquanto sentava-se ao seu lado. — A senhora talvez esteja estudando o papel?

       — Nunca interpretei Shakespeare — informou Rosamund. — Exceto uma vez, no papel de Jessica, em O mercador. Um papel detestável.

       — Mas certamente não desprovido de ternura. “Nunca me sinto feliz ao ouvir uma música melodiosa.” Que carga pesada ela carregava, a pobre Jessica, filha do odiado e desprezado judeu! Que dúvidas ela não deveria ter a seu próprio respeito quando levou com ela os ducados de seu pai ao fugir com o amante. Jessica com ouro era uma coisa... Jessica sem ouro poderia ser outra.

       Rosamund virou a cabeça e olhou para ele.

       — Pensei que o senhor tivesse ido embora — falou ela com um toque de repreensão. Olhou para o relógio. — Já passa de meio-dia.

       — Perdi o trem — explicou Poirot.

       — Por quê?

       — A senhora acha que perdi por algum motivo?

       — Creio que sim. O senhor é bastante pontual, não é? Se quisesse apanhar um trem acredito que o apanharia.

       — O seu julgamento é admirável. Sabe, madame, eu estava sentado no pequeno pavilhão desejando que a senhora fosse me ver.

       Rosamund encarou-o, surpresa.

       — Por que deveria ir? O senhor já havia mais ou menos se despedido de todos nós na biblioteca.

       — Tem razão. Mas não havia nada... nada que a senhora gostaria de me dizer?

       — Não — Rosamund balançou a cabeça. — Tinha muitas coisas em que eu queria pensar. Coisas importantes.

       — Entendo.

       — Não costumo pensar muito — comentou Rosamund. — Parece-me perda de tempo. Entretanto, agora é importante. Acho que se deve planejar a vida exatamente como se quer que ela seja.

       — E é isso que a senhora está fazendo?

       — Bem, sim. Estava tentando tomar uma decisão a respeito de uma coisa.

       — A respeito de seu marido?

       — De uma certa forma.

       Poirot esperou um momento e então disse:

       — O Inspetor Morton acaba de chegar. — Ele se antecipou à pergunta de Rosamund, Prosseguindo: — Ele é o oficial encarregado das investigações sobre a morte de Cora Lansquenet. Veio até aqui para obter declarações de todos sobre o que estavam fazendo no dia em que ela foi assassinada.

       — Compreendo. Álibis — disse Rosamund alegremente.

       Seu lindo rosto distendeu-se numa expressão divertida.

       — Isso será o diabo para Michael — observou ela. — Ele pensa que não sei que naquele dia ele foi se encontrar com aquela mulher.

       — Como é que a senhora soube?

       — Estava evidente pela maneira como ele disse que ia almoçar com Oscar. Esforçando-se para parecer natural e tremendo ligeiramente, como sempre acontece quando diz uma mentira.

       — Sou extremamente grato de não ser casado com a senhora, madame!

       — E em seguida, é claro, certifiquei-me telefonando para Oscar — continuou Rosamund. — Os homens sempre contam mentiras tão tolas!

       — Ele não é, receio, um marido muito fiel — arriscou Poirot.

       Rosamund, entretanto, não negou a afirmação.

       — Não.

       — A senhora porém não se importa?

       — Bem, de certa forma é divertido — explicou Rosamund. — Quero dizer, ter um marido que todas as outras mulheres querem tirar de você. Detestaria estar casada com um homem que ninguém quisesse... como a pobre Susan. Greg é completamente apático!

       Poirot a estava observando.

       — E suponhamos que alguém conseguisse tirá-lo da senhora...

       — Não conseguirão — afirmou Rosamund. — Não agora — acrescentou ela.

       — A senhora quer dizer...

       — Não agora que existe o dinheiro de tio Richard. Michael sente-se de certa forma atraído por essas criaturas; essa tal de Sorrel Dainton quase conseguiu agarrá-lo, queria ficar com ele para sempre. Mas para Michael o teatro sempre virá em primeiro lugar. Agora ele poderá aparecer em grande estilo, produzir seu próprio espetáculo. Sabe, ele é ambicioso e realmente é bom no negócio. Não é como eu. Sou uma péssima atriz, embora tenha boa aparência. Não, não estou mais preocupada com Michael. Porque o dinheiro é meu.

       Os olhos dela encontraram calmamente os de Poirot. Ele pensou como era estranho que as duas sobrinhas de Richard Abernethie tivessem se apaixonado perdidamente por homens incapazes de retribuir aquele amor. E no entanto Rosamund era extraordinariamente bonita e Susan, atraente e envolvente. Susan necessitava e agarrava-se à ilusão de que Gregory a amava. Rosamund, mais consciente, não tinha nenhuma ilusão, mas sabia o que queria.

       — A questão é que — disse Rosamund — preciso tomar uma grande decisão... sobre o futuro. Michael ainda não sabe. — Ela sorriu. — Ele descobriu que não fui fazer compras naquele dia e está tremendamente desconfiado sobre Regent’s Park.

       — Que história é essa sobre Regent’s Park? — Poirot parecia intrigado.

       — Fui lá depois de ter ido à Harley Street. Só para caminhar e pensar. Naturalmente, Michael pensa que fui lá para me encontrar com algum homem.

       Rosamund sorriu feliz e acrescentou:-

       — Ele não gostou nem um pouco disso!

       — Mas por que a senhora não poderia ter ido ao Regent’s Park? — perguntou Poirot.

       — O senhor quer dizer, só para andar por lá?

       — Sim. A senhora nunca fez isso antes?

       — Nunca. Por que o faria? Que motivo existe para eu ir ao Regent’s Park?

       Poirot olhou para ela e falou:

       — Para a senhora... nenhum.

       Ele acrescentou:

       — Acho que a senhora deveria ceder a mesa de mármore verde para sua prima Susan.

       Rosamund arregalou bem os olhos.

       — Por que eu faria isso? Eu a quero para mim.

       — Eu sei, eu sei. Mas a senhora ficará com seu marido. E a pobre Susan perderá o seu.

       — Perderá? O senhor quer dizer que Greg vai embora com alguém? Eu nunca pensaria isso dele. Ele é tão insignificante e apático!

       — Infidelidade não é a única maneira de se perder um marido, madame.

       — O senhor não quer dizer... ? — Rosamund olhou-o, espantada. — O senhor não está pensando que Greg envenenou tio Richard, matou tia Cora e golpeou tia Helen na cabeça? Isso é ridículo. Até eu sei mais do que isto.

       — Então quem foi?

       — George, é claro. Ele estava envolvido em algum negócio escuso. Soube disso por alguns amigos meus que estavam em Monte Cario. Acho que tio Richard ficou sabendo do caso e ia excluí-lo do testamento.

       Satisfeita consigo mesma, Rosamund acrescentou:

       — Sempre soube que havia sido George.

 

Capítulo XXIV

       O telegrama chegou por volta das seis da tarde,

       Como especialmente solicitado, foi entregue em mãos e não pelo telefone. E o Sr. Poirot, que há algum tempo andava por perto da porta da frente, estava ao alcance para receber o telegrama de Lanscombe quando este foi trazido pelo mensageiro.

       Ele não conseguiu abri-lo com a sua habitual precisão. Consistia em três palavras e uma assinatura.

       Poirot deu vazão a um enorme suspiro de alívio.

       Em seguida, apanhou uma libra e entregou-a ao menino aturdido.

       — Há momentos — disse ele a Lanscombe — em que devemos deixar de lado a economia.

       — O senhor tem razão — concordou Lanscombe educadamente.

       — Onde está o Inspetor Morton? — perguntou Poirot.

       — Um dos cavalheiros da polícia saiu — disse Lanscombe em tom de desagrado e demonstrando sutilmente que coisas como nomes de policiais eram impossíveis de se guardar. — O outro, creio que está na biblioteca.

       — Esplêndido!  — exclamou Poirot. — Vou até lá imediatamente.

       Mais uma vez bateu no ombro de Lanscombe e disse:

       — Coragem, estamos na reta de chegada.

       Lanscombe pareceu ligeiramente desnorteado, já que estivera pensando em partidas e não em chegadas.

       — O senhor então não pretende mais tomar o trem das nove e meia?

       — Não perca a esperança — disse Poirot.

       Poirot afastou-se, mas logo em seguida virou-se e indagou:

       — Será que o senhor se recorda das primeiras palavras que a Sra. Lansquenet disse ao chegar aqui no dia do funeral de seu patrão?

       — Lembro-me muito bem, senhor — respondeu Lanscombe, animando-se. — A Srta. Cora... desculpe-me, a Sra. Lansquenet...  de alguma forma sempre penso nela como a Srta. Cora.. .

       — É muito natural.

       — Ela disse: “Alô, Lanscombe. Já faz muito tempo desde a época em que você costumava levar doces e balas para as nossas cabanas”. Cada criança tinha uma cabana no parque, perto da cerca. No verão, quando havia uma festa, eu costumava levar doces para as moças e os rapazes... para os jovens, o senhor compreende. A Srta. Cora sempre gostou muito de comida.

       Poirot balançou a cabeça.

       — Sim, foi como eu pensava. Sim, foi bem típico de Cora — disse ele.

       Foi à biblioteca encontrar-se com o Inspetor Morton e sem uma palavra entregou-lhe o telegrama.

       — Não compreendi uma só palavra — disse Morton.

       — Chegou a hora de eu lhe contar tudo.

       O Inspetor Morton sorriu.

       — O senhor parece uma jovem num melodrama vitoriano. Mas já era tempo de aparecer com alguma coisa. Não posso manter esta situação por muito mais tempo. Esse tal de Banks continua insistindo em que foi ele quem envenenou Richard Abernethie e vangloriando-se do fato de não descobrirmos como foi. O que me intriga é por que sempre que acontece um assassinato aparece alguém para proclamar que é o assassino. Que será que eles pensam que vão ganhar com isso? Nunca consegui compreender.

       — Neste caso específico, provavelmente um abrigo para as dificuldades de ser responsável por si mesmo... em outras palavras... Forsdyke House.

       — Mais provável que seja Broadmoor.

       — Isso também seria satisfatório.

       — É ele o culpado, Poirot? A tal de Gilchrist surgiu com aquela história que já lhe contou e que encaixaria com o que Richard Abernethie disse a respeito de sua sobrinha. Se foi o marido, ela estaria envolvida. Não consigo imaginar aquela jovem cometendo uma série de crimes. Entretanto, não há nada que ela não fizesse para tentar encobri-lo.

       — Vou contar-lhe tudo.                                             

       — Sim, sim, conte-me tudo. E, pelo amor de Deus, conte logo!

      

       Dessa vez foi na grande sala de visitas que Hercule Poirot reuniu todo o grupo. Nos rostos virados em sua direção havia um ar divertido em vez de tenso. A ameaça havia se materializado na forma do Inspetor Morton e do Superintendente Parwell. Com a polícia em ação, questionando e exigindo declarações, Hercule Poirot, detetive particular, transformara-se em algo quase parecido com uma piada.

       Timothy não estivera longe de expressar o sentimento geral ao comentar para sua mulher numa audível sotto voce:

       — Maldito charlatão! Entwhistle deve estar gagá... é só isso que posso dizer.

       Parecia que Hercule Poirot teria que se esforçar bastante para causar o efeito desejado.

       Começou de uma maneira ligeiramente pomposa.

       — Pela segunda vez anuncio a minha partida. Esta manhã anunciei para o meio-dia. Esta tarde anuncio para as nove e meia, isto é, imediatamente após o jantar. Vou embora porque não há nada mais para eu fazer aqui.

       — Eu poderia ter dito isso a ele há muito tempo! — O comentário de Timothy continuava em evidência. — Nunca houve nada para ele fazer aqui. A audácia desses sujeitos!

       — Vim aqui para resolver uma charada. E o mistério está resolvido. Permitam-me primeiro relembrar os vários pontos que me foram apresentados pelo excelente Sr. Entwhistle.

       “Em primeiro lugar, o Sr. Richard Abernethie morre repentinamente. Em segundo, depois do funeral, sua irmã, Cora Lansquenet, diz: ‘Ele foi assassinado, não foi?’ Em terceiro, a Sra. Lansquenet é assassinada. A pergunta é: são esses três acontecimentos parte de uma seqüência? Vamos observar o que acontece a seguir. A Srta. Gilchrist, dama de companhia da Sra. Cora Lansquenet, fica doente depois de comer um pedaço de bolo de noiva que continha arsênico. Isso então é um outro fato na seqüência.

       “Agora, conforme lhes disse, as coisas se tornam mais fáceis. Cora Lansquenet indiscutivelmente fez aquele comentário que causou grande impacto no funeral. Todos concordam quanto a isso. E, no dia seguinte, a Sra. Lansquenet é assassinada... golpeada com uma machadinha. Examinemos o acontecimento seguinte. O carteiro local acredita firmemente... embora não possa jurar... que não entregou o pacote com o pedaço de bolo de noiva. E, sendo assim, o pacote foi colocado ali por uma outra pessoa e, apesar de não podermos excluir uma ‘pessoa desconhecida’, devemos dar especial atenção àquelas que realmente estavam no local e numa posição de colocar o pacote onde posteriormente foi encontrado. Essas pessoas eram: a própria Srta. Gilchrist, é claro; Susan Banks, que chegara naquele dia para o inquérito; o Sr. Entwhistle (mas sim, devemos incluir o Sr. Entwhistle. Não esqueçam que ele estava presente quando Cora fez seu desconcertante comentário.) E havia mais duas pessoas. Um velho senhor que se apresentou como o Sr. Guthrie, um crítico de arte, uma ou mais freiras que apareceram logo cedo para recolher donativos.

       “Então resolvi que começaria pela suposição de que a opinião do carteiro estivesse correta. E, desse modo, o pequeno grupo de pessoas sob suspeita deveria ser cuidadosamente estudado. A Srta. Gilchrist não se beneficiou de forma alguma com a morte de Richard Abernethie e apenas de uma maneira mínima com a morte da Sra. Lansquenet. Na realidade, a morte desta última deixou-a sem emprego e com a possibilidade de ter dificuldades em encontrar um novo trabalho. E também a Srta. Gilchrist foi levada ao hospital vítima de envenenamento por arsênico.

       “Susan Banks foi beneficiada pela morte de Richard Abernethie, e um pouco com a morte da Sra. Lansquenet... embora neste caso fosse quase certo que o motivo seria segurança. Ela poderia ter motivo para acreditar que a Srta. Gilchrist tivesse ouvido a conversa entre Cora Lansquenet e seu irmão, referindo-se a ela, e por conseguinte poderia ter decidido eliminar a Srta. Gilchrist. Lembrem-se de que ela se recusou a comer um pedaço do bolo de noiva, e que quando a Srta. Gilchrist ficou doente, à noite, Susan sugeriu que só chamassem o médico pela manhã.

       “O Sr. Entwhistle não foi beneficiado por nenhuma das duas mortes. Possuía, porém, considerável controle dos negócios do Sr. Abernethie, sobre seu capital, e, bem, poderia existir uma razão para que Richard Abernethie não devesse continuar vivendo por mais tempo. Os senhores perguntarão, entretanto, por que o Sr. Entwhistle viria me procurar se ele fosse o culpado.

       “Eu responderei que não é a primeira vez que um assassino se sente muito seguro de si mesmo.

       “E agora chegamos ao que eu poderia chamar de dois estranhos. O Sr. Guthrie e a freira. Se o Sr. Guthrie é realmente o Sr. Guthrie, crítico de arte, então isso o elimina. O mesmo se aplica à freira, no caso de ela ser realmente uma freira. A pergunta é se essas pessoas são elas mesmas ou se na verdade são outras pessoas.

       “Existe um detalhe curioso — poderia ser definido assim — de uma freira sempre presente nesta história. Uma freira aparece na porta da casa do Sr. Timothy Abernethie e a Srta. Gilchrist acredita tratar-se da mesma freira que esteve em Lytchett St. Mary. Também uma freira, ou freiras, vieram aqui na véspera da morte do Sr. Abernethie...”

       George Crossfield murmurou:

       — Três contra um que é a freira.

       Poirot continuou:

       — Então temos aqui algumas peças do nosso quebra-cabeça: a morte do Sr. Abernethie, o assassinato de Cora Lansquenet, o bolo envenenado, o detalhe da freira.

       “Acrescentarei outros aspectos do caso que chamaram a minha atenção: a visita de um crítico de arte, o cheiro de tinta a óleo, um cartão-postal da enseada de Polflexan, e, por fim, um ramo de flores de cera em cima de uma mesa de mármore onde agora está um vaso chinês.

       “Foi refletindo nessas coisas que cheguei à solução, e agora estou prestes a lhes revelar a verdade.

       “A primeira parte lhes disse esta manhã. Richard Abernethie morreu repentinamente, mas não haveria motivo algum para se suspeitar de assassinato se não fossem as palavras proferidas por sua irmã Cora no dia do funeral. Tudo estava baseado naquelas palavras. Como resultado, todos os senhores acreditaram que acontecera um assassinato, e não acreditaram exatamente por causa das palavras em si, mas devido à personalidade de Cora Lansquenet. Pois Cora Lansquenet sempre fora famosa por falar a verdade em momentos embaraçosos. Sendo assim, o caso do assassinato de Richard não estava baseado somente no que ela dissera, mas na própria personalidade de Cora.

       “E agora chegamos à pergunta que eu, de repente, fiz a mim mesmo: ‘Até que ponto os senhores conheciam Cora Lansquenet?’”

       Calou-se por um momento. Então, Susan perguntou bruscamente:

       — O que o senhor está querendo dizer?

       Poirot prosseguiu:

       — Não a conheciam nada bem, esta é a resposta! A geração mais jovem nunca a tinha visto, e se a viram foi só quando eram crianças bem pequenas. Na verdade, havia apenas três pessoas que realmente conheciam Cora. Lanscombe, o mordomo, que está velho e enxerga muito mal; a Sra. Timothy Abernethie, que só a vira algumas vezes por volta da época de seu próprio casamento. E a Sra. Leo Abernethie, que a conhecera bastante bem, mas que não a via há mais de vinte anos.

       “Sendo assim, eu disse a mim mesmo: ‘Supondo que não tenha sido Cora Lansquenet que veio ao funeral naquele dia...?”

       — O senhor quer dizer que tia Cora não era tia Cora? — perguntou Susan, incrédula. — O senhor quer dizer que não foi tia Cora quem foi assassinada e sim outra pessoa?

       — Não, não, foi Cora Lansquenet que foi assassinada. Entretanto, não foi Cora Lansquenet que um dia antes veio para o funeral de seu irmão. A mulher que esteve aqui naquele dia veio com um único propósito: explorar, assim poderia se dizer, o fato de que Richard morrera repentinamente. E para colocar na mente de seus parentes a crença de que ele fora assassinado. O que conseguiu fazer com muito sucesso!

       — Bobagem!  Por quê?  Com que objetivo? — perguntou Maude rispidamente.

       — Por quê? Para afastar a atenção de outro assassinato. Do assassinato de Cora Lansquenet. Pois se Cora diz que Richard foi assassinado e no dia seguinte ela própria é assassinada, é certo que as duas mortes serão consideradas pelo menos como possível causa e efeito. Mas se Cora é assassinada e seu chalé arrombado e o roubo simulado não convence a polícia, por onde eles começarão a investigar? Bem perto de casa, não? A suspeita tenderá a recair sobre a mulher que vivia com ela.

       A Srta. Gilchrist protestou num tom quase alegre:

       — Ora, vamos... realmente, Sr. Pontarlier... o senhor não está sugerindo que eu tenha cometido um assassinato por causa de um broche de ametista e alguns quadros sem valor?!

       — Não — disse Poirot. — Por um pouco mais do que isso. Há um desses quadros, Srta. Gilchrist, que retrata a enseada de Polflexan, e que a Sra. Banks foi bastante esperta para perceber que havia sido copiado de um cartão-postal que ainda mostrava o velho ancoradouro em seu lugar. A Sra. Lansquenet, entretanto, sempre copiava da natureza. Lembrei-me então de que o Sr. Entwhistle mencionara ter sentido um cheiro de tinta a óleo no chalé na primeira vez que estivera lá. A senhorita sabe pintar, não sabe, Srta. Gilchrist? Seu pai era pintor e a senhorita conhece um bocado a respeito de pintura. Suponhamos que um dos quadros que Cora comprara num leilão por um preço baixo fosse uma pintura valiosa e que ela não o tivesse reconhecido como tal, mas a senhorita, sim. A senhorita sabia que ela esperava, para muito breve, a visita de um velho amigo, um conhecido crítico de arte. Então o irmão de Cora morre repentinamente... e um plano surge em sua cabeça. É fácil administrar um sedativo em seu chá matinal que a manterá inconsciente durante todo o dia do funeral enquanto a senhora desempenha seu papel em Enderby. A senhorita conhece bem Enderby de tanto ouvir Cora falar a respeito. Ela falava bastante de sua infância, como costumam fazer as pessoas quando envelhecem. Foi fácil para a senhorita começar fazendo um comentário sobre doces e cabanas para o velho Lanscombe, que o deixaria bem seguro quanto à sua identidade no caso de ele estar inclinado a duvidar. Sim, naquele dia a senhorita utilizou bem o seu conhecimento de Enderby, fazendo alusões a isso e aquilo, e relembrando o passado. Ninguém suspeitou que a senhorita não fosse Cora. Estava usando as roupas dela, com alguns enchimentos, e já que ela costumava usar uma franja postiça não houve nenhum problema em simular isso também. Ninguém via Cora há vinte anos, e em vinte anos as pessoas mudam tanto que costuma-se ouvir o seguinte comentário: “Eu nunca a teria reconhecido”. Mas os maneirismos são lembrados, e Cora certamente possuía alguns bem marcantes, que a senhorita praticou cuidadosamente diante do espelho.

       “E foi aí, estranhamente, que a senhorita cometeu seu primeiro erro. Esqueceu-se de que no espelho a imagem é invertida. Quando a senhora viu no espelho a perfeita reprodução do trejeito de Cora de inclinar a cabeça para o lado igual a um pássaro, não percebeu que na realidade a estava inclinando para o lado errado. Digamos que a senhorita tenha visto Cora inclinar a cabeça para a direita... porém esqueceu-se de que na verdade a sua cabeça estava inclinada para a esquerda para produzir aquele efeito no espelho.

       “Foi isso que intrigou e preocupou Helen Abernethie no momento em que a senhorita fez a sua famosa insinuação. Alguma coisa pareceu-lhe ‘errada’. Na outra noite, quando Rosamund Shane fez uma observação inesperada, eu próprio percebi o que acontece em tais ocasiões. Todos, inevitavelmente, olham para o orador. Assim sendo, quando a Sra. Leo sentiu que algo estava errado, deveria ser alguma coisa com Cora Lansquenet. Na outra noite, depois da conversa sobre imagens no espelho e sobre ‘ver-se a si mesma’... acho que a Sra. Leo fez a experiência diante do espelho. Seu rosto não é especialmente assimétrico. Ela provavelmente pensou em Cora, lembrou-se de como Cora costumava inclinar a cabeça para a direita e fez o mesmo olhando para o espelho. Foi então que a imagem pareceu-lhe errada e ela compreendeu, num relâmpago, exatamente o que tinha estado errado no dia do funeral. Ela chegou à conclusão de que, ou Cora dera para inclinar a cabeça para a direção oposta, o que era pouco provável, ou então Cora não era a Cora verdadeira. Nenhuma das duas idéias parecia ter sentido. Entretanto, ela estava determinada a contar imediatamente a sua descoberta para o Sr. Entwhistle. Alguém acostumado a acordar cedo já estava pela casa e seguiu-a quando ela desceu. Receosa das revelações que ela estava prestes a fazer, golpeou-a, com uma pesada maçaneta.”

       Poirot fez uma pausa e depois acrescentou:

       — Posso lhe adiantar, Srta. Gilchrist, que a Concussão da Sra. Abernethie não foi séria. Breve ela estará apta a nos contar a sua história.

       — Eu não fiz nada disso — protestou a Srta. Gilchrist. — É tudo uma mentira sórdida.

       — Era a senhorita que estava no funeral naquele dia — afirmou Michael Shane de repente. Ele estivera estudando o rosto da Srta. Gilchrist. — Eu deveria ter percebido antes...  senti uma vaga sensação de que já a tinha visto antes. Mas é claro que a pessoa nunca olha muito para uma... — Ele parou.

       — Não, ninguém se incomoda em olhar para uma simples dama de companhia — completou a Srta. Gilchrist. Sua voz tremia um pouco. — Um burro de carga, escrava dos serviços domésticos! Quase uma servente! Mas continue, Sr. Poirot. Continue com esse fantástico amontoado de besteiras!

       — É lógico que a sugestão do assassinato apresentada no funeral era apenas o primeiro passo — disse Poirot. — A senhorita tinha outras coisas reservadas. Estava preparada para, a qualquer momento, admitir ter ouvido a conversa entre Richard e sua irmã. Na verdade, o que ele realmente disse a ela era que não viveria por muito tempo, e isso explica a misteriosa frase na carta que ele escreveu para Cora depois que retornou para casa. A freira foi outra de suas sugestões. A freira, ou melhor, as freiras que apareceram no chalé no dia do inquérito proporcionaram-lhe a idéia de mencionar que uma freira estava seguindo-a por todo lado. A senhorita usou essa desculpa quando estava ansiosa para ouvir o que a Sra. Timothy estava dizendo para a sua cunhada em Enderby. E também porque desejava acompanhá-la até aqui para descobrir por si mesma em que pé estavam as investigações. Na verdade, envenenar-se perigosa mas não fatalmente com arsênico é um truque muito antigo, e devo lhe dizer que serviu para despertar no Inspetor Morton suspeitas contra a senhorita.

       — Mas e o quadro? — indagou Rosamund. — Que quadro era?

       Lentamente, Poirot abriu o telegrama.

       — Esta manhã telefonei para o Sr. Entwhistle, uma pessoa responsável, pedindo para ir a Stansfield Grange, e, agindo com autorização do Sr. Abernethie — neste ponto Poirot encarou Timothy com firmeza — procurar, entre os quadros no quarto da Srta. Gilchrist, o da enseada de Polflexan e trazê-lo com o pretexto de colocar uma moldura nova para fazer uma surpresa para a Srta. Gilchrist. Ele deveria levá-lo a Londres e procurar o Sr. Guthrie, a quem eu já prevenira por telegrama. Retirou-se o desenho de Polflexan feito apressadamente e apareceu o quadro original.

       Ele levantou o telegrama e leu:

       — “Decididamente um Vermeer. Guthrie”.

       De repente, com um efeito eletrizante, a Srta. Gilchrist explodiu num discurso.

       — Eu sabia que era um Vermeer. Eu sabia! Ela não sabia! Falando de Rembrandts e de primitivos italianos e incapaz de reconhecer um Vermeer bem debaixo de seu nariz! Sempre tagarelando sobre arte e na realidade não sabendo nada a respeito. Era uma mulher completamente tola. Sempre comentando sobre esse lugar, sobre Enderby, e o que faziam quando eram crianças, sobre Richard, Timothy, Laura, e todos os outros. Sempre nadando em dinheiro. Aquelas crianças sempre tiveram tudo do bom e do melhor. Não sabem como é cansativo ouvir uma pessoa falar sempre das mesmas coisas, hora após hora, dia após dia. E dizendo: “Oh, sim, Sra. Lansquenet”, e “É mesmo, Sra. Lansquenet?”

       Fingindo-se estar interessada. E na verdade sentindo-se entediada... entediada... E sem nada para se esperar do futuro. E então... um Vermeer! Outro dia, li nos jornais que um Vermeer foi vendido por mais de cinco mil libras!

       — A senhora matou-a daquela maneira brutal por cinco mil libras? — Susan estava incrédula.

       — Cinco mil libras — observou Poirot — dariam para alugar e montar uma casa de chá...

       A Srta. Gilchrist dirigiu-se a ele.

       — Pelo menos o senhor compreende. Era a minha única oportunidade. Eu precisava de um capital. — Sua voz vibrava com a força e a obsessão de seu sonho. — Iria chamá-la Palm Tree.  E colocaria pequenos camelos para apoiar os cardápios. Pode-se ocasionalmente conseguir porcelana muito boa (refugo de exportação), não desse tipo branco banal. Pretendia começar em algum bairro simpático, onde teria a freqüência de pessoas agradáveis. Pensei em Rye, ou talvez Chichester. Estou certa de que seria um sucesso. — Ela calou-se por um momento e em seguida acrescentou, pensativa: — Mesas de carvalho, cadeiras de vime com almofadas listradas de branco e vermelho.

       Por alguns momentos, a casa de chá que nunca iria se tornar realidade pareceu mais real do que a solidez vitoriana da sala de visitas em Enderby...

       Foi o Inspetor Morton que quebrou o encanto.

       A Srta. Gilchrist dirigiu-se a ele muito delicadamente.

       — Oh, certamente — concordou ela. — Imediatamente. Garanto-lhe que não quero dar nenhum trabalho. Afinal de contas, se não posso ter a minha Palm Tree, nada mais tem muita importância...

       Saiu da sala acompanhada do inspetor, e Susan falou com a voz ainda trêmula:

       — Eu nunca poderia imaginar que fosse um crime cometido por uma mulher. É horrível!

 

Capítulo XXV

       — Mas eu não compreendi a história das flores de cera — disse Rosamund.

       Ela encarou Poirot com os grandes olhos azuis carregados de censura.

       Estavam em Londres, no apartamento de Helen. Helen estava descansando no sofá e Rosamund e Poirot tomavam chá com ela.

       — Acho que as flores de cera não tiveram nada a ver com o caso — opinou Rosamund. — Nem a mesa de mármore.

       — A mesa de mármore, não. Mas as flores de cera foram o segundo erro da Srta. Gilchrist. Ela comentou como elas ficavam bonitas em cima da mesa de mármore. E entenda, madame, ela não poderia tê-las visto ali. Porque a redoma havia quebrado e as flores haviam sido guardadas antes que ela chegasse com os Abernethie. Sendo assim, ela só poderia tê-las visto na ocasião em que esteve lá passando por Cora Lansquenet.

       — Isso foi burrice dela, não foi? — disse Rosamund.

       Poirot sacudiu o dedo em sua direção.

       — Serve para lhe mostrar, madame, os perigos da conversação. É uma crença arraigada que eu tenho de que, se for possível induzir-se uma pessoa a falar durante bastante tempo sobre o assunto que for, mais cedo ou mais tarde essa pessoa se trairá. Foi o que aconteceu com a Srta. Gilchrist.

       — Precisarei tomar cuidado — disse Rosamund, pensativa.

       Em seguida, seu semblante se iluminou.

       — Vocês sabiam? Vou ter um filho.

       — Ah! Então é esse o motivo da Harley Street e do Regent’s Park?

       — Sim. Eu estava tão perturbada e tão surpresa que simplesmente precisava ir a algum lugar para pensar.

       — Lembro-me de que a senhora disse que isso não acontecia com freqüência.

       — Bem, é muito mais fácil não pensar. Desta vez, entretanto, eu precisava decidir sobre o futuro. E resolvi abandonar o palco e ser apenas mãe.

       — Um papel que lhe assentará admiravelmente bem. Já antevejo retratos maravilhosos no Sketch e no Tatler.

       Rosamund sorriu feliz.

       — Sim, é maravilhoso. Sabe, Michael está encantado. Não pensei que fosse ficar assim.

       Fez uma pausa e depois acrescentou:

       — Susan ficou com a mesa de mármore. Pensei que, já que vou ter um filho...

       Ela deixou a frase inacabada.

       — O negócio de cosméticos de Susan promete muito — comentou Helen. — Acho que ela está a caminho de um grande sucesso.

       — Sim, ela nasceu para vencer — afirmou Poirot. — Ela é como o seu tio.

       — O senhor está se referindo a Richard, suponho — disse Rosamund. — Não a Timothy?

       — Certamente não a Timothy — assegurou Poirot.

       Riram.

       — Greg viajou para algum lugar — comentou Rosamund. — Susan diz que ele estava precisando de repouso.

       Ela olhou de modo inquiridor para Poirot, que nada disse.

       — Não consigo imaginar por que ele ficou dizendo que matara tio Richard — observou Rosamund. — O senhor acha que era uma forma de exibicionismo?

       Poirot retornou ao assunto anterior.

       — Recebi uma carta muito gentil do Sr. Timothy Abernethie. Ele se declarava altamente satisfeito com os serviços que prestei à família.

       — Acho tio Timothy insuportável — opinou Rosamund.

       — Vou ficar com ele na próxima semana — informou Helen. — Parece que estão ajeitando os jardins, mas o trabalho doméstico continua problemático.

       — Suponho que estejam sentindo a falta da horrível Gilchrist — disse Rosamund. — Mas atrevo-me a dizer que no final ela acabaria também matando tio Timothy. Como teria sido divertido se ela o tivesse matado!

       — Assassinato sempre lhe pareceu uma coisa divertida, madame.

       — Oh, não, realmente — respondeu Rosamund de modo vago. — Mas pensei que o culpado fosse George. — Ela se animou. — Talvez algum dia ele cometa um.

       — E isso será divertido — disse Poirot com sarcasmo.

       — Sim, não seria? — concordou Rosamund.

       Ela comeu um outro éclair do prato colocado em frente a ela.

       Poirot dirigiu-se a Helen.

       — E a senhora, madame, vai voltar para Chipre?

       — Sim, daqui a quinze dias.

       — Então deixe-me desejar-lhe uma boa viagem.

       Ele curvou-se sobre a sua mão. Helen levou-o até a porta deixando Rosamund se deliciando com os doces.

       Helen falou abruptamente:

       — Gostaria que soubesse, Sr. Poirot, que o dinheiro que Richard me deixou significou mais para mim do que para qualquer um dos outros herdeiros.

       — Tanto assim, madame?

       — Sim. Sabe, há uma criança em Chipre... Meu marido e eu éramos muito dedicados um ao outro... era uma tristeza para nós não termos filhos. Depois que ele morreu, minha solidão era inacreditável. Quando eu estava trabalhando como enfermeira em Londres no fim da guerra, conheci alguém... Ele era mais jovem do que eu e casado, embora não fosse muito feliz. Ficamos juntos por algum tempo. Foi só isso. Ele voltou para o Canadá, para a esposa e filhos. Ele nunca ficou sabendo do... do nosso filho. Ele não o teria querido. Eu quis. Parecia-me um milagre... uma mulher de meia-idade com toda uma vida por trás. Com o dinheiro de Richard vou poder educar o meu pseudo-sobrinho e garantir-lhe o futuro. — Fez uma pausa e em seguida acrescentou: — Nunca contei a Richard. Ele gostava de mim e eu dele, mas não teria compreendido. O senhor sabe tantas coisas de nossas vidas que tive vontade que soubesse isso a meu respeito.

       Poirot tornou a curvar-se sobre suas mãos.

       — Alô, Poirot — cumprimentou o Sr. Entwhistle. — Acabo de chegar do tribunal. O veredicto foi culpada, é claro. Entretanto, eu não ficaria surpreso se ela acabasse em Broadmoor. Desde que chegou à prisão ela perdeu completamente a noção da realidade. Sabe, ela está bastante feliz e muito afável. Passa a maior parte de seu tempo fazendo os planos mais elaborados para dirigir uma cadeia de casas de chá. Seu mais novo estabelecimento se chamará Lilac Bush. Vai abri-lo em Cromer.

       — Chega-se a pensar se ela não foi sempre um pouco maluca. Mas, quanto a mim, acho que não.

       — Meu Deus, não! Estava tão sã quanto eu ou você quando planejou aquele assassinato. Praticou-o a sangue-frio. Sabe, por baixo daquele jeito inconseqüente, ela tem uma boa cabeça.

       Poirot teve um ligeiro estremecimento.

       — Estou pensando — falou ele — em algumas palavras que Susan Banks disse: que ela nunca teria imaginado que aquele crime tivesse sido cometido por uma mulher.

       — Por que não? — perguntou o Sr. Entwhistle. — Existem criminosos de todos os tipos.

       Ficaram em silêncio... e Poirot pensou nos assassinos que ele conhecera...

 

                                                                                            Agatha Christie

 

 

Carlos Cunha        Arte & Produção Visual

 

 

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